José Horta Nunes - Os dicionarios portugueses ¢ a descolonizacio lingiiistica
OS DICIONARIOS PORTUGUESES
EA DESCOLONIZACAO LINGUISTICA'
José Horta Nunes
Universidade Estadual Paulista (Unesp)
RESUMO: Este artigo apresenta uma andlise do modo como trés dicio-
ndrios portugueses do século XIX foram considerados no século XX, no
interior de um processo de descolonizacdo lingilistica. Distinguem-se
diferentes maneiras de lidar com esses diciondrios no Brasil: a cons-
trugGo de uma memGria (a reedic¢éo comemorativa do diciondrio de
Morais), a produedo de um esquecimento (criticas ao dicionario de C.
de Figueiredo) e a atualizagao de um instrumento (a reedigao do dicio-
nario de C. Aulete). O autor interpreta essas prdticas como uma nova
situagdo de gramatizacdo — a heterogramatizagao, que envolve modos
diversos de relacao entre portugueses e brasileiros.
ABSTRACT: This article presents an analysis of the way three Portugue-
se dictionaries from the 19" century were considered in the 20" century,
in the midst of a process of linguistic descolonization. We distinguish
different ways to deal with these dictionaries in Brazil: the construction
of.a memory (the commemorative re-edition of the dictionary of Morais),
the production of a lapse of memory (critiques of the dictionary of C. of
Figueiredo) and the update of an instrument (the re-edition of the dictio-
nary of C. Aulete). The author interprets these practices as a new situa-
tion of grammatization — the heterogrammatization, which comprehends
different modes of relation between Brazilians and Portuguese.
Podemos tratar da histéria dos dicionarios no Brasil mostrando a
constituigao dos dicionarios brasileiros: como eles aparecem, como eles
se transformam, como eles circulam. Esse é 0 percurso que realizamos
em uma série de trabalhos anteriores (Nunes, 2002, 2006). Mas podemos
também estudar 0 modo como os diciondrios portugueses s4o introdu-
zidos no pais, como eles sao lidos, como eles servem de referéncia para
uma produgio local e finalmente como eles deixam de ser utilizados
ou sao adaptados ao contexto nacional. Este ultimo procedimento € 0
LINGUAS € INSTRUMENTOS LINGUISTICOS - N20 25José Horta Nunes - Os dicionarios portugueses e a descolonizacio lingiiistica
que empregaremos neste trabalho. Vamos analisar a presenga de trés
dicionarios portugueses no Brasil durante 0 século XX: 0 Diccionario
da Lingua Portugueza (Silva, 1922), 0 Névo Diccionario da Lingua
Portuguésa (Figueiredo, 1899) e 0 Diciondrio Contempordneo da Lingua
Portuguesa (Aulete, 1958).
Em um pais de colonizagaio como o Brasil, o processo de gramati-
zacio conjuga os dois percursos mencionados acima: o da produgao de
dicionarios brasileiros e o do "empréstimo" de dicionarios portugueses.
Ao atentarmos desta vez aos segundos, temos em vista contribuir para a
reflexdio sobre o que E. Orlandi chama a "descolonizaciio lingiiistica":
Este fato da historicizagao da lingua concorre para o que tratamos
aqui como processo de descolonizagao lingiiistica que pode ser definido
como esse imaginario no qual se dé também um acontecimento lingiiis-
tico desta vez sustentado no fato de que a lingua faz sentido em relacao
a sujeitos nao mais submetidos a um poder que impde uma lingua sobre
sujeitos de uma outra sociedade, de um outro Estado, de uma outra Na¢ao.
Se, na colonizagio, o lugar de memoria pelo qual se significa a lingua
e seus falantes é Portugal, no processo de descolonizagao esta posicao
se inverte e o lugar de significagio é deste lado do Atlantico com sua
meméria local. A descolonizac4o, assim como a colonizagao, tem a ver
como modo como as sociedades se estruturam politicamente em relacao
aos paises, aos Estados, as Nacées, as tribos. Isto é, tanto a colonizagao
como a descolonizagao sao fatos da relacdo entre a unidade necessaria
(esprit de corps) ¢ a diversidade concreta em um mesmo territorio. (Or-
landi, 2007, p. 2)
Visto que tomamos para andlise algumas edi¢des do século XX, o que
est4 em questo é a continuidade/descontinuidade desses instrumentos
no territério do Brasil Republicano. No periodo em que surgem e de-
pois se estabelecem os dicionarios brasileiros, 0 que acontece com os
diciondrios portugueses que circulavam no Brasil? Uma vez formada a
unidade nacional, como se daa relaco com a ex-metrépole e como isso
se mostra na producao dos instrumentos lingiiisticos?
De modo mais decisivo, a partir da década de 1960 os grandes di-
cionarios brasileiros passam a ser mais utilizados que os portugueses.
Se, ao final desse processo, podemos dizer que houve uma substitui¢ao
tecnolégica, é preciso considerar também que teve lugar um intenso
trabalho de critica e de reformultagao lexicografica, do qual resultou,
por um lado, a rejei¢éo de algumas obras portuguesas e, por outro, a
aceitacao ou a adaptacdo de outras.
No jogo entre a mem6ria e 0 esquecimento notamos que a descoloni-
zag&o lingitistica que se opera no dominio dos dicionarios nfo é linear e
nem unidirecional. Ela ocorre por meio de diversas trilhas e é permeada
26 LINGUAS € INSTRUMENTOS LINGHisTICOS — N*'20José Horta Nunes - Os dicionarios portugueses e a descolonizacio lingiifstica
de obstaculos, bifurcagdes, desvios. A circulagfo das obras se da sob
outras formas de representagdo, de modo a reconfigurar as relagGes entre
os sujeitos, as linguas e a histéria. Nessas condi¢des, ha uma mudanga
no modo de autoria dos dicionarios. Os brasileiros passam a elaborar
diciondrios nacionais e a se posicionar frente aos dicionarios ¢ aos auto-
res portugueses. Trata-se de uma posi¢ao de autor lexicégrafo brasileiro
que se fortalece e se torna visivel. A partir dessa posi¢ao, constroem-se
as distancias em relagao aos dicionarios portugueses, os afastamentos
e as aproximagées.
Criticas ao diciondrio de Candido de Figueiredo
Foi somente nos inicios da Reptiblica, no Brasil, que os dicionarios
portugueses foram criticados de modo incisivo e que, a partir dai, ficou
mais visivel a posig&o de autor brasileiro de dicionario geral. Inicialmente,
tatou-se de criticar verbetes e de propor: acréscimos na nomenclatura, alte-
ragdes das definigdes e novas entradas; depois, criaram-se condi¢des para
que os autores brasileiros elaborassem dicionarios gerais ou adaptassem
0s diciondrios portugueses. Alguns autores portugueses foram diretamente
visados pelas criticas, sobretudo Candido de Figueiredo, cujo dicionario
era 0 que mais se tomava como representativo dos brasileirismos.
A rejeico de um dicionario pode se dar por motivos editoriais, mas
pode também resultar de criticas e da formagao de uma opiniao publica
adversa. O caso do diciondrio de Candido de Figueiredo atesta a for-
ga da critica e o papel da midia na desconstrugao da imagem de uma
obra. Publicado pela primeira vez em 1899, teve uma segunda edi¢ao
em 1913 e uma terceira em 1922, todas em Lisboa. Foi um dos mais
lidos no Brasil em inicios do século XX. E enquanto outros dicionarios
portugueses tiveram uma certa continuidade no pais, como 0 de Aulete
(1881), 0 de Candido de Figueiredo praticamente deixou de circular na
segunda metade do século XX.
E emblematico das criticas a Figueidedo um conjunto de textos de
Afonso d’Escragnolle Taunay. Filho de Alfredo d’Escragnolle Taunay,
o Visconde de Taunay, e descendente de familia de emigrantes franceses
do século XIX, ligada as artes e as ciéncias, Taunay era especialista no
bandeirismo paulista e foi também um lexicégrafo que se dedicou ao
estudo da terminologia cientifica. Nasceu em Floriandpolis, em 1876 ¢
faleceu em Sao Paulo, em 1958. Formou-se Engenheiro Civil pela Escola
Politécnica do Rio de Janeiro e foi professor da Escola Politécnica de Sao
Paulo, além de membro da Academia Brasileira de Letras, do Instituto
Histérico e Geografico Brasileiro e diretor dos Museus do Estado de Sao
Paulo, dentre outras das varias fungdes que desempenhou.
LINGUAS E INSTRUMENTOS LINGUISTICOS — N*20 27‘José Horta Nunes - Os dicionarios portugueses ¢ a descolonizacio lingiiistica
Em seus estudos lexicograficos, Taunay dedicou-se a comentar
dicionarios portugueses e a estudar a terminologia cientifica em um
momento em que as ciéncias ganhavam lugar de destaque nos dicio-
narios. Os primeiros trabalhos lexicograficos de Taunay resultaram
em uma memoria (Léxico de termos técnicos e scientificos) que foi
inserida no Annuario da Escola Polytechnica de Sao Paulo, de 1909.
Taunay (1914) afirma ter apontado nesse trabalho mais de cinco mil
lacunas de vocabulario técnico e cientffico: palavras nao encontradas
no Diccionario da Lingua Portugueza, de Candido de Figueiredo, e
na Encyclopedia Portugueza Illusirada, publicagao dirigida por Ma-
ximiano de Lemos.
Isso mostra o papel das instituigdes, como a Escola Politécnica, no
surgimento de uma posi¢ao de lexicégrafo no Brasil. O discurso técnico
e cientifico formulado nesse contexto acompanharia Taunay nos demais
trabalhos lexicograficos que realizou. Seguiram-se, no mesmo género:
0 Lexico de Lacunas (1914), 0 Vocabulario de Omiss6es (1924) e os
livros Insufficiencia e deficiencia dos grandes diccionarios portugue-
zes (1928) e Inopia Scientifica'e Vocabular dos Grandes Diccionarios
Portuguezes (1932).
Esse conjunto de obras de Taunay atesta a construcao de um lugar
para se falar da “falta na lingua” ou das “lacunas”:
Nao ha quem, manuseando seguidamente os melhores e mais
completos diccionarios portuguezes deixe de notar a avultada
copia de lacunas que os tornam deficientes sobretudo quanto 4
terminologia technica e scientifica e aos brazileirismos. (TAUNAY
1914, prefacio)
Falar em “lacuna” marca um deslocamento em relag4o a discursos
precedentes, que tomavam as palavras brasileiras como “complementos”
ou “acréscimos”, de modo a pressupor uma unidade estabilizada do
diciondrio portugués. Ao se nomear as "lacunas" deste, produz-se uma
desestabilizacao de tal unidade. Dizer a falta é significar a incompletude
do discurso do dicionario e colocar-se na posigao de quem se encontra
no interior desses limites e ndo em suas margens. Nao é mais somente
nas complementagées que a lexicografia brasileira se mostra, mos no
cerne mesmo do dicionario.
O discurso lacunar de Taunay se sustenta, de um lado, no dominio
da ciéncia, filtro pelo qual Taunay revisa os verbetes do dicionario de
Figueiredo, e de outro, no 4mbito da midia e da opiniao publica, pois é
ai que circulam muitos dos textos de Taunay. Em relagao as ciéncias, 0
autor afirma:
28 LINGUAS E INSTRUMENTOS LINGUISTICOS — N#20José Horta Nunes - Os diciondrios portugueses ¢ a descolonizacio lingiiistica
Ainda assim, muito, muitissimo, ha que respigar na seara recolhida
pelos grandes lexicographos, sobretudo no colossal repositorio
de termos empregados pela sciencia e industria modernas, con-
tinuamente avolumado pelo extraordinario progresso de todas
as sciencias, expans4o e aperfeigoamento das industrias, a serie
ininterrupta das grandes invengOes & descobertas e a consequente
creacdo de novas e vastas technologias ea amplificagao, em gran-
des proporgdes, das ja existentes. (Taunay, 1914, prefacio)
O trecho acima, presente na introdugdo do texto de 1914 enquanto
citacao do primeiro léxico do autor, o Lexico de termos technicos e
scientificos (1909), remete ao contexto da forte industrializag&o que se
anuncia em inicios do século XX, assim como a expansao das ciéncias
que a acompanha. A "expansao" e o "progresso" das ciéncias, com todas
as adjetivagdes relacionadas ("avultada cépia de lacunas", "extraordinario
progresso", “colossal repositorio de termos empregados pela sciencia e
industria modernas” "grandes invengdes ¢ descobertas ", "vastas techno-
logias") é observavel também na expanséo do léxico, ou seja, no aumento
das palavras cientificas. A lacuna em Taunay, portanto, éa da ciéncia e
das técnicas, em uma conjuntura de ampliacdo da industrializagao, da
urbanizacao e das tecnologias, bem como das instituigdes de ensino que
divulgam os saberes e as técnicas. E dessa perspectiva que se discute a
lingua e a ciéncia no dominio piiblico.
“‘Vemos ento que as criticas ao dicionario de CAndido de Figueiredo
surgem juntamente com uma produgao lexicografica voltada a termi-
nologia cientifica e com o fomento de um debate piiblico. As disputas
entre Taunay e Candido de Figueiredo se mostram mais explicitas no
livro Insufficiéncia e deficiencia dos grandes dicionarios portuguezes,
de Taunay, publicado em 1928, o qual traz uma coletanea de textos
publicados na imprensa fluminense em 1923, logo apds a publicagao da
terceira edigdo do dicionario de C. de Figueiredo em 1922. Nesses textos
mostram-se as vivas polémicas travadas entre os autores. Cada capitulo
apresenta criticas aos diciondrios portugueses em um certo dominio
da terminologia cientifica, como o dos "insetos", dos "mamiferos”, da
"zoologia", da "quimica", dente outros, além da indicagdo de lacunas de
brasileirismos e regionalismos.
discurso lacunar pode ser considerado uma forma do discurso
polémico, na medida em que coloca em oposigao 0 discurso cotidiano e
das ciéncias eo discurso das autoridades classicas e da perspectiva hist6-
rico-filolégica. Segundo E. Orlandi, no discurso polémico "a polissemia
écontrolada uma vez que os interlocutores procuram direcionar, cada um
por si, o referente do discurso" (ORLANDI 1987, p. 29). Se dizer a lacuna
LINGUAS E INSTRUMENTOS LINGUISTICOS — N°20 29José Horta Nunes - Os dicionarios portugueses e a descolonizacio lingiifstica
traz 4 cena a polissemia, fazé-lo de modo critico produz a polémica, com
o direcionamento dos referentes. E nesse caso, trata-se do referente que
falta, que esta ausente (lacuna) ou silenciado (omissao).
Com as criticas de Taunay tem lugar uma desconstrugao da repre-
sentagao da lingua, tal como efetuada pelos diciondrios portugueses. A
representacao ai nao se limita ao contexto nacional, mas se localiza tam-
bém no Ambito internacional e se sustenta na universalidade da ciéncia.
Taunay compara os diciondrios portugueses com os de outras naciona-
lidades, como a americana e a francesa, considerando-os, em matéria de
terminologia cientifica, inferiores aos dicionarios Webster (“Parece muito
longe ainda o dia em que ha de surgir 0 Webster do mundo lusitano”)
e Larousse. Mas se a ciéncia se representa universalmente, a lingua é
nacional e a terminologia brasileira é vista como diferente da portugue-
sa, sobretudo em relac&o aos "termos vulgares": "Para nds brasileiros
falta-lhes e muito a technologia vulgar alias injustificadamente ausente
de suas paginas pois é um lexico portuguez e a terminologia portugueza
¢ brasileira differem immenso hoje" (TAUNAY 1928, p. IX). Vé-se que
a descolonizacao lingiiistica se mostra na medida em que se reelaboram
as relagdes internacionais no campo da lexicografia.
Outro ponto a ser considerado nessa desconstrugao lingitistica é 0
da autoria. Da perspectiva da Andlise de Discurso, a autoria € uma das
fungdes do sujeito. "E assim que pensamos a autoria como uma fungio
discursiva: se 0 locutor se representa como eu no discurso e 0 enunciador
éa perspectiva que esse eu assume, a fungéio discursiva autor é a funcdo
que esse eu assume enquanto produtor de linguagem, produtor de texto"
(ORLANDI 1999, p. 75). Como autor lexicégrafo, Taunay se posiciona
do lugar do leitor critico-colaborador. Dessa posig&o, efetuam-se criticas,
comparam-se diciondrios, indicam-se lacunas e propdem-se verbetes.
O colaborador é um "curioso", um "colecionador", um "cotejador", um
"anotador". Além disso, 0 colaborador se apdia em “autoridades” con-
tempordneas para realizar o cotejo das obras:
Reciando, acima de tudo, infringir 0 preceito salutar do ne sutor
pego aos benévolos leitores nao se esque¢am de que nao sou quem
emenda ao Novo Diccionario e sim apenas 0 porta voz das mais
abalisadas autoridades das grandes encyclopedias contemporaneas
e das maiores linguas. Assim, queiram dar-se, uma vez ou outra,
ao trabalho de cotejar as minhas afirmativas com as das fontes
invocadas. (TAUNAY 1928, p. XII)
Taunay, ao cotejar os verbetes dos diciondrios com os textos dos cien-
tistas, coloca em cena as "autoridades das ciéncias" e se posiciona como
30 LINGUAS E INSTRUMENTOS LINGUISTICOS — Ne20José Horta Nunes - Os diciondrios portugueses e a descolonizaciio lingiistica
aquele que faz a ligac4o entre 0 leitor, o cientista e 0 lexicégrafo. Assim,
por exemplo, quando analisa verbetes de dominios da natureza, 0 autor
afirma: “tomei dois guias da maxima seguranga, dois naturalistas brasi-
leiros, da mais larga e conceituosa reputagao, os Drs. Alipio de Miranda
Ribeiro e Candido de Mello Leit&o”. O autor para Taunay é quase sempre
um “outro”: na lexicografia, € C. de Figueiredo, Aulete, Morais, dentre
outros. Na ciéncia, s4o as autoridades cientificas, os cientistas naturais,
os especialistas. Da posigao de critico colaborador, 0 que se faz é avaliar
a representatividade dessas posigdes de autoria. E assim que Taunay faz
criticas aos autores e as fontes utilizadas por eles. Em relagao a Candido
de Figueiredo menciona, por exemplo, a "falta de cultura geral scientifica
do seu autor", assim como a falta de autoridade nas fontes: "autoridade
nulla, até de noticias da imprensa di "manaciais turvos", "opinides
de uma technologia rural".
Uma marca ainda a se ressaltar nesse discurso critico é a ironia. O
modo irénico de se referir aos lexicégrafos é regular nos textos anali-
sados. A destrui¢3o dos sentidos operada pela ironia é um mecanismo
que corrdi a representagao. A conclusao do livro de Taunay, denominada
"Suprema humilhagiio. Confissao de derrota. Acto de contric¢ao.” € toda
permeada de enunciados irénicos. Em um contexto em que as teorias
s&o debatidas no espaco publico, Taunay questiona ironicamente o lugar
de autoria cientffica de C. de Figueiredo junto a gramatica comparada:
"So agora o genio da lingua portugueza e o da philologia comparada
que, sob as palmas enthusiasticas de Bopp e de Schlegel, de Whitnay e
Burbnouf, Grimm e Miller, etc., coroam o Sr. Candido de Figueiredo,
modesto e comovido" (p. 149).
Considerando-se que 0 dicionario de C. de Figueiredo sustentava-se
na filologia no discurso dos autores classicos, o discurso de Taunay
resiste a essa injung’o e abre espago para uma outra autoria lexico-
grafica, marcada pela atualizagio, em oposi¢éo ao "obsoleto", pela
ciéncia, em oposi¢ao a “histéria", tal como significada na filologia,
¢ pelas publicagées cientificas e jornalisticas em oposi¢do aos textos
classicos.
‘A descontinuidade do dicionario de Candido de Figueiredo pode ser
compreendida nesse contexto de debate puiblico em que esta em jogo nao
somente a adequaco de um ou outro verbete, mas a representatividade
da ciéncia e da autoria. A gramatica histérica, que sustentava 0 diciondrio
de Candido de Figueireto é frontalmente combatida e 0 autor portugués
€ criticado com apoio nas ciéncias naturais e no dominio das técnicas.
Com isso, 0 dicionario classico e histérico perde forca em relagdo as
discursividades da ciéncia e do cotidiano que sustentarao outras formas
de dicionario.
LINGUAS E INSTRUMENTOS LINGUISTICOS — N*20 31José Horta Nunes - Os dicionarios portugueses ¢ a descolonizacio lingiiistica
O Morais e a construgao de uma memoria lexicografica
Enquanto 0 dicionario de Candido de Figueiredo (1899) se esvaeceu
durante o século XX, 0 Diccionario da Lingua Portgueza de A. de Morais
Silva (1789), que teve varias reedigdes durante o século XIX, ganhou no
Brasil, em 1922, uma edigao facsimile da 2* edicao, de 1813. Tratou-se de
uma edigéo comemorativa aos 100 anos da Independéncia do Brasil. Esse
gesto editorial pode ser considerado como o da construcao de uma meméria
lexicografica, reforgada pela nacionalidade brasileira do autor, nascido
no Rio de Janeiro. A unanimidade em relacaio a Morais se mostra quando
notamos as repeticdes de citagdes elogiosas por varios lexicégrafos.
Evocar Morais e nao qualquer outro dicionarista do século XIX em
uma edigaio comemorativa pode ser visto também como a atualizacao de
um sentido nao histérico da lingua, de uma visao de clareza e concisio
aos moldes iluministas. Rejeitar o histrico e se apoiar em uma meméria
dicionaristica significava também atentar para as formas contemporaneas
da lingua, ao uso, bem como As novas praticas de autoria lexicografica e
de divulgaco da lingua que se apresentavam no Brasil.
Ainda que evocado como meméria, 0 diciondrio de Morais nao foi
reformulado e publicado no Brasil posteriormente a 1922. Jé em Por-
tugal, ele teve sua 10* edicdo, revista e atualizada pela editora Conflu-
éncia (SILVA 1949-59), com doze volumes. Em tal edi¢do, organizada
por Augusto Moreno, Cardoso Junior e Pedro Machado, nota-se uma
aproximagaio entre a tradig&o portuguesa e a brasileira, bem como um
deslocamento em dire¢ao a perspectiva histérica, como veremos mais
abaixo. Na imagem alocada na pagina de rosto se colocam lado a lado
os simbolos nacionais de Portugal e Brasil. A ortografia é atualizada em
conformidade com o acordo ortografico luso-brasileiro de 1945. Além
disso, os escritores “modernos” brasileiros também passam a figurar nos
verbetes, como se vé na seguinte seqiiéncia do prefacio dos editores:
Vai para mais de seis anos que eles meteram mios a obra, desde
ent§o ininterruptamente prosseguida, segundo o plano delineado:
actualizacao rigorosa da ortografia e da prosédia; emenda das eti-
mologias evidentemente erradas; extensdo da abonagio classica
também aos escritores modernos, principalmente dos séculos XIX
e XX, e tanto de Portugal como do Brasil, ampliacao e acertamento
do vocabulario cientifico, de harmonia com os dados e conheci-
mentos actuais. (Silva, 1949-59, p. 13).
Autores como Rui Barbosa, Machado de Assis, José de Alencar,
Euclides da Cunha, dentre outros, sao utilizados nas abonagées. Tal
32 LINGUAS E INSTRUMENTOS LINGUISTICOS — N20José Horta Nunes - Os diciondrios portugueses e a descolonizacio lingiiistica
fato indica que 0 movimento de descolonizagio lingiiistica tem sua
contraparte em Portugal, com o reconhecimento, ainda que limitado,
das discursividades brasileiras.
A filiagao ao discurso da gramatica histérica se mostra quando os edi-
tores comentam o teor das etimologias inseridas nas edi¢gdes anteriores:
“etimologias impossiveis em luta aberta contra as leis fonéticas”. Outra
marca da aproximagao com a perspectiva histérica esta na supressdo da
gramatica que vinha em apéndice no dicionario de Morais: “Suprimimos
nesta edi¢do o Epitome Gramatical que tem andado anexo ao Diciondrio
ja porque o lugar proprio da Gramatica nao é o vestibulo de qualquer
Iéxico, j4 porque a doutrina no mesmo Epitemo expendida se encontra
quase toda ela inteiramente antiquada”. (SILVA 1949-59, p. 16). Por
outro lado, os editores mantém o “Vocabulario de Palavras e Frases La-
tinas e Estrangeiras”, considerando que ele conserva atualidade. Desse
modo, as marcas das filiacdes tedricas da Gramatica Geral, sustentadas
nas primeiras edigdes do Morais, sao apagadas, enquanto os sentidos que
se filiam a uma perspectiva histérico-filolégica sao atualizados.
Pela mesma editora Confluéncia (1987), foi publicada também uma
edic&o compacta, que reduziu a obra de doze volumes a cinco, manten-
do o direcionamento editorial da 10* edic&o, qual seja, o de descrever o
"idioma comum a Portugal e Brasil", mas destinando-se desta vez aos
"nao especializados".
Ahistéria das reedigdes do Morais no século XX assinala a grande
aceitac&o desse dicionario tanto no Brasil como em Portugal. No Bra-
sil, a reedi¢&o da 2° edic&o produz uma identificago e uma meméria,
ao passo que em Portugal nota-se uma atualizagao, com a 10* edicdo, e
também uma bifurcac4o, com uma publicagéo compacta direcionada a
um publico mais amplo e nao erudito. A representag4o do Brasil nao se
resume mais ai somente ao acréscimo de brasileirismos, mas ja se nota
a busca de uma unidade com a inclusao de discursividades literarias e
cientificas e a unificag&o ortografica, o que pode ser visto também como
uma resposta as pressdes dos brasileiros, tais como observadas no item
anterior.
Caldas Aulete: as edigdes brasileiras
O Diccionario Contemporaneo da Lingua Portugueza, de Caldas
Aulete (1881), publicado em Lisboa, onde ganhou novas edigdes em
1925 e 1948, teve um percurso singular no processo de descolonizacao
lingiiistica. Tratou-se desta vez de adaptar um dicionario portugués ao
contexto brasileiro. A editora Delta reuniu um grupo de especialistas para
realizar uma edigdo atualizada da obra (Aulete, 1958).
LINGUAS E INSTRUMENTOS LINGUISTICOS — N20 33‘José Horta Nunes - Os diciondrios portugueses ¢ a descolonizacio lingiiistica
Podemos ver a publicacdo desse diciondrio como um acontecimento
que atualiza uma memoria da lexicografia portuguesa no Brasil. Com
isso, hé uma migracao de sentidos, resultante de um trabalho discursivo
que incide sobre a apresentacao da obra, sobre a elaboragiio dos verbetes
e sobre 0 aspecto grafico do dicionario. Todas essas mudangas deixam 0
dicionario com "cara" de brasileiro, ainda que a unidade Brasil-Portugal
seja, mais uma vez, reforgada nos textos introdutérios.
‘Anota dos editores anuncia a atualizagdo de um "patriménio comum
dos povos" que se expressam na lingua portuguesa. As edi¢des anteriores
que compuseram um "todo luso-brasileiro" traziam os "acrescentos dos
brasileiros": "o concurso brasileiro tinha carater suplementar". Com 0
plano de Hamilcar Garcia, realizava-se 0 propésito de "emprestar-lhe
ainda mais vitalidade com uma atualizagao em forma e em contetido,
alargar para uma ativa circulacao os beneficios que esta obra emérita
vem prestando ao Brasil e a Portugal”. Tais palavras dos editores, ao
mesmo tempo em que anunciam a coordenagao dos trabalhos por um
fildlogo brasileiro, se apdiam em uma memoria de unidade da lingua
portuguesa, reafirmando os lagos com a ex-metropole sem apontar para
uma ruptura profunda.
No mesmo sentido se orienta a fala de Antenor Nascentes. No texto
introdutério "O que vale o Dicionario Contemporaneo de Caldas Aule-
te", Nascentes afirma: "A lingua portuguésa tem dois dicionarios: 0 de
Morais 0 de Caldas Aulete". Desse enunciado podemos depreender,
além da evocagao da meméria de Morais, um nao-dito: Nascentes nao
menciona 0 dicionario de Candido de Figueiredo, que era um dos que
mais circulavam na época. Isso parece indicar uma rejei¢Zo daquele
diciondrio, em consonancia com as criticas de Taunay j4 mencionadas
anteriormente. Além disso, Nascentes observa que "mais copiosos do que
Caldas Aulete ha muitos dicionarios. Mas como? A custa de variantes,
regionalismos, arcaismos, neologismos sem raizes e até de palavras
duvidosas". Assim, enquanto o Aulete € considerado o "melhor que ha
em nossa lingua", os dicionarios "copiosos" sao questionados. Dentre
estes bem se encaixaria o de Candido de Figueiredo (1899) que, em sua
pagina de rosto traz as marcas do discurso da quantidade ("muito mais de
30.000 vocabulos", "muitos milhares de acepgdes", "muitos centenares
de vocdbulos") e na apresentagao do autor indica a selecao indiscrimina-
da de verbetes: "E nada desperdicei do que fui colhendo: archaismos e
néologismos, derivagdes violentas e até erréneas, termos de significagao
duvidosa e obscura, tudo alphabetei e reproduzi, julgando cumprir um
dever.” (Idem, p. VID).
Em um outro texto introdutério de Nascentes ("A proniincia normal
brasileira da lingua portuguesa"), notamos uma outra marca da adaptacao
34 LNGUAS E INSTRUMENTOS LINGUISTICOS — N*20José Horta Nunes - Os diciondrios portugueses ¢ a descolonizagio lingiiistica
ao contexto brasileiro, com a indica¢ao do Rio de Janeiro, ent&o capital
do Brasil e "centro mais culto do pais", como lugar onde "melhor se
fala a lingua":
Segundo as resolugdes de dois congressos, 0 Primeiro Congresso
de Lingua Nacional Cantada, reunido em S40 Paulo em 1937,
eo de Lingua Falada no Teatro, reunido em Salvador em 1956,
a pronincia normal brasileira é a da cidade do Rio de Janeiro.
(AULETE 1958, p. XV)
Embora o dicionario nao traga transcrigdes fonéticas das palavras-
entrada, o discurso de Nascentes constréi uma imagem da lingua falada
no Brasil, que se sustenta em enunciagées anteriores, como a dos con-
gressos de "Lingua Nacional Cantada" e o de "Lingua Falada no Teatro".
O dicionario, assim, se atualiza no encontro entre a tradi¢do escrita que
reinscreve a meméria lexicografica da lingua portuguesa e a tradicZo
oral brasileira tal como representada na fala carioca.
No plano de Hamilcar Garcia (AULETE 1958, p. XXV), percebe-se a
orientacao no sentido de conjugar as perspectivas portuguesa e brasileira
("Apresentar a obra, na sua disposig&o e contextura, sob o duplo ponto
de vista brasileiro e portugués"). Desse modo, o lexicégrafo afirma que
ira "respeitar as linhas gerais, a escola filolégica seguida pelos primeiros
autores, sobretudo Caldas Aulete e Santos Valente", mas também que
vai adotar os "modernos principios da lexicografia, quais sejam, dentre
outros, o registro dos aspectos dinémicos do vocabulario e a atengao
constante a fun¢do pratica de um dicionario".
O trabalho de atualizagao envolveu uma reescrita da obra: "mais da
metade da obra foi reescrita, quanto a novas acepgées ou ao registro de
novos fatos nas antigas, introduzindo-se aproximadamente 30.000 novos
vocabulos, num total de 280.000 acepgdes diversas". Na redacdo dos
verbetes, tal atualizac&o correspondeu a um deslocamento do discurso
das "autoridades" para o discurso da "precisdo e da clareza", com apoio
na "lingiiistica moderna" e nas ciéncias: "seguimos normas verdadeira-
mente contempordneas, isto é, cientificas e tiradas a lingitistica moderna",
"pensamos que um dicionario sé pode ser uma autoridade no sentido em
que o é um livro de quimica, fisica ou botanica: pela preciso, clareza
€ extensdo com que registra os fatos observados segundo os ultimos
principios e métodos usados no respectivo campo".
Segue dessa ancoragem nas ciéncias como modo de enunciagao dos
verbetes todo um trabalho de-carater enciclopédico. Ao abordar varios
campos de saber contemplados na obra (aerondutica, agricultura, anato-
mia, antropologia, arquitetura e constru¢ao, etc.), Garcia relata o modo
LINGUAS E INSTRUMENTOS LINGUISTICS — N*20 35‘José Horta Nunes - Os diciondirios portugueses ¢ a descolonizacio lingtifstica
de atualizacao de tais campos. Em varios deles, nota-se a adequa¢ao ao
contexto brasileiro, como vemos no item "agricultura":
AGRICULTURA.
Grande nimero de térmos novos decorrentes de Estagdes Experi-
mentais, sobretudo no Brasil, enriquece 0 ja copioso vocabulario
agricola déste léxico, particularmente em cafeicultura. Fazem-se,
como sempre, referéncias ao diverso emprégo de certos vocébulos
em conseqiiéncia da diversidade de culturas em um ¢ outro lado
do Atlantico. Na pecuaria, pelas mesmas raz6es, aumentou-se 0
vocabulario correspondente. (AULETE 1958, p. XXXI)
Isso mostra que 0 dicionario, embora efetue citagdes de autores con-
sagrados, nao se filia ao discurso do diciondrio de "autoridades" ou do
dicionario "académico", mas sim a uma perspectiva enciclopédica que
se sustenta nas ciéncias e particularmente nos saberes que entao jase
produziam no Brasil. Além disso, contempla-se também a "linguagem
familiar e popular", com a insergao de "locugdes familiares e populares",
"girias", "sem omitir chulices ou vulgaridades, veio do critério cientifico
de registrar 0 uso".
Outra marca da adaptagao ao contexto brasileiro esta na utilizagao de
imagens: desenhos, pinturas, fotografias. Os recursos graficos, como se
depreende da Nota dos Editores, vieram de "editores europeus e americanos
(Larousse, Salvat, Eurico Santos ¢ outros)". Em parte dos verbetes, temos
ilustragdes com desenhos e fotos. Algumas paginas especiais apresentam
fotos ou ilustragdes coloridas, contendo motivos brasileiros. A perspecti-
va nacionalista aparece também nas ilustragdes iniciais de cada letra. No
primeiro volume, por exemplo, que vai das letras A a C, temos na letra
‘A duas fotos do ministério da Educagao, no Rio de Janeiro, com 0 titulo
de "Arquitetura Brasileira", de modo que o dicionario se inicia com uma
imagem da entao capital. Na letra B, desta vez éum simbolo de Sao Paulo
que é estampado: 0 "Monumento dos Bandeirantes", de Victor Brecheret.
Na letra C, encontramos uma reprodugio da tela "Café", do pintor mo-
dernista Candido Portinari, e assim ocorre com as outras letras. Todo esse
trabalho grafico da um sentido de atualidade e modernidade ao dicionario,
bem como constréi um lugar de representagdo da nacionalidade.
Com as outras reedicdes brasileiras que se seguiram, 0 dicionario de
Aulete tornou-se talvez 0 mais adaptado diciondrio portugués no Brasil.
Sua aceitaciio se nota também no dominio publico onde sao freqiientes
as manifestacdes de identificago dos leitores.
36 LINGUAS E INSTRUMENTOS LINGUISTICOS - N20José Horta Nunes - Os dicionérios portugueses e a descolonizagio lingiifstica
Conclusio
Aanilise dos diciondrios portugueses nos levou a distinguir trés mo-
dos de lidar com a alteridade lingiiistica: a construgo de uma memoria
(a reedig&o comemorativa de Morais), a produgao de um esquecimento
(criticas a Figueiredo) e a atualizagao de um instrumento (a reedig&o de
Aulete). Segue que o processo de descolonizacao lingiiistica se apresenta
por meio de diferentes praticas, que conformam distintas representacdes
da lingua e da sociedade. Assim, na dicionarizagao brasileira, a relagio
com os instrumentos portugueses contemplou ao menos trés formas de
diciondrio: 0 dicionario iluminista, de Morais, erigido como memoria
lexicografica; 0 diciondrio das autoridades classicas, colocado a distan-
cia; e o dicionario cientifico e conversacional, de feigao enciclopédica,
tomado como atualidade.
Para compreender a concomiténcia em um mesmo espaco de dicio-
narios brasileiros e portugueses, acreditamos ser produtivo retomar na
Hist6ria das Idéias Lingiiisticas os tipos de gramatizacao descritos por
S. Auroux (1992, p. 74). O caso brasileiro, ao jogar com a tensao entre a
vis&o do colonizador e a do colonizado parece indicar algo que vai além
da distingdo estrita entre a endogramatizacdo (gramatizag4o na qual os
locutores da lingua para a qual ocorre a transferéncia s4o nativos) ¢ a
exogramatiza¢do (gramatizacao na qual os locutores da lingua para a
qual ocorre a transferéncia n&o sao nativos). Talvez pudéssemos falar
aqui em uma heterogramatizagdo, no sentido de que a dicionarizagao
brasileira envolve varios modos de relago entre os falantes portugueses
e brasileiros, seja com orientagdo para a unidade, seja para a diversidade,
para a rejei¢o ou para a assimilacao.
HA situacGes, ent’o, em que a gramatiza¢4o envolve distintas vozes.
O conceito de "heterogeneidade lingitistica", de E. Orlandi (1994: 31),
nos permite compreender melhor a duplicidade que envolve o processo
de gramatizacao brasileiro:
Pensamos pois a heterogeneidade lingitistica no sentido de que
joga em 'nossa' lingua um fundo falso em que o 'mesmo' abriga no
entanto um ‘outro’, um ‘diferente’ histérico que o constitui embora
na aparéncia da 'mesmidade': 0 portugués brasileiro e o portugués-
portugués se recobrem como se fossem a mesma lingua mas nao
so. (ORLANDI 1994, p. 31)
Se isso ocorre para a lingua, acreditamos que também ocorre para 0
discurso metalingiiistico. Desse modo, concebemos que a "heterograma-
tizago" é um processo de gramatizag&o que compreende uma hetero-
LINGUAS € INSTRUMENTOS LINGUISTICOS — N20 37‘José Horta Nunes - Os dicionsrios portugueses e a descolonizaciio lingiiistica
geneidade metalingiiistica na qual se relacionam falantes de diferentes
linguas. Consideremos ainda que, pensada no espago brasileiro, essa
heterogeneidade metalingitistica esta ligada ao fato do multilingiiismo,
no sentido apontado por E. Guimaraes(2007, p. 63):
Multilingiie, tanto no sentido de que no Brasil praticam-se linguas
como 0 portugués (que é praticada como lingua nacional-oficial), as
linguas indigenas, as linguas de imigracao, as linguas de fronteira,
quanto no sentido de que o portugués se divide em varias 'linguas'
em varios e diversos falares das regides as mais diversas.
Para finalizar, diremos que a meméria dos dicionarios portugueses,
que, como vimos, se divide em varias, apresenta-se como um espago de
possibilidade de atualizagao. O caso do recente retorno do dicionario
Aulete?, como minidicionario, dicionario escolar e finalmente como di-
cionario geral eletrénico, depois de duas décadas sem reedi¢des, mostra
aretomada no século XXI de um desses fios da memoria lexicografica:
justamente aquele que ja se preparara historicamente durante o século
Notas
1. Este trabalho esta relacionado ao projeto “O controle politico da representagao”,
coordenado por E. Guimardes (Unicamp) e recebe também 0 apoio da FAPESP
(projeto Documentacao Lingitistica: arquivo, instrumentacdo, divulgagao, pro-
cesso n° 2006/00234-8).
2. http://www-auletedigital.com.br/auletedigital/
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Palavras-chave: dicionario, descolonizagio lingiiistica, heterograma-
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Key-words: dictionary, linguistic descolonization, heterogrammatization
LINGUAS E INSTRUMENTOS LINGUISTICOS — N20 39