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A ASSUNÇÃO DE MARIA SANTÍSSIMA

NOS PRIMEIROS CINCO SÉCULOS


DA ERA CRISTÃ

GABRIELE M. ROSCHINI

Foi vivamente discutido (especialmente antes do dia 1 de Novembro de 1950)


se, no que diz respeito à Assunção, se podia falar de uma tradição explícita que
remontasse à idade apostólica, ou se devia falar, nos primeiros três ou quatro séculos, de
uma tradição somente implícita (contida por assim dizer noutra verdade explicitamente
professada).
O Pe Otto Faller, S.J., numa sua douta dissertação contra o Pe Jugie, concluía
que, no estado actual dos estudos, não se podia ainda provar a existência de uma
tradição explícita que remontasse aos Apóstolos, todavia permanecia «aberta» a
«possibilidade de uma tal tradição explícita», particularmente «pelo facto de que o
silêncio das fontes, até hoje por nós conhecidas, não é já de cinco séculos (como
afirmava o P. Jugie), mas de quase dois séculos, ou dois séculos e meio desde a morte
de São João»[1].

***

I
O SÉCULO II

Importa distinguir – como eu já dei a entender – entre tradição implícita e


tradição explícita. A primeira pode dizer-se certa; a segunda, ao contrário, pode dizer-se
só muito provável.
A Assunção pode dizer-se certamente implícita em alguns princípios
explicitamente ensinados pelos Padres do século II, a saber: o princípio da
recapitulação, o princípio da maternidade cheia de mistério e o princípio de uma
virgindade mirífica.
É implícita a Assunção no princípio da recapitulação, explicitamente ensinado
no século II por São Justino[2] e por Santo Ireneu[3]. Deste princípio deduz-se que
Maria, o oposto de Eva, reparadora da ruína de Eva (o pecado e, como pena do pecado,
a morte), não podia ser sujeita àquela mesma ruína da qual Ela com Cristo devia
libertar-nos.
É implícita a Assunção nos princípios da maternidade cheia de mistério e de
uma virgindade mirífica explicitamente ensinados no século II por Santo Inácio[4], São
Justino[5] e Santo Ireneu[6]. O corpo de Maria, consagrado com mistérios tão elevados,
tão transcendentes, não podia ser presa da decomposição da morte. A preservação da
corrupção do parto reclamava a preservação da corrupção da morte.
Para além desta tradição implícita, pode também falar-se com muita
probabilidade (não ainda – repito – com certeza) de uma tradição explícita que remonta
ao tempo dos Apóstolos.
Pelo apócrifo ou pseudo-epígrafo «Transitus Beatae semper Virginis Mariae» do
Pseudo-Melitão de Sardes (Século IV) ficamos a saber que um certo Lêucio Carino,
herege (o qual afirma ter vivido «com os Apóstolos»), pelos meados do século II[7],
compôs um «Trânsito da Bem-aventurada sempre Virgem Maria»[8]. Todas as lendas
que surgiram sucessivamente sobre o tema da Assunção, não seriam mais que
amplificações deste relato primitivo[9]. Neste apócrifo primitivo, o herege gnóstico
Lêucio Carino misturou muitos erros, tornando-o «totalmente ímpio, a ponto de ter sido
proibido, na Igreja de Deus, não só lê-lo, mas também ouvir a sua leitura»[10]. O
famoso «Decreto Gelasiano» chama Lêucio «discípulo do diabo» e inclui os seus
escritos entre os «apócrifos que não devem aceitar-se» (por causa dos erros neles
contidos).
O antiquíssimo escrito de Lêucio Carino sobre o «Trânsito da Bem-aventurada
sempre Virgem Maria» desapareceu. Deixou porém alguns vestígios em alguns escritos
subsequentes, ou seja, no «Transitus Mariae» de Epifânio Monge (século IX) e na
chamada «Visão» atribuída a Cirilo de Jerusalém.
O Pseudo-Melitão propôs-se expurgar dos erros o «Trânsito da Bem-aventurada
sempre Virgem Maria» do Pseudo-Lêucio Carino. A razão fundamental da incorrupção
completa e da glorificação do corpo da Virgem depois da morte é – como veremos – a
incorrupção virginal de Maria, não obstante a sua maternidade: a mesma razão
fundamental adoptada por Lêucio. Epifânio Monge afirma: «Que ninguém me
repreenda pelo facto de eu ter recorrido a livros apócrifos ou a hereges (alusão evidente
a Lêucio): os testemunhos dos inimigos, de facto, são mais eficazes, como afirma
Basílio Magno»[11]. Descreve depois o final da vida terrena de Maria nestes termos:
«(Os Apóstolos) colocaram-na na sepultura, ou seja, no Getsémani. E depois de pouco
tempo, diante daqueles que estavam presentes, o corpo torna-se invisível aos seus
olhos»[12]. Trata-se, evidentemente, de um desaparecimento miraculoso.
O «núcleo» primitivo comum das narrações derivadas do apócrifo «Trânsito» de
Lêucio Carino é constituído, evidentemente, pelo «desaparecimento prodigioso» do
corpo virginal de Maria não sujeito à corrupção do túmulo[13].
Mas o mais fiel – segundo Capelle – entre os escritos derivados do «Trânsito da
Bem-Aventurada sempre Virgem Maria» de Lêucio Carino é a chamada «Visão» de São
Cirilo de Jerusalém, contida num antigo apócrifo copta[14]. Segundo este relato, São
Cirilo teria sabido pela própria Virgem, por meio de uma visão, que Ela tinha sido
informada por Cristo, seu Filho, do seu próximo trânsito. Conforme o pedido de Maria,
o Apóstolo João chama Pedro e Tiago. A Virgem participa-lhes a mensagem recebida
do Filho: «Passarão ainda três dias antes que eu venha até junto de Ti e transporte a tua
alma e o teu corpo para a minha cidade, a celeste Jerusalém. E todos os meus santos
ficarão admirados com a glória que eu te darei nesse lugar, porque tu reconciliaste Deus
e os seus Anjos com os homens. Exaltar-te-ei acima de todos os santos e mandarei aos
meus Anjos que cantem sempre hinos diante de Ti, visto que Tu és semelhante a eles na
pureza e na virgindade… Não te preocupes, ó Mãe, com o teu santo corpo, nem com a
sua sorte, nem com o lugar onde ele será colocado… Eu ocultarei o teu corpo na terra, e
ninguém conseguirá encontrar o teu corpo na terra, no lugar onde eu o colocarei, até ao
dia em que eu o ressuscitarei incorruptível. Um perfume suave emanará do teu corpo até
ao dia em que o ressuscitarei…».
A Virgem então encarrega São Pedro de mandar rapidamente um servo seu – um
certo Birro (referido nos «Acta Ioannis»: cfr. Zahn, ed. cit., p. 250) – a pegar a sua veste
de seda. Recebendo-a, Ela estende-a no chão e reza voltada para Oriente; depois
estende-se sobre o seu leito, sempre voltada para Oriente; por fim, à chegada de Jesus,
ela expira e Jesus recebe o seu espírito numa auréola de luz. Segue o cortejo fúnebre,
perturbado momentaneamente pelos Judeus. Os Apóstolos afastam-se, os assaltantes
aproximam-se, mas eles não vêem mais nada para além do féretro vazio (o corpo da
Virgem tinha desaparecido prodigiosamente), enquanto um suave perfume se espalha
por todo o lado. Faz-se então ouvir uma voz que diz: “Que ninguém procure o corpo, até
ao grande dia da parusia de Cristo”[15].
«Os detalhes deste relato – referiu o Abade Capelle – revelam a sua imediata
dependência de Lêucio»[16]. Há, de facto, um paralelismo perfeito entre o fim
privilegiado de Nossa Senhora descrito no supradito apócrifo do Pseudo-Cirilo (em
razão da virgindade) e o fim privilegiado de São João, descrito nos «Actos de João» de
Lêucio. Nestes «Actos», realmente, eis o que se relata acerca do final da vida terrena de
São João: «Estando ele voltado para Oriente, deu graças, todo resplandecente de luz e
disse: “Ficai comigo, Jesus Cristo, meu Salvador”; e desceu à tumba onde já tinha
estendido as suas vestes; e, depois de ter dito: “A paz esteja convosco, irmãos”,
entregou a sua alma em glória”» (cfr. Zahn, Acta Joannis, p. 250)[17].
Trata-se – note-se bem – de um desaparecimento miraculoso do corpo de Maria.
A Assunção corporal, portanto, descrita no século IV pelo Pseudo-Melitão, não seria
outra coisa senão uma explicação desse desaparecimento miraculoso. A base teológica
de uma tal explicação é constituída pelo nexo necessário entre a prodigiosa integridade
virginal de Maria, na sua maternidade relativa a Cristo, e a incorrupção física do seu
corpo virginal. A razão era óbvia: uma virgem – como Maria – jamais tocada pela
mínima corrupção, devia ser imune também à corrupção do túmulo, consequência das
outras corrupções. É esta ideia base o «núcleo» primitivo, a raiz da verdade da
Assunção corpórea de Maria Santíssima.

Resumindo: o «primeiro núcleo da verdade da Assunção é constituído pelo


desaparecimento prodigioso do corpo de Maria (narrado em meados do século II por
Lêucio Carino), desaparecimento considerado como intimamente relacionado com a
perene integridade virginal de Maria. Portanto, desde meados do século II (cerca de 50
anos depois da morte de São João) admitia-se um desaparecimento prodigioso do corpo
de Maria relacionado com a sua perpétua virgindade ou incorruptibilidade. Sobre este
final da vida terrena de Maria, o mesmo Lêucio Carino moldou o relato do final da vida
terrena do Apóstolo São João[18].

***
II
O SÉCULO III

Continua neste século a afirmação explícita daqueles princípios nos quais está
implícita a afirmação da Assunção de Maria Santíssima em corpo e alma à glória do
Céu; e não falta a afirmação explícita da Assunção corpórea.
Ensinam explicitamente o «princípio da recapitulação» Tertuliano[19],
Orígenes[20] e São Gregório Taumaturgo[21]. Ensinam, por outro lado, explicitamente
o «princípio da maternidade cheia de mistério» e de uma «virgindade mirífica»
Tertuliano[22], Orígenes[23], Santo Hipólito[24] e São Gregório Taumaturgo[25].
Mas não falta também, ao que parece, no século III, a afirmação explícita da
Assunção corpórea de Maria. Segundo o estudioso orientalista Van Lantschoot, no
século III traçar-se-iam as origens do apócrifo «Evangelho de Bartolomeu», do qual
existem três recensões sahídicas: A e B (do século X) e C (do século XII). Na recensão
B (na recensão A falta o fólio) lê-se: «Cristo abençoou-a (a Maria) dizendo: “Quando tu
tiveres deixado o teu corpo, eu mesmo virei até junto de ti com Miguel e Gabriel. Nós
não te deixaremos ter medo da morte, diante da qual todos têm medo. Eu te colocarei no
lugar da imortalidade e tu estarás comigo no meu reino e eu colocarei o teu corpo
debaixo da Árvore da vida; o Querubim armado com uma espada de fogo velará por ele
até ao dia do meu reino”». E na recensão C lê-se: «E quando tu tiveres deixado o teu
corpo, eu voltarei com meu Pai, com Miguel e todos os Anjos, e tu estarás connosco no
meu reino. E o teu corpo eu o confiarei aos querubins da espada de fogo, para que eles
velem por ele até ao dia da minha parusia e do meu reino»[26]. Estas expressões parece
que devem entender-se como relativas ao corpo animado da Virgem. Assim pensa o
Padre Balic[27].

***
III
SÉCULO IV

No Oriente temos o testemunho de Santo Epifânio e de Timóteo de Jerusalém;


no Ocidente temos o de Santo Ambrósio, bem como o «Transitus» latino do Pseudo-
Melitão de Sardes.
Santo Epifânio (nascido na Judeia no ano 314 e morto no ano 403), no seu
«Panarion» (escrito nos anos 374-377), na heresia 87, trata das duas heresias
mariológicas: a dos «Antidicomarianitas» (os quais negavam a virgindade de Maria
depois do parto e, por isso, pecavam por defeito) e as Coliridianas» (algumas mulheres
da Arábia que ofereciam a Maria sacrifícios para honrar «a Rainha do Céu» e que por
isso pecavam por excesso). Na sua carta, o Santo demonstra como, depois da entrega de
Maria a São João (Jo. 19, 26-27), a Sagrada Escritura nada fala dos posteriores
episódios da vida de Maria, isto é, se ela viveu com São João[28]; nem sequer a
Escritura fala do modo como Ela terminou a sua vida terrena. Posto isto, Santo Epifânio
exprime uma verdadeira dúvida sobre o «modo» como a Virgem passou desta vida para
a outra vida, «se Maria morreu ou não, e se Ela foi sepultada ou não»[29].
Também no segundo texto (contra as «Coliridianas», adoradoras da Rainha do
Céu), Santo Epifânio repete a sua dúvida acerca do «modo» como a Virgem terminou a
sua vida terrena e ao mesmo tempo indica a certeza do «facto» da glorificação corpórea
dela. Acerca do fim da vida terrena da Virgem, Santo Epifânio dá três hipóteses: morte
tranquila com sepultura; martírio; trasladação sem morte para a eternidade. Ora bem, em
todas as três hipóteses o Santo Doutor não deixa de assinalar a glorificação do corpo da
Virgem. Na primeira hipótese (a da morte e sepultura) afirma que «a sua dormição é na
glória e a sua partida é na castidade e na coroa da virgindade»[30]. Na segunda hipótese
(a do martírio) «a sua glória é entre os mártires e o sagrado corpo daquele por meio da
qual resplandece para o mundo a luz é na bem-aventurança»[31]. Na terceira hipótese (a
da imortalidade) Maria foi para a glória do céu sem passar pela morte e
ressurreição[32].

Resumindo, Santo Epifânio: 1) não duvida de que o fim da vida terrena de Maria
foi repleto de milagres, ou seja, não foi comum, mas prodigioso; 2) o mesmo silêncio da
Sagrada Escritura sobre um tal fim é devido à «superabundância do milagre», «para não
provocar o assombro na mente humana»; 3) que na verdade supõe de tal maneira
portentoso o fim da vida terrena de Maria que considera como possível e, mais ainda,
plausível (não ainda certa) a trasladação imediata de Maria em alma e corpo à vida
imortal (sem a morte e a ressurreição); 4) ele duvida apenas do «modo» como a Virgem
deixou a vida terrena (se morreu ou não morreu), sem duvidar de maneira nenhuma da
glorificação em alma e corpo de Maria Santíssima; 5) evitou falar explicitamente da
tradição assuncionista já vigente no seu tempo, porque pretendia refutar a heresia das
Coliridianas, as quais se excediam no culto da Rainha do Céu, considerando-a como
uma deusa[33]. A morte, com efeito, é o que distingue geralmente o homem de Deus. A
morte é o destino do homem.
O insigne Bispo de Salamina sabe muito bem, no entanto, que o termo da vida
terrena de Maria «não foi ordinário», mas «cheio de prodígio, capaz de lançar no
assombro a mente humana»[34]. E acrescenta logo que «a Escritura, transcendendo a
capacidade da mente humana, deixou o acontecimento na incerteza (ou seja, se Maria
permaneceu imortal ou se morreu), por causa daquele vaso exímio e precioso, para que
ninguém pudesse suspeitar dela qualquer coisa de tipo carnal»[35]. Esta certeza
demonstrada por Santo Epifânio relativamente ao termo portentoso da vida de Maria
adequa-se muito bem à tradição já clara e explícita naquele século e no século seguinte
acerca da Assunção de Maria Santíssima. Há uma só diferença entre Santo Epifânio e a
tradição existente no seu tempo e depois dele: enquanto para Santo Epifânio a morte e a
ressurreição de Maria é incerta (visto que admite que a Virgem poderia ter subido ao
céu sem morrer nem ressuscitar), a forma da tradição existente no seu tempo e a seguir a
ele admitia a morte e a ressurreição.

Timóteo, presbítero de Jerusalém, contemporâneo de Santo Epifânio, deixou


uma Homilia, feita publicamente na festa da Apresentação no Templo (que se celebrava
no Oriente no século IV). Esta Homilia, como as suas marcas internas mostram (nunca,
por exemplo, a Virgem é chamada Theotokos) devia ser composta muito provavelmente
no fim do século IV ou início do século V (antes da controvérsia nestoriana; dos hereges
apenas nomeia Ario). Nesta Homilia Timóteo refere que alguns, baseando-se na
profecia de Simeão, acreditaram que Maria morreu mártir. Ele rejeita esta opinião: «A
espada de metal – diz Timóteo – atravessa o corpo, não divide a alma». E acrescenta:
«A Virgem por isso permaneceu até hoje imortal, porque Aquele que habitou nela a
transferiu para o lugar da ascensão»[36], ou seja, no Paraíso celeste. Temos aqui um
testemunho da Assunção de Maria Santíssima em corpo e alma ao céu. Sendo assim,
uma tal doutrina era professada em Jerusalém, no século IV[37], não já como uma coisa
nova, mas como comummente conhecida (de facto ela é afirmada ocasionalmente), e,
por isso, supõe uma tradição muito antiga (remontando pelo menos a meados do século
IV). As palavras de Timóteo, tomadas no seu sentido óbvio, significam que a Virgem
passou da terra ao céu sem passar pela morte nem pela ressurreição. Aquela expressão:
«permanece imortal até hoje», afirma-o com suficiente clareza[38].

No Ocidente, Santo Ambrósio (+ 397), no século IV, afirmava, pelo menos de


modo indirecto, a Assunção corpórea de Maria. Ele é o primeiro, entre os Padres, a
colocar-se o problema da ressurreição de Maria Santíssima e a resolvê-lo positivamente.
No «De institutione Virginis» (escrito no ano 391), falando de Maria Santíssima aos pés
da cruz, afirmava abertamente que, se a Virgem tivesse morrido no Calvário juntamente
com o Filho, seria também ressuscitada juntamente com Ele. Eis as suas palavras:
«Pendia da cruz o Filho, a Mãe oferecia-se aos golpes dos perseguidores. Queria Ela
com isso prostrar-se diante do Filho? Este sentimento de uma mãe que recusa
sobreviver ao filho, reverte todo em seu louvor. Desejava Ela (oferecendo-se aos golpes
dos perseguidores) morrer com o Filho? Neste caso Ela estremecia de alegria com o
pensamento de ressuscitar com Ele, bem ciente que estava do mistério, não ignorando
que Ela era a Mãe daquele que havia de ressuscitar»[39].
Deste importantíssimo texto resultam duas coisas: 1) Na hipótese de Maria, sob
a tempestade dos golpes dos perseguidores, ter sido morta juntamente com o Filho, seria
ressuscitada juntamente com Ele. Admitindo, portanto, que a Virgem – segundo Santo
Ambrósio –, se tivesse morrido no Calvário, teria tido o direito a uma pronta e imediata
ressurreição, é lógico pensar que não teria perdido esse direito nos anos que ela vivesse
depois da tragédia do Gólgota, uma vez que a razão-base de um tal direito permanece
sempre a mesma: a divina Maternidade. 2) Esta afirmação não é feita como uma opinião
pessoal do santo Doutor, mas como uma verdade óbvia, admitida ou que pode ser
admitida certamente por todos. Manifesta, com efeito, não uma sua impressão
subjectiva, mas constata uma coisa objectiva, óbvia, a saber: o arrebatamento da alegria
de Maria diante da certeza de que, se tivesse morrido juntamente com o Filho, teria
ressuscitado juntamente com Ele; a acrescenta ainda a razão teológica fundamental,
sobre a qual se baseia a persuasão de Maria de ressuscitar juntamente com Cristo, a
saber: a divina Maternidade. A Virgem Santíssima não ignorava, de facto, – como
assinala Santo Ambrósio – o mistério de ser Mãe daquele que havia de ressuscitar. Entre
a divina Maternidade e a hipotética ressurreição de Maria existe uma dupla conexão:
fisiológica e moral. A conexão fisiológica é fundada na originária identidade da carne
entre o filho e a mãe, que exige uma sorte idêntica. A conexão moral, por outro lado, é
fundada na honra que todo o filho deve – tanto por lei natural como positiva – à própria
mãe.
No século IV, ao que parece, destaca-se o apócrifo ou pseudo-epígrafo
«Transitus Mariae» do Pseudo-Melitão[40] (o qual se oculta sob o nome de Melitão,
Bispo de Sardes, discípulo de São João). Ele – católico – procura depurar o «Transitus»
de Lêucio, herege. As heresias que ele combate no seu relato são as do fim do século
IV: o Arianismo e a negação da Virgindade de Maria depois do parto (cfr. cap. XII e
XV). A isto acrescenta-se o facto de, no «Transitus» do Pseudo-Melitão, não haver
nenhuma marca dos erros dos séculos V e VI. Nossa Senhora quase sempre é chamada
de «Maria», ou de «Bem-Aventurada Maria» (seis vezes), ou «Santa Maria» (duas
vezes), nunca «Theotokos» (como é comummente chamada nos apócrifos posteriores ao
Concílio de Éfeso). Só uma vez no texto e uma outra vez no prólogo é chamada «Santa
Mãe de Deus», indício da passagem do século IV (quando o termo «Theotokos» era já
usado algumas vezes) para o século V (quando, depois do Concílio de Éfeso, se torna o
termo clássico para indicar Maria).
Também a língua latina usada no «Transitus» do Pseudo-Melitão adequa-se mais
ao século IV que ao V e VI. Todas as marcas internas do «Transitus» do Pseudo-
Melitão convergem para o fim do século IV[41]. Uma vez que o texto latino é uma
tradução do grego, daí resulta que o texto original deva ter sido escrito primeiro, isto é,
ao menos por meados do século IV.
Posto isto, afirmamos que o Pseudo-Melitão, por volta de meados do século IV,
atestava a plena fé da Igreja na Assunção de Maria Santíssima em corpo e alma à glória
do céu.
O Pseudo-Melitão relata que a Virgem, a seguir à entrega que Cristo faz dela na
Cruz (Jo. 19, 26-27), permanece com o Apóstolo predilecto São João durante o resto da
sua vida terrena. Depois da dispersão dos Apóstolos para a pregação do Evangelho,
Maria permaneceu na casa dos parentes de São João, que se encontrava junto do Monte
das Oliveiras. É aí que, um dia, enquanto rezava sozinha e exprimia o desejo de juntar-
se a Jesus, lhe aparece um Anjo e, depois de a ter saudado, lhe entrega uma palma do
paraíso de Deus toda resplandecente e recomenda-lhe que seja levada diante do seu
féretro, porque Ela morreria dentro de três dias. Era o 22º ano depois da Ascensão.
Desaparecido o Anjo, Maria coloca a sua veste festiva e, com a palma na mão, vai ao
Monte das Oliveiras. Faz aí oração e depois volta para casa. Rapidamente chega de
Éfeso o Apóstolo predilecto, transportado numa nuvem. Pouco depois, sobre nuvens
chegam também os outros Apóstolos. Apresenta-se também São Paulo. João apresenta-
os todos a Maria que se põe a conversar com eles. À hora tércia do terceiro dia chega o
Senhor e convida sua Mãe a partir deste mundo «com plena confiança». A estas
palavras, a Virgem levanta-se, estende-se sobre o seu leito e entrega a alma a Deus. Os
Apóstolos vêem então uma luz tão resplandecente que superava a brancura da neve e o
esplendor de qualquer metal. O Salvador ordena aos Apóstolos que sepultem Maria num
sepulcro novo, situado à direita da cidade, no lado ocidental, e que esperem aí a sua
vinda. A seguir, depois de ter entregue a alma da Virgem («a nossa santa Mãe Maria»)
ao Arcanjo Miguel (guarda do paraíso e chefe da nação hebraica), o Salvador,
juntamente com os Apóstolos, volta para o Céu.
As três jovens virgens que faziam companhia a Nossa Senhora tratam-lhe o
corpo, revestindo-a sem que a vejam e um perfume de uma suavidade incomparável
emana dos restos mortais. Quando tudo ficou pronto, teve início o funeral. João diante
do féretro leva a palma; Pedro e Paulo transportam o féretro com o corpo: Pedro do lado
da cabeça e Paulo do lado dos pés. Pedro inicia a salmodia com as palavras: «In exitu
Israel de Aegipto, aleluia!» (N.T.: «Quando Israel saiu do Egipto, aleluia»). Os outros
Apóstolos prosseguem o canto com uma voz dulcíssima. E eis que por cima do féretro
se forma uma coroa luminosa semelhante ao círculo lunar. As milícias angélicas,
transportadas sobre as nuvens, entoam cânticos de incomparável doçura. A este canto
junta-se uma multidão de pessoas (15000) e um do meio da multidão, um «príncipe dos
sacerdotes», protesta e atira-se contra o féretro para o derrubar, mas as suas mãos
tornaram-se secas pegadas ao féretro. Os outros da multidão são cegados pelos anjos,
pelo que ficam incapazes de socorrer o infeliz. Então aquele desgraçado implora a
piedade do Príncipe dos Apóstolos, recordando-lhe que tinha tomado a sua defesa no
Pretório de Pilatos, quando uma porteira tentou difamá-lo. São Pedro exorta-o a crer
naquele que a Virgem tinha trazido no seu seio. O pobre crê e é curado. Dá-lhe depois a
palma que era transportada por João, ordenando-lhe que tocasse com ela os olhos da
multidão dos cegos: aqueles porém que não acreditassem morreriam cegos.
Reunidos os Apóstolos no lugar indicado por Jesus, colocam o corpo da Virgem
no túmulo novo, fecham o túmulo e sentam-se diante da porta esperando o Senhor,
como lhes tinha sido ordenado. E eis que de repente Jesus desce do Céu com um
exército inumerável de Anjos resplandecentes e, depois de lhes ter dado a paz, diz aos
Apóstolos: “Antes de subir para meu Pai, prometo que vós, que me seguistes, vos
sentareis em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel no dia da renovação,
quando o Filho do homem se sentar no seu trono de majestade. Quanto a esta Virgem, o
meu Pai escolheu-a do meio das tribos de Israel para que eu habitasse nela. Que queríeis
pois que eu lhe faça?”. Pedro e os outros Apóstolos responderam-lhe: “Senhor, vós
escolhestes esta vossa serva para que fosse a vossa morada imaculada; quanto a nós,
vossos pobres servos, vós nos tomastes para o vosso serviço… A nós, vossos servos,
parece justo que, tal como vós reinais na glória, depois de terdes triunfado da morte,
assim também ressuscitai o corpo da vossa Mãe e conduzi-a convosco para a glória do
Céu”. O Salvador respondeu: “Seja feito segundo a vossa palavra!”». E ordena a Miguel
que leve a alma de Santa Maria. O Arcanjo remove rapidamente a pedra da entrada do
túmulo. E o Senhor disse: “Levanta-te, amiga minha, e amada minha! Não tendo tu
incorrido em corrupção ao me conceberes, não incorrerás na corrupção do túmulo”. E
imediatamente Maria se levanta do túmulo e bendiz a Deus… O Senhor, depois de a ter
beijado, entrega-a aos Anjos, para que a levem ao Paraíso. E diz aos Apóstolos:
“Aproximai-vos!”. E tendo-se eles aproximado beija-os e diz: “A paz esteja convosco!
Como sempre estive convosco, assim estarei convosco até ao fim dos séculos”.
Pronunciadas estas palavras, o Senhor, envolto numa nuvem, subiu ao Céu e os Anjos
com Ele, levando a Bem-Aventurada Maria ao Paraíso de Deus[42].
O Pseudo-Melitão (ao contrário dos apócrifos surgidos no século seguinte)
admite que a ressurreição de Maria acontece rapidamente depois da sua sepultura (não
três dias depois, ou ainda muitos dias depois). No relato do Pseudo-Melitão são
indicadas também aquelas duas verdades reveladas, nas quais está contida
implicitamente, como em germe, a verdade da Assunção de Maria Santíssima em corpo
e alma à glória do Céu, a saber: 1) a plena união de Cristo e de sua Mãe no triunfo sobre
a morte mediante a ressurreição (cap. XV); 2) a incorrupção completa do corpo virginal
de Maria, que exclui a corrupção do túmulo (cap. XVI).

No fim do século IV ou início do século V, aparece o apócrifo «Liber de


dormitione Deipare» [N.T.: «Livro da Dormição da Mãe de Deus»] do Pseudo-João,
editado por Tischendorf[43]. O autor – sob o disfarce de «João o Teólogo» (São João
Evangelista) – diz que Maria se dirigia até ao sepulcro do Filho, aí queimava o incenso
e suplicava ao seu divino Filho que viesse até junto dela para levá-la consigo. Um dia,
numa sexta-feira, o Anjo Gabriel anuncia-lhe o seu próximo trânsito. Então a Virgem,
juntamente com as três donzelas que a serviam, dirige-se a Belém e aí pede ao Senhor
que lhe mande João e os outros Apóstolos, tanto os já falecidos, como os que ainda
viviam dispersos pela terra. Primeiro, sobre uma nuvem, vem de Éfeso João e depois
chegam todos os outros Apóstolos, igualmente sobre nuvens. Vem ainda o Evangelista
Marcos, de Alexandria, e o Apóstolo Paulo, de Tibéria, junto de Roma. Todos, a pedido
de Maria, expõem como e porque vieram. Depois de terem rezado juntos, «vem um
trovão do Céu e ressoou terrível como barulho de carros… e ouviu-se a voz do Filho do
homem…». Seguem-se muitos milagres. Os «sacerdotes dos judeus» perseguiram Maria
e os Apóstolos, mas o Espírito Santo fá-los deixar Belém e transporta-os sobre uma
nuvem a Jerusalém. Os Judeus invadem a casa de Jerusalém que os acolheu, procurando
incendiá-la, mas «uma labareda de fogo irrompe lá de dentro por acção de um Anjo e
queimou uma multidão de Judeus». Muitos convertem-se. O Espírito Santo avisa os
Apóstolos de que no domingo (como nas outras datas importantes: a anunciação, o
nascimento de Cristo, a ressurreição, etc) Jesus voltaria do Céu para o trânsito de Maria.
E assim foi. Cristo chega rodeado de Anjos e um eflúvio doce se expande sobre a
Virgem. O Senhor diz-lhe: “Eis que a partir deste momento o teu precioso corpo será
transportado ao Paraíso e a tua alma aos céus, aos tesouros do meu Pai, ao transcendente
esplendor onde está a paz e a alegria dos santos e outras almas”. O rosto da Mãe do
Senhor resplandeceu ainda mais de luz e ela, levantando-se, abençoou com a própria
mão cada um dos Apóstolos, e todos deram glória a Deus; e o Senhor, estendendo as
suas mãos imaculadas, acolhe a santa e pura alma dela. E à partida da sua pura alma o
lugar enche-se de perfume e de uma indizível luz, e eis que se ouve uma voz do céu que
dizia: “Bendita és tu entre as mulheres!» (Lc. 1, 28). Pedro, correndo, e eu João, bem
como Paulo e Tomé, abraçamos os seus pés preciosos, para sermos santificados. Os
doze Apóstolos, depois de colocado o seu precioso e santo corpo sobre um ataúde,
levaram-no para fora. E aqui é relatada a punição de um judeu – chamado Jefonias – por
se ter arremessado sobre o ataúde: «um Anjo do Senhor, com invisível poder, cortou
com uma espada de fogo as duas mãos dele e suspendeu-o no ar à volta ataúde». Tendo-
se arrependido, São Pedro curou-o. Depois deste prodígio «os Apóstolos transportaram
o ataúde e depuseram o precioso e santo corpo dela no Getsémani, num túmulo novo. E
eis que um perfume delicioso se difunde pelo sagrado túmulo de nossa Senhora, Mãe de
Deus. E por três dias se ouviam vozes de Anjos invisíveis que glorificavam a Cristo,
nosso Deus, nascido dela. Ao termo do terceiro dia, as vozes não se ouviram mais e
então todos reconheceram que o puro e precioso corpo dela tinha sido transportado ao
Paraíso. Logo que ele foi transportado, eis que vimos Isabel, a mãe de São João
Baptista, e Ana, a mãe de (nossa) Senhora, e Abraão e Isaac e Jacob e David, que
cantavam aleluia, e todos os coros dos Santos que veneravam os preciosos restos[44] da
Mãe do Senhor. E (vimos) um lugar radiante de luz, sem que nada fosse mais
esplêndido que a sua luz. E aquele lugar, aonde tinha sido transportado o precioso e
santo corpo dela ao Paraíso, (estava) todo impregnado de perfume. E (ressoava) a
melodia daqueles que louvavam Aquele que nasceu dela… Ao verem a repentina
maravilhosa trasladação do santo corpo dela, nós Apóstolos glorificamos o Deus que
nos tinha mostrado as suas maravilhas na morte da Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Pelas orações e intercessões dela seja-nos concedido permanecer todos sob a sua
protecção, sob a sua ajuda e sob a sua salvaguarda neste século e no futuro…». Segundo
o Pe Jugie e alguns outros, o Pseudo-João teria ensinado uma dupla assunção: a
assunção da alma ao Céu e a assunção do corpo ao Paraíso terrestre[45]. Segundo o Pe
Balic, por outro lado, o Pseudo-João, embora não ensine de modo explícito a
ressurreição gloriosa do corpo da Virgem, ensina-a todavia de modo implícito. Diz-se,
com efeito, de modo explícito que o «paraíso» para o qual é transportado o corpo da
Virgem é aquele mesmo em que se encontram os Patriarcas e os Profetas e todos os
«coros dos Santos». É por isso um lugar de vivos, não de mortos. Entre esses Santos
vivos, está aí também a Bem-Aventurada Virgem que, ao contrário dos outros Santos,
não deve esperar que o corpo se una novamente à alma. As próprias palavras da
promessa de Cristo e do Arcanjo referem-se à pessoa da Virgem. Em nenhum lugar do
apócrifo do Pseudo-João se afirma que o corpo da Virgem sem vida espera no Paraíso o
tempo em que se juntará à alma. O autor do apócrifo, de facto, seguindo a escatologia
dos antigos, não devia conseguir compreender como um corpo, mesmo glorificado,
pudesse estar «nos tesouros do Pai», persuadido como estava de que o Céu era como um
grande império dividido em reinos e províncias, no topo do qual se encontravam os
«Tesouros do Pai» (isto é, a Santíssima Trindade), enquanto nas outras partes celestes
inferiores, como no Éden-paraíso, se encontra o corpo glorificado de Maria e onde se
encontrarão, depois da ressurreição final, os corpos de todos os outros justos, cujas
almas, como que transcendendo os próprios corpos, mergulham na parte suprema do
céu, na Santíssima Trindade[46].

Do que acabamos de dizer parece evidente a falsidade da afirmação do


protestante Friederich Heiler: «Nos primeiros quatro séculos não encontramos
absolutamente nenhum testemunho desta ideia» (a conservação ilesa do corpo de Maria
e a assunção corpórea)[47]

***

IV
SÉCULO V

No opúsculo siríaco «Obsequia B. Virginis», ensina-se abertamente a morte e a


ressurreição de Maria Santíssima. Aí, de facto, se diz que os Apóstolos vigiavam por
três dias junto ao túmulo de Maria. Eles discutiam com Paulo sobre a doutrina autêntica
do Mestre: «Enquanto todos os Apóstolos estão sentados diante da entrada do túmulo de
Maria e discutem sobre as palavras de Paulo, Nosso Senhor Jesus, o Messias, vem do
Céu com o Arcanjo Miguel e senta-se no meio deles, enquanto discutem sobre as
palavras de Paulo». Jesus saúda os Apóstolos e dá razão a Paulo: «Depois destas coisas,
Nosso Senhor fez um sinal a Miguel e Miguel começou a falar com a voz de um Anjo
poderoso. Os Anjos desceram em cima de nuvens e o número dos Anjos em cada uma
das nuvens era de mil; e cantavam louvores diante de Jesus. E Nosso Senhor disse a
Miguel: “Faz com que eles coloquem o corpo de Maria nas nuvens”. E quando o corpo
de Maria foi levado para as nuvens, Nosso Senhor ordenou às nuvens para irem até à
entrada do Paraíso. E quando eles entraram no Paraíso, o corpo de Maria foi colocado
debaixo da árvore da vida[48]; eles conduziram a alma dela e a colocaram no seu corpo.
E imediatamente Nosso Senhor mandou os Anjos para os seus postos»[49].
O Abade Capelle, depois de ter examinado todos os elementos da tradição
assuncionista, chegou à conclusão de que há uma fonte comum, quer na narração de São
João de Tessalónica (que fala da morte de Maria, mas omite a sua ressurreição), quer na
narração dos «Transitus» latinos (os quais narram não só a morte, mas também a
ressurreição da Virgem). Esta fonte comum – segundo Capelle – devia ser muito
próxima do antigo fragmento siríaco que citámos, no qual se fala da morte e da
ressurreição[50].
A intuição de Capelle parece que teve uma plena confirmação na descoberta
feita pelo Pe Wenger de um texto grego sobre a «Dormição» (o Vatic. gr. 1982, do
século XI) e de uma versão latina desse texto (contida no Códice Augiensis CCXXIX,
dos primeiros anos do século IX). Estes dois novos textos afirmam a Assunção de Maria
(morte e ressurreição) «segundo as mesmas cenas e com os mesmos termos do
fragmento siríaco do fim do século V ou início do século VI. Entre os três textos, a
proximidade é evidente e obriga a admitir um protótipo comum que remonte ao menos
ao século V»[51].
O Códice Vaticano grego 1982 restitui-nos o epílogo glorioso do apócrifo
primitivo. «O achamento deste epílogo – deduziu-o justamente o Pe Wenger – confere
ao apócrifo o seu verdadeiro sentido», isto é, o relato não só da morte, mas também o da
ressurreição da Santíssima Virgem. São João de Tessalónica, no seu «Sermão sobre a
Dormição da Santíssima Virgem» (composto entre o ano 610 e o 630), que teve uma
notável influência na homilética bizantina (e por isso no silêncio a respeito da
ressurreição de Maria Santíssima), privando a narrativa do seu epílogo (no qual se fala
da ressurreição da Virgem), «não só mutilou o texto, mas também falseou as
perspectivas do relato»[52] (omitindo a ressurreição da Virgem). Não obstante a
mutilação do texto operada por São João de Tessalónica e a influência dela na
homilética grega, a tradição assuncionista (morte e ressurreição) manteve-se inalterada
nos «Transitus» latinos e em algumas homilias gregas (por exemplo, Cosme o
Vestidor).
Mas é preciso realçar também – coisa que nunca ninguém fez – a dependência
destes três relatos (siríaco, grego e latino) do texto do Pseudo Melitão (do século IV).
Em todos estes relatos, com efeito, há cenas, ideias e expressões comuns; em
todos eles os Apóstolos se sentam diante da entrada do túmulo; em todos, juntamente
com os Apóstolos, está presente São Paulo; em todos se diz que o Senhor naquela
ocasião desce do Céu com o exército dos Anjos; em todos está presente o Anjo Miguel,
a quem o Senhor confia tarefas de primeiro plano; em todos se fala da ressurreição do
corpo de Maria. É por isso difícil não ver entre os referidos relatos uma verdadeira
proximidade e a dependência directa ou indirecta de uma fonte primitiva comum: o
«Transito da Bem-Aventurada sempre Virgem Maria» do Pseudo-Lêucio Carino[53],
depurado pelo Pseudo-Melitão.
Foi talvez sob a influência do supramencionado fragmento siríaco que, em
meados do século V, começou a celebrar-se, na Igreja siríaca, a festa da Dormição de
Maria (morte e ressurreição). Uma prova desta afirmação temo-la na Homilia siríaca
feita por São Tiago de Sarug (pelo ano 490) sobre o «trânsito» de Nossa Senhora, para o
dia 14 de Agosto[54]. Trata-se, com toda a probabilidade, de um poema litúrgico,
composto para uma festa (ou seja, para o «transito» da Virgem). De facto, onze vezes se
repete «Hoc die» («Neste dia»). Dos coros dos Anjos diz-se: «Os companheiros de
Miguel (Arcanjo)… hoje com seus cânticos de júbilo celebram o dia de festa («diem
festum agunt») e se alegram» (v. 131). E termina com estas palavras: «Neste dia todos
os mortos levantam a sua cabeça dos túmulos, porque viram resplandecer sobre si uma
luz; viram a morte trepidar e fugir deles e as portas das alturas abrir-se à profundidade
da terra» (v.180).
Tudo isto não é facilmente explicável se não se tratasse da verdadeira festa da
«Dormição» de Maria. Não faltam no poema de Tiago de Sarug alusões à Assunção
corpórea da Virgem. Com efeito, ele afirma: «Estava presente aquele exército dos
profetas de Deus e com eles os Apóstolos, os Evangelistas e os Doutores, e fazem as
exéquias do virginal corpo da Bendita, para que fosse para o Éden (o Paraíso) cheio da
bem-aventurança divina»[55]. Foi objectado pelo Pe Jugie que o sujeito de «fosse»
(abiret) não é o «corpo virginal», mas sim a «Bendita»[56]. Mas também, se se quer
afirmar que esse sujeito é a «Bendita», não se pode negar que aí se trata do «corpo
virginal» da «Bendita», corpo que, segundo o apócrifo siríaco contemporâneo de São
Tiago de Sarug (como já vimos), é transportado para o Paraíso (não o terrestre, mas o
celeste, que, segundo a escatologia dos Orientais é o lugar dos justos bem-aventurados).
Uma válida confirmação da existência dessa festa na Igreja siríaca, em meados
do século V, existe no apócrifo siríaco editado por Agnese Smith Lewis. Na primeira
recensão (contida num códice dos fins do V ou início do VI século)[57] conta-se que os
Apóstolos, voltando para casa, depois de terem assistido à Assunção corpórea da
Virgem, decidiram celebrar uma tríplice «memoria annua» dela: 1) no dia 8 de Janeiro
(em vez do 6 de Janeiro, dia da morte de Maria, no qual se celebrava o nascimento de
Cristo); 2) no dia 15 de Maio (no qual se confiam à Virgem as sementes dos campos);
3) no dia 13 de Agosto, para implorar a bênção dos frutos em vias de maturação. Por
isso, na primeira comemoração de Nossa Senhora, era comemorada também a sua
«Dormição», como aparece claramente em textos que afirmam que a Virgem deixou
este mundo no próprio dia em que deu à luz o seu divino Filho (no dia de Natal). Mas
como não era conveniente celebrar a morte de Nossa Senhora no mesmo dia em que ela
deu à luz a vida, isto é, o Salvador, os Apóstolos – referem os mencionados textos –
ordenaram que a comemoração da morte da Virgem fosse celebrada no dia seguinte, ou
seja, no dia 26 de Dezembro[58].
Esta tríplice «memoria annua» de Nossa Senhora supõe, evidentemente, uma
certa evolução litúrgica. Posto isto, podemos dizer: se no início do século VI existiam já
na Igreja siríaca três festas marianas, ao menos uma delas devia existir em meados do
século V, porquanto, nesse tempo, na Igreja siríaca, já se tinha uma fé plena na
Assunção da Virgem em corpo e alma à glória do Céu (como aparece no fragmento
siríaco publicado por Wright).

Podemos, portanto, concluir que no século V – consequência lógica e


cronológica dos dados que se encontram nos séculos precedentes – a fé na Assunção
corpórea, em vários lugares, era já plena e completa. E por isto é fácil julgar quanto é
falsa a afirmação do protestante valdense João Miegge, segundo o qual a Assunção da
Virgem «não remonta às fontes mais antigas… mas é uma pura, simples e reconhecida
lenda do século VI»[59].
[1] Faller O., S.J., De priorum saeculorum silentio circa Assmptionem B. Mariae
Virginis, Romae, 1944, p. 62.
[2] São Justino, Diálogo com Trifão, PG 6, 709C – 712A.
[3] Santo Ireneu, Adversus Haereses III, 22, 3-23, PG 7, 958B – 960B; III, 23, 964B, V,
19, 1175A; V, 21, 1170AC.
[4] Santo Inácio, Epístola aos Efésios 7, 2, PG 5, 549 – 650 Bs.; Epístola aos
Efésios 18, 2 e 19, PG 5, 660A.
[5] São Justino, Diálogo com Trifão, 84, 2, PG 6, 673B.
[6] Santo Ireneu, Adversus Haereses III, 19, 2-3, PG 940B – 941B; III, 21, 951B; III,
21, 4 925B – 953A; III, 19, 1, 958C.
[7] O Abade Bernard Capelle está convencido de que «existem boas razões» para situar
o «Transitus» de Lêucio «em meados do século II» (La Fête de l’Assomption dans
l’histoire liturgique, in Ephemerides Theologicae Lovanienses (1926), p. 43). Segundo
Teodoro Zahn (Acta Joannis, Erlangen, 1880, p. 148), Lêucio começa a aparecer entre
os anos 140 e 160. Os «Acta Joannis» atribuídos a Lêucio são denunciados pelos Padres
só a partir do século IV (cfr. Zahn, lugar citado, p. 195-218). Os «Acta Joannis»
publicados por T. Zahn são uma reformulação realizada (entre o ano 450 e 500) pelo
católico palestino Pseudo-Prócoro.
[8] Poderíamos perguntar-nos se um tal «Trânsito da Bem-aventurada Virgem Maria»
de Lêucio Carino foi um escrito em si mesmo, ou a primeira parte dos «Acta Joannis»
hoje perdidos. O Professor Carlos Cecchelli opta por esta segunda hipótese, pela
seguinte razão: os «Acta Joannis» que nos restam narram somente os últimos anos do
Apóstolo e Evangelista São João. Parece por isso bastante óbvio pensar que Lêucio
Carino, antecipadamente, tenha narrado a história dos anos precedentes, a começar pelo
episódio da entrega de Maria ao seu cuidado filial (Jo. 19, 27). E é ainda óbvio pensar
que Lêucio tenha tratado também do Trânsito de Maria Santíssima (Mater Christi, vol.
III, p. 397-398).
O Pe Faller, por outro lado, está convencido de que o «Transitus» composto por
Lêucio Carino é um livro em si mesmo, por esta razão: o Pseudo-Melitão, no Prólogo
do seu «Transitus», depois de ter falado dos Actos dos Apóstolos [Pedro, João, André,
Tomé, Paulo] e dos erros neles contidos, passa a falar, de modo distinto, do «Trânsito da
sempre Virgem Maria» e dos erros que também nele estavam contidos. E conclui: «Se o
Pseudo-Melitão, como parece, ao citar os Atos dos Apóstolos de Lêucio, cita o
verdadeiro livro de Lêucio, por ele lido, não se pode duvidar que ele – o Pseudo-Melitão
– cite o verdadeiro «Trânsito de Maria» de Lêucio» (op. cit., p. 56-57).
Seja como for, trata-se de uma coisa acidental: o essencial é que Lêucio
Carino, em meados do século II, tenha escrito um «Trânsito de Maria»; pouco importa
que tenha sido um escrito em si mesmo, ou um escrito que fizesse parte doutro.
Sobre Lêucio Carino veja-se FABRICIO, Johanne Alberto, Codex
Apocryphus Novi Testamenti, I, Hamburgo, 1719, p. 768 ss; LECLERCQ,
Henri, Leucius Charinus, in Dictionnaire D'Archeologie Chretienne et De Liturgie;
ERBETTA, Mário, Gli apocrifi del Nuovo Testamento, II, Atti e Leggende, Ed.
Marietti, 1966, p. 16-20.
[9] «As lendas da Assunção são quase todas amplificações e caricaturas de um relato
primitivo da autoria de um certo herege Lêucio» (Bernard Capelle, art. cit. p. 43)
[10] Pseduo-Melitão de Sardes, Transitus Mariae B.: «Nec solum sibi sufficere
arbitratus est, verum etiam transitum beatae sempre Virginis Mariae genitricis Dei ita
impio depravavit stylo, ut in Ecclesia Dei non solum legere, sed etiam nefas sit
audire» [N.T.: Não só lhe pareceu (isto) suficiente, mas também deturpou de tal maneira
o trânsito da Bem-aventurada sempre Virgem Maria Mãe de Deus com um estilo
literário ímpio, que é proibido na Igreja de Deus, não só lê-lo, mas também ouvi-
lo]. (Cfr. Tischendorf, Apocalypses apocryphae, Lipsiae 1866, p. 124-136, Prologus;
PG 5 1231-1232). Lêucio confundia o Pai com o Filho, negava a realidade da
Incarnação do Verbo, a liceidade do matrimónio e admitia dois deuses: um bom e outro
mau. O Pseudo-Melitão refuta todos estes erros.
[11] «Neque vero si quid ex apocryphis libris, aut ex haereticis deprompserimus, nos
quisquam redarguat: «inimicorum enim testimonia fide sunt digniora, ut magnus ait
Basilius» (PG 120, 187B) [N.T.: Porém que ninguém nos acuse, se tivermos extraído
alguma coisa dos livros apócrifos ou dos hereges: com efeito, os testemunhos dos
inimigos são mais dignos de fé, como afirma Basílio Magno].
[12] «… posuerunt eam (Apostoli) in monumentum, nempe in Getsemani. Et post
parvum tempus, spectantibus omnibus qui aderant, corpus factum est invisibilis ab
oculis eorum» (idib. Col. 215) [N.T.: Os Apóstolos colocaram-na na sepultura, ou seja,
no Getsémani. E pouco tempo depois, à vista de todos os que estavam presentes, o seu
corpo tornou-se invisível ao seus olhos].
[13] Este «núcleo» primitivo do apócrifo de Lêucio Carino escapou completamente às
considerações do P. Faller na obra citada.
[14] Discourse on Mary Theotokos by Cyril, archbishop of Jerusalem, ed. do códice do
British Museum (Or. 6784, sc. X-XI) por Budge W. in «Miscellanea Coptic texts in the
dialect of upper Egypt». Londres, 1915, p. 626-651.
[15] O Pe M. Jugie (A morte e a Assunção da Santa Virgem, Cidade do Vaticano, 1944,
p. 127) vê neste apócrifo uma negação da ressurreição de Maria Santíssima. Parece
porém que a conclusão do Pe Jugie vai para além das promessas. No apócrifo em causa,
de facto, afirma-se somente que a Virgem reaparecerá no último dia, juntamente com o
Filho, na sua majestade. Tanto mais que nas promessas feitas por Cristo à Virgem, se
afirma que Ele «levará para a celeste Jerusalém tanto a alma como o corpo» dela. É
necessário todavia notar, por uma questão de objectividade, que na variante
fragmentada da reconstrução sahídica, em vez do texto «a tua alma e o teu corpo», se lê
«a tua alma e o teu espírito» (cfr. Zoega G. Catalogus codicum coptorum manu
scriptorum qui in museo borgiano Velitris adservantur, Romae, [N.T.: Catálogo dos
códices coptas manuscritos que se conservam no museu Borgiano de Velletri] 1810, p.
223-224).
[16] Cfr. Capelle B., art. cit., p. 35-45).
[17] O Códice R dos «Actos de João» acrescenta: «Trouxemos uma mortalha e
estendemo-la sobre ele; depois voltamos para a cidade. No dia seguinte – três dias
depois («Visão») – fomos lá, mas não encontramos o seu corpo, porque foi assumido
pelo poder de nosso Senhor Jesus Cristo “a quem pertence a glória… Amen”». O códice
A, ao contrário, termina assim: «Tendo nós voltado no dia seguinte, escavamos no lugar
onde tinha sido colocado, mas não encontramos senão as sandálias e a terra que
aumentava. Então recordamo-nos do que foi dito pelo Senhor a Pedro: “Se eu quiser que
ele fique até que eu venha, que tens tu a ver com isso?” (Jo. 21, 22)». A mesma coisa,
no essencial, consta do final de P.W. e U (incluindo os Metafrastas). Estes porém, tal
como U. usam a terceira pessoa (cfr. Ermetta M., op. cit., p. 66).
[18] Pelo século III ou IV se começou a pensar que o Apóstolo e Evangelista São João
não morreu, mas que simplesmente tinha adormecido e que esse sono se prolongaria até
à parusia. Mas no século IV surgiram outras duas lendas, patrocinadas por homens
ilustres: a primeira afirma a imortalidade provisória do Evangelista até ao dia do Juízo
universal, como Enoque e Elias, com os quais ele combaterá contra o Anticristo e será
morto por este; a segunda, ao contrário, afirma a semelhança do Evangelista com Maria,
sob uma tríplice forma: 1) imortalidade gloriosa; 2) morte e ressurreição gloriosa; 3)
simples incorrupção do corpo com ou sem a trasladação para um lugar desconhecido até
à ressurreição geral e assunção da alma ao Céu (cfr. Jugie M., A morte e a Assunção, p.
710-726).
[19] Tertuliano, De Carne Christi, 17, PL 2, 782B.
[20] Orígenes, Homiliae in Lucam, VI, (p. 40, 1-4 ed. Berol. Rauer).
[21] São Gregório Taumaturgo, Homiliae de Nativitate Christi, cap. 22: em
Pitra, Analecta Sacra, IV, p. 394.
[22] Tertuliano, De carne Christi, 21, PL 2 783ª; 787B; 788A.
[23] Orígenes, In Lucam Hom. 17, PG 13, 1844B; In Lev. Hom. VIII, PG 12, 484B-C.
[24] Santo Hipólito, Fragm. ad Ps. 22 (I, 2, p. 147 ed. Berol. Bonwetsch, PG 10, 609B).
[25] São Gregório Taumaturgo, Hom. De Nativitate Christi, Pitra, Analecta Sacra, IV,
388-392-394).
[26] Cfr. Lantschoot Arn., A Assunção da Santa Virgem entre os coptas, In
«Gregorianum» 27 (1946), p. 408.
[27] Balic C., Testemunhos da Assunção da Bem-Aventurada Virgem Maria desde
todos os séculos, Parte I: desde o tempo anterior ao Concílio de Trento, Roma, 1948, p.
43.
[28] Santo Epifânio nega que Maria Santíssima tenha morado com o Apóstolo João (a
quem tinha sido entregue por Cristo crucificado), com a intenção de combater aqueles
que, apegando-se a este exemplo, tinham consigo as chamadas «mulieres
subintroductae» [N.T.: mulheres introduzidas secretamente à convivência com clérigos,
que esteve na origem de desvios e, portanto, sujeitas a proibições].
[29] «Sive igitur mortua sit, nescimus, sive sepulta sit» (Haeresia 78, 11, PG 42, 715-
716AC) [N.T.: «Nem sabemos se ela morreu nem se foi sepultada»]
[30] «Aut enim est sancta Virgo ac sepulta: in gloria dormitio illius est in castitate
exitus eius et in virginitate corona» (Haeresia 78, 28, PG 42, 737) [N.T.: «Quer a Santa
Virgem tenha morrido e tenha sido sepultada, a sua dormição é na glória e a sua partida
é na castidade e na coroa da virgindade»]. Alude portanto à incorrupção do corpo
virginal de Maria Santíssima.
[31] «Aut interfecta est, ut scriptum est: “et ipsius animam pertransibit gladius”; inter
martyres est gloria eius et in beatitudinibus sacrum illius corpus, per quam lumen
mundo inluxit» (ibid.) [Quer ela tenha sido morta, como está escrito: “uma espada
trespassará a sua alma”, a sua glória é entre os mártires e o sagrado corpo daquela por
meio da qual resplandece para o mundo a luz é na bem-aventurança]. Aqui a alusão à
Assunção corpórea da Virgem é ainda mais clara.
[32] «Aut denique in vita permansit; potest enim Deus quidquid libuerit, efficere; nam
illius exitum nemo novit» (ibid.) [N.T.: «Quer enfim ela tenha permanecido na vida,
pois Deus pode fazer o que lhe aprouver; a verdade é que ninguém conhece o seu fim»].
[33] Santo Efrém Sírio (+ 373) aponta apenas para a incorrupção do corpo da Virgem.
Diz: «Morre (a Virgem), mas os sinais virginais não desaparecem» (crf. Ricciotti G., Os
Hinos à Virgem, Tradução integral do siríaco, Roma, 1925, p. 62). Não faltam porém –
segundo o Pe Bover - «algumas expressões que se referem à Maternidade divina, à
perpétua virgindade, à mediação universal sob diversos aspectos, as quais ou são
alusões à Assunção, ou são pelo menos premissas das quais se pode deduzir a Assunção.
Assim, por exemplo, diz: “Espero em vós, porque tendes o querer e o poder, estando
com Aquele que de modo inefável gerastes, o Uno da Trindade; Vós podeis persuadi-lo,
convencê-lo; tendes as mãos com as quais inefavelmente lhe pegastes; tendes os seios
com os quais o alimentastes; recordai-lhe os cueiros…” (Ed. Assemani opera graece,
tomus III, p. 524-552). A menção das «mãos», dos «seios» perderia a sua força se a
glorificação corporal de Maria não fosse uma realidade presente e operante. Por outro
lado, enquanto os «cueiros» são «recordados» («recordai-lhe») como coisa passada, «as
mãos» e «os seios» são mencionados como coisa presente. É preciso, porém, reconhecer
honestamente que a autenticidade desta passagem (como de outras) de Santo Efrém não
é de todo certa» (cfr. Bover J. S.J., A Assunção de Maria, Madrid, 1951, p. 127).
[34] «Sed de ea re, (isto é, do fim terreno da Virgem) conticescit Scriptura propter
excessum miraculi, ne in stuporem coniciat animos hominum» (ibid.) [N.T.: «Mas
acerca disto a Escritura é omissa, por causa da superabundância do milagre, não fosse
provocar o assombro nos espíritos dos homens»].
[35] «Quippe Scriptura mentis humnanae captum supergressa, rem in incerto reliquit
(isto é, se Maria permaneceu imortal ou se morreu), propter vas illud eximium ac
praestans, ne quis suspicari possit de ea quidquam carnalis rerum» (idib).
[36] «Hinc accidit ut nonnulli putarent Mariam gladio interfectam, qualem martyres,
vitae exitum habuisse, quia scilicet dixerat Simon: “Et tuam ipsius animam penetrabit
gladius”. Sed non ita res habet. Ensis enim aere confectus corpus dividit, non dissecat
animam. Quare Virgo usque adhuc immortalis est, cum qui inhabitaverat eam in loca
ascensionis traduxerit» (Versão do grego do Pe O. Faller, op. cit. p. 24) [N.T.: «Por isso
aconteceu que alguns pensavam que Maria teve um fim de vida sendo morta por meio
de uma espada, como os mártires, porque Simeão tinha dito: “Uma espada trespassará a
tua alma”. Mas a coisa não foi assim. Com efeito a espada feita de metal divide o corpo,
não corta a alma. Por isso a Virgem é imortal até hoje, porque aquele que habitara nela
conduziu-a ao lugar da ascensão»]
[37] Migne, Krumbacker, Bardenhewer, o Pe Jugie, o Pe Cayré, o Pe Faller (op. cit. p.
27-34) consideram que Timóteo é do século IV. Recentemente, porém, o Abade B.
Capelle OSB identificou Timóteo de Jerusalém com Timóteo de Antioquia, que viveu
depois do século VI, autor de três Homilias falsamente atribuídas a Santo Atanásio (cfr.
Capelle, As homilias litúrgicas do suposto Timóteo de Jerusalém, in Ephemerides
Liturgicae 63 (1949) p. 5-26. Mas os melhores manuscritos qualificam Timóteo como
«presbítero de Jerusalém» (não de Antioquia); e as marcas internas subestimadas
reportam-nos ao século IV.
[38] O Abade Capelle (art. cit. p. 25) assinalou justamente que a expressão «até hoje»
impede de dar ao termo «imortal» o significado que quis dar-lhe o Pe Faller (op. cit. p.
30), ou seja, o significado de «imortal» em sentido moral e não no sentido físico de
preservação da morte corporal.
Mas Capelle (e depois dele também Jouassard) afirma por sua vez que
Timóteo «parece prever que talvez Ela (Maria) venha a ser submetida um dia à sorte
comum dos mortais» (art. cit. p. 26), isto é, à morte. Mas esta estranha interpretação não
tem um único fundamento nas palavras de Timóteo.
[39] «Pendebat in cruce Filius, Mater se persecutoribus offferebat. Si hoc solum est, ut
ante Filium prosteneretur, laudandus pietatis affectus, quod superstes Filio esse nolebat:
sin vero ut cum Filio moreretur, cum eodem gestiebat resurgere, non ignara mysterii,
quod genuisset resurrecturum» (Santo Ambrósio, De institutione virginis, c. 7, PL 16,
293) [N.T.: «Pendia na cruz o Filho, a Mãe oferecia-se aos perseguidores. Se isto era
somente para se prostrar diante do Filho, é digno de louvor o seu afecto de piedade,
porque não queria sobreviver ao Filho. Se porém era para morrer com o Filho, desejava
alegremente ressuscitar com ele, bem ciente do mistério, porque tinha gerado Aquele
que havia de ressuscitar»].
[40] Um texto muito mais arcaico que o «Transitus» do Pseudo-Melitão é o publicado
recentemente por Monika Heiback-Reinisch, Ein neuer «Transitus Mariae» des pseudo-
Melito. Textkritische Ausgabe und Darlegung der Bedeutung dieser ursprungliecheren
fur Apokryphenforschung und lateinische und deutsche Dichtung des
Mittelaltters. Roma, Pontificia Academia Mariana Intern., 1962, XIX 337 p.
(Bibliotheca Assunptionis B. Virginis Mariae). A autora reconstruiu esta revisão latina
do «Transitus S. Mariae» com base em 15 códices (do século XI ao XV) muito diferente
daquela «recepta» apresentada por Tischendorf (cfr. Montagna D.M. OSB, Notas
críticas do «Transitus S. Mariae» do Pseudo-Melitão, in «Marianum», 27 (1965) p.
177-187.
[41] Os argumentos aqui apontados em favor da antiguidade do «Transitus Mariae» do
Pseudo-Melitão podem encontrar-se desenvolvidos em Faller O., op. cit., p. 56-59.
[42] Cfr. Tischendorf C., Apocalypses Apocryphae, Leipzig, 1866, p. 124-136.
[43] Tischendorf C., Apocalypses Apocryphae Mosis, Esdrae, Pauli, Joannis. Item
Mariae dormitio, additis avangeliorum et actuum apocryphorum supplmentis, Lipsiae
1866. Os códices usados por Tischendorf foram escritos entre os séculos XI e XVI. O
Pe Jugie, ao contrário – mas por ideias preconcebidas – fá-los remontar ao século VI
(550-586). Uma boa tradução italiana pode encontrar-se em Bonnaccorsi
G., Evangelhos Apócrifos, I, Florença 1948, p. 261-289). Servimo-nos desta tradução.
[44] No códice B, fala-se do «corpo», não de «restos» de Maria. O códice B assinala
com maior probabilidade a leitura primitiva. Assinala com efeito a leitura mais breve
(«Lectio brevior, probabilior»). O corpo da Virgem – segundo o códice B – foi
transportado ao Paraíso, com os Apóstolos, sem ter sido colocado primeiro no túmulo.
[45] Jugie M., A morte e a Assunção…, p. 119-120.
[46] Cfr. De Vulpens J., O Paraíso terrestre no terceiro céu, Paris-Friburgo 1925;
Ricciotti G., O Apocalipse Siríaco de Paulo I; Introdução, tradução e comentários,
Brescia 1952; II: A cosmologia da Bíblia e a sua transmissão até Dante, Brescia 1932, p.
89-120. Estes autores apresentam semelhantes testemunhos que demonstram que o
Paraíso, isto é, o Éden, não estava localizado sobre a terra, não no Céu.
[47] Heiler Friederich, O desenvolvimento histórico do dogma da Assunção corpórea
de Maria ao Céu. In «Protestantesimo» 6 (1951) p. 7.
[48] Note-se um detalhe particularmente significativo: o corpo de Maria – diz-se ali –
foi levado para debaixo da árvore da vida no Paraíso. Segundo o Génesis, a Árvore da
vida estava no meio do Éden, ou do paraíso terrestre e era aquilo que teria permitido
viver, com os seus frutos, indefinidamente (Gen. 2, 9 e 3, 22). O autor do apócrifo dá
por isso a entender aos seus leitores que a Virgem – nova Eva – recuperou o privilégio
perdido pela primeira Eva. A ideia de Maria «nova Eva» devia partir do «círculo
joânico da Ásia Menor» (cfr. Cechelli C., Mater Christi, vol I, p. 3 ss., 7-10; 119-122).
Maria, de facto, com a sua cooperação na obra redentora de Cristo (novo Adão),
recuperou o que Eva tinha perdido. É lógico, portanto, que tenha sido colocada debaixo
da árvore da vida. Acerca da árvore da vida, ver Vattioni F., A árvore da vida,
in Augustinianum 7 (1967) p. 133-144.
[49] Wright W., Contribuição da literatura apócrifa, Londres (1865), Introdução, texto,
tradução, p. 42-51, 11-16.
O protestante Friedrich Heiler dá a entender aos seus leitores que o fragmento
siríaco publicado por Wright limita-se ao «motivo lendário» do desaparecimento do
corpo de Maria, semelhante ao desaparecimento do corpo de São João (art. cit. p. 8-9).
[50] Capelle B., Vestígios gregos e latinos de um antigo transitus da Virgem, in
«Analecta Bollandiana» 57 (Mélanges Paul Peeters I, 1949) p. 21-48).
[51] Wenger A., A.A., Fé e Piedade Marianas em Bizâncio, in «Maria» do P. Du
Manoir, vol. V, Paris 1958, p. 932.
[52] Wenger A., loc. cit. p. 935.
[53] O Professor C. Cecchelli, falando do texto do qual depende o «fragmento Wright»,
localiza-o no século III; «mas não rejeitamos a hipótese – acrescenta – de fixar-lhe as
origens no século II», isto é, no «Transito do Pseudo-Lêucio Carino (cfr. Cecchelli C.,
Mater Christi, III, Roma, 1954, p. 397-398). E noutro lugar: «Contudo, ao quer julgar-se
que o fragmento Wright é muito antigo (está num manuscrito do século V e tem, como
nos parece, a inclusão de uma história do século III ou mesmo do século II), o facto é
que reflecte uma concepção que bem se pode fazer remontar ao património dos joânicos
da Ásia Menor. Parece portanto razoável perguntar: embora não apresentando os
fantásticos desenvolvimentos que pôde engendrar um contador de histórias herege
(Lêucio Carino), será que a convicção de que fora concedida a Maria a assunção
corpórea existia nos joânicos do início do século II?» (op. cit. p. 414). É mais ou menos
a mesma conclusão a que eu próprio cheguei, antes de ler esta insuspeita confirmação
na obra do inesquecível amigo Prof. Cecchelli.
[54] Bedjan P., Sancti Martyrii, qui et Sahdoma, quae supersunt omnia, syriace.
Accedunt Homiliae Mar Jacobi in Jesum et Mariam, syriace, Leipzig, 1902, p. 709-719.
[55] «Astitit divinorum illa turma prophetarum, et cum eis Apostoli et Evangelistae nec
non doctores, et exequiis peragunt virginalis corporis Benedictae, ut abiret in
(paradisum) Eden, plenum beatitudinis divinae» (vv. 91-94).
[56] Jugie M., A morte e a Assunção, p. 85.
[57] In «Studia Sinaitica», I, 1902, p. 59-61.
[58] É preciso ter presente, porém, que quando o Natal começou a celebrar-se no dia 25
de Dezembro como celebração diferente da Epifania (6 de Janeiro), também a
comemoração de Nossa Senhora começou a celebrar-se no dia 26 de Dezembro, ao
passo que a festa de «Nossa Senhora das sementes» primeiro ficou no dia 6 de Janeiro e
depois foi transferida para a oitava da Epifania (15 de Janeiro).
[59] Miegge J., A propósito do dogma da Assunção. I. Teologia e símbolo do culto da
Virgem Maria. In «Protestantesimo» 6 (1951) p. 25-26.

FONTE
ROSCHINI, Gabriele M. L'Assunzione di Maria SS. nei primi cinque secoli dell'èra
cristiana, in Renovatio 2 (1967), pp. 589-608.

http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/apologetica/virgem-maria/954-a-
assuncao-de-maria-santissima-nos-primeiros-cinco-seculos-da-era-crista

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