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th MANUELA CARNEIRO DA CUNHA i semeaas Obra publicads fem co-ediao com @ Viee-Reltor: Roberto Lea! Lobo e Siva Filho EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SAO PAULO cee ANTROPOLOGIA Comsat Edtora DO BRASIL mito, historia, etnicidade epae Sobre os siléncios da lei: lei costumeira e positiva nas alforrias de escravos no Brasil do século XIX* A historia de um erro é sempre inst Sabe-se do lugar de honra que a me dda Jgreja nas relagdes entre senhores e eseravos ocupou nas teses de Tannenbaum e de Elkins sobre a leniéncia peculiar da eseraviddo no Brasil. Central, por sua vez, no suposto papel do Estado, era 0 A alforria do escravo que apresen- « tasse seu valor. Ora, trata-se, diga-se ja, de um dos erros mais ‘bem-sucedidos da Historia. B, a primeira + Circlon ma MANUELA CARNEIRO DA CUNHA © costume de oe alfrriarem eseravos que apresen Valor era largament patiado, mas revel do otadoy no, orém, que 0 Estado se opusesse, mas porque nao the era permitido sanciona-lo em lei, pela oposicao daqueles mesmos ae patstam ea sara costumer. Charade Sur tet Podemos retrasar a carteiraveriginosa dese histoico. Creio que se origina no ingles Henry Koster que fo laador de cana em Pernambuco no comes so tle e cerlamente uma das melhores, enao a mln, fonte sobre o Nordeste nessa época. Koster escreve: : qual foi comprado, ual potera ser vendo, se este prego for sp {Logo a seguir, no entanto, Koster confronta-se com os mani- festos desvios a esta regra que afirmou, agora explicitamente descrita como sendo uma lei: “Esta regulamentagd, como toda outa eita em favor do essravo, © sua a set desespatada, 0 semhor por vers realmente se nog a siforar tm eerovo vation, ¢ eam em virtude do estado jutidico por imputar os desvios flagrantes registr ona saistrados na pratica A sua assim como outros de gut oi falar, fo fundamento sobre o qual se sent “= eno soubese com que faelidade entoe prin sto br ene do poder, Now una cop de fe0u do regulament sobre oassont, mas nunca eno [ANTROPOLOGIA DO BRASIL. ns tret quem duvidasse de sua existéncia. Nunca encontrei quem uvidasee que 0 escravo tinha direito a recorrer, se achasse 1; gue fosse ouvido ou no, essa era outra ques- to” (Koster, 1816: 405 nota). A partir dai, a carreia desse erro é rapida, sobretudo porque Koster serve de fonte para muitos de seus sucessores, fem geral avaros em reconhecer os empréstimos que Ihe fazem, O francés Tollenare, contemporaneo de Koster em Pernambuco, retoma o dado como certo, em suas Notas do- minicais ( llenare, 1956: 144), publicadas em 1818. poeta inglés e autor de uma importante , fala da existéncia da tal lei em 1819, citan- do Koster como sua fonte (Southey, 1819, Parte 3, cap. XLIV: 783). Dai por diante, torna-se comum a mengdo a let ‘da manumissdo por oferta do valor: aparece em quase todos of viajantes. Em 1835, por exemplo, Carl Seidler refere-se la nos seus Dez anos no Brasil (1980: 255). Em 185, 05 reve- sndos Kidder e Fletcher a mencionam no seu livro Brazil the brazilians” (1857: 133). Sir Harry Johnston retoma ‘ago em 1910, no seu livro comparativo sobre a escra- ‘ee acle e a Kidder e Fletcher que Tannenbaum (1947: , 65) ira citar em apoio da existéncia do direito legal a alforria no Brasil. Estava consagrado 0 engano, € nao me consta que entre os argumentos que se levantaram con- tra as teses de Tannenbaum e de Elkins, que as retomou, alguém tivesse lancado divvidas sobre a existéncia deste direito legal. E, no entanto, esse direito néo existia em lei até 187 seja, att a chamada Lei do Ventre Livre; significativamente, tessa Lei, que declarava livres os filhos de escravas nascidos a partir daguela data, marcava o comeso do desmantelamento oficial do escravismo. E verdade que, antes dessa xistiam circunstancias ‘excepcionais em que o Estado intervinha concedendo alfor- rias. Na Guerra da Independéncia na Bahia, o general Labatut promete a liberdade aos escravos do RecOncavo que combatessem contra os portugueses. Consegue, com esta fenar de si todos os senhores de escravos da regiao ¢ a Junta Governativa sediada em Cachoeira, para quem combatia. Ndo que perdessem muito, pois 0 caos econdmico 6 MANUELA CARNEIRODA CUNHA entdo reinante a promessa de indenizago podia serena-los, quanto as perdas reais (Amaral, 1957: 292, n. 3, e 284-285), Mas, embora a carta de alforria, mesmo neste caso de virtual desapropriacdo, fosse passada pelo senhores respectivos, estes ressentiam fortemente a ingeréncia no mente privado de alforriar. Na lei de excegto de 1835, consecutiva ao mais impor- inte de escravos do stculo XIX, 0 dos chamados a Bahia, para tentar prevenir novas insurreig0es, 0 iforria aos escravos delatores (Lei n? 9, de ). No Rio Grande do Sul, em 1838, acena-se com 2 alforria aos escravos desertores das forgas republicanas de Bento Goncalves, Ao que este, alias, retruc inagdo do Governo imperial de 1 202). Na época da Guerra do Paraguai (1865-1870), repete-se 1838, apud Goulart, Fepete-se a grita dos senhores. No stculo anterior, esses casos excepcionais de interven- 80 do Estado na alforria tentavam prevenir contrabando de diamantes e, mais tarde, de madeiras. Os escravos delatores smunhando contra seus senho- hhassem eles es (Perdigio de interferir na concessio de alforria: razdes imperiosas de Estado, todas entendidas como ‘medidas excepcionais. Sempie, de qualquer forma, indeni- zavamse 08 senhores, cabia a estes a concessdo da carta de alforria. Em suma, ‘afora situaglo exeepeional, competia exclusivamente ao senhor conceder alforria ou nega-la a seu escravo Na verdade, punha em divida”’, nos termos Tem-se disso alguns indicios est uja existéncia ninguém Schwartz, 1974: 623). Em nove mur 25,6M% (Galliza, 1979: ANTROPOLOGIA DO BRASIL. para o Brasil como um todo, 30,6% das alforrias sfo pagas, entre 1873 e 1885 (Slenes, 1976: 517-518). os E verdade que algut , eram pagas al do valor de mereado (G 32 en, 29 € 30, 161-162) mas a pratica ndo parece ser generalizavel. Hi também casos fem que o senhor pedia, ao contririo, um prego superior 20 do mereado, provavelmente especulando no interesse parti- cular eintransferivel que o escravo tinha em si proprio. Cortes de Oliveira (1979: 207) publica um tes io de qual se deduz que ‘uma escrava que s6 soma substancialmente maior do que aquela pela qual ela havia sido vendida dois anos antes. i ‘Algumas dessas alforrias eram pagas em dinheiro, outras fem bens moveis que podiam, até, inchuir escravos, ou bens is , 1979: 150). © que vem subentendido nestas praticas € a , tambem silenciada na lei ate 1 plenamente vigente no direito costumeiro, do pect eseravo, Se de jure o escravo nao podia possuir coisa alguma, de facto chegava-se por exemplo a ter formas especiais de se marear 0 gado pertencentes aos escravos (Koster, 1816; Per- ir0, 1976 (1867), vol. 1: 62, § 34). jos niimeros que evocamos de alforrias pagas, © silencio da let ¢o que mais chama da atengio. Por que nao hi nenhuma regulamentacdo, indida? O a icagdo daquilo que ndo se escreve? E até, . ual o lugar ¢ © papel do siléncio, da omiss4o, do nao-escrito em uma sociedade letrada? yente esquecimento. Ao quase todos 0s fas incluem, na iegislagao que propdem, seu valor, sm 1826, o cr. 1845, republicada em 1862, 0 deputado Silva Guimares, no projeto de lei que chegou a ser apresentado a 18 MANUELA CARNEIRO DA CUNHA (Camara dos Deputados em 1850, a Sociedade Contra o Trafi- co de Africanos e promotora da colonizacao e civilizagtio dos indigenas, no seu Projeto de 1852, 32 parte, art. 46, todos ediam a incluso na lei do direito alforria, mediante apre- sentapdo do valor do escravo.”” Mas essas propostas so, de forma igualmente consis- , voto vencido. O texto de Jose Bonifacio, por exempio, io. que acabou sendo sub: rado Jr, (1963: 54) ressal- igdo reconhece os contra- € 08 escravos, € 0 governo vigiara sobre ico, © argumento que se opunha a estas de propriedade, garantido ‘em toda a tude" na Constituigao de 1824 (art. 179, § 22), Pleni- tude que supunha 0 exclusivo de o senhor alforriar ou rndo seu escravo, segun No periodo de predomi profundo impacto no cam} comera no entanto a recomendar f intengOes que acaba enfatizando a auséncia de apoio legal Em 1830, por exemplo, diante dos escravos a quem sua se- hora negava a liberdade, embora oferecessem seu valor em dinheiro, recusa-se 0 Minis tia, por ndo querei rio da Justiga a ordenar a alfor- ao ‘coactar 0 exercicio do direito dos senho- res, permitido por lei”. Recomenda, ao contrario, ‘“meios éceis e persuasivos"’ para induzir a senhora a conceder a liberdade que havia prometido em troca da soma por ela esti- lada (Justica n? 66, de 8.3.1830, Collesao das Leis do Império do Brasil, 1830: 50): “Sobre a liberdade requerida por dois escraves nndo Sua Majestade o Imperador facilitar e promover @ iberdade de escravos, sem todavia coactat 0 exercicio do 232, 207248, 256, 1890, o mai ANTROPOLOGIA DO BRASIL 1 direito dos senhores permitidos (sic) por lei. Ha por bem .S, procure por meios déceis e persuasivos, fazer realizar ossupli- ‘guem a soma pela mesma designada’” Dois outros Avisos do mesmo ano de 1830 vo na mes- ma diregdo, aconselhando meios conciliatorios para persua- fem 0 pagamento d de seus esera- ejam destes Avisos recomen- dda que se convenca o senhor do ‘‘direito”” que tem seu escra- vo “de procurar sua manumissdo” (atente-se: nao o direito a ‘manumissio, mas 0 de desejé-la) e do seu “'dever (de senhor) de concorrer para a Felicidade do dito escravo.. 830 e de 29.7.1830 im Nabuco de Ari ¢ 187). Mas, em nome ‘‘da humanidade, da philantropia, da ‘ajurisprudéncia se vos que des Ja Bugénia mediante pagamento, se aplicassem os termos da lei, que a protegem (Nabuco de Araiijo, vol. 7: 604). Que leie essa? Bis 0 que nao ¢ especificado e que surpreende. Seguido em 1837 por uma Resoluco que manda alforriar os escravos do Imperador que oferecerem seu valor e, em 1847, por uma Ordenagio que dispde a mesma coisa para 05 escravos da Nagao (Resolugto n? 30, de 11,8.1837, art. 12; Ordenaszo rn? 160, de 30.10.1847), 0 Aviso de 1831 tera aberto um campo de especulagdes sobre 0 direito da alforria que so sera estan- cado com parecer peremptorio da segdo de Justiga do Con- selho de Estado, em 1855. Este parecer de um Orgio assessor do Imperador, fortemente reacionarios nesse periodo, pde interpretagbes humanitarias de leis estabelecidas” cescravo (Almeida, 1870: 1073-1074; Aviso n? 388, de 21.12. 1855). ‘Tannenbaum estava, portanto, errado: 0 Estado nio ire senhores e escravos. N igo. Na6'56 as ordens religiosas tinham ie quase as vesperas da Aboliclo, mas algu- € parecem ter sido as inicas empresas na reprodugdo de escravos. Os carme- mediava as rela a Igreja como i seus escravos, mas se especializar do género no Bra 0 MANUELA CARNEIRO DA CUNHA litas tinham, por exemplo, criatbrios de escravos na provincia 5 na itha do Governador, ue houve, sim, foi o 1 importante das irmandades religiosas, associagdes de igos a sombra da Igreja, de organizagao local e sem nenhu- 8 centralizapdo, que defendiam os intreses corporativos de seus membros. As irmandades de escravos, negros ou pardos, adiantavam dinheiro a seus assocados para sua alforria (vide, por exemplo, Scarano, 1976, e Russell- Wood, 1974). Certas irmandades particulares tinham alguns privilégios concedidos pelo rei de Portugal. Mas eram irman- dades de determinada igreja em determinada cidade, ¢ 0 pri- va-se exelusivamente a seus membros. Em 1688, Pretos de N. S. do Rosario da Igreja de S40 légio de poder resga- 79 in Almeida, imente poderia ser entendido como uma media- ‘em 1685, 0 rei concedia a outra irmandade, de , sediada em Angola, a permissdo de mandar, por quatro anos consecutivos, $00 escravos para serem de custear a construgao de uma igreja (Alvara de . Andrade e Silva, 1859: 48). tanto, seguia caminhos . severo Conselheiro de Estado no Parecer de 1855 a que nos referimos vineia da Bahia introduziu-se a pratica de, no trem of inventarios, pode-se remir qualquer escravo, logo que oferera o valor. A ser isto verdade, ignoro inteiramente em ‘que se funda semelhante regra que, no meu entender, nenhum is por que nos regemos"” (Aviso n? 388, . 1870, vol. 2: 1073). Entre a lei e 0 direito costumeiro, ndo ha divide que era ANTROPOLOGIA DO BRASIL ry contar com maior obedigncia. A autoridade tAncia dos centros urbanos. No it pelos poderosos, “senhores de eng tuados a fazerem justiga por suas proprias mos" (Tollenare, , além disso, nos indagar sobre 0 ignordncia da lei escrita fosse generalizada entre os escravos, hem se percebe que canais teriam para adquirir esse saber. Mas, além disto, existem de que a legislagao ja era propositalmente ocultada aos escravos, iador. Um exemplo: a Carta Régia de 20.3,1688 ¢ a de 23, ‘com crueldade o set: excravo a vendé-lo. Mas estipulavam que no soubessem disso 0s outros escravos. ‘Que canais legais tinham um escravo para fazer valer os direitos dessas ev jeis? Para dar queixa, necessitava da fintermediagao de seu senhor.” A falta deste,.havia ~ mas segundo algumas interpretagdes apenas" — a possibilidade de recorrer a intermedia¢do do Promotor Piblico ou dé ‘quer do povo”, Supondo que ainda ass ‘queixa de seu senhor, o que vimos ter acontecido, que apoio poderia esperar dos juizes?® Koster, na passagem que cit , sugere Que 05 escravos nao re- ‘Ao inverso da lei eserita, a seguirmos Koster, com a sancao de uma of homens da mesma classe di diante dos quais o senhor niio queria se despresti- , pressionariam nesse sentido. Nao que fosse um poder totalmente efetivo. Licutan, um dos lideres da revolta dos Malés, em 1835, na Babia, era um letrado muculmano. Seus ia MANUELA CARNEIRO DA CUNHA discipulos reinem a soma cortespondente a seu valor, mas seu senhor recusa-se a Nina Rodrigues, que conta dos processos, acrescenta que ‘ainda hoje (isto &, em 1900) os africanos sobreviventes dao como motivo da insurreigao conhecida geralmente pelo nome de ‘Guerra dos Malés' a recusa oposta peios senhores & liber- negros que ofereciam pelos seus resgastes 0 valor ipulado de um escravo"’ (Nina Rodrigues, 1976 -62, 56). Ha muitos outros exemplos, além dos que ja mencionamos, da eficitn da lei costumeira. O ica, pressionasse sua lemente presente, da fuga ou irado em suas esperangas de tagdo era o temor, jo de um escravo, alforria, A propensio sel suicidio, que se acreditava ser um trago étnico, era assim la e levada em consideragtio.. Os Gabdes, por exemplo, ao serem introduzidos no XIX, so apreciados tambem sob esse siderados exceientes escravos, eram tidos, no ser mantido. morta que era levava a pal- alli ea pratica ma da eficécia. Por que consignada, em passar para o papel, em grande part a regra ja em vigor? Situagdo paradoxal: mente seguido & impedido de se cnstalizar numa lei que, de ‘qualquer forma, ndo se esperava que fosse necessariamente obedecida. Ja vimos que no é esquecimento: a lei ndo cala, la, € no proprio siléncio. a, € 0 parecer de 1854, da sesdo de Justiga do Conselho do Estado, o explicita: era duro, reco- nhecia, negar ao escravo o direito a alforria paga, mas razdes, de Estado o exigiam para que a escravidio nZo se tornasse mais perigosa do que era. Se, a0 contrario, 0 escravo sb pu desse receber sua liberdade das maos de seu senhor, ndo s6 se ressalvava o direito de propriedade, mas nao se prejudicaria 0 sentimento de obediéncia e subordinac&o do escravo para ANTROPOLOGIA DO BRASIL. bs com seu senhor, ¢ a dependéncia em que dele devia ser con- servado (Almeida, 1870, 4° Livro das Ordenacdes: 1074). Trata-se, esta dito em todas as letras nesse texto, da depen- déncia pessoal. ‘Um comentario de Perdigdo Malheiro, datado provavel- mente de 1866, aponta na mesma direso, Perdigdo Malheiro recomend restrigdes a0 direito de resgate: devia-se limitar 20 ceaso em que o senor vendia seu escravo por necessidade de dinheiro. Mas na venda por castigo, na troca, nas doagbes € dotes, nao convinha estabelecer esse dircito: ‘‘estabelecer como’regra absoluta seria dar lugar & insubordinagio, a que essa classe (dos escravos) & naturalmente propensa”” (Perdi- ‘#20 Malheiro, 1976 (1867), vol. I: 165, n. 657). E, portanto, ago que esta em pauta. "Em 1871, sso na Camara dos Deputados sobre a Lei do Ventre Livre, Perdigdo Malheiro, a essa ido por Minas Gerais, opde-se ao projeto e esp: iusao em lei do dieito a alforria paga, mesmo contra a ntagdo que desenvolve, éainda jcagdes que atribui A medida: fa & propriedade, entendo que no po rouxar as relagdes do escravo para com o senhor, que hoje prendem tao forte- 4 Mente um 20 outro, e que sto 0 unico elemento moral para Cconter of excravos nessa triste condiggo em que se acham .. ‘Se nos rompermos violentamente esses lagos, de modo a nio se afrouxarem somente, mas a corti-los, como a proposta 0 ‘8 espada de Alexandre cortando 0 nb gérdio), 2 sera a desobedigncia, a falta de respeito e de i¢f0. Eis um dos mais graves periges. Essa proposta, em ‘0 seu contexto, nao tende a nada menos do que romper Surpreende a primeira vista que se acene assim com 0 ; risco de insubordinacdo nesse contexto. Os que defendiam 0 direito ao resgate entendiam-no, ao contrario, como um esti- rmulo ao trabalho, a poupanca ¢ 4 disciplina. E nestes termos que Koster recomenda, em 1816, a adogdo desta medida nas coldnias inglesas (Koster, Mas subordinacao e dis- ciplina nao se confundem. ina remete ao trabalhador MANUELA CARNEIRO DA CUNHA subordinag#o, ao dependente, E, como tentaremos irar mais adiante de produzir dependentes. Para se entender preciso pensar na di controle politico entre o Estado e os particulares no Brasil dessa época. O controle dos escravos, a ndo ser em casos de ingurreigbes e, eventualmente, de assassinatos, ficava a cargo dos senhores. Tradicionalmente. © jesuita Benci, et censura os portugneses que, ‘por timbre e pundonor sideram “que entregar 0 servo cri bem a nobreza e fidalguia do senh 167). Benci apenas se refere as condenagdes & morte. Ou soja: nem sequer discute que 0s outros castigos que recomenda, agoites e carceragem privada, fiquem a critério e a cargo dos senhores. Nem tampouco que eles avaliem se 0 escravo me- rece ou ndo a morte. O que recomenda & que se deixe ao Estado a aplicagao da pena capital. ‘Mais de um stculo mais tarde, a mesma regra ainda pre- valecia, absoluta, no campo. E o senhor que néo tinha poder de coagdo suficiente sobre seus escravos acabava vendendo os insubmissos a quem o tivesse (Koster, 1816). Mas nos centros urbanos, onde proliferavam escravos de ganho e senhores de poucos escravas, sem feitores e aparelhos privados de coa- ‘$80, 0 Estado havia-se posto pi slesmente a servigo da pela carceragem e pelos acoltes aplicados (Goulart, 1971: 103 $s., 197; Aufderhelide, 1976: 301 do se fortaleceu no campo judicial, alguma: colocadas a essa subservigneia do Estad culares. © Cédigo Criminal de 1830 proibia excederem-se (art, 60); um senhor ndo poderia ordenar mais, as nem deixar eeu exeravo preso no Calabouso por mais de um més, sem um processo legal ( e Decisdo n? 67, Justica, de 10.2,1832 in Cc ANTROPOLOGIA DO BRASIL bs : “O governo juuigou que @ corregdo de faltas, no is reservados a justia. Os compreendem”” (Relatorio 1971: devia estender-se & punigto de escravos so homens e as Leis do ministro da Justiga, de 10.5.1832, aud Goul 108). Na realidade, essas medidas humanitarias ¢ essas decia- rages de intenco nao afetavam 0 acordo basico. Competia “responsabilidade paternal” do senhor 0 controle dos escravos como 0 dos filhos.” Ao Estado, teoric competia 0 dos libertos e dos livres. Ora, a categoria consi- derada, entre todas, perigosa nesse inicio do século XIX era sem diivida a da gente de cor que nd era escrava. Nao se sabe ‘a0 certo quantos seriam: ‘'no que diz respeito a certas catego- screveria o viajante americano Thomas W considerado que por discreeto, nao devam as autoridades falar muito; assim nenhuma comparaedo digna de {é & dada dos niimeros de brancos e de livres de cor, em virtude da suposta maioria esmagadora destes (Bwbank, 1856: 430). Achava-se que haveria mais ‘que escravos, mas sabia-se que havia muito menos brancos do que homens de cor. Seriam do de bran- 08, uns 700000 homens de cor, livres, um numero fantasioso de uns 250000 “‘indios domesticados””, ¢ cerca de 1900000 escravos. Isto as vésperas da Independéncia (Balbi, 1822, tomo 2: 229). Nao ver ao caso aqui diseutir estes niumeros; Taga-o em outro trabalho (Cameiro da Cunha, 1985). O que 196 MANUELA CARNEIKODA CUNHA populagdo? Nada mais incerto, E nos livres de cor, aparente- ‘mente, que se concentravam as acdes as prisdes (Aufderheide, 1976: 209-210, 304 ¢ 346). E neles que se con- vagabundagem do: longe de ser tot Nestas condigdes, & de se supor que o Estado estivesse plenamente disposto a ‘© controle da populasao dessa populagdo. Sabe-se, hoje, que parte do trabalho agricola, mesmo nas regides aqucarciras e cafeeiras que mais empregavam mao-de-obra escrava, era desempenhada por livres ou, mais exatamente, por trabalhadores dependentes, com 05 at exemplo, um colheita, de ser te de terra e protegdo em troca de parcela da 08 pessoais (que incluiam a defesa do se- 7, ¢ Eisenberg, 1977). Havia toda uma gama de tra es livres desde 0 mais dependente att os trabalha- is assalariados bra de rese vias eidades em géneros de grande lavoura, atendendo as necessidades ‘azon: - fem de cana 1 da coe do cafe a ontene nd reio que ¢ nesse contexto que a questdo da alfort escravos e eslarce, Desde que denade # incre uetafo do senhor, elas podiam desempenhar um papel poderoso na io dessa populago dependente. Por mais que a alforria paga se assemelhasse a uma ven- dda e seu prego 5c regulasse em geral pelo prego do mercado, nada era ideologicamente mais enfatizado do que a distingao lo das doapdes (Perdigao Maiheiro, 1976 (1867) ). Nas cartas de alforria, mesmo naquelas que ANTROPOLOGIA DO BRASIL ro foram resultado de um resgate, nunca se deixa de insistir pre~ iminarmente na generosidade ou na afeicao do senhor pelo seu escravo ¢, em contrapartida, n lade e nos bons ser- Yyigos do cativo que 0 tornaram elegivel para a libertacto. Formulas talvez, mas reveladoras. "Tudo isto supunha a existéncia de lagos_morais entre (gos que ndo deveriam cessar com a senhores. "A. esse proposito, 0 jurista Perdigao Malheiro discute brigagdes reciprocas entre 0s patronos e seus ‘era o patrono herdiar do seu liberto, se este morresse sem tamento. Perdigo Malheiro insurge-se contra a aplicayao pod supor que se trata de ‘mera discussao tebrica. icagao de testamentos de liber- tos, e sua anélise por Oliveira (1979), deixa claro, ao contra i ‘ono ¢ de seu liberto estava assente 2 ppelas almas dos escravos defun- tos e pela dos senhores eram encomendadas nos testamentos durante toda a primeira metade do seculo XIX (Oliveira, 199, 219, 210, 179). As vezes, essa era a condigto de escravos por testamento (ibrdem: 210): legados de libertos a seus antigos senhores e legados de patronos a P. Verger, 1968: ritos ¢ deve- 343). Chegava a haver uma tran: res dos patronos. Kiernan (1976: 148) conta o caso da preta forra de Paraty, Vicencia Maria, que ao libertar uma menina africana, Rosa, em 1814, declara que esta deve obediéncia ¢ servigos a Filizarda Maria Espirito Santo que a he tado a ela, Vicencia Maria. Por outro lado, se Vicencia viesse ‘a morrer antes de sua patrona, cabia a esta a educacdo ¢ 05 cuidados com Rosa, liberta de sua liberta. . ‘Ouiro indicio do programa que se tinha para os libertos a famosa questao da revogagao da alforria por ingratidao, definida de forma to ampla que abrangia até a ingratidao Verbal mesmo na auséncia do patrono (Perdigao Malheiro, 1976 (1867), ve '35 § 149), Discutiu-se j4 sobre se real- mente vigoratia tal dispositivo, mas creio que ha provas nesse foe MANUELA CARNEIRO DA CUNHA lo.” De fato, a revogagto da alforria por ingratidao so desaparece, ‘questo da eldusula co- munissima nas cartas de alforria ditas gratuitas (Mattoso, 1982), ‘0 controle privado da alforria tinha, assim, uma impor- ‘ancia crucial: no so mantinha a sujeicdo entre os escravos, ‘a producdo de libertos dependentes. Entre os escravos mantinha a esperanga, por pequena que fosse a pro- babilidade estatistica, de conseguir a liberdade,” incentivava, poupanea e a uma ética de trabalho; mas con: bem a liberdade a relagdes pessoais. com o sen! libertos, abria-lhes a condigao de dependentes, mantendo os lagos de gratidao e de divida pessoal em troca da protesio do. patrono. Razio tinha, portanto, Perdigto Malheiro (citado p. 133 acima) ao dizer que o direito em lei a alforria paga, prescindindo da aquiescéncia do senhor, subverteria a sujel- ‘$80, afrouxando 0s lagos entre senhor ¢ escravos, ‘© programa de sujeigao dos libertos ndo funcionou totalmente: persiste, ao longo do século, uma situagao de endémico entre agregados © senhores. O francés Tollenare fala de senhores de engenho de Pernambuco que tremem diante de seus moradores ¢ de um que nao se afasta de um quarto de légua da casa grande, de medo deles |. Em 1858, no vale cafeeiro do ANTROPOLOGIA DO BRASIL 19 seus agregados (Vitti, 1966: 29.30). Na década de ar of © antagonismo latente ou ani ito do 1883: 1 Mais eloqitente ainda sobre as imperfeigdes do projeto de constituisao de uma méo-de-obra dependente foram as smagoes dos proprietarios agricolas sobre a negros libertos ¢, mais par libertos (vide Carneiro da Cunl to as grandes propriedades cor agregados e moradores. Nesse um afr de provar que nao era escravo para Ser tido por livre: de medo de serem reescravizados, muitos Tibertos negros ou fixavam residéncia nas imediagdes das fazendas onde haviam sido escravos e onde, condigdo de forros era conhecida, ou iam se fcravos fugidos, nos quilombos. Ao c io, deum lado, da cessagio do vidao e, de outro lado, as suas r da grande lavoura, que se entende pol s5eS peri- ‘quando a alfor- le privado, passa Assim tambem 0 controle dos escravos (Dean, 1977: 125-126). imeiro e a lei positiva, até 1871, parecem terem sobreposto quanto terem talhado para si . A lei, escrita a partir da reforma de 1830 M0 MANUELA CARNEIRO DA CUNHA em termos univers bora no 0 Ides, a gen- idiciais ¢ & para eles ribunais tém maior importancia (Aufderheide, 1976: er pi duas camadas, a dos que esto acima da lel e a dos que estéo abaixo dela, Escravos, negros livres ¢ libertos, assim como os homens ricos, aparecem nos tribunals € has prises em proporedes francamente ab: 95 que esto aquem como para os que esto além d 2 0 diceito costumeiro, caracterizado pela auséncia de in tuigdes formais que o sustentem. Mas o siléncio da lei, a par de sua funséo politica, vine cula-se também a fontes ideolégicas. Nos seus niveis mais abstratos, da Constitui¢ao a0s Cédigos, o direito do Império teve de se acomodar com a contradigdo que era se descreve- rem as regras de uma sociedade escravista e baseada na de- pendéncia pessoal com a linguagem do liberalismo."' A solu G40 foi o uso generoso de largos Império de 1824 silencia até a existéncia do escrat Criminal de 1830, em que se tentou consignar o pri impessoalizagao das penas que deveriam ajustar~ ‘mente aos delitos, menciona os escravos em dois artigos. ‘ingue-os dos livre apenas para dizer que a pena de pristo com trabalho nao era aplicavel — por redundante — aos escravos (arts. 60 ¢ 311), Assim, no esforco da abstragao uni- © que acabou sendo abstraido foi uma parcela fundamental da populagao. Outros paises optaram por ebdi- 0s separados para eidadaos e para escravos. O Brasil prefe- ‘© uso desses siléncios era previsivel. Dois exemplos: os defensores da competéncia exclusiva dos senhores sobre as, alforrias de seus escravos lembravam, como vimos:acima, que qualquer legisiacao em contrario atentaria contra o dire to de propriedade. Argumentavam que o silencio da lei mos- lrava que nao se haviam aberto excerOes a favor da proprie- dade “‘escravo"". Por outro lado, 0 artigo 179 da Constituicao ae tena 920, ae Robe desde Olvera Vianna, em i | ANTROPOLOGIA DO BRASIL 1 sem qualificagdes) a pena de agoites. {§ 19) havia abolido (sem gualificasdes) a pena ce stole ‘rifos no original). Na 15 de escravos em 1886, 86, Collecdo de Lei do costumeiro, io €, portanto, o campo do di 9, daguito que na verdade se pratica, Mas sera a leila ur larcabougo ficticio pelo qual a sociedade nao se regula? E iss {que insinuam ou afirmam os ensaios a que me referi acima. Sua tOnica é a inadequacao de uma realidade que se procura esconde Vianna, 1974 (1949). ivel essa adequagao? ue pergunto é: seria possivel equa bao seria necessério esse direito calado? Se 2 0 escrito, realmente postigo? E adequagio a qué? Porque, afinal, 4 adequasdo seria duplas a um pais inserido no capitalismo mundial, falando a linguage a coma ao sistema no qual gravitaeem que as elites se entendam; © & tim pals que, Internamente, organizava sua produgao em termos escravistas ¢ de dominapio pessoal. Nao ha como ‘escolher © mais real. Esta duplicidade ¢ uma essénci Coexisténcin de um dirt costumerro ¢ da Ii, a yuada fundem, parece ao contrério ser adeat ealidade de posicio’periférica do pats, Inadequado seria um sistema d ‘common law em que & dade e a seus usos. ‘Ale € como o Estado se representa sua i dade ¢ compettncia: ¢ uma autodescricao. cost 10 alternativa. A verdadeira sociedade ee atonoeenina b ose. to do escrito € do nao- jando relagdes sem priv embaragos porque, ’ de aplicagao basicamente distintos: aos MANUELA CARNEIRO DA CUNHA a lei; aos poderosos, seus escravos e seus costumeiro. Aquela é também a face externa, nacional, mas nao necessariamente falsa, de um sistem domesticamente, € outro. BIBLIOGRAFIA, ‘ou ordenaptes eis do Reto de Portugal. Rio de ‘> Isto Paloma, "Contribute para o estado das quests de que (20 de Histona das Exporapes Archeologist © Yate do Insta 4 olence: social deviance end scl control im Breil 1780 20 6e PhD. ma, lo Claro. Um ststeme bresievo de grande lvoure, 1820-1920 Rio de ase Terr, fodenizapto sem mucenga. A indisira esucerea em Pernambuco 1840-1910. Rio de Jao, Pax ¢ Tera UNICAMP. Ehking, Staley M. 1949" Slevery problem momercen institutional and intellectual fe. Chisago. Evbaak, Thoms RSS" Life m Bran. Boston, ANTROPOLOGIA DO BRASIL us Hispame Amenean Sate mili ‘aca Suis, cy MANUELA CARNEIRO DA CUNHA ‘Slee, Reber 196 The demography ond ecanormes of Bran slavery: 150-168, Dis teeta de PhD. nti. Sobre a servidaéo voluntaria: outro discurso* Escravidao e contrato no Brasil colonial Para Marian, que nunca se submete Em agosto de 1780, em Belém do Para, uma mulher livre vende-se em escravidao. O caso ¢ inusitado, e requer um ura piblica de venda ¢ feita em tabeliao, diante de teste- munhas. Joanna Baptista havia nascido livre, uma india e de um escravo negro, ambos a ‘mo padre. A linha do v4

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