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Nome: Felipe Quirino Ferreira - RA: 150450 - Turno: Noturno

Trabalho Final (Biografia e Cartas) Contemporânea III

Biografia de David Edelstein:


É interessante perceber como certas coincidências da vida podem nos levar à histórias
muitas vezes perdidas. Estávamos eu e minha mulher lanchando em um quiosque no Parque
Ibirapuera, em São Paulo, mas não me lembro ao certo o dia, mas sei que foi em 2019, e
notamos que tinha uma mulher idosa com um sotaque que certamente não era do nosso país.
Minha esposa, como é de costume dela, ficou muito curiosa para saber de onde ela era, então
decidimos apostar de onde aquela senhora era e foi decidido que eu deveria perguntar. Muito
envergonhado, cheguei em sua mesa já pedindo desculpas, e ela me tratou aquele dia com
muita cortesia e se apresentou: seu nome era Ada.
De início, minha esposa ficou rindo pois estava com vergonha da situação. Porém,
logo depois que a vergonha passou, começamos a conversar com ela, esperando alguma
história de vida interessante. No caso ela iniciou sua história nos contando que tinha nascido
em Londres, na década de 50, após a Guerra. Assim que ela mencionou ter vivido na
Inglaterra Pós-Guerra, meu interesse como Historiador aumentou drasticamente: comecei a
perguntar sobre sua infância, vida durante a década de 60, cotidiano e, finalmente, família. É
claro que ela me relatou muitas coisas sobre a vida dela mas, neste caso, irei me basear
somente na figura de David Edelstein, seu tio, que foi um personagem que vivenciou grandes
eventos do século XX, mas que já havia falecido.
No caso de David, ela nos disse que era uma pessoa de bom coração, mas que tinha
sido muito machucado pela guerra e por tudo que passou nas mãos dos nazistas e, de certa
forma, dos comunistas. Ela nos deu uma breve apresentação da vida de David, pelo que ela se
lembrava, e nos disse que tinha guardado algumas cartas que ele teria enviado a sua mãe
durante o século passado, e que talvez seria mais útil se as cartas fossem estudadas por um
profissional da área. Confesso que me senti um pouco intrusivo demais em lembranças
familiares de Ada, mas o jeito que ela se expressava parecia muito que ela queria que essas
memórias não morressem com ela.
Após ter dado uma carona para Ada e sua esposa, recebi as cartas na porta da casa
delas e fui diretamente para meu escritório, em casa, para mergulhar nessas memórias de um
personagem que quase ninguém conhece, mas poderia me trazer uma vivência rica em
detalhes para uma análise do século XX. Me surpreendi quando abri a primeira carta e vi que
estavam em português. Liguei para Ada e ela me disse que eram cópias, que as originais
tinham se perdido com o tempo, e que essas tinham sido usadas a muito tempo por sua esposa
para treinar a tradução do alemão para o português.
Análise da primeira carta:
Ao iniciar pela primeira carta, que eram quatro no total, logo pude perceber que era
uma carta abordada pela visão de um trabalhador operário judeu no contexto alemão durante
a primeira metade da década de 30. As leis de Nuremberg1 ainda viriam a ser aprovadas, mas
o antissemitismo já estava presente na sociedade. O personagem David, de vinte anos de
idade (informação fornecida por Ada, David teria nascido em 1915), nascido e vivido até
aquele momento em Berlim, com seus pais de origem eslava, relata pela vivência dele as
violências (morais de físicas) em que a população de origem judaica estaria sofrendo após a
posse do poder por Hitler. Nesta carta enviada a sua irmã Ruth, que teria fugido da Inglaterra
durante a crise do entre guerras, é possível observar a mudança dos discursos das classes
trabalhadoras em buscar melhores condições de trabalho, seguindo um caminho mais
socialista em suas manifestações, para um discurso de ódio, chauvinista, culpando tudo o que
não representava a alemanha, na visão deles ( comunistas, democratas), como responsáveis
pela derrota na Primeira Guerra Mundial, incentivados pela classe média alemã.2
Certamente, quando li esta passagem da primeira carta, em que ele conta essa
transformação nos discursos, me veio em mente o texto de Paxton3, em que é explicado ao
leitor as características dos primeiros movimentos fascistas em surgimento, sendo o
anticapitalismo e anti burguesia elementos tão essenciais para o crescimento dessa ideia,
quanto o ódio ao socialismo e aos socialistas. Pode-se entender que o ambiente de trabalho
dos operários, que sofriam no sistema capitalista, que eram desprezados pelos burgueses, e
que culpavam também o socialismo pelo fracasso na Primeira Guerra Mundial, seria um
terreno fértil para o crescimento dessas ideias fascistas. Porém, para Paxton, esse
anticapitalismo defendido pelos fascistas não era absoluto, pois o autor acredita que essa
crítica ao capitalismo focava mais no materialismo e, segundo ele, na indiferença para com a
nação e sua incapacidade de incitar as almas.
É claro que esse entendimento acadêmico, possível nos dias de hoje, da situação
política e social alemã daquela época não era algo explícito para um operário comum como

1
As Leis de Nuremberg. Disponível em:
https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/nuremberg-laws#:~:text=LEI%20DE%20PROTE%C3%87
%C3%83O%20DO%20SANGUE%20E%20DA%20HONRA%20ALEM%C3%83&text=A%20lei%20tamb%C
3%A9m%20proibia%20judeus,a%20cometerem%20%E2%80%9Cpolui%C3%A7%C3%A3o%20racial%E2%8
0%9D.. Acesso em 10/04/2023
2
Carta 1
3
Paxton, Robert. A anatomia do fascismo. São Paulo: Paz e Terra, 2007.
David, porém a sua experiência relatada na escrita de tais eventos se tornam riquissimos para
obter uma visão mais proletária do contexto alemão, visando relatar os abusos sofridos pelos
trabalhadores de origem judaica, a grande taxa de desemprego durante a República de
Weimar e a dificuldade de encontrar um emprego pelo pai de David, e como o pensamento
fascista já estava pulsante na mentalidade também de parte dos operários em Berlim, que
buscavam justificativa para a decadência da nação, tanto economicamente quanto no âmbito
nacionalista chauvinista, culpando os alemães democratas, eslavos, judeus e outras minorias
por toda o contexto ruim que a Alemanha nesse período estava passando.
David também menciona na primeira carta que teria sido incentivado por sua irmã a
ler, provavelmente se encaixando no contexto de reforma educacional na República de
Weimar4, respondendo a minha dúvida de como David, sendo um trabalhador operário, teria
uma boa escrita para aquele período. David também demonstra uma certa mágoa sobre o ato
de sua irmã ter ido embora da Alemanha, mas que confessa que entende os motivos, já
prevendo, com base de sua experiência de violência nas ruas de Berlim, que a situação das
minorias dentro do país iria piorar, tendo seu ápice na subida nazista ao poder político do país
na decada de trinta.
Análise da segunda carta:
A segunda carta se passa em 1949, sob um contexto pós-guerra que me espantou
quando li pela primeira vez. Nesta carta, David parece outra pessoa, completamente refém
dos abusos que teria sofrido durante o regime nazista na Alemanha. Agora com trinta e quatro
anos, David pede desculpas a sua irmã por tantos anos sem dar notícias. A verdade é que,
baseando-me nesta carta, David teria sido aprisionado em campos de trabalho forçado
provavelmente no começo da década, mas que a data certa não é revelada. Pouco nos é
apresentado sobre a vivência de David dentro desses campos, o que eu imagino ter sido
proposital por parte de David para não chocar a sua irmã que estava a anos sem receber
notícias.
Após ser resgatado por tropas americanas, David relata os horrores que as histórias
sobre a queda de Berlim relatavam: Cidade destruída, mulheres estupradas e a vergonha da
população alemã sobre o ocorrido. É certo que as informações que temos para analisar os
ocorridos sobre a tomada de Berlim pelos soviéticos exploram tais fatores5, porém é inegável
que David já estava se tornando refém de uma certa narrativa ocidental necessariamente

4
Martin, G W (1972) Educational reform in Germany 1918-1933, Durham theses, Durham University.
Disponível em http://etheses.dur.ac.uk/9738/. Acesso em 10/04/2023
5
BEEVOR, Antony. A Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Record. 2015, p. 817
capitalista, oposta à URSS e tudo que ela defendia. O texto de John Lewis Gaddis6 explora
bem esse contexto do recém pós-guerra, e como as duas potências (EUA e URSS) já teriam
“finalizado” o conflito contra os alemães e japoneses já pensando no conflito inevitável entre
elas. O medo que a bomba atômica gerou na política mundial no pós guerra certamente
refletiu nas camadas mais baixas da sociedade, e que no caso de David, deixou de ser refém
das políticas destrutivas nazistas, para refém das políticas americanas e soviéticas,
construindo aí o medo presente no mundo da Guerra fria.
Análise da terceira carta:
Essa visão de um homem comum em tal contexto de dominação e propaganda
certamente é abordada melhor na carta 3, em que David, após passar alguns anos (intervalo
de seis anos entre a segunda e terceira carta, mas não tenho certeza se ele teria passado todo
esse tempo em Hesse, e se teria chegado em Londres em 1955) na Alemanha, mais
especificamente em Hesse, passando fome, lutando para conseguir um emprego, trabalhado
um período como serralheiro e tendo conhecido um indivíduo que não é mencionado o nome,
mas que é relatado que era um lunático comunista por David, que já estava completamente
certo de que o mundo capitalista era a única opção de futuro, já que todo o resto teria lhe
trazido dor e sofrimento.
David acaba indo para Inglaterra, viver mais perto de sua irmã, tendo encontrado ela
em Birmingham meses antes de escrever esta terceira carta, se estabelecendo em Manchester,
onde ele teria vivido até a sua partida para Alemanha, mencionada na última carta. Pela
primeira vez, David demonstra a alegria de estar vivendo em um país estruturado, que dá
condições de vida dignas para a classe trabalhadora. Não diretamente, mas é mencionado por
David o Welfare State britânico, e traz um contraste com sua vivência em Hesse. No texto de
Hobsbawm “Anos dourados”, da obra Era dos Extremos7, ele conta como, para ele, essa
transformação da sociedade rivalizaria com o surgimento da agricultura na história da
humanidade, principalmente pertencente ao mundo capitalista, o que é demonstrado no
desafeto de David pelo mundo comunista, tanto pela vivência quanto pela propaganda que o
teria influenciado. Para Hobsbawm, o acúmulo de bens de consumo, a evolução tecnológica e
a acessibilidade de tais avanços teriam sido excepcionais para a qualidade de vida
principalmente do mundo rico, mas também do mundo pobre em menor medida.

6
GADDIS, John Lewis. A Guerra Fria. Lisboa: Edições 70, 2007, Cap. 1: “O regresso do medo”, p. 17-57;
269-273
7
HOBSBAWM, Eric J.: Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras,
1995.
Uma parte importante desse texto, que achei interessante relacionar com a inocência
de David, é a conclusão de Hobsbawm que acreditava que esse período, por mais excepcional
que tivesse sido, apenas foi enxergado como tal no final dos anos 70. A inocência de David,
ao ir para essa nova realidade, e acreditar que o Welfare State Britânico seria o ápice de
qualidade de vida da classe trabalhadora, apenas o distanciando dos questionamentos
socialistas de todo esse século sobre a exploração da classe burguesa com a classe
trabalhadora e todos os outros males do capitalismo na sociedade. É inegável que a criação de
tais direitos para a classe trabalhadora muito provinha do medo das elites em permitir que a
parte capitalista do mundo se tornasse mais problemática, em contraste à parte comunista,
que poderia ameaçar, principalmente neste cenário de Guerra-Fria, com revoltas e até mesmo
revoluções internas em um mundo já fragilizado pelas grandes Guerras Mundiais. Porém,
David era apenas um novo indivíduo, introduzido neste novo mundo, e é inegável que
certamente, mesmo fugindo da análise social do contexto em que ele vivia, David nunca teria
tido uma qualidade de vida melhor do que naquele momento.
Análise da quarta carta:
Esta última carta foi escrita por David, em 1969, para a minha recém conhecida Ada.
David teria naquele momento cinquenta e quatro anos de idade, e sua irmã já teria falecido,
deixando sua filha Ada e seu outro filho, não mencionado o nome nas cartas, sob os cuidados
do pai, apenas mencionado pelo sobrenome Smith na primeira carta. David confessa o
interesse de voltar para a Alemanha para, segundo ele, “descansar junto aos meus pais”8.
O interessante desta carta é observar a noção de David de transformações sociais e
culturais dentro da Inglaterra. É mencionado por ele que Ada teria se desentendido com sua
mãe, Ruth, pela sua orientação sexual, tema extremamente importante para compreender essa
geração que veio após a Segunda Guerra Mundial. David relata se incomodar um pouco com
os hippies com roupas coloridas andando pelas ruas, a mudança nas músicas para o
Rock’n’roll, mencionando até Os Beatles nesta última carta, passando a sensação para o leitor
de que ele (David) sentia que este novo mundo estava muito diferente do mundo em que tinha
vivido. David não faz em nenhum momento um julgamento de valor sobre essas
transformações, mas relata que ao seu ver, as propostas de luta pela paz e liberdade sexual de
certa forma eram mais acessíveis para a população trabalhadora, acredito eu por mágoa do
que o discurso socialista, por mais seduzente que fosse em sua infância, teria se provado, aos
olhos dele, enganador quando soube do que ocorreu em Berlim9.

8
Carta 4
9
Me refiro à tomada de Berlim pelos soviéticos.
David finaliza esta última carta já avisando Ada que iria para Berlim, provavelmente
pelos portos de Londres, onde ele diz que irá encontrá-los. Talvez eu conseguisse mais
informações sobre a volta de David para a Alemanha, mas pelo que Ada me contou, David
faleceu poucos anos depois de ter ido para Berlim.
Considerações finais:
Certamente, a história de David nos traz diversos questionamentos sobre a realidade
da população comum no contexto da Segunda Guerra Mundial, Pós-guerra e a década de 60.
David é uma personagem com uma vivência rica em detalhes para estudo, nos permitindo
observar a influência da propagando ocidental no pensamento do trabalhador comum, o
interesse de criar um inimigo externo para o povo e consequentemente ignorar os problemas
internos. Todas as transformações que a sociedade ocidental teria passado após a Segunda
Guerra Mundial e como isso teria impactado a vida de David de uma forma em que ele não
enxergasse mais aquele mundo como o seu, desejando retornar à sua terra natal, mesmo que
aquele lugar lhe trouxesse lembranças negativas, mas que ainda sim eram as suas lembranças,
um mundo a qual ele pertenceu.

Bibliografia
documentos

EDELSTEIN, David. [Carta] 13 Jun. 1935, Berlim [para] SMITH, Ruth. Londres
EDELSTEIN, David. [Carta] 9 Dez. 1949, Hesse [para] Smith, Ruth. Londres.
EDELSTEIN, David. [Carta] 5 Fev. 1955, Manchester [para] Smith, Ruth. Londres.
EDELSTEIN, David. [Carta] 19 Mai. 1969, Manchester [para] Smith, Ada. Londres.

Referências bibliográficas
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BEEVOR, Antony. A Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Record. 2015, p. 817

GADDIS, John Lewis. A Guerra Fria. Lisboa: Edições 70, 2007, Cap. 1: “O regresso do
medo”, p. 17-57; 269-273
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1940’s Origins of the Welfare State. Disponível em:


https://www.nationalarchives.gov.uk/cabinetpapers/alevelstudies/1940-origins-welfare-state.h
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Anexo das cartas:


Carta 1

Berlim, 13 de Junho de 1935


Querida Irmã Ruth,

Soube que você finalmente encontrou um homem para se casar, na terra dos
bebedores de chá10. Fico muito feliz por você, irmã, mas confesso que ainda acho estranho te
chamar de Sra. Smith, mas espero que com o passar do tempo esse meu estranhamento mude.

10
Referência a Inglaterra e ao costume local de consumir chá. Disponível em:
https://www.historic-uk.com/CultureUK/Afternoon-Tea/#:~:text=Afternoon%20tea%20was%20introduced%20i
n,time%20between%20lunch%20and%20dinner.. Acesso em 10/04/2023
Uns dias atrás eu estava pensando sobre nossa infância. Lembro-me bem dos dias em
que você gastava horas do seu tempo me incentivando a aprender a ler e escrever e eu, como
sempre um teimoso11. Você sempre teve uma visão mais profunda sobre a situação difícil da
família, sobre a dificuldade de nosso pai em conseguir um emprego, sendo ele um imigrante e
toda a situação do país naquela época12. Enfim, eu sinto que não devia ter guardado tanta
mágoa sobre a sua decisão de ir embora procurar um futuro melhor em uma outra nação. Se
eu pudesse retornar àquele momento, certamente teria ido com você.
Você, irmã, não imagina como as coisas estão piorando para nós, trabalhadores
operários e, principalmente, judeus. As histórias que nosso pai contava, quando éramos
crianças, sobre aquele sujeito que discursava para todos os operários das fábricas, falando
sobre os direitos de cada trabalhador, incentivando-os a lutarem por condições melhores de
trabalho13. Tudo isso foi substituído, já faz muito tempo, por discursos de ódio contra
minorias raciais, segundo eles, que teriam sido os culpados14 pela derrota na Grande Guerra
do começo do século. Confesso a você que pouco me atrai essas ideias do partido de Hitler
que assumiu ano passado o poder com o falecimento do Presidente15. Me é muito mais
atrativo e lógico, pelo pouco que estudei pelos ensinamentos de nosso pai, continuarmos
lutando pelos nossos direitos como trabalhadores, ao invés de ser culpado pelo resultado de
uma guerra que nem eu era nascido, e nem nossos pais moravam na Alemanha.
Sinto medo, querida irmã, que esse ódio evolua para algo mais intenso, o que aparenta
ser o caso. Por mais estranho que seja, por nós sermos uma família de origem judaica, eu não
sou tão desprezado quanto outros judeus na fábrica. Pra falar a verdade, acredito ser até
respeitado por alguns menos fanáticos desse pensamento, mas não sei o que fazer para ajudar
tantos outros infelizes que aparecem, frequentemente, com machucados pelo corpo e se
recusam a dizer o motivo, mas acredito que eu (e agora você) já sabemos o motivo16. Mas é
fato que eu, como indivíduo, não posso fazer nada em relação ao caminho em que a nação
11
Martin, G W (1972) Educational reform in Germany 1918-1933, Durham theses, Durham University.
Disponível em http://etheses.dur.ac.uk/9738/. Acesso em 10/04/2023
12
N.H. Dimsdale, N. Horsewood, A. Van Riel (2004) Unemployment and real wages in Weimar Germany.
Disponível em:
Unemplohttps://www.researchgate.net/publication/5201315_Unemployment_and_Real_Wages_in_Weimar_Ger
manyyment and Real Wages in Weimar Germany (researchgate.net). Acesso em 10/04/2023)
13
Spartacist revolt. Disponível em:, Hhttps://www.britannica.com/place/Weimar-Republicistory. Acesso em
10/04/2023.
14
Antisemitism in History: World War I. Disponível em:
https://encyclopedia.ushmm.org/content/en/article/antisemitism-in-history-world-war-i. Acesso em 10/04/2023.
15
Paul Von Hindenburg, último presidente da República de Weimar. Disponível em:
https://www.britannica.com/biography/Paul-von-Hindenburg. Acesso em 10/04/2023.
16
Antisemitism in History: Nazi Antisemitism. Disponível em:
https://encyclopedia.ushmm.org/content/en/article/antisemitism-in-history-nazi-antisemitism. Acesso em
10/04/2023.
está caminhando com esse novo governo. Só peço a Deus que me permita continuar
trabalhando, conseguindo o pão diário.
Espero que você esteja bem, e que toda essa situação na Alemanha se resolva para,
quem sabe algum dia, você possa me visitar.

Carinhosamente,

David
Carta 2

Hesse, 9 de dezembro de 1949


Querida irmã Ruth,
Primeiramente, queria pedir desculpas por ficar tantos anos sem mandar notícias.
Aconteceu muita coisa em nossa terra, mas o principal que eu quero que você saiba é que eu
estou vivo, e que esses anos depois da guerra serviram pra eu reconstruir minha vida e a
minha cabeça. Quando as tropas americanas nos permitiram retornar ao nosso lar, e me
perdoe irmã, mas eu irei te poupar dos detalhes de tudo que aconteceu naquele maldito lugar
que os soldados nazistas nos levaram, anos atrás, eu me recusei a retornar a Berlim pelas
histórias que me contaram: a cidade estava toda destruída, a população local completamente
horrorizada com as consequências da ocupação soviética, milhares de mulheres teriam sido
estupradas17.
Mas tenho que confessar a você, irmã, que desde que me colocaram naquele vagão
como gado, eu sinto medo dos homens. Sinto medo do poder que parte da humanidade
adquiriu capaz de controlar o destino dos outros. Olhe bem para o que a maldade na Europa
Central realizou no mundo, na Alemanha, e em mim. Mesmo após a libertação daquele
campo maldito, eu consegui ver nos olhos dos soldados americanos a mesma maldade que eu
vi nos olhos daquele jovem que trancou o vagão e deu sinal verde para nos levar para o
inferno.
O mais triste é saber, pelo menos pelo que meus amigos e a imprensa estão dizendo,
que o mundo já está em uma guerra entre os americanos e os soviéticos. Porém, essa guerra
me parece diferente, irmã, pois o mundo não parece aguentar um conflito direto semelhante
às últimas duas grandes guerras, e aquelas bombas usadas nos japoneses me parecem ser um

17
BEEVOR, Antony. A Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Record. 2015, p. 817
fator importante para esse novo tipo de guerra mundial mas, sinceramente, o que é que eu
saberia sobre conflitos internacionais, não é mesmo? Enfim, li nos jornais que os comunistas
estariam controlando a parte oriental do mundo, e que até mesmo a China18 teria se tornado
comunista também. Confesso a você que eu tenho medo de ir para algum país comunista e
não conseguir mais sair, nem me comunicar com você, pois tudo que chegou até mim sobre
eles é ruim19. O estupro em Berlim, a anexação dos países do leste europeu, o jeito em que
eles dividiram a Polônia, país de nossos pais, como se tivessem direito de dominar todo um
povo. Não sei, irmã, mas me parece que a próxima vez que eu te mandar uma carta, eu talvez
esteja do outro lado do mundo, fugindo dessa realidade de conflitos que continua
aterrorizando a Alemanha. Espero que você fique bem e que, novamente, perdoe a minha
demora de tantos anos para dar notícias, mas eu precisava desse tempo para colocar minha
cabeça no lugar.

Carta 3

Manchester, 5 de fevereiro de 1955


Querida irmã Ruth,
Faz poucos meses que nos encontramos em Birmingham, na época que eu ainda
estava morando lá, mas mesmo assim eu sinto que devo compartilhar com você a minha
alegria de ter decidido largar a Alemanha para vir morar aqui. Na serralheria, ainda em
Hesse, um dos operários tentava nos convencer de que ir para o leste era melhor do que para
o Oeste, que a nossa melhora de vida estaria com os soviéticos. Não preciso te dizer que ele
se tornou uma piada de mau gosto para nós, principalmente por tudo que fizeram em Berlim,
e que finalmente agora eu tenho a certeza de que vim para o lado certo do continente.
É claro que morar perto de você e seus filhos alegra muito a minha vida, mas confesso
a você que acho que estou velho demais para formar minha própria família, então me
contento em ser o tio presente na vida de meus sobrinhos.
Além de estar perto de meus parentes, a qualidade de vida que um trabalhador, como
eu, é possibilitado ter é incomparável. Lembro-me de que depois da guerra, eu me humilhava
todos os dias, em Hesse, para conseguir o que comer, muitas vezes comendo restos de comida
18
Disponível em:
https://history.state.gov/milestones/1945-1952/chinese-rev#:~:text=On%20October%201%2C%201949%2C%2
0Chinese,Republic%20of%20China%20(PRC).. Acesso em 21/05/2023.
19
The Red Menace. Disponível em
https://www.openculture.com/2014/11/the-red-menace-a-striking-gallery-of-anti-communist-propaganda.html.
Acesso em 21/05/2023.
de restaurantes, principalmente no período em que eu ainda não tinha conseguido o emprego
na serralheria. Porém, aqui na terra da Rainha, minha casa tem rádio e televisão, e se eu fico
doente e não posso ir trabalhar, eu não perco o dinheiro do dia e nem preciso pagar o
atendimento e tratamento médico.20
Fico muito feliz de ter tomado a decisão certa e confiado nos meus amigos e nos
jornais. Porém, confesso que ainda tenho curiosidade para saber o que aconteceu com aquele
operário que, como comentei anteriormente, parecia ter interesse em ir para algum desses
países comunistas. Será que ele passa fome, está desempregado, não tem moradia e é refém
de doenças que o impedem de trabalhar e, consequentemente, de viver, pois não teria as
mesmas políticas de auxílio aos mais pobres como nós? Acho que nunca saberemos.
Espero te visitar em Londres até o fim do ano, no casamento do seu filho, estou
ansioso para me reencontrar com vocês.
Carinhosamente,

David.
Carta 4

Manchester, 19 de maio de 1969


Queria sobrinha Ada,
Já faz um tempo desde que eu fui para Londres, para o enterro de sua mãe, mas eu
precisava realizar uma última visita ao túmulo dela e, é claro, você e seu irmão, antes de
partir para a Alemanha novamente. Sei que parece loucura, algo comum em alguém
chegando nos sessenta anos, mas eu sinto que eu preciso descansar junto aos meus pais, em
Berlim.
Sendo sincero com você, eu lamento muito sua mãe ter falecido sem ter te aceitado
como você é: uma mulher que gosta de outras mulheres. Para mim, também é difícil
acompanhar todas essas mudanças que o mundo está passando. Vejo nos jornais, escuto no
rádio também as músicas daqueles jovens de roupa colorida21, mas sinto falta de umas
melodias mais tranquilas de décadas atrás. A verdade é que a sua geração tem problemas
muito diferentes e métodos para resolver muito diferentes dos da minha época. Lembro-me
que quando a crise depois da Grande Guerra começou a nos afetar brutalmente em Berlim,

20
1940’s Origins of the Welfare State. Disponível em:
https://www.nationalarchives.gov.uk/cabinetpapers/alevelstudies/1940-origins-welfare-state.htm. Acesso em
21/05/2023.
21
Se referindo a Os Beatles, que tinham feito sucesso desde o começo da década
sua mãe tomou a decisão de fugir do país. Todos aqueles que pensavam em uma solução para
os problemas do mundo se resumiam à política, socialismo e capitalismo. Porém, hoje
consigo ver vocês lutando por objetivos mais humanos, ao meu ver, que se parecem mais
acessíveis para nós, trabalhadores.
Sei que minha mágoa com o socialismo do outro mundo22 me trouxe até aqui, a terra
da Rainha, onde todas essas transformações vieram muito rápido. Vinte anos atrás eu estava
passando fome nas ruas de Hesse, presenciando partes da cidade ainda destruídas, soldados
patrulhando as ruas, e ano passado mesmo eu ouvia no rádio sobre manifestações nos EUA
contra a guerra deles23, os hippies e todas essas coisas que, por mais que a maior parte seja
boa, me fazem sentir que eu estou longe de casa
Não sei bem explicar com palavras, mas eu acho que esse novo mundo que vocês
estão construindo pertence a vocês, e pretendo explicar melhor o meu interesse em retornar
para Berlim quando estiver visitando, pela última vez, o túmulo de minha irmã e vocês, em
Londres. Até lá, espero que vocês fiquem bem e, por fim, gostaria de te dizer que ela te
amava, independente da sua escolha sexual24.
Carinhosamente,
David.

22
Se referindo ao mundo comunista, de uma forma leiga.
23
Vietnam War (1954-1975). Disponível em: https://www.britannica.com/event/Vietnam-War. Acesso em:
21/06/2023.
24
Se referindo à sexualidade de sua sobrinha, novamente de uma forma leiga.

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