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Sumário
Método 4
Antes da meditação 4
Atos preparatórios 5
1. Ponha-se na presença de Deus 5
2. Faça um ato de humildade 6
3. Pede luzes ao Espírito Santo, à Virgem Maria, ao Anjo da Guarda, e
aos teus santos de devoção. 6
Meditação 6
1. Imaginação 6
2. Considerações 7
3. Afetos e pedidos 7
4. Resoluções e propósitos 8
5. Conclusão 8
Após a meditação 8
1. Ramalhete espiritual 8
2. Silêncio e conservação 9
3. Preparação da próxima meditação 9
Conselhos 9
Resumo esquemático do método 11
● Preparação 11
● Meditação 11
● Conclusão 11
Meditações 12
Do lava pés 14
Da instituição do Santíssimo Sacramento 17
Da oração do Horto 20
Da prisão do Senhor 22
Da apresentação do Senhor ante o pontífice Caifás 25
Os trabalhos daquela noite e a negação de Pedro 27
Os açoites na coluna 30
Da coroação de espinhos e do Ecce Homo 32
De como o Salvador carregou a cruz às costas 35
Do mistério da cruz e as sete palavras que o Senhor falou 38
1
Da lançada que se deu no Salvador e o descimento da cruz, com o pranto de
Nossa Senhora e ofício da sepultura 42
Da descida do Senhor ao limbo e o aparecimento a Nossa Senhora e a S.
Madalena e aos discípulos. E depois o mistério da sua gloriosa ascensão 46
Da memória dos pecados e do conhecimento de ti mesmo 49
Das misérias da vida humana 53
Da morte 57
Do juízo final 61
Das penas do inferno 64
Da glória dos bem-aventurados 67
Dos benefícios divinos 69
Jesus entra em Jerusalém 71
O conselho dos Juízes e a traição de Judas 73
Última ceia de Jesus Cristo com seus discípulos 74
Da instituição do Santíssimo Sacramento 76
Jesus ora no horto e sua sangue 77
Jesus é preso e amarrado 79
Jesus é apresentado aos pontífices e por eles condenado à morte 81
Jesus diante de Pilatos, de Herodes e do povo 84
Jesus é flagelado numa coluna 86
Jesus é coroado de espinhos e tratado como rei de teatro 89
Pilatos mostra Jesus ao povo, dizendo: Ecce Homo! 90
Jesus é condenado por Pilatos 93
Jesus leva a cruz ao Calvário 94
Jesus é crucificado 97
Palavras de Jesus na cruz 101
Morte de Jesus 104
Da Criação do Homem 109
Do Fim do Homem 110
Dos benefícios de Deus 112
Dos pecados 113
Da Morte 115
Do Último Juízo 117
Do Inferno 119
Do Paraíso 120
2
Da alma que delibera a escolha entre o Céu e o Inferno 122
Da deliberação entre a Vida Mundana e a Vida Devota 124
Retrato de um homem que acaba de expirar 126
Vaidade do Mundo 128
Oração para depois da santa comunhão 131
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Método
Antes da meditação
● Reserve um horário para fazer a sua meditação. O melhor é que você a
faça bem cedo (na madrugada ou de manhãzinha); caso você não possa
fazê-la nesse horário, faça-a num outro tempo disponível.
● Se você não tem o hábito de meditar, pode começar com trinta minutos, e
aos poucos ir aumentando este tempo.
● Busque um lugar silencioso, onde você possa estar a sós com Deus.
Muito bom seria se fosse em uma igreja, porque aí Jesus está
particularmente presente.
● Procure se acalmar exterior e interiormente, recolhendo-se no íntimo de
sua alma.
“Quando rezares, entra no teu quarto e, fechada a porta, roga ao teu Pai que está
no escondimento” (Mt 6,6).
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Atos preparatórios
Para isso, você pode pensar que Deus está presente no profundo da sua
alma, e que Ele a vivifica, anima e sustenta por Sua divina presença. Este
pensamento incitará no seu coração um profundo respeito por Deus, que está
tão intimamente presente no seu interior.
“Meu Senhor e meu Deus, creio firmemente que estás aqui, que me vês, que
me ouves, adoro-te com profunda reverência, peço-te perdão pelos meus
pecados e graça para fazer com fruto este tempo de oração. Minha mãe
imaculada, São José, meu pai e senhor, meu anjo da guarda, intercedei por
mim.” (São Josemaría Escrivá).
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2. Faça um ato de humildade
"Falarei ao meu senhor, ainda que eu seja pó e cinza”. (Gn, 18, 27).
Meditação
1. Imaginação
6
2. Considerações
3. Afetos e pedidos
7
4. Resoluções e propósitos
Proponha-se alguma mudança na sua vida com base naquilo que você
meditou. Por exemplo: — Meditei sobre o perdão dado por Jesus aos seus
algozes. Tendo isto em vista, farei o seguinte propósito: perdoarei meus
inimigos. Portanto, hoje mesmo conversarei com eles e lhes direi que os
perdoo; de agora em diante, farei isto e aquilo para acalmar o gênio, etc.
Se você não se esforçar para cumprir o seu propósito durante o dia, pouco
fruto tirará da meditação, que se converterá num mero estudo de temas
religiosos.
5. Conclusão
Após a meditação
1. Ramalhete espiritual
8
2. Silêncio e conservação
Prepare a meditação que você fará no dia seguinte. Leia antes o trecho,
sublinhe os pontos que mais lhe saltam aos olhos, remova os que não lhe farão
bem. Se for necessário, utilize imagens (fotografias, vídeos) para o auxiliarem
na meditação do tema.
Conselhos
● Crie o hábito de admirar imagens e músicas devotas, pois estas coisas lhe
servirão de repertório para o imaginário no momento da meditação.
Sobretudo, habitue-se a fazer leitura espiritual. Traga sempre consigo um
bom livro de devoção para ler por algum tempo todos os dias. Leia-o com
bastante atenção, como se um santo o tivesse enviado para lhe ensinar o
caminho do céu e encorajá-lo a trilhá-lo. Leia também a vida dos santos,
onde verá, como num espelho, o verdadeiro retrato da vida devota.
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Para ter acesso a mais imagens devotas e outros auxílios,
podes acessar este link ou QR code:
https://drive.google.com/drive/folders/1vdUN2-cDeTzpORr
e6tyhVR57H6HwRLTD?usp=sharing
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Resumo esquemático do método
● Preparação
○ Ponha-se na presença de Deus;
○ Ato de humildade;
○ Petição de luzes;
● Meditação
○ Imaginação;
○ Considerações;
○ Afetos e pedidos;
○ Propósitos;
● Conclusão
○ Agradecimento;
○ Súplica;
○ Orações devotas.
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Meditações
Da Paixão e dos novíssimos
Retiradas dos livros de Luís de Granada, de Santo Afonso M. de Ligório e
de São Francisco de Sales
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Do lava pés
onsidera, pois, ó minha alma, nesta ceia o teu doce e benigno Jesus e
. olha o exemplo inestimável de humildade que Ele aqui te dá,
. levantando-se da mesa e lavando os pés dos seus discípulos. Ó bom
Jesus! Que é isso que fazes? Ó doce Jesus! Por que tanto se humilha a tua
majestade? Que sentirias, alma minha, se visses ali a Deus ajoelhado ante os
pés dos homens e ante os pés de Judas? Ó cruel, como te não abranda o
coração essa tão grande humildade? Como não te rompe as entranhas essa
tamanha mansidão? Será possível que tenhas ordenado vender esse mansíssimo
Cordeiro? Será possível que não te tenhas agora compungido com este
exemplo? Ó brancas e belas mãos! Como podeis tocar pés tão sujos e
abomináveis? Ó mãos puríssimas! Como não tendes nojo de lavar os pés
enlameados nos caminhos e tratos do vosso sangue? Ó apóstolos bem
aventurados! Como não tremeis vendo essa tão grande humildade? Pedro, que
fazes? Porventura consentirás que o Senhor da Majestade te lave os pés?
Maravilhado e atônito, S. Pedro, como visse o Senhor ajoelhado diante dele,
começou a dizer: Tu, Senhor, a mim me lavas os pés? Não és o Filho de Deus
vivo? Não és o Criador do mundo, a beleza do céu, o paraíso dos anjos, o
remédio dos homens, o resplendor da glória do Pai, a fonte da sabedoria de
Deus nas alturas? Então me queres a mim lavar os pés? Tu, Senhor, de tanta
majestade e glória, queres ocupar-te em ofício de tamanha baixeza?
Considera também como, em acabando de lavar os pés, Ele os alimpa
com aquela sagrada toalha de que estava cingido; sobe mais acima com os
olhos da alma e verás ali representado o mistério da nossa Redenção. Olha
como aquela toalha recolheu em si toda a imundície dos pés sujos, eles assim
ficaram limpos, a toalha ficaria toda manchada e suja depois de feito este
ofício. Que coisa mais suja do que o homem concebido em pecado e que coisa
mais limpa e mais bela do que Cristo concebido do Espírito Santo? Alvo e
corado é meu amado (diz a Esposa), e escolhido entre milhares. Pois este tão
belo e limpo quis receber em si todas as manchas e fealdades de nossas almas,
e, deixando-as limpas e livres delas, ficou (como o vês) na cruz manchado e
afetado com elas.
Depois disto, considera aquelas palavras com que o Salvador deu fim a
esta história, dizendo: Exemplo vos dei para que como Eu o fiz assim o façais.
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As quais palavras não só se hão de referir a este passo e exemplo de humildade,
senão também a todas as obras e vida de Cristo, porque ela é um perfeitíssimo
exemplar de todas as virtudes, especialmente da que neste lugar se nos
representa.
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Da instituição do Santíssimo Sacramento
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Da oração do Horto
onsidera, pois, primeiramente como, acabada aquela misteriosa Ceia,
. foi-se o Senhor com seus discípulos ao monte Olivete a fazer oração
. antes que entrasse na batalha de sua Paixão, para nos ensinar como em
todos os trabalhos e tentações desta vida temos sempre de recorrer à oração
como a uma sagrada âncora, por cuja virtude, ou nos será tirada a carga da
tribulação, ou se nos darão forças para levá-la, que é outra graça maior. Para
companhia deste caminho tomou Ele consigo aqueles três mais amados
discípulos, S. Pedro, S. Tiago e S. João , os quais haviam sido testemunhas de
sua gloriosa transfiguração, para que eles mesmos vissem quão diferente figura
tomava Ele agora por amor dos homens, Ele que tão glorioso se lhes havia
mostrado naquela visão. E para que entendessem não serem menores os
trabalhos interiores de sua alma que os que por fora começava a revelar,
disse-lhes aquelas tão dolorosas palavras: Triste está minha alma até à morte.
Esperai-me aqui, e velai comigo. Acabadas estas palavras, apartou-se o Senhor
dos discípulos coisa de um tiro de pedra, e, prostrado em terra com grandíssima
reverência, começou a sua oração, dizendo: Pai, se é possível trespassa de mim
este cálice, mas não se faça como eu quero, senão como tu. E, feita esta oração
três vezes, à terceira foi posto em tão grande agonia, que começou a suar gotas
de sangue, que iam por todo o seu sagrado Corpo fio a fio até cair em terra.
Considera, pois, o Senhor neste passo tão doloroso, olha como,
representando-se-lhe ali todos os tormentos que Ele havia de padecer,
apreendendo perfeitissimamente tão cruéis dores como se preparavam para o
mais delicado dos corpos, pondo-se-lhe diante todos os pecados do mundo
(pelos quais padecia) e o desagradecimento de tantas almas, que não haviam de
reconhecer este benefício, nem se aproveitar de tão grande e custoso remédio,
foi sua alma em tanta maneira angustiada, seus sentidos e carne delicadíssima
tão turbados, que todas as forças e elementos de seu corpo se destemperaram, e
a carne bendita abriu-se por todas as partes e deu lugar a que o sangue manasse
por toda ela em tanta abundância, que corresse até a terra. E, se tal estava a
carne, que só de ricochete padecia essas dores, que tal estaria a alma, que
diretamente as padecia?
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Da prisão do Senhor
lha depois como, acabada a oração, chegou aquele falso amigo com
. aquela infernal companhia, renunciado já o ofício do apostolado e feito
. chefe e capitão do exército de Satanás. Olha quão sem pejo se adiantou
ele primeiro que todos, e, chegado ao bom Mestre, o vendeu com beijo de falsa
paz. Naquela hora disse o Senhor aos que o vinham prender: Assim como o
ladrão, saístes a mim com espadas e lanças; e, havendo eu estado convosco
cada dia no templo, não estendestes as mãos sobre mim; mas esta é a vossa
hora e a do poder das trevas. Este é um mistério de grande admiração. Que
coisa de maior espanto do que ver o Filho de Deus tomar imagem, não somente
de pecador, senão também de condenado? Esta (diz Ele) é a vossa hora e a do
poder das trevas. Das quais palavras se infere que por aquela hora foi aquele
inocentíssimo Cordeiro entregue em poder dos príncipes das trevas, que são os
demônios, para que por meio de seus ministros executasse· nele todos os
tormentos e crueldades que quisessem. Pensa, pois, agora até onde por ti se
abaixou aquela Alteza Divina, pois chegou ao extremo de todos os males, que é
ser entregue em poder dos demônios. E porque a pena que teus pecados
mereciam era esta, Ele quis submeter-se a esta pena para que ficasses livre
dela.
Ditas essas palavras, arremeteu logo toda aquela alcatéia de lobos
famintos contra aquele manso Cordeiro, e uns o arrebatavam por uma parte,
outros por outra; cada um como podia. Oh! Quão desumanamente o tratariam,
quantas descortesias lhe diriam, quantos golpes e puxões lhe dariam, que de
gritos e vozes alçariam, como costumam fazer os vencedores quando se vêem
já com a presa! Tomam aquelas santas mãos, que pouco antes haviam obrado
tantas maravilhas, atam-nas mui fortemente com uns laços corrediços até lhe
esfolar a pele dos braços e até fazer-lhe rebentar o sangue e assim o levam
atado pelas ruas públicas com grande ignomínia. Olha-o muito bem qual vai
por este caminho desamparado de seus discípulos, acompanhado de seus
inimigos, a passo corrido, de fôlego acelerado, de cor mudada e de rosto já
afogueado e enrubescido com a pressa do caminhar.,E_cºntempla, em tal mau
trata!lleo.to de sua pessoa, tanta serenidade em seu rosto, tanta gravidade em
seus olhos e aquele semblante divino que no meio de todas as descortesias do
mundo nunca pôde ser obscurecido.
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Depois podes ir com o Senhor à casa de Anás, e olha como ali,
respondendo o Senhor cortesmente à pergunta que o pontífice lhe fez sobre
seus discípulos e doutrina, um daqueles malvados, que presentes estavam,
deu-lhe uma grande bofetada no rosto, dizendo: Assim respondes ao pontífice?.
Ao que o Salvador benignamente respondeu: Se mal falei, mostra-me em quê;
e, se bem, por que me feres? Olha, pois, aqui, ó minha alma, não somente a
mansidão desta resposta, mas também aquele divino rosto marcado e corado
com a força do golpe, aquela modéstia de olhos tão serenos e tão sem turbação
naquela afronta e aquela alma santíssima no interior tão humilde e tão
preparada para virar a outra face, se o verdugo o pedisse.
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Da apresentação do Senhor ante o pontífice Caifás
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Os trabalhos daquela noite e a negação de Pedro
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Os açoites na coluna
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Da coroação de espinhos e do Ecce Homo
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De como o Salvador carregou a cruz às costas
ois bem: como Pilatos visse que não bastavam as justiças que se
. haviam feito naquele santíssimo Cordeiro para amansar o furor
. de seus inimigos, entrou no pretório, e assentou-se no tribunal para
dar final sentença naquela causa. Já estava às portas preparada a cruz, já
assomava pelo alto aquela temerosa bandeira, ameaçando a cabeça do
Salvador. Dada, pois, já e promulgada a sentença cruel, acrescentam os
inimigos uma crueldade a outra, que foi carregar sobre aquelas costas, tão
moídas e dilaceradas com os açoites passados, o madeiro da cruz. Com tudo
isto, não recusou o piedoso Senhor esta carga, na qual iam todos os nossos
pecados, antes a abraçou com suma caridade e obediência por nosso amor.
Caminha, pois, o inocente lsaac para o lugar do sacrifício com aquela
carga tão pesada nos ombros tão fracos, seguindo-o muita gente e muitas
piedosas mulheres, que com suas lágrimas o acompanhavam. Quem não havia
de derramar lágrimas vendo o Rei dos anjos caminhar passo a passo com
aquela carga tão pesada, tremendo-lhe os joelhos, inclinado o corpo, os olhos
amortecidos, o rosto ensangüentado, com aquela grinalda na cabeça e com
aqueles tão vergonhosos clamores e pregões que desferiam contra Ele.
Entretanto, minha alma, aparta um pouco os olhos deste cruel espetáculo
e, com passos apressados, com angustiados gemidos, com olhos chorosos,
caminha para o palácio da Virgem, e quando a ela chegares, prostrado ante seus
pés, começa a lhe dizer com dolorosa voz: Ó Senhor dos anjos, Rainha do céu,
porta do paraíso, advogada do mundo, refúgio dos pecadores, salvação dos
justos, alegria dos santos, mestra das virtudes, espelho de limpeza, título de
castidade, legado de paciência e súmula de toda perfeição. Ai de mim, Senhora
minha! Para que se aguardou minha vista para esta hora? Como posso eu
viver tendo visto com meus olhos o que vi? Para que são mais palavras? Deixo
teu unigênito Filho e meu Senhor em mãos de seus inimigos com uma cruz às
costas para nela ser justiçado.
Que sentido pode aqui alcançar até onde chegou esta dor à Virgem?
Desfaleceu-lhe aqui a alma, e cobriu-se-lhe o rosto e todos os seus virginais
membros de um suor de morte, que bastaria para lhe acabar a vida, se a
dispensação divina não a guardasse para maior trabalho e também para maior
coroa.
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Caminha, pois, a Virgem em busca do Filho, dando-lhe o desejo de ver as
forças que a dor lhe tirava. Ouve desde longe o ruído das armas, o tropel das
gentes e o clamor dos pregões com que o iam apregoando. Logo vê brilharem
os ferros das lanças e alabardas que assomavam pelo alto; lá pelo caminho as
gotas e o rastro do sangue, que bastavam já para lhe mostrar os passos do Filho
e guiá-la sem outra guia. Aproxima-se mais e mais do seu amado Filho e
alonga os olhos escurecidos pela dor e sombra da morte, para ver (se pudesse)
aquele a quem sua alma tanto amava. Ó amor e temor do coração de Maria! Por
uma parte desejava vê-lo, e por outra recusava ver tão lastimável figura.
Finalmente, chega já onde o pudesse ver, olham-se um ao outro aqueles dois
luzeiros do céu e atravessam-se os corações com os olhos e ferem com sua
vista as suas almas aflitas. As línguas estavam emudecidas, mas o coração da
Mãe falava e o do Filho dulcíssimo lhe dizia: Para que aqui vieste, minha
pomba, querida minha e minha Mãe? A tua dor aumenta a minha, e os teus
tormentos a mim atormentam. Volta, minha Mãe, volta para tua pousada, que
ao teu pudor e pureza virginal não pertence companhia de homicidas e de
ladrões.
Essas e outras mais lastimosas palavras se falariam naqueles piedosos
corações, e desta maneira se andou aquele trabalhoso caminho até o lugar da
cruz.
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Do mistério da cruz e as sete palavras que o Senhor falou
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Da lançada que se deu no Salvador e o descimento da cruz, com o
pranto de Nossa Senhora e ofício da sepultura
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despedido de seu Filho, nem recebido dele os derradeiros abraços na cruz ao
tempo de sua partida, que a deixem agora chegar a Ele e não queiram que por
todas as partes cresça o seu desconsolo, se, havendo-lho os inimigos tirado por
uma porta vivo, morto lho tirem agora por outra os amigos.
E quando a Virgem o teve em seus braços, que língua poderá explicar o
que ela sentiu? O anjos da paz, chorai com esta Sagrada Virgem; chorai, céus;
chorai, estrelas do céu, e todas as criaturas do mundo acompanhai o pranto de
Maria! Abraça-se a Mãe com o corpo dilacerado, aperta-o fortemente em seus
peitos (só para isto lhe restavam forças), mete o rosto entre os espinhos da
sagrada cabeça, juntam-se rosto com rosto, tinge-se o rosto da sacratíssima
Mãe com o sangue do Filho, e rega-se o do Filho com lágrimas da Mãe. Ó doce
Mãe! É esse, porventura, o vosso dulcíssimo Filho? E esse aquele que
concebeste com tanta glória e que deste à luz com tanta alegria? Pois que é
feito dos vossos gozos passados? Aonde foram as vossas alegrias antigas?
Onde está aquele espelho de formosura em que vos miráveis? Choravam todos
os que presentes estavam; choravam aquelas santas mulheres, aqueles nobres
varões; chorava o céu e a terra, e todas as criaturas acompanhavam as lágrimas
da Virgem. Chorava outrossim o santo evangelista e, abraçado com o corpo de
seu Mestre, dizia: Ó bom Mestre e Senhor meu! Quem já agora me ensinará
daqui em diante? A quem irei com minhas dúvidas? Nos peitos de quem
descansarei? Quem me dará parte dos segredos do céu? Que mudança foi tão
estranha? Ontem à noite tiveste-me em teu sagrado peito dando-me alegria e
vida, e agora eu te pago esse tão grande benefício tendo-te nos meus morto?
Este é o rosto que eu vi transfigurado no Monte Tabor? Esta aquela figura mais
clara que o sol de meio-dia?
Chorava também aquela santa pecadora, e, abraçada com os pés do
Salvador, dizia: Ó lume de meus olhos e remédio de minha alma! Se eu me vir
fatigada dos pecados, quem me receberá? Quem curará as minhas chagas?
Quem responderá por mim? Quem me defenderá dos fariseus? Oh! Quão de
outra maneira tive eu estes pés e os lavei quando neles me recebeste! Ó amado
de minhas entranhas, quem me dera agora morrer contigo! Ó vida de minha
alma! Como posso dizer que te amo, pois estou viva tendo-te morto diante de
meus olhos?
Desta maneira chorava e se lamentava toda aquela santa companhia,
regando e lavando com lágrimas o corpo sagrado. Chegada já, pois, a hora da
sepultura, envolvem o santo corpo num lençol limpo, atam-lhe o rosto com um
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sudário, e, posto em cima de um leito, caminham com Ele para o lugar do
monumento. O sepulcro cobriu-se com uma lousa e o coração da Mãe com uma
escura névoa de tristeza. Ali se despede ela outra vez de seu Filho; ali começa
de novo a sentir a sua soledade; ali se vê já destituída de todo o seu bem; ali lhe
fica o coração sepultado onde ficara o seu tesouro.
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Da descida do Senhor ao limbo e o aparecimento a Nossa Senhora e a
S. Madalena e aos discípulos. E depois o mistério da sua gloriosa
ascensão
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de Cristo) e tem por certo que te não faltará a sua presença e companhia, se
sempre tiveres esta memória.
Acerca do mistério da Ascensão considera primeiramente como dilatou o
Senhor esta subida aos céus por espaço de quarenta dias, nos quais apareceu
muitas vezes aos seus discípulos e os ensinava e conversava com eles do Reino
de Deus. De maneira que não quis subir aos céus, nem apartar-se deles,
enquanto os não deixou tais que pudessem com o espírito subir ao céu com Ele.
Donde verás que àqueles desamparam muitas vezes a presença corporal de
Cristo (isto é, a consolação sensível da devoção), que já podem com o espírito
voar ao alto e mais seguros estão do perigo. No que maravilhosamente
resplandece a providência de Deus e a maneira que tem em tratar os seus em
diversos tempos; como anima os fracos e exercita os fortes; dá leite aos
pequeninos e desmama os grandes; consola uns e prova os outros, e assim trata
cada um segundo o grau do seu aproveitamento. Por onde, nem o amimado tem
por que presumir, pois o mimo é argumento de fraqueza, nem o desconsolado
por que desfalecer, pois isto é muitas vezes indício de fortaleza.
Em presença dos discípulos, e vendo-o eles, subiu ao céu, porque eles
haviam de ser testemunhas destes mistérios, e nenhum é melhor testemunha
das obras de Deus do que aquele que as sabe por experiência. Se deveras
queres saber como Deus é bom, quão doce e quão suave para com os seus,
quanta seja a virtude e eficácia da sua graça, do seu amor, da sua providência e
das suas consolações, pergunta-o aos que o hão provado, que disso te darão
esses suficientíssimo testemunho. Quis também que eles o vissem subir aos
céus para que o seguissem com os olhos e com o espírito, para que sentissem a
sua partida, para que lhes fizesse soledade a sua ausência, porque este era o
mais conveniente preparo para receber a sua graça. Pediu Eliseu a Elias o seu
espírito, e o bom Mestre lhe respondeu: Se vires quando eu me parto de ti, será
o que pediste. Pois herdeiros serão do Espírito de Cristo aqueles a quem o amor
fizer sentir a partida de Cristo, os que lhe sentirem a ausência e ficarem neste
desterro suspirando sempre pela sua presença. Assim o sentia aquele santo
varão que dizia: Foste meu consolador e não te despediste de mim; indo por
teu caminho abençoaste os teus, e não o vi. Os anjos prometeram que
voltarias, e não o ouvi, etc.
E qual não seria a soledade, o sentimento, as vozes e as lágrimas da
sacratíssima Virgem, do discípulo amado e da santa Madalena e de todos os
apóstolos, quando vissem ir-se-lhes e desaparecer-lhes dos olhos aquele que tão
47
roubados lhes tinha os corações? e, com tudo isto, dizem que eles voltaram a
Jerusalém com grande gozo pelo muito que o amavam. Porque o mesmo amor
que tanto lhes fazia sentir a sua partida, por outra parte os fazia regozijar-se da
sua glória, porque o verdadeiro amor não se busca a se senão ao que ama.
Resta considerar com quanta glória, com que alegria e com que vozes e
louvores seria aquele nobre triunfador recebido na cidade soberana, qual seria a
festa e a recepção que lhe fariam, que seria ver ali, ajuntados em um, homens e
anjos e todos, a uma, caminharem para aquela nobre cidade, povoarem aqueles
assentos desertos de tantos anos, subir sobre todos aquela sacratíssima
humanidade e assentar-se à destra do Pai. Tudo é muito de considerar para que
se veja quão bem empregados são os trabalhos por amor de Deus, e como
aquele que se humilhou e padeceu mais do que todas as criaturas é aqui
engrandecido e alevantado sobre todas elas, para que por aqui entendam os
amantes da verdadeira glória o caminho que hão de levar para a alcançar, que é
descer para subir e pôr-se debaixo de todos para ser alevantado sobre todos.
48
Da memória dos pecados e do conhecimento de ti mesmo
ara que numa vejas quantos males tens e no outro como nenhum bem
. tens que não seja de Deus, que é o meio por onde se alcança a
. humildade, mãe de todas as virtudes.
Para isto deves primeiro pensar na multidão dos pecados da vida passada,
especialmente naqueles que fizeste no tempo em que menos conhecias a Deus.
Porque se bem o souberes olhar, acharás que eles se multiplicaram sobre os
cabelos de tua cabeça e que viveste naquele tempo como um gentio, que não
sabe que coisa é Deus. Discorre, pois, brevemente por todos os dez
mandamentos e pelos sete pecados mortais, e verás que nenhum deles há em
que não tenhas caído muitas vezes, por obra ou por palavra ou pensamento.
Em segundo, discorre por todos os benefícios divinos, e pelos tempos
da vida passada, e olha em que foi que os empregaste, pois de todos eles hás de
dar conta a Deus. Pois, dize-me agora, em que gastaste a infância? Em que a
adolescência? Em que a juventude? Em que, finalmente, todos os dias da vida
passada? Em que ocupaste os sentidos corporais e as potências da alma que
Deus te deu para que o conhecesses e servisses? Em que se empregaram teus
olhos, senão em ver a vaidade? Em que teus ouvidos, senão em ouvir a
mentira? E em que tua língua, senão em mil maneiras de juramentos e
murmurações e em que teu gosto e teu olfato e teu tato senão em regalos e
branduras sensuais?
Como te aproveitaste dos Santos Sacramentos, que Deus ordenou para teu
remédio? Como lhe deste graças pelos seus benefícios? Como respondeste às
suas inspirações? Em que empregaste a saúde e as forças, e as habilidades de
natureza, e os bens que dizem de fortuna, e as disposições e oportunidades para
bem viver? Que cuidado tiveste de teu próximo, que Deus te encomendou, e
daquelas obras de misericórdia que te assinalou para com ele? Pois, que
responderás naquele di:r das contas, quando Deus te disser: Dá-me conta da
tua mordomia e da conta que te entreguei, porque já não quero que trates mais
dela? Ó árvore seca e preparada para os tormentos eternos! Que responderás
naquele dia, quando te pedirem conta de todo o tempo de tua vida e de todos os
pontos e momentos dela?
Em terceiro, pensa nos pecados que fizeste e fazes cada dia, depois que
abriste mais os olhos ao conhecimento de Deus, e acharás que ainda vive em ti
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Adão com muitas raízes e costumes antigos. Olha quão desrespeitoso és para
com Deus, quão ingrato aos seus benefícios, quão rebelde às suas inspirações,
quão preguiçoso para as coisas de seu serviço, as quais nunca fazes nem com
aquela presteza e diligência, nem com aquela pureza de intenção com que
devias, senão por outros respeitos e interesses do mundo.
Considera, outrossim, quão duro és para com o próximo e quão piedoso
para contigo, quão amigo de tua própria vontade, e de tua carne, e de tua honra,
e de todos os teus interesses. Olha como ainda és soberbo, ambicioso, irado,
vanglorioso, invejoso, comodista, mutável, leviano, sensual, amigo de tuas
recreações e conversações e risos. Olha, outrossim, quão inconstante és nos
bons propósitos, quão inconsiderado em tuas palavras, quão desprovido em
tuas obras e quão covarde e pusilânime para quaisquer negócios graves.
Em quarto, considerada já por esta ordem a multidão de teus pecados,
considera depois a gravidade deles. Para o que, deves primeiramente considerar
estas três circunstâncias nos pecados da vida passada, a saber: contra quem
pecaste, por que pecaste e de que maneira pecaste. Se olhares contra quem
pecaste, acharás que pecaste contra Deus, cuja bondade e majestade é infinita e
cujos benefícios e misericórdias para com o homem sobrepujam as areias do
mar; mas, por que causa pecaste? Por um ponto de honra, por um deleite de
animais, por um cabelo de interesse e muitas vezes sem interesse; só por
costume e desprezo de Deus. Mas de que maneira pecaste? Com tanta
facilidade, com tanto atrevimento, tão sem escrúpulo, tão sem temor, e às vezes
com tanta facilidade e contentamento, como se pecasses contra um Deus de
pau, que nem sabe nem vê o que se passa no mundo. Então era esta a honra que
se devia a tão alta majestade? É este o agradecimento de tantos benefícios?
Assim se paga aquele sangue precioso que se derramou na cruz e aqueles
açoites e bofetadas que se receberam por ti? Oh! Miserável de ti pelo que
perdeste, e muito mais pelo que fizeste, e muitíssimo mais se com tudo isto não
sentes a tua perdição! Depois disto, é de grandíssimo proveito deteres um
pouco os olhos da consideração em pensares o teu nada, isto é, como de tua
parte não tens outra coisa mais do que nada e pecado, e como tudo o mais é de
Deus: porque claro está que assim os bens "da natureza como os da graça (que
são os maiores) são todos dele; porque dele é a graça da predestinação (que é a
fonte de todas as outras graças), e dele a da vocação, e dele a graça
concomitante, e dele a graça da vida eterna. Pois, que tens tu de que te possas
gloriar, senão nada e pecado? Repousa, pois, um pouco na consideração desse
50
nada, e só isto põe à tua conta, e tudo o mais à de Deus, para que clara e
palpavelmente vejas quem és tu e quem é Ele; quão pobre tu e quão rico Ele; e,
por conseguinte, quão pouco deves confiar em ti e a ti estimar e quanto confiar
nele, a Ele amar e gloriar-te nele.
Consideradas, pois, todas estas coisas acima ditas, sente de ti o mais
baixamente que te seja possível. Pensa que não passas de um caniço que se
muda a todos os ventos, sem peso, sem virtude e sem nenhuma estabilidade.
Pensa que és um Lázaro morto de quatro dias, e um corpo hediondo e
abominável, cheio de vermes, que todos quantos passam tapam o nariz e os
olhos para não verem. Pareça-te que desta maneira te tornas repelente diante de
Deus e de seus anjos, e tem-te por indigno de alçar os olhos ao céu, e de que te
sustente a terra, e de que te sirvam as criaturas, e do próprio pão que comes e
do ar que recebes.
Lança-te com aquela pública pecadora aos pés do Salvador e, coberto teu
rosto de confusão com aquela vergonha que padeceria uma mulher diante de
seu marido quando lhe houvesse feito traição, e, com muita dor e
arrependimento de teu coração, pede-lhe perdão de teus erros.
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Das misérias da vida humana
ara que por elas vejas quão vã seja a glória do mundo e quão digna
. de ser desprezada, pois se funda em tão fraco fundamento
. como é tão miserável vida; e ainda que os defeitos e misérias desta
vida sejam quase inumeráveis, podes agora assinaladamente considerar estas
sete.
Primeiramente considera quão breve seja esta vida, pois o mais longo
tempo dela é de sessenta ou oitenta anos, porque tudo a mais (se alguma coisa
fica, como diz o Profeta) é trabalho e dor; e, se daqui se tira o tempo da
infância, que mais é vida de animais do que de homens, e o que se gasta
dormindo, quando não usamos dos sentidos nem da razão (que nos faz
homens), acharemos ser ele ainda mais breve do que parece. E se sobre tudo
isto a comparas com a eternidade da vida futura, apenas te parecerá ele um
ponto. Por onde verás quão desvairados são os que, por gozar deste sopro de
vida tão breve, se põem a perder o descanso daquela que para sempre há de
durar.
Em segundo, considera quão incerta seja esta vida (o que é outra miséria
sobre a passada), porque não basta ser ela tão breve como é, senão que esse
pouco que há de vida não está seguro, mas duvidoso. Porque, quantos chegam
a esses sessenta ou oitenta anos que dissemos? A quantos se corta a teia em
começando a tecer? Quantos se vão em flor (como dizem) ou em botão? Não
sabeis (diz o Salvador) quando virá o vosso Senhor, se pela manhã, se ao
meio-dia, se à meia-noite, se ao canto do galo.
Para melhor sentires isto, proveitoso ser-te-á lembrares da morte de
muitas pessoas que terá conhecido neste mundo, especialmente de teus amigos
e familiares, e de algumas pessoas ilustres e assinaladas, as quais a morte
assaltou em diversas idades, deixando burlados todos os seus propósitos e
esperanças.
Em terceiro, pensa quão frágil e quebradiça seja esta vida, e acharás que
não há vaso de vidro tão delicado como ela é, pois um ar, um sol, um jarro de
água fria, uma exalação de enfermo basta para nos despojar dela, como parece
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pelas experiências cotidianas de muitas pessoas, as quais, no mais florido da
sua idade, basta para derrubar qualquer ocasião das sobreditas.
Em quarto, considera quão mutável é ela e como nunca permanece num
mesmo ser. Para o que, deves considerar quanta seja a mudança de nossos
corpos, os quais nunca permanecem numa mesma saúde e disposição, e quanto
maior a dos ânimos, que sempre andam, como o mar, alternados por diversos
ventos e ondas de paixões e apetites e cuidados que a cada hora nos perturbam;
e finalmente quantas sejam as mudanças que dizem da fortuna, que nunca
consente muito permanecerem num mesmo estado, nem numa mesma
prosperidade e alegria, as coisas da vida humana, senão sempre roda de um
lugar para outro. E sobre tudo isto considera quão contínuo seja o movimento
da nossa vida, pois dia e noite nunca pára, mas sempre vai perdendo de seu
direito. Segundo isto, que é a nossa vida senão uma vela que sempre se está
gastando, e quanto mais arde e resplandece tanto mais se gasta? Que é a nossa
vida senão uma flor que se abre pela manhã, ao meio-dia murcha e à tarde
seca?
Pois em razão desta contínua mudança, diz Deus por Isaías: toda carne é
feno, e toda a glória dela é como a flor do campo. Palavras sobre as quais diz
S. Jerônimo: Verdadeiramente, quem considerar a fragilidade da nossa carne e
como em todos os pontos e momentos de tempo crescemos e decrescemos, sem
jamais permanecermos num mesmo estado, como isto que agora estamos
falando, traçando e esquadrinhando se está afastando da nossa vida, não
duvidará chamar à nossa carne feno e a toda a sua glória como a flor do
campo. O que agora é criança de peito, brevemente se faz rapaz, e o rapaz
moço, e o moço, mui depressa, chega à velhice, e primeiro se acha velho do
que se admire de ver como já não é moço. E a mulher formosa, que arrastava
após si as manadas dos mocinhos loucos, mui depressa descobre a fronte arada
com rugas e a que antes era amável daí a pouco vem a ser aborrível.
Em quinto, considera quão enganosa seja ela (o que porventura é o pior
que tem, pois a tantos engana, e tantos e tão cegos amadores leva atrás de si),
pois sendo feia nos parece bela, sendo amarga nos parece doce, sendo breve, a
cada um a sua lhe parece longa, e sendo tão miserável parece tão amável, que
não há perigo nem trabalho a que por ela se não ponham os homens, mesmo
que seja com detrimento da vida perdurável, fazendo coisas por onde venham a
perder a vida duradoura.
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Em sexto, considera como, além de ser tão breve, etc. (segundo está dito),
esse pouco que há de vida está sujeito a tantas misérias, assim da alma como do
corpo, que todo ele não passa de um vale de lágrimas e de um pélago de
infinitas misérias. Escreve S. Jerônimo que Xerxes, aquele poderosíssimo rei
que derrubava os montes e aplanava os mares, como subisse a um monte alto a
ver dali um exército que tinha ajuntado de infinitas gentes, depois que o mirou
bem, dizem que se parou a chorar. E, perguntado por que chorava, respondeu:
Choro porque daqui a cem anos não estará vivo nenhum de quantos ali vejo
presentes. Oh! (diz S. Jerônimo) se pudéssemos subir a alguma atalaia, que
dela pudéssemos ver toda a terra debaixo de nossos pés! Daí verias as quedas
e misérias de todo o mundo, gentes destruídas por gentes, e reinos por outros
reinos. Verias como a uns atormentam, a outros matam; como uns se afogam
no mar, outros são levados cativos. Aqui verás bodas, ali pranto; aqui matar
uns, ali morrer outros; uns abundarem em riquezas, outros mendigarem. E
finalmente verias não somente o exército de Xer.xes, senão todos os homens do
mundo que agora são, os quais daqui a poucos dias acabarão. Discorre por
todas as enfermidades e trabalhos dos corpos humanos e por todas as aflições e
cuidados dos espíritos e pelos perigos que há, assün em todos os estados como
em todas as idades dos homens, e ainda mais claro verás quantas sejam as
misérias desta vida, pois que, vendo tão claramente quão pouco é tudo o que o
mundo pode dar, mais facilmente menosprezes tudo o que nele há.
A todas estas misérias sucede a última que é morrer, a qual, assim para o
que é do corpo, como para o que é da alma, é a última de todas as coisas
terríveis; pois o corpo será num instante despojado de todas as coisas, e da
alma se há de determinar então o que para sempre há de ser.
Tudo isto te dará a entender quão breve e miserável seja a glória do
mundo (pois tal é a vida dos mundanos sobre que ela se funda) e, por
conseguinte, quão digna seja de ser pisada e menosprezada.
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Da morte
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Do juízo final
ara que com esta consideração se despertem em tua alma aqueles dois
. tão principais afetos que deve ter todo fiel cristão, convém saber:
. temor de Deus e aborrecimento do pecado.
Pensa, pois, em primeiro lugar quão terrível será aquele dia em que se
averiguarão as causas de todos os filhos de Adão, se concluirão os processos de
nossas vidas e se dará sentença definitiva do que para sempre há de ser. Aquele
dia abrangerá em si os dias de todos os séculos presentes, passados e futuros,
porque nele o mundo dará conta de todos estes tempos e nele derramará a ira e
sanha que tem recolhida em todos os séculos. Pois que tão arrebatado sairá
então aquele tão caudaloso rio da indignação divina, tendo tantas arremetidas
de ira e sanha quantos pecados se hão feito desde o princípio do mundo.
Em segundo, considera os sinais espantosos que precederão este dia,
porque (como diz o Salvador) antes que venha este dia haverá sinais no sol e na
lua e nas estrelas, e finalmente em todas as criaturas do céu e da terra. Porque
todas elas sentirão seu fim antes que feneçam, estremecerão e começarão a cair
primeiro que caiam. Mas os homens (diz ele) andarão secos e definhados de
morte, ouvindo os bramidos espantosos do mar e vendo as grandes ondas e
tormentas que ele levantará, conjeturando por aquilo as grandes calamidades e
misérias que com tão temerosos sinais ameaçam o mundo. E assim andarão
atônitos e espantados, com os rostos amarelos e desfigurados, antes da morte
mortos, e antes do juízo sentenciados, medindo os perigos com seus próprios
temores e tão ocupados cada um com o seu, que se não lembrará do alheio,
ainda que seja pai ou filho. Ninguém haverá para ninguém, porque ninguém
bastará para si só.
Em terceiro considera aquele dilúvio universal de fogo que virá adiante
do Juiz, aquele som temeroso da trombeta que o arcanjo tocará para convocar
todas as gerações do mundo a que se juntem num lugar e se achem presentes
em juízo; e sobretudo a majestade tremenda com que há de vir o Juiz.
Depois disto considera quão estrita será a conta que ali a cada um se
pedirá. Verdadeiramente (diz Jó) não poderá o homem ser justificado se se
compara com Deus. E, se se quiser pôr com Ele em juízo, de mil cargas que
Ele lhe faça, não poderá ele responder a uma só. Pois, que não sentirá então
61
cada um dos maus, quando Deus entre com ele neste exame e lá dentro da sua
consciência diga assim: Vem cá, homem mau, que viste em mim, porque assim
me desprezaste e te passaste ao bando de meu inimigo? Criei-te à minha
imagem e semelhança. Dei-te a luz da fé, fiz-te cristão e te remi com meu
próprio sangue. Por ti Jejuei, caminhei, velei, trabalhei e suei gotas de sangue.
Por ti sofri perseguições, açoites, blasfêmias, escárnios, bofetadas, desonras,
tormentos e cruz. Testemunhas são esta cruz e cravos que aqui aparecem;
testemunhas estas chagas de pés e mãos, que em meu corpo ficaram;
testemunhas o céu e a terra, diante dos quais padeci. Pois, que fizeste dessa
tua alma que eu com meu sangue fiz minha? No serviço de quem empregaste o
que eu tão caro comprei? Ó geração louca e adúltera! Por que mais quiseste
servir a esse teu inimigo com trabalho, do que a mim, teu Redentor e Criador,
com alegria? Chamei-vos tantas vezes e não me respondestes; bati às vossas
portas e não acordastes; estendi minhas mãos na cruz e não as olhastes;
desprezastes os meus conselhos e todas as minhas promessas e ameaças; pois
dizei agora vós, anjos;julgai vós, juízes, entre mim e minha vida, que mais devi
eu fazer por ela do que fiz. E que responderão aqui os maus, os zombadores
das coisas divinas, os mofadores da virtude, os menosprezadores da
simplicidade, os que tiveram mais conta com as leis do mundo do que com a de
Deus, os que a todas as suas vozes estiveram surdos, a todas as suas inspirações
insensíveis, a todos os seus mandamentos rebeldes e a todos os seus açoites e
benefícios ingratos e duros? Que responderão os que viveram como se cressem
que não havia Deus e os que com nenhuma lei tiveram conta senão só com o
seu interesse? Que fareis vós tais (diz Isaías) no dia da visitação e calamidade
que vos virá de longe? A quem pedireis socorro e que vos aproveitará a
abundância das vossas riquezas?
Em quinto, considera, depois de tudo isto, a terrível sentença que o Juiz
fulminará contra os maus e aquela temerosa palavra que fará retinir os ouvidos
de quem o ouvir: Seus lábios (diz Isaías) estão cheios de indignação, e sua
língua é como fogo que devora. Que fogo abrasará tanto como aquelas
palavras: Afastai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno que está preparado
para Satanás e para seus anjos? Em cada uma de quais palavras muito tens
que sentir e que pensar, no afastamento, na maldição, no fogo, na companhia, e
sobretudo na eternidade.
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Das penas do inferno
ara que com esta meditação também mais se confirme tua alma no
. temor de Deus e aborrecimento do pecado.
Estas penas (diz S. Boaventura) devem-se imaginar debaixo de
algumas figuras e semelhanças corporais que os santos nos ensinaram. Pelo que
será coisa conveniente imaginar o lugar do inferno como um lago escuro e
tenebroso, posto debaixo da terra, ou como um poço profundíssimo cheio de
fogo, ou como uma cidade espantosa e tenebrosa, que toda arde em vivas
chamas, na qual não soa outra coisa senão vozes e gemidos de atormentadores
e atormentados, com perpétuo pranto e ranger de dentes.
Pois neste mal-aventurado lugar se padecem duas penas principais: uma
a que chamam de sentido e a outra de dano. E quanto à primeira, pensa como
não haverá ali sentido algum dentro nem fora da alma que não esteja penando
com seu próprio tormento, porque assim como os maus ofenderam a Deus com
todos os seus membros e sentidos e de todos fizeram armas para servir ao
pecado, assim ordenará Ele que cada um deles pene com seu próprio tormento
e pague seu merecido. Ali os olhos adúlteros e desonestos padecerão com a
visão horrível dos demônios. Ali os ouvidos que se deram a ouvir mentiras e
palavras torpes ouvirão perpétuas blasfêmias e gemidos. Ali os narizes
amadores de perfumes e odores sensuais serão cheios de intolerável fétido. Ali
o gosto que se regalava com diversos manjares e guloseimas será atormentado
com raivosa fome e sede. Ali a língua murmuradora e blasfema será amargada
com fel de dragões. Ali o tato amador de regalos e branduras andará nadando
naquelas geleiras (que diz Jó) do Rio Cocito e entre os ardores e chamas do
fogo. Ali a imaginação padecerá com a apreensão das dores presentes; a
memória com a recordação dos prazeres passados; o entendimento, com a
representação dos males futuros e a vontade com grandíssimas iras e raivas que
os maus terão contra Deus. Finalmente, ali se acharão em um todos os males e
tormentos que se podem pensar, porque (como diz S. Gregório), ali haverá frio
que não se possa sofrer, fogo que se não possa apagar, verme imortal, fétido
intolerável, trevas palpáveis, açoites de atormentadores, visão de demônios,
confusão de pecados e desesperação de todos os bens. Pois dize-me agora: se o
menor de todos estes males que há cá, que se padecesse por mui pequeno
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espaço de tempo, seria tão duro de aturar, que será padecer ali num mesmo
tempo toda esta multidão de males em todos os membros e sentidos interiores e
exteriores e isto não por espaço de uma noite só, nem de mil, porém de uma
eternidade infinita? Que sentidos? Que palavras? Que juízo há no mundo capaz
de sentir ou encarecer isto como é?
Pois não é esta a maior das penas que ali se passam: outra há, sem
comparação, maior, que é a que os teólogos chamam pena de dano, a qual é ter
de carecer para sempre da visão de Deus e de sua gloriosa companhia, porque
tanto é maior uma pena quanto de maior bem priva o homem, e, pois, que Deus
é o maior bem dos bens, assim carecer dele será o maior mal dos males, qual de
verdade é este.
Estas são as penas que geralmente competem a todos os condenados.
Mas além destas penas gerais há outras particulares que ali padecerá cada um
conforme a qualidade do seu delito. Porque uma será a pena do soberbo, e
outra a do invejoso, e outra a do avarento, e outra a do luxurioso, e assim os
demais. Ali se regulará a dor conforme o deleite recebido, e a confusão
conforme a presunção e soberba, e a desnudez conforme a demasia e
abundância e a fome e sede conforme o regalo e a fartura passada.
A todas essas penas sucede a eternidade do padecer, que é como o selo e
a chave de todas elas, porque tudo isto ainda seria tolerável se fosse finito,
porque nenhuma coisa é grande se tem fim. Pena, porém, que não tem fim, nem
alívio, nem declínio, nem admiração, nem há esperança de que se acabará
algum dia, nem a pena, nem o que a dá, nem o que a padece, senão que é como
um desterro preciso e como um sambenito irremissível, que nunca jamais se
tira; isto é coisa para tirar o juízo a quem atentamente a considera.
Esta é, pois, a maior das penas que naquele mal-aventurado lugar se
padecem; porque, se estas penas houvessem de durar por algum tempo
limitado, ainda que fossem mil anos, ou cem mil anos, ou, como diz um doutor,
se esperasse que se haviam de acabar em se esgotando toda a água do mar
Oceano, tirando cada mil anos uma só gota do mar, ainda isto lhes seria
alguma espécie de consolo. Mas isto assim não é, senão que suas penas
competem com a eternidade de Deus, e a duração da sua miséria com a duração
da divina glória; enquanto Deus viver eles morrerão e, quando Deus deixar de
ser o que é, eles deixarão de ser o que são; pois nesta duração, nesta eternidade
quereria eu, irmão meu, que fincasses os olhos da consideração e que (como
animal limpo) ruminasses agora este passo dentro de ti.
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Da glória dos bem-aventurados
ara que por aqui se mova teu coração ao desprezo do mundo e desejo
. da companhia deles. E, para entenderes algo deste bem, podes
. considerar estas cinco coisas entre outras que há nele, convém saber:
a excelência do lugar, o gozo da companhia, a visão de Deus, a glória dos
corpos e, finalmente, o cumprimento de todos os bens que ali há.
Primeiramente, considera a excelência do lugar e assinaladamente a
grandeza do que é admirável, porque, quando o homem lê em alguns graves
autores que qualquer das estrelas do céu é maior do que toda a terra e ainda que
haja algumas delas de tão notável grandeza que são noventa vezes maiores do
que toda ela; e com isto alça ele os olhos ao céu e vê neste tanta multidão de
estrelas e tantos espaços vazios, onde poderiam caber outras tantas muitas
mais, como se espanta? Como não fica atônito e fora de si considerando a
imensidade daquele lugar, e muito mais a daquele soberano Senhor que o
criou?
Pois a beleza dele não se pode explicar com palavras, porque, se neste
vale de lágrimas e lugar de desterro criou Deus coisas tão admiráveis e de tanta
beleza, que não terá Ele criado naquele lugar, que é aposento da sua glória,
trono da sua grandeza, palácio de Sua Majestade, casa de seus escolhidos e
paraíso de todos os deleites?
Depois da excelência do lugar considera a nobreza dos moradores dele,
cujo número, cuja santidade, cujas riquezas e beleza excedem tudo o que se
pode pensar. S. João diz que é tão g rande a multidão dos escolhidos, que
ninguém basta para os contar. S. Dionísio diz que é tão grande o número dos
anjos, que excede sem comparação o de todas quantas coisas materiais há na
terra. Santo Tomás, conformando-se com este parecer, diz: Que assim como a
grandeza dos céus excede sem proporção à da terra, assim a multidão
daqueles espíritos gloriosos excede com a mesma vantagem a de todas as
coisas materiais que há neste mundo. Pois, que coisa pode ser mais admirável?
Por certo, coisa é esta que, se bem se considerasse, bastaria para deixar atônitos
todos os homens. E, se cada um daqueles bem-aventurados espíritos (ainda que
seja o menor deles) é mais belo de ver do que todo este mundo visível, que será
ver as perfeições e ofícios de cada um deles? Ali correm os anjos, ministram os
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arcanjos, triunfam os principados e alegram-se as potestades, dominam as
dominações, resplandecem as virtudes, relampagueiam os tronos, luzem os
querubins e ardem os serafins, e todos cantam louvores a Deus. E se a
companhia e comunicação dos bons é tão doce e amigável, que será tratar ali
com tantos bons, falar com os apóstolos, conversar com os profetas, comunicar
com os mártires e com todos os escolhidos?
E, se tão grande glória é gozar da companhia dos bons, que será gozar da
companhia e presença daquele a quem louvam as estrelas da manhã, de cuja
beleza o sol e a lua se maravilham, ante cujo merecimento se ajoelham os anjos
e todos aqueles espíritos soberanos? Que será ver aquele bem universal em
quem estão todos os bens e aquele mundo maior em que estão todos os
mundos, Aquele que sendo Uno é todas as coisas e sendo simplíssimo abrange
as perfeições de todas? Se tão grande coisa foi ouvir e ver o Rei Salomão, que
dizia a rainha de Sabá: Bem-aventurados os que assistem diante de ti e .fruem
da tua sabedoria, que será ver aquele sumo Salomão, aquela eterna sabedoria,
aquela infinita grandeza, aquela beleza inestimável, aquela imensa bondade e
gozar dela para sempre? Esta é a glória essencial dos santos, este o último fim e
porto de todos os nossos desejos.
Considera, depois disto, a glória dos corpos, os quais gozarão daqueles
quatro singulares dotes, que são sutileza, ligeireza, impassibilidade e claridade,
a qual será tão grande que cada um deles resplandecerá como o sol no reino de
seu Pai. Pois, se não mais de um sol, que está no meio do céu, basta para dar
luz e alegria a todo este mundo que farão tantos sóis e lâmpadas como ali
resplandecerão? E que direi de todos os outros bens que ali há? Ali haverá
saúde sem enfermidade, liberdade sem servidão, beleza sem fealdade,
imortalidade sem corrupção, abundância sem necessidade, sossego sem
turbação, segurança sem temor, conhecimento sem erro, fartura sem fastio,
alegria sem tristeza e honra sem contradição. Ali (diz S. Agostinho) será
verdadeira a glória, onde nenhum será louvado por erro nem por lisonja. Ali
será verdadeira a honra, a qual nem se negará ao digno, nem se concederá ao
indigno. Ali será verdadeira a paz, onde nem de si nem de outro será o homem
molestado. O prêmio da virtude será Aquele mesmo que deu a virtude e se
prometeu por galardão dela, o qual se verá sem fim, se amará sem tédio, e se
louvará sem cansaço. Ali o lugar é largo, belo, resplandecente e seguro; a
companhia muito boa e agradável o tempo de uma só maneira: não há distinto
em tarde e manhã, senão continuado com uma simples eternidade. Ali haverá
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perpétuo verão, que com o frescor e ar do Espírito Santo sempre floresce. Ali
todos se alegram, todos cantam e louvam aquele sumo doador de tudo, por
cuja largueza vivem e reinam para sempre. Oh! Cidade Celestial, morada
segura, terra onde se acha tudo o que deleita! Povo sem murmuração,
habitantes quietos de homens sem nenhuma necessidade! Oh! Se se acabasse
já esta contenda, oh! Se se concluíssem os dias do meu desterro!, quando
chegará esse dia? Quando virei e comparecerei ante a face de meu Deus?
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E depois levantarão a voz, dizendo: Tira-o, tira-o, crucifica-o. Agora
despojam-se de suas próprias vestes, e depois vos despojarão das vossas para
vos flagelar e crucificar. Agora cortam as palmas para as colocar debaixo dos
vossos pés e depois cortarão ramos de espinhos para com eles vos atravessarem
a cabeça. Agora vos bendizem e louvam e depois vos encherão de contumélias
e blasfêmias. Ao menos tu, minha alma, dize-lhe com amor e gratidão: Bendito
o que vem em nome do Senhor. Meu amado Redentor, sede sempre bendito, já
que viestes salvar-me: se não tivésseis vindo, estaríamos todos perdidos.
“E tendo-se aproximado e vendo a cidade, chorou sobre ela” (Lc 19,14).
Jesus, ao se aproximar da infeliz cidade, a contemplou e chorou,
pensando na sua ingratidão e ruína. Ah, meu Senhor, vós, chorando então sobre
a ingratidão de Jerusalém, choráveis também sobre a minha ingratidão e a ruína
de minha alma. Meu amado Redentor, vós chorais vendo o dano que eu mesmo
me causei, expulsando- vos de minha alma e obrigando-vos a condenar-me ao
inferno depois de haverdes morrido para me salvar. Oh! deixai que eu chore,
pois é a mim que compete o chorar ao considerar o mal que vos causei,
ofendendo-vos e separando-me de vós, que tanto me amastes. Eterno Pai, por
aquelas lágrimas que vosso Filho derramou sobre mim, dai-me a dor de meus
pecados. E vós, ó amoroso e terno Coração de meu Jesus, tende piedade de
mim, pois eu detesto acima de todos os males os desgostos que vos dei e estou
resolvido a nada mais amar afora vós.
Jesus Cristo, tendo entrado em Jerusalém e se ocupado o dia inteiro com
a pregação e cura dos enfermos, pela tarde não encontrou ninguém que o
convidasse a repousar em sua casa; viu-se por isso obrigado a voltar novamente
a Betânia. Meu amado Senhor, se os outros vos expulsam, eu não quero
expelir-vos. Houve, é verdade, um tempo desgraçado em que eu vos expulsei
de minha alma: agora, porém, estimo mais estar unido a vós do que possuir
todos os reinos do mundo. Ah, meu Deus, o que poderá jamais separar-me do
vosso amor?
72
O conselho dos Juízes e a traição de Judas
“Reuniram-se os pontífices e os fariseus em conselho e diziam: Que faremos
nós? porque este homem faz muitos milagres” (Jo 11,47).
75
Da instituição do Santíssimo Sacramento
“Enquanto estavam ceando, tomou Jesus o pão, benzeu-o e partiu-o e deu-o a
seus discípulos, dizendo: Recebei e comei: isto é o meu corpo” (Mt 26,26).
epois do lava-pés, ato de tão grande humildade, cuja prática Jesus
. recomendou aos discípulos, retomou as suas vestes e sentando-se
. novamente à mesa quer então dar aos homens a última prova da
ternura que nutria por eles: e esta foi a instituição do santíssimo Sacramento do
altar. Para tal fim, tom um pão, consagra- o e, distribuindo-o a seus discípulos,
disse-lhes: Tomai e comei, isto é o meu corpo. Recomendou-lhes, em seguida,
que todas as vezes que comungassem se recordassem de sua morte por amor
deles (1Cor 11,26). Jesus procedeu então como um príncipe que amasse muito
sua esposa e estivesse para morrer: escolhe entre suas jóias a mais bela, e
chamando a esposa, diz-lhe: Vou em breve morrer, minha esposa; para que não
te esqueças de mim, deixo-te esta jóia em recordação: quando a olhares,
recorda-te de mim e do amor que te dediquei. São Pedro de Alcântara escreve
em suas meditações:
“Nenhuma língua é suficiente para declarar a grandeza do amor que
Jesus consagra a cada alma e por isso, querendo este esposo partir deste
mundo, para que sua ausência não a fizesse esquecer-se dele, deixou-lhe em
recordação este santíssimo sacramento, no qual ele permanece em pessoa,
para que não houvesse entre os dois outro penhor para avivar-lhe a memória
do que ele mesmo”.
Aprendamos daqui quanto agrada a Jesus a recordação de sua missão:
instituiu propositalmente o sacramento do altar, para que nos recordemos
continuamente do amor imenso que nos demonstrou na sua morte.
Ó meu Jesus, ó Deus enamorado das almas, até onde vos arrastou o amor
que tendes aos homens? Até vos fazerdes seu alimento! Dizei-me o que mais
podeis fazer para obrigá-los a vos amar? Vós vos dais todo a nós na santa
comunhão, sem nada vos reservar; é, pois, justo que nos demos também a vós
sem reserva. Procurem os outros o que quiserem: riquezas, honras e o mundo;
eu quero ser todo vosso, não quero amar coisa alguma afora de vós, meu Deus.
Vós dissestes que quem se alimentar de vós, viverá só por vós:
“Aquele que me comer, viverá também por mim” (Jo 6,58).
76
Visto que tantas vezes me admitistes a alimentar-me de vossa carne,
fazei-me morrer a mim mesmo, para que eu viva só para vós, só para vos servir
e dar- vos prazer. Ó meu Jesus, eu quero colocar em vós todos os meus afetos,
ajudai-me e ser-vos fiel.
S. Paulo nota o tempo em que Jesus instituiu este grande sacramento e
diz:
“Jesus, na noite em que ia ser traído, tomou o pão e disse: Tomai e comei, isto
é o meu corpo” (1Cor 11,23).
Ó Deus, naquela mesma noite em que os homens se preparavam para dar
a morte a Jesus, o amante Redentor nos preparava este pão de vida e de amor
para nos unir todos a si, como ele o declarou:
“Quem come a minha carne permanece em mim e eu nele” (Jo 6,57).
Ó amor de minha alma, digno de um infinito amor, vós não podeis dar-me
maiores provas para me fazer compreender o afeto e a ternura que me
consagrais. Pois bem, atraí-me todo a vós: se eu não sei dar-vos meu coração
inteiro, arrancai-mo vós mesmo. Ah, meu Jesus, quando serei todo vosso, como
vós vos fazeis todo meu, quando vos receberei nesse sacramento de amor?
Iluminai-me e descobri-me sempre mais as vossas belas qualidades, que vos
fazem tão merecedor de afetos, para que eu me abrase sempre mais em amor
por vós e me esforce em comprazer-vos. Eu vos amo, meu sumo bem, minha
alegria, meu amor, meu tudo.
80
Jesus é apresentado aos pontífices e por eles condenado à morte
“Eles, apoderando-se de Jesus, o conduziram a Caifás, príncipe dos
sacerdotes, onde os escribas e anciãos se haviam congregado”. (Mt 26, 57).
81
O ímpio pontífice interroga Jesus sobre seus discípulos e sobre sua
doutrina, para descobrir um motivo para condená-lo. Jesus humildemente lhe
responde:
“Eu não falei em segredo, falei em público. Os que estão ao redor de mim,
podem atestar o que eu disse” (Jo 18, 20-21).
Jesus chama seus próprios inimigos como testemunhas. Mas, depois de
uma resposta tão acertada e tão mansa, precipita-se do meio daquela corja um
algoz mais insolente, que, tratando-o de temerário, lhe dá uma forte bofetada,
dizendo:
“É assim que respondes ao pontífice?” (Jo 18, 22).
Ó Deus, uma resposta tão humilde e modesta merecia uma afronta tão
grande?
O indigno pontífice o vê; mas em vez de repreender aquele carrasco,
cala-se, e com seu silêncio aprova o que ele fizera. Jesus, diante de tal injúria,
para livrar-se da acusação de falta de respeito ao pontífice, diz:
“Se falei mal, mostra o que eu disse de mal, mas se falei bem, por que me
bates?” (Jo 18, 23).
Ah, meu amável Redentor, vós sofreis tudo para pagar as afrontas que eu
fiz à divina majestade com os meus pecados. Ah, perdoai-me, pelo
merecimento desses mesmos ultrajes que por mim sofrestes.
“Enquanto isso, os príncipes dos sacerdotes e todo o conselho procuravam um
falso testemunho contra Jesus, a fim de o levarem à morte”. (Mt 26, 59).
Buscam um testemunho para condenar Jesus e, não o encontrando, o
pontífice busca novamente nas palavras de nosso Salvador um motivo para
declará-lo réu e por isso lhe diz:
“Eu te conjuro, pelo Deus vivo, que nos digas se tu és o Cristo, Filho de Deus”
(Mt 26, 63).
O Senhor, vendo-se instado em nome de Deus, confessa a verdade e
responde:
“Eu o sou. E vereis o Filho do Homem sentado à direita do poder de Deus e
vindo sobre as nuvens do céu” (Mc 14, 62).
Ou seja, me vereis não assim desprezível como agora vos pareço, mas
num trono de majestade, sentado como juiz de todos os homens, sobre as
nuvens do céu.
82
Ao ouvir isso, o pontífice, em vez de lançar-se com o rosto em terra para
adorar seu Deus e seu juiz, rasga suas vestes e exclama:
“Blasfemou! Que necessidade temos ainda de testemunhas? Eis aí! Acabastes
de ouvir a blasfêmia! Que vos parece?” (Mt 26, 65-66).
E todos os outros sacerdotes responderam que, sem dúvida alguma, era
digno de morte (cf. Mt 26, 66).
Ah, meu Jesus! Vosso Eterno Pai proferiu a mesma sentença, pois que vos
oferecestes para pagar os nossos pecados. Disse-lhe o Pai: Meu Filho, já que
queres satisfazer pelos homens, és réu de morte, e por isso é necessário que tu
morras.
“Então cuspiram-lhe no rosto e agrediram-no com socos; outros, deram-lhe
bofetadas, dizendo: Profetiza, Cristo. Diz-nos quem é que te feriu?” (Mt 26,
67-68).
Puseram-se todos a maltratá-lo como a um malfeitor já condenado à
morte e digno de todos os insultos: este lhe escarra no rosto; aquele o agride
com socos; outro, lhe dá bofetadas. E cobrindo-lhe o rosto com um pano, como
acrescenta São Marcos (cf. 13, 65), zombam dele como se fosse um falso
profeta, e dizem-lhe: “Já que és profeta, adivinha quem te bateu agora”. São
Jerônimo escreve que foram tantos os escárnios e zombarias a que sujeitaram o
Senhor naquela noite, que somente no dia do juízo serão todos eles conhecidos.
Portanto, ó meu Jesus, não repousastes naquela noite, mas fostes o objeto
da chacota e dos maus tratos daquele povo. Ó homens, como podeis
contemplar um Deus tão humilhado, e ser soberbos? Como podeis ver vosso
Redentor padecer tanto por vós, e não amá-lo? Oh Deus, como é possível que
aquele que crê e considera as dores e ignomínias sofridas por Jesus por nosso
amor, possa viver sem abrasar-se de amor por um Deus tão benigno e tão
amoroso para conosco?
O pecado de Pedro, que renega Jesus e jura nunca tê-lo conhecido,
aumenta-lhe a dor.
— Vai, minha alma, vai àquele cárcere em busca de teu Senhor, tão aflito,
escarnecido e abandonado, e agradece-lhe e consola-o com teu arrependimento,
já que tu também o desprezaste e renegaste durante tanto tempo. Dize-lhe que
desejarias morrer de dor, pensando que no passado tanto amarguraste o seu
doce Coração que tanto te amou. Dize-lhe que agora o amas e nada mais
desejas senão sofrer e morrer por seu amor.
83
— Ah, meu Jesus, esquecei-vos dos desgostos que vos dei, e olhai-me
com um olhar amoroso, como olhastes para Pedro depois que ele vos renegou,
pois desde então ele não cessou de chorar seu pecado enquanto viveu.
— Ó grande Filho de Deus! Ó amor infinito, que padeceis por aqueles
mesmos homens que vos odeiam e maltratam. Vós sois a glória do paraíso!
Muita honra já teríeis dado aos homens somente permitindo que beijassem os
vossos pés. Mas, oh Deus, quem vos levou a este ponto tão humilhante de ser
feito joguete da gente mais vil do mundo? Dizei-me, ó meu Jesus, que posso eu
fazer para compensar-vos a honra que esses vos roubam com seus opróbrios?
Sinto que me respondeis: “Suporta os desprezos por amor de mim, como eu os
suportei por ti”. Sim, meu Redentor, quero obedecer-vos. Meu Jesus,
desprezado por amor de mim, desejo e contento-me com ser desprezado por
amor de vós, tanto quanto vos aprouver.
84
me falásseis mais e me abandonásseis. Não o façais, porém, meu amado
Redentor. Tende piedade de mim e falai-me:
“Falai, Senhor, porque vosso servo vos escuta” (1Sm 3, 9).
Dizei-me, Senhor, o que quereis de mim, pois em tudo eu quero
obedecer-vos e contentar-vos.
Mas, vendo Herodes que Jesus não lhe respondia, desprezou-o e,
considerando-o louco, mandou que o revestissem com uma veste branca e
zombou dele, no que foi acompanhado por sua corte inteira; e assim
vilipendiado e escarnecido, o reenviou a Pilatos (cf. Lc 23, 11).
Eis como Jesus é então levado pelas ruas de Jerusalém, revestido com
aquela veste de escárnio.
Ó meu Salvador desprezado! Ainda faltava esta injúria: ser tratado como
louco! Ó cristãos, contemplai como o mundo trata a Sabedoria eterna!
Bem-aventurado aquele que se alegra ao ser tratado como louco pelo
mundo e não quer saber de mais nada senão de Jesus crucificado, amando os
sofrimentos e desprezos e dizendo com São Paulo:
“Pois julguei que não devia saber coisa alguma entre vós senão a Jesus
Cristo, e Jesus Cristo crucificado” (1Cor 2, 2).
O povo hebreu tinha o direito de pedir ao governador romano a libertação
de um réu na festa da Páscoa. Por isso Pilatos propõe-lhes Jesus e Barrabás,
dizendo:
“A quem quereis que eu solte, a Barrabás ou a Jesus?” (Mt 27, 21).
Pilatos esperava certamente que o povo preferisse Jesus a Barrabás,
homem perverso, homicida e ladrão público, odiado por todos. Mas o povo,
instigado pelos chefes da sinagoga, pede, de repente, sem nenhuma
deliberação, a Barrabás. Pilatos, surpreendido e ao mesmo tempo indignado,
vendo um tão grande perverso ser preferido a um inocente, diz:
“Que farei então de Jesus? Todos responderam: Seja crucificado! E Pilatos:
Mas que mal ele fez? E eles gritavam ainda mais: Seja crucificado!” (Mt 27,
23).
Ah, Senhor, assim procedi eu quando pequei. Eu me propus então qual
coisa gostaria de perder mais rápido: vós ou aquele vil prazer. E respondi:
“Quero o prazer e não me incomodo de perder a Deus!” Assim outrora falei,
meu Senhor. Agora, porém, digo que prefiro a vossa graça a todos os prazeres e
85
tesouros do mundo. Ó bem infinito, ó Jesus, eu vos amo acima de todos os
bens: só a vós quero e nada mais.
Assim como foram apresentados ao povo Jesus e Barrabás, também foi
apresentado ao Eterno Pai quem ele queria salvar: seu Filho ou o pecador. E o
Pai Eterno responde: “Morra meu Filho e salve-se o pecador!” É o que atesta o
Apóstolo:
“Não poupou seu próprio Filho, mas o entregou por todos nós” (Rm 8, 32).
Sim, o próprio Salvador diz que a tal ponto Deus amou o mundo que,
para salvá-lo, entregou aos tormentos e à morte seu Filho unigênito (cf. Jo 3,
16). Por isso exclama a Igreja: “Ó admirável condescendência de vossa
piedade para conosco! Ó inapreciável predileção de vossa caridade: para
remirdes o escravo, entregastes o Filho!” (Hino Exsultet).
Ó santa fé! Como pode um homem que crê nessas coisas, não
transformar-se todo em fogo para amar um Deus que tanto ama as criaturas?
Oxalá tivesse eu sempre diante dos olhos esta imensa caridade de Deus!
88
Jesus é coroado de espinhos e tratado como rei de teatro
“Então os soldados do governador conduziram Jesus ao pretório e
rodearam-no com todo o pelotão. Arrancaram-lhe as vestes e cobriram-no com
um manto vermelho. Depois, teceram uma coroa de espinhos, puseram-lha
sobre a cabeça e na sua mão direita uma vara”. (Mt 27, 27-29).
assemos a considerar os outros bárbaros tormentos que aqueles
. soldados acrescentaram ao nosso já atormentado Senhor.
Reúnem-se todos os do pelotão e colocam-lhe sobre os ombros um
velho manto vermelho, parodiando a púrpura real; nas mãos, uma vara
figurando o cetro; e na cabeça, um feixe de espinhos em sinal de coroa, mas
como se fosse um capacete que lhe cingia toda a cabeça. E já que, somente
com as mãos, os espinhos não entravam ainda mais para perfurar aquela cabeça
(já tão dolorida pelos golpes dos flagelos), servem-se de varas, e, cuspindo-lhe
ao mesmo tempo no rosto, cravam-lhe com toda a força aquela cruel coroa (cf.
Mt 27, 30).
Ó espinhos, ó criaturas ingratas, o que fazeis? Deste modo atormentais
vosso Criador? Mas por que condenar os espinhos? Ó pensamentos iníquos dos
homens, fostes vós que atravessastes a cabeça de meu Redentor. Sim, meu
Jesus: nós, com nossos perversos consentimentos, tecemos a vossa coroa de
espinhos. Agora eu os detesto e os odeio mais do que a morte ou outro mal
qualquer. E a vós, ó espinhos consagrados pelo sangue do Filho de Deus,
volto-me novamente, humilhado: transpassai a minha alma e fazei-a sentir
sempre a dor de ter ofendido um Deus tão bom! E vós, Jesus, meu amor, já que
tanto padeceis por mim, desprendei-me das criaturas e de mim mesmo, para
que em verdade eu possa dizer que já não sou mais meu, mas somente vosso e
todo vosso.
Ó meu aflito Salvador, ó Rei do mundo, a que vos vejo reduzido? A
apresentar-se como rei de zombaria e de dor! A ser o escárnio de toda a
Jerusalém! Escorre o sangue da cabeça transpassada do Senhor, sobre sua face
e seu peito. Ó meu Jesus, me espanta a crueldade dessa gente: não satisfeita de
vos ter esfolado quase da cabeça aos pés, agora vos atormenta com novos
ultrajes e desprezos. Mas me espanto ainda mais com vossa mansidão e vosso
amor, pois tudo sofreis e aceitais por nós com tanta paciência:
89
“...injuriado, não injuriava; recebendo maus tratos, não fazia sequer ameaças,
porém se entregava àquele que o julgava injustamente” (1Pd 2, 23).
Devia cumprir-se a predição do profeta: que o nosso Salvador seria
coberto de dores e ignomínias:
“Oferecerá a face ao que o ferir; será saturado de opróbrios” (Lm 3, 30).
Mas vós, soldados, não estais ainda satisfeitos? Depois de o terem assim
atormentado e caçoado como rei, ajoelham-se diante dele e dizem-lhe aos risos:
“Nós te saudamos, ó rei dos judeus!” E levantando-se, com risadas e
escárnios dão-lhe mais bofetadas (cf. Mt 27, 29; Jo 19, 3).
Oh Deus, aquela sagrada cabeça de Jesus já estava toda dolorida pelas
feridas dos espinhos; por isso, qualquer movimento lhe causava dores mortais:
daí que toda bofetada ou pancada lhe eram de um tormento crudelíssimo.
Levanta-te, ó minha alma, e ao menos tu reconhece nele o supremo Senhor de
todas as coisas, como ele o é em verdade. E como rei de dor e de amor,
agradece-lhe e ama-o, já que é para esse fim que ele padece: para ser amado
por ti.
90
Olha também, minha alma, para aquele terraço e vê teu Senhor amarrado
e conduzido por um carrasco: vê como está meio despido, ainda que coberto de
chagas e de sangue; com as carnes dilaceradas, com aquele pedaço de púrpura
que lhe serve unicamente de escárnio, e com aquela horrenda coroa que o
atormenta sem cessar. Contempla a que foi reduzido teu pastor para te
encontrar a ti, ovelha perdida.
— Ah, meu Jesus, sob quantos aspectos os homens vos fazem aparecer,
mas todos são de dor e de infâmia! Ah, meu doce Redentor, vós causais
compaixão até às feras, mas aqui não encontrais piedade! Eis o que responde
essa gente:
“Ao verem-no, os pontífices e ministros clamavam dizendo: Crucifica-o,
crucifica-o” (Jo 19, 6).
Mas que dirão eles no dia do juízo final, quando vos virem glorioso,
sentado como juiz num trono de luz? Ó meu Jesus, também eu durante muito
tempo exclamei: Crucifica-o, crucifica-o, quando vos ofendi com os meus
pecados. Agora, porém, me arrependo de todo o meu coração e vos amo acima
de todos os bens, ó Deus de minha alma. Perdoai-me pelos méritos de vossa
Paixão, e fazei que naquele dia eu vos veja aplacado e não irritado contra mim.
Do terraço, Pilatos mostra Jesus aos judeus e diz: Ecce homo. Mas ao
mesmo tempo, do alto do céu o Eterno Pai nos convida a contemplar Jesus
Cristo naquele estado e diz também: Ecce homo. Ó homens, este homem que
vedes tão ferido e vilipendiado, este é o meu Filho amado, que sofre dessa
maneira por vosso amor e para pagar por vossos pecados: contemplai-o,
agradecei-lhe e amai-o.
— Meu Deus e meu Pai, vós me dizeis que eu devo contemplar o vosso
Filho. Eu, porém, vos peço que vós o contempleis por mim. Contemplai-o e,
por amor desse vosso Filho, tende piedade de mim.
Vendo os judeus que, apesar de seus clamores, Pilatos procurava libertar
Jesus, pensaram em obrigá-lo a condenar o Salvador, afirmando que, se não o
fizesse, seria declarado inimigo de César:
“Os judeus, porém, clamavam dizendo: Se soltares a este, não és amigo de
César. Todo o que se faz rei, contradiz a César” (Jo 19, 12).
E de fato acertaram, porque Pilatos, temendo perder as boas graças de
César, toma consigo a Jesus Cristo e senta-se para dar a sentença e condená-lo:
“Pilatos, tendo ouvido estas palavras, trouxe Jesus para fora e assentou-se no
seu tribunal” (Jo 19, 13).
91
Contudo, atormentado pelos remorsos de sua consciência, pois sabia que
condenava um inocente, Pilatos volta-se novamente para os judeus:
“E disse-lhes: Eis o vosso rei. Acaso hei de condenar o vosso rei? Eles, porém,
clamavam: Fora! Fora! Crucifica-o” (Jo 19, 14-15).
Replicaram os judeus, mais enfurecidos que na primeira vez: Eh Pilatos!
Que nosso rei? Que rei? Por que esta insistência? Fora, fora! Tira-o daqui e
faze com que seja crucificado!
— Ah, meu Senhor, Verbo Encarnado, viestes do céu à terra para
conversar com os homens e para salvá-los, e estes não podem mais nem sequer
ver-vos entre eles, e tanto se esforçam para dar-vos a morte e não mais vos ver.
Pilatos ainda lhes resiste e replica:
“Hei então de crucificar vosso rei? Os pontífices responderam: Não temos
outro rei senão César” (Jo 19, 15).
— Ah, meu adorável Jesus, eles não querem reconhecer-vos como seu
Senhor, e afirmam não ter outro rei senão César. Eu vos confesso como meu
Rei e Deus, e protesto que não quero outro rei para meu coração senão vós,
meu Redentor. Infeliz de mim! Houve um tempo em que me deixei também
dominar por minhas paixões, e vos expulsei de minha alma, ó meu Divino Rei.
Agora, quero que só vós reineis nela: que vós ordeneis e ela vos obedeça. Com
Santa Teresa vos direi: “Ó amado Jesus, que me amais acima do que eu posso
compreender, fazei que minha alma vos sirva mais segundo o vosso gosto que
o dela. Morra, pois, o meu eu, e em mim viva um outro que não eu. Ele viva e
me dê vida. Ele reine e eu seja escravo, não querendo minha alma outra
liberdade”. Oh, feliz a alma que pode dizer em verdade: “Meu Jesus, vós sois o
meu único rei, meu único bem, meu único amor!”
92
Jesus é condenado por Pilatos
“Então Pilatos o entregou para que fosse crucificado” (Jo 19, 16).
ilatos, depois de tantas vezes ter declarado a inocência de Jesus, a
. declara novamente lavando suas mãos e protestando que era inocente
. do sangue daquele homem justo; e que os judeus eram responsáveis
por sua morte:
“Mandado vir água, lavou as mãos à vista do povo, dizendo: Eu sou inocente
do sangue deste justo, isto é lá convosco” (Mt 27, 24)”.
E depois disso, dá a sentença e o condena à morte.
— Ó injustiça jamais vista no mundo! O juiz condena o acusado ao
mesmo tempo que o declara inocente!
São Lucas escreve que Pilatos entregou Jesus nas mãos dos judeus para
que fizessem com ele o que desejavam:
“Entregou Jesus à sua vontade” (Lc 23, 25).
De fato, é isso que acontece quando se condena um inocente: ele é abandonado
nas mãos de seus inimigos, para que o façam morrer, e morrer da maneira que
for do gosto deles.
Pobres judeus, vós ali dissestes:
“Seu sangue caia sobre nós e nossos filhos” (Mt 27, 25)...
e assim chamastes sobre vós o castigo, e este já vos alcançou: vossa nação já
carrega e carregará até ao fim do mundo a pena daquele sangue inocente.
A injusta sentença de morte é lida diante do Senhor condenado. Ele a ouve e
humildemente a aceita, inteiramente resignado ao justo decreto de seu Eterno
Pai que o condena à cruz. [Jesus aceita aquela sentença], não pelos delitos que
falsamente lhe imputavam os judeus, mas por nossas culpas verdadeiras, pelas
quais se oferecera a satisfazer com sua morte. Pilatos diz na terra: Morra Jesus!
e o Pai Eterno o confirma no céu, dizendo: Morra meu Filho. E o Filho diz
também: “Eis-me aqui, eu obedeço. Aceito a morte, e a morte da cruz”.
“Ele se humilhou, fazendo-se obediente até à morte, e morte de cruz”. (Fl 2,
8).
— Meu amado Redentor, vós aceitastes a morte que me era devida, e com
vossa morte me obtivestes a vida. Eu vos agradeço, meu amor, e espero poder
93
louvar no céu as vossas misericórdias para sempre: “Cantarei eternamente as
misericórdias do Senhor”. Mas já que vós, inocente, aceitastes a morte de cruz,
eu, pecador, aceito aquela morte que vós me reservastes; e aceito-a com todas
aquelas penas que a devem acompanhar, e desde já a ofereço ao vosso Eterno
Pai, unindo-a à vossa santa morte. Vós morrestes por meu amor; eu quero
morrer por amor a vós. Ah! pelos méritos de vossa morte tão dolorosa,
concedei-me, ó meu Jesus, a sorte de morrer em vossa graça e ardendo em
vosso santo amor.
94
Quem poderia jamais crer que ao verem Jesus repleto de chagas pelo
corpo, os judeus nada mais sentissem que raiva e desejo de vê-lo crucificado?
Que tirano obrigou jamais o próprio réu a levar sobre seus ombros o
instrumento de seu suplício, vendo-o já exausto e consumido de dores? É um
horror considerar a multidão de tormentos e humilhações a que submeteram
Jesus no espaço de algumas horas, da sua prisão até sua morte, sucedendo uns
aos outros sem intervalo: prisões, bofetadas, cusparadas, zombarias, flagelos,
espinhos, cravos, agonias e morte. Todos se uniram, hebreus e gentios,
sacerdotes e leigos, para tornarem Jesus Cristo o “homem dos desprezos e das
dores”, como havia predito o profeta Isaías.
O juiz declara o Salvador inocente, mas uma tal declaração só serve para
acarretar-lhe maiores sofrimentos e humilhações; pois que, se logo no princípio
Pilatos tivesse condenado Jesus à morte, não lhe teriam preferido Barrabás,
nem teria sido tratado como louco, nem flagelado tão cruelmente, nem coroado
de espinhos.
Mas voltemos a considerar o espetáculo admirável do Filho de Deus, que
vai morrer por aqueles mesmos homens que o conduzem à morte. Eis realizada
a profecia de Jeremias:
“E eu era semelhante a um manso cordeiro, que é levado ao matadouro” (Jr
11, 19).
— Ó cidade ingrata! assim expulsas de ti com tão grande desprezo o teu
Redentor, depois de receberes dele tantas graças? Oh Deus, é isso o que faz
também uma alma ingrata que, depois de favorecida por Deus com tantos dons,
o expulsa pelo pecado.
A vista de Jesus nessa caminhada para o Calvário causava tal compaixão,
que as mulheres ao vê-lo se punham a chorar e lamentar de tanta crueldade:
“Seguia-o uma grande multidão de povo e de mulheres, que choravam e o
lamentavam” (Lc 23, 27).
O Redentor, porém, voltando-se para elas, diz:
“Não choreis sobre mim, mas sobre vossos filhos. Porque se assim fazem com
o ramo verde, que farão com o seco?” (Lc 23, 31).
Com isso, quis nos dar a entender o grande castigo que nossos pecados
merecem: pois se Ele, inocente e Filho de Deus, por ter-se oferecido somente a
satisfazer nossos pecados já foi assim tratado, como então deveriam ser
tratados os homens por seus próprios pecados?
95
Contempla-o também tu, minha alma. Vê como está todo dilacerado,
coroado de espinhos, oprimido com aquele pesado lenho, e acompanhado por
gente inimiga que o cobre de injúrias e maldições enquanto o segue. Oh Deus!
o seu corpo sacrossanto está todo retalhado, de tal maneira que a qualquer
movimento que faz se renova a dor de todas as suas chagas. A cruz já o
atormenta antes do tempo, pois ela comprime seus ombros chagados e vai
encravando cada vez mais os espinhos daquela bárbara coroa! Que dores a cada
passo! Jesus, porém, não a abandona. Sim, não a deixa, porque por meio da
cruz ele quer reinar nos corações dos homens, como predisse Isaías:
“E foi posto o principado sobre o seu ombro” (Is 9, 6).
— Ah, meu Jesus, com que sentimentos de amor para comigo vós
caminháveis para o Calvário, onde devíeis consumar o grande sacrifício da
vossa vida!
Minha alma, abraça também a tua cruz por amor de Jesus, que por teu
amor padece tanto. Observa como ele vai adiante com sua cruz, e te convida a
segui-lo com a tua:
“Quem quiser vir após mim, tome sua cruz e siga-me” (Mt 16, 24).
— Sim, meu Jesus, não quero deixar-vos, quero seguir-vos até à morte.
Vós, porém, pelos merecimentos de vossa subida tão dolorosa ao Calvário,
dai-me a força de levar com paciência as cruzes que me enviardes. Oh! vós
tornastes muito amáveis as dores e os desprezos, abraçando-os com tanto amor
por nós.
“Encontraram um homem de Cirene, chamado Simão; obrigaram-no a
carregar a cruz de Jesus”. (Mt 27, 32). “E puseram-lhe a cruz para que a
carregasse atrás de Jesus”. (Lc 23, 26).
Acaso foi a compaixão que os moveu a desvencilhar Jesus da cruz e
fazê-la carregar pelo Cireneu? Não, foi a iniquidade e o ódio. Vendo os judeus
que o Senhor quase exalava sua alma a cada passo que dava, temeram que
antes de chegar ao Calvário expirasse no caminho; e porque eles o queriam ver
morto, mas morto crucificado, para que sua memória ficasse para sempre
denegrida, obrigaram o Cireneu a carregar-lhe a cruz. Era essa sua intenção,
pois, para eles, morrer crucificado era o mesmo que morrer amaldiçoado por
todos: “Maldito o que pende do madeiro” (Dt 21, 23), dizia sua lei. Por isso,
quando buscavam a morte de Jesus, não só pediam a Pilatos que o fizesse
morrer, mas sempre instavam, gritando: “Crucifica-o! Seja crucificado!”, para
96
que seu nome ficasse tão difamado naquela terra que nem sequer fosse mais
lembrado, conforme a profecia de Jeremias:
“Exterminemo-lo da terra dos viventes e não haja mais memória de seu nome”
(Jr 11, 19).
E foi essa a razão por que lhe tiravam a cruz dos ombros: para que chegasse
vivo ao Calvário, e assim tivessem o gosto de vê-lo morrer crucificado.
— Ah, meu Jesus desprezado, vós sois a minha esperança e todo o meu amor.
Jesus é crucificado
al chegou Jesus ao Calvário, esgotado e consumido de dores, dão-lhe a
. beber vinho misturado com fel, como se costumava dar aos condenados
. à cruz para mitigar-lhes um pouco o sentimento de dor. Mas Jesus, que
queria morrer sem alívio, apenas o provou, mas não bebeu (cf. Mt 27, 34).
Forma-se um círculo em torno de Jesus. Os soldados tiram-lhe as vestes,
que, estando coladas ao seu corpo todo chagado e retalhado, ao serem
arrancadas levam consigo muitos pedaços de carne; e depois, atiram-no sobre a
cruz. Jesus estende suas sagradas mãos e oferece ao Eterno Pai o grande
sacrifício de si mesmo, e suplica-lhe que o aceite por nossa salvação.
Eis que já tomam com fúria os pregos e os martelos e, transpassando as
mãos e os pés de nosso Salvador, pregam-no na cruz. O som das marteladas
ressoa por todo aquele monte e se faz ouvir também por Maria, que,
acompanhando o Filho, já havia também chegado.
— Ó mãos sagradas, que com vosso toque curastes tantos enfermos! por
que vos atravessam nessa cruz? Ó pés sacrossantos, que tanto vos cansastes
correndo atrás de nós, ovelhas perdidas! por que vos encravam com tantas
dores?
No corpo humano, apenas se atinge um nervo, é tão aguda a dor que isso
ocasiona desmaios e espasmos mortais. Qual, pois, terá sido o tormento de
Jesus, ao lhe serem transpassadas com cravos as mãos e os pés, lugares cheios
de ossos e nervos?
— Ó meu doce Salvador, quanto vos custou a minha salvação e o desejo
de conquistar o amor de um verme miserável! E eu, ingrato, tantas vezes vos
neguei o meu amor e voltei-vos as costas!
97
A um dado momento, levantam a cruz com o crucificado e fazem-na cair
com violência no buraco cavado na rocha. É firmada com pedras e madeira, e
fica Jesus pregado nela entre dois ladrões, para aí findar a vida.
“E o crucificaram e com ele dois outros, um de cada lado, e no meio Jesus”
(Jo 19, 18).
Isaías já o havia predito:
“Ele foi posto no número dos malfeitores” (Is 53, 12).
Na cruz estava afixado um letreiro que dizia: “Jesus Nazareno, rei dos
judeus”. Queriam os sacerdotes que se mudasse tal inscrição; Pilatos, porém,
não quis mudá-la, porque Deus queria que todos soubessem que os judeus
fizeram morrer seu verdadeiro Rei e Messias, por tanto tempo esperado e
desejado por eles mesmos.
Jesus na cruz: eis a prova do amor de um Deus! Eis a última aparição que
o Verbo encarnado faz nesta terra. A primeira foi num estábulo e esta última é
numa cruz: tanto uma como a outra demonstram o amor e a caridade imensa
que Ele tem pelos homens. São Francisco de Paula, contemplando um dia o
amor de Jesus Cristo em sua morte, estando em êxtase e elevado acima da
terra, exclamou três vezes em alta voz: “Ó Deus caridade! Ó Deus caridade! Ó
Deus caridade!” Com isso, o Senhor queria ensinar-nos por meio do santo que
nós nunca seremos capazes de compreender o amor infinito que nos
demonstrou esse Deus, querendo sofrer tanto e morrer por nós.
— Ó minha alma, chega-te humilhada e enternecida àquela cruz; beija ao
mesmo tempo este altar em que morre por ti, qual vítima de amor, o teu amável
Senhor. Coloca-te debaixo de seus pés, e faz que escorra sobre ti seu sangue
divino, e suplica ao Eterno Pai, mas em sentido diferente do que fizeram os
judeus:
99
— Minha alma, assenta-te aos pés daquela cruz, e debaixo de sua sombra
de salvação repousa durante tua vida inteira, a fim de que possas dizer com a
esposa sagrada:
“Assentei-me à sombra daquele que eu tanto havia desejado” (Ct 2, 3).
Oh! que repouso encantador é o que encontram as almas amantes de Deus
junto a Jesus crucificado, no meio dos tumultos do mundo, das tentações do
inferno e dos temores dos juízos divinos!
Estando Jesus em agonia, com os membros doloridos e com o coração
desolado e triste, procurava quem o consolasse.
Mas não, meu Redentor, não há quem vos console. Se ao menos houvesse
alguém que se compadecesse de vós e com lágrimas acompanhasse a vossa
agonia tão atroz! Mas, ó tristeza, vejo que uns vos injuriam, outros vos
escarnecem, outros ainda blasfemam contra vós. Uns dizem:
“Se és o Filho de Deus, desce da cruz” (Mt 27, 40).
Outros:
“Ó tu, que destróis o templo de Deus... salva-te a ti mesmo” (Mc 15, 29-30).
E outros:
“Salvou a outros e não pode salvar-se a si mesmo” (Mt 27, 42).
Oh Senhor! qual condenado se viu jamais tão coberto de injúrias e
opróbrios ao mesmo tempo que morria no patíbulo?
100
Palavras de Jesus na cruz
as o que faz Jesus vendo-se alvo de tantos ultrajes? O que diz?
. Intercede por aqueles que assim o maltratam:
“Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem” (Lc 23, 34).
Jesus orou então também por nós, pecadores. Por isso, voltados para o
Eterno Pai, digamos com confiança:
— Ó Pai, ouvi a voz deste Filho querido que vos pede para perdoar-nos.
Um tal perdão é sem dúvida grande misericórdia com relação a nós, que não o
merecíamos; mas é justiça com relação a Jesus Cristo, que
superabundantemente satisfez por nossos pecados. Vós vos obrigastes, pelos
méritos de Jesus, a perdoar e a receber na vossa graça quem se arrepende das
ofensas que vos fez. Ó meu Pai, eu me arrependo de todo o meu coração de vos
ter ofendido, e em nome desse vosso Filho vos peço perdão: perdoai-me e
recebei-me na vossa graça.
“Senhor, lembra-te de mim quando entrares no teu reino”. (Lc 23, 42).
Assim foi que se dirigiu o bom ladrão a Jesus agonizante, que lhe
respondeu:
“Em verdade eu te digo: hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23, 43).
Assim se cumpriu o que Deus já havia dito por Ezequiel: que quando um
pecador se arrepende de suas culpas, Deus lhe perdoa e se esquece das ofensas
que lhe foram feitas:
“Se, porém, o ímpio fizer penitência... não me recordarei mais de todas as suas
iniquidades” (Ez 18, 21).
— Ó piedade imensa, ó bondade infinita de meu Deus, quem deixará de
vos amar? Sim, meu Jesus, esquecei-vos das injúrias que vos fiz, e recordai-vos
da morte tão cruel que por mim sofrestes: e por ela dai-me o vosso reino na
outra vida, e na presente fazei reinar em mim o vosso santo amor. Que somente
o vosso amor domine o meu coração, e seja ele o meu único senhor, meu único
desejo, meu único amor. Ó feliz ladrão, que mereceste acompanhar com
paciência a morte de Jesus! E feliz de mim, ó meu Jesus, se tiver a sorte de
morrer amando-vos e unindo a minha morte à vossa santa morte.
“Estava, porém, ao pé da cruz de Jesus, sua Mãe”. (Jo 19, 25).
101
— Considera, minha alma, Maria ao pé da cruz, que transpassada de
dores e com os olhos fixos no amado e inocente Filho, contempla as
crudelíssimas dores externas e internas no meio das quais ele morre. Ela está
toda resignada e em paz, oferecendo ao Eterno Pai a morte do Filho por nossa
salvação. Mas muito a afligem a compaixão e o amor.
Oh Deus! Quem não se compadeceria de uma mãe que se encontrasse
junto ao patíbulo do filho que lhe está morrendo diante dos olhos?
Mas aqui devemos considerar quem seja essa Mãe e quem seja esse Filho.
Maria amava esse Filho imensamente mais do que todas as mães amam os seus
filhos. Ela amava Jesus por ser ao mesmo tempo seu Filho e seu Deus: Filho
sumamente amável, incomparavelmente belo e santo, Filho que lhe fora sempre
respeitoso e obediente, Filho que tanto a amara e que desde a eternidade a
escolhera por mãe. E essa Mãe foi quem teve de ver morrer de dores um tal
filho, diante de seus olhos, naquele lenho infame, sem que lhe pudesse dar o
menor alívio. Ao contrário, sua presença aumentava o tormento do Filho ao
vê-la padecer assim por seu amor.
Ó Maria, pelas dores que sofrestes na morte de Jesus, tende piedade de
mim e recomendai-me a vosso Filho. Ouvi como Ele, na pessoa de São João,
entrega-me a vós:
“Mulher, eis aí teu filho” (Jo 19, 26).
“E perto da hora nona, clamou Jesus em alta voz, dizendo: Meu Deus, meu
Deus, por que me abandonaste?” (Mt 27, 46).
Jesus agonizando na cruz, com o corpo estarrecido de dor e o espírito
inundado de aflição (pois que aquela tristeza que o assaltou no horto o
acompanhou até ao último suspiro de sua vida), procura alguém que o console,
mas não encontra ninguém, como já o predissera Davi:
“Esperei alguém que me consolasse e não o encontrei” (Sl 68, 21).
Olha para sua Mãe e esta não o consola; antes, mais o aflige com sua
presença. Olha ao redor e vê que todos se mostram como seus inimigos.
Vendo-se assim privado de toda consolação, volta-se para seu Eterno Pai
a pedir-lhe alívio. Porém, vendo-o coberto com todos os pecados dos homens,
pelos quais Ele estava na cruz a satisfazer sua justiça divina, o Eterno Pai
também permite que ele morra consumido de dores. E foi então que Jesus, para
exprimir a veemência de seu sofrimento, gritou dizendo: “Meu Deus, meu
Deus, por que até vós me abandonais?” A morte de Jesus foi, pois, uma morte
102
mais atroz que a de todos os mártires, pois que foi uma morte inteiramente
desolada e privada de todo o alívio.
Mas, ó meu Jesus, se vos oferecestes espontaneamente a uma morte tão
dura, por que então vos lamentais? Ah, eu vos compreendo, vós vos lamentais
para nos fazer compreender a pena excessiva com que morreis, e para nos dar,
ao mesmo tempo, ânimo para confiar e nos resignarmos no tempo em que nos
virmos desolados e privados da assistência sensível da graça divina.
— Meu doce Redentor, esse vosso abandono me faz esperar que Deus
não me abandonará, apesar de tê-lo traído tantas vezes. Ó meu Jesus, como
pude viver tanto tempo esquecido de vós? Agradeço-vos por vos não terdes
esquecido de mim. Suplico-vos que me façais recordar sempre da morte cruel
que sofrestes por meu amor, para que eu não me esqueça mais de vós e do
amor que me consagrastes.
Sabendo, entretanto, o Salvador que seu sacrifício já estava consumado,
disse que tinha sede e os soldados puseram-lhe nos lábios uma esponja
embebida em vinagre:
“Em seguida, sabendo Jesus que tudo estava consumado, para se cumprir
ainda a Escritura, disse: Tenho sede... Eles lhe chegaram à boca uma esponja
ensopada em vinagre” (Jo 19, 28).
A Escritura que devia cumprir-se era a profecia de Davi:
“E na minha sede deram-me vinagre para beber” (Sl 68, 22).
— Mas, Senhor, vós não vos queixais de tantas dores que vos arrebatam a
vida, e vos lamentais da sede? Ah, a sede de Jesus era diferente daquela que
pensamos. A sede que ele tem é o desejo de ser amado pelas almas pelas quais
morre.
— Logo, ó Jesus meu, vós tendes sede de mim, verme miserável; e eu
não terei sede de vós, bem infinito? Ah, sim, eu vos quero, eu vos amo e desejo
agradar-vos em tudo. Ajudai-me, Senhor, a expulsar de meu coração todos os
desejos terrenos, e fazei que em mim reine o único desejo de agradar-vos e
fazer a vossa vontade.
Ó santa vontade de Deus, vós que sois a feliz fonte que saciais as almas
enamoradas: saciai-me também, e sede o alvo de todos os meus pensamentos e
de todos os meus afetos.
103
Morte de Jesus
is que o nosso amável Redentor se aproxima do fim de sua vida [sobre a
. terra].
Ó, minha alma, contempla esses olhos que se obscurecem, essa bela face
que empalidece, esse Coração que bate lentamente, esse corpo
sagrado que vai se abandonando à morte.
“Tendo Jesus experimentado o vinagre, disse: Tudo está consumado” (Jo 19,
30).
Estando Jesus para expirar, apresentaram-se diante de seus olhos todos os
sofrimentos de sua vida: pobreza, suores, penas e injúrias suportadas; e,
oferecendo tudo novamente a seu Eterno Pai, disse: Tudo está cumprido, tudo
está consumado. Sim, consumou-se tudo o que os profetas predisseram sobre
mim. Em suma, consumou-se inteiramente o sacrifício que Deus esperava para
perdoar o mundo, e a justiça divina já está plenamente satisfeita.
Consummatum est — “Tudo está consumado”, disse Jesus voltado para seu
Pai. Consummatum est — “Tudo está consumado”, disse Jesus ao mesmo
tempo, voltado para nós, como se afirmasse:
Ó homens, fiz tudo que eu podia fazer para salvar-vos e conquistar o
vosso amor. Fiz a minha parte; fazei agora a vossa: amai-me, e não vos
lamenteis de ter que amar um Deus que chegou a morrer por vós.
— Ah, meu Salvador, pudesse também eu dizer no momento de minha
morte, ao menos no referente à vida que me resta: “Tudo está consumado”;
Senhor, eu cumpri com a vossa vontade, eu vos obedeci em tudo. Dai-me força,
meu Jesus, pois eu espero e proponho realizar tudo com o vosso auxílio.
“E clamando com voz forte, Jesus disse: Pai, em tuas mãos entrego o meu
espírito”. (Lc 23, 46).
Foi essa a última palavra que Jesus disse na cruz. Vendo que sua alma
estava prestes a separar-se de seu corpo dilacerado, disse todo resignado à
vontade divina e com confiança de Filho: “Pai, eu vos entrego o meu espírito”,
como se dissesse: “Meu Pai, eu não tenho vontade própria, não quero nem
viver nem morrer; se vos apraz que eu continue a padecer nesta cruz, eis-me
104
aqui, estou pronto; nas vossas mãos entrego o meu espírito, fazei de mim o que
vos aprouver”.
Oh! se assim disséssemos também, quando estamos sobre a cruz, e nos
deixássemos guiar em tudo pelo beneplácito do Senhor! Segundo S. Francisco
de Sales, este é o santo abandono em Deus, o qual constitui toda a nossa
perfeição. É ele que devemos realizar no momento da morte; mas, para fazê-lo
bem naquela hora, é preciso praticá-lo com frequência durante a vida.
— Sim, meu Jesus, nas vossas mãos entrego a minha vida e a minha
morte. Abandono-me inteiramente a vós e desde já vos entrego a minha alma
no fim de minha vida: acolhei-a nas vossas santas chagas, como vosso Pai
acolheu vosso espírito quando morrestes na cruz.
E eis que Jesus já está morrendo.
Vinde, anjos do céu, vinde assistir à morte de vosso Deus. E vós, Maria, ó
Mãe das dores, aproximai-vos mais da cruz. Levantai os olhos para vosso Filho
e olhai-o mais atentamente, pois está prestes a expirar.
Eis que o Redentor já chama a morte e lhe dá licença para se apoderar
dele: “Vem, ó morte. Depressa! Faze o teu dever! Tira-me a vida e salva as
minhas ovelhas”.
A terra treme, abrem-se os sepulcros, rasga-se o véu do templo. Pela
violência das dores, faltam já as forças ao Senhor; falta-lhe o calor natural,
falta-lhe a respiração; e Ele, soltando o corpo, abaixa a cabeça sobre o peito,
abre a boca e expira
“E tendo inclinado a cabeça, entregou o espírito” (Jo 19, 30).
— Sai, ó bela alma de meu Salvador! Sai e vem abrir-nos o paraíso até
agora fechado para nós; vai apresentar-te à majestade divina e impetrar-nos o
perdão e a salvação.
O povo, alvoroçado em volta de Jesus por causa do grande brado com
que tinha proferido as últimas palavras, contempla-o com atenção, em silêncio,
e o vê expirar; e observando que não faz mais movimento, exclama: “Morreu,
morreu”. Assim Maria ouve todos falarem, e ela também diz: “Morreu meu
Filho!”
Morreu! Oh Deus, quem morreu? O autor da vida, o Unigênito de Deus, o
Senhor do mundo.
Ó morte, que foste o espanto do céu e da natureza! Um Deus morrer por
suas criaturas! Ó caridade infinita! Um Deus sacrificar-se todo: sacrificar suas
alegrias, sua honra, seu sangue, sua vida! E por quem? Por criaturas ingratas,
morrendo num mar de dores e desprezos para pagar as nossas culpas.
105
Minha alma, levanta os olhos e contempla esse homem crucificado.
Contempla esse Cordeiro divino já sacrificado nesse altar de dores, reflete que
ele é o Filho bem amado do Pai eterno e que ele morreu pelo amor que te
consagrava. Vê como tem os braços estendidos para acolher-te, a cabeça
inclinada para dar-te o beijo de paz, o lado aberto para receber-te. Que dizes?
Não merece ser amado um Deus tão bom e tão amoroso? Ouve o que te diz
daquela cruz o teu Senhor: “Filho, vê se há no mundo quem te haja amado mais
do que eu, teu Deus”.
— Ah, meu Deus e meu Redentor, então morrestes; e morrestes com a
mais infame e dolorosa das mortes. E por quê? Para conquistar o meu amor.
Como, porém, poderá o amor de uma criatura compensar o amor de seu
Criador morto por ela? Ó meu adorado Jesus, ó amor de minha alma, como
poderei eu esquecer-me já de vós? Como poderei amar outra coisa, depois de
vos ter visto morrer de dores sobre essa cruz, para pagar pelos meus pecados e
salvar-me? Como vos poderei ver morto e pendente desse lenho, e não vos
amar com todas as minhas forças? Poderei pensar que minhas culpas vos
reduziram a esse estado e não chorar sempre com suma dor as ofensas que vos
fiz?
Oh Deus! Se o mais vil dos homens tivesse padecido por mim o que
sofreu Jesus Cristo, se eu visse um homem dilacerado pelos açoites, pregado a
uma cruz e feito o escárnio do povo para salvar a minha vida, poderia
recordar-me disso sem me enternecer de afeto? E se me apresentassem seu
retrato, morrendo na cruz, poderia eu olhá-lo com indiferença e deixar de
exclamar: “Oh! este infeliz morreu assim atormentado por meu amor; se não
me tivesse amado, não teria padecido a morte”.
Oh! quantos cristãos possuem um belo crucifixo no seu quarto, mas
unicamente como um belo ornamento: louvam a obra e a expressão da dor, mas
seu coração nada ou pouco sente, como se não fosse a imagem do Verbo
encarnado, mas de um estranho e desconhecido.
— Ah, meu Jesus, não permitais que eu seja um desses. Recordai-vos que
prometestes atrair a vós todos os corações, quando fôsseis suspenso na cruz.
Eis o meu coração, que, enternecido com a vossa morte, não quer mais resistir
aos vossos apelos. Oh! atraí meu coração todo inteiro ao vosso amor. Vós
morrestes por mim e eu não quero viver senão para vós.
Ó dores de Jesus, ó ignomínias de Jesus, ó morte de Jesus, ó amor de
Jesus, fixai-vos em meu coração e aí permaneça sempre a vossa doce memória,
para ferir-me continuamente e inflamar-me de amor.
106
Ó eterno Pai, vede Jesus morto por mim; e pelos méritos desse Filho, usai
de misericórdia comigo.
Minha alma, não percas a confiança por causa dos delitos cometidos
contra Deus: esse Pai é o mesmo que entregou seu Filho ao mundo para nossa
salvação; e esse Filho, é o mesmo que voluntariamente se ofereceu para pagar
por nossos pecados.
Ah, meu Jesus, já que para me perdoar, vós não vos poupastes, olhai para
mim com aquele mesmo afeto com que me olhastes quando outrora
agonizáveis na cruz. Olhai-me e iluminai-me. Perdoai-me especialmente as
ingratidões que vos mostrei no passado, por tão poucas vezes pensar na vossa
Paixão e no amor que nela me mostrastes. Agradeço-vos a luz que me
concedeis ao abrir-me as janelas de vossas chagas e membros lacerados, que
me revelam o terno afeto que tendes por mim.
Pobre de mim, se depois dessa luz eu deixasse de amar-vos ou amasse
outra coisa além de vós! Dir-vos-ei com o enamorado São Francisco de Assis:
“Que eu morra por amor de vosso amor, ó meu Jesus; vós, que por amor de
meu amor vos dignastes morrer!”
Ó coração aberto de meu Redentor! ó feliz morada das almas amantes!
não vos recuseis de receber também a minha alma miserável.
Ó Maria, ó Mãe das dores, recomendai-me a vosso Filho, que tendes
morto em vossos braços. Contemplai suas carnes dilaceradas, contemplai seu
sangue divino derramado por mim, e vede quanto lhe é agradável que vós lhe
recomendeis a minha salvação. A minha salvação é amá-lo, e sois vós quem
haveis de alcançar-me este amor; mas um grande amor, um amor eterno.
São Francisco de Sales, falando daquele dito de São Paulo: “A caridade
de Cristo nos impele”, diz: “Sabendo que Jesus, verdadeiro Deus eterno,
amou-nos até sofrer por nós a morte, e morte de cruz, não sentimos nosso
coração comprimido como numa prensa, a fim de que dele seja extraído o
amor, por uma violência que é tanto mais forte quanto mais é amável?”
O monte Calvário, segundo ele, é o monte dos amantes. E acrescenta:
Ah, por que não nos lançamos então sobre Jesus crucificado, para morrer
na cruz com aquele que quis morrer por amor de nós? Eu o prenderei —
devemos dizer — e não o abandonarei jamais: morrerei com Ele, e me
abrasarei nas chamas de seu amor. O mesmo fogo consumirá esse divino
Criador e a sua miserável criatura.
108
Da Criação do Homem
Afetos e resoluções
Humilha-te profundamente diante de Deus, dizendo com o salmista:
Oh! Minha alma, sabe que o Senhor é teu Deus e que foi ele que te fez e
não tu que te fizeste a ti mesma. Ó Deus, sou uma obra de vossas mãos. Ó
Senhor, toda a minha substância é um puro nada diante de vós; e quem sou eu,
para que me queiras fazer este bem?
— Ah! Minha alma, tu estavas mergulhada no abismo do nada e aí
estarias ainda, se Deus não te tivesse tirado.
Agradece a Deus. Ó meu Criador, vós, cuja beleza iguala a grandeza
infinita, quanto vos devo, porque me tendes feito por vossa misericórdia tudo
isso que eu sou. Que farei eu para bendizer condignamente o vosso santo nome
e para agradecer a vossa infinita bondade?
Confunde-te. Mas, ah! Meu Criador, em vez de me unir convosco pelo
amor e por meus serviços, minhas paixões revoltaram meu coração contra vós,
separaram e afastaram minha alma de vós e ela entregou-se ao pecado e
devotou-se a injustiça. Respeitei e amei tão pouco a vossa bondade, como se
não tivésseis sido meu Criador.
Eis aqui, pois, as boas resoluções que vossa graça me faz tomar!
Renuncio a estas vãs complacências que, desde há tanto, tem ocupado o meu
espírito e o meu coração unicamente comigo mesmo, que sou nada. De que te
glorificas, pó e cinza! Ou melhor, que tens em ti, verdadeiro e miserável nada,
em que te possas comprazer? Quero humilhar-me, e por isso farei isto ou
aquilo, sofrerei este ou aquele desprezo; quero absolutamente mudar de vida;
seguirei dora em diante o movimento desta inclinação que meu Criador me deu
para ele; honrarei em mim esta qualidade de criatura de Deus e como tal me
109
considerarei unicamente: consagrarei todo o ser que recebi dele a obediência
que lhe devo, com todos os meios que tenho e sobre os quais pedirei conselhos
a meu pai espiritual.
Conclusão
Agradece a Deus. Bendizei, ó minha alma, ao Senhor e todas as coisas
que há dentro de mim bendigam o seu santo nome!
Oferece-te a Deus. Ó meu Deus, eu vos ofereço o meu ser, que vós me
destes com todo o meu coração; eu vô-lo consagro.
Ora humildemente a Deus. Ó meu Deus, eu vos suplico que me
conserveis, pelo vosso poder, nestas resoluções e sentimentos. Ó Virgem
Santíssima, eu vos peço que as recomendeis ao vosso Filho divino, com todos
aqueles por quem tenho obrigação de rezar. Pai-Nosso, Ave-Maria.
Do Fim do Homem
ão foi por nenhum motivo de interesse que Deus nos criou, pois nós
. Lhe somos absolutamente inúteis; foi unicamente para nos fazer
. bem, em nos facultando, com Sua graça, participar de Sua glória; e
foi por isso, Filotéia, que Ele te deu tudo o que tens: o entendimento, para O
conheceres e adorares; a memória, para te lembrares dEle; a vontade, para O
amares; a imaginação, para te representares os Seus benefícios; os olhos, para
admirares as Suas obras; a língua, para O louvares, e assim as demais potências
e faculdades.
Sendo esta a intenção que Deus teve, em te criando, com certeza deves
abominar e evitar todas as ações que são contrárias a este fim; e quanto àquelas
que não te conduzem a Ele, tu as deves desprezar, como vãs e supérfluas.
Considera quão grande é a infelicidade do mundo, que nunca pensa
nestas coisas; a infelicidade, digo, dos homens que vivem por ai, como se
estivessem persuadidos de que seu fim neste mundo é edificar casas, construir
jardins deliciosos, acumular riquezas sobre riquezas e ocupar-se de
divertimentos frívolos.
110
Afetos e resoluções
Confunde-te considerando a miséria de tua alma e o esquecimento destas
verdades. Ah! De que se tem ocupado o meu espírito, ó meu Deus, quando não
pensei em Vós? De que me lembrava, quando Vos esqueci? Que amava eu,
quando Vos não amava? Ah! Eu me devia alimentar da verdade e fui
saturar-me na vaidade. Como escravo que eu era do mundo, eu o servia, a esse
mundo, que foi feito para me servir e me ensinar a Vos conhecer e amar.
Detesta a vida passada. Eu vos renuncio e aborreço, máximas falsas, vãos
pensamentos, reflexões inúteis, recordações detestáveis. Eu vos abomino,
amizades infiéis e criminosas, vãos apegos ao mundo, serviços perdidos,
miseráveis afabilidades, generosidade falsa que, para servir aos homens, me
levastes a uma imensa ingratidão para com Deus; eu vos detesto de toda a
minha alma.
Volta-te para Deus. E Vós, ó meu Deus, ó meu Salvador, Vós sereis dora
em diante o único objeto de meus pensamentos; não darei atenção a nada que
Vos possa desagradar; minha memória se encherá todos os dias da grandeza e
doçura de Vossa bondade para comigo; Vós sereis as delícias de meu coração e
toda a suavidade de meu interior.
Sim, assim seja; tais e tais divertimentos com que me entretinha, estes e
aqueles exercícios vãos que ocuparam meu tempo, estas e aquelas afeições que
prendiam meu coração, tudo isso será um objeto de horror para mim; e, para
conservar-me nestas disposições, empregarei tais e tais meios.
Conclusão
Agradece a Deus. Eu Vos dou graças, ó meu Deus, porque me destinastes
para um fim tão sublime e útil, qual é o de Vos amar nesta vida e gozar
eternamente na outra da intensidade de Vossa glória. Como serei digno dele?
Como Vos bendirei quanto mereceis?
Oferece-te a Deus. Eu Vos ofereço, ó meu amabilíssimo Criador, todos
estes propósitos e afetos com todo o meu coração e com toda a minha alma.
Ora humildemente a Deus. Eu Vos suplico, ó meu Deus, que Vos agradeis
de meus desejos e votos, de dar à minha alma a Vossa santa bênção, para que
sejam levados a efeito, pelos merecimentos de Vosso Filho, que por mim
derramou todo o Seu sangue na cruz. Pai-Nosso, Ave-Maria.
111
Dos benefícios de Deus
onsidera, com respeito ao corpo, todos os dotes que tens recebido do
. Criador: este corpo, duma conformação tão perfeita, esta saúde,
. estas comodidades tão necessárias à manutenção da vida, estes
prazeres se ligam naturalmente ao teu estado, esta cooperação e assistência de
teus inferiores, esta companhia suave e agradável de teus amigos. Compara-te
então com outras pessoas que talvez mereçam mais do que tu e que no entanto
não as possuem; pois quantas pessoas têm uma figura ridícula, um corpo
disforme, uma saúde débil! Quantos não estão a gemer, abandonados de seus
amigos e parentes, no desprezo, no opróbrio, em enfermidades longas ou nas
angústias da pobreza. Deus assim quis uma sorte para ti e outra para eles.
Considera tudo aquilo que se pode chamar dotes do espírito. Pensa
quantos homens idiotas, insensatos, furiosos, existem, e quantos educados
grosseiramente e na mais completa ignorância; por que não és tu deste número?
Não foi Deus quem velou duma maneira toda especial por ti, para te dar um
natural feliz e uma boa educação?
Considera ainda mais, Filotéia, as graças sobrenaturais, o teu nascimento
no seio da Igreja, o conhecimento tão perfeito que tens tido de Deus desde a tua
infância, a recepção dos Sacramentos tão frequente e salutar. Quantas
inspirações da graça, quantas luzes interiores, quantas repreensões de tua
consciência, por causa de tua vida desregrada! Quantas vezes Deus te tem
perdoado os pecados e velado sobre ti, para livrar-te das ocasiões, onde estavas
prestes a perder eternamente a tua alma! Todos estes anos de vida que Deus te
concedeu não te deram tempo bastante para progredir no aperfeiçoamento de
tua alma? Examina estas graças minuciosamente e contempla quão bom e
misericordioso Deus tem sido sempre para contigo.
Afetos e resoluções
Admira a bondade de Deus. Oh! Quão bom tem sido o meu Deus para
mim! Oh! Ele é bom deveras! Ó Senhor, rico sois Vós em misericórdia e
imenso em bondade! Oh! Minha alma, com júbilo anuncia quantas maravilhas
o teu Deus tem operado em ti!
Arrepende-te de tua ingratidão. Mas quem sou eu, Senhor, para que Vos
lembreis assim de mim? Oh! Grande é a minha indignidade! Ah! Calquei aos
pés as Vossas graças, abusando delas, afrontei a Vossa bondade, desprezando-a,
opus um abismo de ingratidão ao abismo de Vossa misericórdia.
112
Excita em ti um reconhecimento profundo. Ó meu coração, já não sejas
um infiel, um ingrato, um rebelde para um benfeitor tão grande! E como não
será minha alma dora em diante sujeita a teu Deus, que operou em mim e por
mim tantas maravilhas e graças?
Ah! Filotéia, começas, pois, a negar a teu corpo estes e aqueles prazeres,
para acostumá-lo a levar o jugo do serviço de Deus; e em seguida aplica teu
espírito a conhecê-Lo mais e mais por meio de tais e tais exercícios
conducentes a este fim. Emprega afinal os meios de salvação que Deus te
oferece por sua Santa Igreja. — Sim, eu o farei; exercitar-me-ei na oração,
frequentarei os Sacramentos, ouvirei a Palavra de Deus, obedecerei à Sua voz,
seguindo à risca os conselhos do Evangelho e as Suas inspirações.
Conclusão
Agradece a Deus, que te fêz conhecer tão claramente as suas graças e os
teus deveres. Oferece-lhe o teu coração com todas as tuas resoluções. Pede-lhe
que te conserve nestes propósitos, dando-te a fidelidade necessária; pede-lhe
isso pelos merecimentos da morte de Jesus Cristo; implora a intercessão da
Santíssima Virgem e dos Santos. Pai-Nosso, Ave-Maria.
Dos pecados
ai em espírito àquele tempo em que começaste a pecar; pondera
. quanto tens aumentado e multiplicado os teus pecados de dia a
. dia, contra Deus e contra o próximo, por tuas obras, por tuas
palavras, por teus pensamentos e por teus desejos.
Considera tuas más inclinações e com que paixão tu as seguiste; com
estas duas considerações, verás que teus pecados sobrepujam o número de teus
cabelos e mesmo as areias do mar.
Presta atenção especialmente à tua ingratidão para com Deus, pois este é
um pecado geral que se acha em todos os outros e lhes aumenta infinitamente a
enormidade. Conta, se podes, todos os benefícios de Deus, dos quais a maldade
de teu coração se serviu para desonrá-Lo; todas as inspirações desprezadas,
todas as moções da graça inutilizadas e todos os diferentes abusos dos
113
Sacramentos. Onde estão, pelo menos, os frutos que Deus esperava dai? Que é
feito das riquezas com que o teu Divino Esposo exornou a tua alma? Tudo foi
deturpado por tuas iniquidades. Pensa que tua ingratidão foi a ponto de fugires
da presença de Deus, para te perderes, enquanto Ele te seguia, passo por passo,
para te salvar.
Afetos e resoluções
Sirva aqui a tua miséria para confundir-te. Ó meu Deus, como ouso
apresentar-me diante de Vós? Oh! Eu me acho num deplorável estado de
corrupção, impureza, ingratidão e iniquidade. É possível que eu tenha levado a
minha insensatez e ingratidão a ponto de já não haver um de meus sentidos que
não esteja deturpado por minhas iniquidades, nenhuma das potências de minha
alma que não esteja profanada e corrompida por meus pecados, e que não se
tenha passado um só dia de minha vida que não fosse cheio de obras más?
É este o fruto dos benefícios de meu Criador e o preço do sangue de meu
Redentor?
Pede perdão de teus pecados e lança-te aos pés do Senhor, como o filho
pródigo aos pés de seu pai; como Santa Madalena aos pés do seu amantíssimo
Salvador, como a mulher adúltera aos pés de Jesus, seu juiz. Ó Senhor,
misericórdia para esta alma pecadora. Ó divino Coração de Jesus, fonte de
compaixão e de bondade, tende piedade desta alma miserável.
Propõe-te melhorar de vida. Nunca mais, Senhor, me entregarei ao
pecado, não, jamais, com o auxílio de Vossa graça. Oh! Amei-o demais, mas
agora detesto-o de todo o meu coração. Eu Vos abraço, ó Pai das misericórdias!
Em Vós quero viver e morrer.
Acusar-me-ei a um sacerdote de Jesus Cristo, com um coração humilde e
sincero, de todos os meus pecados, sem espécie alguma de reserva ou
dissimulação. Farei todo o possível para destruí-los em mim até à raiz,
especialmente Estes e aqueles que mais me pesam na consciência. Para isso
empregarei com generosidade todos os meios que ele me aconselhar e nunca
pensarei ter feito bastante para reparar minhas enormes faltas.
Conclusão
Agradece a Deus que até esta hora esperou por tua conversão e te deu
estas boas disposições. Oferece-lhe a vontade que tens de servi-lo o melhor
possível. Pede-lhe que te dê a Sua graça e a força, etc. Pai-Nosso, Ave-Maria.
114
Da Morte
Conclusão
Agradece a Deus por estas boas resoluções que te fez tomar, e oferece-as
à divina Majestade; suplica-lhe que, pelos merecimentos da morte de seu Filho,
te prepare uma boa morte; implora a proteção da Santíssima Virgem e dos
santos. Pai-Nosso, Ave-Maria.
116
Do Último Juízo
nfim, uma vez terminado o prazo prefixado pela sabedoria de Deus
. para a duração do mundo, daqueles inúmeros e vários prodígios e
. presságios horríveis, que consumirão de temor e tremor os homens
ainda vivos, um dilúvio de fogo se alastrará pela terra afora, destruindo tudo,
sem que coisa alguma escape às Suas chamas devoradoras.
Depois deste incêndio universal, todos os homens hão de ressuscitar, ao
som da trombeta do arcanjo, e comparecerão em juízo todos juntos, no vale de
Josafá. Mas — ah — bem diversa será a sua situação: uns terão o corpo
revestido de glória e esplendor e outros se horrorizarão de si próprios.
Considera a majestade com que o soberano Juiz há de aparecer em Seu
tribunal, cercado de anjos e santos e tendo diante de Si, mais brilhante que o
sol, a cruz, como sinal de graça para os bons e de vingança para os maus.
A vista deste sinal e por determinação de Jesus Cristo, separar-se-ão os
homens em duas partes: uns se acharão à sua direita e serão os predestinados;
outros à sua esquerda e serão os condenados. Separação eterna! Jamais se
encontrarão de novo juntos.
Então se abrirão os livros misteriosos das consciências: nada ficará
oculto. Clara e distintamente há de ver-se nos corações duns e doutros tudo o
que fizeram de bom e de mau — as afrontas a Deus e a fidelidade a Suas
graças, os pecados e a penitência. Ó Deus, que confusão duma parte e que
consolação da outra.
Escuta atentamente a sentença formidável que o soberano Juiz
pronunciará contra os maus: Ide, malditos, para o fogo eterno, que foi
preparado para o diabo e seus anjos. Pondera bem estas palavras, que os hão de
esmagar por completo: Ide. Esta palavra já rios está anunciando o abandono
completo em que Deus deixará a sua criatura, expulsando-a de sua presença e
não a contando mais no número daqueles que lhe pertencem. Ide, malditos. Ó
minha alma, que maldição esta! Ela é universal, pois encerra todos os males, e
ela é irrevogável, porque se estende a todos os tempos, por toda a eternidade.
Ide, malditos, para o fogo eterno. Considera, ó minha alma, essa eternidade
tremenda. Ó eternidade de penas eternas, quão horrível és tu!
Escuta também a sentença que decidirá sobre a sorte feliz dos bons:
Vinde, dirá o Juiz. Ah! Esta é a doce palavra de salvação, pela qual o nosso
divino Salvador nos há de chamar a Si, para receber-nos, bondoso, entre Seus
braços.
117
Vinde, benditos de meu Pai. Ó bênção preciosa e incomparável, que
encerra em si todas as bênçãos! Possuí o reino que vos está preparado desde a
criação do mundo. Ó meu Deus, que graça! Possuir um reino que nunca terá
fim!
Afetos e resoluções
Compenetra-te, minha alma, de temor, com a lembrança deste dia fatal.
Ah! Com que segurança contas tu, quando as próprias colunas do céu tremerão
de terror?
Detesta teus pecados. É só isso que te pode levar à perdição. Ah! Julga-te
a ti mesma agora, para então não seres julgada. Sim, eu quero fazer bem o
exame de consciência, acusar-me, julgar-me, condenar-me, corrigir-me, para
que o juiz não me condene naquele dia tremendo. Confessar-me-ei, pois,
aceitarei os avisos necessários, etc.
Conclusão
Agradece a Deus, que te deu tempo e meios de pôr-te em segurança pelo
exercício da penitência. Oferece-lhe teu coração, para fazer dignos frutos de
penitência. Pede-lhe a graça necessária para isso. Pai- Nosso, Ave-Maria.
118
Do Inferno
Afetos e resoluções
Procura incutir temor em tua alma, dirigindo-lhe as palavras do profeta
Isaías: Ó minha alma, poderás habitar com o fogo devorante? Habitarás com os
ardores sempiternos? Queres deixar teu Deus para sempre?
Confessa que tens merecido esses horríveis castigos; e quantas vezes?
Ah! desde este instante melhorarei de vida, seguirei um caminho diferente do
que tenho seguido até agora. Para que precipitar-me neste abismo de misérias?
119
Do Paraíso
epresenta-te uma noite serena e tranquila e pondera quão agradável é
. para a alma contemplar o céu todo resplandecente ao brilho de tantas
. estrelas. Ajunta a estes encantos inefáveis as delícias dum claro dia,
em que os raios mais brilhantes do sol, entretanto, não encobrissem a vista das
estrelas e da lua; e, feito isso, dize a ti mesma que tudo isso não é
absolutamente nada, em comparação com a beleza e a glória do paraíso. Oh!
Bem merece os nossos desejos esta mansão encantadora. Ó cidade santa de
Deus, quão gloriosa, quão deliciosa és tu!
Considera a nobreza, a formosura, as riquezas e todas as excelências da
companhia santa daqueles que vivem aí; esses milhões de anjos, serafins e
querubins; esses exércitos inumeráveis de apóstolos, de mártires, de
confessores, de virgens e de tantos outros santos e santas. Oh! Que união
bem-aventurada a dos santos na glória de Deus. O menor de todos é mil vezes
mais belo que o mundo inteiro; que dita será então vê-los todos juntos! Meu
Deus, que felizes são eles! Sem cessar e sem fim levam a cantar os doces
cânticos do eterno amor; regozijam-se num júbilo perene; dão-se mutuamente
mil motivos de gozo e vivem cercados das consolações indizíveis duma
companhia feliz e indissolúvel.
Considera muito mais ainda o auge de sua bem-aventurança, o qual
consiste na felicidade de ver a Deus, que os honra e inunda de gozos pela visão
beatifica, fonte de bens inumeráveis, pela qual ele emite todas as luzes da
sabedoria em suas mentes e todas as delícias do amor em seus corações. Que
felicidade ver-se ligado tão estreitamente e para sempre a Deus com laços tão
preciosos! Cercados e compenetrados de divindade, como os passarinhos no ar,
ocupam-se, dia e noite, unicamente de seu Criador, adorando-O continuamente,
amando e louvando, sem cansaço e com uma alegria inefável: — Bendito sejais
para sempre, soberano Senhor e Criador nosso amantíssimo, que com tanta
bondade manifestais em nós a Vossa glória, pela participação que nos
concedeis. E ao mesmo tempo Deus os faz ouvir aquelas palavras ditosas:
Abençoados sejais, criaturas minhas, com uma bênção eterna, que me servistes
com fidelidade; vós louvareis perpetuamente o vosso Senhor, na união mais
perfeita do seu amor.
120
Afetos e resoluções
Entrega-te à admiração de tua pátria celeste. Oh! Quão formosa, rica e
magnífica és tu, minha Jerusalém querida, e quão ditosos teus habitantes!
Repreende a tua frouxidão em progredir no caminho do céu. Por que fugi
assim de minha felicidade suprema? Ah! Miserável que eu sou! Mil vezes
renunciei a estas delícias infinitas e eternas, para ir atrás de prazeres
superficiais, passageiros e misturados de muita amargura. Onde tinha a cabeça,
quando desprezei assim os bens estáveis e dignos de almejar, por causa dos
prazeres vãos e desprezíveis?
Reanima, entretanto, tua esperança e aspira com todas as tuas forcas a
esta estância de delícias. Ó amantíssimo e soberano Senhor, já que Bos aprouve
reconduzir-me ao caminho do céu, nunca mais me desviarei daí, nem reterei
meus passos, nem voltarei a trás. Vamos, minha alma querida, embora custe
algum cansaço; vamos a esta estância de repouso; caminhemos sempre avante
para esta terra abençoada, que nos foi prometida; que estamos nós a fazer no
Egito?
Privar-me-ei, pois, disto e daquilo, destas coisas que me apartam do meu
caminho ou me fazem parar.
Farei isto e aquilo, tudo que pode servir a me conduzir e adiantar no
caminho do céu.
121
Da alma que delibera a escolha entre o Céu e o Inferno
o começo desta meditação imagina que estás numa vasta região com
. o teu anjo da guarda, mais ou menos como Tobias, o jovem que
. viajava em companhia do arcanjo Rafael, e que ele, abrindo o céu
ante teus olhos, te mostra a beleza e glória dessa mansão, ao mesmo tempo que
faz aparecer o inferno debaixo de teus pés.
Feita esta suposição, de joelhos, como em presença do teu bom anjo,
considera que na realidade te achas neste caminho entre o céu e o inferno e que
um e outro estão abertos para te receber, conforme a escolha que fizeres. Mas
pondera atentamente que a escolha que pode fazer-se agora, nesta vida, perdura
eternamente na outra.
Com a escolha que fizeres conformar-se-á a providência de Deus por ti ou
usando de misericórdia para te receber no céu ou de justiça para te precipitar no
inferno; entretanto, é mais que certo que Deus, por sua bondade, quer
sinceramente que escolhas a eternidade de delicias e que teu bom anjo. quer te
conduzir para lá com todas as suas forcas, mostrando-te da parte de Deus os
meios absolutamente necessários para merecê-la.
Escuta atentamente as vozes interiores que vêm do céu convidar-te a ir
para lá. Vem, alma querida — diz Jesus Cristo — que amei mais do que o meu
sangue; estendo-te os meus braços, para te receber no lugar das imortais
delícias do meu amor. Vinde — diz-nos a Santíssima Virgem — não desprezeis
a voz e o sangue de meu Filho e os desejos que tenho de vossa salvação, e os
pedidos que lhe faço para vos obter as graças necessárias. Vem — dizem-te os
santos, que só desejam a união do teu coração com o deles, — para louvar
eternamente a Deus; vem, o caminho do céu não é tão difícil como o mundo
pensa. Nós o vencemos e eis-nos no termo: enceta-o, mas com coragem, e
verás que, por um caminho incomparavelmente mais suave e feliz do que o do
mundo, chegarás ao auge da glória e da felicidade.
122
Escolha
Ó detestável inferno, eu te aborreço com todos os teus tormentos e com
tua tremenda eternidade. Detesto em especial essas blasfêmias horríveis e
maldições diabólicas que vomitas eternamente contra meu Deus. Minha alma
foi criada para o céu e é para aí que me leva o anelo de meu coração; sim,
paraíso de delícias, mansão divina da felicidade e da glória eterna, é entre os
teus tabernáculos santos e ditosos que escolho hoje para sempre e
irrevogavelmente a minha morada. Eu vos bendigo, meu Deus, aceitando esta
dádiva que vos aprouve fazer-me. Ó Jesus, meu Salvador, aceito com todo o
reconhecimento de que sou capaz a honra e graça que me fazeis, de querer
amar-me eternamente; reconheço que sois vós que me adquiristes estes direitos
sobre o céu; sim, fostes vós que me preparastes um lugar na Jerusalém celeste e
nenhuma das felicidades dessa pátria de gozos reputo igual àquela de vos amar
e glorificar eternamente.
Coloca-te debaixo da proteção da Santíssima Virgem e dos santos;
promete-lhes de os servir fielmente, para que te ajudem a conseguir esse céu,
onde te esperam; estende as mãos a teu bom anjo, suplicando-lhe que te
conduza para lá; anima tua alma a perseverar constantemente nesta escolha.
123
Da deliberação entre a Vida Mundana e a Vida Devota
magina ainda uma vez que estás numa vasta região, que vês à tua
. esquerda o príncipe das trevas, assentado num trono muito alto e
. rodeado duma multidão de demônios, e que descobres ao redor desta
corte infernal muitos pecadores e pecadoras, que, dominados do espírito do
mundo, lhe rendem as suas homenagens. Observa com atenção todos os
desventurados vassalos desse rei abominável; considera como uns estão fora de
si, levados pelo espírito da cólera, da raiva e da vingança, que os torna furiosos,
e como outros, dominados do espírito da preguiça, só se ocupam de
frivolidades e vaidades; aqueles, embebidos no espírito da intemperança,
igualam-se a loucos e a brutos, estes, empavesados no espírito do orgulho,
tornam-se homens violentos e insuportáveis; alguns, possuídos do espírito de
inveja, consomem-se pesarosos e tristes, muitos são corrompidos até à
podridão, pelo espírito da impureza, e muitos outros, irrequietos pelo espírito
da avareza, perturbam-se pela cobiça de riquezas. Considera como estão aí sem
repouso e sem ordem, olha até que ponto se desprezam mutuamente, quanto se
odeiam, se perseguem, se dilaceram, se destroem, se matam. Eis ai, enfim, a
república do mundo, tiranizada por este rei maldito: quão infeliz e digna de
compaixão!
Considera à tua direita a Jesus Cristo crucificado, que, com uma ternura
inexprimível de compaixão e amor, apresenta a seu Pai as suas orações e o seu
sangue, para obter a liberdade destes infelizes escravos, e que os convida a
romper seus laços e a vir para o seu lado. Mas, principalmente, para, ao
contemplar estes numerosos grupos de devotos e devotas que com os anjos
estão em torno dele. Contempla a beleza do reino da devoção; admira tantas e
tantas pessoas de ambos os sexos, cujas almas são puras e cândidas como
lírios, tantas e tantas outras a quem a morte dum marido ou duma mulher
tornou de novo livres em seu amor e que se consagram a Deus pela
mortificação, caridade e humildade, c outras tantas, por fim, que governam a
sua família no culto do verdadeiro Deus, unindo a posse dos bens com o
desprendimento do coração, os cuidados da vida com os da alma, o amor que
reciprocamente se prometeram com o amor a Deus, e o respeito devido com
uma doce familiaridade. Presta atenção, nesta feliz companhia dos servos e das
servas de Deus, à felicidade do seu estado, a esta perfeita tranquilidade da
alma, a esta suavidade de espírito, a esta vivacidade de sentimentos; amam-se
com um amor puro e santo; alegram-se duma alegria inalterável, mas ao
124
mesmo tempo caritativa e regrada. Mesmo aqueles ou aquelas que sentem
alguma aflição não se inquietam de todo com isso ou apenas de leve e não
perdem a paz do coração. Todos eles têm assim os olhos presos em Jesus
Cristo, que anseiam por ter no coração, e ele mesmo desce, por assim dizer,
com os seus próprios olhos e com o seu Coração, até ao fundo de suas almas,
para as iluminar, fortificar e consolar.
Pois bem, Filotéia, já há tempo que, levada pela graça, abandonaste a
Satanás com os seus sequazes, pelas tuas boas resoluções; mas ainda não
tiveste ânimo de te lançar aos pés de Jesus e Ele te alistar no número dos seus
servos fiéis. Até aqui estiveste como que no meio de dois partidos; hoje, por
fim, te deves decidir.
A Santíssima Virgem, São José, São Luis, Santa Mônica e tantos mil
outros: que no meio do mundo formaram o reino de Jesus Cristo, te convidam a
segui-los. Dá ouvidos principalmente a Jesus, que te chamou pelo teu próprio
nome e te diz: Vem, minha alma querida, vem, e eu te coroarei de glória.
Escolha
Ó mundo enganador, eu te aborreço a ti e a teus seguidores. Jamais me
hão de enxergar debaixo do teu jugo; para sempre reconheço a tua insensatez e
digo adeus a tuas vaidades. E a ti, Satanás, espírito infernal, abominável rei do
orgulho e da infelicidade, eu te renuncio para sempre, com todas as tuas
pompas .fúteis, e detesto tuas obras.
É para vós, doce e amantíssimo Jesus, Rei da bem-aventurança e da
glória imortal, a quem hoje me volvo. Eu me lanço a vossos pés e os abraço
com toda a minha alma, eu vos adoro de todo o meu coração, eu vos escolho
para meu Rei e me submeto inteiramente a vossas santas leis. Tudo aquilo que
eu tenho vos ofereço em sacrifício universal e irrevogável, que pretendo,
mediante a vossa graça, manter toda a minha vida com uma fidelidade
inviolável.
Ó Virgem Santíssima, permiti que vos escolha hoje por guia; ponho-me
sob vossa proteção, devotando-vos um singular respeito e uma devoção toda
especial.
Ó meu santo anjo, apresentai-me aos santos e às santas; não me
abandoneis antes de me fazerdes entrar em vossa feliz companhia.
Só então, renovando e confirmando de dia em dia esta escolha, que agora
faço, exclamarei eternamente, a exemplo vosso; Viva Jesus! Viva Jesus!
125
Retrato de um homem que acaba de expirar
Pulvis es et in pulverem reverteris – És pó e em pó te hás de tornar (Gn 3, 19).
Afetos e súplicas
Agradeço-vos, meu Jesus Redentor, o não me terdes deixado morrer
quando incorrera no vosso desagrado! Há quantos anos já, mereci estar no
inferno! Se eu tivesse morrido naquele dia, naquela noite, que teria sido de
mim por toda a eternidade? Senhor, dou-vos graças por esse benefício. Aceito
minha morte em satisfação de meus pecados e aceito-a tal qual me quiserdes
enviar; mas, já que haveis esperado até esta hora, esperai mais um pouco ainda.
Dai-me tempo de chorar as ofensas que vos fiz, antes que chegue o dia em que
tereis de julgar-me.
Não quero resistir, por mais tempo, ao vosso chamado. Talvez, estas
palavras que acabo de ler, sejam para mim vosso último convite! Confesso que
não mereço misericórdia. Tantas vezes me tendes perdoado, e eu, ingrato,
tornei a vos ofender! Senhor, já que não sabeis desprezar nenhum coração que
se humilha e se arrepende (Sl 50, 19), eis aqui um traidor, que arrependido
recorre a vós! Por piedade, não me repilais de vossa presença (Sl 50, 13). Vós
mesmos dissestes: “aqueles que vem a mim, não o desprezarei” (Jo 6, 37). É
verdade que vos ofendi mais que os outros, porque mais que os outros fui
favorecido por vossa luz e vossa graça. Mas anima-me o sangue que por mm
derramastes, e me fez esperar o perdão se me arrepender sinceramente. Sim,
Sumo Bem de minha alma, arrependo-me de todo o coração de vos ter
desprezado.
Perdoai-me e concedei-me a graça de vos amar para o futuro. Basta de
ofensas. Não quero, meu Jesus, empregar o resto de minha vida em
injuriar-vos; quero unicamente empregá-la em chorar sem cessar os ultrajes
127
que vos fiz, e em amar-vos de todo o coração. Ó Deus, digno de amor infinito!
Ó Maria, minha esperança, rogai a Jesus por mim!
Vaidade do Mundo
“Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder sua alma?” (Mt
16,26)
128
mais adequados, os médicos mais afamados, os melhores remédios, o clima
mais saudável… e, entretanto, quão descuidados são para a alma!… E, no
entanto, é certo que a saúde, as honrarias e as riquezas devem acabar-se um dia,
ao passo que a alma, imortal, não tem fim.
“Observemos — disse Santo Agostinho — quanto sofre o homem pelas
coisas que ama desordenadamente”.
Quanto não sofrem os vingativos, ladrões e licenciosos para atingir seus
malvados desígnios? E para o bem da alma nada querem sofrer. Ó Deus! À luz
do círio que na hora da morte se acende, naquele momento de grandes
verdades, os mundanos reconhecem e confessam sua grande loucura. Então
desejariam ter renunciado ao mundo e levado vida santa.
O Pontífice Leão XI disse na hora da morte:
“Em vez de ser Papa, melhor fora para mim ter sido porteiro no meu
convento”.
Honório III, também Pontífice, exclamou ao morrer:
“Melhor teria feito, se ficasse na cozinha de minha comunidade para
lavar a louça”.
Filipe II, rei de Espanha, chamou seu filho na hora da morte, e, depois de
afastar a roupa, lhe mostrou o peito roído de vermes, dizendo:
“Vê, príncipe, como se morre, e como se acabam as grandezas do
mundo”.
Depois exclamou:
“Por que não fui eu, em vez de monarca, simples frade leigo de qualquer
ordem!”
Mandou depois que lhe pusessem ao pescoço uma cruz de madeira; e
tendo disposto todas as coisas para sua morte, disse a seu herdeiro:
“Quis, meu filho, que estivesses presente a este ato, para que visses
como, no fim da vida, o mundo trata ainda os próprios reis. Sua morte é igual à
dos mais pobres da terra. Aquele que melhor tiver vivido, esse é que achará
junto de Deus mais alto favor”.
E este mesmo filho, que foi depois Filipe III, ao morrer com apenas anos
de idade, disse:
“Atendei, meus súditos, a que no meu necrológio somente se fale do
espetáculo que tendes presente. Dizei que na morte de nada serve o título de
rei, a não ser para sentir-se maior tormento de o haver sido… Oxalá, em vez de
ser rei, tivesse vivido em um deserto servindo a Deus!… Ir-me-ia agora
apresentar com mais confiança entre seu tribunal, e não correria tamanho risco
de me condenar!…”
129
De que valem, porém, tais desejos no transe da morte, senão para maior
desespero e pena de quem não amou a Deus durante a vida? Dizia, por isto,
Santa Teresa: “Não se deve fazer caso das coisas que acabam com a vida. A
verdadeira vida consiste em viver de modo que nada se tenha a recear da
morte…” Portanto, se desejamos compreender o que valem os bens da terra,
consideremo-los do leito da morte e digamos logo: Aquelas riquezas, estas
honras, estes prazeres, se acabarão um dia. É necessário, assim, que
procuremos santificar-nos e enriquecer-nos somente dos bens únicos que hão
de acompanhar-nos sempre e que constituirão nossa dita por toda a eternidade.
Afetos e súplicas
Ah, meu Redentor!… Sofrestes tantos sacrifícios e tantas ignomínias por
meu amor, e eu amei tanto os prazeres e as vaidades do mundo, que por sua
causa fui levado a calcar aos pés inúmeras vezes a vossa graça. Mas, ainda que
vos desprezasse, não deixáveis de me procurar; por isso, ó meu Jesus, não
posso temer que me abandonareis agora que vos procuro e amo de todo o
coração, e me dói mais de vos ter ofendido que se tivesse sofrido qualquer
outro mal. Ó Deus de minha alma, não quero tornar a ofender-vos nem nas
coisas mínimas.
Fazei-me conhecer aquilo que vos desagrada e que não o pratique por
nada deste mundo. Fazei que saiba o que vos é agradável e o ponha em
execução.
Quero amar-vos verdadeiramente; e por vós, Senhor, aceitarei
gostosamente todos os sofrimentos e todas as cruzes que me vierem. Dai-me a
resignação de que necessito. Queimai, cortai… Castigai-me nesta vida, a fim
de que na outra possa amar-vos eternamente.
130
Oração para depois da santa comunhão
obre todas as virtudes, dá-me, Senhor, graça, para que eu te ame com
. todo o meu coração, com toda a minha alma, com todas as minhas
. forças e com todas as minhas entranhas, assim como o mandas. Ó
toda a minha esperança, toda a minha glória, todo o meu refúgio e alegria; Oh!
O mais amado dos amados! Ó esposo florido, esposo suave, esposo melífluo! Ó
doçura de meu coração! Ó vida de minha alma e descanso alegre de meu
espírito! Ó belo e claro dia da eternidade, serena luz de minhas entranhas e
paraíso florido de meu coração! Ó amável princípio meu e suma suficiência
minha!
Prepara, Deus meu, prepara, Senhor, em mim uma agradável morada para
ti, a ftm de que, segundo a promessa de tua santa. palavra, venhas a mim e em
mim repouses. Mortifica em mim tudo o que aos teus olhos desagrada e faz-me
homem segundo o teu coração. Fere, Senhor, o mais íntimo de minha alma com
as setas de teu amor, e embriaga-a com o vinho da tua perfeita caridade. Oh!
Quando será isto? Quando te aprazerei em todas as coisas? Quando es tará
morto tudo o que em mim há contrário a ti? Quando serei de todo teu? Quando
deixarei de ser meu? Quando coisa alguma fora de ti viverá em mim? Quando
ardentissimamente te amarei? Quando me abrasará todo a chama de teu amor?
Quando estarei todo derretido e traspassado com tua eficacíssima suavidade?
Quando abrirás a este pobre mendigo e lhe descobrirás o belíssimo Reino teu
que está dentro de mim, o qual és tu com todas as tuas riquezas? Quando me
arrebatarás e afogarás e transportarás e esconderás em ti, onde eu nunca mais
apareça? Quando, tirados todos os impedimentos e estorvos, me farás um só
espírito contigo, para que já nunca possa eu apartar-me de ti?
Ó amado, amado, amado de minha alma! Ó doçura, doçura de meu
coração! Ouve-me, Senhor, não por meus merecimentos, senão por tua infinita
bondade. Ensina-me, ilumina-me, dirige-me e ajuda-me em todas as coisas,
para que nenhuma coisa se faça nem diga, senão o que a teus olhos for
agradável. Ó Deus meu, meu amado, minhas entranhas, bem de minha alma! Ó
doce amor meu! Ó meu grande deleite! Ó fortaleza minha, vale-me! Ó minha
luz, guia-me!
Ó Deus de minhas entranhas! Por que não te dás ao pobre? Enches os
céus e a terra e meu coração deixas vazio! Pois que vestes os lírios do campo,
preparas de comer às avezinhas e manténs os vermes, por que te esqueces de
mim, pois a todos esqueço por ti? Tarde te conheci, bondade infinita! Tarde te
amei, beleza tão antiga e tão nova! Triste do tempo em que não te amei! Triste
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de mim, pois não te conhecia! Cego de mim, que não te via! Estavas dentro de
mim e eu andava a buscar-te fora! Pois ainda que tarde te ache, não permitas,
Senhor, por tua divina clemência, que jamais eu te deixe.
E porque uma das coisas que mais te agradam e mais ferem o teu coração
é ter olhos para te saber olhar, dai-me, Senhor, esses olhos com que eu te olhe;
convém saber: olhos de pomba simples; olhos castos e pudorosos; olhos
humildes e amorosos; olhos devotos e chorosos; olhos atentos e discretos, para
entender a tua vontade e cumpri-la, para que, olhando-te eu com esses olhos,
seja por ti olhado com aqueles olhos com que olhaste a S. Pedro, quando o
fizeste chorar o seu pecado; com aqueles olhos com que olhaste o filho
pródigo, quando o foste receber e lhe deste beijo de paz; com aqueles olhos
com que olhaste o publicano, quando ele não ousava alçar os olhos ao céu; com
aqueles olhos com que olhaste Madalena, quando ela te lavava os pés com as
lágrimas dos seus; finalmente, com aqueles olhos com que olhaste a Esposa
dos Cânticos, quando lhe disseste: Bela és, amiga minha, bela és, teus olhos
são de pomba; para que, agradando-te dos olhos e formosura de minha alma,
lhe dês aqueles atavios de virtudes e graças com que sempre te pareça formosa.
Ó Altíssima, Clementíssima, Benigníssima Trindade, Pai, Filho, Espírito
Santo, um só Deus verdadeiro, ensina-me, dirige-me e ajuda-me, Senhor, em
tudo! Ó Pai Todo-Poderoso, pela grandeza de teu poder infinito, assenta e
confirma em ti a minha memória e enche-a de santos e devotos pensamentos!
Ó Filho Santíssimo, pela tua eterna sabedoria, clarifica meu entendimento e
adorna-o com o conhecimento da suma verdade e da minha extremada vileza!
Ó Espírito Santo, amor do Pai e do Filho, por tua incompreensível bondade,
traspassa a mim toda a tua vontade e incende-a com um tão grande fogo de
amor, que nenhumas águas o possam apagar! Ó Trindade Sagrada, único Deus
meu e todo o meu bem! Oh! Se eu pudesse louvar-te e amar-te como te louvam
e amam todos os anjos! Oh! Se eu tivesse o amor de todas as criaturas, de quão
boamente eu to daria e traspassaria a ti, posto que nem isto bastasse para te
amar como mereces! Só tu te podes dignamente amar e dignamente louvar,
porque só tu compreendes a tua incompreensível bondade e assim só tu a podes
amar quanto ela merece, de maneira que só nesse diviníssimo peito se guarda
justiça de amor.
Ó Maria, Maria, Maria, Virgem Santíssima, Mãe de Deus, Rainha do céu,
Senhora do mundo, Sacrário do Espírito Santo, Lírio de pureza, Rosa de
paciência, Paraíso de deleites, Espelho de castidade, Vaso de inocência! Roga
por este pobre desterrado e peregrino e parte com ele as sobras de tua
abundantíssima caridade. Ó vós, bem-aventurados santos e santas, vós,
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bem-aventurados espíritos, que assim ardeis no amor de vosso Criador e
assinaladamente vós, serafins, que abrasais os céus e a terra com vosso amor,
não desampareis este pobre e mísero coração, senão alimpai-o, como aos lábios
de Isaías, de todos os seus pecados, e abrasai-o com a chama desse vosso
ardentíssimo amor, para que só a este Senhor ele ame, a Ele só busque, nele só
repouse e more pelos séculos dos séculos. Amém.
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