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Ad gloriam Domini Nostri Jesu Christi

Sumário
Método 4
Antes da meditação 4
Atos preparatórios 5
1. Ponha-se na presença de Deus 5
2. Faça um ato de humildade 6
3. Pede luzes ao Espírito Santo, à Virgem Maria, ao Anjo da Guarda, e
aos teus santos de devoção. 6
Meditação 6
1. Imaginação 6
2. Considerações 7
3. Afetos e pedidos 7
4. Resoluções e propósitos 8
5. Conclusão 8
Após a meditação 8
1. Ramalhete espiritual 8
2. Silêncio e conservação 9
3. Preparação da próxima meditação 9
Conselhos 9
Resumo esquemático do método 11
● Preparação 11
● Meditação 11
● Conclusão 11
Meditações 12
Do lava pés 14
Da instituição do Santíssimo Sacramento 17
Da oração do Horto 20
Da prisão do Senhor 22
Da apresentação do Senhor ante o pontífice Caifás 25
Os trabalhos daquela noite e a negação de Pedro 27
Os açoites na coluna 30
Da coroação de espinhos e do Ecce Homo 32
De como o Salvador carregou a cruz às costas 35
Do mistério da cruz e as sete palavras que o Senhor falou 38
1
Da lançada que se deu no Salvador e o descimento da cruz, com o pranto de
Nossa Senhora e ofício da sepultura 42
Da descida do Senhor ao limbo e o aparecimento a Nossa Senhora e a S.
Madalena e aos discípulos. E depois o mistério da sua gloriosa ascensão 46
Da memória dos pecados e do conhecimento de ti mesmo 49
Das misérias da vida humana 53
Da morte 57
Do juízo final 61
Das penas do inferno 64
Da glória dos bem-aventurados 67
Dos benefícios divinos 69
Jesus entra em Jerusalém 71
O conselho dos Juízes e a traição de Judas 73
Última ceia de Jesus Cristo com seus discípulos 74
Da instituição do Santíssimo Sacramento 76
Jesus ora no horto e sua sangue 77
Jesus é preso e amarrado 79
Jesus é apresentado aos pontífices e por eles condenado à morte 81
Jesus diante de Pilatos, de Herodes e do povo 84
Jesus é flagelado numa coluna 86
Jesus é coroado de espinhos e tratado como rei de teatro 89
Pilatos mostra Jesus ao povo, dizendo: Ecce Homo! 90
Jesus é condenado por Pilatos 93
Jesus leva a cruz ao Calvário 94
Jesus é crucificado 97
Palavras de Jesus na cruz 101
Morte de Jesus 104
Da Criação do Homem 109
Do Fim do Homem 110
Dos benefícios de Deus 112
Dos pecados 113
Da Morte 115
Do Último Juízo 117
Do Inferno 119
Do Paraíso 120

2
Da alma que delibera a escolha entre o Céu e o Inferno 122
Da deliberação entre a Vida Mundana e a Vida Devota 124
Retrato de um homem que acaba de expirar 126
Vaidade do Mundo 128
Oração para depois da santa comunhão 131

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Método

Antes da meditação
● Reserve um horário para fazer a sua meditação. O melhor é que você a
faça bem cedo (na madrugada ou de manhãzinha); caso você não possa
fazê-la nesse horário, faça-a num outro tempo disponível.
● Se você não tem o hábito de meditar, pode começar com trinta minutos, e
aos poucos ir aumentando este tempo.
● Busque um lugar silencioso, onde você possa estar a sós com Deus.
Muito bom seria se fosse em uma igreja, porque aí Jesus está
particularmente presente.
● Procure se acalmar exterior e interiormente, recolhendo-se no íntimo de
sua alma.

“Quando rezares, entra no teu quarto e, fechada a porta, roga ao teu Pai que está
no escondimento” (Mt 6,6).

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Atos preparatórios

Essa preparação deve ser simples e breve.

1. Ponha-se na presença de Deus

Para isso, você pode pensar que Deus está presente no profundo da sua
alma, e que Ele a vivifica, anima e sustenta por Sua divina presença. Este
pensamento incitará no seu coração um profundo respeito por Deus, que está
tão intimamente presente no seu interior.

“O verbo, Filho de Deus, juntamente com o Pai e o Espírito Santo, está


essencial e presencialmente escondido no íntimo ser da alma. Para achá-lo,
deves entrar em íntimo recolhimento dentro de ti mesmo, considerando todas
as coisas como se não existissem. (São João da Cruz, C.E. I,6).

“Eis que estavas dentro e eu fora” (Santo Agostinho).

Para fazer esse recolhimento, você pode, se achar oportuno, rezar a


oração abaixo. Reze-a demoradamente, com devoção, e atentando-se a cada
palavra.

“Meu Senhor e meu Deus, creio firmemente que estás aqui, que me vês, que
me ouves, adoro-te com profunda reverência, peço-te perdão pelos meus
pecados e graça para fazer com fruto este tempo de oração. Minha mãe
imaculada, São José, meu pai e senhor, meu anjo da guarda, intercedei por
mim.” (São Josemaría Escrivá).

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2. Faça um ato de humildade

Prostrado diante de Deus, e arrependendo-se de seus pecados,


reconheça-se indigno de se dirigir à altíssima Majestade. Ao mesmo tempo,
confie que será socorrido pela infinita Misericórdia divina.

"Falarei ao meu senhor, ainda que eu seja pó e cinza”. (Gn, 18, 27).

3. Peça luzes ao Espírito Santo, à Virgem Maria, ao Anjo da Guarda, e


aos teus santos de devoção.

Vinde Espírito Santo…


Ave Maria…

Meditação

1. Imaginação

Tendo previamente escolhido o mistério a ser meditado, imagine-o como


se você estivesse presente nele. Para isso, você pode imaginar o lugar, as
pessoas, as ações, as palavras, e todas as outras coisas que fazem parte da cena.
É muito importante que você imagine os detalhes da cena, pois isto ajudará a
manter sua atenção fixa no tema a ser meditado.
Para bem fazer isso, você pode estimular os seus sentidos externos, como,
por exemplo, ver com os olhos corporais uma foto da cena que está tentando
meditar; ou assistindo a algum vídeo que retrate aquela cena. Fazendo isso, as
imagens ficarão bem vivas na memória e será mais fácil estimular a
imaginação.
Nada impede que você reze olhando diretamente a um vídeo, ou a uma
imagem, ou a um crucifixo, alternando esses olhares com momentos em que
fecha os olhos e pensa, e depois novamente os abre, e assim por diante.

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2. Considerações

Procure encontrar, no mistério meditado, as verdades de fé capazes de


elevar a sua alma a Deus. Normalmente, isso se faz por meio da formulação de
perguntas, como: O que está acontecendo nessa cena? Quem são estes? e da
tentativa de respondê-las. Por exemplo: Se você quiser meditar sobre a morte e
sobre as vaidades do mundo, você pode imaginar uma pessoa bela e abastada,
mas morta num caixão, decompondo-se aos poucos em comida para vermes.
Poderia, então, questionar-se: “De que adiantou toda essa beleza física? De
que adiantou tudo quanto gastou com roupas caras e jóias? De que adiantou a
preocupação com a opinião alheia?”.
Se você achar gosto em alguma dessas considerações, demore-se nela; se
não achar, depois de ter-lhe aplicado algum tempo, siga para a próxima.

3. Afetos e pedidos

Na meditação, a graça de Deus não só ilumina a nossa inteligência, mas


também provoca certos movimentos na nossa vontade. Por isso, quando Deus
comover o seu coração, você deve se abandonar a estes movimentos da graça.
Às vezes, o seu coração foi tocado de uma profunda dor por ter ofendido a
Deus: nesse caso, você pode simplesmente chorar os seus pecados, se for esta a
inspiração da graça; ou pedir perdão por eles, propondo a partir dali amar a
Deus sobre todas as coisas. Talvez o seu coração se comoveu com a
misericórdia de Deus, que te deu a Virgem Maria por Mãe para proteger-te e
conduzir-te ao céu: neste caso, você pode simplesmente ficar em silêncio e
saborear essa verdade: — A Mãe de Deus é realmente minha Mãe! Minha
Mãe… minha Mãe…

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4. Resoluções e propósitos

Proponha-se alguma mudança na sua vida com base naquilo que você
meditou. Por exemplo: — Meditei sobre o perdão dado por Jesus aos seus
algozes. Tendo isto em vista, farei o seguinte propósito: perdoarei meus
inimigos. Portanto, hoje mesmo conversarei com eles e lhes direi que os
perdoo; de agora em diante, farei isto e aquilo para acalmar o gênio, etc.
Se você não se esforçar para cumprir o seu propósito durante o dia, pouco
fruto tirará da meditação, que se converterá num mero estudo de temas
religiosos.

5. Conclusão

● Agradeça pelo conhecimento, afetos e propósitos, que te foram inspirados


na oração;
● Suplique as graças necessárias para conseguir realizar o propósito
estabelecido, além das virtudes que lhe faltam, e a perseverança na vida
de oração;
● Reze o Pai Nosso, a Ave Maria, ou alguma outra oração.

Após a meditação

1. Ramalhete espiritual

Escolha um ou dois pontos que mais o impressionaram ou comoveram na


meditação, para se lembrar deles durante o dia e se conservar nos bons
propósitos.

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2. Silêncio e conservação

Após a meditação, você não se deve distrair e dissipar imediatamente.


Permaneça por algum tempo em silêncio, conservando na mente os
pensamentos e afetos meditados. Passe suavemente da oração ao trabalho, de
modo que o seu espírito não se perturbe; pois, querendo Deus igualmente uma
e outra coisa, é necessário passar de uma a outra com uma devoção
inteiramente igual e com uma submissão completa à vontade de Deus.

3. Preparação da próxima meditação

Prepare a meditação que você fará no dia seguinte. Leia antes o trecho,
sublinhe os pontos que mais lhe saltam aos olhos, remova os que não lhe farão
bem. Se for necessário, utilize imagens (fotografias, vídeos) para o auxiliarem
na meditação do tema.

Conselhos

● Crie o hábito de admirar imagens e músicas devotas, pois estas coisas lhe
servirão de repertório para o imaginário no momento da meditação.
Sobretudo, habitue-se a fazer leitura espiritual. Traga sempre consigo um
bom livro de devoção para ler por algum tempo todos os dias. Leia-o com
bastante atenção, como se um santo o tivesse enviado para lhe ensinar o
caminho do céu e encorajá-lo a trilhá-lo. Leia também a vida dos santos,
onde verá, como num espelho, o verdadeiro retrato da vida devota.

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Para ter acesso a mais imagens devotas e outros auxílios,
podes acessar este link ou QR code:

https://drive.google.com/drive/folders/1vdUN2-cDeTzpORr
e6tyhVR57H6HwRLTD?usp=sharing

● Se, em qualquer momento, o Espírito Santo o convidar a ir direto aos


afetos e pedidos, você deve esquecer a ordem do presente método, e
permanecer nesse afeto, excitando e comovendo a sua alma o quanto
puder. Nunca reprima os afetos que nascem em seu coração.

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Resumo esquemático do método

● Preparação
○ Ponha-se na presença de Deus;
○ Ato de humildade;
○ Petição de luzes;

● Meditação
○ Imaginação;
○ Considerações;
○ Afetos e pedidos;
○ Propósitos;

● Conclusão
○ Agradecimento;
○ Súplica;
○ Orações devotas.

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Meditações
Da Paixão e dos novíssimos
Retiradas dos livros de Luís de Granada, de Santo Afonso M. de Ligório e
de São Francisco de Sales

12
13
Do lava pés

onsidera, pois, ó minha alma, nesta ceia o teu doce e benigno Jesus e
. olha o exemplo inestimável de humildade que Ele aqui te dá,
. levantando-se da mesa e lavando os pés dos seus discípulos. Ó bom
Jesus! Que é isso que fazes? Ó doce Jesus! Por que tanto se humilha a tua
majestade? Que sentirias, alma minha, se visses ali a Deus ajoelhado ante os
pés dos homens e ante os pés de Judas? Ó cruel, como te não abranda o
coração essa tão grande humildade? Como não te rompe as entranhas essa
tamanha mansidão? Será possível que tenhas ordenado vender esse mansíssimo
Cordeiro? Será possível que não te tenhas agora compungido com este
exemplo? Ó brancas e belas mãos! Como podeis tocar pés tão sujos e
abomináveis? Ó mãos puríssimas! Como não tendes nojo de lavar os pés
enlameados nos caminhos e tratos do vosso sangue? Ó apóstolos bem
aventurados! Como não tremeis vendo essa tão grande humildade? Pedro, que
fazes? Porventura consentirás que o Senhor da Majestade te lave os pés?
Maravilhado e atônito, S. Pedro, como visse o Senhor ajoelhado diante dele,
começou a dizer: Tu, Senhor, a mim me lavas os pés? Não és o Filho de Deus
vivo? Não és o Criador do mundo, a beleza do céu, o paraíso dos anjos, o
remédio dos homens, o resplendor da glória do Pai, a fonte da sabedoria de
Deus nas alturas? Então me queres a mim lavar os pés? Tu, Senhor, de tanta
majestade e glória, queres ocupar-te em ofício de tamanha baixeza?
Considera também como, em acabando de lavar os pés, Ele os alimpa
com aquela sagrada toalha de que estava cingido; sobe mais acima com os
olhos da alma e verás ali representado o mistério da nossa Redenção. Olha
como aquela toalha recolheu em si toda a imundície dos pés sujos, eles assim
ficaram limpos, a toalha ficaria toda manchada e suja depois de feito este
ofício. Que coisa mais suja do que o homem concebido em pecado e que coisa
mais limpa e mais bela do que Cristo concebido do Espírito Santo? Alvo e
corado é meu amado (diz a Esposa), e escolhido entre milhares. Pois este tão
belo e limpo quis receber em si todas as manchas e fealdades de nossas almas,
e, deixando-as limpas e livres delas, ficou (como o vês) na cruz manchado e
afetado com elas.
Depois disto, considera aquelas palavras com que o Salvador deu fim a
esta história, dizendo: Exemplo vos dei para que como Eu o fiz assim o façais.
14
As quais palavras não só se hão de referir a este passo e exemplo de humildade,
senão também a todas as obras e vida de Cristo, porque ela é um perfeitíssimo
exemplar de todas as virtudes, especialmente da que neste lugar se nos
representa.

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Da instituição do Santíssimo Sacramento

ara entender alguma coisa deste mistério hás de pressupor que


. nenhuma língua criada pode declarar a grandeza do amor que
. Cristo tem à sua Esposa, a Igreja; e, por conseguinte, a cada uma
das almas que estão em graça, porque cada uma delas também é sua esposa.
Ora, querendo este Esposo dulcíssimo partir-se desta vida e ausentar-se de sua
Esposa, a Igreja (para que esta ausência não lhe fosse causa de esquecimento),
deixou-lhe por memorial este Santíssimo Sacramento (em que ficava Ele
mesmo), não querendo que entre Ele e ela houvesse outro penhor que
despertasse a sua memória, senão só Ele. Queria também o Esposo nesta
ausência tão longa deixar a sua Esposa, companhia para que não ficasse só; e
deixou-lhe a deste sacramento, onde fica Ele mesmo, que era a melhor
companhia que lhe podia deixar. Queria também então ir padecer morte pela
Esposa, redimi-la e enriquecê-la com o preço de seu sangue. E para que ela
pudesse (quando quisesse) gozar deste tesouro, deixou-lhe as chaves dele neste
Sacramento; porque (como diz S. Crisóstomo ), todas as vezes que nos
chegamos a ele, devemos pensar que chegamos a pôr a boca no lado de Cristo,
bebemos daquele precioso sangue, e nos fazemos participantes dele. Desejava,
outrossim, este celestial esposo ser amado de sua esposa com grande amor e
para isto ordenou este misterioso bocado, com tais palavras consagrado, que
quem dignamente o recebe logo é tocado e ferido deste amor.
Queria também assegurá-la e dar-lhe penhores daquela bem-aventurada
herança da glória, para que, com a esperança deste bem, passasse alegremente
todos os trabalhos e asperezas desta vida. Pois para que a esposa tivesse certa e
segura a esperança deste bem, deixou-lhe cá em penhor este tesouro inefável
que vale tanto como tudo o que lá se espera, para que ela não desconfiasse de
que Deus se lhe dará na glória, onde e ia viverá em espírito, pois não se lhe
negou neste vale de lágrimas, onde ela vive em carne.
Queria também na hora de sua morte fazer testamento e deixar à Esposa
alguma doação assinalada para seu remédio e deixou-lhe esta, que era a mais
preciosa e proveitosa que lhe pudesse deixar, pois nela se deixa a Deus. Queria,
17
finalmente, deixar às nossas almas suficiente provisão e alimento com que
vivessem, porque não tem a alma menor necessidade de seu próprio alimento
para viver vida espiritual que o corpo do seu para a vida corporaL E para isto
ordenou este tão sábio médico (o qual também tinha tomado o pulso da nossa
fraqueza) este sacramento, por isso o ordena em espécie de alimento, para que
a mesma espécie em que o instituiu nos declarasse o efeito que obrava e a
necessidade que nossas almas dele tinham, não menor do que a que os corpos
têm do seu próprio manjar.

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19
Da oração do Horto
onsidera, pois, primeiramente como, acabada aquela misteriosa Ceia,
. foi-se o Senhor com seus discípulos ao monte Olivete a fazer oração
. antes que entrasse na batalha de sua Paixão, para nos ensinar como em
todos os trabalhos e tentações desta vida temos sempre de recorrer à oração
como a uma sagrada âncora, por cuja virtude, ou nos será tirada a carga da
tribulação, ou se nos darão forças para levá-la, que é outra graça maior. Para
companhia deste caminho tomou Ele consigo aqueles três mais amados
discípulos, S. Pedro, S. Tiago e S. João , os quais haviam sido testemunhas de
sua gloriosa transfiguração, para que eles mesmos vissem quão diferente figura
tomava Ele agora por amor dos homens, Ele que tão glorioso se lhes havia
mostrado naquela visão. E para que entendessem não serem menores os
trabalhos interiores de sua alma que os que por fora começava a revelar,
disse-lhes aquelas tão dolorosas palavras: Triste está minha alma até à morte.
Esperai-me aqui, e velai comigo. Acabadas estas palavras, apartou-se o Senhor
dos discípulos coisa de um tiro de pedra, e, prostrado em terra com grandíssima
reverência, começou a sua oração, dizendo: Pai, se é possível trespassa de mim
este cálice, mas não se faça como eu quero, senão como tu. E, feita esta oração
três vezes, à terceira foi posto em tão grande agonia, que começou a suar gotas
de sangue, que iam por todo o seu sagrado Corpo fio a fio até cair em terra.
Considera, pois, o Senhor neste passo tão doloroso, olha como,
representando-se-lhe ali todos os tormentos que Ele havia de padecer,
apreendendo perfeitissimamente tão cruéis dores como se preparavam para o
mais delicado dos corpos, pondo-se-lhe diante todos os pecados do mundo
(pelos quais padecia) e o desagradecimento de tantas almas, que não haviam de
reconhecer este benefício, nem se aproveitar de tão grande e custoso remédio,
foi sua alma em tanta maneira angustiada, seus sentidos e carne delicadíssima
tão turbados, que todas as forças e elementos de seu corpo se destemperaram, e
a carne bendita abriu-se por todas as partes e deu lugar a que o sangue manasse
por toda ela em tanta abundância, que corresse até a terra. E, se tal estava a
carne, que só de ricochete padecia essas dores, que tal estaria a alma, que
diretamente as padecia?

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21
Da prisão do Senhor

lha depois como, acabada a oração, chegou aquele falso amigo com
. aquela infernal companhia, renunciado já o ofício do apostolado e feito
. chefe e capitão do exército de Satanás. Olha quão sem pejo se adiantou
ele primeiro que todos, e, chegado ao bom Mestre, o vendeu com beijo de falsa
paz. Naquela hora disse o Senhor aos que o vinham prender: Assim como o
ladrão, saístes a mim com espadas e lanças; e, havendo eu estado convosco
cada dia no templo, não estendestes as mãos sobre mim; mas esta é a vossa
hora e a do poder das trevas. Este é um mistério de grande admiração. Que
coisa de maior espanto do que ver o Filho de Deus tomar imagem, não somente
de pecador, senão também de condenado? Esta (diz Ele) é a vossa hora e a do
poder das trevas. Das quais palavras se infere que por aquela hora foi aquele
inocentíssimo Cordeiro entregue em poder dos príncipes das trevas, que são os
demônios, para que por meio de seus ministros executasse· nele todos os
tormentos e crueldades que quisessem. Pensa, pois, agora até onde por ti se
abaixou aquela Alteza Divina, pois chegou ao extremo de todos os males, que é
ser entregue em poder dos demônios. E porque a pena que teus pecados
mereciam era esta, Ele quis submeter-se a esta pena para que ficasses livre
dela.
Ditas essas palavras, arremeteu logo toda aquela alcatéia de lobos
famintos contra aquele manso Cordeiro, e uns o arrebatavam por uma parte,
outros por outra; cada um como podia. Oh! Quão desumanamente o tratariam,
quantas descortesias lhe diriam, quantos golpes e puxões lhe dariam, que de
gritos e vozes alçariam, como costumam fazer os vencedores quando se vêem
já com a presa! Tomam aquelas santas mãos, que pouco antes haviam obrado
tantas maravilhas, atam-nas mui fortemente com uns laços corrediços até lhe
esfolar a pele dos braços e até fazer-lhe rebentar o sangue e assim o levam
atado pelas ruas públicas com grande ignomínia. Olha-o muito bem qual vai
por este caminho desamparado de seus discípulos, acompanhado de seus
inimigos, a passo corrido, de fôlego acelerado, de cor mudada e de rosto já
afogueado e enrubescido com a pressa do caminhar.,E_cºntempla, em tal mau
trata­!lleo.to de sua pessoa, tanta serenidade em seu rosto, tanta gravidade em
seus olhos e aquele semblante divino que no meio de todas as descortesias do
mundo nunca pôde ser obscurecido.
22
Depois podes ir com o Senhor à casa de Anás, e olha como ali,
respondendo o Senhor cortesmente à pergunta que o pontífice lhe fez sobre
seus discípulos e doutrina, um daqueles malvados, que presentes estavam,
deu-lhe uma grande bofetada no rosto, dizendo: Assim respondes ao pontífice?.
Ao que o Salvador benignamente respondeu: Se mal falei, mostra-me em quê;
e, se bem, por que me feres? Olha, pois, aqui, ó minha alma, não somente a
mansidão desta resposta, mas também aquele divino rosto marcado e corado
com a força do golpe, aquela modéstia de olhos tão serenos e tão sem turbação
naquela afronta e aquela alma santíssima no interior tão humilde e tão
preparada para virar a outra face, se o verdugo o pedisse.

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Da apresentação do Senhor ante o pontífice Caifás

rimeiramente considera como da primeira casa de Anás levam o


. Senhor à do Pontífice Caifás onde será razão que o vás
. acompanhando, e aí verás eclipsada o sol de justiça e cuspido aquele
divino rosto em que desejam olhar os anjos. Porque, como o Salvador,
conjurado pelo nome do Padre a dizer quem era, respondesse a esta pergunta o
que convinha, aqueles que tão indignos eram de tão alta resposta, cegando-se
com o brilho de tamanha luz, voltaram-se contra Ele como cães raivosos e ali
descarregaram todas as suas iras e raivas. Ali todos à porfia lhe dão bofetões e
pescoções; ali cospem com suas infernais bocas naquele divino rosto; ali lhe
cobrem os olhos com um pano, dando-lhe bofetadas no rosto e brincam com
Ele, dizendo: Adivinha quem te bateu. Ó maravilhosa humildade e paciência do
Filho de Deus! Ó formosura dos anjos! Rosto era esse para cuspir nele? Para o
recanto mais desprezado costumam os homens virar o rosto quando querem
cuspir e em todo esse palácio não se achou outro lugar mais desprezado do que
teu rosto para cuspir nele? Como te não humilhas com este exemplo, tu que és
terra e cinza?

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26
Os trabalhos daquela noite e a negação de Pedro

epois disso, considera os trabalhos que o Salvador passou toda


. aquela noite dolorosa, porque os soldados que o guardavam
. escarneciam dele e tomavam como meio para vencer o sono da
noite o estar zombando e brincando com o Senhor da Majestade. Olha, pois, ó
minha alma, como teu dulcíssimo Esposo está posto como alvo às setas de
tantos golpes e bofetadas que ali lhe davam. Ó noite cruel! Ó noite
desassossegada, na qual, ó meu bom Jesus, não dormias, nem dormiam os que
tinham por descanso atormentar-te! A noite foi ordenada para que nela todas as
criaturas tomassem repouso e descansassem os sentidos e membros cansados
dos trabalhos do dia; e esta tomam àgora os maus para te atormentar todos os
membros e sentidos, ferindo- teu corpo, afligindo tiJ.a alma, atando tuas mãos,
esbofeteando o teu rosto, cuspindo o teu semblante, atormentando-te os
ouvidos, para que no tempo em que todos os membros costumam descansar,
todos eles em ti penassem e trabalhassem. Que matinas estas tão diferentes das
que naquela hora te cantariam os coros dos anjos no céu! Lá dizem: Santo,
santo; cá dizem: morra, morra, crucifica-o, crucifica-o. Ó anjos do paraíso, que
umas e outros vozes ouvis: que sentíeis em vendo tão maltratado na terra
Aquele a quem vós com tanta reverência tratais no céu? Que sentíeis em vendo
que Deus tais coisas padecia pelos próprios que tais coisas faziam? Quem
jamais ouviu tal maneira de caridade, que padeça alguém morte por livrar da
morte o mesmo que lha dá?
Cresceram sobre isto os trabalhos daquela noite dolorosa com a negação
de S. Pedro, aquele amigo tão familiar, aquele escolhido para ver a glória da
transfiguração, aquele entre todos honrado com o principado da Igreja; esse
primeiro que todos, não uma, senão três vezes, em presença do próprio Senhor,
jura e perjura que o não conhece, nem sabe quem Ele é. Ó Pedro, tão mau
homem é esse que aí está, que por tão grande vergonha tens o haveres sequer
conhecido? Olha que isso é condená-lo tu primeiro que os pontífices, pois dás a
entender que Ele seja pessoa tal, que tu mesmo te desonras de conhecê-lo.
POIS QUE MAIOR INJÚRIA PODE HAVER QUE ESSA? Virou-se então o
Salvador, e olhou para Pedro; vão-se-lhe os olhos trás aquela ovelha que se lhe
havia perdido. Ó vista de maravilhosa virtude! Ó vista calada, mas
grandemente significativa! Bem entendeu Pedro a linguagem e as vozes
27
daquela vista, pois as do galo não bastaram para despertá-lo, e estas sim. Mas
não somente falam, senão também obram os olhos de Cristo, e as lágrimas de
Pedro o manifestam, as quais não tanto dos olhos de Pedro quanto dos olhos de
Cristo manaram.

28
29
Os açoites na coluna

epois de todas estas injúrias, considera os açoites que o Salvador


. padeceu na coluna; porque o juiz, visto não poder aplacar a fúria
. daquelas feras infernais, determinou fazer nele um tão famoso
castigo que bastasse para satisfazer a raiva daqueles corações tão cruéis, para
que, contentes com isto, deixassem de pedir a morte dele. Entra pois agora,
minha alma, com o espírito, no pretório de Pilatos, e leva contigo preparadas as
lágrimas, que bem mister serão elas para o que ali verás e ouvirás. Olha como
aqueles cruéis e vis carniceiros despem o Salvador de suas vestiduras com tanta
desumanidade e como Ele se deixa despir delas com tanta humildade, sem abrir
a boca, nem responder palavra a tantas descortesias como ali lhe fariam. Olha
como depois atam aquele santo corpo a uma coluna para que assim o pudessem
ferir a seu bel-prazer onde e como mais quisessem. Olha quão sozinho estava o
Senhor dos anjos entre tão cruéis verdugos, sem ter de sua parte nem
padrinhos, nem veladores que fizessem por Ele, nem sequer olhos que dele se
compadecessem. Olha como logo começam eles com grandíssima crueldade a
descarregar os seus látegos e disciplinas sobre aquelas carnes delicadíssimas e
como se ajuntam açoites sobre açoites, chagas sobre chagas e feridas sobre
feridas. Ali logo verias cingir-se aquele sacratíssimo corpo de equimoses,
rasgar-se a pele, rebentar o sangue e correr a fios por todas as partes. Mas,
sobre tudo isto, que não seria ver aquela tão grande chaga que no meio das
costas estaria aberta, onde principalmente incidiam os golpes! Considera
depois como, acabados os açoites, o Senhor se cobriria, e como andaria por
todo aquele pretório buscando suas vestes em presença daqueles cruéis
carniceiros, sem que ninguém o servisse, nem ajudasse, nem provesse de
nenhum lavatório, nem refrigério dos que costumam dar-se aos que assim
ficam chagados. Todas estas são coisas dignas de grande sentimento,
agradecimento e consideração.

30
31
Da coroação de espinhos e do Ecce Homo

consideração destes passos tão dolorosos convida-nos a Esposa no


. livro dos Cânticos, por estas palavras: Saí, filhas de Sião, e olhai o
. rei Salomão com a coroa com que o coroou sua mãe no dia do seu
desposório e no dia da alegria do seu coração.
Ó minha alma, que fazes? Ó meu coração, que pensas? Minha língua,
como emudeceste! Ó mui dulcíssimo Salvador meu! Quando abro os olhos e
olho este retábulo tão doloroso que aqui se me põe diante, o coração se me
parte de dor. Pois como já não bastavam, Senhor, os açoites passados, e a morte
vindoura, e tanto sangue derramado, senão que por força haviam os espinhos
de tirar o sangue da cabeça que os açoites perdoaram? Pois para que sintas,
minha alma, algo deste passo tão doloroso, põe primeiro ante teus olhos a
imagem antiga deste Senhor, a grande excelência de suas virtudes e depois
toma a olhar da maneira como aqui está. Olha a grandeza da sua beleza, a
modéstia dos seus olhos, a doçura de suas palavras, a sua autoridade, a sua
mansidão, a sua serenidade e aquele aspecto seu de tanta veneração.
E, depois que assim o houveres olhado e te houveres deleitado de ver tão
acabada figura, volve os olhos para olhá-lo tal qual aqui o vês, coberto com
aquela púrpura de escárnio, com a cana por cetro real na mão, e aquele horrível
diadema na cabeça, aqueles olhos mortais, aquele rosto defunto e aquela figura
toda manchada com o sangue e afeada com as salivas, que por todo o rosto
estavam estendidas. Olha-o todo por dentro e por fora, o coração atravessado
com dores, o corpo cheio de chagas, desamparado de seus discípulos,
perseguido dos judeus, escarnecido dos soldados, desprezado dos pontífices,
desdenhado do rei iníquo, acusado injustamente e desamparado de todo favor
humano. E não penses isto como coisa já passada, mas como presente; não
como dor alheia, mas como tua própria. Põe-te tu mesmo no lugar do que
padece e olha o que sentirias se numa parte tão sensível como é a cabeça te
fincassem muitos e mui agudos espinhos que penetrassem até os ossos: e, que
digo? Espinhos? Uma só picada de alfinete que fosse, a custo podê-la-ias
sofrer. Pois então que não sentiria aquela delicadíssima cabeça com esta
espécie de tormentos?
Acabada a coroação e escárnios do Salvador, tomou-o o juiz pela mão,
assim como estava, tão maltratado, e, trazendo-o à vista do povo furioso, lhes
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disse: Ecce Homo. Como se dissesse: Se por inveja lhe procuráveis a morte;
vede-o aqui tal que não está para se llie ter inveja, senão dó. Temíeis que Ele se
fizesse rei, vede-o aqui tão desfigurado, que mal parece homem. Destas mãos
atadas, que é que temeis? A este homem açoitado, que mais lhe demandais?
Por aqui podes entender, minha alma, que tal seria então o Salvador, pois
o juiz acreditou que bastava a figura que ali trazia para quebrantar o coração de
tais inimigos. Em o que bem podes entender quão mau caso seja não ter um
cristão compaixão das dores de Cristo, pois elas eram tais que bastavam
(segundo o juiz acreditou) para abrandar uns tão feros corações.

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De como o Salvador carregou a cruz às costas

ois bem: como Pilatos visse que não bastavam as justiças que se
. haviam feito naquele santíssimo Cordeiro para amansar o furor
. de seus inimigos, entrou no pretório, e assentou-se no tribunal para
dar final sentença naquela causa. Já estava às portas preparada a cruz, já
assomava pelo alto aquela temerosa bandeira, ameaçando a cabeça do
Salvador. Dada, pois, já e promulgada a sentença cruel, acrescentam os
inimigos uma crueldade a outra, que foi carregar sobre aquelas costas, tão
moídas e dilaceradas com os açoites passados, o madeiro da cruz. Com tudo
isto, não recusou o piedoso Senhor esta carga, na qual iam todos os nossos
pecados, antes a abraçou com suma caridade e obediência por nosso amor.
Caminha, pois, o inocente lsaac para o lugar do sacrifício com aquela
carga tão pesada nos ombros tão fracos, seguindo-o muita gente e muitas
piedosas mulheres, que com suas lágrimas o acompanhavam. Quem não havia
de derramar lágrimas vendo o Rei dos anjos caminhar passo a passo com
aquela carga tão pesada, tremendo-lhe os joelhos, inclinado o corpo, os olhos
amortecidos, o rosto ensangüentado, com aquela grinalda na cabeça e com
aqueles tão vergonhosos clamores e pregões que desferiam contra Ele.
Entretanto, minha alma, aparta um pouco os olhos deste cruel espetáculo
e, com passos apressados, com angustiados gemidos, com olhos chorosos,
caminha para o palácio da Virgem, e quando a ela chegares, prostrado ante seus
pés, começa a lhe dizer com dolorosa voz: Ó Senhor dos anjos, Rainha do céu,
porta do paraíso, advogada do mundo, refúgio dos pecadores, salvação dos
justos, alegria dos santos, mestra das virtudes, espelho de limpeza, título de
castidade, legado de paciência e súmula de toda perfeição. Ai de mim, Senhora
minha! Para que se aguardou minha vista para esta hora? Como posso eu
viver tendo visto com meus olhos o que vi? Para que são mais palavras? Deixo
teu unigênito Filho e meu Senhor em mãos de seus inimigos com uma cruz às
costas para nela ser justiçado.
Que sentido pode aqui alcançar até onde chegou esta dor à Virgem?
Desfaleceu-lhe aqui a alma, e cobriu-se-lhe o rosto e todos os seus virginais
membros de um suor de morte, que bastaria para lhe acabar a vida, se a
dispensação divina não a guardasse para maior trabalho e também para maior
coroa.
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Caminha, pois, a Virgem em busca do Filho, dando-lhe o desejo de ver as
forças que a dor lhe tirava. Ouve desde longe o ruído das armas, o tropel das
gentes e o clamor dos pregões com que o iam apregoando. Logo vê brilharem
os ferros das lanças e alabardas que assomavam pelo alto; lá pelo caminho as
gotas e o rastro do sangue, que bastavam já para lhe mostrar os passos do Filho
e guiá-la sem outra guia. Aproxima-se mais e mais do seu amado Filho e
alonga os olhos escurecidos pela dor e sombra da morte, para ver (se pudesse)
aquele a quem sua alma tanto amava. Ó amor e temor do coração de Maria! Por
uma parte desejava vê-lo, e por outra recusava ver tão lastimável figura.
Finalmente, chega já onde o pudesse ver, olham-se um ao outro aqueles dois
luzeiros do céu e atravessam-se os corações com os olhos e ferem com sua
vista as suas almas aflitas. As línguas estavam emudecidas, mas o coração da
Mãe falava e o do Filho dulcíssimo lhe dizia: Para que aqui vieste, minha
pomba, querida minha e minha Mãe? A tua dor aumenta a minha, e os teus
tormentos a mim atormentam. Volta, minha Mãe, volta para tua pousada, que
ao teu pudor e pureza virginal não pertence companhia de homicidas e de
ladrões.
Essas e outras mais lastimosas palavras se falariam naqueles piedosos
corações, e desta maneira se andou aquele trabalhoso caminho até o lugar da
cruz.

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Do mistério da cruz e as sete palavras que o Senhor falou

esperta, pois, agora, minha alma, e começa a pensar o mistério da


. santa cruz, por cujo fruto se reparou o dano daquele venenoso
. fruto da árvore proibida. Olha, primeiramente, como, chegado já o
Salvador a este lugar, aqueles perversos inimigos (porque mais vergonhosa lhe
fosse a morte) despem-no de todas as suas vestiduras até a túnica interior, que
era toda tecida de alto a baixo, sem costura alguma. Olha, pois, aqui, com
quanta mansidão se deixa esfolar aquele inocentíssimo Cordeiro sem abrir a
boca, nem falar palavra contra os que assim o tratavam. Antes, de mui boa
vontade consentia em ser despojado de suas vestes, e ficar, com vergonha, nu,
para que com elas, melhor do que com as folhas de figueira, se cobrisse a
nudez em que pelo pecado caímos.
Dizem alguns doutores que, para despirem o Senhor dessa túnica, lhe
tiraram com grande crueldade a coroa de espinhos que ele tinha na cabeça, e,
depois de já despido, tomaram a pôr-lha, e a fincar-lhe outra vez os espinhos
pelo crânio, que seria coisa de grandíssima dor. E é de crer, por certo, que
usaram desta crueldade os que de outras muitas e muito estranhas usaram com
Ele em todo o processo de sua Paixão, mormente dizendo o evangelista que
fizeram com Ele tudo o que quiseram. E como a túnica estava pregada às
chagas dos açoites e o sangue já estava gelado e colado com a própria veste, ao
tempo em que lha despiram (como eram tão alheios de piedade aqueles
malvados!) despegaram-lha de chofre e com tanta força, que lhe esfolaram e
renovaram todas as chagas dos açoites, de tal maneira que o santo corpo ficou
por todas as partes aberto e como que descascado, e feito todo uma grande
chaga, que por todas as partes manava sangue.
Considera, pois, aqui, ó minha alma, a alteza da divina bondade e
misericórdia, que neste mistério tão claramente resplandece; olha como Aquele
que veste os céus de nuvens e os campos de flores e beleza, é aqui despojado
de todas as suas vestes. Considera o frio que padeceria aquele santo corpo,
estando, como estava, dilacerado e despido, não só de suas vestiduras, como
também dos couros da pele e com tantas portas de chagas por todo ele abertas.
E, se estando S. Pedro vestido e calçado, na noite anterior padecia frio, quanto
maior o padeceria aquele delicadíssimo corpo estando tão chagado e desnudo?
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Depois disto considera como o Senhor foi cravado na cruz, e a dor que
padeceria ao tempo em que aqueles cravos grossos e esquinados entravam
pelas mais sensíveis e mais delicadas partes do mais delicado de todos os
corpos. E olha também o que a Virgem sentiria quando visse com seus olhos e
ouvisse com seus ouvidos os cruéis e duros golpes que sobre aqueles membros
divinais tão a miúdo caíram, porque verdadeiramente aquelas marteladas e
cravos passavam as mãos ao Filho, porém à Mãe feriam o coração.
Olha como depois levantaram a cruz ao alto e a foram fincar numa cova
que para isto tinham feito, e como (segundo eram cruéis os ministros), ao
tempo de assentá-la, a deixaram cair de chofre, e assim se estremeceria no ar
todo aquele santo corpo e mais se rasgariam os buracos dos cravos, o que seria
coisa de intolerável dor. Ó Salvador e Redentor meu, que coração haverá tão de
pedra que se não parta de dor (pois neste dia se partiram as pedras)
considerando o que padeces nessa cruz? Cercaram-te, Senhor, dores de morte, e
sobre ti investiram todos os ventos e ondas do mar. Atolaste-te no profundo dos
abismos e não achas em que te estribares. O Pai desamparou-te; que esperas,
Senhor, dos homens? Os inimigos zombam de ti aos gritos, os amigos
quebram-te o coração, tua alma está aflita e por meu amor não admites
consolo. Duros foram, por certo, os meus pecados, e tua penitência o declara.
Vejo-te, meu Rei, cosido com um madeiro; não há quem sustente o teu corpo
senão três ganchos de ferro; deles pende tua sagrada carne, sem ter outro
refrigério. Quando firmas o corpo nos pés, rasgam-se as feridas dos pés com os
cravos que têm atravessados; quando o firmas nas mãos, rasgam-se as feridas
das mãos com o peso do corpo. E a santa cabeça atormentada e enfraquecida
com a coroa de espinhos, que travesseiro a sustentaria? Oh! Quão bem
empregados seriam ali vossos braços, sereníssima Virgem, para este ofício, mas
ali não servirão agora os vossos, senão os da cruz! Sobre eles se reclinará a
sagrada cabeça quando quiser descansar, e o refrigério que deles receberá será
fincarem-se mais os espinhos pelo crânio.
Cresceram as dores do Filho com a presença da Mãe, com as quais não
estava o seu coração menos crucificado por dentro do que o estava o sagrado
corpo por fora. Duas cruzes há para Ti, ó bom Jesus, neste dia: uma para o
corpo e outra para a alma; uma é de paixão, a outra de compaixão; uma
traspassa o corpo com cravos de ferro, e a outra traspassa tua alma santíssima
com cravos de dor. Quem poderia, ó bom Jesus, declarar o que sentias quando
consideravas as angústias daquela alma santíssima, a qual tão de certo sabias
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estar contigo crucificada na cruz? Quando vias aquele piedoso coração
traspassado e atravessado com gládio de dor, quando alongavas os olhos
sangrentos e olhavas aquele divino rosto coberto de palidez de morte? E
aquelas angústias de seu ânimo sem morte, já mais que morto? E aqueles rios
de lágrimas, que de seus puríssimos olhos saíam e ouvias os gemidos que se
arrancavam daquele sagrado peito espremidos com peso de tamanha dor?
Depois disto, podes considerar aquelas sete palavras que o Senhor falou
na cruz. Das quais a primeira foi: Pai, perdoai-lhes, porque eles não sabem o
que fazem. A segunda ao ladrão. Hoje estarás comigo no paraíso. A terceira a
sua Mãe Santíssima: Mulher, eis aí teu filho. A quarta: Tenho sede. A quinta:
Meu Deus, meu Deus, por que me desamparastes? Sexta: Tudo está
consumado. A sétima: Pai em tuas mãos encomendo o meu Espírito.
Olha, pois, ó minha alma, com quanta caridade nestas palavras Ele
encomendou ao Pai seus inimigos; com quanta misericórdia recebeu o ladrão
que o confessava, com que entranhas encomendou a piedosa Mãe ao discípulo
amado; com quanta sede e ardor mostrou que desejava a salvação dos homens;
com quão dolorosa voz exalou sua oração e pronunciou sua tribulação ante o
acatamento divino; como levou até a cabo tão perfeitamente a obediência ao
Pai e como, finalmente, lhe encomendou seu espírito e se resignou todo em
suas benditíssimas mãos. Por onde aparece como em cada uma destas palavras
está encerrado um singular documento de virtude. Na primeira
recomenda-se-nos a caridade para com os inimigos. Na segunda, a misericórdia
para com os pecadores. Na terceira, a piedade para com os pais. Na quarta, o
desejo da salvação do próximo. Na quinta, a oração nas tribulações e
desamparos de Deus. Na sexta, a virtude da obediência e perseverança. E, na
sétima, a perfeita resignação nas mãos de Deus, que é a súmula da nossa
perfeição.

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Da lançada que se deu no Salvador e o descimento da cruz, com o
pranto de Nossa Senhora e ofício da sepultura

onsidera, pois, como havendo já expirado o Salvador na cruz, e já se


. havendo cumprido o desejo daqueles cruéis inimigos, que tanto
. desejavam vê-lo morto, ainda depois disto não se lhes apagou a
chama do seu furor, porque com tudo isto mais se quiseram vingar e encarniçar
naquelas santas relíquias que ficaram, partindo-lhe as vestes e sobre elas
lançando sortes, e rasgando-lhe o sagrado peito com uma lança cruel. Ó cruéis
ministros! Ó corações de ferro, tão pouco vos parece o que padeceu o corpo
vivo, que lhe não quereis perdoar mesmo depois de morto! Que sanha de
inimizade há tão grande que se não aplaque quando vê o inimigo morto diante
de si? Alçai um pouco esses cruéis olhos, e olhai aquele rosto mortal, aqueles
olhos defuntos, aquele caimento de rosto e aquela palidez e sombra de morte,
que, ainda que sejais mais duros que o ferro e que o diamante e que vós
mesmos, vendo-o vos amansareis! Chega, pois, o ministro com a lança na mão,
e atravessa-a com grande força pelos peitos desnudos do Salvador.
Estremeceu-se a cruz no ar com a força do golpe, e dali manou água e sangue,
com que se sanam os pecados do mundo. Ó rio que sais do paraíso e regas com
tuas correntes toda a superfície da terra! Ó chaga do lado precioso, feita mais
com o amor dos homens do que com o ferro da lança cruel! Ó porta do céu;
janela do paraíso, lugar de refúgio, torre de fortaleza, santuário dos justos,
sepultura de peregrinos, ninho das pombas singelas e leito florido da esposa de
Salomão! Deus te salve, chaga do lado precioso, que chagas os devotos
corações; ferida que feres as almas dos justos; rosa de inefável beleza; rubi de
preço inestimável; entrada para o coração de Cristo, testemunho de seu amo.r e
penhor da vida perdurável!
Depois disto considera como naquele mesmo dia à tarde chegaram
aqueles dois santos varões, José e Nicodemos, e, arrimadas suas escadas à cruz,
desceram em braços o corpo do Salvador. Como viu que, acabada já a tormenta
da Paixão, chegava o sagrado corpo à terra, prepara-se a Virgem para lhe dar
em seus peitos porto seguro, e recebê-lo dos braços da cruz nos seus. Pede,
pois, com grande humildade àquela nobre gente, que, pois não se havia

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despedido de seu Filho, nem recebido dele os derradeiros abraços na cruz ao
tempo de sua partida, que a deixem agora chegar a Ele e não queiram que por
todas as partes cresça o seu desconsolo, se, havendo-lho os inimigos tirado por
uma porta vivo, morto lho tirem agora por outra os amigos.
E quando a Virgem o teve em seus braços, que língua poderá explicar o
que ela sentiu? O anjos da paz, chorai com esta Sagrada Virgem; chorai, céus;
chorai, estrelas do céu, e todas as criaturas do mundo acompanhai o pranto de
Maria! Abraça-se a Mãe com o corpo dilacerado, aperta-o fortemente em seus
peitos (só para isto lhe restavam forças), mete o rosto entre os espinhos da
sagrada cabeça, juntam-se rosto com rosto, tinge-se o rosto da sacratíssima
Mãe com o sangue do Filho, e rega-se o do Filho com lágrimas da Mãe. Ó doce
Mãe! É esse, porventura, o vosso dulcíssimo Filho? E esse aquele que
concebeste com tanta glória e que deste à luz com tanta alegria? Pois que é
feito dos vossos gozos passados? Aonde foram as vossas alegrias antigas?
Onde está aquele espelho de formosura em que vos miráveis? Choravam todos
os que presentes estavam; choravam aquelas santas mulheres, aqueles nobres
varões; chorava o céu e a terra, e todas as criaturas acompanhavam as lágrimas
da Virgem. Chorava outrossim o santo evangelista e, abraçado com o corpo de
seu Mestre, dizia: Ó bom Mestre e Senhor meu! Quem já agora me ensinará
daqui em diante? A quem irei com minhas dúvidas? Nos peitos de quem
descansarei? Quem me dará parte dos segredos do céu? Que mudança foi tão
estranha? Ontem à noite tiveste-me em teu sagrado peito dando-me alegria e
vida, e agora eu te pago esse tão grande benefício tendo-te nos meus morto?
Este é o rosto que eu vi transfigurado no Monte Tabor? Esta aquela figura mais
clara que o sol de meio-dia?
Chorava também aquela santa pecadora, e, abraçada com os pés do
Salvador, dizia: Ó lume de meus olhos e remédio de minha alma! Se eu me vir
fatigada dos pecados, quem me receberá? Quem curará as minhas chagas?
Quem responderá por mim? Quem me defenderá dos fariseus? Oh! Quão de
outra maneira tive eu estes pés e os lavei quando neles me recebeste! Ó amado
de minhas entranhas, quem me dera agora morrer contigo! Ó vida de minha
alma! Como posso dizer que te amo, pois estou viva tendo-te morto diante de
meus olhos?
Desta maneira chorava e se lamentava toda aquela santa companhia,
regando e lavando com lágrimas o corpo sagrado. Chegada já, pois, a hora da
sepultura, envolvem o santo corpo num lençol limpo, atam-lhe o rosto com um
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sudário, e, posto em cima de um leito, caminham com Ele para o lugar do
monumento. O sepulcro cobriu-se com uma lousa e o coração da Mãe com uma
escura névoa de tristeza. Ali se despede ela outra vez de seu Filho; ali começa
de novo a sentir a sua soledade; ali se vê já destituída de todo o seu bem; ali lhe
fica o coração sepultado onde ficara o seu tesouro.

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Da descida do Senhor ao limbo e o aparecimento a Nossa Senhora e a
S. Madalena e aos discípulos. E depois o mistério da sua gloriosa
ascensão

uanto ao primeiro, considera quão grande seria a alegria que aqueles


. Santos Padres do limbo receberiam neste dia com a visitação e
. presença do seu Libertador e que graças e louvores lhe dariam por
esta tão desejada e esperada salvação. Dizem os que voltam das Índias
Orientais à Espanha que por bem empregado têm todo o trabalho da navegação
passada pela alegria que recebem no dia em que voltam à sua terra. Pois se isto
faz a navegação e desterro de um ano ou dois, que faria o desterro de três ou
quatro mil anos, no dia em que eles recebessem tão grande salvação e viessem
a tomar porto na terra dos viventes?
Considera também a alegria que a sacratíssima Virgem receberia nesse
dia com a visita do Filho ressuscitado, pois é certo que, assim como Ela foi a
que mais sentiu as dores da sua Paixão, assim também foi a que mais gozou da
alegria da sua ressurreição. Pois, que sentiria ela quando visse diante de si seu
Filho vivo e glorioso, acompanhado de todos aqueles Santos Padres que com
Ele ressuscitaram? Que faria? Que diria? Quais seriam seus abraços e beijos e
as lágrimas de seus olhos piedosos? E os desejos de ir-se atrás dele, se lhe fosse
concedido?
Considera a alegria daquelas santas Marias, especialmente daquela que
perseverava chorando junto do sepulcro, quando visse o amado de sua alma e
se derrubasse a seus pés e achasse ressuscitado e vivo aquele a quem buscava e
desejava ver sequer morto; e olha bem que, depois da Mãe, àquela apareceu.
Ele, primeiro, que mais amou, mais perseverou, mais chorou e mais
solicitamente o buscou, para que assim tenhas por certo que acharás a Deus se
com estas mesmas lágrimas e diligências o buscares.
Considera a maneira como Ele apareceu em hábito de peregrino aos
discípulos que iam a Emaús, olha quão afável se lhes mostrou, quão
familiarmente os acompanhou, quão docemente se lhes dissimulou e, ao cabo,
quão amorosamente se lhes descobriu e os deixou com todo o mel e a
suavidade nos lábios; sejam, pois, tais tuas conversas quais eram as destes,
trata com dor e sentimento o que tratavam estes (que eram as dores e trabalhos

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de Cristo) e tem por certo que te não faltará a sua presença e companhia, se
sempre tiveres esta memória.
Acerca do mistério da Ascensão considera primeiramente como dilatou o
Senhor esta subida aos céus por espaço de quarenta dias, nos quais apareceu
muitas vezes aos seus discípulos e os ensinava e conversava com eles do Reino
de Deus. De maneira que não quis subir aos céus, nem apartar-se deles,
enquanto os não deixou tais que pudessem com o espírito subir ao céu com Ele.
Donde verás que àqueles desamparam muitas vezes a presença corporal de
Cristo (isto é, a consolação sensível da devoção), que já podem com o espírito
voar ao alto e mais seguros estão do perigo. No que maravilhosamente
resplandece a providência de Deus e a maneira que tem em tratar os seus em
diversos tempos; como anima os fracos e exercita os fortes; dá leite aos
pequeninos e desmama os grandes; consola uns e prova os outros, e assim trata
cada um segundo o grau do seu aproveitamento. Por onde, nem o amimado tem
por que presumir, pois o mimo é argumento de fraqueza, nem o desconsolado
por que desfalecer, pois isto é muitas vezes indício de fortaleza.
Em presença dos discípulos, e vendo-o eles, subiu ao céu, porque eles
haviam de ser testemunhas destes mistérios, e nenhum é melhor testemunha
das obras de Deus do que aquele que as sabe por experiência. Se deveras
queres saber como Deus é bom, quão doce e quão suave para com os seus,
quanta seja a virtude e eficácia da sua graça, do seu amor, da sua providência e
das suas consolações, pergunta-o aos que o hão provado, que disso te darão
esses suficientíssimo testemunho. Quis também que eles o vissem subir aos
céus para que o seguissem com os olhos e com o espírito, para que sentissem a
sua partida, para que lhes fizesse soledade a sua ausência, porque este era o
mais conveniente preparo para receber a sua graça. Pediu Eliseu a Elias o seu
espírito, e o bom Mestre lhe respondeu: Se vires quando eu me parto de ti, será
o que pediste. Pois herdeiros serão do Espírito de Cristo aqueles a quem o amor
fizer sentir a partida de Cristo, os que lhe sentirem a ausência e ficarem neste
desterro suspirando sempre pela sua presença. Assim o sentia aquele santo
varão que dizia: Foste meu consolador e não te despediste de mim; indo por
teu caminho abençoaste os teus, e não o vi. Os anjos prometeram que
voltarias, e não o ouvi, etc.
E qual não seria a soledade, o sentimento, as vozes e as lágrimas da
sacratíssima Virgem, do discípulo amado e da santa Madalena e de todos os
apóstolos, quando vissem ir-se-lhes e desaparecer-lhes dos olhos aquele que tão
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roubados lhes tinha os corações? e, com tudo isto, dizem que eles voltaram a
Jerusalém com grande gozo pelo muito que o amavam. Porque o mesmo amor
que tanto lhes fazia sentir a sua partida, por outra parte os fazia regozijar-se da
sua glória, porque o verdadeiro amor não se busca a se senão ao que ama.
Resta considerar com quanta glória, com que alegria e com que vozes e
louvores seria aquele nobre triunfador recebido na cidade soberana, qual seria a
festa e a recepção que lhe fariam, que seria ver ali, ajuntados em um, homens e
anjos e todos, a uma, caminharem para aquela nobre cidade, povoarem aqueles
assentos desertos de tantos anos, subir sobre todos aquela sacratíssima
humanidade e assentar-se à destra do Pai. Tudo é muito de considerar para que
se veja quão bem empregados são os trabalhos por amor de Deus, e como
aquele que se humilhou e padeceu mais do que todas as criaturas é aqui
engrandecido e alevantado sobre todas elas, para que por aqui entendam os
amantes da verdadeira glória o caminho que hão de levar para a alcançar, que é
descer para subir e pôr-se debaixo de todos para ser alevantado sobre todos.

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Da memória dos pecados e do conhecimento de ti mesmo

ara que numa vejas quantos males tens e no outro como nenhum bem
. tens que não seja de Deus, que é o meio por onde se alcança a
. humildade, mãe de todas as virtudes.
Para isto deves primeiro pensar na multidão dos pecados da vida passada,
especialmente naqueles que fizeste no tempo em que menos conhecias a Deus.
Porque se bem o souberes olhar, acharás que eles se multiplicaram sobre os
cabelos de tua cabeça e que viveste naquele tempo como um gentio, que não
sabe que coisa é Deus. Discorre, pois, brevemente por todos os dez
mandamentos e pelos sete pecados mortais, e verás que nenhum deles há em
que não tenhas caído muitas vezes, por obra ou por palavra ou pensamento.
Em segundo, discorre por todos os benefícios divinos, e pelos tempos
da vida passada, e olha em que foi que os empregaste, pois de todos eles hás de
dar conta a Deus. Pois, dize-me agora, em que gastaste a infância? Em que a
adolescência? Em que a juventude? Em que, finalmente, todos os dias da vida
passada? Em que ocupaste os sentidos corporais e as potências da alma que
Deus te deu para que o conhecesses e servisses? Em que se empregaram teus
olhos, senão em ver a vaidade? Em que teus ouvidos, senão em ouvir a
mentira? E em que tua língua, senão em mil maneiras de juramentos e
murmurações e em que teu gosto e teu olfato e teu tato senão em regalos e
branduras sensuais?
Como te aproveitaste dos Santos Sacramentos, que Deus ordenou para teu
remédio? Como lhe deste graças pelos seus benefícios? Como respondeste às
suas inspirações? Em que empregaste a saúde e as forças, e as habilidades de
natureza, e os bens que dizem de fortuna, e as disposições e oportunidades para
bem viver? Que cuidado tiveste de teu próximo, que Deus te encomendou, e
daquelas obras de misericórdia que te assinalou para com ele? Pois, que
responderás naquele di:r das contas, quando Deus te disser: Dá-me conta da
tua mordomia e da conta que te entreguei, porque já não quero que trates mais
dela? Ó árvore seca e preparada para os tormentos eternos! Que responderás
naquele dia, quando te pedirem conta de todo o tempo de tua vida e de todos os
pontos e momentos dela?
Em terceiro, pensa nos pecados que fizeste e fazes cada dia, depois que
abriste mais os olhos ao conhecimento de Deus, e acharás que ainda vive em ti
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Adão com muitas raízes e costumes antigos. Olha quão desrespeitoso és para
com Deus, quão ingrato aos seus benefícios, quão rebelde às suas inspirações,
quão preguiçoso para as coisas de seu serviço, as quais nunca fazes nem com
aquela presteza e diligência, nem com aquela pureza de intenção com que
devias, senão por outros respeitos e interesses do mundo.
Considera, outrossim, quão duro és para com o próximo e quão piedoso
para contigo, quão amigo de tua própria vontade, e de tua carne, e de tua honra,
e de todos os teus interesses. Olha como ainda és soberbo, ambicioso, irado,
vanglorioso, invejoso, comodista, mutável, leviano, sensual, amigo de tuas
recreações e conversações e risos. Olha, outrossim, quão inconstante és nos
bons propósitos, quão inconsiderado em tuas palavras, quão desprovido em
tuas obras e quão covarde e pusilânime para quaisquer negócios graves.
Em quarto, considerada já por esta ordem a multidão de teus pecados,
considera depois a gravidade deles. Para o que, deves primeiramente considerar
estas três circunstâncias nos pecados da vida passada, a saber: contra quem
pecaste, por que pecaste e de que maneira pecaste. Se olhares contra quem
pecaste, acharás que pecaste contra Deus, cuja bondade e majestade é infinita e
cujos benefícios e misericórdias para com o homem sobrepujam as areias do
mar; mas, por que causa pecaste? Por um ponto de honra, por um deleite de
animais, por um cabelo de interesse e muitas vezes sem interesse; só por
costume e desprezo de Deus. Mas de que maneira pecaste? Com tanta
facilidade, com tanto atrevimento, tão sem escrúpulo, tão sem temor, e às vezes
com tanta facilidade e contentamento, como se pecasses contra um Deus de
pau, que nem sabe nem vê o que se passa no mundo. Então era esta a honra que
se devia a tão alta majestade? É este o agradecimento de tantos benefícios?
Assim se paga aquele sangue precioso que se derramou na cruz e aqueles
açoites e bofetadas que se receberam por ti? Oh! Miserável de ti pelo que
perdeste, e muito mais pelo que fizeste, e muitíssimo mais se com tudo isto não
sentes a tua perdição! Depois disto, é de grandíssimo proveito deteres um
pouco os olhos da consideração em pensares o teu nada, isto é, como de tua
parte não tens outra coisa mais do que nada e pecado, e como tudo o mais é de
Deus: porque claro está que assim os bens "da natureza como os da graça (que
são os maiores) são todos dele; porque dele é a graça da predestinação (que é a
fonte de todas as outras graças), e dele a da vocação, e dele a graça
concomitante, e dele a graça da vida eterna. Pois, que tens tu de que te possas
gloriar, senão nada e pecado? Repousa, pois, um pouco na consideração desse
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nada, e só isto põe à tua conta, e tudo o mais à de Deus, para que clara e
palpavelmente vejas quem és tu e quem é Ele; quão pobre tu e quão rico Ele; e,
por conseguinte, quão pouco deves confiar em ti e a ti estimar e quanto confiar
nele, a Ele amar e gloriar-te nele.
Consideradas, pois, todas estas coisas acima ditas, sente de ti o mais
baixamente que te seja possível. Pensa que não passas de um caniço que se
muda a todos os ventos, sem peso, sem virtude e sem nenhuma estabilidade.
Pensa que és um Lázaro morto de quatro dias, e um corpo hediondo e
abominável, cheio de vermes, que todos quantos passam tapam o nariz e os
olhos para não verem. Pareça-te que desta maneira te tornas repelente diante de
Deus e de seus anjos, e tem-te por indigno de alçar os olhos ao céu, e de que te
sustente a terra, e de que te sirvam as criaturas, e do próprio pão que comes e
do ar que recebes.
Lança-te com aquela pública pecadora aos pés do Salvador e, coberto teu
rosto de confusão com aquela vergonha que padeceria uma mulher diante de
seu marido quando lhe houvesse feito traição, e, com muita dor e
arrependimento de teu coração, pede-lhe perdão de teus erros.

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Das misérias da vida humana

ara que por elas vejas quão vã seja a glória do mundo e quão digna
. de ser desprezada, pois se funda em tão fraco fundamento
. como é tão miserável vida; e ainda que os defeitos e misérias desta
vida sejam quase inumeráveis, podes agora assinaladamente considerar estas
sete.
Primeiramente considera quão breve seja esta vida, pois o mais longo
tempo dela é de sessenta ou oitenta anos, porque tudo a mais (se alguma coisa
fica, como diz o Profeta) é trabalho e dor; e, se daqui se tira o tempo da
infância, que mais é vida de animais do que de homens, e o que se gasta
dormindo, quando não usamos dos sentidos nem da razão (que nos faz
homens), acharemos ser ele ainda mais breve do que parece. E se sobre tudo
isto a comparas com a eternidade da vida futura, apenas te parecerá ele um
ponto. Por onde verás quão desvairados são os que, por gozar deste sopro de
vida tão breve, se põem a perder o descanso daquela que para sempre há de
durar.
Em segundo, considera quão incerta seja esta vida (o que é outra miséria
sobre a passada), porque não basta ser ela tão breve como é, senão que esse
pouco que há de vida não está seguro, mas duvidoso. Porque, quantos chegam
a esses sessenta ou oitenta anos que dissemos? A quantos se corta a teia em
começando a tecer? Quantos se vão em flor (como dizem) ou em botão? Não
sabeis (diz o Salvador) quando virá o vosso Senhor, se pela manhã, se ao
meio-dia, se à meia-noite, se ao canto do galo.
Para melhor sentires isto, proveitoso ser-te-á lembrares da morte de
muitas pessoas que terá conhecido neste mundo, especialmente de teus amigos
e familiares, e de algumas pessoas ilustres e assinaladas, as quais a morte
assaltou em diversas idades, deixando burlados todos os seus propósitos e
esperanças.
Em terceiro, pensa quão frágil e quebradiça seja esta vida, e acharás que
não há vaso de vidro tão delicado como ela é, pois um ar, um sol, um jarro de
água fria, uma exalação de enfermo basta para nos despojar dela, como parece

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pelas experiências cotidianas de muitas pessoas, as quais, no mais florido da
sua idade, basta para derrubar qualquer ocasião das sobreditas.
Em quarto, considera quão mutável é ela e como nunca permanece num
mesmo ser. Para o que, deves considerar quanta seja a mudança de nossos
corpos, os quais nunca permanecem numa mesma saúde e disposição, e quanto
maior a dos ânimos, que sempre andam, como o mar, alternados por diversos
ventos e ondas de paixões e apetites e cuidados que a cada hora nos perturbam;
e finalmente quantas sejam as mudanças que dizem da fortuna, que nunca
consente muito permanecerem num mesmo estado, nem numa mesma
prosperidade e alegria, as coisas da vida humana, senão sempre roda de um
lugar para outro. E sobre tudo isto considera quão contínuo seja o movimento
da nossa vida, pois dia e noite nunca pára, mas sempre vai perdendo de seu
direito. Segundo isto, que é a nossa vida senão uma vela que sempre se está
gastando, e quanto mais arde e resplandece tanto mais se gasta? Que é a nossa
vida senão uma flor que se abre pela manhã, ao meio-dia murcha e à tarde
seca?
Pois em razão desta contínua mudança, diz Deus por Isaías: toda carne é
feno, e toda a glória dela é como a flor do campo. Palavras sobre as quais diz
S. Jerônimo: Verdadeiramente, quem considerar a fragilidade da nossa carne e
como em todos os pontos e momentos de tempo crescemos e decrescemos, sem
jamais permanecermos num mesmo estado, como isto que agora estamos
falando, traçando e esquadrinhando se está afastando da nossa vida, não
duvidará chamar à nossa carne feno e a toda a sua glória como a flor do
campo. O que agora é criança de peito, brevemente se faz rapaz, e o rapaz
moço, e o moço, mui depressa, chega à velhice, e primeiro se acha velho do
que se admire de ver como já não é moço. E a mulher formosa, que arrastava
após si as manadas dos mocinhos loucos, mui depressa descobre a fronte arada
com rugas e a que antes era amável daí a pouco vem a ser aborrível.
Em quinto, considera quão enganosa seja ela (o que porventura é o pior
que tem, pois a tantos engana, e tantos e tão cegos amadores leva atrás de si),
pois sendo feia nos parece bela, sendo amarga nos parece doce, sendo breve, a
cada um a sua lhe parece longa, e sendo tão miserável parece tão amável, que
não há perigo nem trabalho a que por ela se não ponham os homens, mesmo
que seja com detrimento da vida perdurável, fazendo coisas por onde venham a
perder a vida duradoura.

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Em sexto, considera como, além de ser tão breve, etc. (segundo está dito),
esse pouco que há de vida está sujeito a tantas misérias, assim da alma como do
corpo, que todo ele não passa de um vale de lágrimas e de um pélago de
infinitas misérias. Escreve S. Jerônimo que Xerxes, aquele poderosíssimo rei
que derrubava os montes e aplanava os mares, como subisse a um monte alto a
ver dali um exército que tinha ajuntado de infinitas gentes, depois que o mirou
bem, dizem que se parou a chorar. E, perguntado por que chorava, respondeu:
Choro porque daqui a cem anos não estará vivo nenhum de quantos ali vejo
presentes. Oh! (diz S. Jerônimo) se pudéssemos subir a alguma atalaia, que
dela pudéssemos ver toda a terra debaixo de nossos pés! Daí verias as quedas
e misérias de todo o mundo, gentes destruídas por gentes, e reinos por outros
reinos. Verias como a uns atormentam, a outros matam; como uns se afogam
no mar, outros são levados cativos. Aqui verás bodas, ali pranto; aqui matar
uns, ali morrer outros; uns abundarem em riquezas, outros mendigarem. E
finalmente verias não somente o exército de Xer.xes, senão todos os homens do
mundo que agora são, os quais daqui a poucos dias acabarão. Discorre por
todas as enfermidades e trabalhos dos corpos humanos e por todas as aflições e
cuidados dos espíritos e pelos perigos que há, assün em todos os estados como
em todas as idades dos homens, e ainda mais claro verás quantas sejam as
misérias desta vida, pois que, vendo tão claramente quão pouco é tudo o que o
mundo pode dar, mais facilmente menosprezes tudo o que nele há.
A todas estas misérias sucede a última que é morrer, a qual, assim para o
que é do corpo, como para o que é da alma, é a última de todas as coisas
terríveis; pois o corpo será num instante despojado de todas as coisas, e da
alma se há de determinar então o que para sempre há de ser.
Tudo isto te dará a entender quão breve e miserável seja a glória do
mundo (pois tal é a vida dos mundanos sobre que ela se funda) e, por
conseguinte, quão digna seja de ser pisada e menosprezada.

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Da morte

ue é uma das mais proveitosas considerações que há, assim para


. alcançar a verdadeira sabedoria como para fugir do pecado, como
. também para começar com tempo a preparar-se para a hora da conta.
Pensa, pois, primeiramente, quão incerta é aquela hora em que te há de
assaltar a morte, porque não sabes em que dia, nem em que lugar, nem em que
estado te tomará ela. Só sabes que hás de morrer, tudo o mais é incerto; senão
que ordinariamente costuma esta hora sobrevir ao tempo em que o homem está
mais descuidado e esquecido dela.
Em segundo, pensa na separação que ali haverá, não só entre todas as
coisas que se amam nesta vida, como também entre a alma e o corpo,
companhia tão antiga e tão amada. Se se tem por grande mal o desterro da
pátria e dos ares em que o homem se criou, podendo o desterrado levar consigo
tudo o que ama, quanto maior não será o desterro universal de todas as coisas
da casa, e dos haveres, e dos amigos, e do pai, e da mãe, e dos filhos, e desta
luz e ar comum, e, finalmente, de todas as coisas? Se um boi solta mugidos
quando o separam de outro boi com o qual ele arava, que mugido não será o de
teu coração quando te separarem de todos aqueles com cuja companhia
trouxeste nas costas o jugo das cargas desta vida?
Considera também a pena que o homem ali recebe quando se lhe
representa em que hão de parar o corpo e a alma depois da morte, porque do
corpo ele já sabe que não lhe pode caber outra sorte melhor do que uma cova
de sete pés de comprimento em companhia de outros mortos; mas da alma não
sabe ao certo o que será, nem que sorte lhe há de caber. Esta é uma das maiores
angústias que ali se padecem: saber que há glória e pena para sempre, e estar
tão perto duma e doutra, e não saber qual destas duas sortes tão desiguais nos
há de caber.
Atrás desta angústia segue-se outra não menor, que é a conta que ali se
tem de dar, a qual é tal que faz tremer, mesmo aos mais esforçados. De Arsênio
se escreve que, estando já para morrer, começou a temer. E, como seus
discípulos lhe dissessem: Pai, e tu agora temes? Ele respondeu: Filhos, não é
novo em mim este temor, porque sempre vivi com ele. Ali, pois, se lhe
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representam ao homem todos os pecados da vida passada como um esquadrão
de inimigos que vêm a dar sobre ele e os maiores e em que maior deleite ele
recebeu, esses se representam mais vivamente e são causa de maior temor. Oh,
quão amarga é ali a memória do deleite passado, que noutro tempo parecia tão
doce! Por certo, com muita razão disse o sábio: Não olhes ao vinho quando
está rubro, e quando resplandece no vidro a sua cor, porquanto, ainda que
dm·ama ao tempo do beber ele pareça brando, mas depois morde como cobra e
sua peçonha como basilisco. Estas são as fezes daquela bebida peçonhenta do
inimigo; este é o saibro que tem aquele cálice de Babilônia por fora dourado. E
então o homem miserável, vendo-se cercado de tantos acusadores, começa a
temer a matéria deste juízo e a dizer entre si: Miserável de mim, que tão
enganado vivi e por tais caminhos andei, que será de mim agora neste juízo? Se
S. Paulo diz que o que o homem houver semeado, isso colherá, eu que
nenhuma outra coisa semeei senão obras de carne, que espero colher daqui
senão corrupção? Se S. João diz que naquela soberana cidade, que é toda ouro
limpo, não há de entrar coisa suja, que espera quem tão suja e tão torpemente
viveu?
Depois disto sucedem os sacramentos da Confissão e Comunhão e da
Extrema-Unção (sic), que é o último socorro com que a Igreja nos pode ajudar
nesse trabalho, e assim neste como nos outros deves considerar as ânsias e
angústias que ali .o homem padecerá por haver mal vivido e quanto quisera ter
levado outro caminho. Que vida faria então se lhe dessem tempo para isso? E
como ali se esforçará para chamar a Deus, mas as dores e a pressa da
enfermidade mal lhe darão lugar.
Olha também aqueles derradeiros acidentes da enfermidade, que são
como mensageiros da morte, quão espantosos são, e quão para temer.
Levanta-se o peito, enrouquece-se a voz, morrem-se os pés, gelam-se os
joelhos, afilam-se as narinas, afundam-se os olhos, pára-se o rosto defunto e
logo a língua não acerta a fazer o seu ofício; finalmente, turbados com a grande
pressa da alma que se parte, todos os sentidos perdem o seu valor e a sua
virtude. Mas sobretudo a alma é que ali padece os maiores trabalhos, porque ali
está batalhando e agonizando, parte pela saída e parte pelo temor da conta que
se prepara; porque ela, naturalmente, recusa a saída e ama a estada e teme a
conta.
Saída já a alma das carnes, ainda te ficam dois caminhos por andar, um
acompanhando o corpo até à sepultura, e o outro seguindo a alma até à
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determinação de sua causa, considerando o que a cada uma destas partes
acontecerá. Olha, pois, qual fica o corpo depois que sua alma o desampara, e
qual essa nobre vestidura que lhe preparam para enterrá-lo, e quão depressa
procuram botá-lo fora de casa. Considera o seu enterramento com tudo o que
nele ocorrerá, o dobrar dos sinos, o perguntarem todos pelo morto, os ofícios e
cantos dolorosos da Igreja, o acompanhamento e sentimento dos amigos e,
finalmente, todas as particularidades que ali soem acontecer até deixar o corpo
na sepultura, onde ficará sepultado naquela terra de perpétuo olvido.
Deixado o corpo na sepultura, vai-te logo em pós da alma e olha o
caminho que ela levará por aquela nova região, e no qual, finalmente, parará, e
como será julgada. Imagina que já estás presente a este juízo e que toda a corte
do céu está aguardando o fim desta sentença, onde se fará a carga e a descarga
de todo o recebido até a ponta de agulheta. Ali se pedirá conta da vida, dos
haveres, da família, das inspirações de Deus, das condições que tivemos para
bem viver, e sobretudo do sangue de Cristo, e ali será cada um julgado segundo
a conta que der do recebido.

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Do juízo final

ara que com esta consideração se despertem em tua alma aqueles dois
. tão principais afetos que deve ter todo fiel cristão, convém saber:
. temor de Deus e aborrecimento do pecado.
Pensa, pois, em primeiro lugar quão terrível será aquele dia em que se
averiguarão as causas de todos os filhos de Adão, se concluirão os processos de
nossas vidas e se dará sentença definitiva do que para sempre há de ser. Aquele
dia abrangerá em si os dias de todos os séculos presentes, passados e futuros,
porque nele o mundo dará conta de todos estes tempos e nele derramará a ira e
sanha que tem recolhida em todos os séculos. Pois que tão arrebatado sairá
então aquele tão caudaloso rio da indignação divina, tendo tantas arremetidas
de ira e sanha quantos pecados se hão feito desde o princípio do mundo.
Em segundo, considera os sinais espantosos que precederão este dia,
porque (como diz o Salvador) antes que venha este dia haverá sinais no sol e na
lua e nas estrelas, e finalmente em todas as criaturas do céu e da terra. Porque
todas elas sentirão seu fim antes que feneçam, estremecerão e começarão a cair
primeiro que caiam. Mas os homens (diz ele) andarão secos e definhados de
morte, ouvindo os bramidos espantosos do mar e vendo as grandes ondas e
tormentas que ele levantará, conjeturando por aquilo as grandes calamidades e
misérias que com tão temerosos sinais ameaçam o mundo. E assim andarão
atônitos e espantados, com os rostos amarelos e desfigurados, antes da morte
mortos, e antes do juízo sentenciados, medindo os perigos com seus próprios
temores e tão ocupados cada um com o seu, que se não lembrará do alheio,
ainda que seja pai ou filho. Ninguém haverá para ninguém, porque ninguém
bastará para si só.
Em terceiro considera aquele dilúvio universal de fogo que virá adiante
do Juiz, aquele som temeroso da trombeta que o arcanjo tocará para convocar
todas as gerações do mundo a que se juntem num lugar e se achem presentes
em juízo; e sobretudo a majestade tremenda com que há de vir o Juiz.
Depois disto considera quão estrita será a conta que ali a cada um se
pedirá. Verdadeiramente (diz Jó) não poderá o homem ser justificado se se
compara com Deus. E, se se quiser pôr com Ele em juízo, de mil cargas que
Ele lhe faça, não poderá ele responder a uma só. Pois, que não sentirá então
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cada um dos maus, quando Deus entre com ele neste exame e lá dentro da sua
consciência diga assim: Vem cá, homem mau, que viste em mim, porque assim
me desprezaste e te passaste ao bando de meu inimigo? Criei-te à minha
imagem e semelhança. Dei-te a luz da fé, fiz-te cristão e te remi com meu
próprio sangue. Por ti Jejuei, caminhei, velei, trabalhei e suei gotas de sangue.
Por ti sofri perseguições, açoites, blasfêmias, escárnios, bofetadas, desonras,
tormentos e cruz. Testemunhas são esta cruz e cravos que aqui aparecem;
testemunhas estas chagas de pés e mãos, que em meu corpo ficaram;
testemunhas o céu e a terra, diante dos quais padeci. Pois, que fizeste dessa
tua alma que eu com meu sangue fiz minha? No serviço de quem empregaste o
que eu tão caro comprei? Ó geração louca e adúltera! Por que mais quiseste
servir a esse teu inimigo com trabalho, do que a mim, teu Redentor e Criador,
com alegria? Chamei-vos tantas vezes e não me respondestes; bati às vossas
portas e não acordastes; estendi minhas mãos na cruz e não as olhastes;
desprezastes os meus conselhos e todas as minhas promessas e ameaças; pois
dizei agora vós, anjos;julgai vós, juízes, entre mim e minha vida, que mais devi
eu fazer por ela do que fiz. E que responderão aqui os maus, os zombadores
das coisas divinas, os mofadores da virtude, os menosprezadores da
simplicidade, os que tiveram mais conta com as leis do mundo do que com a de
Deus, os que a todas as suas vozes estiveram surdos, a todas as suas inspirações
insensíveis, a todos os seus mandamentos rebeldes e a todos os seus açoites e
benefícios ingratos e duros? Que responderão os que viveram como se cressem
que não havia Deus e os que com nenhuma lei tiveram conta senão só com o
seu interesse? Que fareis vós tais (diz Isaías) no dia da visitação e calamidade
que vos virá de longe? A quem pedireis socorro e que vos aproveitará a
abundância das vossas riquezas?
Em quinto, considera, depois de tudo isto, a terrível sentença que o Juiz
fulminará contra os maus e aquela temerosa palavra que fará retinir os ouvidos
de quem o ouvir: Seus lábios (diz Isaías) estão cheios de indignação, e sua
língua é como fogo que devora. Que fogo abrasará tanto como aquelas
palavras: Afastai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno que está preparado
para Satanás e para seus anjos? Em cada uma de quais palavras muito tens
que sentir e que pensar, no afastamento, na maldição, no fogo, na companhia, e
sobretudo na eternidade.

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Das penas do inferno

ara que com esta meditação também mais se confirme tua alma no
. temor de Deus e aborrecimento do pecado.
Estas penas (diz S. Boaventura) devem-se imaginar debaixo de
algumas figuras e semelhanças corporais que os santos nos ensinaram. Pelo que
será coisa conveniente imaginar o lugar do inferno como um lago escuro e
tenebroso, posto debaixo da terra, ou como um poço profundíssimo cheio de
fogo, ou como uma cidade espantosa e tenebrosa, que toda arde em vivas
chamas, na qual não soa outra coisa senão vozes e gemidos de atormentadores
e atormentados, com perpétuo pranto e ranger de dentes.
Pois neste mal-aventurado lugar se padecem duas penas principais: uma
a que chamam de sentido e a outra de dano. E quanto à primeira, pensa como
não haverá ali sentido algum dentro nem fora da alma que não esteja penando
com seu próprio tormento, porque assim como os maus ofenderam a Deus com
todos os seus membros e sentidos e de todos fizeram armas para servir ao
pecado, assim ordenará Ele que cada um deles pene com seu próprio tormento
e pague seu merecido. Ali os olhos adúlteros e desonestos padecerão com a
visão horrível dos demônios. Ali os ouvidos que se deram a ouvir mentiras e
palavras torpes ouvirão perpétuas blasfêmias e gemidos. Ali os narizes
amadores de perfumes e odores sensuais serão cheios de intolerável fétido. Ali
o gosto que se regalava com diversos manjares e guloseimas será atormentado
com raivosa fome e sede. Ali a língua murmuradora e blasfema será amargada
com fel de dragões. Ali o tato amador de regalos e branduras andará nadando
naquelas geleiras (que diz Jó) do Rio Cocito e entre os ardores e chamas do
fogo. Ali a imaginação padecerá com a apreensão das dores presentes; a
memória com a recordação dos prazeres passados; o entendimento, com a
representação dos males futuros e a vontade com grandíssimas iras e raivas que
os maus terão contra Deus. Finalmente, ali se acharão em um todos os males e
tormentos que se podem pensar, porque (como diz S. Gregório), ali haverá frio
que não se possa sofrer, fogo que se não possa apagar, verme imortal, fétido
intolerável, trevas palpáveis, açoites de atormentadores, visão de demônios,
confusão de pecados e desesperação de todos os bens. Pois dize-me agora: se o
menor de todos estes males que há cá, que se padecesse por mui pequeno
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espaço de tempo, seria tão duro de aturar, que será padecer ali num mesmo
tempo toda esta multidão de males em todos os membros e sentidos interiores e
exteriores e isto não por espaço de uma noite só, nem de mil, porém de uma
eternidade infinita? Que sentidos? Que palavras? Que juízo há no mundo capaz
de sentir ou encarecer isto como é?
Pois não é esta a maior das penas que ali se passam: outra há, sem
comparação, maior, que é a que os teólogos chamam pena de dano, a qual é ter
de carecer para sempre da visão de Deus e de sua gloriosa companhia, porque
tanto é maior uma pena quanto de maior bem priva o homem, e, pois, que Deus
é o maior bem dos bens, assim carecer dele será o maior mal dos males, qual de
verdade é este.
Estas são as penas que geralmente competem a todos os condenados.
Mas além destas penas gerais há outras particulares que ali padecerá cada um
conforme a qualidade do seu delito. Porque uma será a pena do soberbo, e
outra a do invejoso, e outra a do avarento, e outra a do luxurioso, e assim os
demais. Ali se regulará a dor conforme o deleite recebido, e a confusão
conforme a presunção e soberba, e a desnudez conforme a demasia e
abundância e a fome e sede conforme o regalo e a fartura passada.
A todas essas penas sucede a eternidade do padecer, que é como o selo e
a chave de todas elas, porque tudo isto ainda seria tolerável se fosse finito,
porque nenhuma coisa é grande se tem fim. Pena, porém, que não tem fim, nem
alívio, nem declínio, nem admiração, nem há esperança de que se acabará
algum dia, nem a pena, nem o que a dá, nem o que a padece, senão que é como
um desterro preciso e como um sambenito irremissível, que nunca jamais se
tira; isto é coisa para tirar o juízo a quem atentamente a considera.
Esta é, pois, a maior das penas que naquele mal-aventurado lugar se
padecem; porque, se estas penas houvessem de durar por algum tempo
limitado, ainda que fossem mil anos, ou cem mil anos, ou, como diz um doutor,
se esperasse que se haviam de acabar em se esgotando toda a água do mar
Oceano, tirando cada mil anos uma só gota do mar, ainda isto lhes seria
alguma espécie de consolo. Mas isto assim não é, senão que suas penas
competem com a eternidade de Deus, e a duração da sua miséria com a duração
da divina glória; enquanto Deus viver eles morrerão e, quando Deus deixar de
ser o que é, eles deixarão de ser o que são; pois nesta duração, nesta eternidade
quereria eu, irmão meu, que fincasses os olhos da consideração e que (como
animal limpo) ruminasses agora este passo dentro de ti.
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66
Da glória dos bem-aventurados

ara que por aqui se mova teu coração ao desprezo do mundo e desejo
. da companhia deles. E, para entenderes algo deste bem, podes
. considerar estas cinco coisas entre outras que há nele, convém saber:
a excelência do lugar, o gozo da companhia, a visão de Deus, a glória dos
corpos e, finalmente, o cumprimento de todos os bens que ali há.
Primeiramente, considera a excelência do lugar e assinaladamente a
grandeza do que é admirável, porque, quando o homem lê em alguns graves
autores que qualquer das estrelas do céu é maior do que toda a terra e ainda que
haja algumas delas de tão notável grandeza que são noventa vezes maiores do
que toda ela; e com isto alça ele os olhos ao céu e vê neste tanta multidão de
estrelas e tantos espaços vazios, onde poderiam caber outras tantas muitas
mais, como se espanta? Como não fica atônito e fora de si considerando a
imensidade daquele lugar, e muito mais a daquele soberano Senhor que o
criou?
Pois a beleza dele não se pode explicar com palavras, porque, se neste
vale de lágrimas e lugar de desterro criou Deus coisas tão admiráveis e de tanta
beleza, que não terá Ele criado naquele lugar, que é aposento da sua glória,
trono da sua grandeza, palácio de Sua Majestade, casa de seus escolhidos e
paraíso de todos os deleites?
Depois da excelência do lugar considera a nobreza dos moradores dele,
cujo número, cuja santidade, cujas riquezas e beleza excedem tudo o que se
pode pensar. S. João diz que é tão g rande a multidão dos escolhidos, que
ninguém basta para os contar. S. Dionísio diz que é tão grande o número dos
anjos, que excede sem comparação o de todas quantas coisas materiais há na
terra. Santo Tomás, conformando-se com este parecer, diz: Que assim como a
grandeza dos céus excede sem proporção à da terra, assim a multidão
daqueles espíritos gloriosos excede com a mesma vantagem a de todas as
coisas materiais que há neste mundo. Pois, que coisa pode ser mais admirável?
Por certo, coisa é esta que, se bem se considerasse, bastaria para deixar atônitos
todos os homens. E, se cada um daqueles bem-aventurados espíritos (ainda que
seja o menor deles) é mais belo de ver do que todo este mundo visível, que será
ver as perfeições e ofícios de cada um deles? Ali correm os anjos, ministram os
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arcanjos, triunfam os principados e alegram-se as potestades, dominam as
dominações, resplandecem as virtudes, relampagueiam os tronos, luzem os
querubins e ardem os serafins, e todos cantam louvores a Deus. E se a
companhia e comunicação dos bons é tão doce e amigável, que será tratar ali
com tantos bons, falar com os apóstolos, conversar com os profetas, comunicar
com os mártires e com todos os escolhidos?
E, se tão grande glória é gozar da companhia dos bons, que será gozar da
companhia e presença daquele a quem louvam as estrelas da manhã, de cuja
beleza o sol e a lua se maravilham, ante cujo merecimento se ajoelham os anjos
e todos aqueles espíritos soberanos? Que será ver aquele bem universal em
quem estão todos os bens e aquele mundo maior em que estão todos os
mundos, Aquele que sendo Uno é todas as coisas e sendo simplíssimo abrange
as perfeições de todas? Se tão grande coisa foi ouvir e ver o Rei Salomão, que
dizia a rainha de Sabá: Bem-aventurados os que assistem diante de ti e .fruem
da tua sabedoria, que será ver aquele sumo Salomão, aquela eterna sabedoria,
aquela infinita grandeza, aquela beleza inestimável, aquela imensa bondade e
gozar dela para sempre? Esta é a glória essencial dos santos, este o último fim e
porto de todos os nossos desejos.
Considera, depois disto, a glória dos corpos, os quais gozarão daqueles
quatro singulares dotes, que são sutileza, ligeireza, impassibilidade e claridade,
a qual será tão grande que cada um deles resplandecerá como o sol no reino de
seu Pai. Pois, se não mais de um sol, que está no meio do céu, basta para dar
luz e alegria a todo este mundo que farão tantos sóis e lâmpadas como ali
resplandecerão? E que direi de todos os outros bens que ali há? Ali haverá
saúde sem enfermidade, liberdade sem servidão, beleza sem fealdade,
imortalidade sem corrupção, abundância sem necessidade, sossego sem
turbação, segurança sem temor, conhecimento sem erro, fartura sem fastio,
alegria sem tristeza e honra sem contradição. Ali (diz S. Agostinho) será
verdadeira a glória, onde nenhum será louvado por erro nem por lisonja. Ali
será verdadeira a honra, a qual nem se negará ao digno, nem se concederá ao
indigno. Ali será verdadeira a paz, onde nem de si nem de outro será o homem
molestado. O prêmio da virtude será Aquele mesmo que deu a virtude e se
prometeu por galardão dela, o qual se verá sem fim, se amará sem tédio, e se
louvará sem cansaço. Ali o lugar é largo, belo, resplandecente e seguro; a
companhia muito boa e agradável o tempo de uma só maneira: não há distinto
em tarde e manhã, senão continuado com uma simples eternidade. Ali haverá
68
perpétuo verão, que com o frescor e ar do Espírito Santo sempre floresce. Ali
todos se alegram, todos cantam e louvam aquele sumo doador de tudo, por
cuja largueza vivem e reinam para sempre. Oh! Cidade Celestial, morada
segura, terra onde se acha tudo o que deleita! Povo sem murmuração,
habitantes quietos de homens sem nenhuma necessidade! Oh! Se se acabasse
já esta contenda, oh! Se se concluíssem os dias do meu desterro!, quando
chegará esse dia? Quando virei e comparecerei ante a face de meu Deus?

Dos benefícios divinos

ara dares graças ao Senhor por eles e mais te incenderes no amor de


. quem tanto bem te fez. E conquanto inúmeros sejam estes benefícios,
. contudo podes, ao menos, considerar estes cinco mais principais, a
saber: da Criação, Conservação, Redenção, Vocação com os outros benefícios
particulares e ocultos.
E primeiramente, quanto ao benefício da criação, considera com muita
atenção o que eras antes de seres criado, o que Deus fez contigo e te deu, antes
de todo merecimento. Convém saber: esse corpo com todos os seus membros e
sentidos e essa alma tão excelente, com aquelas três tão notáveis potências, que
são entendimento, memória e vontade. E olha bem que te dar esta tal alma foi
dar-te todas as coisas, pois nenhuma perfeição há em alguma criatura que o
homem não a tenha de sua maneira por onde parece que nos dar esta peça só,
foi dar-nos de uma vez todas as coisas juntas.
Quanto ao benefício da conservação, olha quão pendente está todo o teu
ser da Providência Divina; como não viverias um momento, nem darias um
passo, se não fosse por Ele; como todas as coisas do mundo Ele criou para teu
serviço: o mar, a terra, as aves, os peixes, os animais, as plantas, até os próprios
anjos do céu. Considera com isto a saúde que Ele te dá, as forças, a vida, o
alimento com todos os outros socorros temporais. E sobre tudo isto, pondera
69
muito as misérias e desastres em que cada dia vês caírem os outros homens,
nos quais também poderias ter caído, se Deus, por sua piedade, não te houvera
preservado.
Quanto ao benefício da redenção, podes considerar duas coisas: a
primeira, quantos e quão grandes tenham sido os bens que Ele nos deu
mediante o benefício da redenção; e a segunda, quantos e quão grandes hajam
sido os males que Ele padeceu em seu corpo e alma santíssima, para nos
ganhar estes bens; e para mais sentires o que deves a este Senhor pelo que por
ti padeceu, podes considerar estas quatro circunstâncias principais no mistério
da sua Sagrada Paixão, a saber: quem-padece, que é que padece, por quem
padece e por que causa o padece. Quem padece? Deus. Que é que padece? Os
maiores tormentos e desonras que jamais se padeceram. Por quem padece? Por
criaturas infernais e abomináveis, e semelhantes aos próprios demônios em
suas obras. Por que causa padece? Não por seu proveito nem por nosso
merecimento, senão pelas entranhas da sua infinita caridade e misericórdia.
Quanto ao benefício da vocação, considera primeiramente quamanha
mercê de Deus foi fazer-te cristão, chamar-te à fé por meio do batismo e
fazer-te também participante dos outros sacramentos. E se, depois deste
chamamento, perdida já a inocência, Ele te tirou do pecado, te volveu à sua
graça e te pôs em estado de saúde, como o poderias louvar por este benefício?
Que tão grande misericórdia foi aguardar-te tanto tempo e sofrer-te tantos
pecados, enviar-te tantas inspirações, e não te cortar o flo da vida como cortou
a tantos outros nesse mesmo estado; e, finalmente, chamar-te com tão poderosa
graça que ressuscitasses de morte a vida e abrisses os olhos à luz! Que
misericórdia foi, depois de já convertido tu, dar-te graça para não tornares ao
pecado, venceres o inimigo e perseverares no bem! Estes são os benefícios
públicos e conhecidos: há outros secretos, que não os conhece senão só aquele
que os recebeu e ainda outros há tão secretos, que não os conhece o próprio que
os recebeu, senão só aquele que os fez. Quantas vezes terás neste mundo
merecido por tua soberba, ou negligência, ou desagradecimento, que Deus te
desamparasse, como terá desamparado a outros muitos por algumas destas
causas, e não o fez! Quantos males, e ocasiões de males, terá prevenido o
Senhor com sua providência, desfazendo as redes do inimigo, encurtando-lhe
os passos, e não dando lugar a seus tratos e conselhos! Quantas vezes terá feito
com cada um de nós aquilo que Ele disse a S. Pedro: Olha que Satanás andava
muito empenhado em vos joeirar a todos como a trigo, mas eu roguei por ti,
70
para que a tua fé não desfaleça. Pois, quem poderá saber estes segredos senão
só Deus? Os benefícios positivos, bem os pode às vezes conhecer o homem,
mas os privativos, que não consistem em nos fazer bens, mas em nos livrar de
males, quem os conhecerá? Pois, assim por estes como pelos outros, razão é
que demos sempre graças ao Senhor, que entendamos quão alcançados
andamos de contas e quanto mais é o que devemos do que o que lhe podemos
pagar, pois ainda não o podemos entender.

Jesus entra em Jerusalém


“Eis que teu rei vem a ti cheio de mansidão, montado sobre uma jumenta e um
jumentinho, filho da que tem jugo” (Mt 21,5).
osso Redentor, avizinhando-se o tempo de sua paixão, parte de
. Betânia para entrar em Jerusalém. Que humildade de Jesus Cristo
. em querer entrar nessa cidade sentado sobre um jumento, sendo
ele o rei do céu. Ó Jerusalém, contempla o teu rei, como ele vem humilde e
manso. Não temas que ele venha para reinar sobre ti e apossar-se de tuas
riquezas; não, ele vem todo amor e cheio de compaixão para salvar-te e
trazer-te a vida com sua morte. Entretanto, o povo, que já o venerava por causa
de seus milagres e especialmente por causa da ressurreição de Lázaro, vem ao
seu encontro. Uns estendem suas vestes sobre o caminho em que devia passar,
outros espalham folhagens de árvores para o honorificar. Quem diria então que
esse Senhor, recebido com tantas honras, dentro de poucos dias teria de
aparecer aí mesmo como réu condenado à morte com uma cruz às costas?
Meu caro Jesus, quisestes, pois, fazer essa entrada solene para que vossa
paixão e morte fosse tanto mais ignominiosa quanto maior fora a honra
recebida. Os louvores, que agora vos dá essa ingrata cidade, em poucos dias
serão transformados em injúrias e maldições. Agora vos dizem:
“Hosana ao Filho de Davi, bendito aquele que vem em nome do Senhor” (Mt
21,9).

71
E depois levantarão a voz, dizendo: Tira-o, tira-o, crucifica-o. Agora
despojam-se de suas próprias vestes, e depois vos despojarão das vossas para
vos flagelar e crucificar. Agora cortam as palmas para as colocar debaixo dos
vossos pés e depois cortarão ramos de espinhos para com eles vos atravessarem
a cabeça. Agora vos bendizem e louvam e depois vos encherão de contumélias
e blasfêmias. Ao menos tu, minha alma, dize-lhe com amor e gratidão: Bendito
o que vem em nome do Senhor. Meu amado Redentor, sede sempre bendito, já
que viestes salvar-me: se não tivésseis vindo, estaríamos todos perdidos.
“E tendo-se aproximado e vendo a cidade, chorou sobre ela” (Lc 19,14).
Jesus, ao se aproximar da infeliz cidade, a contemplou e chorou,
pensando na sua ingratidão e ruína. Ah, meu Senhor, vós, chorando então sobre
a ingratidão de Jerusalém, choráveis também sobre a minha ingratidão e a ruína
de minha alma. Meu amado Redentor, vós chorais vendo o dano que eu mesmo
me causei, expulsando- vos de minha alma e obrigando-vos a condenar-me ao
inferno depois de haverdes morrido para me salvar. Oh! deixai que eu chore,
pois é a mim que compete o chorar ao considerar o mal que vos causei,
ofendendo-vos e separando-me de vós, que tanto me amastes. Eterno Pai, por
aquelas lágrimas que vosso Filho derramou sobre mim, dai-me a dor de meus
pecados. E vós, ó amoroso e terno Coração de meu Jesus, tende piedade de
mim, pois eu detesto acima de todos os males os desgostos que vos dei e estou
resolvido a nada mais amar afora vós.
Jesus Cristo, tendo entrado em Jerusalém e se ocupado o dia inteiro com
a pregação e cura dos enfermos, pela tarde não encontrou ninguém que o
convidasse a repousar em sua casa; viu-se por isso obrigado a voltar novamente
a Betânia. Meu amado Senhor, se os outros vos expulsam, eu não quero
expelir-vos. Houve, é verdade, um tempo desgraçado em que eu vos expulsei
de minha alma: agora, porém, estimo mais estar unido a vós do que possuir
todos os reinos do mundo. Ah, meu Deus, o que poderá jamais separar-me do
vosso amor?

72
O conselho dos Juízes e a traição de Judas
“Reuniram-se os pontífices e os fariseus em conselho e diziam: Que faremos
nós? porque este homem faz muitos milagres” (Jo 11,47).

is como no mesmo tempo em que Jesus se empenhava em conceder


. graças e fazer milagres em benefício dos homens, as primeiras
. personagens da cidade se reúnem para maquinar a morte do autor
da vida. Eis o que diz o ímpio pontífice Caifás:
“Considerai que vos convém que um homem morra pelo povo e desta forma a
nação toda não pereça” (Jo 11,50).

E desde esse dia, ajunta o mesmo apóstolo S. João, os malvados


pensaram em encontrar um modo de fazê-lo morrer. Ah, judeus, não temais,
pois este vosso Redentor não vos fugirá, não, ele veio expressamente à terra a
fim de morrer e por meio de sua morte vos libertar e a todos os homens da
morte eterna.
Mas eis que Judas se apresenta aos pontífices e diz-lhes:
“Que me quereis dar e eu vo-lo entregarei?” (Mt 26,15).

Que alegria sentiram então os judeus em conseqüência do ódio que


tinham a Jesus, vendo que um de seus próprios discípulos queria traí-lo e
entregá-lo nas suas mãos! Consideremos, a propósito, o júbilo que sente o
inferno, por assim dizer, quando uma alma, que por anos serviu a Jesus Cristo,
o trai por qualquer mísero bem ou vil satisfação.
Mas, ó Judas, se queres vender o teu Deus, exige pelos menos o preço
que ele merece. Ele é um bem infinito e por isso é digno de um preço infinito.
Deus do céu, tu fechas o negócio por apenas trinta dinheiros! Ó minha infeliz
alma, deixa a Judas, e volve a ti teu pensamento. Diz-me, por que preço
vendeste tantas vezes ao demônio a graça de Deus? Ah, meu Jesus,
envergonho-me de comparecer em vossa presença, pensando nas injúrias que
vos fiz. Quantas vezes vos voltei as costas e vos pospus a um capricho, a um
desejo, a um momentâneo e vil prazer? Já sabia que com tal pecado perdia
73
vossa amizade e voluntariamente a quis trocar por nada. Oh! tivesse eu morrido
antes de ter-vos assim ultrajado! Ó meu Jesus, arrependo- me de todo o coração
e desejaria morrer de dor.
Consideremos, entretanto, a benignidade de Jesus, que sabendo muito
bem o contrato feito por Judas, contudo, vendo-o, não o repele de si, não o olha
com maus olhos, antes o admite na sua companhia e até à sua mesa e o adverte
da sua traição, para que entre em si, e, vendo-o obstinado, chega até a
ajoelhar-se diante dele e a lavar-lhe os pés para enternecê-lo. Ah, meu Jesus,
vejo que o mesmo fizestes comigo. Eu vos desprezei e vos traí e vós não me
repelistes, mas me olhastes com amor e me admitistes também à vossa mesa na
santa comunhão. Meu caro Salvador, se vos tivesse eu sempre amado! Já agora
não posso mais separar-me de vossos pés e renunciar ao vosso amor.

Última ceia de Jesus Cristo com seus discípulos


“Sabendo Jesus que era chegada a sua hora para passar deste mundo ao Pai,
tendo amado os seus amou-os até ao fim” (Jo 13,1).
abendo Jesus que estava perto de sua morte, devendo abandonar este
. mundo, tendo até então amado demais os homens, quis então dar-lhes
. as últimas e maiores provas de seu amor. Sentado à mesa e todo
inflamado em caridade, volta-se para seus discípulos e diz-lhes:
“Desejei ardentemente comer esta páscoa convosco” (Lc 22,15).
Meus discípulos (e o mesmo dizia a cada um de nós), sabei que não
desejei outra coisa durante minha vida inteira senão comer convosco esta
última ceia, pois após ela terei de sacrificar minha vida por vossa salvação.
Desejais então tanto, ó meu Jesus, dar a vida por nós, vossas miseráveis
criaturas? Ah, esse vosso desejo inflama os nossos corações a desejar padecer e
morrer por vosso amor, desde que por nosso amor quisestes sofrer tanto e
morrer. Ó amado Redentor, fazei- nos compreender o que quereis de nós, que
só desejamos comprazer- vos em tudo. Suspiramos por dar-vos prazer, para ao
menos em parte corresponder ao grande amor que nos tendes. Aumentai
sempre em nós esta bela chama, que nos faça esquecer o mundo e nós mesmos,
para que doravante não pensemos senão em contentar o vosso amoroso
74
coração. Põe-se à mesa o cordeiro pascal, figura de nosso Salvador. Assim
como o cordeiro era comido todo naquela ceia, as¬sim também no dia seguinte
o mundo iria ver sobre o altar da cruz, devorado pelas dores, o cordeiro Jesus
Cristo.
“Tendo-se um discípulo reclinado sobre o peito de Jesus” (Jo 13,25).
Ó feliz São João, percebestes então a ternura que alimenta no seu coração
este amante Redentor para com as almas que o amam. Ah, meu doce Senhor,
quantas vezes me favorecestes com tal graça, sim, também eu conheci a ternura
do amor que me tendes, quando me consolastes com inspirações celestes e
doçuras espirituais e apesar de tudo isso não me conservei fiel a vós. Ah, não
me deixes mais viver assim tão ingrato para convosco. Eu quero ser todo
vosso, aceitai- me e socorrei-me.
“Levantou-se da mesa, depôs suas vestes e tomando uma toalha cingiu-se com
ela. Em seguida deitou água numa bacia e começou a lavar os pés dos
discípulos e a enxugá-los com a tolha com que estava cingido” (Jo 13,4-5).
Minha alma, contempla o teu Jesus, como se levante da mesa e pratica
esse ato de humildade. O rei do universo, pois, o Unigênito de Deus se rebaixa
a lavar os pés de suas criaturas. Ó Anjos, que dizeis? Seria já um grande favor
se Jesus lhes permitis¬se lavar com suas lágrimas seus pés divinos, como o fez
com a Madalena. Mas não, ele quis lançar-se aos pés de seus servos para
deixar-nos no fim de sua vida este grande exemplo de humildade e sinal do
grande amor que consagrava aos homens. E nós, Senhor, continuaremos a ser
sempre tão soberbos que não podemos suportar uma palavra de desprezo, uma
pequenina desatenção sem nos ressentirmos subitamente, sem que vos venha o
pensamento de vingança, quando pelos nossos pecados merecíamos ser
calcados pelo demônio no inferno. Ah, meu Jesus, o vosso exemplo nos tornou
mui amáveis as humilhações e os desprezos. Eu vos prometo de hoje em diante
querer sofrer por vosso amor qualquer injúria ou afronta que me for dirigida.

75
Da instituição do Santíssimo Sacramento
“Enquanto estavam ceando, tomou Jesus o pão, benzeu-o e partiu-o e deu-o a
seus discípulos, dizendo: Recebei e comei: isto é o meu corpo” (Mt 26,26).
epois do lava-pés, ato de tão grande humildade, cuja prática Jesus
. recomendou aos discípulos, retomou as suas vestes e sentando-se
. novamente à mesa quer então dar aos homens a última prova da
ternura que nutria por eles: e esta foi a instituição do santíssimo Sacramento do
altar. Para tal fim, tom um pão, consagra- o e, distribuindo-o a seus discípulos,
disse-lhes: Tomai e comei, isto é o meu corpo. Recomendou-lhes, em seguida,
que todas as vezes que comungassem se recordassem de sua morte por amor
deles (1Cor 11,26). Jesus procedeu então como um príncipe que amasse muito
sua esposa e estivesse para morrer: escolhe entre suas jóias a mais bela, e
chamando a esposa, diz-lhe: Vou em breve morrer, minha esposa; para que não
te esqueças de mim, deixo-te esta jóia em recordação: quando a olhares,
recorda-te de mim e do amor que te dediquei. São Pedro de Alcântara escreve
em suas meditações:
“Nenhuma língua é suficiente para declarar a grandeza do amor que
Jesus consagra a cada alma e por isso, querendo este esposo partir deste
mundo, para que sua ausência não a fizesse esquecer-se dele, deixou-lhe em
recordação este santíssimo sacramento, no qual ele permanece em pessoa,
para que não houvesse entre os dois outro penhor para avivar-lhe a memória
do que ele mesmo”.
Aprendamos daqui quanto agrada a Jesus a recordação de sua missão:
instituiu propositalmente o sacramento do altar, para que nos recordemos
continuamente do amor imenso que nos demonstrou na sua morte.
Ó meu Jesus, ó Deus enamorado das almas, até onde vos arrastou o amor
que tendes aos homens? Até vos fazerdes seu alimento! Dizei-me o que mais
podeis fazer para obrigá-los a vos amar? Vós vos dais todo a nós na santa
comunhão, sem nada vos reservar; é, pois, justo que nos demos também a vós
sem reserva. Procurem os outros o que quiserem: riquezas, honras e o mundo;
eu quero ser todo vosso, não quero amar coisa alguma afora de vós, meu Deus.
Vós dissestes que quem se alimentar de vós, viverá só por vós:
“Aquele que me comer, viverá também por mim” (Jo 6,58).
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Visto que tantas vezes me admitistes a alimentar-me de vossa carne,
fazei-me morrer a mim mesmo, para que eu viva só para vós, só para vos servir
e dar- vos prazer. Ó meu Jesus, eu quero colocar em vós todos os meus afetos,
ajudai-me e ser-vos fiel.
S. Paulo nota o tempo em que Jesus instituiu este grande sacramento e
diz:
“Jesus, na noite em que ia ser traído, tomou o pão e disse: Tomai e comei, isto
é o meu corpo” (1Cor 11,23).
Ó Deus, naquela mesma noite em que os homens se preparavam para dar
a morte a Jesus, o amante Redentor nos preparava este pão de vida e de amor
para nos unir todos a si, como ele o declarou:
“Quem come a minha carne permanece em mim e eu nele” (Jo 6,57).
Ó amor de minha alma, digno de um infinito amor, vós não podeis dar-me
maiores provas para me fazer compreender o afeto e a ternura que me
consagrais. Pois bem, atraí-me todo a vós: se eu não sei dar-vos meu coração
inteiro, arrancai-mo vós mesmo. Ah, meu Jesus, quando serei todo vosso, como
vós vos fazeis todo meu, quando vos receberei nesse sacramento de amor?
Iluminai-me e descobri-me sempre mais as vossas belas qualidades, que vos
fazem tão merecedor de afetos, para que eu me abrase sempre mais em amor
por vós e me esforce em comprazer-vos. Eu vos amo, meu sumo bem, minha
alegria, meu amor, meu tudo.

Jesus ora no horto e sua sangue


“E tendo dito o hino, saíram para o monte das Oliveiras… Então Jesus foi com
eles a uma granja chamada Getsêmani” (Mt 26,30).

endo feito a ação de graças depois da ceia, Jesus deixa o cenáculo


. com seus discípulos, entra no horto de Getsêmani e se põe a orar;
. mal, porém, começa a orar assaltam-no ao mesmo tempo um grande
77
temor, um grande tédio e uma grande tristeza, diz São Marcos (14,33). E São
Mateus ajunta: “Começou a entristecer-se e ficar angustiado”. Oprimido por
essa tristeza, nosso Redentor diz que sua alma está aflita até a morte (Mc
14,34). Passou-lhe então diante dos olhos toda a cena funesta dos tormentos e
dos opróbrios que lhe estavam preparados. Esses tormentos o oprimiram
durante sua paixão cada um por sua vez, sucessivamente, mas aqui no horto
todos juntos e ao mesmo tempo o afligiram, as bofetadas, os escarros, os
flagelos, os espinhos, os cravos e os vitupérios que teria de sofrer depois. Jesus
os abraça todos juntos, mas, aceitando-os, sua natureza treme, agoniza e ora:
“Estando em agonia, orava com mais instância” (Lc 22,43).
Mas, ó meu Jesus, quem vos obriga a sofrer tantas penas? É o amor que
tenho aos homens, responde Jesus. Oh! como o céu terá pasmado vendo a
fortaleza tornar-se fraca, a alegria do paraíso se entristecer. Um Deus aflito! E
por quê? Para salvar os homens, suas criaturas. Naquele horto se consumou o
primeiro sacrifício: Jesus foi a vítima, o amor foi o sacerdote e o ardor de seu
afeto para com os homens foi o fogo bem-aventurado que consumia o
sacrifício.
“Meu Pai, se for possível, passe de mim este cálice” (Mt 26,39).
Assim suplica Jesus. Ele, porém, assim suplica não tanto para ver-se livre
como para nos fazer compreender a pena que sofre e aceita por nosso amor.
Suplica também assim para nos ensinar que nas tribulações podemos pedir a
Deus que nos livre delas, mas, ao mesmo tempo, devemos em tudo nos
confortar com sua divina vontade e dizer como ele:
“Contudo não se faça o que eu quero, mas como vós quereis” (Mt 26,39).
Sim, meu Senhor, eu abraço por vosso amor todas as cruzes que quiserdes
enviar-me. Vós inocentemente tanto sofrestes por meu amor e eu, pecador,
depois de haver merecido tantas vezes o inferno, recusarei sofrer para vos
comprazer e alcançar de vós o perdão e a vossa graça? Não seja feita a minha
vontade, mas a vossa.
“Prostrou-se em terra” (Mc 14,35).
Jesus naquela oração prostrou-se com a face na terra, porque, vendo-se
coberto com a veste sórdida de todos os nossos pecados, se envergonhara de
levantar o rosto para o céu. Meu caro Redentor, não teria coragem de pedir-vos
perdão de tantas injúrias que vos fiz, se os vossos sofrimentos e méritos não me
dessem confiança. Padre eterno, olhai para a face de vosso Cristo; não olheis as
78
minhas iniqüidades, olhai esse vosso Filho querido, que treme, que agoniza,
que sua sangue para obter-me de vós o perdão.
“E seu suor se fez como gotas de sangue correndo sobre a terra” (Lc 22,44).
Contemplai-o e tende piedade de mim. Mas, ó meu Jesus, nesse jardim
não existem carnífices que vos flagelem, nem espinhos, nem cravos: e que vos
faz derramar tanto sangue? ah, eu compreendo, não foi tanto a previsão dos
sofrimentos iminentes que então vos afligiu, pois já vos havíeis oferecido para
sofrer essas penas: Foi oferecido porque ele mesmo o quis (Is 53,7), mas foi a
vista de meus pecados: eles foram a prensa cruel que espremeu o sangue de
vossas sagradas veias. Não foram tão cruéis os carrascos, não foram tão atrozes
os flagelos, os espinhos, a cruz, como o foram os meus pecados, ó meu doce
Salvador, que tanto vos afligiram no horto.
Achando-vos num estado de grande aflição, eu ainda me prestei a
atormentar-vos e muito com o peso de minhas culpas. Se eu tivesse pecado
menos, vós teríeis padecido menos. Eis aí a paga que eu vos dei por vosso
amor, que quis morrer por mim, ajuntando penas às vossas penas. Meu amado
Senhor, eu me arrependo de vos haver ofendido; pesa-me disso, mas esta minha
dor é mui pequena. Desejaria uma dor que me tirasse a vida. Eia, pois, por
aquela agonia tão amarga que sofrestes no horto, fazei-me participar da aversão
que tivestes dos meus pecados. E se então eu vos afligi com as minhas
ingratidões, fazei que agora eu vos amo de todo o meu coração, eu vos amo
mais do que a mim mesmo e por vosso amor renuncio a todos os prazeres e
bens da terra. Vós só sois e sereis sempre o meu único bem, meu único amor.

Jesus é preso e amarrado


“Levantai-vos, vamos: eis que já está perto quem me há de trair” (Mc 14,42).
abendo o Redentor que Judas juntamente com os judeus e soldados que
. o vinham prender já estavam perto, levanta-se ainda banhado no suor
. da morte, e com o rosto pálido mas com o coração tão inflamado em
amor, vai ao seu encontro para entregar-se em suas mãos, e, vendo-os reunidos,
pergunta-lhes: “A quem buscais?” Imagina, minha alma, que Jesus te pergunta
79
do mesmo modo: Dize-me, a quem buscas? Ah, meu Senhor, a quem eu
procuro senão a vós, que viestes do céu à terra em busca de mim, para que me
não perdesse?
“Prenderam a Jesus e o ligaram” (Jo 18,13).
Ó céus, um Deus amarrado! Que diríamos, se víssemos um rei preso e
acorrentado por seus criados! E que devemos dizer então, vendo um Deus
entregue às mãos da gentalha? Ó cordas felizes, vós que ligastes o meu
Redentor, prendei-me também a ele, mas prendei-me de tal modo que eu não
possa separar-me mais de seu amor; prendei o meu coração à sua vontade
santíssima, para que de agora em diante não queira nada mais senão o que ele
quer.
Contempla, minha alma, como uns lhe põe as mãos, outros o ligam, estes
o injuriam, aqueles o batem, e o Cordeiro inocente se deixa atar e esbofetear à
vontade deles. Não procura fugir de suas mãos, não pede auxílio, não se queixa
de tantas injúrias, não pergunta por que o maltratam assim. Eis realizada a
profecia de Isaías:
“Foi oferecido porque ele o quis e não abriu sua boca, como uma ovelha será
conduzido ao matadouro” (Is 53,7).
Não fala e não se lamenta, porque ele mesmo já se oferecera à justiça
para satisfazer e morrer por nós e assim deixou-se conduzir à morte qual
ovelha, sem abrir a boca.
Olha como, preso e circundado por aquele populacho, é arrastado do
horto e conduzido às pressas aos pontífices na cidade. E onde estão seus
discípulos? que fazem? Se, não podendo livrá-lo das mãos de seus inimigos, ao
menos o acompanhassem para defender sua inocência diante dos juízes, ou
então para consolá-lo com sua presença! Mas não. O evangelho diz:
“Então seus discípulos, abandonando-o, fugiram todos” (Mc 14,50).
Que dor não sentiu então Jesus, vendo-se abandonado e deixado até por
aqueles que lhe eram caros! Jesus viu então todas as almas que, mais
favorecidas por ele, deveriam depois abandoná-lo e voltar-se ingratamente as
costas. Ah, meu Senhor, minha alma foi uma dessas infelizes que, depois de
tantas graças, luzes e convites recebidos de vós, esqueceram-se ingratamente
de vós e vos abandonaram. Recebei-me, por piedade, agora que arrependido e
contrito a vós me volto para não vos deixar mais, ó tesouro, ó vida, ó amor de
minha alma.

80
Jesus é apresentado aos pontífices e por eles condenado à morte
“Eles, apoderando-se de Jesus, o conduziram a Caifás, príncipe dos
sacerdotes, onde os escribas e anciãos se haviam congregado”. (Mt 26, 57).

marrado como um malfeitor, nosso Salvador entra em Jerusalém,


. onde poucos dias antes entrara aclamado com tantas honras e louvores.
Atravessa ele de noite a estrada, entre lanternas e tochas, e tão grande
era o rumor e o tumulto, que fazia crer que se conduzia preso algum famoso
malfeitor. Pessoas aparecem à janela e perguntam: “Quem é o prisioneiro?” E
a resposta é: “Jesus Nazareno, que se descobriu ser um sedutor, um impostor e
falso profeta, merecedor da morte”.
Oh! quais não devem ter sido os sentimentos de desprezo e desdém de
todo o povo, quando viram Jesus Cristo ser aprisionado por ordem dos juízes
como impostor… Ele que, outrora fora por eles acolhido como Messias! Oh!
como cada um transformou então a veneração em ódio, arrependendo-se de
havê-lo homenageado, envergonhando-se de ter honrado um “malfeitor” como
Messias.
Eis como o Redentor é apresentado quase em triunfo a Caifás, que sem
dormir o esperava; e, vendo-o na sua presença, sozinho e abandonado por todos
os seus, enche-se de alegria.
— Contempla, minha alma, teu doce Salvador: como se mostra todo
humilde e manso diante daquele soberbo pontífice, estando amarrado como um
criminoso e com os olhos baixos. Contempla aquela bela face, que, no meio de
tantos desprezos e injúrias, não perdeu sua natural serenidade e doçura.
Ah, meu Jesus, agora que vos vejo cercado, não de anjos que vos louvam,
mas desse povo vil que vos odeia e despreza, que farei? Continuarei talvez a
desprezar-vos como no passado? Ah não! Na vida que me resta, quero
estimar-vos e amar-vos como vós mereceis: e vos prometo não amar ninguém
fora de vós, nem pretender ser amado por outros além de vós. Direi, com Santa
Inês: Nenhum amor permitirei, exceto vós. Vós sereis meu único amor, meu
bem, meu tudo. Deus meus, et omnia.

81
O ímpio pontífice interroga Jesus sobre seus discípulos e sobre sua
doutrina, para descobrir um motivo para condená-lo. Jesus humildemente lhe
responde:
“Eu não falei em segredo, falei em público. Os que estão ao redor de mim,
podem atestar o que eu disse” (Jo 18, 20-21).
Jesus chama seus próprios inimigos como testemunhas. Mas, depois de
uma resposta tão acertada e tão mansa, precipita-se do meio daquela corja um
algoz mais insolente, que, tratando-o de temerário, lhe dá uma forte bofetada,
dizendo:
“É assim que respondes ao pontífice?” (Jo 18, 22).
Ó Deus, uma resposta tão humilde e modesta merecia uma afronta tão
grande?
O indigno pontífice o vê; mas em vez de repreender aquele carrasco,
cala-se, e com seu silêncio aprova o que ele fizera. Jesus, diante de tal injúria,
para livrar-se da acusação de falta de respeito ao pontífice, diz:
“Se falei mal, mostra o que eu disse de mal, mas se falei bem, por que me
bates?” (Jo 18, 23).
Ah, meu amável Redentor, vós sofreis tudo para pagar as afrontas que eu
fiz à divina majestade com os meus pecados. Ah, perdoai-me, pelo
merecimento desses mesmos ultrajes que por mim sofrestes.
“Enquanto isso, os príncipes dos sacerdotes e todo o conselho procuravam um
falso testemunho contra Jesus, a fim de o levarem à morte”. (Mt 26, 59).
Buscam um testemunho para condenar Jesus e, não o encontrando, o
pontífice busca novamente nas palavras de nosso Salvador um motivo para
declará-lo réu e por isso lhe diz:
“Eu te conjuro, pelo Deus vivo, que nos digas se tu és o Cristo, Filho de Deus”
(Mt 26, 63).
O Senhor, vendo-se instado em nome de Deus, confessa a verdade e
responde:
“Eu o sou. E vereis o Filho do Homem sentado à direita do poder de Deus e
vindo sobre as nuvens do céu” (Mc 14, 62).
Ou seja, me vereis não assim desprezível como agora vos pareço, mas
num trono de majestade, sentado como juiz de todos os homens, sobre as
nuvens do céu.
82
Ao ouvir isso, o pontífice, em vez de lançar-se com o rosto em terra para
adorar seu Deus e seu juiz, rasga suas vestes e exclama:
“Blasfemou! Que necessidade temos ainda de testemunhas? Eis aí! Acabastes
de ouvir a blasfêmia! Que vos parece?” (Mt 26, 65-66).
E todos os outros sacerdotes responderam que, sem dúvida alguma, era
digno de morte (cf. Mt 26, 66).
Ah, meu Jesus! Vosso Eterno Pai proferiu a mesma sentença, pois que vos
oferecestes para pagar os nossos pecados. Disse-lhe o Pai: Meu Filho, já que
queres satisfazer pelos homens, és réu de morte, e por isso é necessário que tu
morras.
“Então cuspiram-lhe no rosto e agrediram-no com socos; outros, deram-lhe
bofetadas, dizendo: Profetiza, Cristo. Diz-nos quem é que te feriu?” (Mt 26,
67-68).
Puseram-se todos a maltratá-lo como a um malfeitor já condenado à
morte e digno de todos os insultos: este lhe escarra no rosto; aquele o agride
com socos; outro, lhe dá bofetadas. E cobrindo-lhe o rosto com um pano, como
acrescenta São Marcos (cf. 13, 65), zombam dele como se fosse um falso
profeta, e dizem-lhe: “Já que és profeta, adivinha quem te bateu agora”. São
Jerônimo escreve que foram tantos os escárnios e zombarias a que sujeitaram o
Senhor naquela noite, que somente no dia do juízo serão todos eles conhecidos.
Portanto, ó meu Jesus, não repousastes naquela noite, mas fostes o objeto
da chacota e dos maus tratos daquele povo. Ó homens, como podeis
contemplar um Deus tão humilhado, e ser soberbos? Como podeis ver vosso
Redentor padecer tanto por vós, e não amá-lo? Oh Deus, como é possível que
aquele que crê e considera as dores e ignomínias sofridas por Jesus por nosso
amor, possa viver sem abrasar-se de amor por um Deus tão benigno e tão
amoroso para conosco?
O pecado de Pedro, que renega Jesus e jura nunca tê-lo conhecido,
aumenta-lhe a dor.
— Vai, minha alma, vai àquele cárcere em busca de teu Senhor, tão aflito,
escarnecido e abandonado, e agradece-lhe e consola-o com teu arrependimento,
já que tu também o desprezaste e renegaste durante tanto tempo. Dize-lhe que
desejarias morrer de dor, pensando que no passado tanto amarguraste o seu
doce Coração que tanto te amou. Dize-lhe que agora o amas e nada mais
desejas senão sofrer e morrer por seu amor.

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— Ah, meu Jesus, esquecei-vos dos desgostos que vos dei, e olhai-me
com um olhar amoroso, como olhastes para Pedro depois que ele vos renegou,
pois desde então ele não cessou de chorar seu pecado enquanto viveu.
— Ó grande Filho de Deus! Ó amor infinito, que padeceis por aqueles
mesmos homens que vos odeiam e maltratam. Vós sois a glória do paraíso!
Muita honra já teríeis dado aos homens somente permitindo que beijassem os
vossos pés. Mas, oh Deus, quem vos levou a este ponto tão humilhante de ser
feito joguete da gente mais vil do mundo? Dizei-me, ó meu Jesus, que posso eu
fazer para compensar-vos a honra que esses vos roubam com seus opróbrios?
Sinto que me respondeis: “Suporta os desprezos por amor de mim, como eu os
suportei por ti”. Sim, meu Redentor, quero obedecer-vos. Meu Jesus,
desprezado por amor de mim, desejo e contento-me com ser desprezado por
amor de vós, tanto quanto vos aprouver.

Jesus diante de Pilatos, de Herodes e do povo


“Chegada a manhã, reuniram-se em conselho para entregar Jesus à morte. E,
amarrado, o conduziram e entregaram ao governador Pôncio Pilatos”. (Mt 27,
1-2).
ilatos, depois de muitas interrogações feitas aos judeus e ao nosso
. Salvador, reconheceu que Jesus era inocente e que as acusações
. eram, na verdade, calúnias. Por isso, dirigiu-se aos judeus e disse que
não encontrava motivo para condenar aquele homem (cf. Jo 18, 38). Vendo,
porém, os judeus tão empenhados em matá-lo, e ouvindo que Jesus era da
Galileia, remeteu-o a Herodes a fim de livrar-se do embaraço (cf. Lc 23, 7).
Herodes sentiu uma grande alegria por ter diante de si a Jesus Cristo,
esperando presenciar algum dos muitos prodígios feitos pelo Senhor, como lhe
haviam relatado. Começou então a interrogá-lo com muitas perguntas. Jesus,
porém, se cala e nada responde, repreendendo assim a vã curiosidade daquele
temerário (cf. Lc 23, 9).
Pobre da alma à qual o Senhor não fala mais! Meu Jesus, era isso que eu
merecia, depois de me haverdes chamado tantas vezes ao vosso amor com
tantas vozes piedosas e eu não vos ter dado ouvido. Mereceria, sim, que não

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me falásseis mais e me abandonásseis. Não o façais, porém, meu amado
Redentor. Tende piedade de mim e falai-me:
“Falai, Senhor, porque vosso servo vos escuta” (1Sm 3, 9).
Dizei-me, Senhor, o que quereis de mim, pois em tudo eu quero
obedecer-vos e contentar-vos.
Mas, vendo Herodes que Jesus não lhe respondia, desprezou-o e,
considerando-o louco, mandou que o revestissem com uma veste branca e
zombou dele, no que foi acompanhado por sua corte inteira; e assim
vilipendiado e escarnecido, o reenviou a Pilatos (cf. Lc 23, 11).
Eis como Jesus é então levado pelas ruas de Jerusalém, revestido com
aquela veste de escárnio.
Ó meu Salvador desprezado! Ainda faltava esta injúria: ser tratado como
louco! Ó cristãos, contemplai como o mundo trata a Sabedoria eterna!
Bem-aventurado aquele que se alegra ao ser tratado como louco pelo
mundo e não quer saber de mais nada senão de Jesus crucificado, amando os
sofrimentos e desprezos e dizendo com São Paulo:
“Pois julguei que não devia saber coisa alguma entre vós senão a Jesus
Cristo, e Jesus Cristo crucificado” (1Cor 2, 2).
O povo hebreu tinha o direito de pedir ao governador romano a libertação
de um réu na festa da Páscoa. Por isso Pilatos propõe-lhes Jesus e Barrabás,
dizendo:
“A quem quereis que eu solte, a Barrabás ou a Jesus?” (Mt 27, 21).
Pilatos esperava certamente que o povo preferisse Jesus a Barrabás,
homem perverso, homicida e ladrão público, odiado por todos. Mas o povo,
instigado pelos chefes da sinagoga, pede, de repente, sem nenhuma
deliberação, a Barrabás. Pilatos, surpreendido e ao mesmo tempo indignado,
vendo um tão grande perverso ser preferido a um inocente, diz:
“Que farei então de Jesus? Todos responderam: Seja crucificado! E Pilatos:
Mas que mal ele fez? E eles gritavam ainda mais: Seja crucificado!” (Mt 27,
23).
Ah, Senhor, assim procedi eu quando pequei. Eu me propus então qual
coisa gostaria de perder mais rápido: vós ou aquele vil prazer. E respondi:
“Quero o prazer e não me incomodo de perder a Deus!” Assim outrora falei,
meu Senhor. Agora, porém, digo que prefiro a vossa graça a todos os prazeres e

85
tesouros do mundo. Ó bem infinito, ó Jesus, eu vos amo acima de todos os
bens: só a vós quero e nada mais.
Assim como foram apresentados ao povo Jesus e Barrabás, também foi
apresentado ao Eterno Pai quem ele queria salvar: seu Filho ou o pecador. E o
Pai Eterno responde: “Morra meu Filho e salve-se o pecador!” É o que atesta o
Apóstolo:
“Não poupou seu próprio Filho, mas o entregou por todos nós” (Rm 8, 32).
Sim, o próprio Salvador diz que a tal ponto Deus amou o mundo que,
para salvá-lo, entregou aos tormentos e à morte seu Filho unigênito (cf. Jo 3,
16). Por isso exclama a Igreja: “Ó admirável condescendência de vossa
piedade para conosco! Ó inapreciável predileção de vossa caridade: para
remirdes o escravo, entregastes o Filho!” (Hino Exsultet).
Ó santa fé! Como pode um homem que crê nessas coisas, não
transformar-se todo em fogo para amar um Deus que tanto ama as criaturas?
Oxalá tivesse eu sempre diante dos olhos esta imensa caridade de Deus!

Jesus é flagelado numa coluna


“Pilatos tomou Jesus e mandou-o flagelar”. (Jo 19, 1).
endo que os dois meios empregados para não condenar aquele inocente,
. isto é, remetê-lo a Herodes e apresentá-lo junto com Barrabás, não
. tinham dado resultado, Pilatos escolhe um outro meio: castigá-lo e
depois mandá-lo embora. Convoca, pois, os judeus e lhes diz:
“Apresentastes-me este homem... e interrogando-o diante de vós não achei nele
culpa alguma, nem tampouco Herodes. Portanto, depois de castigado, o
soltarei” (Lc 23, 14-17).
Oh Deus, que injustiça! Ele o declara de fato inocente, e depois lhe
destina o castigo. Ó meu Jesus, vós sois inocente, mas eu não; e como vós
quereis satisfazer por mim a justiça divina, não é injustiça, não, mas é justo que
sejais punido.
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Ó Pilatos, a que castigo condenas esse inocente? A ser flagelado!
Destinas, pois, a um inocente uma pena tão cruel e tão vergonhosa? Mas assim
foi feito:
“Pilatos se apoderou de Jesus e o mandou flagelar” (Jo 19, 1).
Contempla agora, minha alma, como depois dessa tão injusta sentença os
carrascos se lançam com fúria sobre o manso Cordeiro, e com gritos e festejos
o conduzem ao pretório e o amarram à coluna. E Jesus, o que faz? Ele, todo
humilde e submisso, aceita por nossos pecados aquele tormento tão doloroso,
tão humilhante. Eis como já empunham os flagelos, e, dado o sinal, levantam o
braço e começam a golpear de todos os lados aquele corpo sacrossanto. Ó
carrascos, vós vos enganastes, não é ele o réu; sou eu quem merece esses
flagelos.
Aquele corpo virginal mostrou-se antes todo pálido; depois, começou a
jorrar sangue de todas as partes. Ah! e tendo os algozes já dilacerado todo o seu
corpo, continuaram impiedosamente a golpear as feridas, acrescentando dores
sobre dores:
“E sobre a dor das minhas chagas acrescentaram novas chagas” (Sl 68, 27).
— Ó minha alma, serás tu também do número daqueles que olham com
indiferença um Deus flagelado? Considera, sim, as dores; mas ainda mais o
amor com que o teu doce Senhor padece por ti este grande tormento.
Certamente Jesus pensava em ti na sua flagelação. Oh Deus! Ainda que Ele
tivesse sofrido apenas um golpe por amor de ti, já deverias arder em amor por
ele, dizendo: Um Deus se compraz em ser flagelado por meu amor! Mas não!
pelos teus pecados Ele se contentou que lhe fossem dilaceradas todas as carnes,
como já o predissera Isaías:
“Ele foi ferido por causa das nossas iniquidades” (Is 53, 5).
E o mesmo profeta ainda diz:
“Ah, o mais belo de todos os homens já não tem mais beleza” (Is 53, 2).
Os flagelos o deformaram tanto que ficou irreconhecível:
“Seu rosto se achava como encoberto e parecia desprezível, e por isso nenhum
caso fizemos dele” (Is 53, 3).
Ficou reduzido a um estado tão miserável, que parecia um leproso
coberto de chagas dos pés até à cabeça: assim Deus o quis maltratado e
humilhado. E por que isso? Porque nosso amável Redentor quis sofrer aquelas
penas que nos eram devidas:
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“Em verdade, ele tomou sobre si as nossas enfermidades e carregou nossas
dores” (Is 53, 4).
— Seja para sempre bendita a vossa bondade, ó meu Jesus, que quisestes
ser tão atormentado para livrar-me dos tormentos eternos. Oh! pobre e infeliz
do que não vos ama, ó Deus de amor.
Mas, enquanto os carrascos o flagelam tão cruelmente, o que faz o nosso
amável Salvador? Ele não fala, não se lamenta, não suspira; mas com paciência
oferece tudo a Deus para torná-lo misericordioso em nosso favor:
“Como cordeiro mudo diante daquele que o tosquia, assim ele não abriu a sua
boca” (At 8, 32).
— Ah, meu Jesus, Cordeiro inocente, esses bárbaros não vos cortam a lã,
mas a pele e as carnes. Mas esse é o batismo de sangue que durante vossa vida
tanto haveis desejado. Dissestes:
“Devo ser batizado com um batismo e quanto anseio até que ele se cumpra”
(Lc 12, 50).
Levanta-te, ó minha alma, e lava-te naquele sangue precioso, do qual foi
banhada toda aquela terra afortunada. E como poderei eu, meu doce Salvador,
duvidar do vosso amor, vendo-vos todo chagado e dilacerado por mim? Sei que
cada uma de vossas chagas é um testemunho certíssimo do afeto que me
tendes. Sinto que cada uma de vossas feridas me pede amor. Bastaria uma só
gota de sangue para me salvar, mas vós quisestes dá-lo todo, sem reserva, para
que eu sem reserva me dê todo a vós. Sim, meu Jesus, eu me dou todo a vós
sem reserva: aceitai-me e ajudai-me a vos ser fiel.

88
Jesus é coroado de espinhos e tratado como rei de teatro
“Então os soldados do governador conduziram Jesus ao pretório e
rodearam-no com todo o pelotão. Arrancaram-lhe as vestes e cobriram-no com
um manto vermelho. Depois, teceram uma coroa de espinhos, puseram-lha
sobre a cabeça e na sua mão direita uma vara”. (Mt 27, 27-29).
assemos a considerar os outros bárbaros tormentos que aqueles
. soldados acrescentaram ao nosso já atormentado Senhor.
Reúnem-se todos os do pelotão e colocam-lhe sobre os ombros um
velho manto vermelho, parodiando a púrpura real; nas mãos, uma vara
figurando o cetro; e na cabeça, um feixe de espinhos em sinal de coroa, mas
como se fosse um capacete que lhe cingia toda a cabeça. E já que, somente
com as mãos, os espinhos não entravam ainda mais para perfurar aquela cabeça
(já tão dolorida pelos golpes dos flagelos), servem-se de varas, e, cuspindo-lhe
ao mesmo tempo no rosto, cravam-lhe com toda a força aquela cruel coroa (cf.
Mt 27, 30).
Ó espinhos, ó criaturas ingratas, o que fazeis? Deste modo atormentais
vosso Criador? Mas por que condenar os espinhos? Ó pensamentos iníquos dos
homens, fostes vós que atravessastes a cabeça de meu Redentor. Sim, meu
Jesus: nós, com nossos perversos consentimentos, tecemos a vossa coroa de
espinhos. Agora eu os detesto e os odeio mais do que a morte ou outro mal
qualquer. E a vós, ó espinhos consagrados pelo sangue do Filho de Deus,
volto-me novamente, humilhado: transpassai a minha alma e fazei-a sentir
sempre a dor de ter ofendido um Deus tão bom! E vós, Jesus, meu amor, já que
tanto padeceis por mim, desprendei-me das criaturas e de mim mesmo, para
que em verdade eu possa dizer que já não sou mais meu, mas somente vosso e
todo vosso.
Ó meu aflito Salvador, ó Rei do mundo, a que vos vejo reduzido? A
apresentar-se como rei de zombaria e de dor! A ser o escárnio de toda a
Jerusalém! Escorre o sangue da cabeça transpassada do Senhor, sobre sua face
e seu peito. Ó meu Jesus, me espanta a crueldade dessa gente: não satisfeita de
vos ter esfolado quase da cabeça aos pés, agora vos atormenta com novos
ultrajes e desprezos. Mas me espanto ainda mais com vossa mansidão e vosso
amor, pois tudo sofreis e aceitais por nós com tanta paciência:

89
“...injuriado, não injuriava; recebendo maus tratos, não fazia sequer ameaças,
porém se entregava àquele que o julgava injustamente” (1Pd 2, 23).
Devia cumprir-se a predição do profeta: que o nosso Salvador seria
coberto de dores e ignomínias:
“Oferecerá a face ao que o ferir; será saturado de opróbrios” (Lm 3, 30).
Mas vós, soldados, não estais ainda satisfeitos? Depois de o terem assim
atormentado e caçoado como rei, ajoelham-se diante dele e dizem-lhe aos risos:
“Nós te saudamos, ó rei dos judeus!” E levantando-se, com risadas e
escárnios dão-lhe mais bofetadas (cf. Mt 27, 29; Jo 19, 3).
Oh Deus, aquela sagrada cabeça de Jesus já estava toda dolorida pelas
feridas dos espinhos; por isso, qualquer movimento lhe causava dores mortais:
daí que toda bofetada ou pancada lhe eram de um tormento crudelíssimo.
Levanta-te, ó minha alma, e ao menos tu reconhece nele o supremo Senhor de
todas as coisas, como ele o é em verdade. E como rei de dor e de amor,
agradece-lhe e ama-o, já que é para esse fim que ele padece: para ser amado
por ti.

Pilatos mostra Jesus ao povo, dizendo: Ecce Homo!


“Pilatos saiu… e disse-lhes: Eis o homem”. (Jo 19, 5).
esus foi novamente conduzido a Pilatos depois de sua flagelação e
. coroação de espinhos. Pilatos o olhou e, vendo como estava tão
. dilacerado e desfigurado, persuadiu-se de que o povo se moveria à
compaixão só com vê-lo. Por isso, saiu para fora no terraço levando consigo
nosso aflito Salvador, e disse: Ecce homo, como se dissesse: “Judeus,
contentai-vos com o que já padeceu este pobre inocente”. Ecce homo: eis
aquele homem que temíeis fazer-se vosso rei; ei-lo, contemplai a que estado
está reduzido. Que temor podeis ainda ter agora que se acha num estado que
não pode mais viver? Deixai-o sair para morrer em sua casa, visto que pouco
lhe resta de vida.
“E Jesus saiu, trazendo a coroa de espinhos e uma veste de púrpura”. (Jo 19,
15).

90
Olha também, minha alma, para aquele terraço e vê teu Senhor amarrado
e conduzido por um carrasco: vê como está meio despido, ainda que coberto de
chagas e de sangue; com as carnes dilaceradas, com aquele pedaço de púrpura
que lhe serve unicamente de escárnio, e com aquela horrenda coroa que o
atormenta sem cessar. Contempla a que foi reduzido teu pastor para te
encontrar a ti, ovelha perdida.
— Ah, meu Jesus, sob quantos aspectos os homens vos fazem aparecer,
mas todos são de dor e de infâmia! Ah, meu doce Redentor, vós causais
compaixão até às feras, mas aqui não encontrais piedade! Eis o que responde
essa gente:
“Ao verem-no, os pontífices e ministros clamavam dizendo: Crucifica-o,
crucifica-o” (Jo 19, 6).
Mas que dirão eles no dia do juízo final, quando vos virem glorioso,
sentado como juiz num trono de luz? Ó meu Jesus, também eu durante muito
tempo exclamei: Crucifica-o, crucifica-o, quando vos ofendi com os meus
pecados. Agora, porém, me arrependo de todo o meu coração e vos amo acima
de todos os bens, ó Deus de minha alma. Perdoai-me pelos méritos de vossa
Paixão, e fazei que naquele dia eu vos veja aplacado e não irritado contra mim.
Do terraço, Pilatos mostra Jesus aos judeus e diz: Ecce homo. Mas ao
mesmo tempo, do alto do céu o Eterno Pai nos convida a contemplar Jesus
Cristo naquele estado e diz também: Ecce homo. Ó homens, este homem que
vedes tão ferido e vilipendiado, este é o meu Filho amado, que sofre dessa
maneira por vosso amor e para pagar por vossos pecados: contemplai-o,
agradecei-lhe e amai-o.
— Meu Deus e meu Pai, vós me dizeis que eu devo contemplar o vosso
Filho. Eu, porém, vos peço que vós o contempleis por mim. Contemplai-o e,
por amor desse vosso Filho, tende piedade de mim.
Vendo os judeus que, apesar de seus clamores, Pilatos procurava libertar
Jesus, pensaram em obrigá-lo a condenar o Salvador, afirmando que, se não o
fizesse, seria declarado inimigo de César:
“Os judeus, porém, clamavam dizendo: Se soltares a este, não és amigo de
César. Todo o que se faz rei, contradiz a César” (Jo 19, 12).
E de fato acertaram, porque Pilatos, temendo perder as boas graças de
César, toma consigo a Jesus Cristo e senta-se para dar a sentença e condená-lo:
“Pilatos, tendo ouvido estas palavras, trouxe Jesus para fora e assentou-se no
seu tribunal” (Jo 19, 13).

91
Contudo, atormentado pelos remorsos de sua consciência, pois sabia que
condenava um inocente, Pilatos volta-se novamente para os judeus:
“E disse-lhes: Eis o vosso rei. Acaso hei de condenar o vosso rei? Eles, porém,
clamavam: Fora! Fora! Crucifica-o” (Jo 19, 14-15).
Replicaram os judeus, mais enfurecidos que na primeira vez: Eh Pilatos!
Que nosso rei? Que rei? Por que esta insistência? Fora, fora! Tira-o daqui e
faze com que seja crucificado!
— Ah, meu Senhor, Verbo Encarnado, viestes do céu à terra para
conversar com os homens e para salvá-los, e estes não podem mais nem sequer
ver-vos entre eles, e tanto se esforçam para dar-vos a morte e não mais vos ver.
Pilatos ainda lhes resiste e replica:
“Hei então de crucificar vosso rei? Os pontífices responderam: Não temos
outro rei senão César” (Jo 19, 15).
— Ah, meu adorável Jesus, eles não querem reconhecer-vos como seu
Senhor, e afirmam não ter outro rei senão César. Eu vos confesso como meu
Rei e Deus, e protesto que não quero outro rei para meu coração senão vós,
meu Redentor. Infeliz de mim! Houve um tempo em que me deixei também
dominar por minhas paixões, e vos expulsei de minha alma, ó meu Divino Rei.
Agora, quero que só vós reineis nela: que vós ordeneis e ela vos obedeça. Com
Santa Teresa vos direi: “Ó amado Jesus, que me amais acima do que eu posso
compreender, fazei que minha alma vos sirva mais segundo o vosso gosto que
o dela. Morra, pois, o meu eu, e em mim viva um outro que não eu. Ele viva e
me dê vida. Ele reine e eu seja escravo, não querendo minha alma outra
liberdade”. Oh, feliz a alma que pode dizer em verdade: “Meu Jesus, vós sois o
meu único rei, meu único bem, meu único amor!”

92
Jesus é condenado por Pilatos
“Então Pilatos o entregou para que fosse crucificado” (Jo 19, 16).
ilatos, depois de tantas vezes ter declarado a inocência de Jesus, a
. declara novamente lavando suas mãos e protestando que era inocente
. do sangue daquele homem justo; e que os judeus eram responsáveis
por sua morte:
“Mandado vir água, lavou as mãos à vista do povo, dizendo: Eu sou inocente
do sangue deste justo, isto é lá convosco” (Mt 27, 24)”.
E depois disso, dá a sentença e o condena à morte.
— Ó injustiça jamais vista no mundo! O juiz condena o acusado ao
mesmo tempo que o declara inocente!
São Lucas escreve que Pilatos entregou Jesus nas mãos dos judeus para
que fizessem com ele o que desejavam:
“Entregou Jesus à sua vontade” (Lc 23, 25).
De fato, é isso que acontece quando se condena um inocente: ele é abandonado
nas mãos de seus inimigos, para que o façam morrer, e morrer da maneira que
for do gosto deles.
Pobres judeus, vós ali dissestes:
“Seu sangue caia sobre nós e nossos filhos” (Mt 27, 25)...
e assim chamastes sobre vós o castigo, e este já vos alcançou: vossa nação já
carrega e carregará até ao fim do mundo a pena daquele sangue inocente.
A injusta sentença de morte é lida diante do Senhor condenado. Ele a ouve e
humildemente a aceita, inteiramente resignado ao justo decreto de seu Eterno
Pai que o condena à cruz. [Jesus aceita aquela sentença], não pelos delitos que
falsamente lhe imputavam os judeus, mas por nossas culpas verdadeiras, pelas
quais se oferecera a satisfazer com sua morte. Pilatos diz na terra: Morra Jesus!
e o Pai Eterno o confirma no céu, dizendo: Morra meu Filho. E o Filho diz
também: “Eis-me aqui, eu obedeço. Aceito a morte, e a morte da cruz”.
“Ele se humilhou, fazendo-se obediente até à morte, e morte de cruz”. (Fl 2,
8).
— Meu amado Redentor, vós aceitastes a morte que me era devida, e com
vossa morte me obtivestes a vida. Eu vos agradeço, meu amor, e espero poder
93
louvar no céu as vossas misericórdias para sempre: “Cantarei eternamente as
misericórdias do Senhor”. Mas já que vós, inocente, aceitastes a morte de cruz,
eu, pecador, aceito aquela morte que vós me reservastes; e aceito-a com todas
aquelas penas que a devem acompanhar, e desde já a ofereço ao vosso Eterno
Pai, unindo-a à vossa santa morte. Vós morrestes por meu amor; eu quero
morrer por amor a vós. Ah! pelos méritos de vossa morte tão dolorosa,
concedei-me, ó meu Jesus, a sorte de morrer em vossa graça e ardendo em
vosso santo amor.

Jesus leva a cruz ao Calvário


ublicada a sentença, aquele povo miserável dá um grito de júbilo e
. diz: "Felizmente, felizmente, Jesus já foi condenado. Vamos, rápido,
. não percamos tempo: prepare-se a cruz, e que ele morra hoje mesmo,
pois amanhã é Páscoa”. E por isso, imediatamente o agarram, tiram-lhe aquele
farrapo de púrpura e restituem-lhe suas próprias vestes: para que, como diz
Santo Ambrósio, fosse reconhecido pelo povo como aquele mesmo “impostor”
(como o chamavam) que dias antes tinha sido acolhido como o Messias:
“Tiraram-lhe o manto e o revestiram com suas vestes, e o conduziram para ser
crucificado” (Mt 27, 31).
Em seguida, tomam duas vigas grosseiras e rapidamente preparam a cruz;
e com insolência ordenam-lhe a tomá-la sobre os ombros e carregá-la até ao
lugar do suplício.
— Ó Deus, que crueldade! Sobrecarregar com tamanho peso um homem
já tão atormentado e desprovido de forças!
Jesus abraça a cruz com amor:
“E, levando sua cruz às costas, saiu para aquele lugar que se chama
Calvário” (Jo 19, 17).
Eis que a justiça sai com os condenados, e entre esses vai também o
nosso Salvador, carregando o próprio altar em que deve sacrificar sua vida.
Muito bem considera um piedoso autor que, na Paixão de Jesus Cristo, foi tudo
maravilhoso e excessivo como Moisés e Elias o afirmaram no Tabor:
“E falavam de seu excesso, que iria realizar em Jerusalém” (Lc 9, 31).

94
Quem poderia jamais crer que ao verem Jesus repleto de chagas pelo
corpo, os judeus nada mais sentissem que raiva e desejo de vê-lo crucificado?
Que tirano obrigou jamais o próprio réu a levar sobre seus ombros o
instrumento de seu suplício, vendo-o já exausto e consumido de dores? É um
horror considerar a multidão de tormentos e humilhações a que submeteram
Jesus no espaço de algumas horas, da sua prisão até sua morte, sucedendo uns
aos outros sem intervalo: prisões, bofetadas, cusparadas, zombarias, flagelos,
espinhos, cravos, agonias e morte. Todos se uniram, hebreus e gentios,
sacerdotes e leigos, para tornarem Jesus Cristo o “homem dos desprezos e das
dores”, como havia predito o profeta Isaías.
O juiz declara o Salvador inocente, mas uma tal declaração só serve para
acarretar-lhe maiores sofrimentos e humilhações; pois que, se logo no princípio
Pilatos tivesse condenado Jesus à morte, não lhe teriam preferido Barrabás,
nem teria sido tratado como louco, nem flagelado tão cruelmente, nem coroado
de espinhos.
Mas voltemos a considerar o espetáculo admirável do Filho de Deus, que
vai morrer por aqueles mesmos homens que o conduzem à morte. Eis realizada
a profecia de Jeremias:
“E eu era semelhante a um manso cordeiro, que é levado ao matadouro” (Jr
11, 19).
— Ó cidade ingrata! assim expulsas de ti com tão grande desprezo o teu
Redentor, depois de receberes dele tantas graças? Oh Deus, é isso o que faz
também uma alma ingrata que, depois de favorecida por Deus com tantos dons,
o expulsa pelo pecado.
A vista de Jesus nessa caminhada para o Calvário causava tal compaixão,
que as mulheres ao vê-lo se punham a chorar e lamentar de tanta crueldade:
“Seguia-o uma grande multidão de povo e de mulheres, que choravam e o
lamentavam” (Lc 23, 27).
O Redentor, porém, voltando-se para elas, diz:
“Não choreis sobre mim, mas sobre vossos filhos. Porque se assim fazem com
o ramo verde, que farão com o seco?” (Lc 23, 31).
Com isso, quis nos dar a entender o grande castigo que nossos pecados
merecem: pois se Ele, inocente e Filho de Deus, por ter-se oferecido somente a
satisfazer nossos pecados já foi assim tratado, como então deveriam ser
tratados os homens por seus próprios pecados?

95
Contempla-o também tu, minha alma. Vê como está todo dilacerado,
coroado de espinhos, oprimido com aquele pesado lenho, e acompanhado por
gente inimiga que o cobre de injúrias e maldições enquanto o segue. Oh Deus!
o seu corpo sacrossanto está todo retalhado, de tal maneira que a qualquer
movimento que faz se renova a dor de todas as suas chagas. A cruz já o
atormenta antes do tempo, pois ela comprime seus ombros chagados e vai
encravando cada vez mais os espinhos daquela bárbara coroa! Que dores a cada
passo! Jesus, porém, não a abandona. Sim, não a deixa, porque por meio da
cruz ele quer reinar nos corações dos homens, como predisse Isaías:
“E foi posto o principado sobre o seu ombro” (Is 9, 6).
— Ah, meu Jesus, com que sentimentos de amor para comigo vós
caminháveis para o Calvário, onde devíeis consumar o grande sacrifício da
vossa vida!
Minha alma, abraça também a tua cruz por amor de Jesus, que por teu
amor padece tanto. Observa como ele vai adiante com sua cruz, e te convida a
segui-lo com a tua:
“Quem quiser vir após mim, tome sua cruz e siga-me” (Mt 16, 24).
— Sim, meu Jesus, não quero deixar-vos, quero seguir-vos até à morte.
Vós, porém, pelos merecimentos de vossa subida tão dolorosa ao Calvário,
dai-me a força de levar com paciência as cruzes que me enviardes. Oh! vós
tornastes muito amáveis as dores e os desprezos, abraçando-os com tanto amor
por nós.
“Encontraram um homem de Cirene, chamado Simão; obrigaram-no a
carregar a cruz de Jesus”. (Mt 27, 32). “E puseram-lhe a cruz para que a
carregasse atrás de Jesus”. (Lc 23, 26).
Acaso foi a compaixão que os moveu a desvencilhar Jesus da cruz e
fazê-la carregar pelo Cireneu? Não, foi a iniquidade e o ódio. Vendo os judeus
que o Senhor quase exalava sua alma a cada passo que dava, temeram que
antes de chegar ao Calvário expirasse no caminho; e porque eles o queriam ver
morto, mas morto crucificado, para que sua memória ficasse para sempre
denegrida, obrigaram o Cireneu a carregar-lhe a cruz. Era essa sua intenção,
pois, para eles, morrer crucificado era o mesmo que morrer amaldiçoado por
todos: “Maldito o que pende do madeiro” (Dt 21, 23), dizia sua lei. Por isso,
quando buscavam a morte de Jesus, não só pediam a Pilatos que o fizesse
morrer, mas sempre instavam, gritando: “Crucifica-o! Seja crucificado!”, para

96
que seu nome ficasse tão difamado naquela terra que nem sequer fosse mais
lembrado, conforme a profecia de Jeremias:
“Exterminemo-lo da terra dos viventes e não haja mais memória de seu nome”
(Jr 11, 19).
E foi essa a razão por que lhe tiravam a cruz dos ombros: para que chegasse
vivo ao Calvário, e assim tivessem o gosto de vê-lo morrer crucificado.
— Ah, meu Jesus desprezado, vós sois a minha esperança e todo o meu amor.

Jesus é crucificado
al chegou Jesus ao Calvário, esgotado e consumido de dores, dão-lhe a
. beber vinho misturado com fel, como se costumava dar aos condenados
. à cruz para mitigar-lhes um pouco o sentimento de dor. Mas Jesus, que
queria morrer sem alívio, apenas o provou, mas não bebeu (cf. Mt 27, 34).
Forma-se um círculo em torno de Jesus. Os soldados tiram-lhe as vestes,
que, estando coladas ao seu corpo todo chagado e retalhado, ao serem
arrancadas levam consigo muitos pedaços de carne; e depois, atiram-no sobre a
cruz. Jesus estende suas sagradas mãos e oferece ao Eterno Pai o grande
sacrifício de si mesmo, e suplica-lhe que o aceite por nossa salvação.
Eis que já tomam com fúria os pregos e os martelos e, transpassando as
mãos e os pés de nosso Salvador, pregam-no na cruz. O som das marteladas
ressoa por todo aquele monte e se faz ouvir também por Maria, que,
acompanhando o Filho, já havia também chegado.
— Ó mãos sagradas, que com vosso toque curastes tantos enfermos! por
que vos atravessam nessa cruz? Ó pés sacrossantos, que tanto vos cansastes
correndo atrás de nós, ovelhas perdidas! por que vos encravam com tantas
dores?
No corpo humano, apenas se atinge um nervo, é tão aguda a dor que isso
ocasiona desmaios e espasmos mortais. Qual, pois, terá sido o tormento de
Jesus, ao lhe serem transpassadas com cravos as mãos e os pés, lugares cheios
de ossos e nervos?
— Ó meu doce Salvador, quanto vos custou a minha salvação e o desejo
de conquistar o amor de um verme miserável! E eu, ingrato, tantas vezes vos
neguei o meu amor e voltei-vos as costas!

97
A um dado momento, levantam a cruz com o crucificado e fazem-na cair
com violência no buraco cavado na rocha. É firmada com pedras e madeira, e
fica Jesus pregado nela entre dois ladrões, para aí findar a vida.
“E o crucificaram e com ele dois outros, um de cada lado, e no meio Jesus”
(Jo 19, 18).
Isaías já o havia predito:
“Ele foi posto no número dos malfeitores” (Is 53, 12).
Na cruz estava afixado um letreiro que dizia: “Jesus Nazareno, rei dos
judeus”. Queriam os sacerdotes que se mudasse tal inscrição; Pilatos, porém,
não quis mudá-la, porque Deus queria que todos soubessem que os judeus
fizeram morrer seu verdadeiro Rei e Messias, por tanto tempo esperado e
desejado por eles mesmos.
Jesus na cruz: eis a prova do amor de um Deus! Eis a última aparição que
o Verbo encarnado faz nesta terra. A primeira foi num estábulo e esta última é
numa cruz: tanto uma como a outra demonstram o amor e a caridade imensa
que Ele tem pelos homens. São Francisco de Paula, contemplando um dia o
amor de Jesus Cristo em sua morte, estando em êxtase e elevado acima da
terra, exclamou três vezes em alta voz: “Ó Deus caridade! Ó Deus caridade! Ó
Deus caridade!” Com isso, o Senhor queria ensinar-nos por meio do santo que
nós nunca seremos capazes de compreender o amor infinito que nos
demonstrou esse Deus, querendo sofrer tanto e morrer por nós.
— Ó minha alma, chega-te humilhada e enternecida àquela cruz; beija ao
mesmo tempo este altar em que morre por ti, qual vítima de amor, o teu amável
Senhor. Coloca-te debaixo de seus pés, e faz que escorra sobre ti seu sangue
divino, e suplica ao Eterno Pai, mas em sentido diferente do que fizeram os
judeus:

“Que seu sangue caia sobre nós” (Mt 27, 25).


Senhor, que esse sangue escorra sobre nós e nos lave de nossos pecados.
Este sangue não vos pede vingança, como pedia o sangue de Abel, mas vos
pede perdão e misericórdia para nós. É o que o vosso Apóstolo me anima a
esperar, quando diz:
“Vós, porém, vos aproximastes do mediador da Nova Aliança, Jesus, e da
aspersão do sangue mais eloquente que o de Abel” (Hb 12, 24).
Oh Deus, quanto padece na cruz nosso moribundo Salvador! Cada
membro está dolorido, e um não pode socorrer o outro, pois que os pés e as
98
mãos estão pregados. A cada instante ele sofre dores mortais; e assim pode-se
dizer que, naquelas três horas de agonia, Jesus sofreu tantas mortes quantos
foram os momentos em que esteve na cruz. Sobre esse leito de dor não teve o
Senhor um só momento de alívio ou repouso: ora se apoiava sobre os pés, ora
sobre as mãos; mas onde se apoiava crescia a dor. Em suma, aquele corpo
sacrossanto estava suspenso sobre suas próprias chagas, pois aquelas mãos e
pés deviam sustentar o peso de todo o corpo.
— Ó meu caro Redentor, se vos observo exteriormente, não vejo senão
chagas e sangue; se contemplo vosso interior, vejo vosso Coração todo aflito e
desconsolado. Leio sobre essa cruz que vós sois rei; mas que insígnias tendes
de realeza? Não vejo outro trono senão esse lenho de opróbrio; não vejo outra
púrpura senão vossa carne ensanguentada e dilacerada; não vejo outra coroa
senão esse feixe de espinhos que tanto vos atormenta. Ah, sim, tudo vos
proclama rei; não de honra, mas de amor: essa cruz, esse sangue, esses cravos e
essa coroa, são incontestavelmente insígnias de amor.
Assim, Jesus na sua cruz procura mais o nosso afeto que a nossa
compaixão; e se pede compaixão, pede-a unicamente para que ela nos induza a
amá-lo. Pela sua bondade, ele já merece todo o nosso amor; mas agora procura
ser amado ao menos por compaixão.
— Ah, meu Jesus, tivestes muita razão de afirmar, antes da vossa Paixão,
que uma vez levantado na cruz havíeis de atrair para vós todos os corações (cf.
Jo 12, 32). Oh! quantas flechas de fogo enviais desse trono de amor aos nossos
corações! Oh! quantas almas felizes atraístes dessa cruz a vós, livrando-as das
profundezas do inferno. Permiti-me, pois, dizer-vos: com razão, meu Senhor,
vos colocaram no meio de dois ladrões, pois vós, com vosso amor, santamente
arrancastes de Lúcifer tantas almas que por justiça lhe pertenciam em razão de
seus pecados; e eu espero ser uma destas. Ó chagas de meu Jesus, ó belas
fornalhas de amor, recebei-me no meio de vós, para que eu não mais arda nas
chamas do inferno como mereço, mas arda em santas chamas de amor por
Deus, aquele mesmo Deus que por mim quis morrer consumido de tormentos.
Os carrascos, depois de haverem crucificado Jesus, dividem entre si as
suas vestes, segundo a profecia de Davi:
“Repartiram entre si as minhas vestes e lançaram sorte sobre a minha túnica”
(Sl 21, 19).
E assentando-se todos, esperam por sua morte.

99
— Minha alma, assenta-te aos pés daquela cruz, e debaixo de sua sombra
de salvação repousa durante tua vida inteira, a fim de que possas dizer com a
esposa sagrada:
“Assentei-me à sombra daquele que eu tanto havia desejado” (Ct 2, 3).
Oh! que repouso encantador é o que encontram as almas amantes de Deus
junto a Jesus crucificado, no meio dos tumultos do mundo, das tentações do
inferno e dos temores dos juízos divinos!
Estando Jesus em agonia, com os membros doloridos e com o coração
desolado e triste, procurava quem o consolasse.
Mas não, meu Redentor, não há quem vos console. Se ao menos houvesse
alguém que se compadecesse de vós e com lágrimas acompanhasse a vossa
agonia tão atroz! Mas, ó tristeza, vejo que uns vos injuriam, outros vos
escarnecem, outros ainda blasfemam contra vós. Uns dizem:
“Se és o Filho de Deus, desce da cruz” (Mt 27, 40).
Outros:
“Ó tu, que destróis o templo de Deus... salva-te a ti mesmo” (Mc 15, 29-30).
E outros:
“Salvou a outros e não pode salvar-se a si mesmo” (Mt 27, 42).
Oh Senhor! qual condenado se viu jamais tão coberto de injúrias e
opróbrios ao mesmo tempo que morria no patíbulo?

100
Palavras de Jesus na cruz
as o que faz Jesus vendo-se alvo de tantos ultrajes? O que diz?
. Intercede por aqueles que assim o maltratam:
“Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem” (Lc 23, 34).
Jesus orou então também por nós, pecadores. Por isso, voltados para o
Eterno Pai, digamos com confiança:
— Ó Pai, ouvi a voz deste Filho querido que vos pede para perdoar-nos.
Um tal perdão é sem dúvida grande misericórdia com relação a nós, que não o
merecíamos; mas é justiça com relação a Jesus Cristo, que
superabundantemente satisfez por nossos pecados. Vós vos obrigastes, pelos
méritos de Jesus, a perdoar e a receber na vossa graça quem se arrepende das
ofensas que vos fez. Ó meu Pai, eu me arrependo de todo o meu coração de vos
ter ofendido, e em nome desse vosso Filho vos peço perdão: perdoai-me e
recebei-me na vossa graça.
“Senhor, lembra-te de mim quando entrares no teu reino”. (Lc 23, 42).
Assim foi que se dirigiu o bom ladrão a Jesus agonizante, que lhe
respondeu:
“Em verdade eu te digo: hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23, 43).
Assim se cumpriu o que Deus já havia dito por Ezequiel: que quando um
pecador se arrepende de suas culpas, Deus lhe perdoa e se esquece das ofensas
que lhe foram feitas:
“Se, porém, o ímpio fizer penitência... não me recordarei mais de todas as suas
iniquidades” (Ez 18, 21).
— Ó piedade imensa, ó bondade infinita de meu Deus, quem deixará de
vos amar? Sim, meu Jesus, esquecei-vos das injúrias que vos fiz, e recordai-vos
da morte tão cruel que por mim sofrestes: e por ela dai-me o vosso reino na
outra vida, e na presente fazei reinar em mim o vosso santo amor. Que somente
o vosso amor domine o meu coração, e seja ele o meu único senhor, meu único
desejo, meu único amor. Ó feliz ladrão, que mereceste acompanhar com
paciência a morte de Jesus! E feliz de mim, ó meu Jesus, se tiver a sorte de
morrer amando-vos e unindo a minha morte à vossa santa morte.
“Estava, porém, ao pé da cruz de Jesus, sua Mãe”. (Jo 19, 25).

101
— Considera, minha alma, Maria ao pé da cruz, que transpassada de
dores e com os olhos fixos no amado e inocente Filho, contempla as
crudelíssimas dores externas e internas no meio das quais ele morre. Ela está
toda resignada e em paz, oferecendo ao Eterno Pai a morte do Filho por nossa
salvação. Mas muito a afligem a compaixão e o amor.
Oh Deus! Quem não se compadeceria de uma mãe que se encontrasse
junto ao patíbulo do filho que lhe está morrendo diante dos olhos?
Mas aqui devemos considerar quem seja essa Mãe e quem seja esse Filho.
Maria amava esse Filho imensamente mais do que todas as mães amam os seus
filhos. Ela amava Jesus por ser ao mesmo tempo seu Filho e seu Deus: Filho
sumamente amável, incomparavelmente belo e santo, Filho que lhe fora sempre
respeitoso e obediente, Filho que tanto a amara e que desde a eternidade a
escolhera por mãe. E essa Mãe foi quem teve de ver morrer de dores um tal
filho, diante de seus olhos, naquele lenho infame, sem que lhe pudesse dar o
menor alívio. Ao contrário, sua presença aumentava o tormento do Filho ao
vê-la padecer assim por seu amor.
Ó Maria, pelas dores que sofrestes na morte de Jesus, tende piedade de
mim e recomendai-me a vosso Filho. Ouvi como Ele, na pessoa de São João,
entrega-me a vós:
“Mulher, eis aí teu filho” (Jo 19, 26).
“E perto da hora nona, clamou Jesus em alta voz, dizendo: Meu Deus, meu
Deus, por que me abandonaste?” (Mt 27, 46).
Jesus agonizando na cruz, com o corpo estarrecido de dor e o espírito
inundado de aflição (pois que aquela tristeza que o assaltou no horto o
acompanhou até ao último suspiro de sua vida), procura alguém que o console,
mas não encontra ninguém, como já o predissera Davi:
“Esperei alguém que me consolasse e não o encontrei” (Sl 68, 21).
Olha para sua Mãe e esta não o consola; antes, mais o aflige com sua
presença. Olha ao redor e vê que todos se mostram como seus inimigos.
Vendo-se assim privado de toda consolação, volta-se para seu Eterno Pai
a pedir-lhe alívio. Porém, vendo-o coberto com todos os pecados dos homens,
pelos quais Ele estava na cruz a satisfazer sua justiça divina, o Eterno Pai
também permite que ele morra consumido de dores. E foi então que Jesus, para
exprimir a veemência de seu sofrimento, gritou dizendo: “Meu Deus, meu
Deus, por que até vós me abandonais?” A morte de Jesus foi, pois, uma morte

102
mais atroz que a de todos os mártires, pois que foi uma morte inteiramente
desolada e privada de todo o alívio.
Mas, ó meu Jesus, se vos oferecestes espontaneamente a uma morte tão
dura, por que então vos lamentais? Ah, eu vos compreendo, vós vos lamentais
para nos fazer compreender a pena excessiva com que morreis, e para nos dar,
ao mesmo tempo, ânimo para confiar e nos resignarmos no tempo em que nos
virmos desolados e privados da assistência sensível da graça divina.
— Meu doce Redentor, esse vosso abandono me faz esperar que Deus
não me abandonará, apesar de tê-lo traído tantas vezes. Ó meu Jesus, como
pude viver tanto tempo esquecido de vós? Agradeço-vos por vos não terdes
esquecido de mim. Suplico-vos que me façais recordar sempre da morte cruel
que sofrestes por meu amor, para que eu não me esqueça mais de vós e do
amor que me consagrastes.
Sabendo, entretanto, o Salvador que seu sacrifício já estava consumado,
disse que tinha sede e os soldados puseram-lhe nos lábios uma esponja
embebida em vinagre:
“Em seguida, sabendo Jesus que tudo estava consumado, para se cumprir
ainda a Escritura, disse: Tenho sede... Eles lhe chegaram à boca uma esponja
ensopada em vinagre” (Jo 19, 28).
A Escritura que devia cumprir-se era a profecia de Davi:
“E na minha sede deram-me vinagre para beber” (Sl 68, 22).
— Mas, Senhor, vós não vos queixais de tantas dores que vos arrebatam a
vida, e vos lamentais da sede? Ah, a sede de Jesus era diferente daquela que
pensamos. A sede que ele tem é o desejo de ser amado pelas almas pelas quais
morre.
— Logo, ó Jesus meu, vós tendes sede de mim, verme miserável; e eu
não terei sede de vós, bem infinito? Ah, sim, eu vos quero, eu vos amo e desejo
agradar-vos em tudo. Ajudai-me, Senhor, a expulsar de meu coração todos os
desejos terrenos, e fazei que em mim reine o único desejo de agradar-vos e
fazer a vossa vontade.
Ó santa vontade de Deus, vós que sois a feliz fonte que saciais as almas
enamoradas: saciai-me também, e sede o alvo de todos os meus pensamentos e
de todos os meus afetos.

103
Morte de Jesus
is que o nosso amável Redentor se aproxima do fim de sua vida [sobre a
. terra].

Ó, minha alma, contempla esses olhos que se obscurecem, essa bela face
que empalidece, esse Coração que bate lentamente, esse corpo
sagrado que vai se abandonando à morte.
“Tendo Jesus experimentado o vinagre, disse: Tudo está consumado” (Jo 19,
30).
Estando Jesus para expirar, apresentaram-se diante de seus olhos todos os
sofrimentos de sua vida: pobreza, suores, penas e injúrias suportadas; e,
oferecendo tudo novamente a seu Eterno Pai, disse: Tudo está cumprido, tudo
está consumado. Sim, consumou-se tudo o que os profetas predisseram sobre
mim. Em suma, consumou-se inteiramente o sacrifício que Deus esperava para
perdoar o mundo, e a justiça divina já está plenamente satisfeita.
Consummatum est — “Tudo está consumado”, disse Jesus voltado para seu
Pai. Consummatum est — “Tudo está consumado”, disse Jesus ao mesmo
tempo, voltado para nós, como se afirmasse:
Ó homens, fiz tudo que eu podia fazer para salvar-vos e conquistar o
vosso amor. Fiz a minha parte; fazei agora a vossa: amai-me, e não vos
lamenteis de ter que amar um Deus que chegou a morrer por vós.
— Ah, meu Salvador, pudesse também eu dizer no momento de minha
morte, ao menos no referente à vida que me resta: “Tudo está consumado”;
Senhor, eu cumpri com a vossa vontade, eu vos obedeci em tudo. Dai-me força,
meu Jesus, pois eu espero e proponho realizar tudo com o vosso auxílio.
“E clamando com voz forte, Jesus disse: Pai, em tuas mãos entrego o meu
espírito”. (Lc 23, 46).
Foi essa a última palavra que Jesus disse na cruz. Vendo que sua alma
estava prestes a separar-se de seu corpo dilacerado, disse todo resignado à
vontade divina e com confiança de Filho: “Pai, eu vos entrego o meu espírito”,
como se dissesse: “Meu Pai, eu não tenho vontade própria, não quero nem
viver nem morrer; se vos apraz que eu continue a padecer nesta cruz, eis-me

104
aqui, estou pronto; nas vossas mãos entrego o meu espírito, fazei de mim o que
vos aprouver”.
Oh! se assim disséssemos também, quando estamos sobre a cruz, e nos
deixássemos guiar em tudo pelo beneplácito do Senhor! Segundo S. Francisco
de Sales, este é o santo abandono em Deus, o qual constitui toda a nossa
perfeição. É ele que devemos realizar no momento da morte; mas, para fazê-lo
bem naquela hora, é preciso praticá-lo com frequência durante a vida.
— Sim, meu Jesus, nas vossas mãos entrego a minha vida e a minha
morte. Abandono-me inteiramente a vós e desde já vos entrego a minha alma
no fim de minha vida: acolhei-a nas vossas santas chagas, como vosso Pai
acolheu vosso espírito quando morrestes na cruz.
E eis que Jesus já está morrendo.
Vinde, anjos do céu, vinde assistir à morte de vosso Deus. E vós, Maria, ó
Mãe das dores, aproximai-vos mais da cruz. Levantai os olhos para vosso Filho
e olhai-o mais atentamente, pois está prestes a expirar.
Eis que o Redentor já chama a morte e lhe dá licença para se apoderar
dele: “Vem, ó morte. Depressa! Faze o teu dever! Tira-me a vida e salva as
minhas ovelhas”.
A terra treme, abrem-se os sepulcros, rasga-se o véu do templo. Pela
violência das dores, faltam já as forças ao Senhor; falta-lhe o calor natural,
falta-lhe a respiração; e Ele, soltando o corpo, abaixa a cabeça sobre o peito,
abre a boca e expira
“E tendo inclinado a cabeça, entregou o espírito” (Jo 19, 30).
— Sai, ó bela alma de meu Salvador! Sai e vem abrir-nos o paraíso até
agora fechado para nós; vai apresentar-te à majestade divina e impetrar-nos o
perdão e a salvação.
O povo, alvoroçado em volta de Jesus por causa do grande brado com
que tinha proferido as últimas palavras, contempla-o com atenção, em silêncio,
e o vê expirar; e observando que não faz mais movimento, exclama: “Morreu,
morreu”. Assim Maria ouve todos falarem, e ela também diz: “Morreu meu
Filho!”
Morreu! Oh Deus, quem morreu? O autor da vida, o Unigênito de Deus, o
Senhor do mundo.
Ó morte, que foste o espanto do céu e da natureza! Um Deus morrer por
suas criaturas! Ó caridade infinita! Um Deus sacrificar-se todo: sacrificar suas
alegrias, sua honra, seu sangue, sua vida! E por quem? Por criaturas ingratas,
morrendo num mar de dores e desprezos para pagar as nossas culpas.
105
Minha alma, levanta os olhos e contempla esse homem crucificado.
Contempla esse Cordeiro divino já sacrificado nesse altar de dores, reflete que
ele é o Filho bem amado do Pai eterno e que ele morreu pelo amor que te
consagrava. Vê como tem os braços estendidos para acolher-te, a cabeça
inclinada para dar-te o beijo de paz, o lado aberto para receber-te. Que dizes?
Não merece ser amado um Deus tão bom e tão amoroso? Ouve o que te diz
daquela cruz o teu Senhor: “Filho, vê se há no mundo quem te haja amado mais
do que eu, teu Deus”.
— Ah, meu Deus e meu Redentor, então morrestes; e morrestes com a
mais infame e dolorosa das mortes. E por quê? Para conquistar o meu amor.
Como, porém, poderá o amor de uma criatura compensar o amor de seu
Criador morto por ela? Ó meu adorado Jesus, ó amor de minha alma, como
poderei eu esquecer-me já de vós? Como poderei amar outra coisa, depois de
vos ter visto morrer de dores sobre essa cruz, para pagar pelos meus pecados e
salvar-me? Como vos poderei ver morto e pendente desse lenho, e não vos
amar com todas as minhas forças? Poderei pensar que minhas culpas vos
reduziram a esse estado e não chorar sempre com suma dor as ofensas que vos
fiz?
Oh Deus! Se o mais vil dos homens tivesse padecido por mim o que
sofreu Jesus Cristo, se eu visse um homem dilacerado pelos açoites, pregado a
uma cruz e feito o escárnio do povo para salvar a minha vida, poderia
recordar-me disso sem me enternecer de afeto? E se me apresentassem seu
retrato, morrendo na cruz, poderia eu olhá-lo com indiferença e deixar de
exclamar: “Oh! este infeliz morreu assim atormentado por meu amor; se não
me tivesse amado, não teria padecido a morte”.
Oh! quantos cristãos possuem um belo crucifixo no seu quarto, mas
unicamente como um belo ornamento: louvam a obra e a expressão da dor, mas
seu coração nada ou pouco sente, como se não fosse a imagem do Verbo
encarnado, mas de um estranho e desconhecido.
— Ah, meu Jesus, não permitais que eu seja um desses. Recordai-vos que
prometestes atrair a vós todos os corações, quando fôsseis suspenso na cruz.
Eis o meu coração, que, enternecido com a vossa morte, não quer mais resistir
aos vossos apelos. Oh! atraí meu coração todo inteiro ao vosso amor. Vós
morrestes por mim e eu não quero viver senão para vós.
Ó dores de Jesus, ó ignomínias de Jesus, ó morte de Jesus, ó amor de
Jesus, fixai-vos em meu coração e aí permaneça sempre a vossa doce memória,
para ferir-me continuamente e inflamar-me de amor.

106
Ó eterno Pai, vede Jesus morto por mim; e pelos méritos desse Filho, usai
de misericórdia comigo.
Minha alma, não percas a confiança por causa dos delitos cometidos
contra Deus: esse Pai é o mesmo que entregou seu Filho ao mundo para nossa
salvação; e esse Filho, é o mesmo que voluntariamente se ofereceu para pagar
por nossos pecados.
Ah, meu Jesus, já que para me perdoar, vós não vos poupastes, olhai para
mim com aquele mesmo afeto com que me olhastes quando outrora
agonizáveis na cruz. Olhai-me e iluminai-me. Perdoai-me especialmente as
ingratidões que vos mostrei no passado, por tão poucas vezes pensar na vossa
Paixão e no amor que nela me mostrastes. Agradeço-vos a luz que me
concedeis ao abrir-me as janelas de vossas chagas e membros lacerados, que
me revelam o terno afeto que tendes por mim.
Pobre de mim, se depois dessa luz eu deixasse de amar-vos ou amasse
outra coisa além de vós! Dir-vos-ei com o enamorado São Francisco de Assis:
“Que eu morra por amor de vosso amor, ó meu Jesus; vós, que por amor de
meu amor vos dignastes morrer!”
Ó coração aberto de meu Redentor! ó feliz morada das almas amantes!
não vos recuseis de receber também a minha alma miserável.
Ó Maria, ó Mãe das dores, recomendai-me a vosso Filho, que tendes
morto em vossos braços. Contemplai suas carnes dilaceradas, contemplai seu
sangue divino derramado por mim, e vede quanto lhe é agradável que vós lhe
recomendeis a minha salvação. A minha salvação é amá-lo, e sois vós quem
haveis de alcançar-me este amor; mas um grande amor, um amor eterno.
São Francisco de Sales, falando daquele dito de São Paulo: “A caridade
de Cristo nos impele”, diz: “Sabendo que Jesus, verdadeiro Deus eterno,
amou-nos até sofrer por nós a morte, e morte de cruz, não sentimos nosso
coração comprimido como numa prensa, a fim de que dele seja extraído o
amor, por uma violência que é tanto mais forte quanto mais é amável?”
O monte Calvário, segundo ele, é o monte dos amantes. E acrescenta:
Ah, por que não nos lançamos então sobre Jesus crucificado, para morrer
na cruz com aquele que quis morrer por amor de nós? Eu o prenderei —
devemos dizer — e não o abandonarei jamais: morrerei com Ele, e me
abrasarei nas chamas de seu amor. O mesmo fogo consumirá esse divino
Criador e a sua miserável criatura.

O meu Jesus se dá todo a mim e eu me dou todo a ele. Eu viverei e


morrerei sobre seu peito; nem a morte nem a vida me separarão jamais dele. Ó
107
amor eterno, minha alma vos busca e vos elege eternamente. Vinde, Espírito
Santo, e inflamai os nossos corações com o vosso amor. Ou amar ou morrer:
morrer para todos os amores, para viver só do amor de Jesus. Ó Salvador de
nossas almas, fazei que cantemos eternamente: — Viva Jesus! Eu amo Jesus.
Viva Jesus, que eu amo! Amo Jesus, que vive pelos séculos dos séculos.
Concluamos, dizendo:
— Ó Cordeiro divino, que vos sacrificastes por nossa salvação! Ó vítima
de amor, que fostes consumida de dores sobre a cruz! Oxalá soubesse eu
amar-vos como vós o mereceis! Oxalá pudesse eu morrer por vós, como vós
morrestes por mim! Eu, com os meus pecados, vos causei sofrimentos durante
toda a vossa vida; fazei que eu vos agrade no resto de minha vida, vivendo só
para vós, meu amor, meu tudo.
Ó Maria, minha Mãe, vós sois a minha esperança. Obtende-me a graça de
amar a Jesus.

108
Da Criação do Homem

onsidera que se passaram tantos e tantos anos antes que viesses ao


. mundo, sendo teu ser um puro nada. Onde estávamos nós, minha alma,
. durante este tempo? O mundo já existia desde uma longa série de
séculos e nada havia de tudo aquilo que nós somos.
Pensa que Deus te tirou do nada para te fazer o que és, sem que tu lhe
fosses necessária, mas unicamente por sua bondade.
Forma uma ideia elevada do ser que Deus te deu, porque é o primeiro e o
mais perfeito de todos os seres deste mundo visível, criado para uma vida e
felicidade eternas e capaz de unir-se perfeitamente a Majestade divina.

Afetos e resoluções
Humilha-te profundamente diante de Deus, dizendo com o salmista:
Oh! Minha alma, sabe que o Senhor é teu Deus e que foi ele que te fez e
não tu que te fizeste a ti mesma. Ó Deus, sou uma obra de vossas mãos. Ó
Senhor, toda a minha substância é um puro nada diante de vós; e quem sou eu,
para que me queiras fazer este bem?
— Ah! Minha alma, tu estavas mergulhada no abismo do nada e aí
estarias ainda, se Deus não te tivesse tirado.
Agradece a Deus. Ó meu Criador, vós, cuja beleza iguala a grandeza
infinita, quanto vos devo, porque me tendes feito por vossa misericórdia tudo
isso que eu sou. Que farei eu para bendizer condignamente o vosso santo nome
e para agradecer a vossa infinita bondade?
Confunde-te. Mas, ah! Meu Criador, em vez de me unir convosco pelo
amor e por meus serviços, minhas paixões revoltaram meu coração contra vós,
separaram e afastaram minha alma de vós e ela entregou-se ao pecado e
devotou-se a injustiça. Respeitei e amei tão pouco a vossa bondade, como se
não tivésseis sido meu Criador.
Eis aqui, pois, as boas resoluções que vossa graça me faz tomar!
Renuncio a estas vãs complacências que, desde há tanto, tem ocupado o meu
espírito e o meu coração unicamente comigo mesmo, que sou nada. De que te
glorificas, pó e cinza! Ou melhor, que tens em ti, verdadeiro e miserável nada,
em que te possas comprazer? Quero humilhar-me, e por isso farei isto ou
aquilo, sofrerei este ou aquele desprezo; quero absolutamente mudar de vida;
seguirei dora em diante o movimento desta inclinação que meu Criador me deu
para ele; honrarei em mim esta qualidade de criatura de Deus e como tal me
109
considerarei unicamente: consagrarei todo o ser que recebi dele a obediência
que lhe devo, com todos os meios que tenho e sobre os quais pedirei conselhos
a meu pai espiritual.

Conclusão
Agradece a Deus. Bendizei, ó minha alma, ao Senhor e todas as coisas
que há dentro de mim bendigam o seu santo nome!
Oferece-te a Deus. Ó meu Deus, eu vos ofereço o meu ser, que vós me
destes com todo o meu coração; eu vô-lo consagro.
Ora humildemente a Deus. Ó meu Deus, eu vos suplico que me
conserveis, pelo vosso poder, nestas resoluções e sentimentos. Ó Virgem
Santíssima, eu vos peço que as recomendeis ao vosso Filho divino, com todos
aqueles por quem tenho obrigação de rezar. Pai-Nosso, Ave-Maria.

Do Fim do Homem
ão foi por nenhum motivo de interesse que Deus nos criou, pois nós
. Lhe somos absolutamente inúteis; foi unicamente para nos fazer
. bem, em nos facultando, com Sua graça, participar de Sua glória; e
foi por isso, Filotéia, que Ele te deu tudo o que tens: o entendimento, para O
conheceres e adorares; a memória, para te lembrares dEle; a vontade, para O
amares; a imaginação, para te representares os Seus benefícios; os olhos, para
admirares as Suas obras; a língua, para O louvares, e assim as demais potências
e faculdades.
Sendo esta a intenção que Deus teve, em te criando, com certeza deves
abominar e evitar todas as ações que são contrárias a este fim; e quanto àquelas
que não te conduzem a Ele, tu as deves desprezar, como vãs e supérfluas.
Considera quão grande é a infelicidade do mundo, que nunca pensa
nestas coisas; a infelicidade, digo, dos homens que vivem por ai, como se
estivessem persuadidos de que seu fim neste mundo é edificar casas, construir
jardins deliciosos, acumular riquezas sobre riquezas e ocupar-se de
divertimentos frívolos.

110
Afetos e resoluções
Confunde-te considerando a miséria de tua alma e o esquecimento destas
verdades. Ah! De que se tem ocupado o meu espírito, ó meu Deus, quando não
pensei em Vós? De que me lembrava, quando Vos esqueci? Que amava eu,
quando Vos não amava? Ah! Eu me devia alimentar da verdade e fui
saturar-me na vaidade. Como escravo que eu era do mundo, eu o servia, a esse
mundo, que foi feito para me servir e me ensinar a Vos conhecer e amar.
Detesta a vida passada. Eu vos renuncio e aborreço, máximas falsas, vãos
pensamentos, reflexões inúteis, recordações detestáveis. Eu vos abomino,
amizades infiéis e criminosas, vãos apegos ao mundo, serviços perdidos,
miseráveis afabilidades, generosidade falsa que, para servir aos homens, me
levastes a uma imensa ingratidão para com Deus; eu vos detesto de toda a
minha alma.
Volta-te para Deus. E Vós, ó meu Deus, ó meu Salvador, Vós sereis dora
em diante o único objeto de meus pensamentos; não darei atenção a nada que
Vos possa desagradar; minha memória se encherá todos os dias da grandeza e
doçura de Vossa bondade para comigo; Vós sereis as delícias de meu coração e
toda a suavidade de meu interior.
Sim, assim seja; tais e tais divertimentos com que me entretinha, estes e
aqueles exercícios vãos que ocuparam meu tempo, estas e aquelas afeições que
prendiam meu coração, tudo isso será um objeto de horror para mim; e, para
conservar-me nestas disposições, empregarei tais e tais meios.

Conclusão
Agradece a Deus. Eu Vos dou graças, ó meu Deus, porque me destinastes
para um fim tão sublime e útil, qual é o de Vos amar nesta vida e gozar
eternamente na outra da intensidade de Vossa glória. Como serei digno dele?
Como Vos bendirei quanto mereceis?
Oferece-te a Deus. Eu Vos ofereço, ó meu amabilíssimo Criador, todos
estes propósitos e afetos com todo o meu coração e com toda a minha alma.
Ora humildemente a Deus. Eu Vos suplico, ó meu Deus, que Vos agradeis
de meus desejos e votos, de dar à minha alma a Vossa santa bênção, para que
sejam levados a efeito, pelos merecimentos de Vosso Filho, que por mim
derramou todo o Seu sangue na cruz. Pai-Nosso, Ave-Maria.

111
Dos benefícios de Deus
onsidera, com respeito ao corpo, todos os dotes que tens recebido do
. Criador: este corpo, duma conformação tão perfeita, esta saúde,
. estas comodidades tão necessárias à manutenção da vida, estes
prazeres se ligam naturalmente ao teu estado, esta cooperação e assistência de
teus inferiores, esta companhia suave e agradável de teus amigos. Compara-te
então com outras pessoas que talvez mereçam mais do que tu e que no entanto
não as possuem; pois quantas pessoas têm uma figura ridícula, um corpo
disforme, uma saúde débil! Quantos não estão a gemer, abandonados de seus
amigos e parentes, no desprezo, no opróbrio, em enfermidades longas ou nas
angústias da pobreza. Deus assim quis uma sorte para ti e outra para eles.
Considera tudo aquilo que se pode chamar dotes do espírito. Pensa
quantos homens idiotas, insensatos, furiosos, existem, e quantos educados
grosseiramente e na mais completa ignorância; por que não és tu deste número?
Não foi Deus quem velou duma maneira toda especial por ti, para te dar um
natural feliz e uma boa educação?
Considera ainda mais, Filotéia, as graças sobrenaturais, o teu nascimento
no seio da Igreja, o conhecimento tão perfeito que tens tido de Deus desde a tua
infância, a recepção dos Sacramentos tão frequente e salutar. Quantas
inspirações da graça, quantas luzes interiores, quantas repreensões de tua
consciência, por causa de tua vida desregrada! Quantas vezes Deus te tem
perdoado os pecados e velado sobre ti, para livrar-te das ocasiões, onde estavas
prestes a perder eternamente a tua alma! Todos estes anos de vida que Deus te
concedeu não te deram tempo bastante para progredir no aperfeiçoamento de
tua alma? Examina estas graças minuciosamente e contempla quão bom e
misericordioso Deus tem sido sempre para contigo.

Afetos e resoluções
Admira a bondade de Deus. Oh! Quão bom tem sido o meu Deus para
mim! Oh! Ele é bom deveras! Ó Senhor, rico sois Vós em misericórdia e
imenso em bondade! Oh! Minha alma, com júbilo anuncia quantas maravilhas
o teu Deus tem operado em ti!
Arrepende-te de tua ingratidão. Mas quem sou eu, Senhor, para que Vos
lembreis assim de mim? Oh! Grande é a minha indignidade! Ah! Calquei aos
pés as Vossas graças, abusando delas, afrontei a Vossa bondade, desprezando-a,
opus um abismo de ingratidão ao abismo de Vossa misericórdia.
112
Excita em ti um reconhecimento profundo. Ó meu coração, já não sejas
um infiel, um ingrato, um rebelde para um benfeitor tão grande! E como não
será minha alma dora em diante sujeita a teu Deus, que operou em mim e por
mim tantas maravilhas e graças?
Ah! Filotéia, começas, pois, a negar a teu corpo estes e aqueles prazeres,
para acostumá-lo a levar o jugo do serviço de Deus; e em seguida aplica teu
espírito a conhecê-Lo mais e mais por meio de tais e tais exercícios
conducentes a este fim. Emprega afinal os meios de salvação que Deus te
oferece por sua Santa Igreja. — Sim, eu o farei; exercitar-me-ei na oração,
frequentarei os Sacramentos, ouvirei a Palavra de Deus, obedecerei à Sua voz,
seguindo à risca os conselhos do Evangelho e as Suas inspirações.

Conclusão
Agradece a Deus, que te fêz conhecer tão claramente as suas graças e os
teus deveres. Oferece-lhe o teu coração com todas as tuas resoluções. Pede-lhe
que te conserve nestes propósitos, dando-te a fidelidade necessária; pede-lhe
isso pelos merecimentos da morte de Jesus Cristo; implora a intercessão da
Santíssima Virgem e dos Santos. Pai-Nosso, Ave-Maria.

Dos pecados
ai em espírito àquele tempo em que começaste a pecar; pondera
. quanto tens aumentado e multiplicado os teus pecados de dia a
. dia, contra Deus e contra o próximo, por tuas obras, por tuas
palavras, por teus pensamentos e por teus desejos.
Considera tuas más inclinações e com que paixão tu as seguiste; com
estas duas considerações, verás que teus pecados sobrepujam o número de teus
cabelos e mesmo as areias do mar.
Presta atenção especialmente à tua ingratidão para com Deus, pois este é
um pecado geral que se acha em todos os outros e lhes aumenta infinitamente a
enormidade. Conta, se podes, todos os benefícios de Deus, dos quais a maldade
de teu coração se serviu para desonrá-Lo; todas as inspirações desprezadas,
todas as moções da graça inutilizadas e todos os diferentes abusos dos
113
Sacramentos. Onde estão, pelo menos, os frutos que Deus esperava dai? Que é
feito das riquezas com que o teu Divino Esposo exornou a tua alma? Tudo foi
deturpado por tuas iniquidades. Pensa que tua ingratidão foi a ponto de fugires
da presença de Deus, para te perderes, enquanto Ele te seguia, passo por passo,
para te salvar.

Afetos e resoluções
Sirva aqui a tua miséria para confundir-te. Ó meu Deus, como ouso
apresentar-me diante de Vós? Oh! Eu me acho num deplorável estado de
corrupção, impureza, ingratidão e iniquidade. É possível que eu tenha levado a
minha insensatez e ingratidão a ponto de já não haver um de meus sentidos que
não esteja deturpado por minhas iniquidades, nenhuma das potências de minha
alma que não esteja profanada e corrompida por meus pecados, e que não se
tenha passado um só dia de minha vida que não fosse cheio de obras más?
É este o fruto dos benefícios de meu Criador e o preço do sangue de meu
Redentor?
Pede perdão de teus pecados e lança-te aos pés do Senhor, como o filho
pródigo aos pés de seu pai; como Santa Madalena aos pés do seu amantíssimo
Salvador, como a mulher adúltera aos pés de Jesus, seu juiz. Ó Senhor,
misericórdia para esta alma pecadora. Ó divino Coração de Jesus, fonte de
compaixão e de bondade, tende piedade desta alma miserável.
Propõe-te melhorar de vida. Nunca mais, Senhor, me entregarei ao
pecado, não, jamais, com o auxílio de Vossa graça. Oh! Amei-o demais, mas
agora detesto-o de todo o meu coração. Eu Vos abraço, ó Pai das misericórdias!
Em Vós quero viver e morrer.
Acusar-me-ei a um sacerdote de Jesus Cristo, com um coração humilde e
sincero, de todos os meus pecados, sem espécie alguma de reserva ou
dissimulação. Farei todo o possível para destruí-los em mim até à raiz,
especialmente Estes e aqueles que mais me pesam na consciência. Para isso
empregarei com generosidade todos os meios que ele me aconselhar e nunca
pensarei ter feito bastante para reparar minhas enormes faltas.

Conclusão
Agradece a Deus que até esta hora esperou por tua conversão e te deu
estas boas disposições. Oferece-lhe a vontade que tens de servi-lo o melhor
possível. Pede-lhe que te dê a Sua graça e a força, etc. Pai-Nosso, Ave-Maria.

114
Da Morte

magina que te achas enfermo, no leito de morte, sem nenhuma


. esperança de vida.

Considera, minha alma, a incerteza do dia da morte. Um dia sairás do teu


corpo. Quando será? Será no inverno ou no verão ou em alguma outra estação
do ano? No campo ou na cidade, de noite ou de dia? Será dum modo súbito ou
com alguma preparação? Será por algum acidente violento ou por uma doença?
Terás tempo e um sacerdote para te confessares? Tudo isto é desconhecido, de
nada sabemos, a não ser que havemos de morrer indubitavelmente e sempre
mais cedo que pensamos.
Orava bem em teu espírito que então para ti já não haverá mundo,
vê-lo-ás perecer ante teus olhos; porque então os prazeres, as vaidades, as
honras, as riquezas, as amizades vãs, tudo isso se te afigurará como um
fantasma, que se dissipará ante tuas vistas. Ah! Então haverás de dizer: por
umas bagatelas, umas quimeras, ofendi a Deus, isto é, perdi o meu tudo por u
m nada. Ao contrário, grandes e doces parecer-te-ão então as boas obras, a
devoção e as penitências, e haverás de exclamar: Oh! Por que não segui eu esta
senda feliz? Então, os teus pecados, que agora tens por uns átomos,
parecer-te-ão montanhas e tudo o que crês possuir de grande em devoção será
reduzido a um quase nada.
Medita esse adeus grande e triste que tua alma dirá a este mundo, às
riquezas e às vaidades, aos amigos, a teus pais, a teus filhos, a um marido, a
uma mulher, a teu próprio corpo, que abandonarás imóvel, hediondo de ver e
todo defeito pela corrupção dos humores.
Prefigura vivamente com que pressa levarão embora este corpo
miserável, para lançá-lo na terra, e considera que, passadas essas cerimônias
lúgubres, já não se pensará mais de todo em ti, assim como tu não pensas nas
pessoas que já morreram. “Deus o tenha em sua paz” — há de dizer-se — e
com isso está tudo acabado para ti neste mundo. Ó morte, sem piedade és tu! A
ninguém poupas neste mundo.
Adivinhas, se podes, que rumo seguirá tua alma, ao deixar o teu corpo.
Ah! Para que lado se há de voltar? Por que caminho entrará na eternidade? —
É exatamente por aquele que encetou já nesta vida.
115
Afetos e resoluções
Ora ao Pai das misericórdias e lança-te em seus braços. Ah! Tomai-me,
Senhor, debaixo de vossa proteção, neste dia terrível, empenhai a vossa
bondade por mim, nesta hora suprema de minha vida, para torná-la feliz, ainda
que o resto de minha vida seja referto de tristezas e aflições.
Despreza o mundo. Já que não sei a hora em que hei de te deixar, ó
mundo; já que esta hora é tão incerta, não me quero apegar a ti. Ó meus
queridos amigos, permiti que vos ame unicamente com uma amizade santa e
que dure eternamente; pois, para que unir-nos de modo que seja preciso em
breve romper esses laços?
Quero preparar-me para esta última hora; quero tranquilizar minha
consciência; quero dispor isso e aquilo em ordem e predispor-me do necessário
para um passamento feliz.

Conclusão
Agradece a Deus por estas boas resoluções que te fez tomar, e oferece-as
à divina Majestade; suplica-lhe que, pelos merecimentos da morte de seu Filho,
te prepare uma boa morte; implora a proteção da Santíssima Virgem e dos
santos. Pai-Nosso, Ave-Maria.

116
Do Último Juízo
nfim, uma vez terminado o prazo prefixado pela sabedoria de Deus
. para a duração do mundo, daqueles inúmeros e vários prodígios e
. presságios horríveis, que consumirão de temor e tremor os homens
ainda vivos, um dilúvio de fogo se alastrará pela terra afora, destruindo tudo,
sem que coisa alguma escape às Suas chamas devoradoras.
Depois deste incêndio universal, todos os homens hão de ressuscitar, ao
som da trombeta do arcanjo, e comparecerão em juízo todos juntos, no vale de
Josafá. Mas — ah — bem diversa será a sua situação: uns terão o corpo
revestido de glória e esplendor e outros se horrorizarão de si próprios.
Considera a majestade com que o soberano Juiz há de aparecer em Seu
tribunal, cercado de anjos e santos e tendo diante de Si, mais brilhante que o
sol, a cruz, como sinal de graça para os bons e de vingança para os maus.
A vista deste sinal e por determinação de Jesus Cristo, separar-se-ão os
homens em duas partes: uns se acharão à sua direita e serão os predestinados;
outros à sua esquerda e serão os condenados. Separação eterna! Jamais se
encontrarão de novo juntos.
Então se abrirão os livros misteriosos das consciências: nada ficará
oculto. Clara e distintamente há de ver-se nos corações duns e doutros tudo o
que fizeram de bom e de mau — as afrontas a Deus e a fidelidade a Suas
graças, os pecados e a penitência. Ó Deus, que confusão duma parte e que
consolação da outra.
Escuta atentamente a sentença formidável que o soberano Juiz
pronunciará contra os maus: Ide, malditos, para o fogo eterno, que foi
preparado para o diabo e seus anjos. Pondera bem estas palavras, que os hão de
esmagar por completo: Ide. Esta palavra já rios está anunciando o abandono
completo em que Deus deixará a sua criatura, expulsando-a de sua presença e
não a contando mais no número daqueles que lhe pertencem. Ide, malditos. Ó
minha alma, que maldição esta! Ela é universal, pois encerra todos os males, e
ela é irrevogável, porque se estende a todos os tempos, por toda a eternidade.
Ide, malditos, para o fogo eterno. Considera, ó minha alma, essa eternidade
tremenda. Ó eternidade de penas eternas, quão horrível és tu!
Escuta também a sentença que decidirá sobre a sorte feliz dos bons:
Vinde, dirá o Juiz. Ah! Esta é a doce palavra de salvação, pela qual o nosso
divino Salvador nos há de chamar a Si, para receber-nos, bondoso, entre Seus
braços.
117
Vinde, benditos de meu Pai. Ó bênção preciosa e incomparável, que
encerra em si todas as bênçãos! Possuí o reino que vos está preparado desde a
criação do mundo. Ó meu Deus, que graça! Possuir um reino que nunca terá
fim!

Afetos e resoluções
Compenetra-te, minha alma, de temor, com a lembrança deste dia fatal.
Ah! Com que segurança contas tu, quando as próprias colunas do céu tremerão
de terror?
Detesta teus pecados. É só isso que te pode levar à perdição. Ah! Julga-te
a ti mesma agora, para então não seres julgada. Sim, eu quero fazer bem o
exame de consciência, acusar-me, julgar-me, condenar-me, corrigir-me, para
que o juiz não me condene naquele dia tremendo. Confessar-me-ei, pois,
aceitarei os avisos necessários, etc.

Conclusão
Agradece a Deus, que te deu tempo e meios de pôr-te em segurança pelo
exercício da penitência. Oferece-lhe teu coração, para fazer dignos frutos de
penitência. Pede-lhe a graça necessária para isso. Pai- Nosso, Ave-Maria.

118
Do Inferno

magina uma cidade envolta em trevas, toda ardendo em chamas de


. enxofre e pez, que levantam uma fumaça horrível, e toda cheia de
. habitantes desesperados, que dela não podem sair nem morrer…
Os condenados estão no abismo do inferno, como desventurados
habitantes dessa cidade de horrores. Padecem dores incalculáveis em todos os
seus sentidos e em todo o corpo; pois, assim como empregaram todo o seu ser
para pecar, sofrerão também em todo ele as penas devidas ao pecado. Deste
modo, sofrerão os olhos por seus olhares pecaminosos, vendo perto de si os
demônios em mil figuras hediondas e contemplando o inferno inteiro. Aí só se
ouvirão lamentos, desesperos, blasfêmias, palavras diabólicas, para punir por
estes tormentos os pecados cometidos por meio dos ouvidos. E de modo
análogo acontecerá aos demais sentidos.
Além destes tormentos, existe ainda um outro muito maior. É a privação e
a perda da glória de Deus, que jamais verão. Por mais ditosa que fosse a vida
de Absalão em Jerusalém, ele não deixava de protestar que a infelicidade de
não ver por dois anos seu pai querido lhe era mais intolerável que o tinham
sido as penas do exílio. Ó meu Deus, que sofrimento será, pois, e que pesar
imenso ser privado eternamente de vos ver e amar.
Considera sobretudo a eternidade, a qual por si só faz o inferno
insuportável. Ah! Se o calor de uma febrezinha torna uma breve noite
comprida e enfadonha, que horrenda não será a noite do inferno, onde a
eternidade se ajunta à abundância dos tormentos? É desta eternidade que
procedem a desesperação eterna, as blasfêmia execráveis e os rancores sem
fim.

Afetos e resoluções
Procura incutir temor em tua alma, dirigindo-lhe as palavras do profeta
Isaías: Ó minha alma, poderás habitar com o fogo devorante? Habitarás com os
ardores sempiternos? Queres deixar teu Deus para sempre?
Confessa que tens merecido esses horríveis castigos; e quantas vezes?
Ah! desde este instante melhorarei de vida, seguirei um caminho diferente do
que tenho seguido até agora. Para que precipitar-me neste abismo de misérias?

119
Do Paraíso
epresenta-te uma noite serena e tranquila e pondera quão agradável é
. para a alma contemplar o céu todo resplandecente ao brilho de tantas
. estrelas. Ajunta a estes encantos inefáveis as delícias dum claro dia,
em que os raios mais brilhantes do sol, entretanto, não encobrissem a vista das
estrelas e da lua; e, feito isso, dize a ti mesma que tudo isso não é
absolutamente nada, em comparação com a beleza e a glória do paraíso. Oh!
Bem merece os nossos desejos esta mansão encantadora. Ó cidade santa de
Deus, quão gloriosa, quão deliciosa és tu!
Considera a nobreza, a formosura, as riquezas e todas as excelências da
companhia santa daqueles que vivem aí; esses milhões de anjos, serafins e
querubins; esses exércitos inumeráveis de apóstolos, de mártires, de
confessores, de virgens e de tantos outros santos e santas. Oh! Que união
bem-aventurada a dos santos na glória de Deus. O menor de todos é mil vezes
mais belo que o mundo inteiro; que dita será então vê-los todos juntos! Meu
Deus, que felizes são eles! Sem cessar e sem fim levam a cantar os doces
cânticos do eterno amor; regozijam-se num júbilo perene; dão-se mutuamente
mil motivos de gozo e vivem cercados das consolações indizíveis duma
companhia feliz e indissolúvel.
Considera muito mais ainda o auge de sua bem-aventurança, o qual
consiste na felicidade de ver a Deus, que os honra e inunda de gozos pela visão
beatifica, fonte de bens inumeráveis, pela qual ele emite todas as luzes da
sabedoria em suas mentes e todas as delícias do amor em seus corações. Que
felicidade ver-se ligado tão estreitamente e para sempre a Deus com laços tão
preciosos! Cercados e compenetrados de divindade, como os passarinhos no ar,
ocupam-se, dia e noite, unicamente de seu Criador, adorando-O continuamente,
amando e louvando, sem cansaço e com uma alegria inefável: — Bendito sejais
para sempre, soberano Senhor e Criador nosso amantíssimo, que com tanta
bondade manifestais em nós a Vossa glória, pela participação que nos
concedeis. E ao mesmo tempo Deus os faz ouvir aquelas palavras ditosas:
Abençoados sejais, criaturas minhas, com uma bênção eterna, que me servistes
com fidelidade; vós louvareis perpetuamente o vosso Senhor, na união mais
perfeita do seu amor.

120
Afetos e resoluções
Entrega-te à admiração de tua pátria celeste. Oh! Quão formosa, rica e
magnífica és tu, minha Jerusalém querida, e quão ditosos teus habitantes!
Repreende a tua frouxidão em progredir no caminho do céu. Por que fugi
assim de minha felicidade suprema? Ah! Miserável que eu sou! Mil vezes
renunciei a estas delícias infinitas e eternas, para ir atrás de prazeres
superficiais, passageiros e misturados de muita amargura. Onde tinha a cabeça,
quando desprezei assim os bens estáveis e dignos de almejar, por causa dos
prazeres vãos e desprezíveis?
Reanima, entretanto, tua esperança e aspira com todas as tuas forcas a
esta estância de delícias. Ó amantíssimo e soberano Senhor, já que Bos aprouve
reconduzir-me ao caminho do céu, nunca mais me desviarei daí, nem reterei
meus passos, nem voltarei a trás. Vamos, minha alma querida, embora custe
algum cansaço; vamos a esta estância de repouso; caminhemos sempre avante
para esta terra abençoada, que nos foi prometida; que estamos nós a fazer no
Egito?
Privar-me-ei, pois, disto e daquilo, destas coisas que me apartam do meu
caminho ou me fazem parar.
Farei isto e aquilo, tudo que pode servir a me conduzir e adiantar no
caminho do céu.

121
Da alma que delibera a escolha entre o Céu e o Inferno

o começo desta meditação imagina que estás numa vasta região com
. o teu anjo da guarda, mais ou menos como Tobias, o jovem que
. viajava em companhia do arcanjo Rafael, e que ele, abrindo o céu
ante teus olhos, te mostra a beleza e glória dessa mansão, ao mesmo tempo que
faz aparecer o inferno debaixo de teus pés.
Feita esta suposição, de joelhos, como em presença do teu bom anjo,
considera que na realidade te achas neste caminho entre o céu e o inferno e que
um e outro estão abertos para te receber, conforme a escolha que fizeres. Mas
pondera atentamente que a escolha que pode fazer-se agora, nesta vida, perdura
eternamente na outra.
Com a escolha que fizeres conformar-se-á a providência de Deus por ti ou
usando de misericórdia para te receber no céu ou de justiça para te precipitar no
inferno; entretanto, é mais que certo que Deus, por sua bondade, quer
sinceramente que escolhas a eternidade de delicias e que teu bom anjo. quer te
conduzir para lá com todas as suas forcas, mostrando-te da parte de Deus os
meios absolutamente necessários para merecê-la.
Escuta atentamente as vozes interiores que vêm do céu convidar-te a ir
para lá. Vem, alma querida — diz Jesus Cristo — que amei mais do que o meu
sangue; estendo-te os meus braços, para te receber no lugar das imortais
delícias do meu amor. Vinde — diz-nos a Santíssima Virgem — não desprezeis
a voz e o sangue de meu Filho e os desejos que tenho de vossa salvação, e os
pedidos que lhe faço para vos obter as graças necessárias. Vem — dizem-te os
santos, que só desejam a união do teu coração com o deles, — para louvar
eternamente a Deus; vem, o caminho do céu não é tão difícil como o mundo
pensa. Nós o vencemos e eis-nos no termo: enceta-o, mas com coragem, e
verás que, por um caminho incomparavelmente mais suave e feliz do que o do
mundo, chegarás ao auge da glória e da felicidade.

122
Escolha
Ó detestável inferno, eu te aborreço com todos os teus tormentos e com
tua tremenda eternidade. Detesto em especial essas blasfêmias horríveis e
maldições diabólicas que vomitas eternamente contra meu Deus. Minha alma
foi criada para o céu e é para aí que me leva o anelo de meu coração; sim,
paraíso de delícias, mansão divina da felicidade e da glória eterna, é entre os
teus tabernáculos santos e ditosos que escolho hoje para sempre e
irrevogavelmente a minha morada. Eu vos bendigo, meu Deus, aceitando esta
dádiva que vos aprouve fazer-me. Ó Jesus, meu Salvador, aceito com todo o
reconhecimento de que sou capaz a honra e graça que me fazeis, de querer
amar-me eternamente; reconheço que sois vós que me adquiristes estes direitos
sobre o céu; sim, fostes vós que me preparastes um lugar na Jerusalém celeste e
nenhuma das felicidades dessa pátria de gozos reputo igual àquela de vos amar
e glorificar eternamente.
Coloca-te debaixo da proteção da Santíssima Virgem e dos santos;
promete-lhes de os servir fielmente, para que te ajudem a conseguir esse céu,
onde te esperam; estende as mãos a teu bom anjo, suplicando-lhe que te
conduza para lá; anima tua alma a perseverar constantemente nesta escolha.

123
Da deliberação entre a Vida Mundana e a Vida Devota

magina ainda uma vez que estás numa vasta região, que vês à tua
. esquerda o príncipe das trevas, assentado num trono muito alto e
. rodeado duma multidão de demônios, e que descobres ao redor desta
corte infernal muitos pecadores e pecadoras, que, dominados do espírito do
mundo, lhe rendem as suas homenagens. Observa com atenção todos os
desventurados vassalos desse rei abominável; considera como uns estão fora de
si, levados pelo espírito da cólera, da raiva e da vingança, que os torna furiosos,
e como outros, dominados do espírito da preguiça, só se ocupam de
frivolidades e vaidades; aqueles, embebidos no espírito da intemperança,
igualam-se a loucos e a brutos, estes, empavesados no espírito do orgulho,
tornam-se homens violentos e insuportáveis; alguns, possuídos do espírito de
inveja, consomem-se pesarosos e tristes, muitos são corrompidos até à
podridão, pelo espírito da impureza, e muitos outros, irrequietos pelo espírito
da avareza, perturbam-se pela cobiça de riquezas. Considera como estão aí sem
repouso e sem ordem, olha até que ponto se desprezam mutuamente, quanto se
odeiam, se perseguem, se dilaceram, se destroem, se matam. Eis ai, enfim, a
república do mundo, tiranizada por este rei maldito: quão infeliz e digna de
compaixão!
Considera à tua direita a Jesus Cristo crucificado, que, com uma ternura
inexprimível de compaixão e amor, apresenta a seu Pai as suas orações e o seu
sangue, para obter a liberdade destes infelizes escravos, e que os convida a
romper seus laços e a vir para o seu lado. Mas, principalmente, para, ao
contemplar estes numerosos grupos de devotos e devotas que com os anjos
estão em torno dele. Contempla a beleza do reino da devoção; admira tantas e
tantas pessoas de ambos os sexos, cujas almas são puras e cândidas como
lírios, tantas e tantas outras a quem a morte dum marido ou duma mulher
tornou de novo livres em seu amor e que se consagram a Deus pela
mortificação, caridade e humildade, c outras tantas, por fim, que governam a
sua família no culto do verdadeiro Deus, unindo a posse dos bens com o
desprendimento do coração, os cuidados da vida com os da alma, o amor que
reciprocamente se prometeram com o amor a Deus, e o respeito devido com
uma doce familiaridade. Presta atenção, nesta feliz companhia dos servos e das
servas de Deus, à felicidade do seu estado, a esta perfeita tranquilidade da
alma, a esta suavidade de espírito, a esta vivacidade de sentimentos; amam-se
com um amor puro e santo; alegram-se duma alegria inalterável, mas ao
124
mesmo tempo caritativa e regrada. Mesmo aqueles ou aquelas que sentem
alguma aflição não se inquietam de todo com isso ou apenas de leve e não
perdem a paz do coração. Todos eles têm assim os olhos presos em Jesus
Cristo, que anseiam por ter no coração, e ele mesmo desce, por assim dizer,
com os seus próprios olhos e com o seu Coração, até ao fundo de suas almas,
para as iluminar, fortificar e consolar.
Pois bem, Filotéia, já há tempo que, levada pela graça, abandonaste a
Satanás com os seus sequazes, pelas tuas boas resoluções; mas ainda não
tiveste ânimo de te lançar aos pés de Jesus e Ele te alistar no número dos seus
servos fiéis. Até aqui estiveste como que no meio de dois partidos; hoje, por
fim, te deves decidir.
A Santíssima Virgem, São José, São Luis, Santa Mônica e tantos mil
outros: que no meio do mundo formaram o reino de Jesus Cristo, te convidam a
segui-los. Dá ouvidos principalmente a Jesus, que te chamou pelo teu próprio
nome e te diz: Vem, minha alma querida, vem, e eu te coroarei de glória.

Escolha
Ó mundo enganador, eu te aborreço a ti e a teus seguidores. Jamais me
hão de enxergar debaixo do teu jugo; para sempre reconheço a tua insensatez e
digo adeus a tuas vaidades. E a ti, Satanás, espírito infernal, abominável rei do
orgulho e da infelicidade, eu te renuncio para sempre, com todas as tuas
pompas .fúteis, e detesto tuas obras.
É para vós, doce e amantíssimo Jesus, Rei da bem-aventurança e da
glória imortal, a quem hoje me volvo. Eu me lanço a vossos pés e os abraço
com toda a minha alma, eu vos adoro de todo o meu coração, eu vos escolho
para meu Rei e me submeto inteiramente a vossas santas leis. Tudo aquilo que
eu tenho vos ofereço em sacrifício universal e irrevogável, que pretendo,
mediante a vossa graça, manter toda a minha vida com uma fidelidade
inviolável.
Ó Virgem Santíssima, permiti que vos escolha hoje por guia; ponho-me
sob vossa proteção, devotando-vos um singular respeito e uma devoção toda
especial.
Ó meu santo anjo, apresentai-me aos santos e às santas; não me
abandoneis antes de me fazerdes entrar em vossa feliz companhia.
Só então, renovando e confirmando de dia em dia esta escolha, que agora
faço, exclamarei eternamente, a exemplo vosso; Viva Jesus! Viva Jesus!

125
Retrato de um homem que acaba de expirar
Pulvis es et in pulverem reverteris – És pó e em pó te hás de tornar (Gn 3, 19).

onsidera que és pó e que em pó te hás de converter. Virá o dia em


. que será preciso morrer e apodrecer num fosso, onde ficarás coberto
. de vermes. A todos, nobres e plebeus, príncipes ou vassalos, estará
reservada a mesma sorte. Logo que a alma, com o último suspiro, sair do
corpo, passará à eternidade, e o corpo se reduzirá a pó.
Imagina que estás em presença de uma pessoa que acaba de expirar.
Contempla aquele cadáver, estendido ainda em seu leito mortuário: a cabeça
inclinada sobre o peito; o cabelo em desalinho e banhado ainda em suores da
morte, os olhos encovados, as faces descarnadas, o rosto acinzentado, os lábios
e a língua cor de chumbo; hirto e pesado o corpo. Treme e empalidece quem o
vê. Quantas pessoas, à vista de um parente ou amigo morto, mudaram de vida e
abandonaram o mundo.
É ainda mais horrível o aspecto do cadáver quando começa a
corromper-se. Nem um dia se passou após o falecimento daquele jovem, e já se
percebe o mau cheiro. É preciso abrir as janelas e queimar incenso; é mister
que prontamente levem o defunto à igreja, ou ao cemitério, e o entreguem à
terra para que não infeccione toda a casa. mesmo que aquele corpo tenha
pertencido a um nobre ou potentado, não servirá senão para que exale ainda
fetidez mais insuportável, – disse um autor.
Vês o estado a que chegou aquele soberbo, aquele dissoluto! Ainda há
pouco, via-se acolhido e cortejado pela sociedade; agora tornou-se o horror e o
espanto de quem o contempla. Os parentes apressam-se a afastá-lo de casa e
pagam aos coveiros para que o encerrem em um esquife e lhe deem sepultura.
Há bem poucos instantes ainda se apregoava a fama, o talento, a finura, a
polidez e a graça desse homem; mas apenas está morto, nem sua lembrança se
conserva.
Ao ouvir a notícia de sua morte, limitam-se uns a dizer que era homem
honrado; outros, que deixou à família grande riqueza. Contristam-se alguns,
porque a vida do falecido lhes era proveitosa; alegram-se outros, porque vão
ficar de posse de tudo quanto tinha. Por fim, dentro em breve, já ninguém
falará nele, e até seus parentes mais próximos não querem ouvir falar dele para
não se lhes agravar a dor que sentem. Nas visitas de condolências, trata-se de
126
outro assunto; e, quando alguém se atreve a mencionar o falecido, não falta um
parente que advirta: Por caridade, não pronuncies mais o seu nome! Considera
que assim como procedes por ocasião da morte de teus parentes e amigos,
assim os outros agirão na tua. Os vivos entram no cenário do mundo para
desempenhar seu papel e ocupar os lugares dos mortos; mas do apreço e da
memória destes pouco ou nada cuidam.
A princípio, os parentes se afligem por alguns dias, mas se consolam
depressa com a parte da herança que lhes couber e, talvez, parece que até a tua
morte os regozija. Naquela mesma casa onde exalaste o último suspiro, e onde
Jesus Cristo te julgou, passarão a celebrar-se, como dantes, banquetes e bailes,
festas e jogos. E tua alma, onde estará então?

Afetos e súplicas
Agradeço-vos, meu Jesus Redentor, o não me terdes deixado morrer
quando incorrera no vosso desagrado! Há quantos anos já, mereci estar no
inferno! Se eu tivesse morrido naquele dia, naquela noite, que teria sido de
mim por toda a eternidade? Senhor, dou-vos graças por esse benefício. Aceito
minha morte em satisfação de meus pecados e aceito-a tal qual me quiserdes
enviar; mas, já que haveis esperado até esta hora, esperai mais um pouco ainda.
Dai-me tempo de chorar as ofensas que vos fiz, antes que chegue o dia em que
tereis de julgar-me.
Não quero resistir, por mais tempo, ao vosso chamado. Talvez, estas
palavras que acabo de ler, sejam para mim vosso último convite! Confesso que
não mereço misericórdia. Tantas vezes me tendes perdoado, e eu, ingrato,
tornei a vos ofender! Senhor, já que não sabeis desprezar nenhum coração que
se humilha e se arrepende (Sl 50, 19), eis aqui um traidor, que arrependido
recorre a vós! Por piedade, não me repilais de vossa presença (Sl 50, 13). Vós
mesmos dissestes: “aqueles que vem a mim, não o desprezarei” (Jo 6, 37). É
verdade que vos ofendi mais que os outros, porque mais que os outros fui
favorecido por vossa luz e vossa graça. Mas anima-me o sangue que por mm
derramastes, e me fez esperar o perdão se me arrepender sinceramente. Sim,
Sumo Bem de minha alma, arrependo-me de todo o coração de vos ter
desprezado.
Perdoai-me e concedei-me a graça de vos amar para o futuro. Basta de
ofensas. Não quero, meu Jesus, empregar o resto de minha vida em
injuriar-vos; quero unicamente empregá-la em chorar sem cessar os ultrajes

127
que vos fiz, e em amar-vos de todo o coração. Ó Deus, digno de amor infinito!
Ó Maria, minha esperança, rogai a Jesus por mim!

Vaidade do Mundo
“Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder sua alma?” (Mt
16,26)

ister é pesar os bens na balança de Deus e não na do mundo, que é falsa


. e enganadora (Os 12,71). Os bens do mundo são desprezíveis, não
. satisfazem e acabam depressa.

“Meus dias passaram mais depressa que um correio; passaram como um


navio…” (Jo 9,25-26).
Passam e fogem velozes os breves dias desta vida; e que resta por fim dos
prazeres terrenos? Passaram como navios. O navio não deixa vestígio de sua
passagem (Sb 5,10). Perguntemos a todos esses ricos, sábios, príncipes,
imperadores, que estão na eternidade, o que acham ali de suas passadas
grandezas, pompas e delícias deste mundo. Todos responderão: Nada, nada. Ó
homens, exclama Santo Agostinho, vós considerais somente os bens que possui
aquele magnata; atentai também nas coisas que leva consigo ao sepulcro: um
cadáver pestilento e uma mortalha que com ele se consumirá. Quando morre
algum dos grandes, apenas se fala dele algum tempo; depois até sua memória
se perde (Sl 9,7). E se caem no inferno, que farão e que dirão ali?… Chorarão,
dizendo: Para que nos serviram o luxo e a riqueza? Tudo agora se passou
como sombra (Sb 5,8-9) e nada nos resta senão penas, pranto e desespero sem
fim.
“Os filhos do século são mais prudentes em seus negócios que os filhos da luz”
(Lc 18,8).
Causa pasmo ver quão prudentes são os mundanos no que diz respeito às
coisas da terra. Que passos não dão para adquirir honras ou fortuna! Quantos
cuidados para conservar a saúde do corpo!… Escolhem e empregam os meios

128
mais adequados, os médicos mais afamados, os melhores remédios, o clima
mais saudável… e, entretanto, quão descuidados são para a alma!… E, no
entanto, é certo que a saúde, as honrarias e as riquezas devem acabar-se um dia,
ao passo que a alma, imortal, não tem fim.
“Observemos — disse Santo Agostinho — quanto sofre o homem pelas
coisas que ama desordenadamente”.
Quanto não sofrem os vingativos, ladrões e licenciosos para atingir seus
malvados desígnios? E para o bem da alma nada querem sofrer. Ó Deus! À luz
do círio que na hora da morte se acende, naquele momento de grandes
verdades, os mundanos reconhecem e confessam sua grande loucura. Então
desejariam ter renunciado ao mundo e levado vida santa.
O Pontífice Leão XI disse na hora da morte:
“Em vez de ser Papa, melhor fora para mim ter sido porteiro no meu
convento”.
Honório III, também Pontífice, exclamou ao morrer:
“Melhor teria feito, se ficasse na cozinha de minha comunidade para
lavar a louça”.
Filipe II, rei de Espanha, chamou seu filho na hora da morte, e, depois de
afastar a roupa, lhe mostrou o peito roído de vermes, dizendo:
“Vê, príncipe, como se morre, e como se acabam as grandezas do
mundo”.
Depois exclamou:
“Por que não fui eu, em vez de monarca, simples frade leigo de qualquer
ordem!”
Mandou depois que lhe pusessem ao pescoço uma cruz de madeira; e
tendo disposto todas as coisas para sua morte, disse a seu herdeiro:
“Quis, meu filho, que estivesses presente a este ato, para que visses
como, no fim da vida, o mundo trata ainda os próprios reis. Sua morte é igual à
dos mais pobres da terra. Aquele que melhor tiver vivido, esse é que achará
junto de Deus mais alto favor”.
E este mesmo filho, que foi depois Filipe III, ao morrer com apenas anos
de idade, disse:
“Atendei, meus súditos, a que no meu necrológio somente se fale do
espetáculo que tendes presente. Dizei que na morte de nada serve o título de
rei, a não ser para sentir-se maior tormento de o haver sido… Oxalá, em vez de
ser rei, tivesse vivido em um deserto servindo a Deus!… Ir-me-ia agora
apresentar com mais confiança entre seu tribunal, e não correria tamanho risco
de me condenar!…”
129
De que valem, porém, tais desejos no transe da morte, senão para maior
desespero e pena de quem não amou a Deus durante a vida? Dizia, por isto,
Santa Teresa: “Não se deve fazer caso das coisas que acabam com a vida. A
verdadeira vida consiste em viver de modo que nada se tenha a recear da
morte…” Portanto, se desejamos compreender o que valem os bens da terra,
consideremo-los do leito da morte e digamos logo: Aquelas riquezas, estas
honras, estes prazeres, se acabarão um dia. É necessário, assim, que
procuremos santificar-nos e enriquecer-nos somente dos bens únicos que hão
de acompanhar-nos sempre e que constituirão nossa dita por toda a eternidade.

Afetos e súplicas
Ah, meu Redentor!… Sofrestes tantos sacrifícios e tantas ignomínias por
meu amor, e eu amei tanto os prazeres e as vaidades do mundo, que por sua
causa fui levado a calcar aos pés inúmeras vezes a vossa graça. Mas, ainda que
vos desprezasse, não deixáveis de me procurar; por isso, ó meu Jesus, não
posso temer que me abandonareis agora que vos procuro e amo de todo o
coração, e me dói mais de vos ter ofendido que se tivesse sofrido qualquer
outro mal. Ó Deus de minha alma, não quero tornar a ofender-vos nem nas
coisas mínimas.
Fazei-me conhecer aquilo que vos desagrada e que não o pratique por
nada deste mundo. Fazei que saiba o que vos é agradável e o ponha em
execução.
Quero amar-vos verdadeiramente; e por vós, Senhor, aceitarei
gostosamente todos os sofrimentos e todas as cruzes que me vierem. Dai-me a
resignação de que necessito. Queimai, cortai… Castigai-me nesta vida, a fim
de que na outra possa amar-vos eternamente.

130
Oração para depois da santa comunhão

obre todas as virtudes, dá-me, Senhor, graça, para que eu te ame com
. todo o meu coração, com toda a minha alma, com todas as minhas
. forças e com todas as minhas entranhas, assim como o mandas. Ó
toda a minha esperança, toda a minha glória, todo o meu refúgio e alegria; Oh!
O mais amado dos amados! Ó esposo florido, esposo suave, esposo melífluo! Ó
doçura de meu coração! Ó vida de minha alma e descanso alegre de meu
espírito! Ó belo e claro dia da eternidade, serena luz de minhas entranhas e
paraíso florido de meu coração! Ó amável princípio meu e suma suficiência
minha!
Prepara, Deus meu, prepara, Senhor, em mim uma agradável morada para
ti, a ftm de que, segundo a promessa de tua santa. palavra, venhas a mim e em
mim repouses. Mortifica em mim tudo o que aos teus olhos desagrada e faz-me
homem segundo o teu coração. Fere, Senhor, o mais íntimo de minha alma com
as setas de teu amor, e embriaga-a com o vinho da tua perfeita caridade. Oh!
Quando será isto? Quando te aprazerei em todas as coisas? Quando es tará
morto tudo o que em mim há contrário a ti? Quando serei de todo teu? Quando
deixarei de ser meu? Quando coisa alguma fora de ti viverá em mim? Quando
ardentissimamente te amarei? Quando me abrasará todo a chama de teu amor?
Quando estarei todo derretido e traspassado com tua eficacíssima suavidade?
Quando abrirás a este pobre mendigo e lhe descobrirás o belíssimo Reino teu
que está dentro de mim, o qual és tu com todas as tuas riquezas? Quando me
arrebatarás e afogarás e transportarás e esconderás em ti, onde eu nunca mais
apareça? Quando, tirados todos os impedimentos e estorvos, me farás um só
espírito contigo, para que já nunca possa eu apartar-me de ti?
Ó amado, amado, amado de minha alma! Ó doçura, doçura de meu
coração! Ouve-me, Senhor, não por meus merecimentos, senão por tua infinita
bondade. Ensina-me, ilumina-me, dirige-me e ajuda-me em todas as coisas,
para que nenhuma coisa se faça nem diga, senão o que a teus olhos for
agradável. Ó Deus meu, meu amado, minhas entranhas, bem de minha alma! Ó
doce amor meu! Ó meu grande deleite! Ó fortaleza minha, vale-me! Ó minha
luz, guia-me!
Ó Deus de minhas entranhas! Por que não te dás ao pobre? Enches os
céus e a terra e meu coração deixas vazio! Pois que vestes os lírios do campo,
preparas de comer às avezinhas e manténs os vermes, por que te esqueces de
mim, pois a todos esqueço por ti? Tarde te conheci, bondade infinita! Tarde te
amei, beleza tão antiga e tão nova! Triste do tempo em que não te amei! Triste
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de mim, pois não te conhecia! Cego de mim, que não te via! Estavas dentro de
mim e eu andava a buscar-te fora! Pois ainda que tarde te ache, não permitas,
Senhor, por tua divina clemência, que jamais eu te deixe.
E porque uma das coisas que mais te agradam e mais ferem o teu coração
é ter olhos para te saber olhar, dai-me, Senhor, esses olhos com que eu te olhe;
convém saber: olhos de pomba simples; olhos castos e pudorosos; olhos
humildes e amorosos; olhos devotos e chorosos; olhos atentos e discretos, para
entender a tua vontade e cumpri-la, para que, olhando-te eu com esses olhos,
seja por ti olhado com aqueles olhos com que olhaste a S. Pedro, quando o
fizeste chorar o seu pecado; com aqueles olhos com que olhaste o filho
pródigo, quando o foste receber e lhe deste beijo de paz; com aqueles olhos
com que olhaste o publicano, quando ele não ousava alçar os olhos ao céu; com
aqueles olhos com que olhaste Madalena, quando ela te lavava os pés com as
lágrimas dos seus; finalmente, com aqueles olhos com que olhaste a Esposa
dos Cânticos, quando lhe disseste: Bela és, amiga minha, bela és, teus olhos
são de pomba; para que, agradando-te dos olhos e formosura de minha alma,
lhe dês aqueles atavios de virtudes e graças com que sempre te pareça formosa.
Ó Altíssima, Clementíssima, Benigníssima Trindade, Pai, Filho, Espírito
Santo, um só Deus verdadeiro, ensina-me, dirige-me e ajuda-me, Senhor, em
tudo! Ó Pai Todo-Poderoso, pela grandeza de teu poder infinito, assenta e
confirma em ti a minha memória e enche-a de santos e devotos pensamentos!
Ó Filho Santíssimo, pela tua eterna sabedoria, clarifica meu entendimento e
adorna-o com o conhecimento da suma verdade e da minha extremada vileza!
Ó Espírito Santo, amor do Pai e do Filho, por tua incompreensível bondade,
traspassa a mim toda a tua vontade e incende-a com um tão grande fogo de
amor, que nenhumas águas o possam apagar! Ó Trindade Sagrada, único Deus
meu e todo o meu bem! Oh! Se eu pudesse louvar-te e amar-te como te louvam
e amam todos os anjos! Oh! Se eu tivesse o amor de todas as criaturas, de quão
boamente eu to daria e traspassaria a ti, posto que nem isto bastasse para te
amar como mereces! Só tu te podes dignamente amar e dignamente louvar,
porque só tu compreendes a tua incompreensível bondade e assim só tu a podes
amar quanto ela merece, de maneira que só nesse diviníssimo peito se guarda
justiça de amor.
Ó Maria, Maria, Maria, Virgem Santíssima, Mãe de Deus, Rainha do céu,
Senhora do mundo, Sacrário do Espírito Santo, Lírio de pureza, Rosa de
paciência, Paraíso de deleites, Espelho de castidade, Vaso de inocência! Roga
por este pobre desterrado e peregrino e parte com ele as sobras de tua
abundantíssima caridade. Ó vós, bem-aventurados santos e santas, vós,
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bem-aventurados espíritos, que assim ardeis no amor de vosso Criador e
assinaladamente vós, serafins, que abrasais os céus e a terra com vosso amor,
não desampareis este pobre e mísero coração, senão alimpai-o, como aos lábios
de Isaías, de todos os seus pecados, e abrasai-o com a chama desse vosso
ardentíssimo amor, para que só a este Senhor ele ame, a Ele só busque, nele só
repouse e more pelos séculos dos séculos. Amém.

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