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"Jornada a olho nu: por um olhar sem pornografia".

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É proibida a reprodução por quaisquer meios,


salvo em breves citações, com indicação da fonte.

Revisão
Brena Riker

Diagramação e Capa
Orcina Fernandes

RIKER, David. "Jornada a olho nu: por um olhar sem pornografia"


(livro eletrônico). Belo Horizonte: publicação independente, 2020.
JORNADA A OLHO NU:
POR UM OLHAR
SEM PORNOGRAFIA
David Riker
INTRODUÇÃO.

“Você pode conversar com meu noivo? Ele tem problema com pornografia.” A noiva em questão era
uma cristã que havia se decepcionado com o companheiro porque descobrira o seu apego a materiais
pornográficos. Todavia, ela acrescentou uma informação que me deixou intrigado: “Ele é cego”. Não
era metáfora. O rapaz, literalmente, não tinha visão. Sei que meu espanto frente à revelação diz
respeito a minha ignorância. Talvez, para alguns leitores, esse contexto seja corriqueiro, porém, eu
nunca havia pensado em pornografia para cegos. Quando conversei com o moço, entendi que existe
um universo de áudios pornôs, feitos para esse público específico. Na interlocução que tive com
ele, o percebi arrependido e disposto a buscar um caminho de santificação, igual a muitos outros
aconselhados “cheios de olhos”.

Obviamente, ao citar esse caso, não quero dissertar sobre pornô auditivo. Quero ressaltar o que
aprendi com esse episódio: primeiramente, ficou claro que quando alguém quer pecar, inventa um
jeito. Em segundo lugar, confirmei que, no intuito de evitar o mundo pornô, não adianta pedir para
Deus arrancar seus olhos. Não é um problema meramente ótico. Se o coração continuar buscando
consolo e satisfação nas criaturas ao invés de procurar estas coisas no Criador, você vai encontrar
um nicho de imoralidade talhado de acordo com suas especificações. O mundo (ca)ótico está aí
para isso.

Dentro deste quadro, recordo do dia em que conversei com um sujeito que havia sido preso portando
pornografia infantil. Ele me relatou que seu envolvimento com esse tipo de conteúdo se iniciou na
adolescência quando uma professora passou um trabalho de pesquisa sobre pedofilia. Inicialmente,
de forma inocente, ele foi navegando de um site a outro, até se deparar com fotos eróticas de
crianças. Aquele “acidente” virtual, somado com a curiosidade típica da idade, iria marcar a sua vida
para sempre. Depois deste dia, foram anos de consumo criminoso desse tipo de conteúdo, até que
a polícia o surpreendeu em casa. Ele já estava no faixa dos trinta anos de idade. Vale sublinhar que
meu aconselhado não precisou ir ao submundo da deep web para acessar as fotos infantis, estava
tudo exposto na internet convencional.

À vista desse contexto, fui percebendo a dimensão do problema da pornografia e como ele pode
moldar nossa maneira de ver o mundo. Logo, a abordagem que pretendo desenvolver nesse livro
parte desta ideia central: o principal efeito da pornografia sobre nós é sua capacidade de moldar
nosso olhar e, assim, alterar a forma como enxergamos nossa sexualidade. Aliado a esse conceito,
guardo como verdadeiro a tese de que a raiz do pecado relativo à pornografia está na cobiça que
se manifesta quando o ego toma as rédeas do coração. O resultado é a prática daquilo que as
Escrituras chamam de idolatria, que se traduz no ato de amar, confiar e a obedecer a qualquer coisa
no lugar de Deus1.

Diante disso, resta respondermos como podemos vencer esse mal? Entendo que a resposta está
em conhecermos a visão de Deus para nossa sexualidade e em deixarmos com que Deus “cure”
nosso olhar cobiçoso e idólatra, por meio da deposição do “eu” (despir-se do velho homem) e pela
substituição do ídolo. No entanto, isso não ocorrerá, a menos que façamos de Deus nossa única
fonte de consolo e conforto.

1 Brian S. Rosner, Greed as idolatry: the origin and meaning of a biblical metaphor. Grand Rapids: Eerdmans, 2007; Citado
em KELLER, Timoty. Deuses falsos: as promessas vazias do dinheiro, sexo e poder, e única esperança que realmente importa.
São Paulo/SP: Vida Nova, 2018.
Nesse bojo, se, de fato, formos cristãos, compreenderemos que o estilo de vida fincado na imediata
satisfação dos desejos do ego por meio do apego às coisas criadas é completamente incompatível
com nossa nova identidade em Cristo.

POUCO PRAZER
Portanto, a grande questão do vício em pornografia é sobre onde estamos buscando prazer, alívio e
felicidade. Nesse sentido, John Piper, em sua obra “Teologia da alegria”, ensina que o contentamento
com os prazeres mundanos, não é um problema ligado à excessiva busca do prazer. Na verdade, ao
se contentar com o prazer de coisas como a pornografia, nós estamos nos contentando com muito
pouco. Afinal, como afirma uma tradicional declaração cristã: fomos criado para glória de Deus e
para gozá-lo plena e eternamente. Diante disso, o prazer pornô é superficial, passageiro e humano,
ou seja, ínfimo demais.

Por outro lado, o prazer de desfrutar a Deus enquanto vivemos cada momento da vida para sua
glória (como insiste Piper) é capaz de nos satisfazer de uma forma, incomparavelmente, superior.
Logo, satisfeitos com a felicidade vazia e de baixa qualidade presente nos ídolos da imoralidade,
estamos, de fato, buscando uma felicidade diminuta.

De igual modo, John Piper conclui que a busca do gozo é um dever cristão. Pois, ele aponta para
algo que nunca encontraremos nesse mundo: “o prazer que o cristão busca é o que está no próprio
Deus. Ele é o fim de nossa busca, não o meio para algum outro fim”2. Nesse embalo, o autor confirma
uma das chaves essências da vitória sobre a pornografia: “o objetivo do prazer cristão é ter o maior
prazer no único Deus, evitando assim o pecado da cobiça, que é idolatria (Cl 3.5)3”.

Desse modo, cabe-nos olhar para Jesus e ver nele a fonte de todo consolo e satisfação, independente
das circunstâncias que nos cercam. Caso contrário, se focarmos outras coisas no lugar de Cristo,
ocorre outro fenômeno comum à prática da idolatria: nos tornaremos cada vez mais parecidos como
os ídolos que adoramos. Os idólatras constituem “o povo que tem olhos, mas é cego; e os surdos
que têm ouvidos.” (Is 43.8), isso descreve um povo de coração endurecido e insensível ao agir de
Deus. Sobre isso, o teólogo G. K. Beale, em um livro chamado “Você se torna aquilo que adora”, cita
a mulher de Ló como um exemplo da aplicação deste princípio.

Ela recebe a ordem “Não olhe para trás” (Gn 19.17), contudo, quando Deus destruía Sodoma e
Gomorra com “enxofre e fogo”, a mulher “olhou para trás e transformou-se numa estátua de sal”
(Gn 19.26), tendo, assim, o mesmo destino que a cidade. Veja: Sodoma e Gomorra também foram
reduzidas a sal (Dt 29.23; Sf 2.9). Nesse sentido, Beale afirma: “Por que ela ficou semelhante às
cidades destruídas? Porque o ato de ‘olhar para trás’ indicava que ela era mais apegada a Sodoma
como sua máxima segurança do que a Deus, que lhe ordenara sair da cidade e peregrinar”4.

À vista disso, posso afirmar que olhar pornografia é um “ato de olhar para trás” capaz de revelar
que nossa máxima fonte de conforto e socorro não está em Deus. Evidentemente, a solução está
em olhar para Jesus. Assim, entendemos: se a reverência aos ídolos nos torna cegos e surdos, a
contemplação de Cristo nos traz restauração. Nas palavras do próprio Filho de Deus em Apocalipse:

2
PIPER, John. Teologia da alegria: a plenitude da satisfação em Deus. São Paulo/SP: Shedd, 2001, p. 14.
3 Ibid.
4
BEALE. G. K. Você se torna aquilo que adora: uma teologia bíblica da idolatria. São Paulo/SP: Vida Nova, 2014, p. 282.
“Aconselho que você compre de mim (...) colírio para ungir os olhos, a fim de que você possa ver” (Ap
3.18). Sim! Ele é o colírio que cria em nós um novo olhar.

Com essa frase, longe de mim a intenção de conceituar Jesus como um mero remédio, cuja utilidade
serve aos desejos dos crentes. Como vamos ver nas próximas páginas, a solução de Deus para as
mazelas específicas que nos aproximam Dele, passa por criar e aperfeiçoar em nós um coração
todo novo. De fato, ele reorganiza ao redor de Sua pessoa todas as áreas da existência, “porque nele
vivemos, e nos movemos e existimos” (At 17.28). Portanto, Cristo não é um método de melhoramento
pessoal. Ao inverso, Jesus é alvo de nossa imitação, fato que se coaduna com a morte do “eu”.
Enfim, Cristo é nossa vida: “Porque vocês morreram, e a vida de vocês está oculta juntamente com
Cristo, em Deus". (CL 3.3)

ÓCULOS ESCUROS

Portanto, não tente se esconder de Deus, não negue, procrastine ou minimize a “cegueira” que a
pornografia produz. Busque ajuda, pois à esta, não se vence só.

Há uma canção do Raul Seixas que anuncia: “quem não tem colírio usa óculos escuros”. Nessa
metáfora, os óculos escuros são usados para ocultar a doença dos olhos. Dentro do tema deste
livro, eles podem representar a mentira e a dissimulação comum de quem está encenando uma vida
dupla, ausente de luz.

Quer saber? Lance fora estes óculos da escuridão: o colírio para uma visão límpida está aqui; logo
adiante. Descubra-o nas páginas seguintes.
1. ESPIRITUALIDADE CRISTÃ: UMA MANEIRA DE OLHAR

A pornografia nos oferece um modo de ver o mundo e o hábito de consumir material pornô altera
nossas vidas profundamente. Hoje, temos acesso a inúmeros relatos confirmadores desta tese. Em
matéria jornalística sobre o tema, a BBC Brasil5 compilou uma série de depoimentos:

“Eu tinha 12 anos quando assisti à minha primeira cena de orgia”, diz Neelam Tailor, de 24 anos.
Certamente, ela não está sozinha. Diversos estudos apontam para um contingente crescente de
jovens, com idades entre 11 e 16 anos, que já viram algum arquivo de sexo explícito na internet. Nesse
rumo, Neelam continuou dizendo que passou a procurar filmes tradicionais que continham cenas
picantes, até chegar aos vídeos de sexo explícito, “Eu fiquei chocada. É diferente de quando você é
criança e assiste a filmes românticos, em que as pessoas estão apaixonadas e o sexo é higienizado”,
diz.

Nesse contexto, Neelam foi impulsionada pela curiosidade, pois a pornografia parecia ser um mistério
apenas dos meninos. No entanto, entre os 11 e os 16 anos, ela passou a ver filmes adultos e seus
pais não suspeitavam. Depois de ter a experiência inicial de choque, a adolescente, aos poucos,
alterou sua reação ao material pornô. Assim nos comunica a matéria:

Rapidamente, aquele choque inicial foi superado. “Acho que o pornô dessensibiliza você. Cheguei a
um ponto em que não ficava chocada com muita coisa, então, você passa a ver coisas mais pesadas,
e as outras se tornam normais”, diz. Conforme seu conhecimento aumentou sobre os tipos de vídeos
disponíveis, ela começou a desenvolver certas preferências. “Procurava por pornografia em que a
mulher é submissa, às vezes coagida, como se tivesse sido forçada a fazer sexo. Ou procurava por
homens mais velhos se relacionando com garotas mais novas”, diz. “Não sei por que, mas ainda tão
nova, em torno dos 13 anos, não acredito que tivesse preferências sexuais próprias - acho que era
muito influenciada pelo que eu via.”

Esse relato é perturbador e localiza o problema da pornografia numa região muito mais profunda do
que alguns supõem. Homens e mulheres, desde muito cedo, estão tendo a imaginação, os hábitos e
a maneira de olhar completamente deformada por causa da exposição à pornografia. Como afirma
Neelam: “ninguém, especialmente uma mulher jovem, deve ser educada sexualmente por meio da
pornografia”. De fato, ela tem razão: a pornografia opera como um tipo corrupto de educação para a
sexualidade.

Este quadro suscita algumas questões: como a fé cristã responde a essa tragédia? Trata-se de
um problema meramente comportamental ou suas raízes alcançam as profundezas daquilo que
chamamos de coração? Como a visão fincada nas Escrituras pode nos livrar dos pressupostos que
adquirimos pela educação baseada na exploração indevida do erótico? Afinal, qual é a visão cristã
sobre a sexualidade humana? Por que ela não está clara a muitos cristãos?

O CORAÇÃO DO OLHAR

Diante disso, é urgente entender que se desejamos ter um olhar sem pornografia, devemos encarar

5 JONES. Alexandra. A vida das mulheres viciadas em pornografia. BBC Brasil, 2019. Disponível em: <https://www.bbc.
com/portuguese/geral-47629952> . Acesso em: 19 de jun. de 2020.
o desafio de avaliar profundamente os seus próprios corações. Para cimentar tal afirmativa, trago à
tona um versículo muito conhecido:

“Como pode um jovem conservar puro o seu caminho? Observando-o conforme a tua palavra.” (Sl
119.9).

Este verso nos remete a um tema essencial: qual tem sido a nossa maneira de ver a vida? O nosso
olhar está conformado às Escrituras? Por que a forma como percebemos o mundo influencia a pureza
moral?

Para respondermos a estas questões, há que se entender a fé cristã como um modo de enxergar
a existência, um tipo de “biocosmovisão” (o prefixo “bio” denota vida). Esta última, nos termos do
teólogo holandês Abraham Kuyper,6 leva em conta que as premissas assumidas como verdadeiras, de
forma consciente ou não, moldam nosso jeito de pensar e, por fim, nosso padrão de comportamento.
O autor relacionava a imoralidade reinante na cultura de sua época aos modelos mentais que
ocupavam os corações e mentes de seus contemporâneos.

Contudo, muitos cristãos não alcançam essa interpretação. Para eles, o cristianismo é apenas um
conjunto de regras difíceis de serem cumpridas, e Deus, um possível “maníaco proibitivo”, avesso ao
prazer e a liberdade. Assim, a pornografia é só um hábito inconveniente e a mudança anelada por
eles passa apenas por uma contenção comportamental epidérmica. Todavia, nada poderia ser mais
infundado.

No mais das vezes, é por conta desta leitura, que grande parte dos crentes imaginam que o
infortúnio com pornografia está localizado apenas no território sexual, jamais sendo concebido
como uma questão do coração. Pretendem, inclusive, que alguém lhes receite uma fórmula que não
“movimente demais” com suas vidas, já que miram imoralidade sexual como algo desvinculado de
sua espiritualidade, como apenas um hábito ruim, um detalhe comportamental.

A investigação bíblica, entretanto, alarga esta forma de compreensão. Para os textos sagrados a
imoralidade sexual não é aonde o embaraço se inicia, é onde ele começa a frutificar. As raízes
destas práticas estão encrustadas na profundeza do interior humano, na relação deste com Deus e
com os outros.

COMO CHEGAR A PUREZA?

A trilha, então, passa pelo que denomino “a cura para os olhos do coração”, expressão empregada
por Santo Agostinho para descrever a essência mais profunda da conversão. Nesta lógica, portanto,
os nossos olhos físicos seriam postos avançados da nossa mente, meros coletores de estímulos.
O maior órgão sexual, de fato, é o cérebro/mente. É com ele que decidimos o que fazer quando algo
nos é atraente. Logo, os “olhos do coração” carecem de ser sarados para que um novo olhar físico
surja.

Nesse contexto, Agostinho ressaltava que ninguém é capaz de curar a si mesmo com uma medicação
própria. Todos dependem da graça de Deus. Só o Eterno detém a medicina, os meios necessários
e o poder de implementá-los. Deus opera No coração humano tanto para ferir de morte nosso

6
KUYPER. Abraham. Em toda a extensão do Cosmos. Brasília/DF: Monergismo. 2017, p. 32.
orgulho, quanto para curar todos os quebrantados. Certamente, o agir restaurador de Deus não é um
processo confortável. Ele frequentemente “faz a ferida” e a liga, quer dizer: age como pai e Senhor,
contrariando a nossas vontades, desafiando nossos ídolos. Penso que foi por esta dinâmica que C.
S. Lewis costumava dizer que não havia se tornado cristão porque tal escolha era agradável, mas
porque o cristianismo era verdadeiro.

É válido ponderar que quando experimentamos das chagas necessárias e permitidas por Deus para
nossa restauração, o Seu agir restaurador também se derrama como bálsamo em suas múltiplas
finalidades: cicatrizar, limpar, hidratar, perfumar e iluminar as trevas que se acumulam em nosso
interior. Oséias bem nos lembra:

“Venham e voltemos para o Senhor! Porque ele nos despedaçou, mas vai nos curar; ele nos feriu, mas
vai atar as feridas” (Os 6:1).

O profeta anuncia uma mensagem de esperança: Ele vai atar nossas feridas, vai cuidar de nós. E
apresenta uma ordem: vinde! Voltemos para o Senhor.

É intrigante que entre essas duas ideias, Deus opera também para ferir nosso ego orgulhoso e
confrontar nossos caminhos. Isso significa que Deus inclui tudo na economia da salvação, isto é,
até mesmo os sofrimentos e as correções dolorosas cooperam como elemento santificador. É algo
parecido com o que Lutero chamava de tetantion7 (palavra traduzida como aflição): as aflições,
sofrimentos e lutas da vida nos moldam e nos conduzem para um autoexame capaz de nos mostrar
o quanto precisamos de Deus. É por isso que a crença comum de que as pessoas abrem-se às
mudanças quando algo está fora dos eixos, confirmam a concepção de Martinho.

Também, o salmista expressa isso da seguinte forma: “foi-me bom ter eu passado pela aflição,
para que aprendesse os teus decretos.” (Sl 119.71). Assim, sob a ótica deste aprendizado, seria
bom refletir: Em minha vida, quais aflições o consumo de pornografia tem produzido? De fato, tal
emprego pode afetar o uso do nosso tempo, a administração de alguns recursos, nossa paz interior,
e às vezes, nosso matrimônio e ministério. Porém, a dor suscitada pela inclinação a estas práticas
destrutivas, quase sempre é um instrumento divino para nos levar a liberdade, afinal, “sabemos que
todas as coisas cooperam para aqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o
seu propósito” (Rm 8.28).

O CORAÇÃO

Até aqui aprendemos que a pureza sexual é consequência de um coração transformado e purificado
pela ação da verdade. O próprio Jesus chegou a afirmar que “os maus pensamentos, homicídios,
adultérios, imoralidade sexual, furtos, falsos testemunhos, blasfêmias” (Mt 15.19-20) tem sua fonte
no coração humano. E acrescentou: é isto que contamina o homem. Fica evidente, então, que a
imoralidade sexual não é um tema epidérmico, meramente comportamental. Ela é fruto de um estado
interior e de sua correspondente maneira de ver as coisas.

À vista disso, vale a pena definirmos, brevemente, o que significa a palavra “coração” nas Escrituras.
Esse termo traz a noção de “centro decisório”, algo que se aproxima mais da mente do que dos

7
What Luther Says: An Anthology, compilada por Ewald M. Plass. Ed. Publishing House, 2006.
sentimentos. É uma espécie de núcleo duro do interior humano. Portanto, quem governa o coração,
governa todas as escolhas do indivíduo. Nas palavras da literatura de sapiência hebraica: do coração
“procedem as fontes da vida” (Pv 4.23).

Em resumo, se estamos entregues a prática reiterada de imoralidade, é provável que uma criatura,
quase sempre revestida de apetites desordenados, limitada e expansiva está reinando sob o território
do coração no lugar do Criador: ela se chama ego. Por isso...

ANTES DE FALAR SOBRE SEXO PRECISAMOS FALAR SOBRE EGO

Sigamos, pois. Imagine uma cidade antiga próspera, habitada por gente bonita, sempre disposta a
falar sobre a pujança da economia e da medicina locais com um ar de quem está maravilhosamente
de bem com a vida. Tudo é sucesso e bom desempenho nessas paragens.

Agora imagine que nesse lugar há uma igreja que reflete o mesmo espírito da cidade. Ou seja,
aos seus próprios olhos: realização. Porém, a forma de ver do Senhor da igreja – “do Amém, da
testemunha fiel e verdadeira, d princípio da criação” -- era diferente: aquele povo era soberbo.

Como todo ente soberbo, a igreja não tinha consciência do seu estado. O nome do lugar em questão
é Laodicéia e a carta enviada pelo próprio Cristo à igreja que se reunia lá está registrada no terceiro
capítulo de Apocalipse. Vejamos o texto:

“Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas. E ao anjo da igreja de Laodicéia escreve: Isto
diz o Amém, a testemunha fiel e verdadeira, o princípio da criação de Deus: Conheço as tuas obras,
que nem és frio nem quente; quem dera foras frio ou quente! Assim, porque és morno, e não és frio
nem quente, vomitar-te-ei da minha boca. Como dizes: Rico sou, e estou enriquecido, e de nada tenho
falta; e não sabes que és um desgraçado, e miserável, e pobre, e cego, e nu; Aconselho-te que de mim
compres ouro provado no fogo, para que te enriqueças; e roupas brancas, para que te vistas, e não
apareça a vergonha da tua nudez; e que unjas os teus olhos com colírio, para que vejas. Eu repreendo e
castigo a todos quantos amo; sê pois zeloso, e arrepende-te. Eis que estou à porta, e bato; se alguém
ouvir a minha voz, e abrir a porta, entrarei em sua casa, e com ele cearei, e ele comigo. Ao que vencer
lhe concederei que se assente comigo no meu trono; assim como eu venci, e me assentei com meu
Pai no seu trono. Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas”. (Ap 3:13-22).

A comunidade dos crentes em Jesus daquele ambiente, ficou conhecida como um grupo de cristãos
convencidos, orgulhosos e mornos espiritualmente. Esse foi o diagnóstico feito pelo Senhor. No
entanto, o fato mais relevante neste contexto está no olhar apartado da maneira de Cristo. Eles não
se enxergavam à maneira do Mestre. Os cristãos de Laodicéia não possuíam uma visão de si, do
outro e do mundo alinhada com a perspectiva de Deus; estavam cegos. Nesta escuridão, destarte,
estava a raiz dos seus problemas: havia uma maneira enganosa de se enxergar.

UMA FORMA DE CEGUEIRA

Quando possuímos esta forma específica de cegueira, nossa maneira de pensar é afetada. Em
seguida, nossa atitude interior se altera e, por último, nosso comportamento reflete a moléstia
instalada dentro do coração. Os habitantes de Laodicéia se orgulhavam de suas capacidades e não
queriam abrir mão do controle de suas vidas.
Essa atitude fluía de corações religiosos e socialmente confortáveis que, inadvertidamente,
mantinham “o Jesus” que eles diziam cultuar do lado de fora do coração. Eis aí dois enormes
problemas que sempre precedem a queda e a falência moral: o orgulho e a independência de Deus.
Logo, o resultado do binômio, é um “eu” tratado como um deus (falso) sentado no trono da vida e o
Deus verdadeiro batendo à porta da casa que diz ter sido entregue a Ele. Dessa maneira o Deus de
Verdade, convida:

“Eis que estou à porta, e bato; se alguém ouvir a minha voz, e abrir a porta, entrarei em sua casa, e com
ele cearei, e ele comigo” (Ap 3.20).

Este versículo é dirigido aos cristãos e apresenta uma imagem estonteante: cristãos sem Cristo.
Pessoas com um estilo de vida totalmente incompatível com a identidade que receberam Dele. Dito
em outras palavras: a vida de imoralidade sexual é incompatível com a nova natureza que nos foi
dada no momento de nossa salvação. Precisamos pôr atenção a este parecer se quisermos nos
comprometer com a santificação dos olhos do nosso coração.

Nesse rumo, o autor reforça a conotação pessoal da mensagem na expressão “se alguém ouvir...”.
A voz lá fora e o som das batidas na porta devem ser respondidas por um indivíduo, não é um
chamado geral para o coletivo. Cada um de nós, em particular, temos de atentar, ouvir e deixá-lo
entrar; não nos esconder na multidão e com uma atitude crítica dizer que a igreja (tomada muitas
vezes como um ente abstrato) precisa deixar Jesus entrar. Definitivamente Não é bom que se faça
assim. Porque o “assunto” é conosco. É estritamente pessoal. Nessa configuração, queremos o
status de cristãos, as bênçãos da salvação, porém não queremos nada com o Senhorio de Cristo. A
Verdade é pungente: se não somos servos Dele, seremos servos de alguma criatura.

A LIBERDADE DO LADO DE FORA


Lembro-me das palavras do apóstolo Paulo com as quais ele nos garante que onde Deus está a
liberdade se fará real.

“O Senhor é o Espírito; e onde quer que o Espírito esteja, ali há liberdade.”(2 Co 3.17).

Desse modo, se Jesus está do lado de fora, somos escravos daquele que está dentro. Assim como
Santo Agostinho pensava a maldade como ausência da bondade, a servidão espiritual pode ser
entendida como fruto da ausência de Deus. No entanto, o tipo de escravidão vivida pelos crentes
de Laodicéia era bastante específica. O orgulho e a atitude de autogoverno além de ser descrita
como uma cegueira, também pode ser entendida como um tipo de surdez: Jesus golpeia a porta
insistentemente, ele levanta a voz chamando o inquilino, o som ecoa dentro do recinto, porém
ninguém parece ouvir.

Esse quadro nos faz inferir que o tipo de servidão vivida por quem diz professar o evangelho, mas
deixa Jesus de fora, é uma escravidão orgulhosa, cega e surda. O orgulho inflou o ego e expulsou
Jesus da casa, a cegueira impede que este fato louco seja percebido pelo crente e a surdez inviabiliza
a única coisa que poderia resgatá-lo. A repercussão disto é um crente sem a verdadeira liberdade,
servindo e enganando a si mesmo.
UMA VIDA AGITADA

Em geral, não escutamos alguém batendo a porta por causa do muito barulho que estamos produzindo
dentro de casa. De fato, a vida cristã sem Cristo é agitada, barulhenta, inquieta e cheia de grandes
ideias egóicas. Nas palavras de Agostinho: “Fizeste-nos, Senhor, para ti, e o nosso coração anda
inquieto enquanto não descansar em ti”.

Nessa espiritualidade inquieta, o ego é “tagarela” e tem sempre uma novidade cada vez mais
sofisticada na intenção de resolver nossas necessidades. Ele quer sempre conquistar a paz e ser
feliz. Sim, em geral, o ego contemporâneo é festivo, positivo. Ele é inimigo de toda negatividade e de
qualquer frustração que ameace a concretização de todos os seus desejos.

Quantas vezes ouvimos que a resposta está dentro de nós mesmos? Quantas vezes fomos instruídos
a confiar em nosso potencial? Quantas formas diferente do mantra “siga o seu coração” nos afetaram
nesses últimos dias?

Na verdade, Jesus, o suposto dono da casa, está lá fora enquanto que dentro da moradia há uma
festa na qual o ego elogia a si mesmo, dança consigo mesmo, define o cardápio a partir dos seus
apetites, determina a estética e a ética reinante no ambiente, e usa alguns convidados da forma que
lhe é mais conveniente. Diante disso, pergunto a você: como ouvir as batidas na porta deflagradas
pelo Senhor?

Creio que já podemos atualizar nossa metáfora: nosso personagem típico de Laodicéia que sobreviveu
e habita o mundo de hoje:

• Possui um ego soberbo tão expansivo a ponto de pôr Jesus para fora da morada,
• Está cego por causa de sua autossuficiência, está surdo aos insistentes golpes e
chamados de Cristo.
• É um grande tagarela agitado.

Ou seja, estamos diante de um enorme “eu” cego, surdo e falante.

Ainda nessa trilha resta outra característica: a nudez. A mensagem de Jesus deixa claro que os
cristãos de Laodiceia estavam expostos. Não podiam se esconder aos olhos Daquele que tudo vê,
não podiam enganar o Criador que, em um ato de amor, sempre oferece abrigo e roupas novas para
aqueles que reconhecem suas necessidades. Estes moradores estavam fadados a ter suas vergonhas
conhecidas, caso não recebessem roupas do Senhor. Isso me remete a muitas histórias que ouvi
nos diversos aconselhamentos, sobre como os pecados sexuais de alguns, foram descobertos de
modo vexaminoso, gerando dor e constrangimento profundos aos seus agentes.

Retomo prontamente nosso cenário: Jesus lá fora chamando e batendo, o ego ocupando todo
espaço interior com seu orgulho, sua cegueira, sua surdez, sua agitação e, por último com sua nudez
vergonhosa. Por certo, esse enredo não poderia ter um final majestoso.

TRÊS TIPOS DE AGITAÇÃO DO EGO

Enquanto Jesus golpeia a porta, o ego agita-se, pelo menos, de três formas: alguns vivem repletos de
ativismo religioso; outros são cristãos nominais e pouco preocupados em demonstrar conformidade
moral, falham às vistas de todos; outros, por sua vez, desenvolveram uma vida dupla, uma vivência
de aparências. Em público, passam uma imagem de decência, mas no oculto estão completamente
escravos da imoralidade.

Estes três tipos de vida correspondem a três tipos de agitação promovida pelo ego e produzem três
formas de viver a espiritualidade cristã. Todas, reitero, deformadas. A primeira produz um cristão que
se acha muito bom, vê Deus como alguém que lhe deve algo, afinal, ele tem um excelente currículo
moral. Muitos destes caem no pecado sexual racionalizando-o da seguinte forma: “Nossa, eu me
entrego tanto ao ministério, sou um servo tão fiel, me controlo em quase tudo, faço tanto pelo reino de
Deus, conheço pessoas bem piores do que eu, portanto, porque não ver um pouco de pornografia?”.

O segundo tipo, é claramente perdido, o cristianismo é apenas um verniz religioso que ainda o toca
superficialmente. Em geral, este sujeito experimenta culpa e vergonha intercalada por períodos de
euforia e indiferença para com o pecado. Até que desiste de tentar se esconder. Nesse contexto,
ouvi de um homem que dizia para a esposa: não sou digno de continuar casado com você, por causa
do meu consumo de pornografia. Ele estava naufragando na fé e no casamento a olhos vistos. O
pecado sexual já se constituía parte fundamental da sua existência, deixou de ser um acidente. Na
sua perspectiva, entre o casamento e o pornô: o primeiro sucumbiria. O fruto mais prejudicial desta
conduta é a configuração de uma consciência cauterizada (1 Tm 4.2). Assim, age como uma lepra;
aos poucos, o pecado retira a sensibilidade espiritual e nos leva à inversão de valores.

O terceiro e último indivíduo está sempre nutrindo secretamente o próximo escândalo que irá abalar
sua igreja ou a sua família. A vida na escuridão dos vícios anônimos vai se aprofundando cada vez
mais e a angústia de ter de mentir para encobrir os erros começa a pesar sobre seus ombros. O
pecado sexual é o pecado secreto que alimenta a promessa de abandono. Isso leva a uma agitação
especifica: o ego gasta muita energia entre o remorso e a compensação. Alguns, inclusive, para
compensar os pecados sexuais fazem longos períodos de jejum, sem nenhuma interpretação sobre
como o mesmo opera nesta dinâmica.

A CARACTERÍSTICA EM COMUM

Dentro deste contexto, nos perguntamos: qual o traço que une os três tipos de cristãos? A resposta
está em Apocalipse capítulo três: “O algo” que eles não sabem.

Escreve-nos João sobre isto em: “não sabes que és um desgraçado, e miserável, e pobre, e cego, e
nu” (Ap 3.17).

Por conta deste nosso não saber, o controle de nossas vidas ganha volume substancial, e, é comum
perdermos a perspectiva divina sobre o pecado e a idolatria. Não conseguimos enxergar o amor de
Deus por nós, não aceitamos suas repreensões e não dimensionamos corretamente a profundidade
de nossa miséria, pobreza, cegueira e nudez. Esta realidade nos remete a outras questões: Por que
eles não sabem? O que leva alguém a não discernir suas próprias falhas da forma correta?

Mais uma vez a resposta está no texto: Não sabem, porque não ouvem.

Nesse sentido, preste atenção à máxima que inicia e termina a carta aos de Laodiceia: “Quem tem
ouvidos, ouça o que o Espírito diz”. Esta frase é a moldura da epístola àquela igreja, e por isso,
destaca o problema base enfrentado por eles.
Alguém poderia comentar: existem muitos cristãos que sabem que estão em pecado, porém não
conseguem mudar de comportamento, eles não estão representados pelos cristãos citados em
Apocalispse.

Deixe-me fazer uma consideração sobre isso. Na verdade, esses cristãos também aparecem no
trecho que estamos analisando aqui. Vejamos, Jesus afirma: “Eu repreendo e castigo a todos quanto
amo; sê pois zeloso, e arrepende-te”. Isso deixa claro que o resultado de ouvir a voz do Espírito é a
experiência do arrependimento.

Portanto, se não chegamos ao arrependimento, significa que não estamos ouvindo suficientemente
a voz do Espírito Santo. Isto vale para os que parecem intelectualmente, mas estão desalinhados
com as doutrinas da igreja; não possuem o que chamo de “saber com o coração”. Isto é, não há
convencimento de que uma vida repleta de imoralidade e de autossuficiência não é condizente com
a nova identidade em Cristo. Mais uma vez podemos dizer que eles se encontram com os outros
tipos de cristãos no que se refere a uma vida orgulhosa, cega, surda e agitada. Uma existência de si
para si mesmo.

Nesse bojo, o uso constante de pornografia é superado quando percebemos humildemente nossa
condição diante do Pai. Fato que nos lança em novas inquirições: qual seria a sequência de
acontecimentos que caracterizam esse processo?

A SEQUÊNCIA

A partir da análise da carta à igreja de Laodicéia, aprendemos que não há crescimento espiritual se
não houver arrependimento. E, por sua vez, não é arrependimento se não houver audição. Ou seja,
não vamos mudar de mentalidade e de atitude (inclusive em relação com a pornografia), se não
escutarmos o Espírito com o coração.

Portanto, a sequência da jornada de crescimento é: calar, ouvir, crer, ver e crescer.

CALAR

Quando calamos nossas opiniões, desculpas e queixas e deixamos toda a agitação do ego podemos
ouvir ao Espírito Santo. Desta feita, gostaria de desafiá-lo (a) a escrever quais têm sido suas desculpas
para continuar pecando? Ou quais têm sido suas queixas? O que você tem dito a você mesmo para
a procrastinação do arrependimento? Afinal, do que se queixa o homem? “queixe-se cada um dos
seus pecados” (Lm 3.39).

Alguns colocam a culpa de sua vida imoral nos cônjuges, outros culpabilizam a igreja, e a quem ponha
a culpa em Deus, num raciocínio mais ou menos assim: Se Ele realmente quisesse me ajudar, tiraria
de vez esse desejo de mim! E, há também quem sempre encontre uma maneira de responsabilizar as
forças Malignas. Certamente, Satanás opera nesta era tenebrosa, e o mundo apresenta-se sempre
muito hostil à pureza. No entanto, Deus, no que se refere aos nossos pecados, tratará conosco, com
juízo e graça.

Igualmente, as Escrituras nos ensinam o valor do silêncio diante da voz de Deus:


“Aquietai-vos e sabei que eu sou Deus”. (Sl 46.10).

“Mas o Senhor está em seu santo templo; diante Dele fique em silencio toda a terra”. (Hb 3.20).

“Então Moisés e os sacerdotes levitas disseram a todo Israel: ‘faça silêncio e escute, ó Israel! Agora
você se tornou o povo do Senhor, o seu Deus”. (Dt 27.9).

Em suma, para saber com o coração que Ele é Deus e eu não o sou, é preciso calar-se;Para que
contemplemos o Senhor em sua pureza e santidade é preciso calar-se. Para ouvir o Shemá que é o
texto básico repetido por todo judeu, todos os dias: “ouve Israel, o Senhor é o teu único Deus.” (Dt
6.4), é preciso calar-se. Da mesma forma, para ouvir Jesus batendo a porta do seu coração é preciso
calar-se, desistir do controle e ouvir sua voz que fere o orgulho de morte e cura os olhos do coração.

Precisamos assumir que estamos presos na imoralidade sexual por que confiamos em nós mesmos
e desenvolvemos uma atitude de independência de Deus. Isso tudo baseado na nossa maneira
particular de ver as coisas. Costumamos colher ruína, sofrimento, dores, traições, perdas e, em
alguns casos, enfermidades. Oséias nos confirma: “A tua ruína, ó Israel, vem de ti, e só de mim o teu
socorro.” (Os 13.9).

Portanto, já demonstramos o quão incompetentes somos no gerenciamento de nossas vidas. Agora


resta-nos silenciar os gritos do ego (suas reivindicações, racionalizações e desculpas) e ouvir as
canções de socorro e libertação que vem do único Deus. Nas palavras do salmista:

“Tu me cercas com alegres cantos de livramento” (Sl 32.7).

Ouçamos!

OUVIR

Todas as vezes que Jesus se aproximava de alguém ele o fazia de maneira diferente, mas sempre
objetivava despertar fé e confiança em Deus no seu interlocutor. Seus milagres, sermões, parábolas
e conversas particulares apontavam neste sentido. Um bom exemplo é a conversação entabulada
com dois discípulos no caminho de Emaús:

“E aconteceu que, indo eles falando entre si, e fazendo perguntas um ao outro, o mesmo Jesus
se aproximou, e ia com eles. Mas os olhos deles estavam como que fechados, para que o não
conhecessem.” (Lc 24:15,16).

Como já destacamos acima, percebe-se nessa história a importância da atitude de parar de falar
e começar a escutar a Jesus. Enquanto, eles falavam entre si, o próprio Messias ressurreto se
aproximou. Se não tivessem calado, não ouviriam à Deus. Jesus, sabendo que seus olhos não viam
a verdade sobre quem estava ali, se introduz na conversa de forma gentil. Ele faz perguntas:

“E ele lhes disse: Que palavras são essas que, caminhando, trocais entre vós, e por que estais tristes?”
(Lc 24:17).

Logo em seguida, o mestre fala. Seu discurso versa sobre as Escrituras: “começando por Moisés, e
por todos os profetas, explicava-lhes o que dele se achava em todas as Escrituras” (Lc 24.27). Ele os
faz lembrar tudo que já está revelado e enquanto fala o coração dos discípulos começa a arder.

“Porventura não ardia em nós o nosso coração quando, pelo caminho, nos falava, e quando nos abria
as Escrituras?” (Lc 24.32).

Veja, esse texto reforça a ideia de que a fé vem pelo ouvir, ouvir a palavra de Deus (Rm 10.17). Há
uma conexão direta entre o ouvido e o coração. As verdades de Deus sobre quem Ele é e sobre quem
somos Nele, ressoam dentro de nós e jamais voltam vazias (Is 55.11). Isto não é verdade apenas
para a fé salvadora. Não é um acontecimento restrito ao descrente. Ao contrário, todas as vezes que
for necessário precisamos ouvir sobre quem de fato é Deus e sobre quem somos.

Nesse contexto, podemos afirmar que o consumo constante de pornografia é um sintoma de nossa
incapacidade de ouvir a voz de Deus. O alívio que buscamos depois de dia estressante ou mesmo o
cansaço e ansiedade que nos acometem, podem nos apartar de buscar maneiras puras de lidar com
esses fenômenos. Habituamo-nos a não ouvir o que o Criador quer nos ensinar nesses momentos
de dor ou de falta; antes deslocamo-nos até a criatura.

Em suma, a pornografia funciona como um ídolo a nos aliviar por alguns instantes. Em geral, não
perguntamos a Deus naquele momento específico como devemos acomodar nossas necessidades.
Ou seja, sempre que a dificuldade chega, olhamos para os montes e perguntamos: “de onde virá o
meu socorro?” (Sl 121.1). Quem irá me aliviar desse estresse? Bem, o salmista responde: “o meu
socorro vem do Senhor que fez o céu e a terra.” (Sl 121.2).

Alguns de nós, porém, não miram aos Altos lugares do Senhor. Infelizmente, por não ouvirem mais a
Deus, correm em direção à criatura em vez do Criador. Ou seja, vamos à pornografia buscando uma
pílula de felicidade instantânea para aplacar nossas agruras corriqueiras. O problema é que isso
nunca irá gerar satisfação plena.

CRER

O abandono da imoralidade sexual é uma atitude de fé. A confiança em Deus deve substituir a
confiança que temos depositado em nossas próprias forças. Nesse sentido, entendemos que o uso
frequente de pornografia é reflexo da falta de confiança em Deus.

Explico: Deus não aceita nada menos que a exclusividade. Ele quer nossa confiança completa. Nas
palavras do Senhor Jesus: “Não podeis servir a Deus e as riquezas” (Mt 6.24), da mesma forma, não
podemos servir a Deus e aos nossos apetites carnais.

No cristianismo simplesmente não comporta a lógica dos “dois senhores” ou do coração de “ânimo
dobre” (Tg 1.8), essa fé dividida sempre resultou em destruição. No âmbito da sexualidade isso é
ainda mais evidente, pois sempre que recorremos aos manjares sexuais imorais, Deus é posto de
lado e o resultado é segundos de orgasmo e um abismo na consciência.

Para ilustrar esse processo, vamos ao exemplo de Israel.

Frequentemente, o povo de Israel depois de plantar, não confiava suficientemente em Deus e, por
isso, sacrificavam aos baalins, deuses cananeus que prometiam chuva e fertilidade. A ideia não era
abandonar ao Senhor, mas sim, “complementar” sua força. Era como se Deus não “desse conta” de
garantir a colheita sozinho.

Entretanto, Deus sempre chamou o povo à confiança exclusiva. Nessa esteira, lembro-me de um
encontro de Jesus com um homem (com um sério problema familiar) que fez uma declaração
paradoxal muito reveladora: “Creio! Ajuda-me na minha falta de fé.” (Mc 9.24). Essa expressão é ao
mesmo tempo uma declaração ousada de confiança: eu “creio!”, e, também, uma constatação da
humanidade precária que ainda possuímos: “Ajuda-me na minha falta de fé”. Para vencer o pecado
carecemos desse coração. Um sujeito disposto a colocar fé nas palavras que recebemos de Deus,
levar a sério seus mandamentos e promessas. Ele se importa conosco e insiste como insistiu com
aquele homem: “tudo é possível ao que crê” (Mc 9.23).

Existem momentos nos quais nos sentimos fortes e decididos, a pornografia parece ter perdido o
seu encanto. Alguns, inclusive, relatam sobre semanas sem vontade de acessar conteúdo imoral.
Nesses cenários provisórios é comum o retorno à confiança em nós mesmos, assim, a fé começa
a ser depositada em nossa energia e desempenho. Já vamos ficando orgulhosos de nossa pureza.
Contudo, este é um tremendo erro. A fé não pode migrar do Criador para a criatura, nem quando a
criatura parece está acertando.

Nesse embalo, sejamos sempre sinceros, orando em todo tempo, seja quando nos sentimos cheios
de confiança, seja quando precisamos de ajuda para seguir crendo. O consumo de pornografia e
outros pecados sexuais se tornam tão repetitivos que minam nossas esperanças. Parece que é
impossível abandoná-los. Por isso, a declaração daquele homem deve ser nossa prece: Jesus, eu
creio, mas não creio o suficiente, faça-me crer.

VER

Prossigo no caminho de Emaús, e percebo quão surpreendente foi a maneira como os olhos dos
discípulos que acompanharam Jesus foram abertos:

“E aconteceu que, quando estavam à mesa, ele pegou o pão e o abençoou; depois, partiu o pão e o deu
a eles. Então os olhos deles se abriram, e eles reconheceram Jesus; mas ele desapareceu da presença
deles”. (Lc 24:30-31).

Agora, compare esta atuação de Jesus com a proposta dele aos cristãos de Laodicéia:

“Eis que estou à porta, e bato; se alguém ouvir a minha voz, e abrir a porta, entrarei em sua casa, e com
ele cearei, e ele comigo.” (Ap 3.20).

Isso é extraordinário! Jesus ressuscitado poderia ter se revelado de formas muito mais extravagantes
e mágicas, poderia ter feito um grande sinal nos céus ou um milagre definitivo que todos vissem. No
entanto, ele escolheu uma das ações mais corriqueiras da vida para se revelar e mudar a maneira
como seus amigos estavam vendo a vida: uma simples refeição. Isso prova que a transformação
não é mágica, requer comunhão simples e diária com Jesus.

Da mesma forma, os crentes de Laodicéia estavam sendo convidados a compartilharem à mesa


com Cristo. Todos o somos. Quem ouviu seus golpes na porta, deixando-o entrar e ocupar o lugar
antes preenchido pelo ego, agora, ao verem o pão sendo partido, podem ter seus olhos abertos. Só
assim vamos perceber Jesus como aquele que morreu por causa do horror de nossos pecados, e
que seu corpo é o pão moído por nós. É só por causa desta percepção, que a imoralidade sexual
poderá não ser vista da mesma forma.

Também nossas desculpas se esvaem, resta o quebrantamento. O ego passa a ser esquecido, pois
encontramos algo muito melhor. Encontramos a própria vida. Ele é o Pão que sempre procuramos
por aí. Ele é “o outro” perfeito que buscamos indevidamente por meio da imoralidade sexual. Ele é a
alegria e a paz que o mundo pornográfico não pode dá.

Ao vermos a cena da morte de Cristo, representada pelo pão partido, imediatamente devemos
rememorar que tanto o Cristo do caminho de Emaús quanto o Cristo de Apocalipse é o Cristo
ressuscitado, vencedor. Por isso, a história não fala apenas do terror que significa nossos pecados,
anuncia também nossa vitória, nossa esperança:

“O Senhor diz: “Venham, pois, e vamos discutir a questão. Ainda que os pecados de vocês sejam como
o escarlate, eles se tornarão brancos como a neve; ainda que sejam vermelhos como o carmesim, eles
se tornarão como a lã. Se estiverem dispostos e me ouvirem, vocês comerão o melhor desta terra.” (Is
1:18,19).

Sem dúvida, concordo com Deus: O melhor desta terra é calar, ouvir as batidas do Mestre de amor na
porta do coração, abrir em fé e comer o melhor de finas iguarias. Ele mesmo é o melhor desta terra.
Perto disto, o prazer que o pornô fornece, é nada.

CRESCER

Muitas coisas podem ser escritas sobre o crescimento espiritual, entretanto, gostaria de focar em
apenas duas ideias.

Primeiramente, é fundamental perceber que o abandono da pornografia equivale ao abandono de


uma forma infantil de lidar com a vida.

Nessa lógica, o Apóstolo Paulo nos socorre mais uma vez. No décimo terceiro capítulo da primeira
carta aos Coríntios, o autor descreve o amor em tons antagônicos aos da cobiça, principalmente por
não obedecer à lógica da felicidade do ego, ou seja, “não busca seu próprio interesse” (1 Co 13.5).
Isso conduz o ensino apostólico a seguinte máxima: “Quando eu era menino, falava como menino,
sentia como menino, discorria como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as
coisas de menino”. (1 Co 13:11).

A ideia central dessa passagem está em associar a fase adulta da fé à vida embebida no amor
caracterizado pela negação do “eu” e pela exaltação de Deus; e, concomitantemente, atrelar a vida
cheia de egoísmo à infância da fé. Portanto, podemos aferir que, para o cristão, o consumo ordinário
de pornografia – sempre a serviço do ego – é uma espécie de fé infantil, ou, em alguns casos mais
extremos, uma prova de que nunca houve, de fato, o novo nascimento.

A partir dessa revelação chegamos ao segundo ponto: o crescimento não é mágico, não é indolor e
não está totalmente sobre o nosso controle.

Essas são verdades estampadas por todas as páginas dos evangelhos e delas emana esperança,
pois apontam para a realidade de que “aquele que começou a boa obra a aperfeiçoará até o dia de
Jesus Cristo.” (Fp 1.16). Neste dia glorioso, toda batalha cessará, nossos olhos estarão totalmente
curados, “então o veremos face a face” (1 Co 13.12) e viveremos a promessa feita aos de Laodiceia:

“Ao que vencer lhe concederei que se assente comigo no meu trono; assim como eu venci, e me
assentei com meu Pai no seu trono.” (Ap 3.21).

ENQUANTO ISSO NÃO CHEGA

Para vencer o vício em pornografia precisamos aprender o Caminho e o modo de caminhar que é
Cristo. Observando a vida por meio do seu olhar e sendo desafiados todos os dias a estar debaixo de
seu controle, a fim de encontramos a satisfação e a condução virtuosa que o ego não pode nos dá.
Como pondera uma famosa oração puritana, a maneira mais profunda de lidar com a imoralidade
e o domínio do “eu” é trazer o coração de volta para Deus, substituindo as soluções pecaminosas e
imaturas da carne, pelas propostas de Cristo.

Quando eu deveria estar sob tua direção, quero ter o controle;


Quando eu deveria estar sob a tua soberania, quero governar;
Quando eu deveria estar sob o teu cuidado, julgo-me suficiente;
Quando eu deveria depender da tua provisão, supro a mim mesmo;
Quando eu deveria me submeter à tua providência, sigo a minha própria vontade;
Quando eu deveria conhecer, amar, honrar e confiar em ti, eu sirvo a mim mesmo;
Encontro defeitos e corrijo as tuas leis para adequá-las a mim;
Busco aprovação dos homens em lugar da tua, e sou por natureza idólatra.
Senhor, meu maior propósito é trazer meu coração de volta para ti.
Convence-me de que não posso ser o meu próprio Deus, ou tornar-me feliz, nem meu próprio Cristo
para restaurar a minha alegria, nem meu próprio Espírito para me ensinar, conduzir e governar.

É fundamental que façamos essa oração com o coração quebrantado, confessando que a maneira
de ver/viver baseada nas pessoas do Pai, do Filho e do Espírito Santo é tudo que precisamos. Ela é,
infinitamente, superior ao modo de ver/viver norteado pela porneia.

Porquanto, quando estamos sob a direção, o cuidado, a provisão e a disposição do ego, as soluções
que lançamos mão para buscar alegria, prazer e felicidade são pequenas, passageiras e vazias.
Criamos ídolos nulos em si mesmos, que nos escravizam. À vista disso, como a oração propõe,
carecemos de um profundo convencimento de que só o Eterno é Deus, nós não somos. A partir do
bom governo de Deus sobre nossos corações, mudaremos as maneiras como estamos buscando
consolo e satisfação (Ele mesmo e sua maneira de nos presentear com prazer e descanso serão
nossas fontes). Assim, a pornografia se torna desnecessária.
2. A CRIAÇÃO: O OLHAR PERDIDO DE ADÃO E EVA

A imoralidade sexual é o paradigma exatamente oposto àquele criado por Deus para a sexualidade
humana. Ela é resultado de um modo especifico de ver o mundo e corresponde à destruição do amor
e da comunicação íntima entres os seres humanos. Elementos esses que caracterizam o próprio
Deus.

Mais adiante, voltaremos a esse tópico, porém, convém afirmarmos que a lógica da pornografia é a
seguinte: os corpos alheios são objetos de consumo; são meros instrumentos de uso; a finalidade
do seu uso é a felicidade do ego; o ego, quando no poder, não suporta nenhum tipo de frustração
ou adiamento de gozo.

Por fim, segundo esta visão os corpos estão no mercado do mundo como um produto sem origem
definida (pois não há criador que reflita neles sua imagem), sem valor intrínseco (pois não há
Redentor que lhe estabeleça valor), à disposição dos desejos ilimitados do “eu” (pois não há outro
Senhor, senão o ego) e, por fim, estamos à deriva, ou seja: não haverá juízo contra a maldade (pois
não há juiz nos céus). Também não há esperanças revigorantes (pois estamos sós no mundo).

Essa é, em última análise, a arquitetura conceitual que está nos bastidores dos nossos
comportamentos. E, de fato, caímos no engano da imoralidade quando tomamos tais mentiras como
verdade. Ou seja, o consumo compulsivo de pornografia e outras práticas de porneia (palavra grega
para imoralidade) são filhos legítimos de uma maneira perversa de olhar a Deus e ao outro.

O antídoto contra esse modo de ver pornográfico é a aventura bíblica da salvação, na qual o Criador,
o Redentor e Juiz Divino se fazem presentes.

COMO ENCARAR ESSA BATALHA

Durante minha adolescência o tema da sexualidade, ao ser tratado na igreja, era abordado tendo
como ponto de partida a ideia do pecado. A discussão sobre sexo antes do casamento e a respeito
da cobiça dos olhos e da carne era moldada pela intenção de deixar claro o que podia e o que
não podia ser praticado. Nesse tom, a conversa passava uma impressão incorreta: a história da
sexualidade cristã iniciava-se com a queda. Logo, sexo era um território negativo, mais vinculado ao
mundo e suas forças malignas do que aos céus.

Muitos anos depois, em uma palestra que ministrei numa igreja pentecostal bastante tradicional,
iniciei a fala fazendo alusão à beleza da criação da sexualidade, tendo como referência o livro de
Gênesis. Antes que pudesse continuar a sequência do esboço que também incluía a história da
queda e a condenação do pecado, o anfitrião fez um intervalo e me perguntou: quando você vai dizer
que é pecado?

Recordo-me de ter achado engraçado a ansiedade que embalava as palavras daquele líder. No
fundo, ele pensava ser perigoso dizer coisas boas sobre um tema tão controverso. Segundo sua
abordagem, para afastar os jovens do pecado sexual devemos associar essa dimensão humana
ao mal e definir uma possível “cartilha de regras” o mais rápido possível. Afinal, o prazer deve ser
condenado em sua origem e o corpo é uma espécie de cárcere que aprisiona a beatitude da alma.
O líder citado, apostava que se pensássemos assim, a pornografia e as outras imoralidades seriam
superadas.

No entanto, esta é uma proposta obscurantista baseada em normas frias e descontextualizadas que
não ensina toda a revelação das Escrituras sobre o tema, estando mais próxima da visão negativa dos
gregos sobre o sexo e o corpo do que da concepção judaica que sempre inseriu o corpo como parte
da benção criada por Deus. Isso está claro na abordagem de Paulo em sua carta aos Colossenses.
Lá, ele descreve essa forma errada de lidar com a sexualidade como sendo preceitos de homens,
como fruto da falsa humildade e como uma estratégia ineficaz na luta contra a imoralidade:

“Não toque nisto”, “não coma disso”, “não pegue naquilo”. Todas estas coisas se destroem com o
uso; são preceitos e doutrinas dos homens. De fato, essas coisas têm aparência de sabedoria, ao
promoverem um culto que as pessoas inventam, falsa humildade e tratamento austero do corpo. Mas
elas não têm valor algum na luta contra as inclinações da carne.” (Cl 2:21-23).

Diante disso, para não pairar dúvidas, quero esclarecer: primeiramente, o pecado existe e é algo
muito sério, por isso, não me filio a nenhuma corrente teológica liberal que relativiza o peso da
iniquidade humana; em segundo lugar, é certo que temos de lutar “contra as inclinações da carne”
deixando claro aos jovens o que não convém. Contudo, a grande pergunta aqui é: como a Bíblia
aborda essa batalha? Sendo mais específico: qual é o tratamento que as Escrituras dão à luta
contra a pornografia? Qual é o enredo cósmico no qual essa guerra está inserida? E, quais as armas
espirituais desta batalha?

Vamos endereçar essas questões do seguinte modo:

Se você crer num Deus criador, pessoal, eterno e trino que formou a humanidade a sua própria imagem
e governa soberanamente sobre todas as coisas, então a pornografia é uma afronta ao Criador e a
ordem criada.

FOCO NO CRIADOR

Como vimos acima, a sexualidade humana revelada nas Escrituras não é endereçada ao ponto focal
da queda. Ao contrário, a Bíblia fala sobre os aspectos sexuais desde o seu primeiro capítulo: o
Criador e seu ato criativo são nossos pontos de partida. Atentar para este pressuposto pode nos
preparar mais eficazmente para enfrentarmos as batalhas contra a pornografia.

E mais, nosso objetivo neste capítulo é entender porque, sob a ótica da criação, o consumo de
pornografia não faz sentido para aquele que tem o olhar moldado pelas Escrituras sagradas? A intenção
é fazer com que nossa mentalidade mude à medida que entramos em contato com a verdade bíblica e,
consequentemente, nosso comportamento seja transformado. Nas palavras de Paulo: “transformai-
vos pela renovação do vosso entendimento” (Rm 12.2).

À vista disso, vejamos o que livro de Gênesis nos proporciona.

As narrativas criacionais estampam o mistério da pessoa humana formada à imagem de Deus e é


nesse contexto teológico que a sexualidade ver a luz do dia. Por isso, é imperativo mergulharmos
no amor, na intimidade e na corporalidade reveladas no Éden antes de falarmos sobre a cobiça e a
lascívia típica do mundo caído tão comuns ao universo pornográfico.
Para tanto, recuemos um pouco mais. Antes de haver o mundo de Adão e Eva (incluindo a sexualidade)
havia Deus. Seguindo este trilho, a Bíblia afirma que Deus sempre existiu como uma pessoa trina e
criou o mundo ex-nihilo, ou seja, a partir do nada. O verbo hebraico que descreve essa ação é Bara
e possui um profundo significado teológico. Somente Deus é o sujeito deste verbo. Ou seja, o ser
humano não pode, a partir do nada, trazer a existência o que não existe. Só Deus tem esse poder.

Estas ponderações podem parecer, num primeiro momento, distantes do nosso tema, porém preste
atenção nas implicações de termos um Deus que pode criar “do nada” tudo o que desejar. Vejamos
como isso pode modelar nossa mente, curar nossos corações e transformar nosso comportamento.

A DIFERENÇA

O princípio da criação a partir “do nada” marca a diferença entra a fé judaico-cristã e as outras
correntes religiosas-filosóficas. As concepções pagãs ora pensam a criação como um ato (acidental
ou não) feito num vácuo existencial, ora compartilham da ideia de um criador impessoal, ou seja, sem
personalidade ou capacidades relacionais. De acordo com essas visões, a natureza desenvolveu-se
autonomamente e, portanto, não há um criador que acompanha e ordena a criação. E, também não
há um ser transcendental capaz de definir o que é certo ou errado.

Assim, a natureza é tida como essencialmente boa e constitui-se como fonte confiável dos padrões
morais. Portanto, a pornografia é apenas mais uma expressão natural, já que não haveria nada na
sexualidade que deva ser (re)orientado. Não há sentido que preceda a existência do homem e da
mulher. Não há nada a ser redimido ou transformado, as coisas simplesmente são o que são: não
têm origem divina, não houve queda, não carecemos de salvador e não estamos caminhando em
direção a nada.

Na contramão disso, a narrativa da Bíblia revela um Deus pessoal. E mais, esse Deus pessoal é eterno,
ou seja, o tempo não o limita, na verdade ele é o Criador do tempo. Ademais, esse Deus pessoal e
eterno é trino, isto é, subsiste em três pessoas. Ele é relacional mesmo antes de se relacionar com
os seres humanos.

Em suma, temos um Deus pessoal, eterno e trino. Sobre esses aspectos do divino, Francis Schaeffer,
na obra “Gênesis no espaço-tempo”, afirma: “havia algo antes da criação. Deus existia; amor e
comunicação existiam; e, assim, antes mesmo de Gênesis 1.1, amor e comunicação são intrínsecos
ao que sempre existiu”8. Para o autor, essa concepção de que o amor e a comunicação são eternos
e vivenciados dentro da Trindade é o grande diferencial do cristianismo.

Uau! A teologia cristã é a única que entende o amor e a comunicação como elementos típicos do
Criador, que precedem a existência do homem e da mulher e que, portanto, foram imprimidos neles
quando Deus disse: “façamos o homem à nossa imagem e conforme a nossa semelhança. (...) E criou
Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou.” Veja que a palavra
“criou” aparece três vezes num único versículo, mostrando que uma das ênfases do texto é posicionar
a humanidade no cenário do real de uma forma tal que para entender plenamente tudo que ela faz
ou deixa de fazer precisamos entender a sua origem. Nesse sentido, pode-se afirmar que a indústria
pornográfica ao degradar a figura humana, atenta contra o criador. E mais, os consumidores deste
ramo são cúmplices desse processo.
8
Schaeffer, Francis. Gênesis no Espaço-Tempo. Brasília/DF: Editora Monergismo. 2015. p 53.
CRIADOR E CRIATURA

Vamos deixar bem claro o que acabamos de analisar: baseada na pessoalidade e na natureza trina
do Criador eterno, a fé cristã concebe os seres humanos feitos à imagem de Deus (Gn 1.26), como
entes essencialmente pessoais, afetivos, relacionais, criados para amar e se comunicar uns com os
outros, assim como o Pai ama e se comunica com o Filho e com o Espírito Santo.

Nesse universo marcado pela Trindade, a natureza reflete as características do Criador; não surgiu
ou se desenvolveu autonomamente e, por ser dependente de Deus não tem capacidade de definir, de
si para si mesma, o que é certo ou errado. Ao contrário, a criação está sujeita a ordem estabelecida
pelo único Senhor que fez os céus e a terra.

Seguindo essa cascata conceitual, concluímos que a pornografia é um acinte contra o verdadeiro
amor e a verdadeira comunicação íntima para qual fomos criados.

NEM SABEMOS O QUE BUSCAMOS

Muitos irmãos com quem converso relatam não compreenderem porque a pornografia é tão atraente.
Além do prazer óbvio que o comportamento produz, há esse elemento implícito: há uma sede da
alma demandando uma resposta, uma ânsia por Deus e por uma experiência sexual que realmente
satisfaça. Ou seja, há uma busca por Deus escondida por detrás da busca por imoralidade sexual.

Neste contexto, quando o homem moderno, mesmo sem saber o porquê, eventualmente, sente
falta da sexualidade que realmente contemple o amor, e também anseia por experimentar uma
comunicação interpessoal íntima e cheia de significado, ele está, na verdade, reivindicando àquilo
que existe antes da criação do mundo e que nunca será encontrado num filme pornô. Na verdade, o
modo pornô de ver o mundo destrói a essência da sexualidade bíblica.

Pautado por tal busca, observamos que atualmente, em todo mundo virtual, existem dois tipos de
sites que prevalecem: pornografia e redes de relacionamentos. Notadamente, a busca por intimidade,
mesmo quando artificial e pecaminosa (pornografia), e por comunicação interpessoal da qual emane
afeto, escuta, valoração e reconhecimento são as buscas elementares do homem atual, as mesmas,
vale dizer, que sempre acompanharam a humanidade desde a queda.

A VISÃO

A partir desta constatação, vale a pena aprofundarmos o conceito de cosmovisão, pois ele explica
porque existem, dentro de nós, crenças e anseios não totalmente conscientes, mas que são crucias
na definição de nossas atitudes.

Para tanto, vamos nos enredar no conceito refinado que James W. Sire nos fornece sobre esse tema.
Na obra “Dando nome ao elefante”9, o autor defende que cosmovisão não é apenas uma maneira de
ver o mundo, logo, não está restrita aos óculos intelectuais pelos quais observamos o real. Para ele,
o conceito fala de uma orientação ou disposição espiritual, uma condição da alma. Ou dito de forma
mais contundente: cosmovisão é um compromisso que assumimos com o coração e que energiza

9 SIRE, James W. Dando nome ao elefante. Brasília/DF: Editora Monergismo. 2012.


todas as nossas decisões.

Nessa esteira, Sire acrescenta que tal compromisso quando subconsciente pode se tornar
consciente pela autorreflexão regada com a revelação das Escrituras. Nesse particular, assemelha-
se à vivenciada no Salmo 139, no qual a reflexão feita sobre si mesmo é tutelada pela presença
daquele que sonda corações, pois o autor sagrado não se comporta de maneira autorreferente, isto
é, não é o ego sozinho que define a sua própria condição, tampouco se confia em si mesmo para
descobrir o que está por detrás de toda a busca do “eu”. Ao contrário, recorre-se aquele que criou
tanto o corpo quanto a alma e é poderoso para sondar, conhecer, provar, ver e, por fim, guiar cada
um de seus filhos no processo de libertação do coração dos falsos conceitos e das buscas mal
direcionadas. Vejamos o texto:

“Senhor, tu me sondas e me conheces. Sabes quando me sento e quando me levanto; de longe conheces
os meus pensamentos. Observas o meu andar e o meu deitar e conheces todos os meus caminhos. A
palavra ainda nem chegou à minha língua, e tu, Senhor, já a conheces toda. Tu me cercas por todos os
lados e pões a tua mão sobre mim. Tal conhecimento é maravilhoso demais para mim: é tão elevado,
que não o posso atingir. Para onde me ausentarei do teu Espírito? Para onde fugirei da tua face? (...)
Sonda-me, ó Deus, e conhece o meu coração, prova-me e conhece os meus pensamentos; vê se há em
mim algum caminho mau e guia-me pelo caminho eterno”. (Sl 139.1-7; 23-24).

No compasso deste salmo, entendemos que esta experiência de ser sondado por Deus é fundamental
para que a pornografia desapareça de nossas vidas. Nela, devemos perguntar: Deus, o que realmente
estou buscando quando acesso um vídeo pornográfico? Quais anseios secretos da minha alma esta
prática evidencia?

A VIDA SEXUAL DE ADÃO E EVA


Em complemento a esse transcurso de avaliação pessoal, chancelada pelo Espírito Santo, devemos
nos questionar sobre a maneira como a Bíblia apresenta a sexualidade humana. Qual a definição
das Escrituras quanto a este assunto?

Nesse sentido, afirmamos que a sexualidade é uma dimensão humana criada por Deus.

À prima vista, isto parece demasiadamente elementar. No entanto, insistir na origem divina do mundo
erótico humano é fincar uma estaca importantíssima para fazer frente ao ideário desconstrutivista do
mundo contemporâneo. Assim, o corpo humano e os demais elementos sexuais não são acidentes
existenciais, puras construções sociais ou contingências produzidas pelo acaso. Ao contrário, há um
criador dotado de um propósito para o ser humano sexuado que precede a existência fenomênica
do próprio ser. Em resumo, o propósito vem antes da existência porque é definido por aquele que
sempre existiu, o Eterno.

Diante disso, questionamos: quais desdobramentos estão implicados nessa definição?

Vamos recorrer ao texto clássico de Gênesis para alicerçar nossa réplica:

“E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre
os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil
que se move sobre a terra. E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem
e mulher os criou. E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra,
e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se
move sobre a terra.” (Gn 1.26-28).

A partir do texto, podemos esquematizar a resposta da seguinte forma:

• A sexualidade é uma benção divina.


• A sexualidade é uma maneira de refletir a imago Dei.
• A sexualidade diz respeito à faculdade relacional.
• A sexualidade diz respeito à geração de vida (natalidade).
• A sexualidade é um patrimônio a ser administrado.

Afirmo que uns tantos livros poderiam ser escritos sobre cada um destes aspectos, todavia,
precisamos selecionar o que nos cabe investigar neste momento. Nessa acepção, vamos apenas
tangenciar o conteúdo dessas sentenças e nos aprofundar em apenas uma delas. Vejamos:

A afirmativa: “a sexualidade é uma benção divina” faz sentido porque, como lemos acima, a frase
“Deus os abençoou, e Deus lhes disse: frutificai” é a primeira menção de benção aos humanos na
Bíblia e está relacionada à procriação e aos relacionamentos, ou seja, é relativa à sexualidade. Além
disso, fica claro que a sexualidade é algo dado à humanidade, não puramente construída por ela. De
fato, a sexualidade de Adão e Eva reflete a imagem de Deus.

Dito de outro jeito: a masculinidade de Adão e a feminilidade de Eva são maneiras de revelar o
criador, e, deste modo, o casamento é um encontro espiritual entre os diferentes que torna mais
nítida a revelação de Deus.

A DIGNIDADE
Isto posto, vale ressaltar que a crença no ser humano como residência da imago Dei nos insta a
respeitar e reconhecer a dignidade intrínseca a todos os homens e mulheres.

Tal concepção do humano é completamente incompatível com o exercício imoral da pornografia.


Melhor dizendo, se estamos mergulhados no consumo de material pornô estamos praticando um
estilo de vida que colide com o conteúdo de nossa fé não apenas no que se refere à criação, mas
também na parte alusiva ao processo de santificação, pois Paulo afirma que devemos nos despir do
velho homem e nos vestir do novo,” que se renova para o conhecimento, segundo a imagem daquele
que o criou;” (Cl 3.10). Isto é, a imagem de Deus é nossa origem e nosso destino. Logo, a dignidade
da pessoa humana é um conceito central tanto da doutrina da criação quanto do ensino sobre a
redenção. E mais, se estamos em Cristo, entramos em um caminho de renovação ou de retorno às
maneiras divinas de enxergar o outro.

Nesse contexto, devemos orar intensamente para que nosso olhar seja transformado pela ação do
Espírito Santo dentro de nós, uma vez que o consumo compulsivo da pornografia é um reflexo de um
modo de ver o ser humano que o destitui de sua dignidade intrínseca.

Na lógica pornô, a relação entre o indivíduo expectador e o indivíduo produtor do conteúdo deixa der
ecoar as concepções humanas típicas do pensador judeu Martin Buber10. Explico: abandonamos o
10
BUBER, Martin. Eu e tu. São Paulo: Centauro Editora. 2001.
diálogo de um “eu” que encontra o outro (um “tu”) de forma digna, sendo este último substituído por
um “isto”. Aplicando essa tesa ao universo pornográfico, o outro mesmo possuindo a imago Dei é
reduzido à categoria de coisa.

Mais uma vez resta-nos uma pergunta: qual visão tem ocupado nossos corações? O olhar do Criador
e da criatura – bela e digna – formada a Sua imagem; ou o olhar que humilha e despersonaliza
homens e mulheres num show do “eu”?

PATRIMÔNIO A SER ADMINISTRADO

Em último lugar, a sexualidade descrita nas páginas de Gênesis é um grande patrimônio a ser
administrado. Nesse rumo, fica patente que Adão e Eva são comissionados a governarem sobre o
jardim (ambiente externo) e sobre o universo interior que possuíam. Os afetos, os sentimentos, o
prazer dos sentidos e os desejos faziam parte do “pacote” criado e deveriam ser vividos para a glória
do Criador. Eles, de fato, eram mordomos de uma realidade que incluía as potencialidades típicas
da sexualidade.

Isso me permite afirmar que a sexualidade é uma dimensão humana criada por Deus na qual temos
que administrar para a Sua glória um patrimônio que abarca o campo afetivo, o âmbito do prazer e
a esfera da atração sexual.

Da mesma forma, também inferimos que a queda afetou a competência de administração dos ativos
sexuais, instalando um novo dilema: o fenômeno da atração sexual em si não foi extinto, pois é
inerente à humanidade, entretanto, a direção e a forma como ele se manifesta foi profundamente
afetada pelo estado caído. Este fato, como escreveu C. S. Lewis11, torna a castidade uma virtude cristã
tão impopular porque ela se inscreve em uma contradição: por um lado, as Escrituras posicionam-se
contra a cobiça, na outra mão, meus desejos apontam em sentido inverso. Logo, como bom cristão,
dizia Lewis, devo concluir que há algo de errado com meus desejos e não com o cristianismo. Porém,
esta é uma constatação inquietante, pois nos chama à frustração do ego e ao autoesquecimento.
Atitudes impossíveis, se dependermos de nossas forças apenas.

São por estes motivos que somos capacitados pelo Espírito Santo a atuarmos como despenseiros
dos mistérios de Deus (1 Co 4.1), como bons administradores daquilo que nos foi confiado, pois
“requer-se dos despenseiros que cada um se ache fiel.” (1Co 4.2). Concepção reforçada por Pedro:
“Cada um administre aos outros o dom como o recebeu, como bons despenseiros da multiforme
graça de Deus.” (1 Pe 4.10). Estou tomando a expressão “dom” como sinônimo e toda dádiva nos
concedida pelo Criador e reconciliada com Ele por meio da fé em Cristo. Isto certamente inclui a
benção da sexualidade. Contudo, o texto que mais ostenta a visão da sexualidade como um recurso
a ser administrado está na primeira carta aos Tessalonicenses:

“A vontade de Deus é que vocês sejam santificados: abstenham-se da imoralidade


sexual. Cada um saiba controlar o próprio corpo de maneira santa e honrosa,
não com a paixão de desejo desenfreado, como os pagãos que desconhecem a Deus.
Neste assunto, ninguém prejudique a seu irmão nem dele se aproveite. O Senhor castigará todas
essas práticas, como já lhes dissemos e asseguramos.” (1 Ts 4.3-6).

11 LEWIS, C. S. Cristianismo puro e simples. Rio de Janeiro/RJ: Thomas Nelson Brasil. 2017.
Nessa passagem, algumas atitudes são citadas: primeiro, a abstinência da imoralidade é tratada
como mandamento que ilustra a vontade de Deus para o ser humano; então, o autocontrole é
mencionado tendo como objeto o corpo humano; em terceiro lugar, o desejo erótico não deve ser
visto sob a ótica do paganismo (este é o cerne do argumento deste livro), pois os pagãos não
conhecem a Deus e seus olhos não foram “curados” pelo “colírio” do Eterno; em seguida, o foco do
texto de Paulo torna-se vertical: “ninguém prejudique a seu irmão nem dele se aproveite” deixando
claro o prejuízo causado ao outro quando o tratamos como mero objeto – ação peculiarmente
pornográfica; e, enfim, a imagem de Deus como um julgador capaz de definir e retribuir com justeza
o certo e o errado, arredonda o ensino paulino.

O AMOR PRÓPRIO E O OUTRO

Dentro desta arquitetura reflexiva, cabe uma alusão às contribuições que o teólogo e filósofo coreano
Byung-Chul Han tem produzido ao problematizar as consequências de uma cultura intensamente
narcísica. Para o autor, o narcisismo se manifesta quando quase todas nossas energias vitais estão
focalizadas na própria subjetividade. A partir desse entendimento, em sua obra “A agonia do Eros”,
ele evidencia uma distinção entre o narcisismo e o amor próprio:

“O sujeito do amor próprio estabelece uma delimitação negativa frente ao outro em benefício de si
mesmo. O sujeito narcísico, ao contrário, não consegue estabelecer claramente seus limites. Assim,
desaparecem os limites entre ele e o outro. O mundo se lhe configura como sombreamento projetado
de si mesmo. Ele não consegue perceber o outro em sua alteridade. Ele só encontra significação ali
onde consegue reconhecer de algum modo a si mesmo. Vagueia aleatoriamente as sombras de si
mesmo até que se afoga em si mesmo”12.

Pondo em linhas mais simples: quem tem amor próprio sabe impor limites e cuidar adequadamente
dos seus interesses, principalmente para não sofrer opressão por parte do outro. Ele enxerga o outro
e enxerga a si mesmo, vive para amar o outro como a si, não para amar o outro a custa de si mesmo.
Por outro lado, o narcisista não consegue entender que não está só no mundo, não enxerga mais
o outro, a não ser como um objeto sobre o qual sua própria pessoa se projeta. Ou seja, o mundo
hipermoderno de Byung-Chul, é marcado pelo desaparecimento do outro, pois sua lógica é da tirania
da felicidade do ego.

De fato, na pornografia o outro some, se esvai. Nesse sentido, a própria neurociência tem descoberto
que a parte do cérebro usada quando estamos vendo um pornô não é a mesma usada quando nos
relacionamos com pessoas. Isto mostra que estamos nivelando os outros ao status de produto e
perdendo o dom do outro.

Sim! A benção do outro foi inaugurada no Éden pelas palavras do próprio Deus: “não é bom que o homem
esteja só” (Gn 2.18), surge, então, um fenômeno revolucionário: a alteridade que, automaticamente,
impõe um limite ao “eu”. Adão que antes reinava absoluto num mundo humano no qual tudo era “eu”,
foi resgatado da solidão e capacitado por Deus a tratar o corpo de Eva como parte constituinte de
sua pessoa e como elemento que ecoava o seu próprio corpo (“esta é osso dos meus ossos, e carne
da minha carne”. Gn 2.23).

Dentro desta perspectiva, enquanto Eva fosse tratada como criatura tão digna diante de Deus
quanto o meu próprio “eu” masculino (e vice-versa), nunca o valor expositivo do seu corpo iria se
12
BYUNG-CHUL, Han. Agonia do eros. Petrópolis/RJ: Editora Vozes. 2017, p. 9-10.
equiparar a uma mercadoria, ou a um objeto sexualizado a ser consumido, ao contrário, haveria
amor e comunicação dignificante. Nas palavras de Badiou13: amor é um “palco de dois”.

Na perspectiva inversa, a pornografia, ainda segundo Han, por desconsiderar o outro como pessoa,
“aniquila a sexualidade”. Explico: a pornografia é subproduto de uma relação que artificializa a
verdadeira intimidade sexual e a expõe sem fazer jus ao seu mistério sublime. Tal mistério e sublimidade
estão revelados nas narrativas criacionais como vimos acima. Sobre isto, Han acrescenta: “o obsceno
na pornografia não reside no excesso de sexo, mas no fato de não ter sexo”. Veja: o sexo desaparece
no instante em que o outro desaparece.

Quando uma relação é fundada na lógica do consumo e do descarte, a verdadeira sexualidade não
se faz presente. No fundo, há a profanação da sexualidade e a produção de um subproduto que
funciona como ídolo, mas que lhe é claramente inferior. No mesmo compasso, vê-se que o uso
banalizado da nudez representa uma desritualização e desacrilização do corpo que não fomenta a
sexualidade plena, ao contrário, a reduz a uma obscenidade qualquer sempre carente de significado
e de transcendência.

Frente a isso, é imperativo que nossas mentes e corações sejam remodelados pelas verdades
oriundas do mundo perdido de Adão e Eva, pois toda a transformação do olhar passa pela pelo
retorno a essa velha vereda.

13 BADIOU, Alain; TRUONG, Nicolas. Elogio ao amor. São Paulo/SP: Ed. Martins Fontes. 2013, p. 119.
03. COLÍRIO DA GRAÇA: ESPERANÇA FORA DO EGO

Há uma pergunta que recebo frequentemente de amigos cristãos: “você, realmente, crer ser possível
viver sem pornografia?” A resposta parece óbvia, pois a santificação é uma premissa de quem decide
escrever sobre esse tema a partir da perspectiva bíblica. No entanto, costumo responder assim: se
você tem fé suficiente para acreditar que, um dia, Deus se esvaziou, nasceu de uma virgem, morreu
e ao terceiro dia ressuscitou, então, como não crer que Deus pode mudar um comportamento na
medida em que nos entregamos a Ele? Muito mais fé é preciso para professar o evangelho e é isso
que importa no fim do dia. Se tivermos fé no que as Escrituras nos revelam, podemos sim viver em
liberdade. Isso nos dá esperança.

Em confronto com essa perspectiva, as histórias de compulsão e os relatos sobre a cronicidade


do consumo de material pornográfico e de outras atitudes sexualmente imorais revelam muitos
indivíduos completamente rendidos a tais padrões. São depoimentos de pessoas que, por conta da
demora em ver resultados, não acreditam mais que alguma coisa pode realmente transformá-las.
Nesse aspecto, eles se identificam com o conteúdo do provérbio: “A esperança adiada desfalece o
coração, mas o desejo atendido é árvore de vida”. (Pv13.12).

O coração desfalecido por conta da esperança que nunca se transmuta em realidade é uma árvore
muito amarga. Nela, os dias passam, as semanas se vão, anos seguem seu ritmo e parece que
estamos dando círculos no mesmo deserto. Assim, se instalam ciclos de derrota e vergonha, nos
quais sempre um erro alimenta outro, numa lógica na qual o esforço próprio nos decepciona e a
culpa nos tortura.

Especialmente sobre a culpa, vale sublinhar que esta em nada contribui para a vitória sobre a
pornografia e a lascívia porque foca no lugar errado. A autoflagelação psicológica empreendida
quando pecamos avulta exclusivamente o pecado, sem olhar para o verdadeiro motor e alvo do
arrependimento: Cristo. Ademais, a auto danação mantém o ego no centro de tudo. Fato que respalda
o texto do pastor, professor e conselheiro bíblico Heath Lambert: “ficar pensando em quão pobre e
miserável você é, só alimenta e fortalece o seu ego que o levou inicialmente a praticar a imoralidade”14.

A isso podemos adicionar o entendimento de que a maneira bíblica de sair de um círculo vicioso é
despir-se de você mesmo e buscar Cristo. Para tanto, precisamos parar de falar de nós mesmos, com
nosso vocabulário de autocondenação e começar a entrar num estado de confissão humilde. De fato,
é precisamente aí que mora a diferença entre a culpa torturante e a tristeza típica do arrependimento.
Este último foca no redentor e na graça transformadora, produzindo uma atitude interior modesta e
receptiva à “cura” que vem de fora.

Nesse embalo, resta-nos pensar um pouco sobre a outra categoria de conselhos que aparecem
na vida de quem não consegue vencer a luta contra os pecados sexuais: “faça mais força!” ou: “a
resposta está dentro de você”. Ou ainda: “esqueça a culpa: faça suas próprias regras”, ou alguns
ditados mais religiosos: “pague o preço, ore, leia a bíblia e jejue e seu esforço vai produzir pureza”.

Tais propostas, grosso modo, buscam inflar o “eu”, ora através de psicologia barata (autoajuda), ora
por meio da ação religiosa autossuficiente. Essas atitudes equivalem a tentar curar um sujeito que
foi envenenado com uma dose maior do próprio veneno; Aliado a isso, também existe a tendência

14
HEATH B. Lambert. Finalmente, livre: a luta pela pureza com o auxílio do poder da graça. Eusébio/CE: Peregrino, 2017, p. 46.
condescendente de procurar desfazer a culpa afirmando que o pecado não é tão pecado assim.
Certamente, todas as correntes deste “rio de conselhos” equivocados caminham para o mesmo
abismo e, infelizmente, se adequam perfeitamente ao tipo de “geração Eu” que surgiu nos últimos
tempos.

A GRAÇA DIZ: “A RESPOSTA ESTÁ DENTRO DE VOCÊ? UMA OVA!”

Sejamos sinceros. Esta geração, por mais que tente se vender como tolerante, livre, preocupada com
o planeta, afetiva e superior aos pais, é “depravada e maliciosa” como afirma Paulo em Filipenses
2.15.

Entretanto, muitos nativos do século XXI acham que não vivem em densas trevas. A despeito de
possuírem uma má impressão do mundo, enxergam-se como pessoas boas, sem arrependimentos
e livres das sombras da antiga religião cristã que enfatizava a autonegação e a desconfiança para
com o próprio coração. Acham que a tragédia é externa, e que, por dentro, são pessoas maravilhosas.
Por isso, esquecem-se do dito de Cristo: a maior corrupção está dentro do homem (MT 15.11).
Nessa onda, não só estamos num momento de rebaixamento de padrões morais como também
vivemos numa época em que se considera o rebaixamento de tais padrões, uma virtude. Quanto
mais permissivos, mais aliviados e elevados nos consideramos.

Com o pavor de desagradar tais sensibilidades, os pais não se dão mais o respeito, os professores
são figuras acessórias e líderes eclesiásticos fazem concessões todos os dias para mimar o rebanho.
Portanto, perdemos o foco na espiritualidade que se encarna e afeta a maneira como usamos nosso
tempo, nosso talento, nosso sexo, nosso dinheiro, nossa hora livre e nossa hora ocupada, isto é,
repercute em tudo porque ganha o coração. Como diria C. S. Lewis, “o problema” de se relacionar
com Deus é que Ele interfere no cotidiano. Incomoda.

À vista disso, precisamos parar de nos iludir: o mundo jaz no Maligno e seus habitantes ao andarem
em trevas tropeçam diariamente na própria imagem que criaram de si: eu sou boa gente, as respostas
estão dentro de mim, o mundo mal é culpa de Deus, basta deixar a humanidade florescer e a paz
reinará. Portanto, que Deus me siga, amém.

Pensamentos claramente absurdos.

QUEBRANTAMENTO
É nesse ambiente que a graça de Deus nos chama ao quebrantamento, pois não temos em nós
mesmos o poder para resolver nossas ruínas. Nesse sentido, somos como Naamã, o chefe dos
exércitos da Síria na época do profeta Eliseu: grande vulto aos olhos de terceiros, cônscio de suas
potencialidades humanas, tido como “um grande homem diante de Deus” (2 RS 5.1) e acostumado
a brilhar em batalhas heroicas: “porque por ele, o Senhor dera livramento aos sírios.”(2 Rs 5.1).
Entretanto, destoando deste ethos magnânimo, o autor bíblico termina o versículo com uma frase
decepcionante: “e era este homem herói valoroso, porém leproso” (1 Rs 5.1).

Isso deixa patente que Naamã é o símbolo do homem publicamente louvado, mas que está ferido
no seu íntimo com uma enfermidade para a qual não tem solução. Sua esperança, portanto, está
fora de si. Ademais, a forma como ele é tratado pelo profeta Eliseu mostrou-lhe que a cura não viria
se não viesse antes a humildade. Logo, concluímos que a resposta para Naamã não estava dentro
dele, antes estava na boca de uma mera empregada doméstica que o instruiu a rogar ajuda de um
profeta estrangeiro que nem se dignou a recebê-lo e que, por último, o aconselhou a mergulhar sete
vezes no pífio rio Jordão – sim, pífio em comparação com outros rios frequentados pelo capitão
sírio (2 Rs 5.1-27).

Esse herói de guerra passou por uma saga na qual desistiu de confiar em si. Essa é a lição necessária
para quem deseja vencer o pecado da pornografia. Não adianta bater no peito e prometer que nunca
mais vai pecar, não adianta querer mudar a definição de pecado para que a doutrina acomode-se a
suas falhas. A única saída para a lepra espiritual da pornografia está em acessar o poder da graça.
Sim! A graça não é apenas um dom imerecido do amor divino, é também, poder para obedecer e age
por meio da presença educadora do Espírito Santo. Presença capaz de nos fazer amadurecer em fé.
Frente a isso, se quisermos vencer a pornografia será preciso uma profunda e sincera humilhação
perante Deus, confessando que até aqui o ego tem estado no controle e definido nossas escolhas.

Atenção! O arrependimento para nosso senso de autogoverno é muito mais complexo e profundo do
que as demandas desafiantes da pornografia. Desta forma, entenda: sua maior problemática não é o
que você faz com os olhos físicos, é o fato de que sua vida, pelo menos nessa área específica, está
sendo governada pelo “eu” e não por Deus. Essa é a armadilha da qual você precisa sair para se vê
livre do cárcere da pornografia.

Assim, precisamos expor com afinco como a graça de Deus pode nos conduzir à necessária ação
de deposição do ego.

O PODER E A FRAQUEZA

Esse processo realmente inicia-se quando as debilidades típicas de nossa condição humana são
confessadas, pois a graça divina não opera enquanto nossa fraqueza não for assumida. Sobre isso,
lemos as palavras de Paulo:

“Então ele me disse: ‘A minha graça é o que basta para você, porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza’.
De boa vontade, pois, mais me gloriarei nas fraquezas, para que sobre mim repouse o poder de Cristo”
(2 Co 12.9).

Nessa passagem, o apóstolo revela um recorte de sua vida de oração. Ele corajosamente desvela
uma relação com Deus na qual não apenas o ser humano fala. Aqui, ele também ouve as respostas
não completamente convenientes aos seus anseios. Vejamos: Paulo havia rogado pela solução de
um problema (ainda não bem definido) que o perturbava profundamente. Nesse contexto de diálogo
com o Eterno, vemos as aspas de Deus. Vamos separá-las em duas partes: (1) “a minha graça é o
que te basta”; e, (2) “porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza”.

A minha graça é o que te basta – Essa expressão denota que Deus é soberano e não vai mudar sua
agenda por pressão ou por barganha humana. Ele não é um ídolo controlável, ao contrário, é o Criador
Eterno, Onipotente e Onisciente, cuja perspectiva sobre nós é sempre boa, perfeita e agradável (Rm
12.2), principalmente quando isso não nos está claro, pois deste modo, Deus nos ensina a confiar em
Suas palavras e intenções. Assim, Ele deseja gerar fé dentro de nós. Uma fé na graça que reside fora
de nós, mas que está sempre acessível em Cristo. Ela pode nos inundar de forma superabundante,
exatamente naquela área da vida na qual o pecado tem nos humilhado abundantemente (Rm 5.20).
Nesse contexto, é interessante salientar que Paulo reclamava de um “espinho na carne”, expressão
controversa sobre a qual paira grande discussão teológica, no entanto, algo está claro: era uma
situação estressora que ao mesmo tempo produzia dor em Paulo e o mantinha longe de um dos
mais característicos pecados do ego inflado: a vanglória.

De resto, Paulo nos oferece mais uma lição: quando pressionado pela aflição ao invés de buscar
um alívio rápido na imoralidade sexual, o apóstolo corre para Deus e dialoga humildemente com o
Senhor, encontrando, assim, a riqueza da graça. Será que temos feito o mesmo?

PROCURA-SE UMA FRAQUEZA

Para tanto, retornemos ao texto paulino sobre a graça como aquilo que nos basta. Nele, Deus usa
o pronome possesivo “minha” antes da palavra “graça”, deixando estabelecido: eu sou o dono da
resposta e a fonte da solução. Da mesma forma, fica claro duas características da graça: ela é
suficiente e transbordante.

Vamos entender melhor: suficiente porque se constitui como poder espiritual, em outras palavras,
como dínamo propulsor de toda transformação; e, transbordante porque nos concede perdão,
reconciliação e força para além de nosso merecimento ou expectativa.

De modo complementar, quando leio a segunda parte da resposta de Deus ao apóstolo Paulo, a saber:
“porque o poder de Deus se aperfeiçoa na fraqueza”, recordo-me de um pastor amigo que mergulhou
em um mar de imoralidade sexual. Vou chamá-lo aqui de Fernando. Sobre ele, vale dizer: logrou
ocultar suas práticas pecaminosas durante alguns meses, até que, pela graça de Deus, o caso veio
a lume. Este tipo de exposição é muito dolorosa, porém claramente necessária. Os inconvenientes
atrelados a ela manifestam-se como consequências imediatas do pecado em si.

Envolvido nessa trama de mentiras e hipocrisia, Fernando começou com um envolvimento virtual
com pornografia, depois migrou para o serviço de prostitutas, e num segundo momento iniciou
relações sexuais com travestis, aos poucos também desenvolveu o hábito de criar perfis falsos nas
redes sociais e postar anonimamente fotos íntimas bastante explícitas. Tudo, naturalmente, sempre
ocultado da esposa e da igreja local. Passado algum tempo, Fernando foi assumindo mais riscos e
ficando mais descuidado, até que sua mulher descobriu tudo.

Lembro-me de conversar com Fernando e vê-lo chorar por causa da vergonha e do remorso que
sentia por se ver obrigado a lidar com a situação. Certamente, sua fala também carregava um quê
de consciência da gravidade do pecado e um pedido estridente por ajuda. No entanto, algo me
chamou a atenção: o tipo de oração feita por Fernando.

Nesse ambiente, entre lágrimas, ele orava frases do tipo: “agora eu vou mudar definitivamente... vou
demonstrar para Deus e para o Diabo que eu posso... prometo que vou largar o pecado...”. Ao escutar
esse tom discursivo, tive, imediatamente, a visão de que Fernando, mesmo bem intencionado, estava
fazendo a oração errada, pois o arrependimento quando fruto do agir da graça de Deus não se estriba
na força de vontade do “eu posso” ou na capacidade de impressionar os céus com promessas de
pureza. Jamais!

A oração necessária nem sempre é a oração mais fácil, pois ela versa sobra a constatação de que o
ego falhou vergonhosamente em tentar administrar a vida, logo, dele não vem nada.
Fernando precisava entender que, ao contrário do que dizia, a oração na qual o indivíduo zera suas
expectativas positivas com relação às virtudes do “eu”, é o tipo de prece que recebe de Deus a
devolutiva obtida por Paulo: minha graça é suficiente para fazer você atravessar esse vale, e, ao
mesmo tempo, minha graça é poder despendido em seu favor sempre que você entra em contato
com a possibilidade de pecar. Portanto, para Fernando faltava um senso mais apurado de sua
humanidade e a revelação de que a única saída para o reiterado pecado sexual era desistir de tratar
o ego como um ser divino capaz de socorrê-lo.

Dessa maneira, a oração de Fernando ainda era sintoma de um modo de ver marcado pelo
protagonismo do “eu”. Esse enredo explicita mais uma lição: o movimento pendular que o ego produz.
É evidente que num primeiro momento, o ego realiza de seus desejos lascivos com todo vigor; em
seguida, decepcionado com as consequências, ele se reveste de uma aura religiosa e chama para si
o papel principal no processo de moralização da bagunça que causou.

Eis aí o pêndulo da desgraça, que nos impede de sermos “fortalecidos pela graça” (Hb 13.9). Ao
contrário, somos jogados de um extremo ao outro: de um lado, o “eu” excitado e exaltado embrenhando-
se na imoralidade; e, em outro, um “eu” moralista, cheio de autocomiseração, ainda obcecado em si
mesmo, tentando resolver o problema com ativismo religioso, incapaz de reconhecer sua fraqueza.

Enfim, sem fraqueza reconhecida o poder de Deus não se aperfeiçoa em nós.

GRAÇA: PASSADO, PRESENTE E FUTURO

De fato, a graça poderosa e suficiente ocupa toda a cena. Ela espraia-se pelo passado, presente e
futuro. E, certamente, é lembrando, crendo e perseverando nessa verdade que se torna possível o
processo de santificação. Ou seja, nosso esforço em entender e de se comprometer, de coração,
com a realidade redentora da graça é a condição básica para que a pornografia seja superada.
Nesse particular, fica evidente que não existem fórmulas mágicas, tabela infalíveis, rituais secretos
ou apenas um único princípio supremo que responda todas as questões levantadas sobre como
devemos combater a pornografia. A resposta está num relacionamento pessoal com o Criador
gracioso. Nesse rumo, vejamos como apreender a riqueza da graça:

A graça é sobre o que já ocorreu – nós estávamos mortos em nossos delitos e pecados (Ef 2.5) e,
sem nenhum mérito humano próprio, Deus deixou nossa morte espiritual no passado, assim como
Paulo escreveu à igreja de Corinto: “Assim foram alguns de vocês. Mas vocês foram lavados, foram
santificados, foram justificados no nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito do nosso Deus.” (1 Co
6.11). Esse texto é extraordinário por exaltar a visão trinitária com a qual devemos enxergar a nós
mesmos.

Nela, a base de valor, estima e destino não se alicerça na percepção do ego ou na opinião de outros
seres humanos, pelo contrário, tudo isso é fundado na rocha da obra que a trindade tem feito no
mundo desde a criação de tudo, e, na obra redentora que ecoa dentro de cada um nós. Nessa
perspectiva, o Apóstolo estrutura seu raciocínio da ordem indicativa para a imperativa. O que isto
quer dizer? A lógica de Paulo começa indicando aquilo que os coríntios já eram em Cristo (por causa
do agir livre da graça de Deus) para então propor como eles devem viver (ordem imperativa). Nesse
contexto, algo é muito importante: a Bíblia nunca ensina a ordem inversa, ou seja, extrair substrato
da moralidade para depois ser considerado detentor da identidade cristã.
Portanto, o poder para vencer a pornografia vem do fato de depositar fé diariamente em quem nós
somos em Cristo e entender que a santificação é o único estilo de vida compatível com nossa nova
identidade.

Essa formulação fica mais solar quando observamos os conceitos descritos no texto no já citado
capítulo 6 de Coríntios. O perdão purificador (“foram lavados”) aparece ao lado de outros dois: a
santificação e a justificação. Sobre eles, vale destacar os tempos verbais no grego que apontam para
uma ação já realizada e que mantém seus efeitos até o presente. No entanto, dentro das discussões
doutrinárias sobre essas verdades, sabemos que as três ações descritas são obras de Deus,
executadas mediante a fé. E, grosso modo, além de representarem uma realização já executada,
também denotam um processo contínuo a se estender por toda a vida do fiel.

Frente a isso, perguntamos: como saber se a Graça que me alcançou no passado pode me ajudar na
luta presente com a pornografia?

Para responder essa inquietação, o conselheiro bíblico David Powlison15 nos dá um direcionamento
útil. Para ele, a transformação, de fato, ocorre a partir do que a graça já fez: “Algumas vezes você
é santificado por se lembrar diretamente de que Deus o justifica com base na justiça, no sacrifício
expiatório e na ressurreição de Cristo”. Nessa esteira, Powlison prossegue indicando um obstáculo
comum no processo de santificação, a saber, o sujeito que fundamenta “seu relacionamento com
Deus em seu desempenho”, este “é um problema comum que tanto requer santificação como cria um
obstáculo a ela”. E, mais, “algumas vezes é difícil lembrar que você é justificado pela obra de Cristo – e
vale a pena lutar para deixar esse fundamento bem claro”.

Mais uma vez, Isto evidencia que nossa nova identidade em Cristo, adquirida e sustentada pela
Graça, é a base para todo crescimento espiritual. Tal perspectiva se contrapõe às dietas religiosas
que muitos líderes sugerem aos que pedem ajuda para abandonar a pornografia. Algumas dessas
abordagens são baseadas somente na quantidade de oração, jejum e de leitura bíblica que o indivíduo
consegue realizar. Em suma, é o ego religioso tentando salvar o ego imoral.

Sobre esse aspecto, já conversei com irmãos que traziam o seguinte discurso: “quando eu estava
orando e meditando todos os dias, conseguia não ver pornografia, pois me sentia forte, mas o tempo
foi passando, perdi o interesse nas coisas espirituais e voltei para o pornô”. Veja, orar, ler a Bíblia
e cultivar as demais disciplinas espirituais é essencial para conhecermos ao Senhor, porém, essas
práticas podem ser executadas com a motivação incorreta. Explico: quando afirmo que não pequei
por causa do esforço do ego em fazer determinadas coisas, mais uma vez, estou tirando meu foco
da graça de Deus e glorificando minha própria prodigalidade. O correto é perceber: se fui capaz de
dizer não ao pecado, isso foi, em última instância, fruto da ação poderosa da graça em mim. Assim,
combato, justamente, a vanglória religiosa que Deus queria fazer Paulo superar, na ocasião de sua
oração sobre o “espinho na carne”.

De fato, orar e meditar nas Escrituras diariamente, sempre nos ajuda a rememorar e crer naquilo
que é verdadeiro. Esses hábitos são “meios” pelos quais nos aproximamos da pessoa de Deus e
conhecemos a profundidade de sua natureza. Portanto, apesar de serem elementos centrais na
santificação, eles se inscrevem nessa dinâmica, menos por causa de nossa capacidade religiosa
de fazer “coisas boas”, e mais por causa da ação misericordiosa do Espírito Santo em nos fazer
“lembrar” (Jo 14.26) de tudo que Jesus ensinou.

15 POWLISON, David. Como acontece a santificação? São José dos Campos/SP: Fiel, 2018, p. 55.
Enfim, quando aquele meu amigo “acertou” dizendo não à pornografia, não o fez por causa de um
simples esforço do ego, por mais que estivesse fazendo a coisa certa na ocasião na qual lia a Bíblia
e orava. O acerto deve ser creditado à graça de Deus, pois toda glória é dele. Sempre.

GRAÇA AQUI E AGORA


A graça também é sobre o que está acontecendo – Com efeito, a graça não apenas nos salva, ela
nos educa aqui e agora. O texto de Tito 2.11 esclarece: “Porque a graça salvadora de Deus se há
manifestado a todos os homens, ensinando-nos que, renunciando à impiedade e às concupiscências
mundanas, vivamos neste presente século sóbria, e justa, e piamente”. (Tt 2.11-12).

Nesse excerto, a palavra grega traduzida como “ensinando-nos” é “paideia” e traz a ideia de formação,
ou de expansão da consciência em direção a um entendimento superior. Nesse sentido, vale dizer
que as virtudes nomeadas pelo Apóstolo Paulo no verso doze estão entre as principais qualidades
aclamadas pelos gregos: a sobriedade, a justeza e a piedade. Contudo, o diferencial do cristianismo
é identificar-se com tais qualidades morais a partir do próprio Deus, ensinando que a formação
da alma do filho de Deus não se dá por mero aprendizado filosófico ou moralista. Ao contrário, a
expansão da consciência – que pode ser tomada como outra maneira de chamar o arrependimento
pelo qual se abandona as coisas de menino (1 Co 13.11) e se avança à maturidade espiritual – é
fruto do agir diário da mesma graça que, em primeira instância, “se manifestou salvadora”.

De fato, Deus não nos salva para depois nos abandonar com uma lista de regras nas mãos e, então,
exigir mudanças. Na verdade, sua relação conosco é orgânica: somos instados a permanecer Nele
como um ramo finca-se na videira, e, então, Sua graça como a seiva que embebeda o ramo, produz
o fruto em nós.

Portanto, nessa metáfora, a principal preocupação do galho é permanecer. O evangelho de João


bem descreve essa ação:

“Eu sou a videira verdadeira, e o meu Pai é o lavrador. Todo ramo que, estando em mim, não der fruto,
ele o corta; e todo o que dá fruto ele limpa, para que produza mais fruto ainda. Vocês já estão limpos
por causa da palavra que lhes tenho falado. Permaneçam em mim, e eu permanecerei em vocês. Como
o ramo não pode produzir fruto de si mesmo se não permanecer na videira, assim vocês não podem
dar fruto se não permanecerem em mim. Eu sou a videira, vocês são os ramos. Quem permanece em
mim, e eu, nele, esse dá muito fruto; porque sem mim vocês não podem fazer nada”. (Jo 15:1-5).

As videiras eram muito comuns no mundo mediterrâneo. Na verdade, as árvores frutíferas mais
frequentemente cultivadas nos quintais das residências daquela região eram a figueira, a oliveira,
e a videira. A videira estava entre aquelas mais difíceis de cuidar, demandava muita atenção e
manutenção constante. O corte dos ramos infrutíferos e poda dos ramos frutíferos era prática usual.
Nesse particular, João faz um trocadilho entre a palavra “podar” e o verbo “limpar”, dando a este
último, uma conotação diferente daquela presente em alguns textos hebraicos; aqui, o apóstolo
aplicava a limpeza não apenas aos aspectos cerimoniais, mas também relacionada à purificação do
coração.

Nesse rumo, o importante atentar para Deus como um agricultor interessado diariamente em nos
fazer mais frutíferos, mesmo que isso envolva técnicas drásticas. Veja: a poda não era um momento
tranquilo, porque a planta mesmo dando fruto poderia esta muito enfraquecida, na verdade, nos
termos do comentarista Craig Keener, “quanto mais débil a videira, mais severamente era podada,
o que, em curto prazo, significava menos frutos, mas garantia maior quantidade de frutos no ano
seguinte”16.

Isso demonstra que o agir gracioso de Deus não é condescendente nem com nossos pecados, nem
com as desculpas que usamos para pecar. Mesmo quando estamos vendo surgir em nós alguns
frutos dignos de arrependimento (Mt 3.8), Ele intensifica sua ação santificadora sempre tendo como
paradigma a visão a longo prazo. Ou seja, a ênfase não é na felicidade do ego e em sua imediata
gratificação, o foco é num crescimento sustentável que é impulsionado de dentro para fora. Vale
salientar que Deus usa o que for a necessário para nos podar: a lâmina perfurante das sagradas
Escrituras, o conselho de pessoas sábias, as diversas aflições da vida e nossa própria consciência
são instrumentos orquestrados pelo grande maestro que está reconciliando, em Cristo, o mundo
consigo mesmo (2 Co 5.19).

Nesse contexto, a única preocupação do ramo é garantir que está conectado à videira e se submeter
às podas oportunas mesmo quando dolorosa. De fato, somente isso está ao seu alcance, uma vez
que o fruto é resultado da vida que vem da árvore. Diante disso, devemos nos inquirir: quantas vezes
resistimos à ação purificadora de Deus, entregando nossos corações aos amores rivais que passam
pano para nossos erros? Esses últimos são falsos deuses, falsos agricultores que nos aprisionam
em suas mentiras.

Nesse bojo, fica evidente que na luta contra a pornografia nós precisamos aprender a manter nossos
olhos e ouvidos conectados no Senhor da poda para podermos aprender cada lição que as tentações
e aflições vão nos proporcionar. Afinal, estamos matriculados na escola da graça e dela obtemos a
formação processual rumo à perfeita varonilidade de Cristo (Ef 4.13). Ou ainda melhor, recorde-se:
estamos organicamente unidos a Cristo. Ou ainda, numa linguagem mais aguda: somos um com
Cristo não só no plano espiritual e eterno, pois o cristianismo, como ensinava Schaeffer17 não é uma
resposta do tipo “andar de cima”, isto é, despreocupada com o aqui e agora. O que ocorre é radical: “já
não sou mais eu que vivo, é Cristo que vive em mim” (Jo 2.20), isso é verdade seja quando me “vejo”
assentado “nas regiões celestiais em Cristo Jesus” (Ef 2.6), seja quando me percebo navegando,
ordinariamente, pela internet. Em todo caso, a pergunta segue: estou conectando-me Nele, sempre
que preciso lidar com minhas necessidades humanas?

Com efeito, todas as vezes que vamos na direção inversa e nos conectamos à pornografia para
enfrentarmos as agruras dos dias repletos de cansaço, stress ou tédio, agimos loucamente:
semelhantes a um ramo de videira que tenta resolver suas necessidades fora da videira. Oh, ramo
infeliz! Diria João: sem a videira nada podemos fazer, pois para além da videira tudo é vaidade.

A GRAÇA É SOBRE O FUTURO

Quando lutava para abandonar a pornografia durante minha adolescência, recordo-me de ter uma
sensação frequente: posso até vencer hoje e amanhã, porém quanto tempo isso vai durar? Sempre
será tão desgastante ter que negar os desejos? Como vou conseguir passar um ano ou dois ou a
vida inteira sem o conforto que a pornografia me proporciona?

Estas questões versam sobre duas coisas muito controversas: o futuro e o medo. E, notadamente,

16 KEENER, Craig S. Comentário histórico-cultural da bíblia: Novo Testamento. São Paulo/SP: Vida Nova, 2017, p. 348.
17 SCHAEFFER, Francis. Gênesis no Espaço-Tempo. Brasília/DF: Monergismo. Edição do Kindle.
precisam ser endereçadas a partir da verdade de que a graça de Deus nos conduz por um caminho
que inclui aflição e provas. Ele procede deste modo porque conhece a linha de chegada e sabe sobre
a felicidade que nos espera no momento em que a consumação de todas as coisas se realizar.
Logo, nossos dias aqui e agora precisam ser cheios dessa expectativa, pois a maneira com a qual
nos relacionamos com o porvir, altera nossa atitude diante do tempo presente. Quando estamos
conscientes do que nos espera, o peso da “leve e momentânea tribulação” (2 Co 4.17) resultante
da luta contra o pecado e contra às trevas se revela infinitamente menor do que a glória do reino
vindouro de Cristo: assim, o que era prioritário se torna secundário, assim o ego já não controla
nossa relação com o presente e o futuro.

Nas palavras de Isaías: “Não és tu aquele que secou o mar, as águas do grande abismo? O que fez
o caminho no fundo do mar, para que passassem os remidos?” (Is 51.10). Aí está: Deus escolheu o
caminho de saída do Egito que mostrasse, definitivamente, que o povo de Israel não venceria por
causa das suas capacidades, mas por conta da ação milagrosa da graça de Deus. O mesmo se dá
conosco: não sabemos por onde o caminho da santificação irá passar, não temos o controle do
processo. Por isso, a ansiedade e o medo se arvoram para sabotar todo o empreendimento. Cuidado!
É neste contexto que se assenta o conceito cristão clássico da fé perseverante: aquele que é salvo
dá sinal da fé verdadeira na medida em que atravessa as mais diversas turbulências, descobrindo,
nesse ínterim, o quão frágil é sua condição humana e o quão poderosa é a natureza daquele que o
escolheu. Nessa esteira, o Apóstolo Paulo declara:

“Temos, porém, este tesouro em vasos de barro, para que se veja que a excelência do poder provém
de Deus, não de nós. Em tudo somos atribulados, porém não angustiados; ficamos perplexos, porém
não desanimados; somos perseguidos, porém não abandonados; somos derrubados, porém não
destruídos”. (2 Co 4:7-9).

Os filósofos da época de Paulo eram louvados por serem fortes, no entanto, o verso paulino vai ao
sentido contrário, ele identifica os cristãos com o que havia de mais vulnerável: vasos de barro.
Inclusive, há registros arqueológicos demonstrando que os leitores de Corinto conheciam inúmeras
lâmpadas frágeis de cerâmica. Estas seriam consideradas recipientes improváveis para conservar
qualquer tesouro excelente. Paulo, em contrapartida, garante que apesar da aparente fraqueza deste
projeto que une Deus e homens num processo de santificação, mesmo enfrentando tribulação,
perplexidades, perseguições e oposições, nós não iríamos sucumbir.

Se nos ativermos à esfera humana deste projeto, com efeito, faz todo sentido haver perguntas sobre
como vamos dá conta de manter o tesouro da santidade dentro de nós. Isto tem seu lado positivo,
pois está associado à percepção benéfica de nossa humanidade. De fato, a antítese que o Apóstolo
Paulo estabelece não é entre corpo e alma: sendo o corpo supostamente um tênue recipiente da
alma. Na verdade, ele põe em oposição dois conceitos: a divindade do “tesouro” e a humanidade do
vaso. Dito isto, a conclusão se torna cristalina: apesar de ser interessante estar consciente de nossas
vulnerabilidades humanas, isso pode nos paralisar porque estaríamos, mais uma vez, olhando para
o lugar errado: para o ego do qual já aprendemos a desconfiar, ao invés de mirarmos “o autor e
consumador de fé, Jesus” (Hb 12.2).

Veja como esse texto de hebreus é fantástico, porque ele nos obriga a pensarmos na esfera divina
inerente ao empreendimento da santificação. Quando ascendemos esse facho de luz o medo se
desvanece e a ansiedade é confrontada. Nesse sentido, Hebreus nos apresenta Jesus Cristo não
somente como iniciador dos processos, mas também como aquele que consuma o caminho. Nesse
compasso, segue o autor de Hebreus: Jesus, “em troca da alegria que lhe estava proposta, suportou
a cruz, sem se importar com a vergonha, e agora está sentado à direita do trono de Deus”. (Hb 12:2).
Além de tudo, o filho do homem também se constitui exemplo de obediência dolorosa e persistente
que não se importou com a vergonha e o estresse porque seus olhos enxergavam algo muitíssimo
mais sublime: a glória do Pai. Esse é aquele que está conosco, de cujo amor nada pode nos separar
(Rm 8.38-39) e que se compadece de nossas fraquezas. Por isso nos prometeu sua presença e o
socorro acessível para sempre que entrarmos na sala do seu trono e o contemplarmos “à direita do
trono de Deus”.

Desta feita, no intuito de curar um pouco mais os olhos do nosso coração, obrigando-os a focalizar
somente a Cristo e a entregar a ele o controle de todos nossos processos, “pinguemos” em nossas
vistas espirituais um pouco mais do colírio divino que se condensou no livro de Hebreus:

“Portanto, aproximemo-nos do trono da graça com confiança, a fim de recebermos misericórdia e


encontrarmos graça para ajuda em momento oportuno”. (Hb 4:16).

Decerto, esta é a graça oportuna e poderosa que transforma nossa relação com o passado, com o
presente e com o futuro, a fim de nos ensinar a confiar na esperança que vem de fora do ego.
04. OLHAR CAÍDO: CORAÇÃO (CA)ÓTICO

“Percebi que estava indo para buraco”, essa é a resposta que constantemente recebo quando
converso com pessoas que, paulatinamente, deram cabo a uma vida de imoralidade. A sensação de ir
descendo numa espiral de lassidão é típica desses depoimentos, pois a degradação é parcimoniosa,
leva o indivíduo a construir, tijolo por tijolo, o muro que desabará sobre sua cabeça. Nas palavras de
sabedoria judaica: “Quem abre uma cova acaba caindo nela; e a pedra rolará sobre quem a pôs em
movimento” (Pv 26:27).

Ou seja, a repetição do hábito pornográfico e o reiterado encanto com o conforto momentâneo que
a imoralidade produz é idêntico ao processo de cavar, todos os dias, a sepultura que o engolirá. Ou,
numa imagem mais vívida, é semelhante a pôr um enorme pedregulho em movimento, sem se dar
conta que a trajetória de destruição gerada por ele, abarca, entre outras coisas, a saúde, as finanças,
o casamento, o ministério e a integridade do próprio iniciador do processo.

Diante disso, vale ressaltar que Deus não criou o ser humano com tal capacidade autodestrutiva.
Não! Isso é resultado da queda que precisa ser entendida em sua amplidão para que a viva esperança
ofertada em Cristo faça sentido.

Para introduzir a discussão sobre o que é a doutrina da queda e porque a sua negação é prejudicial,
vamos aos textos paulinos. Neles, entendemos que toda a criação geme debaixo de um cativeiro
de corrupção, angustiada por estar “sujeita à inutilidade” (Rm 8.20). Quer dizer: vazia de sentido em
si mesma. Ademais, o apóstolo vê um elo entre o pecado e a morte: “pelo pecado a morte [entrou]
no mundo” (Rm 5.12). Em Romanos 7:9-13, Paulo repete a ideia de que o pecado, descrito como um
poder, o matou. De fato, a visão do pecado como uma potência ativa e hostil aparece diversas vezes
na carta aos Romanos.

Já em Efésios, o tom paulino opera no sentido de fazer lembrar que por causa das “faltas e do pecados”
(Ef 2.1), seus leitores estavam mortos antes de crerem em Cristo. Associado a esta concepção, o
pecado também é apresentado dentro da perspectiva da escravidão. Nessa lógica, Paulo discorda,
veementemente, de quem enxerga na vida de pecado uma maneira de gozar a liberdade. Ele menciona
que no estado de pré-cristãos, os romanos eram “escravos do pecado” (Rm 6.17,20).

E mais: o pecado também cria um abismo entre os pecadores e o Deus santo, por isso, sem Cristo,
somos “estranhos à vida de Deus” (Ef 4.18). Consequentemente, a queda lançou toda a humanidade
num mundo de relacionamentos interpessoais quebrados e isso fica cristalino na lista de pecados
esboçada por Paulo em Romanos 1: cupidez, inveja, homicídios, brigas, dolo, provocações,
desobediência à aliança, entre outros. Como diria o comentarista bíblico M. B. Thompson: “os seres
humanos estão unidos no pecado, mas não estão unidos uns aos outros18”. Fato que se torna evidente
no consumo de pornografia, pois no âmbito da prática transgressora, há uma pretensa união de
corpos, sem, de fato, haver uma conexão real entre pessoas. Ou seja, o pecado mesmo quando
aglutina corpos, não une indivíduos.

De forma similar, Paulo especifica ainda mais a condição humana dentro deste universo caído:

18 M. B. Thompson, “Pecado, culpa”. In: Dicionário de Paulo e suas cartas. São Paulo/SP: Edições Loyola, 2008, p. 970.
“Como está escrito: ‘Não há justo, nem um sequer, não há quem entenda, não há quem busque a
Deus. Todos se desviaram e juntamente se tornaram inúteis; não há quem faça o bem, não há nem
um sequer. A garganta deles é sepulcro aberto; com a língua enganam, veneno de víbora está nos
seus lábios. A boca, eles a têm cheia de maldição e amargura; os seus pés são velozes para derramar
sangue. Nos seus caminhos, há destruição e miséria; eles não conhecem o caminho da paz. Não há
temor de Deus diante de seus olhos.’” (Rm 3:10-18).

Esse relato é aterrorizante porque não deixa de fora nada nem ninguém. Notoriamente, para o
apóstolo dos gentios a queda é seríssima e, além de afetar toda a criação, corrompeu todo o gênero
humano; estende-se por toda a história da humanidade (2 Ts 2.3) e está difundida no “total” do
ser humano : coração, corpo, emoções, afetos, inteligência, espírito (como fica evidente na lista de
iniquidades de Gálatas 5. 17-21).

Logo, o coração que confiar em qualquer elemento criado e pô-lo como sustentáculo de sua felicidade,
colherá caos e frustração. Eis aí o grande problema da pornografia. Quando alguém que nasceu de
novo permite que a pornografia seja o socorro e o conforto, eventualmente necessários para lidar
com as agruras da vida, este sujeito começa a operar de maneira igual aqueles que não conhecem
a Deus: de modo a revelar que não ama a Deus de todo o coração, nem confia Nele, principalmente,
quando se sente carente de socorro e bem-estar.

Notadamente, este estilo de vida carnal produz um questionamento: realmente houve o novo
nascimento na vida deste indivíduo? Caso a resposta seja positiva, estamos diante de uma tremenda
anomalia que tortura a própria consciência do sujeito e entristece o Espírito Santo dentro dele
(Efésios 4.30).

AGITAÇÃO E COBIÇA
Por causa da relevância desse tema, voltemos a uma parte do texto acima citado (Romanos 3.10-
18). Nele, gostaria de destacar duas expressões: “eles não conhecem o caminho da paz”; e, “Não há
temor de Deus diante de seus olhos”.

Vejamos.

“eles não conhecem o caminho da paz” – a partir deste trecho, percebemos que o estilo de vida
resultante da queda é caracterizado por uma “não-paz”. Isto é, a existência se transforma numa eterna
correria, no estilo “cada um por si”: o indivíduo entregue aos seus apetites, vai de uma sensação à
outra em busca da experiência definitiva, redentora. Pobre homem. Em uma agitação cada vez mais
exótica, pula de um ídolo a outro, mas tudo que encontra é caos e frustração.

É nesse contexto que Jesus chama: “Venham a mim, todos os que estão cansados e sobrecarregados,
e eu lhes darei descanso. Tomem sobre vocês o meu jugo e aprendam de mim, pois sou manso e
humilde de coração, e vocês encontrarão descanso para as suas almas” (Mt 11:28,29). Certamente,
a vida sustentada pelo ego é regida pelo oposto do coração “manso e humilde”, por isso o resultado
é cansaço e conflito.

Adicionando mais um passo nessa direção, seguimos para a segunda parte que destaquei acima:

“Não há temor do Senhor diante de seus olhos” – além de moldar um coração agitado e povoado por
ídolos, a queda também se manifesta em nosso olhar, levando-o sempre a ser guiado por aquilo que
não temos. Este é o olhar da cobiça, o único dos dez mandamentos totalmente relativos à mente.
Explico: fazer imagens de escultura, matar, roubar, mentir, não guardar o sábado, entre outros, são
comandos referentes aos atos externos. Entretanto, a cobiça é uma ação de foro íntimo. Ninguém
pode perscrutá-la, a não ser o próprio Deus, que sonda o interior. Logo, ela opera pelo princípio de pôr
a atenção naquilo que não nos pertence. Por isso, vale a pena esclarecer que, em última instância,
a cobiça não é um problema referente à atração sexual (fenômeno involuntário) ou da excitação
erótica (resposta física aos conteúdos da mente), na verdade, diz respeito a uma má administração
da atenção sexual, que, em suma, fala sobre onde nossa mente está (vamos explicar melhor essa
relação no capítulo 6).

Portanto, a cobiça é o exato oposto da gratidão.

Nesse aspecto, usualmente, os solteiros cristãos abstêmios queixam-se de sua condição e justificam
o uso de pornografia pelo fato de não terem acesso ao sexo marital. Alguns deles veem o casamento
com uma sexylândia repleta de orgasmos diários, um parque de diversões ilimitado, capaz de resolver
todos os seus problemas com pornografia. Ledo engano.

Assim, quando casam, queixam-se de sua condição (casamento é desafio) e, furtivamente, justificam
seus pecados apontando dificuldades com o sexo marital exclusivo. Claramente, não importa o que
temos, sempre a cobiça irá focar no que não é nosso.

Nesse script, avoluma-se o exemplo do rei Davi: homem espiritual, referência monumental na história
de Israel, no entanto, adulterou mesmo sendo legitimamente casado com dezenas de mulheres
(Davi, além das suas próprias esposas, herdou todas as mulheres de Saul). Certamente, ele não
depositou sua atenção cobiçosa na vizinha por falta de sexo conjugal.

Seja qual for nosso estado civil, haverá sempre um desfile de imagens tentadoras diante de nossos
olhos desafiando a decisão de viver pelo que cremos. Como vimos, de acordo com o escritor
de Romanos, precisamos colocar no horizonte do nosso olhar o temor ao Senhor, que pode ser
traduzido como uma disposição interna na qual há um profundo respeito e reverência pelo criador.
Nessa atitude, o que Ele diz, quer e faz importa mais do que o aquilo que sinto. Assim, há uma
abertura à transformação dentro do caos que o pecado nos meteu. E mais, a sabedoria começa a
tomar a dianteira, na tarefa de ordenar a confusão agitada e o vazio que nos envolve.

Frente esse raciocínio, antes de continuarmos, vale relembrarmos umas das bases da nossa fé:
Jesus Cristo nos liberta do poder, da condenação e da escravidão do pecado. Nesse ponto, também
nos socorremos nas palavras paulinas: “Aquele que não conhecera o pecado, ele [o Pai] o identificou
com o pecado, por nós, a fim de que por ele nos tornemos justiça de Deus.” (2 Co 5.21),

Por causa desse ato redentivo, “nossos pecados são perdoados” (Cl 1.14), e, embora o apóstolo
anuncie o perdão completo, e entenda que a presença do pecado ainda se mantém, ele não imagina
que os cristãos vão continuar vivendo em transgressão reiterada. Ao inverso, Paulo declara que “o
pecado não terá mais domínio sobre vós” (Rm 6.14), deixando claro, em seguida, que isso não se
dará por causa da observância de um conjunto de regras, antes por causa da presença graciosa do
Espírito Santo em nós. De fato, o apóstolo chega a dizer que, uma vez libertos do poder do pecado,
somos “escravos da justiça” (Rm 6.18).

Disso, tiramos a aplicação mais importante: esse é o olhar com qual precisamos encarar o mundo ao
redor, reconhecendo-o como um ambiente caído e nos observando como peregrinos que receberam
uma nova natureza espiritual incompatível com essa realidade.

Dito isso, podemos resumir provisoriamente esse capítulo da seguinte forma: primeiro, a queda é
a origem da sexualidade egoísta, cobiçosa, violenta e autodestrutiva; segundo, todas as vezes que
normalizamos qualquer tipo de imoralidade e confiamos no conforto que ela pode nos fornecer
estamos, sutilmente, negando a seriedade desta verdade, praticando cobiça e idolatria; e, por último,
Cristo Jesus é aquele que se fez pecado por nós, para que fôssemos feitos justiça de Deus. Quando
nascemos de novo, saímos do estado de morte espiritual para a vida. Assim, somos nova criação (1
Co 5.17) e devemos viver de modo digno ao chamado que recebemos.

Ciente disso, gostaria de investigar um pouco mais o caos mundano e entender como sua negação
é parte da estratégia deste sistema para nos envolver em uma vida de porneia.

LOUCO E TRISTE
Um dos autores que melhor explicou a crise instaurada quando o homem nega o pecado original foi
o pensador católico G. K. Chesterton. Segundo ele, nega-se a queda todas as vezes que adquirimos
uma total confiança em nós mesmo e pensamos conseguir todas as respostas por meio da sabedoria
humana. Em uma abordagem hiperbólica, Chesterton compara esses indivíduos aos loucos: “os
homens que realmente acreditam em si mesmos estão todos em asilos de lunáticos”19. Nessa
linha, nosso autor britânico prossegue: a “total autoconfiança não é simplesmente um pecado; total
autoconfiança é uma fraqueza”, que nos seduz com seu apelo à positividade.

Seguindo essa trilha, lemos que, para G. k. Chesterton, o pecado original é “a única parte da teologia
cristã que pode realmente ser provada”20, caso tenhamos um olhar sensível para o quadro dos últimos
tempos. Dentro do contexto das consequências da chamada revolução sexual, o problema fica
claro: nunca tivemos tanta ênfase em orgasmos e, ao mesmo tempo nunca tivemos tantas pessoas
deprimidas. O que suscita algumas questões: a aposta ocidental no sexo desregrado, no fim das
tradições e na presumida “liberdade absoluta”, tem nos legado um mundo mais equilibrado e feliz?
Certamente, a resposta é um retumbante não. Ou, num tom mais pessoal, desde que você começou
na saga de desfrutar assiduamente de todas as suas fantasias e apetites, qual tem sido a colheita?
A verdade é que a tal “liberdade total” não existe na esfera humana. Somente Deus é absolutamente
livre.

Nós, homens e mulheres, somos adoradores e, por isso, nunca absolutamente livres, pois sempre
nos submetemos e obedecemos. Nesse contexto, a liberdade está em viver aquilo para o qual fomos
criados: conhecer e adorar ao Criador. Sem essa experiência, a submissão a outro “deus” não é
opcional. Se nosso culto não for ao Eterno, obedeceremos à outra coisa criada, ou a nós mesmos.
Particularmente, nessa última condição, nosso amo (nós mesmos) não é capaz de realizar todas as
vontades e sair ileso, pois, na tentativa de fazer tudo “o que dá na telha”, acaba-se, nos termos de
Chesterton, enlouquecendo pela falta de sentido e pela constatação de que o ego é incompetente
para entregar o que promete. Além disso, para piorar, aos poucos, começamos a usar o outro como
brinquedinho erótico. Eis aí o caos.

19
CHESTERTON, G. K. Ortodoxia. São Paulo/SP: Mundo Cristão, 2017, p. 21.
20
Ibid., 22.
Mais uma vez, essas atitudes, peculiares ao modo pornográfico de enxergar o mundo, resultam
em um ego amplificado. Tal conceito também aparece na pena do autor britânico supracitado:
“Muito mais ampla seria sua vida se o seu “eu” pudesse tornar-se menor dentro dela; se você pudesse
realmente olhar para os outros homens com uma curiosidade e um prazer comuns.”21 Fico fortemente
impressionado com essa imagem: o ego tão inflacionado que tenciona todas as áreas da existência,
esboçando assim sua própria agonia.

Diante deste quadro, responda-me: depois que o filme pornô acaba e sua vontade foi realizada
plenamente: quanto tempo dura a calmaria? E, em quantas horas depois o frenesi volta a assaltar o
coração e a ideação do próximo ato imoral se inicia?

Nisso, vamos ao que afirma o adágio romano atribuído ao médico Galeno: “Post coitum omne animal
triste, nisi gallus qui cantat” (Todo animal fica triste depois do coito, menos o galo, que canta).
Claramente, essa concepção está eivada de contradições ao ensino bíblico, primeiro por considerar
os seres humanos pelo registro animal; em segundo plano, a ideia de que o sexo ou a ejaculação
resultam em perda vital/física capaz de adoecer o sujeito, apesar de ter entrado na receita cristã
vitoriana para combater a masturbação adolescente, não encontra respaldo bíblico. No entanto, a
metáfora usada por Galeno é interessante por que salienta uma verdade: a euforia produzida pelo
êxtase orgástico termina rápido. O autor romano chama essa sensação resultante de “tristeza”, uma
espécie de desalento.

Os romanos queriam dizer que a sensação predominante do pós-orgasmo é, frequentemente


marcada por cansaços, aborrecimentos e tristezas. Ou seja, no léxico de Galeno: estamos longe de
sermos um “galo que canta”. Obviamente, muitos anos após Galeno, o esquema hormonal condutor
da resposta sexual humana foi descoberto e, hoje, sabemos que depois da excitação o estágio
seguinte é o repouso.

Contudo, para além da questão física, a imagem filosófica aqui é um pouco mais ampla: o ser humano,
fugindo da dor e da solidão, faz de tudo para ter o objeto do desejo, assim, chega rapidamente ao
ápice do tesão, para logo depois ver esvair-se por entre seus dedos o fervor da experiência. Ou seja,
o prazer termina e a aflição retorna, pedindo, desta vez, uma dose maior.

Essa incapacidade de se realizar de forma sustentável é uma marca da condição caída do mundo.
Nele, sem Deus, sempre nos constituímos como seres da falta, uma vez que só o transcendente é
sustentável.

Nesse âmbito, o sociólogo polonês Zigmunt Bauman22, em sua obra “Amor líquido”, sugere que,
atualmente, sexo segue a lógica do mercado e as relações significativas tem perdido espaço. No
lugar, vemos esse mundo repleto do provisório e da desconexão, no qual, a relação sexual é somente
uma conveniente relação física. A intenção seria privar o aspecto sexual da suposta carga moralista
que a visão tradicional impunha sobre ele, para obter mais leveza, descompromisso e, suposta
liberdade.

Contudo, segundo Bauman, todas as vezes que tiramos da experiência sexual sua dimensão
transcendente, ao invés de aliviá-la, nós a sobrecarregamos, visto que continuamos buscando o
transcendente e o profundo per meio do sexo e de suas adjacências. Obviamente, sem encontrá-lo.

21
Ibid., p. 29.
22
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido. Rio de Janeiro/RJ: Zahar, 2004.
NUDEZ CAÓTICA

O professor da Universidade de Cambridge, Simon Goldhill, especialista em história antiga, nos


provoca com uma reflexão a respeito da forma como o ocidente tem lidado com a nudez.

Este tema se mostra relevante, uma vez que nossa intenção é compreender de que modo a maneira
equivocada de lidar com a criação pode nos aprisionar numa forma errada de olhar o mundo.

Nessa perspectiva, vamos aprender um pouco com Goldhill sobre o mundo greco-romano e sobre
nossa erotizada indústria do entretenimento. Segundo ele, desde que Clark Gable, de forma inédita,
tirou a camisa no filme “Aconteceu naquela noite” (1934), um par de consequências ocorreu: primeiro,
como o ator não usava uma camisa por baixo, a indústria de vestuário nunca mais foi a mesma, pois
milhares de homens decidiram ser como Gable e também não usar; em segundo lugar, “milhares de
pessoas ficaram boquiabertas diante do torso nu do galã, considerado o mais sensual dos homens.”23
Para a geração do século XXI, acostumada com a exposição erótica desmesurada, na qual estamos
mais familiarizados “com o torso de Russel Crowe que com o nosso”, é difícil apreender o choque de
erotismo que o peitoral de Clark provocou.

Ele representava um ideal de beleza que tem sua origem nas paragens da Grécia antiga. Desde
o renascimento, a ideação do corpo masculino segue o padrão de elegância, simetria da figura,
equilíbrio estético e de curva atlética. Um paradigma muito difícil de ser alcançado, desde os tempos
helênicos. Já naquela época, obtê-lo demandava muito treino nos ginásios, que se constituíam como
espaços exclusivos para os homens.

Naquele ambiente, a promessa era: o exercício fará de você um homem. E, a maior ameaça aos
corpos masculinos era a possibilidade de se tornarem femininos demais. Veja, segundo a concepção
aristotélica da época, o corpo feminino era considerado pálido, esquelético, flácido, trêmulo, fraco
e úmido. Logo, homens que se prezavam, deviam adquirir a masculinidade pelo culto ao corpo,
levando-o para longe do padrão feminino, por meio da tonificação muscular e da exposição pública.
Assim, o culto ao próprio corpo levava o indivíduo a ser cultuado pelo olhar alheio, num velho ciclo
idólatra.

Nesse interim, a nudez pública era símbolo de um suposto estado natural elevado, no qual o homem
estaria mostrando a beleza de seu “eu”. E, o fazia completamente despido de qualquer ornamento
ou vestuário capaz de denunciar sua condição social, intelectual ou moral. Nessa lógica, estar nu
igualaria a todos e exporia a maravilha que é o ser humano livre dos símbolos da sociedade.

Nesse bojo, mais uma vez, exclui-se o conceito da queda, que para o cristão convertido naquela
época, havia afetado toda a realidade, impossibilitando o homem de achar sentido e significância
em seu próprio ser.

Por isso, ao converter-se, o crente grego deveria reformular sua relação com o ideal centrado na
nudez pública. Visto que para a Bíblia, o corpo é digno de valor por ser habitação do Espírito Santo
(1 Co 6.18-20) e não por ter sido esculpido por uma receita de treinos anatômicos. Nesse sentido, a
beleza física, embora importante, foi corrompida pelo pecado. Portanto, embora o belo carregue um
resquício da glória de Deus, toda beleza no mundo caído é manchada pela tragédia do pecado. Qual

23 GOLDHILL, Simon. Amor, sexo & tragédia: como gregos e romanos influenciam nossas vidas até hoje. Rio de Janeiro/RJ:
Zahar, 2007, p. 17.
a consequência prática deste raciocínio?

Respondo: sempre que nos depararmos com a beleza dos corpos, ao invés de reverenciá-los a ponto
de está disposto a pecar para tê-lo, devemos remeter nosso olhar ao Criador de toda beleza. Isto é,
adorar o Criador no lugar da criatura. Assim é o ensino bíblico:

“E mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, e de


aves, e de quadrúpedes, e de répteis. Por isso também Deus os entregou às concupiscências de seus
corações, à imundícia, para desonrarem seus corpos entre si; Pois mudaram a verdade de Deus em
mentira, e honraram e serviram mais a criatura do que o Criador, que é bendito eternamente. Amém”
(Rm 1:23-25).

Nessa passagem, Paulo coloca como causa do estado de degradação moral, o fato de honrarmos e
servirmos à criatura que desperta nossa admiração, quando deveríamos reconhecer nelas a pessoa
do Criador e oferecer a Ele nossa adoração. Diante disso, perceba: a pornografia é a exata subversão
dessa ordem, e deve ser combatida mediante ao arrependimento de nossa idolatria.

Nesse contexto, é fundamental fazer uma ressalva: na revelação cristã, apesar da presença da
doutrina da queda, o corpo humano não é renegado a segundo plano, ou menosprezado com inferior
à alma (dualismo platônico). Com efeito, o corpo é valorizado com centro do culto a Deus (Rm 12.1-
2) – nunca do culto a si mesmo – e inserido no drama da salvação que inclui: a criação do corpo
à imagem de Deus; a queda total da criação; a redenção por meio da graça do Cristo encarnado
e ressuscitado em corpo glorificado; por fim, a consumação com a ressurreição dos corpos dos
santos.

Como já vimos, a pornografia fala sobre uma espécie de culto deturpado ao corpo, cuja origem
remonta à tese de que a queda não ocorreu. Nesse sentido, R. J. Rushdoony, no livro intitulado
“A política da pornografia”, posiciona a pornografia no centro da declaração de independência
humanista em relação a Deus e a sua ordem. Assim, o autor assenta as raízes filosóficas desse
processo na figura de um famoso pensador francês do século XVIII: Marquês de Sade. Por este
ângulo, Rushdoony entende:

“a tese do Marquês (...) era que o Deus cristão caso existisse, deveria ser morto e sua ordem-lei,
destruída. Se, em lugar de Deus, a Natureza é suprema, segue-se que não há queda, e o homem e o
mundo, tal como presentemente existem, são normativos. Desse modo, chamar qualquer coisa de
pecado era, para Sade, a ofensa suprema contra a Natureza e o homem”.24

A partir deste entendimento, se não há queda, nem Deus, logo, a pornografia, que antes de Sade era
considerada lixo, foi, paulatinamente, sendo positivada. Tal processo encontra seus alicerces no
primitivismo que declara: nascemos intrinsecamente bons e somos fonte do bem e do mal.

Esse tipo de paganismo, geralmente é marcado pelo culto à fertilidade, cujo conteúdo é uma mescla
entre idolatria e imoralidade. Os ritos cananeus, dos quais o povo de Israel deveria manter distância,
seguiam esta linha. De igual modo, essa abordagem caracterizava os bacanais, orgias de Dionísio
(deus do vinho) e outros rituais místicos da cultura greco-romana marcados pelo excesso, dissolução
e pela subversão de toda ordem. Neles, a concepção axial estava em considerar o caos como algo
positivo e regenerador.

24 RUSHDOONY, Rousas John. A política da pornografia. Brasília/DF: Monergismo, 2018, p. 28.


Ou seja, embriagar-se com o vinho era considerado libertador e marcava uma vida feliz, enquanto
que para o Apóstolo Paulo tal ato era causa de dissolução e falta de autocontrole. Contudo, Paulo
não considerava a vida obscena com o oposto simétrico à vida cheia do Espírito Santo (Ef 5.18), ele
a enxergava como um substituto muitíssimo inferior. No entanto, somente buscando o enchimento
do Espírito, seria dado ao crente o poder para perceber essa verdade, obedecer aos mandamentos
geradores de vida e cuidar do seu próprio corpo, vendo-o como propriedade divina, mesmo antes de
ser propriedade pessoal (1 Co 6.18-20).

CAOS VESTIDO

À vista disso, algum leitor poderia concluir: Então, basta todos estarem vestidos e recatados e para
não haver esse tipo de exaltação do ego. Ou seja, se moralizarmos o mundo, cobrindo toda pele,
nosso olhar será transformado.

Atenção! Este é um profundo engano. Vamos a uma exemplo:

Ainda de acordo com Simon Goldhill, é destacada a diferença entre gregos e romanos. Esses últimos
eram obcecados por sinais visíveis de status, honra e preeminência, “a nudez esconde as roupas, as
joias e outros emblemas que informam ao mundo quem é aquele cidadão”25. Portanto, enquanto os
gregos idolatravam a ostentação do corpo nu, pois na anatomia torneada no ginásio estampava-se
um tipo de conquista do ego, os romanos, por sua vez, se escoravam na ostentação orgulhosa das
conquistas externas, roupas que faziam referência à grana e a fama de seus donos. Nesse caso, o
corpo se torna um mero cabide no qual coisas são penduradas para impressionar como símbolos
de poder.

Enfim, em ambas as formas, o ego é cultivado e cultuado: seja no louvor da anatomia exposta, seja
na tentativa de cobrir o corpo com “estrelinhas” de desempenho.

Portanto, o problema não está na nudez ou na roupa que usamos, e não vamos superar o culto ao nu e ao
prazer, demonizando o corpo e o prazer, como tentaram fazer boa parte dos cristãos na era vitoriana;
tampouco, vamos resolver a opulência e a opressão despindo-nos em praça pública e cultuando a
pornografia como expressão elevada. A grande verdade é que carecemos de entendimento sobre
nosso estado espiritual: quais são nossas vestes aos olhos de Deus? Estamos como os romanos:
orgulhosos de nossa força, ou como os de Laodicéia, dos quais já falamos nesse livro: rejubilantes
com nosso linho escuro (cor típica do tecido daquela cidade, ao qual Jesus se contrapôs oferecendo
vestes alvas, que simbolizavam a pureza que vem somente Dele) sem perceber que, na verdade,
estamos nus?

Somente quando entendermos isso, seremos capazes de oferecer uma resposta a todos os homens,
sejam eles gregos nus, ou romanos vestidos, pois existe um tipo de nudez que é necessária para
ambos.

A NUDEZ NECESSÁRIA

Quer estejamos vestidos ou despidos fisicamente, se não estivermos em Cristo, o chamado “velho

25
GOLDHILL, Simon. Op. cit., p. 46.
eu” é a roupa que adorna nosso coração. E, ele, certamente, não está morto e inoperante. Isso
mesmo, a morte espiritual, como já vimos, não é a cessação das atividades, antes é a insaciável
busca mal direcionada por intimidade e sentido.

Portanto, despir-se do velho ego é a nudez necessária no processo de abandonar a pornografia.


Também é preciso vestir-se de Cristo, porém ele só veste quem já está, humildemente, nu de si.

Nesse contexto, é fundamental afirmar que o mandamento de “despir-se” e “vestir-se” não se restringe
aos de fora da igreja. Muitos cristãos que enchem os templos, (1) ou nunca experimentaram o novo
nascimento, sem o qual, tudo o que se vive é religião farisaica; (2) ou, apesar de terem sido feitos
filhos de Deus, eventualmente, tropeçam em coisas ligadas à vida pregressas.

Nesse bojo, por causa da existência do primeiro grupo, Paulo não se furta em usar frases condicionais
que levavam os crentes a se questionarem: sou realmente um convertido? Note um bom exemplo
disso: “Mas não foi assim que vocês aprenderam de Cristo, se é que, de fato, ouviram falar dele e nele
foram instruídos, segundo é a verdade em Jesus.” (Ef 4.21).

Ademais, essa mesma passagem fala ao segundo grupo destacado acima, insistindo na necessidade
de haver mudanças nas vestes espirituais de todos:

“Isto, portanto, digo e no Senhor testifico: não vivam mais como os gentios, que vivem na vaidade dos seus
próprios pensamentos, tendo o seu entendimento obscurecido, separados da vida que Deus concede,
por causa da ignorância em que vivem, pela dureza do seu coração. Tendo-se tornado insensíveis, eles
se entregaram à libertinagem para, de forma desenfreada, cometer todo tipo de impureza. (...) Quanto
à maneira antiga de viver, vocês foram instruídos a deixar de lado a velha natureza, que se corrompe
segundo desejos enganosos, a se deixar renovar no espírito do entendimento de vocês, e a se revestir
da nova natureza, criada segundo Deus, em justiça e retidão procedentes da verdade.” (Ef 4:15-25)

Quando penso nesse texto sempre me recordo de uma história: imagine que você está num velório
de um amigo e se aproxima do cadáver. De repente, incomodado com o falecimento do sujeito, você
começa a pentear os cabelos do defunto, cortar suas unhas, passar perfume e maquiar o rosto do
morto. Imagine também que você faz isso na intenção infantil de mudar a morte que se instalou
naquele organismo. Louco, não? Na verdade, você só faria isso se não entendesse quão profunda é
a morte e o quão incompetente você e seus próprios recursos são diante dela.

Contudo, a história não termina aí. Imagine que Jesus chega depois que seu amigo já estava muito
tempo sepultado. De modo que o morto, agora, já usava vestes podres, imundas e cheias de bichos.
Diante desta realidade, Jesus não usa seu poder para melhorar aparência do cadáver. Pelo contrário,
Ele resolve a maior questão, o coração do problema, por assim dizer: tira o indivíduo do reino da
morte e o faz andar de novo entre os vivos. Com certeza, as roupas sujas não são mais aceitáveis
ao ressurreto por Cristo. No entanto, imagine que o processo de retirada da mortalha é executado
com auxilio de seus amigos e à medida que o sujeito vivo, diária e humildemente, desiste de um
estilo de vida baseado em “desejos enganosos”, aliado à “vaidade dos seus próprios pensamentos” e
à “ignorância” resultante da “dureza do seu coração”. Assim é a santificação de todo tipo de pecado
que nos assedia (incluindo aqui, evidentemente, a pornografia).
O CORAÇÃO DO CAOS

Portanto, o problema mais agudo não é o nu que você vê na internet. Com efeito, o maior problema
é o tipo de veste espiritual que você permite que ainda se instale em seu coração. Isto é, enquanto
estivermos vestidos de ego teremos uma visão caótica, sempre a confundir criatura com Criador.
Se Cristo nos revestir, cobrir cada milímetro do nosso coração, assenhorando-se da coisa toda e
depondo o desgoverno do “eu”, o olhar é transformado: Deus é Deus, e criação é criação.

Sobre isso, recordo de uma das premissas dos Alcóolicos Anônimos, pelo qual se entende que o
passo inicial da jornada de desintoxicação é o chamado princípio “não-deus”. Nesse sentido, o autor
americano Philip Yancey explica:

“O historiador dos Alcoólicos Anônimos intitulou sua obra de Não-Deus porque, disse ele, esse é o
obstáculo mais importante que um viciado deve superar: reconhecer, no fundo da alma, não ser Deus.
Nenhuma habilidade para manipular e controlar, na qual os alcoólicos são imbatíveis, pode atingir a
raiz do problema: antes, os alcoólicos precisam reconhecer o desamparo individual e cair nos braços
do Poder Supremo”26.

Guardadas as devidas proporções, e as ressalvas que poderíamos fazer ao método do AA, este
paradigma, em particular, é útil no processo de desenvolvermos um olhar sem pornografia. Precisamos
perder o controle e lançar sobre Deus toda nossa ansiedade e esperar que o conforto venha do Seu
cuidado, não de um nude qualquer ou de um vídeo pornô. Nas linhas de Pedro: “Lancem sobre Ele
todas as suas ansiedades, porque Ele cuida de vocês”. (1 Pe 5:7).

Antes de seguirmos: releia, em voz alta, o verso acima substituindo a palavra “Ele” pela expressão “a
pornografia”. O resultado, possivelmente, é a mentira que tem te mantido preso à pornografia, apesar
de você ter nascido para está apegado a Ele. De fato, o “Ele” é insubstituível.

O CAOS E O CONTROLE
No rumo oposto à entrega do controle a Deus, a constante fantasia pornô constitui-se como um
universo idealizado e controlado por nós. Uma ficção para onde fugimos sempre que a realidade
nos pressiona. Nela reinamos soberanamente, sem carências, espera, ou necessidade de encontrar
o outro em sua complexidade. Ao contrário, as imagens despersonalizadas aguçam a fantasia de
nossas mentes e construímos um universo todo nosso. Lá, somos a versão perfeita de nós mesmos:
não há falhas, pontas soltas, timidez ou insegurança. Em suma, diferente da vida real ninguém brocha
na fantasia erótica. De fato, ela é nossa versão de Gênesis, um mundo de prazer total e frustração
zero. Assim, nesse Éden ao contrário, somos sensuais e conquistadores. Estamos no controle.

Este cenário desperta preocupação de estudiosos fora do arraial religioso, recentemente, a famosa
sexóloga americana Ruth Westheimer, autora de mais de quarenta livros sobre sexualidade e
figura frequente na mídia dos EUA, alertou sobre os efeitos colaterais do uso indiscriminado de
pornografia. Para ela, momentos de estresses associados a muita navegação pela internet adulta,
“pode acabar resultando num interesse maior pela fantasia do que pela realidade”27, como registra
26
Christianity Today. 10 de julho de 2000, p. 2.
27
Famosa sexóloga americana alerta: consumir pornografia demais na quarentena pode ter efeitos colaterais. OUL,
São Paulo, 29 de Mar. de 2020. Disponível em: https://glamurama.uol.com.br/famosa-sexologa-americana-alerta-consumir-
pornografia-demais-na-quarentena-pode-ter-efeitos-colaterais Acessado em: 16 de Jun. 2020.
matéria jornalística sobre a fala da autora. No que tange a nossa neste livro, fica patente que tal
apego ao fictício representa muito mais do que um mero efeito colateral. De fato, a pornografia é
uma fuga pecaminosa para um mundo idealizado que pressiona o mundo real. Muito se escuta de
cônjuges cristãos que importam cacoetes e modelos (às vezes envolvendo violência ou a participação
de terceiros na relação) do mundo pornô, insistindo com seus parceiros para que executem atos
degradantes. Com efeito, a fantasia nos prende num universo regido pelas loucuras do ego e as
consequências se evidenciam no mundo real.

Nesse aspecto, há um capítulo da série Black Mirror (Netflix) chamado USS Callister, no qual o
protagonista transforma pessoas reais em personagens de vídeo game dentro de uma nave espacial.
Nesse contexto, Robert Daly, líder e criador daquela realidade, inicialmente, aparece com um grande
comandante. Um sujeito adorado por sua trupe e elogiado devido sua inteligência e perspicácia
militar, visto que, aparentemente, sai vitorioso de todos os embates que empreende. Entretanto, logo
percebemos a ilusão: Robert, na vida real, é um mero funcionário em uma empresa de tecnologia, na
qual sofre diversas humilhações. No seu trabalho, nosso herói não é nada popular, e por isso, decide
passar mais tempo vivendo no jogo virtual que criou do que na realidade concreta.

E mais, a ficção espacial controlada por Robert é povoada pelos mesmos colegas de trabalho que
o maltratam frequentemente. Para tanto, Daly coleta o DNA dos seus pares e, por meio de uma
máquina, cria uma cópia de cada um deles, fazendo-os surgir como personagem na sua nave.
Entretanto, no joguinho inventado por ele, as posições se invertem: sua insegurança natural se
transmuta em altivez, e seus colegas são aprisionados e manipulados. Assim, destacam-se duas
atitudes do protagonista: primeiro, o assédio sexual das mulheres, ora impondo beijos na boca, ora,
simplesmente, fazendo com que as genitálias dos personagens desapareçam; em segundo lugar,
o abuso de poder: com um mero aceno de mãos vindo de Daly, os personagens são torturados,
assumindo formas monstruosas.

O cúmulo trágico ocorre quando Robert sofre uma virada de mesa e se vê preso e sozinho em seu
próprio jogo. Enquanto isso, na vida real: é natal e ele também está desesperado e completamente
só.

Esse enredo revela arco comportamental intrigante: a solidão da realidade empurra o protagonista
para um universo no qual reina como Deus, contudo, o resultado do mau uso dessa posição é uma
dupla solidão. No final, ele está sozinho em ambos os mundos, o real e o virtual. Ou seja, na tentativa
de lidar com o caos, ele toma o lugar do Criador, define o certo e o errado, estabelece o que convém
ou não, usa o outro sem pudor, construindo, assim, um mundo de fantasia a sua própria imagem.
Nessa esteira, ao impor uma ordem na qual o desejo nunca se frustra, onde tudo está integralmente
dominado pelo ego, o humano não se dá conta de que o ele chama ordem, Deus chama caos.

E mais, ao dar ao ego uma expansão absurda, Robert Daly, goza, tiraniza e controla, todavia, a única
coisa que colhe é vaidade, visto que seu mundo digital é um vazio dentro de um mundo real vazio,
ou na linguagem de Salmos: um abismo chamando outro abismo (Sl 42.7). Isso, claramente, dialoga
com nosso mundo virtual cheio de pornografia.

Geralmente, trancados em nosso quartos, compensamos nossas frustrações com o mundo real,
mergulhando nas “naves” do ego-deus. Nelas, fomentamos fantasias eróticas recheadas de beldades
ao nosso dispor. Sempre com o poder do play e o pause em nossas mãos. Somos deuses do tempo
e do jeito. Isto é, diante de nossa necessidade legítima por intimidade, sacamos uma solução do
nosso próprio coração caído.
Até podemos chamar de solução, porém, Deus chama de caos.

TOHU VA VOHU

Ainda sobre o caos, sabemos que “tohu va vohu” é a expressão hebraica traduzida por “sem forma
e vazia” (Gn 1.2). Por esse texto, somos informados que a terra era um ente estéril e amórfico, no
qual as trevas preenchiam o abismo. No fundo, o conceito de “tohu va vohu” fala sobre algo ainda
não diferenciado, ao qual não foi atribuído função. Ou seja, uma substância que não conhece seus
limites, porque suas definições ainda não foram tornadas evidentes.

Contudo, em meio a essa cena caótica algumas coisas acontecem: primeiro, a potencialidade está
implícita; em segundo lugar, o movimento do Espírito Santo é como uma força pessoal gestando
tudo o que viria a surgir; e, enfim, a partir do caos e da desordem, Deus vai processualmente, dando
passos aperfeiçoadores. Essa é a cinética da vida: do caos à ordem.

Quando o ambiente já está pronto surge a humanidade como aqueles que deveriam cooperar para
o avanço no sentido oposto ao caos. Nessa intenção, os homens deveriam caminhar para longe do
amorfismo, da indiferenciação e da esterilidade. E, desta forma, desenvolver a ordem, a harmonia e
fecundidade. Para tanto, Deus providenciou um conjunto de ferramentas que incluía a consciência,
a razão, a autopercepção e o discernimento espiritual.

A grande questão é: em que direção temos caminhado, especialmente, no âmbito da sexualidade


humana? Temos avançado para a dignificação do ser humano? Ou temos mergulhado em uma
sexualidade animalesca, na qual o consumo é a única ética que restou? Ou ainda: temos permitido
que o Espírito Santo crie em nós um coração não caótico?

Estas questão nos lembram que a solução para o caos no qual a queda nos jogou passa pela nova
criação. Sim! A história da redenção pode ser interpretada como uma saga na qual o Criador, por seu
amor indizível, se torna re-criador de um novo coração dentro daquele que crer.

Veja: diferente de Gênesis, o cenário agora é nosso interior, lá estão o abismo e as trevas (nosso
“tohu va vohu” particular), no entanto, também está presente o sopro e o movimento do Espírito que
nos desafia a crer e a confiar no seu poder renovador.

O problema é que o caos, às vezes, é tão profundo que nos deixa incrédulos. Entretanto, para nos
tirar desta posição Deus nos leva a uma experiência como a do profeta Ezequiel. Nela, o Senhor o
colocou no meio de um horrível vale de ossos ressequidos, todos cheirando à morte, e lhe faz um
pergunta crucial: “Filho do homem, será que esses ossos podem reviver?” (Ez 37.3).

Perceba algo importante, Deus não o levou a negar os problemas, ao contrário, Ele abriu os olhos do
profeta para a tragédia. Porém, também entenda: Ele não o deixou lá! Deus gerou fé no seu coração.
Por isso, a resposta de Ezequiel é tão preciosa: “Senhor Deus, Tu o sabes” (Ez 37.3). Ela expressa a
rendição na qual não importa o que se vê, ou o que se sabe, importa que o controle esteja nas mãos
divinas.

Eis aí nosso lugar! Precisamos reconhecer que só Ele pode resolver nosso caos de imoralidade,
como nas palavras do Salmo 51:
“Cria em mim, ó Deus, um coração puro e renova dentro em mim um espírito reto” (Sl 51.10).

Perceba: quem cria o coração limpo não é Davi, quem renova a retidão não é Davi. O processo é
protagonizado pelo poder do Espírito Santo que, em outro lugar da Bíblia, prometeu aos homens: “Eu
lhes darei um coração novo e porei dentro de vocês um espírito novo. Tirarei de vocês o coração de
pedra e lhes darei um coração de carne.” (Ez 36:26).

Enfim, o Espírito Santo paira sobre nossos corações fazendo surgir em nós uma revolução cardíaca
que afetará nosso olhar.

Sobre isso, termino com as palavras de uma conhecida oração puritana:

“Ó Deus Espírito Santo, tu que procedes do Pai e do Filho, tem misericórdia de mim. Quando te movias
sobre o caos, nasceu a ordem, a beleza vestiu o mundo, botaram os frutos. Move-te, peço, sobre o meu
coração desordenado; retira as fraquezas dos desejos indisciplinados e das concupiscências odiosas;
dissipa as névoas e trevas da incredulidade; ilumina a minha alma com a pura luz da verdade; torna-
te perfumada como o jardim do paraíso, abundante de todo bom fruto, bela de uma graça celestial,
brilhante dos raios da luz divina.”28

28 BENNETT, Arthur (org). O vale da visão. Brasília/DF: Monergismo, 2020, p. 46.


05. QUEREMOS OLHAR JESUS: COMPROMISSO ÓTICO, ÉTICO
E ESTÉTICO
Um jovem peixe nadava perto de outro mais experiente. Em um determinado momento, o animal
com mais idade perguntou: “Como está a água?”. Intrigado, o peixe mais novo respondeu com outra
pergunta: “Água, que água?”.

Esse adágio nos faz refletir sobre coisas preciosas que estão próximas a nós por muito tempo,
fazendo com que nos acostumemos com elas a ponto de não nos provocarem mais nenhum espanto.
São elementos sublimes que foram banalizados por causa da proximidade, transformando-se em
paisagem fria. Assim, perdemos a percepção da grandiosidade do que está a nossa volta. Algo
parecido ocorre com cristãos que vão se acostumando com as respostas bíblicas para os seus
problemas práticos, sendo tentados a aderir às técnicas da moda.

Isso significa que a familiaridade com coisas elevadas carrega em si um perigo: tornamo-nos
insensíveis a elas. Por exemplo, vamos a uma frase:

O relacionamento com Jesus é o fundamento a partir do qual o olhar é livre do modo pornográfico de
ver o mundo.

Podemos cair no erro de achar que essa resposta é um clichê decepcionante. Talvez, sem reconhecer
a beleza da água que nos envolve e que mantém nosso mundo em pé, esperamos existir uma saída
mais sofisticada, indolor e veloz.

No entanto, como já vimos, nosso problema ótico (ver pornografia) é de fundo cardíaco (o coração
com as rédeas dadas ao ego) e sua solução virá por meio de um novo coração criado pela ação
do próprio Deus e por meio do processo de amadurecimento espiritual (santificação), baseado em
olhar, confiar e imitar Jesus.

Sim! Na medida em que (1) vemos, (2) cremos e (3) imitamos a pessoa de Jesus Cristo somos
transformados.

Entretanto, lembre-se: para que isso se estabeleça, aumentar a proximidade de Cristo, apesar do
custo que acarreta, é condição insubstituível.

INCOMPARÁVEL

As mentiras do mundo tentam estabelecer uma falsa simetria entre a vida liderada por Jesus Cristo
e o estilo de vida pecaminoso e liderado pelo ego. Assim, busca nos fazer comparar o filho de Deus
com algum ídolo precário. Fique atento! Pense sobre isso todos os dias: ver, confiar e imitar Jesus
é um caminho mais elevado, mais bem-aventurado do que qualquer proposta carnal, assim como o
caminho do amor “que tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta”, apresentado por Paulo em 1
Co 13. 1-13, é superior aos outros dons, ao orgulho e a lascívia (1 Co 12.31).

Portanto, quando Jesus é o mestre a ser seguido, seus discípulos logo percebem que não há nada
como ele. O espetáculo de ver na face de Cristo o resplendor da glória do Pai (2 Co 4.6) é capaz de
iluminar exaustivamente nossos corações e desbancar qualquer brilho mixuruca que o mundo pornô
pode ofertar. Se isso não está ocorrendo com você, possivelmente, o seu olhar não está focado na
maravilha que é a pessoa e a presença de Jesus, ou você O enxerga de longe como um seguidor
descompromissado.

Nesse processo de ver, confiar e imitar o incomparável, o nível do compromisso aumenta


paulatinamente, e muitos se veem hesitando diante do chamado de Cristo. Além disso, quando
ocorrem quedas e confusões pessoais muitos que hesitavam, desistem.

Sobre isso é fundamental recordar que a santificação não é linear, e não opera como um “macarrão
instantâneo”. Na verdade, na equação do amadurecimento estão incluídos nossos erros, tentativas,
novos convencimentos sobre a verdade, rearranjos e aprendizados sempre frescos sobre como
conquistar completude. O mais importante é que durante toda jornada, Jesus é incomparavelmente
insistente. Ele é nosso advogado fiel, jamais nos abandonará (Jo 2.1). A cada pegada que damos em
sua direção, Ele providencia as condições necessárias para seguirmos.

...

Diante disso, vamos fazer uma recapitulação e contextualizar o que acabamos de afirmar sobre
nossa carência por ver, confiar e imitar Jesus. Dentro deste quadro, nossa abordagem ao problema
de consumo pornográfico carrega algumas características:

1. Como já vimos, está baseada na visão de Deus como criador da sexualidade. E da criação
de pessoas humanas que atuam como mordomos (administradores) deste patrimônio.
2. Passa pela compreensão do quão terrível é o caos do pecado e da tentativa de positivação
da queda.
3. Localiza a problemática no coração humano e nos ídolos que ele produz;
4. Entende o consumo de pornografia como uma solução ineficaz praticada pelo ego sempre
que precisa de conforto e consolo;
5. Enxerga a culpa e a moralização baseada na força do ego como uma tentativa na qual
a versão moral do “eu” busca salvar a versão imoral do mesmo “eu”. Tal perspectiva não
resolve porque, em ambos os casos, segue-se o foco no ego.
6. Considera que ver Jesus, confiar nele e imitá-lo descreve o trabalho da graça dentro de nós
pelo qual obtemos um novo coração e, consequentemente, um novo olhar sem pornografia
(tema deste capítulo).
7. Por fim, avalia que mesmo depois de ter experimentado o brilho de Cristo, somos peregrinos
em um mundo hostil à pureza e precisamos nos preparar para enfrentar as tentações e
perseverar na fé, pois a solução final só virá no com o retorno do Senhor (tema do próximo
capítulo).

PRECISAMOS VER JESUS


Em um de seus sermões o pregador C. H. Spurgeon29 modifica o quinto verso do salmo 34,
substituindo Deus por Jesus para enfatizar a importância e o efeito de olharmos para Jesus. Uso,
aqui, a versão da Bíblia King James: “Contemplai-o e sereis iluminados de felicidade; vossos rostos
jamais experimentarão a decepção”. Veja, a raiz do vocábulo hebraico traduzido como “iluminados”

29 SPURGEON. C. H. “Olhar para Jesus”. Acessado em 08 de junho de 2020, https://www.palavraprudente.com.br/estudos/


charles_hs/sermoes
nesse salmo, também aparece em Is 60.5 para descrever a face radiante de uma mãe que revê aos
seus filhos, depois de considerá-los perdidos.

Sobre isso, Spurgeon deixa claro que Deus, ao enviar Jesus, quis se mostrar benevolente na face de
seu filho, dando-nos uma direção para onde olhar quando o pecado nos assedia, ou mesmo quando
caímos. Num diálogo imaginário com um pecador culpado e duvidoso, sobre a possibilidade de
Deus perdoá-lo ou não, o chamado “príncipe dos pregadores”, adverte:

Pare! Olhe para Ele e seja iluminado. Quem disse que você deve estar olhando para si mesmo? A
principal preocupação de um pecador não é consigo mesmo, mas com Cristo. Nossa responsabilidade
é ir à Cristo, doentes, cansados, desanimados, e pedir que Cristo nos cure. Você não deve ser seu
próprio médico para só depois ir à Cristo, mas deve ir como está. A única esperança para você é
confiar totalmente em Cristo, de modo simples, nu. Como eu gosto de dizer – faça de Cristo a única
base de apoio, e jamais tente apoiar-se em si mesmo. Ele pode, Ele quer? Tudo o que ele espera é que
confie nEle. Quanto às suas obras, elas vêm depois. São frutos do Espírito. Sua responsabilidade não
é fazer, mas crer. Olhe para Jesus, confie somente nEle.30

Certamente, quando o olhar do homem recai sobre o rosto de Deus revelado em Cristo o efeito
bíblico esperado é traduzido por uma palavra: alegria!

Espero que você entenda como isso é fundamental. No dia a dia da pornografia, damos vazão aos
nossos desejos porque queremos experimentar um tipo imediatista de felicidade. A maioria das
pessoas não consome pornografia porque a valoriza como produto em si, mas por aquilo que a
pornografia pode fornecer, a saber, uma sensação que altera nosso estado de ânimo. Em outras
palavras, buscamos: uma experiência de alegria capaz de nos fazer escapar da dureza cotidiana.

Logo, é essencial compreender como nossa alegria deve se concentrar em Cristo. Se fizermos
dele nosso maior afeto, fonte de todo gozo, ocorrerá o que foi chamado por Thomas Chalmers de
“o poder expulsivo de um novo afeto”31. Segundo o qual, não se vence as paixões mundanas, com
ativismo religioso frio ou com a força de vontade de negar, por si mesmo, o erro. Ao contrário, somos
vitoriosos quando olhamos para cristo e o brilho que Ele carrega expulsa qualquer amor rival de
nosso coração.

À vista disso, vale sublinhar que Escrituras associam a alegria com a salvação, dando a essa
experiência um sentido totalmente novo: veja Maria reagindo a notícia do nascimento de Jesus: “o
meu espírito se alegra em Deus meu salvador” (Lc 1.47), ou no belo texto profético de Isaías: “com
alegria, vocês tirarão água das fontes da salvação” (Is 12.3), ou ainda na oração de arrependimento de
Davi: “restitui-me a alegria da tua salvação” (Sl 51.12). Na cabeça de muita gente ser salvo é apenas
evitar o inferno, porém vemos que isso está longe de ser verdade. Ser salvo é ver ser implantado o
reino de “justiça, paz e alegria no Espírito Santo” (Rm 14.17) dentro de nós.

De fato, a salvação em Cristo Jesus nos capacita a acessar um tipo de alegria que o não depende
das circunstâncias, pois está firmada no simples ato de olhar a sua face e ser iluminado. Todos que
viram Jesus como ele realmente é – o filho de Deus – rejubilaram independente das aflições que
enfrentavam. Sobre isso, o próprio Cristo, falando aos judeus de sua época: “Abraão, o pai de vocês,
alegrou-se por ver o meu dia; ele viu esse dia e ficou alegre.” (Jo 8.56). Isso é impressionante! Abraão

30
Ibid.
31
Thomas Chalmers, “The Expulsive Power of a New Affection”, Acessado em 08 de junho de 2020, http:// manna.
mycpanel.princeton.edu/resources/doc/158/raw.
que viveu séculos antes de Cristo, viu-o pela fé, e isso foi suficiente para que ele experimentasse a
iluminação da alegria.

O grande Estevão, no momento de seu apedrejamento, “cheio do Espírito Santo, fitou os olhos no
céu e viu a glória de Deus e Jesus, que estava à direita de Deus” (At 7:55). Foi essa visão que o fez
poderoso para clamar pelo perdão daqueles que o matavam. Ou seja, ver Jesus do jeito que Ele é,
transformou a reação de Estevão à circunstância dolorosa. A alegria de ser iluminado pelo rosto
de Cristo o remeteu ao tipo de alegria prometida a todos os seguidores de Cristo: felicidade não
circunstancial, capaz de alterar nossas reações aos problemas e a mobilizar nossa obediência.
Portanto, sem o vislumbre renovado de sua pessoa, somos constantemente derrotados por outros
tipos de brilhos.

Nesse bojo, a figura de Abraão e de Estevão nos ensina que a alegria não depende da presença física
de Jesus, porém, houve um grupo de seres humanos que puderam contemplá-lo em seu contorno
corporal. Viram, ao vivo, a “a imagem do Deus invisível” (Cl 1.15), o verbo encarnado sobre o qual,
segundo João, eles podiam testemunhar “do que ouvimos, o que vimos com nossos olhos, o que
temos contemplado, e as nossas mãos tocaram da Palavra da vida.” (1 Jo 1.1).

Veja quão íntima foi essa relação. Envolvia ouvir, ver, contemplar e tocar. A interação que os discípulos
tiveram com Jesus será nosso paradigma para avaliarmos como podemos ver, confiar e imitar
Jesus. Não obstante, antes de investigarmos a relação entre Jesus e seus seguidores, vale a pena
lembrarmos da sugestão que Felipe, um dos doze que caminhou perto de Jesus: “Senhor, mostra-
nos o Pai, e isso nos basta.” (Jo 14.8). Diante disso, Jesus respondeu que, apesar da proximidade,
a incredulidade não deixava que ele o visse plenamente. Perceba como esse quadro é o inverso da
situação de Estevão: Cristo estava ali, fisicamente, diante de Felipe, mas o sujeito não era capaz de
vê-lo em toda sua plenitude, não conectava a figura de Cristo com o Pai. Enquanto Estevão, sem ter
o calor corporal de Cristo próximo a si, pela ação do Espírito Santo, viu os céus abertos numa cena
na qual a figura do Filho se conectava com a do Pai. O perigo da falta de visão de Felipe é que vemos
Jesus parcialmente, sem discernir quem ele é, obtemos uma alegria parcial e achamos que algo
ainda nos falta.

Por isso, há uma parte na inquietação de Felipe que é verdadeira: “mostra-nos o Pai, e isso nos
basta”. Ele entende que nada nos falta se o rosto do Pai nos iluminar, pois assim, encontraremos o
caminho, a verdade e vida (Jo 14.6). O seu equívoco está em não localizar toda provisão de Deus
na pessoa de Jesus. A lógica de Felipe era: preciso de algo além de Cristo para ver Deus. Ele não é
suficiente para sanar minhas dúvidas e resolver minhas precariedades.

As palavras de Paulo contrariam a tese de Felipe, para o apóstolo dos gentios, o Pai não apenas
enviou seu Filho como máxima revelação de si, Ele também o imolou por nós. Portanto, como não
nos garantirá o necessário para enfrentarmos a vida sem nos lançarmos no pecado? “Aquele que
nem mesmo a seu próprio Filho poupou, antes o entregou por todos nós, como nos não dará também
com ele todas as coisas?” (Rm 8:32).

Portanto, todas as desculpas que usamos para pecar não se justificam, são mentiras confortáveis:
“eu peco porque ninguém me ouve” ou “eu peco por causa dos meus traumas de infância” ou “eu
peco porque meu cônjuge não me satisfaz” e ainda “eu peco porque a mulheres não se vestem
com decência”, e mais: “eu peco porque meu namorado vai embora se eu não enviar um nude ou o
acompanhar numa sessão pornô”.
Apesar de se referirem a elementos relevantes, capazes de condicionar nossos comportamentos,
essas justificativas contribuem para uma sensação comum dentro da igreja atual: a eterna espera
por uma novidade que nos mude sem que tenhamos de usar aquilo que já está disponível: a pessoa
de Cristo dentro de nós. E, quando não usufruímos da presença de Cristo, entramos num eterno
ciclo de autopiedade e procrastinação, usando as questões emocionais como muletas que nos
mantém caminhando como vítimas do passado. Essa sensação de falta, com efeito, pode ter raízes
psicológicas, mas precisam ser entregues a Cristo para que as encaremos com um olhar libertador,
afinal, se estamos em Cristo Jesus, não podemos mais nos definir a partir dos nossos traumas e
lacunas. Não somos mais apenas o resultado de nosso passado, somos, por assim dizer, resultado
do passado de Cristo: morto na cruz para que tivéssemos vida abundante (Jo 10.10). Nele, embora
respeitemos a importância dos sentimentos, aprendemos a nos conceituar pela fé, não por emoções.

Se assumirmos que, quando temos Cristo, não precisamos de mais para deixarmos uma vida
de pecado, teremos de admitir: todas as vezes que pecamos, apesar da influência de elementos
externos e internos, no fundo, o fizemos, porque aquele foi o nosso querer. Tomamos uma decisão
de seguir atrás da proposta do ego e não da proposta de Jesus. Assim, começamos a avocar nossas
responsabilidades e nossa urgente carência do Senhor.

O ARGUMENTO

Nesse contexto, pense comigo: quando o apóstolo Paulo, falando à igreja de Corinto, precisou
argumentar em favor da pureza sexual, qual argumento ele usou? Encontre a resposta no texto a
seguir:

Fujam da imoralidade sexual! Qualquer outro pecado que uma pessoa cometer é fora
do corpo; mas aquele que pratica imoralidade sexual peca contra o próprio corpo.
Será que vocês não sabem que o corpo de vocês é santuário do Espírito Santo, que está em vocês
e que vocês receberam de Deus, e que vocês não pertencem a vocês mesmos? Porque vocês foram
comprados por preço. Agora, pois, glorifiquem a Deus no corpo de vocês. (1 Co 6:18-20).

O argumento paulino é: (1) vocês são morada do Espírito Santo, ou seja, convivem com a presença
do próprio Deus. Portanto, ele deve se tornar a afeição suprema que expulsa todas as outras; (2) e
mais, “vocês não pertencem a vocês mesmos”, isto é, uma presença que não arrebata apenas um
olhar de admiração, mas que governa o coração, pois o comprou pagando o preço da morte do
próprio filho de Deus.

Atenção para esse fato: se a consciência de que o Espírito Santo habita vinte e quatro horas o seu corpo
não surtir nenhum efeito santificador em você, então nada mais surtirá. Afinal, o que mais poderia
ser mais persuasivo? Qual técnica comportamental poderia ser mais eficiente na transformação do
seu comportamento? Qual professor ou conselheiro cristão se igualaria a presença do “maravilhoso
conselheiro” (Is 9.6) dentro de você?

JESUS E O MEU QUERER

Diante disso, podemos concluir que Jesus satisfará todos os meus anseios? Sempre que sentir
vontade de me aliviar vendo um vídeo pornográfico e assim experimentar conforto e felicidade,
ele satisfará esse desejo? Afinal, se Ele é meu pastor e nada me faltará, e eu, agora, segundo meu
próprio juízo, preciso de sexo, ele vai me dá o que quero?

Obviamente, não!

Deixe-me completar a resposta usando um texto de Elyse Fitzpatrick, que nos ensina a desejar
somente a Deus, em seu livro “Ídolos do coração”:

A verdade maravilhosa é que todos nossos anseios são preenchidos em Cristo. Ele veio para nos dar
vida com plenitude; não o faz, porém, por meio da satisfação de nossos desejos pecaminosos. Ele nos
satisfaz ao afastar nosso coração desses desejos e voltá-lo para ele. Ele nos mostra como nossos
anseios são vazios e como é imensa a alegria da comunhão com ele e com seus filhos. Ele é a fonte
e a satisfação de toda a nossa felicidade. Nele encontramos tudo que precisamos32.

A satisfação que Jesus nos dá é balizada pelos critérios dele, não pelos nossos. Isso é assim
porque nossa capacidade de construir critérios de felicidade foi corrompida pela queda. Portanto,
fomos criados como seres que desejam, mas essa característica foi abalada pelo pecado. Embora
os cristãos já tenham um novo coração, desde o novo nascimento, o pecado ainda se faz presente e,
portanto somos vulneráreis aos enganos. Este fato, segundo Fitzpatrick, nos obriga a perguntar sobre
cada um dos nossos desejos: “ele cumpre o propósito de Deus (visível em Cristo)?”. Mesmo quando
a resposta é afirmativa (nunca é o caso do desejo por pornografia) restam um par de perguntas:
“Jesus Cristo ocupa o primeiro lugar nesse desejo? Ele é meu Deus, ou o transformei esse anseio em
um Deus?”.

Logo, está patente que olhar para Jesus nos introduzirá uma experiência transformadora. Ele
não atenderá todas as demandas. Com efeito, Cristo transforma as demandas, afastando nosso
coração daquilo que achávamos impossível de nos ver sem. Ele nos faz discernir que aquele anseio
é enganoso e vazio. É nessa perspectiva que a admoestação sobre arrancar os olhos, descrita em
Mt 5.29-30, se insere. Jesus está dizendo, metaforicamente: existem coisas em nossas vidas nos
parecem essenciais, porém, no fundo, se as tirarmos, apesar da dor inicial, continuaremos vivos. Há
evidencias textuais e teológicas que nos impedem de levar essa comparação às vias de fato. Trata-
se de uma alusão àquilo que podemos retirar do nosso dia a dia, sem dano a nossa existência.

Na verdade, essa perda é revertida em ganho, haja vista que seguir, inalteradamente, com esse
elemento perto de nós, produz vulnerabilidade. Nesse contexto, surge um problema: num primeiro
instante, parece que se ficarmos sem esse elemento, a vida acaba. Para exemplificar: tente tirar o
celular de algumas pessoas. A sensação é de uma tentativa de amputação. Ou imagine que você está
nas redes sociais e se depara com uma foto sensual de um perfil que você segue com convicção.
Sempre há a opção de deixar de seguir. E, de fato, a atitude correta é, além de tirar a atenção daquilo
que é atraente e deposita-la em algo não cobiçoso, é deixar de seguir. Simples assim, pois a perda
que isso acarreta é insignificante frente ao perigo ao qual nos expomos por conviver com isso.
Nesse sentido, faço um adendo: em alguns casos será preciso abandonar as redes sociais como
um todo.

Portanto, em Cristo, não temos tudo o que queremos, mas tudo o que precisamos, principalmente,
temos a mudança naquilo que queremos. Sendo esta, a mudança que mais precisamos.
Sempre que nosso querer está baseado no egoísmo, Deus nos instrui: “cobiçais e nada conseguis (..)
invejais, e nada podeis obter (...) pedis e não recebeis, porque pedis de modo errado, só para gastardes
em vosso prazer.” (Tg 4.2-3).
32
FITZPATRICK, Elyse. Ídolos do coração: aprendendo a desejar apenas Deus. São Paulo/SP: Vida Nova, 2019, p. 156.
Esse texto é muito relevante quando o assunto é pornografia. Ele traduz a palavra grega hedone pelo
vocábulo “prazer”, finalizando o verso. Esta palavra helênica dá origem à expressão hedonismo, que,
grosso modo, descreve uma vida orientada pelo prazer terreno. Logo, se entendermos Jesus como
um mero fornecedor de satisfação segundo os nossos critérios, este seria um Jesus hedonista,
centrado na vontade do homem, não no querer de Deus. Este ser divino sempre em concordância
com você, não é Deus, é apenas uma versão idealizada de você mesmo.

Nesse sentido, Jesus Cristo deve ser nossa fonte máxima de gozo e deleite, porém sempre a partir
dos critérios de Deus. Como já mencionamos, buscar a felicidade por meio da pornografia é se
contentar com migalhas, nela encontramos pouco prazer, visto sua efemeridade e imanência.
Assim, assumimos que o consumo de pornografia é uma busca, mal direcionada e pouco exigente, por
felicidade.

Quer dizer que se você, ao buscar satisfação, parou na pornografia, você parou sua busca muito
cedo. Vá mais fundo. Pergunte pelo prazer permanente de alta qualidade. Quem você acha que
encontrará? Podemos concordar com o teólogo e pastor John Piper a respeito da necessidade de
procurarmos a felicidade com mais afinco, pois assim acharemos Deus:

Jamais devemos tentar negar ou resistir ao nosso anseio por ser felizes, como se isso fosse
um impulso mau. Pelo contrário, devemos tentar intensificar esse anseio e alimentá-lo com
tudo que proveja a satisfação mais profunda e permanente; A felicidade mais profunda e
permanente encontra-se apenas em Deus. Não com origem em Deus, mas em Deus33.

PRECISAMOS CONFIAR EM JESUS

Sabemos que um filme pornô é atraente. Como já mencionamos, ele desperta sensações de alegria.
Também concordamos que em Jesus, de uma maneira totalmente diferente, encontramos alegria.
Porém, resta saber de que forma Jesus é atraente? Como pode alguém que nos chama à negação,
à frustração do ego e ao eutoesquecimento34 ser atraente?

De fato, Jesus quebrava todos os padrões do marketing pessoal que viceja em nossos dias. Ele
atraía multidões por causa das curas e dos milagres que operava, no entanto, focou sua atenção em
um grupo reduzido: os doze. Nesse contexto, o teólogo e grande estudioso do Jesus histórico, Jhon
Meier35, divide os indivíduos que cercavam Jesus em três categorias: primeiramente, a esfera externa
referente às multidões nômades que se deslocavam dentro do perímetro da palestina; em segundo
lugar, havia o círculo intermediário composto por pessoas que seguiam física e espiritualmente
Jesus; por último, encontramos os doze apóstolos que integravam o núcleo duro do grupo e estavam
comprometidos intimamente com Cristo.

Dentro desse quadro geral, podemos afirmar que as multidões eram barulhentas, curiosas e
interessadas no próximo almoço grátis, perambulavam fisicamente atrás de Jesus para obter um
melhoramento pessoal. Digo isso sem deboche, uma vez que o próprio Jesus tinha compaixão desse
povo e o atendeu com uma série de intervenções milagrosas (Mc 9.36). No entanto, do que adiantava
ser curado por Jesus e seguir sem conhecê-lo como os nove leprosos que não se dignaram a voltar
para agradecer e dar glória a Deus (Lc 17.17).

33 Ibid., p. 17.
34 KELLER. Tim. Ego transformado. São Paulo: Vida Nova, 2014.
35 MEIER. John. Um judeu marginal: repensando o Jesus histórico. Rio de Janeir/RJ: Imago, 2003.
Jonas Madureira, no seu livro “O custo do discipulado” afirma que a multidão “é como uma pessoa
sem rosto, sem nome. Trata-se de uma espécie de ‘zona cinzenta’, aparentemente, ‘neutra’, ‘indefinida’,
‘isenta de responsabilidades’ com relação a Jesus e ao seu ensino”. Nessa linha, ela representa “é o
exemplo mais escandaloso de que é possível seguir a Jesus sem compromisso, ou seja, sem levar em
consideração o custo do discipulado”.36

Ou seja, é possível admirar Jesus, tentar barganhar com ele visando um benefício próprio sem ter
a real intenção de confiar de todo o coração, porque confiar requer aderir ao custo do discipulado.
Diante disso, pergunte-se: Por que você quer Jesus? Sua busca se resume a libertação da pornografia
ou de algum outro “problema” sexual?

Outro autor nos ajuda com a resposta, Dr. Heath Lambert, Phd em aconselhamento bíblico e professor
do Seminário Teológico Batista do Sul, garante que

é maravilhoso buscar Jesus para libertação da pornografia. Contudo, ao vir para Jesus com
esse desejo, você poderá parecer com a multidão procurando mais pão. Seu relacionamento
com Jesus é exclusivamente definido por seu conflito com a pornografia. (...) A verdade que
Deus quer que você saiba é que o seu relacionamento é maior que o conflito com a pornografia37.

Dr Lambert segue nessa lógica, esclarecendo que todas as vezes que atuamos como a multidão, nos
aproximamos de Jesus de forma egoísta, querendo que ele faça o que achamos que ele tem de fazer,
no tempo que consideramos razoável. Ou seja, no nível da multidão, apesar de bem-intencionado, o
“eu” continua no controle.

Evidentemente, você faz certo em querer ver Jesus por causa do seu problema de ver pornografia,
mas precisa perceber o erro de buscá-Lo, exclusivamente, por causa do seu problema. Ele precisa
ser o alvo, não um meio pelo qual você alcançará um “eu” melhorado.

Para superar tal equívoco, resta-nos investigar os níveis mais profundos de proximidade que podemos
ter com Jesus. Atenção! Isso nos demandará confiança, pois há um custo.

PRECISAMOS IMITAR JESUS

Além do que já dissemos sobre o Espírito Santo morar dentro de nós, você sabe qual é o motivo pelo
qual devemos deixar de praticar a imoralidade sexual?

O motivo é: Jesus não praticava imoralidade sexual. E, ser cristão é ser discípulo de Cristo. Ademais,
ser discípulo de Cristo é imitá-lo.

Perceba que este livro, embora verse sobre pornografia, não põe seu maior foco na pornografia em
si, tampouco na solução rápida que se aplique somente a pornografia. Por que é sábio fazer assim?
Porque o discipulado cristão não é centrado no querer humano, nem se constitui em meras “dicas”
que podem melhorar comportamentos. Muito menos se configura como uma simples busca pela
sexualidade saudável, pois alguém pode ser considerado sexualmente saudável e continuar em
pecado. Opostamente, o discipulado, verdadeiramente bíblico, foca-se no querer de Deus, e é radical

36
MADUREIRA. Jonas. O custo do discipulado: a doutrina da imitação de Cristo. São Jose dos Campos/SP: Fiel, 2019.
37
HEATH, Lambert. Finalmente, livre! Eusébio/CE: Peregrino, 2017, p. 125.
desde o início: começa com um novo nascimento capaz de sepultar o homem velho, dando impulso
a uma mudança interior que se aprofunda até que amemos a Deus de maneira perfeita. Nesse ritmo,
a sexualidade não apenas se torna saudável, ela se vê redimida pelos méritos de Cristo.

Logo, a busca mais premente em sua mente precisa ser a de imitar Jesus. Olhar as mulheres e
homens como ele olhou, dar-se a conhecer da forma com ele fez e, sobretudo, buscar o coração
obediente que ele teve diante do Pai, cuja comida – aquilo que o satisfazia – era “fazer a vontade”
do Pai (Jo 4.34), cuja oração era: “contudo, não se faça a minha vontade, e sim a tua” (Lc 22.42), e,
por fim, cuja ação básica foi de completa rendição na cruz, tema central do testemunho apostólico.

Nesse ensejo, sei que a concepção de se tornar perfeito nos assusta. No entanto, o conceito aqui
é o de Paulo: “Não que eu já tenha recebido isso ou já tenha obtido a perfeição, mas prossigo para
conquistar aquilo para o que também fui conquistado por Cristo Jesus.” (Fp 3:12). Neste contexto,
a palavra “perfeição”, no original grego “teleioi”, descreve um cristão “amadurecido”, que, embora
ainda erre, está sendo desenvolvido sob a égide de um padrão elevado. Assim, o cristão “teleioi” é
alguém levado a um progresso razoável em seu anelo espiritual de imitar a Cristo. Evidentemente,
só seremos sem falhas “quando vier o que é perfeito, então o que é imperfeito será aniquilado.” (1 Co
13.10), ou seja apenas na volta do Senhor Jesus.

Não obstante, enquanto peregrinos na terra antes do retorno do Rei, “Não se engane”, diz C. S. Lewis,
ao simular uma conversa entre Jesus e um seguidor: “Se você me deixar trabalhar, vou torná-lo
perfeito. No momento em que você se entregar em minhas mãos, é para isso que se terá entregue”38.
Podemos não querer tal nível de comprometimento, porém tal entrega não aceitará nada menos do
que nos fazer pequenos Cristos39.

VOCÊ REALMENTE QUER IMITAR JESUS?


Este é o momento no qual precisamos falar sobre o custo de seguir Jesus Cristo. Nesse sentido,
já dissemos que trata-se de um chamado radical. Quais seriam as condições profundas postas
diante daquele que desejam seguir Jesus para além da multidão? E, por fim, como isso no ajuda no
processo de abandonar a pornografia?

Jonas Madureira, em seu livro “O custo do discipulado” nos fornece uma boa espinha dorsal no
que se refere ao discipulado cristão. O autor nos adverte que “o ato de seguir Jesus pressupõe três
demandas: (1) um certo tipo de amor; (2) um certo tipo de sofrimento; (3) um certo tipo de desapego.”
Vamos aos textos bíblicos que respaldam isso:

“Se alguém vier a mim, e amar pai e mãe, mulher e filhos, irmãos e irmãs, e até a própria vida mais do
que a mim, não pode ser meu discípulo.” (Lc 14.26).

“Quem não leva a sua cruz e não me segue não pode ser meu discípulo.” (Lc 14.27).

“Assim, todo aquele dentre vós que não renuncia a tudo quanto possui não pode ser meu discípulo.”
(Lc 14.33).

38
LEWIS. C. S. Cristianismo puro e simples. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 204.
39
Piper, John. O racionalista romântico: Deus, vida e imaginação na obra de C.S. Lewis. Brasília/DF: Monergismo. Edição do
Kindle.
Essa trilha revela que a arte de imitar a Jesus imprime em nós uma nova maneira de amar, de sofrer
e de desapegar, sempre tendo como foco principal a pessoa de Jesus e não os nossos interesses e
competências.

Portanto, se a pornografia ainda é o padrão de ação de um crente, é preciso questionar o amor


a Deus, a disposição à frustração do ego (sofrimento), e o apego espiritual relativo às coisas do
mundo. O amor, a renúncia e o apego, aparentemente, se encontram divididos.

Como resolver isso?

Vamos a Tiago 4.8: “Cheguem perto de Deus, e ele se chegará a vocês. Limpem as mãos, pecadores!
E vocês que são indecisos, purifiquem o coração”.

A resposta bíblica é: aproxime-se de Jesus, só nele é possível a santidade das “mãos” e do “coração”.
Aqui, “mãos” se referem ao que fazemos, e o “coração” ao lugar onde decidimos o que fazer. Substitua
“mãos” por “olhos” e vamos à superação de um olhar sem pornografia.

MAIS PERTO

Durante minha adolescência fui ensinado que sem leitura Bíblica, oração e comunhão com os irmãos
não conseguiria vencer o pecado. Certamente, isso é verdadeiro. Entretanto, a maneira como eu
aplicava esse ensino era enviesada. Por um tempo, entendi que as disciplinas espirituais eram uma
espécie de regime que garantia a diminuição das tentações e o fim do pecado.

Lembro-me que, nessa época, estava tentando parar de ver pornografia. Ler a Bíblia e orar
representavam atividades-meio para o meu objetivo final: ser um adolescente melhor. O esquema
era mais ou menos assim: eu deveria fazer coisas boas para ter condições de não fazer coisas más.
Qual é o problema com essa abordagem? Simples: eu não estava lendo a Bíblia, orando, jejuando ou
frequentando a igreja com o intuito de conhecer a Jesus.

Evidentemente, ler a Bíblia, orar e ser igreja me fortaleciam na luta contra as coisas más, porém
se minha motivação era desenvolver uma versão melhorada de mim mesmo por meio do meu
desempenho religioso. Então, minha motivação era centrada no ego.

Dentro desta armadilha, colhi muita sobrecarga, decepção e culpa. Um tipo de tristeza que não me
aproximava de Deus, apenas evidenciava a decepção comigo mesmo. Diante disso, ao poucos me
permiti questionar: qual seria a maneira correta de praticar a leitura Bíblica, oração e comunhão,
uma vez que não podemos prescindir delas, pois são coisa que o próprio Jesus nos ordenou?

Como já disse: não devemos fazer o que Jesus pede pensando no que podemos ganhar, antes,
devemos focar na tarefa gloriosa de conhecer “o único Deus verdadeiro e a Jesus Cristo” (Jo 17.3).
É assim que nos achegamos para mais perto Dele. Sobre esta lógica relacional, lembro-me de uma
história registrada no livro do teólogo Timothy Keller chamado Ego transformado40. Vou tomar a
liberdade para parafrasear a parábola mencionada por Keller. Nela:

Jesus dirige-se aos seus discípulos com uma ordem: escolham uma pedra e a carregue por
40
KELLER, Timothy. Ego transformado: a humildade que brota do evangelho e traz a verdadeira alegria. São Paulo/SP:
Vida Nova, 2014.
mim. No mesmo instante, Pedro elegeu uma pedra bem pequena, a colocou no bolso e saiu
andando. Depois de algumas horas, Jesus transforma a pedra que cada um escolheu em pão
e anuncia o almoço. Evidentemente, quem escolheu pedras grandes e as suportou durante
a caminhada, comeu mais. Foi retribuído, por assim dizer. Porém, a história não terminou.
Logo em seguida, Jesus repete a ordem: escolham uma pedra e a carregue por mim. Desta
vez, Pedro toma um enorme pedregulho e o sustenta durante toda a longa caminhada que se
sucedeu. No fim do dia, Cristo avisa: agora, joguem as pedras no rio e vamos embora. Pedro
ficou revoltado com a não retribuição do seu esforço, as pedras não iam se transformar em
nada. Imbuído deste sentimento, ao questionar o mestre, recebeu a seguinte resposta: o que
foi que eu disse quando dei a ordem? Pedro contestou: você disse “escolham uma pedra e a
carreguem por mim”. No que Jesus replicou: então, você carregou “por mim”, isto é, “por amor
a mim”, pensando em mim, ou carregou imaginando o que poderia ganhar em troca?

Portanto, se para se achegar a Cristo necessito das Escrituras, da oração, da igreja e de todas as
disciplinas espirituais, bem como da prática da renuncia e do desapego doloroso, então o meu
esforço em praticar todas essas coisas não pode se tornar uma moeda de troca com a qual obtenho
ganho pessoal. Preciso aprender a fazer tudo isso “por ele”, isto é, para conhecê-Lo.

Esse modo de operar deve ser nossa bússola eterna, quer estejamos sem vontade de ver pornografia,
quer estejamos passando por um período agudo de tentação, quer já tenhamos pecado. Sempre as
Escrituras estarão lá como fonte de ensino, repreensão, correção e educação para a justiça (2 Tm
3.16); a prática da oração, em todos as suas matizes, estará a nosso dispor, para que seja possível
dar voz da alma e dialogar com o Eterno; e, enfim, a comunhão com a igreja será um grande desafio
a nos moldar por meio da confissão e da mutualidade do pastoreio. Tudo isso no intuito de nos fazer
mais consciente de quem é Jesus e de como imitá-Lo radicalmente.

ÓTICO, ÉTICO E ESTÉTICO


Essa imagem me remete àquilo que o pastor Eugene Peterson41 chamou de compromisso ético e
estético com Jesus. Explico: depois de anunciar o chamado inexorável: “Se alguém quer vir após
mim, negue a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me.” (Mc 8:34), Jesus levou seus seguidores mais
chegados a uma experiência visual (estética) na qual seus olhos foram preenchidos pela imagem
imensamente esplêndida de seu rosto, corpo e vestes transfiguradas. Ali, no monte Tabor, o brilho
de Cristo desbancou qualquer “brilhozinho” rival que o mundo poderia oferecer (Mc 9.1-9).

No entender de Peterson, esse excerto de Marcos (Mc 8.27-9.9) representa o cerne de toda a “teologia
espiritual” dos evangelhos que nos convida a não apenas observar Jesus, mas a participar. Nesse
bojo, a proposta que envolve a renúncia descrita pelo chamado à cruz representa o “não” de Jesus,
e a experiência estética de deslumbramento no monte da transfiguração simboliza o “sim”.

Vamos entender isso melhor. Ainda segundo Eugene Peterson, tomar a cruz e seguir Jesus denotam:
“não seguir nossos impulsos, apetites, caprichos e sonhos, todos os quais tão prejudicados pelo
pecado que passam a ser guias pouco confiáveis para definir qualquer lugar para onde valha a pena
seguir. Seguir a Jesus significa não seguir as práticas de procrastinação e negação da morte de uma
cultura que, por obsessivamente lutar pela vida sob a égide de ídolos e ideologias, acaba com uma
vida tão contraída e apoucada, que mal se pode chamar de vida.”42
41
PETERSON, Eugene. Espiritualidade subversiva. São Paulo: Mundo Cristão, 2009.
42
Idem, p. 24.
Nesse toada, invoca-se a condição libertadora inerente ao “não”: a capacidade de dizer “não” é o
que garante nosso acesso à liberdade, e representa uma marca linguística típicas dos humanos.
Os animais não podem negar seus impulsos. Somente os humanos podem. Ou melhor, somente
os humanos amadurecidos, livres do império dos impulsos caídos, podem negar-se. A arte de dizer
“não” nos livra da infância marcada pelo excesso de positividade e da morte prevalecente na cultura.
Para conversar com Peterson:

“‘Não’ é uma palavra de liberdade. Não preciso fazer aquilo que me ordenam, sejam minhas glândulas,
seja minha cultura. O “não” judicioso, bem colocado, liberta-nos de muitos becos sem saída, muitos
desvios perigosos, liberta-nos de distrações debilitantes e seduções sacrílegas.”43

Espero que perceba a pertinência desse conceito para a luta contra a pornografia: precisamos
aprender que o “não” é parte da nossa liberdade. E deve ser usado de forma educadora sempre que
o ego se vê diante de distrações debilitantes ou seduções pecaminosas. Assim, usamos para nosso
próprio crescimento, a frustação e o desapego requerido por Cristo. A pornografia é um desses
becos, aparentemente, sem saída, cuja luz no fim do túnel é acesa pelo “não da liberdade” bradado
pelo salvador.

Nesse ensejo, é comum o período de ruptura com um comportamento compulsivo envolver


sofrimento. Haja vista que o corpo foi condicionado a buscar sempre naquele mesmo horário uma
dose de gratificação. Evidentemente, é preciso encarar esse período com coragem e perseverança,
confiando no agir gracioso do Espírito Santo que nos fornece o poder para descondicionar nossos
corpos.

Logo, esteja ciente: o ato de confiar em Jesus, nos chama a uma atitude anti-intuitiva: rejeitar o
conforto que vem do mundo. E nos ensina a buscar prazer naquilo que não gera morte. Isso não
alude apenas às coisas chamadas de espirituais (disciplinas espirituais), com efeito, precisamos
aprender a ter prazer em todas as coisas da vida tendo como parâmetro constante a pessoa de
Cristo. É sabido que ele se divertia em casamentos, conversava com seus amigos, descansava às
vezes solitário, às vezes em grupo. Ou seja, é preciso aprender a viver com Cristo administrando a
vida como um todo.

A final, (marque bem isso) quanto mais bagunçada está sua vida, mas vulnerável ao pecado sexual
você está.

Isto é, quanto mais desequilíbrio houver na área do desfruto do lazer, descanso e férias, no âmbito das
finanças, na zona emocional e relacional, entre outras coisas, mais suscetível o sujeito se encontra
aos atalhos que a imoralidade apresenta. Com isso não estou insinuando um conjunto de desculpas
para pecar. A decisão sempre será nossa. Nesse processo, os elementos externos apenas fornecem
a ocasião, mas a eficiência do apelo deles depende da receptividade do coração humano44.
Isso nos remete ao conselho de Paulo: “Aquele que roubava não roube mais; pelo contrário, trabalhe,
fazendo com as próprias mãos o que é bom, para que tenha o que repartir com o necessitado”.
(Ef 4:28). Perceba que ao dizer: “não roube mais” (texto restritivo), o apóstolo segue afirmando:
“trabalhe, fazendo com as próprias mãos” e “tenha o que repartir” (textos propositivos). Dentro de
nossa jornada referente ao pecado sexual, resta a paráfrase: aquele que via pornografia não veja
mais; pelo contrário, aprenda a descansar, a aliviar-se do estresse do dia a dia, a ter prazer na beleza
criada por Deus sem idolatrá-la, a ter contentamento com seu cônjuge ou com a vida não dividida
43
Ibid.
44
STREET. Jhon D. Purificando o coração da idolatria sexual. São Paulo/SP: NUTRA Publicações, 2009.
dos solteiros (1 Co 7.33-34), a desenvolver relacionamentos saudáveis fora das sombras do pecado
sexual, e a servir os outros repartindo as consolações com as quais você foi consolado (2 Co 1.4).

É nesse sentido que C. S. Lewis, na sua fábula satírica Cartas de um Diabo a seu aprendiz, define
como uma “mancada” do demônio que estava falhando na tarefa de destruir a fé do cristão com
quem interagia. O superior deste demônio inexperiente, o repreende com a seguinte colocação:
“como pôde ter falhado em reconhecer que um prazer real era a última coisa que você deveria ter
deixado que ele experimentasse?”45. Nessa linha, o personagem das trevas segue ensinando ao
subordinado maligno o que não poderia ter acontecido, caso o plano seja o fim da santidade do
cristão (aqui chamado de “paciente”):

“você permitiu ao seu paciente ler um livro que ele realmente apreciava, não para fazer observações
inteligentes sobre ele aos seus novos amigos, mas por puro prazer. Em segundo lugar, você lhe permitiu
andar até o velho moinho e tomar um chá ali – uma caminhada pelo campo, coisa que ele realmente
gosta, e isso, a sós. Em outras palavras, você permitiu que ele tivesse dois prazeres realmente
positivos.”46

Não sei se você consegue captar a profundidade desse princípio. Por ele, entendemos que
precisamos encontrar formas positivas de prazer ligadas a coisas reais, simples e cotidianas nas
quais nos entregamos por um período de tempo, criando uma espécie de liturgia do ordinário, capaz
de tirar nosso foco dos prazeres pecaminosos. Exemplo: ler um bom livro pelo prazer de ler, passear
no campo, cozinhar, fazer algo com as mãos, relaxar com o belo das artes e das amizades sem
segundas intenções... a lista é infindável. São atividades que “não têm em si nada de virtuoso”, diria
Lewis, mas que são dotadas de “um tipo de inocência, humildade e esquecimento de si mesmo” 47
altamente competente em revigorar a fé no Criador e desbancar o ego cobiçoso.

Isso nos leva a pensar no Éden e em sua beleza estonteante, contudo poderíamos rememorar um
episódio dos evangelhos, no qual o ótico, o ético e o estético se mostraram em toda sua pujança.

O texto em questão está em Marcos 9. 1-9. Ele divide o livro ao meio, deixando para trás a ênfase nos
milagres destinados às multidões galileias, e revelando um maior foco de Cristo em seus amigos
próximos, companheiros de viagem a Jerusalém. A narrativa que marca essa virada de ênfase é a
chamada transfiguração de Jesus, na qual Pedro, Tiago e João veem o Filho de Deus envolto em
uma nuvem de brilho e glória, na companhia de Moisés e Elias, e ouvem a palavra de Deus: “Este é o
meu Filho amado. Ouçam-no!” (Mc 9:7).

Penso que isso é fundamental para nossa jornada por um olhar sem pornografia, pois ver Jesus
e receber o “sim” de Deus por meio dele, nos resgata da ideia de que ao dizer “não” às paixões,
estaríamos desamparados, sem conforto e sem algo para pôr no lugar, a vida sem pornografia seria
uma melancólica vida de “puro não”. Perceba que no texto de Marcos, a ênfase estética (o “sim” e o
gozo de ver Jesus) vem logo depois do chamado ascético reforçado pelo chamado à cruz (o “não”).

Nessa perspectiva, voltemo-nos à narrativa da transfiguração: nela, se destacam quatro palavras


centrais: beleza, glória, adoração e obediência.

Aproximar-se de Jesus é presenciar uma beleza insuperável. Entrar em uma atmosfera cujo resplendor

45
LEWIS, C. S. Cartas de um diabo a seu aprendiz. Rio de Janeiro/RJ: Thomas Nelson Brasil, 2017, p. 76.
46
Ibid., p. 75.
47
Ibid., p. 77.
glorioso é superior àquilo que viveu Moisés ou qualquer profeta. Diante disso, a única reação
adequada “que se pode dar à luz é manter os olhos abertos, prestar atenção ao que está iluminado:
adoração”48, como escreve Peterson. E, como observação derradeira, ouvimos a linguagem amorosa
com que o Pai fala com o Filho “este é meu filho amado...” (Mc 9.9), lembrando-nos que são pessoas
num relacionamento de amor e união centrado na figura de Jesus, tudo o que o “espetáculo” pornô
não consegue oferecer. Na verdade, isso é tudo que a pornografia tenta desconstruir.

Para finalizar, vale destacar a única atitude condizente com quem vê a beleza de Jesus: “Ouçam-no!”
(Mc 9.9). O verbo hebraico para “ouvir” (“Shemá” que marca toda a espiritualidade judaica) é o mesmo
verbo traduzido como “obedecer”. Portanto, ao mesmo tempo em que decidimos tirar nossos olhos de
nossos ídolos pornográficos, precisamos deixar, diariamente, que nossos olhos sejam preenchidos
pela visão da glória de Cristo, não apenas com a intenção de vencer um pecado pontual, mas com
a decisão definitiva de amá-lo e imitá-lo com todo nosso coração, alma, entendimento e força (Mc
12.30). E, assim, conhecê-Lo cada vez mais.

Enfim, depois da experiência com a face transfigurada de Jesus, os discípulos desceram do monte
e foram viver, na vida dura e sensorial o chamado de imitar Jesus. Para tanto, precisavam lembrar
e acreditar naquilo que viram e ouviram. E, assim, tomar as armas espirituais e resistir ao inimigo e
vencer tentações (Tg 4.7).

48
Ibid.
06. OLHAR TENTADO: ANTES, ABISMO E DEPOIS

Raquel era o nome que aparecia na tela do computador. Estava checando o e-mail despretensiosamente,
não havia planejado pecar e não me sentia espiritualmente enfraquecido. Cliquei inocentemente e
abrir a mensagem. Raquel era bonita e como anuncia uma conhecida oração puritana: “A beleza que
vejo é uma isca para a cobiça”49. Ao dizer isso, concordo que é mais inteligente reconhecer a beleza
e glorificar o criador no momento da tentação, do que fingir, orgulhosamente, que algo belo não me
atrai. Como já vimos, o orgulho precede o tombo.

A manhã na qual a imagem da “Raquel-isca” estava diante de mim era um dia comum na vida de
quem não tinha compulsão pornográfica. No entanto, apesar de minhas últimas decisões terem sido
positivas e me distanciado da pornografia, lá estava a foto a me desafiar. A página aberta mostrava
apenas a face da dita cuja esperando que a barra de rolagem fosse conduzida para baixo, dando,
assim, acesso visual ao resto do “material”; é interessante como a nudez da face não interessa
muito no mundo pornô. Naquele momento estava decidindo ver o resto da foto ou apagar o e-mail
liminarmente.

Ao perceber que se tratava de uma mulher despida, me dei conta que não havia procurado aquele
tipo de conteúdo, meu histórico virtual não justificava aquela aparição, tampouco me relacionara
com alguém indevidamente. Era uma foto aleatória de uma desconhecida, enviada sabe-se lá com
qual intenção. Seria vinda dos antros infernais? Seria Satanás o emissário? Não sabia que o Diabo
tinha o meu e-mail. Estaria participando de algum programa de teste de fidelidade on-line, típico de
certos programas de TV? A vida cristã seria uma enorme pegadinha erótica conduzida por um João
Kléber celestial que tudo vê?

Absorto nessas questões, também percebi que me encontrava sozinho diante das “sombras” daquela
imagem brilhante. Ao rolar a tela para sair do rosto e focar no seio ou na genitália da coisa-Raquel,
consumaria um ato secreto feito na bruma do anonimato virtual. Que mal teria? Ninguém saberia.
Não seria um evento trivial demais para tanta preocupação? Tanta gente pecando feio por aí, porque
não dá uma aliviada com os pixels do corpo da Raquel em minha retina? Afinal, faz tempo que não
me permito uma exceção à radicalidade da santificação.

Este episódio deixa claro que a tentação sexual é inevitável e insistente. O mundo ao redor é hostil à
pureza e nos fornece uma gama cada vez maior de estímulos eróticos. Mesmo quando não estamos
nos sentindo dispostos a pecar, a oferta não se esgota. Isso se assemelha ao processo de vender um
produto. Por diversas vezes o vendedor “inventa” necessidade na vida do consumidor. O sujeito não
reconhecia aquilo como necessário, até ser apresentado à glória com a qual o produto foi envolvido.
Em geral, o fascínio gera a necessidade por meio da associação entre o produto e a felicidade sem
custos. Afinal, quem não precisa de felicidade fácil? Daí, emocional e sensitivamente excitado, o
indivíduo, já capturado, adquire aquilo que não precisa e que, indubitavelmente, tem custo.

Algo parecido se desenrolou no Éden: Adão e Eva, definitivamente, não precisavam de nada, porém
a tentação girou entorno da problematização deste princípio. De repente, foram convencidos que
havia algo fora de Deus que valia a pena ser obtido. E mais, não arcariam com as consequências.
Ou seja, não morreriam, ao contrário, seriam iguais a Deus (Gn 3.1-7). O primeiro casal focou no que
não tinha em detrimento do que já estava disponível no jardim.

49
Arthur Bennett. O vale da visão: uma coletânea de orações puritanas. Brasília/DF: Monergismo, 2020, p. 88.
Na minha infância, pensava o Éden como um lugar com duas árvores: uma permitida (árvore da
vida) e outra proibida (árvore do conhecimento do bem e do mal). Ou seja, era um lugar difícil, com
cinquenta por cento da diversão proibida. Sendo a “árvore errada” uma planta maravilhosamente
atraente, Adão e Eva, na minha imaginação, ficavam sofrendo o dia inteiro, sentados em frente ao
par vegetal. Sem mais nada para fazer, presos numa armadilha sinistra criada por Deus, o casal não
aguentou e “pisou na jaca” (comeu o fruto proibido).

Nada poderia ser mais falso.

O Éden era um espetáculo de gozo e felicidade. Naquelas paragens reinava o “sim” de Deus. Adão e
Eva eram livres. Pensavam tudo a partir da perfeição do criador, e desfrutavam da criação em toda
sua beleza e oportunidades. Havia apenas uma única árvore interditada. A sua presença simbolizava
a liberdade com que a humanidade foi criada. Eles tinham a oportunidade de desobedecer, o que
tornava sua obediência um fruto da livre decisão. Não eram máquinas inflexíveis.

Não obstante, a ideia de que algo apartado do Criador poderia realizá-los foi enxertada em seus
corações e eles morreram. Desde então, o ser humano nasce com seus desejos prejudicados tanto
em grau quanto em direção. No momento do novo nascimento, recebemos um novo coração, uma
nova identidade, um novo poder para vencer o pecado. Porém, mesmos salvos, ainda seguimos
sendo gente. E gente é constantemente tentada.

MEDO DE SER HUMANO

Nesse sentido, durante todos esses anos dando palestras e ouvindo pessoas com questões no
âmbito da sexualidade, percebi que existe um tipo específico de medo que aprisiona muitos cristãos:
o receito de que os outros descubram que apesar de nossa maturidade espiritual, ainda somos
humanos.

A falta da percepção de nossa humanidade nos torna mais suscetíveis ao pecado.

Pois, quando não reconhecemos nossa finitude humana, não temos coragem de pedir apoio, devido
ao fato de querermos a aprovação dos outros e interpretamos a simples existência da tentação como
uma mácula em nossa aparência de religião perfeita.

Nesse contexto, sempre escutei que tentação não é pecado e que o próprio Jesus foi tentado, portanto,
este é o padrão esperado para os que buscam imitar a Cristo. No entanto, simultaneamente, vi
muitos líderes cristãos isolados. Pessoas com medo de que os irmãos desconfiassem que mesmo
já tendo deixado à adolescência para trás, mesmo já tendo casado, mesmo já sendo pastor ou
líder na congregação, mesmo já tendo estudado a Bíblia toda, ainda assim, a tentação pornográfica
continua lá. Aparentemente, quanto mais se sobe na hierarquia cristã, mais se desumaniza o líder,
por meio da solidão e do medo de manchar a reputação.

GETSÊMANI

Carecemos, urgentemente, da lembrança do que o correu no Jardim do Getsêmani. Naquele episódio,


Jesus está em sofrimento e apresenta seu querer diante de Deus, rendendo-se ao Pai, num momento
de profundo sofrimento. Nas palavras de Mateus, o salvador, embora fosse moralmente perfeito,
assume seu estado interior e solicita ajuda dos amigos: “A minha alma está profundamente triste até
a morte; fiquem aqui e vigiem comigo.” (Mt 26:38). Por outro lado, nós, apesar de sermos eivados de
falhas, não buscamos nem discernir, nem nomear o que sentimos, e muitas vezes, não temos um
amigo a quem solicitar: fique aqui, ore por mim, vigie comigo.

Sobre isso, vale destacar que esse analfabetismo emocional (não entender o que se passa na alma)
nos impede de elaborar frases como: “A minha alma está profundamente triste até a morte”. Ademais,
esse isolamento espiritual (viver sem companhia madura) capaz de nos levar para o deserto do
desamparo e da independência relacional podem nos prejudicar profundamente.

Alguém poderia afirmar que Jesus, no final das contas, não foi ajudado pelos discípulos, pois eles
escolheram dormir no Getsêmani ao invés de orar. Contudo, a atitude do mestre está óbvia: ele não
prescindiu de seus companheiros íntimos. Evidentemente, a decisão de não pecar não pode está
condicionada ao suporte alheio, visto que em outras tentações, estaremos, completamente, sós.
Porém, está patente nas Escrituras que a vida cristã não foi desenhada para ser vivida no castelo da
solidão, precisamos do outro para nos afiar.

PORCOS-ESPINHOS

Para ilustrar tal princípio, permita-me compartilhar uma ilustração atribuída ao filósofo Schopenhauer:

Houve uma vez (...) uma colônia de porcos-espinhos. Eles acostumavam se amontoar em
um dia frio de inverno e, assim, envoltos no calor comunal, escapavam do congelamento.
Mas, atormentados com as picadas dos espinhos uns dos outros acabavam se afastando. E
toda vez que o desejo de calor os unia novamente, a mesma dificuldade os dominava. Assim
eles permaneceram, distraídos entre dois infortúnios, incapazes tanto de se tolerarem como
de sobreviver um sem o outro, até que descobriram que, quando guardavam certa distância,
podiam não só apreciar a individualidade mas também a proximidade dos demais.50

Eis aí o impasse do porco-espinho: precisa dos outros e, ao mesmo tempo, se incomoda com os
outros, pois nem sempre o sujeito alheio age como se espera. Para este dilema, falsas soluções se
apresentam: ou se escolhe o isolamento congelante e mortal, ou elege-se a proximidade patológica
geradora de dependências indevidas.

É verdade que Schpenhauer não vê nessa parábola um princípio metafísico. Não confere a ela uma
dimensão espiritual, tampouco se refere ao fenômeno da amizade. Sua aplicação é circunscrita ao
âmbito da política. Entretanto, sob minha ótica, essa história alude à nossa perene necessidade de
equacionar o outro dentro da jornada que empreendemos. Ela fala sobre peregrinos que sobreviveram
às geadas das tentações da vida por não terem escolhido andar sozinhos.

Não obstante, esses mesmos viajantes souberam impor limites as suas relações de ajuda. Assim,
transformaram amigos em irmãos, ao invés de torná-los ídolos controladores. É justamente a
descoberta dessa distância saudável que faz a comunidade ser tão importante na prestação de
contas das tentações; o desequilíbrio para qualquer um dos extremos é fatal.

Exemplos promissores da boa mutualidade estão presentes nas epístolas paulinas sob a fórmula do

50
OAKESHOTT, Michael. Rationalism in politics. New York: Basic Books. 1991, p. 460.
“uns aos outros”, cito alguns aqui:

“Consolem uns aos outros com estas palavras.” (1 Ts 4:18).

“sejam bondosos e compassivos uns para com os outros, perdoando uns aos outros, como também
Deus, em Cristo, perdoou vocês.” (Ef 4:32).

“Amem uns aos outros com amor fraternal. Quanto à honra, deem sempre preferência aos outros.”
(Rm 12:10).

“Levem as cargas uns dos outros e, assim, estarão cumprindo a lei de Cristo.” (Gl 6:2).

“Suportem-se uns aos outros.” (Cl 3:13).

“isto é, para que nos consolemos uns aos outros por meio da fé mútua: a de vocês e a minha.” (Rm
1:12).

“Portanto, confessem os seus pecados uns aos outros e orem uns pelos outros, para que vocês sejam
curados. Muito pode, por sua eficácia, a súplica do justo.” (Tg 5:16).

“Portanto, acolham uns aos outros, como também Cristo acolheu vocês para a glória de Deus.” (Rm
15:7).

“Portanto, consolem uns aos outros e edifiquem-se mutuamente, como vocês têm feito até agora.” (1
Ts 5:11).

“Assim também nós, embora sejamos muitos, somos um só corpo em Cristo e membros uns dos
outros.” (Rm 12:5).

Podemos ler nesses versos um chamado à ajuda mutua. Eles alavancam um elemento fundante no
processo de purificação do olhar: temos aliados, irmãos, cooperadores. Sendo mais radical: somos
membros uns dos outros. Logo, a partir dos termos usados nos versículos, devemos cultivar a
mutualidade de um sistema orgânico, regado de: consolo, bondade, compassividade, perdão, amor,
honra, preferência, suporte, confissão, fé mútua, oração, cura, acolhimento e unidade.

CONFISSÃO

Nesse sentido, vale pontuar algumas atitudes típicas do processo de confissão e de ajuda mútua no
bojo da tentação sexual:
• Encontre companheiros de jornada e converse com eles sobre a necessidade de ter a quem
prestar contas. Eleja pessoas maduras e íntegras. Seja intencional, não espere que assunto
surja. Nesse contexto, deve-se zelar pela confidencialidade e pelo cuidado durante o tempo
que for necessário.
• Fale sobre a carga de tentação antes de pecar. Seja preventivo. Infelizmente, às vezes,
esperamos errar e depois praticamos a confissão como forma de autoengano. Não há uma
real intenção de mudança. Assim, o hábito de trazer à luz o pecado é banalizado como mais
uma fase do remorso infrutífero.
• Não construa justificativas e racionalizações para desculpar o pecado cometido.
Responsabilize-se, só assim o crescimento é possível.
• Não precisa confessar, minuciosamente, cada prática pecaminosa. Por vezes, o conselheiro
se vê interessado, indevidamente, pelos detalhes dos atos sexuais ou dos conteúdos
pornográficos do aconselhado. Isso pode ocorrer por motivos variados: eventualmente,
o relato deixa o conselheiro excitado; ou alimenta uma curiosidade indevida daquele que
escuta; ou ainda, se estabelece algum tipo de manipulação e controle entre os dois, por
meio do mau “uso” do segredo. Cuidado para não transformar um momento de confissão
em um episódio real de tentação sexual ou em num começo de um relacionamento doentio.
• Apesar de não “carregar” nos detalhes, é importante que a confissão seja completa. Explico:
frequentemente ouço pessoas que embora estejam dispostas a confessar o consumo de
pornografia, escondem outras práticas sexuais muito mais danosas. O principal prejuízo
dessa atitude é a quebra de confiança. Infelizmente, a mentira é irmã gêmea da compulsão:
encobre-se até ser flagrado, depois, tenta-se controlar a exposição pelo ocultamento daquilo
que consideramos mais precioso ou mais vergonhoso. Isso é uma armadilha diabólica para
sabotar o processo de santificação que poderia iluminar as catacumbas da alma.
• Quando a pessoa é casada, um cônjuge deve pedir perdão ao outro quando o assunto é
pecado sexual, pois esse tipo de prática não afeta apenas um lado da relação. Também se
constitui como pecado contra o marido/esposa. Evidentemente, tal conversa precisa ser
feita com cuidado, contando com apoio pastoral.
• No entanto, o cônjuge não é a pessoa indicada para acompanhar o processo de santificação
nessa área. É comum que a parte não viciada em pornografia oscile entre a compaixão e
a ira. Isto é: (1) ora se sente disposta a ajudar o outro, numa atitude que apesar de está
correta, pode se tornar problemática quando há muita complacência e dependência com
relação ao cônjuge infiel. Este último pode vir a manipular a situação, no intuito de lançar a
culpa na parte que não pecou; (2) ora, a outra parte se sente traída e raivosa, sem estender
perdão e graça. Assim, prolonga-se a ira para além do que é devido, fazendo-se incapaz de
enxergar suas próprias falhas.
• Lembre-se que a confissão mútua não substitui a oração dirigida a Deus. Não transforme seu
interlocutor em seu intermediário espiritual. Portanto, fale com Deus sobre todo o processo
e aprenda a ouvir qual deve ser seus próximos passos.
• Por último, é importante que a ocasião de confissão seja usada para aprofundar o aprendizado
sobre as circunstâncias internas e externas que levaram a queda. Afinal, só existe uma coisa
pior do que errar, a saber, errar e não aprender nada.

APRENDER COM A TENTAÇÃO

Diante disso, vamos pensar sobre como podemos aprender com a tentação.

Vale salientar: o pecado não surge do nada. Nas famosas palavras de Tiago 1.14-15: “cada um é
tentado pela sua própria cobiça, quando esta o atrai e seduz. Então a cobiça, depois de haver concebido,
dá à luz o pecado; e o pecado, uma vez consumado, gera a morte”.

Esse texto salienta a linha de montagem das práticas pecaminosas, ou melhor: a gestação do
pecado. O escritor sagrado usa o método da personificação para falar da cobiça. Ele localiza sua
origem dentro do próprio ser humano e descreve a tentação como a oportunidade de incorporar um
tipo de comportamento completamente incompatível com a nova identidade espiritual em Cristo.
Além disso, a concepção, a gestação e o parto do subproduto da cobiça, ao invés de gerar vida,
redunda em morte. É como se Tiago estivesse invocando a sabedoria com a qual, pela graça de
Deus, somos capazes de abortar esse processo, antes que ele nos esmague.

Esta descrição dramática explicita que embora já redimidos por Cristo, a obra dentro de nós ainda
não foi consumada. Por isso, a cobiça ainda subsiste. Nesse rumo, C. S. Lewis, denominava os
cristãos de “seres anfíbios”51, isto é, sujeitos que embora definidos por uma espiritualidade celestial,
são ainda caminhantes na trilha deste mundo, nestes, embora o espírito esteja pronto, “a carne é
fraca” (Mt 26.41).

Segundo as palavras do próprio Jesus, a vigilância (manter-se acordado) e a oração (manter-se


dialogando com o Pai) eram essenciais para não sucumbir à tentação. Estes foram os elementos
utilizados por ele para vencer no Getsêmani e ao mesmo tempo, foi tudo o que os discípulos não
fizeram. Nesse contexto, Jesus aproveita a sonolência e a falta de oração dos seus seguidores
para lhes ensinar a respeito da dinâmica da tentação. Veja como os erros dos apóstolos não são
desprezados, Jesus os equaciona na obsessão de Deus em moldá-los conforme o seu querer. Assim,
Ele faz conosco.

TENTAÇÕES E ONDULAÇÕES
A esse quadro, Lewis acrescenta a chamada “lei da ondulação”: como filhos de Deus temos uma
identidade espiritual estável, entretanto, estamos sujeitos às instabilidades da vida. Nessa lógica,
Paulo insere os cristãos num lugar entre a redenção já garantida e a consumação no porvir: “Enquanto
estivermos morando nessa tenda [corpo humano], gememos, almejando ser revestidos da nossa
morada celestial” (2 Co 5.2).

Muitas vezes, por causa desses gemidos, ondulações e angústias da vida terrena, acabamos
duvidando de quem somos. É nesse contexto que as tentações se manifestam. Nas próprias palavras
de C. S. Lewis:

Isso significa que enquanto seu espírito pode ser direcionado para um objeto eterno, seus
corpos, suas paixões e suas imaginações estão em constante mudança, pois mudar significa
estar inserido na temporalidade. Eles [os cristãos] experimentam a constância apenas em
meio à ondulação.52

Assim, podemos concluir que o Espírito Santo deseja nos ensinar a vivermos pelo que cremos,
enquanto convivemos com aquilo que sentimos e desejamos. A constância de ser filho de Deus é a
âncora capaz de nos manter na verdade, mesmo quando nossos olhos são saturados por tentações
e nossos corpos e emoções apresentam ondulações.

Mas o que seria viver pelo que se crê? Para entender esse princípio, basta lembrarmos que coisas
como pureza, abstinência e fidelidade não são sentimentos que nos trazem frenesi, ao contrário, são
decisões de fé. Ninguém acorda de madrugada imbuído por uma forte sensação de abstinência, por
exemplo. Ao contrário, tais atitudes são decisões diárias que cortam na própria carne, por assim
dizer. Elas não acontecem na companhia de sensações agradáveis. Viver pela fé, portanto, é amar,
51
LEWIS, C. S. Cartas de um diabo a seu aprendiz. Rio de Janeira/RJ: Thomas Nelson Brasil, 2017, p. 51.
52
Ibid.
confiar e obedecer àquele que "morreu por todos, para que os que vivem não vivam mais para si
mesmos, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou." (2 Co 5:15). Logo, significa não viver
para si e não buscar consolo e conforto fora daquele que por nós morreu.

O INIMIGO

Portanto, não adianta eleger como inimigo as circunstâncias externas. Precisamos estar atentos às
manobras internas do ego cobiçoso: (1) ele nos atrai; depois (2) finge que não tem nada a ver com
a tentação que estamos enfrentando. Certamente, é mais confortável para o “eu”, colocar a culpa
no Diabo ou na indecência do mundo, contando que ele fique isento. Sobre isso, recordo-me de um
aconselhado que começou a trocar mensagens sexuais com uma amiga. Adivinhem? A esposa
descobriu. A crise se instalou no casamento.

Quando conversamos a respeito do ocorrido, ele relatou que a vida sexual dentro do matrimônio
estava com uma frequência muito baixa. Assim, começamos a tratar sobre esse problema, sem
de forma alguma, justificar seu comportamento pecaminoso. Depois de alguns dias, conversando
com a esposa, descobri que o marido, assim que chegou em casa, anunciou à esposa que eu
supostamente havia dito que a culpa da queda vivida por ele era a falta de sexo marital (reitero:
não trouxe tal assertiva em nenhum momento de nosso diálogo!). Entretanto, para aquele marido
era mais fácil afirmar que a culpa era de sua companheira. Após algumas intervenções, também
descobri que o problema não era a frequência sexual entre eles, na verdade, o marido, já imerso na
pornografia, insistia em reproduzir com a esposa práticas que assistia no universo pornô, inclusive
com a tentativa de acrescentar outra pessoa na relação sexual.

Essa história destaca nossa insistência em fugir da verdade sobre nosso próprio coração e do mal
que trazemos para dentro de nossos relacionamentos quando nossos ídolos não são confrontados.
Assim, o ego segue comandando e se escondendo detrás de nossas mentiras.

Nas palavras de João Calvino: “devemos observar estes dois efeitos da cobiça – ela nos encanta
(atrai) com o propósito de seduzir, e ela desvia a nossa atenção (para ficar oculta). Qualquer deles
nos condenará”53. Diante disso, precisamos aprender com Tiago a respeito de nós mesmos e
desenvolvermos uma atitude madura de responsabilização por nossas escolhas.

Isso me faz rememorar uma novela do autor russo Leon Tolstoi, na qual Evguêni, o protagonista, se
vê inflamado de desejo por uma mulher que não é sua esposa. Na luta contra esta atração, o sujeito,
ao encontrar-se com o objeto de sua tentação, chega à tragédia:

“Será possível que não consigo me dominar?”, dizia para si mesmo. “Será que estou acabado?
Meu Deus! Ora, não existe nenhum Deus, existe é o diabo. E é ela. O diabo se apossou de
mim. Mas eu não quero, não quero. É o diabo, sim, o diabo.” Ele chegou bem perto dela, tirou
o revólver do bolso e deu um, dois, três tiros no meio das suas costas. Ela correu e caiu sobre
um monte de palha. – Meu Deus! Ô gente, o que aconteceu? – gritavam as mulheres. – Não,
não foi acidente. Eu a matei de propósito – gritava Evguêni. – Mandem chamar o chefe de
polícia”54.

53
TORRANCE, David W.; TORRANCE, Thomas F., editors, Calvin’s commentaries: a harmony of the gospel Matthews, Mark
and Luke and the epistle of James and Jude. Vol. 3, Wm. B. Eardmans Publishing, Grand Rapids, MI, 1972, p. 268.
54
TOLSTÓI, Leon. A Felicidade Conjugal seguido de O Diabo. São Paulo/SP: L&PM Pocket. Edição do Kindle.
O intrigante nessa narrativa é que o assassino, acertadamente, sabe que lhe falta domínio próprio (o
que, na doutrina cristã, em última instância, seria: Deus dominar sobre o “eu”) e está ciente de que
sua reação não foi acidental: “eu matei de propósito”. O grande engano está no emprego das duas
táticas do ego: primeiro, o seduzir com aquilo que não lhe pertencia, sem, todavia se apresentar
como responsável pela proposta pecaminosa. A culpa do desejo existir é posta sobre a mulher e a
subsequente demonização do feminino justifica a empreitada criminosa que acaba em homicídio.
No fundo, como nos mostra Tolstói, queremos nos livrar das tentações sem nos livrar do governo do
ego e para tanto projetamos a raiz do problema para fora de nós.

NA ARENA DA TENTAÇÃO

Dentro desse enredo, o conceito mais importante que aprendi com meu histórico de tentações é o
seguinte: Deus está do meu lado quando sou tentado.

Antes de pensar assim, percebia a Deus como um fiscal moral que ficava na arquibancada enquanto
eu era assediado na arena de luta. Se o que Jó disse é verdade: “É um combate a vida do homem
sobre a terra.” (Jó 7.1), então infelizmente, não conseguia ver o Senhor como meu aliado, muito
menos como meu treinador. O simples fato de ser tentado de novo no mesmo tipo de pecado já me
tirava as forças. O sentimento de solidão e reprovação me definiam. Por conta disso, pensava: “se
eu prestasse mesmo, se minha entrega a Deus fosse real, eu não estaria com vontade de fazer isso
novamente. Eu não presto! Deus já deve está chateado por me ver ainda atraído por este pecado”.

Esse tipo de autocomiseração é muito prejudicial. Ela prepara o terreno para a próxima queda. E,
além disso, é mentirosa. Afinal, durante a tentação (que não se confunde com o pecado em si) o
Espírito Santo está comigo, falando o que eu preciso ouvir, fazendo-me discernir o que não estou
percebendo. Basta que eu o escute e confie no escape que Ele me oferece. Assim, a tentação é uma
oportunidade de intimidade com Deus e um exercício dos músculos da fé. A musculatura que me
possibilita viver pelo que creio e enfrentar o que sinto.

Nesse rumo, o clássico da literatura sobre discipulado, a Imitação de Cristo, traz os conselhos de
Tómas de Kempis sobre a utilidade da tentação nos seguintes termos: “são, todavia, utilíssimas ao
homem as tentações, posto que sejam molestas e graves, porque nos humilham, purificam e instruem”.55
O autor considerava que todos seríamos tentados até morrer, independente da condição do mundo
exterior, visto que, como já afirmamos, a semente da tentação habita dentro de nós: nossa própria
cobiça. Nesse contexto, quais seriam os ganhos com as tentações?

Primeiramente, a humildade a que ela nos obriga. Devemos entender que o caminho da superação
aponta para baixo. Por esse motivo, costumeiramente, as orações dos fiéis se tornam menos
arrogantes quando estão sendo tentados.

Em segundo lugar, desenvolvemos a paciência e a resiliência, pois, ainda segundo Tómas Kempis,
vencemos a tentação “pouco a pouco com paciência e resignação”, nunca com “importuna violência e
esforço próprio”.56 Por isso, não devemos nos desesperar com a provação de nossa fé e não desistir
se ocorrer alguma queda. Afinal, você não volta à linha de partida se cair no meio do caminho. Você
pode seguir de onde parou.

55
KEMPIS, Tómas de. Imitação de Cristo. Petrópolis/RJ: Vozes, 2015, p. 41.
56
Ibid.
Da mesma forma, a tentação é útil para alcançarmos entendimento a respeito da dinâmica da
cobiça. Sobre isso, o clássico Imitação de Cristo, fazendo eco ao conteúdo supracitado da epístola
de Tiago, nos instrui que “primeiro ocorre à mente um simples pensamento, donde nasce a importuna
imaginação, depois o deleite, o movimento; e assim, pouco a pouco, entra de todo na alma o malvado
inimigo, porque se não resistiu a princípio”57. O autor articula a cobiça, os pensamentos, a imaginação,
o deleite e o movimento (o próprio ato em si de pecar), buscando descrever o passo a passo da
tentação. Uma de suas intenções é nos alertar que tal processo pode ser abortado em algum de
seus eventos intermediários.

Nessa sequência, recordo-me de uma noite em que o controle da TV estava em minhas mãos e,
displicentemente, zapeava por todos os canais. É interessante como nesses momentos sempre
vem a mesma voz: ninguém está vendo, veja só uma vez, vai ser quase sem querer, será apenas
um acidente, você, no fundo merece. Algo parecido ocorre quando pelas redes sociais, palavras de
cunho erótico ou imagens desta natureza são enviadas como uma isca de euforia. Um processo
imaginativo se inicia e seu progresso não será detido enquanto não houver uma atitude consciente
de levar “cativo todo pensamento à obediência de Cristo” (2 Co 10.5).

Desta maneira, a “mente de Cristo” (1 Co 2.16) implantada em nós pelo Espírito Santo não se trata
de uma zona passiva que aceita todos os intrusos. À vista disso, pergunto: você tem tido uma
mente passiva e complacente com todo tipo de conteúdo e estímulo? Como você elaborado a sua
imaginação? Vamos falar mais sobre isso.

IMAGINE

A imaginação é o processo ou a capacidade de construir imagens. Vale sublinhar que Jesus usou
como método de ensino a nutrição da imaginação de seus seguidores. As metáforas e as parábolas
eram abundantes para que a mente dos discípulos fosse preenchida pela imaginação do Reino e para
que as mentiras do mundanismo não ocupassem o espaço mental. Nessa esteira, se a pornografia
tem doutrinado nossa imaginação, certamente, além de estagnar a entrada de novas imagens
imorais, precisamos desenvolver uma imaginação nutrida pelas histórias e ideias anunciadas por
Cristo.

O teólogo Kevin Vanhoozer, nos ajuda a destrinchar o poder da imaginação, tendo com ponto de
partida a teologia bíblica. Para ele, o ato de imaginar:

envolve a vontade, as emoções e a mente. Talvez Paulo tenha pensado na imaginação quando
fala, em Efésios 1.18, da iluminação dos ‘olhos do vosso coração’. Só o Espírito pode abrir-nos
os olhos do coração, mas precisamos nos esforçar para conservá-los abertos, mantendo o
relacionamento vital com o objeto do desejo do nosso coração: o Senhor Jesus Cristo58.

Veja como isso conversa com o tema da pornografia. A vontade, as emoções e a mente interagem
tanto para que a tentação se torne atraente, quanto para que a fantasia erótica ocupe a mente do
viciado o máximo de tempo possível. É comum ouvirmos narrações de indivíduos que afirmam

57
Ibid., 42.
58
Kevin J. Vanhoozer, “Em sombras brilhantes: C. S. Lewis e a imaginação na teologia e no discipulado”. In: Jhon Piper e
David Mathis (orgs.). O racionalismo romântico: Deus, vida e imaginação na obra de C. S. Lewis. Brasília/DF: Monergismo, 2017,
p. 125.
pensar tanto em pornografia que chegam ao esgotamento mental. Não conseguem mais selecionar
minimamente o conteúdo de suas mentes. Eles precisam de uma nova maneira de pensar, carecem
de uma profunda mudança de parâmetros tanto na decisão sobre o que entra por seus olhos, quanto
sobre aquilo que nutre suas imaginações. Necessitam orar e render-se humildemente ao Espírito
Santo para que Ele possa refundar o imaginário que habita suas mentes, segundo “tudo o que é
verdadeiro, tudo o que é respeitável, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o
que é de boa fama, se alguma virtude há e se algum louvor existe, seja isso o que ocupe o pensamento
de vocês.” (Fp 4:8).

A grande pergunta é: Como fazer isso? O apóstolo Paulo costumava sempre mencionar uso da
mente no culto a Deus. No contexto referente ao ensino sobre o uso dos dons espirituais, ele dizia
que os cristãos deveriam orar e cantar com a mente para não deixa-la “infrutífera” (1 Co 14.14-15).
Ele também instrui a que vistamos toda a armadura de Deus:

Embraçando sempre o escudo da fé, com o qual podereis apagar todas as setas inflamadas
do Maligno. Usai igualmente o capacete da salvação e a espada do Espírito, que é a palavra
de Deus. Orai no Espírito em todas as circunstâncias, com toda petição e humilde insistência.
Tendo isso em mente, vigiai com toda perseverança na oração por todos os santos. (Ef 6.16-18).

Nessa parte específica da armadura, Paulo descreve um guerreiro indo contra o ataque inimigo
com alguns apetrechos. Com efeito, no que tange à cobiça, o mundo e as potestades do mal são
ilusionistas, geradores de falsos brilhos que buscam embotar nossa vontade, mexer com nossas
emoções e povoar nossas mentes.

Segundo o apóstolo, para fazer frente a isso, nossas armas são conhecidas: (1) fé depositada na
verdade sobre o que de fato precisamos. Uma fé crescente que apura nosso faro quando precisamos
identificar as mentiras que são lançadas em nós durante as tentações; (2) A salvação como aquilo
que define nossa maneira de pensar: somos salvos pelos méritos de Jesus e Nele encontramos o
socorro e a satisfação que a pornografia não pode nos dá; (3) a espada do Espírito, que é a própria
palavra de Deus, capaz de nos limpar e nos guiar em todo o tempo, calibrando nossas decisões; (4)
e, por último, a oração com duas características: perseverante e humilde. É interessante que neste
ponto do texto, Paulo afirma: “tendo isso em mente” orem pelos outros também. Assim, ele conclama
a todos para ocuparem suas imaginações com as verdades do evangelho a ponto de transbordarem
numa vida de oração que não inclua somente as próprias necessidades. Vemos claramente a ideia
de autoesquecimento sendo praticada na medida em que a ênfase nos apetites do ego é desfeita.
Começamos a pensar mais em Deus e nos outros do que em nós mesmos. Na verdade, esta é a
estratégia do próprio Senhor Jesus que venceu tentações em desertos e jardins.

A IMAGINAÇÃO DE CRISTO

Essa intenção de ludibriar nossas escolhas pela fascinação da imaginação sempre foi uma estratégia
de nosso adversário. Durante a tentação de Jesus não foi diferente. O texto de Lucas 4.1-13 nos revela
que Cristo não estava em crise quando foi conduzido pelo Espírito ao deserto para ser tentado, ao
inverso, ele tinha acabado de ter uma estrondosa experiência com o Pai no rio Jordão. No episódio
de seu batismo, o Espírito Santo veio sobre ele na forma corpórea de pomba e ouviu-se a voz de
Deus fazendo uma forte declaração sobre a sua identidade (Mt 3.16-17). Com isso, aprendemos que
a tentação nem sempre se dá quando estamos em crise.
Na cena do deserto, para melhor analisar as tentações de forte apelo visual, gostaria de focar na
segunda proposta feita por Satanás:

Então o diabo o levou para um lugar mais alto e num instante lhe mostrou todos os reinos do mundo.
E disse: — Eu lhe darei todo este poder e a glória destes reinos, porque isso me foi entregue, e posso
dar a quem eu quiser. Portanto, se você me adorar, tudo isso será seu. Mas Jesus respondeu: — Está
escrito: “Adore o Senhor, seu Deus, e preste culto somente a ele. (Lc 4:5-8).

Vamos avaliar o método usado nessa passagem para tentar a Jesus:

“Levou para um lugar mais alto”, este excerto deixa patente que o Diabo não pôs o Filho de Deus em
um calabouço ou o torturou com agressões e humilhações. Ao contrário, Jesus foi “exaltado” por
Satanás. Certamente, foi uma caricatura do tipo de elevação que Deus merece de seus adoradores.
Na verdade, era uma falsa adoração do ego de Jesus, na tentativa de fazê-lo amar a si mesmo,
desconsiderando a vontade do Pai. Da mesma forma, Pedro já havia sido mensageiro desta
ideia quando repreendeu o mestre na intenção demovê-lo do caminho da cruz. Foi quando Pedro
“profetizou”, igual às centenas de profetas triunfalistas: “Isso de modo nenhum irá lhe acontecer”
(Mt 16:22), referindo-se ao sofrimento inerente de se submeter à vontade de Deus. Nesse ínterim,
Cristo rejeitou a voz do Diabo que ressoava nos lábios apostólicos: “Mas Jesus, voltando-se, disse a
Pedro: — Saia da minha frente, Satanás! Você é para mim uma pedra de tropeço, porque não leva em
consideração as coisas de Deus, e sim as dos homens.” (Mt 16:23).

A artimanha da tentação é sempre nos fazer focar nas coisas dos homens e esquecer de considerar
a vida através das coisas de Deus.

Sempre encantados com o suposto bom tratamento que o mundo dá ao nosso “eu”. Precisamos
abrir os olhos e discernir essa intenção, do mesmo modo como Cristo enxergava o estratagema do
adversário. Ele não estava sendo iludido. Sua mente estava ocupada pela imagem do pai anunciando
sua identidade e o enchendo de satisfação lá no Jordão. A imaginação de Jesus estava nutrida pelo
brilho da face do Pai. Como enganá-lo? Como dissuadi-lo?

“lhe mostrou todos os reinos do mundo”, esse pode ser considerado como o segundo ato do drama.
A tentação foi visual. Satanás poderia ter falado sobre os reinos e sobre a beleza de sua glória.
Não! Ele decidiu fazer Jesus ver. E vamos ser sinceros: era um cenário atraente. A totalidade dos
reinos do mundo conquistados pela força de um gesto simples: ajoelhar-se e render o coração ao
inimigo. Aparentemente, seria mais autoadoração do que satanismo. Ou dito de outra forma, todo
tipo de idolatria de criaturas é, no fundo, autoidolatria, pois visamos receber sempre algo em troca.
No entanto, mais do que tudo, Jesus estaria em insubordinação completa para com o Pai. O preço
de dobrar os joelhos seria negar a própria identidade de filho de Deus que subsiste em completa
harmonia com o Pai.

Esse tipo de proposta tentadora era um atalho supostamente capaz de evitar o sofrimento. Se fosse
real o briefing oferecido por Satanás, Jesus, em teoria, obteria a vitória sobre o mundo sem precisar
sofrer na cruz. Veja: Deus também daria a Seu filho todos os reinos (Fp 2.10-11), porém Seu caminho
era a obediência e a humilhação que salvaria a humanidade. No sentido oposto, o que o Diabo tenta
vender é uma mentira na qual Jesus, pensando só em si, salvaria a própria pele, aqui e agora, sem
esperar ou padecer.

Vale destacar o apelo imagético desta tentação. Fato que se interliga com o tema deste livro: a
pornografia é projetada para fisgar o coração através dos olhos. As imagens vão nos entorpecendo e
a liberação de endorfina na corrente sanguínea adormece nossos corpos, numa dança de sensações
capaz de amolecer nossas convicções de fé.

A CAÇA
Sobre a dança da tentação, lembro-me de um episódio da minha adolescência.

Meus pais tinham uma fazenda na região da Amazônia e sempre praticávamos pesca e caça
(atividades permitidas na região, naquela época). Confesso que não me animava muito com essas
opções de entretenimento, mas certo dia, acompanhei meus irmãos em um tipo de caçada que
eles denominavam esperar. O programa se dava à noite e consistia em entrar na floresta, munidos
de uma lanterna e uma arma de fogo. Escolhíamos um local qualquer e envoltos em completa
escuridão, esperávamos um animal se aproximar. Perguntava-me como seria possível ver o bicho
se tudo era breu? Simples, me explicaram que ouviríamos os passos do animal nas folhas secas do
chão e assim, acompanharíamos a sua aproximação. Tudo se dava no escuro até que o momento
chave se apresentasse.

Quando o animal estivesse próximo o suficiente, deveríamos ligar a lanterna e focar em cima dele.
Isso mesmo. Não era para atirar imediatamente. O certo era acender um clarão no meio da mata e
fazer nossa presa fascinar-se, por um instante, com aquele brilho. E, pasmem, leitores. Os animais
ariscos e selvagens que enchiam aquelas paragens, quando viam o resplendor de nossas lanternas,
baixavam a guarda e, abasbacados, ficavam vulneráveis aos nossos tiros. Desse modo, enquanto
o bicho “admirava” a glória do lume artificial sustentado por um de nós, o outro tinha tempo para
apontar a arma e deferir um tiro mortal. No fundo, o animal deixa de temer a situação na qual está
inserido. Não percebe a gravidade. Da mesma forma como muitos de nós, não nos damos conta
da gravidade dos tipos de grupos que participamos pelas redes sociais ou pelos aplicativos de
mensagem. Tudo parece sempre muito divertido e ingênuo. De fato, a expressão “diversão”, vem
da mesma raiz da palavra “distração”. E, como nos mostra os animais que mortos na floresta, a
distração pode ser fatal.

Essa é uma possível metáfora alusiva à tentação de Cristo no deserto: o Diabo procurou encher
seus olhos com uma paisagem repleta de pomposidade e nitidez para lhe empurrar a morte. A
reação positiva de Jesus se deveu a sua capacidade de discernir o que é certo e o que é errado,
sem se permitir ser distraído ou fascinado com o falso. Eis o que o Espírito Santo está fazendo
em nós: desenvolvendo um olhar apurado e conquistado pela imagem de Cristo, que se sobrepõe
a tudo. À vista disso, Ele quer que nós também percebamos que o brilho da imoralidade é treva. E
que, deste modo, nossas intenções de buscar satisfação no “lixo” do mundo, sejam reveladas aos
nossos próprios olhos. Como nos alerta o provérbio, na versão NTLH: “Você pode pensar que tudo o
que faz é certo, mas o SENHOR julga as suas intenções.” (Pr 16:2).

O PODER DE UM INSTANTE DIANTE DO ABISMO

Na cena de Jesus no deserto há outro detalhe importante. É o último elemento usado por Satanás
para vender sua proposta. Ele gerou uma forte sensação em “um instante”. Vejamos o texto de novo:
“Então o diabo o levou para um lugar mais alto e num instante lhe mostrou todos os reinos do mundo”.
Diante disso, pergunte-me: qual o valor de um instante? Quantas emoções intensas sentimos num
breve momento como esse? Por que elas são suficientes para que decisões sejam tomadas? Muitas
vezes, em troca de uma gratificação de alguns segundos, jogamos fora conquistas de anos ou nos
metemos em situações carregadas de consequências em longo prazo. Pergunte isso para aqueles
que preferiram a pornografia em detrimento do casamento.

Jesus enfrentou essa fantasia que o Diabo criou com a palavra de Deus, rejeitando a idolatria. Ele
sabia que aquele momento de forte apelo sensitivo iria passar. Jesus permitiu que as Escrituras
definissem sua maneira de lidar com a fome e com os anseios por satisfação. Durante o desenrolar
da tentação, os três versos que ele cita (Dt 6.13, 16; 8.3) eram mandamentos de Deus a Israel
pronunciados quando o povo foi provado por quarenta anos no deserto. Diferente do povo escolhido,
Jesus é aprovado no teste, pois se manteve capaz de discernir toda a estratégia do adversário.
Apesar das alturas nas quais o inimigo o levou, ele foi sábio o suficiente para enxergar o abismo
que o pecado representava. Sim! Toda falsa proposta de exaltação do ego esconde um tremendo
abismo.

O ESCAPE

De fato, em cada tentação o Espírito Santo nos lembra das Escrituras e nos dá o escape. Vejamos
melhor o que Paulo escreveu sobre isso:

Não sobreveio a vocês nenhuma tentação que não fosse humana; mas Deus é fiel e não
permitirá que vocês sejam tentados além do que podem suportar; pelo contrário, juntamente
com a tentação proverá livramento, para que vocês a possam suportar. (1 Co10:13).

Quando era mais jovem, a ideia de que Deus me daria uma via de fuga para não pecar soava aos
meus ouvidos mais ou menos assim: na hora em que estiver prestes a acessar um site pornô, Deus
vai fazer o wifi cair, então, por conta de sua intervenção, eu não pecaria. Evidentemente, não é esse
o ensino paulino. O verso acima nos revela que nossas tentações, apesar de estarem relacionadas
a nossas cobiças específicas, apresentam-se por entre dinâmicas particulares; o que é tentador
para mim, não o é para você, e podem também possuir alguma similitude com as do resto da
humanidade. Estamos sempre diante das tribulações da vida, repetindo os antigos erros de Israel:
amando, confiando e obedecendo mais às criaturas do que ao Criador.

Da mesma forma, Paulo assegura que Deus é fiel e gerencia o nível de tentação que podemos lidar.
Ademais, ele afirma que a tentação, por mais forte que seja, nunca vem sozinha. Ela aparece em
companhia do livramento.

O que seria isso? Simples. O escape é o próprio Deus agindo em nós: Seu poder operando em nós,
Sua presença constante dentro de nossas mentes e Suas palavras sendo lembradas pelo Espírito
Santo dentro de nós. Assim, Ele nos capacita para que pratiquemos a resposta certa diante da
imoralidade: fugir! Paulo escreveu: “fuja da imoralidade” (1 Co 6.18), dando-nos a senha correta: o
escape é o agir do Espírito Santo em nós, nos empoderando para que façamos o que é compatível
com nossa nova identidade em Cristo: fugir do pecado. Escapar, aqui, tem o sentido de movimentar-
se, reagir sobriamente, tirando a atenção de um determinado objeto.

Nesse contexto, lemos no Velho Testamento sobre o escravo José sendo tentado na casa de
Potifar. Naquele contexto, sua estratégia inicial para lidar com o assédio da mulher do patrão não
foi bem sucedida: ele, primeiramente, tentou conversar/argumentar com aquela que o assediava
acintosamente. Sua intenção era demovê-la da fixação de fazer sexo com ele. Não funcionou! Ele
teve que sair correndo. Perceba estes movimentos nas palavras do autor de Gênesis:

Assim, depois de algum tempo, a mulher de Potifar pôs os olhos em José e lhe disse: — Venha
para a cama comigo. Ele, porém, recusou e disse à mulher do seu dono: — Escute! O meu
senhor não se preocupa com nada do que existe nesta casa, porque eu estou aqui; tudo o que
tem ele passou às minhas mãos. Não há ninguém nesta casa que esteja acima de mim. Ele
não me vedou nada, a não ser a senhora, porque é a mulher dele. Como, pois, cometeria eu
tamanha maldade e pecaria contra Deus? Ela falava com José todos os dias, mas ele não lhe
dava ouvidos, recusando-se a ir para cama com ela e a ficar perto dela. Aconteceu, porém,
que, certo dia, José entrou na casa para fazer o seu serviço, e ninguém dos de casa se achava
presente. Então ela o pegou pela roupa e lhe disse: — Venha para a cama comigo. Ele, porém,
deixando a roupa nas mãos dela, saiu, fugindo para fora (Gn 39.7-12).

Afinal, mesmo com a convicção de agir baseado no que acreditava ser correto, o seu corpo reagia
ao estímulo. Como já foi dito por outros autores, José, ao perceber a situação, no fundo, correu de
si mesmo. O que gerou essa atitude em José? Ele discerniu a armadilha que o pecado representava
e temeu a Deus a ponto de não se importar com a perda que sofreria ao negar os desejos e o poder
da esposa de uma alta autoridade egípcia.

DISCERNIMENTO NA ARENA

Como vimos na história de José, Deus não nos deixa vencidos no meio da arena de luta, não nos
abandona. Durante a batalha, Ele abre nossos olhos para que percebamos o engano por detrás
das propostas pecaminosas. O escape é o aumento em nosso discernimento dentro da situação
tentadora. Ao invés de andarmos no automático, seguindo o canto da sereia, o escape de Deus
nos desperta e nos faz conscientes do quão mortal é o pecado e o quão superior são os caminhos
divinos.

Um ótimo texto bíblico sobre essa condução do Senhor na vida do seu povo durante períodos de
provação se encontra em Isaías 30.21-22, nele o profeta descreve Deus como aquele que na medida
em que seus filhos avançam, sussurra em seus ouvidos a direção certa:

Quando vocês se desviarem para a direita ou para a esquerda, ouvirão atrás de vocês uma
palavra, dizendo: ‘Este é o caminho; andem nele.’ Vocês tratarão como impuras as imagens
esculpidas cobertas de prata e as imagens de fundição revestidas de ouro; vocês as jogarão
fora como coisa impura e dirão a cada uma delas: ‘Fora daqui!’”.

Isaías deixa claro que haverá a provisão necessária da palavra de Deus para cada provação. Segundo
a vivacidade literária do profeta, chegará o dia em que jogaremos fora o hábito pornô como coisa
impura e diremos a ele: fora daqui! Assim, o temor ao Senhor frutificará em nós. Temeremos a Ele
a ponto de não nos importarmos em jogar no lixo aquilo que é considerado, aos olhos humanos,
“material valioso”, porque feito de ouro e de prata.

Nesse quadro, vale ressaltar que não adianta inverter a ordem: berrar contra nossos ídolos, sem,
contudo, os lançar para bem longe. Precisamos de atitudes concretas de rendição à Deus e de
respeito por suas leis.
A TENTAÇÃO E OS ÍDOLOS

A tentação e o convite à adoração daquilo que fascina nossos olhos está sob o signo de um dos
mais frequentes temas das Escrituras: a idolatria. De fato, nossas tentações apontam na direção de
nossos ídolos.

O teólogo americano Timothy Keller, em sua obra Deuses falsos, nos fornece uma boa definição
daquilo que chamamos de ídolo: “qualquer coisa mais importante que Deus para você, que domine
seu coração e sua imaginação mais do que Deus. Qualquer coisa que você busque a fim de receber o
que só Deus pode dar”59. Logo, tudo aquilo que se torna essencial, que controla seu dia, cuja falta te
deixa ansioso, irado e estressado, pode ter sido entronizado como um ídolo em seu coração.

Certamente, a pornografia se desenrola nesse ambiente. Por isso, é fundamental entendermos a sua
dinâmica. Vamos tentar esquematizar o processo da tentação para visualizarmos como a idolatria
se envolve nessa história:

Para tanto, lançaremos mão da explicação do autor e conselheiro bíblico Jhon D. Street em seu livro
Purificando o coração da idolatria sexual60. Street ensina que embora o coração humano produza um
panteão de divindades falsas, a cobiça está no topo da pirâmide. Esse é o ídolo que nutre todos os
outros e fortalece todos os tipos de pecados sexuais. A maior expectativa da cobiça é agradar o
ego. Na medida em que desvendamos como a cobiça se torna real, os outros ídolos vão aparecendo,
ou melhor: ocorre um refinamento da idolatria.

Logo, a autogratificação cobiçosa é o primeiro estágio do problema.

Nessa lógica, o segundo patamar do esquema revela-se sob a forma de um binômio: a necessidade
de obter (1) consolo e (2) satisfação. Explico: como a meta da cobiça é a felicidade imediata do
“eu”, todas as vezes que estejamos magoados com os problemas e as dores da vida ou todas as
vezes que estivermos com fome de algum tipo de satisfação, a cobiça articulará o próximo estágio
do esquema, a saber, o uso de pornografia (entre outras práticas) para que sejamos consolados e
preenchidos. É uma solução da carne que no fundo não resolve o problema.

No entanto, há uma etapa intermediária nesse processo. Entre a o segundo patamar, no qual
identificamos nossas carências por consolo ou satisfação e a última etapa de consumação da
estratégia pecaminosa, se manifestam algumas reações pessoais como: ira, autocomiseração,
medo, descontentamento, ansiedade, impotência, entre outros. Tais fenômenos tentam justificar o
pecado de uma maneira mais convincente. Eis aí o momento da tentação.

A TRILHA DO ÍDOLO

Portanto, baseado no referencial teórico de John Street, nosso esquema ficou assim: primeiro,
sabemos que a cobiça opera no centro de tudo, em segundo lugar, as necessidades humanas se
revelam, porque a vida é dura: “me sinto magoado, preciso de consolo” ou “me sinto faminto, quero
me satisfazer”. O próprio Deus nos garantiu que seria assim, contudo, Ele nos advertiu a reorientar

59
KELLER, Timothy. Deuses falsos: as promessas vazias do dinheiro, sexo e poder, e a única esperança que realmente
importa. São Paulo/SP: Vida Nova, 2018, p. 20.
60
STREET, Jhon D. Purificando o coração da idolatria sexual. São Paulo/SP: NUTRA Publicações, 2009.
a busca por consolo e conforta na direção de seu filho. Num terceiro momento, essas necessidades
despertam sentimentos e reações pessoais mais específicos.

Sobre esse aspecto, o pastor e teólogo Timothy Keller ensina que temos dois tipos ídolos dentro
do coração: “existem ‘ídolos profundos’ no interior do coração por trás dos ‘ídolos superficiais’ mais
concretos e visíveis a que servimos61”. No caso que estamos estudando, a pornografia é o ídolo
superficial, aquele que está evidente, e os falsos deuses mais enraizados são: a necessidade de
sentir-se consolado, excitado ou satisfeito, de forma imediata, longe de Deus, sempre que alguma
situação adversa ocorre. É por isso que consideramos que certas circunstâncias nos vulnerabilizam
com relação à tentação. Toda falta não satisfeita em Deus preconiza o abuso de alguma forma de
relação com alguma criatura.

Por exemplo, a busca por ser consolado de um trauma na infância, ao invés de ser conduzido
pelo Espírito Santo num caminho de rendição, reconciliação e perdão, segue a trilha do ego e,
eventualmente avoluma-se no interior do sujeito a presença da ira, do descontentamento, da culpa
e da autocomiseração. Essas reações são ainda mais dolorosas e precisam ser remediadas, então
chegamos ao último estágio do esquema, no qual a pornografia se estabelece como salvadora,
consoladora e “senhora” da situação.

Desta feita, podemos resumir esse processo da seguinte maneira:

Isso nos leva a uma ressalva: chamar a pornografia de ídolo superficial não é minimizar sua gravidade
ou desconsiderar os seus danos. O intuito é apenas colocá-la em perspectiva, para que entendamos
que nossos problemas não começam com os olhos. O coração é o grande campo de batalha.
Enfim, se convivemos com ídolos profundos que fomentam nossas tentações, precisamos parar de
lidar apenas com os ídolos superficiais (no caso, a pornografia em si) e encarar os que não estão
tão aparentes. Para conversar com Keller:

podemos olhar para eles [ídolos superficiais] e dizer: ‘preciso tirar toda ênfase nisso de minha
vida. Não posso deixar que me controle. Vou das um basta nisso’. Apelos diretos como esse
não funcionarão porque é preciso lidar com os ídolos profundos no nível do coração. Só há
uma maneira de mudar em nível de coração: mediante a fé no evangelho.62

Portanto, como temos dito, além de identificar os problemas da pornografia manifestos no nosso
olhar e investigar os ídolos falsos que habitam o subterrâneo do nosso ser, precisamos olhar para
Jesus em toda a sua glória e fazer de sua alegria a nossa única fonte de consolo e satisfação. Afinal,
ainda na trilha conceitual de Keller, os ídolos são vencidos por meio da substituição.

A TENTAÇÃO E A FRUSTRAÇÃO

Em último lugar, descobrimos que a idolatria escraviza sem entregar o que promete. Depois que o
61
Ibid., p. 82-83
62
Ibid., 84-85.
pornô acaba, fica o vazio clamando por mais pornô. O sentimento de frustração define esse estágio,
que também, devido à repetição do ciclo, pode marcar o inicio da compulsividade experimentada
pelo corpo do sujeito.

Essa cena me faz lembrar a imagem que Jeremias descreveu para explicar o processo pelo qual o
povo de Israel havia trocado de Deus:

“Houve alguma nação que trocasse os seus deuses, ainda que não fossem deuses? Todavia o
meu povo trocou a sua glória por aquilo que é de nenhum proveito. Espantai-vos disto, ó céus,
e horrorizai-vos! Ficai verdadeiramente desolados, diz o Senhor. Porque o meu povo fez duas
maldades: a mim me deixaram, o manancial de águas vivas, e cavaram cisternas, cisternas
rotas, que não retêm águas. Acaso é Israel um servo? É ele um escravo nascido em casa? Por
que, pois, veio a ser presa?” (Jr 2:11-14).

À vista dessas palavras provocativas podemos concluir:

Jeremias afirma que as pessoas mesmo quando estão enganadas não ousam desrespeitar os
deuses que adoram. Elas não os trocam, mesmo quando deveriam. Há uma entrega impressionante
na adoração aos falsos deuses, apesar do vazio que ela produz. Talvez porque eles não preconizam
exclusividade e se deixam moldar à própria imagem e semelhança do adorador. O tipo de pornografia
que consumimos é moldada de acordo com nossas demandas. No entanto, o ídolo vai, aos poucos,
mudando nosso olhar e dominando nosso coração, fazendo-nos semelhantes a ele. Penso que é isso
que vem acontecendo nessa cultura do “nudes” entre indivíduos que pouco se conhecem: estamos
“pornografizando” nossas relações63.

O pecado de Israel é descrito em duas etapas: primeiramente, é mencionado o abandono do manancial


de águas vivas e em segundo lugar, aparece a figura da cisterna. Explico: depois virar as costas para
a fonte, o sujeito começa a cavar poços no intuito de buscar matar a sede que insiste em assolá-lo.
Contudo, o problema se aprofunda, pois as cisternas fabricadas por suas mãos não retêm água. O
desespero de está sedento intensifica-se cada vez mais.

O profeta termina com uma pergunta perturbadora: por que o povo de Deus veio a ser escravo,
mesmo tendo nascido livre?

Em resumo, o escândalo é ver alguém que tem acesso às águas vivas, virar as costas para ela e
começar a cavar um poço no deserto. Nesse aspecto, vale sublinhar que quando recorremos a um
filmezinho pornô para obter prazer, nosso problema não é o excesso de ênfase na satisfação pessoal,
na verdade, estamos nos satisfazendo com muito pouco, de forma precária e muito passageira.
Deus, nos termos de Jeremias, representa a experiência de profunda felicidade, a êxtase de ser
satisfeito com água límpida e eterna. No entanto, isso só fará sentido se aprendermos a fazer tudo
para a glória de Deus e gozar de sua presença em todas as nossas atividades, não só naquelas que
são consideradas religiosas.

À vista disso, precisamos identificar cada um desses passos e nos arrepender diante de Deus,
declarando: “É verdade. Confesso que a maneira como estou endereçando meu desejo por consolo e
por satisfação é egoísta, está relacionado com minha necessidade de me sentir feliz a todo custo e
de fugir de todo tipo de circunstância adversa. Se conhecesse de verdade o amor e a graça de Deus
63
Um grande trabalho sobre esse contexto é o livro “Você se torna o aquilo que adora: uma teologia bíblica da idolatria”
de G. K. Beale. São Paulo/SP: Vida Nova, 2014.
que sempre me basta, poderia aceitar as aflições e, consequentemente, depositar toda expectativa
no consolo e na satisfação que só o Senhor pode dá. Se eu amasse a Deus mais do que a mim, e
confiasse mais em seus métodos para lidar com as tribulações e tentações do que confio em minhas
‘cisternas’ (falsas soluções) não estaria preso pela pornografia”.

PERDÃO

Deus sempre ouve a oração de um filho quebrantado. Ele responde com perdão e com uma dose
maior de aprendizado para que na próxima tentação a história seja diferente. Logo, se você pecou,
levante-se em contrição, ore com sinceridade, investigue os ídolos profundos e os processos que te
conduziram ao pecado e prepare-se para a próxima tentação. Deus é contigo.

Não deixe que a queda te paralise. Certa vez minha filha de três anos, depois de quebrar um copo
na cozinha, me questionou: “pai, você já quebrou um copo na sua vida?” Lembro-me de ter achado
cômico a sua tentativa de me trazer para o time dela (time das pessoas que já quebraram copos).
E, antes de brigar com ela, me lembrei dos inúmeros copos que já quebrei durante toda a vida.
Funcionou: eu a repreendi sem excesso e a animei a tomar mais cuidados. Dias se passaram e ela
quebrou outro copo. Sua estratégia foi parecida: “pai, você já quebrou dois copos, duas vezes na sua
vida?” De novo, isso me fez pensar na repetição de nossos erros.

Minha função como pai era ensinar que a repetição de um erro não é bom sinal. Deixei isso claro,
porém o fiz como alguém que está treinando a filha para a vitória, perdoando-a e buscando fazê-la
entender porque está sendo tão difícil “segurar copos”.

Quando não vemos Deus desse modo, corremos o risco de cair na tentação que ocorre depois da
queda sexual.

A história bíblica que ilustra isso é a do rei Davi (2 Sm 11-12). Ele, depois de adulterar, se tornou
assassino para tentar encobrir seu pecado sexual. Repare bem: o homicídio do marido de sua
amante foi um pecado hediondo que servia a um propósito: esconder o pecado sexual, fugir das
consequências e não encarar o aprendizado que nossos erros carregam. Isso é muito grave.

GLÓRIA CRESCENTE

No mais, vivendo um dia de cada vez, nos alimentando do Pai nosso de cada dia, orando para que
Ele nos livre de cair em tentação, sigamos reorientando nossos olhos em direção à face de Cristo,
assim seremos paulatinamente transformados:

Mas todos nós, que com a face descoberta contemplamos, como por meio de um material
espelhado, a glória do Senhor, conforme a sua imagem estamos sendo transformados com a
glória crescente, na mesma imagem que vem do Senhor, que é o Espírito. (2 Co 3.18).

Gosto da ideia de glória crescente. Apesar de requerer paciência, ela nos dá esperança. Como
o próprio autor dessas palavras, que deixou um passado abarrotado de transgressões (Saulo, o
matador de cristãos) e rumou, pela graça de Deus, para a liberdade em Jesus (Paulo, o imitador
de Cristo): vamos deixando de ser um certo Saulo... Paulatinamente... despindo-nos do que nunca
deveríamos ter sido. Perdoe-me o trocadilho.
Ah... e a foto da Raquel com a qual começamos este capítulo? Confesso que, apesar de não está em
crise naquele momento, lembro-me que aqueles dias sempre se passavam com certa dose de tédio.
Então, tinha de decidir se iria viver pelo que acredito e deletar a Raquel, ou se ia curtir um momento
de excitação que alivia o tédio. Naquele dia, elegi apagar o e-mail antes de apreciar o material. Não
fiz isso por medo ou por ter uma enorme força de vontade, o fiz porque o Espírito Santo me fez
perceber o engano da proposta, pois não glorificava a Deus. Ele também me ensinou que um dia de
tédio é apenas um dia de tédio, posso suportá-lo.

Assim, meus olhos e coração foram sendo moldados pela vontade Dele, até que me veja focando
menos em mim, no meu tédio, numa solução imediata para o meu tédio ou na Raquel-nua-na-
internet, e me pegue pensando mais Nele. Daí, o estabeleço como minha fonte insuperável de prazer
e felicidade, enquanto vivo cada minuto da vida. O prazer não está mais restrito a um vídeo orgástico.
O prazer se espraia pela existência, na medida em que existo com e para Ele. Meus olhos o veem e
isso basta.
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