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Título: Diário de Sofia & C.

a aos 15 anos
Autora: Luísa Ducla Soares
Copyright © Brilho das Letras, 2015
Ilustrações: Marta Teives
Composição, impressão e acabamento: Multitipo – Artes Gráficas, Lda.
Depósito legal n.o 397 520/15
Esta edição é uma versão atualizada do original de Diário de Sofia e C.ª aos
15 anos publicado em 1994
1.ª edição, Lisboa, outubro, 2015

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Outubro
3 de outubro
Deram‑me este diário quando fiz anos. Tive tal
desilusão quando o desembrulhei que me apeteceu
atirá-lo para o caixote do lixo.
Um livro em branco, à espera que eu, que nem
para ler tenho paciência, aí escreva a minha vida. Para
algum dia qualquer bisbilhoteiro ficar a saber os meus
segredos mais íntimos, se apanhar a chave. Era o que
faltava!
Além disso, «diário» lembrou-me logo «caderno
diário», essa praga em que todos os dias tenho de
escrever as confidências dos setores. E os trabalhos de
casa...
Abri-o. As suas páginas eram duras demais para
limpar o rabo, mas serviam para escrever bilhetinhos...
Atirei-o para o fundo da gaveta.

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Luísa Ducla Soares

Hoje encontrei-o. É domingo. Devia estudar, mas


não estou para isso. Folheio o livrinho em branco,
imagino o que está ainda em branco na minha vida.
Porque não hei de escrever sobre mim? Quem sabe se
não virei a ser uma pessoa famosa? Ainda tudo me
pode acontecer.
O diário de um super qualquer, que o meu pai tem,
está recheado de altos pensamentos. Tão recheado que
até enjoa.
Fora com os pensamentos! Viva o Sol!
Estou aqui fechada em casa com quatro dinossauros
(familiares). E chove: ótimo para as alfaces, péssimo
para mim. Que hei de fazer para sentir que estou viva
senão pôr a música no máximo?

4 de outubro
Esqueci-me de me apresentar na primeira página.
Mas fiz bem. Chamo-me... mas vou inventar um nome
falso para mim e para todas as pessoas de que vou falar.
Assim serei uma personagem irreconhecível e não vou
comprometer ninguém.
Faz de conta, portanto, que sou a Sofia, que a minha
escola é o Colégio Universal. O meu cão será o Pipocas.

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Diário de Sofia & C.a aos 15 anos

Só a minha terra permanece Lisboa. Quem me poderá


descobrir?
Por hoje acabo, estão a tocar à porta. Deve ser a
D. Adozinda a pedir salsa ou um desses rapazes que
metem anúncios na caixa do correio.

18 de outubro
Como seria bom que a minha vida fosse uma
aventura e eu uma heroína de não sei quê. Nesse caso
o Diário podia tornar-se num livro de aventuras.

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Luísa Ducla Soares

Adorava atirar-me de paraquedas, escalar montanhas,


embrenhar-me nas selvas, conhecer um Indiana Jones,
fazer viagens a locais exóticos, apaixonar-me por um
homem misterioso, descobrir um crime.
Mas como é isso possível sendo escrava dos meus
pais, da escola, das obrigações? Não tenho liberdade
nem dinheiro... E, cá entre nós, teria coragem?

25 de outubro
Fiz, por acaso, uma descoberta sensacional — o
café. (Claro que já milhões de pessoas a fizeram antes
de mim, até o meu pai, vejam lá...)
Ia a passar em frente da esplanada da Princesa das
Arábias quando senti alguém puxar-me os cabelos. Era
o Miguel. Chamou-me para a mesa dele, onde estavam
dois jovens desconhecidos. Ao fim de pouco tempo
éramos amigos e combinámos no dia seguinte voltar
lá. Arrastei a Cátia comigo, porque ela também não
conhecia o café, e passámos a levar para lá os livros
de estudo. Enquanto não apareceu mais ninguém,
estudámos as duas, depois ficámos a conversar.
Dantes o meu maior desejo era ir para as Amoreiras,
perdia uma hora para lá, outra para cá e no fim só víamos

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lojas, não arranjávamos amigos ou, se os arranjávamos,


moravam em Campo de Ourique, na Caparica, em
Cascais, por isso nunca mais os encontrávamos.
Agora tenho imensos amigos na minha rua e no
bairro. Tocamos à porta uns dos outros quando vamos
sair, nunca mais me senti sozinha. Deixei de me revoltar
por não ter irmãos.
O meu pai é que não ficou nada satisfeito quando
o homem do café se descaiu, dizendo que eu ia para lá
todas as tardes. E ele não vai à noite? Vai e toma café,
que é um veneno para o coração, e compra maços de
cigarros que provocam cancro do pulmão. Eu bebo
laranjadas e como croissants, o que só faz bem à saúde.
«Nos cafés perde-se o hábito de trabalhar.»
Será que ele tem os olhos tão tapados que não sabe
que eu dantes ficava em casa a ver televisão?
Os pais são mesmo inocentes!

26 de outubro
A tia da Vanessa trabalha no edifício ao lado da
escola. É um casarão pousado no que resta de uma
antiga quinta, com oliveiras retorcidas e um poço.
Como o portão não tem fecho, a malta da escola vai

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para lá fazer piqueniques e curtir à hora do almoço.


Nunca houve problemas. Mas agora a tia da Vanessa,
campeã da bisbilhotice, viu um miúdo esconder
um pacotinho numa portinhola lateral do poço e
foi a correr, com os colegas, ver o que era. O parvo
espantou‑se, largou a fugir, deixando o pacote. Debaixo
das árvores havia seringas.
Claro que a tia da Vanessa, metediça como é,
chamou logo a direção do colégio, a direção do colégio
mandou os culpados acusarem-se e, como ninguém o
fez, ficámos todos uma semana proibidos de sair nos
intervalos.
Droga! Raio de droga... Tramou-nos a todos.
É impossível não desconfiar do Bebé e do Careca.
A malta do judo apanhou-os na casa de banho e virou­
‑os do avesso. Tinham erva, mas nada de pós. Mesmo
assim ameaçaram-nos com as correias das motos e
deitaram o haxixe pela retrete abaixo.
— Gostam de droga? Drogarias ambulantes!
— Gostam de erva? Herbívoros! Carneiros! Vão
mas é pastar! — gritei-lhes eu. — Mas não venham dar
cabo da nossa vida.
O Bebé pôs-se a chorar baixinho e ficou com os
olhos vermelhos toda a tarde.

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Diário de Sofia & C.a aos 15 anos

27 de outubro
A Cátia, o Miguel e eu resolvemos fazer um pacto
solene de eterna amizade e confiança. Somos colegas
desde que entrámos para o 5.o ano, os grupos iam
mudando, mas nós nunca nos separámos.
— Um pacto de sangue? — perguntou a Cátia.
O Miguel riu-se.
— Isso está ultrapassado! E não sabes que as pessoas
não devem andar a picar-se, a misturar sangues? Parece
que nunca ouviste falar da sida ou da hepatite B.
— Damos a nossa palavra. Em vez de jurarmos pela
Bíblia, juramos por alguma coisa que todos adoramos.
Pelo Sol, por exemplo — propus eu.
Eles aceitaram. Um juramento pelo Sol é lindo e
original. Que seria de nós sem o Sol?

28 de outubro
Aos quinze anos as pessoas não têm direito a nada. São
uns paus-mandados. (Claro que podem não obedecer.)
E aos dezasseis?
O Fernando, que já os fez, porque é repetente,
esclareceu‑me.

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Luísa Ducla Soares

— Aos dezasseis podes tirar carta de moto.


— Ótimo, se os meus pais me deixassem ter moto.
Assim...
— Podes trabalhar.
— Querias! Por enquanto prefiro a escola, embora
a trabalhar sempre se ganhe. E abrir conta no banco?
Movimentar dinheiro?
— Isso só aos dezoito.
— Então se a gente trabalha, os outros é que ficam
com o dinheiro?
— Podes ser julgada em tribunal.
— É o meu maior sonho, como deves calcular!
Felizmente não tenciono fazer crimes.
— Podes casar-te, com autorização.
— Casar-me! Pior ainda. Aturar um tipo dia e noite,
arrumar a casa e ainda por cima coser-lhe as meias!
E ter uma barriga grande como uma bola de futebol!
— Ah, esquecia-me de outra coisa.
— Já sei, posso entrar nas discotecas.
Quem me dera que este ano passasse depressa para
ganhar o único direito que vou aproveitar: entrar em
discotecas.
Qual será o preço? Alto ou baixo, os meus pais vão
sempre refilar...

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Diário de Sofia & C.a aos 15 anos

30 de outubro
Encontrámos hoje o Careca no café e começámos a
falar sobre a droga, como se não fosse nada com ele, a
ver se o rapaz se descaía.
— Então os betinhos querem saber coisas. Venham
comigo que eu mostro-vos um espetáculo.
Eu ainda estive para refilar, porque prefiro ouvir dois
palavrões a ser tratada por betinha, mas achei mais
prudente calar-me, não queria perder o espetáculo.
Ele levou-nos por ruas tortuosas até um descampado
com prédios em construção. Havia lá meia dúzia de garotos
pequenos, à procura de sacos de plástico numa lixeira.
— Para que é que eles querem aquela porcaria?
Ainda se fossem caixas de cartão para vender...
— De pequenino se torce o pepino e se começa a
snifar cola. À borla. Depois vem o resto.
Um miúdo sentou-se na lama a tossir. Dois pareciam
tontos, os outros riam e diziam disparates.
— Fora daqui! — gritei eu — Ou chamo a polícia.
Eles riram.
— Não se prendem crianças. E se as prendessem, ao
menos não dormiam ao relento e tinham sempre o que
comer — disse o Careca.

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Luísa Ducla Soares

Porque é que eles não jogavam à bola, aos polícias


e ladrões, ao berlinde, em vez de estarem para ali a
drogar-se?, pensei eu.
O Careca deu uns trocos ao miúdo mais pequeno e
fez-lhe uma festa na cabeça.
— Ó pá, vai comer um bolo. Daqueles bons, cheios
de creme.

31 de outubro
A minha mãe diz sempre que está a fazer dieta para
emagrecer, farta-se de passar fome às refeições, mas não
abate nem um quilo.
Finalmente compreendi porquê. Fui à carteira dela
buscar as chaves e vi lá nada menos do que três tabletes
de chocolate!
Para mim, nunca compra. Diz que fazem mal
aos dentes.
Tirei-lhas todas e logo à noite na cama já vou comer
uma. Eu é que estou magra e em idade de crescer!
A mãe já remexeu na mala várias vezes, mas não
deu um pio.
Afinal só fiz uma boa ação, afastando-a das
tentações.

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