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L.

S ENGLANTINE

O MEDO É FEITO DE GELO

1ª Edição
2020

Título original: O medo é feito de gelo. Copyright © 2020 L.S


Englantine.
Texto de acordo com as novas regras ortográficas da Língua Portuguesa.
1ª edição 2020. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte dessa obra
pode ser reproduzida ou usada de qualquer maneira ou por qualquer meio,
eletrônico ou físico, inclusive fotocópias, gravações, ou sistema de
armazenamento em banco de dados, sem permissão por escrito, com
exceção de citações curtas utilizadas em resenhas críticas, artigos ou
divulgação em mídias sociais. Esta é uma obra de ficção. Todos os
personagens, localidades e acontecimentos históricos e/ou atuais retratados
neste romance são produtos da imaginação da autora e utilizados de modo
fictício, sem qualquer referência à realidade.
Arte: Julia Lima.
Revisão: Clarice Araújo.
Diagramação: Lara Silva.
Capa: Mary Abade.
Uma amiga me explicou o que era a palavra “safico”, decidi finalmente escrever um romance.
Então, valeu Sofia Neglia.

Play Date –
Melanie Martinez
Sad Day – Fka Twigs

Girls Like Girls – Hayley Kyoko

Are You Bored Yet? – Wallows

Crazy for You – Best Coast

Ex’s and Oh’s – Elle King

Pretty Girl – Hayley Kyoko

Bad Bad News – Leon Bridgers

I Hate Myself for Loving You – Joan Jett

Curious – Hayley Kyoko

Two Weeks – Fka Twigs

Own My Own – Miley Cyrus

Flying Solo – Madison Reyes


1

Salt é a cidade mais gelada do país de acordo com algumas revistas e


estudiosos.
No inverno, o gelo chega até a dois metros de altura ao redor das
casas, as escondendo ou impedindo que qualquer pessoa consiga sair. Às
vezes, alguns vizinhos, aqueles sortudos que não tiveram suas casas
invadidas pelo gelo, precisam ajudar as outras pessoas, as desafortunadas,
que ficaram presas em casas. Seja pela porta da frente, dos fundos ou pelas
janelas.
Meu pai sempre teve problemas com o gelo; todo o ano, quando eu era
pequena, ele prometia que o gelo não lhe pregaria mais uma peça. Ele
falava com tanta convicção que fazia parecer que a água congelada não era
mais um fenômeno da natureza — um bem natural, por assim dizer — meu
pai agia como se fosse invencível o tempo todo. Acho que sempre foi o que
mais apreciei nele; tentar não perder, presumir que é inevitável, que é
invencível, mesmo quando logicamente é.
Quando ele falava isso, sempre era quando jantávamos todos juntos,
numa época bem afastada da atual, isso eu garanto.
O inverno se aproximava, quase no outono, e tudo mudava. Lá
estávamos todos nós, dentro de casa, amanhecendo em um dia e tendo todas
as principais vias da casa bloqueadas. Não existe outra estação em Salt; não
existe outono, nem primavera e nem verão. Apenas o inverno, o tempo
todo. Em alguns dias, até mais arriscado e gélido do que qualquer outra
época “normal” do ano.
Sempre achei bastante divertido um forte feito de gelo. Como a luz que
vinha da janela era substituída por uma “noite” proposital. Como meu
irmão ria sem motivo algum, apenas por ser gelo. E, conforme eu crescia,
sempre me perguntava o motivo de meu pai preferir viver em Salt, a cidade
congelante das montanhas, do que qualquer outro lugar no mundo. Apesar
de sempre vê-lo namorar o Havaí em companhias de viagens quando
passeávamos no shopping quando eu era mais nova, Salt sempre conseguia
abraçar meu pai de alguma forma que não consigo entender até hoje.
Viver na cidade é, com certeza, escolher qual hobby você quer fazer
sua vida inteira. Pode parecer um exagero, já que muito do que aprendemos
e quem somos não pode ser definido eternamente quando novos. Mas em
Salt as pessoas não estão preocupadas em lógica, estão desesperadamente
preocupadas em te colocar numa caixinha, seja ela feita de hóquei ou não.
Todos na cidade possuem um hobby.
Todos na cidade patinam.
Absolutamente todos.
O ponto alto do meu ensino médio, de vez em quando, era observar as
líderes de torcida patinando em lagos congelados ou ir às festas que
aconteciam nas montanhas.
Os caras também possuem apenas uma característica. Ah, um lembrete
sobre os caras; eles preferem hóquei. É certo que, quando somos crianças,
ninguém se importa se um garoto veste um patim e saí por aí, correndo,
atrás de uma garota, apenas por diversão. Mas, quando chegamos à dada
idade, ele precisa decidir; um taco de hóquei ou o fardo de gostar de dança
no gelo?
Havia essas divisões em Salt; meninas com dança no gelo, garotos no
hóquei. Mães preocupadas com a quantidade de glitter na roupa da garota,
pais cuidadosos que levavam seus filhos para os treinos.
Meu pai mesmo é um grande fã de hóquei, não sei se por gosto de
verdade, ou se um dia, meu avô decidiu que ele seria fã do esporte. Não sei
se meu pai entende as regras do hóquei, não sei se meu irmão realmente
gosta de ver aos jogos ou participar de um. Tudo a partir dos gostos dos
moradores de Salt sempre me deixa com uma questão em aberto.
As pessoas, definitivamente, gostavam do que faziam? Ou só queriam
agradar?
Mas quem?
E por quê?
Ou só queriam suprir exatamente aquilo que se espera dela?
Felizmente, enquanto crescia, conheci pessoas que não estavam se
importando se Salt era gelada ou pequena o bastante para alimentar boatos.
Conheci garotas incríveis jogadoras de hóquei e garotos que dançavam
perfeitamente bem em cima de patins. Mas eu não fui contra a maré. Apesar
de apreciar um bom jogo, seja ele qual for, me apaixonei perdidamente pela
dança quando meu pai me levou a um evento, quando eu tinha oito anos.
Naquela época, minha mãe estava tentando me convencer — e a todos —
que eu era espetacularmente bonita. Bem... eu sou bonita, mas na ocasião,
eu estava participando de quase todos concursos de beleza da cidade.
Eu era uma Miss.
Minha mãe foi uma quando tinha a minha idade e cresceu se
arriscando como modelo. Quando teve sua primeira filha, a minha irmã
mais velha, a Nancy, até tentou fazê-la uma Miss, mas não adiantou. E
quando eu nasci, ela viu a oportunidade perfeita de me acostumar desde
pequena. Com três anos, aprendi a desfilar. Aprendi a ter a postura exata,
aprendi como acenar e como esticar o queixo de um modo que os juízes
apreciassem. Depois, foi apenas história; diversas coroas de plásticos e
títulos falsos decoram meu quarto até hoje. Não me orgulho muito deles,
mas descreve quem eu fui por um tempo, então... por que não me gabar
deles um pouco?
Com oito anos, algumas misses precisavam ser mais esbeltas e
determinadas do que outras — e talentosas.
A busca pelo meu talento secreto não foi fácil.
Quero dizer, você tem uma filha. Com três anos, a coloca em
concursos de beleza que são completamente prejudiciais para o crescimento
dela. Sua filha, literalmente, só come cola, terra e areia e participa dessas
atrocidades, então, ela não tem muito tempo de desabrochar seu talento —
só consegue ler algumas palavras em placas de comércio e nada além disso.
Então, você simplesmente desiste de fazê-la aprender a cantar ou a dançar
em terra firme, decide que é hora do seu marido agir e o manda tentar
descobrir qual talento sua filha tem o verdadeiro dom.
Meu pai não tinha ideia do que fazer comigo. Simplesmente, me levou
com ele aquele dia. Me colocou em sua caminhonete, cheia de tacos de
hóquei que costumava produzir artesanalmente e sorriu, como se soubesse o
que estava fazendo. Daquele mesmo modo que todos os adultos fazem
quando estão prestes a perder o controle.
Felizmente, ele não perdeu.
Não naquela vez.
Lembro que ele sorriu para mim e tocou o alto da minha cabeça. Como
em todas as épocas do ano em Salt parece uma, estávamos no outono, que
mais parecia o auge do inverno em qualquer parte do globo. Não consegui
sentir seus dedos nos meus cabelos por causa do gorro que usava, mas sabia
que seria um dia divertido. Ele me levou a esse evento, me deu cachorro-
quente e refrigerante, me deixou comer algodão doce e pegou um bichinho
de pelúcia numa máquina conhecida por golpes, para mim. Depois, me
levou para a arquibancada. Lembro que ele estava conversando comigo,
mas não consegui prestar atenção. Uma dançarina no gelo estava se
apresentando, enquanto as pessoas de Salt aplaudiam veemente seu perfeito
e impecável desempenho.
Ela era a pessoa mais linda do mundo.
Talvez ela seja até hoje. Não faço ideia do que aconteceu com ela,
tampouco sei seu nome. Mas, para mim, para a Nicola de oito anos de
idade, não importava. Aquela era, definitiva e completamente, a mulher
mais linda do mundo que eu já tinha visto ou encontrado.
Negra. Como eu. De pele brilhante pela maquiagem, cabelos crespos,
mas que foram penteados de uma maneira estratégica para trás, de modo
que nenhum fio se movia ou saía do coque. Sua postura parecia a minha
quando eu desfilava nos concursos e seu sorriso, meu Deus, com certeza
seu sorriso não se parecia com o meu. Era melhor. Muito melhor.
Vivo. Brilhante. Cheio de cor e luz.
Senti sua paixão pela patinação naquele momento.
E jurei a mim mesma que seria como ela.
Para todo o sempre.
2

Bom, se eu conhecesse a Nicola de oito anos, eu diria que o “para


sempre” chega e quando chega, não se parece nada com anos de ternura que
ela suspirava e imaginava em seu diário quando mais nova.
— E como estão as coisas aí?
Gosto de falar com pessoas que não participam mais do território de
Salt. Sempre é melhor falar com desconhecidos, estranhos ou até mesmo
ex-moradores do que fazer amizades. Infelizmente, com meu salário de
vendedora de livros, não consigo deixar de pensar em mover meu músculo
todo — que é meu corpo — para fora da cidade algum dia. Alavancar voo
para fora dos muros e das montanhas. Mas simplesmente não posso.
Então, preciso me contentar com o pouco que a cidade tem a me
oferecer.
Uma dessas ofertas é falar o tempo todo que posso com Nancy Wolf,
minha irmã mais velha. Não que isso signifique muito. Passo semanas ou
até meses sem falar com Nancy. Podemos passar muitos dias sem
mencionar o nome uma da outra ou sentir saudade.
Sua forma quadriculada dentro do meu celular só mostra que as coisas
para Nancy deram certo de alguma forma. Ela se casará em breve, com
alguém que minha mãe apoia com todas as forças que encobrem seus
sentimentos. Minha parte favorita sobre minha irmã? É que ela se tornou
uma desconhecida para mim. Alguém estranho que viveu em Salt apenas
por um curto período de tempo, apenas como se estivesse esperando em
Salt algo acontecer de verdade, tanto, que ela nem sequer consegue se
lembrar onde ficam as coisas em Salt, como mercados, livrarias,
lanchonetes.
Nada.
Ela não se recorda de nada.
Deixar Nancy sozinha na cidade é o mesmo que a lançar aos leões
famintos em uma jaula minúscula.
— Bem. — Gosto de resumir meu tempo a Nancy. Com os arranjos do
casamento, ela precisa fingir que se interessa por minha vida, e eu, finjo de
volta que estou animada com a sua futura. — E aí?
— Sim, estou bem. Alguns preparativos são bem melhores que outros...
— Nancy responde. A ligação falha um pouco. — Mas eu gosto de
Londres, podemos encontrar tudo o que queremos em um piscar de olhos.
Limpo a poeira de um livro de capa dura. É uma coleção de Sherlock
Holmes que já vi dezenas de pessoas admirando, erguendo seus pescoços
até encontrarem a coleção, mas jamais a levando. Estico um pouco meu
ombro para alcançar o livro melhor. Ele pinica, como um beliscar de mãos
invisíveis, me avisando que não posso me arriscar ou forçar meu corpo a
agir mais do que ele pode.
— Eu vou desligar. Ok? Tenho outras milhares de coisas para decidir
até dezembro. Mande um beijo para a mamãe e para o Barr.
Apenas confirmei com a cabeça. Eu sabia que Nancy encontraria algo
melhor para fazer do que apenas me ver limpando uma estante, mas, algo
dentro de mim se apega as pequenas coisas. Quando desliga, desço da
pequena escada que uso para alcançar os livros que ficam ao alto de um
apoio de plástico. Ser alta pode facilitar bastante a minha vida.
Prendo o avental verde brilhante, mais um que faz parte do uniforme
da livraria Bird e marcho para o lado de fora, para a calçada, onde uma
placa de dois lados está posta. Enfio os dedos no bolso da frente do avental,
pego o primeiro giz que encosta na minha pele e risco na placa; SARAU &
CAFÉ, A MELHOR COMBINAÇÃO. O vento solitário e sombrio do
começo da manhã beija minhas bochechas e a ponta do meu nariz.
Consigo perder meu olhar por alguns instantes. Duas pessoas, do outro
lado da rua, entregam panfletos cor de rosa para qualquer pessoa que passe
à frente delas. Algumas pegam, outras ignoram.
Nada de muito importante acontece em Salt.
Esse é o lema que descreve bastante a vida das pessoas por aqui.
Logo, minha atenção é pregada diretamente a um Jeep, onde duas
garotas acenam na minha direção, moles de bêbadas, e mostram os seios
quando o semáforo passa do vermelho para o verde.
Nego rapidamente com a cabeça.
— Bom dia, Nikki.
A voz que pode me acalmar finalmente chega.
Olhar Harvey Bird me traz uma paz imensa, apesar de me trazer uma
enxurrada de sentimentos embaralhados conjuntamente.
Harvey é meu colega de trabalho, meu melhor amigo desde dos nossos
sete anos de idade. Ele é tudo o que eu tenho, da mesma forma, que sou
tudo o que ele tem.
— Bom dia, Harvey — respondo. Ele passa por mim, com o avental da
loja que carrega seu sobrenome, graças aos pais que são os donos. Ele abre
a porta da livraria, para eu poder passar também. — O final de semana foi
bom? Tenho certeza que consigo encontrar vestígios dele por toda a parte.
Harvey sorri, porque sabe que não consegue escapar de uma diversão
quando vê uma. Entre seus dedos, há o mesmo panfleto que vi as pessoas
entregando do outro lado da rua.
— Foi bom. — Ele dá de ombros, conferindo o espaço rapidamente.
— Veja isto.
Ele balança o panfleto no ar e me permite dar uma boa olhada no que
traz. O panfleto cor de rosa com roxo — agora consigo ver bem melhor —
traz um slogan bastante precário sobre Salt; a cidade gelada. Ainda diz que
acontecerá um torneio em breve pela região, chamado Salt-In.
— Legal? — Tento, arriscando enrugar minha testa.
— Você mesmo diz que nada acontece de divertido nessa cidade.
— Ora. — Esboço um sorriso esperto. — Nada acontece de legal
nessa cidade. É sempre a mesma coisa. Como se estivéssemos em um
looping.
— Pode ser divertido. — Harvey aponta para o panfleto sob o balcão
que nos separa. — Terão competições, jogos, gincanas e acontecerá no final
do inverno. Todos na cidade parecem interessados.
— Do que adianta negar? — Prendo meu rabo de cavalo para fora do
fecho do boné, também verde, que uso diariamente. — Sempre irá me
arrastar. Não importa o que eu disser.
Harvey Bird confirma com a cabeça, descaradamente.
Talvez a pessoa mais bonita que eu conheço no mundo, depois da
patinadora que me inspirou a vida toda, fosse Harvey. Ele também é negro,
tem lábios muito bem desenhados e usa um brinco de diamante na orelha
direita. Nele, o boné verde sem graça que mais parece uma alface não fica
ridículo, fica até estiloso.
— Adivinha o que iremos fazer hoje.
— Não faço ideia.
— Vamos lá, Nikki. — Ele coloca a mão rapidamente em meu ombro.
— Hoje é segunda-feira, não temos aula presencial. Sabe que, antes de uma
vida de trabalho, você tem uma vida. Certo?
— Para mim é a mesma coisa. — Subo meus ombros. O colar de
pérolas que tenho envolvido ao meu pescoço oscila para o lado. — Por
favor, que não seja outra fogueira!
— Uma fogueira! — Harvey responde com os olhos faiscantes, como
se os próprios fossem a fogueira que ele tanto diz. — Dessa vez é diferente,
me escute. Gwen Hallister nos convidou.
— Não, Harvey. Gwen Hallister te convidou, você apenas me incluiu
nessa.
— Dá no mesmo no meu ponto de vista. — Harvey toca apenas um
dente, como se fizesse menção de limpar qualquer coisa nele. — Então,
você não vai?
Sei que posso me arrepender. Qualquer que seja minha resposta,
nenhuma é boa o bastante para deixar Harvey Bird em paz. Ele sabe
convencer qualquer pessoa como ninguém.
Depois que parei de competir, Harvey se sente como meu responsável.
Às vezes, enquanto demoro a dormir, ou tento assistir algo na TV, me
recordo de quando acordei no hospital e o vi. Ele foi a primeira pessoa que
vi. Meu braço e ombro estavam enfaixados e a minha perna doía como se
estivesse queimando-a em carne viva.
Mas Harvey estava lá.
E ainda está, por mais que eu o tenha puxado para a minha mina de
sonhos falidos igualmente.
— Sim. Nós vamos. — Suspiro.
Há uma
parte de mim que não consegue dormir em paz sabendo que Harvey Bird, a
melhor pessoa que conheci na minha vida, gerou uma dívida estudantil. E
por minha culpa.
Depois de ser meu melhor amigo, a única pessoa que restou na minha
vida depois do ensino médio, Harvey também foi, durante muitos e muitos
anos, meu parceiro de dança. Nós começamos a treinar com dez anos.
Depois de eu ter me apresentado em vários concursos de beleza com a
intenção de apenas patinar, sorrir e mandar um beijo para os jurados. Eu
estava começando a crescer e a paciência da minha mãe estava começando
a ir para o ralo. Depois de ter engravidado pela terceira e última vez do meu
irmão, o Barr, ela queria que eu finalmente chegasse ao topo de qualquer
concurso.
Na minha aula de ballet havia esse garoto, Harvey, que sempre possuiu
cabelos crespos formados em black power e olhos pretos de uma cor viva e
simpática. Harvey sempre foi bom nas duas coisas que Salt sempre se
orgulhou; no hóquei e na dança no gelo. Apesar de seu pai desejar que ele
seguisse carreira como jogador, Harvey teve um leve declínio ao perceber
que na dança, ele se divertia muito mais do que jogando.
Quando começamos a treinar, apenas fazíamos por diversão. Em
nossos tempos livres depois da escola e em lagos congelados.
Depois, passamos para a pista. Em seguida, abandonei os concursos de
beleza para total desespero da minha mãe e depois, bem depois que estava
acostumada ao Harvey e ele a mim, nos tornamos uma dupla. Uma equipe.
Ganhamos alguns torneios, ganhamos foco, ganhamos destaque, toda a
cidade sabia — e ainda sabe — nossos nomes. Ganhamos prestígio,
ganhamos tudo àquilo que as pessoas mais almejam na vida, em pouco
tempo.
Só até um dia.
Um dia que fiz péssimas escolhas, um dia que decidi que as
consequências não bastavam apenas a mim, teria que o levar junto. Quando
quebrei meu pé, desloquei e feri meu ombro, não fazia ideia que Harvey
Bird seria prejudicado. E foi. Tão carrasco e violentamente, que sua vida
não é mais a mesma desde do dia que acordei no hospital. Não foi nenhum
coma ou nada do tipo.
Porém, todos os dias em que acordo, todos os malditos dias em que
acordo, sinto a culpa me puxar novamente para a cama.
Fico minutos inteiros olhando para o meu pé, me observo no espelho,
vejo a cicatriz que percorre meu ombro direito e fico me perguntando se
poderia voltar no tempo. Se fosse magicamente e cientificamente possível,
as pessoas não veriam mais uma Nicola que finge que tudo está bem,
quando nitidamente não está. As pessoas apenas me veriam como a Nicola
Wolf, a patinadora que, ao lado de Harvey Bird, conseguiu mais um
estrelato. Mais um recorde, mais uma dança fascinante para o seu portfólio,
mais um troféu. Mais um tudo.
Mas não foi o que aconteceu, certamente.
Harvey ficou sem uma parceira, demorou a se adaptar sozinho, não
conseguiu encontrar ninguém que estivesse tão bem quanto ele — ou
disposto a estar — e simplesmente parou de competir. Isso resultou em
sérios problemas; sem competir, Harvey ficou sem a bolsa de estudos na
United Salt, a universidade local. Sem a bolsa, uma dívida imensa
estudantil se iniciou. Uma que os pais de Harvey não podem pagar
enquanto ainda são donos de uma pequena e empoeirada livraria no centro.
Sei que meu amigo diz que tudo está bem, que o importante é eu estar
saudável, inteira e viva. Mas eu digo que não mentalmente. Se eu não
tivesse sido tão estúpida ou tola, estaríamos bem melhor do que hoje.
— Vai sair?
Minha mãe perguntou me olhando do batente da porta.
Desde que saí do hospital, há um ano, ela gosta de observar de longe e
me pregar um susto sempre que pode. Acho que para dizer, no fundo, que
sempre estará lá por mim. Do jeito dela, é claro.
Estava quase pronta, só faltava o sobretudo, o gorro e o colar de
pérolas para sair. Espiei minha mãe. Ela também estava bonita e bem
vestida, com um sorriso bem espalhado pelo rosto que chegavam até os
olhos.
— Fogueira. — Resumi. — Harvey que ir novamente. Tem problema?
— Não. Irei jantar com algumas amigas. — Minha mãe respondeu,
andando um pouco até parar atrás de mim, na frente do espelho de corpo a
corpo. — Você é tão bonita, Nicola. Tão esbelta e bonita. Deveria voltar a
ser modelo.
Consequentemente fujo dessas conversas. Às vezes enfio cereal
matinal rapidamente, para não ter que responder. Às vezes tento falar com
Barr, emendo outro assunto ou simplesmente finjo que não escutei. Mas,
estar no quarto com ela, enquanto seus olhos estão acessos de esperança, é
complexo.
Não quero, jamais, me enfiar dentro de um vestido apertado,
espalhafatoso, acenar e sorrir de novo. E nem tirar fotos.
— Por favor, querida, não se atrase para o recital do Barr amanhã à
noite. — Ela tenta novamente, afagando meus cabelos.
Fico terrivelmente aliviada que ela tem um compromisso, que essa
conversa se torna apenas subentendida. Não quero que minha mãe me leve
a mal; não acho um saco ser modelo. Mas, de longe, não é o que eu quero
fazer.
Só não tenho certeza do que serei daqui para frente.
Confirmei pelo espelho, passei algumas gotas de perfume no pescoço e
me considerei pronta. Harvey costuma dizer que me visto como uma
política; pérolas, perfume, cabelo sempre muito bem penteado e roupas
impecáveis. Mas sei que é apenas um reflexo do meu eu pequena, que
“gostava” de se vestir seriamente.
Apenas desejei que minha mãe tivesse um bom jantar e caminhei para
a sala, onde Barr, meu irmão mais novo, estava arranhando algumas notas
no piano. Ele tocava com os cotovelos, batendo nas teclas como um animal
— de propósito. Meu pai, por outro lado, tinha a paciência de falar para
Barr ser um pouco mais astuto e delicado com o instrumento.
Uma coberta e alguns copos de uísque e leite se encontravam na sala.
Desde o divórcio recente, meu pai se mudou para o sofá, sem avisos ou
medidas prévias de que iria arranjar outra casa. Abaixo do homem de barba
por fazer e olhar vago, ainda está o homem que foi meu herói algum dia.
Mas não tenho dever algum de esculpi-lo.
— Vou sair, pessoal — disse a eles. — Não me esperem acordados!
Meu pai sorriu e Barr achou a frase adulta demais. Vi em seus olhos
que ele desejava ter vinte e dois anos logo, assim poderia se gabar de uma
vez que pode sair e voltar a hora que quiser.
Do lado de fora, uma Salt tomada pela noite me acompanhou até meu
carro. A noite gelada e cheia de neblina não era atípica. Um dia ensolarado
e sem nuvens, com certeza, é um dia que jamais presenciei. A caminhada
até meu carro foi menos barulhenta do que pensei.
Ao meu lado direito, minha vizinha estava engolindo o rosto de sua
nova conquista da semana. Ver Aster Campbell se atracar com garotas
diferentes todos os dias se tornou uma rotina. Às vezes, ela até mesmo
fingia que não se importava com nada e pedia para minha irmã, a Nancy,
falar que eram namoradas, assim uma garota qualquer não ficaria mais ao
seu encalço.
Só que, dessa vez, há algo diferente nessa garota. Talvez algo
conhecido. Talvez algo único que só Aster consegue.
Não me orgulho de ter parado no meio da minha caminhada para tentar
adivinhar quem Aster Campbell estava beijando hoje. As duas, no escuro da
varanda de Aster, enquanto os dedos da primeira — que é a minha vizinha
— enrolavam-se no cabelo ruivo e sedoso da outra. Conheço aquelas costas,
conheço aquele cabelo ruivo.
Ah, certo.
Acho que sei.
Um sorriso se estendeu pelo meu rosto assim que entendi o que estava
acontecendo. Entendi perfeitamente, o que estava acontecendo.
— Boa noite, meninas. — Cantarolei com prazer.
Em dias normais, jamais cumprimento Aster e sua má educação, mas
hoje, quero ser hospitaleira.
O som da minha voz causa o que eu queria; a garota ruiva que está
beijando Aster para, como se estivesse se culpando pela varanda escura não
ser obscura o suficiente para lhe esconder ou engolir. Vejo seu corpo
paralisar e ela entrar na casa de Aster novamente, de uma vez, só como se
não estivesse acreditando que foi pega e pior, que foi reconhecida e
flagrada.
Aster, por outro lado, não se deixa abalar. Seu cabelo preto e cacheado,
de raiz crespa, está jogado para trás nessa noite, com uma bandana
vermelha os prendendo como se pudesse se proteger do inverno eterno da
nossa cidade. Ao ouvir a porta bater, Aster cruza os braços em total
desprazer na minha direção.
— Não precisava disso.
— Achei que já tinha parado de brincar com as garotinhas indefesas da
cidade, Aster. — Me aproximei do meu carro, tentando espiar dentro da
casa dela, que continuava escura e fechada como se não houvesse alguém lá
dentro. — Sabe no que está se metendo e sabe que é um erro.
— Certo, Nicola. — Aster sorriu para o chão. — Adoro seus conselhos
políticos. Quer que eu pegue um palanque lá dentro ou um microfone? Os
cidadãos de todo o país querem saber o que você pensa sobre essa situação.
Sorri novamente. Algo que fez Aster suspirar e apenas vacilar um
pouco.
— Adoraria. — Pontuei. — Mas irei me atrasar. — Abri a porta do
banco da frente e acenei. — Beijinhos, Aster!
Pisquei e mandei alguns beijos, em repetidas vezes. Queria acenar para
a garota que fugiu assim que me viu, mas esse será um deleite que terei
apenas quando chegar à fogueira.
3

Os jovens de Salt não têm muita opção. Ou fazem um churrasco de


frente para um lago, ou patinam nas pistas de gelo, se acomodam em
cabanas nas montanhas ou fazem uma fogueira no meio de uma reserva
florestal. Entre eles — entre nós, quero dizer — existe um lema chamado
“Nada de legal ou importante acontece em Salt”, talvez, porque no fundo,
nós queremos acreditar que só temos essas poucas opções.
A última opção sempre atraiu mais pessoas. Isso porque todos os
jovens de Salt pensam a mesma coisa; sexo em um lugar aberto e isolado é
excitante e proibido. Não é lá muito criativo, mas as pessoas da cidade não
querem ser criativas, de fato.
Sempre que chego à fogueira, me sinto uma idiota. Não por não gostar
de festas, eu gosto. Mas passei a detestá-las quando comecei a encontrar
defeitos na minha vida. Há uma Nicola antes das festas e uma Nicola depois
das festas. Agora que sou uma ninguém como qualquer pessoa em Salt, não
me importo com elas.
Harvey não. Ele consegue ser o centro das atenções por onde passa. E,
assim que chego ao novo local da fogueira, ele está abraçado com Gwen
Hallister, a melhor amiga de Aster Campbell.
Os dois estão sentados em um tronco velho de árvore envolta da maior
fogueira da campina aberta. Os dois trocam risinhos e conversam tão
próximos um do outro, que sinto a atração dos dois ser completamente
palpável. De vez em quando, as garotas não se aproximam de Harvey com
medo dele estar em um relacionamento longo e duradouro comigo, depois
que percebem que somos apenas bons amigos, elas atacam.
Os garotos também, mas isso é sempre cômico de se ver.
— Ela chegou! — Harvey comemora ainda abraçado a Gwen.
Hallister, que tem cabelos loiros e poderosos olhos azuis, não fica
muito interessada pela minha presença. Mas, se me aturar quer dizer que
Harvey lhe dará mais atenção, ela saberá jogar.
— Vodca? Cerveja? Uísque? Não seja chata essa noite, pegue algo que
te esquente, Nikki. — Harvey aponta na minha direção. Gwen dá uma
gargalhada calorosa. — O que vai ser?
— Cerveja está bom. — Abafo as mãos. — Pode ser?
— Irei pegar. — Harvey pisca.
Ele se afasta de Gwen com um toque em seu nariz e ela afasta um
pouco do tronco de madeira que está sentada, para eu poder me aconchegar
melhor. É um ato bastante educado, mas é mecânico. Estar numa fogueira é
saber que, ao menos, a pessoa que organizou tem noção que vivemos em
uma cidade de apenas uma estação.
Gosto de observar as pessoas também.
Todas elas possuem segredos que tentam esconder quando estão numa
festa. Quase sempre fico sozinha, dependendo de quem Harvey Bird está
beijando em uma noite ou dançando, ou nem aparecendo. Já descobri
alguns casos que os jovens da cidade mantêm. Sei qual deles vendem as
drogas e sei qual batiza as bebidas. Sei qual deles não deveria estar aqui
essa noite e qual mentiu para estar. Qual casal deseja terminar e qual casal
deseja se formar. As pessoas são tão transparentes que apenas um pouco de
tempo em observá-las consigo definir mais do que quero.
Gwen fica em silêncio, o tempo todo em que Harvey se mantém longe,
e quando volta, posso até imaginar que ela pensa em algum assunto para
puxar. Felizmente, não encontra nada que possa trazer à tona.
— Cerveja. — Harvey discorre me estendendo um copo. — Mais
alguma coisa, Rainha?
— Está ótimo, súdito. — Pisco. — Pode ir.
Quero que Harvey fique longe de mim. Que ele vá se divertir.
Às vezes, ele me deixa sozinho, porque acha que irei me rebelar, que
irei beber tanto que dançarei como uma garota desesperada por atenção, que
arrancarei as pérolas do meu pescoço e pularei no colo do primeiro garoto
que passar por mim. Sei que estou acabando com a diversão dele, mas há
certas coisas que não posso evitar.
Decido que é hora de observar os outros na festa. Me levanto do tronco
em que estou e caminho até a mesa de bebidas. A fogueira, a grande
arremessa de troncos de árvores e madeira velha, no centro de um vale
aberto é até bonita de longe. As pessoas se amontoam em grupos e bebem.
Conversam e se beijam. Até mesmo apalpam.
Encontro quem eu não gostaria e até mesmo quem eu gostaria de
encontrar.
Em um grupo afastado dos demais, como se fizessem parte de uma
nobre realeza da campina, está Garret Cox e Taylor Moore. Garret que
segura Taylor pela cintura, não tira seus olhos de mim enquanto a beija pelo
pescoço. Os cabelos de Taylor chegam até a cintura dela e ela os enrola nos
dedos, enquanto o namorado discorre algumas palavrinhas sacanas que
conheço bem.
Conheço tão bem que chega a ser enjoativo.
Ergo meu copo de bebida discretamente para Garret Cox, meu
desprezível ex-namorado que sempre parece me vigiar. Como se temesse
que um dia eu desse com a língua nos dentes. Gosto de brincar com a
sanidade de Garret. De vez em quando, até finjo que estou bêbada o
bastante para falar com ele. Ou finjo esbarrar em seus ombros.
Garret sente um pingo de medo de mim. No fundo, sei que não sou
capaz de fazer nada contra ele.
Mas enquanto ele não souber disso, ainda posso continuar a me
divertir.

Estou
pisando em um panfleto do Salt-In.
Há alguns deles poluindo a campina por toda a parte que me encontro.
Sinto-me tentada a ler sobre o que se trata o tal torneio, mas só de me
imaginar lendo qualquer que seja o panfleto, me sinto com tédio.
Estou no meu terceiro copo de cerveja, enquanto engulo alguns
punhados de amendoins e caminho.
Harvey está no centro de um grupo, conversando animadamente,
enquanto fala sobre sua carreira longa e promissora na dança no gelo.
Quando éramos menores, as pessoas caçoavam de Harvey o tempo todo.
Quando passamos a ganhar torneios e competições, todos passaram a
venerá-lo, calando fortemente suas bocas.
Em momentos como aquele, sou uma covarde.
Não me aproximo de Harvey e nem de sua legião de fãs que se
torturam por ouvir falar de algo que enche seu coração de saudade. Me
sinto a completa responsável por ninguém mais ver Harvey Bird no foco.
Tento repetir a mim mesma que, se Harvey quisesse uma nova parceira, ele
teria encontrado. Mas desde que meu médico me proibiu de qualquer
movimento brusco, forçando meu ombro e meu pé, sinto que eu sou a
razão.
Que ele agarrou a consequência como sua.
Então me afasto. Dou alguns passos para trás e seguro bem firme meu
copo de cerveja, não querendo ouvir mais nenhuma palavra que me lembre
o que fui e o que me tornei em um espaço de apenas um ano. Mastigo
ferozmente o amendoim e caminho até os carros. Sei que não irei embora,
não bebendo tanto, mas um momento sozinha para respirar — sem sentir o
cheiro de uma fogueira e madeira queimando — é o que eu preciso.
Sentada no capô, Taylor Moore está conversando com Aster. A
primeira garota enrola a ponta dos dedos no cabelo ruivo, enquanto Aster
tenta controlar seus dedos na coxa de Taylor. Se Aster quisesse e Taylor
fosse corajosa, os dedos de Aster estariam dentro de Taylor em apenas
instantes.
Quando me aproximo e as duas percebem, Taylor ameaça falsamente
Aster; aponta o dedo na cara de Aster Campbell e avisa que, se ela olhar
novamente para Garret irá se ver com ela. Tento me agarrar ao melhor
teatro de pessoa inconveniente possível; se eu desse risada, Taylor Moore
iria perder seu tempo comigo — e eu perderia o meu.
Aster, no entanto, não fica surpresa com o tom de ameaça, apenas
concorda. Sem esperar por mais nada, Taylor desfila para longe de nós,
rebolando os quadris e jogando o cabelo ruivo para os lados. Até sumir
entre as árvores, onde viveria seu romance intenso e altamente estúpido
com Garret.
— Ela é boa. — Elogio, apontando para o lado que Taylor desapareceu
com o copo de cerveja. — Como não está matriculada no curso de artes
cênicas da United Salt?
Aster enfia as mãos nos bolsos e me encara, impassível.
— Acho que precisamos trocar algumas palavrinhas. — Aster diz
séria.
Quero rir.
Não, na verdade, quero gargalhar. A detestável Aster Campbell não
quer mesmo falar comigo. Quer? Que favor ela pedirá? Sei até como isso
irá começar.
Não sei por que não quis vir à fogueira, sempre há algo para me
divertir. Seja um garoto socando o outro, ou uma garota defendendo a
namorada hétero dela.
— Pode falar — respondi, tentando esconder que estava apreciando
tudo aquilo.
— A Taylor, ela...
— Está traindo Garret com você. — Completei. Até mesmo fingi que
coloquei a mão na boca para esconder minha língua grande e afiada. Como
o esperado, Aster suspirou, exausta. — Sei. E daí?
— Ela sabe que você viu a gente.
— Se queriam privacidade, o melhor lugar não era uma varanda, Aster.
— Bebi um pouco mais da minha cerveja. — E aí?
Aster se aproximou de mim, dando um passo. Seus olhos estão focados
nos meus e eu tive que me conter para não rir mais.
Ela estava tentando me atrair. Atrair para sua teia de mentiras.
— Tô ligada que você tem motivo o suficiente para querer que o
Garret caía daquele cavalo dele. — Aster fez uma piada. Mas ao meu
silêncio, ela se conteve para não rir. — Sei que você e o Garret namoraram
por um tempo. — Aster começa novamente, coçando a nuca. — Será que
pode manter isso entre nós?
— Entre eu, você e a Taylor? — Fiz questão de perguntar. — Não sei...
Será que ela está bem com isso?
— Olha, Nicola. — Aster perdeu um pouco sua paciência. — Sei o
que está pensando isso, mas não sou idiota. Estou apenas me divertindo e se
a Taylor não aguenta aquele mané do Garret, quem sou eu para culpá-la?
— Acha que ela é hétero, mesmo? Ou só quer atenção?
— Não importa o que ela é ou deixa de ser. Pode guardar esse segredo
por mim?
— É melhor pedir por Deus ou por qualquer outra pessoa, pedir por
você é uma péssima forma de me convencer.
Tudo em Aster Campbell me lembra um caos.
Seus cabelos, cacheados e bonitos, sempre vivem embaraçados e
embolados atrás de uma bandana. Os esmaltes vivem descascados, nunca a
vi usar um esmalte de unha completa. Suas orelhas são preenchidas por
furos, mais de cinco em cada. Nunca está de batom — não que isso seja um
defeito, mas é um detalhe. Seus lábios sempre estão rachados pelo tempo
péssimo. Há sempre uma coleção de camisetas largas e manchadas de
cândida propositalmente. Aster e Harvey chamam aquilo de moda ou estilo,
já eu considero o cúmulo.
Porém, em Aster, toda aquela confusão de cores, desleixo e a mistura
de “não dou a mínima para nada” combinam perfeitamente. Chega até ser
harmonioso de se ver.
Aster também carrega um colar de cadeado em seu pescoço, como um
lembrete.
É como me olhar no espelho ao contrário. Dá até certos calafrios
pensar em não ter o cabelo organizado como o dela, ou até mesmo usar uma
distopia de cores. Mas em Aster até que fica legal. Ele tem aquele jeito
despreocupado que deixa quase tudo bastante jovial e legal.
Toco meu colar de pérolas e dou de ombros.
— Faça o que quiser e com quem quiser, Aster. Mas não pense que
guardarei todos os seus segredinhos.
4

A fogueira sempre leva mais tempo do que posso dar. As pessoas


realmente esperam que tudo aquilo que fazem em uma festa seja
socialmente aceito ou até mesmo escandalizado. Mas tudo o que todos
faziam eram sempre a mesma coisa. Ao final da noite, agradeci por Harvey
cambalear até o meu abraço e pedir para levá-lo para casa. Descobri que ele
não foi com seu carro e veio de carona com Gwen, a quem teve que
socorrer uma amiga que bebera demais até esquecer o próprio nome.
Levar Harvey para casa sempre foi o ponto alto da nossa noite. Ele
conta comigo para ir para casa, eu conto com ele para frequentar algum
evento do qual sempre tentei evitar.
Adormecido ao meu lado no banco do passageiro, Harvey dorme feito
um anjo. Seu sono pesado e completamente alheio à cidade até me
contagiou. O relógio batia duas da madrugada e os termômetros marcavam
quase quatro graus. Era apenas outono. As aulas na faculdade iriam se
encerrar em breve e o Halloween ainda nem tinha passado.
Quando cheguei à casa de Harvey, não muito longe da minha, o
acordei rapidamente. Ele se abraçou a mim e juntos, caminhamos para
dentro de sua casa mal iluminada. Cresci assistindo filmes em que as
pessoas deixavam seu lar para estudar, onde vivemos, não precisamos disso.
As pessoas se aconchegam com seus pais e vivem bem.
Levo Harvey até seu quarto, subindo um a um os degraus. Ainda preso
ao meu corpo, ele se deita na cama. Está balbuciando palavras embriagadas
que apenas me deixam levemente risonha. Há um panfleto do Salt-In preso
em sua bota, o pego rapidamente o amasso com uma mão, enfiando no meu
bolso traseiro.
Lembrete para jogar fora mais tarde.
— Boa noite, Harvey. — Toco seus olhos, já fechados.
— Boa noite, Nikki. — Ele diz, murmurando e virando de lado na
cama, até cair no sono.
Penso em me aninhar ao seu lado e dormir. Mas também penso em
minha mãe me enchendo de perguntas pela manhã. Ter vinte e dois anos
ainda não é sinal de liberdade para mim.
Me aproximo da mesa de estudos de Harvey, onde uma explosão de
tintas e cores me convidam para dar uma espiada. Há olhos que ele
desenhou que julgo ser de Gwen; há uma foto minha que Harvey pintou
com carvão. Estou patinando, olhando para a platéia, sendo viva. Suspiro,
passando os próximos desenhos para o lado.
Há algumas cartas da United Salt abaixo de tantos desenhos bonitos.
São cobranças e contas. Contas à mão e cobranças feitas pela reitoria da
faculdade. Leio todas aquelas letras pequenas e minúsculas, todos aqueles
números que deveriam fazer uma família viver bem por até um ou dois
anos. Olho para Harvey, apenas com uma chama de esperança que ele tenha
me visto aqui, plantada, ainda em seu quarto, no escuro, mas me apegando à
pequena luz que vem da janela.
Os lacres de todos os envelopes estão violados e alguns carregam datas
que provam que começaram a acumular apenas há algum tempo. Quase sete
meses de dívidas. Não sei definir se felizmente ou infelizmente, mas
Harvey não acorda. Ele continua abraçado confortavelmente a um
travesseiro, presumo que sonhando num momento como esse.
A culpa arranha minha pele, me convidando para fazer algo sobre isso
ou apenas deixar meu melhor amigo se afundar aos poucos.
A dívida estudantil de Harvey é bem maior do que eu pensava.
Passei uma noite toda em claro.
E quando cheguei ao meu turno na livraria na manhã seguinte, Harvey
Bird estava consciente, nenhum pouco bêbado ou sonolento e estava
auxiliando uma garota a comprar um livro de poesia.
Quando Harvey termina de ajudá-la e a garota paga pelo livro, ele se
aproxima de mim. Alguns clientes estão bebendo café enquanto desfrutam
de suas leituras escolhidas, então precisamos fazer silêncio. Ele sabe que
quero falar alguma coisa pela maneira que divido meu peso entre meus pés
e estou sorrindo sem mostrar os dentes desde o momento que Harvey me
encontrou pela manhã.
— Já sei como você pode...
— Não quero seu dinheiro!
A frase me faz apertar os lábios. Harvey sabe que tenho um fundo
bastante generoso que guardei depois de algumas competições que
ganhamos. Mas jamais quis aceitar. Nem quando as dívidas começaram. Ele
se recusa. Acha que uma solução divina cairá do céu em algum momento.
Qual eu não sei. E não estou nenhum pouco disposta a esperar por um.
Então, trato de colocar um sorriso perspicaz em rosto e dar de ombros.
Ajeito a aba do boné verde acima da minha cabeça.
— Não é meu dinheiro, Harvey. — Enrugo o nariz. — Me deixe
terminar de falar, por favor. Me escute!
Harvey tem certeza que o que irei falar irá o insultar de muitas
maneiras imagináveis, mas como não há opção, ele apenas deixa que eu
prossiga.
— Serei rápida e franca. Ontem quando te deixei em casa, eu vi as
cobranças da faculdade na sua escrivaninha... — Me apresso a dizer logo.
Antes que Harvey exploda em sentimentos. Vejo olhar para os lados,
impaciente. — Vi quanto precisa pagar e...
— Já falei mil vezes, Nicola. — Harvey nunca me chama de Nicola. A
não ser quando quer ser sério e objetivo. — Não se sinta culpada ou
responsável por uma dívida que é minha. Irei fazer algum acordo.
— Não precisa fazer acordo nenhum se me escutar!
Harvey engole em seco. Está um pouco receoso de discutir um assunto
tão sério em horário de trabalho. Ele estuda à tarde na United Salt e eu, à
noite. Duvido que encontre algum tempo ou espaço para me escutar
verdadeiramente.
Em silêncio, Harvey trava o maxilar, numa clara demonstrativa que irá
recusar qualquer que seja meu plano.
— Bem. — Suspiro. — Passei a noite toda pensando em alguma coisa
que pudesse ajudar. Alguma promoção na livraria, um segundo emprego,
que você aceite a parcela de dinheiro que ainda tenho no banco, mas
nenhuma seria possível. — Harvey nega com a cabeça, só para pontuar o
que eu já sei. — Então, eu pensei que, se você quer realmente uma quantia
de dinheiro que seja boa, terá que partir de você mesmo. E além do mais, do
seu suor e esforço. Estou certa? — pergunto, com esperança na voz.
— Depende. — Harvey retruca ilegível.
— Salt-In — digo de uma vez. Vejo meu amigo arquear uma
sobrancelha. — O torneio que você me convidou. Acontecerá no final do
inverno... li a noite toda sobre o evento. É o primeiro feito aqui na cidade e
terá algumas atrações e competições. Uma delas é dança no gelo.
— Você não compete há um ano, Nicola.
— E você há seis meses. — Rebato com firmeza. — Não estou falando
de mim. Se você se inscrever nessa competição, poderá ganhar um prêmio
bastante generoso em dinheiro. — Aponto para o panfleto que levei preso
ao meu avental. Aponto para o primeiro lugar, a quantia de noventa mil
libras em dinheiro. — Não é nenhuma pegadinha e nem nada do tipo. O
segundo lugar leva cinquenta mil libras e o terceiro, vinte mil. De qualquer
forma, seja qual lugar você conquistar, consegue pagar toda ou metade da
dívida.
— Esquece, Nikki. — Harvey suspira, passando a mão pelo rosto. —
Por mais que seja uma boa ideia, ainda não é a solução.
— Mas pode ser! — Sigo Harvey pela livraria, quando ele não quer
mais me escutar. — As inscrições irão se fechar nesse final de semana, e
todas as modalidades da dança no gelo que eles estão escolhendo são todas
que você adora competir ou gosta de inventar alguma coisa nova ou melhor.
Quando éramos parceiros!
— A resposta é não.
— Por quê? — Bato meu pé no chão. — Me diga ao menos um motivo
para não tentar, Harvey Bird?!
O fantasma de um sorriso ameaça aparecer nos lábios do meu melhor
amigo, mas é apenas uma enganação enquanto ele finge conferir o preço de
um livro já etiquetado.
— Porque... — Ele suspira novamente. — Não acho que seja uma boa
alternativa, Nikki. Pense comigo... — Harvey pede. — Terei que treinar
quase vinte e quatro horas por dia para queimar tudo o que consumi nos
últimos meses. Preciso voltar a comer melhor, dormir melhor... Não posso
nem pensar na possibilidade de me envolver com alguém, todo meu tempo
será tomado para algo que não me garante em nada. Posso me inscrever
nesse negócio e ficar em último lugar. Estarei endividado e ainda, serei um
perdedor. É isso o que quer?
— O que eu quero. — Começo. — É que você não se sinta mal todas
as vezes que fala sobre a dança. Sobre nós.
— Quem disse que eu fico mal? — Harvey sorri genuinamente. — Foi
a melhor fase...
— Que foi interrompida! — Sobreponho sua voz. — E ainda de uma
maneira que nem ao menos lhe avisou que seria. Harvey, me escute, como
acha que conseguirá pagar um valor tão alto? As livrarias estão fechando as
portas ano após ano. Semestre após semestre. Dia após dia. As pessoas não
estão mais apegadas a encontrar um livro pessoalmente. Em um clique, no
conforto da casa delas, ou até mesmo em qualquer lugar, elas podem ler ou
comprar um e-book.
Harvey me encara severamente, como se não acreditasse que está
tendo essa conversa comigo. Ele passa os olhos rapidamente por cima dos
meus ombros, para além das estantes de livro que encobrem nosso debate
— saudável.
— Eu... Irei me formar na faculdade em breve, Nikki. Posso arranjar
outro emprego se me mudar para Londres. Como a Nancy fez.
Esbanjo um sorriso carregado de escárnio.
— Nancy teve sorte. — Discorro. — É aquela pessoa que teve sorte
uma em um milhão. Eu andei pesquisando, Harvey! Algumas empresas,
quase a maioria delas, não contratam pessoas que possuem dívidas
estudantis. É quase como quisessem que elas falhassem com suas próprias
vidas.
— Nikki...
— Me escuta. — Peço de novo. — Se você começar a treinar, se topar
competir, nós podemos ao menos conseguir o top três. Imagina, qualquer
que fosse a posição, seria boa. Ajudaria não só você como seus pais.
Nesse momento, julgo que toquei em um assunto delicado. Estou
prestes a pedir desculpa quando Harvey solta o ar todo do corpo.
— Meus pais. — Harvey passa a pensar. — Eles só falam na dívida o
tempo todo...
— Então! — Pulo no lugar, vibrando por dentro. — Se nós corrermos
conseguimos encontrar uma parceira para você até sábado.
— Mas treinar exige tempo e dinheiro, Nikki. Precisamos de uma
treinadora!
— Está olhando para ela! — Abro meus braços. Harvey me lança uma
risada carregada de desdém, mas deixo que ele deboche de mim. Ao menos
um pouco. — Tenho tantos anos de carreira quanto você. Precisa de alguém
que confie e preze nessa enrascada. Essa sou eu!
— Ao menos concordamos que é uma enrascada! — Harvey pisca,
tocando na aba do meu boné e a colocando para baixo.
Harvey molha os lábios com a língua, ele apoia apenas um lado do
corpo e do peso em uma perna e olha para os lados, duas vezes, antes de me
encarar, por fim.
— Não irá desistir, não é? — Quer saber, sorrindo de lado e
demonstrando cansaço em argumentar.
— Nunca na vida — respondo, mordendo meus lábios.
— Faremos o seguinte. — Harvey aponta o dedo na altura do meu
nariz, apenas para tocá-lo. — Eu digo sim para esse torneio, se você aceitar
treinar quem eu quiser. Não importa se for uma mula empacada ou uma
garota que precisaremos ensinar como andar em terra. Está me entendendo?
Não importavam quais eram as condições de Harvey. Ele finalmente
estava entendendo que só estou fazendo tudo isso para seu próprio bem.
Tento me convencer de que é apenas para seu bem e não para diminuir a
culpa que carrego constantemente todos os dias.
— Entendido!
Posso jurar que meus olhos estão brilhando.
Nikki é meu apelido.
E também foi meu nome artístico.
Por muitos anos competi com meu nome, Nicola, nos concursos de
beleza, mas quando comecei a ser patinadora profissional, adotei o apelido
de Nikki. O apelido soa despojado e divertido ao meu ver. Sempre achei
curto e poderoso demais. As pessoas se lembrariam do meu nome e não
demorariam a falar dele quando necessário. Nikki Wolf estampava a
maioria dos meus prêmios e medalhas. Havia uma jaqueta que a mãe de
Harvey me deu quando ganhei meu primeiro torneio.
Está escrito WOLF em letras brancas no tecido jeans preto.
Estou usando a jaqueta quando pego meu lugar na aula de Introdução
aos Originais na faculdade. Minha mãe acha que fazer Literatura Inglesa é o
mesmo que não fazer nada. Mas eu gosto do meu curso. Não é o que eu
julgue ser o ideal ou o perfeito para mim. Mas gosto dele.
Por muito tempo achei que eu seria apenas patinadora profissional,
agora que não posso mais e não sou, estou em constante busca do que posso
ser além de dançarina. Quero dizer, quando você vê alguém profissional em
algo, você não se pergunta o que ela é depois da profissão. Ou se pergunta,
depende quem você é. Eu não. Nunca me perguntei o que jogadores de
futebol fazem além de jogar, ou o que as modelos preferem depois de tirar
fotos com sorrisos genéricos.
Talvez essa não seja a história da garota que descobre que pode,
magicamente, voltar a patinar. Talvez essa seja a história da garota que
precisa descobrir quem ela é por baixo da camada de medo e gelo.
A aula termina, não sem antes ter um último trabalho do trimestre;
escrever cinco capítulos do começo de algo que pode ser um livro ou um
manuscrito. Nessa aula, enquanto arrumo meus livros, consigo avistar Aster
ao lado de Taylor. Elas conversam, como amigas. Quando a aula se encerra,
Taylor corre na direção da sombra que Garret Cox é para ela. Eles se beijam
na frente de todos, não se importando com nada.
No campus, encontro Harvey que me convence a ver uma partida do
jogo de hóquei do time da faculdade.
— Esqueci completamente que hoje é dia de jogo. — Lamento,
segurando um prato azul de nachos com bastante queijo derretido, enquanto
ando de lado para conseguir um lugar. — Assim as pessoas podem ser os
bárbaros que tanto gostam de ser.
— Temos que ficar de olho em qualquer pessoa que patine. — Harvey
me lembra. — É por isso que fiquei um pouco mais no campus, se
encontrarmos uma líder de torcida ou até mesmo uma Tormenta que patine
adequadamente, saberemos quem escolher.
Fito Harvey, que está com os olhos presos na pista de patinação gelada
que a United Salt é dona.
— Uhu. — Me animo, fazendo um bico. — Alguém está mesmo se
enlaçando no meu plano. Me sinto até melhor. — Suspiro alto e falsamente.
Harvey revira os olhos apontando para a arena de patinação no gelo à
nossa frente com o queixo.
A faculdade possuí alguns times importantes. Existe o time de hóquei
masculino, onde os jogos são violentos, barulhentos e sempre caem na
mesmice. É um bando de homens que amam socar o rosto um do outro. Há
sempre algum pedaço de dente ou gotas de sangue por toda a extremidade
do gelo. Já o feminino, é o mais interessante. Além de elas serem mais
comportadas, talentosas e focadas, é mais emocionante. Uma vez, Harvey e
eu quase passamos mal de tanta tensão ao esperar que um jogo
desempatasse como precisamos que aquele acontecesse. No final, as
Tormentas venceram.
As Tormentas são o time principal.
Aster é uma delas. É a capitã, para ser exata.
Sua camisa larga e vermelha das Tormentas está conectada com o
número dez. O meu número da sorte, preso em suas costas, desfilando para
todos os lados. Não basta Aster ter o mesmo número da sorte que o meu, ela
se acha dona dele. Além do grande número, está estampado o sobrenome
Campbell em letras grandes e destacadas. É uma daquelas camisetas que
outras porções de garotas se matam para vestir.
— O que acha da Taylor Moore? — Harvey aponta com o nariz para a
ruiva que acabara de pegar um lugar na frente do camarote da arena para
ver o jogo ao lado de Garret. — Ela é muito boa. Patina por diversão, se
você a aperfeiçoar pode ser...
— Garret não deixaria que Taylor passasse nem um segundo perto de
mim — digo interrompendo-o. Harvey me encara. — Não que ele mande
em algo, mas Taylor obedece, assim como ele a obedece. Se quisermos
Taylor no nosso time, precisaremos convencer Garret primeiro e,
definitivamente, não é algo eu quero.
— Mané. — Harvey murmura, enfiando o canudo branco e vermelho
entre a boca e puxando o conteúdo do copo plástico.
— E quanto a Gwen?
— Ah. — Ele engole o refrigerante. — Gwen disse que não é muito
boa. Apenas patina por patinar, para se considerar uma cidadã oficial de
Salt. Mas não é nada profissional.
— Que pena. — Minto descaradamente.
Nenhuma delas me dá vontade de acordar de manhã, no frio, no auge
de uma geada para treinar. Qualquer que fosse a escolha de Harvey teria
que valer à pena. Quase me esqueço que é ele que escolherá a própria
parceira. Eu sou apenas um apoio. O bichinho vermelho do mal no ombro
de Harvey contando os pequenos podres de todo o mundo.
Essa é a diferença entre nós.
Harvey acredita em um universo melhor; já eu sei perfeitamente quem
o comanda.
O jogo começa.
Sem antes Harvey e eu entrarmos em um acordo sobre as garotas que
tem nossa idade — ou uma idade avançada o bastante para competir sem o
consentimento dos pais. Até Aster, com um capacete branco, fazer um
zigue-zague, confundindo o time adversário como se estivéssemos
assistindo a um desenho animado. Mal percebo quando solto um murmúrio
impressionado, como qualquer outra pessoa que assiste aos jogos das
Tormentas. De repente, não sou mais uma pessoa que sabe os defeitos e
detesta Aster Campbell, sou apenas mais uma que começa a reconhecer seu
talento dentro da arena.
Me sinto um pouco estranha. Tento procurar o motivo em Harvey. Mas
desisto.
Até ver o sorriso espantado que Harvey solta. Até ouvir como as
pessoas ficam animadas ao detectar Aster e seus movimentos precisos e
certeiros em campo. Até sentir a vibração de uma multidão universitária
toda gritar por ela. Até pessoas imbecis como Garret Cox sabem apreciar o
talento puro quando encontram um.
Quando Aster faz o último e decisivo ponto, e ergue seu taco para o
alto para todos vibrarem — Todos mesmo — sinto que Harvey tem algo a
me falar. Preso em sua garganta, tentando sair o mais rápido possível.
Por favor, ela não.
Por favor, ela não.
Por favor, ela não.
— E Aster? — Harvey sorri. Ele tem seus olhos fixos na garota que
arrancou o capacete e está comemorando, suada, enquanto grita pela vitória.
Ela recebe o apoio das líderes de torcida e de uma garota que parece
lacrimejar só por estar perto de Aster. — Ela é ótima!
Relaxo meus ombros, arqueando minha sobrancelha e comprimindo
meus lábios.
5

Para começar, eu posso fazer um monólogo bastante ensaiado e


completo sobre Aster Campbell.
Primeiro, que eu e ela nos conhecemos quase a vida inteira. Enquanto
eu nasci e vivi em Salt sem conhecer o horizonte de nenhuma outra cidade,
Aster se mudou para cá quando tínhamos apenas sete anos. Sua família
vivia em Brighton. Então, posso imaginar como foi o choque de se despedir
das praias geladas, para apenas asfalto e montanhas.
Aster vive sozinha com a avó desde que me conheço por gente. Na
época em que a “adorável” Aster Campbell se mudou para a casa ao lado da
minha, para a janela de frente para a minha, para o outro lado do muro e da
cerca que nos separa, sua avó havia lhe colocado em quase todas as
competições de concurso de beleza. Então, sim, Aster e eu somos duas
veteranas no mundo do laquê, dos batons e das maquiagens excessivas
apenas para crianças.
Se eu encontrava Aster enquanto caminhava para a escola, a
encontrava atrás de uma coxia, bocejando grosseiramente, morrendo de
tédio de estar ali.
Segundo, assim como eu, Aster desenvolveu uma extrema repulsa
quanto aos desfiles e aos concursos. Eu, propriamente dito, fingia que
gostava para agradar minha mãe. Mamãe ficava tão animada quando me
colocava em um vestido qualquer que simplesmente não podia negar nada a
ela. Já Aster só queria suprir o tempo que a avó tinha de sobra; com uma
aposentadoria favorável, a sra. Campbell sempre demonstrou que Aster é
sua queridinha em uma vasta família. De vez em quando, minha mãe e a
sra. Campbell conversavam no jantar sobre Aster e eu, competindo e sendo
vizinhas. Elas prometerem que nenhuma rivalidade entre nós iria se iniciar
e que seriam adultas e maduras.
Bem.
Elas não foram.
Na primeira vez que Aster me venceu, mamãe ficou arrasada. Lembro
que ela comprou vinho barato na mercearia mais próxima e bebeu tudo
antes do meu pai voltar do trabalho. Quando eu venci Aster pela primeira
vez, a sra. Campbell se negou a falar conosco por um ano inteiro. Mas
naquela época, as duas garotinhas que eram miss Salt, não estavam se
importando com vitórias; sim, eu sempre amei a cor do dourado de um
troféu, porém, não era tudo na minha vida.
Enquanto eu brincava de boneca e tentava não me sujar, Aster
sabotava os vestidos de outras concorrentes apenas por diversão. Fazia
caretas enquanto era maquiada, enfiava o dedo no nariz, comia o que tinha
conseguido dentro do nariz, chorava quando penteavam seu cabelo e até
mesmo corria atrás de mim, numa brincadeira que, definitivamente, eu não
queria participar.
Claro que, no momento, eu não entendia porque Aster era tão horrível
e encrenqueira. Mas com o tempo entendi que eu e ela não queríamos estar
ali, só queríamos ser e aproveitar a vida de duas crianças de sete anos, mas
que foram jogadas no mundo de modelos e fotos perfeitas de uma vez só.
Sem a intenção de uma saída breve.
Novamente, apesar de entender o lado de Aster, não éramos amigas.
Nunca fomos. Sempre fui o tipo de criança cética e calada, no canto dela,
que adorava observar do que falar. Já Aster nunca ficou parada ou quieta
em silêncio por mais de dois segundos. A sra. Campbell era chamada
frequentemente no Jardim de Infância que, sem surpresa, estávamos na
mesma sala.
Preferia brincar sozinha ou com minhas bonecas do que sujar meu
cabelo de areia e lama como Aster sempre fez.
Outra coincidência, é que assim como eu, Aster é negra. Só que seus
cabelos são armados nas pontas e crespos na raiz. Fico imaginando como
deveria ser difícil para a sra. Campbell sempre tirar areia dos fios de Aster.
No colegial, Aster odiava usar saias do uniforme, usou calças todos os anos
do ensino médio. Era pega com uma garota diferente sempre que possível.
Não dava a mínima para o que os outros sussurravam dela pelos corredores.
Não aparecia nas festas mais badaladas e comentadas quando tínhamos
dezessete anos, mas quando aparecia, era a sensação de uma noite inteira.
Só que entendi tardiamente que a sra. Campbell sempre amou Aster do
jeitinho que ela foi e ainda é.
Não era como mamãe que tentava moldar Barr e eu no mesmo estilo
de conduta do que o de Nancy.
Com o tempo, fomos crescendo. Aster em seu mundo, eu no meu. Ela
jogando hóquei, eu dançando. Ela com as garotas que pareciam gemer mais
para fora do que para dentro, eu com as garotas que saiam escondido do
meu quarto tarde da noite.
Ah, bem. Tem isso sobre mim que prefiro manter apenas dentro do
meu coração do que para minha família. Eu sou bissexual.
Se Nancy também fosse, seria mais fácil.
De vez em quando, minha mãe escuta rádio na cozinha, ouve sobre o
casamento de pessoas do mesmo gênero e se emociona. Mas, às vezes,
quando avista Aster com alguma menina, ela simplesmente infla o peito e
diz:
— Ainda bem que você não é como ela.
Sei que a frase pode significar um mar de opções, probabilidades e
características. Mas sei exatamente ao que mamãe se refere. Bem, não sou
exatamente igual à Aster, mas temos algo em comum.
Entre uma fila de coisas que nos separam, ao menos sinto inveja.
Ela é justamente a pessoa que sempre foi desde que nos conhecemos.
Jamais precisou se esconder atrás de um par de saltos altos ou coroas de
plástico para agradar alguém ou viver em paz.
Novamente, Aster tem um ponto a mais; ela sabe quem é.
E eu ainda estou tentando me descobrir.
Harvey
Bird foi sucinto e direto; ele queria Aster Campbell como sua parceira.
Mais do que tudo.
Tentei de todas as forças convencê-lo que até Taylor Moore seria
melhor do que a opção impossível que ele havia me dado. Estava disposta
100% a falar com Garret primeiro. Mas Harvey queria se vingar um pouco
de mim; se eu o faria voltar aos treinos diários, ele me faria suar para fazer
Aster ser da nossa equipe. Só tinha apenas quatro dias para trazê-la ao
mundo do gelo artístico. Da dança. O meu mundo. Do qual ela nunca entrou
ou sequer demonstrou interesse.
Só de pensar em Aster no meu dia a dia, é motivo para enrugar meu
nariz. Não consigo vê-la toda arrumada, nem metade de um grão do que eu
sou.
Mas tenho que admitir que ela é boa. Incompreensivelmente boa
quando patina.
Olhar para minha folha em branco sobre o que escrever em Introdução
aos Originais me deixa com tédio. Só irei me concentrar em uma tarefa
quando outra estiver encaminhada.
Como eu faria Aster dançar?
Meu Deus.
Até parece que Harvey só quer complicar tudo.
Ela não tem motivo algum para me ajudar, ela não é apegada ao
Harvey suficiente para abrir mão de sua má postura. E eu duvido bastante
que seja altruísta ao ponto de me ajudar apenas por me ajudar. Apenas por
querer guardar um cantinho especial ao lado de Deus no céu — se é que ela
acredita.
Posso usar o segredo de Taylor Moore ao meu favor, ou qualquer outro
segredo que ela queira saber. São muitos jovens em Salt que são
descuidados com suas próprias vidas e são muitos que nem fazem ideia que
eu sei algumas coisinhas sobre eles. Não me importo em vender
informações se isso fizer Harvey ganhar. Nem me importo em abrir um
pouco minha boca igual a minha mãe se isso for me custar uma passagem
só de ida para a primeira posição dentro de um ranking.
Aliás, não medirei esforços algum que para fazer Harvey estar no topo
do pódio quando o torneio chegar.
Desisto de escrever qualquer coisa sobre meu trabalho e decido focar
em como chegar até Aster. Pego o panfleto do Salt-In novamente, me
avisando que as inscrições acabariam em breve. Não teria nem tempo de
planejar uma abordagem muito mais natural ou séria.
Ela me consideraria uma desesperada? Com certeza.
Há defeito em tudo.
Uma mensagem qualquer não bastaria. Ou eu pagaria Aster para estar
lá ou usaria chantagem. Ou os dois.
Usar Taylor contra ela não é muito bom. Capaz de a própria Aster
contar a Garret que ele é enganado, só para se livrar de mim.
Deixo de lado o panfleto e desisto de começar o trabalho da faculdade.
A sra. Tent pode esperar um pouco.
No andar debaixo, Barr está assassinando os ouvidos da minha mãe,
enquanto a sequestra para ouvir o som gritante que saí do piano na sala.
Formo um “jóia” com meus dedos, elogiando silenciosamente Barr por sua
melhora. De melhora não tem nada, mas jamais contarei a Barr que ele é
péssimo no piano.
Se a música que saí de seus dedos lhe deixa feliz, quem sou eu para
estragar sua alegria?
Meu pai não está no sofá, mas usa seu habitual pijama de inverno
sempre. Está na garagem, nos fundos da casa, mexendo no depósito de
ferragens e madeira. Antes de tudo, antes de sermos uma família que mal se
fala, meu pai adorava construir casas nas árvores para os filhos da
vizinhança. Com o tempo, passou apenas a desejar que ninguém mais o
procurasse.
— Ei, gatinha. — Meu pai sorriu quando me viu. Eu estava usando
meu corriqueiro colar de bijuteria de pérolas, enquanto me aquecia dentro
de um suéter cinza. Ele não usava nada nos pés, nem meias. — Tudo bem?
— Tudo. — Sorri um pouco.
— Quer algo?
— Só vim tentar espairecer. Preciso pensar em uma solução para um
probleminha.
— Será que posso ajudar? — Meu pai sorriu.
Ele era assustadoramente parecido com Barr. De todos os três filhos,
apenas Bartholomeu Wolf se parece com ele. Nancy e eu somos cópias mais
jovens e sérias de mamãe.
— Se isso for ajudar com uma serra, acredito que sim. — Cruzei meus
braços para me proteger do frio que vinha do depósito. — O que está
fazendo?
— Quero construir uma casa na árvore para o Barr. Depois do recital,
ele irá precisar de algo que o anime.
Algo dentro de mim amolece um pouco. Mas só um pouco.
Meu pai ainda era culpado por todas as suas atitudes, isso não poderia
negar. Mas talvez elas tenham o cegado. Barr tem quase treze anos, não
gosta de construções e nem de casas na árvore. Ele saberia disso se
conversasse mais com meu irmão.
Às vezes desejo que a papelada do divórcio chegue tão rápido quanto
um jornal pela manhã.
— Será bom. — Resumo o que sinto em apenas uma frase idiota.
Ele sorri para mim, por cima dos ombros. Está na cara que ele acredita
que está sendo bom para Barr. Quem sabe funcione?
Dou uma espiada na casa ao lado. A construção em branco que é casa
das Campbell.
Então, me lembro de um grande detalhe.
— Pai? — pergunto, enquanto me aconchego no batente da garagem.
Ele acabou de pegar uma serra e está avaliando os dentes da ferramenta.
— Sim, minha querida?
— A sra. Campbell ainda fala mais do que deveria?
Meu pai solta uma risada pelo nariz, ainda encarando a serra.
— Sim, Nicola. Ela fala.
É a minha vez de sorrir, arrumando minha postura.
— Obrigada!
Aster
mora com a avó, a sra. Campbell, que foi uma atriz famosa na época de
ouro do cinema no nosso país. E como qualquer outra pessoa, preferiu viver
sua aposentadoria e o sossego do anonimato em uma cidade como Salt;
pequena, pacata e desconhecida. A sra. Campbell gosta de ouvir jazz no
último volume, de falar com Barr quando passa ao lado de nosso muro e
sempre deseja que meu pai corte sua grama. Ela e minha mãe ainda mantêm
uma rincha sobre tudo o que passamos quando Aster e eu éramos apenas
competidoras mirins.
Mas ela não tem nada contra mim hoje em dia.
Então, antes de ir para a faculdade, caminho na direção da porta
principal da casa das Campbell. Primeiro, que a vantagem de viver de frente
para a janela de Aster é sempre saber quando ela está em casa; quase nunca.
Se a as cortinas estão abertas ela está fora de casa, se estão fechadas, Aster
está deitada na cama, apenas existindo.
Com meu melhor perfume e minha melhor encenação, toco a
campainha da frente. Ouço-a ecoar gradativamente pela casa, até escutar os
passos astutos da sra. Campbell do lado de dentro. Demora cerca de dois
minutos até eu ser atendida.
A sra. Campbell não deve passar dos setenta anos. Tem a pele negra de
uma cor ébano, cabelos grisalhos que decidiu adotar, assumindo uma
cabeleira cinza de me fazer suspirar. Sempre usa um pouco de maquiagem
abaixo das maçãs do rosto e, particularmente, me adora.
É por esse último motivo que ela sorri satisfatoriamente quando me vê.
— Nicola Wolf! — Ela anuncia meu nome, numa voz de veludo
intensa e bonita. — Está tudo bem, meu bem?
— Olá, sra. Campbell, boa tarde! — Sorrio na mesma entonação, cheia
de dentes e charmes. — Estou bem. E a senhora?
— Estou fantástica! — responde, abrindo um pouco os braços. — Se
estivesse melhor, seria até mesmo um crime. — Sua risada me contagia sem
antes perceber. — Algo aconteceu de errado, meu bem?
Ah, verdade.
Não posso jogar conversa fora com a sra. Campbell, por mais eu
queira.
— Sim. Será que pode me ajudar? Preciso saber mais alguns detalhes
sobre sua neta. — Sorrio genericamente.
Como a miss adormecida que há dentro de mim.
6

Todos na vida devem ter uma paixão.


Sei lá como. De repente, as pessoas têm alguma paixão, alguma
obsessão, algo para amar ou adorar mais do que deveriam, mais do que ser
do limite saudável. Eu falo “devem” porque fico imaginando que todo
mundo tem algo para amar ou idolatrar.
Não sei mesmo como começar essa analogia, às vezes me apego as
elas para me sentir um pouco melhor por desejar tanto um carro quanto
desejo o meu. É isso o que amo. É isso o que faz certos pontos da minha
vida valer um pouco à pena.
Ao meu redor, tenho plena certeza que as pessoas falam de mim. A
droga do tempo todo. Se pudesse apostar na mulher do padeiro, ela diria
que adoraria passar um pente fino no meu cabelo. De vez em quando, ela
me atende na padaria. Analiso seus olhos passarem por meus fios
desgrenhados e como ela julga indiscretamente, se tenho piolho. Eu
também poderia lhe falar que é ela é uma preconceituosa de merda, que
cabelos cacheados são grandes e armados, que não há nada de errado com
eles. E nem ninho de piolhos.
Aliás, posso me gabar que fui a única criança que não teve piolho no
Jardim da Infância que frequentei em Salt. A única. Sempre sinto minha
língua coçar, arder e pinicar para falar que a princesinha de cabelo liso, que
é a filha do padeiro, tem piolho. É quase óbvio como a coitada da criança
coça a cabeça e a nuca. Mas não é um xingamento; qualquer pessoa pode
ter lêndeas. Então, apenas compro os bolinhos de canela favoritos da minha
avó e calo a minha boca.
As pessoas também acham que eu e minha avó nadamos em dinheiro.
Olha, até queria que fosse não só um boato, como um fato. Mas é mentira.
Sim, minha avó esteve no cinema, nas capas de revistas, em jornais,
fez as melhores cenas de comédias que as pessoas iriam querer ver em um
determinado tempo. Mas graças aos jogos, ao vício em bebida do meu
falecido avô, restou apenas um pouco de dinheiro e alguns sintomas de
dores de cabeça. Cujo benefício serviu para comprar uma boa casa e viver
às custas de uma aposentadoria que poderia ser mais generosa do que
verdadeiramente é.
Sempre que comento que estou juntando dinheiro para o meu carro, as
pessoas falam; “Nossa, mas sua avó é, tipo assim, uma estrela do cinema e
da TV.”
Não.
Ela foi uma estrela do cinema, que perdeu tudo quando se apaixonou
pelo idiota do meu avô. Não restou nada da sua fantástica vida como
celebridade para desfrutar, fora as lembranças que ela me conta sempre
quando jantamos. Ou sempre que esquece que me contou, e fala novamente.
Pode até parecer melancólico, mas Regina Campbell só pensa no melhor.
Em que ela foi e não quem é nesse momento.
Não é triste, é bem divertido, para falar a verdade.
Só não conto o que se passa dentro de casa. Prefiro que as pessoas
pensem que vovó é muquirana, que odeia me dar dinheiro, do que
imaginarem que uma ex-atriz, famosa até os dentes, não ter mais dinheiro.
Acho que ela morreria se todos soubessem. Se todos imaginassem que a
vida não é tão colorida quanto pensam.
Enquanto ninguém imagina, vovó continua a mesma.
Sobre querer um carro; preciso confessar.
Estou namorando um há mais de cinco anos.
Como?
Irei falar.
Adoro reviver a história de como o encontrei.
Eu estava voltando para a casa, a pé, havia esquecido de pegar o
ônibus e passei em frente à concessionária Torrier. Lá estava ele. Ela, na
verdade. Um modelo clássico e recriado de um Jaguar E-Type, feito
exclusivamente para festas e cerimônias. Depois, feito para a corrida.
Depois, se tornou esportivo. Um clássico e comum carro britânico. Apesar
de ser antigo e velho, não está destruído. As duas portas estão onde
deveriam estar, os vidros também e a carcaça, meu Deus, a carcaça chega a
brilhar depois de polir. Com certeza, se eu não tenho dinheiro hoje, na
época constavam apenas cinco libras no meu bolso — dinheiro único para
os bolinhos de canela da vovó.
Mas aquele Jaguar E-Type cantou o meu nome.
Me chamou.
Aster. Aster. Aster.
Três vezes. Ou quantas precisar.
O preço não ajudou muito também. O carro tinha passado por
consertos intensos, porém precisos, e estava novo em folha. Dando de dez a
zero em qualquer outro carro na concessionária. Lembro que corri para a
casa e perguntei para a minha avó se poderíamos comprar. Seria um
investimento. Com um carro, ela não precisava mais se arriscar andando ou
pegando táxi para fazer qualquer coisa.
Lembro que vovó estava sentada no sofá, tragou seu cigarro e disse:
— Impossível, minha querida.
E fim de papo.
Eu não ia insistir, simplesmente não ia. Por que iria importunar a velha
se eu poderia fazer algo em relação ao que queria?
Arranjei alguns bicos, juntando dinheiro ali e aqui. Depois, gastei esse
dinheiro no hóquei — tacos são caros e quebrá-los me faz chorar de ódio
por horas e horas. Depois, entrei na faculdade e percebi que aquele dinheiro
que vovó sustentava nossa casa, foi direcionado para a minha bolsa, era um
dinheiro de emergência.
Eu era sua emergência.
Me senti culpada um pouco, admito.
E agora, que estou livre de qualquer dívida, qualquer despesa, não
estou nem perto de conseguir a Betty — o carro.
Dei um nome a ele porque vovó disse que se dermos nomes às coisas
que queremos, elas se tornam nossas antes que possamos notar.
Estou segurando meu celular agora, esperando Gwen aparecer. A loja
de discos em que ela trabalha é de frente para a concessionária Torrier.
Betty está no foco novamente. De frente para a vitrine. O dono, o Dino,
sempre aumenta o preço da Betty com o passar dos anos. Se ele aumentar
mais um pouco o preço, irei surtar. Falo desse jeito porque nesse atual
momento, nessa atual situação das coisas, estou mais perto da Betty do que
possam imaginar.
— Ainda de olho nesse carro?
A voz que chega até meus ouvidos é cantarolada.
Viro sem precisar adivinhar que é Taylor.
— A Betty será minha. — Sorrio para Taylor, apontando para a vitrine
novamente com o dedo. — O que está fazendo aqui?
— Vou encontrar o Garret na cafeteria. — Taylor aponta para a
próxima esquina. Ela está dentro de um vestido preto, curto, que ninguém
consegue ver direito por causa do sobretudo. Apenas sei que ele é curto
porque já o tirei de seu corpo algumas vezes. — E você?
— Gwen. — Aponto para a loja de discos do outro lado da rua. —
Vamos matar o tempo juntas.
Taylor assente com a cabeça. Ela comprime os lábios, como se
estivesse pensando em algo melhor para dizer.
A ruiva já se ofereceu para pagar Betty, me ajudar a comprar logo o
carro e não precisar viver indo até a minha casa desprotegida. Quando ela
diz desprotegida, ela está se referindo às pessoas a encontrando na minha
companhia. Imagina o que o perfeitinho Garret diria, não é mesmo?
Mas sempre neguei sua ajuda.
Quero conseguir o carro com meu próprio dinheiro — ou alguma
bolada que eu ganhe do nada — não vindo de Taylor. Se ela comprasse
Betty é como se me comprasse para sempre e colocasse uma coleira ao
redor do meu pescoço com seu nome cravejado em cristais.
Enfim, ela desiste de dizer alguma coisa, apenas me manda um beijo
discreto quando Gwen Hallister se aproxima de nós.
Gwen prendeu os cabelos loiros em um rabo de cavalo e olha
desconfiada para Taylor enquanto a ruiva se afasta de nós, desfilando.
Gwen vive desconfiada — de tudo e de todos.
— O que Taylor Moore queria com você? — Gwen pergunta
desgostosa quando para diante de mim. — Ela não fala com os mortais.
Quando digo mortais, estou falando de nós duas.
Dou risada, apenas sacudindo o queixo.
— Só queria saber as horas. — Mentir é o meu forte, mas quando
estou com preguiça, chega até ser ridículo. — Vamos? Quero saber como e
quando você começou a sair com o Harvey Bird.
Minha melhor amiga ganha tons avermelhados na bochecha e suspira,
começando a tagarelar.
Há certas coisas que guardo dentro de mim.
Como um cadeado muito bem lacrado.

— E aí, velhinha. — Aponto para minha avó na cozinha e pisco. Está


quase na hora de ir para faculdade e estou precisando de um banho depois
de andar a tarde toda com Gwen. — Cheguei.
Beijo o rosto da minha avó. A mulher mais foda que conheço no
mundo inteiro. Ela está sentada na sala, enquanto serve chá para... a sem
graça Nicola Wolf. Tento não fazer uma careta, tento não demonstrar minha
surpresa e desprezo em ela estar ali. Mas vovó é boa com todos.
Até bocejo.
— E aí. — Aceno com o queixo.
— Olá. — Nicola responde. Bem como a típica princesa educada,
presa em uma torre de um castelo como é.
— Seguinte. — Retiro meus olhos de Nicola e olho para Regina
Campbell. Ela já deve ter reparado que odiei ser recebida desse jeito. —
Vou tomar banho antes de ir para a faculdade.
— Antes... — Vovó puxa a manga da minha camiseta, impedindo que
eu suba as escadas. A bandana entre meus cabelos quase caí pela força dela.
Não parece, mas Regina tem muita força quando quer. — A Nicola quer
falar com você. — Vovó sorri como se fosse a rainha do nosso país. — E é
um assunto que pode te interessar, meu bem.
— Ah, é? — Sorrio para Nicola. Totalmente falsa. Ela devolve o
sorriso e então sei, de repente sei, que ela está aprontando alguma coisa.
Nicola Wolf jamais sorri para mim. Ou para qualquer outra pessoa. — Meu
interesse como?
— Bem, isso vocês vão conversar! — Vovó bate uma única palma, se
levantando da poltrona que está acomodada e pegando a bandeja que serviu
chá para nossa nem tão amada vizinha do lado. — Nicola e você podem
conversar no seu quarto.
Normalmente, vovó não faz ideia como essa frase pode causar duplo
sentido. Mas não se importa. Ela gosta das meninas que costumo beijar e
ficar sem compromisso, conta algumas coisas que em enchem de vergonha?
Sim. Mas me aceita e me ama de uma maneira que jamais saberei
agradecer.
Mas, quando ela diz isso sobre Nicola, só pude imaginar que é uma
pegadinha. Mas é verdade. A Wolf quer mesmo conversar comigo. Tento
não fazer uma careta, tento não franzir os lábios.
— Vamos. — Aponto para a escada atrás de mim e dou as costas para
Nicola antes que ela proteste.
Ela protesta?
Não!
O que é estranho.
Nicola sempre disse que odiaria ser uma das garotas dentro do meu
quarto. Sempre deixou o desdém que sente por mim bastante claro. Não sei
se ela é algum tipo de preconceituosa, mas parece.
Abro a porta com um toque de ombro e começo a me livrar das peças
do meu corpo arrancando fora a bandana dos meus cabelos. Jogo em
qualquer canto e vou direto fechar as cortinas do meu quarto. Odeio
cortinas abertas e vovó ama.
Sinto a presença de Nicola atrás de mim.
Diferente das pessoas normais, Nicola não fica reparando no meu
quarto. Não quer absorver qualquer informação que possa ter de mim, não
tenta espiar as fotos dos murais, nem comentar como há alguns pôsteres de
bandas de rock alternativo pregados nas paredes. Nada. Ela não se interessa
nenhum pouco em estar em um ambiente desconhecido aos seus olhos.
Retiro minha camiseta, de costas para ela e suspiro, me virando.
— Olha. — Começo. — Seja o que for, a resposta é não!
— Nem vem. — Nicola dá de ombros, elegante.
Como ela consegue fazer isso?
— Quê? — Agora tiro minhas calças. Ela não parece se importar em
eu estar me despindo na sua frente, não me olha e nem cora abaixo dos
olhos. — Como tem certeza?
— Sua avó. — Nicola responde. Agora outro sorriso preenche seus
lábios e posso ver como seus dois dentes da frente são um pouco separados.
Separadinhos. — Ela me contou algumas coisas sobre você.
Pego uma toalha branca e me enrolo nela, terminando de me despir
totalmente atrás dela.
— Que sorte a minha. — Murmuro. Seleciono uma calcinha limpa da
minha gaveta e uma camiseta qualquer. — Pode falar.
— Só quero saber se...
Sorrio.
— Não, não e não.
Nesse momento, Nicola suspira, como se segurasse para não surtar.
Ora, ora.
— Serei rápida de uma vez. — Nicola pontua. — Tenho dinheiro o
bastante para te pagar, te convencer e você conseguir seu maldito carro!
Paro de procurar por minhas coisas.
— Como sabe da Betty?
Agora me sinto traída.
Valeu, vovó!
Valeu mesmo!
Demonstrar minha fraqueza faz com que Nicola ganhe uma retaguarda
que me deixa irritada em poucos segundos. Mas não dou esse segundo
gosto a ela. Demonstrar que Betty pode me atingir é o suficiente.
— Regina. — Nicola responde. — Ela me disse tudo. Que a coisa que
você mais quer no mundo é o carro.
— O que quer?
— Quero que seja a parceira na dança no gelo com Harvey Bird, meu
ex-parceiro.
Fico esperando que Nicola diga que é mentira. Fico esperando pelo
momento que ela dirá que estava apenas com tédio e decidiu passar seu
tempo comigo. Mas nada acontece. Ela continua séria, com os lábios
comprimidos e um olhar severo como se quisesse me punir por alguma
coisa.
Por baixo da camada sem graça de Nicola — até que sua seriedade é
bonitinha.
Quero dizer, ela pode ir de 0 a 100 em segundos.
Porém, a espera da piada nunca chega. Então, popularmente, sei que
ela está querendo minha ajuda.
— Como é?
— Resumindo. — Nicola arfa. — Harvey precisa do dinheiro que o
Salt-In, o torneio, irá premiar. Eu, logicamente, não posso competir porque
me acidentei no ano passado, você deve saber. Estou impossibilitada de
competir, acho que... Para sempre. Nós a vimos patinando no último jogo
das Tormentas e gostaríamos de saber se pode ser a parceira dele.
— Tá brincando, né?
— Adoraria que sim. — Nicola provoca. — Mas Harvey a viu
patinando. De alguma forma, você pode ter uma boa habilidade. E com
certeza, você não ajudaria apenas por ajudar. Pode conseguir a Betty.
— Pelo menos você tem noção que não poderia ajudar de graça. —
Desdenho.
— Isso é um sim ou quer apenas me torturar?
— A última opção, eu diria.
Nicola suspira.
— Mais uma coisa... Se ganharem o torneio, o dinheiro dele será
totalmente de Harvey.
— Nicola, agora é algo impossível que você está me pedindo.
— Não. Eu estou disposta a lhe dar Betty, como diz. — Ela está
começando a ficar impaciente. — Então... Se me ajudar, se ajudar Harvey a
vencer, o carro é seu. Sem enrolações. Pode até conferir o saldo no meu
banco pelo aplicativo se quiser.
Ajusto minha toalha no corpo.
— Então, por que não dá esse dinheiro a ele? Se o Harvey precisa
tanto.
— Ele não quer. — Nicola revira os olhos, séria. — Se quisesse, com
certeza, não precisaria estar implorando por sua ajuda. Vai por mim, nós
duas sabemos que não gosto de estar aqui. Mas estou, porque me importo
com Harvey e não me importo de usar meu dinheiro para um bem maior.
— Porque não ajuda seu pai?
— Ele não merece — responde de imediato. Espero que a voz de
Nicola oscile, que ela demonstre que está mal ou calejada com o divórcio
dos pais. Mas a impassibilidade reina nela. — Nem a minha mãe. O
dinheiro é meu e eu faço o que eu quiser. Quer a porcaria do carro ou não?
Faço bico.
— Seja educada com a pessoa que pode te ajudar.
— Sim, mas não é a única.
— A única que Harvey quer, pelo visto.
Consigo calar a boca de Nicola Wolf. O que, ao meu ver e no meu
mundo, é um grande ponto.
Alguns segundos de puro silêncio se iniciam entre nós.
Vovó está ouvindo jazz na sala, o cachorro do vizinho da frente está
latindo e Nicola Wolf não quer me encarar diretamente nos olhos.
Não faço ideia de como é ser privada de fazer algo que amo.
Conheço minha vizinha quase minha vida toda para saber que ela
amou dançar no gelo, da mesma forma intensa e louca que amo jogar
hóquei com as Tormentas. Se, de uma hora para outra, fosse incapaz de
fazer o que eu amo, eu estaria desesperada. Não estou sentindo empatia por
seu caso apenas por sentir. Sinto como se fosse comigo.
Ela ainda não saberia que meus motivos por aceitar uma ideia estúpida
como aquela é, puramente, movida ao que eu posso fazer por alguém. Não
quero que Nicola Wolf sinta compaixão por mim.
Então, antes de entrar no banho, apenas avalio as opções que tenho.
Negar ajudar Harvey e Nicola e ficar sem a Betty, sem meu carro e sem
poder levar vovó ou Gwen para passeios descentes. Até mesmo viagens.
E aceitar. Me vestir dentro de roupas apertadas, meias-calças,
penteados uniformes — como nos concursos de beleza — voltar a usar
maquiagem por alguns momentos e treinar todos os dias. Vantagens: terei
Betty.
— Está bem. — Ergo meus ombros. — Você venceu!
— Ótimo. — Nicola revira os olhos e saí do meu quarto sem dizer
mais nada.
Essa garota é um clássico dilema.
7

Eu nasci em Brighton.
Vim de uma família muito bem estruturada que não soube lidar com a
o falecimento do meu avô — viva a ironia — e que preferiu não lidar com a
viúva.
Uma família que queria que minha avó se sentisse bem, mas não...
tanto. Uma família que se ofereceu para ajudá-la em qualquer fase, mas que
desistiu quando percebeu que a fortuna dela não passava de algumas libras
jogadas no fundo de um banco. Uma família que a amava, mas só quando
estava no auge de sua carreira e ainda era convidada para dar entrevistas no
rádio, depois, servia apenas para lamentações. Uma família que queria ver
minha avó bem, mas melhor se houvesse dinheiro envolvido.
Eu tinha sete anos quando vovó perguntou à minha mãe se poderia me
criar.
Para famílias “normais” ou remotas, a pergunta poderia ser uma
ofensa. Um insulto gravíssimo. Para minha mãe, bem, acredito que para
minha mãe foi um alívio. Quase como “Ora, por que não perguntou antes?”
Na época, queriam encontrar uma enfermeira para minha avó. Ela não
estava doente e nem nada disso, mas estava começando a envelhecer e
minha família não queria encarregar um tempo à minha avó que não
tinham. Quero dizer, eles tinham, mas Regina Campbell não era mais a
Regina Campbell, então não se importaram com mais nada.
Vovó queria me criar porque eu dava trabalho para minha mãe. Mordia
as crianças na escola, era um pouco violenta, odiava ser educada, odiava me
comportar e vovó disse que poderia dar um jeito em mim de uma vez por
todas. O santo remédio que ela passou a procurar e jamais encontrou.
Enfim, minha mãe cedeu — não que isso tenha custado muito caro ou
muitas conversas, apenas duas a convenceram.
Não me lembro muito bem dos meus reais sentimentos. Não sei se
prometi a mim mesma que daria o dobro de trabalho para vovó Regina; não
lembro o que queria na época. Só lembro de ir embora de Brighton, com um
ursinho de pelúcia entre as pernas e uma mochila ao meu lado, vovó estava
fumando com a janela aberta, enquanto um motorista seguia em frente, com
um caminhão de mudanças logo atrás de nós.
Durante a viagem de Brighton até Salt, vovó disse que era a neta mais
bonita que ela tinha. Ninguém nunca havia me chamado de bonita antes. Só
encrenqueira e mal educada. Vovó disse que meus cabelos cacheados eram
meu verdadeiro charme. Ninguém nunca disse que meus cabelos eram
lindos ou charmosos, só falavam que deveriam penteá-los e conte-los em
um penteado qualquer.
Vovó disse que meus lábios cheios, eram desenhados à mão por anjos.
Ninguém nunca tinha me contado uma história mística sobre mim. Só que
os lábios das outras garotinhas eram mais discretos e, por isso, eu precisava
ser boazinha para suprir minha falta de beleza.
Então, fui amolecendo.
A criança que prometia tacar fogo em cortinas caras, só queria saber o
que mais ela podia ser de acordo com avó. Os primeiros dias em Salt e na
nova vizinhança foram horríveis. Minha vizinha de janela era a perfeitinha
Nicola Wolf, de cabelos arrumados e postura intacta.
Ela odiava brincar na areia, na lama, não gostava de patinar por
diversão e sempre fazia careta quando preferia pular e dançar a sentar e
brincar de bonecas. Era a criança mais chata do mundo.
Um dia, ainda sem amigos, no Jardim de Infância, encontrei uma
garota, pequena e mirrada, fazendo seus ursinhos de pelúcia caírem da Casa
da Barbie.
— O que é isso? — Eu perguntei completamente curiosa.
— Eles estão pulando de bungee jump — respondeu Gwen.
Mas, para variar um pouco, Gwen ficou desconfiada de mim durante
duas semanas até decidir dividir alguns bolinhos de baunilha comigo no
recreio.
Sobre os concursos de beleza, eu gostava.
Meu Deus, eu me divertia para caralho sempre que precisava fingir
que não era eu. Graças à vovó, eu acreditei fielmente que podia vencê-los.
Como venci muitos. A maioria das pessoas acha que vovó é quem me
obrigou a participar de um concurso de beleza, mas apenas quis.
Por conta própria.
Foi em um dia em que encontrei algumas fotos dela no sótão, com a
minha idade. Ela havia sido Miss Brighton e conseguiu uma vaga no Miss
Universo representando a Inglaterra aos vinte e um. Ela me contou a
história enquanto fazia panquecas pela manhã. Então, sem esperar ela
terminar, disse que queria tentar.
Lógico que a caminhada foi difícil; odiava que penteassem meus
cabelos, as maquiagens incomodavam e os vestidos eram rosa demais. Mas
depois, depois que eu desfilava, acenava para vovó na plateia e sorria, eu
percebia que, de fato, estava fazendo algo divertido. Sabotar e provocar as
outras misses eram a minha parte favorita de tudo. Elas choravam com tanta
facilidade que me dava ainda mais vontade de continuar.
Só parei de competir quando não achei mais graça alguma. Sempre era
a mesma coisa; desfile, perguntas idiotas com respostas prontas, exibição de
talento, classificatórias, mais desfiles e a vencedora. Pronto. Fim de papo.
De volta para a casa.
Ah, sim. Os concursos serviram para fazer com que vovó e eu
tivéssemos um laço ainda mais forte, com certeza. Mas também serviu para
fazer com que meus troféus ficassem ao lado dos de atuação de vovó.
Nosso mural é a minha parte predileta da casa. Fica abaixo da escada
principal e tem nossas fotos, dispostas abaixo de uma luz neon que muda de
cor.
A ideia da luz foi minha.
Quando cresci e percebi que gostava de garotas — mais do que
importuná-las — vovó não ficou surpresa. Ela tragou um cigarro e disse que
tudo bem. Naquela noite, ela me deu seu colar favorito de todo o mundo.
Um colar de ouro branco com um pingente de cadeado. Ela disse que
aquele colar lhe acompanhou por muitos anos; que ela o segurava sempre
que precisava manter a calma e que a ajudava sempre a descobrir quem ela
era e a verdade sobre si mesma.
Vovó, então, me disse que as pessoas iriam tentar me punir por amar.
Que as pessoas iriam testar minha paciência e que eu deveria ser franca e
manter a calma. Que, dali em diante, eu precisava sempre saber quem eu
era.
Nunca mais o tirei do pescoço.
Somos melhores amigas e graças à minha avó, soube desde pequena
que tenho um valor enorme no mundo.

— Não acredito!
— Pois acredite, porque não estou contando mentira nenhuma, Gwen.
— Você odeia dança no gelo! — Gwen berrou do outro lado da linha.
— Tipo, desde que...
— Eu sei, eu sei. Mas a chatinha da Nicola Wolf irá me pagar. E com o
dinheiro irei conseguir a Betty de uma vez por todas. Nem preciso
agradecer. Danço, venço esse troço e ainda ganho um carro. Está me
entendendo?
Ouço minha melhor amiga suspirar do outro lado da linha.
— Está indo para lá agora? — Gwen quis saber.
— Estou. Chegando à arena de ensaios. Arena Palmer. — Empurro a
porta pesada a vácuo da arena pública da cidade. Algumas pessoas podem
treinar à vontade, outras precisam marcar horário. — Eu prometi não
prometi?
— Certo... — A desconfiança de Gwen ataca novamente. — Me conte
tudo depois!
Desliguei o celular, enfiando na minha calça e abrindo uma latinha de
energético em seguida.
A Arena Palmer me recebeu rapidamente. Sem graça.
Algumas funções da cidade de Salt é sempre apoiar os esportes de
gelo. A pista de patinação estava vazia, por apenas uma figura deslizando
pelo gelo artificial de maneira leve e graciosa. Dei um longo gole no
energético e me aproximei das duas pessoas que estavam me esperando.
Harvey Bird é quem estava patinando; de um lado e para o outro, com
um sorriso enorme no rosto que só fazia os olhos de Nicola Wolf faiscarem.
É até estranho perceber que Nicola tem apreço por alguém neste mundo e
ainda mais por Harvey. Alguém absolutamente normal.
— E aí. — Desci alguns degraus da arquibancada, para chegar até
Nicola. Inteiramente de preto, Nicola também usava um rabo de cavalo bem
penteado e firme ao topo da cabeça. Ela me direcionou apenas uma olhada e
um aceno de queixo. Era o bastante. — E aí, Harvey! — Acenei para ele,
que havia acabado de girar mais de cinco vezes no lugar.
— E aí, Aster! — Gritou, girando novamente acima dos calcanhares
em patins.
— Bem... — Nicola passou seus olhos pelo energético na minha mão e
depois para o meu rosto. Quase entrando em colapso. — Preciso dizer que
está atrasada? — E fingiu um sorriso.
Joguei todo meu peso ao seu lado, me sentando e deixando que minha
mochila caísse entre minhas pernas.
Foram três dias interessantes.
Dias em que me vi obrigada a falar com Nicola Wolf; cada dia por
algum motivo diferente. Dei meu número a ela, afirmando que poderia me
ligar ou enviar uma mensagem sobre os treinos.
Até mesmo tive que falar com ela em uma aula!
Eu nem sabia que fazíamos uma aula na faculdade juntas, meu Deus!
Agora, depois dessas setenta e duas horas, eu sou oficialmente a
parceira de Harvey Bird em uma competição no gelo.
O que não faço pela Betty?
— O que iria adiantar? — Devolvi a provocação. — Você irá falar do
mesmo jeito.
— Precisa saber que somos pontuais. — Nicola arrebitou o nariz. —
Ser pontual te dá pontos, sabia disso?
— Não é a Olimpíada, Nicola. — Revirei os olhos. — É apenas um
torneio.
— Oh. — Ela murmurou incrédula. — Acha mesmo que eles não irão
julgar sua pontualidade, ou... Ou sua destreza...
— Nicola! — Harvey se aproximou de nós. Deslizou até a barreira de
madeira e plástico que separava a pista de patinação das arquibancadas e
apoiou os braços ali. — Não assuste a menina logo no primeiro dia.
— Só estou dizendo... — Nicola engole em seco, empertigando os
ombros. — Que temos que ser levados a sério.
— Nem começamos. — Harvey sorriu. — Relaxa, por favor.
Nicola não discutiu com ele, apesar de querer.
Apenas enrugou o nariz e umedeceu os lábios, contrariada.
Sua atitude quase — eu disse quase — me faz sorrir. Garotas teimosas
ainda são garotas teimosas. Mas garotas prepotentes e estressadas tinham
uma parte de mim que ainda não conseguia entender o porquê me atraíam
tanto. Elas sempre encaram a vida com uma pressa exagerada, enquanto
apenas quero desacelerar.
— Então... — Nicola bate os pés de modo frenético e ansioso na
madeira abaixo de sua sola. — Não iremos explicar nada a ela?
Harvey Bird, que eu espero que saiba responder Nicola à altura, apenas
sorri serenamente. Sem um pingo de estresse.
— Ainda é o primeiro dia, Nikki. — Harvey garante, com um sorriso
de efeito que é capaz de acalmar Nicola Wolf. — Vamos apenas conversar
sobre os treinos diários e ver como nos damos bem, hum? — Harvey abaixa
um pouco o queixo, para encontrar os olhos de Nicola.
Ela suspira, convencida e confirma com o queixo, silenciosa.
Solto uma risada nasal.
— Fofos. — Sibilo. — E então, como isso será feito?
— Trouxe seus patins? — Harvey pergunta para mim.
— Sim.
— Então só os coloque e vamos tentar encontrar nossa química na
pista e na dança.
Bato uma palma rítmica, confirmando.
Sinto Nicola inquieta ao meu lado.
Será que ela entraria em pane se passasse apenas um dia, um diazinho,
sem dar ordens em alguém?
Deixo o energético de lado — até digo que Nicola pode beber. Veja
como sou boazinha.
Retiro meus patins reservas da mochila, preparo meus pés e minhas
meias, e os coloco. Em pé, me arrasto até a entrada da pista de patinação,
Harvey me espera com uma mão estendida.
— Você não vem? — pergunto a Nicola.
Seus olhos estão presos em nós dois, em pé, diante de seu corpo. Ela
não trouxe nenhum patim, não trouxe nada para estar conosco. Apenas está
sentada, com as mãos reunidas ao joelho, em silêncio, nos avaliando.
— Serei a treinadora — responde um pouco vaga nas palavras. —
Apenas isso.
Subo as sobrancelhas e a ignoro.
Eu sei que Nicola não pode competir, mas patinar deve ser uma tarefa
fácil, não é? É só zanzar de um lado e para o outro, deslizar com equilíbrio,
determinação.
Não deve exigir muito.
— Antes de começarmos a... — Coço minha nuca. — Procurarmos
nossa química. — Harvey, o médico, dá um sorriso. Nicola, o monstro,
enruga os lábios. — Por que é que você precisa do dinheiro do prêmio?
Nicola inspira e abafa um gritinho, como se eu tivesse não só lhe
ofendido como toda sua família.
— Não precisa responder se não quiser, Harvey! — Nicola junta as
sobrancelhas, irritada.
— Não, tá tudo bem. — Ele garante ao gesticular para ela. — Dívida
estudantil — diz para mim. — É bem grande. E a minha bolsa não cobre
muito. Estou meio atrasado para um empréstimo estudantil e pode ser ainda
pior. O prêmio vai cobrir boa parte do valor, ou ele todo. Depende da nossa
posição.
Agora sinto um pouco de pressão.
— Bem. — Subo os ombros. — Se vamos fazer isso. É melhor
fazermos direito!
8

Tenho absoluta e fervorosamente certeza que as pessoas, quando me


olham, enxergam uma pessoa destemida, corajosa e até mesmo imprudente.
Só que o certo é bem longe do esperado.
Eu tenho medo.
Sinto muito medo.
O tempo todo.
Quase sempre sou arrematada por esse sentimento que me faz ficar
mais minutos na cama do que o habitual. Tenho medo de um dia acordar,
cansada da minha família, e meu pai ainda estar morando no sofá. Tenho
medo de Barr crescer e meu pai ainda estar vagando pela casa, como um
espectro, alguém que não tem vontade de evoluir ou se mudar para outra
casa, outra região ou estado. Tenho medo de Barr odiá-lo. Tenho medo de
Barr odiar meu pai. Tenho medo de Barr, um dia, me odiar.
Tenho medo de contar à minha mãe que as amigas que sumiram daqui
de casa não eram só amigas. Que eram garotas que gostaram de mim e
passamos ótimos momentos juntas. Tenho medo de contar que gosto
também de garotas. Tenho medo de me apaixonar por uma, me enlaçar
perdidamente por uma mulher e querer me casar com ela. Tenho medo da
minha mãe não aparecer na cerimônia. Me crucificar, não me ver mais
como sua filha.
Tenho medo de papai indo para longe. Procurando e buscando uma
nova vida depois do divórcio. Tenho medo que ele suma. Que não conheça
de verdade sua própria filha.
Tem medo de Nancy voltar para a casa um dia. Tenho medo de Barr
desejar ser como Nancy; querer ser perfeito e quase se torturar quando não
conseguir. Tenho medo de não ser aceita como uma Wolf. Tenho medo dos
jantares em famílias silenciosos, tenho medo de muitas coisas.
Mas, o meu novo medo, é de patinar.
— Ele está indo bem, não é? — Mamãe está sorrindo, com o celular ao
ar, erguido, enquanto grava Barr jogando.
Ele está no grupo mirim e amador de hóquei da escola. Ninguém
marca pontos nesses eventos, mas como a maioria são pais babões, todos
comparecem como se todos estivessem ganhando algo.
Mamãe está gravando porque ela adora — para não dizer que ama —
quando nós, seus filhos, fazemos algo que seja venerado ou complexo.
Mamãe acha hóquei e dança no gelo bastante complexas, então ela ama essa
nossa parte artística e esportiva.
Reparo nos pés de todos os jogadores, dentro de patins com lâminas
brilhantes e prateadas.
Sinto falta da sensação do vento superficial contra meu rosto, de sentir
o corpo deslizar e o som do gelo se cortando a cada vez que freio. Às vezes,
se eu fechar os olhos, sei descrever a sensação de dançar e ser aplaudida de
pé após uma apresentação. Mas não faço ideia de como seja essa velha e
corriqueira sensação depois do que aconteceu.
Desejo patinar por diversão. Meu Deus, como desejo.
Apenas conversar com Harvey, no inverno, enquanto passeamos pelos
bosques infestados de neve e pelos lagos congelados. Mas não consigo.
Simplesmente não consigo.
Claro que adoraria que fosse eu a parceira de Harvey, mas fico feliz
que ele tenha se dado bem com Aster. Os dois apenas giraram em círculos e
correram um atrás do outro no primeiro treino, mas Harvey gargalhou e
posso jurar, de pé junto, que Aster também. Então eles estavam se dando
bem.
Acontece que tenho medo de coisas o bastante para me considerar
corajosa.
— Ele é um lindinho, não é? — Mamãe comenta sobre Barr. Usando
um capacete maior do que sua cabeça, próximo ao gol. — Quando sairmos
daqui pode comprar cachorro-quente se ele quiser. — Ela recomendou.
— Pode deixar.
Meu pai não estava presente.
Ele foi ao recital de Barr ainda essa semana, onde não somente Barr
tocou piano, como declamou um poema. Agora, no hóquei, era a vez de
mamãe. Eles ficam revezando. Menos comigo. Eu comparecia em todos.
— A sra. Campbell me disse que a Aster vai participar do torneio Salt-
In... Com Harvey. Isso é verdade?
Ah, mamãe.
Sutileza não é seu forte.
Apesar de estar com os olhos bem fixos e atentos ao jogo de Barr e
estar gravando com seu celular de última geração, detecto o tom sarcástico
e venenoso na voz de mamãe.
Não faço ideia se Aster dançar com Harvey é um segredo, então
apenas confirmo.
— Mesmo? — Mamãe indaga. — Que curioso. Jamais pensei que
Aster tivesse bom gosto.
Aquele comentário se parece bastante com algo que eu diria, mas, dito
por minha mãe, que sempre tem algo de ruim para falar — de qualquer
pessoa — apenas me faz ficar em silêncio.
— Como isso aconteceu? — Ela quer saber. Odeia ficar curiosa. —
Harvey está tão desesperado assim?
— Eles só se deram bem. Só isso, mãe.
— Bom... — Ela remexe as sobrancelhas, ainda pensando em algo
maldoso. — Será a primeira vez que verei Aster limpa e com os cabelos
penteados, hum? Será histórico!
Agradeço pelo time adversário tentar marcar um ponto, porque é nesse
momento que Barr defende, impedindo que o disco chegue à rede do gol.
Fazendo alguns pais corujas gritarem de emoção.
Incluindo mamãe que esquece o assunto.

— Foi muito bom!


Pego o cachorro-quente que o dono da barraca de comidinhas me
estende e passo para Barr. Ele tem as bochechas coradas de cansaço e um
taco de hóquei dentro da proteção descansa em suas costas, pendurado.
— Gostou mesmo? — Barr pergunta. Há certa insegurança em sua
voz. Ele espera a minha resposta para dar a primeira mordida no cachorro-
quente. — Tipo... Não foi horrível? Ou patético?
— Não repita isso. — Apontei rapidamente. Ele finalmente abocanhou
o lanche e sujou a boca de mostarda. — Foi ótimo! Me senti assistindo aos
profissionais.
— Também não precisa mentir — respondeu Barr com a boca cheia.
— Queria que o papai tivesse vindo.
— Ele vem na próxima. — Fiz carinho nos cabelos de Barr. — Tenho
certeza que ele vai adorar.
— Na próxima, o treinador Miti disse que posso sair do gol. Irei
marcar alguns pontos, pode apostar! — Barr prometeu, comendo
novamente e falando de boca cheia. Tudo ao mesmo tempo.
Meus olhos escapam para um time que está presente no campo de
lacrosse, que fora transformado numa feira de comidas e apresentações de
todos os anos na escola de Barr. Alguns times de hóquei iriam se apresentar
apenas experimentalmente e um em especial tomou toda a minha atenção.
Claro que meu irmão já tinha parado de falar quando identifiquei Aster
Campbell ao meio das Tormentas.
Elas estavam usando o uniforme inteiramente cor de rosa, a favor do
Outubro Rosa que a cidade, as escolas e as faculdades locais sempre
pregam. Ela estava sorrindo e conversando com uma amiga do time. Aster
sorria e fazia trejeitos, gesticulava.
Lembro dela patinando com Harvey.
Foi tão livre e legal de ver, que quase pedi algum patim emprestado
para me juntar a eles.
— Ei. — Barr me chamou. Tratei de tirar meus olhos de Aster para
ouvi-lo. — Com quem a mamãe está falando?
Barr apontava para uma direção contrária da de Aster e das Tormentas.
Minha mãe estava na fila do algodão doce, com seu próprio doce entre as
mãos, da cor azul claro. Ela estava falando com um homem, de aparência
bonita, belo sorriso e que usava terno. Acredito que Salt seja fria o bastante
para todos sempre serem pálidos e usarem roupas compridas, mas terno?
Em um evento infanto-juvenil? Sério?
— Não sei — digo a Barr.
Não estou mentindo.
Mamãe coloca o cabelo atrás das orelhas e sorri, flertando.
— Deve ser algum amigo! — Quero que Barr pare de olhá-los.
Dependendo de qual for a pergunta, poderá ser drástica.
— Ah! — Ele solta, animado. — Olha lá a Aster! Posso ir falar com
ela? — Barr pergunta com empolgação, sem se conter.
— Claro. — Toco sua bochecha.
Percebo que ele já terminou de devorar o cachorro-quente e corre na
direção de Aster, repetindo o nome dela desesperadamente.
Aster, quando avista meu irmão, sorri de todos os dentes. Seus olhos se
enchem de entusiasmo e ela acena, na mesma entonação divertida de Barr.
— E aí, pirralho! — Aster o cumprimenta.
— Você viu o meu jogo? — Barr quer saber, quase gritando de
empolgação.
— Se eu vi? — Aster rebate. — Estava na primeira fila.
Então, não consigo ouvir mais nada do que os dois estão conversando,
porque simplesmente param de gritar um com o outro.
Olho novamente para a fila do algodão doce, onde mamãe deveria
estar. Mas não há ninguém que se pareça com ela ou o cara misterioso que
estava conversando. Varro meus olhos pelo festival, à procura dela — ou
dele.
Mas não os encontro.
Percebo que será tarefa minha levar Barr para casa e terei que inventar
qualquer desculpa para fazê-lo acreditar que mamãe teve uma emergência
no escritório. Tento não demonstrar minha infelicidade em ser dessa família
— não na frente de tantas pessoas felizes. Penso em mandar mensagem para
Harvey, mas ele já está cobrindo um turno na livraria que deveria ser meu.
Quando as pessoas descobrem que eu tenho vinte e dois anos e ainda
moro com meus pais, eles pensam nas hipóteses mais doidas. Mas a fama
de preguiçosa sempre fica. Tem algumas pessoas que comentam que, por
causa do meu acidente, acabei ficando em casa e me acomodando. Outras
têm certeza que apenas gosto de onde vivo.
O motivo de ainda viver com meus pais, enquanto há um dormitório
bom e particular na United Salt é único e simplesmente por Barr. Não
consigo imaginar vivendo em algum lugar, longe dele, e meu irmão caçula
tendo que lidar com nossos pais. Não sozinho. Barr é jovem demais para
tentar saber controlar as brigas que explodem do nada. As provocações e as
alfinetadas pesadas que acontecem.
De vez em quando, desejo que Barr tenha doze anos para sempre. Que
viva na crista da inocência pelo resto de seus anos. Mas estou sendo injusta
com meu próprio irmão ao desejar que ele nunca siga em frente. E,
enquanto o divórcio não saí, prometi a mim mesma que jamais o deixaria
sozinho com eles. Não me importo de estar dando todo o meu dinheiro
economizado por anos dançando se isso irá custar à felicidade de Harvey.
Quando meu pai ou minha mãe saírem de casa, saberei que será o
começo do “feliz para sempre.”
Quando desisto de procurar por minha mãe, me aproximo de Barr e
Aster — meu irmão, por sua vez, está totalmente entretido com as
Tormentas.
— Ah. — Aster solta quando me vê. — Você veio!
— Acho que sim. Ou posso ser um holograma. Depende do ponto de
vista. — Forço um sorriso. Aquele mesmo sorriso amarelo que a pessoa
sabe que é apenas uma falsa cordialidade.
— É, mesmo que eu havia desconfiado que você estava se divertindo
demais. — Aster sibila. — Não combina com você!
Não respondo, porque não tem nada para responder ou retrucar.
As Tormentas estão conversando com meu irmão, sobre técnicas e
faltas que podem acontecer no hóquei. Há algumas delas que reconheço de
boatos ardilosos que descubro nas festas em que frequento e ninguém
repara na minha presença.
Quando quero falar algo para Aster — não sei o motivo — Barr
dispara:
— Nikki! — diz desesperado. — Eu posso ver as Tormentas jogarem?
— Entraremos a pouco. — Uma delas diz para mim.
Olho para Aster, que está sorrindo orgulhosamente para Barr.
— Acho que sua irmã não gostou da ideia, pirralho. — Aster desafia.
Em outros momentos, mamãe falaria para eu não deixar Barr tanto
tempo fora de casa. Longe das Tormentas, Barr estaria ansioso para ir para
casa e narrar tudo o que fez para nosso pai. Mas com elas, tendo atenção
delas, suas ídolas, e da própria Aster que de vez em quando o leva para
treinar, não há como negar.
E, bom, mamãe está longe, quanto mais eu distrair meu irmão, melhor.
— Claro! — Até finjo que estou animada. As Tormentas e Barr
comemoram, como se minha resposta fosse a melhor coisa do mundo. O
time e Barr saem na frente, conversando, é claro, sobre hóquei. Reparo em
Aster me olhando. — O que foi?
— Desde quando gosta tanto assim de hóquei? — Aster cruza os
braços e sorri de lado. É um meio sorriso até que bonitinho se levarmos em
conta que ela quase nunca demonstra nada bom para mim.
— Não gosto. — Arrumo meus ombros. — Mas amo Barr.
9

Antes de tudo o que me compõe hoje em dia, participei do time de


hóquei da escola antes de perceber que poderia fazer o mesmo na faculdade.
Veja bem, quase tudo o que me comprometo a fazer é apenas diversão
para mim antes de perceber que realmente gosto. Concursos de beleza,
brincadeiras com ursinhos de pelúcia, construir uma caixinha de música
com madeira velha, o hóquei ou qualquer coisa. Qualquer coisa mesmo. Na
escola, apenas me comprometia aos treinos porque não tinha nada melhor
para fazer depois das aulas. O time era misto e eu me divertia muito quando
viajávamos ou saíamos de Salt para as competições em cidades vizinhas.
Acontece que deu certo.
Ao ponto de eu conseguir uma bolsa na universidade local graças ao
hóquei e meu desempenho no time misto da escola. Mal pude acreditar que
a minha diversão estava dando lucro simplesmente porque sou boa e tenho
talento. A bolsa veio bem a calhar; achei que ia voltar para Brighton. Achei
que minha avó fosse se dar conta que cheguei à uma idade que, quem sabe,
minha mãe pudesse me ter de volta em casa. A bolsa de setenta por cento
me fez ficar em Salt. O time, diferente do colégio, não era misto.
As Tormentas são compostas apenas por garotas. O time feminino e
modéstia a parte, o mais interessante. Comecei como reserva no primeiro
semestre e ano que comecei. Depois fui conseguindo meu lugar ao sol, até
dividindo a liderança com outra garota, a Ted Farmer, mas que se formou,
deixando o cargo apenas comigo no ano passado.
O hóquei não é o que eu quero para sempre.
Sei disso.
Algo dentro de mim sabe também.
Mas não tenho noção do que seguir; nenhuma profissão me parece
boa. E falar isso aos vinte e dois anos, me dá a falsa sensação de estar
vivendo em um limbo. As pessoas esperam que você tenha essa nata
confusão quando tem dezoito — ou menos — mas depois dos vinte, elas
esperam que você esteja com um cronograma perfeito sobre sua vida pelos
próximos cinquenta anos.
Sempre gostei — pode parecer mentira — de ajudar algumas pessoas.
Minha avó sugeriu o curso de Enfermagem, em Londres, enquanto apenas
estudo para conseguir um diploma da United Salt.
Ir para Londres, quer dizer ir sozinha ou ir com a minha avó?
Ainda não chegamos a esse detalhe.
Para variar um pouco, não conversei com ninguém sobre isso. Nem
com Gwen, que estuda arquitetura e nem com qualquer outra garota das
Tormentas. Às vezes elas dizem que me conhecem, mas ao mesmo tempo
em que não fazem ideia de quem sou eu.
— Isso é verdade? — Taylor Moore se aproxima de mim, pegando
uma cadeira de frente à minha, na biblioteca da faculdade. Há um livro de
enfermagem aberto diante de mim, a clássica Enfermagem para leigos.
Felizmente, Taylor não é curiosa o bastante para tentar definir o que “quero
ser quando crescer”. — Vai mesmo competir com Harvey Bird?
— Uau. — Disparo. — Essa cidade é pequena mesmo, hein?!
— É algum tipo de piada? — Os lábios de Taylor se formam em um
sorriso doce e prestativo. Ela parece querer rir, dependendo da minha
resposta. Apenas nego com o queixo. — Por que está nessa?
— Assuntos pessoais. — Resumo. — E assuntos que não são da sua
conta. E nem da minha. Apenas estou nessa, fazendo por diversão. É o que
mais faço nessa vida.
Taylor não gosta da resposta.
Como uma nítida desbravadora da vida dos outros, ela parece até
mesmo desgostosa com a minha resposta.
Não sei definir nossa relação.
Não somos amigas. Taylor nunca falou comigo quando estudávamos
na mesma escola e até mesmo ouvia cochichos seus falando sobre mim e a
aparência de Gwen quase o tempo todo. Não sei julgar se ela é uma boa
pessoa ou apenas finge que é quando estamos juntas. Não sei como anda
sua relação com Garret Cox. O que sei dele é baseado em uma reputação de
incorrigível e distante. Mas que faz algumas garotas o desejarem facilmente
— mesmo que sempre esteja comprometido e não seja lá muito agradável
de conviver. Gwen me explicou que pode ser pela aparência dele ou a
influência da família Cox em Salt.
Até mesmo Nicola Wolf foi sua namorada. Acho que por três anos. Ou
quatro. Não sei dizer. Mas foi tempo o bastante para vê-los brigarem no
jardim dos fundos da casa de Nicola e vê-la chorar quase sempre que Garret
gritava ou a ofendia sem pensar. Posso contar nos dedos quantas vezes vi
Garret pedir desculpa, segurando um buque de flores à porta da casa dos
Wolf, com cara de cachorro abandonado, implorando por perdão.
E perdi as contas de quantas vezes vi Nicola chorar por ele.
Ser vizinha de janela de alguém tem lá suas inúmeras desvantagens.
Mas não ouço essas reclamações vindo de Taylor, com quem Garret
namora há nove meses.
— Enfim... — Taylor toca os lábios. — Podemos nos reunir, na minha
casa, para fazermos o começo do trabalho da sra. Tent juntas?
Nunca fui à casa dos Moore.
Se Taylor está me convidando estaremos sozinhas.
— Pode ser.
— Estou sem ideias. Mas você é tão criativa que pode me ajudar.
Às vezes Taylor me enche de elogios, como se quisesse compensar
alguma coisa passada.
— Sim. Está tudo bem.
Suas unhas longas batem contra a madeira da mesa, insistente. Ela
deve estar pensando sem parar em alguma coisa. Sem coragem o suficiente
para botar para fora.
— Você... — Taylor morde os lábios. Aflita. — Você me contaria se
Nicola quisesse voltar com o Garret, não é?
Sua frase me faz ter vontade de gargalhar, até a barriga doer e poder
limpar uma lágrima teimosa do canto dos meus olhos. Agora entendi o que
ela quer dizer. Não importa se estou nessa com Harvey Bird, o que importa
é que estou passando muito mais tempo com Nicola Wolf agora. Mas
Taylor Moore fala sério. De alguma forma, mesmo estando sempre comigo
às escondidas, ela gosta de Garret. Como e por que, aí é um tremendo
mistério.
Só de pensar em dever justificativas a alguém me sinto fora de órbita.
Não estou namorando justamente por isso.
Meu casinho com Taylor começou há três meses.
Estávamos na fogueira, tinha acabado de beber um pouco e Taylor
estava dançando com as amigas. Se aproximou de mim e quase começamos
uma briga. Me afastei do grupo e da fogueira, indo parar em uma pedra
lascada. Esperei ali até estar sóbria, e na volta, por um bosque fechado e
denso, Taylor me encontrou. Pediu desculpa sobre a possível briga ou os
insultos que tinha feito. Ela estava estranha. Mais sorridente, mais
charmosa, flertando comigo como se não tivesse um namorado. Ou como se
não fosse hétero.
Quando ela me beijou, eu a afastei assustada.
Depois, a beijei novamente.
Taylor significa diversão para mim. Como tudo.
— Nicola não quer voltar com Garret. — Garanto, mesmo não
sabendo a verdadeira resposta. — Ninguém o quer.

— Está bem! — Gwen segura meu cotovelo, antes que eu entre


definitivamente na Arena Palmer. Ela está usando o boné da loja de discos e
segura seu sabor favorito de smoothie, morango com banana. — Eu vi você
conversando com a Taylor Moore de novo na biblioteca. O que está
acontecendo, Ast?
— Anda me espionando? — Brinco, sorrindo para Gwen.
Desconfiada, ela não emite nenhuma outra reação.
— Sou sua única amiga de verdade. — Gwen arrebita o nariz. O
comentário poderia me ofender se não fosse verdade. — A única. Então...
Pode me contar?
Não há escapatória.
E não sei como não falei isso antes.
— Ah, meu Deus. — Gwen dá um passo para trás. Depois do meu
silêncio, sei que uma tese dela fez sentido dentro de sua mente. — Está
pegando a Taylor?
— É?!
— Aster! — Gwen brada, batendo o pé no chão. — Que merda. Ela
odiava...
— Não parece me odiar enquanto me beija ou quando me deixa fazer...
— Não quero ouvir detalhes! — Gwen me repreende, mas quer sorrir
ao meio da bronca. — Não mesmo. Como... Como isso aconteceu? E como
escondeu isso tão bem de mim?
— Aparentemente fui péssima escondendo se você deduziu em apenas
segundos de silêncio, não é? — Ironizo, abraçando Gwen pelos ombros e
caminhando com ela para dentro da Arena Palmer. O segundo dia de treino
irá começar. — Olha, o que precisa saber é que às vezes nos beijamos e que
Garret Cox não sonha com isso.
Gwen Hallister está inconformada com a falta de detalhes que lhe dou.
Nem pergunto o motivo dela estar aqui também, sendo que o motivo, está
dançando, sozinho e solitário, na pista de patinação vazia. O caminho até lá,
continuo abraçada à Gwen, contando o que guardei comigo — e com meu
colar de cadeado esse tempo todo. Gosto do fato de Gwen não ser frágil ao
ponto de exigir que eu sempre esteja disposta a falar sobre minha vida,
mesmo que isso demore três meses ou um ano. Ela me escuta e, até mesmo
pela surpresa imediata, que sempre dura apenas dois minutos ou menos,
Gwen está lá.
— Só toma cuidado, tá legal? — Gwen diz, tocando meus ombros
quando eu coloquei meus patins e estava pronta para deslizar até Harvey.
Nicola Wolf estava a metros de nós, falando com Harvey. Ela na
arquibancada, ele do outro lado. Ela ainda sem colocar um patim nos pés,
ele esperando suas recomendações como treinadora.
— Todo mundo sabe quão instável o Garret Cox é. — Gwen disse
ainda mais baixo, engolindo um seco. — Odiaria...
— Ele não fará nada. — Termino de arrumar o laço do meu patim. —
Esse negócio com Taylor irá acabar. Sério. Nem é mais tão divertido. Agora
que mais pessoas sabem, como você e a Nicola, perdeu a graça. — Pisco.
— A Nicola sabe? — Gwen pergunta estática.
— Ela é a minha vizinha. — Suspiro. — O que mais ela não sabe
sobre mim?
Pisco novamente, apenas para dar o efeito desejado em Gwen
Hallister; ela apenas sorri e bate palma, me animando para o próximo
ensaio e treino. Entro na pista, deslizando até Harvey e cumprimentando os
dois.
— Os treinos serão diários. — Nicola ignora meu “oi” e diz assim que
me aproximo. O típico colar de pérolas que não saí de seu pescoço reluz
contra mim. — E você estar aqui na hora marcada, Aster. Competidores
sempre precisam ser...
— ... pontuais. — Completo, segurando para não rolar os olhos. —
Estou aqui, não estou? Até o fim do inverno prometo que serei mais firme.
Aliás, nem no inverno estamos.
— Ainda. — Pontua Harvey, brincando e sorrindo. — Agora,
precisamos te ensinar algumas coisas.
— Será que consegue guardar tudo? — Nicola provoca, destilando seu
próprio veneno e ego. — Por exemplo, você pesquisou algo sobre a dança
no gelo? — Dou de ombros em forma de resposta, o que quer dizer “não”.
Nicola Wolf suspira pesadamente, como se odiasse lidar com pessoas
iniciantes. — Você tem bons movimentos e atitudes em cima de patins. Ou
seja, você sabe o que está fazendo o tempo todo.
— E então?
— Treino passado nós ficamos apenas um do lado do outro, mas na
dança, você não pode se separar de mim. — Harvey Bird retoma o que
Nicola começou. — É uma regra. Os parceiros precisam estar juntos,
sempre, ou longe, em até dois braços de comprimento. Mais que isso,
perdemos pontos, menos que isso, podemos atrapalhar e interferir no
processo do nosso parceiro.
— Não é como no hóquei. — Nicola sorri, adorando estar no controle.
— Aqui você é um time. Uma pessoa só com Harvey. E ele com você.
Consegue entender?
— Não sou idiota. — Semicerro os olhos para Nicola e me volto para
Harvey. A única pessoa que consegue explicar as coisas sem autoridade
nítida. — E como funciona essa coisa... Dos braços?
— Simples. Quando precisamos fazer movimentos que exijam nossa
separação, então, irei ficar atrás de você, sempre um pouco à sua direita ou
esquerda, mas sempre, sempre mesmo, a dois braços de distância. E você de
mim.
Sinto minha língua secar por um momento.
Achei que era mais fácil.
Gostar do parceiro, escolher a música, coreografar, dançar e pronto.
Não é assim que as pessoas fazem parecer na TV?
— E o que mais? — Quero saber, olhando para os dois.
— Você sempre tem que estar no ritmo da música e não no ritmo da
letra. — Nicola diz. — Às vezes, há pessoas que escolhem apenas o
instrumental por isso, outros que precisam ignorar o que a letra diz, para
ouvir apenas a melodia.
— Não murmure. — Harvey aconselha. — Podemos perder pontos,
dependendo do que o torneio pede ou os organizadores da competição. Em
via das dúvidas, não cante com a música.
— Dois braços, ritmo da música, não cantar... — Repito, usando meus
dedos para contar. — Acho que posso lidar com isso.
— Não acabou. — Nicola nega com o dedo. — Quando você estiver
com Harvey, no Salt-In, todo o tamanho da Arena Palmer terá que ser
coberto na coreografia. Não pode ficar dançando no meio...
— E nem rodando em círculos achando que está fazendo algo. —
Harvey emenda. — Temos que preencher até metade da pista completa ou
ela por inteiro.
Nicola concorda com Harvey, pegando o panfleto do Salt—In e me
mostrando.
— Aqui tem três modalidades. — Nicola aponta. — A short dance, a
free dance e a valsa de ouro. Normalmente, sempre descobrimos antes o
que os organizadores escolheram, mas esse ano é livre. Então inscrevi vocês
dois em todas. A short dance é ótima para mostrar como você é capaz, a
dança livre normalmente é usada para desempate, então caso algum outro
casal esteja se dando bem, teremos que pensar em uma coreografia leve,
porém elaborada para vocês. E por último, a valsa de ouro. Aquela
coreografia que temos que fazer tudo ser fantástico e perfeito.
Silêncio.
Não há mais nada para dizer.
Ou ainda tem, mas podem pensar que sou burra demais para tentar
definir se eles já estão com pena de mim. Infelizmente, Gwen está longe de
nós o suficiente para não saber nada do que eles acabaram de despejar nos
meus ouvidos – e na minha capacidade. Talvez Harvey esteja confiando
demais.
Quando eu disse que conseguiria Betty com o meu próprio suor, não
sabia que estava sendo completamente literal.
— E hoje? — Quase gaguejo. Harvey sorri.
— Preparei uma música especial para você e o Harvey esboçarem
alguns passos. O básico. — Nicola piscou, pegando um aparelho de som e
seu controle remoto. — Vocês podem começar no centro. – Ela me olha,
séria. - E siga o Harvey, ele te ensinará.
Concordei, sem ter o que acrescentar — sem nenhuma brincadeira,
aliás.
Quando a música começa, tenho que sorrir.
— Let It Go? De Frozen? Sério?
— Quando você conhece a música clássica. — Harvey começa
pegando a minha mão. — É mais fácil. Ensinamos crianças a gostar de
música clássica desse jeito, pegando algo que elas conhecem e
transformando em uma música sem letra, apenas a melodia. Elas irão
perceber que gostam e podem descobrir os clássicos de verdade.
— Estão me chamando de criança? — Enrugo a testa.
Harvey esbanja uma risada tranquila, enquanto Nicola confirma com o
queixo.
— Só é um teste. — Nicola sobe e desce os ombros. — Pronta?
Nicola é esnobe. Isso sempre foi comprovado. Mas hoje piorou de
alguma forma que me incomoda.
— Estou — respondo firme. — Isso é fácil!
10

— Isso não é fácil!


Aster Campbell se apoiou no banco ao lado de Gwen Hallister. A
última garota, por sua vez, analisou nosso segundo treino com curiosidade.
Longe da habitual careta que Gwen sempre sustenta em rosto, ou longe de
qualquer desavença que possa ter comigo.
Mas, sério, não dá para acreditar que Gwen goste de alguém. Ela
parece detestar até mesmo a presença de Aster. Ou é apenas o seu jeito?
Deixo de pensar sobre ela e sorrio, triunfal, para Aster, que bebe a
água gelada mais de cinco vezes por pausa. Há suor respingando de sua
testa, e isso porque Harvey lhe apresentou os passos mais fáceis, como se
apresentar para os jurados com graciosidade e classe, como olhá-los e como
conquistá-los. Sem precisar ser tão caricata quanto um concurso de beleza.
Harvey também lhe mostrou como se portar ao seu lado, não deixando
Aster ter uma pausa nem quando ela pediu com carinho.
— Aqui não é o hóquei — falo. Às vezes tento evitar ser tão
mesquinha e quando vejo, já comecei a falar. Sento ao seu lado, enquanto
me sirvo de água gelada também. — Não pode pedir para parar sem antes
realmente precisar. A dança não é para os fracos.
— Mas talvez seja para os esnobes. — Aster sibila, erguendo uma
sobrancelha. Ela arfa, retirando os patins dos pés. — Não estou reclamando
e não sou de desistir. – Me garante, imprudente. – Sabe. – Aster comenta, se
apoiando em apenas uma mão. - É estranho como você quer ajudar o
Harvey. — Comenta, com um sorriso ardiloso trilhando sua boca.
É uma boca bonita, para falar a verdade.
Mas que nesse momento só consegue me irritar.
Evito segurar meu colar, sempre toco nele quando algo me incomoda.
— Como é?
Harvey e Gwen estão numa conversa, alheios ao que acontece entre
mim e Aster Campbell. Eles estão em um diálogo civilizado, não é como as
farpas que jogo contra Aster e ela dispara de volta. Eles sabem se
comportar. Logicamente porque se gostam, dá para ver como se olham e
como se tocam. Aquele começo de flerte que qualquer ação da pessoa dá
um gostoso frio na barriga.
Faz anos que não sinto isso.
No meu relacionamento com Garret senti a ótima sensação apenas no
começo. Os três anos e meio que fiquei trancafiada na nossa relação não foi
das melhores — e nem das mais saudáveis.
Aster alarga o sorriso.
É aquele mesmo sorriso que nós sabemos que a pessoa está sendo
genericamente verdadeira.
— Ora — diz. — Você quer me assustar de alguma maneira. Parece
que deseja que eu saía desse torneio o quanto antes. Me diga, você quer
ajudar o Harvey ou não? — Aster apoia seu rosto na mão. Estou pronta para
falar quando ela me interrompe. — Já sei! Você quer o ajudar, mas não
suporta a ideia de ver outra pessoa fazendo aquilo que você gostaria de estar
fazendo. Não é?
Se Aster Campbell tivesse me insultado ou me dado um soco bem no
meio do rosto, teria doído menos. E, talvez, nem tenha feito tanto efeito,
mas ela acertou em cheio. É exatamente o que sinto. É inveja pura que
corrói meus pensamentos e percorre minhas veias cheias de sangue. São os
piores sentimentos que alguém poderia nutrir se quer mesmo auxiliar
alguém que ama.
E eu amo Harvey Bird, não deveria estar tentando afugentar Aster.
Sem ela seremos apenas duas pessoas novamente, e não uma equipe. Logo
agora que ele decidiu fazer algo por si mesmo e a dívida estudantil.
É por esse motivo — talvez — que pego minhas coisas às pressas.
Recolho meu aparelho de som, pego minha mochila e a coloco em cima do
ombro sem esperar por mais uma de suas frases. Por mais que ela tenha
acertado, ainda não me sinto bem e nem à vontade de entrar em uma pista
de gelo novamente. Quanto mais em uma discussão que saberei que vou
perder.
Saio da arquibancada ouvindo os gritos de Harvey pedindo para eu
voltar.
Não estou me importando para a cena dramática que estou dando a
eles. Não me importo mesmo. Só quero sair o mais rápido possível de perto
de alguém que consegue me desvendar de uma maneira tão objetiva.
Quero me livrar das lágrimas que percorrem meu rosto também, mas
isso é apenas assunto para a cabine vazia do meu carro resolver.

Limpo os vestígios de rímel borrado da minha bochecha e abaixo dos


meus olhos com ajuda do retrovisor central. Fungo algumas vezes e preciso
definir que acabei de fazer uma cena digna de uma novela. Odeio ser idiota.
Odeio ser frágil ao ponto de explodir de uma maneira tão fútil como essa.
Mas já fiz.
O que preciso fazer agora é ir para casa.
Já está de noite quando dou a partida no estacionamento de um Mc
Donalds’s vinte e quatro horas. O único de Salt.
Quando fico triste ou brava, enfio na cabeça que “mereço” me
presentear com algo gostoso para comer. É claro que isso só deixa ainda
mais específico que sei que fiz algo de errado, então apenas faço uma
chantagem emocional comigo mesmo e acredito fielmente que mereço um
hambúrguer cheio de caloria, corantes e gordura artificial para me fazer
sorrir. Isso com mais um pouco de Coca-Cola e batatas-fritas salgadas.
Dirijo até a minha casa ignorando as chamadas de Harvey. São poucas.
Ele não é de insistir. Já me conhece.
Odeio admitir que alguém tem razão, é quase como se um vulcão
entrasse em erupção dentro de mim.
Viro na esquina de casa e dou uma última olhada no vidro do carro e
no visor desligado de meu celular quando estaciono. Tudo para checar e
garantir que ninguém perceba que chorei. Por mais ridículo que seja o
motivo.
Saio do meu carro, tirando apenas minha mochila do banco de trás. É
bem no instante em que fecho a porta de meu Logan popular, que um carro
para ao lado da minha casa. O carro, de vidro filmado e escuro, não
estaciona de verdade. Apenas para no meio fio. A porta do passageiro, ao
lado do motorista, se abre, revelando uma perna lisa e bonita. Depois,
mamãe sai cambaleando do carro, acenando e se despedindo de alguém que
se chama Anwer. Ela está bêbada. Terrível e assustadoramente bêbada.
Não.
Ela está fora de si pelo estado que se encontra.
Um salto alto se está no seu pé, outro, pendurado entre os dedos
trêmulos que tentam encontrar a chave da casa. O carro buzina e se vai,
cantando pneu. Ela não consegue me ver de onde está, brigando com a
própria bolsa e o molho de chaves que tilintam ao fundo. Duvido que
consiga pelo estado que se encontra.
São algumas opções que tenho; entrar em casa e fingir que não a vi e
interpretar surpresa quando todos na casa, meu pai e Barr, a virem caindo de
bêbada e tola no chão da sala e arcar com os gritos dos dois — que irão
começar uma guerra. Ou a outra opção, ajudar minha mãe a entrar em casa,
sem chamar a atenção de meu pai, colocá-la na cama e esperar que o melhor
aconteça pela manhã.
Checo o relógio. Não passa das sete horas da noite, de um dia de
semana. E minha mãe parece irreconhecível.
Há abóboras em algumas partes da vizinhança, pelo Halloween no fim
do mês. Tenho a opção de entrar no carro novamente, dar a ré e passar o
resto da noite na casa de Harvey. Ou posso ir para a faculdade e vagar de
aula em aula, apenas no dia em que não tenho aulas presenciais à noite.
Mas todas as opções me fazem sentir ódio. E raiva.
Ódio de mamãe por agir feito uma irresponsável e raiva de papai que
irá atrás de uma briga daquelas.
E pelo meu amor a Barr, que não merece escutar gritos e ser tirado de
sua paz, é que corro até minha mãe.
— Oi, lindinha! — Mamãe sorri bobamente na minha direção. Ela se
apoia em um arbusto de galhos pontudos. Ela não sente dor agora, mas irá
quando amanhecer. — Nem te vi aí. De onde veio?
— O que você fez? — pergunto, olhando para a entrada da nossa casa.
A janela da sala indica que meu pai está em casa, como sempre. — Mãe,
você está...
— Estou ótima! — Ela abana as mãos. — Sério. Vamos entrar e comer
um bolo. Ei... Não deveria estar na faculdade?
— Hoje é segunda — respondo. Não sei o motivo de estar explicando
isso a ela, não irá entender. — Tenho apenas matérias online de segunda.
Será que podemos...
Entrar?
Como entrarei com a minha mãe nesse estado?
Barr irá ver.
É nesse momento que cogito a ideia de colocá-la no meu carro e levá-
la para qualquer lugar em Salt. Qualquer um que aceite uma mulher bêbada
e falante. E as opções são apenas as localizações que mamãe já deve ter
passado hoje.
Busco por uma resposta na noite. Qualquer uma.
Até que vejo as luzes acessas da casa das Campbell. Teria que
funcionar.
— Mãe. — Seguro seu rosto. — Me espera nos fundos de casa. Eu vou
te ajudar a entrar. Rapidinho. Consegue me escutar ou entender?
— Que isso, lindinha. — Mamãe sorri. Ela só me chama de lindinha
quando bebe. — Vamos entrar!
— Mãe. — Quase grito, impaciente. — Vamos sair! — Sugiro. Algo
nela se anima. — Vou apenas entrar e... Mentir para o papai e depois volto.
Podemos beber mais. Uma noite mãe e filha. Que tal?
Minha mãe sorri.
É quase um sorriso bonito se todo o seu rosto não estivesse
desfigurado pela maquiagem que derreteu.
Quase me vejo como um espelho.
Mamãe igual a mim.
Negra, de pescoço longo, cabelos lisos naturais, olhos castanhos
poderosos, algumas marcas de idade e um sorriso estúpido pela bebida. Não
me encontro nela. E desejo que, ao menos, meu futuro casamento seja bem
sucedido. Me odiaria se eu me transformasse em alguém que não fosse eu
mesma.
— Vamos! — diz mole. — Vamos, lindinha. Vamos!
Peço que ela me espere do lado do meu carro e ela confirma – a faço
prometer que não entrará em casa por nada nesse mundo -, cambaleando até
ele. Quando percebo que ela ficará parada, corro para a porta principal da
casa.
Meu pai assiste ao jogo de futebol quando entro. Há uma garrafa de
uísque ao seu lado. Então sei que a noite será difícil se mamãe aparecer em
minutos. Ele não repara na minha presença, ou talvez finge não reparar nela
quando subo as escadas correndo.
Felizmente, Barr está no videogame, com os amigos.
— Barr. — Inspiro me apoiando na porta. Chamo sua atenção que só é
do monitor que mantém gráficos bons de zumbis e aliens. — Barr!
Ele retira os fones dos ouvidos, confuso.
— Sim?
— Quer dormir na casa da Aster hoje? — Não espero sua resposta,
começo a recolher a mochila de Barr do chão e a encher de cuecas.
Será apenas uma noite, mas estou desesperada e preciso ser rápida.
— Posso mesmo? — Barr se desprende rapidamente do videogame,
como se fosse uma dádiva divina eu ter feito um convite que nem a própria
dona da casa sabe que fez. Meu irmão nem reparo que recolho suas roupas
como se fossemos fugitivos. — Jura mesmo que posso?
— Sim. — Sorrio. O meu melhor sorriso. — Aster te convidou. Me
prometa que acordará às...
— Sete, e estarei na escola às oito. — Barr completa, eufórico. Ele
adora Aster. — Que legal. A Aster me convidou! Posso falar com ela sobre
o hóquei. E sobre o meu jogo e sobre, sobre...
Meu irmão de doze anos entra um monólogo sobre seus planos essa
noite.
— Tudo. Falará sobre tudo. — Toco sua bochecha. Ele me ajuda a
fazer sua mochila. Coloca sua escova de dente, gel favorito e avisa os
amigos que não entrará no videogame pelo restante da noite. — Pegou tudo
o que precisa?
— Sim. — Barr sorri, não se contendo de felicidade. — Quando ela
me convidou?
— Hoje mesmo. — Fecho rapidamente sua porta e tranco sem ele
perceber. — Quando estávamos ensaiando. Vim correndo te contar!
— Que legal! — Barr passa os braços pelas alças da mochila e desce
as escadas comigo. Seguro seus ombros, indicando para sairmos pelos
fundos. — E por quê?
— Melhor. — É o que eu respondo, pegando uma maçã da fruteira e
dando a ele. — A sra. Campbell ama maçãs, lembra?
— E canela. — Barr faz um rápido malabarismo com a maçã e
corremos pelo quintal.
Pulamos a cerca dos fundos das Campbell e batemos em sua porta dois
minutos depois. Estou ansiosa e olhando para todos os lados. Não me
perdoaria se Barr visse mamãe naquele estado.
Quem atende a porta é Aster, segundos depois. Talvez tenha passado
muito tempo ao lado de Gwen, porque seu semblante é pura desconfiança
agora.
— Oi?!
— Oi! — Faço minha melhor imitação de felicidade e simpatia. —
Trouxe o Barr. Como você disse. Que convidou ele para... Dormir aqui.
Hoje no ensaio... Lembra?
A sra. Campbell está fumando um cigarro na cozinha, próxima à
janela. Ela bate a bituca no canteiro da janela e as cinzas despencam do
bico.
— É... – Aster tenta.
— Eu trouxe Barr! — falo novamente. Estou sorrindo de um jeito
estranho e não tem como explicar agora. — Ele... – Se ao menos Aster lesse
mentes ou olhos, ela entenderia de uma vez.
— Valeu por me convidar, Aster! — Barr me interrompe, com um
sorriso límpido no rosto.
Aster ainda está confusa, mas sorri genuinamente para o meu irmão.
— Ora, criança. — Felizmente, a sra. Campbell me olha séria. Está
nervosa, mas não comigo. — Entre, entre. Vamos jantar em breve. Gosta de
salsicha com feijão vermelho? — Ela se livra do cigarro.
— Gosto! — Barr responde, educado. – Trouxe uma maçã para você,
sra. Campbell. – Barr estende a fruta vermelha na direção de Regina
Campbell, que sorri agradecida.
- Obrigada, criança. Você é muito gentil! – Ela pisca, pegando a maçã
nos dedos trêmulos pela idade. — Então será isso. — A sra. Cambpell
decreta. Barr entra passando por Aster que continua confusa. — Ele irá para
a escola amanhã cedo, Nicola. Te prometo! — Ela faz um sinal com o rosto.
Quando Barr e a sra. Campbell desaparecem pela cozinha ou pela casa,
Aster sibila.
— O que houve?
Coço minha testa.
— Depois te explico. Só... Obrigada. Qualquer coisa me liga. Mas eu
trouxe tudo o que o Barr precisa.
Aster assente, engolindo em seco.
— Nicola, eu...
— Só cuida do meu irmão. Depois nos falamos.
Ela concorda novamente, em silêncio e se afasta da porta, pronta para
fechá-la. Volto pelo mesmo caminho que fiz, pulo a cerca e entro em minha
casa pelos fundos. Meu pai está na cozinha, remexendo a geladeira. Ele
nem repara que Barr não está mais aqui.
— Você não deveria estar na faculdade? — pergunta, seriamente.
— Hoje é segunda, pai.
Ele sorri um pouco zonzo de sono pelo uísque.
Pego meu celular e tento ligar para Nancy. O telefone toca, algumas
vezes, até cair a chamada e me brindar com um vazio silencioso. Tento três
vezes até me dar conta que ela não irá atender. Ligações pela noite só
podem significar uma coisa e Nancy sabe melhor do que ninguém.
Estou pronta para a segunda parte do plano, mas sou bruscamente
interrompida quando a porta da frente bate com força.
11

A primeira briga dos meus pais em que vi e presenciei, quando o


tenebroso ciclo começou, eu tinha apenas nove anos de idade. Não consigo
me lembrar quantos anos Nancy tinha, mas não deveria ser tão mais velha
do que eu. Barr, meu Deus, não faço ideia se Barr já tinha nascido. É mais
uma daquelas lembranças que ficam corroídas com o passar dos anos, que
cada hora um novo detalhe aparece, um novo fato que te faz pensar “Nossa,
é mesmo. Isso aconteceu de verdade”.
Aquelas que revivemos tantas vezes, que um ou outro detalhe deixam
escapar. Não me recordo se minha mãe estava grávida ou não, se estava
pensando em ter Barr ou achava que duas filhas eram o bastante
para o seu casamento. As brigas começaram muito antes de pensarem em
ter um terceiro filho, acho que esse fato é o verdadeiro.
Eu acho.
Julgo até mesmo que tenham começado a se desentenderem muito
antes de Nancy ou eu estarmos nesse mundo. Chutando alto, é claro.
Não lembro como começou ou por qual motivo.
Só sei que eles estavam brigando por um tempo, na sala, depois ouvi
seus passos severos e pesados caminhando para a cozinha, da cozinha para
a escada, da escada para o quatro, onde se trancaram e ficaram o restante da
noite e depois os gritos terminaram. Com o tempo, achei que todas as
famílias eram iguais as minhas. Que meu pai ficava quieto e retraído
quando acontecia uma briga e que minha mãe mordia os lábios sem ter a
intenção de parar sempre que um pensamento a assolava por muito tempo.
Nancy sempre comia seu cereal matinal com os olhos presos na tigela e eu
tentava adivinhar se iria acontecer de novo, ali na nossa frente, ou se eles
iriam mentir que tudo estava bem — ou que era a última vez que se
desentendiam.
Acontecia sempre a última opção.
Aprendi cedo demais que os adultos mentem. Que por acharam que
possuem uma certa idade, eles estão livres para ocultar a verdade sempre
que possível. Que eles não gostam de jogar com a verdade e que quase
sempre esperam que seus filhos sejam reflexos deles mesmos no passado ou
no presente, visando o futuro. Esperam que nós possamos sonhar, mas só os
que eles permitiram, ou até mesmo retomar de onde eles pararam. De onde
seus sonhos foram interrompidos e por que não, deixá-los de herança para
seus filhos. Talvez tenha acontecido isso com os dois. Talvez mamãe
sempre quisera ganhar muito dinheiro sendo modelo, ou vivendo da beleza.
Não sei.
Não sei mesmo.
Mas naquela briga, eu saí do meu quarto e Nancy saiu do dela, sempre
nos orgulhávamos de dormir lado a lado. Nós nunca espiávamos as brigas
por causa dos gritos. Sempre odiamos gritos de raiva e de fúria.
Nós nos encaramos e pensamos que era só mais um momento de
distração entre eles. Que logo passaria.
Depois veio Barr, e as coisas deveriam melhorar quando há um bebê a
caminho. É o que todos pensam. Meu irmão foi criado no meio de uma
família que parecia perfeita em fotos, mas que vivia a base de medo,
mentiras e brigas.
Só que chega um momento que ficamos fartos desses sentimentos que
não se conectam.

Meu pé direito está enfaixado.


De uma maneira exagerada mesmo. Quando quebramos ossos, eles
engessam a parte quebrada de seu corpo e você fica por semanas, esperando
que se recupere. Nesse momento, não vejo diferença alguma entre o gesso e
a faixa de pano branco que está envolta do meu pé direito impedindo que eu
pise direito.
Estou varrendo os cacos de porcelana e de vidro da casa
assustadoramente silenciosa que moro. O dia amanheceu faz alguns
minutos. Fiquei a madrugada toda acordada, nem pensando na possibilidade
de dormir como Harvey está adormecido na poltrona de casa. A única
poltrona que não tem respingos de uísque ou que parece revirada. Ele está
com o pescoço pendendo, a boca aberta, cansado.
Sei que Harvey me mandaria para a cama de novo, justamente pela
noite difícil que eu tive e pelo pé machucado. Não bastasse o pé esquerdo
ser um tanto falho, agora preciso me adaptar ao direito.
Suspiro acima da minha mão, ela está apoiada no cabo da vassoura
enquanto junto os caquinhos.
Noite passada, é claro, não saí da minha cabeça. Os acontecimentos
ficam voltando para a minha mente como um filme. Um possível ganhador
de drama numa categoria do Oscar se formos contratar ótimas atores para
viver Celia e Justus Wolf, meus pais.
Depois que deixei Barr na casa das Campbell, voltei à minha. Meu pai
estava na cozinha e ouvi a porta da frente bater como se alguém tivesse
chegando. Desejei e rezei para ser Nancy Wolf — mesmo que essa
possibilidade seja impossível em um milhão de finais tristes —, a minha
irmã que quase nunca telefona. Desejei até mesmo ser o Diabo em pessoa,
mas não poderia, nem em sonho, ser minha mãe.
No estado em que minha mãe se encontrava, tenho certeza que ela
esqueceu que eu disse que iríamos sair, deve ter vagado pela mente
embriaga de bêbada e decidiu entrar. Ela veio se arrastando pelo corredor,
com a ajuda da parede e das mãos trêmulas, o salto alto pendurado não
estava mais entre seus dedos, denunciando que minha mãe os perdeu no
jardim da frente.
Meu pai estava mexendo no congelador, e quando parou de remexer o
gelo e os aspargos esquecidos no fundo do freezer, encontrou um pedaço de
pizza congelada.
O encontro dos dois foi mantido por mim.
Porque não sabia mais o que fazer para distraí-los e quando mamãe
cuspiu xingamentos para meu pai sem esperar outro momento, apenas
fechei os olhos e respirei para dentro.
Seria uma longa, longa noite.
De primeiro relance, meu pai não entendeu muito bem o que estava
acontecendo. Mas ele não estava embriagado o bastante para não entender
que ela estava fora de si. Ele compreendeu muito bem.
A pizza de sua mão voou por cima dos ombros de minha mãe, numa
clara e falha tentativa de acertá-la.
— É isso o que acontece, não é? — Meu pai queria saber, furioso. —
Você fica o dia todo fora como uma vagabunda e volta como se nada tivesse
acontecido. E ainda tem a audácia de me tratar dessa forma!
Há esse detalhe em minha mãe que não reparo e só reparo porque meu
pai apontou para eles incontáveis vezes; seus cabelos estavam molhados.
Ah, não.
Pedir calma é ridículo, então apenas decidi ir pelo caminho mais fácil.
Andei até minha mãe, afastando o que podia de meu pai. Sou apenas uma
pessoa e eles são duas, magicamente fortes pela bebida. Se tivesse Nancy
por perto, ela poderia tentar conversar com meu pai. Ele a escutaria. Todos
escutam Nancy.
Mamãe é bem rápida para alguém tonta demais para se manter em pé.
Mas ela conseguiu se desvencilhar de mim e atingir um tapa no meu pai,
acusando que ele a destruiu e essa família. Consegui puxá-la pelo quadril e
notei que meu pai se controlou bons segundos para não avançar. Se ele
avançasse, estaria perdida e no meio deles. Se ele avançasse, poderia ser o
fim de tudo.
Havia um pouco de sanidade entre seus olhos brilhantes de ódio.
Mesmo que um pouco.
Consegui arrastar minha mãe até as escadas, onde ela se debateu dura e
severamente, querendo voltar de todas as formas para a cozinha. Algo nela
estava brilhando um instinto vingativo e ela não poderia falhar com todos.
Ela queria acertá-lo. Magoá-lo do jeito que ele a magoou primeiro. Havia
lágrimas concentradas em seus olhos quando ela implorou para soltá-la,
mas simplesmente não consegui.
Estive apenas torcendo para Barr estar distraído, torcendo para Aster
tê-lo enfiado em algum jogo maluco de hóquei. Que os gritos de minha mãe
estivessem altos apenas porque estava perto demais.
Apenas desejei.
Até almejei que Nancy estivesse em Londres, feliz com o noivo, nem
pensando nos momentos de aflição que passou com eles antes de mim.
No quarto, em que consigo trancar minha mãe dentro dele, percebo
que é o antigo e sagrado quarto de Nancy. O quarto dela jamais fora tocado
ou transformado em um cômodo de lazer. Na minha família, qualquer tarefa
ao ar livre pode ser melhor do que ficarmos dentro de casa. Os pôsteres da
One Direction e dos The Stiff Dylans ainda decoram o quarto dela. O papel
de parede cor de rosa e a penteadeira branca com gavetas azuis, também.
Por algum motivo, minha mãe chorava e tentava, de algum jeito,
detonar meu pai.
Eu estava esperando o pior, que ele estivesse subindo a escada ao
nosso encontro e que derrubasse a porta do quarto de Nancy aos pontapés.
Felizmente, o silêncio que brindou a casa não é perigoso. E nem calmante.
É apenas cauteloso. Como se uma bomba fosse explodir a qualquer
segundo.
Lembro que tirei os sapatos de minha mãe e os meus. Porque iria lhe
dar um banho gelado para acalmá-la e fazê-la se sentir melhor. Lembro que
ela tentou me alcançar e puxou meu cabelo.
— Você jamais, jamais será como Nancy! — Ela berrou, chorosa. —
Ela é perfeita. A filha perfeita!
Eu queria negar.
Mas não poderia. Estaria mentindo.
Nancy Wolf andou em todos os trilhos que meus pais dispuseram a ela
sem causar reboliços ou protestos. Talvez seja por isso que eles a adoravam
tanto.
E talvez seja por isso que não conhecemos a real vida de Nancy em
Londres. Porque, de fato, jamais soubemos quem ela era de verdade.
Enquanto eu afastava as palavras duras de mamãe que podiam magoar
mesmo ditas ao vento, ela não deixava barato. Não conseguia ficar quieta e
não deixava que seu vestido saísse de seu corpo. Mesmo eu dizendo que
daria um banho.
Então, quando iria tentar um jogo emocional, implorar para que ela me
ajudasse, mamãe segurou meu rosto em um rápido momento em que
vacilei. Havia lágrimas presas em seus olhos e naquele momento, percebi
que havia derramado uma ou duas lágrimas involuntárias.
— Diga a ele, Nicola! — Mamãe suplicou. — Diga a ele que estava
comigo. Que eu estava bebendo com as minhas amigas e que fomos
escolher as roupas do casamento da Nancy! Diga!
Me afastei do seu toque.
Descalça, senti o carpete fofo e macio abaixo dos meus pés.
Nancy tinha bom gosto.
— Você estava? — Quis saber, fitando-a. — Você estava mesmo com
suas amigas? Bebendo naquelas lojas que servem champanhe?
Mamãe suspirou, como se odiasse lidar com principiantes.
— Não importa, querida. — Ela abafou o ar. — Apenas diga isso a ele.
Afinal, é quase verdade. O casamento de Nancy será antes do Natal. Será
uma ótima, ótima oportunidade de conhecermos o noivo e a família dele.
Precisamos estarmos perfeitos!
Lembro que sorri. Sorri apenas um pouco, menos sem vontade alguma
de sorrir.
— Não conhecemos o noivo de Nancy, mamãe. — Sorri sem humor.
— Por que Nancy não irá nos apresentar antes do casamento. Por qual
motivo ela faria isso? — Me apoiei nos meus joelhos, encarando-a com
seriedade. — Não temos nada a oferecer. Somos uma família destruída.
Destruída.
Lembro também que minha mãe enxugou as lágrimas e com os dedos
ágeis, segurou meu rosto. Foi rápido e pouco doloroso. Talvez ela não tenha
reparado que me agarrou tão forte, ou talvez tenha feito força de propósito.
— Se eu falasse com a minha mãe desse jeito, dessa maneira, quando
ela me pede ajuda, eu teria levado um tapa tão bem dado, que me lembraria
dele para sempre, Nicola. — Sua boca falava, mas eram seus olhos que me
queimavam. — Seja boazinha. Seja como Nancy, seja a filha perfeita, fale
para seu pai que estava comigo. Que bebi mais do que deveria e que achei
uma roupa belíssima para o maldito casamento.
O hálito de bebida me cumprimentou, arranhando o meu olfato.
Poderia bater em sua mão para me largar, mas simplesmente deixei.
— Falarei o que fará — disse pausadamente. — Vá e diga a ele o que
lhe pedi.
— E se eu não for?
— Você nunca será como Nancy! — Ela voltou a repetir. Me afastei e
como mole que estava, minha mãe apenas cambaleou para frente. — Ela
mentiria por mim!
— Então você não estava com suas amigas? — Eu sabia a resposta.
Não sou nenhuma idiota. Mas queria que minha mãe assumisse.
— Nicola... — Mamãe sorriu. — Você é uma imbecil. Claro que não
estava com minhas amigas. Eu estava com o Anwer, um cara descente e
inteligente. Que pode muito bem colocar um anel de noivado no meu dedo.
Partiremos para longe. Longe dessa cidade gelada, longe dele, longe de
todos vocês!
— Espero que tenha sorte, mamãe.
— Terei! — Ela se ofendeu com meu tom. Se ergueu da cama e
caminhou sem muita pressa. — Terei uma sorte tremenda. Você verá, sua
vadiazinha!
Ergui meu queixo, já trêmulo para encará-la. Qualquer que fosse meu
tom nessa conversa, não iria surtir efeito.
Tentei encontrar a mulher que minha mãe era por baixo da camada de
vodca pura, mas não encontrei. Lembro que me afastei dela e abri a porta,
no mesmo momento que meu pai subia as escadas. Ele parou no batente e
seus olhos estavam vermelhos de cansaço e raiva.
Lembro que olhou minha mãe como se pudesse matá-la, minha mãe
olhou de volta como se morrer não fosse um medo, mas que ela voltaria
caso algo acontecesse.
Meu pai estava segurando uma garrafa de cerveja, mas não lembro o
que ele disse. Só lembro que mamãe passou por nós rapidamente, alegando
que moraria com Anwer de agora em diante. Que era para arrumarmos as
coisas de Barr e que os três viveriam juntos, numa casa muito melhor que
aquela. Meu pai a seguiu e na ponta da escada, a garrafa de vidro de cerveja
caiu. Quicou por todos os degraus até parar no meio da sala, se partindo em
inúmeros caquinhos. Minha mãe, assustada com o vidro ruindo, jogou ao
chão dois de seus vasos de flores favoritos.
Presente de casamento e presente de vovó, respectivamente.
Naquele momento, soube que apenas um dos dois sairia daquela
situação vivo. Eu corri pelas escadas, só para afastar.
Não senti quando pisei em um enorme caco de vidro. Não sei se foi da
cerveja ou dos vasos, mas pisei. Bem na sola. Lembro que gritei de dor e
caí no sofá mais próximo para me apoiar.
No mesmo instante, na hora em que gritei de dor, meu pai relaxou os
ombros e as sobrancelhas. E minha mãe tomou um baque sóbrio de uma
vez.
Eles tentaram me ajudar, mas afastei seus braços de mim e manquei até
meu celular, chamando por Harvey.
— Se matem agora! — disse quando Harvey chegou e me ajudou a
caminhar até seu carro.

A sola do meu pé lateja um pouco. Me recusei a ver o estrago que o


vidro tinha feito assim que cheguei ao hospital de Salt. Me recusei a olhá-lo
e me recusei a contar todos os detalhes para Harvey, por mais que ele
soubesse. Fiquei o tempo todo assistindo a um programa policial, deitada na
maca, enquanto sentia o sangue quente e a agulha da anestesia para tirar o
caco de vidro da sola.
Não lembro o que o médico disse. Foi apenas uma imagem sem som,
com seus lábios se mexendo no ritmo.
— O que ele disse? — perguntei a Harvey, quando estávamos
voltando, quase a meia-noite para minha casa.
— Que seu pé ficará enfaixado por três semanas ou mais e que pode
tirar o curativo em casa. Mas nada de movimentos bruscos e nem
caminhadas longas enquanto isso.
Sorri, amarga, com as recomendações.
— Ou seja, ser exatamente quem eu sou há um ano — respondi, me
afundando no assento.
Harvey sorriu.
Ele tentou passar calma e amor naquele momento. Pousou sua mão
vaga no meu joelho e disse que me amava, que seria meu melhor amigo
para todo o sempre. Respondi de volta, sendo sincera. Harvey insistiu que
eu dormisse na sua casa esta noite, apenas por um dia. Mas simplesmente
sabia que não pregaria meus olhos.
Queria voltar para casa só para garantir que Barr estivesse bem. Para a
minha felicidade, as luzes da casa das Campbell estavam apagadas,
sinalizando que já dormiam. Quando entrei em casa, o silêncio me recebeu
como se toda a residência fosse tranquila e meiga. O tempo todo.
Meu pai dormiu no quarto de Nancy, em sua cama arrumada. Mamãe
estava adormecida no dela. De vestido, maquiagem e tudo. Eu quis arrumar
a sala, que ainda se parecia com uma zona de guerra, mas Harvey não
deixou, alegando que eu precisava dormir e descansar. Subi as escadas com
sua ajuda. Mas horas depois, ainda estava acordada. Olhando para o teto,
pensando em nada além de não ser Nancy e ter ferrado o meu outro pé bom.
Não que eu fosse patinar, mas talvez agora seja um sinal do destino e
do universo para “Arranje ou seja outra pessoa. Jamais dançará
novamente”.
Faltando pouco para amanhecer, desci as escadas. Descobri onde
Harvey estava dormindo; na poltrona. Fui até a cozinha e comi outra pizza
congelada. Foi meu jantar e café da manhã. Depois, me arrastei até a sala e
peguei uma vassoura, onde fiquei e ainda estou, observando Harvey dormir
e assisti o sol nascer, recolhendo pedacinhos afiados de vidro do chão em
jornais velhos que encontrei na cozinha.
De todas as brigas de meus pais, talvez essa tenha sido a pior.
Mas é o primeiro machucado em anos que aparto uma briga deles.

Às sete e meia, vou até a janela. Estou com o saco de papel com os
pedaços de vidros embrulhados. Barr está saindo da casa das Campbell
porque o ônibus da escola acabou de buzinar, chamando por ele.
Barr saí da casa delas, acenando para a sra. Campbell e para uma Aster
surpreendentemente acordada. As duas mandam beijos para ele e enfim,
meu irmão corre até o ônibus, sobe seus degraus e some atrás da porta
sanfonada.
Aperto o cabo de vassoura entre meus dedos e manco até a cozinha,
deixando em uma parte isolada, no canto ao lado da porta para me lembrar
de reciclar e não simplesmente jogar fora. Me apoio na pia da cozinha, para
começar a lavar as únicas louças que restam.
Alguém bate na porta dos fundos e me arrasto para atender, mesmo
sabendo que darei de cara com Aster.
Não estou com humor para suas piadinhas, e nem seu estilo todo de
vida. Mas atendo, porque Aster acolheu meu irmão e quero perguntar a ela
se os gritos foram audíveis.
Quando atendo, Aster está usando um coque bagunçado e proposital.
Os cabelos cacheados saltam do penteado e tem duas mechas na frente,
cada uma do lado de um olho. Está de pijama, um de inverno com mangas
longas e pantufas que parecem aquecer seus pés.
Não queria ter comprimido os lábios. Mas comprimi para segurar
minha respiração.
Percebi que na pele de Aster há pintas pretas, que são muito bem
visíveis quando as mechas destacam seu rosto. Ela está muito bonita e me
odeio por acha-la tão atraente de um jeito tão natural.
— Cara. — Aster diz, depois de tentar sorrir para amenizar as coisas.
Seus olhos escapam para meu pé direito enfaixado e ela entra na minha
cozinha, depois que me arrasto para o lado. — O que aconteceu? Quem fez
isso com você?
Fecho a porta, me encostando nela. Um minuto para um descanso.
Talvez eu falte na faculdade hoje.
— Bem, eu diria que eu mesma fiz isso comigo. — Sibilo.
Aster não gosta da resposta.
Seus olhos se movem novamente para o meu pé direito e ela se agacha.
— Nicola Wolf, o que aconteceu? — Ela pergunta debaixo.
Prendo de novo a respiração.
Nunca fui tão sacana, mas vê-la tão perto de mim e debaixo, me causa
um aperto no estômago desconfortável. Minha mente imagina coisas que
não concordo em um momento como esse.
— Vidro — respondo a contra gosto. — Pisei em um pedaço de vidro
e aconteceu o óbvio. Sou uma idiota.
— Você não é uma idiota. — Aster consegue finalmente sorrir de lado
com a constatação. Ela se ergue do chão e para de frente para mim, agora
muito mais perto. — Pode me dizer o que houve? — Aster coloca a mão
nos bolsos, sem saber o que fazer.
Há sérios problemas em falar. Adoraria que ela pudesse passear pela
minha mente, assim saberia de uma vez e me pouparia de detalhes. Então,
percebo que só estou cansada de repetir — mesmo não mentalmente — o
que houve pela noite passada.
Suspiro, mostrando a Aster que até a minha respiração está pesada.
— Posso. Não tem problema — respondo, olhando para baixo e depois
para cima. — Só não quero falar agora.
— Respeito. — Aster concorda rapidamente, sem um pingo de receio
ou remorso. — Quer ajuda? Com alguma coisa? E os treinos?
— Ainda serei uma idiota comprometida, acredite em mim. — Pisco.
Aster gargalha frouxamente. — Só tirarei daqui a algumas semanas. Não
quebrei e nem nada disso. — Mordo meus lábios. — O Barr se comportou?
— Ele é maneiro. — Aster confirma com o queixo. — Ficamos
jogando Tranca, Ludo e tudo o que encontrei no sótão. Fiquei me
perguntando porque nunca fiz nada antes com o pirralho.
— Sempre que quiser e eu estiver cheia de trabalhos para fazer, sinta-
se dona de Barr. — Abro os braços. Aster volta a rir. — Sério. Obrigada. De
verdade.
— Acho que... como forma de mostrar que está bem grata, poderíamos
trocar os bancos da Betty, não é mesmo? — Aster brinca, erguendo os
ombros. — Com aqueles de couros chique. O que acha?
— Um carro me parece bom o bastante.
— O nome do carro é Betty, por favor. Respeite! — Aster pede, com o
olho aberto e outro fechado. — Já basta Gwen se recusar a falar o nome
dela.
— Talvez Gwen não goste do nome Betty. — Observo.
Percebo que acabei de falar um pré-conceito meu sobre Gwen
Hallister. E ainda melhor, para a melhor amiga dela.
Logicamente, Aster Campbell não entende o que quero dizer.
— Ah. — Coço minha pálpebra. — Serei franca. — Desisto de
enrolar. — Às vezes acho que Gwen não gosta de muita coisa.
Especialmente de mim.
— Por que acha isso? — Aster cruza os braços, investigando.
— Ela parece não gostar de todo mundo que não seja o Harvey.
É nesse momento que espero que Aster e eu entremos em um pé de
guerra total. Mas, ao contrário do que eu penso, Aster descruza os braços e
ri, enfiando novamente as mãos nos bolsos do pijama e sorrindo de uma
maneira descontraída. Como se fossemos amigas.
— A Gwen é assim. — Aster garante. — Desde pequena. Ela matava
os ursos de pelúcia dela e depois acusava com os olhos qualquer pessoa.
Todo mundo julga que Gwen não gosta de ninguém. Mas gosta. E quanto a
você, ela não tem nada contra.
— E nem a favor.
— Diria que mais a favor do que contra. — Aster remexe os lábios. —
Ela gosta mesmo é do Harvey.
— Estaria errada se não gostasse.
— Sim. Mas o caso é que até eu mesma tinha dúvidas de que Gwen
gostava de mim. Fui conhecendo e sabendo que ela tem esse mal consigo;
transparecer antipatia apenas pelo olhar quando, na realidade, está pensando
apenas em nada. Literalmente falando. — Aster me aconselha e pisca ao
final da frase.
É a minha vez de sorrir.
Não.
De rir!
— Olha. — Aster começa novamente, engolindo em seco. — Não
quero parecer repetitiva, mas você foi sozinha ao hospital?
Quero debochar desse momento — como sempre faço quando não
consigo lidar com uma situação.
— Harvey — digo. — Ele é meu super herói. Está dormindo na sala.
Felizmente, o único cômodo da casa que não parece mal arrumado é a
cozinha.
— Diga a ele que estou treinando mentalmente todos os dias. — Aster
bate continência. — Ele é uma boa pessoa, estou feliz que Gwen esteja
gostando dele.
— Gwen é uma ótima pessoa para o Harvey, acredito que sim. —
Confirmo. — É isso o que ele gosta, na verdade, de pessoas.
Aster ergue as sobrancelhas, como se não tivesse pensado por esse
lado.
— Harvey é pan.
— Sério? — Aster está sorrindo, embora esteja desacreditada também.
— Não sabia. Isso é bom... gosto de pessoas que saibam quem são.
— Sim, ele é ótimo!
Faço algo que não queria; bocejo. E assim que termino de me
espreguiçar involuntariamente, Aster bate uma palma.
— Eu vou indo, deve ter sido uma noite cansativa. — Ela se apressa
até a porta. Com a mão já na maçaneta, Aster me olha por cima dos ombros.
— Só queria dizer também... que quero pedir desculpa sobre o que disse na
arena. Não quero roubar o lugar de ninguém e nem ser heroína. Acho que
os créditos tem que ser feito todos seus.
— Não precisa pedir desculpa quando você tem razão.
O semblante de Aster muda.
— Realmente desejo estar no seu lugar, ser a pessoa que levará Harvey
ao pódio. Mas não posso ser e preciso me conformar para nossa equipe dar
certo. — Sorrio, sendo verdadeira com minhas palavras e com o que quero
demonstrar. — Aceito suas desculpas se aceitar as minhas. Eu também
preciso rever meu comportamento nos treinos!
Aster Campbell demonstra surpresa, mas não de uma maneira
ofensiva. Ela apenas assente com o rosto e retira a mão da maçaneta.
— Uma trégua? — Sugere, me estendendo a mão. — Pela paz. E pelo
Harvey. Seria bom.
— Pelo Harvey. — Seguro sua mão e nós duas trocamos um
cumprimento. Selando nossa paz declarada. — Serei boazinha.
— Irei me focar. — Aster umedece os lábios e solta minha mão.
Agora, voltando a pousa-la na maçaneta novamente. — Agora vou indo.
Mas antes preciso fazer uma piadinha, só para mostrar que posso entrar na
trégua em paz. — Ela desce os degraus pequenos do lado de fora e eu me
apoio na porta, esperando para fechá-la. — Como se sente sendo amiga de
uma pessoa tão interessante? Vou perguntar para a Gwen e você me
responde também. Ok?
— Ah, Aster. — Sorrio negando com a cabeça. — Você sempre acha
que me conhece.
— Poderia fazer um livro sobre você. — Aster abre os braços.
— Então não esqueça de acrescentar que sou bissexual, assim ficará
mais real os termos da personagem. — Faço um som com a boca que, com
certeza, cala a de Aster.
Bato uma continência, ao meio de protestos de Aster perguntando se é
verdade ou mentira. Mas fecho a porta mesmo assim, embora esteja
sorrindo e tendo plena consciência que quem me fez sorrir foi ela.
12

Uma das regras oficiais da enfermagem — em que li em Enfermagem


para leigos — é que você sempre precisa atender um paciente, não importa
a hipótese. Independente da sua crença, da dele, ou de qualquer pessoa.
Precisa estar apto a cuidar das pessoas, sendo elas do seu grupo social ou
não. Quanto mais eu lia as páginas amareladas do livro, mais me enxergava
na profissão que às vezes parece ser tão esquecida.
Às vezes as pessoas querem ser médicas, mas nunca enfermeiras. Ou
às vezes elas se vestem de enfermeira de uma maneira provocativa e sexy,
mais do que deveriam e acham que aquilo é tudo o que precisamos saber da
profissão. Ou essa analogia não faz tanto sentido, mas tudo bem.
Estou sentada no tapete persa da casa de Taylor Moore, enquanto estou
lendo o livro. Peguei da biblioteca da faculdade e agora estou lendo sempre
que posso. Em intervalos de séries, antes das refeições, ou nas refeições.
Não que eu esteja devorando páginas e páginas, estou ainda no começo.
Mas fico relendo, mais tentar adivinhar ou descobrir se não deixei nada
passar diante dos meus olhos.
Quero ser justamente alguma coisa que as pessoas deixam de lado, ou
deixam passar despercebidas. E, uma profissão em que precisamos respeitar
a todos, sem precisar definir um detalhe marcante sobre você e esse detalhe
ser seu rótulo para sempre, é algo que eu deva fazer.
Releio a página sobre as condições financeiras de um enfermeiro
quando Taylor Moore volta da cozinha. Ela me chamou para estudarmos e
começarmos os primeiros capítulos dos originais que a sra. Tent quer. A
convivência com Taylor me parece chata agora.
Tudo na casa dela parece velho e sofisticado demais — não nessa
ordem. As poltronas parecem desconfortáveis por serem retas e incomodas.
Fico imaginando quantas vezes Garret Cox esteve aqui, perto da lareira de
Taylor e os dois, sozinhos.
Toda essa confusão está me dando vontade de cair fora.
Mas tenho que fazer isso com jeito. Não simplesmente parar de
responder Taylor ou torcer para ela me esquecer. Posso definir que podemos
ser amigas, apesar dessa possibilidade ser de um tanto quanto impossível. O
jeito que ela me trata pessoalmente, ao lado de seus fiéis companheiros, me
parece o jeito idêntico e escrachado em que ela me tratava no ensino médio.
— Trouxe pipoca. — Taylor fala cantarolando quando está feliz ou
satisfeita de algo estar acontecendo em sua vida. Ela se senta ao meu lado,
mesmo que tenha odiado a ideia de sentarmos no chão. Ainda mais em um
tapete persa. — Começou?
— Ah, sim. Mas em casa. — Fecho o livro e o guardo rapidamente na
minha mochila. — Escrevi apenas um capítulo.
— Sobre o quê? — Taylor quer saber, espiando meu caderno. Ela abre
o dela e pesca uma pipoca, levando até a boca de maneira charmosa e
contida. Taylor toda é um charme. Um perigoso. — Eu comecei o meu. Fala
sobre uma garota que conhece um garoto em uma cafeteria.
— E esse garoto nada mais era que o Harry Styles. — Completo,
divertida. Taylor sorri, embora não tenha entendido o teor da piada. — É
apenas uma piada. Pode me falar.
— Não sou tão inteligente feito você. — Taylor toca minha bochecha.
Sei que se eu olhar para ela, Taylor me roubará um beijo. Então mantenho
meus olhos no meu caderno. — Voltando. — Ela desiste de me beijar e
batuca as unhas na agenda de anotações dela. — Só pensei nisso. Um
romance. É o que gosto de ler e possivelmente escrever. Tem algum mal
nisso?
— Não. Mas pode ficar mais interessante. O cara pode ser um
milionário que quer passar algum tempo “normal” com pessoas que não tem
a mesma quantidade de libras do que ele. Ou a garota pode ser uma
celebridade disfarçada.
— Ah. — Taylor sibila. — Você tem tanta criatividade!
— Ou muito tempo vago. — Dou de ombros.
— Não. — Manhosa, Taylor me abraça de lado e consegue beijar
minha bochecha de modo sensual. — Você é talentosa. Aposto que seus
capítulos são bons!
— Não precisa se cobrar. É apenas uma introdução aos originais. É
dever da sra. Tent nos auxiliar na escrita de um. — Rebato fortificando
minha tese.
— Anda. — Taylor bate palminhas. — Quero ver.
Quero arfar. Pesadamente. Do tipo de estar arrependida de algo.
Porque estou.
Estou tão enlaçada agora em Taylor que mal consigo respirar. Ela me
parece tão simples e odiosa agora, que só fico me perguntando o motivo de
estar aqui. Sexo não é o bastante e até para manter algo casual preciso, ao
menos, gostar da pessoa. Taylor demonstra seriamente me detestar em
público.
Então, por que preciso ser legal com ela nos bastidores?
E por que eu?
O relacionamento dela com Garret deve ser uma merda, não é?
— É sobre uma garota. — Começo. — Que vai morrer. Câncer no
cérebro. Ela quer ser astronauta e ao menos ver o espaço antes de morrer.
Só uma vez. Assim poderá morrer em paz. Mas todas as condições parecem
horríveis para isso. Então os meus cinco capítulos são apenas monólogos
sobre o desejo dela de conhecer as estrelas de perto. E são rascunhos. Só fiz
um oficial.
— Me parece ótimo. — Taylor sussurra, pasma. — Posso ler?
Sem antes eu responder, Taylor pega da minha mão o manuscrito e
passa seus olhos verdes por ele. Quero, de alguma maneira, pegar o caderno
de volta. Acontece que são apenas alguns capítulos ali e aqui, anotações e
rabiscos vezes ou outras. Não é o bastante para ser entregue. Quero dizer, o
texto precisa ser lapidado.
Enquanto lê, Taylor interage com suas próprias reações; ela sorri, ela
vibra, ela fica feliz ao ler determinada frase e se contém com o final pouco
rascunhado que criei. Convencida que sou um gênio, Taylor Moore propõe
que eu seja sua tutora oficial. Visto que o cargo tem nítidas e segundas
intenções, me sinto cansada por dentro. Aquele seria meu último encontro
às escondidas com Taylor. É uma promessa, na verdade.
— Não posso — respondo, pegando o caderno de sua mão e batendo o
lápis na folha. — Vou terminar isso e preciso treinar todos os dias. Só estou
aqui hoje, porque... — Eu me calo aos poucos.
Taylor deve saber o motivo de eu estar aqui.
A maldita cidade de Salt, quase nada de legal ou importante acontece,
já sabe da existência de uma Nicola Wolf com o pé enfaixado. Gwen me
ligou hoje mais cedo me perguntando o que havia acontecido, mas como
explicar algo que nem ao menos sei? Todos na vizinhança sabem que os
Wolfs não são a família perfeita, que há um casamento de aparências, à
beira de um divórcio deprimente. Sim, isso todos nós sabemos. Mas o que
realmente acontece naquela casa esse é o verdadeiro mistério.
Sou a vizinha deles, mas não desconfio de nada. Barr é um ótimo
garoto, Nicola também — muito bem educada, tal qual uma princesa no
século 21 — Nancy é a filha predileta. Por mais que eles mintam na cara
dos outros dois, sei que os pais de Nicola preferem Nancy por algum
motivo que não sei explicar.
— Ah, sim. — Taylor diz, pegando um lápis de seu estojo de escrita e
começando a escrever à mão. — Nicola está machucadinha de novo.
— Não foi nada sério. — Resmungo baixo. Mas Taylor escutou e me
encara como se eu pudesse lhe dar mais informações. — Só sei isso!
— Você deveria saber mais. — Taylor volta a sorrir, olhando para o
papel. — Sei cada coisa que pode te deixar de cabelo em pé.
É nesse momento que sorrio de lado. Taylor pode até saber das coisas.
Mas sabe o que real acontece na casa dos Wolf?
Ao que me leva que; Nicola me disse ontem que é bissexual. Como
não reparei nisso antes? Ou como nunca me atendei a um fato que a deixa
mais interessante?
Meu Deus.
Acabei de pensar que “Nicola não parece bi”.
E o que seria um perfil bi, Aster? Não existe. As pessoas são como
são. Preciso me dar essa bronca mentalmente por pensar em algo tão banal
e clichê. É como se cada pessoa andasse com seu rótulo e aqueles que não
conseguem ver ou definir, logo acham que não são nada. Ou são mais do
mesmo. Mas não Nicola. Esse pensamento realmente me faz morder os
lábios e desejar abrir mais a porcaria da minha mente que se manteve
fechada durante algum tempo.
— Como saberia? — Debochei, sem antes perceber que Taylor estava
escrevendo.
No entanto, ela para de rabiscar sua letra cursiva e bonita nas linhas do
caderno e sorri, como se eu fosse bastante inocente.
— Sou namorada de Garret, bobinha. — Taylor para de escrever e
pega o meu caderno. — Posso ficar com os rascunhos?
— Para o quê?
— Vou apenas me inspirar da maneira que você escreve e só. Posso?
— Taylor fez bico.
Desviei de outro beijo e abri mão das minhas anotações.
— Como sabe... — Escolho bem minhas palavras. Ofender Garret Cox
pode ser um ótimo passatempo, mas não quando a namorada dele está logo
ali. Cujo o relacionamento é bem duvidoso. — Como pode ter certeza que
Garret falou a verdade esse tempo todo?
— Muitas pessoas falam a mesma coisa. — Taylor se recosta nas
pernas do sofá e pesca mais uma pipoca. — Que os pais dela são separados,
mas vivem na mesma casa. Que as brigas são violentas, de ambos os lados.
Não iria ficar surpresa se Nicola fosse... Ah, você sabe.
— Acha que tocaram nela?
— Quem sabe?
— Taylor...
— Garret me disse que Nicola ligava para ele sempre tarde da noite.
Pedindo ajuda com aquele pai bêbado que ela tem, e a mãe sem noção. Até
parece novela, não é? — Impressionantemente, Taylor estava achando
engraçado. Um assunto divertido. — Bom. — Ela suspira. — O que eu sei é
isso. Que pode rolar mais do que apenas gritos e xingamentos. Acho que
pode ser apenas azar.
— Azar?
— Viver nessa família. — Taylor arfa, começando a ficar com tédio.
— Ao menos a Nancy era a mais interessante.
Não me orgulho de estar ouvindo fofocas que não podem ser reais,
mas estou envolvida demais no assunto para recuar. Seguro o pingente de
cadeado entre meus dedos. Isso significa que, o que eu escutar aqui, no
tapete persa dos Moore, ficará aqui. Não sairá comigo. Eu trancarei
qualquer que seja o boato maldoso sobre a família de Nicola Wolf e não
levarei em conta.
Em nada.
— O que mais você sabe?
Taylor sorri.
Satisfeita.
— Sei que os pais tem um casamento de aparências, algo não deu
certo. Isso só Garret sabe, mas nunca me contou. Eles não se amam, mas
vivem brigando. O tempo todo. O divórcio sairá em breve e pode ser que os
dois se batam. — Taylor recita tudo com bastante naturalidade. — Garret
disse que uma vez teve que segurar a sra. Celia Wolf de cima do sr. Justus
Wolf. Que foi feia a briga e que a Nicola passou uma semana na casa dele,
se recusando a voltar.
— Quando foi isso? — Me apresso.
— Isso o quê?
— Que Nicola ficou na casa de Garret.
Taylor parece tentar recuar. A imagem de Garret com outra lhe dá a
breve sensação de perda. O que é bastante irônico vindo dela.
— Acho que três meses antes do acidente de Nicola. — Taylor dá de
ombros. — Lembro que ele disse que não faltava muito para ela cair e
quebrar o pé. E deslocar violentamente o ombro.
Me lembro desse dia.
Me lembro dessa semana, na verdade.
Eu estava tendo uma ótima temporada com as Tormentas. A janela de
Nicola, de frente para a minha, ficou com as cortinas fechadas o tempo
todo. Ela é meu contrário. As cortinas, no quarto de Nicola, fechadas,
significam que ninguém está por perto. Abertas, quer dizer que Nicola quer
ver o mundo lá fora.
Barr foi para a escola com a cabeça baixa todos os dias daquele mês,
não correu e nem enviou beijos invisíveis pelo ar em nenhum momento.
Porque não tinha clima e nem pessoas para vê-lo ir à escola.
— Sabe. — Taylor diz. — Às vezes eu tenho dó da Nicola.
Seus braços se esticam até meus ombros e ela se aproxima. Sinto seu
cheiro irritante de maçã — que agora é irritante — e ignoro. Há um caos de
informações dentro de mim, se conectando. Sempre achei que Nicola fosse
a pessoa mais chata e sem graça do mundo.
Em menos de dois dias, descubro que ela enfrenta várias tempestades
de uma vez só. Esse fato, o fato de que Nicola é humana, me faz sentir
apego por ela. Não cruelmente. Não preciso vê-la sofrer para definir que é
uma boa pessoa. Só estou dizendo que é bom, finalmente, enxergá-la como
uma pessoa. E não apenas como uma conhecida, uma vizinha ou
simplesmente, só como Nicola Wolf.
Quero conhece-la mais.
Por um motivo que ainda não encontrei, mas tem a ver com o
momento em sua cozinha ontem. Mesmo machucada, estava bem, leve e
forte. Sempre forte.
O tempo todo.
Taylor não se acanha pelo meu silêncio, seus dedos tocam meus
ombros e minhas clavículas e seus beijos começam ao pé do meu ouvido.
— Ela não importa. — Taylor diz. — Não importa mesmo.
Me afasto um pouco dela e fungo, apontando para nosso trabalho.
— Você me chamou aqui para estudarmos — falo, séria. — E iremos
fazer isso.
Nada de legal ou muito importante acontece em Salt.

— Cheguei. — Anuncio para a casa que está envolta de jazz essa


noite.
Infelizmente, Barr voltou para casa, não o encontro à mesa jogando
Truco com vovó ou Caça Palavras. Dentro de casa, vovó está sentada na sua
poltrona favorita, ouvindo seu disco de jazz favorito, enquanto fuma seu
cigarro favorito.
— Olá, Aster. — Ela me cumprimentou com um aceno de rosto. —
Tem comida na geladeira.
— Vou tomar banho e comer — respondo rapidamente. Caminho até
as escadas, mas desisto. Desço um degrau e olho para vovó, que está em
seus momentos de delírios nostálgicos. E não gosta de ser interrompida. —
Vovó?
— Sim, meu amor?
— Por que nunca me contou o que acontecia na casa dos Wolf?
A música não para como nos filmes. Ela continua. Sussurrando que um
homem encontrará seu amor verdadeiro abaixo de uma árvore, e que seu
amor lhe esperará com uma carta entre seus dedos trêmulos de saudade.
Vovó pendura o cigarro em sua boca, como se pensasse em qual
resposta me dar antes de finalizar uma conversa que não teremos.
— Eu já estive na pele de Celia Wolf, uma vez. Presa a um homem que
me fazia perder a razão e os sentidos. — Vovó observa. — Não lhe contei
porque odiaria que alguém comentasse sobre mim, ou dissesse algo
maldoso apenas pelo ar esnobe de uma fofoca e não sem querer ajudar. —
Ela me encara por cima dos ombros. — Consegue entender, meu amor?
— Perfeitamente, vovó.
13

Sempre me gabei que nunca havia quebrado nada do meu corpo. Nem
um osso sequer. Eu tinha um recorde mental ou nenhuma história para
contar quando me perguntavam sobre minha infância. Ou se eu era uma
criança muito agitada ou se sempre caía ou me machucava com facilidade.
A resposta é não.
Mas agora, posso falar com “orgulho” que meus dois pés passaram por
situações nada legais. Por exemplo, o esquerdo me impede de competir, e
agora o direito está interditado por alguns dias.
Quando meus pais me viram com o pé enfaixado, um pouco de culpa
misturada com remorso atingiu os rostos deles. Sei que sim. Pela maneira
que meu pai não conseguia mastigar a comida sempre que eu me arrastava
até a mesa, ou pela maneira rápida, prática e indolor que passei a mentir
para Barr. Para ele, disse que derrubei uma garrafa de vidro de Coca-Cola, e
sendo um imbecil, acabei pisando em um caco de vidro.
Senti que todo o jantar minha mãe prendia a respiração e meu pai só
olhava as ervilhas e as cenouras cozidas dentro de seu prato. Nada além
disso. Nem um pedido de desculpa, e nem uma ajuda a mais. Quero dizer,
eles estavam me ajudando. Depois da briga em que eu levei a pior, eles
passaram a falar mais com Barr. Pediram para que ele tocasse mais piano e
falasse sobre hóquei. Todos — os três — falaram sobre o casamento de
Nancy em breve e como precisávamos encontrar uma roupa adequada para
estarmos lá.
Já que somos a família da noiva.
Barr estava animado em visitar Londres, por outros milhões de
motivos que pode ser difícil definir. Mas na idade dele, qualquer viagem é
uma viagem mágica. Então, não quis estragar ou manchar sua diversão
apenas pela falta da minha.
A cidade inteira já sabia o que tinha acontecido comigo. As pessoas
abriram espaço para eu poder passar em seções do mercado, me ajudavam
no corredor da escola e sempre cochichavam. Talvez falando que o azar
decidiu sentar no meu ombro e me acompanhar pelo restante da vida. Ou
apenas sendo dramáticos. É complexo saber.
Os treinos com Aster e Harvey melhoraram, significantemente.
Gwen Hallister sempre aparecia pelos ensaios quando terminava seu
turno na loja de discos. Harvey me disse que ela não tem muito o que fazer
numa loja que ainda vende CD’s e vinis. Que alguns clientes apenas
escutam música pelos fones acoplados em estantes e depois vão embora.
Que é um emprego de meio período e que ainda paga bem, mas não o
bastante para valer à pena mofar em uma loja.
Eu gostava — no fundo — que Gwen tivesse um senso crítico de
opinião; se Aster deslizava para longe de Harvey, Gwen me falava
imediatamente. Não de propósito, mas para me ajudar. Aster não pode, de
jeito nenhum, patinar para longe de Harvey e vice e versa. E, talvez —
apenas talvez — um cargo de treinadora sozinha seja um pouco difícil. Só
estou dizendo. Estou em desvantagem. Prestar atenção nos dois é difícil.
Não sabia como me aproximar de Gwen. Embora ela seja a pessoa que
Harvey esteja gostando nesse momento. Não sei me aproximar de ninguém.
O que é ridículo. Eu sei me aproximar de Harvey Bird, por isso ele é meu
único e melhor amigo. Mas o restante das pessoas? Não sei!
Não me lembro como me relacionei com Garret, mas é bem provável
que tenha sido ele o exemplo de socialidade entre nós dois e tenha falado
comigo primeiro. Acontece que me esqueci de verdade como tudo
aconteceu. Mas gosto de me apegar a ideia de que foi Garret quem me
convidou para sair, e não ao contrário.
Eu estaria sendo bastante estúpida.
Na véspera do Halloween, Gwen, Harvey, Aster e eu estávamos na
Arena Palmer. Eu tinha escolhido um instrumental de John Williams em
Star Wars, e Harvey e Aster estavam arriscando passos livres. Aster ainda
tem uma brutalidade e uma maneira ríspida de se mover na pista; como se
estivesse defendendo a si mesma de um disco voador e perigoso. Preciso
lembrar a ela constantemente que não estamos em um jogo de hóquei, que
ela não precisa cerrar os dentes sempre que erra um passo e que precisa
manter o rosto neutro e sorrir só quando precisar.
É como lapidar do zero um diamante bruto.
Poético, não é?
Mas é somente a verdade.
Meu pé continuava enfaixado, mas me locomover com ele estava
sendo mais fácil dos que nos primeiros dias. Consigo ficar sentada sempre
na arquibancada, com um megafone que Harvey encontrou na garagem
dele. Disse que pode me ajudar nas instruções.
Nesse momento, Aster está patinando, suavemente, para ao lado de
Harvey. Eles sorriem um para o outro e Aster toca a mão dele. Leva até o
ombro, no ritmo da melodia, tranquila e serena. Ela fecha os olhos e deixa
Harvey a conduzir, de costas, entre a pista muito bem iluminada. Aster
continua de em ré, de costas para onde Harvey estava a guiando. Seus
cabelos cacheados tocam delicadamente sua pele. Os fios teimosos que
insistem em escapar do seu coque. Mas, estamos ensaiando há duas horas, é
até compreensível.
Seguro a haste do megafone entre meus dedos, com a intenção de
gritar a eles para tomarem cuidado. Que nenhum dos dois podem cair ou se
ferir. Mas me contenho. Não quero ser chata e não quero estragar esse
momento de tanta serenidade entre os dois. Harvey sabe o que está fazendo.
Esse é o primeiro passo para conseguir enxergar que ele não é nenhum
garotinho de seis anos de idade. Ele é profissional, assim como eu.
Ou assim como eu fui, é claro.
Solto o megafone dos meus dedos, desprendo a vontade de encerrar o
momento.
Eles dão uma volta completa, com Aster Campbell de olhos fechados.
Infelizmente, sinto a mesma sensação de quando estávamos na minha
cozinha na semana retrasada. Que ela é bonita e sempre sabe o que está
fazendo,
Pisco meus olhos, me desprendendo esse fato sobre Aster.
— Eles são bons, não é? — Gwen desliza para perto de mim, na
arquibancada. Seus olhos brilham por Harvey e depois passam para mim.
— Até fiquei sem palavras.
Sinto uma pequena irritação pela última frase. É quase como ser pega
em flagrante admirando Aster; pois Gwen está babando por Harvey e a
única pessoa que resta é... a pessoa que realmente me parece muito bem
vista daqui.
— Sim. Para treinos simples, sim. Quero ver quando começamos os
ensaios pesados. Quando Harvey começar a rodar ou erguer Aster. — Finjo
um sorriso, do qual faz Gwen juntar levemente as sobrancelhas.
Provavelmente se perguntando o que tinha dito de errado. — Fim do
ensaio! — Falo pelo megafone. — Podem relaxar.
Aster abre os olhos como se despertasse uma princesa de seu sono;
com calma e graciosidade. Quero revirar meus olhos fortemente a cada
detalhe nela que passo a reparar e me coloco em pé. Harvey e Aster se
direcionam até a porta, que mais parece uma passagem entre a pista e a
arquibancada. Eles tiram os patins longe de nós e caminham com eles
pendurados entre os dedos.
— Só estávamos fazendo um teste de confiança. — Harvey está suado,
ele limpa os respingos de suor da testa com o dorso da mão. — O que
achou? Logo começaremos as partes perigosas.
— Sei disso. — Sorrio, erguendo meus ombros. — Mas irei encerrar.
Amanhã é Halloween e não quero prender todos nós nesse feriado. Sou ou
não sou boazinha? — Faço a piada para Harvey escutar, mas Aster quem dá
risada.
Não nos falamos muito desde do dia em que ela pediu desculpa e
aceitamos e declaramos uma trégua. Pela paz e por Harvey. Ela está
chegando aos treinos pontualmente. Houve até mesmo um dia na semana
passada em que Aster já estava aqui quando chegamos. Ela acenou e sorriu,
perguntando o motivo de termos demorado tanto.
Enquanto recolho minhas coisas, Harvey e Gwen se afastam, deixando
Aster e eu sozinhas. Recolho algumas partes das minhas anotações e sobre
as melhores consideráveis na postura da Campbell quando ela se senta ao
meu lado, prestes a falar.
— O que fará amanhã? — Aster pergunta.
Ela está puxando assunto?
— Levarei Barr para pedir doces na vizinhança. E depois, assistirei
algum filme de terror, só para falar que curti a festa. E você?
— Pedir doces? — Aster franze o nariz e a testa ao mesmo tempo.
— Você nem parece que mora na nossa rua. — É uma piada. Uma
frase que faz Aster dar de ombros. — Alguns dos nossos vizinhos tiveram a
ideia de dar um Halloween incrível para as crianças do bairro, como nos
filmes. Pedir doces, travessuras, andar fantasiados pelas ruas e avenidas.
Essas coisas. Então o Barr está animado de bater em porta em porta.
— Maneiro. — Aster murcha os lábios ao reconhecer. — Na minha
época não tinha nada disso. Fofo. Queria que tivessem feito algo parecido.
Tenho uma lista de fantasias ótimas que poderia ter me vestido.
— Sim, ele está muito animado. — Recolho tudo o que espalhei em
outros bancos na minha mochila. Aster me encara, enquanto levanto. Parece
cuidado e cautela, e limpo minha garganta, desconfortável com o olhar. —
E você?
— Ah. — Ela se levanta também, ainda com os patins pendurados
entre os cadarços amarrados ao redor de seu pescoço. — Gwen dará uma
festa à fantasia.
— Harvey comentou. — E inclusive, me convidou. Mas neguei. —
Você vai?
— Sim. — Aster enfia as mãos nos bolsos logo após colocar a mochila
em suas costas. — Mas antes da festa estou livre. Posso ir com vocês pegar
alguns doces?
Minha garganta e língua estão totalmente secas.
Avisto Gwen e Harvey à porta da Arena Palmer. Conversando e
sorrindo. Harvey me disse que Gwen convidou muitas pessoas para a festa e
que essas pessoas convidaram outras e que será a festa do ano.
Por que pedir doces comigo e com Barr é mais interessante do que
chegar mais cedo na festa da sua melhor amiga?
— Pode. — Dou de ombros também. Quero parecer natural e não
desaprovando essa ideia. — Claro que pode. O Barr vai adorar.
— Combinado, então. — Aster pisca, apressando seu passo para pular
nas costas de Gwen e exigir que as duas fossem tomar um pouco de café na
confeitaria favorita delas.

— Está bom?
Barr está aflito com sua fantasia, ele quer que tudo esteja nos mínimos
detalhes perfeitos que imaginou. Ele tem uma festa para ir. Sua primeira
festa do ensino fundamental e a primeira que irá sozinho. Um garoto de sua
sala, alguém chamado Luc, o convidou hoje à tarde. Ele pediu para mamãe
e ela deixou. Barr irá dormir na casa de Luc depois que a mãe dele vier
busca-lo antes da meia-noite. Barr tem planos de comer muito chocolate,
assistir filmes com muito sangue e só dormir depois das três da manhã.
— Está melhor do que todas as fantasias que já vi. — Elogiei ele,
observando que a rua estava movimentada para um feriado que Salt não
comemora muito bem.
Nada de legal ou muito importante acontece por aqui mesmo.
Barr Wolf está fantasiado de Grover, de Percy Jackson. Colocou
pequenos chifres falsos entre o cabelo crespo e baixo, pintou à mão com a
ajuda de papai, os emblemas as letras do Acampamento Meio-Sangue,
colocou uma calça jeans preta de lavagem totalmente nova — que eu nem
sabia que ele a tinha.
— Podemos ir? — Barr pergunta de uma vez, pegando uma sacola
plástica com uma abóbora que está fumando um cigarro.
— Vamos. — Me apresso em dizer.
Porque mamãe está com aquele olhar que quer me pedir alguma coisa.
E irei prontamente negar.
Quando Barr desce as escadarias primeiro, mamãe me chama,
tranquila, sem levantar suspeitas. Ela se encosta no batente da porta e ainda
envergonhada — sem encarar meu pé ferido — ela sorri. Ou ao menos
tenta.
— Será que podemos conversar? Quando Barr for até a casa do
amigo?
Eu poderia dizer sim se já não soubesse o que “conversar” significa em
outras palavras. Então apenas sorrio, de volta.
— Não. — Simplifico. — Irei à uma festa.
É mentira.
Neguei todos os convites de Harvey e de Gwen para aparecer. Mas
agora que estou falando com mamãe, terei que ir.
— Te vejo amanhã. — Encerro nossa pequena conversa e desço as
escadas.
Barr já está falando com Aster Campbell, de frente para o jardim da
casa dela. Todos na vizinhança não pouparam gastos para oferecer um dia
inteiro de horror e “magia” para seus filhos. Todas as casas possuem pelo
menos duas abóboras luminárias. Sangue falso em caixas de correio e ou
alguns Condes Dráculas de fantoche sentados em uma cadeira na varanda.
Me aproximo dos dois e percebo que Aster está fantasiada também.
Sei que estamos indo à uma festa, mas não imaginava que ela levaria a
sério.
Está bonita.
Bem bonita.
Dentro de uma fantasia dos Caça-Fantasmas, até mesmo o macacão de
cor marrom papelão e uma caixa de alumínio presa às suas costas. Cabelos
em um rabo de cavalo que deixa os cachos soltos e bufantes do lado de trás.
Ao me ver, Aster tem duas reações; sorrir e depois negar com a cabeça.
— Não está fantasiada, Nicola. — Ela reclama assim que me
aproximo. — Aposto que pegou o primeiro vestido preto que encontrou e
acha que está.
Meio que me vesti de Wesdnesday Addams. Estou usando um vestido
preto, não muito longo até os joelhos, meia-calça e sapatilhas baixas,
também pretas. Uma maquiagem ao redor dos olhos, muito mal feita e
cadavérica. Tranças dos dois lados caem em meu busto. E as pessoas não
precisam saber o que são olheiras e o que é maquiagem pura.
— Sim, estou. — Defendo minha fantasia. — Achei um tutorial fácil.
Não estrague a brincadeira, Aster. Sou a própria Wednesday!
— Não irei discordar! — Aster ergue as mãos em rendição. — Vamos
nessa, pirralho?
— Vamos! — Barr comemora e corre na frente.
Aster me olha e aponta para frente, para eu poder passar primeiro.
Então, dou um passo e nossos ombros se chocam. Decididas a caminharmos
uma do lado da outra, ficamos em silêncio pelos primeiros cinco minutos.

Barr conseguiu três barras de chocolate Hershey’s e uma pilha de


pirulitos só na primeira volta de casas que compõe a minha rua. Aster e ele
estavam pedindo doces. Não fazia ideia que aquela caixa de alumínio em
suas costas também servia para armazenar doces. Ela foi bastante
inteligente e perspicaz.
Quando Barr estava caminhando muito à frente de nós, sem poder
escutar nem um espirro nosso, limpei a garganta para começar a falar.
— Vou à festa da Gwen, então.
Aster, que estava chupando um pirulito de coração, apenas sorriu.
— E por que mudou de ideia?
Suspirei.
— Minha mãe quer conversar comigo. E eu não quero. Sei que será
mais do mesmo e que não irá adiantar nada. Então... — Arrumo meus
ombros. Barr acabou de comer uma barra de cereal com chocolate que
ganhou da última casa. — Será que ainda posso ir?
— Vai mudar de fantasia? — Aster provocou.
— Não mesmo.
— Pode, então. — Ela se deu por convencida. — Ninguém irá
acreditar que você é a Wednesday Addams, mas posso fingir se você me der
cinco libras.
— Sem libras e você pode desdenhar de mim à noite toda se preferir
— digo.
— Feito!
Aster e eu rimos.
Gargalhamos um pouco sobre a última frase. E outro momento leve
que estamos vivendo.
— Ãn. — Aster começa. — Está tudo bem na sua casa?
— Sempre e nunca está. Fica oscilando — respondo de imediato. —
Sei que você deve estar curiosa, mas o que precisa saber é que irei vivendo
desse jeito.
— Acho que posso tentar adivinhar. — Aster sugere.
— Ou quer ouvir a história verdadeira do que apenas fofocas?
Aster, ao contrário do que espero, não fica ofendida. Apenas concorda
com o queixo, sendo uma extrema ouvinte.
Tomo coragem para abrir a boca e começo.
— Meus pais sempre brigaram. Sempre mesmo. Desde me entendo por
gente, nunca os vi mais de duas semanas sem brigar. — Pontuo. — Mas o
que vem acontecendo é bem pior do que brigas e gritos. — Arfo. —
Quando Barr tinha apenas dois anos, meu pai traiu minha mãe com a chefe
dela. — Aster ergue as sobrancelhas, impressionada. — É, eu sei. Péssimo.
— Bem pior do que pensava.
— Só foi o começo. — Dou uma risada amarga. — Na época, minha
mãe trabalhava como gerente do jornal de Salt, e a chefe dela estudou com
meu pai na faculdade. Eles se conheciam há anos e foi ela quem ofereceu o
emprego para a minha mãe.
“Depois de um tempo, ela chegava tarde em casa, afirmando que a
chefe nunca estava em casa. Naquele momento, o meu pai trabalhava em
uma ótima construtora de móveis de madeira. Não sei se você se lembra,
mas meu pai é ótimo fazendo coisas artesanais. Ele faz casas nas árvores,
balanços, casas de bonecas, móveis, tudo o que você pode imaginar. Ele
ainda trabalha na construtora, mas tirou uma licença misturada com férias
para lidar com o divórcio melhor. Ao menos as pessoas entendem que ele
precisa estar bem para trabalhar.
E como meu pai vivia trabalhando e mamãe chegava tarde, a Nancy
cuidava da gente na maior parte do tempo. E nós duas cuidávamos do Barr
sempre que possível. Afinal, ele só tinha dois anos. Mas a história não
acaba aí. Não é como se nós tivéssemos descoberto a traição quando meu
irmão era pequeno. Descobrimos faz pouco mais de um ano. Eu tinha
acabado de sair do hospital, depois de alguns dias presa na contenção de
acidentes no gelo. Achamos algumas mensagens no celular de meu pai e
minha mãe descobriu.
Ou seja, meu pai estava com a chefe dela há mais de dez anos. Se tudo
começou quando Barr tinha dois, agora ele tem doze. Meu pai confessou
tudo para mim e para Nancy. Ela estava aqui, veio me visitar. Escondemos
de Barr, por mais que ele seja esperto o bastante para desconfiar que não é
um casamento bom ou saudável.
Por mais que eles briguem, mamãe disse que nunca foi tão baixa ao
ponto de trair meu pai. Ou ter uma segunda pessoa por tanto tempo. Meu
pai chorou e disse que era apenas sexo. Nada mais que isso. Mas ele
manteve ‘apenas sexo’ por dez anos. Não acho que seja somente isso. Acho
que foi má índole, preguiça de consertar um casamento com três filhos e o
desejo de esconder algo tão errado e perigoso.
Mamãe entrou com o pedido de divórcio na mesma hora, meu pai se
mudou para o sofá de casa, esperando a papelada e esperando que os dois
entrarem em um acordo. Quem fica com a casa e coisa e tal. Ele pediu uma
licença temporária do emprego faz três meses. Fica apenas assistindo
esportes nos canais pagos e bebendo, o dia todo. A chefe da minha mãe a
demitiu, logo após meu pai terminar o que eles tinham. Minha mãe
encontrou um bom emprego como contadora de uma empresa de imóveis
graças à família de Garret, que é do ramo.
E vivemos assim. Esperando pelo divórcio ansiosamente, dia após dia.
Esperando qual dos dois irá sair primeiro. O vencedor leva a casa, o
perdedor desaparece para sempre. E tento, todos os dias, fazer com que Barr
não saiba que nossos pais são podres e que no fundo, ainda há uma falha de
esperança em melhora. Mas não como uma família.”
— Vocês são a primeira família que eu vejo que preferem o divórcio.
Sei que Aster não tem nada para falar. Ela não gosta de mim o bastante
para falar algo bom ou solidário e nem precisa, para falar a verdade.
— Olha, Nicola. — Aster engole em seco, continuando a andar. — Eu
também tenho problemas com a minha família.
Barr está acenando para mim, desesperadamente do outro lado da rua.
Feliz e desespero, quero dizer.
— Me conte na festa. — Pisco a ela, atravessando a rua para saber o
que meu irmão quer.
— Ótimo. — Aster me segue, sorrindo. — Iremos no seu carro.
Antes de marchamos para a última casa, trocamos um sorriso.
Aquele sorriso que quer dizer que cada uma entende a dor da outra,
mas que não vamos julgar.
Nada além de compreensão mútua nos abraça e nos acolhe.
14

Na minha humilde opinião, não há nada mais atraente do que uma


mulher que sabe o que faz.
Uma garota decidida e determinada. E, talvez, pelo meu desejo de
conseguir Betty algum dia, eu sinta atração por garotas que dirigem ou
quando dirigem. É a primeira vez que vejo e presencio Nicola Wolf dirigir.
E é a primeira vez que estou dentro do seu carro, um Logan de alguns anos
atrás que ela comprou quando tínhamos dezoito anos, após ganhar uma
competição estadual. Sei disso, porque a competição movimentou Salt de
um jeito inesquecível.
Naquela época, as pessoas eram fascinadas por Harvey Bird e Nicola
Wolf de uma maneira que me fazia sentir enjoo. Não era inveja, não. Só
consigo detectar falsidade que emana dos cidadãos dessa cidade quando a
vejo. E, por mais que o foco tenha sido Nicola, ela não se importava com
sua popularidade. Usava para benefício próprio, isso não tem como culpa-la
ou jogá-la aos lobos; eu faço o mesmo. O que estou dizendo, é que Nicola
sempre soube se divertir — muito antes de não poder competir, é claro.
Sempre soube definir quais pessoas seriam apenas diversão e quais seriam
para sempre.
Agora, estou ao seu lado, no banco do passageiro, quando sua mãe já
se despediu de nós com um olhar estranho. Sei que nunca a viu comigo,
nem trocando palavras de cumprimentos cordiais e nem nada do tipo.
Talvez, a sra. Wolf tenha medo que eu seja má influência para sua amada e
idolatrada Nicola. Que, se eu sorrir, ela acabe gostando de meninas em um
passe de mágica.
Bem, Celia Wolf, não preciso fazer nada.
Nicola já gosta de meninas.
E é até absurdo a maneira como ela fica atraente atrás de um volante.
Me apego a pensar que tenha tido algo a ver com Betty, meu fascínio por
carros e velocidade, e não por Nicola. Apesar de admitir que ela tem olhos
misteriosos e um sorriso — quando dá um — bastante bonito e sincero. Não
é um sorriso vazio, é um bem preenchido e perspicaz.
— Nunca pensei que estaria no seu carro. — Comento, observando a
paisagem laranja e roxa de Salt se misturar em algo divertido e colorido.
Deveriam haver mais eventos como esse. — Sempre achei que me queria
longe.
— E quero. — Nicola diz séria. Quando a encaro, com a sobrancelha
erguida, ela sorri de lado. Ainda com os olhos presos à rua. — Estou
brincando. Por mais que tenha lá seu fundo de verdade.
Umedeço meus lábios e me afundo no banco.
— Verdade. Nunca soube o motivo de você me evitar tanto!
— Bom. — Nicola para no semáforo, no justo momento em que troca
de rádio. Ex’s and Oh’s, da Elle King, está preenchendo todos os carros. —
Nem eu sei dizer ao todo. Só sei que você foi o tipo de criança que eu
detestava brincar. Barulhenta demais, energia demais. Não podia
simplesmente sentar e brincar de boneca? Como qualquer outra?
— Ah, não. — Sorrio ao sentir um prazer imenso por despertar algum
sentimento em Nicola. Seja ele bom ou ruim. — Sempre odiei ficar em
apenas um lugar. Não faço ideia o motivo de ainda estar em Salt.
— Penso o mesmo. — Nicola concorda prontamente, dando partida no
seu carro. Espio seu pé enfaixado, me perguntando se não dói dirigir com
faixas neles, ou se é legalmente permitido. — Continue. Agora me fala
como não gostava de mim?
— Você sempre estava com a cara fechada. — Volto a olhar pela
janela. — O tempo todo. Até feliz está com a cara fechada. Como lidar com
uma coisa dessas? Então, simplesmente me afastava, da mesma forma que
você corria bem longe de mim.
— É. — Nicola concorda. — Mas tem um tempo que... hum... você
vem se tornando menos detestável. Ou menos aventureira.
— Sempre serei uma. — Admito em voz alta. — Meu maior sonho é
andar de bicicleta pelas ruas da Escócia. Viver em um casebre, no campo, e
sempre precisar me locomover ou de carro ou de bicicleta. Depois de viver
na Escócia, eu ia para outro lugar. Cada ano, um lugar diferente.
Nicola nega com o queixo, como se fosse impossível tal vivência.
— Admiro. — Assume. — Eu não. Sempre me vi morando em uma
cidade grande. Como Londres, São Paulo ou até mesmo Nova York. Não
importa qual seja. Mas irei me adaptar com o ritmo frenético se jamais for
parecida com essa cidade.
— Assim como Nancy fez? — Me arrependo da pergunta no instante
em que ela sobrepõe a voz de Elle King na música. — Foi mal. — Reparo
em Nicola se remexendo desconfortavelmente ao meu lado.
— Não, está tudo bem. — Garante, sendo completamente sincera. — É
a verdade. Nancy fez exatamente isso. O que posso fazer? — Ela ergue seus
ombros e segue minhas coordenadas até a casa de Gwen Hallister, do outro
lado da cidade. — Mas, você me disse que me falaria sobre sua família.
Estamos chegando na festa e participamos de mundos diferentes, pode me
dizer agora?
— E se eu fizer um mistério? — Debocho, retirando meus olhos dos
prédios e olhando para ela. — Será mais interessante?
Nicola sorri de lábios unidos.
— Com toda a certeza.
— Então, irei esperar.
— Você que sabe. — Nicola desconversa. — Mas não esperarei para
sempre. Chegando na festa, cada uma vai para um lado.
Abro a boca imediatamente para contestar. Mas é a mais pura verdade.
Por que eu ficaria ao lado de Nicola Wolf? É, justamente, a Nicola Wolf
que nunca me quis por perto e vice e versa.
— Certo, se você insiste! — Ergo meus ombros. Outro sorriso surge
em seus lábios e fico satisfeita. É bom fazer alguém sorrir de vez em
quando. — Minha mãe sempre odiou me ver crescer e quando falei que
gostava de meninas isso apenas piorou.
— Prossiga, por favor. — A voz de Nicola demonstrava seriedade e
diversão. Os dois juntos.
— Bem, ela não sabe como ser mãe. — Inspiro rápido. — Existem as
pessoas que desejam a maternidade e pessoas que não. A minha é o último
caso. Ela quis seguir em frente a gestação, mas achava que seria como nos
filmes. Meu pai também. Os dois achavam que o mar de rosas seria se
mostrassem autoridade. Nada além de autoridade.
“Minha avó dizia que minha mãe me deixava sozinha no quarto,
chorando, até gritar. Ficava rouca e fraca. Depois, quando comecei a
crescer, só queria brincar e correr. E minha mãe não ficava de olho em mim.
Nem meu pai. Dizia que não tinha ‘paciência’. Isso mesmo. A pessoa que
me fez não tinha paciência para cuidar de mim como se eu não fosse
unicamente um ser humano. Essas coisas idiotas, sabe como é?
Na escola, na pré-escola, para ser mais franca, as coisas começaram a
piorar quando eu não tinha mais limites. Xingava a professora, puxava o
cabelo de outras crianças, mordia funcionários da escola, fingia estar
doente, tudo para ganhar um pouco de atenção. Claro que, naquela época
não entendia que meus reflexos violentos de comportamento eram,
exclusivamente, para ter um pouco de atenção, cuidado e carinho.
Havia esse tempo, em que minha família não sabia mais o que fazer
comigo. Gritos não resolviam e nem tapas nas mãos. Eu estava começando
a pensar em ser pior. Talvez chorar sem motivo nas aulas ou cortar os
cabelos dos meus colegas. Não consigo me lembrar. Então, minha avó
perdeu meu avô e um processo de bens na justiça. Ela teria que pagar as
dívidas que meu avô fez em vida. Com a morte recente dele, ela estava
arrasada. Mais puta da vida, do que triste, é claro.
Sem dinheiro, o suado dinheiro que conseguiu no cinema e nos filmes,
vovó decidiu que se mudaria para uma cidade que não precisaria exigir
muito custo benefício. O que é apenas uma frase bastante vaga. Nosso
bairro é um dos melhores de Salt. Mas para vovó, é apenas uma casa. Sem
tanto dinheiro, ela perguntou à minha mãe se poderia me criar. Não ajudar,
não beneficiar de longe. Me criar mesmo. Me levar embora de Brighton e
de todos que conheço para uma nova vida.
Lembro até hoje da minha mãe arrumando meu quarto, empacotando
meus quatros infantis do Toy Story e falando que minha vida seria muito
mais divertida e melhor com a presença de vovó Regina nela. Eu não
entendia o motivo de não ser bem-vinda na minha própria casa. Não
mesmo. Até hoje não entendo bem. Mas fico feliz que escolheu. Não
agradecida, estarei colocando no pedestal que não merece. Fico apenas...
feliz por vovó Regina e eu sermos quem somos.
E quando disse que gostava de meninas, minha mãe decidiu falar
comigo apenas no Natal. Já que ela ama Jesus e tudo o que Ele criou.”
Quando termino de falar, percebo que Nicola acabara de chegar à
residência dos Hallister. Uma construção moderna de madeira e vidro, ao
começo da estrada principal da cidade, com uma estradazinha de terra
particular.
— Você está muito melhor em Salt. — Nicola diz ao estacionar. —
Muito, muito melhor.
— Eu sei. — Pego minha caixa de alumínio, em que coloquei doces o
começo da noite. — Chocolate?
— Ah, não. — Nicola recusa. — Irei tentar comer algo aqui.
Novamente recaí um silêncio. Nenhuma de nós abre a porta do carro,
só ficamos dentro dele, uma do lado da outra, encarando uma parede de
pedra que Nicola estacionou de frente. Ela como Wednesday Addams, eu
como Caça Fantasmas.
— Pensa em voltar para Brighton algum dia?
Fico realizada que Nicola Wolf decidiu falar alguma coisa.
Penso na possibilidade de um dia visitar a minha mãe, ou meu pai, ou
os parentes que vovó Regina e eu deixamos para trás. Mas tudo isso me
parece algo para fazermos em apenas um dia. Dentro de vinte e quatro
horas. Nada além disso, nada muito menos que isso.
Viver em Brighton é como uma meta distante, seria a minha última
alternativa, de uma vida totalmente feliz se meu sonho em viver na Escócia
ou na Irlanda fossem devastados de algum jeito.
— Não mesmo.
Nicola sorri.
— Ótimo. Porque não deveria ir.

A festa de Gwen Hallister está muito cheia.


Nada parecida com as festas íntimas e particulares que Gwen deu no
ensino médio, ou quando não tínhamos nada para fazer e ficávamos um do
lado do outro apenas encarando um tabuleiro de Banco Imobiliário. Não se
parece nada com o ensino fundamental e o médio. Se parece exatamente
como uma festa universitária seria. Quando entrei com Nicola na festa, ela
logo encontrou Harvey e eu logo fui guiada para um grupo de garotas que
bebiam em uma roda, as Tormentas. Todas estavam fantasias. Duas de
M&M’s outras com a criatividade nas alturas.
— Quase não saí mais com a gente depois que decidiu virar uma
Barbie. — Anne Walkins diz, erguendo um coro de vozes e risadas no
grupo que consome vodca e ponche. Ainda não encontrei Gwen pela festa,
mas se bem conheço minha melhor amiga, ela está fazendo de tudo para
ninguém quebrar nada. — Foi liberada?
— E o que iriamos fazer? — Devolvo a provocação. É amigável. —
Eu quero ganhar o Salt-In, tem sorte que ainda apareço nos treinos
matutinos, Anne.
— Sim, nós temos!
As Tormentas, por mais que sejam um time bem diferente daquilo que
venho fazendo nas minhas tardes, afirmam que irão me apoiar. Mesmo que
eu seja uma “traidora” e tenha passado para o lado “péssimo” da força.
Enquanto ainda mato meu tempo tentando comer um petisco aqui e um
ali, percebo que os amigos de Garret Cox estão aqui e o próprio. Eles são os
responsáveis pelos barris de cerveja e o restante das bebidas diferentes que
encontro pela casa ou espalhadas pela mesa de centro da sala de estar. Fico
surpresa por Garret estar presente, fico ainda mais surpresa por Taylor estar
aqui. Garret, que tem um semblante alto e forte, veste uma roupa branca de
anjo e Taylor vem ao seu encalço, vestida de Diabo. Até com chifres e um
rabo.
— Não sabia que o Sr. e a Sra. Smith iriam se juntar a nós hoje. —
Anne debocha. — Acho que está na hora de circular um pouco pela festa.
— Ficar olhando essa cara de paspalho de Garret não é meu momento
favorito. — Completo por ela. Já que sempre pensamos a mesma coisa.
Nós, do time, levantamos de onde estamos, começando a caminhar até
a piscina, onde todas nós nos separamos por motivos diferentes. Seja para
beber mais, dançar, ir embora ou encontrar alguém para trocar alguns
beijos. Encontro Gwen Hallister nas espreguiçadeiras, conversando com um
cara que é meio que seu amigo, meio que não. Sabe aquelas pessoas que
gostamos, gostamos muito, mas não temos assunto? Mas continuamos
conversando porque algo nela te traz alguma coisa boa? Então.
Enquanto me aproximo, o cara se despede de Gwen com um toque em
seu ombro.
— Garret e a turma de idiotas dele estão aqui. Sua casa já foi bem
frequentada, Hallister. Sabia disso?
— Muito engraçado. — Gwen resmunga. Ela está vestida com um
terno preto. Algo me diz que é alguma referência a Pulp Fiction. — Eu não
sabia que todos iriam prestar atenção em mim. Ninguém prestou nesses
anos todos.
— Acho que você deu a única festa jovem da cidade toda.
Gwen cruza os braços.
— Não. — Ela assopra o cabelo para longe de seus olhos. — Outra
pessoa deu uma festa, mas falaram que foi uma piada e vieram para cá.
Como eu digo que não quero essa gente em casa quando já estão tão
acomodados?
— Realmente, é uma lástima.
— Não preciso das suas falsas condolências, Aster! — Gwen brada,
inconformada. — Não queria comemorar meu Halloween com pessoas
desse tipo.
— Eles trouxeram fogos de artifício — digo em sua maioria. — Olhe
pelo lado bom, se é que tem um. Ainda manteremos uma tradição do país
todos; fogos no Halloween.
— Essa porra nem faz sentido. — Gwen faz um bico manhoso. Abraço
minha amiga de lado. — Eu só queria beber um pouco, rir com Harvey e
dançar. Mas tudo na minha casa está cheio.
— Eu irei arranjar algo para fazer antes que eu ria mais da sua
situação! — Me afasto dela, dando passos em ré.
— Você é péssima, Aster. Péssima! — Gwen acusa enquanto lhe envio
alguns beijos pelo ar.
De volta à casa, encontro Nicola bebendo sozinha enquanto Harvey
está conversando animadamente em um grupo grande de pessoas. Nicola
não tem aquela expressão desgostosa que as pessoas sempre assumem
quando ficam sozinhas ou esperam por companhia. Ela está
assustadoramente confortável e satisfeita por estar aproveitando sua própria
presença. Ela segura um copo preto, possivelmente com água. Jamais a vi
colocar uma gota de álcool na boca. Duvido que hoje será o primeiro dia.
Ela passa seus olhos, atentos, pelas pessoas que se espremem em uma
falsa pista de dança.
Quando varre seus olhos pela última vez, ela os coloca em mim.
Nicola sorri, um pouco — bem pouco, quase imperceptível — para mim.
Ela acena discretamente, como se fosse um crime falar comigo. Devolvo o
aceno e ela volta para seu mundo completamente aconchegante.
Fico parada próxima à escada, decidindo meus próximos passos. Ir até
lá, falar com ela ou arranjar algo para fazer? Ela pode achar que estou com
pena dela. O que é, completamente, mentira. Não estou. Entendo
perfeitamente que Nicola é dessa maneira.
Eu falarei sobre o quê?
Tudo o que viemos conversando nos últimos dias não servem de muita
coisa. Quero dizer, as coisas são intuitivas. E sérias. Tão sérias que sempre
ficamos em silêncio depois. Volto a encarar Nicola Wolf quando desisto de
todas as alternativas. Seu colar pérolas favorito ainda está em seu pescoço,
como se Wednesday Addams de seu perfil fosse um pouco mais cuidadosa.
Entre a meia calça consigo ver seu pé enfaixado e fico me perguntando
quando Nicola irá o tirá-lo. Por mais que fique bem bonitinho e charmoso.
Reviro os olhos quando giro nos calcanhares, me desprendendo de
uma imagem em que estou nitidamente babando por ela. Resta saber se é
somente interesse ou se estou com tédio. Quero dizer, qualquer pessoa
poderia se interessar por Nicola Wolf — e eu tenho uma remota chance
desde que descobri que ela também gosta de garotas. O que estou dizendo é
que pode ser tédio por ainda não ter beijado ninguém em um grande espaço
de tempo. Tenho receio de quem sabe, conseguir beijá-la e depois encarar
tudo apenas como diversão.
Acho que ela não quer se divertir.
Bom, pelo menos não por enquanto.
Percebo que estou pulando em meus próprios pensamentos, tão absorta
que mal reparo quando chego ao andar de cima. Deserto, sem som, sem
alguma pessoa ou barulho para me acompanhar. Quando decido voltar para
baixo — e me divertir — sinto uma mão me puxar. Depois um abraço,
depois um aroma conhecido e depois um baque. Leva dez segundos para
perceber que; Taylor me trancou em um armário de casacos com ela. Sinto
sua proximidade na minha barriga, seus seios roçam levemente os meus e
seu aroma está cada vez mais forte pelo perfume que é o favorito de Garret.
Sei disso, porque ela sempre se gaba disso.
Taylor arranha minhas costas quando enlaça seus braços em mim.
Então, desisto de hesitar e a beijo. Seguro sua nuca e a beijo como em todas
as vezes que cometemos esse momento. Sinto o gosto de morango de algum
drinque em sua língua e sugo o sabor. Aproveito de seus lábios nos meus e
enfim, arfo. Mas não de amistosidade ou excitação, mas sim de tédio.
Me separo de Taylor com cuidado e, apesar de não a enxergar no
escuro em que nos encontramos, apenas encosto minhas costas na parede
atrás de mim e seguro sua cintura para longe.
— Acho que não dá — digo.
— O que?
— Nós. — Falo da forma mais clichê possível. Porque com certeza
nunca existiu um nós. — Não acho que devemos.
Taylor ri pelo nariz — consigo imaginar sua expressão desacreditada.
— Desde quando?
— Só não acho justo...
— Com o Garret? — Taylor completa incrédula. — Acha que ele não
me traí? Acha que ele é um santo?
— O que eu acho de Garret deve ser censurado de alguns países. —
Reprimo minha vontade de rir. — Não. Mas acho que todo esse caso não é
quem eu sou, ou a pessoa que quero ser. Ou a pessoa que eu deveria estar
sendo em base a tudo aquilo que acredito. Então... não quero mais te ver se
isso significar beijos escondidos e ameaças públicas.
Taylor fica em silêncio. Posso fantasiar que ela esteja mordendo os
lábios.
— Está pensando em me assumir?
Não é bem o que espero de sua reação. Mas seria bom beijá-la sem ter
medo de suas atuações quando estamos perto uma da outra no mesmo
ambiente.
— E se sim? — Não, não estava pensando em nada disso. Por mais
que fosse bom, não é a melhor opção e nem a mais viável. Mas é a que mais
faz sentido depois da saída que quero. — Só acho que não tenho cabeça e
nem idade para me submeter a isso. Sendo sincera com você.
— Meus pais... — Taylor começa, posso jurar que fungou. — Eles não
fazem ideia...
— Não estou te forçando a se revelar ou assumir. Só que estou
acabando com esse caso. — Me aproximo da porta e a empurro do batente.
— E, outra coisa, você também gosta de meninas?
Taylor Moore fica em silêncio, parece pensar, parece medir suas
próprias palavras.
— G-Gosto. — Gagueja.
— Tem certeza?
— Acho que não. — Vacila um pouco. — Mas... você me dá...
— Aquilo o que o Garret não te dá. — Completo finalmente. —
Atenção.
Saio do armário antes que Taylor faça algo; entre mudar minha mente,
ou me puxar novamente. Graças à festa lá embaixo não tem ninguém no
segundo andar, então desço o mais rápido possível. Choco-me
acidentalmente com Harvey Bird, que sorri para amenizar o baque. Ele
derruba seu ponche de frutas, mas está feliz em me ver.
— Parceira! — Harvey comemora. — De boa?
Harvey está vestido de jogador de basquete da NBA, ele está bastante
bonito e cheiroso.
— De boa.
— Quer beber?
Eu aceito a sugestão. A ideia de me livrar do gosto de morango da
minha boca. É bom, mas não o bastante. Encontro Garret, ele esbarra em
mim e não pede desculpa. Só quando Harvey reclama.
— Foi mal aí.
Me espanto como sua voz é grossa, feito de um trovão raivoso. Mas
Garret não se importa se esbarrou em mim, ele só seguirá seu caminho e
jamais entrará numa discussão com Harvey.
Na cozinha, vejo quando Taylor desce as escadas e se enlaça em Garret
como um grude. Não sinto nada tendo a visão de onde estou, apenas que fiz
a coisa certa. Me sinto bastante aliviada e me sinto, de alguma maneira,
menos estúpida.
— Aqui está. — Harvey me passa um copo novo em folha de ponche
de frutas.
Enquanto bebo, vejo pela borda do copo o momento exato que Nicola
beija uma garota.
E quando o primeiro fogo de artificio rasga o céu da cidade.
Mesmo bebendo, minha garganta seca.
15

Com a breve passagem do Halloween em Salt, os ânimos das pessoas


estavam altos. Naquela semana em que não tínhamos mais nenhum evento,
os jovens de Salt queriam arranjar algum outro motivo para saírem,
beberem e beijarem pessoas desconhecidas — como uma competição.
Como tinha observado antes, eles não têm muita criatividade, então, perdi
as contas de quantos convites neguei e fingi não receber para ir à fogueira.
Novembro entrou com bastante chuva na cidade.
Dias cinzentos e coloridos apenas pelos galhos secos das árvores e das
folhas ressacadas de um outono que começava a perder força. O inverno
queria dizer que o torneio estava chegando, mesmo que sua estreia estivesse
marcada daqui há alguns meses. Quando chove na cidade, as ruas ficam
quase irreconhecíveis e se locomover na cidade se torna perigoso com o
asfalto escorregadio. Sair em Salt é apenas uma emergência quando se está
chovendo.
Arranquei a faixa do meu pé no dia dez de novembro. Harvey foi
comigo, depois de um turno na livraria Bird, da qual eu voltaria assim que
me familiarizasse com meu pé sem qualquer outro impedimento que não
fosse um pano ou uma faixa. A sola de meu pé ganhou uma cicatriz
pequena e fosca, para a coleção de cicatrizes que tenho no ombro e no outro
pé. As cicatrizes de gelo cortante nas minhas costas e as finas dos meus
braços.
Na terceira semana de novembro, Aster e Harvey se desentenderam.
Não literalmente, mas na patinação. Eles tinham uma boa química e uma
troca de olhares que poderia enganar até o mais crítico dos jurados. Só que
ainda não tínhamos começado os passos mais arriscados, nem suspender
Aster em um abraço giratório. Ainda parecia arriscado. Por mais que eles
estivessem bem, faltava algo na coreografia que parecia simples demais. La
vi en Rose, instrumental, não poderia nos salvar se não fazermos algo em
troca.
Aster já fazia um perfeito camel spin, quando precisava levantar a
perna direita ou esquerda e se movimentar em três segundos com ela
erguida. Mas eu queria mais. Queria que eles estivessem juntos no dance
lift; quando o parceiro roda com sua parceira a centímetros exatos do chão.
Pode dar uma sensação que, no fundo, ela poderia cair, mas é um
movimento tão limpo e bonito — dependendo da roupa que Aster usar —
que sempre perco o fôlego.
Pensando sobre isso — e escrevendo arrastadamente o artigo de cinco
capítulos da sra. Tent sobre uma garota texana que quer trabalhar como
garçonete em um bar de Nova York — soube exatamente o que fazer para
introduzir os passos mais arriscados entre Aster e Harvey. Em uma quinta-
feira, em que anotava o endereço em minha agenda particular, mal reparei
que minha mãe havia chegado no meu quarto.
Desde do Halloween venho evitando todos na casa que não fossem
Barr. Isso incluía sempre sair do mesmo cômodo quando mamãe me olhava
como se desejasse conversar. Aquela mesma conversa que estou
ponderando em ter. Mas, no meu quarto, antes de ir para seu emprego, ela
praticamente me encurralou e sabe que sim.
No entanto, ela é serena e neutra, por mais que eu saiba que há
ansiedade por baixo de toda sua camada de auto controle.
— Oi, minha linda. — Mamãe disse, sorrindo.
— Oi — respondi áspera.
— Só queria saber se... irá comigo e com o Barr hoje... hum... vermos
roupas de gala para alugar. O casamento de Nancy está chegando...
Lembro que faz dias e semanas que Nancy não me liga e eu não ligo
para ela. Bem, eu liguei para ela há três dias, novamente, ela não me
atendeu. Gostaria de saber se minha irmã está viva.
— Sem roupas para mim — digo. — Irei com meu clássico vestido
azul. Está ótimo. Se Nancy quiser outra roupa, posso fazer compras com ela
em Londres. Quando formos.
Mamãe comprime os lábios.
— Ah, certo. Está ótimo, minha linda. — Ela segura suas próprias
mãos e dá um passo à frente. — Posso falar com você, Nikki?
Mamãe quase nunca me chamava de Nikki. Isso significava que ela
queria me agradar, ela sabe o quanto aprecio as pessoas que me chamam de
Nikki. E Harvey sempre faz isso.
Quero lhe dizer que marquei horário na academia mais próxima, mas
pela forma que Celia Wolf impede minha passagem até a porta, decido me
manter sentada à frente da minha mesa de estudos.
— Sobre?
— Primeiro, antes de tudo, quero te perguntar algumas coisas. — Ela
morde os lábios, pensando. Ergo as sobrancelhas, incentivando que ela fale
logo de uma vez. — Você... você nunca andou com Aster Campbell. Nunca
na vida, nem quando frequentavam a mesma escola. Agora que ela está
ajudando o Harvey, você... aparece com ela?
— Bem. — Sorrio. — Sou a treinadora dela.
— Não é isso. — Ela sacode a cabeça. — Quero te perguntar... — Ela
respira fundo e solta o ar. — Olha, Nikki, preciso dizer que não gosto da
ideia de você andando com a Aster. Sei que tem vinte e dois anos e sabe
muito bem o que quer. Mas ela é... ela é...
Estendo meu sorriso.
— Má influência?
Talvez meu tom de deboche e prazer tenha sido muito nítido, porque
posso jurar que mamãe se segura para não falar mais nada. E, bem, ela pode
estar desconfiando de algo.
No Halloween, fiz a besteira de beijar uma garota desconhecida na
frente de todos. Se tem algo que eu odeio são pessoas em festas. E pior,
pessoas em festas curiosas com a minha própria vida. Todo mundo viu. Por
mais normal que seja, as pessoas não esperavam que eu, Nicola, gostasse de
meninas.
Também.
É tão idiota pensar que me tornei assunto na cidade que fico surpresa
por mamãe não ter surtado. Quero dizer, ela pode estar na fase da negação;
“Ah, não acho que seja Nicola. Pode estar se confundindo” ou até mesmo
“Ah, por que ela faria isso? Acho que não. A minha filha namorou caras a
vida toda.”
Logicamente, ser a protagonista de um boato não é a melhor forma
para assumir para sua família inteira que você é bissexual. Obviamente
você espera aqueles discursos que vemos em filmes e em séries. O pai
emocionado, abraçando o filho e falando “Ah, sempre soube.” Sim, é
bastante bonito. Bonito e poético e nos enche de esperança. Mas na vida
real é diferente. Na vida real sua mãe tenta retirar alguma informação sua, e
dependendo de qual ou dá a ela, pode ser uma catástrofe.
Mas passei da fase de me importar.
Quero dizer, eu não estou falando com meus pais. Queria ter paciência
de apenas viver. Mas agora que tem um boato me rondando e uma dúvida
pairando sobre mim, espero que mamãe perca o tempo dela pensando se é
verdade ou mentira. Não irei amaciar seu ego e nem nada do tipo.
— Aster ela...
— É lésbica. — Sorrio novamente. — Você pode dizer a palavra mãe.
Não aparecerá uma lésbica querendo te morder. Se torna normal se dita com
respeito, aliás.
— Não acha que isso pode... — Me ignorando um pouco, minha mãe
volta a falar.
— Me influenciar a gostar de meninas? — Desdenho.
Celia Wolf, eu tenho uma notícia para você.
Penso em ser petulante, penso em não ligar para mais nada. Penso que
é uma boa hora para me libertar logo de uma vez e ouvir o que tiver que
ouvir. Mas olhá-la, me dá uma enorme e gritante preguiça.
Simplesmente sei que não vale à pena.
— Relaxa, mãe. — Pisco, sendo misteriosa. Pego minha bolsa e minha
agenda. Alguns itens para malhar e uma calça simples de legging. — Aster
não precisa fazer nada.

— Achei que o intuito de ser uma patinadora cheia de frufru agora é,


justamente, patinar.
Aster Campbell está com os braços cruzados diante de mim. Suas
bochechas estão vermelhas porque disse que perdeu o ônibus e que os táxis,
quando chovem, dobram o valor de uma corrida. Então precisou vir de sua
casa a pé até a academia em que estamos. A Gim Gym, é a única academia
de Salt. É grande e ampla, tem muitos aparelhos e seções organizadas de
acordo com o que você deseja. Harvey e eu treinávamos todos os dias em
que podíamos aqui. Seja correndo na esteira, levantando alguns pesos
pequenos ou apenas batendo papo quando deveríamos estar malhando, é
claro.
Estar na academia novamente, não para treinar, me traz uma sensação
completamente estranha. Mas boa. Estou usando uma calça legging preta,
com uma camiseta que ultrapassa o limite da minha coxa e esconde minha
bunda reta. Harvey, como conheci o treinamento de hoje, está usando sua
própria calça de malhação e uma regata — por mais que o clima lá fora seja
chuvoso. Já Aster, está com os cabelos cacheados e crespos presos em um
rabo de cavalo. Parece extremamente desgostosa por ser tirada da Arena
Palmer. Sei o que deve pensar; quando finalmente estou me acostumando
com toda essa ideia, Nicola me tira lá?
— O que uma academia pode ajudar?
— Entre muitas coisas, Aster. — Reparo, semicerrando os olhos. — O
que menos gosto em você é a maneira pequena que encara uma
oportunidade.
Aster não gosta do que houve, então projeta sua melhor expressão
“Sério mesmo?”.
Não sei o motivo, mas sorrio de lado, deixando claro que ela irá se
surpreender. Digo para ela seguir Harvey e eu pela academia, porque
aluguei um horário em um espaço especial de luta corporal. A sala está
preenchida por algumas pessoas que treinam saltos, pulos, acrobacias e
lutas corporais que exigem muita força da mente e dos braços. Deixo
minhas coisas jogadas em um canto, nos afastando do limite de pessoas
possíveis.
— Você quer explicar a ela, Harvey? — Discorro. — Ou terei esse
prazer?
Harvey sorri, mas diz que o palco é todo o meu.
Junto minhas mãos e olho para Aster.
— Você deve ter percebido que, para vencermos, precisamos fazer
mais do que simplesmente patinar em círculos e esperar ganharmos pontos.
Certo? — Aster dá de ombros. Mas sim, ela sabe perfeitamente do que
estou falando. — E para isso, não podemos introduzir você diretamente
para um trejeito arriscado. Você pode cair e deslocar algum osso ou quebra-
lo. Você não quer ser uma segunda eu.
Sentada, Aster apoia os cotovelos nos joelhos.
— Então, para isso, você precisa estabelecer confiança no Harvey.
Saber que ele não te deixará cair por nada nesse mundo. Ok?
— Vamos fazer alguns movimentos oficiais para que você saiba do que
estamos falando. Mas em terra firme primeiro, sem patinar para você sentir
confiança em mim. Total confiança. — Harvey diz ao meu lado. — Por
exemplo, para ensinarmos um death spiral, você precisa acreditar em mim e
ter flexibilidade.
— Certo, certo. — Aster diz. — Adoraria fazer um death spiral ou até
mesmo um life spiral, se eu soubesse o que é um.
Eu suspiro, Harvey morde os lábios ao sorrir.
— É quando o parceiro, no caso, flexiona os joelhos como se estivesse
sentado, com a força de uma das minhas mãos, irei rodar você em círculos,
enquanto você está levemente curvada para trás, flexionando as costas e
está numa posição graciosa ao mesmo tempo. — Meu melhor amigo
explica rapidamente.
Aster murcha os lábios.
— Me parece complicado. — Resmunga.
— Era o favorito de Nicola. — Harvey se aproxima de Aster, pegando-
a pela mão e a levando até o centro do piso feito de borracha e acolchoado.
— Para fazermos isso, primeiro, você precisa ficar de costas para mim e
cair.
— Cair?! — Aster brada.
— Sim. De costas!
— Não!
— Então podemos parar por aqui!
— Não! — Aster protesta. — Ok. Já vi isso antes.
Harvey coloca a mão na cintura de Aster e aponta para mim com o
queixo.
— A Nikki pode vir primeiro.
— Não irá funcionar. — Desfilo até Harvey, já que Aster se afastou
dele para me dar passagem. — Já confio em você, Har.
— Só mostra como a Aster precisa fazer, Nikki. — Harvey responde
tranquilo.
Revirando meus olhos, giro nos calcanhares.
Aster está me olhando, atentamente nesse momento. Seus olhos
castanhos bem fixos em mim, como se não pudesse perder nem um segundo
sequer de mim e de meu corpo. Divido meu peso entre os pés, me
convencendo que é apenas uma impressão. O charme de Aster Campbell é
sempre dar a entender que você faz parte de um flerte, mesmo quando ela
não tem intenção alguma de leva-lo a diante.
Abro os braços — acho que de uma forma mais graciosa do que
realmente necessário. Ergo meu queixo e estico meus ombros. Olho para
frente e impulsiono meu corpo para trás, com leveza. Sinto meu corpo cair,
despencar de costas até o chão. Exceto, pelo fato de quê Harvey me segura
pelas axilas, muito antes de atingir o chão e me machucar. É automático
sorrir quando sinto que fui pega. É um teste bastante comum de afinidade.
— Sua vez. — Levanto totalmente e digo para Aster, que já está em pé
novamente.
Ela se dirige a Harvey e fica na mesma posição da qual eu fiquei. Ela
ergue os braços, na altura dos ombros, fecha os olhos de uma maneira que a
faz parecer como uma pintura. Aquelas alternativas que encontramos, de
garotas curtindo a vida de um jeito poético que nos faz parecer que
queremos enxerga-la de uma maneira mais poética. Aster vai para trás,
lentamente, como se alguém estivesse com um controle remoto do meu
lado, pausando a cena de uma maneira torturante. Quando acho que ela
cairá totalmente, Harvey a sustenta, como fez comigo.
Seu sorriso é doce quando seus olhos se abrem.
É um sorriso impressionado e nervoso, de um jeito que damos quando
algo dá certo, mas ainda não acreditamos. É uma ótima risada para ser
honesta, é uma parte de Aster Campbell que começo a admirar a partir
daquele momento.
Desvio o olho quando percebo que eles farão de novo, de novo e de
novo, até enjoarem da brincadeira que une meu melhor amigo com a minha
vizinha mais do que nunca.
Harvey ajuda Aster a fazer cambalhotas.
Daquelas bem infantis que qualquer pessoa consegue fazer. Fico ali,
sobrando um pouco da sintonia que os dois precisam construir. Mas, aposto
que, qualquer jurado que assistisse aos nossos ensaios e treinos, saberiam
que o esforço que estamos colocando todo o torneio é o suficiente para o
primeiro lugar. Claro que, muitas das vezes estou sendo apenas boazinha ou
até mesmo iludida ao pensar que as outras pessoas que viajarão de suas
cidades até Salt para competir não estejam dando sangue e suor nesse
momento.
Acontece que preciso focar sempre em outro lugar.
Parece que a gargalhada de Aster me chama!
Como se pedisse e me instigasse a dar uma espiada em como ela está
se divertindo, puxando e abraçando Harvey, em como caí em suas costas ou
como desenvolveu tanta confiança nele que caí até de olhos fechados. De
vez em quando bebo água, passeio pela seção de treinamento. Mas não
adianta. Fui fisgada ao ponto de tombar a cabeça levemente para a cena e
acha-la fofa e divertida. Até mesmo meiga.
Eles só param quando o celular de Harvey toca incisivamente. Ele
solta os pés de Aster e corre na direção de sua mochila. Ao atender, resta
apenas ela e eu. Que não trocamos nenhuma palavra enquanto Harvey
franze o cenho, resmunga, retruca e no final, cede algo.
— Preciso ir, Nikki. — Ele pega sua mochila de onde está apoiada e
coloca nas costas rapidamente. Aster se ergue do chão rapidamente. —
Meus pais precisam de mim na livraria.
— Porra. — Praguejo. — Sério? Vocês estavam indo muito bem!
Os dois esboçam sorrisos orgulhosos.
— Sim. — Harvey passa o braço direito pelos ombros de Aster. —
Mas preciso mesmo ir.
— Tudo bem. Acho melhor...
— Podemos ficar. — Aster me interrompe. Ela me olha rapidamente e
depois para Harvey. — Pode me explicar mais sobre os movimentos que
ainda sou bastante atrasada e podemos tentar alguns que possa me ensinar.
Harvey gosta dessa determinação e sabe que, em outro momento,
odiaria ficar sozinha com ela. Acho que é por esse motivo que ele sorri,
após murchar os lábios de maneira provocativa e cretina.
— Vocês estão bem acompanhadas, então. — Harvey solta Aster e
beija sua bochecha ao se despedir. — Me mandem mensagem qualquer
coisa. — Ele diz para mim e beija a ponta do meu nariz. — Te amo, garota.
— Também te amo, Har. — Aceno, quando ele já se afasta a passos
largos e decididos.
Uma vez sozinhas, ouvindo apenas os gemidos e os urros dos demais
competidores de lutas na academia, Aster sorri de lábios comprimidos. Sem
graça. Ela enfia as mãos nos bolsos do moletom cinza que veste.
— Eu... — Ela começa, com a voz rouca. Ela pigarreia. — Podemos
tentar o que o Harvey fez.
— Ir embora?
Aster ri.
— Não. O teste de confiança.
Estreito os olhos e Aster sorri, mordendo a pontinha da língua.
— Qual é, Nicola. Já contamos muito mais da vida da outra para
perdemos essa oportunidade. Não acha?
— Pode ser. — Não quero ponderar muito.
Pode parecer bastante mal educado da minha parte.
Aster dá um passo para trás e eu um a frente. Giro nos calcanhares e
fico de costas para ela.
— Quando quiser. — Aster diz atrás de mim.
Olho para a parede cinza do ginásio que é testemunha que estou
tentando me manter longe. Ou não ser apenas mais uma dentro de suas
façanhas.
Conto até três mentalmente e quando a contagem acaba, ergo meus
braços, como se fosse me apresentar para uma plateia enorme. Embora só
tenha Aster e algumas pessoas desconhecidas que insistem em lutar ao
nosso redor.
— Quando quiser, Nicola.
Respiro fundo e vou para trás.
Apenas solto meu corpo, minha mente e meu peso. Apenas vou. Sinto
que irei falhar, que irei atingir o chão. Mas sou salva quando sinto suas
mãos em mim, me colocando para cima e em pé novamente.
Estou sorrindo quando me viro para ela.
— Minha vez. — Aster pisca, dando um passo certeiro a frente.
Diferente de mim, Aster não espera que eu diga que pode vir, ela
simplesmente se joga. Sinto suas costas baterem de contra meu peito e
minhas pernas vacilarem, totalmente despreparadas para recebe-la. Caímos
juntas ao chão. E, ao invés de sentir qualquer outro sentimento estranho,
estamos bem o bastante para gargalhar. Gargalhar tanto de nossa queda, que
sinto minha barriga doer e formigar. Sei que os olhos das demais pessoas
estão em nós, mas não posso evitar a maneira de rir e declarar o quão
idiotas fomos nesse momento.
— Achei que ia me segurar! — Aster, que está entre minha barriga, se
arrasta para o meu lado. Deitando-se de barriga para cima. — Péssima,
Nicola. Você é péssima!
— Perdão. — Limpo uma lágrima de tanto rir do canto do olho e apoio
minhas mãos na barriga, também deitada. — Sério. Não estava esperando!
— Só irei desculpar porque você é a mais nova vadia de Salt.
— Sou? — Arregalo os olhos ao sorrir mais. Aster assente, vejo pelo
canto do olho. — Finalmente. — Brado. — Estava cansada de ser a
puritana esse tempo todo.
— As pérolas não devem ajudar, sabe.
— Verdade. — Olho para o colar falso que ainda está pregado ao meu
pescoço. Como todos os outros dias. — Eu deveria usar uma coisa mais
ousada.
— E se... — Aster vira-se na minha direção, ficando de lado. —
Trocarmos? Eu uso seu colar de pérolas por um tempo e você o meu de
cadeado. Só... se prometer cuidar dele com a sua vida.
— Só se você der seu sangue pelo o meu.
Aster e eu nos encaramos pelo o que eu diria ser uma breve eternidade.
Nossos colares podem ser uma das nossas marcas mais fortes.
— Tudo bem.
Me levanto com ajuda das mãos.
Em pé, Aster já começa a tirar seu famoso colar de cadeado. Quando
se desprende do seu pescoço, percebo que preciso fazer o mesmo com o
meu. Retiro o meu e o repouso em sua mão. É estranho sentir um vazio no
meu pescoço, mas é de um jeito extremamente bom.
Sinto o pingente de cadeado esquentar na minha mão. Coloco
rapidamente, sem deixar pistas que uma pode colocar na outra. Isso estaria
passando dos meus limites. E sentir Aster tão perto é o bastante para apenas
um dia.
Quando vejo as pérolas nela, tenho certeza que tudo, absolutamente
tudo, fica bem em Aster Campbell. Mesmo com os cabelos bagunçados e o
esmalte da unha lascado. Quero saber se fico tão bem assim usando seu
fabuloso colar, mas pela maneira que Aster pisca e sorri de lado, posso
considerar que estou bem.
Muito bem com ele.
16

Minha parte favorita em produzir alguma coisa é; os treinos.


Ok, ok, ok.
Pode até ser bastante irônico ou debochado da minha parte falar que
adoro treinos quando sou uma das últimas a chegar sempre na Arena
Palmer ou quando as Tormentas decidem fazer um encontro antes dos jogos
semanais, sei disso. Mas gosto, acredite em mim.
Faz algumas horas, desde que acordei, que simplesmente assumi a
mim mesma que só faço isso – me atrasar - porque adoro chamar a atenção
de Nicola.
Pronto.
Eu disse.
Tanto mentalmente, quanto em voz alta de frente para o meu maldito
espelho quando acordei esta manhã; estou interessada em Nicola Wolf, cada
dia mais do que o outro.
Sem essa de paixão ou me apaixonar perdidamente pela minha
treinadora, mas, preciso dizer e assumir que a minha treinadora é uma bela
garota, uma decidida mulher e uma das pessoas mais inteligentes que já
conheci. Só que não quero colocar tudo a perder como sempre estou
acostumada a fazer.
Quero... não sei o que quero.
Não sei se quero Nicola ou deixar as coisas exatamente como elas
estão. Não preciso de outra circunstância para...
— Aster!
O disco me atinge nos joelhos.
Felizmente, não é um ponto marcado no treino, mas é o bastante para
eu ser arrancada dos meus pensamentos. Anne, que patina com os olhos
inflamados de decepção segura seu taco de maneira irritada ao se apoiar ao
meu lado. O restante das quatro garotas me encara como se eu estivesse
pecando em algo.
Faço um sinal, apontando para um falso bocejo e elas voltam a treinar
com outros discos de borrachas. Uma borracha tão pesada que é uma sorte
ter me atingido no joelho, e não na boca do estômago.
— Tá pensando em que, porra? — Anne brada, parando ao meu lado.
Sei que sua mão coça para não me dar um tapa na nuca. — Presta atenção,
Aster!
— Foi mal. — Ergo a palma da minha mão. — Só estava... só estava
desatenta. Não vai se repetir.
—Não fica perdendo o rumo, hein. — Anne aconselha, enquanto é
apoiada pelas outras garotas do time na pista de patinação. — Só porque
você virou uma garota da dança artística, não quer dizer que você perdeu o
compromisso conosco.
Eu não levaria a sério. Qualquer pessoa que conhecesse Anne poderia
ficar com medo, mas eu apenas esbanjo um sorrisinho de lado que a pode
fazer se acalmar de uma vez. Curvo meu corpo diante do gol e da rede e
pisco a ela — ou para quem quiser ganhar uma piscadela minha.
— Para de falar, Anne. — Debocho. — Vamos treinar, hum?
As demais garotas do time ainda estão pensando piadinhas. Sou uma
das poucas que não usa capacete nos treinos, então levar um disco no meio
da cara deve doer. Os dentes ficam moles e você tem a impressão que eles
irão ganhar de tanta força e pressão que antecedeu o baque. Sei
perfeitamente disso, porque no colégio levei alguns tombos. Mas não nas
Tormentas, aqui sou mais cuidadosa.
Patino ao lado de Anne, para o centro da pista, onde ela recita alguns
conselhos que conseguiu graças à namorada, que também joga hóquei. Mas
em uma pista seca, de madeira, em outra cidade. Hóquei sem gelo é
bastante estranho, chega até mesmo a ser carente, mas não falarei isso a
Anne. Claro que não.
Quando é a minha vez de lembrar que precisamos treinar todos os dias,
agora que os jogos são semanais, uma delas olha para a arquibancada. Mas
logo volta sua atenção para mim. Espio o que pode ter tirado a atenção dela,
mas apenas vejo uma figura masculina e alta, aninhada aos bancos do meio.
Volto minha atenção a elas, segurando o taco para me manter em pé.
Retorno para a rede do gol.
Antes de voltar ao seu posto, Anne desliza rapidamente para uma haste
do gol, se apoiando nela e no taco que segura.
— Estava pensando na Nicola, não é?
Uma ergo uma sobrancelha.
— Mesmo se tivesse, você seria a última pessoa que saberia disso, An.
— Zombo de uma vez. Embora ela tenha razão. Fungo um pouco e toco o
meu nariz, me aproximando dela. — Diz para mim que não está tão na cara,
vai.
— Até que não. — Anne junta as sobrancelhas. — Mas eu sou
observadora, sabe como é?
— Ou apenas intrometida.
— Também. — Anne dá alguns tapinhas nos meus ombros. — Mas se
quiser perguntar algumas dicas sobre Nicola, é melhor ser rápida. O ex-
namorado dela está na arquibancada. — E apontou para o meu lado direito.
Garret Cox está mesmo sentado nas arquibancadas vazias da arena
principal da faculdade. Como não o reconheci antes?
Seu cabelo louro está mais curto do que semanas atrás. Possivelmente,
porque cortou. Ele tem seus olhos presos em mim e bebe algum a coisa de
um recipiente que não consigo ver de onde estou.
Sei que seus olhos estão fixos em mim porque sou rosto está virado
levemente na direção do gol. O gol onde eu estou.
É mais do que estranho vê-lo por aqui.
Até perverso e sombrio. Garret jamais esteve nos meus treinos, só em
jogos — unicamente pela pressão da faculdade que ama o dinheiro e a
verba estudantil que as Tormentas trazem. Mas se fossemos um time de
bairro, Garret nunca nos olharia por mais que um segundo.
O que ele quer?
Anne patina para longe, depois de me pregar uma dúvida colossal
sobre a presença dele aqui.
Finalmente — não sei dizer — Garret acena com dois dedos na minha
direção. Como se fossemos amigos ou íntimos. Ele nunca fez nada
parecido, então me limito a pegar meu capacete do chão e ignorar sua
presença mais do que macabra.

Depois de um banho no vestiário, em que tomei no nível mais gelado


possível, saí do treino com a intenção de chegar em casa e dormir. Ou até
mesmo visitar o Dino, na concessionária e dar uma olhada em Betty. Ela
seria minha em poucas semanas. Eu estaria com elas pelas ruas. Poderia ir
até Londres, encontrar os cursos de Enfermagem que procurei pelo Google.
Posso fazer milhares de coisas só com a narrativa de ter Betty em mãos de
uma vez só.
Quando chego ao corredor principal, do lado de fora, noto que o céu
derrama uma chuva preguiçosa e gelada. Tão fria que não se parece nada
com o outono que tivemos em meados de outubro. O que é um fato; já que a
cidade até parece saída do inverno eterno de As Crônicas de Nárnia.
Ao final do corredor, Gwen Hallister está conversando com Harvey
Bird. Ela está abraçada a um livro, segurando rente ao busto. Tem seus
olhos brilhantes e cabeça tombada levemente para o lado, analisando
Harvey como se ele fosse a coisa mais bela do mundo.
Corrigindo, no mundo de Gwen, isto é verdade.
Os dois se conheceram na aula de Química da faculdade de United
Salt, por mais que sempre estivessem lá, um perto do outro durante anos.
Na mesma escola, mesmo bairro, mesmo tudo. Mais uma daquelas histórias
que nós sabemos que é o tempo que age.
Infelizmente, Gwen não me vê chegando, ela toca o ombro de Harvey
e se afasta dele, caminhando até o estacionamento coberto. Desisto de
alcança-la. Harvey me vê, ele começa a caminhar na minha direção. Logo,
Nicola vira o corredor oposto do dele, carregando seus cadernos. Meu
coração bate um pouco, me avisando que é ela.
Como se não houvesse notado e nem percebido que sim, maldito
coração, é ela!
Mas a imagem de Nicola e Harvey é rapidamente cortada quando
Garret Cox aparece, do corredor a diante. Ele está com os punhos fechados
e os olhos faiscando de uma força incomum. Não tenho tempo de desviar de
seu caminho, porque eu sou seu foco. Ele consegue me pegar pelo colarinho
de meu moletom e logo sinto o concreto violento e áspero da parede mais
próxima contra minhas costas e minha pele. A dor da minha coluna estala,
como um zumbindo chato, apenas me avisando de que fui machucada. Ou
só levemente assustada.
Garret está bem próximo de mim, gritando palavras desconexas que só
devem fazer sentido a ele. Quero muito saber o que ele está falando. Mas,
na minha cabeça, a cena se desenvolve de uma maneira lenta e desenrolada
em uma câmera de percepções de sentidos. Vejo o exato momento que
Nicola corre e Harvey aperta o passo. Mas Garret consegue chegar tão perto
que sinto o hálito de bebida. Forte, poderoso. Como se sua língua tivesse
marcado para sempre aquele sabor brusco.
Taylor Moore tenta, de alguma forma, tirar Garret de cima de mim.
Mas ele é grande, alto e forte, e parece movido por uma raiva que só ele
pode explicar a si mesmo. Quando as pessoas começam a se amontoar ao
nosso lado e Harvey me libera do toque dele, volto a vida — ou volto a
cena, depende de como quero enxergar as coisas.
Caio de joelhos ao chão, sentindo uma extrema falta de ar.
Nicola se ajoelha ao meu lado, segurando minhas costas enquanto
espalma os dedos longos por ela. Está doendo, apenas latejando, não é nada
tão sério — creio eu — mas sinto o colarinho que apertou meu pescoço,
deixando as pérolas marcadas na pele e até grudadas. Felizmente, o colar de
Nicola está bem — e eu, inclusive. O colar de cadeado no pescoço dela
balança, entre o pingente gelado. Nicola o guarda para dentro do suéter de
linho salpicado que gosta de usar.
Busco todo o meu fôlego e tento compreender o que aconteceu.
— Nunca, nunca mais chegue perto da minha namorada! — Garret
gritou, apontando seu dedo para mim, enquanto Harvey tentava o afastar.
Seu rosto que normalmente é banhado por um tom de branco sem graça e
pálido está completamente vermelho e inchado de fúria e ódio. — Você é
uma cretina, Aster!
Ah.
Entendo.
Taylor.
Que está chorando arrependida, enquanto as amigas afagam suas
costas como se ela não tivesse culpa de nada. Bem, a coitada não tem. Se
Garret é explosivo e violento, a culpa é totalmente dele.
Consigo me levantar com a ajuda da parede — a mesma que recebeu
as minhas costas como um carimbo — estou respirando melhor, estou me
focando no que acontece ao meu redor. A roda de pessoas se intensifica,
somente curiosos que param suas vidas idiotas para enxergar o que acontece
com a minha. Bom, independente se fosse a minha ou não, eles estariam lá.
Mas a chuva do lado de fora não para, ela continua. Densa e firme.
Aumentou agora.
— Você está me entendendo? — Garret está sendo segurado pelos
amigos agora, enquanto Harvey briga com outro. — Fica longe de nós!
— Você sabe como as coisas acontecem? — Ergo meu queixo,
arrumando minha postura. — Deixa de cena, Garret. É melhor para você e
para mim. Do que está falando, afinal?
— Você sabe do que eu estou falando. — Ele cospe no chão.
Olho para Nicola, que arregala discretamente os olhos e murmura para
eu não dizer nada. Mas estou cega de raiva agora. Cega por não ter um taco
de hóquei e acabar com toda a graça de valentão que Garret tem. Cega de
ódio por ele ter tocado em mim, por ter me rondado a manhã toda, com a
intenção de me amedrontar. Ódio e medo do que ele faria se não estivesse
tantas pessoas por perto. Não consigo ser racional quando uma pessoa dessa
acha que tem o direito de me afugentar, de me ameaçar, de tocar em mim
sem a merda da minha permissão.
De tentar resolver algo com as mãos, com a violência, sem antes
perceber o quão ridículo é em toda a sua existência como ser humano.
— Sim, eu sei o que fiz. — Arrumo ainda mais minha postura. Embora
meu rosto esteja tremendo e eu sinta meus dentes baterem um no outro de
tanta ira, não consigo parar. — Por que não conta a eles que foi traído?
Eu sei o que eu fiz foi péssimo.
Tanto pela multidão que vibra com a fofoca, quanto pelos amigos de
Garret que afrouxam o aperto ao seu redor. Eles parecem pasmos que
Garret, o Garret Cox, foi traído, quando, todos sabem que é quem “manda.”
Sei que fiz uma besteira enorme, especialmente, pela maneira que Taylor
parece chocada e as demais pessoas gritam que adoraram saber uma coisa
dessas.
A cidade é pequena, todos saberiam do que aconteceu em pouco
menos que uma tarde.
Nada de legal ou importante acontece em Salt, eles dizem.
— Sua...
Garret avança e eu não fujo, dou um passo à frente. Se ele irá me bater,
então que bata. Estou pronta para oferecer meu rosto para receber um soco,
com os olhos lacrimejados de dor e repulsa por uma pessoa que conheço tão
pouco, mas que não preciso saber outro detalhe para odiar.
No entanto, o soco de Garret não vem. Nem seu xingamento, nem nada
do tipo.
Nicola está parada diante de mim, impedindo que Garret e eu nos
choquemos violentamente um com o outro.
— Garret! — Seu grito é poderoso. É capaz de fazer a multidão parar
de rir e de gravar. É capaz de fazer Taylor apenas fungar e os amigos de
Garret Cox apenas observarem, sem especificar o que sentem. — Não faça
isso!
As narinas de Garret dilatam quando ele olha para Nicola. Como seu
queixo está em um caminho reto e firme, e como ela esbanja coragem
enquanto sabe que poderia ser atingida se ele não medisse o tempo e sua
força. Mas isso não importa. Dar um passo para trás nunca fez o feito de
Nicola Wolf, e Garret e eu sabemos disso.
Como ninguém.
— Tem certeza? — O maxilar de Garret trava.
— Você está bêbado! — Nicola o empurra com certa delicadeza para
trás. — O que tiver que resolver, converse com a sua namorada. E não com
Aster.
— Por que você sempre defende todos e não a mim?
— Quer reviver assuntos passados, Garret Cox? — Ela dá um passo à
frente. — Se quiser, posso pedir para que todos gravem o que eu tenho a
dizer. Dessa vez, irei falar tudo.
Garret Cox, se é que posso dizer isso sem corroer minha integridade,
tem um pouco de destreza em recuar. Ele funga, demonstrando que essa
“história não acabou”, mas é um aviso que não irá se repetir novamente. Ele
passa pela multidão e pelos amigos sem falar mais nada.
Mas, um deles, está segurando minha mochila. Mal vejo quando ele
retira o livro de enfermagem que estou lendo há semanas e joga no
gramado, na lama mole e recente pela chuva. A confusão se dissipa e eu
marcho na direção da chuva, com um pouco de esperança de recuperar o
que acabei de perder.
A água me banha e o frio da cidade me abraça, avisando que os erros
do passado sempre voltam para cobrar o presente.

— Deita. — Harvey pede, me colocando em seu sofá.


Implorei que não me levassem para casa, isso significaria que vovó
estaria por perto. E se ela estivesse por perto, adoraria acabar com a família
Cox. E todos sabem que querer não é poder, e retirar os Cox do reinado iria
significar uma guerra. E bem, sem exagero, não acho que Salt esteja
preparada para uma guerra civil atualmente.
Estou brincando, é claro.
Não é tão sério assim. Seria clichê se fosse. Mas conheço algumas
pessoas que tentaram e não moram mais aqui. Talvez esse seja meu destino,
afinal. Ir mesmo embora, com vovó, para Londres e esquecer de tudo. Ou
talvez só seja o baque sentimentalista de ter sido pressionada contra uma
parede por um bêbado, que mais parece um bebê chorão por ter sido traído.
Quando, explicitamente, também traí sua namorada.
— Consegue se manter inteira? — Nicola pergunta, me ajudando a me
instalar no sofá de Harvey com algumas almofadas nas minhas costas. —
Ou quer brincar com a sorte?
— Eu sabia que isso não ia dar certo. — Murmuro.
— Mas parece que continuou, o que colocou a própria corda no
pescoço, eu diria. — Nicola arfa, nervosa. Ela pisca algumas vezes e segura
o pingente de cadeado. — Me desculpe. Não estou colocando a culpa em
você, mas sempre soube que isso não acabaria bem.
— Podem me explicar o que aconteceu? — Harvey colocou a mão no
quadril. Ele prometeu que consertaria o livro para mim, já que os pais são
donos de uma livraria. — Por que o Garret estava tão fora de si e a Taylor
chorando?
Olho para Nicola, sorrindo.
— Você não contou a ele mesmo, hein? — Brinco.
Ela dá de ombros, sentando na mesa de centro da sala dos Bird para
ficar perto de mim.
— Não gosto de fofocas. — Discorre simplesmente. — Por mais que
que dessa vez elas sejam fatos concretos.
Eu suspiro. Só não sei pelo ar do drama ou por realmente estar cansada
de toda essa conversa — e situação.
— Eu estava com a Taylor — falo. Harvey ergue as grossas
sobrancelhas em disparata, totalmente surpreso. — Não estava, estava.
Literalmente falando não. Mas às vezes nos encontrávamos escondidas de
todo o mundo...
— Nem tão escondidas, se eu descobri indo à minha varanda. —
Nicola me interrompe, com uma careta que queria dizer “Por favor, né,
Aster.”
— Sério mesmo?
— Sim. Acho que é por esse motivo que Garret gritou a todos os
ventos que não me queria perto da namorada dele. — Completo.
— Taylor deve ter falado com ele. — Nicola diz.
— Garret foi ao meu treino hoje cedo. — Me arrumo no sofá. Não
estou debilitada, não preciso ficar deitada o tempo todo. Parecer frágil me
irrita, de uma forma que não sei explicar. — Ele estava lá, na arquibancada.
Acho que estava bebendo desde então. Até acenou na minha direção
quando eu o vi.
— Que cara estranho. — Harvey comenta. — Nunca gostei dele.
Nicola não diz nada. Apenas segura as próprias mãos como se temesse
que o assunto volte a ela. Como ex-namorada dele, talvez ela saiba como
ninguém o quão instável ele sempre foi.
Sinto vontade de segurar as mãos de Nicola, dizer qualquer coisa. Mas
acho que a pessoa que tem que ser consolada sou eu. Não digo isso
ironicamente, estou falando sério. Os dois devem achar que preciso de
palavras de apoio quando só estou brava por Garret ter me ameaçado
publicamente e totalmente aliviada por não ser mais nada de Taylor. Nem
amiga, nem nada.
Nada mesmo.
A companhia da porta toca, ecoando pela casa toda. Harvey se apressa
em atende-la, enquanto Nicola continua segurando as mãos.
— Posso te chamar de Nikki?
Fico surpresa com a minha pergunta. Por mais que seja um desejo, não
faço ideia se é o melhor momento.
Ainda olhando para baixo, Nicola sorri. Ela estica os dedos e os dobra.
Depois, me encara. Ainda sorrindo de lado, discreta.
— Claro!
— Certo — respondo. — Nikki.
— Ah, aí está você! — Gwen Hallister vem correndo do hall principal
da casa de Harvey Bird. Ela está usando o boné que não a favorece da loja
de discos e o rabo de cavalo escapando pela fivela do lado de trás. — Que
que aconteceu?
—Vou pegar uma limonada. — Nicola informa com Harvey,
segurando seu cotovelo para os dois nos deixarem sozinhas.
— Cara. — Resmungo, enrugando a testa. — Sem paciência para falar
tudo de novo, Gwen. Só precisa saber que o Garret é um merda.
— Eu preciso saber o que aconteceu com a minha melhor amiga, sua
sem noção! — Gwen rebate.
— Gwen Hallister, eu estou bem!
— Aster Campbell, eu quero saber de tudo!
Então, desisto. Ela se sente no antigo lugar que Nicola estava sentada,
na mesa de centro e junta as pernas, apreensiva e mordendo os lábios
sempre que falava cada detalhe. Gwen se sente rapidamente culpada por
não ter estado perto.
— O que você poderia ter feito?
— Chamado a polícia, ora essa! — Gwen arrebita o nariz. — Que
idiota. Que filho da puta desalmado. Por que ele acha que é o rei dessa
porra?
— As pessoas fazem acreditar que ele é. Por isso Garret age do jeito
que age. Quando não só passa de um riquinho mimado de cérebro de
meleca.
Gwen relaxa os ombros ao sorrir.
— Cérebro de meleca? — indaga. Confirmo com o polegar. — Você
xingava assim quando éramos crianças. — Gwen nega com o queixo,
nostálgica.
Estendo os braços para ela poder me abraçar. Quando se aproxima,
Gwen me aperta muito, muito forte. Deixando totalmente marcado seu
amor e zelo por mim.
— Não quero acordar um dia e você estar arrebentada por Salt. —
Gwen segura meus dedos.
— Não estarei. – Prometo a ela.
Gwen me encara séria, como se não acreditasse em mim. Mas depois
retoma um tom relaxado e desmancha a postura dos ombros.
— Ei, me fala. — Gwen toca meus ombros. —Você e a Nicola...
— Como você sabe? Eu não te contei nada!
— Não é preciso me contar nada. — Gwen assume. — Eu vejo. Tenho
meus próprios olhos.
— Gwen, eu...
Mas não termino minha frase porque Nicola volta com uma bandeja de
limonada da cozinha. Ela serve Gwen e Harvey, deixa a bandeja descansar
na mesa de centro e me oferece um copo.
Gwen e eu trocamos olhares rígidos até que Harvey se intromete e diz
que poderia contar tudo o que sabia para Gwen, na cozinha, onde ele
tentaria consertar e secar o livro do qual o capanga imbecil de Garret Cox
destruiu.
— Não escapou das minhas perguntas, ok? — Gwen aponta
determinadamente o dedo na minha direção, me ameaçando. — Quero
saber o seu ponto de vista, srta. Campbell.
— Te amo, srta. Hallister! — Grito conforme ela anda pela casa,
seguindo Harvey e ainda um pouco tensa.
Nicola ainda está sorrindo um pouco, mas voltou a encarar suas
próprias palmas das mãos. Me arrumo no sofá e cruzo os braços, fitando-a.
Ela senta-se de frente para mim e deixa seu copo de limonada de lado, sem
sede.
— Vai. Me fala. — Continuo. Nicola sobe o olhar novamente para
mim. O colar de cadeado fica muito bem nela. — O que houve entre Garret
e você? Por que o namorou? Ele é ridículo, Nicola. — Reviro os olhos,
incrédula. — Estou surpresa que namorou um cara como esse.
Nicola Wolf não diz nada. Talvez porque eu esteja falando demais.
— Desculpe. — Peço, sussurrando. — Seja o que o que for. Não estou
colocando a culpa em você.
— Ah, eu sei. — Nicola garantiu. — Mas é que as coisas com Garret
eram bem piores do que eu poderia imaginar. Mas ele era a única pessoa
que eu tinha por perto, então... — Ela dá de ombros. — Eu aceitava.
— Então... — Começo a refletir. — Me conte as partes antes das
ruínas. Toda história tem uma parte boa, e por mais que seja vindo dele, eu
duvide que haja uma... Me conte as partes boas que você lembra.
Nicola sorri mais para si do que para mim.
— Garret era o cara que ficava me vendo estudar na biblioteca da
escola e queria falar comigo, mas não sabia como.
— Eca. — Não me controlo. Sei que deveria, mas não me controlo. —
O famoso vigilante? É esse seu tipo?
Nicola abre a boca para retrucar, do jeito que ela sabe, mas desiste.
Vejo quando sua boca abre e fecha e como pondera, desistindo.
— Bem, na época me pareceu incrível. — Nicola assente com o rosto.
— Eu estava no auge da patinação artística, as pessoas iam às minhas
competições como se desejassem que eu fosse a próxima Beyonce em cima
de uns patins. Como poderia recusar toda essa atenção, sabe?
— Continue. — Peço.
— Então, não me lembro como. Mas passamos a conversar no último
ano do ensino médio. Depois, ele me levou de trem para Londres, foi a
primeira vez que vi a cidade sem a presença dos meus pais ou dos meus
irmãos. Não fizéssemos muita coisa, só ficamos andando pela Oxford Street
até ficar de noite e ele me trazer de volta. Nos beijamos no gramado da
minha casa e foi bastante mágico e gostoso. Garret me elogiava bastante,
então para o meu ego, julgava que aquilo fosse amor.
“Mas bem, não era.
As partes boas de Garret eram o que ele fazia para me animar sempre
que algo de errado acontecia em casa. Ele me deixava dormir na sua casa o
tempo que fosse necessário até eu voltar. Ele levava Barr ao shopping e
nunca esquecia do aniversário dele e do aniversário de Nancy. Se oferecia
para me levar até Londres e visita-la. Ele assistia aos meus treinos, me
esperando com caixas de chocolate e me apresentava aos seus amigos como
‘a melhor garota que já conheci’. Ele me levava aos eventos da família dele
e não tirava a mão da minha. Dançava comigo na chuva e fazia carinho até
eu adormecer depois de um dia difícil.
Garret falava que logo iríamos nos casar, que seriámos como aqueles
casais que duram no ensino médio. Ele queria filhos, queria casas grandes e
queria ir embora de Salt, como eu, ou qualquer pessoa com um pouco de
senso. Ele gostava de dar presentes e de me buscar em casa sempre que eu
espirrava diferente. Ele dirigia com as mãos sob os meus joelhos e sempre
sorria quando parávamos em um semáforo.
Todas essas partes eram as partes boas de Garret, que conviviam com
seu lado totalmente oposto. Que tive que aprender a revelar, afinal de
contas, eu queria ser amada. Desejava não ter um casamento como os dos
meus pais e Garret dizia que me amava todos os dias. Sem falta. Todos os
dias antes de dormir, todos os dias após acordar.
Como eu poderia desejar menos que isso quando, nitidamente, eu o
tinha?
É claro que essas são apenas as partes não detalhadas do nosso
relacionamento. E vendo assim, Garret até parece um sonho de cara que
deixei escapar entre minhas mãos.”
Não consigo imaginar Garret sendo bom. Apesar de saber que há
partes na história das quais Nicola ocultou.
Engulo em seco, não sabendo que falar. Totalmente a imagem que
tenho dele, não casa com o que eu acabei de saber.
— Você acha que as pessoas mudam? — pergunto.
Nicola hesita.
— Não precisa dizer nada — diz. — Não acho que seja esse o caso.
Acho que as pessoas se revelam aos poucos. — Ela me garante, se
levantando da mesa de centro e suspirando. — Vou trazer algo para você
comer.
17

O tom laranja do outono e do Halloween foram embora da cidade,


trazendo algumas decorações de natais que já apareciam pelas vitrines das
lojas mais atentas. Isso significava que as coisas estavam avançando,
ganhando seu tempo e seus destinos.
Uma coisa de diferente aconteceu em Salt: Garret Cox foi embora da
cidade.
Em uma manhã na aula da sra. Tent, Taylor apareceu chorando e
fungando alto. Eu estava sentada atrás de Aster, que deixava seus cabelos
caírem sob a folha do meu caderno e que cheiravam à morangos. Lembro
que estava gostando daquele aroma e que poderia tocá-los apenas para
amaciá-los entre os meus dedos. Adoraria que eu não fosse interrompida no
meu momento, mas Taylor conseguia trazer toda sua atenção para si
mesma. Aster, por sua vez, me olhou por cima dos ombros, como quem diz
“O que houve agora?”. Mas eu não sabia responder sem precisar enrugar
meus lábios.
Então, Taylor chorou a aula toda, encostada em um canto,
demonstrando todo o seu sofrimento.
No dia seguinte, minha mãe trouxe a notícia fresca do salão de beleza
que frequenta. Disse que investigou o que estava acontecendo com os
Moore. Mamãe narrou que os Moore estavam infelizes após descobrirem
algo terrível vindo de Taylor que nem a cidade conseguia saber o que é.
Sim, beijos escondidos foram dados como algo “horroroso”. Então, os Cox
queriam esconder o que tivesse acontecido com Garret bem longe de Salt.
Então, sem mais e nem menos, uma semana após Garret ter ameaçado
publicamente Aster — e alguns vídeos terem circulado pelo Facebook e
pelo Twitter — ele se foi. Minha mãe disse que a família tem grandes
residências nos Hamptons, nos Estados Unidos. E que Garret parecia uma
temporada toda estudando em outro país, terminando e adquirindo um
diploma.
Acredito que não.
Visto que Aster fez uma ocorrência à faculdade, provando seus fatos
com os vídeos. O real significado de abandonar Salt; Garret foi expulso e
banido da United Salt. A reitoria checou as imagens que Aster Campbell
apresentou e não pensou mais do que breves momentos em expulsar Cox da
faculdade. Parte de mim ficou realmente surpresa pelo efeito ter passado tão
rápido.
Ao que parece, os Cox não pagaram a dívida que possuem com a
faculdade – e nem a propina anual – então, foi apenas “Adeus, Garret” e
uma cobrança imensa que pode rondar a família por anos.
Ao final, as pessoas não queriam saber o motivo de Garret ter ido
embora. Primeiro, que sua família influente não precisa de Salt, mas a
comanda como se precisasse. As pessoas não estariam se importando se
soubessem os reais fatos das coisas. E que uma expulsão, no mundo
acadêmico das faculdades, é grave. Não só pode impedir que Garret estude
no próximo semestre, como daqui anos e anos, até lembrarem o ocorrido no
seu histórico.
Mas os outros dias foram bastante tranquilos.
É como se Salt tivesse amanhecido com um peso a menos.
Nada de legal ou importante acontece em Salt, mas aconteceu!
Pensei comigo mesma enquanto ia aos treinos; que as coisas
aconteciam às pessoas ruins com muito mais facilidade e bondade do que
com as pessoas puras. As que desejam um bom futuro, quase sempre nunca
tem. As que só cometem erros e não aprendem com suas atitudes são as que
mais são premiadas pela vida.
Se é que faz sentido, se é que existe uma vida justa, eu gostaria de
saber aonde ela fica.
Aster continuava com o meu colar de pérolas.
Ela usava todos os dias; assim como eu usava o dela.
É certo que não ficava melhor com os meus suéteres, mas aprendi a
gostar do peso do pingente sob minha pele. As coisas pareciam bem
melhores dentro de casa. Meu pai continuava a ver os esportes na TV, no
sofá, minha mãe continuava vivendo uma vida completamente alheia aos
que seus filhos queriam. Ela não disse mais nenhuma palavra sobre Anwer
e nem o mencionou.
O que eu presumo que seja a mesma coisa de sempre; ela achou que
seria algo sério, mas o cara só queria sexo e ponto final.
— Ei!
Me aproximo de Harvey, com as chaves entre meus dedos. O
estacionamento da Arena Palmer está vazio, com apenas alguns carros
preenchendo as vagas de linha amarela. Harvey está sentado com as costas
encostadas na porta principal, que está fechada. O céu está se abrindo um
pouco, fazendo com o que sol diga um “oi” tímido para as pessoas. A
sombra está gostosa e as partes iluminadas do estacionamento esbanjam
alguns raios de sol deliciosos de sentir na pele.
— O que está fazendo aqui?
— Ainda não abriram. — Harvey diz, tomando um pouco de café. Está
escrito “Harry Bird” na embalagem plástica. — Está atrasada!
— Se nem as pessoas lá de dentro chegaram, imagine eu. — Me
acomodo ao seu lado, arrancando o boné verde da livraria Bird dos meus
cabelos. — Mas, sempre é tempo de estar na hora quando falamos sobre
Aster.
Harvey sorri, olhando para frente.
— É. — Ele diz. — Que tal falarmos sobre Aster?
— Por quê?
— Bom. — Murcho os lábios. — Primeiro, que vocês andam bem
melhores do que anos e anos de convivência. Segundo que você nunca
deixou de usar seu colar de pérolas desde do dia que ganhou. Terceiro,
agora está usando o dela. Tem algo a me explicar? Ou me dizer?
— Ah, não.
— Está mentindo! — Harvey diz ofendido. — Completamente e
inteiramente mentindo!
— Como pode saber? — Rio pelo nariz. — Não pode definir...
— Claro que posso! — Harvey me interrompe. — Sempre que você
gosta de uma pessoa, você fica toda boba.
— Toda boba? — Agora ele pegou pesado. — Como assim toda boba?
— Você fica cheia de sorrisinhos para lá, faz o que a pessoa pede. Sei
disso porque você passou a pagar o almoço da Cyndi Thorne quando
começou a gostar dela. Sei disso porque quando você beijou o Marick
Collins você deixou que ele te buscasse todos os dias depois dos ensaios,
mesmo odiando andar na bicicleta dele. — Harvey recita, como um ótimo
melhor amigo que me conhece. — E nem preciso falar sobre o Garret. O
começo de namoro de vocês dois foi enjoativo.
— Bem. — Espalmo minhas mãos. — Se você sabe de tudo, não
preciso dizer mais nada, hum?
— Não vem com essa, Nikki! — Harvey morde os lábios. — Está
mesmo gostando da Aster? A pessoa que nunca, nunca mesmo te deixou
confortável com nada? A pessoa que você jurou detestar sem motivo algum,
apenas implicância? Ela mesmo?
Empurro Harvey para o lado, sei que ele está brincando comigo. Que
quer me ver falar logo de uma vez.
— Gostando ainda é uma palavra muito forte. — Junto meus joelhos,
querendo fechar meus olhos para me poupar de uma possível vergonha. Ou
poupar minhas bochechas de esquentarem. — Interessada é a melhor
palavra.
— Bobagem. — Harvey pragueja. — Apenas você sendo cuidadosa
demais. Sei disso. Aposto nesta alternativa na verdade.
— O que quer de mim, afinal? — Aperto meus olhos ao encará-lo.
Harvey toca nossos joelhos, quando vê um carro bastante conhecido
por todos na cidade parar ao lado estacionamento; é um táxi. Aster saí dele,
arrumando a postura logo após colocar a mochila sobre os ombros.
— Só quero que seja feliz. — Harvey entona rapidamente, com uma
piscadela meiga e discreta. Ele abre espaço entre nós dois, sentados no
chão, esperando a Arena Palmer abrir. — Ei, e aí, Aster!
— Por que vocês estão aqui fora?
Aster — talvez — jamais diga em voz alta, mas há certo alívio nela ao
saber que Garret Cox não mora mais em Salt.
— Ainda não abriram. — Resumo, deslizando para o lado para abrir
espaço para Aster sentar-se conosco. Ela se acomoda no meio de nós. Seu
cheiro de morango invade meu nariz como se dissesse “Oi, cheguei.” —
Estamos esperando. Harvey ligou para o...
— Vocês treinam tanto aqui, que sabem o número da pessoa que cuida
da Arena Palmer? — Aster se espanta, olhando para mim. Ela está bem
próxima.
— Praticamente. — Olho para frente. — Não é exatamente como você
e o Dino?
— Mas o Dino tem algo que eu quero mais do que tudo. — Aster
suspira. — Acho que consigo entender o que você está falando, então.
Aster me encara rapidamente e depois também olha para frente. Sei
que Harvey, nesse momento, está tentando olhar para frente e segurar sua
risada no fundo da garganta. Mas eu só me sinto idiota mesmo.
Agora eu sei um fato sobre Aster que me deixa bastante
impressionada. Ela quer ser enfermeira. Depois do que aconteceu na
faculdade, nos corredores da famosa United Salt, encontramos o livro que o
Donovan, o amigo de Garret estragou.
— Quero ajudar as pessoas. — Ela me disse naquele dia, pegando o
livro recém restaurado que Harvey conseguiu arrumar aos fundos da
livraria. — Ainda estou pensando. Mas quanto mais eu leio, mais eu quero
seguir com o curso. E você?
E eu?
Não sei!
Estou cursando Literatura Inglesa, mas não me vejo na profissão. Nem
como professora e nem como redatora. Absolutamente nada.
Acho que chegou a hora de fazer um teste vocacional.
Ainda no silêncio — eu pensando em puxar meu celular para pesquisar
quem eu quero ser na vida e Aster comendo balinhas de cereja — Harvey se
levantou, afirmando que iria atravessar a rua, na intenção de comprar um
smoothie de banana com maçã. Estou prestes a falar que ele estava bebendo
café há pouco, mas só parece um plano para fazer Aster e eu ficarmos
sozinhas.
— Quer algum?
Negamos com a cabeça e, enquanto Harvey se afastava, Aster se
aproximava. Seu ombro tocou o meu e ela virou seu rosto na minha direção.
— Qual história saberei hoje sua?
— A que falta. — Roubo uma bala sua e levo até a boca, mastigando.
— Como terminei com o Garret.
— Tem certeza? — Aster pergunta. — Não quero acabar com o clima
de nada.
— Não precisa se preocupar. — Garanto. — Tudo o que vem de Garret
eu já superei. — Sorrio em sua direção e, felizmente, Aster me devolve um
sorriso.
Me arrumo ao seu lado, sabendo que seu ombro está tocando o meu e
não querendo que essa sensação nunca vá embora. Pode até ser exagero e
um eufemismo — o que verdadeiramente é — mas não me importo de estar
parecendo uma tola.
— Garret, como você da última vez, parecia um sonho. Certo?
— Só para você. Para mim, ele sempre foi um pesadelo. — Aster diz.
— Tenho que concordar. — Damos um pouco de risada. — Bem, o
que eu não sabia o que acontecia no relacionamento com ele é que teriam
punições.
Aster me encara apressadamente.
— Punições? — indaga. — Do tipo...?
— Sim e não. — Meneio a cabeça. — Garret sempre foi muito
sensível e mimado. Então, se ele ouvia alguma coisa que não gostasse, ele
me fazia pagar por aquilo que fiz primeiro. Ele nunca chegou a tocar em
mim, mas não precisava. Eram punições o bastante para eu andar na “linha”
— Uso os dedos em aspas.
Aster aperta seus dedos um no outro; vejo com as pontas de seus dedos
ficam brancas, de tanto pressioná-los na palma da mão.
— Nunca contei isso a ninguém, Aster. Se puder...
Sua mão voa para o meu joelho, em um semblante de conforto que me
deixa radiante por dentro.
— Não falarei a ninguém. — Aster me promete, encarando
diretamente dentro do meu olho. — Tem a minha palavra.
— Sei que sim. — Tomo uma coragem que não é a minha e embrulho
sua mão na minha, por cima do joelho. — Voltando. Garret e punições. Ele
fazia isso para poder se sentir bem.
— O que, exatamente?
— Por exemplo, quando eu demorava para responder quando estava
treinando, ele ficava dias e dias sem falar comigo de volta. Eu ficava
desesperada, pensando que ele estava mal, ou passando por problemas,
quando na verdade, era apenas raiva de mim. Por algo que não conseguia
evitar. — Narro, sentindo um bolo se formar na minha garganta. — Garret
nunca entendeu Harvey, então sempre deixou a sexualidade do meu melhor
amigo a primeiro plano. O motivo de Harvey ficar com caras foi o bastante
para Garret o definir como “gay”. E pronto. Julgo que seja por isso que eu
podia ver tanto Harvey.
“Nunca tive amigas. Não sei o motivo, mas como o relacionamento
com Garret piorou, não havia motivo para conhecer mais pessoas. Ele me
apresentava algumas garotas, que eram legais e divertidas no começo, mas
que sempre acabavam na cama dele depois. Garret dizia que não podia
evitar, que aquelas garotas davam em cima dele primeiro e que ele era
homem. Que errava, sabia que sim, mas me amava mais do que tudo.
Cheguei um dia a chorar na frente dele, suplicando para ele dizer o que eu
era, afinal. Garret disse que me amava, mais do que tudo, mais do que amou
qualquer outra pessoa. E que sexo ele poderia ter com qualquer uma, mas
comigo era amor puro e de verdade. Que iria casar-se comigo e que elas não
se importavam.
Bem, o relacionamento dele com Taylor começou muito antes deles
assumirem para toda a cidade. Creio que Taylor e ele saíam juntos enquanto
eu me recuperava do acidente. Ter Taylor e me trair com ela, foi uma
punição. Garret queria que eu ficasse na sua casa, assim ele poderia cuidar
de mim com mais facilidade. Mas quis ficar em casa, por Barr.
Logicamente, ele não gostou nada daquilo.
Ficava me mandando fotos privadas no Instagram, beijando Taylor,
tocando Taylor, falando o quanto ela era linda. Quando eu decidia terminar,
Garret voltava. Implorando, falando que seria diferente. Obviamente, nunca
deixei que ele chegasse tão perto de mim em casa. Não queria que as
pessoas vissem que meu namoro não era perfeito e estável como nós dois
fazíamos parecer. Mas daquela vez eu não voltei. Estava ferida e exausta,
então, decidi terminar de vez com Garret.
Ele implorou. Meu Deus, ele suplicou por semanas que eu voltasse
para ele. Quase voltei, quase quis fazer com que fossemos diferente da
minha mãe e do meu pai, quase achei que ele me amasse. Mas desisti.
Apenas o ameacei a ficar longe de mim, senão, contaria tudo o que eu sabia
sobre o meu acidente.
Dito isso, Garret me deixou em paz. Mas sempre viveu cauteloso.
Meu acidente, como as pessoas da cidade pensam que sabem
aconteceu de uma forma; eu estava patinando por lazer, caí em uma vala
aberta de gelo e me feri. Desloquei o ombro e quebrei o pé esquerdo.
Pronto. Fim de papo. Mas não foi bem assim.
Eu estava patinando por causa de uma punição que Garret me fez
cumprir.
Estávamos em uma festa. Garret estava com seus amigos e eu estava
por perto, comemorando que eu estava indo muito bem na patinação
artística com Harvey. Lembro que passei a festa toda do lado do meu
amigo. Mas eu sabia, eu sabia que os olhos de Garret estavam me
queimando. Não importava aonde eu ia. Eu sabia que estava sendo
queimada viva e que eu iria pagar por ‘tudo’ o que eu estava fazendo com
ele. Lembro que Harvey foi embora e se despediu, foi quando decidi voltar
para o lado de Garret.
Ele me abraçou e me beijou na frente de todo o mundo. Seu hálito
estava forte, seus dentes mordiam minha língua e minha boca e suas mãos
intrusas estavam na minha bunda. Nada romântico, mas sim possesivo. Ele
segurou meu queixo e disse; ‘Você é minha.’ Aquilo aqueceu meu coração
de alguma forma. Eu estava apaixonada.
No carro, ele gritou comigo.
Disse que fez papel de idiota a festa toda, que as pessoas iriam pensar
outra coisa de mim, andando de um lado para o outro com Harvey à minha
cola. Disse que as pessoas poderiam pensar errado sobre minha reputação.
Ele não estava me levando para casa, mas sim, para a dele. Na casa de
Garret, há um pequeno lago que sempre congela na época mais fria do ano.
Ele disse que poderia me desculpar se eu fizesse apenas uma coisa para ele.
Eu disse que sim, desesperada, procurando seu perdão.
Garret me levou até os fundos da sua casa, colocou os patins nos meus
pés e me encaminhou até o lago. Estávamos de mãos dadas e ele também
iria patinar. Só que, Garret queria que eu pagasse, que eu sofresse uma
humilhação tal qual o ‘fiz’ sofrer. Lembro que ele me deixou sozinha no
lago.
Quando voltou, estava com uma tesoura. Ele cortou meu vestido.
Fiquei apenas com minhas roupas íntimas, no frio e na neve. Lembro que o
gelo dilatava, frouxo, a cada passo patinando que eu dava. A cada deslize.
Então, uma vala se abriu, o lago tinha acabado de congelar, não estava
propício para haver uma pessoa nele. Lembro que gritei por Garret, me
engasgando com as lágrimas e com a neve que caía do céu. Ele não se
moveu, apenas disse para eu continuar. Eu continuei. E a vala aumentou,
aumentou e quase me engoliu. Foi quando eu caí, em cima do meu ombro.
Meu pé se torceu. Só me recordo de Garret demorando para me ajudar,
presumindo que fosse uma cena dramática minha. Recordo que ele me
colocou no colo e disse que poderia resolver na sua casa. Mas eu não parava
de chorar e sentir dor. Somente horas depois, em que eu insistia que ele me
levasse à ajuda, foi quando Garret cedeu.
Colocou roupas novas em mim e me fez prometer nunca, nunca falar
sobre o ocorrido.
Claro que pensei em falar, claro que sempre tive vontade disso. Mas
nunca consegui. Pelo simples de achar que ninguém acreditaria em mim e
por saber que estava sofrendo. As pessoas acham que apenas caí e tive má
sorte.
Mas eu tive Garret na minha vida, a própria personificação do azar e
do mal.”
— E ele foi embora? — Aster se levanta. Ela está andando de um lado
para o outro. Incrédula. — É isso o que acontece com as pessoas? Elas
simplesmente partem?
— Não acho que ele vá ter uma vida boa. — Me levanto também. —
Mas é o meu ferimento, Aster.
— Sim! — Aster brada. — Mas ele te tirou tudo aquilo que você ama!
— Não acha que não sinto raiva? — indago. — Acha que adoro estar
aonde estou? Não. Eu odeio. Odeio mais ao perceber que não sou nada sem
isso aqui. O que serei daqui para frente? Que talento eu tenho?
— Nicola. — Aster anda rapidamente, segurando minhas mãos. —
Encontre algo que seja tão boa, mas me deixe sentir raiva de uma situação
que nunca irá se resolver.
— Não estou conformada. — Aperto sua mão na minha. — Quero que
entenda que, onde há poder, não há uma palavra que resista. Pensei em
milhares de formas de calar Garret ou faze-lo pagar. Eu ouvi da polícia que
uma brincadeira entre namorados não era o bastante, ouvi dos meus pais
que estava exagerando, ouvi da mãe do Garret que ele poderia estar bêbado.
Perceba, Aster, estou sozinha nessa desde do dia que feri meu pé. Apenas
sozinha, apenas lidando dia após dia que não sou mais a mesma Nicola.
Não mais! — Sinto vontade de derramar algumas lágrimas, me contenho.
— O que estou querendo dizer é que sou mais uma garota, em uma lista
imensa, de uma estatística enorme, que não pode falar e nem ser ouvida,
porque o poder de homens e a palavra deles contam mais. Muito mais do
que a minha!
— Não para mim. — Aster sussurra. — A sua palavra vale mais do
que qualquer uma. Acredito cegamente em você, Nikki Wolf.
Fecho os olhos, sabendo que acabei de liberar uma lágrima.
— Obrigada, Aster. — Seguro, agora, seus dedos nos meus.
Sinto que eles se entrelaçam.
— Mas você disse, não é? — Aster tinha os lábios trêmulos. — Você
falou sobre o que sentia e essas pessoas não te ouviram.
— Eu sei que falei. Mas não cansei de lutar... — Falo rapidamente. —
Eu disse, abri meu coração e meus sentimentos. Falei o que aconteceu e
jamais deixei que Garret tocasse em mim novamente. Acredito fielmente
que a vida dele não será boa. Ir embora de Salt não significa que ele está
bem, só que está fugindo de tudo de mal que criou. Mas uma hora. —
Arrumo meus ombros. — Uma hora tudo volta.
Aster e eu nos entreolhamos.
Por uma fração de tempo que sei que foi pouca em comparação à real
sensação. Sei que seus dedos trilharam um caminho muito mais seguro no
meu passo e que eu dei um passo para frente, tentando me estabelecer. Sou
um pouco mais alta do que Aster, mas isso não me impede de visualizar sua
boca tão bem torneada de frente para minha. Sei que pareço vacilante e até
mesmo que irei dar para trás, mas sinto que sou a pessoa que mais quer
beijá-la.
Ou ter um beijo entre nós duas.
Mas é ela quem quebra nosso contato, avisando que Harvey está
voltando com companhia. Provavelmente com o Mason, o gerente da Arena
Palmer.
Soltamos nossas mãos rapidamente — mas não de um jeito
envergonhado ou afoito.
— Perdão, pessoal! — Mason, um homem de quase quarenta anos diz,
com um molho de chave em mãos. — Meu marido precisava de mim.
Sorrio, afastando outra lágrima teimosa que escorreu dos meus olhos.
— Está tudo bem, Mason!

Naquela noite, antes de dormir, antes de olhar o relógio do meu


computador, apaguei tudo o que escrevi para a aula da sra. Tent. Para o
trabalho que iremos entregar daqui há alguns dias. Apaguei e comecei
outro.
Tudo do zero.
E, antes de dormir e espiar a janela de Aster por cima da borda do meu
computador, decidi fazer um teste vocacional.
O resultado deu Biblioteconomia.
E qual faculdade abriria um semestre experimental, com associação
com os alunos da United Salt?
A United Yesterday.
Na Escócia.
18

— Você está brincando comigo! — Ando apressadamente pela


calçada, pela rua movimentada de um dia de semana em que a chuva deu
uma trégua. As pessoas aproveitam qualquer brecha que encontram no
tempo. — Harvey, preciso de você hoje mesmo!
Harvey Bird está sendo malvado.
Pior! Ele está sendo completamente mesquinho nesse instante. O que é
uma tragédia, visto que ele não parece se importar, do outro lado da linha,
que estou prestes a entrar em um colapso.
— Sabe quanto tempo eu demorei para conseguir um horário com a
Colly? — Paro de andar, sentindo minha irritação se tornar palpável. —
Sabe o que é isso? Colly é a melhor costureira que podemos encontrar em
Salt, porque ela é a única. Está me entendendo? Estou na lista de espera
dela desde que conseguimos Aster, preciso que você apareça!
— Não vai dar. — Harvey suspira do outro lado da linha. Não parece
arfar como quem diz “Sinto muito” é mais um “Quero me livrar dessa.” —
A Colly nos ama. O que quer dizer que ela me ama, então, eu estou
marcando para outro dia, outro horário.
— O que isso quer dizer, afinal?
— Que deixei vocês duas. Sozinhas. Um tempinho a sós. — Consigo
imaginar Harvey sorrindo e piscando. — Não me agradeça. Agradeça a
Gwen, ela quem teve a ideia.
— Não vou agradecer nenhum dos dois! — Brado, incrédula. —
Preciso da sua medida exata para confeccionar as roupas!
— E eu prometo que perguntarei qual estilo de roupa você pediu para a
Colly quando eu for, cujo o dia jamais irei te contar! — Harvey contra
argumenta, sereno. — Agora eu preciso ir, Nikki. Turno da livraria. Aquela
mesmo que você esqueceu que trabalha.
— Harvey! — Esbravejo novamente. — Harvey! — Mas já é tarde
demais quando escuto o chiado do final de uma ligação.
Vejo o nome de Harvey Bird morrer na tela de meu celular e fico me
perguntando se ligar novamente para ele vale a pena, ou se serei só jogada
ao mar vasto da “caixa postal.”
A cidade está começando a ganhar cor pelo Natal e pelo torneio Salt-
In; alguns postes estão completamente pretos e brancos, com os dizeres do
torneio, convidando as pessoas locais para assistir todas as competições. Há
pontos de ônibus que contam com bancos coloridos, também do torneio.
Batuco meus dedos na tela do meu celular desligado e volto a marchar
pela rua — acho que falo sozinha, pela expressão que as pessoas me olham.
Assim que viro a esquina, pois a lojinha de costura de Colly fica em
uma rua sem saída, percebo que Aster Campbell já chegou. O que condiz
em duas opções; ou eu que estou ridiculamente atrasada ou ela adiantada. E
a primeira opção me parece horrível.
Me aproximo com cautela, respirando cuidadosamente sem que
pudesse me entregar de uma vez por todas. Sem que desse totalmente na
cara que... bem, você sabe.
— Aster. — Cumprimento assim que me aproximo dela. O que é
ridículo, em faz parecer uma adulta de quarenta anos nas costas. — Oi. —
Tento novamente.
Aster está encostada na parede, ao lado da vitrine que exibe uma
roupinha de patinação artística de uma criança. Entre dez a doze anos,
presumo.
— Oi, Nikki. — Ela diz, sorrindo. — Cheguei muito na frente?
— Não, até que é bom ver você no horário.
— Então, levarei essa resposta como “Aster, você está
assustadoramente no horário”. Pode ser?
Sorrio.
— Claro!
Aponto para a porta de madeira da loja e entro primeiro, segurando a
porta para Aster passar depois. Colly é a costureira mais velha e mais
conhecida de Salt. Ela produziu minhas roupas para os concursos de beleza
e para a patinação artística por anos. Ela é o melhor se quisermos seguir
todas as regras e recomendações à risca.
— O que eu preciso saber? — Aster pergunta, tocando os manequins
onde estão expostos e os modelitos mais famosos de Colly. Um deles é o
meu. Um vestido totalmente em branco, feito com mangas bufantes em que
dancei em uma apresentação solo. Tirei suspiros enormes da plateia e dos
jurados. — Sobre as roupas.
— Algumas coisinhas.
Ando na direção do balcão e toco no sino de estrutura dançante, que
ecoa pela loja e pelos fundos dela. Dentro de minutos, Colly se arrasta com
a ajuda de sua bengala. Sua pele negra brilha com a pouca luz que vem do
balcão da frente, seus cabelos brancos pela idade, platinados por opção,
estão presos em um coque alto com a ajuda de um lápis — aquele mesmo
que Colly usa para desenhar e medir — ela sorri assim que me vê, como se
eu fosse uma boa miragem em um deserto escaldante.
— Nicola Wolf. — Colly suspira, orgulhosa de si mesma por me vestir
há anos. — Jamais pensei que colocaria meus olhos em você novamente.
Mas quando a vi na fila de espera, sabia que estava aprontando alguma. E o
que vai ser?
— Não é para mim, Colly — respondo, tocando os ombros de Aster e
a colocando a frente. — Esta é a minha... minha... minha amiga, Aster
Campbell. Ela irá competir com Harvey no torneio Salt-In no final de
janeiro.
Colly parece surpresa, mas nem tanto. Não sei se para ser educada ou
se nada mais lhe atinge.
— É um prazer conhece—la, srta. Campbell. — Colly faz um aceno
simples de cabeça.
— Ah, pode me chamar de Aster. — A garota à minha frente diz. —
Odeio essa coisa de senhorita.
Colly sorri de lado.
— Está certo, então. — Ela mede seus olhos novamente em Aster e
depois em mim. — Tem algo em mente, Nicola?
— Sempre tenho.
Colly nos levou para os provadores aos fundos; um pódio redondo e
alto, que as pessoas sobem para tirarem as medidas certas das pernas,
panturrilhas e coxas. O provador central de Colly tem um magnifico
espelho corpo a corpo, que permite ter uma visão fantástica das roupas.
Ainda com a opção de um pequeno sofá para pessoas que trouxeram um
acompanhante ou mais. Estou em pé, analisando uma roupa divina que
Colly confeccionou. É de um azul marcante e com pedrarias que parecem
diamantes em uma mina. Ou bem melhor ou mais bonito do que minha
imaginação possa descrever.
Aster está atrás de mim, se observando no espelho.
Agora, sou invadida por um sentimento de “Que bom que fiz parte
disso” — a dança, no caso —, apesar de não ser o melhor sentimento nesse
justo e curioso momento.
Quando desisto de fantasiar sobre os modelitos — e eu dentro deles —
Aster está com o celular na mão, com os olhos arregalados.
— Isso é verdade? — Aster ergue um jornal digital na tela de seu
celular. — Há mesmo pessoas que compram parceiros de patinação
artística?
Ela está usando um rabo de cavalo, que está decorado com uma
bandana amarrada ao topo. É o máximo de “arrumada” que vejo Aster usar
e, não posso negar que está linda.
— Sim. É verdade. — Espio suas informações que ela anda
pesquisando. — Há muitas mulheres que patinam, e poucos homens. Então,
a maioria oferece dinheiro, ou oferece algo que eles queiram. Praticamente
o que fiz com Harvey, obrigando que ele receba o dinheiro do prêmio
quando tudo isso acabar.
— Certo. O que mais preciso saber?
Colly retorna no mesmo segundo, ela está carregando um caderno
grosso e cheio de tiras de tecidos, amostras de como o vestido ficará e quais
pedrarias escolher.
— Bem, as roupas. — Aponto para uma decidida Colly passando entre
nós com o caderno de amostras de tecidos. — Elas precisam ser perfeitas.
Sem mais e nem menos.
— As competições podem ser cruéis, minha cara. — Colly completa
por mim. — Apenas vestidos e maiôs com saias.
— Não pode mostrar demais. E sem decotes.
— Ótimo. — Aster diz. — Odeio decotes.
— O que estou dizendo é que todas as roupas precisam ser chamativas
e deslumbrantes. Na medida certa. — Mostro a ela uma pedraria dourada
que brilha muito abaixo da luz. — Não pode mostrar muito a barriga e nem
o abdômen. Se possível, nada disso. Os jurados consideram uma nítida
provocação se a patinadora usa um traje muito provocativo.
— Sério?
Reviro meus olhos ao concordar.
— Então... posso mostrar os braços?
— Pode. Mas seria ideal se escondesse o pescoço com um tira de
tecido que vem do vestido. — Cubro o meu pescoço com as mãos, tocando
rapidamente no colar de cadeado que continua comigo. — Se possível,
podemos experimentar algum colar, mas acho que seria impossível. O
torneio é flexível, mas acredito que nem tanto.
— Mais alguma coisa?
— O vestido não pode ser muito curto. — Aponto para os vestidos
expostos atrás de nós. — É uma regra bastante comum. Em 1988, houve
uma patinadora artística que não deixou uma impressão muito boa. O nome
dela é Katharina Witt, e foi decretada uma regra com seu nome para que
todas as patinadoras a partir daquele ano, usassem trajes que cobrissem
coxas e virilhas. — Recito. — Katharina usou um traje vermelho forte,
quase beirando ao carmim. Sua apresentação foi ótima, mas o maiô estava
muito apertado e a saia muito, muito curto. Disseram que os jurados
ficaram constrangidos.
— Nada muito longo e nada muito curto? — indaga Aster.
— Muito longe pode te fazer tropeçar, ou embolar enquanto faz um
spin. Ou fazer Harvey se atrapalhar. Tem que ser na medida certa. Que não
atrapalhe nenhum dos dois e que não faça os juízes se sentirem... — Uso
aspas. — “Envergonhados.”
— Mais alguma coisa?
— Escolher bem seus trajes íntimos.
Aster fez um “joia” com o polegar.
— Demorou anos para você decorar tudo isso? — Aster pergunta. E
posso notar o tom maravilhado de sua voz.
Engulo em seco e desconverso.
— Acho que...
— Nicola é o melhor que temos em Salt. — Colly diz. Mal reparo que
ela estava lá o tempo todo. — Sinto muito que não possa mais competir.
— Estarei torcendo por Aster e Harvey como se estivesse. — Garanto
para Colly. — Vamos começar?
Colly pede, então, que Aster suba no pódio, que tire seu casaco de frio
e fica com a coluna reta olhando para frente e para o espelho. Colly elogia o
físico de Aster — logo recebendo a informação que Aster é joga em um
time de hóquei na faculdade. Os minutos que se arrastam são preenchidos
por informações sobre as Tormentas. Confesso que se fosse em outros
tempos, odiaria ficar ouvindo sobre um esporte que sei minha vida toda.
Mas é bastante contagiante ouvir Aster Campbell falar sobre o time que
tanto aprendeu a amar nos últimos anos.
Ela fala sobre sua experiência nos jogos, sobre as garotas do time e
sobre suas amigas dentro dele. Sei que estou sentada, no sofá, com os olhos
presos em Aster como se ela fosse uma atração monumental no meu dia. É
até bonito que seus olhos brilhem e pela maneira fácil e ágil que explica
tudo para Colly.
— Medidas feitas. — Colly diz, guardando a fica métrica no bolso do
avental funcional. — Irei rabiscar alguns modelos e depois decidimos o
tecido. Certo, Nicola?
— Estaremos esperando, Colly. — Afirmo, cruzando minhas pernas.
— Foi um prazer novamente, srta... Aster. — Colly faz um meneio
simpático de cabeça para Aster, que contribui no mesmo instante.
Ela se vai, atrás de uma cortina do provador.
— Terei que pentear meu cabelo muito bem, não é? — Aster se admira
no espelho. — Soube que qualquer coisa que caia dele ou da minha roupa,
pode causar danos. Ou perda de pontos.
— Soube? — Debocho.
Ela rola os olhos.
— Eu andei pesquisando — responde, voltando a se encarar no
espelho. Fingindo prender os rebeldes cabelos para cima e depois para
baixo. — Li que muitos grampos ficam soltos e podem fazer os patinadores
caírem. Me prometa que sairei viva disso, Nikki!
Gosto de ouvi-la me chamar de Nikki.
— Se você não usar nenhuma pena. — Ergo meus ombros, me
levantando do sofá. — Prometo que sairá viva e ainda sendo exatamente
quem é.
— Ótimo. — Aster dá as costas para o espelho, ficando de frente para
mim. — Acha que ficarei ridícula nessas roupas? — Ela aponta para os
manequins ao nosso redor. — E as luvas?
Ela corre na direção de um manequim, segurando seu esbelto braço
coberto por uma camada de pano prateado.
— É para se proteger de cortes causados pelo gelo. Mas eu não
pretendo colocar um passo que a coloque em contato direto com ele. Fique
tranquila.
— Sabe. — Aster coloca o braço do manequim no lugar. — Ainda não
sei o que pensar sobre mim. Quero dizer, nessa competição. A ficha ainda
não caiu, pode ser que caia no dia.
— É bastante normal.
— Não, Nicola. Acho que não entendeu. — Aster morde os lábios,
pegando seu casaco de volta, mas segurando entre os cotovelos dobrados.
— Acha... me diga sinceramente, por favor... acha que sou capaz de vencer?
— Você é uma patinadora incrível.
— Não estou perguntando isso. — Aster sorri se aproximando de mim.
Ela quer seriedade nesse momento e preciso ser honesta em dar isso a ela.
— Acha mesmo que eu tenho chances? Ou estamos apenas brincando com a
sorte?
Faço algo que não estou acostumada; simplesmente, seguro sua mão
na minha, até seus olhos encontrarem o caminho dos meus.
— Acho. De verdade. — Sinto que seus dedos firmam nos meus e sei
que é tarde demais para retirá-los. Não que eu queria, mas Aster aceita essa
oferta de uma vez só. Ela não espera por outra. — No começo achei que
não, mas estamos há semanas nessa para saber e crer que você conseguirá.
— E se eu não conseguir?
Seus dedos se entrelaçam nos meus, pedem caminho pelas brechas e
eu deixo que se firmem ali.
— Não temos essa possibilidade. — Faço Aster sorrir. E sinto meu
coração errar cada maldita batida. — Acredito demais em você e em
Harvey para saber que ao menos, estarão no pódio.
— E eu acredito em você. — Aster sussurra. — Muito.
— Mesmo? — Sorrio. — Não quer outra treinadora ou alguém mais
simpática?
Aster nega.
— Não, Nicola — diz. — Eu quero você.
— Está me chamando de mal educada?
Aster ri pelo nariz, revira os olhos e perde a paciência.
Ela coloca sua mão na minha nuca e me beija. Bem ali. Sem mais e
nem menos. Ainda com vestígios de riso em nossos lábios, eles se tocam.
Até se tornarem sérios e meticulosos. Até sentir os lábios delas nos meus e
sentir meu coração errar até a verdadeira forma sobre si mesmo. E tudo o
que compõe o beijo de Aster Campbell me parece a coisa mais real e
verdadeira do que posso imaginar.
Real, porque ela está lá, perto de mim, me abraçando com a outra mão
pela cintura, enquanto a outra, bem firme, está na minha nuca, como se
temesse que eu fosse fugir. Não irei fugir. Porque estou verdadeiramente
aqui. E eu não sabia que poderia sentir borboletas no estômago já beijando
uma pessoa. Até parece um conto que nem ao menos sei ditar ou narrar. Só
simplesmente acontece e como acontece.
Decido fazer algo com as minhas mãos e seguro o rosto de Aster. Sua
pele macia e gostosa de sentir roça meus dedos, para um claro convite em
intensificar o beijo. Um convite que seria muita falta de educação negar.
Consigo perceber que dou um mínimo passo à frente, deixando que seu
peito se choque contra o meu, até soltar uma pequena arfada quando
percebo que sua mão aperta minha cintura. Em beliscos pequenos apenas
para definirmos que dessa vez, não estamos sonhando ou fantasiando com
nada.
O sabor do beijo de Aster é de chiclete, talvez porque ela estivesse
mascando alguns minutos atrás. Mas não me prendo ao sabor que pode
variar de acordo com o tempo. Sua língua se encontra com a minha, em um
tímido toque que deixo claro que não iremos atravessar uma barreira maior
da qual queremos. Dedilho meu dedo em sua bochecha, sentindo seu cheiro
natural me deixar com as pernas bambas. Sinto quando Aster mordisca a
pontinha dos meus lábios, e viramos a cabeça para os lados contrários,
procurando uma a outra até nosso fôlego acabar.

Aster pegou uma carona comigo, ela precisava passar em casa antes da
faculdade. Foi estranho tê-la ao meu lado. Nós não falamos sobre o beijo e
torcemos para Colly não ter visto. Não por nada. Mas ela pode achar que
queríamos ficar sozinhas em um provador apenas para, justamente, nos
beijarmos. E não foi o que aconteceu.
Mas não adiantou, porque assim que viramos a esquina e identificamos
meu carro, Aster me beijou novamente. Minhas costas bateram contra o
vidro e senti sua boca na minha novamente. Então... como poderia parar
algo que eu estava gostando?
Mas não houve nenhum assunto quando decidimos ir para casa. Só
conseguíamos rir quando olhávamos uma para outra e pressentir Aster se
segurando para não me beijar novamente ao meu lado. Todos os semáforos
eram sinal de risadas altas, desacreditadas e bonitas. Bastante bonitas.
Na rua de nossa casa é que as coisas se tornaram mais estranhas.
Não haveria um beijo de despedida na frente de nossas casas, não
quando minha família não sabia nada sobre mim. Felizmente, Aster apenas
fez um sinal com os dedos, que significava “Te vejo mais tarde” e entrou
em sua casa.
Claro que, como uma idiota que está em sua teia de conquistas, fiquei
esperando Aster entrar em casa até decidir entrar na minha. Segurei o
pingente de cadeado por minutos antes de abrir a porta da frente.
Ao contrário de dias comuns, a TV estava desligada e o lençol acima
do sofá estava dobrado na ponta dele. Até parecia uma sala de estar bastante
corriqueira. Mamãe estava fora, sei disso porque Barr está gritando,
comemorando do quintal dos fundos.
Deixo minha bolsa ao pé de um móvel qualquer e ando pelo corredor,
até chegar à cozinha e à porta dos fundos que está aberta.
Barr está em uma casa na árvore, em um grande orvalho que fica aos
fundos.
Me encontro bastante surpresa por não ter reparado que agora
tínhamos uma casa na árvore. Que devo ter ficado tão absorta na minha
própria vida, que nem reparava na vida da minha casa. Barr acenava para
mim, da pequena janela à frente de uma escada de madeira. Meu pai estava
com as mãos no quadril, orgulhoso de seu feito e feliz por Barr.
— Olha, Nicola! — Barr disse. — Bem mais alta dos que as outras!
— Estou vendo. — Sorrio.
Julguei que Barr não fosse gostar de uma casa na árvore. Não nessa
idade.
Mas ele gostou.
Não!
Ele amou.
Acho que nem seu explicar o que Barr tanto gosta nela; se é realmente
o que queria ou se foi construída pelo nosso pai. Alguém que sempre foi
muito talentoso, mas que deixara de lado a produção. Bem, de qualquer
forma, não importa o motivo de Barr Wolf ter gostado dela. O importa é que
gosta.
— Fez um ótimo trabalho. — Elogio meu pai.
Ele sorri de lado, ainda bastante tristonho.
— Será uma ótima lembrança para ele. — Escolhe dizer.
Apenas confirmo com o queixo e projeto um sorriso ainda maior para
o meu irmão.
Afinal, meu pai tem razão.
19

Uma das minhas partes favoritas em fim de semestre é quando


entregamos os últimos trabalhos que precisamos angariar para as notas de
fechamento. É claro que houveram provas e trabalhos, mas o último, o
encadernado e especial que entreguei para a sra. Tent antes do prazo, me faz
ter uma ótima e incrível sensação de dever comprido. Algumas pessoas, as
últimas que esquecem quando uma data é estipulada sempre ficam aos
nervos.
Seus olhos ficam arregalados e as sobrancelhas franzidas junto com a
testa. Dá para ver o desespero e senti-lo de onde estou. Enquanto a aula não
começa, coloco minha mochila em cima da minha mesa. Aster ainda não
chegou. Ela costuma sentar-se à minha frente agora, deixando que as
madeixas fiquem soltas diante de mim.
Retiro meu caderno e meu notebook para a aula de hoje, mas percebo
que estou sendo observada quando retiro meus olhos da tela que começa a
se abrir. A sra. Tent está com um sorrisinho de lado, bastante cúmplice. Ela
faz um sinal com o dedo, para que eu me aproxime dela. Deixo minhas
coisas de lado e desço os degraus da plateia-classe. Ela segura uma pasta da
cor preta, onde sei que meu trabalho está.
— Srta. Wolf. Como vai?
— Muito bem, sra. Tent. E você?
Ela concorda com o queixo.
A sra. Tent tem um cabelo liso e quebradiço nas pontas, tingido de
loiro forte e quase gema de um ovo. Tem uma franja mal cortada e olhos
belíssimos que são bondosos e atentos.
— Estou ótima, sra. Wolf. — Ela me garante e sorri novamente. —
Bem, como você deve saber, quando um aluno solicita uma bolsa em outra
faculdade, os professores e a reitoria são rapidamente notificados. Temos
que enviar alguns trabalhos como amostra de seu intelecto e dedicação. E se
me permite, acabei de enviar uma cópia do seu último trabalho a eles.
Fico apreensiva logo de uma vez.
Há inúmeros fatores que me impedem de ir à Escócia; ir para o país
não é o meu sonho é o sonho de Aster. Tem Barr, tem minha mãe e meu pai.
Tem Nancy que anda sumida e completamente sem a intenção de me ligar.
Tem o fato de não ter muito dinheiro, tem o fato de que me candidatei à
vaga de Biblioteconomia por impulso, apenas por me candidatar. Não fazia
ideia que eles iriam me querer, que iam notificar a United Salt tão
rapidamente.
Mas há essa parte em mim que coloca todos esses empecilhos debaixo
de um tapete bem costurado e pesado. Bem debaixo, sem a intenção de sair.
Sinto que a bolsa na United Yesterday é como uma mão invisível, que
toca meu queixo e minhas costas, afagando a região com um sorriso no
canto da minha orelha, dizendo e murmurando “Vamos, Nicola. É só aceitar
e deixar o destino cuidar de tudo!”. Acontece que não consigo deixar que o
destino seja bonzinho comigo. Ele não anda sendo muito bom nos últimos
anos. Então, se eu tenho que fazer agora, preciso agir primeiro.
Posso dizer a sra. Tent que não estou mais interessada, que não tenho
vislumbre algum de querer me colocar dentro de um trem ou avião, à
caminho de Aberdeen e para uma outra faculdade, onde começaria do zero,
com apenas uma bolsa em Biblioteconomia, que nem ao menos sei se
quero.
É mesmo o curso que quero ocupar minha mente?
É o mesmo semestre que quero largar Literatura Inglesa de uma vez, o
curso que só fiz por fazer e seguir ao novo?
Todas as respostas começam com “n”, mas elas não saem da minha
garganta nem com um pouco de custo. O que eu respondo para a sra. Tent é
muito além de um simples desejo, é somente:
— Espero que eu seja escolhida.
20

Quando chego à sala de Introdução aos Originais, avisto Nicola Wolf


falando com a professora Tent. Ela está segurando sua mão rente ao corpo e
parece um pouco assustada ou impressionada. Seus ombros estão retraídos e
ela passa a pensar consigo mesma daquele momento em diante.
Entreguei meu trabalho para a professora na semana passada, então
não preciso me preocupar em ser uma aluna desesperada nesse momento,
implorando por mais tempo para a confecção de um trabalho.
Me aconchego no lugar de sempre, à frente de Nicola. Eu sorrio a ela
quando a observo por cima dos ombros, embora minha vontade seja de
segurar seu rosto e lhe beijar na frente de todos. Assim como espero fazer
quando estivermos sozinhas, em qualquer momento, eu espero. Também
sinto vontade em segurar sua mão por cima da mesa, e não abaixo de uma.
Sinto vontade de sentir seu rosto tocar o meu, pegarmos sol no
gramado da faculdade, como os outros casais fazem. Adoraria poder
segurar as mechas do cabelo de Nicola e vê-la brilhar no sol, ou até mesmo
dividir um almoço. Tudo publicamente. Nada escondido.
Estou cansada de me esconder e ser ocultada. Estou cansada de as
pessoas não olharem para mim e assumirem com quem estão. Mas com
Nicola é amplamente diferente. Não quero que sua vida se torne um inferno
dentro de casa por eu estar lhe mostrando o paraíso. Não irei interferir em
suas condições dentro de um lar que já não é fácil. Irei esperar o tempo
certo e estarei lá para leva-la para passear no centro de Salt, apenas de mãos
dadas.
Sem o desejo de nada além de mãos dadas e beijinhos.
Merda.
Olhe só para mim, virei uma maldita...
— Ei. — Nicola toca meus ombros. Viro-me para poder encará-la. Ela
está sorrindo, ainda mecanicamente. Mas é um sorriso. — Temos ensaio
amanhã mais cedo do que hoje, logo após o almoço.
Não sei o que somos uma da outra.
Nitidamente não somos namoradas, mas também não somos amigas.
Nunca fomos amigas.
O que eu sei é que estamos nos beijando com frequência, que Nicola
me dá carona sempre que pode, que segura meu rosto como se sua vida
dependesse da maciez da minha pele. Que faz carinho no dorso da minha
mão e que me beija e me abraça na frente de Gwen e Harvey. As duas
pessoas mais importantes para nós duas. Ou seja, somos algo uma da outra.
Só não sei o que é.
— Ei, Nikkis. — Cumprimento com um aceno. — Ok, tudo certo. Irá
me dar carona?
Nicola sorri, se recostando na cadeira.
— Ainda pergunta?
Ela faz um toque no meu ombro, o mesmo que me permite olhar para
sra. Tent que me encara extremamente confusa. Ela faz um sinal com os
dedos e me chama à frente da classe. Muitas pessoas ainda não sentaram,
então é o momento perfeito de falar com alguém sem levantar suspeitas.
— Algum problema, sra. Tent? — Me aproximo, dela enfiando as
mãos nos bolsos.
— Sim, sim, srta. Campbell. Poderia seguir até a minha sala? Neste
momento? — a sra. Campbell pergunta, apontando para uma porta que
somente professores podem entrar. — Preciso conversar com você o quanto
antes e é um assunto de extrema confidência.
Não tem o que responder em um momento como esse.
Apenas olho por cima dos ombros, para uma Nicola Wolf que me
encara confusa. Ergo minhas sobrancelhas, como quem diz “Não sei” e
Nicola devolve com os olhos arregalados de preocupação.
Escolho ser rápida e prática e sigo para a porta da qual ela aponta. Giro
a maçaneta e entro em um escritório pequeno e estreito, de pouca luz. A que
vem, é projetada por uma lâmpada presa ao teto. Há trabalhos em cima da
mesa de escritório e deixo a porta aberta, para o caso da sra. Tent entrar.
Pego uma cadeira à frente da mesa equipada com um notebook velho e
pastas de couro, que estão protegendo documentos e provas.
Alguns segundos depois, a sra. Tent aparece. Ela está bastante
preocupada pelo modo que não olha dentro dos meus olhos.
— Algo aconteceu? — pergunto de uma vez.
— Srta. Campbell. — A sra. Tent se acomoda em sua poltrona. —
Serei franca. Mas preciso comunicar a reitoria da United Salt, pelo plágio
que a senhora cometeu em um trabalho que pedi.
— Como é?
A sra. Tent pisca, desconcertada.
Ela remexe em algumas pastas e pega duas. Uma cor de rosa, que tem
o nome de Taylor Moore em uma etiqueta e a outra verde-água, que possuí
o meu nome.
— A srta. Moore me entregou um texto parecido com o seu na semana
retrasada. Sobre uma garota que irá morrer, mas tem o sonho fantástico de
ser uma astronauta. — Ela explica rapidamente, apontando para a pasta de
Taylor. Minha barriga afunda. — E na semana passada, você me entregou o
mesmo enredo.
Pisco.
Pisco tantas vezes que nem consigo formular nada para dizer.
— Sabe que pode perder sua bolsa, não é? — A sra. Tent indaga. —
Sabe que plágio é crime, certo?
— Sra. Tent eu sei de tudo isso, é por esse motivo que o meu é a obra
original! — Me apresso em dizer, indo para frente. — Sei que ouviria
exatamente isso de uma pessoa que cometeu um plágio, mas sei exatamente
aonde minha obra iria chegar. Na morte da protagonista e seu sonho de ver
estrelas. Eu sei... Caramba, eu sei exatamente tudo o que essa obra resultou.
Pode me fazer qualquer pergunta!
— Acontece que a srta. Moore...
— Só porque Taylor entregou primeiro, não significa que seja dela. Só
que ela foi esperta o bastante em entregar de uma vez. — Interrompo a sra.
Tent sem medo algum. — Não pode cancelar minha bolsa por algo que
outra pessoa fez. Não pode mesmo!
Começo a me desesperar dentro de mim.
Penso em Londres, penso no curso que quero fazer na cidade. Penso
em como uma mancha no currículo como essa pode detonar meu futuro
profissional e acadêmico.
Um furo que nem ao menos fiz.
A sra. Tent respira fundo, ela tem plena certeza que eu sou a farsa
completa aqui.
— Srta. Tent. — Interrompo-a novamente, quando estava prestes a
falar. — Aconselho que chame Taylor aqui. — Escolho muito bem minhas
as palavras. — Adoraria que ela fosse interrogada sobre a narrativa, o que
ela queria dizer com todos os cinco capítulos em que a Frida está viva e
depois morre. Por favor. Tem uma moral nesses capítulos, logo no fim,
gostaria que perguntasse a Taylor se ela sabe qual é. Se a Taylor souber,
pode me acusar e levar o caso até a reitoria, mas me deixe, ao menos,
provar que sou inocente.
A srta. Tent mede seus olhos em mim e, com um suspiro, decide sair
de seu escritório.

Ela
volta minutos depois, com Taylor Moore ao seu encalço. A ruiva está
vestindo um casaco longo e sem maquiagem. Desde que Garret foi embora,
ela vive desse jeito.
A própria viúva dele.
— Vamos lá. — A sra. Tent indica que Taylor se sente ao meu lado.
Ela se recusa, falando que ficará em pé. — Srta, Moore, como deve saber,
você me entregou um trabalho na semana retrasada que fala sobre a Frida,
uma garotinha de treze anos que sonha em ser astronauta, mas que acaba
descobrindo que tem câncer. Certo?
— Correto. — Taylor Moore sorri de lado, um breve sorriso.
— Pode me falar um pouco mais sobre a sua obra? — A sra. Tent
pergunta, apoiando o queixo entre as mãos pousadas sob à mesa.
— Bom. — Taylor dispara. — Frida tem quinze anos...
— Achei que ela tivesse treze — digo.
Taylor me olha rapidamente, como se notasse minha presença somente
naquele instante.
— Verdade. — Taylor sorri superiormente. — Estava me esquecendo.
São tantas coisas para pensar ultimamente, sra. Tent. Sabe? Com a ida...
— A partida de Garret Cox não é pauta aqui, srta. Moore.
Taylor parece engolir cimento, mas não protesta.
— Frida tem treze anos e irá morrer. Mas quer ser astronauta. Sonha
mais do que tudo em voar e alcançar as estrelas, antes que a morte chegue.
— Taylor recita tudo ao esbanjar um sorriso falso de triunfo.
A sra. Tent assente com o queixo e logo depois, emenda:
— E qual é moral da história?
O sorriso de Taylor oscila, mas não se fecha.
— A moral? — questiona.
— A moral. — Insisto. — Sabe? — Me levanto. — Quando
começamos a estudar Introdução aos Originais, a professora, a cara srta.
Tent, disse que podíamos colocar uma moral ao final de nossas histórias.
Então me responda, srta. Moore, qual é a moral da história da Frida?
Silêncio no escritório.
Os olhos de Taylor vacilam da nossa professora para mim rápidas
vezes em poucos segundos.
— Estão me acusando de alguma coisa? — A voz de Taylor treme.
— Responda à pergunta da srta. Campbell.
Taylor fecha os punhos e os abre.
— Não tinha moral. — Taylor arruma os ombros. — É uma... uma
história. Optei por não fazer uma moral.
Relaxo meus ombros, rindo para dentro do nariz.
— A moral é que todos os sonhos são válidos. Não importa qual seja
nossa condição de vida ou de saúde, que sonhar nos faz vivos e nos faz
traçar objetivos concretos em vida. — Declamo. — Frida tem o sonho de
ser astronauta, mas ele não é impossível apenas porque ela irá morrer. Ele é
bastante lúcido e bonito, e poético. E o que a faz ficar viva por um longo
tempo.
— E a moral está escrita ao final do seu trabalho, srta. Moore! — A
professora Tent indica com o dedo, ao final de uma página metade em
branco, metade transcrita à mão. — Acho que preciso conversar com a
senhorita. — A sra. Tent fica sério. — Aster — diz. — Me perdoe pelo mal
entendido. Tenha certeza que levaremos essa questão até o fim.
— Obrigada, sra. Tent.
— Taylor, sente-se, por favor!
Taylor Moore estava quase chorando, mas não era hora de sentir pena.

— O
que houve?
O braço de Nicola me segurou na saída da aula. Da qual não tivemos.
A sra. Tent teve que se ausentar pelo caso de Taylor e todos fomos liberados
mais cedo.
Apenas me encostei à parede, segurando Nicola pela cintura. Ela,
incrivelmente, deixou ser tocada de maneira tão íntima na faculdade. Em
um mar de pessoas que poderiam comentar.
Mas ela não se importava, conforme contava tudo o que tinha
acontecido dentro daquele escritório fechado e sinistro.
— Ela te plagiou?
— Aham.
— Meu Deus!
— Mas a burrinha não sabia que precisava memorizar tudo de uma
vez. Ou pelo menos o sentido da história. Se Taylor fosse mais inteligente,
eu estaria encrencada para caralho.
— Se ela fosse inteligente, teria feito o próprio trabalho. — Nicola
resumiu.
Aperto sua cintura ao perceber que não estou participando de uma
miragem. Nicola está em meus braços.
— Sim. Mas a sra. Tent irá resolver. Sei que sim. — Mordo meus
lábios, me segurando para não a beijar. — E o seu trabalho? Como foi? —
Mudo de assunto.
— Quer ler? — Nicola o retira da mochila atrás de seu corpo. — A sra.
Tent gostou muito e... bem... — Ela umedece os lábios, insegura por algum
motivo. — Ela adorou. Enfim, gostaria da sua opinião. Não é fictício, mas
também não é biográfico.
— Claro que quero ler. — Pego o trabalho de sua mão e o abro.
Nicola se desvencilha de mim — o que é uma pena — e espera
pacientemente do meu lado, conforme abro a primeira página de uma pasta.
É a cópia. Vejo pela xerox mal feita da biblioteca da United Salt.
“SOBRE BASTIDORES DESTRUTIVOS E COMO UM DELES
ME PRIVOU DO MUNDO
POR nicola wolf
Sei que quando estamos apaixonados tudo é um motivo enorme para
estarmos com a pessoa que amamos ou que passamos a adorar e a confiar.
Acho que quando as pessoas me falam que estão namorando, sempre me
pergunto como é nos ‘bastidores’.
A família da minha mãe sempre fala que, se querermos saber como
uma coisa funciona, precisamos conhecer seu bastidor.
Mas o que é um bastidor, afinal?
Em séries e filmes, são as câmeras, são o que acontecem para aquela
cena ir ao ar ou ser feita. São a computação gráfica, o IA, são os diretores
que ficam atrás das câmeras. Um bastidor é tudo aquilo de grandioso que
acontece e ninguém mais vê. O que enxergamos na tela do cinema é o
resultado de um trabalho duro de uma equipe de dezenas de pessoas, que
são creditadas em letras minúsculas ao final do filme que a maioria não
assiste ou nem presta atenção. Nós somos forçados a esperar os créditos
acabarem quando alguma cena extra é prometida. Fora isso, quem liga
para os bastidores?
Talvez as pessoas que façam parte dele.
Mas o que quero dizer, é que existem os bastidores de qualquer
relação. Quando vemos uma foto nas redes sociais, de um casal sorridente,
companheiro e fiel, somos levados a pensar que adoraríamos ter aquilo o
que eles têm. Mas, nós querermos mesmo, ou queremos o que eles mostram
online? Quero dizer, quantos casais famosos adoramos, mas iriámos
detestar se soubéssemos o que acontece nos bastidores deles?
Quantas pessoas não deixam transparecer o que realmente acontece
dentro e fora de uma relação?
Eu diria que quase nenhuma. Ao nosso redor, jamais iremos saber o
que acontece, da mesma forma que jamais saberão o que acontece dentro
de nós.
Fico me perguntando, de vez em quando, quantos casais que vemos na
rua são verdadeiramente bons? Quantos caras que seguram as bolsas de
suas namoradas na rua estão realmente preocupados com elas? Quantos
casais de pessoas deixam de segurar um na mão do outro, com medo de
sofrer represálias? Quantos amigos vemos passear no shopping e, na
verdade, são um casal?
O que eu sei sobre o meu é que ele é horrível.
Bem, o meu namorado é incrível. Mas o bastidor dele, não é.
Ele promete que as coisas irão ficar bem, que ele jamais levantará a
mão para mim novamente – nunca chegou a me bater, mas uma breve
ameaçada, sim. Enche meu rosto de beijos e eu me sinto tão amada, que
decido que ele é o que quero para sempre. Não sua violência, não sua
forma de mentir para mim, não a maneira fria com que me olha quando
decide que irá me punir, não quando sua mão aperta meu pescoço com
mais força na hora do sexo e nem quando seu pulso encontro o meu punho
de maneira nada além de protetora. Nada disso.
Mas eu o quero.
Por algum motivo?
Bem...
Tenho certeza que ele não é igual aos outros. Sei que as pessoas vivem
falando que uma mudança só é certa quando a vemos, mas acho que...
discordo. Eu o quero na mesma intenção que ele me quer.
Veja com cuidado, ele quer se casar comigo!
Não é como as outras garotas que se tornam diversão para ele. Eu sou
a garota. Eu sou a mulher que ele quer levar ao altar e não a tirar mais de
lá.
(Ou talvez a aliança seja o fator definitivo que possa me chamar de
“minha” para sempre)
Mas ele não é assim! Ele é diferente.
(Como diferente se ele te insulta?)
Ele pede desculpa.
(Os outros também).
Não, não, não. Você não está entendendo. Os outros relacionamentos
são destrutivos, o meu é apenas... um bastidor. Um mal entendido. Uma
briga de casais como qualquer outro conjugue tem.
(Mas se ele promete que nunca mais fará nada parecido e faz, ele é
uma farsa. É um mentiroso)
Não, ele não é! É apenas um garoto.
(De vinte e poucos anos? Ele deixou de ser um garoto faz anos, temo
em te contar)
Você ainda não entendeu!
(Então, me conte)
Ele me faz bem, me faz sentir amada. Quer um futuro comigo.
(Mas te bate...
Ele não me bate. De onde tirou isso?
(Mas te pune. Te insulta, faz a achar que ninguém iria amá-la
novamente)
Mas ninguém irá me amar. Ele mesmo diz. Que sou chorona demais,
que sou sensível demais, que sou maluca, ciumenta, apegada, mandona e
instável. Talvez ele tenha razão. Talvez só ele me ame... são defeitos demais.
Ele tem razão, não tem?
(Não, ele não tem. No fundo você sabe que ele não tem)
Mas eu sou a garota certa para ele.
Ele só quer diversão com as outras.
(Você poderia querer se fosse conversado ou se fosse um
relacionamento aberto. Mas... hum... não é)
Não poderia ser. Ele tem ciúme de outros caras comigo.
(Espera... você não tem amigos?)
Amigas, sim. Mas muita das vezes ele não gosta delas. Quero dizer. É
o que eu estava explicando lá em cima antes de você me interromper;
existem os bas...
(Sim, os bastidores. Eu sei, eu sei. Como irá passar por cima do fato
de que você não tem amigos?)
Amigas, sim.
(Não estou falando delas)
Ele tem certeza que amigos podem me fazer ser falada pela cidade.
Vivemos em uma cidade pequena, não quero dar motivo a ele...
(Dar motivo a ele sobre o quê?)
Você sabe...
(Adoraria que falasse em voz alta)
Não precisa. Você sabe. A única parte que não gosto dele.
(As pessoas não são quebra-cabeças. Elas têm seus defeitos, mas
quando um deles te assusta, sinto em lhe dizer, mas não é mais...)
Nem pense em dizer a palavra “saudável” me cansei dela.
(Entendo)
Posso continuar?
(Pode)
Bem, para finalizar. Acredito que as pessoas vivem cercadas por
mundos que não fazem parte.
O bastidor do meu relacionamento é horrível, eu sei.
Mas é normal como qualquer outra relação.
Sei disso.
(Não, você não sabe)”
21

Sabe nos filmes?


Quando vemos jovens infratores levando a pior, finalmente? E aí,
ficamos nos perguntando como as coisas podem se encaixar? Bem, isso
aconteceu em Salt na última semana.
Veja bem, eu tenho Introdução aos Originais uma vez por semana, toda
terça-feira e sabemos o que acontece no restante da faculdade graças a sra.
Tent. Agora, imagine só, descobrir que Garret Cox e Taylor Moore tinham
um esquema de plágio de trabalhos o tempo todo?
Depois que a sra. Tent levou o trabalho e a denúncia contra Taylor até
a reitoria, perceberam que existiam outras ocorrências de plágio que os
Moore e os Cox apagavam com um pouco de dinheiro — se é que você me
entende. Então, eles, praticamente, fizeram um paraíso dentro da United
Salt, com a narrativa de serem ótimos alunos, quando, na verdade, não
passavam de bons plagiadores de merda.
Não sei como a frase “Bons plagiadores de merda” pode funcionar,
mas você me entendeu, não é?
Em um dia, Taylor estava indo à faculdade, no outro ela havia sido
expulsa, com a bolsa cancelada e um visto negado para sair do país.
Isso mesmo.
Crimes.
Eles acontecem o tempo todo.
Soube até mesmo que as faculdades locais aonde Garret está — seja lá
qual inferno ele tenha caído — o recusaram permanentemente quando
souberam das acusações — verdadeiras. Garret e Taylor estão banidos de
qualquer faculdade que tenha o conhecimento que tê-los no corpo estudantil
é problema — e plágio na certa. Os dois foram processados por outros
alunos que, ao verem que eu me manifestei, tomaram coragem de denunciar
novamente. Os Cox e os Moore não estão mais na cidade, visto que
decidiram se mudar para as cidades grandes com a perspectiva de tratar o
caso dos filhos o mais discreto possível.
E não será bem feito na cidade.
Afinal...
Nada de legal ou importante acontece em Salt.

Mas eu sou rancorosa.


Para mim é pouco.
Quero dizer, tudo é pouco. Não acho que apenas processos podem
demonstrar todo o meu ódio que sinto apenas por um deles. Tenho apenas
pena e raiva de Taylor, mas não chego a odiá-la. Ela pode ficar aonde quer
que esteja, mas não perto de mim e nem perto de qualquer outra garota que
ela poderá iludir em uma teia de conquistas e mentiras. Não me importo
com nada.
Apenas que acho pouco o que estava acontecendo.
— Agora gire graciosamente!
Harvey pede, enquanto junto minhas mãos ao corpo e giro no lugar.
Giro cinco vezes. Mantendo meu foco em apenas um ponto fixo na
arquibancada vazia da Arena Palmer.
O Natal é daqui poucas semanas. As ruas começaram a tomar
lamparinas como a real decoração, um Papai Noel de espuma foi instalado
no shopping e outro em uma poltrona no centro da passagem.
Até mesmo a Arena Palmer está começando a tomar toda a sua posição
como uma obra natalina. Até mesmo Harvey, que veio treinar com um
gorro vermelho com um pompom branco na ponta.
Mas Nicola não está aqui hoje, talvez eu esteja dispersa por esse
motivo.
— Sério que ela não vem?
— De novo. — Harvey bate palma, me ignorando. Ele está me
circulando, apenas para garantir que estou fazendo um spin simples com
graciosidade. Ou aquela que ele quer que eu tenha, é claro. — Rode cinco
vezes, no lugar e vá erguendo seu braço a cada giro completo. Ok?
Tomo distância dele, revirando os olhos por ter sido completamente
ignorada. Deslizo até o centro e impulsiono meu ombro. Estou girando
uma, duas, três, quatro, cinco vezes. Quando termino, meus braços estão
suspensos ao alto de minha cabeça e eu sorrio de lado, agradecendo os
jurados com uma breve referência que vovó ensinou para mim quando fui
uma miss.
Essas coisas até que funcionam com o passar dos anos.
— Por que não me responde? — Rondo Harvey, dançando sozinha
uma coreografia que deve ser para dois. Não sei como o Papai Noel Harvey
está treinando quando só está mandando em mim. — Não farei spin algum
se não me falar se Nicola está bem.
— Vocês duas são tão dramáticas! — Harvey revira os olhos. Ele
estende sua mão para mim, entrelaçando nossos dedos. — E quando
chegarmos nesse momento, precisamos sorrir ao mesmo tempo.
— Certo.
— Um, dois e...
Fingimos um sorriso superior e cético para ninguém em especial,
apenas na nossa imaginação em que jurados precisam perceber que somos
gentis, simpáticos e que temos química — e física — dentro de uma pista.
Dançar só me faz ter certeza que meu negócio é mesmo o hóquei. Espero
mesmo que Harvey Bird ganhe, ele merece. Tanto pelo meu esforço físico,
quantos pelos hamburgueres que deixei de comer com a nova redução
alimentar que Nicola fez eu seguir.
Acho que a primeira coisa que farei após sair do Salt-In — como
vencedora, é claro — é comemorar em uma lanchonete. O pior e mais
gorduroso da cidade. Irei pedir uma porção de batata-frita com bastante
cheddar e bacon, com uma caneca alemã de cerveja, no talo, bem gelada e
bem cheia, até a borda. Até a espuma ondular enquanto a pego e um enorme
hamburguer com queijo derretido pelas bordas.
É exatamente isso o que irei fazer e ninguém irá me impedir.
— Agora uma valsa simples. — Harvey fala.
Ele pega minha mão e depois me conduz para o centro novamente. Sou
retirada de meus pensamentos enquanto me divirto com ele.
Talvez, sentirei falta disso.
Dele, no caso.
Harvey tem uma áurea muito boa e contagiante. Talvez ele não faça
mal nem à uma mosca. Então, deixo de ser rabugenta — e me perguntar se
fiz algo de errado para Nicola Wolf não ter aparecido hoje no ensaio — e
deixo que apenas meu corpo seja guiado por um Harvey Noel. Ele faz
caretas enquanto deslizamos conjuntamente. Até se afastar um pouco de
mim.
A primeira regra.
Não ficarmos muito tempo longe um do outro.
— Excelente, Aster! — Harvey brada, batendo palma e patinando para
perto de mim. — Quer tentar fazer um layback spin?
Faço uma careta expressiva.
Isso quer dizer; mais giros.
Um layback spin é quando rodamos em apenas um pé, com as costas
quase totalmente curvadas para trás. Quase formando um C perfeito. Minha
flexibilidade é boa, mas jamais serei como Nicola.
Ninguém será.
Concordo com Harvey, ajustando meu queixo e sendo corajosa.
Patino para um lado e para o outro, sorrio falsamente novamente ao
ritmo da música e curvo minhas costas, depois ergo um pouco minha perna
esquerda e coloco todo meu peso na direita. Sei que estou girando agora,
mas não faço ideia se estou fazendo certo. Harvey é apenas um borrão
colorido pelo gorro e, quando paro, ele está me aplaudindo.
— O melhor até agora!
— Isso quer dizer que iremos vencer?
— Isso quer dizer que foi o melhor até agora. — Harvey toca meu
nariz. — Agora, terei que ser mau.
— Throw jump, não!
— Throw jump, sim! — Harvey ergue o canto dos lábios. — Vamos lá,
desde que começamos a treinar, você só caiu uma vez.
— De todas as vezes que treinamos, que foram as duas vezes no caso.
Harvey coloca a mão em meus ombros.
— Estarei bem aqui, Aster.
Confirmo novamente com o queixo.
Penso em como os movimentos do hóquei não se parecem nada com
isso, mas lembro que não estou sofrendo. Estou me divertindo e que posso e
irei conseguir. Harvey coloca a música de novo. Começamos os primeiros
passos da coreografia, que consistem em olha-lo apaixonadamente no
começo e depois recusar todo o seu amor.
Harvey patina atrás de mim, como se implorasse por uma chance e
toda a coreografia é composta por sorrisos e caretas que precisamos
intensificar a cada camada da música. Consigo fazer todos os outros passos,
mas quando Harvey toca minha cintura, simplesmente sei que não
conseguirei.
O throw spin é um salto lançado.
Harvey irá me segurar pela cintura e me lançar ao alto, terei que girar
enquanto estou no ar e pousar ao chão, patinando, seguindo em círculo.
Quando sinto que seus dedos estão prontos, bato rapidamente em suas
mãos, pedindo para que me solte.
— Não consigo. — Sinto minha garganta se fechar e minha respiração
falhar. — Só penso que irei cair. Não consigo mesmo.
— Quer que eu peça para Nicola tirar o passo da sequência?
Harvey está perguntando de boa vontade, sem me olhar como se eu
fosse uma idiota, ou uma garotinha indefesa. Coisa que eu, completamente,
não sou. Ele só me olha, com compaixão e visando o meu melhor.
Mas...
Se eu não o fizer, Harvey não tem chances de ganhar.
E ele precisa ganhar.
Nós dois!
Sorrio.
— Farei questão de manter. — Garanto, colocando a mão na cintura.
— Vamos. De novo. Até eu acertar!
Não acertei nenhuma vez.
Nenhuma.
Mas foi engraçado, serviu para rir um pouco.
Só que, depois que o ensaio acabou e bebi minha água e tirei os patins,
meus pensamentos correram para Nicola novamente. Será que eu fiz algo?
— Vamos para a minha casa? — Harvey perguntou, tocando meus
ombros com o dele. — Podemos chamar a Gwen.
— Eu fiz algo? — Paro de andar ao seu lado, segurando minha garrafa
de água e desejando um banho. Estou suada e possivelmente fedendo. —
Para a Nikkis.
— Creio que não. — Harvey responde.
— Então, por que ela não veio?
— Pergunte a ela. — Harvey desconversa, falando para eu andar logo.
Do lado de fora da Arena Palmer, o estacionamento se encontra um
gelo. Mas não sinto a temperatura atingir meu corpo pela forma que me
encontro quente pelo ensaio. Entre os carros, avisto Nicola Wolf, que acena
animadamente para nós.
Aceno de volta, me sentindo contente por ela não estar brava comigo
— por alguma coisa. Mas, reparo então, o que tem atrás de Nicola.
É um carro.
É a Betty!
Ela segura o pompom do chaveiro enquanto acena e pula no lugar.
Olho de Harvey para Nicola diversas vezes, até meu amigo colocar as
mãos nos meus ombros e me empurrar para a garota mais sensacional do
mundo e o carro mais estiloso da cidade. Corro na direção dela, por mais
que o asfalto esteja úmido. Abraço Nicola assim que chego perto dela.
Betty pode esperar.
Ela me esperou por cinco anos.
E eu esperei por Nicola quase a vida inteira.
— Achei que estava brava comigo, Nikkis. Isso não se faz, sabia
disso?
— Eu precisava agir. — Nicola me abraçou de lado, deixando que seus
lábios tocassem os meus. Ela não estava ligando se eu estava suada, não
mesmo. — Afinal, você precisa parar de andar de táxi. É ridículo!
— Achei que ia ganhar apenas depois que ganhássemos.
— É. — Nicola deu de ombros. — Mas Harvey e eu conversamos e
achamos que você merece. Então... — Nicola dá um tapinha na lataria de
Betty. — Não vai me levar para dar uma volta?
— Com certeza. — Retiro as chaves de sua mão e sorrio.
Betty está tão bonita quanto a última vez que a vi.
E agora ela era minha. Com o meu esforço, de modo que a mereci.
Beijo a minha garota e buzino para Harvey, fazendo o maior escândalo
do mundo.

Infelizmente, cheguei em casa sem Nikkis, que preferiu ficar na


livraria Bird. A fiz prometer que ela nunca mais me deixaria em um ensaio
e, então, percebi que estava mais rendida do que deveria ter estado nesses
últimos anos.
Ela teria que ser minha namorada.
Quando cheguei à sala — ainda suada — exigi que vovó largasse o
cigarro e que passeasse comigo. Afinal, eu tinha uma surpresa. Vovó ficou
imensamente feliz quando viu Betty estacionada na nossa garagem que só
haviam tralhas e coisas velhas. Vi que seus olhinhos se encheram de água
como se o seu sonho tivesse sido realizado também.
Naquele dia, levei vovó ao supermercado, ao parque da cidade,
passeamos até a padaria, compramos seus bolinhos especiais de canela,
rodamos por Salt apenas por rodar e, quando estávamos chegando e
passamos no último semáforo até nossa casa, eu disse:
— Estou apaixonada pela Nicola, vó.
Ela ficou em silêncio.
Tragou seu cigarro para a janela e derramou as cinzas pelo asfalto.
Pensei em lhe dar uma bronca, mas vovó apenas sorriu e piscou.
— Que maravilhoso, Aster. — Ela tocou meu rosto. — É maravilhoso
ser uma jovem apaixonada. Ainda mais quando se tem reciprocidade.
E, naquele vasto momento de felicidade e coração quente de alegria e
amor, tive certeza que a Regina Campbell era a minha família para todo o
sempre.
A única que eu precisava.
22

Conforme o tempo ia passando, a ideia de viver na Escócia se tornava


cada vez mais íntegra na minha mente. Claro, não sei se serei aceita,
também não sei como eles irão me avisar que passei ou que não. Mas a
ideia me parecia tão boa que às vezes perdia o fio de várias situações,
apenas fantasiando uma vida bem melhor da que eu tenho.
Obviamente, não estou me referindo a Aster.
Ironicamente, qualquer fantasia sobre a Escócia e sua cultura, Aster
Campbell estava ao meu lado, de mãos dadas. Acho que é assim que
sabemos que estamos apaixonadas. Quando não podemos nem ao menos
pensar em um futuro sozinhas, porque gostamos tanta da presença da
pessoa que acaba se tornando impossível.
Não que eu tenha entregado minha felicidade à Aster, nem ela a mim
— sei sobre seus planos de ir para Londres — mas ela não sabe os meus
planos de ir para longe. Depois de anos sendo apenas uma coisa, finalmente
decidi que serei várias.
Pensar nisso até faz o peso do pinheiro que estou carregando se tornar
apenas um trabalho manual. Barr me chamou para comprar uma árvore de
Natal com nosso pai. Ele iria usar sua caminhonete do trabalho, quando
avisou que voltaria ao emprego ainda em dezembro. O que é bastante
curioso, as pessoas esperam trabalhar só depois do Natal, mas meu pai quer
voltar o quanto antes.
Mamãe voltou a fazer ligações tarde da noite e sair misteriosamente às
sextas-feiras.
Aster e eu ficávamos o tempo todo com Barr, seja estourando pipoca
na nossa cozinha e assistindo aos filmes que ele mais gosta, seja dentro de
sua casa na árvore, comendo brownies que a sra. Campbell fez para nós
depois de cortarmos sua grama na tarde passada.
— Pega embaixo, Barr! — Eu estava rindo, meio temendo que iria
deixar o pinheiro cair, conforme Barr me ajudava.
As nuvens carregadas acima de nós pareciam feias e sérias, quase
como uma ameaça que iria começar a nevar. O que era apenas uma
impressão. Em Salt só neva exatamente quando o inverno chega.
— Estou colocando toda a minha força nisso! — Barr diz, ofegante.
Passo por cima do jornal da manhã, com minhas botas de inverno que
já foram prontamente tiradas do meu armário após uma queda na
temperatura. Isso porque estamos no outono ainda. Barr está usando um
gorro lindinho roxo beterraba que a sra. Campbell fez a ele, esconde todo o
seu cabelo e ainda deixa as bochechas deles aparente. Mas Barr não tem
mais a cara de criança que costumava ter no começo do ano.
Parece até mais sério e concentrado.
Deixei o pinheiro na sala, ao lado do sofá.
Barr ficou satisfeito, pois o pinheiro estava perto da lareira e
poderíamos começar a arrumar logo.
— Irei pegar os enfeites com o papai na garagem. — Barr me
informou, saindo correndo pela porta.
Girei nos meus calcanhares em direção à cozinha, minha mãe estava
falando em seu celular, rindo e enrolando os cabelos nas pontas dos dedos.
Ela piscou para mim, como quem diz “Só um momento, querida, irei
desligar em breve.”
Marcho até a geladeira e pego um pouco de chá gelado de pêssego.
Meu celular vibra assim que encontro um copo limpo no armário.
É Aster.
ASTER: lanchonete agora. Hein?
NICOLA: não.
ASTER: quero levar você para sair.
NICOLA: que seja um restaurante saudável. Ou vegano. Nada de
lanchonete até segundas ordens.
NICOLA: segundas ordens = minhas ordens.
ASTER: idiota.
NICOLA: molenga
— Nikki? — Mamãe me chama. Deixo de sorrir para a tela do celular
e o guardo no bolso jeans. — Compraram um pinheiro?
— Sim. — Dou um gole na minha bebida. Chega outra mensagem de
Aster, mas prefiro não pegar meu celular. — Barr está animado. Ele ama o
Natal.
— Eu também amava na idade dele. — Mamãe guarda seu celular na
bolsa dela, acima da mesa de jantar. — Enfim... se divertiram? — Assinto
com a cabeça. — Ótimo, ótimo. Queria ter ido...
Sei...
— Lindinha. — Mamãe suspira. Ela quer me perguntar uma coisa. —
Não sabia que a amizade entre você e Aster seria tão forte.
— Para você ver como podemos morder nossa língua quando
prometemos algo banal.
Mamãe finge sorrir; finge ter notado o tom de ironia dentro da minha
voz.
— Agora que ela ganhou aquele carro... — Ela revira os olhos. —
Deve estar se exibindo por aí.
— Não sei. — Dou de ombros.
— Queria saber como a velha Campbell conseguiu dinheiro. Quero
dizer, ela sempre se gabou que fez filmes internacionais. Eu lembro dela
quando eu era jovem. A mulher tinha grana, sabe, lindinha? — Mamãe
comenta e começa a olhar para o teto, refletindo. — Mas como isso
aconteceu de uma hora para outra?
— O carro de Aster é somente dela. Que tal perguntar a ela?
Mamãe, de repente, retoma um semblante ofendido.
Às vezes fico me perguntando se ela amaria que eu tivesse me casado
com alguém rico. Alguém não. Um homem.
Deve se lamentar até hoje pelo término com Garret Cox.
— Por que anda tão sensível, lindinha?
— Não me chame de “lindinha”. Soa falso, mãe. — Peço, deixando o
copo em cima da pia. — Eu vou ajudar o papai com o Barr, ok?
— É por causa daquela garota, não é? — Mamãe me impede que eu
saía da cozinha, segurando meu pulso, impedindo minha passagem. — É
por causa de Aster. Você anda estranha, você anda chegando tarde. Ontem
mesmo, você deu carona para ela depois do ensaio. Eu sabia que essa
história dessa... dessa desmiolada te ajudar acabaria mal.
Meus lábios tremem.
— Eu gosto de Aster, mãe.
— Estou percebendo, se são tão amigas... — Ela larga meu pulso.
— Não, seu tremenda imbecil! — Grito, segurando o ferimento ao
arranhar minha pele que ela fez. — Eu gosto de Aster. Estou com Aster,
estou beijando Aster, estou namorando com a Aster. Eu sou da Aster. Eu
gosto de meninas, mãe. Gosto também de meninas, de caras, de pessoas e
adoro, especialmente, a Aster.
O silêncio nos abraça como se desse uma risada cruel após o que
acabei de dizer.
As lágrimas que escorrem em minha bochecha são apenas pingos que
tocam minha pele e passam direto para o queixo.
Odeio que me toquem, odeio ter que me esconder, odeio falar baixo.
E odeio toda essa situação.
Já chega.
— Como é? — Mamãe dá um passo para trás. — Quando isso
começou?
— Sempre. — Arrumo bem meu queixo e minha postura. Não iria
mais abaixar a cabeça. — Sempre gostei de garotas. Assim como gosto dos
garotos. Assim como sempre gostei a minha vida toda.
— Impossível. — Mamãe nega, balançando a cabeça sem querer me
escutar. — Nunca apareceu com uma namoradinha.
— Preferia manter em segredo do que ter que te suportar — respondo
entre dentes. — Ainda acho que fui estúpida em falar nesse momento. Mas
sabe o que que é, mamãe? Eu cansei de não ser a filha perfeita. E, tudo o
que eu fizer, serei comparada com a doce, incrível e perfeita Nancy, que não
liga para você desde que foi para Londres!
— Nancy é uma garota ocupada e noiva.
— A Nancy te odeia! — Berro perdendo minha paciência. — Assim
como eu odeio e assim como Barr irá odiar se continuar crescendo nessa
casa! Nessa família que finge se entender, mas não se entende. É apenas
gritos, dor e insultos.
— Sabe o que sua avó faria se eu falasse com ela desse jeito?
— Vai me bater? — Me aproximo dela. Até nossos rostos estarem
quase colados e nossos narizes quase se chocando. — Tente. Tente
novamente. Faça como fez aquele dia. Um pé já foi. Um ombro também.
Faça o que tiver que fazer, mas jamais coloque a culpa na sua infelicidade
em mim, mamãe.
— Um tapa não caberia dentro do que quero te ensinar, Nicola. — Ela
diz com cuidado na voz. — Você merece aquelas surras que vemos na TV.
— Não perca seu tempo. — Cerro meus dentes e meus punhos. —
Experimente tocar em mim. Ao menos um pouco. Experimente brincar com
tudo o que já fez comigo. Se eu começar a falar, não irei parar mais.
— Você não passa de uma garota idiota e imbecil que está achando que
está apaixonada por outra. — Ela sorri, totalmente amarga. — Eu vi essa
garota... ainda esse ano, beijando várias e várias garotas. Acha que será
diferente com você, Nicola? — Ela entorta a cabeça, dócil. — Acredite em
mim. Já segui o amor cegamente, e onde estou agora? Falida, mal amada,
amargurada, brigando com a minha própria filha porque ela não quer me
ouvir. Acha que Aster gosta mesmo de você? — Mamãe volta a sorrir. —
Meu bem, sua chance de felicidade estava no bolso de Garret Cox. E como
a idiota que é, o deixou escapar.
Fecho meus olhos e os abro, tentando respirar.
— Você não ama essa garota. Não ama garota nenhuma, lindinha. Você
só quer um pouco de atenção!
Sei que irei avançar em mamãe quando ela termina a frase, e ela está
pronta para avançar em mim quando me provoca até o último fio de cabelo.
Mas paro no meio do caminho, paro bruscamente quando vejo Barr
Wolf entrando na cozinha. Ele carrega um jornal da cidade, o da manhã.
Seus olhos estão cheios de água e ele estende o jornal na minha direção.
— Por que a Nancy nos odeia?
Sua frase me faz parar. Até meu coração sinto que parou por um
momento. Me aproximo dele, porque mamãe acabou de revirar os olhos
discretamente — como se Barr e eu fossemos uma dupla de dramáticos.
— Do que está falando, Barr? — Sei que minha voz está tremida e
gaguejante e tento ser o mais firme possível com ele. — De onde tirou isso?
Ele não responde, apenas estende o jornal para mim.
Nele está escrito que um casamento em Londres aconteceu. O jornal
está com uma foto em preto e branco da noiva, que sorri para uma multidão
de fãs de seu noivo, um jovem cantor que está começando a fazer sucesso.
O que de familiar há na noiva?
É Nancy.
Nancy casou. Há três dias.
Ela está muito bonita dentro de um vestido branco, rodado, como se
fosse uma princesa moderna. Com mangas longas e rendadas, o véu recaí
sobre seu cabelo escorrido pelos ombros e busto. Sua pele negra parece ter
sido pintada por anjos que decidiram fazer sua maquiagem. Seu sorriso é
para os fãs, mas seus olhos estão presos no noivo que... meu Deus, a olha
como se Nancy pudesse quebrar de tão preciosa.
Os dois estão de mãos dadas. Dedos fortes e seguros que apertam um
ao outro, em uma clara narrativa que eles não deixariam nada abalar aquele
elo que construíram por meses ou anos. Percebo que a princesa que acabou
de se casar é minha irmã, mas não consigo ver nada de Nancy nela.
Nunca vi Nancy feliz em Salt, nem dentro de casa, nem com nossos
pais.
Só quando eles trabalhavam e Nancy se arriscava em fazer panquecas
na hora do almoço para Barr e para mim.
Não posso culpar Nancy por não ter nos convidado para seu
casamento.
O que seu passado tenebroso iria fazer no seu presente glorioso?
Mas jamais irei perdoar Nancy por ter deixado Barr fora de algo tão
singelo e bonito. Meu irmão merecia conhecer o amor de verdade. Ele
estava tão animado. Se pudesse, levaria Barr para Londres. Só nós dois.
Assistindo ao casamento de Nancy e conhecendo a família do homem que a
faz feliz como ninguém.
Meus pais não precisam disso. Eles não merecem.
Mas Barr não fez nada de errado.
Mamãe pega o jornal violentamente da minha mão. Sinto o papel
arranhar a pele dos meus dedos e uma gota de sangue caí ao chão. Não me
importo com ela.
— Nancy não nos odeia, Barr. — Enxugo suas lágrimas. — Aposto
que o casamento foi antecipado e a informação demorou para chegar para
nós.
— A maldita casou! — Mamãe bradou, batendo o punho na parede. —
Aquela cretininha casou. “Os pais de Beau Jonns desejam que o filho seja
muito feliz ao lado de Nancy Wolf.” — Ela amassa o jornal e o joga no lixo.
— Esse é o nome dele. Beau Jonns? Nome de idiota.
Aperto meus dedos.
— Barr? — Seguro seu ombro. — Você acredita em mim?
Barr assente.
— Então vá para o seu quarto, que irei te chamar em breve. De
qualquer forma, você pode me perdoar?
— Pelo o quê, Nicola?
— Você saberá.
Barr, ainda bastante inseguro, vai para o seu quarto. Ele esbarra em
papai no corredor. Meu pai entra na cozinha e é logo informado que sua
filha mais velha casou.
Os dois, então, entram em uma discussão.
Está totalmente explicito que Nancy sente vergonha de nós,
principalmente deles, mas está na hora de agir. Tomar uma dose de
coragem.
Saio da cozinha e vou para a varanda. Ligo para Harvey, que atende
apenas três tentativas depois.
— Nicola? Aconteceu alguma coisa?
— Sempre acontece. — Mordo a pontinha da minha unha. — Será que
seus pais podem me dar um turno maior na livraria?
— Ahn... acho que sim. Por quê?
— Precisarei de dinheiro extra a partir de hoje.
E desligo.
Se bem conheço meu melhor amigo, ele está aflito e deve dirigir até
aqui em breve. O que me resta apenas dez minutos para terminar com tudo.
Entro em casa novamente, ouvindo os gritos e os xingamentos sobre quem é
o culpado de ter feito Nancy tão mimada assim.
Pego um taco de beisebol de Barr, um que ele sempre deixa caído ao
chão. Entro na cozinha, ao meio dos berros dos dois que, nem reparam que
estou presente. Miro na janela da cozinha e quebro o vidro. Os dois se
calam.
Minha barriga afunda e minha respiração se controla.
— Agora. — Aponto o taco de beisebol. — Vocês vão me escutar!
Mamãe ri ironicamente, como se fosse mais uma parte do meu show.
Com o taco de beisebol, bato incontáveis vezes em sua bolsa, até ouvir um
estalo, que significa que a tela de seu celular quebrou. Assim como o
restante do aparelho.
— Quer que eu destrua mais alguma coisa? — Ameaço.
Mamãe não diz mais nada e sim, dá um passo para trás.
— Vocês dois estragaram a vida da Nancy! — falo alto. Há lágrimas
que irão me fazer engasgar de tanta mágoa e destruição dentro de mim, mas
não me importo. — Deixaram que uma garota tivesse uma enorme
responsabilidade em cima dos sonhos de vocês só porque foram impedidos.
Deixaram que uma garota tomasse conta de seus irmãos todos os dias,
impedindo que ela brincasse como uma garota normal. Ou que tivesse uma
vida. Não me importo se Nancy me convidou para a data errada do seu
casamento, com vocês dois como pais, eu teria feito o mesmo. — Aperto a
haste do taco entre meus dedos. — Me importo com Barr, ele é quem não
merece. Mas se isso o que irei fazer, fizer Barr me odiar, terei que conviver
com a culpa.
Respiro fundo.
— Vocês vão embora dessa casa! — Resumo. — Não quero sorrisos,
não quero saber de quem é a casa. Mas vocês dois irão embora. Não quero
saber se é apenas um o combinado. Não quero mesmo! Não quero entender
que o último a sair é o perdedor, não me importo. Não quero vê-los no
gramado, nem ao redor e nem na rua. Quero vocês fora!
— Nicola, o divórcio precisa sair... — Meu pai tenta. Rouco de tanto
gritar.
— E sairá bem longe de mim e de Barr! — Aperto o taco. — Bem
longe. Estou cansada disso. Minha vida toda foi isso... se vocês se importam
conosco...
— Nos importamos, lindinha! — Mamãe diz.
— Para de me chamar de “lindinha”. — As lágrimas saem de meus
olhos e minha boca treme, não irei conseguir falar mais nada sem gaguejar.
Estou me aguentando por anos. — Se vocês d-dizem que se importam tanto
comigo e com o Barr, vão embora. Se vocês acham que nos amam, façam
algo descente e abandonem essa casa. Não olhem para trás sem que haja
uma melhora, porque jamais irei permitir que Barr os veja novamente se
agirem feito dois tontos, de egos enormes que não conseguem assumir e
nem acreditar que a merda do casamento de vocês nunca existiu!
Meu peito sobe e desce, carregado de pavor e sentimentos que estão
embaralhados.
Meu pai é o primeiro a sair da cozinha, seguido de mamãe.
Sigo apenas minha mãe, que pode ir até o quarto de Barr fazer um
pouco de pressão psicológica nele. Espero que ela arrume os vestidos em
duas malas. As roupas que mais gosta e detesta, todas juntas. Espero que ela
coloque os produtos de beleza, as maquiagens e os sapatos em outra.
Escolto minha mãe até o andar debaixo, em um momento que Harvey
já chegou. Ele está ajudando meu pai a empacotar seus artefatos de madeira
que fez pela casa enquanto estava de licença. Mamãe pede uma carona a
Harvey, mas ele nega, afirmando que irá cuidar de mim está noite.
Ouço mamãe resmungar que Anwer nunca iria aparecer para busca-la,
mas isso não é problema nem de mim e nem de Harvey.
— Posso me despedir do Barr? — Papai pergunta.
Dou de ombros, mas falo que é algo rápido.
Ele cumpre com o combinado, voltando cinco minutos depois.
Mamãe não se despede quando o táxi dela chega e ela desaparece da
rua e de nossas vidas com mais de cinco malas. Meu pai faz um sinal de
respeito para Harvey e pega sua caminhonete, enfia suas coisas dentro da
lataria e parte pelo lado contrário do qual mamãe se foi.
Harvey coloca as mãos em meus ombros e suspira.
— Vou até o Barr.
Subo as escadas correndo e bato na porta de Barr, ele grita que está
aberta.
Meu irmão está chorando, olhando para a parede, segurando as
pequenas mãos.
— Quer jantar? — Não sei o que perguntar, então questiono a primeira
coisa que passa na minha mente. Barr nega. — Você quer ficar sozinho? —
Ele também nega. — Você me odeia? — Barr sacode a cabeça de maneira
negativa. — Barr Wolf, sabe que eu te amo, não é mesmo?
Ele confirma com o polegar e suspira.
— Sei que os gritos acabaram — diz, num fio de voz que é difícil
ouvir. — Mas só quero ficar sozinho por um momento. Pode ser, Nikki?
Nikki!
Ele me chamou de Nikki.
Barr não me odeia.
— Claro que pode, Barr. Harvey está aqui. Podemos dormir todos na
sala se quiser.
Ele não responde, mas também não quero exigir demais.
Fecho sua porta novamente, do jeito que estava e pego meu celular no
bolso traseiro.
No quinto toque, sou atendida.
— Nancy? — Disparo. — Me escute. — Peço. — Não faça merda
com quem te ama de verdade.

Meus pais assinaram o divórcio no dia vinte e um de dezembro de


2019, às dez horas da manhã, em Salt.
E, sem esperar o relógio bater certamente onze da matina, começou a
nevar na cidade.
23

Aster queria devolver Betty para Dino ou vender novamente o carro


que, por mérito, é dela. Fiquei amplamente confusa quando Aster descobriu
que meus pais não moravam mais na mesma casa que eu e se dispôs a
vender Betty para me ajudar.
— Eu posso vender a Betty! — Ela disse sussurrando totalmente baixo
para que Barr não escutasse. — Você vai precisar de todo o dinheiro
possível nesse momento.
É verdade, eu iria precisar.
Mas não queria que dependesse de Aster abriu mão de algo que tanto
quis. Então, apenas recusei e afirmei que, se ela vendesse Betty, não iria
aceitar o dinheiro de jeito nenhum.
No começo, nos primeiros dias em que percebi que meus pais não
estavam mais no mesmo recinto que o meu, fiquei estranha e atordoada. Eu
acordava todo o dia cedo, para despertar Barr. Ele, como um verdadeiro
anjo, disse que não precisava lhe acordar. Ele conseguia sozinho. Eu beijei a
testa dele e acompanhei Barr até o ônibus todos os dias. Mas na primeira
semana, eu ainda sentia que ele me odiava. Ao menos um pouco e não
queria admitir.
Comecei a abrir a livraria e sair de lá apenas para ensaiar com Aster e
Harvey na Arena Palmer. Voltava dos treinos e ficava na livraria até o
horário de ir para a faculdade. Barr ficava com a sra. Regina Cambell que
se ofereceu para cuidar de Barr integralmente, não se importando de qual
fosse a circunstância.
Em uma das tardes que liguei para saber como os dois estavam indo, a
sra. Campbell me disse que estava ensinando Barr a fazer pulseiras de
miçangas logo após ele fazer os últimos deveres de casa. Quando começou
a nevar, Barr disse que preferia me ajudar dentro de casa. Então,
começamos a jantar todos os dias, um perto do outro. Ele ainda não falava
muitas coisas, optava por assuntos que não fossem nossos pais.
Às vésperas do Natal, meus pais mandaram dinheiro, depositaram na
minha conta, o suficiente para algumas semanas, mas ainda precisava
manter o turno acirrado na livraria — e, quem sabe, conseguir outro
emprego. As ligações dos meus pais eram apenas para Barr. Ele ficava um
bom tempo, subindo e descendo a escada, com o telefone pregado à orelha.
Barr me contou que mamãe está com uma amiga dela, esperando
conseguir um bom salário para se mudar de Salt. Ele não me disse se ela
tinha a intenção de leva-lo consigo. Depois, meu irmão me disse que nosso
pai estava ficando em um hotel de estrada, com saída de Salt; ele adoraria
pegar uma promoção na construtora ou ser transferido para uma filial em
Yorkshire. Os dois tinham planos de ir definitivamente embora, mas não
sabia qual deles tinha a intenção de levar meu irmão.
Na véspera de Natal, acordei com um pouco de neve acumulada na
minha janela. Enquanto Barr dormia, percebi que aquele era o primeiro dia
que eu não deveria trabalhar igual à uma desesperada — a desesperada que
eu sou, na verdade. Acordei com bastante preguiça, coçando meus olhos
com o dorso da mão e sem a intenção de fazer nada tão interessante.
Recusei o convite das Campbell de fazer uma ceia de Natal com elas e tive
que negar o convite da família de Harvey e da de Gwen. Não queria
aparecer por ser mesquinha, mas só queria um tempo a sós com o Barr.
Preparei panquecas e suco de laranja natural, e quando Barr acordou
ele comeu tudo, falando sem parar que adoraria somente um jogo novo de
videogame. Acabei comprando um jogo novo, um tênis novo e um taco de
beisebol novo, mas Barr não precisa saber que extrapolei nas compras
apenas porque ele merece.
— Quer que eu busque o correio? — Ele se levantou da mesa e pegou
os utensílios que sujou.
— Por favor. — Continuei sentada, esticando minhas pernas por baixo
da mesa.
Barr saiu saltitante da cozinha, porque acabei me esquecendo que ele
ama o Natal; ama tanto que decoramos o pinheiro com ajuda de Aster e ele
adorou ser a pessoa que colocou a estrela no topo.
Quando Barr voltou havia apenas duas cartas com ele. As duas
estavam congeladas, então me lembrei que devo ter esquecido de buscá-las
na nossa caixa do correio na semana passada. Ele me passou as duas. Uma
como uma promoção absurda de cartão de crédito e a outra...
— Posso ir para o meu quarto? — Barr perguntou, pegando um pacote
de chocolate do armário.
— C-Claro. — Gaguejei, tremendo um pouco.
Barr sorriu e correu, desaparecendo pela casa.
A carta gelada e com vestígios de neve me cumprimentou. A United
Yesterday, a faculdade parceira da minha, havia me respondido. Era uma
carta normal, com uma pequena janela de plástico que indicava meu nome.
Abri rapidamente, quase amassando por completo. Reli algumas vezes,
tentando captar o que aquelas palavras queriam dizer.
Mas apenas se configuraram em ACEITA.

Encomendei o jantar da ceia em um buffet da cidade, logicamente não


tenho capacidade motora e nem especifica para cozinhar sozinha. Barr
estava com os olhos curiosos, feliz por ver nossa mesa cheia.
Quando a campainha tocou, comecei a pensar que tudo o que pensei
fosse uma péssima ideia. Barr se ofereceu para abrir a porta e eu deixei.
Esperei pacientemente na sala, enquanto observava abrir a porta e dar de
cara com Nancy, nossa irmã mais velha.
Nancy tinha um sorriso e um brilho natural invejável, ela estava muito
feliz, segurando alguns embrulhos que eram para Barr.
— Oi, Barr. — Nancy tentou sorrir, ainda um pouco insegura. Barr não
tinha dado passagem ainda para ela passar. — Feliz véspera de Natal.
Nada.
Barr não dizia mais nada. E eu nem conseguia observar a expressão de
seu rosto.
Vi quando seus ombros se relaxaram.
— Oi, Nan. — Ele disse, abraçando-a, como se estivesse cansado e
totalmente exausto de brigar, iria apenas aceitar o que a vida iria lhe dar. —
Feliz véspera de Natal.
Nancy Wolf comprimiu os lábios, prestes a cair em lágrimas. Abraçou
Barr novamente quando deixou os presentes em cima de uma poltrona.
Percebi que Beau, seu marido, vinha logo atrás. Um de seus olhos era
branco, completamente.
— Nicole? — Beau estendeu sua mão para mim quando fechei a porta.
— Nicola. — Corrigi sorrindo. — Mas tudo bem.
— Desculpe. Sou Beau.
— Olá, Beau. Seja bem-vindo à minha casa!
Beau sorriu, demonstrando que ele não seria ruim para mim — e nem
para a minha irmã.
Barr e Nancy passaram a noite de Natal toda juntos, sem deixaram
qualquer brecha para mim.
Não me importei, aquele seria o primeiro Natal bom em anos.

Frango tostado e torta de morango estavam presos em restos nos pratos


de louças. Não vou lavar nada enquanto estou decaindo de sono, mas
apenas irei tirar o excesso de comida.
Eu ainda não tinha visto Aster, passei a noite toda ocupada com Nancy,
Beau e Barr, mas uma ligação antes de dormir deve bastar. Já passa da meia
—noite, é oficialmente Natal.
— Ei. — Nancy apareceu na cozinha. Ela estava dentro de um pijama
de inverno. Ela deu novas roupas para Barr, controle de videogame e uma
mini guitarra, que foi ideia de Beau. — Precisa de ajuda?
— Não, eu... — Bocejo. — Só tirando o excesso. Amanhã de manhã
eu vou limpar tudo.
O anel dourado brilhava no dedo de Nancy.
Agora ela era uma pessoa casada. Totalmente casada.
— Eu... — Viro-me para, me encostando na pia. — Não irei te perdoar
tão cedo. Muito legal que veio para o Natal, que trouxe presentes para o
Barr, mas ele ficou muito chateado. Devastado, eu diria.
Nancy engoliu em seco.
— E você? Ficou como?
— Indiferente. — Dei de ombros. — Claro, amaria vê-la se casar. Você
é a minha irmã. Mas nada que vem dessa família me abala mais.
— Não quero que me perdoe. — Nancy confessa. — Sei o que fiz e sei
quão errado escolhi ser nessa história. Você e Barr não tinham nada a ver
com a minha escolha.
— Eu sei. — Admito. — Aliás, eu faria a mesma coisa. Não os
chamar.
— Entendo.
Nancy cruza os braços.
Ela me deu um colar de ouro branco, com um pingente de pérola na
ponta e um conjunto de dois suéteres, tal qual meu estilo. Não comprei nada
a ela por não querer.
— Você está namorando? — Nancy me lançou um sorriso.
— Acho que sim.
— Acha?
— Ainda não falamos sobre isso. Aster e eu.
Nancy entende rapidamente com a cabeça. Possivelmente porque Barr
lhe contou.
Quando disse ao meu irmão que estava saindo com Aster, ele me
abraçou e disse que Aster era a garota mais legal que ele conhecia. Fiquei
um pouco enciumada com isso.
Aster é a garota mais legal que ele conhece?
E eu?
Barr disse que eu sou a mais durona e corajosa, então, deixei que ele se
safasse.
— Preciso me acostumar. — Nancy acrescenta.
— É quem eu sou. Gosto de pessoas. Gosto delas, estou aberta a elas.
E Aster é ótima. — Cruzo meus braços. — Quando a conhece, com certeza
é.
— Tenho certeza que se ela está com você, ela tem bom gosto. —
Nancy diz antes de ficarmos em silêncio novamente.
Olho para os meus pés, dentro de pantufas e me sinto um pouco
deslocada. Há milhares de coisas que queremos dizer nesse silêncio, mas
que iremos preferir dizer apenas o essencial.
— Sei que não teremos a mesma relação de antes. — Nancy começa.
— Mas eu vim para Salt com uma intenção, Nicola. Duas, na verdade.
— Pode falar.
— Estar em paz com você. — Nancy pontua. — E te ajudar com toda
essa situação — diz. — Sejamos francas, Nikki. Nossos pais não vão voltar.
— Sei disso. — Arrumo meus ombros, desconfortável.
— E você não é a mãe do Barr. — Nancy continua.
— Também sei disso.
— E não pode cuidar dele para sempre.
Solto o ar, começando a ficar irritada.
— Aonde quer chegar, Nancy?
Ela, um poço de tranquilidade, dá de ombros.
— Estava conversando com o Beau enquanto estávamos vindo para cá.
— Ela morde os lábios, pensativa. — E acho que seria uma boa ideia que eu
cuidasse do Barr, enquanto você estuda.
Fico sem palavras.
Não achei que Nancy seria radical. Sempre pensei que Nancy iria se
apegar a Londres ou qualquer cidade, para nunca mais precisar cuidar de
alguém que não fosse ela mesma. Achei que ela falaria que mandaria
alguma mesada, que me ajudaria financeiramente. Não que Barr fosse com
ela para Londres.
— Ele não iria. — Me sinto insegura. Totalmente. — A vida dele é
aqui.
— Mas pode ser lá. — Nancy rebate. — Londres é ótima. Barr pode ir
para a mesma escola que o irmão mais novo do Beau vai. É uma escola
modelo, apenas para garotos. Ou uma mista, Barr escolhe. Ele pode treinar
hóquei em diversas arenas. Na idade dele, ele consegue fazer amigos.
— Está preocupada com Barr ou com sua consciência? — Retruco
baixo.
— Como é?
— Está mesmo preocupada com o Barr ou só quer cuidar dele para se
sentir menos mal? Porque se for, pode ir embora agora, Nancy!
Nancy me olha rapidamente, desacreditada com minha pouca fé nela.
Acredito fielmente que ela tenha me dado motivo nos últimos meses.
— Não é uma decisão nossa, ok? — Nancy diz. — Adoraria falar o
que sinto, mas acho que é apenas uma recente mágoa por tudo. Não te
odeio, Nicola. Odeio nossos pais e quem eles me transformaram dentro
dessa cidade. Não odeio o Barr. Pelo contrário, amo ele. — Nancy junta os
lábios. — Sinto muito que eu tenha feito o que fiz, não irei me casar apenas
para ele ver o que aconteceu. — Ela faz uma piadinha, empurro uma
lágrima para o lado, me recusando a rir. — Mas quero dar a vida que não
deram a mim ao Barr. Não pretendo ter filhos e não posso viver sabendo
que meus irmãos estão lutando todos os dias. Não irei colocar minha cabeça
no travesseiro com a ideia de estar vivendo em uma grande casa, enquanto
meus irmãos precisam se desdobrar para manter essa casa.
Absorvo suas palavras para dentro de mim e concordo.
— A decisão é de Barr. Não nossa — falo novamente.
— Ele é quem irá decidir. — Nancy fala com convicção. — Somente
ele. Vou conversar com Barr amanhã de manhã.
— Se ele for — digo, antes de Nancy sair da cozinha. — Promete que
o fará ligar para mim?
Ela sorri.
— Todos os dias. — Nancy promete.
24

— Hey, Nikkis. O Natal ainda não acabou!


Estou olhando para Aster, que tem seus cabelos presos dentro de um
gorro feito de lã, enquanto bate seus dentes um no outro pelo frio que
invade minha casa pela porta dos fundos. Todos na casa estão dormindo,
depois de uma ceia de Natal recheada de risadas e lembranças da infância.
Certo que não consegui dormir depois da conversa com Nancy. Fiquei
pensando em qual momento do dia seguinte ela falaria com Barr, e como
meu coração dizia que ele iria aceitar.
Mas tudo se dissipou em névoa quando vi Aster, parada à minha
frente, segurando nada além das chaves de Betty entre seus dedos.
Combinamos que não iriamos trocar presentes, apesar de sua vontade
inegável de querer me comprar alguma coisa. Mas apenas disse que não,
que não poderia gastar tanto, visto que Aster merece quase tudo o que o
dinheiro pode comprar — e o que ela pode querer, é claro.
— O que tem em mente? — Entre tantas perguntas, só consegui me
mostrar totalmente rendida a ela.
— Coloque um casaco e venha comigo.
Não demorei para voltar para dentro de casa, enfiar meus pés em botas
e meus braços no meu casaco favorito. Nos fundos, Aster ainda me
esperava. A neve caía tímida do céu, como se fossem beijos sutis de anjos.
Alguns flocos ficavam presos nas linhas de lã e estava tão gelado que o
nariz de Aster estava avermelhado na ponta.
Ela pegou minha mão que estava coberta por uma luva e me guiou
pelas laterais da minha casa, até Betty, estacionada na rua, ao lado do gelo
que deixava tudo cada vez mais solitário e frio. Ela abriu a porta para mim e
quando entrei no carro, senti uma racha de vento quente. Com certeza,
poderia dormir em qualquer lugar de Betty.
— Passeio noturno natalino? — perguntei assim que Aster se jogou ao
meu lado, no banco do motorista.
— Passeio noturno natalino! — Ela disse em seguida, colocando as
chaves na ignição e dando partida.
O motor de Betty rugiu, me avisando que era apenas barulhento
quando ligada, mas quando iniciada, era apenas uma sensação de
deslizamento pelo asfalto. Aquele, com certeza, tinha sido um bom
investimento em se tratando de carros. Aster Campbell ficava
espetacularmente bonita atrás do volante de Betty, um grande e acobertado
por marcas de dedos.
— Vamos para...?
— Surpresa.
— Estranho. — Me afundei no banco. — Não conheço nenhum lugar
com esse nome.
— Não seja engraçadinha. — Aster pediu, colocando sua mão no meu
joelho. — Só o que precisa saber é que podemos ter um pouco de paz. E
quero saber tudo sobre seu Natal. Como foi?
— Bom. — Admiti, me aventurando em observar a vida do outro lado
do vidro do carro. — Nancy veio. Eu conheci o marido dela, o Beau. Ele é
muito legal e sossegado. Barr o adorou. Ele gostou que Nancy veio, mas
ainda parecia meio ressentido pelo casamento. Mas... — Prolonguei a
sílaba. — Barr não perguntou em momento algum sobre os nossos pais, o
que eu considero isso uma extrema vitória.
— Mais alguma coisa?
— Bem... — Suspirei novamente. — A Nancy quer que o Barr more
com ela. Minha irmã não acha justo que eu tenha ficado sozinha com ele,
ainda mais que ela pode dar um futuro muito mais certo para ele, do que eu.
— Não achou isso ofensivo? — Aster quis saber, neutra.
— Achei isso sensato. — Retruquei, me apoiando nos joelhos. —
Nancy pode mesmo dar a Barr uma vida melhor. Mas isso será escolha dele.
Apenas dele!
— E você acha que ele...
— Irá. — Sussurro. — Quero dizer, Londres é incrível. É o sonho de
qualquer pessoa que quer esquecer uma vida numa cidade pequena. Nancy
e Beau possuem empregos descentes, ele tem uma família bem estruturada
e Barr iria para uma escola modelo da região... eu mesma iria escolher viver
sob o mesmo teto de Nancy se ela me convidasse.
Aster riu, desferindo carinhos no meu joelho.
— E o seu? — Me virei para encara-la.
— Fomos ao asilo da cidade. — Aster disse. — Vovó conhece algumas
pessoas lá. Ela ficou o tempo todo bebendo vinho e falando de quando era
atriz. Bem, foi maravilhoso de qualquer forma. Gosto de passar feriados e
festas ao meio de muitas pessoas. Você teria gostado!
— É por isso que decidiu me sequestrar? — Brinquei. — Passar um
momento comigo?
— Também!
— Também? — Sorrio. — Quer dizer que tem mais alguma coisa que
deveria saber?
— Por que as pessoas nunca sossegam quando dizemos que temos uma
surpresa, hein? — Aster devolve, na mesma entonação. — Apenas fique em
silêncio, Nikkis.
Me apego ao que ela disse e fico quieta, observando uma silenciosa e
vazia Salt em uma madrugada de Natal. Observo como a neve caí e como
ela preenche cada parte de uma calçada que não havia mais nada branco,
mas agora tem. Reconheço o caminho mentalmente, enquanto me lembro
que estamos indo até à Arena Palmer. Mas tento ficar neutra. Esse pode ser
o plano de Aster; mostrar que estou certa, logo depois, terrivelmente errada.
Acabo que estou certa.
Ela entra no estacionamento ainda mais vazio da Arena e estaciona
Betty em qualquer vaga próxima à porta.
— Como isso? — Me agito ao seu lado. — Como conseguiu isso?
— Treinar todos os dias na Arena me deu algumas vantagens. Como
sempre comprar smoothie do outro lado da rua e ter me tornado amiga do
Mason.
— Aster...?
— Nikkis...!
Ela abre a porta de Betty rapidamente, antes que eu tenha tempo de
formular uma pergunta muito melhor e mais expressiva do que “O que está
acontecendo” pela quinta vez naquela noite.
Abro a porta também, saindo logo atrás de Aster que está correndo
para a entrada principal da Arena Palmer. Os primeiros preparativos do
Salt-In começaram e alguns pôsteres estão do lado de fora. Aster abre
facilmente a porta principal com uma chave que ela diz que “Precisa
devolve ao Mason”. Dou risada quando entro no lugar que é completamente
normal aos meus olhos. Mas que se torna em um tom especial quando estou
sozinha com Aster.
Não tem nada de especial dentro dele, nem uma decoração, nem algo
que implica que seja um presente. Mas quando Aster fecha a porta e pega
minhas mãos, seu sorriso é o mais bonito que já vi em anos.
— Não irei te dar um presente tão cedo. — Aster diz. — Mas irei te
pedir algo. E como é Natal, espero que você não diga não.
— Irei avaliar. Antes... — Ela ergue o dedo. — Acho que quero meu
colar de cadeado de volta. Senti falta dele!
— Também quero as minhas pérolas!
Retiramos nossos colares ao mesmo tempo, mas, diferente do dia em
que trocamos, Aster vira—se de costas para mim e segura seus cabelos que
escaparam do gorro. Ela afasta as mechas e eu prendo seu típico colar ali.
Depois, é a minha vez de receber minhas pérolas. Aster beija minha nuca
antes de se afastar de mim e sinto que irei me derramar nela.
Aster segura minhas mãos e me olha bem dentro dos olhos.
— Nicola Wolf — diz. — Patine comigo.
É rápido quando percebo o que aquilo significa. Uma Arena inteira de
patinação vazia, apenas com duas pessoas. Pessoas essas que dominam a
arte de patinar. Percebo o que aquilo significa, o presente que Aster
escolheu me dar, quando nem ao menos pedi.
— Não sei. — Solto delicadamente minhas mãos das suas. — Acho
que não consigo.
— Não estou pedindo que esteja pulando em um pé só. —
Prontamente Aster responde. — Estou falando para que patine comigo. Por
diversão. Que ande naquela pista lado a lado comigo, de mãos dadas. Sem
passos arriscados, sem nada do tipo. Só quero te dar algo que te divertia há
anos, que ainda pode ser diversão se você quiser. Estarei aqui, bem aqui,
Nicola, segurando sua mão. — Aster dá um passo à frente. — Eu prometo
mais que tudo.
— Não me deixará cair?
— Nunca.
Ainda meio insegura, deixei que Aster andasse na frente. Ela me levou
até a arquibancada, depois para um banco, onde havia colocado meus
antigos patins. Claro que a ajuda de Harvey nesse momento foi bem-vinda e
completamente solicitada. Ela colocou os patins em mim, como um
príncipe coloca um sapatinho de cristal na sua princesa. Ou a princesa que
encontra sua princesa depois de tanto procurar pelo vilarejo.
Ela coloca os seus, aqueles patins surrados de tantas partidas de
hóquei.
A sensação de vesti-los me traz sensações ótimas, misturadas com
medo, mas que logo se transformam em apenas curiosidade. Ela pega minha
mão novamente e me guia até a portinha da pista. Aster passa por ela
primeiro e ficando de frente para mim, me conduz para frente. A primeiro
momento, sinto que irei dar de cara no chão como uma iniciante. Quase
realmente dou, quando piso em falso. Mas logo estou de pé, patinando com
Aster até o centro, ainda de mãos dadas, sem coragem o bastante para soltá-
la.
Ou nem com vontade de soltá-la — leia como quiser.
Bem no centro, bem quando estou no justo lugar que Harvey sempre
fica com Aster e eu apenas observo de longe, é que seguro seus dedos.
— Não estou sendo justa com você — digo.
— Sim?
— Aster, eu... — Olho para ela. Vejo como ela está linda, como está
me segurando, mesmo parada. — Eu me candidatei à uma bolsa na Escócia.
Sei que esse é o seu sonho, mas se Barr for, quem sabe eu possa ir? Me
manter nessa cidade nunca foi meu plano ou me manter no alojamento da
United Salt. Se me odiar irei entender...
— Por que iria te odiar?
— Ir para Escócia é seu sonho.
Aster ri, entrelaçando nossos dedos.
— Acha que eu sou apenas a única pessoa no mundo que deseja visitar
a Escócia? — Ela quer saber, sorrindo. — Os sonhos não esgotam. Não
existe uma senha ou uma determinada quantidade de pessoas que possam
sonhar com a Escócia e uma faculdade lá. — Ela umedece os lábios. —
Nikkis. — Ela coloca uma mecha do meu cabelo atrás da cabeça. — Meu
amor por você não é nenhum pouco frágil ao ponto de dizer com o que você
tem que sonhar ou não.
— Não está brava?
— Não mesmo. — Aster aperta ainda mais nossos dedos. — Fico feliz
que você tenha começado a sonhar mais do que apenas uma cidade. De
verdade.
— E se eu for mesmo?
— Então, terei que pegar sempre um trem de Londres até Aberdeen,
soube que demora algumas horas.
Não tenho mais nada a falar.
Apenas puxo Aster pela nuca e a beijo, sentindo suas mãos pousarem
em minhas costas, ao me abraçar, enlaçando ainda mais minha boca na sua
e minha língua com a o sabor de casa da sua. Talvez, ela sempre tenha esse
gosto e esse sabor e, particularmente, não quero descobrir outro aroma ou
sabor que não seja o de Aster Campbell.
— Seja a minha namorada, Nicola. — Ela sugeriu, quando se separou
de mim. — Patine comigo neste Natal, me beije e seja minha namorada.
Seguro seu rosto, a maciez que sua pele cumprimenta a minha.
— Sim. — A beijo. — Sim. — Beijo a ponta de seu nariz. — E sim!
— Sorrio, sentindo sua boca encontrar o caminho de volta para minha.

Na manhã seguinte, enquanto eu estava brincando com o meu cereal,


sonhando com a noite passada, enquanto eu estava patinando de um lado e
para o outro com Aster, Barr chegou à cozinha. Ele segura um pacote mal
embrulhado.
— Feliz Natal! — diz, sorridente.
— Não precisava ter comprado nada para mim, Barr.
— Não comprei. — Ele responde. — Eu fiz.
Toco sua bochecha e pego o presente. Rasgo o papel de embrulho e
pego uma cordinha preta, com algumas partes em pingentes brancos de
miçangas que formam o nome NICOLA em letras coloridas.
— Barr. — Murmuro, adorando. — Eu amei! Com quem aprendeu a
fazer pulseiras?
— Com a sra. Campbell. — Barr responde. — Às vezes que fico com
ela. Aprendi a fazer colares, pulseiras e anéis. Tudo de miçangas!
— Adorei.
— Fiz uma para a Aster, já entreguei!
— Aposto que ela amou! — digo.
— Sim... — Barr fica em silêncio, tocando sua própria pulseira que diz
BARR W. — Acho que terei tempo para fazer uma para a Nancy.
— Ela só irá embora antes do Ano Novo.
Barr me olha.
— Não se eu também for para Londres.
25

O colar de cadeado não está no meu pescoço.


Normas da competição; nada que possa ferir, machucar ou cair pode
estar no meu pescoço ou no meu corpo. Não que o cadeado combine com a
roupa — não combina — mas poderia me ajudar a manter uma confiança
que apenas Harvey ou Nicola possuem. Ou qualquer outra pessoa que não
esteja no meu lugar, é claro.
A ansiedade que me consome não é nada parecida com a qual já
experimentei na minha vida. Presumi que o torneio estivesse longe quando
o Natal passou e o Ano Novo se foi, mas me enganei negativamente quando
apenas pisquei e estávamos no fim de janeiro.
O inverno iria se dissipar em março, mas em janeiro, começávamos a
perceber que ele não tinha mais tanta força. Quero dizer, não nevava mais.
Mas nossos ossos ainda pareciam rachar se fossemos dar conta que em Salt
só há uma estação.
Noto, dentro de um camarim improvisado, que amo Salt mais do que
poderia me lembrar. Se sei tantos detalhes de algo que às vezes afirmo
odiar, talvez esteja mais apegada do que me lembrasse. Toco firmemente
meu pescoço e sinto falta de algo que possa decorá-lo, mas é a imagem à
minha frente, refletido no enorme espelho que cobre quase a toda a parede,
é que me dou conta que estou irreconhecível. A aparência elegante e cética
que meu cabelo se encontra é até parecido de quando eu competia, com oito
anos de idade. Muitas pessoas mexiam no meu cabelo, mas só algumas
sabiam o que estavam fazendo de verdade.
Montado em um coque baixo, não há nenhum fio saindo do gel de
cabelo que colocaram — que Gwen penteou, para falar bem a verdade.
Minha maquiagem é poderosa e ao mesmo tempo límpida, nada que possa
borrar caso eu erre um passo. Nicola me advertiu que batons vermelhos
podem ser um caos quando estamos em momentos como esses.
Me levanto da poltrona. Me lembrando de um fato que preciso me
lembrar; tenho que fazer todos os passos corretamente. Repito mentalmente
a cada cinco segundos.
Alguém bate à porta e eu mando entrar. Sorrio assim que vejo Nicola
Wolf. Ela está dentro de um vestido simples azul, bastante bonito que
combinam com seus olhos, botas de inverno e um casaco por cima, aberto
na frente.
— Nikkis. — Suspiro ao vê-la. — Tudo bem?
— Só vim te ver antes de você entrar. — Nicola fecha a porta atrás de
si e sorri. — Tem sorte, sabia disso?
— Por ter você?
— Também. — Ela se aproxima, deixando que nossas mãos se
entrelacem. — Estou me referindo ao camarim. Na maioria das
competições, normalmente, todas as pessoas se trocam uma do lado da
outra. Teve sorte que a Arena Palmer é grande para todos.
— Eu venho tendo muita sorte na vida, Nikkis. — Dou um passo à
frente e olho para sua boca. — Completamente.
— Quer me dizer algo?
— Que pode ser que a sorte tenha me trazido você. Quem sabe? —
Tento beijá-la, mas sei que isso iria borrar o pouco de gloss que tem nos
meus lábios. Então, desisto da aproximação nada suave. — Preciso de sorte
hoje. Toda que eu tenho. Mais do que nunca.
— Sei que dará tudo certo. — Nicola sorri. Daquele jeito maravilhoso
que sabe fazer. — De qualquer forma, se não der. Podemos fugir com a
Betty.
É a minha vez de sorrir.
— Sim. Podemos.
Nicola beija minha testa e me abraça, a pedraria que Colly pregou à
mão em minha mão reage quanto ao suéter dela.
— Você entra daqui cinco minutos. — Nicola me avisa antes de sair.
— Acredito fielmente em você, Aster.
Seguro meus dedos.
— Acredito fielmente em você, Nicola.
Assisti algumas apresentações de patinação no gelo no YouTube. Pode
parecer patético enquanto como um pote de sorvete, mas me ajudou para
saber exatamente o que fazer e o que deixar de fazer. Antes de entrar na
pista, conferi se os cadarços dos patins estavam firmemente presos —
estavam. Me encaminhei para toda a arena lotada da cidade e me dei conta
que nunca, jamais, poderia dar para trás naquele momento.
Não se parecia nada com as competições infantis.
Cheguei à uma dada idade que as pessoas podem me comer viva
facilmente se assim desejarem. Uma idade que posso ser crucificada caso
pise em falso, uma idade de merda, por assim dizer. Todos os olhos da
plateia me encontraram rapidamente quando cheguei ao limite das
arquibancadas. Viram quando saí da linha de proteção e patinei até Harvey,
onde nos encontramos no centro da pista. Todos viram eu aplaudir a dupla
anterior e me viram sorrir a Harvey quando suas mãos tocaram as minhas
com delicadeza.
Ele sussurrou “Tudo dará certo” e sorriu.
Senti um pingo de inveja de sua autoconfiança. Fiquei me perguntando
porque ela não poderia ser a minha. Visto que me encontro exatamente tal
qual à uma pessoa que irá implodir facilmente se tropeçar ou até mesmo
cuspir. Imagina se eu solto um pouco de saliva? E os jurados assistem?
Meu Deus.
Meu estômago reage. É como se me avisasse que “tudo pode dar
errado quando se tem em mente que dará errado.”
Os focos de luzes podem me deixar cega, mas não sei se estou
exagerando ou não. Então, sem antes me decidir, enfim escondo meu pavor
e meu medo abaixo de toda a camada de gelo que está minha coragem.
Aqueles metros e metros de gelo que podem facilmente esconder um
sentimento que não deveria estar lá. É nesse momento que sorrio
confiantemente para Harvey Bird e seguro sua mão. É nesse momento que
os jurados não podem mais me alcançar ou me meter em um balde de receio
e distração.
Já lidei com jurados antes, com menos idade do que atualmente. Posso
lidar com meia dúzia deles novamente.
A última vez.
A única antes de me afastar e me aposentar totalmente da patinação.
Não é como nos filmes, que consigo encontrar Nicola Wolf ao meio da
multidão ansiosa que espera uma nota da música e da melodia clássica
começar apenas porque quero encontrá-la. Por mais que não exista a remota
possibilidade de tentar procura-la, sei que ela está me vendo — e torcendo
por mim.
Arrumo meus ombros e fico à frente de Harvey — não muito, assim
como aprendi. Respiro com uma contagem mental e espero. Espero
pacientemente a primeira nota começar. Ela entra no meu ouvido como se
pedisse licença, bastante neutra e suave. Sinto os dedos de Harvey tocarem
minha mão e estamos flutuando pelo gelo. Caminhando bem perto de tudo o
que ensaiamos e construímos nas semanas passadas.
Sinto que meus pés sabem o que fazer, embora meu cérebro esteja com
a sensação que irei errar em algum momento. É libertador como posso fazer
uma careta sem ao menos perceber que a fiz. Estou confiante e deslizo pelo
espaço, com ajuda de Harvey que segue meus movimentos perfeitamente,
como espelhos, como iguais que se ajudam o tempo todo. Que sabem o que
estão fazendo e como estão fazendo.
Ele se apresenta com graça e ternura e sinto de onde estou que, aquele
pode ser um adeus de Harvey. Sua última dança até se afastar totalmente,
em uma vida que precisou escolher o que fazer do que seguir em frente,
dançando desde criança. Sinto em Harvey sua dor e sua paixão pelo gelo.
Como ele, de fato, não se afasta com a possibilidade de perder, de cair ou de
sentir medo. Porque Harvey sabe quem ele é e para onde ele quer ir.
Como eu.
Eu sempre soube para onde queria ir.
Sempre.
Jamais deixei de ter um plano.
Paro de pensar e sorrio, pisco a ele e deixo extremamente claro que
estou pronta. Pronta para tentar o passo. Pronta para acertá-lo.
O throw jump não iria me fazer recuar. Não mais. Acertei o passo em
algumas vezes, em outras, caí como uma fruta madura direto do pé. Mas
não poderia evita-lo para sempre. Não quando o momento finalmente
chegou.
Harvey patinou para longe, por segundos, em seguida colocou sua mão
em minha cintura. Firmemente, me deixando confiante que A) ele iria me
soltar, mas não iria cair e que B) eu estava pronta. Agradeci mentalmente a
Colly, que fez a minha roupa em um modelo nem tão aberto e nem tão
espalhafatoso entre dourado e preto e continuei a sentir os dedos de Harvey
no meu quadril.
Deslizamos para trás e flexionamos os joelhos ao mesmo tempo. A
plateia reprimiu um suspiro, como se fosse arriscado demais continuar de
onde estávamos. Harvey apertou os dedos ao meu redor e me sustentou no
ar. No mesmo instante que me arremessou para longe. Girei duas, três,
quatro vezes antes de tentar pousar.
Com a perna erguida, senti meu joelho vacilar, mas me sustentar com
graça e precisão — e um pouco de tremor — no gelo da pista, em que pude
continuar a patinar para trás, com as mãos erguidas para frente e sentindo os
aplausos me banharem.
Então...
Eu consegui.

Quando você supera um medo nos filmes, parece que os jurados


sentem que você é alguém especial. Eles sentem que você pode decodificar
tudo e que se trata de uma pessoa uma em um milhão. Então, você
simplesmente ganha porque enfrentou os seus medos e eles não poderiam
ser monstros que a colocariam em um lugar abaixo do primeiro lugar.
Certo? Certo, se estamos falando sobre filmes.
Mas na vida real existe um ranking, e nesse ranking...
Você fica em segundo lugar, com seu novo amigo que, finalmente pode
se livrar de uma dívida que não merecia. Pode até parecer surreal que não
ficamos com o primeiro lugar. Mas, pela maneira que Harvey sorriu e
Nicola comemorou, aquele segundo lugar valia mais do que qualquer
primeiro.
26

Aster tinha razão quando disse que andar de bicicleta na Escócia é


libertador.
Passei quase todo o meu semestre indo à faculdade de bicicleta do que
de carro. Não por ser a Escócia, mas andar de bicicleta em si, já é um ato
bastante divertido e conectivo. Quando me instalei em Aberdeen, achei que
iria voltar para casa no justo momento em que cheguei ao meu alojamento.
Mas foi só conhecendo as pessoas da minha turma e meus colegas de
universidade, que meus pensamentos se tornaram apenas meros medos
bobos e inseguros que eu não iria levar para frente.
Em outra cidade e em outro país, eu fui a teatro, assisti a um bailarino
famoso escocês na primeira fileira. Observei quando a apresentação acabou
como ele se enlaçou na mulher que ama, e me senti sozinha. Mas, enquanto
andava de volta para o alojamento, percebi que precisava estar sozinha na
Escócia antes de qualquer coisa.
Falei pelo telefone com Barr, com Nancy, com Harvey e com Aster
quase todos os dias. Até mesmo com Gwen.
Gostei de saber que ela e Harvey mantiveram uma amizade fortificada
pelo tempo. Adorei saber que Gwen não passou mais todos os seus dias,
perto da loja de discos ou indo às fogueiras — que continuaram com a
mesma melancolia de sempre. Fez os meus dias saber que Harvey Bird
decidiu que iria se tornar treinador de crianças que tinham um sonho
abstrato de seguir carreira na patinação artística. Obviamente, até ele poder
juntar dinheiro e seguir o mundo, exatamente o que eu estou fazendo nesse
maravilhoso e instigante momento que parece que nunca, nunca mesmo irá
acabar.
Fiquei em vídeos chamadas longas, que duravam horas com Aster, e
colocava o papo em dia pela manhã com um Harvey completamente
decidido a finalizar seu curso em Salt. Um melhor amigo livre de dívidas,
que pode sorrir e bater no peito que venceu o Salt-In. Bem, de qualquer
forma, ficar em segundo lugar é mais do que posso descrever em palavras e
gestos. Talvez um pouco de choro possa ser uma boa escapatória para o que
eu quero falar.
As medalhas decoraram meu alojamento por inteiro enquanto vivia em
Aberdeen e eu só conseguia sentir orgulho de onde estava. A pessoa que
não saberia dizer, se perguntassem, onde ela estaria daqui a cinco anos.
Olha, eu ainda não sei responder a essa pergunta, tomara que ainda viajando
e não tendo nada fixo para resolver.
As pessoas que conheci, os empregos que passei, as lições e as culturas
que aspirei não fazem meu corpo decidir parar. A garota que um dia disse
que somente pararia em uma cidade, porque iria se adaptar, descobriu que
se adaptou aos lugares que passou. Que adorou os bares de Berlim, que
aproveitou a noite em São Paulo, que passou o Ano Novo em Nova York ou
fez compras durante uma tarde toda em Lisboa.
Eu sou essa garota, e não poderia estar melhor de acordo comigo
mesma.
Claro que nem todo o mar contém flores.
Meu relacionamento com Aster sobreviveu, embora tenha sido difícil
no começo. Mas sobreviveu, esse é o importante.
A garota que não queria viajar, passa semestres em cidades diferentes.
A garota que ainda vai desbravar o mundo, precisa terminar seu curso de
enfermagem em Londres primeiro. Escolha totalmente de Aster, somente
dela. Ainda não é a hora dela, e ela entende.
Passo por uma ruazinha com a minha bicicleta.
Hoje é um dia importante em Sarlat.
Estou na França, numa cidade que, bem, se chama Sarlat. É no interior.
Onde há castelos e chateaus, por toda a parte entre colinas de vinhedos e
campos livres de grama e árvores. Graças ao último semestre da bolsa,
decidi que iria fazer o curso em um lugar que sempre ouvi falar, então...
escolhi a França.
Passo por algumas pessoas que não querem andar mais do que a
lentidão. Estou chegando na estação de trem, mas só consigo sentir meu
coração pulsar que nem idiota. A pulseira que Barr me deu de Natal aos
doze anos ainda está em meu pulso. Mas, ao invés de estar escrito Nicola,
está escrito Aster. Trocamos na última vez que nos vimos.
Passo entre as pessoas, pedindo perdão em sua língua pela minha
pressa.
Saio da minha bicicleta à porta da estação e a empurro pelos guidões.
Olho para todos os lados, com a esperança de encontrar a dona de cabelos
esvoaçantes e pele macia. Não encontro nada parecido com a explosão de
cores que Aster Campbell é.
Nada parecido, mas continuo a vagar pela estação, empurrando a única
bicicleta que irá nos ajudar a chegar na minha pequena casa em uma colina
estreita.
Me aproximo de um banco de madeira, onde uma garota está ouvindo
música em um fone de ouvido. Por algum tique em si mesma, ela gira a
cabeça por cima dos ombros. Sua mala está apoiada acima de uma de
rodinhas, ela sorri ao me ver e sinto que eu, minha boca e meu coração
estamos alinhados totalmente.
Ela entre abre a sua e diz, como se não nos víssemos apenas há horas:
— Hey, Nikkis.
27
Cara Nicola,
Sou eu, Barr.
Quero te agradecer pelo cartão postal que me enviou de Monza. Como
está a Itália? Ela é tão boa quantas as pessoas fazem parecer no cinema?
A Nancy deixou que eu saísse com alguns amigos no meu aniversário
de quinze anos. Beau disse que até mesmo viu um pouco de bigode no meu
rosto, mas acho que ele estava apenas brincando comigo. Eu estou
escrevendo porque Nancy disse que pode ser legal, já que você envia tantos
presentes e postais, acho que é a minha vez de enviar algo, não acha?
Espero que fique em Monza até receber o que estou lhe enviando.
A Aster me disse que você perdeu as pulseiras de miçangas que eu te
dei, quando foi dar um mergulho em Cancun. Ela me disse que você passou
a noite toda chorando, então, respire e calma. Não irei te detestar apenas
porque perdeu a pulseira que eu te dei quando tinha só doze anos. Eu posso
fazer outra. A sra. Campbell me ensinou de uma maneira muito melhor e
mais técnica do que a outra vez que eu fiz, então... fique tranquila.
Eu não tenho novidade a não ser contar que uma garota da minha
escola me chamou para o baile da primavera. Ela só me chamou porque não
quer se sentir desconfortável, e eu sou a única pessoa que a deixa um pouco
“feliz e confortável”. Coloquei aspas porque é ela quem disse, não eu.
Irei apenas por causa dela. Quero que tenha uma festa descente, por
mais que o primeiro ano do ensino médio seja bastante idiota. Bem, ainda
me lembro no meu primeiro dia, você estava aqui em Londres, deixando
que a cidade fosse sua por um tempo. Gostou?
Eu gosto de viver aqui.
Não tenho outras novidades do papai e da mamãe. Ele me ligou no
final de semana passado, só quis saber se eu estava bem ou não. A mamãe
disse que vai morar com um cara, mas não é nada certo. Bom, pelo último
e-mail dela, foi o que pareceu.
Estou escrevendo essa carta porque quero te enviar pulseiras novas e te
falar que, independente, de como chegamos até aqui, eu em Londres e você
no mundo, eu não te odeio, Nicola.
Jamais conseguirei te odiar.
Fique em paz.
Pois eu estou.
Com amor,
Barr Wolf.
AGRADECIMENTOS
Quero agradecer à Isis Casemiro, por todo o apoio que ela me deu nos
últimos meses. Minha amizade com ela é de anos, mas só esse que pudemos
ter a chance de nos conhecermos verdadeiramente — ainda há um caminho
longo e divertido para conhecer tudo na Isis, mas é algo que adoraria fazer
ainda em 2020.
Quero agradecer às garotas do Grupo Leituras, pela ajuda na construção
da Aster e da Nicola, como essas duas ganharam forma no meu coração e
na minha mente — especialmente agradecer a Barb que ficou mais ansiosa
do que eu nesse projeto, então ela merece essa ressalva aqui.
Quero agradecer à Clarice Araujo, que foi a pessoa mais fofa do mundo
ao revisar esse livro e pela nossa trajetória até aqui.
Quero agradecer a Mary Abade pela capa e pela arte dos marcadores.
Eu não sabia que precisava de tudo tão perfeito, até você decidir desenhar,
você é show!
Quero agradecer a Fernanda Schmit que fez alguns sprints comigo nessa
obra, que foram COMPLETAMENTE uteis para eu seguir em frente e
termina-la!
Quero agradecer à Julia Lima, que fez a arte do miolo da Aster e da
Nicola. Amo o fato da Aster ser uma personificação da Rue, de Euphoria.
Quero agradecer a todas as pessoas que enchi o saco no Twitter, no
Grupo Englantine’s House e a todas as pessoas que estão vibrando
verdadeiramente comigo com o amor dessas duas.
Quero agradecer ao meu noivo, que nem sabia da existência dessa obra,
só vai descobrir agora, porque ele sempre se perde — são muitas. Mesmo
lento e bobinho, eu te amo!
E a você, que leu tudo e até mesmo os agradecimentos da autora.
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