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Este livro trata de uma história real.

Os nomes dos personagens foram trocados visando


preservar a privacidade das pessoas envolvidas.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG)
N141m
Naegeli, Regina.
MAX: autismo em episódios – notas de uma vida ao pé da letra / Regina
Naegeli. – Rio de Janeiro, RJ: Autografia, 2022.
ISBN: 978-85-518-3879-2 [recurso eletrônico]
1. Autismo. 2. Literatura brasileira – Contos. I. Título.
CDD B869.3
Maurício Amormino Júnior - Bibliotecário - CRB-6/2422

MAX: autismo em episódios – notas de uma vida ao pé da letra


Naegeli, Regina

ISBN: 978-85-518-3879-2
1ª edição, fevereiro de 2022.

Edição de texto: Marco Polo Henriques


Revisão: Rosania Mazzuchelli
Crédito das imagens: Chico Bicalho
Consultoria editorial: Ana Trevisan
Capa e editoração eletrônica: Fernando Zanardo

Editora Autografia Edição e Comunicação Ltda.


Rua Mayrink Veiga, 6 – 10° andar, Centro
Rio de Janeiro, RJ – CEP: 20090-050
www.autografia.com.br

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É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem prévia autorização do autor e
da Editora Autografia.
Sumário

Parênteses

Introdução
E agora, José?

Episódio 1
E o véu caiu

Episódio 2
Veredicto

Episódio 3
Creche maternal

Episódio 4
Primeira escola

Episódio 5
Mão na massa

Episódio 6
Conjecturas

Episódio 7
Evolução da raça

Episódio 8
O autismo e sua heroína

Episódio 9
O óbvio que não é tão óbvio

Episódio 10
Palavrões

Episódio 11
A roda e o trenzinho

Episódio 12
Obsessões

Episódio 13
“Dificultômetros”

Episódio 14
Na rotina

Episódio 15
Sem imprevistos

Episódio 16
O gato e o “flapping”

Episódio 17
O cavalo e o cachorro
Episódio 18
Oportunidades de trabalho

Episódio 19
Palavra de especialista — parte 1

Episódio 20
Palavra de especialista — parte 2

Episódio 21
Descoberta tardia

Episódio 22
Folclore com mel

Episódio 23
Uma relação tão delicada

Episódio 24
A coragem supera tudo

Episódio 25
Toques e manias

Episódio 26
Aprendizados

Episódio 27
Sem malícia

Episódio 28
Superação

Episódio 29
Respeito e compreensão

Episódio 30
Reagindo bem

Episódio 31
Genialidade

Episódio 32
Jeito singular

Episódio 33
Beijoqueiro

Episódio 34
Trauma e mazelas

Episódio 35
Famosos

Episódio 36
Universo misterioso

Episódio 37
Empatia

Conclusão
A história não acaba aqui
Agradecimentos

Bibliografia
Para Max,
que veio a este mundo para semear amor.
Parênteses
Q
uero me valer dos tão úteis parênteses antes de adentrar de vez no
âmago da nossa questão neste livro.
Moro na França e, enquanto escrevo, esperamos com ansiedade
o pronunciamento do Presidente da República, Emmanuel Macron. Refiro-
me ao anúncio das medidas de confinamento total e irrestrito implementadas
compulsoriamente em razão da pandemia que tem dizimado a população
mundial, a Covid-19.
Com milhares de confinados mundo afora, cada qual em seu canto, o
mundo exterior mergulhou em silêncio profundo e passou a se movimentar
em marcha lenta.
Estamos exatamente em março de 2020, logo após a Organização Mundial
da Saúde – OMS decretar a pandemia do Novo Coronavírus. Os contágios
começaram no fim de 2019, na cidade de Wuhan, província do Hubei, na
China.
E, desde então, o Novo Coronavírus tem se espalhado pelo mundo de
forma devastadora, obrigando a todos, indivíduos, empresas e instituições, a
reverem seu modo de vida e seus modelos de gestão.
Haverá um antes e um depois de tudo isso, e quem sobreviver verá.
Confinada em casa, avanço nesta viagem reveladora sobre o autismo na
companhia de Max.
Regina Naegeli, março de 2020.
Introdução

E agora, José?
As estrelas prenderam a respiração...
Ele é autista.
E agora, José?

M
ax nasceu às 13h50, do dia 21 de maio de 2003, em Genebra, na
Suíça. Sob o signo de Gêmeos, ascendente em Virgem e lua em
Aquário.
Parto normal, sem complicações. Veio ao mundo cercado de amor. Uma
criança esperada e desejada. Um filho temporão de minha irmã Juliette e de
meu cunhado João Roberto.
Em qualquer família, o nascimento de um novo integrante envolve não
somente os pais, como todos aqueles que fazem parte do círculo mais
restrito. Se aceitarmos que cada um de nós vive, à sua maneira, a sua
existência em capítulos, este pode ser considerado mais um “capítulo que se
abriu” tanto para o casal quanto para todos os familiares.
O nascimento de Max ocorreu em um momento particular, em uma
manhã para lá de quente, pois estávamos em plena canicule – expressão
francesa usada para se referir aos períodos de calor intenso. Segundo as
autoridades locais, na época, a Europa teve uma onda de temperaturas
elevadas raramente vista anteriormente. Em torno de 70 mil pessoas
faleceram em consequência dessa situação.
Não obstante, Max veio ao mundo sem se dar conta das temperaturas
exteriores. Ele era um bebê encantador. Tinha carinha de anjo e sua pele era
tão clara e fina que parecia ter sido feita de uma espécie de papel de seda. Ele
era a cara do pai com vestígios pincelados da mãe.
A princípio, nosso gueule d’ange teve um desenvolvimento normal,
compatível com o de bebês recém-nascidos: comia, dormia e crescia dentro
dos padrões. Na verdade, já apresentava alguns sintomas sem que nos
déssemos conta.
Trocar a fralda do pequenino era uma verdadeira maratona. Minha irmã
tinha que lutar muito para conseguir tirá-la do corpinho miúdo, limpá-lo e
colocar uma nova. Quando a peripécia acabava, ela se encontrava destruída.
Precisava de um tempo de recuperação. Isso, porque, literalmente, tinha de se
atracar com ele em uma operação tão complexa que me faltam palavras para
descrever a cena. Lembro que ela usava não somente os braços como as
pernas para enquadrar o pequeno.
Max comia em silêncio absoluto. Não se movia e não manifestava nenhum
tipo de sentimento a favor ou contra a refeição. O balé silencioso era tão
inusitado que cheguei a pensar que ele poderia ter algum nível de surdez.
Com o passar do tempo, ele começou a dar sinais mais agudos de sua
singularidade. Mas, até então, dentro de um quadro aceitável. Afinal, cada
criança tem o seu tempo e a sua história, não é verdade?
Deixo claro que não sou psicóloga, médica, terapeuta comportamental
infantil nem exerço qualquer profissão relacionada ao tratamento do autismo,
nada disso, o que torna a minha tarefa de narradora bastante difícil e ousada.
Para todos os efeitos, este é “apenas” o testemunho pessoal sobre a vida de
uma criança portadora de TEA – Transtorno do Espectro Autista – ou
autismo.
Sendo assim, vou me empenhar e desenvolver o assunto pelas lentes dos
meus óculos de tia. E tentar olhar o mundo pelos olhinhos de uma pessoa
autista.
Perdoem-me desde já se o relato a seguir contiver dados imprecisos quanto
à patologia em questão. A minha laboriosa tarefa aqui é a de relatar o lado
humano, curioso, triste e engraçado do nosso dia a dia, com apoio de
algumas informações e dados científicos, ao lado deste ser tão iluminado
quanto querido chamado Max.
Dividi o livro em episódios, que poderiam até mesmo se transformar em
uma série de televisão, com diversos capítulos que não necessariamente se
sucedem cronologicamente. O livro poderá ser lido dentro da ordem
concebida ou separadamente, ao gosto e ao momento de cada um.
São flashes do mesmo personagem com múltiplas facetas de uma inexorável
condição: o autismo.
Episódio 1

E o véu caiu
D
epois que o véu caiu e foi possível ver a vida como ela é, os
sentimentos começaram a surgir um a um. Cada pessoa da família
reagiu e lidou com a situação à sua maneira.
É difícil elaborar com palavras o que foi se sucedendo. Conforme nos
permitimos entrar em contato com a realidade, os sentimentos vieram com a
intensidade das Cataratas do Iguaçu, em cascata: pavor, medo, amor, gratidão,
incerteza, tristeza e alegria... Tudo misturado como em uma sopa de
legumes. Foi dentro dessa desordem shakespeariana que deglutimos o
diagnóstico de autismo recebido por Max.

Você sabia?
No livro Autisme, j’accuse!, Hugo Horiot recorre a Leo Kanner (1894 – 1981), um
dos psiquiatras mais influentes do século XX, ao definir o autismo como “uma incapacidade
de se estabelecer relações normais com os outros e de reagir normalmente às situações”.

“A estrada será tortuosa”, pensei, “e fará parte do movimento da vida que


oscila entre grandeza e decadência”. Apesar disso, tínhamos que prosseguir
pedalando no vazio. Entretanto, como todos sabemos, a vida não para. O rio
Amazonas continua derramando suas águas no mar, lembrando-nos de que
temos a implacável tarefa de continuar...
Até então, todos estávamos habituados a uma família sem maiores conflitos.
Por incrível que pareça, crescemos cercados de amor, envoltos por uma
película invisível e imaginária, uma espécie de véu através do qual o mal-
estar resultante da discórdia, da maldade e de questões complexas passava
esmaecido.
Dentro da nossa mitologia familiar, existia pouco espaço para a dissonância.
Para se ter ideia, nunca na minha vida inteira presenciei uma briga entre
familiares, especialmente entre meus pais. Nunca! Eles andaram de mãos
dadas na rua até o fim de suas vidas.
O senso de humor afiado também sempre esteve muito presente no dia a
dia da nossa família. Assim, absolutamente tudo o que fazemos pode se
transformar em brincadeira. Adoramos rir de nós mesmos. E sempre
soubemos rir de tudo e do nada.
Um exemplo concreto sempre foram as nossas refeições. Turbinadas por
grandes mesas repletas de iguarias, invariavelmente acabavam em grandes
gargalhadas. Tudo sempre fluía bem. Mesmo aquilo que fluía mal, fluía bem.
Meu irmão mais velho nasceu com um grave problema na perna. Os
médicos disseram que ele provavelmente não poderia andar. Mas minha mãe
nunca dramatizou o assunto: ignorou as reticências diagnósticas, fez tudo o
que estava ao alcance da medicina naquele tempo e, hoje, ele se locomove
tão bem quanto qualquer um de nós. Tudo foi superado muito naturalmente,
sem dramas e com muito otimismo.
Encapsulados dentro dessa bolha de perfeição, não estávamos preparados
para enfrentar as vicissitudes do mundo lá fora, como é o caso do autismo.
Por outro lado, afirmo, sem hesitar, que esse capital de alegria positiva foi
uma dádiva que recebemos e acumulamos, a qual nos ajudou muito naquele
momento de grande angústia e, sobretudo, de incerteza generalizada.
Segundo Louis Pasteur, “o acaso favorece a mente preparada”. Já Confúcio,
pensador chinês que inspirou boa parte da jornada vivida por mim na China
ao longo de mais de uma década, sentenciou: “O homem de bem exige tudo
de si próprio; o homem medíocre espera tudo dos outros”.
Assim, embalados por toda a sabedoria que veio antes de nós, seguimos em
frente. E fomos à luta com os meios de que dispúnhamos. Com uma
explosão de sentimentos confusos e misturados, passamos a assimilar nossos
novos lugares neste mundo.
Pessoalmente, passei a me movimentar em “piloto automático” até digerir
todas as emoções. Em seguida, transferi a operação para o “modo pausa”,
como se o mundo se encontrasse parado ao redor até regressar aos campos da
razão.
Nessa época, estávamos longe de perceber que Max seria como esses seres
iluminados que atravessam a nossa existência e, muito suavemente e sem
perceber, desintegram e organizam todo o porvir. Costumo brincar dizendo
que meu DNA é composto por uma sequência de genes fora da lei que
teimam em me manter num estado permanente de hipersensibilidade e
agitação, com um ligeiro “toque de loucura”. Imagina o turbilhão que a
revelação do quadro de Max provocou dentro do meu ser!
Para aplacar o desespero, comecei a ler tudo o que passava pela minha
frente e estava relacionado ao autismo. Contando com a ajuda do revigorante
cafezinho na hora certa, prossegui nessa imersão incessante por um longo
tempo. Como dizia Balzac:
“Nada na vida requer mais atenção do que as coisas que parecem naturais”.
E a vida real sempre nos prova que, no final das contas, todas as teorias não
passam de teorias.
Episódio 2

Veredicto
O autismo do Max não era apenas uma “trombada” para os seus pais, mas
para todos nós. Não obstante, apesar do baque sofrido, juntamos os
trapinhos, arregaçamos as mangas dentro do labirinto de retalhos e seguimos
adiante.
É incrível como, de um instante para o outro, podemos vivenciar variações
de emoções abissais. Assim, contra todas as aparentes probabilidades,
considerando uma mitologia familiar que ainda não havia passado pela
seleção natural das intempéries mais agudas, nós nos adaptamos a essa nova
realidade. Aliás, o ser humano se adapta a tudo.
No dia seguinte ao veredicto recebido de autismo, parecia que o mundo
amanhecera com um ritmo diferente. Uma brisa suave fazia lembrar que o
mar continuava logo ali, trazendo consigo o cheiro de maresia, contudo, era
como se a intensidade do seu azul houvesse se esvanecido.
As ondas largas e planas sucediam-se, monótonas, umas após as outras.
Com o olhar concentrado nesse vaivém infinito de espuma, perdi a noção do
tempo e fui me deixando levar pela suave sensação de estar sentada com vista
para o silêncio do mundo.
Voltei para casa sorrindo para cada alma com que cruzei pelo caminho.
Demoramos uma eternidade para digerir a notícia e perdemos a noção do
tempo. O bom dessa história é que, de repente, da mesma forma que a
sombra se formou sobre nós, ela se dissipou. Sem maiores alardes. Quando
nos demos conta, a primavera voltou a florir no seio da nossa família e, de
todas as possíveis formas, continuamos a trilhar nossa estrada.
De minha parte, voltei a dormir um sono honesto de descanso.
Molière sentenciou: “Un chacun est chaussé de son opinion” (“Cada um
está calçado com a sua opinião”), o que, no frigir dos ovos, significa que
uma pessoa tem o seu próprio modo de lidar com a realidade.
Assim, cada um de nós foi agindo e evoluindo à sua maneira. Juliette e o
marido, João Roberto, pais de Max, assumiram o comando das operações:
passaram a consultar neurologistas, psicólogos e todos os tipos de médicos
cabíveis para atuar no diagnóstico e no tratamento do TEA – Transtorno do
Espectro Autista.

Você sabia?
De acordo com os especialistas, o TEA – Transtorno do Espectro Autista caracteriza-se
basicamente por:

Dificuldade de comunicação;
Interação social reduzida ou inexistente;
Interesses restritos.

E, naquele momento, a vida novamente provou que é muito maior do que


qualquer teoria. Pois, no fatídico dia em que tentávamos recolher os
“caquinhos” do que havia restado de nós, Juliette se mostrou serena e
aliviada.
Como isso era possível?
A resposta surpreende pela simplicidade atávica: finalmente haviam dado
um nome para a sua aflição.
Juliette morava longe da família. Assim, nos primeiros momentos, só ela
percebia estar diante de algo que não conseguia definir.
Como toda mãe de primeira viagem, ela se perguntava constantemente se
não estaria fazendo algo errado.
“Ai que alívio!”
“Até que enfim existe um nome para esta loucura em que vivo.”
“Agora, sim, eu entendo.”
“Finalmente, deram um nome àquele ‘bicho estranho’.”
“Mesmo que eu não tenha noção do que vem pela frente, estou aliviada!”
“Sei que daqui para frente estarei no ponto zero. Pelo menos, agora eu sei
do que eu vou ter que correr atrás.”
“É isso? Então, vamos em frente!”
Essas foram algumas das incríveis primeiras considerações da Juliette após
receber o veredicto. Pode parecer insano, mas, na verdade, foi uma reação de
lucidez absoluta, pois todas as incoerências com as quais ela se debatia
passaram a fazer sentido a partir do diagnóstico do autismo.
Felizmente, Juliette, João Roberto e Max moram em Genebra, na Suíça,
um dos países apontados como referência no tratamento do autismo.
Episódio 3

Creche maternal
M
ax entrou na escola maternal com 2 anos.
Uma escola pequena, perto da casa deles, aconchegante e
simpática. Uma construção moderna e confortável. Da sala de
aula, podíamos contemplar a natureza através da imensa janela que antecedia
um jardim acolhedor. Os galhos das árvores cobertas de folhas emolduravam
o quadro de vidro. Em um pequeno mezanino, as crianças encontravam um
cantinho para dormir, caso o sono batesse mais forte.
Na verdade, não se tratava propriamente de uma escola especializada, pois,
nesse tipo de instituição, além de não haver vagas, Max era muito novo para
iniciar sua escolarização. Mas o fato é que ele já dava sinais de sua diferença,
então a própria creche contratou uma acompanhante exclusiva para estar
com o nosso menino em suas atividades diárias. E o Centro de Psiquiatria da
Universidade de Genebra enviava um profissional a cada quinzena para
treinar essa acompanhante. Com o passar do tempo, a equipe da creche
agradeceu ao nosso herói Max por ter proporcionado a eles a oportunidade
de aprender a lidar com o autismo.
Esse órgão público, além de disponibilizar um profissional em tempo
integral, providenciou uma série de análises laboratoriais e pesquisas
destinadas à compreensão do distúrbio. Em suma, viraram o menino do
avesso com testes genéticos e neurológicos minuciosos, exames de sangue
etc. Tudo isso coberto gratuitamente pelo Sistema de Saúde da Suíça.
Como parte da empreitada, Max e sua mãe, Juliette, eram convocados a
passarem horas em uma sala desenvolvendo diversas atividades. Durante esse
período, eles eram filmados e, após as sessões, os psicólogos emitiam
pareceres e observações. Bem mais tarde, outros profissionais puderam ter
acesso a esses arquivos, os quais foram de valiosa ajuda na avaliação de seu
paciente.
Vale lembrar que Max era bem pequeno na época, na faixa de dois anos,
então os exercícios permaneciam basicamente em torno de joguinhos de
motricidade, do tipo encaixe e quebra-cabeça. A equipe observadora
indicava a seguir em quais atividades Juliette deveria explorar o potencial da
criança.
Como esse atendimento fazia parte dos programas de pesquisa da
Faculdade de Psicologia e de Fonoaudiologia da Universidade de Genebra,
Juliette lembra-se de ter recebido inúmeros estudantes em casa, os quais
realizavam seus estudos com Max. Alguns vinham com questionários para
Juliette preencher, outros prontos a trabalharem diretamente com ele. Além
disso, Max também se submeteu a vários exames, como eletroencefalograma,
testes genéticos e neurológicos, entre outros que Juliette, hoje, passado tanto
tempo, se mostra incapaz de detalhar.
Quanto à periodicidade, as atividades eram realizadas mensalmente e de
forma alternada, ora voltadas para ambos, mãe e filho, ora apenas para
Juliette, que se consultava a cada trinta dias com uma psicóloga, com a
presença do filho.
Juliette era uma mãe extremamente dedicada, mas inegavelmente
extenuada por toda aquela maratona. Por vezes, não tinha a menor vontade
de participar desses procedimentos. No seu íntimo, sentia-se suficientemente
forte e preparada para aguentar o tranco; tinha plena consciência da
importância de prosseguir com os trabalhos, apesar de tantas dúvidas e
questionamentos. Estava lá para o que desse e viesse, e pronto!
Mas o reino das mães não é um conto de fadas, e todas nós que
vivenciamos essa condição sabemos muito bem disso. Muitas vezes, Juliette
desejava somente que a deixassem sozinha por apenas um instante para poder
saborear um simples cafezinho em paz.
Episódio 4

Primeira escola
J
á mencionei que o diagnóstico de autismo em família me fez buscar
freneticamente todo tipo de leitura a respeito do assunto. Acredito que
seja uma forma de elaborar o que se abateu sobre nós e, assim, ter
condições de encarar o desafio que nos foi apresentado de forma tão abrupta.
Segundo Olivia de Lamberterie, uma conceituada crítica literária francesa,
no livro Avec toutes mes sympathies: “A leitura repara os vivos e desperta os
mortos. Ler não permite fugir da realidade, como pensam muitos, mas
encontrar uma verdade nela”. Esse pensamento exprime exatamente meu
estado de espírito diante da chegada de Max e da descoberta de sua condição
especial.
Lembro-me de que nós nos olhávamos sem ter a necessidade de transmitir
em palavras nossos sentimentos mais íntimos. Em uma das noites que passei
junto com a família, logo após a revelação, varri a sala com o olhar sem me
deter nas expressões de cada um. Provavelmente, a minha cara estava de
“segunda mão”.
Meus olhos se enchem de lágrimas só de pensar naquele momento. Às
vezes, precisamos de um longo período de tempo para assimilarmos os fatos.
Eu fixei meu olhar pelo menos uns dez minutos nas sete letras que formavam
a palavra “autista” sem saber bem o que queria dizer, e tampouco o que seria
de nossa família dali para frente.
Foi como que se estivéssemos provisoriamente anestesiados sem previsão de
retorno à vida...
Felizmente, aos poucos, buscamos inspiração e forças de uma divina e
invisível fonte de sabedoria para encarar os fatos.
Pensava comigo mesma: “Se até o mistério dos hieróglifos, que manteve
viva a imaginação de viajantes, poetas e escritores, pôde ser decifrado por
Champollion, por que não conseguiremos resolver este mistério também?”.
Alheio a todo o nosso desconforto, Max seguiu seu percurso passando por
todo tipo de centro especializado no atendimento de crianças portadoras de
alguma disfunção. Não necessariamente para autistas. Cada qual com sua
diferença.
No primeiro ano escolar, sua classe era formada por dois alunos apenas:
Max e um amiguinho. No ano seguinte, passou para uma turminha de
quatro alunos. E, assim, sucessivamente.
A escola estava localizada nas proximidades da residência da família e se
materializava em um casarão antigo que parecia emergir de dentro de um
quadro de Monet, emoldurado por um grande jardim salpicado de árvores
frondosas. Não obstante toda essa estrutura, Max continuava a dar sinais de
pertencer a outro mundo, um lugar diferente daquele em que vivemos.
Continuava absorto, como se enxergasse através das pessoas. Não trocava
olhares nem se expressava. Quando tentávamos nos aproximar de sua gentil
pessoinha, sistematicamente colocava, com muita delicadeza, sua mão na
frente, sinalizando uma advertência do tipo: “Pode ir parando por aí”.
Mas os cuidados continuaram firmes e incessantes. A escola, afora a grade
curricular tradicional, também fornecia apoio nas áreas de fonoaudiologia,
psicologia, entre outras atividades que construíram a base da formação e do
desenvolvimento de Max. Julgo-me completamente incapaz de explicar com
palavras o caminho que percorreram e como conseguiram puxar o fio para
desenrolar o novelo dessa vidinha tão especial para nós.
O fato é que Max foi seguindo sua trajetória. Acompanhava a classe
instrumentado por sua maîtresse, a professora dos pequenos.
Além disso, a estrutura disponibilizada pelo governo suíço, ainda exercendo
seu papel de timoneiro, foi quem indicou a superpsicóloga que acompanhava
praticamente todas as etapas do desenvolvimento de Max. Existia, assim, uma
equipe que trabalhava behind the scenes, recuperando informações e
compartilhando-as entre seus integrantes.
Esses profissionais atuavam de forma complementar, auxiliando Juliette e
João Roberto nos procedimentos a serem seguidos.
Episódio 5

Mão na massa
E
m nosso caso, além de parentes e pessoas próximas, contamos com
muita ajuda especializada para auxiliar de todas as formas no
tratamento e na recuperação de Max. Agradeço diariamente aos
compatriotas suíços e entristeço-me ao imaginar que há outras crianças
portadoras de autismo, no Brasil e em outros lugares, porém desamparadas e
sem acesso às mesmas oportunidades.
Com muito profissionalismo, Lydia, a psicóloga que acompanhou Max por
mais de 10 anos, passou a desempenhar, juntamente com ele, as tarefas mais
elementares do cotidiano, como cumprimentar pessoas, andar de ônibus,
entrar em supermercado etc. Essas são atividades cujo aprendizado se faz
naturalmente e por associação: entramos no carro, e, portanto, entramos no
ônibus; cumprimentamos uma pessoa, e, naturalmente, cumprimentamos
todas as pessoas... No caso de Max, Lydia precisou “dissecar” tudo isso ponto
a ponto para ele.
Uma vez tudo “picadinho”, estava feita a sopa. E o gostinho da sopa ele
nunca mais esqueceu.
Voltando à nossa família, além da ajuda especializada, parentes e pessoas
próximas se mobilizaram para nos auxiliar da melhor forma possível. Para
entender sobre o assunto, papai, o estudioso da família, passou a pesquisar e a
frequentar grupos de apoio a familiares de autistas. Com isso, ele sempre
indicava, à sua maneira, os caminhos que julgava cabíveis. Infelizmente essas
pesquisas se foram com ele e hoje me encontro incapaz de apontar as
instituições procuradas. Entretanto, fazendo uma varredura na bibliografia
que levantei para escrever esta obra, deparei-me com algumas cujo trabalho
julguei relevante, e cito-as aqui.
A unidade pediátrica do Hospital Rios D’Or, em Jacarepaguá, no Rio de
Janeiro, realiza o trabalho de orientação e acolhimento a famílias de crianças
portadoras de autismo. Eles contam com profissionais especializados que
trazem à tona diversos temas referentes a essa disfunção. O objetivo é não
apenas ampliar a rede de informações, como proporcionar troca de
experiências com famílias diversas.
Encontrei ainda um grande número de ONGs envolvidas com o
tratamento do autismo no Brasil. Possuem unidades de atendimento em
vários Estados e fornecem apoio gratuitamente a autistas, bem como a seus
familiares, entre as quais destaco o Instituto Autismo e Vida; a AAPA –
Associação de Apoio à Pessoa Autista; e a Associação Caminho Azul.
Vale mencionar a iniciativa de diversos parentes de crianças portadoras de
autismo, que criaram blogs e páginas na web visando a compartilhar
experiências e a propiciar a outras famílias uma ajuda que elas próprias não
tiveram.
De minha parte, como já sinalizei, comecei a devorar a literatura mundial
disponível sobre o assunto. Já nossa médica familiar, Camilla, entregou-se ao
aprofundamento do conhecimento técnico a respeito do autismo. Meu
irmão, o varão da família, preparou-se para ensinar o seu filho, quase da
mesma idade de Max, a brincar com o priminho.
Juliette e João Roberto, mãe e pai de Max, respectivamente, faziam de
tudo um pouco. Ou melhor, faziam muito mais do que podiam, se é que
isso fosse possível. Mas confesso ser difícil colocar em palavras a dimensão da
hecatombe que se abatera sobre nossa família.
Todos queriam contribuir, cada qual a seu modo e com suas próprias
ferramentas. Por outro lado, estávamos perdidos e buscando respostas para
questões simples que, invariavelmente, acometem todos aqueles que se
deparam com essa situação:
“O que é o autismo?”;
“Quais as causas?”;
“Como lidar com essa desordem neurológica?”;
“Qual o nosso papel nisso tudo?”;
“Por que conosco?”.

Na verdade, essas eram as “caçulas” das nossas preocupações. Corríamos


atrás de tudo e de qualquer coisa que pudesse aliviar minimamente aquela
sensação de estarmos caminhando errantes após a tormenta ou a passagem de
um tsunami.
Por um vago momento, todos os meus instintos passaram para o modo
offline. Como se tudo tivesse se desligado. E posso afirmar que eu não estava
solitária nessa sensação. Cada um de nós passou para o modo on à sua
maneira e no seu tempo.
Camilla, nossa médica, voltou muda da consulta e permaneceu em modo
off durante alguns pores do sol. Mamãe, a força e o otimismo da tropinha,
concluiu com muita fé que Deus não teria nos dado esse tipo de problema se
considerasse que não conseguiríamos enfrentá-lo.
Os pais de Max digeriram em etapas o panorama. Primeiramente, o
choque, o frio na barriga. No fundo, percebiam que havia algo errado.
Já de volta a Genebra, onde moram, em uma entrevista com a
fonoaudióloga que acompanhou Max em seu desenvolvimento, eles ouviram
um parecer que os marcou para sempre: “O caso dele é muito grave”.
Entretanto, o bálsamo veio logo em seguida: “Existe saída, vamos brigar. A
causa vale a pena!”. Ela estava coberta de razão, e esse foi o lema de todos
nós desde então.
Às vezes, demora um tanto até entendermos o que acontece à nossa volta.
Mas as respostas vieram e ainda vêm à medida que prosseguimos em nossa
caminhada.
Episódio 6

Conjecturas
M
ax só poderia ser nosso. Ele não poderia ter nascido em outra
família.
Voltaire afirmou: “Tudo o que sei é que você deve esperar
tudo nesta vida, estar pronto para tudo, saber se sacrificar pela amizade e se
resignar à fatalidade cega que dispõe as coisas deste mundo”.
Imaginem se Max viesse ao mundo em um lar difícil, sem recursos e sem
todas as possibilidades que se apresentaram a ele!
Minha mãe, com sua fé católica, estava coberta de razão quando entoava a
máxima de que teríamos condições de cuidar dele. Ela provavelmente buscou
inspiração nos sábios conceitos de Victor Hugo, quando ele afirmava: “Seja
sempre assim! O amor de uma família é o centro em torno de onde tudo
gravita e tudo brilha”.
Quanto a mim, as leituras continuavam me inspirando e trazendo essa
espécie de mágica que é a compreensão...
De acordo com Claire Chazal, jornalista francesa, autora do livro Puisque
tout passe: fragments de vie: “Para frear a vida que corre e reverter os efeitos da
idade, procuro o meu papel e uma maneira de ser útil para os outros, para o
mundo e para mim mesma”.
Com o passar do tempo, fomos concluindo que todos nos encontramos
caminhando nessa imensidão de mundo, no qual não existe um único centro.
O eixo está em qualquer lugar. Dependendo do ponto de vista e do
momento, o centro do mundo fica logo ali.
O que seria do verde se todos gostássemos do amarelo? E o que seria da
manga se todos comêssemos apenas banana, não é verdade?
Segundo Steve Siberman, ele mesmo autista, em seu TED Talks
(conferência em vídeo) intitulado “The forgotten history of autism” (“A
história esquecida do autismo”), as pessoas não autistas possuem um incrível
déficit de atenção no tocante aos detalhes. Tal observação provocou
gargalhadas na plateia.
E não é que ele está coberto de razão?
Isso nos faz repensar nossos modelos limitados. O autista não cabe dentro
de nenhuma “caixinha”, o que não quer dizer que ele não possa levar uma
“vida normal”.
Uma forma divertida de demonstrar essa teoria é conjecturar que nós
também podemos ser estranhos para eles. Aqui, vale a pergunta: Por que só a
nossa forma de pensar é a correta?
Certamente, pelo fato de ser um padrão hegemônico. Contudo, isso não
significa que não possa haver outras formas de pensar. Haja vista o olhar
autista sobre o mundo ou o exemplo dado pelo palestrante Siberman.
A nossa sociedade é muito preconceituosa e determina padrões que
julgamos serem os únicos corretos.
Mas existe de fato um padrão que seja absoluto? E por quê?
Comer com garfo e faca estaria certo, enquanto comer com hashi estaria
errado? Ou vice-versa? O que dizer do hábito de comer com as mãos, como
ocorre em muitas culturas?
Jantar às 19h ou jantar às 22h30, o que é mais conveniente? De acordo
com quais critérios? Para uma vida mais saudável, o primeiro horário é o
indicado, mas o que dizer dos profissionais que precisam trocar o dia pela
noite e devem jantar mais tarde para aguentar uma jornada de trabalho
madrugada adentro?
Esses são alguns dos exemplos entre um mar de possibilidades, e foi assim
que passei a enxergar o mundo à minha volta: um espaço de vivências
influenciado por múltiplas circunstâncias, adversas ou não. O caso de Max,
justamente, foi uma oportunidade ímpar de rever meus padrões de percepção
da realidade.
Em nosso “modelo hegemônico”, num dado momento, elegemos a banana
como a fruta da vez. Noutro, passamos a comer manga. Gostamos da cor
amarela e, sem mais, nos tornamos fãs do verde. E, assim, indefinidamente
em uma espécie de balé infinito.
Por que manga e não mais banana? O que o verde tem que o amarelo não
tem?
A consciência humana, na sua capacidade de representar o mundo e
atribuir sentidos, é tão ilimitada quanto o próprio Universo.
Quantas galáxias notáveis existem sem que tenhamos conhecimento?
Precisávamos de um acontecimento extraordinário como o autismo de
Max para entender que estar vivo não é o suficiente para nos tornarmos um
ser vivo. Nós nos acomodamos na decoração tradicional e imutável da
existência.
Como mencionei em outros livros, já passei pela experiência de morar em
países de quatro continentes diferentes. Cada qual com sua cultura e com seu
modo de ver as coisas. E todos têm os seus motivos para agir de uma forma
ou de outra. Todas elas cabíveis.
E por que não começarmos a analisar a vida por esse prisma?
Episódio 7

Evolução da raça
N
o livro Autisme – J’accuse!, o autor Hugo Horiot nos leva a pensar
se o autismo não seria simplesmente uma questão da evolução da
raça humana ao perguntar: “De qualquer maneira, não somos
todos um pouco autistas?”.
Horiot sugere que não devemos ignorar as dificuldades e diferenças dos
autistas, mas tampouco subestimar suas habilidades e capacidades intelectuais.
E profetiza:

“(...) ao longo dos anos, o Homo Sapiens desaparecerá suplantado por uma nova
espécie moldada pelo próprio homem. Isto marcará o fim de estabelecimentos
médico-sociais, com centros intensivos de reeducação e com qualquer estrutura
destinada a normalizar o pensamento e a restringir habilidades específicas.”

Mais adiante, o autor é ainda mais provocativo ao afirmar: “As obsessões e


aberrações artísticas do mundo de hoje serão a inteligência e a referência do
mundo de amanhã”.
Esses e muitos outros enigmas fazem parte do nosso cotidiano desde que
nos entendemos como seres pensantes. E, quanto mais pensamos, maior o
nosso espanto diante dos inúmeros caminhos que se abrem à nossa frente. A
sensação é a de que, se pudéssemos ter a percepção de tudo o que se passa à
nossa volta, assistiríamos a um filme novo a cada milésimo de segundo. A esta
altura, você já entendeu que estamos falando aqui de coisas que, durante boa
parte da vida, passam despercebidas até que compulsoriamente somos
obrigados a mudar nosso ponto de vista e voilà: eis que elas existem e se
apresentam aos nossos olhos estupefatos sem nenhuma cerimônia. E não
adianta fazer cara de susto!
Não faz muito tempo quebrei o pé em um movimento tolo ao entrar em
casa. Como o osso saiu do lugar, tive que ser operada, e, consequentemente,
passei dois meses sem poder tocar o dito cujo no chão. Vi-me obrigada,
então, a usar muletas, cadeira de rodas e toda a parafernália de apoio.
Por conta disso, passei a pertencer ao grupo das criaturas de mobilidade
reduzida e, somente a partir daí, me dei conta da quantidade de pessoas nessa
situação, e de como elas enfrentavam as dificuldades do cotidiano. Nosso dia
a dia é uma máquina de moer a consciência de que não somos o centro do
mundo. E, dentro dessa lógica, eu nunca havia notado a quantidade de
pessoas que vivem nesse contexto de limitação, para as quais as tarefas mais
simples são verdadeiros imbróglios.
Nossa própria noção de sofrimento muda quando somos obrigados a abrir
os olhos e observar o que ocorre em nosso entorno. Por isso, hoje considero
que consigo vivenciar os acontecimentos da vida por outro olhar.
Não posso negar que a chegada de Max nos presenteou com essa
oportunidade única e ímpar de “desempacotamento” do mundo.
Enquanto não vivemos essas emoções, não as entendemos plenamente.
O ditado popular diz que dançamos conforme a música, não é verdade? E
foi exatamente isto o que fizemos: aprendemos a nos movimentar no
compasso de uma nova canção. Tão agradável quanto a que nos inspirava
anteriormente.
Sem se dar conta, Max nos ensinou a amar o diferente. E amar o diferente
é cheio de caminhos tortuosos, mas é, sobretudo, humano. A meu ver, a vida
ficou mais bela e completa com tudo isso.
Fomos obrigados a deixar a nossa “zona de conforto” de lado e partir para
outras aventuras. Conhecemos e ainda conheceremos diferentes realidades
que obrigatoriamente demandam uma nova maneira de olhar o mundo.
Episódio 8

O autismo e sua heroína


O TEA – Transtorno do Espectro Autista, ou autismo, é uma desordem
neurológica caracterizada pelo comprometimento da interação social,
comunicação verbal e não verbal e pelo comportamento restrito e repetitivo.
É um distúrbio do desenvolvimento humano caracterizado por dificuldades
na aprendizagem social e na comunicação, com estereótipos e
comportamentos perseverantes.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde, OMS, trata-se de um
termo genérico que abrange uma variedade de distúrbios complexos do
desenvolvimento cerebral, incluindo o próprio autismo e a síndrome de
Asperger, que também resulta em uma série de limitações em termos de
interação e convívio social.
De forma enigmática, o autismo afeta a percepção que temos do mundo
como um todo. Os autistas geralmente são mais sensíveis à luz, ao brilho, aos
cheiros e à presença de muitas pessoas simultaneamente. São capazes de
permanecer horas fazendo a mesma coisa. Geralmente, têm obsessão por
objetos que giram, preferem ficar sozinhos, demonstram dificuldade de se
exprimir e de falar, possuem uma hipersensibilidade ao toque e não apreciam
o contato afetivo.
As pessoas portadoras de distúrbios do espectro autista fazem movimentos
contínuos de inclinação do corpo para frente e para trás. Outros correm de
um lado para o outro, balançando as mãos de forma descoordenada,
geralmente na altura dos ombros, em um movimento que os médicos
chamam de “flapping”. Como se fossem as asas de um avião. Muitos
conversam sozinhos e dão risadas de si mesmos. Riem do nada, sem nenhum
motivo aparente.
Os autistas têm dificuldade de olhar as pessoas de frente. Eles são rotineiros
e caseiros. Possuem hipersensibilidade aos ruídos, barulhos, cheiros etc.
Enquanto uns vivem completamente isolados, outros encontram a sua forma
de se relacionar.
No livro intitulado Ma vie d’autiste, a autora Mary Temple Grandin, ela
própria autista – referência mundial no segmento de pecuária e apontada
como a profissional norte-americana mais bem-sucedida portadora dessa
condição —, afirma: “O autismo é um distúrbio do desenvolvimento. Uma
anomalia nos sistemas que processam informações sensoriais entre elas e faz
com que a criança reaja demais a certos estímulos e não suficientemente a
outros”.
De acordo com Grandin, o autismo se manifesta na primeira infância e
acaba afastando a criança portadora do distúrbio das demais pessoas. Em vez
de buscar explorar o mundo à sua volta, ela se fecha em seu próprio mundo
interior. Segundo sua avaliação, um autista pode realizar com sucesso uma
tarefa, mas não consegue compartilhar sua experiência em outros contextos.
Em geral, os autistas não entendem o “não dito”, as sutilezas, as piadas.
Eles precisam desenvolver estratégias de análise para entender as tiradas de
outros.
Suas respostas são curtas: “Yes” or “No” and a few words...
São um pouco desajeitados. Normalmente, o equilíbrio e a coordenação
motora são problemáticos. Um simples hábito, como fazer o laço do sapato,
pode se transformar em um enorme calvário. Assim como Grandin, Max
tinha muita dificuldade em executar essa tarefa e usou tênis com velcro até
quando pôde.
Em sua obra, Grandin contextualiza o transtorno do ponto de vista
histórico, explicando que o autismo infantil foi descrito pela primeira vez
pelo psiquiatra Leo Kanner, em 1943. Na população como um todo, atinge
quatro entre dez mil crianças nas formas associadas a outros distúrbios, com
predominância em meninos. São indivíduos que apresentam incapacidade
para estabelecer relacionamentos, “fechando-se como conchas”, com grande
dificuldade de se expressar. Um dos principais sintomas é a realização de
gestos, muitas vezes bizarros, repetidos exaustivamente. Em geral, os autistas
necessitam de ambientes imutáveis e ficam muito perturbados com mudanças
no seu entorno.
A autora se autodefine justamente como portadora de um comportamento
monótono, repetitivo e rítmico. Não se trata de algo direcionado a um
objetivo, mas que, sem dúvida, segue um plano predeterminado rígido.
Grandin chama a atenção para a importância do diagnóstico precoce: “A
intervenção precoce e o cuidado da criança como parte de um programa
educacional adaptado melhoram o prognóstico em todos os casos de autismo.
Um bom programa inclui vários métodos terapêuticos”.
Vale lembrar que o tratamento que serve para uma criança portadora de
autismo não servirá necessariamente para outra. “Uma terapia pode ser
muito eficaz para um grupo de pessoas e desastrosa para outro grupo”,
explica a autora. Mary Temple Grandin ainda alerta para o fato de inúmeros
autistas possuírem alergias alimentares, lembrando que o comportamento
autístico melhora quando essas desordens são tratadas.
A obra citada contém um questionário visando a diagnosticar problemas de
comportamento em crianças potencialmente autistas, mas a autora reforça
que, atualmente, nenhum dos métodos utilizados é totalmente satisfatório,
pois são bastante subjetivos e possuem falhas significativas.
Não obstante, para Grandin, vale procurar todos os especialistas, ouvir
diversos pontos de vista, aderir a associações de ajuda, além de permanecer
atento e a par de tudo o que diz respeito ao assunto: pesquisas em
andamento, bem como novos métodos e terapias disponibilizados. E,
sobretudo, discutir com outras pessoas que vivem a mesma problemática.
Trata-se de ferramentas fundamentais de ajuda.
Dedico este episódio a Mary Temple Grandin, assim como a nomeio nossa
“heroína”, pois é dessa forma que a vejo.
Nascida em 1947, em Boston, estado de Massachussetts, nos Estados
Unidos, desde pequena ela apresentava características peculiares ou autísticas,
mas somente foi diagnosticada anos mais tarde, no início da idade adulta,
como portadora de autismo.
Felizmente, recebeu todo o suporte familiar, o que foi fundamental para ter
chegado aonde chegou. Seguiu uma escolaridade difícil, não por
incapacidade mental, mas por não ser compreendida pelos colegas de classe.
Estes a ridicularizavam chamando-a de “criança nerd” ou de “gravador”, por
causa do seu discurso repetitivo.
Para as novas gerações, vale lembrar que “gravador” era um aparelho que
registrava músicas, conversas, sons e tudo o que interessava.
Imagino o que ela vivenciou nessa época...
Em suas palavras: “Esse período foi o mais desagradável da minha vida”.
Grandin, perfeitamente capaz do ponto de vista intelectual, conseguiu
vencer tudo isso. Formou-se em Psicologia pelo Franklin Pierce College,
além de ter feito mestrado e doutorado em Ciência Animal, respectivamente
na Arizona State University e na Universidade de Illinois.
Hoje, Grandin é proeminente defensora do tratamento humanizado para
gado de corte e tornou-se internacionalmente famosa como porta-voz do
autismo. Ela compartilha experiências narrando sua história e encorajando as
pessoas a seguirem seus sonhos.
Para ela, assim como para todos nós, os autistas podem, SIM, ter aptidões
diversas e desenvolvê-las com sucesso.
Certo dia, li uma reportagem na imprensa francesa sobre a carreira
denominada “job coach”, estabelecida especificamente para ajudar autistas a
desfrutarem de uma vida profissional mais integrada em determinadas
empresas. Achei interessante como princípio.
Esse serviço visa a ajudar a integração dos autistas no ambiente
organizacional, haja vista sua dificuldade na interação com grupos. O coach
também prepara os demais colegas de trabalho para interagirem com o
portador do transtorno, fornecendo informações sobre a patologia (do que se
trata) e como lidar com ela. Além disso, esse profissional fica à disposição do
próprio autista para esclarecimento de situações “estranhas” que possam ter
ocorrido e como evitá-las no futuro.
Episódio 9

O óbvio que não é tão óbvio


C
erta vez, Max, ainda pequeno, veio nos visitar em Metz, cidade
situada no nordeste da França, a apenas 50 quilômetros de
Luxemburgo. De repente, ele me inquiriu diretamente: “Tia Mé,
tem banheiro na sua casa?”.
Respondi afirmativamente, então ele prosseguiu muito sério dentro do seu
raciocínio: “E eu posso ir ao banheiro?”.
Achei curiosíssimo esse raciocínio tão segmentado por etapas.
Max é assim. Aquilo que é obvio para todos, nunca é para ele e vice-versa.
Relaciono essa peculiaridade àquilo que explica a escritora autista Mary
Temple Grandin, quando afirma que uma criança portadora do transtorno,
embora aprenda a utilizar uma colher para tomar sopa, não necessariamente
vai transferir essa mesma competência para outras atividades, como se servir
de um sorvete, por exemplo.
Por outro lado, quebrar protocolos, especialmente aqueles vinculados a
rotinas e horários, é algo inconcebível para um autista. A hora de comer é
sagrada!
Nos fins de semana, frequentemente se come mais tarde na casa de Juliette
e de João Roberto, pais de Max. Então, tem dias em que o filho sai da mesa
do almoço, olha o horário e entra na cozinha para tomar o lanche da tarde.
Ele aceita sem problemas a hora tardia do almoço. Segue as normas da casa, o
fluxo familiar, mas é incapaz de mudar sua própria rotina, quando ela
depende exclusivamente de si mesmo.
Tudo tem sua hora e seu lugar. Lembro-me de que, ainda menino, depois
de nos divertirmos com um determinado brinquedo, Max sempre o
guardava cuidadosamente.
Hoje, como todo adolescente que faz jus a essa denominação, mantém seu
quarto um tanto bagunçado, precisando de umas puxadas de orelha de sua
mãe.
É curioso constatar que em nossa família, após a chegada de Max,
mudamos nossos padrões, abandonamos a rigidez de alguns preceitos
educativos e, sem nenhum constrangimento, torcemos muito para ele
desarrumar um pouco suas coisas, perder um ônibus, quebrar uma rotina.
Torcemos muito para que ele faça algo “errado” e fora de série. Por
exemplo, achamos o máximo quando ele pede ou reclama de alguma coisa.
Vemos em tudo isso um sinal positivo de que ele está evoluindo.
Para quem não conhece a história, isso pode parecer estranho e até
disfuncional. Mas, para nós, é justamente o contrário: ser disfuncional
significa, neste caso, estar mais próximo do mundo como o conhecemos e no
qual podemos de fato estabelecer contato.
Quando ele era bem pequeno, nós o levávamos para passear e, enquanto
observávamos descontraidamente a natureza, Max se preocupava em
recolocar as pedrinhas nos buracos dos quais haviam saído em razão da
passagem de carros ou motos.
Certa vez, minha filha foi passar o Natal na casa da tia Juliette, mãe de
Max, em Genebra. Como toda a família de João Roberto, pai de Max,
também estava por lá, coube à minha filha ocupar uma cama alocada no chão
no quarto do meu sobrinho.
Sentindo sempre muito frio nos pés, ela colocava meias para dormir. Mas,
conforme a calefação e o cobertor cumpriam sua função, retirava as meias e
colocava-as no chão ao lado da cama.
No primeiro dia, ao acordar, percebeu que as meias não se encontravam
mais lá.
“Não devo tê-las calçado”, imaginou.
Na noite seguinte, o mesmo fenômeno ocorreu e ela se perguntava:
“Será que eu realmente calcei as meias?”.
Na terceira noite, o mesmo mistério se apresentava, a ponto de, ao acordar,
ela começar a se questionar:
“Será que eu estou ficando maluca? Tive a sensação de ter calçado as meias
e não fiz isso?”.
Na quarta noite, deitou-se na cama e disse para si mesma:
“Vou dormir agora e estou usando meias”.
No decorrer da noite, como de costume, tirou-as porque sentiu calor. Pela
manhã, levantou-se sem pensar nas meias, e, quando voltou ao quarto para
arrumar a cama e apanhar os pés de pano, para sua recorrente surpresa, estas
não estavam lá!
Dessa vez, tinha certeza:
“Não estou louca! Ontem eu coloquei as meias antes de dormir e depois as
deixei no chão”.
Mais do que rapidamente desceu as escadas que davam no salão do
primeiro andar e disparou: “Tia Juliette, você pegou as minhas meias?”.
“Claro que não!”, respondeu a anfitriã prontamente. “O que eu iria fazer
com suas meias usadas?!”.
Imediatamente, as duas se entreolharam e logo direcionaram seus radares
para um ponto não muito distante...
Deitado no sofá, muito confortavelmente, como se não fosse com ele,
estava Max, assistindo ao seu programa preferido na televisão. No mesmo
instante, as duas lhe perguntaram se ele estava a par do acontecido.
Para surpresa geral, Max, que não mente jamais, subiu as escadas e mostrou
a “coleção de meinhas”, todas bem arrumadas na gaveta dele. Para meu
sobrinho, era impensável viver com aquelas meias soltas pelo quarto. Assim,
todas as manhãs, antes que a prima acordasse, delicadamente, apanhava as
peças que ela havia largado no chão.
Mistério desvendado!
E quem irá dizer que não existe razão quando se trata de evitar a
instauração da bagunça no seu próprio quarto?
Episódio 10

Palavrões
M
ax ainda era bem pequeno e não entendia “bobagens”, como se
diz popularmente. Refiro-me ao sentido dos palavrões. Ao
menos, era o que achávamos.
Um dia, minha prima Badinha estava na casa de Juliette, mãe de Max, e
elas acabaram dando-lhe como lanche uma banana meio “passada”. Para
surpresa geral, ele, que sempre parecia absorto ou vagando nas nuvens,
exclamou: “Essa banana está fodida!”.
Como ele conhecia essa palavra? E como aprendeu a utilizá-la?
Não só havia utilizado um termo que ninguém imaginava fazer parte de
seu repertório, como o empregou contextualmente. A educação ficou um
pouco de lado, é bem verdade, mas ele utilizou tão corretamente o termo
que o resto era o resto.
Evidentemente, apreendeu em conversas paralelas e assimilou.
Outra situação em que recorreu ao mesmo tipo de vocabulário
“edificante” foi em Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro, onde minha
família possui uma casa de campo. Estávamos todos reunidos e, toda vez que
nos preparávamos para passear e abríamos o portão da propriedade, nossos
três cachorros – Tobby, Nina e Belinha – fugiam e desapareciam, obrigando-
nos não somente a correr atrás, como a gritar incessantemente para que
voltassem. Essas cenas se repetiam ao infinito sempre que alguém chegava ou
partia.
Assim também foi quando saímos em bando para dar a famosa Volta do O:
um caminho nos arredores da nossa casa que perfaz literalmente um “o”. Ele
se inicia e termina no mesmo ponto. Quando o portão foi aberto, sem fugir
à regra, os cachorros fugiram. Nesse momento, Max gritou: “Fodeu!”.
A família toda não pôde conter as gargalhadas diante da expressão vinda de
um ser adoravelmente minúsculo e sempre tão distante.
Lenda ou não, o fato é que, de alguma forma, bem do seu jeito, Max tinha
assimilado corretamente o uso dessas expressões nada “católicas”, como diria
minha avó. Por ser obediente ao extremo, é provável que, ao prestar atenção
em como sua mãe aplicava esse tipo de linguagem, ele assimilou para sempre
a lição.
Verdade seja dita, a realidade inexorável é que existem coisas que não
precisam ser ensinadas. Parece até vírus, por sinal algo que está bem em alta
neste momento, pois pega-se no ar.
De nossa parte, nós nos deliciamos com o fato, e histórias como essa
circularam nos bastidores da família por um bom tempo, fazendo-nos dar
muitas risadas.
De fato, Max é um menino maroto. Mesmo parecendo estar na
estratosfera, percebe bem que certas expressões não são exatamente
coloquiais e não são para serem usadas em quaisquer situações. E diverte-se
em disparar expressões “nada católicas” no fim de uma história em que a
personagem, como se costuma dizer, “entra pelo cano”.
Por ser extremamente obediente, não nos preocupamos. Na verdade, ele
entende e aplica esse tipo de vocabulário nas horas certas. Sempre morremos
de rir de suas expressões marotas que nos fazem gargalhar.
Episódio 11

A roda e o trenzinho
M
inha outra querida irmã e, igualmente, tia de Max, para
estimulá-lo, tentava dar-lhe umas agarradas plenas de ternura, o
que ele rechaçava com veemência, correndo para se livrar dos
apertos amorosos. Ela não desistia e insistia correndo atrás dele.
E assim ficavam horas nessa brincadeira. Max zanzando e minha irmã
tentando pegá-lo. Quando ela cansava e parava, ele vinha atrás e sentava-se
no colo dela, como se a estivesse chamando para um novo desafio.
Max sempre foi assim. Por isso, é um grave erro afirmar que crianças
autistas não se comunicam. Elas o fazem, sim, porém de forma diferente. De
outro jeito...
O que para muitos é indiscutível e visível, para ele incontestavelmente não
é.
Chegar e dar um beijo, por exemplo, para a maioria das pessoas de
ascendência latina, parece normal e corriqueiro. Para Max, não. Então,
sempre procurava subterfúgios para se comunicar de uma forma que lhe
parecesse menos invasiva e penosa, já que, como sabemos, crianças autistas
possuem dificuldade nata nas trocas corporais. Na hora do contato, ele corria
e transformava isso na sua brincadeira, que no fundo nada mais era do que a
sua própria forma de beijar.
Cabe a nós a tarefa de perceber e respeitar essa forma singular de
comunicação.
Ainda como reflexo de nosso DNA latino, o jeito afetuoso de paparicar os
seus é algo atávico em nossa cultura familiar, ainda mais quando se trata de
chegadas e partidas em aeroportos. Como moramos em localidades distantes
umas das outras, momentos de despedida e de reencontro são muito
frequentes e, invariavelmente, incluem o que eu costumo chamar em tom de
brincadeira de “pick-up service” ou serviço de traslado sob medida durante
viagens.
Em uma delas, lá veio todo mundo recepcionar efusivamente a “família
europeia” chegando. Desta vez, Max estava conosco e, após ficar sentado e
confinado nas desconfortáveis cadeiras de avião por pelo menos 11 horas,
afora escalas e tudo o que implica uma viagem transatlântica, estava pronto
para extravasar as energias contidas.
Diga-se de passagem, nesse caso não se trata de uma peculiaridade restrita
ao universo infantil. Acho que todos, crianças e adultos, chegamos munidos
da mesma necessidade de abrir as asas e soltar as feras. Só que Max
certamente tem outras formas de externar esse desejo.
De minha parte, eu me divirto observando as propagandas de companhias
aéreas que mostram sempre pessoas viajando de classe executiva ou mesmo
de primeira classe, acomodadas em uma confortável poltrona cheia de espaço
e degustando refeições deliciosas com talheres de prata. Para quem, cara
pálida?
Os passageiros da vida real viajam amontoados uns em cima dos outros,
comem uma comida bem mediana, têm direito a pão gelado e desfrutam de
um desconforto desumano e sobrenatural. Chegam ao seu destino
destruídos!
Retomando as memórias sobre o regresso de Max, em meio às abraçadas
efusivas do reencontro, nosso herói avistou, ao longe, uma escada rolante em
funcionamento. Fascinado pela engrenagem do sobe e desce, disparou em
direção à sua descoberta.
Minha irmã, que é médica, rapidamente deu um jeito de acompanhá-lo
nessa descoberta tão inusitada quanto fascinante. Mas, tão logo ela se deu
conta de que o encanto de Max pelo seu novo achado parecia se perpetuar
ad infinitum, não hesitou em solicitar um “help familiar”, pois tinha um
plantão iminente. Nessa troca de turno, vovó assumiu o posto com toda a
pompa e garbo, passando a segui-lo pela escada rolante em uma coreografia
sem descanso.
Moral da história: foi muito difícil persuadi-lo a deixar aquele
“brinquedinho” tão divertido; cogitamos até a possibilidade de pedir para a
administração desligar a escada rolante.
Por falar em vaivéns eternos, lembro-me de Juliette, mãe de Max, ter
contado que o programa preferido do filho nos fins de semana era pegar o
trem na estação central e ir ao aeroporto, em Genebra. E, na sequência,
voltar de lá até a estação central. E, assim, indefinidamente...
Concluímos que a atividade das rodas do trem em movimento o
enfeitiçava.
A propósito, quero citar mais uma aventura ocorrida durante uma subida
no Corcovado, no Rio de Janeiro. Novamente, um punhado de gente da
família aglomerada e “empaçocada” querendo participar do evento junto
com nosso pequeno suíço. Uma turminha da pesada! Nem sei dizer por que
eu não estava nessa zorra total.
Chegando à estação do trenzinho que leva ao Corcovado, foram
informados de que o “dito cujo” estava quebrado e permaneceria parado,
por isso reembolsariam aos pagantes o valor dos bilhetes comprados.
Imediatamente, formou-se o maior alvoroço para receber o tal reembolso.
Sabendo de antemão que permanecer à mercê daquela multidão não seria
nada agradável para Max, minha família saiu do “meião” daquela arena de
gladiadores ávidos por seu pagamento. Posicionou-se, assim, em um local um
pouco mais afastado, aguardando até que a situação normalizasse.
Nesse meio-tempo, consertaram o bendito bondinho e avisaram que
retomariam o serviço. Algo muito típico da cultura local, diga-se de
passagem.
Pelo fato de terem se afastado da fila de ressarcimento dos bilhetes, meus
familiares foram os únicos a se beneficiar da mudança repentina de programa.
Como bem diz o ditado, “os últimos serão os primeiros”.
Concluindo a história, para a alegria geral, eles subiram praticamente
sozinhos no bondinho. Porém, com todos esses contratempos, o dia, que,
inicialmente, estava esplendoroso, mudou repentinamente, como sempre
ocorre em países tropicais. Com isso, uma neblina densa envelopou o Cristo
Redentor, impedindo até mesmo a visão dos pés do célebre monumento.
Contudo, para Max, a excursão não podia ter sido mais divertida. Isso,
porque, para ele, o Corcovado, a Floresta da Tijuca, o Cristo Redentor e
toda a vista maravilhosa não despertavam o menor interesse.
O que realmente contava era andar de trem e acompanhar suas rodinhas
em movimento.
Episódio 12

Obsessões
U
m dos aspectos observados no TEA é a tendência para o
desenvolvimento de ansiedade e, consequentemente, a repetição
exaustiva de comportamentos e tarefas corriqueiras, o que o
aproxima do transtorno obsessivo-compulsivo, o chamado TOC.
Li sobre isso em diversos relatos de autistas, os quais dizem que a sensação
de nunca conseguir se desligar de suas obsessões é profundamente
perturbadora. É como se ficassem ligados na tomada 24 horas por dia, sem
ter uma folga.
Isso ocorre não por vontade própria e eles não conseguem modificar tal
padrão. Para quem não carrega consigo o transtorno, é algo de difícil ou
impossível compreensão. Mas esse comportamento existe e está presente nos
autistas.
De volta às palavras da escritora autista Mary Temple Grandin, ela explica
com muita sensibilidade o porquê das obsessões:

“Em crianças autistas costumam ser uma maneira de diminuir a excitação de um


sistema nervoso hiperativo. Ao se concentrarem nessas fixações, elas bloqueiam os
outros estímulos que não conseguem administrar”.

Ou seja, trata-se de um meio de aliviar temporariamente as emoções


florescentes. Nas palavras de Grandin:

“Você deve executar cada tarefa separadamente e prosseguir cada vez como se fosse
uma tarefa totalmente nova. [...] Os seres humanos precisam de privacidade. As
crianças autistas também precisam de seu canto secreto para se esconder e se retirar
do mundo exterior”.

Você sabia?
Dentro da “bagunça organizada” característica do autismo, o objetivo de quem convive com
portadores desse transtorno deve ser sempre o de se comunicar com eles nos pontos de
intercessão desses universos tão distintos: o nosso e o deles.

Quanto à dificuldade de articulação apresentada por autistas, Grandin relata


de forma surpreendente:

“Fiquei chocada ao saber que possuía anomalias no meu modo de falar. Eu não me
dava conta da persistência e da hesitação do timbre monótono que tinha a minha
voz. Quando criança, em vez de psicoterapia, eu deveria ter sido beneficiada com
mais sessões de fonoaudiologia”.

Mas o maior impacto provocado pelo depoimento de Grandin, ao menos


para mim, é quando ela aborda a própria incapacidade de expressar seus
sentimentos. Certa vez, ao se despedir da mãe, tudo o que ela mais desejava
era ser capaz de demonstrar seu desejo absolutamente contido pela armadura
do autismo de que a mulher que lhe deu a vida simplesmente a abraçasse:

“Ela rapidamente se aproximou de mim e me beijou na bochecha. Eu queria tanto


que ela me pegasse em seus braços. Mas como ela poderia saber? Eu permaneci
plantada como uma estaca, presa pela dificuldade de aproximação do autismo.
Recuei quando ela quis me beijar, incapaz de suportar o toque. Mesmo que fosse o
toque da ternura”.

A mãe de Grandin, por sua vez, impressiona e nos sensibiliza quando


afirma: “Cuidar de Temple não é nem prejudicial nem difícil para nós. Não
reclamamos. Normalmente, é fascinante e é uma fonte de inspiração, pois ela
faz aflorar as melhores qualidades de cada um”.
Posso afirmar, sem medo de errar, que é exatamente dentro desse estado de
espírito que se encontram os meus queridos Juliette e João Roberto,
respectivamente mãe e pai de Max. Jamais os ouvi reclamar, lamentar ou
clamar aos céus por quaisquer motivos relacionados ao fato de terem gerado
um filho autista.
Às vezes, percebo que Juliette se compadece da situação de certas crianças,
que, para nós, podem até parecer semelhante à enfrentada por ela na criação
de Max. Porém, isso não procede. Na verdade, Max nunca deu trabalho nem
chateação. Jamais respondeu em tom agressivo. Pouco argumenta. Quando
muito, reclama um pouco. E isso é tudo.
Não fosse pela preocupação de saber como encaixá-lo neste mundão
maluco, Max integra em todos os itens os padrões de “filho perfeito”.
Existem seres que vêm prontos e iluminados para o mundo. E Juliette faz
parte deste grupo. Ela leva tudo isso com muita filosofia e poesia.
Episódio 13

“Dificultômetros”
C
omo sabemos, o autismo afeta a atenção, as sensações, a percepção,
a fala, a associação, a imitação, a intenção, a motricidade, a
linguagem, o contato físico, a tolerância ao cheiro, a convivência...
Após enumerar todos esses sinais, dou-me conta da quantidade de
“dificultômetros” embutidos em um mesmo transtorno. A vida, por si só, já
não é simples e casual para ninguém, e podemos compará-la a um software
programado por nós mesmos, o qual vive dando probleminhas.
Agora, imagine quando, além desses complicadores, existem outros
inerentes ao próprio hardware, ou seja, à máquina que utilizamos para
programar a nossa vida. Esse é o drama dos nossos adorados companheiros
autistas.
Max, conforme já relatei, é bilíngue. Fala do seu jeito, fluentemente, os
idiomas português e francês. Mas como nasceu e mora em Genebra, o
segundo acaba sendo o seu predileto. Então, quando vem ao Brasil,
frequentemente se serve de vocábulos em língua francesa para expressar seus
sentimentos.
Meus sobrinhos e minhas filhas adoravam implicar com o menino. Max se
defendia pedindo para que parassem com o seu famoso “Arrête!” (“Pare!”),
e, muito obviamente, eles continuavam com suas brincadeiras, como todo
primo que faz jus a essa qualificação. Aos poucos, essa interação maluca
passou a se refletir na linguagem dos pequenos, dando origem a verdadeiras
“expressões Frankenstein”, compostas de palavras pinçadas do francês e do
português, que somente eles eram capazes de entender.
“Arrête, moleque!”, por exemplo, era uma das expressões surgidas desse
universo confuso e diferenciado, fazendo-me lembrar da Torre de Babel em
que se transformou minha casa no longo período em que vivi na China:
entre quatro paredes, eu preferia falar português, enquanto meu marido se
mantinha fiel ao francês e minhas filhas ao inglês.
Cada língua possui algumas palavras ou expressões intraduzíveis e fortes,
como o clássico vocábulo “saudade” em português, contudo, o contato com
diversas matrizes linguísticas gera confusões e neologismos indesejáveis. Foi
assim que, certa feita, me deparei com minha filha proferindo uma frase para
lá de “cabeluda”, sem se dar conta do que estava saindo da sua boca: “I will
go par là, mas eu volto Mama huhu cedo”.
Vejam o verdadeiro “samba do crioulo doido” que ela compôs: “I will go”
(“Eu vou”, em inglês); par là (“lá”, em francês); “mas eu volto cedo” (em
português mesmo); e, para finalizar com chave de ouro, soltava um “Mama
huhu” (“mais ou menos” em chinês).
“Não é possível!”, pensei. “Essa língua não existe!”.
E sentenciei: “Daqui para frente, cada um escolhe a língua que quiser, mas
a frase tem que começar e acabar no mesmo idioma, certo?”.
E, desde então, assim procedemos, abrindo uma exceção apenas para
conversar com o Max.
Razão mais do que explicada...
Por exemplo, em francês, a forma interrogativa enfática caracteriza-se, na
grande maioria das vezes – não por acaso, a língua francesa é considerada
“chatinha” pelo excesso de variantes – pela expressão “Est-ce que”.
O mesmo não ocorre em português, que não possui nenhum apoio
introdutório para perguntas diretas, ou seja, entra-se sem firulas na questão.
Max, por sua vez, por não dominar todas essas “pegadinhas” dos idiomas,
frequentemente nos pergunta:
“Tia Mé, est-ce que nós vamos à praia hoje?” “Est-ce que vamos almoçar
fora?” Est-ce que isto, est-ce que aquilo, sem se dar conta de que misturou
tudo.
Nós achamos a maior graça desse tipo de “baguncinha vernacular” comum
entre crianças que falam diversas línguas desde a mais tenra idade.
Outra expressão fofa é o “C‘est bizzarre!” (“É bizarro!”). Tudo é “bizzarre”
para Max. Trata-se de uma expressão muito utilizada em francês, cuja versão
em português também costuma ser empregada entre os mais jovens.
Mas não nos preocupamos, pois, como já referi, são apropriações típicas de
crianças de uma certa nacionalidade que crescem em outro país. Elas falam
uma língua fora de casa e outra dentro. O autismo pode amplificar esse fato.
Como saí do Brasil no século passado e minhas filhas seguiram uma
escolaridade internacional, elas sempre falaram português em casa e inglês ou
francês na escola, dependendo do país onde nos encontrávamos. Elas se
tornaram trilíngues com algumas falhas em português. E, preocupada com o
fato, fui conversar com o diretor da escola francesa do Rio de Janeiro, que
me disse prontamente:
“Não se preocupe. Essas crianças serão sempre ganhadoras”.
E, para Max, a conclusão é a mesma. Acredito ser de grande ajuda para ele
estar em contato com toda essa diversidade cultural. Obriga-o a sair de
dentro da “caixinha”.
Em uma das vindas de Genebra para o Rio de Janeiro, ainda no aeroporto
da Suíça, uma senhora, ao perceber que havia algo errado com a maneira de
falar de Max – ora ela o compreendia, ora não —, perguntou à queima-
roupa:
“Que língua ele fala?!”.
Ao que minha irmã, com muito humor, respondeu prontamente:
“Franguês”.
Uma mistura de francês com português. Sem comentários...
Episódio 14

Na rotina
E
m seu livro Eu nasci em um dia azul, o autor Daniel Tammet
menciona um fato curioso que, se não tivesse saído do relato de um
autista, provavelmente eu nunca compreenderia. Ele afirma: “O
problema é que eu não tenho a consciência de não ouvir. Muitas vezes ouço
as frases em fragmentos, meu cérebro as completa e as reúne novamente para
dar um sentido”.
Quanto ao isolamento, ele confidencia: “Eu me ressentia profundamente
desse isolamento e era muito penoso para mim. Para compensar essa falta de
amigos, eu os criava para me acompanhar nos meus passeios entre as árvores
durante os momentos de recreação”.
Em geral, os autistas gostam de falar sozinhos. E, para Tammet, o fato de
falar alto e consigo mesmo o acalma e o faz se concentrar na vida.
Nenhuma criança, ao contrário do que se tentou pregar nos anos 1940 e
1950, é autista porque os pais são frios e pouco atenciosos. E também não
existe nenhuma evidência de que a utilização de vacinas seja uma das causas
possíveis da doença.
Segundo o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados
Unidos, uma em cada 54 crianças em idade escolar é autista. Tão curioso
quanto assustador, não?
No livro Autisme – J’accuse!, o autor Hugo Horiot apresenta dados que
indicam uma maior prevalência do autismo na atualidade em comparação a
períodos anteriores: “Estudos sobre o autismo indicavam, há dez anos, um
caso em cada cem nascimentos. Há cinco anos, um entre 50 nascimentos.
Um estudo sul-coreano publicado há poucos anos evoca um nascimento
entre 38”.
Lembro-me de Max ainda bem pequeno colocando suas mãozinhas na
frente para evitar que nos aproximássemos dele. Como são rígidos,
organizados e meticulosos, os autistas acabam se tornando silenciosos e se
impõem uma obediência absoluta quanto a isso. Alguns diriam em tom de
brincadeira: “É o sonho de todos os pais!”. Afinal, dessa forma também não
fazem birra, criando entraves na hora de executar alguma tarefa. Não é
preciso negociar nada. Ou o filho autista se senta e come, ou ele não come e
pronto.
O caminho entre o sim e o não é curto. Uma fração de segundo: não tem
discussão!
Lembro-me de uma vez em que seus pais tinham um compromisso e eu
fiquei em casa sozinha cuidando do Max. Ele era pequeno e minha irmã
havia determinado o que comer e o que fazer, além de indicar o horário de
dormir.
“Oito horas na cama”, deixou bem claro.
“Ok”, respondemos afirmativamente.
Mais adiante, nos deixamos levar por uma brincadeira com carrinhos que
corriam em uma pista desenhada no tapete do seu quarto. Com isso,
flexibilizamos completamente todos os protocolos.
Já era tão difícil penetrar dentro do seu pequeno universo e estávamos tão
animados que, propositadamente, disfarcei não perceber o passar da hora.
De repente, Max me perguntou:
“Que horas são, tia Mé?”.
“Oito e meia”, respondi tranquilamente, sabendo que havia transgredido
uma ordem e não havia problema algum nisso.
Max, então, disparou esta máxima:
“Je n’ai pas le droit” (“Eu não tenho o direito”).
Além de dominar completamente os idiomas francês e português, Max
também estuda inglês, no qual se vira direitinho, e alemão, mas, quanto a
este último, confesso não ter competência para avaliar o seu desempenho.
Ainda sobre o horário de dormir não cumprido, insisti novamente com
Max, para defender meu ponto de vista e, ao mesmo tempo, instigá-lo:
“Hoje você está com a sua tia e sua mãe não está em casa. Ela nem vai
saber. Estamos nos divertindo e vamos dormir na hora que bem quisermos”.
Qual criança não adoraria transgredir as leis com o consentimento de um
adulto responsável pelo ato?
Pois não foi bem assim que os fatos se sucederam.
Inconformado com o horário tardio, Max arrumou todos os carrinhos,
fato já excepcional por si só, e soltou a máxima das máximas:
“Eu vou fazer cocô, escovar os dentes e me deitar”.
Seu intestino é como um relógio que nunca falha. Morta de inveja,
perguntei a fórmula desse sucesso, mas evidentemente ele não poderia
compreender a brincadeira.
E Max foi se preparar para dormir, sem que houvesse meios de convencê-
lo a desobedecer a uma ordem preestabelecida.
Seguir uma rotina ou um ritual o deixa seguro.
E eu continuei intrigada sem descobrir a hora infalível de ir para o trono...
Episódio 15

Sem imprevistos
M
ax detesta imprevistos e segue tudo o que foi previamente
definido. Por essa característica, é uma criança de fácil convívio.
Como já afirmei antes: o sonho de consumo de todos os pais.
Não existe briga nem berro e tampouco chororô. Não é preciso contar até
três como fazemos regularmente e de forma incessante com os pequenos.
Também não é necessário intimidar com a famosa ameaça: “Você vai ver
só...”. Algo que nunca sabemos bem como seria, caso as crianças decidissem
pagar para ver.
Sua obediência é de tal ordem que, certa vez, ao iniciar um curso de teatro
na escola, algo inusitado se desenrolou já no primeiro dia de aula. Como é
de praxe, o professor reuniu os alunos e perguntou a cada um deles por que
estavam lá, ou seja, qual a razão do seu interesse pelas artes dramáticas.
As demais crianças enfatizaram seu apreço pelo teatro, pela fantasia, assim
como o desejo de conhecer de perto o funcionamento de um espetáculo,
entre outras respostas corriqueiras e esperadas. Até que chegou a vez de Max
se manifestar. Ele, sem rodeios ou subterfúgios, cravou a seguinte resposta:
“Estou aqui porque a minha mãe mandou”.
Se a mãe mandou, estava mandado. Resposta inesperada, porém, sincera e
maravilhosa!
Isso me lembrou de um passeio realizado por nós em Petrópolis, que
acabou se transformando em aventura.
Estávamos todos reunidos na casa de campo de meus pais e a alegria pairava
no ar. A tarde caía linda em um daqueles dias radiantes de sol. Os passarinhos
cantavam como se agradecessem pelo ar puro, lembrando-nos a todo instante
de que a beleza existe. Nada parecia abalar aquele cenário paradisíaco, que
não dava absolutamente nenhuma pista da mudança brusca que se avizinhava.
Saímos, então, para dar a famosa Volta do O, caminho nos arredores de casa
que perfaz literalmente a “silhueta redonda” da referida letra. Isso, porque,
como já expliquei, o ponto de partida e o de chegada desse trajeto se unem
na encruzilhada ao lado da propriedade da família. Estávamos em cinco,
incluindo Max, sua mãe, Juliette, minha outra irmã e um sobrinho da mesma
idade do nosso herói.
O início do trajeto estava tão agradável que nos rendemos à doçura da
paisagem. Os cachorros ladravam anunciando a nossa passagem ao longo da
caminhada.
Quando estávamos chegando no extremo oposto do circuito ovalado, o
céu, como em um passe de mágica, escureceu e caiu um chuvão daqueles
que bem conhecemos em países tropicais. Chovia tanto e ficamos tão
molhados que mais dava a impressão de termos mergulhado nas Cataratas do
Iguaçu. Nem adiantava correr.
Na realidade, a experiência inusitada estava agradando a todos. Os olhinhos
do meu outro sobrinho brilhavam. Mas o temporal, por ser imprevisto, não
agradou em nada nosso herói mirim, que ficou literalmente desesperado:
“Por que vocês não olharam a meteorologia?”, questionou Max.
Nós nos entreolhamos, perplexos. Em primeiro lugar, não havia passado
pela cabeça de nenhum de nós consultar as previsões meteorológicas. Para o
“nosso senso comum”, bastava saber que em países tropicais as coisas são
assim mesmo.
Explicamos, ainda, que poderia ser divertido aproveitar o momento e
simplesmente brincar na chuva, como fazer bolinha de lama e pular nas
poças d’água sem se incomodar com o estrago. Afinal, era uma oportunidade
que não encontramos todos os dias.
Porém, mais uma vez, não teve jeito.
Meu outro sobrinho rapidamente entendeu que estava a salvo e apenas
passaria pelo contratempo de chegar em casa encharcado. Mas para o nosso
Max aquela situação mostrou-se incompreensível e muito penosa.
O passeio não aconteceu da forma como ele previra e nada do que
disséssemos ou fizéssemos poderia confortá-lo. Não havia argumento capaz
de convencê-lo. O que se passava na cabeça dele era inacessível para nós. A
lógica não é a mesma.
Observei seus movimentos rápidos e precisos. Próprios de alguém que está
em desespero.
Voltamos para casa, encharcados e um tanto desconcertados pelo incidente
inesperado que se transformou em frustração para o pequeno Max. Assim
segue embalada a sua existência. Nada a fazer.
Para os passeios seguintes, explicamos antecipadamente que poderia chover
e, por esse motivo, talvez, encontraríamos alguns imprevistos. Por estar
devidamente preparado, pisando novamente em terrenos que já conhecia,
acalmou sua ansiedade. Diante disso, sempre tentamos antecipar o máximo
de situações passíveis de ocorrência, mas é humanamente impossível prever
tudo.
E Max, invariavelmente, sofre a cada imprevisto.
Assim como todos nós, seres mortais neste mundão louco, as crianças
autistas diferem entre si quanto a habilidades, inteligência, centro de
interesses, preferências e obsessões.
E quanto mais mergulhamos nessa realidade repleta de nuances, mais nos
comovemos.
Alguns sofrem, outros não. Ou não parecem sofrer.
Acredito que Max se encaixe na categoria dos que não sofrem com tudo.
Algumas coisas o incomodam, mas o fato de ser diferente, não. Certa vez, eu
perguntei a ele:
“Você se incomoda com o olhar dos outros?”.
“Não”, respondeu prontamente. O que constitui a mais pura verdade,
porque Max é objetivo e sincero em suas respostas. Além do mais, nós
perceberíamos o seu desconforto, caso houvesse.
Mas, infelizmente, essa não é a realidade de todos os portadores de autismo.
Já ouvi relatos dramáticos, segundo os quais as crianças se debatem e se
tornam agressivas, pois não conseguem entender o mundo ao seu redor e,
menos ainda, comunicar-se com ele.
Episódio 16

O gato e o “flapping”
R
ecentemente, em minha incessante procura por respostas sobre o
autismo, deparei-me com o relato de diversos familiares sobre a
relação dos portadores do transtorno com seu gato de estimação.
Como?
Isso mesmo. Por seu caráter independente e sua capacidade de
estabelecerem conexão de forma reservada e equilibrada com os humanos, os
gatos estão sendo trabalhados, de forma bem-sucedida, para se adaptarem ao
convívio com crianças autistas.
De fato, os portadores de TEA realmente desenvolvem mecanismos de
comunicação com nossos queridos felinos. Estes têm se mostrado, assim,
aliados valiosos na luta contra a desordem neurológica que afeta um número
crescente de crianças no mundo. A inclusão de gatos no processo terapêutico
aumenta a confiança e desenvolve a capacidade de expressão dos autistas.
Justamente por serem extremamente pacatos, os gatos são capazes de
permanecer horas ao lado de um indivíduo nessa condição, sem perturbá-lo
ou solicitá-lo. Eles aceitam a afeição quando esta lhe é oferecida sem
demonstrar ansiedade e sabem apreciar o silêncio de forma natural e
respeitosa. E os autistas, por sua vez, conseguem desfrutar sua companhia
irrestritamente.
De certo modo, pode-se afirmar que os portadores de TEA se identificam
com os gatos justamente porque ambos são capazes de passar horas olhando
para a mesma cena.
“Para que uma coisa se torne interessante, basta olhá-la por um longo
tempo”, afirmava Flaubert.
Nas minhas leituras, esbarrei em mais um testemunho notável. Desta vez,
trata-se do livro Iris Grace, no qual a autora Anabela Carter-Johnson, desvela
o cotidiano de sua filha autista, incluindo sua comovente relação com um
gato de estimação, o que lhe proporcionou abrir-se para o mundo. A obra
tem início com a saga da mãe à procura de uma metodologia para conseguir
penetrar no universo de Iris Grace.
Assim como a maioria das crianças autistas, a menina vivia em uma espécie
de bolha ou de mundo imaginário: “Era como se o vínculo criado entre ela
e esse objeto fosse tão poderoso que formasse uma bolha impenetrável ao seu
redor”.
Observadora e muito atenta, Anabela confidencia que o prazer da filha de
“vigiar os objetos” era algo que a intrigava, a ponto de sentir “vontade de
tocá-los também para entender o que havia atraído sua atenção”.
O comportamento de Max sempre foi muito semelhante ao de Iris,
despertando igualmente o nosso desejo íntimo de adentrar nesse mundo tão
inacessível. Quanto ao “flapping”, expressão que designa a mania de correr
incessantemente movimentando braços e mãos, Anabela nos tranquiliza ao
mencionar no livro a conclusão obtida com base no depoimento de diversos
autistas. Segundo a autora, eles relataram que se trata de autoestimulação,
uma experiência agradável e necessária para regular o seu sistema de
emoções.
Alguns desses depoimentos incluem frases como:
“Isto me faz sentir bem, me relaxa”; “Faço sempre que me sinto dominado
por minhas emoções, tanto positivas quanto negativas. Isso ajuda a liberar a
tensão e reequilibra minha energia. E se eu estiver de bom humor, divirto-
me. A autoestimulação me deixa feliz”.
Iris Grace é uma menina prodígio capaz de produzir telas de pinturas
inimagináveis, sempre acompanhada por Thula, sua inseparável companheira
felina.
Anabela ainda assinala:
“Uma das características mais intrigantes é a capacidade de as pessoas com autismo
mergulharem em um assunto. Não é sistemático, mas geralmente o nível de
concentração e automotivação é notável. A paixão pode se transformar em obsessão,
e essa tendência lhes permite se destacar em determinadas áreas”.

Quando Max olhava hipnotizado o ventilador de teto rodar, nada mais


existia ao seu redor. Como se, de alguma forma, ele entrasse dentro do
motorzinho.
Max é apaixonado por carro e por tudo o que se relaciona a isso. Corrida
de Fórmula 1 não foge à regra. No momento da corrida, Max desaparece e
esquece da vida. E, aqui muito entre nós, embora essa característica seja mais
marcante entre os autistas, conheço muitos que se abstraem com futebol ou
com corridas automobilísticas no mesmo nível.
Nos dias de hoje, com o advento dos smartphones, quase toda a população
mundial se transformou nessa “categoria de gente”. O que os difere dos
portadores de autismo é que, quando querem, conseguem interagir com o
mundo à sua volta.
Episódio 17

O cavalo e o cachorro
E
ntre os animais, o cavalo também é bastante útil no
desenvolvimento do contato de crianças autistas com o mundo
externo. Não por acaso, Max fez equitação por alguns anos.
Era muito inspirador acompanhá-lo nos seus dias de aula. E, uma vez
concluída a lição, os alunos podiam desfrutar de um instrutivo ritual com os
animais antes de deixá-los descansar até a próxima atividade.
No livro L’enfant et le cheval de vent, o autor Rupert Isaacson narra o
despertar de um menino autista chamado Rowan para a vida, em
consequência da relação especial que construiu com os cavalos durante uma
viagem em companhia de seu pai à Mongólia. Rowan teve uma nítida
melhora de seu estado após essa experiência.
Para Isaacson, pai de Rowan e autor do livro, o autismo não é de forma
alguma um obstáculo para o conhecimento. Pelo contrário: “O autismo é
uma coleção de dons e competências, uma maneira de ser maravilhosa”. E
completa: “Eu levaria – como a maioria das pessoas neurotípicas – décadas
de prática espiritual rigorosa para alcançar essa falta de ego, caso isso seja
viável. Na maioria das pessoas com autismo, isso parece ser inato”.
Para ele, o ego é responsável por uma enormidade de problemas que
passamos, os ditos “normais”, na sociedade atual. Grande parte das pessoas
vive atrás de estereótipos de sucesso e de perfeição. Com isso, infligem a si
mesmas uma crítica interior cruel e constante.
Assim, fazer parte dessa massa dita “normal” não lhe parece de forma
alguma o Graal a ser atingido. E arremata:
“O autismo representa enormes desafios, especialmente nos primeiros anos
de vida, quando a criança não consegue falar e permanece trancada em seu
mundo por causa da hiperestimulação sensorial. Quando não consegue fazer
amigos e tem dificuldade para se tornar autônoma. Sim, temos que enfrentar
todos esses desafios. Mas, quanto mais eu participo desta aventura do
autismo, mais conheço autistas adultos economicamente ativos, que possuem
uma vida amorosa, uma carreira e colocam seus dons a serviço do bem
comum”.
Avançando, porém ainda dentro do tema dos animais, vale mencionar aqui
o mais estimado de todos os bichinhos de estimação: o cachorro. Eles são
providenciais para tudo: crianças com e sem problemas, adultos solitários ou
não. Para todo tipo de amizade. Para o que der e vier. Aquecem a vida e a
alma.
Dizem que os cachorros se parecem com os donos, e eu assino embaixo
dessa afirmativa. Lembro-me de uma cena do filme A guerra dos dálmatas, da
Disney, em que o cachorro magrinho vai passear com sua dona igualmente
magrinha, enquanto o gordinho e o mais classudo também têm amas com
silhuetas similares. No caso da minha família, que é muito divertida e para lá
de confusa, costumo dizer que todos os nossos cães sempre foram muito
bagunceiros. E olha que sempre investimos pesado em adestramento para ver
se aprendem a se comportar, mesmo que sejam mínimos os ganhos em
disciplina.
Dinheiro jogado fora e diversão garantida!
O nosso primeiro cachorro, o muito querido Billy, que cresceu junto com
a criançada, era impossível. Pulava invariavelmente em todos que chegassem,
não se importando com idade, altura, credo ou cor da pele. Ele era um
golden retriever enorme, e, com medo de que um dia machucasse alguém,
também decidimos adestrá-lo.
As aulas começaram e Billy, muito aplicado, foi aprendendo a obedecer aos
comandos de sentar, levantar, deitar-se, vir para cá, ir para lá, tudo! Mas a tal
disciplina de não pular nas pessoas não teve jeito. Nunca aprendeu. E,
invariavelmente, pulava em todos que se aproximassem.
Em dias chuvosos, era uma tragédia. Todos os que por ele passavam,
sistematicamente, eram carimbados com suas lindas patas. Meu pai chegou a
pensar em deixar uma capa de chuva no portão da propriedade para que,
nesses dias, as pessoas pudessem se proteger das “patas amigas”.
Meus amigos do trabalho já sabiam quando eu estava vindo da casa de
Petrópolis diretamente para a empresa.
“Você está vindo de Petrópolis, não é verdade?”, perguntavam.
“Estou”, respondia, curiosa, para saber como eles tinham descoberto.
“Como é que você adivinhou?”, questionava aleatoriamente.
“Você está com duas patas de lama no meio das costas”, era a resposta
invariável.
E a minha família é exatamente assim: nonsense e muito divertida!
Sem trocadilhos, acredito que foi essa família “bagunçada” que ajudou e
ainda ajuda Max a sair da “caixinha”.
Episódio 18

Oportunidades de trabalho
D
entro da minha caverna de Ali Babá de leituras, deparei-me com a
informação de que o Disney’s Hollywood Studios estava à procura
de autistas para desenvolver filmes de animação. A estratégia
reconhecia a qualidade da minúcia como algo potencializado entre os
portadores de TEA – Transtorno do Espectro Autista.
De fato, somente um autista seria capaz de permanecer exaustivamente por
horas, dias, semanas e até meses desenvolvendo uma única sequência de
imagens. Eles são capazes de alcançar um tal nível de perfeccionismo que
raramente é atingido por pessoas comuns.
Hugo Horiot, autor da obra Autisme: j’accuse!, afirma que a Microsoft lança
todos os anos campanhas de seleção exclusivamente reservadas aos autistas.
“Certos candidatos chegam a falsificar seus currículos e se apresentam como
tal”, revela Horiot.
E existem empresas que já estão se especializando nesse tipo de
recrutamento.
De acordo com Horiot: “Alguns governos se interessam pela vantagem
potencial que o gênio autista pode representar. Em Israel, país onde as
crianças autistas são escolarizadas há muito tempo, existem universidades de
excelência onde essa inteligência é incentivada e cultivada”.
Contrariamente à raça humana, que interpreta os fatos eminentemente
com base na aparência daquilo que vê, os autistas conseguem observar
detalhes ínfimos, mas não insignificantes, que passam despercebidos pela
imensa maioria das pessoas. Dotados de uma capacidade única para assimilar
grande quantidade de dados, eles são muito úteis a empresas e instituições em
geral, além de se mostrarem ótimos companheiros no dia a dia, pois são
confiáveis, honestos, precisos e muito atentos aos detalhes.
Lembro-me de que, quando pequeno, Max gostava de tudo o que girava.
Nos parques de diversão, em vez de se interessar pelos carrinhos coloridos e
divertidos, ele se atinha às engrenagens das rodas. Era capaz de ficar horas
observando o movimento dos ventiladores no teto da casa de meus pais no
Rio de Janeiro, por exemplo.
Cá com meus botões, sempre fiquei intrigada e me perguntava:
“O que será que ele procura ou encontra?”.
A sensação era a de que ele contempla e inspeciona com deleite, dando-me
vontade de entender também o que seria tão interessante assim para prendê-
lo horas a fio a olhar a mesma imagem em movimento.
O sentido do tato também se mostrava muito desenvolvido em Max.
Assim, sua maneira de mexer nos objetos me intrigava. Manipulava as peças
com suas mãozinhas, procurando texturas e formas, como se elas se
comunicassem de alguma maneira com o pequeno prodígio.
Evidentemente e, dentro dessa linha de raciocínio, os autistas preferem a
comunicação via internet, isolados ou contando com a mediação da
engrenagem do computador. Dessa forma, não precisam interagir
diretamente com o interlocutor e possuem o tempo necessário para absorção
e “digestão” da mensagem.
Conforme já citei, os casos de autismo vêm crescendo assustadoramente no
mundo sem causa conhecida. Isso faz com que os Estados Unidos já
considerem essa disfunção uma espécie de epidemia. Existem muitos estudos
em andamento e, sem me ater a dados extremamente técnicos, visto que não
sou especialista da área, a verdade é que há um aumento significativo na
porcentagem de crianças portadoras de TEA. Não é à toa que a data 2 de
abril foi estabelecida mundialmente como Dia Mundial do Autismo, quando
ocorrem diversas manifestações públicas de movimentos vinculados ao
fenômeno.
As pesquisas ainda não chegaram à causa precisa dessa progressão,
entretanto, vale ressalvar que hoje existem muito mais diagnósticos do que
antigamente, gerando um aumento sensível na contabilização de casos. E,
para complicar ainda mais a composição de um retrato fidedigno da realidade
dos números, muitas crianças têm sido diagnosticadas como autistas sem
verdadeiramente serem portadoras dessa síndrome. As famílias acabam
buscando o diagnóstico para poderem desfrutar de ajudas governamentais, o
que não ocorre com outras disfunções.
Outro dado curioso é que, segundo as estatísticas, existe uma incidência
maior e com grau superior em meninos, mas a explicação para esse
fenômeno ainda não foi determinada.
Episódio 19

Palavra de especialista — parte 1


P
ara começar este episódio, tomo emprestada uma frase proferida
com maestria pela jornalista e apresentadora de televisão francesa
Claire Chazal, no livro Puisque tout passe: “É com a lembrança
desta nossa conversa matinal que me acomodei em frente à janela para ler e
escrever. O tempo está bom, o sol inunda a sala. Eu amo esse espaço que tive
a chance de poder conceber do meu jeito”.
De fato, a temperatura estava excepcionalmente suave naquela manhã,
emoldurada pelo céu límpido de um azul inesquecível. Respirei
profundamente, deixando-me inundar pelas palavras que saíam do papel. E
foi com esse estado de espírito ameno que voltei a redigir sobre Max e suas
aventuras com base no material coletado de entrevista feita dias antes com
Lydia, psicóloga que o acompanhou por mais de dez anos, em Genebra.
Fazia calor e o azul do céu resplandecia sobre nossas cabeças. Estávamos no
meio do verão europeu, que, neste ano de 2020, em plena pandemia global,
mostrou-se para lá de atípico em razão do excesso de calor. As fronteiras
tinham acabado de ser abertas e aproveitei a “frestinha” para ir de Metz, na
França, até Genebra, na Suíça, para conversar com Lydia.
A sala em que nos acomodamos no charmoso apartamento de Juliette e
João Roberto, pais de Max, estava iluminada e meticulosamente bem
arrumada. Algumas pilhas de papel descansavam em cima da mesa da sala de
jantar à nossa espera, assim como os protocolos de segurança para evitar um
possível contágio pelo Novo Coronavírus.
Obedecendo à regra básica de distanciamento social, alojamo-nos cada qual
em um canto do recinto. Juliette e Lydia se acomodaram uma em cada sofá,
enquanto eu me instalei na poltrona de frente para elas.
Mostrando o mesmo entusiasmo da época em que cuidava de Max, Lydia
se dispôs a nos explicar um pouco desse universo tão singular quanto
desconhecido do autismo. Ela tem estatura pequena, é magra, com cabelos
começando a pratear e carrega consigo um olhar humanizado. De
temperamento calmo, gesticula de maneira elegante e sua expressão receptiva
nos deixa imediatamente à vontade.
Lydia concedeu-me generosamente uma tarde inteira de sua agenda lotada,
na qual empenhou-se em transmitir, com linguagem simplificada e inteligível
para leigos, algumas noções do conhecimento empregado no tratamento de
portadores do chamado TEA – Transtorno do Espectro Autista.
Evidentemente, as explicações foram dadas da forma mais resumida possível
em relação ao extenso trabalho realizado com meu sobrinho Max, porém
com conteúdo suficiente para eu poder explicá-lo aos meus leitores.
Para começar, Lydia fez uma contextualização muito importante,
explicando que a cada seis anos, aproximadamente, equipes técnicas
publicam um manual de diagnóstico – assim como existe a referência
mundial para profissionais da área de saúde mental —, especificamente sobre
autismo e suas derivações.
No passado, essa desordem era classificada por meio de nomenclaturas
diversas. Havia, por exemplo, o grupo tradicional de autistas e os de
síndrome de Asperger, igualmente marcada por limitações no campo da
interação social e considerados como uma forma de autismo menos severa.
Atualmente, a terminologia Trouble du Spectre Autistique (TSA), em
francês; Autism Spectrum Disorder (ASD), em inglês; Transtorno do
Espectro Autista (TEA), em português; constitui-se em uma unificação
utilizada para se referir aos mais diversos quadros de evolução dessa
desordem. Por exemplo: tanto crianças diagnosticadas e dotadas de
excelentes habilidades cognitivas quanto aquelas com déficits maiores e até as
“não verbais”, ou seja, com extrema dificuldade intelectual, todos esses casos
se encontram dentro do quadro do espectro autista.
Sendo mais precisa, na verdade, embora todos os “ovos tenham sido
colocados no mesmo balaio”, existe uma diferenciação quanto ao nível de
comprometimento das funções cerebrais, por meio da qual os portadores de
TEA são diagnosticados com quadros severos, médios ou leves.
Max, meu sobrinho querido, não era “um Asperger”, porque, de acordo
com a metodologia utilizada na época em que o seu caso começou a ser
estudado, para receber esse diagnóstico, a criança não podia apresentar
problemas de linguagem. Isso significa que Max não possuía uma forma mais
branda da patologia.
De fato, ele começou a falar relativamente tarde e precisou de mais tempo
para assimilar vocabulário e linguagem semelhantes à de crianças da sua
idade. Para se ter ideia, no início do tratamento, Lydia lembra-se de que Max
não conseguia nem apontar para o objeto desejado.
Meu sobrinho também apresentava uma particularidade no que diz respeito
à socialização ou assimilação de hábitos de convívio social. Apresentava uma
importante dificuldade nessa área, contudo, sem nenhum tipo de atraso
intelectual. Nosso Max evoluiu tão bem que, quando Lydia concluiu suas
atividades, ela já o considerava como portador de TEA em grau leve.
O sucesso dessa empreitada seguramente ocorreu pela conjunção de alguns
fatores bastante favoráveis, como a excelente resposta do distúrbio ao
tratamento, a capacidade de o paciente assimilar informações, a competência
da profissional responsável, além do meio ambiente apropriado. Em resumo,
isso significa que tanto o perfil da criança atendida quanto a qualidade da
intervenção realizada são peças-chave na resolução desse quebra-cabeça.
Lydia prefere não “taxar” seus jovens pacientes dentro de uma categoria
específica. Para ela, cada um tem suas peculiaridades, incluindo história de
vida e perfil familiar. E são justamente os aspectos que irão determinar a
evolução de cada criança.
Cada paciente, portanto, segue o seu próprio trajeto. O que funciona para
um não necessariamente funciona para o outro. E é aí que está o “X” da
questão. Cada um segue o seu caminho e tem o seu tempo para atingir os
objetivos traçados. A dinâmica não é a mesma para todos os portadores de
TEA, porém o tratamento é fundamental em quaisquer cenários.
Na visão da especialista, Max possuía, e ainda possui, uma competência
fundamental para chegar aonde chegou: a vontade de acertar e o orgulho de
fazer tudo corretamente. Além de ser uma característica positiva de
integração social e de percepção do mundo exterior, também é o propulsor
do seu desenvolvimento.
A opinião do outro conta, e muito, para Max. E isso é altamente positivo!
O trabalho dos profissionais desta área consiste exatamente em descobrir as
competências de cada paciente, buscando uma maneira de colocá-las em
evidência.
Episódio 20

Palavra de especialista — parte 2


L
ydia, psicóloga de Max, relembra com entusiasmo de um certo dia
em que, enquanto brincavam com alguns banquinhos, ela percebeu,
da parte de meu sobrinho amado, aquele movimento inconfundível
que chamamos divertidamente de “rabo de olho”, ou seja, de forma
absolutamente inédita, naquele dia memorável, Max surpreendeu sua
terapeuta ao dar uma espiadela pelo canto dos olhos para se assegurar de que
ela havia marcado sua conquista.
Sinal de integração social com sucesso!
Não por acaso, foi Lydia quem trouxe Max para dentro de alguns
ambientes típicos da vida social, como andar de ônibus, ir ao supermercado e
à farmácia, deparar-se com animais e com a presença de estranhos ao redor
etc. Coisas tão simples e corriqueiras para todos nós, mas nada evidentes para
pessoas que sofrem desse transtorno.
Hoje, Max desempenha tudo isso com autonomia total. Vai para a escola
sozinho, compra seus produtos prediletos e é capaz de abordar pessoas e
interagir com elas para solicitar informações, por exemplo, em qualquer tipo
de ambiente. Não tem mais medo de enfrentar multidões. Prova disso é que
adora ir sozinho ao Salão do Automóvel, de Genebra, para apreciar de perto
os veículos mais luxuosos e também os modelos esportivos lançados todos os
anos.
Max se interessa por esportes em geral, mas automobilismo é, sem dúvida,
a sua grande paixão! Quem sabe um dia isso se transforme em profissão? O
futuro dirá...
Uma vez, perguntei-lhe “à queima queima-roupa” o que achava do meu
carro e ele respondeu prontamente:
“Seu carro é muito simples. Não me interesso por esse tipo de veículo”.
Muito francamente, eu me perguntei:
“Pode uma coisa dessas? Achou o meu carro insignificante!”.
Muito desaforo dessa juventude (risos)...
Deixando as brincadeiras de lado e, voltando ao que interessa, Lydia
também é muito cautelosa no tratamento que destina aos pais dos pacientes
autistas, no sentido de mostrar-lhes que não são culpados por essa condição,
e, principalmente, que existe esperança. Nesse tipo de situação, geralmente,
os pais só enxergam um futuro negativo, mas a realidade pode ser bem outra.
Há luz no fim do túnel!
Lydia citou, como exemplo, a dificuldade que Max tinha para comer, algo
bastante comum entre os portadores de TEA. Isso, porque a resistência ao
novo é uma das características do autismo.
Ele não comia quase nada: apenas nuggets com macarrão e pronto. Novos
sabores, odores e texturas, nada passava pelo crivo do seu paladar
monocromático.
As pessoas podem dizer: “Mas muitas crianças são assim. Detestam o
novo”.
Verdade, porém, no caso de Max, havia um quadro patológico. Percebia-se
claramente que não se tratava apenas de um capricho infantil. Ele ficava
desesperado, chegando a ter crises de vômito. Nas viagens longas de avião,
Juliette, sua mãe, transportava um farnel a tiracolo que chegava
invariavelmente intacto ao seu destino.
Algumas crianças ainda possuem problemas digestivos, o que, felizmente,
não acometeram nosso querido Max. Entre os sintomas mais conhecidos
dessa desordem, estão os já citados interesses restritos, dificuldade de
comunicação e de relacionamento, assim como hipersensibilidade e/ou
hipossensibilidade a texturas e cheiros.
O fato de serem demasiadamente sensíveis ou não, duas situações extremas
que indicam a mesma disfunção, nos dá uma boa noção da complexidade do
autismo. Cada criança portadora de TEA apresenta seu próprio conjunto de
sintomas, os quais irão repercutir diretamente no seu comportamento.
Não existe, portanto, somente um caminho a seguir e o tratamento só
poderá ser ministrado “à la carte” ou sob medida.
Quando a máquina de lavar roupa da mãe de Max entrava no ciclo de
centrifugação, ele imediatamente parava qualquer atividade que estivesse
fazendo para escutar aquele barulho típico que emanava do eletrodoméstico.
Nunca soubemos se tal ruído lhe era agradável aos ouvidos, ou,
contrariamente, se o incomodava. Mas ele precisava parar para ouvir.
O “flapping”, movimento de correr sacudindo as mãos na frente, na altura
dos ombros, também faz parte do quebra-cabeça formado pelas
características do distúrbio. Todos os dias, desde pequeno, Max precisa correr
ativamente sacudindo as mãos incessantemente.
Outro dia, perguntei a ele por que fazia isso e logo ele me veio com a
resposta mais simples do mundo:
“Para extravasar, tia Mé”.
Muitas vezes, teorizamos demais ou elaboramos mil e uma fórmulas na
tentativa de compreender o porquê de certas atitudes, quando, na prática, as
respostas estão ao alcance de um olhar mais objetivo e direto. Em outras
palavras, fazemos mil conjecturas para entendermos o básico e natural.
Quem é que nunca teve vontade de colocar para fora os sentimentos dessa
forma?
Provavelmente, muitos de nós. Só não o fazemos porque estamos a mercê
de um tipo de censura, que os psicanalistas costumam chamar de superego.
Um filtro que nos inibe e impede de agirmos em dissonância com as
convenções sociais.
Crianças autistas não possuem esse filtro. E não entendem por que achamos
estranho. Para elas, é uma vontade como outra qualquer.
Mas, afinal, por que algumas coisas são normais e outras, não?
Do ponto de vista dos valores da sociedade, existe uma trincheira que
separa o que é dito “normal” do que não é, enquanto os autistas transitam
livremente nesse limiar...
Segundo Lydia, “normalmente” as pessoas não agem realizando
movimentos do tipo “flapping”. Mas, no caso de alguém que não se
incomoda com a opinião alheia, nada impede que realize. De forma geral,
todos precisamos encontrar alguma maneira de colocar nossos demônios para
fora.
Quanto às mensagens subliminares ou indiretas, essas realmente são
inacessíveis para os autistas. Assim, se perguntarmos a um portador de TEA:
“Você tem horas?”. Invariavelmente, ele irá responder: “Tenho”. Nada mais!
E terá a certeza de que respondeu impecavelmente à questão.
Para tornar essa desordem ainda mais complexa, cada criança pode
apresentar, para um mesmo gesto, diferentes funções. Para alguns, coçar as
orelhas incessantemente indica estresse, enquanto, para outros, o mesmo
movimento pode simplesmente exprimir sensação de tédio.
Parafraseando Drummond: “E agora, José?”.
Compete, pois, aos profissionais da área, como Lydia, a árdua tarefa de
decifrar cada uma dessas características separadamente, adaptando-as dentro
do contexto de cada um para, enfim, poder ajudá-los a agir de maneira
funcional dentro de diferentes situações com códigos sociais diversos.
Para completar, a identificação ou não de uma dificuldade dependerá do
contexto em si: “Se eu possuo uma dificuldade, mas não me deparo com ela
no dia a dia, não será um problema para mim”, explica Lydia.
Admito que não se trata de tarefa para principiantes...
Lydia é categórica ao afirmar que, com a ajuda necessária, estes seres
queridos podem ir muito longe. O autismo por si só não é uma doença e
sim uma forma de comportamento diferente: “Enquanto algumas conexões
funcionam em demasia, outras não funcionam como deveriam”, conclui.
Episódio 21

Descoberta tardia
E
xistem casos de autistas que atravessam muito bem o período escolar
sem serem diagnosticados como tal. Vão receber o diagnóstico
tardiamente, quando adultos.
Isso ocorre porque as competências necessárias ao desenvolvimento
intelectual e à interação social estão preservadas, porém apresentam algumas
dificuldades ou singularidades que só irão compreender mais tarde.
Esse é o caso de Luc Moyères, que descreve, em seu livro Autiste... sur le
tard, como se descobriu autista após os 60 anos. Ele sempre se sentiu
diferente dos outros, e, finalmente, compreendeu, ainda que tardiamente, o
porquê de muitas questões: “Minha peculiaridade tem um nome. E, por
muito tempo, ela também tinha um sintoma invisível”.
O autor ainda orienta: “Autista, talvez você seja, mas, finalmente, não faça
disso uma doença”.
Outro autor e biógrafo francês, Jean-Philippe Piat, após ter descoberto seu
autismo tardiamente, escreveu um guia de sobrevivência para pessoas autistas
muito detalhado que se intitula Guide de survie de la personne autiste.
Já no Brasil, a colorista de fotos históricas, Marina Amaral, declarou em
uma entrevista à revista Veja que recebeu o diagnóstico aos 26 anos: “Cresci
me sentindo diferente. Precisei tomar diversos remédios que pioravam
minhas questões emocionais. [...] esperei mais de vinte anos para que o
diagnóstico correto chegasse: autismo”.
“Foi como se uma venda tivesse sido arrancada de meus olhos e tudo fez
sentido instantaneamente. Era tão óbvio, e, ainda assim, ninguém foi capaz
de juntar os pontos. Desde então, venho passando por uma transformação
intensa e positiva. E preciso desfazer preconceitos e generalizações, e
entender que cada autista é único”.
O escritor René-Maurice Dereumaux também representa esse grupo de
pessoas que passam boa parte da vida apresentando sintomas da desordem, no
caso dele trata-se da Síndrome síndrome de Asperger, mas somente se
deparam com o diagnóstico na idade adulta.
Dereumaux, que se formou em uma das maiores universidades da França e
possui vasto currículo acadêmico, foi diagnosticado como portador de TEA
– Transtorno do Espectro Autista apenas aos 57 anos, em 2016. Conviveu
com essa limitação durante a maior parte da vida sem qualquer feedback,
embora tivesse sempre a impressão de ser diferente das outras pessoas.
Em 2018, ele escreveu o livro Dans la tete d’un asperger (Dentro da cabeça de
um asperger), em que descreve todo o seu percurso: “Nasci Asperger.
Morrerei Asperger. Esta é a minha vida”, autodefine-se Dereumaux.
Essas histórias são opostas à do meu sobrinho. Max está alcançando
autonomia graças a um diagnóstico feito já na sua primeira infância. Por
outro lado, certamente, os autores citados acima possuíam e possuem uma
forma bem mais branda do transtorno.
Quando perguntei a Max como ele se sentia sabendo-se portador dessa
disfunção, ele respondeu:
“Eu não me sinto diferente”.
Disse tudo!
Ele está bem consigo mesmo e encontrou o seu lugar no mundo. E isso é
tudo o que sempre desejamos.
A vida é interessante, não é mesmo? Existe uma grande quantidade de
pessoas com acúmulos de atributos e, no entanto, manifestam profusões de
desajustes. Max, que teria todos os motivos para tê-los, leva uma vida suave e
plena.
Outro dia, li uma daquelas mil mensagens que recebemos pelas redes
sociais, sem termos como comprovar sua veracidade, mas achei-a
interessante. A mensagem dizia: “A vida é 10% o que acontece comigo e
90% a maneira como reajo a isso”.
Não acredito que Max tenha lido essa postagem, mas a frase parece ter sido
escrita para ele.
Episódio 22

Folclore com mel


P
aralelo aos cuidados com o crescimento, a educação e a adaptação
de Max ao nosso mundo, Juliette, sua mãe, também atua como
economista. Assim, divide o seu tempo entre os afazeres
domésticos e o trabalho em uma empresa da área financeira.
Para ajudar em casa, contou com a valiosa ajuda da assistente Yolanda, que
acompanhava Max enquanto Juliette desempenhava suas funções no trabalho.
Farmacêutica e escritora, Yolanda é pernambucana natural de Recife e,
sempre com muito carinho, mantinha Max ocupado na ausência de seus pais.
Dona de uma voz grave que se projeta no ambiente, Yolanda tem estatura
média, mas imponente, testa ampla com cabelos castanhos meticulosamente
bem penteados, acompanhada pelo rosto largo ao qual os óculos conferem
um ar de professora. Para ela, sonhos não têm limites, e, seguindo o ditado
popular, Yolanda aprendeu a transformar limões em refrescantes limonadas.
Com andar firme, sempre animada e disposta, Yolanda introduziu Max ao
universo do folclore brasileiro.
Muito diversificado e contando com raízes nas culturas portuguesa,
africana, indígena, judaica, holandesa, entre outras, o nosso folclore é o
retrato de um Brasil moldado por um amálgama de influências variadas.
Com Yolanda, Max aprendeu a cantar “Ciranda, cirandinha”; “Atirei o pau
no gato”; “Capelinha de melão”; “Escravos de Jô”; “Peixe vivo”; “A galinha
do vizinho”; “A barata diz que tem”; “Meu limão, meu limoeiro”; e por aí
afora.
Yolanda seguia à risca a máxima de Miguel de Cervantes com seu
conhecido personagem Dom Quixote, que dizia: “Quem canta seus males
espanta”.
Parece óbvio para nós, brasileiros, mas não é para uma criança nascida em
outro país, com outra cultura, que nunca morou no Brasil, a possibilidade de
conhecer e memorizar as músicas do nosso folclore.
Max também aprendeu a brincar de esconde-esconde, cabra-cega,
figurinhas, forca, estilingue, bolinha de gude e pião, este último seu
preferido. Fascinado pelo pião, Max era capaz de permanecer horas parado
observando o rodar da engenhoca.
Yolanda contava, ainda, histórias do Saci-pererê, do Bumba Meu Boi ou
Boi-Bumbá, da Mula sem Cabeça e de outros personagens típicos do Recife
que nem mesmo nós temos conhecimento. Maracatu, baião, samba de roda,
frevo e forró, provavelmente, também faziam parte do seu repertório.
Ela narrava histórias, lendas e anedotas, que eu simbolicamente chamo de
“curiosidades da Candinha”. Não por acaso, os mais antigos registros de
Carnaval surgiram justamente em Pernambuco. Mesmo a capoeira,
tradicionalmente associada à cultura baiana, na verdade surgiu no final do
século XVI, no Quilombo dos Palmares, na então Capitania de Pernambuco,
espalhando-se mais tarde para todo o território nacional, e, sobretudo, na
Bahia.
Conforme atesta o ditado popular: “quem sai aos seus não degenera”,
então não posso deixar de mencionar que a aparição da cachaça também tem
sua provável origem nos engenhos de açúcar de Pernambuco. Igualmente,
vem de lá o surgimento do primeiro poema da literatura brasileira,
Prosopopeia, de Bento Teixeira, inspirado em Camões. O poema conta, em
estilo épico, as façanhas de uma família local e foi publicado em 1601.
Essas e outras informações preciosas foram passadas a Max, assim como
boas pinceladas sobre culinária e muitas outras peculiaridades do Nordeste
brasileiro, tão rico em saberes diversos.
Para além de todos esses atributos, para nós, Yolanda foi, acima de tudo,
um anjo enviado para nos ajudar a cuidar de Max. E ela o via como um ser
iluminado que alegrava e elevava a sua vida a uma dimensão mais bela.
O termo “seres iluminados” vem de uma tradução da expressão chinesa
“Xian Ren”, composta, como se vê, por dois ideogramas: “Ren”, que
significa “pessoa”, e “Xian”, cujo significado é “montanha”. A combinação
deles indica um ser grandioso ou iluminado. Também é possível traduzir essa
expressão com a palavra “imortal”, verdadeiro ápice para os taoístas.
Personagem Personagem-chave da cultura chinesa, Lao Tsé ou Lao Zi
(velho mestre) é, para os taoístas, a representação encarnada desse ser
iluminado. Filósofo e fundador do Taoísmo, seus textos foram, e ainda são,
amplamente difundidos e estudados por seus discípulos.
Voltando a Max, ele permanecia em êxtase quando Yolanda o ensinava a
lidar com as horas. Estas sempre foram tema central na rotina dele. Max
baliza seu dia acompanhando as horas com precisão. Cheguei a relatar que já
houve uma ocasião em que saiu da mesa do almoço às 15h30 e retornou às
16h, obviamente sem fome, porém, no seu entender, já era hora de servir o
lanche previsto para o período vespertino.
Entre as inúmeras atribuições, Yolanda levava Max para fazer natação não
muito longe de casa. Ele nunca gostou dessa atividade, mas a executava
religiosamente, pois era muito obediente e cumpria o que havia sido
determinado pelos pais, embora a piscina “não fosse a sua praia”.
Sem exageros, Max nunca desobedece a uma ordem. Vai certamente entrar
no livro dos recordes. Nunca vi nada igual. Até conhecê-lo, nem sabia que
isso pudesse existir. Ele definitivamente não parece ser deste mundo. O
máximo que conseguimos dele quando não está satisfeito é uma suave
reclamada, quase imperceptível.
Episódio 23

Uma relação tão delicada


O título deste episódio faz alusão à peça de teatro escrita pela dramaturga
francesa Loleh Bellon. O espetáculo foi adaptado e encenado pela primeira
vez no Brasil em 1989, protagonizado pelas atrizes Irene Ravache e Regina
Braga.
A obra mergulha de forma envolvente e emocionante naquilo que há de
mais frágil e singular na relação entre uma mãe divorciada e sua filha. No
caso relatado aqui, não se trata de mãe e filha, e sim de avó e neto.
Certa vez, li que devemos ouvir as pessoas ao redor e utilizar a força delas
como inspiração para escrevermos a nossa história. E é exatamente o que
pretendo fazer utilizando a força de uma mulher que foi, e ainda é, muito
próxima de Max, em cujo mundinho aparentemente impenetrável ela
conseguiu adentrar com muito amor, carinho e sabedoria.
Peço licença para apresentar Josephine, avó paterna de Max. Portanto,
trata-se da mãe de João Roberto, o pai do nosso herói, e, consequentemente,
sogra de Juliette, a mãe de Max. Uma senhora distinta, educada, culta,
elegante e alegre.
Extremamente vaidosa, Josephine, por vezes, pode passar a imagem de
alguém que flana na superfície sem entrar na essência das questões. Ledo
engano!
Com seus cabelos impecavelmente arrumados e todo o seu vestuário
composto de acessórios pertencentes ao último “grito da moda”, ela foi uma
das poucas pessoas a acessar os “segredos da caixa de Pandora” e manteve
junto de si a “chave do cofrinho”. Ao longo de muito tempo, foi das poucas
pessoas a conseguirem interagir com o neto desde a sua mais tenra idade.
Faço questão de lembrar aqui do ditado antigo que diz: “Aquele que
encontrar uma mulher forte, encontrará uma preciosidade mais valiosa do
que toda a riqueza espalhada nos cantos do mundo”. Assim é Josephine.
Sou incapaz de elencar as armas que ela empregou para atingir essa
conquista. Mas, ao constatar que sua tarefa foi plenamente vitoriosa, sinto-
me no dever de mencionar algumas delas.
Inacreditavelmente, Josephine não se incomodava de jogar futebol de salto
alto. Assim, vira e mexe cruzávamos com ela e Max jogando bola. Eles
imaginavam um gol em cada porta do corredor comprido da casa de minha
mãe. A porta do quarto que já fora o lugar de repouso de meu irmão era um
gol, enquanto o outro se situava do lado oposto, na porta que dava para o
salão de visitas. Só vendo para crer tamanha doçura! Ninguém podia
imaginar ver cenas como essas, mas elas existiram e ficaram bem guardadas
na minha memória.
Em Genebra, onde Max possuía toda sua coleção de carrinhos, era comum
nos depararmos com Josephine sentada no chão, brincando em cima de um
tapete com desenhos de ruas de uma cidade qualquer. E o melhor: ela se
divertia com isso!
Correr atrás do velocípede de Max também era uma de suas façanhas,
provavelmente nada fácil, mas Josephine se empenhava em estar perto do
neto. Com todo esse esforço, acredito que ela nem precisasse frequentar sua
aula de balé como de costume. O exercício já estava praticado.
Ela ilustra perfeitamente a citação de Simone de Beauvoir: “Eu aprendi
que, para entrar no segredo das coisas, você deve primeiro se entregar a elas”.
Não é necessário enumerar cada brincadeira que ela inventava para atrair o
neto. A mensagem importante aqui é a de que não se trata de “varinha de
condão”, “pozinho de pirlimpimpim” ou qualquer expediente de magia. O
autismo apresenta, sim, algumas brechas pelas quais se vislumbra uma
possibilidade de interação com as crianças afetadas.
Basta estarmos munidos de disposição e utilizarmos os meios necessários
para atingir esse fim.
Como dizia Napoleão: “É a imaginação que governa os homens”.
Por outro lado, devemos reconhecer, há montanhas incontornáveis quando
se trata de algumas limitações típicas do autismo. Uma delas é a aversão a
qualquer tipo de aglomeração. E, para compensar, Max foi agraciado com
um imbatível instinto da imaginação para se livrar dessas “ciladas” da vida.
Certa vez, ele estava no Jockey Clube do Rio de Janeiro acompanhado de
uma prima e de uma de suas tias, irmã de seu pai. Era uma daquelas noites
em que o mundo inteiro parece sorrir para você. A lua, em sua plenitude,
iluminava tudo por onde passava, disseminando aquela atmosfera prateada,
que se harmonizava com perfeição às luzes da cidade em ebulição noturna.
As estrelas, por sua vez, brilhavam no céu e a tranquilidade pairava no ar.
Momento ideal para um jantar no clube com a família.
E foi o que fizeram, assim como metade dos sócios do clube, os quais,
provavelmente, por motivos similares, tiveram a mesma ideia:
“Vamos aproveitar esta noite agradável!”.
Brasileiro é latino com todos os significados que este adjetivo sugere:
animado, afetuoso e... barulhento.
Com os perfis “animado e afetuoso”, Max até já se acostumou. Nem liga
mais. Mas quanto ao lado barulhento, isso realmente o tira do sério.
E, por ser um dia de verão, a coisa estava animada no clube. Após o jantar,
não mais do que de repente, iniciou-se a famosa happy hour do clube.
Momento esperado pela garotada e indesejado para o nosso Max.
Naquela época, Max ainda não se comunicava adequadamente, mas
precisava arrumar uma solução para sair da enrascada. O barulho
ensurdecedor o desesperava.
Foi, então, que ele, habilmente imitando a garotada e dando passos
exóticos e piruetas mirabolantes, foi empurrando a prima e a tia para a saída.
Conseguiu atingir seu objetivo de escapar, sem falar uma palavra, chorar,
gritar ou fazer birra. Criou uma estratégia para atingir o seu objetivo maior.
E quem vai dizer que as crianças autistas não reagem ao mundo externo...
Elas reagem, sim, mas de forma diferente, e cabe a nós a tarefa de nos
comunicarmos com elas!
Episódio 24

A coragem supera tudo


S
abe-se que a coragem supera qualquer obstáculo, não é verdade?
E é com base nessa máxima que conto aqui a tocante história de
Bertha e de seu filho André.
Ávida por aventuras, Bertha faz parte do grupo de brasileiros que apreciam
o conhecimento de novas culturas e partem para viver fortes experiências no
exterior.
Ela se mudou para Singapura com sua pequena família, que logo
aumentou. Nasceu, então, André. Aparentemente saudável, ele se
desenvolvia conforme o que costumamos denominar de “quadro normal”.
Foi somente quando teve início o aprendizado da fala que Bertha começou
a se perguntar o que estaria acontecendo. André é seu segundo filho e ela
não identificava nele o mesmo caminho traçado com seu irmão.
André não falava.
Procura daqui, procura dali, veio o veredicto:
“André é portador de TEA – Transtorno do Espectro Autista ou autismo”.
“E agora, José?”.
Recorro novamente a Simone de Beauvoir e à sua máxima de que, para se
penetrar no lado mais secreto das coisas, devemos primeiro nos entregar a
elas.
E assim foi. Com muita garra e determinação, a família se empenhou na
procura de um caminho. E quem procura, acha! Encontraram, por exemplo,
um logopedista, que trata de problemas de voz e linguagem, além de escola e
todo o pacote de ajuda para o desenvolvimento integral de André.
Hoje, sentem-se incapazes de deixar o país, porque lá encontraram tudo de
que precisavam.
André segue os seus estudos em uma escola internacional, com uma turma
pequena de oito alunos, também especiais. Pontualmente essas crianças se
misturam à turma grande para algumas atividades adaptáveis.
André, diferentemente de Max, que é filho único, tem um irmão mais
velho que abraçou a causa e, como uma dádiva do céu, insere e protege seu
irmão no que for preciso.
Irmão é a melhor terapia, não é verdade?
André possui diversas características comuns às crianças portadoras de TEA,
mas, felizmente, consegue ir contornando cada uma delas do seu próprio
jeito. E leva uma vida feliz ao lado da família e de amigos que conquistou ao
longo de sua caminhada.
Crianças autistas são exatamente assim. Elas não têm a mesma percepção da
vida e encontram diversas dificuldades para se inserirem dentro de uma
comunidade. Mas nada que não tenha solução.
Todo o aprendizado precisa chegar “mastigado”. Contudo, uma vez que
elas passam a entender o processo, são completamente capazes de seguir em
frente.
A família de Bertha conseguiu encontrar um caminho para inserir André
integralmente em nosso mundo. Como disse Honoré de Balzac: “As crianças
são mais penetráveis do que acreditamos pelos invisíveis efeitos das ideias”.
Em se tratando de Max, o caso do banheiro da minha casa ilustra muito
bem essa afirmativa. De maneira geral, as crianças percebem que onde
moram há banheiro, bem como na casa da avó, nos restaurantes, nos
shoppings, ou seja, trata-se de uma percepção acompanhada de uma conduta
adaptativa assumida de forma quase automática, sem que seja preciso ensinar
caso a caso. Já os autistas não seguem esse padrão. O fato de Max ter
banheiro em casa, para ele não significava que iria encontrar algo semelhante
na minha residência e nos demais lugares, então tivemos que ensiná-lo. Uma
vez aprendido, o conhecimento foi internalizado para sempre. Uma
mediação aparentemente banal, mas que faz toda a diferença em se tratando
de autistas.
Outro aspecto com o qual possuem dificuldade de compreensão é a gestão
da geladeira. Max não chegou lá porque ainda mora com seus pais, mas
Lydia, sua psicóloga, nos explicou que autistas não vão compreender
automaticamente a necessidade de jogar um produto vencido fora. Portanto,
é necessário ensinar passo a passo a constatação de algo que está dentro do
prazo de validade ou não, neste caso provavelmente estragado, e a
importância de se descartar o último. Uma vez entendida e assimilada essa
dinâmica, eles se tornam capazes de administrar a própria geladeira. Trata-se
de um gap de compreensão que os não portadores da síndrome dificilmente
apresentam.
Episódio 25

Toques e manias
D
epois de seu “estágio intensivo” com a psicóloga Lydia, Max
passou a apreciar ir às compras de supermercado com a mãe. Além
de arrumar as prateleiras, ordenando peças que algumas pessoas
deixaram desalinhadas sem mesmo ter se dado conta, ele dispunha de acordo
com formas absolutamente precisas e geométricas os produtos comprados
que passavam na esteira do caixa. A cena era tão inusitada que, por inúmeras
vezes, pessoas paravam para apreciar o espetáculo que se desenrolava diante
de seus olhos.
Hoje, já adolescente, embora apresente alguns comportamentos comuns
aos portadores de autismo, ele está muito mais próximo de um jovem padrão,
o que pode ser constatado pela bagunça do seu quarto, por exemplo. Em
síntese, as características da adolescência falaram mais alto que as de autista.
Sinal de sua evolução.
O autismo de Max tem um grau elevado, mas ele foi muito beneficiado e
alcançou grande desenvolvimento em razão de ter sido diagnosticado
precocemente e contado com apoio de uma equipe altamente especializada e
dedicada à questão. O diagnóstico feito logo no início dos primeiros
sintomas tem papel fundamental.
Em sua primeira infância, quando as manias e compulsões ainda eram
bastante acentuadas, Max pulava em cima de todos os bueiros que encontrava
na rua. Ia saltando de um para outro como se estivesse pulando sobre pedras
em um riacho. Juliette, sua mãe, tinha que correr e pular em cima dos
bueiros antes dele para tentar dissuadi-lo. Uma luta insana e feroz.
Ele também passava as mãozinhas em todas as paredes que encontrava,
como se buscasse sentir com as mãos por onde estava passando. Situação tão
complicada quanto constrangedora.
Deixo claro que não se trata, de maneira alguma, de uma crítica feita a essa
cultura tão avançada e pela qual nutro profundo carinho e admiração. Mas,
definitivamente, os suíços têm um modo de ser e estar no mundo diferente
dos latinos, particularmente no que se refere às relações humanas.
Geralmente, apresentam pouca empatia e não fazem cerimônia em
repreender os pais diante da mínima conduta indesejada de seus filhos.
Imagino muito bem o que Juliette foi obrigada a engolir. Além da
problemática em si, nada fácil de administrar, teve de suportar ser
repreendida na rua por estranhos como se ela fosse uma louca que não sabia
educar uma criança. Tolhiam implacavelmente esse tipo de comportamento,
sem a menor sensibilidade para compreender que não se tratava de descaso
ou incompetência, e sim de um quadro patológico que demandava
tratamento e paciência.
Um sofrimento a mais.
Com tudo isso que enfrentou, Juliette já poderia ter vivido mil vidas
inteiras do tamanho da minha...
As estações do ano se sucediam de forma bem demarcada, como é típico
dos climas temperados, mas as manias de Max permaneceram por muito
tempo. Uma delas, particularmente complicada, nos leva ao mundo das
gavetas.
Max abria e fechava incessantemente qualquer gaveta que passasse na sua
frente. Sua mãe, muito pacientemente, vinha logo atrás tentando fazê-lo
parar, mas a vitória conseguida aqui significava outro compartimento aberto
abaixo ou acima, e assim por diante. Juliette o seguia nesse sobe e desce sem
fim por entre armários, cômodas e tudo o que eram móveis feitos para
guardar alguma coisa. Um balé infindável e enlouquecedor.
Quando minha irmã Juliette levava Max a um simples parquinho de
shopping center, ele se encantava com os carrinhos do carrossel. Colocava a
moeda no compartimento indicado, mas, ao contrário do esperado, não
entrava no veículo. O objetivo da brincadeira era apenas olhar debaixo do
carrinho para ver a engrenagem. Era capaz de ficar horas a fio e,
literalmente, de quatro para poder observar melhor. Permanecia absorto,
como se tivesse sido hipnotizado pelas engenhocas que se mexiam.
O mesmo acontecia com as persianas!
Na casa de Max, uma grande porta de vidro separa a sala do jardim. Como
este se encontra imediatamente em frente de uma passagem de pedestres,
Juliette instalou largas persianas para desfrutar do seu cantinho íntimo com
mais privacidade. Nosso indefectível herói, por sua vez, adorava abrir e
fechar as benditas persianas. Se estivessem abertas, ele as fechava e vice-versa.
Quando isso não acontecia na sala, era na cozinha. Sempre que as fechava
em plena luz do dia, Juliette abria. Max tornava a fechar, seguido pelo gesto
contrário da mãe. Uma vez tendo desistido de “brincar” na sala, ele ia direto
para a cozinha. E zasssssssssssss... O balé incessante recomeçava.
Juliette parecia incansável em sua determinação de desfazer o “malfeito
feito”. Eu, sinceramente, não sei como minha adorada irmã não
enlouqueceu nessa época.
A zorra das persianas era entremeada por aquela onda de abrir e fechar
gavetas que já relatei. Isso, porque, para desespero de qualquer dona de casa,
não temos gavetas apenas no quarto de dormir ou na sala, mas em todos os
cômodos, correto?
Assim, tão logo as persianas terminavam, Max dava andamento ao mesmo
processo nas gavetas da casa inteira. No afã de tocar e desfazer ou refazer,
voltava para as persianas, depois para as gavetas de novo, e assim
indefinidamente, nos andares de cima e debaixo.
Max não parava!
E, quando era contrariado, ficava com raiva e tentava jogar os objetos que
se encontravam à altura de suas mãos diretamente no chão. Uma atitude
esperada no comportamento dessas crianças.
Max consegue a proeza de extravasar por meio de gestos aquilo que o
incomoda. Algo que nós, meros “normais”, raramente fazemos, enchendo
nosso “pote” de sentimentos até explodir.
A escritora autista Mary Temple Grandin conta: “Quando era contrariada,
eu jogava a primeira coisa que via em direção à porta”.
Como costumava dizer minha mãe: “Deus criou as crianças tão lindas que
não temos coragem de trucidá-las”. Essa singeleza funciona como uma defesa
para a preservação da raça humana (piada infame!). O fato é que mamãe
sempre gostou muito de ter a criançada por perto, contudo, isso não
abrandava seu espírito crítico, aguçado, irônico e muito divertido.
O ventilador de teto fazia parte da mesma gama de elementos de fascinação
para Max. Ele permanecia horas extasiado olhando fixamente para a
engrenagem que se situava no centro do artefato. E, quando conseguíamos
que finalmente ele se esquecesse do ventilador, começava o mesmo processo
com o interruptor de luz. E ainda lembrava das gavetas e das persianas, até
cair no sono.
Outra tarefa digna de gincana era a alimentação do nosso herói. Ele não
conseguia parar para se alimentar corretamente e só comia um único tipo de
alimento. A cada garfada, uma corrida pela casa.
Achávamos divertido e entrávamos em seu mundo sem nos questionarmos.
Mas, para minha irmã, não deve ter sido nada fácil. Além da preocupação
comum de qualquer mãe de alimentar corretamente a ninhada, era obrigada
a se munir de uma paciência hercúlea para conseguir enfiar umas garfadas na
boca do menino.
Definitivamente, comunicar-se com Max e trazê-lo para mais perto de nós
não foi tarefa para amador.
Episódio 26

Aprendizados
D
epois de tudo o que vivenciamos com a chegada e os problemas de
desenvolvimento desse ser iluminado chamado Max, sendo a
grande heroína desta história ninguém menos que sua mãe, nossa
querida Juliette, acredito que todos modificamos um pouco o nosso olhar
sobre a questão do autismo.
É preciso estar muito estruturado para passar pela tormenta, sobreviver e
seguir em frente. Intactos jamais!
A vida nos marca a todos, de uma forma ou de outra, mas essas marcas são,
antes de tudo, aprendizados.
É isso o que minha irmã Juliette nos mostra...
Fabrice Midal, na apresentação de seu livro intitulado Comment rester serein
quand tout s’effondre (Como permanecer sereno quando tudo desmorona), enumera
alguns caminhos para atingir os objetivos que eu relato a seguir:
“[...]
— Você não perde o equilíbrio. É a Terra que treme.
— A crise é uma oportunidade para se reconstruir tudo.
— Procurar os culpados não te ajuda a encontrar a solução.
— Não se preocupe, somente os robôs não têm medo.
— O caminho é revelado a quem se aventura.
— Nós nunca estamos sozinhos.
— O diagnóstico é fundamental.
— Jamais renunciar.
— A crise não é necessariamente ruim. Ela pode ser uma oportunidade de
se reconstruir.
— A culpa não é sua.
— Um passo de cada vez.
— Ousem.
— Não percam as esperanças”.
E é de acordo com esses pilares que Juliette e João Roberto,
respectivamente mãe e pai de Max, recriaram o seu universo.
Minha avó dizia: “O que não tem solução, solucionado está”.
E ela estava coberta de razão. Para o caso de Max, não dava para voltar
atrás. Ele era assim. Então, só lhes restava ir em frente.
Já mencionei que a vida é composta por 10% do que nos acontece e 90%
de como reagimos a isso. E essa passou a ser a máxima da família: não
enfrentar o autismo como um problema, mas um “acidente de percurso”, ou
seja, uma circunstância que faz parte da lei da existência.
Todos os fatos da vida podem ser mais ou menos difíceis, depende da
forma como os encaramos. E não encarar o autismo como um problema já é
o primeiro passo para a solução.
Não sei bem de onde eles tiraram toda essa força. É verdade que a nossa
mitologia familiar tem essa peculiaridade. Como já disse, fomos criados com
otimismo e aprendemos a enfrentar os problemas de frente. Mas nem sempre
conseguimos aplicar nossos aprendizados na vida real.
Todavia, eles conseguiram. “Juntaram os caquinhos” e seguiram.
Para Juliette, todos nós temos muito mais recursos do que podemos
imaginar para enfrentar as dificuldades. Alguns sabem se servir dessas fontes,
outros, não. Apesar de termos a sensação de estarmos sozinhos no meio da
tempestade, isso não corresponde à realidade. Existem pessoas com os
mesmos problemas, por vezes até piores, e profissionais competentes para nos
ajudar a superá-los.
Enfrentar o problema de frente já é o início da sua resolução. Quando não
enfrentamos, não fazemos o diagnóstico e, consequentemente, inviabilizamos
o tratamento.
Max está superando a fase aguda da disfunção e conseguindo evoluir
justamente porque foi tratado desde muito cedo. Esconder a poeira debaixo
do tapete não resolve o problema.
Voltando ao livro de Fabrice Midal, o autor explica que a insensibilidade à
dor e a negação de uma doença são sintomas inclementes. E ele exemplifica:

“Se coloco a mão em uma chapa quente, eu me queimo. A dor que sinto está me
dizendo que devo retirar a mão: é benéfico! A insensibilidade à dor é uma doença
muito grave e muito rara, reduzindo a expectativa de vida de quem sofre e de quem
é privado desse sinal de alerta.
Na verdade, o paradigma da evolução envolve um momento de desconforto, e é ele
que nos salva, é ele que nos permite encontrar uma solução, reinventar, ser
criativos, agir a partir das dificuldades encontradas.
Como a minha mão que ficou levemente queimada ao tocar o prato e assim me
salvou de queimaduras mais graves, o medo, a angústia e o desânimo estão lá para
me ensinar. Eles estão lá para me ajudar a alcançar a meta”.

Para Midal, assim como para Juliette e João Roberto, temos o direito de
nos sentirmos atingidos, desanimados e mesmo de chorar. Mas nessas horas é
preciso ficar em pé e enfrentar a realidade tal como ela é. O mundo é
mutável e está em constante evolução. Morre-se aqui, nasce-se ali: assim é a
lei da vida.
O autor também faz uma alusão a um termo chinês que, por ter morado
na China por 12 anos, compreendo e compartilho:

“‘Wei-ji’ é a palavra chinesa para ‘crise’. ‘Wei’ quer dizer ‘problema’, ‘dificuldade’,
por exemplo o divórcio do meu amigo, a falência que ameaça uma empresa
construída com esforço, uma doença grave... Já ‘ji’ significa ‘sorte’, ‘oportunidade’,
‘dinamismo’.
E é isso que põe em movimento e, no entendimento chinês, é intrínseco à crise.
Wei-ji, a crise, é vista em sua totalidade como um meio-termo, um período entre a
ocorrência do problema (o momento em que começa) e o que ele vai ocasionar
(uma certa mudança). Entre o que acabou e o que está começando”.

Ainda segundo o autor: “Entrar no movimento inerente à crise, entrar no


seu dinamismo e deixar-se levar por ela é uma constante do pensamento
chinês”.
Eu me identifico muito com a filosofia chinesa e faço minhas as palavras
dele.
Ainda segundo esse princípio, o caminho é descoberto somente por
aqueles que se aventurarem nele. Não somos expectadores de nossas vidas, e
sim os atores dela. E cada qual a anima como quiser ou puder.
É aquela história do copo meio cheio ou meio vazio...
Episódio 27

Sem malícia
N
o florescer de suas primeiras palavras, Max tinha um vocabulário
pequeno e restrito. Respondia perguntas com simples “sim” e
“não”. Na verdade, já estávamos tão felizes com esse progresso
mínimo que nem nos incomodávamos com a mesmice de suas respostas.
Cada conquista era comemorada efusivamente.
Nosso herói não possui maldade alguma. Ele é de uma pureza
desconcertante. Não entende nuances. O não dito para ele é apenas aquilo
que é calado, não verbalizado e, portanto, não assimilado. Não lê nas
entrelinhas. É objetivo e direto. Interpreta os fatos literalmente como lhe são
apresentados.
Sempre nos perguntamos: “Como é possível existir um ser singelo como
este dentro de um mundo de brutos?”.
Sempre tivemos a nítida sensação de que, para ele, todos nós, sem exceção,
éramos transparentes. Invisíveis mesmo. Ele parecia olhar através de nós, e
seu olhar estava sempre fixado em algo que nos passava despercebido.
A princípio, Max falava muito pouco. Apenas aquelas respostas
monossilábicas. Tinha uma espécie de mutismo seletivo, como se estivesse
com preguiça de falar. Sua mãe, Juliette, precisava insistir muito para ouvir
uma resposta.
Sua voz era monocórdica e sua entonação, monótona, ou melhor, ele se
expressava sem entonação.
Voltando ao seu vocabulário, este era tão restrito quanto curioso. Utilizava
com frequência dizeres de personagens de desenhos animados, dos quais
literalmente ele copiava as expressões para poder se comunicar.
Lembro-me de que, um certo dia, estávamos brincando e, de repente, eu o
encurralei em um cantinho esperando a sua reação para sair da cilada. E não
é que ele me perguntou:
“Tia Mé, comment on va s’en sortir?”.
Essa é, por exemplo, uma expressão (“Tia Mé, como vamos sair desta?”)
muito utilizada em séries de desenho animado, mas não necessariamente na
vida real.
Da mesma forma, como já relatei, empregava a máxima “C’est bizarre!”
(“É bizarro”) para quase tudo, escancarando a limitação do seu repertório.
No fundo, isso também acabava sendo muito divertido, sobretudo pelo fato
de não se tratar de uma expressão que costumamos utilizar com tanta
frequência em nosso meio familiar.
Tínhamos a nítida sensação de estarmos falando com um estrangeiro que
domina um determinado idioma, porém com musicalidade diferente daquela
empregada pelos nativos. O timbre e a velocidade da fala dos portadores de
autismo, geralmente, também são alterados. Ou falam muito devagar, ou
rápido demais, como se uma palavra se sobrepusesse àquela que vem em
seguida.
A falta de uma linguagem adaptada e de um contato visual mais intenso,
pelo fato de viver isolado, repercutia diretamente na ausência de empatia
com as pessoas. Max era apenas simpático, porém não empático, como se
tudo fosse meramente ensaiado. Por isso, tinha muita dificuldade de fazer
amigos.
Sem poder se relacionar convenientemente, Max permanecia isolado com
vista para o mundo.
Apesar disso, ele não dava sinais de entristecimento, e, em consequência,
nutríamos emoções contraditórias sobre o fato.
Na maior parte do tempo, nos alimentávamos da graciosidade de estarmos
à mercê do momento presente. A cada dia, um avanço, e era isso o que
importava. Ponto final.
Mas para onde ia aquele turbilhão de emoções diante dos menores fracassos
e das incertezas quanto ao amanhã?
Absorvíamos nossos mais profundos sentimentos do jeito que era possível.
Lembro-me de uma das primeiras vindas da família genebrina ao Rio de
Janeiro. Todos ansiosos, não só por querer matar as saudades, como para
apresentar Max ao priminho que tem quase a mesma idade do nosso herói.
Eles ainda eram bebês. O primo era o próprio “bebê Johnson”: grande,
gorducho e rosado, com umas bochechas de morrer de paixão. Max era mais
miudinho e tremendamente alvo. Quase “transparente” de tão branquinho.
A cor perfeita para os asiáticos. Uma pele que parecia um pêssego de tão
gostosa. Algo compreensível pelo fato de ter vindo do inverno europeu, não
tendo como desfrutar do maravilhoso sol dos trópicos.
Juliette e minha cunhada rapidamente perfilaram as crianças no sofá, uma
ao lado da outra para a famosa primeira “foto dos priminhos”. Max
permanecia timidamente no seu cantinho, não estava acostumado com
crianças da sua idade e tampouco com aquele monte de adultos aglomerados
e misturados em um falar incessante. Seu primo, por sua vez, não só já estava
acostumado com a bagunça da família, como ia para a creche desde pequeno,
sabendo perfeitamente se defender desde cedo.
O fato é que os dois bebês sentadinhos no sofá representavam bem para
uma pintura da Renascença.
Até que alguém ofereceu alguns brinquedos para distraí-los. O primo
“experiente” agarrou-os prontamente e empurrou Max de lado para que não
viesse tentar disputar a melhor parte da diversão. Sem maldade alguma. Era
uma criança encantadora. Mas a carinha de Max, completamente perdido e
desamparado, nunca me saiu da cabeça. Uma cena corriqueira da vida. Mas
já se percebia em Max a falta de malícia, a pureza de sentimentos tão
característica dessas crianças especiais.
Lembro-me, ainda, das raras vezes em que Max resolveu brincar no jardim
onde mora com outras crianças do condomínio. Entre brincadeiras e tapas,
cena comum entre os pequenos, houve um bafafá qualquer. Juliette nem se
lembra do motivo exato da confusão. Os adultos acabaram encerrando o
convescote e todas as crianças tiveram que voltar às suas respectivas casas.
Chegando lá, Juliette deu uma boa chamada em Max, explicou que brigar
não era o caminho e mais todo aquele blá-blá-blá de mãe quando assume o
papel de educadora. E completou a bronca colocando Max para “pensar no
que havia feito”. Max aceitou a bronca, obedeceu à sua mãe e ainda pediu
desculpas.
Dias depois, a mãe de uma das crianças envolvidas na confusão encontrou
com Juliette e pediu perdão, informando que Max não tinha nada a ver com
o ocorrido. Mas minha irmã já tinha dado a bronca, colocado Max de
castigo, feito ele pedir desculpas sem ter culpa de nada e o menino nem
sequer ousou se defender.
Max é assim. Aceita o que vem, do jeito que vem...
Episódio 28

Superação
C
omo todos nós, o adolescente Max tem hábitos diários que faz
questão de seguir à risca.
Ele acorda, permanece um tempo na cama, levanta-se, vai ao
banheiro. Faz a barba uma vez por semana, conforme seu primo o ensinou,
com aparelho elétrico. Veste-se, desce para tomar café, sobe novamente para
arrumar a cama, reúne seu material escolar que já está preparado desde a
véspera e vai para a escola. Na volta, ele entra em casa e toma seu lanche,
independentemente da hora de chegada.
Porém, como todo portador de TEA – Transtorno do Espectro Autista,
essas rotinas são acrescidas de rituais um tanto desconcertantes. Por exemplo,
todos os dias, pela manhã e ao cair da noite, ele corre incessantemente de um
lado para o outro como se estivesse colocando para fora toda a energia
acumulada.
Por falar em corrida, todos os anos, como de costume em Genebra, na
Suíça, é realizado um evento chamado L’Escalade (Festa da Escalada), que
celebra a vitória da República Protestante sobre as tropas comandadas pelo
Duque de Saboia, no ano de 1602.
O sugestivo nome “Escalada” se deve à tentativa dos invasores de escalarem
as muralhas da cidade. Os genebrinos conseguiram impedir a entrada dos
inimigos franceses quebrando as escadas, rompendo as cordas e derramando
uma sopa muito quente sobre eles.
Desde então, o feito é comemorado com uma corrida pela cidade,
finalizando com o rompimento de uma marmita, que, hoje em dia, por
motivos óbvios, é feita de chocolate. Trata-se de uma festa popular que
relembra a história de Genebra.
Como todas as crianças genebrinas, Max sempre é convidado a participar
da corrida. Quando tinha por volta de 8 anos, para felicidade de todos da
família, ele decidiu comparecer ao evento. Uma decisão grandiosa para uma
pessoa que, além dos problemas de motricidade, não é desportista e muito
menos encarava multidões facilmente.
Uma das características do autismo é justamente a dificuldade nesse
quesito. Sendo mais precisa, crianças autistas apresentam alterações
significativas tanto na motricidade fina, que são movimentos com maior
precisão, quanto na motricidade ampla.
Entende-se como motricidade a capacidade de executarmos movimentos,
desde os mais simples, como joguinhos de encaixe, até os mais complexos,
como praticar ginástica olímpica. E, consequentemente, existe uma relação
próxima entre desenvolvimento motor e socialização. Uma criança que não é
capaz de acompanhar certas atividades permanecerá invariavelmente “de
fora”. Max não apresenta dificuldades quanto à motricidade fina, porém, não
podemos afirmar que seja o mais dotado para esportes.
A escritora Mary Temple Grandin, ela mesma portadora de TEA, afirma
ainda que, para eles, é quase impossível realizar simultaneamente duas tarefas
motoras.
E, assim, lá foi o destemido Max participar do tradicional evento em
Genebra. Devo admitir que ele chegou em quarto lugar, com a contagem de
trás para a frente. Foi ducentésimo quadragésimo oitavo desportista a cruzar a
linha de chegada entre os 252 concorrentes.
Permanecemos orgulhosos com a façanha prodigiosa do nosso querido
pimpolho. De verdade, pois sabemos avaliar o tamanho de sua determinação
e, principalmente, de sua capacidade de superação.
De fato, o importante foi participar. E quanto à sua colocação no ranking
de chegada, tanto faz!
Você sabia?
Existe um parque em Singapura especialmente dirigido para crianças com necessidades
especiais. O projeto se chama The Animal Project e situa-se dentro do jardim zoológico de
Singapura, o que por si só já é digno de todos os elogios.
The Animal Project é uma empresa social criada por um grupo de pais e amigos de crianças
portadoras de autismo e desafios correlacionados. Por meio de ateliês de diversos tipos de
artes, eles integram esses indivíduos à sociedade, capacitando-os e promovendo seus talentos
especiais.
Os produtos desse trabalho são vendidos e seus artistas recebem royalties visando assim à
sua independência financeira. O projeto também objetiva descobrir talentos artísticos e
desenvolver seu potencial. De forma resumida, ele une a criatividade à cultura artesanal.
Professores especializados aprimoram os artistas estudantes desenvolvendo suas habilidades
específicas e integrando-os ao mercado de trabalho.
Além das atividades realizadas, The Animal Project possui uma gama de livros didáticos
relacionados ao assunto, além de áudios e brinquedos.
Um projeto fora de série!
Episódio 29

Respeito e compreensão
S
egundo a australiana Jac Den Houting, portadora de autismo, a
sociedade tem o dever de integrar esses “entes diferentes” com
respeito e dignidade. Com pós-doutorado em estudos educacionais
pela Macquarie University, em Sydney, na Austrália, e membro do Comitê
Executivo da Autistic Self Advocacy Network of Australia and New Zeland,
Jac foi identificada como portadora do transtorno aos 25 anos e tornou-se
forte defensora dos direitos da comunidade autista, particularmente no que
tange à justiça social.
O exemplo de Max não deixa dúvidas do quanto esse grupo é vulnerável e
necessita de proteção. Em sua primeira infância, ele não tinha amigos e não
socializava. Consequentemente, não era chamado para estar com outras
crianças e, quando o convite partia de sua mãe, Juliette, esta sempre se
deparava com a incômoda cena de um menino brincando sozinho.
Mas isso, aparentemente, não o fazia sofrer. Max não demonstrava sinais de
melancolia. Da mesma forma, nunca solicitou alguém para brincar. Max
ficava apenas olhando pela janela outras crianças brincarem alegremente no
jardim de sua residência.
O que será que ele sentia lá no fundo? Será que tinha vontade de se divertir
também, mas não sabia como fazer?
Será que ele percebe tudo isso à sua volta?
Será que tem consciência de que é diferente?
Mais ainda, será que lhe agrada ser assim diferente?
Quando ele se encontra no seu mundo, no que será que ele pensa?
Será que, será que, será que...
Essas são algumas de inúmeras questões que nos fazemos constantemente.
Max nos parece um menino “bien dans sa peau” (“de bem consigo
mesmo”), como dizemos em francês. Não demonstra aflição nem ansiedade.
Tampouco vontade de fazer tudo diferente. Mas será que é assim mesmo
dentro dele ou não sabe simplesmente como se manifestar?
Nunca conseguimos descobrir o que realmente ele pensava. De qualquer
modo, Max é tão de bem com a vida que francamente pressuponho que se
sinta feliz dessa forma.
Hoje, aos 17 anos, possui um grupo de amigos e amigas, com os quais sai
para fazer programas pela cidade de Genebra. Fazem isso com frequência e,
principalmente, eles se relacionam pelas redes sociais. Socialização típica do
século 21.
Tempos Modernosmodernos!
Max é um exemplo vivo de ingenuidade e pureza. Eu me debato refletindo
sobre como é para ele estar dentro deste mundo em que vivemos. Sempre
muito protegido, pois ainda mora com os pais. Mas, um dia, terá que deixar
esse ninho familiar e partir para o mundo.
De fato, Max é muito independente e diz querer morar sozinho em
Zurique, outra cidade suíça. E não tem receio algum. Melhor assim. Mas o
que será que a vida vai fazer com ele?
Eu não tenho dúvidas quanto ao comportamento sadio de Max. O
problema sempre está nos outros...
Quando ainda era pequeno, lembro-me de que fomos à inauguração de
uma sofisticada delicatessen francesa que estava abrindo suas portas em
Genebra. Depois de alguns comes e bebes, foram-nos oferecidos chocolates
que Max aceitou imediatamente, sem hesitação.
Nesse momento, sua mãe, Juliette, interpelou-o:
“Como que se fala?”.
Ao que Max respondeu sem titubear:
“Encore” (“quero mais”, em francês).
Uma delícia de menino!
Morei na China por 12 anos, e, no penúltimo deles, Max mostrou interesse
em nos visitar. Arrumamos rapidamente todo o roteiro. Mãe e pai, Juliette e
João Roberto, além de Max, é claro, chegaram com uma “agenda de
ministro” para a temporada. Organizei tanto programas convencionais de
passeios históricos como visitas a obras futuristas, passando inclusive pela
Disney de Xangai. Achei que Max fosse se deleitar com o parque repleto de
engenhocas mil.
Conforme as riquezas iam se descortinando à nossa frente, Max, fugindo às
nossas expectativas, não dava ares de interesse. Eu me senti a pior das tias e
me questionava sem parar. Não poderia ser diferente nem menos dolorido:
“Por que será que ele não está se interessando por nada? Onde será que eu
errei? O que será que vai despertar o seu interesse?”.
E, assim, fomos até o fim da viagem.
Visitamos construções que datam de 1500, ano em que o nosso Brasil foi
descoberto, prédios de alturas inimagináveis, cidades medievais repletas de
canais, além de tumbas e dos famosos soldados de terracota.
Busquei o máximo de diversificação que pude e nada...
Max pareceu não perceber o que se descortinava à sua frente. Ele visitou
tudo sem reclamar, mas não demonstrava nenhum sinal de entendimento
maior.
Não obstante, de repente, ele veio com esta pergunta um tanto capciosa:
“Tia Mé, quando Mao Tsé-Tung estava no poder, de 1949 a 1976, a China
funcionava diferentemente de hoje, não é verdade?”.
Atônita, respondi afirmativamente.
Ele continuou, então, com perguntas altamente técnicas e precisas sobre as
novidades às quais tinha sido apresentado.
Algumas tão cabeludas que tínhamos até dificuldade de responder.
“Como ele sabe tudo isso?”, perguntávamos a nós mesmos.
E continuamos atônitos.
Como aquele menino, que fazia “cara de paisagem” para tudo o que via
pela frente, não só se interessava a esse ponto pelo assunto, como também
possuía tamanho conhecimento?”.
E foi assim até o final da viagem!
Analisando em retrospecto, concluo que Max precisa de seu próprio tempo
para assimilar o mundo à sua volta. Ele reage diferentemente e em outro
compasso a cada interação que a vida lhe proporciona.
A “cara de paisagem” plantada em sua face durante todos os percursos nada
tinha a ver com distração ou incapacidade de assimilar informações. Da
mesma forma, não era um indício do seu nível de interesse.
Para nós, é difícil de entender. Acostumamo-nos com sinais de
exteriorização dos sentimentos para percebermos as emoções que
despertamos em alguém. Por isso, necessitamos que uma relação lógica ou
causal seja estabelecida: se apreciamos algo ou não, é preciso que
demonstremos, caso contrário, não temos como descobrir.
Max, na contramão, simplesmente saboreia a comida de outra forma. E é
assim que temos de aprender a enxergá-lo.
No final da temporada, eu e minha irmã, Juliette, nos entreolhamos sem a
necessidade de exprimirmos algo poético ou inteligente, e concluímos: A
dinâmica de Max é outra e a sua cabeça é uma caixinha impenetrável.
O fato é que ele aproveitou essa viagem, ufa!
E, atualmente, chega mesmo a pedir para conhecer países diferentes em
suas férias escolares.
Não perde uma oportunidade!
Episódio 30

Reagindo bem
C
erta vez, excepcionalmente, Max se desentendeu na escola e brigou
com alguns colegas por causa de um lugar na fila. Nada de mais.
Coisa de criança. Mas uma briga é sempre uma atitude que a
grande maioria dos pais tenta contemporizar e evitar a qualquer custo,
explicando que a violência não é o caminho. Pelo contrário. Quando há
necessidade de brigar, isso significa que se perdeu a capacidade de
argumentar.
Contudo, no caso do Max, abriu-se uma enoooooorme exceção. Afinal,
ele não prima por reagir ao mundo e, literalmente, acaba levando desaforo
para casa. Então, adoramos a reação exacerbada.
O psicólogo telefonou para sua mãe, Juliette, para informar sobre o
ocorrido e... comemorar!
O mundo de cabeça para baixo, literalmente!
Um caso mais do que emblemático para confirmar que tudo nesta vida é,
de fato, relativo e depende sempre do ponto de onde se observa.
Max é muito divertido e faz o possível e o impossível para não ter que
enfrentar multidões, o que nem sempre é viável. Para se ter ideia, ele é capaz
de ir para a escola de forma autônoma. Contudo, frequentemente, quando o
ônibus para em seu ponto de embarque, já está cheio, algo que,
evidentemente, ele não aprecia.
Visando a resolver essa problemática, Max sai um pouco mais cedo de casa,
pega o ônibus no sentido oposto, vai até o ponto final, sai e entra novamente
no veículo, escolhendo calmamente o lugar que julga apropriado para se
sentar. Mas a saga não para por aí.
Para chegar à escola, ele é obrigado a trocar de ônibus no centro da cidade.
Quando percebe que o veículo no qual precisa entrar está com a lotação
acima do limite que tolera, não hesita em trocar de linha, dando uma volta
muito maior do que o necessário só para não ter que enfrentar a multidão.
Isso implica um zigue-zague tão cansativo quanto engraçado. Sua mãe, que
o acompanha via aplicativo, de vez em sempre não entende bem o porquê de
um determinado trajeto. Mas o importante é que ele invariavelmente chega
ao destino intacto.
Quando Juliette pergunta a Max a razão de ter feito um caminho mais
longo, ele explica: “O ônibus estava muito cheio. Eu não ligo de fazer um
caminho mais comprido. Desde que eu pegue o ônibus vazio, tudo bem!”.
Às vezes, ele vai até o ponto final, em sentido inverso ao seu destino e,
uma vez lá, percorre todo o trajeto de volta sentadinho até o seu ponto de
descida.
É capaz, até mesmo, de trocar de itinerário, fazendo diversas conexões
desnecessárias e percorrendo uma verdadeira Viavia-crúcis apenas para não
ter de enfrentar condução cheia.
No livro Comme d’habitude, a autora Cécile Pivot faz um relato comovente
sobre esse aspecto. Seu filho autista, que vive em Paris, costuma pegar e
cruzar inúmeras linhas de metrô para chegar ao seu destino, somente para
evitar os vagões lotados.
O espaço vazio é o que realmente importa e a pressa é inimiga da
perfeição, já dizia o ditado...
Ainda dentro da mesma temática, o governo da Suíça, que é um país
referência em tratamento e acessibilidade para autistas, decidiu preparar fiscais
de transporte público para lidar com pessoas com TEA, já que eles não
respondem da mesma forma. Por exemplo, se o fiscal perguntar se pode ver a
carteirinha de transporte, o autista é capaz de responder negativamente. Não
por receio ou por não querer mostrá-la de forma deliberada, mas
simplesmente porque, na sua compreensão ao pé da letra, quando o bilhete
está dentro do bolso ou da mochila, o fiscal não pode enxergá-lo.
Impensável, não é?
Quem lida com esse público, tem de ser treinado para formular uma
pergunta funcional de maneira perfeitamente compreensível.
Para mim, que não sou especialista no assunto, existem alguns desafios de
difícil superação quanto à inclusão social dos autistas, tais como o
dimensionamento do número exato de casos e o acompanhamento do
avanço dessa disfunção em cada país. Arriscaria afirmar que se assemelha à
contagem dos casos da Covid-19. Cada região tem a sua maneira própria de
contabilizar, e todo mundo contesta essas estatísticas.
Entretanto, segundo estimativa da Organização Mundial da Saúde – OMS,
existem em torno de 70 milhões de pessoas portadoras de TEA no mundo e
em torno de dois milhões no Brasil. Esse número vem aumentando
consideravelmente ao longo dos anos.
Episódio 31

Genialidade
M
ax apresenta desempenhos geniais e atípicos. O seu professor de
matemática nos tempos do Ensino Fundamental, por exemplo,
dizia que ele tinha sua própria maneira de resolver problemas e
equações.
O mais impressionante é que o catedrático não possuía a menor ideia de
qual percurso cerebral Max empreendia para chegar ao resultado certo. Ao
observar os cálculos, não conseguia entender, mas o fato é que a resposta
estava exata.
Outro autor cujo relato me tocou muito foi Daniel Tammet – seu livro
intitula-se Je suis né un jour bleu (“Eu nasci em um dia azul”) —, igualmente
autista e também dotado de grande familiaridade com a matemática. Nascido
na Grã-Bretanha e primogênito de uma família de nove filhos, foi
diagnosticado como portador de Síndrome síndrome de Asperger, uma
forma peculiar de autismo caracterizada pela capacidade fora do comum de
realizar certas atividades.
Além disso, Tammet também é portador da chamada síndrome do sábio ou
savantismo, um distúrbio raro e pouco conhecido antes do filme Rain Man,
de 1988, que abocanhou uma estatueta de Melhor Ator, graças à excepcional
interpretação do ator Dustin Hoffman no papel de Raymond Babbitt,
portador dessa síndrome.
Pois bem, Tammet é considerado um sábio e consegue realizar cálculos
absolutamente impressionantes. Para ele, assim como para muitos autistas, o
cálculo mental e a memória são seus pontos de excelência. Por isso, faz parte
do restrito universo de pessoas possuidoras de uma inteligência prodigiosa,
muito acima da média.
Para se ter idéiaideia, Tammet chegou a memorizar e a recitar 22.514
décimos da fórmula matemática de pi. Para os esquecidos, a décima sexta
letra grega ou π (leia-se pi), no âmbito da matemática, corresponde ao
número irracional constante, que é a razão entre o perímetro de um círculo
e o seu diâmetro, aproximadamente 3,14.
Ok, vamos lá!
Até consigo chegar a 3,1415... Mas os restantes 22.512 recitados por
Tammet, definitivamente me é impossível!
Foi no dia 14 de março de 2004, no Museu de História da Ciência, em
Oxford, na Inglaterra, que ele recitou em 5 horas, 9 minutos e 24 segundos,
os milhares de decimais de pi memorizados durante os três meses que
antecederam o evento. Esse recorde lhe valeu uma propulsão de média
impressionante, registrada no documentário intitulado O homem computador,
no qual suas habilidades são consagradas.
Em suas palavras: “Quando o estresse é muito grande e tenho dificuldade
de respirar, eu fecho os olhos e conto. Pensar em números me acalma”.
Ainda sobre os números, ele afirma: “Cada um é único e tem sua própria
‘personalidade’. O número 11 é amigável, o 5 é barulhento, o 4 é tímido e
calmo – este é o meu número favorito, provavelmente porque se parece
comigo. Alguns são grandes e gordos: 23, 667, 1.179. Outros são pequenos:
6, 13, 581. Alguns são lindos, como 333. Outros são feios, como 289. Para
mim, cada número é particular”.
Devo confidenciar que meu número preferido é o 33. Mas nunca descobri
nada de extraordinário nele, além do fato de ser a idade atingida por Cristo
antes de sua morte e Ressurreição.
O exemplo de Tammet é apenas a pontinha do iceberg sobre a
complexidade da mente de um autista. Provavelmente, os números possuem
todas essas características, e talvez inúmeras outras. A verdade é que nunca
paramos para observá-los por esse prisma.
Possivelmente, trata-se de um tipo de elaboração empregada a inúmeras
questões, o que sugere um olhar diferente sobre a vida. E é isso que nós,
incansavelmente, tentamos compreender: enxergar o mundo através de seus
olhos, eis o grande desafio.
Tammet acrescenta: “Minha experiência visual e emocional dos números
corresponde ao que os cientistas denominam de sinestesia. É uma confusão
neurológica dos sentidos muito rara, na maioria das vezes uma capacidade de
ver letras e/ou números em cores”.
Curiosamente, foi por meio das letras que ele conseguiu sair do seu exílio
interior, enquanto autista aprisionado dentro de si, para descobrir o mundo
exterior.
Segundo Daniel Tammet, referindo-se à sua espiritualidade, graças às
palavras, ele encontrou Jesus. Para ele, é a esperança que nos leva ao encontro
do outro.
Tive a oportunidade de assistir a um debate em que ele narrava com uma
ternura infinita o papel das palavras e da língua na sua visão da beleza do
mundo. Portanto, no seu entender, deve existir algo mais profundo que
permeia toda essa beleza. E a resposta para isso foi a fé.
Tammet teve muita coragem e tenacidade para conseguir superar o seu
quadro de autismo severo. Ele atribui uma cor a cada palavra. De fato, o livro
que escreveu é dedicado ao tema, inclusive o título da obra cita a cor azul, o
qual se tornou um best-seller.
Em Je suis né un jour bleu, o autor tenta nos explicar qual o caminho que
segue para concluir as questões que se apresentam. Confesso sinceramente
que são percepções muito distintas e, até certo ponto, inacessíveis para mim.
Provavelmente, indícios de um grau acima na escala de evolução humana,
que, nós, simples mortais, ainda não alcançamos.
Em uma passagem interessante que pincei desse livro, ele revela: “Quando
criança, fabriquei por vários anos a minha própria língua. Era uma maneira
de remediar a solidão latente que sentia e de encontrar palavras para expressar
minhas experiências particulares”.
Daniel Tammet tem uma relação especial com as línguas de um modo em
geral. Ele fala fluentemente dez idiomas: inglês, sua língua materna; francês;
islandês, que aprendeu em apenas uma semana; alemão; espanhol; esperanto;
finlandês; galês; lituano; e romeno. Na verdade, todas as línguas nas quais não
é nativo foram aprendidas em um período de tempo recorde. Para ele: “A
relação que tenho com as línguas é estética: certas palavras e combinações de
vocábulos me acalmam, me agradam por serem particularmente bonitas e me
estimulam”.
Ainda nesse livro, Tammet descreve em detalhes o desenrolar do seu
raciocínio para chegar a tão respeitadas conclusões. Confesso ser incapaz de
reproduzir aqui suas explicações. Mas tenho certeza de que ele atinge
resultados que também não me sinto apta a alcançar.
Tammet é um verdadeiro gênio dos tempos modernos.
François Busnel, apresentador do programa de televisão La grande librairie
(“A grande livraria”), difundido pelo canal de televisão francês TV 5 Monde,
declarou: “O que eu admiro em você é a sua inclinação para poesia,
neurociência e sociolinguística”.
E muito mais ainda...
Trata-se de um legítimo Leonardo da Vinci da nossa era.
Episódio 32

Jeito singular
C
erta vez, Juliette, mãe de Max, levou-o até um espaço especializado
em ginástica infantil para ele brincar com outras crianças. A hora e
a vez do incontornável jogo de bola.
O professor jogou, então, o artefato redondo para Max, que o agarrou sem
nenhum problema, mas, em seguida, saiu correndo com a bola na mão para
desespero do professor, que ficou um tanto desconcertado com a súbita
mudança nos planos da brincadeira. Nessa época, Max não sabia interagir
nem como reagir a um estímulo.
O que para a maioria das pessoas é óbvio, para ele não tem nada de
evidente nem de instintivo. Tudo tem que ser ensinado e devidamente
introduzido. Além disso, ele sempre tem a sua própria percepção das coisas e,
portanto, a reação apresentada também será diferente.
Retomando aquilo que o autor Daniel Tammet explica em seu livro
intitulado Je suis né un jour bleu (“Eu nasci em um dia azul”), o autismo
implica uma relação diferente com palavras, cores, números e todo o mundo
à nossa volta. O próprio título do livro ilustra bem a questão. Será que
alguém já atribuiu alguma cor ao seu dia de nascimento?
Para Tammet, alguns números o acalmam. Outros, contrariamente,
provocam agitação. Uma interpretação diferente da convencional, não é
mesmo?
Max também seguiu essa mesma linha. Os brinquedos que se apresentavam
à sua frente não tinham para ele a mesma função que para os demais. O
escorregador, por exemplo, não servia necessariamente para escorregar, a
bola não era automaticamente um artefato para se jogar, e assim por diante.
Conforme mencionei anteriormente, conviver com certos autistas acaba
sendo uma tarefa mais simples e agradável do que se imagina. Eles raramente
se queixam de fome, frio, não insistem em ir para aqui ou para acolá, não
chamam amigos para virem até sua casa, não pedem brinquedos nem
solicitam a nossa atenção. Eles simplesmente incorporam a paisagem dos
locais por onde passam.
Mas, como eles não nos demandam, cabe a nós a árdua tarefa de adivinhar
o que eles podem estar querendo, pensando ou sonhando.
Max jamais pede algo. Quando eu pergunto o que ele quer de aniversário,
visando explicitamente a dar uma “estragada” no menino, ele sempre
decepciona sendo um anjo e não sabendo o que pedir.
“Não sei, tia Mé. Qualquer coisa”.
“Que qualquer coisa, menino!”, retruco eu. “Aproveita e pede o que
quiser!”.
Tudo isso em vão. Não adianta. Por isso, não tenho medo algum de que ele
venha me pedir uma coisa caríssima que eu não possa oferecer. Max nunca
foi influenciado pela sociedade de consumo.
Ele é realmente único! Sem o menor risco de ser copiado.
Imagina se as minhas filhas perderiam uma oportunidade de ouro dessas...
Se voltar um pouquinho no corredor do tempo, me vejo diante de minhas
digníssimas e lindas filhas desenrolando listas infindáveis de pedidos, não
somente para as comemorações oficiais, como também para as extraoficiais.
Sem mencionar todas as vontades e solicitações para irem e virem, conosco e
com as amiguinhas. Minha casa era um jardim de meninas.
Conviver com a pureza do Max é comovente. Ele nos coloca
constantemente em confronto com as futilidades da vida que levamos. Ele
não tem maldade nem sequer a entende.
O que será que ele gostaria de ter e receber?
Certa vez, ouvi o depoimento de um autista dizendo que, no fundo, ele
tinha muita vontade de ser abraçado pelos seus parentes, irmãos e familiares.
E dizia: “Como é que a minha mãe poderá saber disso se eu bloqueio todo e
qualquer contato?”.
Este é o nosso maior receio: de não estarmos por perto para supri-lo com
suas necessidades básicas, ainda que não tenhamos como saber quais são as
suas vontades e desejos mais íntimos.
Episódio 33

Beijoqueiro
Q
uando Max era pequeno e vinha ao Brasil para as suas férias de
verão com a família, sua mãe, Juliette, ensinava-lhe a
cumprimentar a todos tanto na chegada quanto na partida. E
enfatizava que, no Brasil, a maneira corrente de se saudar é por meio de dois
beijos bem carinhosos.
Max assimilou tudo. Beijava todos, um a um, sem deixar escapar ninguém.
E olha que as filas eram longas! Nossa família é grande. Mas ele estava de tal
maneira imbuído desse espírito de confraternização que saía beijando
garçom, porteiro, vendedor ambulante... Qualquer pessoa que cruzasse o seu
caminho.
E, mesmo após voltar para a Suíça, continuava a sessão de beijos,
cumprimentando todos da escola com beijocas bem estaladas. A única
diferença é que, na Suíça, esse modo latino de ser não está absolutamente
inserido nos hábitos do dia a dia. E toca minha irmã Juliette explicar para um
autista cartesiano que por aqui se beija e lá, não.
Quando meu genro Hubert entrou para a família, a primeira coisa que
Max fez foi beijá-lo carinhosamente nas bochechas, deixando-o embaraçado.
Provavelmente, Max já pressentia o casamento de Hubert com minha filha e
resolveu ir logo ao que interessa: “Integrantes da família eu beijo e pronto!”.
Para os autistas, a sutileza é de difícil compreensão, assim como a hipocrisia
e o não dito. Apesar de maroto, Max tem dificuldade de entender piadas.
Lydia, psicóloga que o atende há muitos anos, foi quem ensinou a Max
quase tudo o que ele é capaz de fazer hoje. Por isso, digo que foi um desses
anjos da guarda que aparecem em nossa vida e nos ajudam
incondicionalmente.
Como vimos, com ela Max aprendeu a ir ao supermercado, a andar na rua,
a tomar ônibus, a estudar... Para ele, nada disso era algo de fácil
compreensão. Por ter dificuldade de interagir, não percebe como se deve
agir.
Frequentemente eu me pergunto: o que vai dentro desse serzinho tão
querido? O que falta em suas conexões neurais? Qual parte não se conecta, e
por quê?
Por outro lado, é justamente essa fragilidade que o torna tão especial,
meigo e cativante. Quando criança, seu universo se resumia a um quarto
aconchegante com algumas fotos na parede, um quadro de carrinho antigo
que pertenceu ao seu pai e veio da casa da sua bisavó. Uma cama macia
situada embaixo da janela, uma escrivaninha, alguns brinquedos na estante,
poucos livros e cadernos, um banheiro com itens corriqueiros como escova e
pasta de dente, xampu, pente, e, finalmente, seu ursinho de estimação, o
Tatau, diminutivo de Catatau, amigo inseparável na hora de dormir.
Opa, já ia me esquecendo do seu amigo iPad.
Hoje, seu universo se estende bem além dos limites do banheiro e do
quarto de dormir. Mas vale ressaltar sua cama de casal forrada com jeans de
dar inveja, além de sua novíssima escrivaninha.
Brincadeiras à parte, o Max atual tem amigos, adora viajar, possui conta no
Instagram, vai e volta da escola sozinho.
Não me surpreenderia se um dia destes Max aparecesse em casa com uma
namoradinha. Ele já tem uma amiga com a qual eventualmente saem juntos.
Ela adora cozinhar e volta e meia prepara uns quitutes para ele.
Ele é interessado em meninas. Volta e meia sai com aqueles comentários de
adolescente: “Que menina bonita!”.
Independentemente da beleza, o que importa é que ele as olhe com
atenção.
Segundo os especialistas, não tem nada que impeça um autista de praticar
uma vida amorosa e sexual normal.
E, para orgulho dos pais e dos tios corujas, em 2019, Max foi eleito pelas
meninas da escola o aluno mais simpático da classe!
Não sabemos exatamente os critérios utilizados para tal denominação. Mas
a verdade é que Max é sempre muito solícito, risonho e não tem “tempo
feio” com ele. Não se envolve em conflitos e é incapaz de agredir alguém.
Outro dia, na festa de final de ano da escola em que estava encerrando o
Ensino Médio, ele pediu o microfone e fez agradecimentos por tudo o que
havia vivenciado como aluno da instituição.
A tia coruja aqui aplaude em pé!
Episódio 34

Trauma e mazelas
V
oltando um pouco à infância mais tenra de Max, lembro-me de
que ele corria muito e na pontinha dos pés. Isso lhe causou um
encurtamento do tendão. E, com o passar dos anos, foi preciso
realizar uma cirurgia para resolver o problema.
Lá foi o pequeno para o centro cirúrgico sem entender o porquê. Mais
uma preocupação suplementar para todos à sua volta.
Max, que gosta de tudo previsível e ordenado, acordou na chamada Sala de
Recuperação, local destinado a receber o paciente em procedimento pós-
operatório, cercado de luzes e de gente que ele não conhecia. Detalhe
agravante: não entendia o que havia acontecido e estava com os dois pés
engessados.
Imagine o trauma!
Nessa época, eu morava na França e fui até Genebra para acompanhá-lo de
perto e ajudar minha irmã Juliette, sua mãe, em quaisquer necessidades.
Dito e feito. Max voltou para casa aterrorizado com o ocorrido e não quis
mais dormir com medo de acordar em algum lugar desconhecido, frio e
insólito. Nos primeiros dias, foi um verdadeiro perrengue conseguir fazê-lo
dormir. Ele persistiu com esses sintomas por algum tempo.
Não é preciso mencionar que nesse período conturbado, nem ele nem
nenhum de nós dormíamos. Revezávamos a vigília como podíamos e
tropeçávamos de sono durante dias consecutivos.
A propósito, em uma das minhas inúmeras leituras sobre o assunto, deparei-
me com o depoimento de um autista que explicava sua enorme dificuldade
em lidar com odores. Então, eu ficava me perguntando: “Será que Max
também estranhou o perfume das enfermeiras e o cheiro de desinfetante e de
remédios típico de hospitais?”.
Aliás, essa não foi a primeira estadia em hospital. Com apenas 3 meses,
Max entrou pela primeira vez na sala de cirurgia. Pelo menos deste episódio
ele nem se deu conta. O trauma ficou todo com Juliette, para quem a
experiência de deixar um bebê de colo nas mãos de outras pessoas, ainda que
por motivos de saúde, foi extremamente angustiante.
Max nasceu com uma hérnia na virilha e precisou retirá-la o quanto antes.
Descobriram quando ele tinha apenas 2 meses e esperaram um mês para que
engordasse um pouquinho e fosse submetido à operação.
Fechando o quadro de mazelas, Max era muito estrábico quando pequeno.
Juliette levou-o ao oftalmologista imaginando que ele colocaria aquele
tampão em um dos olhos por algum tempo e tudo retornaria ao normal,
como ocorre com a maioria das crianças estrábicas.
Todavia, não foi bem esse o diagnóstico do médico: Max era, sim,
estrábico, mas tinha somente 10% de visão em um dos olhos. O caso era
bem mais sério do que o esperado. Ele precisaria, obviamente, de óculos e
também de exercícios.
Juliette entrou em pânico: “E se ele cismasse em não usar os óculos? Como
fazer?”.
Já sabíamos de antemão que qualquer mudança de rotina e de hábitos seria
extremamente penosa para Max. Juliette recorda-se desses episódios da
cirurgia e do tratamento ocular como sendo mais traumáticos do que o
próprio diagnóstico recebido de autismo.
Felizmente, para a surpresa de todos e felicidade geral da família, Max se
adaptou sem problema algum. Provavelmente, ele enxergava tão mal que os
óculos descortinaram um mundo novo repleto de coisas a explorar.
Hoje, Max ainda tem um grau elevado de miopia e usa óculos sem maiores
problemas.
Por falar em explorar, a ida ao dentista com Max ainda pequeno era uma
odisseia complicada. Ele já portava os óculos, e, portanto, enxergava
perfeitamente todos aqueles botões que giravam. Aquilo o fascinava, era a
própria Disney para ele. Um universo único, desconhecido e fantástico!
Conclusão: não parava quieto na cadeira e não havia braços fortes
suficientes para impedi-lo de tocar em tantos botõezinhos e brincar com
eles.
Françoise Lefèvre, mãe de autista e autora do livro Le petit prince cannibale,
compara a obsessão do portador de autismo por tudo o que gira ao conto de
fadas A bela adormecida, no qual foi preciso esconder todos os teares do reino
para que a princesa não se picasse. Assim, Lefèvre decidiu subtrair da vista de
seu filho Jean todos os objetos redondos, hélices e rodas que pudessem girar
para evitar que ele se abstraísse do mundo, fixando-se somente na
engrenagem.
Não fugindo à regra, ela descreve Jean como alguém indiferente ao
mundo: “Ele não sorri jamais. Ele jamais manifesta algum tipo de desejo.
Não sabemos se ele tem frio ou fome... Para ele, nosso mundo não existe”.
Françoise Lefèvre nos comove quando ela agradece a seu filho por ter lhe
proporcionado a oportunidade de se transformar em alguém melhor:
“Portanto, eu te agradeço por me dar a oportunidade de viver um grande
amor. Obrigada por abrir meus olhos para uma parte do mundo e para
outras crianças”.
E, ainda: “Você me transformou profundamente, de alguma forma você
me fez ser melhor”.
Episódio 35

Famosos
H
á anos circulam suposições e rumores sobre personalidades do
mundo científico, músicos, escritores, artistas, políticos, enfim,
pessoas de renome ou muito conhecidas que seriam autistas ou
portadores da chamada síndrome de Asperger. Como já explicado, esta se
refere a um transtorno de socialização e capacidade de comunicação, estando,
portanto, inserida dentro do espectro do autismo.

Você sabia?
Hans Asperger (1906-1980), pediatra, médico teórico e professor austríaco ficou conhecido
por seus estudos sobre desordens mentais, principalmente em crianças. Trabalhou com o
psiquiatra austríaco naturalizado norte-americano Leo Kanner e publicou cerca de 300
livros sobre o assunto. Seu nome foi atribuído à patologia denominada síndrome de
Asperger em reconhecimento à importância do trabalho que desenvolveu.
Sua obra de leitura indispensável a respeito do autismo, intitulada Les psychopathes
autistiques pendant l’enfance (“As psicopatias autísticas durante a infância”),
infelizmente está com edição esgotada.
É de Hans Asperger esta constatação: “Qualquer coisa fora da norma é, portanto,
considerada anormal, mas não é necessariamente inferior”.

Simplificando a coisa, seria um grau do autismo bem mais brando. Apesar


de apresentarem peculiaridades, os portadores de síndrome de Asperger
possuem a faculdade da linguagem e, normalmente, conseguem seguir um
percurso escolar normal.
Voltando às personalidades, referi-me àquelas que, de alguma forma,
mudaram e contribuíram para o desenvolvimento do mundo com seu talento
e criatividade. É muito difícil afirmar com certeza que alguns deles eram
autistas ou portadores da síndrome de Asperger, mesmo que apresentassem
sinais evidentes desses distúrbios. Contudo, o diagnóstico como é feito hoje
não existia algumas décadas atrás.
Alguns desses personagens, ainda vivos, são considerados prováveis
portadores de tais disfunções, porém sem confirmação. Outros são
oficialmente diagnosticados.
Muito pouco compreendidas, essas pessoas apresentam déficits em
habilidades sociais, relutância para ouvir, dificuldade de entender a ordem
social etc. Surpreendentemente, algumas delas conseguiram se destacar por
suas conquistas, ajudando gradualmente a desmistificar essa condição.
A título de curiosidade, aqui está uma lista de celebridades portadoras de
síndrome de Asperger nas mais diversas áreas.

Ciências

Albert Einstein (ganhador do Prêmio Nobel de Física, em 1921).


Alexander Graham Bell (inventor do telefone).
Henry Ford (fundador da fábrica de automóveis Ford).
Howard Hughes (aviador, empreendedor e fundador da TWA).
Isaac Newton (inventor da Teoria da Gravidade).
John Nash (ganhador de Prêmio Nobel de Ciências Econômicas,
em 1994).
Marie Curie (ganhadora de Prêmio Nobel de Física, em 1903; e de
Química, em 1911).
Thomas Edison (inventor e fundador da General Electric).

Tecnologia

Bill Gates (fundador da Microsoft).


Bram Cohen (inventor do protocolo BitTorrent).
Mark Zuckerberg (fundador do Facebook).
Satoshi Tajiri (criador do Pokémon).
Steve Jobs (fundador da Apple).

Cinema

Alfred Hitchcock.
Dan Aykroyd.
George Lucas.
Keanu Reeves.
Stanley Kubrick.
Steven Spielberg.
Tim Burton.
Woody Allen.

Música

Bob Dylan.
Eminem.
Glenn Gould.
Ludwig van Beethoven.
Wolfgang Amadeus Mozart.

Militância climática

Greta Thunberg.

Artes
Andy Warhol.
Leonardo da Vinci.
Michelangelo.

Esportes

Bobby Fisher (campeão mundial de xadrez, diversas vezes).


Lionel Messi (jogador de futebol seis vezes premiado como o
“Melhor do mundo”).
Episódio 36

Universo misterioso
E os anos foram passando, como sempre fizeram. Max, de sua parte, foi
crescendo e se integrando, não somente ao ambiente familiar, como à vida
em sociedade.
Ao contrário do que se possa imaginar, ele não é tímido. Como mencionei
antes, a expressão francesa “bien dans sa peau”, que significa “estar de bem
consigo mesmo”, cai como uma luva para o meu amado sobrinho. Max é
assim mesmo. Como já reforcei, não tem “tempo feio” com ele. E se, por
acaso, algum problema o incomodar, logo tenta resolver. Em locais públicos,
por exemplo, não se faz de rogado e sempre solicita algo de que necessite.
Quando vamos a restaurantes, é comum vê-lo levantar-se da mesa para
pedir informação sobre a senha do Wi-Fi. Também não tem vergonha
alguma de perguntar onde fica o banheiro. Nas lojas, se ele se interessa por
algo, vai diretamente à pessoa responsável consultar sobre o preço ou outras
informações que julgue pertinentes.
Ele não é acanhado, como poderíamos supor. Não percebe a sua diferença
e tampouco se incomoda com ela. Leva a vida como quer, sem se preocupar
com o julgamento dos outros.
Ponto para ele!
Outro dia, assistindo a um programa na TF1 (Télevision Française 1),
intitulado Face à l’autisme, un amour hors norme (Enfrentando o autismo, um amor
extraordinário), não pude deixar de me emocionar com o testemunho de uma
mãe de autista. Aos prantos, ela confidenciou que sua maior dor era não
saber o que o filho sentia.
Lembro-me de uma frase de Josef Schovanec, no livro Je suis de l’est (“Eu
sou do Leste”), no qual ele é categórico: “O fato de não conseguirmos
demonstrar/expressar nossos sentimentos não quer dizer que não os
tenhamos”. O próprio Schovanec é portador de TEA e seus pais são
oriundos da República Tcheca, mas passou sua vida em Charenton-le-Pont,
subúrbio de Paris. Formado em ciências políticas, doutor em filosofia e
ciências sociais, é um viajante inveterado, domina mais de sete línguas e
descreve em diversos livros as próprias experiências como autista.
Seus livros são imensamente realistas. Uma bomba de emoção. Ninguém
melhor que um autista para nos fazer entrar nesse universo tão singular e
misterioso quanto estranho e engraçado.
O autismo está ainda despertando interesses em segmentos inimagináveis.
Por exemplo, bisbilhotando pelo mundo cibernético, encontrei uma foto
pedindo que fosse divulgada. Entre outras imagens, ela mostra um laço
colorido, indicativo de que a pessoa portadora de TEA tem prioridade
naquele local.
Fiquei sensibilizada com a descoberta, mas confesso que nunca encontrei
esse tipo de indicação pelos lugares onde circulo.

Samba-enredo
O samba-enredo da escola de samba carioca União da Ilha, em 2019,
escolheu como tema o autismo. Mais um ambiente inusitado, como o
Carnaval, em que a temática já está presente. Confira a seguir a letra do
samba.

Sou um artista de um mundo solitário

Ito Melodia
Tenho o direito de ser diferente
Eu quero que você entenda
Nessa inclusão de amor
Me aceite do jeito que eu sou
Eu sou autista, tão distorcido no espelho seu
Eu sou autista, vou caminhando junto aos meus!
Uma estrela de um mundo tão distante
Onde ninguém consegue alcançar
Eu tenho um brilho fascinante
Que vai muito além do seu olhar
Eu vim de lá do mundo de meu Deus
Onde eu sou você, você sou eu
Tenho segredos a revelar
Mas com palavras eu não sei explicar
Nessa interação de amor eu vou
Quero conquistar o meu lugar
O meu coração chorou, chorou
Quando você veio me abraçar
Tenho o direito de ser diferente
Eu quero que você entenda
Nessa inclusão de amor
Me aceite do jeito que eu sou
Eu sou autista, tão distorcido no espelho seu
Eu sou autista, vou caminhando junto aos meus!
Episódio 37

Empatia
C
arina Morillo é uma advogada que trabalha com inclusão social de
pessoas portadoras de autismo. No TED Talks (conferência em
vídeo) intitulado Para entender o autismo não desvie o olhar, ela
compartilha sua comovente história sobre como foi capaz de encontrar um
caminho para conseguir se comunicar com Ivan, seu filho autista.
Ivan foi diagnosticado com autismo quando tinha 2 anos e meio. Ele não
falava e não se comunicava com ninguém. “Era como se as palavras fossem
um ruído ou um barulho para ele”, explica Carina.
Como ocorre com a grande maioria dos familiares de autistas, inicialmente
Carina e seu marido se encontraram perdidos sem saber como lidar com a
questão. “Como ensinar a vida a Ivan?”, questionava-se Carina.
Eles seguiram tentando alternativas intuitivamente, até que, em um dia
chuvoso, a caminho da piscina onde Ivan adorava nadar, Carina se distraiu e
passou a entrada do corredor que os levava até o local. Imediatamente,
aquele “serzinho” incomunicável começou a chorar compulsivamente,
tentando alertar a mãe sobre o seu equívoco.
A partir desse momento, Carina percebeu que Ivan era dotado de uma
impressionante memória fotográfica. E foi por meio desse tipo de registro
que ela começou a apresentar o mundo a seu filho. Na prática, Ivan passou a
se comunicar por meio do seu iPad, onde estava todo o seu universo de
palavras “traduzido” em imagens.
“Como fazer as pessoas olharem para o Ivan, não como autista, mas com
tudo o que ele é capaz de fazer?”, perguntava-se com frequência sua mãe.
Certo dia, esperando o filho chegar, Carina entrou em um mercadinho de
bairro que costumava frequentar e que vende todo tipo de produto.
Conversando com o proprietário do estabelecimento, contou que Ivan era
autista e dividiu com ele sua preocupação de integrá-lo ao mundo.
Foi quando o mais novo amigo gentilmente propôs que Ivan fosse, uma
tarde por semana, auxiliá-lo a arrumar as garrafas plásticas. Para tanto, ele
daria como recompensa ao menino uma caixa de biscoitos de chocolate. O
biscoito preferido de Ivan. E assim nasceu uma parceria bem-sucedida que
durou por cerca de um ano.
Ivan arrumava as garrafas de forma impecável, uma a uma, todas com as
etiquetas viradas milimetricamente para a mesma direção, e voltava para casa
radiante com o seu “troféu” de chocolate. Um caso como este bem poderia
ter acontecido com Max, mas não tenho uma história correlata envolvendo
o nosso herói.
Em seu comovente discurso, Carina narra que o dono do mercadinho não
possui conhecimento científico algum sobre como lidar com o autismo. Mas,
em compensação, tem um coração aberto para compreender as pessoas.
E, afinal, não é disso que precisamos?
Confirmo com absoluta convicção, sem retirar a importância dos técnicos
no assunto – eles são fundamentais —, contudo, por vezes, precisamos apenas
abrir nossos olhos para enxergar a alma das pessoas. Aquilo que se leva no
coração.
Amo a simplicidade universal e complexa do sentimento de amor. Temos
apenas que estar disponíveis para entendermos as pessoas. Conclui Carina:
“Sejamos curiosos e não indiferentes”.
Olhe para os outros. O seu olhar pode transformar o outro. Esta é a bela
lição de vida que nos deixa Carina.
Empatia é a palavra-mestra, a fórmula da poção mágica do druida!
O segredo está na nossa capacidade de tentar sentir o que a outra pessoa
está vivenciando, e, principalmente, dentro da sua perspectiva. Nunca da
nossa. Trata-se da tão propalada capacidade de nos colocarmos no lugar do
outro.
Histórias bonitas como esta estão aí para nos mostrar que existe solução
para a humanidade. Basta querermos!
Conclusão

A história não acaba aqui


“Deus não fez descer à Terra uma doença sem ao mesmo tempo enviar o
remédio.”
Hadish

N
ós, humanos, nos adaptamos a tudo. Com o passar dos anos, o
autismo de Max gradualmente foi se esvanecendo diante dos
nossos olhares, quase que como se passasse a existir somente em
nosso imaginário.
Claro que Max continua e, muito provavelmente, continuará a ter
experiências diferenciadas em relação ao mundo que o circunda. Segundo a
autora Anabela Carter-Jonhson, mãe de autista: “Iris [sua filha] respondia
com um sorriso. Isso não significava que seu autismo havia desaparecido ou
que ela estava curada como por um milagre. Simplesmente, agora ela era
capaz de suportar os novos ambientes e a multidão por um período mais
longo”.
Desde o início deste trabalho, nunca tive a pretensão de ensinar algo,
apenas lançar luz, incluindo todos os questionamentos necessários, sobre essa
condição que mobiliza cada vez mais esforços em nossa sociedade. Então, se,
ainda que modestamente, eu pude contribuir para a construção de um novo
olhar a respeito do autismo, dou-me por satisfeita. De minha parte, a
intenção primordial foi, apropriando-me com todo respeito das habilidades
demonstradas por nosso querido Max, a de elaborar e organizar inúmeras
“gavetinhas” que ainda restavam abertas na trajetória de enfrentamento de
minha família, na qual obviamente estou incluída.
A mensagem que sobressai é precisamente a de superação: ser diferente ou
ter alguém diferente em sua família não tem que ser um problema. Pelo
contrário, segundo a escritora autista Mary Temple Grandin: “O mundo
precisa de mentes diferentes para trabalharem juntas”.
E eu faço minhas as palavras dela:
Talvez, seja exatamente essa diferença que faça a diferença.
Então, comemoremos a singularidade!
Há até quem diga que é uma felicidade ser diferente, pois a sociedade está
caminhando para se transformar. Sob essa perspectiva, os autistas seriam
pessoas mais evoluídas, porque o mundo funcionará de acordo com esse
novo olhar em um futuro próximo.
Considero ainda que a nossa bela missão será a de compreender esse
universo tão difuso e, de alguma forma, encontrar um lugar para acomodar
esses seres queridos. Refiro-me à possibilidade de invertermos o sinal e
aperfeiçoarmos também a nossa capacidade de interagir de fato com nossos
autistas.
Alguém já se deu conta de que o problema de conexão pode não ser
exclusivamente deles?
Se nos dedicarmos a compreender a sua percepção do mundo e a olhar
para fora através de novas janelas, aceitando a singularidade de cada um, já
será um bom começo. O início de um processo de adaptação à sua realidade,
para, assim, de fato, podermos ajudá-los a se adaptarem à existência neste
mundo.
Em um mundo ideal, essas crianças não precisariam mais tentar ser
“normais”; elas apenas precisariam ser boas naquilo que fazem.
Finalizo esta obra com uma mensagem positiva de uma pessoa que
conseguiu superar seu forte autismo infantil, tornando-se uma adulta
integrada à nossa sociedade. E só poderia ser de Mary Temple Grandin a
seguinte mensagem:

“Ao longo dos anos, li o suficiente para saber que ainda existem muitos pais, e até
especialistas, que acreditam que ‘quando você nasce autista, permanece autista’. Essa
crença é considerada a causa da vida triste e miserável de muitas crianças, que, como
eu, foram ‘diagnosticadas’ como autistas desde a primeira infância. Para essas
pessoas, as características do autismo não podem ser modificadas nem controladas.
No entanto, acredito sinceramente que sou uma prova viva do contrário”.

É nesse momento curioso que meu registro chega ao fim. Embora a maior
parte dos fatos narrados tenham ficado no passado, a história não acaba aqui,
porque nosso herói está muito bem, obrigada, e cada vez mais vivo! O que
também vale para o tema do autismo.
Ao mesmo tempo que a conclusão deste trabalho de resgate de memórias
íntimas e consulta a fontes diversas termina, tenho a sensação de dever
cumprido e a certeza de que ainda resta muito a dizer e a pesquisar...
Agradecimentos

“A beleza é uma flecha lenta.”


Nietzsche
A Rodrigo, por ter me emprestado sua história.
A Helena e Nelson, por terem acreditado em mim e me deixado embarcar
nesta aventura.
A todos os meus familiares, por terem estado ao meu lado
incondicionalmente.
A Christian, meu marido, pelo suporte de que sempre precisei.
A Júlia, por todas as informações técnicas contidas neste livro.
A Montana, pelo carinho com que relatou um pouco do que viveu com
Rodrigo.
A Ana Trevisan, pela sua ajuda sempre.
A editora Autografia, pela edição desta obra.
A Marco Polo, pelo encanto na correção do texto.
A meus familiares antepassados, pois, embora seus nomes não sejam
necessariamente citados – não os nominei um a um no decorrer da obra
visando a não confundir o leitor —, todos eles, de alguma forma, estiveram
presentes e inspiraram na construção dos personagens desta história.
Max, meu avô paterno; Juliette, minha avó paterna; João Roberto, meu
querido pai; Camilla, minha avó materna; Linzito, meu tio; Luís Augusto,
meu tio, irmão de minha mãe; Guiomar, minha tia, única homenageada em
vida; Maurício Augusto, meu avô materno; Lydia, minha mãe querida;
Yolanda, minha tia e madrinha; Wilhelm, meu bisavô paterno; Félix João
Max, também nomes do meu pai; Luís Antônio, meu querido primo; Judith,
minha tia; Maria Helena, minha muito querida tia, irmã da minha mãe,
conhecida como Badinha; Odette, minha tia; Gilda, minha tia; Josephine e
Vitalina, nome de minhas bisavós; Eufrásia, minha tia bisavó; Hubert, nosso
antepassado herói, condecorado por Napoleão Bonaparte em 1812 como
Chevalier de L’Ordre de La Légion d’Honneur; Bertha, um dos nomes da
minha avó paterna; André, meu primo belga; Amélia, conhecida como Mé,
nossa querida mãe de origem africana.

Em tempo: reconheço ter recorrido à minha longínqua árvore genealógica


para dar conta da árdua tarefa de denominar a desproporcional quantidade de
mulheres que participaram desta empreitada literária. Isso explica o porquê
dos nomes “démodés” utilizados na obra.
“Un bonheur tout uni nous devient ennuyeux. Il faut du haut et du bas dans la vie,
et les dificultés qui se melent aux choses reveillent les ardeurs, augmentent les plaisirs.”
“Uma felicidade perfeita se torna entediante para nós. Precisamos ter os altos e baixos
na vida, e as dificuldades que se misturam a essas coisas despertam as chamas,
aumentam os prazeres.”
Molière
“Quand on a bien cherche le bonheur, on ne le trouve jamais que dans la propre
maison.”
“Quando procuramos a felicidade, somente a encontramos dentro da nossa
própria casa.”
Voltaire
Bibliografia
ATYPICAL. Criada por Robia Rashid. Série Netflix, 2017 (1ª temporada).
BOUDET, Caroline. L’effet Louise. Paris: Stock, 2020.
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2018.
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litteraires de Shanghai Desclee de Brouwer, 2002/2010.
CHOUPIN, Catherine. Mon esprit mis à nu. Paris: Edição do autor, 2019.
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HARUIT, Hugo. L’empereur c’est moi: une enfance en autisme. Paris: L’Iconoclaste, 2013.
HIGASHIDA, Naoki. Sais-tu pourquoi je saute? Paris: Editions des Arenes, 2014.
HORS NORMES. Filme produzido por Nicolas Duval Adassovsky e dirigido por Oliver
Nakache e Eric Toledano, França, 2019.
ISAACSON, Rupert. L’enfant et le cheval de vent. Paris: Albin Michel, 2016.
JOUFFA, François; POUHIER, Frédéric. 300 proverbes du monde entier. Paris: Éditions First.
2010.
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KING, Rosie. How autism freed me to be myself (TED Talks), 2014.
LA GRANDE LIBRAIRIE. Criada por François Busnel. Série TV 5 Monde, 2008 (1ª
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LAMBERTERIE, Olivia de. Avec toutes mes sympathies. Paris: Éditions Stock, 2018.
L’ASSOCIATION “UN PAS VERS LA VIE”. Autisme: ce sont les familles qui en parlent le
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LE BIHAN, Samuel. Um bonheur que je ne souhaite à personne. Paris: Flammarion, 2018.
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________. The world needs all kind of minds (TED Talks). Melbourne: Rider, 2010.
TREFFERT, Darold. Extraordinary people. Nova York: Harper & Row, 1989.
Da mesma autora
NAEGELI, Regina. Destino China – um guia do estrangeiro na China: sentimentos, vivências e
impressões. São Paulo: Arte do Tempo, 2015.
NAEGELI, Regina. Incomparável Xuzhou. São Paulo: Arte do Tempo, 2018.

Serviços
Para atendimento de portadores de TEA – Transtorno do Espectro
Autista

Unidade pediátrica do Hospital Rios D’Or

<https://www.rededorsaoluiz.com.br/hospital/riosdor/servicos/unidade
-pediatrica>

Instituto Autismo e Vida

<http://www.autismoevida.org.br>

Associação de Apoio à Pessoa Autista – AAPA

<https://aapa.portal3.ong.br>

Associação Caminho Azul

<https://caminhoazul.com.br>

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