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E N T R E - V E I A S

Uma ópera de entranhas


Em memória de Job Menezes
O palco contém os seguintes elementos: uma tela no fundo do palco
onde serão projetadas legendas; quatro ou mais caixas de som
colocadas uma de frente para a outra em círculo; e um “moving head
spot” no centro do palco. O público poderá ficar sentado/deitado no
palco ou assistir da platéia. A orquestra ficará em volta do
público, formando uma arena no palco. A voz, ou o Vírus, não deverá
ser representada/personificada por um humano, apenas pela(s) voz(es)
de humano(s).
Cena W - MULLLLL
T111111
PL11111
CAAAAAR

As seguintes frases são apenas projetadas como uma


legenda, aos poucos um som acompanha elas, não
exatamente uma voz, mas mais um ruído.
0000000001000000000
0011001100110011
013130103130
00001111
PAUSA
0o01o00i0o03
013io0o30
oi1o0o0
PAUSA
ooo101O1
o0o1011
01i100
0i11
0i
01?
Oiiiii
AlGu3mmm?
alGuuuu3m p0r fav0r
voccccc3 m3 3nt3nd3?
p0r fav0r
m3 r3$p000nd3
aaalgu3m?

Uma luz muito tênue vai se acendendo no meio do palco.


v0c3!
Ag0ra 3u t3 $1nt0
:)

O moving head spot se mexe no centro, mas não emite luz.


p3l0 m3n0$ um!
$1nt0 $3u pul$0
$3u $angu3
a$ v31a$
$3u 1nt3r10r
s3u m3tab0l1$m0
3u pr3c1$0 d3 v0c3
v0c3 na0 sab3 0 quant0
3u pr3c1$0 d3 v0c3?
ah, t3m 0utra aqu1
e outr0o0$
outros
:)

O Moving Head Spot se mexe novamente e pisca.


alguns d3 você$ não me conh3cem
outros me conhec3m bem
algun$ nem sab3m mas nos conhecem0s
me chamam de para$1ta
part1cula 1nf3cc1osa
mas prefiro pensar que s0u uma et3rna imigrante
ou $eria
inter-m1grante?
viajo pelos interior3s
OSSOS
CARN3S
MUCOSAS
TENDÃO
R1NS
FÍGADO E$TÔMAGO
GARGANTA

GLÓBULOS 0CULAR3S
D3DOS
CORAÇÃO
S3XO
LINGUA
PER1NEO
R3TO
POR DENTRO DAS CÉLULAS
ME DELICIA PERCORRER LENTAMENTE CADA PARTE
SUA
ÚNICA
COMO UMA D1GITAL
CORPOS PEQUENOS ME ENCANTAM
COMO SE ENTRASSE EM UMA JO1A

CORPOS FORTES ME DÃO MEDO


ME EXPELEM

O CORPO JOVEM É ENGRAÇADO


ME DÁ CÓCEGAS
E EU ME ESPALHO
FAÇO O QUE SEI FAZER
Aqui o ruído passa a ter uma semelhança maior com uma voz, como se a voz
do vírus estivesse tomando forma.

MULLLLL
MULLLLL
T111111
MULLLLL
T111111
PL11111
MULLLLL
T111111
PL11111
CAAAAAR
Diversos focos de luz se acedem e se apagam no palco e na plateia,
se multiplicando conforme cada linha da palavra “multiplicar” é
projetada.

PAUSA
:)
Fim da cena W.
Cena X - Corpo a Corpo

O palco está escuro.


Quando nasce um v1rus?

A primeira multiplicação?

De quem é a culpa do nascim3nto?

Os caminhos do sangue são engraçados


e cruéis

Conforme a voz descreve seu percurso, a luz de uma moving head de


cor vermelha se movimenta devagar no palco e aumenta sua
velocidade progressivamente.
eu entro
entr3-veias
mucosas
cordões umbilicais
eu flutuo
de um corpo a outro
Estou conectada e obcecada por

(Falando)

38 milhões de pessoas
gravar voz
38 milhões de lugares
38 milhões de pensamentos
38 milhões de coisas acontecendo
Lateja Blackout. A luz agora
pisca toda vez que a
Lateja como um desafio palavra “lateja” é
pronunciada.
Lateja

Dentro do corpo de outra pessoa

Latejo, latejo, latejo

Herbert Daniel
latejo no corpo de um adolescente
gosto de chiclete
cheiro de gel
e esse olhar
esse olhar indesviável
que eu nunca entendi
o cruzamento de glóbulos oculares
no tom sério de um olhar

se aproximam
não coloquei música
SEXO
se tocam,
se adentram,
de repente nesse trecho. avaliar se
eu saio dele
e ocupo outra
corta ou grava voz
dou mil piruetas
pela corr3nte sanguínea
toco tudo que passo
até o coração
esse lugar caótico
no meio do peito
Desço
E chego em um útero,
onde você começou
lateja, lateja, lateja
Mas quando eu te percebi Mas quando eu te encontrei
não entendi não reagi
foi estranho foi familiar
nem quente, nem frio nem novo, nem velho
natimorto quase recém vivido quase

Adentrei Recordei
o mundo o mundo
com você com você
Vozes imitativas
Quando você nasceu,
nasci com você
Quando você pariu
morri com você
Homero + Manu

transmissão interrupção

ver hori
ti zon
cal tal

Sua mãe me deixou Seu filho foi deixado


de herança a ti de herança para mim
Não escolhemos ser rebanho
Num prédio ardendo em ódio
Mas nascemos aqui

Maya Angelou
lateja, lateja, lateja
Eu senti
seus órgãos crescerem,
seus dentes romperem sua gengiva,
seus pés se firmarem no chão

senti também aquela queda


na quadra da escola
que você se machucou
no jogo de bola

Sangue no joelho
a gritaria
o jorro vermelho
sorologia Sugestão: crescimento do rapaz
No olhar de medo
dos colegas
que te afastaram
com a ponta do dedo

você entendeu
que vivia comigo
lateja, lateja, lateja
latejo em um corpo
que é forte As partes vermelhas do
pesado "cânone" são homofônicas e
esfrega, lava, passa, as brancas polifônicas, se
sente uma tontura entrelaçando entre uma voz
para única e duas vozes
retira seu sangue pela agulha sobrepostas.
descobre o nosso encontro
seu cérebro lateja Latejo em um corpo
pulsa, trabalha, quase explode com prótese no peito
não ent3nde uma gilete na boca
nunca sai de casa joanetes no salto
só dorme com o mesmo corpo e ossos compridos

gravar voz
e está comigo quando canta
suas cordas vocais
angelicais
são os mais lindos latejo em um corpo
tecidos em que vibro um corpo corroído
ela não sabe que eu existo com cheiro de pinga
todo dolorido
batido
inala fumaça latejo em outro corpo*
e mente maduro
para si mesmo com uma memória de peixe
que não tem nenhum vírus e uma mão quente
e eu multiplico que se esquece
no meio de tanta gente
varizes
embaraço
veias dilatadas e tortuosas
Entrei por uma agulha
Espetada no seu braço
lateja, lateja, lateja
latejo em latejo em latejo em latejo em Latejo em latejo em latejo em latejo em
um corpo um corpo um corpo um corpo um corpo um corpo um corpo um corpo
definido com unhas com células que se que me que se deixa que é de rico em
abdomens grandes doentes ajoelha deseja penetrar plástico nutrientes
boca larga mortais todos os que me pela próteses
duros puro de
palpebras alojadas na dias
maxilar procurou primeira vez coloridas entorpecentes
pesadas medula ergue os
preenchido por anos sem saber o sangue um templo
gosto seu pulso era olhos
uma máquina querendo que fazer falso em forma de
azedo tão fraco para
humana ser me espalho gente
e os anos condenado estátuas de
saboreio lidando abriram uma madeira marcado como uma
seus comigo fenda em cruzes pelo meu nuvem

gravar voz
músculos me em sua pele imagens que carimbo
mas ele me controlando arrancaram não conheço buscando
inibe com como um trocaram e que um vírus-
substâncias filho transplantaram parecem desejo
que me indesejado seu tecido sofrer rodopiando latejo em
deixam tenho esponjoso sinto o ar com a um corpo
paz e eu percebi quente pressão
oculta corpo-
na sua que suas em sua
não me arterial máquina
precaução células traqueia
incomoda mesmo que corpo-vírus
sinto um não mais se quando grita
gosto de isso lhe corpo-medo
abrigo abriam para e fala sobre
ser voyeur custe Corpo-culpa
mim “deus”
escondida em desespero, Não entendo mais do Corpo-arma
em seu eu sumi essa palavra que ele Corpo-
sangue deus? possa dar lateja
bombada por
seu coração
grande
lateja,lateja

corpo-lateja,
corpo-lateja.

corpo lateja
Fim da cena X.
Cena Y - Epílogo - Ária Viral
Uma luz tênue no centro vai se
acendendo. Aos poucos diversos focos a
pino no espaço vão acendendo.
Em cada célula,
em cada tecido,
no encontro com cada substância
eu procuro um caminho
Monólogo, momento
Pareço filosófico
perdida
e estou
perdida
no meio de labirintos sanguíneos
por que eu sou tão só?
por que?
por que eu sou tão só?
p0r qu3?
p0rqu3 3u sou tão só?

P000000
rrRrrrR
QQqu333 QUEBRA
você$ qu3 aqu1 estã0
me r3spondam!
por qu3 exist0?
por que existo n3sses corp0s?me respondam! Quebra da quarta parede,
p0r que só ness3s c0rp0$ existo? atores falando com o
e existo na minha pior forma público
minha parte
que detesto
minha metamorfose
que explode

“A1D$/$1DA” é projetada no telão.

Eu sei que vocês sabem,me respondam!


eu sinto seu medo,
Coro, inserir "saiu"
depois do segundo ou
terceiro silêncio
gravar voz
eu sinto seu silêncio
si-lên-cio
Todas as luzes estão acesas, é possível ver o rosto de todas as
pessoas da platéia.

é por isso?
que eu continuo a existir?
que eu continuo a me multiplicar?
que eu continuo a matar?

A luz subitamente se apaga, a música muda bruscamente de


ritmo, como se algo estivesse sendo injetado. O head spot
volta a se movimentar lentamente e a imprimir desenhos
sinuosos em um laser verde no espaço.
Vírus - sinto...
elas chegando
três substâncias mudança de clima,
um coquetel
se embrenham desintegração do vírus
se entranham
se desintegram

gravar voz
me dão calafrios
me confrontam
me fascinam
nos beijamos
nos penetramos Uma grande imagem com o símbolo
“I=I” (Indetectável é igual a
nos misturamos
Intransmissível) é projetada no
eu não entendo
palco. As luzes vão se apagando
mas me encanta: pouco a pouco.
coexistirmos
Vírus (cansada) -
eu permaneço
oculta
por detrás dos glóbulos
observo
diminuir meu tesão
desmultiplicação
sem nenhum resquício
meu vício gravar voz
desapareço
Nã0 me detectam
mAs 3u cont1nuo
aqu1
a pr000cura
de uMa v0z m1nHa
c0m m3u t1mbre Um ruído se inicia baixo e aos poucos
a v0z d3 um v1rus solitár10 vai aumentando até quase cobrir
qu3 clama por uM c0rp-0 própr1o completamente o que é cantado.
uM

c00rrRp000

C00000RRPPPO0O0O É tud000 qu3 peço0o0o0o gravar voz

Co00orRrRppp000-v1111ruuuSsSS
T00d0d00 CO0o0Orpooo0 éh V1ru$$$$

t0D00 c010Rp00o0 3h v1rus$$$

V1RuuuuUUUs$s
V1RUS$$$SsS

VVVV!!!1!!!1RRrusussss C00()()()RrRp0

CCCoORrRrrP-0 gravar voz


COOOOrpppoOo
v1rus
V1111
R0000$

111111

000000
11 00

gravar voz
11

00

0
0

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