Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Uipirangi Câmara
Rangel Ramo
s
1
Elizabeth Johnson (1995) diz que a maneira de se falar de (ou sobre) Deus, ou a
linguagem apropriada em relação a qual é representado numa determinada comunidade,
revela não apenas o que, implicitamente se considera como verdade, como legítimo, mas
também modela, de forma profunda, a identidade que essa comunidade incorpora e por quais
valores orienta a sua práxis.
A Casa de Ló
O texto de Gênesis (Capítulo 19), relata um episódio intrigante. Ló, em um dos seus
momentos reflexivos em Sodoma, depara-se com dois homens estrangeiros e, reconhece em
sua face, características divinas, não há outra coisa a fazer: inclina-se perante os anjos
visitadores e lhes presta homenagem. Além disso, como bom cidadão e religioso, vê como sua
a responsabilidade a de oferecer-lhes hospedagem, alimentos e proteção em sua casa. A noite,
entretanto, não termina num sugerido descanso de Ló aos seus visitantes.
A Cidade de Sodoma
A localização exata das cidades bíblicas de Sodoma e Gomorra ainda é objeto de debate entre
arqueólogos e estudiosos. A Bíblia descreve a destruição dessas cidades como resultado do julgamento divino
devido à sua imoralidade e perversidade. A história de Sodoma e Gomorra é mencionada no Livro do Gênesis,
no Antigo Testamento, e é particularmente associada à história de Ló, sobrinho de Abraão.
De acordo com a Bíblia, Sodoma e Gomorra estavam localizadas na planície do rio Jordão, no sul do
Mar Morto, uma área hoje dividida entre Israel e Jordânia. A região era conhecida por ser fértil e bem irrigada,
comparada ao Jardim do Éden (Gênesis 13:10). Além de Sodoma e Gomorra, a planície abrigava outras três
cidades: Admá, Zeboim e Zoar (Bela).
Várias teorias têm sido propostas para a localização exata de Sodoma e Gomorra, incluindo:
1. Tell es-Safi (Tel Tzafit), identificado por alguns arqueólogos como o local de Gath, uma das cinco
cidades-estado filisteias mencionadas na Bíblia. Escavações neste local revelaram evidências de
destruição por fogo em um período que poderia coincidir com a narrativa bíblica.
2. As ruínas de Bab edh-Dhra e Numeira, localizadas na margem leste do Mar Morto, na Jordânia. Estudos
arqueológicos mostraram que ambas as cidades foram destruídas por volta de 2350-2067 a.C. Uma
teoria sugere que um terremoto, seguido por um incêndio, poderia ter causado a destruição desses
locais.
3. A região de Tall el-Hammam, também na Jordânia, que foi proposta como local de Sodoma por alguns
estudiosos. As escavações nesta área revelaram uma cidade que foi subitamente destruída e abandonada
por volta de 1650-1600 a.C.
É importante ressaltar que a localização exata e a veracidade histórica das cidades de Sodoma e Gomorra ainda
são objeto de debate, e não há um consenso geral entre os especialistas. Além disso, algumas pessoas interpretam
a história como uma alegoria ou metáfora, em vez de um relato histórico literal.
3
para que fossem usadas sexualmente em lugar dos seus divinos hóspedes: “Façam com elas o
que vocês quiserem” (Gênesis 19.8) disse o bondoso pai.
No texto original em hebraico do Gênesis 19:1-11, a palavra-chave relacionada ao abuso sexual é "( "ידעyada),
que é traduzida como "conhecer" em muitas versões da Bíblia. A palavra "yada" tem múltiplos significados e
pode se referir ao conhecimento em geral, mas também é usada em contextos onde se refere a relações
sexuais.
No entanto, vale ressaltar que a interpretação bíblica do pecado de Sodoma nem sempre se concentrou
exclusivamente na homossexualidade. Em outras partes da Bíblia, como no Livro de Ezequiel (Ezequiel 16:49-
50), o pecado de Sodoma é descrito como orgulho, gula, indiferença aos pobres e necessitados, e abominações
não especificadas. Uma das primeiras ocorrências conhecidas do termo "sodomita" pode ser encontrada nas
"Decretais" do Papa Gregório IX, que compilou as leis canônicas da Igreja no século XIII. No entanto, é
importante notar que o termo já deveria estar em uso antes dessa compilação e que seu surgimento é
provavelmente anterior ao papado de Gregório IX.
É difícil apontar uma única pessoa como o primeiro a usar a expressão "sodomia" na Idade Média. A palavra
provavelmente se desenvolveu ao longo do tempo e foi adotada por diferentes autores, teólogos e legisladores
em seus escritos e sermões para condenar comportamentos sexuais considerados imorais e pecaminosos.
Elizabeth Johnson, provavelmente responderia que não. Segundo ela, “as palavras
relativas a Deus são criaturas culturais, entrelaçadas aos costumes e feitos da comunidade dos
fiéis que as usavam”.(Johson, 1995).
Apesar desse caráter de incompletude, e provisoriedade, de uma linguagem
considerada apropriada em relação a Deus, para Elisabeth Johnson, pelo menos em princípio,
tal linguagem deve conter alguns pressupostos. O mais importante deles é o de valorização de
uma humanidade autêntica, aliada a uma contínua atitude de oposição e crítica à violação
4
dessa humanidade, principalmente quando essa violação é viabilizada pelo “sexismo que é em
si mesmo, um paradigma onipresente de um relacionamento que é infinito”. (Jonhson, 1995)
A plenitude da graça de Deus é conferida ao ser humano e independe de qualquer
identificação pessoal com o homem. Esse paradigma sexista é pecaminoso, contrário ao plano
de Deus e uma transgressão clara e inequívoca do compromisso de amar ao próximo, de
forma integral e integrante. Essa mentalidade sexista também é uma afronta ao próprio Deus,
porque desfigura a raça humana – sua criação, amada e feita à sua imagem e semelhança.
(Jonhson, 1995)
O Cristianismo não pode flertar com a desesperança, com o sofrimento, com o assédio,
com a aparência que agrada a todos e segrega a humanidade daquilo que lhe é mais caro: o
direito de viver. Embora inseridos num mundo de diferenças, de desumanidades, há de se ter
esperança da existência de algum lugar seguro, o mínimo que seja. Um lar, um coração
cristão, precisa ser sempre lugar de abrigo.
Na casa de Ló, pelo menos para suas filhas, isso não foi possível. Ainda que tenham
sido poupadas da experiência trágica do abuso psicológico e sexual, as filhas de Ló teriam que
conviver o resto de suas vidas com o desamparo de uma humanidade desigual - aquela que
não é hétero. Como seria na casa do outro lado da rua?
O diálogo sobre a humanidade na Teologia, no plano teórico - também prático, precisa
se firmar como uma necessidade que pressuponha reconfigurações e desconstruções internas.
Esse diálogo deve visar à aproximação e acolhimento da multiplicidade das pessoas que se
compreendem como outras, não normativas, normalizadas, requerendo, portanto, que se faça
um movimento exclusivamente interno, capaz de formular uma possibilidade de entendimento
que dê conta de construir uma relação que pressuponha inclusão e apoio. Esse movimento em
prol de uma construção teórico-prática, que vise o acolhimento e inclusão da pessoa humana,
na configuração contemporânea do Cristianismo no Brasil, é imprescindível.
No entanto, pensar possibilidades de inclusão, apoio e convivência que abarquem
configurações identitárias múltiplas na relação com o Cristianismo, não é possível a partir de
uma matriz heterossexista, principalmente porque sua lógica e orientação limitam tal
5
possibilidade. Permanecer em tal disposição requer de todos os envolvidos, uma reconstrução 1
teórica de matriz alternativa que dê conta da multiplicidade e complexidade identitária dos
sujeitos que compõem (e buscam compor) o cenário Cristão Brasileiro.
1
Sem essa re(des)construção a Teologia continuará a pensar sob a mesma episteme (no sentido de Foucault:
sistema escondido de pressupostos e processos de pensamento) estruturada a partir da dualidade
masculino/feminino (macho e Fêmea). FOCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das
ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1985.
6
O comprometimento com um novo paradigma de matriz libertadora é decisivo para
que a linguagem, a partir da qual falamos de Deus, seja uma linguagem apropriada para se
falar de “Deus”. Essa linguagem não surge simplesmente com uma troca de vocábulos,
tampouco com acréscimos de gênero ao conteúdo do “símbolo Deus”. Embora o uso de
metáforas possa ser enriquecedor, tal linguagem só surgirá quando nela estiver contida a
plenitude de identidades humanas que possam servir de símbolo divino em “proporções
equivalentes”. E, em tal projeto, é preciso que se supere uma matriz binária e rígida presente
nas relações e referência de gênero transferidas a Deus, fazendo com que a essa representação
legitime uma existência humana reduzida a dois absolutos relativamente opostos – masculino
e feminino, nesse caso, o próprio conceito de Deus se torna refém de tal epistemologia.
(Johnson, 1995).
7
idólatra. E tal fixação, “numa única imagem poderá ser interrompida, e a verdade do mistério
de Deus, associada à libertação de todos os seres humanos e de todo planeta emergirá para o
nosso tempo.” Para Johnson (1995), todo esse projeto teórico se põe como um elemento
essencial para reorganização de uma situação religiosa injusta e deficiente e, para qual, vale o
esforço investigativo de um mundo suprimido, cujo destino é o encontro com um novo
conjunto de todo o gênero humano.
Referências
BEAUVOIR, S. O segundo sexo. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2009.
BERGER, P. O dossel sagrado: Elementos para uma teoria sociológica da religião. São
Paulo: Paulinas, 1985.
2
Partir de histórias de vidas de mulheres, relatos de exclusão, dominação e exploração tem sido marca
características de inúmeras articulações elaboradas por teólogas feministas. Ver, por exemplo: DUARTE, Sandra
de Souza (Org.) Gênero e Religião no Brasil: ensaios feministas. São Bernardo do Campo: Universidade
Metodista de São Paulo: 2006.
8
BOSWELL, John. Cristianismo, tolerância social y homosexualidad. Barcelona:
Muchinik, 1993.
BRENNER, A. et al. Gênesis a partir de uma leitura de gênero. São Paulo: Paulinas, 2000.
CÂMARA, U.F.S. O armário de Deus no armário dos homens ou por que uma pessoa
homossexual não pode ser cristão. Curitiba: Appris, 2019.
CARMIÑA, N. «Violación sexual, una mirada teológica, de la muerte a la vida», em: Revista
Col. Teología y Sociedad, Teología en diálogo. Pontificia Universidad Javeriana, Cali, 2004.
DUARTE, Sandra de Souza (Org.) Gênero e Religião no Brasil: ensaios feministas. São
Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo: 2006.
FOCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São
Paulo: Martins Fontes, 1985.
HELMINIAK, Daniel A.O que a Bíblia realmente diz sobre a homossexualidade. São
Paulo: Summus, 1998.