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A BELA MORTE E O BELO MORTO: DUAS VISÕES ACERCA DA

MORTE EM HOMERO

Bruna Moraes da Silva e Renata Cardoso de Sousa*

1. INTRODUÇÃO

Vários autores contemporâneos se debruçam sobre a questão da bela morte,

como Nicole Loraux, Jean-Pierre Vernant e Teodoro Rennó Assunção. Entretanto,

temos por intuito analisar nesse artigo essas duas últimas visões acerca da morte dentro

da Ilíada que se contrastam no âmbito acadêmico.

Enquanto Vernant vê no ato de morrer jovem em campo de batalha um modo

belo de se deparar com a morte, para que assim o herói permaneça na memória coletiva,

Rennó se foca nos feitos realizados durante a guerra, definindo que, para ser

rememorado o necessário é matar e não morrer de determinada forma.

Porém, nosso objetivo não se atém a defender ou refutar uma das teorias, e sim

verificar como ambas estão presentes no contexto homérico e aparecem nos versos do

aedo. Examinaremos ao longo do artigo as características dessas visões e como elas se

apresentam na Ilíada.

*
Graduandas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), bolsistas de iniciação científica pelo
CNPq/PIBIC. Graduandas em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), cursando o
sexto período. Membros do Laboratório de História Antiga (LHIA) e bolsistas de Iniciação Científica do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq/PIBIC). Orientadas pelo
Professor Doutor Fábio de Souza Lessa. E-mails: renata_cardoso@ufrj.br; brunams1990@yahoo.com.br.
2. A BELA MORTE VERNANTIANA

A concepção de bela morte, defendida por Jean-Pierre Vernant, foi expressa no

artigo A bela morte e o cadáver ultrajado (1978), além de poder ser encontrada em

outras de suas obras.

Antes de definirmos o que é morrer belamente, faz-se necessário ressaltar que o

termo bela morte não aparece nas epopeias de Homero: é cunhado a posteriori e só

pode ser encontrado no período políade, na oração fúnebre de Péricles, narrada por

Tucídides em seu A Guerra do Peloponeso.

A bela morte para Vernant consiste, principalmente, em morrer jovem em campo

de batalha, demonstrando toda virilidade, honra e coragem. Além disso, o morto deveria

ter um funeral completo, assim como ter seus feitos eternizados pelo canto do poeta.

E por que morrer belamente era um feito glorioso? Morrer jovem em batalha é

ser eternizado na memória coletiva como um homem belo e valoroso. Em uma

sociedade agonística, na qual cada homem vive em função do outro, a verdadeira morte

é o esquecimento pela sociedade. Morrendo belamente o herói será rememorado. Ele

morre jovem, mas sua figura permanece eterna. Isso seria uma resposta dos gregos à

fatalidade da morte. Estariam positivando-a através da memória, de uma nova condição

de existência social.

Está enraizado no homem homérico o desejo de escapar da velhice e da morte:

“Ultrapassa-se a morte acolhendo-a em vez de a sofrer, tornando-a a aposta


constante de uma vida que toma, assim, valor exemplar e que os homens
celebrarão como um modelo de ‘glória imorredoura’” (VERNANT, 1978, p.
40).
Em oposição à bela morte estaria a feia morte. Essa seria a morte de um ancião

em batalha e em decorrência de sua velhice, como é o caso de Odisseu. Isso é evidente em

uma passagem da própria Ilíada:

“[...] A um moço que tomba no campo da luta,


é decoroso jazer trespassado no solo fecundo;
belo de ver é ele sempre, apesar de sem vida encontrar-se.
Mas profanarem os cães as vergonhas, a cândida barba
e a veneranda cabeça de um velho que a vida perdesse,
é para os míseros homens, sem dúvida, o quadro mais triste”. (HOMERO.
Ilíada, XXII, vv. 71-76).

Outro aspecto que caracterizaria a feia morte é morrer ferido pelas costas,

demonstrando que o homem estaria fugindo de seu inimigo. Os personagens também

poderiam aferir a feia morte aos que conseguiram matar. Como falamos acima, o que

consiste morrer belamente é manter sua imagem de um homem belo na memória social.

Através do aikía, do ultraje ao corpo do inimigo, conseguia-se retirar sua possibilidade

de atingir uma bela morte, acabando com a beleza de seu corpo:

“O aikía, o ultraje, consiste em desfigurar, em desumanizar o corpo do


adversário, em destruir nele todos os valores que nele se encarnam, valores
indissoluvelmente sociais, religiosos, estéticos e pessoais”. (VERNANT,
2009, p. 429).

Em resumo, Jean-Pierre Vernant defende que há um “melhor modo de morrer”

para os heróis homéricos e esse seria morrer jovem em campo de batalha.

3. O BELO MORTO DE RENNÓ

A concepção de belo morto foi mostrada por Rennó na revista Discurso, no seu

artigo intitulado Nota crítica à bela morte vernantiana (1994/1995). Neste, ele se utiliza

das mesmas passagens de Vernant para ir de encontro à ideia de bela morte que esse
autor expôs, mostrando que para o herói, era o feito de matar o mais importante e não o

de morrer.

Desse modo, temos três falas principais de personagens as quais Rennó se

utilizará para refutar a ideia de Vernant: a de Heitor no Canto XXII, a de Sárpedon no

Canto XII e a de Aquiles no Canto IX. Reproduzamo-nas: “Que, pelo menos, obscuro

não venha a morrer, inativo; hei de fazer algo digno, que chegue ao porvir, exaltado.”

(HOMERO. Ilíada, XXII, vv. 304-305). Aqui, para Rennó, não será a morte que dará a

Heitor seu reconhecimento, sua glória: são os seus feitos em vida (o “fazer algo digno”)

que o farão.

“Por isso tudo nos cumpre ocupar na vanguarda dos Lícios o posto de honra e
estar sempre onde a luta exigir mais esforço para que possa dizer qualquer
Lício de forte armadura: ‘Sem grandes títulos de honra não é que na Lícia
governam os nossos reis, e consomem vitelas vistosas, bebendo vinho de
doce paladar. É bem grande o vigor que demonstram, quando na frente dos
nossos guerreiros o inimigo acometem’.” (HOMERO. Ilíada, XII, vv. 315-
321).

Nessa fala de Sárpedon, percebe-se que o feito heroico não é morrer em batalha,

é matar, “acometer o inimigo”, nas palavras desse personagem. Já na seguinte

passagem, “(...) mas a alma humana, uma vez escapada do encerro dos dentes, não mais

se deixa prender, sem podermos, de novo, ganhá-la.” (HOMERO. Ilíada, IX, vv. 408-

409), Aquiles deixa claro que, para ele obter a glória e fazer algo heroico é preciso estar

vivo, sendo a morte, pois, o fim da realização dos seus feitos. De nada adianta ser o

melhor dos aqueus se a psyché, a alma, a vida, não estiver mais no corpo.

Para Rennó, assim como para Nicole Loraux, Homero não mata um herói sem

que isso seja necessário, já que sua morte seria o fim de suas façanhas. Por exemplo,

Pátroclo é um guerreiro de grande areté (virtude), não é necessária a sua morte;


entretanto, ela ocorre porque apenas ela despertará em Aquiles o ânimo de retornar à

batalha e vingar seu amigo morto. A morte de Pátroclo dará dinâmica à narrativa e fará

com que Aquiles pague pela sua hýbris (desmedida) cometida contra Agamêmnon no

Canto I.

4. OCORRÊNCIAS NA ILÍADA DE AMBAS CONCEPÇÕES

Apesar de termos apresentado duas percepções díspares acerca da morte, não

pretendemos defender que apenas uma delas se apresenta na Ilíada e sim que ambas

podem ser encontradas nos versos de Homero. Nas seguintes passagens, por exemplo,

podemos perceber uma concepção vernantiana da bela morte: “‘Sede homens, amigos,

ânimo forte, mutuamente ciosos da honra no duro embate. A morte poupa mais aos

bravos que aos fujões: nem socorro, nem glória a estes cabe’” (HOMERO. Ilíada., V,

vv. 529-532). Aqui, nessa exortação, fica claro que a bela morte é designada apenas aos

guerreiros bravos; os que fogem não têm direito a ela, uma vez que, ao se retirarem do

campo de batalha, se isentam dela. Também aqui fica a ideia de que a glória heroica só

cabe àqueles que tombam em combate.

Na passagem “não é desonra morrer lutando pela pátria; a salvo esposa e filhos

estão, bens e casa intactos, quando os Gregos com suas naus regressarem à terra

nativa’” (HOMERO. Ilíada, XV, v.495-498), fica também a ideia de uma morte bela no

campo de batalha: é honroso morrer lutando pelos seus companheiros. Entretanto, aqui

não se exclui a possibilidade de desfrutar de uma vida longa num retorno à casa, após

atos honrosos na luta.

No que toca à concepção de Rennó, a máxima que podemos encontrar na Ilíada

está presente nesses versos que se seguem:


“Se Febo Apolo, porém, me fizer vencedor do adversário, despojá-lo-ei da
armadura e, levando-a para Ílio sagrada, no templo irei pendurá-la de Apolo,
frecheiro infalível, mas o cadáver será restituído aos navios simétricos, para
que os fortes Aquivos cacheados lhe dêem sepultura e um monumento lhe
elevem na margem do largo Helesponto, para que possam dizer as pessoas
dos tempos vindoiros, quando, em seus barcos de remos, cruzarem o mar cor
de vinho: ‘Eis o sepulcro de um homem que a vida perdeu há bem tempo;
pelo admirável Heitor, em combate esforçado, foi morto’. Isso dirão,
certamente; imortal há de ser minha glória” (HOMERO. Ilíada, VII, vv. 81-
91).
Como pudemos perceber, quem levará a glória não será o morto, mas o seu

assassino. Seu nome nem é mencionado nessa fala de Heitor, denotando essa ideia.

Outra passagem denota a concepção de Rennó, à medida que mostra a importância de

fazer algo grandioso, em vida, para legar à memória das próximas gerações: “Não quero

vil e sem glória morrer. Algo de grande quero aos vindouros legar. ’” (HOMERO.

Ilíada., XXII, vv. 304-306).

5. CONCLUSÃO

Apesar de Jean-Pierre Vernant e Tedoro Rennó nos apresentarem visões díspares

a respeito da morte, o nosso artigo propôs não defender um ou julgar outro, e sim

verificar que ambas as teorias aparecem na Ilíada.

As noções de bela morte e de belo morto, inclusive, não são nem mesmo

contemporâneas à Ilíada, fazendo com que os estudos de ambos acabem sendo, de certo

modo, discussões anacrônicas.

O que importa, para nós, é nos debruçarmos sobre a Ilíada e verificarmos como

era a concepção de morte para os contemporâneos de Homero; discutir de maneira

unilateral essa questão da bela morte é improfícuo para a compreensão desse tema.

6.0 Documentação textual

HOMERO. Ilíada. Tradução, Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Ediouro, 2009.
HOMERO. Ilíada – 2 vols. Tradução, Haroldo de Campos. São Paulo: Arx, 2002/2003.

7.0 Bibliografia

ASSUNÇÃO, Teodoro Rennó. Nota crítica à bela morte vernantiana. Clássica, São

Paulo, v. 7/8, 1994/1995, p. 56-62.

MALTA, André. A selvagem perdição: erro e ruína na Ilíada. São Paulo: Odysseus

Editora, 2006.

SABINO, Carmen Lucia Martins. A construção do herói grego e o modelo de bela

morte em Atenas (séculos VIII ao V a.C.). 2007. 116c. Monografia. UFRJ, Rio de

Janeiro.

VERNANT, Jean-Pierre. A bela morte e o cadáver ultrajado. Tradução, Elisa A.

Kossovitch e João. A. Hansen. Discurso, São Paulo, Editora Ciências Humanas, n. 9,

1978, p. 31-62.

__________. Psykhé: Duplo do corpo ou reflexo do divino? In: Entre Mito e Política.

Tradução, Cristina Murachco. 2ª ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,

2009.

__________. L'individu, la mort, l'amour: Soi-même et l'autre en Grèce ancienne.

Paris: Gallimard, 1989.

__________. A morte heróica entre os gregos. In: A Travessia das Fronteiras: Entre

Mito e Política II. Tradução, Mary Amazonas Leite de Barros. São Paulo: Editora da

Universidade de São Paulo, 2009.

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