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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

PATRICIA RILLIANE GOMES DA SILVA

A TRAJETÓRIA OCULTA DO MEME

ENSAIO SOBRE O CONTÁGIO NO MUNDO DIGITAL

Natal/RN

2023
PATRICIA RILLIANE GOMES DA SILVA

A TRAJETÓRIA OCULTA DO MEME

ENSAIO SOBRE O CONTÁGIO NO MUNDO DIGITAL

Tese apresentada ao Programa de


Pós-graduação em Ciências Sociais da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
como exigência para obtenção do título de
doutora em Ciências Sociais.

Natal/RN

2023
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes -
CCHLA

Silva, Patrícia Rilliane Gomes da.


A trajetória oculta do meme : ensaio sobre o contágio no
mundo digital / Patrícia Rilliane Gomes da Silva. - Natal, 2023.
149 f.: il.

Tese (doutorado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e


Artes, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais,
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2023.
Orientador: Prof. Dr. Orivaldo Pimentel Lopes Júnior.

1. Antropologia dos modernos. 2. Memes. 3. Regime de


enunciação. 4. Teoria Ator-Rede. I. Lopes Júnior, Orivaldo
Pimentel. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 572.026

Elaborado por Raphael Lorenzo Lopes Ramos Fagundes - CRB-15 912


PATRICIA RILLIANE GOMES DA SILVA

A TRAJETÓRIA OCULTA DO MEME

ENSAIO SOBRE O CONTÁGIO NO MUNDO DIGITAL

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da


Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como exigência para obtenção do
título de doutora em Ciências Sociais.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________________

Prof. Dr. Orivaldo Pimentel Lopes Júnior - Orientador

___________________________________________________________________

Prof. Dr. Alexsandro Galeno Araújo Dantas (membro interno - UFRN)

___________________________________________________________________

Prof. Dr. Daniel Dantas Lemos (membro interno - UFRN)

___________________________________________________________________

Prof. Dr. Jean Segata (membro externo - UFRGS)

___________________________________________________________________

Prof. Dr. Francisco Jadson Silva Maia (membro externo - INCT-CPCT)

Natal, 24 de março de 2023


Com amor, para Bruno Caldas
AGRADECIMENTOS

Ao professor Orivaldo pela parceria do conhecimento nesses quatro anos sob sua
orientação.
Ao querido professor Homero, que leu cuidadosamente esta tese e, apesar das
discordâncias teóricas, esteve disponível para ajudar.
Aos professores que aceitaram o convite para compor a banca de defesa desta tese.
Às professoras Josimey Costa da Silva e Eloísa Klein pelas contribuições valiosas
na qualificação.
Aos funcionários do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais (PPGCS)
pelo apoio e atenção.
Aos amigos e co-orientadores, Cristina, Jadson, Rebekka, Maria Rita, Germano e
Ana Paula, pelas conversas descontraídas sobre a vida acadêmica, acompanhadas
de comida e risos (ou choros).
Ao meu companheiro, Bruno, que esteve do meu lado nessa jornada.
À dona Santa e seu Didil, meus pais, minha inspiração para os estudos.
À tia Carol, por me lembrar que estudar é resistência.
À minha avó, dona Maria, por acreditar em mim e ter orgulho (exagerado) de tudo
que faço.
À Capes, pelo financiamento desta pesquisa.
RESUMO

O objetivo desta tese é contribuir com a construção de uma antropologia dos


modernos, ou seja, com o estudo do sistema de valores das sociedades ocidentais.
Esse estudo foi proposto por Bruno Latour (2019), a fim de realizar uma pesquisa
coletiva acerca dos modos de existência, mediadores da realidade, a partir da Teoria
Ator-Rede, segundo a qual, o social deve ser explicado por meio de associações
específicas que compõem o ato de conversar; trata-se de condições elementares
que, antes de se agregarem na composição do discurso, precedem todas as
definições de instituições, de sujeito ou de grupo. Sob tal enfoque, estudou-se o
modo de existência do Meme, bem como ele se insere nessas associações. Foi
realizado um retorno às condições elementares do discurso e uma fragmentação no
que esta tese chama de falar memeticamente: descreveu-se que essa fala se
articula para mediar o contágio à distância entre pessoas fisicamente distantes
(hiato); flexibilizando scripts por meio da resolução antecipada de conflitos
(trajetória); e objetivando-se quando oferece uma via de crenças e desejos a ser
imitada (condição de felicidade); sendo um micro processo ritualizado com cultos
aos deuses fe(i)tiches modernos denominados de curtidas, comentários favoráveis e
reposts (seres do Meme); resultando no aumento da quantidade social (alteração na
realidade). Dessa forma, esta tese afirma que o Meme é uma Rede do tipo
homogênea, cuja fruição, necessariamente em associação com outras Redes do
mesmo tipo, culmina no contágio, na coesão psíquica de um grupo, uma situação ou
um acontecimento social.

Palavras-chave: Antropologia dos modernos; Meme; Regime de enunciação; Teoria


Ator-Rede.
ABSTRACT

The aim of this thesis is to contribute to the construction of an anthropology of the


modern, that is, to the study of the value system of Western societies. This study was
proposed by Bruno Latour (2019), in order to conduct a collective research about the
modes of existence, mediators of reality, from the Actor-Network Theory, according to
which, the social should be explained through specific associations that make up the
act of conversation; it is about elementary conditions that, before they are
aggregated in the composition of the discourse, precede all definitions of institutions,
subject or group. From this perspective, the Meme's mode of existence was studied,
as well as how it fits into these associations. A return was made to the elementary
conditions of discourse and a fragmentation into what this thesis calls memetic
speech: it was described that such speech is articulated to mediate contagion at a
distance between physically distant people (hiatus); flexing scripts through early
conflict resolution (trajectory); and objectifying itself when it offers a pathway of
beliefs and desires to be emulated (condition of happiness); being a ritualized micro
process with cults to modern fe(i)tich gods called likes, favorable comments, and
reposts (beings of the Meme); resulting in increased social quantity (alteration in
reality). Thus, this thesis states that the Meme is a Network of the homogeneous
type, whose fruition, necessarily in association with other Networks of the same type,
culminates in contagion, in the psychic cohesion of a group, a situation, or a social
event.

Keywords: Anthropology of the modern; Meme; Regime of enunciation;


Actor-Network Theory.
RESUMEN

El objetivo de esta tesis es contribuir a la construcción de una antropología de lo


moderno, es decir, con el estudio del sistema de valores de las sociedades
occidentales. Este estudio fue propuesto por Bruno Latour (2019), para realizar una
investigación colectiva sobre los modos de existencia, mediadores de la realidad,
desde la Teoría del Actor-Red, según la cual, lo social debe explicarse a través de
asociaciones específicas que conforman el acto de conversar; se trata de
condiciones elementales que, antes de agregarse en la composición del discurso,
preceden a toda definición de instituciones, sujeto o grupo. Desde esta perspectiva,
estudiamos el modo de existencia del meme y cómo encaja en estas asociaciones.
Se produjo un retorno a las condiciones elementales del discurso y una
fragmentación en lo que esta tesis denomina discurso memético: se describió que
este discurso se articula para mediar el contagio a distancia entre personas
físicamente distantes (hiato); flexibilizando guiones a través de la resolución
temprana de conflictos (trayectoria); y objetivándose cuando ofrece una vía de
creencias y deseos a emular (condición de felicidad); siendo un microproceso
ritualizado con cultos a dioses fe(i)ticos modernos llamados likes, comentarios
favorables y reposts (seres del Meme); resultando en un aumento de la cantidad
social (alteración de la realidad). De este modo, esta tesis afirma que el Meme es
una Red de tipo homogéneo, cuya fructificación, necesariamente en asociación con
otras Redes del mismo tipo, culmina en el contagio, en la cohesión psíquica de un
grupo, de una situación o de un acontecimiento social.

Palabras clave: Antropología de lo moderno; Meme; Régimen de enunciación;


Teoría del Actor-Red.
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Esquema para introduzir a Teoria Ator-Rede.


Figura 2 – Foto da obra de arte intitulada Galáxias formando-se ao longo dos fios,
como gotículas ao longo das costas de uma teia de aranha, de Tomás Saraceno,
exposta na Bienal de Veneza, Itália (2009).
Figura 3 – Esforço discursivo de reagregar o social.
Figura 4 – Cruzamento entre os seres da Ficção e os seres do Apego à maneira do
Meme.
Figura 5 – Achado expressivo famoso entre os brasileiros, que ganhou repercussão
fora do Brasil em 2016.
Figura 6 – Achado expressivo da imagem 5 em sua formatação mais famosa.
Figura 7 – Postagem produzida pelo Website humorístico intitulado 9GAG.
Figura 8 –Cruzamento entre os seres da Ficção, do Apego e da Metamorfose à
maneira do Meme.
Figura 9 – Imagem da personagem Nazaré Tedesco com legenda citando uma frase
usada por ela própria na novela Senhora do destino (2004).
Figura 10 – Nazaré Tedesco oferece “ajuda” à Maria do Carmo, planejando roubar o
bebê.
Figura 11 – Nazaré e madame Berthe Legrand se preparando para receber José
Carlos depois do “parto”.
Figura 12 – Nazaré empurra o marido da escada.
Figura 13 – Postagem usando uma imagem da Nazaré editada com legenda
referente ao ato de empurrar da escada como uma atitude marcante da
personagem, para figurar a sensação de estar incomodado com algo ou alguém
impertinente.
Figura 14 – Repost na plataforma digital Twitter de uma postagem afirmando que
chegou a pensar que a confuse blonde seria a Julia Robert.
Figura 15 – Achado expressivo mais famoso Nazaré Tedesco.
Figura 16 – Achado expressivo mais famoso Nazaré Tedesco editado com legenda
e em exposição no #MuseudeMeme.
Figura 17 – Edição mais usada da Math lady em exposição no #MuseudeMeme.
Figura 18 – Cruzamento entre os seres da Ficção, do Apego, da Metamorfose, da
Organização e da Moral à maneira do Meme.
Figura 19 – Nazaré Tedesco.
Figura 20 – Nazaré Tedesco na cadeia.
Figura 21 – Nazaré sendo perseguida após sequestrar a filha de Isabel.
Figura 22 – Nazaré percebendo que não terá êxito no sequestro de um bebê dessa
vez.
Figura 23 – Nazaré devolvendo o bebê e se despedindo antes de se jogar.
Figura 24 – Edição feita em razão da alta do preço do arroz.
Figura 25 – Postagem na plataforma digital Twitter sobre o fato da Nazaré ter
repercutido em 2016 entre internautas estadunidenses.
Figura 26 – Contágio entre indivíduos fisicamente distantes, subjetivação no mundo
digital.
Figura 27 – Postagem na plataforma digital Twitter, cuja legenda é uma das frases
mais populares da própria Nazaré que expressa sua autoestima.
Figura 28 – Postagem cuja edição exemplifica a substituição dos elementos do
contágio por aproximação física por achados expressivos.
Figura 29 – Nazaré conversando com o amante antes de jogar o ventilador na
piscina com o amante dentro.
Figura 30 – Conversação na plataforma digital Twitter sobre os cortes de algumas
cenas na segunda exibição da novela Senhora do destino.
Figura 31 – Edição para efeito de comparação entre Argueta e Nazaré Tedesco feita
por internautas brasileiros.
Figura 32 – Edição usando os registros de Argueta como achado expressivo para se
referir à sensação acerca do trabalho de conclusão de curso universitário.
Figura 33 – Condição conflituosa do mundo digital.
Figura 34 – Círculo político protetor da continuidade dos grupos: trajetória do regime
de enunciação da Política.
LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Encargos do Meme a serem preenchidos.


Quadro 2 – Resumo do estado da investigação apresentada no relatório.
Encontram-se em linha os quinze modos reconhecidos até agora, reunidos em cinco
grupos. Nas colunas estão as quatro questões canônicas às quais todos os modos
foram submetidos: qual é o hiato e a trajetória que lhes são próprios (coluna 1 e 2);
quais são as condições de felicidade e de infelicidade (coluna 3); quais são os seres
que devem preparar para instaurar (coluna 4); finalmente, qual a alteração que sofre
a cada ocasião o ser-enquanto-outro (coluna 5).
Quadro 3 – Primeira questão respondida sobre os encargos do Meme: qual é o hiato
preenchido pelo Meme no processo discursivo de fabricação e manutenção de
grupos?
Quadro 4 – Segunda questão respondida sobre os encargos do Meme: quais são os
seres instaurados para auxiliar no preenchimento do hiato?
Quadro 5 – Terceira questão respondida sobre os encargos do Meme: qual é a
alteração na realidade resultante do processo de preenchimento do hiato?
Quadro 6 – Quarta questão respondida sobre os encargos do Meme: qual é a
condição de felicidade/infelicidade no processo de preenchimento do hiato?
Quadro 7 – Quinta questão respondida sobre os encargos do Meme: qual é a
trajetória percorrida no preenchimento do hiato?
Quadro 8 – Encargos da Política e encargos do Meme.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 12
1. CAPÍTULO 1 – UM MUNDO REAL PARA SITUAR O DIGITAL 33
2. CAPÍTULO 2 – A TRAJETÓRIA OCULTA DO MEME 68
3. CAPÍTULO 3 – POSSESSÃO 94
4. CAPÍTULO 4 – VIBRAÇÃO DAS FORMAS ARGUMENTATIVAS 116
CONSIDERAÇÕES MEDIADAS 137
REFERÊNCIAS 143
12

INTRODUÇÃO

O OBJETO

O mistério que cerca o limiar entre “se tornar” (ou não) um Meme1 na internet
é o mesmo que cerca a escolha sociológica entre, por exemplo, Émile Durkheim e
Gabriel Tarde em uma tese de doutorado como esta. Ambas as escolhas,
inevitavelmente, perpassam pela inconstância e descontinuidade de associações
infinitesimais, imprevisíveis e imensuráveis, livres demais para se pretender delimitar
um fenômeno social a partir delas. Todavia, é justamente essa inconstância e
descontinuidade que garante a continuidade tanto do Meme quanto de uma
perspectiva sociológica, não porque são a mesma coisa, mas porque compõem o
mesmo modo de existência: o social2. Este atravessa o seguimento das conexões
heterogêneas, porquanto, para existir, precisa ser retraçado por meio de mudanças
sutis na conexão de recursos não sociais (LATOUR, 2012b). Sob tal enfoque, o
Meme é apresentado como um modo específico de fazer essa travessia, cuja
importância reside na manutenção dos grupos.
O cerne da questão, portanto, consiste no fato de que o social não está
pronto. Para trazê-lo à vida, Latour (2019) oferece um caminho, a Teoria Ator-Rede,
cheio de sinalizações, a fim de que o pesquisador não se perca e mantenha-se bem
situado. Esse caminho é iniciado com uma analogia entre o social e a logística das
Redes, baseada no fato de que não se pode dispensar a articulação dispendiosa
que garante a existência da sociedade, a qual nunca está pronta, dada e plena, está
sempre se fazendo e refazendo. Mas, onde e quando o Meme se situa nesse
processo? Primeiro, vamos focar na logística mencionada (esquematizada na figura
1), depois, vamos compreender como ela pode ser útil para perceber a consistência
processual do que a perspectiva sociológica herdeira de Gabriel Tarde define como
social. O aspecto crucial a ser sublinhado inicialmente, é que o termo Rede remete
1
A expressão Meme é usada no singular por esta tese, porque, como se espera deixar claro até o
término da leitura do segundo capítulo, ele é definido por meio da importância de sua Técnica na
articulação entre o mundo e o pensamento.
2
Bruno Latour (2012b) chega a afirmar que o social não existe. Mas, ele trabalha com a noção de
ser-enquanto-outro (LATOUR, 2019), segundo a qual, para existir é preciso, necessariamente, passar
por outros, e isso vale para todos os existentes, inclusive o social. Dessa forma, a afirmação de que o
social não existe é uma provocação relativa ao fato de que sem mediações, sem a associação entre
coisas não sociais em si, o social não pode existir.
13

tanto à articulação de elementos heterogêneos quanto àquilo que atravessa tal


articulação de forma contínua e homogênea, conforme é possível perceber no
esquema da figura 1.

FIGURA 1 – ESQUEMA PARA INTRODUZIR A TEORIA ATOR-REDE.

Fonte: autoria própria

Dito de outra forma, Rede é tanto aquilo que desloca quanto aquilo que faz
deslocar, o que corresponde a dois modos de ser uma Rede, o oleoduto e o
petróleo, o encanamento e a água, por exemplo. Ademais, importa ainda notar que a
Rede homogênea depende da Rede híbrida para acontecer e continuar existindo.
Dito isto, podemos retomar a analogia supramencionada, a Teoria Ator-Rede parte
dessa logística com a finalidade de oferecer ao pensamento um caminho capaz de
explicar a fabricação da realidade, resultante do cruzamento de dois tipos de Redes
ou conectores principais, articulados para garantir as condições materiais e artificiais
das existências. As Redes híbridas fazem referência ao mundo das coisas, à
prática, ao fato que guarnece a travessia do social e, quando bem consolidado e
articulado pode ser chamado de instituições; porém, estas mesmas instituições
permitem a travessia de muitas Redes homogêneas ao mesmo tempo, as quais são
feitas de discurso, exatamente onde o Meme está situado.
Situar o Meme no nível das Redes homogêneas significa afirmar que
esta tese tem como objeto um regime de enunciação, um tipo particular de
continente agregado no ato de falar, ou melhor, postar. Contudo, homogênea é
14

apenas a continuidade de seu efeito que, aliás, nunca está sozinho, está sempre
articulado com outros regimes de palavras no esforço de fazer e refazer grupos. É
esse efeito que Latour (2019) propõe mapear, enquanto serviços ou valores caros às
sociedades ocidentais, e, assim, construir uma antropologia dos modernos. Diante
do objetivo de explicar as condições artificiais dos modos de existência, quer dizer,
dos mediadores da realidade, o autor faz um relatório com o mapeamento de 15
valores inerentes aos modos de existência, os quais são sempre mencionados com
a letra inicial maiúscula, a fim de sinalizar para o leitor que se trata de um modo de
existência de um regime de enunciação: a Reprodução, a Metamorfose, o Hábito, a
Técnica, a Ficção, a Referência, a Política, o Direito, a Religião, o Apego, a
Organização, a Moral, a Rede, a Preposição e o Duplo Clique, todos emaranhados
no discurso3. Além dos que faltam ser identificados a convite do próprio autor para
dar continuidade à pesquisa de uma vida inteira, a construção de uma antropologia
dos modernos.
Dessa forma, esta pesquisa é um aceite para este convite, uma vez que
apresenta um novo regime de enunciação. Importa ressaltar que se trata de uma
dimensão elementar do discurso, a qual foi estudada isoladamente, logo, antecede a
formação de qualquer instituição, sujeito ou grupo, porque o Meme, bem como os
demais regimes de enunciação, é um mecanismo de manutenção de grupos.
Contudo, o Meme só pode ser (ou estar sendo) uma ação específica no discurso se,
e somente se, houver articulação entre smartphones,wi-fi, cabos, carregadores de
energia, registros e outros elementos imensuráveis; igualmente, esta tese de
doutorado, para existir, necessita da articulação de carregadores, energia elétrica, o
computado pelo qual estou digitando, livros e etc., tendo em vista que, “não há como
parar nessa ladeira que leva ao infinitesimal, que devém, fato certamente
inesperado, a chave de todo o universo” (TARDE, 2003, p. 24).
Em outras palavras, Meme e tese4 são feitos do mesmo material (discurso),
mas, compreendem a ações diferentes na instauração da realidade, isto supõe a
descontinuidade e imprevisibilidade dos elementos que se associam, assim como a
homogeneidade do ser que perpassa por essa descontinuidade e imprevisibilidade

3
Na verdade, não apenas no discurso, em outros modos de existência não discursivos também, mas,
isso não é abordado por esta tese, cujo foco é mapear um regime de palavra para acrescentar à lista
feita por Latour (2019).
4
Uma tese está intimamente relacionada ao regime de enunciação da Referência ou da ciência, ao
falar cientificamente.
15

de elementos para poder existir (o efeito específico, uma Rede em dimensões


menores). Tal percepção foi fundamental na decisão de dar continuidade à pesquisa
de mestrado e escrever esta tese de doutorado sobre Meme. Afinal, por que se
dedicar mais quatro anos a este assunto? Porque fui sarcasticamente tentada pelo
filósofo e antropólogo Bruno Latour (2019) a compreender como um fenômeno social
qualquer é o resultado da articulação do mundo das coisas às palavras; porque
precisava amadurecer a intuição de que a obsessão pela forma objetivada do Meme
nas postagens feitas nas plataformas digitais (que, de maneira geral, caracteriza as
pesquisas dedicadas a este fenômeno) na prática, distrai da verdade particular que
consiste no Meme enquanto ação, quer dizer, enquanto uma Rede específica, cujas
delimitações são borradas pelo intenso cruzamento de Redes, mas que pode ser
sentida em sua estrita particularidade, conforme esta tese se propõe a demonstrar
no desafio de sua empreitada, sob a orientação da Teoria-Ator Rede.

A HIPÓTESE

Por meio de muitas vias independentes, explica Gabriel Tarde (2003), as


mônadas5 foram introduzidas, aos poucos, no coração da ciência contemporânea,
quer dizer, o acréscimo de conhecimento culminou na descontinuidade, e na
multiplicidade dos elementos diferentes ligados entre si, os quais, juntos, constituem
uma aparente unidade6. Tudo parte do infinitesimal, de um elemento empreendedor,
cuja iniciativa leva a uma mudança mental ou social, mas, importa ressaltar que tal
mudança é ilusoriamente contínua, pois, os verdadeiros agentes são pequenos
seres infinitesimais, e as verdadeiras ações são as pequenas variações
infinitesimais.

5
O termo mônada é apropriado por Tarde por meio da influência do filósofo alemão Gottfried Wilhelm
Leibniz e remete às dimensões elementares da natureza. Toda existência é singularmente composta
por uma pluralidade de mônadas, as quais não são idênticas, são as aberturas para a diversidade
que compõem o mundo. Nas palavras de Tiago Seixas Themudo (2002, p. 50), “cada mônada tem
sua pequena zona de expressão clara e distinta, seu pequeno território de consciência, sua pequena
clausura, sua pequena propriedade. A grande diferença entre a monadologia de Leibniz e a
neomonadologia de Tarde é que a condição de clausura em Tarde não é definitiva. Suas mônadas
têm portas e janelas, estabelecem conexões, se apropriam de outras mônadas, e não apenas
combinam pontos de vista. E é desse jogo de conexões e capturas que o corpo individuado se
produz, que um campo de percepções claras e distintas se produz, que um sujeito se produz. Sujeito
sempre instável, provisório e mutante”.
6
Tarde (2003) se refere à tendência das ciências modernas de pulverizar o universo, negando a
continuidade material na medida em que aponta o átomo, a célula, o indivíduo, multiplicando os
seres.
16

Para campo da comunicação, o termo “Meme” parece ter sido uma dessas
iniciativas perspicazes, criado por Richard Dawkins (2007) na década de 1970,
segundo o qual, o gene, quer dizer, uma forma não rígida e absoluta, uma unidade
de conveniência que compreende a um cromossomo de extensão suficiente para
constituir uma unidade de cópia hábil para a seleção natural, é similar a uma
segunda base de evolução cultural: o Meme.
Segundo o biólogo (2007), Meme é uma unidade de sentido, também de
extensão variável, pois depende do potencial de abstração e replicação de cérebro
em cérebro. Porém, como “o real não é uma série inteiramente previsível de
acontecimentos, ordenados, mas um desdobramento processual de fluxos em
constante remanejamento, de formas e fronteiras constantemente desfiguradas”
(THEMUDO, 2002, p. 22), o termo começou a ser adaptado ao conjunto de ideias de
um mundo em emergência: o digital. Este conjunto de ideias, assim como qualquer
outro fabricado pelos humanos, “não expressam um estado natural; elas precisam
ser inventadas. E tais invenções não se materializam da noite para o dia, mas
adquirem uma consistência processual, cuja duração pode ser expressa em anos e
até mesmo séculos” (THEMUDO, 2002, p. 23). Na internet, o termo começou a ser
usado na década de 1990, momento no qual o mundo digital era um espaço novo e,
pouco a pouco, os internautas começaram a associar Meme a piadas, trocadilhos
entre outras formas de virais (CHAGAS, 2020).

Em 1996, uma animação tridimensionalizada de um bebê dançarino,


criada originalmente como uma amostra visual (um sample) para
distribuições do pacote do software 3D Studio, ganhou ampla
circulação e se tornou um dos primeiros vídeos virais da internet.
Não é possível afirmar, até o presente momento, que o bebê
dançarino (Dancing Baby) tenha sido referido como um meme de
internet já na época de seu surgimento. Mas a adoção em larga
escala da plataforma da web e, na sequência, dos sites de redes
sociais, sem dúvidas contribuiu para a rápida incorporação nativa do
vocabulário. (CHAGAS, 2020, p. 33).

Não raro, afirma-se que “um meme de internet é um recorte da cultura,


tipicamente uma piada, que ganha influência através de sua transmissão on-line”
(DAVISON, 2020, p. 144), tal recorte pode ser compartilhado aos milhares e
“reproduzido com qualquer programa editor de texto para computador” (CANI, 2019,
p. 252), logo, “o remix é o processo de construção/elaboração dessa materialidade
textual, enquanto o meme acaba sendo o produto acabado, que passa a circular nas
17

redes” (LIMA-NETO, 2020, p. 2257). Entretanto, que produto acabado é esse? De


qual Rede se está falando? Esta e aquela pergunta se relacionam com a
problemática deste trabalho. É fundamental respondê-las tecnicamente a fim de se
manter bem situado diante da confusão comumente feita em torno de um termo
(Rede) tão difundido, usado para descrever quase tudo, desde infraestruturas,
relações sociais e, especialmente, as relações nas plataformas digitais.
Em suma, a expressão Meme batizou a invenção de algo que parece ainda
não estar muito bem-acabado ou algo que se confunde com piadas, brincadeiras,
com a própria postagem, com as imagens, com a opinião, porém, o importante é que
seu efeito é sentido ou intuído, e é a partir dele que esta tese mapeia a existência do
Meme. Este, trata-se da invenção de uma tecnologia discursiva, necessária diante
de alguns problemas relativos à criação e à manutenção de grupos no mundo digital.
Mas, para apreender essa tecnologia, não é suficiente descrever uma Rede, é
preciso descrever uma realidade caracterizada pelo cruzamento entre Redes.
Estudioso social da ciência e da tecnologia, Latour (2019) atualiza a percepção de
Gabriel Tarde, segundo a qual todo fenômeno social se explica por associações
infinitesimais, por meio do conceito de Redes híbridas. Estas exibem a extraordinária
heterogeneidade das associações e a liberdade de movimento que caracteriza a
lista dos outros seres pelos quais o efeito do Meme7 (ou qualquer fenômeno social)
precisa passar para se prolongar, durar ou continuar a existir. Cheia de
descontinuidades, essa Rede compreende ao mundo das coisas, ela estabelece
links e conexões a partir de infinitas possibilidades, cuja necessária (e árdua)
manutenção garante um mundo real para guarnecer a continuidade dos fenômenos,
das situações (ou dos grupos).
É inevitável se perder na materialidade dessas associações8, contudo, isso
não implica dizer que tais fenômenos não podem ser rastreados, delimitados e
estudados. Se para durar ou continuar a existir necessitam explorar a diversidade
das associações (explorar o mundo das coisas); para se especificarem, os
fenômenos sociais (discurso, linguagem) necessitam explorar a diversidade dos
valores, os quais, embora sejam ligados entre si, apresentam-se sob a forma de
domínios (Religião e Direito, para exemplos menos evidentes agora), localizados por

7
O Meme é uma ação discursiva, e é justamente seu efeito que deixa pistas para descrever tal ação.
8
Smartphones, cabos, canetas, mesas, wi-fi, imagens, vídeos, um gato, um papel.
18

fios e canais que deixam espaços vazios9, em torno de seus segmentos para muitos
outros domínios se intersectar. É impossível apontar os limites destes domínios,
mas, de uma determinada forma, a partir do seu efeito discursivo na materialidade
das coisas, podem ser delimitados. De maneira introdutória, pode-se afirmar que o
cruzamento dessas duas Redes corresponde às condições materiais e artificiais da
existência, pois, “a linguagem é bem articulada, como o mundo do qual ela é
carregada” (LATOUR, 2019, p. 126).
Portanto, as Redes híbridas e as Redes homogêneas são dois fenômenos
diferentes, apesar de ambos serem chamados de Rede. Contudo, são
complementares, já que a composição de uma série descontínua de elementos
heterogêneos faz circular de forma contínua, valores ou serviços. Aspecto que fez a
hipótese desta tese vibrar sob a desconfiança de que o Meme é, precisamente, um
desses valores desenvolvidos pelos modernos frente às circunstâncias instauradas
no mundo digital. Em outras palavras, esta pesquisa de doutorado partiu da
hipótese de que o Meme seria mais desses valores ou serviços, ainda não
mapeados, que seria um regime de enunciação, uma Rede do tipo homogênea,
agregada no esforço humano de criar e manter seus grupos, no esforço de
conversar. Dito isto, já se pode prever que o Meme, tal como o é apresentado aqui,
longe de ser uma postagem, uma imagem, uma piada, um trocadilho ou o remix
disso, embora faça parte de tudo isso, é um continente do discurso, da fala, da
conversa, importante na fabricação da realidade.
Agora, retomemos a comparação entre Meme e tese, citado inicialmente: se
são iguais do ponto de vista das Redes híbridas; do ponto de vista das Redes
homogêneas, um e outra produzem seus respectivos valores, são peculiares. Ou
seja, partir das Redes híbridas, inevitavelmente, leva às associações livres, cheias
de surpresas e de descontinuidades, a um tipo de emaranhado impossível de
realizar alguma classificação sem se deparar com muitas exceções. Em função
disso, nesse nível da realidade, todos os acontecimentos são iguais. Enquanto as
Redes homogêneas, por sua vez, apresentam associações limitadas, delineiam-se
discursivamente, e suas particularidades são bem definidas por meio de uma
tonalidade própria. No nível das Redes homogêneas, os fenômenos ou ações que

9
As metáforas latourianas focam na percepção maior dos espaços vazios do que nos cheios: qual é o
espaço que o efeito do Meme preenche na instauração da realidade? Quando e onde esse efeito se
agrega na instauração da realidade dos humanos?
19

caracterizam o social podem se insinuar a seu modo e definir-se, mas, isso acontece
em uma dimensão elementar, pois,

se for correto, com diz Tarde, que “a diferença vai diferindo”, deve
haver vários modos de ser que garantam sua subsistência por meio
de uma amostra distinta de alteridade; e que só pode encontrar
criando oportunidades de instaurações diferentes para cada um, a
fim de aprender a falar com eles em sua língua (LATOUR, 2019, p.
139).

Um regime de enunciação é um exemplo de amostra distinta de alteridade, é


um modo de se alterar. Como esta tese se esforça para demonstrar no caso do
Meme, um regime de enunciação se define por uma alteração particular no processo
de subjetivação. Ademais, falta mencionar que é justamente a descontinuidade das
Redes híbridas que garante a continuidade das Redes homogêneas, afinal, “um
vazamento em um oleoduto obriga o operador a fechar as válvulas, um
deslocamento de três metros da área de um Wi-fi e adeus, a conexão se perde”
(LATOUR, 2019, p. 38). Seguindo a mesma lógica, se a conversação que é capaz de
fazer a manutenção das crenças e desejos for interrompida, o fenômeno social
cessa.
Em síntese, argumentamos que o Meme é uma ação específica de tal
manutenção, que a continuidade do seu efeito na existência dos grupos depende da
qualidade das conexões “externas”. Mas, depende também, da continuidade do
efeito de outros regimes de enunciação, isto é, a ação do Meme está,
necessariamente, articulada e agregada a outras ações no ato de conversar. Ainda
sobre o porquê de continuar a estudar o que chamamos de Meme, porque
questionar “como o Meme nos altera?” em alternativa a “o que é um Meme?” levou a
um caminho mais fértil: à tese segundo a qual o Meme é um regime de enunciação,
um modo de alterar subjetividades, afinal, “não é possível um estudo das sociedades
sem um estudo sobre as subjetividades; produção social é produção subjetiva”
(THEMUDO, 2002, p. 23).

A TESE

Pensados a partir da Teoria-Ator Rede, os grupos ou agregados sociais não


20

são objeto de uma definição ostensiva10. Para durarem e continuarem a existir, é


crucial a constante manutenção das Redes híbridas, cuja associação sempre será
diferente diante do seu leque infinito de possibilidades. Os grupos sociais são, na
verdade, objetos de uma definição performática11, porque são feitos pelos vários
modos que lhe dão existência. (LATOUR, 2012b). Em outras palavras, o existir das
criações humanas depende da qualidade e da articulação dos dois tipos principais
de Redes, ou melhor, dois tipos de conectores que mediam a realidade e
compreende o mecanismo responsável por manter o grupo vivo e reagregar o social.
Desse jeito, afirmar que o Meme é um regime de enunciação é, em primeiro lugar,
afirmar que o Meme é um dos mecanismos desenvolvidos diante dos obstáculos ou
dificuldades para a fabricação de grupos diante de determinadas condições
sociotécnicas.
Em segundo lugar, se é um regime de enunciação, a ação isolada do Meme
acontece em uma dimensão que antecede os grupos. Logo, não interessa estudar
um grupo, afinal de contas, a ação do Meme pode ser usada em qualquer grupo,
mesmo que para confluir crenças e desejos diferentes. Em outros termos, o que
interessa aqui não são as particularidades de um grupo (sua opinião, suas crenças e
desejos), interessa, sim, as particularidades de um dos meios que garante a
existência artificial12 e material dos grupos de maneira geral. Dito isto, pode-se
começar a ressaltar a relevância do Meme enquanto um regime de palavra para
fazer e refazer grupos na atualidade; sendo, então, a sua performance que deve ser
explicada, bem como seus mediadores13, os quais, mesmo que pareçam simples,
podem se revelar complexos na medida em que irradiam em várias direções,
modificando seu papel, sua importância.

10
Uma definição ostensiva do social aponta para algo dado, pronto, que permanece lá (LATOUR,
2012b).
11
Enquanto objeto de uma definição performática, o social desaparece quando deixa de ser
representado; e, para não desaparecer, é necessário que outros atores entrem em cena (LATOUR,
2012b).
12
Como a analogia entre o social e as Redes enfatiza a existência dos grupos sociais nunca é dada,
plena e pronta, requer um trabalho de subsistência.
13
Latour (2012b) diferencia mediadores de intermediários: estes últimos transportam significado ou
força sem transformá-los, ou seja, se definimos o que entra, o que sai também já está definido,
contado como uma unidade. Enquanto os mediadores transformam, traduzem, distorcem, modificam
os significados ou os elementos que transportam, neste caso, o que entrar não define o que sai, logo,
suas especificidades precisam ser levadas em conta todas às vezes, pode ser contado como um, por
nenhum, ou por uma infinidade. É, portanto, as constantes incertezas sobre a natureza íntima das
entidades se são mediadoras ou intermediárias, que segue a pesquisa.
21

Um computador em perfeito funcionamento é um ótimo exemplo de


intermediário complicado, enquanto uma conversação banal pode se
transformar numa cadeia terrivelmente complexa de mediadores
onde paixões, opiniões e atitudes se bifurcam a cada instante. No
entanto, quando quebra, o computador se torna um mediador
pavorosamente complexo, ao passo que uma sofisticada discussão
em uma mesa redonda em um encontro acadêmico, às vezes se
transforma num intermediário totalmente previsível e monótono,
repetindo uma decisão tomada em outra parte (LATOUR, 2012b, p.
65-66).

O computador em perfeito estado é apontado como intermediário porque


simplesmente transporta informação sem transformá-la, ao passo em que, ao
quebrar, o computador se torna um mediador porque começa a influenciar no curso
da ação, pois, é preciso descobrir qual o problema, como recompor ou recuperar. Os
atores que mediam a cena conduzem a performance, mas, trata-se da Rede híbrida
formada por humanos e não humanos, exatamente o percurso que conduz a um
caminho cheio de associações livres, infinitesimais, na qual tudo pode se associar
com tudo. Em razão disso, analisar postagens equivocadamente chamadas de
Meme, quer dizer, imagens ou vídeos engraçados e editados que estão circulando
nas plataformas digitais, não é capaz de acessar a particularidade da ação do
Meme, porque o Meme não está situado nessa Rede14. O Meme acontece na Rede
homogênea.
Essa percepção de alguma forma me ocorreu durante a dissertação, quando
tentei estudar tal fenômeno a partir de postagens com o recorte temático da votação
na Câmara dos deputados que culminou na abertura do processo de impeachment
da então presidente Dilma Rousseff (2011-2016). Contudo, os registros usados e
repetidos em tais postagens tinham seus efeitos discursivos pouco comprometidos
com as crenças e desejos de um grupo em específico, a opinião dessas postagens
era facilmente traída com uma rápida edição; assim, os registros usados
repetidamente poderiam ser usados para servir a opiniões de direita e de esquerda
(quando o assunto fosse sobre política), ou de protestante e católico (quando o
assunto fosse sobre religião), sem nenhum dano a condição do que se costuma
chamar de Meme.
Diante disso, tentei driblar esses entraves fazendo a seguinte diferenciação:
colocando de um lado, os Memes sobre o impeachment e, de outro, os Memes do

14
Essa Rede híbrida, na verdade, garante a travessia de serviços e valores agregados no ato de falar.
E o Meme é apenas um desses serviços e valores a ser localizado.
22

impeachment. O primeiro para se referir aos Memes cujas imagens não eram
registros do momento da votação (neste momento eu tomava Meme e postagens
engraçadas como sinônimos), mas que eram usadas, mesmo assim, para falar
sobre o assunto impeachment; o segundo para se referir aos Memes que usavam
registros do momento da votação (videos, frases, imagens), mas que não falavam
necessariamente sobre o impeachment (SILVA, 2019). Porém, com isso, ainda só
era possível descrever a articulação da Rede híbrida que resultava na postagem, a
questão é que o comprometimento do Meme não é com as crenças e desejos do
grupo criador da postagem, muito menos com um padrão de postagem em si, estas
são coisas que podem se associar de muitas formas diferentes e mudam a
performance. Em resumo, esta tese afirma que o Meme é o seguinte efeito técnico
da fala ou do discurso: a flexibilização de scripts por meio da resolução
antecipada dos conflitos.
Em uma conclusão inicial da dissertação, fundamentada nas três principais
categorias desenvolvidas por Tarde (2011), a imitação, a oposição e a adaptação, o
Meme foi assinalado como “uma imitação peculiar; detentores de potencialidades
inventivas; capazes de estabelecer alianças, cuja lógica parece desafiar a razão”
(SILVA, 2019, p. 20). Agora, o esforço consiste em mostrar que essa imitação
peculiar é capaz de extrair uma alteração na instauração da realidade; que suas
potencialidades inventivas apresentam uma tonalidade discursiva que lhe diferencia
de outros tipos de potencialidades inventivas; e se caracteriza por uma trajetória
específica (em uma dimensão elementar do discurso) no processo de reagregar o
social e; por fim, o esforço consiste em defender que o Meme só parece desafiar a
razão porque, de maneira geral, privilegia-se os critérios de alguns regimes de fala
em detrimento dos critérios dos outros regimes de fala. Isso implica dizer que a ação
do Meme possui uma racionalidade sim, bem como critérios tão sofisticados quanto
os da ciência, o da Religião, o da arte e etc.
Certamente, em comparação aos modos discursivos de existência da ciência,
da Religião e da Política, bem estabelecidos em decorrência do tempo com uma
correspondência direta entre um domínio, uma instituição e um contraste discursivo
alinhados, cuja tecnicidade e centralidade são mais evidentes e apreendidas; o
Meme pode parecer pouco importante, sem seriedade, longe de merecer tal
definição. Mas, talvez seu valor na fabricação e manutenção dos grupos comece a
se insinuar se imaginar como seriam as plataformas digitais sem a Técnica do
23

Meme. Sem ela, o ambiente digital estaria despovoado, não seria possível criar e
fazer acontecer. Além disso, cada regime de enunciação se articula no sentido de
preencher um hiato no social, qual é o hiato mediado pelo Meme no esforço de fazer
e refazer os grupos?
Sua mediação até pode ser subestimada por ser tão bem ocultada, sutil e,
necessariamente, disfarçada. No entanto, seu efeito é tão perfeitamente sentido que
provoca um intenso debate acadêmico (e não acadêmico) acerca da sua importância
e de sua ontologia. Tão atuante na instauração da realidade quanto confuso em
suas delimitações, o Meme tem mobilizado um esforço classificatório, desde a
definição clássica de Richard Dawkins (2007) até as perspectivas mais atreladas à
criação de conteúdos e compartilhamento em plataformas digitais. Em tais
perspectivas, há uma preocupação generalizada para estabelecer categorias, bem
como, longevidade, fecundidade e fidelidade de cópia (DAWKINS, 2007); humor,
intertextualidade e justaposição anômala (KNOBEL, LANKSHEAR, 2007); ou
conteúdo, forma e postura (SHIFMAN, 2013).
Em Dawkins (2007), o conceito de Meme visa demonstrar que a evolução
cultural acontece de maneira análoga a evolução biológica, ou seja, por meio de um
agente mínimo que pode ser classificado pelos três aspectos supracitados: a
longevidade concerne à duração no tempo; a fecundidade corresponde a
continuidade por meio de cópias em sucessivos cérebros; e a fidelidade diz respeito
ao nível de semelhança das cópias. Enquanto Michele Knobel e Colin Lankshear
(2007), com uma perspectiva diretamente ligada ao mundo digital, apontam três
padrões que contribuem para a fecundidade do Meme: o humor, variando do
peculiar e inusitado ao excêntrico, ao bizarro, às paródias e/ou; uma rica
intertextualidade, fazendo referências cruzadas e irônicas a diferentes eventos,
ícones e fenômenos da cultura popular e/ou; justaposições anómalas,
principalmente de imagens.
Por sua vez, Limor Shifman (2013) propõe pensar o conceito de Meme não
como ideias isoladas ou fórmulas que se espalham com facilidade, mas, sim, como
um grupo de itens de conteúdo criados com consciência mútua e que apresentam
características em comum. Com base no conceito original de Richard Dawkins
(2007), segundo o qual Meme é uma unidade de imitação, a autora propõe isolar
três dimensões: o conteúdo, referente às ideias e as ideologias veiculadas; a forma,
referente a encarnação física da mensagem percebida pelos sentidos; e a postura,
24

referente à informação que o Meme transmite sobre sua própria comunicação.


Shifman (2013) delineia ainda, genericamente, três posições sobre a definição
acadêmica de Meme, a primeira corresponde a uma orientação mentalista, baseada
na diferenciação entre os Memes (que seriam ideias ou informações que residem
em nosso cérebro) e o veículo que os carregam (tais como imagens, textos,
artefatos ou rituais) os quais são observáveis e equivalentes aos fenótipos, quer
dizer, são as expressões tangíveis dos Memes ou dos complexos de Memes. Na
segunda posição, comportamentalista, não se pode conceber os Memes separados
dos seus veículos, porque não poderiam existir sem os eventos, práticas e textos em
que se expressam, logo, trata-se de comportamentos e artefatos e são sempre
experienciados como informações codificadas, pois, se fossem apenas unidades
abstratas de informação, não seria possível identificá-los sem a sua manifestação
tangível. Por fim, a terceira posição, a inclusiva, cujo critério para ser um Meme é
basicamente ser uma informação copiada ou imitada.
Todas estas compreensões são amplas o suficiente para, de alguma maneira,
incluir o Meme enquanto um fenômeno atrelado à comunicação nas plataformas
digitais, uma vez que parecem sugerir que tudo é Meme; e são, ao mesmo tempo,
elementares o suficiente para não contemplar tal fenômeno em suas particularidades
devido ao fato explorarem a Rede híbrida dos acontecimentos15. Talvez, essas
compreensões estejam perdidas em zonas fronteiriças, sentem o efeito do fenômeno
que buscam apreender, mas estão presas às armadilhas do pensamento que divide
o mundo das coisas e as palavras, o objeto e o sujeito, a exterioridade e a
interioridade, matéria e espírito, a prática e a teoria, o fato e o fetiche, ou melhor, são
demasiadamente modernas. A questão é que o Meme atravessa Redes híbridas e
cruza com outros valores, mas seu efeito é específico e compõem o sistema de
valores dos modernos, conforme é argumentado no decorrer desta tese.

ENTÃO O MEME NÃO É MODERNO?

É importante salientar que a Teoria Ator-Rede nos destitui da condição de


modernos, sem pudor ela diz: “jamais fomos modernos” (LATOUR, 1994), na medida
em que redimensiona conceitos relevantes para o pensamento, tais como sujeito,
objeto, sociedade, natureza, objetividade, neutralidade e racionalidade, tidos pela
15
Nas quais as associações são livres demais, tudo pode se associar com tudo.
25

sociologia herdeira de Gabriel Tarde como resultado de um intenso trabalho dos


atores; e não como condições anteriores, dadas de antemão como se fossem
capazes de sustentar a realidade já constituída, dada, pronta. Todavia, isso não
implica cair em um discurso irracional, inexato que não possui forma nem rigor. Além
disso, o componente não-humano faz parte dessa Rede de atores animados e
inanimados, que se articulam no curso da ação.
Não se trata de um tipo de relação previsível e estável, pois, os componentes
podem se redefinir e trazer novos elementos. Dessa forma, uma Rede de atores
apresenta uma ontologia de geometria variável, uma vez que possui muitas
conexões e muitas entradas, por meio das quais os vários regimes de enunciação
podem circular. Porquanto, a Teoria Ator-Rede não faz parte da concepção dualista
e polarizada que divide sujeito/objeto. Aliás, não faz parte de nenhuma polarização
do pensamento. As Redes são formadas a partir do engendramento de conexões
performativas que atribuem novas propriedades aos atores e se redefinem no jogo
da interação e da articulação dos interesses que não são unívocos. Para a formação
das Redes, é preciso que tais interesses sejam traduzidos, deslocados e desviados
para, assim, mobilizar outros atores. Sabido tal percepção, o uso das aspas na
palavra moderno é dispensado, mesmo jamais tendo sido modernos.

A METODOLOGIA

Os dois autores principais para a mediação desta tese de doutorado nunca


dedicaram seus escritos às relações no mundo digital. Gabriel Tarde nem mesmo
conheceu a internet, faleceu em 1904, aos 61 anos; já Bruno Latour faleceu em
2022, aos 75. Todavia, dedicaram-se ao movimento necessário às associações
sempre que é preciso se reinventar enquanto grupo social humano: esse movimento
é um retorno, em algum nível, às condições elementares, às descontinuidades que
preenchem o contínuo dos fenômenos sociais. Sob tal enfoque, esta tese pode ser
compreendida como um raio imitativo (cheio de conflitos e adaptações, é claro) do
pensamento de ambos e que culmina na seguinte afirmação: o Meme é uma
tecnologia discursiva que acontece em uma dimensão elementar e, ao ser articulada
com outras Técnicas da mesma ordem, confunde-se com algumas, mas pode ser
delimitada na medida em que é possível mapear seu efeito junto a articulação entre
o mundo e o pensamento na instauração da realidade.
26

Por mais congestionado que seja o fenômeno do Meme, o seu efeito é


objetivamente sentido, mesmo não sendo imediatamente identificado, porque a ação
do Meme é uma Rede que media a produção de subjetividade. Então, é na
subjetividade que seu efeito pode ser apreendido. À vista disso, Latour (2019)
aponta cinco questões norteadoras para mapear um regime de enunciação, a saber,
qual o hiato e a trajetória que lhes são próprios? Quais são as condições de
felicidade e infelicidade? Quais são os seres que devem se preparar para instaurar?
E qual alteração sofre a cada ocasião o ser-enquanto-outro?
A partir dessas questões, adaptando a hipótese de segundo a qual o Meme é
um regime de enunciação a ser mapeado, esta tese questionou: primeiro, dado que
um regime de enunciação é uma resposta da linguagem a um problema referente a
criação e manutenção de grupos, qual é o hiato preenchido pelo Meme no processo
discursivo de fabricação e manutenção de grupos? Segundo, em relação a
condição ontológica e Técnica do Meme, qual é a trajetória percorrida no
preenchimento desse hiato? Terceiro, qual é a condição de felicidade dessa
trajetória, ou seja, quais são os critérios a serem atingidos. Quarto, quais são os
seres instaurados para auxiliar no rigor desses critérios? Quinto, qual é a alteração
na realidade resultante de todo esse processo de preenchimento do hiato relativo ao
Meme? Responder cada uma dessas indagações equivale a fragmentar o ato de
falar ou o discurso e focar em um regime de palavra, um tipo particular de
continente.
As cinco questões norteadoras exigem um retorno às condições elementares
da comunicação, trata-se de uma fragmentação no nível do discurso, de focar no
absurdo16 das descontinuidades para perceber a lógica da continuidade de uma
situação, um acontecimento ou de um grupo social estabelecido entre indivíduos
fisicamente distantes. Dessa forma, esta tese resultou do esforço para preencher o
quadro 1.

16
A ação do Meme, bem como as ações dos demais regimes de enunciação, se considerada
isoladamente, constituem apenas descontinuidades do ponto de vista do grupo. Para mediar a
continuidade de um grupo ou situação, os regimes de enunciação precisam se articular uns com os
outros.
27

QUADRO 1 – ENCARGOS DO MEME A SEREM PREENCHIDOS

Hiato Trajetória Condição de Seres a instaurar Alterações


felicidade/infelicid
ade

? ? ? ? ?
Fonte: adaptado de Latour (2019, p. 392-393)

Conforme as reflexões referentes às respectivas questões norteadoras vão


ganhando forma, as células do quadro 1 vão sendo preenchidas e os pontos de
interrogações vão sendo substituídos por uma resposta sintética, até ser
completado. E, assim, o quadro de encargos do Meme pode se tornar mais uma
linha no quadro iniciado por Latour (2019) e reproduzido no quadro 2, cuja
construção é decorrente de uma vida inteira dedicada ao estudo das condições
artificiais dos modos de existência, ou melhor, dedicada aos mediadores da
realidade.

QUADRO 2 – RESUMO DO ESTADO DA INVESTIGAÇÃO APRESENTADA NO


RELATÓRIO. ENCONTRAM-SE EM LINHA OS QUINZE MODOS RECONHECIDOS ATÉ AGORA,
REUNIDOS EM CINCO GRUPOS. NAS COLUNAS ESTÃO AS QUATRO QUESTÕES CANÔNICAS
ÀS QUAIS TODOS OS MODOS FORAM SUBMETIDOS: QUAL É O HIATO E A TRAJETÓRIA QUE
LHES SÃO PRÓPRIOS (COLUNAS 1 E 2); QUAIS SÃO AS CONDIÇÕES DE FELICIDADE E
INFELICIDADE (COLUNA 3); QUAIS SÃO OS SERES QUE DEVEM PREPARAR PARA
INSTAURAR (COLUNA 4); FINALMENTE, QUAL A ALTERAÇÃO QUE SOFRE A CADA OCASIÃO
O SER-ENQUANTO-OUTRO (COLUNA 5)

Nome Hiato Trajetória Felicidades e Seres a Alterações


infelicidades instaurar

Grupo 1: Sem quase-objeto e sem quase-sujeito

[REP] Riscos da Prolongamentos Continuar, herdar/ Linhas de força, Explorar as


REPRODUÇÃO reprodução. dos existentes. desaparecer. linhagens, continuidades.
sociedade.

[MET] Crises e Mutações, Fazer passar, Influências, Explorar as


METAMORFOSE recuperações. emoções, instalar, proteger/ divindades, diferenças.
transformações. alienar, destruir. psiquismos.

[HAB] HÁBITO Hesitações e Cursos de ação Prestar atenção/ Véu sobre as Obter essências.
ajustes. interruptos. perder a atenção. preposições

Grupo 2: quase-objetos

[TEC] Obstáculos, Ziguezagues das Rearranjar, Delegações, Dobrar e


desvios. astúcias e da montar, ajustar/ dispositivos, redistribuir as
TÉCNICA
invenção. fracassar, invenções. resistências.
destruir, imitar.

[FIC] FICÇÃO Vibração material/ Triplo desengate: Fazer manter, Envios, Multiplicar os
forma. tempo, espaço, fazer crer/ figurações, mundos.
actante. fracassar, perder. formas, obras.
28

[REF] Distanciamento e Pavimentação Informar/ perder Constantes por Ter acesso aos
dessemelhanças das inscrições. as informações. informações. distantes.
REFERÊNCIA
das formas.

Grupo 3: Quase-sujeitos

[POL] Impossibilidade Círculo protetor Retomar e Grupos e figuras Delimitar e


de ser da continuidade. estender/ das assembleias. reagrupar.
POLÍTICA
representado ou suspender ou
obedecido. reduzir o círculo.

[DRO] Dispersão dos Vinculação dos Ligar/ romper os Seres portadores Garantir a
casos e das casos e das planos da de segurança. continuidade das
DIREITO
ações. ações pelos enunciação. ações e dos
meios. atores.

[REL] Ruptura dos Engendramento Salvar, colocar Deuses Obter o


tempos. das pessoas. em presença/ geradores de cumprimento dos
RELIGIÃO
perder, afastar. presença. tempos.

Grupo 4: Vínculos entre quase-objetos e quase-sujeitos

[ATT] APEGO Desejos e Multiplicação dos Empreender, Interesses Multiplicar os


carências. bens e dos interessar/ cessar apaixonados. bens e males.
males. as transações.

[ORG] Confusão das Produção e Dominar os Enquadramentos, Mudar o tamanho


ordens. seguimento dos scripts/ perder-se organizações, e a extensão dos
ORGANIZAÇ
scripts. nos scripts. domínios. quadros.
ÃO

[MOR] Inquietude sobre Exploração dos Retomar os O “reino dos fins”. Calcular o
os fins. vínculos meios/ cálculos/ impossível ótimo.
MORAL
fim. suspender os
escrúpulos.

Grupo 5: Metalinguagem da investigação

[RES] REDE Surpresa das Seguimento das Atravessar os Redes de Estender as


associações. conexões domínios/ perder irreduções. associações.
heterogêneas. a liberdade de
investigação.

[PRE] Erros de Detecção dos Dar a cada modo Chaves de Garantir o


categoria. cruzamentos. seu gabarito/ interpretação. pluralismo
PREPOSIÇÃ
esmagar os ontológico.
O modos.

[DC] DUPLO Horror dos hiatos. Translação sem Falar literalmente/ Reino indiscutível Manter o mesmo
tradução. falar por figuras e da razão. apesar do outro.
CLIQUE
tropos.

Fonte: reproduzido de Latour (2019, p. 392-393)

Portanto, o objetivo desta tese consiste em acrescentar mais uma linha


no quadro 2 com o mapeamento do Meme, e, assim, oferecer uma contribuição
ao estudo acerca das condições artificiais da existência dos grupos sociais
humanos. A fragmentação constituída no quadro 2 leva a um nível que antecede o
indivíduo, o grupo ou o acontecimento social resultante, simultaneamente, de todas
as alterações dos modos de fala. Tais alterações compreendem efeitos, Redes que
visam garantir a continuidade do grupo. Mas, haja vista o acúmulo de conhecimento
29

e informação, por que retomar ao nível elementar dessas Redes? Quer dizer, “por
qual virtude o absurdo daria ao espírito humano a chave do mundo?”, como
questiona Tarde (2003) ao se referir a crescente importância do infinitesimal
decorrente do acréscimo de conhecimento, uma vez que o conhecimento seria um
simples acúmulo de contradições. A resposta, prossegue ele, talvez seja porque
embora não se considere a perspectiva monadológica, ela não deixa de figurar,
como um memorial, como especificações de nosso ativo intelectual.
Para esta tese, esse memorial no ativo intelectual precisou ser acessado com
urgência por um pensamento em crise diante da necessidade de formar grupos a
partir de indivíduos distantes fisicamente, comumente chamados de relações on-line,
nas quais,

Por causa do distanciamento entre os envolvidos na interação social,


principal característica da comunicação mediada por computador, os
atores não são imediatamente discerníveis. Assim, neste caso,
trabalha-se com representações dos atores sociais, ou com
construções identitárias do ciberespaço (RECUERO, p. 25, 2009).

Com base na Teoria Ator-Rede, entende-se aqui que a interação é constituída


por atores humanos e não humanos, logo, o computador, o smartphone e outros
dispositivos, uma vez que fazem diferença no curso da ação, são atores também. Já
o social remete ao movimento resultante da interação, ao deslocamento, à
transformação, trata-se de um registro, um tipo de associação momentânea
reconhecida pelo modo como se aglomera, assumindo novas formas (LATOUR,
2012b). Sobre a interação social peculiar do mundo digital, Recuero (2009) aponta o
distanciamento dos indivíduos envolvidos, mas, ao invés de focar em como estes
indivíduos se agregam, foca em conjuntos de entidades já reunidas (identidade,
representações); na contramão, esta tese parte dessa característica crucial (a
distância física) para descrever o hiato preenchido pelo Meme no processo
discursivo de fabricação e manutenção de grupos. Dessa maneira, o capítulo 1
versa sobre o hiato aberto pela condição nova de precisar se relacionar com outros
indivíduos fisicamente distantes. Para tanto, usa-se a teoria do contágio de Gabriel
Tarde (2005) com a finalidade de perceber como a comunicação de espírito a
espírito pode acontecer sem a aproximação dos corpos, formando correntes de
opiniões, grupos, identidades17.
17
A questão é que preencher discursivamente um hiato corresponde a necessidade imprescindível de
30

Essa condição nova é dada pela entrada em cena de atores, cuja


performance é tão inovadora, que o movimento do social se transformou muito
rapidamente e o contágio precisou ser adaptado. Se o contágio, como afirma Tarde
(2005), acontece por meio da influência de saber ou crer que certas ideias são,
simultaneamente, compartilhada por outros, como saber ou crer que outras pessoas
pensam igual, uma vez que isso não pode mais acontecer essencialmente através
da penetração do olhar, da persuasão do magnetismo e da presença física? Sob tal
enfoque, o capítulo 1 se volta para as Redes híbridas, a partir da analogia entre os
riscos de fabricar o mundo digital assumidos pelos modernos; e os riscos de fabricar
um mundo subterrâneo assumidos pelos indivíduos de Fragmentos de uma história
futura, obra literária de Gabriel Tarde (2014). A analogia é feita com base na
necessidade de se reinventar enquanto grupo, isto é, de salvar o social. De maneira
em parte similar aos indivíduos da obra literária citada, os modernos também
precisam se reinventar para salvar a vida social no mundo digital, ambos seguindo
caminhos opostos, mas, necessariamente, embaralhando os recursos sociotécnicos
a fim de garantir a travessia de valores que fazem a manutenção dos grupos.
Depois de descrever o hiato relativo ao Meme, ainda no primeiro capítulo, é
pontuado o critério que, caso seja atingido, sabe-se que se falou memeticamente18,
que a condição de felicidade foi atingida: o contágio à distância aconteceu. Isso
implica dizer que alguns indivíduos estão imitando determinada opinião ou conjunto
de ideias, e assim, um grupo está em vias de existir. Porém, para um grupo existir,
os indivíduos usam suas tecnologias discursivas (os regimes de enunciação) e
instauram seres auxiliares, seres que superam esses mesmos indivíduos. No caso
específico dos seres do Meme, pode-se resumi-los dizendo que o prestígio é o ser
(ou estar sendo) do Meme. E, para finalizar o capítulo intitulado Um mundo real para
situar o digital, o efeito mediado por essa ação chamada de Meme que atravessa os
indivíduos na construção da realidade é sublinhado, ou seja, a alteração desse micro
processo é delimitada: corresponde ao aumento da quantidade social.
Após o capítulo 1 reunir os rastros deixados pelo caminho dessa ação, A
trajetória oculta do Meme, título do capítulo 2, pode ser explorada. A trajetória é
oculta porque o pensamento dos modernos opera por meio de uma ruptura entre a

sustentar essas opiniões, esses grupos, essas identidades.


18
Embora a Técnica usada para atingir essa condição de felicidade ainda não esteja clara, expressa,
legível.
31

teoria oficial sobre os fenômenos sociais e a prática oficiosa que sustenta a


realidade. Na forma de vida teórica, escolhe-se entre fatos e fetiches; e na forma de
vida prática, os indivíduos são superados pelos seres que construíram (coluna 4 do
quadro 2) e que auxiliam no intenso trabalho19 para permitir as verdades do fato e do
espírito (LATOUR, 2002). Mas, a partir da Teoria Ator-Rede, essa ruptura é
preenchida, suturada, religada, pela ação em Rede da qual o Meme faz parte na
medida em que flexibiliza os scripts por meio da resolução antecipada de conflitos.
Nessa trajetória, a ação do Meme é articulada com outras ações discursivas (coluna
2 do quadro 2), logo, ao passo em que as descontinuidades dessas ações se
agregam, estabelece-se a continuidade de um grupo, acontecimento ou fenômeno
social. Dito de outro modo, para continuar a existir, um grupo não pode parar de
conversar.
Com o quadro 1 já preenchido completamente, o capítulo 3 pode apresentar
a articulação ou o cruzamento da trajetória do Meme com os seres da Metamorfose
(coluna 4, linha 2 do quadro 2), cuja importância é fundamental para a flexibilização
dos scripts por resolução antecipada, ou melhor, para a possessão de ideias ou
opiniões. Intitulado Possessão, este capítulo ilustra a eficácia da Técnica do Meme a
partir da personagem Nazaré Tedesco, como apenas um exemplo de performance
híbrida, mas, realçando a Técnica específica do Meme que pode ser usada em
qualquer conversação. Este capítulo mostra como influências, psiquismos ou
divindades podem cruzar a trajetória do Meme, e serem invocados para garantir as
transformações e emoções dos indivíduos. No caso específico da personagem
usada como exemplo, o falar memeticamente explora a fisionomia dela, que não é
cômica em si, mas que pode acessar o cômico porque oferece um acervo precioso
de achados expressivos, ou seja, seus registros figuram sensações solicitando
alinhar crenças e desejos a insights.
A escolha desta personagem não está relacionada à necessidade de um
recorte temático, de um grupo específico ou de qualquer constituição subjetiva. Sua
escolha corresponde, a título de exemplo, a uma performance do falar
memeticamente que se destaca no ritual de culto aos aos seres do Meme no mundo
digital; corresponde à eficiência do faz-fazer ao percorrer a trajetória oculta do
Meme. Porém, o fundamental é que esta performance poderia acontecer,
infinitesimalmente, de outras formas, pela associação de outros mediadores, outras
19
Intenso trabalho das Redes híbridas e homogêneas (e outras).
32

histórias, outras influências, e, mesmo assim, a trajetória ser a mesma: a


flexibilização de scripts por meio da resolução antecipada dos conflitos. Dessa
forma, trata-se de uma escolha arbitrária, influenciada pela experiência pessoal de
ter assistido a novela Senhora do destino (2004), na qual a Nazaré Tedesco foi
criada, bem como sua adaptação ao mundo digital enquanto um ser instaurado para
mediar o social.
Por fim, o capítulo 4 aborda a Vibração das formas argumentativas, como o
mesmo se intitula, e versa sobre a associação do falar memeticamente com o falar
politicamente enquanto ações discursivas que aceleram extraordinariamente o fluxo
dos acontecimentos no mundo digital. Sob a perspectiva monadológica, esse
capítulo aponta diretamente para a compreensão de que agregar/desagregar o
mundo é uma questão de agregar/desagregar o pensamento, na medida em que
aponta para dois hiatos, duas trajetórias, duas condições de felicidades, dois tipos
de seres a serem instaurados e duas alterações articuladas em prol da fabricação
artificial da realidade. Em outras palavras, esse capítulo é dedicado à agregação de
duas Técnicas, a do Meme e a da Política, que, somadas, transformam-se em outra
coisa, outro ser, outra situação cara aos modernos para a manutenção de grupos.
33

1. CAPÍTULO 1 – UM MUNDO REAL PARA SITUAR O DIGITAL

Os modernos acreditam na linguagem como


um domínio autônomo que se agitaria diante
de um mundo que, por outro lado,
permaneceria mudo.

(Bruno Latour)

Fazer e refazer grupos no mundo digital corresponde a um desafio coletivo,


em parte, similar a experiência vivida pelas vítimas da catástrofe planetária narrada
por Gabriel Tarde (2014) em Fragmentos de uma história futura20. Nesta obra
literária, o autor pensa acerca do futuro da humanidade a partir de uma catástrofe
que mudou radicalmente a disponibilidade dos dispositivos materiais para a
existência humana: a extinção do Sol. Tal adversidade obrigou, em um passado
remoto, a todos os indivíduos que desejavam sobreviver, reorganizar-se na vida
subterrânea. Foram forçados a procurar no centro da Terra um lugar para viver, mas,
sob a sorte de terem conseguido preservar a maior parte dos conhecimentos
produzidos durante a vida na superfície da Terra, encontraram meios que permitiram
aperfeiçoar a qualidade das relações sociais, conforme conta o narrador que vive
por volta do século XXXI.
Essa ficção científica corresponde a uma experiência mental, na qual, Tarde
(2014) expõe suas teorias sociológicas sublinhando que o caráter essencial da vida
social

consiste na eliminação completa da Natureza viva, seja animal, seja


vegetal, excetuando apenas o homem. Daí, por assim dizer, uma
purificação da sociedade. Subtraído dessa maneira a toda influência
do meio natural em que estivera até então mergulhado, o meio social
pôde revelar-se e desenvolver pela primeira vez sua virtude própria,
e o verdadeiro laço social pôde aparecer com toda sua força, em
toda sua pureza. Dir-se-ia que o destino quis fazer conosco, para sua
própria instrução, colocando-nos em condições tão singulares, uma
experiência prolongada de sociologia (TARDE, 2014, p. 578).

20
Publicado pela primeira vez em 1896.
34

Mas, como imaginar esta experiência? Partindo de uma ideia-mãe, de uma


mente imaginativa, enérgica e eloquente, da capacidade de sedução e
perseverança, em suma, de uma liderança movida por paixões. O personagem que
encarna essa liderança é Milcíades, para quem

sob a condição de se aprofundarem o suficiente no subsolo,


encontrarão um tepidez deliciosa, uma temperatura elísia; que
bastará cavar, alargar, elevar, prolongar mais adiante as galerias de
minas já existentes para torná-las habitáveis e até confortáveis; que
a luz elétrica alimentada sem custos pelos focos disseminados do
fogo interior, permitirá iluminar magnificamente, noite e dia, essas
criptas colossais, esses claustros maravilhosos, indefinidamente
prolongados e embelezados pelas sucessivas gerações; que com um
bom sistema de ventilação, todo perigo de asfixia ou de insalubridade
do ar será evitado; finalmente, que, após um período mais ou menos
longo de instalação, a vida civilizada poderá novamente se
desenvolver em todo seu luxo intelectual, artístico e mundano, tão
livremente, e talvez mais seguramente, do que à luz caprichosa e
intermitente do sol (TARDE, 2014, p. 413).

Milcíades defende a ideia de que a civilização, os poucos sobreviventes da


extinção do Sol, estava destinada a voltar para as cavernas. Mostrando desenhos,
cálculos e plantas, ele profere com veemência:

A água nos será fornecida pelo gelo derretido; todos os dias


transportaremos blocos enormes para desobstruir os orifícios das
criptas e alimentar as fontes públicas, acrescento que a química é
capaz de fazer álcool de quase tudo, até de rochas minerais, e que é
o bê-a-bá dos licoristas fazer vinho com álcool e água (Muito bem!
em todos os assentos). Quanto à alimentação, a química não é
capaz também de fazer manteiga, albumina, leite com qualquer
coisa? Além disso, ela já chegou ao seu auge? Não é provável que
em pouco tempo, se ela se aplicar, consiga satisfazer plenamente, e
economicamente, os desejos da gastronomia mais exigente? E,
enquanto isso… (uma voz tímida: enquanto isso?) Enquanto isso,
nosso próprio desastre não coloca a nosso alcance, por uma
circunstância de certa forma providencial, o frigorífico melhor
abastecido, mais abundante, mais inesgotável que a espécie humana
jamais teve? Imensas conservas, as mais admiráveis já preparadas
até hoje, dormem para nós sob o gelo ou a neve; bilhões de animais
domésticos ou selvagens– não ouso acrescentar: de homens e
mulheres… (arrepio de horror generalizado) –mas ao menos de bois,
ovelhas, aves, congelados de uma só vez, em bloco, aqui e ali, nos
mercados públicos, a alguns passos daqui. Reunamos, enquanto
esse trabalho exterior é possível ainda, essas inumeráveis viandas
que estavam destinadas a alimentar, por anos, centenas e centenas
de milhões de homens, e que bastarão para alimentar, por séculos,
alguns milhares apenas, mesmo que se multipliquem abusivamente a
35

despeito de Malthus. Empilhadas perto do buraco da caverna


principal, serão de fácil utilização, e de consumo delicioso para
nossas ágapes fraternas!... (TARDE, 2014, p. 426).

A proposta de Milcíades consiste em fazer como no mito de Noé, tentar salvar


àquilo que se tinha de mais precioso, mas, nas palavras do próprio Milcíades,

Em nossa nova arca, misteriosa, impenetrável, indestrutível, não são


plantas e animais que levaremos. Estas vidas estão aniquiladas;
estas formas apenas esboçadas, esses tateios heteróclitos da terra
em busca de forma humana foram varridos para sempre. Não o
lamentemos. No lugar de tantos casais volumosos, de tantas
sementes inúteis, levaremos para nosso refúgio o harmonioso feixe
de todas as verdades concordantes, de todas as belezas artísticas
ou poéticas, solidárias entre si, unidas como irmãs, que o gênio
humano fez brotar ao longo das eras e multiplicou a seguir em
milhões de exemplares, todos destruídos, salvo um só que devemos
garantir contra todo risco de destruição; uma vasta biblioteca
contendo todas as obras capitais, enriquecidas de álbuns
cinematográficos e de coleções fonográficas inumeráveis; um vasto
museu composto de uma espécime de cada escola, de todos os
estilos magistrais, em arquitetura, em escultura, em pintura e mesmo
em música; eis nossos tesouros, eis nossas sementes, eis nossos
deuses, pelos quais lutaremos até o último suspiro! (TARDE, 2014, p.
464).

Movidos e apaixonados pela ideia-mãe, começou-se imediatamente o


trabalho de salvamento do conhecimento das coleções de todos os gêneros
produzidos até então, a fim de salvar o futuro da civilização.

Com cuidados infinitos, elas foram descidas uma após outra, caixote
depois de caixote, às entranhas da terra. Esse resgate do mobiliário
humano se faz em ordem: toda a quintessência das antigas grandes
bibliotecas de Paris, de Berlim e de Londres, reunidas em Babilônia,
e depois abrigadas no deserto com todo o resto, e mesmo de todos
os antigos museus, de todas as antigas exposições da indústria e da
arte, está condensada ali, com incrementos consideráveis.
Manuscritos, livros, bronzes, quadros: quanto esforço, quanta
dificuldade, apesar da ajuda das forças intraterrestres, para embalar,
transportar e instalar tudo isso! Tudo isso deve, no entanto, ser inútil
para aqueles que se entregam a esse trabalho. Eles não o ignoram,
sabem-se condenados, provavelmente pelos restos de seus dias, a
uma vida dura e material, para qual sua existência de artistas, de
filósofos e de letrados não os preparara. Mas – pela primeira vez – a
ideia do dever a cumprir entrou nesses corações, a beleza do
sacrifício subjugou esses diletantes. Devotam-se ao desconhecido,
ao que ainda não é, à posteridade para a qual se orientam todos os
votos de suas almas eletrizantes, como todos os átomos do ferro
tendem para o polo (TARDE, 2014, p. 480-496).
36

A extinção do Sol implicou, para esses indivíduos, a simplificação do que


Latour (2019) chama de Redes híbridas. Entretanto, implicou para os indivíduos das
gerações futuras, a possibilidade de a atividade estética superar a atividade utilitária,
assim, a relação produtor/consumidor foi suprimida pela valorização dos
conhecimentos artísticos e científicos. A obra relata uma situação na qual houve
uma simplificação relacionada aos meios técnicos disponíveis, contudo, houve,
conjuntamente, uma intensificação da intelectualidade, pois a única coisa que se
poderia ter a mais do que os outros era o conhecimento. Fundamentado na troca de
admirações e críticas, nos julgamentos favoráveis e desfavoráveis, esse mundo foi
possibilitado pela mudança do antigo ideal que acompanhou a simplificação das
necessidades: não se serve mais uns dos outros, serve-se a si mesmo; não se
busca mais o divertimento e a satisfação individual, busca-se produzir (arte,
conhecimento) para encantar os demais. Em outras palavras, vivendo com o
mínimo, as vítimas da extinção do Sol puderam produzir o máximo de reflexões e
ponderações.
Dessa forma, por recurso da imaginação, Gabriel Tarde (2014) versa sobre o
que, a seu ver, é a vida social mais pura e intensa, a saber, “tônicos sociais”
dosados pelos apertos de mão de amigos, conversas e outras trocas de reflexos.

Trata-se, de certa forma, de saber o que se tornaria o animal social


entregue a si mesmo, mas abandonado a si só, – provido de todas as
aquisições intelectuais acumuladas por um longo passado de gênios
humanos, mas privado da ajuda de todos os outros seres vivos, e
mesmo de todos esses seres seminovos chamados rios, mares ou
astros, e reduzidos às forças domadas mas passivas da natureza
química, inorgânica, inanimada, que está separada do homem por
um abismo grande demais para exercer sobre ele, socialmente,
qualquer ação. – Tratava-se de saber o que faria essa humanidade
inteiramente humana, obrigada a extrair, se não seus recursos
alimentares, ao menos todos os seus prazeres, todas as suas
ocupações, todas suas inspirações criadoras, de seu próprio fundo
(TARDE, 2014, p. 578-591).

Vítimas de uma “catástrofe” planetária de outra ordem, os modernos também


se arriscam diante da necessidade de rever os valores que devem circular para a
manutenção das relações e, consequentemente, instaurar um mundo que subsista
às novas condições. Ao invés da simplificação nas Redes híbridas, como
aconteceram com os sobreviventes da extinção do Sol, os modernos lidam com a
37

entrada de novos atores na cena social e com a ampliação extraordinária dessas


Redes, mas, isso requereu igualmente transformações na qualidade das
associações. Ademais, no caso dos modernos, trata-se de saber como o animal
social pode sobreviver estando fisicamente distante dos outros indivíduos com quem
precisa se agrupar para povoar o mundo digital, também criado e provido para salvar
os conhecimentos acumulados, um mundo constituído por reflexos e trocas intensas,
cuja extensão, porém, esgota o tempo e aumenta as contradições.

1.1 A “CATÁSTROFE” DOS MODERNOS

A catástrofe tardeana foi a extinção do Sol, contudo, os indivíduos


desenvolveram meios para sobreviver que possibilitaram o ganho de tempo para
aprimorar os valores e trocas de reflexos; a “catástrofe” dos modernos, por sua vez,
é a extinção do tempo e da aproximação física. Sob outro enfoque, enquanto os
indivíduos daquela catástrofe conseguiram salvar os conhecimentos da vida na
superfície terrestre e, assim, salvar a civilização humana; os indivíduos da última
catástrofe conseguiram realizar um feito ainda maior: disponibilizar amplamente os
conhecimentos que foram construídos na vida constituída essencialmente pelo
contato físico das pessoas, aprimorar a reprodutibilidade Técnica e,
consequentemente, o alargamento social. O desafio dos modernos, portanto, uma
vez que pretendem salvar o social no mundo digital, é estabelecer feixes de
contágios psíquicos sem contato físico.
À sobrevivência do homo digitalis21 são colocados novos problemas, lacunas
e hiatos em virtude da seguinte adversidade enfrentada pelos modernos: como fazer
e refazer grupos uma vez que as Redes foram ampliadas globalmente mediando
acontecimentos acelerados? Como encontrar meios que possibilitem aprimorar as
intensas trocas de opinião e ponderações quando o tempo se tornou um recurso
escasso e os indivíduos envolvidos estão distantes fisicamente? Esta tese afirma
que o Meme corresponde a uma, entre outras, das ações que se articulam na árdua
tarefa de preencher esses espaços, e, assim, fazer a manutenção dos grupos e
mantê-los vivos. O mundo digital, bem como qualquer mundo, depende dessas

21
O termo homo digitalis remete aos indivíduos imersos na comunicação digital, no trabalho imaterial,
ou seja, nas relações mediadas por plataformas digitais.
38

ações discursivas para existir, mas, as peripécias dessas mesmas ações constituem
um entrave para situar a realidade fabricada pelos homo digitalis.
Ao propor a construção de uma antropologia dos modernos, Bruno Latour
(2002) explica que todas as criações chamadas de sociais desses povos sugerem a
plenitude ou completude de algo pronto, simplesmente dado, que, teoricamente,
explicaria os aspectos residuais das relações entre os indivíduos. Mas, este autor
orienta pensar sobre o social seguindo, rigorosamente, o caminho inverso. Dessa
maneira, partimos da compreensão de que, longe de estar a disposição por meio de
um simples toque em uma tela, o mundo digital é constituído por cada aspecto
residual que se agrega em seu favor, e isso não é uma tarefa fácil, haja vista que ela
requer a habilidosa articulação entre Redes (conectores), afinal, “um vazamento em
um oleoduto obriga o operador a fechar as válvulas, um deslocamento de três
metros na área de um wi-fi e adeus, a conexão se perde” (LATOUR, 2019, p. 38).
Em suma, sem o abrigo de um mundo real, não há como uma situação, um
grupo ou um fenômeno qualquer se sustentar, acontecer. A Teoria Ator-Rede realça
a necessária fabricação desse abrigo destacando que há mais de um tipo de Rede
seguindo a precedente, acontecendo, dando continuidade, superpondo-se. O termo
Rede (que logo será abandonado e substituído por conector ou associação) remete
tanto a heterogeneidade dos dispositivos materiais22 (smartphones, cabos, fiação)
quanto a travessia de serviços ou valores23 (discursos), esta última possibilitada
impreterivelmente pela primeira. Correspondem a dois tipos diferentes de
conectores, os quais são articulados no estabelecimento das condições materiais e
artificiais da realidade. Da fabricação à realidade o trabalho é intenso, e o Meme é
um desses serviços ou valores, é um conector capaz de produzir um efeito
específico na qualidade das relações dos grupos constituídos no mundo digital.
É precisamente sobre esse efeito que esta tese versa do início ao fim. E para
isso, é preciso fragmentar o discurso até chegar ao que se pode chamar de falar
memeticamente, porque, como ficará mais claro no decorrer da leitura, trata-se de
uma atividade que se agrega a outras atividades discursivas movidas pelos desejos
e crenças dos grupos. Logo, é possível inverter tal percurso, ou seja, partir dessa
ação elementar (a do Meme) até a realidade do mundo digital e vice-versa. A

22
Chamada de Rede Híbrida em uma linguagem mais técnica da Teoria Ator-Rede (LATOUR, 2019).
23
Chamada de Rede Homogênea em uma linguagem mais técnica da Teoria Ator-Rede (LATOUR,
2019).
39

respeito da diferença entre os dois tipos de conectores supracitados, atente-se para


a diferença entre o que se desloca e o deslocamento, perceba que “um oleoduto não
é mais feito de petróleo do que a internet é feita de e-mails” (LATOUR, 2019, p. 38).
Sem danos, a palavra e-mails pode ser substituída por postagens. E, assim,
começar a falar de um processo que mensura a qualidade das interações entre os
indivíduos por meio da forma pela qual um discurso é pronunciado. Esse processo é
formado por muitas ações elementares em conjunto, por isso, para perceber ou
sentir a ação do Meme, é preciso perceber, antes, como ela entra em sintonia com a
ação de outros regimes de enunciação e se articulam no esforço de fazer e refazer
grupos, ou seja, no esforço de reagregar o social. Finalmente, esta tese resulta do
estudo de um dos mecanismos responsáveis por manter os grupos instaurados no
mundo digital vivos. Este mecanismo não é particular de algum grupo em específico,
a necessidade dele consiste em subsistir enquanto grupo diante das novas
condições do mundo digital.
O Meme é um desses mecanismos, cuja travessia é garantida por
associações heterogêneas (Rede como processo) e acontece como um serviço ou
valor (Rede como resultado) caro às interações entre os indivíduos no ambiente
digital. Isso implica dizer que sua definição depende de sua tonalidade específica, do
seu contraste em relação aos demais serviços ou valores a ser realçado no discurso.
No entanto, perceber esse contraste é dificultado pelo esforço obsessivo dos
modernos para manter bem longe a prática da teoria, o objeto do sujeito24.

1.2 MEME: UM DISCURSO RESTAURADOR

A articulação dos modernos para manter tal separação (teoria e prática,


sujeito e objeto) é garantida por uma ruptura crucial no pensamento: coloca-se, de
um lado, o sujeito que acredita naquilo que fabricou, que acredita, portanto, em uma
ilusão, em um objeto encantado; e, de outro lado, coloca-se o sujeito moderno,
dotado de liberdade, de intencionalidade e de racionalidade na medida em que lida
com um objeto real, pleno e objetivo, porque este último teria posto fim a
irracionalidade e conhecem a eficácia da técnica. Ignora-se, dessa maneira, a

24
Essa característica antropológica dos modernos é operacionalizada pela noção de crenças,
resume-se na compreensão de que os outros povos crêem e não são literais, já os modernos sabem,
são objetivos (LATOUR, 2002).
40

relação de Redes tão bem articuladas quanto quase indistinguível entre sujeito e
objeto, ignora-se, sobretudo, que “se não existe mediação, não existe acesso”
(LATOUR, 2019, p. 74). Por meio dessa ruptura, os modernos encontraram um meio
para purificar a teoria sobre a produção da realidade, dos vestígios da prática que
produziu tal realidade, mesmo esta última estando a todo vapor, cuidando do
fazer-fazer necessário à manutenção de todas as atividades humanas (LATOUR,
2022).
É como se a realidade na qual os modernos vivem dependesse
desesperadamente da sua condição plena, pronta, dada, não feita. E, dessa ruptura
grosseira entre sujeito e objeto, resultasse um mundo interior (subjetividade)
constituído por sonhos, ilusões e fantasias, teoricamente, existentes apenas em
nossas cabeças; totalmente desconexo do mundo exterior, constituído pelos objetos
prontos, sob o pretexto de que, uma vez elaborados no laboratório, parecerem poder
existir sem a nossa presença, compondo o mundo real, contínuo, sem lacunas, sem
vazio, sem humano. Na versão teórica dos modernos, graças à representação, o
sujeito da interioridade projeta sobre a "realidade exterior" seus próprios códigos,
mas, estes códigos seriam fornecidos prontos, de fora pelas estruturas da língua, do
inconsciente, do cérebro, da sociedade (LATOUR, 2002).
O que sustenta a versão dos modernos sobre a realidade que os cerca é
denominado de fetiche por Latour (2002), diz respeito a um operador do pensamento
que explica o porquê de eles acreditarem, enquanto povo, serem os únicos sem
crenças ou ilusões. Todavia, na prática, não há nem objeto encantado nem objeto
causa (não fabricado), ou melhor, os indivíduos são necessariamente superados por
aquilo que fazem, seja, usando os exemplos do autor, criar uma divindade, modificar
os genes ou redefinir as leis da economia. Toda atividade humana exige um trabalho
intenso que permite a verdade tanto dos fatos quanto do espírito, mediadas,
respectivamente, por Redes híbridas, que colocam o mundo das coisas em
movimento; e pelas Redes homogêneas que, por sua vez, colocam os modos de
discursos em ação.
Com a finalidade de realçar justamente a articulação desse movimento e
dessa ação25, Bruno Latour (2002) sugere outro operador para o pensamento, a

25
As Redes híbridas garantindo a travessia das Redes homogêneas, ou seja, dos valores
desenvolvidos pelos modernos.
41

saber, o fe(i)tiche26. Este é fundamental para mapear a ação do Meme, bem como
para mapear a ação das demais ações discursivas. Entretanto, é ainda importante
salientar que os modernos não fabricam sua realidade pelo caminho mais difícil
(ocultando os rastros deixados pela prática desse processo) gratuitamente, isso
reflete na principal característica desse povo: puderam mobilizar forças
extraordinárias sem que elas lhes fossem ameaçadoras, essas forças mediam uma
ampliação planetária das Redes. O delicado disso consiste no fato de que a ruptura
entre sujeito e objeto estabelece um mundo independente da prática, ou melhor, a
teoria da ação pode se desdobrar sem ter que prestar contas instantaneamente ao
mundo da prática. Por conseguinte, é imprescindível o remendo indefinido para
restaurar os pedaços e espaços, como operação de salvamento (LATOUR, 2002).
O Meme é uma das ações de manutenção da realidade, cujo efeito nas
relações entre os indivíduos é crucial para reagregar o social nas circunstâncias
instauradas no mundo digital. Ele corresponde a uma ação restauradora ou, se
preferir, a um discurso restaurador, sua dimensão prática é ocultada e ofuscada pelo
fetiche, mas, ainda assim, seu remendo específico é sentido, percebido, porque ele
preenche algum espaço da quebra entre teoria e prática (entre fato e fetiche) mesmo
que esteja confuso em meio a heterogeneidade dos elementos que se associam em
seu favor. Constantemente, os fetiches são destruídos e reconstruídos, remetem na
prática27 o que a teoria28 só pode apreender sob a dupla forma de quebra e de
restauração. Em síntese, os modernos criam, meticulosa e astuciosamente,
linguagens fe(i)tiches capazes de fabricar “um estar sendo” qualquer (uma situação,
um acontecimento) que passam da fabricação à ação, tais como divindades, feitos,
obras e etc., que os ajudam na instauração das condições artificiais de existências,
de restaurações e curas (LATOUR, 2002). E o Meme é uma dessas linguagens
fe(i)tiches, um discurso restaurador.

1.3 UMA IMENSA CONVERSAÇÃO

26
A palavra fe(i)tiche propõe a criação de uma Antropologia simétrica, a proposta é tornar os
modernos comparáveis aos “outros” das culturas ditas primitivas, torná-los comparáveis àqueles que
são vistos como criadores de ilusões. Tanto o termo fato quanto o termo fetiche têm a mesma
etimologia, ligada ao verbo fazer, assim, fe(i)tiche é uma junção de ambos, cujo objetivo é evidenciar
que todas as atividades humanas apresentam o mesmo passe, quer dizer, correspondem justamente
ao cruzamento da Rede híbrida com a Rede Homogênea.
27
Associação híbrida no mundo das coisas materiais.
28
Multiverso discursivo.
42

A condição ontológica de ação restauradora dada ao que é chamado de


Meme no mundo digital (apesar de ela ser ocultada, seu efeito é perfeitamente
sentido e identificado) significa a existência de um espaço específico a ser
preenchido no processo de fabricação da realidade. Sumariamente, sem essa ação
há um hiato na tarefa de reagregar o social, de criar uma situação ou de manter um
grupo vivo. Ademais, dependendo do grupo, a ausência dela pode comprometer
todo o esforço de reagregar o social, por isso, é primordial pensar acerca das novas
necessidades e possibilidades que as Redes híbridas que caracterizam o mundo
digital criam. Ao adentrar nesse ambiente, é comum se deparar com postagens que
causam impacto porque são incongruentes, absurdas ou impressionantes por algum
motivo.
São conteúdos discursivos que causam curiosidades e vontade de marcar um
amigo, ler os comentários para saber o que pensam os demais sobre o que foi
exposto, de verificar quantas pessoas estão curtindo e quantas pessoas estão
compartilhando também, ou, indaga-se: “isso é verdade ou Meme?”. Neste aspecto,
a questão a ser pontuada já de início é que o Meme não é uma postagem que
veicula uma ideia com a qual as pessoas que compartilham e curtem se identificam,
não é apenas uma imagem/vídeo com legenda compartilhada por um determinado
público. É, antes, uma imagem ou vídeo que de alguma forma atende a critérios
específicos de verdadeiro ou falso do ser enquanto Meme, ou seja, atende a critérios
inerentes às Redes criadas discursivamente29. Então, jamais se deve procurar a sua
razão nas Redes híbridas, estas apenas guarnecem a travessia dos seus valores e
serviços na qualidade das interações dos grupos.
Note-se que as postagens normalmente chamadas de Meme são muito
difíceis de classificar, haja vista que elas podem ser editadas de formas infinitas,
além disso, essas edições podem servir a qualquer grupo ou ideias. Em outros
termos, a mesma imagem, a mesma frase ou o mesmo vídeo base de determinada
postagem pode, por meio de uma rápida edição, ser usado por grupos
partidário-políticos de esquerda e de direita, por exemplo, igualmente pode ser
usado por grupos religiosos como católicos, protestantes ou umbandistas, sem nada
disso comprometer o ato de falar memeticamente. Tal colocação visa sublinhar que
não existe Meme de esquerda ou de direita, Meme católico, protestante ou
umbandista, uma vez que a verdade do Meme precede o grupo em si, ela não serve
29
Como já foi dito, chamada de Redes homogêneas por Latour (2019).
43

a uma opinião específica, basta uma edição e a ideia pronunciada anteriormente é


traída.
Seu compromisso não é, portanto, com o que se diz, mas, sim, com o como
se diz. Para esclarecer essa afirmação, é conveniente começar desfazendo a noção
comum que confunde Meme com postagem. O que é uma postagem no ambiente
digital? Basicamente estabelecer uma conversação com pessoas fisicamente
distantes. Em uma comunicação desse tipo, a formação de grupos exige uma
coesão inteiramente mental, exatamente o que Tarde (2005) denominou de público.
Este autor, na verdade, refere-se a um tipo de agrupamento humano cuja crescente
importância advém da invenção da imprensa, mas, mesmo assim, já o provocava
enquanto pensador, como se ele pudesse sentir a vibração do que viria a ser o
mundo digital, embora não tenha conhecido a internet. No início do século XX, Tarde
na obra Opinião e as massas indagou sobre de onde advém o público, como ele
nasce, como se desenvolve, sobre quais são suas variedades, suas relações com os
dirigentes, com a multidão30 e com o Estado.
Como um presente aos pesquisadores do futuro, o sociólogo e filósofo
francês supracitado versou sobre a força do público, sobre as maneiras de sentir e
de agir de um tipo de agregado social que não necessita, essencialmente, da
aproximação dos corpos. Este, ao se abrigar no mundo digital, encontrou o ambiente
adequado à sua natureza, e, por conseguinte, a forma de se pronunciar por
excelência tornou-se a postagem. Entretanto, ao que parece, esse mundo ainda
requer adaptações e experimentações relativas à transformação na qualidade das
associações, afinal, não é incomum questionamentos da seguinte ordem: “será que
é fake news?”, “quem disse isso foi realmente Platão?”, “não é melhor pesquisar em
fontes mais confiáveis?”. O detalhe nada sutil consiste no fato de que, neste mundo,
reagregar o social exige dos valores discursivos mecanismos mais sofisticados para
se delimitar, mediar interesses e lidar com as novas e pequenas interrupções,
intervalos, lacunas, soluções e falhas na realidade.
Pode-se afirmar que, em diálogo com Gabriel Tarde e com Bruno Latour,
construir a realidade social é basicamente conversar31. Logo, o mundo digital é uma

30
Tarde (2005) define a multidão como um feixe de contágios psíquicos, porém, diferentemente do
público, ela é produzida essencialmente por meio do contato físico. Isto é, para a multidão, a
aproximação dos corpos é indispensável.
31
Lembrando que os valores discursivos são as Redes homogêneas, mantenha o seu caminho bem
sinalizado, porque é no nível dessas Redes que esta tese se atém. É no modo de existência das
Redes homogêneas, como é explanado mais à frente, que a ação do Meme está situada.
44

imensa conversação, de extensão e velocidade sem precedentes na história.


Contudo, ainda se está aprendendo a conversar e, por revés, o tempo não é um
recurso em abundância como era na tragédia tardeana, assim, os públicos ou
grupos necessitam de muito mais esforço para serem sustentados, feitos e refeitos.
Não tendo algo tão valioso como o tempo, coloca-se um problema: como saber
quais são os elos que unem pessoas distantes fisicamente, como avisá-las que
estão vinculadas e evidenciar os interesses comuns que possuem? Sem um
mensageiro não teriam como saber, nem como se tornarem grupos.

1.4 O HIATO

Uma vez que a Rede híbrida esteja com a manutenção em dia, importa
pensar a articulação dos mecanismos responsáveis por manter o grupo vivo
lembrando que o essencial consiste em mais do que dizer a mensagem, consiste no
como dizer a mensagem. É precisamente no efeito do como se diz que reside a
trajetória da ação discursiva e que se deve avaliar a qualidade da conexão. Note-se
que, entender a verdade de cada condição ontológica não corresponde tão somente
a uma perspectiva relativista, trata-se, principalmente, de falar de cada modo em sua
língua e conforme seu princípio de veridicção, “Este é o mínimo que podemos pedir
a um investigador” (LATOUR, 2019, p. 125). A linguagem é bem articulada, bem
como o mundo do qual é carregada, logo,

Tornaríamos o comércio entre as questões de ontologia e a


linguagem muito mais regular usando o termo articulação para
designar tanto o mundo quanto as palavras. Se nós falamos de uma
maneira articulada é porque o mundo é feito de articulações, cujas
dobradiças de cada modo de existência começamos a identificar
(LATOUR, 2019, p. 25-26).

Portanto, onde existir um hiato, existe também uma articulação; onde


pudermos definir antecedentes e consequentes, implica na existência de sentido.
Porém, a fixação dos modernos pela ideia de informação perfeita e pura, apenas
teoricamente pode permitir falar a verdade, porque na prática “os mediadores são a
própria razão, o único meio de subsistir no ser" (LATOUR, 2019, p. 133). Essa visão
negativa que se tem das mediações coloca a noção de construção em oposição à
noção de verdade, mesmo as mediações sendo as únicas capazes de manter a
45

continuidade das Redes. Assim, o pensamento “crítico” sempre procura apontar por
trás das instituições do verdadeiro, do belo, do bem, do todo, à multiplicidade de
manipulações duvidosas, de traduções, de metáforas, ou melhor, de transformações
que invalidam seu valor; como se existisse uma substância que permanece sem
transformação, já dada e por isso mesmo verdadeira e pura.
Na medida em que se comprometeu com a impossível tarefa de esconder
seus fetiches (as mediações), a linguagem dos modernos assumiu a missão de
ocultar os vestígios da prática, operando uma sutura entre a teoria e a prática. Por
causa disso, eles vivem sempre nas ruínas, “aquelas que acabaram de derrubar,
aquelas que erigiram no lugar do que derrubaram e que outros, pelas mesmas
razões, estão se preparando para derrubar” (LATOUR, 2019, p. 43-44). No mundo
digital (e sim, real), o fe(i)tiche primordial consta em garantir os vínculos para a
formação de grupos entre indivíduos corporalmente separados, em função disso, as
vítimas da escassez do tempo desenvolvem Técnicas a fim de medir a temperatura
dos interesses apaixonados, ou melhor, medir a coesão dos espíritos que não se
vêem necessariamente, não vibram olhando no olho.
Os interesses apaixonados garantem os veículos de qualquer grupo, em
qualquer mundo construído para ser habitado por humanos. Todavia, nas
circunstâncias do digital, descobrir que se gosta das mesmas coisas, que se admira
o mesmo líder, que se concorda com as mesmas ideias requer atualizar os valores,
os modos de se alterar, os fe(i)tiches, em suma, o falar. Essa distância física dos
indivíduos que impede de transmitir o magnetismo, a penetração do olhar
diretamente, impede de se contagiar pela aproximação física, delimita o hiato que
autoriza preencher a primeira célula do caderno de encargo do Meme:

QUADRO 3 – PRIMEIRA QUESTÃO RESPONDIDA SOBRE OS ENCARGOS DO MEME:


QUAL É O HIATO PREENCHIDO PELO MEME NO PROCESSO DISCURSIVO DE FABRICAÇÃO E
MANUTENÇÃO DE GRUPOS?

Hiato Trajetória Condição de Seres a instaurar Alterações


felicidade/infelicid
ade

Não saber a ? ? ? ?
temperatura dos
interesses
apaixonados.
Fonte: autoria própria
46

A partir da teoria do contágio de Tarde (2005), a viva curiosidade dos


indivíduos está presa à ilusão inconsciente de que seus sentimentos são comuns a
um grande número de espíritos32, bem como a falta de interesse é súbita ao notar
que é o único ali. Tal disposição incube a instauração de seres habilidosos, capazes
de auxiliar na operação de salvamento, no preenchimento do hiato que surge no
processo de formação de grupos nos ambientes digitais, mas, devido à ampliação
extraordinária das Redes,

É a mesma “guerra de imagens” que continua para as religiões, para


as artes, para a moral e para as ciências. O sentido foi claramente
seccionado porque não será nunca mais possível prolongar uma
trajetória na mesma tonalidade (LATOUR, 2019, p. 44).

Se for realmente desejável se organizar nesse mundo, é imperioso mais do


que explorar a ação restauradora do Meme (apenas uma das tonalidades da fala),
os demais modos discursivos precisam se adaptar a ela, dada sua importância
primordial na manutenção e criação de grupos. Além disso, como o objeto33 não é
nem encantado nem causa, é imprescindível acionar seres fe(i)tiches, seres
ligeiramente autônomos, que superem seus criadores até certo ponto, e, dessa
maneira, os possuam. Isto é, o falar memeticamente precisa fabricar os seus
próprios seres34 para que se articulem, tramem junto no árduo trabalho de manter
um grupo vivo no digital, são eles os medidores da temperatura dos interesses em
comum, chamados de curtidas, emojis, reposts, comentários favoráveis, os quais já
podem ocupar o seu lugar no quadro de encargos do Meme.

QUADRO 4 – SEGUNDA QUESTÃO RESPONDIDA SOBRE OS ENCARGOS DO MEME:


QUAIS SÃO OS SERES INSTAURADOS PARA AUXILIAR NO PREENCHIMENTO DO HIATO?
Hiato Trajetória Condição de Seres a instaurar Alterações
felicidade/infelicid
ade

Não saber a ? ? Curtidas, reposts, ?


temperatura dos emojis,
interesses comentários
apaixonados. favoráveis.

32
Se um grande número de indivíduos está possuído pelo mesmo sentimento, estes indivíduos estão
na iminência de constituir um grupo. Para tanto, é necessária a ação de outros regimes de
enunciação, especialmente o da Política, conforme é esclarecido no capítulo 4.
33
O objeto compreende a uma situação, fenômeno ou grupo social resultado das ações discursivas.
34
Talvez seja mais adequado ao invés de “seres” pensar em um “estar sendo”, afinal, corresponde a
uma trajetória, conforme é aprofundado no próximo capítulo.
47

Fonte: autoria própria

Já foi apontado o hiato na realidade que impede um “estar sendo”35 enquanto


grupo social (coluna 1 do quadro 4) e que é preenchido pelo Meme especificamente;
foi apontado também os seres fe(i)tiches que auxiliam os indivíduos no trabalho de
preencher esse hiato (coluna 4 do quadro 4). Parafraseando Latour (2019), o “estar
sendo” se sustenta não apenas passando por outros (as Redes híbridas), mas,
especialmente, sendo de outra maneira, explorando os diversos modos de se alterar.
Processo que pode, belamente, ser vislumbrado na figura 2.

FIGURA 2 – FOTO DA OBRA DE ARTE INTITULADA GALÁXIAS FORMANDO-SE AO


LONGO DOS FIOS, COMO GOTÍCULAS AO LONGO DAS COSTAS DE UMA TEIA DE ARANHA,
DE TOMÁS SARACENO, EXPOSTA NA BIENAL DE VENEZA, ITÁLIA (2009).

Fonte: foto de Eduardo de Jesus reproduzida de Latour (2012a, p. 20)

A obra de Saraceno consiste em conectores elásticos cuidadosamente


montados que reproduzem as formas de Redes e esferas, e sua analogia com o
processo de fazer e refazer grupos é um insight de Latour (2012a), segundo o qual,
tanto a Teoria Ator-Rede quanto a obra citada enfatizam que, ao multiplicar as
conexões e amontoa-las próximas o suficiente, elas mudam sutilmente de Rede

35
Lembrando que esta tese versa sobre um “estar sendo” em uma dimensão elementar (o Meme), ele
só começa a ganhar forma social ao se somar a outros modos de “estar sendo” discursivamente.
48

(facilmente desvendada pelo olhar), formando esferas (complexas e difíceis de


serem desvendadas). Esse antropólogo perspicaz chama a atenção para o seguinte
aspecto: se fosse possível agitar levemente o elástico, a ação reversaria muito mais
lentamente sobre as esferas do que sobre os links, mas isso não quer dizer que
sejam feitos de materiais diferentes.
Outra disposição ressaltada reside no fato de que se alguns links forem
rompidos, pode-se até imaginar alguns padrões esféricos se desfazendo
rapidamente, cuja lição política afirma que a busca “interna” de identidade está
diretamente ligada à qualidade da conexão “exterior”. Dessa forma, o artista
conseguiu transmitir a lógica de uma teoria social (a lógica da Teoria Ator-Rede) ao
evidenciar, embora não intencionalmente, dois tipos de conectores em uma única
Rede, dois movimentos: conectar âncoras distantes e alinhavar nós locais, reunir
multiplicidades e sustentar identidades ou grupos.

Se você acredita que há bolhas e esferas independentes que podem


sustentar-se, está claramente esquecendo toda a tecnologia dos
envolventes. Mas uma coisa é dizer isso, por exemplo na filosofia
política – que nenhuma identidade pode existir sem se relacionar
com o resto do mundo – outra coisa é ser lembrado visual e
experiencialmente da forma como isso pode ser feito. (LATOUR,
2012a, p. 20-21).

A experiência visual de Galáxias formando-se ao longo dos fios, como


gotículas ao longo das costas de uma teia de aranha, permite perceber que as
esferas (identidades ou grupos) não podem se sustentarem sozinhas. Conforme já
foi dito, a palavra Rede remete tanto ao que circula de forma homogênea (ação
restauradora), quanto à instalação heterogênea dos elementos necessários à
circulação e articulação dessas ações. Relembrando isso, acreditamos poder pensar
os links da obra de arte como as Redes híbridas, sem especificidades, constituídas
por associações infinitesimais, pelas listas de outros seres pelos quais todos os
fenômenos sociais precisam passar (atravessar), para se prolongar, durar ou
continuar a existir. Sua árdua manutenção, portanto, garante um mundo real para
guarnecer a continuidade dos fenômenos e das situações, estes mundos são as
esferas da obra de arte supramencionada.
Contudo, se para durar é preciso explorar a diversidade das associações
híbridas; para se especificar, os fenômenos sociais precisam, igualmente, explorar a
49

diversidade dos valores, que, como já deve ter ficado claro, acontece no nível da
linguagem. Assim, ainda se mantendo na analogia a partir da obra de Saraceno,
dado que se estar muito bem sustentado pelas conexões de âncoras distantes, é a
vez das ações restauradoras alinhavar “nós” locais. Pontuar essa lógica interessa a
essa tese porque é exatamente onde o Meme é situado: no sistema de valores das
sociedades ocidentais. Esses valores se apresentam como domínios, e, embora
sejam distintos, são ligados entre si. Latour (2019) mapeou a existência de 15, cuja
ação conjunta está ilustrada na figura 3.

FIGURA 3 – ESFORÇO DISCURSIVO DE REAGREGAR O SOCIAL.

Fonte: autoria própria

A esfera da figura 3 está relacionada às esferas sustentadas por links da obra


de Saraceno (figura 2), e, em última instância, à uma conversação a partir da Teoria
Ator-Rede, cuja extensão depende da própria articulação dos valores ou serviços
postos em circulação pelos falantes. Cada uma das ações restauradoras apontadas
na figura 3 fabricam seres fe(i)tiches, que auxiliam nos seus respectivas encargos,
porém, isso só interessa aqui na medida em que se trata de uma característica que
as fazem similar ao Meme, visto que são conectores do mesmo tipo, então, só são
descritas, até certo ponto, apenas quando os seus cruzamentos são significativos
para a trajetória da ação objeto desta tese. Daqui em diante, o foco consiste no
50

modo de existência dessas Redes discursivas, em explicar por qual motivo o Meme
é uma delas. Mas, espera-se que tenha ficado claro o imprescindível trabalho para
guarnecer os fenômenos sociais e garantir a realidade dos mesmos.
Dito isso, o primeiro aspecto a ser destacado sobre a pluralidade ontológica
dos discursos36 é que os modernos, coisa que desassossega Latour (2019), não
conseguem falar sem esmagar, atropelar e amalgamar vários modos de existência.
O segundo aspecto importante é que os modos de existência correspondem à
modus operandi, jamais à substância, ou seja, todas as ações apontadas na figura 3
(assim como as que ainda não foram identificadas e mapeadas pela antropologia
dos modernos) se cruzam ininterruptamente, de sorte que, a Preposição é a ação
restauradora que sempre está sinalizando esses cruzamentos. De maneira mais
simples, é como se a Preposição direcionasse as setinhas azuis ilustradas na
imagem da figura 3, e, desse modo, de alguma forma indicasse qual modo de
existência deveria ser respeitado (ver os encargos da Preposição no quadro 2). A
Preposição concerne, como efeito, a uma tomada de posição no sentido gramatical,
que antecede a proposição e determina o modo pelo qual se deve acessar ou
compreender o que será dito. Concerne, portanto:

Uma questão de eloquência (como falar bem?), de metafísica


(quantas maneiras de falar existem?) e também de política, ou
melhor, de diplomacia (como reagirão aqueles aos quais estamos
nos dirigindo?). Recolocando a grande questão da filosofia nas
categorias: “De quantas maneiras se pode realmente dizer algo de
alguma coisa?”, temos de ter cuidado com a reação dos nossos
interlocutores. E aqui não basta ter razão, acreditar ter razão. Aquele
que pretende falar bem de alguma coisa a alguém deve começar a
tremer. E, se treme, é porque corre o risco de esmagar um modo
com o outro e, assim, para não chocar, também é preciso notar, com
extremo cuidado, a relação que as várias chaves de interpretação
mantêm entre si (LATOUR, 2019, p. 60).

Em meio à confusão dos falantes, a compreensão do sentido indicado pela


Preposição que é feita depende primeiro, de resolver a questão relativa à chave de
interpretação de cada modo e evitar um erro de categoria. Para usar um exemplo
mais perceptível de desrespeito às tonalidades de cada modo de existência ou de
regimes de enunciação diferentes, acessar a chave de interpretação correta pode
evitar confundir a fala religiosa com a fala científica ou vice-versa. “Tudo gira em
36
Ao extrair gabaritos de existências discursivas tal como o extraído por esta tese, sintetizado pelo
quadro de encargos do Meme, a pluralidade ontológica dos discursos pode ser evidenciada.
51

torno da questão da correspondência entre o mundo e os enunciados sobre o


mundo” (LATOUR, 2019, p. 68), entretanto, o que sobressalta na antropologia dos
modernos é justamente a incapacidade de chegar a um acordo sobre as condições
dessa correspondência. Se os modernos não se acertarem sobre isso, não poderão
nem definir outros modos de existência, nem lidar com as questões globais
colocadas atualmente, acrescenta ainda Latour (2019), com preocupação.

1.5 O MEME DA IDEIA E A IDEIA DO MEME

Levando em consideração o que já foi exposto até aqui, é plausível afirmar


que instaurar a realidade é, em uma espécie de segunda instância37, conversar. Tão
importante quanto sutil esse ato pode se estender indefinidamente por meio das
tecnologias discursivas desenvolvidas pelos modernos, quer dizer, pode atravessar
a mais fabulosa Rede sociotécnica da humanidade: o mundo digital. E, no caso de
Tarde (2003, p. 26) estar correto quando afirma que “tudo parte do infinitesimal e a
ele tudo retorna”, o uso tão feliz do termo Meme neste mundo foi preeminente de
uma sensibilidade relativa às condições elementares do social, a saber, a imitação, o
conflito e a adaptação38. Tais condições acontecem simultaneamente à maneira de
cada regime de enunciação, logo, uma única postagem reúne uma multidão de
agentes testando, em Rede, novas habilidades e possibilidades.
Dessa forma, constrói-se uma narrativa que caracteriza a conversação de um
grupo, ou entre grupos. Melhor dizendo, antes das maneiras particulares de imitar,
conflitar e se adaptar das opiniões e ideias de um grupo qualquer, têm-se as
maneiras particulares de imitar, conflitar e adaptar de cada um dos modos de
existência dos regimes de enunciação. À vista disso, a definição clássica de Meme,
cunhada por Richard Dawkins (2007), segundo a qual se trata de uma unidade de
sentido, cuja extensão depende da sua capacidade de abstrair e ser replicada
poderia, de acordo com esta tese, ser reformulada da seguinte maneira: O Meme
corresponde a um sentido (ser ou trajetória)39, cuja continuidade do seu efeito
depende da capacidade de falar e de identificar a chave de acesso.

37
A realidade social humana.
38
Em As leis sociais, Gabriel Tarde (2011) versa sobre as condições elementares do social.
39
Nunca é demais lembrar, trata-se de uma ação de subsistência, não de substância.
52

O Meme não pode ser, portanto, apenas “um termo popular para descrever a
rápida aceitação e propagação de uma ideia particular apresentada como um texto,
imagem, linguagem, ‘movimento’, ou alguma outra unidade de ‘coisas’ culturais”,
conforme definem Knobel e Lankshear (2007, p. 202), porque sua ação não serve
especialmente a uma ideia, pelo contrário, a ideia pode sem danos a condição do
falar memeticamente, ser traída. É à coesão do grupo que o Meme serve
veemente40. Em suma, uma ideia ou opinião acompanha a trajetória do Meme de
maneira muito frágil para servir como base de sua definição. Essa trajetória reflete
menos uma harmonia de pensamento do que um sentido condicionado pela ação
restauradora que impera no que é proferido.
Considerando todos esses aspectos a respeito da detecção de um hiato e de
seus seres fe(i)tiches, ainda falta designar a chave de acesso, isto é, a Preposição
que permite aos modernos identificar a tonalidade ou o contraste do falar
memeticamente em uma conversação. Em concordância com Tarde (2005),
conversar abrange o ápice da atenção espontânea que os indivíduos se prestam
mutuamente e se interpenetram, mais do que em qualquer outra relação social.
Trata-se de uma ação tão irresistível quanto inconsciente. Na conversação, explica o
autor, um público é unificado e vivificado pelo livro, e, sobretudo, pelo jornal que o
serve com uma pauta, um assunto.
No momento da escrita de Gabriel Tarde (2005), a aproximação física ainda
era muito significativa nas relações sociais, ainda não existia a urgência de uma
nova ação restauradora, não existia um hiato propriamente dito. No contágio por
aproximação física, explica o autor, os interlocutores agem uns sobre os outros,
essencialmente, pelo timbre de voz, pelo olhar, pela fisionomia, pelos passes
magnéticos dos gestos e não apenas pela linguagem. Sobre tais aspectos, é
fundamental ressaltar que não podem ser dispensados porque são muito
importantes, então, no mundo digital, eles foram adaptados à nova forma de
conversação: à publicação. Em função disso, as chaves de acesso que permitem
conversar por meio das tonalidades diferentes, ou melhor, que permitem respeitar os
modos de existência discursivos, transformam-se em registros imagéticos, capazes
de transcender o timbre da voz, o olhar, a fisionomia, os passes magnéticos dos
gestos, de maneira agitadora, dado que, do ponto de vista dos regimes de
enunciação, o como se diz é mais importante do que o que se diz.
40
Conforme esclarecido no capítulo 2, focado na trajetória do Meme.
53

1.6 “TEMOS INTERESSES EM COMUM, ESTAMOS VINCULADOS”

Diante do que foi exposto, é relevante pontuar que todas as atividades


humanas falam do mesmo passe41: o cruzamento das Redes híbridas com a
Preposição, cuja finalidade desta última consiste em orientar acerca de qual modo
discursivo deve ser respeitado em meio à multiplicidade de discursos circulando
(LATOUR, 2002). Assim, cada Preposição42 delineia um modo de fazer sentido
particular, isto é, delineia uma trajetória que necessita ter sua realidade figurada,
afinal,

Sem as figurações não há política possível – como se narraria a


pertença a um grupo qualquer? [FIC-POL]; nem há religião possível
– que aspecto se daria a Deus, aos seus tronos, aos seus domínios,
aos seus anjos e santos? [FIC-REL]; tampouco há direito possível
–fictio legis indispensável à passagem ousada dos meios [FIC-DRO].
No entanto, isso não significa que vivemos em um “mundo
simbólico”, mas que os modos emprestam algumas de suas virtudes
uns aos outros (LATOUR, 2019, p. 208)43.

A fim de perceber a chave de acesso do Meme, é salutar pensar sobre como


essa ação figura os interesses apaixonados que vinculam os indivíduos.
Notoriamente, está-se falando do cruzamento entre os seres fe(i)tiches da Ficção e
os seres do Meme, aqueles, em conformidade com o mapeamento de Latour (2019),
ajudam na figuração da realidade, são envios, formas, obras, e figuras. Eles
preenchem o hiato da vibração material/forma.

Durante centenas de milhares de anos, a argila estava no fundo


dessa caverna antes de se encontrar dobrada em uma vasilha de
barro cozida, no fogo [REP-TEC], mas ela se encontra uma segunda
vez transformada, transportada, quando dessa vasilha de barro se
extrair com a ponta dos dedos alguma surpreendente figura

41
Latour (2019) compara essa aventura do curso da ação a um passe, expressão que pode ser
pensada a partir do seu uso no futebol, refere-se a quando uma entidade qualquer passa por outra
por intermédio de um passo, um salto, um limiar no curso habitual das coisas, introduzindo uma forma
de descontinuidade, ou seja, introduzindo a circulação de outros valores.
42
Cada Regime de enunciação tem a sua.
43
FIC, POL, REL, DRO correspondem, respectivamente, à Ficção, Política, Religião e Direito. Latour
(2019) usa estas notações para se referir resumidamente aos modos de existência.
54

antropomórfica [TEC-FIC]. Podemos alguma vez figurar o espanto do


primeiro que se viu capaz de encontrar esse ser? Que poderes de
transformação nessa articulação entre os seres da metamorfose com
os seres da ficção [MET-FIC]! (LATOUR, 2019, p. 204)44.

Os seres da Ficção “emprestam” suas virtudes a todos os outros modos de


existência, e superam seus fabricantes quando são capazes de fazer manter e fazer
crer. Na teoria dos modernos, são seres invisíveis, não existem de verdade (apenas
nas cabeças das pessoas), não possuem objetividade; mas, na prática, auxiliam ao
modo do Meme, por exemplo, quando cruzam com os seres do Apego (interesses
apaixonados) no mundo digital. Explico: neste mundo, denominado de sociedade da
transparência por Byung-Chul Han (2017), não se tolera lapsos nem de informação
nem visuais, tudo deve seguir a lógica ininterrupta do poder fazer, do desempenho,
da fluidez. Esse filósofo é afligido justamente por isso, pela positividade que impera
nas associações do digital, porque o pensamento necessita de vazio, de
negatividade. É justamente nesse impasse, nesse aperto temporal, que a ação do
Meme faz-fazer, realiza uma sutura entre teoria e prática, quer dizer, causa um lapso
de intuição que precede o precipitado fluxo da positividade.
Esse lapso constitui o que é denominado aqui de achado expressivo45, ou
melhor, constitui a chave de interpretação que permite a Preposição sinalizar que o
modo de falar que está imperando no que está sendo dito é o do Meme. Em outras
palavras, os achados expressivos são o resultado do cruzamento entre os seres
da Ficção e os seres do Apego: o processo de figuração do timbre de voz, do jeito
de olhar, da fisionomia das sensações, dos passes magnéticos, dos gestos e etc,
capturados no registro imagético (e em muitos casos sonoros), conforme é
esquematizado na figura 4. Nesta, pode-se notar que quando uma forma ou
figuração se alinha a certos interesses apaixonados, pode ser usada para informar
algo aos outros indivíduos a respeito da intensidade desses interesses, percepção
valiosa para se adaptar à conversação no mundo digital, e, também, para perceber
uma possível sinalização de que se está falando memeticamente.

44
REP, TEC, FIC, MET correspondem, respectivamente, à Reprodução, Técnica, Ficção e
Metamorfose.
45
O capítulo 3 é dedicado à exemplificação desse resultado do cruzamento entre os seres da Ficção
e os seres do Apego, por meio da personagem Nazaré Tedesco.
55

FIGURA 4 – CRUZAMENTO ENTRE OS SERES DA FICÇÃO E OS SERES DO APEGO À


MANEIRA DO MEME.

Fonte: autoria própria

Logo em seguida, indaga-se: “quando exatamente esse registro se tornou


Meme?”. Não se sabe. Segundo Han (2017), a espontaneidade e a capacidade de
fazer acontecer que perfazem a vida como tal, não admitem transparência; e esta
tese compreende a ação do Meme como uma maneira de resistência frente a
exigência por transparência do ambiente digital, todavia, uma resistência que
rapidamente se entrega. A fotografia, explica Han (2017), totalmente tomada pelo
valor expositivo, mostra outro tempo-realidade determinado pela atualidade sem
negatividade, sem destino, não admite nenhuma tensão narrativa. Sendo assim,
esta tese compreende que o Meme inicia sua ação quando o fluxo da positividade
entorta, é interrompido, diante do achado expressivo que apela para a intuição.
O Meme costuma ser confundido com esse registro capturado, com a
circulação dos achados expressivos na medida em que se repetem e são usados
como base para propagar opiniões, ideias ou pensamentos, bem como na seguinte
citação:
56

As redes sociais na Internet ofereceram um modo mais próximo de


estudo da propagação das idéias, suas recombinações e suas
partes. É possível perceber de forma mais nítida como determinados
pedaços de uma informação são repassados, recombinados,
re-significados e reconstruídos nesses ambientes. Assim, quando se
observa a propagação de uma hashtag, observa-se também a
propagação de um meme, suas apropriações e suas recombinações.
E podemos ver claramente como diferentes memes propagam-se
também de forma diferente. Ou seja, através da rede, temos a
possibilidade de compreender de forma mais clara como os memes
se propagam, ao menos, no espaço digital, bem como de medir essa
propagação (embora parcialmente). Esses memes podem ser
expressos em brincadeiras, vídeos, emoticons, hashtags e etc.
Quanto mais eficiente o meme, maior a quantidade de referências,
apontamentos e reinterpretações que são feitas a ele (RECUERO,
2011, NP).

Na verdade, quanto mais eficiente é a capacidade de falar memeticamente,


maior é a quantidade social de um grupo no mundo digital, mais intensamente é
sentida a sensação de ser parte viva da opinião, e mais a temperatura das paixões
sobe por meio de curtidas, comentários favoráveis e reposts, os seres do Meme já
apontados no quadro 4. A Preposição do Meme consiste em um parar abrupto
situado pouco antes da conversação em si, porque o achado expressivo convida a
figurar sensações, cuja finalidade é permitir falar com pessoas separadas
fisicamente e constituir um tipo de agregado que Tarde (2005) denominou, mesmo
antes de conhecer a internet, de grupo social do futuro. Este tipo de grupo
transcende à própria condição de opinião. Note que, se a uma pessoa não
familiarizada com o universo digital, for mostrada uma postagem na qual se fala
memeticamente, serão comuns perguntas do tipo: “quem é essa pessoa?”, “por que
você tem a foto dela?”, “por que ela está assim?”, “por que ela está aí?”. O detalhe é
que essas são questões que pouco importam para a condição do Meme. Interessa,
efetivamente, a solicitude de um lapso, cujo efeito é de alguma forma engraçado46,
porque é útil para enviar uma mensagem apaixonada47, mesmo que a mensagem
em si (no sentido da informação) e os destinatários ainda nem existam48.
Isso significa que Meme é arte? Não. Como já foi ressaltado, os valores ou
serviços prestados pelos modos de existência dos discursos, ficam cada vez mais
complexos quando se associam, mas, o que se defende é que o Meme é um desses
valores, bem como a arte (Ficção). A ação do Meme possui seu próprio hiato para
46
Este aspecto relativo ao humor e ao cômico é tratado no capítulo 2, dedicado à trajetória do Meme.
47
E, eventualmente, despertar uma paixão.
48
No caso, o grupo também ainda não existe.
57

se arriscar a dar conta da árdua tarefa de fabricar o real, o qual consiste em não
saber a temperatura dos interesses apaixonados (retomar o quadro 3), pois,
empreender e fazer interessar crenças e desejos (condição de felicidade dos seres
do Apego) no mundo digital requisita a adaptação do contágio à distância física e à
tragédia da falta de tempo. Então, se, como afirma Latour (2019), o interesse
apaixonado é um mediador por excelência que sobrevém entre duas entidades que
não sabiam, antes desse interesse surgir, que estavam vinculadas uma à outra; o
Meme é uma espécie de mensageiro do mundo digital, enviado para avisar: “temos
interesses em comum, estamos vinculados!".
A mensagem, no entanto, não conta mais com o timbre da voz, com a
penetração do olhar, com os passes magnéticos dos gestos; e as adaptações de tais
aspectos estão intimamente relacionadas à escolha do registro (imagem, frase,
áudio, vídeo) oportuno, afinal, como já foi apontado, o Meme acontece muito menos
quando alguém se identifica com as crenças e desejos veiculados em uma
postagem qualquer na qual se falou memeticamente, do que quando conseguiu
convidar, mediar uma sensação de pertencimento, em suma, avisar que “você é o
destinatário dessa mensagem, porque temos interesses em comum. Avise aos
demais!". A sutileza que camufla essa ação consiste no fato de que, quando a
mensagem chega ao destinatário, a ação específica do Meme cessa, transforma-se
em uma imagem congelada. Isso significa dizer que não se trata de “o que é o
Meme”, mas, sim, de “quando é o Meme”.
O Meme está sendo quando um lapso de negatividade ou um parar
interrompe o fluxo da positividade do mundo digital, e este lapso é oportuno em meio
ao que Han (2017) chama de tirania da visibilidade, porque reduz o que se pretende
falar a uma dimensão vazia de sentido, a partir da qual se podem criar novos
sentidos; e o Meme continua sendo enquanto a fala vai garantindo a certeza do
vínculo. Ao começar a circular como postagens criadas com a intenção de servir a
opinião de um grupo ou a um pensamento particular, o registro é congelado pelo
repost, pelo postar inúmeras vezes, pelo ecoar em várias plataformas digitais. Para
ser breve, uma vez que a continuidade do achado expressivo consiste na sua
capacidade de trair qualquer ideia-sugestão proferida, não é o Meme que serve ao
grupo, são os grupos que servem aos deuses fe(i)tiches (do Meme e de outros
regimes de enunciação), como uma espécie de culto para, assim, manterem-se
vivos.
58

1.7 ACHADOS EXPRESSIVOS

Uma característica marcante do mundo digital é que nele, todos os existentes


são apreendidos à maneira dos seres da Ficção. Sob tal perspectiva (a dos seres da
Ficção), trata-se de um mundo dobrável indefinidamente, no qual cada um é um
material vibrando para uma forma ou figura com muito mais intensidade do que no
mundo nas interações por aproximação física. Frases do tipo “amo esse Meme”,
“sua cara daria um Meme” ou “o Meme já veio pronto”, referem-se, na verdade, a
essa vibração, a um achado expressivo, bem como é exemplificado na figura 5,
ilustrada por uma mulher loira, meia idade, olhar penetrante e, talvez, confusa.

FIGURA 5 – ACHADO EXPRESSIVO FAMOSO ENTRE OS BRASILEIROS, QUE GANHOU


REPERCUSSÃO ENTRE INTERNAUTAS FORA DO BRASIL EM 201649.

Fonte: novela Senhora do destino (2004)

Segundo Latour (2019), ainda mais surpreendente do que a maneira pela


qual os modernos lidam com seus fe(i)tiches, é o pouco espaço que concedem
àquilo que lhes ajudam a construir um sistema de produção capaz de abranger todo
o planeta: a Ficção e a Técnica. Ele ressalta que é preciso acrescentar várias coisas
para que qualquer Técnica comece a funcionar, as trajetórias desse modo de
existência não se dão em linha reta, há desvios imprevisíveis, graças aos quais os

49
Esse achado expressivo é retomado de maneira mais explicativa no capítulo 3.
59

seres totalmente distantes da Reprodução de uma determinada situação se tornam


a peça fundamental que faltava de um “quebra-cabeça” que exige muita
engenhosidade. A inovação trazida por uma Técnica é difícil de captar porque é
preciso levar em conta não apenas o desvio (um percurso em ziguezague), mas,
também, a delegação que permite à ação se apoiar em outros materiais; além do
esquecimento deixado para trás quando uma nova composição é estabelecida
(LATOUR, 2019). A figura 6 pode oferecer uma noção desse processo a partir da
dimensão discursiva.

FIGURA 6 – ACHADO EXPRESSIVO DA IMAGEM 5 EM SUA FORMATAÇÃO MAIS FAMOSA,


UMA VEZ QUE É O FORMATO QUE MAIS APARECE NAS PLATAFORMAS DIGITAIS.

Fonte: reproduzido de Tito Belo Gil (2023)

Quem fez essa edição? Como o registro oportuno para expressar os


interesses apaixonados e substituir os gestos, as expressões, a penetração no olhar
a fim de garantir que o contágio pode acontecer? Ou melhor, como o achado
expressivo pode enviar mensagens que cheguem aos seus destinatários corretos e
permitir, em uma conversação entre indivíduos fisicamente separados, uni-los
(agregá-los) no mesmo devaneio, no mesmo sonho, no mesmo sofrimento, na
mesma emoção, na mesma crítica, no mesmo ataque, ou no mesmo assunto trivial?
É, justamente, nas conversas triviais que o falar memeticamente deixa a sua
importância passar despercebida, esconde a sua forma prática de existência e torna
tão incompreensível seu tipo de contágio. Dessa maneira, muitas análises
60

apressadas resumem sua ação aos assuntos pouco relevantes que, eventualmente,
determinada postagem esteja mediando, como, a título de exemplo, pode-se
observar na figura 7.

FIGURA 7 – POSTAGEM PRODUZIDA PELO WEBSITE HUMORÍSTICO INTITULADO


9GAG, CUJO OBJETIVO É FIGURAR A SENSAÇÃO DE CONFUSÃO QUANDO SE DEPARA COM
UMA MULHER GRÁVIDA QUE SE REFERE AO TEMPO DE GESTAÇÃO POR SEMANAS AO
INVÉS DE CONTAR POR MESES, CONFORME PODE SER COMPREENDIDO PELA LEGENDA
QUE EM PORTUGUÊS DIZ O SEGUINTE: “QUANDO UMA MULHER DIZ QUE ESTÁ GRÁVIDA
DE 29 SEMANAS”.

Fonte: 9GAG

A figura 7 apresenta uma postagem com conteúdo trivial e pouco relevante?


Sim. Ela está falando memeticamente? Depende do efeito da postagem nas
interações. Contudo, não raro, usa-se a expressão “é um Meme” para se referir a
uma postagem desse tipo, como se o Meme fosse a composição estabelecida e
materializada no post, bem como acontece na seguinte passagem de um estudo de
caso sobre Meme a partir das eleições presidenciais dos Estados Unidos de 2012, a
qual oferece uma descrição preciosa do que, efetivamente, não é um Meme em si,
mas, sim, uma Rede híbrida:
61

A maioria dos memes da internet em imagens estáticas, incluindo os


de LOLítica, pertence à categoria de textos fotomanipulados e/ou de
imagens macros. Essas duas categorias são, essencialmente,
variações digitais de formatos preexistentes de mídia tradicional.
Textos fotos manipulados são abordados de maneira similar ao uso
de telas verdes no cinema – os significados de textos abertos são
alterados visualmente por meio do recorte de um assunto e sua
colocação em um cenário alternativo. A LOLítica que aparece nesse
formato frequentemente é resultado de uma brincadeira com
ocorrências coincidentes. Por exemplo, usuários on-line participam
do ato de remix jocoso quando inocentes fotos de Jhon McCain
emergiram on-line durante um debate, transformando o candidato
presidencial em zumbis, alienígenas e outros personagens
desumanizados. A fotomanipulação requer um conjunto de
habilidades maior, embora, em última análise não seja muito difícil,
especialmente com a disponibilidade de softwares livres (TAY, 2020,
p. 281-285).

O termo LOLítica diz respeito, explica Tay (2020), a combinação entre Meme
e humor político. Mas, sob a compreensão desta tese, esta autora se refere, na
verdade, ao falar memeticamente (modo pelo qual se fala) sobre política (assunto
sobre o qual se fala); e o trecho citado culmina nas imensuráveis controvérsias
intrínsecas à heterogeneidade dos sistemas técnicos, o que inviabiliza uma
descrição acerca das especificidades do Meme, pois, “quanto mais se estudam os
dispositivos técnicos, mais se consideram todos os seus elementos e menos é a
possibilidade de uniformizar-los em um todo coerente” (LATOUR, 2019, p. 179). O
fragmento de Tay (2020) versa, portanto, sobre a heterogeneidade dos materiais
disponíveis para guarnecer o modo de existência do Meme (e, vale pontuar, de
guarnecer outros modos de existência discursivos simultaneamente), e sobre a
necessidade de se acrescentar várias coisas para que a Técnica50 dessa ação
comece a acontecer.
Em outras palavras, Tay (2020) aborda a Técnica do ponto de vista das
Redes híbridas que garantem a travessia das Redes homogêneas, inclusive o
Meme. A Técnica que interessa para apreender a especificidade do Meme reside em
sua trajetória, na continuidade ou homogeneidade do seu efeito, por isso, não existe
Memes (no plural) existe uma Técnica do Meme, a qual está presente sempre que
se consegue entregar sua mensagem (já mencionada) aparentemente inofensiva.

50
Lembre-se que a ação restauradora sempre é realizada em conjunto com outras ações, outros
passes que se articulam. Latour (2019) descreve a Técnica não como um meio para atingir
determinados fins, mas, como um modo de existência. Dessa forma, ela possui, também, um caderno
de encargo: um hiato, uma trajetória, uma condição de felicidade, seres a instaurar e uma alteração
na realidade, conforme pode ser observado no quadro 2..
62

Isso justifica o fato de essa pesquisa não analisar recortes de postagens, haja vista
que estas apenas materializam de alguma forma, o que pode ser materializado
infinitesimalmente de outras formas para obter o mesmo efeito (o aumento da
quantidade social). Uma vez que o objetivo desta tese é mapear a condição
ontológica do Meme, consoante a sua condição de Rede51, os rastros da sua
Técnica devem ser buscado,

Primeiramente, entre o próprio objeto e o movimento ainda


enigmático do qual o objeto é apenas a esteira; depois no interior
dele mesmo, entre cada um dos componentes dos quais o objeto é
apenas uma montagem momentânea. E pode-se dizer a mesma
coisa dos gestos hábeis que o artesão acaba tornando habituais
depois de uma longa prática: quando começamos a montá-los, tais
gestos exigiam a presença de um desvio técnico – que machucava e
fazia suar – mas, uma vez consolidados, tornados rotineiros,
regulados, ajustados, não os sentimos mais do que sentimos a
presença do mecânico no ronco do motor sobre o capô (LATOUR,
2019, p. 186).

O mesmo pode ser dito sobre a habilidade de produzir postagens nas quais
se fala memeticamente. Dominar essa Técnica oferece vantagens na formação de
grupos no mundo digital, onde não se tem tempo para maiores explicações, então, é
preciso simplificar as informações e, por algum caminho, organizar o pensamento
segundo os parâmetros dados pelas novas condições sociotécnica, da mesma forma
que os sobreviventes da tragédia de Fragmentos de uma história futura também
precisaram reinventar as suas tecnologias para manutenção e instauração de
grupos. No caso do mundo digital, o desenvolvimento de tais habilidades está
relacionado aos vários aplicativos usados na produção registros como obra prima
para manipulação, edição e postagem, mas, “todos os turbilhões e desordeiros das
transformações técnicas podem ser esquecidos através do objeto técnico, da função
que ele deve se contentar em cumprir fielmente” (LATOUR, 2019, p. 183).
Assim, a Técnica não corresponde aos meios para atingir determinado fim, na
compreensão de Latour (2019, p. 184-185), “se existe uma coisa que o materialismo
nunca soube celebrar é a multiplicidade dos materiais, essa alteração indefinida dos
poderes ocultos que dá astúcia àqueles que explorarão”. Por isso, ainda é preciso
aludir a astúcia inerente a ação do Meme, usada não necessariamente para

51
Não é que a Rede híbrida seja desconsiderada, mas, se ela está bem equipada e com a
manutenção em dia, as Redes homogêneas podem assumir suas próprias articulações, assumir outro
modo de existir.
63

encantar os demais, como fizeram os indivíduos em Fragmentos de uma história


futura, mas, claro, para iniciar uma conversação e alterar o outro, ou, melhor
dizendo, para contagiar e ganhar quantidade social. Porém, igualmente aos
indivíduos dessa tragédia, os modernos precisam, diante de sua própria tragédia,
“macaquear-se mutuamente, e, por meio de macaquices acumuladas,
diferentemente combinadas, fabrica-se uma originalidade: eis o principal” (TARDE,
2014, p. 609).

1.8 UM GRUPO: UM SER MENTAL E SOCIAL

Ao invés de pensar sobre o que a postagem ilustrada na figura 7, por


exemplo, está dizendo, pense sobre o como ela está dizendo, pense na Técnica da
ação. Recapitulando, os indivíduos que vivem nesse mundo estão distantes
fisicamente, e tragicamente sem tempo em meio a um número exorbitante de
informações para processar, além do mais, falta aprender a se comunicar nas
condições desse mundo, no qual não sabem (até serem comunicados de alguma
forma) que estão vinculados. Para Ciro Marcondes Filho (2018), a informação é
essencialmente conservadora, diferentemente da comunicação que desestrutura e
acontece por meio de uma destruição criativa, que faz mudar, alterar. Latour (2019)
fragmentar essa compreensão de comunicação, chamando cada mecanismo
articulado nesse processo de modos de se alterar52 (Preposições), de continuidades,
cuja soma culmina em outra maneira de ser: a do grupo.
Entretanto, cada modo de se alterar precisa, sob o risco de comprometer a
existência do grupo, atingir uma condição de felicidade específica, e, por
conseguinte, uma alteração na realidade. É por meio da soma dessas alterações ou
efeitos que é possível acessar a Reprodução do grupo, da opinião ou da situação
pela qual os indivíduos estão empenhados, a Reprodução se trata de mais um
modo de existência

Pelo qual uma entidade qualquer atravessa o hiato de sua repetição,


definindo assim, de etapa em etapa, uma trajetória particular, em que
o conjunto obedece a condição de felicidade particularmente
exigente: ser ou não mais ser mais (LATOUR, 2019, p. 85).

52
Mesmo correndo o risco de essa afirmação ser repetitiva, esses modos de se alterar relativo à
comunicação encontram-se no âmbito das Redes homogêneas.
64

A fim de retomar o foco desta tese, importa salientar que é, rigorosamente, o


ser ou não ser mais do Meme que interessa, não o de um grupo. Por esse motivo,
começa-se a preparação para abandonar o esforço discursivo de reagregar o social
esboçado na figura 3, e mergulhar no modo de se alterar (o do Meme) que mede a
temperatura dos interesses apaixonados (por meio da quantidade de curtidas, de
reposts, de comentários favoráveis), descrevendo a trajetória desse continente
específico. Logo, a questão que não pode mais ser adiada é a seguinte: se o hiato
do Meme for, de alguma forma, preenchido e a temperatura dos interesses
apaixonados puder ser sentida, qual será o efeito, a alteração nas relações sociais?
A resposta tem a clareza objetiva que ofusca o trabalho tão delicado que foi
empreendido para obter tal alteração: o aumento da quantidade social, o contágio.
Quando um grupo cresce rapidamente, ganha proporções e exuberância,
corresponde ao efeito da Técnica do Meme que já aconteceu e está camuflada em
meio a outras Técnicas, outros regimes de enunciação. Mas, sobre a Técnica ou
trajetória do Meme, já se tem mais uma pista e podemos preencher a célula
referente a alteração na realidade:

QUADRO 5 – TERCEIRA QUESTÃO RESPONDIDA SOBRE OS ENCARGOS DO MEME:


QUAL É A ALTERAÇÃO NA REALIDADE RESULTANTE DO PROCESSO DE PREENCHIMENTO
DO HIATO?
Hiato Trajetória Condição de Seres a instaurar Alterações
felicidade/infelicid
ade

Não saber a ? ? Curtidas, reposts, Dar quantidade


temperatura dos emojis, social, contagiar.
interesses comentários
apaixonados. favoráveis.
Fonte: autoria própria

A alteração resultante dos regimes de enunciação, de maneira geral, constitui


um efeito na qualidade das relações. Ao falar do mistério da comunicação,
Marcondes Filho (2018, p. 12) parece estar falando do mesmo processo, “algo
insondável e que nos acomete e nos torna outros. Eu não sei o que se passa, só
percebo que não sou mais o mesmo. Fui mudado”. Contudo, enquanto para
Marcondes Filho (2018), comunicar é um mistério insondável pela empiria, que
apenas pode ser sentido e esse sentir mexe com as estabilidades do indivíduo; para
Latour (2019), a trajetória desse acontecimento, embora ocultada, deixa seus rastros
65

pelo caminho, como pistas. Marcondes Filho (2018, p. 9) descrever esses rastros,
embora não esteja falando sobre os modos de existência dos regimes de
enunciação, da seguinte forma:

Eu observo que houve transformação, que essa transformação


produziu sentido, que ocorreu um golpe real com a constituição de
novas marcas, que serão novos constitutivos de mim mesmo. Em
meu processo de permanente transformação, essas mudanças agora
fazem parte de mim, me constituem, são elementos do novo Eu que
se formou.
De alguma maneira, o choque nos demonstra que não estamos
mortos por dentro, que há ainda algo de vivo que pode ser acionado
e dinamizado, e a isso se dá o nome de comunicação.

São os rastros dessas transformações, dessa trajetória ou sentido, desse


golpe real que vão constituir um “eu” por meio de outros, que compõem o quadro de
encargos construído por esta tese. Isso não implica dizer que a Técnica do Meme
conduz a comunicação sozinha, mas que ele é uma parte, um fragmento, desse
processo. Levando em consideração que a alteração da ação do Meme na realidade
é somar quantidade social, contagiar crenças e desejos, a primeira pista desse
rastro reside no fato de que a sua condição de felicidade está intimamente
relacionada ao que Tarde (2000) chama de alargamento social por assimilação
imitativa.
O alargamento social por assimilação imitativa corresponde a um processo de
socialização e de desnacionalização. Apesar de esse processo encontrar entraves
nos costumes ou leis, Tarde (2000) já o via como uma tendência passível de ser
questionado sobre até que ponto seria desejável. Com a internet, tal questão se
torna mais atual do que nunca, afinal, não é insignificante que os achados
expressivos permitam conversações em várias línguas sem comprometer a
especificidade do falar memeticamente53. Em última instância, o alargamento social
por assimilação imitativa constitui um ser mental e social de ideias, de desejos e de
necessidades, ou seja, de elementos que compõem espíritos suficientemente
semelhantes para compor uma sociedade ou um grupo social (TARDE, 2000). Um
ser mental e social54 é sempre resultado de várias maneiras de fazer sentido55, e o

53
Ver novamente a figura 7, na qual, tem-se uma postagem usando um achado expressivo popular no
Brasil, mas sendo usado com legenda em inglês.
54
Um ser mental e social é encontrado em qualquer grupo ou agregado.
55
Para a Teoria Ator-Rede, trajetória, ser e sentido são sinônimos.
66

ponto de partida da maneira de fazer sentido do Meme já foi dado: os achados


expressivos.

1.9 ERROS QUE COMPROMETEM O MODO DE FALAR

Sob o enfoque de uma Rede homogênea, é importante assinalar, esta tese


lida com a busca de erros que comprometem a ação. Diferentemente dos erros
referentes às Redes híbridas56, que comprometem os meios para estabelecer uma
situação e afetam o movimento no mundo das coisas; os erros referentes às Redes
homogêneas comprometem o modo de falar. Estes últimos correspondem aos erros
de sentido, conceitua Latour (2019), ou erros de segundo grau, contudo, as suas
trajetórias podem ser avaliadas pelas condições de felicidade e de infelicidade que
as especificam, estas são relativamente fáceis de identificar uma vez que já foi
identificado o hiato, os seres fe(i)tiches e a alteração na realidade: se não é sabido a
temperatura dos interesses apaixonados, fabricou-se os seres para auxiliar no
preenchimento dessa fissura e o resultado desse processo foi o aumento da
quantidade social (o contágio de crenças e desejos), então, é plausível concluir que
a condição de felicidade dessa trajetória consiste em oferecer uma via para ser
imitada, para se sentir igual.

QUADRO 6 – QUARTA QUESTÃO RESPONDIDA SOBRE OS ENCARGOS DO MEME:


QUAL É A CONDIÇÃO DE FELICIDADE/INFELICIDADE NO PROCESSO DE PREENCHIMENTO
DO HIATO?
Hiato Trajetória Condição de Seres a instaurar Alterações
felicidade/
infelicidade

Não saber a ? Oferecer uma via Curtidas, reposts, Dar quantidade


temperatura dos para ser imitada, emojis, social, contagiar.
interesses oferecer um comentários
apaixonados. pensamento em favoráveis.
comum/Opor-se,
conflitar.
Fonte: autoria própria

Conforme a atualização no quadro 6 dos encargos do Meme, a continuidade


particular dessa ação é condicionada pela necessidade de guarnecer um
56
Latour (2019) chama de erros dos sentidos, eles podem ser resolvidos por meio de uma
investigação cujo processo de conhecimento objetivado é apto para ser refinado e, em algum
momento, suprimido. Por exemplo, quando se tem dúvidas se uma torre que está distante é redonda
ou quadrada, se é uma pessoa ou um robô, se é a estrela do pastor ou a estrela da noite.
67

pensamento em comum. E a condição de felicidade/infelicidade ilumina os princípios


reflexivos e explícitos que avaliarão se se falou memeticamente, ou seja, se o que
foi dito é verdadeiro. O aspecto delicado disso consiste no fato de que tal
deliberação nada tem a ver com as definições epistemológicas do que é verdadeiro
e do que é falso57, é como se o discurso erigisse uma segunda instância58 para
essas categorias (verdade/mentira) e, por esse motivo, afirma Latour (2019), merece
usar os mesmos termos59. Agora, espera-se poder entrar no capítulo seguinte com a
(in)tranquilidade de saber que “um modo de existência é, então, uma versão do
SER-ENQUANTO-OUTRO (uma amostra de descontinuidade, de diferença e de
repetição do outro e do mesmo) e, ao mesmo tempo, um regime próprio de
veridicção” (LATOUR, 2019, p. 156). Portanto, em contraposição a chamar uma
postagem de Meme (congelar a ação) e aproveitar a confortável e calorosa
substância da identidade, o capítulo 2 é dedicado à trajetória do Meme.

57
Inerentes às Redes híbridas.
58
Na qual Latour (2019) aponta onde se devem procurar os erros de sentido, e a incerteza é
constante.
59
O fundamental é perceber, por exemplo, o fato de não ser coerente tomar a decisão de um tribunal
como verdadeira, justa ou íntima, porque se comete um erro de sentido ao passo em que se pede
algo que não pode ser dado e que nem mesmo foi prometido. O advogado pode procurar os erros de
direito que impedem o processo judicialmente, (os encontram ao longo do caminho) em um sentido,
cuja chave é específica. Ao usar outra chave de interpretação, comete-se um erro de categoria
(LATOUR, 2019). O mesmo vale para o Meme, afirma esta tese.
68

2. CAPÍTULO 2 – A TRAJETÓRIA OCULTA DO MEME

É racional o acompanhamento contínuo de


uma rede à qual se acrescenta sua chave de
interpretação, sua preposição.

(Bruno Latour)

Em Fragmentos de uma história futura, Tarde (2014) descreve o curso de


uma realidade possibilitada pela conversão de o mínimo de trabalho utilitário em um
máximo de trabalho estético60. Na medida em que se vivia com tão pouco, sobrou
muito tempo para pensar, dessa maneira, as necessidades suprimidas originaram
um vazio no coração dos sobreviventes da extinção do Sol, o qual foi ocupado por
conversações subsidiadas pelos talentos artísticos, poéticos e científicos. A
realidade do mundo digital, por sua vez, produzida pelos sobreviventes da extinção
do tempo, não substitui a relação do produtor e do consumidor pela relação do
artista, do crítico, do especialista ou do esclarecido: nela, a conversação precisa se
adaptar ao envio de mensagens sintetizadas que, para chegarem aos destinatários
certos, precisam percorrer uma trajetória labiríntica. Em outras palavras, precisa-se
recorrer ao desenvolvimento de estratégias discursivas e apelar para o modo de vida
prático da linguagem a fim de conversar à distância.
Parafraseando Gabriel Tarde (2005), o que não se consegue ver são as
forças que estariam reunidas na ausência dos públicos61. Seguindo essa linha de
raciocínio, é coerente afirmar que: o que não se consegue ver no mundo digital são
as forças que estariam reunidas caso a ação do Meme estivesse ausente. Neste
último caso, certamente esse mundo seria um ambiente destinado a pouca
interação, poucas relações sociais, focado no acesso ao conhecimento
armazenado62, todavia, ao contrário disso, as trocas e os reflexos são intensos63, a
formação de grupos sociais pulsa em crenças e desejos, por meio de uma

60
Realidade desfrutada por gerações futuras, uma delas vivida pelo narrador da história, que se
lembrava de Milcíades como um herói que salvou a humanidade.
61
Lembrando, público é um tipo de grupo social, no qual a interação, a coesão psíquica, o contágio,
acontecem à distância física.
62
A internet já foi destinada à pouca interação, como explica Luciana Zenha (2018), a web 1.0,
estágio inicial da World Wide Web (www), era limitada a oferecer informações, os usuários só podiam
ver as páginas Web, não podiam contribuir para o conteúdo produzido.
63
A partir da Web 2.0 a interação pôde se tornar algo possível por meio de plataformas digitais como
o YouTube e Blogs, por exemplo (ZENHA, 2018).
69

ampliação indefinida (planetária) das Redes híbridas e homogêneas, devido a essa


ampliação das Redes, a trajetória específica que interessa aqui lida, portanto, com a
ampliação das contradições inegociáveis do conflito e dos paradoxos, com falta de
coerência entre os sentimentos e o pensamento no processo de instauração dos
grupos, quer dizer, no esforço de alinhavar nós ou identidades.

2.1 SUGESTÃO À DISTÂNCIA

Como sugestionar à distância? Esta é a questão colocada à expedição do


homo digitalis. Tarde (2005) pode aclarar esse percurso mais uma vez ao lembrar
que os indivíduos trazem uma bagagem antiga relativa à intensa vida social urbana,
ou melhor, da sugestão por meio da proximidade física. Esta, explica o sociólogo,
acontece ao sentir vivamente a ação dos olhares dos outros, que, mesmo sem
perceber, se expressa nas próprias atitudes, gestos, no curso modificado das ideias,
na perturbação ou superexcitação das palavras. Depois de suportar toda essa
experiência, abre-se a possibilidade de haver sugestão à distância entre indivíduos
que integram o mesmo público, de se impressionar com a ideia de que é objeto de
atenção de pessoas distantes, e, como efeito, sentir-se ligado a elas. À vista disso,
pode-se partir da compreensão de que a trajetória do Meme precisa, por assim dizer,
substituir o calor dessas expressões para sugerir imitação mesmo à distância.
Em outros termos, a formação de um público presume a experiência do
contágio produzido essencialmente pelo contato físico, cujos prenúncios, Tarde
(2005) foi capaz de perceber a partir da invenção da imprensa. Contudo, a vida
desse público descrito pelo autor francês ainda está muito ligada à multidão, se ele
viu na invenção da imprensa (auxiliada pela tipografia, pela estrada de ferro e pelo
telégrafo) o nascimento de um novo tipo social (o público), com a invenção de uma
rede de conexão mundial que possibilita o compartilhamento imediato de informação
entre dispositivos técnicos (a internet), talvez ficasse espantado ao notar que esse
tipo de grupo social desenvolve meios para se tornar completamente independente
do contágio por aproximação física, capaz de existir sem necessariamente depender
de uma multidão em contato direto.
São os achados expressivos que oferecem a chave para conversar ou
sugestionar à distância, com a eloquência de quem trouxe uma longa experiência do
face a face. Walter Benjamin (1987) ressalta que a fotografia foi a primeira técnica
70

de reprodução verdadeiramente revolucionária, por causa dela, a mão foi superada


pelo olho nas responsabilidades artísticas mais importantes, pois, como o olho é
mais ágil para apreender do que a mão para desenhar ou criar, as imagens
assumiram o mesmo nível da linguagem oral. A façanha que encanta
sociologicamente nisso, é que as condições que as Redes híbridas oferecem no
mundo digital possibilitam (ao conectar âncoras distantes) que tais imagens circulem
com frequência e regularidades suficientes para promover uma transformação
radical na conversação: solicitar aos seres da Ficção que figurem ou deem forma
imagética às sensações que transmitem o calor e a temperatura das crenças e
desejos.
Deparar-se com um achado expressivo no sentido memético, é sentir um
registro vibrar em consonância com os interesses apaixonados64. Isso faz parte de
uma trajetória maior, porém, o fundamental é que o Meme, tal como os demais
modos de fala, apropria-se das condições de felicidade dos seres da Ficção para
contar histórias, mas, para que essas histórias possam lidar com crises e
recuperações65 acerca das crenças e desejos, precisa também usufruir das
condições de felicidade dos seres da Metamorfose (influências, divindades e
psiquismos). Ao possuir os indivíduos, mexer com suas emoções e os
transformarem, estes seres acionam os seres do Meme, logo, as curtidas aumentam
de maneira excitante, os comentários e reposts começam a circular sem controle: a
temperatura sobe como mágica.
É importante destacar que os seres da Metamorfose também costumam ser
chamados de Meme, “O bebê é um Meme”, “aquela mulher é um Meme”, mas, na
verdade, trata-se da articulação do achado expressivo (Ficção-Apego) com alguma
entidade influente, capaz de instalar e proteger interesses apaixonados e,
finalmente, acionar os seres do Meme, para que realizem a trajetória de seu
encargo. Não são Meme, são instauradores e protetores de interesses apaixonados.
São seres da Metamorfose, conforme se pode observar no esquema da figura 8.

64
Cruzamento dos seres da Ficção (envios, figurações, formas, obras) com os seres do Apego
(interesses apaixonados) ilustrado na figura 4.
65
As crises e recuperações compreendem o hiato da Metamorfose.
71

FIGURA 8 – CRUZAMENTO ENTRE OS SERES DA FICÇÃO, DO APEGO E DA


METAMORFOSE À MANEIRA DO MEME.

Fonte: autoria própria

Aqui, é preciso reduzir a velocidade desta tese, sob o risco de acabar


resumindo o Meme a Reprodução do grupo que sua ação colaborou para instaurar.
Retomando, os achados expressivos são figurações que vibram, em um
determinado momento, no ritmo dos interesses apaixonados, tal vibração constitui o
Meme, uma vez que superpõem todos os seres da Metamorfose necessários à sua
trajetória. Mas, em relação à superposição dos seres da Metamorfose, a
antropologia dos modernos apresenta mais um embaraço, conforme afirma Latour
(2019), ver-se a defesa incessante contra esses seres para impedir que tenham
fundamento, são considerados “seres invisíveis” e “estão apenas nas cabeças”. Para
os coletivos “tradicionais”, esses seres existem em absoluto, para os modernos eles
não existem. Já para Latour (2019, p. 158), esse impasse exige “verificar se entre os
modernos existem redes de produção de ‘interioridade’, de ‘psiquismos’ que teriam
uma materialidade, uma rastreabilidade”.
A Rede de produção de interioridade corresponde a um terceiro tipo de Rede,
que se soma à articulação das Redes híbridas e homogêneas na tarefa de manter
os grupos vivos, denominada por Latour (2019) de Rede de psicogênese. Verificar a
existência desta última não é difícil entre os modernos, afinal, concerne a uma:

Gente que desenvolveu a mais vasta indústria farmacêutica da


história e que consome psicotrópicos de maneira alucinante, sem
72

falar das substâncias alucinógenas ilegais; gente que não pode


subsistir sem programas de psicorealidades, sem um fluxo contínuo
de confissões públicas, sem uma gigantesca “imprensa de fofocas”;
povos que instituíram uma escala até então desconhecida, a
profissão, as sociedades, as técnicas, as obras de psicanálise e de
psicoterapia; pessoas que se deleitam com pavor com filmes de
terror, cujos quartos de crianças estão repletos de “personagens que
se transformam”, cujos jogos de computadores consistem
essencialmente em matar monstros e ser motos por eles; pessoas
que não podem sentir um terremoto, sofrer um acidente... sem fazer
intervir imediatamente “células psicológicas” (LATOUR, 2019, p.
158-159).

Os modernos não dispõem de um lugar onde colocar os efeitos das Redes de


psicogêneses, e a solução encontrada por eles é afirmar que tudo acontece nas
cabeças; por não poderem situar um conjunto de fenômenos muito reais, muito
objetivos, que são apenas diferentes do que estava previsto no receptáculo muito
mais rapidamente saturado da exterioridade, designaram tais fenômenos de
“interiores ao sujeito”. Porém, essa Rede deixa, em seus rastros, interioridades
advindas do exterior, logo, tomá-las como um “produto do espírito humano” constitui
mais um erro de categoria na grande lista dos modernos (LATOUR, 2019).

Isto não significa que não haja uma cavidade do sujeito, mas esta
sempre deve ser cavada por um trabalho de mina, desobstruída,
escorada, equipada, instituída, mantida. Para evitar que seja
inundada, deve ser sempre chamada com grandes custos por
máquinas cada vez mais gigantescas. O psiquismo dos Modernos se
parece com uma cidade subterrânea, uma infraestrutura material,
uma esfera pressurizada artificialmente (LATOUR, 2019, p. 161).

Este trabalho de mina é feito justamente pelas Redes de psicogêneses, o


qual permite esvaziar, escavar, equipar, esclarecer e manter: permite fazer circular
os sujeitos. Esse terceiro tipo de Rede será introduzido aqui a partir da personagem
Nazaré Tedesco, um dos seres da Metamorfose, destacada a título de exemplo de
como esses seres podem cruzar com os seres do Meme. Em suma, o foco não é
exatamente a instauração fe(i)tiche da personagem, mas, sim, a sua participação na
trajetória do Meme, importa iluminar a ação dela na instauração psíquica de uma
mudança ou emoção qualquer e, sobretudo, como a ação do Meme se articula a
isso.

2.2 NAZARÉ TEDESCO: “UM SER INVISÍVEL”


73

Loira, meia idade, sensual, excêntrica, autoestima e um estado de espírito


mordaz (ver figura 9). Um sorriso leve, que sugere experiência em suas más
intenções e, sem constrangimento, transforma-se em uma intensa gargalhada cheia
de farpas, que pode ser seguida de um choro falso.

FIGURA 9 – IMAGEM DA PERSONAGEM NAZARÉ TEDESCO COM LEGENDA CITANDO


UMA FRASE USADA POR ELA PRÓPRIA NA NOVELA SENHORA DO DESTINO (2004).

Fonte: reproduzido de Ranielle Andrade (2021)

O “Meme da loira confusa”, como costuma ser chamado por aqueles que não
conhecem a personagem, é estrelado por Nazaré Tedesco, vilã principal da novela
Senhora do destino (2004), produzida e exibida originalmente pela TV Globo, uma
rede de televisão comercial brasileira, aberta. A interpretação dessa personagem foi
feita pela atriz Renata Sorrah, e se inicia, mais ou menos, no meio da trama para o
fim, momento em que ela converte o caráter dramático e comovente de uma mãe à
procura da sua filha roubada em deboche e ironia. Inicialmente interpretada pela
atriz Adriana Esteves (Juventude da personagem), Nazaré, após uma briga com o
amante que se recusava casar-se com ela porque já era casado, encontra Maria do
Carmo, uma retirante nordestina perdida no meio de uma repressão policial contra
estudantes que protestavam contra o ato institucional n-5 da ditadura militar,
promulgado em 1968 no Brasil.
Com cinco filhos e um deles machucado, a mãe aceita a ajuda de Nazaré,
que, passando-se por enfermeira, promete cuidar das crianças enquanto o filho mais
74

velho recebe atendimento médico. Assim, a falsa enfermeira encontra a solução


para seu objetivo de se tornar uma mulher respeitada e casada (figura 10).

FIGURA 10 – NAZARÉ TEDESCO OFERECE “AJUDA” À MARIA DO CARMO,


PLANEJANDO ROUBAR O BEBÊ.

Fonte: novela Senhora do destino (2004)

Este aspecto é relevante porque ser mãe é uma obsessão da personagem,


porém, ela, mesmo sendo estéril, forjou uma gravidez para persuadir o seu amante a
se casar. Na verdade, Nazaré trabalhava no bordel de madame Berthe Legrand,
autora da ideia de fingir a gravidez, convencer o amante a se casar e, depois,
simular que perdeu o bebê. Contudo, a vilã roubou a criança e simulou o parto, ato
que choca a dona do bordel, mas a ajuda apesar disso (figura 11).

FIGURA 11 – NAZARÉ E MADAME BERTHE LEGRAND SE PREPARANDO PARA


RECEBER JOSÉ CARLOS DEPOIS DO “PARTO”.

Fonte: novela Senhora do destino (2004)


75

O amante, José Carlos, não sabia da sua verdadeira profissão, para ele, ela
fingia ser enfermeira, e, dessa forma, conseguiu o sobrenome que desejava. Mais
de vinte anos depois, Nazaré, já interpretada por Renata Sorrah, estreia sua
aparição na novela empurrando o marido da escada (figura 12), em razão dele ter
visto na televisão uma foto da sequestradora de Lindalva (nome dado por Maria do
Carmo a sua filha) que havia sido feita por um jornalista nas ruas do Rio de Janeiro
no meio do tumulto entre policiais e estudantes em 1968. José Carlos entra em
choque ao ver aquela mulher vestida de enfermeira, grávida (barriga falsa) e com
uma criança nos braços. Para se livrar desse problema, ela o empurra da escada e,
muito mal, ele infarta antes de denunciá-la.

FIGURA 12 – NAZARÉ EMPURRA O MARIDO DA ESCADA.

Fonte: novela Senhora do destino (2004)

A cena ilustrada na figura 12 não se tornou em si um dos achados


expressivos recorrentes da personagem nas plataformas digitais, porém, o ato de
“empurrar da escada” se destaca como uma de suas atitudes marcantes, como um
registro ou mesmo uma espécie de achado expressivo da personalidade dela (ver
76

figura 13). Esse aspecto não é aprofundado aqui porque seria focar na trajetória dos
seres da Metamorfose (influências, divindades, psiquismos), que, embora seja
importante para a trajetória do Meme, é esta última, em específico, que interessa
mapear.

FIGURA 13 – POSTAGEM USANDO UMA IMAGEM DA NAZARÉ EDITADA COM


LEGENDA COM LEGENDA REFERENTE AO ATO DE EMPURRAR DA ESCADA COMO UMA
ATITUDE MARCANTE DA PERSONAGEM, PARA FIGURAR A SENSAÇÃO DE ESTAR
INCOMODADO COM ALGO OU ALGUÉM IMPERTINENTE.

Fonte: reproduzido de El País (2017)

A partir da cena da figura 12, a novela inicia uma nova fase, o destino
finalmente cruza o caminho de Isabel (filha roubada) e Maria do Carmo. O impasse
decorrente disso, consiste no fato de que, apesar de descobrir que foi sequestrada,
Isabel ama e defende a mulher que a criou. Todavia, o que esse roteiro tem a ver
com o falar memeticamente? Diretamente, nada. A Nazaré ficou conhecida entre
internautas estadunidenses e de outros países em 2016, quando pessoas de vários
países, que nem mesmo sabiam que ela é brasileira, conduziram uma conversação
no Twitter acerca de sua imagem (um achado expressivo com seu rosto
aparentemente confuso). Embora já fosse popular no Brasil, o achado expressivo
da Nazaré viralizou por meio de uma discussão sobre política, na qual, perfis
estadunidenses usaram a imagem dela para conversar, ou melhor, falar
memeticamente, sobre o debate entre Donald Trump e Hillary Clinton (candidatos à
77

presidência dos Estados Unidos em 2016).


A discussão até avançou em torno da identidade dessa mulher tão atraente
em relação ao segredo guardado pela sua expressividade, entretanto, a vilã
brasileira acabou sendo chamada de confuse blonde ou math lady. Não se sabia
nem quem ela é, nem por qual motivo parecia confusa, uma internauta até sugeriu,
talvez ironicamente, que ela fosse a Julia Robert (figura 14).

FIGURA 14 – REPOST NA PLATAFORMA DIGITAL TWITTER DE UMA POSTAGEM


AFIRMANDO QUE CHEGOU A PENSAR QUE A CONFUSE BLONDE SERIA A ATRIZ JULIA
ROBERT.

Fonte: reproduzido de Blogsequelanet (2023)

O respost da figura 14 usa o achado expressivo da própria Nazaré para


expressar sua sensação ao perceber que a mesma “se tornou Meme” com a
seguinte legenda traduzida para o português: “quando você percebe que a Nazaré
Tedesco se tornou um meme internacional, mas você não sabe como isso
aconteceu”. A postagem original foi feita por outro perfil que apresenta a seguinte
legenda traduzida para o português: “eu realmente pensei que ela era a Julia Robert
78

até agora”. Há dois aspectos a serem ressaltados nisso, primeiro, a falta de uma
identidade não comprometeu a condição de achado expressivo, provavelmente
tenha sido até um fator importante para dimensão da repercussão; segundo, e não
menos importante, a figura 14 exemplifica o fato de que falar memeticamente não
significa o mesmo que falar sobre Meme e vice-versa, embora uma coisa não
impeça a outra. Essa compreensão é fundamental para trilhar essa tese, que se
propõe a falar sobre Meme, mas não memeticamente.

2.3 PARA QUE A TRAJETÓRIA DA TESE NÃO SE CONFUNDA COM A


TRAJETÓRIA DO MEME

Antes de trazer a Rede de psicogênese à construção artificial da realidade,


cabe diferenciar dois modos de existência importantes, a fim de deixar claros os
meios usados para acessar o conhecimento. Latour (2019) aponta como mais um
dos aspectos marcantes da antropologia dos modernos a confusão entre afirmar que
ou o mundo e o enunciado do mundo são a mesma coisa; ou ambos são diferentes,
o primeiro seria o mundo material e o segundo seria da ordem do espírito. Temos a
ciência como exemplo mais elevado da razão, porém, nunca se sabe exatamente do
que se está falando, se é do mundo ou da ciência (Referência). O problema disso é
que compromete a compreensão dos demais modos de existência, para piorar, essa
noção de correspondência (depois de absorver toda a realidade) limitou os outros
modos a um mero “jogo de linguagem”.
Como a intenção é não cometer esse erro, salienta-se a diferença entre a
Referência (cuja condição de felicidade é informar, bem como a que está sendo
construída por esta tese) e a Reprodução da ação do Meme, por exemplo, ao longo
de sua existência (cuja condição de felicidade é continuar sendo), pois possuem
trajetórias diferentes. A Reprodução pode ser designada a partir da afirmação “existe
ou não existe mais”66, “está falando memeticamente ou não está mais”. O
fundamental consiste no fato de que, sob a perspectiva da Teoria Ator-Rede, sem
mediação não há acesso, e isso vale igualmente para o conhecimento (Referência):
na afirmação “Nazaré Tedesco se tornou Meme”, há, obviamente, a necessidade de
verificar se os registros dela são achados expressivos, se viralizaram nas

66
E isso é válido tanto para o computador pelo qual estas palavras estão sendo digitadas, quanto
para o Meme, por exemplo.
79

plataformas digitais; mas, é preciso considerar também a correspondência desse


acontecimento no tempo t+ que sucede o tempo t.
Em outros termos, além de se atentar para esse salto específico que consiste
em um enunciado confirmado por um estado de coisas (Referência); atente para
outro passe que consiste no estado de coisas que continua similar a si mesmo por
meio da prova de uma subsistência (Reprodução). Por conseguinte, o objeto
conhecido em sua subsistência (no caso desta tese a ação do Meme) e o sujeito
cognoscente (capaz de pavimentar as inscrições da ação do Meme, como está
sendo feito no decorrer da escrita desta pesquisa) não são as causas, são, sim, as
consequências da extensão das cadeias de Reprodução e de Referência67.
Acompanhando os seres no mundo pelos canais por quais passam seus
antecedentes e consequentes (Reprodução), não precisa apelar para nenhuma força
transcendente que sustente ou explique (a força do social ou o mundo simbólico, por
exemplo) aquilo que, na verdade, é o pesquisador quem deve explicar na medida
em que alarga as cadeias de Referência, e,

Quanto mais essas cadeias se alongam, tornando-se mais espessas,


mais instrumentalizadas, “existe” tanto mais objetividade e “existe”
tanto mais conhecimento objetivo circulando no mundo à disposição
dos falantes que desejem se conectar ou fazer assinaturas delas
(LATOUR, 2019, p. 83-84).

As Redes localizam os domínios (modos de falar ilustrados na figura 3 e


mapeados no quadro 2) bem como os fios da razão desses mesmos domínios,
porém, deixam espaços vazios para outros modos (LATOUR, 2019). Um desses
espaços vazios a serem preenchidos corresponde a ação inerente ao domínio do
Meme, cuja trajetória já podemos retomar.

2.4 O DESTINATÁRIO DA MENSAGEM

Entre outros exemplos de “pessoas Memes”, a Nazaré Tedesco reuniu muito


achados expressivos que, como já foi dito, correspondem ao cruzamento dos

67
É preciso acompanhar o conhecimento com suas Redes de Referência, oferecendo os meios para
ir tão longe quando quisermos, porém, é imprescindível arcar com o preço da instalação e expansão
dessas Redes. Esse pluralismo ontológico nos liberta do preconceito de olhar para outras sociedades
achando que elas confundiram a matéria com a dimensão simbólica. Ao invés de ir buscar na cultura,
na linguagem ou nas representações; mas, é o fio da experiência que deve ser seguido, e não
ficarmos presos no dualismo do sujeito/objeto.
80

seres da Ficção com os seres do Apego (ver figura 4), mas, agora, a questão
pertinente para dar continuidade a esta cadeia de Referência construída por esta
tese é: qualquer achado expressivo serve? Alguns são mais ideais que outros para
falar memeticamente? Um achado expressivo emerge, necessariamente, de um
alinhamento entre crenças e desejos com um insight. Para Tarde (2003),
crenças e desejos são forças da alma e apresentam um caráter quantitativamente
variável, iniciando na menor propensão a crer e a desejar até o ápice da certeza e
da paixão. Sob tal enfoque, esta tese ousa afirmar que esse alinhamento é, de
maneira geral, o esforço da ação do Meme, ao passo em que mira na construção de
uma afirmação e certeza, em uma convicção.
Há uma contradição oculta, explica Tarde (2003), quando se pretende, por um
lado, que um organismo é um mecanismo formado em virtude de leis puramente
mecânicas, e, por outro lado, que todos os fenômenos da vida mental, inclusive a
crença e o desejo, são apenas resultados da organização.

Entre os resultados superiores das funções vitais há dois em especial


que são forças, e que, brotando do cérebro, não puderam ser criadas
pelo jogo mecânico de vibrações celulares. Pode-se negar que o
desejo e a crença sejam forças? Não se vê que, com suas recíprocas
combinações – as paixões e os projetos – elas são os perpétuos
ventos das tormentas da história, as quedas d’água que fazem girar
os moinhos da política? O que move e impulsiona o mundo se não as
crenças, religiosas ou outras, as ambições e cobiças. Esses assim
chamados produtos são forças que, sozinhas, produzem as
sociedades, ainda consideradas verdadeiros organismos por muitos
filósofos atuais (TARDE, 2003, p. 38-39).

A crença e o desejo são, de acordo com essa visão, agentes psíquicos


diferentes dos indivíduos, fontes comuns de toda noção, de todo fenômeno
psicológico. Essas duas forças da alma não só podem ser objetivados como podem
ser inconscientes, são os juízes de todas as sensações; porém, por sua vez,
sensações inconscientes são impossíveis, porque não podem ser ativadas por si
próprias, elas também possuem hiatos a serem preenchidos e é preciso identificar o
seu movimento, a sua alteração no indivíduo (TARDE, 2003). Ao que parece, é
justamente identificar esse movimento que pretende Latour (2019) ao introduzir o
conceito de Rede de psicogênese na tarefa de fabricar a realidade social dos
humanos, afinal, claramente nenhum dos dois autores estão em busca de uma
identidade, não se trata de identificar uma substância na qual o ser se sustenta. Por
81

essa Rede, pretende-se chegar(partir) aos(dos) elementos últimos de um agregado


social: os indivíduos.
Da menor vontade à certeza, um agregado social (um grupo social, uma
situação ou como se queira chamar) compreende aos números exteriores das duas
quantidades interiores (crenças e desejos), isto é, compreende a soma de pequenos
fatos. Contudo, a fim de não se perder na trajetória das outras ações restauradoras,
é melhor correr o risco de ser repetitivos e retomar o hiato da ação do Meme: o feixe
de contágio psíquico não acontece mais, essencialmente, pela aproximação física,
no mundo digital se estabeleceu um hiato novo relativo à necessidade de identificar
os vínculos ou os interesses em comum de outra forma. Assim, a ação restauradora
(o Meme) capaz de realizar essa sutura, instaurou seres fe(i)tiches para auxiliar na
tarefa de calcular a força desse elo na medida em que tal ação alarga a
conversação. O Meme, portanto, garante a travessia das crenças e dos desejos, ou
melhor, das Redes de psicogêneses. Eis o contágio acontecendo.
Todavia, a trajetória do Meme lida com a ampliação das contradições e dos
conflitos, uma vez que acompanha a ampliação das Redes, por esse motivo, tal
trajetória precisa de estratégias para a resolução dessas contradições e desses
conflitos. Neste aspecto, é precioso o exemplo da Nazaré Tedesco, enquanto um
dos seres da Metamorfose, ela tem como condição de felicidade fazer instalar,
passar e proteger uma emoção ou uma transformação, quer dizer, ela explora as
diferenças até ser atravessada pelos seres do Apego e, então, empreender um
interesse apaixonado específico: a ação do Meme reside, cirurgicamente em mandar
a mensagem da coexistência desse interesse. Em última instância, é como se o
Meme dissesse, não apenas “temos interesses em comum, estamos vinculados”,
mas, também, “tais interesses são impossíveis de serem sustentados nas condições
desse mundo que reúne muitos sentimentos opostos ao mesmo tempo, logo, é
necessário quebrar as regras e surpreender com um ‘verdadeiro’ significado”.
Dessa forma, é possível afirmar que o Meme é um mensageiro, contudo, ele
não lida com qualquer mensagem, o que tem a dizer é tão importante e delicado
que, de tal mensagem depende a própria constituição dos grupos, ou seja, a vida
social no mundo digital. Em função disso, não é qualquer achado expressivo que
atende a trajetória perturbadora do Meme, antes de enviar a mensagem, é preciso
alinhar as crenças e desejos a um insight, detalhe crucial que, finalmente, vai trazer
o humor para o assunto. Note o achado expressivo na figura 15.
82

FIGURA 15 – ACHADO EXPRESSIVO MAIS FAMOSO DA NAZARÉ TEDESCO.

Fonte: novela Senhora do destino (2004)

Segundo o neurocientista cognitivo Scott Weems (2016), o humor é um


processo de resolução de conflitos inerente à batalha entre os sentimentos e o
pensamento, é o esforço para resolver emoções opostas. Por isso, ao abrigo de
certas circunstâncias: qualquer coisa pode ser engraçada; nem tudo que faz rir é
engraçado; e uma piada é, antes de tudo, um mecanismo de enfrentamento
psicológico. A princípio, a figura 15 não soa engraçada ou risível, mas oferece
vivamente a atração sutil comparável àquela que é possível sentir diante de atitudes,
gestos e expressões vivenciadas no face a face, ou seja, ela provoca uma
sensação. Mas, qual? Aqui entra o necessário alinhamento entre crenças e desejos
com um insight, a oportunidade de resolver emoções opostas e, também, a
oportunidade de garantir a "coerência de pensamento” e a atração de um grupo,
assim como o prazer ou o humor que pode decorrer disso. Note a figura 16.
83

FIGURA 16 – ACHADO EXPRESSIVO MAIS FAMOSO DA NAZARÉ TEDESCO EDITADO


COM LEGENDA E EM EXPOSIÇÃO NO #MUSEUDEMEMES.

Fonte: reproduzido de Tito Belo Gil (2023)

O achado expressivo das figuras 15 e 16 é capaz de solicitar aos seres da


Ficção que figurem ou deem forma imagética a uma sensação enigmática. De
acordo com Tarde (2003), em alguns casos, é necessário considerar como
inconscientes certos estados da alma, isto é, um desejo e um ato de fé podem
perfeitamente não ser sentidos, entretanto, uma sensação não pode ser ativada por
si só (precisa ser ativada por crenças e desejos). Por conseguinte, pode-se
compreender que o achado expressivo mais ideal para falar memeticamente
provoca sensações a serem resolvidas, embora nem sempre se esteja consciente
das duas forças da alma que estão movendo tal sensação, como se colocasse um
problema de insight a ser resolvido. Em síntese, o achado expressivo solicita uma
resposta, um complemento que se adeque a sensação que se sente ou que se
pretende provocar na conversação.
O insight humano e o humor, explica Weems (2016), estão intimamente
relacionados, haja vista que os indivíduos sentem prazer ao encontrar soluções,
porém, encontrar soluções demanda uma intensa atividade cerebral, afinal, basta
84

que várias partes do cérebro discordem para iniciar um conflito interno. O instigante
disso, é que tal conflito não é exatamente o problema, porque no caminho oferecido
pelo humor é preciso introduzir um conflito emocional. Mas, delicadamente, se por
um lado, tiver pouco conflito sobre o fato de a piada ser apropriada ou não, a piada
falha; por outro, se há provocação em excesso, não há conflito porque a
inadequação é clara desde o início. Em suma, a produção de jocosidade consiste na
adequação, conforme ressalta o neurocientista citado. Observe que a edição na
figura 16 com a frase “ki dia é hoje” oferece uma leve satisfação, ao apenas
solucionar o motivo da sensação transmitida pelo achado expressivo.
O humor corresponde a como lidamos com mensagens complexas e
contraditórias, ele auxilia na resolução de sentimentos confusos e conecta os
indivíduos com outros em situações de estresse; e o riso advém na medida em que
se percebe os detalhes (WEEMS, 2016). Esta tese compreende isso como o grande
estimulante do mundo digital, mediado pela possibilidade Técnica de manipular os
detalhes. A figura 17 exemplifica isso com a edição mais usada da Math lady.

FIGURA 17 – EDIÇÃO MAIS USADA DA MATH LADY EM EXPOSIÇÃO NO


#MUSEUDEMEMES.

Fonte: reproduzido de Tito Belo Gil (2023)

Trata-se de um trabalho, em parte, artístico, uma vez que os seres da Ficção


participam da articulação do falar memeticamente, dentro da lógica segundo a qual
“a obra de arte reproduzida é cada vez mais a reprodução de uma obra de arte
criada para ser reproduzida” (BENJAMIN, 1987, p. 171). Este autor não cita a arte
85

em seu caráter contemplativo, mas, sim, pela sua dimensão política frente aos meios
de reprodutibilidade técnica cada vez mais avançados. Weems (2016) enfatiza que
interpretar o mundo é um acontecimento criativo, porque os humanos são criaturas
geradoras de hipóteses, ou melhor, estão sempre adivinhando o que é preciso fazer
ou dizer. Essas hipóteses, não raramente, estão erradas e isso não é absolutamente
ruim, pelo contrário, porque detectar os erros é a forma por meio da qual o cérebro
transforma conflito em recompensa.
A recompensa vem na forma de neurotransmissores indutores de prazer (a
dopamina, por exemplo) liberados quando o conflito é resolvido a partir de um
processo que Weems (2016) divide em três estágios importantes para o pensamento
de modo geral: a construção, o ajustamento e a resolução. A construção remete ao
quanto os indivíduos são ativos no processamento do ambiente em que vivem, e
que “quando solucionamos problemas, nós não apenas buscamos em nossa
memória possíveis soluções. Em vez disso, deixamos nosso cérebro trabalhar,
gerando muitas respostas possíveis, algumas delas úteis [...] e outras não [...]”
(WEEMS, 2016, p. 775). O ajustamento, por sua vez, está relacionado com o que o
cérebro faz com as expectativas da construção, pois, somente se atentando para as
consequências dos erros é possível entender por quais motivos esses erros levam
tantas vezes ao humor, e como eles podem levar a novas interpretações.

O ajustamento é o processo de reavaliar estes equívocos,


geralmente levando a uma surpresa agradável. Nós gostamos de
descobrir nossos erros porque a surpresa é uma de nossas emoções
mais valorizadas, tão fundamental quanto a felicidade ou o orgulho
(WEEMS, 2016, p. 871).

Por fim, a resolução é a solução inesperada de conflitos e ambiguidades, a


solução de erros de interpretação que resultam dos dois primeiros estágios, sem
esse processo, não é possível rir.

É verdade que o humor é tão complexo, e as causas de risos tão


diversas, que nenhuma regra se aplica de uma situação para outra.
No entanto, o humor tem alguns ingredientes muito claros, que a
ciência só agora está começando a revelar. Estes ingredientes
explicam trocadilhos, charadas e até mesmo piadas de advogado. E
todos eles dependem da resolução de ambiguidade e conflito dentro
de nossos cérebros altamente modulares (WEEMS, 2016, p. 167).
86

Pensar consiste em um processo que se depara com muitos conflitos, leva o


cérebro a vários passos adiante a fim de resolver o desafio, e o controle dessa
complexidade68 é feito da mesma maneira que os seres humanos fazem: criando
governos. Trata-se da necessidade de gerenciar todas as vozes que pretendem falar
ao mesmo tempo, de ouvir as queixas e de manter o controle. Com essa finalidade,
os humanos criam entidades como a Organização das Nações Unidas (ONU); já o
cérebro, de modo análogo, possui uma região denominada cíngulo anterior, cuja
atuação é fundamental para o insight, já que, em vez de chegar à solução ela lida
com o conflito (WEEMS, 2016).
Embora a tarefa de associação semântica remota não pareça ser conduzida
pelo conflito, ela é, e a solução dificilmente é a primeira que vem à cabeça, por
causa disso, chegar a uma solução requer “segurar” as respostas mais potentes. Em
resumo, a parte do cérebro que pensa que tem a resposta fácil precisa ser “calada”,
para que outras vozes possam ser ouvidas: exatamente a tarefa do cíngulo anterior.
Além disso, o humor é seu orçamento operacional. Dessa maneira, os indivíduos
não só assimilam informações, eles desenvolvem teorias e expectativas sobre o seu
ambiente a todo o momento, ou seja, constroem expectativas e, quando elas se
mostram falsas, uma das saídas é sorrir (WEEMS, 2016). Como já foi dito, a
mensagem do Meme precisa lidar com o acúmulo de muitos conflitos na medida em
que amplia a conversação entre indivíduos fisicamente distantes, além disso, tal
mensagem deve ser enviada de maneira muito melindrosa, afinal de contas, é
preciso estar desprevenido para imitar desconsiderando certas contradições.
Sob tal enfoque, é como se à Nazaré (o exemplo de ser da Metamorfose
usado aqui e que é aprofundado no capítulo seguinte) fosse dado o desafio de
resolver um determinado conflito, e, sobretudo, compartilhar tal resolução: se ela
atingir a condição de felicidade de instalar uma emoção ou transformação
(Metamorfose); de figurar um achado expressivo (Ficção); de empreender um
interesse apaixonado (Apego); e, a partir daqui, depois de todas essas condições de
felicidade terem sido alcançadas, sempre mediante as respectivas trajetórias de

68
Weems (2016, p. 775) explica que “O cérebro é uma fera complexa. Há regiões separadas para a
visão, a audição e a linguagem, além de várias para orientar nossos movimentos. Há regiões que se
ativam quando usamos matemática complexa, outras que armazenam novas memórias e outras que
nos ajudam a reconhecer rostos. A única coisa mais surpreendente do que a especialização do
cérebro é que ele faz tanta coisa que a evolução nunca poderia tê-lo preparado totalmente para fazer.
Assim, não deveria ser surpresa que, quando o cérebro começa a pensar em coisas, ele toma alguns
caminhos errados”.
87

cada uma, o Meme pode realizar a sua trajetória específica e oferecer uma via a ser
imitada. Talvez esteja cansativo, mas, a trajetória objeto desta tese só ganha sentido
sociológico quando está em associação com outros discursos, assim, antes de
apontá-la, faltam algumas considerações. Imitar, reproduzir uma opinião remete ao
“ser” de um grupo social, ou seja, situado nas Redes homogêneas, esse “ser” é
constituído por um agregado de discursos. Ademais, cabe salientar que todos os
modos de existência discursivos mencionados partem de uma instituição moral, visto
que para cada um é destacado uma condição particular de felicidade e de
infelicidade, quer dizer, não param em nenhum momento de “moralizar”.
Note que para fechar a cadeia de trajetórias supracitada, o Meme precisa
oferecer uma via a ser imitada, sua condição de felicidade. O que interessa aqui,
vem antes dessa condição de felicidade ser atingida, porque corresponde a um feito,
não pode ser tomado como pronto, o que interessa (a trajetória) é o acontecendo
desse feito. Portanto, “em vez de opor o ‘ser do dever ser’, deve-se contar, antes,
por quantos seres convém passar e quantas alterações é preciso aprender a se
dobrar para continuar a existir” (LATOUR, 2019, p. 365). Corresponde ao “dever
supremo” de explorar por quais outros seres são necessários passar para subsistir
(a articulação) que define a existência.

Todos aqueles que opõem o ser e o dever ser se dirigem, portanto, a


seres estrangulados, decapitados, castrados, privados de qualquer
meio para satisfazer suas necessidades, almas penadas que
sobrevivem no pálido limbo da filosofia moral (LATOUR, 2019, p.
365).

A moralidade, por conseguinte, só pode ser uma propriedade do próprio


mundo, afirma o autor, porque pretender fundá-la no humano, na substância ou em
uma lei tautológica não se sustenta, cada modo de existência já expressa
criteriosamente uma das diferenças entre o bem e o mal. Não obstante, há outra
percepção além dessas moralidades espalhadas por cada modo discursivo que
corresponde ao que o Latour (2019, p. 366) chamou de “recuperação do escrúpulo
na distribuição ótima dos fins e dos meios”. Refere-se a mais um modo, a Moral,
cuja ação perpassa o fato de que, se por um lado, cada existente refaz o mundo à
sua maneira e existir por si mesmo constitui seu valor supremo; por outro, não é
possível se livrar da inquietude de ter deixado na sombra uma multidão que lhe
permitiu existir, os outros, dos quais não dá para saber se são ou não sua finalidade
88

“e obviamente não se trata apenas de humanos” (LATOUR, 2019, p. 367).


Os seres da moralidade (uma finalidade atingida) exploram os vínculos
meio/fim, e se anunciam no questionamento “fiz bem ou fiz mal?”. Concerne a se
comprometer com um novo movimento de exploração a fim de averiguar a qualidade
geral de todos os vínculos. Não adianta estar preocupado se não irá fazer nada, pois
isso é considerado imoral. Então, as condições de infelicidade da Moral residem no
abandono de casos, na indiferença a dispositivos técnicos de provas, afinal, na
medida em que não se inquieta mais, o escrúpulo se encerra e resulta, usando os
termos de Latour (2019), na “maldição da negligência”, expressão usada para
enfatizar a importância da atenção, da vigilância e da precaução na lida com cada
caso. Mas, o que esse modo tem a ver com a ação do Meme?
Recapitulando, fala-se sobre uma ação articulada pela qual um interesse
apaixonado é instalado e protegido, cuja sensação coloca os indivíduos em
movimento por se sentirem apegados, comovidos, apaixonados e, especialmente,
destinatários da mensagem, pois possuem uma finalidade em comum: manter o
grupo coeso, mesmo que tal coesão comprometa os escrúpulos. A necessidade de
manter o grupo vivo em condições tão hostis como no mundo digital, exige rapidez
em fazer instalar, proteger, oferecer um exemplar para ser imitado e, assim, contar
uma história para sustentar um fim, uma finalidade. Em suma, esta tese sublinha
que o mundo digital esmaga o modo de existência da Moral, porque precisa acelerar
o moralismo dos demais modos de existência discursivos. Porém, como esmagar o
modo de existência da Moral sem comprometer a sustentação de um fim, de uma
finalidade coletiva?

2.5 ORGANIZA-SE COM HUMOR

O mundo digital é uma assombrosa e empolgante fonte de conflitos, os quais


não podem nem serem ignorados nem serem resolvidos com violência física. Tais
conflitos precisam ser “resolvidos” rapidamente, como não dá para não os perceber
ou fingir que não existem, do ponto de vista da coesão dos espíritos, é preciso
aprimorar a maneira de lidar com eles. De acordo com Weems (2016), a maneira
mais especializada e rápida de lidar com os conflitos é a piada, nesta, prossegue o
neurologista, a surpresa não é o ingrediente chave do humor, na verdade, a
surpresa é o que torna os problemas de insights únicos, haja vista que não dá para
89

ter ideia do quanto estamos perto de uma solução até tê-la. Dado que, ser afastado
das falsas suposições provoca prazer, a surpresa consiste em um valor tão
importante para o humor quanto para o insight, assim, quanto maiores são as
expectativas de uma interpretação, mais se torna permissível ser pego em
desequilíbrio pela virada real de uma piada.
Entretanto, a surpresa não é suficiente em uma piada, é preciso, ainda,
oferecer uma mudança de perspectiva, afinal, ela é uma maneira de manipular
muitos scripts. Quanto maior a oposição dos scripts, mais engraçada a piada,
porque se rir do imperativo de ter que integrar objetivos ou ideias incompatíveis, que
levam à confusão, à dúvida e à vergonha. Efetivamente, construir, ajustar e resolver
interpretações conflituosas é crucial em todos os aspectos do pensamento, mas, a
piada se especializa na rapidez desse processo e o humor entra na medida em que
convida a, simultaneamente, realizar os três estágios (a construção, o ajustamento e
a resolução). Logo, o humor é uma das formas de se lidar com a confusão, e, sem
confusão, não se poderia rir (WEEMS, 2019). Neste aspecto, importa perceber que o
Meme precisa, além de mandar a mensagem oculta para pessoas fisicamente
distantes, “resolver” os conflitos sociais do mundo digital. Como lidar com os
sentimentos incongruentes que movem as ações nesse ambiente? Organizando-se
com humor. Explico.
Uma vez que o falar memeticamente consegue atingir sua condição de
felicidade, ou melhor, consegue oferecer uma via para ser imitada, é seguido pela
produção de scripts. Estes, na descrição de Latour (2019), são histórias capazes de
impor a seguinte torção: obrigar àqueles que as contam, os falantes, a ocupar duas
posições ao mesmo tempo, ligeiramente defasadas. A primeira posição reside acima
dos relatos, como se estivessem livres para escrevê-las a qualquer momento; e, em
seguida, abaixo dos relatos, como se não fossem livres para modificá-los. O script é
avaliado de acordo com sua capacidade de definir fins, contornos e, em sentido
amplo, prazos, e dominar essa capacidade é a condição de felicidade que Latour
(2019) reputa à Organização. Para uma visão mais geral, observe a figura 18.
90

FIGURA 18 – CRUZAMENTO ENTRE OS SERES DA FICÇÃO, DO APEGO, DA


METAMORFOSE, DA ORGANIZAÇÃO E DA MORAL À MANEIRA DO MEME.

Fonte: autoria própria

Paradoxalmente, os scripts têm duração pelo que não dura, mas é em razão
dos quadros advirem do interior dos próprios scripts que eles conseguem enquadrar.
Tais quadros obtêm o efeito de continuidade, de estabilidade, de essência, de
inércia, apesar de não existir nenhuma substância por trás, nenhum mundo no qual
se apoiar os dispositivos. Os scripts, portanto, oferecem a possibilidade, a força de
retomadas, de reenvios, de retificações, de queixas e de obediências, de fazer durar
algo que, enfim, possuirá bordas, fronteiras, programações, limites e etc., ou melhor,
consegue-se algo que parece com o que se esperava, mas sem nunca o conseguir
de fato (LATOUR, 2019). A trajetória do Meme tem a oportunidade de acontecer e
cruzar a produção e seguimento dos scripts (Organização) em razão de um aspecto
que lhe é favorável versado por Weems (2016): os humanos são especializados em
ambiguidades. Esta é a última pista que levará à trajetória do Meme.
Mais do que reconhecer uma ambiguidade, importa explorá-la. Neste aspecto,
sobressai-se a relevância do pensamento flexível para a interpretação de
significados sutis e para as suposições minimamente aceitáveis acerca de possíveis
interpretações, enfim, para a criatividade. Ao contrário dos computadores, os
humanos são bons contadores de piadas porque são pensadores desorganizados,
ou seja, são capazes de deixar suas mentes discutir e flutuar até que uma solução
as surpreenda. De acordo com essa visão, o modo como se procura uma solução
conta mais do que ter mais tempo para achar uma solução, afinal, todo tempo do
mundo não ajuda se não souber como procurar. Diferentemente do caso do
91

computador, o pensamento bagunçado viabiliza aos humanos pesquisar vários


leques de movimentos possíveis, usando a intuição em vez de algoritmos. Não se
trata de obter uma solução simples, mas, sim, de conseguir realizar associações
inesperadas e conectar ideias que não tinham sido conectadas antes (WEEMS,
2016).
Sob a perspectiva monadológica, esse fenômeno (pensar), bem como
qualquer outro, é uma nebulosa de ações emanadas de uma multiplicidade de
agentes e, usando os termos de Tarde (2003), são como “pequenos deuses
invisíveis”, pequenos seres infinitesimais. Tais agentes são autônomos e tais ações
se chocam tanto quanto cooperam, contudo, partem de um único elemento, cuja
iniciativa leva a uma transformação mental e social. Os “trabalhadores obscuros”,
usando novamente os termos de Tarde (2003), trabalham na acumulação desses
pequenos fatos, em prol do surgimento de teorias, ideias, opiniões, pois, sozinhos
esses pequenos fatos não podem nada, disso advém à necessidade de liberar o
máximo de crença. Mas, foque nesse processo em prol da produção de piadas.
Primeiro, as piadas só são engraçadas porque obriga a enfrentar um erro de
pensamento, um erro de script, ou seja, quando se cria uma piada não se está
inventando novos pensamentos ou scripts, então, “os trabalhadores obscuros”
mencionados por Tarde (2003) estão conectando ideias novas formas. Segundo,
assim como os computadores, o cérebro faz cálculos rápidos a cada vez que se ler
uma frase, e quando ocorre uma mudança repentina de script, a resolução
inesperada provoca o riso, logo, o cérebro é um detector de padrões, mas as
probabilidades que são calculadas não têm a ver diretamente com o humor, este
último tem a ver com a surpresa. Em outras palavras, a probabilidade de
complemento padrão é capital para o humor, porém, a transgressão também é,
trata-se da criatividade. De acordo com Weems (2016), os humanos estão evoluindo
para serem detectores de padrão, ao passo em que acumulam informações e estão
sempre construindo histórias.
Diante das novas condições do mundo digital, um novo padrão foi
desenvolvido para contar histórias, mas esse novo padrão é resultado da
reorganização de tecnologias discursivas que não são novas. A ação do Meme
requenta a especialidade humana em ambiguidades, tal especialidade é
exemplificada por Weems (2016), embora ele não fale sobre regimes de enunciação,
por meio da da frase “eu nunca disse que ela roubou meu dinheiro”, na qual existem,
92

segundo ele, pelo menos sete significados diferentes. Basta ler em voz alta para si
mesmo e enfatizar uma palavra diferente em cada leitura, tudo que seria necessário
é uma inflexão em determinado ponto, uma mudança de tonalidade ali, e a interação
pode ser completamente alterada. Embora nem mencione os regimes de
enunciação, o neurocientista está falando sobre o que Latour (2019), com fascínio,
aponta como trajetória, como o fazer-fazer que antecede o resultado, pronto,
aparente dado, pleno.
No caso da ação específica do Meme articulada em benefício do grupo, a
trajetória consiste na flexibilização dos scripts por resolução antecipada dos
conflitos, para, penosamente, entregar a sua mensagem. Esta é a trajetória que,
em uma segunda instância (a das Redes homogêneas), é identificada quando se diz
“isso é um Meme”. Portanto, o Meme não é uma piada, não é a Nazaré Tedesco,
não é o achado expressivo, não é a postagem, não é a opinião: é a ação, a
trajetória que já pode preencher o seu lugar no quadro de encargos.

QUADRO 7 – QUINTA QUESTÃO RESPONDIDA SOBRE OS ENCARGOS DO MEME:


QUAL É A TRAJETÓRIA PERCORRIDA NO PREENCHIMENTO DO HIATO?
Hiato Trajetória Condição de Seres a instaurar Alterações
felicidade/infelicid
ade

Não saber a Flexibilizar os Oferecer uma via Curtidas, reposts, Dar quantidade
temperatura dos scripts por para ser imitada, emojis, social, contagiar.
interesses resolução oferecer um comentários
apaixonados. antecipada dos pensamento em favoráveis.
conflitos. comum/Opor-se,
conflitar.
Fonte: autoria própria

Quando, ao se deparar com uma postagem em alguma plataforma digital, o


efeito imediato é sentir um prazer que impulsiona a curtir, repostar, comentar ou,
melhor, imitar, é porque as trajetórias já foram ocultadas e a mensagem,
provavelmente, já foi entregue. Enquanto na forma de vida prática do Meme os
seres fe(i)tiche movimentam opiniões, cancelam, enaltecem algo ou alguém
flexibilizando scripts por meio da resolução antecipada dos conflitos e das
contradições inevitáveis; na forma de vida teórica, o Meme, sob os fetiches
destruídos, é tido como um objeto que já está pronto, pleno, dado em forma de
postagens cômicas, até bobas, mas com muitas curtidas e reposts. Em síntese, a
ação restauradora ou discurso restaurador que obscurece as práticas híbridas para
93

fazer a opinião se movimentar, para salvar o social no mundo digital e garantir que o
contágio, aparentemente, não tenha sido feito, trabalhado, pareça não sugerido,
apenas uma identificação vinda do espírito dos indivíduos, da interioridade,
chama-se: falar memeticamente.
94

3. CAPÍTULO 3 – POSSESSÃO

Se a obra captura, não é porque o ouvinte


projetaria nessa música sua patética
subjetividade; é porque a obra exige que lhe
faça parte, o amador, o intérprete brilhante
ou o crítico apaixonado, de seu trajeto de
instauração – mas sem ditar-lhe o que se
deve fazer para ser digno da obra.

(Bruno Latour)

Como explicado nos capítulos anteriores, a compreensão de Meme desta


tese é a de que ele é uma tecnologia discursiva, situada no nível das Redes
homogêneas e articulada em uma dimensão elementar sob a trajetória, ser ou
sentido, de flexibilizar os scripts por resolução antecipada dos conflitos das crenças
e desejos. Porque o Meme é social, é um movimento feito por todos os atores
envolvidos na sua performance. Todavia, a sua trajetória leva a mensagem oculta do
contágio, mas, também reflete a perturbadora instabilidade que um grupo precisa
enfrentar para existir no novo mundo. Os modernos até conseguiram, bem como os
sobreviventes da extinção do Sol na tragédia contada por Tarde (2014), levar para o
mundo digital o conhecimento produzido fora dele, contudo, longe de terem tempo
para usufruir desse conhecimento e aprimorar as conversações, acumularam tantas
informações, contradições e conflitos, que, para garantir a possibilidade de vida
social, dependem muito mais que qualquer outro povo de invocar seres capazes de
influenciar. Não podem, nem em sonho, prescindir de passar por dispositivos
artificiais e rituais, uma vez que precisam, desesperadamente, instaurar entidades
necessárias à constante fabricação e mutação de ego69.
O aspecto crucial a ser imediatamente ressaltado a respeito desses seres é
que se podem metamorfosear os indivíduos, é porque os “tomam por outros”, sem
que isso implique em apontá-los individualmente. Corresponde a um estado que
resulta da feliz conjunção entre os verbos “ser” e “ter”: “a pessoa foi tida”, “a pessoa
foi possuída, transportada, habitada”, de a mais simples raiva à crimes bárbaros, às
69
Por este motivo, jamais podem ser modernos (LATOUR, 1994).
95

tempestades da paixão (LATOUR, 2019). No mundo digital, essa possessão, essa


capacidade de influenciar costuma ser chamada de “virar Meme”.

3.1 MAGIA NO MUNDO DIGITAL

As pessoas ou personagens, cujos registros foram denominados aqui de


achados expressivos, que “viraram Meme”, são escolhidas para levar a mensagem
do contágio. Na verdade, elas possuem uma espécie de dom que funciona
especialmente no mundo digital e, “se existe uma distinção que não se pode perder,
que não se pode deixar esmagar pela acusação de irracionalidade, de magia, de
charlatanismo, é a distinção capital entre enfeitiçar e desenfeitiçar” (LATOUR, 2019,
p. 167). Para enfeitiçar ou desenfeitiçar, é preciso dominar a articulação Técnica de
muitas tecnologias discursivas, dos diferentes regimes de enunciação, aqui é salutar
retomar os seres da Metamorfose, pois são eles que podem “virar Meme”.

Não há um de nós que não esteja em contato constante com esses


seres de transformações. Nas nossas relações com eles, somos
como um envoltório frágil constantemente bombardeado por uma
chuva incessante de seres produtores de psiquismo em que cada um
deles é capaz de nos influenciar, de nos comover, de nos sacudir, de
nos perturbar, de nos transportar, de nos devorar ou, também, de nos
levar a fazer o que não sabíamos ser capazes e que agora nos
habita e nos possui. Como a heroína de Cassavetes, todos vivemos
sob “influência”, positiva ou negativa, dependendo dos efeitos desses
“psicotrópicos” (LATOUR, 2019, p. 167).

O ritual necessário para ascender à condição de entidade poderosa, perpassa


pela capacidade de se especializar na trajetória do Meme, ou seja, quanto mais apta
a resolver conflitos, conseguir compartilhar o prazer desse processo psíquico e fazer
instalar uma emoção ou transformação de maneira a empreender um interesse
apaixonado, mais poderosa e mais capaz de manipular scripts. Esse desafio
discursivo foi realizado com muita destreza pela personagem Nazaré Tedesco, em
razão disso, ela foi escolhida para ilustrar a dimensão prática do Meme neste
capítulo.

3.2 NAZARÉ TEDESCO: UMA ESPECIALISTA NA TÉCNICA DO MEME

Uma das principais características da personagem Nazaré Tedesco consiste


96

em lidar com os conflitos éticos oferecendo uma resolução hábil (e cínica), por isso,
o seu humor mordaz se sobressai quando tentam descrevê-la. A surpresa contida
em frases do tipo “como a Nazaré virou Meme?”, “quando isso aconteceu?” parte do
fato de que o intenso trabalho para fabricar esse acontecimento foi ocultado70. Mas,
para compreender a eficácia desse deslocador de ação, o “Meme da Nazaré”, é
fundamental ressaltar que ela não é simplesmente produtos da interioridade dos
indivíduos, não pode estar presa a um mundo simbólico, pelo contrário, ela foi
fabricada e passou à autonomia, que dizer, bem como todas as criações discursivas,
superou ligeiramente os falantes. A transcendência desse fenômeno reside na
passagem71 da prática à ação72 de um número ilimitado de atores.
Se foi passado clareza sobre a perspectiva que dá base a este trabalho, já
está claro que o mundo das coisas e o pensamento são articulados de forma
trabalhosa e sofisticada. Contudo, pontua Latour (2019), mais surpreendente do que
a maneira como os modernos tratam seus fe(i)tiches, é o pouco espaço que
concedem àquilo que lhes são peculiares: a arte (Ficção) e a Técnica. Justamente
duas trajetórias destacadas neste capítulo no acontecimento chamado “virar Meme”.
Diante de toda essa complexidade que envolve a fabricação artificial da realidade, a
cada ocasião, o que se deve aprender a nomear são as transcendências, pois,
remetem a

Seres subnaturais – incluindo a natureza! –, todos ligeiramente


transcendentes em comparação com a etapa precedente ao longo do
seu trajeto particular. Eles formam uma rede e essas redes se
ignoram com grande frequência, exceto quanto se cruzam e
precisam compor uma com as outras, evitando erros de categoria o
máximo possível [...] o pluriverso está sendo constantemente
esvaziado por circulação de transcendências que os escavam ao
longo por um fino pontilhado deixado pelos saltos e limiares que
70
Foi ocultado pela ação do Duplo Clique, outro regime de enunciação, ou, como Bruno Latour (2019)
chama ironicamente, de “gênio maligno” que vai nos fazer cair em tentação oferecendo acesso
gratuito e imediato à informação sem transformação, porém, tal gratuidade não serve para julgar o
verdadeiro e o falso, nesse caminho mais fácil tudo se torna mentira, até mesmo a ciência, uma vez
que o Duplo Clique pede o impossível: um deslocamento sem transformação. O problema reside no
fato de que “se fizermos da ausência de toda mediação, salto, hiato, passe a única prova de verdade,
então todos os cientistas, engenheiros, sacerdotes, artistas, cozinheiros e políticos se tornarão
manipuladores e trapaceiros, já que suas mãos estão sujas por toda as operações que fizeram para
manter as redes que dão sentido às nossas práticas” (LATOUR, 2019, p. 86).
71
Essa passagem é o fe(i)tiche, lembra-se desse silogismo usado para contemplar a raiz latina de
fato e fetiche, ou melhor, para contemplar a percepção de que a realidade é necessariamente feita,
fabricada e não há contradição nisso. Assim, não precisamos escolher entre construção e verdade,
pois são sinônimos.
72
Embora prática e ação sejam duas palavras que podem ser pensadas como sinônimos, Latour
(2019) parece se referir aquela como inerente às Redes híbridas e a última às Redes homogêneas.
97

devem ser franqueados passo a passo para existir um pouco mais.


Uma corrida de obstáculos, em suma (LATOUR, 2019, p. 179).

Nessa circulação de transcendências, o “Meme da Nazaré Tedesco”


atravessa, tecnicamente, sua própria existência por meio de sua fisionomia
especialmente (ver figura 19). Segundo Henri Bergson (2020), a expressão facial
risível é aquela que suscita algo enrijecido, por assim dizer, congelado na mobilidade
da fisionomia. Tal expressão conserva uma indecisão quanto às nuances possíveis
do estado da alma, aspecto que merece destaque na fisionomia da Nazaré.

FIGURA 19 – NAZARÉ TEDESCO.

Fonte: novela Senhora do destino (2004)

Em toda forma humana, o esforço de uma alma resiste à matéria, comunica


algo em movimento, transmite uma imaterialidade que Bergson (2020) chama de
graça. Porém, quando a matéria se sobressai, burlando as harmonias superficiais da
forma, o caricaturista pode captar essa revolta profunda da matéria e dá aos seus
modelos as caretas que eles mesmos fariam, como se essa forma se revelasse
espontaneamente. Rir-se, portanto, de uma fisionomia que é sua própria caricatura.
“Não se trata mais da vida, mas de um mecanismo instalado na vida e que imita a
vida. Trata-se do cômico” (BERGSON, 2020, p. 824). Uma vez que apresenta essa
98

resistência material que possibilita o desvio da seriedade para o cômico, a fisionomia


da personagem é o seu principal recurso de poder, imitá-la faz rir, e isso é útil para a
trajetória do Meme.
Embora os achados expressivos da Nazaré não sejam risíveis em si,
provocam, de maneira geral, lapsos intuitivos a partir do seguinte problema de
insight: que crenças e desejos ativam ou podem ser ativados por meio da sensação
que é estranhamente compartilhada? Uma resolução rápida, conforme Weems
(2016), provoca prazer, e, tecnicamente, as crenças e desejos (conscientes ou não)
podem se adequar ao achado expressivo, substituindo, ou em algum nível
suprindo, os gestos, o olhar, os passes magnéticos que garantem o contágio nas
relações face a face da multidão de indivíduos. Em outras palavras, ao oferecer
uma forma peculiar para as sensações, ela criou um canal para bombear
crenças e desejos, do exterior para o interior73. Nazaré possui a expressão facial
descrita por Bergson (2020) como cômica: não oferece nada mais do que dá e se
torna mais cômica na medida em que sugere a ideia de alguma ação simples e
mecânica. Onde a matéria consegue adensar exteriormente a vida da alma,
consegue fixar o movimento, ir contra a graça, obtém-se um efeito cômico
(BERGSON, 2020). Exatamente o que a fisionomia da Nazaré é capaz de oferecer,
constituindo, dessa forma, a fonte principal do seu poder, da sua Técnica para
flexibilizar os scripts por resolução antecipada dos conflitos.
Em outros termos, a vilã é um dos seres da Metamorfose, auxilia no
povoamento do mundo digital. Observe a figura 20, note o adensamento na
fisionomia dela. É como se ela congelasse uma sensação e essa sensação ficasse
presa, repetindo-se incessantemente: corresponde a um mecanismo que aciona, por
muitas vias alimentadas por crenças e desejos, o efeito cômico versado por Bergson
(2020) e o achado expressivo compreende a maneira pela qual a ação do Meme
se apropria de tal efeito para anunciar o seu modo de existência, o seu modo de
falar.

73
O foco desta tese é a ação de uma Rede homogênea, não se pretende aprofundar quanto os
demais tipos de Rede, mas, é relevante pontuar que, ao que parece, a Rede híbrida guarnece a
passagem das Redes homogêneas, assim como as Redes homogêneas guarnecem a passagem das
Redes de psicogênese.
99

FIGURA 20 – NAZARÉ TEDESCO NA CADEIA.

Fonte: novela Senhora do destino (2004)

Ademais, o efeito cômico “ganha mais densidade quando podemos relacionar


essas características com uma causa profunda, com certa distração fundamental da
pessoa, como se a alma se deixasse fascinar, hipnotizar pela materialidade de uma
ação simples” (BERGSON, 2020, p. 773). Nazaré apresenta essa distração em suas
atitudes, mais que isso, ela apresenta uma distração moral, como será explicado a
partir da figura 21.

FIGURA 21 – NAZARÉ SENDO PERSEGUIDA APÓS SEQUESTRAR A FILHA DE ISABEL.

Fonte: novela Senhora do destino (2004)


100

A personagem interpretada por Renata Sorrah oferece mais um achado


expressivo por meio da sua angústia fugindo com um bebê nos braços. Bergson
(2020, p. 985) defende que o cômico consta em qualquer reincidente que chama a
atenção para o físico, quando, na verdade, é a dimensão moral que está em pauta: é
“a forma querendo se impor ao fundo, a letra discordando do espírito”. Artifício
pontual da vilã. Na novela, ela até chega a ser presa, mas consegue fugir da cadeia;
e, em virtude da sua obsessão pela maternidade, sequestra a filha recém-nascida de
Isabel, sua façanha consiste em conseguir fazer tal coisa inquestionavelmente
repudiável, mas, mesmo assim, desviar a atenção do que é repudiável para sua
forma física, para a materialização do registro, para o como esse registro pode ser
útil para conversar no mundo digital. Esclareço. Como ela não consegue repetir o
feito de roubar o bebê e sair ilesa, encurralada com a criança nos braços, ela
entende que é o fim, então muda de estratégia:

FIGURA 22 – NAZARÉ PERCEBENDO QUE NÃO TERÁ ÊXITO NO SEQUESTRO DE UM


BEBÊ DESSA VEZ.

Fonte: novela Senhora do destino (2004)

Nazaré ameaça jogar a criança no rio caso se aproximem dela, então, Isabel
tenta conversar e pede sua filha de volta, prometendo não permitir que a façam mal
101

se a criança for devolvida. Diante dessa e de tantas outras maldades seria comum
pensar que não tem como ficar do lado da sequestradora de bebês; porém, se está,
também, diante de uma especialista na flexibilização de scripts e resolução
antecipada de conflitos, dessa forma, ela surpreende por meio do mecanismo rígido
peculiar a sua existência, a sua fisionomia, e diz: “é o fim da linha”, ignorando o fato
de que acabou de sequestrar um bebê, prossegue sua fala: “eles não vão deixar que
essa raposa linda, felpuda, saia sã e salva daqui. Eu te amo, eu te amo mais que
minha própria vida. Isabel, você é o ar que eu respiro, eu vou te dar uma prova
agora do meu amor por você”. A prova do amor por Isabel é devolver o neném e,
sorrindo, jogar-se na ponte.

FIGURA 23 – NAZARÉ DEVOLVENDO O BEBÊ E SE DESPEDINDO ANTES DE SE


JOGAR.

Fonte: novela Senhora do destino (2004)

O mecanismo rígido que surpreende, do qual fala Bergson (2020), é como um


intruso na continuidade viva das coisas, mas constitui um interesse particular para
os indivíduos, porque tal mecanismo oferece certa distração da vida. Nazaré roubou
para si a atenção de todos, mesmo sua ação colocando em risco a vida de um bebê,
além dos outros crimes que cometeu. Em seu percurso, ela deixou um rastro
formidável de achados expressivos, os quais garantem o seu renascimento no
mundo digital, ou melhor, garantem que ela “se torne Meme” e realize o ritual de
possessão de crenças e desejos. Em síntese, esse mecanismo é profundamente
102

explorado nos achados expressivos da Nazaré Tedesco, e isso resulta em uma


espécie de desabafo acerca das imperfeições coletivas ou individuais, mas que
requer uma correção imediata. Com base em Bergson (2020), pode-se afirmar que
essa correção é justamente o riso. Quando a cena cômica é frequentemente
repetida, explica o autor, passa para o estado de categoria, torna-se engraçada por
si mesma independente da situação original, assim, a mesma imagem pode circular
da seguinte forma, por exemplo:

FIGURA 24 – EDIÇÃO FEITA EM RAZÃO DA ALTA DO PREÇO DO ARROZ.

Fonte: reproduzido de O Globo (2020)

Nazaré renasceu no mundo digital porque seu fe(i)tiche é figurar sensações.


Ela costuma ser invocada para manipular scripts e sua Técnica consiste em figurar
sensações na medida em que se aproveita do conflito. Não tem como fugir das
contradições, em razão disso, lida-se com elas, embriaga-se com o prazer de uma
resolução espirituosa, com a sensação de fugir desesperadamente com um alimento
caro devido a alta dos preços e a inflação (figura 24). Ou mesmo fugir com “os
próprios Memes”, ao perceber que a Nazaré também tinha “se tornado Meme” para
alguns internautas estadunidenses, conforme é explicado na figura 25, na qual a
postagem sugere que os Estados Unidos estavam roubando o “Meme brasileiro”.
103

FIGURA 25 – POSTAGEM NA PLATAFORMA DIGITAL TWITTER SOBRE O FATO DA


NAZARÉ TER REPERCUTIDO EM 2016 ENTRE INTERNAUTAS ESTADUNIDENSES.

Fonte: reproduzido de Thaís Stein (2023)

Uma das maneiras de desviar a seriedade de um ato consiste em dirigir a


atenção para os gestos, ao invés de se concentrar no ato em si. Os gestos
correspondem a atitudes, movimentos, discursos, por meio dos quais um estado da
alma se manifesta sem objetivo, por efeito de um impulso. No caso do ato em si, há
intenção, enquanto no gesto há automatismo. Em suma, o gesto seria a expressão
de uma parte isolada da pessoa, separadamente da personalidade, tem algo
explosivo nele, que desperta nossa sensibilidade na iminência de adormecer, ao
passo em que faz o indivíduo voltar a si, impedindo-o de levar a sério o ato, então,
estar-se na comédia (BERGSON, 2020). Mestre nessa arte, Nazaré Tedesco isola
sua personalidade e, dessa forma, pode ser invocada até mesmo por aqueles que
são veementes contra sequestros de bebês.

3.3 O CÔMICO COMO UM MEIO DE GARANTIA DE SUBSISTÊNCIA DO MUNDO


E DO PENSAMENTO NAS CONDIÇÕES DO DIGITAL
104

A partir do pensamento filosófico de Bergson (2020), pode-se afirmar que a


Nazaré, no seu caso particular, é cômica porque segue automaticamente seu
caminho sem preocupação com os demais, em função disso, o riso emerge para
corrigir sua distração e tirá-la do seu sonho. Efetivamente, uma personagem cômica
pode até estar de acordo com a estrita moral, esclarece o autor, visto que é,
sobretudo, a rigidez que causa desconfiança. Por conseguinte, se o aspecto que é
capaz de sensibilizar e comover em uma pessoa for deixado de lado (sequestrar um
bebê, por exemplo), o resto se torna cômico imediatamente, além disso, o cômico
estará diretamente proporcional a porção de rigidez expressa no gesto. Isso implica
dizer que o cômico seria o que há de pronto, já feito na pessoa, e se encontra no
estado de um mecanismo, que, uma vez montado, pode funcionar automaticamente,
sendo, como efeito, aquilo que o indivíduo repete nele mesmo e aquilo que os outros
poderão imitar dele.
Concerne ao tipo de imitação particular ideal para essa sugestão de pessoa a
pessoa que caracteriza a trajetória do Meme que precisa trabalhar na resolução de
conflitos, uma vez que não serve as crenças e desejos, mas, sim, antecede a
eventual opinião que esteja servindo à imitação. Em outras palavras, permite
independência em relação às crenças e desejos que este modo de existência esteja,
contingentemente, mediando, aliás, o achado expressivo é independente até das
circunstâncias que lhe deram origem.
Em suma, a Técnica do falar memeticamente (agregada a Técnica de outros
modos de existência) viabiliza um tipo de articulação entre o mundo e o
pensamento, ambos em construção. O trabalho de tal articulação garante a
subsistência tanto do mundo quanto do pensamento. O Meme, portanto, uma vez
pensado como uma ação dotada de Técnica, cujo efeito reflete na qualidade das
relações entre os indivíduos que povoam o mundo digital, antecede as duas
quantidades da alma, as crenças e desejos, que cavam subjetividade, conforme é
esquematizado na figura 26. Nesta figura, o Meme é descrito como uma Técnica
cultuada à maneira dos modernos, a qual não pode ser confundida com a opinião, e
tal culto garante a travessia das crenças e desejos.
105

FIGURA 26 – CONTÁGIO ENTRE INDIVÍDUOS FISICAMENTE DISTANTES,


SUBJETIVAÇÃO NO MUNDO DIGITAL.

Fonte: autoria própria

Não diz respeito a um tipo de bricolagem intelectual, na qual, segundo


Lévi-Strauss (1989), as combinações exequíveis dependem, por serem empréstimos
da língua, dos significados anteriores e das eventuais adaptações sofridas em outras
situações. De acordo com a visão do pai do estruturalismo, através de signos, os
mitos abrem passagem para o pensamento, exigindo uma “densidade de
humanidade”, em virtude de não se pretende ser totalmente transparente em relação
à realidade. Mas, embora a noção de bricolagem até seja parcialmente útil para a
compreensão do Meme, é necessário fazer algumas ressalvas para libertar a noção
de bricolagem intelectual da visão polarizada que separa o mundo das palavras. É
precisamente tal polarização, enfatiza Latour (2019), que a expressão modo de
existência propõe superar, pois, se existir é necessariamente passar por outros; e se
signo consiste em ocupar o lugar de outro na medida em que o representa então
tudo é signo, seja o objeto cachimbo ou a sua representação feita por René Magritte.

Como se o cachimbo pintado estivesse ao mesmo tempo muito


próximo do cachimbo verdadeiro – ele se parece com um – e muito
distante – não é ele –, enquanto ninguém se surpreende com o fato
de que o verdadeiro cachimbo sólido também esteja precedido pelos
seus antecedentes e seguido pelos seus consequentes que também
estão muito próximos – se parecem, pois ele persiste – e muito
distantes – são as etapas n-1 e n+1 em seu trajeto de existência; e o
106

cachimbo não teria persistido sem passar por elas (LATOUR, 2019,
p. 126).

Em consequência de todos passarem por outros para poder existir74, onde


houver um hiato, há também uma articulação; onde for possível definir antecedentes
e consequentes, existe um sentido; e onde tiver de ser acrescentados os ausentes
necessários para compreender uma situação, há signos75. Bem como é fundamental
abandonar a distinção entre mundo e palavra, é preciso abandonar a distinção entre
coisa e signo. Este último constitui um modo particular de fazer sentido (uma
trajetória): especificamente o da Ficção, capaz de formar uma espécie de semiótica
e de ontologias regionais em prol dos outros modos de existência (LATOUR, 2019).
Assim como a “sociedade” compreende o amálgama de todas as associações, o
“mundo simbólico” é produzido pela superposição de todos os invisíveis vitais ao
sentido, mesmo que a estes tenha sido negada toda a sua objetividade.

Assim como os políticos assumem de maneira demasiado rápida a


ausência de verdade e de falsidade para se comprazerem em um
elogio da astúcia e da violência em nome de seu direito a mentir de
um tipo tão particular [POL], é demasiado fácil para os “artistas”
assumirem a irrealidade de suas criações, comprazendo-se do “falso”
em nome dos “direitos imprescritíveis da imaginação e da criação”.
“Licença poética”, quanta complacência se corre o risco de se dar em
teu nome... (LATOUR, 2019, p. 200).

O autor reitera que o signo não é o sentido, mas, sim, uma das variedades do
sentido advindas da Ficção. Apesar de ser tentador relacionar os signos entre si
como se constituíssem um mundo à parte, um sistema ou uma estrutura, eles são
como organizadores virtuais que fazem todos os existentes vibrarem na direção de
uma forma que se sucederá a precedente. Devem-se reintroduzir, então, os
invisíveis para expulsar as representações. Dizer que os seres da Ficção povoam o
mundo significa que eles vêm a nós e se impõem, porém, com a peculiaridade de

74
Latour (2019) descreve essa condição ontológica de ser-enquanto-outro. Diferentemente deste, o
ser-enquanto-ser busca se firmar em uma substância que assegure sua continuidade e abandone a
experiência de existir para focar no que é sólido e seguro. Por sua vez, o ser-enquanto-outro exige
ser instaurado, não possui garantia acerca de sua origem, situação ou operador, além disso, pagam
sua continuidade com descontinuidade, isto é, as etapas n-1 e n+1 do trajeto de existência.
75
Mas, como já é de se esperar de Latour (2019), é preciso ainda problematizar a noção de signo,
afinal, se todos passam por outros para existir, conforme ele defende, a definição segundo a qual
signo é aquilo que ocupa o lugar do outro, precisaria englobar todos os seres. Isso implica dizer que a
palavra “signo” não pode ser colocada como o oposto da palavra coisa: fim de mais um dualismo.
Para enfatizar esse posicionamento, o autor escolheu a expressão modo de existência, desenvolvida
originalmente pelo filósofo Étienne Souriau.
107

que precisam de nossa solicitude. A particularidade deles consiste no fato de que a


objetividade de suas existências depende da incessante retomada por parte das
subjetividades que não existiriam se esses seres não tivessem dado (LATOUR,
2019).

3.4 ELA FAZ AGIR, ELA AGE

A personagem interpretada pela Renata Sorrah recorre a altivez feminina, não


há nenhum homem no centro de seus objetivos, em vez disso, há ela mesma, uma
autoestima exuberante. Seus achados expressivos transmitem uma densidade
paradigmática, cuja qualidade imagética é ultrapassada para o mundo digital,
entretanto, fazem formas e sensações vibrarem em consonância. Veja a figura 27.

FIGURA 27 – POSTAGEM NA PLATAFORMA DIGITAL TWITTER, CUJA LEGENDA É UMA


DAS FRASES MAIS POPULARES DA PRÓPRIA NAZARÉ QUE EXPRESSA SUA AUTOESTIMA.

Fonte: reproduzido de Samuel Chaves (2023)

Dessa maneira, o achado expressivo possibilita o falar memeticamente:


108

substituindo a influência da ação direta do sentir vivamente o olhar, os gestos, o


magnetismo e as atitudes dos outros indivíduos quando falam, tal como acontece no
contágio por aproximação. A influência desses elementos é substituída pelos
achados expressivos e o contágio pode acontecer à distância, a conversação
poder ser entre indivíduos fisicamente separados, seja para falar sobre Política e
Religião, ou para falar algo de pouca relevância, como mostra, por exemplo, a figura
28.

FIGURA 28 – POSTAGEM CUJA EDIÇÃO EXEMPLIFICA A SUBSTITUIÇÃO DOS


ELEMENTOS DO CONTÁGIO POR APROXIMAÇÃO FÍSICA POR ACHADOS EXPRESSIVOS.

Fonte: plataforma digital Pinterest

Nessa trajetória, portanto, comunicar-se faz soar artisticamente, de maneira


tão proeminente que existe um museu para preservar a memória de “memes”; para
preservar, na verdade, a memória de achados expressivos: o
#MUSEUdeMEMES76. Como é um museu digital, ao passear pelo site, encontra-se a

76
Usando a auto apresentação do #MUSEUdeMEMES: “um projeto desenvolvido sob a
coordenação-geral do professor doutor Viktor Chagas, e que envolve pesquisadores e estudantes do
Laboratório de Pesquisa em Comunicação, Culturas Políticas e Economia da Colaboração (coLAB),
vinculado à Universidade Federal Fluminense, o #MUSEU tem a expectativa de apresentar ao grande
público um conjunto de pesquisas sobre o tema, valendo-se de sua verve como ação de extensão
universitária e simultaneamente como projeto de divulgação científica. Como escritório-modelo ou
agência-escola, o #MUSEU organiza oficinas e seminários acadêmicos, desenvolve projetos de
inovação tecnológica, e, acima de tudo, suscita problematizações indispensáveis” (VIKTOR CHAGAS,
109

seguinte afirmação: “No museu de belas artes dos memes de internet, quase não há
artistas consagrados, já que muitos memes são criações anônimas e coletivas”.
Contudo, sob a perspectiva dos seres da Ficção,

Somos uma parte do seu trajeto, mas a sua criação contínua se


encontra distribuída ao longo do caminho da vida desses seres, a
ponto de nunca sabermos realmente se é o artista ou o público que
faz a obra. Em outras palavras, eles também seriam redes (LATOUR,
2019, p. 202).

Enquanto uma figuração, uma forma ou uma obra (seres da Ficção), é


possível puxar um fio do caminho da vida de Nazaré Tedesco a partir da notícia de
que ela iria voltar à TV quase 20 anos depois. Em 2017, a novela Senhora do
destino foi ao ar novamente na Rede Globo de Televisão, mas, dessa vez, foi
acompanhada, também pelo homo digitalis, o qual demonstrou descontentamento
com os cortes de algumas cenas protagonizadas pela vilã, cuja expectativa de rever
por parte daqueles que assistiram a primeira exibição em 2004, era grande para
muitos. Em uma dessas cenas, Nazaré mata seu amante do momento eletrocutado,
ela joga o ventilador ligado dentro da piscina quando ele ainda está dentro e observa
com satisfação o fim de mais um obstáculo para seus objetivos.

FIGURA 29 – NAZARÉ CONVERSANDO COM O AMANTE ANTES DE JOGAR O


VENTILADOR NA PISCINA COM O AMANTE DENTRO.

Fonte: novela Senhora do destino (2004)

2015, NP).
110

Essa cena não foi ao ar na segunda exibição da novela, causando


repercussão nas plataformas digitais (ESTADÃO, 2017), como é exemplificado na
figura 30.

FIGURA 30 – CONVERSAÇÃO NA PLATAFORMA DIGITAL TWITTER SOBRE OS


CORTES DE ALGUMAS CENAS NA SEGUNDA EXIBIÇÃO DA NOVELA SENHORA DO DESTINO.

Fonte: plataforma digital Twitter

Outro momento da trajetória da Nazaré que garante sua continuidade


enquanto um ser da Ficção aconteceu por meio da tentativa de fuga de um preso em
Honduras (lembrem-se, as associações das Redes híbridas são infinitesimais e
muitas vezes inesperadas). Em 2017, o plano de Francisco Herrera Argueta era sair
da cadeia disfarçado de mulher, ou melhor, o plano dele era fugir “disfarçado de
Nazaré Tedesco”, conforme a situação repercutiu nas plataformas digitais entre
alguns internautas brasileiros. Na verdade, esta relação foi feita pelo público,
Argueta foi condenado por assassinato e é chefe de uma gangue, ele tentou fugir
fingindo ser a visitante Jacinta Elvira Araújo (CORREIO DO ESTADO, 2017). A figura
31 ilustra a comparação entre o detento disfarçado na tentativa frustrada de fuga e a
personagem Nazaré Tedesco.
111

FIGURA 31 – EDIÇÃO PARA EFEITO DE COMPARAÇÃO ENTRE ARGUETA E NAZARÉ


TEDESCO FEITA POR INTERNAUTAS BRASILEIROS.

Fonte: reproduzido de Roberth Costa (2017)

Provavelmente, Argueta nem conhecesse Nazaré Tedesco, mas a relação do


seu disfarce com a personagem foi feita imediatamente por internautas brasileiros.
Além disso, ainda que não no mesmo nível de feitiçaria da vilã, ele conseguiu,
também, dar forma a sensações, como é possível perceber na figura 32.

FIGURA 32 – EDIÇÃO USANDO OS REGISTROS DE ARGUETA COMO ACHADO


EXPRESSIVO PARA SE REFERIR À SENSAÇÃO ACERCA DO TRABALHO DE CONCLUSÃO DE
CURSO UNIVERSITÁRIO.

Fonte: Perfis do Facebook e do Instagram do @estaciodadepressão


112

Sublinha-se com isso, que não estamos desenvolvendo um fenômeno (falar


memeticamente) limitado a uma imagem cômica, a uma legenda ou frase de efeito,
mas, sim, a uma Rede que inverte a inversão. Nazaré tem acesso a um mundo
instável e é capaz de modificar a qualidade da ação e de dissimular sua fabricação
em meio a uma multidão de agentes: ela faz agir, ela age.

3.5 UMA CHAVE ENTRE OUTRAS

A questão reside no fato de que a linha é tênue. Ao mesmo tempo em que se


fabricam essas Redes, elas culminam em um estado similar ao hipnotismo ou
sonambulismo, estado que Tarde (2000) define como social. Para este autor, o
estado social é uma espécie de sonho em ação, no qual os indivíduos têm a ilusão
de serem espontâneos, quando, na verdade, estão imitando na maior parte do
tempo. Entretanto, flagrar tal ilusão permite inovar ou rir. Esta é uma conclusão
possível diante da afirmação de Bergson (2020), segundo a qual a imitação faz rir,
justamente porque a vida bem viva não deve se repetir. Dito de outra maneira, onde
existe uma similitude total, pressente-se o mecânico funcionando por trás do vivo, e
essa inflexão da vida seria pontualmente a causa do riso, ela corresponde a
sobreposição do mecânico sobre o vivo, que exige um sustar: a imagem se
centraliza e canaliza a imaginação por direções divergentes.
Na trajetória do Meme, esse sustar é crucial, consiste em um parar e
interromper o fluxo da positividade no mundo digital. Corresponde a se deparar com
um achado expressivo por meio do qual é possível se arriscar levando a
mensagem que encanta, magnetiza ou hipnotiza, caracterizando estados sociais.
Entretanto, o Meme só é o Meme quando consegue flexibilizar os scripts por
resolução antecipada do conflito e, assim, enviar a sutil mensagem do contágio, a
mera tentativa de fazer isso não é Meme, é sua condição de infelicidade; já o cômico
é outra coisa, mas é bem útil, porque ajuda a sinalizar que o Meme está sendo.
Além do mais, o Meme coincide a apenas uma das chaves de alteração do ser,
lembre-se, essa perspectiva está do lado oposto da noção clássica de categoria, que
determina formas diferentes de falar sobre o mesmo ser, ao invés disso, Latour
(2019) orienta a determinar quantas formas diferentes o ser precisa passar por
outros.
113

De maneira geral, o Meme é uma das formas de se alterar, de ser outro, que
se soma a tantas outras formas de se alterar e, desse jeito, pode continuar a ser o
mesmo. Consoante a Bergson (2020), a linguagem só produz efeitos risíveis porque
é obra humana, modelada sob as formas do espírito, por isso, é possível sentir que
algo da vida humana vive nela. Seria a forma de vida prática dos regimes de
enunciação da qual fala Latour (2019)? Ainda para Bergson (2020), se a vida da
linguagem fosse completa e perfeita, incapaz de se dividir em organismos
independentes, ela escaparia ao cômico. Sob tal enfoque, é plausível concluir que o
cômico no mundo digital se sobressai pelo ápice da asfixia das formas de vida
prática do discurso, reivindicando o reconhecimento dos serviços e valores
prestados pela linguagem à fabricação da realidade. Em síntese, se o despertar de
uma ilusão resulta no riso, sorrir no mundo digital é predominantemente o efeito de
não poder fugir das contradições, do esforço surreal de ter que corrigir a realidade.
Nesse mundo, é muito mais difícil garantir a ilusão de que a realidade está pronta,
dada, plena e esconder os fe(i)tiches.
Esse riso é canalizado pela centralidade que o Meme assumiu cuja
consequência mais fascinante consiste na evidenciação da importância do
infinitesimal para os acontecimentos. Tal façanha decorre do fato de que o Meme
exige do pensamento que ele acesse as ideias a partir de um memorial precedente
acumulado, o mais sintético possível (tem-se pouco tempo, assim, quando mais
comprimida a mensagem, mais eficiente na entrega ao destinatário correto), porém,
quanto mais sintético e acumulado for este memorial, mais próximo do absurdo e da
ausência de sentido. Por esse caminho, as contradições se multiplicam de maneira
extraordinária e lidar com elas é o único caminho. Então, se a intenção é reagregar o
social, é necessário se especializar em resolver conflitos (e rápido), sendo os
achados expressivos, uma das chaves de acesso.

3.6 O MEME NÃO É MODERNO

É certo que os modernos estabelecem fe(i)tiches por todos os lados, e que


são especialmente desafiantes no mundo digital, afinal, estão distantes fisicamente e
com pouco tempo, sempre correndo para dar conta dos acontecimentos. Bem como
os ditos primitivos, fabricam ídolos que são transformados em verdadeiras
divindades, sim, a Nazaré é uma entidade, artificial e real, ao mesmo tempo, ou
114

melhor, ela fala e faz falar. Os modernos, tanto quanto aqueles que chamam de
ingênuos porque fabricam e reconhecem a existência de suas entidades, fazem o
mesmo, a diferença reside na insistência em separar o que construíram do que,
teoricamente, veio de outro lugar: da dimensão simbólica, do mundo da imaginação.
Insistem que não precisa sustentar tudo isso, pois simplesmente estaria lá, dado,
pronto, feito. Mas, a questão cara a Latour (2002) é: quem está enganado a respeito
da origem da força? Como se pode fabricar ídolos a partir das próprias fantasias e,
mesmo assim, imputar essa força ao que foi fabricado?
Frente à eficácia do ídolo, não adianta dizer que não é nada, porque já
começou a agir e a deslocar a ação, isto é, o fe(i)tiche é capaz de inverter a origem
da força. Aquilo que não é capaz de fazer nada sem a ação dos indivíduos já fez e
se inseriu na disputa incomensurável acerca da origem da ação. Em termos
precisos, a Nazaré Tedesco não está na imaginação do homo digitalis, ou em uma
identificação do seu espírito, ela está circulando, ela existe. Sendo assim, o Meme
não é moderno, uma vez que compreende ao movimento do social, faz parte do
esforço de reagregar o social, do esforço de mediação entre o mundo das coisas e o
mundo das palavras, entre o objeto e o sujeito, entre a exterioridade do indivíduo e a
interioridade do indivíduo, entre a matéria e o espírito, entre a prática que sustenta a
realidade e a teoria sobre a constituição da realidade. Aliás, o Meme faz a mediação
de mais um binarismo criado pelos modernos: ele (não sozinho, é claro) faz a
mediação entre as interações nas quais o contágio acontece por aproximação física,
a chamada vida offline; e as interações nas quais o contágio acontece à distância,
chamada de vida online.
E mais, para garantir o delineamento da opinião ou do que importa ser
imitado, o Meme é capaz de subjugar os demais regimes de enunciação: enviando
os seres da Ficção para torcer a realidade e, deste jeito, multiplicar os mundos. Isso
implica dizer que, ao encontrar resistência de outras opiniões (sobre Política ou
sobre Religião especialmente) é possível, neste mundo, cultuar os seres do Meme
para “resolver” as contradições, com a finalidade de garantir uma aparente
continuidade, ignorando, muitas vezes completamente, o estado das coisas
inerentes às Redes híbridas em prol das sensações, do sentimento entorpecido
pelas crenças e desejos.
Por fim, a especialização de tais contradições na trajetória do Meme cria a
ponte para um cruzamento poderoso com outro regime de enunciação tão
115

sofisticado e mal falado quanto o que constitui o objeto desta pesquisa: a Política.
Esse cruzamento é versado no próximo capítulo, não mais focando em evidenciar o
Meme como um regime de enunciação, mas, sim, tratando-o como tal em
associação com a Política.
116

4. CAPÍTULO 4 – VIBRAÇÃO DAS FORMAS ARGUMENTATIVAS

O que é a sociedade? Do nosso ponto de


vista, poderíamos defini-la como a posse
recíproca, sob formas extremamente
variadas, de todos por cada um.

(Gabriel Tarde)

O argumento desta tese é que o Meme é um regime de enunciação, portanto,


faz parte do processo de reagregar o social. Mas, o objetivo deste capítulo é mapear
o cruzamento do Meme com outro regime de enunciação escolhido por ser
considerado, também, um dos mais eminentes na eloquência do mundo digital: a
Política. A proposta, não é mais focar em um hiato, mas em dois hiatos e na
articulação de duas ações para preenchê-los: o hiato relativo a impossibilidade de
saber a temperatura dos interesses apaixonados, particular ao falar memeticamente;
e o segundo hiato relativo a impossibilidade de ser representado ou obedecido,
particular ao falar politicamente (ver o quadro 8).

QUADRO 8 – ENCARGOS DA POLÍTICA E ENCARGOS DO MEME


Regime de Hiato Trajetória Condição de Seres a Alterações
enunciação felicidade/inf instaurar
elicidade

Política Impossibilidad Círculo Retomar e Grupos e Delimitar e


e de ser protetor da estender/ figuras das reagrupar.
representado continuidade. suspender ou assembléias.
ou obedecido. reduzir o
círculo.

Meme Não saber a Flexibilizar os Oferecer uma Curtidas, Dar


temperatura scripts por via para ser reposts, quantidade
dos interesses resolução imitada, emojis, social,
apaixonados. antecipada oferecer um comentários contagiar.
dos conflitos. pensamento favoráveis.
em comum/
Opor-se,
conflitar.

Fonte: adaptado de Latour (2019)


117

Ao focar na associação dessas duas ações77, avança-se para uma nova


situação que depende da condição de felicidade de ambas, isto é, da articulação das
duas Redes, cujo efeito nos agregados acontece de maneira um pouco mais
complexa. Fazer instalar um interesse apaixonado, oferecer um exemplar para ser
imitado, sustentar um fim para poder contar uma história (ver novamente a figura 18)
são efeitos de ações discursivas que não duram sem o esforço crucial e incessante
de delimitar e reagrupar. Em razão disso, é importante para esta pesquisa, ainda,
mencionar o modo de existência da fala política. Em consonância com a
preocupação tardeana e latouriana, segundo a qual o social não deve explicar nada,
em vez disso, é o social que deve ser explicado, a fala política parece ser o regime
de enunciação que refuta mais radicalmente qualquer indício de existência
confirmada dos grupos.
Como vem sendo exaustivamente pontuado a partir das ações discursivas
abordadas até aqui, os grupos estão sempre a se fazer e refazer. O esforço em cada
regime de enunciação requer a continuidade de seu efeito específico. E, até mesmo
o modo de existência da Política, com toda a exuberância de sua ação, teve que se
adaptar ao novo tipo de contágio inerente ao mundo digital. A representação e a
obediência requerem dos grupos e líderes que meçam a temperatura dos interesses
apaixonados, mas, como fazer isso e, simultaneamente, preservar a tonalidade
específica do modo de existência da Política? Antes de tudo, se se pretende proferir
a palavra política tem que levar em consideração que os indivíduos estão
fisicamente separados, ademais, tem pouco tempo para retomar e estender o círculo
protetor do grupo. Nessa atualização de percurso, a trajetória da Política se apropria
dos seres do Meme78, a fim de delimitar o grupo. Este capítulo se dedica justamente
a essa apropriação.

4.1 O CONFLITO COLETIVO DO MUNDO DIGITAL

Conforme está desenvolvido no capítulo 2, o humor faz parte, em associação,


da trajetória do Meme no processo de adaptação do pensamento à ampliação das

77
Em síntese, os capítulos precedentes afirmam que os interesses apaixonados podem ser medidos
pelos seres do Meme, as curtidas, os comentários favoráveis, os reposts, e, objetivamente sentidos
no crescimento ou alargamento do grupo, no aumento da quantidade social do grupo. Neste capítulo,
importa saber por meio de qual articulação os interesses apaixonados podem ser delimitados e
desenhar ou descrever grupos.
78
Ou seria ao contrário, os seres do Meme se apropriam dos seres da Política?
118

contradições resultantes da própria ampliação das Redes, links ou conectores, como


preferir chamar. Diz respeito a um percurso que visa manter certa coesão psíquica,
e, por conseguinte, coesão do grupo. Porém, este percurso compromete a coesão
entre os demais regimes discursivos, uma vez que o Meme compromete, antes, o
caráter sério da vida. Henri Bergson (2020) afirma que o caráter sério da vida é
resguardado pelo sentimento de liberdade (ponto nodal do cruzamento
Meme-Política), ele vem dos afetos nutridos, das paixões cultivadas, das ações
sobre as quais foram deliberadas, ações que são evitadas ou executadas, isto é, a
seriedade advém daquilo que é propriamente do indivíduo e confere à vida um tom
dramático e até grave. Mas, indaga Bergson (2020), o que seria capaz de converter
tal seriedade em comédia?
No cruzamento que interessa a esse capítulo é pertinente questionar,
também, o que seria necessário para tornar a coerção mais sofisticada e menos
aparente? Para a primeira pergunta, Bergson (2020) dá uma resposta categórica:
basta imaginar que a liberdade é uma ilusão, que, na verdade, há algum nível de
manipulação dos sentimentos. Já para a segunda questão, pode-se buscar uma
resposta em Han (2018a): para tornar a coerção mais sofisticada e menos aparente
basta explorar a própria liberdade, porque explorar alguém contra sua própria
vontade não é eficiente, haja vista que torna o rendimento baixo. De acordo com
Han (2018a), a liberdade no digital se mostra episódica, um estar entre partes que
conectam formas de vidas, ou melhor, o sujeito não se vê como submisso, mas, sim
como projetos livres que se reinventam ininterruptamente.
Seria justamente essa passagem do sujeito ao projeto, que reflete o
sentimento de liberdade, pois, tal projeto não expressa mais uma figura de coação,
expressa um meio mais eficiente de subjetivação e sujeição. Trata-se do “eu” como
projeto que acredita ter sido liberto das coerções externas, contudo, agora se
submete a coações internas, porque assumiu obrigações de desempenho e
otimização. Abreviadamente, o paradoxo provocativo exposto por Han (2018a)
reside no fato de que a própria liberdade se converte em coação, ou mais, “a
liberdade de poder (Konnen) produz até mais coação do que o dever (Sollen)
disciplinar, que expressa regras e interditos. O dever tem um limite, o poder não”
(HAN, 2018a, p. 10). Dessa forma, ele versa sobre um conflito social importante para
o cruzamento entre Meme e Política: as relações entre o neoliberalismo e a vida
psicológica dos indivíduos.
119

Nestas relações, o sujeito explora voluntariamente a si mesmo, uma vez que


o neoliberalismo explora tudo aquilo que pertence às formas da liberdade, bem
como as emoções, o jogo e a comunicação. Se os humanos vivem em um mundo (o
digital) no qual experimentar a liberdade absoluta prometida culmina no seu inverso
aparente, a resolução dos conflitos na ação do Meme não recorre ao humor por
acaso, o conflito é muito mais profundo do que as eventuais contradições
particulares da opinião dos grupos, o conflito a se resolver por meio do Meme
advém, especialmente, das próprias condições desse mundo, que é objeto de
reflexão caro a Han (2018a, p. 19,) e pode ser resumido nas seguintes palavras: “a
liberdade e a comunicação ilimitadas se transformaram em monitoramento e
controle total. Cada vez mais as mídias digitais sociais se assemelham a pan-ópticos
digitais que observam e exploram impiedosamente o social”.
No mundo digital, portanto, o sujeito, conscientemente ou não, precisa
resolver o conflito de estar entre uma cena séria, ou até mesmo trágica, e a
sensação de que seus sentimentos estão sendo manipulados. Justamente a
conversão da liberdade e comunicação ilimitada em controles psicológicos. No
esforço prático de resolver os conflitos dessa ordem79, o efeito do humor na mente
consiste em inundar o cérebro com substâncias químicas que causam algum nível
de prazer ou riso, a partir da tensão do próprio conflito; já o seu efeito nas relações
sociais remete ao alargamento da conversação (por meio da flexibilização dos
scripts) e a resolução de conflitos entre as sensações e o pensamento.
Quer dizer, o mundo digital promete liberdade e comunicação ilimitada;
promete, em seguimento, seriedade nas projeções que os sujeitos fazem para si,
seus projetos de vida; mas, quando tal liberdade deixa rastros da sua eficiência para
coagir e manipular o indivíduo que assumiu obrigações de desempenho e
otimização, de alguma forma é preciso manifestar o sentimento ou sensação de
ilusão; e a forma mais proeminente de fazer isso consiste em recorrer ao humor, na
medida em que é possível surpreender o mecanismo rígido na continuidade das
coisas humanas – achados expressivos em potencial – úteis para resolução
antecipada dos conflitos e flexibilização dos scripts. Assim, a seriedade se converte
às vezes de maneira até constrangedora, no cômico, conforme é esquematizado da
na figura 33.

79
Retomar tal esforço no capítulo 2, o qual versa sobre a trajetória do Meme.
120

FIGURA 33 – CONDIÇÃO CONFLITUOSA DO MUNDO DIGITAL.

Fonte: autoria própria

Como já foi dito, é pela capacidade de um script se conectar com outros


scripts que é possível redimensionar um fenômeno social ou acontecimento
qualquer, ou um grupo (LATOUR, 2019). O mundo digital resguarda um acervo
incomensurável de registros que circulam e é matéria prima para a ação do Meme;
este, uma vez que se apropria do mecanismo rígido que surpreende a vida para
flexibilizar a agregação de scripts por meio da resolução antecipada de conflitos,
possui uma trajetória fundamental para a trajetória da Política.

4.2 DA MULTIDÃO A ESPÍRITOS SUFICIENTEMENTE SEMELHANTES

Mapeado por Latour (2004), um dos meios mais delicados de fazer os grupos
existirem é denominado de falar politicamente. Trata-se de cercar, apreender,
assenhorear os grupos, de reproduzi-los pelo exercício sempre recomeçado, pelo
laço, pelo envolvimento, pela curva da sua ação. Todo agregado social, seja qual for,
precisa de um trabalho de (re)apreensão que exige uma palavra curva, hábil na
121

trajetória de traçar e retraçar, provisoriamente, seu invólucro. Logo, não existe grupo
sem reagrupamento, sem uma palavra mobilizadora, ou melhor, na ausência desta
enunciação, não há agregado social pensável, visível e unificável.

Uma família, um indivíduo mesmo, uma empresa, um laboratório, um


atelier, um planeta, um organismo, não tem menos necessidade
desse regime que um estado ou uma nação, que um Rotary Club,
uma orquestra de jazz ou um bando de marginais. Para que um
agregado se delineie, se redelineie, é preciso uma dose particular de
política que lhe seja adaptada (LATOUR, 2004, p. 20).

Isso implica dizer que limitar a fala política à forma oficial de vida pública é o
mesmo que impedir a existência de qualquer outro agregado, considerando-se que,
ao fazer isso, somente o Estado e a nação poderiam existir. Limitaria-se, assim, a
enunciação à esfera política, sem oferecer meios aos demais grupos para se
manterem existentes. Para tornar visualmente compreensível, Latour (2004)
apresenta um esquema acerca da trajetória desse regime de enunciação: o círculo
político.

FIGURA 34 – CÍRCULO POLÍTICO PROTETOR DA CONTINUIDADE DOS GRUPOS:


TRAJETÓRIA DO REGIME DE ENUNCIAÇÃO DA POLÍTICA.

Fonte: reproduzido de Latour (2004, p. 21)

Escandaloso se for analisado pelo ponto de vista da retidão, da transparência


de informação e da exatidão, o círculo da Política tem como condição de felicidade,
122

por meio de um primeiro trabalho (chamado de representação no esquema da figura


34), transformar os “muitos” em “um”, e, por meio de um segundo trabalho,
transformar o “um” em “muitos” (o que é chamado de obediência no esquema da
figura 34, ou também, pode-se chamar de exercício do poder). Note-se que
representação e obediência correspondem à mesma questão colocada duas vezes,
porém, em momentos diferentes do mesmo movimento. Seria na contemplação
desse círculo, pelo qual é expressa a busca antiga por autonomia, que a liberdade
pode ser alcançada, uma vez que, se a fala for capaz de realizar o círculo por inteiro,
não existirá ordem recebida (semicírculo da direita: o “um” se transformando em
“múltiplo”) que não fosse, simultaneamente, produzida por aqueles que as recebem
(semicírculo da esquerda: o “múltiplo” sendo transformado em “um”80).
Em síntese, a liberdade seria atingida quando a parte do alto e a parte de
baixo da figura 34 são ocupadas, ao mesmo tempo. A Política, portanto, é
tautológica, não porque é constituída por banalidades, mas, sim, porque diz sempre
a mesma coisa duas vezes em um recomeço incessante, aliás, desse insistente
recomeço do movimento circular depende a própria continuidade do grupo. Na
construção desse esquema, Latour (2004) toma como base a concepção clássica,
segundo a qual, é-se auto-nomo (oposição a hetero-nomo) quando a lei (nomos)
reflete, concomitantemente, aquilo que se produziu por expressão da vontade
própria, e aquilo que se conforma como manifestação da sua docilidade. Caso tal
coincidência não ocorra, sai-se do estado de liberdade para o de dissidência, de
revolta, de insatisfação ou de dominação. Dessa maneira, “a emancipação mais
entusiasmante e a dependência mais abjeta não se contrapõem” (LATOUR, 2004, p.
22), na verdade, elas qualificam o movimento, a repetição, o percurso ao longo do
círculo.
Todavia, há uma grande contradição nesse esquema, haja vista que a
“multidão” se torna “um” antes que o “um” se torne “multidão”, em função disso, a
autonomia é impossível: tanto na ida quanto na volta, há heteronomia. Efetivamente,
a autonomia ou obedecer a sua própria lei, acoberta o trabalho de Metamorfose, de
tradução, em suma, da representação; acoberta, também, a obediência, pois, aquele
que fala, necessariamente, deve trair os representados. De outra maneira, não teria
como transformar a “multidão” em “unidade”, mas, em troca, aqueles que obedecem

80
O “um” compreende o grupo constituído temporariamente por todos que foram alinhados pelo
círculo político.
123

devem transformar a ordem recebida, não apenas repeti-la. Isso significa dizer que o
círculo somente se fecha, se houver uma dupla traição, caso contrário, se existir
fidelidade, transparência exata de informação, o círculo jamais será completado,
porque é um equívoco tomar a palavra política verídica no sentido da informação
(LATOUR, 2004).
O paradoxo da fala política reside, então, na impossibilidade de autonomia
sem esta dupla traição. Neste aspecto, torna-se compreensível o repúdio causado
nas pessoas razoáveis diante do fazer Política, por mais valiosa que a liberdade
seja, ela requer um percurso defeituoso. O sentimento depreciativo dirigido à Política
vem justamente do fato de a autonomia e a liberdade encobrir o trabalho da
composição, da traição, da Metamorfose, “a autonomia como resultado esconde a
horrível cozinha da heteronomia” (LATOUR, 2004, p. 23). Mas, questiona o autor, e
se recusassem, na prática, esse trabalho desprezível e em vez da palavra curva,
somente usasse a palavra reta, a transparência, a retidão e a imediatez? E se fosse
decidido exigir dos políticos que “falassem verdadeiro”, repetissem fielmente o que
dizem os seus mandantes? A resposta é categórica: não existiriam grupos. A
“multidão” não teria como deixar de ser “multidão”, não se faria mais do que repetir
fielmente diante dos critérios da informação, mas, falsamente diante dos critérios da
Política.
Em primeiro lugar, partindo do falar memeticamente, a multidão está sendo
sugestionada a todo o momento, por tendências e contratendências, oferecendo vias
(opiniões) a serem imitadas, e, ao conseguir enviar a sua mensagem (e constituir um
pensamento em comum), então, o círculo político pode iniciar. Tome nota de que o
Meme apenas garante as condições para resolver os conflitos inerentes à “multidão”,
quer dizer, ao público, mas, essa resolução não pode se sustentar por muito tempo,
por isso; em segundo lugar, a “multidão precisa ser retomada incansavelmente,
afinal, a mensagem é pontual, “pensamos igual sobre isto ou sobre aquilo”, porém,
com o intenso fluxo de scripts, talvez não “pensemos igual sobre quilo outro”. Falar
politicamente, portanto, visa delinear, mesmo que de maneira um tanto
desconfortável, um grupo, mantendo nele o máximo de indivíduos possível. E,
quanto mais indivíduos se almejam, maior será o desafio de flexibilizar os scripts por
resolução antecipada dos conflitos.
Como o movimento precisa ser ininterrupto, sob pena de reduzir o grupo, a
fala política se articula com a fala memética na medida em que precisa engendrar
124

novos scripts81. Afinal, o círculo só pode ser retomado, ao passo em que ganha
quantidade social. No mundo digital, há uma maneira peculiar de medir a quantidade
social, como já foi dito, os seres do Meme (curtidas, reposts, comentários positivos)
tentam mensurar os números exteriores das duas quantidades interiores (crenças e
desejos). Assim, é o conjunto dessas forças interiores que delimitam grupos e
figuras de lideranças, ou seja, estes passam a serem reconhecidos por suas pautas
que se repetem, por meio de certo grau de coesão psíquica. Ademais, o cruzamento
do Meme com a Política (obviamente salvaguardando os efeitos de outros regimes
enunciativos) culmina na definição de grupo de Gabriel Tarde (2000): uma profunda
assimilação mental, a espíritos suficientemente semelhantes para compor um
agregado.

4.3 HIATOS: A IMPOSSIBILIDADE DE SER REPRESENTADO; NÃO SABER A


TEMPERATURA DOS INTERESSES APAIXONADOS

Latour (2004) ressalta que a especificidade do círculo político não reside no


fato dele traçar um círculo, está, sim, na impossibilidade de sua ação perfeita.
Entretanto, essa impossibilidade é resolvida, basicamente, pela repetição obstinada
e insistente do trabalho de representação. Então, as características fundamentais do
verdadeiro porta-voz não é ter razão, ser mais obedecido, enxergar mais longe, é,
antes, aquele capaz de percorrer, bancando os novos custos por completo, o
movimento da “multidão” à “unidade”, da “unidade” à “multidão”, verificando (na ida e
na volta) a inexistência de relação direta entre “multidão” e “unidade”, cuja distinção
consta na suspensão do movimento de repetição e seu recomeço. Mas, esse
porta-voz começa a mentir sempre que interrompe o movimento para explorar um
tipo de capital político a fim de ser obedecido pelo simples fato de ser o porta-voz da
“multidão”.
Os critérios de verdade e mentira do modo de existência da Política não está
situado no conteúdo das palavras pronunciadas82, está na capacidade de retomar e
estender a tarefa de fusão, de tradução, de Metamorfose que “fecha” o círculo
protetor da continuidade (LATOUR, 2004). Este círculo é auxiliado pelo Meme no

81
Aqui, entra outro regime de enunciação na associação discursiva, a Organização, mas, infelizmente
não é explorado, dado que o objetivo desta tese é mapear a ação do Meme especialmente.
82
O conteúdo das palavras diz respeito ao modo de existência da Referência, ao regime discursivo da
ciência.
125

processo de delinear os números exteriores das duas quantidades interiores


(crenças e desejos), os seres fe(i)tiches do Meme são como termômetros, por assim
dizer, para a temperatura dos interesses apaixonados, em outros termos, medem o
combustível da ação Política e impulsionam o círculo. É a força das crenças e
desejos que é capaz de equilibrar o que é impossível de equilibrar, e harmonizar o
que é impossível de harmonizar.
Nas crenças e desejos consiste o motor da flexibilização dos scripts e da
resolução antecipada dos conflitos. Tal força “distrai” os indivíduos para que deixem
a porta relativamente aberta, receptivos à mensagem contagiosa, prazerosa porque
solicita aspectos daquilo que está em algum nível adormecido nos indivíduos e que,
eventualmente, irá conferir prestígio a algum líder. Tarde (2000, p. 104) afirma que o
prestígio remete a existência de uma força potencial de crença e desejo imobilizada
em diversas recordações, adormecidas, embora presentes, as quais o hipnotizador,
em circunstâncias particulares, é capaz de acessar. A trajetória do Meme, neste
processo, corresponde justamente à hipnose capaz de excitar a temperatura
dos interesses apaixonados, e, realiza um passe para a fala Política preencher
a possibilidade de representação. Dois regimes de enunciação em associação.

4.4 TRAJETÓRIAS: A FLEXIBILIZAÇÃO DOS SCRIPTS POR RESOLUÇÃO


ANTECIPADA DE CONFLITOS; CÍRCULO PROTETOR DA CONTINUIDADE

O prestígio, portanto, é muito semelhante ao hipnotismo, "tem-se prestígio


sobre alguém na medida em que se responde à sua necessidade de afirmar ou
querer qualquer coisa atual" (TARDE, 2000, p. 104). O hipnotizador não necessita
falar para ser acreditado e obedecido, é suficiente o menor ou mais imperceptível
gesto. Trata-se da articulação de dois regimes de enunciação, o Meme e a Política,
cujos efeitos se somam e formam uma situação mais complexa: a garantia de que a
existência do grupo será um pouco mais estendida e da imitação irrefletida,
quer dizer, da polarização temporária da alma.

4.5 CONDIÇÕES DE FELICIDADE: OFERECER UMA VIA A SER IMITADA;


RETOMAR E ESTENDER O CÍRCULO PROTETOR DA CONTINUIDADE

Diante da imitação irrefletida, é compreensível que se confunda a mensagem


126

com o mensageiro, ou melhor, que alguns chamem a ideia ou opinião veiculada em


uma postagem qualquer em plataformas digitais de Meme. Porém, diz respeito a
tentação do que Latour (2019) denomina de comunicação Duplo Clique, mais um
modo de existência discursivo caro para os modernos, cujas práticas limpam os
rastros pelo caminho das trajetórias dos demais regimes discursivos. A questão é
que, mesmo assim, não pode substituir o modo de vida prático que faz à realidade
correr o risco de existir, em outras palavras, sem o falar memeticamente e o falar
politicamente, não seria possível guarnecer a polarização temporária de uma
ideia, uma opinião ou uma compreensão.

4.6 SERES FE(I)TICHES: GRUPOS E FIGURAS DAS ASSEMBLÉIAS; CURTIDAS,


REPOSTS, COMENTÁRIOS FAVORÁVEIS

Autophuos é a expressão grega usada para definir o movimento incessante e,


teoricamente, impossível do círculo político, cuja tradução pode ser auto
engendramento. Essa expressão grega está intimamente ligada à autonomia, de
maneira que, a primeira somente se realiza por meio da segunda. Nessa
perspectiva, a servilidade constitui um dos valores que podem assumir a dupla
Metamorfose esquematizada na figura 34, denominada atualmente de demagogia ou
populismo. Além da autonomia, há outros valores que consentem a dupla
transformação dos “muitos” em “um” e do “um” em “muitos”, os quais Latour (2004,
p. 28-29) sublinha duas como fontes do horror suscitado pelo autophuos.

a primeira, normal e positiva, vem do barulho contínuo da ágora, do


tumulto da multidão, da dificuldade para escutar tantas vozes, de se
fazer entender e de obedecê-las, de ser obrigado a decidir em tempo
real, na grandeza de tamanho verdadeiro, em escala um, sem
conhecimento seguro das causas e conseqüências –
constrangimentos particulares à fala política, sempre sublinhados
pelos sofistas (Cassin, 1995). Este horror, constitutivo, é conhecido
pela maior parte dos políticos, mas eles jamais falarão dele
publicamente por causa do desprezo que lhe dirigimos. É preciso
esperar que eles se recolham ao sossego de seus escritórios, para
que captemos parcelas deste admirável saber.
A segunda fonte, inteiramente diferente, provém da comparação
artificial que imaginamos entre a confusão da ágora e a calma serena
da conversação policiada, que conduz a uma decisão pensada pela
escuta dos interesses divergentes fielmente representados – como
as condições ideais de comunicação inventadas por Habermas. Esta
segunda fonte, e somente ela, é que é responsável pelo desprezo
127

que endereçamos àqueles que se dedicam à algazarra da proferição


política. Desde Sócrates, com efeito, fingimos crer que os políticos
poderiam fazer outra coisa que falar atravessado e trair o que
quiserem, como se existisse em alguma parte uma fonte miraculosa
de transcendência: a razão permitindo levar um pouco de bom senso
ao tumulto da ágora. Por esta operação, que visaria oficialmente a
“elevar o debate”, a “tornar razoável”, a “permanecer entre gente
racional”, não se pretende mais, na verdade, que eliminar a
transcendência particular, autóctone, arriscada do autophuos.

No mundo digital, os barulhos da ágora, o tumulto da multidão, a dificuldade


para escutar tantas vozes, de se fazer entender e de obedecê-las, de ser obrigado a
decidir em tempo real acontece de forma diferenciada, converteu-se no que Han
(2018a) denomina de pan-óptico digital, no qual os indivíduos se comunicam
intensamente e se expõem por escolha própria, afinal, faz-se uso intensivo da
liberdade. Desse jeito, esse mundo só é possível graças à autorrevelação e à auto
exposição sem coação. A vigilância é trabalho dos próprios internos que entregam
seus dados voluntariamente, e a transparência é reivindicada em prol da liberdade
de informação, mas, efetivamente, corresponde a um dispositivo neoliberal que, para
produzir mais informação, impetuosamente desnuda tudo, pois, quanto mais
informação e mais comunicação, mais produtividade, aceleração e crescimento.
Nessa paisagem, afirma Han (2018a), a informação é uma positividade que carece
de interioridade, por isso, pode circular independentemente do contexto.
Entretanto, em meio à circulação de informação, os indivíduos se deparam
com os achados expressivos83, quer dizer, a carência de interioridade tropeça na
flagrante ilusão de liberdade, no mecanismo rígido que interrompe o seguimento vivo
dos acontecimentos, diria Bergson (2020), o qual passa a ser repetido com o
propósito de converter tal ilusão em alguma forma de escape, seja a ignorando em
nome da coesão do grupo ou atacando por meio de uma contra tendência. Mas, isso
deve ser feito prazerosamente, pelo caminho da flexibilização dos próprios conflitos,
explorando os conflitos igual a liberdade é explorada no pan-óptico digital.
Trata-se da inversão da inversão: a conversão da liberdade em coação é
seguida pela conversão da coação em comédia. Esse processo é protagonizado
pelos grupos e figuras das assembléias em associação com as reações por meio de
curtidas, reposts, comentários favoráveis. A dupla traição do círculo político
acontece na ida (transformar os “muitos” e “um”) como promessa de uma liberdade

83
Versados no capítulo 1.
128

que é flagrada, ou de algum modo, pressentida como ilusória; e, na volta


(transformar o “um” em “muitos”), ri-se do esforço de uma tarefa absurdamente
necessária, pois,

Certamente, comparada às admiráveis transcendências prometidas


pela razão reta, a minitranscendência da política é bastante tênue,
mas como a primeira não é mais que uma ilusão, a luz que projeta a
segunda satisfaz amplamente na iluminação do caminho. A
minúscula diferença entre tautologia e autophuos basta para
assegurar a lenta destilação da autonomia (LATOUR, 2004, p.
29-30).

Ou seja, a verdadeira ilusão é acreditar que existe acesso sem mediação, que
um acontecimento social, um grupo ou uma situação pode existir sem um trabalho
intenso de articulação entre Redes. O “estar sendo” um líder, um grupo aceito e
com certa coesão psíquica, correspondem a rituais que possuem Técnicas
capazes de permitir a articulação entre o mundo e o pensamento. O aspecto
fundamental disso reside no fato de que recorrer a essas Técnicas, dadas as
eventuais adaptações, é imprescindível para fabricar qualquer mundo, seja o
subterrâneo idealizado por Tarde (2014), seja o digital, em experimentação pela
sociedade atual.

4.7 TRAJETÓRIAS: DELIMITAR E REAGRUPAR; DAR QUANTIDADE SOCIAL,


CONTAGIAR

Uma pergunta relevante a ser respondida é: faz sentido falar de


intencionalidade a partir da Teoria Ator-Rede? Se uma ação é influenciada e
influencia uma multidão de atores, pode-se concluir que, quanto mais o curso da
ação segue, menos espaço para as intencionalidades particulares, não é que não
importem ou não tenham espaço, é que se somam, agregam-se e, dessa maneira,
tornam-se outra coisa. De acordo com Tarde (2003), ao colocar um número
determinado de elementos em certas condições de relações, um novo ser
(provavelmente é mais apreensível falar um novo “estar sendo”) que ainda não
existe, passa a existir. Contemplando as palavras do próprio autor:

Colocando alguns elementos mecânicos de número determinado em


certas relações mecânicas, um novo ser vivo ainda não existente
129

surge repentinamente e se acrescenta ao seu número; mais


rigorosamente, ainda devemos confessar que, aproximando da
maneira desejada um número dado de elementos vivos no interior de
um crânio, algo de tão real, senão mais real do que esses elementos,
é criado em meio a eles, pela simples virtude dessa aproximação,
como se, pela disposição de suas unidades embaralhadas, o número
pudesse aumentar (TARDE, 2003, p. 61-62).

Esse “novo ser” criado a partir da disposição das unidades embaralhadas


compreende ao passar à ação para algo que foi criado e, em associação, mediado,
porém, assume a aparência de algo grande demais, dado, pleno. Retomando a
analogia entre uma teoria social e as Redes, feita pelo antropólogo dos modernos
(que por ironia epistemológica defende a não modernidade daqueles a quem
estuda), importa salientar que os regimes de enunciação constituem esse processo
generalizado de criação de novos seres (um novo “estar sendo”), mas, no nível do
discurso, chamado tecnicamente de Redes homogêneas por Latour (2019).
Portanto, delimitar e reagrupar (Política), aumentar a quantidade social e
contagiar (Meme) são efeitos que partem do infinitesimal discursivo, são
dimensões elementares, donde a iniciativa de transformação mental e social
vai estar à espreita de um mediador que a leve o mais longe possível. Isso
implica dizer que estudar um regime de enunciação é fragmentar o discurso, mas,
no caso das sociedades humanas,

Por mais íntimo, profundo e harmonioso que seja um grupo social


qualquer, jamais vemos brotar ex abrupto, em meio aos surpresos
associados, um eu coletivo, real, e não simplesmente metafórico,
resultado maravilhoso do qual eles seriam a condição. Sem dúvidas,
há sempre um associado que representa e personifica todo o grupo
ou pelo menos, um pequeno número de associados (os ministros em
um Estado) que, cada um em um aspecto particular, também
individualiza em si todo o grupo. Mas, quer se trate desse chefe ou
desses chefes, todos eles são também sempre membros do grupo,
nascidos de seu pai e de sua mãe e não, coletivamente, de seus
súditos ou administrados (TARDE, 2003, p. 62-63).

Isso soa frustrante, especialmente para o sonho de uma representatividade


reta, fundamentada pelos critérios da razão, de maneira geral, cartesiana. Contudo,
esta tese afirma que a perspectiva monadológica oferece uma via para ver beleza
nessa cansativa tarefa de manter o social vivo, porque acena para o ponto de vista
dos seres da Ficção, sugere olhar para a vibração das formas, para a dimensão
virtual dos acontecimentos: delimitar e reagrupar, dar quantidade social e contagiar
130

fomentam essa sensação, compondo uma argumentação comprimida em uma


postagem, cuja Reprodução provoca a sensação de que o grupo está sendo
desenhado, em todo caso, um desenho animado. Afinal de contas, “nada aparece
nem desaparece subitamente na esfera do finito, do complexo. O que concluir disso,
senão que o infinitamente pequeno, ou, dito de outra forma, o elemento, é a fonte e
o fim, a substância e a razão de tudo?” (TARDE, 2003, p. 26).
A centralidade e a importância que é possível sentir em torno do Meme,
embora seja uma sensação borrada pelo intenso tráfico de trocas circunvizinhas
entre componentes estrangeiros, advém do necessário retorno a dimensões
elementares do discurso, mas, condiz com um retorno perturbado pela saturação de
reflexos, de trocas. Então, a ação do Meme recorre, desesperadamente, à
fragmentação, a um nível que se poderia chamar de absurdo, sem nexo, como se o
mundo digital forçasse esse movimento porque as condições que ele oferece são
inóspitas para a sobrevivência do social. Em outras palavras, a estranha sensação
de que o Meme é tão tosco, rude, e, ao mesmo tempo, tão importante, central e
merecedor de ser estudado redunda, primeiro, desse retorno à fonte, como uma
estratégia arriscada, mas fundamental para o pensamento se adaptar a tal
inospitalidade.
Segundo, redunda do efeito dessa ação, da alteração que ela é capaz de
promover: aumentar a quantidade social, contagiar. Quando esse efeito é
experienciado, não se sabe de onde veio, como aconteceu, pois, o modo de vida
prático já teve seus vestígios apagados pelo Duplo Clique, assim sendo,
simplesmente está dado, pronto, como se tanto o mundo quanto a linguagem não
fossem, necessariamente, fabricados e articulados; como se a subsistência (ou
continuidade) de ambos não fossem pagas com alterações e descontinuidades,
pagas com a mediação e articulação de ações como as do Meme e da Política.

4.8 MEDIAR E ARTICULAR

Tanto o falar memeticamente quanto o falar politicamente não podem ser


mensurados se se pretende desviar do pesado processo no qual cada um se
aventura. Em conformidade com Latour (2019), a perspectiva do Duplo Clique tende
a chamar de “figurativo”, “ordinário” ou “incompletos” os deslocamentos, as
manipulações, as descontinuidades daqueles que não falam reto, tais como os
131

poetas, os retóricos, as pessoas comuns, os especialistas, os médicos, os


sacerdotes, melhor dizendo, todo mundo. Por conseguinte, a partir do Duplo Clique,
corre-se o risco de a própria experiência não ser mais exprimível, visto que, partindo
dele tudo na experiência soa falso, a experiência desaparece e a nossa
possibilidade de empiria também.
O Meme e a Política, bem como os demais modos de existência discursivos
(citados de maneira não aprofundada), compreendem à mediação, à sutura, à
restauração necessária na prática, para socorrer um modo de pensar (moderno)
baseado em uma separação abrupta entre o mundo e as palavras, o objeto e o
sujeito, a exterioridade e a interioridade, a matéria e o espírito, a prática e a teoria, o
fato e o fetiche. Por isso, o conceito de regime de enunciação propõe abandonar a
noção de representação mental ou coletiva, uma vez que esta última remete a um
mundo desarticulado, no qual a “sociedade” e a “linguagem” servem como juízes
externos às Redes e “todas as atividades que não são ‘unicamente materiais’
devem, portanto, ‘banhar-se na linguagem’ e se situar em um ‘contexto social’”
(LATOUR, 2019, p. 196). Em síntese, os regimes de enunciação concernem a um
tipo de mediação e de articulação, sem eles, não há humano, não há mundo
nenhum.
Contudo, se é assim, se o Duplo Clique realiza essas coisas “malignas”, como
o falar sem obstáculo pode ter uma chance de sucesso? Por razões políticas,
responde Latour (2019). A esse respeito, o autor aponta outro cruzamento entre
Redes estonteantes, a saber, entre a Referência e a Política, quer dizer, “os
modernos são aqueles que sequestram a ciência para resolver um problema de
encerramento das polêmicas públicas" (LATOUR, 2019, p. 113). Atente-se para a
ágora, para os debates, para as controvérsias, cuja iminência de violência e rebelião
é constante, agora, suponha uma “uma forma de dizer algo a alguém”, um gênero
literário capaz de causar a impressão de que pôs fim à discussão, mobilizado por
vários canais ou astúcias. Ressalta-se, porém, que isso não implica dizer que a
Política é a arte da mentira, tal percepção corresponde à forma de falar do Duplo
Clique.
Enquanto a forma de falar da Política precisa resolver as controvérsias da
discussão e do debate uma a uma, corresponde ao urgente, à multidão; os
caminhos da fala científica acessam os distantes, remete ao lento, ao conhecimento
das cadeias de Referências. Em suma, a particularidade da Referência consiste na
132

produção de objetividade; e a particularidade da Política na produção de vontades


momentaneamente associadas. Para atender aos seus critérios de felicidade e
constituir uma “unidade” a partir de uma “multidão” e de uma soma de
recriminações, a fala da Política, bem como a do Meme, precisa abreviar o caminho
espremendo as cadeias de Referências para garantir, da unidade provisória ao
estabelecimento das decisões, à obediência daqueles que recriminava, mesmo
diante da constante transformação da “multidão”, resistindo por todos os meios
(LATOUR, 2019).
Na fala política, mentir significa interromper o movimento de envolvimento84,
suspender sua retomada, não ser mais capaz de obter continuidade através da
multiplicidade de descontinuidades: gritos, traições, desvios, pânico, desobediência,
desgastes, manipulações, urgências e etc. Sem a Política, por conseguinte, não há
autonomia, não há liberdade, nem agrupamento, pois, corresponde a um valor
supremo, que traça os coletivos e no qual aprendemos a protestar a ser
representados, a obedecer, ou desobedecer e a recomeçar. Já a palavra reta (Duplo
Clique), por sua vez, pode ser definida como um gênero literário que não faz mais do
que imitar (pela seriedade, pelo tom de autoridade, ou mesmo pelo simples tédio)
condições de verdade as quais não é capaz de sustentar. É justamente por isso que
ela é tão perigosa, afinal, não lhe custa nada depreciar as transições e mediações
imprescindíveis para fabricar o verdadeiro (LATOUR, 2019).
Para um regime de enunciação, as associações híbridas que sustentam a
continuação do seu efeito são infinitas e de geometria variável. Apesar desse árduo
trabalho coletivo, os modernos “acreditam na linguagem como um mundo autônomo
que se agitaria diante de um mundo que, por outro lado, permaneceria mudo”
(LATOUR, 2019, p.126) e insistem que os fatos falam por si só, entretanto, onde
quer que exista um hiato, existe articulação, ou melhor, onde se possam definir
antecedentes e consequentes, existe sentido e acontecimento. Os regimes de

84
O aspecto delicado aqui consiste na compreensão generalizada, de acordo com a qual os políticos
mentem justamente para envolver. Porém, é fundamental lembrar que, no âmbito das Redes
homogêneas, o verdadeiro e o falso são categorias que não tem nada a ver com a definição
epistemológica. Tem a ver com os critérios de felicidade e infelicidade de cada modo discursivo. No
caso do Meme, mentir significa não conseguir oferecer uma via a ser imitada, no caso da Política,
mentir significa não conseguir ampliar ou manter o grupo. Portanto, não é de se espantar que se
possa proferir uma mentira no sentido da definição epistemológica (dizer uma coisa que não condiz
com as etapas n e n+1, o que precede e o que sucede um acontecimento a partir do modo de
existência da Referência), mas, mesmo assim, dizer a verdade em um tipo de segunda instância, uma
vez que ofereceu uma via a ser imitada e conseguiu alargar o grupo. Por isso, é importante sempre
se situar a respeito de qual Rede estamos.
133

enunciação, portanto, retiram a barreira entre as questões de ontologia e as


questões de linguagem, usando o termo articulação para designar tanto o mundo
quanto as palavras. Em resumo, a Teoria Ator-Rede não distingue mundo e
palavras, aponta a mediação entre um e outro, com a finalidade de libertar o
pensamento dos dualismos que enclausuram em um mundo único, inerte, dado e
pronto para ser desvelado pela razão única do conhecimento que se sente capaz de
destruir as formas de ilusões criadas pelos humanos. E o Meme, de acordo esta
tese, é um desses mediadores, é um regime de enunciação e pode se juntar aos
demais modos de existência mapeados por Latour (2019).

4.9 PULVERIZAÇÃO E DISPOSIÇÃO DAS UNIDADES EMBARALHADAS

Somando-se ao conjunto de valores dos modernos, o Meme influencia os


demais modos discursivos na medida em que, para medir os interesses
apaixonados, os seres do Meme pulverizam as crenças e desejos que podem
constituir o indivíduo, tal pulverização se converte em dados, por meio dos quais,

o novo regime de verdade digital se encarna numa multiplicidade de


novos sistemas automáticos de modelação do “social”, ao mesmo
tempo a distância e em tempo real, acentuando a contextualização e
a personalização automática das interações securitárias, sanitárias,
administrativas… (ROUVROY; BERNS, 2018, p. 107-108).

Estes autores estão falando sobre governabilidade algorítmica85, e suas


preocupações a esse respeito residem na compreensão de que a mineração de
dados, em função da elaboração de perfis nas plataformas digitais86, é capaz de
reconstruir (seguindo uma lógica de correlações) os casos singulares pulverizados
pela escrita em códigos dos algoritmos, sem relacioná-los a nenhuma norma geral.

85
Rouvroy e berns (2018) compreendem governabilidade algorítmica como certo tipo de racionalidade
(a)normativa e (a)política, baseada na coleta, agregação e análise automatizada de dados em
quantidade massiva, para modelizar, antecipar e afetar, por antecipação, os comportamentos
possíveis.
86
A elaboração de perfis nas plataformas digitais acontece por meio da mineração de dados, o
datamining, processo dividido em três momentos por Rouvroy e berns (2018): o primeiro momento é o
da coleta e conservação automatizada de uma quantidade massiva de dados não classificados, o
bigdata, facilmente constituído porque os indivíduos compartilham esses dados nas plataformas
digitais benevolentemente; o segundo momento corresponde ao tratamento automatizado dos dados,
de modo a fazer surgir correlações sutis entre eles; por fim, o terceiro momento é o uso dos saberes
produzidos no segundo momento para fins de antecipação dos comportamentos individuais,
associados a perfis.
134

De maneira que, deve-se temer que os novos modos de filtragem da informação


levem aos meios de imunização informacional, culminando na radicalização de
opiniões e no desaparecimento da experiência comum. Sobre tal aspecto,
ressalta-se que o desenvolvimento da tecnologia discursiva que garante o contágio à
distância (o Meme) se irradia questionando a totalidade da sociedade, focando no
caráter descontínuo dos acontecimentos e na disposição das unidades de se
embaralhar. Não por acaso, Rouvroy e Bens (2018, p. 112) afirmam que o fenômeno
mais novo consiste no fato de

Quer se trate de conservar o traço de uma compra, de um


deslocamento, do uso de uma palavra ou de uma língua, cada
elemento é reconduzido à sua natureza mais bruta, isto é, ao mesmo
tempo abstraído do contexto no qual apareceu e reduzido a “dado”.

Trata-se da produção de um saber estatístico, constituído de simples


correlações. O dado não é mais do que um sinal expurgado de toda significação
própria, explica os autores, dotado da mais perfeita objetividade, uma vez que é
heterogêneo e pouco intencionado. Em síntese, é uma produção de saber
automatizada, sempre evitando toda forma de subjetividade e inferindo dos
indivíduos um saber, ou previsões probabilísticas a respeito de suas preferências,
intenções e propensões: saberes usados para fins de antecipação do sujeito. Dessa
forma, ainda de acordo com Rouvroy e berns (2018), a governabilidade algorítmica
não produz nenhuma subjetivação, ela evita os sujeitos reflexivos e se alimenta de
dados “infraindividuais”, estes dados em si seriam insignificantes, mas são úteis para
criação de modelos de comportamentos (perfis) supraindividuais, sem para isso
interpelar o sujeito e convocá-lo a perceber a si mesmo ou àquilo que poderia se
tornar. Portanto, “o momento de reflexividade, de crítica, de recalcitrância,
necessário para que haja subjetivação, parece, incessantemente, complicar-se e ser
adiado” (ROUVROY; BERNS, 2018, p. 116).
Mas, enfim, a tecnologia discursiva do Meme salva ou suprime a
subjetividade dos indivíduos? Uma vez que o sentimento de pertencimento a um
público depende de sustentar uma opinião87, a flexibilização dos scripts por
resolução antecipada dos conflitos (movimento de Rede do Meme) e o círculo
político protetor da continuidade (movimento de Rede da Política) fazem vibrar
87
Tarde (2005) chega a afirmar que o público, enquanto um tipo de grupo social baseado no contágio
à distância, é sinônimo de opinião: o público é a opinião.
135

novas formas de argumentação, como uma experiência coletiva arriscada, na qual,


tenta-se aprender a conversar sob novas condições: muitos indivíduos participam da
conversa, distância física e pouco tempo para dar conta do assunto. Logo, a
associação desses dois regimes de enunciação compreende uma tentativa dos
sujeitos de resistir à fragmentação de si vivenciada no mundo digital, embora se
possa apontar

O paradoxo segundo o qual, a partir de agora, para erradicar ou


minimizar a incerteza, remete-nos a “aparelhos” não intencionais, isto
é, máquinas a-significantes, abandonando, dessa maneira, a
ambição de dar significado aos acontecimentos, uma vez que cada
um pode muito bem ser decomposto em redes de dados
reagregados de outros dados, independentementes dos
acontecimentos dos quais poderiam “atualmente” dizer algo a
respeito (ROUVROY; BERNS, 2018, p. 117).

O enxame como uma prática comunicacional, a falta de respeito, a


embriaguez digital, a ausência de mediação institucional, a ausência de
especialistas para análise do assunto, presentes na participação opinativa (HAN,
2018b) que se pode mencionar sobre o mundo digital, são, também, uma vibração
material/forma88, cujos envios e figurações89 agem no sentido de produzir um triplo
desengate: tempo, espaço, actante90 e fazer manter uma conduta argumentativa
com critérios considerados mais aceitáveis. Assim, no mundo digital, as
preocupações colocadas pelo filósofo antigo grego Aristóteles (2013), a respeito da
necessidade de desenvolver um método de investigação, pelo qual se possa
raciocinar partindo de opiniões geralmente aceitas acerca de qualquer problema
proposto, bem como se tornar capaz de replicar um argumento evitando dizer algo
que cause incompreensão, é mais urgente que nunca.
Em outras palavras, a urgência do mundo digital é, essencialmente, de ordem
filosófica, o desafio coletivo principal do homo digitalis é estabelecer critérios para a
construção de argumentos e para a distinção entre àqueles que são válidos e os que
não são a partir das Redes de Referências (da realidade objetiva), mas, tais critérios
precisam se adaptar às condições desse mundo. É necessário substituir a influência
da ação direta do sentir vivamente o olhar, os gestos, o magnetismo e as atitudes
dos outros quando fala, tal como acontece no contágio por aproximação, por outra
88
Atente-se que tal vibração corresponde ao hiato do modo de existência da Ficção (ver quadro 2).
89
Atente-se que os envios, formas, figurações são seres da Ficção (ver quadro 2).
90
Atente-se para o fato de que se trata da trajetória do modo de existência da Ficção (ver quadro 2).
136

ação capaz de influenciar à distância, além disso, não se tem muito tempo. Logo, o
desafio não é apenas trazer questões relevantes para a pauta das conversações no
mundo digital, mas, sobretudo, ou antes, aprender a conversar sem esmagar os
modos de existência dos regimes de enunciação.
Dito isso, esta tese termina com uma questão a ser investigada em outra
oportunidade: é possível uma diplomacia discursiva no mundo digital?
137

CONSIDERAÇÕES MEDIADAS

Segundo Tarde (2000), qualquer criação parte de uma memória, a criação da


Técnica discursiva do Meme parte da memória inerente a capacidade dos grupos
sociais humanos de garantirem a continuidade dos seus conjuntos de ideias,
essencialmente, pelo contato físico. Dadas às novas condições sociotécnicas no
mundo digital, para existirem, os grupos necessitam garantir a continuidade dos
seus conjuntos de ideias à distância, não dá mais para usar as Técnicas expressivas
do face a face, cujo efeito é a imitação de crenças e desejos ou certo nível de
coesão psíquica. Além da distância física, a existência dos grupos não tem muito
tempo para se fazerem e refazerem, sua consistência processual é mais frágil ainda,
porque troca-se qualidade “interna” por qualidade “externa”, vínculos longevos por
vínculos fugazes, em benefício da rápida emergência e alargamento dos grupos. A
conexão das Redes híbridas se estendeu por todo o planeta, garantindo, assim, uma
velocidade sem precedente do transporte do pensamento à distância, entre um
indivíduo e outro.
A continuidade dos conjuntos de ideias é composta, na verdade, por uma
série imensurável de ideias menores, distintas e descontínuas. Para que essas
ideias menores sejam agregadas, para alinhavar nós, constituir esferas, identidades,
grupos, ou melhor, opiniões (mesmo que entre indivíduos fisicamente separados) é
imprescindível um trabalho de mediação, e o Meme faz parte desse trabalho. De
maneira geral, esta tese afirma que o Meme é um tipo de conector, denominado pela
Teoria Ator-Rede de Rede homogênea, uma ação restauradora que cura a quebra
entre teoria e prática, sujeito e objeto, que antropologicamente caracteriza o
pensamento dos modernos, trata-se de flexibilizar os scripts por meio da resolução
antecipada do conflito ou contradições. Tal ação pode ser identificada por meio de
um passe, uma Preposição indicativa de que um modo de falar foi iniciado, os
achados expressivos, úteis para figurar as sensações que as crenças e desejos
ativam nos indivíduos. Por isso são tão prazerosos, os achados expressivos
propõem alinhar crenças e desejos a insights e oferecem o prazer resultante como
moeda de troca na flexibilização dos scripts.
Dominar essa Técnica significa usufruir do prestígio no mundo digital. Porém,
a intensidade com que os modernos vivem ações discursivas como essa depende
da ocultação das mesmas, depende de outro binarismo: o fato e o fetiche. Nada foi
138

feito e não se sabe como aconteceu e de onde exatamente partiu, mas, está pronto,
dado, pleno, muitos podem sentir a realidade do fenômeno. Podem, também, deixar
de sentir: basta interromper a conversação, interromper o movimento que alimenta o
estado social. Portanto, para manter ou inovar um estado social, é preciso aprender
a conversar, e o Meme, embora não possa estar ausente, compreende apenas uma
parte desse ato, uma unidade de sentido sem sentido se estiver isolada. Parece
intuitivo esse termo ter sido escolhido para remeter a algo que não se sabe
exatamente se é a imagem, se é a postagem, se é a piada, se é a ideia, contudo,
pode-se sentir seu efeito com muita clareza: “é um Meme!”. Mas, é preciso se
identificar com o Meme, certo? Errado. O Meme não aciona uma identidade, ele
provoca uma alteração; ele não apenas sugestiona um repost, uma curtida ou um
comentário elogioso ao conteúdo materializado em uma postagem qualquer pelo
simples fato de satisfazer uma dada opinião. Neste caso, é o modo discursivo da
Reprodução que impera, quer dizer, a Reprodução da mesma opinião, pois, o
contágio já aconteceu e a ação do Meme não está sendo mais a principal.
De maneira específica, os seres do Meme medem a temperatura dos
interesses apaixonados flexibilizando scripts por meio da resolução antecipada de
conflitos, mediando, assim, o contágio. Sobre a resolução antecipada de conflito, a
Técnica do Meme capilariza o humor enquanto recurso para lidar com os conflitos e
contradições inevitáveis decorrentes da ampliação das Redes. O humor é
fundamental porque a flexibilização dos scripts requer maleabilidade ou até certa
“distração” em relação aos conflitos e contradições das crenças e desejos. Ademais,
experimentar a liberdade prometida pelo mundo digital consiste em uma maneira de
andar na corda bamba que equilibra o caráter sério e o caráter cômico da vida,
respectivamente, o sentimento de que tem controle da vida e o sentimento de que
não tem controle nenhum da vida. Dessa forma, com seu valor específico para a
criação e manutenção de grupos, o Meme se soma/associa aos demais regimes de
enunciação mapeados por Latour (2019).
A associação mais proeminente, em razão da urgência temporal para criar e
manter grupos no mundo digital é entre a fala do Meme e a fala Política, em outras
palavras, falar memeticamente e falar politicamente são as ações que aceleram
extraordinariamente o fluxo dos acontecimentos no mundo digital. Juntas, garantem
que a existência do grupo e a imitação irrefletida sejam um pouco mais estendidas,
na medida em que as conversas conseguem acontecer regularmente e atingir suas
139

condições de felicidade, as quais, somadas, consistem na polarização da alma. O


estar sendo um líder ou um grupo aceito e com certa coesão psíquica, corresponde
a rituais que possuem Técnicas capazes de permitir a articulação entre o mundo e o
pensamento. Portanto, delimitar e reagrupar, dar quantidade social e contagiar são
efeitos que partem do infinitesimal discursivo, são dimensões elementares, donde a
iniciativa de transformação mental e social vai estar à espreita de um mediador que
a leve o mais longe possível.
Comunicar é alterar, e cada regime de enunciação é uma microforma de
comunicação, cujas condições de felicidade se agregam e resultam na realidade.
Assim, o falar memeticamente acontece na postagem como um dos mecanismos
discursivos que visam a manutenção de uma determinada situação ou agregado
social, neste processo, os discursos realizam um intenso cruzamento de Redes. É
apenas a partir do ponto de vista de um agregado já pronto, que sim, a postagem
necessita de identificação com a opinião. Em razão disso, esta pesquisa não
escolheu um recorte temático, algum grupo (político ou religioso, por exemplo),
justamente porque o objetivo era de chegar a uma ação elementar que precede a
formação da opinião, chegar à trajetória que os modernos guardam a sete chaves,
afinal, nada mais valioso do que formar grupos, de que outra forma poderíamos ser
humanos?
Às transformações nas Redes híbridas, isto é, nas condições que guarnecem
o social, requisita a trama e a germinação de um trabalho de adequação, de
mediação para fabricar a realidade. No mundo digital, por algum tipo de intuição
longínqua, esse trabalho foi chamado de Meme, “porque é engraçado”, “porque é
bobo”, “porque é uma brincadeira”, “porque é repetitivo”, porém, é engraçado, bobo,
brincadeira e repetitivo porque é uma regressão profunda às condições elementares
do social (imitação, oposição e adaptação). Tal regressão é arbitrariamente
necessária diante de tragédias que comprometem a articulação das Redes híbridas,
seja porque o Sol se extinguiu como na obra literária Fragmentos de uma história
futura, de Gabriel Tarde (2014), seja porque o tempo e aproximação física se
extinguiram, como na experiência do mundo digital, é preciso atualizar os valores
sociais e, consequentemente, aprender a conversar.
Na extinção do Sol, os indivíduos que viveram essa tragédia precisam,
desesperadamente, salvar as articulações das Redes híbridas; na extinção do tempo
e da aproximação física, os indivíduos precisam, desesperadamente, garantir que se
140

possa imitar, opor-se e se adaptar diante das condições hostis ao social: muitos
reflexos, pouco tempo e distância física. O Meme é uma tecnologia discursiva que,
bem como as outras tecnologias discursivas, combina elementos a fim de se adaptar
às novas circunstâncias. Note-se que não é uma tecnologia que parte do nada, ela
remonta a experiência do contágio por contato físico, mas, não se confunde com o
contágio das relações face a face nem com outros regimes de enunciação, porque
possui um hiato próprio. Sua trajetória é cercada pelo conflito, não tem como fugir,
dessa maneira, precisa aprender a lidar com ele para atingir a condição de felicidade
de oferecer uma via de imitação. Falar memeticamente é, em resumo, um desafio:
“vamos conseguir ficar juntos nesse mundo?”.
Entretanto, talvez a questão seja outra: por qual motivo os modernos desejam
tanto mudar para um mundo tão hostil? Por que o mundo digital é tão atraente? O
que ele promete? Afinal, a tragédia da extinção do tempo e da aproximação física é
consequência de viver nesse mundo, ou seja, diferentemente dos indivíduos de
Fragmentos de uma história futura, os modernos não estão fugindo da tragédia, seu
conflito é não saber se estão felizes no mundo digital: estão cansados pelo esforço
de parecerem felizes; cansados pelo esforço de ter que dar conta da multiplicação
em um nível sem precedentes das contradições e para sanar esse cansaço cultuam
a deuses fe(i)tiches muito exigentes, cujos retornos não são duradouros, suplicam
curtidas, emojis fofos, elogios, reposts. À vista disso, o pensamento parece um
exercício em crise. Contudo, embora os modernos estejam fragmentados demais e
experimentando caminhos para reagregar o social, inventar uma nova tecnologia
discursiva como o Meme não sinaliza dessubjetivação ou privação da subjetividade,
pelo contrário, significa resistência subjetiva, produz um tipo de pensamento que
interessa a nossa época.
“Produzir Memes” é tido como uma atividade atualmente importante para a
manipulação política, por exemplo, porém, a espontaneidade é um dos aspectos
fundamentais para o Meme. O que de fato se produz nas propagandas de política
eleitoral são postagens que adaptam ideias aos achados expressivos, munindo-se,
assim, de um potencial para viralizar, e, eventualmente, falar memeticamente, dado
que o Meme precede a verbalização da ideia. Ao atribuir à linguagem uma ideia,
tem-se uma adaptação, o nível abstrato do Meme se objetiva em uma via a ser
imitada, reproduzida. Produzir achados expressivos é outra coisa, se os políticos
profissionais pudessem produzi-los assim com tanta facilidade, bem como a Nazaré
141

Tedesco produz, seriam verdadeiros artistas, mas apenas usam recursos de edição
para adaptar uma opinião específica.
Nazaré Tedesco, entre outras influências, divindades e psiquismos, é
invocada no mundo digital justamente para garantir as transformações e emoções
dos indivíduos, por meio das quais o processo de subjetivação pode acontecer. No
caso dela, as sensações podem ser figuradas, principalmente, pela sua fisionomia
capaz de acessar o cômico, não porque tal fisionomia é cômica em si, mas porque
oferece um acervo precioso de achados expressivos, capazes de surpreender o
mecanismo rígido na continuidade viva das coisas humanas e, a partir dessa
surpresa, poderem rir da ilusão de achar que tem o controle da vida. O mecanismo
rígido capturado no curso da vida é descrito por Henri Bergson (2020) como uma
distração da vida, um intruso na continuidade da vida, e percebê-lo é como perceber
a distração, e isso é útil para a trajetória do Meme.
A trajetória do Meme pode ser percebida como uma trajetória do pensamento,
de maneira que, agregar e desagregar a realidade são uma questão de agregar e
desagregar o pensamento. O Meme é feito do que Bruno Latour (2012b) chama de
social: um dos muitos elementos de ligação que circulam por estreitos canais, ou
melhor, não se trata de uma cola capaz de fixar tudo, mas, sim, daquilo que outros
tipos de conectores misturam, um tipo de conexão não em si mesma social; um
movimento peculiar de reassociação e reagregação. Portanto, os regimes de
enunciação, especialmente o Meme, não são os culpados pelos desafios
sociológicos do mundo digital, são, efetivamente, tentativas de resistir às condições
hostis ao social, de salvar o social. A verdadeira urgência é a de aprender a
conversar e o Meme apenas reitera: jamais fomos modernos, fabricamos a realidade
cultuando deuses fe(i)tiches.
Por fim, a importância do Meme consiste em preencher o vazio ou o hiato
aberto pela distância física entre os indivíduos como condição dada pelas
circunstâncias sociotécnicas do mundo digital, uma vez que trabalha na resolução
dos conflitos e contradições inerentes às relações sociais diante da ampliação
extraordinária das Redes, das associações, das conexões, dos agregados sociais.
E, como efeito, o Meme resulta na flexibilização dos scripts, garantindo mais um
pouco (o trabalho deve ser incessante) a existência de um grupo, um acontecimento
social. Sem tal ação, o mundo digital não poderia ser povoado, não poderia existir,
142

não poderia ser real. Como mediar de outra maneira esse modo de existência (o do
social) tão delicado, sem a ação do Meme no mundo digital?
143

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