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TRADUCÇÃO
DAS
OBRAS POLITICAS DO SABIO JURISCONSULTO

JEREMIAS BENTHAM ,

VERTIDAS DO INGLEZ NA LINGUA PORTUGUEZA

POR MANDADO

DO SOBERANO CONGRESSO
DA S

CORTES GERAES , EXTRAORDINARIAS ,

E CONSTITUINTES DA MESMA NAÇÃO.

TOMO I.

LISBOA:

NA IMPRENSA NACIONAL.

ANNO 1822.
RB 23- a 33098

-***

11

RITI
SH
( 8 )

INTRODUCÇÃO.

E 4 Ntramos n'huma carreira arriscada , é mui


to penosa. Se huma traducção he cousa tão dif
ficultosa , que os homens de estudo antes qués
rem inventar idéas , do que exprimir as alheias ;
que será traduzir do inglez meditações novas
em quasi todos os ramos da Economia Civil , e
da Politica " ou pelo menos offerecidas por hum
lado original ? Esta difficuldade ainda se torna
mais sensivel pelo tempo , que nos tem sido li
mitado : o Governo , destinando as nessas forças
para hum objecto similhante , deseja quanto an
tes contar com a execução do seu Mandado. A
mesma Obra pela sua
募 natureza embaraça o Tra-
ductor : JEREMIAS BENTAM , ainda que tenha
hum fundo de imaginação admiravel , nunca se
lembrou de ganhar os homens por hum estylo fi-
gurado suas Obras tem o cunho do seu genio
amigo da sabedoria , e da realidade : suas Obras
conservão quasi sempre hum estylo apertado , re
conciso até pela modestia. Ensaios , Esboços ,
Fragmentos , Memorias , Cartas , Planos : taes
1
são os titulos que tem apresentado á frente da
maior parte dos seus Livros : são as idéas de
hum homem grande , que tendo esgotado a mate-
ria , ainda espera tirar da riqueza do seu genio
novas descobertas , que lhe possão dar a sua ulti-
ma perfeição. O vigor , e a força da razão , tal he
o seu caracter : a verdade exprimida fielmente ?
o fim de seus desejos. Com tanto que possa me-
lhorar os homens , aliviar os opprimidos , exper
os motivos de huma lei saudavel , educar á mo-
cidade , abrandar o rigor das cadeias , estabele-
A 2
( 4 )

cer casas pias , tirar partido até da infelicidade ,


o Author não pertende mais nada ; não quiz ser
eloquente , ou para melhor dizer , JEREMIAS
BENTHAM he senhor da verdadeira eloquencia ,
que se funda nas idéas. * A liberdade bem en-
tendida he a sua paixão dominante pelo amor
da liberdade offereceo todos os seus Escriptos ao
Soberano Congresso das nossas Cortes , como
hum signal da sua admiração vendo quebrados
os ferros do nosso captiveiro por hum modo tão
solemne , e tão quieto , e tão prodigioso , que
} em
será de pais a filhos hum livro successivo
que se veja o caracter portuguez. Os homens
livres alegrão - se com a propagação daquelles
sentimentos , que morão dentro delles ; e para
felicidade do genero humano , a mesma Provi-
dencia , que fez o Author modesto retirado

escondido , he a mesma , que por huma paixão


nobre , pelo amor da liberdade , o faz apparecer
para ensinar os Povos , ajudar os Sabios na re-
fórma de huma Nação , e fazer immortaes os
seus conhecimentos.
Assim nós os podessemos verter em huma
linguagem digna de duas Nações , que sympa-
thizão na honra , e na grandeza dos projectos 9
que se não podem desenlaçar de seus interesses
generosos , que presentemente são rivaes na
liberdade.

Veja-se a Nota do Judicioso Compilador no fim do Cap.


VI. §. XII.
THEORIA

DAS

PENAS LEGAES ,

OBRA EXTRAHIDA DOS MANUSCRIPTOS


DO
SABIO JURISCONSULTO

JEREMIAS BENTHAM.

Et quoniam variant morbi , variabimus artes.


Ovidio:
T
( 7 )

PREFACIO

A THEORIA DOS CASTIGOS ,

OU
DAS PENAS LEGAES.

Hum bom Legislador deve cuidar mais em


prevenir os crimes , do que em despicar a Justi-
ca : maxima trivial no dia de hoje , mas que
não deve ficar em palavras , já que temos a for-
tuna de viver debaixo de hum Governo Consti-
tucional ; para que se não diga , que as leis hu-
manas não tem senão escravos , por que não
tem se não supplicios . Os tyrannos gostão de san-
gue , nem se podem sustentar senão pela força ,
ultima ratio regum : hum bom Governo he ima-
gem de hum pai , que não mortifica , nem dester-
ra seus filhos , senão depois de esgotar todos os
meios de os poder emendar. Facilitai os meios
de cada hum poder ganhar a sua vida , dester-
rai a ociosidade , e os delictos serão menos :
educai a mocidade ; na boa educação , e na paz ,
e felicidade das familias , estão as sementes da
felicidade geral .
Bem sei , que para a maior parte dos ho-
mens não ha senão o medo ; mas devemos ter
em vista , dizia Pastoret , que Deos he o unico
5
Juiz , e vingador do peccado , e que se as leis
humanas castigão he só com o fim de restabele-
cer a ordem social. (a) Quem lava copos de vi-
dro , diz hum dos nossos moralistas , (b) não os

(a) Leis Penaes Tom. 2. Cap. 8.°


(b) Heitor Pinto , Dial.
( 8 )

deve esfregar , nem carregar a mão de sorte que


a possa esfolar , e magoar : se os castigos são
violentos irritão , e fazem as leis odiosas ; quan-
do são amiudados , já não emendão , porque não
fazem impressão. Castigai com huma sabia eco-
nomia , sem privilegios , que derogão todo o me-
recimento da justiça que as penas carreguem
o menos que for possivel sobre o criminoso ; ain-
da que sejão as mais fortes na apparencia : tal he
a doutrina do Author : ajustar quanto poder ser
a pena com delicto : Brissot tinha fallado grande-
mente sobre a analogia dos castigos ; o Author
espraiou-se muito mais sobre a materia : tem
muita novidade , muita filosofia : a indulgencia
caminha sempre ao lado da razão illuminada :
e homem sensato aprende da sua mesma fraque-
za a desculpar os outros homens > e tanto mais
estuda a natureza , a experiencia , o coração hu-
mano , tanto mais indulgente se mostra e com-
passivo. Postos nas mesmas circumstancias],
quasi todos os homens fazem o mesmo. Que es-
tes genios altivos , dizia Montaigne , mettão
as mãos na sua consciencia , que discorrão pelo
que tem feito , e talvez descubrão , que se tem
escapado da pena ultima , he porque se lhes não
adjectivárão as occasiões ou porque souberão
escapar aos olhos do mundo : sejão verdadeiros ,
e não fallem de si com tanta vaidade , nem estra-
nhem os vicios , que tem no seu coração raizes
muito mais vivas , e arraigadas, do que nesses in-
felizes, para quem não descobrem castigos suffici
entes sobre a terra que nos digão o que tem
sonhado , e saberemos se já estão acordados . (a) A

* Homo sum : nihil humani a me alienum puto. Teren-


cio. Heaut.
(a) Ensaios L. 3.' Cap. IX.
( 9 )

necessidade he inimiga da virtude ; e por isso


he que o Governo deve fazer amaveis as obriga-
ções civis , empregando os individuos segundo a
sua natural inclinação, honrando todos os officios,
e acabando de huma vez com estas distincções
odiosas , que atrazão as sciencicas , e as artes ,
que tanto servem para o bem de huma nação.
Quantas vezes os Governos , castigando os deli-
ctos , estão dando em si mesmo , e castigão o que
tem feito pela sua ignorancia , desattenção, cruel-
dade ," ou malicia !
Temos dado huma noticia geral da materia.
Este Livro he verdadeiramente huma compila-
ção feita pelos cuidados do Sr. Dumont , extrahi-
da dos manuscriptos do immortal Bentham : bem
se conhece a mão do Mestre , e o seu estylo , tan-
to neste Tractado , como no seguinte , em que se
falla dos premios. Se a moldura he bem tirada ,
deixa ver a pintura em todo o seu primor : te-
mos feito toda a diligencia por não enxovalhar
nem huma cousa , nem outra ; mas quem sabe se
o temos conseguido ?
Os homens superficiaes gostão de flores ; mas
o Publico , diz Helvecio , (a ) quer ver o traba-
lho de hum sabio , que profunda a materia , e
que a poder de meditar , e reflectir abrio novos
caminhos para a sua felicidade.
Nota. Depois de huma longa enfermida-
de , he preciso resguardo , cautela , dieta a
Nação Portugueza esteve muito tempo em tre-
vas he necessario que se va acostumando a
receber a impressão da luz : hum homem , que
esteve muitos annos prezo , diz o grande Ben-
tham , he facil abusar ; está arriscado , se lhe

(a) L' Esprit , Disc. 2. Cap. 8.º


Tom . I. B
( 10 )

dão logo toda a liberdade : eis-aqui a razão , por


que temos accrescentado huma , ou outra refle-
xão : estas notas estão debaixo de asterisco * ; pro-
cedem de huma boa intenção , e por isso descul-
payeis.
( 11 )

THEORIA

DAS
PENAS LEGA E S.

LIVRO PRIMEIRO.

Principios geraes.

CAPITULO I.

Definições , e Distincções .

APalavra pena , ou , para evitar desde logo to-


do o equivoco , a palavra castigo , he huma da-
quellas, que á primeira vista parece, que não tem
necessidade de ser definida : que noção mais cla-
ra se lhe pode dar , do que à idéa , que todo o
mundo concebe quando se repete a palavra ? To-
davia , esta noção geral , que parece tão clara ,
fica sendo vaga , sem explicação ; porque não dis-
tingue precisamente o acto de castigar de ou-
tros muitos , que se assemelhão com elle a certos
respeitos. Será bom ensinar logo no principio
tudo quanto se encerra na acção de castigar , se
queremos conhecer o que não entra , nem se pó-
de incluir na dita palavra .
1.° Castigar , no sentido o mais vulgar , he
1.
impor hum mal a huma pessoa com intenção
directa relativamente ao mal , em razão de algu-
ma acção , que parece que se fez , ou que se dei-
B 2
( 12 )

xou de fazer. Não passemos a diante sem escla-


recer primeiro a definição , que temos dado. A
intenção directa , relativamente ao mal , que se
impõe , he essencial . Se faço mal a hum sujei-
to sem intenção de lho fazer , he hum mero aca-
so se ho fiz para o salvar de algum perigo , ou
para me salvar a mim , ou por outro motivo , que
nada tem com o prejuizo , que sente , hum simi-
lhante acto não se póde chamar castigo.
A declaração do motivo em tal caso não he
menos essencial , do que a intenção directa rela-
tivamente ao mal , que se impõe . Se não houve
acção anterior , real , ou presumida da parte do
offendido , que désse motivo ao mal , que lhe fa-
" ninguem poderá reputar este mal na razão
de castigo .
Se em consequencia de huma acção , que
fez o meu vizinho , o mal vem a recahir não so-
bre elle , mas sobre outro individuo , em razão de
alguma relação , que tem com o primeiro , que fez
a acção , este mal vem a ser propriamente hum
castigo para o meu vizinho. (1)
2. Definido por este modo o acto de casti-
gar , já podemos desenvolver outros actos , que
estão como enłaçados com elle , ou que tem sua
differença.
Se não houve da minha parte acção real , ou
presumida , que désse motivo a o mal , a que me
tens obrigado ; se o meu soffrimento foi objecto
directo , e final da tua intenção , similhante acto
da tua parte he de pura hostilidade , e de pura
malicia.
Se houve da minha parte , ou da parte dos
meus , algum acto real , ou presumido , que te es-
candalizou ; e que no mal , que me fazes , não tens

(1) Veja-se o Livro 5. Castigos incompetentes.


( 13 )

em vista mais do que o prazer de me veres mor-


tificado , o teu acto he de vingança . ( 1 )
Se o teu acto de hostilidade não assenta em
algum acto de inimizade da minha parte , mas
he porque descobres na minha pessoa esta , ou
aquella qualidade , que te não agrada , sem ha-
ver da minha parte a mais pequena intenção de
te offender , he o que se chama vulgarmente hum
acto de pura antipathia.
3. Nos tres casos precedentes a intenção em
relação ao mal he directa : nos que se seguem
vem a ser indirecta ; o mal não he o fim , he o
meio .
Se o mal, que me fazes, tem por unico objecto
embaraçar o exercicio das minhas faculdades re-
lativamente a certos actos , que da minha parte
te desagradão sem motivo , o teu acto he preveni-
do , ou de prevenção.
Se o mal tem por objecto da tua parte de-
terminar- me a fazer certos actos , que eu não fa-
ria a não ser determinado , o teu acto he de con-
strangimento : o serviço militar , as obrigações ci-
vis , os tributos , são males desta natureza : a pe-
na , que os a companha , não entra na intenção do
Legislador esta pena não contribue para o obje-
cto do serviço de sorte que os actos de con-
strangimento não se podem chamar castigos .
Supponhamos que me obrigão a passar por
tormentos agudos , que devem acabar logo que
faça , o que se pertende de mim por hun modo
violento : por exemplo , logo que de a informação

(1 ) Por este modo todo o acto de vingança he castigo ;


mas nem todo o castigo he vingança. A definição de Johnson
he defeituosa Mal na vingança de hum crime : a de Gros-
sio he melhor : Mal de soffrimento , que se empõe por causa do
mal de huma acção.
( 14 )

sobre hum facto , que devo saber : este acto he de


tortura. Se para te pores a salvo de hum perigo ,
me fazes soffrer , mas a tempo , em que eu na mi-
nha idéa andava traçando meios de te fazer mal ,
da tua parte he hum acto de defeza pessoal. Se
esta acção tem por objecto livrares-te de hum
perigo , que receias , ou este perigo provenha de
cousas , ou pessoas , com intenção , ou sem ella ,
temos hum acto de conservação pessoal. Tracta se
de huma somma de dinheiro , a que te querem
obrigar , como reparação de certa perda , que tens
causado a hum terceiro : temos hum acto de sa-
tisfação pecuniaria , que se não póde chamar cas-
tigo.
Por este modo , o mesmo acto , o mesmo mal
segundo a differença de intenção , e de motivo da
parte do dinheiro , recebe differentes denomina-
ções , e póde entrar na classe dos actos nocivos >
ou das acções uteis ( 1).
Temos dado a definição geral da palavra cas-
tigar ; passemos á definição particular da Pena
legal : isto he , do castigo legal , no sentido , que
deve ter constantemente no decurso desta obra.

(1 ) Para destinguirmos todos estes objectos com tanta clare-


za , quanta he possivel , façamos a applicação a hum exem-
plo familiar.
Em 1769 hum Jurado condemnou Lord Halifax em 4000
libr. est. pelas perdas , e damnos , que tinha causado a John
Wilkes , detendo -o n'huma prizão illegal pelo supposto crime
de ser o réo author de hum libello contra o Estado. Se me
perguntão : de que natureza era o acto do Jurado , que profe-
rio a sentença ? Está claro , que não era hum acto de mali-
cia : a prizão do réo tinha sido forjada anticipadamente pelo
seu accusador : tambem não podia ser hum acto de constran-
gimento ; porque huma vez que o réo pagasse o dinheiro , es-
tava tudo a cabado : nem de defeza pessoal ; por que esta pa-
ra se verificar he preciso , que se dê huma aggressão pessoal
em que entre reacção contra o aggressor : Pois que ? Sería
hum acto de vingança , de antipathia , ou de prevenção , ou
de satisfação pecuniaria , ou propria conservação ?
( 15 )

Segundo o principio de utilidade > as penas


legaes são males , que devem recahir acompanha-
dos de formalidades juridicas sobre individuos con-
vencidos de teremfeito algum acto prejudicial , pro-
hibido pela Lei , e com o fim de se prevenirem si-
milhantes acções para o futuro.
Entrão nesta definição tres circumstancias ,
que não entravão na definição abstracta : o direi-
to de punir - o fim da pena - restringir o cas-
tigo o mais que for possivel , de sorte que se não
possa estender além do réo.
Quanto á origem do direito de castigar , não
he preciso alargar o pensamento ; sahio da mes-
ma fonte, donde manárão todos os mais direitos ,
que pertencem ao Governo : não podemos conce
ber hum só direito , nem do Governo " nem dos
particulares , que possa existir sem o direito de
castigar a pena he a sancção de todos os ou-
tros.
Authores de nome tem sustentado, que as pe-
nas não podem ser legitimas, a não haver hum
consentimento anterior da parte dos individuos ;
como se fosse possivel , que em qualquer acto so-

Respondo , que podião ser todos estes actos , reunidos , ou


o
separados , conforme a intenção dos Jurados. Se hum delles
enraivecido contra Lord Halifax por hum motivo particular ,
ou publico , se alegrasse em lhe fazer mal teriamos hum acto
de vingança , e por consequencia de castigo. Se o obrigasse a
pagar por causa de alguma prevenção geral , como , por ex-
emplo , por ser Grande , ou Ministro de Estado , por ser Ir-
landez , ou Escossez , etc. , o acto do Jurado seria hum acto
de antipathia. Se o mesmo Jurado tivesse em vista estorvar o
Author , ou outro qualquer, de practicar a mesma injustiça para
o futuro teríamos hum acto de prevenção. Se se lembrasse
de dar huma desforra a John Wilkes pela injuria 9 teriamos
hum acto de satisfação pecuniaria. Se assentasse , que a pessoa
'delle Jurado estava em risco de passar pelo mesmo , e sen-
tenciasse contra Lord Halifax com intuito de se livrar a si ,
tinhamos hum acto de prevenção , e de conservação pessoal, etc.
( 16 )

lemne houvesse hum homem , que se quizesse su-


jeitar a esta , ou áquella pena por hum certo
delicto , com tanto que os mais ficassem igual-
mente sujeitos. Apparecem huns longes de hum
pacto similhante nas fórmas de Governo , em que
o Povo tem parte na Legislação ; mas ainda mes-
mo nas democracias , esta idéa de consentimento
não sería pela inaior parte mais , do que huma
ficção tão arriscada , como sem fundamento .
O que justifica o castigo, he a sua maior
utilidade , ou , para melhor dizer , a sua necessi-
dade. Todo o delinquente he inimigo publico ; e
como podem os inimigos consentir em serem des-
armados , e reduzidos a estado de não fazerem
mal ?
No estado selvatico , ou no estado da natu-
reza , o poder de castigar reside em cada hum dos
individuos muito a sabor do seu desafogo , ou de
suas forças pessoaes ( * ) : á medida que os Povos
se vão civilizando , vão largando nas mãos do Go-
verno huma parte do exercicio deste poder ; as-
sim como todo o passo, com que as nações cami-
nhão para o seu atrazamento e anarquia , he
assignalado logo pelo esforço , que vai fazendo o
Povo para se apoderar deste direito. N'huma so-
ciedade politica bem assombrada não conservão
os individuos mais, do que o poder, que a lei lhes
não póde tirar : quero dizer , poder negar cada
hum os seus officios livres a quem o maltrata

( * ) Hoc et ratio doctis , et necessitas barbaris , et mos


gentibus , et feris natura ipsa prescripsit. Cic. pro Mil.
Os barbaros tem esse direito , mas são vingativos :
Fertur equis auriga , neque audit currus habenas.
Iamquefaces , et saxa volant , furor arma ministrat. Virg.
( 17 )

A authoridade domestica , a dos pais , por exém-


plo , que noutro tempo era tão larga , pouco a
pouco se foi estreitando até chegar ao estado , em

que a vemos , de estar reduzida a simples penas
chamadas correccionaes. Nos paizes , em que ain-
da se demora a escravidão , o maior mal do Es-
tado consiste neste direito de castigar , que os
Senhores não querem largar : direito , que he tão
difficultoso , por não dizer impossivel , encerrar
nos seus justos limites.

CAPITULO II.

Classificações.

SE E os delictos particulares se podem reduzir a


-
quatro classes principaes : contra a pessoa
contra a propriedade contra a reputação e
contra a representação ; o mesmo podemos dizer
das penas ( 1 ) . Ninguem póde ser castigado se-
não na sua pessoa , ou nos seus bens , ou na sua
fama , ou no logar, em que está figurando. O que
fórma a symmetria destas duas classificações, he,
que as penas , e os delictos são igualmente ma-
les impostos pela agencia livre dos homens. Tan-
tos são os pontos , em que nos póde ferir hum cri-
minoso , quantos os pontos, em que elle póde ser
ferido pela espada da lei : a differença entre as
penas , e os delictos não está na sua natureza , que
he , e pode ser a mesma ; está em que as penas
são abonadas pela lei ; e os delictos são illegiti-
mos : estes são prohibidos ; as penas emanão da
lei. Quanto aos seus effeitos, são diametralmente
oppostos : o crime produz hum mal da primeira

( 1) Tractados de Legisl. Principios , etc. T. 1. Pag.


Tom. I. C
( 18 )
Y
ordem , e hum mál da segunda ( 1 ) causa da
mno a hum individuo , que o não pôde evitar , e
espalha hum terror mais , ou menos geral : a pena
causa hum mal da primeira ordem , e ham bem
da segunda : faz passar o criminoso por hum pa-
ра-
decimento , em que tem incorrido por sua von-
tade ; e nos seus effeitos secundarios transforma-
se em bem > amedronta os homens perigosos ,
he o alento das almas innocentes , e vem a ser
o unico abrigo , que póde manter , e conservar
qualquer sociedade.
As penas , que entendem immediatamente
com a pessoa nas suas faculdades activas , ou pas-
sivas , formão a classe das penas corporaes , e se
dividem em varios generos :
1. 0 Penas simplesmente afflictivas.
2. Afflictivas complexas.
O #
3. Restrictivas.
4. Penas activas que obrigão a trabalho .
5. Penas capitaes.
As penas , que entendem com a proprieda
de , reputação , ou representação civil , tem por
fim privar o individuo de alguma vantagem de
que estava gozando : chamão-se privativas , de
perda , de privação + de algum direito. As penas
desta classe diversificão muito , e abrangem to-
das as especies de possessões possiveis. Eis-aqui
as penas reduzidas a duas classes :

e pag. - Analyse do mal.. O mal , que resulta de hụm


delicto divide-se em duas porções principaes : 1. na que
recahe immediatamente sobre o que recebeo a injuria , e con-
stitue o mal da primeira ordem : 2. na que nasce para as、
sim dizer, da primeira , e que se espalha por toda a communi-
dade he hum sentimento de susto , que resulta de cada hum
soffrer o mesmo mal ; e aqui temos hum mat da segunda or-
dem. Está conhecida a idéa geral : quanto ao modo de a po
dermos desenvolver , veja-se o cap. citado.
( 19 )

1. Penas corporaes.
2. Penas de privação , ou de perda de al-
gum direito , ou privilegio ( 1 ) .

CAPITULO III.

Fim das penas.

Quando acontece hum acto nocivo , hum de-


licto dous pensamentos se devem offerecer ao

espirito do Legislador , ou do magistrado : o mo-


do de prevenir o crime para que não torne a
acontecer , e o meio de reparar quanto for possi-
vel o mal, que tem causado.
O perigo mais immediato vem do criminoso ;
este he o primeiro objecto , a que se deve acudir
mas ainda resta o perigo de que outro qualquer
pelos mesmos motivos , e com a mesma facilida-
de , não venha a fazer o mesmo. Sendo isto as-
sim , ha dous modos de atalhar o perigo : hum
particular , que se applica ao réo ; e outro geral,
que se applica a todos os membros da sociedade
sem excepção.
Todo o homem se governa nas suas acções
por hum calculo, bem ou mal feito , sobre praze-
res , e penas , ainda mesmo o que não he capaz

$
(1 ) Limito-me a esta classificação que não he mais do que
hum esboço : lembro-me de offerecer n'hum resumo huma re-
vista analytica de todas as penas com a miudeza do Author ;
ainda que seja quasi impossivel definir exactamente duas classes
de objectos , que muitas vezes são tão similhantes que se não
distinguem por maior que seja o cuidado em similhante ma
teria , ha sempre alguns pontos , em que as penas se točão ,
e baralhão por hum modo imperceptivel : huma pena pecunia
ria , por exemplo , vem a ser pena corporal , quando por meio
della fica o individuo privado de poder satisfazer ás primeiras
necessidades da vida.
Nota de M. Dumont.
C 2
( 20 ).

de huma reflexão aturada : lembra-se, por exem-


plo , de que apena vai ser a consequencia de uma
acção , que lhe agrada esta idéa faz hum certo
abalo no seu espirito para o retirar do prazer. Se
o valor total da pena lhe parece maior , se peza
mais do que o valor total do prazer , he natural
que a força , que o afasta do crime , venha por fim
a vencer , e que não tenha logar o desatino , que
formava no seu pensamento ( 1 ) .
A respeito do réo, podemos prevenir a recahi-
da por tres modos :
O
1. 0 Tirando -lhe o poder fysico de fazer mal.
2. Fazendo-lhe esfriar o desejo .
3. Obrigando-o a ser menos afouto.
No primeiro caso o homem desmandado já
não pode commetter o crime ; no segundo não
tem a mesma vontade de o commetter ; no ter-
ceiro , ainda que tenha desejos , não se atreve :
no primeiro fica inhabilitado ; no segundo refor-
mado ; no terceiro está como prezo , porque tem
medo da lei. O modo geral de prevenir os cri-
mes he declarar a pena , que lhes corresponde , e
fazela executar , o que na accepção geral , e ver-
dadeira, serve de exemplo. O castigo, que o réo
padece , he hum painel , em, que todo o homem
pode ver o retrato do que lhe teria acontedido , se
infelizmente incorresse no mesmo crime. Este he
o fim principal das penas , he o escudo, com que
ellas se defendem . Considerando o delicto que
passou , na razão de hum facto isolado , que não
torna a apparecer , a pena teria sido inutil ; se-

( 1 ) Digo valor total , para comprehender as quatro cir-


cumstancias , de que se compõe o valor de huma pena , ou
prazer intensidade , proximidade , certeza , duração. Por es-
tę modo respondemos d' antemão ás objecções de Lock L.
2. Cap. XXI . ) contra esta proposição : O homem he determi-
nado pelo seu maior bem apparente.
( 21 )

ría ajuntar hum mal a outro mal ; mas quando


se observa , que hum delicto impune deixaria o
caminho livre não só ao réo , mas a todos os mais
que tivessem os mesmos motivos , e occasiões
para se abalançarem ao crime , logo se conhece
que a pena applicada a hum individuo he o mo-
do de conservar o todo. A pena , que em si mes-
ma não tem valia ; a pena, que repugna a todos
os sentimentos generosos , sóbe até emparelhar
com os mais altos beneficios , quando a podemos
encarar , não como hum acto de raiva, ou de vin-
gança contra hum criminoso " ou desgraçado ,
que se rendeo a huma inclinação funesta , mas
como hum sacrificio indispensavel para a salva-
ção de todos.
Relativamente ao réo , já sabemos , que a pe-
na encerra tres objectos : inhabilitação , reforma ,
acanhamento para commetter o crime com medo
da lei. Se o delicto he de natureza , que inspi-
ra grande terror , porque denota no animo de
quem o fez huma disposição mui depravada , he
preciso tirar-lhe o poder de recahir ; mas se he
menor , bastará applicar-lhe huma pena de pas-
sagem: mas esta pena em todo o caso deve ter
qualidades proprias para reformar , e assustar o
réo depois que sahe da prizão.
Tendo precavido os crimes , ainda resta ao
magistrado reparar do modo possivel o estrago,
que tem feito " concedendo á parte lesada
huma satisfação , quero dizer , hum bem , que
possa resarcir a injuria , que soffreo.
Esta desforra , cimentada sobre motivos , que
se achão desenvolvidos no segundo Tratado da
Legislação , parece , que não pertence ao réo , por
isso que se applica a huma differente pessoa ; e
até mesmo á primeira vista ninguem dirá, que
tem alguma relação com elle : mas estes dous fins
( 22 )

tém hum enlace real , e verdadeiro. Ha penas ,


que tem dous effeitos huma reparação feita á
parte lesada , e hum padecimento proporcionado,
que se applica ao réo ; de sorte que por huma
só 9 e mesma operação, preenchem dous fins ao
mesmo tempo. Neste caso estão as penas pecu-
niarias ; qualidade eminente , quando se guardão
limites.

CAPITULO IV.

Despeza das penas.

Esta expressão nova ha de parecer singular


á primeira vista , e pouco natural : entretanto nós
a temos escolhido depois de madura reflexão , co-
mo a mais expressiva para denotar a idéa, que se
nos offereceo , sem incluir em si hum juizo an-
ticipado de approvação , ou desapprovação. O
mal, que produzem os castigos, he huma despeza,
que faz o Estado com tenção de lucrar : este lu
cro he prevenir os crimes : nesta operação não ha
mais que sommar o ganho , e diminuir a perda :
donde se segue, que abater a despeza , ou accres-
centar a receita , he tender igualmente para a
utilidade geral.
Huma vez que se admitta a expressão , a
mesma palavra despeza inculca naturalmente a
idéa de economia , ou de parcimonia. Todo o
mundo falla da brandura das penas , e do seu ri-
gor he hum prejuizo suppor no castigo mercê ,
ou menos favor ; prejuizo, que póde servir de es-
torvo á imparcialidade do exame : quem diz pe-
na suave " diz huma contradicção ; chamar-lhe
economica he saber calcular , he dar-lhe o seu
nome .
Diremos por tanto , que esta ou aquella pe
( 23 )

na he economica , todas as vezes que produz o


effeito , que se pertende, com o menor soffrimento ,
que pode ser , da parte do réo : chamar-lhe-hemos
summamente dispendiosa , quando produz hum
maior mal do que bem ; ou quando se poderia
alcançar o mesmo bem á custa de huma pena
menos aspera. Neste caso houve esperdicio , lar-
gueza demais.
Que nos seja licito insinuar aqui mesmo ou-
tra distincção , que nos ha de servir no decurso
da obra. Ha nas penas hum valor apparente , e
hum valor verdadeiro. Entendo por valor verda-
deiro o mal da pena por inteiro , tal qual se ex-
perimenta , quando se soffre. Entendo por valor
apparente o mal provavel , que se pode offerecer
á imaginação dos homens , quando a pena se de-
screve simplesmente , ou quando elles a vêm exe,
cutar. Quem constitue a despeza ? A pena real.
Quem influe sobre a moral dos Povos ? O castigo
apparente. A pena real he a perda o ganho
consiste no castigo apparente : deste ganho par,
ticipão dous ao mesmo tempo , o publico , e a
pessoa do offendido a despeza da pena ajunta
a estes dous hum terceiro , a pessoa do réo.
Não deve esquecer , como acontece muitas
vezes , que o réo he membro da communidade,
como outro qualquer individuo , e que até mes-
mo na razão de parte lesada , não devemos per-
der de vista os seus interesses : o seu bem he
proporcionalmente o bem de todos , o seu mal
o mal da communidade : eis aqui a base , a soli-
da baze das idéas moraes da justiça : podem ha-
ver casos , em que o interesse do réo seja sacri-
ficado ao interesse geral ; mas ainda mesmo as-
sim tem direitos , que devemos respeitar pode-se
arriscar huma grande pena com os olhos n'hum
grande bem , que dahi pode resultar ; mas por
( 24 )

huma troca simplesmente , ou por hum bem de


huma ordem inferior , sería hum absurdo arris-
car a mesma pena ; este he o principio que diri-
ge os homens nas suas especulações particulares ;
este deve ser o mesmo , porque o Legislador se
deve governar .
He verdade , que estamos necessitados a lan-
çar mão de penas reaes ; mas a principal razão
he para servirem de exemplo : a realidade da pe-
na he necessaria ; porque sem esta realidade não
podemos ter a apparencia , que na imposição
das penas deve ser o nosso fim essencial : todo
o mal , que não apparece , fica perdido ; logo he
preciso , que o mal real seja o menor, que podér
ser , e o mal apparente o maior que podermos.
Se castigar hum homem em estatua podesse dar
de si a mesma impressão de terror , sería hum
desatino , e até crueldade , enforcar hum homem
( 1 ) . Se os réos fossem constantemente castiga-
"
dos em segredo , he huma verdade innegavel ,
- que á excepção da vantagem accidental que
poderia resultar de se emendar este, ou aquelle ,
ou de ficar com as mãos prezas para não fazer

( 1 ) No Cabo da Boa Esperança , os Hollandezea usárão


de hum estratagema , que só podia enganar os Hotentotes.
Hum dos Officiaes da Companhia tinha morto hum desses
barbaros vingativos ; tudo estava em fermentação , todos assa-
nhados , implacaveis : era necessario hum exemplo , que os
fizesse accommodar apresentão o criminoso amarrado
armão-lhe hum processo com muitas ceremonias , e por fim
he condemnado a engolir hum copo de agua ardente de pro-
va : o réo finge o seu papel , faz de morto , fica estirado
por terra sem se bolir : os amigos o cobrem com um ca-
pote , e o levão dalli ; e com isto ficão satisfeitos os barba-
ros. O peior, que podião fazer , dizião elles , era lançar o ho
mem no fogo , mas os Hollandezes tinhão sido mais espertos,
tinhão lançado fogo no estomago do homem .
( Lloyd's Evening- Post para Agosto , ou Septembro de
1776. )
(( 25 )

mal " a applicação das penas teria sido inutil :


a pena real neste caso era tudo ; o castigo ap-
parente cousa nenhuma cahiria de repente so-
bre os homens como hum mal imprevisto ; não
se teria apresentado ao seu espirito para o afas-
1
tar da acção criminosa ; não serviria de exem-
plo a ninguem i sang sap dialog
Póde acontecer , que os réos não tenhão co-
nhecimento da pena : 1 Quando esta se appli-
ca sem lei , que se tenha publicado primeiro com
as formalidades necessarias . 2.° Quando o réo
não tinha conhecimento da lei penal.
A lei póde apresentar se á idéa : 1. Pelo.
seu enunciado , isto he , pela descripção da pe
na. 2. Pela execução publica da lei , quando a
pena he imposta ao rẻo por huma notoriedade
conveniente. A idéa da pena deve ser exacta ,
ou , como dizem os Logicos , deve ser adequada ,
quero dizer : sería bom , que se offerecesse ao ess
pirito não só huma parte dos incommodos , que
traz comsigo , mas a sua totalidade. Para ser
exacta , deve representar claramente todos os
Items , de que se compõe : o que se não conhece ,
não póde obrar como motivo.
Daqui podemosa tirar tres maximas de sum-
ma importancia : 1. Sendo iguaes as cousas em
tudo o mais , qualquer pena , que facilmente se
percebe , he melhor do que outra , que se não en
tende bem.

2A que se imprime melhor na memoria


vale mais do que outra , de que nos podemos
esquecer com mais facilidade.
3. Auque he igual , ou avultá mais na
apparencialque na realidade , tem mais mereci-
mento do que outra , que he maior na realidade
que na sua apparencia. Bore:

Tom . I. D
( 26 )

Acha nits -eb of


CAPITULO V. BIJ
24 99 Slas
Medida das penas, autoL
$ ohpy
Adsit in 55 ter
Regula , peccatis quæ poenas irroget æquas ,
Ne scutica dignum horribili seçtere flagello ..
Hor. L. 1. Sat. 3.

E Stabelecei huma proporção entre os delictos ,


e as penas he hum dos preceitos de Montes-
quieu , de Beccaria , e de outros muitos. Excel-
lente maxima na verdade ; mas que tem mais de
apparato que de instrucção , huma vez que se
reduz a termos geraes : trabalho esteril em quan-
to não soubermos em que consiste huma itak pros
porção, em quanto não houverem regras, que nos
possão encaminhar seguramente na applicação
de certa pena a respeito de qualquer delicto
que se pódé offerecer. As penas tem 敷 o seu mi-
nimum , e o seu maximum. Ha razões para que
não sejão menores , e ha tambem razões para
que não devão ser maiores são os dous lados
da questão, que sempre devemos ter em vista,
sem propender para hum , nem para outro.
Primeira regra =
He necessario, que o mal
da pena seja maior que o interesse , que se póde
tirar do crime.p 97 826 9. ob einu olar
Por esta palavra interesse não entendo só-
mente o dinheira; mas qualquer vantagem real ,
ou apparente , que deo motivo ao delicto. O in-
teresse he a força , que leva o homem abarrojar-
se ao crime ; a pena he a força , que se emprega
para o desviar. Se a primeira he maior , temos
a 1 Jdi
( (827 )

o homem criminoso ( 1 ) ; se a segunda he mais


valente , não terá logar o crime : donde se segue ,
que se o réo achar o interesse , que recebeo pe-
lo seu delicto , maior , e mais a seu geito , que o

mal da pena , que soffreo pelo ter commettido ,
he bem natural , que o torne outra vez a commet-
ter sem haver quem o sustenha a pena em tal
caso vem a ser nulla ; porque o não póde assus-
tar ; e o Povo, observando , que a balança do ga-
nho inclina a favor do criminoso , de nada lhe
poderá servir o exemplo , que podia tirar do cas-
tigo.
4
As leis Anglo-Saxonias , que tinhão assigna-
do hum preço certo a vida de hum homem , du-
zentos chelins por huma pessoa ordinaria , hum
conto e duzentos por hum nobre , sete contos e
duzentos chelins pela vida do Rei , estavão bem
muitos casos a penateria
fóra desta regra. Em
sido avaliada como nulla en comparação do in-
teresse , que o réo tirava do seu crime. nl ob
Bem advertido , que vimos a cahir no mes-
mo erro todas as vezes , que estabelecemos certa
pena , que se não póde estender além de hum
certo ponto em quanto as vantagens , que se ti-
rão do delicto, podem ir muito adiante Ser
Authores abalisados tem querido defender
O GEo
contrario : dizem , que devemos alliviar a pena ,
quando a tentação he maior ; porque a tentação
diminue o crime ; e que tanto a seducção he
mais forte , tanto menos depravado devemos sup-
por o réo , que se tem deixado allucinar ; o que
se rende neste caso, inspira naturalmente commi-
in 1 702
seração aos outros homens ( 2 ) .
6
( 1 ) Fallo destes homens , que não tem outro freio mais
do queeta lei , que se não levão dos saudaveis motivos da hu-
6 tura
manidade , da Religião , e da honra.
(2 ) Quem se não admira de ver Adão Smith cahinao
D 2
(( 28 )

Tudo isto póde ser verdade ; mas não he ra


zão bastante para sahirmos , da regra a pena de-
ve fazer-se respeitar em hum gráo maior, do que
o crime se faz appetecivel : todas as vezes, que a
pena não consegue o seu fim , he hum dobrado
mal para o publica , por isso que deixa com-
metter o crime , que devia embaraçar ; e para o
réo, porque o vem a castigar sem tirar utilidade.
Que conceito fariamos de hum cirurgião , que pa-
ra não molestar o doente deixasse a cura imper-
feita?, Sería hum ,acto de humanidade bem enten-
dida accrescentar á doença o tormento de huma
operação inutil ? Logo he necessario , que a pena
conresponda a todos os gráos da tentação , exce-
pto quando a mesma tentação he hum signal da
innocencia , ou do bom caracter do réo ; porque
então deve ter logar a modificação da pena , co-
mo por exemplo , a respeito de hum pai , que pa-
ra matar a fome da sua familia tivesse commetti-
do hum roubo, ( 1 ) .
2. Regra Quando a acção he de natu-
reza , que offerece huma prova concludente de ser
kuni ob ale
~em similhante erro, sendo aliàs hum Escriptor ( de juizo èla-
ro ? Eis o modo, por que elle se exprime , fallando do contra-
ndo os principios da feliz
bando : A lei, contradize justiça , tem da-
do o ser a tentação para a castigar depois no + que
se deixou allucinar a lei aggrava o castigo a par de huma
circumstancia , que o devia fazer menos penoso .
Richesses des Nations L. 1. cap. 2. 024
(1 ) O proveito do crime hão custa muito a avaliar em
hum roubo , que se faz comviolon mas quando entra ma-
licia odio , quem pôde avaliar o proveito relativamente ao
réo Este sempre se deve medir pela natureza do male i que
o aggressor tem feito ao seu contrario : se empregou hum -pro-
cedimento mais para infamar, do que para atormentar o cor-
po, 9 proveito deve contar-se pelo grao de desprezo , que a
parte lesada soffreo na estimação publica : se o réo ferio , se
mutilou o proveito he o grão de padecimento, a que tem
.
obrigado o seu proximo. UM
( 29 )

hum costume inveterado , he necessario, que a pe-


na seja bem vigorosa para exceder não sómente
o proveito do delicto individual , mas de todos os
crimes do mesmo genero , que podemos suppor te-
rem sido commettidos pelo mesmo reo impune-
mente.
- Este calculo conjectural , apezar de ser rigo-
roso , he de huma necessidade absoluta em cer-
tos casos , como em crimes fraudulentos , pezos sem
estarem aferidos , medidas falsificadas moeda
falsa : se hum destes, que fabricão huma tal moe-
da , não fosse punido senão pelo valor do unico
delicto , que se lhe pôde でprovar , similhante pra-
ctica fraudulenta viria a ser na sua totalidade de
grande lucro para o réo : logo a pena sería sem
efficacia , * se não contrabalançasse o ganho total ,
que se póde suppor resultar , não de hum acto
particular ; mas de huma serie de actos do mes-
mo genero.
3.ª Regra = A pena deve exceder o interes-
se , que se tira do crime , a ponto de compensar
o que lhe falta na razão de certeza , e aproxi
mação.
O interesse do crime he por via de regra
mais certo , do que costuma ser o castigo ; ou , o
que vem a dar no mesmo 2 assim parece ao réo :
geralmente fallando , he mais immediato ; a ten-
tação está presente , o castigo está longe : e aqui
temos duas circumstancias ,, que tornão menos
vigoroso o effeito do castigo a sua incerteza, e
a distancia , em que o réo o considera.
Supponhamos, que o proveito do crime he
igual a dez libras esterlinas , e ponhamos a rea-
lidade do castigo como hum para dous : he claro,
que se a pena, na razão de ter logar, já não he
de 10 libras esterlinas , o effeito, que faz sobre
0 espirito de hum homem , em quanto está incer-
( 30 )

ta não pode ser igual ao de huma perda certa de


10 libras esterlinas , e que deve ser igual a huma
perda certa de cinco libras esterlinas se a quere-
mos fazer equivalente ao proveito do crime , he
preciso dar-lhe o valor 1 de vinte libras.
A' Excepção dos casos , em que o homem he
arremeçado por huma paixão impetuosa , natural-
mente não se vai metter no caminho do crime ,
senão porque espera ficar sem castigo. Humà
vez, que a pena não conseguisse mais nada, do
que tirar simplesmente ao réo o fructo do seu
crime , com tanto que não falhasse , ninguem se
atreveria a ser criminoso qual sería o homem
cordato , que se lançaria voluntariamente à com-
metter hum crime , com o risco certo de o não
desfrutar , e com a vergonha de ser apanhado ?
Mas como sempre se figura possivel o poder es
capär , por isso he necessario dar á pena hum
maior valor para contrabalançar a probabilida-
de de se não empregar.
Daqui se segue , que tanto mais podérmos
augmentar a certeza da pena , tanto mais lhe de-
vemos diminuir o rigor ; he este o grande inte-
resse , que resultaria de huma Legislação simpli-
ficada ,
e de hum bom systema na ordem judi-
cial. Pela mesma razão he necessario que a pena
acompanhe o crime o mais que for possível ; por-
que a sua impressão esmorece no espirito dos
homens , logo que deixão de a ter diante dos olhos ;
além da grande razão , de que a distancia da pe-
na reforça a mesma incerteza , dando-lhe novas
probabilidades de se não verificar. ( * ) . ⠀
4. Regra Quando concorrem dous, ou mais
delictos , o mais nocivo deve ficar sujeito a huma

( * ) Vejão- se as obras de Plutarco T. 7. pag . 150. A


demora nem emenda o criminoso , nem serve de exemplo.
( 31 )

pena mais forte ; para que o reo tenha hum mo-


tivo para não passar do menor.
Concorrem dous delictos , quando hum homem
tem poder , e vontade de commetter ambos ; por
exemplo : entrão ladrões em huma casa , em que
podem roubar simplesmente , ou maltractar as pes-
soas , assassinar , lançar fogo : se a pena contra o
furto he a mesma , que para quem rouba , e mata
ao mesmo tempo , está claro que os malfeitores
tem hum motivo na mesma lei para assassinar ;
porque este segundo crime facilita o primeiro , e
o torna mais seguro . Esta regra sería completa
se podessemos repartir huma porção corresponden-
te de pena para cada huma das porções do cri-
me. Se o que roubou huma moeda de ouro soffre
a mesma pena que outro que furtou meia moe-
da , está claro , que os cinco cruzados novos, que
o primeiro tirou de mais , he huma porção de cri-
me, que vem a ficar sem castigo. E aqui temos
a razão de quanto deve ser absurdo aggravar as
penas em delictos menores ; porque se perdem
os meios de as podermos graduar em os crimes
maiores ( 1 ).
5. Regra Tanto maior he o crime , tan-
to se pode arriscar humapena mais grave, em ra-
zão de se poder prevenir.
Esta regra tem hum caracter de evidencia ,

( 1 ) Montesquieu , depois de ter recommendado esta re-


gra de proporção , accrescenta : Quando não ha differença no
castigo , he preciso , que exista na esperança C do perdão. Em
Inglaterra os salteadores não i matão ( deveria dizer : poucas ve-
zes matão ) ; porque tem esperança de passarem para as Co-
lonias o que de sorte nenhuma se concede ao matador.
Esprit des Loix L. 6. Cap. 16. Não duvido do effeito ;
mas para que he deixar este direito de mudar a pena á dis-
crição de hum poder arbitrario ? Se o perdão incerto influe
até hum certo ponto , de huma lei certa deverá sortir hum
effeito mais aseguro. F
( 32 )

que não necessita de prova : mas que pouco set


tem practicado entre nós ! Ainda não ha muito,
que as leis de Inglaterra condemnavão ao fogo
mulheres só pelo crime de terem passado moeda
falsa a pena de morte ainda se está applicando
a delictos de menos entidade : o roubo domesti-1
co na França era castigado com pena ultima :
muitas nações ainda se servem do supplicio dot
fogo , ou pelo menos he mandado por leis contra
certos crimes , que se podião cohibir só com a ver-
gonha. Se fosse conveniente conservar similhan-
te pena , que leva o terror ao seu maior auge ,
deveria ser para incendiarios , e homicidas ao
mesmo tempo. Dirão talvez, que os Legisladores
sempre fizerão tenção de seguir esta regra ; mas
que a sua opinião , como a do Povo , tem›‹ va-
riado sobre a gravidade dos crimes . O sortilegio
pareceo o mais horrivel : hum feiticeiro , que veno
dia a sua alma ao demonio , era objecto de exe-
cração publica : hum herege inimigo de Deos
chamava sobre si a colera celeste : roubar vasos
sagrados , ou qualquer cousa destinada para o
culto divino , era hum delicto maior que o rou-
bo ordinario , como ultrage contra a Magestade
divina ( 1 ) huma falsa avaliação dos crimes ,
que resultado podia dar, senão huma falsa dis-
tribuição de castigos ?

( 1 ) A theoria da gravidade dos crimes he hum prelimi-


nar indispensavel para a theoria das penas. Vejão - se os princi-
pios desenvolvidos nos Tractados de Legisl. T. 1. Analyse do
mal dos delictos 9 e T. 2. sobre o mal da segunda ordem ,
e circumstancias, que influem a na grandeza do susto.in co
Quanto á profanação dos vasos sagrados , foi o crime de
Balthasar , de Heliodoro , etc. , he huma injuria , que se
faz ao culto publico , he huma impiedade . Os mesmos Gen-
tios a tinhão em horror ; he a voz da Natureza ; era o maior
delicto de Verres, no sentimento . de Cicero : e fallando segun-
do as idéas do Catholicismo , he desacatar a Deos nos vasos ,
( 33 )
a
6. Regra. Não se deve impor a mesma pe-
na a todos os réos pelo mesmo delicto ; he neces-
sario reparar nas circumstancias , que influem na
sensibilidade.
As mesmas penas nominaes impostas a dif-
ferentes pessoas não são as mesmas penas reaes.
.
Tracta-se , por exemplo , de castigar huma inju-
r-a corporal ? A mesma pena pecuniaria, de que
se fica rindo o homem rico , póde reduzir á mi-
seria o homem pobre : a mesma pena affrontosa ,
que envergonha o homem de huma certa digni-
dade , não faz móssa n'huma classe inferior : a
mesma prizão póde arruiuar o que vive da sua
agencia , accelera a morte de hum velho debili-
tado , he huma deshonra para huma senhora de
bem ; em quanto vem a ser pouco mais de na-
da para quem se acha noutras circumstancias.
A lei póde anticipadamente determinar , que
esta , ou aquella pena, seja modificada em razão
da idade , do sexo , da qualidade da pessoa , etc.;
mas sempre deve deixar alguma cousa á pru-
dencia dos Juizes. Os limites do castigo ficão
mais bem assignalados por carta de menos , que
por carta de mais : he mais facil repararmos no
muito pouco , que no muito : o que não chega,
mette-se pelos olhos ; o que excede , passa mui-
tas vezes em claro : devemo-nos contentar com
huma aproximação. As irregularidades , na for-
ça das tentações , são de natureza , que obrigão
os Legisladores a fazer subir a pena por cima do
risco , que sería bastante para a maior parte
dos homens : contão com a violencia dos dese-

que encerrão os seus mysterios , e os Sacramentos da Igreja :


he escandalizar , e fazer peccados naquelle mesmo logar , em
que se chorão se confessão , e se perdoão.

Do Traductor P,
Tom I. E
( 34 )

jos ; e por isso applicão logo remedios heroicos ,


deixão o caminho ordinario .
Nem se diga, que a pena , no caso de ser
menos forte , não produzia o seu effeito : he o
que se não póde provar : bastaria hum pequeno
gráo de attenção para evitar o defeito ; e ainda
quando existisse na lei , por isso mesmo que era
claro , e manifesto , tinha facil emenda. Não acon-
teçe o mesmo quando a pena he excessiva : ha
huma natural inclinação no espirito humano em
augmentar os crimes alheios ; e os Legisladores ,
seja pela antipathia , que os leva a huma severi-
dade illimitada , seja por falta de commiseração ,
estão dispostos contra homens , que se lhes re-
presentão como perniciosos , e baixos. Para des-
contar esta prevenção , he que são necessarias to-
das as cautelas : he preciso estar alerta , sem per-
der de vista o lado , em que a experiencia tem
mostrado as maiores disposições para o erro.
Devo accrescentar de passagem , que não
sejamos tão apurados , que tenhamos em vista
huma proporção mathematica : sería fazer as leis
subtis , minuciosas , e complicadas ; nem he pre-
ciso encarecer este principio, pelo não fazer ridi-
culo : he tão barbaro neste caso menosprezar as
circumstancias mais miudas , quanto sería absur-
do querer fazer menção de todas ellas a fio di-
reito, sem deixar huma só de fóra : ha hum bem ,
que vale mais, do que a proporção : a clareza das
leis , a brevidade , a simplicidade , e o seu effeito
exemplar.
Tenho ouvido dizer contra esta doutrina ,
que as regras de proporção em hum codigo penal
terião seu merecimento , mas sem utilidade ; por-
que suppõem o que he falso , que as paixões cos-
tumão calcular mas não me posso accommodar
a huma proposição tão decisiva. Em materias de
( 35 )

grande interesse , qual he o sujeito , que não lan-


ça primeiro as suas contas ? He verdade, que huns
acertão melhor do que outros , segundo os diffe-
rentes gráos de capacidade , e força dos motivos ,
que tem imperio sobre elles ; mas todos calculão
até o mesmo insensato , na minha opinião. He
huma felicidade , que de todas as paixões a me-
nos calculista seja a que em razão da sua força ,
e constancia , e generalidade , he a mais temivel
para a sociedade : fallo da avareza : de sorte que
o avarento pode ser tanto melhor combatido "
quanto for maior o cuidado da lei em o cortar pe- .
los seus mesmos fios , pelo meio do interesse.

CAPITULO VI.

Das qualidades , que devem ter as penas.

PAssemos agora a considerar as qualidades ,


que deve ter o modo de castigar, para correspon-
der aos seus fins.

1. Divisibilidade

A primeira qualidade , que deve ter a pena,


he ser divisivel , susceptivel de mais , ou de me-
nos , seja na intensão , seja na sua duração. Hu-
ma pena indivisivel não póde corresponder aos
differentes gráos da escala dos delictos ; ha de
peccar necessariamente por excesso , ou por de-
feito no primeiro caso será muito dispendiosa ;
no segundo ficará sem produzir o seu effeito.
As penas corporaes excessivas são muito di-
visiveis na sua intensidade ; são muito menos na
sua duração : os trabalhos forçados estão quasi
iguaes em huma e outra qualidade.
E 2
( 36 )

As penas chronicas , o degredo , e a prizão


são perfeitamente divisiveis quanto á sua dura-
ção , e podem tambem variar na intenção : a ca-
deia pode ser mais , ou menos apertada , e peno-
sa hum desterro na Syberia he mais rigoroso ,
que n'hum clima mais benigno.

2.ª Certeza Igualdade.

A pena deve ser certa , e quanto puder ser


igual a si mesma. A certeza não se refere á exe-
cução : esta póde falhar pela difficuldade, que mui-
tas vezes se encontra , em produzir as provas do
crime , e o réo nem sempre se póde apanhar , e
prender. Huma pena he incerta de sua natureza ,
quando ao réo não se lhe dá de a soffrer : o de-
gredo tem este defeito ; póde mortificar , e póde
ser indifferente , conforme a disposição do réo
e circumstancias individuaes da idade , da qualida-
de da pessoa , e da fortuna . Pelas leis de Ingla-
terra , muitos crimes são punidos por huma con-
fiscação de todos os bens moveis , sem tocar nos
immoveis : que se segue daqui ? Se a fortuna do
réo consiste em bens da primeira especie , fica
perdido ; se não tem mais do que predios , vem
a não ser castigado. Se a pena he incerta de sua
natureza , he como se não existisse para o réo ,
a quem não incommóda . Ha porém alguns casos.
de necessidade , em que tem logar huma penal
incerta , quando se não póde impor outra ; por-
que he melhor castigar algumas J vezes por este
modo , do que a impunidade geral.
O meio de remediar a incerteza he ter duas
penas differentes , não para as applicar ao mesmo
sujeito , mas para supprir, quando huma dellas he
defeituosa ; por exemplo , a pena corporal suppre:
a pena pecuniaria , quando o réo pela sua indi-
gencia não póde pagar.
( 37 )

Huma pena incerta he desigual : a perfeita


certeza suppõe perfeita igualdade , quero dizer ,
suppõe , que todos aquelles , que passão por ella ,
a sentem da mesma sorte ; mas a sensibilidade
dos individuos he tão variavel , tão desigual , que
a perfeita igualdade das penas he huma quimera :
basta evitar tudo , o que he desigualdade mani-
festa , e que se faz odiosa . Por tanto he huma
verdade , que devemos trazer esculpida na me-
moria na formação de hum codigo penal : que a
mesma pena nominal não he a mesma pena real
segundo as diversas circumstancias do estado , for-
tuna , idade , sexo , etc. Toda a multa , ou con-
demnação de huma quantia certa , e permanente,
he sempre huma pena desigual : e que differença
nos castigos corporaes , nos açoutes , por exem-
plo , segundo a idade , e o estado das pessoas ?
Na China tudo se reduz a levar pauladas desde
o aguadeiro até ao Mandarim , até ao Principe ,
o que prova , que similhantes Povos não conhecem
absolutamente os nossos sentimentos de honra.

3. * Commensurabilidade.

As penas devem ser commensuraveis en-


tre si. Supponhamos hum homem em situação de
poder escolher entre muitos delictos : apoderar- se
de certa quantia de dinheiro por hum simples
roubo ― por homicidio , por meio do fogo :
aclei deve offerecer-lhe hum motivo , que o faça
abster do maior crime : este motivo he saber de
certo , que ao maior crime corresponde hum cas-
tigo mais pezado . He necessario , que o réo possa
comparar as penas entre si , e medir os differen
tes gráos , de que ellas se compõem .
Se os tres delictos , que ficão expostos , es-
tivessem igualmente sujeitos á pena ultima , simi-
( 38 )

lhante pena já se não podia medir ; deixaria ao


réo a escolha do crime , que se lhe affigurasse
mais facil , e menos arriscado na sua execução .
Ha dous modos de conseguir este fim : 1.
ajuntando a huma certa pena outra quantidade
da mesma especie ; por exemplo , a cinco annos
de prizão por certo crime dous annos de mais ,
quando for mais aggravante : 2. ajuntando lhe
huma pena de outro genero ; por exemplo , a cin-
co annos de prizão por hum certo crime a igno-
minia publica, por ser mais aggravante.

4. Analogia.

A pena deve ser analoga ao delicto . Se a pe-


na tem huma similhança caracteristica com o
crime , imprime-se mais profundamente na me-
moria , entranha -se na imaginação com mais vi-
veza ; a pena de Talião he admiravel por este
motivo: olho por olho , dente por dente. O homem,
ainda o mais bronco , e sem capacidade , póde
ligar estas idéas ; mas similhante pena raras ve-
zes tem logar na practica , além de ser mui dis-
pendiosa ; he preciso recorrer a outros meios de
analogia. Tractaremos desta importante materia
em hum capitulo separado.

5. Ser exemplar.

O castigo he exemplar , quando a pena ap-


parente está em grande proporção com a pena
real ( veja-se o Cap. IV. ) A pena real , que não
fosse apparente , poderia servir para intimidar o
réo , e para o reformar ; mas ficava perdida para
o publico.
Os Autos da Fé serião a mais util invenção
da Jurisprudencia , se em logar de serem da Fé
( 39 )

tivessem sido actos de justiça . Que he huma exe-


cução publica ? Huma tragedia solemne , que o
Legislador apresenta ao Povo junto ; tragedia da
maior importancia , verdadeiramente pathetica ,
assim pela realidade do seu catastrophe " como
pela grandeza do seu objecto. O apparato da sce-
na , a decoração , e as ceremonias devem ser car-
regadas ; porque do exterior depende o seu prin-
cipal effeito tribunal , cadafalso , vestidos dos
officiaes de justiça , o desalinho do padecente , os
Ministros da Religião , a procissão , o acompa-
nhamento , tudo deve ter hum caracter serio , é
horrivel no seu genero : os mesmos executores
deverião estar cobertos de negro : o terror au-
gmentaria , e estes servos uteis do Estado dei-
xarião de incorrer no odio , e aversão do Povo.
Com tudo isto ha huma cousa , que notar em todo
este ceremonial da pena , e vem a ser : que não
indisponha o mesmo Povo contra si , nem se faça
odiosa pelas falsas apparencias de rigor.

6.° Economia.
1
A pena deve ser economica , isto he , não
deve ter senão o gráo de severidade necessario
para alcançar o seu fim. Tudo o que he além da
necessidade, não só vem a ser hum mal superfluo ,
mas traz comsigo huma alluvião de inconvenien-
tes, que tendem, mais ou menos, a enfraquecer o
systema penal : he o unico motivo racionavel ,
que indispõe o Povo contra as penas.
As pecuniarias tem esta qualidade n'hum
gráo eminente : todo o mal, que sente o que pa-
ga, se converte em beneficio para o que recebe.
Em relação á despeza publica , ha certas penas,
que se oppoem especialmente ao principio de eco-
nomia ; por exemplo : as mutilações applicadas
( 40 )

a delictos , que se commettem com frequencia :


o contrabando he deste genero. Quando os homens
ficão aleijados para ganhar a vida , he necessario
alimentalos á custa do erario , ou entregalos á ca-
ridade dos fieis , tributo , que vai fazer pezo ex-
clusivamente sobre a classe a mais virtuosa.
Se devemos acreditar Filangieri , havião con-
tinuamente nas cadeias de Napoles mais de qua
renta mil prezos ociosos que immensa perda
de trabalho ! A cidade de Inglaterra , que tem
mais fabricas , não chega a occupar hum numero
igual de pessoas.
Em muitas nações ha pena ultima contra os
desertores, imposta pelas leis militares : matar hum
homem não custa nada ; mas perde- se o que elle
poderia ganhar o producto de quem preenche
o seu logar fica sendo inutil, como senão traba-
lhasse.

7. Ser reparavel.

He huma das qualidades da pena ser repa-


ravel , ou poder-se revogar. He verdade , que em
relação ao passado todas as penas são irremissi-
veis : logo que o réo foi castigado , ainda que
depois venha a provar claramente a sua innocen-
cia , ninguem lhe tira o castigo. O que podem
fazer as leis, he compensar o innocente : ninguem
o póde repor outra vez no seu primeiro estado ;
mas podem haver meios de melhorar a sua condi-
ção presente. A unica pena irreparavel he a pe-
na de morte.. ( Veja- se o 1. 2.° Cap. XIV. )

8. Atalhar o poder de fazer mal.

Huma pena , que tira ao réo o poder de fa-


zer mal , he excellente , logo que não seja mui dis-
( 41 )

pendiosa. A prizão , em quanto dura , tem esta


qualidade ; as mutilações podem reduzir este po-
der a quasi nada ; e a pena ultima o destroe pe-
la raiz. Ha casos , em que se não póde tirar o
poder de fazer mal sem tirar a vida, em circum-
stancias extraordinarias , como por exemplo , nas
guerras civis , quando o nome de hum cabeça de
partido , em quanto vive , he bastante para ati-
çar as paixões dos seus apaniguados ; mas ainda
mesmo assim , a pena ultima applicada a acções
de huma natureza tão problematica , deve consi-
derar-se mais como hum acto de hostilidade , que
na razão de pena legal. Ha casos , em que se ti-
ra o dito poder com a maior economia da pena :
supponhamos , que o delicto consiste n'hum abu-
so de authoridade , ou na falta de fidelidade na
arrecadação dos direitos , basta remover o empre-
gado , tirar-lhe a administração , a tutela , o fi-
deicommisso , de que tem abusado este meio
póde servir para o governo domestico , e para o
governo politico.

9. Tendencia para o melhoramento moral.

Toda a pena tem hum certo effeito para in-


timidar ; mas se o réo depois do castigo se não
abstem do crime senão porque tem medo , não
podemos dizer , que está reformado : quem diz re-
forma , diz mudança no caracter , e nos máos ha-
bitos moraes . A pena tem huma tendencia para
emendar o homem , quando he calculada de mo-
do, que póde enfraquecer os motivos enganosos ,
e reforçar os motivos tutelares : algumas penas
ha , que tendem pelo contrario a fazer o homem
vicioso ainda mais estragado : as penas infaman-
tes tem este grande perigo , quando se applicão
a pequenos defeitos , ou a falhas da mocidade :
Tom . I. F
( 42 )

Diligentius enim vivit , cui aliquid integri super-


est. Nemo dignitati sua parcit. Impunitatis ge-
nus est jam non habere pænæ locum. Seneca de
Clem. cap. XXII.

10. Poder-sc converter em proveito.

Quando a pena se póde converter em pro-


veito tem huma qualidade de mais , que em mui-
tos casos póde ser de summo valor. Quando se
commette hum crime , e depois se castiga , te-
mos o mal do crime , e o mal da pena ; se a pe>
na póde render algum proveito , applicai este pro-
veito á parte lesada , e tendes sarado o mal do
crime : saldando a conta , já não resta mais do que
huma só porção de mal em logar de duas que
existião . Senão ha parte lezada , como nos cri-
mes , que não produzírão mais , do que susto , ou
perigo ; não ha golpe, que se deva curar ; mas
entretanto se a pena he de natureza, que rende
proveito , temos huma somma liquida, com que
podemos contar. Esta qualidade se descobre nas
penas , que consistem em desauthorar o réo , ou
privalo do poder, que tinha. O logar de honra
ou de lucro, que vem a perder pelo seu crime, vai
recahir em outra pessoa mais digna : de todas as
penas, as que se chamão pecuniarias, são as uni-
cas , em que se verifica perfeitamente huma tal
qualidade.

11. Simplicidade no modo de se dar a conhecer.

A pena deve enunciar- se com a maior clare-


za possivel , e com a maior simplicidade , de sor-
te que todos a entendão , não só as pessoas de
tino , mas até o mais ignorante. He verdade, que
nem sempre se póde guardar esta simplicidade.
( 43 )

Ha muitos crimes, cuja pena se compõe de mui-


tas partes , de multa pecuniaria , pena corporal ,
cadeia , etc : a regra de simplicidade neste caso deve
ceder a cousas mais importantes. Offereço esta
qualidade , para que o Legislador se lembre del-
la , e se lhe accommode o mais que for possivel .
Tanto as penas são mais complexas ‫ و‬tanto he
mais de recear, que se não apresentem por intei-
ro ao réo na occasião , em que he tentado ; ou
porque não tem conhecimento das partes da pe-
na , ou porque se não lembra das outras : entrão
todas na pena real ; nas não entrão na pena ap-
parente.
Tambem he de summo interesse saber esco-
lher o nome da pena : huma palavra obscura he
hum véo , que se lança sobre o total das penas ,
e que as não deixa conhecer por hum modo dis-
tincto. A lei da Inglaterra tem seus defeitos nes-
ta parte. A traição capital ( * ) encerra penas tão
diversas , que pela maior parte se não conhecem ,
e que por isso mesmo não fazem impressão. O
mesmo crime com privilegio do Clero tem a mes-
ma obscuridade : as ameaças da lei não offerecem
ao espirito huma idéa distincta , e o primeiro
pensamento , que se offerece a huma pessoa, que
não he instruida , he , que a lei tracta de premios , e
não de castigos . O Præmunire ( **) tambem se não
entende : os que sabem latim estão bem longe
de conhecer a pena , que alli se declara : simi-
lhantes obscuridades são bem parecidas com os
3
enigmas de Esfinge , em que os homens erão cas-
tigados por não saber adivinhar.

( * ) Veja-se o L. 5. desta obra cap. 3.


** } Certa lei , ou ordenação de Inglaterra, feita no
tempo de Ricardo II . para sopear abusos.
F 2
( 44 )

12. Popularidade.

As penas devem ser populares , ou , para me-


Thor dizer " não devein ser odiosas no conceito
publico. O Legislador na escolha das penas deve
evitar cuidadosamente as que podem entender com
os prejuizos da sua nação. Se o Povo , com ra-
zão , ou sem ella , tem concebido aversão a hum
certo genero de pena , por mais conveniente que
seja em si mesma , não deve entrar no Codigo
Penal : he hum verdadeiro mal dar ao publico
hum sentimento penoso pelo estabelecimento de
huma pena , que não he do seu agrado neste
caso não se castigão só os criminosos , mas as
pessoas as mais innocentes " e as mais quietas
da sociedade , impondo-lhe huma pena verdadei-
ramente real , em quanto se fere a sua sensibili-
dade , e se affronta a sua opinião , mettendo-lhe
á cara a imagem da violencia , e da tyrannia. Que
succede de hum procedimento tão pouco judicio-
so ? O Legislador , que não faz caso da opinião
publica , vira contra si mesmo esta opinião
insensivelmente ; perde o abrigo voluntario , que os
individuos costumão dar a execução da lei , quan-
do ella tem a sua approvação ; não póde contar
com o Povo como seu alliado , mas como seu ini-
migo. Qual trabalha por facilitar a evasão do cri-
minoso qual faria escrupulo de o denunciar á
justiça : as mesmas testemunhas fogem , o mais
que pode ser , de dar o seu depoimento : insensivel-
mente se vai formando hum prejuizo funesto
contra a lei , até que vem a ser huma vergonha,
huma especie de deshonra, concorrer para a sua
execução. O descontentamento geral ainda póde
ir a mais rompe algumas vezes em desobedien-
cia formal , ou contra os officiaes de justiça , ou
contra a execução da sentença. Se o Povo sabe
( 45 )

bem do seu arrojo , assenta , que tem alcançado


huma victoria , e o réo impune se alegra com a
fraqueza da lei humilhada pelo seu triunfo.
E quem faz as penas odiosas ? Pela maior
parte o serem mal escolhidas : tanto mais se ajus-
tarem as leis penaes com as regras , que lemos
apontado , tanto ellas serão mais acreditadas pe-
los homens de juizo , e até pela mesma approva-
ção sentimental da multidão : todos acharão justi-
ça , e moderação em similhantes penas : cada hum
ficará maravilhado de ver a sua conveniencia , e
analogia com os crimes , podendo graduar a pe-
na aggravante , que deve corresponder a hum
crime aggravado , e a diminuição do castigo ,
que se deve applicar a hum crime , que se faz
menos odioso por alguma circumstancia .
Este genero de merecimento , que se funda
nas idéas domesticas , e familiares , está ao al-
cance dos homens de menor capacidade : nenhu-
ma cousa he mais propria para nos dar a idéa
de hum Governo paternal , para inspirar confian-
ça , e fazer caminhar a opinião publica ao lado da
authoridade. Quando o Povo segue o partido das
leis , as abertas do crime para escapar do casti-
go estão reduzidas á sua menor expressão.
Fazer hum catalogo das qualidades , que de-
ve ter a pena para ser bem ordenada , sería hum
trabalho inutil . A primeira cousa , que se deve
fazer em qualquer materia , se queremos proce-
der com acerto , he formar huma idéa abstracta
das qualidades , que deve ter o objecto , que se
pertende explicar em quanto não fizermos isto ,
toda a nossa approvação , ou desapprovação , não
passa de hum sentimento confuso de sympathia ,
ou de antipathia. Pelo que fica dito , já podemos
ter razões claras , e distinctas, para decidir na es-K
colha das penas : resta unicamente cbservar em
( 46 )

que proporção esta , ou aquella pena, possue es-


tas qualidades diversas. Tirar huma conclusão de
huma só destas qualidades não he querer acer-
tar he preciso destiar cada huma de per si , e
consideralas todas juntas . Não ha huma só pe-
na , que possa reunir em si todas as qualidades ;
mas segundo a natureza dos crimes , assim hu-
mas podem ser mais importantes , do que outras.
Nos maiores crimes devemos fitar toda a nos-
sa attenção , e cuidado no exemplo , e analogia.
-Nos pequenos delictos , he necessario attender
mais á economia da pena , e ao objecto moral da
reforma. Nos crimes contra a propriedade são
preferiveis as penas , que se podem converter em
proveito , de que se póde tirar huma compensa
ção para a parte lesada.
Nota. Vou dar hum exemplo do andamento
-prosgressivo das idéas , e da utilidade dos numė-
ros para registrar methodicamente todas as ob-
servações modernas a este respeito , sem perder
-huma só. Procurei em Mostesquieu todas as qua-
lidades penaes , que lhe merecêrão cuidado ; e
achei quatro , que estão exprimidas por termos
vagos , ou perifrases.
1. Requer , que as penas sejão tiradas da
natureza dos crimes , isto he , que tenhão huma
certa analogia entre si .
2. ° Que sejão moderadas ; expressão muito
vaga , em que se não acha hum ponto de com-
paração.
3. Que sejão proporcionaes ao crime. A
proporção refere- se mais á quantidade da pena,
do que á sua qualidade. Montesquieu não expli-
ca em que consiste esta proporção , nem dá hu-
ma só regra a este respeito .
4. Que sejão honestas.
Beccaria notou igualmente quatro qualidades :
( 47 )

1. Diz, que as penas devem ser analogas aos


delictos ; mas não entra na averiguação desta
analogia.
2. Que sejão publicas ; que vale o mesmo,
que dizer exemplares.
3. Que sejão brandas , termo improprio y e
que nada significa , ainda que as suas reflexões
sobre o 0 perigo de excesso sejão mui judiciosas.
4. Que sejãoproporcionaes ; mas não assigna
huma só regra para esta proporção.
$
Quer além disto , que as penas sejão certas ,
"
promptas , inevitaveis ; mas tudo isto pertence
ao foro judicial , ao modo de applicar as penas ‚ e
não as suas qualidades.
Voltaire no seu commentario sobre Beccaria
"
repete muitas vezes , que as penas devem ser prö-
veitosas hum homem enforcado , diz elle , não
serve para nada.
Hum dos 1 héroes da humanidade , o bom , o
virtuoso Howard , tinha sem cessar em vista a
emenda dos réos. A
Se observarmos o ponto de que partem to
dos estes oraculos da sciencia se examinarmos
suas idéas vagas , principios geraes , viremos a
C
concluir , que não tendo apresentado hum nome
proprio para se explicarem não poderão fazer
uma enumeração regular de todas as qualidades
que podem ter as penas , sua distincção , seus
nomes , suas definiçõess Levados pelo Author des
"
ta obra , já podemos offerecer as penas debaixo
de hum ponto de vistal de aproximação já po-
demos determinar a sua importancia comparati-
va , e o seu justo valor. Montesquieu , querendo
dar tudo á qualidadade de analogia , deixou- se
enganar , atttribuindo- lhe effeitos , que certamen-
te não tem. Esprit des Loix XII. 4.
Creio, que temos respondido sufficientemen-
( 48 )

te aos que notão M. Bentham de ser nimiamente


affeiçoado ao seu methodo fallo das suas divi-
sões , enumerações , classificações , a que pode-
mos chamar apparato logico. Dizem, que se de-
vem deitar abaixo os andaimes , logo que o edi-
ficio está levantado mas para que havemos ti-
rar ao leitor os instrumentos, de que o Author se
servio ? Para que se lhe ha de esconder o traba-
lho analytico , e o procedimento da invenção ,
Organum cogitativum , que nos obriga a pensar ?
O Author revela o seu segredo ; chama a si os
outros para cooperarem com elle ; entrega o fio ,
que o tem encaminhado nas suas descobertas ,
para que os homens possão ir mais adiante , se
verificar a verdade por si mesmos. Cousa singu-
lar ! Porque o trabalho he maior , merecerá me-
nos premio ?
Bem sei , que se o Author fizesse misterio
dos meios da sua logica , como de uma doutrina
secreta , não descobrindo , ( se he licito fallar as-
sim , a anatomia do seu discurso , os musculos ,
os nervos , poderia ter ganhado mais pelo lado
da facilidade , e colorido : bem sei, que , seguindo
a analyse , tudo corre de plano , todos esperão o
que se segue , não ha novidade ; mas que impor-
ta , se o todo he luminoso ? O estylo não arreba❤
ta , não ha relampagos , nem pensamentos , que
dão nos olhos , e que n'hum instante se mettem
pelas sombras ; custa a levar ao fim hum metho-
do tão exacto ; mas era este o modo de satisfa-
zer plenamente a razão do homem sensato.

Nota do Sr. Dumont.


( 49 )

CAPITULO VII.

Da analogia entre as penas , e os delictos.

A Nalogia he o mesmo que relação , connexão ,


ligação entre dous objectos , pela qual hum del-
les tem a propriedade de nos fazer lembrar do
outro. A similhança he huma especie de analo-
gia , a dissimilhança he igualmente outra ( 1 ) .
Para estabelecer a analogia entre o castigo ,
e o crime , he preciso, que haja neste alguma cir-
cumstancia notavel " que se possa transfe-
rir para o castigo. Esta circumstancia notavel ,
ou caracteristica, póde ser o instrumento, que ser-
vio ao crime , o orgão do corpo , por que elle se
consummou , a parte do corpo, que deo occasião
o meio empregado pelo delinquente para o não
conhecerem , etc. Os exemplos , que vou dar ,
não tem por fim mais , do que explicar ao claro o
que quer dizer analogia. Limito-me a dizer, que
tal pena sería analoga a certo crime , sem re-
commendar, que se empregue a dita pena abso-
lutamente , e em todos os casos. Não basta , que
huma pena seja analoga para ser conveniente ,
he necessario attender a outras muitas conside .
rações ; mas ninguem póde dizer tado ao mesmo
tempo.

( 1 ) Da idéa de hum gigante o nosso espirito póde for-


mar idéa de tudo, o que he grande. Os naturaes de Lilliput
chamárão a Gulliver o homem montanha. Tambem da idea de
hum gigante podemos formar idéa de hum pigmeo.
Tom. I. G
( 50 )

I.
Primeira causa da analogia ..

O mesmo instrumento do crime , e da pena.

O lançar fogo , alagar , envenenar : estes de-


lictos , em que o meio empregado pelo crimino-
so he a primeira circumstancia que lembra , são

do numero daquelles , em que se póde applicar
á pena o mesmo instrumento , que servio ao cri-
me. A respeito do incendiario , devemos repa-
rar, que o seu crime se deve restringir unicamen-
te ao caso , em que do incendio se seguio a mor-
te de alguem. Se não houve homicidio , nem máo
tractamento pessoal irreparavel , o crime deve ser
reputado como hum prejuizo ordinario destruir
huma propriedade pelo fogo , ou por outro modo,
vem a dar no mesmo : o valor da perda deve ser-
a medida do crime : este homem , por exemplo ,
lançou fogo a huma casa erma , e deshabitada ;
fez huma destruição , e nada mais : o seu crime
não entra na definição do incendiario ( 1 ) . Se o
supplicio do fogo fosse reservado unicamente pa-
ra os que deitão fogo a hum predio alheio , a lei
neste caso teria a seu favor a razão de analogia ;
mas nos seculos de barbaridade a Legislação o
tem empregado geralmente na Europa em tres
delictos differentés : na magia , crime puramen-
te imaginario ; na heresia , ou differença de opi-
nião em materia religiosa , em que póde haver
boa fé , e em que similhante castigo não podia
fazer mais do que hypocritas ; e nos crimes ver-
gonhosos contra a natureza ( 2 ) .

( 1 ) Salvo se a propriedade pegava com outra , o que faz


crime aggravante .
( 2 ) A França applicava n'outro tempo o supplicio do fogo
(( 51 )

O fogo poder-se-hia empregar como instru-


mento do supplicio ; mas sem matar o criminoso :
he huma pena que podemos modificar á nossa
vontade. Tambem sería preciso que o texto da
lei determinasse com todo o cuidado a parte do
corpo a que se deve applicar , o modo da ope-
ração por huma luz , os minutos que deve durar,
e o apparato necessario para augmentar o terror ;
e para fazer a descripção do supplicio mais vi-
va , e metter medo , ( objecto principal da pena )
sería bom mandar abrir huma estampa , em que
se representasse o castigo. :
O crime de alagar he mais raro , que o de
lançar fogo ; he desconhecido em muitos paizes ;
e até se não póde commetter senão em terras , em
qne houverem canaes , e diques artificiaes , que
se podem romper este crime póde diminuir , e
avultar por todos os modos : causar huma inun-
dação em alguns campos he estragar simples-
mente a propriedade ; mas quando se lhe ajunta
a destruição das vidas , então póde subir a hum
gráo de atrocidade , que necessita de penas se-
veras.
* A analogia a mais sensivel indica o meio
do supplicio afogar o criminoso por hum modo
solemne , que excitasse o terror : em hum Codigo
Penal , que tivesse desterrado a pena ultima , po-
deria o réo ser afogado de sorte , que não per-
desse a vida sería huma parte da pena. Mas
hum miseravel , que propinou veneno , deverá

a este delicto , talvez por quererem imitar a Providencia que


reduziò a cinzas as cidades infames : mas similhantes factos
nunca podem servir de regra para as instituições ordinarias ,
permanentes dos Legisladores humanos : aliàs a murmuração
contra o Governo , o motejar da velhice, serião crimes capi-
taes , como se vê no Livro dos Num. 1. 16 , e no Livro 4.
dos Reis cap. 2.° †. 24.
G 2
( 52 )

tambem emborcar a taça , e morrer envenenado ?


Fallando geralmente , não sería hum desproposi-
to. Este crime distingue-se dos outros homicidios
pelo segredo , com que se pode fazer , e porque
suppõe no malvado huma intenção continuada ,
e reflectida , que o faz horrivel : a primeira cir-
cumstancia augmenta a força da tentação , e o
mal do crime ; a segunda faz ver que o réo com
os olhos no seu interesse he capaz de huma re-
flexão muito seria sobre a natureza da pena : a
idéa de morrer pelo mesmo genero de morte , que
apparelha para o seu inimigo , he huma idéa as-
sombrosa , bem capaz de o reprimir : em cada pre-
paro do crime está vendo na imaginação a sua
mesma sorte ; e por este modo a analogia produz
plenamente o seu effeito.
Todavia , o castigo tem difficuldades : os ve-
nenos lavrão com muita desigualdade , e incerte-
za : por isso a lei deveria fixar hum certo espaço
de tempo , depois do qual deveria morrer o pa-
decente , para lhe abbreviar o supplicio. O vene-
no , que faz dormir a somno solto , não convem ;
porque não faz o castigo exemplar : o que faz
convulsões , e raiva até despedaçar-se o homem
a sí mesmo , seria fazer a pena odiosa. Se o vene-
no propinado não matou , poderia dar- se ao réo ,
e depois de o beber , obrigalo a tomar hum con-
traveneno , antes que o podesse matar : a dose ,
e o tempo , deverião ser fixados pelo Juiz , de
conselho dos medicos..
O Povo , que sempre teve horror a este cri-
me , poderia levar a bem esta pena , huma vez
que se fosse costumando e tanto o paiz fosse
mais sujeito ao crime , tanto a pena , que repre-
senta esta analogia com o delicto , poderia ser mais
conveniente
( 53 )

II.

Segundo principio de analogia.

Por huma injuria corporal a mesma pena cor-


leporal.

Nos delictos , que consistem em injurias cor-


poraes irreparaveis , a parte do corpo lesada he
a circumstancia caracteristica ; e neste caso a
analogia consistiria em fazer ao réo o mesmo mal
que tem feito bem entendido , sendo o delicto
malicioso , e plenamente intencional em toda a
sua extensão , circumstancia necessaria para o cas-
tigo , e distincção da maior importancia.
Mas supponhamos , que o réo carece do or-
gão , ou daquella parte do corpo, de que tem pri-
vado o seu adversario ; ou que esta perda lhe
vem a ser de maior , ou menor prejuizo , do que
á pessoa lesada : se a injuria foi de ignorancia
sem mal permanente , a mesma ignominia se pó-
de empregar na pena , quando he compativel com
o estado da pessoa , e com as demais circum-
stancias.
III.

Terceiro principio de analogia.

Castigo na parte do corpo , que servio ao delicto.

Nos crimes de falsidade a lingua , e as mãos


são instrumentos do crime. Desta circumstancia
podemos tirar huma exacta analogia para o cas-
tigo. Se o réo falsificou escripturas publicas , a
sua mão deve ser traspassada com hun ferro quên-
te , que tenha a figura de uma penna ; e neste
( ( 54 )

estado se deve apresentar ao Povo , antes de o


metterem na cadeia para expiação inteira do seu
crime.
N. B. Esta pena póde ser mais grave na
apparencia do que na realidade : a parte do fer-
ro, que sevê pode ser grossa ; e a parte que
se entranha pela carne , póde ser delgada como
hum alfinete.
Na calumnia , dicterios pessoaes , que se não
provão , em que a lingua foi o orgão do crime ,
o calumniador deve ser exposto aos olhos do pu-
blico da mesma sorte com a lingua furada.
N. B. A mesma observação. O réo póde
apresentar-se com a lingua de fóra , atravessada
- por huma agulha delgada , que termine em dous
nós , para se não recolher. , 02
to Esta, pena offerece não sei que ridiculo ; mas
por isso mesmo teria o merecimento , de fazer a
impostura mais * desprezivel , e a. verdade mais
respeitavel. 110

IV.

Quarto principio de analogia.

Disfarce.

Ha certos crimes , em que o disfarce he hum


dos seus rasgos caracteristicos. O réo para não
ser conhecido , ou para inspirar mais terror , com-
mette o crime com o rosto tapado : circumstan-
cia aggravante , que augmenta o susto , e dimi-
nue a probabilidade da pena sendo assim , he
necessario que haja hum castigo addicional ; e se
o quizermos accommodar segundo a sua analogia
com o delicto , deveremos marcar o réo ; cuja
marca póde ser delevel , ou indelevel , conforme
( 55 )

a prizão for temporaria , ou perpetua , A primei


ra póde fazer-se com tinta , a segunda com hum
ferro em braza . A utilidade, de similhante pena
será muito mais sensivel nos homicidios preme-
ditados , crimes de violencia , injurias pessoaes
irreparaveis , e no roubo acompanhado de força ,
e de terror.
V.

Outros principios de analogia.

Ha mais circumstancias caracteristicas , que


se não podem arranjar , como as precedentes , em
·
classes geraes : he necessario consideralas segun-
do a natureza dos crimes , se queremos guardar
a analogia.
No fabrico de moeda falsa , a arte do réo
he huma circumstancia caracteristica : podemos
voltar o feitiço contra o feiticeiro , applicando -lhe
na testa , ou nas faces hum signal , que denote
a qualidade de dinheiro , que sabía contrafazer :
esta marca deveria ser de passagem , ou indele-
vel , segundo a 6 prizão , que faz parte da pena ,
fosse por hum tempo limitado , ou para sempre..
Em Amsterdam ha huma casa de correc-
ção , chamada Rasp-house , onde se mettem os
ociosos , e vadios : diz-se, que entre os differen-
tes trabalhos a que são obrigados , podem ficar
debaixo d'agua , e afogar- se , huma vez que dei-
xem de trabalhar , por hum instante : ou seja ver-
dade , ou mentira , aqui temos huma pena ana-
logica levada ao seu mais alto ponto de vigor
a querermos adoptar similhante meio , deveria .
mos ajustar o castigo segundo as forças do réo.
O logar do delicto tambem póde offerecer
huma especie de analogia. A Imperatriz Catha-
rina II . mandou , que hum homem , que tinha
( 56 )

feito não sei que travessura na praça do com-


mercio fosse condemnado a varrelá todos os
dias , em que se ajuntavão os homens de nego-
cio.
"
N. B. Quando se diz em geral , que as pe-
nas devem ter analogia com os crimes , ninguem
póde negar a utilidade da regra ; mas quando
se quer applicar , cada hum vai para sua parte ;
ou porque a imaginação neste caso he o primei-
ro Juiz de huma circumstancia , ou porque nin-
guem consulta senão a sua imaginação , e nada
mais. Tenho visto pessoas com huma estranha
repugnancia para adoptarem alguns procedimen-
tos caracteristicos propostos pelo Author ; tenho
visto homens de espirito metterem a ridiculo
taes procedimentos , e sorrirem -se com desprezo,
como de huma lembrança exquisita. "O que he
certo , he que tudo pende da escolha dos meios :
a seriedade he o caracter inseparavel de qualquer
pena ; mas a respeito de crimes de orgulho , e
de insulto a pena que envergonha o réo , e o
1
faz digno do vilipendio da sociedade " he sem
duvida a mais conveniente para humilhar o ag-
gressor , e satisfazer a parte offendida.
Tambem devemos fugir de tudo o que he
requintado , e mostra demasiado feitio. O acto
de castigar he huma acção necessaria feita com
repugnancia , e contra vontade admiramos a va-
riedade dos ferros de hum cirurgião , porque tan-
to mais differentes , e multiplicados , tanto mais
nos parecem necessarios para nos dar saude , e
fazer as operações mais soffriveis , e com menos
tormento ; mas não acontece o mesmo nas pe-
nas : o Legislador neste caso vem a perder a sua
dignidade ; porque parece que o seu espirito se
entretem em cousas pequenas .
Debaixo destes principios , a analogia póde
( 57 )

ser muito util ; póde encaminhar o Governo pa-


ra descobrir as penas mais economicas , e mais
efficazes. Não posso deixar de referir hum exem-
plo moderno de hum Capitão da Marinha In-
gleza , que não tinha estudado os principios de
Bentham ; mas que sabía conhecer o coração hu-
mano. As licenças , que se costumão dar aos ma-
rinheiros para sahirem a terra , não passão de vin-
te e quatro horas por via de regra ; quando exce-
dem a licença , são açoutados . O medo de simi→
lhante castigo he huma das causas mais fre-
quentes de haverem tantas deserções : o remedio
de que se vale a maior parte dos Officiaes supe
riores , he negarem a licença ; mas o Capitão de
que fallo , para conciliar o medo da sua gente com
o serviço do Estado , em logar de mandar açou .
tar o réo , prohibia a licença para as outras ve-
zes á proporção da falta se ficava em terra mais
de vinte e quatro horas , não entrava no primei-
ro turno se ficava dous dias , não podia entrar
no segundo , e assim por diante. A experiencia
tinha correspondido aos seus desejos ; nem as fal-
tas erão mais frequentes , nem havia desertores.

CAPITULO VIII. CHD 62


D
+
Da pena de talião.
# 1 0
SE
E a lei de talião fosse admissivel , os Legis-
ladores tinhão poupado muito trabalho ; huma pa-
lavra podia valer hum livro inteiro. Em que con-
siste esta pena ? Em fazer passar o réo pelo mes-
mo mal , que tem feito á parte lesada : para hu-
ma injuria corporal hum castigo corporal of
fendeo a propriedade , deve pagar em dinheiro
contado : affrontou a reputação , seja cortado pe-
Tom . I. H
( 58 )

los mesmos fios , e pague na mesma moeda. Tal


he a idéa geral ; mas não basta. Para fazer a pe-
na exactamente conforme com o principio de ta-
lião , devemos levar a identidade o mais longe que
for possivel por exemplo , se o delicto consiste
em queimar huma casa , deveria ser queimada
igualmente a casa do réo : deshonrou alguma pes-
soa , fez-lhe perder a dignidade da sua represen
tação ? deveria soffrer o mesmo : mutilou o seu
inimigo ? deveria ser mutilado ; tirou-lhe a vida ?
deveria soffrer a pena de morte. Em huma pala-
vra , tanto mais a similhança he especifica entre
a pena , e o delicto , tanto he mais conforme á
lei de talião : Olho por olho , dente por dente , he
o proverbio. A identidade requer que não só se
castigue a mesma parte , que fez o delicto ; mas
até do mesmo modo se matou a ferro , fogo ,
ou veneno ; deve padecer da mesma sorte , o ins
strumento deve ser o mesmo.
- Orgrande merecimento desta lei está na sua
simplicidade : em huma só regra apanhou , e res
colheo em si todo o Codigo Penal o reo soft
frerá o mal que tem feito soffrer. Similhante
plano , apezar de ser immenso , entra na cabeça
mais pequena , fica entalhado na memoria , ain-
da que seja muito fraca , e a sua analogia he tão
perfeita , que a idéa do crime desperta immedia-
tamente a idea da pena : tanto o delicto parece
mais appetitoso , tanto o medo , que resulta da
pena deve ser maior : he huma sentinella , que es
tá de guarda para não deixar cahir o miseravel.
Queria proseguir por diante ; mas para que ? Se
na maior parte dos crimes não pode ter logar esta
pena , nem he practicavel. Primeiramente não

se pode applicar nos crimes publicos , que offen-


dem a sociedade em geral : hum traidor , por
exemplo , que se corresponde com huma, nação
( (< 59) )
M.
inimiga , o que entregou huma praça , como se
the pode fazer o mesmo mal ? Tambem não tem
logar nos crimes quasi publicos , que prejudicão
hum districto , huma certa classe de pessoas :
quanto mais , que huma grande parte desses cri-
mes não passão de ameaças , de metter medo
de pôr a gente em perigo , sem que se possa
assignar o individuo em particular que foi lesado.
Nos crimes que o homem commette contra si mes-
mo , e que offendem a moral , a pena de talião
seria hum absurdo : fazer-lhe o mesmo mal , não
sería castigalo .
Quando hum homem estraga a reputação
alheia , quando inventa huma calumnia ; a lei
não lhe pode fazer o mesmo : póde sujeitalo a
huma pena affrontosa ; mas esta mesma pena fi-
ca muitas vezes sem effeito , porque pende da
reputação do réo ; e que se pode tirar a quem
nenhuma cousa tem de seu ?
Nos crimes que offendem o direito de proprie-
dade , a pena de talião sería muito fraca , mui-
to pouco exemplar ; e além disto , como podem
compensar as penas 爹 pecuniarias hum delicto ,
que pela maior parte tem por motivo a indigen-
cia ? A mesma falta de applicação 9 a mesma
impossibilidade se descobre nos delictos contra
a condição natural , ou civil , para se não pode-
rem sujeitar á pena de talião : ha casos , em que
ainda quando se podesse applicar , se não deveria
fazer , como no crime de seducção , de adulterio ,
etc.
Que resta pois na practica a respeito desta
pena ? Quasi nada. Os unicos delictos , em que
se póde empregar , e não ha de ser sempre, são
os que tocão na pessoa ; e ainda nesse caso he
necessario suppor huma paridade de circumstan-
cias , que raras vezes acontece. Nos casos mes-
H 2
(( 60) )

mo , em que pode entrar , tem contra si o ser


muito rigorosa o seu vicio radical he ser infle-
xivel. A lei deve medir a pena pelas circum-
stancias aggravantes , ou que podem diminuir o
crime ; o talião destrohe toda a medida. Só os
Povos vingativos devem gostar desta pena : Ma-
homet já a tinha achado estabelecida entre os
Arabes , e por isso a consagrou no Alcorão com
hum tom de elogio , que bem mostra a medida
dos seus conhecimentos em materia de Legisla-
ção: cito as suas palavras ( T. 1. cap. 2. da va-
ca ) " O' vós , que tendes hum coração , achareis
no talião , e no terror , que inspira , à segurança
de vossos dias ! " Seja fraqueza , seja ignorancia ,
Mahomet lisongeava o vicio dominante , que de-
veria combater .

12 CAPITULO IX.

Da popularidade do Codigo Penal.

PRovar que huma instituição he conforme ao


principio de utilidade , he provar quanto a cousa
he susceptivel de prova , que deve ser do agrado
do Povo : he verdade , que elle nem sempre gos-
ta do que deve gostar ; porque nem sempre se go-
verna pela utilidade: he o ultimo gráo de civilisação
a que nenhum povo ainda pôde chegar. Entre as na-
ções que estão mais adiantadas , ainda nas classes
superiores, quantas antipathias se achão , e quantos
prejuizos sem fundamento ! Antipathias contra
certos delictos sem uma razão sufficiente -pre-
juizos contra certas penas sem reparar que são
convenientes.
As objecções contra esta , ou aquella pena.
podem ser tão diversas , quanto he differente a
( 61 )

imaginação dos homens ; mas se fizermos refle


xão , veremos que se podem reduzir a huma des-
tas quatro cousas principaes : Liberdade De-

cencia - Religião -Humanidade. Estas objecçocs


i
são de capricho , porque tirão toda a sua força
apparente do respeito que infundem estas pala-
vras sagradas. O capricho consiste em tomar es-
tes nomes em vão.
1. Liberdade Pouco temos que dizer so-
bre esta palavra : todas as penas são contrarias
á liberdade , porque de boamente ninguem sof-
fre o castigo mas apparecem enthusiastas , que
sem attenderem a esta razão , condemnão certas
penas , por exemplo , a prizão junta com hum
trabalho obrigado , como hum attentado contra
os direitos naturaes do homem. N'hum paiz li-
vre , dizem elles , não se deve consentir que nem
ainda mesmo os malfeitores sejão reduzidos a hum
K
estado de escravidão : he hum exemplo odioso ,
e arriscado ; só os Povos avassalados pelo despo-
tismo podem ver sem commoção os miseraveis
agrilhoados , que trabalhão nas galés.
Esta objecção foi repizada em muitos folhe-
tos , quando se propozerão em Inglaterra certas
casas , em que os homens criminosos são obri-
gados a trabalhar para o publico , que vale o
mesmo que dizer : que devemos deixar em liber-
'dade os que abusão della , ou que a liberdade
dos malfeitores he huma parte essencial da liber-
dade dos homens de bem.
II. Decencia . As objecções , que se ti-
rão da decencia , recahem sobre as penas , em

que se expõem aos olhos do publico objectos ,


que assustão o pejo , que se encobrem , e que
não entrão ordinariamente na conversação dos ho-
mens : todos convem em que as penas devem ser
honestas ; mas o pejo , assim como as outras vir-
( 62 )

tudes não tem valor senão pela sua utilidade,


( * ) Logo se houvesse hum caso , em que a pe
na mais appropriada ao delicto encerrasse na sua
execução huma circumstancia pouco decente ?
julgo que não sería contra a razão admittir a pe
na em beneficio da utilidade maior. A castração,
por exemplo , parece a pena mais conveniente
no caso de violencia , quero dizer , a mais pro-
pria para fazer huma forte impressão sobre o
espirito , quando se deixa arrebatar da paixão :
logo em tal caso , para que será necessario , por
hum escrupulo de pejo , recorrer á pena ultima ,
ou a outra menos efficaz , e menos exemplar ? (**)

(* ) Author não despreza a decencia , nem a hones-


tidade ; falla no principio da maior utilidade , falla como po-
litico das virtudes sociaes. Tudo que he honesto, he util, mas
nem tudo o que he util , he honesto. Alexandre podendo des
fazer-se de Dario á traição sem perda nenhuma , antes quiz
arriscar a fortuna , do que arrepender-se da victoria. Eis-aqui
as palavras do Emilio T. 2.: Ponhamos de parte o interes-
se a que nos levão as nossas inclinações ; qual destas duas
cousas se faz com maior gosto , e deixa depois de feita hu-
ma impressão mais agradavel , huma acção de beneficencia ,
ou huma acção de malicia ? Quem nos interessa na repre-
sentação de huma tragedia , os malvados , ou os homens de
bem , que soffrem a injustiça ? Donde nos vem esta admira-
ção pelas acções heroicas , estes arrebatamentos de amor pe-
las almas grandes ? Que relação tem o enthusiasmo da vir-
tude com o meu interesse particular ? Importa-nos bem pouco,
que hum homem tenha sido perverso , ou justo ha dous mil
annos ; e entretanto sentimos por elle o mesmo interesse co-
mo se estivesse agora vivo : que me podem fazer os crimes
de Catilina ? Terei medo de ser victima da sua ambição ?
Porque lhe tenho eu o mesmo horror " como se fosse meu
contemporaneo ? Não aborrecemos os máos só porque nos
fazem mal ; mas por isso mesmo que são máos : virtus in
hoste laudatur.
( ** ) Limito-me a dizer, que tal pena sería analoga a cer-
to crime , sen recommendar que se empregue a dita pena :
são palavras do Author. A analogia deve ceder aos bons cos-
tumes. O exemplo das Virgens de Mileto he , huma prova do
( 63 )

Conta-se das Virgens de huma cidade da


Grecia , que levadas não sei de que mania , que
3
se communicava de humas para outras , se mata-
vão a si mesmas. Os Magistrados assustados pe-
la repetição do crime , ordenárão , que toda aquel-
la, que se achasse morta por este modo, sería ar-
rastada inteiramente nua pelas ruas da cidade.
Não entro na probabilidade do facto , nem fallo da
natureza do crime ; o que se diz, he que o mal
acabou de repente. Eis-aqui huma lei , que affron-
tava o pejo , ea que podemos chamar convenien-
te pela sua efficacia porque na verdade , que
maior perfeição em huma lei penal , do que pre-
venir inteiramente o crime ?: ** ! {
III. Religião — Ha Seitas no Christianismo ,
que pertendem tirar do Codigo das leis a pena
de morte por ser illegitima : a vida he hum dom
de Deos , que se não deve tirar a ninguem. A
ank Veremos no segundo livro que ha razões muito
fortes contra a pena de morte , ou que pelo me-
nos senão deve admittin senão em casos mui sin

gulares mas quanto a ser illegitima , argu-
mento, que fazem , he fundado sobre hum falso ,
principio. ora
Illegitimo quer dizer contrario á lei. Os que
usão desta palavra na presente questão , enten
dem que ha huma lei divina contra a pena ulti-
ma ora esta lei ou he revelada , ou he natus

poder da honestidade ainda mesmo entre os Gentios. Não ha


crime que de direito ao Legislador de ser absurdo e atroz
dizia o judicioso Brissot fallando sobre esta materia : pag326.
Se a pena escandaliza , he impopular : já se não deve
applicar. Entretanto, ha huma falsa vergonha de que falla Plus
tarco , ( no T. 7. das suas Obras ) filha da ignorancia , e
dos prejuizos ; que o Governo deve desbastar pelo meio da
instrucção ; e neste sentido tem muito logar a doutrina do
grande Filosofo , do consummado Politico,
( 64 )

rab: no primeiro caso deve apparecer nos livros ,


que encerrão a { palavra de Deos ; mas similhan-
te mandado não existe na lei de Moyses ; antes
pelo contrario ha muitos crimes a que os Judeos
applicavão a pena de morte : logo os partidistas
de huma tal opinião ficão reduzidos á lei divina
não revelada , á lei natural , quero dizer , a huma
lei deduzida da vontade supposta de Deos .
1. Mas presumir que Deos quer, › he suppor ,
que tem huma razão para querer , huma razão
que o não envergonhe , o maior bem das suas
creaturas ; e neste sentido a lei divina natural
deve ser conforme a utilidade geral. Sem ester
caracter , presumir da vontade de Deos he huma
quimera , hum principio illusorio , capaz de sanc-
cionar todos os sonhos de hum enthusiasta , e
todos os delirios de hum miseravel supersticioso .
A Religião mal entendida tem posto mui-
0
tas vezes differentes obstaculos á execução das
leis penaes , por exemplo , o asylo dos templos
aberto aos facinorosos para escapar da justiça.
-Theodoro 1. prohibio toda a sorte de pro-
cesso criminoso , em quanto durasse a quaresma ;
porque se não compadecia estar sentenciando os
crimes alheios , e pedindo a Deos o perdão das
proprias culpas. Valentiniano 1 mandava soltar
todos os prezos em dia de Pascoa , á excepção
dos accusados de crimes maiores ( 1 ) .
Constantino não queria que se imprimisse
hum ferro na cara do réo ; porque era contra o
direito da natureza escurecer a magestade do
rosto do homem razão singular ! a magestade
do rosto de hum malvado !
5 A Inquisição , diz Bayle , condemnava os

(1) Pilati , Historia das revoluções desde a coroação de


Constantino até á queda do Imperio do Occidente.
( 65 )

hereges ao supplicio do fogo por não quebran-


tar a maxima : Ecclesia non novit sanguinem.
Em materia de Religião ha seus abusos > seu
jogo de palavras , assim como nas leis.
IV. ` Humanidade . - Não escutes a razão ;
que nos engana muitas vezes ; escuta a voz do
coração , que se não desmente : rejeito sem exa-
me essa pena , que se pertende estabelecer ,
porque faz violencia aos sentimentos da natu-
reza , porque faz estremecer as almas sensiveis ,
porque he tyranna , e cruel : eis- aqui a lingua-
gem dos Oradores , que fazem timbre de terem
sentimentos. Mas a ser verdade que a repugnan-
cia de hum coração sensivel he huma objecção
sufficiente contra huma lei penal , risquemos to-
das as penas , porque todas ellas , mais ou me-
nos , cortão pela sensibilidade natural. Toda a
pena por si mesma he necessariamente odiosa ;
e como poderia conseguir o seu fim sem des-
gostar o réo ? Huma pena não merece approva
ção, senão em quanto se lhe ajunta a idéa do
crime. Não quero o sentimento como arbitro ,
não o posso engeitar como primeiro conselheiro
da razão : porque huma lei penal se não casa
com o meu coração , nem por isso a hei de con-
demnar ; o que devo fazer he examinala com
huma attenção escrupulosa . Se ella he verdadei-
ramente digna do meu odio eu virei a desco-
brir a razão legitima , por que se não deve admit-
tir : veremos que está fóra do seu logar , ou que
he superflua , ou que não guarda proporções com
o delicto , ou que produz maior mal do que pre-
vine por este modo chegaremos a descobrir o
logar , em que se amalha o erro. O sentimento
obriga a reflexionar e a reflexão desenvolve o
vicio da lei. 4
As penas , que tem maior approvação , são
Tom. I. I
( 66 )

as que tem analogía com o crime ; por que dão mos-


tras de justiça , e de equidade ; mas quando se exa-
minão de mais perto , onde estão estas qualida-
des ? Não entendo : castiga- se o delinquente pe-
lo mal que fez ? Mas a lei deveria imitar o mes-
mo , que condemna ? Será racionavel que os Jui-
zes fação hum mal , porque o malfeitor he mali
cioso ? Será possivel que o acto solemne , e juri-
dico seja naturalmente o mesmo , que o acto cri-
minoso ? A razão preponderante para a multidão,
he que o réo não tem que responder , nem póde
accusar a lei de severa sem que a sua conscien-
cia o accuse em segredo .
Felizmente a mesma volta de imaginação ,
que faz a pena popular , he a mesma , que a faz
conveniente esta analogia , que se faz sensivel
ao Povo , fere igualmente os individuos no in-
stante , em que a tentação os persegue , e faz es-
ta mesma pena objecto particular de terror. Cum-
pre desviar as noções enganosas , ainda quando
se ajustão com o principio de utilidade : esta con-
sonancia não he mais do que hum acaso ; e o que
dá hum juizo de approvação , independente des
te principio , está disposto a formar outros juizos ,
que lhe podem ser contrarios. Não ha firmeza no
entendimento para trilhar hum caminho seguro ,
em quanto se não servir do principio de utilidade
com exclusão de outro qualquer principio. As
palavras puramente de approvação , ou desappro-
vação, em materia de discurso, são o mesmo que
o sentimento das crianças , quando balbucião as
palavras : devem estar de parte logo que se trata
de alguma averiguação filosofica , ou quando per-
tendemos aclarar convencer e não mover os
>
(animos ( 1 ) .

1 ) Os termos de que usa o homem prevenido , que não


examina , encerrão quasi sempre hum sofisma > petição de
( 67 )

CAPITULO X.

Das penas , que se não devem impór ( 1 ) .

Podemos reduzir a quatro pontos principaes


os casos , em que a pena se não deve impor. 1.
Quando he mal fundada. 2. ° Quando della se
não tira proveito. 3. ° Quando he superflua. E 4.
quando he mui dispendiosa. Entremos na averi }
guação de cada hum destes pontos.

I. Penas mal fundadas.

A pena vem a ser mal fundada , quando se


não deo verdadeiro crime , quando não ha mal
da primeira ordem , ou da segunda , ou quando
o mal he sobejamente compensado pelo bem que
resulta desse mal , ( como succede no exercicio
da authoridade politica , ou domestica ) , quando
" rebatemos hum mal mais grave em propria defe-
etc. Se temos formado idéa do que he ver
dadeiro crime , facilmente o podemos distinguir
desses crimes de hum mal imaginario , actos in-
nocentes em si mesmo ; mas que certos Povos
tem contado entre os delictos pelos seus prejui-
zos , prevenções , erros de administração , prin-

principio approvão , porque approvão : e reprovão pela mes.


ma razão : he huma imposição , huma violencia , que inten-
tão contra o que lê as suas obras ; mas logo que tenho exa-
minado , que tenho pezado o pro , e o contra na balança da
utilidade , nem me parece possivel , nem conveniente deixar
de caracterizar o bem " e o mal pelos epithetos , de que os
homens se servem na linguagem ordinaria.
( 1 ) . Este capitulo he o mesto , que se acha nos Tract.
de Legisl, T. II.
I 2
( 68 )

cipios asceticos , quando fogem de certos alimen-


tos nutritivos , e sadios , como se fossem hum
veneno ? ou huma nutrição immunda ( * ) . A
heresia e o sortilegio pertencem a esta classe
de delictos.

II. Penas de que se não tira proveito.

Chamo inefficazes as penas , que não produ-


zem effeito sobre a vontade , e que por esta ra-
zão não prestão para atalhar similhantes crimes.
As penas são inefficazes , quando se applicão a
hum réo , que não podia conhecer a lei , que
obrou sem intenção , que fez mal sem saber que
o fazia , n'huma supposição erronea , ou por hum
constrangimento invencivel. As crianças , os in-
sensatos , os doudos , ainda que os possão levar
até hum certo ponto por meio de mimos , e ameaças,
não tem assás idéa do futuro para se poderem
moderar por meio de penas futuras : a lei a este
respeito ficaria sendo inutil.
Se hum homem fosse determinado por hum
medo superior á maior pena legal , ou pela espe-
rança de hum bem preponderante , está claro
que a lei teria pouca efficacia. Virão- se as leis
contra o duello mettidas a desprezo , porque o
hoinem brioso tinha mais medo da vergonha ,
que do supplicio . As penas decretadas contra

( * ) O Author , como filosofo , escreve contra estas vir-


tudes exteriores indiscretas , cheias de fanatismo , e miude-
za. A abstinencia , diz hum celebre Inglez ( o Doutor Dod-
drige T. 2. ) he huma especie de expiação , e humiliação na
presença de Deos , que annuncia o imperio da razão sobre o
corpo , e sobre as paixões impetuosas : mortificar os sentidos
era a escola dos Estoicos ; alli aprendião a domar os prazeres
injustos , e a sopear os vicios ; e se a gula he hum crime ; a
moderação no comer > e beber deve ser huma virtude.
( 69 )

este , ou aquelle culto ficão por via de regra sem


effeito , porque a idéa de huma recompensa eter-
na faz desapparecer o terror do cadafalso : mas
como estas opiniões tem mais , ou menos influen-
çia ; a pena he tambem mais , ou menos efficaz.

III. Penas superfluas.

As penas ficão superfluas , quando podemos


conseguir o mesmo fim por meios mais suaves ,
como : pela instrucção , pelo exemplo , convites ,
esperas , a ver se o homem se reforma , recompen-
sas , etc. Só porque hum sujeito espalhou opiniões
perniciosas , não he preciso que o Magistrado se
arme logo de espada para o castigar. Se he do
interesse de hum individuo espalhar maximas es-
tragadas , será do interesse de infinita gente refu-
tar essas maximas ( * ) .

IV. Penas mui dispendiosas.

Se o mal da pena excede o mal do delicto ,


o Legislador vem a causar hum padecimento
maior do que devia ser , vem a comprar a izen-
ção de hum mal á custa de hum maior mal. De-
vemos ter diante dos olhos dous quadros , hum ,
que represente o mal do crime , e outro , que
represente o mal da pena.
Vêde o mal , que produz huma lei penal :
1. Mal de reprimir a vontade : a lei impoe hu-

(*) Os escriptos não fazem os levantamentos , nem as he-


resias , mas dispõem os animos : aprende- se o mal com mais fa-
cilidade do que o bem : he deixar queimar a casa para a le-
vantar de novo. Estamos no principio da nossa liberdade : não
nos podemos engolfar , nem metter todas as vélas ; porque te-
mos invejosos que desejão socobrar a mesma Não em que
navegão , só porque os não deixão governar.
( 70 )

ma obrigação mais ; ou menos penosa , segundo


o gráo de prazer , que pode dar a cousa prohi→
hida. 2. Incommodo causado pela pena , quando
os infractores são punidos. 3. Mal de apprehen-
são , que soffre o que tem quebrantado a lei ,
e que tem medo de que lhe não imputem o
seu crime. 4. Mal de haver
haver sentença sem prova
legal. Este inconveniente he proprio de todas as
leis penaes , anda principalmente annexo ás leis >
quando são escuras ; aos delictos de hum maí
imaginario : huma antipathia geral produz nos ho-
mens huma espantosa disposição para perseguir ,
e condemnar os outros só 2 por meras suspeitas ,
e apparencias. 5. Mal diritativo , que soffrem os
parentes , e os amigos do que está exposto ao
rigor da lei..
Aqui temos o quadro do mal , e da despeza ,
que o Legilador deve considerar todas as vezes ,
que estabelecer huma pena. Daqui nasce a prin-
cipal razão para facilitar amnistias geraes nesses
delictos complicados , que procedem do espirito
de partido. Póde acontecer que a lei envolva
huma grande multidão , metade , e ás vezes ain-
da mais de metade de hum Povo. Quereis punir
todos os criminosos ? Quereis sómente dizima-los ?
O mal da pena sería maior que o mal que tem
causado o seu delicto.
Se hum réo tem ganhado o amor do Povo ,
de sorte que he de esperar hum descontenta-
mento geral ; se he protegido por huma Potencia
estranha de cuja amizade depende a Nação ; se
o réo póde fazer á sociedade hum serviço extra-
ordinario ; em todos estes casos particulares ""
perdão , que se concede ao criminoso , he filho de
hum calculo prudencial. Similhante pena viria a
sahir muito cara para a sociedade ; e por isso
se não deve empregar.
( 71 ))

CAPITULO XI.

Escolha da pena. Certa liberdade , que se


deve deixar aos Juizes.

HA duas razões , em que o Legislador se de-

ve firmar o mais que for possivel na applicação


do castigo : Certeza , imparcialidade,
1. Tanto a medida da pena se aproxima mais.
á certeza , tanto mais sabem os membros da so-
ciedade o que tem que esperar á proporção que
o homem conhece a pena , assim se afasta de
commetter o crime : huma pena problematica não
póde fazer impressão ; e tudo o que he duvidoso
"
a este respeito favorece a esperança.
2. Se o Legislador não sabe anticipadamen-
te sobre quem deve cahir a pena , que estabe-
lece ,
não corre perigo de se deixar governar
por motivos de amor , nou depodio pessoal : he
imparcial , ou parece que está indifferente.• ¥ O
Juiz pelo contrario , que não pronuncía senão em
casos particulares , está arriscado a prevenir-se
pro , e contra , ou pelo menos a fazer- se suspei-
to ; o que f vai entender com a segurança pu-
blica. 10 15:
Se deixamos aos Juizes huma liberdade il-
limitada para diminuir a pena , he tornar as func
ções do seu ministerio muito embaraçadas , e de
muito trabalho : estarão sempre entalados entre
o medo de serem demasiadamente indulgentes ,
ou rigorosos demais.
Tambem póde acontecer que os Juizes, po
dendo diminuir a pena á sua vontade , sejão me-
nos escrupulosos na averiguação da verdade ,
do que se tivessem que sentenciar sobre huma
( 72 )

lei , que não podião alterar : huma leve probabi-


lidade lhes parecerá sufficiente para justificar hu-
ma pena , que podião diminuir ad libitum , sem
dar satisfação a ninguem.
Todavia , sendo a lei inflexivel , póde achar
grandes inconvenientes na practica pelas cir
cumstancias imprevistas , ou particulares , tanto
da parte do crime , como da pessoa do réo : por
onde parece que se deve deixar a discrição do
Juiz huma tal , ou qual liberdade , não para
aggravar a pena , mas para a diminuir nos ca-
sos ,, que fazem presumir , que hum individuo
he menos perigoso , ou mais responsavel do que
outro : mesma pena nominal 9 como já está
demonstrado > nem sempre he a mesma pena
real. Ha individuos , que em razão da sua edu-
cação , de relações de familia , da representa-
ção , que tem no mundo , sentem ( se me posso
explicar assim ) huma superficie maior na acção
da pena .
Haverão circumstancias , em que seja pre-
ciso mudar a mesma natureza da pena , ou por-
que o castigo , que está designado na lei se não
póde applicar , ou porque sería menos conve-
niente a certos respeitos ; mas quando a pena
for differente da१ que está expressa na lei ,
Juiz deve deixar a escolha ao réo. Todas as ve-
zes que o Juiz exercitar este poder discrecio-
nal , quero dizer , todas as vezes , que reduzir a
pena abaixo do minimum fixado pela lei , deve
ser obrigado a declarar o motivo.
Quanto a principios , tenho dito o que bas-
que são
ta desenvolver as particularidades
proprias desta materia , pertence ao Codigo Pe-
nal , e ás instrucções , que o Legislador deve
mandar aos tribunaes.
( 73 )

LIVRO II.

Das penas corporaes .

CAPITULO I

Das penas simplesmente afflictivas.

Dou Ou este nome ás penas corporaes , que con-


sistem principalmente na dor fysica immediata ,
para as distinguir de outras penas corporaes , cu-
jo fim he produzir consequencias permanentes (1) .
Estas penas podem } ser susceptiveis de hu--
ma variedade infinita , porque não ha parte do
corpo , que se não possa molestar , e fazer doer
e que bem poucas cousas existem na natureza
que não possão servir de instrumento para exci-
tar esta dor ; mas ainda quando fosse possivel
fazer huma exacta enumeração de similhantes
penas , sería hum trabalho escusado. A mais na-
tural , de que se usa quasi em toda a parte , he
fustigar o corpo açoutar o réo com hum
instrumento flexivel he o castigo o mais ordi-
nario : a maior , ou menor flexibilidade dos in-
strumento, produz diversas penas , que conservão
o mesmo nome generico , apezar de serem os seus
effeitos diversos.

(1 ) Afflictivo neste sentido he conforme a palavra lati-


na , de que se deriva. Afflictatio ( diz Cicero nas suas Tus-
culanas ) est egritudo cum vexatione corporis.
Tom. I. K
(( 74 )

Ha na Italia , especialmente em Napoles ,


hum supplicio muito vulgar para castigar os la- ·
drões a que chamão strappata , e que en-
के
tre nós se chama polé. Consiste em guindar hum
homem da terra até huma certa altura por meio
de hum cabrestante , e deixalo cahir de panca-
da ; mas em vão , que não toque na terra : toda
a força do corpo neste balanço vem a quebrar
nos braços , que ordinariamente ficão desconjun-
tados assiste sempre hum cirurgião ao suppli-
cio, para concertar logo os ossos do padecente ,
que ficão deslocados.
Em Inglaterra havião dous supplicios , que
estão em desuso , e que no dia de hoje nem mes-
mo tem logar entre os soldados : o primeiro con-
sistia em suspender o criminoso de sorte que
todo o pezo do corpo carregava sobre a ponta
de huma lança : o segundo era o cavallo de páo ,
ou de ferro : era hum pedaço de taboa , ou de
ferro estreito , em que o miseravel era obrigado
a montar , e para lhe dobrar o tormento , amar
ravão- lhe pezos nas pernas .
-192 Outra pena , que ainda existe nos antigos
éstatutos da lei ingleza , e que já se não practí-
ca , consistia em baldear o padecente por mui-
tas vezes successivas em agua fria : he o que
"
se chama em inglez ducking. Não havia dor
aguda ao incommodo fysico provinha em parte
do frio , em parte da falta de respiração , que
soffria o miseravel nestes mergulhos . Esta pena ,
que por hum lado fazia rir o Povo , era o cas-
tigo , que muitas vezes se dava a estas regatei-
ras de má lingua , que pelos seus gritos des-
compostos incommodão a vizinhança : communis
rixatrix: era bom tempo. O Povo , que sempre
se afferra aos costumes antigos , ainda hoje ex-
ercita esta especie dejustiça , quando em gran-
(( 75 )

de 7 concurso como nas feiras , apanha algum


ratoneiro em fragrante delicto.
A logica dos antigos tribunaes era fertil na
invenção das penas : fallo dos tractos , que se da-
vão ao réo, para descobrir a verdade ; havião
tormentos para estender , torcer , e deslocar ca-
da huma das partes do corpo : a tortura dos de-
dos pollegares consistia em os apertar com fortes
cordeis estiravão o padecente sobre huma taboa,
e depois de lhe cunharem as pernas a poder de
martelladas ( era o que propriamente se chama-
va tortura ) cingião-no de cordas , que arrocha-
vão com maior , ou menor violencia , conforme
querião apertar , ou afrouxar o tormento.
A suffocação por meio d'agua ( drenching )
era deste modo : ensopavão hum panno branco ,
e o mettião pela boca , e narizes do padecente
de sorte que a cada respiração engolia huma grans
de porção d' agua , e assim continuava o tormen-
> até verem no estomago huma altura sensivel.
Na famosa transacção de Amboise , os . Hollan-
dezes se servírão deste genero de tormento con-
tra os prizioneiros Inglezes. Ponhamos silencio
a huma similhante enumeração tão desagrada-
vel : o que ha de commum entre todas as penas
afflictivas do genero agudo , he a dor organica ;
mas differem muito em dous pontos essenciaes
nos gráos da sua intensidade enas conse
quencias mais ou menos graves , que resultão
desta mesma intensidade. onit
Estas consequencias podem se reduzir a tres

principaes. 1. A continuação da a pena organica
depois do tempo da execução. 2. Os differentes
males fysicos de outro genero , que dahi podem
a
nascer. 3. A ignominia maior , ou menor , que
sempre acompanha o supplicio. Na escolha des
tas penas todas estas considerações são da maior
importancia. K 2
( 76 )

Sería bem inutil admittir huma grande va


riedade no Codigo Penal A que está mais em
uso , a flagellação " por isso mesmo que se lhe
podem dar todos os gráos de intensidade á me-
dida do crime , poderia bastar por si só , se a ana-
logia em certos casos não reclamasse por outra
especie de castigo. A não ser esta razão , multi-
plicar os instrumentos de dor tem o perigo de fa-
zer as leis odiosas , sem tirar dahi algum pro-
veito.
A Imperatriz Maria Theresa , entre as mais
obras , que emprehendeo para melhorar as leis ,
mandou fazer hum resumo de todos os tormen-
tos , e supplicios , de que se tem usado no mun-
do : era hum enorme volume em folio , em que
não sómente se via a descripção , e estampa de
todas as maquinas , mas até se fazia huma exa-
eta menção de todas as manipulações do executor
de alta justiça. Destes livros mui poucos se ven-
dêrão , porque o Principe de Kaunitz , X que era
nesse tempo o primeiro Ministro , os mandou sup-
primir. Lembrou-se , e com razão , que similhan-
te obra não podia deixar de inspirar huma espe-
cie de horror contra as leis ; muito especialmen-
te á vista das maquinas , em que se punhão os
réos a tormento. Pouco depois similhantes pe-
nas forão abolidas em todos os dominios da Aus
tria : he provavel que hum effeito de tanto bem
para a humanidade procedesse da publicação do
livro.
Sería para desejar que houvesse hum sugei-
to practico , que se occupasse em examinar os
effeitos , mais ou menos perigosos , que podem re-
sultar de castigos violentos , como por exemplo ,
das contusões , que se fazem na polé , nos açou-
tes , etc. Na Turquia costumão-se dar as panca-
das na sola dos pés : será isto melhor , ou peior
nas suas consequencias ? He o que não posso di-
zer : póde ser que os Turcos tivessem em vista
hum sentimento de pejo , para não quererem ex-
por aos olhos do Povo as partes superiores do
corpo humano. Se esta pena fosse moderada , de
sorte que não houvesse mais do que a dor em
quanto dura o castigo , ou pouco depois ; já não
sería exemplar para os espectadores , nem bas-
tantemente efficaz para intimidar o réo : em se
The tirando a vergonha , bem pouco vinha a fi-
car ; em quanto he preciso reparar , que a maior
parte dos malfeitores , que merecem similhante
castigo , são homens , que tem perdido a vergo-
nha.
Em Inglaterra ha huma desigualdade infini-
ta na execução deste castigo : serem os açoutes
mais rijos , ou menos fortes , está no arbitrio do
executor da justiça , que pelo seu interesse des-
troe a intenção do Juiz , fazendo da indulgencia ,
que vende, hum vergonhoso commercio : de sor-
te que o réo vem a ser punido , não á proporção
do seu crime , mas da sua fortuna . O mais per-
verso , o que mais tem furtado , huma vez que
saiba sonegar os furtos , póde lançar huma sopa
de mel a este novo cerbéro ; em quanto o desgra-
çado , que restitutio até ao ultimo real , atura
o rigor da lei em toda a sua exacção . Sería pos-
sivel emendar este abuso ? não acho difficuldade
na invenção de huma maquina cylindrica , que
pozesse em movimento corpos elasticos , como
juncos , ou barbas de balea , que fustigassem com
a mesma força , e dessem tantos golpes , quan-
tos determinasse o Juiz da sentença : por este
modo já a execução do castigo não vinha a ser
arbitraria. Hum official publico , que tivesse ca-
racter , estaria presente ; e no caso do réo ter
mais companheiros no crime , podião haver ou-
( 78 )

tras tantas maquinas que fizessem o mesmo à


hum similhante, espectaculo , representado ao
mesmo tempo , causaria hum terror mais consi-
deravel , sem accrescentar cousa nenhuma á pe
na real.

SECCA OH.

Exame das penas afflictivas.


I
Examinar a pena consiste em a saber com-
parar successivamente com todas as qualidades ,
de que temos fallado , e que são de summo inte-
resse na sua execução , para sabermos as quali-
dades , que teme as que lhe faltão ; e se as
primeiras são mais importantes , que as segun-
das , quero dizer , mais geitosas para conseguir
o fim , que se deseja,
Lembre-se o Leitor do que temos dito , sem
receio de o tornar a repetir , que o merecimen
to da pena deve ser avaliado pelas qualidades se-
guintes : certeza na sua natureza igualdade
em si mesma - ser divisivel , ou susceptivel de-
mais ou de menos -- ser commensuravel com as
outras penas analoga ao delicto -- exemplar --
economica poder-se reparar servir para
atalhar o mal ter huma certa tendencia para
o melhoramento moral - poder-se converter em
- simples , e clara na
proveito da parte lesada
sua denominação e que final mente não seja
odiosa no publico.
Mostrar que certa pena carece de huma , ou
de muitas destas qualidades , não he motivo pa-
ra se não admittir : as qualidades nem todas tem
o mesmo valor " nem se podem achar reunidas
senão por acaso.
1. As penas simplesmente afflictivas não sof
(( 798 )

frem objecção alguma quanto á certeza a sensi-


bilidade humana , sobre a qual as ditas penas fa-
[
zem impressão , he hum attributo universal da
natureza humana : mas consideradas pelo lado do
soffrimento, serião muito desiguaes , e muito dis
similhantes , se fossem as mesmas para ambos os
sexos ; as mesmas para todas as idades da vida's
para o homem moço , e robusto , que para hum
sugeito attenuado da enfermidade , e dos annos :
daqui vem a necessidade de se dar ao Juiz huma
tal , ou qual liberdade, para se moldar ás circum-
stancias , quando são manifestas . np : Purses.
2. Estas penas são mui divisiveis , muito va-
riaveis na sua graduação ; podem- se mitigar , e
aggravar , como quizermos ; esta qualidade lhes
pertence na sua maior perfeição. Mas devemos
reparar , que as penas afflictivas andão sempre
acompanhadas de outra , que tem huma nature-
za differente , em razão dos sentimentos de hon-
ra , que tem mais , ou menos valia entre as na-
ções civilizadas : fallo da vergonha publica , in-
separavel de qualquer pena simplesmente affi-
ctiva ( 1 ) . Esta vergonha não cresce , nem ´di-
minue na razão da intensidade da pena organi-
ca ; porque ha certos casos , em que a mais le-
ve pena póde ser a mais infamante. Esta differen-
ça depende principalmente da condição do cri
minoso ; e por esta razão entre as nações da
Europa não ha pena alguma desta classe , que
se possa reputar como leve para hum homem
bem criado ; quero dizer , para huma pessoa , que
figura no mundo , ainda que não seja titular.
Por se não attender a esta circumstancia ,
he que houve em Inglaterra hum grande descon-

3
( 1 ) Chamão- se simples , não porque o sejão n'hum 1 sen-
tido absoluto ; mas comparativamente com outras penas.
(( 80 )

tentamento contra huma lei do Parlamento , pu-


blicada no tempo de Jorge III. ( The Dog-act era
o seu titulo) : querião acautelar o furto de cães ; e
para isso impozerão, entre outras penas , a pena
dos açoutes : mas quem não vê que nesta espe-
cie de roubo ha huma circumstancia , que o faz
menos incompativel com o caracter de hum ho-
mem, que teve criação , e até desculpavel ? Ti
rar hum criado a seu amo não he verdadeira-
mente hum roubo ; porque os criados são livres
para servir a quem quizerem ; e esta differença he
essencial : quem me póde obrigar a sahir da ca-
sa , em que estou , em quanto eu a não quizer
largar ? póde muitas vezes não haver culpa ape-
zar das apparencias . O mesmo se póde dizer ,
por exemplo , a respeito destes animaes domesti-
cos : o cão he susceptivel de vontade , e de affei-
ções sociaes ( * ) , de sorte que póde deixar o dono 2
e seguir hum estranho , sem que este ponha da sua
parte hum maior esforço para o chamar.
A mesma falta de attenção : he na Russia o
vicio dominante de toda a lei penal. Nos reinados,
que precedêrão ao governo de Catharina II . , nem
o sexo , nem a distincção da pessoa do réo podião
izentar-se dos açoutes , e do knut : todos sabem
que Pedro I. mandava dar o castigo das crianças
até ás senhoras da primeira nobreza. Os costu-
mes se tem domesticado a pouco e pouco. Os
Soberanos começárão a respeitar as classes , su-
periores da sociedade ; as leis ainda são as mes-

( * ) Oś animaes enganão muito pela sua analogia: e por


que arremedão as acções do homem , he facil attribuir-lhes hum
principio da mesma natureza. Eu não sei o que se passa den-
tro delles ; mas o que vejo , he , que toda a especie faz o mes
mo, que faz o individuo dessa mesma especie : ainda ninguem
lhes descobrio até hoje a faculdade de formarem idéas abstractas :
os castores , abelhas , o elefante poderão ter muito juizo ; mas
não lhe invejo a fortuna.
( 81 )

mas ; porém ha menos barbaridade na sua appli-


cação.
A Polonia ainda não ha muitos annos con-
servava a sua rusticidade primeira. O mordomo
mór tinha a liberdade de castigar as damas d'ho-
nor de huma Princeza á vista de toda a familia
real. Os homens bem criados , que pela sua des-
graça erão obrigados a servir em casa dos gran-
des , levavão bengaladas , e erão fustigados com
huma vara : daqui podemos formar idéa da brutali-
dade, com que erão tractadas as classes inferiores
Não ha cousa que mais prove o abatimento
a que está reduzido o Povo Chinez , do que a fa-
cilidade, que tem os mandarins em o mandar açou-
tar e o mais he , que a Policia póde fazer o mes-
mo aos mandarins da primeira classe , e aos Prin-
cipes de sangue , mandando lhes dar com huma
cana da India , como a qualquer homem ordina-
rio.
3. O merecimento das penas simplesmente
afflictivas está principalmente em serem exem-
plares : tudo o que soffre o miseravel no tempo
da execução , pode ser visto pelo publico ; e na
classe de espectadores , que assistem a esta sce-
na > entra huma grande parte daquelles , para
quem huma tal impressão he particularmente da
maior utilidade. Aqui temos o que se offerece de
mais notavel a respeito destas penas : quanto ás
outras qualidades , não encerrão cousa especial ;
tendem mais para assustar , do que para refor-
mar os homens ; á excepção de huma especie
particular de penas afflictivas , a que chamão
dieta correccional , que sendo bem manejada , pó-
de ter huma grande efficacia sobre a moral : mas
como tem huma ligação natural com a pena de
cadeia , reservo as minhas reflexões para quando
tractar desta materia.
Tom. I. L
( 82 )

Penas afflictivas complexas.

Entendo por estas palavras as penas corpo-


raes , cujo effeito consiste principalmente em con-
sequencias remotas , que durão , e permanecem de
pois do acto penal : não as podemos considerar
só debaixo de hum ponto ; porque encerrão ! es-
pecies mui differentes humas das outras na sua
natureza , e na sua gravidade.
As consequencias permanentes de huma pe
na afflictiva podem ser a alteração , a destruição ,
a suspenção das propriedades de huma parte do
corpo. As propriedades do corpo são as suas qua
lidades visiveis , ou as suas faculdades : as quali-
dades visiveis são a côr , e a figura : as faculda-
des são os mesmos orgãos , ou as funcções espe-
cificas dos orgãos. Daqui nascein tres especies
distinctas de penas .
As primeiras , que transtornão o exterior da
pessoa , e as suas qualidades visiveis --as segun-
das , que entendem com o uso das faculdades or-
ganicas sem destruir o orgão em si mesmo as
terceiras que mutilão o orgão , e o inhabilitão
para sempre ( 1 ) .

SECÇÃO I.

Das penas , que transtornão o exterior da pessoa.

Houve huma idéa engenhosa no primeiro


Legislador , que inventou penas, para assim dizer,
externas , e por muito tempo visiveis; penas , que

(*) Podemos chamar geralmente ao effeito das primeiras


; ao das segundas inhabilitação , porque entorpe-
orgão > e o fazem impotente " inhabil ; e ao effeito
das terceiras mutilação , nome proprio.
( 83 )

sem destruir nenhum orgão , sem mutilação , muis


tas vezes sem mais dor fysica do que a necessa-
ria absolutamente para a operação , entendendo
sómente com o exterior da pessoa , e fazendo co
seu aspecto menos agradavel , tiravão o seu prin-
cipal valor de serem signaes do crime. As quali
dades visiveis de hum objecto são a côr , e a
figura ; logo ha dous modos de o poder alterar :
1. mudando-lhe a cór : 2. desfigurando - o.
O primeiro póde ser de passagem , ou per-
manente : o de passagem faz-se por meio de suc-
cos vegetaveis , ou differentes liquidos da classe
mineral. Não sei que alguma nação tenha usa-
do deste meio como castigo ; entretanto parece-
me que poderia ter lugar , e ser de muita utili
dade , como precaução para não fugir o réo em
quanto satisfaz a pena do seu crime. O permas
nente consiste em furar a pelle pelo meio do fo
go com hum punhado de ferrinhos de ponta , á
maneira de agulhas , 2 enchendo os buraquinhos
de pós , que vão largando a côr : este meio hesa
melhor , e o que se faz menos sensitivo : os an-
tigos Pictos usavão delle para se enfeitarem joe
muitas nações barbaras ainda hoje se pintão , e
ferrão no corpo com o mesmo fim .
( As leis mandão applicar muitas vezes ao réo
hum ferro em braza , cuja extremidade tem asfis
gura , que se quer deixar impressa na epiderme.
Em Inglaterra está em uso em muitos crimes : o
mesmo tem feito algumas nações da Europa :
não sei o tempo , que pode durar a marca até
se desvanecer de todo : o que se observa nas quei
maduras feitas por acaso , he que muitas vezes
não deixão mais do que huma cicatriz na super-
ficie , huma alteração pouco sensivel na côrs, se
no tecido da pelle.
Se queremos imprimir. huma nodoa em si-
L 2
( 84 )

gnal de castigo , deve ser visivel nas mãos , ou


no rosto ; mas se o fim da pena he sómente pa-
ra se conhecer o réo no caso de recahir no mes-
mo crime , então será melhor assignalar o réo em
huma parte do corpo que não ande tão des-
coberta : he poupar- lhe o tormento da infamia
sem debilitar a força do motivo.
2. A desfiguração tambem póde ser , ou de
passagem , ou permanente ; e póde ter logar ou
na pessoa , ou no seu modo de trajar ; ainda que
no segundo caso não he propriamente desfigu-
rar ; mas produz o mesmo effeito por huma as-
sociação natural das idéas. Podem entrar aqui
os vestidos , que inculcão tristeza. A Inquisi-
ção para fazer as suas victimas medonhas , e
assombrar o Povo usava de carochas, em que
mandava pintar labaredas , demonios , e diversos
emblemas dos tormentos da outra vida.
Rapar os cabellos da cabeça era huma pe-
na , de que se usava noutro tempo era huma
parte da penitencia , que se dava ás mulheres
adulteras , segundo as antigas leis de França . Os
nobres Chinezes fazem gala de trazerem as unhas
compridas neste caso ter as unhas cortadas
podia ser huma desfiguração penal. O mesmo
se podia fazer aos paizanos da Russia , e Judeos ,
mandando -lhes cortar os cabellos da barba.
Os meios permanentes são mais limitados :
os unicos de que se tem usado , e que ainda ho-
je vogão em algumas nações , são feitos do pes-
coço para cima , sem destruir os sentidos : em In-
glaterra já não fazia estranheza mandar cortar o
nariz pelos dous lados , e cortar as orelhas : a
primeira pena já está em desuso ; mas da segun-
da ainda se usou algumas vezes no seculo pas-
sado.
-ja Quem quizer póde ver nas obras de Pope ,
( 85 )

e dos Escriptores desse tempo , até que ponto a


malignidade satyrica se compraz nas allusões de
similhante castigo , que tinha recahido sobre o
author de hum libello .
Na Russia era mui frequente decepar os na-
rizes , cercear os beiços , cortar orelhas sem dis-
tincção de sexo , nem de estado ; e tudo isto
acompanhado do knut , e degredo : mas he pre-
ciso saber , que no meio de tantas barbaridades ,
a pena de morte era mui rara.

SECÇÃO II.

Das penas , que consistem em inhabilitar qualquer


orgão do corpo.

Inhabilitar hum orgão , he suspender , ou


destruir o seu uso , sem destruir o orgão.
Não temos necessidade de fazer huma per-
feita enumeração dos nossos orgãos " nem de
todos os meios , com que podemos suspender , ou
destruir as suas funcções. Já temos visto que
sería inutil recorrer a huma grande variedade de
penas afflictivas , até mesmo pelos inconvenientes ,

que se poderião seguir : a querermos seguir a lei


de talião , o catalogo das penas possiveis sería
o mesmo , que o de todos os crimes possiveis
neste genero.
1. Orgão da vista. - Suspende-se o seu uso
por meio da Chymica , applicando certos ingre-
dientes , ou da Mecanica , tapando os olhos com
huma venda : póde-se destruir a vista por meios
igualmente chymicos , ou mecanicos. Nenhuma
Jurisprudencia da Europa tem usado desta pena :
empregou-se antigamente em Constantinopla , no
tempo dos Imperadores Gregos ; he verdade que
menos a titulo de castigo , do que na razão de
( 86 )

meio politico para fazer hum Principe incapaz


de reinar : o modo , porque o cegavão , era cor.
rer-lhe pelos olhos huma lamina de metal em
braza .
2. Orgão do ouvido. Podemos destruir a
faculdade de ouvir , destruindo o tympano : po
demos fazer hum homem surdo por algum tem-
po , enchendo - lhe o ouvido de cera. Como pena
legal não conheço exemplo .
3. Orgão da falla: -A mordaça tem sido
empregada as mais das vezes como meio de pre-
caução , raras vezes como hum castigo imposto
pela justiça. O General de Lally foi mandado ao
supplicio com mordaça na boca ; e esta precau-
ção odiosa , talvez que não concorresse pouco pa-
ra indispor a opinião geral contra os Juizes 9
quando se rehabilitou a sua memoria. Algumas
vezes se tem usado desta pena nos carceres e
entre os soldados. Tem huma grande qualidade
a seu favor , a analogia , quando o crime consis-
te no abuso da faculdade de fallar. Tambem sé
poden apertar os queixos , etc.
4. Pés , e mãos. - Decepão se as mãos , e
mandão- se jarretar as pernas , se queremos des-
truir para sempre o seu uso : o modo he bem
facil. As algemas são anneis de ferro , que aper-
tão os pulsos , e que ficão prezos por huma lin-
gueta de ferro , ou por huma cadeia. Similhan-
te invenção embaraça completamente hum cer-
to numero de movimentos , e até se póde em-
pregar de maneira , que o réo se não possa mover.
Ferros aos pés. -- São anneis passados por
ambas as pernas , unid
os da mesma sorte por
huma cadeia , ou barra de ferro , segundo o
maior ou menor castigo , que se pertende fazer :
deitão - se muitas vezes ao réo algemas , e gri-
lhões ao mesmo tempo e geralmente se usa
( 87 )

destes dous meios , ou na razão de pena , ou


quasi sempre , para que o miseravel se não pos-
sa escoar , e fugir da prizão.
A golilha he huma taboa pregada perpen-
dicularmente sobre hum eixo , que anda á ro-
da; e 2 esta taboa tem buracos em que o pade-
cente he obrigado a metter a cabeça , e as mãos;
e assim fica exposto aos olhos do Povo : digo
aos olhos , por ser esta a intenção do Legisla-
dor ; mas quasi sempre he victima dos ultrajes
do Povo miudo , e nesse caso a pena muda de
natureza , sendo mais ou menos severa, segundo
o capricho desta multidão de algozes. O desgra-
çado coberto de lama , com o rosto pizado , to-
do cheio de sangue , os dentes quebrados , com
os olhos inchados , e quasi sem lume , não tem
huma só feição , por onde o conheção . A Policia ,
pelo menos em Inglaterra , presenceia tudo isto
sem estorvar a desordem , e talvez que o não pos-
sa fazer. Bastaria huma simples grade de ferro ,
com tanto que fosse miuda, para evitar pelo me-
nos os golpes mais perigosos.
O carcan, instrumento de pena , que esteve
em uso em muitas nações , e que hoje mesmo he
mui vulgar na China , he huma especie de goli-
lha portatil o miseravel, amarrado a hum cepo ,
he obrigado a supportar mais ou menos tempo ,
sem refrigerio , o pezo dos ferros , que lhe carre
gão sobre as costas , e que prendem n'huma col-
leira de ferro. ( 1 ) .

(1) De infibulatione non tacendum. In masculis usitatum est


apud antiquos , non quidem in pœnam , sed in custodiam. Ser-
vis a quibus ministerium exigebatur , cui nocere existimabatur
usus veneris , solebant Domini in pœnam trans præputium in-
strumentum cudere , quod vocabant fibulam. Id dum manebat
coitum penitus impediebat. Hunc ad morem innuit Martialis, cum
in aliis locis , tum in hoc :
( 88 ) .

SECÇÃO III.

Das mutilações.

Entendo por mutilação cortar inteiramente


huma parte externa do corpo humano , dotada de
hum movimento distincto , ou de huma funcção
especifica , que se póde perder sem perder a vi-
da : os olhos , a lingua , as mãos , etc. estão nes-
te caso .
Quanto a cercear o nariz , e as orelhas , não
lhe podemos chamar mutilação ; porque não he
por estas duas partes , que se cortão , que os
dous sentidos do olfacto , e do ouvir exercitão
o seu poder : he verdade que lhes servem de res-
guardo , e compostura ; mas não formão a sua
essencia ; e faz differença , ou privar totalmente
de orgão , ou destruir as partes , que lhe servem
de reparo : he huma desfiguração , e nada mais :
similhante perda ainda se póde compor de algu-
ma sorte por meio do artificio.
Todos sabem que a mutilação noutro tempo
era frequente na maior parte das leis , porque
o mundo era governado : não ha huma só espe-

Delapsa est misero fibula , verpus erat.


Aque iterum.
Menophili penem tam grandis fibula vestit ,
Ut sit Comædis omnibus una satis.
(*) Quanto ao Cinto de Venus , de que temos huma ex-
cellente invectiva de Freydier, Letrado de Nismes , he huma in-
venção barbara , de que he melhor não fallar. O modo de fa
zer as mulheres honradas he fazer-lhes ver , que perdida a
honra , tem perdido tudo ; que a mulher honesta obriga a hu-
ma especie de veneração e respeito ; que póde mandar seu
marido ao cabo do mundo , á gloria , á morte , aonde ella
quer. Mr. Thomaz , e o immortal Fenelon , tem dito quanto
se póde dizer a este respeito.
)
( 89 )

cie , que se não tenha practicado em Inglaterra


até quasi nos nossos dias : a pena de morte po-
dia commutar-se em mutilação , segundo a lei
geral . Por hum Estatuto de Henrique VIII , to-
do o que feria alguem de caso pensado dentro
do paço , ficava sem a mão direita : ha outra lei
do tempo de Isabel , em que a exportação de hu-
ma ovelha era castigada pela amputação da mão
esquerda estas leis pouco a pouco forão cahindo
em desuso ; e hoje podemos reputar a mutilação
como estranha de facto no Codigo Penal da Gram-
Bretanha.

Exame das penas afflictivas complexas.

As penas simplesmente afflictivas são muito


faceis de avaliar , porque as suas consequencias
penaes são todas do mesmo genero ; o seu effeito
he immediato : todas as mais offerecem grandissi-
mas difficuldades na sua avaliação , porque as
suas consequencias penaes são mui diversas ,
mais ou menos certas , mais ou menos similhan-
tes. As penas simplesmente afflictivas conseguem
o seu effeito ; todas as mais tem incerteza ; e tan-
to as consequencias são mais remotas tanto'
mais escapão aos que tem menos esperteza , e
menos reflexão.
Figuremos hum circulo , e fechemos nelle
todo o mal , que traz comsigo huma pena sim-
plesmente afflictiva : he o que se não pode fazer
nas outras penas ; porque a circumferencia do
mal nem he limitada , nem he possivel que o se-
ja. O mal he geral , vago ,e universal , que se
não póde determinar precisamente. Quando os
effeitos das penas são vagos , custa mais i a esco-
lher ; porque os males de huma podem ser os da
outra , e de modos muito differentes de castigar
Tom . 1. M
( 90 )

podem resultar as mesmas consequencias penaes :


não ha senão probabilidades , e huma presum-
pção de que desta , ou daquella pena poderá sor,
tir huma consequencia penal maior do que dou-
tra.
Independente do soffrimento organico , as
penas , que entendem com o exterior da pessoa,
produzem dous effeitos desairosos : no fysico po-
dem fazer o réo objecto desagradavel ; no moral
objecto de desprezo : em duas palavras , fica mal
affigurado , e perde a estimação dos homens.
Huma destas penas , que tem mais effeito no mo-
ral , que no fysico , he assignalar a pele com huma
letra , que não faz mais do que mudar a côr ;
mas que vem a ser huma attestação de que o
individuo commetteo hum crime , por que se fez
desprezivel ; e o effeito do desprezo he diminuir
a estimação ; principio de todos os officios livres ,
e graciosos, que os homens se costumão fazer mu-
tuamente ; e como a natureza humana seja de-
pendente , quem não vê , que tudo o que tende
a diminuir a benevolencia dos outros a meu re-
speito , deve encerrar em si infinitas privações ( 1 ) ?
Quando este signal se imprime por causa de
hum crime , he da sua essencia dar-lhe hum ca-
racter , que annuncie claramente a intenção do

( 1 ) Stedman cita hum facto , que prova bem o que te-


mos dito sobre as consequencias indefinidas destas penas.
Hum Francez , diz elle , chamado Destrades , qne tinha in-
troduzido em Surinam a cultura do anil e que por mui-
tos annos tinha gozado da estimação geral daquella Colonia ,
estando em Demerary , em casa de hum seu amigo , cahio
doente com hum entraz nas costas ; não quiz Cirurgião , por
mais que o mal fosse a peior , até que desesperado se matou
com hum tiro de pistola. Então se descobrio osegredo : achá-
rão-lhe nas costas a letra V , ou a marca de ladrão .
Narração de huma expedição contra os Negros revolta-
des de Surinam , pelo Major Stedman, cap. XXVII.
( 91 )

facto , e que se não possa confundir com as ci-


catrizes , e signaes , que vem por accidente : don-
de se segue , que he necessario marcar o réo cont
huma figura determinada ; o signal mais conve-
niente , e o mais geral he a letra inicial do cri-
me. Os Romanos imprimião na testa dos calu-
mniadores a letra K - ( * ) Em Inglaterra pelo
homicidio commettido em desafio são marcados
os réos com a letra M ( inicial de Manslaugter ) ,
e os ladrões com hum T ( da palavra Theft ):
na França , os que erão sentenciados a galés, erão
assignalados com as tres letras G. A. L.-
Na Polonia havia o costume de accrescentar
huma figura symbolica : a letra inicial do crime
era mettida na figura de huma forca. No Indos-
tan , entre os Gentús , escrevem nas cicatrizes
hum poder de figuras symbolicas extravagantes.
Ha hum meio muito mais suave , e que vem
a dar no mesmo : obrigar o réo a trazer huma li-
bré ,, que se difference dos mais. Em Hanáu na
Allemanha , os forçados trazem para distincção
huma manga preta em huma veste branca : he o
1
modo de os apanharem no caso de quererem fu-
gir , e he hum castigo de mais , em razão da infa-
mia.
A marca , huma vez que não desfigure , não
inspira desprezo senão pela relação moral , མ་ཆས que
tem com a pessoa marcada ; mas o signal , que
desfigura até ao ponto de se não poder encarar

( * ) A isto allude Cicero na Oração pro Sexto Roscio Ame


rino. He permittido que hajão n'huma Cidade espias , e accu-
sadores , para que os mãos se contenhão. Sustentão-se os cães
para guardar as casas ; mas o que ladra contra o dono , ou
fóra de tempo , merece que lhe quebrem aspernas. Se sabeis
a verdade , ladrai muito embora ; mas cuidado com as per-
mas , e com a letra K , que vos podem imprimir na testa.

M 2
( 92 )

sem huma especie de enjoo , até póde afastar


do réo a benevolencia dos outros ainda sem re-
lação aos costumes : he hum prejuizo , mas que
nem por isso deixa de existir ; aliàs não veriamos
que se tem por huma desgraça ter o rosto cheio
de costuras ; e o mais he que não só perdem as
mulheres , em que o defeito he mais notavel , mas
acontece o mesmo aos homens ; salvo se consta ,
que os golpes forão aparados na guerra ; mas ain-
da mesmo assim , para que o respeito moral che-
gue a vencer a repugnancia fisica , he preciso
lutar ; e neste combate entre a natureza , e a be-
nevolencia , que procede da reflexão , nem sem.
pre vem a triunfar a razão . As mutilações estão
sujeitas a huma grande objecção , que se tira da
economia da pena . Se o seu effeito he privar o
individuo dos meios de ganhar a vida , e se elle
não tem de que possa manter- se , he necessario
ou deixalo morrer , ou que alguem lhe dê o sus-
tento. Se o deixão morrer 9 já não he a mesma
pena ordenada pela lei ; he a pena de morte : se
he preciso dar- lhe de comer , e vestir ; ou ha de
sahir dos amigos, ou de esmolas , ou á custa do
publico ; e em todos os casos padece o Estado.
Só esta consideração bastaria para rejeitar a ap-
8
plicação de similhantes penas a delictos fre-
quentes , como são , por exemplo , o contrabando ,
e o roubo. I..
Ha outra razão , porque as mutilações se
não devem admittir ; porque são irreparaveis.
Tambem se não póde negar que são desiguaes.
Tirar a vista , ou decepar a mão de hum pin-
tor , ou de hum · homem , que vive dos seus es-
criptos , não he o mesmo que fazer outro tanto
a quem não sabe ler , nem escrever entretanto
he preciso confessar , que na totalidade dos ma
les incertos e desiguaes , que resultão de hu-
( 93 )

ma tal pena , e que huns sentem mais do que


outros , segundo a imaginação mais ou menos
viva , cada hum sente o seu mal : esta desigual-
dade he que se não póde calcular com certeza ,
porque pende de circumstancias , que se não po-
dem prever : hum homem , que aborrece o tra-
balho , parece que não deveria ter grande pena
em lhe cortarem a mão : quantos se não tem
aleijado de proposito , só para escapar das recru-
tas , e de pegar em armas ?
Estas penas são mui variaveis " quando se
-considerão no todo ; sempre ha onde escolher ,
tem gráos demais , e de menos ; perder hum de-
do não he o mesmo que ficar sem dous , ou per-
der a mão toda : perder a mão he menos , que fi-
car sem hum braço ; mas esta graduação desap-
parece logo que se considera cada huma das pe-
nas separadamente. A mutilação particular man-
dada por lei não he susceptivel de mais, ou de
menos para se estar ageitando ás diversas cir-
cumstancias do crime , ou da pessoa do réo ; e por
isso que são variaveis , são disiguaes : a mesma
pena nominal não vem a ser a mesma pena
real .
Quanto ao exemplo , estas penas fazem mais
impressão, do que as penas simplesmente afflicti-
vas , que se não estendem além do acto em que
se faz o castigo ; em quanto das mutilações re-
sultão consequencias permanentes , que sem des-
pegar estão renovando aos olhos do Povo a idéa
da lei , e da sancção da mesma Lei. Mas para
isso he necessario que as desfigurações , e mu-
tilações legaes tenhão hum caracter particular ,
de sorte que se não confundão com os accidentes
naturaes , ou que podem sobrevir por huma des-
graça :: he preciso assignalar o criminoso , e salvar
ao mesmo tempo o desgraçado.
( 94 )

Resta examinar estas penas debaixo de ou-


tro ponto de vista essencial ; fallo da sua tenden-
cia para a reforma do réo.
A infamia , quando sobe ao galarim , bem
longe de servir para a emenda , obriga o homem ,
para assim dizer , a perserverar na carreira do
crime : pois que a sua reputação está perdida no
conceito geral , he huma consequencia bem na-
tural , que nem ache confiança, nem abrigo nos
seus similhantes. Como já não tem que esperar ,
e que pela mesma razão já não tem que temer ,
o seu estado não pode ser peior. Se para se man-
ter he preciso trabalhar e não acha facilmen.
te quem lhe dê que fazer , pela desconfiança , e
desprezo geral , lança mão do unico remedio , que
vem a ser ou mendigar , ou metter-se a rou-
bar.
Daqui devemos concluir , que as mutilações
são penas , que jamais se devem empregar a não
ser em crimes horriveis, e no caso de prizão para
toda a vida.

CAPITULO. III.

Das penas restrictivas. Não poder o réo viver


onde quizer.

PEnas restrictivas são as que constrangem o


exercicio das faculdades do individuo , embara-
çando o dito exercicio , ou para que o homem
não receba as impressões , que lhe serião agrada-
veis , ou para que não possa fazer o que dese-
ja. - Tirão-lhe a liberdade de ter esta , ou aquel-
la satisfação , e de poder fazer certas acções.
Estas penas são de dous modos segundo os
meios de que as leis se servem : moraes , e fysi
( 95 )

cas. As primeiras tem logar , quando o motivo


offerecido ao individuo para o desviar de fazer
huma cousa , que lhe agrada , não he mais do
que o medo de incorrer em huma pena maior ;
porque esta , para ser efficaz , deve exceder a sim-
ples pena do homem se sujeitar ao conhecimen-
to da lei.
As penas restrictivas são applicaveis a qual-
quer acção em geral ; mas particularmente á fa-
culdade, que tem cada hum de poder mudar de
logar : tudo o que restringe huma tal faculdade ,
he encerrar o homem n'hum certo espaço de
terra.
Neste genero de pena , a terra relativamen-
te ao réo está como repartida em duas porções
mui desiguaes ; huma que lhe he permittida , ou
tra que lhe está prohibida. Se o logar, a que está
limitado , he um espaço estreito , cercado de mu-
ros , e cujas portas se fechão á chave, he huma
prizão. Se o destricto donde não deve sahir he nos
dominios do Estado , temos a pena chamada de-
gredo ; se he mandado para fóra do reino , he o
que se chama expatriar.
O termo degredo parece denotar que o de-
linquente he mandado para fóra do destricto, em
que faz a sua residencia ordinaria ; mas o cri-
minoso póde soffrer a pena na mesma terra em
vive , e até em sua mesma casa , a que po
que
demos chamar quasi prizão ( homenagem ) . Se a
pena he para não ir , ou para não poder entrar
em certo logar , similhante prohibição não tem
nome proprio ; poderemos chamar-lhe interdicto
local.
A pena de não poder o réo viver onde qui-
zer he o genero , que encerra quatro especies
differentes : Prizão ― quasi prizão degredo
interdicto local - desnaturalização.
( 96 )

CAPITULO IV.

Da prizão .

HE necessario distinguir a simples prizão


da prizão, que he afflictiva , ou penal. A primei-
ra não he pena propriamente fallando ; he huma
precaução necessaria : ha suspeitas de que certo
individuo commetteo hum delicto assaz grave
para se examinar se elle he criminoso , e receia-
se ao mesmo passo que elle não fuja para esca-
par ás penas da lei eis aqui hum motivo para
nos assegurarmos da sua pessoa . Em materia
de severidade , a simples prizão não deve ir além
do seu fim todo o rigor que excede a seguran-
ça para que o réo não possa fugir , he hum abu-
so. A prizão afflictiva , ou penal deve ser mais ,
ou menos severa segundo a natureza do crime ,
e a condição da pessoa sobre quem recahe a sus
peita. Todos podem ser obrigados ao trabalho ;
mas com excepção , tendo sempre em vista a
idade , a representação , o sexo , e as forças dos
individuos . As penas particulares , que se podem
accrescentar á prizão , e das quaes fallaremos no
capitulo seguinte , são a dieta , estar só , è a
privação da luz.
Se a prizão se faz para constranger o réo ; quan-
to for mais apertada , tanto melhor conseguirá
o seu fim . Se a pena he prolongada , mas le-
ve , he de recear que a pessoa que a soffre
se vá costumando insensivelmente a soffrela ,
até que já por fim the não faça maior impres-
são. He o que se observa frequentemente nos
homens , que se prendem por dívidas. Na maior
parte das cadeias ( de Inglaterra ) ha tantos meios
(( 97 );

de poderem folgar os prezos , que humà grande


parte se accommoda facilmente com o seu esta-
do: e logo que as cousas tem chegado a este pon-
to , a prizão quasi que já não serve de nada.
"i Se quereis fazer a pena mais severa , fazei- a
mais curta o meio de o fazer está na somma to-
tal : em logar de enfraquecer as sensações peno
sas espalhando -as sobre a longa duração de huma
prizão demorada , augmentais consideravelmente
o seu effeito , reunindo- as no curto espaço de huma
prizão rigorosa : a mesma quantidade da pena
por este modo se fará mais sensivel ; e alem dis-
to , os inconvenientes para o futuro serão menos
penosos. No longo espaço de huma prizão enfa
donha , as faculdades do individuo perdem o seu
elaterio , a sua industria esmorece , os seus ne-
gocios passão por mãos alheias , todas as occa-
siões favoraveis , que lhe podião adiantar a for-
tuna , e que a sua liberdade: The podia ter depa-
rado , ficão perdidas sem remedio. Todos estes
males contingentes , e remotos , que de si não po-
dem ་ dar hum bom resultado , nem para o réo ,
nem para servir de exemplo , se podem poupar
fazendo a pena severa em hum mais pequeno es-
paço de tempo. Tal he a natureza do homem >
que se o deixassem a si mesmo n'hum estado ,
em que não tivesse a liberdade de se mover de
hum para outro logar , seria victima bem depres-
sa de infinitos males organicos , que depois de
um aturado soffrimento o levarião á morte sem
remedio. A prizão , junta com a duração , e des
amparo , sería o mesmo que a pena ultima e
pois que similhante pena traz comsigo huma infi-
nita variedade de males , de que o miseravel se
não pode soltar , e que estão dependentes das
providencias , que se tomão para os poder reme,
diar ; segue-se dahi , que para se formar huma
Tom. I. N
( 98 )
L
justa idéa da prizão , não a devemos considerar
simplesmente em si mesma ; mas examinala nos
seus modos , e nas suas consequencias : e nós ve-
I
remos que debaixo da mesma palavra se impõem
castigos mui differentes : debaixo de huma pala-
vra , que não offerece ao espirito mais do que
huma simples circumstancia de estar limitado a
não sahiro de hum certo , e determinado logar ,
a prizão pode encerrar todos os males possiveis ,
desde os que procedem necessariamente da pri-
zão , até outros , que se levantão de rigor em ri-
gor , ou para melhor dizer ? de atrocidade em
atrocidade até á morte a mais cruel , sem inten-
ção alguma da parte do Legislador , ainda que
por sua negligencia absoluta ; negligencia
tão facil de explicar , como difficil de se poder
desculpar. Vamos classificar debaixo de tres pon-
tos principaes as circumstancias penaes , que re-
sultão deste estado : 1. Inconvenientes necessa+

rios , os que nascem do estado do prezo , e são


da essencia da prizão. 2. Inconvenientes acces-
sorios , que não são de necessidade ; mas que são
consequencias muito ordinarias. 3. Inconvenien-
tes de abuso.

1 Males negativos inseparaveis da prizão.

1. Privação dos prazeres , que dependem da


vista de toda essa variedade de objectos , que
se * achão nas cidades , ou de todas as scenas do
campo , que tanto divertem a imaginação do ho-
mem.
J
2. Privação dos exercicios agradaveis , que
pedem hum grande espaço de terra para se po-
derem fazer ; como andar a cavallo , ir á caça,
dar passeios pelo campo , etc. But 16
13 Privação de jornadas , A que podem ser ne
( 991 ):

cessarias para a saude , como tomar banhos , ir


ás caldas.
4. Estar ausente de todos os divertimentos
publicos , assembléas , espectaculos , bailes , con-
certos de musica , etc.
* 5. Estar ausente das sociedades particula-
res 9 com quem estavamos costumados a viver ;
perda dos prazeres domesticos , no caso do pre-
zo ser casado , ter mulher , filhos , parentes pro-
ximos.
6. Ser obrigado a interromper tudo quanto
he occupação , ou profissão , que pede mudança
de logar , ou ajuntamento de muitas pessoas ; e
em muitos casos privação total dos meio de ga-
nhar a vida. S
t 7. Privação do exercicio de todas as func-
ções publicas , magistratura , logares de confian-
ça , ou de honra , corporações , eleições , etc. &
8.° Perder as occasiões accidentaes de adian-
tar a minha fortuna , de ser util aos meus , de
me recommendar aos meus protectores , de ga
nhar amigos , de fazer render os meus bens , de
obter hum logar , de casar , e de casar os filhos.
Ainda que todos estes males á primeira vis-
ta sejão puramente negativos , isto he , priva-
ções de prazer ; he evidente , que involvem nas
suas conseqnencias penas positivas , como debi
litar a saude , e differentes causas de cahir em
pobreza.

2 Penas accessorias , que ordinariamente


acompanhão o estado do prezo.

1. Sujeição a hum regimen de alimento des-


agradavel : não fallo aqui do sofrimento occasio-
nado por huma dieta insufficiente ; isso fica pa
ra hum artigo separado.
N 2
( 100 )

2. Falta dos meios convenientes para o des-


canço da noite : huma cama dura , ou de palha ,
ou sobre a terra nua ; donde nasce hum incom-
modo universal , muitas vezes doenças agudas ,
se he que o prezo não vem a morrer.
3. Falta de luz , ou porque não vê o sol de
dia , ou porque lha não consentem de noite..
4. Estar excluido da sociedade , cuja pena
he mui custosa de levar , quando o prezo está
prohibido , até de ver em certos dias os seus
amigos , seus parentes , sua mulher , seus filhos.
5. Obrigação de estar de mistura com pre-
zos de todas as classes.
6.°
6. Não se poder corresponder com as pes-
soas de fóra severidade inutil por via de re
gra ; pois que tudo quanto escreve está sujeito
a inspecção ; e que só pode ser desculpavel ,
quando muito , nos casos de traição , ou rebe
lião.
7.° ~ Ociosidade obrigada ; por lhe negarem to
dos os meios de espalhar a sua magoa , como
pinceis a hum pintor , intrumentos do seu offi-
cio a hum relojoeiro , livros , etc. Tem chegado
o rigor algumas vezes a ponto de privar os pre-
zos de tudo quanto he desafogo . Estas differen-

tes penas , que são outros tantos males positi.
vos , que se ajuntão ás penas necessarias da sim-
ples prizão , podem ter sua utilidade n'huma pri-
zão penal , e de correcção . Veremos em outra
parte como isso se deve fazer : mas relativamen-
te ao quinto inconveniente , o constrangimento
de estar vivendo de portas a dentro com toda a
casta de gente , sempre he hum mal , que se não
póde remediar , he verdade , em quanto se não
der outra fórma ao systema 2 e construcção das
cadeias.
Passemos aos males puramente de abuso
( 101 )

aos que não existem senão pelo descuido do


Magistrado ; mas que existirão sempre, em quan-
to se não crear hum systema de providencias ,
ou de meios de prevenção para cada hum des-
tes males. Para este fim , he necessario apresen-
tar duas listas , huma dos abusos , e outra do
modo de os poder prevenir.

Males. Meios de os prevenir.

1. 1.
Penas de sede , e fome. Alimento sufficiente.
- Debilitação geral em
todo o corpo. Morte.
N. B. Não basta huma
regra geral para este
effeito , sería ociosa ,
futil he preciso huma
serie de regulamentos ,
que determine as onças
de pão , ou de outros
alimentos , que se de-
vem dar aos prezos.

2. 2.
Sensações de frio em Vestidos sufficientes se-
diversos gráos de inten- gundo o clima , e a esta-
sidade. - Circulação ção .
- Regulamen
tos
preza. Membros tolhi- precisos a este respeito.
dos. Morte. -- Construcç
ão de edi-
ficio disposto de modo ,
que possa conservar
scm perigo de incendio
hum temperamento con-
veniente .
( 102 )

3. 3.
Sensação de calor. Modo de construir a ca-
Abatimento de forças deia de sorte , que possa
habitual. Morte, reparar o ardor do sol ,
e conservar o ar livre.
4. 4.
*
Sensação de humida- O chão assoalhado 9 ou
de. Febres , e ou- calçado : ar fresco e no
tras doenças. Morte. inverno conductores , por
onde entre o calor.
5. 5.
Mão cheiro , substan- Construcção de hum edi-
cias putridas lançadas ficio , em que possa en-
a monte ; hum ar me- trar , e sahir o ar com
fitico. -- Debilida- facilidade , em que se não
de habitual. Mémbros demorem as immundi-
gangrenados. Febre cias mudança de ves-
- re-
das cadeias. Doenças tido aos prezos
contagiosas . Morte. gulamentos de limpeza
€ precisos , e estreitamen-
te observados --- uso fre-
quente de vinagre , e an-
tiputridos , apenas co-
meça a despontar o con-
tagio paredes caia-
das separação dos
doentes assistencia
do Medico. " 1
6 .. 6.
Incommodo, que resul- Applicações quimicas pa-
tão dos vermes . — Do ra os destruir. Syste-
enças de pelle Fal- ma de limpeza geral
ta de somno. Debili- hum homem , que se en-
dade. Morte . carregue deste officio , e
que seja responsavel.
( 103 )

7. 7.
Enfermidades diversas. Enfermaria destinada
para os doentes . Soc-
‫بار‬ corros medicinaes. 1
8. 8.
Sensações penosas por Quartos para estarem
se offender o pejo , e a separados os prezos nas
modestia. horas do somno , pelo
menos as pessoas de
differente sexo. Gabi-
netes separados para
usos differentes.
9. 9.
Alaridos em tumulto. - Obrigação imposta aos
Palavras indecentes . - Guardas para castiga-
Discursos deshonestos. rem os culpados . Re-
gulamento pregado nas
paredes da cadeia.
10. 10.
Penas , que resultão da Nos paizes protes-
sancção religiosa por se tantes hum Capellão
não fazerem certos deve- destinado para cele-
res particulares , que ella brar o officio divino.
prescreve. Nos paizes catholi
COS hum Sacerdote
para dizer Missa
confessar , etc. ( 1

( 1 ) Diz-se que os prezos de Estado , que forão tão nu


merosos em Portugal no tempo do Marquez de Pombal , es
tiverão privados por muitos annos das consolações , que traz
comsigo a confissão. Quando esta circumstancia se veio a sa❤
ber , irritou a indignação publica.
As cadeias da India estão pedindo huma reforma ; e os
Inglezes devem ter em vista hum ponto de não pequena
monta. Os Indios são acerrimos em conservar as suas castas ,
e tem se não misturarem nem ainda mesmo associarem os
nobres com os homens ordinarios : he huma impureza entre
elles, de que se não lavão facilmente , he humna especie de
( 104 )

CAPITULO V.

Exame da pena de prizão.

1. A Prizão he summamente efficaz relati-


vamente ao poder de fazer mal. O homem mais
perigoso para a sociedade deixa de o ser em quan-
to está prezo : póde conservar todas as suas in-
clinações estragadas ; mas não as póde practicar.
2. Quanto ao proveito , a prizão he a pena
menos proveitosa : tem contra si a despeza , que
he necessaria para sustentar os prezos : aqui de
ve entrar a perda , que resulta da suspensão dos
trabalhos , de que se tira lucro por meio da in-
dustria ; perda , que se estende muitas vezes ain-
da alem da prizão , pelo habito de ociosidade ,
que os prezos devem naturalmente contrahir ;
ainda que esta objecção não tem logar no plano
proposto no Cap. XII. de huma prizão pano-
ptica ( * ).
Quanto á igualdade , esta pena he eviden-
temente mui defeituosa : basta para nos conven-
cermos , trazer aqui á lembrança a enumeração
das privações de que ella se compõe : esta desi-

cxcommunhão a mais apertada que he possivel perdem a sua


estimação perdendo a sua casta , nem podem dahi por dian-
te communicar-se com os seus , nem apparecer em qualquer
sociedade. Tenho ouvido dizer , que os Inglezes se esquecerão
desta contaminação ideal , quando prendêrão o Rajah Nunco-
mar homem da primeira grandeza em Bengala por huma
falsidade , pela qual foi sentenciado , e executado segundo as
leis de Inglaterra. Se isto he assim , eis-aqui hum homem,
que antes da sentença já tinha soffrido huma pena talvez maior
do que veio a padecer pelo seu crime : pena irremissivel no
caso de se lhe não provar o delicto.
sh.(* ) Que toda ella se possa vigiar de hum 7 ponto central,
( 105 )

gualdade sobe ao galarim , quando se compara


hum homem de pouca saude com hum homem ro-
busto hum pai de familias com hum vadio ,
que não tem que perder - hum homem rico
costumado a todos os mimos , e regalos da vida ,
com hum desses miseraveis. Qual fica privado
de todos os meios de subsistencia , em quanto-
aquelle pouco , ou nada sente a pena por esté
lado. Se a prizão he por algum tempo , podemos
considerala como huma especie de multa , que
faz parte da pena . Se o individuo exercita hum
officio , que se não póde interromper sem hum
grande risco de ficar sem elle , a consequencia
póde ser ficar perdido para sempre . Eis-aqui a ra-
zão , porque se faz necessario deixar alguma li-
berdade ao Juiz para commutar a pena. A mul
ta em dinheiro sería melhor que a prizão ; mas
a maior parte dos delinquentes não podem pagar;
logo he preciso recorrer ás penas simplesmente
afflictivas : a especie de infamia , que traz com+
sigo a prizão , não deveria servir de objecção no
caso de consentir o réo em similhante commuta-
ção ; e este consentimento deveria ser huma con-
dição necessaria.
Entre os incommodos da prizão alguns são
particularmente desiguaes : tirar a tinta , e papel
a hum author , que vive de escrever , he tirar-
lhe os meios de se distrahir , e sustentar ; e a re-
speito dos mais , esta pena he maior , ou menor ,
segundo a necessidade > que tem o prezo de se
corresponder para os seus negocios , ou para o
seu divertimento : huma privação tão aspera pa-
ra alguns , e que não faz impressão na classe a
mais numerosa , não deve entrar em qualidade
de pena : para que havemos de impor maior cas-
tigo ao homem instruido , que se tem cançado a
aprender ? Antes pelo contrario parece que o de-
Tom . I.
( 106 )

poupar mais por isso mesmo : porque


veriamos pou
augmentando a sensibilidade á proporção da edu-
cação , o homem , que tem cultivado o seu espi-
rito , o homem de letras sente mais a prizão do
que o ignorante , e grosseiro. Por fim , ainda que
a pena de prizão seja desigual , he preciso saber
que ella he de natureza , que o seu effeito se es-
tende a todos : ninguem he insensivel á privação da
liberdade , ninguem interrompe todos os seus babi-
tos, especialmente os habitos sociaes sem violencia .
4. Divisivel. A pena de prizão tem esta
qualidade n'hum ponto eminente : póde durar
mais , ou menos ; assim como he muito suscepti-
vel de ter mais , ou menos gráos de severidade.
5. Exemplar. - No systema actual das ca-
deias , pouco exemplo se tira da prizão. No pa-
"
noptico , em que o Povo facilmente podia ver
os prezos , augmentaria a sua utilidade .
Entretanto , senão vemos os prezos , vemos
a cadeia : a vista só desta habitação de soffri-
mento penetra a imaginação , e desperta hum
saudavel terror. Os edificios destinados para es-
te uso devião ter hum caracter particular , que
offerecesse á primeira vista a idea de encerro , e
de constrangimento ; que tirasse ao réo toda a
esperança de poder fugir ; e que obrigasse os es-
pectadores a dizer : " Eis- alli a habitação do
crime. "
3. Simplicidade de discripção. Debaixo desta
relação , não ha mais que desejar a pena está
ao alcance de todos os gráos de intelligencia , e
de todas as idades. O não poder sahir de hum
certo logar , he hum mal real , de que todo o mun-
do fórma idéa , e de que todos tem mais , ou
menos experiencia : basta a palavra cadeia para
nos trazer á imaginação todas as idéas penaes ,
que lhe são proprias.
( 107 )

Paremos aqui para desenvolver o mereci-


mento particular de tres penas correccionaes
que devem entrar na prizão afflictiva , mas só
em certas circumstancias , e sempre por hum
tempo mui limitado : estas penas são o estar só,
estar ás escuras , e a dieta. O merecimento con-
siste na tendencia , que tem para emendar as más
inclinações do réo . Creio, que não necessito pro-
var o que digo ; mas ainda que todo o mundo
convenha neste principio , parece-me que até
agora ninguem o tem explicado , nem que os mo-
tivos estejão postos em toda a clareza. Quem o
quizesse negar , poderia allegar argumentos plau-
siveis ; poderia dizer : -- " Quem produz no réo
essa aversão pelo crime , que tem commettido ;
a que se dá o nome de correcção , não he mais
do que a pena , que acaba de experimentar , e
que se representa no seu espirito juntamente
com a idéa da sua falha , ou do seu crime ; mas
este effeito he produzido pela severidade da pe-
na , e não pela sua natureza particular : o estar
só , a escuridade , a dieta na razão de males lhe
farão odiosos os seus defeitos passados ; mas a
pena dos açoutes , ou outro qualquer castigo cor-
poral , podendo produzir huma pena mais aguda ,
hão de produzir igualmente huma aversão mais
viva para esses defeitos , que tem commettido :
como podem ser mais proprias para emendar as
‫وو‬
penas menores , do que as penas severas ?
Respondo , que a emenda depende menos da
grandeza da pena , do que da associação , que se
*
fórma entre a idéa da pena , e a idéa do crime :
é quem póde negar , que a este respeito toda a
vantagem está da parte da prizão solitaria ?
As penas agudas , como os açoutes em quan-
to se levão , não deixão logar á reflexão : a dor
actual absorve toda a attenção se se podesse
0 2
( 108 )

misturar alguma emoção mental com as sensações


fysicas , sería mais do que outra qualquer à do
resentimento contra o accusador , executor , ou
Juiz : mas logo que o tormento acabou , e que
o padecente está livre , faz toda a diligencia por
se esquecer do castigo : e tudo que o cerca con-
tribue para desviar de si as reflexões saudaveis "
de que pende a sua reforma. Em fim , passou a
pena ; e esta idéa he acompanhada de hum sen-
timento vivo de alegria bem pouco favoravel á
emenda .
Mas n'hum estado de solidão ; o homem en-
tregue a si mesmo , não sente estes abalos im-
petuosos , que nascem da sociedade , e que accen-
dem o amor , e o odio : não tem esta variedade
de idéas , que resultão da communicação com os
seus similhantes , da vista dos objectos exterio-
res , e que o trazem embebido nos negocios do
mundo , e nos seus divertimentos. Pela privação
da luz diminue consideravelmente o numero das
impressões : a alma do prezo está como sumida
em si mesma , n'huma escuridade interior , que lhe
tira todo o apoio de suas paixões , e lhe faz sen⚫
tir vivamente a sua fraqueza . A abstinencia ,
que sempre deve guardar certas medidas , acaba
de amortecer a fogosa actividade dos temperamen-
tos fortes " e produz huma frouxidão , que não
deixa de ser util na ordem moral . Com effeito,
esta pena não he assás aguda para absorver in-
teiramente todo o seu espirito , e tirar-lhe o po-
der da reflexão ; pelo contrario , o que está sem
luz sente mais do que nunca a necessidade de
chamar para seu allivio todas as idéas › que lhe
apresenta a situação , em que se acha ; sendo a
mais natural de todas estar-se lembrando dos
acontecimentos passados , dos máos conselhos ,
das suas primeiras falhas , que o levárão ao cris
( 109 )

me , de que soffre o castigo ; crime de cujos


prazeres lhe não resta mais do que a lembrança ,
e as funestas consequencias , que deixárão em
seu logar. Lembra-se igualmente desses dias de
innocencia , e segurança , de que estava gozan-
do , e que se offerecem aos seus olhos com hum
esplendor ainda maior pelo contraste da sua mi-
seria actual. Os seus pezares recahem natural-
mente sobre os erros do seu procedimento ; e se
tem mulher , filhos , parentes proximos ; os senti-
mentos de affeição a seu respeito podem renascer
de novo em seu coração pelo remorso de todos os
males , que tem causado á sua familia .
Outra vantagem , que se tira desta situa-
ção , he lembrar se o homem da outra vida : nes-
ta alienação total de divertimentos , e de impres-
sões externas , a Religião vem tomar sobre o in-
feliz hum novo imperio. Cortado da sua infelici
dade , e dos acontecimentos singulares , ou pou-
co naturaes , que fizerão descobrir o seu crime ,
tanto mais combina , tanto mais julga sentir hu-
ma Providencia , que o tem levado por cami-
nhos escondidos , e que fez abortar todas as suas
cautelas se he Deos que o castiga , Deos o quer
salvar ; e desde então entra em si mesmo " re-
corda com interesse suas promessas , e ameaças ;
promessas , que abrem huma perspectiva de feli-
cidade eterna ao seu arrependimento ; ameaças ,
que já parece realizarem-se para elle nessa re-
gião de trevas , em que se vê como engolfado.
He preciso não ser homem , ter sido lançado em
outro molde , para que n'huma situação tão tris-
te possa deixar de ceder ás sollicitações da Re-
ligião. Bastão as trevas para dispor os homens
para conceberem , e sentirem ( para assim dizer )
a presença dos seres invisiveis seja o motivo
qual for , o facto he certo , e ninguem póde du-
( 110 )

vidar de similhantes effeitos . ( * ) Quando a facul-


dade sensitiva está sem acção " a imaginação
trabalha e chega a produzir fantasmas : as
primeiras superstições da infancia , o ter medo
dos espiritos , a existencia dos fantasmas de-
vem á solidão o seu nascimento ; e aqui te-
mos huma razão mui forte para se não de-
4
ver prolongar hum estado , que póde desorde-
nar o cerebro , e entranhar o homem n'huma me-
lancolia incuravel : mas as primeiras impressões
sempre serão boas.
Se hum Ministro da Religião habil em se
valer desta situação favoravel sabe entornar o
balsamo das instrucções religiosas sobre o crimi-
noso humilhado , e abatido , o seu triunfo vem
a ser tanto mais seguro , quanto neste estado de
abandono se apresenta como o unico amigo do in-
feliz , como o seu verdadeiro bemfeitor.
Este curso de disciplina , que por este modo
se compõe de solidão , de trevas " e de abstinen-
cia , he um estado mui violento , como acabo de
dizer , para dever ser de huma longa duração : a
ser prolongado , não poderia deixar de produzir a
demencia , a desespcração , ou , o que he mais
geral , huma estupida apathia . Não he este o lo-
gar de fixar o tempo da prizão , que deve variar
* o gráo de per-
segundo a natureza dos crimes
versidade , que deo a conhecer o réo e os
signaes do seu arrependimento. O que tenho dito
basta para mostrar que similhantes penas , huma
vez que sejão reunidas , são hum dos meios de
reforma , com tanto que sejão acompanhadas de
rigor ; ajudão-se mutuamente humas a outras : e

( *) Apparent direæ facies , inimicaque Troja


Numina magna dêum !
Virg.
( m )

he preciso dizer , que o alimento reduzido ao sim-


ples necessario deve ser insipido para conseguir
o seu effeito penal de outra sorte n'hum sujeito
moço , e robusto , o prazer de hum appetite ma-
terial poderia compensar todas as outras penas.
Esta disciplina reduzida por este modo quan-
to á duração , não incorria no perigo de ser im-
popular , antes conseguiria huma approvação ge-
ral pela similhança , que tem com a disciplina
domestica , e pelo seu fim ད་ correccional . Certa-
mente que se não póde representar o soberano
poder debaixo de hum caracter mais respeitavel ,
nem mais proprio para ganhar os corações , que
debaixo da imagem de hum pai , que até mesmo
quando castiga hum filho mal costumado , tem
sempre em vista a sua felicidade. O effeito , que
produz a pena de prizão solitaria , não he huma
simples theoria ha provas de facto , que se fir-
mão na authoridade de testemunhas mui acredi-
tadas. M. Howard ( p. 132 ) fallando dos estrei-
tos quartos de Newgate , accrescenta estas pala-
vras " Tenho sido informado por testemunhas
oculares , que os mesmos criminosos , que affe-
ctavão de arrogantes em quanto corria o proces
so , e que não tinhão dado mostras de sensibili-
60
dade ouvindo a sua sentença de morte , estre-
mecião de horror , e as lagrimas lhes corrião dos
olhos ao entrar destes sombrios , e solitarios ca
labouços " ...
Mr. Hanway ( p. 74 ) nos conta pelo teste-
munho de hum ministro , que tinha a inspecção
das cadeias de Clerkenwell " que todos os pre-
zos , que estavão emparedados em quartos sepa-
rados davão dentro de poucos dias signaes ex-
traordinarios de estarem arrependidos . Passemos
agora a examinar huma circumstancia da pena de
prizão afflictiva de huma natureza bem differen-
( 112 )

te : quero dizer , da mistura de todos os prezos ,'


ou do ajuntamento de hum grande numero met-
tidos no mesmo quarto.
A pena , que resulta de similhante modo ,
não entra na intenção directa do Governo : he
hum mal , que apezar de se ter reconhecido , e de
merecer huma desapprovação geral , ainda existe
em quasi toda a parte. Creio que não tem a seu
favor mais do que a razão de economia . Sahe
muito mais barato ter todos os prezos em huma
sala ,> do que ter quartos separados para esta-
rem sós , ou divididos em classes ( 1 ) .
Este ajuntamento, considerado como parte da
pena, não tem effeito penal sobre os prezos mais
desempenados , e que tem maior perversidade :
pelo contrario , he huma especie de allivio para
homens deste calibre ; porque o mesmo tumulto
da cadeia os não deixa pensar no seu estado , es-
tão como atordoados , e fóra de si mesmos. Logo
o mal , que resulta , he tão aspero quanto o pre-
zo tiver maior sensibilidade , e for mais delicado.
He huma pena incerta , desigual , que não faz
exemplo , que não aproveita , que produz infini-
tos incommodos , de que se não póde formar hu-
ma justa idéa , pelo menos sem a ter experimen-
tado.
Mas a objecção decisiva contra este modo
de amontoar os prezos , he estar em opposição
directa com hum dos principaes fins da prizão ,
com a reforma dos culpados . Esta mistura , lon-
ge de os emendar , tem huma especial tendencia
para os fazer ainda peiores : o seu resultado he
apagar nelles todo o sentimento de honra , ou ,
n'outros termos , he fazelos insensiveis á força

( 1 ) He preciso convir " que esta difficuldade era muito


grande antes do plano de huma inspecção central.
( 113 )

da sancção moral . Este infeliz resultado de huma


associação confusa he muito claro , para escapar
aos observadores ainda os mais superficiaes . Os
criminosos encerrados n'hum espaço estreito se
corrompem huns aos outros. Tal he a expressão
geral. Representão na debaixo de huma grande
variedade de formas , e ordinariamente a costu-
mão enfeitar de muitas metaforas. A palavra cor-
rupção he infelizmente como quasi todas as pala-
vras , que entrão no diccionario moral , menos
propria para dar idéas precisas , do que para ex-
primir hum sentimento de desapprovação : por
tanto " se queremos sahir do genero declamato-
rio 9 he necessario averiguar os males particula-
res , os habitos perniciosos , que nascem desta
mistura de sociedade : he este o modo de podermos
ter huma idéa clara do que se póde chamar cor..
rupção.
As consequencias perniciosas deste ajunta-
mento se podem reduzir a tres principaes :
1. Reforçarem os motivos , que abalanção o
homem a commetter crimes. 2.° Enfraquecerem
as considerações , que tendem a reprimir os de-
lictos. 3. ° Habilitarem o prezo na arte de os po-
per executar.
Bem se vê que tudo isto diz respeito aos
crimes , cujos nomes representão idéas precisas ,
definidas , ou que podem ser definidas : são males
de hum certo genero : os motivos seductores , é
os motivos tutelares são igualmente penas , e pra-
zeres : por este modo todos os termos sobre que
roda o referido exame são claros , onde não ha
huma só metafora , que possa escurecer as ideas.
1 Relativamente aos motivos " que inci-
tão ao crime , basta fallar aqui do mais geral ,
da sofreguidão , com que o homem se lança a
roubar os bens alheios ; de que provem huma gran
Tom. 1. P
( 114 )

de parte dos crimes. Na classe miseravel , o pró-


ducto de hum pequeno roubo excede o que póde
ganhar hum homem legitimamente pelo seu jor-
nal , para satisfazer aos seus prazeres , e estes pra-
zeres são daquelles , que não custão mui caros-
hum melhor alimento , bebidas fortes , andar bem
vestido , bilhetes de loteria , espectaculos ; e para
coroar a obra , mulheres perdidas. Eis-aqui o fun-
do da conversação entre os prezos , e a fonte
inexhaurivel de todas essas fanfarrices da parte
daquelles , que pela sua viveza , ou fortuna se
tem feito celebres ajuntão á roda de si hum cir-
culo dessa gente baixa , que escuta sôfregamen-
te com inveja , e admiração as proezas do heroe :
a imaginação se inflamma com taes historias , que
para similhantes ouvintes tem todo o merecimen-
to , e todo o encanto de huma novella , em que se
admira a intriga , os lances arriscados , o valor ,
a gloria , e as recompensas : tanto a sociedade he
mais numerosa , tanto os acontecimentos serão
mais variados : e que cousa mais natural , e mais
interessante do que entreterem-se similhantes
prezos dos motivos , que tem sido causa de se ve-
rem junctos ?
11 Em quanto por este modo todas as
paixões viciosas se nutrem , e ganhão forças ; pe-
la outra parte todas as considerações , que ten-
dem a sopear o crime são combatidas , e vão per-
dendo o seu vigor. Estas considerações perten-
cem a huma das tres sancções - politica mo-
ral religiosa.
A sancção politica tira a sua força das penas
da lei , e em particular da pena imposta a todos
esses criminosos , que se achão reunidos na mes-
ma cadeia fallo da pena , que soffrem , ou qne
esperão soffrer. Ora , o primeiro objecto de todos
os socios he tractar as leis com desprezo , e af
( 115 )

frontarem as suas ameaças. Cada hum delles


por vaidade , affecta indifferença para o castigo ,
que experimenta , ou receia ; disfarça o seu mal ,
encarece o bem e faz timbre , segundo a ex-
pressão vulgar , de mostrar boa cara , tendo máo
jogo. Por este modo o mais destemido , o mais
arrogante vem a ser o modelo dos outros afina
pela sua sensibilidade a sensibilidade dos mais ,
que tem vergonha de se mostrarem menos valen-
tes , do que o seu companheiro. Ainda que não
seja mais do que por sympathia , muitos delles
trabalhão por adoçar a sorte dos outros , que es
tão na mesma infelicidade , e os consolão com tes-
temunhos de affeição. Nem se diga , que suppor
nesta gente taes sentimentos he dar-lhe virtu-
des , que não podem ter : he hum erro dizer , que
os homens são absolutamente bons , ou absoluta-
mente máos. O crime , que sujeita os criminosos á
lei bem lhes póde deixar no coração qualidades
estimaveis : ainda podem conservar a compaixão :
he o que nos mostra a experiencia ; e por isso
devemos ter cuidado de não dizermos tanto mal
do vicio , que degenere em calumnia. A sancção
moral he fundada sobre os juizos do tribunal pu
blico tira a sua força das penas , e prazeres ,
que resultão da estimação , ou desprezo daquel
les, com quem vivemos mais habituados. Em quan-
to o homem se achar na sociedade geral , ainda
que não tenha huma probidade real, será obriga-
do a contrafazer- se nas suas acções , e terá cui-
dado sobre si para se não fazer suspeito , ou mui
to desprezivel . Mas na cadeia já não existe a so-
ciedade geral ; os que alli se achão tem interesses,
e principios muito differentes : os habitos , as ac-
ções , que serião nocivas no mundo , e por con
sequencia odiosas , deixão de ter este caracter
n'huma prizão , em que já não fazem mal. O rou-
P 2
( 116 )

bo não he odioso a homens , que nada tem que


perder , e que o considerão como hum dos meios
ordinarios de proveito . A probidade , virtude, a
que até seria ridiculo quererem aspirar , será des-
prezada entre elles por hum consentimento ge-
ral , e tacito. Qualidades mixtas , como a pacien-
cia , o animo , a habilidade , a actividade , a fide-
lidade geralmente uteis , mas capazes de servi-
rem igualmente ao vicio , e á virtude , serão exal-
tadas entre elles em prejuizo da probidade. Por
este modo hum homem será louvado pela sua
paciencia ; mas quando a empregar em andar es-
preitando o momento mais proprio para executar
o crime - pelo animo , em accommetter huma
-
habitação pacifica , ou em resistir á justiça pe-
la sua actividade , em perseguir hum viajante
pela sua habilidade , em saber enganar hum bem-
feitor compassivo pela sua fidelidade, em não
entregar nos interrogatorios os seus companhei-
ros. Eis-aqui as virtudes gabadas em huma tal
habitação : assim he que satisfazem a esta neces-
sidade de estimação , e applauso a que todo o ho-
mem aspira huma vez que esteja em socieda-
de , e a que se não resiste.
A probidade , que só póde merecer elogios
entre elles , não he a probidade , em que interes-
sa o genero humano : porque he possivel obser-
varem-se estreitamente as regras em relação a hn-
ma sociedade particular , de que se depende im-
mediatamente ; em quantó essas mesmas regras se
quebrão sem escrupulo em prejuizo da sociedade
geral , com quem não tem as mesmas relações de
interesse. Os Arabes , que vivem do roubo , são
pontuaes em materia de inteireza com os homens
da sua Tribu : de sorte que a boa fé dos ladrões
( 117 )

veio a ser entre elles hum proverbio , para o di-


zer assim ( 1 ).
A sancção religiosa consiste na apprehensão:
das penas pronunciadas da parte de Deos seja 2
nesta vida , seja n'huma existencia futura. Ora ,
como no Christianismo , os delictos condemnados
pelas leis humanas , o são igualmente pela sanc-
ção religiosa ; tanto mais, quanto ella se estende
ás acções occultas , a dita sancção he hum freio
particularmente necessario para esta classe de ho-
mens : a maior parte dos malfeitores , particular-
mente os que ainda não professárão , esquecem-
se da Religião , não a destroem ; mas como as
impressões , que receberão , são fracas , e faceis
de apagar , não he crivel que se conservem na
cadeia , em que toda a força da opinião se enca-
minha contra as noções religiosas. Não digo que
n'hum tal liceo se estabeleção controversias , e
disputas filosoficas sobre a idea de hum Deos ,
sobre a verdade da Revelação , sobre a authen-
ticidade dos testemunhos , que lhe servem de
base : não he de esperar, que alli se achem Mani-
cheos , Hobbistas , Spinosistas , professores do
gmaticos de incredulidade : não haverão discipu-

( 1 ) Nem só póde haver esta boa fé entre os malvados


quantos exemplos se não poderião citar no mundo , quero dizer ,
no mundo brilhante , no mundo honrado , no mundo , que se
julga moral , e respeitavel ! He preciso partir do interesse o mais
geral para termos huma idéa justa do vicio , e da virtude. A
mesma acção he louvada , ou censurada segundo he util , ou
nociva a huma sociedade particular. Hum tal politico será en-
grandecido na sua aldeia , como hum grande patriota , por ter
obtido para os seus algum privilegio , que encontra o bem da
nação em geral. Vírão-se n'outro tempo duas sabias Acade
mias sobmetterem os seus alumnos ao juramiento de 置 não pro-
fessarem em outra Academia : e para que fim ? para con-
servarem o monopolio exclusivo do ensino das sciencias e
mais he, que o inventor deste juramento foi honrado pelos seus
collegas , como author de hum serviço da primeira ordem.] ::
( 118 )

los subtis de Boulanger , de Bayle , e de Freret ;


mas nem por isso os argumentos deixarão de
produzir menos effeito por serem accommodades
á capacidade dos ouvintes. Os motejos de hum
gracioso terão bastante logica para os seus cama-
*F
radas : a satyra contra os Ministros da Religião
será huma refutação completa da mesma ' Reli-
gião ; e o que tiver desembaraço para sustentar
em voz alta , que só as almas fracas he que se
deixão intimidar pelas ameaças da outra vida ,
póde contar com a sensibilidade de hum tal au-
ditorio.
3 --- Em fim , esta associação de criminosos lhes
offerece o meio mais seguro de se aperfeiçoarem
na sciencia , na practica , e em todo o mysterio
do crime.
buy A sua conversação , como já temos dito ,
dirigida pela vaidade dos que fallão , e pelo in-
teresse dos que ouvem , versa particularmente
sobre suas proezas criminosas. Cada hum pela
sua parte se compraz em entrar nas circumstan-
cias miudas dos meios engenhosos de que se va-
"
leo , dos enganos que fez , e das imposturas com
!
que tem conseguido os seus fins depravados: alli
se communicão os segredos do officio ? os pre.
paros , os meios de disfarce , o modo , por que se
pode escapar a justiça ; em huma palavra os es-
tratagemas desta guerra anti- social . Se estas ane-
cdotas do crime incitão a curiosidade de todo o
mundo ; quanto não serão mais interessantes pa-
*
ra aquelles , cujas inclinações favorecem , e a
quem descobrem os meios de as poderem satis-
fazer ? He por este modo , que se forma hum
deposito de experiencia , para que todos se fin-
tão : o que apenas conhecia hum ramo desta in
dustria malfeitora , vem a ser hum grande disci-
pulo em todos os mais ramos. Não he sem fun
( 119 )

damento que vulgarmente se diz , que a cadeia


he huma escola de perversidade : com esta diffe-
rença , que huma similhante escola desbanca , e
põem o risco acima de todas as outras ; porqué
tem vigorosos motivos para fazer adiantar os dis-
cipulos , e huma grande efficacia nos meios do
ensino. Nas escolas propriamente chamadas , o
mais ordinario estimulante he o medo , que luta
contra a inclinação da ociosidade ; em quanto nas
escolas do vicio , o estimulante he a esperança ,
que se ajusta com as inclinações habituaes : nas
primeiras , a sciencia he unicamente ensinada por
hum mestre mais ou menos habil ; nas outras ,
cada hum contribue para a instrucção de todos :
na escola legitima , o discipulo tem no sueto hu
ma cousa mais de seu gosto , que o trabalho do
estudo ; na escola do crime , o ensino vicioso vem
a ser o principal desafogo de hum estado de tris-
teza , e de constrangimento.
Poderão dizer que a gente mal ensinada
busca sempre os seus similhantes ; e que ou es-
tejão prezos , ou não , sempre hão de viver em
más companhias ; mas eu respondo primeiramente,
que isto nem sempre acontece o homem de vi.
da airada , he verdade que busca antes a socieda→
de dos homens estragados , que dos homens de
bem ; mas tem mil occasiões de tractar com pes-
soas de probidade , que pelo menos lhe fazem
lembrar . das noções de justiça , e virtude.
Nas conversações as mais ordinarias sempre ou-
ve o juizo , que se faz das acções perversas : he
testemunha do vilipendio , com que todos encarão
• homem de mão caracter : ainda que não assista
na Igreja ás lições de moral , nesses mesmos lo
gares , em que se embriaga , nem sempre se tira
ao homem justo o seu merecimento. No mundo
ha huma certa mistura de bem , e de mal ; mas
( 120 )

n'huma cadeia toda a sociedade he composta de


individuos mais ou menos criminosos ; logo ainda
mesmo para o homem o mais aleivoso a cadeia
he huma habitação a mais perigosa. Que será
para esta classe de prezos , que entrão alli pela
primeira vez ? Cederão talvez à tentação da in-
digencia , forão engodados pelo máo exemplo ;
ainda estão nesta idade flexivel , em que o cora-
ção não está calejado : hum castigo a tempo po-
deria aproveitar. Se em vez de reformar os seus
custumes , elle se fez mais vicioso ; se de pequenas
travessuras se metteo em grandes roubos ; se tem
chegado a accommetter os passageiros pelas es-
tradas , se tem feito mortes devemos lançar a
culpa ás lições , que tem recebido na cadeia.

CAPITULO VI.

Da Carceragem.

Outro abuso , que existe em muitos paizes, es-


pecialmente em Inglaterra , são as despezas ,
que faz o réo antes da soltura , despezas , que

não tendo relação com a prizão , vem a ser hum
abuso manifesto. Este mal tem a mesma data dos
rúdimentos barbaros da nossa Jurisprudencia
quando o magistrado não tinha mais idéas do in-
teresse publico , do que os Povos , que vivião de
andar a corso : naquelles tempos de desordem
universal , huma das principaes rendas do Gover-
no consistia em confiscações ; e bastava o mais
leve pretexto para cobrir a avareza com a mas-
cara da justiça. O abuso pertende escapar debai-
xo de hum equivoco o qual , a meu ver , não
99
he mais do que hum sarcasmo . Pois que vos
4
tenho dado huma casa , diz o carcereiro " te
nho o direito de exigir a paga " . Sim , ten-
( 121 )

des direito y se a casa he das minha escolha por


hum acto voluntario a circumstancia, que fab
ta neste caso lo faz toda a differença entre huma
petição legitima , e hum verdadeiro insulto , que
senão pode soffrers o old one wyszis up abeb
Mas dirão, que o carcereiro deve ser pago ,
como outro qualquer que está servindo o publi
co ; e neste caso , quem melhor lhe + deve pagar ,

do que o sugeito , que o obrigou a trabalhar ?


Quem lhe deve pagar ? Vós eu outro qual-
C
quer , com tanto que não seja o prezo. He com¬
tra toda a razão , que huma só pessoa soffra tosi
dos os gastos de hum estabelecimento , que he de
utilidade para todos. Sim , ( torno a dizer ) vós →→→
outro qualquer , devemos pagarzantes do
que o prezo ; porque cada hun de nos tira maior
beneficio de se # castigarem os crimes..do que ti
ra o mesmo réo. Isto sería sempre huma verda
dade , ainda quando o miseravel , não estivesse
obrigado a outras despezas. Mas o argumento ,
que se segue , ainda vem dar maior pezo áo mis
nha opinião. Supponhamos vinte prezos , dezéno-
ve certamente se mettêrão a roubar , pornseacha-
rem endividados , e na impossibilidade de pode-
rem satisfazer aos seus crédorés ; donde resulta
huma certeza positiva de que esses dezenove , em
comparação de vinte não podem pagar nos gastos
dal prizão ( 1 ),, 075 o ba as ad efa enda
-Mas tal he a força do costume, e dos prejui
zos , que os Juizes da primeira ordem yeaos Ma-
gistrados dos districtos particulares não tem dei-

2010 Pela antiga Lei , quando hum districto ( hundred )


devia huma somma de dinheiro , o Sheriff apanhava o primei-
to morador desse districto ao acaso , e o mettia na cadeia
donde não sahia sem pagar pelos outros este expediente ain-
da não era tão máo , como no caso presente porque havia
divida publica , em que todos entravão. obi o taus
Tom. I. Q
( 122 )

xado de dar a este abuso a sua approvação , he o


seu apoio.:: hume só que fosse resoluto para não
consentir neste vexames, e que soltasse o prezo
sam consentir que pagasse carceragem , he ver-
dade que deixava entretanto o carcereiró sem sa-
Lario mas deria desbaratado o systema oppres-
sivo , & a despeza recahiria sobrepo publico ehe
o que se deveria ter feito desde que se estabele-
cêraosas cadeias ( 10 ) o 30
Icu Os que pertendem defender o abuso , pode-
rão dizer , oque he huma parte da pena que se
impõe ao Réo : mas eu respondo, que he falso ;
porque na maior parte das cadeias todos pagão
sem distincção , innocentes , e culpados . O car.
cereiro exige os seus direitos logo na entrada ,
ainda quando se não sabe, se o prezo está ligado
ao crime elmas ainda não disse tudo : os mesmos,
que tem provado a sua innocencia , não podem sa-
hir sem pagar ; sendo a reparação , que lhe fa-
zemas leis pelo ter incommodado , pagarem mul-
ta por serem absolvidos. Hum prezo he accusa-
do dester, feito hum homicidio , e por fim absolvi-
do lo assim mesmo ha de a exhibir a titulo de livra-
menta huma somma igual ao que pode ganhar
hum jornaleiro pelo espaço de tres mezes ; som
ma , que muitos homens desta classe nunca por
dérão ajuntar em toda a vida.niv ob capranqшoo
Mas não he este só o caso , em que na lei

de Inglaterra os cargos publicos , en lagar de pe-


3
zaremosobre a parte mais forte darregão sobre
ermiseravel as custas , que pagão as partes em
huma causajudicial ainda antes de se conhecer qual
heo oppressorgbe qual o opprimido , estão no mes-b
mo caso.Avedasys ühisg o odul 50 Sut( 94 SIDC iva
0347 S
pin Estes
Patna direitos
netok Boseestes emolumentos dos carcereiros não
tëm nada com cas custas da justiça a quelo Juiz póde con
demnar o réo . j08valinn 20001 Bag B
ཟྭ
( 128 )

ogenat & mitog jobsmash409 ago


CAPITULO VIL mit 104

Plano geral sobre as cadeias.

DEvem haver " tres generos de, cadeias differ


rentes segundo os seus respectivos gráos de se
veridade. O primeiro para os devedores , que não
podem pagar , no caso de V se provar, que forão
imprudentes , ou gastárão mais do que podião :
o segundo para os malfeitores condemnados a pri
os que de-
zão por algum tempo : o terceiro para
vem estar prezos por toda a vida.
""

Quanto aos devedores , devem eser conside-


rados como falidos , sujeitos debaixo de penas ri-
gorosas á obrigação de darem pleno conhecimen-
to de todos os seus bens. A pena de prizão, or-
denada como huma providencia de rotina , he hum
rigor bem superfluo sería necessario reservala
[ para sos casos , em que se provasse que a dis-
sólg
graça the veio por sua culpa , ficandolhe o direi-
to salvo de se defenderem pelo exame do seu
comportamento. Esta mesma cadeia póde ser-
vir para todos aquelles , que no tempo , em que
dura obprocesso devem estar debaixo da mão
da justiça, antes que ella decida do seu destina.
Esta sprizão não she mais do que humao preven
ção , cujo fim he segurar o réo para o que pœ-
de acontecer , nem se deve estender a mais : na-
da de rigor , nem apparente , nem real.dias
smoke c03 bucg - on one said sul viab
-Sim 10 £ 9,50072 cuilco ensin I
cel momeisitech des à Devly coving Biovor
A segunda especie de prizão , a dos malfei
Q 2
( 124 )

ores condemnados por hum tempo limitado , tem


por fim a correcção , e o exemplo ; e por isso he
necessario , que a pena real , e a pena apparente,
conservem igualdade : o prezo deve ser obrigado
a trabalhar.
Quando estiver para acabar o tempo , huma
semana antes , L ou no ultimo mez , deve-se-lhe dar
--
menos de comer por modo de penitencia solidão ,
trevas , pão de lagrimas deve servir-lhe de lem-
brança para não tornar a cahir : convem, que a
ultima impressão seja triste , e amargurada : tam-
bem não será máo , que tragão hum signal exte
rior , de } infamia , mas signal , que se possa ti-
rar : isto he excellente para dous fins para
exemplo , como hum accrescentamento do castigo
apparente - e para segurança , porque a fugi-
da do réo se torna mais difficultosa . dese

-40
Alterceira especie de prizão , a dos malfei-
+
tores.condemnados a ella por toda a vida , he
destinada unicamente para servir de exemplo;
-pois que os réos desta "3 classe não devem voltar
para a sociedade. Estes devem trazer hum signal
indelevel de infamia : a sua condição apparente
deve ser a mais desprezivel , sem que por isso
excite compaixão : a sua condição real deve ser
mitigada , quanto o permitte a natureza do seu
4
crime: o que for de huma extracção menos bai-
xa poderá escolher o officio , em que se quer oc
cuparo que tiver o seu officio será obrigado a
trabalhar para o seu sustento ; mas he preciso
dar -lhe huma parte no ganho da sua industria.
Ha muitas cadeias na Europa , em que os mise-
raveis prezos vivem á custa dos fieis ; mas isto
o que prova he o desmazelo 香 do Governo : entre-
( 125 )

gar os prezos ás esmolas do publico he entre-


galos á morte , se as esmolas não chegão : o Es-
tado deve dar o necessario , nem mais , nem me-
nos : o deficit he espantoso ; o superfluo he noei-
Vo.
Em lhes dando o necessario , poderão rece-
ber o dinheiro , que lhes derem ; mas he preciso
ter cuidado , que o não estraguem em bons boca-
dos , e bebidas espirituosas : primeiro está resti-
tuir o que tem roubado. A este respeito reina
huma grande desordem em todas as cadeias : o
roubo com violencia he hum dos crimes ordina-
rios ; mas tanto o réo he mais criminoso " isto

be , tanto he maior a porção , que tem roubado ;


tanto mais á larga vive na cadeia ; os seus fur-
tos vem a ser a sua recompensa . He raro achar-
se nas mãos do réo tudo quanto tem roubado ,
4.
a maior parte está depositado em casa de hum
*
companheiro , ou da propria mulher , ou da
amiga , para o esperdiçar em destemperos , ou
para gastar com procuradores que o ajudem
a atravessar o curso ordinario da justiça. Quando
estes bens mal ganhados já não poderem servir
para o vicio , o prezo estará mais inclinado a re-
stituir o constrangimento imposto ás inclinações
desordenadas será favoravel aos movimentos es-
condidos da consciencia.
Tudo o que se achou ao réo no acto da pri-
zão , ou o tenha comsigo , ou em deposito , deve
ser entregue immediatamente ao inspector da ca-
deia , e inventariado ; e para se evitarem desca-
minhos , que são mui frequentes , será bom , que
sejão arrecadados com o sello do Ministro , entre-
gando-se ao prezo huma copia do inventario.
Poderão dizer , que dar aos prezos hum tra-
tamento igual em materia de comida he huma
pena desproporcionada : os que estão affeitos a
( 126))

passar bem , são mais castigados do cque os mi-


seraveis habituados á penuria. Por huma parte
permittir a homens prezos por crimes de ladroei-
ra a liberdade de poderem gastar em acipipes o
producto do seu crime he conceder-lhes hum bem
á custa daquelles , que tem lezado ; donde se ti-
ra , que o tractamento não deve ser o mesmo.
Com similhante casta de gente não deve haver
contemplação a este respeito , antes que elles te-
nhão restituido a seu dono o que roubarão : quan-
to porém aos outros , que estão pagando por ou-
tros crimes , poderão gastar á proporção das suas
posses... 14 0 ( 0 ) 2641
A restituição exige huma precaução de mais:
o prezo por hum roubo póde ter commettido mais
crimes do mesmo genero , e neste caso he pre-
ciso fazer conta com os outros e só depois de
satisfazer a todos , ' he que se lhe pode conceder
a liberdade de gastar os seus bens como quizer.
Tornemos aos differentes generos de cadeias.
He preciso, que a dita differença esteja manifes-
ta por hum modo tão claro , que se não possão
- 1 no
equivocar na sua apparencia exterior
tractamento interior - e na sua denominação.
As paredes da primeira devem ser caiadas ;
as da segunda de huma côr sombria ; e as da
terceira pintadas de negro.a
Esta ultima deve apresentar diversos em-
blemas do crime : huma serpente , huma fuinha ,
hum tigre , que representão hum instincto mal-
fazejo , offerecidos na entrada # da prizão negra ,
tem huma allusão conveniente. Na casa dos ora-
tes de Inglaterra estão duas estatuas , da loucu-
ra , e da melancolia. O pateo deveria inspirar
horror poderião dependurar- se alli dous grandes
paineis em hum delles deveria estar assentado
hum Juiz no seu tribunal > com o livro 1 da lei ,
( 127 )

pronunciando a sentença de hum criminoso : no


outro poderia pintar-se o Anjo , que ha de tocar
a trombeta no dia do juizo : no interior dous es-
queletos pendurados ao lado de huma porta de
ferro farião huma impressão mui viva ; pareceria
*
a medônha habitação da morte. Todo aquelle ,
que na sua mocidade visitasse a cadeia huma só
vez , teria sempre esculpida na memoria esta idéa.
Bem sei , que os Filosofos da moda costumão
zombar de tudo , o que são emblemas : admirão na
Poesia o mesmo que desprezão na realidade ;
mas he mais facil motejar do que allegar razões
solidas contra a experiencia ( * ) .

( * ) Sobre a importancia dos signaes para ferir a imagina-


ção , e sobre o uso , que delles tem feito o Clero Romano ao
exemplo da antiga Roma , he immortal a passagem de Rous-
seau no seu Emilio : Desprezando a linguagem dos sinaes ,
que fallão á imaginação , perdemos a mais energica de todas
as lingoas a impressão da palavra he sempre fraca ; fallamos
melhor ao coração pelos olhos do que pelos ouvidos .... Hoje
tudo he força , interesse ; os antigos fazião muito mais pe
la persuasão , pelas affeições da alma ; porque não desprezavão
a linguagem dos signaes. Antes que a força se fizesse valer , os
deoses erão os magistrados , do genero humano : diante delles
he que os particulares fazião seus tractados suas allianças ,
pronunciavão suas promessas : a face da terra era o livro , em
que se conservavão os arquivos : rochedos , arvores , montes
de pedra , consagrados por estes actos , imprimindo respeito
nos homens barbaros , erão as folhas deste livro aberto sem ces-
sar a todos os olhos. O poço do juramento , ( de que falla a1
Escriptura ) o poço do que vive , e do que vê , o annoso car-
valho de Mambre , taes erão os monumentos grosseiros , mas
augustos da santidade dos contractos : ninguem ouzaria erguer a
mão sacrilega para derrubar monumentos tão sagrados ; e a fé
entre os homens era mais firme pela abonação destas testemu
nhas mudas do que o está hoje com todo o inutil vigor da
lei. Trasibulo , e Tarquinio , deitando abaixo as cabeças das
papoulas ; Alexandre , tapando a boca do valido com o seu si
nete , fallavão melhor do que se fizessem longos discursos. Da-
rio , mettido entre os Scythas com o seu exercito , recebe da
parte do Rei barbaro huma ave , huma rã , hum rato , e
cinco flechas o Embaixador entrega o seu presente , e se re-
"
( 128 )

A diversidade de nomes he necessaria ; he


respeitar a humanidade , e a justiça a respeito
dos que estão prezos por dividas , e daquelles que
estão pronunciados , mas não estão sentenciados ,
a quem devemos poupar a apprehensão de se ve-
rem de mistura com os malvados pela circumstan-
cia da palavra cadeia : ainda quando não existis-
se este sentimento brioso , deveriamos traba-
lhar pelo fazer valer ; mas elle existe ; e os homens
mais estimaveis são os que sentem mais esta pa-
lavra injuriosa .
A differença do logar, e do nome, he tambem
hum dos meios de aggravar parte da pena , que
se refere ao exemplo , objecto da maior importan-
cia. ( Por tanto ) :
A primeira cadeia se chamará simplesmen
te casa de segurança, ou custodia.
A segunda casa de correcção.
A terceira prizão escura.
O primeiro destes nomes não denota crime ,
nem defeito o segundo suppõe crime ; mas
logo traz á imaginação a idéa favoravel de emen-
da - O terceiro inspira terror.
Na casa de correcção teremos dous fins :
infamar o crime , e poupar o criminoso. Pois
que deve entrar outra vez na sociedade , não o
devemos assignalar com huma ignominia indele-
vel , nem fazelo incapaz de se apresentar aos ou-
tros homens. Com o mesmo meio podemos conse
3
guir ambos os fins. O réo neste caso pode ser
obrigado á trazer mascara , ou seja o que for , que
tapando-lhe huma parte das feições para os que
vem visitar os prezos , augmente a impressão, que
deve fazer aos outros. Esta mascara mysteriosa

tira sem dizer palavra ; mas Dario o tem percebido ; deixa co


campo dos Scythas de corrida , e vai fazer guerra n'outra par
te. Se quereis fazer respeitar a razão , dai-lhe hum vestido.
( 129 )

he hum allivio para quem a traz , e o modo de


aggravar a pena aos olhos dos espectadores .

CAPITULO VIII.

Outras especies da pena de não poder o reo


réo viver
onde quizer Quasi prizão Degredo
-
Desnaturalização.

Quando o individuo não póde sahir do dis-


tricto da sua residencia ordinaria , temos huma
quasi prizão.
Degredo he quando he obrigado a sahir pa-
ra fóra da sua residencia ordinaria , e desterrado
para hum certo districto , que pertence aos do-
minios do Estado.
Desnaturalizar o réo he fazelo sahir dos do-
minios do Reino , para onde não póde tornar.
Todas estas tres penas , ou podem ser por hum
certo tempo determinado , ou são para sempre ( 1 ) .
O degredo , e a desnaturalização são penas desco-
nhecidas em Inglaterra : e o desterro para huma
colonia ( como nós veremos ) he de huma nature-
za inteiramente diversa.
A condição dos individuos , que podem go-
zar da immunidade de huma prizão , corresponde,
he verdade , á idéa da pena , que temos em vis-
ta , mas não he pena ordenada por lei . A pena
legal he a prizão. O prezo, huma vez que se ajus-
te com o carcereiro , que fica responsavel por el-
le , póde andar livremente por hum certo espaço

( 1 ) O Interdicto local entra naturalmente nesta especie


de pena mas como se limita ordinariamente a privar o réo de
alguns prazeres , fallaremos delle quando tratarmos das pe
nas simplesmente restrictivas.
Tom. I. R
( 130 )

ao redor da cadeia , donde se não pode afas-


tar ( 2 ) .
Tambem ha districtos privilegiados , em que
ninguem pode ser prezo por dividas : he huma
especie de encerro quasi voluntario , hum refu-
gio para os que não podem pagar.
Não era raro na França obrigar hum indivi-
duo a viver nas suas terras , ou n'hum logar, que
lhe assignavão. Esta pena só tinha logar em pes-
soas nobres ; e era mais a expressão de hum re-
sentimento pessoal da parte do Soberano , do que
huma pena regular imposta segundo as leis or-
dinarias da justiça : era quasi sempre em que vi-
nha a parar hum ministro desgraçado : algumas ve-
zes hum Parlamento inteiro era degradado , por
não ter querido registar huma lei : he verdade,
que o fim não era precisamente a imposição da
pena ; mas desviar por este modo os individuos ,
que podião sustentar a intriga; vindo a ser por es-
te modo hum rasgo de authoridade , a fallar pro-
priamente , hum sinal de medo , e de fraqueza. A
pena de expatriar o réo póde ser definida , ou inde-
-
finida indefinida , quando o réo póde escolher
o logar , para onde quer ir- definida, quando lhe
he prohibido o poder habitar em algum districto
particular. A ' primeira vista parece que este se-
gundo modo he impracticavel ; porque ninguem
tem poder sobre hum individuo depois de o dei-
tar para fóra da patria , porque já não está debai-
xo da jurisdicção das leis ; mas de facto , ha mui-
tos casos , em que o Estado conserva sobre elle
hum poder sufficiente, e meios de o castigar , se
não executa o mandado. 1.° Quando a dita pena

( 2 ) Em Inglaterra ha seis cadeias com esta immunida◄


de duas em Londres , the Fleet , eto Banco do Rei : duas
no Condado de Carmarthen huma em Cornuaille , e outra
em Newcastle sobre o Tyne.
( 131 )

não he para sempre. 2.° Quando deixa no paiz


donde sahe, propriedades existentes , ou futuras.
3. Quando a Nação estranha , de que he excluido
por sentença, está de mãos dadas com o Governo
para manter a sua execução.
Quanto ao mais a expatriação definida só
póde ter logar em circumstancias mui particula-
res : geralmente , quando se dá este castigo ao
malfeitor, he para o Estado se descartar delle ; e
neste caso vá para onde quizer ( * ) .
Os incommodos, que resultão do degredo , e
desnaturalização , são da mesma natureza que os
que resultão da pena de simples prizão ; e a maior

parte n'hum gráo inferior. Entretanto, esta pena


he tão susceptivel de differença , seja pela nature-
za dos logares , seja pela extensão do districto
que se tem assignado ao réo , seja pelas circum-
stancias do mesmo réo , que he quasi impossivel
estabelecer regra certa para todos os casos.
No degredo, a faculdade de gozar dos bens
da natureza , e das artes , ver os amigos , ser lhes
prestavel , adiantar a fortuna , póde fazer maior , ou
menor impressão. A liberdade de exercer empregos
publicos , de viajar para beneficio da saude , ou
por divertimento, póde reduzir-se a nada. A facul-
dade de continuar o réo os seus negocios , quero
dizer , o seu modo de vida , tem suas altas , e bai
2
xas ; e até póde haver officio , ou manejo , que se
ja incompativel com a pena. Os incommodos do de-
gredo são tão differentes na quantidade , e na

(*) A Nova Constituição de Castella, exigindo dos Povos


o juramento, a que todos elles de boa vontade se prestárão ,
não fez mais do que extranhar os individuos , que não qui
zerão jurar : he o mesmo que tem feito aPaSoberania da Na-
to z
ção Portugueza , imitando hum Deos de > quando disse
aos seus Discipulos : E vós tambem vos quereis ir S. João
Cap. 1 6. . 69.
R 2
( 132 )

qualidade segundo as pessoas , que se não póde


fazer huma proposição geralmente verdadeira so-
bre a natureza desta pena. Os males , que pela
maior parte lhe andão annexos , se reduzem
aos seguintes :
Separação dos amigos , parentes , e concida-
dãos.
Privação dos objectos de gosto , divertimen-
to , e affeição a que o réo estava costumado
não poder gozar das excellencias naturaes do seu
paizdos espectaculos do prazer que as artes
costumão offerecer.
Perda das esperanças de se adiantar na car-
reira , em que se achava - não poder entrar nos
logares de magistratura não entrar nas promo-
ções militares - nos empregos publicos.
Perdas no que diz respeito á sua fortuna ,
desarranjo nos seus negocios , seja no commer-
cio , seja em profissões lucrativas. Hum mestre ,
que se tinha exercitado em húm certo ramo de
manufacturas, que he proprio do seu paiz , expõe-
se a morrer de fome; porque n'outra parte já não

tem que fazer. Hum letrado versadissimo nas leis
da sua patria , no degredo , em hum paiz estra-
nho, tem quasi perdido o seu trabalho : hum eccle-
siastico fica sem exercicio em toda a parte em
que se não admitte a Religião do seu paiz. Huma
das calamidades , que soffre o homem expatriado ,
he ser obrigado a viver entre povos, que ignorão
a sua lingua . Este inconveniente differe muito
na razão dos individuos , e relativamente ás na-
ções para hum Francez he quasi nada ; porque
a sua lingua se acha no dia de hoje quasi univer-
sal entre as nações da Europa : hum Allemão ex-
patriado ainda póde viver entre outros povos Alle-
mães : hum Inglez acha a sua lingua na Ameri-
ca : hum Sueco , hum Dinamarquez , hum Russo,
( 133 )

estão muito mal a este respeito. Não fallamos das


classes superiores : huma parte da sua educação
consiste em se applicarem as linguas estrangeiras ;
o povo em toda a parte mal entende a sua lin-
gua.
Tudo são difficuldades , quando falta este
primeiro meio de communicação : ainda quando
se chegão a aprender os rudimentos da lingua pa-
ra exprimir as necessidades da vida , raras
vezes se chega á perfeição , que he necessaria pa-
ra sustentar huma conversa : he bem triste fazer
na sociedade o papel de mudo ; alem de estar o
homem impossibilitado para entrar em negocio,
em que poderia lucrar.
Outra circumstancia da pena he a differença
de usos , e costumes , em que se encerrão todos
os particulares da vida : objectos fysicos , alimen-
to , habitação, maneira de trajar , gostos habituaes ,
devertimento , modo de representar as idéas, e tu-
do o que pertence a Governo , e a huma Religião
differente. Este ultimo objecto tem huma gran-
de influencia sobre as sympathias , e antipathias
das pessoas. Os Povos da Europa parecem-se mui-
to nos costumes , principalmente entre as classes
superiores : mas hum Indio expatriado sería bem
infeliz.
Tambem deve lembrar a differença do clima :
he verdade , que o réo póde mudar para melhor ;
mas a maior parte dos homens , por effeito de hum
longo habito , não se dão bem em hum paiz es-
tranho ; e o que eu vejo he que a maior parte das
pessoas expatriadas attribuem a esta causa a sua
falta de saude .
De todas estas penas não ha porém huma só
que seja absoluta , e certa : podem ser , e deixar
de ser , podem variar infinitamente , e ate póde
( 134 )

acontecer na balança dos effeitos em logar de


serem para mal , servirem para bem ( 1 ) .

Exame da pena , que consiste em oreo não poder


viver onde quizer.

1. Relativamente á Economia , estas penas


valem mais do que a prizão ( fallo da prizão no
systema actual , de que se não tira proveito ) .
O prezo deve ter de comer , e vestir. N'huma ava-
liação media, o seu valor para o Estado he nega-
tivo : hum homem livre trabalha mais do que pó-
de consumir , he de utilidade ; porque a não ser
assim, não haveria o superfluo , que constitue a
riqueza : hum homem expatriado ( debaixo desta
idéa) , nem he de perda , nem de ganho : o seu va-
lor para o Estado he zéro.
2. Em materia de igualdade , as tres penas,
de que temos fallado , são quasi igualmente defei-
- 1
tuosas e o degredo para fóra dos dominios do
reino ainda mais do que as duas. Ser limitado a
viver em hum recinto estreito, he huma pena com
pouca differença certa para todos , ainda que te-
nha variedade segundo os individuos. Ser limita-
do a huma provincia, a hum districto fóra da sua
residencia ordinaria , he hum castigo mui severo
para hum fabricante muito pequeno para hum
trabalhador , e para muitos nem será castigo.
Ser expatriado he mais penoso ; mas todas estas

( 1 ) Gallio, tendo sido degradado para a Ilha de Lesbos ,


tinha convertido em prazer o seu degredo , e passava huma vi-
da regalada ; de sorte que foi chamado a Roma , e obrigado a
viver com sua mulher na sua patria , para accommodarem o seu cas-
tigo ao seu modo de pensar. Esta passagem citada por Montai-
gne L. 1.Cap.11 . , he tirada dos Anuaes de Tacito: Italia exactus :
et quia incusabatur , facile toleraturus exilium , delecta Lesbo , in-
sula nobili et amoena retrahitur in urbem , custoditurque
domibus magistratuum . L. VI . Cap. III.
( 135 )

penas são muito incertas , e muito desiguaes : em


certos casos absolutamente nullas em outros
casos excessivas.
Todas pendem de supposições ,
que nem sempre se realizão ( 1 ) .
3. Estas penas são muito divisiveis quan-
to á sua duração : mas em relação aos differentes
incommodos , que trazem comsigo , são taes que o
Juiz as não pode mitigar , nem fixar a quantida-
de pelas circumstancias do crime. Que hum réo
seja expatriado , e que este castigo o prive de to-
dos os meios de ganhar a vida , não está na mão
do Juiz remediar o seu mal ; e a sentença por
este modo póde incluir huma pena acciden-
tal de indigencia , e de morte.
4. Quanto ao exemplo , a desnaturalização
he summamente defeituosa : o que tem de exem-
plar he a sua descripção : os Oradores , e Poetas
a pintão com sombras medonhas , e lhe ajuntão
huma especie de terror nominal ; mas como o seu
caracter essencial he subtrahir o réo aos olhos dos
seus compatriotas , que exemplo podem elles re-
ceber do seu castigo ? O degredo para o Reino
ainda deixa o delinquente á vista de huma parte
dos seus concidadãos ; mas o mal no primeiro ca
so não he apparente ; não se vê o signal do casti-
go ; nem se vê outra cousa mais de que infortu-
nios accidentaes .
5. Quanto á sua tendencia para a emenda

( 1 ) He celebre o facto daquelle Veneziano , que sendo


degradado para a ilha de Candia , commetteo hum novo cri-
me imperdoavel segundo as leis do Estado só para tornar
a ver os muros da sua patria , e * despedir- se pela ultima vez
de seu Pai , e dos seus amigos. Começou a ter intelligencia
com hum Principe de outra nação contra o Estado , na certe
za de que por este crime seria levado a Veneza para alli ser
justiçado. Que tormento não sentia este miseravel no seu de-
gredo ? Idea geral sobre a sociedade , e costumes da Italia Moore
T: 1.° Carta XIV.
( 136 )

moral , estas tres especies differem muito en-


tre si.
A quasi prizão póde ser nociva : deixai o réo no
logar do seu domicilio ordinario , se elle está habi-
tuado a frequentar más companhias , continuará no
mesmo : não digo , que seja melhor a cadeia , on-
de he obrigado a viver com gente depravada ;
mas o perigo ainda existe , e he bem natural que
se abalance ao mesmo por sua vontade.
He provavel que o degredo lhe fosse util
neste caso : suspenderia a carreira de suas rela-
ções perigosas , e daria outra direcção a seus
máos habitos ; por isso que havia hum intervallo ,
em que não era senhor das suas acções , por ser
vigiado leva tempo achar complices , que se
arremecem a entrar com outro no mesmo cri-
me; e entretanto ha o risco de ser descuberto :
quanto mais , que por isso mesmo que o réo pe-
lo degredo se vê no meio de huma sociedade es-
tranha , he do seu interesse ganhar as vontades
por hum bom comportamento. Os admiraveis ef-
feitos , que resultão deste meio , são tão claros
por si mesmo , que os vemos practicar no gover-
no domestico.
A expatriação he mais efficaz para a emen-
da do que o simples degredo . Se o réo está
ainda na flor dos annos em que he facil con-
trahir novos habitos ; senão perdeo o amor á sua
reputação ; o tiralo do seu paiz lhe póde vir a
ser tanto mais util , quanto o vai lançar em hu-
ma sociedade , em que não tem contra si a opi-
nião dos seus ; por este modo fica alliviado do
pezo de ser testemunha da sua deshonra. Mas
supponhamos que leva comsigo as suas disposi-
ções viciosas , já não póde ter a mesma facilida-
de para as poder executar ; especialmente se igno-
ra a lingua da nação estranha : as leis . que não
( 137 )

conhece , o manejo da justiça , com quem não es-


tá familiarizado , tudo isto lhe deve fazer medo :
o caracter de estrangeiro , que o expõe mais fa-
cilmente a fazer-se suspeitoso , o obriga a ser mais
recatado ; nem os roubos , e acquisições fraudu-
lentas lhe ficão tão faceis. Todas estas reflexões
o podem determinar a abraçar o trabalho como
unico remedio , que lhe resta.
Segue-se deste exame , que são bem poucos
os casos 2 em que seja conveniente o exterminio
para fóra do Reino. Ha certos crimes politicos de
huma natureza assaz duvidosa , em que esta pe-
na se póde empregar como meio de romper as
relações de hum levantado , e de o apartar para
sempre da scena das intrigas , e partidos , que
alterão a paz da sociedade : mas ainda neste caso
será bom não lhe cortar inteiramente a esperan-
ça de voltar para o seu paiz , logo que pelo seu
comportamento dê signaes de arrependido.
Todas estas reflexões escapárão a Beccaria :
parece que o seu fim era applicar esta pena uni-
versalmente a todos os delictos ( 1 ) .

CAPITULO IX.

Das penas simplesmente restrictivas.

Depois de termos fallado das penas , que re-


stringem a liberdade, que tem o homem de poder
habitar onde quizer ; digamos alguma cousa so-
bre as penas , que restringem as diversas occu-
pações , em que o homem se póde empregar por
escolha. Chamo simplesmente restrictivas as que

(1 ) Tractado dos delictos , e das penas , Cap. XVII.

Tom . I. S
( 138 )

consistem n'huma simples prohibição de fazer is-


to , ou aquillo .
He preciso , primeiro que tudo , não perder de
vista a distincção , que expliquei no primeiro
Capitulo, entre restringir , e punir. O Codigo Ci-
vil , e o Codigo de Policia estão cheios de leis re-
strictivas , que de nenhuma sorte se podem cha-
mar penas. Prohibe-se , por exemplo , vender ve-
nenos , prohibe-se ter as tavernas abertas depois
de huma certa hora da noite , prohibe se , que nin-
guem possa exercer a medicina , ou defender cau-
sas, sem passar por certas formalidades : todas es-
tas prohibições são meios indirectos contra deli-
ctos , ou calamidades que se pertende evitar.
As penas restrictivas , neste sentido , con-
sistem na prohibição , que se faz a huma pes-
soa de gozar de hum direito commum , ou de
hum direito de que estava gozando se a probi-
bição he sobre cousas que rendem ; se por ex-
emplo , se tira a hum taverneiro a licença de
vender o seu vinho , a hum alquilador a licença
de alugar seges , tudo isto são penas pecuniarias *
1 penas muito desiguaes , muito pouco economic
cas. Se hum homem perde o seu modo de ganha
a vida , o que ha de fazer ? Supponhamos que
está estabelecido n'huma freguezia , e que tem
mulher , e filhos : he pôr huma contribuição aos
vizinhos , he castigar a freguezia.
Se das occupações rendozas passamos ás
que são de mero prazer , a sua variedade he infi-
#
nita ; mas ha hum ponto , em que todas ellas se
ajustão , é que nos póde dispensar de as somet-
ter a huma discussão particular. Não ha huma
só, de que o homem ainda o mais habituado se
não possa dispensar , sem receber por isso huma
pena tão forte , que o Legislador se possa fiar no
castigo.
( 139 )

Tal he o espirito humano em materia de


prazeres , que deixa sem maior desgosto hum di-
vertimento por outro : hum novo objecto occupa
o logar do primeiro : o gosto se vai affeiçoando ,
e se ageita a huma grande variedade de situa-
ções : esta flexibilidade do espirito , esta aptidão
para se amoldar ás circumstancias , póde variar
muito de individuo a individuo ; mas ninguem
póde de antemão dizer ao certo , nem avaliar
quanto tempo o habito antigo deverá conservar
o seu imperio a ponto , de que a sua privação
venha a ser huma verdadeira pena.
Ainda temos que dizer : Estas leis restri-
ctivas serião de summa difficuldade na sua exe-
cução terião necessidade de huma pena subsi-
diaria , cujo effeito sería muito incerto. Prohibi o
jogo a hum individuo , o desenho , o vinho , a
musica : será preciso pagar a hum inspector , que
The ande espiando os passos , para ver se obser-
va o que lhe mandão . Em huma palavra , as
penas desta natureza estão sujeitas a hum dilem-
ma: Ou a inclinação da pessoa , sobre quem reca-
hem, he forte , ou fraca : se he forte , achará meios
de illudir a lei ; se he fraca , de que serve a lei ?
E aqui temos a razão , por que raras vezes se
empregão estas penas. São muito incertas , muito
faceis de illudir , para servirem de sancção a hu-
ma lei geral. He verdade que hum Juiz , que es-
tá ao alcance de conhecer o caracter , e as cir-
cumstancias dos individuos , poderia servir- se des-
tas penas com mais exactidão , e até mesmo al-
gumas vezes com proveito. Mas assim mesmo
tem contra si a objecção de serem pouco exem-
plares : a privação , que resulta dellas não he de
natureza , que se manifeste : mortificão em segre-
do ; e por isso são inuteis aos olhos do publico.
Este genero de penas he excellente no go-
S 2
( 140 )

verno domestico : não ha divertimento de que


hum pai , ou qualquer pedagogo se não possa ser-
vir , ou para premiar , permittindo - o ; ou para cas-
tigar , privando delle o filho , ou o discipulo.
Com tudo isto , ainda que o constrangimen-
to , que nasce da prohibição de huma cousa
agradavel , não possa constituir só por si huma
pena certa ; ha casos particulares , em que póde
ser conveniente ajuntando -lhe outro castigo. A ana-
logia póde fazer recommendavel huma tal medi-
da : supponhamos que o sujeito esteve inquieto
na opera será bom que não torne a ella , senão
passado hum certo tempo.
Entre as penas simplesmente restrictivas ha
huma de que se achão poucos exemplos , e que
ainda não tem nome : Consiste em não poder es-
tar na presença de outra pessoa , quando o offen-
sor he obrigado a retirar se immediatamente de
todo o logar , em que se pode encontrar com o
offendido : a simples presença de hum he o signal ,
que deve fazer desapparecer o outro : supponha-
mos que a parte lezada entra n'hum bailhe
n'hum concerto , n' huma assembléa de diverti-
mento , n'hum passeio publico ; o seu aggressor
deve retirar-se no mesmo instante. Esta pena me
parece a mais excellente , que se podia inventar
para castigar insultos pessoaes , para envergonhar
a calumnia ; em huma palavra , a mais accommo-
dada a todos os delictos , que tornão especial-
mente desagradavel a presença do criminoso e
que o fazem objecto de mortificação para o.of-
fendido. He preciso advertir , que nesta pena não
entrão os logares , que o réo he obrigado a fre
quentar para exercer as suas occupações habi-
tuaes , ou para desempenhar os seus deveres : as
Igrejas , os tribunaes de justiça , as praças publi-
cas , as assembléas politicas se offerecem logo co
( 141 )

mo excepções necessarias. Apparecem exemplos


desta pena nas sentenças dos Parlamentos de
França : citarei sómente huma , que foi dada con-
tra hum certo Aujay , por ter insultado huma
senhora de bem : entre outras penas , era obriga-
do a retirar-se de todos os logares , em que ap-
parecesse a dita Senhora , e a sahir logo que a
visse , sob pena de castigo corporal ( 1 ) .
Acha- se igualmente na Intriga do Gabinete
o relatorio de huma querella contra Madama de
Mont- bason , e a Princeza de Condé , em que a
primeira tinha rompido em grandes descompostu-
ras contra a segunda a Rainha Anna d'Aus-
tria lhe prohibio que se não demorasse hum só
instante em qualquer logar de assembléa , em
que se achasse a Princeza ( 2 ) . As leis de In-
glaterra nos offerecem alguns exemplos de res-
tricção contra pessoas , que se não consi-
derão como delinquentes. Os Catholicos não po-
dião exercer o officio de Letrado , nem a Me-
dicina. Toda a pessoa , que não quer receber os
Sacramentos , segundo o rito da Igreja Angli.
cana , he excluida de todos os officios publicos :
fallo da lei , não fallo de facto ; porque no dia
de hoje muitas pessoas de huma communhão di-
versa tem empregos civis , ou militares , renos
exercitão por meio de huma licença que são
obrigados a tirar todos os annos : he huma se-
gurança precaria no direito , mas que estando
firmada pelo uso , e costume de hum seculo ,
já não pode fazer inquietação.
Similhantes restricções não se estabelecerão
como penas : são precanções , para que os indi-
viduos , que estão afferrados a certas idéas não

1 ) Causas celebres Tom. IV. p. 307.


( 2 ) D'Anquetil , Tom. III.
( 142 )

occupem sem distincção huns tantos empregos ,


quando ha receio de que possão abusar : pelo
menos , esta he a razão politica , que se costu-
ma dar ; mas a verdadeira causa era a animosi-
dade religiosa ; erão actos de antipathia. Outro
motivo está no interesse : A exclusão de huns he
de mercê para os outros. Os que tem o direito
servem-se delle para encobrir suas paixões ; de
sorte que as leis restrictivas, estabelecidas pela
aversão religiosa , conservão-se pela injustiça : a
consciencia erronea começa a perseguição , o in-
teresse do ganho , e avareza sustenta o erro ain-
da depois de ter acabado o primeiro motivo : he
justamente o caso de Irlanda , em que se con-
servão ainda leis restrictivas contra os Catholicos
a beneficio dos. Protestantes : he hum milhão de
homens , que exercitão hum monopolio de autho-
ridade , e de logares de grande rendimento con-
tra huma população de quatro milhões. Quando
as leis perseguidoras vem a ser privilegios para
os que perseguem , he muito difficultoso abolir
essas leis. A avareza tem hum geito particular
para se encobrir muito tempo com a mascara da
Religião.
Ainda que estas restricções se não estabe-
leção como penas , e que huma lei geral não de
va escandalizar ninguem em particular , sempre
ha neste caso huma excepção injuriosa para hu-
ma certa classe de pessoas ; verdadeiramente in-
juriosa , por isso que as suppõe perigosas , e mal-
intencionadas : he hum alvo , 4 a que o prejuizo pu-
blico atira sempre ; e o Legislador , que pronun-
cia estas inhabilidades não fazendo muitas vezes
mais do que accommodar-se contra sua vontade
a hum odio de passagem , o faz arraigar por es-
te modo " e o torna permanente. São restos de
huma doença , que foi universal , e que ainda
( 143 )

depois de convalescer o doente , sempre fica com


a pelle toda em costuras , que se não podem ti
rar.

CAPITULO X.

Penas activas , 4 ou trabalhos forçados.

AsS penas activas consistem na obrigação im-


posta ao réo de fazer huma cousa " You muitas ,
para que tem repugnancia. Este modo de punir
par
he differente de todos os mais por huma circum-
stancia notavel. O castigo não he dado pelos ou-
tros ; o réo he que se castiga a si mesmo : he
preciso o concurso da sua vontade ; mas o que
determina esta vontade he huma pena maior ,
com que o ameação ; e como se vê entalado, não
tem mais que sujeitar-se ao castigo ( 1 ) .
Huma occupação he huma serie de actos da
mesma especie , ou que tendem ao mesmo fim.
Considerada em si mesma , a occupação na sua
primeira instancia póde ser penosa , agradavel ,
ou indifferente ; mas em continuando além de
hum certo tempo , enfada , é se faz aborrecida :
isto he em tudo sem excepção ; e tanto as cou+
sas no seu principio dão maior prazer , tanto se
tornão mais penosas pela continuação , e ainda
mais do que as que são naturalmente indifferen-
tes ( 2 ) .
Para fazer agradavel a somma das suas oc-

( 1) Vejão-se as penas subsidiarias, Cap. XV.


12 ) Comer uvas he, geralmente fallando, huma occupação
agradavel : apanhar os cachos póde ser indifferente ; mas a
primeira , em passando huma , ou duas horas , sería insuppor
tavel : a segunda ainda depois de muitas horas , póde ser
indifferente, * se he licito fallar assim.
( 144 )

cupações , todo o homem por consequencia deve


ter a liberdade de poder mudar de huma para
outra muito a seu sabor : toda a occupação for-
çada constitue por conseguinte huma pena.
As penas activas podem abraçar todos os
trabalhos possiveis em razão desta regra ; mas foi
preciso escolher aquelles , que podem fazer todos
os réos , porque não pendem senão do exercicio
das forças musculares , ou de huma habilidade , que
facilmente se adquire. Escolherão-se tambem es-
ses trabalhos em razão da sua utilidade : benefi-
cio collateral em addição ao que se espera da pe-
na considerada como tal. #
Entre as occupações penaes huma das que
está mais em voga he o remar: este exercicio não
pede mais do que força de braços , e andar cos .
tumado. Ha certas embarcações maiores , que
podem navegar ao largo , e que são construidas
dc sorte , que seguem o rumo a poder de remos
ainda sem força de vela. Este trabalho he mais
desagradavel em si , do que ser marinheiro , por-
que tem menos variedade. Os remeiros alem de
irem sentados , andão em ferros por via de re-
gra. Estas embarcações chamão-se galeras , e os
remeiros forçados das galés. Os Inglezes não
usão deste castigo onde tem mais uso he nas
costas de mares , em que ha menos . tormentas ,
cómo no Mediterraneo , Adriatico , etc.
Em muitos paizes ha costume de applicarem
os malfeitores a differentes trabalhos publicos
alimpar os portos , ou as ruas das cidades - fa-
zer estradas - fortificações cavar nas minas.
O trabalho das minas he huma pena legal na
Russia , e na Ungria. As minas da Ungria são
de azougue : os mãos effeitos deste metal sobre
as pessoas que lidão com elle , são o motivo de
que a lei se vale para sacrificar os criminosos.
( 145 ))

Maçar o linho ( * ) he huma das occupações


mais ordinarias, em que se empregão os réos de
ambos os sexos em Bridewels na Inglaterra. A
obrigação de trabalhar póde ser indeterminada ,
ou especifica : chamo indeterminada a que não tem
limitação de tempo , nem tarefa certa , tanto na
quantidade da obra , como na sua qualidade , que
sujeita todas as faculdades do individuo a hum su-
perior , que faz inteiramente seu tudo quanto
póde render o trabalho alheio. Chamo especifica
a obrigação limitada quanto ao tempo , quantida-
de , ou qualidade do trabalho , e quanto á nature-
za das penas subsidiarias , a que o superior póde
obrigar o servo a trabalhar. Ha casos mixtos , em
que esta obrigação he indeterminada a certos re-
speitos , e especifica a respeito de outros.
Ha em Varsovia , se as cousas não tem mu-
dado depois das ultimas revoluções , huma prizão,
em que os delinquentes estão sujeitos a trabalhos
particulares , determinados por lei , ou costume.
Entretanto qualquer pessoa póde pedir ao in-
spector o numero de prezos , que são necessarios
para o seu trabalho , e que lhe são concedidos
por hum certo tempo segundo o ajuste , e preço ,
que se estipula , dando caução de os apresentar
no fim do tempo. São ordinariamente empregados
em trabalhos grosseiros , como cavar poços , trans-
portar terra ; e em quanto assim andão servindo,
são guardados por hum , ou por muitos soldados.
O mesmo uso se acha estabelecido na Russia ( 1) .

( * ) O linho, depois de semeado , e crescido , monda-se


arranca se , ripa-se , e se deita ao sol ; maça - se , grama-se ,
tasquinha-se , asseda-se , fia-se , cura-se , tece-se.
(1 ) O Abbade Chape , nas suas viagens , diz , que tendo
necessidade de cavar a terra até huma certa profundidade , pe-
díra doze destes miseraveis ; e que tendo- lhes dado algum di-
nheiro para beber , elles o empregárão em embriagar os guar◄
das , e fugírão. Vol . 1. p. 149.
Tom . 1. T
( (1461) )

Esta distincção entre o trabalho indetermi-


nado , e especifico , póde illustrar- se com dous
exemplos tirados das leis de Inglaterra.
Para o especifico temos os malfeitores con-
demnados aos trabalhos do Tamisa. A Ordenação
determina a especie de similhantes trabalhos , que
tem por objecto facilitar a navegação do rio ; e
determina além disto a pena subsidiaria , os açou.
tes. Para o trabalho indeterminado temos o de-
gredo para Botany- Bay , em que havendo limita-
ção de tempo ; he sem limites , e sem restricção ,
quanto á natureza dos trabalhos , e penas subsi.
diarias.

As penas activas não só obrigão o réo a fa-


zer huma cousa , ou muitas , para que tém repu-
gnancia , mas podem prohibilo de fazer o que el
le dezeja : estas duas partes da pena são insepa-
raveis. O simples valor do prazer, que perde hum
individuo por huma occupação forçada , he igual
á somma de todos os prazeres, de que poderia go-
sar, se estivesse na sua liberdade. As penas acti-
vas exigem que o individuo não possa sahir de
hum certo logar , em que o trabalho se deve
fazer : he necessario, que esteja alli e não em
outra parte. Nos trabalhos dos portos , das estra-
das ,
das fortificações , ha huma quasi prizão. Nas
galés , nas minas nas occupações sedentarias ?
ajunta-se a pena de prizão a hum trabalho pe-
noso : mas nós veremos a seu tempo , que a pe-
na composta por este modo póde ser hum mal
menos sensivel do que a pena simples : Bina ve-
nena juvant.
( 147 )

SEGUNDA SECÇÃO,

Exame das penas activas.

As penas activas tem todas as qualidades ,


que mais se podem desejar em qualquer pena ,
e n' hum gráo muito superior , quando se conce-
bem separadamente.
1. A pena activa converte-se em proveito :
não que o seu valor neste caso possa hombrear
com o da pena pecuniaria , pois que o producto
se limita ao trabalho , que pode fazer huma pes-
soa , que sempre he diminuto ; em quanto de
huma só pena pecuniaria se póde tirar hum pro-
veito igual ao valor do trabalho de milhares de
homens mas o dinheiro he hum fundo incerto ;
O trabalho hum fundo certo : os ricos são em pe-
queno numero , e raras vezes commettem huns
tantos crimes ; em quanto os pobres compõem
a multidão ; e a indigencia he inimiga da vir-
tude.
Debaixo da relação de despeza do Estado
as penas laboriosas são menos economicas , que
outros diversos modos de castigo ; não em si
mesmas , pois que dão proveito ; mas porque sen-
do combinadas com a prizão , trazem comsigo as
despezas necessarias para sustentar o réo , e pa-
ra o vigiar. Todavia , se o trabalho he bem diri-
gido , póde render hum lucro , que contrabalan-
cêe a despeza , e que ainda possa deixar alguma
cousa.
2. Contra a igualdade destas penas não ha
que dizer ; todo o mundo sente a impressão, que
fazem não ha hum só individuo , que deixe de
experimentar o mesmo embaraço, quando lhe pro-
hibem seguir as occupações do seu agrado. He
T 2
( 1:48 )

verdade , que a obrigação do trabalho peza com


muita desigualdade segundo as pessoas , seus ha-
bitos antecedentes , segundo a differença da ida-
de , do sexo , da força , e da saude ; mas este
inconveniente póde diminuir-se muito bem , huma
vez que o Juiz applique a pena segundo as cir-
cumstancias individuaes.
3. São divisiveis na sua duração , e na sua
intensidade ; de sorte que se podem amoldar aos
crimes : bem advertido, que huma das suas imper-
feições he não poderem descer abaixo de hum
certo grão em razão da ignominia , que trazem
comsigo. O Imperador José II. não fez cousa mais
odiosa , do que condemnar as pessoas de huma
ordem distincta aos trabalhos publicos. Todos os
Protestantes da França se derão por aggravados
nas pessoas dos ministros da sua Religião , conde-
mnados a galés só pelo facto do exercicio publi
co do seu culto.
4. Estas penas , consideradas em si mesmas,
serião pouco exemplares: não tem hum caracter
de padecimento , que lhes seja proprio : a unica
circumstancia , que distingue o trabalho penal
do trabalho voluntario , he huma circumstancia
interna , -a idéa de constrangimento , - que faz
abalo sobre o espirito do que trabalha : mas es-
te constrangimento combinado com a prizão vem
a ser manifesto : he hum labéo , que se não pó-
de esconder e que ainda se pode fazer mais
sensivel , obrigando o rée a andar vestido de
sorte , que facilmente se conheça a pena cara-
cterizada por este modo he exemplarissima.
5. Não insistirei muito sobre huma vanta-
gem particular , que tem estas penas , fallo da
sua tendencia para reformar os costumes. ; he

hum ponto essencial , que eu reservo para o tra-


ctar com maior extensão. Se huma reunião de
( 149 )

malfeitores ociosos he huma escola de perversi-


dade ; hum ajuntamento de malfeitores occupa
dos não tem o mesmo perigo - a sua attenção
está empregada Contato andão embebidos no trabalho
-a occupação actual encurta os meios de es-
praiarem suas idéas pelos crimes , que tem com-
mettido ; não tem logar para se arremeçarem nes-
ses projectos de futuro , que estragão imagina-
ções ociosas. Alem disso sempre andão vigiados
por hum guarda , que impõe hum freio a con-
versações licenciosas , e que serve de animar os
que mostrão boas disposições , como he natural.
Mas o fructo principal desta disciplina he adqui-
Firem hum habito saudavel -o mais saudavel ,
particularmente para essa classe de malfeitores
que se arrojárão ao crime pela aversão » que ti-
nhão ao trabalho.
6. Esta pena não he inteiramente desprovida
de analogia , pelo menos a respeito dos crimes
mais frequentes , e para os quaes ha bem poucas
penas , que sejão efficazes ; fallo dos crimes , que
se commettem por indigencia ; fallo do roubo ,
ordinariamente tem a sua origem na ociosi-
que
dade , e na preguiça. O homem , que até agora
era inimigo do trabalho, vê-se obrigado a traba-
Thar ; o vadio perdeo a sua liberdade. Tanto es-
ta pena he mais opposta ás inclinações do réo ,
tanto he mais propria , vista em prespectiva , pa-
ra lhe assuetar a imaginação.
Depois de ter fallado destas penas em ge-
ral , consideremos por hum instante a especie de
trabalhos , a que devemos dar a preferencia.
Distinguem-se estes em públicos e sedenta
rios.
Nos primeiros , a infamia da publicidade tem
mais força para depravar os individuos do que o
trabalho para os reformar. Em Berne ha duas
( ( 150 )

classes de forçados huns que servem para


alimpar as ruas , e outras obras publicas ; e
outros que se occupão no interior da cadeia : estes
depois da soltura raras vezes tornão a cahir nas
mãos da justiça , em quanto os primeiros apenas
escapão dos ferros , o primeiro ་ uso , que fazem da
sua liberdade , he commetter novos crimes . He
facil explicar a razão. O descaramento a que se
tinhão habituado n'hum serviço de ignominia ,
que se renovava todos os dias , tem feito com
que todo o mundo fuja de ter communicação
com elles ninguem, se serve de similhante gen-
te por via de regra.
Os trabalhos asperos , e penosos , que ordi-
nariamente se escolhem para este genero de cas-
tigo , não me parecem convenientes. Quem póde
medir a força dos individuos ? Quem he capaz de
distinguir a fraqueza real da fraqueza simulada?
He necessario , que as penas subsidiarias sejão á
proporção da difficuldade do trabalho , e da repu-
gnancia do réo alem disto , A a authoridade de
hum guarda , que se faz necessario , he sujeita
aos maiores abusos : confiar na sua piedade , e
mesmo na sua justiça , n'hum emprego , que en-
durece o coração , he conhecer bem pouco a na-
tureza humana. Logo que ha 2 necessidade de se
imporem penas corporaes , o individuo , que se
encarrega do castigo , fica apontado na opinião ;
e o resultado he vingar-se da sua baixeza pelo
abuso da sua authoridade .
Nam nil asperius humili ? qui surgit in al-
tum (* ) •
Os trabalhos , que pedem grandes esforços,
sempre forão talhados para homens livres : o que

( * ) Claudiano. Daqui vemo adagio Não peças a quem


pedio , nem sirvas a quem servio, 1 20
( 151 )

se consegue pela violencia , e por Ameio do terror,


nunca se pode comparar com o que se alcança
pelo primor , e pelos afagos do premio. O tra-
balho obrigado he desluzido avulta muito me-
nos do que o trabalho voluntario ; não só porque
o escravo tem interesse em sonegar as suas for-
cas , mas porque lhe falta està energia 鼋 d'alma ,
que he o verdadeiro alento do vigor do corpo :
he este hum principio bem fecundo nas suas con
sequenciaa. Que me * seja licito fazer huma refle
xão de passagem : Que os Soberanos , que ainda
pizão os Povos como seus escravos calculem o
que perdem n'hum trabalho inferior ; e elles co
nhecerão logo , que a mais preciosa de todas as
conquistas he dar-lhes huma liberdade bem regu
lada mas eu tenho sahido 1 do meu assumpto ,
voltemos a élle , tratandr
Os trabalhos das minas , á excepção de cir
cumstancias particulares , são pouco convenien-
tes para os malfeitores , em parte pela razão
que tenho dado em parte pelo risco de envile
cer huma tal occupação. Sería ajuntar lhe idéas
de crime , e de vergonha : mineiro , e criminoso
virião a ser synonymos com pouca differença ;
salvo se o numero dos malfeitores bastasse para
a escavação das minas ; de outro modo expor se
hia o Governo a não ter officiaes , inspirando.
aversão para similhante trabalho aos que volun-
tariamente o exercitão , e a todos os que ainda
se achão com a liberdade de poderem escolher..
( 152 )

CAPITULO XI.

Do degredo para Botany-Bay.

ENtre as vantagens
Ntre as vantagens , que os Anglo- Ameri-
canos tirárão da sua independencia , ha huma ,
que deve fazer impressão em todo o homem sen-
sivel á honra nacional : a independencia os tem
libertado da triste obrigação de receberem todos
os annos o refugo da população britannica , de
servirem de desaguadoiro das cadeias da Mãi-Pa-
tria , inficionada por este modo a pureza de cos-
tumes de hum Povo, que princi piava a sua exis-
tencia , pela mistura de todas as depravações pos-
siveis (* ) . A America Septentrional ficou desin.
çada desta praga , que durou pelo espaço de mais
de hum seculo : mas poderemos nós dizer até
onde se estenderão as consequencias moraes des-
ta enchente de todos os vicios ?
Tornarei a fallar desta materia interessante ,
quando tractando dos progressos da Nova Zelan-
dia , e da populacão , que alli se fórma , apontar os
inconvenientes ,, que
que se seguem de mandar para
se seguem
alli enxames de malfeitores de tantos em tantos

( * ) Franklin , na qualidade de agente das Colonias, tinha


sollicitado a abolição deste costume. O Ministro allegava a ne-
cessidade de livrar Inglaterra dos seus malfeitores : Que dirieis
vós , he responde Franklin ) se pela mesma razão Vos man-
dassemos as nossas cobras de cascavel ? Creio que esta re-
sposta era de fazer emmudecer o Ministro. Que mal nos ti-
nhão feito as Colonias para lhes mandarmes daqui similhan-
te encommenda? Erão membros convalidos, havia medo de que
não lavrasse a peste , e levasse a Nação inteira : e os Ame-
ricanos não tinhão a mesma razão ? As doenças inveteradas
do espirito humano não se curão com a mudança de ares ; e os
Povos da America são nossos irmãos.
( 153 )

tempos. O que intento por ora , he mostrar que


o degredo actualmente não está já no mesmo pé,
em que estava antigamente, e que a mudança de
logar tem mudado grandemente a natureza da pe-
na para bem a certos respeitos ; para mal em ou-
tros muitos .
Os réos , que depois de convencidos do crime
erão embarcados para a America por mandado
do Governo , erão entregues aos Capitães dos
navios , que os levavão á sua custa , e os vendião
depois , para fazer negocio , aos Colonos Ameri-
canos : esta venda era só dos que não tinhão di-
nheiro para pagar a passagem ; porque os outros
apenas chegavão ao primeiro porto ficavão logo
soltos , nem tinhão mais do que a pena de não
viverem em Inglaterra ; e per conseguinte es-
capavão á parte mais rigorosa , que devia ser
a obrigação de trabalhar. Por este modo os
maiores malvados , os que tinhão sabido ajuntar
o dinheiro que tinhão roubado , erão os que soffrião
menos castigo. Os ratoneiros , os que principiavão
no officio , e que erão menos ladinos , como não
tinhão nada , ficavão prezos a duas cadeias , de-
gredo , e obrigação de trabalho.
No degredo para Botany-Bay o Governo
he que faz todos os gastos : o Governador da Co-
lonia conserva sobre todos os degradados huma
authoridade absoluta : he obrigado a dar- lhes casa ,
alimentalos , dar-lhes occupação ; vigia sobre o seu
comportamento ; he livre para os empregar, ou
nos trabalhos publicos , ou nos particulares ; todos
são obrigados , ninguem se póde livrar por dinhei-
ro por este modo a pena he mais certa , e por
conseguinte mais efficaz.
A America tinha outro inconveniente : offere-
cia muita facilidade aos degradados para escapa
rem , e voltarem para o Reino : hum grande nu
Tom. I. V
( 154 )

mero valendo-se da primeira aberta , què era facil


pela communicação , que tinhão com os navios
que chegavão , trazião outra vez para a capital
a sua fatal industria aguçada pela experiencia. A
distancia em que se acha Botany- Bay , Colonia a
que podemos chamar antipoda de Inglaterra , e o
pouco commercio , que alli se faz , especialmente
com outras nações , diminue o perigo de have-
rem desertores , que appareção no reino antes de
expirar o tempo do degredo. Esta circumstancia ,
bem como a precedente , fazendo a pena mais cer-
ta , tambem lhe dá mais efficacia.
Considerada por tanto no seu estado actual ,
esta pena he complexa. Compõe- se 1.° do degre-
- o degredo ,
do ; e 2.° da obrigação de trabalhar
pena defeituosa em summo gráo , mais que tudo
pela sua infinita desigualdade obrigação de trá
balhar , pena saudavel em summo gráo ; mas que
sendo combinada com o degredo, perde todos os
seus bons effeitos , e produz infinitos males . Para
fundamentar esta minha proposição com argu-
mentos de facto , trago á lembrança os diversos
fins , que deve ter em vista o Legislador na pu-
blicação de huma lei penal ; e vou mostrar , que
o degredo , particularmente o de Botany- Bay, não
preenche hum só dos ditos fins por hum modo
que satisfaça.
d. Qual he o primeiro , e o principal fim de
todas as penas ? O exemplo. O degredo para a no
va Golonia está inteiramente privado desta quali
dade ; eis aqui o seu vicio radical. Não mostra o
castigo , esconde-o , tira-o da vista daquelles a quem
devia servir de lição. Huma scena penal , que se
passa n'hum mundo tão estranho , com quem te>
mos tão ponca relação , não pode fazer sobre os
espiritos mais do qne huma impressão fraca , e fu
gitiva. O Povo , ( diz húm Author , que tinha estus
4 2006 A
( 155 )

dado bem os effeitos da imaginação ) o Povo faz


tanto caso do que aconteceo ha mil annos , como
do que lhe fica na distancia de mil legoas ( 1 ) .
Eu já o tenho dito : mas he bom, que o torne ou-
tra vez a dizer : Não he o que padece o crimino-
so que pode ser util ao publico , na razão de
exemplo ; he a parte do castigo, que se manifesta ,
que fere os olhos , a que deixa huma impressão
forte para combater a tentação de hum crime.
Neste degredo o padecimento real he excessivo ;
- a pena de prizão , que lhe precede nas cadeias ,
-
ou nas galés do Tamisa , — a navegação de cinco
ou seis mezes pelo menos , supplicio continuado
pelo modo porque os prezos estão emmassados , e
comprimidoso perigo das . tormentas - e das
doenças contagiosas , levado ao galarim, e muitas
vezes realizado pela maneira a mais funesta :
eis-aqui o simples preludio de hum captiveiro de
muitos annos em hum continente esteril , e tris-
te , em que por muitos tempos se não podia vi-
ver , e em que basta a demora de hum navio, pa-
ra que muitas vezes a Colonia tenha experimen-
tado em toda a sua extensão os horrores da fome.
Isto não he mais do que hum esboço mui fraco
das calamidades de similhante degredo. Não he
facil imaginar situação mais deploravel ; e he pre-
ciso accrescentar , que o tempo do castigo assi-
gnado pela lei se estende alem do seu prazo , já
arbitrariamente , já por circumstancias locaes. En-
tretanto , a pezar de todos estes males , se os i com,
pararmos com o exemplo, que se tira , he quasi
nada : Orio do esquecimento corre entre esse novo
mundo , e o nosso ; nem a centessima , nem a mili
lessima parte destas penas faz impressão sobre
habitantes da Mai Patria , sobre esta classe de
21!

(1 ) Racine Pref. de Bajazet.. DC93


V 2
'( 156 )

gente que não sabe ler , nem reflectir , e que não


pensa , nem se move senão com os objectos pre-
sentes. Ainda digo mais : Este degredo encerra
circumstancias enganosas , illusões , que supplan-
tão as idéas tristes , e offerecem em seu logar es-
peranças lisongeiras. Na verdade he preciso conhe
cer bem pouco os homens , bem pouco a Mocida-
de Ingleza, para não ver que huma viagem demo-
rada , o alvoroço que resulta da idéa de huma
terra desconhecida, companheiros numerosos, hum
modo de vida , projectos de fortuna ; para não
ver que tudo isto he bem capaz de affastar as
lembranças de hum degredo , e fixar a attenção
com preferencia sobre imagens de liberdade, e per-
spectivas enganosas . ( 1) .
2. Segundo fim das penas : correcção , refor
ma dos individuos . - Consultemos os factos, inda-
guemos as causas na sua origem , e veremos que
o estabelecimento de Botany-Bay tem sido summa-
mente inutil , e o será sempre a este respeito. No
degredo para as Colonias Americanas havia duas
circumstancias, que ajudavão a reforma serem
os réos aboletados pelas familias do paiz - e
viverem separados huns dos outros.
Logo que o degradado entrava a servir hum
rendeiro , as pessoas de casa velavão pelo seu mes-
mo interesse sobre o procedimento do criado , que
apparecia de novo : entretido com o seu trabalho
estando á vista dos amos , já não tinha nem as
mesmas tentações , nem os mesmos meios de se

( 1 ) Não ha muitos annos que dous moços na flor da


idade ( hum tinha 14, o outro 16 annos ) forão condemnados
a degredo por terem roubado ao ler da sentença o primeiro
começou a carpir : de que choras , the disse o mais velho 2
vamos fazer huma grande viagem : que motivo ha para chorar ?
Este facto me foi contado por hum sujeito , que o presen
ceou
e que ficou pasmado.
( 157 )

entregar a suas inclinações perversas. A de-


pendencia da sua sorte lhes dava hum vivo inte-
resse de ganhar a estima de todos, os que tinhão
authoridade sobre elles ; e a não terem perdido as
sementes do honesto , não podião deixar de as
desenvolver pela influencia dos bons exemplos
domesticos. " Estas circumstancias favoraveis he
que não existem em Botany- Bay. Alli não ha fa-
milias, que possão recolher os miseraveis em sua
casa ; he necessario viverem separados , não
são vigiados assiduamente. Como a sua principal
occupação he a lavoura , he precizo repartilos
por aqui, e por alli em huma distancia muito gran-
de ; vivem isolados sem se poderem communicar :
he verdade que os officiaes de justiça os vão ron-
dar , para manterem quanto he possivel a boa
ordem, e otrabalho ; mas que se póde esperar de
huma inspecção descuidada , interrompida , im-
perfeita em todo o sentido , e tão desagradavel
para os inspectores , como aborrecida pelos que
são inspeccionados ? Será este preservativo efficaz
contra a aversão, que elles tem ao trabalho , con-
tra a paixão do jogo , embriaguez , incontinencia ,
esquecimento do futuro , e falta de todo o senti-
mento de honra ? Logo que o inspector abalou ,
soltárão- se todas as paixões , que estavão como
sopeadas com a sua presença . Figuremos na idéa
quanto he precario o imperio, que pode ter a au-
thoridade para com similhantes homens , que facil-
mente se ajustão para o mal , e que fazem gala
de illudir acinte toda a qualidade de vigilancia ,
que póde estorvar a sua natural malignidade. O
publico está hoje inteirado do que se passou nos
primeiros dezeseis annos desta Colonia : he huma
historia completa, que não deixa cousa alguma a
desejar pela fidelidade dos factos , descriptos em
fórma de jornal com todas as suas circumstancias
( 158 )

necessarias. Para nos convencermos com toda a cer-


teza do que nos diz o historiador , he preciso ad-
vertir , que o seu fim não he injuriar , mas en-
grandecer a terra : era a primeira authoridade civil,
e se elle não faz mais do que apontoar crimes a
crimes , he huma prova de que a sua candura o
obrigou a dizer a verdade contra o seu mesmo
interesse pessoal , ou politico ( 1 ) .
A impressão geral, que resulta da lição des-
ta obra , he hum sentimento amargo de tristeza ,
e desgosto ; he a historia a mais vergonhosa da
humanidade , hum calendario seguido de crimes ,
e castigos . Os homens sempre armados contra o
Governo , sempre conspirados para desobedecer
aos seus superiores , e para os enganar , não for-
mão entre si mais do que huma sociedade inimi-
ga , e traidora ; huma sociedade de lobos , e rapo-
zas : as mulheres, que em todo o mundo são a me-
lhor metade da especie humana, fazem huma ex-
cepção bem singular em Botany-Bay. Ahistoria
repete em muitos logares , que são peores que os
homens , que não ha huma só transacção infame ,
em que ellas não entrem. Eis aqui as mais da
Colonia ! As depositarias dos costumes da gera
ção actual !
As accusações de immoralidade são vagas ,
podem ser encarecidas ; os delictos são factos
constantes. Os que se commettem em Botany-
Bay , apezar da presença immediata do Governo,
e da promptidão da justiça , subrepujão tudo quan-
to se póde imaginar . Ha poucas paginas , que
não encerrem a narração de alguma violencia , ou
de algum roubo : ora despejão o celleiro publico ,
ora acommetem as propriedades de hum parti-
cular : o furor do jogo , e os excessos , da gula

(1 ) Relação de Botany-Bay por Mr. Collins.


( 159 )

produzem desafios continuados : as mortes, e assas


sinios espantão pela sua frequencia : o crime de
lançar fogo , que he de tamanho estrago , em par
te alguma he tão ordinario como nesta Colonia
que principiou ha poucos annos. Todo o poder

das leis não póde enfrear as aggressões destes sel-
vagens da Europa contra a mansidão dos natu-
raes , que deveriamos ganhar pelo agazalho , e
bom tractamento , e que temos convertido em ini-
migos terriveis.
Longe de se emendarem neste estabelecimen-
tanto mais os individuos se demorão , tanto
mais se augmentão seus costumes aleivosos : qual-
quer que seja o gráo de vicio , que o historiador
attribue aos degradados em quanto dura o seu
castigo , tudo he nada em comparação dos que se
deixão alli ficar depois de acabar o tempo , e que
se estabelecem na Colonia : aos primeiros podemos
chamar de alguma sorte homens de bem , socega-
dos , de costumes menos mãos ; porque os segun-
dos são os cabeças do motim , a fonte principal
dos embaraços do Governo.
O Author allega a este respeito huma obser-
vação , que prova esta verdade . Nos cinco annos
primeiros , em que esta especie de escravos for-
ros não existia , os degradados erão muito mais
sujeitos , e davão esperanças de melhora : não se
engolfavão em todos os crimes , como para se des
picarem da prizão em que estiverão : não insti
gavão os primeiros, que achando entre os seus an-
tigos camaradas receptadores dos roubos , pro-
tectores do crime , que os recolhem em suas ca-
zas quando fogem , e onde vivem homiziados ; se
fazem mais destemperados , e mais rebeldes ; de
sorte que estão contando as horas para se verem
na mesma independencia bruta. eft 9.99
Que dique será capaz de suster hum río
( 160 )

caudaloso , que vai engrossando de hum anno


para outro ? Todos os meios empregados até ago-
ra tem sido baldados , e he facil mostrar que o
serão sempre. As instituições moraes , e religio-
sas ficão sem effeito ; a policia , e a justiça en-
contrão obstaculos invenciveis na mesma nature-
za da população : e a causa principal de todas as
desordens , a circulação de bebidas espirituosas
he de tal sorte favorecida pelas circumstancias lo-
caes , que se não póde acautelar. Entremos em
algumas reflexões particulares sobre cada hum
destes pontos .
Sobre as instituições religiosas , não direi
mais do que huma só palavra : Que se póde es-
perar do ensino de tres Capellães espalhados por
toda a Colonia ? Qual será o resultado de huma ,
ou duas horas de serviço religioso hum dia na
semana ? E como podem ser escutados com pro-
veito por homens, que vão para alli obrigados pe-
lo medo do castigo ? Por isso que estão violentos
na Igreja , alli mesmo se ajustão para o mal : po-
dem ser constrangidos a levantar o edificio , que
tinhão queimado , podem trabalhar para esse fim
nas horas vagas , dias de sueto ; mas quem os
ha de obrigar a estarem com attenção , e boa
vontade ás instrucções de preceito ? Até as mu-
lheres , diz o sobredito historiador , sempre achão
desculpas , mentiras feitas de proposito para se
dispensarem da simples formalidade deste dever ;
de sorte que a Religião nesta Colonia he menos
hum meio de reforma , do que huma occasião
para se commetterem novos desatinos.
Quanto á policia , padece muito no seu exer-
cicio em Botany-Bay , pela corrupção dos func-
cionarios , subalternos. N'huma população em

que ha tão grandes motivos para a desconfiança


do Governo , foi necessario interceptar as com-
( 161 )
1
municações reciprocas todos os moradores , á
excepção dos officiaes de justiça , estão obrigados
a tirar passaporte, se querem ir de hum districto
para outro ; mas que importa , se os mesmos offi-
ciaes , que estão encarregados de examinar esses
passaportes , são pela maior parte homens medro-
sos , ou que facilmente se podem subornar ; que
tem medo de fazer a sua obrigação , ou que tirão
proveito de a não fazer ? Alem disso reina en-
tre os Colonos , que se estabelecêrão na terra, e de
que tenho fallado , huma disposição constante , e
universal para não consentirem que se estabele-
ça algum regulamento serio , e que estão aposta-
dos a auxiliar tudo o que são inimigos do Go .
verno .
Sendo os delictos tão amiudados nesta Co-
lonia , ha huma causa , que desarma muitas ve.
zes a justiça , hum principio de impunidade , que
parece sem remedio. O sobredito historiador na
qualidade de Juiz lamenta a cada passo huma tal
insubordinação. Não se podem castigar , diz elle ,
senão os que se apanhão em flagrante delicto
como se houvesse huma liga , hum concerto ta-
cito entre a maior parte dos habitantes para em-
baraçar a justiça , ninguem quer depôr em juizo ,
nem servir de testemunha falla de cinco mor-
tes commettidas dentro de hum anno em 1796 ,
em que os réos ficarão impunes , por se não
achar quem depozesse contra elles , apezar de ha-
verem 1 vehementes suspeitas , e de se promette-
rem avultados premios. A ' vista de hum facto si-
milhante he escusado citar outros muitos do
mesmo genero. ge
PA causa immediata de quasi todas as desor-
dens he a paixão desordenada por bebidas espi-
rituosas , que despertão successivamente o furor
do jogo , e a impureza dos costumes , estragão
Tom. I. X
( 162 )

os criados , os soldados , os officiaes , as mulhe-


res , a mocidade , os prezos , e os guardas : este
vicio tem chegado a ponto , diz o historiador ,
que os degradados, que alli se estabelecem, ven-
dem a sua colheita por inteiro no tempo da ça
fra , só para cevar a sua paixão dominante. O
Governo não a pode enfrear : a sua politica tem
variado a este respeito segundo as circumstan-
cias, Ora he permittido o commercio de bebi-
das espirituosas , ora he prohibido ; mas por mais
que se esmere em querer apagar este veneno ,
ainda 9 não conseguio ; antes pelo contrario se
tem insinuado por todas as veias da Colonia.
Tanto mais se multiplicão as povoações , e se
afastão do centro , tanto ha maior facilidade para
distillações particulares , e para escaparem da vi
gilancia do Governo. E o contrabando ? Quem
o póde evitar em huma tão vasta extensão de
costas , que nem toda a marinha ingleza sería
bastante para o guardar ? Se o mal se não pôde
destruir , quando a Colonia estava reduzida a hu-
ma só aldeia , e não tinha mais do que hum
porto ; que será agora , em que ha tantas povoa
ções , e tão espalhadas , quando todos os navios
chegão empachados de similhante genero , por
ser esta a venda mais certa , e a mais rendosa
de todas ? AB
Tal he o estado de reforma dos prezos , que
são mandados para este estabelecimento : nenhu-
mas melhoras no passado nenhuma esperança
para o futuro. Tenho-me talvez alargado muito
sobre esta materia : felizmente os pontos , que me
restão a tractar , não exigem a mesma extensão,
III O terceiro fim das penas he tirar aos ré-
os o poder de commetter crimes.
Hum similhante degredo enche este fim re-
lativamente a Inglaterra : transportados para Bo-
( 163 )

tany-Bay , está claro , que os miseraveis n'huma


distancia infinita não podem exercitar dentro do
reino a repetição de seus crimes. Mas se os réos
em quanto se demorão em Botany-Bay não são
temiveis na Gram Bretanha , são muito para le,
mer no seu degredo ; e os crimes sendo tão noci
vos nesta Colonia, como na Mãi Patria ; segue- se
que não devemos attribuir a esta pena huma van.
tagem que não tem . O habitante de Londres fica
satisfeito com a retirada destes homens perigosos
1 eis a linguagem de hum egoista , que olha só
pa-
ra si ; mas por ventura o Legislador pode ficar sa
tisfeito na escolha de huma pena , que sem dimi-
nuir " o numero dos crimes , nada mais consegue
do que mudar o logar , em que se elles commet
tem ? ..
A certeza mesmo de que não voltão para
o reino antes de acabar o degredo não he como
parece desde 1790 até 1796 pela relação que se
deo , sabemos que de 86 tinhão voltado 76 sem
licença do Governador , apezar de todas as pre-
cauções possiveis .
Estas deserções devem augmentar á medida
que se estender o commercio , e que os degrá-
dados , vindo a ser em maior numero , venhão a
ter muito mais meios para tentar a empreza .
Não he preciso hum navio para esta viagem
.
Sete ouoito destes heroes dos mais resolutos
mettérão-se n'hum barco de pescadores , e atraves-
sárão o immenso intervallo , que fica entre Botany
Bay , e Timor. As Ilhas circumvizinhas thes po+
dem offerecer hum refugio mais certo. Dai tempo
a esta funesta população , e ella formará ninhos
de piratas , e teremos huma nova Argel nos mares
do Sul.
IV. O quarto fim da pena he fornecer humà
compensação ás partes lesadas. Sobre este ponto
X 2
( 164 )

não digo mais do que huma palavra : similhante


degredo he inteiramente nullo a este respeito. Es-
ta objecção he verdade que não tem força , se-
não pela comparação com hum genero de pena ,
que segurasse á parte lesada huma compensação
tirada do trabalho do autor do delicto.
V. O quinto fim , que se deve ter em vista , he
a economia para o Estado. Se se tractasse de hum
estabelecimento penal , que fosse bom em todo
o sentido o ser de mais alguma despeza se-
ría huma objecção mui fraca : mas neste caso o
systema o mais defeituoso em si mesmo he ao
mesmo tempo o mais dispendioso. A conta dada
pela Commissão das finanças a este respeito he
hum argumento sem replica : por alli podemos
ver , que as despezas de Botany- Bay dentro de
dez, ou doze annos , até 10 de Maio de 1798 mon-
tavão a hum milhão trinta e sete mil libras es-
terlinas. Repartindo esta somma pelo numero dos
degradados , vemos que tem custado por cabeça
nas differentes viagens trinta e très para quaren-
ta e seis libras esterlinas ; a que devemos ajun-
tar todo o valor do seu trabalho , pois que o po-
demos considerar como parcella , que se deve di-
minuir dos gastos , que fizerão.
Representemos Botany-Bay na razão de hu
ma fabrica , em que o dono dando balanço á re-
ceita , e despeza acha perto de trinta e oito li-
bras esterlinas de perda por cada official. O que
faz esté estabelecimento mais dispendioso do que
sería se estivesse na capital , he: 1. Os gas-
tos necessarios para o transporte dos officiaes pa-
ra huma distancia de duas, ou tres mil legoas
2. O costeamento necessario para sustentar hum
estado civil , Governadores , Juizes , Inspectores ,
Officiaes de policia , etc. -f 3. A conservação
de hum estado militar sem outro fim mais do
( 165 )

que manter a boa ordem , e a segurança da fa-


brica 4. A dispersão dos fabricantes , a sua
infidelidade , seus vicios dominantes pelas cir-
cumstancias locaes , e o pouco valor de hum tra-
balho arrancado pela violencia a homens , que
não levão interesse no ganho 5. O preço al-
to , por que vem a sahir as cousas , que são ne-
cessarias para a fabrica " e que he preciso levar \
da Europa com todos os riscos de huma longa
viagem. Se não ha hum caixeiro de Manchester ,
ou Liverpool , que não tenha ajustado estas con-
tas ; se não ha hum homem sensato , que se te-
nha querido incumbir de huma tal empreza , he
necessario que a arithmetica seja bem differente
para os que arriscão a sua propria fortuna , e pa-
ra os que não arriscão senão a fortuna publica.
Podem haver ainda outras objecções , e de
muito pézo, contra o estabelecimento de Botany-
Bay á vista das Leis Constitucionaes da Gram
Bretanha ( 1 ) . Não entro neste exame ; sería es-
tranho ao meu assumpto ; mas he hum ultimo
reparo , que só por si bastaria para que o Go-
verno se descartasse de hum tal systema. Esta
pena he sujeita a hum grande numero de gra-
vames accidentaes , que nem estão enunciados na
lei, nem passarão nunca pela intenção do Legis-
lador.
Quando o Legislador estabelece huma pena ,
julga-se que a tem escolhido por ser a mais con-
veniente K ao crime ; quer esta pena tal , e qual
a tem ordenado ; está persuadido de que só ella
he bastante ; não quer outra mais branda 7. nem
mais rigorosa sabe que a pena publicada pela

( 1 ) Veja- se a obra do nosso grande Politico : Representa


ção pelo que pertence á Constituição , em que se mostrão as
enormes violencias , que se commettem , ete. etc. na pas
sagem para a Nova Terra do Sul,
( 166 )

lei produz hum effeito ; mas que outra que se lhe


ajunte por acaso , ou descuido , ou por interes-
se da parte dos que a fazem practicar adiantan-
do-se á lei , he huma injustiça ; e que sendo nul-
la para o exemplo , he hum mal sem proveito ,
nem utilidade .
A pena deste degredo , que na intenção da
lei he moderada , e que se não estende a mais de
sete , ou quatorze annos , he muitas vezes com-
mutada de facto em pena ultima . Ainda mais :
he de presumir que este modo terrivel de aggra-
var a pena venha a recahir principalmente sobre
os mais fracos , menos criminosos, e sobre os que
pela sua sensibilidade , seus habitos antecedentes,
o sexo , a idade , estão menos em estado de re-
sistir a todas as causas de morte , que obrão nes
ta cruel passagem sobre os miseraveis. Os factos
a este respeito são de huma tão grande authenti-
*
cidade , quanto são espantosos,
No espaço de oito annos e meio, desde 8 de
Maio 2 de 1787 até 31 de Dezembro de 1795 , de
cinco mil cento e noventa e seis degradados ,
quinhentos e vinte e dous morrerão na passagem ;
e ainda não são todos , porque a relação não he
exacta. Em vinte e oito navios houverão cinco ,
em que por omissão se não pôde saber quantos
morrerão.
Huma viagem por mais demorada que seja
não he contraria á vida humana : o Capitão Cook
andou á roda do mundo , sem perder da tripula-
ção , que levava , nem hum só homem : logo he
necessario que hajao circumstancias particulares
para dar cabo da gente até ao ponto de a dizi
mar na passagem de Inglaterra para Botany Bay.
Estas circumstancias matadoras vem em parte
dos prezos , em parte do máo tratamento. Se lhes
dão liberdade , ha hum grande receio de que se
( 167 )

levantem pelo seu espirito de insubordinação ; se


os tem fechados contrahem doenças mortaes.
Para remediar este mal , escolhem-se homens sem
humanidade , e avarentos ; de sorte que os vive-
res ou não chegão para toda a viagem , ou são de
má qualidade. Se hum prezo nas cadeias , ou ga-
lés tem communicado o germen de huma doen-
ça , que se pega , o contagio vem a ser geral.
Hum navio , que levava prezos em 1799 , cha-
mado Hillborough , perdeo mais de cem passa-
geiros de trezentos , que se tinhão embarcado.
Não he , diz Mr. Collins , porque se não pozes-
sem todas as cautelas necessarias ; mas a febre
das cadeias tinha pegado em huma pouca de
roupa de hum destes miseraveis " e foi o que
bastou para fazer similhante estrago. Multipli-
quem-se os regulamentos quanto quizerem , bas-
ta hum descuido , hum accidente, para fazer en-
trar a morte debaixo da mais feia catadura em
qualquer dessas cadeias fluctuantes , que andão
cruzando metade do globo , i levando o contagio
no seio , antes de se poderem separar os empes-
tados ? e moribundos dos que não convalescem
de perigosa doença , senão para arrastrarem hu-
ma fraca existencia n'hum estado de escravidão ,
Poderá alguem reconhecer a intenção da lei
nesse montão de rigores imprevistos ? E póde o
Legislador saber o que faz , quando ordena huma
pena , que na sua execução já não depende del-
le que está sujeita a infinitos accidentes
que muda de natureza logo que he publicada
e vem a ser inteiramente outra de facto do que
era na sua vontade ? A justiça, cujo esmalte he
ter hum caracter de certeza , e precisão ; ajusti-
ça , que deve pezar tudo na sua balança , quan-
do he distribuidora de males • não vem a ser
neste systema penal huma especie de loteria
( 168 )

cuja sorte se não póde prognosticar ? Vejamos


se podemos converter em sentença judicial estes
"" ―
acasos complicados Eu te condemno , diz
o Juiz , mas não sei a que ―― talvez a tormen-
tas , e naufragios talvez a morrer de conta-
gio - talvez á fome pode ser que sejas fei-
to em pedaços pela mão dos barbaros - pode
ser que pelas feras bravias. Vai , entra na sorte ;
morre ou fica sendo feliz ; padece , ou vai diver-
tir-te eu te affasto dos meus olhos ; o navio ,
que te leva para tão longe , não me deixará pre-
senciar as tuas miserias , já me não embaraço
comtigo " ·
Dirão tavez que este estabelecimento , ainda
que seja mui defeituoso em relação á pena , po-
derá dar de si vantagens politicas : he o berço de
huma Colonia : pouco a pouco se irá enforman .
do , e criando forças, até se fazer huma população
consideravel : as gerações futuras valerão mais do
que os seus fundadores , e depois de seculos te-
rão os Inglezes hum dominio da maior importan-
cia. Responderei em primeiro logar , se devemos
responder a tudo , que de todos os meios, que se
1
podião tomar para fundar huma Colonia nesse
novo continente ; o mais custoso , e o menos fa-
voravel á sua felicidade , era mandar para lá , co-
mo fundadores , homens assignalados pelo crime , e
de costumes devassos . Se ha huma situação , que
requeira paciencia , sobriedade , industria , he a
de Colonos transplantados para longe da Patria ,
expostos a toda a qualidade de privações , que tem
que crear tudo , e que n'hum estabelecimento de
novo são obrigados a guardarem- se dos habitan-
tes , selvagens , e ferozes , e justamente ciosos pelo
medo de que os não envistão em sua mesma casa.
Homens viciosos , malfeitores levão comsigo to-
das as paixões destruidoras , capazes de arrazar
( 169 )

a sociedade ainda a mais bem estabelecida , a não


serem reprimidos : faltão-lhes todas as qualidades
moraes , e industriosas , que se requerem para
consolidar huma sociedade que principia , A e para
vencer infinitos obstaculos , que lhe oppõe a na-
tureza no estado bruto , e sem cultura , ing on
Examinemos a historia das Colonias que tem
prosperado :são Quakers bemfeitores, e pacificos
emigrados, homens de probidade , e tementes a
Deos, que passavão para o novo mundo para alli
acharem a liberdade de consiencia ; erão lavra
dores pobres , e honrados , que sabião viver parca-
mente , e supportar grandes fadigas.)
Os Flibustieres ( * ) enriquecidos dos despo-
jos das Nações , que pelo seu numero , e rique-
zas deverião fundar Estados , acabárão sepultados
nos seus vicios , e apenas deixárão na historia o
rasto " da sua existencia. Se fosse conforme á boa
politica fundar huma Cólonia em a nova Zelandia ,
deveriamos mandar para alli bons lavradores , in-
dustriosos officiaes , familias honradas ; e sería
preciso espançar os malfeitores com todo o cui-
dado , para que não levassem as sementes do vi-
cio , origem de todas as desordens , e que servem
de embaraço para que alli senão estabeleção os
que só deverião ser convidados..
He cousa ridicula , pelo menos em quanto
a Colonia estiver } no mesmo estado em que está
fallar delcommercio. Longe de produzir hum ex-
cesso na receita , o que ella está dando não che-
4 " も
ga para supprir 3 o que lhe he necessario : tem
muito que comprar , e quasi nada que vender.
O unico, genero de commercio he o numerario ,

(* ) Erão desalmados , o refugo de todas as Nações , que


se união para infestar os mares da America, e que derão bem
que fazer as Nações da Europa. 200 e
Tom. I.
( 970 )

que sendo enviado da capital para o sustento ci-


vil , e militar do Governo , passa inteiramente
para as mãos dos negociantes nacionaes , ou es-
trangeiros , que vão vender os seus generos a Bo-
tany Bay a quinhentos por cem de lucro. Por fal-
ta de numerario já o Governo se tem visto na ne-
cessidade de fazer papel- moeda , quero dizer , de
contrair huma divida colonial . Eis-aqui sem du-
vida quanto basta para mostrar que o fim poli-
tico não está mais bem satisfeito neste estabele
cimento , do que o objecto penal.

CAPITULO XII
J.
Casa de correcção. Panoptico.

T Endo inserido no 3. Volume dos Tractados


de Legislação , no artigo Panoptico , hum resumo
de tudo quanto o Author escreveo a este respei-
to , remetto os leitores para o dito resumo ; e por
tanto não farei mais do que apontar as tres
idéas fundamentaes do seu plano para illustra→
ção deste capitulo.
21. Hum edificio circular , ou polygono com seus
quartos á roda de muitos andares , que tenha no
centro hum quarto para o inspector poder ver to-
dos os prezos , ainda que elles o não vejão e don
de os possa fazer executar as suas ordens sem
deixar o seu postoale
2.° Administraçãopor contracto. Que hum par
ticular se encarregue de sustentar os prezos ,
dando - se -lhe ham tanto por cada hum , ficando
elle com o lucro do que elles trabalharem : bem
entendido, que a qualidade do trabalho deve ficar
na sua liberdade sem restricção.
Este systema concilia no maior gráo que he
1.201
( 171 )

possivel os interesses do inspector com todos os


seus deveres. Tanto os prezos estiverem mais
bem acondicionados , e forem mais trabalhadores ,
tanto maiores utilidades poderá tirar. He do seu
officio ensinar os prezos , ou mandar-lhes apren
der differententes occupações, em que possão ga
nhar , e em que devem levar a sua parte para es
animarem ao trabalho. Este homem vem a ser o
Magistrado , o inspector , o chefe de todos os tra
balhos e de toda a familia . Por este modo
quem não vê o grande interesse , que deve ter
em desempenhar as obrigações , que nascem de
todos estes titulos ?
3. Responsabilidade do Administrador. Este
homem he , para assim dizer , o fiador , e abonador
das vidas de cada hum dos prezos. Deve receber
hum tanto pelos que podem morrer no espaço
de hum anno , orçando- se a conta pouco mais où
menos por hum calculo medio , feito sobre as
idades : com tanto porém que seja obrigado a dar a
mesma somma por cada hum dos que morrerem ,
ou fugirem he como hum } segurador da vida , se
guarda dos prezos ; officio penoso , pois que da
sua actividade pende a saúde , e o commodo dos
que estão ao seu cuidado,
A publicidade he o remedio mais efficaz con-
tra os abusos . As cadeias da Europa estão co-
bertas de hum véo escurissimo : o Panoptico , he ,
para assim dizer , transparente : deve estar aberto
a toda a hora para receber qualquer Ministro ;
deve estar patente a todo o mundo a certas ho-
ras , ou em dias certos. Os espectadores introdu-
zidos no camarote centrale terão juntamente dian-
te dos olhos toda a scena do interior:: tantas test
temunhas , tantos juizes do teor , e situação dos
prezos.) of stiv I
Aaulo ob ogfisso o » 5 ') kof
Tenho visto na França homens, que alardea
Y 2
( 172 )

vão de huma extrema sensibilidade , argumentar


contra este plano por aquelle mesmo principio ,
que faz o seu principal merecimento , quero di-
zer , pela sua Inspecção continuada : Sería hum
constrangimento insupportavel , dizem elles , igual
a todas as tyrannias juntas , verdadeira imagem do
}
inferno. Estes homens tão mimozos pela, sen-
sibilidade não se lembrão certamente do estado ,
em que se achão as cadeias , em que os prezos es-
tão em pinha , huns amontoados com os outros ,
sem poderem descançar nem de dia , nem de noi-
te. A inspecção continua he o meio de fazer
com que estejão menos incommodados , e mais á
larga ; acaba com os ferros , e enxovias ; facilita
o poderem desafogar huns com os outros ; previ-
ne desavenças , e motins ( causa de infinitos ma-
les ) ; protege os miseraveis contra os acintes de
hum carcereiro , e brutalidade de seus compa-
nheiros ; e ultimamente já se podem queixar
quando lhes falta alguma cousa por descuido, o
que he ordinariamente tão frequente, e tão cruel ;
já se podem entender directamente com a pessoa,
que tem a primeira authoridade sobre elles. Quan-
tas vantagens reaes ! Mas a sensibilidade quime-
rica não discorre assim.
Supponhamos agora que huma tal casa de
correcção se acha estabelecida , e vejamos como
ella corresponde aos diversos fins da pena.

¿ Tell - Primeiro fim - Exemplo.


$
A scena penal aberta nas vizinhanças de hu
ma capital he hum logar , em que pode concor-
rer maior numero de pessoas , 33 e particularmente
das que tem necessidade de que se lhes metta pe-
los olhos o castigo do crime. A vista do edificio ,
a singularidade da sua figura , os muros , e fos-
( 173 )

sos que o cercão , a guarda que está de sentinel-


la , tudo isto representa a idéa dos malfeitores ,
que alli estão encerrados , e punidos : havendo li-
cença para entrarem , não deixaria de acudir im
menso povo. E que poderão elles ver ? Homens
privados da liberdade , de que abusárão , sujeitos
ao trabalho , que era objecto da sua aversão ,
castigados da sua intemperança por huma fruga-
Jidade severa ; em quanto os mais criminosos an-
dão assignalados visivelmente para mostrarem a in-
famia do crime. Que drama póde haver mais ca-
paz de abalar a classe dos espectadores a mais
numerosa ? Que origem de reflexões reciprocas ,
de allusões , de lições domesticas , de historias
uteis ? Lembra logo naturalmente hum trabalho li-
vre , e as alegrias do homem innocente ; e esta
comparação com os rigores de hum captiveiro for-
çado , quanto não pode ser util ? E com tudo is
to a pena real he menor que o castigo apparente.
Os espectadores , que tudo isto correm com os
olhos magoados , não tem o tempo necessario pa-
ra entrar na averiguação do que suaviza effecti-
vamente a situação dos prezos : as penas são visi-
veis , e a imaginação as faz avultar ; em quanto
o modo , por que são mitigadas , não apparece ;
de sorte que todo o mal da pena se aproveita . A
maior parte destes homens , criados na miseria , e
soffrimento , como lhes não falta nada , estão com-
parativamente melhor do que estavão. O traba
İho os livra do flagello terrivel das cadeias , fallo
da semsaboria , que traz comsigo a ociosidade.

Segundo fim - Refórma.

Ociosidade - intemperança relações vi-


-
ciosas eis-aqui as tres causas principaes de de-
pravação nas classes inferiores. Quando estes , ha-
( 174 )

bitos se fortificão de sorte que podem vencer os


motivos tutelares , não póde vingar a emenda ,
senão por meio de huma educação nova ; educa-
ção , que consiste em pôr os individuos em taes
circumstancias , que lhes seja impossivel seguir
as suas inclinações , e em que tudo concorra pa-
ra lhes fazer crear costumes oppostos. O primeiro
-
meio de o conseguir he serem vigiados. Os réos
são huma classe particular de homens , que tem
necessidade de huma inspecção continuada : são
almas fracas , que não sabem resistir aos feitiços
de hum objecto aprazivel : são espiritos desarran-
jados , e enfermos , cuja doença não he tão incu→
ravel , nem tão manifesta como a dos idiotas , e
lunaticos ; mas que 1 devem igualmente estar en
tregues ao cuidado de alguem deixalos a si mes-
mo sería huma notavel imprudencia. A' sombra
desta inspecção não interrompida , sem a qual não
se devem esperar melhoras , a casa de correcção ,
que tenho ideado , encerra todas as cousas , que
podem destruir a semente dos vicios , e fazer com
que as virtudes floreção de novo. •
0
-161.° 1 Trabalho -Convenho que o constrangi-
mento longe de inspirar gosto para o trabalho pó
de augmentar a aversão : mas devemos reparar ,
que em tal caso não temos outro remedio contra
os males que traz comsigo a ociozidade : em o tras
balho sendo repartido por todos , o exemplo póde
muito , e vem a ser agradavel para huma socieda-
de , em que sempre se encontrão as mesma pes-
soas : quanto mais , que a mesma recompensa im-
mediata lhe serve de estimulo por esta quota par-
te de lucro , que lhe tira o labéo da escravidão,
e vem de alguma sorte associar os prezos com o
seu inspector. Os que até agora erão inertes pa-
ra ganhar a vida , se habilitão por esta educação ,
e recebem novas faculdades , e novas satisfações
( 175 )

de prazer ; e quando chegão a obter a soltura , já


tem o seu officio , de que podem tirar hum inte-
resse mais seguro , que dos ganhos precarios de
huma vida curtida no roubo , e na fraude.
2. Temperança. Temos visto que as
desordens de Botany- Bay tem a sua raiz , e ali-
mento na paixão de bebidas espirituosas , sem
que haja meio de empatar o seu commercio ; em
quanto na cadeia , edificada por este modo , todo
o mal he cortado na sua origem huma gotta
deste veneno não póde alli entrar na razão de
contrabando ; as transgressões são impossiveis.
As difficuldades accendem os desejos ; mas a im-
potencia absoluta de os satisfazer destroe os
máos habitos por si mesma : he da natureza do
homem accommodar-se á necessidade ; e quem
póde negar a humanidade de hum regulamento ,
que não só previne as falhas , e os castigos ; mas
que tira as tentações ?
3. Separação das classes. O Panoptico
he o plano unico , em que he permittido classi-
ficar os prezos em pequenas sociedades , e repar-
tilos de sorte , que os mais viciosos não conta-
minem os que ainda não estão nesse estado . Es-
tas associações não podem deixar de produzir en-
tre si bons officios reciprocos , affeições , e ou
tros habitos , que procedem da similhança de ca-
racter. Bem de pressa haverão entre elles mes-
tres , e discipulos , recompensas para ensinar ,
emulação para aprender : hum sentimento de brio,
e de estimação propria será o primeiro resultado
de huma tal applicação : as idéas de instrucção ,
e de hum ganho legitimo , irão destruindo a pou
co e pouco as idéas de libertinagem , e de ga-
nhos fraudulentos . Tudo isto he de esperar da
natureza do estabelecimento.
Exporque não terão os prezos solteiros a lis
( 176 )

berdade de casar com as mulheres , que se achão


igualmente prezas ? Sería hum incentivo podero-
so para os que aspirassem a esta recompensa , e
que a não podessem alcançar senão pelo seu bom
comportamento , e pela sua industria. Estas pe-
quenas sociedades offerecerião huma segurança
demais : a de huma responsabilidade reciproca. He
huma linguagem tão justa como natural que
vem de molde , e que se lhe póde applicar :
" Estais vivendo juntos , tendes trabalhado de
commum acordo > tendes podido prevenir o cri-
me , e se o não tendes feito, he por hum ajuste ,
em que todos entrão " . Eis-aqui os prezos con-
vertidos em guardas , e inspectores : cada hum
dos quartos he igualmente interessado no bom
procedimento de todos os seus membros . Se hou-
vesse hum delles , que se distinguisse entre
os outros pela sua boa ordem , sería preciso con-
ceder-lhe alguma distincção , algum emblema de
approvação , que todos vissem. Por este meio ar-
tificioso póde muito bem ser , que fizessemos en-
trar o sentimento de honra na mesma habitação
da ignominia. >
4. Instrucções . A indigencia, a ignorancia , eo
crime tem huma estreita affinidade . Instruir os
prezos que estão na idade , em que as lições fa-
cilmente se imprimem , he fazer muitos bens (ao
mesmo 7 tempo. O ensino he de hum grande soc-
corro para mudar os máos habitos , enriquece o
espirito , e engrandece o homem aos seus proprios
olhos , por mais descuidada que tenha sido a sua
educação . Os diversos estudos podem encher as ho-
ras de descanço , que os prezos tem de seus traba→
lhos mecanicos , sem perdermos de vista os exer-
cicios da Religião . He da prudencia , e da huma-
nidade , encher por este modo os intervallos do dia
sem deixar os espiritos desoccupados , para quem
( 177 )

a ociosidade he hum pezo insupportavel. Mas o


objecto ainda se estende a mais, especialmente a
respeito da mocidade , que sempre he a parte
mais numerosa em huma cadeia : he preciso con-
vertela em escola , para que os moços depois de
soltos não tornem outra vez a entrar. Os exerci-
cios de piedade devem ser practicados com
suavidade, se queremos que produzão o seu effei-
to : devem fazer-se no interior da casa , sem que
os prezos deixem os seus quartos. Abre - se a sala
do centro , entra o povo ; o culto deve ser pro-
prio do logar : a musica sendo grave augmenta a
impressão, que faz huma festa religiosa : a instruc-
ção deve ser de materia , que tenha analogia com a
situção do auditorio. O Capellão não he hum estra-
nho ; he hum bemfeitor, que se encarregou de enca-
minhar os prezos pela estrada da virtude , que es-
preita os progressos da emenda , que lhes serve de
interprete, e de testemunha para com os seus supe-
riores . Na razão de protector , de mestre , de
amigo que os consola , e allumią , o Capellão reune
em si Atodos os titulos , que o podem fazer ob-
jecto de respeito , e de affeição. Quantos homens
sensiveis , e virtuosos pedirião hum logar , que
offerece á Religião conquistas de maior valia, do
que todas essas regiões barbaras da Africa , e do
Canada ! Com tudo sempre he necessario confes-
sar, que tanto mais se conhece o coração humano,
tanto cresce a desconfiança a respeito da reforma
dos criminosos : a experiencia nos desengana a
cada passo de quanto he certa a maxima de hum
Poeta , que tem comparado a honra a huma Ilha:
cortada a pique sobre o mar, onde he quasi impos- i
sivel abordar segunda vez , logo, que o homem se
fez ao largo , e sahio do seu dever. A pezar disso , os
que são mais desconfiados , e mais incredulos pa-
ra acreditar o bem , devem pelo menos conceder
Tom, 1. Ꮓ
( 178 )

que faz huma grande differença a este respeito a ida-


de dos réos , e a natureza dos crimes. A mocidade
he hum pedaço de cera branda , que se ageita a to-
das as formas , que The querem imprimir. A idade
madura , inflexivel resiste a • novas impressões,
Huma grande parte das acções más não tem
raizes profundas no coração ; mas procedem da
situação , em que o homem se acha , da seduc-
ção do exemplo , e mais que tudo da indigencia
malesuada fames. Actos de huma vingança re-
pentina , ou de hum transporte subito não sup
põem perversidade. Estas distincções são justas ,
ninguem o póde negar , e devemos estar de acor-
do , que o regulamento correccional , que temos
em vista , offerece os meios mais efficazes para
emendar os que ainda conservão algum principio
são , e honesto. Citarei mais abaixo huma prova
de facto , que serve de illustrar a minha theoria.

Terceiro fim Tirar o poder de fazer mal

Seja o que for a respeito da reforma inte


rior , que emenda a vontade em si mesma; o Pa
noptico encerra todas as condições requisitas pa-
ra se tirar ao réo o poder de commetter novos
délietos .
Debaixo deste ponto , devemos considerar as
prezos bem duas épocas differentes no tempo
da sua prizão →→ e no que se segue depois do seu
livramento.
Em quanto estão na cadeia , supponde os
maiores desaforados do mundo ; que poderão elles
fazer debaixo dos principios de huma inspecção se-
guida , repartidos em quartos com hum numero
tal, que nunca se possão unir para huma conspi-
ração , que logo se não presinta ; sendo alem dis-
so responsaveis huns pelos outros , privados de
( 179 )

toda a communicação com a gente de fóra , sem


poderem beber licores espirituosos ( que são o in-
centivo de todas as emprezas atrevidas ) , e de-
baixo da mão de hum superior , que póde logo se-
parar dos outros o homem perigoso ? Basta só a
enumeração destas circumstancias para nos affi-
ançar huma segurança completa. Lembremo- nos
do quadro , que tenho feito de Botany- Bay ; o
3
contraste he o mais forte , que pode ser. Quanto
mais , que a possibilidade dos crimes da parte dos
réos , que estão prezos , he na razão da facilidade,
que tem para poderem fugir ; mas a este respei-
to qual he a prizão , que se possa comparar com
o Panoptico ?
Passemos aos prezos depois do seu livra-
mento : a segurança unica , e absoluta , de que
não tornão a fazer mal , está na sua reforma. In-
dependente deste feliz effeito , sobre o qual pode-
mos contar neste plano mais do que em outro
qualquer ; os prezos recuperando a sua liberdade
podem ter ajuntado da parte , que lhes fica pelo
seu trabalho, huma boa porção , que os livre das
tentações immediatas , em quanto se não podem
accommodar , e pôr em exercicio a industria , que
tem adquirido no seu captiveiro. Ainda aqui não
está o melhor : Tenho reservado para este logar
fazer menção de bum meio muito engenhoso, de
que se tem servido o inventor do Panoptico , e
de que tem feito o supplemento desta medida
penal : Entrando no mundo , depois de estarem
prezos por hum grande espaço de annos , elle
bembvio que a posição destes homens he perigo-
sa , o seu estado mui critico : sem amigos , que
o's possão recolher , sem reputação para que os
outros homens se ‫ مع‬possão fiar do seu caracters,
sendo alem disto bem natural , que no primeiro
transporte da sua liberdade fação mil .desproposi-
Z 2
( 180 )

tos , como escravos em dias de folga, eis - aqui o


remedio , que nos offerece o Author : lembra- se

de hum estabelecimento auxiliar , para onde po-
dem ir morar os prezos depois, da soltura , mais ,
ou menos tempo , segundo a natureza • do 3 seu
crime , e do seu comportamento anterior. Entrar
agora n'huma averiguação particular do modo ,
por que isto } se póde executar , não he do meu
assumpto: basta dizer , que nesta clausura privi-
legiada deverião haver diversos gráos de liberda-
de , que os prezos deverião estar izentos de tra-
balho , e fazerem seu tudo quanto podessem gå-
nhar pela sua agencia , á excepção de huma finta
certa , e moderada para o seu sustento ; poden-
do sahir , e entrar , huma vez que adiantassem
huma consignação , que respondesse por elles ; —
mas nada de sinal de prezo - nenhuma cousa ,
que os podesse envergonhar. A maior parte nes-
te primeiro lance , em que se achão embaraça-
dos por não saberem o que hão de fazer , irião
buscar de boamente hum retiro tão conveniente
ao seu estado ; ainda que sería bom que houves-
se huma lei. Esta moradia de passagem , este
noviciado serviria para os ir encaminhando a pou-
co , e pouco para a sua inteira liberdade , para
não cahirem de salto na independencia , e para
darem 3 huma prova da sinceridade da sua emenda.
Eis- aqui huma precaução bem acertada contra
A
individuos , a quem se não póde conceder sem
perigo huma confiança immediata , e absoluta.

• Quarto fim - Compensação á parte lesada .

9:Em os nossos systemas de Jurisprudencia


assentão , que o réo tem satisfeito á justiça hu-
ma vez, que seja castigado corporalmente : fallan-
do em geral , não he obrigado a restituir o que
( 181 )

roubou á parte lesada. He verdade, que na maior


parte dos casos esta compensação sería impossi-
vel. Os réos são ordinariamente da classe indi-
gente , ex nihilo nihil fit.
Se a prizão he ociosa , longe de poderem sa-
tisfazer á parte lezada , continuão a servir de pe-
zo á sociedade. Se os condemnão aos trabalhes
publicos , raras vezes chega o producto desses
trabalhos para o seu sustento ; como se lhe póde
tirar hum accrescimo ? 374200
Ha hum só plano , o do Panopotico , em que
pela combinação do trabalho , e economia da ad-
ministração , se póde alcançar hum rendimento
capaz de satisfazer pelo menos alguma porção de 1
indemnidade '1 ás partes lezadas , Nas cadeias de
Philadelphia , separa-se huma parte do lucro , que
se leva em conta aos prezos para os gastos da
justiça , e do processo : hum passo demais , e le-
remos chegado a indemnizar as partes lesadas.

Quinto fim - Economia.


Dizer , que entre dous planos de igual mere-
cimento o mais economico deve ter a preferen-
cia , he avançar huma proposição , que parecerá
bem trivial a todos aquelles , que não sabem que
a despeza em certas causas tem por si mesmo
huma recompensa escondida ; e que o poupar nos
Estados opulentos , he huma virtude, contra a qual
existe huma conspiração geral .
No contracto do Panoptico mil prezos de-
vião custar 12 libras esterlinas ao Estado por ca-
beça , fóra os gastos da construcção do edificio ,
que importando em 20:000 libras esterlinas > com
o terreno avaliado em 10 : 000 (ajuro de 5 por cem)
accrescentavão huma libra esterlina, e 10 xelins por
cada hum despeza total por individuo : 13 libras
esterlinas , e 10 xelins.
( 182 )

He preciso lembrar que a despeza media ,


que importa cada hum dos degradados em a No-
va Zelandia , sóbe a 37 libras esterlinas , quasi o
tresdobro. Demais disso , o Author do Panopti-
co assegurava :
1. ° Indemnizar as partes lesadas.
2.° Levava em conta huma quarta parte do
) 29.
ganho para os prezos .
3. Promettia para o futuro ir pagando os
gastos do Governo.
Huma invenção nova, como a do Panoptico ,
destinada a abranger muitos ramos de îndustria ,
não rende muito ao principio " e até póde ser
onerosa ; o seu fructo vai medrando a pouco
"
e pouco he necessario tempo para criar fabri-
cas , cultivar a terra destinada para sustentação
da casa , formar discipulos , regular os costu-
mes , para aperfeiçoar , em huma palavra , todo o
systema economico. M. Bentham tinha promet-
tido expressamente dar ao publico huma conta
exacta de tudo quanto fizesse ; e se as rendas ,
como era de crer , se augmentassem pelo tempo
adiante , poderia o Governo nos contractos se-
guintes emendar a mão em beneficio do thesouro
publico. M Bentham , segundo o seu calculo so-
bre que tinha consultado pessoas avisadas , esta-
1.f
va persuadido , que dentro em pouco tempo ,
prezos não virião a custar nada ao Estado.e
Pondo de parte tudo o que pode haver de
hypothetico neste resultado , o que he certo he,
que huma casa de correcção domestica deve ser
menos custosa , do que hum estabelecimento co-
lonial. Tenho dado as razões no mesmo capitulo ,
quando fallei de Botany Bay baleza eldre) o
Acabo de mostrar a conveniencia deste plano
"
relativamente a todos os fins da pena : resta- me
observar que elle consegue o seu firm , sem cau-
( 183 )

sår nenhum desses inconvenientes collateraes ,


que abundão no degredo para a Colonia. - Não
demora os prezos nas galés antes que saião do
reino - não tem os riscos de huma longa nave-
gação não apinha os homens , dentro de hum
navio , nem os faz morrer de doença contagiosa. ,
- não ha perigo de estalarem á fome - nem
guerra intestina com os barbaros -- nem assua-
das , e levantamentos nem abusos de authorida-
--
de da parte dos que mandão em huma pala-
vra , não existe hum só dos males accessorios , e
accidentaes , que se estão lendo em todas as pa-
ginas da historia da Colonia pelo que pertence
aos castigos. Que altissima economia na appli-
cação da pena !
Já se não espalha , nem fica perdida entre ro
chedos aridos , e vastos desertos : conserva sem-
pre a sua natureza de pena legal , de pena justa ,
e moderada , sem se commutar em desgraças de
toda a especie , que não fazem mais do que exci
tar buma piedade inutil : está toda patente , toda
empregada , não pende já do acaso a sua exe-
cução já não passa por officiaes subalternos , por
mãos mercenarias ; o Legislador que a tem orde-
t
nado , he o mesmo que a faz observar. O proveito
que se pode tirar no dia de hoje de huma casa de
correcção bem governada , já não he huma sim-
ples probabilidade fundada sobre raciocinios ; he
huma experiencia , que tem sortido o seu effeito
ainda muito alem do que se esperava. Os Quakers
da Pensilvania tem essa honra ; he hnm dos mais
primorosos florões desta coroa de humanidade
que os distingue entre todas as sociedades chris-
tas : bracejárão muito tempo , he verdade , con-
tra os obstaculos do costume - contra a força
dos prejuizos , indifferença do publico , rotina dos
tribunaes , e odiosa incredulidade desses fallado-
( 184 )

res , que discorrem friamente. Sobre a casa de


correcção de Philadelphia , alem dos relatorios
officiaes do director , temos duas relações de via-
jantes desinteressados , que são de acordo , e cu-
ja prova he tanto maior , quanto não levavão os
mesmos prejuizos , nem as mesmas idéas : hum
delles he Francez , o Duque de Liancourt , ver-
sadissimo na administração dos hospitaes , e ca-
deias outro he Inglez , o Capitão Turnbull , mais
instruido nas sciencias do mar , que nos objectos
}
politicos.
Ambos elles nos representão o interior da dita
cadeia como huma scena de actividade pacifica ,
e regular , em que se não vê arrogancia, nem ri-
gor da parte dos carcereiros , nem insobordina-
ção , nem baixeza da parte dos prezos : alli não
ha huma palavra mais alta , nem se permitte hu-
ma expressão , que possa offender. Se algum dos
prezos commette huma falta , não tem mais cas-
tigo do que fecharem-no só em hum quarto por
alguns dias , e escreverem o seu defeito em hum
livro aberto , em que se assenta todo o bem , e
mal , que fez cada hum dos prezos : A saude , a
decencia , e a limpeza reina em tudo : não ha
cousa , que escandalize os sentidos mais delica-
dos , nem estrondo , nem cantigas , nem conver-
sação tumultuosa : cada hum delles , entretido no
que está fazendo , tem medo de interromper os
outros ha o maior desvelo em manter a paz ex-
terior , que he tão favoravel para o homem refle-
ctir , e trabalhar , e muito propria para prevenir
disputas , e altercações entre os guardas , e os pre
zos , cousa tão ordinaria nas cadeias, ta
29
Fiquei admirado , diz o Capitão Turnbull
de ver huma mulher fazendo as vezes do carce-
reiro e como este facto excitasse a minha curio-
sidade , vim a saber que o seu marido exercia o
( 185 )

mesmo officio antes della ; que por tratar de hu-


ma filha , que adoecêra de febre amarella em 1793
se lhe pegou a doença , de que veio a morrer
deixando aos prezos a saudade de terem perdido
nelle hum amigo , e hum protector. Em attenção
aos seus serviços " escolherão a viuva para lhe
succeder , que desempenha todos os seus deveres
com tanta exacção , quanta humanidade ".
Quem podia esperar similhantes rasgos nos
registos de huma cadeia ? E não he isto huma
sombra da idade de ouro , que devia apparecer ,
traçada pela mão de hum Profeta , em que
lobo habitaria com o cordeiro , e ambos elles se-
rião guardados por hum menino ? " ( * )
Não posso resistir ao desejo de transcrever
outros dous factos , que não necessitão de expli-
cação. No tempo da febre amarella de 1793 cus-
tava muito achar enfermeiros , que se encarregas-
sem de tratar dos doentes do hospital de Bush-
Hill. Lembrárão- se dos prezos , forão ter com el-
les , propozerão-lhes o perigo ; a que se offerecerão
logo quantos erão precisos. Forão fieis no seu
emprego até ao fim desta scena tragica , sem
que nenhum delles pedisse salario antes de aca-
bar o tempo da sua prizão ". As mulheres fize-
rão igualmente grandes serviços ; porque não só-
mente cedêrão dos seus leitos para deitar os do-,
entes , mas chegárão a dar as suas mesmas ca-
mas. O' virtude , onde te vás esconder ? exclama-
va hum Filosofo ( 1 ) , vendo que hum mendigo
praticava huma acção de probidade ; e ficaria el-
le menos admirado vendo a humanidade heroica
entre pessoas , que estão prezas pelos seus cri-
mes ? Que differença entre estas mulheres emulas

. y. 6.
Et puer parvulus minabit eos. Isaias Cap. XI
8 Este Filosofo he o Author do Misanthropo.
(1)
Tom. I. Aa
( 186 )

das Irmãs da Caridade , e as da Nova Zelandia


peiores que os homens ! Que differença entre es-
tes homens , que vão servir os doentes , arriscan-
do a vida , com os de Botany-Bay , que lanção
fogo aos hospitaes , e ás cadeias , sem lhes impor-
tar que estejão cheias de companheiros da sua in-
felicidade !
Ainda quando este bom procedimento dos
prezos não fosse mais do que huma simples sus-
pensão de vicios , e de crimes , já tinhamos lucra
do muito ; mas vejamos se a reforma se estende
a mais.
De todos os sentenciados , diz Turnbull , nes-
tes ultimos cinco annos , não ha cinco por cem ,
que tenhão sido outra vez prezos por fazerem
novos crimes ( pag. 48 ) .
Em a Nova- York , ainda que o resultado não
tenha sido tão feliz assim mesmo póde ser-
vir para provar os bons effeitos de hum tal sys-
tema. Pelo espaço dos cinco annos , que vem a
findar em 1801 ( diz o principal Administrador
da casa de correcção , Mr. Eddy , na conta , que
dá aos seus concidadãos ) , que de 349 prezos 3
a quem se deo liberdade por ter expirado o tem-
po da sentença , ou por lhes terem perdoado ,
so 29 forão convencidos segunda vez de novos
crimes , e destes vinte e nove dezeseis erão es-
trangeiros. De 86 , que forão perdoados , oito só-
mente forão prezos de novo , e destes oito , cinco
erão de outra nação. hony ( t ) oldaly
Com tudo he precise reparar , em ordem a
não serios illudidos com encarecimentos , que
destes prezos , que forão soltos , muitos abalárão
e se metterão pelas nações circumvizinhas , on-
de fizerão desatinos , não se querendo expor de
novo á cadeia austera da Nova-York , e de Phi-
ladelphia ; porque ha provas de facto que homens
( ( 187 )

deste calibre antes querem arriscar- se á mortė ,


do que aos trabalhos de huma prizão regular.
O bom successo , que tem tido estes esta-
belecimentos , he devido sem duvida em grande
parte ao zelo esclarecido dos seus fundadores ,
e inspectores , ainda que se possão assignar
causas permanentes -a sobriedade a indus-
tria -os premios repartidos por aquelles , que
procedem bem.
A regra essencial de sobriedade he excluir
absolutamente tudo o que são bebidas espirituo-
sas : alli não se permitte bebida alguma fermen-
tada , nem a mesma cerveja. A experiencia tem
mostrado que são estimulantes de passagem , que
arruinão a saude ; em quanto o alimento abun-
3 4
dante , e simples , com agoa fria , espiritualiza o
homem ,, e o torna robusto , capaz de encarar
hum trabalho seguido. A maior parte dos que
+
entrão para a cadeia da Nova-York ( Eddy pag.
46 ) com huma constituição enfezada pelos ex-
cessos da • gula , e da lascivia , 1 recobrão dentro
em pouco tempo , por meio de hum tal regula-
mento , a saude , e as forças.
O Senhor Liancourt e Turnbull entrão
n'huma analyse mais miuda , e nós fazem ver
que depois que se adoptou o systema , as con-
tas do medico , que subião por anno a mil e du-
zentos duros , e dahi para cima , se achão reduzi-
das a cento e sessenta. Mr. Turnbull dá huma
prova ainda mais forte de quanto esta prizão he
sadia , dizendo a pag. 20 , que pelo Outono de
1793 , quando a febre amarella fazia o seu estra
go na cidade de Philadelphia , e suas vizinhan
ças , de duzentos prezos apenas houverão seis
atacados da molestia ,> e que fossem mandados
para o hospital.
O que fica exposto singelamente , sem fallar
Aa 2
( 188 )

de muitas circumstancias favoraveis , e não dei-


xando de apontar tudo quanto póde ser contrario ,
parece que basta para mostrar a superioridade ,
que tem as casas de correcção aos degredos para
a Colonia. Se os resultados tem sido tão vantajo-
sos na America , porque o não serião em Inglater
ra ? Seremos nós de outra natureza ? Estarão mais
entranhados entre nós os caracteres da malicia ?
Serão os motivos menos poderosos ? No systema
do Panoptico apparece hum modo sensivel de
aperfeiçoar o methodo dos Americanos : a inspec-
ção he mais completa , a instrucção mais extensa ,
mais difficultosa a fugida dos prezos : a publicida-
de he muito maior por todos os lados : a distri-
buição dos prezos em quartos separados , e feita
por classes tira de todo o inconveniente, que até
agora resultava de estarem a monte , misturados
huns com os outros ; inconveniente , que ainda
subsiste na casa de correcção de Philadelphia.
Mas o que he superior a tudo , he que a responsa-
bilidade do Administrador no systema do Pano-
ptico está ligada com o seu interesse pessoal ,
a ponto que não póde descuidar se de algum dos
seus deveres sem que elle seja o primeiro que o
sente ; por isso mesmo que todo o bem, que faz
aos prezos , redunda igualmente em propria utili-
dade. A Religião , e a humanidade tem animado
os fundadores das casas de correcção da Ameri-
ca ; e será possivel que estes principios generosos
sejão menos fortes , quando se reunirem ao inte-
resse da reputação , e da fortuna ? Reputação , e
fortuna , os dous grandes abonadores de tudo
quanto he estabelecimento publico -os unicos
talvez de quem se póde fiar a politica em todos
os tempos -os unicos , cuja acção conserva sem-
pre o mesmo vigor -os unicos , que podendo
sempre estar de acordo com a virtude , ainda po
( 189 )

dem obrar , e preencher o seu fim , quando já não


ha virtude?

CAPITULO XIII .

Das Penas capitaes.

A Pena capital divide- se em duas especies :


morte simples , e morte afflictiva : a primeira não
tem outra pena mais do que a necessaria para se
poder effeituar : a segunda he acompanhada de
outras penas. Se houvessemos de comparar os di-
versos meios , porque a primeira se póde executar ,
sería para achar o mais arrebatado , e o que po-
dia ser mais exemplar. O que está em uso em
Inglaterra não he talvez o melhor. Na suffocação,
que se faz suspendendo o réo , o pezo do corpo
raras vezes he bastante para tirar de repente a
respiração se deixão o padecente a si mesmo ,
percebem-se por alguns instantes convulsões hor-
riveis e por isso vemos o povo muitas vezes le-
vado de compaixão apegar-se com toda a força
aos pés do moribundo , e puxar por elles , só
para lhe abbreviar o tormento. Se este supplicio
se faz por hum laço , como se costuma fazer na
Turquia ( * ) , poderá parecer mais violento , oụ
por causa do prejuizo , com que se nos represen-
ta tudo o que se faz n'um governo despotico ,
ou porque o algoz tem mais parte nesta opera-
ção do que na primeira ; mas o que se não pó-
de negar , he que este modo 哺 he mais decisivo :
toda a força neste caso vai em fio direito cor-
tar a respiração do miseravel , o que não succe-
de no primeiro ; e alem disso a força de dous

( * ) He a pena dos Nobres ; corresponde entre nós a ser


degolado , ou descabeçado , como dizião os nossos antigos.
( 190 )

homens , que obrão de commum acordo para aper-


tar o no , he superior á do pezo de hum só.
Entretanto he hum facto , que muitos en-
forcados conservão a vida ainda que sem conhe-
cimento , quando acerta quebrar- se a corda , e
lhes podem acudir a tempo : o que nos faz per-
suadir que já não sentem , apezar das convulsões ;
e que a pena he maior na apparencia do que na
realidade.
Quanto a ser o réodecapitado , ha razões ,
que nos fazem suspeitar que a sensibilidade ain-
da póde durar depois da execução : porque se
póde conservar na prolongação da medula da spi-
na dorsi , ou no cerebro : pelo menos estamos ven-
do infinitos insectos continuarem a mover- se de-
pois de lhes separarem a cabeça do corpo

11 Penas capitaes afflictivas :

Para esgotar a materia , sería preciso passar


em revista os registos criminaes de todas as na-
ções: mas que descoberta util para a humanida-
de se poderia esperar de huma tal indaga-
ção , incapaz de compensar o desgosto , que por
outra parte nos devia causar ? Dispensamo- nos
1
de similhante estudo , e de taes descripções tanto
de melhor vontade , quanto tudo o que erão sup-
plicios afflictivos tem desapparecido dos ultimos
Codigos da Europa ; sendo certo que ainda mes-
mo aonde senão abolirão , já se não usão : aben-
çoemos o progresso das luzes , a quem se deve o
beneficio : ha poucas occasios , em que a Filosofia
possa offerecer aos Governos felicitações mais
(.

bem merecidas , nem que lhes fação mais honra. A


importancia porém do assumpto não nos permitte
passar tudo em silencio : huma tal Jurispruden-
cia dominou por muitos séculos , teve seus apo-
( 191 ))

logistas , póde citar a seu favor grandes nomes


para que se deva omittir inteiramente em hu
ma obra escripta expressamente sobre penas..
Não vem fóra de mão fazer ver que a razão , e
a humanidade se ajustão perfeitamente para des
terrar similhautes supplicios , não só como inu
teis , mas como capazes de produzir effeitos con-
trarios á intenção do Legislador.
Se consideramos nestes supplicios afflictivos,
tanto nos que tem sido abolidos já de muitos se
culos , ser crucificado ( * ) , ser lançado ás féras
como nos que tem prevalecido mais , ou menos
entre diversas nações modernas da Europa , co-
mo , por exemplo , queimar vivo , empalar , es-
" quartejar
, rodar , bem se vê que em todos elles ,
a circumstancia a mais afflictiva está em dura-
rem por mais tempo ; mas esta circumstancia não
produż pela sua natureza o effeito , que se espe-
ra. Na descripção da lei , o que chega ao vivo he
a intensidade da pena a sua duração não faz
tanta impressão moscanimos : huma leve differen-
ça no rigor apparente no genero de morte ras-

(* ) Todos sabem a razão , por que se abolio este genero


de morte entre os Christãos : Felix culpa , diriamos nós com
hum Padre da Igreja , mas n'outro sentido , se pela mesma
razão se tivessem abolido todos os supplicios crueis. Valenti-
niano mandava lançar os criminosos na caverna de dous ur-
SOS > era o seu desenfado chamava-lhe o bocado de ouro
e da innocencia e querendo pagar os serviços de hum destes
animaes 9 por se arremeçar sobre a preza com huma sofre-
guidão cruel , deo-lhe por fim a liberdade , Gibbon T. IV.
Cap. XXV. om mais de hum se
Ha mais seculo que os Filosofos tra-
Cap. ; e que injurias não tem
para
soffrido ? E o que he mais , 4 entre náções , que se prezão de
seguir o Evangelho , que todo elle respira clemencia , huma-
nidade , e brandura :
Pro molli viola pro purpureo narcisso
Carduus , et spinis surgit paliurus acutis.
3 mud obleSA | Virg. Eglog. 53:
( 192 )

ga a imaginação com mais violencia , em quan-


to a idéa da duração he quasi inteiramente ab-
sorvida na idéa da morte.
Na descripção legal do supplicio a circum-
stancia da duração nunca he manifesta ; nem se
falla nisso , porque he naturalmente incerta ; de-
pende das forças fysicas do individuo , e de di-
versos accidentes particulares não tem cousa
alguma , que desperte a attenção , e que a pos-
sa firmar sobre este ponto principal : para os que
não reflectem " he inteiramente perdida ; e he
impossivel que ainda mesmo para os que são ca-
pazes de reflexão se apresente com toda a sua
força.
He verdade que a lei poderia declarar o ter-
mo , que devia durar o supplicio ? poderia assi-
gnar o numero de minutos , ou de horas , a que
se devia estender : este meio sería sem duvida
efficaz para obrigar a attenção sobre esta circum-
stancia ; mas ainda mesmo assim , de quasi na-
da servia para o seu fim principal ; porque pela
natureza do espirito humano , a idea de duração
he sempre fracamente concebida : a imaginação
não tem objecto , em que se possa firmar. Por
meio de hum painel podemos fazer sensivel a in-
tensidade do supplicio ; mas não podemos repre-
sentar a duração: podemos pintar o fogo , a ro-
da , a agonia , e as convulsões de hum moribun-
do meio consumido > ou despedaçado ; mas o
tempo do supplicio não se pinta : huma pena de
duas horas não pode parecer maior n'hum quadro
do que a pena de hum quarto de hora : a ima-
ginação vai mais longe do que a arte imitadora ;
mas fica sempre muito abaixo da realidade.
He verdade ? que á vista da execução a
circumstancia da duração adquire mais pezo ; mas
devemos observar , que passado hum certo tem
( 193 )

po , a prolongação do supplicio tem esgotado o


seu effeito ; e desde então se levanta na alma dos
espectadores hum sentimento bem opposto ao que
se deseja imprimir : succede a compaixão , o cora-
ção se revolta , e a humanidade ultrajada grita
pelos seus direitos : accidentes graves , desmaios ,
abortos , convulsões mortaes respondem á voz da
natureza ( 1 ) . Estas execuções sanguinolentas ,
e os rumores temerosos , que se espalhão , são o
verdadeiro principio desta surda antipathia , que
se fórma contra as leis , e seus ministros ; antipa-
thia , que tende a multiplicar os crimes , favore-
cendo a impunidade dos criminosos.
O Governo , que tem vontade de conservar
estas penas atrozes , não póde allegar mais do
que huma razão : ter feito a condição do Povo tão
miseravel, que já o não pode conter com penas mo-
deradas. Commettem-se por ventura mais crimes
naquellas nações, em que se ignorão estas penas? He
certo que não. Os mais aleivosos salteadores vivem
debaixo das leis mais atrozes ; nem deve admirar,
por isso mesmo que a sorte que os ameaça , e
que os endurece para os outros , faz o mesmo effei
to sobre elles. São inimigos furiosos que se jul

( 1 ) Eis-aqui hum facto citado por Malebranche ( Recher-


che de la Verité 1. 2. cap. VII. ) Ha sete , ou oito annos
pouco mais ou menos que se via nos Incuraveis hum rapaz ,
que tinha nascido louco , e cujo corpo estava deslocado nos
mesmos logares , em que se quebrão os ossos dos padecentes.
Viveo perto de vinte annos neste estado : muitas pessoas o
vírão , e a Rainha Mai, visitando o hospital, teve a curiosida-
de de o ver , e de apalpar os braços , e as pernas nos loga-
res , em que estavão quebrados. A causa deste accidente fu-
nesto tinha sido , porque a mai estando de esperanças fora
ver executar hum miseravel : todos os golpes que lhe derão
vierão recahir sobre a imaginação da mãi , e sobre o cerebro
tenro , e delicado do filho com tanta força , e viveza , que
produzio similhante effeito..
Tom, I 0 Bb
( 194 )

gão authorizados a fazer as mesmas barbaridades ,


que lhes fazemurevel 940.ima ob
Sp Montaigne tinha erguido a cabeça por cima)
das trevas do seculo em que viveo , tanto a este
respeito , como em outras muitas cousas. " Tudo o
que he além de matar hum homem , diz elle , me pa-
rece verdadeira crueldade. A nossa justiça não deve
esperar que o miseravel, que apezar do medo des
morrer degolado, ou enforcado se não conteve ; dei-
xe de ser criminoso pela imaginação de hum fo
go lento , ou pela idéa de ser atanazado , ou es
migalhado n'huma roda e quem sabe se por es-
te modo o fazemos desesperar ? etc. ( 1 ) 59
1. AAssemblea constituinte de França tinha
desterrado os supplicios afflictivos : o Codigo de
Napoleão não admitte outra pena de morte senão
a de cortar a cabeça ; e he só nos casos de par-
ricidio , ou de attentar contra a vida do Sobe-
fano , que alem da morte accrescenta huma pena
afflictiva caracteristica a mão cortada.
361 Em Inglaterra não ha pena capital afflicti-
va , excepto no caso de alta traição. Segundo a
lei o réo deve ser 1 arrastado á cauda de
hum cavallo desde a prizão até ao patibulo : 2.9
deve ser enforcado , mas de sorte que lhe não
tirem a vida 3, devem - lhe arrancar as entra-
nhas , e queimalas , estando vivo : 4 ° deve ser
decapitado : 5, deve ser esquartejado . 6. a ca‐
beça , e os membros devem ser expostos em
919
སྙ་hum logar publico.
uta , porque o Rei
-chipelEsta pena nunca se executa ,
a commuta em simples pena de morte ; mas a lei
existe ! es 989

C
( 1 ) Livro 11 , Cap. XXVII . , Covardia , mãi da cruel-
dade.
1105 9
UP Et lupus , et turpes instant morientibus ursi orzyborg
Et quæcumque minor nobilitate fera est.
ad Ovidio, TOT
(( 1931 ))

Quizera passar a outra materia ; mas vejo-7


8
me obrigado com bastante magoa apfallar ainda
de hum supplicio afflictivo mais temeroso e ain-i

do mais atroz do que todos aquelles , de que te
nho feito menção " e que ainda se não abolio.
Não existe na Europa , mas nas Colonias euro-
peas , nas Ilhas orientaes eu o vou descrever
em poucas palavras. Amarrão o miseravel a hus
ma forca por hum gancho de ferro , que o pren-
de pelos hombros , e peitos : ninguem dhe póde
valer sob penas severas : assim o deixão exposto
de dia da , todo o calor de hum sol ardente quasi
a prumo sobre tra cabeça ; et de noite ao regelo ,
& 艟
e humidade do clima a pelle toda gretada at-
trahe a si hum enxame de insectos , que lhe chu
pão o sangue ; e he por este modo que vai exha
lando a vida a pouco e pouco nos tormentos da
fome , e da sede..dona
2 Considerando nesta complicação de marty-
rios , na sua intensidade, que sobrepuja tudo quan-
to a imaginação he capaz de conceber ; repa-
rando na sua duração , pois que o desgraçado
chega a viver não só muitas horas , mas dias in-
teiros , parece que em materia de supplicio he
até onde podia chegar a invenção dos homens !
obt As pessoas , a quem até agora se tem ap-
plicado similhante castigo , são escravos negros ,
para os punir de hum crime chamado rebellião ;
མ།
porque elles são os mais fracoser que 募 sería
hum acto innocente de defeza pessoal , se fos-
sem os mais fortes: Estes desgraçados Africanos
tem huma constituição tão robusta , que muitos
delles aturão dez , e doze dias vivos , arquejando
até desfalecerem de todo em tormentos tão es
pantososi 『 :|: ཀཱི 2919 91

Op Poderão dizer que esta pena he hum freið


necessario , isto he, necessario para sopear escra
Bb 2
( 196 )

vos, quetes ião violentos , e cuja condição he tão


miseravel , que a simples pena de morte não se-
ría bastante para os conter. Ha talvez alguma
verdade nesta asserção : he certo que as penas
para serem efficazes devem ter proporção com o
estado medio da situação da felicidade , em que
os individuos 7 se achão. O numero de escravos
nestas Colonias he , pouco mais ou menos , de
seis para hum em comparação dos brancos. Sup-
ponhamos trezentos mil negros , e trinta mil bran-
cos : temos por consequencia trezentas mil pes-
soas n'huma situação cuja existencia , lançan-
do contas a tudo , he peior do que a morte ; e
toda esta criação de miseria tem por objecto
conservar trinta mil pessoas n'huma condição ,
que não tem mais felicidade do que poderião
ter trinta mil individuos tomados ao accaso no
paiz, em que não ha escravidão. Não quero dizer
que o assucar , o café , e outras producções das
Ilhas não concorrão para o melhor passadio dos
Povos da Europa ; mas se para isso he necessa-
rio escravizar trezentos mil homens , e com tal
captiveiro , que pede o terror de execuções tão
horriveis , he comprar muito caro. Que idéa de
luxo, ou de prazer , será capaz de contrabalancear
similhantes horrores ? Com tudo estou persuadido
que os defensores destes supplicios encarecem ,
para os justificar , as miserias da escravidão , é
a indifferença , que tem os escravos pela vida.
Se os Negros estivessem levados a esse gráo de
infelicidade, que necessitassem de leis tão atro-
zes , essas mesmas leis serião impotentes para

os conter : não tendo já nada que perder , não
tendo contemplações que fazer , não veramos
entre elles senão levantamentos ; irião levando
tudo a eito a ferro ; e sangue , a desesperação
offereceria todos os dias scenas espantosas : mas
( 197 )

se a existencia ainda não tem perdido para com


elles todas as suas delicias ; o unico argumento
a favor da barbaridade fica desbaratado por si
mesmo. Que os Colonos meditem sobre estas
idéas : se hum tal Codigo he necessario , as Co-
lonias são a vergonha , e o flagello da humani-
dade : senão he necessario , he huma vergonha
de que se não podem livrar.

CAPITULO XIV.

Exame da pena de morte .

E Is-aqui o plano deste exame . Começaremos


pelas propriedades vantajosas da pena capital :
passaremos depois ás que parecem ter huma ten-
dencia ruinosa , isto he , contraria ao fim da jus-
tiça e apresentaremos em ultimo logar effeitos
collateraes , que resultão da pena ultima ; effei-
tos mais remotos , menos claros , mas talvez mais
graves que os mais immediatos , e mais sensi-
veis.
Entretanto não percamos de vista , que o
objecto pratico , o exame de huma pena sería
hum trabalho inutil , se a não considerassemos
relativamente a outra pena , com que se póde
comparar para estabelecer a preferencia. Hu-
ma pena he da mesma sorte que hum tributo :
mostrar que este , ou aquelle tributo he perni-
cioso , he semear hum descontentamento , e nada
mais. Para hum homem ser verdadeiramente util
he preciso que reprovando este meio indique ou-
tro ao mesmo tempo , que tendo menos inconve-
nientes , venha a ter o mesmo resultado.
( 1981 ))

§. 1. Qualidades vantajosas , que tem a pena


de morte.

A primeira qualidade da pena capital ;


qualidade que lhe compete em cheio por hum
modo mui particular , he tirar o poder de fazer
mal. Tudo quanto se podia recear de hum crimi-
noso , seja pelo seu caracter arrebatado , seja pe-
lo sonegado de seus procedimentos , fica desva-
necido no mesmo instante . A sociedade conse-
guio hum desafogo prompto , e completo , que a
despena de todo o cuidado.
2. He analoga no caso de haver homicidio ;
mas só neste caso.
3. Neste sentido he tainbem popular.
He exemplar, e mais do que outra qual-
quer; e nos logares em que não he vulgar , ainda
1
faz maior impressão de terror.
eBeccaria julga que a duração da pena faz
muito mais abalo sobre os homens do que a sua
intensidade : " A nossa sensibilidade , diz elle ,
penetra- se mais facilmente , e sente-se por mais
tempo , quando as impressões são fracas , mas re-
petidas , do que por huma commoção violenta ,
mas de passagem --- a morte de hum malyado será
por este motivo hum freio do crime menos forte ,
do que o prolongado , e seguido exemplo de hum
homem privado da sua liberdade , reduzido ao es-
tado de hum animal de carga , para reparar pelos
seus trabalhos por toda a vida o prejuizo , que
tem feito á sociedade. " ( 1 ) sendt
Por muito respeitavel que seja a authoridade
deste Filosofo , estou inclinado a dizer, que se en-
gana por dous principios : 1. relativamente á moř-
te em geral , parece que os homens a julgão pelo

( 1 ) Dos delictos , e penas. Cap. XVI.


( 199 )

maior de todos os males : estamos vendo que se aba-


lanção a tudo só para viver : 2.° relativamente
á morte penal , quasi todos a notão de huma
severidade excessiva . Os Jurados em Inglater-
ra não se poupão ao trabalho para salvar o pade-
cente de ir morrer ; e até requerem por huma gra-
ça especial a commutação da pena em outra qual-
quer , por mui raspera que seja na sua duração.
Parece haver no espirito humano huma idéa con-
+
fusa , e exaggerada da intensidade das penas de
huma morte violenta ; de modo que similhante
supplicio , ainda que tão rapido no seu effeito ,
produz sobre o Povo huma impressão mais viva
do que as penas as mais demoradas. Encostar-
me-hei á opinião de Beccaria , quando se tractar
de comparar a pena ultima com os trabalhos for-
çados em relação aos malfeitores ; mas para o ge-
ral dos homens , para a classe em que se achão to-
dos os motivos de afferro á vida , que tem honra ,
affeições , prazeres , esperanças, julgo a pena ulti-
ma superior a todas as mais pelo que pertence
ao exemplo.
5. Ainda que a pena apparente seja a maior
que pode haver , o padecimento real he menor
do que na maior parte das penas afflictivas. Es-
tas , além da sua intensidade , e da sua duração ,
trazem muitas vezes consequencias , que alterão
a constituição , e fazem do resto da vida hum
t
tecido de sensações dolorosas. Na pena de mors
tes andor he momentaneae o mal se reduz a
huma privação absoluta. Reflexionando sobre a
materia com os olhos abertos, a morte penal , menos
trabalhosa do que a morte natural , longe de ser
hummal , sería hum bem na balança da verdade ;
para sabermos o que constitue a pena , che pre-
ciso ir buscar hum periodo antecedente. Esta
pena está toda na apprehensão esta apprehen-
( 200 )
}
são começa na mesma hora , em que o delin-
quente acabou de commetter o crime : ella o
persegue sem lhe dar descanço reforça o seu
ataque , quando o vê parado : vai crescendo á
medida que o processo se vai adiantando , e que
a sua condemnação vai sendo mais certa , até
que chega ao seu maior auge , no intervallo , que
medeia entre a sentença , e a sua execução .
Para justificar a pena de morte , o argumen-
to o mais solido, he o que resulta destas duas con-
siderações reunidas de huma parte he a pena
a maior na apparencia , a que faz mais impres-
são , e a mais exemplar para a sociedade em ge-
ral por outra parte he realmente menos ri-
gorosa do que parece atoda essa gente mal acon-
selhada , sem criação , onde se achão os grandes cri-
minosos a morte não faz mais do que dar huma
prompta sahida a huma existencia inquieta , mal-
fadada , sem honra , e desprovida de todo o valor
verdadeiro : Heu ! heu ! quàm malè est extra
legem viventibus ! ( 1 )

§. 11. - Qualidades penaes , que faltão na pena


de morte.

1. A pena capital não se póde converter em


proveito. Não dá huma justa desforra á parte le-
zada : destroe o principio , donde podia sahir a
restituição ; pois que o réo pelo seu trabalho ain-
da poderia reparar huma parte do mal , que ti-
nha feito hum homem morto não serve de
nada.
2. Longe de se converter em proveito , esta
pena he huma perda, huma despeza ; porque di-
minue o numero dos homens , que faz a força ,

(1 ) Petronio Satyr.
( 201 )

e a riqueza dé huma nação. He verdade , que


hum malfeitor vale menos de metade de outro
qualquer individuo , seja quem for. Hum homem
não vale senão pela sua industria , ou pelo seu
trabalho : ora quem não vê , que a falta de huma
industria honrada , e o ter aversão ao trabalho
são as duas causas mais frequentes de todos os cri-
mes ? Os ladrões de profissão vem a sér os zangãos
do cortiço ; e por isso a sua morte não he huma
perda, senão quando a pena se compara com a
prizão trabalhosa , que reforma , e faz os homens
uteis..
3. Ha hum artigo , em que esta pena he
summamente defeituosa , e talvez o mais impor-
tante , quero dizer , na Igualdade. He muito des-
igual ,e por conseguinte muito incerta na ra-
zão de prevenir o crime. Para os homens em ge
ral a pena ultima he muito forte ainda que
nem todos sintão o mesmo terror. Na classe dos
grandes criminosos será excessiva para huns ,
quasi nulla para outros , e haverá tal que a de-
seje.
A morte he a ausencia de todos os bens ;
mas tambem he o fim de todos os males da vida.
Hum homem , por exemplo , he instigado pela
tentação de commetter hum crime , que tem pe-
na de morte ; a sua determinação he o resulta-
do do calculo seguinte : considera de huma par-
te toda a felicidade de que póde gozar , absten-
do -se da acção criminosa ; e da outra parte a
vantagem , que se promette fazendo o seu gos-
to , contando com o acaso da pena , que lhe pó-
de agoar esse gosto. Quanto ao primeiro ramo
do calculo , se em logar de ter felicidade que
perder , se acha n'hum estado de desgraça posi-
tiva ; a força natural , que o póde conter , vem a
ser nulla que motivo lhe ha de rebater a ten-
Tom. I. Cc
( 202 )

tação , que o leva para o mal ? Póde morrer


n'hum patibulo , e perder todo o proveito do cri
me , eis-aquí a diminuição que deve fazer ; mas
ainda mesmo diminuindo , sa balança inclina a
favor do seu delicto..
Tal be a situação do maior numero dos mal-
feitores a sua existencia he hum composto de
muitas especies de miserias ; estão n'huma febre
continua entre o medo das leis , e a dura neces-
sidade , que os persegue a toda a hora : a sua
vida assim despojada de tudo , o que lhe podia
dar valor , não vale a pena de ser conservada ,
a não serem certos prazeres apanhados de sobre-
salto ; e estes mesmos em tão pequenas quan-
tidade, que mal , lhes podem chegar sem commets
ter algum crime. Mas poderão elles fazer este
calculo pró ,ce contra , com o mesmo methodo
e precisão " com que o temos feito ? He certo
que não ; porém calculão sempre mais ou menos;
e he preciso que assim seja , • pois que o malfei-
tor, assim como todo o homem, não obra senão por
hum motivo Em todos os casos , em que se com
mette o crime , a pena de morte tem sido sem
efficacia esporque o tem sido ? Porque he fun-
dada na supposição de hum grande afferro á vi
в
da , que nem sempre tem logar , pelo menos, não
he em proporção com a força dos motivos , que
nos seduzem para o mal,
Mas poderão dizer outra qualquer pena
sería igualmente inutil ; porque para alcançar o
seu fim , sería necessario que essoutra pena fos,
te de tal natureza , que tirasse ao criminoso ca
inclinação , ou a liberdade de commetter o cri
me. No estado em que o suppomos de apete
cer a morte , he hum remedio , que elle póde
somar quando quizer, nunca lhe pode faltar.svij
-nə) Esta conclusão sería justa , se o homem t
50 1.KOT
( 203 )

vesse a mesma resolução para se matar a si ,


que para receber a morte. డి Primeiramente ,
que desafia a morte juridica póde ter esperanças

de impunidade ; não ignora os acasos , que lhe
podem ser favoraveis : a mesma paixão lhe fran-
*
queia o caminho o supplicio he hum aconteci-
mento remoto , e a distancia enfraquece a im-
pressão ainda quando o crime se the apresente
como officio arriscado , não estão os homens abra-
çando occupações ainda mais arriscadas ? e o qué
he mais , aquelles mesmos , que tinhão os moti-
vos mais fortes para gostarem da vida ? Faltão
acaso officiaes para lidar com a polvora , apezar
de estarem acontecendo desgraças todos os dias 2
Logo ha muita differença entre o expor se hum
homem a morrer , ou matar- se a si mesmo.lib
Além disso , para receber a morte não he
T
preciso mais do que hum acto de resignação ,
em tudo o mais o individuo he meramente passi
vo. Com os olhos incertos , o pensamento distra
hido na multidão ' dos espectadores , na voz de
hum consolador religioso , chega ao momento
fatal , e já tem passado pelo fim da tragedia qua-
si sem o sentir ; em quanto o que se quer matar
a si está, n'hum caso mui diverso : he preciso ,
#
que tenha huma primeira vontade , e huma se-
gunda , e huma terceira ; huma serie de actos re
petidos , e constantes para findar a sua desgraça :
quando sente os estimulos da primeira dor , hẹ
preciso cerrar os olhos , e dobrar de novo os seus
esforços para não ficar parado : quantos suicidios
começados , e não consummados ! A primeira
tentativaesmoreceo o animo... ".
- Tem -se visto infinitas vezes homens valoro
sos ,1 retratos da miseria, bem resolvidos a morrer
eáté guerreiros invocar , quando o podem fazer,
armão de humo amigo para levarem ao fim o que
Cc 2
( 204 )

se não atrevem a fazer. Saul pedio ao seu escn-


deiro que o matasse ; Tiberio Graccho ao seu
escravo forro ; Nero a hum dos seus satellites. Hum
suicidio na intenção não he o mesmo que na
execução : tem -se observado que os mais decidi
dos pouco a pouco se vão aquietando , e demo-
rando o caso de hum dia para outro : he porque
ha huma disposição natural em todos os homens
de se contentarem com a liberdade de póderem
fazer o que desejão , sem o pôr em execução : te
mos huma prova nos homens avarentos.
Esta disposição será a do malfeitor conde-
mnado a outras penas sem ser a ultima : " soffrer
antes que morrer " será a sua divisa. Supponha-
mos que fórma hum projecto desesperado , não o
dará logo á execução ; hoje lhe faltão os meios ,
á manhã o valor ; acodem circumstancias , que
se mettem de permeio , e que lhe subministrão
ou tros pensamentos. Observa- se no espirito huma-
no o mesmo que na organização do corpo , huma

ap tidão admiravel para se amoldar ás situações


mais desabridas. Se cortarmos huma arteria , ou
se acontece que ella venha a obstruir-se , os pe-
quenos vasos , que estão de roda, começão a di-
latar-se ; tomão sobre si as funcções da parte que
já não serve , e pouco a pouco vem a supprir o
seu logar : os cegos tem o sentido do tacto mui-
to mais esperto a mão esquerda aprende em
pouco tempo a fazer o mesmo que a direita : e
até já se tem visto huma parte inferior do canal
do alimento adquirir a figura , e fazer as vezes
do estomago .
O espirito não tem menos agilidade , e do-
cilidade para se conformar com as circumstan-
‫רי‬
cias , que á primeira vista parecião insupporta-
veis. Todas as penas tem seu descanço , suas ho-
ras de folga , que por effeito da comparação ains
( ( 205) )

da que seja de passagem , dão prazeres moi vi


vos. 1 Quantos homens despenhados do cume das
grandezas n'hum abysmo de miserias tem dispen-
sado a sua alma a pouco e pouco dos mimos ,
e prazeres a que estavão costumados e tem
creado hum novo expediente para se enganarem
a si mesmos ? A aranha do Conde de Lauzun ,
as obras de palhinha de Bicetro , as delicadas
obras da industria , e paciencia dos prizioneiros
de guerra Francezes , e outros muitos exem
plos , que todo o mundo conhece , bastão para
justificar a minha opinião.
Em huma palavra , a pena de morte he
defeituosa em summo gráo pela sua desigualda
de. A sua operação he desmedidamente incer
ta , e fraca sobre a classe a mais depravada , e
a mais temivel dos malfeitores , quero dizer ,
dos ladrões , e salteadores de profissão ( 1 ) .
Quando observamos em Newgate o animo ;
e a brutal indifferença da maior parte dos mal-
feitores em artigos de morte , não se pode du-
&
vidar , de que se tem habituado a encarar este
*
modo de acabar a vida , como se fosse para el-
les a morte natural , como hum accidente , que
os não amedronta no meio das suas emprezas ;
os naufragios não assustão os marinheiros , nem
os soldados tem medo das balas.aca
3 06. 90p

enĮV. A pena de morte não se póde reparar.

A mesma objecção se applica a muitas pe-

41 ) Não sabias tu que tinhamos de mais huma doença


que não tem os que não seguem a nossa profissão ? ,, dizia
hum assassino estendido sobre a roda ao seu companheiro do
supplicio , que não cessava de gritar.
Tableau de Paris de Mercier,
( ( 206 )

nas afflictivas , mas ainda que irremissiveis , não


são irreparáveis so a morte não deixa reparo.
Não ha huma só pessoa,oque tenha algum conhe
cimento do que he justiça criminal , que não es-
tremeça vendo o quanto está arriscada a vida de
bum homem debaixo do pezo de humal accusa-
ção capital , que se nãt lembre de exemplos ,
em que o miseravel escapou por hum milagre ,
que veio a descobrir a sua innocencia, já quan,
do estava ( para o dizer assim ) com a corda na
"
garganta she verdade, que o perigo não he o mes‐
mo em todas as formas de T processo. Os tractos ,
que se dão ao réo para lhe arrancar a confissão
do crime, quando a prova he semiplena , o cor,
23
rerem as causas em segredo , he human barbari-
dade sujeita a grandes precipicios Mas poderão
hayer, formas judiciaes , que nos dematoda a cers
teza para não cahir nos laços9.da12 mentira , e nas
illusões do erro ? He impossivel Abvandadeira
certeza he hum ponto de perfeição a que nos po,
demos, aproximar mais do que tem sido até agor
masa que não poderemos chegar porque
toda a testemunha póde , enganar, de ser engana-
dan ainda que sejão muitas , Ivemɛa dar no mest
mo , porque não são infalliveis ; enquanto ás pro-
yas que se tirão dos factos concommitantes , e
das circumstancias , que parecem as mais irrefra,
graveis na apparencia , e que se não podem ex-
plicar senão da hypothese do crime, todas estas
cousas podem ser effeitos do acaso , ou de hum
ajuste premeditado para arruinar inimigo. A
unica prova, que parece produzir hum convenci-
mento completo , a confissão do accusado , além
de serrara, não dá chuma certeza 賣 absoluta ; ( põis
que se tem
GOTONORG HOWvisto homens
095 OR , como no caso de sor
CHOT 1. 3:00
tilegio , confessarem-se por culpados quando o
crime supposto nem sera passivel.
( 32007 ))

is m✪ que dizemos nãos hequra invenção tiraq


da de meras possibilidades só com offim de assust
taro não ha shum só arquivo criminaljaqué nap
offereça exemplos mui famosos del erros funestos
em similhante materiale sevestes fizerão estam
pido no mundo por shum concurso de aconteci
mentos singulares , he bén de presumir qué tel
nhão havido outras muitas victimas de que ain-
da hoje se não sabe, Li
JasReleva observar de passagem que os casosi,
em que se usa, da palavra evidencia com a major
liberdade são muitas vezes aquelles , zem que
os depoimentos são os mais duvidosos. Quando
o crime presumido he sdaquelles , que excitão
mais a antipathianousque accendem sol espiritó
2.
de partido ; ass testemunhas , quasi sem o queres
rem, se convertem em accusadores : sãoihuns écos
do clamor publico ; aufermentação cresceopor si
mesma zonem dá logar á duvidas Foi huma verti
gem desta natureza , que allucinou) of Povoare
depois os Juizes n'a causa do 1 infeliz Calás , esua
familia ( * ) ill obstism eup , last oz/997q
- Estes casos desastrososem quelas presums
pções as mais fortes , e que mais parecem encosta
rem- se á evidencia , se accumulão , sobre a cabes
ça de hum accusado , cuja innocencia se vem des
zodziugak atanmunizzi eb orice obasup roism
* ) Era him pobre velho de setenta annos , protestante
accusáčko falsamente de ter enforcado em odio da Religião Cad
tholica hum filho na idade florecenteozmorreo and supplicio da
roda só por indicios. Tanto póde a Religião, mal entendida !
Em Inglaterra os interrogatoriopa tão impressos
se fazem com as pnos s ab
ortajornaes
aber-
e .
tas , e todos os processos de polpa
Os Inglezes ainda conservão uma lei antiga de França , em
que, nenhum criminoso he levado ao patibulo sem o Rei tet.
assignado a1 sentença ; necessaria
lei , que tem o cunho da sabedoria ,
da léi diz Voltaire. Veja-se o
elle diz sobre a causa de Calas CUS Miscel. Filosoph. segunda
parte)) ipag.) (244, 19uplepp onlá✪ owlmi o sing
( 208 )
M
pois a saber trazem da sua justificação em si
mesmos : não são J destes jogos crueis do acaso ,
que transtornão a confiança publica : he preciso
para causar este effeito , que se percebão nestes
juizos erroneos provas de temeridade , de igno
rancia , de precipitação , de hum affinco a forma-
lidades viciosas , em huma palavra , de preven-
ções systematicas , que se formão nos juizes em
razão do seu officio. Hum Juiz , que tem sempre
debaixo dos olhos scenas de perversidade , teste-
munhas habitual de vislumes de verdade e de
mentiras de que se valem os accusados crimino-
sos , que exercitão continuamente a sua saga-
cidade para desmascarar a impostura, está preveni-
do contra o accusado , e ainda que esteja inno-
cente olhar para elle anticipadamente como para
hum criminoso , que o pertende enganar. Estou
bem longe de me persuadir que esta prevenção ,
elesta dureza seja do caracter de todos os Minis-
tros : mas quando se tracta de armar homens de
hum poder tão terrivel , como da pena capital , he
preciso lembrar , que mettendo-lhes nas mãos es-
te sceptro fatal , ninguem os eleva acima da fra-
queza humana , ninguem lhes dá mais juizo do
qués elles tém , ninguem lhes confere o privilegio
contraso erro. O perigo da pena capital ainda he
maior , quando serve de instrumento ás paixões
de homens poderosos , que podem achar juizes
fracos, que facilmente se deixão intimidar , ou so-
bornar. Nestes casos a iniquidade , cobrindo-se
T
com todas as formas da justiça , póde escapar
senão ás suspeitas , pelo menos a todas as provas.
A pena de morte offerece ao perseguidor , e ao
Juiz da causa huma vantagem , que se não en-
to
contra em outra qualquer pena ; porque ficão
seguros.
os : não tem medo de que o réo possa recla
mar para o futuro. Outro qualquer opprimido lá
( 209 )

póde achar por fim huma circumstancia favora-


vel para mostrar a sua innocencia , e ser o vin-
gador de si mesmo : mas hum homem morto, não
falla ; e os malvados , que o sentenciárão , podem
dormir á sombra do 2 assassinio juridico . Se o cri-
me fosse menor , ficarião medrosos ; mas o silen-
cio da morte põe you o sello á sua segurança.
Voltando agora para os acontecimentos me-
nos frequentes , ( ainda que podem apparecer to-
dos , os dias , quando hum Governo degenera em
anarquia, ou tyrannia) veremos que a pena de mor-
te , estabelecida pelas leis , he huma arma bem
preparada , de que he mais facil abusar , que de
todas as outras penas. Hum Governo tyranno po-
deria sempre , he verdade, restabelecer a pena ul-
tima , quando o Legislador a tivesse abolido ; mas
huma tal innovação não he tão facil , por isso
mesmo que põe a violencia muito ás claras , he
tocar a rebate. A tyrannia está muito mais á sua
vontade , quando póde cravar o punhal á som-
bra das leis , quando parece seguir os meios or-
dinarios da justiça , e acha os espiritos já cos-
tumados a este genero de pena. O Duque d'Al-
ba , apezar de ser tão feroz , não se atreveria a
immolar tantos milhares de victimas nos Paizes
Baixos , se a heresia , segundo a opinião daquel-
les tempos , não fosse hum crime digno de mor-
4
te. Biren , não menos cruel que o Duque d'Al-
ba ; Biren , que povoou de degradados os deser-
tos da Siberia , mandava mutilar os inimigos ,
porque a mutilação era huma pena usual ; e se
os não matava , era porque a pena de morte es,
tava em desuso. Tal he o imperio, do costume
ainda mesmo entre os homens os mais desalmar
dos e aqui temos huma grande razão para nos
f
aproveitarmos dos tempos pacificos , para embo-
tar o fio destas armas cortadoras , que se não te
Tom . I. Dd
( 210 )

mem quando se cobrem de ferrugem ; mas que


facilmente se podem amolar de novo , logo que as
paixões querem usar dellas.
Ha tambem outro inconveniente , que re-
sulta da pena capital , e que não deve esquecer
na administração da justiça com a morte do
criminoso acabão as provas , que podião servir em
juizo para esclarecer a verdade. Os arquivos do
crime estão em parte na memoria dos malfeito.
fes : em se tirando a vida a hum delles , como se
entendem huns com os outros , ficão impunes
todos aquelles , que não podião ser convencidos
senão pela acareação com o morto , e neste caso
a innocencia póde ser opprimida , e a verdade
fica sem titulos para desaffrontar a justiça , por-
que lhe tirarão huma testemunha necessaria.
Em quanto se arma o processo ao crimino-
so ; ou se escondem os seus cumplices , ou an-
dão fugidos , he hum intervallo de tribulação , e
agonia ; tem a espada suspensa sobre asticas
beças : mas logo que o companheiro morreo no
cadafalso , foi para elles hum acto de jubileo ,
de graça ; tem huma carta de seguro , caminhão
emproados ; engrandecem a fidelidade do mor
to , que os não entregou ; chamão- lhe homem de
virtude , hum heroe, ma presença dos discipulos ,
a quem ensinão , para que lhes fação outro tan-
to. Na continuação de huma cadeia Meste herois-
mo estaria sujeito a huma prova mais perigosa ,
que as perguntas de hum Tribunal . Entregue a
si mesmo separado dos seus cumplices , o réo
deixaria logo deqser sensivel a esta especie de
honra, que o enlaçava com elles : bastaria hum
instante de arrependimento para lhe arrancar o
segredo ; e ainda mesmo sem arrependimento ,
que cousa mais natural do que o desejo de vin-
gança contra aquelles , que o tem desencami-
( 211 )

nhado , e feito perder a sua liberdade , é que


sendo tão culpados como elle , estão vivendo ‹ á
solta ? Não he preciso mais do que o seu interes-
se , para tirar de similhantes homens huma , ou
outra informação , que fosse util , debaixo da con-
dição de soffrerem huma pena menor ( 1 ) .
O argumento , que se tira contra a pena de
morte da natureza de ser irreparavel , tem logar
em todos os casos , e não se lhe pode responder
sem que ella seja completamente abolida. Com
tudo he preciso attender a que a segurança da
sociedade tem dous ramos →→→ segurança contra
os erros , e trangressões da justiça :segurança
"
contra os crimes : quando se não pode alcançar
a segunda sem sacrificar a primeira , está bem
claro o que se deve fazer. Todos os homens po-
dem ser criminosos , e em todos os tempos ; em
quanto os erros , e transgressões da justiça são
excepções da regra , casos accidentaes , ' e raros.
A pena de morte nao he popular. O Povo
cada vez a vai aborrecendo mais á medida que se
espraião as luzes , e os costumes se vão demes-
ticando . He verdade que se 4 apinha para
ver a execução : mas esta curiosidade , que á
primeira vista parece tão vergonhosa para a hu-

( 1 ) Citarei hum facto , que ouvi contar em França . Ti-


nha-se feito hum roubo mui consideravel em Lyão em 1780 ,
ou nos seus arredores : a policia não podendo vir no conheci-
mento do author do delicto , mandou a Bicetro hum Official
disfarçado em prezo , que fez bem o seu papel contando
ron-
em pleno auditorio todas as particularidades do sobredito ro
bo senão quando , do meio desta assembléa › capaz de dar
aos crimes todo o seu valor , exclamou hum dos prezos : Só
Filippe era capaz defazer isso ! Eis-aqui o modo , por que se
descobrio a verdade ; mas a esse tempo já o tal Filippe , que
era o cabeça do crime , tinha abalado , e levado o roubo com
sigo, ac
Dd 2
( 212 )

manidade , não hé para verem os infelizes lutan.
do com a morte , he a necessidade, que tem des-
tes sacudimentos , destes lances tragicos para se
mover. Se póde haver hum caso , ein que esta pena
seja popular em summo gráo , he quando recahe
sobre homicidio : esta approvação do publico pa.
réce fundada sobre a analogia , que tem a pena
com o delicto , sobre hum principio de vingança ,
e talvez sobre o medo , que inspira o caracter do
aggressor. " O sangue está pedindo sangue e
este acto de represalia parece conforme à justi-
ça natural. Em todos os mais casos , fallando em
geral , a pena de morte não agrada ao Povo , e
esta má vontade produz differentes disposições ,
todas contrarias aos fins da justiça. Disposi
ção nas partes lesadas para não perseguirem o
réo , pela repugnancia de serem causa de o levar
ao patibulo -- Disposição no publico em lhe
dar sahida , e deixalo fugir - Disposição nas
testemunhas para não darem o seu depoimento ,
ou para não dizerem em Juizo tudo quanto , sa-
bem - Inclinação nos Juizes para prevaricarem ,
levados de commiseração a favor dos accusados :
e todas estas disposições antilegaes espalhão a
maior incerteza sobre a execução das Leis , ain-
da sem entrar em conta , que todo o respeito ,
que se lhes deve , fica sendo como perdido , huma
vez que parece huma obra meritoria illudir as
mesmas Leis .

§. 111 — Recapitulação , e comparação da pena


de morte com as penas , que se lhe podem
dead substituir,
05910 bob man gomiles
A pena ultima encerra , como já dissemos ,
quatro qualidades vantajosas.
1. Em hum caso he analoga com o delicto.
( 213 )

2. Nesse mesmo caso he popular.


' 3.° Tem a maior efficacia , que pode ser para
tirar o poder de fazer mal.
4. He exemplar , por isso que produz huma
sensação mais viva , do que todas as outras pe-
nas.
As duas primeiras qualidades, que se encon-
trão na pena capital applicada ao homicido , se-
rão razões sufficientes para a conservar ? Não ;
porque cada huma dellas tomada por si só tem
muito pouca força a analogia he verdade que
a faz recommendavel , mas não a justifica : se a
pena tem outras conveniencias , a analogia he
hum merecimento demais ; porém se he defei-
tuosa a outros respeitos , esta qualidade só por
si não basta para se dever admittir : quanto mais ,
que esta recommendação se reduz a nada ; por-
que no caso de homicidio podemos achar outras
penas , que tenhão hum gráo de analogia suffi-
ciente para ferir a imaginação. Os mesmos repa-
ros se podem applicar a popularidade desta pena ;
outra qualquer póde vir a ser igualmente popu-
lar , e ainda mais , quando a experiencia nos ti-
ver desenganado de que essas penas são mais gei-
tosas para prevenir o crime : a approvação se irá
desenvolvendo naturalmente a par do seu grao de
efficacia.
O terceiro argumento he mais especioso : a
pena capital tem a maior efficacia, que pode ser,
para tirar o poder defazer mal. Muitos tem che-
gado a sustentar , que ella era necessaria , isto
he , que não havia outro meio para reprimir a
affouteza de certos criminosos - affirmação muito
encarecida , cuja falsidade se póde demonstrar
pelos matadores de hum caracter denodado , que
não tendo em vista mais do que a cubica , tem
a espada desembainhada sobre todas as cabeças :
( 214 )

quem dirá que estes monstros são mais terriveis


que os loucos rematados , e mais difficultosos de
conter? Os primeiros lanção as suas contas , nem
se arremeção ao crime , sem verem primeiro se po-
dem tirar delle algum proveito , e se he provavel
escaparem á justiça ; em quanto hum louco fu-
rioso não se limita a estas duas circumstancias ;
e com tudo ainda ninguem se lembrou de os
matar o que fazemos he tirar- lhes a liberdade , e
este meio desempenha perfeitamente o seu fim .
Ha hum só caso , em que esta pena póde.
ter desculpa pela necessidade , no crime de alta
traição , ou rebellião , e só em certas circumstan-
cias ; quero dizer , quando se tracta do cabeça
de hum partido , em cuja morte se apaga o prin-
cipio da desordem : ou quando se receia, que de
outra sorte se não possão acalmar os animos por
ter lavrado summamente pelo Povo a disposição
que se oppõe ao Governo ; quando os carcereiros
seduzidos , ou comprados , podem dar sahida ao
criminoso , ou quando os levantados vão arrom-
bar a cadeia : mas são casos extraordinarios , cas
sos de excepção , que ainda mesmo assim , he
preciso observar nestes crimes politicos , que se
a morte nos livra de hum homem perigoso , sem-
pre fica o rastilho , que rompe muitas vezes com
maior estrondo : ha hum dito bem notavel de
hum Irlandez velho , que n'huma guerra civil ti-
nha cahido nas mãos dos seus inimigos : o algoz
acabava de cortar a cabeça de hum seu compa
nheiro , e tha mostravão , ainda escorrendo san-
27.
gue : Olha , infeliz , lhe dizião , para a cabeça
de teu filho . -- Meu filho , respondeo elle , não
tinha só essa cabeça ( 1 ) .

( 1 ) Historia das leis penaes contra os Catholicos Irlan


dezes , por H Parnell.
( 215 )

O quarto argumento he mais forte a pena


de morte he exemplar , summamente exemplar ,
nenhuma das outras faz huma impressão tão for
te. Esta affirmativa , como o temos já provado ,
he verdadeira relativamente aos homens em ge-
ral , mas não he assim quanto aos grandes cri-
minosos. Estou persuadido de que a prizão per
petua , e obrigada ao trabalho faria huma impres-
são mais profunda sobre o seu espirito , do que
a morte. Temos visto que similhantes monstros
não tem as mesmas razões de afferro á vida , que
se observa na parte sa , e industriosa da socie→
dade , estão lançados a tudo ; e os excessos da gu-
la , quasi inseparaveis do seu estado , são quanto
basta para lhes accender o animo : vivem como
brutos ; mas todas as causas , que lhes fazem a
morte menos temivel , lhes inspirão aversão para
o trabalho. Tanto mais independentes , vadios ,
inimigos de sujeição , e de tudo o que he regu
laridade ; tanto mais se devem assustar com hum
estado de subordinação passiva , e de hum cati ,
veiro laborioso : hum tal modo de vida he huma
guerra continua contra as suas inclinações .
A' vista de todas estas reflexões , parece - me
que se prova do que tenho dito , que prodigali
zar a pena de morte he hum erro dos Legislador
res , erro , que procede da situação , em que se
achão. Os que fazem Leis pertencem a esta pri
meira classe da sociedade , em cuja opinião a
morte he hum grande mal , e a morte affrontosa o
peior de todos os males : mas , a meu ver , ine-
dem os outros por si , e por essa razão applicão
a dita pena a huma classe de homens desgraça-
dos , e despreziveis , que não pezão a vida na mes-
ma balança , e que tem muito mais medo da in-
digencia , e do trabalho , que da morte ; e que
pela infamia habitual, em que vivem , são insen-
siveis á infamia do supplicio.
( 216 )

Se apezar de todas estas razões , que me pa-


recem decisivas , ainda quizerem conservar a pe-
na de morte para terror , seja só para castigar os
crimes , que levão o horror publico ao seu maior
auge , para homicidios acompanhados de circum-
stancias atrozes , e mais que tudo para o malva-
do , que tirou a vida a muita gente ; e neste caso
será necessario dar á pena de morte o maior ap-
parato tragico , que poder ser , sem recorrer a tor-
mentos complicados.

§ IV. Máos effeitos indirectos , que se seguem


da pena de morte.

C Nota Quando mandava este artigo para

a imprensa , vejo que a materia não poderia fazer


novidade ; e por isso não farei mais do que hum
resumo : refiro- me inteiramente á jurisprudencia ,
de Inglaterra .
A pena de morte applicada a delictos , que
a não merecem na opinião publica , longe de pre-
venir o crime , desafia os criminosos , pela espe
rança de impunidade , quero dizer , que a pena a
mais forte produz hum effeito menor do que hu-
ma pena inferior. Esta proposição á primeira vis-
ta parece hum paradoxo ; mas não he assim ,
quando observamos os differentes effeitos, que pro-
duz a pena de morte pela sua impopularidade . O
primeiro he relaxar o processo em materia crimi-
nal : o segundo he fomentar tres t principios vicio-
SOS - 1. O juramento falso , que até parece
meritorio , quando se trata de salvar a vida de
hum homem. 2. O desprezo das leis , quando he
de publica notoriedade , que já se não executão.
3. O arbitrario das sentenças , e perdões , pallia-
tivo necessario n'hum systema odioso , mas pal-
liativo cheio de abusos , e de perigos.
( 217 )

A relaxação no processo penal he o resulta-


do de huma serie de transgressões da parte dos dif-
ferentes funccionarios publicos , cujo concurso he
necessario para a execução das leis principio
este , que o Author tem mostrado até á evidencia ,
examinando miudamente tudo quanto fazem os
principaes agentes sobre o theatro da justiça. Cada
hum dos ministros , diz elle , julgando-se authori-
zado para alterar o papel de que está encarrega-
do , desaperta , ou quebra os anneis da Lei , sub-
stituindo a sua vontade propria á vontade do
Legislador , ( I ) e daqui vem , que todas estas
causas de incerteza , que dominão na lei crimi-
nal , são outros tantos estimulos , que servem de
acorçoar os malvados para commetter delictos.
He por estes principios , e quasi no mes-
mo ponto de vista , que Sir Samuel Romilly
considerou a materia nas indicações que fez re-
lativamente a certos delictos menores , para fazer
abolir a pena de morte : insistia sempre pela não
execução da lei , como causa principal de se amiu-
darem os delictos : mostrou que a lei senão execu-
tava , porque era reprovada não ás escondidas , e

( 1 ) Não citarei mais do que hum exemplo : não vê es-


te Jurado de vestido azul ( dizia hum dos Juizes de Old-
Bayley ao Juiz Nares ) ? Vejo , lhe disse elle - aposto que ne-
nhum delicto capital ha de ter hoje sentença de morte ? E
com effeito assim foi. Este facto contou o mesmo Juiz a hum
Ministro de Londres , pouco tempo depois , 1 de quem o Au-
thor o tem rrecebido. Portugal estava neste caso ; e bem se
podia dizer com hum grande Filososo ( Ensaios de Montai-
gne Liv. 3). Quantas condemnações não tenho eu visto mais
criminosas do que o crime ? A cada passo a verdade era consa-
grada ás formalidades da Justiça , ou pendia da inclinação dos
Juizes . Logo que as leis estão reduzidas a ser escravas , que
felicidade pode haver nos Povos ? Multiplicão-se os crimes com
a desprezo da lei ; e onde o commando he tão perturbado, e
inconstante, parece que a desobediencia não deixa de ter desculpa :
he huma sorte , em que os malvados podem ganhar , e em
que os homens de bem estão sempre arriscados.
Tom. I. Ee
(( 218 ))

por hum pequeno numero , mas as claras , é pela


voz da nação ; e em consequencia destá des
approvação , as partes lesadas os accusado+
res , as testemunhas , os Jurados , os Juizes , o mest
no Rei estavão apostados a relaxar a lei. Sende
isto assim , que cousa mais favoravel para os ho
mens perversos do que hum modo de administrar
a justiça , que lhes offerece a cada passo do pro-
cesso tantas probabilidades de escaparem ao cas
tigo , quantos são os que desapprovão a lei ? Mas
não he necessario apresentar todos os argumen-
tos, de que o Author se tem servido : basta ler o
escripto , que tem publicado , em que resumio
todos os discursos , que fez na Camera dos Com-
muns ( 1 ) : ali podemos ver em materia de princi
pios , e de factos tudo quanto he necessario para
esclarecer a questão : huma tal obra merece ser
meditada : o estilo arrebata , e leva atrás de si
o leitor , e por isso he necessario que se leia hu-
ma , e muitas vezes para se descobrir todo o
seu merecimento , tanto pelo que pertence á theo→
ria , como pelo lado da experiencia : bem se vê
o fructo da mais seria meditação n'hum genio su-
blime , que não perde de vista o seu objecto , que
está senhor de todas as leis criminaes da I Euro-
pa , e que sabe de cór todas as mudanças , que se
3
tem feito sobre a mater ia pelo espaço de trinta
quem
annos a esta parte E poderá duvidar de
di
que huma tal comparação das leis entre si ,90 s-
postas por ordem 9 não seja mais capaz de dar
força , e estensão ao espirito , do que o estudo
solitario de huma só jurisprudencia ? Oś que
nunca sahirão de Inglaterra põem as mãos na ca-
beça , ficão suspensos , e não podem acreditar ,

( 1 ) Reflexões sobre as leis criminaes de Inglaterra: relas


tivamente ás penas capitaes , e sobre o modo por que ellas!
se executão. Segunda edição de 1811.
( 219 )

que sejão mais raros os crimes nos paizes , em que.


a pena de morte se tem supprimido , ou reserva-
do unicamente para casos extraordinarios . A rest
peito das indicações por escripto de Sir Sa-

muel Romilly ; a primeira sobre a abolição da
pena de morte em roubos ardilosos , que mos
trão subtileza , obteve a sancção da legislatura ; a
segunda teve embaraço o anno passado na Ca-
mera dos Pares e outras cinco da mesma natu-
reza acabão de passar na Camera dos Communs
com maioria de votos , e ainda se não pode dizer
nada do seu resultado a final. O › espirito de re-
forma em Inglaterra vai a passos contados : hel
o andamento da razão , e hum dos caracteres da
liberdade não decidir de malhão : n'hum paiz li-
vre , todas as opiniões tem direito para entrar
no combate , e não rendem as armas senão ao
convencimento de huma razão clara. Quantos
tempos e trabalhos não custou a abolir o tra
ctado dos Negros ? As conquistas em hum paiz
em que ha muitas fortalezas são difficultosas,
mas o que se ganha nunca mais se torna a per
der. A respeito destas leis penaes , que se achaol
abolidas de facto , pois que não resta mais do
que hum fantasma , que os seus defensores tem
conservado , basta ler os debates da Camera dos
Pares , e particularmente cos discursos de Lord
Lauderdale , de Lord Holland , e do Marquez de
Lansdowne ( 1 ) para podermos prognosticar que

103
( 1 ) Vejão-se os debates para se abolir a pena ultima
a respeito do que rouba o valor de quarenta xelins n'huma
casa , em que ha moradores , ou de cinco xelins em huma
loja , em que não estava ninguem , com huma conta analyti-
ca das razões pró , e contra , publicadas por Basilio Monta-
gu , que tem dado á luz igualmente hum resumo interessantis-
Simo , que tem por titulo : Opiniões de diversos Authores so= 0
bre a pena de morte. Londres 1809. No Prefacio , que não
Ee 2
( 220 )

a lei criminal tractada por homens de Estado


será bem depressa digna de figurar na Consti-
tuição Britannica. O primeiro effeito destes deba-
tes merece bem ser notado. Em Inglaterra , e
na Irlanda muitos donos de fabricas de pannos ,
è algodões , expostos pela natureza de seus tra-
balhos a grandes roubos , se ajustárão entre si
para requerer a abolição da pena de morte con-
tra este delicto ; e a razão que allegárão , era
que a severidade da lei era muito menos a seu
favor do que a favor dos criminosos. Já se não
tracta de fazer declamações contra planistas , fi-
losofos , idéas de imaginação : temos homens lesa-
dos , que sentem a sua perda , que não consultão se-
não o seu interesse , e que sollicitão leis , que se po-
dem executar , e que se achão practicadas.
Mas já que muitos clamão que esta doutrina
he hum paradoxo , creio que não posso acabar
melhor do que estabelecendo claramente em que
elle consiste , para que o possão refutar com mais
facilidade : a refutação está feita por si mesma ,
porque não ha mais do que arranjar em duas co-
lumnas as proposições contradictorias.

Paradoxo.
Refutação .

Tudo deve ser claro Nem tudo deve ser


na lei , e todas as leis claro na lei , e nem to-
se devem executar. das as leis se devem
executar.
A lei só pode ser A lei póde ser util
util, quando se conhece , ainda que se não conhe-
e tem a sua execução. ça , nem se dê á exe-
cução.

enfastia , expõe com toda a clareza a serie das questões re


lativamente a esta materia.
(( 221 )

He necessario que a Não he necessario

lei seja igual para to que a lei seja igual pa-


dos , que reine por si ra todos , nem que do-
mesma , e que o Juiz mine por si mesma. O
não seja mais do que o Juiz não se deve limi-
seu dispensador , e o seu tar a ser o seu dispen-
orgão. sador , e o seu orgão.
Se a lei determina A lei he evidente-
huma pena , e os Tribu- mente boa , quando de-
naes applicão outra por termina huma pena , e os
costume se a lei he tribunaes applicão ou
odiosa até ao ponto de tra por costume - quan-
parecer hum acto me- do he odiosa até ao
ritorio o juramento fal- ponto de parecer hum-
so com que a perten- acto meritorio o jura-
dem illudir - se he de mento falso com que a
tal sorte desproporcio- pertendem illudir
+
nada , que os delictos quando he de tal sorte
necessitão de hum pal- desproporcionada , que
liativo habitual no ar- os delictos necessitão de
bitrio com que os Jui- hum palliativo habitual
zes podem sentencear , no arbitrio com que os
e perdoar -está claro Juizes podem senten-
que a lei he evidente- ciar , e perdoar. Tudo
mente viciosa ; e tanto isto não faz com que a
mais desculpamos os lei não seja boa ; e po-
que embaração a sua sondemos approvar os que
execução , tanto mais embaração a sua exe-
condemnamos a mesma cução , sem deixar a
le.. menor duvida sobre a
excellencia da mesma
lei . *

(* ) Esta confrontação he hum resumo de tudo quanto o


incomparavel Bentham tem provado contra a pena ultima,
Aironia não podia ser nem mais clara , nem mais elegante ,
nem mais capaz de convencer : quando acabarão estes homi-
cidios juridicos ! Quando deixarão de ser necessarios ! Quid
(( 222 ))

oler ned
ag lever CAPITULO XV.
OT, OR
Das Penas subsidiarias.

CHamo pena subsidiaria a que está assigna-


da por lei para apoiar huma segunda pena , que
se não pode exécutar , porque o réo se não quer
C
sujeitar a ella. Chamo igualmente pena subsidia-
ria , ou de supplemento a que está destinada pa-
ra fazer as vezes de huma primeira pena , que
se não pode executar , porque o réo a não pode
soffrereq 5b c
Bem se vê que em ambos os casos a pri-
"
meira lei hedefeituosa ; no primeiro pelo não
querer do réo ; no segundo porque não póde. He
evidente que nenhuma lei se poderia executar ;"
se deixassemos a sua execução na vontade do réo
Ha casos , como nas penas passivas , em que es
ta vontade está fóra de toda * a questão, mas ha
muitas especies de penas , que obrigãoso réo a
comportar-se por este , ou por aquelle modo → a
fazer huma acção -a deixar de fazer huma cousa>
a pagar huma certa quantiaa não sahir des
te , ou daquelle logar , etc. Em todos estes casos ,
em que senão pode obrigar fisicamente o réo , he
necessario para dar inteira forçaoao mandado da
0 lei , accrescentar - lhe a ameaça de chumarsegunda
pena que possa firmar a execução da primeira:!
Esta pena auxiliar póde ser da mesma especie
da pena
pena primitiva ; por exemplo , pelo quebran-
tamento de hum degredo por tempo determina-
o clasup of SOA Hud ed oinainoitano pilit
cum villismaagas , qui neque,juş , meque bonum atque equum
sciunt ?, Melius pejus prosit jobsite: nihil vident yo nisi .
quod lubet chromos
Q.Lauko menon Terencio Heaut. Act. 3. Scen. 5.3
( 223 )

dochum novo degredogmas em ultimo rême-


dio , toda a pena, que se não póde executare semku
vontade doréo, deve encostar see asoutra pena ,
que se execute sem dependencia da sua vontade.
Aulebestá mais particolarmente sujeita a não
se poder executar pela impossibilidade dő réo nq
caso das penas pecuniarias mas tambem pode ter
logar nas penas passivas , como sera lei , ordenas
se a mutilação de hum orgãos do corpo , de quesq
réd pornhum acaso já lestivesse privado, isible due
-Hogg saoq # urinooze roboq off no ressup
singon Regras para aspenas subsidiarias.- chcia
cuno disq sr si.qque musicbog se sug
Se a primeira pena se não pode executar ,
porque o réo he inhabil para acsoffrer; a pená
subsidiaria não deve ser nem maior , nema menor
do que aqprimeira que está posta ma lei, singorg
op Eis aqui pelo menosio ponto que devemos
ter em vista , aindasquensejä mui difficultoso iacers
tar no alvaimesize ob ofosilci ob ens of
-20° -Sela primeira não tem cabimento pelo não
querer manifesto do réo , he necessario que a pe
na subsidiaria seja maior,mud ou o cuartageG : 9b
Se a pena que estava impostay erasamais
convenientesque se julgava para o delicto ; se
queremos obrigar o réo a submetter-se a ella
não ha outro meio senão ‫ و‬ameaçalo eom huma
i
pena mais fortegs strelence on od rownoon of
23. No caso de haver duvida de ; que a pena
se não possa executar por falta de poder , où
vontade da parte do réo he, preciso que a penal
subsidiaria seja hum pouco maior do que a pris
meira.b 160 cmnd a soloippi murt one
-100 Hum homem , por exemplo , não se quer su-
jeitar á pena esta sua resistencias he hum novo
delictose por esta razão ficaremos bem capacita
dos de quanto he ajustada a quarta regra , que
se segue :
( 224 )

4. A pena subsidiaria deve ser tanto mais


carregada , quanto maior facilidade tiver o réo
para se poder subtrahir á primeira pena , sem que
se descubra. +
... A tentação de commetter o crime cresce á
proporção da facilidade , que tem o réo de o po-
der occultar : he necessario contrapezar esta es-
perança , * accrescentando ao castigo huma nova
parcella , que o faça maior. A prizão he a pena
subsidiaria a mais natural no caso do individuo
não querer , ou não poder executar a pena pecu-
niaria ➡o que faz estas duas penas tão proprias
para se poderem supprir huma pela outra , he se-
rem divisiveis ; admittem todos os grãos, que po
dem ser necessarios.
As penas simplesmente afflictivas não são
proprias , geralmente fallando , para supprirem o
logar das penas pecuniarias , pela razão de que
as primeiras sempre são infamantes.
No caso de infracção de exterminio , ou de
sahir o réo do logar a que está limitado , a me-
lhor pena he a prizão: huma só transgressão pó-
de reputar-se como huma prova sufficiente de que
o mandado penal não sería observado.
As penas que obrigão a trabalho requerem
huma serie não interrompida de novos esforços
da vontade para obrigarem o réo a sujeitar-se :
he necessaria huma constante applicação de no-
vos motivos ; e estes motivos devem ser tirados
do genero de penas, que se podem empregar.em
hum grao diminuto , e n'hum espaço de tempo
muito pequeno : de sorte que todas as vezes que
se estabelece hum inspector n'huma casa de tra-
balhos forçados , he precizo dar-lhe o poder de cor-
recção , que envolve o direito de impor castigos
corporaes. A infamia não serve de objecção a
isto , porque as penas laboriosas são igualmente
infamantes.
( 225 )

A prizão , como temos dito , deve supprir


as penas pecuniarias. Mas como se póde com-
parar huma somma de dinheiro com huma som-
ma de prizão ? Quanto se poderá descontar
na divida por hum dia de cadeia ? Respondo , que
se póde descontar a mesma quantia, que o deve-
dor poderia ganhar em hum dia. O ganho de
hum dia para hum official mecanico , hum ma-
rinheiro , hum soldado , hum trabalhador , hum
criado , póde calcular- se pelo que corresponde á
sua respectiva soldada , ou jornal , ou salario. O
ganho de hum dia para hum rendeiro será igual
a 365. * parte do arrendamento do predio , inclu-
indo a casa. Se hum homem exercita hum officio ,
e traz hum predio de renda , he preciso fazer a
conta pelo que rendem ambas as cousas. A re-
speito do que não tem officio mecanico , nem he
fabricante , devemos orçar a conta a oito vezes a
renda da sua casa se he dono de fabrica , a
quatro vezesse tem officio , a seis vezes a mes-
ma renda.
O rendimento do que habita em casa alheia ,
e paga hum tanto , deve regular- se no dobro do
que paga por anno. Se paga sómente a casa , em
quatro vezesse está de graça em casa de hum
parente , em huma vez ( 1 ) .

Divida paga
(1 ) Exem- Por dia Por anno em sete an- L. s. d.
plo nos de pri- 109 11 0
zão

L. s. d. L. s. d.
Divida paga
Trabalhador 01 0 15 13 O em hum an-
no de pri-
zão
Somma 0 3 8 66 18 4 66 18 4

Tom. I. Ff
( 226 )

Os pontos , de que devemos partir , são os tres


que se seguem,,. ,
N Dada huma certa renda , que porção da
divida se poderá descontar pela prizão em hum
tempo igualmente dado ? f
2. Qual he o tempo antecedente á divida , que
se deve tomar para estabelecer a avaliação do
rendimento ? 1
3. Que prova se deve admittir para avaliar
o rendimento ? Do interesse do devedor he faze-
lo parecer o maior que podér o crédor deve
ter a liberdade de assistir a esta avaliação , e de
a examinar por si , ou pelo seu procurador , etc.
Tanto hum homem está em maior represen-
tação , tanto os seus gastos costumão ser maiores
e por isso tanto mais se deve abater da divi-
da , segundo o tempo da prizão do devedor.s
Limito- me a offerecer aqui o principio , em
que se deve estabelecer o calculo : fazer as con-
A
tas por miudo pertence mais a hum Codigo pe-
nal do que ao Tractado das penas.
[..

వ -63 918 fi..


ly

J
( 227 )

LIVRO III.

Das penas de privação.

CAPITULO I.

Idea geral deste Livro.

P Assamos agora á segunda das duas divisões


ww
geraes das penas penas de privação. em que
o réo fica perdendo os direitos reaes , ou pessoaes ,
de que estava gozando (*) .

( * ) A Lingua Ingleza tem a palavra generica forfeiture


para explicar a natureza destas penas , cuja palavra compre-
hende o delicto , e a pena , que lhe corresponde. Creio que
vem do Latim foris facere : pôr da parte de fóra : o que es-
tá na posse de huma cousa julga-se que a tem de casa ? ou
de portas a dentro : como todas as nossas idéas vem dos
sentidos , todos os signaes , que explicão as idéas intellectuaes
são dirivados de termos , que exprimião ideas sensiveis , enti-
dades reaes substancia , movimento , sensação ; de sorte que
não fallamos dos objectos intellectuaes senão por metafora >
ainda que muitas vezes sem o saber. Descuberta importantissi-
ma na Metafysica da Grammatica , que se deve a d'Alembert.
Melanges Tom. 1. Disc. prelim. etc.
Confiscação " em Portuguez , além de significar sómente
e não o crime , está applicada unicamente ao caso ,
a pena ,
em que a propriedade vem a passar para o thesouro publico.
Perda tem huma significação muito generica : perdemos a vi
da , a liberdade ; mas não he desta perda de que falla o Au-
tor neste Capitulo , como he facil de ver pelo seu conteudo :
he a grande difficuldade das lingoas : entretanto o Author ex-
plica- se por hum modo tão claro , e tão decisivo , que não he
facil confundir as penas da primeira classe com as penas da
segunda .
Ff 2
( 228 )

Huma possessão he substancial , ou incorpo-


rea Substancial , quando entra nas classes
das cousas ( hum campo , huma casa ) ; incorpo-
rea , quando o seu objecto he huma entidade
abstracta (huma dignidade, hum officio , hum di-
reito ) .
Ás possessões ou se derivão das pessoas , ou
das cousas , ou das cousas , e pessoas juntamen-
te : estas ultimas são complexas.
As segundas são pecuniarias , ou quasi pe-
cuniarias : estas comprehendem tudo o que tem
valor sem ser dinheiro. As que se derivão das
pessoas , consistem em serviços , que fazem es-
sas pessoas. Os serviços podem ser exigiveis " e
inexigiveis : os primeiros são aquelles , de que hum
homem se não póde dispensar , sem ficar sujeito
ao castigo da lei : inexigiveis são aquelles, de que
se póde dispensar , sem se expor a outras penas
mais do que ás que resultão da sancção moral
ou religiosa ( 1 ) . A faculdade de obrigar as pes-
soas a serviços exigiveis chama-se vulgarmente
poder , isto he , autoridade sobre as pessoas a
faculdade , ou possibilidade de procurar serviços
inexigiveis depende em grande parte da reputação
( 2 ) . Esta póde ser natural , ou facticia : natural ,
a que resulta do comportamento , e qualidades
do individuo facticia, a que se confere por meio
de alguma distincção , ou dignidade. Daqui re-

( 1 ) Aos serviços inexigiveis correspondem os direitos im-


perfeitos. A especie de direito , que hum homem póde ter so-
bre serviços , contra cuja omissão não ha pena legal he
hum direito imperfeito : a obrigação de prestar similhantes offi-
cios, he huma obrigação imperfeita. He a expressão systematica de
que se servem os Authores , que tem escripto sobre a pretendida
lei natural.
( 2) Os serviços inexigiveis , ou espontancos , dependem
da benevolencia ; e a benevolencia a respeito de hum individuo
depende em grande parte da súa reputação.
( 229 )

sultão duas sortes de privação : -privação de po-


der , e de reputação.
A credibilidade he hum ramo particular de
reputação reputação de veracidade : daqui vem
outras duas especies de privação : de distincção ,
e de credibilidade.
Estas possessões complexas se podem arran-
jar debaixo do titulo de distincções , que são ge-
raes , ou particulares. As primeiras podem ser na-
turaes , ou adquiridas : por distincção natural en-
tendo a que pertence necessariamente a huma
pessoa em razão do seu nascimento , como a de
filho > filha , pai , mãi , irmão , irma , e assim
por diante , segundo os grãos de consanguinidade.
Nestas distincções naturaes não póde haver pri-
vação , ninguem as póde perder ; mas como an-
dão acompanhadas de certos direitos , a respeito des-
tes he que pode ter logar a privação . As dis-
tincções adquiridas , ou são politicas, ou religiosas :
as politicas são domesticas , ou civís : as domes-
ticas ou são de profissão , ou de familia . Nas de
familia entrão as de marido , e mulher , as de tu-
tor , e pupillo , as de senhor , e de escravo : as de
profissão abração todos os officios , todas as pro-
fissões mecanicas , scientificas 9 e militares . A
distincção civil he o estado de todo o individuo.
em quanto pertence a huma communidade , ins-
tituida para outro qualquer fim , que não tenha
a Religião por seu objecto. A condição religiosa
he o estado de todo o individuo , que pertence a
huma sociedade , ou a huma seita , instituida
com o fim de se reunirem debaixo do mesmo cul-
to religioso. A cada huma destas distincções cor-
responde a sua respectiva especie de privação.
As distincções particulares se reduzem a dous
generos : 1. humas são constituidas por officios :
2. as outras por corporações , ou privilegios. O
( 230 )

direito de exercitar hum officio he hum direito


exclusivo de fazer certos serviços entrando nis-
to o direito de exercer poderes , 1 e de perceber
vantagens , que andão annexas a esses mesmos
serviços.
As corporações são politicas , ou religiosas :
debaixo do segundo titulo podemos contar as dif-
ferentes ordens monasticas estabelecidas nos pai-
zes catholicos. i
Quanto ás corporações politicas , o catalogo
das possessões , que podem andar annexas aos
membros destes corpos , abraça toda a especie de
simples possessão ( 1 )
Tantas condições particulares , tantas es-
pecies possiveis de privação.
Como podemos perder huma possesão , tam-
bem podemos perder a capacidade legal de ad-
quirir póde se perder a protecção da lei para o
que * tenho adquirido e aqui temos já duas espe
cies de privações ; privação de capacidade legal,
que relativamente a * huma posse contingente tira
a hum individuo a liberdade de adquirir e
privação de protecção legal que expõe o individuo
a diversas possibilidades de perder o que possue.
homem , descahido da protecção legal , perde
o direito , que tinha a ser protegido pelos minis-
tros da lei , cujo officio he sustentar a cada hum
na posse mansa , e pacifica de seus direitos. M

( 1 ) Por exemplo , huma parte no uso de certa somma


de dinheiro , ou dos rendimentos de hum certo fundo de ter-
ra huma parte neste , ou naquelle officio , que confere po-
der : huma isenção de certo tributo , ou encargo publico : o
privilegio exclusivo desta , ou daquella occupação.
( 231 ))

CAPITULO IL
r'
Das penas da sancção moral. 7.

Para fazermos idéa do modo , por que a sancção


moral castiga huma pessoa , he preciso repararna
mudança que se faz a sen respeito , depois que
ella tem commettido huma acção , condemnada ,pe..
lo tribunal da opinião publica Desde logo fica
perdendo huma porção do apreço , e affeição , e por
consequencia da benevolencia de Դ que estava go-
zando. * Em todas as relações da sociedade habi-
tuaese occasionaes ella percebe que já não con-
segue o mesmo tractamento , que tinha d'antes ;
que a disposição, com que lhe rendem os mesmos
serviços não he a mesma ; ! e que muitos até o
#
aborrecem , ou com disfarce , ou por hum modo
manifesto. tocmiles
E quem poderá calcular , ou prever todas as
consequencias de huma tal mudança ? A depen-
dencia , que tem cada hum de nós dos outros ho-
mens he tão estreita , que das suas disposições
aomosso respeito dependem todos os principios
dos nossos prazeres , e dos nossos desgostos : a to-
da a hora estão mudando as cores da nossa vi-
dayoourse avivão mais , ou desbotão , e desmere-
cem pelo reflexo dos sentimentos dos nossos simi-
hantes a toda a hora , ponosso coração desaba-
fa ou se comprime begundo as provas , que recebe
da sua estimação , ou segundo a desabrida ex-
pressão do seu desprezo : húm acto de affeição nos
pode salvar a vida negarem-nos hum bom offi-
cio nos póde causar a morte anni srod
1 339
Mas ainda que a pena da sancção moral
abrace todos os males possiveis , podemos consi-
( 232 )

derala como repartida em duas partes , huma das


quaes a respeito da outra he da mesma sorte, que
costuma ser a causa para com o seu effeito. A
primeira encerra todos os males contingentes , ou
casuaes , que póde experimentar huma pessoa des-
graçada pelas consequencias desta malqueren-
ça : a segunda consiste nesta pena immediata ,
nesta anciedade , que forma o sentimento da ver-
gonha , e que tem o seu principio n'huma aver-
são confusa destes males casuaes. Este movimen❤
to de huma tristeza penetrante he huma pena ca-
racteristica da sancção moral : não se póde altri-
buir senão a esta causa ; porque o poder politi
co não tinha forças para lhe dar o ser , senão
por meio da influencia, que tem sobre a opinião.
Ainda que hum individuo fosse declarado infa-
me por hum tribunal , se o publico se não en
carregasse da sentença , se continuasse a honrar
o criminoso , o tribunal não tinha feito nada.
Este sentimento de vergonha acorda no co-
ração do homem , que fez mal , pelo menos no
instante , em que o seu crime se descobre : he
muito variavel nos seus gráos ; mas he univer
sal : as excepções , se as póde haver , são unica-
mente para homens , que tem perdido o juizo,,
ou desnaturalizados , que já se não embaração
com o . futuro, 174
Os males casuaes serão maiores , ou menores,
0
segundo estas duas circumstancias : 1. a in
tensidade do desprezo : 2. a sua extensão : he
esta huma distincção , que devemos ter sempre
-em vista.
Estas duas porções de males , ainda que fa-
cilmente se distinguem , misturão-se muitas ve-
zes , e serve hum de aggravar o outro. Tenho
feito huma acção immoral , conheço que me tem
descuberto : antes que esteja no caso de recorrer
( 233 )

aos bons officios de algumas pessoas que já sa-


bem do meu crime , e de experimentar da sua
parte alguma especie de desabrimento ; em razão
da censura , em que tenho incorrido , já tenho o
triste presentimento , de que não ficão formando
de mim o mesmo conceito ; acanha-se a minha
confiança hum ar de embaraço , e de medo se
imprime em todas as minhas relações para com
as taes pessoas : prende- se a lingua , as palavras
são balbucientes , sobem-me as cores ao rosto :
tal he o effeito da vergonha. Se me escondo , e
não appareço na sociedade , eu me castigo a mim
mesmo ; se depois de conhecerem a minha cul-
pa eu me apresento como d'antes , experimento
a reprehensão de huns , a frieza de outros , des-
feitas de muitos ; e para me servir da linguagem
systematica , que tenho arriscado , alli começa pa-
ra mim a experiencia dos males casuaes da sanc-
ção moral.
Já temos visto , que a malquerença tinha
dous meios de fazer mal --- huns positivos -e
outros negativos : buns, que consistem em me fa-
zerem máos officios ; outros em me negarem os
bons officios. Quanto aos primeiros , he da obri-
gação do Magistrado politico prevenir para que me
não possão molestar , isto he do seu officio : não ha
Governo bem aconselhado , que permitta aos indi-
viduos castigar o homem ainda o mais aleivoso ,
dando- lhe hum tractamento similhante ao que a
lei tem reservado só para si . Os mãos officios
positivos são de duas especies , acções , e pala-
vras : as acções violentas são prohibidas → as pa→
lavras injuriosas o são igualmente ; mas a este
respeito a protecção da lei he limitada , e até
summamente imperfeita : quando todo o mundo
está apostado a dizer mal de hum homem , como
póde ella intentar o processo a todo o mundo ?..
Tom. I. Gg
1
( 234 )

Mas ainda quando a lei tivesse forças bas-


tantes para prevenir todo o máo officio positi-
vo , alli expirava o seu poder ha hum numero
infinito de bons officios, a que não podia obrigar
ninguem , sem entrar pelos direitos da liberdade ,
e propriedade , que está obrigada a guardar ;
de sorte que ainda quando as penas da sancção
moral se limitassem ao que a lei não pode em-
baraçar , este mal por si só sería consideravel ;
porque não admitte modificação , cahe de cho-
fre sobre o miseravel , não o deixa respirar , aca-
nha o circulo de todos os seus prazeres , e o
persegue em todas as suas emprezas . Neste ca-
so de infelicidade hum homem se vê lutando
com hum inimigo invisivel , que vai diante delle ,
e o acompanha em toda a parte : negão- se os
amigos , e protectores , quando os vai buscar ;
todos os seus conhecimentos o desamparão ; e
até o seu nome vem a ser contagioso para a sua
familia : seccárão-se para elle todas as fontes da
felicidade , e a sua vida não he mais do que hum
fundo de amargura. ›
Estes males casuaes abrangem todos os ma-
les possiveis , e até os mesmos , que dimanão par-
ticularmente da sancção politica : estás accusado
perante os Tribunaes : hum individuo pouco af
feiçoado em razão de alguma immoralidade real ,
ou supposta do teu comportamento , não quer
servir de testemunha a teu favor : está claro, que
por este modo vens a perder , e que pela falta
deste serviço podes incorrer nas consequencias
da lei as mais rigorosas. Por outro lado todos os
males , que dependem da sancção moral , não só
os casuaes , mas a vergonha podem ser o resul-
tado de huma sentença proferida pelo Magistra-
do : he hum facto de que já fallámos , e de que
ainda havemos de fallar ". mais de vagar,
( 235 )

Os males , que tem a sua origem nestas duas


sancções , não differem senão pelo modo, com que
se produzem relativamente ás penas , que po-
dem brotar da sancção politica , tudo he notavel ;
a sua especie , gráo , tempo , logar , e a pessoa
do Ministro. Quando o réo se abalança ao deli-
cto já sabe , ou póde saber , que se he desco-
berto , ha de soffrer huma certa , e determinada
pena por ordem de hum Juiz , e pela mão de
hum algoz ; e os que virem applicar a pena sa-
berão que ella he em consequencia de hum cri-
me assignalado pela lei : huma vez que isto acon-
teça , o Magistrado não tem mais que fazer , ex-
pirou o seu officio , acabou a pena pelo que per-
tence á sancção politica ; mas quanto aos máos
officios positivos , ou negativos , que póde expe-
rimentar o réo da parte da sociedade , ninguem
póde saber da sua natureza , nem em que tem-
po hão de ter logar , nem a pessoa , que os ha
de applicar tudo he incerto a este respeito : a
essencia das penas da sancção politica he serem
determinadas , e precisas : a essencia das penas da
sancção moral he serem indeterminadas , e vagas.
Não será inutil mencionar aqui as differentes
palavras , que estão em uso , quando se falla das
penas da sancção moral : estas palavras tem hu-
ma variedade infinita : ha nellas , para assim di-
zer , huma legião de seres ficticios, que represen-
tão a mesma idéa fundamental debaixo de diver-
sos pontos de vista - vituperio , censura , des-
honra , enxovalho , desprezo , vergonha , desgra-
ça , ignorancia , infamia. Quando se falla de hum
homem " que soffre a sancção moral , póde ser
mais , ou menos conveniente segundo os grãos , e
circumstancias , dizer, que perdeo , ou denegrio a
sua reputação ; que a sua honra contrahio huma
nodoa, que ficou exposto ao desprezo , que veio
Gg 2
( 236 )

a ser infame , que está objecto da execração pu-


blica , etc. esgotar o catalogo destas expressões
he mais proprio de quem faz hum Diccionario ,
que de hum Jurista.
Estas penas da sancção moral tem huma
data muito anterior á formação dos Governos :
antes de haver sociedade politica ; antes da in-
venção dos Magistrados , e das leis ; quando os
homens vivião repartidos em tribus , e familias ,
já tinhão noções do bem , e do mal , regras mo-
raes de comportamento a que davão hum certo
pezo , sujeitando os infractores a certas penas
que os fazião malquistos , e aborrecidos dos ou-
tros homens : he neste sentido que se deve enten-
der o que dizem os moralistas a respeito das leis
naturaes , e da sancção dessas leis : este he o fun-
do , o alicerce sobre que os primeiros Legisladores
tem trabalhado , e o modélo que tem seguido. A
sancção moral era nesse tempo o mesmo que he
no dia de hoje , o mesmo que será eternamente ,
hum instrumento poderoso para sustentar as leis ,
ou · para as deitar abaixo ; e por isso ninguem se
deve maravilhar, de que os homens tenhão lança-
do mão de huma grande variedade de meios para
se apoderarem desta força , e para a fazer mover
segundo as suas intenções. Preparada , e posta
em acção pelo Magistrado , vem a ser parte deste
vasto systema de mecanismo , a que temos dado
o nome de sancção politica ; e por este modo já
estamos em estado de poder examinar a natureza
das differentes penas , conhecidas debaixo dos
nomes de deshonra , e de infamia.

11. Exame das penas da sancção moral.

Passemos agora ao exame das penas , que se


derivão da sancção moral , que obrão por meio
( 237 )

della sem concurso algum da parte dos Magistra


dos para dirigir , ou aggravar os seus juizos.
Estas penas , como já dissemos , não tem es-
pecies distinctas , encerrão em si toda a qualida-
de de males : o ser malquisto he facil de conhe-
cer por innumeraveis effeitos , que nem se podem
calcular ‫ و‬nem prever ; escapão a toda a descri-
pção , porque se não podem descrever senão as
penas determinadas. Serão elias analogas ao cri-
me ? serão economicas , ou excessivas ? Ninguem
o póde dizer ; e por tanto todas as nossas reflexões
estarão reduzidas a tres pontos : divisibilidade
igualdade , exemplo.
1. Estas penas tem em summo gráo a qua-
lidade de serem divisiveis : encerrão todos os
gráos possiveis desde a murmuração até á infamia,
desde o frio acolhimento de passagem até a hum
odio activo " e aturado mas todos estes gráos
pendem de causas accidentaes , que se não po-
dem avaliar antecipadamente . As penas pecunia-
rias , as chronicas , como a prizão , são suscepti-
veis de huma exacta medida ; em quanto as pe-
nas , que dependem da sancção moral, não tem
medida : quem as póde calcular exactamente an-
tes de ter passado por ellas ? Em materia de in-
tensidade são inferiores á maior parte das penas
da sancção politica : consistem mais em priva-
ções de prazer , do que em males positivos ; e
esta he a principal razão porque são imperfei-
tas : foi unicamente para supprir a sua fraqueza ,
que os homens se vírão obrigados a fundar hum
systema de leis penaes.
2.° Huma das circumstancias , que diminue a
sua força , he o logar da sua operação. Hum
homem , por exemplo , está feito alvo do despre-
zo na terra em que vive , mas huma vez que se
mude , fica livre da pena que sentia ; e todo o
( 238 )

castigo se reduz a huma especie de degredo meio


voluntario , que não está ligado a ser perpetuo :
o homem nesse caso fica desterrado , mas tem a
esperança de voltar logo que o tempo tenha apa-
gado a lembrança de suas desenvolturas passa-
das , e logo que o resentimento publico tenha ar-
refecido .
3. Relativamente á igualdade , estas penas
são mais defeituosas do que parecem á primeira
vista . Cada hum no seu estado tem a sua roda
de amigos , seus conhecimentos : ser objecto de
desprezo , e de aversão para esta sociedade , he
huma infelicidade tão grande para este homem ,
como para aquelle : esta he a idea que se offe-
rece logo ao nosso espirito , idéa que tem sua
verdade até hum certo ponto ; mas espreitando o
caso de mais perto , bem se deixa ver que estas
penas admittem infinitas modificações , segundo
o estado , a fortuna , a educação , a idade , o se-
xo , e outras circumstancias . Os males casuaes ,
que dependem da sancção moral , podem variar
até ao infinito a vergonha he hum sentimento
mais ou menos vivo, segundo as differentes cau-
sas , que podem tocar na sensibilidade .
As mulheres , especialmente entre as nações
civilizadas , tem o sentimento da vergonha mais
apurado tem maior melindre do que os homen's
neste ponto : mal tem aberto os olhos , logo as
obrigão a guardar as leis do pejo , ainda antes
de o poderem conhecer o pejo he o esmalte do
seu sexo , o enleio em que está fundado o seu
imperio ; não he preciso muito tempo para co-
nhecerem esta verdade : alem disto , as mulheres
são mais fracas mais dependentes do que os
homens 9 mais sujeitas à necessidade de serem
protegidas ; tem mais difficuldade em mudar de
sociedade , e variar o logar da sua morádia. Nos
( 239 )

primeiros annos o sentimento da vergonha ainda


não tem ganhado toda a sua força ; e na velhice
observa-se muitas vezes , que tem perdido o seu
maior vigor : a paixão da avareza , unica paixão ,
qué se arreiga com os annos , vem a dominar
por fim sobre este sentimento. A saude arruina-
da , a irritabilidade do temperamento , hum de-
feito nos orgãos , qualquer doença natural , ou
adquirida he quanto basta para aggravar as pe-
nas da vergonha , como de outra qualquer cala-
midade.
A riqueza , considerada em si mesma , inde-
pendente da educação , e da representação pu-
blica tende a embotar o fio de similhantes im-
pressões hum homem rico tem mais facilidade
para mudar de habitação , trocar o circulo de
suas relações , comprar a pezo de ouro seus pra-
zeres independentes da estimação dos outros , e
da sua benevolencia. Infelizmente não sei que
tendencia natural tem os homens para obsequiar
a opulencia , e render- lhe gratuitamente vassal-
lagem , particularmente testemunhos exteriores
de consideração , e de politica. A nobreza he
huma circumstancia , que augmenta a sensibili-
dade 2 para tudo quanto he de brio ainda que
nem todas as regras de honra estejão calculadas
sobre os principios da moral ; com tudo as clas-
ses elevadas são em geral mais sensiveis á in-
fluencia da opinião , do que 着 as classes inferiores.
A profissão , ou occupação habitual influe
muito sobre as penas , que derivão deste princi-
pio ha modos de vida cheios de pundonor , e
tudo o que desacredita hum individuo debaixo
desta relação o toca mais ao vivo do que outra
qualquer especie de vergonha ser hum militar
destemido , he huma qualidade indispensavel : a
mais leve suspeita de fraqueza he huma vileza
( 240 )

n'hum soldado ; e daqui vem o melindre de sen .


timento , que se acha sobre este ponto em alguns
homens , que por outra parte tem a maior indif-
ferença na moral.
No estado de mediania he que as virtudes
se mostrão com a maior iguldade, e gentileza ; alli
he que as idéas de honra se ajustão melhor com
o principio da utilidade em geral : alli he que se
acha hum verdadeiro apego á estimação dos ou-
tros homens , alli he que se experimentão todas
as consequencias tristes da má reputação .
Nas classes inferiores em que o homem
vive do seu jornal , o sentimento de honra , geral-
mente fallando , he menos forte. Hum trabalba-
dor , se não he preguiçoso , sempre tem que fa-
zer , ainda que a sua reputação não seja tão co-
nhecida tem companheiros de trabalho , e não
para o seu divertimento : pouco tem que esperar
da parte delles ; pouco tem que lhe pedir : huma
vez que tenha de comer , com isto se contenta :
sua mulher , e seus filhos lhe devem obediencia
nem lha podem negar ; e os prazeres , que resul-
tão da sua authoridade domestica , enchem os cur
sos intervallos , em que está sem trabalhar.
4.° A maior imperfeição das penas da sancção
moral he serem pouco exemplares : são menos do
que todas as penas da sancção politica. A situa-
ção de ham homem , que padece na reputação >
póde ser ignorada por muita gente , ou pelo me-
nos não ser conhecida senão pelos que são ins-
trumentos da súa pena ; póde restringir-se á roda
dos seus amigos , e dos seus conhecimentos ; e es-
tes mesmos não podem ter huma idéa clara , e dis-
tincta de tudo quanto soffre, o miseravel : percebem ,
que o tractão com indifferença , ou desabrimen-
to ; observão, que não acha protecção , nem con-
fiança ; mas todas estas observações são de pas-
( 241 )

sagem. O homem ferido por estes signaes de frie-


za , ou de aversão , he o primeiro , que foge de
se encontrar com os authores 9 ou testemunhas
do seu descredito , quando se não esconde ,na so-
lidão , em que só elle sabe o que padece ; e tan-
to mais infeliz , tanto menos espectadores tem da
sua magoa.
5. As penas da sancção moral são vantajo--
f
sas pelo lado da reforma . O que hum homem
padece por ter quebrant ad o as regras moraes es-
tabelecidas , he hum mal , que não póde attri-
buir senão a si mesmo : tanto mais sensivel á
honra , tanto maior he a sua pena por se ver des-
honrado : ou se fará mais acautelado para que o não
descubrão , ou mais attento em salvar as appa-
rencias , ou tomará o partido de se sujeitar " ás
leis , que não póde offender sem perigo . A opi-
nião publica , á excepção de hum pequeno nume-
ro de casos , não he implacavel : ha entre os ho-
mens huma necessidade reciproca de indulgen-
cia , e afem disso huma leviandade , e huma fa-
cilidade de se esquecerem , que vale o mesmo
que perdoar , huma vez que o réo não torne a
recabir. Quanto aos actos que deshonrão , de que
não ha appellação , nem mercê , a pena de infa-
mia serve para fazer esmorecer e não para re-
formar : Nemo dignit at i a
perdit parcit .
O que pode supprir as poucas vantagens
desta sancção , o que lhe dá até mesmo hum
gráo de força , que se não acha na sancção poli
tica , he a certeza ; não admitte impunidade.
Fallara huma dessas leis de honra he ter con-
tra si todos aquelles que a defendem. Os tribu-
naes regulares estão sujeitos ás formalidades de
hum processo , não sentenceão sem provas , que
muitas vezes podem * falhar mas o tribunal da
4
opinião publica tem mais liberdade e poder:
Tom . I. Hh
(( 1242 )

poderá commetter injustiças ; mas nem por isso


se prende , porque se pode arrepender ; póde, re-
vogar os seus decretos com a mesma facilidade
com que os costuma passar. A formatura do pro-
cesso , e alimposição da pena caminhão , para ast
sim dizer , aspasso igual: não se pedem os dias
da lei , nem ha delongas no juizo ; porque em
toda a parte sempre ha sujeitos , que estão prom-
1
ptos a sentenciar , promptos a executar a sen-
tença : o tribunal inclina sempre para a parte
do rigor os administradores da sancção moral
tem hum interesse de vaidade , e de esperteza
em carregar f a mão nas suas decisões ; e tanto
mais severos , tanto mais se lisongeão de darem
de si huma boa opinião : parece que do despojo
de huns se forma a riqueza dos outros daqui
resulta que a pezar de similhantes penas serem
indeterminadas , e de não terem todo o 1 valor
consideradas separadamente ; todavia o serem
certas , a sua continuação , o seu augmento em
razão do numero dos juízes , tudo isto junto lhes
vem a dar huma tão grande força , que ninguem
as póde arrostar com indifferença , seja qual for
O seu caracter , a sua reputação , e a sua pre-
potencia ; ainda que esta força póde ser maior,
ou menor segundo os Povos estiverem mais , ou
menos civilizados . Em huma sociedade compara-
tivamente mais bem disciplinada ha maior som-
ma de prazeres , e por consequencia mais neces-
sidades ; os homens estão em maior dependencia
reciproca de estimação , e de agrado ; e por is-
so o que perde a sua reputação padece em hum
maior numero de pontos , expõe-se a ter mais
privações. Ha tambem circumstancias mais , ou

menos favoraveis á força da sancção morali :
n'hum Governo popnlar chega ao seu maior au-
ge ; n'hum Governo despotico vem a ser quasi
nada.

1
(( +243 )

si Aliberdade da imprensa augmentando a


extensão de similhante tribunal , augmenta igu →
almente a sujeição dos individuos ao imperio
daa opinião. Tanto mais unanime for a sancção
moral , s tanto maior será o seu poder : se está
como dividida em bandose partidos sejão po-
liticos ou sejão religiosos , perde muito da sua
actividade; os seus aréstos se contradizem ; on vi
cio , e a virtude tem suas medidas diversas ; ha
logares de refugio , para assim dizer , para onde
acodem os desgraçados o desertor de hum par-
tido ,sou
, de huma seita encontra facilmente agaza-
lho em outro partidos e noutraoseitą, boa
腐 ཝཱཝོ ཉྙཱདྡྷི ཏ ; I
CAPITULO IEI. c

1 - Das penas que tocão na honra desde a


simples murmuração até á infamia. Jones
obriet.doop so soup €

PAssemos agora a considerar ass penas legaes


(1 ) , que podem magoar a honra ; isto he , passe-
mos a expor os meios de que se serve o Magis
trado para dirigir a censura pública , e para au
gmentar a sua intensidade, o pursue ob picl est
ab wide rod erub
Jon
F1 A palavra infamia tem huma accepção muito forte :
he quando a a pena , de que se tracta , he levada ao galarim .
Perda de reputação he uma expressão generica , que se pode
applicar a todos os gráos possiveis. Podemos considerar a re
putação como huma quantidade , que se pode fraccionar em
partes maiores menores. Podem-me- esbulbar de todos os
bens por huma vez , porque os meus bens são de humna na-
toreza certa e determinadas más quanto ainda reputação ,
deriva , immediatamente das pessoas , destodas as pessoas , que
podem estar dispostas a fazerem me algum ben he huntfun
do sobre.que não. temoimperioTo Magistrade politidos A opera
ção das leis infamantes he mur fraca , inuito vaga para con-
seguir ousewifim¡ n'hum > sentido absoluto, ob eindi choq 61lua
Hh 3
( 244 ))

O Legislador tem dous generos de meios de


que póde lançar mão : huns siniplesmente legisla-
tivos , outros executivos.
O meio simplesmente legislativo póde ser
directo , e indirecto. O primeiro prohibe mera
mente este , ou aquelle acto como infame " sem
denunciar pena especial , com tenção de fazer
recahir certa porção de vituperio sobre aquelles
que o commettem : he huma appellação para o
juizo publico ; hum convite para que tomem a
lei a seu cuidado : cada hum dos individuos á
proporção do seu interesse se constitué juiz dos
infractores , e executor desta sentença geral. O
Legislador dá mais hum passo , quando á simples
prohibição de huma cousa ajunta meios persua-
sivos como exhortações para se observar a lei ,
razões que mostrão a sua utilidade , palavras de
censura , ou de condemnação applicadas ás pes-
soas , que a tiverem quebrantado ( 1 ) . O meio in-
directo , ou obliquo consiste em transferir para
hum delicto a medida de censura , que pertence
naturalmente a outro : o Legislador affecta neste
caso reputar o delicto como prova de outros , que
tem encorrido no desagrado publico. Taes são cer
tas leis de Zeleucus, que nos tem conservado Dio-
doro de Sicilia : " Que nenhuma mulher saia de
noite , e ande pela cidade sob pena de se julgar
que sabio para máo fim - Que nenhuma traga
vestidos ricos , nem recamados de ouro , a não
ser de má vida.

(1) O improbè factum da lei Valeria he hum notavel exem


plo: Valeria lex cum eum, qui provocasset virgis , cedi , secu-
rique necari voluisset , siquis adversus ea fuisset • nil ultra
quàm improbe factum adjecit. Tito Livio Liv. x. Cap. IX.
Nas leis da Grecia , e Roma havião muitos delictos sem
outra pena mais do que ser o réo declarado por infame.
&
( 245 )

Era o mesmo que dizer : Que se qualquer


mulher se encontrasse a certas horas da noite em
logar ermo , sería reputada como se estivesse alli
para máo fim → Que no caso de assoalhar com
indecencia vestidos pomposos , fosse contada na
classe das mulheres perdidas : A relação entre
os dous procedimentos não tinha toda a certeza ;
e por conseguinte a conclusão era mui duvido-
sa : mas he facil de perceber o effeito , que po-
dia ter huma tal declaração da parte do Legis
lador.
Os casos , em que pode ter logar este meio
com probabilidade de ser util , são mui poucos.
Para justificar a conclusão , que se quer tirar ,
he preciso pelo menos que haja entre os dous
delictos hum enlace apparente he verdade que
a este respeito a opinião publica não se emba-
raça muito com as provas ; os homens tem huma
facilidade prodigiosa para acreditar o mal , de
sorte que basta huma ligação superficial para se
admittir como huma presumpção sufficiente.
E aqui temos o modo , porque o Magistrado
politico póde influir sobre a sancção moral pelo
simples exercicio do seu poder legislativo. Passe-
mos . aos casos , em que elle requer a assistencia
do poder executivo .

1- Publicação do delicto.

De todas as medidas , que pertencem a es-


ta materia , a menos severa he publicar o cri-
me , isto he , fazer simplesmente notorio o facto
do delicto , e apontar o delinquente . Esta medi-
da tem diversos gráos de severidade correspon
dentes aos differentes gráos de publicidade pos-
sivel. Podemos escrever o facto em hum regis-
tro , que possão ler humas poucas de pessoas ,
( 246 )

ou que possa ler o mundo todo. Podemos citar o


réo com pregões publicos ao som da trombeta , ou
de tambor : podemos affixar nos logares de maior
concurso hum cartaz : depois da invenção da im-
prensa , podemos fazer correr a notificação por
todo o Reino , e até firmar a memoria do crime
por hum modo indelevel ( 1 ) . He evidente que
a deshonra , que dahi resulta terá maior , ou me-
nor intensidade conforme o delicto for mais , ou
menos odioso no conceito geral ,

11 → Admoestação judicial.

Podemos considerar a admoestação debaixo


de dous pontos de vista - na qualidade de meia
(
de prevenção e na qualidade de pena. Não he
propriamente hum exercicio de poder : o Juiz não
manda neste caso com authoridade ; o que faz
unicamente he trazer á lembrança do individuo
as disposições da leia seu respeito : he hum
lembrete. Esta operação apezar de ser simples ,
não deixa de ser util. O primeiro effeito das pai-
xões he ver se podem desterrar, para assim di
zer , os motivos , que as poderião combater. Lo
go que estes motivos tutelares recobrárão o seu
posto " tudo quanto sustenta os direitos da vir
tude póde servir para despertar o homem , e fa-
zelo entrar no caminho da razão : e que motivo
mais forte para conseguir este fim , e para con-
ciliar o respeito das leis , do que a voz imperio-

94 Om
(1) No caso de certos delictos contra a policia , por ex
emplo , pezos , medidas de venda publica sem estarem afferi
das , o Magistrado ameaça o réo de fazer publico o seu cri-
me no caso de se não emendar para o futuro. Julga- se está
pena mais severa do que a pena pecuniaria imposta 1 pela jus
tiga
( 247 )

sa dos que são depositarios da probidade publi÷


ca ?
Adadmoestação he huma pena , que recahe
sobre a honra. Apresentar publicamente aos olhos
de hum homem as leis do seu paiz , e a sua obri
gação , he suppolo capaz de infringir essas leis ,
e essa obrigação : entretanto he a mais leve de
todas as penas de similhante genero ; por isso que
denota huma certa contemplação para com a
pessoa a quem a admoestação se dirige. Em ma-
teria de honra he o mesmo que nas penas pecu-
niarias huma pequena quantia : a sua gravidade
pende de ser mais , ou menos publica , do nume-
ro , e da escolha das pessoas , que assistem á ce-
remonia. Tanto mais a lei distinguir estas pes-
soas , tanto mais fará valer . aos olhos dos Ci,
dadãos a importancia desta pena saudavel , im,
portancia que será o demonstrador , e o penhor
do ascendente, que obtem a sancção moral. Feliz
do Povo , que tiver Magistrados que o saibão pren-
der fortemente por hum fio tão delgado !

111 Applicação das penas.

O meio mais poderoso para tocar na honra ,


até produzir a infamia , consiste na applicação
das penas , que influindo sobre a imaginação dos
homens , tem o effeito de os poder envergonhar.
Esta idéa nos encaminha naturalmente a exami-
nar os diversos grãos de ignominia , que costumão
acompanhar estes diversos modos de castigo , al-
guns dos quaes se distinguem pelo titulo espe
cial de infamantes. Nesta escala achamos as pe-
nas pecuniarias no seu gráo o mais inferior , e a
opinião publica a este respeito parece assás uni-
forme em toda a parte do mundo. Quanto aos di-
versos modos de degredo , alguma differença se
( 248 )

descobre. A pena de cadeia a certo respeito he


a mais grave : o exterminio para fóra do Reino
he menos forte , e a prohibição de sahir de hum
certo districto ainda menos. As penas activas to-
madas na sua totalidade são tão varias , que nada
se póde estabelecer a seu respeito em geral : a
maior parte são muito pouco infamantes, ainda que
podem concorrer para hum grande desdoiro , quan-
do se lhes ajunta alguma circumstancia caracte-
ristica , como ferros , trabalhos publicos , galés .
As penas de privação são tão variaveis nos seus
effeitos sobre a honra , que não admittem pro-
posição geral ( 1 ) .
Relativamente ás penas corporaes , não ha
huma só , que não traga infamia , á excepção
da pena de morte , que nem sempre deshonra o
criminoso em materias politicas. Nas penas cor-
poraes o gráo de infamia nem sempre vai a pas-
so igual com a sua intensidade. As que pro-
duzem menos sentimento fysico , são muitas vezes
as mais affrontosas : por exemplo , o carcan , a po-
le , a carócha , certa libré que são obrigados a
trazer os réos sem mais outro castigo , em se lhe
tirando a vergonha não fazem doer , vem a ser
cousa nenhuma.
Segundo a natureza destas penas , a infamia ,
ou dura até hum certo tempo , ou para sempre.

( 1 ) O gráo de ignominia , em todos os casos , pende


em parte da pena , em parte do crime. Esta distincção não
escapou aos Juristas Romanos . Infamia facti , infamia juris.
a infamia natural , que resulta do delicto , e a infamia artifi-
cial , que resulta da pena legal. Veja- se Hein. Elem. Juris. Civ:
Pand. L. 111 Tit. 11 , 55 , 399 , ainda que a sua explicação
não seja mui clara.
* Estes
duas penas são violentas ; mas passado o castigo
não ser a infamia , estava tudo acabado.
( 249 )

Ser amarrado a hum cepo com huma corrente de


ferro , que vai prender n'huma coleira , he hum
castigo infame em quanto dura : a marca indele-
vel he huma infamia perpetua : não he porque
qualquer infamia não possa vir a ser perpetua ,
seja qual for o modo porque for applicada por
que a lembrança póde durar na memoria dos ho-
mens , em quanto durar a vida do réo ; mas quan
do o ferrete he impresso de sorte que se não
·
póde apagar , a infamia he igualmente indele-
vel , quer mude ou não de logar ; para toda a par-
te leva comsigo o testemunho do seu crime.
A mutilação , e as outras penas afflictivas ,
logo que produzem algum defeito visivel , são mui-
to famosas , quando se conhece que forão oresul
tado de huma execução juridica. Com tudo , mui-
tas destas penas não tem effeitos apparentes, que
as possão distinguir dos males accidentaes do mes
mo genero : neste caso não produzem infamia com
a mesma certeza , nem fazem a mesma impressão,
que as marcas , que a primeira vista descobrém
a um estrangeiro o delicto da pessoa marcada. t
99il (r
IV. Outras penas infamatorias Penas quasi
corporaes.

A meu ver ha duas especies de penas , que


tem muita analogía com as penas corporaes , e
a que podemos chamar quasi corporaes. 1. Hu-
ma dellas recahe, não sobre a pessoa do réo , mas
sobre algum objecto , que por huma idéa asso-
ciada faz lembrar da pessoa : he huma pena sym-
bolica , para assim dizer , ou emblematica.
eb Entre os antigos Persas se hum homem

distincto commettia certas faltas , a sua pessoa


ficava izenta do castigo: quem o pagava erão os
seus vestidos , erão açoutados em publico ; e aqui
Tom . I.* Ii
( 250 )

témos hum exemplo deste genero de pena : he o


mesmo que ser queimado em estatua , pena què
se usa na Europa ( excepto em Inglaterra) quan
do. o réo não apparece, Em Portugal se praticou

esta pena em hum dos complices do , attentado
*
contra a vida do Rei D. José J. Hum Duque de
Medina Celicem Hespanha tinha assassinado hum
homem : como a Corte não podia ou não queria
castigar de morte hum fidalgo de tal graduação ,
obrigou o Duque a que os seus criados andassem
de meias pretas nelalter huma forca armada
diante do palacio ( 1 ) . Os criados ainda trazem
as meias pretas como hum sinal de ignominia.
2. A butra pena costuma- se realmente appli
ear ao corpo , mas depois que perdeo a faculda+
de de sentir , isto he , depois da morte bem lhe
podemos chamar infamia posthuma. A este ge+
› nero he que se referem as penas ordenadas pelas
leis de Inglaterra contra o suicidio , e nos cri-
mes de alta traição , em que se manda cortar a
cabeça ao réo depois da morte , e fazer em quar-
tosbo seu cadaver. A mesma leigno caso de ho
micidio , dá licença ao Juiz da execução , para
que possa entregar o cadaver do criminoso a ci
rurgiões , que o podem anatomizar em publico ,
e até mesmo se quizerem deixar ficar o cada-
ver dependurado na forea, ob sd 19v 19m A
9 295700150 brio sigolems slime m
DM T V. Degraduação (*)omshoq z996
:
anna , od obor & endogon edmet anlab
2
Temos outra especie de penas simples-
sb teaduri set abo
9 80 Tosih ( 1225-6160 " 691ON
(1) Cartas de R. Southey , escriptas no curto espaço de
"
tempo , que se demorouTBXna Hespanha , e Portugal. Edição
de 1797 - Carta X.
Degraduar entre nós he tirar as horas do Sacerdo-
diose a doutrina deste Capitulo estende-se a tudo o que he
( 251 )

mente affrontosas : a perda de distincção entre os


outros homens a degraduação. Para se poder
comprehen der a natureza desta pena , he preciso
distinguir duas especies de reputação: huma na
tural , outra facticia e politica. Reputação natu-
ral he a que tem qualquer homem em virtude
do seu prestimo , e do seu bom procedimento :
reputação facticia e politica hea que desfructà
qualquer individuo em razão de alguma distinc-
ção do Governo , independente do merecimento
pessoal. Esta segunda anda commummente an-
nexa aos officios publicos , em que se confere al-
gum poder ; mas tambem existe independente
dos empregos publicosha huma reputação fa-
cticia , que segue o nascimento , a riqueza , cer-
tas occupações : os que estão de posse desta gran-
dezas ideal gozãoodenhuman certa superioridade
de convenção sem fazer cousa alguma para a
merecer , e que tem logar ainda quando não he
sustentada pelo que eu chamo reputação natural.
saq Tudo o que he dado por huma authorida-
deļa mesma authoridade o póde tirar. ¡O Sobe-
Tano , que pode fazer hum nobre , tambem so pó-
de reduzir ao estado mecanico , ainda que os pre-
juizos tem limitado este poder. A sentença de
humJuiz degraduando hum fidalgo das suas hon-
ras ; não pode fazer que o réo não tenha nasci-
do de hum pâi nobre : o que pode she despojalo
de huma porção maior , ou menor do respeito ,
que os homens estavão dispostos a tributar the
em razão do seu nascimento . Parece que a pena
o deveria privar de todo o respeito , que está re-
servados para essa ordem de querelles he degra-
sand me rugla ošpuler sils inoo not sibog
49919babiorob moged mid 195 obòq (mqvolaq

Pa exercer hum officio > hum titulo huma digni


dade; peira vergonhosa.
1 Miguur9329) mow on
( 252 )

duado ; mas a imaginação dos homens não he tão


docil ás ordens do poder : o homem que tem fi
gurado em grandes dignidades , que tem com
mandado o respeito por muitos tempos , nunca
fica privado inteiramente de todo o seu luzimen-
to : no seu abatimento ainda conservará huns
longes da sua grandeza. Entretanto o que he cert
to he que fica n'hum estado peior do que se não
tivesse gozado da distincção de que o privão :
não possuir hum bem , geralmente fallando , he
menor mal do que perdelo depois de o ter pos
suido.

VI. Privação de ser acreditado.


-77
- Eis-aqui huma pena bem singular : - consis
te em declarar , que hum homem perdeo a sua
verdade , que não he digno de credito nas cousas
que dissero signal visivel desta privação de
reputação he não ser admittido a depor em hum
tribunal de justiça . 7 O effeito natural desta pena
( se he possivel dar-lhe algum effeito ) he chamar
sobre o réo huma porção desta desaffeição , que
deve inspirar a todo o mundo hum sujeito , cuja
palavra não merece alguma fé e aqui temos hum
exemplo assombroso do imperio, que pode exercer
o Magistrado politico sobre a sancção moral ; di-
rigindo-se aos executores desta sancção , quero
dizer ao publico , eis- aqui o seu fim : pedir-lhe
que imponha ao réo não só a porção de despre-
zo , que se deve ao seu crime , mas hum novo
castigo , que pertence a outro delicto , que o réo
não tem commettido , e que, muitas vezes nem
podia ter com elle relação alguma. Em huma
palavra , póde ser hum homem de verdade , een-
tretanto a pena , que lhe impõe , he para lhe
tirarem o privilegio , que tinha , de acreditarem
no seu testemunho.
( 253 )

poor Dirão talvez que isto não he pena , mas hu!


ma precaução : que o seu fim principal heisalvar o
juiz · de o poderem, enganar pela exclusão de.hu-
ma testemunha suspeita ; he rejeitar por anteicis
pação , e por huma lei geral hum genero de pro-
va , que parece que se não deve receber materia
importante , sobre a qual ainda havemos de fal
lar no livro 1V. quando tractarmos das penas in
competentes : porque o mal A que resulta da ex-
clusão de huma testemunha pode cahir indistin-
ctamente ao acaso sobre cada hum dos membros
da sociedade. la, e o

§. 11 - Exame das penas simplesmente affron-


xsi oma obuzei ( tosas.od
-09
csHumanpena de simples ignominia ( 1 ) he
huma apellação para a sociedade , hum convite
para tratarem o criminoso com desprezo , para
The tirarem a sua estimação : he huma letra s
ei de
cambio sacada sobre a opinião. s Se o s
o publicor av con-
f me olh
o n vo
siderano individuoo me fa ,
paga se a letra : no caso contrario , he protesta
da , e o sacador imprudente vem ga pagar a sua
importancia. São instrumentos perigosos , que es
pinhão a mão que não sabe usar delles ; mas que
sendo bem manejados , T podem ter humb resultado
muito feliz : o Legislador chamando a 1 sancção
moral em seu abono , fiando se della pa põe em cres
dito, e dá hum novo realce ao seu valimento : annun
ciando a perda de honra como hum castigo mui se
rio , o Legislador a converte em hum thesouro , que
collodis em tem? aombhoq toz tegove obòg

( 1 ) Ha pena de simples ignominia 1. , quando esta pa-


Javra se acha na lei Infamis estow 2. Quando a pena fica
sendo nulla a não ser a infamia.
( 254 )

leva atrás de si + os olhos de todos os homens


sem distindção ( 10)6 tu
mmea 59
1. Estas penas , como já disse , são suscepti-
veis de infinitos gráos ; desde a admoestação pas
ternal do juiz aténá infamia. Com maior ; ou me
nor publicidade , com diversos accidentes de des
graça, ou de humiliação , a lei póde accommo-
dar a pena á gravidade do crime , e conservar
todas as distincções necessarias de idade , jerar-
quia , sexo , e profissão de cada hum cada esta-
doofferece la este respeito meiosos que tensão
propríos , e o militar ainda mais que todos
Estas penas tem huma vantagem particular ,
que lhes pertence exclusivamente são proporcio-
naes até hum certo ponto. O Magistrado não faz
mais do que pronuncialas , a communidade se en-
carrega de as pôr em execução , cada um segue o
seu proprio juizoa desaffeição que inspira o réd
he commummente regulada pela gravidade do seu
etime. He verdade que ha grandes erros popula
res nos juizosomoraes : a seu tempo teremos occas
şião deo fallaro desta materia e de podermossine
dicar o remédioitinou peno on : mist & 92 sRG
B12. Estas spenas são lexemplares o mais que
póde " ser nos seus effeitos immediatas. Tudo..o
que hum homem padece em consequencia da pu
blicação do seu crime , ou de huimasdegraduação
auf de huma declaração infamatoria p está claro que
os padeceõpela rignominia , que está annexa ao
seu caracter infame debaixo do sello da authori
dade do Magistrado, २omoɔ wywod obsbraq a obrei
5.3 0São " nepandueis. Huma sentença erronea
póde revogar- se : podemos fazer mais authentica

-ng alas Qbnsuo Jinimoogi , volqania ob song sH ( 1 )


slado Vejarse os Tracts de Legisl. T. 1.Cap. XVII
Emprego do movel da honramului & 198 064 a son obave
( 255 )

a justificação , do que a mesma condemnação.


Ainda mais o individuo , procedendo bem , póde
recobrar as parte da estimação publica que tinha
perdido , e obter sinaes de honra , que o desag
gravem da sua primeira infelicidade . Tem- se vis-
1
to na milicia corpos inteiros , depois de terem .
recebido de seus superiores huma sentença de
ignominial, resgatarem o seu brio por acções de
hum valorp abalisado , ole alcançarem por isso
mesmo destincções gloriosas. Esta vantagem não
tem logar nas penas infamantes corporaes : a no-
doa que imprimem he indelevel ; e huma vez que
o individuo não deixe a Patria , o sentimento de
honra não ergue mais a cabeça.ban out
Passemos agorassa huma difficuldade , que

nasee da materia. O Legislador não hei inteira-
1
mente livre para imprimir hum caracter de vili
pendio , ou deshonra em todos os delictos. Ha cer-
tos crimes , que não incitão o odio publico , ou-
tros que o excitão com frieza. Osoborno nas elei-
ções , em Inglaterra, eo contrabando estão nestas
circumstancias : as leis nem sempre se ajustão com
as opiniões do Povo : haseertos pontos em que o
seu modo de pensar he directamente opposto : o
duello póde servir de exemplo por isso dizia
Rousseau : Que o tribunal de censura longe de
ser arbitro da opinião do Povo , não faz mais do
que apresentarem publico essa mesma opinião ;
e logo quentem largado este principio, todas as
suas decisões são inuteis * " ( 1 ) zei de pe bath
Sup Mas, pergunto eu : que devemos concluir da❤
hi ? Quello Legislador deves deder sempre a opis
nião 2 ainda que seja erronea ? - De nenhuma
sorte sería largar o leme quando o navio está en
Islom baby fre satur Sh cóbagust 31

P ) Contract. Social L. IV. Cap. VII.


( 256 )

tre penedos nos casos difficultosos he que deve


excercer a sua habilidade , chamar a si a opinião ,
que se perdeo no caminho , e ver se aspode en-
costar para o lado da lei.
O Legislador tem grandes meios de influ-
encia. O respeito publico , de que se acha re-
vestido em razão da sua authoridade , dá muito mais
força as suas instrucções , quando se lembra de
empregar este meio , do que tudo quanto póde
fazer hum particular. O publico está persuadido

em geral de que o Governo está senhor do nego-
cio , porque tem a facilidade de se poder infor-
mar a fundo a respeito de todas as circumstan-
cias , o que não pode fazer qualquer individuo :
tambem se presume na maior parte dos casos ,
que o interesse publico he perfeitamente o seu
interesse ; e que se não leva de motivos pessoaes
que fazem muitas vezes suspeitas as opiniões par-
ticulares. Se as cousas vão mal , os que estão res-
ponsaveis pelos acontecimentos , ficão expostos á
murmuração publica: se as cousas vão bem , el-
les só tem a gloria , e o maior interesse. A na-
ção conhece isto confusamente , e daqui nasce o :
principio da sua confiança .
O Magistrado supremo poderá tomar de
longe as suas medidas para desarreigar os prejui-
zos , que lhe parecem nocivos : poderá crear leis ,
que sem affrontar ás claras as opiniões recebi
das , possão desbaratar o erro por hum modo in-
directo : em logar de lhe fazer huma guerra des-
eoberta , irá minando a pouco , e pouco , até que
por fim de tempos ha de conseguir infallivelmen-
te o seu fim . OMI
Em consequencia do que fica dito , o Legis
lador está revestido de huma authoridade moral ,
e de hum poder politico : he o que se chama con-
sideração , respeito , confiança : o mais habil he o
( 257 )

que melhor sabe usar destes meios. Tem havido


Legisladores , que tem feito milagres só com este
poder.
Não fallarei aqui do duello : a materia se
acha amplamente discutida nos Tractados de Le-
gislação ( 1) . N'huma lei contra os ministros que
se deixão corromper, ou sobre o contrabando , o Le-
gislador poderia caracterizar estes crimes com pala-
vras, que os fizessem odiosos ; mas quando se tracta
de huma opinião , e de huma opinião contraria
á lei , he necessario recorrer á razão. Quando
assim fallo , não me lembro desses logares com-
muns de sentenças vulgares , que se achão na
maior parte dos preambulos dos nossas leis : á
vista dos inconvenientes , que se tem achado :
vistos os grandes males •, que isse tem seguido : e
outras similhantes palavras. E para que se fas
rião leis , se o acto prohibido não tivesse incon-
venientes ? As razões dignas do Legislador -são
as que apresentão com evidencia o mal particu-
lar , o mal especifico da acção prohibida são as
3
que mostrão a analogia , que tem a acção 2 que a
lei prohibe , com outras acções já condemnadas
pela opinião publica : eu vou dar hum exemplo :
" Todo o homem que tracta com os con-
trabandistas , he hum homem sem honra , de quem
se não deve esperar boa fé. O que compra fa-
zendas , que não tem pago os direitos , defrauda
o publico do valor desses direitos ; faz o mesmo
detrimento ás rendas publicas , que • se furtasse
a mesma somma do thesouro publico. O que de-
frauda os rendimentos nacionaes , faz hum pre-
juizo sa
a todos os membros da sociedade ", ODI

Choy Sesqueremos fazer hum crime odioso , he

-Da satisfação de honra . T. II . Cap. XIV. XV.


Tom. I. Kk
( 258 )

necessario ter cuidado de não declamar como fa,


zem os moralistas ordinarios , carregando o cri
me de imputações encarecidas , confundindo hum
delicto menor com hum attentado. He huma es-
pecie de fraude piedosa , que em logar de servir
á causa da verdade , engrossa o erro , e faz hum
grande prejuizo : não se deve dizer , por exem-
plo , que o roubar as rendas do Estado he o mes-
mo que furtar a hum particular : o primeiro cri-
me não causa o mesmo ' susto ; e tanto a perda sé
reparte por mais pessoas , tanto menos se sente.
Pelo meio da razão , e da persuasão , he que o
Legislador póde chamar a si a opinião publica
no caso de ser contraria ás operações da lei.
Os informantes são tão necessarios á justi-
ça , como os juizes. Entretanto a opinião publi-
ca não pode ver hum denunciante : prejuizo
que as mesmas leis desgraçadamente favorecem .
Eis-aqui pouco mais ou menos como a lei deve-
ria começar , fallando sobre as denuncias ;
" He hum artificio de que se valem os ho-
mens dissolutos : quererem fazer odioso , e des-
prezivel o que enfrea suas acções perversas. Se
a lei he justa como o deve ser , o denunciante
não he inimigo de hum homem senão em quan-
to esse homem he inimigo da sociedade , etc.
Tanto o amor de hum Cidadão para com a sua
Patria he mais extremoso , tanto será mais fino o
seu zelo em apresentar perante a justiça todos
os que pela violação das leis atropellão a felici-
dade publica " .
He nesta luta contra os erros da sancção
moral , que o Legislador pode servir- se com dis-
crição do theatro , e prender os corações pelo
poder da imaginação. Os antigos conhecerão es-
ta arte : he assim que se tem exprimido os pais
dos Povos na linguagem energica , e encantado-
( 259 )

ra da antiga Grecia : a Poesia tem ajudado a juris-


prudencia ainda se não tinha inventado esse
formulario de leis , que mette medo , em que a
vontade do Legislador se confunde em hum la-
byrintho de palavras. Todos esses vestidos go-
thicos de frases antiquadas , de repetições inu-
teis , de especificações imperfeitas , o sentido
cortado a cada passo por dous , e tres parenthe-
ses na mesma lei , tudo isto poderá assustar
até por isso mesmo que se não póde entender ;
mas he impossivel que possa conciliar o respei-
to. Costuma se fazer esta pergunta com huma
especie de admiração : Qual será o motivo , por
que os arbitros dos nossos bens , e vidas se não
sabem exprimir com clareza , com dignidade , e
precisão ? Seja a melhor lei , que pode haver ,
em a vestindo por este modo , está} desfigurada ;
similhante linguagem não fica bem a hum hor
mem de Estado ; he mais natural na boca de
hum procurador de causas , armando laços na
mesma lei para apanhar a sua prezą .
" N'hum Governo moderado , e virtuoso , * diz
hum celebre escriptor , a idéa da vergonha ser
guirá sempre aquelle , que for apontado pela lei . "
Toda a especie de pena , que tiver o caracter da
infamia , produzirá effectivamente o seu effeito,
Esta affirmativa na sua generalidade não he çer-
ta : dizer que o Povo está sempre disposto a dest
approvar tudo o que hum sabio Legislador desap-
prova , he não conhecer o Povo. Com tudo , se o
Governo acha embaraço, se a opinião lhe resis
de , he talvez porque lhe falta o condão de saber
levar o Povo , ou porque não tem moderação : quiz
fazer mais do que podia ; quero dizer , mais do
que devia. Ha hum delicto, que a lei ingleza tem
feito penal , que os Juizes se tem esmerado em
fazer infame , que tem ligado com penas , que em
Kk 2
( 260 )

geral são infamatorias ; mas que nem as leis , nem


os Juizes , nem as penas tem podido imprimir-lhe
a nota de infamia . Este delicto he o libello poli-
tico , delicto , que póde dar de si grandes males ;
mas estes males são como inseparaveis de huma
Constituição liberal .
A lei ainda não definio o libello em geral ,
nem os libellos politicos em particular. A unica
definição, que lhe posso dar á vista da pratica dos
tribunaes , e traciados de Jurisprudencia vem a
reduzir-se a isto : " Fazer hum libello politico
he publicar contra hum funccionario publico al-
guma cousa , que lhe não agrada. " Hum libello
ou he de crime , ou de calumnia : de crime ,
quando se accusa hum homem de ter feito huma
certa acção ( apontando- lhe o tempo , e o logar )
do numero das que entrão nas leis penaes. Li-
bello de calumnia he hum escripto , em que
sem haver accusação especial " o author exprime
em termos mais " ou menos fortes a sua desap-
provação a respeito do procedimento , ou do ca-
racter da pessoa injuriada Comprehende tudo o
que são injurias vagas mentiroso , pouco fiel ,
ignorante , sem palavra ,, sem lei sem honras
sem pejo , e tudo o que são descomposturas de
similhante natureza , ditas com arte , ou sem jui-
zo , escriptas n'hum volume ou resumidas em
humas poucas de linhas , em prosa , ou em verso.
A differença entre o libello de calumnia , e
o de crime , he muito facil de perceber. A lei

ingleza não tem adoptado estas palavras , mas
conhece bem a distincção . O libello de crime
admitte huma definição bem precisa ; o de calu-
mnia não pode ter outra alem da que tenho da-
do. Limito me a fazer lembrar , que a pessoa le-
sada póde intentar huma acção civel contra o
delinquente , ou huma causa crime : a primeira
( 261 )

obriga o réo a huma certa multa a favor da


parte lesada a segunda traz comsigo prizão ,
pagar hum tanto para a coroa , ou soffrer outra
qualquer pena arbitraria ; porque não ha huma
regra certa.
No caso de acção civel , o que fez o libello
he admittido a livramento , e deve provar a ver-
dade da accusação : no caso de causa crime , não
The he permittido dar esta prova a verdade da
imputação não he culpa bastante , antes póde ser-
vir de aggravar o crime . Os Juizes , julgando ba-
ralhar a razão pela singularidade do paradoxo ,
não hesitárão em o declarar assim. Este princi-
pio de Jurisprudencia foi estreado ha muitos se-
culos ; mas a força da authoridade o tem con-
servado ,
e os Juizes actuaes ainda que tenhão
muitas luzes para não verem o absurdo , nem
por isso deixão de o admittir , e de ter huma grande
acceitação nos tribunaes.
Sendo isto assim , dizer mal com razão ,
ou sem ella de hum homem que está figurando
he ser criminoso de libello , e tanto mais crimi-
noso , quanto a accusação tiver mais fundamen-
to. Mas censurar os homens publicos , e censu-
ralos com justiça he hum acto tão necessario pa
ra manter a Constituição , que o publico nem o
póde levar a mal nem dar-lhe a nota de infa
mia. Os Letrados bem o podem accusar , os Ju-
rados condemnar , e os Juizes castigar ; mas nem
os Letrados , nem os Jurados , nem os Juizes
estão persuadidos de que o author castigado he
digno de passar pər infame. ( 1 ) .

( 1 ) Em 1758 o Doutor Shebbeare foi apoleado por ter


feito hum libello contra o Rei , e seus Ministros. O Povo ,
que assistia ao supplicio o abençoava , e lhe dava o nome de
( 262 )

A conclusão unicamente util , que se póde


tirar deste exemplo , he , que o Legislador jámais
se deve comprometter com a opinião publica , dan-
do hum caracter de ignominia a certas acções
mistas , que podem sordir de paixões infames ; mas
que tambem podem ter a sua raiz em sentimen-
tos nobres ; e que por isso devem escapar a huma
proscripção geral.
Mas nem por isso he menos certo , que em
muitos casos o Governo , que souber ajuntar a
força da persuasão á da sua authoridade , póde con-
tar com ambas as sancções moral , e politica . He
huma idéa bem falsa , e bem injuriosa para os
homens a daquelles politicos bem pouco atilados ,
que pretendem levar tudo pelos meios da força ,
e pela ostentação da authoridade ; que desprezão
este imperio mais permanente , e mais suave , que
se exercita pelo ascendente da confiança.
Entretanto não he de esperar das nossas
Constituições modernas , que hum Legislador
obtenha sobre a sancção moral esta suprema in-
fluencia , de que se vírão exemplos nos pequenos
Estados da Grecia , e da Italia , e que se observa
nas sociedades logo no principio, A primeira ra-
zão desta differença he , porque nos Estados mo-
narquicos o Soberano deve a coroa ao seu nas
cimento , e não as suas qualidades pessoaes . As
leis recebem o sello da sua authoridade , ainda
que elle as não possa fazer : mas com tudo isso ,
o esplendor do sceptro real não lhe dá o mesmo
direito á veneração dos Povos , que a influencia

Martyr. Neste mesmo reinado hum Livreiro , chamado Wil-


liams • foi condemnado ao mesmo supplicio , por ter feito
hum libello similhante. O Povo , em quanto se executara a
sentença , lhe fazia huma oração.
(( $263 ))

directa , que resulta do esplendor do throno , quan-


do he acompanhado do assombro do genio: o que
he facil de julgar pelos principes, que tem reina-
do por si mesmo .
N'hum Governo misto , domo he o da Gram-
Bretanha , o Legislador repartido não tem hum
caracter pessoal he hum ser abstracto , e para
assim dizer , facticio , que se não dá a conhecer
senão pelos seus mandados : alli se descobre o seu
talento , e por isso póde ganhar estimação , e con-
fiança ; mas jamais poderá fazer sobre a imagi-
nação do Povo a mesma impressão , que huma
personagem real , e conhecida. Em muitos Esta
dos da Grecia a Legislação estava n'hum pé mui-
to differente . Os Zeleucos , os Solões , os Licurgos
erão os homens mais populares das suas respe-
ctivas cidades : esta qualidade os fazia respeita-
veis : erão filosofos , e moralistas , e Legisladores
ao mesmo tempo : as suas leis erão instrucções ,
e ordens antes de serem investidos no poder po-
litico , o mesmo Povo depositava nas suas mãos
o poder da sancção moral em sinal do seu acata-
mento . He de presumir que nos seculos atrazados
vivião os homens mars sujeitos ao governo da
opinião do que estão no dia de hoje : fiavão- se
mais da razão de hum homem : quando a luz dos
conhecimentos humanos apenas assomava , hum
sabio , ou que passava por instruido era hum
prodigio ; e todo aquelle que trazia de huma longa
navegação a riqueza escondida desta , ou daquel-
la sciencia , tinha sobre os seus concidadãos
huma ascendencia infinita.
Assim o diz o Mestre: Ipse dixit ; he huma
expressão , que teve oseu principio na cega doci-
lidade dos discipulos de Pythagoras : hum silen-
cio de cinco annos era o noviciado dos seus es-
tudos filosoficos ; o que está bem longe dos nos-
( 264 )

sos Liceos modernos. No dia de hoje todos que-


rem decidir , ninguem se fia no parecer dos ou-
tros ; e supposto que hajão homens superiores ,
nesse gráo elevado tem sempre ao redor de si
muitos homens de letras 9 que tambem podem
fallar : despontou- se ( se he licito fallar assim ) o
cume da pyramide , não acaba em ponto agudo ;
e o imperio da opinião passou da monarquia para
a republica ( 1 ) .

CAPITULO IV.

Penas pecuniarias , e quasi pecuniarias. Privação


do direito de propriedade.

HUma somma de dinheiro , exigido por sen-


tença juridica , por causa de hum delicto , cons-
titue apena , ou multa pecuniaria , como ordina-
riamente se chama.

( 1 ) Que me seja permittido esclarecer o que tenho di-


to a respeito dos antigos Legisladores por hum exemplo mo-
derno , tirado de materia frivola , e de huma personagem de
bem pequena entidade : Tracta-se de hum Mestre-salla :
Por espaço de muitos annos Nash ? por alcunha o en-
graçado Nash , deo as leis em Bath a huma numerosa socie-
dade , que alli se ajuntava pelo verão : elle só regulava a
decencia nas modas , e cortejos ; a elle estava encarre-
gado apontar os dias de baile e de concerto , etc. Vejamos
a natureza dos seus regulamentos : Que se não faça isto , ( di-
zia o Legislador ) ; que não seja permittido , etc. Que se dé
assemblea em tal dia , que principie a tal hora ; que deve
acabar ás tantas horas , etc. , etc. Pondo de parte a extrema
disparidade da materia , o caso tem huma notavel similhança
com infinitas leis da antiguidade. Alli não havia verdadeiras pe-
nas ; a sociedade , fiando-se na prudencia de hum individuo ,
mettia nas suas mãos huma certa quantidade do poder da sanc-
ção moral. Se havia infractores , erguia-se logo hum alarido
publico : e as leis , e regulamentos os mais fracos na appa-
rencia , erão guardados ainda com maior pontualidade.
(+265 )

A natureza desta pena não pede outra ex-


plicação ; porém os meios para a fazer executar
" são diversos não farei mais do que apontar os
principaes.
Primeiro meio Tirar ao réo a somma de
que se tracta no letigio e entregala ao que
tem direito a ella : depois deste passo , já o réo
a não póde reassumir , sem ser castigado como por
hum roubo,
Segundo meio : Se o réo não tem o dinheiro ,
ou se o tem escondido , que vem a ser o mes-
mo ; devem lhe tirar os seus bens , e vendelos até
chegar a perfazer o roubo.
Terceiro meio : Empregar o constrangimento
para o fazer exhibir a somma que furtou : 1. por
huma pena actual , que deve cessar logo que seu
dono esteja pago : 2. pela ameaça de huma pena
futura de prizão por exemplo , no caso de não ter
satisfeito até hum certo prazo.

Quarto meio : Lançar mão dos f seus bens ,


seja em dinheiro , seja em outra cousa , sobre que
elle tem hum direito legal , e que se achão nas
mãos de hum terceiro . Como em muitos casos
se não póde saber o que tem o réo senão pela
sua confissão , será necessario para o obrigar a
confessar , usar de violencia. Entre as leis , porque
as nações se governão , ha huma grande variedade
pelo que pertence ao modo de empregar estes
meios. O que tenho apontado em ultimo logar ,
he huma invenção comparativamente moderna
nas leis de Inglaterra : applicou- se primeiramente
ao commercio contra os falidos ; mas depois veio
a estender- se a todas as classes de pessoas , quan-
do a obrigação pecuniaria tem o nome de divida.

31.9

Tom. I. LI
(6266 ))

- C
10 ) 0.11 . — Exame das penas pecuniarias.
22 bup ob er D. of : 20
1. Todo o mal , que produzem as penas des-

ta especie , está reduzido á simples privação
sa ficar o réo sem esta , ou aquella somma de di-
nheiro. 119 J "
10 2. A sua vantagem particular he poder-se
converter toda cm proveito.
3. Não ha pena , que se possa applicar com
mais igualdade , nem ajustar melhor com a fortu-
na de cada hum Já fizemos ver que a medida a
mais exacta da pena , e a menos defeituosa , era
obrigar o réo a pagar á proporção da sua ren-
da , ou do seu capital. Se Pedro , e Paulo per-
dem cada hum a decima parte dos seus bens , as
suas privações serão differentes em especie , mas
"
no total será o mesmo. A supposição , que a lei
admitte , e que he preciso admittir , he que os
commodos , que se podem obter por hum certo
capital , são iguaes : he verdade que esta sup-
posição he mui vaga , mui pouco exacta ; mas he
a que mais se encosta á verdade , e a mais se-
gura. Nesta hypothese duas pessoas vem a per-
der o mesmo se perdem a mesma somma ; não
a mesma nominal , mas a mesma á porporção
das suas posses. Entre dous réos , hum que he
proprietario de cem libras , e outro de mil , para
serem castigados com igualdade , he preciso ti-
rar a hum dez libras , e a outro cem .
4. A pena pecuniaria he perfeitamente va-
riavel : desce até aos primeiros degrãos da escala
penal ; qualidade esta , que a faz muito superior
aos castigos corporaes , que não prestão para
castigar pequenos defeitos ; porque sempre tra-
zem comsigo alguma sombra de infamia ; em
quanto nas penas pecuniarias não ha outra ver-
( 267 )

gonha mais do que a que resulta do convencí-


mento do crime.
5. Esta pena , especialmente quando o seu
valor relativo he consideravel , está sujeita a hum
defeito , a que podemos chamar de economia :
porque neste caso não he só o réo , que pa-
dece ; mas a sua familia , que pode estar innocen-
te perdem as commodidades a que estavão ave-
zados ; ficão sem a esperança legitima em que es-
tavão de participar com o dono da casa do uso
dos seus bens : esta pena he positiva , he huma
idéa , que o Legislador não deve perder de vista
no estabelecimento de huma pena pecuniaria.
6. Quanto ao exemplo , estas penas nada tem
de particular hum pagamento feito por ordem
da justiça he o mesmo , que outro qualquer paga-
mento : não he castigo que appareça em especta-
culo, como succede nas penas corporaes ainda nas
mais pequenas : as privações , que resultão , ficão
escondidas no silencio domestico.
Ha hum caso em Inglaterra , em que esta pe-
na he inteiramente perdida para o exemplo. Em
delictos menores a pena ordinaria , e quasi sem-
pre a unica, he condemnarem o réo a pagar as cus-
tas , cousa que não pode chegar á noticia do pu-
blico: o que a soffre não lhe conhece o valor se-
não no instante , em que desembolsa o dinheiro ;
maltrata sem pedir licença : he hum inconvenien-
te , que se poderia remediar com facilidade.

Ill. -
Das penas quasi pecuniarias.

Dou este nome de quasi pecuniaria a toda


a especie de propriedade , que não he dinheiro ,
mas de natureza tal , que se pode vender , ou
trocar por dinheiro.
Enumerar as differentes especies de proprie-
LI 2
( 268 )

dade pertence mais a hum tractado de leis , do


que a huma obra , em que se falla das penas ( 1) .
Tantas especies de propriedade , outras tantas
privações differentes . Tudo quanto dissemos das
penas pecuniarias se póde applicar a estas em
geral. Podemos avaliar qualquer perda como se
fosse dinheiro , á excepção dos sentimentos da
nossa alma : perder huma terra , hum predio ur-
bano , que foi de meus avós , não tem para mim
o mesmo valor , por que se arrematárão em pra-
( ça. Estas penas , por via de regra ,
são mais
exemplares do que as penas pecuniarias. A con-
fiscação de huma terra por exemplo , de hum
certo dominio , offerece o caracter de pena por
hum modo mais sensivel , fere a attenção de hum
maior numero de pessoas , do que dar o mes-
mo , ou ainda mais > em dinheiro . O facto da
posse he huma cousa 羹 conhecida , que dá brado
em todo o districto , e que se propaga de huma
em outra geração .
Esta idéa nos abria hum vasto campo para
reflexões politicas sobre o uso de confiscar as
propriedades territoriaes , especialmente nos cri-
mes equivocos de rebellião , ou de guerra civil.
Similhantes confiscações perpetuão lembranças ,
que sería melhor esquecer : mas eu fallarei mais
de espaço sobre esta materia no Cap. das Penas
incompetentes. L. IV.

( 1 ) Vejão-se os Tract. de Legisl. T. 1. Titulos do Co-


digo Civil , das cousas.
( 269 )

400 I
CAPITULO V. node

Penas de privação , que entendem com o estado ,


7( ou condição ) do réu, cat

1
Quando a propriedade tem por objecto cou-
sas reaes , como o fundo de huma terra , huma
casa , apparece debaixo da sua fórma " a mais
simples , e a mais facil de perceber : mas quando
tem por objecto cousas incorporeas , he necessa-
rio para a dar a conhecer , usar de termos abs-
P
tractos ; e para explicar estes termos , reduzilos
ás cousas reaes , de que tirão a sua existencia ,
e o seu significado . Para explicar hum estado ,
por exemplo o estado de marido , he preciso desen-
volver os direitos , que a lei lhe concede sobre a
pessoa , bens , e serviços de hum ser existente ,
quero dizer , de sua mulher. Para explicar huma
dignidade , he necessario desenvolver os direitos ,
que traz comsigo essa dignidade : -o privilegio
exclusivo de usar de hum certo titulo , de tra-
zer certas distincções , de fazer certa figura nes-
ta , ou naquella occasião , de gozar de hum dif-
ferente symbolo de honra , que o uso tem as-
signado a essa dignidade .
Aqui temos o que depende da lei quanto á
honra considerada em si mesma , que lhe con-
stitue o valor , depende da sancção moral : tam-
bem a podemos considerar como huma especie
de propriedade ; o homem revestido de hum em-
prego de honra , está na posse de receber da so-
ciedade serviços livres , obsequios de preferen-
cia que os homens geralmente estão dispostos
a darem-lhe em consequencia da sua representa-
ção publica.
( 270 )

Para explicar hum officio , officio constitu-


cional , ou publico , he necessario explicar o po-
der , que o dito officio confere sobre as pessoas ,
que lhe estão subordinadas , os emolumentos
que percebe o empregado , e as vantagens offi-
ciosas , que nascem deste principio , quero dizer ,
em consequencia da disposição em que estão os
animos de lhe render differentes especies de ser-
viços livres. Se

He por este procedimento que se explicão


todos os direitos por exemplo o direito de
~
eleição ( pará membro do Parlamento ) Ọ que
tem este direito , tem o privilegio de dar o seu
voto , pelo qual influe sobre a nomeação de hu-
ma pessoa , que vai ser revestida de huma cer-
ta authoridade. O valor deste privilegio depende
principalmente do interesse , que confere ao elei-
tor para merecer a estimação do eleito , e dos seus
adherentes. A inteireza no exercicio deste poder
he hum dos meios de reputação ; be daqui resul-
ta igualmente para certas almas generosas hum
prazer de sympathia , fundado sobre a perspe-
ctiva da felicidade publica ; isto he , sobre a in-
fluencia , que pode ter o seu voto no adiantamen-
to do bem geral pela escolha de hum sujeito
virtuoso , e illuminado.
Logo que temos explicado o valor de hum
estado ( ou condição ) , de hum direito , de hum
privilegio , o poder , a utilidade , a honra , isto
he, os bens , que dahi resultão temos todos
os elementos necessarios para avaliar o mal da
perda , que traz comsigo a pena de privação.

Analysar por este modo todas as especies de
propriedade , e todas as especies de privação ,
sería hum trabalho infinito limitar- nos - hemos a
alguns exemplos , começando pelo estado do ma
trimonio .
(( 271 ))

-ubog srp 9 Izinos toño cosiles & 9 sicuslevone !


LandCondição matrimonialista cont
-wgratis) 193 ob 95 en gup, ofer ance R
Os 1 males que resultão para o marido da
privação dos seus direitos , consistem na perda
dos commodos , ) que tem o 4 estado de casado . )
O primeiro alvo da instituição do matrimo
nio , e a base , em que se fundão+ todos os obje-
ctos que lhe dizem respeito , he o prazer , que se
póde dividir : dua zum ob an
1. Em prazer dos sentidos : 2. no prazer , que
provem da posse de huma formosura , 3 que " me
1
agrada ; o que depende em parte dos sentidos ,
em parte da imaginação.
2. Em infinitos prazeres menos sensiveis , que
resultão dos serviços exigiveis , que pertencem á
authoridade legal do marido ; e que , a pezar da
sua variedade , podemos reduzir ao ponto de pra-
zeres de possessão .
O
3. Na satisfação de usar actualmente de todos
os bens, que pertencem à mulher , cuja adminis
tração he do marido.
4. Na idéa agradavel de poder herdar , ou em
todo ou em parte , os bens , que podem caber a
sua mulher prazer de esperança fundado sobre o
prazer da riqueza .

5. No gosto , que resulta do conhecimento de
me ver bem correspondido ; de cujo amor derivão ,
como de huma fonte perenne , innumeraveis ser-
viços , que não sendo de obrigação, tem o enleio
daquella liberdade , com que hum amigo he ex-
tremoso pelo seu amigo : podemos reduzir estes
prazeres á sancção moral. )) , est in d
6. Nesta alegria, que resulta da boa reputação
da mulher , que reflecte para o marido ; e que
tem huma tendencia natural ( assim como a honra ,
que vem de outro principio ) para lhe conciliar a
(( 272 )

benevolencia , e a estimação social , e que pode-


mos igualmente reduzir á sancção móral.
7. Na satisfação , que nasce de ser testemu-
nha da felicidade da mulher ; de ver que sou
causa desta mesma felicidade pelos meus cuida-
dos : prazer que pertence ás affeições de benevo-
lencia. POBOIS

8. No gosto , que deve sentir o marido pelos


serviços livres , que estão dispostos a fazer-lhe os
parentes de sua mulher , e as pessoas que tem
relação com a sua familia. Sentimento delicioso ,
que pertence á sancção moral.
9. No prazer de ter liberdade para castigar ,
e premiar , considerado em si mesmo ainda 19 sem
lhe dar exercicio , em razão do direito! que as
leis lhe conferem , por ser elle o chefe da sua fa-
milia : este sentimento de poder he shuma idéa
de imaginação , mas deleitavel.
10. No prazer, que resulta de ser pai : teremos
occasião de o analysar , considerando os males
que resultão da privação deste bem.
O mesmo que dizemos do marido se enten-
de a respeito da mulher , com bem pouca diffe-
rença ; ficando- nos inteiramente o desgosto de ex-
pormos com tanta frieza materia tão amoravel ,
que não tem necessidade de grandes talentos pa-
ra enlevar o coração humano e receber da ima-
ginação as mais brilhantes côres he a planta mi-
mosa do naturalista : he a palheta do pintor.
},

11.Condição paternal.
0208

Os males , que resultão da privação de ser


pai , consistem principalmente na perda dos pra-
zeres seguintes :
1. Perde-se o gosto de ver a minha existen-
cia propagada na vida dos filhos : prazer de imą-
ginação.
( 273 )

2. Não posso usar dos serviços exigiveis a


que tinha direito em quanto fossem menores :
prazer de possessão.
63. Não tenho o gosto de usar dos seus bens
se he que os tem , na razão de seu administrador ,
ou na qualidade de pai do primeiro prazer;
ainda se ha de fallar debaixo deste titulo.
4. Estou sem aquelle regozijo , que resulta
do amor de hum filho : prazer da sancção moral.
5. Não gozo da boa reputação de meus filhos,
cujo honrado procedimento teria reflectido sobre
mim : prazer igualmente da 6 sancção moral. va
6. Deixo de contribuir para a fortuna do meu
filho prazer de benevolencia.
27. Perco inteiramente o prazer de o ver® adi-
antado , e de me comprazer com as suas relações
na flor dos seus annos : prazer da sancção mo-
ral.
- (8. Quem me ha de dar esta satisfação interior
do poder paternal ? Prazer de imaginação.
6.9. Em alguns casos o prazer , que se deriva
da esperança de herdar , ou todos os seus bens ,
ou huma parte delles ; e se o filho vem a morrer ,
a realidade da esperança .
juraj
111- Condição filial.

1. O prazer , que se diriva dos officios 0 que


seu pai lhe não póde negar.
2. O que resulta do uso de huma certa porz
ção dos seus bens. mgrdza dovuto a
~ 3.60% que nascendo sentimento de merecer o
seu amor.
4.Osgosto de ver meu pai bem acreditado.. !
5. Asatisfação de presenciar a sua felici-
dade, e de contribuir para ella : prazer que se

torna mais vivo no coração dos filhos pela gratidão.


Tom . I. Mm
( 274 )

6º O gosto que me resulta das suas relações ,


e dos seus interesses . na ordem do mundo..
7. O que deriva da lembrança de herdar os
seus bens , ou huma parte delles , e se vem a
morrer , a posse destes bens..more 98
LO
IV. Condição de emprego , que denota confiança.
ps M192 1645
Azo Prazeres que resultão da possé de poderes ,
que denotão confiança em hum particular.
1. O que se funda na esperança de contribuir
activamente para o regozijo da pessoa , cujos inte-
resses me forão confiados : prazer de benevolen-
cia.
2. O que se tira de serviços inexigiveis , mas
que são de esperar do reconhecimento da pessoa ,
que me tem dado os seus poderes : prazer de sanc-
ção moral.
3. Alvoroço interior fundado sobre a espe-
rança de serviços generosos , que me podem fa-
zer as pessoas , por cujos interesses mercantis ando
trabalhando , huma vez que me faça digno da tú-
tela de que estou encarregado : prazer , que se
refere igualmente á sancção moral.
4. Gostosa lembrança de que terei parte na
estimação , benevolencia , e serviços officiosos das
differentes pessoas , que approvarem a minha
actividade , e inteireza : prazer da sancção moral.
5. Prazer de proveito pecuniario , quando ao
meu trabalho corresponde huma certa paga.
Todo o mundo sabe que todos os prazeres
de que tenho fallado , e que entrão nestas qua-
tro condições , se podem desvanecer ; ou que pe
lo menos se podem alterar pela mistura de des-
gostos correspondentes . O valor de qualquer es-
tado póde ser positivo , ou negativo quero di-
zer que em toda a parte ha bem, e mal. O va-
((8275 )

for the positivo , quando tirados os desgostosa


somma dos prazeres he maior : o valor he nega-
tivo , quando descontados os prazeres , fica hu-
ma somma preponderante de amargura : se o va-
lor do estado he negativo , a sentença , que me
desprende , não he 2 castigo , antes vem aser hum
premio.
Quanto aos prazeres , que pertencem em ge-
ral a estas differentes condições , ainda que te-
nhão o mesmo nome são mui diversos na razão
do seu valor. O contentamento de hum pai nun-
ca póde hombrear com a satisfação de hum tu-
A
tor a respeito do seu pupillo o primeiro deve
ser mais certo , e por via de regra muito mais
extremoso não entro a esmiuçar circumstancias,
que todos podem supprir seria moralizar beoo
meu fim he ser politico, o eseul.. is sitin
ob Consideremos agora , porque meios se po-
dem impor estas penas de privaçãonmob o p
Quanto á perdao dos commodos no estado
matrimonial , esta pena póde ser dada por sen
་་
tença do Juiz , em que se declare que dalli por
3
diante o marido tein 3 perdido os direitos , que
podia exigir de sua mulher , ou a mulher do seu
marido. O effeito de hunia tal sentença seria an
tes fazer precarios os ' commodos da união conju→
gal , do que destruilos inteiramente consentir
que se possão visitar sem testemunhas , sería rẻ
duzir o commercio dos esposos divorciados a hu
ma especie de concubinagem similhante come
municação he prohibida pela sancção moral ; e
quando se vem a saber , tambem em muitos pai-
zes he castigada pela sancção politica. Alem dis
so , o divorcio legal privaria o homem em todo į
ou em parte de gozar dos serviços exigiveis no
uso dos bens de sua mulher , e do fim do matri
monio ; ficaria dependente della relativamente sá
Mm 2
(( 6276 ) )

disposiçãobtestamentaria dos seus bens . se a lei


the permittisse dispor delles ; e se não tivesse es-
te direito , ficaria absolutamente sem cousa ne-
nhuma. 611086m sb sitesape ་:༈།་ ་་་
99 Quanto ao prazer , que se deriva da paterni-
dade ; se elle tem filhos , a lei não lhos póde ne-
gar , mas póde converter esse gosto em amargu-
ra , por meio de huma sentença retroactiva , que
os declare illegitimos . Quanto aos que poderião
nascer de chuma união prohibida ora pena seria
mais certas porque a opinião publica , que diffi-
cultosamente estaria por essa degraduação a res-
peito dos filhos nascidos debaixo da fé हूँ do matri-
monioginão teria a mesma indulgencia para com
os filhos, 1 que nascessem no tempo do divorcio. A
condição paternal , sou: filial póde , quanto o per-
mitte a natureza do negocio , ser destruida pelo
mesmo modo , por sentença do Juiz , declarando
que o delinquente não he , sourou não será conside-
rado dahi por diante como pai , ou filho da pes-
soa do réon Os effeitos certos de huma tal T sen-
tença a respeito do pai vem a ser: ficar privado
de todo " o poder legal , que tinha sobre a pessoa
do filho e relativamente ao filho , privalo, de po
der succeder nos bens de seu pai , huma vez que
a disposição não depende da vontade do pai. 201
Quanto aos outros bens , que derivão destas
duas relações na sentença terá vou deixará de
ter o seu effeito , segundo as disposições das par
tes interessadas : o effeito dependerá de ambos
da roda particular dos, seus conhecimentos , e
do publico em geral! Quanto aos officios de tute
la , e outros empregos fiduciaes , a sentença será
précisamente effectiva em todos os seus pontos :
huma prohibição legal de todos os actos annulla
todas as vantagens , que podem resultar dos mes-
mos actos. Je
( 277 )

A primeira vista não faltará quem estranhé


attribuir eu ao Magistrado politico e poder de dis-
solver as relaçães naturaes. Similhante doutrina
poderão dizer , 4t he o mesmo que suppor que não
tem acontecido hum facto , que realmente tem
acontecido ; he huma alteração da ordem natu-
ral , que não cabe na esfera do poder humano.
Não cabe , he verdade ; mas o que pode fazer
o Magistrado he persuadir aos homens que o fa-
cto aconteceo de outra sorte. He certo que o
não poderá conseguir dos que sabem a verda-
del; mas o seu dito firmado na authoridade tem
huma grande influencia sobre o mundo em ge-
ral. O grande obstaculo , he que huma declara-
ção para este fim na razão de meio penal , tem
em si mesma a prova da falsidade escripta em le-
tras mui grandes : ha hum dilemma a que jamais
se poderá responder : se , o réo não he pai daquel-
de filho , declarar que o não he , nunca póde ser
castigo se he pai na realidade , a declaração he
falsa. Todavia , esta supposição , que se póde
experimentar como castigo , esta expaternidade ,
ou esta exfiliação não he tão extravagante co-
mo parece á primeira vista : basta que nos lem-
bremos de quantas cousas quasi similhantes se
estão fazendo pela authoridade do Magistrado.
Ha dous modos de proceder para se effeituar es-

te objecto : primeiro fazendo crer que o réo nun-
ca teve por pai , ou por filho o sujeito , que se
julga por tal O segundo fazendo crer que falta
para a filiação alguma condição legal , e que a
linha de parentesco he illegitima . Hum caso "
que tem alguma analogia com este , he o caso
famoso , sobre que se tem escripto tantos volumes:
a corrupção do sangue , a privação do sangue he-
reditario. O simples facto , o facto meramente re-
duzido a si mesmo , he não quererem que hum
( 278 )

homem possa herdar , cómo lhe pertencia por di-


reito , se esta pena lhe não fosse declarada. Com
huma tal expressão querem-nos persuadir que hou-
ve no sangue do individuo alguma alteração real ,
e que nisto be que consiste huma parte da pena.
Outro exemplo , em que os homens pretendem
exercer pelo menos em palavras hum imperio so-
bre os factos , he o que se exprime nesta maxi-
ma de barbaridade : que hum bastardo não tem
pai , nem mãi : maxima , que se encaminha a pri-
var hum homem de toda a relação de parentes
co ; e que noutro tempo não era mais do que hu-
ma sentença penal. Outro exemplo contrario a es
te , he estoutra maxima das leis : pater est , quem
nuptiæ demonstrant : maxima em virtude da qual
se sanccionava huma falsidade nos casos em que
era manifesta . Decisões mais modernas tem abran
dado o rigor desta regra , estabelecendo que o fa-
clo do matrimonio deverá sempre considerar- sé
como huma prova de que se presume a paterni>
dade , mas cuja presumpção deve ceder á prova
positiva da impossibilidade do facto. Na França
usavão de hum modo de castigar , pelo qual he
verdade que se não destruia a existencia do fa-
cto de consanguinidade , mas que pretendia faze-
lo esquecer , quanto fosse possivel , impondo a
obrigação de mudar de nome ( 1 ) . Da mesma
pena se usou em Portugal ( * ) ( 2
A pena de privar hum homem de ser acre-
ditado , he outro exemplo de huma authoridade ar
bitraria , que pretende elevar se acima da opinião
dos homens por hum delicto , que muitas vezes

1 ) No caso de Damiens , e de Ravaillac.


> Na morte dos fidalgos , que attentárão contra a vida
do Rei José I. de gloriosa memoria pelos seus talentos.
( 279 )

nada tem de commum com a veracidade , se de-


clara como parte da pena , que o réo tem décabi-
do de todo o credito , obrigando os Juizes a não
admittirem o seu testemunho.
sinA privação do estado conjugal he muitas
vezes huma das consequencias da prizão , especi-
almente quando o réo he obrigado ás galés : esta
parte do castigo não vem declarada com palavras
formaes ; mas nem por isso deixa de ser real , e
verdadeira . Que importa que o miseravel seja
casado , se está privado de todos os commodos do
seu estado ? Neste caso o matrimonio não tem mais
do que o nome. Esta privação he por algum tem-
po , ou para sempre ; segue a natureza da prizão.

V. - Condição de liberdade.

O estado de liberdade não sendo mais do que


huma idéa negativa ( estar izento de obrigação ) ,
segue- se que a perda . de similhante bem he huma
idéa positiva em todo o seu rigor. Perder o esta-
dor de homem livre he ficar reduzido á vida de
escravo ; mas a idéas da escravidão não envolve
cousa certa , e determinada , cousa que se possa
applicar geralmente a todas as nações : ha esta-
dos em que não ha escravatura : nos paizes , em que
se admitte , podem haver escravos de differentes
classes ; e a pena será differente segundo a classe
a que o individuo estiver aggregado . A escravidão
divide- se em duas classes : escravos publicos, que
estão debaixo da inspecção immediata do Gover-
no ; e particulares , que dependem de pessoas
particulares. A condição dos escravos publicos ,
se he modificada por leis , que estabelecem a qua-
lidade dos trabalhos , e das penas a que estão
obrigados , he C o mesmo que se estivessem su-
jeitos ás galés se não he modificada por leis ,
( 280 )

he quasi o mesmo que a escravidão particular. ཀ་ྟ O


escravo publico neste caso está sujeito ao po-
der arbitrario de hum inspector , que não tem ou-
tra lei que o governe mais do que empregar o
miseravel em proveito publico neste , ou naquelle
serviço muito à sua vontade : tem sobre o escravo
todo o direito , á excepção de vida, e de morte : he
quasi o mesmo que succede na escravidão particu-
lar. Hum negro , por exemplo , empregado em hu-
ma roça , ou plantação do Governo , não está de
melhor condição do que se fosse escravo de hum
particular , que em logar de o governar por si
mesmo empregasse hum agente.
O meio mais simples 篾 de conceber todos os
gráos possiveis de escravidão he considerala na
razão de absoluta , é sem limites. O escravo neste
caso está exposto a todos os males. A pena com-
prehendida debaixo da palavra : privação de con-
dição livre , he expor o miseravel a maior , ou
menor miseria segundo o caracter do senhor , que
o póde castigar como quizer. Quereis ter huma
idéa clara da natureza , e estensão de similhante
flagello ? basta correr os olhos pelo quadro , que
nos apresenta todos os modos possiveis de cas-
tigo. Não he nada menos do que a perda abso
luta de protecção legal a que está sujeito o es-
cravo relativamente ao individuo , que tem o ti-
tulo de senhor ( * ) *~

( * ) O que sería insoffrivel ver applicar aos maiores cri-


mes , está reservado para homens innocentes. Não me soffre o
coração deixar de transcrever a pintura , que faz o nosso Vi-
eira do trabalho dos negros até para que se veja que já
naquelle tempo vogavão em Portugal estas idéas : Quem vir
na escuridade da noite aquellas fornalhas tremendas perpetua-
mente ardentes ; as labaredas , que estão sahindo aos borbo-
tões 3 os pretos banhados em suór , # que subministrão a lenha ;
( 281 )

Tal he a natureza da escravidão na sua för-


ma a mais simples : tal her a natureza da perda
total da liberdade as differentes restricções , que
póde admittir o exercició deste poder , constituem
differentes gráos de suavizar a escravidão . Os
dous pontos principaes , a que se podem reduzir
[
os males desta condição , consistem : 1. em es-
tar sujeito o escravo a todos os tratos, que lhe qui-
zer fazer o senhor , á excepção daquelles , que es-
tão expressamente prohibidos pela lei : 2. na
continuação da pena , fundada sobre a apprehen-
são de penas tão excessivas.

VI. Condição de liberdade politica.


OP
Não direi mais do que huma palavra em
materia, que pedia hum livro inteiro. A perda da
liberdade constitucional costuma fazer- se por
huma revolução em toda a sociedade , não pro-
duz o seu effeito em particular. Esta perda da
liberdade he o resultado de huma nova distri-
buição de poderes no corpo do Governo dis

em ,, e
os forcados , com que a revolvem atição ;; as
e atição cál
as caldeiras , ou
lagos ferventes, com os cachões sempre exhalando nuvens mais
de calor que des fumo : quem ouvir ( oestrondo das rodas ,
das cadeias , da gente toda da cor da noite , trabalhando vi-
vamente , e gemendo ao mesmo tempo , sem momento de
tregoas , nem descanço : em huma palavra , quem assistir a
tudolisto , tem formado [ idéal dos castigos infernaes : ..
todos filhos do mesmo pai ramos do mesmo tronco ! Se
compararmos a pintura neira , com o Discurso de Rous
seau sobre a or e fundamento da desigualdade entre os
homens o assombro ainda se torna mais sensivel. Quando
Montaigne nos diz , que os Europeos tractão de barbaros os
costumes dos Indios , porque não vestem casaca o filosofo ti
razão. Quando isto escreviamos , tinhão chegado noticias
de
aeterea aportado à Bahia dous navios com escravatura , eta
que tinhão morrido na passagem 296 negros. Gazeta de In
glaterra de 14 de Junho do presente anno 1821.00 201
Tom. I. Nn
( 282 )

tribuição que fazem escolha rotas decisões das


pessoas que estão s revestidas de authoridades
menos dependentes da vontade dos governados.
Huma nova repartição de poderes pendebabsolu
tamente der huma nova disposição para obedecer.
Quando a forgafisica está ada parte daquelles que
;? the
devem obedecer jede evidente que o poder de
mandar não se pode fundar senão sobre a dispo
sição de obedecer e como esta disposição póde
ser produzidaspor hum homem sónda classe dos
que governão podemos dizer e muitas vezes
se diz , que hum homem só tem arruinado a li,
berdade da Constituição de hum povo inteiro.
Mas em ultima analyse esta liberdade não póde
ser realmente destruida senão pelo mesmo Povo,
As civilon - mud sup ob eing isih ob
uh shraq ¿C APIoT UnLdQDoVIIup sitotem
isnoisulitzucs subredd
Privação de protecção da leíover smud
Inelusineq as olisits use o auf
Tfrar a hum individio la protecção legal , dit
pór o Cidadão fóra da lei che chuma peha , qué
tem logar em muitas Legislações.
Pelas leis de Inglaterra , esta pri privac
vação ( out50 -
lawry ) traz comsigo as penas seguintes asvist ec
Inhabilita o réo para recorrerá protecção
dos tribunaes, stistio ab 105 ab ebot 91 % ab 2biebus 230
onn sh
0445 * otnomav
2. Fica privado dos bens : pessoaés.
3. 4. Não he 2 senhor obdos que podem render os
bens reaesquem ob 300181 isq oraesta ob acilift sobot

20afia99 Está sujei o a prizão por toda 10.P


{ sujeit a vida.
S1002
obucoTal hemos castigo do que se esconde para
escapar d justiçay doqque não apparece sendo ci-
tado para comparecer emjuizo tem logar em todos
, o reo que estáfóra
os casos ; e nos crimes de
da lei por sentença do Juiz , he punido como se
fosse convencido de crime b oda cb Mch smakig
AM 1.07
( (+283))

No Como o delicto de se esconder áf justiça he


hum delictaichronico , tambem a pena deveria ser
chronica , para que deixando de tere logar , quan-
dó acabou o delicto não servisse senão unica+
mente para obrigan o réos mas isto he o que se
não acha estabelecido por dei , nem se practicava
noutro tempo : mas pouco a pouco se foi introdu
zindo , eno costume veio finalmente a emendar o
excessivo rigor da lei, na sua origem. Esta pena
se $ applica em todos os casos criminaes , mas não
em todos os processos civeis : isto depende, do tri-
bunal, em que tem principiado o processo : ser o
facto mais , ou menos grave não faz nada para o
caso. 1
A primeira destas penas , quero dizer , a sim
ples inhabilitação para recorrer á protecção dos
tribunaes , costuma applicar se a infinitos crimes ,
com os quaes não pode ter relação algumaban &
-ih Estas pena: só pode ser conveniente em chum
caso, quando o individuo, que anda foragido não
tem bens que se vejão , ou quando os não tem
sufficientes para responder pélo
co que se lhe pede
nte
em juizomas porque será car
so ? Porque não ha outra de que se possa lançar
mão ; pois que fóra disto , não sei de que sirva
como logo farei ver: horor- II
Quando hum individuo , que não lem bens
que se vejão na sua patria , escapa , e foge para
huma nação " estranha geralmente fallando , la
justiça já não tem jurisdicção sobre elle : este ca
so acontece muitas vezes, mas o réo pode ter hu
ma divida; passiva , que excedasai quantia pela
qual he demandado em juizo ; e aqui o temos ne-
cessitadobavaler se dosbtribunaes do seus(paiz :
neste casonselle virá por si mesmo submetter-se
á justiça ; a pena terá o seu effeito e será con
veniente , porque alcança o fim que se deseja em
Nn 2
((^284) )

circumstancias taes, em que outra qualquer ou


se não pode applicar , ou vem a ser inutil.
Ha huma historieta bem C galante , que nos
tem conservado o grande Selden no seu Ana ( Ta-
ble-Talk ) , que mostra quanto serve este meio pa-
·
ra obrigar hum individuo , que se não pode levar
por outro modo.
Hum negociante Inglez tinha contas com o
Rei de Hespanha ; e como este lhe não pagasse ,
intentou huma acção contra elle ; Selden lhe acon-
selhou , que na qualidade de estrangeiro o pozesse
fóra da lei. Decretos , e mais decretos expedidos
ao Sherif para prender Sua Magestade , e trazelo
em pessoa perante os Juizes de Westminster ;: e
S. Magestade sem apparecer. Depois das forma-
lidades do costume , o Rei foi posto fóra da lei ;
e como tal , cada qual o podia prender e leva-lo
á cadeia. Com tudo isto , ainda se não renderia ,
como he facil de crer : porém felizmente tinha di-
vidas que reclamar dos negociantes Inglezes ; e
como estava inhabilitado , para os poder obrigar
segundo a pena da lei , porque os 瓷 não podia
chamar a juizo , cedeo finalmente ; e o seu Em-
baixador Gondar se sujeitou , e pagou a divida
por elle.
11 - Exame desta pena.
Desigualdade. He huma objecção muito for-
te que tem contra si este modo de castigar.
Hum homem vive do seu trabalho ou dos seus
bens , que podem ser moveis , ou immoveis j
que estão em seu poder , ou em mãos alheias.
O que vive do seu trabalho , em toda a par-
te acha que comer apenas sente o castigo : ou
the pagão pela obra toda , ou á medida do que
vai fazendo ; por onde se segue , que em similhan-
te pena arrisca mui pouco , e póde muito bem
ser que não arrisque nada.
( 285 )

O que vive de bens immoveis pouco desar


ranjo soffre , se os bens estão debaixo da sua mão ;
e se padece algum incommodo he em os não poder
vender a credito. Se tem os seus bens em fundos
publicos , fica intacto ; por não ser possivel , que
os que tem o manejo desses fundos lhe neguem
a sua parte debaixo do pretexto de que a lei os
não obriga : não tem interesse em lhe negarem
o que tem vencido , antes como depositarios de
hum fundo nacional , tem necessidade de conser-
var o seu credito. Se a propriedade do réo consis-
te em bens moveis , se negoceia em fazendas ; a
pena , que o inhabilita para reclamar o que lhe de-
vem , póde ser que o prejudique até hum certo
ponto , porque não pode vender senão com o
dinheiro na mão ; mas não lhe tira o comprar ,
porque sempre fica sujeito a responder pelas
suas dividas activas , ainda que não possa deman-
dar ninguem em juizo. Ha hum só caso , em que
a prohibição legal lhe pode causar detrimento , e
pôr em grande cuidado : quando os seus bens es-
tão arrendados , ou tem o seu dinheiro em mãos
alheas ; porque todo o effeito da lei está penden-
te da honra, e probidade dos seus devedores ; pó-
de ficar sem cousa nenhuma de sorte que a pe-
na depende de duas circumstancias : 1. da natu-
reza dos fundos de que o réo tira a sua subsis-
tencia : 2 da probidade dos outros ; mas nem
huma cousa , nem outra tem relação com o cri-
me : de dous homens castigados por este modo ,
pelo mesmo delicto , hum póde ficar sem cousa
nenhuma ; o outro como se a pena não entendes-
se com elle : he hum lance de fortuna , e nada
mais . Ha tambem outra objecção contra similhan-
te pena , que se tira da sua immoralidade. Te-
mos huma pena pecuniaria ; mas para quem vai
o proveito ? Para o homem , que tendo contractado
( 286 )

com o réo , quebrou a fé dos tractados so pelo


engodo de se aproveitar da infelicidade do créo 1
nem se diga , que a lei annullou o contracto
porque esta nullidade , que lhe proveio da sancção
politica , não desculpa a injuria que se faz á sanc
ção moral : o que faz a lei , henão obrigar o des
vedor a pagar ; mas he do interesse da sociedade ,
he da lei natural , que hum homem seja pontual
no desempenho da sua palavra , ainda quando a
lei humana o não obriga. Logo que o devedor se
serve desta aberta , está provado que o desejo
do ganho o faz esquecer dos sentimentos de hon
ra , e probidade , ❤ que devia conservar.
A sancção politica neste caso está em oppo-
sição com a sancção moral : convida os homens
a fazer huma acção prohibida por huma lei de
honra ; sentimento que deveria criar , ainda quan-
do não existisse. bais le bung er

300

-Dias ] " LIVRO IV.


ghod sh st
£ 0. 3 ob
1 83 Das penas incompetentes,

COmmetteo- se hum delicto ? Quem deve soffrer


a pena ? - Esta pergunta não se faz ahomens ra-
cionaveis , nem se lhe pode responder seriamente ,
Antes de entrar n'huma averiguação , que fạ-
rá C ver a necessidade que temos de fallar desta
materia , comecemos a explicar o que he ser hu-
ma pena incompetente. ཨིསྐྱེ
A pena incompetente , ou mal applicada , ou
que está fóra do seu logar , he quando em vez de
recahir sobre o criminoso , recabe em todo , ou em
( 287 )

parte sobre innocentes. Esta penas, que sabe do


seu natural assento , não he rigorosamente pena z
segundo a definição da palavra. A lei não lhe dá
este nome , sporque não póde haver huma lei tão
absurda , que diga em voz alta que castiga hum
innocente : questão de palavras . O Legislador por
occasião do crime de hum certo individuo , im- ·
põem hum mal a pessoas , que não tiverão parte
alguma no crime , ou seja para exacerbar a pena
do malfeitor , ou por hum sentimento cego 'de an,
tipathia a isto he que eu chamo pena incompe-
tente. Para não confundir as cousas, he necessa→
rio distinguir primeiramente dous casos : hum em
que a responsabilidade de hum delicto deve re
cabir sobre aquelles que o tnão fizerão: o outrol,
em que omal dá pena alcança os innocentes contra
acintenção do Legislador , e sem que elle d poss
ga 1 prevenir. cienie o el origono O odl
iSecção primeira →→ Responsabilidade civil.esm
ob Haccasos ,bem que a pena incompetente na
apparencia só não he na realidade. Supponhamos
delicto commettido 1
por huma pessoa , que está
debaixo do dominio de outracia pena recahe 80+
bre o segundo mais claro , o.superior está res-
ponsavel pelo subdito.csle bebaut od stoneq
odon on upendo marido a respeito de sua
1.Tonesleye mulher.mulher. con
coa bistavmeech
do pai a respeito dos filhos )
do Tutor pelo seu pupillo.
-30 se sup , eierfido amorpelos seus criados.c?
do carcereiro pelos prezos
Responsabilidade
do Sherif pelo carcereiro.
Buhet lerup condo Official militar pelos solda-
unsuple diam a of dos , que estão debaixo 1 dás
suas ordenstoelor ms) OPT O

po ९,Aldisquava sodo que está de guarda a pess


lav vo l'oponimo soas dementes logo upreg
( 288 )

O que he certo he , que em todos estes ca-


sos a pena de responsabilidade he fundada so-
bre a presumpção de delicto da parte do supe
rior , que se descuidou de vigiar sobre os que lhe
estão subordinados , ou que não desempenhou o
titulo de inspector , que lhe tinhão conferido. He
da sua parte hum crime negativo , que consiste
na omissão das precauções , que devia tomar para
prevenir o delicto positivo dos que estão a seu
cuidado .
O Sherif he castigado pela lei de Inglaterra no
caso do carcereiro ter deixado escapar algum
prezo ; e he preciso advertir que o seu officio he
incompativel com as obrigações de carcereiro >
:
donde parece que não havia razão para o crimi-
nar ; mas como a nomeação do logar he sua , o
fim da lei be fazelo mais circunspecto na esco-
lha. O carcereiro he o primeiro que responde
mas como a guarda dos prezos he da maior im-
portancia ; a pena suspensa sobre a cabeça do
Sherif he huma prevenção de prudencia , tanto
*
mais discreta , quanto a pena em certos casos
póde ser proporcionada ás circumstancias pela
sentença do Juiz . Esta responsabilidade dos su-
periores he fundada alem da razão , que temos
dados em outras não menos sólidas , que se achão
desenvolvidas nos Tractados de legislação. T. II.
Cap. XVII.

Segunda Secção . Males inevitaveis , que se de-


parte das penas.
es rivão da maior parte

* Todas as penas , ou pelo menos quasi todas ,


alem do réo que as soffre , chegão a mais alguem.
O réo tem relações , amigos , parentes , compa-
nheiros , crédores que soffrem por sympathia , ou
porque o golpe , que ferio o criminoso lá os vai
( 289 )

alcançar indirectamente a elles nos seus interes-


ses he huma parte da pena , que se extravasa ,
que trasborda do seu leito natural , e se espraia
sobre os innocentes : he hum mal inevitavel
a não querermos estabelecer huma impuni-
dade absoluta . Mas se este mal he incuravel ,
he preciso reduzilo á mais simples expressão que
poder ser. Quando o Legislador determina huma
certa pena , he porque The parece sufficiente para

o que não tem mulher , e filhos ; logo a mesma


pena nominal he mais forte para o homem ca-
sado , e pai de familias descontar na pena até
hum certo ponto , quando tem logar esta cir-
cumstancia , sería igualar a pena . O interesse da
mulher , e dos filhos he huma razão attendivel :
quando se tracta de huma pena de infamia de
huma pena pecuniaria , da prizão , do degredo ; hum
certo desconto na pena poderia ter logar a favor
do réo , que está prezo por estes laços domesti-
cos. He verdade , que esta presumpção de huma
grande sensibilidade não deveria prevalecer con-
tra huma prova de facto : se o réo , por exem-
plo , tivesse obrigado sua mulher ao divorcio por
sevicias , se não cuidasse dos filhos ; nesse caso ,
similhante desconto não deveria ter logar a titu-
lo de pai , ou de marido.
Quando a pena principal entende com os bens
do réo , deveriamos preferir o interesse da mu-
lher , e dos filhos innocentes ao interesse da fazen-
da nacional : mas esta indulgencia tem limites ; por.
que em fim he necessario que o homem seja cas-
tigado ; e muitas vezes ficaria sem castigo logo
que se desse á familia o que se lhe tira na razão
do seu crime.
A respeito dos crédores , que não estão de
portas a dentro , mas que tem negocios com elle ,
a regra de serem contemplados primeiro que o
Tom. I. Oo
( 290 )

fisco deve applicar- se sem reserva , e em toda a


sua extensão : de tudo quanto o réo he obrigado
a exhibir a titulo de castigo , hum só real não de-
ve entrar no thesouro publico , senão depois de
estarem satisfeitas em cheio , e de boa fé 6 todas
as reclamações dos seus crédores legitimos.

Terceira Secção ― Divisão das penas incompe-


tentes.

A pena he incompetente, ou malposta em dous


casos : 1. Se em logar de soffrer o réo o castigo,
vem a ser castigada outra pessoa : 2. se apezar de
soffrer o réo a pena do seu crime , he punido igual-
mente com elle algum innocente em virtude de
huma clausula expressa na lei . Se o delinquente
não he castigado , e outrem soffre por elle o casti,
go , podemos chamar a esta pena substituta. Se
passa do réo para outra pessoa, que tem relações
com elle , podemos chamar- lhe transitiva. Se mui-
tos individuos , que formão huma sociedade , vem
a ser punidos junctamente pela presumpção de
que o delinquente , ou delinquentes fazem parte
da corporação , podemos chamar a esta pena
collectiva. Se a pena he imposta de sorte que vem
a recahir em parte , ou accidentalmente sobre
pessoa , que não tem relação nem com o de-
licto , nem com o réo , chama - se fortuita : hẹ
huma loteria de penas , fallando com, mais
propriedade. A pena por sortes , assim como al-
guma vez se practica , 8 quando os delinquentes
são numerosos , ou infundem respeito , por exem-
plo dizimar hum exercito , não he exemplo de
pena fortuita : neste caso todos os que se tirão
por sorte são criminosos aos olhos da lei :
pena não he repartida ao acaso ; mas sim o per
dão para os que ficão de fóra.
( 291 )

Na pena substituta , castiga- se hum só in-


nocente com o réo em virtude das relações , que
tem com elle : na collectiva , castiga- se huma cor-
poração em que muitas pessoas estão innocen-
tes , com o fim de envolver os criminosos . Na
pena fortuita , a pessoa que padece com o deli-
quente he absolutamente estranha para o réo ,
e para o seu delicto .

Quarta Secção - Das penas substitutas.

A pena a mais incompetente , que póde ha-


ver , he a pena substituta : o author do crime
fica impune , e o castigo, que merecia , vai reca-
hir sobre huma pessoa , que não teve parte.no
crime.
No reinado de Jacques 1.° , em Inglaterra ,
hum cavalheiro illustré , de que hoje bem pouca gen-
te se lembra , Sir Kenelm Digby , homem profundo
na Sciencia Medica , tendo observado que o tracta-
mento das feridas era huma operação de muitas
dores , inventou huns pós sympathicos de mara-
vilhoso effeito para a humanidade : bastava que
The mandassem huma gotta de sangue da ferida :
an açado com os pós , e applicado , não era pre-
cizo mais nada a ferida hia fechando por si
mesma , e ficava perfeitamente curada ; nem era
necessario que o cirurgião estivesse presente ,
podia estar nos antipodas : he pena que se per-
desse a receita ! Que prejuizo para os nossos
exercitos ! Mas o author não tem culpa : não ha
ninguem que saiba ler , que a não possa ver
nas suas obras . A pena substituta he na Legis-
lação o mesmo que os pós sympathicos na me-
decina. Quizera desfraldar as velas ao discurso ;
mas para que ? Bastará dizer que hum homem
ha de ser castigado pelo crime alheio , para aze-
Oo 2
( 292 )

dar os animos , e fazer huma impressão mais for-


te do que poderião fazer todos os argumentos
da logica , e todas as flores da eloquencia. Hum
similhante erro nunca se poderia introduzir no
mundo sem baralhar as idéas , ou a não se faze-
rem supposições , cuja inverosimilhança se escon-
dia aos homens.
A confiscação no crime de suicidio , tal como
se acha estabelecida por huma lei de Inglaterra
póde servir de exemplo destas penas substitutas :
poderão dizer, que o miseravel neste caso he pu-
nido pelo modo que póde ser ; que o seu cadaver
he empalado , que o enterrão entre desprezos , e
apupos , e que lhe fazem o mais que lhe podem
fazer : mas que he tudo isto em comparação da
pena real , que soffre sua mulher , seus filhos , e
seus crédores ? Suppor que as affeições naturaes
podem suspender-lhe o braço no accesso da sua
desesperação , he huma idéa, que está desmenti-
da pelo facto : prevaleceo o desamor á vida ; e
quando a sua familia está consternada por ter
perdido o dono da casa , então he que a lei pre-
tende augmentar a sua desgraça ? Sei o que me
podem dizer ; e sem fallar aqui de distincções
subtis , de que nada se póde concluir sobre as dif-
ferentes especies de propriedades ccnfiscaveis , e
inconfiscaveis , não deixarão de allegar que esta
lei não está em practica , que o Jurado a costuma
illudir , declarando que o homem não estava em
seu juizo ; e que o Rei , em huma palavra , póde
restituir á viuva , e aos orfãos os bens de seu
pai.
Não desapprovo as disposições dos Jurados
nem do Chefe supremo do Estado ; mas para que se
ha de conservar no Codigo nacional huma lei, que
nunca tem exercicio ? E que para ser illudida he
preciso declarar com juramento que o miseravel,
( 293 )

que se matou , tinha a cabeça perdida , ainda


quando todas as circumstancias do facto annun-
cião a mais constante deliberação , e a mais re-
flectida ? Por este modo , no caso de suicidio , o
homem que tem de seu alguma cousa de que pó-
de dispor á hora da morte , he declarado que não
podia testar por não estar em juizo. Os mais mi-
seraveis , os mais indigentes , que depois de te-
rem imitado a Catão fazendo o seu calculo , se ar-
remeção como elle a largar a vida , são os unicos
sentenciados em todo o rigor da lei. O remedio
de todas estas leis violentas está no perjurio : o
juramento falso he o soberano remedio : de sorte
que para salvar a humanidade he preciso offender
a Religião.
Não devo passar em silencio , já que estou
fallando das penas substitutas , hum caso singu-
lar no Direito das gentes , hum caso , que offere-
ce huma excepção ainda que não venha de molde
para explicar a materia: fallo da represalia : tra-
cta-se de entregar innocentes a tormentos rigo-
rosos , á prizão , á morte , porque se não podem
castigar os authores do crime. A necessidade cos-
tuma justificar este direito , quando não ha outro
meio de sopear violencias inauditas , ou de sus-
pender acções de injustiça manifesta
Hum tal procedimento feito sobre os vassal-
los de hum despota , de hum Rei absoluto podem
obrigalo a fazer o que deve , ou por hum lance
de humanidade a respeito dos seus ; ou pelo me-
do de não ter contra si hum levantamento : a re-
presalia he principalmente hum freio necessario en-
tre exercitos inimigos : as leis da guerra estão debai-
xo da sancção da honra ; mas não bastava , a não
ser o medo de que nos podem fazer outro tanto.
O que prescreve a humanidade he , que se
redu-
za hum tal procedimento á expressão mais sim-
( 294 )

ples , que se lhe dê a maior authenticidade que


poder ser , e que antes de se pôr em acção haja
huma declaração solemne , que possa chegar a to-
da a parte .
Ainda me falta dizer huma palavra. A his-
toria nos offerece acções de huma resignação he-
roica , em que huma pessoa innocente , sacrifi-
cando-se livremente para apaziguar o resentimen-
to da offensa , vem a ser huma victima de expia-
ção. Mas que prazer podia ter o offendido, que via
morrer por sua causa hum homem generoso ? O tor-
mento , e a humiliação do que ficava vivo : a glo-
ria de hum fazia a vergonha do outro.
Masopoderão haver casos , em que hum Juiz
desapaixonado possa admittir hum individuo a le-
var o castigo do outro , por exemplo , o filho pelo
pai , o marido por sua mulher , o amigo pelo seu
amigo ? Poderão imaginar- se casos singulares , em
que esta especie de heroismo poderia talvez accei-
tar-se ; mas he escusado entreter o tempo em ma-
teria que sahe } da regra geral. 99999

- Penas transitivas.
Secção quinta.

1
Temos visto que todas as penas entendião
não só com o réo , mas com todos aquelles , que
tem relações naturaes com elle , e que era inevi-
tavel não participarem da pena. Por tanto não se
tracta neste logar das penas , que o Legislador por
huma lei expressa faz recahir sobre as pessoas, que
tem relação com o réo , penas que não dependem
senão ซี da sua vontade , e que assim como as tem
criado , assim as póde abolir. Em Inglaterra hà
certos casos , em que o neto sem commetter nenhum
crime não póde herdar de seu avô innocente , por-
que os seus direitos se alterárão , e perdêrão pas
sando pelo sangue do pai criminoso : a isto he que
( 295 )

os Jurisconsultos Inglezes chamão corrupção do


sangue. Toda a prova desta invenção está na me-
tafora , termo cabalistico , pelo qual se responde a
tudo , e que tira toda a sua força de duas suppo-
sições.
Primeira ; quando hum homem commetteo
hum daquelles delictos , a que chamão traição
immediatamente experimenta huma fermentação
putrida no seu interior , e segundo o antigo sys-
tema de nosologia , corrompeo - se- lhe o sangue.
Segunda ; logo que o sangue se tem corrom
pido , he justo , e necessario esbulhar sua mulher, e
seus filhos de tudo quanto o réo possuia , e até de
quanto poderia adquirir para o futuro para que
se não contaminem. Não entremos nesta disputa :
deixemos palavras , que se não entendem , e veja-
4
mos o que se póde dizer em abono das penas
transitivas.
Depois da pena , que me he pessoal , a que
vai recahir sobre pessoas da minha affeição , he
huma segunda pena , que soffro . Tenho parte no
que padecem os outros por minha causa , em ra-
zão de estarem enlaçados comigo pela mais forte
་་
sympathia : sería capaz de affrontar os males que
me dizem respeito ; mas o receio de envolver no
castigo os principaes objectos da minha ternura ,
he hum motivo , que me sustem para não commet-
ter o crime , Logo as penas at de hum
réo , são contra o mesmo réo : o principio he ver
dadeiro , mas será bom será conforme á utilida-
de geral? ( 1 ) .
Perguntar se huma pena de sympathia tem
a mesma força para mover que as penas , que
C" cd wil #

36 ડે ?
( 1 ) Tract. de Legisl. T. II. Das penas que se desvião
do seu fim , ou incompetentes .
( 296 )

vão sobre o homem em fio direito , he perguntar


se cada hum de nós , geralmente fallando , tem
mais amor a si do que aos outros (* ) .
Se o amor proprio he o sentimento o mais
forte , segue-se , que se não deveria recorrer ás
penas de sympathia , senão depois de esgotar tu-
do quanto a natureza póde soffrer ein materia de
penas directas : nenhum tormento tão cruel , que
se não devesse empregar , antes de castigar a es-
posa pelo que fez o marido , e os filhos pelo cri-
me de seu pai.
Vejo nestas penas incompetentes quatro vi-
cios 'principaes :
1. Que se deve pensar de huma pena , que
muitas vezes não tem pessoa a quem se possa ap-
plicar ? Ha muitos homens , que já não tem pai ,
nem mãi , que não tem mulher , nem filhos : lo-
go a esta classe de homens he necessario appli-
car-lhe huma pena directa : mas se esta he quan-
to basta para estes , porque não bastaria para os
outros ?
2. Esta pena suppõe sentimentos , que podem
deixar de existir se o réo se não embaraça com
a mulher , se lhe não importão os filhos , está cla-
ro que esta parte da pena he como senão existis-
se para elle.
3. Mas o que ha de terrivel neste systema ,
he a profusão , e multiplicação de males. Consi-
derai na cadeia das relações domesticas , calculai
o numero dos descendentes , que hum homem pó-
de ter: a pena he hum fogo , que vai correndo

(* ) Póde haver hum motivo , huma excepção da regra =


Proximus sum egomet mihi ; esta he a lei da natureza : Verum
illud verbum est , vulgò quod dici solet : Omnes sibi malle
melius esse quam alteri, "
Andr. act 2.º Sc. 5.
( 297 ) .

tudo , que se pega de huma geração em outra


que envolve hum sem numero de individuos : pa-
ra termos huma pena directa , que podesse equi-
valer muitas vezes a huma destas indirectas , e im-
proprias ; sería necessario augmentala dez , vinte ,
trinta , cem , mil vezes mais.
4.° A pena desencaminhada por este modo do
seu andamento natural , não tem ainda mesmo a
vantagem de ser conforme ao sentimento publico
de sympathia , ou de antipathia. Logo que o réo
tem pago a justiça a sua divida pessoal , a vin-
gança publica está satisfeita , nem pede mais na-
da se ainda depois de morto o quereis perseguir.
na sua familia innocente , e desgraçada , não fa-
zeis mais do que excitar a commiseração publi-
ca : hum sentimento confuso accusa as vossas leis
de injustiça a humanidade se declara contra o
vosso procedimento , e a confiança para com o Go-
verno esfria em todos os corações.
Mas poderão dizer : nos crimes politicos , em
que os homens ricos são os mais perigosos , a
confiscação he hum meio de segurança para bem
da nação .
Respondo , que podemos alcançar o mesmo
fim sem injuria da razão. No caso de hum levan-
tamento podemos considerar a apprehensão dos
bens menos na qualidade de castigo , que debai-
xo do titulo de providencia defensiva ; e por con-
sequencia deveria limitar se a este fim , e não
passar de interina : digo providencia defensiva ;
porque , ainda quando os cabeças da rebellião pa-
gão a divida do seu erro , ou do seu crime , os
adherentes sempre infundem respeito a mulher ,
os filhos , os irmãos , os parentes podem ser en-
volvidos por affeição na mesma trama : mas todas
estas presumpções podem falhar. Em vez de pre-
sumir o crime , devemos suppôr a innocencia ; e
Tom. I. Pp
( 298 )

para condemnar , he necessario que as provas se-


jão as mais positivas. Quizera a respeito dos bens
hum acto similhante ao habeas corpus a respeito
da liberdade pessoal : isto he , que o Soberano se
apoderasse de todos os bens dos individuos sus-
peitos , que tem parentesco com o rebelde : sería
húma segurança real , e huma grande medida em
circumstancias extraordinarias ; sería tirar provi-
sões ao inimigo ; mas o que pode ser convenien-
te em tempo de guerra , não diz bem no seio da
paz. Logo que passou o perigo , toda a pessoa ,
de que se não prova o crime , deve ser tida por
innocente ; e tudo quanto era seu lhe deve ser
restituido .
Os crimes de estado podem nascer de diffe-
rentes causas ; podem provir da indigencia , do
resentimento , e da ambição ; porém em muitos
casos são actos fundados sobre motivos os mais
puros ( * )
Quando os nossos Legistas fallão de rebellião ,
assentão que estão obrigados a encher a boca de
termos injuriosos para aterrar a gente , como se
a palavra se não podesse entender sem adivi-
nhar. Não percebem , ou fingem não perceber ,
que o caracter de rebelde , ou de leal, pende dos
acasos da guerra ; que os mais sabios , e com

3
(*) Logo que as leis não governão , toda a obrigação de
obedecer está na força , não ha direito : logo que eu possa
desobedecer impunemente , poderei desobedecer legitimamen-
te , e toda a força, que póde vencer a primeira , succede no
supposto direito : e pois que o mais forte he que tem razão , não
se tracta senão de ver , se poderei ser o mais forte. Obede-
cei ás potencias da terra O preceito neste caso vem a ser
superfluo. Todo o poder vem de Deos Tambem as doenças
vem de Deos ; e nem por isso he prohibido chamar o me
dico.
Contr. Social. Cap. 3.
( 299 )

intenções as mais innocentes differem de opinião


sobre o titulo dos pretendentes á coroa , ou sobre
questões de lei constitucional ; e que he preci-
so hum cego fanatismo de partido para confundir
as palavras de rebelde , e de malvado. Nesses tem-
pos de calamidade em que as obrigações , e os
direitos vem a ser problematicos , em que os
Hides , e os Falklands , os Seldens , e os Hamb
dens se lanção em partidos diversos ; quem póde
ler no interior dos corações ? Huns abração a boa
causa por motivos os mais sordidos ; outros seguem
huma causa má por motivos generosos : quando
a rébellião do cabeça he fundada em razões del
consciencia , he provavel que seus filhos , e osi
seus adherentes estejão animados das mesmas
disposições : e neste caso a rebellião pode ser
hum crime de familia. Mas quando Tas traições
são occultas , se por exemplo , hum general se
vende ao inimigo , se commette hum destes cri-
mes , que sempre andão acompanhados de má fé ,
instigados por hum motivo sordido , esconde
mnados pela voz do genero humano ; não ha razão!
*
para criminar a familia : sua mulher , seus filhos ,
e seus amigos estão bem longe de saber da in-
triga. O réo se esconde delles da mesma sortel
que dos outros : he o mesmo , que succede no
homicidio , e no rouho ; são crimes pessoaes ; e
todo o mal , que neste caso se fizesse aos inno-
centes , sería hum mal , de que se não tiravamat
mais pequena utilidade.

Sexta Secção Penas collectivas.

Entendo por esta palavra as penas , que se


impõem a huma sociedade , ou corporação ', quan
dol se não conhecem os authores do crime ; mas se ›
presume que tenha sido commettido por alguns ™
Pp 2
( 300 )

dos seus membros . Achão-se penas deste genero


em todos os Codigos de differentes nações. Para
abonar hum similhante procedimento , devemos
provar duas cousas : 1. que o criminoso se não
póde castigar sem envolver o innocente : 2.° que
a pena do innocente accrescentada á do cul-
pado , he hum menor mal do que deixar o cri-
me impunido. Destes dous pontos de facto , o
primeiro he susceptivel de provas ; o segundo he
materia de conjectura . Pelas leis de Inglaterra ,
huma corporação he castigada ficando sem privi-
legios em razão dos crimes dos individuos , que
formão essa corporação . Estes privilegios são a
favor dos que tem direitos de cidadão ; e por con-
seguinte os governados são castigados pelo que fa-
zem os superiores. Esta pena raras vezes se tem
applicado. No reinado de Carlos 2. ° quizerão fa-
zer desta lei huma applicação insidiosa , e in-
constitucional para abolirem os privilegios da ci-
dade de Londres : tentativa inutil , que fez esta
doutrina odiosa , e que he natural que se não re-
nove outra vez.
Huma tal pena nem he necessaria 9 nem
conveniente. Os réos sempre se conhecem : o de-
licto he tão notorio como os delictos ordinarios.
Houve em 1736 hum levantamento na cidade de
Edimbourgo : o Povo enfurecido , arrebatando das
armas se apoderou das portas , desarmou a guar-
nição , e fez pedaços o Capitão Porteus , que
tinha sido condemnado á morte , mas a quem a
Rainha tinha perdoado. Esta injuria obrigou a
ajuntar-se o Parlamento. O Lord Intendente foi
sentenciado a huma pena particular por se ter
descuidado de por as cautellas necessarias para
evitar o tumulto , a cidade pagou huma certa
quantia e os criminosos , que tinhão abalado, fo-
rão sentenciados á morte no caso de não virem
( 301 )

dentro em huns tantos dias sujeitarem-se á jus-


tiça. A dita multa era huma pena collectiva : po .
dia cahir sobre innocentes ; mas como pena legal
destinada a aquietar o Povo , e obrigalo a mudar
de opinião era util , porque se encaminhava a
imprimir a idéa saudavel de que os particulares
são interessados em prevenir os movimentos se-
diciosos da populaça ( 1 ) .
São casos , em que não se podendo provar
que houve conloio , ha toda a razão de suppor
que se ajustárão para salvar a honra da corpora-
ção fazendo escapar os réos á perseguição da lei.
Čitarei outro exemplo de huma pena imposta so-
bre corporações sem lhes destruir os privilegios.
Na Villa de New- Shoreham , havia huma so-
ciedade , que se intitulava Sociedade Christã , com-
posta da maioria dos eleitores , que tinha por ob
jecto tirar o maior lucro possivel do seu direito
de eleição parlamentaria : havia já muitos annos
que durava este manejo : provou -se o crime , e o
direito de eleição foi tirado a todos os criminosos ,
apontando-se o nome de cada hum delles ( 2 ) .
O direito de eleição não he huma proprieda-
de de que se tenha o uso fructo , he huma posses-

( 1 ) Madame de Sevignè em huma das suas cartas nos des


creve os castigos collectivos , que se fizerão na cidade de Ren-
nes depois de hum levantamento. Huma das ruas ( diz ella )
foi despejada , e os seus moradores lançados á margem , sob
pena de morte contra todo aquelle que lhes desse agasalho :
vião-se estes miseraveis , mulheres paridas , velhos , crianças "
sahindo da Cidade em soluços sem saberem parte de si , nem
para onde havião de ir , sem terem de comer , nem onde se
deitarem. Esta provincia he hum excellente exemplo para as
outras , para se não perder o respeito aos que governão , sejão
homens , ou mulheres ; e para não tornarem outra vez a di-
zer injurias , e atirar pedradas . Carta 268.
( 2) Estatuto 11. Geo. 3. c. 55.
( 392 )

são de confiança , que hum homem tem , não só


para beneficio seu , mas para bem da sociedade
inteira . Os eleitores podem negociar com o voto,
mas directamente abusão do seu officio contra o
bem geral de sorte que podemos dizer deste di-
reito que encerra tanto menos valor lucrativo ,
quanto se usa delle com mais probidade. Os Le-
gisladores ainda fizerão mais no presente caso :
depois de terem inhabilitado a maioria dos eleito-
res , communicárão o direito de eleição sobre a
base da propriedade a hum grande numero de pes-
soas do mesmo districto. Excellente , providencia
de reforma , pois que estende o privilegio de ele-
ger a huma classe mais numerosa , unica parte
da authoridade politica , de que póde uzar o Povo
em proveito seu. Lembra huma idea, que talvez pa-
reça de imaginação, e vem a ser : premiar os eleito-
$
res , que se achassem incapazes de soborno no exer-
cicio do seu direito ; quizera eu que os seus voto ,
tomados junctamente conservassem debaixo da nos
va Constituição a mesma proporção, que tinhão na
antiga. Ainda que este privilegio não fosse mais
que vitalicio , 妻 teria conferido a estes membros ,
que se não deixão sobornar , huma honrosa distinc-
ção : mas em logar de os premiarem , erão de al-
guma sorte castigados pela estensão do privilegio
de eleger , que diminuia o valor do voto , que já
tinhão antes da reforma. Quanto a mim , não teria
medo de parecer escrupuloso em attender ao inte
resse de todos na emenda dos abusos : Servi o .
publico , diria eu aos reformadores , mas sem per-
der de vista , que cada hum dos membros faz
parte desse mesmo publico.
He por tanto huma verdade irrefragavel , no
rigor destes principios , que os eleitores não tem
razão de se queixarem , quando se augmenta o
numero dos vogaes. O dilemma he claro: ou não
( 303 )

desempenhais a vossa obrigação ; e então não


*
mereceis o logar , nem a confiança publica ou
sois hum homem pontual , e verdadeiro no vosso
officio e então que vos importa que sè augmen-
te o numero dos vossos companheiros ( 1 ) ?

-
Septima Secção Penas fortuitas.

Chamo pena fortuita , ou repartida ao aca-


so , a que a lei faz recahir accidentalmente sobre
o innocente , que pode estar como outro qualquer
sem ter relação nenhuma com o réo , nem com o
delicto. Apontarei tres exemplos tirados da lei
de Inglaterra : 4. de huma especie de confiscação :*
2. das Deodandas ( * ) : 3.º da prohibição de ver
jurar testemunhas.
1.° Caso de confiscação . Ó possuidor de huma
terra livre (Freehold ) commette hum crime , que
tem pena de confiscação ; depois vende a ; hypo-
theca , ou dispõe della ? A lei confisca a terra ,
logo que tem reconhecido , e provado o crime
(
do primeiro possuidor sem se embaraçar , se o
novo possuidor a comprou , ou não de boa fé.
Commetto hum homicidio , ninguem o sabe ; ven~
do huma propriedade : passados vinte annos'

descobre- se o meu crime , prendem- me , condes
mnão - me , e o Rei se apodera da propriedade que

( 1 ) O dilemma tem todo o logar , quando o eleitor ac-


ceita dinheiro ; e só neste caso ; porque os que tem privile
gio podem recear que em se conferindo a muitos não ve-l
nhão a entrar individuos , que os possão envergonhar. A
materia pedia hnma explicação mais ampla ; mas já he muito
para huma digressão.
(* ) O animal , ou carro , que matou alguem por huma
desgraça , he confiscado para a coroa , e vendido a beneficio
dos pobres Omnia quæ movent ad mortem sunt Deo danda :
eis-aqui a origem desta pena.
( 304 )

vendi : tenhão decorrido vinte annos ; não im-


porta. Supponhamos , que tinha morto vossa mu-
İher ; acontecia o mesmo : terieis ficado sem mu-
lher pelo meu crime , e sem o predio , porque
tinha sido meu. Nem se diga , que a lei se vio
reduzida a este expediente para evitar que se fi-
zessem vendas fraudulentas ; porque a respeito
dos bens moveis e pessoaes , souberão distin-
guir as vendas em que entrou dolo , das que se
fazem em boa fé : confirmão estas , e só aquellas
se annullão . Será preciso ouvir o que diz o Au-
thor dos Commentarios ( 1 ) sobre esta lei singular.
" Póde ser dura ( diz elle ) para os que contractão
o réo inconsideradamente . ― Todavia não
devemos dizer mal da lei , nem chamar-lhe cruel;
a culpa toda he do criminoso , que de proposito :
e conhecendo o que fazia teve a má fé de envol
ver outras pessoas na sua desgraça. " Com simi-
lhante maxima não ha tyrannia , que senão possa
justificar.
11 - Deodandas. Sois caseiro , tractais
de huma fazenda alheia : occupais vosso filho em
conduzir hum carro ; cahio este accidentalmen -
te , passão -lhe as rodas por cima , fica esmagado ,
eis aqui o Rei senhor do vosso carro , sendo este
o unico refrigerio , que podeis esperar das leis de
Inglaterra , para alliviar a vossa magoa na des-
graçada perda de hum filho. Se em logar de hum
carro fosse hum navio , que no seu movimento o
tivesse feito em pólme , vinha a ser o mesmo ; era
2
do Rei , ainda que estivesse carregado com os
thesouros da India ( 2 ) .

( 1 ) Blackstone. L. IV. Cap. XXIX .


) Mas era necessario que fosse ao sahir do estaleiro :
em agoa salgada , já não tinha lugar.
( 305 )

A origem deste direito deita a esses tempos


antigos, em que o Povo estava persuadido , que as
almas do purgatorio se podião resgatar por meio '
da musica ; mas quem lhe daria esta virtude !
Se o defunto tinha acabado desgraçadamente ; o
instrumento , que tinha sido occasião da sua mor-
te , era a primeira cousa , que se vendia para se
*
pagar aos musicos. Os Athenienses desterrárão
do seu territorio huma pedra , que tinha morto
hum homem : he verdade que passou para huma
terra estranha , mas não se lembrárão de confis-
car a casa , nem o fundo , em que estava a dita
pedra.
――
111. Prohibição de ver jurar testemunhas. -
Ha hum modo de castigar, em que para se fazer !
huma arranhadura ao criminoso " se atravessa .
huma espada pelo meio do corpo do innocente
--
fallo desta pena infamatoria , que tira ao réo .
a liberdade de poder servir de testemunha em
juizo . Os Romanos , que nos transmittírão esta
pena , a tinhão recebido da Grecia , nação sin-
gularmente affeita a ser governada por caprichos ,
subtilezas , e rafinamentos de imaginação . Deb
similhante pena nenhum proveito se tira , basta
ser escondida : nem a lei diz nada , nem a sen- ,
tença faz menção della ; he huma conclusão , que
de repente se levanta das trevas como supposição
de outras penas : he hum segredo , que só conhecemy
os Legistas ; que não apparece senão para fazer
mal . para dar impunidade a hum criminoso , et
illudir o bom direito por huma nullidade. Não
poderei dizer os casos , em que huma testemu-
nba não pode ser admittida em juizo por causa .
de crime : esta parte da Jurisprudencia Ingleza ,
assim como tudo o que são leis geraes , mal se
podem combinar : os Authores discordão em mui
tos pontos , achão- se contradicções inexplicaveis.
Tom. I. QQ
( 306 )

Os delictos que trazem comsigo huma tal inha-


bilitação estão quasi todos comprehendidos na
traição , perjurio , roubo , crimes de infamia , cer-
tos crimes capitaes, que denotão desobediencia
do vassallo para com o senhor , a que não pode-
mos chamar crime particular , mas huma collec-
ção de crimes os mais heterogeneos, que se po-
dem imaginar ( * ) Hum homicidio commettido.
no fogo da paixão : o ferimento por hum acaso ,
a violencia , os crimes de incontinencia , tudo
isto erão crimes de segunda cabeça , delictos ca-
pitaes ; em huma palavra , bem poucas cousas
deixavão de estar sujeitas á pena ultima .
O depoimento dos excommungados he nul-
lo huns suppozerão , que era gente perdida so-
bre quem a Religião não tinha influencia : outros
disserão com gravidade , que não podião ser ou-
vidos na razão de testemunhas ; porque estavão
excluidos de tractar com os homens . "" As nos-
sas leis , diz hum Jurista , tem levado as cousas
até ao ponto de excommungarem os que fallão com
elles ; e por consequencia hum Juiz não os pó-
de perguntar. Eis-aqui a amostra dos argumen-
tos , que se encontrão a cada passo nos livros da
Jurisprudencia Ingleza.
Sem nos demorarmos muito tempo na ques-
tão de facto , examinemos se esta pena he con-
veniente , quero dizer se podem haver casos

em que se deva rejeitar em juizo o meu depoi-


mento por causa de ter commettido hum certo
crime .
A unica razão para em tal caso se não ad-
mittir o testemunnho de huma pessoa seria o

(*) Veja-se mais adiante L. V. Cap. 3.º o sentido da


palavra felonia.
( 307 )

medo de que em logar de esclarecer a verdade ,


não viesse embaraçar os Juizes : de sorte que o
medo , que se deve ter , não he de que a teste
munha possa mentir , porque muitas vezes pela
mentira se vem no conhecimento da verdade
mas he porque hum criminoso póde armar a men-
tira com taes côres de verdade , que a faça plau-
sivel , e consequente ; póde ter firmeza capaz de
a sustentar até ao fim . Respondo primeiramente :
que o mentiroso o mais destemido não perde a
inclinação natural de fallar verdade , ainda que
minta nesta , ou naquella occasião : he necessario
interesse para abafar a consciencia : poderá men-
tir por motivos insignificantes ; mas ninguem men-
te sem motivo . Supponhamos hum caso , em que
não ha interesse ; o testemunho do homem o mais
perverso seria tão seguro , como póde ser o de
huma pessoa da maior probidade : toda a diffe-
rença está unicamente em que o malvado mente,
quando tem algum interesse em mentir, em quan-
to o homem de bem resiste à tentação. O gráo
de força empregado para seduzir dous individuos
faz a differença da sua probidade.
Não haverá hum homem a não ser demente ,
ou a não ter endoudecido , que apresentando se
perante hum Ministro , não sinta hum motivo pa
ra dizer a verdade. Este motivo está na sancção
politica , quando declara as penas contra o jura-
mento falso ; está na sancção moral pela infamia,
que traz comsigo o crime ; e a natureza o tem
gravado na sancção religiosa , huma vez que o ho-
mem não seja hum Athêo , ou não esteja alluci-
nado com dispensas , e absolvições . O interesse
de mentir póde ser natural , ou artificial. O pri
meiro não necessita de explicação ; o segundo he
huma recompensa , que se deo anticipadamente ,
ou que estava promettida. Trazeis huma deman-
QQ 2
( 308 )

da sobre humas terras , tendes hum interesse na


tural , em que eu diga a verdade , ou a mentira
para firmar o vosso titulo : o dinheiro , que me
offereceis para este fim , he o interesse artificial ,
que tenho para ajudar o vosso interesse. Se este
homem , no facto de que pende a causa , he ou não
interessado , he huma cousa bem facil de co-
nhecer ; he o fundo da questão ; e logo que está
claro, que tem interesse , a lei tem huma tenden-
cia , só por esta razão , para rejeitar o seu depoi-
mento sem attender á sua probidade. A duvida
que pode ter logar , he a respeito do interesse
artificial , cuja existencia , ou não existencia não
he tão facil de provar : apenas se póde julgar pe-
las circumstancias , que entendem com o caracter
geral do individuo. O que se póde dizer de cer-
to he fundado nas provas de maior , ou menor vir-
tude , que o sujeito tem a seu favor : mas quem
não vê que tudo isto não he mais do que huma
conjectura ?
Os homens de pouca experiencia , ou que
decidem logo de arremeço , não conhecem na
moral senão duas classes de individuos , bons ,
e máos. Se vem practicar hum rasgo generoso ,
ficão logo aturdidos " e tem o sujeito por hum
homem de virtude : se vem huma acção que não
agrada , eis- aqui no seu conceito o peor homem
do mundo : e por esta razão , quando a sua opi-
nião se muda a respeito de hum dell es , como
não tem gráos intermediarios , decidem com a
mesma precipitação , e passão de hum extremo
para outro. Pelo contrario os que espreitão o co-
ração humano com assento , e madureza , apren-
dem a emendar os erros deste systema apaixona-
do : sabem, que na escala do merecimento os ho-
mens não são melhores huns do ་ ་ que os outros ,
senão por gráos imperceptiveis ; e que mesmo en-
( 309 )

tremos extremos não ha toda a distancia , " que


se affigura ao nosso orgulho , e prejuizo .
Se estas observações são verdadeiras , a leí
não tem dados para tirar hama linha de demarca-
ção entre os que merecem credito , e os que podem
mentir ; entre os que admitte a dar o seu depoimen-
to , e os que rejeita sem distincção. Em huma
palavra , ( porque todo o argumento se reduz a isto )
excluir classes de testemunhas ao acaso , he evitar
hum pequeno mal possivel á custa de hum gran-
de mal , em que ha toda a certeza . Precatar- se
hum homem contra hum pequeno numero , em
quanto se arrisca a ser accommettido por todos ,
he medida mais enganosa do que efficaz . E com
effeito , contra quem estais á lerta ? Contra huns
poucos de homens em huma nação. Quantos são
aquelles , a quem ficais exposto ? A quasi todos ;
porque lançar huma linha segura he impossivel :
não ha classe de homens , não ha hum só indivi-
duo, a quem se possa conferir o caracter de infalli-
vel veracidade.
Humas vezes será perigoso confiarmos no di-
to do mais honrado homem do mundo : outras ve-
zes não ha perigo de nos fiarmos do peior homem,
sé elle não tem motivo natural para mentir , se
da condição da parte não he de esperar que o
tenha subornado . Supponhamos que vejo hum
homem accommetter outro , e que não tenho
conhecimento destes dous homens sou obrigado
em juizo a dizer a verdade : quero mesmo con-
ceder que já fui convencido noutra occasião de
ser perjuro supponhamos que os dous homens
são tão miseraveis , que nem hum , nem outro
me podem acenar com o mais pequeno interesse ;
pergunto quem me ha de obrigar a esconder a
verdade ? Que perigo póde haver em receberem
o meu depoimento ? O que se póde seguir de
( 310 )

eu ser excluido , he triunfar o injusto aggressor :


ora hum caso similhante nem he singular , nem .
improvavel. Cada hum póde figurar com facili-
dade outros muitos do mesmo genero.
Sendo isto assim , não terei medo de affirmar
que nenhuma testemunha devia ser excluida ; ain-
da mesmo na supposição de haver juramento fal-
so: e se o perjurio não he motivo de exclusão ,
nenhum crime o póde ser: mas esta proposição
necessita de prova. Supponhamos que a testemu-
nha , que se apresenta , he hum homem conven-
cido de ter jurado falso ; mas no caso actual não
tem interesse natural em occultar a verdade ;
porque se o tivesse estava n'outro fundamento
de exclusão , de que por ora se não tracta : logo
para elle poder mentir he preciso , que tenha hum
interesse artificial ; que eu, por exemplo, que sou
parte, o tenha sobornado : mas eu que nunca fui
convencido de sobornar ninguem , que tenho hum
caracter sizudo ; com que direito me podem ac-
cusar de similhante crime ? Recusar a testemunha
que offereço , porque foi comprada noutra occa-
sião , he considerarem-me como hum homem ca-
paz de sobornar.
Estou capacitado de que se não terião jámais
admittido estas regras de incompetencia perem-
ptoria , se tivessem reflexionado com attenção nas
consequencias dos dous lados da questão. Pare-
ce que os Legisladores tem procedido como se em
todos os casos houvessem testemunhas a deitar fó-
ra, e debaixo desta supposição quizessem descartar-
se dos suspeitos , e admittir sómente a juramento
as pessoas de maior pórte ; omni exceptione majores.
Mas esta supposição he falsa , e o perigo que re-
sulta he muito grande : apontar hum individuo
como inhabil para depôr em juizo , he o mesmo
que permittir aos perversos que fação quantas
( 311 )

injurias quizerem na sua presença , e commettão


toda a sorte de crimes. Embora tenhão posto a
sua pessoa fóra da lei sem protecção , ainda que
seja huma pena bem estranha ! mas quanto á im-
punidade , que se concede a todos os crimes de
que elle só he testemunha , não póde haver huma
razão , que a possa desculpar.
O caso de Pendoch , e de Machender póde
servir de prova de quanto são prejudiciaes os
effeitos desta lei. Para a validade de hum testamen-
to, em que se tracta de deixar o fundo de huma
terra , são necessarias tres testemunhas : no so-
bredito caso o testamento estava munido de tres ,
como devia ser : duas erão irrecusaveis ; porém
veio- se a descobrir que a terceira tinha entrado
n'hum roubo de pouca entidade , por cujo delicto
tinha sido açoutada : he preciso saber que se ti-
nhão passado cinco annos : mas como o réo estava
na lei , decidio - se que não devia ser admittido ; e
aqui temos que por este modo aquelle , a favor
de quem o testamento era feito , ficou perdendo a
sua terra : vejão se póde haver hum golpe mais
fatal para hum homem , que julgava ter na sua
posse toda a segurança , que as leis lhe podião
conferir. Que testador não deve tremer , lembran-
do- se de que hum tal incidente , como a escolha
desacertada de huma testemunha , póde ser capaz
de fazer inuteis as suas ultimas disposições con-
tra todo o seu desejo ? Se qualquer mulher com
metteo hum perjurio , ou qualquer delicto , que
a tenha inhabilitado para dar o seu testemunho ,
he justo que seja castigada ; mas será justo , se-
rá conveniente entregala á brutalidade de qual-
quer homem , que se lembre de abusar da sua
formosura ? Pois he o que se segue da lei , nem
se póde negar. Não se diga que estou encare-
cendo , que estou forjando casos , que nunca se
( 312 )

vírão no mundo : porque se não tem acontecido',


he porque a lei , que offerecia a impunidade , a
lei que tem creado huma protecção para estes cri-
mes , está escondida : o mal tem sido o palliativo
de outro mal : o absurdo da lei tem sido enco-
berto pela sua mesma escuridade. '
Tomemos agora o reverso da questão Onde
estaria o perigo de se admittir o testemunho dẻ
hum homem infamado ? Eu não o vejo, pelo menos
não vejo perigo , que se possa comparar com o mal
da exclusão : " Similhante figura , dizeis vós , não
merece credito " isto he o que dizeis , mas que
""
não podeis provar. mas eu não sou o unico, que
pensa deste modo ; digo o mesmo , que diz o mun-
do todo -se todo o mundo assim pensa , não
ha que recear : mostrai publicamente o caracter
da testemunha , e não tenhais medo que o Jura-
do lhe conceda huma confiança extraordinaria :
tendo contra si hum prejuizo similhante, será pre-
ciso que a sua exposição seja bem clara , beme
natural ; em huma palavra , será necessario que.
seja a mesma evidencia , ou quasi evidente o que
disser para servir de prova . Porque razão os
Juizes , estabelecendo esta regra , mostrárão des-
confiar tanto do Jurado ? Supponhamos que recea-
vão castigar innocente : não tinhão meios in-
falliveis para o salvar ? Mas que ha de ser ? Se
os que levantárão a regra antigamente , estavão
na idea de que hum delicto he huma nodoa , que
se entranha de tal sorte , que se não póde alim.
par em toda a vida ; como se hum homem por ca-
hir huma vez se não podesse leyantar , nem emen-
dar ( 1 ) .

( 1 ) Ha certos casos , em que o Rei póde rehabilitar o


criminoso para dar o seu juramento e servir de testemunha. >
( 313 )

Mas dirão em se abolindo esta regra ,


os Jurados poderão admittir similhantes tes
temunhas , mas he quasi o mesmo que se as
não admittissem , porque não acreditão no que el-
las dizem , estão desconfiados . Estou dessa opi-
nião Então que utilidade póde haver em se abo-
lir a regra ? Muito grande - O author de hum
crime não terá a possibilidade de ficar impune pe-
la exclusão de huma testemunha necessaria . A lei
não dará licença indirectamente para se commetter
toda a qualidade de crimes contra as pessoas , que
estão fóra 1 da protecção da lei . Ainda no caso de ser
absolvido o criminoso por estarem compradas as
testemunhas , não perderia a reputação de inno-
cente ; em quanto no estado actual o seu crime
parece certo , e a impunidade faz o seu triunfo.
Eis aqui a vantagem ; e ainda quando não hou-
vesse outra , esta só era bastante para se abolir
a regra.
O que dicta a prudencia , he que seja pa-
tente o caracter da testemunha ; que o seu delis
cto , por isso mesmo que póde enfraquecer o valor
do seu depoimento , se apresente aos olhos dos Ju
rados ; que vejão o relatorio do Juiz , L para que
estejão em estado de fazerem conceito , pelas cir
cumstancias do crime , até , que ponto devem acre
ditar no seu juramento . dbag
Com effeito , daqui depende tudo. Restrin-
jo- me an caso de perjurio , por ser o crime, que
mais entende com o credito, que merece a tes-
temunha. Que differença ha entre chum juramen-
to falso commettido por hum homem para se de-
fender asi , ou. levar adiante a suas causa ; e o
mesmo crime commettidó por hum soborno ou
para accommetter- a vida de hum innocente? Simi-
Ihante distincção não he mais do que hunia sub-
Tom. I. 1996 C Rrad
( 314 )

tileza , e he preciso fazer violencia ao senso com-


mum para a não perceber. #
Tambem deve entrar em conta o tempo , que
tem decorrido depois do crime . Hum homem , que
na verdura dos 14 , ou 15 annos deo hum jura-
ramento falso , e foi convencido deste crime , mas
que depois cahio em si , e pelo espaço de trinta ,
ou quarenta annos se tem comportado bem ; no
estado presente he o mesmo que nada : a sen-
tença , deque já ninguem se lembra , he apresen-
tada em juizo , e segundo a lei , tudo quanto diz
fica sendo nullo ; mas quem não vê que faz
summa differença aos olhos da razão natural , e
que o seu testemunho devia ser tão valioso , co-
mo o de outra qualquer pessoa ?
Nas causas crimes escrevem- se os ditos de pes-
soas , que tem hum interesse manifesto em faze-
rem condemnar o réo , ou porque recebem di-
nheiro , ou para cevar o seu odio. O que tira
as testemunhas desconfia , mas não deixa de
as ouvir , e tomar o seu depoimento ainda que
esteja prevenido. Fazei o mesmo : desconfiai de
huma testemunha , que 矍 se faz suspeita pelo seu
procedimento anterior ; mas não a rejeiteis : averi-
guai particularmente se as circumstancias do seu
crime são de natureza, que fação diminuir o seu
credito .
Justiniano ligou esta inhabilidade a hum ge-
nero de crime contra os costumes. Castigue-se
muito embora similhante crime o mais aspera-
mente que poder ser ; essa questão he outra :
mas que influencia póde ter hum gosto depra-
vado sobre a veracidade juridica ? Como se pó-
de concluir que hum homem inficionado desse
vicio estará disposto por hum similhante motivo
a dar, hum testemunho falso contra o accusado ?
He confundir idéas , que não tem ligação nenhuma.
( 315 )

LIVRO V. ( 1 )

Das penas complexas.

CAPITULO I.

Inconvenientes , que resultão de similhantes penas.

TEmos observado mais de huma vez , que o


mesmo acto penal era capaz de produzir não só
hum , mas infinitos males juntos ao mesmo tem-
po . Supponhamos que mettem huma pessoa na ca-
deia : aqui temos huma pena simples considerada
em si mesma ; mas considerada nos seus effeitos
he complexa , porque entende com a fortuna do
réo , com a sua pessoa , reputação, e estado.
Pena simples he a que procede de hum só
acto de castigo : pena composta a que pede mais
de huma operação. Pelo mesmo crime podemos
prender o criminoso , obrigalo a pagar certa quan-
tia , ajuntar- lhe a pena de infamia , etc. Se a lei
declara tudo isto , se cada huma destas penas
está expressa em palavras formaes , n'hum estilo
claro , e corrente ; a pena ainda que seja com-
posta , ou complexa póde ser boa : he viciosa ,
quando as suas partes integrantes se não conhe-
cem ; quando encerrão males que a lei não decla-
ra ; quando estas penas complexas estão concebi-
das em termos obscuros , enigmaticos , e de que

( 1 ) Este Livro , que se refere principalmente á Juris-


prudencia Ingleza , pouco nos póde interessar ; mas os sa-
bios de tudo se aproveitão .
Rr 2
( 316 )

não fallão senão os Juristas : taes são no Direito


de Inglaterra as penas capitaes com privilegio , ou
sem privilegio do Clero , as que vem debaixo do
titulo præmunire , as que põem o Cidadão fóra
da protecção da lei , as excommunhões , as penas
que me tirão a liberdade em certos crimes de
poder dar o meu testemunho em Juizo , e outras
similhantes. Tudo o que he incerto , tudo o que
he escuro em huma lei tem o defeito de encontrar
a primeira qualidade , que ella deve ter .
Os inconvenientes , que tem as penas com-
plexas assim definidas , são mui grandes ; mas
podem reduzir- se a poucas palavras o Legisla-
dor não sabe o que faz os subditos não conhe-
cem até onde se estendem as ameaças da lei : he
3
impossivel que o Legislador, possa fazer jámais a
sua obrigação ; porque m todos os casos ou ex-
cede , 3 ou não chega até onde devia chegar :
o véo de huma 2 expressão escura encobre a seus
olhos a natureza da pena , ou das penas que
applica : he pancada de cego , reparte o mal sem
conta , nem pezo , nem medida. Os Jurados , ou
Juizes , que nos casos particulares vem os incon-
venientes da lei , stomão ( a liberdade de ver se
a podem illudir por todos os meios de que se po-
dem lembrar ; usurpão a authoridade de Legisla-
dores , e o juramento falso vem a ser o paliativo
habitual da injustiça , ou da falta de previdencia .,
Se a lei se executa , que succede ? O Juiz
para impor huma pena util se vê na necessida-
de de accrescentar outras muitas, que não servem
de nada as penas , de que os réos não tinhão
mais do que huma idéa imperfeita , são hum
mal inteiramente perdido , hum mal que mais
de huma vez recahe sobre innocentes ; sendo as
consequencias de huma tal natureza , que térião
feito estremecer o Legislador , se as tivesse pre-
visto.
( 317 )

Temos fallado da privação de pro ' cção le-


gal , e da semrazão de estar prohibido o réo ,
que tem commettido certos crimes , de poder
dar o seu depoimento em juizo : vamos fallar da
excommunhão , e de certas penas incluidas na
palavra traição .

CAPITULO II .

Excommunhão..

NãAo o se tracta neste lugar da excommunhão se-


não em quanto se refere as leis de Inglaterra. O
primeiro ponto deste exame roda sobre as penas ,
que se encerrão na excommunhão , e sobre o seu
numero . Esta pena he de dous modos , maior , e
menor a primeira inclue todas as penas, da se-
gunda , e ainda mais alguma cousa. Comecemos
pela explicação da menor , e depois diremos o
que aha de particular na maior.
pena. Prizão por hum tempo illimitado á
vontade do Juiz , que a póde augmentar , ou di-
minuir segundo o estado , em que se acharem as
cadeias publicas.
2. Penitencia - como condição para o réo
alcançar liberdade : he huma pena corporal das
que trazem infamia : quanto ao modo de a impor ,
logoU fallaremos. , $
f 3. Em lugar de penitencia commutação em
dinheiro: a somma não he limitada directa , mas
indirectamente ; nunca póde exceder o que o in-
dividuo quer dar para se forrar á penitencia cor-
poral.
Estas duas penas são accidentaes : não tem
lugar senão quando o réo se quer sujeitar a
ellas: as que se seguem são inseparaveis.

4. Inhabilitação para intentar huma acção ju-


( 318 )

ridica (nos casos civeis ) : he pena pecuniaria , con-


tingente por sua natureza , e incerta quanto ao
tempo .
5. Inhabilitação para advogar, isto he, em tri-
bunal ecclesiastico , e não em juizo secular : esta
pena entende com o estado do individuo , e tem
além disso pena pecuniaria.
6. Impedimento para ser apresentado em be-
neficio ecclesiastico : esta pena he em tudo similhan-
te á inhabilitação para advogar.
7. Inhabilitação de figurar emjustiça na qua-
lidade de a fazer executar : he * pena pecuniaria ,
que recahe sobre os que não fizerão o crime :
entende com os que tem algum legado em testa-
mento .
8. Impedimento para não poderem depor em
juizo : esta pena recahe sobre os que não com-
mettêrão o crime ; póde entender com todos os
que tiverão legado , no caso de terem necessida-
de do depoimento da pessoa excluida .
9. Exclusão de entrar nas Igrejas : he huma
pena restrictiva , que nas suas consequencias per-
tence á sancção religiosa.
10. Ser o réo similhante aos gentios , e publi-
canos. Creio que esta pena he huma especie de
opprobrio para o fazer odioso.
11. Não poder assistir aos enterros. Não sei
em que classe se deva pôr esta pena , nem que
utilidade póde tirar o morto de lhe não assistirem
ao seu funeral : se he pena , pertence á sancção
religiosa.
12. Ser excluido do beneficio do Sacramento
do Baptismo , senão he baptizado , e da sancta
Ceia esta pena pertence igualmente á sancção
religiosa.
A estas penas a excommunhão maior accres-
centa mais duas :

1
( 319 )

1. Exclusão do commercio , e da commu¬


nhão dos fieis.
2. Inhabilitação para fazer testamento.
Tal he a especie de pena , de que se servem
os Tribunaes Ecclesiasticos , ou espirituaes , para
me servir da sua extravagante expressão ( * ) . He
todo o seu codigo penal ; e por isso applicão as
mesmas penas a todos os crimes ( 1 ) : se he recom-
mendavel por ser breve , não tem a seu favor
mais do que esta qualidade : mas examinemos de
mais perto huma parte da sua imperfeição.
1. Sobre a penitencia -Openitente com
a cabeça descuberta , e os pés descalços , en-
volto em hum lançol , deve estar á porta da
sua freguezia , ou cathedral , ou n'huma praça ,
e pronunciar certos formularios . He pena de in-
famia , que pode ser util , applicada com dis-
crição , e juizo : mas huma pena deve ser exa-
ctamente definida , e he o que se não encontra
nesta : sería necessario determinar a hora , e o tem-
po ; mas não ha declaração permanente a este
respeito . O réo póde estar exposto horas intei-
ras , e pode estar hum só instante ; na presença
de infinita gente , ou de sorte que ninguem o ve-
ja ; a Igreja de huma aldeia , ou a Sé de huma
cidade ou a praça onde se ajuntão as pessoas
de hum districto , tem muita differença ; e ser
o concurso do povo maior , ou menor faz a pena

( * ) Na Igreja Catholica não se lhe pode dar este nome ;


pois que huma das suas Notas he ser Visivel : e os Sacramen-
tos são signaes sensiveis de huma graça invisivel.
( 1 ) He a espada de Hudibraz , que partia gigantes pelo
meio , e servia para usos bem pequenos . Se hum homem.
commette hum incesto , he excommungado. Se huma regatei-
ra tem razões com outra , até romperem nas maiores des-
composturas , são X exconimungadas.
( 320 )

mais , ou menos severa. O Penitente deve pro-


nunciar hum formulario , em que confesse o seu
crime, e que nem sempre he o mesmo ; mas que tem
sua variedade segundo a natureza da culpa , con-
forme a declaração da lei : o réo tem a liberdade
de o poder repetir em voz baixa e sem explicar
as palavras: ninguen he voluntariamente orador da
sua vergonha . Seria por tanto necessario que hum
official de justiça pronunciasse as palavras em voz
alta , e clara ; que o réo as fosse repetindo , como
se pratica nos Tribunaes , quando se dá juramen-
to. Deverião nomear-se pessoas autorizadas , que
presidissem á ceremonia ; e que portassem por fé
que tudo se tem executadó pontualmente confor-
me a vontade da lei.

ui Até que haja huma reforma ca este respei-
to beste modo de castigar, ( que he muito bom ,
considerado em si mesmo , estará sempre sujei-
to aos maiores abusos : terá sempre a sua execu-
ção desigual , arbitraria, e mais segundo as pes-
soas do que na razão do crime , conforme o cara-
cter do Juiz for mais , ou menos severo . Impõe se
ordinariamente a mesma penitencia , diz Burn ,
2
no caso de incesto e de simples incontinencia .
Quando se considera na differença destes dous
crimes , quem se não admira de os ver unidos sem
distincção , e misturados na mesma pena ? Longe
de mim dar pequeno valor á seducção da inno-
cencia , á desordem dos costumes no seio das fa
milias , ou querer abater por este modo os castos
prazeres da união conjugal , comparando-os de al-
guma sorte com os abraços mercenarios de huma.
prostituta. Mas ha proporções entre defeitos ,
e crimes ; e só hum zelo indiscreto , e fanatico
póde gostar de os ver confundidos. Hoje em dia'
raras vezes se ouve fallar de taes penitencias : an-
tigamente erão frequentes : actualmente tudo se
commuta em dinheiro.
( 321 )

2. Quanto ás inhabilitações legaes , ja expo


zemos em outra parte as objecções , que admitte
este genero de penas. ( Livro IV Penas incompe-
tentes ).
3. Quanto ao réo vir a ser como os gentios ,
e publicanos, isto he , como se fosse cobrador das
rendas publicas , he huma das penas da excom-
munhão : não sei o poder, que tem na opinião hum
similhante , castigo ; mas o que sei he , que na idéa
dos Juizes vale o mesmo que ser julgado como
reprobo á similhança dos gentios , e publicanos.
Hum homem , que depois de སྨྲས་ hum processo no
foro ecclesiastico não quer , ou não póde pagar
ao seu solicitador, ou procurador , que vale o mes-
mo , he excommungado ( 1 ) . Alli o. temos entre
os gentios , isto he , entre os que adoravão a Ju-
piter , e outros deoses da fabula , entre os offi-
ciaes das rendas do Estado , 4 financeiros , lords
thesoureiros, etc. N'outro tempo sería huma inju,
ria grave , mas no dia de hoje he ridiculo , he
fazer as leis pequenas ( * ),
#
4. Não poder entrar nas Igrejas os que não
frequentão os templos , bem pouco devem sentir
a pena entretanto não sería mal imaginada ,

( 1 ) A excommunhão emprega- se em muitos casos para


obrigar o devedor a pagar por este modo hum homem pó-
de ser excómmungado por ser pobre. Bemaventurados os po-
bres , disse Jesus Christo. Vemos, que esta linguagem não he
a dos homens , que se chamão seus successores.
( * ) Para os Catholicos ainda hoje he hum grande castigo
estar fóra da Igreja Visivel he este o sentido das palavras.
Os cobradores naquelle tempo erão odiosos , e asim lhança vi-
nha de molde : e todos sabem da rivalidade entre Judeos , e
Geniis , que tinha crescido com a oppressão dos Romanos ;, de
sorte que a pezar do seculo de Agusto , e da Presença do Filho
de Deos , la intolerancia era geral : os que devião ensinar
a verdade , mostrando- se amaveis › erão os primeiros que
se fazião odiosóstej perpers
Tom. I. Ss
( 322 )

se tivesse por fim excitar o desejo de visitar as


Igrejas ; porque tal he a imaginação natural : agra-
da-nos tudo aquillo , que nos he prohibido ; nem
se prohibe huma cousa se não porque o Legisla-
dor a julga appetecivel. Tal he a supposição ge-
ral , pelo menos quando a prohibição recahe
sobre hum objecto desconhecido : mas ainda mes-
mo no caso, em que a acção vedada he daquellas,
que se podem conhecer pela experiencia , e que
se desprezão , e enfastião ; applicai-lhe o sainete
: -
da prohibição , e ella tomará hum novo aspecto
inteiramente diverso : o Legislador que a prohibe ,
he porque faz caso della , porque tem utilidades ;
e á força de o julgar assim venho a descobrir
cousas , que não sentia até agora ; começo a inquie-
tar-me , a imaginação trabalha , de sorte que por
fim me julgo inferior aos que estão gozando da
sua liberdade , até que insensivelmente vem a suc
ceder o mais vivo desejo por huma cousa , para
a qual se olhava d'antes com a maior indiffe-
rença.
Os que attribuem a inclinação tão geral, que
tem o homem para transgredir as leis prohibitivas ,
2
á perversidade natural do coração humano , são
moralistas bem superficiaes : custa - lhe o trabalho
do exame , e por isso não conhecem , que todosos
sentimentos moraes se explicão pelas idéas de mor-
tificação, e de prazer ; porque não estudão , he qué
tem considerado o homem como hum composto de
contradicções , e inconsequencias. No seu concei
to he hum ser incomprehensivel , hum enigma
profundo , hum abysmo , que se não pode sondar,
Pascal , que nasceo para conhecer as leis da na-
tureza fysica , tinha comprimido o seu genio pa-
ra não conhecer os principios simples , por que se
governa a natureza, humana.
Quanto ás penas de excommunhão, que per
(( -323 )

tencem á sancção religiosa , como a exclusão


dos Sacramentos, tem hum defeito , que salta logo
aos olhos são muito desiguaes ; o seu effeito pe-
nal pende da crença , e sensibilidade das pessoas
a quem se applica : o golpe , que para huns he
mortal , para outros não faz mais do que arra-
nhar a pelle nada de proporção ; não pode ser
exemplar: o que a soffre vai - se definhando em
segredo , e despedaça a sua alma em silencio :
o que não faz caso della moteja em vozbaltag
e insulta a lei : he humapena lançada em mas-
sa , ao acaso , sem que o Legislador seemba-
race , se ella se applica ouise fica sem effeito.
Fallo quanto a esta vida : quem pode sup
pôr no dia de hoje , que a excommunhão possa
levar de rojo para a eternidade as suas conse
quencias funestas ? Que homem haverá , huma
vez que discorra sem prejuizoi que possa acre-
ditar que Deos tenha entregue a seres tão frá-
cosļe tão imperfeitos hum poder tão terrivel ?
Que a Justiça divina se queira sujeitar ascum-
prir os decretos da cega humanidade ? Que os
homens obriguem a Deos a castigar por hum
modo diverso , por que elle teria castigado o cri-
minoso ? Huma verdade tão simples , e tão pal-
pavel , não podia ser desconhecida senão por
hum grao de bruta estupidez , preparado nos
seculos de ignorancia ( * ) .

72405
( * ) Todo este Capitulo he hum resumo diz o Senhor
Dumont o Immortal Bentham espraiou -se muito mais fallan-
do destas armas , ou penas espirituaès : materia difficultosa de
preceber para quem não está senhor da Jurisprudencia In-
gleza , e pouco interessante ; porque á medida que se espa
Tha a luz da Filosofia vão desapparecendo , e criando ferrugem
estas armas tão acicaladas , e tão frequentes , e tão cortadoras
n'outro tempo. He verdade , que se os Bispos não tem o di-
reito de marcar as suas ovelhas , como as podem conhecert
S$ 2
( ( 324 )

CAPITULO III .

§. 1. - Traição. ( * ) .

Esta palavra no seu principio applicava se va‹


gavemente a hum delicto complexo , ou , para
melhor dizer , tomava -se pelo crime em geral ,
quando as leis não conhecião outro delicto
sujeito a regras fixas mais do que o que,
brantamento de huma obrigação politica ; nesse
tempo , em que todas as obrigações sociaes esta-
vão comprehendidas em huma só , no direito
"
feudal. Segundo os principios deste direito , to
dos os bens do vassallo erão huma dadiva , que lhe
fazia o senhor : acceitando esta davida , o que as-
sim adquiria direito contractava huma especie de
obrigação indefinida , cuja natureza nunca jámais
se explicou exactamente : o donatario estava
obrigado a prestar ao doador , serviços estipulados ,
20

Só Deos poderá quebrar vasos de barro ( dizia S. Cypria-


no ) , porque tem våra de , ferro , mas nem por isso dei
xemos de impor aos lapsos a vergonha que os faça arrepens
der , e a medicina que os possa curar. O que nós fizermos
sobre a terra , por hum juizo anticipado será confirmado no
Ceo. ( Act. Apost. Cap 20. 1. ad Corint. Cap 5 Vers. 4 ) :
contra factos não podem haver racicinios ; mas como Deos
não tira a liberdade , de tudo se póde abusar.
( * ) Felonia , he o titulo deste Capitulo. No systema
feudal tudo erão senhores de baraço e cutello : qualquer des-
obediencia do vassallo era huma traição , e se he licito
fallar assim , tudo erão crimes de primeira , e segunda cabe-
ça ; até quizerão dominar sobre o pensamento : し daqui sordi-
rão as penas atrozes > a cegueira da Inquisição, os crimes da
Intendencia , etc. etc. O' leis da natureza ! luz da liberdade !
Assim vivêrão nossos Pais ; ou , para melhor dizer , assim mor
rêrão !
( 325 )

abstendo-se geralmente de tudo quanto podesse


contrariar os seus interesses.
Era este principio de sujeição , antes moral que
politico , pelo qual na primeira repartição , que se
fazia das terras conquistadas , se união os Baroões ao
Principe , os Cavalheiros aos Barões , e o mais Po-
yo aos Cavalheiros. Se o donatario ou vassallo fal-
tava a alguma das suas obrigações ; se ousava
desviar-se da linha , que lhe tinhão traçado , e en-
ganava a esperança do seu bemfeitor ; perdia o
seu fundo , unico remedio , em que estava toda a
sua importancia politica , e abase da sua sub-
sistencia : vinha a recahir no estado desprezivel
do Povo , que vivia de hum modo precario á cus
ta de quem o queria empregar em algum servi-
ço ; e esta degraduação era huma pena tão gran-
de , e fazia tal impressão no espirito humano
que ao depois , quando em muitos casos se lhe
ajuntou a pena de morte , pouca differença veio
a fazer o supplicio não parecia mais do que hum
accessorio , huma consequencia natural , hum ob-
jecto inferior. Estabeleceo se antes por costume ,
do que por huma lei politica : tirar a vida era
cousa bem pequena , depois de tirarem ao misera-
vel tudo quanto lhe podia dar algum valor. Eis-
aqui o estado das cousas , se me não engano , no
principio do direito feudal : mas era muito pre,
cario para durar muito tempo. Com tudo , he ne-
cessario revolver os atrazados , se queremos achar
a origem da palavra traição , que se acha nos
mais antigos monumentos das leis feudaes , já de-
baixo da significação de castigo , já considerada,
na razão de pena.
Alguns etymologistas a derivão do Grego ,
querendo alardear de saber a lingual : creio , que
se tivessem algumas noçoes do Arabe , irião bus-
car alli a raiz da palavra : Sir Edward Cook, que
( 326 )

não sabía Grego , mas que sabía alguma cousa


de Latim , e que não perde occasião de se mos-
trar , derivou a palavra (felonia) de fel , fiel . Com
a mesma verosimilhança a podia tirar de felis a
gato , animal infiel , e traidor. Spelman propõe
muitas etymologias : húma dellas he de duas pa-
Javras Anglo -Saxonicas : fee , que nessa antiga lin-
goa , e no inglez tem huma significação , que se
aproxima á propriedade , ou dinheiro , e lon , que
no Alemão moderno quer dizer preço : feelon
por consequencia he pretium fundi. O Author
dos Commentarios adopta esta etymologia ; mas
felonia hé palavra , que tem hum sentido activo ,
he huma acção ; e creio que antes se deve deri-
#
var de hum verbo , que de dous substantivos ,
que separados , ou combinados não tem significa-
ção activa.
Overbo fallere he provavelmente a origem .
do francez faillir. O idioma Anglo - Saxonico tem
o verbo feallen , raiz do Inglez to fail ( 1 ) .
Por hum procedimento metafysico muito or-
dinario em todas as linguas , esta palavra, passan-
do do sentido proprio para o figurado , veio a si
gnificar cahir em falta , offender , enganar , sahit
J
do seu dever. Esta derivação , que he huma das
que lhe dá Spelman , me parece mais natural:
creio que temos dito quanto basta sobre a origem
da palavra , pouco importa saber donde veio , o
v! you on
caso he , que se vá embora.
A proporção que o rigor da policia feudal
A A
afrouxava , e que os feudos se fazião permanen
7
tes , e hereditarios ; as penas de privação vinhão
OÂNJK DII
ovor ob ofvissh s
9.01 ) . To fell . He fell from his duty , he fell from his als
legiance. Esta ultima palavra significava antigamente a sujeição
legal do vassallo para com o seu senhor : fidelidade , obedi
encia.
( 327 )

a ser menos frequentes , e já se não applicávão a



pequenos delictos . Hum feudatario podia com-
metter crimes , que se não chamavão traições.
Por outra parte a privação vinha a ser huma pe-
nå insufficiente para certos delictos : hum feuda
tario podia possuir féudos de differentes pessoas.
O senhor interpunha suas reclamações , ou por-
que assim convinha aos seus interesses pessoaes ,
ou pelo bem da communidade , e impunha penas
por crimes , que o senhor immediato não castiga-
va nos seus vassallos , porque não interessava no
castigo : de sorte que por este modo insensivel-
mente se forão modificando as penas corporaes ,
e pecuniarias , commutando - se em outras mais
economicas , até que se fizerão leis positivas para
isso mesmo ; sendo menos frequente a pena de
morte , que no seu principio se applicava a quasi
todos os crimes : ainda que ficava salvo o direito
do senhor para usar da pena em todos os casos
antecedentes á reforma da lei : em parte, para lhe
dar occasião de se descartar de huma geração de
vassallos infamados por huma nodoa hereditaria ;
em parte , para completar a destruição da existen-
cia politica do réo , como a da sua existencia na-
tural . Sendo a privação a pena primitiva , conti-
nuou a dar o nome a huma certa massa comple-
xa de penas , de que ella não constitue no dia de
hoje mais do que huma parte ; e a palavra trai-
ção veio a significar huma pena , que não he mais
do que hum ajuntamento de penas sem escolha ,
cujo principal ingrediente era noutro tempo a sim-
ples privação.
Quando esta palavra se introduzio na Juris-
prudencia Ingleza , pela conquista dos Norman-
dos , apenas se applicava a hum pequeno nume-
ro de crimes , que mettião medo , como por exem-
plo , o roubo feito com as armas na mão , ou no
( 328 )

meio da estrada ; lançar fogo a hum predio ; o


homicidio , quando acompanhava similhantes hosti-
lidades. Taes erão nesse tempo os crimes, que se
comprehendião na dita palavra. Entretanto os Ju-
risconsultos com alicantinas forão accumulando
penas sobre penas debaixo do mesmo nome ; e os
Legisladores , por não saberem mais, forão accres-
centando a lista de similhantes crimes , até que
por fim a palavra traição veio a ser o nome não
só de huma pena , mas de hum montão de penas
heterogeneas ; não só de hum delicto , mas de cri-
mes de todas as classes , e de toda a especie. Se
me dizem, que hum homem commetteo huma trai-
ção , nem por isso fico inteirado do seu crime :
quando muito poderei dizer qual deve ser o seu
castigo. Póde ser hum delicto contra hum parti-
cular , póde ser contra muitos , contra o Estado ,
contra o mesmo réo : he huina expressão , que
destroe toda a especie de ordem , huma palavra ,
que espalha huma nuvem negra sobre toda a Le-
gislação penal. Os réos , confundidos huns com os
outros sem distincção, estão metidos n'hum fogo, de
que se não podem desembaraçar , de penas sem
regra , ou fortuitas , our incompetentes.
A traição , considerada na razão de pena com-
plexa , divide-se presentemente em duas especies ;
Traição sem privilegio do clero , e por abbrevia-
tura sem clero ; e traição com privilegio do clero ,
ou clerical. Estas penas assim comprehendidas
debaixo do mesmo nome por huma rotina cega ,
e hum arranjo , que destroe todo o principio de
methodo , são differentes huma da outra , como
passò a mostrar.

§. 11. Privilegio do clero.

A Religião Christã , ainda antes de ser do-


( 329 )

minante no Estado , tinha dado nascimento a hu


ma classe de homens , que pretendião dispor por
muitos modos dos premios , e castigos , que esta
Religião annuncia para a vida futura. Esta pre-
tenção , em que o homem faz as vezes de Deos ,
lavrou prodigiosamente nos seculos de credulida-
de e de ignorancia , e veio a ser a base do po-
der ecclesiastico ; porque o poder não he outra
cousa mais do que a faculdade de contribuir para
a felicidade , ou infelicidade dos homens. A ' me-
dida que o Clero soube imprimir nos animos a
opinião deste poder , esmerou- se , segundo a dis-
posição natural do coração humano , em ver se o
podia converter em utilidade sua ao principio
em proveito de toda a sociedade ; e depois em
vantagem dos individuos da sua classe . Neste sys
tema de usurpação ( * ) o pequeno numero ti-
nha os olhos abertos ; mas o grande sem duvida
obrava de boa fé , na persuasão de que elevando
os seus companheiros , fazia o maior bem do Es-
tado. Este poder no seu progresso tendia natu-
ralmente a abater , e desfigurar o poder politico :
erão infinitas as pessoas conjuradas para o mes-
mo fim , ou pelo menos , que obravão de sorte
que parecião ajustadas : he verdade que o plano
nunca se fez universal , nem era necessario que o
fosse : executava-se ( para assim dizer ) sem se
ter formado os meios erão evidentes , o fim era
simples , os interesses no Clero não se cruzavão.
De hum fim do mundo ao outro obravão sem se
conhecerem , como se podessem communicar os

( * ) Não se pode chamar usurpação ao Poder das Cha


ves a Escriptura , e a Tradicção he muito clara a este res-
peito ; mas tambem se não póde negar que os Clerigos em
toda a parte se intromettêrão em negocios puramente secu-
lares ; materia muito alheia da sua profissão , e do Sacra
mento da Penitencia , e da authoridade do Sacerdocio.
Tom. I. Tt
( 330 )

seus pensamentos. Cada hum dos collaboradores


hia continuando a obra do seu antecessor , que
adiantava o mais que podia , segundo o seu inte
resse , e a occasião lhe dava logar...
Por este modo ainda melhor do que se hou-
vesse ajuste entre elles , vierão os Clerigos a con-
seguir izenção das leis criminaes , que por hum
encadeamento , que se não esperava , de causas
e de effeitos , prodazio a divisão da pena , de que
se tracta nas duas especies , que existem no tem-
po presente .
A pessoa destes bemaventurados mortaes ,
que tractavão de mais perto com a Divindade , e
que tinhão na sua mão o manejo dos grandes in-
teresses do genero humano , devia ser não só re-
speitavel , mas sagrada ; expressão que admitte
hum sentido vago , e por isso de molde para se
espraiar na imaginação dos homens , porque in-
spira não sei que terror para com a pessoa a quem
se applica daqui veio não serem os Clerigos sen-
tenceados nos tribunaes profanos , nem os secula-
res os podião julgar , nem tocar contra sua von-
tade com suas mãos profanas. O mesmo logar ,
em que habitavão , participava deste condão mys-
terioso : as pedras talhadas para formar hum cer
to edificio erão sagradas : a mesma terra até hu-
ma 1certa distancia embebia em si a mesma vir-
tude ; daqui vem as immunidades em huma
palavra o mundo inteiro material , ou espiritual
foi dividido em sagrado , e profano . " Se os Cleri-
gos erão senhores deste privilegio inestimavel ,
tudo o mais estava assignalado de huma espe
cie de reprovação , ou de infamia , como se col-
hige da palavra. Passo rapidamente sobre os pro-
gressos da pretenção do Clero para se fazer in-
dependente de toda a jurisdicção profana ; Blak-
stone os tem descripto nos seus Commentarios
com tanta fidelidade , como elegancia,
( 331 )

Limitando me unicamente ás causas , que


entrão na palavra traição , os primeiros esforços
do Clero foi ver se podião salvar do castigo os
seus adherentes e depois destes toda a classe
de pessoas , que podião concorrer para o seu
maior credito , huma vez que lhe fossem adjun-
ctas. Pouco a pouco forão estendendo de tal sor-
te estas excepções , que por fim os juizes leigos
perdêrão a paciencia , e assentárão geralmente
não reconhecer privilegio mas como a reforma
era de repente , e violenta , não podia caber no
espirito daquelles tempos ; e o Clero ainda teve
influencia para alcançar dos magistrados secula-
res hum estatuto favoravel ( 1 ) ; onde se estabe-
leceo que todo o Clerigo regular , e secular, que fos-
se convencido de felonia , ou traição gozaria em
cheio para o futuro dos privilegios da Santa Igre-
ja , e seria remettido sem embargo , nem de-
mora para os seus superiores ecclesiasticos.
Dirião todos que esta ordenação era assás
.
explicita para segurar de huma parte a izenção
de todas as pessoas , que estavão na ordem cleri-
cal , e de outra parte para excluir todos aquelles,
que não tinhão este caracter : para ter direito ao
privilegio , bastava apresentar a carta de ordens ,
era huma prova decisiva : mas havião mais clas
ses de pessoas comprehendidas debaixo do nome
geral de Clerigos, que participavão mais ou me
nos dos seus privilegios ; e até parece que mui-
tos erão admittidos a seus officios sem nenhum
acto civil de ordenação. Esta distincção não se
achava no estatuto > ou porque esta omissão
fosse casual , ou de proposito : o caso he que o
clero teve habilidade para se dispensar de apre

(1) Edward. III. St. 3 , Cap. 4.


Tt 2
( 332 )

sentar a carta de ordens , e para obrigar os tri-


bunaes a acceitarem-lhe outra especie de prova ,
que apezar de nos parecer ridicula no dia de ho
je , não era com tudo incompetente naquelle tem-
po . Huma carta de ordens , podia dizer o Clero ,
tambem se póde fingir , e por isso não prova : ha
hum meio seguro , e livre de todo o engano para
se poderem conhecer os que estão dentro da nossa
1
classe ; he obrigalos a ler em hum livro , que na-
turalmente devia ser latino , a Biblia , huma Li-
turgia. Além dos ecclesiasticos bem poucas pes-
soas sabião ler , especialmente o latim ; e tal era
a ignorancia, que os Juizes conhecendo o engano ,
se deixavão illudir a favor dos que tinhão essa pren-
da tão rara naquelle tempo , e tão preciosa. Mas
quem não vê que era facil apresentar hum livro
por outro , e até virem já para o exame com a
lição estudada ! Além do que , o progresso natu-
ral da sociedade tendia a fazer a instrucção mais
geral , muito especialmente depois que se descu-
brio a imprensa .
Sendo isto assim , não nos devemos admi-
rar , se desde o tempo de Henrique VII , como
diz Blakstone " erão tanto os leigos como ec-
clesiasticos admittidos aos privilegios da Igreja ; e
he bem natural que o numero dos primeiros
ainda fosse maior ; porque ainda nos tempos os
mais dissolutos , os ecclesiasticos devião cahir
menos vezes que os outros nesses grandes cri-
mes , que erão da competencia dos Tribunaes :
os Clerigos sempre forão mais bem ensinados , me-
nos pobres , além da decencia, que requer o seu
estado , e que por isso os deve fazer mais co-
medidos. Mas que fizerão para remediar o abu-
so de se armarem quasi todos os seculares com
os privilegios do clero ? Fizerão hum novo esta-
tuto : mas em logar de exigirem a carta d'ordens ,
( 333 )

como deverião fazer ; estabelecêrão que o privi-


legio não poderia ter logar mais do que huma só
vez para os que não fossem ecclesiasticos ; e para
que não podessem enganar erão marcados na
mão : em quanto todo aquelle que apresentasse o
titulo da sua ordenação , ficava isento para sem-
pre , toties quoties lhe fosse necessario o privilegio ,
por huma graça especial , de que ainda hoje se
aproveitão.
Quando o réo , que tinha encorrido em trai-
ção , era admittido a gozar do privilegio , não
o punhão logo em liberdade , mas era entregue
ao seu Juiz ordinario , quero dizer , ao seu sú-
perior ecclesiastico . O grande objecto do Tribu-
nal eclesiastico , se devemos estar pelo que di-
zem os Juizes leigos , ( cujo testemunho não he
livre de toda a paixão , e desintesesse , ) era de-
clarar innocente o que o tribunal profano ti-
nha condemnado , com o fim de o fazer odioso.
Quando porém as provas erão tão claras que o
não podião absolver , davão lhe huma penitencia
leve , quero dizer , alguma pena corporal , que
ordinariamente estava bem longe de ser rigoro-
sa. He por este modo que o Clero se fazia va-
ler pela sua protecção , e ganhava todo o mundo
para o seu partido : os homens de bem , e as
almas timoratas pelas suas ameaças , e os malva-
dos por meio da esperança.
Entretanto ha bastantes indicios , e até
vehementes presumpções , de que qualquer indi-
viduo , que podia avocar a sua causa para o
Tribunal ecclesiastico , era ordinariamente absol-
vido , e purgado ; esta era a palavra de que se
usava na revisão da primeira sentença. Quando
os Juizes leigos assentavão sujeitar o réo ás pe
nas da lei ( excepto na pena de morte , que
não entrava em questão ) todo o seu empenho
!
( 334 )

era para que o réo se não podesse purgar , ou


justificar. Este modo de restringir a authori-
dade ecclesiastica era , a meu ver , hum grande
abuso de authoridade : resultava delle hum con-
flicto de jurisdicção entre o Juiz temporal e es-
piritual ; e no meio destes debates desordenados ,
os successos variavão a cada passo , segundo o
caracter dos individuos, e circumstancias do tem-
po.
No reinado de Isabel , o sentido geral da
palavra purgação , que na sua origem significa-
va juizo , era synonimo de absolvição : o que he
tão certo , que se estabeleceo nesse tempo por
huma ordenação , que depois do réo apresentar
o seu privilegio do clero , não seria entregue ao
ordinario ( tribunal ecclesiastico ) como estava
em costume ; mas que depois de lhe marcarem
a mão com hum ferro em braza , seria solto ;
salvo se o juiz o quizesse demorar na cadeia ,
com tanto que não passasse de hum anno : po-
der que elle não tinha , e que lhe foi concedi-
do pela dita ordenação .
} Mas onde ficava a pena pecuniaria , a pri-
vação , a corrupção do sangue , os impedimentos
civís ? Era cousa em que a lei não fallava , nem
creio , que dé tal se lembrou : mas seja o que
for , estas penas estão em desuso, sem que o Le.
gislador sobre isso tenha dito cousa nenhuma ;
è os juizes explicarão este silencio , como se por
elle se abolissem as ditas penas. Esta interpre
tação atrevida he huma nova prova de que a idéa
de purgar a pena era no espirito dos homens o
mesmo que absolver o crime : logo que o réo era
admittido a justificar- se , era absolvido , e por
consequencia isento de penas pecuniarias. Pre-
sentemente que o Legislador determinou , que
em logar do réo ser posto em liberdade , podesse
( 335 )

ser castigado com huma leve pena , se o Juiz o


mandar ; hum similhante procedimendo afasta do
réo toda a lembrança de ficar sujeito a penas
mais graves á vista da lei. E pois que estas penas
graves se remittem ao réo , sem que seja absolvi-
do , devemos considerar a sentença como hum
perdão. Logo que os Jurisconsultos se lembrárão
da palavra perdão , fundárão sobre ella mil dis-
parates , ainda que os effeitos tenhão sido uteis.
Quem não diria que o réo dispensado por
este modo da pena corporal , ( pois que não tinha
mais do que huma pena leve a arbitrio do juiz )
quem não diria que ficava dispensado de todas
as penas pecuniarias por ser perdoado ? Pois não
he assim. O réo continúa a estar sujeito á priva-
ção dos seus bens pessoaes ; e a razão está ( como
se esperava) na escuridade da lei , que se não en-
tende , e que mostra bem o caracter da antiga
jurisprudencia. A privação dos bens reaes não
deve ter logar senão depois da sentença do Juiz :
a privação dos bens pessoaes he posta em execu-
ção antes da sentença , isto he , desde que o réo
he pronunciado ( * ) sem que se possa atinar com
alguma sombra de razão para esta differença.
Desde o tempo de Henrique IV. não está em
uso admittir hum homem a provar o seu privile-
gio , senão depois de convencido : tenha os bens
que tiver ficão devolutos para o Rei : bem póde
estar innocente , ou ser perdoado , que vem a ser
o mesmo , o seu dinheiro está nas mãos do Rei ;
e logo que isto acontece ou tenha razão ou
não tenha , ninguem ho póde arrancar : porque
busl39 62 930 6 .4961

our cup cof


1.20
(*) Since the Jury's Verdict , ou Vere dictum assim cha-
mão os Inglezes a resposta do Jurado sobre huma causa, que
deve examinar para dar o seu voto . Solving
( 336 )

nem o Rei póde fazer mal , nem a lei se póde en-


ganar . Para fazer esta theoria mais clara que a
Juz do sol , he perciso saber , que as mãos reaes
tem huma virtude electrica , que attrahe a si tudo
o que são substancias de menos valor como os
bens moveis , e huma viscosidade que se pegão
em tudo aquillo em que tocão.
Tal he a base sobre que assenta ainda mes-
mo no dia de hoje a privação dos bens pessoaes
no caso de privilegio de Clero. A ultima ordena-
ção a este respeito deo o golpe de graça nos abu-
sos da Jurisprudencia ecclesiastica ; mas que im-
porta se a sua isenção ainda mais abusiva sub-
siste ainda? he verdade que o privilegio tem per-
dido muito do seu esmalte primitivo, e da sua di-
gnidade pela participação, que se tem communi-
cado aos leigos : antigamente era hum instru-
mento de poder illimitado sobre os outros ho-
mens, mas que hoje está reduzido a huma simples
protecção para com elles , protecção que nem
mesmo lhe pertence por hum modo exclusivo .
Veio em fim a ordenação da Rainha Anna ,
que deo o privilegio do Clero a todos sem excep、
ção , tanto aos que sabem , como aos que não sa-
bem ler : no reinado antecedente se tinha ou-
torgado o mesmo privilegio ás mulheres ; e aqui
temos huma nova significação , que se deo a esta
frase. Esta ordenação estendia , e confirmava este
privilegio abusivo , mas de palavra ; porque na
realidade o abolia , por isso que não distinguia
entre homens sem letras , e homens letrados ; es-
tabelecendo que huns, e outros terião a mesma
pena , a que se estendia o privilegio , não a pe-
na dos que não erão privilegiados ; mas a que
soffrião dantes os que tinhão o dito privilegio.
Desse tempo para cá , o mesmo he conce-
der o privilegio do clero a hum delicto , que
( 337 )
9
punir todas as pessoas , que commetterem esse
delicto, pelo mesmo modo , com que antigamente
se castigavão os homens de letras : he não fa
zer distincção de castigo. Tirar o privilegio do
Clero he castigar de outro modo ; mas muito mais
severo, esse mesmo crime. A differença entre dei-
xar , ou tirar , está no gráo maior , ou menor dat
pena : antigamente consistia em conceder , ou
não conceder huma izenção oppressora , e sem
razão sufficiente .
Por estas operações, que se atrave ssão mu-
tuamente , e sahem do caminho direito , he que
se introduzirão na lei desordens, e vicios , que
se não podem 2 sanar sem que haja huma revis-
ta geral : he hum véo tenebroso, que veio cahir
sobre toda a Jurisprudencia Ingleza , huma lin-
guagem , que se não entende , hum habito de so-
fisticar a razão , huma difficuldade de explicar a
lei ; de sorte que . os homens estão expostos a
errar a cada passo.

- §. III. Traição sem privilegio do Clero.

Pelo que pertence á traição sem privilegio ,


logo veremos os ingredientes , de que se compõe
esta pena : mas antes disso , será bom distinguir
a parte, que recahe sobre o criminoso , e a que
vai recahir sobre os innocentes.
A primeira comprehende 1. Huma priva-
ção total dos bens moveis. 2. Perda de bens
immoveis , de terras que o réo trazia arrendadas :
esta perda póde ser total ( 1 ) , ou parcial , segun-
do a natureza dos bens.

( 1 ) Não he total em todos os casos. A mulher do réo


tein direito ás suas arrhas , que devem sahir dos bens con-
fiscados.
Tom. I. Vv
( 338 )

$. Prizão com tempo indefinido segundo a


vontade do Juiz , ou do Rei . 4. Pena de mor-
té , acabando o réo em huma forca.
Quanto ás penas , que recahem sobre os in-
nocentes , são : 1. Os herdeiros do réo em ge-
ral ( isto he , a pessoa , ou pessoas na ordem de
successão , relativamente aos seus bens reaes ) fi-
cão esbulhados de toda a propriedade real, de que
elle estava de posse , e cujo direito terião her-
dado , a não haver da parte do réo huma dispo-
sição contraria. Esta privação he huma conse-
quencia da doutrina da corrupção de sangue ;
mas se antes do crime commettido , o réo tinha
disposto da sua propriedade real a favor do seu
herdeiro , não lha tirão ; e por este modo a pri-
vação he casual , póde ser tudo , ou nada. 2.°
O herdeiro perde todas as successões de terras
e propriedades reaes , aà que não poderia ter di-
reito senão na qualidade de herdeiro o mais pro-
ximo do réo he huma privação contingente , e
remota ; e por isso a pena ainda he mais incerta
do que era no caso antecedente,
3. Os crédores , cuja divida estava hypotheca-
do sobre os bens reaes do réo perdem o seu di-
reito no caso da divida ser contrahida depois do
crime : he huma pena incerta quanto á pessoa ,
sobre quem recahe ; mas certa quanto ao acon-
tecimento , se ha crédores desta natureza.
4. As pessoas , que comprárão ao réo alguma
parte dos seus bens reaes , ficão privadas desses.
bens , no caso da compra ter sido feita depois de
commettido o delicto.
Na linguagem ficticia dos Jurisconsultos , jul-
ga- se que o réo he castigado nestas privações
exteriores :mas na linguagem da verdade são os
herdeiros , os crédores , e os compradores , que
padecem , e a pena vem a ser unicamente para.
elles.
( 339 )

A privação . dos bens pessoaes , que tinha o


réo , he outra especie de pena , que póde ca-
hir sobre pessoas innocentes.
1. Sobre a desgraçada mulher , que por este
modo fica privada de tudo o que lhe poderia vir
a caber por testamento , ou que podia entrar
em partilhas por morte do réo.
2. Sobre seus filhos ".
, où parentes.
3.° Sobre os credores , que já não podem recla-
mar por cousa nenhuma pertencente aos bens
pessoaes, no caso do titulo ser posterior ao crime.
Passemos agora á traição com privilegio do
Clero : as suas penas são muito menos variadas ,
e muito menos severas . Das penas , que pertencem
ao réoy comprehende a primeira , e a terceira ,
2
isto he , a privação dos bens moveis , e cadeia.
Em logar da pena de morte está em costu-
me imprimir hum signal com hum ferro em bra-
za na mão do réo : mas esta pena está reduzida
actualmente a huma farça. Suppõe - se, que se de-
ve fazer em pleno tribunal , logo que o delinquen-
te tem declarado por huma mentira solemne . que
pertence ao foro ecclesiastico ; e se he mulher ,
logo que reclama o privilegio da ordenação. A
marca, que se imprime he a letra T ( 1 ) no dedo
pollegar da mão esquerda : mas se o réo não tem
o dedo pollegar , já não pode receber a pena ; e
se depois de a receber se lembrou de cortar o de-
do , já se não conhece. O instrumento antigamen-
te era hum ferro em braza , de sorte que o ferre .
te ficava para sempre : mas hoje em dia appli-
-ca-se hum ferro frio he huma ceremonia , não
fica o signal. O Juiz preside a esta parodia da lei ,
ninguem se queixa , infinita gente o approva , he

( 1) E no homicidio a letra M.
Vv 2
( 340 )

brandura , he humanidade ; e eu acrescento , he


lograr a lei , he fazela ridicula : mas o Juiz não
tem o desgosto de ouvir os gritos de hum ho-
mem, a quem se applica hum ferro em braza. Per-
guntarão talvez, por que razão não propõem os Jui-
zes , que se emende a lei ? Não era isto melhor
do que estarem praticando huma acção arbitra-
ria ? Não sei responder. O primeiro que alterou
a lei, fez hum acto de authoridade arbitraria : o
que tivesse affouteza para a fazer reviver , pode-
ria usar de hum meio menos penoso do que
hum ferro em braza ( 1 ) .
Outra pena , que se pode accrescentar , ou
deixar de accrescentar , he o degredo.
Recahir segunda vez depois de gozar do
privilegio do Clero che pena de morte , á exce-
pção dos ecclesiasticos . Os mesmos Pares não são
exceptuados da pena , e as mulheres estão ex-
pressamente sujeitas. Grande distincção sem du-
vida , e que deve fazer muita honra ao Clero :
poder commetter sem maior perigo hum gran-
de numero de crimes diversos , pelos quaes to-
dos os mais membros da sociedade são cenfor-
cados. Não haverá ninguem , que não tenha ou-
vido fallar de aventureiros, que tem casado ao
mesmo tempo com cinco , ou seis mulheres ; mas
logo que tenhão escapado do primeiro castigo ,
he preciso ter muito cuidado em si para não
cahir segunda vez ; em quanto os ecclesiasticos ,
que devião dar exemplo , podem ter hum serra-
lho. Os homens moços, que são bem affigurados,
devem buscar o estado , se querem fazer conquis-

( 1 ) A Ordenação manda que o rẻo seja marcado , não


falla do modo : Blackstone , que não he desta opinião, (4 Comm.
360 ) falla d'outiva ; certamente não tinha visto a lei.
( 341 )

tas, pelo menos podem tomar o Diaconado , que


não tem grandes pensões : em estando ordenados ,
podem viver á solta ; porque se forem apanhados
não tem que recear maior castigo. O ferro frio
não os ha de molestar ; poderão estar na
&
cadeia por alguns mezes ; mas , como haja
dinheiro , em toda a parte se vive, Ficão per-
dendo os bens moveis : mas que importa ? Po-
dem esconder dez mil libras esterlinas em huma
carteira : quanto mais , que podem converter os
bens moveis em bons fundos de terra , que não
estão sujeitos á pena.
Ha tambem neste caso huma cousa singu-
lar ; porque senão perde a reputação : he o mais ,
a que se podia estender a lei , querendo prote-
ger hum réo. Este homem roubou doze soldos ,
foi prezo , e convencido : todo o mundo lhe pode
chamar ladrão : mas se foi castigado com privilegio
do Clero , bem me posso livrar de lhe dizer a mais
pequena injuria, porque me não livro da pena : he
o que se tem practicado sempre com a maior so-
lemnidade . A outro qualquer , em lhe eu provan-
do o crime, estou livre de ser castigado : mas no caso
presente , em que o roubo está provado juridica-
mente he preciso calar-me , sob pena de ser
diffamador. Quem poderia adivinhar a razão des-
ta differença ? He porque a Ordenação tem per-
doado ; que vale o mesmo que dizer , que a lei
tem virtude de desfazer o que está feito , ( de
inverter a ordem natural ) porque hum homem ,
dizem graves personagens , já se não póde cha-
mar ladrão, huma vez que foi castigado por este
modo ; se teve huma doença vergonhosa , já
não tem essa doença.
Todos estes sofismas , e outros similhantes
tendem a enfraquecer a influencia da sancção
moral . Quereis dar a mesma protecção a todos
( 342 )

os réos ? Certamente que não : porque isso he


huma cousa que nunca se fez. Então para que
a dais particularmente a estes ? O Jurisconsulto ,
que tem subtilizado mais sobre esta doutrin a
de perdão , que se encerra no privilegio do Cle-
"
ro , he Sir Edward Cooke , homem que pelos
seus principios era inimigo jurado da liberda de
politica , e por inclinação o seu mais afferra do
partidista.

Fim das penas , ou castigos legaes.


( 343 )

INDICE DOS CAPITULOS ,

Que se contém neste primeiro Tomo.

INtroducção geral a toda a Obra. Pag. 3


Prefacio á Theoria dos castigos , ou penas le-
gaes. 7
LIVRO PRIMEIRO. Principios geraes. 11
CAPITULO I. Definições , e distincções.
II. Classificacão. 17
III. Fim das 19
IV. Despeza danas. 24
penas.
V. Medida das penas . 26
VI. Qualidade que devem ter. 35
VII. Analogia entre as penas , e os
delictos. 49
VIII. Da pena de talião. 57
-
IX. Da popularidade do Codigo pe-
nal. 60%
X. Das penas que se não devem im-
por. 67%
LIVRO II. Das penas corporaes. 73.
CAPITULO I. Das penas simplesmente afflicti-
vas.
II. Das penas afflictivas complexas. 83
III. Das penas restrictivas -- Não po-
der o reo viver onde quizer. 94
IV Da prizão. 96

V. Exame da pena de prizão. 104


VI. Da carceragem. 120.
VII Plano geral sobre as cadeias. 123
VIII. Outras especies da pena de não
poder viver o reo onde quizer Quasi
prizão - Degredo S Desnaturalização. 129
( 344 )

IX. Das penas simplesmente restricti-


137
vas.
X. Penas activas , ou trabalhos força-
143
dos.
XI. Do degredo para Botany Bay. 152
-
XII. Casa de correcção Panoptico. 170
189
XIII. Das Penas Capitaes.
197
XIV. Exame da pena de morte.
222
XV. Das penas subsidiarias .
LIVRO TERCEIRO . Idea geral deste livro.
227
CAPITULO I Das penas de privação.
- II. Das penas da sancção moral. 231
1
III. Das penas que tocão na honra
desde a simples murmuração até á infa-
2 mia. 240

IV. Penas pecuniarias , e quasi pecu


niarias 264
Privação de propriedade.
—— V. Penas de privação que entendem
269
com o estado , ( ou condição do réo ) .
282
VI. Privação de protecção legal.
286
LIVRO IV. Das penas incompetentes.
- 287
Secção I. Responsabilidade civil.
-IIII.. Males inevit aveis que derivão da pe
na. 288

III. Divisão das penas incompetentes. 290


IV. Penas substitutas. -291
V. Penas transitivas. 294
VI. Penas collectivas. 299
303
VII. Penas fortuitas.
315
LIVRO V. Das penas complexas.
CAPITULO I. Inconvenientes que resultão de si-
milhantes penas.
II. Excommunhão . 317
324
III. Traição.

BRITISHY

IBRAH

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