Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
histórias de vida
Ano 010 Número 549 R$ 3,00
Alagoas 27 de agosto
a 2 de setembro 2023
dos moradores
CAMPUS
da grota
Dois Podemos afirmar que esse texto é fruto de um pedido do professor Sávio ao Railton
Texeira da Silva. Trata-se de parte de uma série de entrevistas, cujo objetivo era ouvir
dedos lembranças e histórias de vida de pessoas mais velhas, principalmente tentando iden-
tificar os saberes e as práticas populares escondidas nas grotas de Maceió. Neste artigo,
Railton traz os testemunhos de Manoel Ferreira da Silva (seu pai) e Dona Luzia, dois dos
de moradores mais antigos da Grota do Cigano.
EXPEDIENTE
Eliane Pereira
Diretora-Executiva
Deraldo Francisco
Editor-Geral
Conselho Editorial
Jackson de Lima Neto
José Alberto Costa
Jorge Vieira
CAMPUS
Apoio
Para anunciar:
(82) 3023.2092
Endereço:
Rua Pedro
Oliveira Rocha, 189,
2º andar, sala 210
Farol - Maceió - Alagoas
CNPJ:
07.847.607/0001-50
E-mails:
redacao@odia-al.com.br
comercial@odia-al.com.br
As narrativas de Manoel Ferreira da Silva Foi uma decisão minha, mas não foi simples. que até hoje tem por trás da casa que agora é da
Muitas lembranças ainda tenho do tempo que Falei com meu pai: ‘olha, pai, vou procurar serviço minha família.
aqui cheguei até hoje. Quando vim morar na Grota em Maceió’. Perguntei ao meu irmão João, ‘vamos Quando foi em dezembro, faltando poucos dias
do Cigano, a moradora mais conhecida era a Dona embora para Maceió? Se você for iremos tal dia’. para o fim do ano, minha tia Rita me chamou para
Luzia. A grota era uma imensidão de mata e em um Chegamos em Maceió e nos dirigimos para a casa visitar um filho dela, chamado Pedro, que morava
espaço pequeno, poucas casas. Os Ciganos mora- de um amigo chamado Zé Prego, que morava no aqui em Maceió. Eu disse ‘vou não’, mas ela ficou
vam lá por onde hoje é a Igreja Nossa Senhora de Reginaldo. Ele era casado com uma prima. Foi só aperreando ‘bora, bora, vai eu, você e Hilton’. Hilton
Fátima. Muita coisa mudou, principalmente essa chegando, descansando e no outro dia fui procurar é seu filho e atualmente é padre em um interior
rua aqui. As casas aqui pra cima era todas vazias. serviço, lá na Salgema, naquele cais do Porto, que de Pernambuco. Aí aceitei. Passei final de ano em
Não tinha ninguém. à época ainda estava em construção. Não queria Maceió, entre os anos de 1983 e 1984, passei o final
Eu era solteiro. Na época tinha 25 anos; com 26 Recife porque tinha a fama de cidade perigosa. de ano e aproveitei e falei para o Pedro que se ele
comecei a construir a minha casa, no mesmo ano Sempre me chamaram para ir para São Paulo, eu arrumasse um emprego aqui, só era falar comigo
me casei e comecei a morar. Foi uma casa de taipa, dizia ‘quero nada’. Tinha uma simpatia por Maceió que eu viria. Depois do final de ano, dois dias depois
de barro e madeira. Muito sacrifício... Fiz uma casi- e vim para cá. voltamos, eu e minha tia Rita, Hilton ficou.
nha separada. Saia para trabalhar e a mulher ficava Depois de um tempo João voltou para Corren- Chegando em Correntes, no segundo dia quei-
sozinha com os filhos. Mas era pouca violência. tes e eu fiquei, aí consegui um trabalho em um mei a caieira dos tijolos tudinho, quando foi no
Mas a decisão para vim morar em Maceió, princi- prédio. Vim apenas com a passagem de ida e volta. outro dia Hilton chegou, isso em janeiro de 1984. Ele
palmente na Grota do Cigano, não foi fácil. Pois sou Quando estava completando oito dias, havia traba- disse: ‘Oia, Pedro mandou tu ir trabalhar, ele já arru-
filho natural do município de Correntes, próximo lhado a semana todinha, o Zé Prego tinha tomado mou vaga para tu lá em Maceió’. Eu disse ‘foi mesmo,
à cidade de Garanhuns, em Pernambuco. Morei uma cachaça, a noite não dormiu, queria matar a rapaz?’, olhei para o meu pai assim e disse ‘oiá, pai, o
no Sítio São João, com outros onze irmãos. Sempre mulher, pensei ‘homem aqui não vai dar certo não’. senhor pegue esses tijolos, venda, dê, empreste faça
ouvia falar de Maceió e sempre tive vontade de Quando foi no domingo eu peguei o ônibus e voltei o que o senhor quiser’, parece que foi Deus que disse
buscar melhores condições de vida e uma forma de para Correntes. assim, que iluminou os meus caminhos e disse que
ajudar a alimentar os meus familiares que perma- Isso foi em setembro. Voltei e falei com o meu eu viajasse. Aí meu pai disse ‘tá certo’. Eu viajei para
neciam no sítio. Com 24 anos tive uma conversa pai: ‘vou bater o tijolo, fazer a minha casa e vou Maceió, quando foi no dia 28 de janeiro cheguei e
com um irmão, chamado João, que havia chegado embora para quando eu casar venho morar aqui’. comecei a trabalhar em uma pizzaria, em poucos
de São Paulo e o chamei para vim para Maceió Aí meu pai disse ‘tá certo’. Fiz dez milheiros de tijo- dias eles ficharam a minha carteira, até hoje graças
procurar serviço. los, no local aproveitamos para fazer um açude, a Deus estou em Maceió.
Railton Texeira da Silva (bebê) e sua mãe, na casinha de Local onde foi feito o primeiro
taipa feita por Manoel Ferreira, no início dos nos 1980 galpão de construção de tijolos
Comecei a trabalhar como ajudante do meu Fechado o negócio fui para o interior conversar Mas, com apenas um mês com o terreno adqui-
primo Pedro, pois ele era pizzaiolo. Comecei a com meu pai, vender uns negócios que tinha lá. rido sai do trabalho, passei 30 dias desempregado,
dormir na pizzaria, tinha um quarto, ficava lá sozi- Vendi dois garrotes que tinha, que deu menos da sobrevivi com a rescisão do contrato de trabalho e
nho. Todo dinheiro que eu pegava na semana eu metade do valor. Cheguei aqui, faltando 20 cruzei- fui contratado para trabalhar em um restaurante
mandava para a minha família, no interior. Às vezes ros para completar a metade do valor, que era 350. famoso na época no bairro da Ponta Verde, assim
eu ficava sem nenhum centavo. Isso era para meu Vim no dono, falei com ele e disse que não iria ficar tive a oportunidade de ter qualificação e, inclusive,
pai fazer a feira, naquele tempo não era fácil. Nesse com o terreno, pois não tinha dinheiro: ‘o dinheiro na carteira, de ajudante para cozinheiro. Depois
período um colega de trabalho chegou e disse que que tenho aqui é 330 cruzeiros, então não vou poder parti para trabalhar em hotel, como cozinheiro, mas
tinha um senhor vendendo terreno no Jacintinho, comprar o terreno’. Ele disse que o negócio era meu, morava na minha casa. Nessa época ainda vieram
na Grota do Cigano, em parcelas. Como não podia perguntou se eu queria, disse que eu era uma pessoa sete primos que também queriam uma oportuni-
comprar à vista, ‘vou lá comprar parcelado’. Quando de bem: ‘vou colocar no papel que você deu os 350 e dade em Maceió. Mas depois que casei e cada um
cheguei, Dona Luzia me mostrou uns terrenos daqui a 20 dias você dá o que falta”. foi para o seu canto.
nessa rua. O primeiro apresentado foi o que hoje Com seis meses eu tinha que arrumar a outra A grota cresceu... O pessoal veio através da
é a Igreja Assembleia de Deus. Não gostei, ela me metade para concluir a negociação. Fui bata- informação. Eram terrenos vazios, mais baratos;
apresentou outros três terrenos, aí eu disse que não lhando, tomei dinheiro emprestado com um, com vieram comprando, comprando e foram se espa-
queria, porque todos eram perto do riacho. outro, fui até quando consegui o restante e fechei lhando até quando encheram aqui a grota todi-
Até quando ela me apresentou ao que hoje é a a primeira parte da negociação com ele. Fiz uma nha; e aqui no início só era barro, a passagem era
minha residência. Isso por ser mais alto. Os outros casa de taipa que era um ambiente só, de quatro muito dificultosa, carro não passava; no verão
terrenos não despertavam interesse porque quando metros quadrado. Não tinha nada de quarto, cozi- passava, no inverno voltava tudinho. De uns
chovesse iria entupir o rio e chegar até a minha casa, nha. A região era desabitada, de um lado só mato, tempos para cá, começou passando as máquinas;
quanto mais alto melhor. Conversei com o dono, árvores frutíferas e, do outro, tipo um conjunto depois passaram calçamento e virou essa grota
que era o seu Silva, na hora fechei o negócio e dividi de casas construídas pelo seu Silva. Ele fez várias aqui.
o valor do pagamento em duas vezes. O terreno foi casinhas para alugar, mas nessa época não tinha Esse pessoal trabalhava de construção civil.
700 cruzeiros. Na época eu recebia 20 cruzeiros, ou quase ninguém a não ser dona Luzia e seus filhos. Começaram a trabalhar em construções. Longe
seja, cinco por semana. Mandava tudo para o inte- Lá embaixo na grota alguns ciganos e uns parentes daqui... Morava aqui e trabalhava fora, até quando
rior. As vezes ficava com um cruzeiro. de seu Silva, mas lá embaixo. chegou essa população todinha.
4 O DIA Alagoas 27 de agosto a 2 de setembro | 2023