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A BARBÁRIE COMO MITO POLÍTICO

© KATIA MENDONÇA

RESUMO: Adotando o Mito Político no sentido de estruturas de imagens

semelhantes às imagens oníricas, nas quais há o cruzamento entre o passado e o

presente e que se encontram em diversos materiais, da literatura aos filmes,

passando pela fotografia e pelo discurso oral, analisamos o Mito Político da Barbárie

tomando como ponto de partida as imagens do presidente brasileiro Fernando

Collor, que sofreu processo de impeachment em 1992 por corrupção. Eleito sob o

imaginário da Salvação, é deposto como símbolo da barbárie. O artigo aborda os

temas da alteridade, das sociedades sem história e do bode expiatório como alguns

daqueles presentes na constelação de imagens que compõem o mito da barbárie,

em última instância presentes no imaginário latino-americano.

A Alteridade

"Escravo repugnante, que nunca abrigará um bom sentimento, sendo capaz de todo

mal! Tive pena de ti. Tive o trabalho de ensinar-te a falar. A todo momento, eu te

ensinava uma coisa e outra. Quando tu, feito um selvagem, ignorando tua própria

significação, balbuciavas como um bruto, dotei teu pensamento de palavras que o

deram a conhecer. Mas, embora conseguisses aprender, tua vil origem tinha em si

qualquer coisa de insuportável para as naturezas retas". Nas palavras de Próspero

a Caliban ressoa com vigor a questão da alteridade, crucial no imaginário do poder.

O tema do Outro, da imagens e contra-imagens que dele se formam e o que elas

refletem em termos de constituição do sujeito que as cria será, decerto, dominante

na queda de Collor, impregnando o simbolismo do Bode Expiatório que também

naquele momento emerge. Então se conformará a imagem da "República das

Alagoas" como símbolo de um "Outro Brasil", do país "arcaico" em contraposição ao


Brasil "moderno". Aquele, um país "bárbaro", "atrasado", do qual Collor será,

segundo a mídia, a expressão última e culpado único pela corrupção, nepotismo e

outros vícios políticos presentes. Ao "estadista" das imagens heróicas iniciais, se

contrapõe agora, na execração, o "representante da República de Alagoas". À

imagem subjaz a famosa clivagem representada nas metáforas dos "Dois Brasis", da

"Belíndia", do "país real" versus "país formal", enfim, nas diversas dicotomias que

participam do imaginário construído em torno de uma possível identidade ou caráter

nacional. Em realidade, o tema da alteridade, já presente no simbolismo da

Ascensão do personagem, irrompe com toda a força no imaginário da Queda,

colocado à luz através do contra-imaginário fabricado pelas elites. O Nordeste, como

representação do Outro, teve um percurso em que foi apropriado no início como

elemento na construção da imagem do herói que salta da obscuridade para a fama,

até chegar à execração do personagem como "representante da República das

Alagoas": "Há três anos, era um político inteiramente desconhecido e, mesmo eleito

governador, tornou-se gerente de um Estado inexpressivo na orquestra federal. Com

sua campanha contra os marajás em Alagoas e uma briga a cada mês com o

governo do presidente José Sarney, isso tudo misturado com arrojo e uma

sensibilidade política apurada - só isso -, Collor de Mello conseguiu conquistar o

eleitorado brasileiro"(Veja, 15.11.89). Outra seria a imagem final, quando da queda

do personagem: "O Brasil deu a Collor o lugar que lhe cabe na história e faz hoje

seu destino. Que Collor, aquele que confundiu o Brasil com uma Alagoas em

tamanho família, aceite o seu" (Isto É 07.10.92)./"República das Alagoas vive o

ostracismo" (JB 01.11.92)./ "caçador de marajás revive Brasil velho" (FSP 06.08.92).

Uma das formas através das quais se constitui a alteridade na política está na

imagem que os grupos dominantes fazem dos dominados como os "outros". Em


sentido contrário está a imagem que fazem dos dominantes os dominados,

presente , por exemplo, nas relações entre líder e massas. A relação carismática

baseia-se na imagem da excepcionalidade do líder. Excepcional porque diferente,

acima dos comuns mortais. É na alteridade que se funda a relação entre o líder e as

massas, no Outro como superior ao rebanho, personagem distinto dos seguidores

seja pela posição de classe, seja pelo discurso estruturado , seja por se apresentar

como "acima dos partidos" e que, em última instância, promove a identificação com

estas ao realizar o desejo do homem comum esmagado pelo anonimato. Essa é a

recorrente situação na história do Brasil republicano, seja sob a imagem de Pai, de

Aventureiro ou de Profeta. No caso aqui focalizado, nas eleições de 1989 as massas

levaram ao poder, não o semelhante a elas, como Lula se apresentava do ponto de

vista simbólico, mas o diferente. Em uma percepção por parte dos dominados do

líder como o Outro e não como o Mesmo. Nessa relação o Outro, por ser diferente e

essencialmente por isso, representa o Salvador. Collor não se apresenta em

nenhum momento como igual às massas , talvez por isso mesmo canalizando suas

esperanças. Imagem mercadificada, Collor apresenta-se como o super-homem de

massas, ou seja, produzido como modelo para uma massa de consumidores e

eleitores, ativando aquilo que Adorno denomina de "mímesis compulsiva dos

consumidores", através da qual eles se identificam às mercadorias culturais.

Expressão dos desejos da comunidade de imaginação, através do processo de

identificação, o simbólico assume a função de facilitar o comportamento mimético.

Collor realizará através da imagem o desejo da massa em ser rica, fisicamente

saudável e "moderna", ao mesmo tempo em que é vingada e alimentada pelo Mito

do Mundo Invertido. Negando simbolicamente a unidimensionalidade dos sujeitos,

porém não de modo cômico, buscando o riso, como Jânio, mas com uma histrionice
de outra espécie, marcada pela diferença de classe simbolizada pelos objetos,

corpo, roupas e músculos. Através do voto em sua imagem, metade do país negará

a si mesma. Chegamos aqui à questão da relação entre o simbólico e a construção

da identidade dos sujeitos políticos. E será na metáfora do espelho que se

encontraremos a possibilidade de vislumbrar essa constituição de identidades no

imaginário político. Nesse sentido, Collor surge como uma imagem especular que

reflete dois imaginários: a representação como moderna que de si faz a elite e a

representação que de si constrói a maioria do eleitorado, ou seja, como

suficientemente débil para reclamar um protetor, um salvador. A representação de si

está ligada à representação que se faz do Outro numa "relação de interdependência

entre a imagem que se faz de si e a imagem que se faz destes vários outros". Nesse

jogo de imagens se, num primeiro momento, Collor é "moderno" para a elite, num

momento seguinte é focalizado como o "arcaico" a ela oposto. A "República de

Alagoas" torna-se, então, um símbolo do Brasil "atrasado" vinculado à auto-imagem

que as elites têm de si como modernas. São efetivamente imagens entrelaçadas na

construção de uma identidade que, para fazer-se visível, perversamente faz do

Outro o invisível. Tanto nas ascensão quanto na queda de Collor a identidade da

elite no poder se apresentará no jogo de espelhos. A questão diz respeito, portanto,

a um imaginário especular e à construção da identidade proveniente desse

speculum. Se do ponto de vista material os espelhos não produzem signos em

virtude de haver "a presença de um referente que não pode estar ausente", como

pensa Eco, o mesmo não ocorre com a metáfora . A "República de Alagoas" é a

contraface sígnica da utopia do "Brasil desenvolvido" remetendo a uma realidade

subjacente, qual seja, a estruturas de dominação e a padrões de construção do

imaginário político específicos, relacionáveis posteriormente a um conteúdo e


interpretáveis. Da alienação faz parte justamente a negação da especularidade das

imagens que do outro se fabricam. Se o universo especular, sob o ponto de vista

material, e não sob o aspecto metafórico, "é uma realidade capaz de dar a

impressão de virtualidade, o universo semiológico é uma virtualidade capaz de dar

impressão da realidade". Nos domínios da psicanálise Freud adotará também a

metáfora do espelho ao falar da projeção. A falsa projeção é o "mecanismo pelo qual

o sujeito expulsa de si e localiza no exterior - pessoa ou coisa - qualidades,

sentimentos, desejos que não aceita em si mesmo". Assim, os impulsos socialmente

condenados que pertencem ao sujeito e por ele são negados, são atribuídos ao

objeto. O fenômeno encontra-se, talvez, na base da rejeição das massas à Lula e

na imagem dele construída como sendo um retrato da maioria da população

brasileira: mestiço, estatura baixa que, como o "bárbaro", não fala bem , "balbucia".

Como Collor, sua imagem é também uma face especular do mito do " Brasil

moderno" e traduz o fato de que o grupo dominado, como enfatizou Dante Moreira

Leite, "acaba por se ver com os olhos do grupo dominante, a desprezar e a odiar,

em si mesmo, os sinais do que os outros consideravam sua inferioridade". No

mecanismo de projeção os sujeitos exprimem sua própria essência na imagem que

projetam dos outros. A imagem da "República de Alagoas", construída pelas elites,

ocultará as relações de caráter patrimonial e corrupto entre Estado e sociedade. É a

lógica do Bode expiatório: o Outro como imagem reflexa das características do

sujeito numa ordem que não pode viver sem a "desfiguração do homem" para usar

expressão de Adorno e Horkheimer. Na falsa projeção, dirão eles, o distúrbio

encontra-se na " incapacidade do sujeito de discernir no material projetado entre o

que provém dele e o que é alheio" dotando ilimitadamente o mundo exterior "de tudo

aquilo que está nele mesmo": "o olhar penetrante e o olhar que ignora, o olhar
hipnótico e o olhar indiferente são da mesma natureza: ambos extinguem o sujeito.

Porque a esse olhar falta a reflexão, os irrefletidos deixam-se eletrizar por eles". A

imagem do Outro contribui para formar a identidade "moderna" que o sujeito (a elite)

pretende para si, no desejo perseguido desde a colonização. Universalizadas as

imagens que são compartilhadas pelo sujeito não deixa de se resvalar para a

falsificação do reflexo. A deformação aqui não se dá por conta do espelho em si,

mas das relações que nele se cristalizam. Os espelhos não deformam, aquilo que o

faz são as relações: "a imagem do eu passa sempre pelo outro. O outro é, portanto,

simulacro do eu.". O jogo especular mostra-se assim, a um só tempo, como falso e

como ilusão necessária para recobrir o real; sendo, portanto, dele constitutivo. O

olhar dos grupos dominantes não vê o espelho, vê a imagem como fora de si e não

a sua imagem. A cegueira alcança tudo porque nada compreende, diria Adorno.

Desse jogo de espelhos se contrapõem dois discursos, o do "bárbaro" e o do

"civilizado" que, em última instância, dizem respeito ao problema de identidade

destas Américas. Sobre isso nos fala Leopoldo Zea: "É a incompreensão que

origina o discurso visto como barbárie. Todo discurso é do homem para o homem. O

discurso como barbárie é o discurso a partir de uma suposta subhumanidade, a

partir de um suposto centro em relação com uma suposta periferia. Todo homem há

de ser centro e, como tal, ampliar-se mediante a compreensão de outros homens."

A imagem da América, vista como tendo um povo "rude e ignorante", segundo

Bacon, "imaturo" para Hegel; com o Norte industrioso e liberal e o sul briguento,

prepotente e inferior para Schlegel, enfim uma região "sem história", repete-se como

imagens multiplicadas ad infinitum. O mito da barbárie irá reproduzir-se nas

dicotomias Europa/América, Norte/Sul, Centro/Periferia. Dicotomias em que um dos

pólos, o considerado bárbaro, passará a ser invisível para o civilizado. Octavio Paz
acerca disso profetizaria: "Talvez, num futuro não muito longínquo, os países

adiantados nem sequer expoliarão os subdesenvolvidos: abandoná-los-ão à sua

miséria e às suas convulsões". Se o europeu passa a não olhar para a América

("melhor perecerem as colônias que um princípio" afirmaria Robespierre), no plano

local o Norte e o Nordeste tornam-se invisíveis diante do Sul e Sudeste, símbolos do

Centro. Ralph Ellison, da outra América, dissecou, no plano literário, a questão do

jogo em que a recusa em olhar o outro e a invisibilidade deste (os negros norte-

americanos para Ellison) expressam a identidade dos sujeitos e, aqui, a literatura

mais uma vez torna-se material da narrativa mítica: "Passei a vida toda sendo

puxado para lá e para cá. Meu problema foi tentar seguir em todas as direções,

menos a minha . Fui chamado de muita coisa, mas no fundo ninguém nunca quis

saber quem eu era. No final, acabei me rebelando, depois de anos tentando adotar

as opiniões alheias. Sou um homem invisível. Pode-se dizer que vim de muito

longe , e que depois voltei, quicando como um bumerangue, para longe do lugar que

um dia sonhei ocupar na sociedade.(...) Não culpo ninguém por esse estado de

coisas, vejam bem. Também não estou fazendo um ato de contrição. O fato é que

também vocês são portadores desta doença. Pelo menos, eu a carrego, enquanto

homem invisível.(...).De repente, você está nu e trêmulo diante de uma mulher que

te olha mas não te vê. É essa a verdadeira doença da alma(...) Mas isto só é

verdade até certo ponto: invisível e sem substância, voz incorpórea, por assim dizer,

que outra coisa me restava fazer? Que outra coisa, além de tentar lhes explicar o

que acontecia comigo, nesse tempo todo em que você não me viam? Eis o que

realmente me assusta. Quem sabe se, nas freqüências mais baixas, eu não falo

também por vocês". Indivíduos invisíveis e sem rosto, produtos da racionalização

implacável da sociedade moderna; simples objetos da racionalidade instrumental.


Essa indiferenciação dos sujeitos e angústia dela decorrente será ilusoriamente

resolvida quando da constelação do simbolismo inerente ao Mito da Salvação no

interior de relações carismáticas e, duplamente conferirá, tanto ao que ocupa o

poder quanto aos que o seguem na catarse coletiva de identificação com o líder, um

rosto e uma identidade. Esse um aspecto fundamental da modernidade, antevisto

por Weber: a organização racional da sociedade não pode prescindir do elemento

carismático na condução do Estado. * O desconhecimento do Outro , entretanto, é

real produto da máscara imposta pela alienação das relações sociais. A narrativa

mítica, deste modo, da ascensão à queda do herói traduz esse estranhamento em

relação ao Outro (visto como o bárbaro, o incivilizado, o atrasado). Na ascensão de

Collor, presente o pacto entre o governo e elites, esse desconhecimento do outro

ocorre de dupla forma. Em primeiro lugar, através da indiferença tecnocrática da

equipe de governo em relação aos que se subordinam à lógica dos planos

econômicos redentores, o que lembra-nos Castoriadis ao dizer que "o outro

desaparece no anonimato coletivo, na impessoalidade dos 'mecanismos econômicos

do mercado' ou da 'racionalidade do Plano', da lei de alguns apresentada como lei

simplesmente...". Em segundo lugar, a elisão do outro se dá como visto atrás, nas

comparações amplificadoras do personagem que de Collor se fazem em relação às

massas. Estas só existem por oposição simbólica em relação àquele. São estes os

momentos da ascensão do herói salvador. Na queda, o outro também será

eliminado desta feita através da identificação que dele é feita em relação ao herói,

agora vilão; englobados todos na ironia da expressão "República de Alagoas".

Produto direto da alienação do homem e da reificação das relações sociais, a

invisibilidade do outro torna-o, no imaginário social, como que "encarnado fora do

inconsciente individual", colocando o sujeito numa situação de heteronomia, como


diz Castoriadis. Ma, a realidade é que a autonomia do sujeito, pressupõe o seu

reconhecimento de que o outro faz parte de si, o que exige, não a sua eliminação,

mas a instauração de uma relação com o seu discurso. Sem o outro simplesmente

não se é. Portanto, é ilusória a transformação dele em obstáculo ou maldição, não o

percebendo como constitutivo do sujeito. Pensando deste modo, à célebre frase de

Sartre "o inferno são os outros", lucidamente Castoriadis contrapõe o argumento de

que o autor da frase erroneamente mantinha a convicção " de que não havia nada

em si mesmo que fosse de um outro". Mera ilusão recoberta pelo Mito: o mito da

Barbárie. Narrativa instituída e ao mesmo tempo instituinte - como o social-histórico

ao qual pertence - por um lado, reforça a ilusão de que, mesmo subjugado pelo

anonimato coletivo, o indivíduo se torna sujeito atuante na catarse coletiva que se

impõe na relação entre massas e líder carismático e, por outro lado, confere aos

grupos dominantes a ilusão de que os deserdados, os outros estão fora, no exterior,

a estorvar-lhes a vida. Na mentalidade dos donos do poder as massas miseráveis

são transformadas em "domínio do outro". "O mundo da classe trabalhadora", como

diz Harvey, "torna-se o domínio do 'outro', tornado necessariamente opaco e

potencialmente não conhecível em virtude do fetichismo da troca de mercado. Eu

ainda acrescentaria que, se já houver na sociedade membros (mulheres, negros,

povos colonizados, minorias de todo tipo) que possam ser conceituados

prontamente como o outro, a união da exploração de classe com o sexo, a raça, o

colonialismo, a etnicidade etc. pode produzir toda espécie de resultados

desastrosos. O capitalismo não inventou 'o outro', mas por certo fez uso dele e o

promoveu sob formas dotadas de alto grau de estruturação". Deste modo, na

alienação reinante não se percebe a riqueza da alteridade como o próprio cerne da

civilização, como "estilos de viver e de morrer" dos diferentes povos, que "serão
diferentes e serão os mesmos". Em tal quadro, surdos também, não praticamos o

diálogo, mas um monólogo, : " nunca ouvimos o que o outro diz ou, se ouvimos,

sempre acreditamos que diz outra coisa". Nesse auto-exílio que se impõem os dois

lados da América, a imagem da "República de Alagoas" reproduz no plano local, o

simbolismo da heresia de Maniqueu: ao Brasil moderno ("bom") se oporia o Brasil

arcaico ("fonte de males"). O jogo de espelhos local reproduz um processo

historicamente constituído na América Latina. A colonização européia colocou em

evidência, segundo Leopoldo Zea, uma discriminação onde o homem europeu, "que

se considera o Homem por excelência", exigiu dos indígenas e de todos nascidos

posteriormente nesta América uma justificação de sua humanidade. Desde o

encontro entre o Velho e o Novo Mundo que a divisão, que hoje se estende à África,

Ásia e Oceania, se colocou em termos de "por um lado Homens, por outro

subhomens, apenas aspirantes a Homens". Transformando-se em uma gigantesca

discriminação planetária, segundo Zea, tal dicotomia irá conformar diferentes

expressões simbólicas nas relações de poder. Essa visão, como diria Rodó, "de

uma América deslatinizada por própria vontade, sem a extorsão da conquista, e

regenerada à imagem e semelhança do arquétipo do Norte, flutua sobre os sonhos

de muitos sinceros interessados por nosso porvenir e inspira a fruição com que eles

formulam a cada passo os mais sugestivos paralelos, e se manifestam por

constantes propósitos de inovação e reforma(...) Temos nossa nordomanía . É

necessário opor-lhe os limites que a razão e sentimento assinalam de pronto". No

Brasil, não poucos se orientaram por essa "nordomanía". Tivemos assim Sílvio

Romero e a inferioridade do povo brasileiro, Viana Moog em suas comparações com

os EUA, Euclides da Cunha olhando para Antonio Conselheiro como cristalização

"das tendências impulsivas das raças inferiores", Monteiro Lobato e suas críticas ao
caipira, Oliveira Viana e seu sonho com uma aristocracia para o país, Artur Ramos e

sua crítica ao pré-lógico e primitivo em oposição ao civilizado etc. * O Mito da

Barbárie apresenta-se como contraface do Mito do Progresso que tendo o Outro, o

"civilizado", como modelo arquetípico repete-se hoje (desta feita sob as vestes da

Modernidade através da "globalização") em narrativas estimuladas por intelectuais

de elites que desejariam "haver nascido em Madrid ou em Paris, jamais em terra de

índios, mestiços, negros e mulatos". Em perpétua crise de identidade, ocorre que,

como bem lembrava Borges, "somos os únicos europeus de verdade, pois na

Europa se é antes de mais nada francês, italiano, espanhol..." Esse arquétipo

orientará também uma visão do Norte e Nordeste do Brasil como uma região de

bárbaros. Bárbaro é aquele que balbucia, para os gregos o que se expressava mal e

para os romanos o que estava fora da civitas, da lei, da cidade. No mito "a dicotomia

civilização/barbárie se cristaliza como signo de poder e dependência, de centro e

periferia". A imagem se estende para a Ibero-América em sua conquista e

colonização, mantendo-se como estrutura mental de larga duração, reproduzida,

desta feita na dicotomia entre Brasil "moderno" (Sul e Sudeste) contraposto ao Brasil

"arcaico". O desconhecimento do Outro perpetrado pela Europa e América do Norte

em relação aos latinos e centro-americanos é reproduzido localmente pela elite

política e intelectual brasileira que ao final vê no Norte e Nordeste nada mais é do

que selva, corrupção, seca, "ruínas, natureza e algumas figuras apagadas", nas

palavras de Octavio Paz ao falar da América Latina como é vista pelos americanos

do Norte. A "República das Alagoas" é a expressão especular do Brasil "moderno",

como Caliban é, no final das contas, imagem reflexa de Próspero. É a civilização

refletindo-se na barbárie ou, segundo Zea, "refletindo a Próspero sua própria

barbárie". Destruindo-se uma destruir-se-á a outra como Dorian Gray ao seu retrato.
Realidade iniludível, o Brasil "arcaico", representado na "República de Alagoas", em

se destruindo destrói ao Brasil "moderno", porque, feita de refugos esta

modernidade, é ela mesma inautêntica. A disjuntiva assim se apresenta como uma

moeda com os dois lados dialeticamente cunhados. Collor surge como o speculum

das imagens dessa disjuntiva: ao mesmo tempo que reflete o imaginário reificado,

"moderno" do "Primeiro Mundo" com o qual sonham as elites, representa também

aquele criado em torno da barbárie. Não sem propósito, o "estadista" será

transformado em Bode Expiatório, expressando as ambigüidades presentes na

imaginação dos grupos no poder. 1.2 Sociedades sem história ? No Mito da

Barbárie constela-se a imagem das sociedades "sem história". Criticamente o

caribenho Derek Walcott acerca disso diria: "no caso daquilo que chamamos de

Novo Mundo, quando nos estamos sentindo bem, ou de Terceiro Mundo, quando

estamos nos sentindo para baixo, o que geralmente fazemos é uma penitência da

idéia da história como algo perigoso, porque então o que nós fazemos, nesta

metade do mundo, nas Américas, é pensar em termos históricos, pensar , por um

lado, "nós não temos uma história" , como se isso fosse uma perda irreparável,

quando não ter história é a melhor coisa possível". Walcott coloca em xeque dois

elementos fundamentais do imaginário tecido em torno da dicotomia

modernidade/barbárie nestas Américas: a atribuída anistoricidade de tais sociedades

e a sua categorização como "Terceiro Mundo". O sentido da história para essas

regiões dominadas e submetidas à marginalidade, Walcott revê em suas cidades

rasgadas por estradas, submetidas ao Mito do Progresso e ao mesmo tempo "sem

raízes". Em Omeros o poeta assim revelaria esse sentimento de "falta de raízes" dos

povos latino-americanos e caribenhos: " A estrada abandonada passa por enormes

caldeirões enferrujados,tachas de ferver o açúcar e pilares enegrecidos. São essas


as únicas ruínas deixadas aqui pela história, se história é o que são. (...) "os

crescentes de verde profundo das baías guardavam aldeias africanas, que, pelos

séculos, tinham coberto de latas seus barracos, levantado uma igreja quadrada de

pedra, até que aos poucos, os barracos rastejavam para baixo dos espigões e se

tornavam cidades. Assim os via a História. Ele estudou o trajeto que ela mostrava:

as estradas interrompidas, os rios claros que se congelavam em lagunas cor-de-

sépia, das quais um ou outro caso de esquistossomose irrompia em crianças cujos

fígados a foice do parasito alcançava. Correntes belas, perigosas. O passado delas

era chato como um cartão-postal; e seu futuro - um cartão-postal mais brilhante e

mais chato - reproduzia viagens fretadas,com sua excursão pela miséria garantida".

A expressão "sem história" tanto pode nos conduzir à utopia de uma sociedade

iniciando do grau zero, como sonhavam Morus e Rousseau, quanto salientar o

desprezo votado ao outro. Numa declaração emblemática deste último caso, Henry

Kissinger diria: "o senhor nos fala da América Latina. Isto não é importante. Nada de

importante pode vir do Sul. Não é o Sul que faz a história, o eixo da história vai de

Moscou a Washington passando por Bonn. O Sul não tem importância". Nega-se o

fato de que a cultura é essencialmente um objeto histórico, porque expressa pela

língua e esta é histórica porque, como disse Saussure, é arbitrária e é arbitrária

porque é histórica. Deste modo, passado e presente são indissolúveis na ação

simbólica. Numa perspectiva diferente da aqui adotada, para os teóricos da pós-

modernidade a expressão deixa de ser um atributo ligado à barbárie e passa a sê-lo,

também, das sociedades pós-industriais. Sob esse prisma Jameson afirma que

estamos hoje em " uma sociedade cujo próprio passado putativo é pouco mais do

que um conjunto de espetáculos empoeirados". Desaparece o "passado como

'referente'", ficando somente "textos em nossas mãos". Haveria, segundo ele, uma
crise de historicidade em que a produção cultural não pode mais representar o

passado, , mas apenas "nossas idéias e estereótipos sobre o passado". Isso nos

condena a "buscar a História através de nossas próprias imagens pop e dos

simulacros daquela história que continua para sempre fora de nosso alcance". No

pós-moderno o que sobrou do passado "o que tinha sobrevivido, o residual e o

arcaico, foram finalmente varridos do mapa sem deixar vestígios. No pós-moderno,

então, o próprio passado desapareceu (juntamente com o famoso 'sentido do

passado' ou historicidade e memória coletiva). Onde ainda permanecem suas

construções, a renovação e a restauração lhes permitem ser transferidas como um

todo para o presente, transformadas naqueles objetos completamente diferentes e

pós-modernos conhecidos por simulacros.". Como Baudrillard, Jameson associa a

noção de simulacro aos produtos culturais. O sentimento de estar sem raízes não é

mais o de ser marginal colocado à parte da história como para Walcott, mas o de ser

um simulacro sem ligação com o passado, sem referente, vazio de sentido.

Entretanto, para as sociedades fora do espectro pós-industrial (este também um

arquétipo pelo qual se orientam as próprias reflexões sobre a pós-modernidade),

estar "fora da história" designou sempre o passado: a barbárie é a anterioridade pura

, o estado original dos homens antes da história". Se os EUA ingressam na história a

partir do momento em que assumem a idéia de "decadência", aos seus olhos

permanecem fora dela os países da América Latina. Expressão do encobrimento (o

qual, conforme Zea, além do descobrimento, nos foi imposto pelo colonizador), a

imagem se mantém no presente, localizadamente sob outra forma de dependência

cultural que encobrindo o Outro ou o considera alheio a si, estranhamento tanto mais

perverso quando nega que sob o mesmo cenário cultural e político, seja ele

corrupto, nepotista e patrimonial, encontram-se tanto os paulistas, cariocas e


gaúchos quanto os alagoanos, tanto o Norte quanto o Sul, como partes de uma

realidade que não se esgota neles. "Esta América", diz Zea, "há de salvar-se com o

que há sido formada. Inútil é que se pretenda imitar à outra América querendo

eliminar a seus índios, mestiços, crioulos e negros". Deste modo, o problema da

democracia não se reduz à mudança de formas políticas mas, como diria Martí, à

"mudança de espírito". É a cultura política que como estrutura de larga duração

alimentará os mitos: as imagens do Brasil colonial, do Brasil pré-1930 e do Brasil

dos militares continuam elas também presentes atualmente. Hoje o arquétipo do

homem é o norte americano, caber ou não nele corresponde a ser, ou não, humano.

O molde será sempre o Outro, o "desenvolvido", o "Primeiro Mundo". Ser humano

eqüivale a negar o passado. Deste modo a imagem de Collor na ascensão

promoverá essa negação na medida em que amputa as raízes culturais do país,

substituindo-as pelos objetos, pelo corpo, pelo discurso em favor da modernidade.

Em sua queda é que irá se buscar a leitura do passado no que ele tem de mais

perverso, porém, ainda mais uma vez, negando-o . Dupla manifestação da questão

da alteridade, a imagem do presidente apresentará formas distintas no inicio do

mandato e na execração. Seja no simbolismo do "diferente", de "sofisticado" ou de

"estadista", seja no de líder da "República de Alagoas", a sua imagem construída

subordinar-se-á ao "arquétipo" o qual seria retomado mais uma vez em 1995, sob a

capa do presidente "estadista" e " intelectual". Fugir dele significa permanecer sob o

signo do arcaísmo. Collor através de suas imagens como herói ou como vilão, reflete

esse "existir inautêntico" que subjuga o imaginário como inautêntico será também o

imaginário dos países e regiões desenvolvidas que não reconhecem como humano

o que está fora do arquétipo. No Mito da Barbárie as imagens ao mesmo tempo que

expressões do sonho coletivo com a modernidade, são máscaras que reforçam uma
consciência alienada. A "República das Alagoas" irá como espelho do Brasil

"moderno" cristalizar as oposições Europa/EUA-América Latina e Norte-Sul no

desdobrar ad infinitum das dicotomias impostas pelo capitalismo, porém, a ela

subjaz, o fato de que: "O outro não existe: esta é a fé racional, a crença incurável da

razão humana. Identidade = realidade, como se, afinal de contas, tudo tivesse de

ser, absoluta e necessariamente, um e o mesmo. Mas o outro não se deixa eliminar;

subsiste, persiste; é o osso duro de roer onde a razão perde os dentes. Abel Martin,

com fé poética, não menos humana que a fé racional, acreditava no outro, na

"essencial heterogeneidade do ser", como se disséssemos na incurável outridade

que o um padece".

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