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Edna Ferber

Cimarron
Tradução de Tati de Morais

Digitalização: Argo "cimarron"


Prefácio

Somente os eventos mais fantásticos e im-


prováveis contidos neste livro são verdadeiros.
Não houve tentativa alguma de narrar uma histó-
ria literal de Oklahoma. Todas as personagens, as
cidades e muitos dos acontecimentos aqui descri-
tos são imaginários. Mas através da leitura dos
escassos registros, documentos e históricos dis-
poníveis (inclusive a coleção da Biblioteca Histó-
rica do Estado de Oklahoma), e através de longas
conversações com homens e mulheres que vive-
ram em Oklahoma desde o dia em que se formou
o Estado, algo do espírito, da cor, do movimento,
da vida daquela incrível comunidade espero que
tenha sido captado. Certamente, a corrida, o
serviço dominical na tenda de jogatina, a morte de
Isaiah e de Arita Pena Vermelha, a captura da lata
de nitroglicerina, muitos dos tiroteios e rixas, a
maioria dos trechos descritivos, todos os do perí-
odo do petróleo, e todo o material dos índios
osages — baseiam-se em acontecimentos reais. Em
muitos casos, material absolutamente autêntico

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não foi considerado aproveitável por ser tão
melodramático, de tal forma absurdo, que iria soar
falso no campo da ficção.
Não existe a cidade de Osage, Oklahoma.
Trata-se de um composto de, talvez, cinco cidades
existentes em Oklahoma. O Kid não retrata o
notório Billy the Kid de uma época anterior. Não
existe nenhum Yancey Cravat — ele é uma mistu-
ra de vários homens audazes de Oklahoma do
passado e dos dias de hoje. Não existe uma Sabra
Cravat, mas ela vive numa dezena de fascinantes
sexagenárias de olhar vivo e cabeça branca, que
me contaram muitas coisas estranhas enquanto,
instaladas em cadeiras de balanço, conversávamos
nas varandas sombreadas por árvores das casas de
Oklahoma.
Tudo pode ter acontecido em Oklahoma.
Praticamente, tudo aconteceu.
EDNA FERBER

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Capítulo I

A família Venable estava reunida em torno


da mesa do almoço de domingo. Todos aqueles
bonitos rostos consangüíneos dos Venable se
voltavam fascinados para Yancey Cravat, que
estava falando. O efeito conjunto era quase ofus-
cante, como uma incandescência; mas Yancey
Cravat não se deixava deslumbrar. Qual um sol
cercado por planetas menores, ele radiava um
fulgor tão intenso, que obscurecia o círculo lumi-
noso em seu redor.
Yancey tinha o hábito desconcertante de en-
cerrar bruscamente uma refeição — pelo menos
no que lhe dizia respeito — atirando o guardana-
po junto ao prato, levantando-se e caminhando
pela sala, ou mesmo retirando-se. Não era uma
rudeza deliberada. Ele comia pouco. Satisfeito seu
apetite, instintivamente parava de comer; cessava
a vontade de ver comida na sua frente. Mas os
Venable se demoravam na mesa horas a fio, vaga-
rosamente descascando amêndoas, sorvendo xe-
rez; o primo Dabney Venable descascando uma
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laranja para a prima Bella French Vian com a
concentração abstraída de um escultor modelando
sua argila.
À mesa do almoço, os Venable tinham uma
estranha semelhança com aqueles férteis e dramá-
ticos grupos de família indolentemente refestela-
dos diante de travessas de comida em telas bíbli-
cas menos espirituais que podem ser vistas nas
grandes galerias de pintura da Europa. Embora os
trajes que usavam fossem bastante sóbrios e
característicos da época — 1899 — e do local —
Kansas —, ainda assim transmitiam a impressão
de roupagens roxas e escarlates envolvendo aque-
les ombros graciosos. Ninguém se surpreenderia
ao deparar com negros núbios de tanga movendo-
se silenciosamente e transportando vasilhas de
ouro cheias de frutas exóticas ou comidas fume-
gantes em que figuravam com proeminência
línguas de rouxinol. Na realidade, negros moviam-
se em redor da mesa dos Venable, mas esses,
também, usavam o vestuário convencional dos
lacaios.
Este galho da árvore genealógica dos Vena-
ble havia sido transplantado do Mississípi para o
Kansas há mais de duas décadas, mas o centro-

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oeste deixara de imprimir neles o seu cunho bur-
guês. Embora houvesse agora dificuldades finan-
ceiras, ainda eram mantidos na casa, por algum
milagre genealógico, muitos dos hábitos gracio-
sos, remotamente orientais, trazidos do sul. A
refeição do meio-dia era, na maior parte das ve-
zes, uma espécie de festim tribal em que uma
quantidade de parentes pobres misteriosamente
emergiam ao soar do gongo chamando para a
mesa e ao cheiro de comida no ar. Emigrados a
contragosto e arruinados pela guerra, Lewis Ve-
nable e sua mulher Felice tinham trazido para o
exílio os costumes que lhes eram caros, juntamen-
te com a majestosa mesa oval de mogno a que
agora se sentavam e a prataria salva da guerra que
davam elegância às refeições servidas em sua casa
em Wichita, Kansas. Sem dúvida o mogno sofrerá
avarias em trânsito; e muitos dos hábitos sulistas
transplantados para o Kansas poderiam parecer
meio tolos se não tivessem um lado patético. Os
pães quentes do sul, empilhados em grandes
cestas em todas as refeições, continuavam provo-
cando devastações alimentares. A frigideira e o
caldeirão de frituras (talvez, ambos com sua parte
de responsabilidade na tragédia de 1864) ainda
continuavam espirrando sua mortífera fuzilaria no
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lar dos Venable. E com efeito, a palidez cremosa
das mulheres da família, tão semelhante à da
pétala de magnólia de suas adolescências, e ten-
dendo tanto para o ocre na meia-idade, era menos
uma questão de pigmento do que de fígado. Por
empobrecida que estivesse agora a família, três ou
quatro criados negros continuavam se ocupando
da casa, pisando macio, lentos, afáveis. "Quer me
entregar seu agasalho?", sugeriam eles hospitalei-
ros com sua voz de veludo quando se entrava no
amplo vestíbulo que era ao mesmo tempo tão
vazio e tão atulhado. E "Pãozinho sovado, Miss
Adeline?", ao oferecerem um prato de cheiro
apetitoso.
Até aquele jardim no Kansas era de outra la-
titude. Esguios cães de caça dormitavam na de-
sordem ensolarada na soleira da porta principal, e
a desordem se escondia e se transformava por um
milagre de cor, perfume e florescência. Ali se
misturavam passiflora, glícínia e até buganvília na
estação. A madressilva exalava sua doçura inebri-
ante. No começo da primavera, lírios-do-vale
projetavam o verde fantasmagórico de seus caules
através das moitas de lilases. O vulgar, abrutalha-
do girassol do Kansas era uma flor desprezada
pelos Venable. Se um girassol mal se atrevia a
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despontar seu rosto redondo entre as perfumadas
e elegantes plantas do jardim, era imediatamente
decapitado. Contavam que certa vez Felice Vena-
ble tinha estragado uma excelente tesourinha de
bordado em sua precipitação de agir como carras-
co. Ela chegava mesmo a lamentar a ausência do
musgo de barbas longas nesse clima mais frio.
Uma vizinha nascida no centro-oeste se indignou
com a queixa.
— Mas é um parasito! Uma planta rastejante
que quase sufoca as árvores. Estive na Carolina
do Sul e vi o tal musgo. Flutuava no ar como um
fantasma. E não serve para nada.
— Até as flores têm que ter uma utilidade
no Kansas? — perguntou Felice Venable em sua
voz langorosa.
Ela não era muito popular entre as geniosas
senhoras de Wichita. Irritava-as a maneira de
Felice se vestir, os longos xales brancos de fustão
com babados, seus sapatos de bico pontudo, seu
peito do pé arqueado, a indiferença que demons-
trava por tudo que se passava do outro lado da
cerca viva que contornava a propriedade dos
Venable; irritava-as a própria cerca, símbolo de
exclusividade na cidade aberta que era Kansas.
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Escondido sob o langor de Felice Venable havia
um punhal afiado de espírito agudo herdado de
seus antepassados franceses, os Marcy de St.
Louis, mercadores de peles do Missouri de quase
um século antes. Via-se a marca da família Marcy
no negrume de seus cabelos ainda fartos, na
curva das sobrancelhas acima dos olhos escuros
— nos próprios olhos escuros, tão vivos no
rosto imóvel.
Quem visse a família agora sentada para o
almoço não deixaria de notar que, ao passo que
duas décadas de vida no centro-oeste pouco
haviam feito para tornar mais rápida a fala ou
apressar os movimentos de Lewis Venable e sua
mulher Felice (eles ainda usavam a letra "a" sem-
pre em conjunto com um "h" aspirado e, para
eles, a décima oitava letra do alfabeto haveria de
ser sempre um "ah"), na geração mais jovem a
diferença era visível. Em toda a extensão da com-
prida mesa se alinhava a nova geração, filhos e
filhas, genros e noras, netos, parentes mais afasta-
dos em visita, tais como primos, primas, sobri-
nhos e sobrinhas, ramos de uma família frondosa.
Quando os rebentos criados no norte exclama-
vam com a história que agora estavam ouvindo
notava-se que suas vogais eram mais curtas, a
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dicção mais rápida, o gesto de cabeça e o erguer
da mão, menos lentos. Em todos aqueles rostos
havia uma semelhança. Talvez a expressão atenta
para ouvir servisse para acentuar esta semelhança.
Era fim de maio, e fazia um calor fora de es-
tação para aquela altitude. E também houvera
uma nuvem de mariposas e de moscas de verão
nessa primavera. Bem no alto e diretamente acima
da mesa, numa tábua estreita suspensa por hastes
presas ao teto alto, estava empoleirado Isaiah, um
pretinho. Com uma das mãos ele se agarrava a
uma haste do seu precário poleiro; com a outra
empunhava um espanador de emplumadas folhas
de samambaia cortadas do jardim. O sussurro
suave que faziam as folhas sendo balançadas de
um lado para outro pelo garoto era um obbligato
para a música da garganta de ouro de Yancey
Cravat. Assim suspenso no ar, o pretinho parecia
a versão símia de um dos anjinhos pintados nas
abóbadas por Rafael. Sua cabeça redonda, reco-
berta de cabelos enroscados como um lustroso
astracã, pendia para um lado como que para me-
lhor escutar as palavras que jorravam da boca do
orador. Seus olhos, arregalados com a excitação,
se tinham fixado na grande e indolente figura de
Yancey Cravat. Tão fascinado estava o menino
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que freqüentemente sua mão se imobilizava e ele
se esquecia da tarefa de agitar com a ventarola
verde o quente ar úmido acima da mesa repleta de
alimentos. Um impaciente olhar para cima de
Felice Venable juntamente com a ríspida adver-
tência "Ah-saiah!" faziam com que ele recomeças-
se a abanar vigorosamente até que a fascinação
tornasse mais uma vez a imobilizar-lhe o braço.
Os Venable não achavam nada de impróprio
neste remanescente do feudalismo mississipiano.
Dezenas de antepassados de Isaiah se tinham
empoleirado da mesma maneira, agitando o ar
para que gerações da família Venable no Mississi-
pi pudessem comer e conversar mais agradavel-
mente. A princípio, Wichita pasmara ao tomar
conhecimento deste fenômeno; e mesmo agora,
decorridos vinte anos, o caso ainda era tema para
muitos comentários locais.
Yancey Cravat estava falando. Estivera fa-
lando durante quase uma hora. Voltara nesta
mesma manhã do interior de Oklahoma — o
recém-aberto território índio onde ele participara
da corrida para demarcar a vasta extensão de terra
virgem denominada coloquialmente a Nação.
Agora, enquanto falava, as fisionomias dos outros

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tinham a expressão deslumbrada que devia ter
sido a dos ouvintes de Ulisses; e da multidão ávida
reunida em torno de Francisco Vázquez de Coro-
nado, antes de saber que sua busca das Sete Cida-
des de Cíbolo fora em vão.
Os homens em redor da mesa debruçavam-
se para a frente, as mãos entrelaçadas entre os
joelhos ou sobre a toalha, tendo empurrado os
pratos para o lado, as cadeiras inclinadas para trás.
De vez em quando, o súbito risco branco de um
músculo retesado surgia ao longo do contorno de
um maxilar masculino. Seus olhos eram os de
homens acompanhando um jogo do qual adorari-
am participar. As mulheres ouviam, um pouco
assustadas, os lábios entreabertos. Acalmavam as
crianças quando elas se agitavam ou choraminga-
vam, ou, não obtendo resultado, mandavam-nas
embora com uma palmada meio carinhosa, meio
punitiva, para que fossem brincar no jardim enso-
larado. Às vezes, uma mão feminina se estendia
possessivamente e pousava no braço ou na mão
do homem sentado a seu lado. "Estou aqui", dizia
a pressão da mão. "Seu lugar é a meu lado. Não
lhe dê tanta atenÇão. Não acredite nele. Eu sou
sua mulher. Sou segurança. Sou proteção. Sou
conforto. Sou hábito. Sou convenção. Não ouça
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desta maneira. Não olhe desta maneira."
Mas o homem se desvencilhava da mão, não
com brutalidade, mas com distraído ressentimen-
to.
De todo aquele círculo de rostos, ligados pe-
lo encantamento da narrativa que ouviam, desta-
cava-se, bruxuleante como uma chama, a fisio-
nomia de Sabra Cravat, sentada à mesa, com o
filho Cim no colo. Embora, como sua mãe Felice
Venable, ela tivesse positivamente a pele cor de
oliva, seu rosto parecia luminosamente branco ao
ouvir a espantosa, incrível e ligeiramente ridícula
história agora narrada por seu marido. Tanto nela
como na mãe, a marca da descendência dos pio-
neiros franceses era acentuada. Os cabelos abun-
dantes eram negros, assim como os olhos e as
sobrancelhas espessas com uma curva acentuada
como as duas cimitarras penduradas acima da
lareira na sala de estar. Sabra envergonhava-se
intimamente de suas sobrancelhas grossas e tinha
uma tendência a examiná-las desaprovadoramente
em seu espelho e passar o dedo (ligeiramente
umedecido pela língua) sobre os fios negros.
Quanto ao resto, havia mais da Nova Inglaterra
do que do sul no seu olhar direto, no gesto rápido

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de cabeça, na vivacidade de sua fala e maneiras.
Com vinte e um anos agora, casada aos dezesseis,
mãe de um filho de quatro anos, e ainda apaixo-
nada pelo gigante pitoresco que era seu marido,
Sabra Cravat dava uma impressão de desabro-
chamento, de um brilho translúcido que às vezes
se pode notar no delicado e transitório tempo na
vida de uma mulher quando sua constituição
química, emocional e física atinge o mais alto e se
funde.
Era fácil reconhecer a semelhança, tanto fí-
sica como espiritual, entre a jovem ardente e a
mulher desbotada na ponta da mesa. Mas passar
do rosto da filha para o do velho Lewis Venable
era para qualquer um sentir-se perplexo ante os
mistérios da paternidade. O velho Lewis Venable
não era velho, mas envelhecido; um homem
trivial, titubeante, polido, um tanto assustado e
que a malária tornara ainda mais inerte. Rosto e
mãos tinham um tom de marfim amarelado em
conseqüência de gerações e gerações submetidas a
pão quente, terras chãs, fígado ruim, vinho do
Porto. Sem falar numa bala perene e inexplorada
em algum ponto entre a terceira e quinta costelas,
recebida em Murfreesboro como membro da
Bateria Stanford, artilharia pesada, muito antes de
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Roentgen1 ter concebido um olho como o de
Deus.
Lewis Venable, na cadeira de braços à cabe-
ceira da mesa, estava tão fascinado quanto o
pretinho Isaiah no alto do seu poleiro. O curioso
era que até o menino Cim prestava atenção, ou
parecia prestar, no colo de sua mãe. Sabra comera
o jantar por cima da cabeça do filho em garfadas
distraídas, os olhos sempre fixos no rosto do
marido. Só raramente tivera que mandar o filho
calar-se ou arrancar-lhe das mãozinhas uma faca
ou garfo, ou alguma gulodice proibida. Talvez
fosse a estranha qualidade musical da voz do
narrador que atraía o menino. Os pretendentes
preteridos de Sabra Venable tinham dito quando
ela se casara com Yancey Cravat, um forasteiro,
um homem misterioso, saído do Texas e de Ci-
marron, que fora a voz dele que a enfeitiçara. Até
certo ponto tinham razão, pois embora Yancey
Cravat fosse verboso, muitas vezes até pomposo,
e ainda que não houvesse conteúdo em muito do
que dizia, ele possuía os dons preciosos do orador
nato, uma voz vibrante, flexível, grande doçura e
charme de maneiras, um olhar hipnótico e o

1
Inventor do raio X. (N. do E.)

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poder de fazer com que cada um dos seus ouvin-
tes tivesse a impressão de que o que estava escu-
tando era só para ele. Havia em Yancey Cravat
algo de charlatão, muito de ator, um pouco do
fanático.
Qualquer história contada por Yancey Cra-
vat em geral continha encantamento, incredibili-
dade (embora esta última faceta não aparecesse
enquanto ele estava falando) e algo de absurdo. O
próprio Yancey, naquela época, era uma figura
bizarra, glamourosa e ligeiramente mítica. Ne-
nhuma sala parecia suficientemente espaçosa para
seu porte gigantesco; qualquer cadeira se reduzia
ao contato de seus largos ombros. Ele dava a
impressão de ter mais do que seu metro e oitenta
e sete de altura. Seus cabelos pretos, que ele usava
bastante longos, se enrolavam em pequenos ca-
chos na base do pescoço. As faces e a testa ti-
nham marcas fundas como se provocadas pela
varíola. E mulheres tinham a perversão de achar
tais marcas atraentes.
Mas a primeira coisa que se notava nele era a
cabeça, uma cabeça imensa, como a de um búfalo,
tão volumosa que parecia pender com o próprio
peso. Causavam espanto certos detalhes inteira-

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mente em desacordo com seu porte, sua virilida-
de, seu aspecto de enorme força. A boca cheia e
sensual tinha ao mesmo tempo uma expressão de
grande doçura. Os cílios eram longos e curvados
como os de uma bela mulher, e quando ele erguia
a cabeça para olhar para alguém, sob as longas
mechas negras e os cílios escuros, era surpreen-
dente a cor cinza-oceânica de seus. olhos.
Agora, no decorrer de sua história, e empol-
gado por ela, ele se levantou bruscamente da mesa
e se pôs a caminhar pela sala continuando a falar.
Seu andar era espantosamente leve e gracioso para
um homem do seu tamanho. Os pés eram peque-
nos e arqueados como os de uma mulher, e ele
usava, mesmo neste ano de 1889, botas texanas de
couro flexível, de saltos muito altos, de solas finas
e enfeitadas com estrelas douradas habilmente
incrustadas em redor da borda dos canos. As
mãos, também, eram desproporcionadas para um
homem da sua estatura: esguias, maleáveis, bran-
cas. Ele as usava quando falava, e os olhos dos
que o ouviam seguiam enfeitiçados seus movi-
mentos. Quanto ao resto, seu traje era uma sobre-
casaca abotoada de fina casimira preta cujas abas
se agitavam como o vigor dos gestos; uma camisa
branca pregueada, macia e de requintado tecido;
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uma gravata preta estreita; calças enfiadas no cano
das vistosas botas; e, sempre, um chapéu de feltro
branco, de abas largas e reviradas. Em determina-
das ocasiões, ele simplesmente se servia de Sha-
kespeare, do Velho Testamento, da Odisséia, da
Ilíada. Suas frases eram salpicadas de latim e com
eventuais frases em espanhol, uma relíquia dos
seus dias no Texas, Lisonjeava as pessoas com
seus olhos admiráveis, enfeitiçava-as com sua voz,
hipnotizava-as com suas mãos. Bebia uma garrafa
de uísque por dia; quase nunca se embriagava,
mas nas raras ocasiões em que o álcool levava a
melhor, invariavelmente ele escolhia uma vítima
incauta e, puxando o par de pistolas de coronha
de madrepérola que sempre usava no cinto, for-
çava-a a dançar atirando nos seus pés — uma
brincadeira que trouxera do Texas e de Cimarron.
Depois, quando voltava à sobriedade, ficava sem-
pre muito envergonhado. O vinho, citava ele
melancolicamente, é um escárnio, bebidas alcoóli-
cas são devastadoras. Yancey Cravat poderia ter
sido (na realidade era, embora a maioria dos ame-
ricanos nunca tivesse sabido) o maior advogado
criminalista de sua época. Dizia-se que ele hipnoti-
zava o júri com seus olhos, mãos e voz. Sua atua-
ção profissional nada lhe rendia, pois sendo senti-
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mental e melodramático ele em geral se via de
bolsos vazios depois de uma defesa brilhante e
bem-sucedida de alguma dançarina de cabaré ou de
um cowboy turbulento cuja pistola fora apontada
para o lado errado.
Seu passado, antes de vir para Wichita, era
anuviado por mitos e conjecturas. Falatórios
diziam isso, calúnias diziam aquilo. Boatos român-
ticos, repulsivos, fantásticos, movimentando-se e
transformando-se como nuvens num pico de
montanha, flutuavam sobre a cabeça de Yancey
Cravat. Dizem que ele tem uma dose de sangue de
índio. Dizem que ele tem uma esposa índia em
alguma parte e uma porção de filhos mestiços.
Cherokee. Dizem que ele era conhecido como
"Cimarron" Cravat, e daí o nome de seu filho
Cim, uma corruptela de Cimarron. Dizem que o
seu verdadeiro nome é Cimarron Sete, da família
índia choctaw Sete; foi criado numa oca; uma tenda
coniforme de palha fora seu quarto de dormir, seu
manto um cobertor. Ele tinha sido um dos segui-
dores do esplendidamente desatinado e pitoresco
David Payne na primeira investida furiosa da-
quele aventureiro contra o território índio. Outros
comentavam em voz baixa que ele habitara aquela
sinistra faixa, de cinqüenta e cinco quilômetros de
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largura por quase trezentos quilômetros de com-
primento, chamada desde 1854 a Terra-de-
Ninguém, e mais tarde conhecida como o Cimar-
ron, uma palavra espanhola que significava selva-
geria e desgoverno. Ali, naquele estranho império
sem dono, sem lei e sem governo, um paraíso de
ladrões de cavalo, assassinos e bandidos, dizia-se
que ele passara pelo menos um ano (e por algum
motivo nada bom). Diziam que era óbvia a evi-
dência de seu sangue de índio; a cor da pele, o
cabelo, a maneira de andar. E por que protestava
ele em seu jornal contra o tratamento dado pelo
governo àqueles sujos, ladrões, preguiçosos e
imprestáveis protegidos por um país benfeitor!
Quanto a seu jornal, o próprio título era um es-
cândalo: o Taba de Wichita. E logo abaixo do títu-
lo: "Todas as notícias. Qualquer escândalo não
difamatório. Editado semanalmente quando con-
veniente". Além do mais, quem já ouvira falar de
um advogado em exercício da profissão que, ao
mesmo tempo, dirigisse um jornal? Suas colunas
eram ecos de sua oratória fulminante no tribunal
ou na tribuna. Ele iniciara o jornal em oposição
ao velho Águia de Wichita. Por deboche, a gente de
Wichita dizia que ele devia ter chamado seu jornal
O Galo. A combinação de escritório de advocacia
21
e redação de jornal era uma confusão e tumulto
de tipos tipográficos de toda sorte, correspondên-
cia por abrir, clichês, compêndios jurídicos, vidros
de cola, fumo espalhado, velhos casacos e cartazes
de corridas. E Wichita, embora manifestando
desprezo pelo Taba, lia o jornal. Wichita analisara
cuidadosamente o primeiro editorial de Yancey
Cravat intitulado "Irá o sangue azul do sul deca-
dente envenenar o sangue vermelho do grande
centro-oeste?", para dois meses mais tarde vê-lo
unir-se triunfalmente a Sabra Venable, filha da-
quela mesma "decadência"; Sabra Venable, cujo
sangue cerúleo poderia ter-se misturado com o
fluido sangüíneo mais comum de qualquer um
dos jovens de Wichita. Apesar da cerca do jardim,
do orgulho de família, do dorso arqueado dos pés,
da criadagem negra e do ar implícito de que-
atrevimento-é-este que permeava o lar dos Vena-
ble assim que se apresentava um pretendente local
em perspectiva, Sabra Venable, aos dezesseis
anos, poderia ter tido à escolha qualquer dos
rapazes de boa raça em toda a extensão de Kan-
sas, desde Salina até Winfield. Sem falar nos pre-
tendentes de sangue azul vindos do sul, tais como
o próprio Dabney Venable, primo de Sabra, que
se parecia ao mesmo tempo com Lafayette e com
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o velho Lewis, até mesmo no grisalho prematuro
dos cabelos, no comprimento da cabeça elegante,
dolicocéfala, levemente decadente, e na gravata de
seda preta que deixava a gente de Wichita estarre-
cida. Quando, entre toda essa profusão de parti-
dos, Sabra escolhera o romântico, porém misteri-
oso, Cravat, as mães de Wichita com filhas casa-
douras se sentiram vingadas do ar de superiorida-
de dos Venable. Estranha, porém, foi a reação das
próprias filhas casadouras, que se mostraram mais
ressentidas do que nunca, e houve uma acentuada
diminuição no número de moças que tinham
hábito de ir à redação do Taba para informar
sobre esta ou aquela reunião ou acontecimento
social a ser inserido nas colunas do jornal.
No decorrer da farta refeição apresentada na
mesa dos Venable, Yancey Cravat não comera
quase nada. Ali estava uma platéia bem a seu
gosto. A história que estava contando, agreste,
incrível, porém verdadeira, era a da abertura das
terras de Oklahoma, de uma vastidão desabitada
que se povoara em uma hora, de cidades de mi-
lhares de habitantes literalmente surgindo da noite
para o dia, onde na véspera fora uma campina
com coiotes e cascavéis, barro vermelho, cerrado,
e um intruso ocasional escondido na segurança de
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um capinzal.
Ele estivera ausente um mês. Como milhares
de outros, partira em busca de terra grátis e de
fortuna. Era um império que se oferecia a quem
quisesse tomar posse dele. Yancey falava, como
sempre, nos termos bombásticos do orador que
está constantemente consciente de seu público.
Entretanto, por mais fantástica que fosse a sua
narrativa, tinha o tom da verdade. Cenas inteiras
descritas por ele pareciam estar acontecendo
diante dos olhos dos que o ouviam.

24
Capítulo II

As abas da sobrecasaca agitando-se, olhos


faiscando, braços gesticulando, a voz ressoando:
— Minha gente, nunca houve nada igual
desde o dia da Criação! Raios! Foram precisos seis
dias para criar o mundo. Mas aquilo foi feito num
só dia. A história feita numa hora — e eu ajudei a
fazê-la. Milhares e milhares de pessoas de todos
os cantos desta nossa vasta comunidade — era
nestes termos que ele falava — viajaram centenas
de quilômetros para conseguir de graça um peda-
ço de terra. Mas que terra! Virgem, exceto por
onde os índios tinham passado. "Terras de deuses
perdidos, e homens-deuses!" Eles chegavam
como uma procissão — uma procissão maluca —
até a fronteira, avançando o mais depressa que
podiam, por todos os meios de que podiam dis-
por, empurrando outros nas valas para chegar
primeiro. Só Deus sabe por quê, pois todos sabi-
am que uma vez que chegassem teriam que espe-
rar, como gado encurralado, pelo estampido do
tiro que abriria a terra prometida. Quando fui me
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aproximando da linha de demarcação era como se
estivesse vendo formigas amontoando-se sobre o
açúcar. Eles desciam das colinas, surgiam do
cerrado e avançavam através da campina. Vinham
do Texas e Arkansas, do Colorado e Missouri.
Chegavam a pé, Santo Deus, vindos de lowa e
Nebraska! Vinham em charretes, carretas e carro-
ções, a cavalo e no lombo de mulas. Em carro-
ções com toldos, carros de boi e carruagens. Vi
uma linda carruagem de quatro rodas, cor de mel,
com franjas no toldo, puxada por dois elegantes
cavalos baios trotando por aqueles caminhos
acidentados como se estivessem dando uma volta
no parque. Um rapazinho negro guiava a carrua-
gem, num uniforme de botões dourados, e no
assento traseiro havia um janota de sobrecasaca
bege, charuto na boca e um diamante espetado no
peitilho da camisa; e ao seu lado uma mulher com
imenso chapéu e vestido rosa rindo e incitando os
cavalos ao longo da terra vermelha em que as
rodas se afundavam até a metade dos raios e que
daria para sufocar qualquer um. Eles tinham
vindo assim de Denver, por incrível que pareça.
Encontrei um velho fazendeiro à margem da
estrada, o rosto ressequido e enrugado como uma
noz-moscada, que me contou que tinha encetado
26
a jornada há muitas e muitas semanas, fazendo o
percurso da melhor maneira que pudera, a pé ou
de trem, barco e carroção, conforme pessoas
bondosas se tinham disposto a transportá-lo. Não
sei se ele algum dia conseguiu seu pedaço de terra
naquela investida desenfreada. . . o pobre-diabo.
Yancey fez uma pausa, talvez em retrospec-
tiva, talvez por astúcia para deixar em suspenso
seus ouvintes.
— Oh, Yancey, continue! Continue! — ex-
clamou Sabra impaciente.
— Pois bem, a fronteira finalmente; e foi
como uma comemoração do 4 de Julho ou o dia
do juízo final. A milícia estava enfileirada na divi-
sa. Ninguém tinha permissão de dar um passo
avante na nova terra até o meio-dia do dia seguin-
te, ao disparar das espingardas. Dois milhões de
acres de terras iam ser dados aos que chegassem
primeiro. Meio-dia era a hora marcada. Todos
sabiam isso de cor. Dia 22 de abril, ao meio-dia. É
necessário gerações e gerações e centenas de anos
para povoar uma nova terra. Mas aquela terra ia
tornar-se habitável do dia para a noite — e foi o
que aconteceu — como num milagre do Velho
Testamento. Por comparação, a multiplicação dos
27
pães e peixes e a divisão do mar Vermelho não
eram nada — meros truques.
— Não diga blasfêmias, Yancey! — protes-
tou tia Cassandra Venable.
O primo Dabney Venable deu um sorrisi-
nho irônico.
— Um dia uma vastidão desabitada, exceto
por ocasionais bandos de índios errantes, no
outro dia um império. Se isto não é um milagre
moderno...
— Índios, hem? — disse o primo Dabney
num tom de significativa zombaria.
— Oh, Dabney! — exclamou Sabra rispi-
damente. — Por que interrompe? Por que não
fica quieto, ouvindo?
Yancey Cravat ergueu a mão apaziguadora,
mas a grande cabeça de búfalo estava abaixada
para o primo Dabney, como que pronta a acome-
ter. O mais suave sorriso se desenhou em seus
lábios.
— Está tudo bem, Sabra. Deixe o primo
Dabney falar. E por que não? "Un cabello hace
sombra".

28
O rosto de marfim do primo Dabney se tin-
giu de um delicado tom róseo.
— O que disse, Cravat? É língua de índio
cherokee?
— Espanhol, meu rapaz, espanhol.
Um instante de expectativa silenciosa. Yan-
cey não traduziu a sentença. Uma nora roliça e
bonitinha (não uma Venable de nascimento)
formulou a pergunta:
— Espanhol, primo Yancey! Esta agora! Pe-
lo amor de Deus, o que significa? Espero que seja
algo de romântico.
— Não exatamente. Um provérbio espa-
nhol. Significa, literalmente: "Até um fio de cabe-
lo projeta uma sombra".
Outro instante de silêncio. O rosto da nora
bonitinha adquiriu uma expressão perplexa.
— Oh! Um fio de cabelo, mas não entendo
o que isto tem a ver com. . .
Era chegado o momento de Felice Venable
intervir. Sua voz arrastada, irritadiça, despejou
uma água adocicada na fervura da rixa amarga que
existia entre os dois homens.
29
— Tenho a dizer que, positivamente, acho
uma falta de boas maneiras. Aqui estamos nós de
ouvido esticado para escutar o primeiro disparo
de espingarda da milícia ao soar o meio-dia na
fronteira, e aqui está o primo Jouett Goforth, que
veio lá de Louisiana pela primeira vez em quinze
anos, e ardendo de curiosidade, e o que ouvimos é
uma bobagem a respeito de provérbios espanhóis
e sombras. — Ela se interrompeu bruscamente,
lançou um olhar furibundo para cima, e num tom
que seria considerado um berro se não houvesse
sido emitido pela garganta de uma Venable: —
Ah-saiah!
O abano do pretinho, pendurado em sua
mão inerte, recomeçou a agitar-se desesperada-
mente. O ar ficou limpo. As pessoas em redor da
mesa suspiraram aliviadas. Os rostos tornaram a
voltar-se para Yancey Cravat. Yancey lançou um
olhar a Sabra. Os lábios de Sabra se franziram
num beijo secreto e formaram três palavras que
não foram vistas nem ouvidas pelo resto dos
presentes.
— Por favor, querido.
— Cede Deo — disse Yancey com um ligei-
ro gesto de cabeça para ela. Depois, com um
30
gesto ainda menos acentuado, virou-se para o
primo Dabney. — "Que não haja discórdia, eu
vos peço, entre vós e mim." Talvez não reco-
nheça também esta frase, Dabney. É do Velho
Testamento.
O primo Dabney Venable passou um dedo
ao longo de sua gravata de seda preta como para
desafogar a garganta.
Com um sacudir das abas da sobrecasaca,
Yancey recomeçou a falar, fazendo apenas uma
pequena pausa junto ao aparador para engolir de
um trago três dedos de conhaque espanhol, como
um ardente âmbar líquido. Enxugou de leve os
lábios com o lenço de linho fino.
— Tenho a dizer que há mais de um mês
não provo nada que se compare. Uísque de milho
fermentado que estraçalha uma garganta. E quan-
to à água! Lama vermelha. Depois das primeiras
vinte e quatro horas, não havia mais um gole de
água para se beber na cidade. Éramos milhares e
milhares arrebanhados junto à fronteira como
gado, sob o sol ardente o dia inteiro, sem uma
sombra sequer para nos abrigar, e a grossa poeira
vermelha entupindo nariz, boca e olhos. Lugar
algum onde nos lavar, onde dormir, nada para
31
comer. O curioso é que ninguém parecia notar.
Estavam todos ali se sustentando com uma espé-
cie de excitação alucinada, e havia nos olhos deles
um brilho de loucura. Riam, brincavam e ficavam
andando de um lado para outro o dia inteiro e a
noite inteira até quase o meio-dia seguinte. Quem
tinha um pouco de comida dividia-a com outra
pessoa. Finalmente, consegui um copo de água
por um dólar, depois de ficar três horas numa fila,
e então uma mulher logo atrás de mim. . .
— Uma mulher! — exclamou a prima Ar-
minta Green-wood (dos Greenwood de Geórgia).
E Sabra Cravat ecoou as palavras num murmúrio
escandalizado.
— Não podem acreditar, não é mesmo? que
mulheres possam enfrentar sozinhas uma tal
baderna. Mas enfrentaram. Estavam lá com seus
maridos, algumas delas, mas havia mulheres que
participaram sozinhas da corrida.
— Que espécie de mulheres? — O tom de
Felice Venable não era de interrogação mas de
condenação.
— Mulheres feitas de ferro. Mulheres que
queriam uma terra e um lar. Mulheres pioneiras.

32
Da ponta da mesa onde se achava tia Cas-
sandra Venable, ouviu-se algo como:
— Sujeitinhas!
Yancey Cravat apanhou a palavra no ar e
cuspiu-a de volta.
— Sujeitinhas, esta é boa! A que estava na
fila atrás de mim era uma mulher de quarenta
anos — ou aparentava ter esta idade — com um
vestido de chita e touca de sol. Tinha cruzado as
campinas em toda a sua extensão, desde o norte
de Arkansas, num carroção sem molas. Era igual
às mulheres que em 1849 atravessaram o conti-
nente para chegar à Califórnia. Uma mulher ema-
ciada, com um rosto curtido pelo sol, a pele terri-
velmente maltratada — ele lançou um olhar a
Sabra e à sua tez cremosa — que significa água
alcalina, sol, poeira e vento. Cabelos ásperos,
mãos estragadas e botinas com uma crosta de
lama. São mulheres iguais a ela que fizeram este
país. Não podem ler a história dos Estados Uni-
dos, meus amigos (tudo isto ele mais tarde apro-
veitou num discurso de 4 de Julho, quando tenta-
ram fazê-lo governador), sem saber a fabulosa
história desses milhares de mulheres anônimas —
mulheres como a que acabo de descrever, mulhe-
33
res de botas enlameadas, vestidos de chita e tou-
cas, cruzando os campos, o deserto e as monta-
nhas, suportando adversidades e privações. Boas
mulheres, de uma terrível e rígida bondade que
resulta do trabalho e abnegação. Suponho que
não haja nelas nada de pitoresco ou romântico,
embora ocasionalmente uma delas brilhe. Belle
Starr, a fora-da-lei, Rosa do Cimarron, Jeannette
Daisy, que saltou de um trem de Santa Fé em
movimento para tomar posse de uma terra. Mas
as outras, não, a história delas nunca foi realmente
contada. Ainda assim, a história existe. E, se é que
a contaram direito, todos ficarão sabendo que foi
a touca e não o sombrero que fez crescer este país.
— Está dizendo tolices — comentou Felice
Venable com sua voz langorosa.
Yancey girou sobre os saltos altos para enca-
rá-la, com chispas no olhar.
— A senhora é uma delas. Veio do sul com
seu marido para fundar um novo lar em Kansas. .
.
— Não sou! — replicou Felice Venable com
enorme dignidade. — E eu lhe ficaria agradecida
se não dissesse uma coisa dessas. Touca, esta é
muito boa! Nunca usei uma touca em minha vida.
34
E quanto à minha cútis, cabelos e mãos, eram
famosos no sul, como qualquer pessoa aqui pode-
rá confirmar, em toda a extensão da Louisiana até
o Tennessee. E pés tão pequenos que meus sapa-
tos tinham que ser feitos sob encomenda. Imagi-
nem só, chita e botinas enlameadas!
— Oh, mamãe, Yancey não quis dizer... ele
estava falando na coragem de abandonar o seu lar
no sul e vir para cá. . . ele não estava pensando
em. . . Yancey, continue sua história da corrida.
Conseguiu um copo de água por um dólar —
Santo Deus! — e o compartilhou com a mulher
de vestido de chita e touca. . .
Ele pareceu meio contrafeito.
— Bem, para falar a verdade, ela não tinha
um dólar para gastar, estava quase de bolso vazio,
mas mesmo que tivesse, não lhe adiantaria nada.
O sujeito que estava vendendo a água era um
hombre com cara de rato, caolho e vestido com
calças mexicanas. O dedo de puxar o gatilho de
sua mão direita tinha sido arrancado a bala em
alguma rixa, por isso ele servia a água com a mão
acidentada e segurava a pistola com a mão es-
querda. Sem dúvida, estava bastante estropiado.
Uma cicatriz no nariz mostrava as marcas onde
35
dentes humanos o tinham mordido numa briga,
tão nítidas como numa tabuleta de dentista.
Quando chegou a minha vez na fila, só restava no
balde uma xícara de água. Ele inclinou o balde
enquanto eu segurava a concha, e a água pingou
justo até encher a concha. A última concha de
água na fronteira. Da multidão esperando na fila
brotou um clamor que era algo entre um suspiro e
um gemido. O clamor que se ouve no campo
numa época de seca, quando o gado está sedento,
de língua de fora. Eu virei a concha e sorvi um
bom gole de água — uma água suja, de gosto
detestável. Água alcalina. Podia-se sentir o álcali
na língua. Pois bem, enquanto eu bebia, curvei a
cabeça para trás e relanceei um olhar no rosto
daquela mulher. Tinha os olhos fixos em mim —
na minha garganta, onde o pomo-de-adão se
tinha movido após o primeiro gole. O branco
dos seus olhos era cor de sangue, e a expressão
deles igual à de um moribundo voltado para uma
luz. A boca estava aberta, os lábios rachados pelo
calor, pó e sol, e secos e escamados como cinzas.
Então, ela fechou um pouco os lábios e tentou
engolir nada, e não pôde. Não havia saliva ne-
nhuma na sua boca. Por mais sedento que eu
estivesse, não pude beber outro gole. Eu estaria
36
com o rosto dela gravado na memória até o
último dia de minha vida. Assim, endireitei a
concha e estendi-a para ela e disse: "Aqui tem,
irmã, beba o resto. Eu já terminei".
O primo Jouett Goforth ensaiou uma brin-
cadeira:
— Tem certeza de que tinha quarenta anos,
Yancey, e era uma mulher maltratada? E que tal
eram seus cabelos, botinas e mãos?
Cravat, em pé detrás da cadeira de sua mu-
lher, baixou os olhos para ela; para a fina linha
branca que marcava o repartido de seus espessos
cabelos negros. Com o polegar tocou-lhe de leve a
face. Deixou que o dedo deslizasse pela superfície
cremosa da pele de Sabra, desde a maçã do rosto
até o queixo.
— Certeza absoluta, Jouett. Deixei, porém,
de mencionar uma coisa.
O primo Jouett emitiu um som que signifi-
cava "Ah, foi o que pensei".
— Os dentes dela — prosseguiu Yancey
Cravat pensativamente. — Quebrados, descolori-
dos como os de uma mulher de setenta anos. E
além disso, a maioria deles faltando.
37
Neste ponto, Yancey não resistiu e começou
a andar de um lado para outro, abanando as abas
da sobrecasaca e, de uma forma geral, saboreando
o gosto de sua vitória sobre a mentalidade dos
Venable. O fato era que esta mentalidade (ou a
perspectiva de escapar dela) tinha sido uma das
razões de sua participação na balbúrdia desenfre-
ada da corrida. Agora, ele parou para contemplar
aqueles belos rostos frívolos, e uma grande impa-
ciência o invadiu, um lampejo de raiva percorreu-
lhe o corpo, e sentiu um desejo de extravasar sua
malícia. Com estes sentimentos impelindo-o, e
com a lembrança em mente de como tinha fracas-
sado, ele retomou sua narrativa até o final.
— Eu havia planejado tentar obter um lugar
no trem de Santa Fé que estava parado, soltando
vapor, pronto para penetrar na Nação. Mas não
era possível entrar nele. Não havia lugar para mais
uma pulga. Havia gente pendurada no limpa-
trilhos e formigando por sobre toda a locomotiva,
e muitos tinham se aboletado no topo dos vagões.
A velocidade da locomotiva fora reduzida ao trote
de um cavalo. E nem isto o maquinista iria conse-
guir. O trem fizera pouco mais de trinta quilôme-
tros em noventa minutos. Decidi usar meu petiço
índio. Sabia que poderia contar com sua resistên-
38
cia, se não com velocidade. E resistência era o
que, no final, iria contar mais.
"Assim ficamos nós parados, aos milhares, a
noite inteira. Pela manhã, começamos a nos enfi-
leirar junto à fronteira, o mais próximo que nos
permitiam. A milícia se colocara em toda a exten-
são da linha para impedir que a ultrapassássemos.
Tinham tocado fogo na campina quilômetros para
dentro da Nação para que o mato ficasse rasteiro e
permitisse ver o caminho. E também para desen-
tocar os posseiros, que tinham se esgueirado para
dentro e se escondido nos cerrados, em covas, em
qualquer lugar que pudessem. A maioria das mor-
tes foi causada por eles. Tinham se esgueirado
para dentro da Nação, tomado posse da terra, e
estavam prontos a atirar em nós, que tínhamos
respeitado as regras da corrida. Eu sabia o pedaço
de terra que queria. Uma antiga trilha de carretei-
ros, agora abandonada, mas ainda marcada por
fundos sulcos de rodas, levava quase diretamente
ao local, desde que se pudesse encontrar a trilha
agora encoberta pelo mato. Um riacho corria
cortando o terreno e a campina também descia em
ligeiro declive. Em toda a redondeza a única vege-
tação era o carvalho preto, mas naquele trecho,
presumo que devido à água, cresciam olmos,
39
ébanos, choupos e havia até mesmo um bosque de
nogueiras. Eu tinha notado o local muitas vezes,
ao passar a cavalo pela cordilheira.
(Hum! A cavalo pela cordilheira! Todos os
Venable anotaram mentalmente as palavras. Era
assim, através de pequenos detalhes e uma ou
outra revelação, que eles conseguiam ter uma idéia
do que fora o passado de Yancey Cravat.)
"Dez horas da manhã, e a multidão estava
nervosa e inquieta, Muitos de nós tínhamos sido
seguidores de Payne e penetrado como desbrava-
dores nas velhas colônias de Payne, havíamos sido
expulsos e retornado. Milhares de pessoas de
todas as partes do país tinham esperado dez anos
por este dia, quando iriam poder saciar sua fome
de terras. Eram como pessoas famintas. Já vi
exatamente a mesma expressão em gente desespe-
rada de fome.
"Às onze horas, estavam todos aglomerados,
praguejando e lutando por lugares junto à linha.
Gritavam, cantavam, berravam e discutiam; a
algazarra que faziam nada tinha de humano, mais
parecia o clamor de animais selvagens encurrala-
dos. O sol ardia. Era cruel. A poeira pairava no ar
como uma nuvem pesada, cegando e sufocando.
40
As cinzas pretas do mato queimado recobriam
tudo. Parecíamos uma horda de demônios com
nossos olhos injetados, lábios rachados e rostos
enegrecidos. Onze e meia. Era um espetáculo
saído diretamente do inferno. O clamor aumenta-
va. As pessoas lutavam para conseguir ficar um
milímetro mais perto da fronteira. Bem junto de
mim se achava uma jovem de uns dezoito anos —
apurei depois que já tinha vinte e cinco, e era linda
também — montada num puro-sangue preto."
— Ahh! — disse o primo Jouett Goforth.
Ele era do tipo de homem que diz "Ahh!"
— Do outro lado estava um sujeito velho de
longa barba grisalha — visivelmente um habitante
das planícies — com uma pistola no cinto, uma
perna de pau e um frasco de uísque. A cada um
ou dois minutos, ele tomava um gole da bebida.
Estava montado num petiço índio como o meu.
De quando em quando, jogava a cabeça para trás
e soltava um berro de causar arrepios na espinha,
mesmo em meio àquele coro de demônios. En-
quanto esperávamos, começamos os três a con-
versar, embora não se pudesse ouvir direito em
meio ao pandemônio. A jovem disse que tinha
treinado seu puro-sangue para a corrida. Era um

41
cavalo de Kentucky, e também ela era daquela
região. Disse ter certeza de que ia tomar posse
dos seus cento e sessenta acres. Tinha que conse-
guir a terra. Não disse por quê, e não lhe pergun-
tei. De qualquer modo, estávamos todos muito
excitados para dizer coisa com coisa. Ah, ia me
esquecendo. Ela estava usando um traje que cha-
mava a atenção de todos os que a vissem. Para
cortar melhor o vento, reduzira seus trajes e usava
uma saia curta, calças pretas justas e um barrete na
cabeça.
Neste ponto, houve um verdadeiro bombar-
deio de som quando colheres, facas e garfos de
prata caíram dos dedos da escandalizada e atônita
parcela feminina da família Venable.
— O que aconteceu foi que nós três, na li-
nha de vanguarda, íamos para a velha trilha de
carreteiros rumo ao terreno do riacho. Eu disse:
"Vou ser o primeiro da corrida a alcançar Peque-
no Urso". Era este o nome do local do riacho. A
jovem enterrou o barrete até as orelhas. "Siga-
me, disse ela rindo. "Eu lhe mostrarei o cami-
nho." Então, o velho da perna de pau e barbas
grisalhas" gritou: "Upa-a! Vou avisar ao pessoal
lá em Pequeno Urso que vocês vão chegar".

42
"Lá estávamos nós, a moça à minha esquer-
da, o velho à minha direita. Onze e quarenta e
cinco. Ao longo da fronteira se alinhavam os
soldados, empunhando a espingarda numa das
mãos e na outra o relógio. Aqueles últimos cinco
minutos pareciam durar anos; e, curioso, a multi-
dão se aquietara e não se ouvia mais um só ruído.
Todos de ouvido atento. O último minuto foi
uma eternidade. Meio-dia. Ecoou no ar um cla-
mor que afogou o estampido dos tiros de mos-
quete dos soldados disparando para cima, o sinal
que marcava o início da corrida. Podia-se ver a
fumaça saindo de suas armas, mas não se podia
ouvir nada. Milhares de pessoas avançaram atra-
vessando a linha. Era como água jorrando de uma
represa rompida. A disparada começara, e agora
era quem mais corresse. Invadimos a campina
numa nuvem de poeira preta e vermelha que
cobriu nossos rostos e mãos em questão de se-
gundos, de forma que parecíamos demônios
escapulidos do inferno. Rumamos pela velha
trilha abaixo marcada por sulcos de carroças de
duas rodas, cada sulco medindo perto de quarenta
centímetros de largura, cavados no solo da cam-
pina. O velho no seu petiço mantinha-se num
sulco, a jovem e seu puro-sangue no outro sulco,
43
e eu na minha montaria seguia pelo centro, na
lombada da trilha. O primeiro quilômetro foi uma
corrida quase emparelhada. O velho estava ber-
rando e abanando um braço e agüentando-se com
a outra mão para não cair. Estava batendo no
flanco do petiço com o frasco de uísque. Depois,
ele começou a ficar para trás. Logo em seguida,
ouvi um grito terrível atrás de mim. Lancei um
olhar rápido por sobre meu ombro. O petiço do
velho tinha tropeçado e caído. A garrafa dele se
espatifou, a pistola voou em outra direção, e ele se
esparramou ao comprido no sulco da trilha. No
momento seguinte, tinha desaparecido num rebu-
liço de cascos de animais, torrões de terra, cinzas
e rodas de carroças.
Uma pausa dramática. O pretinho Isaiah es-
tava pendurado no seu poleiro como um macaco
num galho. Seu abano de folhas se imobilizara.
Os rostos em redor da mesa eram balões presos
por um só cordel. Balançavam de um lado para
outro, conforme Yancey Cravat ia e vinha na sala.
Deste lado, os rostos viravam para o aparador.
Daquele, voltavam-se para as janelas. Yancey
reteve o pequeno momento de silêncio como uma
jóia no aro formado por aqueles rostos. A voz de
Sabra Cravat, alta e aguçada pelo suspense, rom-
44
peu o silêncio.
— O que aconteceu? O que aconteceu com
o velho da perna de pau?
As mãos flexíveis de Yancey se ergueram
num gesto de inevitabilidade.
— Ele morreu espezinhado pela multidão
enlouquecida que passou por cima do seu corpo.
Uma loucura. Ninguém iria parar por causa de um
velho de perna de pau e barba com uma garrafa
de uísque.
Em meio do murmúrio bem-educado de
horror que agora brotava da mesa dos Venable,
ergueu-se a voz de Felice Venable em ríspida
desaprovação.
— E a moça? A moça de. . . — A sua finura
sulista não lhe permitia mencionar "calças pretas".
— A moça e eu — engraçado, nunca che-
guei a saber o seu nome — estávamos na frente
porque tínhamos nos mantido na trilha, apesar
dos sulcos, em vez de cruzar a campina que, a
essa altura, já deixara para trás a zona da queimada
e agora estava recoberta de capim que em certos
pontos chegava a ter quase dois metros de altura.
Um cavalo, para atravessar aquele capim, tinha
45
que avançar lentamente. Por causa disso, muita
gente deixou de ganhar sua terra naquele dia.
"A moça me seguia de perto. A constituição
do puro-sangue que ela montava era para veloci-
dade, não para resistência. Um cavalo de corrida.
Eu o podia ouvir ofegando. Era um animal trei-
nado para corridas curtas. Meu petiço índio ainda
estava tomando fôlego e o cavalo dela já passara
do galope para o trote. Tínhamos percorrido uns
vinte e poucos quilômetros. A esta hora, eu já
tomara a dianteira, com a moça me seguindo. Ela
se agachara sobre o pescoço do animal como um
jóquei, e eu podia ouvi-la falando num tom baixo
e meigo como se ele fosse um ser humano. Está-
vamos agora bem na frente. Os outros tinham
ficado para trás espalhados em todas as direções.
Então, vi que a campina adiante estava em cha-
mas. Ò capim alto ardia. Somente a estreita trilha
pela qual galopávamos estava aberta. De cada lado
dela se erguia uma parede de fogo. Algum possei-
ro amaldiçoado, esgueirando-se para aqueles lados
antes da corrida, tinha provocado o incêndio para
impedir o avanço dos pioneiros e ficar com a terra
para si mesmo. O capim seco queimava como
papel impermeabilizado. Olhei para trás. A moça
lá estava, seu cavalo tropeçando, resfolegando e
46
prosseguindo, com a cabeça agora balouçando.
Eu a vi fazer um gesto com a cabeça. Estava se
aproximando. Tirei meu chapéu e tapei os olhos
do meu petiço, meti-lhe" as esporas nos flancos,
agachei-me o mais que pude, fechei os olhos,
enveredei pela trilha abaixo e penetrei na fornalha.
Quente! Era um verdadeiro inferno! Os estalos de
galhos pegando fogo de cada lado da trilha eram
como uma fuzilaria. Eu podia sentir o cheiro de
pêlo queimado nos flancos do meu petiço. Meu
próprio cabelo estava chamuscado. As labaredas
lambiam-me as pernas e as costas. Mais uns du-
zentos metros e nem o cavalo nem eu poderíamos
ter passado. Mas conseguimos atravessar o fogo e
saímos do outro lado meio cegos e meio sufoca-
dos. Voltei-me para ver a vereda em chamas. A
moça continuava agarrada ao pescoço do seu
cavalo. Puxara o barrete sobre os olhos. Ela ia
também conseguir. Eu sabia que minha terra — o
trecho pelo qual eu acabara de atravessar o infer-
no — ficava pouco mais de um quilômetro adian-
te. E sabia que demorar-me ali poderia me render
um tiro na cabeça, pois o posseiro que provocara
o fogo devia estar escondido em alguma parte do
capim alto, pronto a matar quem tentasse tomar
posse de sua terra. Comecei também a desconfiar
47
de que a moça estava rumando para o mesmo
trecho que eu. Decidi que, fosse ou não fosse
mulher, aquilo era uma corrida, e que se danasse
quem ficava para trás. Meu pobre petiço estava
tossindo, espirrando e tremendo. O puro-sangue
dela devia estar prestes a cair por terra. Virei-me e
segui em frente. Pensava o tempo todo que,
quando chegasse ao riacho do Pequeno Urso, iria
banhar o nariz e a cara do meu petiço e seus
pobres flancos arfantes, tomando o cuidado de
não deixar que ele bebesse água demais quando
enfiasse o focinho no riacho.
"Pouco antes de alcançar a terra para onde
me dirigia, teria que abandonar a trilha e cruzar a
campina. Já podia ver na minha frente a moita de
olmos. Sabia que o riacho estava nas imediações.
Mas quando já ia alcançá-lo, esbarrei com uma
dessas ravinas fundas encontradas em planícies.
São provocadas pela seca: começam com uma
racha no solo ressequido, alargando-se a cada
chuva até se transformarem em pequenas gargan-
tas. A ravina com que deparei tinha quase três
metros e meio de largura e outro tanto de pro-
fundidade. Não havia como circundá-la e nem eu
tinha tempo de procurar um caminho mais fácil.
Impeli Pé-Branco para saltar e, por Deus, ele
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conseguiu, indo parar do outro lado, a poucos
centímetros da borda. Ouvi um grito desesperado
atrás de mim. Virei-me. A moça, no seu puro-
sangue exausto, tinha tentado o salto.O animal
obedecera — como um verdadeiro puro-sangue e
um cavalheiro —, mas caiu de joelhos na outra
borda da ravina, rolou e foi parar no fundo. A
moça conseguira jogar-se do cavalo. A terra que
eu cobiçava estava a menos de cinqüenta metros.
E era a terra que a moça, com seu cavalo mori-
bundo, também queria. Ela estava estirada no
chão. Quando corri na sua direção — meu pobre
petiço já quase não se agüentava mais — ela se
pôs de joelhos. Ainda posso ver-lhe o rosto, preto
de cinzas, fuligem e terra, os cabelos espalhados
sobre os ombros, uma das faces sangrando onde
ela batera contra uma pedra ao cair, calças pretas
rasgadas, saia curta despencada. Ela meio se sen-
tou e olhou em redor. Depois, com esforço, antes
de eu alcançá-la, pôs-se de pé, cambaleante, e
afastou o cabelo dos olhos como alguém que
esteve dormindo. Apontou para o fundo da ravina.
O negrume de suas faces estava riscado por lágri-
mas.
'' 'Atire nele!', disse ela. 'Eu não posso. Suas
duas pernas da frente estão quebradas. Eu ouvi o
49
ruído dos ossos partidos. Atire nele! Pelo amor de
Deus!'
"Saltei então do meu cavalo e me aproximei
da borda da ravina. Ali jazia o animal, só o branco
de seus olhos aparecia, as pobres pernas dobradas
sob o corpo, os flancos negros e grudentos de
suor e terra. Não havia dúvida de que ele estava
liquidado. Empunhei minha pistola e fiz pontaria
bem entre os olhos. Ele deu um coice, uma espé-
cie de salto, ou tentou saltar, depois se imobilizou.
Fiquei ali parado um minuto para ver se ele preci-
sava levar outro tiro. Era um animal de tanta
coragem que, de certa forma, eu não queria dar-
lhe mais do que o necessário.
"Então, algo fez com que eu me voltasse. A
moça tinha montado no meu petiço e partira em
direção ao riacho. Antes que eu tivesse tempo de
dar dez passos, ela alcançara exatamente o local
que eu demarcara em minha cabeça corno meu.
Saltou do cavalo, arrancou a saia, amarrou-a ao
chicote que ainda segurava com força na mão,
enterrou o cabo do chicote no solo — plantou
sua bandeira — e a terra se tornou sua por direito
de posse."
Yancey Cravat parou de falar. Houve um
50
momento de silêncio estarrecido. Sabra Cravat
com seus grandes olhos redondos fixos no mari-
do; Lewis Venable flácido, amarelo, trêmulo;
Felice Venable empertigada e arfando. Foi ela
quem falou primeiro. E quando falou, era cem
por cento a descendente parcimoniosa dos seus
antepassados franceses; nenhum vestígio nela da
displicência sulista.
— Yancey Cravat, quer dizer que deixou que
ela se apoderasse do pedaço de terra que havia
feito com que você penetrasse no território índio
para se apropriar! O motivo pelo qual esteve
ausente um mês inteiro! A razão de ter abandona-
do sua mulher e filho! Que. . .
— Por favor, mamãe! — Via-se que Sabra
precisara de todo o seu sangue Venable para
conter as lágrimas, e que as sufocara com sua voz
trêmula. — Por favor, mamãe!
— Não me venha com "por favor, mamãe"!
O que foi feito da terra que era para você? Como
se já não bastasse pensar em minha filha indo
viver naquela região selvagem, mas pensar. . . —
Ela fez uma pausa. Sua voz adquiriu um tom
novo e mais sinistro. — Não acredito numa só
palavra desta história. — Virou-se bruscamente
51
para Yancey, seus olhos negros soltando chispas.
— Por que deixou que aquela rameira de calças
pretas se apossasse da terra?
Yancey encarou a pergunta com considerá-
vel calma judiciosa, mas Felice, conhecendo-o,
devia ter se acautelado pela maneira como a cabe-
ça de seu genro baixou, parecendo a de um touro
prestes a investir.
— Se fosse um homem, eu teria lhe dado
um tiro. Foi o que muitos tiveram que fazer para
tomar posse da terra pela qual tinham lutado
honestamente. Mas não se pode atirar numa
mulher.
— Por que não? — perguntou com rispidez
a anteriormente fina dama sulista.
Os Venable, todos os homens em conjunto,
tiveram um pequeno sobressalto. Um som nervo-
so, meio engasgo, meio riso, percorreu a mesa.
— Felice! — exclamou atônito Lewis Vena-
ble.
— Mas como, mamãe! — disse Sabra.
Yancey Cravat sentiu erguer-se no seu ínti-
mo, extremamente vital, a onda de irritação que
aquela família decadente sempre provocava nele.
52
Agora algo a respeito da expressão chocada nas
fisionomias voltadas para seu lado, os gestos
displicentemente graciosos, atiçaram nele uma
rebelião irracional. Subitamente, odiou todos.
Queria livrar-se daquela gente, de Wichita, das
convenções, dos hábitos elegantes, de — não, não
de Sabra. Ele sorriu, então, um sorriso doce que já
bastaria para ter posto Felice Venable de sobrea-
viso. Mas a intrépida matriarca não era mulher
que se deixasse vencer facilmente.
— Quanto a mim, estou muito contente que
tudo tenha acabado como acabou. Acha que eu
teria permitido que uma filha minha — uma
Venable — fosse arrancada daqui para ir viver
entre velhos bêbados de perna de pau, magricelas
desdentadas vestidas de chita e rameiras enfiadas
em calças? Nunca! Está tudo acabado, e tanto
melhor. Talvez agora, Yancey, você pare com
essas andanças para baixo e para cima e se con-
tente em dirigir aquele seu jornal e trabalhar no
escritório de advocacia, deixando as coisas como
estão, e não fale mais nesse território índio. Uma
filha minha de botinas, chita e touca de sol, pelo
amor de Deus, transformada em pioneira em
meio de selvagens. Com a educação que ela teve!
Isso, nunca.
53
Yancey mantinha-se num estranho silêncio.
Estava examinando suas belas mãos alvas critica-
mente, interessadamente, como se as estivesse
admirando pela primeira vez — outro sinal que
devia ter acautelado a arrogante Felice. Quando
ele falou, foi com a maior brandura.
— Não sou um fazendeiro, nem um pionei-
ro. De qualquer forma, não queria um pedaço de
terra para cultivar. Pertenço à cidade, e era na
cidade que eu devia ter ido procurar um local para
mim. Havia cidades de dez mil habitantes e mais
que nasceram da noite para o dia durante a corri-
da. Wagallala, Sperry, Wawhuska, Osage. É a
última fronteira na América, aquela zona nova.
Não existe um jornal em nenhuma daquelas cida-
des. . . ou não existia, quando vim embora. Quero
voltar para lá e ajudar a transformar em Estado a
campina, os índios, os matagais e a argila verme-
lha. Pois algum dia será um Estado — ouçam o
que estou dizendo.
— Aquela zona inculta um Estado! — disse
com ar de deboche o primo Dabney Venable. —
Com um negro ou chefe cherokee como governa-
dor, ao que presumo.
— Por que não? Que bela vingança contra
54
um governo que os espoliou e enxotou como
gado de lugar para lugar, rompeu tratados que
assinou com eles e lhes roubou as terras. Olhem
para a Geórgia! Olhem para o Mississipi! Lem-
brem-se da Trilha das Lágrimas!
— Ora essa — disse o primo Jouett
Goforth com um bocejo, e levantou-se meio
hesitante. — Tudo isso foi muito interessante.
Mas se me dão licença agora, vou fazer minha
pequena sesta. Estou habituado, depois do almo-
ço. . .
Lewis Venable, há tanto tempo calado, tam-
bém apanhou sua bengala alta e preparou-se para
se levantar da mesa. Não foi suficientemente
rápido. A mão febril de Felice Venable, num gesto
repentino, agarrou-lhe a manga do casaco, obri-
gou-o a sentar-se de novo e imediatamente ele se
tornou prisioneiro e juiz na sua cadeira à cabeceira
dá mesa.
— Lewis Venable, ouviu o que ele disse! Vai
ficar aí calado? Ele diz que vai voltar para lá. O
que pretende você fazer a respeito da sua filha? —
Ela virou os olhos furibundos para o genro. —
Está querendo dizer que vai voltar para aquela
terra de índios? Foi isto que disse?
55
— Voltarei para lá dentro de duas semanas.
E não se esqueça de que agora é terra de brancos.
Sabra ergueu-se, agarrando o filho Cim pela
cintura, e o menino começou a choramingar com
as pernas penduradas. Seus olhos assustados
estavam enormes.
— Yancey! Yancey, não vai me abandonar
de novo!
— Abandoná-la, minha formosa! — Ele se
encaminhou para ela. — De forma alguma. Desta
vez, você irá comigo!
— E eu digo que ela não vai! — declarou
Felice Venable. — E tampouco você irá, meu
caro amigo. Foi despojado de sua terra por uma
rameira de calças pretas, e acabou-se a história.
Vai ficar aqui com sua mulher e seu filho.
Ele sacudiu com brandura a cabeça possan-
te. Sua voz era de mel.
— Vou voltar para o interior de Oklahoma;
Sabra e Cim irão comigo.
Felice voltou-se para o marido.
— Lewis! Como pode ficar aí impassível
vendo sua filha ser arrastada para longe para ser

56
escalpelada por selvagens?
O homem doentio ergueu sua aristocrática
cabeça branca. Os olhos de um azul desbotado se
viraram para a filha. Cim, sentindo no ar o confli-
to, tinha enterrado a cabeça no ombro da mãe.
— Você me acompanhou, Felice, há mais de
vinte anos, e sua mãe achou também que eu a
estava levando para uma terra selvagem. Lembra-
se disso? Sua mãe chorou e vestiu luto durante
semanas.
— Sabra é diferente. Sabra é diferente.
A voz esganiçada do enfermo era como o
eco de um fantasma, mas se fazia ouvir acima do
clamor estridente da mulher.
— Não, ela não é, Felice. Neste momento,
ela se parece mais com você do que você mesma.
Ela aprecia aquelas pioneiras de que Yancey este-
ve falando. Olhe só para sua filha.
Os olhos Venable, de uma ponta da mesa à
outra, viraram-se como uma só órbita para a moça
que os encarava com um ar de desafio. Talvez não
tanto desafio como determinação. Vendo-a de
cabeça erguida, ao lado do marido, segurando o
filho no braço, constatava-se que o que seu pai
57
dissera era sem dúvida verdade. Ela era como a
mãe, a Felice Venable de duas décadas atrás; era a
mulher da touca e vestido de chita a quem Yancey
dera sua concha de água; era como as mulheres
percorrendo aos sacolejões distâncias infindáveis
em seus carroções, fiando em cabanas de madeira,
cozinhando em fogões improvisados; ela era todas
as mulheres que tinham cruzado as campinas,
desertos, montanhas e planícies da América. Mu-
lheres de probidade íntima, lábios castos, olhar
limpo, feições finas, ausência de vaidade, forjadas
no fogo branco. O tipo pioneiro, como dissera
Yancey. Potencialmente, uma mulher de mais fibra
do que sua mãe.
Percebendo algo da determinação da filha,
Felice Venable repetiu, mais alto, como que para
convencer a si mesma:
— Ela não irá.
Parecendo-se mais do que nunca com a mãe,
Sabra enfrentou-a, inabalável.
— Mas eu quero ir, mamãe.
— Eu proíbo. Você não sabe o que quer.
Não sabe do que está falando. Estou dizendo que
vai ficar aqui com sua mãe e seu pai numa civili-

58
zação decente. Já ouvi o bastante. Espero que isso
lhe sirva de lição, Yancey.
— Vou voltar para a Nação — disse Yancey
muito afável.
— Eu vou com ele.
Ao tomar a decisão, Sabra deve ter apertado
a mão do pequeno Cim, pois ele soltou um griti-
nho. Em conjunto os Venable, os nervos à flor da
pele, tiveram um sobressalto e depois olharam
uns para os outros com certa hostilidade.
— E eu digo que você não vai.
— Mas eu quero ir.
— Não vai.
Talvez Sabra não tivesse percebido até esse
momento o quanto contara desesperadamente
com a volta do marido como a data em que ficaria
livre para sair da tutela dos Venable, abandonar o
clã da família; não ser mais manipulada, ordenada,
vigiada pelo olho Venable — sobretudo pelo olho
Venable materno. Ia fazer vinte e um anos, e o
jugo do autoritarismo de sua mãe estava come-
çando a exasperá-la. Agora, com o calor da raiva
íntima e da decepção, a que havia de férreo nela se
fundiu e enrijeceu. O metal fora menos vezes
59
posto à prova do fogo do que o de sua mãe. Pela
primeira vez, esta qualidade do seu temperamento
esbarrou com a de Felice Venable, e quem teve
que ceder foi a mais velha das duas.
— Eu vou — disse Sabra Cravat.
Se alguém estivesse olhando para Lewis Ve-
nable naquele momento (o que não ocorreu a
ninguém), poderia ter visto o vislumbre de um
sorriso irradiando por um momento a fisionomia
transparente do velho. Mas agora, era Yancey
Cravat quem retinha todos os olhares. Com uma
exclamação de vaqueiro, ele suspendeu a desafia-
dora Sabra e seu filho Cim nos braços e jogou-os
para o alto. Sabra soltou um grito, e Cim um
guincho que era uma mistura de terror e de ale-
gria. Era a espécie de brincadeira bruta que Felice
Venable abominava. A verdade era que os três
subitamente pareceram um ultraje naquela sala
decorosa com seu mogno, suas jarras de cristal e
seu círculo de fisionomias aristocráticas de olhos
fixos na cena.
— A partir de amanhã, dentro de uma se-
mana — anunciou Yancey numa voz que era
quase um berro, tão exultante soava. — Vamos
partir numa segunda-feira. Dois carroções. Um
60
com o equipamento de impressão — esse você
vai guiar, Sabra — e outro com os pertences
domésticos, colchões, travesseiros, cobertas e o
resto de que vamos precisar para acampar. A
jornada deverá durar nove dias. . . Wichita! — Seu
olhar percorreu a sala, e parecia abranger não
somente Wichita, como os Venable. — Para mim,
já basta, Sabra, minha menina. Deixaremos para
trás toda a maldita respeitabilidade de classe média
de Wichita, Kansas. Vamos, com a graça de Deus,
para uma terra nova em folha, vigorosa e disposta,
cheia de índios e de cascavéis, forasteiros de duas
pistolas no cinto, água barrenta e ban-di-dos! Eia!
Era demais para o moleque Isaiah em seu
perigoso poleiro acima da mesa. Há muito ele
deixara de sacudir o abano. Estivera se inclinando
cada vez mais para a frente, a fim de ouvir e ver
melhor a cena abaixo. Agora, com o "Eia" de
Yancey, ele teve um sobressalto, soltou a mão
agarrada à corda, perdeu o equilíbrio e caiu, como
uma grande uva preta de uma parreira, diretamen-
te em cima de um grande bolo coberto com o
glacê branco de Felice Venable.
Berros, gritos, gente se levantando de um
salto. Isaiah emergiu, de traseiro branco, do cen-

61
tro do vasto bolo. A súbita palidez cinzenta de
seu rosto combinava com o branco do fundilho
das calças. Felice Venable, com os nervos tensos,
ergueu a mão para dar-lhe um vigoroso tabefe.
Mas o pretinho foi mais rápido. Com a presteza
de um animal selvagem, ele atravessou na dispa-
rada a mesa até onde se achava Yancey Cravat
com a mulher e o filho, e, num salto ágil para o
chão, foi se abrigar entre as pernas de Yancey,
como um cãozinho assustado, e ali ficou, sob a
proteção daqueles joelhos grandes.

62
Capítulo III

Índios não constituíam novidade para os


habitantes da cidade de Wichita. Sabra vira-os a
vida inteira. Aos três anos de idade, Cim fora
suspenso nos braços de seu pai para ver o grande
bando de índios passar numa de suas peregrina-
ções anuais. Gostava, naturalmente, de brincar de
índio, batendo na boca para simular os gritos
típicos da raça, e tinha um adorno de plumas de
guerra feito com penas de galinha costuradas
numa longa tira de chita vermelha.
Duas vezes por ano, protegidos pelo velho
General "Touro" Plummer, os índios atravessa-
vam as ruas de Wichita em seus trajes de gala —
penas, contas, cobertores, correntes —, um
espetáculo brilhantemente vistoso. Na frente e
atrás deles, o azul reconfortante dos uniformes
do exército dos Estados Unidos usados pelo
regimento do Forte Riley, em Kansas. Toda
Wichita, embora já houvesse se habituado a eles,
corria para fitá-los das soleiras de casas, escritó-
rios e cozinhas. Bravos chefes, mulheres, crian-
63
ças, tendas cônicas, estacas, potes, cães, petiços,
o cortejo penetrava pelas quietas ruas ensolaradas
da cidade do centro-oeste, um friso de cores
vivas contra a melancólica monotonia das cam-
pinas.
Em fins da primavera, eram provavelmente
cheyennes indo para o norte, de sua reserva no
território índio, para visitar seus primos, os sioux,
em Dakota. Em fins do outono, eram os sioux
rumando para o sul para pagar a visita dos cheyen-
nes. Ambos usavam cavalos e pertenciam às tribos
das planícies, grandes apreciadores de visitas a
parentes, e gostando tanto de se reunir e tagarelar
como velhas senhoras numa varanda de hotel.
Costumavam fazer uma parada para acampar por
uma noite nas cercanias da cidade. Embora vigia-
dos pelo elemento marcial, eles em geral conse-
guiam furtar, de uma maneira amigável, qualquer
coisa em que pudessem pôr as mãos — galinhas,
roupa imprudentemente deixada para secar no
varal, até as próprias roupas dos espantalhos nos
campos.
Em todo o decorrer do ano, havia sempre
pequenos grupos de índios que apareciam nas
ruas da cidade — kaws, osages e poncas. Montados

64
em seus petiços ou em carroções, vinham das
reservas, compravam toucinho, chita, uísque,
quando podiam obtê-lo. Depois se acocoravam na
poeira da rua, silenciosos, de olhos semicerrados,
arredios. Pareciam estar estudando as pessoas que
passavam de um lado para outro. Somente os
olhos se moviam. Seus trajes eram uma mistura de
selvageria e civilização. Os osages, sobretudo, não
abandonavam o cobertor. Calças, casaco, até
mesmo chapéu, podiam ser da indumentária
convencional dos brancos. Mas sobre esta indu-
mentária, o osage usava seu cobertor listado de
laranja-vivo, roxo e vermelho. Era como se ele
estivesse desafiando os brancos a despojá-lo
daquela última insígnia de sua raça.
Pareciam agora um povo bastante acovarda-
do; sujo, aviltado. Desde o massacre de Custer em
1876, eles tinham sido reduzidos a uma total
submissão. Só ocasionalmente parecia emanar de
um bando deles um taciturno e duradouro ódio.
Não tinha uma expressão definida. Não era a
atitude deles; não se podia dizer que transpareces-
se em seus olhos negros, nem no estático rosto de
pergaminho. Entretanto, podia-se discernir o
implacável rancor que ardia no coração dessa raça

65
agonizante.
De uma forma ou de outra, na escola, em li-
vros e jornais da época, nas conversas do pai com
os homens e mulheres de sua geração, Sabra
colhera uma ou outra informação sobre aquelas
figuras silenciosas, indolentes e sinistras. Ela ficara
surpresa — até mesmo incrédula — de seu mari-
do tomar o partido dos peles-vermelhas. Era um
dos absurdos dele. Parecia considerá-los seres
humanos.
Seus olhos se umedeciam de lágrimas quan-
do ele falava nesta mancha da civilização sulista, a
Trilha das Lágrimas, em que os cherokees, uma
tribo pacífica e doméstica, tinham sido arrancados
das terras que um governo lhes dera num tratado
assinado, para serem mandados para longe numa
marcha que o frio, a fome, as intempéries e o
desgosto haviam marcado com ossos branquejan-
tes desde a Geórgia até Oklahoma. Yancey e o
velho Lewis Venable tinham há anos uma disputa
sobre a questão do tratamento dado no Mississipi
aos choctaws e da crueldade da Geórgia para com
os cherokees.
— Oh, tratados! — resmungara o sogro de
Yancey, indignado com um editorial furibundo
66
publicado nas páginas do Taba de Wichita. — Não
se assinam tratados com selvagens. . . esperando
cumpri-los.
— O senhor chama os choctaws, os creeks, os
chickasaws, os cherokees e os seminoles de selvagens!
São as cinco tribos civilizadas! Têm suas leis, sua
religião, cultivam a terra, são pacíficos, domésti-
cos, sábios. Pode chamar o Chefe Apushmataha
de selvagem?
— Certamente! Claro que sim.
— E Sequoyah? John Ross? Stand Waitie?
Quanah Parker? Eram homens sábios. Grandes
homens.
— Selvagens com bastante sangue branco
nas veias para torná-los líderes de seus estúpidos
irmãos de puro sangue índio. Os creeks, meu caro,
casaram com negros. E o mesmo fizeram os
choctaws, e os seminoles, lá na Flórida.
Yancey sorriu aquele seu sorriso afável.
— Pelo que fui informado, os sulistas, em-
bora não tenham exatamente se casado. . .
— Casamento, meu caro, é uma coisa. A na-
tureza é coisa bem diferente. Ao invés de assinar
tratados com essas criaturas e entregar-lhes valio-
67
sas terras americanas para que as considerem
como suas. . .
— Que eram deles muito antes de nós nos
apossarmos delas.
— . . .eu seria a favor do extermínio através
de algum processo humano mas eficiente. Eles
são uma ferida no seio benigno de um governo,
sob outros aspectos, saudável.
— É o que está sendo feito agora com toda
a eficiência que o senhor preconiza, embora talvez
um tanto deficiente no que se refere ao lado hu-
mano.
Do pai e da mãe, também, Sabra tinha ouvi-
do este tipo de conversa antes de Yancey surgir na
sua vida. Na escola, também, ouvira as mesmas
conversas. Falava-se muito na selvageria e na
astúcia dos índios; a tragédia deles era encoberta
ou apenas mencionada. Sabra, quando chegava a
pensar neles, considerava-os como sujos e inúteis
animais de dois pés. Na infância, freqüentara um
colégio dirigido pelas irmãs de Loretto, sob a
jurisdição de padres jesuítas. No começo da histó-
ria de Kansas, muito antes do tempo de Sabra,
instalara-se ali a escola da missão, e os infatigáveis
padres jesuítas tinham percorrido a cavalo a exa-
68
ustiva e perigosa região para converter índios.
Madre Bridget, mulher vigorosa e corpulenta,
agora com mais de sessenta anos, esperta, domi-
nadora, porém curiosamente infantil, tinha chega-
do à missão quando ainda muito jovem, mal saída
do noviciado, naqueles dias bravios e confusos de
Kansas. Tinha visto os bois arrastarem a pedra
calcária amarela com que fora feita a construção;
conhecera o medo da faca de escalpelar; com suas
próprias mãos um tanto masculinas, tinha planta-
do as primeiras árvores frutíferas, as hortaliças e o
jardim que agora florescia dentro do perímetro da
cerca de Osage; superintendera a construção da
própria cerca alta, feita da madeira resistente
porém maleável que os pioneiros franceses havi-
am denominado bois d'arc, porque era a madeira
com que os índios antigamente fabricavam seus
arcos. A gente de Kansas tinha adulterado as
palavras, e agora a madeira era conhecida como
bodark. Naquele tempo, a missão era uma escola
de índios, com um atendimento constantemente
flutuante. Num dia, podiam ser contados quarenta
pares de olhinhos negros e impávidos, atentos às
lições de leitura, caligrafia ou aritmética; no dia
seguinte, todos tinham desaparecido. A tribo
partira em visita a amigos de outra tribo. Homens
69
e squaws1, petiços, cães e crianças, estavam todos
se entregando às suas atividades sociais, os osages
visitando os kaws, ou os kaws visitando os guapaws.
Em outras ocasiões, a ausência dos alunos podia
significar algo mais sinistro — uma rebelião sendo
tramada, ou um ataque a uma tribo inimiga. Ma-
dre Bridget tinha casos terríveis para contar. Podia
até fazer brincadeiras tenebrosas sobre aqueles
primeiros tempos. "Uma época de se arrancar os
cabelos", dizia ela (era uma das suas piadas favori-
tas), "em mais de um sentido, como muitos dos
primeiros habitantes brancos poderiam provar a
quem quisesse ver seus couros cabeludos escalpe-
lados." Tinha ensinado as jovens índias a costurar,
a trocar suas tendas de palha por cabanas, a usar
toucas e a falar sobre suas almas e também sobre
problemas materiais ao Grande Pai chamado
Deus que era muito mais poderoso do que o Sol,
a Chuva e o Vento, aos quais os índios atribuíam
tanto poder. Tudo isso os índios faziam com
gratificante docilidade durante semanas, ou até
meses a fio, depois do quê se descobria que ti-
nham enterrado seus mortos embaixo das caba-
nas, removendo parte do assoalho para cavar uma
sepultura, tornando a recolocar cuidadosamente
1
Mulher de índio norte-americano. (N. do E.)

70
as tábuas e depois desertando as cabanas para ir
viver de novo ao ar livre, voltando ao cobertor e,
ao mesmo tempo, realizando esmeradas cerimô-
nias apaziguadoras para vários deuses dos ele-
mentos. Madre Bridget (na época ainda Irmã
Bridget, de rosto esfogueado sob sua touca de
freira, as contas do rosário entrechocando-se
numa persistente competição contra a traição dos
selvagens) e as outras irmãs de Loretto tinham
que recomeçar sua catequização desde o início.
Tudo isso agora estava no passado. Os ín-
dios tinham sido recolhidos em reservas no terri-
tório índio. Madre Bridget e suas auxiliares ensi-
navam bordado, música e outras prendas femini-
nas a jovens de touca e luvas das melhores famí-
lias de Wichita. A cerca de Osage agora abrigava
meninas bem-comportadas e dóceis onde outrora
tentara confinar as pequenas selvagens das cam-
pinas. As selvagenzinhas pareciam agora bem
domesticadas, confinadas em suas reservas, sem
ânimo para se rebelarem, seu orgulho destruído.
Sabra mandara atrelar seu pônei malhado ao
faetonte (agora uma senhora casada, não mais
ficava bem guiá-lo como costumava fazer, para
baixo e para cima nas trilhas da campina, os cabe-

71
los negros presos numa grossa trança que balan-
çava em ritmo com o galope dos cascos do ani-
mal). Madre Bridget se achava na horta da missão,
superintendendo o corte dos grandes talos róseos
de ruibarbo. A saia do hábito estava suspensa
informalmente acima dos sapatos de cordel, en-
lameados pela marga mole da horta.
— Território índio! O que acha sua mãe dis-
so?
— Ela está furiosa.
— Você quer ir?
— Eu quero, quero sim! — Depois, acres-
centara apressadamente: — É claro que detesto
deixar mamãe e papai. Mas a Bíblia diz: "Para
onde. . ."
— Sei o que a Bíblia diz — interrompeu
impaciente a velha freira. — Por que ele, Cravat,
quer ir?
— Yancey diz que é uma chance de constru-
ir um império na última fronteira da América —
replicou Sabra cheia de orgulho. — Ele diz que os
legisladores deste império podem tirar uma lição
dos erros dos outros Estados, de forma que, no
dia em que o território índio se tornar outro Esta-
72
do, saberá no que outros falharam e, sabendo,
evitará os erros...
— Tolices! — interrompeu Madre Bridget.
— Ele vai por causa da aventura. Eles sempre vão
pela aventura, seja qual for o pretexto, desde os
tempos do Santo Graal até as minas de ouro da
Califórnia. A diferença na América é que as mu-
lheres sempre acompanham seus homens, Quan-
do se lê a história da França, é como espiar pelo
buraco da fechadura de um quarto de dormir. A
história da Inglaterra é apenas um torneio. As
mulheres parece que eram sempre lânguidas e
anêmicas. Quando Lady Guinevere espetava um
laço de fita na manga do seu cavaleiro, considera-
va que já tinha feito o bastante por um dia. Ele
podia partir no seu cavalo e ser morto enquanto
ela ficava em casa ocupada com a tapeçaria. Mas
aqui neste país, Sabra, minha menina, as mulheres
têm sido as que racham lenha e vão buscar água
no poço. Você vai ter ocasião de se lembrar disso.
— Mas foi o que Yancey disse. Exatamente
o que ele disse.
— Ah, foi o que disse? — Ela se levantou e
soltou a saia da corda do cinto que servira para
não deixar que arrastasse no solo úmido. Levan-
73
tou a voz autoritária para a freira curvada sobre o
canteiro de ruibarbo. — Chega, Irmã Norah,
chega. Diga à Irmã Agnes para pôr bastante açú-
car e não como na última torta, azeda de apertar a
boca. — Depois, tornou a voltar-se para Sabra. —
Quando vai partir? E de que modo vai?
— Segunda-feira próxima. Dois carroções
cobertos. Um com o equipamento de impressão,
outro com os objetos caseiros e roupa de cama.
Yancey insiste em que temos que levar um col-
chão para mim. Vamos tirá-lo da nossa cama aqui
e colocá-lo no fundo do carroção.
Madre Bridget parecia não estar ouvindo.
Olhou através do jardim para onde a campina
encontrava o céu. Seus olhos, por trás dos óculos
de aro de aço, viram um espetáculo que Sabra
nunca conhecera.
— Então, chegamos a este ponto. Eles dei-
xaram afinal que os brancos penetrassem — a
terra que pertenceria para sempre aos índios.
"Enquanto o capim crescer e o rio correr." Era o
que rezava o tratado. Bem, o que virá em segui-
da!
— Oh, índios... — disse Sabra. Seu tom era
de quem está falando de coiotes, nuvens de gafa-
74
nhotos, ou qualquer outra praga do oeste.
— Eu sei — disse Madre Bridget. — Não se
consegue mudá-los. Ninguém sabe disto melhor
do que eu. Já tive meninas índias aqui na escola
por dois anos seguidos. Nós as ensinávamos a se
lavarem todos os dias; elas aprendiam a costurar e
bordar, a cozinhar, ler e escrever. Elas aprendiam
a tecer e a desenhar, até a pintar, e música vocal.
Aprendiam o Evangelho do Filho de Deus. Saíam
daqui tão limpas, bonitinhas e bem-comportadas
como meninas de família. Em duas semanas, eu
ficava sabendo que tinham voltado ao cobertor.
Digam o que quiserem, o verdadeiro índio hoje
em dia é igual ao que sempre foi. Bem. . .
Sabra estava um pouco entediada com toda
aquela conversa. Não viera à velha missão para
ouvir falar em índios. Viera para despedir-se de
Madre Bridget, ser elogiada e admirada. Não ia ser
uma pioneira como as heroínas de livros?
— Preciso ir indo, querida Madre Bridget.
Eu só vim um instante. . . há tanta coisa a fazer.
— Ela estava vagamente desapontada com a falta
de dramaticidade dessa visita.
— Tenho uma coisa para você. Venha co-
migo.
75
Madre Bridget caminhou na frente, atraves-
sando o jardim e o pórtico calçado de lajes e
penetrando na fresca obscuridade cheirando a
mofo do vestíbulo da missão. Deixou ali Sabra e
enveredou rapidamente pelo corredor. Sabra ficou
esperando, contente de estar naquele ambiente
depois do calor do sol de Kansas. Ela conhecia
bem aquele vestíbulo, e os quartos desguarnecidos
que se abriam para ele. A fragrância da massa de
torta assando chegou-lhe às narinas; o recipiente
que iria conter o suculento ruibarbo. Ouviu-se o
ruído de uma porta pesada abrindo e fechando
com um estalido numa curva do corredor. Ela
nunca tinha visto o quarto de Madre Bridget.
Ninguém vira. Sabra sentiu curiosidade de conhe-
cer o quarto. As irmãs de Loretto não possuíam
nada. Era um regulamento da ordem. O pronome
possessivo, primeira pessoa, nunca era usado por
elas. Sabra lembrava-se de como Irmã Innocenta
viera correndo uma manhã, muito aflita. "Nosso
rosário!", exclamara ela. "Perdi nosso rosário!" O
fio de contas religiosas que ela sempre usava
preso à cintura tinha escorregado ou se rompido e
desaparecera. Elas não guardavam nada para si
mesmas. Coisas estranhas e lindas às vezes lhes
chegavam às mãos e eram imediatamente passadas
76
adiante. Sabra tinha visto Madre Bridget desfazer-
se de objetos fantásticos. Uma vez fora uma faca
de escalpelar com manchas pardas na lâmina que
pareciam ferrugem mas não eram; em outra ocasi-
ão o utensílio usado para carregar um pepoose1 osage
com o bolso bordado caprichosamente com
contas de cores alegres no qual uma índia tinha
carregado seu bebê amarrado em suas costas
incansáveis. Outro presente fora um lema borda-
do em lã de cores vivas pelos dedos esperançosos
de alguma emigrada da Nova Inglaterra. Suas
letras rebuscadas anunciavam: "A música tem
encantamentos que reconfortam o peito selva-
gem". Tinham encontrado o lema pendurado na
parede logo acima de um elegante orgãozinho na
cabana de um colono cuja jovem esposa e filhos
tinham sido mortos em sua ausência, numa súbita
rebelião de índios.
Subitamente, enquanto esperava ali, na paz
da velha missão, Sabra se sentiu invadida por uma
grande onda de nostalgia pelas coisas que estava
deixando para trás. Era como se já tivesse posto
de lado tudo o que era familiar à sua vida de
menina: o pônei malhado e o faetonte amarelo; o

1
Bebê índio. (N. do E.)

77
oblongo do sol e do céu de Kansas, e o jardim
visto através da porta da missão; os odores, sons e
segurança da sólida construção de pedra. O terror
a fez estremecer. Território índio! índio — não
podia ir para lá. Viver lá para sempre, para o resto
da vida. Seu marido, Yancey Cravat, de repente se
tornou remoto, um estranho, uma figura terrível.
Ela era Sabra Venable, uma Venable ali, protegida
de tudo na escola da missão. Não queria sair dali.
Sua mãe tinha razão.
Uma porta se abriu no final do corredor. A
figura volumosa de Madre Bridget apareceu,
enchendo o oblongo, tapando a luz do sol. Carre-
gava nos braços um rolo grosso de pano.
— Aqui está — disse ela, e virou-se para
deixar que a luz clareasse o rolo. Era um cobertor
ou manta tecido num desenho geométrico em
branco e azul intenso. — É para você e o peque-
no Cim se agasalharem no carroção, a caminho do
território índio. Fui eu mesma que o teci num tear
manual. É coberta que vai durar a vida toda. O
azul é de uma tinta dos índios, e nada o fará des-
botar. Você vai para uma região selvagem. Mas há
algo neste azul que torna habitável qualquer cô-
modo, por mais desguarnecido ou feio que seja.

78
Se lhe perguntarem lá o que é, diga que é uma
tapeçaria de Kansas.
Ela acompanhou Sabra até o faetonte e tirou
de um espaçoso bolso escondido nas dobras de
seu hábito uma pequena maçã escarlate para o
pônei. Sabra deu um beijo em cada uma das faces
rechonchudas da freira e subiu na carruagem,
colocando o cobertor branco e azul no assento a
seu lado. Estava com um ar concentrado que era
meio cômico — o rosto de uma meninazinha
fingindo não estar chorando.
— Adeus — disse ela, e se surpreendeu de
sua voz sair apenas como um murmúrio. E então,
sentindo uma grande pena de sj mesma, começou
a chorar abertamente, mesmo enquanto segurava
com eficiência as rédeas em suas mãos fortes e
jovens.
— Vai dar tudo certo — disse Bridget che-
gando-se para junto da roda. — Não existe uma
terra nova para as pessoas que chegam a um local
desconhecido. É que elas levam consigo seus
hábitos, costumes, mil pequenas coisas e provi-
denciam o mais depressa possível para que a nova
terra se assemelhe à de onde vieram.
— Estou levando comigo meus pratos de
79
porcelana — balbuciou Sabra através das lágrimas
—, a minha linda roupa de cama e mesa e as
peças de prata que o primo Dabney me deu de
presente de casamento, e minha cadeira de balan-
ço, minha estola cor de vinho de seda trançada, e
algumas mudas do jardim, porque Yancey diz que
lá não há muita coisa plantada.
Por detrás dos óculos, os olhos da sensata
freira eram cheios de piedade.
— É uma bela idéia — disse ela, e ficou
vendo o pônei malhado e o faetonte se afastarem
na estrada empoeirada. Depois, virou-se para
retomar ao convento da missão. As contas do
rosário se entrechocaram. Ave Maria, cheia de
graça...

80
Capítulo IV

O menino Cim tinha metido na cabecinha


que se tratava de um piquenique. Sentira o cheiro
de tortas e bolos assando; vira cestos grandes
serem arrumados. Certamente, a não ser pelo
estranho carregamento contido em ambos os
carroções, devia ser uma daquelas excursões
informais a algum bosque nas imediações que
Cim tanto amava, quando almoçavam ao ar livre,
acampavam junto a um córrego, e ele tinha per-
missão de correr descalço à sombra da fria desa-
provação de sua aristocrática avó. Felice Venable
abominava toda espécie de diversão bucólica e
podia, com um simples olhar, causar mais descon-
forto num almoço campestre do que todo um
batalhão de formigas.
Fora uma semana lunática a que precedera a
partida deles de Wichita. Felice lutara contra
aquela viagem até o último momento, e finalmen-
te ficou de cama com ameaças de iminente fale-
cimento que deixaram de produzir o efeito dese-
jado devido à ocupação das pessoas que deveriam
81
ser atingidas pela gravidade do seu estado. De
quando em quando, intrigada pelos ruídos, corre-
rias, gritos, risadas, disputas e a agitação geral
provocada pela próxima partida dos Cravat, Felice
erguia-se da cama e arrastava-se langorosa pela
casa, parecendo, enrolada em seu xale de fustão
branco, um fantasma bilioso e perturbado. Ela
emitia ordens. Leve isto. Não leve aquilo. Não é
possível que você esteja deixando estes para trás!
Sua tia Sarah Moncrief du Tisne bordou com as
próprias mãos cada pedacinho deles. . .
— Mas, mamãe, não está compreendendo.
Yancey diz que há muito pouca vida social, e que
tudo ainda é muito rústico e desorganizado, quase
selvagem.
— Isto não deve impedir você de se lembrar
de que é uma dama, espero. A não ser que esteja
planejando tornar-se uma daquelas criaturas hor-
ríveis de touca e desdentadas que Yancey parece
tanto apreciar.
Assim, Sabra Cravat levou para as terras da
fronteira requintes e elegâncias que a sua educa-
ção, falta de experiência e tradição de família
sulista ditavam. Uma dúzia de facas, garfos e
colheres de prata do modelo DeGrasse; também,
82
uma dúzia de colherinhas de café de prata; um
prato para bolo de prata, muito bonito, sustenta-
do por três cupidos de prata maciça em atitudes
displicentes; roupas de cama de linho fiado a mão
e bordado com monogramas entrelaçados de
folhas de videira; muitas anáguas de musselina
branca bordadas, engomadas e enfeitadas de
babados para se sujarem na argila vermelha do
oeste; o vestido de pesado gorgorão de seda preto
com três pregas duplas de cada lado e enfeitado
com passamanaria preta; o chapéu preto com
cinco plumas pretas; o lindo vestido de gaze
verde; o chapeuzinho de tule com pequeninas
flores cor-de-rosa; quarenta potes de conservas;
sua própria cadeira de balanço, uma cadeira femi-
nina cujo assento e costas eram estofados elegan-
temente com uma colorida tapeçaria de Bruxelas.
Os dois carroções recobertos de lona estavam
atulhados. Pratos, malas, roupas de cama e mesa,
caixas foram empilhados a esmo no amplo bojo
de um deles; o equipamento de impressão, amar-
rado firmemente, fora colocado no outro carro-
ção. Este continha a máquina impressora manual;
duas formas de seis colunas; o estojo contendo a
coleção de tipos (uma folha de papelão recobria
os tipos para evitar que se deslocassem); os role-
83
tes; um estoque de papel; um latão de tinta de
impressão, tubos de cola, uma caixa de cunhas de
madeira usadas para trancar as formas.
Para a gente de Wichita nada havia de fora
do comum na vista desses enormes carroções
cobertos que logo iriam partir, sacolejando, rumo
ao horizonte. Outros semelhantes já tinham mar-
cado suas trilhas através das campinas de Kansas.
O carroção tinha aberto seu perigoso caminho em
direção ao oeste desde os tempos da velha trilha
espanhola, profundamente sulcada pelas rodas
pesadas das carretas mexicanas. Até mesmo os
índios que negociavam com couros, peliças e
seres humanos tinham usado as trilhas do homem
branco para suas transações. Entretanto, naquela
pequena expedição rumando para seu destino,
havia algo que transmitia a pungência do trágico e
do ridículo. O homem, enorme, estranho, pouco
prático; a mulher, apertando os lábios, terrivel-
mente decidida, com o olhar fixo de quem sabe
que bastará piscar uma vez para provocar uma
avalanche de lágrimas; o menino, descontrolado
pela excitação e impaciência de partir. Desde o dia
em que Yancey narrara os lances da corrida, o
pretinho Isaiah tinha implorado que o levassem
também. Negado o seu desejo, ele passara uma
84
semana de cara amarrada e agora ninguém sabia
onde tinha se metido.
Os carroções, já carregados, estavam espe-
rando em frente à casa dos Venable. Talvez nun-
ca, na história da colonização do oeste, uma mu-
lher se tivesse disposto a ser pioneira vestida
daquele modo. Sabra guiara cavalos toda a sua
vida; assim, ela então pulou agilmente do chão
para o cubo da roda, do cubo para o alto da roda,
empoleirou-se no alto assento do carroção e
segurou as rédeas com competência e aparente
tranqüilidade. Seus olhos estavam imensos, o
rosto ainda mais pálido que de costume. Estava
usando o seu segundo melhor vestido de cheviote
do ano anterior, forrado, esticado por barbatanas,
ajustado na cintura e (embora simples para a
época) enfeitado com passamanaria de intrincado
desenho que lhe descia até a barra da saia. O
chapéu de palha cinzenta era adornado apenas
com um pufe de veludo e um pássaro. Os pés,
calçados com botinas abotoadas de cano alto, mal
atingiam o chão do carroção, e assim, no último
minuto tinham ido buscar na casa um banquinho
onde ela pudesse apoiar os pés durante a longa
jornada. Essa peça de mobiliário destoava tanto
do ambiente quanto a jovem cocheira. Era redon-
85
do, bojudo, de mogno e estofado com uma tape-
çaria cinza feita pela avó de Sabra por parte de
mãe. Seu desenho desbotado em amarelo, verme-
lho e azul representava um casal de cacatuas
brigando numa roseira. Yancey tinha erguido Cim
e colocado-o sobre a almofada de chita do assento
ao lado de Sabra. As pernas curtas do menino, de
botas com biqueiras de cobre, estavam esticadas
para a frente. Seus olhos escuros se arregalavam
de excitação.
— Por que não vamos duma vez? — per-
guntava ele a todo momento, quase gritando. —
Upa, cavalinhos! Upa!
A avó e o avô, olhando para cima com súbi-
ta angústia à vista daquela pequena expedição que
tão absurdamente se preparava para partir para o
desconhecido, tinham cessado de existir para Cim.
Enquanto Sabra guiava um carroção e Yancey
outro, o menino mudava o tempo todo de lugar,
durante a longa jornada, passando a manhã no
assento ao lado da mãe, a tarde com o pai, e nos
intervalos ia dormir encolhido sobre cobertas no
fundo do carroção. No primeiro dia, não havia
nada que o pudesse conter. O tempo todo berra-
va: "Upa! Upa!" até ficar rouco, só fazendo uma

86
pausa para atirar em ursos, panteras, linces e
índios imaginários; e de tal forma ficou excitado e
exausto que seus olhos adquiriram um brilho
febril e subseqüentemente teve que ingerir uma
inconveniente dose de óleo de rícino.
Agora, com um solavanco, um chocalhar e o
estrépito de cascos, os dois carroções se puseram
a caminho. Sabra mal teve tempo para um último
olhar aflito ao pai e à mãe, aos outros Venable
agrupados, aos rostos negros dos criados que
pareciam todos rolar os olhos. Ela estava tão
ocupada com os cavalos, com Cim, tão cheia de
um misto de medo e alegria e uma espécie de
felicidade apavorada, que esqueceu de virar-se
para trás, como tencionava, como a heroína de
um melodrama, e lançar um último olhar à grande
casa branca, ao lindo jardim desordenado, aos três
grandes olmos. Mais tarde, censurou a si mesma
por esta falha. E dizia para o filho, na feiúra des-
pida de árvores da cidade que agora habitavam:
— Cim, lembra-se dos íris roxos e amarelos
que costumavam surgir logo no começo da pri-
mavera, no pátio?
— Que pátio?
— O pátio da vovó, lá onde morávamos.
87
— Não.
— Oh, Cim!
Era como se a vida do menino tivesse co-
meçado com aquela jornada. Era como se uma
esponja tivesse apagado de sua memória os quatro
anos anteriores de sua vida, como o exercício de
ontem no quadro-negro. Aboletado ao lado do
pai no assento alto do carroção, ele absorvia as
histórias que iriam para sempre fazer parte de sua
percepção e o influenciariam para o resto da vida,
Eles tinham partido cedo. Por volta das dez
horas, o garoto estava caindo de sono. Recusou
teimosamente ir deitar-se no colchão dentro do
carroção maior; negou que estivesse com sono.
Sabra fez com que ele se aninhasse no assento na
boléia com a cabeça no seu colo. Ela então segu-
rou as rédeas com uma das mãos; com um braço
segurou o menino. Estava quente, muito quieto e
sonolento. O tempo passou com surpreendente
rapidez e logo chegou o meio-dia. Eles tinham
trazido um precioso barrilete de água e comida
suficiente, ao que presumiam, para durar até quase
o final da jornada — carne de porco salgada,
tortas de maçã e de carne, pão, biscoitos —, mas
o apetite que sentiam era enorme. Ao meio-dia,
88
pararam e comeram na sombra. Sabra preparou a
refeição enquanto Yancey tratava dos cavalos.
Cim, agora bem acordado e repousado, comeu
uma boa porção da carne de porco frita com
batatas, ovos cozidos, a torta de carne moída.
Recebeu até uma das laranjas tão valiosas para
aquela jornada, fornecidas pelos avós. Estavam
todos muito alegres, confortáveis e repousados.
Mas se a manhã parecera curta, a tarde, de certa
forma, pareceu interminável. Sabra começou a
sentir-se tremendamente cansada, confinada. O
menino choramingava. Era o meio da tarde e
estava quente; no final da tarde, o brilhante pôr-
do-sol do oeste começou a pintar o céu. Yancey,
no carroção à frente, parou os cavalos, olhou ao
seu redor, saltou do carroção, amarrou a parelha a
uma moita de choupos.
— Vamos acampar aqui — gritou ele para
Sabra, e aproximou-se do carroção dela para
ajudá-la e ao filho a descer. Ela estava com os
músculos retesados, absolutamente exausta. Vol-
tou os olhos para ele, estonteada, depois para a
paisagem à sua volta.
— Acampar?
— Sim, passar a noite aqui. Venha, Cim. —
89
Ele estendeu os braços e apanhou o menino.
— Está dizendo que vamos passar a noite
toda aqui? Dormir aqui?
— Estou — disse ele em tom positivo. — É
um bom local. Água e árvores. Vou ter uma fo-
gueira pronta em poucos instantes. Onde você
pensou que ia dormir? Na casa de Wichita?
De alguma forma, o detalhe não tinha ocor-
rido a Sabra. Ela não tinha acreditado. Dormir
assim ao relento, no campo, com apenas a lona do
carroção como teto! Em toda a sua vida conven-
cional e ordenada, tinha dormido numa cama de
quatro colunas com um dossel de étamine suíça
pontilhada, cortinas de filó e lençóis de linho com
cheiro de roupa secada ao sol.
Yancey começou a organizar o acampamen-
to. As obrigações desse novo sistema de vida já
iam se tornando familiares. Havia lenha para
juntar, fogo a atear, água a ser posta para ferver.
Cim, agora bem acordado, trotava atrás do pai,
atrás da mãe. A carne começou a chiar apetecedo-
ramente na panela. O delicioso cheiro de café
reanimou-os com a sua promessa estimulante.
— Aquele rolo de tapete — gritou Sabra,

90
ocupada junto ao fogo, para Yancey, no carroção.
— Depois do assento. Quero que Cim se sente
nele. . . o chão pode estar úmido...
Um súbito grito de Yancey. Um berro ater-
rado de dentro do rolo de tapete em seus braços
— um rolo que subitamente adquiriu vida e es-
perneou. Yancey soltou uma praga e deixou cair o
rolo no chão. O rolo ficou um momento parado,
arfando, depois começou a desenrolar-se enquan-
to os três o olhavam aturdidos. Uma mão preta,
uma carapinha, um rosto em que só se via a boca
aberta e o branco dos olhos. O pretinho Isaiah.
Ele tinha encontrado um meio de ir com eles para
o território índio.

91
Capítulo V

No final da manhã do dia seguinte, eles não


sabiam como poderiam ter se arrumado sem ele.
Isaiah juntava lenha. Acendia o fogo. Cuidava de
Cim como uma ama, brincava com ele, cantava
para ele, ajudava a fazê-lo dormir, dormia em
qualquer parte, como um cachorrinho. Até ajuda-
va Sabra a guiar sua parelha, a atrelar e desatrelar,
pois afinal não havia muito a fazer a não ser segu-
rar frouxamente as rédeas nos dedos enquanto os
cavalos avançavam penosamente cruzando os
prados, quilômetro após quilômetro.
Yancey apontava a maneira radical como a
terra mudara quando deixaram Kansas e entraram
na região de Oklahoma.
— Okla-homa — explicou ele a Cim. — É a
língua choctaw. Okla — gente. Humma — verme-
lha. Peles-vermelhas. Era como se chamava esta
região quando os índios vieram habitá-la.
Subitamente, a terra, também, tornara-se
vermelha; argila vermelha até onde a vista podia

92
alcançar. Os rios e riachos se tingiam de vermelho
com aquela terra, e no pôr-do-sol o céu parecia
refletir a vermelhidão do panorama, e às vezes os
olhos de Sabra ardiam de ver todo aquele escarla-
te. Quando a trilha atravessava uma garganta
numa colina, a cor de sangue da argila de cada
lado era como uma ferida aberta. Sabra encolhia-
se, assustada. Sentia falta do verde de Kansas. O
céu de Oklahoma não era azul mas cor de aço, e o
dia inteiro era como um lençol ardente de metal
faiscante sobre a cabeça deles. Seu resplendor
queimava os olhos.
Era uma jornada penosa para o menino. Ele
se mostrava ora indisciplinado, ora desatento.
Não podia correr livremente, exceto quando
paravam para acampar. Curiosamente, Sabra não
tinha o dom de entretê-lo, como Yancey, e até
Isaiah, tinham. Isaiah contava-lhe histórias do
folclore negro transmitidas de pai para filho atra-
vés dos anos. Como as canções que cantavam,
eram relatos primitivos das tristezas e tribulações
de um povo injustiçado e da inevitável recompen-
sa que os aguardava após a vida.
— Um anjo disse assim para ele: "Moisés,
venha cá para este trono e coma se tem fome, e

93
beba se está de boca seca, e descanse se seus pés
estão doendo..."
Mas quando viajava ao lado do pai, ele ouvia
histórias fascinantes. Se era logo antes de sua hora
de dormir, depois de jantarem cedo, Yancey co-
meçava invariavelmente sua história com as pala-
vras mágicas: "Foi justamente numa noite como
esta..."
Seguia-se uma lenda de tesouros enterrados.
Conquistadores espanhóis caminhavam intermi-
navelmente por planícies, campinas e desertos,
levados, talvez, pelas falsas promessas de ouro de
algum índio capturado e ansioso por voltar ao
seio de sua tribo em algum ponto longínquo.
Como em todas as terras de colonização recente,
havia centenas dessas lendas. A terra esparsamen-
te povoada estava cheia delas. Quanto mais po-
bres as pessoas, mais faiscante o tesouro. Aquela
gente, arrancando sua magra sobrevivência das
planícies nuas, se consolava com histórias de jóias
ou ouro espanhol enterrados em alguma parte.
Nenhum colono ou desbravador em sua cabana
de madeira com sua mulher ossuda de pele de
pergaminho e uma ninhada de filhos descalços
deixava de narrar a história de um tesouro há

94
muito procurado. Cim ouvia dezenas delas en-
quanto seu pai ia lentamente abrindo caminho
pela argila vermelha de Oklahoma, atravessando
rios, passando por pequenos bosques de carva-
lhos ou choupos. Adorava aquelas histórias, que
se tornavam tão reais para ele como os próprios
rios e árvores.
Durante o dia, Yancey contava-lhe histórias
de índios. Ensinou-lhe os nomes das cinco tribos
civilizadas, e Cim ouvia com atenção as difíceis
palavras índias e repetia-as — cherokee, choctaw,
crek, seminole e chickasaw. Ouvia histórias de índios,
não em termos de ataques, escalpelamentos,
machados de guerra e tambores, mas a saga de um
povo tripudiado e injustiçado. Yancey Cravat só
precisava de um ouvinte. E não fazia diferença
que o seu ouvinte tivesse apenas quatro anos de
idade e fosse ainda incapaz de compreender o
significado do que estava ouvindo. Cravat contou
ao menino a história aterrante da Trilha das Lá-
grimas — da nação cherokee, um povo simples e
sedentário, expulso de seus lares na Geórgia,
como gado através de léguas e léguas de distância
para morrer aos milhares antes de chegar à terra
de Oklahoma que lhe fora destinada, com uma
tropa de dois mil homens comandados pelo Ge-
95
neral Winfield Scott para apressar os passos arras-
tados dos pobres infelizes.
— Por que eles mandaram os índios embo-
ra?
— Eles queriam a terra para si mesmos.
— Por quê?
— Porque tinha mármore, ouro, prata, fer-
ro, chumbo e grandes florestas. Por isso, tomaram
a terra deles e os expulsaram. Fizeram promessas
aos índios e depois não cumpriram o que tinham
prometido.
Sabra ficara horrorizada com o que Cim lhe
repetira dessa saga. Ele lhe contou tudo mais
tarde, sentado na boléia a seu lado.
— Tio Sam é um homem malvado. Ele tirou
todas as plantações, o ouro, a prata e os búfalos
dos índios e depois mandou todos embora, e eles
não queriam ir, mas foram e morreram.
Cim sabia mais sobre David Payne do que
sobre Cristóvão Colombo. Estava mais familiari-
zado com Quanah Parker, o comanche, com Elias
Boudinot e o General Stand Waitie, seu irmão,
ambos cem por cento cherokees, do que com os
nomes de Lincoln e Washington.
96
Sabra, por sua vez, empreendeu varrer essa
impressão da cabeça do menino.
— Índios são gente má. Eles roubam meni-
ninhos de suas mães e nunca mais os devolvem.
Eles queimam as casas das pessoas e as machu-
cam. São preguiçosos, sujos e furtam coisas.
Ela não estava preparada para o violento
rompante de protesto que suas palavras tinham
provocado. O menino ficou branco de raiva.
— Eles não são nada disso. Está mentindo
para mim. Eu a odeio. Não quero ficar no seu
carroção.
Cim tinha se preparado para descer da
boléia. Ela o agarrou com uma das mãos, sacudiu-
o com força, deu-lhe uma palmada. Ele retribuiu
com um pontapé. Ela fez os cavalos pararem,
amarrou as rédeas, colocou o menino sobre os
joelhos e deu-lhe uma boa sova. Ele anunciou em
lágrimas que ia fugir e viver com os índios e que
não voltaria nunca. Se ela pudesse ter sabido que a
vida de seu filho mais tarde iria ser influenciada
pelas histórias de Yancey e por este incidente,
certamente seus protestos teriam sido ainda mais
veementes.

97
— Por que não pode falar com seu filho de
outra coisa a não ser desses índios imundos e
ladrões? Há muita coisa a ensinar-lhe a respeito da
história deste país, creio eu. George Washington,
Jefferson Davis e o Capitão John Smith.
— Está se referindo àquele que casou com
Pocahontas?
— Pelo amor de Deus, Yancey, às vezes eu
não sei se...
— Não sabe o quê?
— Oh, nada.
Mas muitas vezes os dias eram alegres. Eles
entraram na rotina, ajustaram-se aos desconfortos.
A princípio, Sabra ficara tão moída com os sola-
vancos do carroção que à noite não podia sequer
se mexer. Yancey ensinou-lhe a relaxar os múscu-
los; a não se firmar contra os solavancos do car-
roção mas a balançar o corpo no mesmo ritmo.
No segundo dia, já o seu jovem corpo se habitua-
ra ao movimento. Passou mesmo a gostar, e no
final da jornada sentiu falta daquele movimento
como um viajante sente falta do jogar de um
navio. Mas agora ela já desabotoara no pescoço o
vestido cinza e fizera uma longa trança com seus

98
cabelos negros. Parecia uma colegial. Apanhara a
touca que uma das menos formais Venable lhe
dera de brincadeira na hora da partida e agora a
estava usando para proteger os olhos da claridade
ofuscante do céu. O chapéu de palha cinza com
seu pufe de veludo e passarinho repousava no
fundo da chapeleira dentro do carroção. A vista
dela naquelas paragens ermas ocupada na tarefa
doméstica de sovar massa de pãezinhos não cau-
saria estranheza a ninguém. O suprimento de pães
logo tinha se esgotado. Assava a massa num pe-
queno forno portátil que Yancey tinha fabricado
para ela.
Quanto ao próprio Yancey, Sabra nunca o vi-
ra tão feliz. Mostrava-se incansável, encantador,
divertido.. Até ela ficara fascinada pelas histórias
que ele contava de minas escondidas, dobrões
espanhóis, arcas de ferro desencavadas pela charrua
de algum colono macilento atrelada a uma mula
esquelética. Yancey cantava aos berros trechos de
canções de vaqueiros:

"Na minha mocidade, eu era um jovem es-


touvado,
Muito me divertia com as mulheres que ar-
99
ranjava,
Cada dia era uma que eu levava a passear a
cavalo,
E sempre tinha alguma a meu lado.
Eu as abraçava e beijava só por diversão,
E pedia em casamento a sua mão,
Se alguma delas aqui tem um beijo para
mim,
Verá que continuo tão jovem como antiga-
mente.

Upa, upa, meu cavalo, upa,


Como gosto de cantar para ti.
Eu poderia cantar e dançar com alegria,
Se fosse tão jovem como antigamente".

Uma vez, viram-no agarrar o chicote do car-


roção e matar uma cascavel a chicotadas. Tinham
desatrelado os cavalos para dar-lhes de beber.
Yancey, de chicote em punho, conduzia os ani-
mais até a margem de um riacho lamacento, com
Cim saltando e gritando a seu lado. Suas duas
100
pistolas nos coldres estavam atiradas no chão
juntamente com o cinto que ele acabara de desafi-
velar da cintura. Sabra viu a grossa rosca, a cabeça
daninha. Devia ter percebido o que era, pois sol-
tou um grito de horror e ficou petrificada. Yancey
vibrou uma chicotada, a cobra deu um bote, ele
tornou a chicoteá-la, de novo e de novo, tomado
de uma espécie de fúria. Sabra virou a cabeça,
nauseada. O chicote continuou a estalar. A coisa
enroscada se fez em tiras. Isaiah, embora cinzento
de pavor, teve que ser contido à força para não
procurar em meio da massa esfacelada o guizo
que, com a combinação de pôr-de-sol e saliva
humana, era um amuleto contra praticamente
todos os infortúnios que poderiam atingir um
homem. Cim teve pesadelos a noite inteira e acor-
dou aos gritos.
Certa vez, eles viram a figura de um cavalei-
ro solitário contra o céu do poente. Inexplicavel-
mente, a figura desmontou, ficou um momento
imóvel, tornou a montar rapidamente e desapare-
ceu.
— Quem era?
— Era um índio.
— Como pode saber?
101
— Ele desmontou do lado oposto ao que
um homem branco desmonta.
Nessa noite, foi Sabra que não conseguiu
dormir. Manteve o filho apertado entre os braços.
Qualquer estalido de um graveto, qualquer ruído
de cascos de cavalo faziam com que tivesse um
sobressalto de terror. Em vão, Yancey tentou
tranqüilizá-la.
— Um índio? E que tem isso? Não há razão
para se ter medo de índios. Não mais agora.
Ela se lembrou de algo que Madre Bridget
dissera.
— Eles não estão diferentes. Não mudaram
desde os tempos de Josué.
— Desde quem? — Ele estava com muito
sono.
— Josué.
Para ele não fazia sentido. Adormeceu ime-
diatamente, um sono pesado. Estava exausto
depois da jornada daquele dia.
O vento, em determinados períodos do ano,
sopra quase sem cessar em Oklahoma. E quando
chove, os caminhos tornam-se brejos escorregadi-

102
os de massa vermelha, de forma que um carroção
ao mesmo tempo afunda e derrapa. Tiveram dois
dias de chuva durante os quais avançavam peno-
samente, centímetro por centímetro. Cim berrava,
Isaiah se encolheu até transformar-se num negro
montinho trêmulo, e Sabra pensou na sua cama
macia em Wichita; no jardim com a fresca da
noite; na família reunida na sala de jantar; na co-
mida saborosa, conversas afáveis, conforto luxuo-
so. "Quer seu café na cama, Srta. Sabra? A manhã
está muito fria."
Em Pawnee, Yancey viu pegadas frescas de
veado. Selou um cavalo e partiu. Antes disso, eles
tinham pescado percas nos riachos, e Yancey
caçara galinhas selvagens e codornas, que Sabra
tinha fritado. Mas esta era a primeira promessa de
uma caça maior. Sabra não sentiu medo de ficar
sozinha com os dois meninos. Era no meio da
tarde. Ela se sentia feliz, tranqüila. Havia naquele
tipo de vida um agradável desligamento. Sua in-
fância disciplinada que, por ela ter continuado a
viver na casa dos pais, perdurara no casamento,
agora tinha ficado para trás. O futuro talvez lhe
reservasse toda a espécie de terrores desconheci-
dos e coisas estranhas, mas ali, naquela região
bravia, sentia-se segura. Era a rainha do seu pe-
103
queno mundo. O marido era dela, só dela. O filho
também. O pretinho Isaiah era tão seu escravo
como se nunca houvesse existido a Proclamação
de Emancipação. Ali, na vasta liberdade da campi-
na, ela estava, pelo menos temporariamente, fora
do alcance de interferências humanas.
Naquele momento, agradou-lhe aquela pa-
rada inesperada. Ela e Isaiah carregaram água do
córrego, lavaram umas poucas roupas e as esten-
deram para secar. Ela deu um banho em Cim.
Aqueceu água para si mesma, e se deliciou com o
banho quente. Mandou que Isaiah juntasse lenha
para a refeição da noite, enquanto Cim brincava à
sombra de uma moita de carvalhos. Sentia-se
serena. Estava de ouvido atento ao ruído de cas-
cos de cavalo que anunciaria a volta triunfante de
Yancey. Podia ouvir Cim brincando entre as
árvores e cantando para si mesmo algum trecho
de canção que o pai lhe ensinara. Vagamente,
começou a achar que Yancey já deveria estar de
volta. Escovou vigorosamente os cabelos, gostan-
do do movimento, jogando-os por sobre a cabeça
e curvando-se bem para a frente na posição con-
torcionista necessária para a tarefa. Depois de ter
trançado os cabelos, decidiu deixar a trança caída
nas costas. Audaciosamente, amarrou a ponta
104
com uma fita encarnada, sorrindo ao pensar no
que Yancey iria dizer. Deu uma arrumação no
carroção. Agora, estava francamente preocupada.
Nada podia acontecer. Claro que nada podia
acontecer. E em outra parte de sua mente, pensou
que uma porção de coisas horríveis poderiam
acontecer. Índios. Por que não? Algum animal
selvagem na mata. Ossos quebrados. Uma queda
do cavalo. Ele podia ter se perdido. E se tivesse
que passar a noite sozinha com as duas crianças?
Havia ali uma pequena moita de árvores. Logo
adiante, o terreno era formado por uma série de
pequenas colinas que ondeavam suavemente em
direção ao horizonte — suficientemente elevadas
para esconder sabe Deus que horrores! Uma
cabeça talvez naquele mesmo instante espiando
por cima de uma das colinas, espiando-a.
Num súbito pânico, ela saltou para fora do
carroção com a sensação de que precisava ter
junto de si os únicos dois seres humanos — Cim,
Isaiah — com quem falar. Cim não estava lá
brincando com suas pedrinhas e gravetos. Fora
com Isaiah juntar lenha, embora ela lhe tivesse
proibido. Isaiah, com os braços compridos cheios
de gravetos secos e pequenos galhos, estava agora
voltando para junto do carroção. Cim não estava
105
com ele.
— Onde está Cim?
Isaiah deixou cair a lenha no chão, olhou em
redor.
— Deixei ele aqui mesmo brincando quando
fui buscar a lenha. Ele não está no carroção?
— Não, Não.
— Talvez tenha se metido no carroção do
equipamento.
— Carroção? — Ela correu para o outro
carroção, espiou para dentro, chamou. Ele não
estava lá dentro.
Juntos, espiaram por debaixo dos carroções,
atrás das árvores.
— Cim! Cim! Cimarron Cravat, se está se
escondendo, vou castigá-lo se não aparecer imedi-
atamente. — Em sua voz havia uma nota estri-
dente de pânico. Começou a correr de um lado
para outro, chamando o filho. Começou a gritar
seu nome com a voz cada vez mais grotescamente
estridente. — Cim! Cim! — Rezava, também,
enquanto corria. — Ó, meu Deus, ajudai-me a
encontrá-lo. Ó Deus, não permiti que algo acon-

106
teça a meu filho. Meu bom Deus, ajudai-me a
achá-lo. . . Cim! Cim! Cim!
Ela ouvira, entre histórias de pioneiros, a da
caravana de carroções atravessando o continente
rumo à Califórnia, em 1849. O grupo dos Benson
tinha se separado, talvez um meio dia de jornada,
da parte dianteira da caravana, quando batedores
chegaram com a notícia de índios na trilha. Eles
deviam imediatamente levantar acampamento e se
apressar para ir ter com os carroções na frente
para proteção mútua. Em meio à correria e confu-
são, descobriu-se que uma criança, um menino de
três anos, desaparecera. O grupo todo se pôs a
procurar, a princípio com confiança, depois de-
sesperadamente, depois já sem esperança. Os pais
do garoto desaparecido tinham três outros filhos
pequenos e mais um por nascer. Cada segundo de
atraso significava a possível morte de todos os
outros membros do grupo. Precisavam tocar para
a frente. Fizeram um apelo à mãe. "Eu irei", disse-
ra ela, e a caravana seguira seu tortuoso caminho
pelas planícies. A mulher, sentada, com o rosto
lívido, ficara imóvel, os olhos fixos numa espécie
de horror perpétuo. E nunca mais tornara a falar
no filho perdido.

107
— Ó Deus! — gemia baixinho Sabra, cor-
rendo de um lado para outro. — Ó Deus! Oh,
Cim! Cim!
Ela chegou a uma pequena colina que afun-
dava súbita e inesperadamente terminando numa
ravina. Ali, encontrou o filho sentado defronte de
uma caverna num lado da colina, a frente e o teto
engenhosamente recobertos de madeira para
formar uma cabana. Uma pessoa poderia passar a
menos de dois metros de distância e não encon-
trar o local. Quatro homens estavam sentados no
degrau da entrada da cabana improvisada. Cim
estava empoleirado nos joelhos de um dos ho-
mens, que quebrava nozes para ele. Estavam
rindo, conversando, mastigando nozes e pareciam
estar todos se divertindo muito. Os joelhos de
Sabra subitamente fraquejaram. Seu corpo todo
tremia. Tropeçou e correu para o filho. Seu rosto
estava contorcido. Os homens puseram-se de pé
com as mãos nos quadris.
— O homem está quebrando nozes para
mim — observou Cim muito sociável. Não pare-
cia especialmente contente em ver a mãe.
O homem em cujo joelho Cim estivera sen-
tado era um rapaz esbelto com bigodes louros e
108
um lenço vermelho amarrado ao pescoço à moda
dos cowboys. Colocou o menino delicadamente no
chão, e ergueu-se com uma graça displicente.
— Você fugiu. . . você. . . procuramos por
toda. . . Cim. . . — gaguejou ela e desatou em
pranto, lágrimas misturadas de raiva e alívio.
O rapaz esguio parecia o líder do grupo,
embora os outros três fossem obviamente mais
velhos.
— Lamento muito que tenha ficado preo-
cupada, dona. Nós íamos levar o menino de volta
são e salvo. Ele disse que tinha vindo até cá pro-
curando o pai. — Estava de pé com uma mão
apoiada de leve, num gesto carinhoso, na cabeça
de Cim e olhando para Sabra com um sorriso de
uma gentileza absoluta. Era a voz macia, quase
acariciadora, do vaqueiro sulista. Ao ouvi-lo,
Sabra sentiu sua raiva, nascida do susto, desapare-
cer. Além disso, o rapaz era tão jovem — pouco
mais do que um adolescente.
— Bem — explicou ela um tanto contrafei-
ta. — Eu estava preocupada. . . Meu marido saiu
para caçar um veado... horas atrás. . . ainda não
voltou. . . então, quando Cim. . . Saí do carroção e
ele tinha sumido... Eu estava tão. . . tão terrivel-
109
mente. . .
Ela parecia muito abatida, quase uma colegi-
al em seu bem-composto vestido cinza, com os
cabelos presos numa trança amarrada com uma
fita encarnada e as faces manchadas de lágrimas.
Um dos homens, que se tinha afastado um
pouco com o ar mais casual do mundo, voltou
para junto do grupo.
— Ele agora vai estar de volta a qualquer
instante — anunciou ele. — E não caçou nenhum
veado.
— Como é que sabe?
O rapaz de fala macia lançou um olhar viru-
lento ao companheiro, e este pareceu subitamente
embaraçado. A pergunta de Sabra ficou sem
resposta.
— A senhora não quer se sentar e descansar
um pouco? — sugeriu o rapaz. As palavras eram
bastante hospitaleiras, mas havia no seu tom algo
que transmitiu a Sabra a sugestão de que era me-
lhor se retirar com o filho. Ela pegou na mão de
Cim. Agora que passara seu susto, pensou que
devia estar parecendo bem tola correndo daquele
jeito com suas lágrimas e sua trança. Agradeceu
110
aos vaqueiros, usando um pouco do charme
sulista e da voz langorosa que tantas vezes copiara
de seus ancestrais Venable para ocasiões especiais
tais como a desse momento.
— Estou muito grata a todos. Foram muito,
muito gentis. Se quiserem fazer uma visita ao
nosso acampamento, tenho certeza de que meu
marido ficará encantado em conhecê-los.
O rapaz de bigodes louros sorriu mais gen-
tilmente do que nunca, e os outros o fitaram com
uma inexplicável ponta de humor em seus rostos
curtidos pelo sol.
— Fico muito agradecido pelo convite, do-
na. Mas eu e meus amigos aqui temos que seguir
caminho. Pronto. Floyd, que tal arranjar um peda-
ço de carne de veado para a senhora, em vista de
ter sido ela despojada do seu jantar? Agora, dona,
se não se importa de montar na garupa do meu
cavalo, e o garoto na frente, eu a levo de volta.
Provavelmente correu mais longe do que espera-
va, assustada como estava.
De fato, em seu terror, Sabra correra quase
um quilômetro desde o seu acampamento.
Ele montou primeiro. Seu método de mon-

111
tar dava quase a impressão de um milagre. Num
momento, o cavalo estava parado, esperando, e
ele ao lado do animal. No momento seguinte,
como num lampejo, estava montado. Era como
uma ilusão de óptica em que ele parecia ter sido
atraído para o selim como a agulha voa para o
ímã. Puxou Cim para junto do santo-antônio,
segurando-o com uma das mãos; Sabra, montada
na traseira do cavalo, passou ambos os braços em
redor da cintura fina do rapaz. Habituada a mon-
tarias, ela notou o belo selim mexicano, incrusta-
do de prata. De cada lado do selim estavam pen-
durados bolsos recobertos de pêlo cuja saliência
era o contorno de uma pistola. Uma capa imper-
meável como as usadas por cavaleiros em longas
jornadas estava arrumada num rolo compacto
atrás do selim. O cavalo tinha uma andadura de
veludo, mesmo com a sua tripla carga. Sabra
desejou que aquele divertido trajeto se prolongas-
se mais e mais. Subitamente, notou que o jovem,
cavaleiro usava luvas. Isso a deixou vagamente
inquieta, como se despertasse nela alguma recor-
dação. Nunca vira um homem das campinas
enluvado. Parecia-lhe absurdo.
A uns trinta metros do acampamento, ele
freou bruscamente as rédeas do cavalo, virou-se
112
um pouco no selim, e com a mão livre depositou
delicadamente Sabra no chão, debruçando-se
sobre o selim e segurando com firmeza ao mesmo
tempo Cim e as rédeas. Depois, depositou o
menino nos braços estendidos de Sabra, virou-se
e partiu antes que ela tivesse tempo de abrir a
boca para formular palavras de agradecimento. O
pedaço de carne de veado, cuidadosamente em-
brulhado, fora colocado a seus pés. Ela ficou um
instante fitando meio aturdida a figura a galope.
Depois pegou na mão de Cim e os dois correram
juntos para o acampamento. Isaiah tinha acendido
o fogo e um bule de café fervilhava. A maneira
com que recebeu Cim foi de severa admoestação.
Dez minutos depois, Yancey chegava a galope, de
mãos vazias.
— O que aquele veado me fez correr! Duas
vezes pensei que ia apanhá-lo. Eu o teria perse-
guido até o Texas se não pensasse que você iria
ficar. . .
Sabra, pela primeira vez desde seu casamen-
to, sentiu-se superior ao marido; impacientou-se
com a proeza que ele estava contando. Tinha sua
própria história a contar, acrescida de indignação.
Não estava interessada naquele veado mítico.

113
Estava, ela própria, de posse de um pedaço de
carne fresca de veado para o jantar.
— . . .e no momento em que eu estava mor-
rendo de pavor, lá estava ele, conversando com
aqueles quatro homens, e sentado nos joelhos de
um deles como se o tivesse conhecido a vida toda,
comendo nozes. . . Tudo podia ter acontecido a
seu filho e a mim enquanto você estava correndo
atrás daquele veado.
Yancey parecia menos interessado no papel
que ela e Cim tinham desempenhado na aventura
do que no aspecto e atitude dos quatro homens
na caverna, e especialmente o rapaz encantador
que tão galantemente os trouxera de volta ao
acampamento.
— Diz que o seu rosto era magro? E muito
jovem? Uns dezenove ou vinte anos? E o que
mais?
— Oh, uma voz abafada, meio doce, como a
de um tenor. E seus dentes. . .
— Compridos, não eram? — interrompeu
Yancey. — Os dois caninos. Como os de um
lobo?
— Sim. Como você. . . Conhece o rapaz?
114
— Mais ou menos — respondeu Yancey
pensativo.
— Foi uma sorte para nós ter sido alguém
que provavelmente conhece você — disse Sabra
amuada. — Porque não parece preocupar-se
muito com o que aconteceu conosco — com o
que poderia ter acontecido.
— Você disse que queria ser uma pioneira.
— E daí?
— É isso mesmo. Atice o fogo, Isaiah. Sa-
bra, ponha para assar a carne de veado que o seu
amigo lhe deu. Porque vamos recomeçar nossa
jornada.
— Agora? Esta noite? Mas é tarde. Pensei
que fôssemos acampar aqui esta noite.
— Vamos comer e depois seguir caminho.
É noite de luar. Não gosto muito deste local. Já
perdemos muito tempo esta tarde. Iremos em
frente. Dentro de um ou dois dias, com alguma
sorte, estaremos em Osage, sãos e salvos.
Eles comeram às pressas. Yancey parecia
agitado, ansioso por partir.
Os carroções prosseguiram em seus sola-

115
vancos. Cim adormeceu. A pequena bola exausta,
Isaiah, cochilava ao lado de Sabra, e ela própria
estava meio adormecida, as rédeas frouxas nas
mãos. O cheiro da campina aquecida pelo sol
subia-lhe às narinas, e também o cheiro mais
pungente da artemísia. Hordas de índios haviam
atravessado esta planície, e milhões de búfalos.
Teriam também os primeiros espanhóis, em sua
cobiça do ouro, pisado aquela terra, talvez esta
mesma trilha? Coronado, De Soto, Narvaez. Ela
havia visto retratos deles, aqueles elegantes de tez
morena com seus incômodos adornos de couro e
metal pesado, vagueando pelas implacáveis planí-
cies daquele vasto sudoeste, procurando como
crianças cidades de ouro. . . O soar constante dos
cascos dos cavalos, o ranger do carroção, o guin-
cho das rodas, o cheiro da terra impregnada de
sol. . .
Ela devia ter cochilado, porque de repente
os raios do sol se projetaram enviesados, e ela
estremeceu com o frio do ar da noite. Vozes
despertaram-na. Três homens a cavalo tinham
surgido de uma capoeira e se postado na frente do
carroção de Yancey. Estavam todos armados,
com as mãos apoiadas nas pistolas. A expressão
de seus rostos era sombria. Usavam os bigodes
116
melancólicos dos habitantes das planícies do
oeste, seus olhos eram os de homens acostuma-
dos a grandes distâncias; olhos implacáveis. Os
três ostentavam o distintivo de delegados polici-
ais, mas havia neles algo que anunciava a sua
profissão mesmo antes de se lhes ter notado o
distintivo. O líder do grupo dirigiu a palavra a
Yancey, e sua voz era moderada, até mesmo
polida.
— Olá.
— Olá.
— Para onde se dirige, companheiro?
— Osage.
A mão do interrogador estava pousada de
leve na coronha da pistola.
— Posso saber qual é seu nome?
— Cravat. . . Yancey Cravat.
A fisionomia do homem se iluminou com o
lento, incrédulo sorriso de um menino radiante.
— Ora esta! — Ele se voltou risonho para o
homem à sua direita, para o homem à sua esquer-
da. — Yancey Cravat! — repetiu, como se os
outros dois não tivessem ouvido. — É um grande
117
prazer. Ouvi tanto falar no seu nome que é como
se já o conhecesse.
— Muito obrigado — respondeu Yancey,
excepcionalmente modesto e lacônico. Sabra
percebeu então que o marido estava representan-
do um dos seus papéis. Falava de acordo com
quem estava falando com ele. Passava a ser um
deles.
— Está pretendendo ficar muito tempo em
Osage?
— Pretendo viver lá.
— Essa é boa! Minha vontade é fazer com
que preste imediatamente juramento como vice-
delegado. Cidadãos como você é do que estamos
precisando, e como! Vai advogar em Osage?
— Estou pretendendo abrir meu escritório
de advocacia na cidade — respondeu Yancey — e
também editar um jornal.
A resposta pareceu deixar os três meio per-
turbados. Entreolharam-se, olharam para Yancey,
depois desviaram o olhar, constrangidos.
— Ah, um jornal, hem? — Não havia gran-
de entusiasmo na voz do delegado. — Tivemos
um jornal em Osage por um tempinho, cerca de
118
uma semana.
— Um diário?
— Um semanário.
Havia algo de sinistro na resposta.
— E o que aconteceu com o tal semanário?
— Bem., parece que o editor, um tal Pegler,
morreu.
Fez-se um pequeno silêncio. Sabra apanhou
as rédeas e emparelhou os seus cavalos com os de
Yancey, para ouvir melhor. Os três homens de
bigodes a cumprimentaram formalmente tocando
na aba dos chapéus com o indicador da mão que
estivera apoiada em suas armas.
— Quem o matou?
— Ele foi encontrado morto uma manhã na
ribanceira do Canadian — disse o delegado com
uma leve expressão de surpresa pungida. — Feri-
mentos de bala. Mas balas são todas muito pare-
cidas aqui. Talvez ele tenha se matado de puro
desânimo.
Fez-se um novo silêncio, que Yancey rom-
peu.
— A primeira edição do Taba de Oklahoma
119
estará na rua dentro de duas semanas a partir de
amanhã.
Ele apanhou as rédeas como para encerrar
aquele encontro ocasional, por mais agradável que
fosse.
— Bem, cavalheiros, boa noite. Foi um pra-
zer conhecê-los.
Os três continuaram parados. Finalmente, o
que parecia ser o líder falou no seu tom sempre
polido:
— O motivo de termos vindo até aqui foi
para perguntar se por acaso avistou quatro ho-
mens nestas redondezas. Estão escondidos em
alguma parte por aí, o Kid e seu bando. Rouba-
ram quatro cavalos, assaltaram o banco em Red
Fork, atiraram no caixa e fugiram para a campina.
Todos eles alourados. O Kid é um jovem esguio,
cabelos claros, lenço vermelho, fala macia, e anda
a cavalo de luvas. Mas acho que conhece bem o
Kid, Cravat, tão bem quanto eu.
Yancey sacudiu a cabeça, concordando.
— Todo mundo já ouviu falar no Kid. Não,
não o vi por estas paragens. Nos últimos três dias,
não vi ninguém a não ser um kaw montado num
120
petiço e um bando de cheyennes sujos num carro-
ção. É engraçado, nunca vi um bandido que não
fosse alourado — ou, pelo menos, de olhos azuis
ou cinzentos.
— Ora, mas que idéia! — protestou o dele-
gado, afagando o bigode louro.
— É um fato. Veja o Kid, os irmãos James,
Tom O'Phalliard, e todo o bando de Mullins.
— E quanto a você? Pelo que ouvi dizer, é
muito bom no manejo de uma arma. E seu cabe-
lo é preto como um corvo.
Yancey ergueu a cabeça volumosa e as pál-
pebras pesadas que em geral escondiam os olhos
cinzentos e fitou o delegado.
— Isso mesmo — disse o outro, como que
chegando a um acordo no final de uma discussão.
— Acho que se aplica a matadores tanto quanto a
matadores de matadores... Bem, rapazes, vamos
indo. Boa sorte, Cravat.
— Boa sorte para vocês! — respondeu Yan-
cey polidamente.
Os três fizeram seus cavalos darem uma
meia-volta espetacular, ergueram a mão direita em

121
saudação; os cavalos giraram com elegância sobre
as pernas traseiras; Cim ficou encantado com a
proeza. Logo, os delegados desapareceram numa
nuvem de pó vermelho, que os últimos raios do
sol tornavam ainda mais vermelhos.
Yancey apanhou as rédeas. Sabra fitou-o
com perplexa indignação.
— Mas a pessoa que protege um criminoso
é tão culpada quanto o próprio criminoso, não é
mesmo?
Yancey lançou-lhe um olhar de lado, da
boléia do seu carroção. Seu sorriso era malicioso,
brincalhão, irresistível.
— Não seja tão virtuosa, Sabra. É muito
burguês — e uma faceta horrível numa mulher.
No final do dia seguinte, pouco antes do en-
tardecer, depois de avançar penosamente no sol
ardente daquele dia, Yancey apontou com o chi-
cote para algo que parecia um charco salpicado de
casebres e tendas. Teatralmente, ergueu Cim nos
braços para que o menino, também, pudesse ver.
Mas suas palavras eram para Sabra.
— Lá está — disse ele. — É lá que será nos-
so futuro lar.
122
Sabra olhou. E seu cérebro parecia ter per-
dido a capacidade de ordenar os pensamentos ou
de raciocinar, pois ela só podia pensar no vestido
de gaze verde debruado de rufos rosa que estava
tão cuidadosamente dobrado, com suas mangas
elegantes recheadas de papel de seda, na mala sob
a lona do carroção.

123
Capítulo VI

Muito antes do final daquele dia de pesadelo


em Osage, Sabra tinha confrontado o marido com
olhos fervendo de indignação.
— Não vou criar meu filho numa cidade
como esta!
Tinha sido uma noite e um dia de fantásticos
incidentes adversos. Os carroções tinham se
arrastado pesadamente pela larga rua principal do
povoado — uma ferida aberta na campina. Por
toda parte, de ambos os lados, havia cabanas de
madeira, índios, lama seca, mourões de amarrar
monta-rias, cães e carroções rústicos como os
deles. Parecia as ilustrações da Califórnia em 1849
que Sabra vira. Eles tinham jantado presunto e
ovos, batatas fritas e café grosso num local cha-
mado Salão de Sorvetes e Ostras. Passaram a
primeira noite numa pensão acima de um das
dezenas de saloons que animavam a rua principal, a
Avenida Pawhuska, como a chamavam. Era uma
rua comprida, pois os habitantes de Osage pareci-
am ter sentido a necessidade de se juntar para ter
124
companhia naquelas paragens ermas. A rua parava
bruscamente em cada uma das suas extremidades
e de repente só havia a campina.
"Avenida Pawhuska", dizia uma tabuleta tor-
ta pregada na fachada de uma cabana. Yancey
escolheu este momento impróprio para transmitir
informações sobre a linguagem dos índios a Cim,
que, ao lado da mãe, fitava de olhos arregalados
tudo à sua volta.
— Esta é Osage — gritou ele para o meni-
no. — Pawhu quer dizer cabelo. E scah significa
branco. Cabelo Branco — Pawhuska era um
velho chefe osage. . .
— Yancey Cravat! — gritou Sabra quase tão
alto quanto ele, e num tom assustadoramente
semelhante ao melhor de Felice Venable (de fato,
o cansaço, a decepção e o medo a tinham deixado
um tanto histérica). — Yancey Cravat, quer parar
de contar a história dos índios e arranjar um lugar
onde possamos comer e dormir? Onde está o seu
bom senso? Não vê que ele está prestes a cair de
cansaço e de sono, e eu também?
A comida gordurosa que puseram à frente
deles na casa de refeições deixou-a repugnada.
Teve um movimento de recuo ante a criada rela-
125
xada e de olhar atrevido que atirou os pratos
sobre a mesa coberta com uma toalha de oleado.
À mesma mesa com eles — havia apenas uma,
comprida e comportando umas vinte pessoas —
estavam sentados homens de rosto esfogueado
falando em voz alta, comendo com mecânica e
desatenta eficácia, empurrando para dentro da
boca, com a faca, batatas, legumes enlatados,
tortas. Cim estava agora bem acordado e indisci-
plinadamente barulhento, excitado com os ruídos e
com a novidade daquele ambiente.
— Sou um índio! — berrava ele, batendo
com a colher na mesa. — Sou o velho Cabelo
Branco! Ua-ua-ua-ua-ua-ua! — Ao ser repreendi-
do e ter a colher tirada à força de sua mão, ele
começou a chorar e a berrar.
Sabra carregara-o escada acima para o pe-
queno quarto quase despido de móveis porém
bastante limpo que iria abrigá-los naquela noite.
Depois de tanta excitação, Cim de repente se
deixara vencer pelo sono. Yancey tinha saído para
ir ver os cavalos, colher informações sobre a
possibilidade de alugar uma casa e um barracão
para o jornal. Em sua cabeça fervilhava uma
dezena de planos.

126
— Você vai se sentir bem — dissera ele. —
Uma boa noite de sono e de manhã tudo lhe
parecerá cor-de-rosa. Não fique com esse ar de-
primido, meu bem. Vai gostar daqui.
— É horrível! É. . . E aqueles homens!
Aqueles homens horrendos.
— Quanto a mim, prefiro ser o primeiro en-
tre esses sujeitos do que o segundo em Roma —
declarou Yancey.
— Roma? — repetiu Sabra meio atônita.
— Plutarco, minha doçura.
Ele a beijou e saiu abanando as abas da so-
brecasaca. Ela ouviu seus passos leves descendo
os precários degraus de madeira da escada. Podia
distinguir a voz vibrante e bela do marido entre as
falas roucas dos outros homens no andar térreo.
O menino adormecera na caminha tosca ao
lado da deles. O moleque Isaiah tinha se aninhado
em alguma toca do lado de fora. Sabra deitou
desconfiada num colchão duvidoso. As paredes
do quarto eram finas como uma folha de papel;
meras ripas de pinho com frestas nas junções. Da
rua subiam risadas estridentes de mulheres, o som
de um piano horrivelmente martelado. Ecoavam
127
os cascos de cavalos passando. Vozes erguiam-se
em saudações jocosas. Abaixo da janela do quarto
prolongavam-se exasperadoramente conversas e
discussões.
— Uma vez eu estava vendendo mil cabeças
de gado — de uma manada de uns três mil — e
eu e meu capataz estávamos contando o gado que
ia passando entre nós. Eram uns novilhos bravios
de perna comprida — e como corriam! Passavam
por entre nós dois como lobos assustados, e perdi
a conta. . .
— Ouvi dizer que o bando de Mullins en-
trou lá esta manhã e fez uma limpeza na cidade —
ambos os bancos —, onze mil num e dezenove
mil no outro, e quando fugiram, toda a gente da
região se juntou para dar caça a eles. . .
— Aquele sujeito é mesmo um hombre malo.
Tem uma língua venenosa, é como uma cascavel...
O trunfo é espadas?
— Não, copas. Pois olhe, eu saberia como
lidar com ele. Uma ocasião, quando a gente tinha
acampado no riacho Amarillo. . .
Uma pancada forte na porta defronte do
quarto de Sabra. Nova pancada. Depois uma voz

128
de mulher, metálica, alta. — Ouién es? Quién es? —
Uma sacudidela impaciente no trinco e uma voz
grosseira de homem.
Não obstante, ela adormecera de pura exa-
ustão, para logo depois ser acordada por tiros de
pistola, uma série de gritos apavorantes, o ruído
de vidro quebrado. Depois, foram gritos de mu-
lheres, o barulho de cavalos galopando. Ela se
encolheu na cama. Cim se remexeu, suspirou
fundo, tornou a adormecer. Ela estava muito
aterrada para ir espiar pela janela. Tremia tanto
que parecia sacudir a cama. Queria acordar o filho
para reconfortá-la, fazer-lhe companhia. Criou
coragem suficiente para ir até a janela; espiou
temerosa para a rua na obscuridade. Nada. Nin-
guém na rua. O corpo ensangüentado de Yancey
não jazia por terra; nenhum homem mascarado.
Nada de novo a não ser o tinir de copos e pratos;
o piano com som de lata, o bater de cartas sobre a
mesa.
Ela sentiu uma indescritível saudade, não da
doce segurança de sua cama em Wichita — isto
agora já estava fora da realidade —, mas daquelas
noites no carroção na campina sem som algum a
não ser o farfalhar das folhas, o ruído ocasional de

129
cascos de cavalos na argila seca, o sussurro de um
córrego por perto. Olhou no seu reloginho de
ouro, gravado com um pássaro pousado num
galho, uma cascata e o pináculo de uma igreja.
Eram apenas nove horas.
Era meia-noite quando Yancey chegou. Ves-
tida com sua camisola de gola alta e mangas com-
pridas, ela se sentou na cama. Seus olhos, na
palidez do rosto, eram dois furos negros queima-
dos num pedaço de papel.
— O que foi aquilo? O que foi?
— O que foi o quê? Por que não está dor-
mindo, meu amor?
— Aqueles disparos. E a gritaria. E os ho-
mens berrando.
— Disparos? — Ele estava desafivelando
seu largo cinto de couro com as duas pistolas,
cujas coronhas ameaçadoras apareciam logo acima
dos coldres. Agora andava sempre armado. Com
o tempo, aquelas armas passaram a ser para ela
um símbolo sinistro de todos os terrores, todos os
perigos que os espreitavam nessa nova existência.
— Mas, querida, não me lembro de ter ouvido. . .
Oh. . . aquilo! — Jogou a cabeça para trás e se pôs

130
a rir. — Aquilo era apenas um vaqueiro meio alto,
apagando a bala as luzes no saloon de Strap Turket.
Divertindo-se um pouco com os rapazes, antes de
ir para casa. Você se assustou?
Ele se aproximou de Sabra, pôs a mão no
seu ombro. Ela o repeliu, furiosa. Levou a mão à
testa, num gesto de desespero. A testa estava fria
e úmida, e seu peito arfava.
— Não vou criar meu filho numa cidade
como esta. Eu me recuso. Vou voltar para minha
casa, está ouvindo?
— Espere até amanhã de manhã, pelo me-
nos, sim, querida? — disse ele, e tomou-a nos
braços.
A manhã seguinte chegou, como num passe
de mágica, e os terrores da noite pareciam ter se
evaporado sem deixar vestígio. O sol brilhava. Por
um momento, Sabra teve a ilusão de que estava de
novo em casa na sua cama em Wichita. Depois
percebeu que a ilusão era porque tinha sido des-
pertada por um som familiar. Era o som da voz
de Isaiah em alguma parte no pátio empoeirado.
Ele estava lustrando as botas de Yancey, cuspindo
diligentemente nelas e cantando enquanto as
esfregava. Sua doce voz rouquenha chegava até
131
Sabra deitada na cama.

"Ouça os cordeírinhos todos balindo


Ouça os cordeirinhos todos balindo
Ouça os cordeirinhos todos balindo
Quando eu morrer, quero ir pro céu
Venha, irmã
Quero ir pro céu quando morrer
Os anjos esperando pra me dar uma coroa
Pro céu quero ir quando morrer."

Por mais lúgubre que fosse a canção, Sabra


sabia que Isaiah estava numa felicidade total.
Havia muito a fazer, procurar uma moradia,
um local onde instalar as máquinas. Se necessário,
dissera Yancey, eles podiam viver nos fundos e
instalar a oficina e o escritório de advocacia na
frente. Quase todo mundo que tinha um negócio
na cidade adotava esse sistema.
— As casas aqui são muito escassas — avi-
sara Yancey, bufando e resfolegando à moda

132
masculina enquanto lavava o rosto na bacia. —
Temos que pegar o que aparecer ou ir viver numa
tenda. Ouvi falar, na noite passada, que Doc
Nisbett tem uma boa casa. Cinco cômodos, e ele
nos fornecerá a água. Há uma dúzia de famílias
querendo a casa, e Nisbett com a faca e o queijo
na mão.
Sabra não achou ruim a idéia de combinar
escritório e residência. Estaria perto do marido o
dia todo. Assim que terminaram a refeição da
manhã, ela e Yancey se prepararam para sair,
deixando Cim entregue aos cuidados de Isaiah
(depois de instruções muito detalhadas de Sabra).
Ela vestira seu traje de gorgorão de seda preta
com três pregas fundas de cada lado, enfeitado
com passamanaria e botões de azeviche — um
tanto amassado por ter ficado muito tempo na
mala — e seu elegante chapéu com cinco plumas
de avestruz e rosas que custara doze dólares e
cinqüenta centavos em Wichita, suas melhores
botinas de pelica preta abotoadas e luvas de pelica
preta. Sua cintura ajustada na seda media quarenta
e nove centímetros, uma circunferência de que ela
muito se orgulhava. Seus olhos negros, agora
ligeiramente sombreados pelo cansaço, excitação e
falta de sono, pareciam enormes sob a aba do
133
romântico chapéu de plumas pretas.
Yancey, vendo-a assim esplendidamente en-
farpelada depois de quase quinze dias de vestido
cinzento, adotou a atitude de deslumbramento.
Dos seus lábios brotaram logo versos livres:
— "Mas o que é, que criatura de terra ou
mar — de sexo feminino parece —, que tão enfei-
tada e alegre, de mim se aproxima, como um
barco de Tarso, rumo às ilhas de Javan ou Gadire,
em todo o seu esplendor..."
— Ora, vamos, Yancey, pare de dizer toli-
ces. É apenas minha segunda melhor toalete de
gorgorão preto.
— Tem razão, minha querida. Nem mesmo
Milton tem palavras para expressar tanta formo-
sura.
— Por favor, querido, trate de se apressar.
Temos tanta coisa a fazer.
Com seus cabelos encaracolados, sombrero
branco, botas de salto alto e as amplas abas da
sobrecasaca abrindo-se a cada um dos seus mo-
vimentos vigorosos, Yancey era uma figura igual-
mente notável, embora talvez não tão fora do
comum como Sabra, naquele dia e local.
134
A pequena cidade desordenada parecia estar
assando sob o sol do verão. O céu, que Sabra iria
conhecer tão bem, estendia-se plano e ofuscante,
um disco de metal azul-cinza, por sobre a campi-
na.
— Bem, Sabra, meu amor, isto não é tão
ruim assim! — exclamou Yancey, e lançou um
olhar amplo à sua volta. — "Então a Manhã de
amarelo-laranja trajada ergueu-se das águas do
Oceano para trazer a luz aos deuses e homens."
— Oceano! — ecoou Sabra, a literal. —
Bem pouca água tenho visto por aqui — a não ser
que você chame de oceano esta campina deserta.
— E é realmente o oceano, meu amor. Mui-
to poética esta sua observação. A campina é um
oceano de terras. — Ele parecia enormemente
estimulado, quase jubilante. As abas da sobrecasa-
ca se agitavam; os pés calçados nas elegantes
botas texanas com incrustações de estrelas pisa-
vam com galhardia. Ela enfiou a mão no braço do
seu marido. Havia uma doçura no ar, eles eram
jovens e era de manhã. Talvez, no final das con-
tas, a vida ali não fosse tão terrível.
De certa forma, Sabra ainda não tinha a sen-

135
sação de que ela, Sabra Cravat, fazia parte daquele
ambiente. Era uma espectadora. A primeira coisa
que notou, ao começar a caminhar na poeira da
rua, tão elegantemente vestida, provocou um
desalento em seu coração. As poucas mulheres
andando de um lado para outro usavam toucas de
sol e vestidos de chita — a espécie de trajes que
Sabra vira nas mulheres de Wichita quando pen-
durando a roupa lavada na segunda-feira no varal
de seus quintais. Aqui, elas saíam do açougue ou
do armazém carregando as provisões do dia nos
braços; um embrulho de carne, latas de tomates e
pêssegos desembrulhadas. Após uns olhares
furtivos lançados a Sabra, enveredavam para
dentro de alguma cabana de pinho. Imediatamen-
te após, havia uma grande agitação nas cortinas
rústicas das janelas de moradias que se davam a
este luxo.
— Mas as outras. . . a outra espécie de mu-
lheres. . . — gaguejou Sabra.
Yancey entendeu errado a pergunta dela.
— Há muitas mulheres daquela espécie nu-
ma cidade como esta, mas de manhã ainda estão
dormindo.
— Não seja vulgar, Yancey. Estou me refe-
136
rindo a senhoras como eu, com quem eu possa
conversar, que virão me fazer visitas, isto é. . .
— Bem, você acabou de ver algumas delas,
não viu? — replicou Yancey abanando a mão para
um lado e outro.
— Aquelas!
— Olhe, minha querida, não pode esperar
que aquelas senhoras estejam usando seus melho-
res peitilhos e jabôs para fazer os trabalhos do-
mésticos de manhã. Além disso, a maioria dos
homens veio para cá sem suas mulheres. Mais
tarde, eles mandarão buscá-las, e então terá muitas
senhoras para lhe fazer companhia. Não é toda
mulher que tem a coragem que você demonstrou,
aventurando-se até cá. Você é do estofo de que
era feita Raquel e a mãe dos Gracos.
Raquel ela conhecia pela Bíblia; quanto aos
irmãos Gracos, não tinha muita certeza, mas pelo
menos sabia que a intenção de Yancey era elogi-
osa.
A rua era absurdamente larga — certamente
uns quinze metros de largura — naquela cidade-
zinha de uma só rua. De quando em quando,
erguia-se uma casa isolada numa transversal. Mas

137
a vida de Osage parecia toda ela concentrada ali.
Ainda se viam tendas servindo de moradia. Casas
e lojas eram construídas com madeira sem pintu-
ra. Pareciam ter sido edificadas da noite para o
dia, como exatamente tinham sido. Pareciam fitar
duramente a rua vincada de sulcos na argila ver-
melha e a rua lamacenta as fitava de volta; o céu
ardente queimava com feroz intensidade a cidade
toda, sem uma só árvore ou um pouco de verde
para alegrar o espírito ou repousar a vista. Amar-
rados aos rústicos mourões enterrados fundo no
chão havia veículos de toda a espécie: carruagens
de quatro rodas, carroças desconjuntadas, carro-
ções dilapidados, puxados por mulas; aqui e ali
alguma charrete coberta de pó da campina; e por
toda parte, supremos, os reis de quatro patas sem
os quais a vida naquele lugar remoto não teria
chance — cavalos de todos os tamanhos, tipos,
cor e categoria. Petiços índios, malhados, cavalos
de tração, magros cavalos montanheses de pernas
compridas e, ocasionalmente, um corcel fogoso
que pisava a argila vermelha com os cascos des-
denhosos de um descendente de ginetes que
tinham galopado pelos planaltos de Espanha.
Descendentes diretos de eqüinos aristocráticos
que, há quase quatrocentos anos, haviam sido
138
trazidos através dos mares por Coronado ou Mos-
coso para a terra das Sete Cidades de Ouro.
Havia ruídos de martelo e serra, o chocalhar
de correntes, o som surdo de cascos, todos muito
distintos, como se essa cidade-cogumelo estivesse
se arrancando da argila vermelha da campina
como quem descalça uma bota ante os olhos dos
habitantes. Embora rústica e feia, a cena que se
desenrolava agora perante Sabra e Yancey não era
de estagnação. Tinha vitalidade. Sentia-se que por
detrás daquelas tábuas nuas pessoas faziam proje-
tos e fervilhavam de atividade. Havia vida em
tudo. Até mesmo os nomes nas tabuletas das
fachadas das casas de comércio eram incisivos.
Sam Pack. Mott Bixler. Strap Buckner. Ike Hawes.
Clint Hopper. Jim Click.
Embora eles tivessem chegado à cidade ape-
nas na noite anterior, pareceu a Sabra que um
surpreendente número de pessoas conhecia Yan-
cey e o saudava ao passar por ele. — Olá, Yancey!
Como vai, senhora? — Ociosos em soleiras de
portas olhavam com curiosidade o casal. Vaquei-
ros passando a cavalo lançavam a Sabra um olhar
comprido em que havia ainda algo de tímido —
olhos de adolescentes, semelhantes aos dos fora-

139
da-lei que a tinham recebido à entrada de sua
cabana improvisada, ao saberem que ela era a mãe
de Cim.
De repente, Sabra teve um pequeno choque
ao reparar que os homens realmente não estavam
fazendo nada. Ficavam encostados às portas ou a
algum mourão e conversavam; ouviam-se também
suas vozes em animada conversa no interior de um
saloon, armazém ou escritório; passavam trotando,
faziam meia-volta e tornavam a voltar, graciosos
em suas montadas. Ela não tardaria em descobrir
que muitos daqueles homens não tinham vindo ali
para construir e eram simples aventureiros. Os
intrépidos desbravadores de 1849 não tinham
parentesco algum com estes, que eram freqüente-
mente gente de fala macia, cruel, furtiva e cobiço-
sa. Estavam ali para apanhar o que pudessem e ir
embora, Alguns eram vaqueiros, cheios de ressen-
timento contra um governo que lhes tomara as
pastagens livres para dá-las aos colonizadores.
Privados de sua única ocupação, muitos se torna-
vam bandidos. Equipados com pistolas, uma
pontaria mortífera e uma destreza com cavalos que
chegava a ser milagrosa, eles desciam de seus
esconderijos nas montanhas para aterrorizar uma
cidade, assaltar um banco ou um trem, depois fugir
140
em disparada, deixando um rastro de sangue para
trás. Arriscavam a vida por umas poucas centenas
de dólares. Aquele era um vasto domínio sem leis
escritas, sem precedente, sem os hábitos da civili-
zação; parte de um grande país, porém não ainda
parte de seu governo. Ali, um cavalo era mais
valioso do que uma vida humana. Um ladrão de
cavalos, se apanhado, era sumariamente enforcado
na árvore mais próxima; o assassino de um homem
freqüentemente continuava em liberdade.
O casal tão elegantemente trajado foi des-
cendo a rua, o homem gingando um pouco como
convém quando se está usando um sombrero bran-
co e dando o braço a uma bonita mulher; a mu-
lher olhando interessada em seu redor, aterrada
com o que via e decidida a não demonstrar seu
terror. Se dois podem formar uma procissão,
então se podia dizer que Yancey e Sabra Cravat
constituíam só os dois uma parada ao descerem a
Avenida Pawhuska na claridade intensa do sol da
manhã. Certamente, estavam causando sensação.
Magros colonos em suas carruagens de quatro
rodas se viravam para os olhar. Grupos parados
junto às portas de armazéns se cutucavam, fazen-
do exclamações. Vaqueiros nas imediações grita-
vam uma saudação. Era irreal, absurdo, grotesco.
141
— Olá, Yancey! Bom dia, dona.
Ao passar o casal pelo Saloon Cão Verme-
lho, um grupo em cadeiras inclinadas contra a
parede ou de pé em suas botas de salto alto e
sombreros saudou Yancey com uma familiaridade
que espantou Sabra.
— Olá, Cim! Como vai, Yancey?
— Ele o chamou Cim!
Yancey ignorou a observação espantada de
sua mulher. Enquanto ia passando, observava
atentamente o grupo.
— Os rapazes estão preparando alguma. Se
eles se fazem de engraçadinhos com você a meu
lado. . .
Sabra, olhando para o grupo de sob a aba de
seu chapéu, notou realmente que eles estavam se
portando como um punhado de colegiais se pre-
parando para desfechar um bombardeio de bolas
de neve. Cutucavam-se "uns aos outros, falavam
baixinho, e havia no ar algo que indicava uma
brincadeira de mau gosto sendo planejada.
— Por que eles estão. . . o que acha que vão
fazer. — começou Sabra meio nervosa.

142
— Oh, provavelmente estão preparando
uma pequena iniciação para mim — explicou
Yancey num tom displicente, mas de olhar atento.
— Não fique nervosa. Não ousarão fazer nenhu-
ma gracinha enquanto você estiver comigo.
— Mas quem são eles? — Ele evitou res-
ponder. Ela insistiu. — Quem são eles?
— Não sei ao certo. Mas acho que foram os
rapazes que fizeram aquela sujeira com Pegler.
— Pegler? Quem é. . . oh, não é o homem. .
. o editor do jornal... o que foi encontrado morto.
. . morto por uma bala na ribanceira do. . . Yan-
cey! Está dizendo que foram eles que o mataram?
— Não estou dizendo que tenham sido —
precisamente. Eles sabem mais do que é prudente,
mesmo para esta região. Eu andei fazendo umas
perguntas a noite passada, e todo mundo trancou
a boca. Vou descobrir quem matou Pegler e pu-
blicar o seu nome no primeiro número do Taba de
Oklahoma.
— Oh, Yancey! Yancey, estou com medo!
— Ela se agarrou com mais força ao braço do
marido. As fisionomias sinistramente risonhas dos
homens no alpendre do saloon pareciam-lhe os

143
focinhos de uma alcatéia de lobos arreganhando
as presas.
— Não há motivo para se assustar, querida.
Eles me conhecem. Não sou nenhum Pegler para
me meterem medo. Não gostam do meu chapéu
branco, esta é que é a verdade. Desafiaram-me
ontem no Saloon Sudoeste a usá-lo esta manhã.
Só estão querendo me testar. Nenhum deles tem
peito para abrir o jogo. . .
A frase nunca foi terminada. Sabra ouviu um
curioso silvo passar rente à sua orelha. Algo can-
tou — zingue! O sombrero branco de Yancey caiu
rodopiando na poeira da rua.
A boca de Sabra se abriu como se ela esti-
vesse gritando, mas os sons que teria emitido
emergiram quase inaudíveis, como um resmungo.
— Fique onde está — ordenou Yancey em
tom baixo e inalterado. — Esses cães imundos.
Ela permaneceu imóvel, estarrecida. Nem
que quisesse poderia ter corrido. Suas pernas
subitamente pareciam não fazer mais parte do
corpo — remotas, diluídas e, ao mesmo tempo,
espetadas por mil alfinetes e agulhas. Yancey
caminhou devagar para onde seu chapéu branco

144
caíra na terra. Abaixou-se displicentemente, de
costas para o grupo no alpendre do saloon, apa-
nhou o chapéu, examinou-o, e enfiou a mão no
bolso para apanhar o lenço. Este movimento
provocou uma correria e agitação no alpendre.
Cadeiras inclinadas pularam para a frente, saltos
ecoaram nas tábuas, uma porta bateu. O proprie-
tário de avental branco que, de bandeja na mão,
tinha se postado na soleira desapareceu como se a
escuridão o houvesse engolido. Do bando, só três
homens permaneceram no alpendre. Um deles se
apoiava com um ar insolente a um pilar, o segun-
do se mantinha prudentemente por detrás dele e
um terceiro estava se encaminhando cauteloso
para a porta fechada. Não havia nada que indicas-
se quem tinha disparado o tiro que fizera rodopiar
o sombrero de Yancey.
Yancey, agora meio virado para eles, tinha
tirado seu elegante lenço branco do bolso, sacudi-
ra-o para abrir as dobras amplas com um gesto de
displicente elegância, e, de chapéu na mão, estava
limpando-o. Isto feito, examinou com ar crítico o
chapéu, pareceu achar que a experiência não o
prejudicara muito, a não ser, talvez, pelos dois
furos bem redondos na frente e atrás do alto da
copa. Então, tornou a colocá-lo na cabeça com
145
um gesto quase lânguido, atirou seu belo lenço na
rua, e quase com o mesmo gesto, ou com outro
tão vertiginosamente rápido que os olhos de
Sabra não o puderam acompanhar, levou a mão
ao quadril. Ouviu-se o estampido de um tiro. O
homem que estava se esgueirando para a porta
levou a mão à orelha, depois tirou a mão e a
olhou, e ela estava manchada de escuro. Yancey
continuava parado na rua, a mão na coxa, um pé
estreito em sua bela bota texana de salto alto um
pouco para a frente. Baixara ameaçadoramente
sua cabeça volumosa. Os olhos, de um cinza
metálico sob a aba do sombrero branco, tinham
uma expressão que Sabra nunca vira antes. Eram
olhos terríveis, implacáveis, frios, hipnóticos. A
única comparação que lhe ocorreu foi a dos olhos
da cascavel que Yancey destruíra a chicotadas na
jornada pela campina.
— Vai ficar com um triângulo na orelha,
Lon. A marca dos carneiros Cravat.
— Não sabe aceitar uma brincadeira, Yan-
cey? — gemeu um dos três, de olho na arma na
mão de Yancey.
— Brincadeira uma ova! — rosnou o ho-
mem que fora atingido, pondo a mão sobre a
146
orelha. — Que Deus te ajude, Cravat.
— Deus sempre me ajudou — replicou
Yancey em tom piedoso.
— Se sua esposa não estivesse na sua com-
panhia. . . — começou o homem que Yancey
chamara de Lon. Talvez a brincadeira bruta tives-
se terminado de maneira bem tenebrosa. Mas,
subitamente, Sabra resolveu atuar por conta pró-
pria. Seu medo desaparecera. Para ela, não se
tratava mais de homens maus, sinistros, a serem
temidos, mas de meninos mal-educados que
deviam ser postos no seu devido lugar. Assim,
adiantou-se na majestade de suas plumas e sedas,
seus belos olhos lançando chispas, o dedo indica-
dor enluvado admoestando-os como se fossem
realmente crianças indisciplinadas. Neste momen-
to, ela era cem por cento a descendente dos
Mardy da França e a própria essência daquela
mulher de ferro, Felice Venable.
— Não me venha com essa conversa de
"sua esposa"! Não passam de uns vagabundos
que não prestam para nada, só isto! Atirando nas
pessoas que passam na rua. Deixem meu marido
em paz. Senão, vão ter que se haver comigo!

147
Por um momento de terrível ridicularia, pa-
recia que a intenção dela era dar uma bofetada na
face barbuda e curtida de sol do bandoleiro co-
nhecido como Lon Yountis. Certamente chegou a
erguer a pequena mão enluvada de pelica preta.
Os três homens estavam de olhos arregalados.
Lon Yountis baixou a cabeça exatamente como
um garoto que vai levar um tapa da professora.
Depois, com um ganido de puro terror, ele fugiu
para dentro do saloon, seguido pelos outros dois.
Sabra ficou um momento parada. Dava a
impressão de estar realmente disposta a ir no
encalço deles, Mas pensou melhor e desceu em
triunfo os degraus para deparar com seu marido
arrasado.
— Oh, meu Deus, Sabra! O que fez comigo!
— O que foi que fiz?
— Amanhã a estas horas, todo o sudoeste,
desde o México até Arkansas, saberá que Yancey
Cravar se escondeu por detrás das saias de uma
mulher.
— Mas você não se escondeu de maneira al-
guma. Eles não podem dizer tal coisa. Acertou
muito bem a orelha daquele homem, querido. —
148
Assim, umas meras dezoito horas na região de
Oklahoma tinham de tal forma retorcido seu
ponto de vista que ela nem sequer notou o quanto
era grotesco o que acabara de dizer.
— Eles já devem estar dizendo isso lá den-
tro. Santo Deus, uma mulher nunca deve interfe-
rir quando homens estão tendo uma pequena
disputa.
— Disputa! Ora essa, Yancey Cravat! Ele ar-
rancou a bala o chapéu da sua cabeça!
— E daí? Um pequeno tiroteio amistoso.
A enormidade desse exemplo de solidarieda-
de masculina deixou-a temporariamente sem fala,
tal era a sua indignação.
— Vamos andando — continuou Yancey
calmamente. — Se vamos ver a casa de Doc
Nisbett é melhor nos apressarmos. Há apenas
duas ou três casas para alugar em toda a cidade, e
a dele é a melhor. É central ("'Central!", pensou
ela, olhando em seu redor), e pelo que ele disse a
noite passada, há um cômodo na frente suficien-
temente grande para se imprimir o jornal. O
jornal e o escritório de advocacia terão que funci-
onar na mesma sala. Depois há mais três cômo-

149
dos nos fundos onde poderemos morar, Muito
espaço.
— Oh, muito espaço — ecoou Sabra, pen-
sando nos nove ou dez hóspedes da família Ve-
nable sempre confortavelmente instalados nos
vários quartos de dormir de imenso pé-direito na
casa de Wichita.
O casal recomeçou a andar. Sabra não sabia
mais se o tiroteio do lado de fora do Saloon Cão
Vermelho tinha sido fruto de sua imaginação.
Doc Nisbett (veterinário), em mangas de
camisa, esperto, com gerações de linhagem da
Nova Inglaterra no seu cabedal, estava sentado
numa cadeira inclinada de encontro a uma parede
de sua cobiçada propriedade, Nem o brilhante sol
do sudoeste tinha conseguido suavizar a acidez de
sua composição química. Na disputa por terrenos
dentro da cidade por ocasião da corrida ele tinha
conseguido pôr as mãos gananciosas em cinco
dos melhores lotes. Nestes, construíra moradias,
depois inclinara sua cadeira contra a parede de
cada uma delas, passara a atender aos gostos dos
que tinham chegado atrasados e que estavam
desesperados por algum local que pudessem
considerar um lar. Que perjúrio, roubalheira,
150
golpes baixos, tiroteio e até assassinatos tivessem
facilitado a aquisição desses lotes — bem como
muitos outros — não era considerado fator im-
portante, ou mesmo especialmente interessante.
A propriedade de Nisbett lembrava as casas
que Cim costumava desenhar. O telhado era um
"V" invertido; havia uma porta na frente, uma
porta de lado e um alpendre estreito e comprido.
Era uma caixa, apenas um abrigo, tão angular e
antipática como o seu proprietário. As paredes
não eram mais do que tabiques, o assoalho de
tábuas colado sobre um chão de terra batida.
— Lindo — murmurou Sabra angustiada,
repetindo o comentário de Yancey. Os castiçais
que tinham sido o presente de casamento do
primo Dabney! As toalhas de linho tecido a mão e
ornadas de monogramas! A travessa de prata para
bolo com os alegres cupidos. A dúzia de colheres
de café de prata! — Vai dar muito bem. Perfeita-
mente confortável. Sim, estou vendo. Estou ven-
do.
— Tudo bem! — Terminada a inspeção,
eles retornaram ao alpendre. Yancey bateu ale-
gremente as mãos uma na outra, como se com tal
gesto tivesse conjurado um gênio que fizera bro-
151
tar da terra uma casa diante dos próprios olhos
deles. Na discussão do aluguel, ele fora uma cri-
ança nas mãos gananciosas do veterinário. —
Tudo bem! Está tudo acertado. — Ele adotou
uma pose dramática. — Examine nosso império,
contemple nosso lar.
— Ei, espere um instante — protestou Nis-
bett com sua voz estridente. — O que vamos
resolver sobre a água?
— Sabra, querida, quer acertar esses peque-
nos detalhes com Doc? Tenho que ir correndo
procurar Jesse Rickey para discutir como montar
a máquina de impressão, organizar a coleção de
tipos e arrastar as mesas de formas; depois temos
que comprar os móveis para a casa. Podemos nos
encontrar em dez minutos, na Loja de Móveis
Hefner.
Com um abano das abas da sobrecasaca, ele
se virou e partiu às pressas. Ela teria chamado,
"Yancey! Não me abandone!", se não fosse a relu-
tância orgulhosa de demonstrar medo ante aquele
homem de cara azeda, boca apertada e olhos de
verruma. De saída, ele parecera encará-la com
desaprovação. Sabra não podia imaginar o motivo.
Era, naturalmente, a repulsa puritana de um nativo
152
da Nova Inglaterra contra as suas plumas, suas
sedas, sua beleza levemente latina.
— Bem, agora, o que vamos resolver sobre
a água? — repetiu nasalmente Nisbett.
— Água?
— De quanta água vai precisar? Para mim,
alugar esta casa depende de quanta água a senhora
acha que vai precisar. Quantos barris?
Sabra sempre considerara que água, como ar
ou sol, não se media. Era um dos elementos.
Simplesmente, era usada quando se precisava dela.
Mas desde que deixara Wichita, estava sempre
ouvindo falar em água. Yancey, na jornada pela
campina, sempre fazia da água a base do local
escolhido para acamparem.
— Oh, barris — repetiu ela agora, tentando
parecer intensamente prática. — Bem, bem, dei-
xe-me ver. Há a cozinha, naturalmente, e toda a
limpeza da casa, e água para beber e para os ba-
nhos. Sempre que posso, dou um banho em Cim
à noite. O senhor não pode imaginar como fica
suja uma criança no final do dia. Os joelhos dele
— ah, sim —, bem, creio que uns dez barris por
dia bastarão.

153
— Dez barris — repetiu Nisbett numa voz
totalmente despida de expressão — por dia.
— Creio que dará amplamente para nossas
necessidades — disse Sabra com ar judicioso.
Doc Nisbett olhou agora para Sabra com
uma expressão de franca antipatia. Depois, fez
uma coisa estranha. Atravessou o pequeno alpen-
dre, fechou a porta da frente, trancou-a, pôs a
chave no bolso, sentou-se numa cadeira e incli-
nou-a contra a parede exatamente no mesmo
ângulo em que estava quando da chegada deles.
Sabra ficou parada no alpendre. Vendo-a,
seria quase impossível acreditar que uma mulher
tão garbosamente paramentada em sedas, plumas
e rosas pudesse apresentar uma figura tão cons-
ternada, tão melancólica, tão derrotada. Literal-
mente, ela não sabia o que fazer. Tinha encontra-
do e sobrepujado muitas experiências estranhas
naqueles últimos dez dias. Mas nascera de gera-
ções de mulheres a quem os homens rendiam
homenagem. Talvez em toda a sua vida ela jamais
tivesse encontrado a menor descortesia da parte
de um homem, e muito menos aquela incrível
grosseria.
Ela olhou para o veterinário, o rosto branco
154
de espanto, chocada. Ergueu os olhos, embaraça-
da, para o ofuscante céu de aço; baixou os olhos
para a cegante poeira vermelha, olhou desampa-
rada na direção em que Yancey desaparecera tão
displicentemente. Olhou novamente para Nisbett
empertigado em sua cadeira inclinada contra a
parede de sua casa odiosa. Os olhos dele eram
frios, vidrados, tão vazios como os de um peixe
morto.
Ela, naturalmente, devia ter se chegado ime-
diatamente para ele e dito: "Está achando que dez
barris são demais? Eu não sabia. Sou nova aqui. O
que o senhor achar suficiente está bem para
mim".
Mas ela era jovem, inexperiente, cheia de or-
gulho, e se sentia tremendamente ofendida. As-
sim, sem mais uma só palavra, virou-se e seguiu
pela rua empoeirada. Sua cabeça com o chapéu
emplumado estava erguida. Em cada face o san-
gue subira formando uma rodela escarlate. Seus
olhos, no esforço de conter as lágrimas quentes,
eram faiscantes, líquidos, enormes. Ela não via
nada. Dos saloons, mesmo àquela hora da manhã,
vinham gritos e o som de música.
E então, algo terrível aconteceu a Sabra Cra-
155
vat.
Descendo a rua, na direção dela, surgiu um
vaqueiro galopando, de sombrero, chaparejos de
couro e pistolas. Sabra estava habituada a ver
vaqueiros como ele. Com a cabeça cheia de seus
problemas, ela mal reparou que tinha olhado para
o rapaz. Não poderia saber que ele tinha acabado
de chegar das planícies do Texas, que aquela
cidade rústica representava para ele o máximo de
civilização estéril, que, para celebrar sua chegada,
já estava completamente embriagado, como con-
vém a um vaqueiro que acaba de sair de terras
selvagens, e que nunca antes em toda a sua vida
(ele mal completara vinte e três anos) tinha visto
uma criatura tão deslumbrante corno a que agora
se aproximava, toda sedas, plumas, rosas e azevi-
che, faces rubras, olhos líquidos. Ele passou a
galope, olhou, virou-se, saltou do cavalo, correu
para ela com suas botas de salto alto (o estranho é
que a única coisa de que Sabra pôde depois se
lembrar do rapaz eram aquelas botas, quando ele
se aproximava. Os canos eram de couro lustroso,
e ao redor deles havia alternadamente a figura de
uma dançarina com as saias infladas, e uma mão
de pôquer segurando cartas que mais tarde ela
soube representarem um royal flush, tudo muito
156
bem incrustado nos punhos de couro envernizado
das botas). Percebeu, num lampejo de puro terror,
que ele estava vindo direto para ela. Ficou imóvel,
petrificada. Ele se aproximou mais, parou na sua
frente, abraçou-a com braços que eram como fitas
de aço, beijou-a em cheio na boca, soltou-a, pulou
para cima do seu cavalo e, soltando um grito
apavorante, partiu a galope em meio de uma
nuvem de pó.
Ela pensou que ia vomitar ali, na estrada.
Depois começou a correr, rapidamente porém
meio tolhida pelas suas amplas saias de anquinhas.
Loja de Móveis Hefner. Loja de Móveis Hefner.
Loja de Móveis Hefner. Ela encontrou finalmen-
te. "Loja de Móveis e Serviços Funerários
Hefner." Um rústico barracão de macieira, como
o resto. Entrou correndo. Yancey, Yancey! Aos
seus olhos atônitos e ofuscados pelo sol, tudo
parecia turvo. Alguém se aproximou. Um homem
grande, úmido, em mangas de camisa. Hefner,
provavelmente. Meu marido. Meu marido, Yancey
Cravat. Não, lamento, minha senhora. Ele não
esteve aqui, não que eu tenha visto. Posso fazer
alguma coisa pela senhora?
— Um homem. . . um vaqueiro. . . eu estava

157
andando na rua — gaguejou ela numa voz histéri-
ca. — Ele saltou do cavalo. . . ele. . . eu nunca o
vira antes. . , ele me beijou, lá na rua, em plena luz
do dia... um vaqueiro... ele me b...
— Ora, dona, não se impressione tanto. Um
rapaz jovem, provavelmente recém-chegado do
mato, talvez lá do Texas, e nunca tinha visto uma
criatura tão deslumbrante como a senhora, se me
perdoa a observação.
— O senhor não está entendendo! Ele me
beijou. Ele me-e-e. . . — e ela se pôs a soluçar.
— Não fique assim tão abalada. Ele devia
estar bêbado, e quando viu a senhora o sangue lhe
subiu à cabeça. Já deve estar indo de volta para o
Texas, e a senhora não tem mais com que se
preocupar.
Ante essa falta de sensibilidade a respeito de
uma tragédia, ela se sentiu absolutamente arrasa-
da, e escondeu a cabeça nos braços dobrados
sobre o objeto mais à mão. Seu corpo esguio era
sacudido pelos soluços. Estava lavada em lágri-
mas. Chorava alto como uma criança.
Mas a cena fez agora com que a voz do Sr.
Hefner adquirisse um firme tom de protesto.

158
— Desculpe, dona, mas isto em cima do que
está chorando é veludo, e água é danada para
manchar veludo. Se puder se apoiar em alguma
outra coisa. . .
Ela se ergueu do objeto em que tinha desa-
bado, chorando, e o olhou com os olhos cheios
de lágrimas, que se arregalaram de horror ao
perceber que suas lágrimas estavam sendo derra-
madas sobre uma peça que era o orgulho da Loja
de Móveis e Serviços Funerários Hefner, o recém-
recebido caixão de veludo branco (tamanho para
criança) que se destinava exclusivamente a decorar
a vitrina do estabelecimento.

159
Capítulo VII

Do veterinário Nisbett, Yancey recebeu uma


lacônica informação de que a casa tinha sido
alugada para uma família cujas exigências aquáti-
cas eram mais modestas do que as da Sra. Cravat.
Sabra ficou inconsolável, mas Yancey nem uma só
vez a censurou pelo seu erro. Era característico
dele mostrar-se ainda mais charmoso e gentil em
crises que presumivelmente deveriam enfurecê-lo.
— Não tem importância, minha doçura.
Não fique tão abalada. Encontraremos uma casa.
E, de qualquer maneira, estamos aqui. Isto é o
mais importante. Meu Deus, quando penso na-
queles anos em Wichita!
— O que está dizendo, Yancey? Pensei que
tivéssemos sido felizes em Wichita.
— Uma alma aprisionada! Quase cinco anos
no mesmo lugar — foi a pena maior que cumpri
até hoje, meu amor. Cinco anos, para lá e para cá
como um cavalo atrelado; indo de manhã para a
redação do Taba, tomando providências pessoais

160
e locais, escrevendo editoriais para cidadãos com-
placentes, incapazes de se interessar por nada a
não ser o novo chafariz da cidade. Voltando para
jantar, passando as tardes sentado na varanda,
olhando para os legumes na horta dos Venable até
não poder distinguir um legume de um Venable e
começar a pensar. Santo Deus, que eu próprio
estava me tornando um ou outro.
Ele suspirou de alívio, esticou os braços
possantes, sacudiu o corpo como um leão sacode
a juba. Em todo aquele rebuliço de argila verme-
lha, índios, mangas de camisa, fumo mascado e
seca, parecia encontrar uma beleza e uma exalta-
ção que Sabra não conseguia apreender. Mas o
fato era que Sabra, após os dois primeiros dias,
deixara de buscar uma razão para as coisas. En-
frentara e aceitara acontecimentos os mais grotes-
cos e fantásticos. Quando recordava as coisas que
tinha feito e as que dissera nas primeiras horas de
sua experiência em Oklahoma, era como se esti-
vesse tolerantemente encarando as ingenuidades
de uma criança. Dez barris de água por dia! Sabia
agora que água, nesta terra candente, era uma
coisa preciosa a ser medida como vinho. A vida
ali era um anacronismo, uma piada brutal. Era
difícil conceber que, enquanto o resto dos Esta-
161
dos Unidos, neste ano de 1889, estava vivendo
uma existência convencionalmente civilizada e
empertigadamente vitoriana, em que encanamen-
tos, iluminação a gás, árvores, jardins, livros, leis,
chapéus e serviços religiosos dominicais eram
considerados rotineiros, ali, no território de
Oklahoma, a vida ainda obedecia aos moldes
fronteiriços de meio século antes. Literalmente,
ela estava sendo uma pioneira naquela terra agres-
te cercada, porém intocada, pela civilização.
Yancey estava refeito. Sempre — mesmo na
sua fase mais tranqüila em Wichita — uma figura
de um romantismo meio incrível, ele agora se
fazia notar mesmo nessa cidade de seres humanos
fantásticos vindos de todos os cantos do brilhan-
temente pitoresco sudoeste. Sua grande estatura,
cachos negros, cabeça maciça, voz vibrante, trajes
elegantes, linguajar floreado e personalidade mag-
nética atraíam a atenção onde quer que ele esti-
vesse. No dia seguinte à sua chegada, Yancey
tinha tirado de seu baú um par de pistolas auto-
máticas montadas em prata e com coronha de
marfim, e um cinto e coldre incrustados de tachas
de prata. Sabra nunca vira antes aquelas armas.
Não sabia que o marido possuía aqueles acessó-
rios vistosos e alarmantes. Yancey colocara em
162
redor da copa de seu sombrero branco uma pele de
cascavel de ouro e prata, com olhos de vidro, um
tesouro também saído do baú secreto, bem como
um par de esporas engastadas em ouro que faziam
sobressair ainda mais suas botas texanas. Assim
paramentado para suas funções advocatícias e
editoriais, era de longe o homem mais bem vesti-
do e vistoso de todo o ciclorâmico panorama de
Oklahoma. Ele sempre freqüentara os melhores
alfaiates, e como o talento local fosse ainda bas-
tante limitado nessa nova comunidade, mais tarde
passou a fazer encomendas até mesmo em San
Antônio, Texas, quando queria reabastecer seu
guarda-roupa.
Sabra aprendeu muitas coisas surpreenden-
tes naqueles primeiros dias, e entre as mais aterra-
doras estavam as que ficou sabendo sobre o mari-
do com quem ela estivera tão bem casada por
mais de cinco anos. Ficou sabendo, por exemplo,
que o tal Yancey Cravat era famoso como a pon-
taria mais mortífera entre todas as mortíferas
pontarias do sudoeste. Ele tinha o dom de poder
apontar suas pistolas sem fazer mira, como quem
aponta um dedo. Era um senso de direção inato e
sem dúvida um dom invejável em tal comunidade.
Era um dos poucos que podia sacar e disparar
163
duas pistolas ao mesmo tempo com igual veloci-
dade e precisão. Suas mãos podiam ir aos quadris
com uma velocidade de relâmpago, mas de modo
tão suave, tão econômico, que a vista do especta-
dor mal podia seguir-lhe o gesto. Ele podia atingir
um alvo caminhando, correndo, montado a cava-
lo. Treinava freqüentemente. Da porta dos fundos
da cabana que habitavam, Sabra, Cim e Isaiah,
com olhos arregalados, costumavam ficar parados
observando-o. Ele falava às vezes em vento e
trajetória. Dizia que tinha que dar uma margem
matemática para o vento sempre agitado de
Oklahoma. Sabra sentia-se vagamente inquieta.
Wichita não fora exatamente tranqüila, e Dodge
City, Kansas, era notoriamente uma cidade pisto-
leira. Mas aqui, não havia homem que não andasse
armado, No mesmo dia dos encontros perturba-
dores que tivera com o veterinário e com o va-
queiro, Sabra, já com sua compostura recuperada,
fora com Yancey procurar o proprietário de uma
outra casa para discutirem a possibilidade de
alugar seu tesouro. Encontraram o homem em
sua rústica cabana de um só cômodo que usava
como moradia e escritório. Ele e Yancey pareciam
já se conhecerem. Sabra não mais se espantava de
descobrir que Yancey, vinte e quatro horas após
164
sua chegada, parecia conhecer todo mundo na
cidade. O homem, sentado a uma tosca mesa de
pinho, sobre a qual estava escrevendo, ergueu os
olhos para eles.
— Olá, Yancey!
— Olá, Cass!
Yancey, todo gentilezas, fez a apresentação.
O proprietário, um homem magro, de nele curti-
da, limpou a palma da mão no traseiro de suas
calças num gesto de grande polidez e, assim puri-
ficado, estendeu para Sabra a mão hospitaleira.
Yancey contou-lhe a difícil situação em que se
achavam.
— Não me diga, é mesmo uma coisa terrí-
vel. Talvez eu possa ajudar você e esta sua boa
senhora. Mas olhe, Yancey, deixe que eu saia um
instante e vá até a esquina para pôr esta carta na
caixa do correio. O carteiro deve passar a qual-
quer momento.
Ele lambeu o selo e o colou no envelope, le-
vantou-se e apanhou de sobre a mesa um largo
cinto de couro com um par de pistolas nos col-
dres, que evidentemente pusera de lado para
maior conforto enquanto escrevia. Em seguida,

165
afivelou o cinto na cintura com o mesmo gesto
despreocupado com que outro homem vestiria o
paletó. Estava simplesmente envergando o vestu-
ário convencional do homem bem-trajado daquela
localidade para sair à rua. Pegou a pilha de enve-
lopes e encaminhou-se para a porta. Três minutos
depois, estava de volta e afavelmente pronto para
discutir com o casal os termos do aluguel.
Foi, talvez, esse ato simples e sinistro, mais
do que qualquer outra coisa que ela havia até
então presenciado, que impressionou Sabra pela
ilegalidade dessa nova terra para onde o marido a
trouxera.
A casa, da qual o homem chamado Cass tan-
to se vangloriava, era uma moradia de quatro
cômodos inadequada para as necessidades do
casal, mas desesperava-os a idéia de ficar esperan-
do até que fosse construída uma casa para mora-
rem. Então Yancey teve uma idéia brilhante.
Encontrou uma cabana de dois cômodos, feita de
tábuas rústicas que ele fez transportar para junto
da casa principal, depois emboçou e pintou, e,
com este acréscimo, eles ficaram com uma mora-
dia de seis cômodos que era uma combinação de
residência, oficina de jornal e escritório de advo-

166
cacia. Assim, tiveram todo o esplendor de uma
sala de estar, sala de jantar, quarto e cozinha. Um
cômodo do pequeno anexo servia ao mesmo
tempo de escritório de advocacia e redação do
jornal. O outro era usado como oficina, de com-
posição e impressão, A Loja de Móveis e Agência
Funerária Heíner forneceu-lhes a mobília — uma
grande armação dr cama onde encaixar o colchão
e o estrado de Sabra; uma pequena cama para
Cim; mesas, cadeiras —, tudo da maior simplici-
dade. As poucas peças de mobiliário e enfeites
que Sabra trouxera consigo de Wichita eram,
felizmente — ou infelizmente —, de urna beleza
duradoura de objetos feitos por mãos requinta-
damente conscientes de linhas, textura e cor, que
a pátina do tempo tornava ainda mais preciosos.
As peças de prata, porcelana, linho fino estavam
tão deslocadas naquela moradia rústica de paredes
de tábua ao natural quanto uma dama da corte
numa choupana de camponeses. Em dois dias,
Sabra tornou-se uma dona-de-casa organizada em
sua rotina como se estivesse vivendo ali há anos.
Um tabuleiro de pãezinhos no forno do fogão a
lenha da cozinha; um vestido estampado de chita,
cortado e pronto para ser costurado sobre a mesa
da sala de estar.
167
Instalar a oficina do jornal e o escritório de
advocacia não foi tão simples. Yancey, por exem-
plo, estava inclinado a escrever seu primeiro
editorial intitulado "Para onde Oklahoma?" antes
de estar montada a impressora a mão. Absorvia-o
mais a tabuleta pregada no exterior da oficina do
que instalar adequadamente no interior a parte
mecânica do jornal. "TABA DE OKLAHOMA",
anunciava a tabuleta em letras garrafais de quase
um metro de comprimento, de forma que a pe-
quena choupana quase desaparecia por detrás da
tabuleta. Um pouco mais abaixo, em letras quase
tão grandes: "YANCEY CRAVAT, PROPRIETÁRIO E
RESPONSÁVEL. ADVOGADO. NOTÁRIO".
A colocação dessa tabuleta tomou a maior
parte de um dia e, enquanto durou, todos os
outros trabalhos foram suspensos. Durante este
tempo, Yancey atravessou a rua cinqüenta vezes,
ostensivamente, para dirigir o serviço de um local
onde pudesse apreciar mais o efeito, mas na reali-
dade para gozar o efeito espetacular das gordas e
vistosas letras pretas. Como de costume, no de-
correr deste trabalho, houve muitos berros rou-
quenhos, gesticulações e agitação generalizada.
Para Sabra, que de quando em quando chegava
até a porta, de pano de prato ou concha na mão, o
168
clamor parecia completamente fora de proporção
com os resultados obtidos. E pensou (intimamen-
te) que duas mulheres poderiam ter executado o
trabalho na metade do tempo e com um décimo
do rebuliço. Mas ela era ainda muito feminina,
educada e apaixonada pelo marido para expressar
sua opinião. Cim divertia-se imensamente com a
função, da mesma forma que seu satélite, compa-
nheiro de brinquedos e guarda-costas, Isaiah. Os
dois davam cabriolas, gritavam, e contribuíam não
pouco para a algazarra.
— Suspenda a tabuleta um pouco mais na-
quela ponta! — dizia Yancey postado do outro
lado da rua.
— Que ponta? — perguntava o suarento as-
sistente, Jesse Rickey.
— Aquela ponta — para cima! NÃO! MAIS
ALTO! EU disse MAIS ALTO!
— Que ponta, pelo amor de Deus! Direita
ou esquerda?
— Direita. DIREITA! Ora esta, homem, não
sabe diferenciar a direita da esquerda?
— Devagar agora. De-va-gar! Agora chega.
Chega! Isto é — não — agora vire-a um pouco
169
para este lado. . .
— Que tal agora?
"Ai, minha Nossa Senhora!", pensou Sabra,
voltando para sua cozinha bem-arrumada. "Ho-
mens se agitam tanto por nada."
Era a sua primeira constatação de que ho-
mens podiam ser falíveis. Sendo um produto da
educação sulista, embora diariamente assistindo à
predominância da mãe matriarcal sobre o pai
fraco e abalado pela guerra, havia sido criada na
tradição de que um homem sempre tinha razão,
sempre devia ser acatado. Yancey, apaixonado por
ela, sempre a tinha tratado com ternura, como
uma encantadora tolinha, e este papel ela aceitara
documente, até mesmo com gratidão. Mas agora a
suspeita começava a despontar, tenebrosa. Aque-
las últimas três semanas lhe tinham mostrado que
homens freqüentemente cometiam enganos, e que
Yancey, individualmente, quase sempre estava
errado. Mas ela não admitia nem para si mesma
estas assustadoras descobertas. Como também
que ele se deixava fascinar pelo aspecto dramático
de qualquer plano que concebia, mas que freqüen-
temente o lado prático de uma realização o impa-
cientava a ponto de abandoná-la antes do seu
170
término.
— Yancey, esta caixa de tipos está toda mis-
turada. — Jesse Rickey, artífice impressor e bêba-
do periódico, era responsável por este infortúnio,
tendo deixado cair emborcada uma caixa de
caracteres tipográficos na poeira da rua enquanto
ajudava Yancey na mudança. — Vai ter que ser
colocada em ordem antes de você começar a
publicar o jornal.
— Oh, Rickey cuidará disso. — Tenho uma
porção de trabalhos importantes a fazer. Editori-
ais a escrever, notícias a colher, uma porção de
escrituras de propriedades — e vou descobrir
quem matou Pegler e publicar seu nome na pri-
meira edição mesmo que com isto eu perca até a
última gota de meu sangue.
— Por favor, não faça isso. Que importân-
cia tem agora! Ele está morto. Talvez tenha se
suicidado. E além do mais, você tem que pensar
em mim e em Cim. Não pode deixar que nada lhe
aconteça.
— Se eu permitir que aquela súcia de Youn-
tis não seja castigada por um crime assim, é
provável que tudo possa me acontecer. Nada

171
disso! Vou mostrar àquela gente, de saída, que o
Taba de Oklahoma publica todas as notícias, o
tempo todo, não reconhecendo outras leis que
não sejam a de Deus e a do governo dos Estados
Unidos! Escute, este é um belo slogan. No alto da
página, logo acima da coluna do editorial.
Acabou sendo ela quem pôs em ordem os
caracteres tipográficos. Os cinco anos em que
Yancey fora proprietário do jornal em Wichita a
tinham familiarizado, quase inconscientemente,
com muitos dos aspectos mecânicos de uma
oficina de jornal. Ela chegava mesmo a gostar do
cheiro da tinta de impressão, dos tipos de metal,
do papel molhado da impressora manual. Desco-
briu que as finas divisões de latão e cobre usadas
para compor anúncios não tinham um recipiente
adequado e, não encontrando nenhum, teve a
idéia de usar uma forma de bolinho até se arranjar
um receptáculo conveniente. Este nunca foi pro-
videnciado, e a forma de bolinho continuava
servindo vinte e cinco anos depois. E por esta
ocasião, ela se tornara sentimental e supersticiosa
a respeito da forma.
O prelo manual finalmente ficou montado,
bem como a pequena máquina impressora e as

172
prateleiras com as caixas de tipos. Os rolos esta-
vam em seus lugares, assim como o pequeno
estoque de papel. O curioso era que, embora
tanto Yancey quanto Sabra não se dessem conta,
era ela quem dirigia quase todo esse trabalho
manual e que também o executava em grande
parte, ajudada por Isaiah e Jesse Rickey. Yancey
saía à rua a cada dez minutos. De volta, ele se
perdia na organização de sua biblioteca de com-
pêndios de direito, livros de referência e volumes
favoritos, para os quais alegava que não havia
estantes suficientes na casa. Tinha trazido no
fundo dos carroções caixotes de livros. Se os
livros todos contidos nas casas, escritórios e lojas
do recém-povoado território de Oklahoma pudes-
sem ser reunidos num só local, provavelmente
seriam em número menor do que a biblioteca
absurda do paradoxal Yancey Cravat. Além de
loquaz e de gostar de exibir seus conhecimentos
literários, Yancey era na realidade um verdadeiro
amante dos livros. Dava mais atenção ao carpin-
teiro que instalava as estantes toscas do que dedi-
cara a juntar as duas cabanas quando a família se
mudara. Os livros, insistiu em colocá-los sozinho,
apanhando-os um a um e mergulhando ora numa
página, ora em outra, de modo que no final da
173
longa tarde quente não tinha arrumado coisa
alguma. Autores de tratados de leis (sem utilidade
naquela terra sem lei) deviam na certa se sentir um
tanto chocados de se verem lado a lado com
Childe Harold e o Decameron ou Omar Khayyam.
Desligado de tudo o mais, de repente ele se
voltava alegremente para Sabra, que estava curva-
da sobre as caixas de tipos, as faces riscadas de
tinta, os dedos manchados, a cabeça quase encos-
tada à de Jesse Rickey com seus olhos turvos,
separando tipos ou enchendo a forma de bolinhos
com as divisões de metal.
— Sabe! Oh, Sabe, ouça isto — exclamava
ele limpando a garganta. — "Filho de Nestor,
deleite do meu coração, marca o reluzir do bronze
através do eco das salas, e o rebrilhar. do ouro, do
âmbar, da prata e do marfim! Quer me parecer
que assim é a corte do olímpico Zeus, pois o
mundo de coisas que aqui vejo me fascina quando
o contemplo." Santo Deus, Sabra, é tão bonito
quanto o Antigo Testamento. Mais bonito!
— "O mundo de coisas que aqui vejo" —
ecoou Sabra, não com azedume, mas com grave
bom senso. — Talvez se você lhes desse mais
atenção, e menos a essa sua tolice sobre ouro,
174
prata e marfim, nós poderíamos nos organizar
mais rapidamente.
Mas ele estava pronto com uma resposta
meiga selecionada do mesmo livro tão caro ao seu
coração e fala grandiloqüente.
— "Não te encolerizes contra mim por isso,
minha deusa e rainha."
A deusa e rainha empurrou o cabelo da testa
com a mão enegrecida, deixando mais outra lam-
bada de tinta de impressão sobre o rosto preocu-
pado.
Jesse Rickey, o impressor (conhecido, natu-
ralmente, por seus familiares como "Gin" Rickey,
devido a seus períodos de intemperança), e o
pretinho Isaiah eram, depois de Sabra, os maiores
responsáveis pelo fato espantoso de a família
Cravat ter conseguido finalmente instalar-se na
casa e no escritório-redação. A entrada, que era a
da ala comercial, ficava de frente para o lamaçal
da rua principal. As portas lateral e dos fundos
davam para uma extensão de argila vermelha,
crivada das latas vazias que marcam qualquer
nova comunidade americana, e especialmente uma
cuja seca é aliviada pelo frescor de tomates e
pêssegos enlatados, tão bons para aliviar a sede.
175
Talvez o tomate enlatado, tanto quanto qualquer
outra coisa, tenha tornado possível a colonização
dos vasos oeste e sudoeste. Em meio a essa argila
e lixo, numa espécie de telheiro para cães, vivia o
pequeno Isaiah; ou antes, dormia ali, como um
cão fiel, pois o dia inteiro ele passava andando
pela casa e pela oficina, incansável, sempre dis-
posto, indispensável. Pertencia a Sabra de corpo e
alma, tão completamente como se a Guerra Civil
nunca tivesse acontecido. Um pequeno criado de
doze anos, nascido para o trabalho, ele se tornou
tão querido de Sabra, tão acostumado a ela como
um dos seus próprios filhos, apesar da educação
sulista que ela recebera, e da pele escura dele.
Isaiah secava os pratos com uma toalha amarrada
ao redor do pescoço; punha a mesa; era compa-
nheiro de folguedos e pajem de Cim; ia levar
recados como um veloz Mercúrio de pé chato; era
um repórter nato, e no decorrer das correrias de
seu dia pela cidade para dar este ou aquele recado,
trazia para a cozinha de Sabra mais informações,
notícias e boatos (que depois eram transferidos
para a redação do jornal) do que toda uma equipe
de jornalistas treinados teria conseguido. Ele era
tão pequeno, tão escuro, tão flexível, de aspecto
tão inofensivo, que sua presença passava mais
176
comumente despercebida. Freqüentadores de
saloons, vaqueiros e colonos em visita à cidade
alternadamente o agradavam ou o atormentavam.
Uma hora estavam lhe jogando moedas na terra
para que ele cantasse sua canção favorita:

"O Rei Jesus chegou montado num corcel


branco como leite
Com um arco-íris no ombro."

No momento seguinte estavam fazendo


com que seus pés chatos dançassem desabalada-
mente enquanto as balas de suas pistolas explodi-
am em redor do menino e seu cabelo pixaim
parecia esticar-se de pavor.
Com o tempo, Sabra lhe ensinou a ler, es-
crever e fazer contas. Ele aprendia com facilidade,
era trabalhador, afável. Achava que realmente
pertencia a Sabra. Cim estava começando a
aprender as letras do alfabeto, e enquanto Sabra
se debruçava sobre o filho, Isaiah também ia
buscar seu banquinho. Empoleirado ali, como um
macaquinho inteligente, ele não tardava em ligar
os rabiscos na devida seqüência. Limpava o quin-
177
tal feio, retirando latas vazias e lixo. Juntamente
com Sabra, chegou mesmo a tentar plantar um
jardim naquela árida argila encarnada. Mais do que
qualquer outra coisa, Sabra sentia falta das árvores
e flores. Em toda a cidade de quase dez mil habi-
tantes havia duas árvores: dois raquíticos carva-
lhos. Às vezes, ela sonhava com lírios-do-vale —
o verde translúcido, quase líquido de seus caules e
folhas, a pureza perfumada de suas corolas bran-
cas.
Tudo isso, porém, veio mais tarde. Esses
primeiros dias eram totalmente preenchidos com
o trabalho de tornar a casa habitável, e o escritó-
rio e a oficina prontos para servir às atividades
profissionais de Yancey. Seu talento na oratória
já estava começando a ser solicitado para a defesa
de assassinos, ladrões de cavalo, grileiros de
terras, e outros infratores da lei em todas as
cidades e municípios mais próximos. Era sabido
que um júri em geral era como cera nas suas
mãos. Uma vez iniciada a defesa, era como se ele
estivesse pintando as emoções que se sucediam,
umas após outras, nas fisionomias dos doze (ou
menos, dependendo do número disponível na
comunidade) bons (ou suficientemente bons) e
honestos jurados. Um tremolo na voz, e os olhos
178
deles começavam a se umedecer, os músculos da
boca a se afrouxar de piedade; um aceno de mão,
um tom jocoso, e eles se punham a gargalhar.
Até mesmo um ladrão de cavalos, o mais tene-
broso dos criminosos nessa região, tinha chance
de não morrer na forca desde que Yancey Cravat
pudesse ser induzido a defendê-lo — e desde
que, é claro, um bando armado já não houvesse
se encarregado de liquidar o infrator.
Yancey, desde a hora em que se levantava de
manhã até ir para a cama à noite, estava sempre
um tanto estimulado pelo uísque que ingeria. Isto,
além de sua natureza destemida, uma enorme
vitalidade e um interesse premente por tudo e
todos nesse fantástico território de Oklahoma,
conquistava-lhe amigos e inimigos em proporção
quase igual.
Nos dez dias seguintes à sua chegada em
Osage, o interesse único de Yancey parecia ser
descobrir o assassino de Pegler, pois se negava a
acreditar que a morte de seu predecessor fosse
devida a qualquer outra causa.
Ele fazia sua pergunta por toda parte aonde
ia, mesmo nas circunstancias mais arriscadas, e
observava o efeito produzido pela pergunta.
179
Pegler fora um jornalista de Denver, conhecido,
respeitado, decente. Yancey tinha jurado entregar
seus assassinos à justiça.
Sabra, quase histericamente, argumentara
com ele, mas em vão.
— Você não fez nada para ajudá-los a
prender o Kid, lá na campina, quando o estavam
procurando, e sabia onde ele estava — ou apro-
ximadamente —, e ele tinha matado um homem,
também, assaltado um banco, e não sei mais o
quê.
— Foi diferente. O Kid é diferente — repli-
cou Yancey desarrazoadamente, exasperado.
— Diferente! Por que diferente? O que era
esse Pegler para você? Eles vão matá-lo, também.
. . vão matá-lo a tiros... e então, o que será de
mim?. . . Cim. . . Cim. . . e eu aqui, sozinhos. . .
Yancey, querido. .. tenho um amor tão grande por
você. . . se alguma coisa lhe acontecesse. . .
— Escute, minha querida, Pare de chorar e
ouça. Procure entender. O Kid é um terror. É um
malfeitor. Mas não é culpa dele. O governo em
Washington foi quem o tornou um fora-da-lei.

180
— Ora esta, Yancey Cravat, o que está di-
zendo? Nunca diga uma coisa destas diante de
Cim.
— O pai de Kid vivia nestas paragens antes
de existirem cercas e estradas de ferro em Kan-
sas, e quando nesta parte do país só havia o gado
longhorn que descendia diretamente dos animais
trazidos pelos espanhóis há mais de quatro sécu-
los. As estradas de ferro começavam a chegar.
Com elas, chegaram os colonizadores vindos da
costa do Golfo, subindo pelo Texas, através do
território índio, até chegar a Abilene, no Kansas.
O Kid foi criado no meio disso tudo. Carreteiros,
abatedores de gado, esfoladores de reses, caçado-
res e vaqueiros — foi só o que ele conheceu.
Então, chegou a Dodge City, talvez sacudindo no
bolso o salário de nove meses de trabalho. Apos-
to que nem o Kid nem antes seu pai jamais viram
um níquel. Não teriam se interessado por tal
ninharia. Dólares de prata, era só o que conheci-
am, Era por esses dólares que trabalhavam. Eu já
vi setenta e cinco mil cabeças de gado esperando
embarque para o leste, com jovens como o Kid
cuidando de tudo. O avô do Kid era um caçador
de búfalos. A vida no mato era a única coisa que
eles queriam. Então, chega o governo. E o que
181
acontece?
— O quê? — perguntou Sabra, como sem-
pre fascinada pelos argumentos de Yancey, esque-
cida de que tinha justamente que combater as
justificativas do marido.
— Eles tiram as pastagens dos criadores de
gado e vaqueiros, o campo livre que nunca real-
mente lhes pertenceu, mas que eles tinham passa-
do a considerar sua propriedade pelo direito de
uso. Surgem invasores e posseiros; vem então
toda a enxurrada da "abertura". O campo é divi-
dido em cidades, e a cidade em terrenos, diante
dos próprios olhos dos antigos habitantes daque-
las paragens. Eles devem ter ficado doentes —
quase morrido — de ver aquele desbaratamento.
— Mas isso é o progresso, Yancey. A região
tem que se desenvolver.
— Aqui foi diferente. Nunca houve nada
igual. O desenvolvimento de uma grande parcela
de uma nação sempre levou anos — décadas —,
até mesmo séculos. Mas aqui, eles varreram tudo
num dia. Sabe disso tão bem quanto eu. O campo
livre num dia; no dia seguinte, cidades se instalan-
do. E os vaqueiros e criadores sem a mais vaga

182
chance de sobrevivência. Não entende? Barracos
onde antes ficava o horizonte; armazéns nas
velhas trilhas de búfalos. Eles ficaram loucos, é o
que estou lhe dizendo. Não podiam lutar contra o
progresso, mas podiam se vingar nas pessoas que
tinham se apoderado do mundo deles, cortado em
tiras estreitas e sujado tudo.
— Você está tomando o partido de crimino-
sos, de assassinos, de homens maus! Estou com
vergonha de você! É tão mau quanto eles,
— Ora, vamos, Sabra. Nada de dramas.
Deixe isto para mim. Sou melhor nisso que você.
O Kid é mau, concordo. Não há piores do que
ele. E, eventualmente, irão apanhá-lo. Mas ele
nunca mata, a não ser que seja preciso. Quando
assalta um banco ou um trem, é em plena luz do
dia, por Deus, com cem armas contra ele. Corre
um risco. Não atira no escuro. O adversário
sempre tem uma chance. Em geral, são três ou
quatro contra cinqüenta. Ele foi criado sem lei,
sem instrução, à solta. Tornou-se um matador, e
morrerá baleado, de botas calçadas. Mas o ho-
mem que o gerou não teria que se envergonhar
dele. Não há nada de covarde no Kid.
Por um instante terrível algo como dedos de
183
ferro prendeu o coração de Sabra Cravat e o
apertou até que deixou de pulsar. Seus olhos
negros no rosto lívido se fixaram no marido.
Cochichos em Wichita. Calúnias em Kansas. Mas
a expressão na fisionomia dele era toda exaltação,
como a fisionomia de um pregador, e não menos
pura. Os olhos soltavam chispas. Os dedos de
ferro se afrouxaram.
— Mas Pegler. . . Os homens que mataram
Pegler. . . Por que são eles tão piores. . .
— Ratos. Chacais nojentos, contratados por
políticos covardes.
— Mas por quê? Por quê?
— Porque Pegler pensava, exatamente como
eu, que aqui há uma chance de se começar lim-
pamente, desde o princípio. Deixar que cada um
viva sua vida em paz. Uma política limpa em vez
de fraudes por toda parte; uma nova maneira de
viver e de pensar, porque tivemos a oportunidade
de ver como tem sido podre, mesquinha e falsa a
outra maneira. Aqui tudo está começando. Há
tudo a fazer, e nós podemos fazer. Nunca houve
no mundo uma oportunidade igual a esta. Pode-
mos formar um império modelo neste território,
aprendendo uma lição com todos os erros de
184
outros pioneiros. Nova Inglaterra, Califórnia e os
colonizadores do centro-oeste — eles não conse-
guiram dominar o que tinham nas mãos e estraga-
ram tudo. Política feia, cidades feias, edifícios
feios, mentalidades feias. — Ele estava recome-
çando. Sabra, impaciente, interrompeu o marido.
— Mas e Pegler? O que tudo isso tem a ver
com Pegler? — Ela passara a detestar o nome.
Odiava o homem morto que estava perturbando a
nova vida deles e ameaçando destruí-la.
— Vi aquele único exemplar do seu jornal.
Ele o chamou Novo Dia, o pobre coitado. E no
jornal citava nomes e delineava uma política e
uma crença em algo — bem — nas linhas que
tentei explicar a você. Ele acusava o governo de
lesar os índios. Acusava os colonizadores de
enganá-los. Contava exatamente de onde vinha o
uísque dos índios, apesar da proibição, e como a
cota mensal que recebiam era arrancada de suas
ingênuas mãos. . .
— Santo Deus, Yancey! Índios! Você e seus
índios miseráveis, sujos! Está sempre se preocu-
pando com eles, como se valessem a pena. Quan-
to mais depressa todos morrerem, melhor será.
De que servem eles? Imundos, ladrões, preguiço-
185
sos. Recusam-se a trabalhar. Foi você mesmo
quem disse. Passam a vida acocorados, apodre-
cendo no mesmo lugar.
— Já tentei lhe explicar — começou Yancey
com brandura. — Homens brancos não podem
fazer coisas assim com um desprotegido. . .
— E então o mataram! — exclamou Sabra
se descontrolando. — E vão matar você também.
Oh, Yancey, por favor, por favor, não quero ser
uma pioneira. Pensei que queria, mas não quero
mais. Não posso modificar as coisas. Gostava
delas como eram. Confortáveis e seguras. Não
quero viver num império modelo. Querido! Que-
rido! Faça com que esta cidade seja como Wichita.
. . com árvores... e as pessoas sendo sociáveis...
em vez de se matarem umas às outras... igreja no
domingo. . . uma escola para Cim.
O rosto que ela adorava era uma máscara.
Os olhos de um cinza oceânico eram agora cor de
granito, com uma expressão que ela conhecia e
temia — fria, resoluta, implacável.
— Está bem. Pode voltar. Volte para suas
árvores, suas igrejas, suas calçadas, sua carne
assada de domingo e toda aquela maldita família

186
de vivos-mortos. Mas eu não! Vou ficar aqui. E
quando encontrar o homem que matou Pegler,
vou enfrentá-lo, e vou publicar seu nome no meu
jornal; e se ele na ocasião ainda estiver vivo, vou
entregá-lo à justiça e quero vê-lo enforcado num
galho de árvore. Se não fizer isto será porque eu
próprio não estarei vivo.
— Ai, meu Deus! — gemeu Sabra, e jogou-
se desesperadamente nos braços do marido. Mas
aqueles braços, de repente, tinham deixado de ser
um abrigo, uma proteção. Ele a afastou, delica-
damente, mas com uma firmeza férrea, e saiu de
casa, atravessando seu escritório e afastando-se na
larga e sinistra rua vermelha.

187
Capítulo VIII

Yancey fazia a pergunta sempre que depara-


va com um pequeno grupo de três ou quatro
homens num saloon, alpendre de armazém ou
esquina de rua. "Como foi que Pegler morreu?" O
efeito da pergunta era sempre o mesmo. Num
momento, estavam todos tagarelando sociavel-
mente, enrolando cigarros; cidadãos a gosto em
suas mangas de camisas. Yancey se aproximava
com seu andar gracioso, leve, na cabeça o sombrero
branco com os dois furos de bala na copa, a so-
brecasaca impecável, as elegantes botas de salto
alto. E fazia a sua pergunta. Como num passe de
mágica, o grupo se dispersava, recuava, sumia.
Ele foi visitar o legista Hefner, proprietário
da Loja de Móveis e Agência Funerária Hefner.
Este cavalheiro estava sentado, descansando uns
momentos em seu escritório, que era também
laboratório.
— Escute, Louie. Como foi que Pegler mor-
reu?

188
A fisionomia de Hefner, queimada de sol e
avermelhada de uísque, tornou-se bem menos
rosada. Seus olhos saltados, de um azul pálido, o
fitaram com desalento.
— Anda fazendo esta pergunta pela cidade,
ou é só a mim que está perguntando?
— Oh. . . tenho andado perguntando por aí.
Hefner debruçou-se para a frente. Lançou
um olhar furtivo em seu redor. E baixou a voz:
— Yancey, você e sua senhora compraram
seus móveis aqui na minha loja e, além do mais,
pagaram à vista. Quero você como meu freguês,
entende, mas não no outro ramo de meus negó-
cios. Por isso, não saia por aí fazendo essa per-
gunta.
— Acha que não devo perguntar, é isto?
— Sei que não deve perguntar.
— Por que não?
O versátil Hefner teve um pequeno gesto de
desânimo, levantou-se, sumiu pela porta dos
fundos do seu escritório, e não voltou.
Yancey saiu para o sol ardente da Avenida
Pawhuska. índios, mexicanos, vaqueiros, robustos
189
cidadãos se abrigavam em qualquer sombra que
pudesse ser encontrada na rua quente, seca, poei-
renta. Em pé numa esquina, ele avistou Pete
Pitchlyn conversando com o espanhol Estevan
Miro. Aqueles dois eram os bisbilhoteiros da
cidade. Disso, Yancey sabia. Notícias não somen-
te da cidade, mas do território — não somente do
território mas de todo o ardente sudoeste, desde o
Texas e o Novo México até o Arizona, iam parar
na língua daquela dupla. Miro não só sabia, como
vendia o que sabia. O espanhol era uma alegre
mancha colorida na pardacenta rua da cidade.
Usava uma faixa violeta, na cintura e seu lenço de
pescoço era escarlate. Tinha um rosto miúdo,
como o de uma criança, e pontudo; o cabelo era
espesso, de um negro azulado, e lhe caía em me-
chas espetadas, grosso e brilhante como um ara-
me fino. Os dois dentes incisivos eram separados
talvez uns três milímetros. Era um homem muito
quieto, e seus movimentos pareciam lentos devido
a uma graça felina. Estava perenemente enrolando
cigarros à moda dos cowboys, com notável habili-
dade, manipulando o fumo e o papel pardo magi-
camente entre o polegar e dois dedos da mão
direita. Inalava a fumaça, consumindo um cigarro
em três vorazes tragadas. A esquina da rua onde
190
ele se achava estava cercada de pontas de cigarros.
Pete Pitchlyn, famoso batedor de índios em
tempos idos, tinha deixado crescer uma barriga
volumosa e flácida, agora que os índios estavam
apodrecendo em suas reservas, e não havia mais
trabalho para ele. Era um sujeito grande, de quase
dois metros de altura, que lhe compensavam o
volume do corpo. Sua mulher, uma índia de puro
sangue cherokee, estava acocorada no chão, à som-
bra de um barraco, a uns três metros de distância,
como convém a uma mulher cujo marido está
conversando com outro homem. Ao redor dela,
como uma ninhada de cachorrinhos cercando
uma cadela, achavam-se os filhos mestiços do
casal. Nos últimos tempos de sua arriscada carrei-
ra de batedor nas planícies, Pitchlyn fora atingido
no calcanhar esquerdo pela flecha envenenada de
um índio. Todos pensaram que, certamente, ele ia
morrer. Não tendo morrido, pensaram que ia
perder a perna. Mas uma combinação de uísque
ilimitado, uma constituição feita de aço tempera-
do e a determinação de jamais perecer por causa
daqueles miseráveis, fez com que ele não só so-
brevivesse como mantivesse grudada ao corpo sua
perna devastada pelo veneno. Teimosamente, ele
recusou consentimento para amputá-la, e por um
191
milagre o veneno deixou de penetrar no resto
daquela carcaça de ferro. Mas a perna atingida
murchara e encolhera, e agora era bem uns trinta
centímetros mais curta do que a perna boa. Ele
recusara usar muletas ou os desajeitados aparelhos
mecânicos da época, e se locomovia com espan-
tosa rapidez e agilidade. Quando se apoiava na
perna boa era, com sua magnífica amplitude de
ombros, um gigante de dois metros. Mas ocasio-
nalmente a perna boa cansava, e ele descansava
usando por um momento a outra como apoio. E
então, sua altura descia a um metro e setenta.
Contava-se de Pitchlyn a história de que
quando chegou a Osage no começo da corrida,
ele, com centenas de outros, foram matar a sede
no Saloon Montezuma — uma mera tenda —,
cujo bar já estava aberto e pronto para entrar em
funcionamento quando o primeiro colono estacou
o cavalo suarento e de olhos injetados diante do
primeiro terreno da cidade para reivindicar o
título de propriedade na partilha de Osage (naque-
la ocasião — um mês inteiro antes — um pedaço
de campina tão desnudo e plano como uma palma
de mão). A multidão, em torno da rústica tábua de
pinho do bar improvisado às pressas, era sedenta,

192
ruidosa, de olhos alucinados. Os garçons, embora
sendo rígidos profissionais importados, logo
estavam a ponto de cair de cansaço. Mesmo no
meio dessa turba agitada, a figura altaneira de Pete
Pitchlyn comandava a atenção de todos. Acima
do clamor, ele pediu seu drinque: três dedos de
uísque. A bebida estava demorando. Ele tinha
tido um dia duro. Apoiou o cotovelo no bar,
enquanto gritos e sons roucos se erguiam de
gargantas ressequidas, e copos e garrafas rodopia-
vam ao seu redor. Morto de fadiga, transferiu seu
peso da perna direita boa para a perna esquerda
atrofiada, e se pôs a conversar em voz cansada
com uns e outros. O garçom acossado serviu o
uísque de Pitchlyn, empurrou o copo para ele,
viu em seu lugar um homenzinho de ar pensativo
cuja cabeça mal aparecia acima do bar e, indigna-
do, com a paciência já esgotada, berrou:
— Ei, você, anão! Caia fora daqui! Onde es-
tá o filho da mãe que pediu este uísque?
Como uma jibóia, Pete Pitchlyn foi erguen-
do o corpo até atingir sua plena altura e baixou
um olhar severo para o garçom atônito.
Embora o saloon estivesse repleto, as bebidas
ficaram por conta da casa.
193
Foi desses dois espécimes do sudoeste que
Yancey agora se aproximou, pisando leve, com
um ar despreocupado, até displicente. Quase
imperceptivelmente, os dois pareceram emperti-
gar-se, como se preparando para uma ação. No
velho batedor, a mudança se evidenciou em sua
súbita elevação de um pobre aleijado para gigante
imponente. No espanhol, sentia-se, mais do que
se podia ver, apenas um curioso tremular de
músculos sob a lisa pele morena, como uma ser-
pente que desliza antes de realmente tomar impul-
so.
— Olá, Pete!
— Olá, Yancey!
Ele olhou para o espanhol. Miro fitou-o
com um ar inocente.
— Qué tal?
— Bien. Y tu?
Os três ficaram ali parados, cautelosos, em
silêncio. Yancey começou a balançar o corpo, do
bico da bota lustrosa ao salto e de volta. A índia
cherokee manteve os olhos amendoados no seu
homem, como se, tendo recebido um sinal, esti-
vesse de prontidão para receber outro.
194
Yancey fez a sua perene pergunta de repór-
ter inquiridor:
— Então, rapazes, o que sabem vocês?
Os dois tinham se preparado para uma per-
gunta menos leve. Em suas fisionomias surgiu
uma expressão semelhante à decepção. Era como
quando uma arma deixa de disparar. O espanhol
ergueu os ombros, um gesto protéico que tencio-
nava, nesta oportunidade, transmitir a absoluta
inocência e falta de novidades na existência coti-
diana de Estevan Miro. Os olhos de Pete Pitchlyn,
naquele rosto devastado, eram carvões num mon-
te de cinzas. Não lhe convinha ser visto numa
esquina de rua falando com o homem que andava
fazendo uma pergunta fatal — fatal não somente
para quem perguntava como também para quem
tivesse a imprudência de respondê-la. Ele conhe-
cia Yancey, admirava-o, desejava-lhe boa sorte.
Entretanto, não tinha coragem de abrir a boca
diante do réptil que era Miro.
Yancey continuou num tom de conversação:
— Ouvi dizer que há gente andando pela ci-
dade, gabando-se de que vão transformar Osage
no terror do sudoeste, como Abilene e Dodge
City nos velhos tempos; e o Cimarron. — Os
195
maxilares de Pete Pitchlyn moviam-se em ritmo
com a forma de nicotina a que ele era afeito.
Estevan Miro inalou uma tragada profunda de seu
tipo de veneno e soltou pelas narinas dois jatos de
fumaça cinza-pálida. Assim cada um manteve um
ar displicente para esconder seu nervosismo. —
Estou entrevistando cidadãos de destaque —
continuou Yancey num tom suave — para saber
se eles acham que esta cidade deve ser governada
na base desses princípios ou no princípio de
Sócrates que os elementos mais modernos têm
em mente. — Ergueu a cabeça imponente e fitou
diretamente o pequeno espanhol. Seus olhos
cinzentos, irônicos, zombeteiros, fixaram-se nos
olhos negros, que se desviaram. — Estão vocês a
par da obra de Sócrates — "Sócrates... que o
oráculo, com justa razão, declarou ser o mais
sábio dos homens"?
De novo, Estevan Miro ergueu os ombros.
Desta vez, o gesto era sutilmente complexo em
seu significado, mesmo para um espanhol de
classe inferior. Um ligeiro embaraço, certa perple-
xidade e um pouco — uma mera pitada — de
algo que, o quanto ele ousava sentir por um ho-
mem a quem temia, poderia assemelhar-se ao
desprezo.
196
— Yancey — disse Pete Pitchlyn delibera-
damente —, fique só na sua profissão de advoga-
do.
— Por quê?
— Para quem tem o dom do palavrório co-
mo você, é desperdício de tempo fazer qualquer
outra coisa.
— Oh, eu não diria isso —- respondeu Yan-
cey todo modéstia. — Editar um jornal me man-
tém em contato com as pessoas. Gosto disso.
Além do mais, a lei não é muito compensadora
nestas paragens. Dirigir um jornal é minha manei-
ra de ganhar a vida. É claro — continuou ele
animadamente, como se só no momento lhe
tivesse ocorrido —, tem havido ocasiões em que
editar um jornal poupou ao editor o problema de
precisar continuar a ganhar a vida. — Os rostos
dos outros dois estavam inexpressivos como uma
lousa em que foi passada a esponja. E subitamen-
te: — Vamos lá, rapazes. Quem matou Pegler?
Pete Pitchlyn, sua mulher cherokee e a ninha-
da de crianças se dispersaram. Era como uma
mágica. Eles sumiram na poeira. Era como se a
mulher tivesse enfiado na sua bolsa, como uma
fêmea de canguru, toda a prole. Quanto ao aleija-
197
do, ele poderia ser uma centopéia. Yancey e o
espanhol ficaram sozinhos na ensolarada esquina
da rua. O rosto de Miro agora se tornara estra-
nhamente aflito. Os olhos se apertaram até fica-
rem reduzidos a frestas negras. Ele estava se
armando de toda a sua pequena bravura, arran-
cando-a do seu âmago.
— Sei uma coisa que tenho que contar a vo-
cê — disse ele em castelhano, mal movendo os
lábios.
— Diga de uma vez — replicou Yancey na
mesma língua.
O espanhol não falou. As frestas olharam
para Yancey. Yancey sabia que ele devia ter sido
bem pago por alguém para demonstrar tamanha
temeridade quando suas entranhas estavam con-
torcidas de medo.
— Sabe de uma coisa, Miro? Más vale saber
que haber. — E depois desta pequena dose de
filosofia, ele mostrou a Miro de que é capaz um
homem do oeste em matéria de erguer os ombros;
e afastou-se.
Como um gato, Miro deu um salto silencio-
so para segui-lo. Parecia com mais medo de não
198
revelar o quanto tinha recebido para dizer do que
de realmente dizê-lo. Falou rapidamente, em
castelhano. Seus erres duros ecoavam como gra-
nizo em telhado de zinco.
— Vou repetir só o que me foi dito. As pa-
lavras não são minhas. Eles disseram: "Você é
amigo de Yancey Cravat?" Eu disse: "Sou". Eles
então disseram: "Diga a seu amigo Yancey Cravat
que prudência é melhor do que riqueza. Se ele não
calar a sua maldita boca, vai morrer". As palavras
não são minhas.
— Obrigado — respondeu Yancey pensati-
vamente, falando agora em inglês. Depois, esten-
deu sua aristocrática mão branca e num gesto
rápido deu um puxão violento e uma torcida no
lenço de pescoço de Miro. O gesto era ao mesmo
tempo um insulto e uma ameaça. — Diga a eles. .
. — subitamente, Yancey calou-se. Então abriu a
boca e da sua garganta saiu um som tão horrendo,
tão sinistro que faria gelar o sangue de qualquer
um que o ouvisse. Era um som entre o gorgolejo
de um peru enfurecido e o uivo de um coiote. Em
todo o sudoeste sabia-se que esse apavorante
som, conhecido como o gorgolejo, era de origem
cherokee e um grito de morte entre os índios do

199
território. Era sabido também que, quando um
índio gorgolejava, significava súbita destruição para
tudo e todos que encontrasse em sua trilha.
A fisionomia do espanhol adquiriu um curi-
oso aspecto de massa acinzentada. Ele soltou um
gemido e se pôs a correr, uma mancha riscada de
roxo, escarlate e pardo, dobrou a quina do barra-
cão mais próximo e desapareceu.
Infelizmente, Yancey não conseguiu resistir
à tentação de narrar a Sabra seu triunfo dramático.
Além do mais, a história foi contada na presença
de Cim e Isaiah, e ilustrada — antes que Sabra
pudesse impedi-lo — com uma magnífica de-
monstração do gorgolejo. Eles estavam sentados à
mesa do almoço ajantarado, com Isaiah cami-
nhando ligeiro do fogão para a mesa e da mesa
para o fogão. O garfo de Sabra, a meio caminho
da boca, caiu com um tinido no prato. O sangue
sumiu-lhe do rosto. Seu apetite desapareceu. Cim,
instruído pelo ator e mímico nato que era o mole-
que Isaiah, passou o resto da tarde tentando re-
produzir o som hediondo, até o incidente termi-
nar desastrosamente para ele, com Sabra, de ner-
vos à flor da pele, aplicando-lhe uma valente sova,
com uma boa bofetada de sobra para Isaiah.

200
Felizmente, ela não se deu conta do real significa-
do do gorgolejo, ou as medidas que tomou teriam
sido bem mais severas.
Era como um jogo num pesadelo, pensava
ela. Os tiroteios, as bebedeiras, as brigas e alterca-
ções; o ruído de gargalhadas, palavrões e canções
que saíam das finas paredes das fachadas falsas de
papelão de cabanas que se alinhavam na rua gro-
tesca. Ela se recusava firmemente a acreditar que
tinha que adaptar sua existência àquela ordem de
coisas. Yancey estava sempre falando num novo
código, num novo dia; cada um devia viver à sua
moda, sem interferências. A todo momento,
citava frases sábias do Antigo Testamento, a que
acrescentava observações suas. "Os pais comeram
uvas azedas, e os filhos estão irritados", quando
Sabra lhe relembrava algum agradável costume de
Wichita. Mas Sabra já começara a preparar suas
respostas e pôde, depois de algumas pesquisas,
refutá-lo com:
— "Mantende-vos nos caminhos, e vede, e
perguntai onde ficam as velhas trilhas, onde está o
bom caminho, e segui-o." Pronto! Agora talvez
você pare de citar a Bíblia para mim cada vez que
quer arranjar uma desculpa para alguma coisa que

201
tenha feito.
— O Diabo — retorquiu Yancey — pode
citar as Escrituras para seus próprios fins. — Mais
tarde, porém, ela ficou em dúvida se a intenção
dele tinha sido um remoque não muito galante à
sua citação, ou uma desculpa meio envergonhada
para a citação feita anteriormente por ele.
Sabra recusava-se, também, a acreditar que o
caso do assassinato de Pegler fosse tão grave
quanto Yancey afirmava. Era apenas uma das suas
cismas. Dizia para si mesma que ele iria publicar
alguma coisa sobre o assunto na primeira edição
do Taba de Oklahoma. Yancey afirmava, convicto,
que o jornal estaria nas ruas na quinta-feira. Secre-
tamente, Sabra era de opinião que só por um
milagre ele conseguiria realizar seu intento. Era
uma sexta-feira. Já haviam passado quinze dias.
Nada fora feito. Talvez ele estivesse exagerando o
perigo, bem como a importância do caso Pegler.
Alguma outra coisa iria surgir para atrair o interes-
se de Yancey, despertar sua indignação, ou ultrajar
seu senso de justiça.
Ela ficou radiante quando, naquele mesmo
dia, uma solene delegação de cidadãos, em núme-
ro de três, trajados de rigueur, com sombreros e pisto-
202
las, foi procurar Yancey em seu escritório (onde,
por acaso, ele se achava momentaneamente) com
o espantoso pedido para que oficiasse o serviço
religioso na manhã do domingo seguinte. Osage já
completara um mês de idade. As senhoras da
localidade, diziam eles, tinham pensado, com
efeito, que já estava mais do que na hora de se
estabelecer algum contato entre a cidadezinha
espalhada na campina e o Poder que, acima do
brilhante domo azul-aço suspenso sobre ela, a
devia estar contemplando. Sob a chita e as toucas
desprezadas por Sabra no primeiro dia de sua
chegada a Osage, parecia haver o mesmo desejo
de convenção, disciplina e a velha ordem que
tanta falta lhe faziam. Passou a simpatizar mais
com as outras e tomou a decisão de, uma vez
lançado o jornal, envergar o vestido de seda e o
chapéu de plumas e ir fazer uma visita às cabanas
de madeira que ela sabia terem patrocinado essa
reunião. Mas recordou-se, então, dos preceitos de
sua mãe e das severas regras sociais. As toucas
eram residentes em Osage antes da sua chegada.
A elas cabia visitá-la primeiro. Retratou mental-
mente o grupo de senhoras dignamente equilibra-
das na ponta das cadeiras de sua sala de visitas,
trocando amenidades naquele caos de barbarismo
203
que era Osage.
— Cerimônia religiosa! — exclamou ela ale-
gremente, apanhando uma gravata de seda quadri-
culada para Cim. Finalmente, agora deparava com
algo familiar; algo em que podia se firmar nesse
terreno movediço. Yancey abandonou temporari-
amente sua missão jornalística a fim de tomar
providências para a reunião dominical. Sem dúvi-
da, não existia prédio algum bastante amplo para
conter os milhares de pessoas que, surpreenden-
temente, compunham a população de uma cidade
nascida da noite para o dia. Yancey, com sua
natureza empreendedora, empenhou-se com o
entusiasmo que sempre demonstrava quando
surgia um novo projeto. A notícia da reunião em
perspectiva já se espalhara, pelos meios misterio-
sos comuns a localidades isoladas. Posseiros,
colonos, vagabundos, vaqueiros, num raio de
muitos quilômetros, logo tinham sabido do proje-
to. Cada qual engraxou sua sela, poliu seus arreios,
vestidos foram lavados e engomados, rostos
lavados. Cerimônia religiosa.
Yancey, como era natural, pensou no único
prédio na cidade adequado ao número de pessoas
esperadas. Era a tenda de jogo que ficava na

204
extremidade norte da Avenida Pawhuska, bandei-
rolas adejando alegremente no seu topo, ao vento
refrescante de Oklahoma. Para os homens, era o
centro social de Osage. Faraó, pôquer fechado e
dados distraíam suas cabeças de duras tarefas e
lhes poupavam o trabalho de contar no sábado à
noite o dinheiro que tinham recebido. Natural-
mente, domingo era o grande dia na tenda de
jogo. Vagabundos, vaqueiros, uma generosa per-
centagem de aventureiros e pistoleiros daquelas
paragens, e todas as mulheres da cidade que não
eram respeitáveis, acorriam à tenda no domingo
para recreação, contatos sociais e jogatina. Gritos,
o tinir de copos, o som de um piano roufenho
agrediam os ouvidos dos transeuntes. O grande
domo de lona, medindo vinte e sete por quarenta
e cinco metros, era decorado com bandeirolas e
tiras coloridas; tudo muito vistoso e alegre.
A questão era saber se o proprietário e ge-
rente estaria disposto a sacrificar uma parte das
atividades mais intensas do domingo para fomen-
tar os negócios do Senhor, embora com isso
conquistasse a boa vontade dos habitantes da
cidade. O proprietário poderia argumentar que
não eram esses elementos que incentivavam a
mesa de faraó.
205
Yancey, devido à sua posição profissional e
ao seu conhecido charme, ficou encarregado de
confabular com aquele cidadão du monde, o Sr.
Grat Gotch, mais conhecido como Arkansas
Grat, proprietário e gerente da tenda de jogo. O
Sr. Gotch estava no local. E não somente estava
lá como, sendo na parte da tarde, uma hora de
menos atividade, supervisionava a colocação de
uma obra de arte que adquirira recentemente e
que chegara via Estrada de Ferro Missouri, Kan-
sas & Texas, familiarmente conhecida em todo o
território, por um processo natural de elisão,
como a Katy. O tesouro recém-adquirido era um
quadro a óleo retratando uma senhora muito
rosada e robusta, de corpo inteiro, que, aparente-
mente, tendo despendido todas as suas energias
no arranjo de um penteado extremamente com-
plicado e moderno, ficara temporariamente im-
possibilitada de prosseguir sua toalete até fortifi-
car-se com algum alimento e repouso. Com esta
finalidade, ela se jogara em estado de absoluta
nudez (a não ser pelos grampos de cabelo) num
conveniente divã onde estava refestelada, os
lábios entreabertos para receber duas rubras cere-
jas maduras que segurava entre o polegar e o
indicador de uma mão cujo dedo mindinho se
206
curvava elegantemente. Seus olhos não estavam
nas cerejas mas no espectador, de quem ela, visi-
velmente, não parecia ter tomado conhecimento.
Como uma tenda naturalmente não possui
paredes, era praticamente impossível pendurar
esse objet d'art, que estava sendo suspenso por
roldanas do alto da tenda, de forma a ficar pen-
durado bem em frente ao bar, como convinha,
flanqueado por espelhos. Arkansas Grat tinha
exercido sua profissão nos tempos da corrida do
ouro em Denver, San Francisco, White Oaks e
Dodge City. Nessas cidades precoces desenvol-
vera seu gosto artístico. Ele sabia que não só a
garganta, mas também a vista, tinha que se ali-
mentar nas horas de lazer. Um homenzinho
gorducho, Grat tinha um ar sempre risonho num
rosto sem rugas. Parecia um bebê velho.
Agora, ao ver Yancey entrar, ele lhe chamou
a atenção para o novo tesouro, ao mesmo tempo
expressando sua admiração pelo quadro.
— Ela não é fabulosa? — perguntou ele.
Yancey examinou a senhora rosada. Viera
para pedir um favor a Grat, mas se recusava a
vender sua alma artística por causa daquele amon-
toado de banhas.
207
— É uma calúnia — anunciou ele com certa
veemência — contra a mais bela obra da natureza.
A palavra não fazia parte do vocabulário do
Sr. Gotch. Ele interpretou o calor do tom de
Yancey como uma manifestação de entusiasmo.
— Exatamente — concordou com triunfan-
te satisfação. — Era justamente o que eu estava
dizendo aos rapazes esta manhã, quando ela che-
gou.
Yancey pediu um drinque e convidou Gotch
a tomar um também. Arkansas Grat não era uma
dessas figuras abstêmias freqüentemente encon-
tradas em obras de ficção que, sendo provedores
de bebidas alcoólicas, nunca tocam na mercadoria
que vendem. Enquanto os dois sorviam o uísque,
Yancey expôs seu caso.
— Escute, Grat. As senhoras da cidade cis-
maram que devia haver um serviço religioso no
domingo, agora que Osage já completou um mês
de idade, com dez mil habitantes, e provavelmen-
te será a metrópole do sudoeste dentro de dez
anos. Querem que tudo saia direito. Fui escolhido
para oficiar o culto. Não existe um só prédio na
cidade grande o bastante para conter o povo todo.
O que quero saber é: pode nos emprestar esta sua
208
tenda durante cerca de uma hora no domingo de
manhã para fins de culto religioso?
Arkansas Grat pousou o copo, fez um gesto
largo com a mão direita que incluía mesas de
faraó, a balouçante comedora de cerejas, bar,
piano, e tudo o mais que a tenda continha.
— Culto religioso! Que diabo, é claro que
sim, Yancey — respondeu ele graciosamente.
O trabalho começou no domingo de manhã
cedo. Para não estragar os números, as mesas de
faraó e roleta foram recobertas com tábuas com-
pridas. Os membros da congregação em perspec-
tiva que chegassem cedo poderiam usar as mesas
como assento. Havia, também, uns poucos ban-
cos toscos onde os jogadores geralmente se sen-
tavam. Os restantes teriam que ficar de pé. O
culto iria das onze ao meio-dia, mas às nove horas
da manhã as pessoas começaram a chegar. Pareci-
am brotar da terra. O horizonte cuspia para fora
pequenas figuras apressadas, escuras contra o
brilhante céu de Oklahoma. Chegavam de chou-
panas isoladas, abrigos cavados na terra, barracas.
Carros de boi, carroções, charretes, gente a cava-
lo, parelhas de mulas. Estavam todos sedentos de
companhia. Não era religião que buscavam: era o
209
estímulo de encontrar gente de sua espécie. Trazi-
am cestas de piquenique, preparadas para um
feriado. Os cowboys estavam deslumbrantes. Usa-
vam camisas rosa e roxas, chapelões de aba retor-
cida, os mais alegres lenços de pescoço, as mais
enfeitadas botas de salto alto. Exibiam-se passan-
do diante da grande tenda, seus cavalos corcove-
ando e pisando alto. "Ei, você! Não atrapalhe o
trânsito!. .. Está querendo salvar a sua alma,
Quince?. . . Sim, senhor, estou aqui para o circo e
vou ficar para o concerto e também para a olha
podrida... Ei, está atrasado, rapaz. O bom uísque e
as más mulheres acabaram com você."
A cidade parecia fervilhar de índios envoltos
em seus cobertores.
Eles se acocoravam à sombra das cabanas.
Chegavam a pé de reservas próximas, montados
em cavalos esquálidos, ou traziam a família inteira
— squaw, papoose, dois ou três filhos de tamanhos
variados, cachorros. Raramente a família era
grande. Sabra tinha notado isso uma vez.
— Eles não têm famílias grandes, não é
mesmo? Dois ou três filhos. Você imaginaria que
selvagens fossem assim... quero dizer...
— O índio é uma raça fria, sem paixão, ou
210
muito pouca — explicou Yancey. — Não sei se é
a comida que comem — a sua dieta —, a vigorosa
vida ao ar livre que tiveram durante séculos, ou se
são uma raça naturalmente estéril. Engraçado.
Sem pêlos no rosto, sem barba. Já viu algum dia
um festival de dança dos índios?
— Oh, não! Ouvi dizer que eles. ..
— Eles vão se excitando cada vez mais du-
rante essas danças. Música insidiosa, mutilações,
histeria — toda espécie de orgias para levá-los a
um paroxismo de excitação.
Sabra estremeceu de repugnância. Nessa
manhã de domingo, os índios começaram a che-
gar às dúzias, com seus tristes pangarés e cachor-
ros pestilentos. Os homens vinham enfeitados
com grande quantidade de colares de contas e
correntes com placas de metal. Acampavam fora
da cidade, na extremidade da rua.
Ao vê-los, Sabra advertiu severamente a si
mesma que não devia se esquecer de seu espírito
cristão, de que eles eram todos filhos de Deus; e
esses peles-vermelhas tinham sido convertidos.
Mas não acreditavam numa só palavra daquilo
tudo: "Eles são iguaizínhos ao que eram antes de
Josué", dissera Madre Bridget.
211
Viajantes, donos de armazéns, fazendeiros.
Magros posseiros com suas mulheres ossudas e
filhos raquíticos de pernas nuas, tão bravios como
pequenos lobos.
Sabra supervisionou os trajes de seus ho-
mens, desde Yancey até Isaiah. Ela própria tinha
ficado até tarde na noite anterior para passar a
ferro a melhor camisa do marido. Isaiah tinha lhe
engraxado as botas até fazê-las luzirem. Sabra
salpicou umas gotas da sua própria preciosa
água-de-colônia no lenço dele. Era como se
estivessem preparando um noivo.
— Minha boa mulher — disse ele rindo —,
não percebe que esta não é a maneira de preparar
alguém para anunciar a palavra de Deus? Pano de
saco e cinzas seriam mais adequados, creio eu. —
Ele se serviu de três dedos de uísque e bebeu pela
terceira vez desde o café da manhã.
Cim saltitava excitadamente, vestido na sua
melhor roupa, com a vistosa gravata de seda
quadriculada e botinas abotoadas, com uma borla
no cano. Sabra, ao vesti-lo, pensou que o menino
estava ficando cada vez mais parecido com Yan-
cey, exceto que parecia faltar-lhe a energia, a
exuberância do pai. Mas estava bastante animado
212
agora, de modo que ela encontrava dificuldades
em aprontá-lo.
— Vou à igreja! — berrou ele com voz es-
tridente. — Ei, Isaiah! Abençoado seja o nome do
Senhor amém aleluia glória oh! meus amigos que
Ele veio salvar do fogo do inferno e do enxofre. .
.
— Cimarron Cravat, pare com isso imedia-
tamente, ou terei que deixá-lo em casa. — Evi-
dentemente, Cim e Isaiah, assanhados com a idéia
de ir ao culto religioso, tinham estado brincando
de igreja na tarde de sábado. Era este o resultado
do ensaio deles.
O instinto dramático de Yancey, que nunca
falhava, fez com que ele protelasse a hora da
partida de casa, a fim de tornar mais impressio-
nante a sua entrada. Sabra chamou-o uma dúzia
de vezes, mas ele continuava sentado no seu
escritório, ocupado com papel e lápis. Ela calcu-
lou que aquela era a única preparação do marido
para o sermão que teria de pronunciar dentro de
uma hora. Mais tarde, encontrou no bolso da
sobrecasaca dele um pedaço de papel com as suas
anotações. O papel estava cheio de cabalísticos
caracóis, linhas cruzadas, riscos paralelos e rodelas
213
com que a mão inconscientemente busca alívio
para a mente perturbada ou inquieta. Uma só
palavra ele escrevera no papel e depois tentara
disfarçá-la com traços sem significado. Mas Sabra,
estudando o papel após os eventos daquela ma-
nhã, conseguiu discernir a palavra "Yountis".
Finalmente, ele ficou pronto. Ao saírem para
a rua, viram que retardatários ainda se apressavam
em direção à tenda. Sabra vestira, não a sua se-
gunda melhor toalete de gorgorão preto, mas a
melhor, com o esplendoroso chapéu de plumas
que ela nunca mais tinha usado desde o seu agita-
do primeiro dia em Osage. Ela e Yancey cami-
nhavam lentamente rua abaixo, com os dedinhos
de Cim presos na mão de sua mãe. Sabra era uma
figurinha esbeltamente elegante em seda preta;
Yancey, como sempre, garboso; as roupas de Cim
eram idênticas às usadas, talvez, por um milhão de
meninos por toda parte nos Estados Unidos,
agora relutantemente a caminho da igreja. Isaiah,
ao ser chamado de sua pequena casinhola no
quintal, anunciara que sua toalete domingueira
ainda não estava completa, e insistira que eles
seguissem sem ele, prometendo alcançá-los logo.
A família Cravat seguiu em frente. Não

214
ocorreu a Sabra nem a Yancey que houvesse nada
de estranho, ou mesmo fora do comum, em que
estivessem rumando, três figuras bem-vestidas e
razoavelmente convencionais, cm direção a uma
tenda de jogo e saloon que, sufocantemente atu-
lhada do que havia de pior e de melhor numa
cidade fronteiriça, iria, durante uma breve hora,
tornar-se a casa de Deus.
— Está nervoso, Yancey, meu querido?
— Não, meu bem. Embora possa dizer que
eu preferiria cem vezes estar diante de um júri de
criadores de gado texanos defendendo um ladrão
de cavalos profissional do que me pôr de pé e
fazer uma pregação para essa súcia de. . . — Ele
se interrompeu bruscamente. — Por que está
todo mundo rindo e apontando?
Certamente, os transeuntes estavam agindo
de modo estranho. Instintivamente, Sabra e Yan-
cey se viraram e olharam para trás. Na rua, talvez
uns cinqüenta passos atrás deles, vinha Isaiah. Ele
estava andando de uma maneira absurda porém
indubitavelmente numa imitação do andar empro-
ado de Yancey. Em volta da cintura estava amar-
rada uma faixa de chita encarnada, e sobre ela um
cinto de couro com coldres, tão grande para sua
215
pequena cintura que ia parar-lhe nos joelhos, e os
coldres batiam neles a cada passo que dava. De
dentro dos coldres sobressaíam o que parecia ser
à primeira vista duas ameaçadoras coronhas de
pistolas, mas que mais tarde ficou apurado serem
uma chave inglesa e uma barra de ferro manchada
de tinia usada na oficina de impressão. A cabeça
dele estava coberta por um sombrero surrado —
incrível — que devia ter sido catado no lixo do
fundo do quintal. Mas, ainda assim, este não era o
ponto alto da elegância triunfal de Isaiah. Ele
encontrara em alguma parte um par de botas
abandonadas por Yancey. Eram de salto alto,
esguias, incrustadas de estrelas. Mesmo em sua
degradação final, ainda mantinham algo da ele-
gância de linhas e qualidade do couro de quando
eram novas. Neste calçado de passado glorioso,
Isaiah tinha enfiado, o quanto possível, seus gran-
des pés chatos. Os saltos altos se desequilibravam
a cada passo. O dorso arqueado das botas cedia
sob a pressão dos pés largos. Isaiah cambaleava,
tropeçava, caminhava ora sobre os tornozelos,
quando os saltos traiçoeiros lhe falhavam, ora na
ponta dos pés. Entretanto, conseguia, pela própria
força de seu dom dramático, dar ao observador
uma caricatura completa de Yancey, em grotesca
216
miniatura.
Ele foi se aproximando, apesar da dificulda-
de provocada pelas botas, com uma espantosa
imitação do passo de Yancey. Sabra empalideceu
e, de repente, seu rosto encolerizado se tornou
igual ao de Felice Venable. Yancey soltou uma
estrondosa gargalhada, e com isso os olhos enfu-
recidos de Sabra se desviaram do negrinho para o
marido. Ela estava literalmente ofegando de raiva.
Seu ídolo, seu deus, estava sendo ridicularizado.
— Você. . . ri!. . . Pare. . .
Ela se deixou então dominar por um acesso
de raiva contra Isaiah, agora parado. Embora a
mão de Cim ainda estivesse firmemente segura na
sua, ela havia se esquecido por completo da pre-
sença do filho, e, ao voar para o pequeno imita-
dor, arrastou Cim com a violência com que um
ciclone desloca pequenos objetos pela própria
força de sua velocidade. Quando chegou junto de
Isaiah, o rosto negro, agora todo olhos (e estes
todos brancos), fitou-a assustado, aterrado. Ela
ergueu a mão enluvada de pelica preta para apli-
car-lhe uma formidável bofetada. Mas Yancey foi
mais rápido. No instante em que ela se atirava
contra Isaiah, Yancey a alcançou num salto. Ele
217
apanhou-lhe a mão no ar quando já ia descer.
Seus dedos se fecharam em redor do pulso dela
com uma força férrea.
— Largue-me! — Naquele instante ela o
odiou.
— Se tocar nele, juro perante Deus que não
porei os pés naquela tenda. Olhe para ele!
O rostinho negro estava erguido para Yan-
cey com uma expressão de adoração, de total
devotamento. Yancey, ele próprio um ator nato,
sabia que no grotesco traje de Isaiah, em seus
tropeços e cambaleios, houvera apenas a mais
sincera das homenagens, a imitação do homem
que ele adorava. Os olhos eram os de um cão,
fiéis, magoados, perplexos.
Yancey soltou o pulso de Sabra. Voltou seu
sorriso sedutoramente brilhante para Isaiah. Es-
tendeu a mão, removeu o sombrero dilapidado da
cabeça do menino e pousou um momento a mão
branca sobre o cabelo lanudo.
Isaiah começou a gaguejar, seu susto ceden-
do lugar à mágoa:
— Eu não queria irritar ninguém. O senhor
se vestiu todo muito bem arrumado para o culto,
218
e eu também quis me aprontar para ficar elegante
como o senhor. . .
— Tem razão, Isaiah. Você está mais elegan-
te do que qualquer um de nós. Agora, preste
atenção. Quer uma roupa domingueira de verda-
de?
— Roupa domingueira para mim! Verdade
mesmo? — Agora não era só o branco dos olhos
que clareava o rostinho escuro, mas também a
brancura dos dentes.
— Ouça com atenção, Isaiah. Quero que fa-
ça uma coisa para mim. Uma coisa muito impor-
tante. Não quero que você vá ao culto religioso.
— Agora o menino, todo sorrisos um instante
antes, tornara-se subitamente triste. — Ouça
direito, Isaiah. É uma coisa muito importante.
Todo mundo na cidade vai estar no culto religio-
so. Jesse Rickey é um bêbado. A casa e o escritó-
rio estão sem ninguém para tomar conta. Há
gente na cidade que bem gostaria de tocar fogo
em tudo lá, para que o jornal não possa sair na
quinta-feira. Quero que você volte para casa e
fique na cozinha, de onde pode ver o quintal e a
entrada do lado, também. O serviço de que estou
encarregando você é de patrulha.
219
— Sim, senhor, Seu Yancey! — concordou
Isaiah. — Patrulha. — Seu ar acabrunhado subi-
tamente passou por uma transformação, e ele se
perfilou de acordo com o seu novo papel marcial.
— Agora, escute. Se alguém entrar na casa
— eles não entrarão pela frente, mas provavel-
mente por trás, ou pelo lado — você pegue isto e
atire.
De baixo da sobrecasaca ele tirou uma pisto-
la que, enfiada no bolso esquerdo, não era visível
como as duas pistolas que sempre usava no cinto.
Era uma pistola da espécie conhecida como de
ação direta. O gatilho propositadamente não
funcionava. O cão — a parte do mecanismo que
se soltava com o puxar do gatilho — tinha sido
serrado. Era a mais mortífera das armas usadas no
sudoeste, uma pistola cujo cão, quando puxado
para trás pelo polegar, caía novamente assim que
se soltava. Não havia necessidade de o pequeno
dedo de Isaiah fazer força no gatilho.
— Oh, Yancey! — balbuciou Sabra horrori-
zada. Fez um gesto como se quisesse esconder
Cim atrás dela — protegê-lo com a seda preta de
seu vestido para que não presenciasse mais um
horror da vida pioneira. — Yancey! Ele é uma
220
criança! — Agora era ela quem estava protegendo
de Yancey o negrinho. Yancey ignorou-a.
— Você deve estar lembrado do que eu lhe
disse a semana passada — continuou ele, imper-
turbável — quando estávamos atirando na lata
espetada no mourão da cerca do quintal. Faça
exatamente como você fez no quintal: puxe da
arma, faça mira e dispare num só gesto.
— Sim, senhor, Seu Yancey! Eu mato eles
na hora.
— Na semana que vem terá uma roupa do-
mingueira nova em folha, não se esqueça, e botas
combinando. Agora, chispe!
Isaiah fez meia-volta nas suas malucas botas
de salto alto.
— Tire as botas! — gritou Sabra. — Vai se
matar! A pistola. Vai tropeçar!
Mas Isaiah sorriu-lhe por cima do ombro,
um brilhante, luminoso sorriso, e partiu em dispa-
rada, um cômico Dom Quixote negro mantendo
milagrosamente seu equilíbrio, as botas adernando
ora para um lado ora para outro, na espessa poeira
da rua.
Toda a agradável antecipação de Sabra quan-
221
to ao culto religioso se evaporara.
— Como pode dar uma arma a uma criança!
Não vai demorar muito, e dará uma a Cim, tam-
bém. Um menino sozinho na casa, com uma
pistola.
— Não está carregada. Vamos, querida. Es-
tamos atrasados.
Pela primeira vez em sua vida de casada, ela
duvidou da palavra do marido. Ele continuou sua
caminhada em direção à tenda. Ela apressou o
passo para acompanhá-lo. Cim trotava para não
ficar para trás, de mãos dadas com a mãe.
— O que quis dizer quando falou que havia
gente que poria fogo na nossa casa? Nunca ouvi
coisa igual. . . Quer dizer mesmo que alguém... ou
era só uma desculpa para mandar Isaiah de volta
por causa da aparência dele?
— Foi isso mesmo.
Pela segunda vez, ela duvidou do marido.
— Não acredito em você. Alguma coisa está
acontecendo, algo que você não me disse. Conte-
me o que é, Yancey.
— Não tenho tempo agora. Deixe de toli-

222
ces. Simplesmente, não gosto do aspecto das
coisas. . . Pensei apenas que talvez esse culto fosse
idéia de alguém que não está propriamente inspi-
rado pelo desejo de uma comunicação mais estrei-
ta com Deus. Foi uma coisa que me ocorreu só
agora. Não sei bem por quê. Se for verdade, quem
vai levar a sobra sou eu.
— Não vou ao culto. Vou voltar para casa.
Ela estava desesperada. Sua casa estava em
chamas, Isaiah estava sendo assassinado. Suas
roupas de cama e mesa a prataria, a travessa para
bolo, o vestido de gaze verde.
— Você vai comigo. — Raramente ele usava
um tom assim autoritário com ela.
— Yancey! Yancey, tenho medo de você ter
que ficar lá em pé, diante de toda essa gente.
Estou com medo. Vamos voltar. Diga-lhes que
está doente. Diga-lhes que estou doente. Diga-
lhes. . .
Eles tinham chegado à tenda. O pano de lo-
na que tapava a entrada estava erguido. De dentro
chegou-lhes ao ouvido um clamor de vozes. Junto
à entrada havia uma aglomeração de homens
fumando e mascando tabaco.

223
— Olá, Yancey! Como vai o nosso prega-
dor? Onde está a sua Bíblia, Yancey?
— Aqui comigo, rapazes. — Yancey tirou
do amplo bolso de sua sobrecasaca e exibiu com
um gesto triunfal a Palavra de Deus. — Entrem
ou fiquem de fora, rapazes. Nada de ficarem
atrapalhando a entrada. — Dando o braço a
Sabra, ele atravessou a tenda repleta de gente. —
Eles reservaram dois assentos bem na frente para
você e Cim, ou deviam ter reservado. Sim, lá
estão.
Sabra sentia-se prestes a desmaiar. Tinha vis-
to à entrada a cara de raposa de Lon Yountis.
— Aquele homem — murmurou ela para
Yancey. — Ele estava lá. Olhou para você quando
passamos.. . olhou para você tão. . .
— Tudo bem, querida. Melhor do que eu
esperava. Não há nada que eu goste mais do que
ter os membros de meu rebanho sob minhas
vistas.

224
Capítulo IX

Enfileirados no fundo da tenda estavam os


índios. Osages, poncas, cherokees, creeks. Tinham
vindo de léguas de distância. Os osages usavam
seus cobertores riscados de laranja, roxo, verde,
encarnado, azul. Os homens estavam de chapéu
— surrados e sujos sombreros colocados no alto de
suas cabeças. As trancas finas dos longos cabelos
pretos caíam-lhes sobre os ombros e peito como
cordas de arame. Embora usassem, em sua maio-
ria, a camisa de algodão xadrez do homem bran-
co, havia sempre nos trajes deles o brilho de
metal, algum tecido de cor viva, colares de contas
coloridas. As mulheres mais velhas pareciam
trouxas informes, com exceção das da tribo osage.
Somente os osage nunca tinham cruzado com
negros. Exceto por alguma percentagem de san-
gue branco, a tribo era de uma raça pura. Crianças
índias se espalhavam por todos os cantos. Os
selvagens assistiam a tudo impassíveis, seus rostos
como máscaras de bronze em que apenas os
olhos se moviam. Mais tarde, em suas reservas,

225
sem nenhum homem branco por perto para ver e
ouvir, eles tagarelavam como comadres; sacudiam
o corpo de tanto rir; comentavam este ou aquele
absurdo que, com seus próprios olhos, tinham
visto o homem branco cometer. Batiam nos joe-
lhos e rolavam de rir.
— São uns brincalhões esses índios — co-
mentara certa vez Yancey para Sabra. Ela tivera
certeza de que ele estava enganado. Os índios
eram carrancudos, taciturnos, graves. Não fala-
vam; apenas soltavam grunhidos. Nunca riam.
Segurando firmemente a mão de Cim, Sabra,
escoltada por Yancey, encontrou as duas cadeiras
que lhes haviam sido reservadas. Outras pessoas
tinham tido a sorte de se empoleirar no balcão do
bar, nas mesas de jogo, nos bancos e barris revi-
rados. O restante da congregação estava de pé.
Sabra lançou um olhar tímido em seu redor. Ho-
mens — centenas de homens. Era estranho como
todos aqueles rostos se pareciam; jovens-velhos,
curtidos de sol, com fundos sulcos no rosto e, em
sua maioria, de barba raspada. As planícies os
tinham apanhado cedo, tostaram-nos com seu sol,
ressequiram-nos com sua aridez, golpearam-nos
com o vento, atormentaram-nos com a poeira.

226
Sabra se habituara a esses rostos durante as duas
últimas semanas. Mas as mulheres — ela não
estava preparada para as mulheres. Chita e toucas
de sol, era o que se via por toda parte; mas as
esposas dos cidadãos de Osage tinham aproveita-
do esta primeira oportunidade para exibir o que
possuíam em matéria de elegância; vestidos que
tinham trazido de Kansas, Texas, Arkansas, Colo-
rado, cuidadosamente dobrados em folhas de
papel e em seguida guardados em caixas de pape-
lão ou baús. Nos chapéus tremulavam rosas espe-
tadas em arame. Cheviote, gorgorão e seda envol-
viam ombros que no decorrer daquele mês só
haviam sido tocados pelo algodão. Junto a ela, e
ocupando uma das cadeiras obviamente reserva-
das para pessoas de destaque social, havia uma
moça que devia ser, calculou Sabra, mais ou me-
nos da sua idade; talvez vinte ou vinte e um anos,
loura, olhos azuis, com a silhueta esguia e a pure-
za de contornos de quase uma adolescente. Esta-
va muito elegante num vestido cor de vinho, de
anquinhas e cintura ajustada, com franzidos nas
mangas e gola. Vestido e chapéu tinham a classe
da moda de alguma grande cidade. De Denver,
pensou Sabra, ou Kansas City, ou até mesmo
Chicago. Sabra achou, também, que o nariz da
227
desconhecida era o mais perfeito que ela já vira;
que sua pele clara não iria agüentar por muito
tempo aquele clima de ventos ardentes, e que o
homem a seu lado, velho o bastante para ser seu
pai, na realidade devia ser seu marido. Era a ma-
neira com que ele lhe falava, olhava para ela,
tocava-a. Yancey, um dia, lhe apontara aquele
homem. Ela se lembrava do seu nome porque, na
ocasião, achara-o divertido: Waltz, Evergreen
Waltz1. Ele era um notório jogador profissional,
ganhava a vida com as cartas, e dizia-se que era o
filho pródigo de um ex-governador de algum
Estado — pelo que ela se lembrava, do Texas. A
moça parecia infeliz; e sob sua tristeza havia re-
beldia.
Entretanto, a visão daquele lindo rosto, e
dos outros rostos femininos sob chapéus de palha
e toques de pelo menos uma certa elegância, deu a
Sabra uma reconfortante sensação de segurança.
Mas a sensação desapareceu quase imediatamente
com a entrada vistosa e dramática de um grupo de
mulheres das quais Sabra até então não tomara
conhecimento. A líder desse grupo espetacular,
cuja aparição provocou um burburinho de sussur-

1
Significa "valsa", em inglês. (N. do E.)

228
ros em toda a tenda, tinha chegado a Osage na
véspera, acompanhada por um bando de seis
jovens. O grupo desembarcara do vagão de passa-
geiros da Katy na cidade de Wahoo com toaletes
tão esplendorosas, embora um pouco prejudica-
das pelas cinzas, que deixou aturdidas as pessoas
que se achavam na estação. A Katy ainda não fora
estendida até Osage. Terminava em Wahoo, a uns
trinta e poucos quilômetros de distância. A visão,
com seu vestido de gorgorão de seda roxo, uma
sombrinha combinando, duas plumas roxas no
chapéu, e mais suas seis companheiras vistosa-
mente trajadas, tinham subido numa carreta com
muitos gritinhos agudos, risos e uma notável
exibição de tornozelos. Nesse tosco veículo, com
as saias de seda espalhadas, as sombrinhas des-
lumbrantes abertas, elas tinham percorrido aos
solavancos o caminho pela campina até a cidade.
Osage, desde o primeiro dia alucinado de seu
começo, tivera sua cota de damas de moral dúbia,
mas eram criaturas desgastadas, vindas de algum
campo de mineração deserto ou cidadezinha
abandonada, envelhecidas, repulsivas, e sem dúvi-
da mentalmente atrasadas.
Estas eram diferentes. A líder, uma bela mu-
lher de cabelos negros e de não mais que uns
229
vinte e dois ou vinte e três anos, tinha alugado
para si mesma e para suas companheiras os quar-
tos disponíveis na cidade. Osage fitara com des-
lumbramento as sombrinhas recém-chegadas. Em
menos de uma hora já se sabia que a mulher dizia
chamar-se Dixie Lee. Que era descendente de
uma decadente aristocracia sulista. Que as suas
companheiras eram designadas por uma vistosa
nomenclatura tal como Cherry de St. Maurice,
Carmen Brown, Belle Mansero, e outros nomes
no gênero. Que a mulher, esperta como um ho-
mem e de uma notável capacidade, fizera um
negócio pelo qual iria tomar posse, por um preço
bastante elevado, do prédio conhecido como
Pensão e Café Elite, situado na extremidade da
Avenida Pawhuska, perto da tenda de jogo; e que
ela tencionava construir uma casa, planejada de
acordo com suas necessidades peculiares, se os
negócios o permitissem. Finalmente, trouxera a
notícia, revelada Deus sabe como ou onde, que a
Katy ia ser ampliada até Osage e talvez mais adi-
ante. Assim o meretrício, até então limitado a
sórdidas prostitutas de roupão e rolos no cabelo,
chegou a Osage em sedas e plumas, com uma
cabeça inteligente dirigindo o empreendimento e a
promessa de ilimitada prosperidade.
230
Dixie Lee, com sua capacidade para negó-
cios, logo tomara conhecimento do culto a reali-
zar-se no domingo, e mais depressa ainda perce-
bera a vantagem dessa oportunidade para uma
pública promoção do seu negócio. Assim, agora,
ao primeiro culto religioso de Osage comparece-
ram as seis recém-chegadas, com Dixie Lee na
frente, completando o número sete. Suas sedas
farfalhavam. O ar na tenda repleta tornou-se tão
sufocante de perfumes como um jardim persa ao
cair da tarde. Pescoços espicharam; sussurros
fervilharam; assentos foram milagrosamente
encontrados para as representantes de uma reco-
nhecida ordem social, como se se tratasse da
realeza. O ofuscante topo da tenda, parecendo
mais focalizar do que disseminar o brilho do sol
de Oklahoma, inundou de luz as faces pintadas e
o rimmel das pestanas. A dama nua das cerejas no
recém-adquirido tesouro artístico de Grat Gotch
fitou-as boquiaberta, com o ar de quem está sur-
preendida e derrotada por forças inimigas em seu
próprio campo. As trabalhadeiras e dignas esposas
de Osage, com seus vestidos de cheviote, chapéus
ligeiramente desbotados e luvas de algodão, de
repente pareceram pálidas, ossudas e quase des-
providas de qualquer atrativo.
231
Tudo isso Sabra observou num só relance,
bem como todo o resto da congregação. Somente
os índios, de pé ou acocorados numa fileira no
fundo, como um friso egípcio contra a lona bran-
ca da tenda, permaneceram impávidos, remotos.
Yancey, tendo erguido Cim para sentá-lo na ca-
deira ao lado da mãe, levantou os olhos para ver a
entrada dessa esplêndida procissão.
— Meu Deus todo-poderoso! — exclamou
ele num tom tão irreverente quanto eram sagradas
as palavras. Seu rosto corou tanto, o que era tão
raro nele, que assustou Sabra mais do que as
palavras que pronunciara ou o tom delas.
— O que foi, Yancey? O que aconteceu?
— É aquela moça.
— Que moça?
— Aquela — Dixie Lee —, ela é a moça de
calças pretas e boné. . . da corrida. . . no puro-
sangue. . . — balbuciou ele.
— Oh, não! — exclamou Sabra em tom al-
to. A exclamação saíra espontaneamente. Os que
estavam por perto se viraram.
Era este, então, o culto religioso em que ela
depositara tantas esperanças, tão felizes perspecti-
232
vas. Prostitutas, quadros de mulheres nuas, índios,
calor, luz ofuscante, sua casa provavelmente
ardendo em chamas nesse mesmo momento,
Isaiah ensopado em seu próprio sangue, a face
sinistra de Lon Yountis arreganhando os dentes à
entrada da tenda. E agora esta mulher, inescrupu-
losa, perversa, que roubara a terra de Yancey por
um golpe de astúcia.
Yancey abriu caminho entre a multidão, sal-
tou para cima da mesa de roleta que ia ser sua
plataforma, atirou com destreza seu sombrero bran-
co para a base protuberante de um lampião sus-
penso, onde o chapéu girou e depois ficou preso,
meio de banda, e, erguendo a imponente cabeça,
abrangeu com seu olhar misterioso, magnético,
toda a congregação em expectativa.
Provavelmente nunca na história da religião
cristã a palavra de Deus tivesse sido pregada por
uma figura tão romântica e portentosa. As longas
mechas de seus cabelos negros caíam-lhe em
cachos nos ombros; os olhos luziam; a sobrecasa-
ca oscilava a cada um dos seus movimentos graci-
osos; as pistolas, uma de cada lado, sobressaíam
tranqüilizadoramente nos respectivos coldres.
Sua voz emocionante ressoou pela tenda, si-
233
lenciando murmúrios e imobilizando os presentes.
— Amigos e concidadãos, fui solicitado a
oficiar este culto de abertura da Primeira Igreja
Metodista, Episcopal, Luterana, Presbiteriana,
Congregacional, Batista, Católica e Unitária de
Osage. No decorrer de minha carreira como
advogado e editor de jornal, tenho sido solicitado
a falar em várias ocasiões e sobre muitos assuntos.
Já falei em defesa do meu país e criticando-o. Fui
chamado a defender e a condenar ladrões de
cavalo, prostitutas, assassinos, exemplos de pro-
fissões que podem sem dúvida ser encontrados
em qualquer aglomeração maior no território
índio dos dias de hoje. Não quero citar nomes.
Não quero apontar o dedo. Quer por bem ou por
mal, permanece o fato de que qualquer homem
ou mulher, sejam quais forem seus objetivos, que
se encontrar hoje nesta grande região de Oklaho-
ma, está aqui porque em suas veias, impulsionado
por motivos elevados ou vis, corre o espírito da
aventura. Pergunto com Shakespeare: "Por que
haveria um homem de sangue quente de perma-
necer imóvel como seu antepassado esculpido em
alabastro?" Embora eu conheça a Bíblia do prin-
cípio ao fim, e embora muitos de seus preceitos
estejam gravados no meu coração e na minha
234
memória, esta, concidadãos de Osage, é a primeira
vez que me foi solicitado pronunciar a palavra de
Deus em Seu templo. — Ele percorreu com os
olhos a vistosa tenda. — Pois qualquer abrigo,
por mais sórdido que seja, por mais humilde —
sem ofensa, Grat —, passa a ser, enquanto a
palavra de Deus está sendo pronunciada no recin-
to, o Seu templo. Proponho, pois, que nos una-
mos em espírito, unindo-nos em canto. Portanto,
abriremos esta auspiciosa ocasião na breve porém
inevitavelmente gloriosa história da cidade de
Osage cantando — bem — o que vocês todos
sabem cantar?
Houve um momento de pausa um tanto
embaraçosa. Os rostos curtidos da heterogênea
congregação fitaram hesitantes Yancey. Yancey,
vibrante, seguro de si mesmo, olhou-os afetuosa-
mente. Ergueu um braço num gesto de encoraja-
mento.
— Vamos, rapazes! Digam um título de
canção! Alguma sugestão, senhoras e cavalheiros?
— Que tal começar com Quem eras tu em tua
terra? — gritou a voz de um homem com uma
cabeça calva comprida e uma longa barba ruiva e
sedosa. Ele estava em pé no fundo da tenda. Era
235
Shanghai Wiley, natural do Texas, dono de mais
de cem mil cabeças de gado e do Rancho Palácios,
no riacho Três Palácios. Era o mais famoso can-
tador em todo o sudoeste, além de um dos mais
ricos criadores de gado e proprietários de terras.
Possuidor de uma voz de tenor notavelmente alta
e de timbre suave, que deixava por pouco de ser
soprano, dizia-se dele que conseguia aquietar todo
um rebanho de gado prestes a um estouro. Era
uma arte que aprendera quando vaqueiro nas
planícies. Muitos vaqueiros tinham esse dom, mas
nenhum possuía a qualidade mágica da voz de
Shanghai, que chegava a ser uma feitiçaria. Dizia-
se dele que, com animais frenéticos, de narinas
bufando, ou flancos tremendo, tinham-no visto
saltar do lombo de uma rês para outra, movendo-
se com a boiada que era como um mar encapela-
do, cantando para as reses com sua mágica voz de
tenor, detendo-as justo no momento em que iam
se atirar no rio Grande.
Yancey aprovou a sugestão com um grato
aceno de mão.
— Isto mesmo, Shanghai. Obrigado pela
sugestão. Uma boa canção, embora talvez seja um
pouco secular para a ocasião. Mas o fato é que

236
todos vocês a conhecem, e isto é o mais impor-
tante. Por favor, quer nos dar o tom, Shanghai? E
espero que as damas se unam a nós com suas
doces vozes de soprano. Então, agora, todos
juntos!
Era uma canção muito conhecida no territó-
rio, onde, ao vir para aquela nova e bravia região,
tantos homens, com um passado um tanto dúbio,
tinham julgado conveniente mudar de nome.
A congregação começou a entoar as primei-
ras notas com sentimento, quase num tom solene:

"Quem eras tu em tua terra?


Quem eras tu em tua terra?
Só Deus sabe
Antes de começares a perambular.
Jack, Jo, Bill ou Pete,
Para quem acaso encontrares
Qualquer nome servirá.
Oh, quem eras tu em tua terra?"

— Agora, todos juntos! De novo!


237
De repente, alguém nos fundos exibiu um
acordeão, e do povo apinhado no balcão do saloon
emergiu o som de uma harpa rústica. O coro
agora cresceu em volume com redobrado fervor.
Era como se estivessem cantando um hino sacro.
Acima de todas as vozes se erguia a de Shanghai
Wiley, aguda como os instrumentos de sopro de
uma banda, e sustentando-a da plataforma da
mesa de roleta, o violoncelo da rica e potente voz
de barítono de Yancey Cravat.

"Oh, QUEM eras tu em tua terra?


QUEM eras tu em tua TERRA?"

A congregação não se levantara para cantar


pela simples razão de que a maioria já se achava
de pé, e os poucos que estavam sentados não
queriam se levantar com medo de perder os luga-
res.
Sabra juntara-se ao canto, não de começo,
porém depois, timidamente. A canção parecera,
de certa forma, aliviá-la. Achou que agora as
coisas estavam melhorando. Talvez, afinal de
contas, esta nova comunidade estivesse prestes a
238
ter um bom começo. Seu marido parecia-lhe
tremendamente belo, altaneiro sobre a mesa de
roleta, os olhos brilhantes, o pé em sua bota
lustrosa batendo no chão em acompanhamento
ao ritmo da música. Ela começou afinal a sentir-se
segura, tranqüila.
— Agora — disse Yancey todo entusiasma-
do — a providência seguinte é fazer a coleta antes
do sermão.
— Coleta para quê? — gritou Pete De Var-
gas.
Yancey lançou-lhe um olhar de comiseração.
— Porque, seu espanhol infiel, faz parte de
um culto proceder a uma coleta. Davis Sudoeste
está indicado para fazer a coleta deste lado da
tenda. Você, Ike Bixler, se encarrega do outro
lado. A coleta, concidadãos, senhoras e cavalhei-
ros — e você, também, Pete —, é para o órgão da
nova igreja.
— Ora, raios, Yancey, nem temos uma igre-
ja! — tornou Pete a gritar, contrariado.
— Não há problema, Pete. Uma vez que
compremos um órgão, teremos que construir uma
igreja para colocá-lo lá dentro. Não resta dúvida
239
quanto a isso. Membros da congregação, qualquer
um que contribua com menos de dois dólares será
expulso da tenda por mim. Os índios não estão
incluídos.
A coleta foi feita em dois vastos sombreros,
cujas contribuições, ao serem os sombreros passa-
dos de uma para outra mão queimada de sol, eram
observadas com olhos de águia por Davis Sudoes-
te e Ike Bixler, e, de fato, por toda a congregação.
Os sombreros foram então solenemente e com certa
hesitação levados para o púlpito da mesa de roleta
para que Yancey pudesse inspecioná-los.
— O Sr. Grat Gotch, estando habituado a
rápidos cálculos na contagem de moeda, gentil-
mente vai somar quanto rendeu a coleta.
Arkansas Grat, com o rosto vermelho e sua-
do, abriu caminho até o púlpito e contou com
rapidez e precisão o dinheiro. Depois, sussurrou o
resultado a Yancey, que anunciou publicamente:
— Concidadãos, a soma da primeira coleta
para o novo órgão para a igreja de Osage, que não
terá denominação, rendeu o gratificante total de
cento e trinta e três dólares e cinqüenta e cinco
centavos. Ei, espere um instante, Grat! Cinqüenta
e cinco — você disse cinqüenta e cinco centavos?
240
— Isso mesmo, Yancey.
Yancey varreu com um olhar severo o seu
rebanho.
— Algum miserável sovina. . . Mas talvez
tenha sido um pouca ou um osage, por engano.
— E se for um cherokee, Yancey? — pergun-
tou uma voz provocadora vinda de algum ponto
da tenda.
— Não, não pode ser um cherokee, Sid. Re-
conheci sua voz por ser tão esganiçada. Um chero-
kee — como você saberia se não fosse totalmente
ignorante, você, Yountis e o resto da sua gente —
é muito esperto para contribuir para a coleta de
uma raça que roubou os direitos hereditários de
seu patrimônio. — Sem fazer uma pausa para
esperar que cessassem as risadas que seu comen-
tário provocara, ele tirou do bolso traseiro de sua
sobrecasaca uma pequena Bíblia bastante gasta.
— Amigos! Chegou a hora do sermão. O que
tenho a dizer levará quinze minutos. Os primeiros
cinco minutos serão dedicados a uma confissão
que quero lhes fazer e que eu não esperava ter que
fazer quando aceitei a tarefa de oficiar este culto.
Walt Whitman — olhem, rapazes, trata-se de um
poeta com sangue vermelho nas veias, com um
241
sentimento de nossa terra, e amor aos seus seme-
lhantes! —, Walt Whitman tem uma frase que se
gravou na minha memória. A frase é esta: "Digo
que a verdadeira e permanente grandiosidade
destes Estados tem que ser a sua religião". Foi o
que Walt disse. E é o texto que eu tencionava usar
como tema do meu sermão, embora saiba que
devia me inspirar na Bíblia. E agora, no último
momento, mudei de idéia. O sermão irá, no final,
basear-se na Bíblia. Vou anunciar meu texto,
depois farei minha confissão e, em seguida, o
tempo que sobrar será dedicado ao sermão. Qual-
quer senhora ou cavalheiro que deseje retirar-se
da tenda, que o faça agora, antes da confissão, e
com meu pleno consentimento; ou permaneça no
recinto até a conclusão do culto, sob pena de ter
seu nome citado como relapso na primeira edição
do meu jornal, o Taba de Oklahoma, a ser lançado
na próxima quinta-feira. Quem desejar retirar-se
da tenda que tenha a bondade de fazê-lo agora.
Por favor, abram caminho para os. . . os fiéis que
vão sair.
Um terremoto poderia ter removido algum
dos fiéis do seu lugar, mas certamente nenhum
cataclisma de menor porte, tal era a expectativa.
Yancey esperou, de Bíblia na mão; um afável e
242
brilhante sorriso no rosto. Esperou em silêncio,
com os olhos fixos na multidão na tenda sufocan-
te. Uma espécie de força parecia emanar dele que
atraía todos os presentes, que os imobilizava e
fascinava. Entretanto, em seus olhos, e na cabeça
agora erguida altivamente, havia algo que encheu
de medo o coração de Sabra. Ela, também, sentia
aquela atração magnética, mas ao mesmo tempo
um intenso pavor — uma terrível premonição. Os
pequenos furos na pele da testa e das faces pareci-
am mais visíveis. Duas vezes ela já vira aquela
expressão nos olhos do marido.
Yancey esperou mais um momento. Depois
respirou fundo.
— Meu texto é tirado dos Provérbios. "Há
um leão no caminho; um leão está nas ruas."
Amigos, há um leão nas ruas de Osage, nossa
linda cidade que em breve será a Rainha do Gran-
de Sudoeste. Um leão está nas ruas. E tenho sido
um mentiroso, um covarde, um avarento. Pois
fingi não saber o que sei; e saí por aí pedindo
informações sobre o tal leão — embora eu deves-
se trocar a palavra leão por chacal ou gambá sujo
se não achasse que é um sacrilégio tomar liberda-
des com a Sagrada Escritura — quando eu já

243
tinha provas positivas da culpa dele, provas por
escrito, pelas quais paguei, sem mencioná-las a
ninguém. E o motivo dessa minha dissimulação,
confesso-lhes envergonhado, mas assim mesmo
vou confessar. Eu tencionava anunciar a todos
hoje que estava de posse das provas, e tencionava
anunciar-lhes deste púlpito — ele lançou um
olhar para a mesa de roleta —, desta plataforma,
que eu iria publicar a informação nas colunas do
Taba de Oklahoma na quinta-feira, esperando assim
obter lucro e fama por causa da circulação que
teria meu jornal ao ser lançado com tanto estrépi-
to!
À palavra "estrépito", pronunciada com tan-
ta veemência, a congregação da Primeira Igreja
Metodista, Episcopal, Luterana, etc, de Osage foi
percorrida por um visível tremor nervoso.
— Amigos e concidadãos, arrependo-me de
minha ganância e do meu desejo de autopromo-
ção às custas desta comunidade. Não tenciono
mais sonegar, para meu próprio lucro, o nome do
chacal na pele de um leão que, por meio de amea-
ças de morte violenta, tem mantido esta cidade
abjetamente aterrorizada. Quero revelar desta
plataforma o nome do biltre, do sinistro malfeitor

244
e assassino desalmado que tirou a vida de Jack
Pegler quando ele estava de costas; esse covarde,
esse poltrão... — estava gesticulando com a Bíblia
na mão, brandindo-a no ar — não é outro senão. .
.
Yancey deixou cair a Bíblia no chão como
por acidente, em sua indignação. Ao abaixar-se
para apanhá-la, naquele instante, ouviu-se o es-
tampido de um tiro de pistola vindo dos fundos
da tenda. A bala passou pelo ponto onde estivera
a cabeça de Yancey, e na superfície branca da
tenda apareceu um pequeno círculo azul que era o
céu de Oklahoma. Mas antes de surgir o círculo
azul, Yancey Cravat tinha se erguido da cintura
para cima e disparara sua arma, sem aparentemen-
te uma pausa para fazer mira. Seu polegar puxara
o gatilho. Só isso. O estampido de sua pistola, na
realidade, seguira tão de perto o primeiro estam-
pido que os dois disparos pareceram quase simul-
tâneos. A congregação agora se pusera de pé, em
massa, de costas para a mesa de roleta. Todos,
com a respiração em suspenso, só tinham olhos
para uma figura. Era a figura de um homem que
estava adotando uma curiosa postura. Ele pare-
ceu, a princípio, surpreendido. Com a mão es-
querda tinha agarrado uma das cordas esticadas da
245
tenda, e agora, ainda com a mão segurando-a, seus
dedos deslizavam vagarosamente pela corda como
se não a quisessem largar até que ele tombou no
chão, ficou um momento ali sentado, como que
em meditação, soltou a mão da corda, virou-se
ligeiramente, rolou sobre um lado e se imobilizou.
— . . .Lon Yountis — concluiu Yancey sua
frase com voz nítida, ainda empunhando na mão
direita e na esquerda suas pistolas montadas em
marfim.
Berros. Gritaria. Uma debandada para a por-
ta. Então, a voz de Yancey Cravat, poderosa,
imperiosa, acima do clamor. Ele disparou um tiro
para o alto que foi atingir o domo da tenda, a fim
de centralizar a atenção.
— Parem! Fiquem onde estão! A primeira
pessoa que correr e provocar pânico leva uma
bala. Feche a entrada da tenda, Jesse, como eu lhe
tinha ordenado antes. Louie Hefner, remova o
corpo e cumpra o seu dever.
— OK, Yancey. É homicídio em defesa
própria, justificável.
— Eu sei, Louie. . . Concidadãos! Vamos
suprimir o sermão esta manhã, mas no próximo

246
domingo, se solicitado, estarei disposto a subir
novamente ao púlpito, a não ser que se possa
encontrar um ministro de Deus devidamente
sacramentado. O tema de meu sermão para o
próximo domingo será inspirado nos Provérbios
XXVI, 27: "Quem um túmulo cavar, nele cairá". .
. Este culto, meus irmãos e irmãs, será agora
encerrado com uma oração.
Houve um certo movimento e agitação en-
quanto um pesado fardo inerte era levado para
fora da tenda. Ainda empunhando as pistolas,
Yancey Cravat curvou a magnífica cabeça — mas
não muito — e com sua bela voz entoou para a
agitada congregação:
— . . .abençoai esta comunidade, ó Deus. . .

247
Capítulo X

Com um ar pesaroso, e de acordo com o


costume da comunidade, Yancey entalhou uma
marca na bela coronha de marfim montada em
prata da sua pistola. Foi então que pela primeira
vez Sabra, com os olhos arregalados de horror,
notou que havia cinco entalhes anteriores nas
coronhas das pistolas de Yancey — dois numa,
três na outra. O último acréscimo elevou o núme-
ro para seis.
Consternada, ela resolveu aprofundar suas
investigações. Observou que as duas armas ater-
radoras não eram enfiadas até o fundo nos col-
dres, os quais tinham na base uma engenhosa
mola, elástica e sensível como a de um relógio. A
mola prendia com firmeza o cano, mas ao mesmo
tempo tão de leve que o menor esforço soltava-o.
Yancey podia puxar da arma e apertar o gatilho
num só movimento em vez de dois. A infinitési-
ma fração de tempo poupado lhe salvara a vida
naquele dia.
— Oh, Yancey, você não matou seis ho-
248
mens!
— Nunca matei um homem a não ser quan-
do sabia que ele me mataria se eu não o matasse
primeiro.
— Mas isso é assassinato!
— Teria preferido que Yountis me matasse?
— Oh, querido, não! Morri mil mortes en-
quanto você estava em cima daquela mesa. Du-
rante aquela oração terrível, pensei que certamen-
te alguém mais iria atirar em você. Mas não havia
um outro jeito? Tinha mesmo que matá-lo? Da-
quela maneira?
— Não, meu amor. Eu podia ter deixado
que ele me matasse.
— Cim viu seu próprio pai atirar num ho-
mem e matá-lo.
— Melhor do que ver um homem matar o
pai dele.
Não havia mais nada que ela pudesse dizer
sobre o assunto. Mas havia ainda outra pergunta
que a consumia.
— Aquela mulher. Aquela mulher. Eu vi vo-

249
cê conversando com ela na rua, em plena luz do
dia, hoje, depois do culto. Toda aquela horrível
troca de tiros, toda aquela gente em sua volta,
Cim berrando; e depois ver aquela mulher falando
e dando risadinhas. Já seria bem ruim se você
nunca a tivesse visto antes. Mas ela roubou sua
terra no dia da corrida. E você ainda teve coragem
de falar com ela. De ficar conversando com ela.
— Eu sei. Ela disse que tinha tomado a de-
cisão, naquele dia da corrida, de conseguir um
pedaço de terra e cultivá-la, criar gado. Queria
abandonar a vida que levava. Estava na vida desde
os dezoito anos. Agora está com vinte e seis. Mais
velha do que parece. Ela é de boa família. Estava
desesperada.
— O que, então, está ela fazendo aqui?
— Em menos de um mês, ela constatou que
não iria agüentar. Cento e sessenta acres. E tam-
bém as esposas dos outros proprietários descobri-
ram a respeito do seu passado. Não adiantava
insistir. Ela vendeu as terras por quinhentos dóla-
res, e com esse dinheiro e mais umas economias,
foi para Denver.
— E por que ela não ficou em Denver?

250
— A concorrência era muito grande. Al-
guém a informou que a estrada de ferro ia passar
por aqui. Ela é uma mulher esperta. Arrebanhou
umas mulheres e veio para cá.
— Você fala como se a admirasse! Aquela...
aquela... — a expressão de Felice Venable lhe veio
aos lábios — aquela rameira!
— Ela é inteligente. É. . . — ele hesitou,
como que embaraçado — de certa forma ela é,
bem, sob certo aspecto, é uma boa moça.
A voz de Sabra ia num crescendo de histeria.
— Não me venha com citações da Bíblia,
Yancey Cravat! Você com os seus Lucas, seus
Joões e suas Madalenas! Estou farta de citações.
A primeira edição do Taba de Oklahoma saiu
efetivamente na quinta-feira, conforme fora pro-
gramado. Era uma mistura magistral de reticências
e indiscrições. Uma meia coluna, na primeira
página, era dedicada ao culto religioso do domin-
go anterior. Neste comentário não estava incluído
o incidente do tiroteio. Uma pessoa de fora, ao ler
o relato, teria deduzido que tudo correra às mil
maravilhas. Numa coluna na terceira das quatro
páginas do jornal havia uma noticia breve:

251
"É de lamentar que um tiroteio sem impor-
tância mas desagradável tenha vindo perturbar o
esplêndido e realmente emocionante serviço
religioso realizado na tenda recreativa no domingo
passado, gentilmente cedida pelo seu popular
proprietário, o Sr. Grat Gotch. Um malfeitor, que
há muito tempo vinha infestando as ruas de nossa
bela cidade de Osage, aterrorizando cidadãos
inocentes e que era da desprezível laia que tanto
tem procurado empanar a fama do grandioso
sudoeste, aproveitou-se dessa ocasião para provo-
car um distúrbio, durante o qual ele disparou sua
arma com a intenção de matar a pessoa que presi-
dia ao culto. Tornou-se necessário replicar no
mesmo nível. O corpo, que ninguém reivindicou,
foi enterrado em local distante, com apenas cha-
cais, a única parentela que possuía, para lamentar-
lhe o desaparecimento. Espera-se que sua sepultu-
ra rasa sirva de advertência a outros iguais a ele".

Tendo assim modestamente se restringido


na descrição da troca de tiros, Yancey soltou-se
um pouco mais na página do editorial. O fato era
que seus editoriais, durante algum tempo, prejudi-
252
cavam o noticiário do jornal. Sabra e Jesse Rickey
tiveram de convencê-lo de que a próxima vinda
da Katy era mais importante para assinantes em
perspectiva do que o editorial intitulado "Mais vil
do que a cascavel". E conseguiram convencê-lo a
cortar, embora sob protesto, um pouco do texto.

"A cascavel tem uma reputação má. As pes-


soas acusam-na de muitas coisas perversas, e não
se pode negar que o mundo seria melhor se as
cascavéis fossem dele eliminadas. Nove vezes em
dez sua picada é fatal, e muitos lares se viram
enlutados por causa de seus venenosos ataques.
Mas a cascavel é cavalheiresca e íntegra se compa-
rada a certas outras serpentes. Ela sempre dá sinal
quando vai atacar. A pior serpente é a que nos
apanha desprevenidos. . ."

E assim por diante, em mais de meia coluna.


Sabra, lendo a prova úmida da galé, soltara alguns
murmúrios de admiração.
— Está maravilhoso! Mas, Yancey, não acha
que devíamos ter mais notícias? Do gênero de
bisbilhotices. Não, não é bem isso que quero

253
dizer, mas informações sobre pessoas, o que
andam fazendo e assim por diante. São essas
coisas que gosto de ler num jornal. Naturalmente,
homens gostam de editoriais e fatos importantes.
Mas as mulheres...
— Isso mesmo — concordou Jesse Rickey,
lambuzado de tinta, erguendo os olhos de sua
caixa de tipos. — Fazer com que as mulheres
também leiam o jornal.
Lentamente, Sabra ia emergindo do seu pa-
pel de encantadora tolinha. Aos poucos, iria ter
voz cada vez mais ativa na escolha de itens mais
corriqueiros do dia-a-dia, ao passo que Yancey se
preocupava com questões cósmicas. O fato era
que, se não fosse por Sabra e Jesse Rickey, aquela
primeira edição do Taba de Oklahoma talvez jamais
tivesse sido publicada, pois o escritório da peque-
na cabana de madeira que servia de oficina im-
pressora enchera-se, após aquele domingo memo-
rável, com comissões que vinham congratular
Yancey, tornando irrespirável o ambiente com
seus sombreros, pistolas, botas, fumo e falação
repetitiva.
— Sim senhor, Yancey, nunca vi um gatilho
mais rápido do que o seu. . . E você estava todo o
254
tempo de olho nele, não é? Puxa, você é esperto
mesmo. Mais esperto do que você não há nin-
guém... O resto da quadrilha sumiu na fumaça,
pelo que ouvi dizer. Isso mostra que eles estão
mesmo apavorados porque têm uma rixa com o
Kid e seu bando, e se o Kid puser o olho neles
vão morrer como perus em dia de festa. Sim
senhor, Yancey, você é do tipo que esta região
está precisando. Quando menos esperar, vão fazer
de você governador do território. Que tal acham
da idéia, rapazes? Vamos lá fora beber à saúde do
futuro novo governador, Sua Excelência Yancey
Cravat!
O grupo locomoveu-se em bloco através da
rua poeirenta para o Saloon Sol do Sudoeste,
onde se podiam ouvir novos e mais enfáticos sons
de louvor.
Sabra, com seu avental de algodão xadrez,
estava selecionando fatos fascinantes do estoque
de material que haviam trazido de Wichita, os
quais eles iriam receber periodicamente pelo
correio ou expresso via Katy ou Santa Fé.

255
"NOIVAS NADADORAS

As jovens que habitam a ilha de Himla, pró-


xima a Rodes, não têm permissão de se casar até
terem trazido à tona um número especificado de
esponjas, cada qual apanhada em determinada
profundidade. Os habitantes da ilha ganham a
vida com a pesca de esponjas."

"A FORÇA DO POLEGAR

O polegar tem mais força do que todos os


outros dedos juntos."

"AR COMPRIMIDO PARA TRANSPORTE DE


MINÉRIO

No decorrer dos últimos dez anos, muitas


minas substituíram o transporte com tração ani-
mal por motores a ar comprimido."

Como a oficina de impressão tinha apenas


256
uma prensa manual, era preciso passar a tinta nas
duas formas de seis colunas com um rolo. Cada
folha era imprimida a mão. A primeira edição do
Taba de Oklahoma foi de quatrocentos e cinqüenta
exemplares; e até começar a circular em Osage,
Yancey, Jesse Rickey, Sabra, Isaiah — todos da
casa exceto o pequeno Cim — se revezaram com
o rolo. As costas e músculos dos braços de Sabra
doeram durante toda uma semana. Yancey protes-
tou com veemência:
— O quê? Tinta na alva pele da mão da lin-
da Julieta? Fora, mancha maldita! Olhe aqui. meu
amor, isso não pode ser. Minha doce camélia do
sul labutando com um mísero rolo! Eu preferiria
desistir de publicar o jornal.
— E parece que você não vai mesmo con-
seguir. — A doce camélia do sul não tinha inten-
ção de dar aquela resposta azeda; mas os eventos
das duas ou três últimas semanas estavam come-
çando a afetar-lhe os nervos. O material compra-
do fora continha os primeiros capítulos de um
romance de Bertha M. Clay em que a beleza e a
virtude triunfavam sobre o mal. A idéia era publi-
car um capítulo por semana. A segunda parte do
capítulo estava faltando. Mas Sabra decidiu sabi-

257
amente que esse fragmento, pelo menos por
enquanto, compensaria as leitoras do Taba de
Oklahoma pela preponderância das matérias cívicas
e políticas e pela escassez do noticiário social e
feminino. Ela tomou a decisão de vencer sua
timidez e travar relações com as senhoras que vira
no culto religioso do domingo.
Yancey e Jesse Rickey pareciam estar traman-
do alguma brincadeira. Da cozinha, Sabra podia
ouvi-los trocando risadinhas como duas meninas
de colégio. O senso de humor de Yancey era pri-
mário e infantil, de acordo com o local e época.
— O que vocês dois estão tramando? —
perguntou ela ao marido durante o jantar.
— Nada. Absolutamente nada! — O tom
dele era de absoluta inocência. — Que garota
desconfiada você está ficando !
O jornal saiu na tarde de quinta-feira, con-
forme planejado. Sabra espantou-se e ficou um
pouco assustada de ver a ocasião tratada como
um grande acontecimento, com uma quantidade
de vaqueiros e cidadãos locais em frente da casa,
pistolas disparadas, gritos e vivas; e o próprio
Yancey, ajudado por Jesse Rickey, distribuindo
exemplares como se não tivesse custado nada
258
imprimi-los. Haviam sido distribuídos talvez uns
vinte e cinco exemplares, ansiosamente abertos,
atentamente lidos por pessoas apoiadas em pilares
de alpendres e por vaqueiros a cavalo. Foi quando
Sabra, espiando pela janela da oficina, notou um
indubitável ar surpreendido — até chocado — no
rosto dos leitores.
— Ei, Yancey, que diabo de nome foi arran-
jar para seu jornal! —- exclamou finalmente a voz
arrastada de Cass Bixby.
Ela mandou Isaiah ir buscar um exemplar.
Ele voltou com o jornal na mão, rindo. Era uma
só falha. O Cafajeste de Oklahoma. Lema: "Se não
gostar, azar". E sob o lema uma variada coleção
reunida às pressas de itens muito pessoais, calcu-
lados para revelar os pontos fracos e defeitos de
certos cidadãos proeminentes, agora entretidos
em ler o falso jornal.
Finalmente, depois de revelada a brincadeira
e de ter sido posto à venda o verdadeiro jornal,
foi isto considerado um soberbo triunfo para
Yancey, e de novo o levaram para beberem à sua
saúde e congratulá-lo.
Era uma cidade de homens. Os homens se
sentiam bem nela. Andavam a cavalo, jogavam,
259
praguejavam, brigavam, pescavam, caçavam,
bebiam. As peripécias de muitos deles se asseme-
lhavam às de meninos brincando de bandido sob
o alpendre. O saloon era o clube deles, o bordel
seu ponto de reunião social, as mulheres da vida
suas namoradas. Literalmente, não havia outras
moças em idade de casar; pois os homens e mu-
lheres que tinham vindo para Osage, como Sabra
e Yancey, eram casais cujas idades iam dos vinte
aos quarenta anos. Não era lugar para os muito
jovens, os muito velhos, ou mesmo para os de
meia-idade. De permeio, havia os índios, com sua
presença melancólica porém colorida. A reserva
dos osages era a mais próxima da cidade de Osage.
Falava-se agora em trocar o nome da cidade por
causa disso, mas a idéia nunca foi adiante. A
cidade fora assim batizada durante a corrida. Os
osages, ao contrário de muitas outras tribos do
território, eram bonitos, altos, de ombros largos,
altivos. As mulheres andavam de cabeça erguida,
eretas, o passo lento e leve. As roupas eram bas-
tante pobres, mas sobre elas os osages usavam o
cobertor listrado da tribo, laranja, roxo, escarlate e
azul, tintos pelo mesmo processo que Madre
Bridget usara no cobertor de Sabra. Eles vinham
da reserva a pé; às vezes uma família aparecia na
260
estrada de argila vermelha que conduzia à cidade,
apinhada num carroção, aos solavancos, salpicada
de lama. Às vezes um índio chegava montado
num cavalo escrofuloso, as pernas magras pendu-
radas de cada lado dos flancos ossudos do animal.
A cidade tratava-os com menos consideração do
que aos vira-latas que vagueavam pelas ruas. Os
índios compravam seus parcos suprimentos com
o estipêndio que o governo lhes concedia; os
homens compravam, roubavam ou imploravam
uísque quando podiam, embora a "água de fogo"
lhes fosse estritamente proibida, e vender ou dar
uísque a um índio fosse punível por lei. Eles
ficavam horas sentados ou acocorados ao sol.
Recusavam-se a trabalhar. Plantavam um pouco
de milho que misturavam com lixívia e ao qual
davam o nome de soffica. Esta mistura, quente ou
fria, era comida com uma colher feita de chifre de
vaca. Sabra odiava-os e tinha medo deles, embora
Yancey risse de seus temores. Ela proibira Cim de
lhes dirigir a palavra. A proibição foi depois de ela
ter descoberto que Yancey levara o filho uma
tarde para visitar a reserva. Assim era a monstruo-
sa sociedade em que Sabra Cravat agora se encon-
trava. Para ela, e para as outras mulheres respeitá-
veis da cidade, nada havia a não ser seus trabalhos
261
domésticos, os filhos, a lembrança do passado. E
assim a mulher que era, afinal, a mais inteligente
entre as outras, começou a organizar uma espécie
de ordem social para as senhoras da comunidade.
Durante toda a sua vida, Sabra tinha se habituado
à generosa hospitalidade do sul. A casa dos Vena-
ble em Wichita era, tanto quanto possível, uma
réplica da mansão de Mississipi que fora o lar de
gerações dos antepassados de Sabra, amantes do
luxo e acostumados a gastar liberalmente. Esta-
vam sempre hospedando hordas de parentes.
Comida e bebida eram servidas com abundância.
Vestidos de musselina branca e faixas azuis rodo-
piavam à menor provocação das notas de um
piano com suas folhas de hera esculpidas. Amigos
chegavam para o almoço e ficavam uma semana,
A arrastada voz musical de Felice Venable estava
sempre tentando o conviva já saciado a exceder-
se. "Pode crer, prima Flora May, não comeu o
suficiente para manter vivo um passarinho, Angie
vai achar que você não gostou do tempero dela. . .
Lacy, mais uma codorniz. Elas mal dão para uma
garfada. . . Mittie, passe a geléia de groselha."
Determinadamente, Sabra (e mais tarde, as
outras mulheres virtuosas da comunidade) empe-
nhou-se em tornar o mais rapidamente possível a
262
nova cidade semelhante à sua antiga cidade. Yan-
cey, quase sozinho, tentava tornar a nova cidade o
mais diferente possível da antiga. Mas desde o
princípio, ele estava fadado à derrota. Era desnor-
teado, freqüentemente insincero, um brilhante
gabola. Não sabia bem ao certo o que queria, ou
como agir para obtê-lo. Sabia apenas que não
tinha paciência para as coisas como eram; que
ganância, injustiça e desonestidade grassavam por
toda parte; que ali, naquela região virgem e bravia,
havia chance para um plano utópico. Mas ele não
possuía plano algum. Era sentimental com relação
aos oprimidos; extremamente galante com as
mulheres; emotivo, facilmente irritável, impulsivo,
dramático, idealista. E idealismo não tinha como
florescer numa povoação de fronteira. Nem Yan-
cey Cravat, com seus vagos sonhos, nem os aven-
tureiros e fanfarrões freqüentadores dos saloons e
da tenda de jogo tiveram a menor chance contra o
materialismo indômito das mulheres.
Como Sabra, quase todas as outras mulheres
tinham trazido de seus lares em Nebraska, Arkan-
sas, Missouri, Kansas algum tesouro doméstico
que a seus olhos representava elegância ou algo
que deveria marcá-las como pessoas de gosto e de
elevado nível social. Uma cadeira, uma cama, um
263
objeto de prata, um vaso, uma toalha de linho.
Era o período de horríveis bugigangas. Mulheres
por toda parte no país estavam cobrindo grelhas
de torradeiras de pão com pelúcia encarnada,
bordando sobre pelúcia sulfurosas rosas de froco
amarelo, amarrando tudo com fitas de cetim e
pendurando-as na parede para representarem um
porta-papéis (a ser usado sob pena de morte).
Pintavam o fundo externo de frigideiras com
purpurina dourada e margaridas, enfeitavam-lhes
os cabos com laços de fita de cores vivas e, assim,
o utilitário patinho se transformava num cisne,
pendurado na parede em frente da torradeira.
Rolos de abrir massa eram pintados de dourado
ou forrados de veludo. Baldes de carvão e pás
tinham a surpresa de se verem de repente promo-
vidos da cozinha para a sala, após passarem pelo
novo processo de embelezamento. A casa de
Sabra passou a ser uma espécie de centro social ao
se descobrir que ela recebia com bastante regula-
ridade números da revista Harper's Bazaar. Felice
Venable costumava mandar a revista para a filha,
sem dúvida depois de ler os discretos comentários
de Sabra a respeito da falta de indicações da moda
para a mulher e para o lar nessa nova comunida-
de. O triunfo social de Sabra tornou-se absoluto
264
quando ela exibiu seus novos potes recobertos de
pano, que executara seguindo detalhadas instru-
ções lidas no mais recente número da Harper's.
Depois, gentilmente, publicou essas instruções no
Taba de Oklahoma, provocando uma onda de
entusiástica atividade numa centena de lares e
deixando perplexos os vendedores nos armazéns
com a súbita procura de potes.

"Como tudo agora é forrado (anunciava a


nota sobre elegância), damos aqui uma ilustração
(Sabra não deu — pelo menos não nas limitadas
colunas do Taba) de um pote de louça ou de vidro
forrado de seda indiana e enfeitado com renda e
fita, sendo que a decoração esconde por completo
qualquer feiúra original no formato ou ornamen-
tação do pote. Potes absolutamente lisos podem
também ser forrados com um bonito pedaço de
seda e amarrados com laços de fita ou enfeitados
com algum pedaço de renda, e assim serem trans-
formados num objeto decorativo por pouco, ou
nenhum, dinheiro."

Certamente, as últimas palavras da sugestão


eram verdadeiras.
265
Com elegâncias tais como essas, as mulheres
de Osage procuravam disfarçar a rusticidade e a
escassez em suas cabanas de madeira. Em geral,
havia também alguma cadeira de pelúcia que
sobrevivera à jornada de carroção, uma estante
desengonçada, sobre a qual repousavam conchas
pintadas, e os objets d'art acima descritos; ou, na
parede, um retrato a pastel ou até uma pintura a
óleo de algum severo parente de suíças ou de
fichu de seda preta olhando com surpreendida
desaprovação o tumulto em que se processavam
as atividades diárias da cidade. Assim os interiores
das casas passavam de uma feiúra despojada para
uma grotesca feiúra, mas o senso de beleza vitori-
ano se satisfazia. O fato era que aquelas mulheres
ansiavam por sentir o contato de coisas macias,
sedosas; seus olhos, ardendo com a claridade
ofuscante, o vento, a poeira, sentiam necessidade
de repousar no que era rico e suave; suas mãos,
que a água alcalina tornara ásperas, se deliciavam
tocando naqueles absurdos fragmentos de seda e
veludo, recortados de um velho vestido de casa-
mento, de um chapéu, de atavios que tinham sido
relegados ao saco de trapos.
Além da prataria e da roupa branca que
trouxera, a coisa mais linda que Sabra possuía era
266
o cobertor azul tecido a mão que Madre Bridget
lhe dera e que dava uma autêntica e brilhante nota
de cor à sala de estar, onde ficava muito bem
dobrado ao pé do sofá, disfarçando parcialmente
a feiúra do móvel. Como estivessem na moda as
colchas de retalhos de seda, feitas com padrões
em rodelas ou em leque, e bordadas com teias de
aranha de fios coloridos, o cobertor azul era
tratado com considerável desrespeito. Trinta anos
depois, o cobertor, com as suas cores ainda per-
feitas, foi cedido temporariamente por Sabra para
uma exposição de trabalhos manuais da América
colonial na Sala Veneziana do Hotel Savoy-Bixby,
onde foi admirado e elogiado por todos os mem-
bros da alta sociedade de Osage. Disseram que era
extraordinário, autêntico e muito nativo, um belo
exemplo da habilidade manual pioneira, com o
que Sabra concordou, e falou em Madre Bridget.
Disseram que ela devia ter sido extraordinária,
com o que Sabra concordou, também.
Lentamente, aos olhos de Sabra, as outras
mulheres da cidade começaram a emergir e a
tornar-se personalidades distintas. Havia uma que
tinha sido professora em Cairo, Illinois. Seu mari-
do, Tracy Wyatt, operava uma periódica linha de
passageiros e carga entre Wahoo e Osage. O casal
267
não tinha filhos. Ela era uma mulher de trinta e
nove anos, magra e afetada, que falava muito em
viagens que fizera a Chicago durante as quais
tinha se regalado com a cultura daquela cidade
estéril. Certa vez, Yancey se pusera a discorrer
sabiamente para ela sobre cerâmica etrusca, um
tema do qual ele não tinha a menor noção. A ex-
professora ouvira-o rolando os olhos e meneando
muito a cabeça.
— Não sabe que privilégio é para mim, Sr.
Cravat, poder conversar com alguém cuja mente
pode planar tão acima da vida sórdida desta horrí-
vel cidade.
Os olhos ardentes de Yancey adotaram a
mais embevecida das expressões.
— Madame, foi a senhora que me transpor-
tou consigo para as suas alturas. "É bem rara a
sabedoria na juventude e beleza!" — Era o seu
jeito. Simplesmente, ele não podia falar de outra
maneira.
— Ah, Shakespeare! — suspirou a Sra.
Wyatt, empertigando-se.
— Shakespeare uma ova! — disse depois
Yancey a Sabra. — Ela não sabe nada de literatu-

268
ra. Nenhuma mulher devia fingir ser inteligente. E
se ela é, devia ter a inteligência de fingir que não o
é. E se parece com Cornelia Blimber, além do
mais.
— Cornelia? . . .
— Uma professora do romance Dombey and
son, de Dickens. Um livro magnífico, minha que-
rida. Quero que você o leia. Quero que Cim o leia
quando tiver doze anos. Está em alguma parte
nestas prateleiras. — Ele se pôs a procurar num
amontoado de livros. Cinco minutos depois,
estava mergulhado num compêndio de Plutarco
que tinha dado por perdido.
— Por que você a fez pensar que ela era in-
teligente e atraente quando estavam conversando?
— insistiu Sabra.
— Porque ela é tão feia, minha querida.
— É simplesmente porque você não pode
suportar que todo mundo não o ache um homem
fascinante.
Sabra nunca chegou a ler Dombey and son.
Decidiu que preferia trocar receitas e discutir a
educação dos filhos com as outras mulheres a
manter uma conversa mais intelectual com a Sra.
269
Wyatt.
Foi Sabra quem começou o Clube Filomáti-
co. As outras mulheres adoraram a idéia. Era
parte da defesa delas contra a selvageria da região.
Afinal de contas, uma cidade que podia gabar-se
de ter um clube de cultura não podia estar de todo
perdida. Sabra nunca tinha tido experiência algu-
ma com esse tipo de atividade social. A langorosa,
porém mordaz, Felice Venable sempre se negara a
participar de qualquer movimento social ou cívico
em Wichita. Kansas, mesmo naquela época, tinha
seus clubes femininos, embora não fossem co-
nhecidos por este título. O Círculo de Costura de
Senhoras, a Sociedade Cultural Século XX; as
Hipatéias.
Felice Venable, solicitada a participar dessas
atividades, recusou-se langorosamente.
— Eu simplesmente odeio costurar — res-
pondera ela erguendo os olhos do romance que
estava lendo. — E quanto à cultura! Há bem uns
trezentos anos os Venable e os Marcy já eram
cultos neste país, sem falar na Inglaterra e na
França, onde eles praticamente a iniciaram. Além
disso, não aprovo mulheres participando de reu-
niões em clubes. Daqui a pouco, elas vão querer
270
participar da política.
Sabra timidamente mencionou à Sra. Wyatt
seu plano de formar um clube feminino, e a Sra.
Wyatt agarrou-se à idéia com tal ferocidade que
quase deu a impressão de que o plano partira dela.
Cada uma convidaria quatro mulheres da elite da
cidade. Decidiram que dez sócias fundadoras
seriam suficientes.
— Eu — começou a Sra. Wyatt prontamen-
te — vou convidar a Sra. Louie Hefner, a Sra.
Doc Nisbett. . .
— O marido dela é detestável! Eu não o su-
porto. Não a quero no meu clube. — Os dez
barris de água ainda não tinham sido esquecidos.
— Não vamos convidar os maridos, minha
cara Sra. Cravat. Trata-se de um clube feminino.
— Não acho que a esposa de um homem
como aquele possa ser uma senhora distinta.
— A Sra. Nisbett — retorquiu a Sra. Wyatt,
introduzindo o esnobismo naquele rebuliço de
lama, índios, cabanas de madeira, falta de água e
semibarbarismo conhecido como Osage, territó-
rio índio — era, de solteira, uma Krumpf, de
Ouachita, Arkansas.
271
Sabra, descendente dos Marcy e dos Vena-
ble, ergueu as sobrancelhas negras e bem-
arqueadas. Intimamente, decidiu selecionar suas
quatro sócias entre as senhoras menos vertebradas
e mais ebulientes de Osage. A cultura era, sem
dúvida, um excelente predicado, mas a idéia de se
reunir a cada quinze dias com nove versões da
ossuda Sra. Wyatt ou da bem-nascida Sra. Nisbett
(née Krumpt) era deprimente. Ela decidiu que no
dia seguinte, depois de terminar os trabalhos
domésticos, iria procurar suas candidatas, a come-
çar pela bonita e elegante Sra. Evergreen Waltz.
Sabra herdara de Felice Venable uma tendência à
frivolidade. A noite, na mesa do jantar, ela contou
a Yancey os seus planos.
— Vamos estudar literatura. E talvez a his-
tória da América colonial.
— Mas querida, não sabe que você está fa-
zendo a história da América?
— E também acontecimentos atuais — dis-
se ela, sem levar a sério a observação de Yancey.
— Bem, os acontecimentos nesta cidade são
bem atuais, isso eu posso garantir. O difícil é
acompanhar-lhes o desenrolar. Vocês, mulheres,

272
terão que ser rápidas.
Ela lhe falou nas suas quatro sócias em
perspectiva.
— A mulher de Waltz! — O tom dele era de
surpresa e de divertimento, também, mas ela
estava muito entusiasmada com seus planos para
notar. Além do mais, Yancey freqüentemente
achava divertidas coisas que pareciam a Sabra
muito sérias. — Isso é ótimo, Sabra. Ótimo! É o
caminho certo!
— Reparei nela no culto do último domin-
go. É tão bonita que, só de olhar para ela, me
repousa os olhos, depois de todas aquelas. . . não
que sejam. . . não quero dizer que não sejam
ótimas senhoras. Mas, afinal de contas, mesmo
que seja um clube de cultura, é muito mais agra-
dável para mim que uma das sócias seja da minha
idade.
— Oh, muito mais agradável — concordou
Yancey, continuando a sorrir. — É assim que
deveria ser uma cidade como esta. Sem distinções
de classe, sem esnobismo, sem bazófias.
— Vi a roupa dela estendida na corda. Por
um mero acaso. Vê-se logo que é uma mulher de

273
classe. Roupas de baixo tão bonitinhas, todas
enfeitadas com bordados, e havia duas anáguas
bordadas e cheias de babados tão elegantes como
as que prima Belle French Vian fez à mão para
meu enxoval.
— Isso não me surpreende.
Yancey mostrava-se menos loquaz que de
costume. Mas a verdade era que homens não se
interessavam por roupas femininas.
— Ela me parece muito jovem e solitária,
sentada junto à janela costurando o dia inteiro. E
o marido é tão mais velho, e aleijado também, ou
quase. Notei que anda capengando. O que há com
ele?
— Levou um tiro na perna.
— Oh. — Ela já tinha aprendido a aceitar
como natural esta forma de ferimento. — Pensei
em convidá-la para, na nossa terceira reunião,
fazer uma palestra sobre Aurora Leigh, de Eliza-
beth Barret Browning. Eu podia emprestar-lhe
seu livro para ler, se você não se importa, no caso
de ela não possuir um exemplar.
Yancey achou pouco provável que ela tives-
se o livro.
274
A casa da Sra. Wyatt era uma das poucas em
Osage usadas só para moradia. Na parte da frente
não havia nenhuma loja ou escritório. A linha de
passageiros e de carga de Tracy Wyatt certamente
não podia ser contida numa cabana de pinho
destinada ao uso da família. A Sra. Wyatt dispu-
nha de cinco cômodos, de que se mostrava irri-
tantemente orgulhosa e a que se referia em todas
as ocasiões possíveis.
— A primeira reunião — disse ela — será
realizada em minha casa, naturalmente. Lá é tão
mais agradável.
Ela não disse tão mais agradável do que o
quê, mas o rosto de Sabra se tornou uma máscara
de gélida obstinação.
— A primeira reunião da Sociedade Filomá-
tica se realizará na casa de sua fundadora.
Afinal, a Sra. Wyatt não podia se gabar, co-
mo Sabra, de possuir uma porta de tela de arame
em sua casa. Era a única casa em Osage que pos-
suía tal apetrecho. Yancey encomendara uma a
Hefner, que a fizera vir de Kansas City. O vento e
as moscas pareciam torturar Sabra. Era um luxo
tão raro que, freqüentemente, estranhos vinham
até a porta por engano, pensando tratar-se do
275
açougue, que era o único na cidade a possuir uma
outra porta de tela.
— Eu servirei café e roscas — acrescentou
Sabra, graciosamente. — E vou propor que a
senhora seja eleita presidente. Eu — isso não sem
uma pitada de malícia — vivo muito ocupada
com minha casa, meu filho e o jornal; freqüente-
mente ajudo meu marido com os editoriais, para
poder assumir mais tarefas.
A palestra sobre Aurora Leigh nunca foi es-
crita ou lida pela bonita Sra. Evergreen Waltz.
Três dias depois, Sabra, olhando por acaso pela
janela de sua sala de estar, viu o aleijado e um
tanto idoso jogador passando pela sua casa, e
apesar do defeito na perna ele estava se locomo-
vendo com grande rapidez, quase correndo. Le-
vava na mão um pedaço de papel branco — uma
carta, pensou Sabra. Ela esperava que não fossem
más notícias, pois notara que ele parecia um tanto
esquisito e perturbado.
Evergreen Waltz, após semanas de incansá-
vel espera e vigia, finalmente tinha interceptado
uma carta do amante de sua jovem esposa. Ele
subia agora ofegante a rua para encontrar a moça
sentada junto à janela costurando. O único tiro
276
atingiu diretamente o centro do espaço entre os
grandes e inocentes olhos azuis. Encontraram-na
com o dedal de ouro com suas iniciais ainda no
dedo, e o pedaço de pano que estivera costurando
caído no colo e agora salpicado de vermelho.
— Por que você não me disse que quando
os dois se casaram ela havia saído de. . . de uma. .
. casa de tolerância? — perguntou Sabra, entre
horrorizada e indignada.
— Pensei que você soubesse. As mulheres
são supostamente dotadas de intuição, ou coisa
parecida, não é mesmo? Todas aquelas roupas de
baixo bordadas na corda numa cidade em que
água e tão escassa quanto champanha. . . mais
escassa. E depois, também, Aurora Leigh.
Ela, agora, estava furiosa.
— Pelo amor de Deus, quer me dizer o que
Aurora Leigh tem a ver com aquela mulher?
Ele apanhou o livro na estante.
— Pensei que você talvez tivesse lido o livro
— disse ele, abrindo uma página. "Sonhos de
fazer o bem a gente que não é de bem".

277
Capítulo XI

A filha de Sabra nasceu em junho, pouco


mais de um ano após a chegada deles a Osage.
Não foi uma provação tão terrível como se pode-
ria esperar, apesar dos parcos recursos. Ela se
recusou a mandar buscar a mãe; insistiu mesmo
em que Felice Venable só fosse avisada do acon-
tecimento depois de sua neta ter dado o primeiro
vagido na terra dos pele-vermelhas. Para Yancey
fora um alívio a decisão de Sabra. A idéia de sua
tremenda sogra com xales de babados e chinelos
de salto em meio àquela balbúrdia para onde ele
trouxera sua filha era uma situação da qual até o
temível Yancey tinha receio. O curioso era que
não fora a dor, o calor, a falta de gente competen-
te para ajudá-la no parto o que mais a incomoda-
ra. Fora o vento. O vento de Oklahoma tortura-
va-a, um vento que sacudia portas e janelas, que
fazia rodopiar a poeira vermelha para dentro de
casa, que soprava em seu rosto um hálito quente
enquanto ela jazia na cama; se não o impediam,
invadia a casa, arrancando a toalha da mesa, os

278
lençóis de cima da cama, os pratos das prateleiras.
— O vento! — gemia Sabia. — O vento! O
vento! Quero que o façam parar, — Ela estava
delirando um pouco. — Yancey! Com sua pistola.
Atire no vento. Mate o vento. Sete marcas. Não
me importa. Mas faça com que o vento pare.
Ela foi atendida, durante o parto, pelo me-
lhor médico da região e certamente o mais pito-
resco de todo o sudoeste, o Dr. Don Valliant.
Como milhares de outras pessoas vivendo naquela
nova terra, o seu passado era um segredo que ele
não revelava a ninguém. Ia visitar os doentes a
cavalo, vestido num casaco e calças de veludo
preto enfiadas para dentro de botas de couro
enfeitadas. Seu sombrero preto, rivalizando com o
branco de Yancey, tornava mais negros seus olhos
e cabelos. Todos sabiam que freqüentemente ele
desaparecia durante dias e dias, deixando que os
pacientes se arrumassem como pudessem. E
tornava a aparecer tão inexplicavelmente quanto
desaparecera. Na volta, vinha com um ar cansado
e seu cavalo parecia exausto. Não era nenhum
segredo que freqüentemente atendia a chamados
de bandidos quando algum deles, ferido num
assalto, era levado para o esconderijo do bando

279
nas montanhas. Com Sabra, ele se mostrou deli-
cado e atencioso, embora, com o incentivo de
Yancey, os dois tivessem consumido uma incrível
quantidade de uísque durante as penosas horas do
trabalho de parto. No final, ele ergueu no ar um
ruidoso pedaço de carne arrancado das entranhas
de Sabra — uma criança completa e perfeita, com
uma espantosa quantidade de cabelos pretos.
— Sua filha é urna beldade espanhola, Yan-
cey. Apresento-lhe a Señorita Dona Cravat.
E Donna Cravat foi o nome que lhe deram.
A cidade, um tanto escandalizada, achou que o
nome da menina derivava do próprio Dr. Don.
Além disso, não consideravam que Donna fosse
um nome de verdade. As outras mulheres da
comunidade alimentavam sua sede de romance
prendando as filhas com os nomes mais floreados
de que eram capazes de imaginar ou de romances
que liam entre uma e outra tarefa doméstica. O
resultado ia desde o patético até o ridículo: Czari-
na McKee; Emmeretta Foison; Gazelle Slaughter;
Maurine Turket; Cassandra Sipes; Jewel Riggs.
As vizinhas inundaram o lar dos Cravat com
os habituais bolos, tortas, bolos de carne e tigelas
de sopa. O pretinho Isaiah foi comovente, mara-
280
vilhoso. Lavava os pratos, limpava o chão, passou
a cozinhar como se tivesse herdado o dom de
Angie, sua corpulenta mãe preta, que ficara para
trás em Wichita. Um dos aventais de xadrez azul e
branco que Sabra usava na cozinha estava sempre
amarrado debaixo dos braços dele, e sob essa
peça de vestuário utilitária, porém graciosa, os
seus grandes pés descalços se movimentavam sem
cessar para dentro e fora da casa. Estava inteira-
mente fascinado com a recém-nascida.
— Olhe só! Ela me conhece. Olhe como re-
vira os olhos e faz caretas para mim!
Ele dançava para ela, cantava-lhe canções
negras, acalentava-a. À medida que Donna foi
crescendo, ele passou a ser sua ama, empurrando
o carrinho de um lado para outro na rua poeiren-
ta, e mais tarde seu companheiro de brinquedos,
assim como de Cim.
Quando Sabra se levantou da cama, algo ne-
la se cristalizara. Talvez fosse porque, pela primei-
ra vez naquele ano, ela tivesse tido horas para
descansar o corpo; talvez o próprio parto houves-
se provocado nela uma mudança, além de física,
psíquica; talvez tivesse chegado à conclusão de
que devia dar um novo rumo à vida de sua família
281
em Oklahoma. Cim, seu filho, poderia superar os
embates, porém Donna jamais. Durante as horas
em que Sabra ficara deitada na cama na abafada
cabana de madeira, era como se a neblina se hou-
vesse dissipado diante dos seus olhos. Via tudo
claramente. Sentia-se leve e tremendamente capaz
— a tal ponto que cometeu o erro de se levantar,
calçando ainda meio tonta os chinelos, enrolando-
se num xale e caminhando trôpega até o escritório
onde Yancey estava escrevendo um editorial e
berrando trechos de sua preferência aos ouvidos
desatentos de Jesse Rickey, ocupado em compor
os tipos para rodar o jornal.
— "... a mais fantástica farsa, concebida pela
mente do homem num país civilizado..."
Ele ergueu os olhos para deparar com uma
aparição à porta, só olhos e longas trancas negras.
— Meu amor! O que significa isto? Você
não pode se levantar!
— Estou de pé. Senti-me tão leve, tão. . . —
E ela esboçou um leve sorriso.
— Não me admira que se sinta leve. Depois
de se livrar de todo aquele peso.
— Sinto-me tão forte. Vou fazer tanta coisa.
282
Você vai ver. Vou empapelar a casa toda. Botões
de rosa no nosso quarto. Vou plantar duas árvo-
res na frente da casa. Vou organizar um outro
clube, diferente do Filomático. Acho agora aquilo
uma tolice. . . mas um clube que ajude esta cida-
de... nada de saloons. . . mulheres como Dixie Lee.
. . vou ter uma empregada de verdade assim que o
jornal começar a. . . estou me sentindo tão esqui-
sita. . . Yancey. . .
Ela começou a tombar, e Yancey apanhou
nos braços a Joana d'Are de Osage.
Por incrível que fosse, ela realmente empa-
pelou a casa inteira, ajudada por Isaiah e Jesse
Rickey. O físico de ébano de Isaiah respingado
com a cola branca era de um efeito bizarro, um
pouco assustador para quem entrasse ali sem
saber o que estava se passando. E também os
olhos inebriados de Jesse Rickey, que tão freqüen-
temente faziam com que uma mistura de linhas
aparecesse em pontos inesperados e inconvenien-
tes nas colunas do Taba de Oklahoma, não eram
dos mais precisos na combinação do desenho dos
botões de rosa. O resultado, em algumas junções
do papel, eram rosas enxertadas em folhas e gavi-
nhas emergindo de pétalas. Ainda assim, o efeito

283
provou ser alegre, até um tanto luxuoso. O Clube
Filomático em peso atirou-se ao papel de parede e
à cola, como quando na fase dos potes forrados
das experiências decorativas de Sabra. Em menos
de um mês, Louie Hefner foi compelido a provi-
denciar um vasto estoque de papéis de parede
para satisfazer a procura local.
Lentamente, muito lentamente, a vida da
comunidade, tão agreste, tão desconexa sob mui-
tos aspectos, começou a tomar uma forma mais
civilizada. A princípio, era uma tendência tênue,
quase imperceptível. Mas ora retrocedendo, ora
avançando, Osage ia se tornando uma verdadeira
cidade.
— Está quase na hora do judeu — dizia Sa-
bra, erguendo os olhos de sua costura. — Preciso
de umas agulhas de máquina número 40.
E então, talvez no dia seguinte, ou dias de-
pois, Cim, brincando no quintal, avistava a figura
conhecida, dobrada quase em dois, grotesca,
parecendo um gnomo, de encontro ao céu do
oeste. Era Sol Levy, o mascate, o judeu alsaciano.
Cim corria para dentro de casa, seguido, talvez,
pelos passinhos incertos de Donna.
— Mamãe, o judeu está chegando!
284
Sabra, então, dobrava o trabalho, catava os
fios de linha do avental; ou, se suas mãos estives-
sem ocupadas com alguma massa, apressadamen-
te modelava e revirava as bordas da torta, a fim de
estar pronta para a visita do mascate.
Sol Levy chegara à América como imigrante
nos porões fétidos de algum navio horrível. Seu
cabelo era de um preto azulado e muito espesso, e
o rosto era branco apesar do ardente sol do sudo-
este. A sombra da barba negra acentuava-lhe a
palidez. Ele tinha mãos delicadas, com veias azuis,
e estreitos pés arqueados. O rosto também era
delicado e estreito, e os olhos ligeiramente amen-
doados lhe davam um ar um tanto oriental. Ele
pertencia a lugares movimentados, populosos, a
bazares exóticos e dramáticos. Só Deus sabe
como viera parar nessa imensa região agreste.
Talvez em Chicago, em Kansas City ou Omaha
tivesse ouvido falar na nova região e na corrida de
milhares de pessoas para conseguir um pedaço
daquelas terras. E fizera o percurso a pé. Iniciara
sua carreira de mascate carregando um embrulho
coberto de oleado às costas. Pelas pequenas cida-
des quentes do oeste no verão, pelas gélidas cida-
des do oeste no inverno. As pessoas atiçavam
contra ele os cachorros. As crianças gritavam:"
285
"Judeu! judeu!" Ele era apenas um menino sob
aquela sombra de barba cerrada. Entrava no pátio
de uma casa de fazenda ou moradia numa cidade
como Osage. De olho atento no cachorro. Cãozi-
nho bonito. Cãozinho mansinho. Quieto, quieto!
Alfinetes, agulhas de máquina de costura, peças de
algodão e chita, e por fim, astuciosamente, borda-
do inglês. Bordado inglês para anáguas de meni-
nas, para os aventais da dona da casa; o avental de
musselina branca debruado de bordado inglês,
para ser vestido após serem lavados os pratos da
refeição, a casa arrumada, os cabelos postos em
ordem com um pente molhado, apanhada a cesta
de costura, ou o rolo de tiras de pano para o
tapete de trapos, a ser trançado nas preciosas
horas entre três e cinco da tarde. Ele trazia notí-
cias, também.
— Caiu a ponte abaixo de Gray Horse. . .
Os osages estão realizando um powwow1 em Ho-
miny. A noite inteira, não me deixaram dormir
com os seus tambores, aqueles selvagens. . . O
Kid e seu bando assaltaram o Santa Fé perto de
Wetoka e levaram trinta e cinco mil dólares; mas
um deles nunca mais tornará a assaltar um trem.

1
Cerimônia de conjuração dos índios norte-americanos. (N. do E.)

286
Um tiro na cabeça. Verdigris Bob, é como o
chamavam. Que nome! Dizem que o bando ar-
mado do xerife quase que apanha o próprio Kid
por causa do tal Verdigris Bob. Quando o bandi-
do percebeu que estava morrendo, implorou aos
companheiros que o deixassem para trás e fugis-
sem, mas que primeiro parassem um instante para
lhe descalçar as botas. Aquele assassino queria
morrer sem botas como um homem respeitável!
O Kid parou para fazer-lhe essa última vontade, e
por questão de dez minutos não é apanhado. Que
promoção seria para aquele xerife prender o Kid!.
. . Que país! Meus antepassados ficariam horrori-
zados se me vissem aqui!
Seu belo rosto civilizado, expressivo como o
de um ator, denotava ao mesmo tempo desespero
e ironia. As longas mãos afiladas se abriam num
gesto de perplexa resignação.
Mais tarde, ele comprou um cavalo — um
quadrúpede que incrivelmente tinha o poder de
locomoção —, um animal remelento, cadavérico,
de garupa alta, como um cavalo de pano numa
pantomima. Sol Levy sempre tinha um certo
receio do cavalo, daqueles grandes dentes quadra-
dos como lápides de túmulo. Ele descendia de

287
uma raça de intelectuais e negociantes. Cavalos
nunca tinham feito parte de suas experiências.
Não tinha coragem de tratar do animal, dar-lhe e
comer, oferecer-lhe de vez em quando uma maçã
ou um torrão de açúcar. Com o cavalo e um
carroção desengonçado, ele agora acrescentou
utensílios de cozinha ao seu estoque, e louça
rústica, também; peças de tecido de lã e, astucio-
samente, sedas de cores vivas, flores de pano e
fitas. Dixie Lee e suas moças caíam sobre essas
mercadorias com dedos febris e gritos estridentes,
como crianças. Silenciosamente, ele espalhava as
mercadorias na frente delas. Às vezes, as moças,
aquelas bonitas mentecaptas, procuravam impor-
tuná-lo; penduravam-se nos seus ombros débeis,
alagavam-lhe a barba. Ele as fitava com um olhar
distante, quase triste.
— Ora vamos, Solly! — diziam elas. — Por
que você não sorri? Nunca se diverte. Aposto que
é rico. Todos os judeus são ricos. Não é verdade,
Maude?
Seus olhos afundados as fitavam. Schicksd1.
Elas se sentiam contrafeitas sob aquele olhar,
depois aborrecidas, depois zangadas.
1
Em iídiche, qualquer menina não-judia. (N. do E.)

288
— Suma agora daqui. Vá para o diabo que o
carregue. Já recebeu o seu dinheiro, não é?
Às vezes, ele conversava com Dixie Lee.
Existia entre os dois um estranho entendimento e
algo semelhante a um respeito mútuo. Ambos
eram párias, ele por causa da raça, ela por causa da
vida que levava.
— Uma jovem inteligente como você, por
que está nesta profissão?
— Tenho que viver, Solly. Só Deus sabe por
quê!
— Você é de boa família. É jovem ainda, e é
inteligente. Há outros meios de ganhar a vida.
— Ah, sim? Talvez eu possa ser professora.
Ensinar a um bando de crianças mal-educadas que
dois e dois são quatro e receber onze dólares no
fim do mês pelo meu trabalho. Já tentei mudar de
profissão. Nada feito!
Um ou dois anos depois, ele abriu uma pe-
quena loja em Osage. A princípio, era apenas uma
cabana de madeira contendo duas os três mesas
de pinho em que espalhava a mercadoria. Era o
judeu da cidade. Uma pessoa à parte. Às vezes, os
vaqueiros o atormentavam, ou os freqüentadores
289
de saloons e pistoleiros profissionais. Considera-
vam-no uma presa fácil. Ele os considerava uns
selvagens. Certa vez, Yancey veio em seu socorro
na maneira espetacular de agir tão do seu feitio.
Sentado à sua mesa de trabalho no escritório do
Taba. Yancey ouviu berros, vaias, assobios, e
depois o estalar de uma fuzilaria. O alpendre do
Saloon Sol do Sudoeste estava cheio de fisiono-
mias rindo sob os sombreros. No meio da rua poei-
renta, com as costas contra uma balança Howe,
achava-se Sol Levy. Tinham tentado forçá-lo a
beber de um só trago um grande copo de uísque.
Ele se debatera, tossira, cuspira, conseguira cuspir
a bebida que lhe queimava a boca. Tinham ido
buscar outro copo. Estavam no alpendre, de
pistola em punho. E atiravam nele — nos seus
pés, cabeça, mãos, com uma habilidade diabólica,
milagrosamente sem nunca atingi-lo, mas sempre
tomando o cuidado de atirar a uma fração de
distância. Ele estava desarmado. Se possuísse
uma arma, não saberia como usá-la. Não era de
uma raça combativa.
— Beba! — Os berros eram estridentes e
menos do que humanos. — Se não beber, vai ser
um judeu morto. Dance, desgraçado! Dance para

290
pagar a bebida!
As balas estouravam à volta dele, assobia-
vam-lhe junto aos ouvidos, erguiam a poeira em
redor dos seus pés. Ele não correu. Ficou ali
parado, encarando seus torturadores, imobilizado
pelo medo. Tinha os braços caídos de cada lado.
Seu rosto era de uma palidez mortal. Uma bala
arrancara-lhe o chapéu da cabeça. Seus olhos
estavam ainda mais fundos, sofredores, aterrados,
a cabeça pendida para um lado. As mechas negras
de seus cabelos estavam úmidas, grudadas na
testa. No primeiro instante, ao vê-lo, quando
corria para fora do escritório, Yancey pensou em
seu subconsciente: "Ele parece. . . parece. . ." Mas
a semelhança escapou-lhe da memória. Foi só
mais tarde, depois de terminado o revoltante
incidente, que Yancey constatou Quem o judeu
lhe lembrava ali parado, crucificado contra a
balança.
Yancey correu para a rua. Era impossível di-
zer como ele escapou de ser atingido por uma das
balas. Pareceu saltar por cima delas como num
passe de mágica. Ao mesmo tempo que corria,
sacou suas pistolas de coronha de marfim e, ao
ver seu gesto, metade dos homens no alpendre
291
correu desabaladamente para a porta do saloon,
caindo uns por cima dos outros, erguendo-se,
arrastando-se ou pulando para dentro. Yancey
postou-se ao lado de Sol Levy, com uma expres-
são terrível nos olhos, a cabeça meio abaixada,
como um búfalo prestes a investir. A cena era
muito do seu gosto.
— Faço uma peneira do primeiro filho da
mãe que der mais um só tiro. Juro por Deus que é
o que farei! Vamos, atirem agora, seus cachorros.
Vagabundos nojentos. Não passam de uma ni-
nhada de cascavel!
Ele já era agora uma personalidade em Osa-
ge — na realidade, o homem de maior destaque
na cidade. O pessoal que restara no alpendre
parecia meio intimidado. Uns tinham guardado as
armas nos coldres, outros as giravam entre os
dedos.
— Ora, Yancey, a gente estava brincando!
— Era só para pregar um susto no judeu.. .
Olhem só para ele, o filho da mãe está mais bran-
co que um lençol. Olhem só — cruz credo! Ele
está desabando.
Com um pequeno suspiro, Sol Levy escor-
292
regou para a poeira da rua e ali ficou encolhido
junto à balança Howe. Foi naquele momento, na
maneira curiosa com que a mente humana funci-
ona, que Yancey percebeu a semelhança. Apa-
nhou então o homem e jogou-o por cima do
ombro possante como faria com um saco de
farinha.
— Ei, ei! — gritaram os brincalhões, talvez
agora meio envergonhados.
Yancey, a caminho de sua casa ali perto,
desviou um pouco seu rumo até ir postar-se dian-
te dos degraus manchados de cusparadas de fumo
do alpendre. Seus olhos eram como duas lâminas
de espada reluzindo ao sol.
— Miseráveis! Escória da cidade!
Com seu fardo balouçando por cima do
ombro, ele entrou pelo escritório do Taba para
dentro de casa e colocou-o delicadamente no sofá
da sala. Reanimado, Sol Levy ficou para a refeição
da tarde com os Cravat. Sentado à mesa, muito
pálido, muito quieto, ele delicadamente fingiu
comer. Sabra, porque Yancey lhe havia pedido,
embora meio perplexa, pôs na mesa sua prataria e
uma toalha de linho. Os dedos compridos e finos

293
de Sol Levy seguravam meio trêmulos os talheres
de prata lavrada. Seus fundos olhos melancólicos
iam das feições bem-contornadas de Sabra, com
as sobrancelhas enérgicas, à cabeça maciça de
Yancey, e depois para as crianças e para a alegre
naturalidade com que se comportavam.
— É a primeira vez, em dois anos, que me
sento a uma mesa como esta. A mesa de minha
mãe era assim no nosso país. Meu pai — que sua
alma descanse em paz! — acendia as velas. Mi-
nha mãe — uma santa — estendia na mesa sua
toalha de linho e sua preciosa prataria. Aqui neste
país eu como de um modo que não teríamos
permitido que comesse um mendigo que fosse
bater à nossa porta para pedir comida.
— Esta região de Oklahoma não é lugar pa-
ra você, Sol. É muito bruta, muito rude. Você
pertence a uma raça de sonhadores.
Os olhos melancólicos tinham uma expres-
são remota — quase profética. De repente, pare-
ceram ligeiramente estrábicos, como se ele tivesse
fixado sua visão em algo que os outros não podi-
am ver.
— Não será sempre assim. Esperem. Os
selvagens de agora se transformarão em mitos,
294
como as figuras de monstros que vemos em livros
sobre a pré-história.
— Não se preocupe com aqueles salafrários,
Sol. Pode deixar que, de agora em diante, não vou
permitir que o incomodem mais.
Sol Levy esboçou um sorrisinho amargo.
Seus ombros estreitos se ergueram com cansada
displicência.
— Aqueles bárbaros! Meus antepassados es-
tavam estudando o Talmude e escrevendo as leis
que regem agora o mundo civilizado quando os
deles se balançavam de árvore em árvore.

295
Capítulo XII

Nos três anos e meio de sua residência em


Osage, Sabra não abrira mão de praticamente
nada. Era espantoso. Era heróico. Ela havia esta-
belecido para si mesma certos padrões, que man-
tivera apesar de uma oposição quase irresistível.
Fora criada com tradições. Se cedera em algo, fora
apenas em coisas mínimas e por ser mais prático.
Com efeito, podiam vê-la de manhã a caminho do
açougue ou do armazém com a cabeça protegida
do sol por uma daquelas toucas de algodão risca-
do que, nos primeiros tempos, ela tanto despreza-
ra. Certamente, não se podia colocar na cabeça
um chapéu enfeitado de veludo ou flores para sair
às pressas num vestido caseiro de chita e comprar
um quilo de carne para assar, um punhado de
cebolas e um tablete de fermento.
Só uma vez, naqueles três anos, ela voltara a
Wichita. Passara dias numa febre de antecipação
com a perspectiva da jornada. Levara consigo Cim
e Donna. Estava tão orgulhosa dos filhos, tão
atenta a providenciar-lhes um guarda-roupa sufi-
296
cientemente esplêndido para realçar o charme das
crianças, que negligenciara o seu próprio, e assim
tinha chegado a Wichita com uma mala contendo
as mesmas roupas com que de lá saíra quase
quatro anos antes. Entre essas destacava-se o
vestido de gaze verde com rufos rosa. Este, bem
como o vestido de seda cor de vinho, de pouca
utilidade tinham sido para ela naqueles últimos
anos.
— Sua pele! — exclamara Felice Venable à
vista de sua filha. — Suas mãos! Seus cabelos!
Secos como um osso! Está com uma aparência
terrível. O que fez de si mesma?
Sabra lembrou-se de algo que certa vez Yan-
cey dissera sobre o Texas. Maliciosamente, para-
fraseou o marido com a intenção de chocar sua
intempestiva mãe.
— Oklahoma é um lugar ótimo para ho-
mens e cavalos, mas péssimo para mulheres e
bois.
A visita não foi um sucesso. As próprias coi-
sas de que ela sentira falta não tinham mais a
mesma atração. E agora sentia falta do ritmo, da
inebriante incerteza da vida em Oklahoma. O chá
e as conversas com as amigas de infância pareci-
297
am não ter mais graça ou significado. A existência
daquelas moças era ordenada, calma, conformada.
Para Sabra e as outras mulheres de Osage tudo
ainda estava por fazer. Era uma cidade, uma
região, todo o vasto território a ser varrido e
arrumado por um exército de vassouras femini-
nas. O lado paradoxal de tudo aquilo era que ela
estava tentando implantar na argila vermelha de
Osage as próprias normas e instituições que agora
a entediavam em Wichita. Entretanto, talvez fosse
uma característica bem humana, literalmente
ilustrada pelo fato de, na sua volta, ela se sentir
mais emocionada ao ver que o esquelético olmo,
não mais grosso do que o braço de uma crianci-
nha, e que plantara junto à porta de sua casa em
Osage, tinha encontrado alguma umidade para
suas raízes sedentas e estava agora com certo viço,
do que se sentira à vista das frescas e lustrosas
copas das árvores frondosas que sombreavam o
jardim de Kansas. Sentia um prazer perverso em
provocar uma expressão escandalizada nos rostos
de suas amigas de Wichita, e em toda a horda dos
Venable, Marcy e Vian que tinham acorrido de
vários pontos do sul para saudar a pioneira. O
curioso era que o que mais chocava aquela gente
não eram os tiroteios e histórias sobre índios, mas
298
o que ela lhes narrava sobre a vida social da cida-
de.
— . . .botas de borracha para ir às festas,
freqüentemente porque, quando chove, mergu-
lhamos na lama até os tornozelos. Levamos lan-
ternas quando vamos a reuniões na igreja. . . A
irmã da Sra. Buckner que mora em St. Joseph,
Missouri, veio fazer-lhe uma visita, e comentou
que tinha notado que um tipo de talher parecia ser
o preferido de todas as donas-de-casa de Osage.
Vira-o em todos os chás que lhe tinham sido
oferecidos durante a sua estada ali. Naturalmente,
eram os meus talheres. Todo mundo os pede
emprestados. Tomamos emprestados também
lampiões e louças, e até roupa de cama.
Ao ouvir isto, os Venable, Marcy, Vian e
Goforth pareceram não só chocados como deso-
lados. Baús de roupas de cama e mesa perfumadas
com lavanda, aparadores reluzindo de prataria,
sempre tinham feito parte da tradição dos Vena-
ble.
Depois, as crianças. Os Venable insistiam
em chamar Cim pelo seu nome completo —
Cimarron. Sabra ouvira tão raramente o nome,
desde o nascimento de seu filho, que agora perce-
299
bia, pela primeira vez, a sua tolice em ceder ao
capricho de Yancey na escolha do nome do meni-
no. Cimarron. Espanhol; selvagem, ou indomável.
O menino viera ao mundo com tamanho alarido,
que Yancey exclamara, encantado:
— Olhem só para ele! Reparem os pontapés
e os murros que ele dá com estes punhos cerra-
dos! É um garoto tremendo. Cimarron! Pequeño
gitano.
Pomposamente, o primo Jouett Goforth ou
o primo Dabney Venable faziam perguntas a Cim.
— E agora, Cimarron, meu homenzinho,
conte-nos sobre os peles-vermelhas. Já lutou
contra algum índio, Cimarron?
O menino examinava-os de sob seus longos
cílios, a cabeça abaixada, parecendo a imagem em
miniatura do pai.
Cimarron tinha agora quase oito anos. Se é
possível a um menino de oito anos ter um aspecto
romântico, era este o aspecto de Cimarron Cravat.
Sua cabeça não era grande, como a de Yancey,
mas longa e delicada, como a de Sabra — uma
cabeça Venable. Os olhos, também, eram de
Sabra, escuros e grandes, mas tinham a expressão

300
ardente dos olhos cinzentos de Yancey e também
as absurdamente longas pestanas recurvadas. Seus
maneirismos — a cabeça abaixada, o olhar que de
repente se voltava para cima e que cortava como
um golpe de espada a pessoa em quem se fixava
—, a maneira de gingar quando andava, a gesticu-
lação de suas mãos delicadas — tudo isso era uma
espantosa cópia em escala menor de Yancey.
A maneira de falar do menino era estranha-
mente adulta, talvez devido ao seu estreito conta-
to com os mais velhos naqueles primeiros anos de
formação em Osage. Era um deleite para Yancey
conversar com o filho, levá-lo em longos passeios
a cavalo. Sua pele era bronzeada como a do pai.
Ele parecia um jovem fidalgo espanhol ou talvez
(pensavam intimamente os Venable) mestiço de
índio. Além disso, havia poucos meninos da sua
idade no começo da cidade. Sabra, a princípio,
não queria a companhia deles para o filho. Prova-
velmente, ele teria parecido ser um garoto um
tanto desagradável e pedante se sua voz e seus
modos não fossem milagrosamente agraciados
com todo o charme e magnetismo que seu pai
possuía em grau tão elevado.
Cim agora examinava seus primos adultos

301
com o olhar concentrado e desconcertante de
uma criança precoce.
— Índios — respondeu ele em tom bem
claro — não lutam mais contra os homens bran-
cos. Não podem. Porque... falta-lhes ânimo. — O
primo Dabney Venable, que ainda se dava ao luxo
de usar gravatas de fular de seda preta (moderni-
zadas), tornou-se então ligeiramente apoplético.
— A verdade é que eles só começaram a lutar
porque os homens brancos lhes tomaram os
búfalos, que era do que eles viviam e se alimenta-
vam, trocando os couros por mercadorias; e tam-
bém lhes tomaram as terras.
— Ora, ora! — exclamou o primo Jouett
Goforth, dos Goforth de Louisiana. — Este seu
filhinho está me saindo um verdadeiro pele-
vermelha, prima Sabra.
— E — continuou Cimarron, entusiasman-
do-se com o assunto — precisava ver os índios
osages. Meu pai me levou para visitar a reserva
deles, perto de onde moramos. Os brancos força-
ram todos eles a se mudarem de Missouri para
Kansas porque queriam suas terras, e de lá para
outro local — não lembro onde —, e depois
quiseram também aquela terra, e disseram: "Vocês
302
agora vão viver num lugar no território índio", e é
um lugar árido, onde nada cresce — chamado
Terra Má — a não ser que se trabalhe exaustiva-
mente, e os osages estavam habituados a caçar e
pescar e não a plantar, por isso estão simplesmente
morrendo de fome e meu pai diz que algum dia
ainda irão se vingar dos brancos e. . .
Felice Venable lançou à filha um olhar ful-
minante.
— Ah! — exclamou o primo Jouett
Goforth.
Primo Dabney Venable, ainda o pretendente
despeitado, fitou Sabra com uma expressão mali-
ciosa.
— Imagine só, prima Sabra! Se não tomar
cuidado é capaz de um dia vir a ter como nora
uma Pocahontas!
Sabra estava furiosa, embora o orgulho a
impedisse de deixar transparecer sua raiva.
— Oh, Cim deve ter ouvido conversas de
homens lá na redação do jornal — o Sr. Heeney,
comissário dos índios, às vezes passa por lá quan-
do vai a Osage. Estão falando agora em transferir
o escritório do comissário de índios para Osage,
303
embora Oklahoma City queira que seja lá. Yancey
sempre se preocupa muito com aqueles infelizes
índios. Cim já o ouviu falando no assunto.
Cim percebeu que não tinha produzido o
efeito desejado em seus ouvintes.
— Meu pai diz — anunciou ele, de repente,
caminhando de um lado para outro da sala, numa
absurda e inconsciente imitação do seu ídolo, e
quase se podia imaginar as abas da sobrecasaca se
agitando —, meu pai diz que um dia um índio
será presidente dos Estados Unidos, e então
aposto que vocês todos vão se arrepender de
terem sido tão sujos com os índios.
Os olhos dos Venable presentes se viraram,
como uma só órbita, da truculenta figura do me-
nino para o rosto agitado de sua mãe.
— Minha pobre filha — disse Felice Vena-
ble num tom mais de indignação que de pena.
— Vocês não poderiam entender — retor-
quiu Sabra adotando um ar digno para se defen-
der. — Nossa vida lá é muito diferente da vida
aqui. Os editoriais de Yancey sobre os índios no
Taba têm causado sensação. Já foram discutidos
no Senado em Washington. — Com um abano de

304
mão, Felice Venable desconsiderou todos os
esforços jornalísticos de Yancey. Mas Sabra pros-
seguiu, ela que detestava os índios e tudo o que
representavam. — O fato é que os seus editoriais
sobre o assunto foram tão destemidos e livres que
ele corre perigo de vida com as ameaças das pes-
soas que têm despojado os índios. O perigo é
ainda maior do que quando ele denunciou o as-
sassino de Pegler.
— Pegler — repetiram desdenhosamente os
Venable sem um vislumbre de curiosidade.
Sabra desistiu de lutar.
— Não podem compreender — disse ela.
— Só se interessam por frivolidades.
Até a pequena Donna não fez muito suces-
so. A menina lembrava um duendezinho, tão
feinha quanto o menino era bonito. Ela se parecia
com a avó, Felice Venable, mas sem ter herdado
nada da antiga beleza da temível matrona. Não
obstante, possuía aquela qualidade indefinível a
que chamam estilo. Com dois anos de idade, ela
usava com inegável chique as roupinhas desajeita-
das que Sabra tivera tanto trabalho em fazer, ou
quando aparecia trajando os vestidinhos brancos,
cheios de bordados, nervuras e franzidos, execu-
305
tados pela sua talentosa porém relutante avó.
— Graças a Deus, pelo menos ela tem estilo
— foi o comentário mordaz de Felice Venable. —
Terá que se arrumar com isso, pois é só o que
possui a seu favor.
No final das contas, Sabra se viu voltando
com alegria à terra agreste e quente para onde
fora, quatro anos antes, com tanto temor. Irritava-
a o despotismo da mãe. Via agora Felice Venable
não mais como uma força, uma autoridade em
todas as questões de importância, mas como uma
velha senhora desbotada, que andava meio trôpe-
ga com saltos demasiado altos e que enquanto
falava dobrava e desdobrava com dedos trêmulos
os profusos babados de seu xale de fustão. A
matriarca perdera sua coroa. Agora Sabra era a
matriarca de seu pequeno reino; e já começava a
planejar estender esse reino para além dos presen-
tes limites, até sabe Deus que vastidões.
Ela decidiu que tinha que ter mais autorida-
de com os filhos. Não ia mais admitir aquelas
conversas sobre índios, liberdade, ou igualdade
dos homens. Não compreendia (estando ainda
longe o tempo em que a psicologia iria ser tão
profusamente aplicada à educação das crianças)
306
que, no que se referia a Cim, sua decisão estava
com atraso de muitos anos. Aos oito anos de
idade, o caráter dele estava formado. Ela lhe
ensinara as coisas que aprendera com Felice Ve-
nable — estique o corpo; coma sua comida; lave
as mãos; cumprimente as senhoras; um e um
somam dois; alguém andou tomando minha sopa,
disse o ursinho. Mas Yancey lhe ensinara poesia
muito adiantada para sua idade, e habituara os
ouvidos do filho às magníficas cadências da Bí-
blia; Yancey contara-lhe, trecho por trecho, e
meio inconscientemente, toda a saga da coloniza-
ção do grande sudoeste.
— Vaqueiros usam chapelões para proteger
o rosto da chuva e do sol quando estão a cavalo
em campo aberto, e para impedir que a neve lhes
pingue nas costas. Usam um lenço amarrado na
nuca e com as pontas para a frente, a fim de po-
derem enxugar com ele o suor e a poeira do rosto,
e depois o lenço seca facilmente ao vento; numa
tempestade de poeira, eles tapam o rosto com o
lenço, e numa tempestade de neve o usam para
impedir que o nariz e o queixo congelem. Usam
chaparajos de couro com o lado peludo para fora, a
fim de abrigar as pernas no inverno e protegê-las
no verão contra cactos e outras plantas espinho-
307
sas. Suas botas têm saltos altos para evitar que os
pés escorreguem para fora dos estribos quando
eles têm que trabalhar em pé na sela, e porque
podem firmá-los na lama quando estão laçando
um cavalo selvagem. E andam armados para
impedir que outros atirem neles.
O menino ouvia de olhos arregalados, fasci-
nado. Yancey contou-lhe a história do búfalo;
falava interminavelmente nos índios. Chegou
mesmo a ensinar-lhe algumas palavras de coman-
che, que é a linguagem cerimonial dos índios.
Colocou-o sobre um cavalo quando o menino
tinha seis anos de idade. Tratando-se de um sen-
timental e um romântico, ele falava ao menino
sobre o pôr-do-sol; sobre o ouro espanhol; sobre
os dias violentos do Cimarron e o império que
quase fora ali fundado. O menino amava a mãe,
como um fato natural, como uma criança ama a
fonte de alimento, os cuidados ternos, a proteção.
Mas o pai ele adorava.
Para Sabra, a estada em Wichita representou
um desgosto, uma dor. Madre Bridget tinha mor-
rido duas semanas antes da sua chegada. Foi só
quando soube da triste notícia que ela compreen-
deu o quanto desejara contar à freira as suas expe-

308
riências em Osage. Madre Bridget a teria compre-
endido. Teria rido da história dos dez barris de
água; do beijo do vaqueiro impetuoso no meio da
rua; teria entendido o terror de Sabra naquele
culto religioso dominical. Ela própria conhecera
aquela vida meio século antes, em Kansas. Sabra,
durante sua permanência em Wichita, não visitou
a escola da missão. Faltou-lhe coragem.
Até o fim, tencionara encontrar uma ocasião
para informar à sua mãe e a outros membros da
família Venable que era ela quem passava a ferro
as elegantes camisas de linho branco de Yancey.
Mas não era uma mulher malévola. E pensou que
a revelação poderia ser interpretada como uma
crítica a seu marido.
Assim, alegremente, ansiosamente, Sabra
voltou para a terra agreste que em outros tempos
tanto desprezara.

309
Capítulo XIII

Antes de a Katy parar na estação de Osage


(a estrada de ferro fora prolongada, confirmando
a predição de Dixie Lee, de Wahoo para Osage e
mais adiante), os olhos de Sabra já vasculhavam a
plataforma de madeira. Len Orson, o conversador
e serviçal chefe da estação, apanhou Donna nos
braços e ficou com ela ao pé dos degraus do
vagão. Sua pesada corrente de relógio folheada a
ouro, grossa como um cabo, com seus concomi-
tantes emblema maçônico, dente de alce, lápis de
ouro e caroço de pêssego esculpido na forma de
um macaco, continuava fascinando Donna, que
passara a viagem inteira querendo agarrar a cor-
rente cada vez que ele passava por onde Sabra
estava sentada ou parava para contar-lhe alguma
novidade do território. Ela estava ansiosa por
notícias, e Len era um notório novidadeiro. Ago-
ra, ao descer do trem, a fisionomia de Sabra tinha
uma expressão de radiante expectativa, caracterís-
tica de quem está de volta de uma viagem e confi-
ante numa acolhida calorosa,

310
— Bem, imagino que alguém vá ficar bem
triste por vê-la de volta — disse Len, brincando.
Olhou em redor à procura de um par de braços
vigorosos em que depositar Donna. O sino da
locomotiva tocou, o apito soltou um silvo. Os
bondosos olhos azuis do chefe do trem percorre-
ram a plataforma da estação. Não tendo outro
jeito, colocou Donna nos braços estranhamente
frouxos de Sabra, e plantou um pé, com o pesado
sapato preto de bico quadrado, no degrau do
vagão no último instante, quando o trem já se
punha em marcha.
Yancey não estava lá. O sol ardente invadia a
estação de madeira pintada de vermelho. Yancey
simplesmente não comparecera. E não somente
isso. A plataforma da estação, em geral agraciada
por uma dezena de ociosos e curiosos que se
agrupavam ali para observar o excitante evento das
chegadas e partidas diárias da Katy, estava vazia.
Até mesmo a figura familiar de Pat Leary, o agente
da estação, que sempre saía correndo em mangas
de camisa para recolher volumes ou sacos de
correspondência deixados na plataforma de Osage,
não estava visível. De dentro do escritório da
estação ouvia-se o som do telégrafo. As batidas
eram rápidas, frenéticas mesmo. Ecoavam sem
311
cessar no silêncio quente da tarde.
Sabra sentiu as pernas fraquejarem-lhe. Algo
de errado estava acontecendo. Largou suas caixas,
sacolas e embrulhos na plataforma onde Len
Orsen gentilmente os depositara. Meia hora antes
da chegada a Osage, ela confiara as crianças aos
cuidados de um passageiro enquanto ia ao toalete
para trocar seu vestido por um dos novos, feitos
em Wichita com a marca de elegância de Kansas
City: verde com ruches creme no pescoço e pu-
nhos, e um chapéu de palha de Itália com rosas
creme. Tinha antecipado a expressão nos olhos
cinzentos de Yancey ao vê-la naquele traje. Vestira
as crianças impecavelmente e ameaçara-as de
coisas terríveis se manchassem tanto esplendor
antes de seu pai poder vê-los.
E agora, ele não comparecera.
Com Donna nos braços e Cim a seu lado,
ela se apressou na direção do som do telégrafo.
Mas seus olhos ainda buscavam no poeirento
caminho vermelho que levava à estação uma
figura alta com sombrero branco e sobrecasaca
esvoaçante.
Espiou pela janela da estação. Pat Leary es-

312
tava curvado sobre o aparelho do telégrafo. Um
irlandesinho esperto que chegara ao território
juntamente com a equipe da estrada de ferro,
quando a Katy estava sendo construída. Agora
agente da estação, à noite ele estudava advocacia.
— Sr. Leary! Sr. Leary! Por acaso viu Yan-
cey?
Ele a fitou distraidamente, a mão ainda na
tecla. Clique... clique... cliqueticliqueticliqueticlique
— cliqueti-quecliquetiqueclique.
— O que disse?
— Sou a Sra. Cravat. Acabo de desembarcar
da Katy. Onde está o meu marido? Onde está
Yancey?
Ele bateu na tecla mais um instante; depois
enxugou a testa molhada com o braço protegido
pela manga postiça de cetineta preta.
— Ainda não sabe?
— Não — murmurou Sabra com lábios rí-
gidos que pareciam não fazer parte do seu corpo.
Depois, numa voz que se ergueu até gritar: —
Não! Não! Não! O que houve? Ele está morto?
O irlandês aproximou-se então de Sabra,
313
que se apoiara à janela da bilheteria.
— Oh, não, minha senhora. Yancey está
bem. Praticamente, não está machucado. Apenas
um raspão no braço — e assim mesmo, no braço
esquerdo.
— Ai, meu Deus!
— Não fique nervosa. Vai desmaiar ou. . .?
— Não. Conte-me tudo.
— Tenho estado tão ocupado. . . Yancey
apanhou o Kid, sabe? Matou o Kid. A cidade
inteira enlouqueceu. Foi uma batalha travada na
Avenida Pawhuska, em frente ao banco, e corpos
tombando por toda parte como num campo de
batalha. Estou mandando a notícia para fora. Não
tenho muito tempo mas vou lhe dar uma idéia.
Foi o maior acontecimento na história do territó-
rio — ou em todo o sudoeste. Não vou me admi-
rar se fizerem Yancey presidente, ou pelo menos
governador. Parece que Yancey tinha saído para
caçar nas montanhas na quinta-feira passada. . .
— Quinta-feira! Mas é o dia em que o jor-
nal é publicado.
— Bem, o Taba não tem saído muito regu-
larmente desde que a senhora viajou. — Ela dei-
314
xou passar o comentário sem responder. — Lá na
montanha, ele esbarrou com o Dr. Valliant, bêba-
do, mas não tão bêbado que não desse para reco-
nhecer Yancey. É engraçado o que acontece com
o Dr. Valliant. Ele pode estar bêbado de cair, mas
uma parte do seu cérebro continua limpa como
um diamante. Eu já o vi extrair uma bala de Luke
Slaughter e costurar o ferimento; estava tão bêba-
do que não podia distinguir a mão direita da es-
querda, ou onde estava, mas fez o trabalho. O
quê? Ah, bem, bêbado como está, mesmo assim
conta a Yancey que estão bem no lugar onde fica
o esconderijo do Kid e sua quadrilha. Um dos
homens ficou muito ferido naquele último assalto
à Santa Fé em Cimarron. O homem estava para
morrer, mas eles mandaram buscar o Dr. Valliant
e ele veio e o salvou. Eles apanharam perto de
trinta mil dólares no assalto, e parece que isso lhes
subiu à cabeça. Valliant ouviu o bando planejando
entrar hoje em Osage e assaltar o Banco Nacional
em plena luz do dia, como o Kid sempre faz. Já
estava a caminho da cidade. Pois bem, Yancey
partiu a galope no cavalo para avisar a cidade, mas
sabia que tinha que tomar por um atalho ou iria
esbarrar com a quadrilha e eles podiam desconfiar
de alguma coisa. O fato é que Yancey chegou
315
mesmo a encontrá-los por acaso. Quando o Kid
vê Yancey, dá um daqueles seus sorrisos de lobo e
grita: "Olá, Yancey, ainda está publicando aquele
seu jornal em Osage?" Yancey responde: "Estou,
sim". Kid pergunta: "E quanto custa a assinatu-
ra?" Yancey diz que custa um dólar por ano. O
Kid apanha uma sacola de couro com dez dólares
de prata dentro e joga-a para Yancey. "Me mande
o jornal por dez anos", diz ele. "Para onde?",
pergunta Yancey. Então o Kid começa a rir com
aquele seu riso de lobo e diz: "Não pensei nisso.
Vou ter que te mandar o endereço depois". Daí,
Yancey, parecendo inocente e dócil como uma
criancinha, segue seu caminho, com um livrinho
de poemas na mão que está lendo ou fingindo que
lê; mas na primeira chance que tem, corta por um
atalho, faz seu cavalo saltar por cima de fossas e
varar pelo mato como se fosse um cavalo de
circo, uma centopéia, ou coisa parecida. Ele chega
a Osage morto de cansaço e com o cavalo espu-
mando, dez minutos antes de Kid e sua gente
invadirem a Avenida Pawhuska, com as pistolas
disparando como se fossem um regimento em
combate, e rumando em disparada para o banco.
Mas a cidade já os está esperando. Uma sangueira!
Sabra não esperou para ouvir mais. Virou-se.
316
Ao virar-se, avistou vindo pelo caminho numa
nuvem de pó um grotesco espantalho, todo cane-
las, dentes e olhos revirados. O pretinho Isaiah.
— Não, Dona Sabra, ele não está machuca-
do — não machucado de verdade. Não, senhora.
Só um raspãozinho no braço, e o braço já está
preso num lenço de seda preta que é muito ele-
gante. Mas não deixam ele em paz. Todo mundo
na cidade quer apertar a mão dele porque foi ele
quem deu o tiro que matou o Kid. E sabe o que
ele fez depois, Dona Sabra? Ele se ajoelhou no
chão e chorou como uma criança. . . Deixe que eu
carrego sua valise. E a garota, também, Dona
Sabra. Meu Deus, como ela cresceu!
O escritório, a oficina, a sala de estar, a co-
zinha, o quarto, estavam cheios de homens de
botas, esporas, sombreros; homens de macacão,
mulheres, crianças. A Sra. Wyatt lá estava, as
filomáticas em peso tinham comparecido; a pró-
pria Dixie Lee aparecera, todo mundo enfim,
exceto — sinistramente — Louie Hefner.
— Então, Sra. Cravat, imagino que deva es-
tar muito orgulhosa do seu marido!. . . Este é um
grande dia para Osage. Oklahoma City deve agora
saber que esta cidade existe, está no mapa. . .
317
Perdeu o tiroteio, Sra. Cravat, mas chegou a tem-
po de ajudar Yancey a celebrar. . . Só a Santa Fé
ofereceu cinco mil dólares pela captura do Kid,
vivo ou morto. O prêmio, sem dúvida, vai ser de
Yancey. E a Katy fez o mesmo. E o governo
também pôs a cabeça dele a prêmio, e o Banco
Nacional vai desembolsar um dinheiro. A senho-
ra, de agora em diante, vai poder ter uma carrua-
gem e todos os vestidos de seda que desejar.
Yancey estava parado junto à sua escrivani-
nha no escritório, de costas para a parede, como
que mantendo a multidão a distância em vez de
receber as pessoas como amigos que vinham
congratulá-lo. As longas mechas de cabelo caíam-
lhe úmidas sobre os ombros. Sob o bronzeado da
pele, seu rosto estava pálido, como prata sob a
laca. A cabeça pendia-lhe no peito. O braço es-
querdo se apoiava numa tipóia improvisada de
seda preta e encarnada feita com um dos seus
lenços mais piráticos.
Quando Sabra entrou, ele ergueu os olhos, e
a expressão de seu rosto fez com que ela lhe
perdoasse por tê-la negligenciado; perdoasse a
invasão da casa pelo que Felice Venable teria
denominado escória ou pior; sua infidelidade ao

318
jornal. Donna, cansada e assustada, pusera-se a
berrar. Cim, excitado, fazia toda sorte de travessu-
ras. Mas quando Yancey deu um passo titubeante
para ela, Sabra tinha só um filho, e esse filho
precisava dela. Tornou a jogar Donna nos braços
de, Isaiah; deixou Cim embarafustando-se entre as
pessoas; correu para Yancey, atirou-se nos seus
braços, mas foram os braços dela que pareceram
sustentá-lo.
— Sabra. Meu amor. Mande esta gente em-
bora. Estou tão cansado. Oh, meu Deus, como
estou cansado.
No dia seguinte, exibiram o corpo do Kid na
nova vitrina da Loja de Móveis e Agência Funerá-
ria Hefner. Toda Osage foi vê-lo, todo o conda-
do; vinham de trem, a cavalo, em carroções, car-
ros de boi, de quilômetros e quilômetros de dis-
tância. O Kid. O jovem que, com seus vinte e
poucos anos, matara ninguém sabia quantos
homens — cujo nome era um símbolo de terror,
audácia e incríveis pilhagens em todo o sudoeste.
Até mesmo em Nova York o seu nome era co-
nhecido. Tinham sido escritos livros sobre ele.
Muito antes de sua morte, o Kid já era uma figura
lendária. E agora, ele e Clay McNulty, seu "tenen-

319
te", jaziam lado a lado, muito quietos, muito
passivos. A aglomeração era tão densa que amea-
çava a vitrina de Louie Hefner. Ele teve que es-
tender uma corda para protegê-la, e quando a
barreira deixou de conter as pessoas, ele postou
guardas armados na entrada, e falou-se em man-
dar chamar a milícia em Forte Tipton. Sabra disse
que era revoltante, uma falta de civilização. Proi-
biu Cim de se aproximar da vitrina — chegou
mesmo a mantê-lo virtualmente prisioneiro no
seu quintal. Isaiah, ela não conseguiu reter. O
corpo negro e magro esgueirava-se por entre a
multidão; o rosto de ébano, de olhos arregalados,
estava sempre na primeira fila, fascinado com o
espetáculo na vitrina de Hefner. Ele se tornou,
efetivamente, uma espécie de cicerone, falando
sobre o Kid, sua vida, os assaltos que praticara, a
batalha em que perdera a vida defronte do banco
que pretendera despojar.
— Uma coisa não se pode negar — diziam
os homens de olhos pregados no defunto. — O
Kid não era um covarde. Quando assaltava um
trem, um banco ou travava luta com o pessoal do
xerife, era sempre em plena luz do dia. Era sempre
meio-dia quando invadia uma cidade. Nunca usou
nitroglicerina ou deu tiros por detrás de cercas ou
320
árvores no escuro. Nada disso! Era sempre em
campo aberto, e correndo mais riscos do que
aqueles a quem roubava. E como montava! Não se
podia distinguir o Kid do seu cavalo. Eram como
uma peça só. E como atirava! Parecia mágica.
Dizem que ele tem meio milhão em ouro num
esconderijo nas montanhas.
Durante semanas, meses, as montanhas fo-
ram vasculhadas por aventureiros em busca do
suposto tesouro enterrado.
Sabra fez uma coisa estranha, terrível. Yan-
cey não queria sequer chegar perto da vitrina
macabra. Sabra o apoiou; denunciou a multidão
ali aglomerada, como abutres e hienas. Depois,
subitamente, no último instante, quando o sol,
derramando sua luz escarlate, se punha no hori-
zonte plano, ela saiu de casa, desceu a rua, como
que em transe, como uma sonâmbula, e parou
diante da vitrina de Hefner. Respeitosamente, o
povo abriu caminho para ela. Eles a conheciam.
Era a mulher de Yancey Cravat, o homem cujo
nome aparecia nas manchetes de todos os jornais
dos Estados Unidos, e até do outro lado do ocea-
no.
Tinham vestido nos dois bandidos ternos
321
pretos comprados prontos, mal-tratados, desajei-
tados, demasiado grandes para os dois corpos
esguios e musculosos. O rosto de Clay McNulty
tinha um ar ligeiramente surpreendido. Seus lon-
gos bigodes louros caíam sobre uma boca de
singular doçura e resignação. Mas o rosto do Kid
se fixara num sorriso sardônico que punha à
mostra seus caninos de lobo. Morto, ele parecia
mais velho do que em vida, pois tinham sido
muito poucos os seus anos para os vincos que os
dedos da morte costumam apagar; e os olhos
capazes de perfurar, em quem se pousavam, como
uma das balas de sua temível pistola, agora esta-
vam para sempre extintos sob as sombras cinzen-
tas das pálpebras.
Era para o Kid que Sabra estava olhando; e
tendo olhado, ela se virou e caminhou de volta
para casa.
A população deu-lhes um enterro decente,
tudo de acordo com as normas, e quando o minis-
tro se recusou a ler as orações para aqueles dois
pecadores, Yancey consentiu em substituí-lo, e o
fez parado junto ao monte de terra vermelha de
Oklahoma recentemente cavada sujando-lhe as
elegantes botas de salto alto, e com o sol ardente

322
refletindo seus raios sobre os cachos negros de
sua cabeça descoberta.
— "Aquele que derramar o sangue do ho-
mem, pelo homem terá seu sangue derramado. . .
Sua mão se erguerá contra cada homem, e cada
homem erguerá a mão contra ele... As palavras em
sua boca eram mais macias do que manteiga, mas
havia guerra em seu coração. . . Incautos podem
debochar do pecado. . ."
Para marcar as sepulturas, colocaram sobre
elas duas toscas lápides de madeira. Mas caçado-
res de lembranças com seus canivetes reluzentes
logo liquidaram as lápides. Os dois montículos de
terra foram afundando mais e mais. Em breve,
nada mais diferenciava o local na campina do resto
da argila vermelha que se estendia por léguas em
redor.
Remeteram a Yancey, pelo correio, em che-
ques, e através de comitivas solenes vestidas de
terno e colarinho branco, as substanciais recom-
pensas em dinheiro que, durante quase cinco
anos, tinham sido oferecidas pela Santa Fé, pela
Katy, pelo próprio governo e por vários bancos,
pela captura do Kid, vivo ou morto.
Yancey recusou todo aquele dinheiro. As
323
comitivas, o povo da cidade, a região, se mostra-
ram chocados e até mesmo ofendidos. Sabra, que
se mantivera calada, finalmente protestou.
— Iríamos poder construir uma casa decen-
te. . . comprar uma nova máquina impressora. .. a
educação de Cim. . . Donna. . .
— Não recebo dinheiro por matar um ho-
mem — repetia Yancey a cada oferecimento de
dinheiro. As comitivas e os cheques voltaram
como tinham vindo.

324
Capítulo XIV

Sabra notou que a mão de Yancey tremia


com um perceptível entorpecimento antes do café
da manhã, e que o tremor era ainda mais acentua-
do quando a mão se aproximava da primeira dose
de uísque que ele sempre engolia antes de comer
qualquer coisa. Bebia o uísque de um só trago
como quem toma um remédio para aliviar alguma
dor. Quando recolocava o copo sobre a mesa,
respirava fundo. E milagrosamente, sua mão
recobrava a firmeza.
Cada vez mais, ele "negligenciava o noticiá-
rio e os detalhes comerciais do Taba. Parecia
inquieto, temperamental, distraído. Sabra lem-
brou-se com um aperto no coração de algo que
ele dissera logo depois da chegada a Osage. "Meu
Deus, quando penso naqueles anos em Wichita!
Quase cinco anos no mesmo lugar — o maior
tempo que já cumpri."
O jornal estava prosperando, pois Sabra ca-
da vez lhe dedicava mais tempo. Mas Yancey
parecia ter perdido o interesse, como acontecia
325
sempre que concretizava algum plano. Agora era
mais uma questão de conseguir anúncios, coletar
informações individuais e locais, noticiar eventos
relativos a questões de propriedade, comércio e
círculos sociais. O Sr. e a Sra. Abel Dagley passa-
ram o domingo em Chuckmulbre. O Reverendo
McAlestar Couch está percorrendo o circuito de
Doakville.
Mesmo no tribunal, ou falando em alguma
reunião da população de Osage, Yancey, às vezes,
portava-se de maneira estranha. Parava em meio
de alguma frase floreada. Ao mesmo tempo um
homem selvagem e supercivilizado, o fulgor da luz
dos lampiões, a atmosfera quente, irrespirável, os
rostos brancos e vazios rodeando-o como balões
o exasperavam. Já acontecera retirar-se brusca-
mente, deixando perplexos os presentes. Na sala
do tribunal, era uma figura alarmante. Quando
estava defendendo um caso local ou territorial as
pessoas acorriam de léguas de distância para ouvi-
lo, e a tosca cabana de pinho que abrigava o tribu-
nal ficava sufocantemente repleta. Ele dominava
qualquer júri de habitantes da região — um mas-
todonte de sobrecasaca e fina camisa de linho, a
felpuda cabeça de búfalo investindo ameaçadora-
mente contra seu oponente. A sua oratória era
326
própria da época, bombástica e floreada, cheia de
sentimentalismo, hipérboles e rodeios. Mas podia
ser bem incisivo quando necessário; e seu charme,
sua força magnética, eram inegáveis, e quase inva-
riavelmente emergia vitorioso do tribunal. E não
considerava abaixo de sua dignidade lançar mão
de truques para ganhar uma causa. Em certa oca-
sião, quando seu cliente estava sendo julgado por
ter tomado parte num tiroteio que terminara de-
sastrosamente, o júri, apesar de todos os esforços
de Yancey, deu claras demonstrações de que esta-
va pendendo para a condenação. Deliberadamen-
te, Yancey adotou uma atitude de fúria gigantesca.
Trovejou, berrou, sapateou, chorou, pôs-se a
representar os acontecimentos que tinham resul-
tado em morte e então, enquanto os jurados arre-
galavam os olhos de susto e os mais fracos enxu-
gavam o suor da testa, subitamente ele sacou suas
famosas pistolas de coronha de marfim com in-
crustações de prata. "E isso, cavalheiros, foi o que
o meu cliente fez", disse ele, apontando as armas.
Foi então que o júri, com um grito geral de puro
terror, se ergueu em conjunto, correu para janelas
e portas e fugiu.
Yancey olhou em redor, com um ar de sur-
presa e de ofendida inocência. O júri tinha deban-
327
dado. De acordo com a lei, tinha que ser selecio-
nado um novo júri. O crime foi a novo julgamen-
to. Yancey ganhou a causa.
Sabra encarregava-se cada vez mais da publi-
cação e mesmo da impressão do Taba de Oklahoma.
Arranjou como empregada para todo o serviço
uma índia osage de quinze anos que freqüentara a
escola para índios e tinha aprendido alguns rudi-
mentos de trabalhos domésticos: limpeza, lavagem
de louça e de roupas, até mesmo coisas mais sim-
ples de cozinha. Cuidava também de Donna. Seu
nome era Arita Pena Vermelha, uma menina qui-
eta, dócil, que andava pela casa com seu vestido de
chita e mocassins e para quem todos os dias Sabra
tinha que repetir as mesmas coisas. Isaiah já estava
muito crescido para aquele tipo de trabalho. Ele
agora representava um problema na casa. À suges-
tão de ser enviado de volta a Wichita, pôs-se a
chorar desesperadamente e só se consolou quando
Sabra e Yancey lhe afirmaram que podia ficar com
eles para sempre. Assim, agora ajudava Arita Pena
Vermelha nos trabalhos mais pesados, desempe-
nhava várias funções na oficina do jornal, levava
recados, tomava conta para que Donna não se
atirasse sob as patas dos cavalos e podia até mes-
mo fazer num instante um tabuleiro de bolinhos
328
ótimos e leves. Quando Jesse Rickey estava muito
bêbado para ficar de pé junto à caixa de tipos e
Yancey se ausentava para tratar de alguma questão
judicial, lentamente e com muito esforço ele
ajudava Sabra a tornar possível a edição semanal
do Taba de Oklahoma. O dialeto de Arita Pena
Vermelha tornou-se uma linguagem confusa em
que o seu idioma nativo, a dicção requintada de
Sabra e o sotaque de negro sulista de Isaiah se
misturavam num jargão quase ininteligível.
— Vou lavá roupa água chuva grande ex-
tremamente excelente para faz roupa branca de
tudo.
— Ótimo! — dizia Sabra. Então, uma hora
mais tarde: — Oh, Arita, não se lembra que eu já
lhe disse cem vezes que o anil deve ser colocado
na roupa depois de ser esfregada e não antes?
Os olhos negros da índia, totalmente des-
providos de expressão, impassivelmente fitavam
Sabra.
Nomes de famílias com uma dose de sangue
índio apareciam de quando em quando nas colu-
nas do Taba, pois já agora Sabra sabia que havia
no território famílias de ascendência francesa e
índia que se consideravam aristocratas. Era o
329
velho substrato francês de St. Louis, Missouri,
despontando na terra recém-estabelecida. Os
primeiros franceses chegados a St. Louis tinham
vindo para negociar peles e couro cru com os
osages, e haviam feito das índias suas squaws. Havia,
salpicados na nomenclatura comum da fronteira,
nobres nomes antigos tais como Belllieu, Revard,
Revelette, Tayrien, Perrier, Chouteau; e seus
donos tinham a inconfundível tez e o porte do
índio. Com freqüência essas pessoas de pele escu-
ra usavam, o que era um tanto ridículo, também
sobrenomes irlandeses, pois os trabalhadores
irlandeses que tinham chegado com pá, picareta e
alavanca para construir as estradas de ferro do
território haviam se casado com índias. Viam-se
indiozinhos com sobrenomes como Kelly, Fla-
herty, Riordan e Casey.
Tudo isso deixava Sabra muito perplexa.
Mas ela fazia um trabalho de homem no jornal,
lutando com tremendas dificuldades, pois Yancey
agora se ausentava freqüentemente, e ela não
tinha ninguém a não ser o hesitante Jesse Rickey
com quem se consultar. Havia vezes em que
também ele lhe falhava. Mas, de uma ou de outra
forma, o jornal continuava sendo editado regu-
larmente todas as semanas.
330
"A Sra. Rosey, que mora uns vinte quilôme-
tros a nordeste da cidade, está muito doente com
la grippe. Vovó Rosey é muito idosa, e há receios
quanto à sua recuperação."

"Haverá pregação pela manhã e na noite do


próximo domingo na igreja presbiteriana pelo
Reverendo J. H. Canby. Compareçam e ouçam o
novo sino da igreja."

"A Sra. Wicksley veio passar esta semana


com o juiz."

"Há um movimento no sentido de provi-


denciar para que sejam tapados os buracos na
Avenida Pawhuska. O estado atual da avenida é
uma vergonha para a comunidade."

"C. H. Snack e família pretendem partir na


próxima semana para uma prolongada visita aos
parentes da Sra. Snack em Kansas. O Sr. Snack se
desfez de suas propriedades num leilão na segun-
da-feira passada. Quem sai ganhando com a nossa
perda é Kansas."

331
(Este era um parágrafo sinistro. Imaginava-
se C. H. Snack um fracassado, um derrotado, de
volta a Kansas para levar a vida de um marido
humilhado, perseguido, apenas tolerado pelos
parentes da mulher.)
Sabra, quando num aperto, chegava a lançar-
se à difícil tarefa de compor um editorial, embora
Yancey raramente lhe falhasse de todo nesse
departamento. Um jornal rival se estabeleceu do
outro lado da rua e, por dois ou três meses, con-
seguiu manter-se em circulação. Os editoriais de
Yancey naquele período eram extremamente
pessoais.

"Os chamados editores do órgão do outro


lado da rua estiveram de novo espiando pelas
vidraças que lhes refletem as próprias imagens.
Uma árvore é conhecida pelos seus frutos. As
diretrizes adotadas pelo Expresso não consubstan-
ciam sua alegação de ser um jornal republicano."

Os leitores masculinos gostavam de coisas


assim. Era Yancey quem se encarregava de notí-
cias tais como:

332
"Charles Flasher, procurado por assassinato,
falsificação, venda de bebidas alcoólicas sem
licença e fuga da prisão em Skiatook, foi captura-
do em Oklahoma City quando tentava tomar um
trem na estação de Choctaw".

Mas era Sabra quem atraía as leitoras com


suas receitas de assado de vitela, salada de repo-
lho, feijão de forno e do pão-de-ló servido na ceia
da igreja; também descrições um tanto comove-
doras da decoração e toaletes usadas no casamen-
to de uma jovem da sociedade local ou adjacên-
cias.
Se, no quarto de século que se seguiu, todos
os dados sobre a colonização de Oklahoma se
tivessem perdido, exceto os exemplares do Taba
de Oklahoma, ainda assim restaria um claro e inclu-
sivo registro da vida e dos aspectos morais, políti-
cos, sociais e econômicos daquela estranha comu-
nidade. De semana em semana, de mês em mês, o
leitor poderia ter notado nas colunas do jornal
quaisquer progressos daquela fantástica fatia da
República dos Estados Unidos.
Era a época das brincadeiras, e Yancey esta-
va sempre negligenciando seu jornal e seu escritó-

333
rio de advocacia para planejar, com um grupo
selecionado por ele, alguma peça a ser pregada em
algum cidadão ou recém-chegado na região. Essas
peças freqüentemente levavam semanas sendo
planejadas. Em geral, fundavam-se nas noções
errôneas do recém-chegado com referência aos
índios. Se esse era o território índio, argumentava
ele, não sem razão, devia estar repleto de índios.
As estatísticas falavam por si mesmas. Havia
duzentos mil índios no território. Índios significa-
vam tomahawks1, escalpelamentos, incêndios,
ataques e outras coisas piores. Quando o cidadão
local lhe afirmava que aquilo tudo fazia parte de
um passado já enterrado, o novato citava a frase
tradicional: um índio só é bom depois de morto.
Assim, muitas das brincadeiras se baseavam no
mítico índio mau. O recém-chegado era informa-
do de que havia a ameaça de uma rebelião; tinham
vendido chita aos cheyennes — peças e mais peças
do tecido — com listras no sentido errado. Isso,
segundo as explicações fornecidas, era um erro
calculado para enfurecê-los. Os brincalhões se
armavam até os dentes. Pistolas eram colocadas
na mão trêmula, suarenta, do recém-chegado.

1
Machado de guerra dos índios norte-americanos. Palavra originária
do algonquino. (N. do E.)

334
Informavam-lhe que as noites eram gélidas. Ele
era levado para um campo próximo onde cresci-
am girassóis da altura de um homem e o adverti-
am para não disparar sua arma a não ser que
ouvisse os berros dos selvagens enfurecidos. Ali,
tremendo e suando num casacão, botas forradas,
gorro de lã com abas protegendo as orelhas, e
perneiras, ele ficava agachado durante horas en-
quanto em todo o seu redor (a uma distância
segura) ouvia os horrendos, apavorantes berros
dos supostos índios. Seu couro cabeludo, quando
finalmente vinham salvá-lo, quase havia se soltado
sozinho.
No dia seguinte, Yancey gastava horas es-
crevendo um relato humorístico da rebelião de
índios para a edição de quinta-feira do Taba.
Quem pagava os drinques era o novato. Esta
cerimônia levava, também, horas.

"Ó pilhéria ignorada, inescrutável, invisível.


Como o nariz no rosto de um homem, ou um
catavento numa torre."

Assim começava o artigo de Yancey com


uma citação do seu poeta favorito.

335
— Oh, Yancey, querido, às vezes acho que
você é mais jovem do que Cim.
— O que gostaria você que eu fosse, meu
amor? Um venerável Venable? Um homem cujo
sangue é uma sopa de neve; que nunca sente os
sinais e os ímpetos libertinos dos sentidos?
Sabra, exceto pela crescente inquietação que
sentia em Yancey, estava bastante feliz. As crian-
ças eram saudáveis, o jornal prosperava, ela fizera
amizades, a casa tomara um aspecto de conforto,
eles tinham acrescentado um outro quarto e Arita
Pena Vermelha e Isaiah, juntos, aliviavam-na do
trabalho doméstico mais pesado. Ela era, de certa
forma, uma líder na tosca vida social da comuni-
dade. Ceias de igreja; sociedade de costura; pique-
niques familiares.
Uma coisa causava-lhe uma amargura ínti-
ma. Haviam insistido com Yancey para aceitar o
cargo de delegado territorial junto ao Congresso,
mas ele recusara. Todo tipo de posições políticas
no território lhe tinham sido oferecidas. A cidade
de Guthrie, capital do território, tentara em vão
conquistá-lo. Ele se ria da posição política, rejeita-
va todos os oferecimentos de natureza oficial.
Agora, estavam lhe oferecendo o cargo de gover-
336
nador do território. Sua oratória, seu dom dramá-
tico, a atuação que tivera em muitas questões,
inclusive o assassinato de Pegler e a morte do
Kid, tinham espalhado sua fama para além das
fronteiras do sudoeste.
— Oh, Yancey! — Sabra pensava nos Ve-
nable, nos Marcy, Vian, Goforth. Finalmente sua
escolha de um companheiro seria justificada.
Governador!
Mas Yancey abanou sua grande cabeça. Não
havia como demovê-lo. Estava sempre disposto a
fazer comícios para que outros conseguissem ser
senadores e governadores, mas para ele próprio
não queria nada.
— Ter que palavrear com uma porção de
pretendentes a cargos e bajuladores! Dançar con-
forme a música daquela súcia em Washington!
Conheço toda aquela cambada suja.
Agitado, mal-humorado, irritado. Saindo a
cavalo pelas campinas e ficando dias desapareci-
do. Voltando para regalar Cim com histórias de
noites passadas em reservas longínquas, fumando
e conversando com o Chefe Cavalo Grande dos
cherokees, com o Chefe Couro de Búfalo dos chi-
ckasaws, com o velho Chaleira Preta dos osages.
337
Mas nem sempre era esse seu comportamen-
to. Havia ocasiões em que o velho espírito fogoso
se apossava dele. Entrou na luta para que o terri-
tório de Oklahoma fosse transformado em Esta-
do, mas encontrou uma oposição forte demais até
mesmo para ele. Queria a consolidação do territó-
rio de Oklahoma e do território índio formando
um só Estado. Milhares de pessoas que se opu-
nham aos índios — que os consideravam como
selvagens totalmente desqualificados para a cida-
dania — combateram a idéia. Um ano depois da
chegada da família Cravat a Oklahoma, a região
fora dividida em dois territórios: um que pertencia
às tribos índias e era ocupado por elas, o outro
pertencente aos brancos. Os Cravat viviam junto
à linha divisória. E.ali estava Yancey, lutando
semana após semana, nos editoriais e colunas do
Taba de Oklahoma, pelos direitos dos índios, pela
consolidação das duas metades num só Estado.
Entretanto, paradoxalmente, apoiava as cinco
tribos civilizadas em seus esforços para manter
suas leis tribais em lugar das leis judiciárias dos
Estados Unidos que estavam sendo impostas aos
índios. Yancey fez milhares de inimigos ferrenhos.
Muitos dos próprios índios lhe faziam oposição.
Esses queriam que o território índio se tornasse
338
um Estado separado, a ser conhecido como Se-
quoyah, em homenagem ao grande chefe cherokee.
Sabra, que a princípio dera bem pouca aten-
ção a esses problemas políticos, descobriu que
precisava estar mais informada, como proteção
contra as ocasiões (cada vez mais freqüentes) em
que Yancey se ausentava e ela tinha que publicar o
jornal somente com a ajuda incerta de Jesse
Rickey.
Ela não ousava, durante essas ausências de
Yancey, adotar uma posição contrária ao seu
ponto de vista político. Mas ia o mais longe que
podia, pois seu ódio aos índios ainda era profun-
do e (insistia ela) inalterável. Chegava mesmo a —
astuciosamente — publicar discursos e argumen-
tos dos líderes contrários à posição adotada pelo
marido, simplesmente declarando que aquelas
eram as opiniões da oposição. Essas opiniões
soavam muito razoáveis e convincentes aos leito-
res do Taba.
Uma tarde, Sabra voltou de uma reunião
movimentada e bem-sucedida do Clube Cultural
Filomático Século XX (a fusão dos dois se pro-
cessara harmoniosamente) em que ela lera uma
palestra intitulada "Para onde vai Oklahoma?" A
339
palestra fora muito aplaudida pelas vinte senhoras
de maior destaque de Osage, que mal tinham ou-
vido uma palavra, atentas apenas ao vestido novo
de Sabra. Usara-o pela primeira vez na reunião do
clube, e o vestido provocara muito mais furor do
que qualquer coisa que ela tivesse dito.
A rica prima Bella French Vian, de visita à
Feira Mundial de Chicago, mandara-lhe o vestido
comprado na loja Marshall Field. Consistia de
uma saia de sarja azul, rodada na barra mas ajus-
tada nos quadris, uma jaqueta curta de sarja azul
debruada com uma trança de sutache preta e uma
peça chamada blusa chemisier para ser usada sob a
jaqueta. Mas, por mais espantoso e revolucionário
que fosse aquilo tudo, não foi o que fez com que
os olhos femininos de Osage se arregalassem de
inveja e desespero. As mangas! As mangas con-
centraram a atenção da platéia em total detrimen-
to de "Para onde vai Oklahoma?" A manga balão
fazia a sua primeira aparição no território de
Oklahoma, patrocinada pela Sra. Yancey Cravat.
Eram bufantes, enormes; devia haver em cada uma
delas quase um metro de tecido. Todas as mulhe-
res presentes estavam mentalmente estraçalhando,
em pedacinhos, cada uma das peças de seu escasso
guarda-roupa.
340
Sabra voltou para casa emocionada, jubilosa.
Entrou pelo escritório, buscando a aprovação de
Yancey. Com uma reverência e toda sorrisos,
postou-se diante dele. Queria que o marido visse
seu novo traje, antes de, economicamente, despi-
lo para começar a preparar o jantar. O comentário
de Yancey, quando ela fez uma pirueta para rece-
ber sua aprovação, enfureceu-a.
— Santo Deus! Que mangas! Se as squaws vi-
rem isso, vão jogar fora as tábuas para carregar
seus papooses e usar a nova moda para transportar
os bebês, um em cada manga.
— Estas mangas são a última moda em Chi-
cago. A prima Bella French Vian escreveu que
serão ainda mais bufantes no próximo outono.
— No próximo outono — ecoou Yancey.
Ele ergueu na mão um pedaço de papel. Mais
tarde, ela ficou sabendo que era um telegrama,
uma das poucas mensagens telegráficas que o
serviço um tanto precário do Taba recebia. Ele
agora parecia ignorar totalmente o novo traje, as
mangas bufantes. — Escute, meu amor. O Presi-
dente Cleveland acaba de lançar uma proclamação
marcando o dia 16 de setembro para a abertura da
Faixa Cherokee.
341
— Faixa Cherokee?
— Seis milhões e trezentos mil acres de ter-
ras em Oklahoma, a serem abertos ao homem
branco para colonização. O governo comprou as
terras dos cherokees. Era tudo dos índios — toda
Oklahoma. Agora, eles estão sendo empurrados
cada vez para mais longe.
— Uma boa coisa — retorquiu bruscamente
Sabra, ainda aborrecida com a indiferença de
Yancey pela sua roupa nova. índios. Que impor-
tância tinham eles! Ela ergueu os braços para tirar
o grampo do chapéu.
Yancey levantou-se da escrivaninha. Fitou-a
atentamente, com um intenso brilho nos olhos.
— Meu amor, vamos embora daqui. Clubes,
mangas, ceias da igreja — santo Deus! Vamos
buscar nossa parcela de cento e sessenta acres da
Faixa Cherokee e abrir uma fazenda, criar gado,
viver ao ar livre, montar a cavalo. Esta vida de
cidade não presta — é horrível.
— Fazenda? Onde? — Ela deixara cair pe-
sadamente os braços.
— Você não prestou atenção. Vai haver
uma nova corrida. A abertura da Faixa Cherokee.
342
Você sabe. Escreveu notícias a respeito na semana
passada, antes de ser anunciada a data da abertura.
Vamos para lá, Sabra. Esta é a maior de todas. A
corrida de 1889 não era nada comparada a esta.
Vamos vender o Taba, pegar as crianças, partici-
par da corrida, tomar posse dos nossos cento e
sessenta acres, formar uma fazenda, enchê-la de
gado e cavalos, construir uma casa com pátio; na
sela o dia inteiro. . .
— Nunca! — gritou Sabra. Seu rosto estava
contorcido. As mãos agarravam o ar como se
quisesse estraçalhar aqueles planos dele para o
futuro. — Não vou. Não vou de jeito nenhum.
Prefiro morrer. Você não pode me obrigar.
Ele se aproximou, procurou tomá-la nos
braços, acalmá-la.
— Meu amor, você não quer entender. É
uma chance única na nossa vida. A coisa maior
que já aconteceu em Oklahoma. Quando o terri-
tório se tornar um Estado, seremos donos para
sempre de cento e sessenta acres da melhor terra
que existe. Sei o pedaço que vou querer.
— Sim. Você sabe. Você sabe. Sabia tam-
bém da outra vez. Deixou que aquela mulher —
aquela vadia — tirasse a terra de você, ou deu a
343
terra para ela. Vá e leve-a com você. Nunca me
forçará a ir. Ficarei aqui com meus filhos e toma-
rei conta do jornal. Eu! Cim! Donna!
Ela teve um violento acesso de histeria, de-
pois do quê Yancey, ajudado desajeitadamente
por Arita Pena Vermelha, despiu-a de sua nova
roupa, aquietou as crianças que berravam e final-
mente conseguiu restabelecer um arremedo de
ordem na casa em que ele tinha lançado uma tal
bomba. A própria Felice Venable, no apogeu de
sua mocidade, não teria dado uma melhor exibi-
ção do temperamento dos Marcy. A intenção,
como em todos os acessos histéricos (ninguém
jamais os tem quando ninguém está presente), era
intimidar o responsável e enchê-lo de remorsos.
Yancey mostrou-se devidamente solícito, terno,
charmoso como só ele sabia ser. Aconchegada
entre os braços protetores do marido, Sabra olhou
em seu redor o quarto acolhedor, sorriu langui-
damente para os filhos, mandou que Arita Pena
Vermelha pusesse a comida na mesa. "Isso", disse
Sabra para si mesma, banhando os olhos, arru-
mando o cabelo e sentando-se pálida e pensativa à
mesa, os lábios tremendo com um último suspiro
de efeito, "liquida a questão."

344
Mas não liquidou. Quando chegou setem-
bro, Yancey já estava preparado para partir. Nada
do que Sabra pudesse dizer, nada do que pudesse
fazer, conseguiria demovê-lo. Ela chegou mesmo
a negociar uma pequena faixa de terra fora da
cidade de Osage e conseguiu que Yancey fizesse o
primeiro pagamento, na esperança de que isso o
induzisse a desistir da corrida.
— Se é terra que você quer, pode ficar aqui e
dedicar-se à nossa terra em Tuskamingo. Lá, pode-
rá criar gado e cavalos.
Yancey abanara a cabeça. Não se interessou
pela nova propriedade. Foi Sabra que providenci-
ou a construção de uma casinha tosca, e as plan-
tações que se supunha serem melhores para aque-
la zona. Ficava muito perto da reserva de Osage e,
surpreendenteemnte, provou ser, talvez por algu-
ma razão mineralógica ou geológica (mais tarde,
ficaram sabendo por quê), fértil, embora tão
próxima das terras áridas e pedregosas dos osages.
— Fazenda! Aquilo lá é fazenda? É um
quintal. Acha que vou me contentar em desenter-
rar batatas e dar comida às galinhas, com um
chapéu de palha na cabeça e estrume nas minhas
botas?
345
Quando chegou setembro, o mês da abertu-
ra da Faixa Cherokee, ele estava pronto para
partir. Cim berrou para ir junto com o pai, e
passou dias inconsoláveis com a recusa.
Sabra tencionara despedir-se friamente do
marido. Estava de coração partido. A mudança
que os últimos quatro anos haviam operado nela
nunca se tornara mais evidente do que naquele
momento.
— Sentiu a mesma coisa quando parti para a
primeira corrida, lembra-se? — disse Yancey. —
Mostrou-se só um pouco menos contrariada do
que sua mãe. E se eu não tivesse partido, você
estaria ainda vivendo na casa em Wichita, com sua
família sufocando-a com galinha frita e conselhos.
Havia muita verdade nisso, e ela não podia
negar. Abrandada, agarrou-se a ele.
— Yancey! Yancey!
— Sorria, meu amor. Espere até ver Cim e
Donna, daqui a cinco anos, percorrendo a cavalo
a fazenda dos Cravat.
Afinal, uma centena de outros homens de
Osage iam tomar parte na corrida da Faixa Che-
rokee. A cidade — todo o território — há meses
346
não falava em outra coisa.
Ela secou os olhos. Conseguiu mesmo esbo-
çar um sorriso aguado. Ele ia participar da corrida
numa estupenda égua de olhos acesos chamada
Cimarron, com uma parcela de sangue espanhol
que lhe dava velocidade e graça, e uma parcela do
potro bravio americano para torná-la mais resis-
tente. Ele tinha decidido fazer a jornada de Osage
à Passagem Cherokee a cavalo por estágios, a fim
de poupar o animal, embora as estradas de Santa
Fé e Rock Island levassem seus trens até a Faixa.
Ele era uma figura elegante, magnífica, montado
na égua graciosa que agora pinoteava e se agitava
na ânsia de partir a galope. Embora uns dez ho-
mens estivessem também de partida, era Yancey
que a cidade toda viera ver. Como de costume, ele
usava seu sombrero branco, a fina camisa branca, a
sobrecasaca, as reluzentes botas texanas com as
esporas folheadas a ouro. A partida estava marca-
da para logo depois do raiar da madrugada, a fim
de ganharem tempo antes do calor do dia. Mas
uma cavalgada os acordou antes com um ra-ta-ta
de pistolas e apavorantes berros dos vaqueiros. A
escolta acompanhou Yancey e os outros até uma
certa distância nas planícies. Sabra, no último
instante, mandou atrelar o cavalo da família na
347
charrete, colocou Cim e Donna a seu lado e —
com Isaiah pendurado atrás — o pequeno e ele-
gante veículo partiu aos solavancos pela campina,
seguindo de perto os desbravadores.
Por fim, Sabra atirou as rédeas para Isaiah,
saltou da charrete e correu para Yancey, que
estacou seu cavalo. Ele se curvou sobre a sela,
apanhou-a com seu braço forte e, mantendo-a
apertada junto ao peito, beijou-a demoradamente.
— Sabra, venha comigo. Vamos embora da-
qui.
— Você está louco! As crianças!
— As crianças, também. Todos nós. Venha.
Agora. — Seus olhos reluziam. Ela viu que ele
falava sério. Uma súbita premonição a abalou.
— Para onde vai você? Para onde vai?
Ele a depositou delicadamente no chão e
partiu, meio virado na sela para fitá-la, acenando
com o sombrero branco na mão, seus negros cabe-
los encacheados esvoaçando na brisa de Oklaho-
ma.
Cinco anos se passaram antes que ela tor-
nasse a vê-lo.

348
Capítulo XV

As moças de Dixie Lee estavam dando seu


habitual passeio da tarde. Sabra reconheceu-as
pelas risadas e pelo tropel compassado dos cascos
dos cavalos antes de terem elas surgido na rua.
Sabia que eram as moças de Dixie Lee. O fato era
que as mulheres virtuosas de Osage não eram
muito dadas a risos, embora Sabra, nem mesmo
mentalmente, expressasse esse pensamento. Ela
ergueu os olhos no momento em que as moças
passaram. Estava sentada à sua escrivaninha junto
à janela no escritório do Taba de Oklahoma. As
plumas, as sombrinhas, os vestidos de cores bri-
lhantes eram como um jardim alegre na monoto-
nia da Avenida Pawhuska. Elas passeavam em
faetontes abertos, mas sem o toldo habitual, de
modo que só tinham as sombrinhas para proteger
os rostos vistosamente maquilados do ardente sol
do sudoeste. A cor das sombrinhas, plumas e
vestidos era trocada dia a dia, mas sempre obede-
cia a um efeito conjunto. Um dia, os olhos mascu-
linos da população de Osage se deslumbravam

349
(enquanto os femininos se indagavam) com uma
explosão de esplendor róseo com tonalidades que
iam do rosa-pálido ao escarlate. No dia seguinte
as tonalidades podiam ir do mais pálido lilás ao
roxo mais escuro. No outro dia, de um delicado
limão ao laranja; e no outro, percorriam a gama
do verde. Elas vinham de quatro em quatro, e em
geral uma em cada faetonte segurava as rédeas,
embora ocasionalmente um cocheiro negro ocu-
passe sozinho o assento dianteiro. Elas não eram
turbulentas, portando-se com bastante compostu-
ra, exceto talvez por pequenos acessos de riso e
pelo fato de serem generosas na exibição de
tornozelos sob as saias franzidas. Muitas vezes,
carregavam bonecas nos braços. Às vezes —
raramente — gritavam umas para as outras. Suas
vozes eram altas e curiosamente infantis, como
as vozes de menininhas, mas havia nelas uma
nota metálica.
— Madge, escute! Quando a gente chegar ao
fim da Avenida Pawhuska vamos apostar corrida
até a Ravina Coley e de volta.
Essas corridas da tarde passaram a ser acon-
tecimentos diários, e a rapaziada de Osage adqui-
riu o hábito de se enfileirar no caminho para

350
apostar nas plumas rosa-pálidas ou nas plumas
rosa-forte.
— Ei, rápido, Clemmie! Meta o chicote nele,
Carmen. Força no chicote! Vamos! Upa, upa!
Plumas esvoaçando, sombrinhas bambole-
ando, saias rodopiando, gritos estridentes e risadas
na extremidade da cidade. Mas na volta, o com-
portamento delas era de novo discreto, as faces
com um rubor natural sob o ruge obviamente
artificial.
A fisionomia de Sabra se fechou ao vê-las
passar lentamente em seus faetontes. Dixie Lee
nunca participava desse passeio. Sabra sabia onde
ela fora essa tarde. Estava na sala dos fundos do
Banco Nacional de Osage, discutindo transações
com o presidente, Murch Rankin. Os homens de
negócio da cidade estavam planejando instalar
uma fábrica de enlatados, uma de arados e mais
uma de relógios em Osage. Qualquer uma dessas
indústrias requeria um capital substancial. A ten-
dência naquela hora era para apressar o desenvol-
vimento. Desenvolver a cidade de Osage. Dixie
Lee era essencialmente uma mulher de negócios
— astuta, inteligente. Tinha conseguido um gran-
de sucesso com o seu negócio. Era uma das in-
351
dústrias da cidade. E agora, assim como o ban-
queiro, o negociante de ferragens, o proprietário
da loja de móveis, o mercado de carne e a loja de
roupas, ela ia contribuir com sua parcela para
atrair novas indústrias que favorecessem Osage.
Era este o caminho para a prosperidade.
Dixie Lee era uma personalidade na cidade.
À sua casa, vinham agora visitantes de cidades e
municípios das redondezas. Ela construíra para si
mesma e para seu próspero negócio a primeira
estrutura de tijolos naquela cidade de madeira;
uma casa quadrada, sólida e imponente de dois
andares, com tijolos fabricados com a argila ver-
melha de Oklahoma. Cal Bixby logo em seguida
construía o bloco Bixby na Avenida Pawhuska,
mas Dixie Lee fora a primeira. Tinha encomenda-
do a Louie Hefner sua mobília dourada e estofada
de veludo vermelho, os grandes espelhos com
molduras douradas, o macio e peludo tapete
escarlate — o famoso tapete no qual Shanghai
Wiley, o barbudo, culto e magnético bárbaro,
contava que tinha afundado tanto que, por um
momento aterrante, fora tomado de pânico, sem
conseguir distinguir o que era tapete vermelho e o
que era sua longa barba ruiva. Dixie fora ela pró-
pria ao leste para comprar estátuas e quadros. A
352
nova casa tinha sido inaugurada com uma cele-
bração como nunca se vira igual no sudoeste.
Sabra Cravat, sem mencionar nomes, escrevera
um editorial a respeito em que figuravam com
proeminência as frases "insulto às mulheres de-
centes da América" e "orgia rivalizando com as
bacanais da história romana" (a biblioteca de
Yancey provara agora ser de grande utilidade para
ela). Ambos, a Sociedade Filomática e o Clube de
Cultura Século XX, tinham, pelo menos durante
uma de suas reuniões, desertado cultura e literatu-
ra para discutir o tópico mais vital da nova man-
são de Dixie Lee.
O bordel de tijolos vermelhos era menos si-
nistro do que o suspeitavam aquelas inocentes e
virtuosas senhoras. Dixie Lee, agora com trinta
anos ou mais, governava sua casa com mão de
ferro. As leis e regras de conduta para as pensio-
nistas eram tão rígidas que chegavam quase a ser
pudicas. Numa região bravia e quase sem lei, a
mansão de Dixie Lee ocupava uma estranha posi-
ção, preenchia uma necessidade alheia ao seu
objetivo original. Era, de certa forma, cm clube,
um local de encontro, um salão. Para centenas de
homens que ali entravam, era tudo o que eles
jamais tinham visto em matéria de riqueza, cor,
353
luxo. O encarnado e o ouro, a pelúcia e a seda, o
perfume, os reposteiros, os braços brancos, os
ombros macios causavam uma profunda impres-
são em seus sentidos durante tanto tempo abafa-
dos pelos anos passados em fazendas varridas por
ventos, planícies empoeiradas, campinas resseca-
das pelo sol feroz do sudoeste. Ali, eles se refes-
telavam, afundando naquele conforto róseo,
discutiam política do território, trocavam anedo-
tas de vaqueiros, jogavam cartas, bebiam vinhos
que sabiam a uma doce água gasosa aos seus
paladares curtidos pelo uísque. Beijavam aquelas
mulheres, abraçavam-nas com violência, pensa-
vam com ternura em muitas delas, e freqüente-
mente as desposavam; e essas mulheres, uma vez
casadas, se adaptavam satisfeitas a uma domesti-
cidade quase de escravas.
Uma mulher dura, Dixie Lee, uma mulher
má. Sabra moralmente tinha razão em sua atitude
para com a outra.
Entretanto, Dixie Lee, tanto quanto Sabra,
preenchia sua finalidade nos primeiros tempos da
vida do território.
Agora, com os risos soando mais perto e as
carruagens se aproximando, Sabra, sentada à sua
354
escrivaninha no escritório, largou o lápis com que
estivera enchendo página após página de papel de
cópia. Ela escrevia agora com facilidade, sem
pretensão a estilo, mas concisamente e com um
excelente senso do valor das notícias. Sob sua
direção, naqueles últimos cinco anos, o Taba de
Oklahoma florescera. Ela estava pensando seria-
mente em transformá-lo em diário, em vez de
semanário; em usar a casa inteira na Avenida
Pawhuska para a oficina e redação do jornal e
construir uma casa adequada para si mesma e os
dois filhos numa das ruas residenciais recente-
mente abertas — ruas com casas bem pintadas e
com olmos e choupos plantados nos jardins.
Alguém subiu os degraus do pequeno al-
pendre e entrou no escritório. Era a Sra. Wyatt.
Freqüentemente, ela trazia notícias sobre clubes e
itens sociais ao Taba; tinha certa tendência a con-
siderar-se uma escritora, uma correspondente nata
de clubes femininos.
— Ora! — exclamou ela apenas, mas conse-
guindo dar uma enorme dose de significado ao
monossílabo. Seu olhar seguiu o de Sabra. Juntas,
as duas mulheres, de lábios contraídos, condena-
tórios, observaram passar a alegre parada das

355
moças de Dixie Lee.
O vistoso grupo desapareceu. Uma baforada
de patchuli chegou até as duas mulheres junto à
janela aberta. Elas ergueram desdenhosamente as
narinas. O ruído dos cascos de cavalos foi dimi-
nuindo.
— É uma vergonha para a comunidade. —
A voz da Sra. Wyatt adotou o tom de plataforma.
— E um insulto a cada esposa e mãe deste territó-
rio. Devia haver uma lei.
Sabra afastou-se da janela. Seus olhos busca-
ram as bem-arrumadas fileiras de livros, encader-
nados em marrom e encarnado — os livros de
legislação de Yancey, há tanto tempo em desuso,
exceto, talvez, para alguma referência para o
jornal. Os vincos de seu rosto tinham um ar reso-
luto.
— Talvez haja uma lei.
Os vincos no rosto de Sabra Cravat tinham
levado quase três dos seus cinco anos de solidão
para se formarem. A cútis era ainda lisa e fresca
apesar da poeira e da água alcalina, do sol e do
vento. Era mais um certo processo de endureci-
mento — uma cristalização. Yancey lhe dissera,

356
ternamente, que ela era uma encantadora tolinha,
e Sabra acreditara — embora talvez com reservas
subconscientes. Foi só depois de ter sido abando-
nada, e os anos se escoarem sem ele, que ela
desenvolvera seus poderes. O sombrero partira
alegremente. A cabeça sob a touca se mantivera
erguida apesar de insinuações, alusões, falatórios.
Um homem como Yancey Cravat — espeta-
cular, dramático, impulsivo — tem milhares de
críticos, dezenas de inimigos ferrenhos. À medida
que passavam as semanas e Yancey não aparecia
— ele não tinha escrito —, boatos com pormeno-
res escandalosos se espalharam como fogo nas
campinas de casa em casa em Osage, de cidade
em cidade na região de Oklahoma, até mesmo
além do sudoeste. Todas as velhas histórias foram
reavivadas, e suas feias labaredas abriram um
atalho sórdido pelas terras de Oklahoma.
Dizem que ele está vivendo com uma squaw
cherokee, que é realmente sua mulher.
Dizem que ele foi visto participando da cor-
rida na abertura da Zona Kickapoo, em 1895.
Dizem que ele matou um homem na corrida
da Faixa Cherokee, foi apanhado pelos homens
do xerife e enforcado.
357
Dizem que ele conseguiu um pedaço de ter-
ra, vendeu-a por uma quantia vultosa, e foi visto
gastando a rodo no bar do Hotel Prown Palace
em Denver, com seu sombrero branco e sua sobre-
casaca.
Dizem que Dixie Lee é sua verdadeira mu-
lher; ele a deixou quando ela estava com dezessete
anos, foi para Wichita e se casou com Sabra Ve-
nable; e que foi ele quem forneceu o dinheiro a
Dixie para se instalar na nova mansão.
Dizem que ele bebeu cinco litros de uísque
uma noite, morreu e está enterrado numa cova
sem lápide no Rancho Ferradura, onde a quadri-
lha Doolin se instalou.
Dizem que ele é realmente o chefe do bando
Doolin.
Dizem. Dizem. Dizem.
É impossível saber como Sabra sobreviveu
àquelas primeiras semanas terríveis que se alonga-
ram em meses e depois em anos. Havia nela a
resistência férrea dos Marcy franceses e o orgulho
dos Venable sulistas. Era curioso que apesar de
tudo o que lhe acontecera ainda conservasse
aquele ar virginal — a castidade dos lábios, a

358
limpidez do olhar, a pureza da fronte. Os homens
voltam para as mulheres que são como Sabra
Cravat, mas elas nunca são atingidas pelas tempes-
tades do amor masculino.
Ela dizia a si mesma que ele estava morto.
Dizia aos outros que ele estava morto. Sabia, no
seu íntimo, por um instinto inelutável, que ele
estava vivo. Donna era tão pequenina quando da
partida do pai, que praticamente não se lembrava
mais dele. Mas Cim continuava falando em Yan-
cey Cravat como se ele estivesse no quarto ao
lado. — Meu pai diz... — Às vezes, quando Sabra
via o menino caminhando para ela com aquele
andar tão parecido, a cabeça abaixada e um pouco
para a frente, sentia um aperto tão forte no cora-
ção que quase lhe causava náusea.
O jornal, ela dirigia com competência; tirava
dele uma subsistência decente para si mesma e
para os dois filhos. Quando não lhe fora mais
possível esconder dos seus pais o fato da prolon-
gada ausência de Yancey, Felice Venable aparece-
ra em Osage preparada para levar de volta ao seio
da família sua filha desgarrada. Lewis Venable
estava muito frágil e combalido para acompanhar
a mulher, e assim Felice trouxera em sua compa-

359
nhia Goforth e Vian, os Venable mais imponentes
que se achavam em visita à casa de Wichita na
ocasião de sua partida. Osage olhara com muito
respeito aquelas personagens de tanta categoria,
mas a recepção que Sabra lhes deu foi tão fria-
mente cordial como foi firme a sua rejeição dos
planos que tinham para o seu futuro.
— Tenciono permanecer aqui mesmo em
Osage —-anunciou ela tranqüilamente, mas num
tom que até Felice Venable reconheceu como
inflexível —, dirigir o jornal e criar meus filhos
como o pai deles desejaria que fossem criados.
— O pai deles! — repetiu Felice Venable
em tom arrasador.
O menino Cimarron, curiosamente sensível
a sons e inflexões, postou-se diante de sua avó, a
cabeça esticada para a frente, os olhos fulminan-
tes.
— Meu pai é o homem mais famoso de
Oklahoma. Os índios lhe deram o nome de Cabe-
ça de Búfalo.
Felice Venable quis imediatamente tirar pro-
veito do que o neto dissera.
— Se é isto que você queria dizer a respeito
360
de criar seus filhos como o pai deles. . .
A reunião degenerou numa daquelas brigas
de família.
— Eu gostaria, mamãe, que não repetisse
tudo o que eu digo torcendo as minhas palavras e
lhes dando um tom venenoso.
— Esta é boa! Não é minha culpa se as coi-
sas que você diz soam ridículas quando repetidas.
Simplesmente, quero dizer...
— Não me importa o que queira dizer, ma-
mãe. Pretendo ficar aqui em Osage até Yancey. . .
até. . . — Ela nunca chegou a terminar a frase.
As notas sociais de Osage tornaram-se me-
nos simples. De singelos relatos sobre acolchoa-
dos, casas de abelha e reuniões na igreja, foram se
transformando em imitações floreadas das descri-
ções de acontecimentos sociais em jornais metro-
politanos. Refrescos eram mencionados como
elegantes. As matronas de Osage abandonaram os
sólidos feijões de forno, salada de repolho e bolo
de vitela para se expressarem em termos culiná-
rios copiados de figuras em revistas domésticas.
Ouviram falar em salada de frutas. Edificaram
pães-de-ló cuja base era feita com as claras de

361
treze ovos, e seus maridos, na refeição da manhã,
perguntavam: "Por que estes ovos mexidos estão
tão amarelos?" Roupas rurais eram descritas em
termos da moda. Os murchos buquês da campina
que enfeitavam casamentos e festas eram trans-
formados em raras flores de estufa pelo toque
mágico da prensa manual do Taba de Oklahoma.
Sabiamente, Sabra publicava todos os brilhantes
acontecimentos sociais que vinham ter às suas
mãos através do modesto serviço de noticiário.

"NEWPORT. 4 de outubro. — Um dos ca-


samentos mais brilhantes que Newport presenci-
ou em muitos anos foi celebrado hoje na antiga
Igreja da Trindade. Os noivos eram a Srta. Geor-
gina Harwood e o Sr. Harold Blake, ambos mem-
bros de famílias pertencentes à elite das quatro-
centas. A noiva usava um vestido de cetim marfim
com drapeados e franzidos da mais fina renda,
sendo que o véu de renda era preso por uma tiara
de pérolas e diamantes. Após a cerimônia uma
ceia magnífica..."

A população feminina de Osage — do con-


dado — tinha a impressão de que vira o cetim cor
362
de marfim, a renda delicada, a tiara de pérolas e
diamantes quando tais esplendores percorriam a
nave da antiga Trindade na pessoa da Srta. Geor-
gina Harwood, de tradicional família de Newport.
Elas tiravam da notícia a satisfação vicarial que
um dispéptico em dieta tira com a leitura de um
livro de receitas culinárias.
Sabra, sem se dar inteiramente conta, era
uma força que modelava o aspecto social daquela
rude cidade do sudoeste. As senhoras do novo
Clube da Hora Feliz, quando ela declinou tornar-
se sócia, alegando falta de tempo e pressão de
trabalho (o que era verdade), fizeram-na sócia
honorária, decididas que estavam a ter de qual-
quer forma seu nome influente na lista de sócias.
Estavam rendendo um tributo inconsciente à
primeira feminista de Oklahoma. Ela continuava
editando sozinha o jornal, com a ajuda de Jesse
Rickey, o mais competente impressor do sudoes-
te (quando sóbrio), e tão bom quanto qualquer
outro quando embriagado.
Sabra, serena na convicção de que os ataca-
dos pouco podiam fazer para se vingarem de uma
mulher, publicava histórias e declarações que, pela
sua ousadia e insolência, se ela fosse um homem,

363
lhe teriam valido chicotadas. Criticava abertamen-
te os habituais freqüentadores de ruas que, com
seus inúteis sombreros, pistolas, botas e esporas,
relíquias de tempos idos, perambulavam pela
Avenida Pawhuska ou estacionavam nas esquinas,
cuspindo fumo mascado na sarjeta. Às vezes,
copiava a fraseologia vigorosa e pitoresca de
Yancey. Denunciou um político tão desonesto
que não se podia confiar-lhe uma moeda de um
centavo, e sua campanha acabou por derrotá-lo.
Lei, ordem, a santidade do lar, expurgos, rigidez.
Embora as montanhas Gyp e as montanhas Osa-
ge estivessem ainda tão infestadas de bandoleiros
quanto as planícies de cascavéis; embora a pistola
ainda fizesse tão comumente parte da indumentá-
ria masculina de Osage quanto botas ou calças;
embora ainda fosse um crime maior roubar um
cavalo do que matar um homem; embora o terri-
tório tivesse sido colonizado e povoado, em mi-
lhares de casos, por homens que para lá tinham
acorrido, não levados por um espírito de aventura,
mas por covardia, rapacidade ou coisa pior, Sabra
Cravat e outras mulheres basicamente convencio-
nais da comunidade estavam trabalhando incons-
cientemente, porém com surda ferocidade, para
que chegasse o dia em que uma delas pudesse
364
dizer, parada a uma soleira, com um sorrisinho
formal:
— Que gentileza sua ter vindo.
— A gentileza foi sua de me convidar —
responderia a outra.
Quando chegasse aquele dia, Osage não teria
mais que se sentir inferiorizada por Kansas City,
Denver, Chicago, St. Louis e San Francisco.
Lentamente, muito lentamente, certas figu-
ras começaram a adquirir proporções de persona-
lidades. Ninguém surgira no território para calçar
as botas românticas de Yancey Cravat. Pat Leary
começava a adquirir nome como advogado no
território, com um escritório no Bloco Bixby, e as
estradas de ferro em que ele trabalhara como
pequeno funcionário agora o consultavam sobre
questões da legislação do território. Quando ainda
agente da estrada, ele tinha se casado com uma
osage de nome Nariz Torto. As pessoas abanavam
a cabeça quando falavam neste casamento e dizi-
am que ele agora estava arrependido, e que um
advogado não podia esperar jamais progredir com
aquela pedra marital amarrada ao pescoço.
Era ainda muito pouco o dinheiro em circu-

365
lação no território. As pessoas barganhavam uma
coisa por outra. Sabra freqüentemente trocava
assinaturas do Taba de Oklahoma — e até mesmo
espaço para anúncios — por hortaliças, frutas,
perus selvagens, codornas, galinhas, metragens de
tecido, sapatos e meias para as crianças.
A loja de Sol Levy, agora já com proporções
respeitáveis, fornecia a Sabra inúmeras necessida-
des em troca de anúncios que, difundidos pela
região através do Taba de Oklahoma, aconselhavam
seus leitores a comprar as mercadorias de Sol
Levy. "Visitem o único zoológico do território."
O convite, um tanto desnorteante para os não-
iniciados, era para ser tomado literalmente. Nos
fundos de sua loja, Sol Levy mantinha uma boa
coleção de animais selvagens. Tudo começara por
obra do acaso. Um dia, um sujeito esquálido e
barbudo aparecera na loja propondo ao proprietá-
rio que trocasse um par de calças por um filhote
de urso. A idéia divertira Sol Levy; então dera
uma espiada para fora e vira a mulher amarelada
do sujeito, sua ninhada de filhos magricelas, api-
nhados num carroção maluco, atrelado pelo que
pareciam ser cordas, barbante, pregos e pedaços
de arame a cavalos tão cadavéricos que sua diver-

366
são se transformou em piedade. Ele deu ao ho-
mem calças, meias para as crianças, e — sendo
um sentimental por natureza — um corte de
tecido de algodão de cor viva para a mulher.
O filhote de urso, pouco maior do que um
cachorrinho, tinha sido cautelosamente levado
para um amontoado de caixotes, palha, ripas de
madeira e louça quebrada que era o depósito da
Companhia Mercantil Levy, e lá amarrado com
um pedaço de corda que ele imediatamente partiu
em dois com os dentes. Cinco minutos depois,
uma senhora, concentrada na escolha de um corte
de algodão quadriculado, sentiu algo esfregando-
se nos seus vigorosos tornozelos, baixou os olhos
e viu o filhote de urso mastigando tranqüilamente
o conteúdo de sua cesta de provisões, que ela
colocara descuidadamente no chão a seu lado.
Uma semana depois o guarda-florestal de-
monstrou sua gratidão trazendo um casal de
pumas. Sol construiu uma gaiola tosca. Logo
acrescentou coiotes, cães selvagens, uma águia. O
zoológico tornou-se famoso, e a cidade toda veio
vê-lo. Os animais incentivavam o comércio da
Companhia Mercantil e lhe forneciam publicidade
grátis. Foi o núcleo do zoológico com o qual,

367
quinze anos mais tarde, Sol Levy timidamente
presenteou o Parque da Cidade de Osage, con-
tendo toda a fauna selvagem do sudoeste, desde
búfalos até cascavéis.
Com seu ar discreto, distraído, Sol Levy ti-
nha conseguido comprar, durante aqueles anos,
uma surpreendente quantidade de propriedades
em Osage. Era proprietário do terreno onde
estava instalada sua loja, de um adjacente, e, entre
outros imóveis, do prédio e terreno onde se situa-
vam o Taba e a casa dos Cravat. No ano que se
seguiu à partida de Yancey, a sobrevivência eco-
nômica de Sabra tornou-se possível somente
graças à quase envergonhada generosidade daque-
le homem quieto, de olhos tristes.
— Tenho tudo assentado em meus livros —
dizia Sabra, orgulhosamente. — Você sabe que
um dia será pago.
Sol Levy lançou no Taba de Oklahoma uma
campanha de publicidade totalmente fora de
proporção com suas necessidades, e a dívida de
Sabra para com ele começou a reduzir-se até
desaparecer de todo. Ela se habituou a pedir-lhe
opinião a respeito de seus problemas financeiros,
e ele a aconselhava sabiamente. Quando ela se
368
sentia totalmente desanimada, ele dizia, não triun-
falmente, mas como quem afirma um fato irrefu-
tável e não especialmente feliz:
— Algum dia, Sra. Cravat, nós dois vamos
recordar isso tudo e vamos rir — mas não muito
alto.
— O que quer dizer com. . . vamos rir?
— Oh, eu serei muito rico e a senhora será
muito famosa — respondeu ele com uma curiosa
expressão nos olhos. — E Yancey. . .
— Yancey! — Ela pronunciou o nome qua-
se como um grito de dor.
— Contarão histórias a respeito de Yancey
até transformá-lo numa lenda. Ele fará parte da
história do sudoeste. Irão lembrar-se dele e escre-
ver sobre ele quando todos esses governadores
desbotados estiverem mortos e esquecidos. Con-
tarão às crianças os seus feitos, e haverá discus-
sões a seu respeito: ele fez isso, ele fez aquilo; ele
era assim, ele não era assim. A senhora vai ver.
Sabra pensou nos próprios filhos, que pouco
sabiam sobre o pai. Donna, uma criança magra,
sensível, agora quase com sete anos, de cabelos
pretos e lisos, a pele morena como Yancey; Cim,
369
quase com treze anos, temperamental, charmoso,
imaginativo. Donna parecia-se mais com a sua
avó, Felice Venable, do que com a própria mãe;
Cim parecia-se muito com Yancey no tempera-
mento, maneiras e emoções, e quase nada com a
mãe. Sabra pensava com um aperto no coração
que não tinha deixado sua marca nos filhos por
causa de sua absorção com a cidade, com o jornal,
em seu esforço para vencer. Tirou do baú uma
fotografia de Yancey, que tinha escondido porque
quando a olhava era como uma punhalada, man-
dou emoldurá-la e dependurou-a na parede, onde
as crianças podiam vê-la diariamente. Na foto, ele
estava com seus trajes habituais: a sobrecasaca, o
sombrero branco, as pistolas, as botas, as esporas,
os longos cachos negros aparecendo sob a aba do
chapéu, os olhos hipnóticos com uma expressão
tão impressionante que chegava a alarmar quem
os fitasse, como se ele estivesse examinando a
pessoa em vez de sua imagem no papel estar
sendo examinada. O pé esguio, calçado com a
bota de salto alto, pousado ligeiramente para a
frente, as abas da sobrecasaca abertas, davam à
foto, de certa forma, uma impressão de vida e
movimento.
— O pai de vocês... — começava corajosa-
370
mente Sabra, resolvida a fazê-lo reviver na mente
dos filhos. Donna não se mostrava especialmente
interessada.
— Eu sei — replicava Cim, e completava o
que a mãe tinha contado com uma história sua em
que a bravura de Yancey ultrapassava qualquer
proeza de capa e espada de D'Artagnan.
— Oh, mas isto não é verdade, Cim! Não
deve acreditar em coisas como esta a respeito de
seu pai.
— É verdade. Isaiah me contou. Acho que
ele deve saber. — E depois a pergunta que ela
temia: — Quando Isaiah e meu pai vão voltar?
Ela podia responder, meio evasivamente,
sobre Yancey, pois seu instinto com relação ao
marido era seguro e forte. Mas quanto ao destino
que tivera Isaiah, tinha horror até de pensar. Pois
o que acontecera ao rapazinho preto era tão apa-
vorante, tão cruel, que quando soube da verdade
Sabra sentiu todo o pequeno mundo de conven-
ções de classe média que ela construíra ao seu
redor virar cinzas sob as súbitas chamas de selva-
geria secreta. Tentava nunca pensar naquilo, mas
às vezes, à noite, a coisa hedionda se apossava de
sua mente e ela se sentia invadida por um tal
371
horror que se encolhia sob as cobertas, molhada
de suor e trêmula. Seu ódio aos índios agora já se
tornara uma obsessão.
Foi no quarto ano de ausência de Yancey
que, surgindo de repente e em silêncio na cozi-
nha, vindo do escritório do jornal onde estivera
trabalhando como de costume, ela viu Arita Pena
Vermelha em contorções em frente à mesa. Seu
rosto estava grotesco, molhado, em agonia. Era a
agonia que só uma espécie de dor pode provocar
no rosto de uma mulher. A índia estava com
dores de parto. Ao olhá-la nesse momento, Sabra
se deu conta de que algo a respeito de Arita a
havia vagamente preocupado naquelas últimas
semanas. Mas nem sonhara o que poderia ser. A
roupa solta que a moça usava, sua esbelteza
natural, a dignidade ereta de seu porte de índia e
o estoicismo da raça tinham ajudado a manter em
segredo sua condição. Sabra lembrou-se, tam-
bém, de repente, de que Arita dava sempre um
jeito de sair de perto de sua patroa: ocupada na
despensa quando Sabra se achava na cozinha;
ocupada na cozinha quando Sabra ia para a sala
de jantar; entrando e saindo como uma sombra
rápida.

372
— Arita! Venha cá. Deite-se. Vou mandar
buscar seu pai, sua mãe. — O pai de Arita era
Joelho Grande, muito conhecido e um homem
poderoso na tribo osage. Era um dos oito mem-
bros do conselho que governava a tribo.
Por mais terrível que tivesse sido a expres-
são de dor de Arita Pena Vermelha, seu rosto
agora se contorcia a ponto de torná-la irreconhe-
cível.
— Não! Não! — Ela se pôs a implorar de-
sesperada-mente em sua própria língua. Seus
olhos eram dois lagos negros de agonia. Sabra
nunca imaginara que uma jovem de puro sangue
índio fosse capaz de demonstrar tanta emoção
diante de uma mulher branca.
Ela pôs a jovem na cama. Mandou que
Isaiah fosse buscar o Dr. Valliant, que felizmente
estava na cidade e sóbrio. Ele começou a traba-
lhar em silêncio, com eficiência, ajudado por
Sabra, usando da melhor maneira possível os
poucos e improvisados recursos de que dispu-
nham. Arita não soltou um só grito. Seus olhos
estavam embaçados, o rosto rígido. Sabra, indo da
cozinha para o quarto de Arita com água quente,
panos, cobertores, viu Isaiah encolhido a um
373
canto junto ao caixote de lenha. Ele levantou os
olhos, sem dizer uma palavra. Seu rosto estava
cinzento. Sabra olhou para ele e compreendeu.
O bebê era um menino. Seu cabelo era es-
pesso e encarapinhado. O nariz achatado, os
lábios grossos. Sem dúvida, uma criança negra. O
Dr. Valliant examinou-o enquanto Sabra segurava
o recém-nascido nos braços.
— Isto é um caso sério.
— Vou mandar chamar os pais dela. Falarei
com Isaiah. Eles dois podem casar-se.
— Casar! Então não sabe?
Algo na voz do Dr. Valliant a assustou.
— Não sei o quê?
— Os osages não se casam com pretos. É
proibido.
— Mas tantos já se casaram. Todos os dias
se vêem negros que são índios. Nas ruas.
— Não são osages. Os seminoles, sim. E creeks,
choc-taws, mesmo os chickasaws. Mas os osages, exce-
to pelo casamento com brancos, mantiveram puro
o sangue da tribo.

374
Tal informação pareceu a Sabra sem impor-
tância e quase uma tolice. Pureza da tribo, ora
essa! Osages! Ela resolveu ser positiva e prática.
Uma vez que já se consumara o fato chocan-
te, era preciso dar-lhe uma solução. Sentia-se
culpada, pois aquilo acontecera em sua própria
casa. Devia ter previsto o perigo e procurado
evitá-lo. Em sua cabeça, Isaiah era sempre um
menino negro fiel, quando, na realidade, já era um
homem adulto.
O Dr. Valliant terminara o trabalho. A moça
estava deitada, seus olhos mortiços fixados neles,
silenciosos, atentos, desesperançados. Isaiah
continuava encolhido na cozinha. A criança estava
nos braços de Sabra. Donna e Cim, felizmente,
dormiam, pois agora já passava muito da meia-
noite. Depois da excitação do momento, o caso
todo parecia a Sabra sórdido, horrível. O que diria
a cidade? O que pensariam as sócias da Sociedade
Filomática e do Clube de Cultura Século XX?
O Dr. Valliant aproximou-se dela e olhou
para o garotinho enrugado em seus braços.
— Precisamos mostrá-lo ao pai.
— Oh, não! — protestou Sabra.

375
Ele tirou o recém-nascido dos braços dela e
virou-se para a cozinha.
— Eu farei isso. Dê-me uma dose de uísque,
sim, Sabra? Estou morto de cansaço.
Ela se dirigiu para a sala de jantar, sem um
olhar para Isaiah agachado na cozinha. O Dr.
Valliant seguiu-a. Enquanto ela servia um uísque
do estoque de Yancey, quase intocado desde que
ele se fora, ouviu a voz do Dr. Valliant, muito
branda, depois Isaiah gaguejando. Em seu mora-
lismo, ela se sentia ultrajada. Sua boca firme se
tornou ainda mais dura. Valliant levou o bebê de
volta para a cama da índia e colocou-o a seu lado.
Ele estava trôpego de cansaço ao entrar na sala de
jantar onde se achava Sabra junto à mesa. Quando
ele estendeu a mão para apanhar o copo, Sabra
viu que sua mão tremia um pouco, como aconte-
cia com Yancey fazendo o mesmo gesto. Ela não
devia pensar nisso. Não devia pensar nisso.
— Não adianta discutir agora, doutor, o que
os osages, que o senhor diz serem tão puros, vão
ou não fazer. A criança nasceu. Vou mandar
chamar o velho — como é mesmo o nome dele?
— Joelho Grande. Assim que Arita puder ser
removida, ele precisa levá-la para casa. Quanto a
376
Isaiah, estou com intenção de mandá-lo de volta
para Kansas, como tencionei fazer há muitos
anos, mas ele implorou tanto para ficar que Yan-
cey cedeu. E agora, acontece isso.
O Dr. Valliant engolira o uísque de um só
trago — despejara-o pela garganta abaixo como
quem toma um remédio para aliviar a dor. Ser-
viu-se de outra dose. Seu rosto estava cansado,
desfeito. Era tarde. Não tinha mais nervos tão
resistentes, depois de tanta bebida, excesso de
trabalho e incontáveis noites sem dormir percor-
rendo a região montado em seu cavalo preto; o
corpo outrora elegante estava agora um pouco
balofo. Mas ainda fazia boa figura sentado na sela
com a roupa de veludo preto de algodão e cha-
péu preto de aba mole.
Depois de engolir o segundo drinque, seu
rosto pareceu menos cansado, a mão mais firme,
toda a sua atitude mais alerta.
— Agora, escute, Sabra. Não está compre-
endendo. Não compreende os osages. Este é um
caso grave.
— Não pense que sou uma mulher rígida —
interrompeu Sabra. — Não estou condenando
Arita, nem Isaiah. Em parte, sou culpada. Eu
377
devia ter previsto. Mas ando tão ocupada. De
qualquer forma, ela não pode mais continuar aqui,
não é mesmo? Com Isaiah. Até o senhor. . .
Ele tornou a encher o copo. Sabra gostaria
que o médico parasse de beber, que fosse para
casa. Passaria a noite à cabeceira da cama da índia.
E de manhã — bem, precisava arranjar alguém
para ajudá-la. Cedo ou tarde, eles iam ter que ficar
sabendo.
O Dr. Valliant estava repetindo, meio auto-
maticamente, o que dissera.
— Os osages têm mantido a tribo absoluta-
mente livre de sangue negro. Este é um caso
sério.
— E daí? E como o senhor sabe? Como sa-
be? — A paciência de Sabra se tinha esgotado.
— Porque eles removem qualquer membro
da tribo que tenha tido algo com um negro.
— Removem?
— Matam. Torturando.
Ela o fitou atentamente. O Dr. Valliant es-
tava bêbado, naturalmente.
— O senhor está dizendo uma tolice. — Sua
378
irritação aumentava.
— Não deixe que a notícia se espalhe. Eles
poderiam culpá-la. Os osages. São capazes de. . .
Vou dar uma outra espiada nela.
Arita estava dormindo. Sabra sentiu pena ao
fitá-la.
— Vá para a cama, suma daqui — disse o
Dr. Valliant a Isaiah. O rosto de Isaiah estava
molhado, transtornado pelas lágrimas, pelo suor e
o medo. Ele caminhava trêmulo, como que exaus-
to.
— Espere. — Sabra cortou uma fatia do
pão, pôs um pedaço de carne que sobrara do
jantar. — Tome. Coma isto. Amanhã de manhã
tudo estará resolvido.
A notícia se espalhou. Talvez o Dr. Valliant
tivesse falado enquanto bebia. Sem dúvida, a
moça que veio ajudar Sabra. Talvez Isaiah, após
uma noite de sono exausto, se tivesse tornado
subitamente orgulhoso de sua paternidade e se
gabado em casa (e na certa fora de casa) do tama-
nho, beleza e inteligência do pequeno monte de
carne escura deitado ao lado da cama de sua mãe,
no próprio berço que servira para Donna. Arita

379
Pena Vermelha estava aflita para se levantar.
Tiveram que mantê-la à força na cama. Ela não
pronunciara uma dúzia de palavras desde o nas-
cimento do filho.
No quarto dia após ter nascido a criança,
Sabra foi cedo ao quarto de Arita, mas ela não
estava lá. A criança não estava no quarto. As
camas estavam desfeitas e vazias. Ela correu
direto para o quintal onde ficava a pequena caba-
na de Isaiah. Ele não estava. Ela interrogou a
jovem que agora ajudava nos serviços domésticos
e que dormia num divã na sala de jantar. Ela nada
ouvira, nada vira. Os três tinham desaparecido na
noite.
"Bem", pensou Sabra filosoficamente, "eles
se foram. Isaiah pode se arranjar. Talvez até con-
siga um emprego de impressor em alguma parte."
Ele era ativo, rápido, inteligente. Tinha algum
dinheiro, pois ela, nos últimos anos, lhe pagava
um pequeno ordenado semanal, e ele ganhava de
vez em quando alguma gorjeta. O bastante, talvez,
para levá-los de trem de volta a Kansas. Certa-
mente, não tinham ido ter com o povo de Arita,
pois Joelho Grande, interrogado, negou saber do
paradeiro da filha, da criança, de Isaiah. Joelho

380
Grande portou-se como um índio num romance
de Cooper. Resmungou, a expressão de seu rosto
impassível, cruzou os braços, fitou em frente com
negros olhos vazios. Não puderam arrancar nada
dele. Sua squaw, corpulenta, silenciosa, apenas
abanou a cabeça, fingiu que não falava nem en-
tendia inglês.
Então, surgiu o rumor, espalhou-se, e as
pessoas lhe deram crédito. A sua fonte fora Pete
Pitchlyn, um velho guia e colono que às vezes
vivia meses a fio com os índios em suas reservas,
que os acompanhava em suas visitas a outras
tribos, caçava, pescava, comia com eles, era casa-
do com uma cherokee, e que até fora adotado pela
tribo cherokee. Ele ouvira a história de um cherokee
que, por sua vez, a ouvira de um osage. O osage,
tendo conseguido pôr as mãos numa garrafa de
uísque, e muito embriagado, contou pela primeira
vez o fato sinistro.
Houvera uma reunião de osages com o chefe
principal, o velho Lobo Uivante, o subchefe, os
oito membros do conselho, em que estava incluí-
do Joelho Grande, pai de Arita. Na reunião fora
discutida a falta da moça, gravemente resolvida a
sua punição e a de Isaiah.

381
Eles tinham vindo durante a noite e apanha-
do os três — o negro, a índia, o recém-nascido —
, de que maneira, ninguém sabia. Arita Pena Ver-
melha e seu filho tinham sido amarrados juntos,
colocados dentro de um couro não-curtido de um
novilho, o couro fora bem amarrado, e eles ti-
nham sido levados para a campina deserta, sob
um sol intenso, e ali deixados com um guarda. O
couro encolheu, encolheu e encolheu no calor
ardente do sol, cada vez mais apertado, dia a dia,
até que logo nada mais se mexeu dentro dele.
Isaiah, já meio morto de pavor, foi levado ao
meio-dia e amarrado com força num poste. Perto,
mas não tão perto que desse para tocá-lo, havia
uma cascavel tão bem presa por uma correia de
couro que, por mais que desse botes se enroscasse
e tornasse a dar botes, não chegava a alcançar
com sua cabeça venenosa, a pobre criatura con-
torcida que a fitava com olhos tão saltados que
não pareciam mais humanos. Mas com o cair da
tarde, o orvalho começou a cair e a correia de
couro esticou um pouco com a umidade E quan-
do o pôr-do-sol veio e o orvalho molhou a correia
que retinha o horrível réptil, ela foi esticando mais
e mais. Por fim, a correia esticou o suficiente.

382
Capítulo XVI

"Lembre-se do Maine! A Espanha que vá pa-


ra o inferno!" Lia-se este sentimento exaltado em
cartazes e estandartes e em pequenos botões
brancos espetados em lapelas de casacos ou no
peito de vestidos. Havia outros botões e flâmulas
com a imagem de um cavalheiro idoso de fisio-
nomia branda disfarçada por trás de brancos
bigodes marciais; e milhares de meninos nascidos
nos Estados Unidos em 1898 cresceram com a
ligeira desvantagem de terem sido batizados com
o nome de Dewey. O Taba de Oklahoma fervilhava
de novas palavras: Baía de Manila; Hobson; Fili-
pinas. Por todo o sudoeste, sombreros subitamente
se tornaram chapéus militares cor de pó com abas
largas, retas e copas pontudas. Pessoas que, se
jamais lhes ocorrera pensar na Espanha, viam-na
nos termos românticos dos primeiros desbravado-
res do sudoeste — Coronado, De Soto, Moscosco
—, com admiração por aqueles intrépidos e frus-
trados caçadores de ouro, agora eram informadas

383
de que deviam odiar a Espanha e os espanhóis e
matar o maior número possível dos homenzinhos
de tez parda que viviam num lugar chamado
Filipinas. As ordens foram obedecidas e a matan-
ça realizada, porém sem grande entusiasmo.
Intrépidos Cavaleiros! Esta era outra ques-
tão. Era algo que a região de Oklahoma conhecia
e compreendia — rapazes altos, esguios, muscu-
losos que tinham praticamente nascido montados
num cavalo e de pistola na mão; vaqueiros, caça-
dores, pistoleiros bronzeados de sol, de olhos
argutos, destemidos. Seus uniformes, usados com
jactância, tinham algo de arrojado que faltava aos
outros regimentos. A copa de seus chapéus era
chanfrada, e não pontuda, e as abas romantica-
mente reviradas de um lado e presas com o em-
blema do regimento: dois sabres cruzados. E o
seu tenente-coronel e líder era aquele rapaz ativo
e dentuço que estava causando sensação no Esta-
do de Nova York — Roosevelt, o seu nome.
Theodore Roosevelt.
Osage tremia com arrepios de frio e de fe-
bre; os ardentes espasmos do patriotismo, os frios
rigores da virtude. Um dia, as boas senhoras da
comunidade se reuniam para providenciar uma

384
ceia preparada por elas, a ser servida a este ou
aquele regimento. Suas feições se inundavam de
sentimentalismo, seus seios arfavam de orgulho
patriótico. No dia seguinte, de olhos apertados e
lábios severamente comprimidos, reuniam-se para
condenar Dixie Lee e sua laia, e para discutir
providências para livrar a cidade daquelas presen-
ças contaminantes.
A existência dessa mulher em Osage era mo-
tivo de perene exaspero para Sabra. Dixie Lee, os
saloons que ainda se encarreiravam ao longo da
Avenida Pawhuska, as casas de jogo, todos os
apetrechos do vício eram anátema para as temí-
veis senhoras virtuosas da cidade. Um novo grupo
político surgira, ostensivamente com a plataforma
de virtude cívica. Na realidade, a cidade estava
cansada de ver todos os frutos caírem no colo da
primeira turma que ali chegara, composta de
políticos com bastante força para sacudir as árvo-
res frutíferas do território. Nas honradas senhoras
do tipo Wyatt, os cidadãos viram a chance de
poderosas aliadas. Os saloons e os jogadores esta-
vam muito firmemente entrincheirados para
serem removidos pelo elemento reformador: isso
já fora tentado. A ajuda de Sabra fora solicitada.
Nas colunas do Taba de Oklahoma, ela tentara
385
imprudentemente conduzir uma campanha contra
o saloon de Wick Mongold, em cuja especialmente
ilícita sala dos fundos sabia-se que os jovens da
comunidade tinham o hábito de se reunir. Com o
futuro de Cim em mente (e como uma desculpa)
ela escreveu um violento editorial em que dizia
coisas ousadas a respeito de abrigar criminosos e
proteger a "flor dos futuros homens do sudoeste".
Dois dias depois, um transeunte, às sete da ma-
nhã, viu labaredas lambendo as fundações do
escritório do Taba de Oklahoma e da moradia da
família Cravat. O madeirame tinha sido todo
encharcado com óleo de carvão. Se não fosse pelo
alarme do transeunte, Sabra, Cim, Donna, a ofici-
na do jornal e a casa teriam sido carbonizados.
Como em Osage a proteção contra incêndios
fosse ainda muito precária, os vizinhos alarmados
apagaram o fogo com cobertores molhados num
coxo de cavalos nas imediações. Soube-se que um
mexicano tinha sido contratado por vinte dólares
para fazer o serviço. Mongold sumiu da cidade.
Após um intervalo, os moralistas voltaram
suas atenções para o objetivo sempre vulnerável
conhecido como a Dama Escarlate. Neste setor, a
oposição foi menor. Quase cinco anos após a
partida de Yancey, a impressão nítida era que
386
Dixie Lee, com sua bela casa de tijolos e suas
moças emplumadas, não tardaria em ser varrida
pelas vassouras espirituais do esquadrão da virtu-
de.
Caracteristicamente, fora aquele momento
da história de Osage, quando a cidade estava a
braços ora com música marcial, ora com o cha-
mado da virtude cívica, o escolhido por Yancey
Cravat para voltar para casa; e não somente isso,
mas voltar para casa cavalgando com toda a pa-
nóplia da guerra, mais destemido, mais romântico,
mais misterioso do que no dia em que se fora.
Eram oito horas da manhã. O caso de Dixie
Lee (acusada de comportamento desregrado)
devia ser julgado às dez horas no tribunal local.
Sabra estivera à sua escrivaninha no escritório do
Taba desde as sete horas. Um ouvido estava aten-
to aos ruídos que vinham do interior da casa; o
outro atento às desordenadas idas e vindas de
Jesse Rickey na oficina ao lado do escritório.
— Cim! Cim Cravat! Quer parar de implicar
com Donna e comer sua comida? O boletim de
Miss Swisher diz que você chegou atrasado três
vezes o mês passado, e tudo porque fica molen-
gando quando se veste, quando come, quando. . .
387
Jesse! Oh, Jesse! O caso de Dixie Lee será nossa
matéria principal. Mantenha duas colunas em
aberto. . .
Cascos de cavalo a galope, estacando espeta-
cularmente em frente ao escritório do Taba num
torvelinho de pó. Um passo rápido, leve. Aquele
passo! Mas não podia ser. Sabra levantou-se de
um salto, levando uma das mãos ao peito, a outra
apoiando-se à escrivaninha. Ele entrou no escritó-
rio. Durante cinco anos ela o imaginara voltando
de uma forma dramática; com o sombrero branco, a
sobrecasaca, as botas altas. Durante cinco anos,
ela soubera o que iria dizer, como iria fitá-lo, de
que maneira se portaria com relação a ele — com
relação àquele homem que a desertara sem uma
palavra sequer, cruelmente. À vista dele, num
instante, tudo o que premeditara desapareceu de
sua mente, de sua capacidade de percepção. Joga-
ra-se nos seus braços com um grito inarticulado,
chorava, abraçava-o, os botões da farda dele
pressionando seu seio. A farda. De repente, ela
percebeu, sem surpresa, que Yancey estava com a
farda do Regimento dos Intrépidos Cavaleiros.
Não adianta nada perguntar a um homem
que desapareceu durante cinco anos: "Onde este-

388
ve você?" Além disso, não havia tempo. Na ma-
nhã seguinte, ele estava a caminho das Filipinas.
Só depois de sua partida é que ela percebeu que
deixara de fazer a pergunta que a estivera perse-
guindo por meia década.
Cim e Donna aceitaram com naturalidade a
presença do pai, da mesma forma que Jesse
Rickey, com sua mentalidade infantil. Mas o fato
era que o próprio Yancey não achava nada de
extraordinário na sua volta. Sua atitude era displi-
cente, bem-humorada, de uma exuberância infec-
ciosa. Era ele quem determinava o clima emocio-
nal da família. Não havia nos seus modos nada
que se assemelhasse ao marido relapso.
Com magnífica pose entrou na sala onde as
crianças estavam comendo a refeição da manhã,
ergueu-as nos braços, beijou-as. Quem o visse
naquele instante poderia pensar que ele estivera
ausente uma semana.
Donna parecia um pouco arredia com o pai.
— Sua filha é uma Venable, Sra. Cravat —
comentou ele, e virou-se para o filho, Cim, es-
guio, gracioso, mais alto do que aparentava por
causa daquele tique de baixar a cabeça e olhar
para as pessoas de sob seus cílios demasiado
389
longos, e agora quase atingindo os largos ombros
do pai. Mas ele não possuía o porte heróico de
Yancey, sua vitalidade. A estrutura craniana
Cravat se contradizia no estreito rosto Venable.
A boca era supersensível, as mãos e pés demasia-
do delicados, o sorriso quase feminino em sua
doçura pensativa.
— Deuses! Como o filho degenera do seu
genitor!
— Yancey! — exclamou Sabra em chocado
protesto. Era como se nunca houvesse existido o
lapso de cinco anos.
— Quer ver meu cachorro? — perguntou
Cim.
— Você tem um pônei?
— Não, não tenho!
— Vou comprar-lhe um hoje mesmo. Ma-
lhado. Veja.
Ele tirou do bolso um pequeno saco de cou-
ro macio, sujo e gasto de tanto ser manuseado.
Era amarrado na boca por um forte cordão de
couro. Yancey desamarrou o cordão, despejou o
conteúdo sobre a mesa; um montinho de faiscan-
te pó amarelo. Os três ficaram olhando. Cim
390
tocou o pó com um dedo.
— O que é?
Yancey apanhou um punhado do pó e o
deixou escorregar entre os dedos.
— É ouro. — Virou-se para Sabra. — É
tudo o que tenho para mostrar, meu amor, por
dois anos ou mais no Alasca.
— Alasca! — Ela mal pôde repetir a palavra.
Então era isso.
— Estou morrendo de fome. O que é isto?
Toucinho defumado e ovos?
Ele apanhou uma fatia de pão de um prato
sobre a mesa, passou na fatia uma grossa camada
de manteiga, colocou em cima uma tira de touci-
nho já meio fria, e devorou tudo com rápidas
dentadas. Foi só então que Sabra notou que ele
estava mais magro; as faces marcadas pela varíola
eram sombreadas por fundas olheiras; os ombros
maciços estavam agora quase imperceptivelmente
curvados. Havia algo de diferente em sua mão. O
dedo indicador da mão direita desaparecera. Subi-
tamente, ela se sentiu acometida de uma tontura.
Vacilou um pouco e cambaleou. Como sempre,
Yancey a amparou, beijou-lhe os cabelos.
391
— Ai, meu Deus! Que falta senti de você,
Sabra, meu amor!
— Yancey! As crianças! — Era a empertiga-
da exclamação de uma mulher que tinha se esque-
cido do prazer de ser cortejada. Aqueles cinco
anos tinham servido para acentuar seu tempera-
mento de solteirona; tinham-na tornado mais
resistente, menos humana; reduzido o mecanismo
de seu equipamento emocional. Um homem na
casa. Um macho possessivo, envolvendo-a nos
braços, tocando-lhe os cabelos, a garganta, com
dedos prementes. Ela estava quase constrangida.
Além disso, este homem não se preocupara ao
desertá-la, deixara que ela e os filhos se arrumas-
sem como pudessem. Desvencilhou-se dele.
— Não me toque. Não pode voltar para ca-
sa assim. .. depois de anos. . . depois de anos. . .
— Ah, Penélope!
— Quem?
— Estranha dama, a quem certamente, aci-
ma de todas as outras mulheres, os olímpicos
deram um coração que não pode ser abrandado.
Nenhuma outra mulher no mundo teria um cora-
ção duro a ponto de se manter a distância do

392
marido, que após labores e sofrimentos voltou
para ela. . . para sua própria terra.
— Você e seu mísero Milton!
Ele pareceu apenas ligeiramente surpreso e
não a corrigiu.
Um a um, depois em grupos e depois em
massa, os vizinhos e habitantes da cidade começa-
ram a chegar: os Wyatt, Louie Hefner, Cass Peery,
Mott Bixler, Ike Hawes, Grat Gotch, Doc
Nísbett, os políticos locais, os comerciantes, suas
mulheres. Vinham por curiosidade, embora com
decoroso ressentimento contra aquele estranho
— aquele homem desconcertante que displicen-
temente se fora, deixando que a mulher e os filhos
se arrumassem sozinhos, e agora voltara com
igual displicência. Teriam se mantido afastados se
pudessem, mas o magnetismo de Yancey era
irresistível. Talvez representasse para eles a coisa
que ansiavam ser ou ter. Quando Yancey, pondo
de lado responsabilidade e convenções, partiu
para não retornar durante misteriosos anos, uma
centena de homens, amarrados por laços de traba-
lho, mulher e filhos, escaparam em pensamento
com ele; uma centena de mulheres, esposas fiéis e
mães dedicadas, pensaram em Yancey como no
393
esquivo, no romântico, no desejável amante.
Bem, agora elas iam ver como a mulher de
Yancey ia se portar, e aprender com ela. Uma
mulher inteligente, Sabra Cravat. Mais provavel-
mente, ia pô-lo no olho da rua, e era bem feito.
Mas à vista de Yancey Cravat em sua farda caqui
de Intrépido Cavaleiro, U.S.V. na gola, a aba do
chapéu garbosamente erguida do lado esquerdo
com o emblema dos sabres cruzados, de novo
elas caíram nas malhas de seu charme. Intrépidos
Cavaleiros. Lembrem-se do Maine, a Espanha que
se dane! Haverá um "tempo quente na velha
cidade esta noite". Ele se tornou uma figura sim-
bólica da guerra, de Oklahoma, do território, do
sudoeste — impetuosa, romântica, temerária.
— Olá, Yancey! Então, por onde tem anda-
do? Em algum estouro de boiada?
— Olá, Cimarron! Onde está seu sombrero
branco?
— Você e esse tal de Roosevelt, tratem de
liquidar com esta guerra. Acho que os espanhóis
vão desejar que Colombo nunca tivesse nascido.
— Olá, Clint! Olá, Sam! — respondia Yan-
cey. — E você, meu velho Grat! Como vai, Ike,

394
seu ladrão de cavalos?
A figura imponente se destacava acima de
todos aqueles homens rudes; os olhos reluziam; a
voz macia exercia sua magia. O renegado era um
herói; o réprobo se transformava em conquista-
dor.
Alasca. Oklahoma estivera tão ocupada com
o processo de crescer que não tomara conheci-
mento do Alasca e da corrida do ouro.
— Alasca! Ora, não me venha com esta, vo-
cê nunca esteve no Alasca! Ouvimos falar que
você tinha virado índio. Ouvimos falar que você
estava enterrado na montanha Boot, junto com a
quadrilha Doolin.
Ele tirou do bolso o pequeno saco de couro.
Enquanto os outros se acercavam, despejou dian-
te dos olhares fascinados o montículo amarelo
daquele tesouro tão estreitamente ligado a toda a
história do sudoeste. Ouro. As montanhas e
planícies haviam sido escavadas para encontrá-lo;
homens tinham passado fome, sede e lutado por
ele; tinham morrido por ele; tinham sido assassi-
nados; tinham sacrificado honra, família, felicida-
de na esperança de encontrá-lo. E agora ali estava
o precioso pó amarelo do longínquo Alasca escor-
395
regando por entre os finos dedos brancos de
Yancey Cravat.
— Raios, Yancey, a sorte que alguns ho-
mens têm.
Então, aquele novo Ulisses teceu para eles
mais um capítulo de sua saga. E os homens fica-
ram ouvindo, maravilhados, e acreditaram e se
sentiram cheios de inveja, admiração e desejo de
também viver aquelas aventuras. Yancey falava,
ria, gesticulava, andava de um lado para outro, e
ninguém deu pela falta das movimentadas abas da
sobre-casaca, pois havia botões de metal dourado
e bolsos aplicados, bordados a ouro, e os reluzen-
tes sabres cruzados para substituí-las.
— Sorte! Chama isso de sorte, Mott, estar
regelado, morrendo de fome, perdido, cego por
causa da neve? Um inverno inteiro trancado numa
cabana de um só quarto com a neve empilhada até
o teto e passar meses sem vivalma com quem
trocar duas palavras? Sorte ver um sócio em quem
se confiava roubar o título de prospecção que
pertencia a ambos e também o ouro que era dos
dois? Tudo roubado a não ser por este punhado.
Eu ia ver Sabra coberta de ouro como uma prin-
cesa asteca.
396
Os olhos dos ouvintes, voltando-se para a
correta figura vestida de sarja azul da lograda
princesa asteca, e deparando com o olhar firme e
lábios sem sorriso, retornaram depressa à figura
marcial do herói anteriormente vilipendiado.
Uma história desenrolada em outro mundo,
numa terra tão remota do brilhante escarlate e
laranja do sudoeste, que o próprio som das pala-
vras usadas por ele ao descrevê-la tinha uma
cadência estranha para os ouvintes fascinados. E
como sempre, quando Yancey estava contando
uma história, provocava nos outros uma ânsia de
conhecer o lugar que ele descrevia, uma ânsia que
era como uma nostalgia por algo que eles nunca
tinham conhecido. Imagine, minha gente, inver-
nos com quarenta e cinco graus abaixo de zero.
Duas horas por dia de sol fraco, e depois escuri-
dão. Longos, esplêndidos dias de verão em maio e
junho com vinte horas de sol e quatro horas de
crepúsculo. Sabra, ouvindo com os outros, achou
tão estranho, tão assustador este novo vocabulá-
rio, quanto o fora para ela o jargão de Oklahoma,
quando ali chegara há alguns anos.
Yukon. Desfiladeiro Chilkoot. Skagway. Ku-
skokwim. Klondike. Alce. Caribu. Cães huskies.

397
Trenós. Nome. Sitka. Nevascas. Cegueira de neve.
Dedos congelados. Carne-seca. Frio. Frio. Frio.
Ouro. Ouro. Ouro. Para as pessoas fascinadas que
se aglomeravam nos cômodos abafados da pe-
quena casa de madeira acachapada na campina
torrada de sol de Oklahoma, Yancey, pela magia
de sua voz e eloqüência, trazia o movimento
inelutável das geleiras, a ameaça negra dos rios
gélidos, as vastas planícies varridas pela neve
traiçoeira, cegante. Dois anos agüentando aquilo
tudo, dizia ele, e olhava pesaroso para o toco que
fora seu famoso dedo de gatilho.
Eles, também, olhavam. Dois anos. Dois
anos, e ele estivera ausente cinco. Assim, restavam
três sem explicação. Velhos rumores voltavam-
lhes à memória. Os olhos, agora já habituados à
farda, estavam menos ofuscados. Viam a indefiní-
vel mudança que se operara naquele homem
magnífico — não bem um alquebramento, mas
uma redução da resistência, como acontece ao aço
que passou demasiado tempo na fornalha. Olhan-
do-se os ombros maciços, eles não estavam curva-
dos. O olhar agudo ainda trespassava as pessoas
como uma estocada de espada. A cabeça de búfalo,
abaixada, ameaçava; erguida, fascinava. Entretanto,
algo desaparecera.
398
— Onde se alistou, Yancey?
— San Antônio. Encontrei lá Leonard Wo-
od — Coronel Wood agora — e o jovem Roose-
velt, tenente-coronel. Ele está treinando os recru-
tas. A maioria deles nasceu sobre um cavalo e de
Winchester na mão. Estamos mais bem equipados
do que as tropas regulares que estão há anos no
exército. É ao jovem Roosevelt que se deve isso.
Os militares estavam querendo nos fornecer
roupas de inverno, meu Deus, para usar durante
uma campanha de verão nos trópicos — aqueles
mentecaptos em Washington —, e é o que teriam
feito se não fosse por ele.
— Neste caso, você deve partir logo, não é?
Dentro de uma ou duas semanas — disse
Southwest Davis.
— Uma ou duas semanas! — ecoou Yancey.
e olhou para Sabra. — Volto amanhã para San
Antônio. O regimento segue para Tampa no dia
seguinte.
Ele não lhe dissera antes. Mas Sabra nada
disse, continuou impassível. Durante cinco anos,
enfrentara-os com seu orgulho e determinação;
não ia lhes dar agora o prazer de vê-la decepcio-
nada. Cinco anos. Um dia. San Antônio—Tam-
399
pa—Cuba—as Filipinas—guerra. Não deu a
menor demonstração. Curiosamente, a imagem
que lhe passava pela cabeça era esta: via a si mes-
ma como se fosse outra pessoa que conhecera no
passado distante, vago, parada no corredor fresco,
sombrio, da escola da missão em Wichita. Via,
através da porta aberta, o oblongo do sol e do céu
de Kansas; sentia-se novamente invadida por
aquela onda de nostalgia que sentira pelo cenário
que estava deixando, trêmula de temor da estra-
nha terra agreste para onde iria com seu marido.
"...mas aqui neste país, Sabra, minha filha, as
mulheres, têm sido elas que racham lenha e vão
buscar água no poço. Não vá se esquecer disso,"
Sabra lembrava-se agora, e com boas razões.
Lentamente, os visitantes começaram a dis-
persar-se. Os homens tinham seus negócios, as
mulheres os trabalhos domésticos. Esposas deram
o braço aos maridos, e o gesto talvez não fosse de
uma crueldade totalmente inconsciente, já que era
acompanhado de um rápido olhar na direção de
Sabra.
"Farda de Intrépido Cavaleiro, saco de ouro,
voz insinuante, olhos fascinantes", parecia o olhar
dizer. "Você que fique com todas estas coisas.
400
Segurança, permanência, lar, marido — eu não
trocaria de lugar com você."
— Vamos, Yancey! — gritou Strap Buckner.
— Vamos até o Sol do Sudoeste tomar um drin-
que. Temos muito que beber, não é, rapazes?
Vamos, venha, seu pilantra. Temos que beber
porque você está de volta e porque você está de
partida.
— E à guerra! — berrou Bixler.
— E aos Intrépidos Cavaleiros!
— E ao Alasca!
As botas ressoaram nas tábuas do assoalho
da casa. Arrastaram consigo a figura alta de uni-
forme caqui. Ele se virou, acenou com o chapéu
para ela.
— Volto daqui a um minuto, meu amor. —
E saíram todos.
Sabra virou-se para os filhos, Cim e Donna,
ambos de faces coradas com a excitação inespera-
da, descontrolados. O rosto dela adquiriu a ex-
pressão de tranqüila firmeza.
— A metade da manhã já passou. Mas, as-
sim mesmo, quero que vão para a escola. Não,

401
nada disso! De qualquer forma, não adianta vocês
ficarem aqui. Tenho que me ocupar com o jornal.
Jesse vai estar imprestável o resto do dia. Não é
difícil prever que vai se embriagar. Vou escrever
um bilhete às suas professoras. . . Agora, apres-
sem-se. Tenho que ir ao tribunal.
Ela havia decidido que passaria o dia fazen-
do o que já tinha programado. O caso de Dixie
Lee, arrastando-se há várias semanas, ia ser resol-
vido esta manhã — neste mesmo momento.
Chegaria atrasada se não se apressasse. Não estava
disposta a desperdiçar um trabalho de meses
porque esse homem — esse estranho — resolvera
reentrar na sua vida por um dia.
Espetou o grampo no chapéu, verificou se
bloco e lápis estavam na bolsa, entrou às pressas
na oficina do jornal. Estivera certa a respeito de
Jesse Rickey. Seu auxiliar consistentemente irres-
ponsável estava naquele mesmo momento apoi-
ando o cotovelo na sua muito conhecida superfí-
cie polida do bar do Sol do Sudoeste e bebendo à
volta do aventureiro, à partida do herói, à guerra
nos trópicos, às neves do Alasca. . . ou a sabe Deus
o quê! — concluiu Sabra mentalmente.
Cliff Menas, de quinze anos, o aprendiz de
402
impressor, sempre lambuzado de tinta, ergueu os
olhos da caixa de tipos quando Sabra entrou.
— Está tudo bem, Sra. Cravar. Já preparei a
manchete conforme me disse. "O vício recebe um
golpe mortal. Fim do reinado da Dama Escarlate.
Juiz decreta banimento." Mesmo que Jesse não
venha. . . mesmo que não dê para ele vir. . . a
senhora e eu podemos compor a matéria esta
tarde para ter tempo de rodar o jornal na quinta-
feira. Até agora, nunca o jornal saiu atrasado, não
é mesmo?
— Toda quinta-feira, no dia certo, na hora
certa, durante cinco anos — disse Sabra, quase
num desafio.
Subitamente, a voz clara e forte de Yancey
chamando-a do alpendre do escritório, da porta
da oficina, urgente, perturbada.
— Sabra! Sabra! Sabra!
Ele entrou na oficina. Ela o encarou. Instin-
tivamente, sabia.
— Que história é esta sobre Dixie Lee? —
Seus olhos treinados de jornalista pousaram na
composição. Leu a manchete de cabeça para
baixo. — Quando vai ser julgado este caso?
403
— Agora.
— Quem a está defendendo?
— Ninguém na cidade quis tocar no caso.
Dizem que ela mandou vir um advogado de Den-
ver. Ele não compareceu. Com certeza, achou
mais prudente não se meter.
— E a acusação?
— Pat Leary.
Sem uma palavra, ele se virou. Já na porta,
Sabra agarrou-o pelo braço.
— Aonde vai?
— Ao tribunal.
— Para quê? Para quê? — Mas ela sabia.
Chegou a interpor-se entre ele e a porta da rua,
como que para impedi-lo fisicamente de sair.
Estava pálida. Seus olhos pareciam imensos.
— Não pode defender aquela mulher.
— Por que não?
— Porque não pode. Porque eu a venho
atacando. Porque o Taba combate tudo o que ela
representa.
— Mas, Sabra, meu bem, para onde estava
404
pensando mandá-la?
— Para longe. Para longe de Osage.
— Mas onde?
— Não sei. Não me interessa. As coisas
mudaram desde que você foi embora. Foi embora
e me deixou.
— Nada mudou. Está tudo na mesma. Nes-
tes últimos dois mil anos ou mais. Dixie vem
sendo apedrejada na praça do mercado. Expulsá-
la daqui não vai adiantar nada. Você devia era
expulsar o diabo. . .
— Yancey Cravat, está querendo me pregar
um sermão? Você que deixou sua mulher e filhos,
pouco se importando se eles iam morrer de fome!
E agora volta e toma o partido dessa criatura
contra todas as mulheres respeitáveis de Osage —
contra mim!
— Eu sei. Mas não tem outro jeito, Sabra.
— Vou lhe dizer o que penso — retorquiu
com voz estridente a Sabra Cravat em que ela se
transformara nos últimos cinco anos. — Acho
que você está maluco! É o que todos dizem. E
agora sei que eles estão com a razão.

405
— Talvez.
— E você ousa pensar que vai me desacredi-
tar defendendo-a. E seus filhos? Há meses venho
combatendo-a através do jornal. Uma miserável
como "ela! Sua própria esposa. . . exposta a cha-
cotas. . . por uma. . . uma. . .
— O território está podre. Mas, por Deus,
todo cidadão ainda tem o direito legal de lutar
pela sua existência! — Ele a afastou delicadamen-
te.
Ela perdeu completamente o controle. Tor-
nou-se uma gata selvagem. Tentou agarrá-lo.
Atirou-se contra ele. Era como um pardal enfure-
cido atirando-se contra um mastodonte.
— Se você ousar! Por que voltou? Odeio
você. O que ela é para você? Proíbo que a defen-
da. Prefiro vê-lo morto. Prefiro matá-lo. Aquela
vadia! Aquela nojenta! Aquela prostituta!
A dignidade dela se evaporara. Yancey er-
gueu-a, arranhando, dando pontapés, colocou-a
delicadamente na cadeira diante da escrivaninha.
A porta bateu. Os passos rápidos, leves, atraves-
sando o alpendre, descendo os degraus. Com a
roupa enxovalhada, o rosto manchado de lágri-

406
mas, apesar de enfurecida, e com o chapéu de
banda, ela apanhou automaticamente o lápis, um
bloco de papel, e escreveu uma nova manchete.
"O vício novamente triunfa sobre a justiça." De-
pois, recobrando um pouco da sua compostura,
caminhou apressadamente pela rua empoeirada
até onde ficava a combinação de cadeia e sala do
tribunal" — um rústico prédio de madeira — sob
o sol ardente.
Em vista da notoriedade da ré, a inadequa-
damente exígua sala do tribunal estaria, de qual-
quer forma, atulhada. Mas a notícia da brusca
saída de Yancey do Sol do Sudoeste — e a razão
de sua saída — tinha se espalhado de casa em casa
pela pequena cidade com a rapidez de um incên-
dio na floresta passando de uma árvore para
outra. A última proeza de Yancey Cravat, aquele
maluco. Homens deixaram seus escritórios, lojas;
mulheres as panelas, as limpezas. A sala do tribu-
nal, sufocante, infestada de moscas, torrando ao
sol da manhã, estava repleta. Gente se empoleira-
va nos peitoris, se apinhava sobre caixotes do lado
de fora das janelas, comprimia-se na soleira da
porta, acocorava-se no chão. O júri reunido às
pressas, Pat Leary vestido numa solene roupa
preta, Dixie Lee com suas moças, até o próprio
407
Juiz Sipes, pareciam correr perigo de ser espezi-
nhados pela multidão. Era a paródia de uma sala
de tribunal. O juiz triturando nervosamente um
pedaço de fumo, os cantos da boca manchados de
marrom; Pat Leary muito arrumado, muito estica-
do, representando a lei e a ordem em seu luzidio
colarinho de celulóide; Dixie Lee, com um senso
de dramaticidade, toda de preto, as faces brancas
sem ruge, os escuros e abundantes cabelos repar-
tidos em bandos lisos sob o toque. Mas suas
moças estavam em plena panóplia de plumas.
Não deixava de ser estimulante à vista vê-las
naquela aglomeração de insípida respeitabilidade.
Os jurados, em sua maioria, eram gente de
cara fechada. Apanhados nas montanhas e planí-
cies, de fala hesitante, raciocínio lento, rápidos no
gatilho. Dois ou três estavam de macacão; um ou
dois no desabituado desconforto de roupas de
cidade. Os restantes, com as botas convencionais,
calças de veludo de algodão ou zuarte e camisas
rústicas. Um lento movimento rítmico dos maxi-
lares era a evidência de que uns generosos goles
preliminares tinham sido ingeridos como uma
precaução para tranqüilizar os nervos e clarear o
pensamento. Esta farsa legal já havia começado
quando Yancey fez sua entrada espetacular.
408
Capítulo XVII

— Ação movida pelo território de Oklaho-


ma contra Dixie Lee! (Tinham, então, transfor-
mado aquilo numa ação de território...) Advogado
da acusação! — Pat Leary pôs-se de pé. — . . .da
defesa. — Ninguém. A apinhada sala do tribunal
era um pesadelo de olhos fixos e rostos boquia-
bertos avidamente concentrados na pálida, devas-
tada fisionomia de Dixie Lee. A verdade era que,
comparada àquela gente, ela parecia pura, distante,
requintada. — Em vista de a ré ter deixado de se
munir de um advogado, é meu dever, de acordo
com as leis do governo dos Estados Unidos. e do
território de Oklahoma, nomear um advogado
para a sua defesa. — O juiz mudou para a outra
bochecha seu pedaço de fumo de mascar, enquan-
to seus injetados olhos astuciosos percorriam
solenemente a assistência, buscando o rábula,
Gwin Larkin. Houve uma agitação entre os pre-
sentes, ouviram-se murmúrios. — Portanto,
designo. . . — O murmúrio cresceu. — Ordem no

409
tribunal!
— Meritíssimo!
Destacando-se acima dos outros, forçando
caminho através da aglomeração de gente como
uma inelutável força da natureza, surgiu a maciça
cabeça de búfalo, encimada pelo romântico cha-
péu do Regimento dos Intrépidos Cavaleiros com
sua aba revirada presa pelos sabres cruzados, a
atlética figura vestida de caqui. Era dramático, era
melodramático, era ridículo. Era soberbo. As
caras boquiabertas desviaram seus olhos arregala-
dos da mulher de rosto pálido para o recém-
chegado. Aquele era o tipo de situação que mais
deleitava o sudoeste; era ação, era tempestade
desencadeada, era aventura. Era, em resumo,
Cimarron.
Ele se postou diante do pretensioso juiz. Ti-
rou o chapéu com um gesto largo que o investiu
de plumas.
— Com licença, Meritíssimo, represento a
acusada, Dixie Lee.
Nenhum juiz no território ousaria enfrentar
aquela assistência recusando Yancey Cravat. As-
sim, ele lançou um olhar em redor — agora um
410
olhar desamparado, confuso —, com um gesto
fraco de mão indicou a Gwin Larkin que voltasse
para o seu lugar e preparou-se para proceder ao
julgamento do caso de acordo com as leis do
território. Certamente, o olhar que dirigiu a Sabra
Cravat quando ela entrou uns dez minutos depois,
pálida, resoluta, e se sentou em seu lugar de repre-
sentante da imprensa, era uma tal mistura de
perplexidade e de censura que teria constrangido
qualquer um menos preocupado do que a editora
e redatora do Taba de Oklahoma.
Protesto por parte do maneiroso Pat Leary.
Rejeitado, forçosamente, pelo juiz. Um clamor da
assistência. Ordem! Bangue! Outro clamor. Lei
numa comunidade sem lei que ainda não comple-
tara dez anos; uma comunidade composta, em sua
maioria, de pessoas cuja simples presença ali
significava impaciência com relação à velha or-
dem, desafio às convenções. Dez minutos antes,
tinham estado todos do lado do arrogante Leary,
ex-agente da estação, ansiosos por jogar a primei-
ra pedra na mulher no templo. Agora, com a
inexplicável inconstância da turba, a corrente
elétrica de simpatia ia para a mulher a ser julgada,
para o homem que a defenderia. Ardente, rápida e
com muita ação — era assim que o sudoeste
411
queria aplicada a sua justiça.
Pat Leary, irlandês, ambicioso, virulento. Seu
gênio, nunca brando na melhor das hipóteses, já
se acirrara mesmo antes de ele se levantar. A idéia
de Yancey à sua frente, a brigada da pureza sus-
tentando-o por trás, impeliu-o à sua frenética,
desvairada acusação.
Os anos que passara como funcionário da
estrada de ferro o haviam equipado com um
vocabulário bem adequado para flagelar aquela
mulher vestida de preto, tão imóvel, tão pálida,
sentada à sua frente, diante dos olhos de toda
aquela gente. Adjetivos e mais adjetivos, vitupera-
ção, palavras que, a não ser na Bíblia ou num
tribunal de justiça, são consideradas obscenas.
— ... todas as influências perniciosas, Meri-
tíssimo, que infestam o nosso glorioso território,
saíram do ambiente leproso que impera na casa
desta mulher. . . Um refúgio para os devassos, os
doentes, os criminosos. . . ela que vive em luxo e
ostentação à custa do seu asqueroso comércio,
com o dinheiro que deveria ser gasto para edifi-
car, para enobrecer esta nossa formosa terra do
sudoeste. . . uma hiena, a mais vil das criaturas. . .
uma desonra para o seu sexo. . . — Insultos se
412
contorciam para fora da boca de Pat como ser-
pentes.
A assistência foi tomada de um curioso
constrangimento. Havia muitos na sala repleta que
tinham desfrutado da hospitalidade fácil da orga-
nização de Dixie; que tinham comido à sua mesa,
que tendo perdido seu dinheiro na casa de jogo de
Grat Gotch, tinham tomado emprestado de Dixie
para se salvarem de vinganças brutais. Desenvol-
vendo seu negócio, ela tinha tirado dinheiro da
cidade e tornado a devolvê-lo aos outros comerci-
antes da cidade. O banqueiro podia testemunhar
que era verdade, como o podia o prefeito, esta ou
aquela comissão. Dixie Lee vai doar mil, pode pôr
o nome dela na lista. Ela fazia parte da ordem
naquela desordenada, desvairada cidade.
Insultos. Insultos. Insultos. O ressentimento
tornava mais escuro o vermelho natural dos ros-
tos queimados de sol. Os jurados agitavam-se em
seus assentos. Um murmúrio abafado, de mau
agouro, como um rosnar, soava qual uma trovoa-
da distante. Embora mais jovem, menos experien-
te do que Yancey, Leary devia ter se dado conta.
Aqueles homens que compunham um inadequado
júri, aqueles homens na assistência da sala do

413
tribunal, vinham de lugares agrestes, tinham vivi-
do na atmosfera rude da fronteira. Em sua rústica
juventude, e agora, as mulheres eram escassas,
escassez das duras condições da vida naquelas
paragens. E por serem escassas, eram preciosas.
Qualquer mulher, por mais chã, mais desgraciosa,
menos desejável, adquiria, pelo simples fato de ser
mulher, um valor muito acima dos seus predica-
dos. A atitude de toda uma nação se deixara influ-
enciar por esta circunstância sentimental que era,
no final das contas, em grande parte geográfica.
Durante todo um século os países da Europa,
intrigados, incapazes de compreender os motivos,
tinham se divertido com aquela reverência adoles-
cente que o homem americano demonstrava pela
mulher americana.
Ali estava Pat Leary, andando excitadamente
de um lado para outro, pronunciando execrações,
quando ele próprio, dez anos antes, ainda um
agente de estação, tinha se casado com uma índia
por causa da escassez de mulheres brancas na
região de Oklahoma. Enquanto prosseguia em sua
arenga, via do canto do olho a figura imponente
de Yancey Cravat. A cabeça maciça estava afun-
dada no peito, as pálpebras abaixadas. Vencido,
pensou Pat Leary. Derrotado, e consciente de sua
414
derrota. Cravat, o irresponsável, o desertor da
família. Leary terminou seu ataque numa explosão
de oratória tão implacável, tão brutal, que teve a
satisfação de ver que a dolorosa humilhação a que
sujeitara Dixie Lee a fizera corar desde a raiz dos
cabelos até a recatada gola branca que lhe circun-
dava o pescoço.
O pomposo irlandesinho sentou-se, de peito
estufado, a cabeça alta, a vista percorrendo a
assistência e o banco dos jurados, os lábios entre-
abertos num sorriso de satisfação consigo mesmo.
Mais uns poucos casos como aquele, e talvez a
população constatasse que havia material para um
governador do território ali mesmo em Osage.
A turba agitou-se, murmurou, desandou a
falar. Yancey continuava afundado em sua cadeira
como que mergulhado em pensamentos. O falató-
rio ia num crescendo. "Ele desistiu", pensou Sabra
exultante. "Está vendo o que se passa."
Os olhos de toda aquela gente comprimida
na sala sufocante se concentravam no homem
afundado em sua cadeira. Talvez as expectativas
deles fossem vãs, não ia haver espetáculo.
Lentamente, a cabeça maciça se ergueu, os
ombros fortes se endireitaram, Yancey levantou-
415
se, parecia que nunca ia terminar de se levantar,
caminhou para junto da tosca mesa do Juiz Sipes
com seu passo leve, gracioso. As pálpebras conti-
nuavam abaixadas sobre os olhos faiscantes.
Ficou parado um momento, os lábios repuxados
por aquele seu sorriso singularmente doce. Come-
çou a falar. A voz vibrante, após os berros de
Leary, era em tom tão baixo que a assistência
reteve a respiração para ouvir o que ele estava
dizendo.
— Meritíssimo. Senhores do júri. Tenho que
primeiro render homenagem a uma façanha. Uma
homenagem tem que ser rendida a quem a tenha
merecido, foi o que sempre pensei. Portanto,
peço permissão, antes de iniciar meu modesto
apelo em defesa desta senhora, minha cliente,
para mui respeitosamente chamar a atenção dos
senhores para algo que, na minha humilde opini-
ão, nunca antes foi realizado, muito menos repe-
tido, em toda a extensão do sudoeste. Virem os
olhos para a personagem que tão recente e mere-
cedoramente reteve as atenções de todos nesta
sala. Reparem mais uma vez nele. Reparem bem.
Nunca verão alguém que a ele se compare. Pois,
cavalheiros, na minha opinião, este homem tão
talentoso, o Sr. Patrick Leary, é o único no terri-
416
tório de Oklahoma — no território índio —, em
todo este brilhante e glorioso sudoeste — digo
mais, em todo este magnífico país, os Estados
Unidos da América! —, de quem se possa dizer
que é capaz de, mesmo sentado, apavonar-se.
O homenzinho de peito estufado na cadeira
murchou, depois se ergueu de um salto, com as
faces em fogo, gesticulando.
— Meritíssimo! Eu protesto!
Mas o resto de sua fala se perdeu na garga-
lhada gigantesca da assistência.
— Vá em frente, Yancey!
— Isso mesmo, Cimarron!
Era para ouvi-lo que tinham vindo. Raios,
não havia ninguém como ele, ninguém que che-
gasse a seus pés!
Mesmo nos dias de hoje, embora já se tenha
passado mais de um quarto de século, ainda há
gente em Oklahoma que tem guardada uma cópia
datilografada do registro escrito a mão do discur-
so pronunciado naquele dia por Yancey Cravat
em defesa da mulher da vida Dixie Lee. "Apelo
em favor de uma decaída", é o título do texto de
Yancey Cravat; e nunca houve um discurso mais
417
sentimental, mais empolado, falso e totalmente
comovente, nem que encontrasse ouvidos mais
apreciadores da floreada e exuberante oratória de
Yancey Cravat, a Língua de Prata do sudoeste.
Barato, melodramático, grandiloqüente,
apaixonante. Uma garrafa de uísque no estôma-
go; uma assistência fascinada; uma mulher pálida
com olhos desesperançados fitando-o; o grito de
sua esposa injustiçada e virtuosa ainda soando-
lhe nos ouvidos — nunca, em tempo algum, um
advogado teve um desempenho mais brilhante,
nem mais falso.
— Meritíssimo! Senhores jurados! Ouviram
com que crueldade a acusação se referiu aos peca-
dos desta mulher, como se ela tivesse escolhido a
sua condição. Um quadro tenebroso, horrendo,
revoltante foi pintado para nós da vida que ela
leva. Digam-me — quero saber —, acham real-
mente que ela propositadamente se entregou a
uma vida tão repelente, tão horrível? Não, cava-
lheiros! Mil vezes, não! Esta moça foi educada
com luxos e requintes que poucos entre nós co-
nheceram. E justamente quando a adolescente
estava desabrochando, o destino cruel roubou-lhe
tudo, afastou-a dos seus entes queridos, tirou dela,

418
uma por uma, com vertiginosa e feroz rapidez,
todas as pessoas que poderiam dar-lhe amor e
apoio. E então, naquele momento do mais negro
terror e solidão, surgiu alguém do nosso sexo,
cavalheiros. Um lobo disfarçado em pêlo de car-
neiro. Um demônio disfarçado em ser humano.
Falsas promessas. Mentiras. Engodo tão palpável
que a ninguém teria enganado a não ser a uma
jovem inocente, pura, cheia de ilusões como era
esta mulher que vêem agora aqui, tão pálida e
trêmula. Alguém pertencente ao nosso sexo foi o
autor da sua ruína, muito mais culpado do que ela.
O que poderia ser mais patético do que o espetá-
culo que ela apresenta? Uma alma imortal em
ruínas. A estrela da pureza, outrora rebrilhando
em sua fronte juvenil, se apagou para todo o sem-
pre. Há poucos momentos ouviram como ela foi
vilipendiada, nos termos mais baixos que um
homem possa empregar em relação a uma mulher,
pela infâmia da vida que leva, pela decadência em
que caiu. Querem expulsá-la daqui. Mas, para
onde? Cavalheiros, as próprias promessas de Deus
lhe são negadas. Quem disse "Vinde a mim todos
vós que estais perdidos, e eu vos abrigarei"? Ela
realmente está perdida, esta espezinhada flor do
sul, mas se neste mesmo instante ela se ajoelhasse
419
diante de todos nós e se confessasse ao seu Re-
dentor, onde está a Igreja que a acolheria, ou a
comunidade que a aceitaria? Ela seria recebida
com desprezo e sarcasmo. As pessoas do seu sexo
que encontrasse juntariam as saias para evitar a
poluição de serem tocadas por suas mãos impuras.
Alguém do nosso sexo outrora a desgraçou. Mu-
lheres a evitam como uma pestilência. A sociedade
ergueu muralhas implacáveis contra ela. Somente
no acolhedor refúgio de uma sepultura poderá seu
pobre e traído coração encontrar o repouso pro-
metido pelo Redentor. O cavalheiro que tão elo-
qüentemente discursou antes de mim chamou-a de
muitos nomes, falou em seus pecados, em seus
hábitos. Mas nunca, apesar de toda a sua eloqüên-
cia, ele mencionou as tristezas desta mulher, suas
agonias, suas esperanças, seus desesperos. Mas eu
lhes poderia dizer. Poderia contar sobre aquele dia
desesperado — o dia escrito em letras vermelhas
no estandarte desta grande Oklahoma — em que
ela tentou conquistar um lar para si mesma, onde
poderia viver uma vida decente e tranqüila. . .
Quando as relembradas vozes de pai, mãe, irmãs e
irmãos soam como música aos seus ouvidos peca-
dores. . . quem poderá dizer o que este coração
pesado, embora possa nos parecer pecaminoso. . .
420
compreensão, piedade, ajuda, como música na
alma pecaminosa. . . oh, cavalheiros. . . cavalhei-
ros. . .
Mas já a essa hora, os cavalheiros, entre a
emoção e o fumo de mascar, estavam tendo tanta
dificuldade com seus pomos-de-adão, que parecia
inevitável uma asfixia geral. A bela voz flexível
prosseguiu, as mãos com gestos de adejante ele-
gância, os olhos exercendo seu fascínio sobre
todos os presentes. A pomposa figura de Pat
Leary foi encolhendo, murchando, desaparecen-
do. A prostituta Dixie Lee, com seu vestido ne-
gro, tornou-se uma mulher romântica, dolorosa,
atraente. Sabra Cravat, fazendo voar o lápis sobre
o papel, pensou sombriamente:
"Não é verdade. Não acredito nele. Ele está
errado. Sempre esteve errado. Há quinze anos que
está sempre errado. Não acredito nele. Terei que
publicar isso tudo. Como é linda a voz dele. É
como uma faca no meu coração. Não devo olhá-
lo nos olhos. Suas mãos. . . O que foi que ele
disse? Preciso não esquecer. . . música na alma
pecaminosa. .. oh, meu amor. . . Eu devia odiá-lo.
. . Eu o odeio. . ."
A cabeça de Dixie Lee curvou-se sobre o pei-
421
to arfante. Até mesmo as suas satélites empluma-
das tiveram a inteligência de adotar a languidez de
lírios esmagados e de enxugar lágrimas com finos
lenços enquanto fungavam audivelmente.
Estava terminado. Yancey encaminhou-se
para sua cadeira, sentou-se como antes, a grande
cabeça de búfalo curvada para a frente, as pálpe-
bras cerradas, as belas mãos cruzadas, em repou-
so.
Os bons e honestos membros do júri saíram
solenemente abrindo caminho entre a multidão
que recuou para deixá-los passar. Com igual sole-
nidade, atravessaram a rua poeirenta e se retiraram
para um galpão, onde se sentaram sobre pedaços
de pedra ou de pau ali encontrados. Solenemente,
com brevidade, e com total desconsideração pelos
aspectos legais, eles discutiram o caso — se é que
aqueles monossílabos inarticulados podiam ser
considerados discussão. O povo na sala do tribu-
nal, espalhando-se para ir beber ou comer alguma
coisa, mal teve tempo de engolir cada um o seu
drinque antes de o júri retornar batendo pesada-
mente os pés na rua e entrar na sala do tribunal...
— . . .conclui que a acusada, Dixie Lee, é
inocente.
422
Capítulo XVIII

Era como se Osage, e toda a região de


Oklahoma, houvesse agora parado para respirar
fundo. E era mesmo o que devia fazer. Logo à sua
frente, aguardavam-na anos, ainda desconhecidos,
de tal clangor e tantas lutas que, por comparação,
os anos anteriores iriam parecer monótonos.
Desde o dia da corrida, há mais de quinze anos,
tocara em frente desabaladamente, o último que o
levasse o diabo; disparando para o ar; empinando
cavalos e soltando berros de pura vitalidade e
desmando. Um teto rústico sobre a cabeça; comi-
da bruta na mesa; um cavalo para galopar; uma
bebida de queimar a garganta; a lei nas mãos; água
barrenta; uma mulher na cama; estradas de terra
batida até a borda da campina tostada de sol, e
dali em diante nenhuma estrada; agarre o que
precisa; lute pelo que quer — os homens que
tinham vindo para a agreste região de Oklahoma
não esperavam mais do que isso, e era isso que
tinham conseguido. Parecia ser uma terra de
homens, governada por homens para homens. As
mulheres lhes permitiam pensar assim. A palavra
423
"feminismo" era desconhecida das Sabra Cravat,
das Sras. Wyatt, Hefner, Turker e Folsom, e Sipes.
Mulheres virtuosas e corajosas, unidas pela sua
virtude e pelo propósito comum de domesticar a
região. O seu poder era ainda mais tremendo por
não saberem elas que o possuíam. Nunca, naque-
les quinze anos, tinham dito uma só vez: "Nós,
mulheres, faremos isto. Nós, mulheres, mudare-
mos aquilo". Em silêncio, indômitas, inexoráveis,
sem sequer um olhar furtivo de conivência troca-
do entre elas, mas seguras do seu conhecimento
do sentimental homem americano, prosseguiram
nos seus planos.
O Clube Filomático. O Clube de Cultura
Século XX. A Estrela do Leste. As Filhas de
Rebeca. O Pavilhão de Vênus.
Tais atividades provocavam nos homens
gargalhadas estrondosas.
— O que vocês mulheres fazem nessas suas
reuniões? Trocam receitas de cozinha e moldes de
vestidos?
— Isso mesmo. E também falamos.
— Aposto que sim. Nenhum homem duvi-
da disso. Como falam! Quando umas dez de

424
vocês mulheres começam a soltar a língua, aposto
que resolvem todos os problemas do território —
política, índios, lutas pela posse de terras e todo o
resto.
— Mais ou menos.
Yancey voltara da Guerra Hispano-Ameri-
cana um herói. Outros homens de Osage tinham
estado nas Filipinas. Um até morrera lá (disente-
ria e ptomaína provenientes de carne mal enlata-
da). Mas Yancey era o Intrépido Cavaleiro da
cidade. Tinha participado com Roosevelt da
tomada da colina San Juan. Osage, conhecendo
Yancey e nunca tendo visto Roosevelt, presumiu
que Yancey Cravat — o Cimarron do Sudoeste
— chefiara o ataque, uma pistola de coronha de
marfim e incrustações de prata em cada mão, a
cabeça de búfalo abaixada tão ameaçadoramente
que os homenzinhos pardos tinham fugido apa-
vorados para suas florestas.
A volta dele fora motivo para tais celebra-
ções como a cidade nunca antes vira e nunca mais
iria ver, diziam uns para os outros, entre um e
outro drinque, até o dia em que o território passa-
ria a Estado. Ele voltara com o posto de capitão,
sem ter sido ferido, mas magro e amarelo, com a
425
cor hepática que confirmava as histórias de comi-
da pútrida, tifo, disenteria e mosquitos mais mor-
tíferos, naquela terra semitropical, do que balas ou
canhões.
Apesar de envenenado e debilitado, Yancey
pareceu com a sua volta dar novas energias à cida-
dezinha primitiva. Onde quer que fosse, ele estava
sempre num turbilhão de eventos que atraía para
seu centro tudo o que estivesse no seu raio de
ação. Olá, Yancey! Olá, Clint! Ele despiu o caqui e
o chapéu de aba revirada e reapareceu em seus
trajes habituais, sombrero branco, sobrecasaca, e
botas de salto alto. Osage soltou um suspiro de
satisfação. Sua deserção foi perdoada, os rumores
a seu respeito esquecidos — ou, pelo menos,
deixaram de ser reavivados. De novo nos editori-
ais do Taba de Oklahoma fulguraram hipérboles.
Foi duro para Sabra se colocar em segundo
lugar (ou parecer estar em segundo lugar) no
escritório do Taba. Por tanto tempo ela reinara ali
sozinha! Sua palavra fora lei para o hesitante Jesse
Rickey e para o seu incondicional admirador Cliff
Means. E agora tinha que dizer: — É melhor
perguntar ao Sr. Cravat.
— Ele disse para deixar que a senhora deci-
426
da. Ele saiu.
Yancey saía muito. Sabra, afinal, ainda fazia
a maior parte do trabalho do jornal sem ter a
satisfação de ditar sua política. Uma máquina de
linotipia, aquele talentoso monstro de ferro, agora
trepidava, tremia e estalava na sala de composição
do Taba; era a primeira daquela espécie em
Oklahoma. Muito dispendiosa e assustadoramente
humana. Sabra nunca perdera o medo dela. O
braço comprido se estendia com tão tranqüila
segurança, apanhava o punhado de metal, trans-
portava-o, baixava, deixava-o cair. Abria sua
bocarra para receber barras de chumbo prateado
que em seguida cuspia sob a forma de tipos. Seu
teclado era como dentes arreganhados. Gemia,
tremia, trepidava, falava — ou quase.
— Toda vez que me aproximo dessa máqui-
na — admitiu Sabra certa vez — espero vê-la
estender seu braço de ferro, me agarrar pelo om-
bro e berrar: "Olá, Sabra!"
Ela se orgulhava da máquina de linotipia,
pois tinham sido seus cinco anos à frente do Taba
que haviam tornado possível sua aquisição. Fora
ela quem saíra em campo para fechar contratos,
para educar os comerciantes locais sobre as van-
427
tagens dos anúncios. Certamente, a Yancey, ca-
valgando e tagarelando pela cidade, nunca ocorre-
ra interessar-se por esses fundamentos substanci-
ais sobre os quais repousava todo o sucesso co-
mercial do jornal. Agora havia uma edição diária
do Taba para os habitantes de Osage e uma sema-
nal para os assinantes do interior. Ao passar pelas
janelas do escritório do Taba na Avenida Pawhus-
ka, podia-se ouvir o barulho que fazia o monstro
de ferro. Jesse Rickey e Cliff Means se encarrega-
vam de lidar com o linotipo. Freqüentemente
trabalhavam até tarde da noite, e o transeunte
tardio podia ver a pequena, luz queimando na
oficina e ouvir a trepidação e os estalidos da má-
quina. Num aperto, a própria Sabra podia fazê-la
funcionar. Yancey nunca chegava perto dela e, o
que era bastante estranho, o jovem Cim tinha-lhe
horror, um horror que também abrangia a maioria
das coisas mecânicas. Após uma tentativa no
teclado, durante a qual ele de saída enguiçou as
delicadas engrenagens da máquina, ficou proibido
de tornar a aproximar-se dela. Aliás, Cim não
tinha jeito para nada que se relacionasse com o
jornal. Empastelava os caracteres tipográficos.
Não tinha o senso da notícia. Não possuía nem o
dom de seu pai de se comunicar com pessoas e
428
ganhar-lhes a confiança, nem a mentalidade mais
ordenada e materialista da mãe. Herdara muito do
charme de Yancey Cravat, e algo da imprecisão de
seu avô, o velho Lewis Venable (falecido havia
dois anos), mas combinando os traços mais nega-
tivos de ambos.
— Pare de sonhar! — estava sempre Sabra
repetindo ao filho. — Está sonhando com quê?
Ela agora amava a atmosfera de trabalho do
jornal e se aborrecia com a indiferença do filho a
esse respeito. Gostava até do cheiro — o odor
misturado de metal quente, tinta de impressão,
poeira, papel virgem, ácido, cachimbo de espiga
de milho e gatos.
— Pare de sonhar! — Yancey, ouvindo-a
criticar Cim, virou-se para ela num dos seus raros
momentos de raiva violenta. — Pelo amor de
Deus, Sabra! Foi isso que Ann Hathaway disse
para Shakespeare. Será que vocês mulheres não
sabem que "Sonhos se tornam sagrados quando
postos em ação; o trabalho torna-se belo quando
foi sonhado"? Deixe o menino em paz! Deixe que
ele sonhe! Deixe-o sonhar!
— Basta um sonhador na família — retor-
quiu Sabra, arrogante.
429
Cinco anos eram passados — seis anos des-
de a volta de Yancey. Entretanto, Sabra nunca
tinha uma sensação de segurança. Nunca se es-
quecera do que ele havia dito sobre Wichita.
"Quase cinco anos no mesmo lugar. É o maior
tempo que cumpri na minha vida." Cinco anos. E
agora já estava se completando o sexto ano. Ele
tinha mergulhado de ponta-cabeça na luta para
Oklahoma passar de território a Estado, no pro-
blema da situação do território índio. A facção
antiíndia opunha-se tenazmente ao plano para
formar com o território de Oklahoma e o territó-
rio índio um só Estado. O slogan deles era "O
Estado do homem branco para o homem bran-
co".
"Quem primeiro trouxe o índio para
Oklahoma?", perguntava Yancey nas colunas
editoriais do Taba. "Os homens brancos. Eles o
açularam de Missouri para Arkansas, de Arkansas
para o sul de Kansas, depois para o norte de
Kansas, para o norte de Oklahoma, para o sul de
Oklahoma. Vocês, homens brancos, venderam
aos índios o pedaço de terra árida e inaproveitável
em que agora vivem em esqualidez e miséria. Não
serve para um homem branco viver dela, ou os
índios não estariam vivendo lá agora. Privados de
430
suas leis tribais, de seus ritos tribais, arrebanha-
dos em paliçadas como animais selvagens, rou-
bados, enganados, maltratados, impelidos de um
lugar para outro, dêem-lhes a proteção do país
que os privou do seu país. Dêem-lhes pelo me-
nos o direito de se tornarem cidadãos do Estado
de Oklahoma."
A idéia o obsedava. Viajou para Washington
na esperança de lutar pelos seus pontos de vista, e
causou sensação naquela cidade formal com o
sombrero branco, a sobrecasaca e botas texanas, sua
cabeça de búfalo, seu charme, suas belas maneiras.
Roosevelt, caracteristicamente, mostrou-se cordial
para com o velho companheiro de armas. As
damas de Washington ficaram cativadas pelos
discursos floreados daquele romântico herói do
sudoeste.
Fontes bem-informadas diziam que ele ia ser
nomeado o próximo governador do território de
Oklahoma.
— Oh, Yancey! — disse Sabra — seja caute-
loso. Governador do território! Significaria tanto
para nós. Ajudaria Cim no futuro. Donna, tam-
bém. O pai deles governador.

431
Ela pensava: "Talvez agora tudo entre nos
eixos. Talvez tudo pelo que passei nestes últimos
dez anos tenha valido a pena. Talvez tenha sido
para isso. Ele vai se estabelecer. . . Mamãe não
poderá dizer agora. . . e todos os Venable, Vian,
Goforth e Greenwood. . ." Ela tivera que aturar a
pena deles, mesmo a distância, durante todos
aqueles anos.
O boato adquiriu substância. Meu marido,
Yancey Cravat, governador do território de
Oklahoma. E então, quando passasse a Estado,
como teria que acontecer dentro de poucos anos,
talvez governador do Estado de Oklahoma. Por
que não?
Foi neste ponto que Yancey arrasou com
qualquer possibilidade de sua nomeação para
governador lançando um editorial incandescente
nas colunas do Taba. A essência do editorial era
que centenas de milhares de índios, agora vivendo
em reservas por todos os cantos nos Estados
Unidos, deveriam ter permissão para viver onde
lhes aprouvesse, em liberdade. Os brancos do
território de Oklahoma e do território índio, com
uma população de índios de cerca de cento e vinte
mil em várias tribos — poucas, cherokees, chicka-saws,

432
creeks, osages, kiowas, comanches, kaws, choctaws, semino-
les, e uma dezena de outras tribos —, leram o
editorial, emitiram um rugido de raiva e, brandin-
do o jornal, correram gritando pelas ruas, amaldi-
çoando o nome de Yancey Cravat.
Sabra tinha apanhado o editorial na folha
molhada da prova. Seus olhos percorreram ve-
lozmente as linhas.

"Arrebanhados como carneiros num curral


— não, como animais selvagens numa jaula —,
eles ficam apodrecendo em suas reservas, aban-
donados por um governo que primeiro lhes tirou
as terras, depois a auto-estima, depois a própria
liberdade. A terra dos homens livres! Quando o
povo que primeiro a habitou vive aprisionado!
Escravos, porém escravos privados do consolo do
trabalho. Que esperança lhes resta, que ambição,
que objetivo na vida? Perderam o entusiasmo.
Perderam o orgulho. Indolentes, sim, eles o são.
E por que não haveriam de ser? Todo mês, o
índio recebe seu donativo, seu óbolo. Vejam a
nação osage, agora reduzida a umas míseras duas
mil almas. Os homens ainda são belos, fortes,
com vitalidade; as mulheres bonitas, dignas, fre-
433
qüentemente inteligentes. Entretanto, vivem
encolhidos em suas míseras choupanas como
animais acuados, comendo a comida que lhes é
atirada por um grande — munificente — gover-
no. O governo dos Estados Unidos! Libertem os
índios! Deixem que o pele-vermelha viva em
liberdade como vive o homem branco. . . "

Grande parte do que ele escrevera era, tal-


vez, verdade. Não obstante, a condição do índio
não era tão lamentável quanto Yancey a pintava.
Descrevia o índio com o magnetismo de sua
própria natureza romântica. A verdade era que os
próprios índios pouco se importavam — com
exceção dos seus chefes tribais, mais inteligentes
que os outros. Caçavam um pouco, pescavam,
dormiam, faziam visitas a outras tribos, os poucas
visitando os osages, os osages os pomas, tagarelando,
comendo, promovendo powwows. Os homens
eram grandes jogadores de pôquer, tendo apren-
dido o jogo com os brancos, e passavam horas a
fio jogando.
Às vezes, atravessavam a cidade de Osage
envoltos em seus coloridos cobertores listrados,
ora a pé, ora em magros cavalos, ou em carro-
434
ções desconjuntados cheios de panelas, varas,
trapos, papooses, cães. A gente da cidade removia
às pressas artigos que poderiam despertar neles o
prazer do furto.
Sabra apanhou a folha de prova, ainda mo-
lhada, e se encaminhou para o escritório de Yan-
cey. Estava de fisionomia fechada.
— Vai publicar isto, Yancey?
— Vou.
— Nunca será governador do território.
— Nunca.
Ela ficou um momento parada, de rosto
contraído. Amassou na mão a folha, apertando-a
com tal força que as juntas de seus dedos em-
branqueceram.
— Já lhe perdoei muitas, muitas coisas, só
Deus sabe quantas, nestes últimos dez anos. Mas
nunca vou perdoá-lo pelo que está fazendo agora.
Nunca.
— Vai me perdoar, sim, querida. Nunca é
um tempo muito longo. Talvez não enquanto eu
for vivo. Mas algum dia, daqui a muito tempo —
embora talvez não falte tanto tempo assim —,

435
você poderá procurar nos velhos arquivos do
Taba de Oklahoma, copiar este meu editorial, pala-
vra por palavra, e publicá-lo como sendo seu.
— Nunca. . . Donna. . . Cim. . .
— Não posso viver a vida de meus filhos
por eles, Sabra, meu amor. Eles têm que viver
cada um a sua vida. Acredito no que acredito.
Esta cidade está podre — o território — o país
todo. Podre.
— E se julga com o direito de dizer o que é
e o que não é podre? Você, com seu uísque, seus
índios e suas mulheres. Sinto desprezo por você.
E é o que sente todo mundo na cidade — no
território.
— Um profeta não o é sem honra, a não ser
em sua própria terra e em seu próprio lar. — Isso
foi dito com uma certa sonoridade.
Ela nunca chegou realmente a saber se ele
tinha feito aquilo com a intenção determinada de
tornar impossível sua nomeação para governador.
Era do feitio dele.
Fato curioso foi que o editorial, ao mesmo
tempo que exasperara a população branca do
território, conquistou para o jornal muitos leito-
436
res. O Taba prosperava. Osage se desenvolvia. A
cidade ainda era rústica, desorganizada, sem lei,
até perigosa. Mas começou a adquirir um aspecto
de permanência. Não era mais um acampamento:
era uma cidade. Começaram-se a construir esco-
las, igrejas, edifícios públicos. A tenda de jogo de
Arkansas Grat há muito fora substituída por uma
sólida estrutura de madeira.
A loja de Sol Levy — a Companhia Mercan-
til Levy — tinha duas damas de cera na vitrina,
com as feições apenas levemente afetadas pelo sol
ardente do sudoeste. Yancey lançou a campanha
de Sol Levy para prefeito de Osage, mas ele não
tinha a menor chance. Era notável como o Taba de
Oklahoma persistia, embora sua posição na maioria
das questões públicas fosse violentamente impo-
pular. Talvez o jornal, como Yancey, tivesse uma
vitalidade e um charme a que ninguém podia
resistir.
Embora Sol Levy continuasse sendo o ju-
deu da cidade, respeitado, próspero, Osage nunca
absorvera de todo esse oriental. Cidadão há
tantos anos, ele continuava um estranho. Tinha
pouco contato com os outros habitantes fora das
horas de comércio. Vivia solitário no Hotel Bixby

437
e comia as refeições notoriamente ruins da Sra.
Bixby. As mulheres da cidade o intimidavam,
embora as damas da noite o considerassem bon-
doso, ardente, generoso. Os homens de negócios
gostavam dele. Incluíam-no nas comissões. Oca-
sionalmente, Sabra ou alguma outra mulher que o
conhecesse suficientemente para tomar tal liber-
dade dizia-lhe, meio de brincadeira, meio a sério:
"Por que não se casa, Sol? Um rapaz simpático
como você! Iria fazer alguma jovem feliz".
Às vezes ele pensava vagamente em ir a Wi-
chita ou Kansas City, ou mesmo até Chicago, para
conhecer alguma boa jovem judia, mas nunca
chegou a decidir-se. Nunca lhe passava pela cabe-
ça casar-se com alguma mulher que não fosse
judia. Desconhecia quase totalmente a vida social
da cidade. Às vezes, se uma grande organização
local promovia um baile beneficente, podia-se
entrevê-lo rapidamente, na primeira parte da
noite, encostado timidamente na parede ou meio
escondido na soleira da porta, uma figura remota,
de tez morena, curiosamente oriental em meio
àqueles criadores e ex-vaqueiros vermelhos.
— Venha, Sol, participe da festa! Agarre
uma das moças e vá dançar, por que não faz isso?

438
Será que está com medo?
Mas Sol permanecia distante. Olhava com
uma espécie de perplexidade interessada os pares
entusiasmados, suarentos, gritando, um pouco
como aqueles mesmos pares costumavam olhar
os índios durante festivais de danças nas reservas
circundantes. Algumas vezes, ele, polidamente,
tirava para dançar alguma senhora encorpada e já
velhusca. Elas fitavam seus trágicos olhos escuros;
notavam suas longas mãos cor de marfim ao lhe
oferecerem uma fatia de bolo ou uma xícara de
café.
— É um rapaz muito simpático quando se
chega a conhecê-lo melhor — diziam elas. — Isto
é, para um judeu.
Entre ele e Yancey existia uma profunda
simpatia e compreensão. Yancey se empenhou na
campanha para eleger Levy prefeito — sem a
menor possibilidade, aliás, pois as chances eram
todas do oponente. O Taba o enaltecia.

"Sol Levy, o cordial proprietário da Compa-


nhia Mercantil Levy, é o candidato do Taba para
prefeito. Cabe à população de Osage render esta

439
homenagem a um dos cidadãos pioneiros cuja
carreira, desde os primeiros dias desta comunida-
de, tem sido assinalada pela atividade, prosperida-
de, generosidade. Ele pertence a uma raça de
sonhadores e empreendedores..."

— Mas que idéia! — resmungou a temível


virago, a Sra. Tracy Wyatt, cujo marido era o
candidato oponente. —Um judeu para prefeito de
Osage! Da próxima vez, são capazes de querer
eleger um índio para prefeito. A família do meu
marido é americana cem por cento. Ajudaram a
colonizar Arkansas. E quanto a mim, minha li-
nhagem vai até William Whipple, que foi um dos
que assinaram a Declaração de Independência.
Sol Levy nunca teve a menor chance de se
eleger. Aliás, ele não fez praticamente nada para
ativar sua possível eleição. Parecia considerar
toda a questão com um distanciamento em que
havia uma leve dose de humor irônico. Yancey
passou na loja de Sol para informá-lo do último
pronunciamento da atrabiliária Sra. Wyatt. Sol
estava ocupado nos fundos da loja, onde ajudava
seu auxiliar a desempacotar a nova remessa de
louças e peças de iluminação, pois a Companhia
440
Mercantil Levy se expandira, tendo se tornado
uma grande loja com vários departamentos. Ele
estava com a cabeça enfiada numa barrica, e
quando se ergueu e olhou para a grande estatura
de Yancey, havia fios de palha e serragem na
gravata, nas mangas da camisa e nos cabelos
pretos.
— Declaração de Independência! — repetiu
ele com ar pensativo. — Diga à Sra. Wyatt que
um dos meus antepassados escreveu os Dez
Mandamentos. Um sujeito chamado Moisés.
Yancey soltou uma gargalhada, e depois
usou o dito de Sol no Taba, o que, naturalmente,
só fez ajudar a derrotar o já derrotado candidato.
Às vezes, o magro e pálido proprietário da
loja ficava parado à porta com seu amigo Yancey
Cravat, vendo passarem as pessoas. Os dois pou-
co falavam. Era como se fossem dois estranhos
na cidade assistindo a um desfile.
— Afinal de contas, que diabo está fazendo
nesta cidade, Sol? — dizia-lhe Yancey, como se
estivesse falando para si mesmo.
— E você? — replicava Sol. — Um bárbaro
civilizado. A cidade desfilava diante deles —

441
índios, vaqueiros do Texas, criadores, rancheiros.
Ainda se acocoravam no meio-fio. como antiga-
mente. Mascavam fumo e cuspiam. O amplo
sombrero continuava sendo de praxe, e até mesmo
as botas e esporas.
— Olá, Yancey! Olá, Sol! Como vai, Cim?
Falava-se em calçar a Avenida Pawhuska,
mas o projeto levou anos para realizar-se. A cida-
de já podia gabar-se de ter água encanada. O
escritório do Taba ainda ficava na Pawhuska, mas
agora ocupava o prédio todo. Dois dias após a
volta de Yancey o casal decidira construir uma
casa na Rua Kihekah, onde agora já havia árvores
de quase dez anos de idade.
Sabra construíra a casa de acordo com seus
desejos, embora a princípio houvesse muitas
discussões a respeito. A idéia de Yancey fora, é
claro, ridícula, fantástica. Ele disse que queria a
casa construída em estilo nativo.
— Nativo! Pelo amor de Deus! Uma wic-
1
kiup?
— Bem, uma casa no velho estilo índio do

1
Choça de índios, (N. do E.)

442
sudoeste — quero dizer, quase um pueblo.1 Ou em
estilo meio espanhol, com emboço, não com
tijolo. E baixa, com um pátio onde se possa ficar
ao ar livre mas protegido do sol. Onde se possa
ter privacidade.
Sabra liquidou logo com aquela idéia do ma-
rido. Ou talvez Yancey não tivesse insistido.
Abandonou seu projeto tão subitamente quanto o
apresentara; ergueu os ombros largos, como se a
casa não mais lhe interessasse.
Osage construiu suas novas casas com um
alpendre na frente, virado socialmente para a rua.
Nesse alpendre se sentavam os donos em mangas
de camisa e avental de cozinha. Conversas se
estabeleciam de alpendre para alpendre.
"Como vão seus tomateiros? Já vi que os
Pack estão recebendo a visita de gente de fora da
cidade." Ninguém estava de forma alguma inte-
ressado em privacidade.
Sabra construiu uma casa branca de madeira
no estilo da época, com torreões, torres, minare-
tes, cúpulas e arabescos. Havia vitrais no vestíbulo
em tons de roxo, vermelho, verde e amarelo que,
1
Habitação coletiva, povoação, dos índios do sudoeste americano. Em
espanhol, no original. (N. do E.)

443
confrontando o visitante, lhe davam um ar de
quem foi subitamente acometido de peste bubô-
nica. No andar térreo ficavam a sala de visitas, a
sala de estar, a sala de jantar, a cozinha; quatro
quartos no segundo andar, além de um banheiro
de verdade, com uma ampla banheira, vaso sanitá-
rio, uma pia de mármore com veias varicosas. No
porão fora instalada uma caldeira de ar quente. Na
sala de visitas, o sofá e as poltronas eram estofa-
dos de veludo brocado marrom. Na sala de estar
havia um lampião de vidro fosco no formato de
uma flor estranha e esparramada — uma mons-
truosidade, meio lírio-d'água, meio petúnia.
— Já que estamos construindo e mobiliando
— disse Sabra —, que seja tudo do melhor. —
Ela se empenhara no planejamento e decoração
da casa com sua habitual energia e capacidade.
Com tudo isso, ainda encontrava tempo para
trabalhar no Taba, pois sem ela o jornal estaria
liquidado em seis meses. Osage há muito deixara
de achar esquisito que ela, uma mulher, e a esposa
de um dos seus cidadãos mais proeminentes,
fosse trabalhar todas as manhãs como um ho-
mem.
Todas as manhãs, por volta das dez horas,

444
ela já tinha cuidado da casa, dado ordens para o
resto do dia, planejado as refeições, comprado os
mantimentos, e estava sentada à sua escrivaninha
no escritório do Taba, separando correspondên-
cia, lendo boletins, recebendo anúncios, escre-
vendo cabeçalhos, colando. As contribuições de
Yancey eram brilhantes porém espasmódicas. Os
necessários itens departamentais — transferências
de propriedades, notícias de rotina do tribunal,
informações sobre distritos e comarcas das re-
dondezas — entediavam-no, embora ele soubesse
muito bem que eram necessários ao êxito do
jornal. Deixava isso para Sabra, e muitas outras
coisas mais.
Sabra, assim como outras donas-de-casa
abastadas da comunidade, tinha uma empregada
doméstica índia. Não havia outro tipo de empre-
gada. Após sua hedionda experiência com Arita
Pena Vermelha, tinha tomado a precaução de
contratar índias mais velhas, mais sossegadas,
embora isso não fosse fácil. Dava preferência às
osages. Estas se casavam cedo, freqüentemente
antes de terminarem seus estudos na escola dos
índios.
Ruby Grande Alce trabalhava há já três

445
anos com Sabra. Uma moça estranha, alta, silen-
ciosa, de uns vinte e dois anos — quase bonita
—, de uma família de seis filhos, uma família
grande para um osage. Sabra ficou um tanto sur-
preendida, depois de estar a moça trabalhando há
alguns meses em sua casa, em saber que ela já
estivera casada duas vezes.
— O que aconteceu com seus maridos, Ru-
by?
— Morreram.
Ela tinha um jeito que era quase insolente.
Sabra atribuiu-o à dignidade da raça índia. Quan-
do andava, arrastava um pouco os pés, e isso, por
alguma razão inexplicável, parecia acrescentar
insolência ao seu comportamento. "Por favor,
levante os pés, Ruby! Não os arraste quando
andar." A moça não respondia nada. Continuava
arrastando os pés. Sabra descobriu que ela era
aleijada; a perna esquerda era um pouco mais
curta do que a direita. Não manquejava — ou,
antes, escondia a tendência para manquejar com
aquele irritante ruído de arrastar. Seu passo era
reto, lento, medido. Sabra se sentiu muito emba-
raçada, pediu desculpas à empregada. A índia
apenas a olhou e não disse nada. Sabra reprimiu
446
um pequeno arrepio. Nunca pudera acostumar-se
aos índios.
Sabra estava sempre atarefada e apressada.
De manhã, quando andava pela casa, tomando
uma série de providências domésticas antes de ir
para o escritório do jornal, seus passos rápidos
batiam como chuva de pedra num telhado de
zinco. Sempre se irritava vendo Ruby Grande
Alce fazendo as camas com aquele ar régio, ou
movimentando-se na cozinha com o ritmo de
uma Lady Macbeth. O rosto largo, impassível, os
olhos vazios de expressão, suas maneiras secretas
eram para Sabra um lento e constante veneno.
Ruby falava raramente, nunca sorria. Quando
Sabra lhe falava sobre alguma tarefa doméstica,
ela fitava a patroa com um olhar impávido que era
muito desconcertante.
— Entendeu direito o que eu lhe disse sobre
a geléia de uva, Ruby? Tem que deixá-la esfriar
por completo antes de despejar a cera para tapar o
vidro.
Ruby inclinava majestosamente sua bonita
cabeça, uma cabeça grande como a de um ho-
mem. Sabra achava-a sinistra, mas, por outro lado,
Ruby era boa para as crianças, alimentava-as bem,
447
nunca se queixava do trabalho. Às vezes — em
raras ocasiões — ela cavava uma pequena fossa
no quintal e acendia um fogo baixo, abafado por
algum processo secreto dos índios, e ali, para
grande alegria do jovem Cim, assava carnes delici-
osas à moda índia, tostadas e adocicadas, em
pequenos espetos de pau que ela mesma aguçava
com uma faca. Donna recusava-se a tocar na
carne, e Sabra também. Donna compartilhava da
antipatia de sua mãe pelos índios — ou talvez
desde cedo ela tivesse sido influenciada por aquela
aversão de Sabra. Às vezes, Donna, uma menina
mimada, voluntariosa (bem igual à sua avó, Felice
Venable), sentia pesando sobre ela o olhar de
Ruby Grande Alce — aquele olhar inexpressivo,
vazio, de índia. Entretanto, por trás da total falta
de expressão parecia vislumbrar-se um frio des-
prezo.
— Por que está me olhando assim, Ruby?
— gritava Donna agastada. Ruby saía da sala com
seu lento passo arrastado, de corpo ereto, a cabe-
ça majestosa, os olhos fitando diretamente à
frente. — Maldita squaw! — murmurava Donna
entre os dentes. — Dá-se ares de princesa por-
que o pai, aquele velho ensebado, é chefe da
tribo ou coisa parecida.
448
Grande Alce, o pai de Ruby, fora de fato
chefe da tribo osage por eleição durante dez anos,
e, embora não estivesse mais naquele cargo eleva-
do, era um homem muito respeitado pelos osages.
Mandara seus seis filhos e até sua mulher gorda
para a escola dos índios, mas ele próprio se recu-
sava terminantemente a falar uma só palavra de
inglês, se bem que soubesse. Conversava na lín-
gua, osage, e quando necessário usava um intérpre-
te. Era uma faceta do seu obstinado orgulho, seu
permanente desafio ao homem branco. "Vocês
brancos não me derrotaram."
O orgulho de Grande Alce, entretanto, não
abrangia coisas mais materiais, e Sabra freqüente-
mente se aborrecia à vista de toda a família Gran-
de Alce, o velho ex-chefe, sua squaw, e os cinco
irmãos e irmãs acocorados na soleira da porta da
cozinha desfrutando de pequenas iguarias que
Ruby lhes oferecia da despensa dos Cravat. Mas
quando Sabra quis pôr um paradeiro a este abuso,
Yancey interveio.
— Ele é um velho inteligente. Se tivesse um
pouco de sangue branco, teria sido um grande
homem, como o foram Quanah Parker, ou Se-
quoyah. Suas palavras são sábias. Gosto de con-

449
versar com ele. Deixe-o em paz.
Isso não fez diminuir a irritação de Sabra.
Muitas vezes, ao voltar para casa, ela encontrava
Yancey agachado no chão com Grande Alce,
fumando e conversando numa mistura de osage e
inglês, embora o velho índio se recusasse a dizer
uma só palavra de inglês. Yancey tinha algum
conhecimento da língua osage. Sabra, aproximan-
do-se dos dois grunhindo, murmurando e fuman-
do com os olhos fixos no vazio, ou (pior ainda)
contando alguma piada de índio e sacudidos por
risadas silenciosas, à maneira índia, ficava furiosa.
Nada a irritava tanto.
Lentamente Sabra acabou por perceber que
o jovem Cim estava sempre rondando a cozinha,
conversando com Ruby. E descobriu, para seu
horror, que Ruby estava ensinando Cim a falar
osage. A linguagem era difícil para o homem bran-
co, mas ele parecia ter uma natural aptidão para
aprendê-la. Sabra os encontrou de cabeças juntas
na cozinha, sentados à mesa, rindo, falando e
cantando. Ou antes, Ruby era quem estava can-
tando uma canção com um estranho ritmo e (para
o ouvido de Sabra, pelo menos) sem melodia
alguma. Havia uma pulsação da voz de Ruby em

450
notas ininterruptas como as que o violino às vezes
emite quando a mesma nota soa repetidamente
durante um só movimento do arco. Cim estava
tentando acompanhar os estranhos sons guturais,
de olhos fixos no rosto de Ruby, inteiramente
absorto, enlevado.
— Que estão fazendo? Que significa isso?
O rosto da jovem índia retomou sua costu-
meira expressão de desdenhoso orgulho. Ela se
levantou.
— Eu ensinando canção — disse ela, o que
era estranho, porque sabia falar inglês perfeita-
mente.
— Francamente, Cimarron Cravat! Quando
sabe que seu pai o está esperando lá no escritó-
rio. . . — Ela parou. Seu olhar rápido pousara
sobre a mesa onde se achava o pequeno botão de
mescal ou peiote, que é o haxixe do índio.
Ela tinha ouvido falar na droga, sabia o
quanto as tribos de Nebraska ao México tinham
adquirido o hábito de comer o pequeno botão
que cresce no topo do cacto mexicano. No for-
mato de um disco de uns quatro centímetros de
diâmetro e meio centímetro de espessura, o mes-

451
cal ou peiote produzia em quem o comesse uma
peculiar sensação de leveza, obliterava dor e fadi-
ga, provocava visões de estupenda beleza e gran-
diosidade. O seu uso passara a ser para os índios
um rito religioso.
Como uma fúria, Sabra adiantou-se para a
mesa e agarrou o pequeno botão verde-claro.
— Mescal! — Virou-se bruscamente para
Cim. — O que está fazendo com isto?
Cim baixou obstinadamente os olhos. De
mãos enfiadas nos bolsos, ele se apoiou contra a
parede, com um ar entediado, insolente, exaspe-
rante.
— Ruby estava apenas me ensinando as
canções da cerimônia do mescal. Danado de
interessante. É a última canção. Eles a cantam ao
romper da madrugada, quando já estão todos
drogados. A canção é assim.
Para horror de Sabra, Cim, encostado contra
a parede da cozinha, de olhos semicerrados, co-
meçou a entoar a estranha melodia.

452
— Pare! — berrou Sabra. Com o gesto de
uma rainha de tragédia, ela ordenou que ele saísse
da cozinha. Cim obedeceu com grande má vonta-
de, e sua saída foi ainda mais irritante do que se
tivesse ficado. Sabra seguiu o filho, em silêncio.
Subitamente percebeu que odiava o modo como
ele andava, e soube por quê. Cim andava com um
porte peculiar, apoiando-se nas solas dos pés. Ela
se deu conta de que aquilo sempre a aborrecera.
Lembrou-se que alguém rindo lhe contara o que
Pete Pitchlyn, o velho batedor, parado numa
esquina de rua, dissera sobre o jovem Cim:
— Cada vez que vejo o jovem Cimarron
Cravat vindo pela rua, espero ouvir um graveto
estalando. Ele caminha como um índio de um
livro de histórias sobre índios.
Uma vez a sós com o filho na sala de estar,
Sabra confrontou-o, esmagando ainda na mão o
botão de cacto.
— Então, chegou a isto! Eu me envergonho
de você.
— Cheguei a quê?
Ela abriu a mão para mostrar o botão macio
na sua palma.

453
— Mescal. Um filho meu. Preferia ver você
morto. . .
— Pelo amor de Deus, mamãe, não adote
este tom bíblico como papai. Ao ouvi-la falar
assim, as pessoas imaginariam que me encontrou
drogado numa tenda chinesa de ópio.
— Acho que é quase isso.
— É apenas um mísero pedacinho de cacto.
E o que eu estava fazendo era ficar sentado na
cozinha ouvindo Ruby contar como o pai dela. . .
— Eu imaginaria que um homem de quase
dezoito anos poderia encontrar algo melhor para
fazer do que ficar sentado na cozinha no meio do
dia conversando com uma criada índia. Onde está
seu orgulho?
Os olhos de Cim continuavam abaixados.
Com as mãos enfiadas nos bolsos, sua atitude era
de insolente displicência.
— E aquelas histórias, mamãe, que a vida
toda me contou sobre o amor que vocês sulistas
tinham por seus empregados e que a velha Angie
era como sua segunda mãe?
— Negros são diferentes. Eles conhecem
seu lugar.
454
Cim ergueu as pesadas pálpebras e levantou
a cabeça com o gesto ameaçador que ela já vira
tantas vezes no pai dele.
— Tem razão. Eles são diferentes. Em pri-
meiro lugar, Ruby não é uma criada índia. É a
filha de um chefe osage.
— Osage! Ora, que tolice! E daí?
— Ruby Grande Alce é uma pessoa tão im-
portante para a nação osage quanto Alice Roose-
velt em Washington.
— Escute aqui, Cimarron Cravat! O que ou-
vi já chega. Um punhado de índios sujos! Agora o
senhor me faça o favor de ir imediatamente para o
escritório do Taba, e não quero nunca mais ouvi-
lo falar dessa maneira desrespeitosa da filha do
presidente dos Estados Unidos. E se eu algum dia
souber que você deu uma mordida sequer nesta
porcaria — ela estendeu a mão um pouco trêmula
com o botão de mescal esmagado na sua palma
—, vou dizer a seu pai que lhe dê uma sova de
deixá-lo caído. Mas, de qualquer jeito, ele vai
saber disso tudo.
Mas Yancey, quando Sabra lhe contou, pa-
receu apenas pensativo e um pouco triste.

455
— A culpa é sua, Sabra. Acha que o rapaz
tem que viver a vida que você planejou para ele e
não a que ele quer viver. Assim, Cim está tentan-
do escapar para o sonho. Como os índios. É tudo
a mesma coisa.
— Não sei do que você está falando. E acho
que tampouco você sabe.
— Os índios começaram a comer mescal
depois de os brancos lhes terem tomado sua vida
religiosa, espiritual e física. Durante séculos, ti-
nham sido os donos das planícies e campinas. Os
brancos se apossaram delas. Os brancos acabaram
com os búfalos, cuja carne fora o alimento dos
índios, e cujos couros lhes tinham servido de
abrigo, e em vez disso lhes deram toucinho defu-
mado e casebres de madeira. Os brancos disseram
aos índios que os deuses que eles tinham adorado
eram coisas vulgares. Que o sol era um planeta
moribundo, as estrelas um montão de metais
quentes, a chuva uma coisa que podia ser regulada
com o plantio de árvores, o vento apenas uma
corrente de ar sobre a qual um homem em Wa-
shington sabia tudo e cuja direção ele podia profe-
tizar simplesmente consultando uma peça de
maquinaria.

456
— E deviam ficar gratos por isso. O gover-
no lhes deu alimento, roupas, casas e terras. São
um bando de vagabundos errantes e se recusam a
trabalhar. Não querem nem plantar.
— "Nem só de pão vive o homem." É pre-
ciso sonhar, senão a vida se torna insuportável.
Por isso o índio passou a usar o mescal. Em seus
sonhos ele encontra paz, consolo e beleza.
De repente, Sabra sentiu uma terrível suspei-
ta.
— Yancey Cravat, você algum dia. . .
Ele abanou afirmativamente sua bela cabeça.
Havia tristeza em sua voz.
— Muitas, muitas vezes.

457
Capítulo XIX

Cim tinha dezenove anos. Donna, quinze. E


agora Sabra vivia inteiramente só em sua nova
casa na Rua Kihekah, exceto por uma empregada
de cor que fora mandada vir de Kansas. Ela diri-
gia o jornal sozinha, como queria. Em casa, dava
as ordens que queria. Por pouco, não dirigia tam-
bém a cidade de Osage. Era uma força no territó-
rio. E Yancey se fora. Cim se fora. Donna se fora.
Sabra se recusara a fazer concessões à vida, e a
vida se encarregara de tomar as decisões por ela.
Donna estudava no internato de Miss Dig-
num para moças, na margem do rio Hudson.
Yancey se opusera, evidentemente, à sua ida. A
idéia de mandar Donna para uma escola no leste
fora de Sabra.
— Leste? — disse Yancey. — Kansas City?
— Certamente não.
— Oh, Chicago.
— Estou falando em Nova York.

458
— Você é doida.
— Eu não esperava que você aprovasse.
Imagino que gostaria de mandá-la estudar numa
escola para índios. Donna é uma menina diferen-
te. Não é uma beldade e nunca vai ser, mas é
brilhante, isso é o que ela é. Brilhante. Não estou
falando em brilho intelectual. Não precisa sorrir.
O que quero dizer é que ela tem a ambição, o
discernimento e a presciência de uma mulher com
o dobro da sua idade.
— Lamento saber disso,
— Pois eu não lamento. Ela é como mamãe
sob muitos aspectos, só que tem inteligência e
energia. Não se dá bem com as meninas daqui —
Maurine Turker, Gazelle Slaugh-ter, Jewel, Riggs,
Czarina McKee, e as outras. Donna é diferente.
As outras ficam subindo e descendo a Avenida
Pawhuska. Irão casar-se com esses sujeitos que
passam o dia todo mascando fumo e ficarão
plantadas em suas casas como hortaliças. Mas não
Donna. Eu me encarrego de não deixar que isso
aconteça.
— Vai casá-la com algum magnata do leste,
aos quinze anos?

459
— Espere só. Você verá. Ela vai saber o que
quer. E vai conseguir, também.
— Tem certeza de que não é você quem sa-
be o que quer que sua filha queira?
Mas Sabra a mandara para a escola de Miss
Dignum, uma instituição tão requintada e seleta
que mereceu a aprovação até de Felice Venable, a
soberba avó de Donna.
Cim, andando pelas campinas além de Osa-
ge com aquele seu peculiar passo leve, os olhos
baixos, perambulando pelos vales, percorrendo as
margens barrentas dos rios que atravessavam com
suas águas vermelhas o território dos peles-
vermelhas, disse que queria ser geólogo. Mencio-
nou a Escola de Mineralogia do Colorado. Traba-
lhava no escritório do Taba e detestava seu traba-
lho. Era capaz de empastelar as linhas mais com-
pletamente do que um impressor caindo de bêba-
do. Palavras com letras trocadas apareciam siste-
maticamente em qualquer texto que ele estivesse
compondo. Até Jesse Rickey, com seus melancó-
licos bigodes cada vez mais pendurados, protes-
tou com Yancey:
— Ela nunca conseguirá fazer daquele garo-
to um jornalista. Nem daqui a um milhão de anos.
460
Jornalistas nascem feitos, não se fazem. Cim
simplesmente odeia notícias, quanto mais uma
redação de jornal. Nasceu sem faro para notícias,
como um sujeito que nasce sem um braço, ou
outro membro qualquer. Nunca vai nascer um
braço nele.
— Eu sei — disse Yancey, pensativo. —
Mas Cim encontrará outra saída.
Pela primeira vez, um jornal rival conseguiu
ser bem sucedido em Osage. A cidade ainda não
era bastante grande para dois jornais, mas a atitu-
de política de Yancey tão freqüentemente antago-
nizava as tendências dos políticos do território
que o novo diário, embora malfeito e desonesto, e
vendido de corpo e alma aos interesses territoriais,
conseguiu alcançar um certo grau de popularida-
de.
Sabra, impossibilitada de ditar a linha políti-
ca do Taba quando Yancey estava na chefia, tinha
que se contentar com a gerência da parte mecâni-
ca e com suas colunas sociais e atividades de
clubes cada vez mais importantes. Osage fervilha-
va com reuniões, comissões, lojas maçônicas,
Cavaleiros Disto e Irmãs Daquilo. Os clubes
Filomático e Século XX começaram a interessar-
461
se por melhorias cívicas, e nenhum negociante ou
profissional de Osage estava livre da invasão de
senhoras pouco atraentes de blusa, saia e pincenê
solicitando sua assinatura para esta ou aquela
petição (com uma contribuição. "O que achar que
pode dar, Sr. Hefner. Naturalmente, como um
dos principais comerciantes da cidade...").
Plantaram arbustos nas cercanias cobertas
de cinza das estações ferroviárias da Santa Fé e da
Katy. Fizeram um movimento para o imediato
calçamento da Avenida Pawhuska (não consegui-
ram). As Damas da Estrela do Leste. A Confraria
de Vênus. As Irmãs de Rebeca. As Filhas do
Sudoeste. Elas compareciam ao escritório do Taba
com notícias para serem publicadas sobre jantares
e reuniões na igreja. A tendência era demorarem-
se mais e conversarem mais livremente quando
quem as recebia não era Sabra e sim Yancey.
Sabra era polida porém prática quando estava
tratando de negócios no seu escritório. Mas Yan-
cey se desdobrava para ser gentil. Usar seu char-
me era tão natural nele como respirar, um ato
quase funcional. Fazia com que aquelas senhoras,
corpulentas, desprovidas de atrativos, se sentis-
sem umas princesas — e sedutoras. Lisonjeava-as,
acompanhava-as até a porta com muitos rapapés;
462
elas saíam seduzidas. Mas quando as via pelas
costas, ele costumava amassar a notícia que ti-
nham composto com tanto capricho e atirá-la ao
chão. Sabra, embora fosse bastante breve com as
Vênus e Rebecas, publicava a nota delas e, se
necessário, reescrevia-a com cuidado.
— Santo Deus! — gemia ele à mesa do al-
moço. — Esta manhã o escritório se encheu de
mulherio. Parecia um enxame de gafanhotos
estufados.
Sabra estava à frente de muitos desses mo-
vimentos cívicos. E também, se é que se podia
dizer que havia em Osage algo bastante formal
para se designar como sociedade, Sabra Cravat era
a figura de maior proeminência. Foi a primeira a
eletrificar as senhoras do Clube de Cultura Século
XX servindo-lhes a salada Waldorf — aquela
abominável mistura de pedacinhos de maçã, no-
zes picadas, creme batido e maionese. O clube
deliciou-se com gritinhos e murmúrios. Desde
então, a salada passou a ser servida nas reuniões
de clubes com tal freqüência que os maridos de
Osage, voltando para jantar em casa após um dia
de trabalho, ao lhes serem oferecidos os restos da
festinha, empurravam para o lado a salada com

463
desprezo masculino pelo seu conteúdo e berra-
vam: "Não agüento comer esta droga. Prepare-me
uns ovos com presunto".
Deste triunfo culinário e social, Sabra pas-
sou à salada de abacaxi com malvaísco, cuja recei-
ta lhe fora enviada do leste por Donna. Os efeitos
indiretos da tal salada foram fatais.
Quando de novo chegou sua vez de ser a
anfitriã das sócias do clube, ela fez os preparativos
para a reunião da tarde, que iria realizar-se à tene-
brosa hora de duas e meia. O lanche era invaria-
velmente servido às quatro horas. Com todas as
providências tomadas, ela foi confrontada por
Ruby Grande Alce com a atordoante informação
de que esse era o dia do grande Festival Indígena
(setembro, quando se realizavam as danças em
homenagem ao milho), e a índia tinha que chegar
à reserva em tempo de assistir à cerimônia do
mescal.
— Você não pode ir — declarou Sabra pe-
remptoriamente.
O almoço tinha terminado. Yancey voltara
ao escritório. Cim estava repousando na rede no
alpendre. Como resposta, Ruby virou-se e cami-
nhou com seu andar altivo, irritante, para seu
464
quarto pegado à cozinha e fechou a porta.
— Está bem — gritou Sabra no tom que
aprendera de Felice Venable —, se você for, não
precisa voltar. — E saiu para o alpendre, onde a
vista de Cim na rede só fez aumentar sua irritação.
— Isso liquida o assunto. Aquela moça tem
que ir embora.
— Que moça?
— Ruby. Vinte mulheres esta tarde, e ela diz
que tem que ir para a reserva. Elas estarão aqui às
duas e meia.
A explicação era meio incoerente, mas
mesmo assim Cim pareceu compreender do que
se tratava.
— Mas, mamãe, ela lhe avisou há um mês.
— Avisou do quê? Como você sabe?
— Porque ela me disse, já faz muito tempo,
que tinha lhe avisado.
— Talvez tenha avisado. Mas ela nunca mais
tornou a falar no assunto. Não é possível eu me
lembrar cada vez que os índios realizam um dos
seus powwows. Eu lhe disse que não podia ir. Ela
está lá no quarto se aprontando. Isso encerra o
465
assunto. Ela não precisa voltar.
Ainda agitada, Sabra retornou à cozinha,
onde deparou com uma jovem índia de ar delica-
do, que ela nunca antes tinha visto.
— O que você quer aqui?
— Estou aqui — respondeu a jovem com
compostura — para substituir Ruby Grande Alce
esta tarde. Sou uma cherokee. Ela me pediu que
viesse. — E tirando do cabide atrás da porta o
avental de xadrez azul e branco de Ruby, amar-
rou-o na cintura.
— Ora essa! — exclamou Sabra aliviada,
mas ainda raivosa. Pela janela da cozinha, viu Cim
atrelando os dois cavalos malhados ao pequeno
faetonte amarelo que Yancey tinha comprado. Ela
precisava ir depressa falar-lhe antes que ele saísse.
Cim parecera perturbado. Era bom que ele saísse.
Ela não gostava que os homens da casa estives-
sem presentes quando estava esperando visitas à
tarde,
A porta do quarto de Ruby se abriu. A índia
apareceu. Seu aspecto era extraordinário. Estava
vestida com um traje de camurça branca que lhe
caía reto dos ombros aos tornozelos, macio e

466
maleável como o veludo. A barra era franjada. O
peito, mangas e gola eram enfeitados com miçan-
gas de um desenho tão intricado que era mais
como um bordado. Nos pés levava mocassins de
um branco marfim e tão delicadamente ornados
de miçangas quanto o vestido. Era um traje de
princesa. Seus escuros olhos de índia estavam
acesos. Em contraste com a camurça, sua pele
parecia luzir. Naquele momento, a índia estava
quase bela.
— Olá, Theresa Pulo.1 Esta é Theresa Pulo.
Hoje vai trabalhar por mim. Já expliquei a ela.
Aprendeu a preparar a salada de abacaxi e malva-
ísco. — Por um momento, pareceu a Sabra que
Ruby, ao falar na salada, esboçara um imperceptí-
vel sorriso. Mas de qualquer modo, Sabra nunca
pretendera entender esses índios. — Estarei de
volta amanhã de manhã.
Ela saiu lentamente de casa pela porta da
cozinha, atravessou o quintal com seu andar
arrastado, lento, insolente, Uma suspeita ocorreu
a Sabra. Ela se dirigiu às pressas para o alpendre
dos fundos, ficou um momento ali parada. Ruby
Grande Alce caminhou lentamente em direção ao
1
"Jump", no original, (N. do E.)

467
celeiro. Cim saiu de lá guiando o faetonte puxado
pelos dois cavalos malhados. Vendo a índia no
traje de camurça branca, seus olhos brilharam.
Ergueu a cabeça como para respirar fundo. Ao
ver a expressão no rosto do filho, Sabra atraves-
sou correndo o quintal. Levara a mão ao peito
como se houvesse sido atingida por uma flecha.
Ruby colocara o pé calçado com o mocassim
branco no degrau da carruagem. Cim estendeu-lhe
sua mão livre.
Sabra alcançou-os, ofegante.
— Aonde vai você?
— Vou levar Ruby à reserva.
— Não, não vai. Não vai não. — Num ges-
to inútil, ela colocou a mão na roda do faetonte,
como se pudesse detê-los pela força. Sabia que
não devia perder sua dignidade diante daquela
índia e do seu filho. Entretanto, aquilo era, a seu
ver, uma monstruosidade.
Cim juntou as rédeas, de olhos atentos nos
cavalos agitados.
— Talvez eu fique para ver algumas das
danças da cerimônia do mescal. Papai diz que é
muito interessante. Grande Alce me convidou.
468
— Seu pai sabe que você vai? Desta manei-
ra?
— Sabe, sim. — Ele lançou um leve olhar
oblíquo à mão de Sabra sobre a roda. Ela retirou a
mão, deixando-a cair pesadamente. Cim falou aos
cavalos. Eles partiram. Ruby Grande Alce olhava
diretamente em frente. Não pronunciara uma só
palavra. Sabra voltou-se e caminhou para casa.
Lágrimas quentes a cegavam. Estava engasgada.
Mas, mesmo naquele instante, seu orgulho falou
mais alto. "Não posso entrar pela cozinha. Aquela
índia vai me ver. Elas são todas iguais. Tenho que
dar a volta e entrar pela frente. Fingir que não
houve nada. Oh, meu Deus, o que devo fazer?
Todas aquelas mulheres esta tarde. Talvez eu
esteja fazendo um drama por nada. Por que não
haveria ele de levar a índia até a reserva e ficar lá
uma ou duas horas para ver as danças e rituais?...
O rosto dele! O rosto dele quando a viu vestida
daquela maneira!"
Ela banhou os olhos, empoou o nariz, mu-
dou de vestido, entrou na cozinha, sorrindo.
— ... o abacaxi cortado em pedaços mais ou
menos deste tamanho. Depois, com a tesoura,
você insere nele o malvaísco. Misture creme bati-
469
do com a maionese. . . uma cereja em cima. . .
sanduíches pequenos e bem finos. . . guardanapo
úmido. . .
Depois, ela se dirigiu para a sala de estar, ar-
rumou um abajur, afofou uma almofada. A sineta
da porta tocou.
— Como vai, Sra. Nisbett? Não, não chegou
cedo. Está bem na hora. As outras é que estão
atrasadas. — E pensava: "As mulheres são mara-
vilhosas. Nenhum homem poderia fazer o que
estou fazendo. Sorrindo e conversando quando
estou quase louca". Seus belos olhos negros eram
luminosos. Sua pele de marfim se tingira de um
tom róseo nas faces. Estava muito bonita.
Theresa Pulo provou ser desajeitada e inca-
paz de aprender coisa alguma. Sabra teve, ela
mesma, que misturar e servir a salada de abacaxi e
malvaísco; e embora esta novidade fizesse grande
sucesso, o triunfo de servi-la não trouxe satisfação
a Sabra. Às seis horas, depois de lavados os pra-
tos, ela mandou a índia embora. Ainda que exaus-
ta, começou a pôr ordem na casa, mas Yancey, ao
chegar, ainda encontrou uma confusão de cadeiras
e almofadas amassadas, um odor misturado de
perfume e café, uma desordem de migalhas de
470
bolo, pedacinhos de seda de bordar e guardana-
pos amassados. Movendo-se pela sala com seu
porte másculo, ele fazia com que parecessem
ridículos aqueles vestígios de presenças femininas.
Desordem na casa o incomodava. E pior ainda,
Sabra, agora livre de suas convidadas, pôde despe-
jar sobre ele a raiva, a ansiedade e o choque re-
primidos naquelas últimas horas. Ruby, Cim,
Theresa Pulo. Mescal. Osages. Se o próprio pai
permite tais coisas — que dirão os outros —, não
adianta tentar fazer com que seu filho seja alguma
coisa na vida.
Yancey, em geral tão profuso em citações
deste ou daquele trecho sonoro de poesia, quase
não falou. Não tentou sequer acalmá-la com
lisonjas, seu charme e ternura. Estava com os
olhos injetados, a mão menos firme que de cos-
tume. Estivera bebendo mais que de hábito, isso
ela percebeu imediatamente. Bêbado, não, em
absoluto (nunca o vira realmente embriagado —
ninguém o vira —, aparentemente ele era incapaz
de atingir um estado de embriaguez visível), mas
estava num dos seus acessos de depressão. Os
ombros se curvavam. A cabeça maciça pendia
sobre o peito. Parecia mergulhado em pensamen-
tos sombrios. Sabra sentiu que ele mal ouvia o
471
que ela estava dizendo. Ela própria não podia
comer nada, mas pôs um lugar na mesa para ele e
jogou à sua frente um prato da absurda salada,
uma xícara de café, um pouco de bolo, um prato
de sanduíches que haviam sobrado, já com as
beiradas inapetecivelmente reviradas.
— Que é isto? — perguntou ele.
— Salada de abacaxi e malvaísco. Com a saí-
da de Ruby e tudo o mais, não tive tempo de
preparar um jantar para você, eu estava tão nervo-
sa com todas aquelas mulheres. . .
Ele ficou sentado olhando a massa gosmen-
ta em seu prato. Estendeu sobre a mesa os gran-
des braços. As belas mãos estavam se abrindo e
fechando convulsivamente. Era como um masto-
donte examinando um verme,
— Salada de abacaxi e malvaísco — repetiu,
pensativamente, quase perplexo. De repente,
atirou a cabeça para trás e começou a rir. Acessos
e mais acessos de riso hercúleo. — Abacaxi e
malvaísco — engasgando, as lágrimas escorrendo-
lhe pelo rosto. Sabra se irritou, depois se assustou.
Pois tão subitamente como começara a rir, ele
ficou sério. Pôs-se de pé, uma das mãos apoiada a
mesa. Depois, pareceu juntar suas forças como
472
um tigre prestes a dar um bote. Ficou assim um
momento, balançando ligeiramente o corpo. —
"Actum est de republica".
— O quê? — perguntou Sabra bruscamente.
— Latim, latim, meu amor. Salada de abaca-
xi e malvaísco! A república está liquidada.
Ela ergueu os ombros num gesto de impaci-
ência. Yancey voltou-se, empertigado, como um
soldado, saiu da sala, apanhou seu sombrero branco
no cabide, colocou-o na cabeça no habitual ângu-
lo garboso, desceu os degraus do alpendre com
seu leve e gracioso passo, tomou pela calçada e
começou a subir a rua, de cabeça baixa, os braços
balançando desalentadamente.
Sabra continuou com o trabalho de arrumar
a casa. Seus olhos ardiam, sentia a garganta aper-
tada. Homens! Homens! Cim saindo com aquela
squaw. Yancey aborrecido porque ela lhe dera
aquela refeição muito feminina das sobras do
lanche. De que adiantava trabalhar, sentir orgulho,
ter ambições para os filhos, um lar, uma cidade, se
o resultado era aquele? Tendo terminado sua
tarefa, ela se permitiu o luxo de uma tempestade
de lágrimas tranqüilizantes.

473
Oito horas. Requentou um pouco do café da
tarde e bebeu-o sentada à mesa da cozinha. De-
pois, saiu para o alpendre da frente. Já era noite.
Uma noite quente de setembro. Os grilos chia-
vam. Ela estava consciente de um cansaço dolori-
do por todo o corpo, mas não podia dormir.
Tinha a impressão de que seus olhos estavam
sendo arrancados por dedos invisíveis. Colocou
sobre eles as palmas das mãos, para fechá-los,
aliviar-lhes o ardor. Nove. Dez. Onze. Meia-noite.
Ela se despiu, soltou as trancas dos espessos
cabelos, escovou-os, refez as tranças para deitar-
se. Todo o tempo estava de ouvido atento. Ou-
vindo. Uma hora. De repente, começou a vestir-se
de novo, desajeitadamente, com dedos gélidos.
Tornou a prender os cabelos, apanhou o chapéu e
um casaquinho. Fechou a porta atrás de si, tran-
cou-a, jogou a chave na caixa do correio. O escri-
tório do Taba. Yancey não estava lá. O escritório
estava às escuras. Ela sacudiu a porta, fez girar o
trinco, destrancou-a com a chave que estava em
sua bolsa. Seu coração estava aos pulos, mas ela
não tinha medo da escuridão. Olhos de gato
espiaram-na da oficina. Riscou um fósforo. Nin-
guém. Ninguém. A máquina de linotipo sorriu-lhe
com seus dentes brancos. O braço e a mão de
474
ferro pareciam acenar-lhe sarcasticamente na luz
tremulante. Com uma súbita premonição, ela
correu para a escrivaninha de Yancey, abriu a
gaveta em que ele guardava seu coldre e pistolas,
agora que Osage se tornara bastante civilizada
para torná-los artigos de indumentária dispensá-
veis. Não estavam na gaveta. Ela soube, então,
que Yancey partira.
O Dr. Vailiant. Ela fechou e trancou a porta
atrás de si, saiu para a escuridão silenciosa da
Avenida Pawhuska. O Dr. Valliant. Ele a acom-
panharia. Podia levá-la na sua charrete. Mas no
consultório do médico e no quarto dos fundos
não atenderam às suas batidas. Ele devia ter saído
para atender um caso. Ela desceu os inseguros
degraus de madeira do prédio de dois andares.
Ficou um momento parada na rua, olhando para
um e outro lado. Torcia as mãos agoniada, sem
saber o que fazer. Iria sozinha se tivesse um cava-
lo e uma charrete. Podia alugar uma na cocheira
de aluguel. Mas o que pensariam aqueles homens
na cocheira? Eram os boateiros da cidade. Osage
toda ficaria sabendo, a região toda. Sabra Cravat
andando sozinha de charrete pela planície no
meio da noite. Alguma coisa devia estar aconte-
cendo. Mas ela não podia impedir isso. Tinha que
475
ir. Tinha que ir buscá-lo. Em direção à cocheira,
passando pelo Hotel Bixby. Uma figura de baixa
estatura emergiu da escuridão da varanda onde
durante todo o dia caixeiros viajantes e desocupa-
dos ficavam sentados com as cadeiras pendendo
para trás e encostadas na parede. O vermelho
incandescente do seu charuto era um olho na
escuridão.
— Sabra! O que houve! Por que está andan-
do por aí a estas horas da noite?
Sol Levy na noite de Oklahoma, uma frágil
figura solitária, com sua insônia e seus pensamen-
tos melancólicos. Nunca antes ele a chamara pelo
nome.
— Sol! Sol! Cim está lá na reserva. Aconte-
ceu alguma coisa. Eu sei, sinto que aconteceu.
Ele não zombou dela, como o teria feito a
maioria dos homens. Parecia compreender o
medo de Sabra, seus pressentimentos, e aceitá-los
como fatalismo oriental.
— O que quer fazer?
— Leve-me para lá. Atrele a charrete e me
leve até lá. Cim levou o faetonte. Ele saiu com ela.
— Vá para casa — disse Sol, sem perguntar
476
onde estava Yancey, sem perguntar nada. —
Espere no seu alpendre. Vou atrelar minha char-
rete e passo para apanhá-la. Não deve ser vista
aqui. Quer que primeiro eu a acompanhe até sua
casa?
— Não, não. Não estou com medo. Não te-
nho medo de nada.
Sol Levy tinha dois belos cavalos, animais
excelentes. Ganhavam regularmente as corridas
nas feiras locais. A pequena charrete leve com
seus ótimos pneus de borracha avançava com
facilidade nas poeirentas campinas de Oklahoma.
As mãos esguias de Sol não sabiam muito bem
manejar os cavalos. Ele guiava nervosamente, às
sacudidelas. Sabra e ele deixaram a cidade para
trás e desapareceram na campina. A reserva ficava
bem a umas duas horas de distância. Sabra tirou o
chapéu. O ar da noite soprava-lhe no rosto, re-
frescando-o. Uma meia hora.
— Deixe-me guiar, sim, Sol?
Sem uma palavra, ele entregou as rédeas às
mãos fortes e habituadas de Sabra, as mãos de
quem descendia de gerações de afeiçoados a cava-
los. Os animais sentiram a mudança. Puseram-se a
correr na escuridão. A charrete sacudia e pulava
477
pelos caminhos sulcados. Sol não lhe perguntou
nada. Ambos se mantinham em silêncio. Depois
de algum tempo, ela começou a falar em frases
meio desconexas. Mas, ainda assim, ele intuitiva-
mente parecia compreender, preencher os vazios
com seu próprio instinto e imaginação. O que ela
dizia soava absurdo; ele sabia que se tratava de
uma tragédia.
— ... salada de abacaxi e malvaísco. . . odeia
esse tipo de comida... esquisito há muito tempo. ..
melancólico. . . bebendo. . . Ruby Grande Alce. . .
Cim.. . o rosto dele... mescal. . . cerimônia do
mescal. . . Osage. . . vestido de camurça branca. . .
Theresa Pulo. . .
— Compreendo — disse Sol Levy, procu-
rando tranqüilizá-la. — Claro, sim, é claro. O
menino estará bem. Estará tudo em ordem. Bem,
Yancey. .. sabe como ele é. . . Yancey. Acha que
ele foi embora de novo? Quero dizer, para longe?
— Não sei. . . Sim, acho que se foi.
Três horas da manhã passadas. Eles avista-
ram a reserva de Osage, um esparso povoado de
sítios estéreis e casebres de madeira na desnuda e
feia campina.

478
Escuridão. A total escuridão que precede a
madrugada. Silêncio, exceto pelo ruído dos cascos
dos cavalos trotando e o gemer das rodas da
carruagem. Então, quando Sabra diminuiu a mar-
cha, meio hesitante, sem saber o que era melhor
fazer, eles ouviram o som — as misteriosas ca-
dências da canção do mescal, o ruído como de
granizo do chocalho sendo sacudido vigorosa e
monotonamente; e abaixo, acima e em todo o
redor, repercutindo, tenebroso, agourento, o
ecoar dos tambores de couro de gamo. Os sons
lhes chegavam através da tranqüila, fria noite da
campina — à mulher angustiada e ao calmo,
pacífico judeu. Sons bárbaros, selvagens, sinistros.
Ela fez os cavalos estancarem. Os dois ficaram
uns instantes sentados, ouvindo. Ouvindo. O
tambor. O som selvagem do tambor.
O medo apertava o estômago de Sabra,
comprimia-lhe o coração com dedos viscosos,
mas ela falou calmamente, com um tom duro na
voz para impedir que ela tremesse.
— Ele deve estar na tenda do mescal junto à
casa de Grande Alce. Foi construída quando ele
era chefe, e ainda é usada regularmente para a
cerimônia. Foi Yancey quem me contou isso, um

479
dia em que me trouxe até aqui. — Ela se calou e
limpou a garganta, pois sua voz subitamente
enrouquecera. Meio confusa, não sabia ao certo se
o som vinha do tambor ou das batidas de seu
coração. Soltou uma risadinha que era quase
histérica. — Um tambor no silêncio da noite. Soa
tão terrível. Tão selvagem.
Sol Levy apanhou as rédeas das suas mãos
trêmulas.
— Não há nada para se assustar. Um pu-
nhado de pobres índios ignorantes procurando
esquecer seus sofrimentos. Venha. — Talvez
nunca um homem houvesse tido um gesto mais
corajoso, pois ele, com sua sensibilidade judaica,
estava apavorado.
Meio hesitantes, na escuridão, eles rumaram
na direção do som do tambor. Cada vez mais
próximo, cada vez mais alto. E no entanto, em
toda a volta, escuridão, silêncio. Apenas aquele
grito pulsando e a cabaça chocalhando noite
adentro como a maré. E se ele não estivesse lá,
pensou Sabra.
Sol Levy parou diante do terreno espezi-
nhado onde ficava a tenda, redonda para simbo-
lizar o sol, construída com madeira, maior do que
480
qualquer outra construção da reserva. Os cavalos
estavam assustados, inquietos. Por toda parte na
noite escura ouviam-se ecos de cascos de outros
cavalos, o ruído que faziam mastigando o capim
seco do outono na campina. Com dificuldade ele
chegou até um toco de pau que servia de poste c
amarrou os cavalos. Ao ajudar Sabra a descer, os
joelhos dela dobraram e ele a apanhou nos bra-
ços.
— Oh, estou bem. Só meio dura, acho que. .
. por causa da viagem. — Apoiou-se um momen-
to nele, depois endireitou o corpo com ar decidi-
do. Ele segurou-lhe o braço firmemente. Juntos,
dirigiram-se para a tenda de madeira.
Duas grandes silhuetas silenciosas envoltas
em cobertores, encostadas à porta através da qual
brilhava a chama do fogo sagrado. As silhuetas
não falaram. Ficaram ali paradas, barrando a en-
trada. Sol sentiu o braço de Sabra tremer na sua
mão. Espiou o rosto das duas figuras silenciosas,
imóveis.
— Olá, Joe! — subitamente. Ele se virou
para Sabra. — É Joe Olho Amarelo. Ainda ontem
ele esteve na minha loja. Escute, Joe, esta senhora
aqui — a Sra. Cravat —, gostaria que o filho dela
481
saísse e fosse para casa.
As figuras enroladas em cobertores continu-
aram mudas. "Isto é ridículo", pensou Sabra, de
repente. Ela soltou o braço, deu um passo adian-
te, seu perfil delineado claramente pela luz do
fogo.
— Sou a mulher de Yancey Cravat, aquele a
quem vocês chamam de Cabeça de Búfalo. Meu
filho está aí dentro e eu quero levá-lo agora para
casa. Já está na hora.
— Claro, leve-o para casa — respondeu o
cobertor a quem Sol se tinha dirigido como Joe
Olho Amarelo. Ele recuou para dar-lhes passa-
gem. Piscando, tropeçando um pouco, Sol e
Sabra entraram na tenda do mescal repleta de
gente.
A cerimônia estava quase no final. Com o
romper da madrugada, estaria terminada. Cega
pela luz, Sabra a princípio nada pôde discernir a
não ser a fogueira central e a figura agachada em
frente. Mas os olhos dela corriam para este e
aquele lado, procurando-o. Gradualmente, sua
visão se tornou mais nítida. As figuras dentro da
tenda não deram a menor atenção aos dois intru-
sos brancos, que tinham parado à entrada, perple-
482
xos, aterrados, mas com coragem.
No centro, um crescente de terra de uns
quinze centímetros de altura circundando a fo-
gueira feita de gravetos arranjados de tal forma
que as cinzas ao caírem formavam um segundo
crescente dentro do outro. Um homem agachado
cuidava do fogo, atento, absorto. No centro do
crescente, sobre uma pequena estrela feita de
gravetos de salva, estava o mescal, símbolo do
rito. Defronte deles se achava o chefe, o velho
Chifre Cortado, no lugar de honra, os emblemas
de seu cargo nas mãos — o chocalho, o cetro, o
leque de penas de águia. Por toda parte na tenda,
viam-se figuras agachadas ou estiradas, envoltas
em cobertores. Alguns tinham a cabeça abaixada,
outros olhavam fixamente para o botão de mescal
no centro. Todos tinham estado comendo o
mescal ou bebendo uma infusão na qual o botão
fora macerado. De vez em quando, um deles
lentamente cobria a cabeça com o cobertor e se
encolhia para receber a visão. E a canção continu-
ava, a cabaça chocalhava, o tambor de couro
soava e ressoava. O ar do ambiente era sufocante,
o interior da cabana impecavelmente limpo.
Em intervalos em redor da parede, e quase

483
no mesmo nível do chão de terra batida, havia
aberturas de talvez uns quarenta centímetros
quadrados. Uma pequena porta de madeira fecha-
va a maioria dessas aberturas. Perto delas estavam
estiradas figuras mais flácidas, ainda mais largadas
do que os outros corpos inertes. Sabra e Sol ali
parados, piscando, descobriram a finalidade das
aberturas. Pois, subitamente, a náusea se apode-
rou de um dos índios agachados no semi-círculo
junto ao fogo. O homem arrastou-se às pressas
para uma das portinholas, abriu-a, passou a cabe-
ça e os ombros para fora, aliviou seu corpo do
excesso da droga.
Sabra apenas desviou os olhos, buscando,
buscando. Então viu onde estava estirado seu
filho sob o cobertor de alegres listras coloridas.
Tinha o rosto coberto, mas ela o reconheceu.
Sabia bem como o corpo esguio se embrulhava
em seus cobertores, como dormia à noite. Este
era um sono diferente, mas ela o reconheceu.
Acompanhada por Sol, encaminhou-se para ele,
abrindo caminho entre as figuras agachadas com
os olhos fixos, em transe, formas reclinadas e
absolutamente imóveis. Ela suspendeu o cobertor.
O rosto dele estava sorridente, tranqüilo, belo.

484
Sabra pensou: "É desta maneira que eu o ve-
ria se ele estivesse morto". Depois: "Ele está
morto". O rapaz respirava regularmente. Em todo
o recinto havia uma atmosfera de devaneio, de
desfalecido êxtase. Se os índios por acaso olha-
vam para Sabra, para Sol, para os esforços que os
dois faziam para despertar Cim, era com os olhos
de sonâmbulos. Em seus lábios havia um sorriso
de felicidade. Às vezes, eles oscilavam um pouco
o corpo. O fogo sagrado lançava labaredas cor de
laranja, escarlate e douradas. O velho Chifre
Cortado abanava de um lado para outro seu leque
de penas de águia. As cadências tremulantes da
canção do mescal subiam e baixavam ao acompa-
nhamento incessante do chocalho e do tambor. O
homem branco e a mulher branca, ambos frágeis,
puxavam com esforço o corpo inerte do rapaz.
— Oh, meu Deus! — gemeu Sabra. — Ele é
tão pesado. O que vamos fazer? — Curvaram-se
de novo, puxaram o corpo com todas as suas
forças, ergueram-no, mas não conseguiram carre-
gá-lo.
— Vamos ter que arrastá-lo — disse, final-
mente, Sol.
Cada um pegou um braço e, arrastando, pu-
485
xando, por entre aqueles rostos sorridentes, exta-
siados, conseguiram fazê-lo chegar até a porta.
Pequenas gotas de suor brotavam na testa e sobre
o lábio superior de Sabra. Ela respirava ofegante.
Em seus olhos arregalados havia uma expressão
assustadoramente inabalável. O chocalho. O
tambor. As altas, estranhas notas da canção, sem
palavras.
O negrume do ar da noite; passando pelas
duas enormes figuras imóveis enroladas em seus
cobertores, arrastando-o pelo chão, pela relva
espezinhada.
— Não podemos erguê-lo para dentro da
carruagem. Não podemos. — Ela correu de volta
para os dois guardas. Apertou as mãos diante do
que se chamava Joe Olho Amarelo. Ergueu para
ele seu pálido rosto angustiado. — Ajude-me.
Ajude-me. — Fez um gesto de erguer.
O índio fitou-a um momento com um olhar
morto, vazio. Partículas em tons de vermelho,
ouro e amarelo se refletiam nas poças negras de
seus olhos e ali desapareciam. Pausadamente, sem
uma palavra, ele andou até onde o rapaz jazia no
chão, apanhou-o sem esforço em seus grandes
braços como se ele fosse um saco de farinha,
486
jogou-o sobre o assento da carruagem. Depois,
virando-se, voltou para o seu lugar junto à porta.
Os três partiram em direção a Osage. O
corpo de Cim apoiava-se com todo o seu peso no
da mãe. Ela segurava-lhe a cabeça no colo, como
se ele fosse um garotinho. Seu braço dolorido
envolvia-o firmemente para impedir que ele es-
corregasse para o chão na carruagem. Despontou
a madrugada e então o sol nasceu na campina,
com o seu vermelho esbarrando no vermelho do
barro de Oklahoma, de forma que o veículo pare-
cia avançar através de uma fornalha ardente.
Ela se mantivera calada, num silêncio rígido.
Então, começou a soluçar, um estranho ruído
seco como uma tosse.
— Ora, ora — disse Sol Levy, e fez entre a
língua e os dentes um barulhinho reconfortante.
— Não é tão ruim assim. O que fez o rapaz foi
ver o espetáculo na reserva e experimentar como
era comer aquela droga — o mescal. Quando eu
era menino, fiz coisa muito pior.
Ela não pareceu prestar muita atenção ao
que Sol dizia, mas devia ter-lhe penetrado no
cérebro amortecido, pois finalmente parou de
soluçar e fitou o belo rosto sorridente em seu
487
colo, os cílios longos, quase femininos, sombre-
ando delicadamente a face oliva.
— Ele queria ir. Eu não deixei. Será tarde
demais, Sol?
— Ir? Ir para onde?
— Para a Escola de Mineralogia de Colora-
do. Geologia.
— Tarde demais? Esse menino aí! Não diga
tolices. Setembro. É a hora de ele ir. As aulas vão
começar. Claro que ele irá.
Eles entraram com a carruagem no quintal,
passando por sobre o bem-cuidado gramado de
Sabra, de que ela tanto se orgulhava, até junto aos
degraus do alpendre, e assim, tornando a arrastá-
lo, conseguiram levá-lo para dentro de casa e
despi-lo. Ela lavou-lhe o rosto sujo de poeira.
— Muito bem — disse Sol Levy. — Acho
que está na hora de eu ir abrir a loja e depois
tomar uma boa xícara de café.
Ela estendeu-lhe a mão. Seu lábio inferior
estava preso entre os dentes brancos, o rosto
contraído absurdamente no esforço que estava
fazendo para não chorar. Mas quando ele ia bater-
lhe na mão trêmula e encardida de poeira, num
488
gesto para reconfortá-la, ela lhe agarrou a mão e,
levando-a aos lábios, beijou-a.
O eco dos cascos dos cavalos se desfez no
ar quieto da madrugada. Ela olhou para Cim, e
pensou: "Agora vou tomar um banho e depois
vou, também, tomar meu café. Yancey foi de
novo embora. Ele me deixou. Eu sei. Como
tenho certeza? Bem, nada mais pode me aconte-
cer agora. Já passei por tudo que era possível, e
agüentei. Nada mais pode me acontecer agora".

489
Capítulo XX

Durante anos Oklahoma ansiara por se tor-


nar um Estado da União, como uma noiva espera
que irrompa o dia de suas bodas. Afinal, "Aí vem
o noivo!", disse um governo paternal entregando-
a à União. "Aqui tem uma estrela para a sua fron-
te. Venha ser apresentada à família."
Depois, já no altar, pronunciadas as palavras
finais, selado o pacto, a noiva se voltara para
deparar com um estranho — um conviva inespe-
rado, encantador, fascinante, personificando
todos os seus devaneios juvenis.
"O noivo. . . que o diabo o carregue!", gritou
Oklahoma, atirando-se nos braços do estranho.
"Que me importa a família! Vá embora! Não me
aborreça. Estou ocupada."
O nome do fascinante estranho era Petróleo.
Petróleo. Nada mais importava. Oklahoma,
a terra seca, varrida de ventos, castigada pelo sol
ardente, era um mar recôndito de petróleo. Das
campinas vermelhas, quando perfuradas, escorria
490
o líquido negro e viscoso. O trabalho de anos se
desfez em um só dia. As toucas desbravadoras
recuaram, espavoridas. Comparados ao que agora
estava acontecendo, os primeiros dias que se
seguiram à corrida de 1889 foram idílicos. Enxa-
mes caíram sobre Oklahoma, vindos de todos os
Estados da União. As planícies se encheram de
gente sondando. As estradas de argila vermelha
tornaram-se intransitáveis com a quantidade de
veículos de todos os tipos. Mais uma vez, emergi-
ram tendas e barracões aglomerados onde no dia
anterior só havia a campina aberta sob o céu
causticante. De novo a tenda de jogo, a pistola
automática, o saloon barulhento, o salão de dança,
a prostituta. Homens lutavam, roubavam, mata-
vam, morriam por um pedaço de chão sob cuja
superfície árida talvez se escondesse aquela rique-
za fluida. Wildcat Field, Panhandle, Cimarron,
Crook Nose, Cartwright, Wahoo, Bear Creek —
esses foram nomes que se tornaram mágicos;
eram as Sete Cidades de Cíbolo, muito mais ricas
do que jamais o sonhara Coronado. Milhões de
barris de petróleo irrompiam da areia, do xisto e
da argila e encharcavam a terra ressequida. Perfu-
rar, bombear, explodir. Nitroglicerina. Aí vem ele.
Um rugido. Oklahoma enlouqueceu de todo.
491
O petróleo enlouqueceu Sabra como todos
os outros. Bem nas imediações de Osage, num
raio de muitos quilômetros, estavam perfurando a
terra. Havia aquele pedaço de terra que ela com-
prara anos antes, quando Yancey dera demonstra-
ções de desassossego. Ela se achara esperta por
ter escolhido aquele pequeno oásis de fertilidade
em meio da planície nua, inóspita. Orgulhava-se
da fazendola com uma boa lavoura de alfafa,
milho, batatas e hortaliças. Agora sabia por que a
terra ali era tão prolífica. Por um capricho da
natureza, o rico petróleo negro se escondia sob
toda a terra em redor, tornando-a estéril. Nenhu-
ma gota do petróleo corrosivo jazia sob o pedaço
de terra dos Cravat, e por causa disso era tão
verde, tão fértil, com suas vagens, suas abóboras,
suas ridículas cebolas, escarnecendo dela, como
uma miragem no deserto. Ainda por cima, ela não
teve melhor sorte com sua participação num
arrendamento para explorar petróleo pelo qual
tinha pago uma quantia substancial — muito mais
do que tinha condições de dispor. Maquinaria,
equipe, dias, semanas de perfurações, areia, xisto,
sal. O poço resultará seco — só pó.
O que aconteceu com Sabra aconteceu com
milhares de outras pessoas. O petróleo era enga-
492
noso, exasperante. Ali podia haver um poço es-
guichando milhões. Uns vinte metros adiante não
se conseguia bombear para a superfície nem uma
só nódoa oleosa. A fortuna parecia deleitar-se em
escolher estranhas vítimas para seus caprichos.
Erv Wissler, o simplório que fazia a entrega do
leite todas as manhãs na porta de Sabra, viu-se de
repente o proprietário de um poço que lhe rendia
sete mil dólares por dia. A soma escapava à sua
compreensão. Sete dólares por dia, ele poderia ter
entendido. Sete mil não tinham significado algum.
— Então, Erv! — exclamou Sabra, quando
ele apareceu como de costume à porta de sua
cozinha, cheirando a estábulo. — Sete mil dólares
por dia! O que vai você fazer com todo esse
dinheiro?
As feições grossas de Erv e seu corpo frou-
xo pareceram enrijecer com o esforço de ter
tomado uma nova e grave resolução.
— Pois bem, vou lhe dizer, Sra. Cravat, de-
cidi que não vou mais fazer eu mesmo as entregas
no domingo. Vou contratar o menino de Pete
Lynch para distribuir o leite nos domingos.
Todo mundo em Osage sabia da história da
mulher de Ferd Sloat, quando vieram dar-lhe a
493
notícia de que na estéril fazendola do casal um
poço estava jorrando petróleo. Os mensageiros
tinham vindo correndo através dos campos espe-
zinhados para avisá-la. Ela ficara parada no alpen-
dre dos fundos da dilapidada casa de madeira,
uma mulher ossuda, desgastada pelo trabalho
árduo, tão escangalhada e feia como sua própria
casa.
— Milhões! — gritaram para ela. — Milhões
e milhões. O que vai fazer com todo esse dinhei-
ro?
A mulher de Ferd Sloat baixara os olhos pa-
ra suas mãos, enrugadas e ressequidas pela água
alcalina e o trabalho duro. Enxugou-as, então, na
ponta do seu avental xadrez com um gesto de
total determinação. Endireitou os ombros ma-
gros. A voz queixosa adquiriu um tom de desafio.
— De agora em diante, vou mandar lavar a
roupa fora.
Naquelas primeiras semanas frenéticas, não
havia tempo para métodos científicos. Isso veio
depois. Agora, com a pressa, aquela gente só
faltava cavar a terra com as unhas. Homens per-
corriam as planícies com varas mágicas, com
aparelhos absurdos chamados bastões de feiticei-
494
ra, na esperança de detectar o precioso fluido sob
a superfície da terra.
Durante anos as sinuosas estradas de argila
vermelha, que pouco mais eram do que trilhas,
tinham sido percorridas por ocasionais charretes,
carroças rurais, carroções, homens a cavalo, uma
ou outra família de índios avançando lentamente
em alguma velha carroça ou — raramente — um
automóvel arriscando-se perigosamente pela
poeira densa na estação seca ou na lama escorre-
gadia na época das chuvas. Agora, essas mesmas
estradas estavam atulhadas, intransponíveis. As
pontes frágeis e estreitas sobre riachos e valados
cediam e rachavam com a torrente de tráfego, mas
ninguém queria perder tempo consertando-as.
Um caudal de veículos de todos os feitios e tipos
passava sem cessar, noite e dia. Freqüentemente,
o caudal era retido pelo seu próprio volume, e
então milhares de pessoas ficavam presas ali,
empilhadas, praguejando, debatendo-se, lutando, a
caminho dos campos de petróleo. Do campo de
Crook Nose a Wahoo a distância era de apenas
uns seis quilômetros; às vezes, gastava-se meio dia
para cobrir a distância de carro. Caminhões, carre-
tas, carroções, carroças, Fords, carruagens abertas.
Todos os dias eram como o dia da abertura de
495
1889. Financiadores milionários do leste, enge-
nheiros, prospectores, perfuradores, especialistas
em equipamentos, atiradores, bombeadores,
trabalhadores braçais, índios. Homens com maca-
cões encharcados de petróleo que passavam dias
sem trocar de roupa. Homens com ternos de
alfaiates londrinos e camisas de Charvet. Somente
os implacáveis e os desesperados conseguiam
sobreviver. Nos dias dos carroções dos desbrava-
dores, havia apenas uns vinte anos, aquelas estra-
das tinham sido trilhas pelas planícies quentes e
secas marcadas pelo crânio esbranquiçado de um
novilho ou o esqueleto de um cavalo, cuja carniça
fora devorada por animais do deserto, e que o sol
causticante alvejara. Uma roda de carroção, um
aro enferrujado, uma trave de carroça partida,
jaziam à margem das trilhas, a muda evidência de
um viajante laboriosamente avançando pela cam-
pina. Agora as valas ao lado dessas mesmas estra-
das estavam cheias de automóveis quebrados ou
abandonados, seus esqueletos apodrecendo, os
faróis voltados para o céu como olhos cegos,
testemunho da presença do moderno violador
daquela região torturada. Acima e abaixo das
estradas engasgadas de pó, pára-lamas arrancados
como asas de moscas, rodas enganchadas, cami-
496
nhões revirados, carregamentos afundados na
lama, pontes de tábuas espatifadas sob o peso
excessivo. Os últimos a chegar que o diabo os
levasse. Era como um exército impelido para a
frente, mas sem o moral ou a disciplina de um
exército. Bear Creek podia gabar-se de um assas-
sinato por dia, e sem uma só cadeia ou tribunal
num raio de muitos quilômetros. Homens e mu-
lheres, manietados a uma corrente comum, eram
levados a pé como escravos condenados ao mais
próximo templo da justiça, uma cabana de pinho
numa cidade que surgira da noite para o dia na
campina. Não havia estradas de ferro onde não
houvera cidade alguma.
Caldeiras carregadas em dois carroções eram
puxadas por parelhas de vinte mulas. Como inva-
riavelmente atolavam, só as mulas conseguiam
arrancá-las da lama. Longas fileiras de carroções
atravancavam a estrada já intransponível. Em
caminhões empilhavam-se tubos por onde o
petróleo precisava ser escoado, tábuas, ferragens,
equipamento, ferramentas, casas portáteis — toda
a vasta mistura de acessórios e materiais da rique-
za e crescimento súbitos de uma comunidade
nova.

497
Jovens destemidos, displicentes, transporta-
vam carregamentos de nitroglicerina, um trabalho
mortífero naquelas estradas acidentadas e repletas.
Era esse precioso e terrível material que fazia o
petróleo irromper do solo. Rapazes que despreza-
vam o perigo e arriscavam a vida por um salário
alto, guiando os caminhões com sua carga tene-
brosa, cantando enquanto seguiam pelas estradas,
a fralda de uma camisa vermelha amarrada a uma
vara desfraldando seu aviso na parte posterior do
caminhão. Freqüentemente, um caminhão espe-
rado deixava de aparecer. Os trabalhadores no
campo nunca se davam ao trabalho de esperar por
ele ou ir procurá-lo. Sabiam que em algum trecho
ao longo da estrada havia um grande buraco
escancarado, sem sequer um fragmento maior de
madeira, aço, osso ou carne em nenhuma parte
nas imediações para contar o que eles já sabiam
que acontecera.
Lavouras que tinham sido cuidadosamente
tratadas para render uma modesta colheita de
repolhos, cebolas, batatas, eram abandonadas por
causa do petróleo, a horta apodrecendo na terra.
Lavradores esqueléticos, suas descarnadas mulhe-
res e a filharada doentia, que se tornavam espeta-

498
cularmente ricos da noite para o dia, saíam de suas
casas sem se dar ao trabalho de carregar a mobília
ou trancar a porta. Não pagava a pena. Deixavam
as cortinas ordinárias nas janelas, as panelas no
fogão. A equipe do campo de petróleo, avançan-
do, não destruía a casa a não ser que julgasse
necessário. Em meio de um inferno de ferramen-
tas, perfuradoras, sondas, fumaça, vapor e petró-
leo vasando, quem por ali passava freqüentemente
avistava uma casa dilapidada, de janelas quebra-
das, a fachada meio tombada, como uma megera
enlouquecida, com seus cabelos grisalhos espar-
ramados pelo rosto contorcido, olhando espavo-
rida o pandemônio do inferno petrolífero em seu
redor.
Os lavradores mudavam-se para Osage,
Oklahoma City, ou Wahoo. Compravam automó-
veis, camisas de seda e bugigangas, como crianças.
Os homens se sentavam nas varandas em mangas
de camisa e de meias sem sapatos e cuspiam o
suco do fumo na grama verde.
Por quilômetros e quilômetros, até onde a
vista podia enxergar, viam-se os esqueletos das
torres de petróleo delineados no céu como gigan-
tescas figuras marcianas invadindo a paisagem.
499
Horríveis cidades novas, com suas fachadas de
madeira, emergiam de repente no rastro de um
novo campo de petróleo; cidades habitadas por
pessoas que nunca tinham a intenção de nelas se
fixarem; casas hostis e hediondas erguidas por
moradores que nunca tinham tencionado nelas
permanecer; toscos armazéns recheados com as
necessidades de uma vida rústica e os luxos da
riqueza súbita, arrebanhados numa espécie de
miscigenação mercantil. O clangor incessante de
bombas e sondas; pragas, berros; o bater de pra-
tos grossos, o tinir de copos, a risada estridente de
mulheres; cabanas infestadas de moscas. O petró-
leo manchando as campinas como uma praga,
matando a relva, secando as árvores, espalhando-
se na superfície das águas de riachos e rios. Tabu-
letas pregadas em troncos de árvores ou postes:
"Para ambulância ligue para 487". "Sim Neeley
Agente Funerário: 549." "Dr. Keogh: 735."
Oklahoma — a terra dos peles-vermelhas —
jazia arfante sob o quente sol do verão, mísera,
dilacerada, escorrendo-lhe pelo rosto um córrego
de viscoso fluido negro.
Tracy Wyatt, que costumava transportar
passageiros e carga entre Wahoo e Osage, de pé

500
com as rédeas nas mãos como um bem-
humorado e rubicundo condutor de biga enquan-
to sua carruagem sacolejava pelas estradas rústi-
cas, tornara-se um dos homens mais ricos de
Oklahoma — de todos os Estados Unidos. Wyatt.
A Companhia de Petróleo Wyatt. Mais cinco
anos, as Companhias de Petróleo Wyatt. Seus
cartazes podiam ser vistos por toda parte no
mundo. Os importantões do leste vinham a ele de
chapéu na mão, pedir opinião a respeito disso,
solicitar seu favor para aquilo. A sua renda diária
era fantástica. Simplesmente incalculável. Tracy,
agora um senhor encorpado e com um ar bastante
digno, tinha pouco mais de cinqüenta anos. Seu
rosto rubicundo e afável adquirira o ar grave,
ligeiramente espantado, de um sujeito comum que
de repente descobre que se tornou uma persona-
lidade.
A Sra. Wyatt, mais feia, com um rosto mais
eqüino do que nunca em suas dispendiosas roupas
de Nova York, tentou adotar um ar condescen-
dente com relação a Sabra Cravat, mas o sangue
Whipple não tinha termo de comparação com o
dos Marcy. O dinheiro súbito afetou-a de maneira
estranha. A Sra. Wyatt apresentou sintomas de
nervosismo, melancolia, e os médicos diagnostica-
501
ram pressão alta.
Sabra invejava abertamente os que tinham
ganho a loteria do petróleo. Uma carta da ferina
Felice Venable à sua filha foi característica daque-
la irascível velha matriarca. Sabra sempre temia
abrir as cartas de sua mãe. Sempre continham
uma picada de víbora.

"Todo esse falatório sobre petróleo e mi-


lhões de dólares e todo mundo em Oklahoma
rolando em dinheiro. Mas aposto que você e
aquele seu marido não têm petróleo que dê para
encher uma lamparina. É bem típico de Yancey
Cravat escolher o pedaço de terra errado. Bem,
pelo menos você não pode se decepcionar. Tem
sido assim desde o dia em que se casou com ele,
embora não possa dizer que sua mãe não a tenha
advertido. Espero que Donna tenha mais juízo."

Donna, de volta após dois anos na escola de


aperfeiçoamento de Miss Dignum, parecia sem
dúvida ter-se tornado uma neta bem ao gosto de
Felice Venable. Era, em tonalidade, contorno,
maneiras e aspecto, tão diferente das outras jo-
502
vens de Oklahoma — Czarina McKee, Gazelle
Slaughter, Jewel Riggs, Maurine Turket —, que
parecia quase impossível ter ela nascido naquele
dia ventoso na campina de Oklahoma, quase
dezenove anos atrás. Mesmo durante as férias de
verão que vinha passar em casa, tinha um ar de
desdém e uma espécie de calculismo frio muito
desconcertante para as antigas amigas, sem falar
na sua própria família.
As outras jovens que viviam em Osage,
Oklahoma City, Guthrie e Wahoo eram autênti-
cos produtos do rude sudoeste. Gostavam de se
vestir com cores berrantes — rosa-vivo, cereja,
amarelo, encarnado, laranja, solferino. Maquia-
vam-se ingenuamente com pó-de-arroz branco e
grandes rodelas de ruge nas faces. As filhas de
pais mais ricos guiavam seus próprios carros
numa época em que isso era considerado uma
ousadia para uma mulher. Donna voltou para casa
alta, esguia a ponto de ser considerada esquelética
na opinião das antigas amigas, pálida, sem ruge,
falando lentamente, misteriosa. Falava com sota-
que do leste, ignorava a letra "r" e, de uma forma
geral, tornou-se venenosamente impopular com
as moças e inegavelmente interessante para os
rapazes. Demonstrava muito pouco interesse
503
pelas atenções desajeitadas dos rapazes locais,
adotando para com eles uma atitude de Serpente-
do-Nilo que os deixava extremamente perplexos.
Acabados os seus dias escolares, e ela um
produto acabado daqueles dias, Donna então
olhou em seu redor, friamente, calculistamente.
Sua mãe, ela a encarava com uma espécie de
ironia afetuosa.
— Que mau negócio fez na vida, Sabra que-
rida — dizia ela com sua voz lânguida. — Real-
mente, não sei como agüentou isso tudo todos
esses anos.
Sabra tomava sua própria defesa, impelida
por algo estranhamente hostil em seu íntimo
contra aquela filha distante, desdenhosa.
— Agüentei o quê?
— Oh, sabe muito bem. Essa história de ser
uma pioneira e uma Marcy profissional e sempre
de cabeça erguida apesar de ter um marido im-
prestável.
— Donna Cravat, se tornar a falar assim do
seu pai, por maior que você seja, vou castigá-la.
— Sabra querida, como pode castigar uma

504
mulher adulta? Poderia esbofetear-me e eu, natu-
ralmente, não lhe devolveria a bofetada. Mas
ficaria muito constrangida por você. Quanto a
meu pai... ele é uma peça de museu. Você sabe
muito bem.
— Seu pai é uma das maiores personalidades
que o sudoeste jamais produziu.
— Bem, suponho que ele seja bastante pito-
resco. Mas eu teria preferido que fosse um pouco
mais contido. E Cim! Que irmão! Uma grande
ajuda para minha carreira, os homens desta estra-
nha família.
— Eu ignorava que você estivesse planejan-
do uma carreira — replicou Sabra, num tom
muito à maneira de Felice Venable. — A não ser
que levantar-se ao meio-dia, rondar de quimono
pela casa a maior parte do dia e ficar estirada
numa rede lendo seja considerado uma carreira
pelas formandas da Dignum. Se é, sem dúvida
você deve ser a primeira de sua classe.
— Querida, eu a adoro quando se mostra
assim viperina e Venable. Talvez tenha me influ-
enciado na minha primeira juventude. Esta é a
nova psicologia, você sabia? Costumava contar-
me como minha avó andava pela casa arrastando
505
seus xales brancos rendados e de saltos altos, sem
nunca erguer suas mãos alvas.
— Pelo menos, sua avó nunca considerou
que isso fosse uma carreira.
— Nem eu. Esta linda cabeça balançando-se
na rede não é tão vazia como você julga. Sei que
não adianta contar com meu pai, mesmo que ele
não esteja ausente em alguma de suas misteriosas
viagens. E por falar nisso, o que anda ele fazendo
agora? Vivendo com alguma squaw?... Desculpe,
mamãe querida. Eu não quis magoá-la... Cim vai
pelo mesmo caminho, ou pior, porque ele é fraco
e não tem nem os ideais falsos de meu pai. Você
vive ocupada com o jornal. Está bem. Não a
estou censurando. Se não fosse por você, estaría-
mos vivendo da caridade de Osage — ou de volta
a Wichita vivendo com vovô em aristocrática
pobreza. Acho-a formidável, e devia tentar ser
como você. Mas não quero ser uma jornalista.
Descrever as suntuosas decorações e bocas-de-
leão numa das festinhas de Cassandra Sipes.
Impelida pela curiosidade e pelo espanto
que lhe causava aquela estranha criatura, Sabra
teve que fazer a pergunta:
— O que você vai querer fazer, então?
506
— Quero me casar com o homem mais rico
de Oklahoma, construir um palácio em que eu
raramente viverei, viajar como uma princesa e me
cobrir de esmeraldas. Para minha pele e cabelos, a
esmeralda é a pedra.
— Oh, esmeraldas, sem dúvida — concor-
dou Sabra sarcástica. — Diamantes são tão vulga-
res. E o cavalheiro que você pensa honrar com
sua mão. . . deixe-me ver. Pelos seus requisitos
teria que ser Tracy Wyatt, não é exato?
— Exato — replicou Donna, tranqüilamen-
te.
— Provavelmente, esqueceu-se da Sra.
Wyatt. É verdade que Tracy tem só cinqüenta e
um anos, e você tendo dezenove, ainda há muito
tempo, se tiver paciência. — Ela estava achando
muito engraçado para realmente se preocupar.
— Não tenciono ser paciente, mamãe queri-
da.
Algo em seu tom duro, insensível, assustou
Sabra.
— Donna Cravat, não comece nenhuma das
suas artimanhas. Eu vi você se requebrando e
fazendo trejeitos para ele no dia em que fomos à
507
nova casa dos Wyatt. E também a ouvi dizendo
umas tolices a respeito de ser ele um homem que
ansiava pela beleza em sua vida, e que era justo
que satisfizesse seu anseio; e debochando polida-
mente da nova casa, a ponto de eu notar que o
pobre homem estava começando a duvidar de
tudo dentro da casa. Ele tinha se mostrado tão
orgulhoso em exibi-la! Mas pensei que você esti-
vesse apenas com aquela sua conversa de Nova
York.
— Não, não estava. Minha conversa era de
negócios.
Sabra sentiu-se, ao mesmo tempo, indigna-
da, alarmada e desgostosa. Recobrou a calma
dizendo a si mesma que se tratava apenas de uma
das brincadeiras estranhas de Donna — parte de
um veio nela que Sabra nunca compreendera e
que correspondia ao lado brincalhão de Yancey.
Nele, também, essa faceta sempre a intrigara. Mas,
ocupada nas tarefas do jornal, em constante cres-
cimento e progresso, aquela conversa foi desapa-
recendo da sua memória.
Sabra era suficientemente astuta e equilibra-
da para aceitar o sólido conselho de Sol Levy.
— Trate de dirigir seu jornal, Sabra, e não
508
vai precisar de nenhum poço de petróleo. Pode
ter o jornal mais rendoso e o mais poderoso do
sudoeste. Maior que os de Houston, Dallas ou
San Antônio. Porque Osage vai ser maior e mais
rica do que qualquer uma dessas cidades. Ouça o
que estou dizendo. Quase nenhum petróleo em
Osage propriamente dita, mas bilhões de barris à
sua volta. O que quer dizer que esta cidade não
será destruída. Vai crescer e crescer. Daqui a cinco
anos, vai parecer uma segunda Chicago.
— Oh, Sol, como isso vai ser possível?
— Você verá. Lá onde há poucos anos fica-
va a tenda de jogo com um buraco lamacento
defronte, você verá daqui a cinco anos erguer-se
um arranha-céu como os de Nova York.
Ela riu da previsão.
Assim como tinha sabido que Yancey a dei-
xara de novo na noite da cerimônia do mescal, ela
sentiu que ele voltaria em meio daquela nova
insanidade que se apoderara de toda Oklahoma.
E, com efeito, ele voltou, Deus sabe de onde, na
própria crista da onda de petróleo, e trazendo
consigo notícias que eclipsavam sua volta. Chegou
como partira, sem uma palavra de explicação, e,

509
como sempre, sua chegada foi tão dramática, tão
bizarra, que fez com que tudo o mais passasse
para segundo plano.
Chegou a cavalo, como sempre, mas desta
vez sua montaria era um triste pangaré; e seu
sombrero branco estava sujo e sovado, a sobrecasa-
ca manchada, a camisa de linho rota, e todo ele
coberto pela pesada poeira vermelha da estrada
movimentada. Devia ter cavalgado como um anjo
vingador, pois seus longos cachos negros estavam
úmidos, seus olhos injetados. E quando ela viu
esse Dom Quixote tão manchado, tão surrado, seu
coração amoleceu de piedade.
Ela pensou: "Vai ser sempre assim enquanto
ele viver, e cada vez estará um pouco mais desgas-
tado, mais velho, menos o homem esplendoroso
com quem me casei, até que..."
— Yancey — disse ela apenas.
Ele estava exuberante, soltando gargalhadas
estrondosas ao entrar no escritório do Taba, onde
ela se achava sentada à sua escrivaninha polida e
em perfeita ordem, exatamente como naquele dia,
anos antes. Por um momento tenebroso, julgou
que seu marido estivesse embriagado ou louco.

510
Ele atirou o sombrero branco manchado sobre a
escrivaninha, suspendeu-a nos braços, pousou-a
no chão.
— Sabra! Tenho notícias para você. Jesse!
Ei, Jesse! Onde se meteu aquele beberrão dos
diabos? Jesse! Venha cá! Meu Deus, eu ri tanto
que quase caio do cavalo.
Ele caminhava de um lado para outro como
antigamente, as abas da sobrecasaca puída abrin-
do-se com o vigor de seus movimentos, as belas
mãos gesticulando, os olhos — agora injetados —
ainda lançando chispas que continuariam ardendo
até um dia consumi-lo.
— Petróleo, crianças! Mais petróleo do que
alguém jamais supôs que pudesse haver num
ponto da terra. E onde? Onde! Na reserva dos
índios osages. Apareceu há cerca de uma hora,
como o oceano. Faz com que todos os outros
campos pareçam o Saara. Nunca houve uma piada
como esta! É cósmica — é terrível. Como os
deuses devem estar se divertindo. "Gargalhadas
irreprimíveis entre os benditos deuses!"
— Yancey, meu caro, estamos habituados ao
petróleo aqui. É uma velha história. Agora, venha.
Venha para casa tomar um banho quente e trocar
511
de roupa. — Em sua mente ela viu aquelas finas
camisas de linho empilhadas na gaveta como ele
as deixara.
Como resposta, ele estendeu o braço com-
prido e varreu uma pilha de trocados, papel de
cópia, provas tipográficas e recortes de notícias de
cima da escrivaninha, enquanto com a outra mão
apanhou a máquina de datilografia pela sua barra
de aço e a atirou ao chão com uma força que
arrancou um gemido de protesto das suas engre-
nagens. Os traços negros de seu vigoroso lápis
cavaram mais fundo na superfície do papel do que
o teclado de metal de qualquer máquina.
— Banho quente! O banho quente que vá
para o diabo, doçura! Não percebe o que isso
significa? Não compreende que dois mil índios
osages, agachados em seus trapos diante de suas
miseráveis cabanas, são agora a nação mais rica do
mundo? Do mundo, é o que eu lhe digo. Aquela
terra lhes foi dada — a mais inóspita, a mais árida
terra desértica em toda a região de Oklahoma. E o
governo dos Estados Unidos disse: "Aí está sua
terra, seus cães vermelhos, aceitem-na e vivam
dela. E se não puderem viver dela, morram nela".
Meu Deus Todo-Poderoso, eu seria capaz de

512
morrer de tanto rir. Milhões e milhões de dólares.
Estão espirrando por toda a reserva dos osages.
Não há quem possa deter tamanho fluxo. Cada
homem e squaw na reserva virou milionário. Os
índios são proprietários daquela terra, e, por
Deus, não vou deixar que ninguém os lese!
— Oh, Yancey, tenha cuidado.
— Envie isto pela Associated Press — disse
ele começando a escrever. — Eles tentaram man-
ter segredo quando jorrou o petróleo, mas vou
dar-lhes uma lição. Sabra, ponha de lado seu
editorial, seja a respeito do que for. Eu vou escre-
ver o meu editorial. E também dê o maior desta-
que à notícia. Ouça. "Uma pilhéria cósmica, a
mais espalhafatosa peça pregada no hipócrita
governo norte-americano, estourou nos céus hoje
como fogo de artifício quando, com um estrondo
que se pôde ouvir num raio de muitos quilôme-
tros, milhares de barris de petróleo se projetaram
para o ar no mísero solo desértico conhecido
como a reserva dos osages e ocupado pelos trapa-
ceados e infelizes...!"
— Não podemos usar este texto de forma
alguma.
— Por que não?
513
— Isto aqui não é o Cimarron. É o Estado
de Oklahoma. É traição... é anarquia. . .
— É a verdade. Faz parte da história. Posso
provar o que estou dizendo. Eles vão cair sobre
os osages como uma alcatéia de lobos. Pelo menos,
eu os estarei avisando de que já são esperados.
Por Deus, vou publicar meu editorial nos termos
que quero, e se quiserem que me dêem um tiro.
— E eu estou dizendo que você não vai pu-
blicar. Não pode chegar aqui e fazer o que bem
entende. Sou eu a responsável por este jornal.
Ele se voltou muito calmo e fitou-a, com a
cabeça maciça esticada para a frente, os olhos
frios e duros como o aço.
— Quem você disse que é responsável?
— Sou eu.
Sem uma palavra, ela a agarrou pelo pulso e
a levou para fora, passando pelo velho alpendre,
descendo os degraus de madeira e atravessando a
rua. Ali, na Avenida Pawhuska, em plena luz do
dia, apontou para a placa desbotada pelo tempo,
que ele próprio, ajudado por Jesse Rickey, tinha
pregado na fachada quase vinte anos antes. Sabra
mandara pintá-la e repintá-la. Mandara consertá-
514
la. Nunca a substituíra por outra.

TABA DE OKLAHOMA

YANCEY CRAVAT, PROPRIETÁRIO E RES-


PONSÁVEL

— Quando arrancar esta placa, Sabra, meu


amor, e colocar no seu lugar uma outra com o seu
nome, você será a dona deste jornal. Mas até
tomar esta providência, quem manda aqui sou eu.
Ela, no seu impecável vestido de sarja azul,
ele em seu traje amassado e roto, ficaram um
momento ali parados, no meio da rua. Então,
Sabra compreendeu que ela nunca iria substituir
aquela placa.

515
Capítulo XXI

O jovem Cim chegou de Colorado para pas-


sar as férias de verão, foi apanhado pela enchente
do petróleo, e nunca mais voltou. Com os seus
conhecimentos geológicos, por reduzidos que
fossem, e sua familiaridade com a região, ele se
viu impelido de lá para cá, de uma extremidade do
Estado à outra. Curiosamente, Cim, como seu pai,
era mais um observador do que um participante
daquele espetáculo fantástico. A qualidade de faro
para negócios parecia faltar a ambos, pai e filho;
ou talvez uma atitude de superioridade os impe-
disse de tomar parte naquela luta febril. Uma
suspeita de petróleo num local, ou um leve vestí-
gio de petróleo, desencadeava milhares de pessoas
empurrando umas às outras, arrastando-se de
nariz no chão, fuçando e andando de quatro
como porcos num chiqueiro. Cem vezes, Yancey
poderia ter comprado por uma quantia mínima os
direitos para prospecção de petróleo em algum
ponto. Com a cabeça pendida sobre o peito, as
pálpebras baixadas sobre olhos esfuziantes, ele

516
erguia os ombros, indiferente.
— Não quero aquela gosma nojenta — dizia
ele. — Fede. Os índios que fiquem com ela. É
deles. E os homens de negócios do leste. . . eles
que suem e sofram para avançar no dinheiro.
Agora eles sabem direitinho onde fica Oklahoma.
As idas e vindas de Yancey não mais causa-
vam a Sabra a profunda agonia dos primeiros
tempos. Ela sabia agora que, enquanto seu marido
vivesse, na existência do casal haveria sempre
aquelas ausências inexplicadas e voltas melodra-
máticas. E resolvera aceitar o que era inevitável.
Não se importava de Yancey passar tanto
tempo nos campos de petróleo. Ele conhecia os
homens a quem chamava os "importantões do
leste", e estes freqüentemente o procuravam por
sua companhia, que achavam divertida, e por uma
certa sabedoria regional que eles consideravam
importante. Yancey desprezava-os e passava a
maior parte do tempo com os perfuradores e
trabalhadores braçais, sonda-dores e mecânicos
— uma turma dada a beber, conversar, armar
brigas. Com seu sombrero branco, antiquada sobre-
casaca e botas de salto alto, tornara-se uma figura
pitoresca. Anos e anos de muita bebida começa-
517
vam a afetar-lhe a mente e o corpo magnífico. Os
cachos longos agora eram estriados de fios bran-
cos.
Os habitantes locais, que antes o temiam e
admiravam, começaram a tratá-lo com condes-
cendência ou a rir tolerantemente de suas extrava-
gâncias. Muitos deles agora eram ricos, de uma
riqueza que não se contava em milhares e sim em
milhões. Tinham possuído um pedaço do solo de
Oklahoma, ou um pedaço de um pedaço de solo
— e subitamente, sem que nada tivessem feito
para isso, o pedaço passara a valer seu peso em
diamantes. Pat Leary, o atrabiliário advogado
irlandês que outrora fora um pequeno funcionário
da Estrada de Ferro Santa Fé, estava agora tão
rico com seus vastos campos petrolíferos, que
Nariz Torto, sua esposa índia, era considerada
uma figura singular e pitoresca pelas mulheres dos
negociantes do leste que vinham a Oklahoma para
suas transações de petróleo.
Após os primeiros tempos de aguda excita-
ção, Sabra Cravat abandonara a esperança de
ganhar súbitos milhões, como acontecera com
outros de mais sorte. Sua propriedade não rendera
uma só gota de petróleo; nem ela adquirira ne-
518
nhum direito de exploração. Era um fato curioso
que Sabra continuasse a ser uma personalidade
proeminente em Osage e se tornasse mesmo uma
força no Estado. Seu jornal era lido, respeitado e
temido em todo o sudoeste. As pessoas de espíri-
to cívico orgulhavam-se de poder dizer que não
havia petróleo, por mais abundante, que tivesse o
poder de manchar as páginas do Taba de Oklaho-
ma. Embora poucos percebessem, e a própria
Sabra nunca o admitisse, era Yancey o responsá-
vel por essa integridade do jornal. Ele negligencia-
ra o Taba anos a fio, mas sempre comparecia
quando surgia uma crise, quer fosse política,
econômica, ou social, para atirar seus espinhosos
editoriais na cabeça dos transgressores, para inje-
tar-lhes o veneno do ridículo. Tomava a defesa
dos índios, denunciava os reis do petróleo, debo-
chava dos gananciosos, acusava os ladrões de
terras. Não tinha medo de nada. Podia ausentar-se
por seis meses. O Taba continuava sendo publica-
do ordenadamente, placidamente. Quando ele
voltava, era de tocha na mão, e de novo ateava
fogo ao jornal até a cidade, o município, o Estado
se incendiarem. Os osages vinham procurá-lo com
seus problemas legais, e ele os aconselhava sabia-
mente e lhes cobrava honorários mínimos. Parecia
519
sempre pressentir de longe um acontecimento
importante e emergir, surgindo como um velho
leão de sua toca, gasto, cansado, mas com o mes-
mo espírito de luta, os olhos ainda faiscando, a
cabeça magnífica ainda tão ameaçadora como a de
um búfalo investindo. Em certa ocasião, ele re-
tornou justo a tempo de ter a notícia da morte de
Dixie Lee.
Dixie tinha encontrado petróleo e se apo-
sentara, uma mulher rica. Fechara a pensão e
seguira para Oklahoma City, onde, depois de
comprar uma casa em meio a uma vizinhança
familiar, tinha adotado uma garotinha. Para con-
seguir a adoção, ela viajara para Kansas City, e
embora tivesse contratado nessa viagem uma ama
credenciada e um tanto perplexa, Dixie fizera
questão de carregar ela mesma nos braços a crian-
ça com a cabecinha apoiada no corpete de rico
cetim.
Ninguém sabia de que meios ela se utilizara
para tapear as autoridades de Kansas City. Nunca
teria conseguido isso em Oklahoma. Estava com a
criança fazia quase um ano quando as mulheres de
Osage souberam da adoção. Dizem que ela mes-
ma empurrava o carrinho da criança todos os dias,

520
e talvez alguém a tivesse reconhecido na rua,
embora ela agora se assemelhasse a qualquer
matrona corpulenta e respeitável, em seu discreto
e dispendioso vestido e pincenê, um pouco de
cinza entremeando os abundantes cabelos escu-
ros.
Sabra Cravat soube do caso, assim como a
Sra. Wyatt, a Sra. Nisbett, a Sra. Pack.
Tiraram a criança dela por força da lei. Seis
meses depois, Dixie Lee morreu; os sentimentais
diziam que de dor no coração. Foi Yancey Cravat
quem escreveu seu obituário:

"Dixie Lee, durante anos uma das habitantes


de Osage de maior proeminência e uma pioneira
nos primeiros tempos de Oklahoma, tendo parti-
cipado da corrida de 1889, uma das poucas mu-
lheres que teve a coragem de entrar naquela histó-
rica e terrível corrida, está morta.
Ela foi assassinada pelas mulheres virtuosas
de Osage..."
A nota era de pasmar, até mesmo naquele
Estado melodramático. Sabra leu-a, branca de
indignação. A circulação do Taba tornou a aumen-
521
tar.
— Um dia destes — comentava toda a ci-
dade, lendo o jornal — alguém vai aparecer e dar
um tiro no velho Cimarron.
— Imagino que a mulher dele será bem ca-
paz de poupar o trabalho a esse alguém — opinou
alguém.
Se as contribuições esporádicas de Yancey
aumentavam a circulação do jornal, era a persis-
tência de Sabra que o mantinha. Era uma tarefa
gigantesca estar em dia com as mudanças que
varriam Osage e todo o Estado de Oklahoma.
Não obstante, as páginas do Taba registravam
essas mudanças em suas novas colunas, em seus
editoriais, em seu noticiário local e em seus anún-
cios, tão fielmente como no dia de seu lançamen-
to, quando Yancey contou a seus leitores quem
assassinara Pegler. Talvez fosse porque Sabra,
mesmo durante as freqüentes ausências de Yan-
cey, sentia que o jornal devia estar preparado a
qualquer momento para ser inspecionado pelo seu
olho crítico.
Estranhos itens começaram a aparecer diari-
amente nas colunas do jornal — estranhos para
quem não tivesse interesse por petróleo; mas o
522
fato é que não havia quem não se interessasse
pelo assunto em Oklahoma e até mesmo em todo
o sudoeste. Por mais enigmáticos que tais itens
pudessem ser para os habitantes de outras zonas
dos Estados Unidos, eram do mais absorvente
interesse para a população de Oklahoma, mais
que qualquer manchete sobre guerra, romance,
intrigas políticas, realeza, ou crime.

"Companhia de Petróleo do Território índio


encheu 42 barris em seu n.° 3 Lizzie na extremi-
dade nordeste do sudoeste do nordeste de 11-8-6
depois de ter arrolhado a 1 300 metros e esgui-
chado com 52 litros.
O teste negativo de McComb uns três qui-
lômetros ao norte de Kewoka que é n.° 1 Sutton
na extremidade sudoeste do sudeste do nordeste
de 35-2-9 esguichou 105 litros na areia a uns 600
metros. Como está, calcula-se que dê 450 barris
diários."

Os anúncios no jornal refletiam a mudança.


A velha estrebaria de aluguel, com as charretes, os
faetontes, os cavalos velhos para alugar, ociosos

523
mascadores de fumo, cheiro de palha, estrume e
graxa de eixo, sumiu, e em seu lugar apareceu a
Garagem e Aluguel de Automóveis Fink. Conser-
tos de todo tipo. Compre um Stimson Salient Six.
O cheiro de gasolina, o silvo da mangueira, rapa-
zes com dedos sujos de graxa entendidos em
motores.
Venha ao jantar da Câmara do Comércio. O
Clube City College de Oklahoma irá cantar.
Osage começou a viajar, a ver o mundo. As
jornadas não eram locais. Onde, dois anos antes,
lia-se que o Dr. e Sra. Horace McGill chegaram de
Concho para fazer suas compras de Natal, agora
se lia que o Sr. e Sra. W. Fletcher Busby tinham
partido numa viagem com roteiro para a Europa,
Egito e Terra Santa. Todos sabiam que o velho
Wick Busby fizera fortuna em petróleo e que
Nettie Busby estava disposta a conhecer o mun-
do.
Mais espantosos eram os noticiários sobre
os índios, pois agora o Taba de Oklahoma e todos
os outros jornais da redondeza publicavam regu-
larmente notícias a respeito daquela gente incrível
que, no curto espaço de um ano, saltara da era
neolítica para a Broadway.
524
Os índios osages, em número de pouco mais
de dois mil, que tão recentemente eram um bando
maltrapilho, subnutrido e apático, desanimada-
mente agachados na reserva que lhes fora destina-
da, esperando até que o tempo, enfermidades e
miséria os obliterasse para sempre da face da
terra, eram agora, por um milagre da natureza, a
nação mais rica do mundo. O solo árido em que
viviam agora produzia a mais profusa torrente de
petróleo do Estado. As notícias e editoriais de
Yancey Cravat tinham sido copiados e lidos por
todo o país. O governo, atônito, tentara pôr uma
ordem naquele caos de riqueza. Os dois mil osages
foram retirados da reserva para dar lugar ao fluxo
de petróleo que se transmutava num fluxo de
ouro. Os índios foram levados para uma nova
zona chamada Wazhazhe, que é a antiga palavra
na língua aborígine para osage.
Agentes nomeados. Escritórios organizados.
Milhões de barris de petróleo. Milhões de dólares.
Milhões de dólares por ano a serem divididos
entre dois mil osages, para quem um cobertor, uma
gamela de cereal, um cavalo sarnento, um pedaço
de fumo, um botão de mescal tinham significado
uma fortuna. E agora cada índio com sangue,
meio sangue, ou um quarto de sangue osage era
525
colocado na Relação Osage, e cada nome constan-
te da relação recebia um direito por cabeça. Cada
direito por cabeça significava uma parte positiva
nos milhões. Cinco numa família — cinco direitos
por cabeça. Dez numa família — dez direitos por
cabeça. O escritório da Agência de índios estava
repleto de máquinas de escrever, arquivos, carim-
bos, livros de contabilidade, funcionários com ar
eficiente, todos ocupados com papéis e documen-
tos em que se liam coisas que pareciam um pesa-
delo fantástico. A vista do homem branco, per-
correndo a lista em que se enfileiravam nomes
índios que pareciam saídos de um livro de ficção
ao lado de frias quantias realistas, rejeitava o que
lia por ser um absurdo tal que não dava para
entender.

Clint Carne Forte US$ 523 000


Benny Guerreiro US$ 192 000
Ho ki ah se US$ 265 887
Pombo Pé Comprido US$ 387 942

O governo comprava-lhes fazendas com o


próprio dinheiro deles ganho com petróleo, cons-
526
truía grandes casas de tijolo vermelho perto da
estrada e mobiliava-as com pelúcia, pianos, linó-
leo, fogões a gás e fonógrafos. Eles eram vistos
em seus poderosos automóveis cobertos de pó de
um lado para outro das estradas de terra batida de
Oklahoma — aquelas estradas ainda esburacadas,
sem pavimentação, perigosas, pois Oklahoma não
tivera tempo para se ocupar com detalhes desse
tipo. Cinqüenta anos antes, bandos de osages em
seus cavalos magros e raquíticos tinham viajado
para o sul no inverno e para o norte no verão, a
fim de visitar seus primos. Mais tarde, miseravel-
mente arrebanhados em suas reservas, eles parti-
am a pé ou em carroças escangalhadas para fazer
suas visitas conforme as estações e tentar recaptu-
rar com conversas, canções, danças e rituais al-
gum pálido vislumbre de sua felicidade destruída.
Uma procissão bastante melancólica, temerosa,
furtiva, ressentida.
Mas agora se via cada jovem índio em seu
carro possante, as mãos inexperientes agarradas
ao volante, o sombrero enorme — maior do que o
do homem branco — adejando ao vento devido à
velocidade do carro. No fundo, via-se a luminosi-
dade de penas e cobertores usados pelas crianças
de olhos lustrosos e a corpulenta, plácida squaw
527
encolhida no banco do automóvel. O homem
branco, percorrendo a mesma estrada, tratava
logo de dar-lhes passagem, pois sabia que eles não
paravam para ninguém, guiavam no meio da
estrada, voavam por sobre pontes, fossas e valas
como uns alucinados.
Relutantemente, pois ainda os desprezava,
Sabra Cravat dedicava uma página do Taba a
notícias sobre os osages, aqueles endinheirados,
protegidos de um governo atônito! A página era
intitulada "Noticiário Indígena", e havia em seu
conteúdo um lado grotesco bastante acentuado.

"Pombo Pé Comprido e esposa recentemen-


te passaram o fim de semana com Muitos Cavalos
em Watonga.
A idosa senhora Mulher de Pé, de Hominy,
compareceu à casa de Mulher Tinta Vermelha
para uma visita.
O Sr. e a Sra. Sampson Touro Manco volta-
ram de Osage depois de acompanhar a Sra. Mu-
lher Gêmea, que agora está internada no Hospital
de Osage.
Albert Dente Curto e Robert Olhos Brancos
528
estão se arrumando sozinhos na casa da Sra.
Mulher Fantasma durante a sua ausência.
Laura Mulher Pássaro e Thelma Ninho de
Águia, das imediações de Osage, viajaram de
automóvel a Cavalo Cinza para visitar Cabeça
Dura, mas ele não estava em casa.
Woodson Homem Baixo e esposa estavam,
a semana passada, fazendo compras em Osage.
Escabioso Pássaro Encarnado partiu da re-
serva para uma visita a Colorado Springs e Mani-
tou.
Squaw Iki voltou recentemente, depois de
haver passado algum tempo internada no Hospital
Concho.
Joe Chifre Cortado e sua esposa, Morte Len-
ta, estão hospedados em casa de Nariz Vermelho
por alguns dias.
Filho do Sol desistiu de continuar procuran-
do um cozinheiro de alta classe em Wazhazhe e
está tentando consegui-lo em Osage."

Os osages eram assinantes do Taba. Liam o


jornal, ou alguém o lia para eles, se pertenciam à

529
geração mais antiga e menos instruída. Sabra
estava habituada a ver de repente a soleira da
porta obscurecida por um enorme vulto enrolado
num cobertor, ou a erguer os olhos, assustada,
para deparar com uma figura envolta em listras
vistosas parada junto à sua escrivaninha. Se, por
acaso, Yancey estava presente, a ocasião tornava-
se muito social.
— Ei!
— Quero jornal.
— Está bem, Dente Curto. Cinco dólares a
assinatura.
A figura então exibia uma carteira cujos la-
dos estavam quase estourando com redondos
dólares de prata, pois os osages amavam sentir na
mão aquelas moedas luzidias: Com um tinido, elas
iam caindo sobre a mesa.
O imenso osage continuava parado, esperan-
do. Yancey sabia o que ele queria, e Sabra tam-
bém.
— Eu quer ver homem de ferro. Quer ver
faz meu nome.
Ao que Yancey ou Sabra conduzia o visitan-
te à sala de composição. Havia três linotipos
530
agora, estrepitando e tinindo. Certa vez Yancey
conduzira Grande Alce, o pai de Ruby, aos fun-
dos para ver como o linotipo transformava
chumbo derretido em palavras impressas. Manda-
ra Jesse Rickey, no teclado do linotipo, executar o
nome do velho Grande Alce na forma de uma
esmerada barra de metal, e mostrou-lhe seu nome
impresso.
Não havia como escapar. A história do
monstro de ferro que podia falar e escrever e se
movimentar espalhou-se como fogo na mata por
toda Wazhazhe. Famílias inteiras faziam assinatu-
ras em separado do Taba de Oklahoma — rapazes,
squaws, meninas, meninos, papooses de colo. O
monstro de ferro exercia sobre eles um fascínio
que era um misto de admiração, reverência e
medo. Era inútil explicar que eles não precisavam
fazer uma assinatura para possuir uma daquelas
ambicionadas barras de metal. Fora uma vez feito
assim. Eles fariam sempre do mesmo jeito. Sabra,
se acontecia ser a encarregada, sempre dava os
cinco dólares para alguma obra de caridade de sua
preferência, depois de tentar em vão recusar o
dinheiro. Yancey aceitava jovialmente os cinco
dólares e pagava uma rodada de bebida para os
rapazes no novo Saloon Sol do Sul, agora um
531
estabelecimento esplendoroso com seu bar de
mogno, grades de metal dourado, espelhos, can-
delabros e pinturas a óleo de carnes róseas.
Acima e abaixo pelas poeirentas estradas de
Oklahoma, em tremenda velocidade, de uma
extremidade à outra da Avenida Pawhuska, passa-
vam as figuras envoltas em cobertores em seus
carros Packard e Pierce Arrow. Os negociantes de
Osage gostavam de vê-los na cidade. A presença
deles significava dinheiro fartamente gasto em
mercadorias de luxo. Os índios osages eram magní-
ficos homens de ombros largos, as mulheres altas,
de porte altivo. Agora começaram a ficar imensos
de tanta indolência e excesso de comida. Devora-
vam quantidades brutais de pratos nutritivos.
Percorriam a Avenida Pawhuska com lentos
passos pausados, calmos, plenos, num contenta-
mento imponente. As mulheres andavam de
cabeça nua, seus vistosos cobertores listrados de
roxo, laranja, verde e vermelho sobre os ombros,
envolvendo-as do pescoço aos calcanhares. Mas
sob os cobertores se entreviam vestidos de seda,
de manufatura e estilo americanos. Calçavam
sapatos de salto alto de fina pelica ou de verniz,
ornados de fivelas de aço trabalhado, reluzentes e
dispendiosas. Os homens também continuavam
532
usando o cobertor, mas por baixo gostavam de
uma camisa de brocado de seda em cores suntuo-
sas — verde-vivo, roxo ou cereja —, com as
fraldas para fora das calças, e as calças na maioria
das vezes bordadas dos lados com desenhos em
miçangas. Na cabeça, usavam imensos sombreros
enfeitados com tiras de pele de cobra e prata.
Contratavam motoristas brancos para guiar seus
grandes carros sedã e se sentavam com imponên-
cia nos assentos traseiros, mandando que o cho-
fer desse voltas e mais voltas pela zona comerci-
al. Joalherias começaram a exibir suas faiscantes
mercadorias em Osage, não tanto com a esperan-
ça de atrair o milionário branco do petróleo, e
sim o pele-vermelha. Braceletes, relógios, anéis,
broches vistosos, pulseiras, pérolas, pentes e
fivelas. Diamantes. Estes, os índios pareciam
conhecer por instinto, e os escolhiam sem jaças,
de um branco azulado e dispendiosos.
A Companhia Mercantil Levy tinha acres-
centado uma mercearia de luxo à sua loja de três
andares. A mercearia ficava no andar térreo, com
uma grande vitrina de vidro polido. Nessa vitrina,
Sol exibia um soberbo estoque de comidas finas.
Saborosos e alvos talos de aspargos em recipien-
tes de vidro, grossos como dois polegares de uma
533
mão de homem, gordas azeitonas maduras com a
polpa escura reluzindo de óleo, lagostas, cogume-
los, petit-pois vindo da França, sardinhas, imensos
queijos dourados, frangos macios, pêssegos em
calda, assados de porco; cestas dessas iguarias
eram empilhadas nos carros dos osages de volta às
suas casas. Freqüentemente, quando as contas
destes artigos somavam muito alto, o comissário
da Agência de índios em Wazhazhe ameaçava não
pagá-las. Só ele tinha o poder de conferir os gas-
tos feitos pelos índios, e freqüentemente não
conseguia saldar-lhes as alucinadas extravagâncias.
— É revoltante — Sabra Cravat não se can-
sava de repetir. — Para que servem eles? Que
utilidade podem ter neste mundo? Selvagens
ignorantes que nada fazem a não ser comer e
dormir e andar de um lado para outro em seus
automóveis ridículos e imensos.
— Eles mantêm o dinheiro em circulação
— replicava Sol, pois ela freqüentemente o censu-
rava depois de ver uma fileira de carros de índios
estacionados do lado de fora da Companhia Mer-
cantil de Osage.
— Você devia se envergonhar.
— Ora, ora, Sabra. Não me venha com esta.
534
Não faço como dúzias de outros negociantes da
cidade. Falsificam contas de mercadorias que os
índios não compraram e lhes dão o dinheiro. Ou
dobram as quantias nas contas que o comissário
confere, e lhes devolvem o que foi cobrado a
mais. Mas os índios vêm à minha loja, compram,
pagam o preço que está marcado no artigo e
recebem o que pagaram. Inez Touro entra na
minha loja e recebe o que veio comprar, lingerie de
seda pura, ou Filho do Sol compra seis quilos de
galinha e cinco quilos de lombo de porco. Eu
devia dizer-lhes que eles não podem comprar? O
presidente dos Estados Unidos que lhes diga. O
Grande Pai Branco.
Não somente Yancey concordava com Sol,
como parecia sentir enorme satisfação com a
prodigalidade com que os índios gastavam o
dinheiro que lhes rendia o petróleo, e no próprio
contra-senso das coisas que eles compravam.
— A piada está cada vez melhor. Nós lhes
tiramos as terras e exterminamos os búfalos, e
esperávamos que eles permanecessem agachados
em suas reservas tecendo cestos e modelando
potes de barro que ninguém queria comprar. Pois
bem, pelo menos os osages nunca fizeram isso.

535
Estão gastando seu dinheiro exatamente como os
brancos gastam quando têm dinheiro de sobra —
com galinhas, pelúcia, automóveis, fonógrafos,
camisas de seda e jóias.
— Por que eles não utilizam seu dinheiro
em alguma coisa que preste? — quis saber Sabra.
— O que Wyatt está fazendo que preste?
Ou Nisbett, o velho Buckner, Ike Hawes, suas
esposas! Desperdiçando dinheiro em cavalos,
viagens, diamantes e automóveis caros.
— Os osages podiam ajudar as outras tribos
— tribos de índios pobres que não encontraram
petróleo.
— Talvez os osages façam isso — quando
Bixby distribuir seus milhões a donos de hotéis
que estão em tantas dificuldades financeiras quan-
to ele quando dirigia o Hotel Bixby em outros
tempos.
— Selvagens imundos!
— Não, meu bem. Apenas índios de cober-
tor, índios a cavalo, índios das planícies, com
cerca de vinte e cinco milhões de dólares por ano
jorrando da terra e chovendo ao redor deles. O
que me espanta é que eles não tenham morrido de
536
tanto rir, o que os impediria de se divertirem
como estão agora se divertindo.
Às vezes, Sabra encontrava Grande Alce, sua
corpulenta squaw e Ruby Grande Alce, juntamente
com outros membros da família — numerosa para
um osage —, passando de carro pela Avenida
Pawhuska. Com seus direitos por cabeça reunidos,
a família era imensamente rica — uma das mais
ricas da reserva de Wazhazhe. Quando os Grande
Alce percorriam de carro a cidade, era uma parada.
Um só automóvel não poderia jamais conter toda a
família, embora eles tivessem desprezado tal eco-
nomia mesmo que fosse possível.
Eles formavam um brilhante friso aborígine
à maneira moderna. O velho Grande Alce e sua
esposa, um tanto conservadores, instalados num
reluzente Lincoln guiado por um chofer branco.
Através da vidraça das amplas janelas, viam-se os
dois rostos gordos de bronze, os corpos maciços,
as cores brilhantes de seus cobertores, correntes e
contas. Um dos filhos de Grande Alce guiava um
Pierce Arrow esporte, branco como a neve, que se
precipitava e uivava como um demônio vingador
para cima e para baixo na estrada poeirenta entre
Osage e Wazhazhe. A própria Ruby, uma cunhada

537
ou coisa parecida e um irmão às vezes seguiam
em um dos Packard, ao passo que ainda outro
irmão e irmã preferiam um Cadillac. Quando
ocasionalmente andavam a pé, era para subir com
um passo digno os degraus da entrada do escritó-
rio da Agência Indígena. Os rapazes se vestiam à
moda americana, às vezes com alguma incongrui-
dade de sua raça — calças bordadas com miçan-
gas, um vasto sombrero com uma pena de águia
espetada na copa, às vezes mocassins. Ruby, suas
irmãs e cunhadas saíam com os belos e vistosos
cobertores sobre vestidos americanos, não usa-
vam chapéu, e seus longos e fartos cabelos eram
penteados à moda indígena. O vestuário do velho
Grande Alce e sua mulher era uma ofuscante
mistura de estilos índio e americano, com a pre-
dominância triunfal do primeiro. Notava-se na
família inteira, como no caso de muitas famílias
de Osage enriquecidas pelo petróleo, um ar de
insolência contida, de profundo triunfo.
Sabra sempre os cumprimentava com bas-
tante polidez. "Como está, Ruby?", dizia ela. "Que
lindo vestido." Ruby nada respondia. Olhava para
o discreto conjunto de sarja azul-marinho ou
cinza de Sabra, para o chapeuzinho simples e
sólidos sapatos abotinados. "Dê minhas lembran-
538
ças aos seus pais", continuava Sabra em tom
ameno, mas intimamente furiosa por estar se
sentindo desconfortável e constrangida sob o
olhar vazio de expressão de Ruby. Dava-lhe a
impressão de que havia naquele olhar algo amea-
çador, algo triunfante. Gostaria de saber se Ruby,
tantas vezes casada, tornara a casar-se. Certa vez
perguntou sobre Ruby a seu filho Cim, adotando
um tom casual.
— Você tornou a ver aquela moça que tra-
balhava aqui — Ruby, não era este o nome dela?
Ruby Grande Alce?
O tom de Cim foi ainda mais casual.
— Ah, sim. Nós estivemos trabalhando na
direção de Wazhazhe, no campo de Choteau. Fica
muito perto da reserva.
— Eles ficaram tremendamente ricos, não é
mesmo?
— Oh, podres de ricos. Uma frota de carros
e um montão de casas.
— É de admirar que algum homem branco
desgraçado dado a squaws não tenha ainda despo-
sado aquela sebenta Ruby para se aproveitar do
seu direito por cabeça. A Sra. Conn Sanders con-
539
tou-me que um dos filhos de Grande Alce estava
até jogando golfe no Clube Westchester Apawa-
mis no último sábado. É revoltante. Ele deve
saber que há um regulamento no clube contra a
entrada de índios. A Sra. Sanders denunciou o
fato à direção do clube.
— Existe realmente um regulamento assim.
Mas você precisava ver a assistência quando Urso
em Pé acerta a bola com o taco, mandando-a para
tão longe que, perto dele, qualquer profissional
parece um jogador de pingue-pongue.
— Que tal é ele num torneio de tomahawk?
— Oh, mamãe, está falando como vovó
quando costumava nos visitar aqui.
— Os Marcy e os Venable não se misturam
com selvagens sujos, enrolados em cobertores.
— Urso em Pé não usa seu cobertor quando
joga golfe — replicou Cim friamente. — E tomou
uma ducha depois que terminou a partida.
Uma semana depois, Donna chegou em casa
uma tarde, depois de um bridge, com a palidez
cremosa de sua pele de Venable deixando transpa-
recer o tom ocreoso da fúria dos Marcy. Irrompeu
no escritório onde se achava Sabra.
540
— Sabe que Cim anda metido com os
Grande Alce, quando pensamos que ele está
trabalhando nos campos de petróleo?
— Ele está trabalhando lá por perto. Con-
tou-me que os tem visto — disse Sabra, adotando
o tom mais calmo que pôde.
— Ah, que os tem visto! Aquela cretina,
Gazelle Slaughter, disse que Cim fica o tempo
todo lá. O tempo todo, é o que estou lhe dizendo,
e que ele e Ruby estão sempre passeando no carro
dela, e que Cim come com eles, não sai de lá e. . .
— Vou conversar com seu pai a este res-
peito. Cim vai voltar para casa no sábado. Gaze-
lle está furiosa, você sabe muito bem, porque
gosta de Cim e ele não lhe dá atenção.
Sabra fitou Donna com uma expressão co-
mo se estivesse querendo avaliar aquela sua es-
tranha filha. Pensou, de repente, que Donna era
como uma cobra, com aquela lustrosa cabeça
negra, os frios olhos oblíquos, o pescoço longo
em que às vezes se via o pulso bater e inchar
ligeiramente — o único sinal de emoção naquela
criatura desconcertante.
— Vou lhe dizer uma coisa, Donna. Talvez

541
fosse melhor se você se ocupasse um pouco
menos com os lapsos sociais de seu irmão e pres-
tasse um pouco mais de atenção à sua própria
conduta vulgar.
Donna teve um dos seus raros e brilhantes
sorrisos.
— Ora, ora, querida! Suponho que eu deva
dizer: "O que está querendo dizer?" Para que você
me responda: "Sabe muito bem a que estou me
referindo".
— Você certamente sabe a que estou me re-
ferindo. Se não fosse minha filha, eu diria que seu
comportamento com Tracy Wyatt é o de uma. . .
— Meretriz — completou Donna suave-
mente.
— Donna! Como pode falar desta maneira?
Está partindo meu coração. Acha que já não basta
tudo por que passei? Nunca me queixei, não é?
Mas agora. . . você. ..
Donna aproximou-se e abraçou-a, como se
fosse a mulher mais velha protegendo a mais
jovem.
— Está tudo bem, mamãe querida. Só que

542
você não pode compreender. A vida não é tão
simples como quando você era uma jovem pio-
neira. Sei o que quero e vou conseguir.
Sabra desvencilhou-se dela, fitou-a com des-
prezo.
— Tenho visto o que anda fazendo. Tenho
vergonha de você. Fica se encostando nele como
uma. . . como uma. . . — De novo, ela não conse-
guiu pronunciar a palavra. Outra geração. — E
aquele cavalo que você monta. Diz que ele lhe
emprestou. Ele lhe deu o cavalo. É seu. Para quê?
Ela começou a chorar.
— Está tudo bem, mamãe. Ele realmente
me deu o cavalo. Quer me dar uma porção de
coisas, mas não estou aceitando, ainda. Tracy está
apaixonado por mim. Acha que sou jovem, boni-
ta, estimulante e maravilhosa. Está casado com
aquela velhota seca, azeda, amarga, que já era
assim quando os dois se casaram há muitos anos.
Ele nunca soube o que é o amor. Ela nunca lhe
deu filhos. Ele é fabulosamente rico, não muito
velho, e um bom homem. Vamos nos casar. Tracy
vai conseguir seu divórcio. O dinheiro consegue
tudo. Levei um ano e meio para realizar meu
objetivo. Nunca trabalhei tão duro em toda a
543
minha vida. Mas vai valer a pena. Não se preocu-
pe, querida. Tracy vai fazer de sua filha desenca-
minhada uma mulher honesta.
Sabra empertigou-se, cem por cento a filha
de sua mãe, Felice Venable, nêe Marcy.
— Você é repugnante.
— Não. . . realmente não sou, se encarar a
situação sem muito sentimentalismo. Vou ser
feliz, e Tracy também. A mulher dele ficará infe-
liz, creio eu, por um tempo. Mas, de qualquer
forma, ela agora não é feliz. Melhor uma do que
três infelizes. Vai dar certo, você verá. Não se
preocupe comigo. É com Cim que deve se preo-
cupar. Ele tem um laivo de. . . de. . . — Olhou
para a mãe, não terminou a frase. — Quando ele
chegar no sábado, acho bom vocês terem uma
conversa.

544
Capítulo XXII

Mas, no sábado, Cim não voltou para casa.


Por volta do meio-dia, quando Sabra e Yancey
deixaram o escritório em seu modesto carrinho e
retornaram à casa da Rua Kihekah, para o almoço,
viram uma grande limusine estacionada junto à
calçada. O chofer, que lhes pareceu vagamente
familiar, estava confortavelmente instalado no seu
assento. O carro estava coberto com a poeira
vermelha da estrada.
Sabra sentiu uma premonição apertar-lhe as
entranhas. Segurou o braço de Yancey.
— De quem é aquele carro?
— Suponho que alguém deve ter dado uma
carona a Cim — disse Yancey com ar indiferente.
— Tem comida bastante para mais gente?
Donna fora passar o fim de semana em
Oklahoma City. Só podia ser Cim.
— Cim! — chamou Sabra, ao,entrar em ca-
sa. — Cim! — Mas não houve resposta. Ela se
dirigiu diretamente para a sala de estar. Vazia. Mas
545
na empertigada saleta de visitas, raramente usada,
estavam sentadas duas figuras maciças, silenciosas.
Com o senso de cerimônia e formalismo indígena,
o velho Grande Alce e sua squaw tinham sabido
qual seria o recinto adequado para tal ocasião.
— Ora! Grande Alce!
— Ei! — replicou Grande Alce, e ergueu a
palma da mão num gesto de saudação.
— Yancey! — exclamou Sabra subitamente,
numa voz terrível. Os dois pares de negros olhos
indígenas fitaram-na fixamente. Sabra notou que
o casal estava vestido com capricho, trajes formais
reservados a grandes ocasiões. A mulher vestia
uma saia escura e uma vistosa blusa de cetim
cereja, ampla e talhada como uma capa curta, e
nos ombros o cobertor de belas cores. Tinha feito
duas tranças com os cabelos e as havia enrolado
em torno da cabeça. Não usava enfeite algum. Os
ornamentos eram prerrogativa dos homens. O
velho Grande Alce era uma estrutura esplendoro-
sa. Seu corpanzil enchia a cadeira. Estava sentado
com os joelhos abertos. As calças azuis eram
fendidas e bordadas elaboradamente com miçan-
gas de cada lado, e os pés calçados com mocassins
também cheios de bordados de miçangas. Seu
546
vasto tronco se cobria com uma camisa de bri-
lhante brocado verde com as fraldas usadas para
fora das calças, e o cobertor listrado caía-lhe
majestosamente dos ombros. No pescoço e no
peito largo viam-se correntes, contas, colares. No
lenço colorido de seda amarrado ao pescoço
estava preso o emblema de prata de sua antiga
glória como chefe da tribo. Havia outras insígnias
de distinção feitas de prata batida — estrela,
crescente, sol. Sobre a cabeça um gorro alto de
lontra marrom como o de um cossaco. Na parte
traseira do gorro estava espetada uma pena de
águia. Suas longas madeixas, caindo-lhe nos om-
bros, lisas e duras, estavam tintas de laranja-vivo,
como uma velha atriz de teatro de revista, um
espantoso, fantástico colorido em contraste com
o pergaminho do rosto, vincado e cruzado por
mil rugas. Uma das mãos estava apoiada no joe-
lho. A outra sacudia languidamente, para cá, para
lá, um enorme leque semicircular feito de penas
de águia. Lado a lado, as duas figuras volumosas
pareciam estátuas de bronze. Só os olhos se mo-
viam, e aquele agourento leque de penas de águia,
para cá, para lá, regiamente.
Aqueles olhos pretos parados, sisudos, aque-
le leque abanando despertaram em Sabra um
547
terror inominável.
— Yancey! — exclamou ela de novo, aper-
tando os lábios. — Yancey!
Ao ouvir a nota de terror na voz dela, ele
desceu correndo as escadas com seu passo leve.
Mas à vista de Grande Alce e da squaw, seu ar
preocupado mudou para uma expressão de alívio.
Sorriu com o seu charme habitual.
— Ei!
— Ei! — grasnou Grande Alce.
A Sra. Grande Alce cumprimentou com um
aceno de cabeça. Ela era talvez uns trinta anos
mais moça do que seu idoso marido, sua terceira
mulher. Falava inglês; chegara mesmo a freqüen-
tar, quando menina, a escola da missão. Mas, por
descuido ou indiferença, usava o inglês desleixado
dos índios analfabetos.
Em seguida o casal visitante voltou ao silên-
cio passivo.
— O que eles querem? Pergunte o que estão
querendo.
Yancey falou umas poucas palavras em osage.
Grande Alce respondeu com um monossílabo.

548
— Que disse ele? O que é?
— Convidei-os a jantar conosco. Ele diz que
não pode.
— Ainda bem. Diga a ela que fale inglês. Ela
fala inglês.
Grande Alce virou lentamente a cabeça, co-
mo se ela fosse movida sobre um pivô mecânico.
Fitou sua mulher gorda e bochechuda. Emitiu
uma breve ordem com a própria língua. A squaw
sorriu um estranho sorrisinho embaraçado, como
uma colegial — era menos um sorriso do que
uma contorção do rosto, tão raro em sua raça que
era mais assustador do que uma carranca.
— Grande Alce e mim vêm para levar vocês
para Wazhazhe.
— Para quê? — perguntou Sabra brusca-
mente.
— Quatro horas, grande janta, grande dan-
ça. Seu filho quer eu vem buscar vocês. Quer mim
avisa ele casa com Ruby hoje de manhã.
Ela tornou a calar-se, com seu tolo sorriso
fixado no rosto. O leque de Grande Alce continu-
ava balançando para lá, para cá.

549
— Santo Deus! — exclamou Yancey Cravat.
Ele olhou para Sabra, aproximou-se rapidamente,
mas ela o afastou.
— Não. Eu não vou... estou bem. — Era
como se lhe desagradasse ser tocada por ele.
Ficou um momento imóvel, fitando aquelas duas
figuras selvagens que a fitavam de volta com seus
negros olhos impávidos. Era em momentos como
este que o seu sangue Marcy a sustentava. Ela era
de uma raça dura, habituada a suportar embates.
Apenas, abaixo de seus olhos escuros subitamente
surgiam olheiras de um marrom arroxeado, como
se tivessem sido tocadas por um dedo sujo; e um
afrouxamento de todos os músculos do rosto,
tornando-o vincado, enrugado, velho.
— Não fique assim, querida. Venha, sente-
se.
De novo, a mão dela afastando-o.
— Eu estou bem, não se preocupe. Venha.
Temos que ir para lá.
Yancey aproximou-se. Trocou um aperto de
mão formal com Grande Alce e sua squaw. Ven-
do-o, Sabra de repente notou que ele não parecia
aborrecido. Ela sabia que nenhuma polidez ceri-

550
moniosa o teria impedido de demonstrar sua
cólera se a monstruosa participação o houvesse
abalado como a abalara, a ponto de sentir suas
entranhas se contorcendo.
— Meu bem, aperte a mão deles, sim?
— Não. Não.
Ela passou a língua nos lábios secos, como
quem está com febre. Virou-se, num movimento
rígido, e caminhou para a porta, ignorando os
índios. Atravessou o vestíbulo, vagarosamente,
como uma mulher velha, desceu os degraus do
alpendre em direção ao modesto carrinho ao lado
da luxuosa limusine. Ao sair de casa, ouvira a voz
de Yancey (havia nessa voz uma nota exultante?)
ao telefone.
— Jesse! Anote isto. É para publicar. Está
pronto?. . . "O ex-chefe Grande Alce, da nação
osage, e a Sra. Grande Alce, residindo em
Wazhazhe, participam o casamento de sua filha
Ruby Grande Alce com Cimarron Cravat, filho
de" — não me interrompa, estou com pressa —
"filho do Sr. E Sra. Yancey Cravat, desta cidade.
O casamento foi celebrado no lar dos pais da
noiva e seguido de um grande jantar com muitos
pratos indígenas e americanos, ao qual compare-
551
ceram os pais da noiva e do noivo, numerosos
parentes e amigos do jovem..."
Sabra subiu pesadamente no carro, sentou-
se e ficou de olhar fixo na parte traseira da limusi-
ne na sua frente. Logo em seguida, Grande Alce e
sua mulher surgiram, irreais, bizarros no brilhante
sol de Oklahoma, acompanhados por Yancey,
muito gentil, usando todo o seu charme. O casal
de índios acomodou seus corpanzis na limusine.
Yancey entrou no seu carro e sentou-se ao lado de
Sabra. Ela lhe dirigiu a palavra uma só vez.
— Acho que você está contente.
— Isto aqui é Oklahoma. De certa forma, é
o que eu queria que fosse quando aqui cheguei há
vinte anos. Cim é como seu pai, Lewis Venable.
Um fraco, mas de boa raça. Ruby é de puro san-
gue índio e um esplêndido animal. É duro para
você agora, minha querida. Mas os filhos e netos
deles vão ser do material com que se fazem ame-
ricanos. Você verá.
— Espero ter morrido antes desse dia.
O velho e modesto carrinho seguiu a limusi-
ne na sua frente pela estrada de argila vermelha de
Oklahoma. Comendo a poeira da limusine.

552
Ela passou pela provação e se agüentou, mi-
lagrosamente, até que um incidente grotesco foi
demais para seus nervos tensos. Mas entrou na
casa de Grande Alce e viu Cim sentado ao lado da
índia, e ao olhar para o belo rosto fraco do filho,
pensou: "Antes eu nunca o tivesse encontrado
naquele dia, há tanto tempo, em que ele se perdeu
na campina". Cim adiantou-se para ela, com aque-
le seu jeito de baixar a cabeça, os olhos escondi-
dos sob as pálpebras.
— Olhe para mim! — ordenou Sabra com a
voz de Felice Venable.
O rapaz ergueu os olhos. Ela o fitou dura-
mente. Ruby Grande Alce aproximou-se com seu
andar lento, insolente. As duas mulheres olharam
uma para a outra, ou antes, seus olhares se cruza-
ram como duas espadas em duelo. Nenhuma das
duas ofereceu a mão à outra.
Houve corridas, houve prêmios, houve dan-
ças. Nos velhos tempos, os rapazes índios corriam
a pé por um prêmio que era um potro amarrado a
uma distância e ganho pelo mais rápido em mon-
tá-lo e retornar com o animal ao ponto de partida.
Hoje, o prêmio era um carro magnífico e reluzen-
te colocado em campo aberto a uma distância de
553
cerca de um quilômetro. Sabra pensou: "Estou
morrendo, estou morrendo. E Donna! Esta squaw
é cunhada dela. Uma ex-aluna de Miss Dignum no
Hudson".
O vultoso direito por cabeça de Ruby tinha
possibilitado ao jovem casal adquirir uma casa
defronte da de Grande Alce — um bangalô de
tijolo vermelho, substancial, feio. Levaram Sabra e
Yancey a visitar a nova moradia. Estava pronta
para ser habitada. Móveis espanhóis falsificados
na sala de estar — veludo vermelho, franjas, taxas
de metal dourado do tamanho de moedas de ouro
de vinte dólares. Um piano. Uma mobília de sala
de jantar de carvalho. Um excelente banheiro com
toalhas de banho pesadas e felpudas nos cabides.
Uma polida mobília de quarto de carvalho com
uma colcha de tafetá rosa. Sabra sentiu uma onda
de náusea. A fisionomia de Cim estava sorridente,
radiante. Yancey, brincando e rindo com os ín-
dios. Na cozinha estava sentada uma moça branca
com vestido de algodão xadrez e um avental de
cozinha. Os cabelos da moça eram de um louro
tão claro que quase parecia branco. Seus olhos
sem inteligência eram do mais pálido azul. A pele,
tão alva que não tinha cor alguma. Em meio
daquela aglomeração de rostos escuros dos índios,
554
a empregadinha pareceu a Sabra uma bolha trans-
parente. Sentiu pesar sobre ela os olhos desde-
nhosos de Ruby. Sabra teve a impressão de que
suas entranhas haviam sido estripadas e que ela
estava oca, uma casca vazia que se movia, andava
e falava.
O jantar. Criados brancos e negros para ser-
vir os convidados. Uma longa mesa para umas
dez pessoas, ou mais, e muitas outras mesas
iguais. Tigelas e travessas cheias de comida em
todo o comprimento da mesa. Montes de carne
de porco, assada no espeto à moda indígena sobre
carvões ardentes no fundo de uma fossa. Tigelas
de milho. Azeitonas pretas grandes e polpudas.
Lagosta em lata. Galinha. Pilhas de morangos
maduros. Vastos tabuleiros de pão-de-ló recober-
tos de glacê branco.
Sabra fazia os gestos de quem está comendo.
Às vezes punha uma garfada na boca e engolia.
Havia um grande tinir de facas, garfos e pratos.
Tudo era comido num só prato. Tigelas e traves-
sas eram constantemente reabastecidas. Sabra
estava sentada ao lado da Sra. Grande Alce. Do
outro lado, estava Yancey, comendo, rindo e
falando. A Sra. Grande Alce era quase cômica em

555
sua polidez e solicitude. Insistia para que sua
carrancuda convidada experimentasse esta ou
aquela iguaria.
No centro da mesa, em intervalos, viam-se
enormes tigelas cheias de uma espécie de massa
folhada com um recheio de carne. Parecia um
grande ravióli, que os convidados pareciam muito
apreciar pelas quantidades que devoravam.
— Pelo amor de Deus, finja que está co-
mendo alguma coisa, Sabra — murmurou-lhe
Yancey ao ouvido. — Não há mais nada a fazer.
Eles consideram um insulto se você não comer.
Procure esforçar-se.
Ela remexeu a massa e a carne picada que
fora posta no seu prato.
— Bom — disse a Sra. Grande Alce, a seu
lado, e apontou para a massa com o dedo escuro e
não muito limpo.
Sabra levou o garfo aos lábios e engoliu um
bocado. Era delicioso — condimentado, saboro-
so.
— Sim — disse ela, e pensou: "Estou sendo
formidável. Isto está me matando". — Sim, é
muito bom. Esta carne — este recheio — é pica-
556
do ou passado num moedor?
A corpulenta índia a seu lado virou para Sa-
bra os olhos desprovidos de expressão. Pondero-
samente, sacudiu negativamente a cabeça.
— Não — respondeu ela, polidamente. —
Mastigado.
O tinir de um garfo atirado no prato, o en-
trechocar de louças e copos. Sabra Cravat desmai-
ara.

557
Capítulo XXIII

Osage sofisticara-se tanto que voltara a ser


simples. A coluna social do Taba de Oklahoma
quase não usava mais adjetivos. Nos velhos
tempos, o leitor era informado de que "a casa
estava lindamente decorada com um arranjo
artístico de lírios, mandados vir de Kansas City,
uma profusão de ásteres indo do rosa ao roxo,
formando um caramanchão para o jovem casal,
ao passo que na sala de jantar, flores amarelas e
vermelhas arrumadas com folhas de outono
davam um toque da estação". Mas agora a coluna
social dizia, austeramente: "A decoração era com
orquídeas e rosas Pernet".
Osage, Oklahoma, era uma cidade.
Onde, há apenas duas décadas, campina e
céu se descortinavam diante dos olhos, com um
búfalo aqui e ali se espojando ou um acampamen-
to de índios, agora se via um hotel de vinte anda-
res: o Savoy-Bixby. O maître-d'hotel italiano curva-
va-se desde a cintura e murmurava ao ouvido do
freguês seu segredo sobre veau sauté com cogume-
558
los ou espaguete Caruso du jour. Sabra Cravat,
deputada por Oklahoma, almoçando na sala Luís
XIV com membros do Comitê Republicano
Feminino, dizia, olhando com aqueles seus escu-
ros olhos inteligentes: "Deixo a seu critério, Nick.
Mas ande depressa. Não temos muito tempo".
Niccolò Mazzarini dizia "pois não", ele compre-
endia. Ninguém tinha muito tempo em Osage,
Oklahoma. Um pajem negro enfiado numa ajus-
tada jaqueta escarlate com botões dourados e
calças azul-vivas ainda mais justas, um impudente
boné vermelho colocado de banda sobre uma
orelha, caminhava pelo salão de jantar, berrando:
"Sr. Fulano! Sr. Sicrano!" As mensagens ele carre-
gava numa salva de prata. Havia torneiras de água
gelada em todos os quartos. Criadagem. Toque
uma vez para o garçom. Duas vezes para a cama-
reira. Há um criado às suas ordens.
Vinte e cinco anos antes, quem fosse alguém
em Oklahoma fazia questão de frisar suas cone-
xões no leste. Até Iowa, se necessário, era incluído
no leste.
Os que primeiro ali haviam chegado tinham
uma certa vergonha da corrida. Gostavam de
gabar-se dos esplendores dos lares de onde ti-

559
nham vindo.
Agora era considerado o máximo do bom-
tom alguém poder dizer que seus pais tinham
chegado num carroção. Avós eram ainda raros
em Oklahoma. Quanto à corrida de 1889, era
para Osage como o Mayflower para Boston, seus
participantes formavam uma elite. Num grande
banquete em homenagem a Sabra Cravat quando
ela fora eleita deputada, e do qual tentaram exclu-
ir Sol Levy sob vigoroso (e vitorioso) protesto de
Sabra, o presidente do Comitê de Organização
explicara com ar condescendente a questão a Sol.
— Só estamos convidando pessoas que par-
ticiparam da corrida em Oklahoma, compreende?
— Claro — disse o ex-mascate sem se alte-
rar. — Está tudo bem. Eu vim a pé.
O edifício da Companhia Mercantil Levy
agora ocupava todo um quarteirão e tinha quinze
andares. Nas imensas vitrinas que davam para a
Pawhuska, coquetes senhoritas de cera exibiam
suas toaletes, como na Quinta Avenida de Nova
York. Para adquirir modelinhos franceses, ia-se ao
Salon Moderne, e as vendedoras desse departa-
mento usavam cetim preto e um elegante colar de
pérolas de imitação, seus olhos eram atentos e
560
espertos, suas frases modernamente requintadas.
As índias osages tinham sabido dos tais modelinhos
franceses, e freqüentemente ali apareciam com
seu andar compassado, flácidas de não fazerem
nada, com rolos de gordura nas cadeiras e coxas.
Experimentavam vestidos com lantejoulas, vesti-
dos de cetim, de gaze. Às vezes, até as jovens
osages ainda usavam o cobertor listrado de cores
vivas, numa espécie de desdenhoso desafio aos
brancos. E a essas, bem como às outras freguesas,
as vendedoras diziam: "Está se usando muito este
ano. .. Assenta-lhe muito bem, Sra. Couro de
Búfalo. . . Acho que este gênero não dá muito
certo com o seu corpo, Sra. Manto Largo.. . Acho
realmente que deve ficar com este. É perfeito para
o seu colorido".
A filha da Sra. Pat Leary (née Nariz Torto)
sempre causava sensação quando surgia, pois por
mais que Osage estivesse habituada a dinheiro e a
grandes gastos, a maneira de a família Leary dis-
por do seu dinheiro era espetacular. Roupa de
baixo de seda pura bordada a mão, as mais finas
meias francesas, chapéus da moda, vestidos.. .
bem, em questão de vestidos, não adiantava tentar
influenciar Maude Leary ou sua mãe. Elas fran-
camente queriam miçangas, franjas e paillettés
561
sobre um forro de cor intensa. As vendedoras
eram polidas e aquiescentes, mas se entreolhavam.
Agora, aquela garota Cravat — Felice Cravat, a
filha de Cimarron Cravat — era diferente. Ela
fazia questão de que suas roupas fossem simples,
elegantes, bem-talhadas. Embora ainda muito
jovem, era campeã de tênis do Estado de
Oklahoma. Sempre dizia que ficava grotesca com
roupas enfeitadas, como um rapaz vestido com
roupas femininas. Tinha braços longos, esguios,
mas musculosos, e ombros surpreendentemente
largos, era delgada e praticamente sem barriga.
Tinha a curiosa mania de manter a cabeça abaixa-
da e olhar as pessoas de sob os cílios, e quando
fazia isso, perdia o seu ar de garoto, pois os cílios
eram franjas espessas, e seus olhos, no rosto
moreno, de um espetacular cinza oceânico. Tinha,
também, uma boa natureza. Não parecia se im-
portar com o fato de sua mãe, quando a acompa-
nhava, usar o cobertor e andar sem chapéu, como
qualquer índia pobre, apesar de ser uma das osages
mais ricas. Era bastante bonita para uma squaw,
com seu jeito insolente, de gestos lentos. Todo
mundo concordava que Felice Cravat tinha mui-
tos traços de família, e com isso não estavam se
referindo a seu pai. Referiam-se a Yancey Cravat
562
— o velho Cimarron, seu avô, que agora se torna-
ra uma figura lendária em Osage e em todo o
Estado de Oklahoma. Depois de Felice, o jovem
Cim e sua esposa osage tinham tido um filho a
quem deram o nome de Yancey, em homenagem
ao avô. O jovem Yancey era uma feliz mistura de
uma dúzia de tipos e antepassados — índio, espa-
nhol, francês, sulista, etc. Com o rosto estreito e
longo, a cabeça dolicocéfala, as pessoas diziam
que ele se parecia com o rei da Espanha — sem o
horrível queixo dos Habsburg. Outros diziam que
ele era a imagem de sua avó, Sabra Cravat. Ou-
tros, ainda, insistiam em que ele era igual à sua
mãe índia — inclusive na insolência. Um terceiro
discordava dessas opiniões e dizia: "Vocês estão
loucos. Ele é o velho Yancey redivivo. Acho que
não estão bem lembrados de Yancey: Reparem só!
A maneira com que ele cerra os olhos como se
estivesse sonolento, e depois, quando nos olha,
sentimos como se tivéssemos sido atingidos por
um raio. Dizem que ele é tão inteligente que os
osages acreditam que seja um dos seus velhos
deuses que voltou à terra".
A Sra. Tracy Wyatt (de solteira, Dorina Cra-
vat) tentara adotar um dos filhos de seu irmão,
pois ela mesma não tivera filhos, mas Cim e sua
563
mulher Ruby Grande Alce não haviam consentido
na adoção. De uma coisa ninguém em Oklahoma
discordava: Donna Cravat era tremenda. Qual-
quer outra mulher teria levado um tiro se fizesse
as coisas que ela já tinha feito impunemente.
Quando o velho Tracy Wyatt se divorciara da
esposa para se casar com Donna, a opinião públi-
ca fora toda contra ela. Todo mundo se voltara
para a esposa abandonada com atenções e simpa-
tia, mas ela recebera esses gestos de solidariedade
com uma reação tão vitriólica, que as pessoas
recuaram apavoradas e finalmente passaram a
acreditar nas histórias de como ela havia inferni-
zado e torturado o velho Tracy durante todo o
longo período que durara o casamento. E acaba-
ram por achar que se justificava ele a ter desertado
e se casado com aquela jovem fascinante. Certa-
mente, Tracy pareceu recobrar ânimo para viver,
perdeu vários centímetros de cintura, começou a
jogar pólo, recuperou parte das boas cores e
jovialidade dos seus tempos de cocheiro, e fez
grande sucesso em Londres durante a estação em
que Donna foi apresentada à corte. Além disso,
não havia como resistir à fortuna Wyatt. Mesmo
num país blasé de milionários, a fortuna de Tracy
Wyatt era de estarrecer. O nome Wyatt parecia
564
estar em toda parte. Quando se viajava de trem,
eram vistos constantemente os redondos flancos
pretos dos vagões de petróleo, milhares deles,
com "Petróleo Wyatt" pintado em letras brancas.
Percorrendo de carro Oklahoma e todo o sudoes-
te, passava-se por quilômetros de tanques de
petróleo Wyatt, silenciosas cidades inteiras de
monolitos, como algo tenebrosamente egípcio,
esparramadas pelas campinas.
Quanto à casa de Wyatt — não era de forma
alguma uma casa, mas uma combinação do Palá-
cio de Versalhes e da Estação Grand Central de
Nova York. Ocupava um espaço mais ou menos
do tamanho do ducado de Luxemburgo, e para
esse terreno, outrora totalmente desprovido de
vegetação, haviam sido transplantadas grandes
árvores importadas da Inglaterra.
Mais de um quilômetro de alameda, plantada
com olmos, levava à mansão, e cada olmo, com-
prado, transportado, custara mil e quinhentos
dólares. Havia plantas raras, fazendas, florestas,
lagos, quadras de tênis, campos de golfe e de
pólo, pistas de corridas de cavalo, aeródromos,
piscinas. Lambris de salas inteiras haviam sido
trazidos da França. Os banheiros tinham armários

565
com iluminação, banheiras de mármore raro
embutidas no chão e duchas em boxes envidraça-
dos. Esses banheiros eram do tamanho de quartos
de dormir e os salões de baile do tamanho de
auditórios. Havia uma usina de gelo e um sistema
de refrigeração que podia refrigerar o ar de cada
cômodo da casa, mesmo no mais quente dia
ventoso de Oklahoma. O fogão da cozinha, só
ele, parecia uma casa, e a cozinha parecia a do
Hotel Bilt-more, só que maior. Quando se entrava
na sala de jantar, sentia-se que ali deveriam sentar-
se diplomatas solenes cheios de alamares doura-
dos assinando tratados mundiais e sendo pintados
a óleo no ato da assinatura. Sessenta jardineiros
cuidavam da propriedade. A criadagem da casa
teria povoado uma aldeia.
Sabra Cravat só muito raramente ia visitar a
casa de sua filha, e quando o fazia, a simplicidade
de sua figurinha muito esticada num vestido de
georgette azul-marinho ou de crepe preto se desta-
cava em meio daquelas colunas de mármore,
vastos corredores e cortinas regias. Quando das
suas visitas ocasionais, podia-se encontrá-la no
grande aposento central que era como a sala de
um trono, parada diante dos retratos dos seus
dois netos, Felice e Yancey Cravat, filhos de Cim.
566
Não tendo tido filhos, Donna mandara pintar os
retratos dos sobrinhos e os pendurara ali, de cada
lado da imensa lareira. Tivera a intenção de dar
os retratos de presente à sua mãe, mas Sabra
Cravat se recusara a aceitá-los.
— Não gosta dos quadros, Sabra querida?
Eles são os melhores retratos que Sego via já fez.
É por serem modernos? Não acha que estão
muito parecidos?
— São quadros maravilhosos.
— E então?
— Eu teria que construir uma casa para eles.
Como iriam se encaixar na sala da casa na Rua
Kihekah? Não, é melhor que eu venha aqui de
quando em quando para contemplá-los. Desta
maneira, serão sempre uma nova surpresa para
mim.
Certamente, aqueles retratos eram um tanto
surpreendentes. Ou, pelo menos, um deles o era.
Segovia captara bastante bem a fisionomia da
pequena Felice, mas cometera o erro de pintá-la
com um traje espanhol, e o fato era que as suas
feições angulares e seu corpo de garoto não se
prestavam bem àquelas ricas rendas e glamouroso

567
cetim. Quanto ao menino, Yancey, recusara pa-
ramentar-se para a ocasião — mostrara-se mesmo
impaciente por ter que posar. Segovia captara-o
rapidamente e com brilho, e o resultado fora
surpreendente. Ele estava vestindo calças de tênis
de um branco meio sujo, um suéter branco de lã
com um furo no cotovelo, e sem chapéu. Na mão
direita — de dedos longos e expressivos — segu-
rava um cigarro fumado pela metade, com a fu-
maça azul-acinzentada subindo em espiral, o
vermelho da ponta acesa sendo a única nota de
cor no quadro. Entretanto, o retrato era cheio de
cor, de movimento e vida. A pose do jovem Yan-
cey era arrogante, de uma grande flexibilidade e
displicência. Os olhos acompanhavam as pessoas.
Sem dúvida, uma personalidade forte.
— Ele se parece com Ruby, não acha? —
dissera Donna ao exibir pela primeira vez o retra-
to a sua mãe.
— Não! — protestara Sabra com muito vi-
gor. — Nem um pouco. É parecido com seu pai.
— Bem. . . talvez. . . um pouco.
— Um pouco! Você está doida! Repare nos
olhos. Nas mãos. É claro que não são tão bonitas
como eram as de seu pai. . . como são. . .
568
Havia cinco anos que Sabra não tinha notí-
cias de Yancey Cravat. E agora, pela primeira vez,
ela sentia que seu marido estava morto, embora
nunca admitisse tal possibilidade. Apesar da idade
dele, ela havia sabido que Yancey fora para a
França durante a guerra. Os exércitos americano e
inglês o haviam rejeitado, por isso ele pintara os
cabelos grisalhos, mentira sobre sua idade, jogara
para trás os ombros ainda magníficos, e de alguma
maneira, com seus olhos, sua voz, suas mãos, ou
uma combinação de tudo isso, conseguira hipno-
tizá-los até que o aceitassem. Um relatório extra-
oficial colocara seu nome entre os desaparecidos
depois de terminar a carnificina no campo de
batalha que fora uma floresta chamada Argonne.
— Ele não está morto — dissera Sabra, qua-
se calmamente. — Quando Yancey Cravat mor-
rer, estará na primeira página dos jornais, e o
mundo todo saberá.
Donna, conversando sobre o assunto com
Cim, seu irmão, estava inclinada a concordar com
a mãe, embora não nos mesmos termos.
— Papai nunca se contentaria de estar mor-
to numa lista. Ele é um ator muito bom para
desaparecer no meio de figurantes.
569
Mas um ano se passara.
O Taba de Oklahoma agora publicava uma
edição matutina e uma vespertina e era tido como
o jornal mais poderoso do sudoeste. Suas máqui-
nas de impressão vomitavam dezenas de milhares
de exemplares por hora, e de hora em hora —
cinco edições. Sua sala de linotipia era agora um
regimento de homens de ferro, em sua equipe se
incluíam diretor-executivo, redator-chefe, gerente,
redator local, e mais dezenas de cargos de menor
monta. Quando Sabra estava na cidade, adotara o
hábito de ir ao jornal todas as noites às onze
horas, permanecer lá por uma hora examinando o
layout, lendo as provas das notícias de destaque,
folheando os telegramas das agências noticiosas.
Sua entrada era como a passagem de uma rainha,
e quando ela aparecia na redação só faltava lhe
baterem continência. Na verdade, ela ia muito ao
jornal, exceto no verão, quando o Congresso
entrava em recesso.
A vista de uma mulher no recinto do Con-
gresso constituía ainda uma novidade. A senti-
mental América aceitava mal a idéia de mulheres
participando da política. O lugar da mulher era no
lar, sendo a mulher americana uma flor demasiado

570
delicada para ser submetida à rude atmosfera da
tribuna da Assembléia e das comissões mistas.
Sabra lançou-se em discursos políticos e de-
senvolveu um surpreendente dom de oratória.
"Se a política americana é muito suja para
que as mulheres dela devam participar, é porque
há algo de errado com a política americana. . .
Nós, mulheres, não fomos consideradas demasia-
do delicadas e sensíveis para atravessar planícies,
campinas e desertos num carroção coberto e
suportar as necessidades e sofrimentos da vida de
pioneiras. . . a história da França espiando pelo
buraco da fechadura de um quarto... a história da
Inglaterra um torneio. .. mas aqui, nesta terra, as
mulheres têm sido as que vão rachar lenha e
buscar água no poço. . . milhares de heroínas
anônimas com rostos batidos pela inclemência do
tempo e com botas cobertas de lama. . . água
alcalina. . . sol. . . poeira. . . vento. . . Não estou
querendo menosprezar os bravos homens pionei-
ros, mas a touca de sol ajudou tanto quanto o
sombrero a colonizar este nosso glorioso país. . ."
Eram passados tantos anos desde que Sabra
ouvira essas palavras — tinham penetrado tão
fundo em sua consciência —, que talvez ela real-
571
mente pensasse que aquele discurso era seu. O
fato é que foi recebido com tremenda emoção,
copiado em todo o sudoeste e nos Estados do
oeste e centro-oeste, lhe valeu a eleição e lhe
trouxe fama nacional.
Talvez não fosse somente o que Sabra Cra-
vat dizia que contava em seu favor. Seu aspecto
devia ter algo a ver com o prestígio de que goza-
va. Uma mulher esguia, ereta, de muita dignidade
mas, ao mesmo tempo, comoventemente femini-
na. O tom da voz, nunca alto, era claro. O cabelo
branco cortado curto era graciosamente ondula-
do, e sob essa alvura seus meigos olhos escuros
adquiriam mais brilho e profundidade. As sobran-
celhas tinham permanecido negras e grossas,
fazendo sobressair ainda mais o que tinha de mais
belo. Vestia-se sempre com cores escuras, elegan-
tes, e seus tornozelos acima dos sapatos delicados
com fivelas de metal eram os de uma jovem. Os
pés e tornozelos aristocráticos de uma Marcy.
Seus discursos nem sempre eram românti-
cos. Ela conhecia seu Estado, onde a política era
notoriamente corrompida. O impeachment era
aplicado em governador após governador, com
uma rapidez e regularidade de comédia musical, e

572
os processos de impeachment estarreciam Washing-
ton. Um governador era praticamente um fora-da-
lei e um bandoleiro; outro, que parecia um pastor
evangelista com seus longos cabelos e modos de
santarrão, pavoneava a sua amante, cujos parentes
velhacos abocanhavam todos os cargos públicos
lucrativos. Sabra tinha as estatísticas na ponta da
língua. Milhões de barris de petróleo. Milhões de
toneladas de zinco. Terceiro em produtos mine-
rais. Primeiro em petróleo. Granito. Pecuária.
Em Washington, os velhotes do Congresso
e até do Senado a consideravam uma beldade. O
partido da oposição tentou chantageá-la com
publicidade sobre certos detalhes não comprova-
dos da vida de seu falecido (ou desaparecido)
marido Yancey Cravat: um pistoleiro, um bandi-
do, um matador, um bêbado, um homem sempre
metido com as squaws. Depois, voltaram-se para o
jovem Cim e sua mulher osage, mas Sabra e Donna
tomaram rápidas providências para acabar com
aqueles mexericos.
Donna Wyatt alugou uma bela mansão em
Dupont Circle, em Washington, contratou criada-
gem, lançou mão da colossal fortuna de Wyatt e
da sua influência, e planejou um golpe tão brilhan-

573
te que derrotou para sempre o inimigo. Mandou
vir de Osage seu belo e lânguido irmão Cim com
a esposa Ruby Grande Alce e os sobrinhos Yan-
cey e Felice e os hospedou na mansão de Dupont
Circle. Depois, juntas, ela e Sabra lhes ofereceram
uma recepção para a qual convidaram um grupo
tão selecionado que compareceram todos. Sabra e
Donna, maravilhosamente bem-vestidas, posta-
ram-se à entrada do soberbo salão para receber os
convivas, e entre elas colocaram Ruby Grande
Alce com seu vestido de nativa de camurça branca
bordado de miçangas dos ombros à bainha. Ruby
era uma figura imponente, maciça porém não
ofensivamente gorda como muitas das mulheres
osages mais velhas, e seus abundantes cabelos
negros agora eram estriados de cinza.
— Minha nora, a Sra, Cimarron Gravat, da
tribo osage.
— A esposa de meu filho, Ruby Grande Al-
ce, Sra. Cimarron Cravat.
— Minha cunhada, a Sra. Cimarron Cravat.
De puro sangue osage. . . Sim, realmente, nós
também somos desta opinião.
— Como está? — dizia Ruby com aquele
seu jeito calmo, insolente.
574
Para benefício dos que não tinham sido ca-
pazes de aceitar plenamente a índia osage em seu
traje nativo, o próximo comparecimento público
de Ruby foi feito num vestido branco parisiense.
Ela se tornou o grande sucesso da temporada, foi
considerada pitoresca, e, tendo cumprido sua
tarefa, deixou Washington, repugnada. Ninguém a
não ser seu marido, a quem ela amava com uma
devoção canina, poderia tê-la induzido a participar
daquele cerimonial.
A oposição recuou, derrotada.
Donna e Tracy Wyatt fretaram então um
trem especial no qual levaram cinqüenta magnatas
do leste numa excursão por Oklahoma. Uma
senhora distraída e não muito inteligente, de
grande prestígio na sociedade de Washington,
impressionada com o que via, expressou sua
opinião ao jovem Yancey Cravat, sem se dar
conta da identidade dele e vendo apenas um rapaz
atraente e belo sentado a seu lado durante um
almoço num clube elegante.
— Eu não tinha a menor idéia de que
Oklahoma fosse assim. Pensei que só tivesse
petróleo e índios sujos.
— Há realmente muito petróleo aqui, mas
575
nem todos nós somos sujos.
— Nós?
— Sou um índio.
Osage, Oklahoma, era agora tão parecida
com Nova York quanto seria possível a Osage
parecer. Construíam edifícios de escritórios de
vinte andares numa cidade que tinha centenas de
quilômetros de campinas ao seu redor. Tracy
Wyatt construiu o primeiro arranha-céu — o
Edifício Wyatt, que despertou admiração e co-
mentários em todo o Estado. Então Pat Leary,
executando uma jiga irlandesa de inveja, construiu
o Edifício Leary, com vinte e três andares. Mas os
doces frutos do triunfo logo se tornaram cinzas.
As fundações do Edifício Wyatt não tinham capa-
cidade para agüentar o acréscimo de peso de
cinco andares. Portanto, Wyatt mandou acrescen-
tar ao seu edifício uma torre afilada da altura de
cinco andares, como um dedo apontando para o
céu. Novamente, Tracy Wyatt era o proprietário
do edifício mais alto em Oklahoma.
No último andar do edifício da Companhia
Mercantil Levy, Sol mandara construir uma cober-
tura de acordo com planos elaborados por ele
próprio. Era a única moradia deste tipo em toda
576
Oklahoma. A pequena parcela de habitantes de
Osage que não fazia uma peregrinação anual a
Nova York ficava um tanto perplexa com a vida
que Sol levava no alto do seu edifício. Contavam
uns para os outros detalhes de informações arran-
cadas de criados, funcionários, estenógrafas que
alegavam ter um dia penetrado no local. Diziam
que o apartamento de Sol Levy era repleto dos
mais raros tapetes, carpetes, livros, quadros. Um
super-rádio, um super-fonógrafo, um superpiano.
Louco por música. Ali vivia ele sozinho, cercado
de luxo, um habitante da cidade, mas não fazendo
parte dela. Ao cair da tarde, de madrugada, em
hora avançada de uma noite estrelada, podiam
avistá-lo debruçado no parapeito de sua casa no
céu, uma frágil figura solitária, distante, como uma
gárgula debruçada sobre a ridícula cidade esten-
dendo-se abaixo; sobre os aparelhamentos de
petróleo que a circundavam como gigantescos
guardas marcianos mantendo-a em seu poder;
mais além, onde o céu, num véu de gaze cinzenta
que o comércio provocara, se juntava com a
corrompida campina vermelha.
O dinheiro era agora o único padrão. Se Pat
Leary tinha sessenta e dois milhões de dólares na
terça-feira, era considerado o cidadão de maior
577
proeminência em Oklahoma. Se Tracy Wyatt
tinha setenta e oito milhões de dólares na quarta-
feira, então era Tracy Wyatt o cidadão mais pro-
eminente.
Osage tinha aquelas fascinantes pequenas lo-
jas de especialidades e de decoração na Avenida
Pawhuska exatamente como as que são vistas na
Avenida Madison, de propriedade das filhas da
aristocracia decadente do leste. A gerente da loja
só aparecia para clientes especiais e sempre de
chapéu. Usava o chapéu de manhã à noite, como
uma insígnia de revolta em relação ao cargo ocu-
pado. "Sou uma dama", dizia o chapéu. "Quanto a
isto, não se enganem. Só porque trabalho numa
loja não pensem que podem me tratar com supe-
rioridade. Não estou trabalhando. Estou só brin-
cando de trabalhar. É uma mania minha. A qual-
quer momento, posso sair daqui exatamente como
qualquer freguesa."
O chapéu feminino de Osage, por sinal, era
talhado e experimentado na cabeça, como em
Paris.
Sabra provavelmente era a única mulher de
sua geração e posição social em Osage que ainda
usava no terceiro dedo da mão esquerda a simples
578
e larga aliança de ouro de outros tempos. Simul-
taneamente com a ondulação permanente e com
as dietas para emagrecer, as senhoras de Osage da
idade de Sabra enriquecidas pelo petróleo tinham
posto de lado o sentimentalismo em favor da
moda, e, guardando a pesada aliança de ouro
numa gaveta de escrivaninha, tinham aparecido
com um fino anel de platina, talvez gravado com
o anacronismo: "M. G. - K. L. 1884". Certamente,
a nova aliança assentava melhor ao lado da esme-
ralda quadrada ou do diamante oblongo. Essas
senhoras explicavam (quando se davam ao traba-
lho) que a aliança de ouro ficava muito apertada
para o dedo, ou muito larga. Sabra olhava para a
aliança larga, o único anel em sua mão. Em qua-
renta anos, ela não tirara a aliança uma só vez.
Fazia tanto parte dela como o seu próprio dedo.
Osage começou a rebatizar ruas, mudando
os belos nomes indígenas por nomes banais ame-
ricanos. A Rua Hetoappe tornou-se Via Boston,
aliás, muito elegante. As pessoas de mais categoria
estavam construindo suas casas mais longe no
novo bairro (anteriormente Morro Okemah),
agora Vista do Rio. O rio em questão era o aver-
melhado Canadian, e a vista uma floresta de torres
de petróleo eriçadas na margem oposta. O terreno
579
descia em rampa até o rio, exceto nas ocasiões em
que ele subia com vermelha fúria e se estendia até
as casas. Essas eram palazzi italianos, châteaux
franceses ou solares ingleses; nenhuma, talvez, tão
ampla e completa como a de Tracy Wyatt, mas
todas providas de necessidades tais como órgãos,
banheiras embutidas, templos gregos, tapeçarias
antigas, vidros venezianos, salas de bilhar e mor-
domos. Pat Leary, o esperto ex-funcionário da
Estrada de Ferro Santa Fé, tinha tido uma idéia
melodramática. Não contente com pavões, cam-
pos de golfe e piscinas na sua propriedade, ele
agora colocara um velho e desgastado carroção
coberto, um eixo de roda enferrujado, o crânio
esbranquiçado de um búfalo, uma palhoça de
índio e uma lanterna amassada numa pequena ilha
num lago artificial abaixo do morro em que se
erguia a casa. À noite, um farol- vermelho, verde
ou laranja, iluminava da torre da casa as mudas
relíquias de uma época pioneira.
— O carroção que minha gente usou para
atravessar as campinas e chegar aqui — explicava
Pat Leary com discreto orgulho. Visitantes do
leste se mostravam muito impressionados. Mas os
íntimos, a par de como fora o começo da vida de
Pat em Oklahoma, divertiam-se a valer com a
580
história.
— Esqueceu alguma coisa, não é, Pat, na-
quele arranjo que você preparou no seu jardim?
— perguntou o velho Bixby.
— Esqueci o quê?
O velho Sam Pack, que participara da corri-
da montado numa mula, dizia que se a família de
Pat Leary fizera a jornada para Oklahoma num
carroção coberto, então ele fizera o mesmo per-
curso de avião.
Todas as casas de milionários de Oklahoma
tinham bibliotecas, metros e metros de belas
encadernações de couro com letras gravadas a
ouro. A biblioteca de Ike Hawkes tinha, só de
Charles Dickens, cinco coleções, soberbamente
encadernadas em vermelho, verde, azul, marrom e
preto, e Ike nunca abrira sequer um dos volumes.
Palácios para exibição de filmes, com portei-
ros de luvas brancas, apresentavam todas as su-
perproduções da Broadway. Cachorro-quente,
sanduíches de carne temperada com pimenta à
moda mexicana, hambúrgueres podiam ser con-
sumidos nas mais remotas estradas da região. A
Companhia de Ópera Arverne se apresentava no

581
Teatro McKee. durante toda uma semana, todos
os anos, com o que havia de melhor — Traviata,
Bohème, Carmen, Louise, O barbeiro de Sevilha. A
exibição de jóias durante essa semana era de
ofuscar qualquer um.

UM BAILE ELEGANTE

Os acontecimentos sociais da semana se en-


cerraram condignamente com o elegante baile
oferecido pelo Sr. e Sra. Clint Hopper a um pe-
queno grupo seleto no Clube Osage. O jardim na
cobertura do clube. . ."

"PEQUENO JANTAR

O Sr. e Sra. James Click homenagearam dois


ilustres visitantes do leste com um pequeno jantar
na quarta-feira o Sr. e a Sra. C. Swearingen
Church, de St. Paul, Minnesota Oitenta talheres."

"O Sr. e Sra. Buchanan Keteriam e a Srta.


Patrícia Ketcham partiram para Nova York a
noite passada, de onde embarcarão para a Europa,
e lá irão encontrar-se com os J. C. McConnells em
582
seu iate em Mônaco. . ."

"O Cercle Français irá reunir-se terça-feira à


noite na casa do Sr. e Sra. Everard Pack. . ."

As toucas de sol tinham vencido.

583
584
Capítulo XXIV

Ainda assim, o petróleo continuava sendo


petróleo, e os índios continuavam sendo índios.
Não havia maneira de fazer com que qualquer
uma daquelas duas forças nativas se adaptasse aos
moldes de Nova York.
Os osages continuavam em disparada de um
lado para outro das estradas de Oklahoma, e essas
estradas, por centenas de quilômetros, continua-
vam sem pavimentação, na poeira vermelha da
campina. Os índios tombavam seus carros em
valas, fossos e bueiros como antigamente, volta-
vam a pé para a cidade e, ao entrar no salão de
uma agência de automóveis em que tinham adqui-
rido o carro anterior, apontavam o dedo empoei-
rado para um novo modelo reluzente.
— Outro — diziam sucintamente. E saíam
guiando o novo carro.
Era do conhecimento de todo mundo que
Charley Vest tinha destruído oito Cadillacs em um
ano, mas o fato era que Charley conseguira uma
585
fonte misteriosa que lhe fornecia aguardente. Os
índios compravam aviões agora, mas estavam
proibidos, de usar os campos de aviação locais e
das vizinhanças após uma série de desastres fatais.
Em sua maioria, eles pareciam (pelo menos os
cem por cento índios) não ter o menor senso de
mecânica. Possuíam geladeiras elétricas — às
vezes na sala de visitas — de que muito se orgu-
lhavam. Comiam brutalmente e engordavam mais
e mais. Os jovens osages agora usavam camisas
feitas sob medida com monogramas do tamanho
de um pires. Os osages tinham adquirido o hábito
de passar o verão em Colorado Springs ou Mani-
tou. A princípio os residentes brancos daquelas
cidades haviam se recusado a alugar aos índios,
para a temporada, suas belas casas mobiliadas.
Mas as vultosas quantias que lhes eram oferecidas
como aluguel logo venceram qualquer relutância.
O problema do índio continuava sendo o mesmo,
pois ele era considerado uma presa fácil, e milha-
res de aves de rapina se alimentavam de suas
riquezas.
Sabra Cravat apresentara uma lei para maior
proteção dos osages, e deixara os membros da
Câmara um tanto aturdidos advogando a abolição
do sistema de reservas para os índios. Seu discur-
586
so, embora radical e de grande repercussão, foi
recebido com aprovação por alguns dos deputa-
dos mais liberais. Chegaram mesmo a admitir que
a idéia dela, de que o índio jamais se desenvolveria
ou conseguiria se expressar até ser tão livre quan-
to o negro, poderia algum dia tornar-se uma
realidade. Estes eram os reformadores — os
intelectuais — fanáticos.
Oklahoma orgulhava-se muito de Sabra
Cravat, diretora de jornal, deputada, pioneira.
Osage dizia que ela personificava o que de melhor
havia no Estado e em todo o sudoeste. Quando
dez dos mais untuosos milionários de Osage
contribuíram cada um com cinqüenta mil dólares
para uma estátua que personificasse o pioneirismo
de Oklahoma, ninguém se surpreendeu ao saber
que Masja Krbecek, o escultor, queria entrevistar-
se com Sabra Cravat.
Osage não estava familiarizada com as obras
de Krbecek, mas impressionou-se com o preço.
Meio milhão de dólares por uma estátua!
— Certamente — disse calmamente a co-
missão organizadora. — Ele é o melhor de todos
os escultores. Meio milhão não é nada para se
pagar por uma obra sua. Ele não tocaria num
587
pedregulho por menos de um quarto de milhão.
— Acha que ele vai representá-la como uma
pioneira com uma touca de sol na cabeça? Segu-
rando o pequeno Cim pela mão? Ou talvez guian-
do um carroção coberto?
Sabra recebeu Krbecek num singelo vestido
drapeado. Ele era um polonês de baixa estatura e
óculos, muito quieto e um tanto fungão, que
parecia mais um alfaiate — um "modesto" alfaiate
— do que um escultor. Seus olhos percorriam a
sala de estar da Rua Kihekah. A velha construção
de madeira fora recoberta com um emboço de
uma cor quente, muito semelhante à argila nativa;
o alpendre e as cúpulas de gosto duvidoso haviam
sido arrancados, e ao lado da casa tinha-se cons-
truído um terraço e uma grande varanda quadra-
da, afastados da rua e protegidos por uma sebe
fechada e grades de ferro. O fato era que agora se
parecia muito com a casa que Yancey planejara
quando Sabra a construíra há muitos anos. As
antigas peças de mogno, vidro e prata estavam de
volta, tendo triunfado sobre os veludos e broca-
dos com que Sabra decorara a casa quando nova.
Os objetos antigos, desprezados desde os tempos
pioneiros, estavam de novo na moda em Osage: a

588
prata De Grasse, a travessa de bolo com os cupi-
dos joviais, as estatuetas de porcelana sobre a
cornija da lareira, até mesmo a manta tecida a mão
que Madre Bridget lhe dera há tanto tempo em
Wichita. O azul intenso não desbotara.
— A senhora está muito confortável aqui
em Oklahoma — disse Masja Krbecek. Ele pro-
nunciava sílaba por sílaba, laboriosamente. O-kla-
ho-ma.
— É uma casa muito simples — respondeu
Sabra —, comparada às outras residências que
deve ter visto aqui.
— E o lar de uma boa mulher — disse
Krbecek, secamente.
Sabra espantou-se um pouco, mas agrade-
ceu, polidamente.
— A senhora é membro do Congresso, é di-
retora de um grande jornal, é conhecida em todo
o país. As mulheres americanas são realmente
extraordinárias.
De novo, Sabra agradeceu o elogio.
— Conte-me, por favor, minha cara senhora
— continuou ele —, algumas das muitas coisas

589
interessantes sobre sua vida e a do seu marido,
esse Yancey Cravat que tanto precedeu sua época.
Sabra, então, começou a falar. Enquanto fa-
lava, os anos pareciam se abrir, cortina após corti-
na, sobre o passado. A corrida. Depois, estavam
cruzando a campina, e pela primeira vez avistara o
lamaçal que era Osage, a reunião religiosa na
tenda de jogo, o assassinato de Pegler. os bando-
leiros, os primeiros anos do jornal, os índios, o
petróleo. Ela falava muito bem em sua voz clara,
decidida. A pedido de Krbecek, mostrou-lhe as
fotografias de Yancey, dela, amarelecidas pelo
tempo. O escultor ouvia, atento.
— É comovente — disse ele no final. —
Tenho vontade de chorar. — Depois, beijou a
mão de Sabra e saiu, levando uma ou duas das
velhas fotografias.
A estátua do Espírito do Pioneiro de
Oklahoma foi inaugurada um ano mais tarde com
tremendas cerimônias. Era uma figura heróica de
Yancey Cravat dando um passo a frente numa
leve, graciosa postura com as botas texanas de
salto alto, as abas da sobrecasaca esvoaçando com
o vigor de seus movimentos, o sombrero sobre a
grande e ameaçadora cabeça de búfalo, uma aris-
590
tocrática mão pousando de leve sobre a arma em
seu coldre. Atrás dele, uma das mãos tocando-lhe
no ombro para se apoiar, a figura curvada pela
fadiga de um índio com seu cobertor.

591
Capítulo XXV

Sabra Cravat, deputada pelo Estado de


Oklahoma, iniciara uma campanha contra as
condições lamentáveis das novas cidades do pe-
tróleo. Com um imponente grupo de vinte pesso-
as em que se incluíam os mais destacados homens
do petróleo, senadores, deputados e jornalistas,
ela encabeçou uma visita a Bowlegs, a mais recen-
te e mais desordenada das novas zonas onde fora
encontrado petróleo.
Cidades como Osage chegavam até a ser su-
aves de uma maneira superficial. Mas que podia
um Estado fazer quando petróleo estava todo o
tempo esguichando em locais inesperados, tra-
zendo de volta os dias da corrida? A cada nova
descoberta de um poço se seguia uma corrida
desabalada. Mais uma cidade brotava na campina;
os campos se encharcavam do líquido escorrega-
dio; sondas e perfuradoras entravam em funcio-
namento; cabanas de madeira com fachadas falsas
se enfileiravam na aldeia de uma só rua. Salões de
dança. Bordéis. Pistoleiros. Badernas. Calor. Mos-
592
cas. Sujeira. Crime. O estrépito da maquinaria. O
rugir do tráfego transbordando numa estrada que
nunca fora planejada para mais de um carroção.
Caminhões de nitroglicerina transportando sua
carga mortífera. Macacões, calças de veludo,
plantas de desenhos técnicos, motores. A escória
humana de cada nova cidade do petróleo era
como a escória da corrida, só que pior, mais cruel,
mais gananciosa e vil.
O grupo imponente, em possantes carros,
partiu aos solavancos por estradas horríveis,
criando uma barragem de poeira vermelha.
— É tudo causado pela política nefanda do
Estado de Oklahoma — explicou Sabra ao impor-
tante senador da Pensilvânia, sentado à sua direita,
e ao grande diretor de um jornal de Nova York
sentado à sua esquerda no luxuoso carro. —
Nossas leis são desrespeitadas. O Senado está
cheio de corrupção. Tudo é permitido. Oklahoma
continua sendo um território em tudo exceto no
título. Essa cidade de Bowlegs. É uma reversão
aos dias pioneiros de quarenta anos atrás — só
que pior. É como o velho Cimarron. Pessoas que
passaram a vida toda em Osage não sabem o que
acontece aqui. Não se preocupam. É mais petró-

593
leo, mais milhões de dólares. Apenas isso. Qual-
quer um dos membros desta nossa comitiva, por
mais conhecido que seja, poderia chegar aqui,
vestir um macacão e se perder na multidão, como
quem desaparece numa selva.
O senador da Pensilvânia soltou uma risada
gorda e com o cotovelo mais próximo de Sabra
fez um pequeno movimento que teria sido toma-
do como uma cotovelada — de qualquer um que
não um senador da Pensilvânia.
— O que eles estão precisando aqui é de
uma governadora, hein, Lippmann? — disse ao
grande jornalista.
Sabra ficou calada.
Depois da partida de Osage, eles pararam
para almoçar no restaurante do hotel de uma
cidade petrolífera mais antiga — um almoço
surpreendentemente bom, segundo constataram
satisfeitos os membros da comitiva, com um bife
macio, pequenas cebolas tenras, cerveja, queijo e
café servido em grandes xícaras grossas, forte,
quente e reconfortante. A garçonete era ligeira e
afável, uma mulher alta, angulosa, com algo de
simpático nas duas rodelas de ruge no pergami-
nho de suas faces ressequidas.
594
— Como vai, Nettie? — perguntou-lhe Sa-
bra,
— Estou ótima, Sra. Cravat. Como vai a
família?
— A senhora é, sem dúvida alguma, uma
autêntica política — disse o senador de Ohio
piscando um olho para Sabra.
Ao chegarem a Bowlegs, Sabra mostrou tu-
do aos seus companheiros, sem nada lhes poupar.
A horrenda cidade estendia-se ao quente sol de
junho, coberta de feridas, moscas zunindo por
toda parte, o petróleo escorrendo pelo chão, em
regos pegajosos. Uma cidade de uma só rua e de
barracões de madeira, como a dos velhos tempos
de território, só que mais sórdidos. Um jovem
engenheiro de Harvard de faces coradas era o guia
da comitiva: muito simpático, com óculos de aro
grosso e uma camisa muito azul que tornava ainda
mais rosadas as suas faces. "É assim que eu gosta-
ria que meu Cim fosse", pensou Sabra com um
aperto no coração. "Não devo pensar nisso ago-
ra."
O solo sendo perfurado. Os barracões dos
trabalhadores. O julgamento de uma moça do
salão de baile na cabana de madeira de um só
595
cômodo que fazia as vezes de sala do tribunal. A
acusação, atraso no pagamento de aluguel. A
pequena sala, sufocante, malcheirosa, já estava
repleta. Homens e mulheres postavam-se à soleira
da porta, debruçavam-se para dentro das janelas.
O juiz era um sujeito de cara amarela ruminando
um toco de fumo, e um catálogo da Sears e ape-
nas um compêndio de leis numa prateleira eram
toda a sua biblioteca. Era um julgamento com
júri. Os jurados eram em número de nove, suas
fisionomias uma coleção de malfeitores fichados
na polícia. Acontecera haver nove homens vagan-
do por ali. O número poderia ter sido menor ou
maior. Bowlegs não levava muito em conta deta-
lhes jurídicos. Eles estavam de macacão ou em
mangas de camisa. A acusada era uma jovem
raquítica com uma carinha de rato, trajando um
vestido verde manchado que era uma paródia da
moda, um patético chapeuzinho verde, sapatos
com os saltos gastos, e um enorme fio corrido na
meia. Suas amigas tinham comparecido ao julga-
mento — uma dúzia ou mais de dançarinas do
salão trajando macacões listrados e bonés de
jóquei, ou vestido de algodão xadrez com a bai-
nha à altura dos joelhos e faixas na cintura. Suas
idades iam, talvez, dos dezesseis aos dezenove.
596
Era incrível que a vida, naqueles poucos anos,
houvesse lhes marcado o rosto daquela maneira.
As moças mostraram-se gentis, hospitalei-
ras. Abriram caminho para os importantes visi-
tantes. "Entrem, entrem", disseram elas, "Como
vão?" — como crianças afáveis. O sol a pino era
implacável em exibir-lhes os olhos pisados, a pele
ruim, o ar pouco saudável. Aglomeradas por
detrás do banco rústico onde se sentara o júri, as
moças, de vez em quando, apoiavam um cotove-
lo sociável no ombro de um jurado, ocasional-
mente animando o processo judicial com comen-
tários espirituosos em defesa de sua colega, feitos
ao pé do ouvido ou em voz alta para benefício da
platéia repleta.
— Ela nunca fez uma coisa dessas!
— Ele é um mentiroso safado, e eu posso
provar que está mentindo.
Ninguém, e muito menos o juiz mascador
de fumo, parecia considerar a falta de formalismo
das garotas uma conduta ilegal no desenrolar do
julgamento.
A um canto da pequena sala havia uma es-
pécie de cercado de ripas de madeira, como um

597
galinheiro, e ali dentro estava um homem estirado
no chão.
— Por que ele está ali dentro? — perguntou
Sabra a uma das jovens. — Quem é ele?
— É Bill. Ele está preso. Deu um tiro num
homem a noite passada, e tinha uma arma escon-
dida. É proibido.
— Vou falar com ele — disse Sabra.
E atravessou a sala, abrindo caminho entre
a pequena multidão. Os jurados tinham acabado
de se retirar, entrando num galpão do outro lado
da rua para confabular. Duas ou três das meninas
do salão se agacharam para conversar com Bill
através das tábuas. Perguntaram a Sabra seu
nome, e ela lhes disse, e elas lhe disseram os seus.
Toots. Peewee. Bee.
O rosto do rapaz no chão estava machucado
e com sangue coagulado. Na sua mão esquerda
um ferimento estava apostemado, e a mão e o
braço inchados e com mau aspecto.
— Você tinha uma arma escondida? — per-
guntou Sabra, agachando-se com as moças. Um
ou dois senadores e um jornalista estavam logo
atrás dela.
598
Um ar magoado abrandou as feições ma-
chucadas de Bill. Ele puxou o beiço como uma
criança.
— Não, senhora. Eu tomo conta do salão
de baile, compreende? Estava parado no meio da
sala, trabalhando, e eu tinha o revólver bem na
mão. Todo mundo podia ver. Não estava com
nenhuma arma escondida.
O júri retornou. Inocente. O advogado chi-
caneiro da jovem com cara de rato disse-lhe algo
ao ouvido. Ela falou numa voz horrivelmente
rouquenha, com um sorrisinho afetado.
— Agradeço muito aos cavalheiros.
As colegas dela aplaudiram sem grande en-
tusiasmo. Fora daquela atmosfera fétida no arden-
te sol da tarde.
— Os cabarés abrem por volta das nove ho-
ras — disse Sabra. — Vamos esperar até essa
hora. Enquanto isso, vou mostrar-lhes suas insta-
lações. As instalações. . . — ela olhou em redor
procurando o jovem engenheiro de Harvard. —
Mas onde. . .
— Está havendo uma agitação qualquer —
disse o jornalista de Nova York. — Gente cor-
599
rendo e gritando. Lá adiante, naquele campo que
visitamos há pouco. Aí vem o nosso jovem ami-
go. Talvez ele nos diga o que está havendo.
O rapaz de Harvard estava ainda mais cora-
do, ofegante. Estivera correndo. Os olhos brilha-
vam por detrás dos óculos de aro grosso.
— Meus amigos, escapamos por bem pou-
co.
— O que houve?
— Puseram cinqüenta litros no poço de la-
ma, mas antes que descesse, o petróleo surgiu. . .
— Litros do quê? — interrompeu uma voz
editorial.
— Oh. . . desculpem. . . litros de nitroglice-
rina.
— Meu Deus!
— Fica dentro de uma lata. Um recipiente
como uma lata. Nunca poderia explodir lá embai-
xo. Mas foi projetado para cima junto com o gás e
o petróleo. Se tivesse caído no solo tudo num raio
de quilômetros explodiria e estaríamos todos
mortos. Mas ele o apanhou. Dizem que ele correu
de costas como um jogador de beisebol e calculou

600
a distância a olho quando o recipiente ainda esta-
va no ar e correu para o ponto onde cairia e apa-
nhou-o nos braços, como uma criança, bem sobre
o peito. Ele impediu a explosão, mas está mor-
rendo. O seu peito afundou. Mandaram vir uma
ambulância.
— Quem? Quem é ele?
— Não sei seu nome verdadeiro. É um ve-
lho vagabundo que vive por aí, fazendo uns servi-
ços avulsos no campo e bebendo. Dizem que, no
tempo dele, era um sujeito bastante famoso em
Oklahoma. Um daqueles pioneiros pitorescos.
Alguns o chamam o Velho Yancey e já ouvi ou-
tros o chamarem Sim ou Simeon ou...
Sabra começou a correr na rua.
— Sra. Cravat! Não deve fazer isso. . . aonde
vai?
Ela continuou correndo, pisando o campo
encharcado de óleo com seus delicados sapatos de
fivela e saltos altos. Não percebeu sequer que
estava correndo. As pessoas se tinham aglomera-
do num círculo. Formavam uma parede — traba-
lhadores braçais, perfuradores, mecânicos, bom-
beadores. Estavam olhando para algo no chão.

601
— Deixem-me passar! Deixem-me passar!
Eles recuaram para deixar passar a mulher
de rosto tão branco quanto seus cabelos.
Ele jazia no chão, uma estranha figura enco-
lhida. Ela se atirou no solo encharcado de petró-
leo ao lado dele e ergueu delicadamente a cabeça
magnífica para ampará-la com seu braço. Uma
pequena bolha avermelhada brotara-lhe entre os
lábios, e Sabra enxugou-a com seu lenço branco,
mas logo surgiu outra bolha.
— Yancey! Yancey!
Ele abriu os olhos — aqueles olhos cinza-
oceânicos com os longos cílios recurvados como
os de uma linda mulher. Tantas e tantas vezes ela
pensara naqueles olhos, numa agonia de dor.
Agora turvos, sem visão.
Então, já agonizantes, os olhos se desanuvi-
aram. Os lábios moveram-se. Ele a reconheceu.
Mesmo nos últimos estertores, havia de falar em
verso metrificado.
— "Esposa e mãe — tu, mulher imaculada
— esconde-me — esconde-me em teu amor!"
Ela nunca ouvira aquele texto. Não sabia
que era Peer Gynt, humilde perante Solveig. Os
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olhos outrora magnéticos tornaram-se turvos,
fixos; não eram mais olhos.
Ela os fechou delicadamente. Perdoou-lhe
tudo. Com simplicidade, sem nem saber, murmu-
rou através de lágrimas as mesmas palavras de
Solveig:
— Dorme, meu menino, meu adorado me-
nino.

***

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