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CAMILA PEREIRA SARAIVA

URBANISMOS EM CONEXÃO E MOBILIDADE DE


POLÍTICAS

Trajetórias da Urbanização de favelas em São Paulo (Brasil) e do In-


situ upgrading em Durban (África do Sul)

Tese apresentada ao Curso de Doutorado do Programa


de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional
da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de
Doutor em Planejamento Urbano e Regional

Orientador: Prof. Dr. Carlos Bernardo Vainer


Coorientadora: Prof. Dra. Jennifer Robinson

Rio de Janeiro

2019
CIP - Catalogação na Publicação

Saraiva, Camila Pereira


S243u Urbanismos em conexão e mobilidade de políticas :
Trajetórias da urbanização de favelas em São Paulo
(Brasil) e do in-situ upgrading em Durban (África
do Sul) / Camila Pereira Saraiva. -- Rio de
Janeiro, 2019.
279 f.

Orientador: Carlos Bernardo Vainer.


Coorientadora: Jennifer Robinson.
Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Instituto de Pesquisa e Planejamento
Urbano e Regional, Programa de Pós-Graduação em
Planejamento Urbano e Regional, 2019.

1. Comparações relacionais. 2. Mobilidade de


política. 3. Política social. 4. Favelas - Urbanização
- São Paulo (SP). 5. Favelas - Urbanização - Durban
(África do Sul). I. Vainer, Carlos Bernardo,
orient. II. Robinson, Jennifer , coorient. III.
Título.

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidos


pelo(a) autor(a), sob a responsabilidade de Miguel Romeu Amorim Neto - CRB-7/6283.
À Lourdes e Jaime (in memoriam).
Ao Luciano, meu querido companheiro.
Ao Tomás, minha reviravolta e sentido.
AGRADECIMENTOS

Vejo o término do doutorado, simbólica e materialmente representado por esta


tese, como o encerramento de um longo ciclo iniciado na graduação em Arquitetura e
Urbanismo, quando tomei a decisão de me dedicar ao estudo de periferias e favelas.
A realização do doutorado foi, como seria de se esperar, a etapa mais complexa. Foi
durante esta, no entanto, que enfrentei desafios que ultrapassaram o exercício
intelectual: tornar-me mãe e em consequência enfrentar a morte. Esta tese
representa, portanto, o encerramento de um ciclo de vida-morte-vida, uma intensa
jornada de sete anos, durante os quais contei com a amizade, a habilidade, o suporte
e a solidariedade de muitos a quem gostaria de agradecer.

Os dois primeiros anos de doutorado, dedicado às disciplinas, também foram


dedicados ao trabalho como gestora no Governo do Estado do Rio de Janeiro.
Agradeço a todos os colegas da Secretaria de Planejamento e Gestão, especialmente
da Subsecretaria de Patrimônio Imobiliário, pela compreensão nos momentos em que
me ausentei para cumprir com as disciplinas do doutorado.

Movida pelo desejo de conhecimento sobre a África do Sul e sobre uma


literatura completamente nova para mim, realizei um período do doutorado na
Inglaterra entre 2014 e 2015. Agradeço à professora Jennifer Robinson pelo suporte
durante o processo seletivo da University College London (UCL) e pela entusiasmada
orientação não apenas durante o período em que estive como Visiting Research
Student no Departamento de Geografia da UCL, mas também após meu retorno ao
Brasil. Agradeço ao CNPq pela bolsa concedida e o pagamento das tuition fees.

Em meados de 2015 tive que suspender subitamente minhas atividades


acadêmicas, devido à Síndrome Hellp, uma doença rara, seguida de inúmeras
complicações que quase me levaram à morte. Pelo suporte dado ao longo do período
de internação hospitalar e tratamento agradeço novamente ao CNPq, a todos os
funcionários do IPPUR, especialmente à Zuleika e ao André, e aos docentes,
principalmente aos meus orientadores Carlos Vainer e Jenny Robinson, cujos
cuidados e estímulos foram muito além dos acadêmicos. Não poderia de deixar de
agradecer aos médicos que literalmente operaram milagres, às enfermeiras e
terapeutas que com ternura me cuidaram, e à enorme rede de familiares e amigos e
por mim vibrou. Agradeço especialmente àqueles que se fizeram tão presentes nos
momentos mais difíceis: Cristina, Nora, Natália, Gabriel, Claudine, Emilene Zitkus,
Rosie Saunders, Isabel Xavier, Ana Louback, Sandra Salles, Leandra Lirdi, Camila
Rodrigues, Vinícius Tinoco, Marina Mendonça, Kalyla Maroun, Endyra Russo,
Fernanda Accioly, Lara Figueiredo, Carol Heldt, Lara Mesquita e Renata Bichir.

Agradeço às amigas e amigos com quem compartilhei, no Rio de Janeiro e em


Londres, muitas das angústias dessa fase de doutoramento, Carla Hirt, Deborah
Werner, Giselle Tanaka, Gabriel Silvestre, Sarah Kunz, Susana Neves Alves, Aidan
Mosselson e Álvaro Sanchez Jimenez. No retorno à São Paulo, agradeço à Julia
Bittencourt por compartilhar comigo suas ideias sobre as conexões internacionais da
urbanização de favelas, fazendo-me acreditar que as minhas tinham sentido. Aos
professores Eduardo Marques, Osmany P. de Oliveira, Adauto Cardoso e Rosana
Denaldi pela oportunidade de voltar à ativa em pesquisas e organizações de eventos
acadêmicos, fazendo o encerramento desse ciclo ter mais sentido. Às professoras
Fernanda Sánchez e Raquel Rolnik e aos professores Eduardo Marques e Adauto
Cardoso agradeço por aceitarem o convite para a banca de defesa, aos dois últimos
agradeço também pelos muitos anos de trocas.

Meu especial agradecimento aos entrevistados brasileiros e sul-africanos pela


colaboração com a pesquisa, pela cordialidade com que me entregaram seu tempo,
memórias e reflexões. Aos sul-africanos agradeço ainda pela hospitalidade, muitas
vezes acompanhada de afeto e cuidado com alguém que por lá completava sete
meses de gravidez. A maior parte do material empírico utilizado nesta tese foi reunida
entre 2014 e 2015, quando as primeiras análises foram produzidas. A redação foi,
contudo, realizada entre 2018 e 2019, o que exigiu um esforço enorme de superação
e memória, bem como de atualização bibliográfica e de algumas informações
empíricas. Além da bolsa sanduíche concedida pelo CNPq, essa pesquisa contou com
o apoio da Faperj e da Fundação IJURR. Esta versão final da tese foi revisada após
a realização da banca de defesa.
Não é apenas para comprar e vender que se vem a Eufêmia, mas
também porque à noite, ao redor das fogueiras em torno do mercado,
sentados em sacos ou em barris ou deitados em montes de tapetes,
para cada palavra que se diz – como “lobo”, “irmã”, “tesouro
escondido”, “batalha”, “sarna”, “amantes” – os outros contam uma
história de lobos, de irmãs, de tesouros, de sarna, de amantes, de
batalhas. E sabem que na longa viagem de retorno, quando, para
permanecerem acordados bambaleando no camelo ou no junco,
puserem-se a pensar nas próprias recordações, o lobo terá se
transformado num outro lobo, a irmã numa irmã diferente, a batalha
em outras batalhas, ao retornar de Eufêmia, a cidade em que se troca
de memória em todos os solstícios e equinócios.
(CALVINO, 2003, p.40-41)
RESUMO

A tese explora, em perspectiva histórica e relacional, as ações do estado voltadas


para os territórios de moradia dos pobres em cidades brasileiras e sul-africanas,
particularmente as trajetórias das políticas de urbanização de favelas em São Paulo
e de in-situ upgrading em Durban, a partir de meados dos anos 1970 e até os dias
atuais. A comparação é traçada em torno de uma conexão estabelecida entre as duas
cidades: o acordo de cooperação técnica Mentoring on Upgrading Informal
Settlements, estabelecido com o apoio da rede Cidades e Governos Locais Unidos,
entre 2011 e 2014. Com base no método de “decomposição de conexões”, essa
colaboração é utilizada como ponto de partida para a construção de uma análise
transescalar, na qual as trajetórias da urbanização de favelas em São Paulo e do in-
situ upgrading em Durban são compreendidas, uma em relação à outra, e vis-à-vis a
construção de um paradigma de política global para as cidades, configurado ao longo
de décadas de “ajuda externa para o desenvolvimento”. A análise comparativa
apresentada dá ênfase ao papel dos atores políticos locais em diferentes escalas e
na disputa por discursos e projetos políticos para as cidades e os territórios de moradia
dos pobres, contribuindo, portanto, para a construção de uma história transnacional
dos urbanismos da periferia.

Palavras-chave: Comparações Relacionais. Mobilidade De Política. Urbanização de


Favela. Slum Upgrading. São Paulo. Durban.
ABSTRACT

The thesis explores, from a historical and relational perspective, the state's actions
towards the living territories of the poor in Brazilian and South African cities, particularly
the trajectories of policies of urbanização de favelas in Sao Paulo and in-situ upgrading
in Durban from the mid-1970s to the present. The comparison draws on a connection
established between the two cities: the ‘Mentoring on Upgrading Informal Settlements’,
a technical cooperation agreement established with the support of the United Cities
and Local Governments network between 2011 and 2014. Based on the
‘disassembling connections’ method, this partnership was used as a starting point for
the construction of a transescalar analysis, in which the trajectories of urbanização de
favelas in São Paulo and in-situ upgrading in Durban are understood one to another
and vis-à-vis the construction of a global policy paradigm for cities, shaped over
decades of ‘foreign development aid’. This comparative analysis emphasises the role
played at different scales by local political actors and the dispute for political discourses
and projects, both for the cities and the living territories of the poor. It thus contributes
to the construction of a transnational history of the peripheral urbanisms.

Keywords: Relational Comparisons. Policy Mobility. Urbanização de favela. Slum


Upgrading. São Paulo. Durban.
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................... 11
1.1 Em busca de outros urbanismos na periferia ................................................ 11
1.2 Breve apresentação dos municípios de São Paulo e Durban ....................... 16
1.3 Questões para a investigação comparativa e a conexão Mentoring on
Upgrading Informal Settlements ............................................................................ 26
1.4 Desenho da pesquisa, estrutura da tese e metodologia ............................... 31
1.5 Relevância da pesquisa para o campo do planejamento urbano ................. 35
1.6 Conclusão do capítulo ...................................................................................... 38

2 COMPARANDO CIDADES ATRAVÉS DE CONEXÕES .................................. 39


2.1 Diferentes premissas teóricas sobre o urbano e o uso da comparação ..... 40
2.1.1 Por uma abordagem pós-estruturalista, relacional e pós-colonial ................... 50
2.2 O método comparativo de “decomposição de conexões” ........................... 57
2.3 Conclusão do capítulo ...................................................................................... 63

3 TERRITÓRIOS HABITADOS PELOS POBRES, CLASSIFICAÇÕES E


REFORMAS URBANAS ........................................................................................... 65
3.1 Slums e shantytowns ao Norte do Atlântico .................................................. 67
3.2 Slums, townships e squatter setlements em cidades sul-africanas ............ 72
3.3 Cortiços, favelas e loteamentos irregulares em cidades brasileiras ........... 87
3.4 Conectando urbanismos da periferia .............................................................. 99
3.5 Conclusão do capítulo .................................................................................... 104

4 CIRCUITOS E FLUXOS INTERNACIONAIS DO SLUM UPGRADING .......... 106


4.1 A emergência da “ajuda externa” aos países pobres ................................. 108
4.2 A construção de um paradigma de política global para as cidades .......... 117
4.2.1 Experimentação: projetos urbanos de infraestrutura ..................................... 119
4.2.2 Fragmentação: reformas institucionais para o funcionamento do mercado ... 122
4.2.3 Contestação: flexibilização e resgate de políticas pró-pobres ....................... 130
4.2.4 Institucionalização: cidades sem favelas ....................................................... 132
4.3 Conclusão do capítulo .................................................................................... 142
5 DURBAN E SÃO PAULO EM REDE(S): CONSTRUÇÕES TRANSESCALARES
DE POLÍTICAS ....................................................................................................... 144
5.1 A trajetória do in-situ upgrading em Durban ................................................ 145
5.1.1 O contexto ...................................................................................................... 150
5.1.2 As iniciativas pioneiras ................................................................................... 156
5.1.3 O abandono .................................................................................................... 164
5.1.4 A difícil retomada ............................................................................................ 173
5.2 A trajetória da Urbanização de Favelas em São Paulo ................................ 182
5.2.1 O contexto ...................................................................................................... 184
5.2.2 As iniciativas pioneiras ................................................................................... 195
5.2.3 A consolidação de um modelo com visibilidade internacional ....................... 210
5.2.4 Uma parceria de sucesso ............................................................................... 218
5.3 Trajetórias entrelaçadas por um paradigma de política global .................. 231
5.3.1 A cidade que aprende torna-se aquela que ensina ........................................ 237
5.4 Conclusão do capítulo .................................................................................... 242

6 CONCLUSÃO .................................................................................................. 244

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 249

APÊNDICE - LISTA DAS ENTREVISTAS REALIZADAS ..................................... 277


11

1 INTRODUÇÃO

Este capítulo introdutório apresenta a construção do problema, referencial


teórico e objeto da pesquisa apresentada nesta tese, sua relevância para os estudos
urbanos e a estrutura da tese. Considerando o espaço-tempo como produto de uma
multiplicidade de relações (MASSEY, 2013), compreende-se que o próprio percurso
entre a motivação inicial, as primeiras aproximações com o referencial teórico, a
definição do problema, isto é, a mobilidade de políticas, e do objeto, uma conexão
entre a cidade de São Paulo, no Brasil, e Durban, na África do Sul, poder ser
compreendido como uma espacialidade em si, aproximando pessoas, ideias e
atividades (ALLEN, 2008; ROBINSON, 2011). É, portanto, essa espacialidade que se
apresenta a seguir.

1.1 Em busca de outros urbanismos na periferia

O desejo de um exercício comparativo em maior profundidade histórica me foi


despertado quando, a convite da Universidad Andina Néstor Cáceres Velásquez,
viajei à Juliaca, em 2010, para apresentar um trabalho sobre favelas e loteamentos
irregulares em São Paulo, assim como as políticas relacionadas a essas áreas no
Brasil. Juliaca é uma cidade no sudeste do Peru, com pouco mais de 200 mil
habitantes, predominantemente horizontal, de baixa densidade e com problemas
generalizados de abastecimento de água e esgotamento sanitário. O confronto com
essa realidade trouxe-me muitas indagações: como falar de urbanização de favelas
numa cidade onde a precariedade de infraestrutura é generalizada? Quais seriam os
processos históricos de urbanização, estruturas institucionais e dinâmicas políticas,
relacionados àquela realidade urbana? Essas eram indagações que demandariam
muito mais estudo do que aquela viagem me oferecia e permitia.

Meu conhecimento sobre favelas e as práticas de urbanização de favelas, até


então, estava restrito à São Paulo e, quando muito, ao Rio de Janeiro, pouco sabia
sobre Belo Horizonte e Salvador. Compreendo agora que percebia essas experiências
12

como encerradas em si mesmas. Afinal, na minha formação até aquele momento,


graduação e mestrado, embora muito eu tivesse aprendido sobre as cidades
europeias e norte-americanas, seus processos de urbanização e modelos de
urbanismo, eu pouco ou nada estava familiarizada com a história da urbanização de
outras cidades latino-americanas ou africanas, com outros urbanismos da periferia.

Ao perceber essa lacuna na minha formação, passei a me questionar sobre a


medida em que as experiências brasileiras em urbanização de favelas poderiam ser
comparadas a experiências de outros países, também marcados por múltiplas
desigualdades. Esse questionamento passou então por aspectos específicos, como
por exemplo, quais seriam, em outras cidades, os atores políticos, interesses e
racionalidades, envolvidos na mobilização deste tipo de ação? Ou qual o papel das
organizações internacionais na difusão deste tipo de ação?

Se, como afirmou Pickvance (1986, p. 162), a tomada de consciência da


diversidade e a superação do etnocentrismo é uma das razões para o engajamento
em estudos comparativos1, foi em busca da diversidade de contextos e situações de
precariedade urbana, de outros urbanismos da periferia, e principalmente com o
objetivo de superar certo “topocentrismo” sobre urbanização de favelas que decidi
ingressar no doutorado. Para a elaboração do projeto de pesquisa, buscava
experiências de urbanização de favelas em outros países da América Latina, como a
Colômbia, de onde vinha o modelo dos teleféricos à época sendo implantados no Rio
de Janeiro. Foi quando veio a provocação feita pelo Professor Carlos Vainer de
expandir meu olhar para o continente africano, afinal, segundo ele, estudos
comparativos entre casos relativamente bem diferentes se faziam necessários, e de
qualquer forma, “já havia muita gente pesquisando a Colômbia”2.

1
As outras duas seriam a clarificação de um interesse teórico em uma questão ou tema; e a própria
realização da análise comparativa. Isto porque como tratado no Capítulo 2, para este autor nem toda
investigação comparativa resultaria em uma análise comparativa.
2
Cf. ANJOS, M.P. O urbanismo nas cidades latino-americanas e a cooperação em gestão urbana entre
Brasil e Colômbia. Revista Logos, Ciencia & Tecnología, 2010; SANTORO, P.F. O desfio de planejar e
produzir expansão urbana com qualidade: a experiência colombiana dos planos parciais em Bogotá,
Colômbia. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, 2011; LOMBARDO, M. A.; VOLPE, L.
L.; VASQUES, A. R. Periferia da Zona Sul da Cidade de São Paulo (Brasil) e de Bogotá (Colômbia).
Mercator, Fortaleza, v. 5, n. 10, 65 - 78, 2008; ZUQUIM, M. L.; MAZO, L. M. S. A democracia na
construção de cidade: participação social na política urbana Brasileira e na Colombiana. In XIII
Seminário da Red IberoAmericana de Investigadores sobre Globalización y Territorio (XIII RII). Salvador
(Brasil): Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia (SEI), 2014.
13

De fato, a minha busca inicial por outras experiências latino-americanas, vinha


de um imaginário de que a comparação deveria se dar entre contextos urbanos
próximos no espaço-tempo, nos quais, dadas as similaridades, diferenças poderiam
ser melhor identificadas. Imaginário que, mais tarde viria a entender, encontrava
algum respaldo na história dos estudos urbanos comparativos, na qual predominou
por muito tempo o estudo de unidades sócio espaciais semelhantes (WALTON, 1973;
ABU-LUGHOD, 1975; WARD, 2008; ROBINSON, 2011). Assim que, mesmo entregue
ao desafio de comparar realidades empíricas bem diferentes entre si, acabei
selecionando entre os contextos africanos, talvez o mais semelhante ao brasileiro, o
sul-africano.

Sem conhecimento sobre os territórios de moradia dos pobres na África quanto


mais das políticas habitacionais naquele continente3, adotei como ponto de partida
para a elaboração do projeto de pesquisa necessário para cumprir os critérios de
seleção do doutorado, os acordos e cooperações técnicas existentes entre o
Ministério das Cidades e da Caixa Econômica Federal e instituições daquele
continente. Tais acordos poderiam me oferecer casos uma possível comparação. Nos
idos de 2011, esses acordos e cooperações técnicas envolviam Moçambique, Cabo
Verde, Marrocos e África do Sul.

Dentre esses países, a África do Sul despontou como o mais interessante.


Havia a então recente entrada da África do Sul nos BRICS, em 2010, e a existência
na esfera diplomática do Fórum de Diálogo Índia-Brasil-África do Sul (IBAS), desde
2003. Assim, a comparação deveria se dar entre as ações voltadas aos
“assentamentos precários” no Brasil e na África do Sul. Além dessas conexões, eram
possíveis outras aproximações de ordem mais geral entre os dois países: duas jovens
democracias, federativas, marcadas por forte corrupção, alta desigualdade de renda
e discriminação racial, onde líderes historicamente ligados à luta por justiça social
haviam chegado à presidência, sem romper, porém, com as estruturas herdadas e as
correlações de forças dominadas pelo capital (OLIVEIRA et al., 2010; BOND, 2006).

3
Vale mencionar, contudo, um primeiro contato com essa temática por meio da participação em dois
eventos, respectivamente. A Sessão Coordenada pelo Prof. Carlos Vainer no Encontro da ANPUR
ocorrido em 2005 em Salvador (SC2 -Cidade e política urbana na África do Sul Pós-Apartheid) e o
Colóquio Internacional Desafios Urbanos no Brasil e na África do Sul - Construindo uma Agenda para
a Cooperação em Ensino e Pesquisa, realizado em 2007 no Rio de Janeiro.
14

A análise proposta no projeto preliminar de tese, sob a influência do


institucionalismo histórico, propunha-se a analisar comparativamente a
institucionalização da urbanização de favela no Brasil e do in-situ upgrading na África
do Sul, as interações desses processos com a agenda internacional, e os muitos
desafios enfrentados pelos entes subnacionais para a implementação desta política.
Dada a minha trajetória pessoal no campo do planejamento urbano, porém, não
estava satisfeita com a falta de centralidade de uma reflexão sobre o espaço e o
urbano presente neste referencial teórico.

Foi quando minha participação em dois eventos resultou na mudança de


referencial teórico e objeto da pesquisa. O primeiro evento, logo após o processo
seletivo do doutorado, foi uma oficina para a construção do Plano Estadual de
Habitação de Interesse Social do Rio de Janeiro4, onde encontrei duas colegas, uma
representando a Secretaria Municipal de Habitação de São Paulo e outra, o Banco
Mundial. Ao comentar sobre o ingresso no doutorado e meu desejo de comparar as
políticas de urbanização de favelas no Brasil e na África do Sul, falaram-me de um
acordo de cooperação recém firmado entre as municipalidades de São Paulo e
Durban, denominado Mentoring on Upgrading Informal Settlements.

O segundo evento ocorreu no ano seguinte, ainda dedicado ao cumprimento


das disciplinas obrigatórias. Em agosto de 2012, participei do segundo Fórum de
Sociologia, promovido pela Associação Internacional de Sociologia (ISA), em Buenos
Aires. Nessa ocasião, assisti a uma apresentação que se utilizava de uma literatura,
predominantemente produzida em inglês, em torno do uso da comparação nos
estudos urbanos.

Uma literatura crítica à relativa ausência de estudos comparativos que


explorassem a dimensão espacial, para além da dimensão temporal, de diferentes
processos relacionados à produção de cidades, contribuindo para uma revisão crítica
das teorias do urbano, e dos próprios conceitos de espaço, lugar e escala (NIJMAN,
2007; WARD, 2008). Revisão tão necessária diante das altas taxas de urbanização
de cidades – especialmente as asiáticas e africanas – até então marginalizadas pelo
mainstream do pensamento urbano (ROY, 2005; PARNELL et al., 2009; WATSON,

4
Oficina realizada em 05/12/2011 no auditório da Secretaria Estadual de Habitação.
15

2009). De acordo ainda com essa literatura, a comparação far-se-ia cada vez mais
necessária diante da intensidade das trocas e do comparativismo já praticado entre
governos locais (MCFARLANE; ROBINSON, 2012), isto é, da mobilidade das políticas
(MCCANN, 2008; THEODORE; PECK, 2010) e seus processos de adaptação e
mutação em determinados contextos (MCCANN; WARD, 2012).

A ideia de explorar esta literatura e seus insumos metodológicos me pareceu


então bastante sedutora. Além de me permitir engajar num debate internacional
recente, permitia-me aventar novas formas de comparar as políticas voltadas para os
assentamentos precários no Brasil e na África do Sul, deslocando o foco de uma
discussão sobre instituições, para incorporar uma reflexão de natureza espacial. Essa
literatura, analisada no Capítulo 2, ao se basear numa abordagem relacional do
espaço, na qual a conceituação das cidades é estendida para além do seu território
topográfico (AMIN e GRAHAM, 1997; ROBINSON, 2006), sugere a necessidade de
métodos comparativos experimentais. Métodos comparativos que sejam adequados
à concepção de cidades como momentos articulados em redes de relações que se
constroem integrando de forma positiva o global e o local (MASSEY, 2000). Neste
sentido, as próprias circulações, fluxos e redes que conectam cidades poderiam ser
adotadas como unidades relevantes para a comparação (ROBINSON, 2011; WARD,
2010).

Em consequência das provocações teórico-metodológicas oferecidas por essa


literatura, adotei o acordo de cooperação técnica Mentoring on Upgrading Informal
Settlements entre as cidades de São Paulo e Durban como meu objeto inicial de
pesquisa, capaz de provocar o raciocínio comparativo sobre as políticas para as
favelas nesses diferentes contextos. A definição da abordagem relacional como
referencial teórico e da cooperação entre as duas cidades como objeto foram,
portanto, determinantes para o traçado do método comparativo por “decomposição de
conexões” utilizado nesta tese. Antes de trazer os detalhes do estabelecimento dessa
cooperação, porém, acredita-se ser oportuna uma breve apresentação dos municípios
de Durban e São Paulo.
16

1.2 Breve apresentação dos municípios de São Paulo e Durban

O Município de São Paulo, capital do Estado de mesmo nome, localiza-se na


região sudeste do Brasil. O Estado de São Paulo, o mais populoso do país, abrange
cerca de 20% da população brasileira. Apenas no município de São Paulo, a cidade
mais populosa da América do Sul, são cerca de 12,2 milhões de habitantes em uma
área de aproximadamente 1.521 km². A região metropolitana formada por outros 38
municípios abrange cerca de 21,7 milhões de pessoas5.

A formação da cidade de São Paulo remonta ao século XVI, mas por séculos,
essa cidade, cortada pelos rios Tietê, Pinheiros e Tamanduateí, permaneceria como
um pequeno entreposto comercial no interior de uma economia predominantemente
agrária. O crescimento de São Paulo somente passaria a ser significativo a partir da
segunda metade do século XIX, em consequência da produção cafeeira. O maior
índice de crescimento populacional, 5,58% ao ano, será registrado na década de 1950
e está relacionado à industrialização. A partir da década de 1980 o ritmo de
crescimento populacional desacelera, sendo a taxa entre 2010 e 2019 de apenas
0,55% ao ano6.

O tecido urbano do Município de São Paulo está estruturado por um sistema


de avenidas radiais a partir do centro da cidade e de avenidas marginais aos rios Tietê
e Pinheiros. O Município de São Paulo é praticamente todo urbanizado, com a zona
rural ocupando apenas 14,5% da área total7, concentrada principalmente na porção
sul do município, onde estão as Represas Billings e Guarapiranga, responsáveis pelo
abastecimento de água de cerca de 30% da região metropolitana.

5
Dados disponibilizados pelo IBGE (2019) em https://www.ibge.gov.br
6
Dados da Fundação SEADE: São Paulo 465 anos. Janeiro 2019 em https://www.seade.gov.br/wp-
content/uploads/2019/01/Municipio_Sao_Paulo.pdf
7
Dados SEMPLA.
17

Figura 1. Localização do Brasil no continente sul-americano e das principais


cidades brasileiras

Fonte: https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook
18

Figura 2. Localização do Município de São Paulo no Estado de São Paulo e


Brasil

Fonte: Elaboração própria a partir de Brazil Sao Paulo location map.svg, CC BY 2.5,
https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=69575581
19

Figura 3. Município de São Paulo

Fonte: Google Maps


20

No Município de São Paulo, estimativas da Secretaria Municipal de Habitação8,


a partir do Censo de 2010, mostraram a existência de 10% de domicílios em favelas,
isto é, 445.112, e de 14% de domicílios em loteamentos irregulares, isto é, 385.080.
Em síntese, 24% dos domicílios do Município estariam em “assentamentos
precários”9, sendo que destes cerca de 171.771 domicílios estão localizados em áreas
de proteção aos mananciais, no entorno das represas Billings e Guarapiranga. Em
comparação com os dados de 2000, o total de domicílios em favelas representa um
crescimento de 2,2%, em contraste com a taxa de crescimento de 1,9 do total de
domicílios no Município. Infelizmente a ausência de confiabilidade dos dados sobre
loteamentos irregulares para o ano 2000 não permitem a mesma comparação.

O Município de eThekwini (nome oficial correspondente a Durban no idioma


Zulu) localiza-se na costa leste da África do Sul, na Província de KwaZulu-Natal, a
segunda província mais populosa da África do Sul, com cerca de 20% da população
total do país. O Município abrange uma área de aproximadamente 2.297 km² com
cerca de 3,5 milhões de pessoas (segundo o Censo de 2011), sendo o terceiro mais
populoso da África do Sul atrás de Joanesburgo e Cidade do Cabo, com taxas
decrescentes de crescimento populacional: a população cresceu 1,08% de 2001 a
2011, contra 2,34% de 1996 a 200110.

Em termos topográficos, o município inclui um trecho de 98 km de uma planície


costeira relativamente estreita que se abre para um conjunto de vales fluviais que
conformam a parte oeste da cidade. A natureza ondulatória da topografia resultou no
desenvolvimento de uma forma urbana que tem a forma de um "T" deitado,
desenvolvida ao longo das principais rodovias, em direção ao interior, ao norte, em
direção a Joanesburgo, e ao sul.

8
Em parceria com o Centro de Estudos da Metrópole (SEHAB/CEM, 2016)
9
Utilizamos aqui o termo adotado pela Prefeitura de São Paulo. Uma discussão sobre os termos
utilizados para classificar os lugares habitados pelos pobres será apresentada no capítulo 3.
10
Dados obtidos a partir de Statistics South Africa. Cf. http://www.statssa.gov.za
21

Figura 4. Localização da África do Sul no continente africano e das principais


cidades sul-africanas

Fonte: https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook
22

Figura 5. Localização Município de eThekwini na Província de Kwa-Zulu Natal e


na África do Sul

Fonte: Elaboração própria a partir de Htonl - Own work, CC BY-SA 3.0,


https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=9336736
23

Figura 6. Município Metropolitano de eThekwini (Durban)

Fonte: Google Maps


24

Dentre as grandes cidades sul-africanas, Durban se distingue por abrigar a


maior concentração de Zulus, principal grupo étnico da África do Sul11, assim como
de sul-africanos de ascendência asiática, principalmente indianos. De acordo com o
Censo de 2011, a população do município está dividida entre negros Africanos,
principalmente Zulus e Xhosas (73,8%), asiáticos (16,7%), brancos (6,6%) e mestiços
ou coloureds (2,5) 12.

Assim como no Brasil, a Constituição Sul-Africana divide a República em três


esferas de governo distintas e interdependentes: nacional, provincial e local. Na esfera
local, a Constituição define diferentes categorias de municípios, isto significa que o
governo pode ser representado por uma autoridade metropolitana ou por uma
autoridade distrital, que em geral divide o poder executivo com autoridades locais em
áreas menos urbanizadas13. O papel de líderes tradicionais é reconhecido pela
Constituição Sul-Africana, que lhes confere a possibilidade de estabelecer uma
instituição a nível local para o exercício de sua autoridade local, e a prática do direito
consuetudinário. Os tribunais devem aplicar a lei consuetudinária quando essa lei for
aplicável, sujeita à Constituição e a qualquer outra legislação que lide especificamente
com o direito consuetudinário14.

O reconhecimento dos líderes tradicionais foi motivo de dissenso no âmbito da


elaboração da nova Constituição. A relação entre o governo local e a autoridade
tradicional é, por vezes conflituosa, uma vez que os papéis desses líderes se
sobrepõem aos dos concillors, democraticamente eleitos. O reconhecimento de uma
autoridade tradicional tem sido apontado uma estratégia do partido que assumiu o
poder após o fim do apartheid, o Congresso Nacional Africano (CNA), para mobilizar,
durante as eleições locais, provinciais e nacionais, o apoio nessas áreas
(MNGOMEZULU, 2015).

11
Conversas informais com brancos e zulus indicaram que o termo “Zulu” para a tradição oral desse
povo significa “céu” as pessoas dessa etnia acreditam serem superiores às pessoas de outras. Para
um aprofundamento analítico sobre essa questão cf. LEECH, S.M. Twentieth Century Images of the
“Zulu”: selected representations in Historical and Political Discourse. Dissertação (Mestrado em
História). University of South Africa.
12
Ibid.
13
Cf. Local Government: Municipal Structures Act, 1998 (https://www.gov.za/documents/local-
government-municipal-structures-act)
14
Cf. https://www.gov.za/documents/constitution-republic-south-africa-1996-chapter-12-traditional-
leaders
25

eThekwini é um dos oito municípios metropolitanos existentes atualmente15. Os


municípios classificados como metropolitanos correspondem às cidades
economicamente mais importantes ou conturbações. Esses foram concebidos, após
o fim do apartheid, como uma maneira de reintegrar, sob um único governo, as áreas
centrais das grandes cidades e as townships, que a partir da década de 1980, haviam
adquirido status de governo local. A revisão da demarcação dos limites municipais foi
iniciada nas primeiras eleições municipais pós apartheid, realizadas entre 1995 e
1996, e concluída nas eleições de 2000. Em Durban, em um primeiro momento, o
governo local passou a reunir mais de 40 diferentes autoridades locais em uma
autoridade metropolitana e seis autoridades locais. Posteriormente, essas foram
reunificadas com o estabelecimento do município metropolitano, então renomeado,
eThekwini, em dezembro de 2000.

Com a nova demarcação, algumas terras tribais foram incluídas na área


metropolitana aumentando-a 68%. A população, no entanto, aumentou em apenas
9%, uma vez que a maioria das áreas recém-incorporadas eram de caráter rural, com
50% da área sendo usada para agricultura de subsistência e apenas 2% sob
ocupação urbana16. A inclusão dessas áreas, de baixa ou precária infraestrutura, fez-
se precisamente com o intuito de permitir que fossem beneficiadas através da receita
metropolitana, superior às locais. No total, a área urbana do Município de eThekwini
corresponde atualmente a 84% e a área rural está dividida entre aquela ocupada por
fazendas (0,5%) e aquela considerada como tribal ou tradicional (14,7%)17, esta última
sob a jurisdição de um líder tradicional ou chefe tribal (amakhosi, em Zulu).

Estimativas municipais para o ano 2011 apontavam a existência de cerca de


638 “assentamentos informais” (HDA, 2013, p.38), sendo que cerca de 28% do total
dos domicílios ou 265.542 corresponderiam domicílios informais ou “barracos” (do
inglês shacks) em “assentamentos informais”. Além desses domicílios o déficit
habitacional também inclui os “barracos” construídos informalmente nos quintais de

15
De início eram seis, e atualmente são oito os municípios metropolitanos: Buffalo City (East London);
City of Cape Town; Ekurhuleni Metropolitan Municipality (East Rand); City of eThekwini (Durban); City
of Johannesburg; Mangaung Municipality (Bloemfontein); Nelson Mandela Metropolitan Municipality
(Port Elizabeth) e City of Tshwane (Pretoria). Cf. https://www.gov.za/about-government/government-
system/local-government
16
http://www.durban.gov.za/City_Government/mayor_council/Council/Pages/EThekwini_Municipal_Are
a.aspx
17
Dados obtidos a partir de Statistics South Africa. Cf. http://www.statssa.gov.za
26

propriedades formais (cerca de 48.975) e os domicílios “tradicionais” que necessitam


de melhorias (cerca de 97.266), totalizando a necessidade de aproximadamente 400
18
mil unidades habitacionais . Com relação a 2001, os dados censitários mostraram
uma taxa de crescimento negativa de 1% da variável “shacks not in backyard” utilizada
como proxy para “assentamentos informais”, em contraste com uma taxa de
crescimento de 2% do total de domicílios.

Ao contrário das favelas em São Paulo, onde predominam as construções de


alvenaria, em Durban os assentamentos informais são caracterizados por estruturas
construídas com uma variedade de materiais “menos permanentes”, incluindo chapas
de ferro corrugado, plástico, madeira e, menos frequentemente, pau-a-pique. O chão
é tipicamente terra batida, coberta por material plástico ou carpetes. É comum o uso
coletivo de banheiros construídos informalmente com fossa seca ou banheiros
químicos instalados pela municipalidade, o fornecimento de água por meio de
torneiras comunitárias ou fontes naturais, como rios19 (MARX e CHARLTON, 2003).
De acordo o censo de 2011, apenas 15% dos domicílios informais tem banheiro
conectado à rede de esgoto e 8% tem fornecimento de água dentro do domicílio.
Cerca de 56% tem acesso à eletricidade (HDA, 2013).

1.3 Questões para a investigação comparativa e a conexão Mentoring on


Upgrading Informal Settlements

A Iniciativa aplica experiências práticas das políticas habitacionais de


São Paulo em Durban, já que as duas cidades foram expostas a um
crescimento urbano acelerado que resultou em assentamentos
informais. Também oferece lições para as cidades africanas que
objetivam passar da mera entrega de casas para soluções mais
integradas20

18
Cf. http://www.durban.gov.za/City_Services/housing/Pages/default.aspx
19
Adaptado de Marx e Charlton (2003) a partir de visitas realizadas em 2015 pela autora.
20
‘The Initiative applies practical experiences from São Paulo housing policies to Durban, as the two
cities have been exposed to accelerated urban growth which has led to informal settlements. It also
offers lessons for African cities aiming to move from a delivery approach to integrated solutions’
Disponível em: https://www.metropolis.org/node/967. Acesso em: 21/11/2013.
27

A história do acordo de cooperação técnica Mentoring on Upgrading Informal


Settlements remonta a junho de 2011, quando Durban (cujo nome oficial é eThekwini)
sediou um evento para troca de aprendizados (learning event), organizado em
conjunto pelo Municipal Institute of Learning (MILE) de Durban e pelo Comitê de
Planejamento Estratégico Urbano da rede transnacional Cidades e Governos Locais
Unidos (CGLU). O objetivo geral desse evento enfocado na “governança e no
desenvolvimento urbano” era "promover o conhecimento e a capacidade das cidades
no Sul global" por meio da comparação e avaliação de práticas relevantes,
especialmente aquelas de cidades latino-americanas21.

Em termos práticos, o evento tinha o objetivo estabelecer uma nova


cooperação cidade-a-cidade, através do então recente programa de aconselhamento
e treinamento da CGLU: o Mentoring Program, lançado em 2009. Esse programa, de
acordo com documentos da própria CGLU, buscava integrar o conhecimento das
“cidades do Sul” ao submetê-las a mentorias e avaliações por seus próprios pares.
Por um lado, partia da percepção de que as cidades precisariam de ajuda para elevar
o desempenho e a autoestima de seus funcionários públicos, especialmente nos
momentos de troca de governo e cortes orçamentários. De outro, o programa, ao
primar pelo envolvimento de quadros técnicos, seria uma maneira de preencher a
lacuna deixada por acordos de “cidades irmãs”, geralmente centrados na figura de
prefeitos e outros atores políticos próximos22.

O Municipal Institute of Learning (MILE) foi fundado em Durban em 2009, após


a promulgação pelo governo nacional, através de seu Ministério de Governança
Cooperativa e Assuntos Tradicionais23, de uma ação voltada para o melhoramento do
“baixo desempenho” nos governos locais sul-africanos, the Local Government
Turnaround Strategy. Essa ação enfatizava a importância da "capacidade de
construção e a requalificação adequada dos funcionários do governo local". O Instituto
foi então concebido pelo City Manager24 de Durban, em conjunto com sua equipe,

21
https://www.metropolis.org/node/967. Acesso em: 21/11/2013.
22
UCLG Peer Learning 04 mentoring story: Lilongwe & Johannesburg experience (2008-2012) ,
January 13 http://issuu.com/uclgcglu/docs/jb_lilongwestory?e=5168798/1337741
23
O Ministério é formado por dois departamentos, um dedicado à Governança Cooperativa, isto é,
assuntos federativos, e outro aos Assuntos Tradicionais, isto é, tribais.
24
Em Durban, o cargo de City Manager, ou administrador da cidade, é ocupado por alguém diretamente
apontado pelo Prefeito eleito.
28

quem, à época, também ocupava a vice-presidência do Comitê de Planejamento


Estratégico Urbano da CGLU.

O MILE representava uma resposta oficial, estruturada, à "necessidade urgente


de coordenar e ajudar a direcionar as várias relações de aprendizagem que eThekwini
vinha desenvolvendo com outros municípios, agências e redes"25. No contexto
africano, Durban é reconhecida por outras cidades como uma fonte de expertise26.
Antes da criação do MILE, os funcionários mais experientes desse município
costumavam ser frequentemente chamados a dar treinamento não apenas para
colegas de outros municípios sul-africanos, como também regionalmente, no âmbito
Comunidade de Desenvolvimento da África Austral27. Com a pretensão, portanto de
ser o primeiro instituto de aprendizagem da África para atender a demanda de Durban
e outros governos locais, as atividades do MILE deveriam estar centradas em
"recapacitar os funcionários municipais e muni-los com um conjunto de ferramentas
para enfrentarem mais eficientemente seus desafios cotidianos"28.

A CGLU, por sua vez, foi fundada em 2004, a partir da fusão de antigas
associações como a União Internacional de Autoridades Locais (IULA, fundada em
1913) e a Federação Mundial de Cidades Unidas (FMCU, fundada em 1957) e a
incorporação da rede Metropolis (fundada em 1984 e ainda ativa). Em uma nota feita
a pedido da CGLU, que reúne prefeitos e representantes de cidades
independentemente de seu tamanho, Tim Campbell, ex-consultor do Banco Mundial,
apontou que “ao invés de um fornecedor direto, especializado, a CGLU deveria ser
uma instituição de ensino generalista, uma âncora preocupada com o papel geral da
aprendizagem contínua por cidades e suas associações e organizações afiliadas ”
(CAMPBELL, 2012, p.2). Seguindo essa direção, o programa de aconselhamento

25
eThekwini Municipality 2009. Rationale for a Municipal Institute of Learning – Mile: Enhancing Local
Government Capacity: for practitioners, by practitioners. Draft Discussion Document.
http://www.mile.org.za/QuickLinks/Documents/MILE%20Founding%20Document.pdf
26
Como explicitou o entrevistado 13, diretamente envolvido na criação do MILE.
27
Southern African Development Community criada em 1992 com o propósito de “promover o
crescimento econômico sustentável e equitativo e o desenvolvimento socioeconômico, por meio de
sistemas eficientes e produtivos, maior cooperação e integração, boa governança, paz e segurança
duradouras, para que a região surja como um ator competitivo e efetivo nas relações internacionais e
na economia mundial. Na prática funciona como um bloco econômico, com acordos de livre comércio
e de cooperação nas áreas de saúde, agricultura, infraestrutura, erradicação de pobreza, entre outras.
É atualmente formada pelos seguintes Estados-membros: Angola; Botsuana; Comores; República
Democrática do Congo; Eswatini; Lesoto; Madagáscar; Malawi; Maurício; Moçambique; Namíbia;
Seychelles; África do Sul; República Unida da Tanzânia; Zâmbia e Zimbábue. Cf. https://www.sadc.int/
28
eThekwini Municipality 2009. Vide nota 10.
29

entre cidades foi lançado em 2009, sendo anunciado como um dos resultados mais
bem-sucedidos da cooperação estabelecida entre a CGLU e a Aliança de Cidades
(Cities Alliance).

A parceria entre a CGLU e a Aliança de Cidades já havia resultado em outras


iniciativas de “aconselhamento”, na África do Sul, que ajudaram a moldar o programa
Mentoring ou programa de aconselhamento. Em 2007, em um evento organizado por
essas duas instituições em Joanesburgo foi apresentada a “Estratégia de Crescimento
e Desenvolvimento de Joburg 2030", a qual refletia parte dos esforços da Aliança de
Cidades na promoção de suas Estratégias de Desenvolvimento de Cidades (Cities
Development Strategies)29, como será visto no Capítulo 4. Em consequência dessa
apresentação, o administrador da cidade (chief executive officer, cargo semelhante ao
de city manager em Durban) de Lilongwe, aproximou-se dos oficiais da cidade de
Joanesburgo, solicitando um programa de orientação para a preparação de uma
estratégia de desenvolvimento para aquela cidade. Essa parceria pode ser
considerada o marco zero do programa de aconselhamento lançado oficialmente em
2009 pela UCLG e largamente apoiado por eventos de “troca de aprendizados”, como
aquele ocorrido Joanesburgo e o que aconteceria em Durban quatro anos depois, em
2011.

Esse evento sediado em Durban parecia funcionar como um importante teste


não só para a CGLU que, juntamente com a rede Metropolis, visava impulsionar a
cooperação sul-sul através da prática de aconselhamento entre cidades, mas também
para o MILE em sua tarefa de adquirir visibilidade internacional como um centro de
expertise para cidades sul-africanas e africanas em geral. Compareceram ao evento
representantes de cidades de vários países: Quênia, Nigéria, Moçambique, Tanzânia,
Índia, Brasil, Canadá, Europa e Austrália. As experiências brasileiras de urbanização
de favelas, desenvolvimento local e participação foram apresentadas naquela ocasião
como exemplos bem-sucedidos de redução da pobreza e promoção dos direitos
humanos, sucesso ratificado pelos representantes de CGLU e Metropolis ali

29
Cf. UCLG and Cities Alliance: Working Together to Support Strategic Urban Planning:
https://www.citiesalliance.org/newsroom/news/cities-alliance-news/uclg-and-cities-alliance-working-
together-support-strategic ; e UCLG Peer Learning 04 mentoring story: Lilongwe & Johannesburg
experience (2008-2012) , January 13
http://issuu.com/uclgcglu/docs/jb_lilongwestory?e=5168798/1337741
30

presentes. Eram experiências, portanto, sobre as quais outras cidades deveriam


aprender.

Durban, considerando o propósito do evento em promover novas parcerias no


âmbito do programa de aconselhamento da CGLU, mostrou interesse em se conectar
com São Paulo. Afinal, para essa cidade, de expertise e capacidade técnica,
reconhecida no território africano, somente interessava estabelecer conexão com um
município cujas políticas urbanas tivessem algum reconhecimento internacional30.
Logo após o evento, a parceria Mentoring on Upgrading Informal Settlements foi
estabelecida entre as cidades brasileira e sul-africana, com previsão de duração de
três anos e meio. De acordo com os documentos oficiais do acordo, os tópicos
específicos sobre os quais Durban desejava “aprender” eram: ferramentas de
planejamento para priorização e monitoramento dos assentamentos; estratégias para
aquisição de terras; métodos de financiamento e padrões construtivos utilizados na
produção habitacional; estratégias para envolver as comunidades ao longo do ciclo
do projeto e a ligação entre os projetos de urbanização de favelas e a geração de
emprego.

Figura 7. Divulgação do acordo de cooperação Mentoring on upgrading


informal settlements

Fonte: Metropolis

30
Como explicitou o entrevistado 13, responsável pela organização do referido evento e pela
coordenação das atividades em Durban no âmbito do acordo de cooperação com São Paulo.
31

Ao mesmo tempo em que a recuperação desses fatos permite entender como


ocorreu o estabelecimento da parceria entre São Paulo e Durban, suscita outras
questões mais amplas, como por exemplo: Como situar essa cooperação na longa
história de conexões entre cidades e da ajuda internacional para o desenvolvimento?
Qual o histórico de Durban em termos de intervenção em “assentamentos informais”?
Quais os benefícios em se envolver nessa parceria para essa cidade? Em que
momento as políticas de urbanização de favelas de São Paulo começaram a ser
internacionalizadas? Como se chegou ao desenho de um modelo com mobilidade?
Quais os atores políticos envolvidos e seus interesses? Essas perguntas nortearam o
desenho da pesquisa, da metodologia e estrutura da tese.

1.4 Desenho da pesquisa, estrutura da tese e metodologia

A tese está estruturada em seis capítulos, a começar por este introdutório. O


capítulo 2 é dedicado à revisão das premissas teóricas e os fundamentos
metodológicos do campo dos estudos urbanos comparativos e à definição do método
utilizado na presente tese. A comparação entre São Paulo e Durban foi construída a
partir de questões lançadas às partes (cidades, redes, instituições) conectadas em
torno da cooperação Mentoring on Upgrading Informal Settlements. Esse método
comparativo, por “decomposição de conexões”, como será aprofundado no próximo
capítulo, ambas as cidades são consideradas como pontos equivalentes em um
processo transescalar de busca e estabelecimento de conexões, por meio do qual
certas políticas são mobilizadas.

O capítulo 3 constitui o "ponto zero" da comparação, no qual as histórias dos


“assentamentos informais” em cidades brasileiras e africanas, com destaque para São
Paulo e Durban, são retraçadas a partir da exploração dos usos de termos e
categorias classificatórias como slum, favela, assentamentos informais, entre outros.
Esses termos são analisados relacionalmente como classificações sociais que,
criados para nomear os lugares habitados pelos pobres estiveram ligadas às reformas
urbanas de caráter sanitarista do início do século XX. Reformas que estiveram
32

diretamente relacionadas com a expansão de “assentamentos informais” nas cidades


brasileiras e sul-africanas.

O capítulo 4 situa a emergência de organizações internacionais, como o


Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (ONU-Habitat) e
Banco Mundial, e da assistência para o desenvolvimento urbano na longa história de
trocas entre cidades. Explora as mudanças nas agendas dessas organizações
internacionais em relação ao urbano, a partir dos anos 1970, enfocando as ações de
slum upgrading e seu papel na institucionalização de um paradigma de política global
disseminado entre os países em desenvolvimento, a partir dos anos 2000, pela
Aliança de Cidades.

O capítulo 5, explora o contexto que propiciou o surgimento das primeiras


experiências de urbanização de favelas em São Paulo e in-situ upgrading em Durban,
nos anos 1980, e qual o lugar que essas ações tiveram na política habitacional dessas
cidades desde então e até o momento em que suas trajetórias se cruzam no
estabelecimento do referido acordo de cooperação “Mentoring on Upgrading Informal
Settlement” em 2011. A reflexão sobre essas trajetórias, uma em relação à outra, e
em face das agências de financiamento e outras organizações internacionais
permitem sugerir respostas para as questões levantadas a partir do olhar inicial para
aquela cooperação e complementar a reflexão sobre os possíveis sentidos desse tipo
de “parceria” para os governos locais em si e para a compreensão de dinâmicas mais
amplas que conectam as cidades.

Vale destacar que os capítulos 4 e 5 devem ser compreendidos como uma


unidade e poderiam ter sua ordem de apresentação invertida sem prejuízos para a
compreensão da pesquisa. A apresentação dos circuitos e atores globais, antes da
análise do desenvolvimento da política nos contextos específicos de cada cidade, tem
o intuito de situá-los na conjuntura que os atravessa. Essa, porém, não é
compreendida, de modo algum, como determinante de seus futuros. Como busca-se
clarificar, no capítulo 5, são múltiplas e singulares as resistências, negociações,
interesses e processos que estão enraizados nos territórios. Por fim, no capítulo 6,
são resumidos os principais achados da investigação e apontados alguns elementos
para pesquisas futuras.
33

Por trás do conjunto dos capítulos está o reconhecimento de que construções


sociais resultam de lutas entre epistemologias, posições, racionalidades, discursos e
práticas conflitantes. No capítulo 2, procura-se examinar como essas lutas se
manifestam por meio de distintas epistemologias nos estudos urbanos, enfocando
aqueles de natureza comparativa. No capítulo 3, busca-se analisar a imaginação
social e a prática relacionada aos lugares habitados pelos pobres, nas cidades
brasileiras e sul-africanas, num recorte temporal mais amplo que remetem à
colonização e ao início da urbanização dessas cidades. Os capítulos 4 e 5 têm por
objetivo traçar as geografias pelas quais as ideias e discursos de planejamento,
especialmente relacionados à urbanização de “assentamentos informais”, são
moldados e adaptados, buscando situar as contingências de histórias singulares.

A coleta de informações e dados sobre a cooperação entre São Paulo e Durban


foi realizada por meio da compilação de diferentes fontes (publicações, relatórios,
apresentações de slides e websites institucionais), bem como da participação em uma
reunião de três dias em São Paulo, uma das reuniões oficiais da parceria. Vinte
entrevistas abertas e em profundidade, com formuladores de políticas (arquitetos,
planejadores, autoridades municipais e acadêmicos) de Durban e São Paulo, listadas
no anexo desta tese, complementaram a análise sobre a parceria, assim como
contribuíram para a construção das trajetórias de urbanização de favelas e in-situ
upgrading nessas cidades.

As entrevistas realizadas com os sul-africanos foram especialmente


importantes para a compreensão dos complexos mecanismos da urbanização sul-
africana e em muito facilitaram a apreensão da bibliografia sul-africana referenciada
ao longo da tese. Além das entrevistas, foi de grande valia a pesquisa de currículos
dos atores-chave envolvidos nas políticas em Durban e em São Paulo. A
compreensão dos percursos profissional e intelectual desses atores muitas vezes
ajuda a esclarecer o discurso e a orientação de políticas e programas pelas quais
estiveram responsáveis. A pesquisa sobre a atuação do ONU-Habitat e Banco
Mundial foi realizada a partir de extensa pesquisa bibliográfica complementada pela
análise de relatórios e outras publicações produzidas por essas organizações.

O método de comparação por “decomposição de conexões” mostrou-se


profícuo como uma forma de aproximar analiticamente os processos de urbanização
34

de duas cidades periféricas. Nesse sentido, pode ser considerado como uma das
muitas possibilidades de se colocar em prática proposições recentes no campo dos
estudos urbanos comparativos e de construir uma história transnacional dos
urbanismos da periferia. Além disso, contribuiu para evidenciar possíveis sentidos da
mobilização de ideias e modelos de políticas, através de organizações
intergovernamentais e as diferentes formas pelas quais isso tem ocorrido
historicamente e no tempo presente.

A análise das trajetórias de urbanização de favelas em São Paulo e in-situ


upgrading em Durban, uma em relação a outra e em relação a circuitos transnacionais
de disseminação de políticas, a partir de meados dos anos 1970 até o momento de
estabelecimento da parceria Mentoring on Upgrading Informal Settlements, desvelou
uma disputa entre diferentes racionalidades, isto é, entre diferentes modos de
conceber a produção do urbano. O sentido emancipatório em torno da produção da
moradia, isto é, a autonomia e controle dos moradores sobre seus territórios, presente
nas iniciativas pioneiras, examinadas em São Paulo e Durban, entre o final dos anos
1980 e início dos 1990, foi gradualmente perdendo força e abrindo espaço para o
desenvolvimento de ações tecnocráticas de provisão de infraestrutura e titulação da
terra com limitada participação social.

Nesse processo de transformação e institucionalização das políticas, embora


seja crucial a compreensão do papel exercido por agências internacionais, como
Banco Mundial e ONU-Habitat, o desvendamento dos papéis exercidos por
determinados atores locais não pode ser considerado menos importante. Afinal, foram
esses atores que, motivados por seus próprios interesses políticos e ideológicos,
fizeram a política acontecer. Ao longo da tese, à medida que as partes que compõem
a cooperação – favelas e squatter settlements em São Paulo e Durban, as respectivas
políticas locais para essas áreas, os fluxos internacionais de ideias e modelos – vão
sendo analisadas e reconectadas, um todo relacionado à urbanização e aos
urbanismos da periferia começa a ser delineado, permanecendo, contudo, em aberto.
35

1.5 Relevância da pesquisa para o campo do planejamento urbano

Em 1968, o arquiteto britânico John F. C Turner deixou o Brasil afirmando


“mostraram-me problemas – favelas, mocambos, alagados, etc. – que considero
soluções. E me mostraram soluções – conjuntos habitacionais de baixo custo – que
eu chamo [de] problemas” (TURNER, 1968). Na virada da década de 1970, as ideias
de Turner em torno de um urbanismo construído de baixo para cima, desenvolvido por
moradores de assentamentos precários, com autonomia e liberdade, foram
amplamente difundidas, especialmente após a publicação de seu livro Freedom to
Build, editado com Robert Fichter, em 1972. Logo depois, tais ideias tornaram-se
comumente associadas ao desenvolvimento de projetos de urbanização de favelas
financiados pelo Banco Mundial em países então considerados subdesenvolvidos
(GILBERT e GUGLER, 1992; WERLIN, 1999; COHEN, 2015).

Desde então, diferentes iniciativas de urbanização de favelas foram financiadas


pelo Banco Mundial, outros bancos regionais e organismos internacionais, em cidades
da América Latina, Ásia e África, embora nem sempre motivadas pelos princípios de
autonomia e liberdade defendidos por Turner. Na virada do século 21, no interior de
um “comparativismo global” entre cidades e de diagnósticos de "favelização" do
mundo, a Aliança de Cidades foi criada, por iniciativa do Banco Mundial e das Nações
Unidas. Sob o slogan “Cidades sem Favelas”, esta coalizão de múltiplos doadores
tem defendido mundialmente a melhoria das favelas como "um processo pelo qual as
áreas informais são gradualmente reparadas, formalizadas e incorporadas à própria
cidade"31. Segundo a definição da Aliança de Cidades, esse processo deveria incluir
não apenas a prestação de serviços básicos (como arruamento, pavimentação,
fornecimento de energia elétrica e saneamento), mas também a segurança da posse
da terra e o acesso à serviços de educação e de saúde.

Não obstante a circulação internacional de ideias de urbanização de favelas,


faltam estudos comparando a variedade dessas políticas em cidades de diferentes
países. As barreiras linguísticas certamente são um fator relevante para essa lacuna,
mas há outras razões possíveis. Intervenções em favelas e as políticas de

31
http://www.citiesalliance.org/About-slum-upgrading#Why_is_slum_upgrading_important
36

urbanização de favelas são muito complexas32 e, por isso, acabam sendo geralmente
analisadas através de estudos de casos restritos a uma cidade ou à política nacional
de um país. Já as publicações que reúnem um grande número de experiências e
localidades, não se detêm em análises comparativas33.

Mais recentemente, alguns estudos se propuseram a analisar a urbanização de


favelas como um modelo urbano em escala global (COCHRANE 2011; JONES 2012).
Tais estudos, no entanto, não abordam suficientemente questões importantes como,
por exemplo, em que medida as políticas implementadas em certas localidades seriam
reproduções de um modelo circulante ou reflexos dos contextos sociais, econômicos,
políticos e institucionais das cidades.

A presente tese procura contribuir para preencher essa lacuna. A pesquisa aqui
apresentada busca dialogar com estudos que de algum modo analisaram as
imbricações entre as experiências brasileiras de urbanização de favelas, a circulação
de ideias sobre este tema e a atuação das organizações internacionais (ROSSETTO,
1993; WERNA, 1996; DENALDI, 2003; SILVA JUNIOR, 2006; BITTENCOURT, 2018).
Baseando-se em um senso relacional de espaço, argumenta-se que o exame de
interconexões sobre a urbanização de favelas pode ser uma maneira competente de
submeter relacionalmente a esfera global e local de elaboração de políticas ao
escrutínio analítico. O objetivo com esse esforço é duplo: primeiro, explorar o que
McCann e Ward (2010) chamaram de tensão aparente ou o conjunto necessário do
que está "em movimento" e do que está "encravado no lugar"; e segundo, levando
adiante as proposições de Robinson (2016), "pensar com as interconexões e as
diferenças", examinando assim as convergências e diferenciações de políticas de
urbanização de favelas em diferentes instâncias.

A presente tese se insere, portanto, em um conjunto de reflexões sobre “o


poder das escalas” (VAINER, 2002), segundo as quais, os movimentos econômicos,
políticos e mesmo culturais das últimas décadas do século XX teriam revelado as

32
São projetos que exigem nos governos locais a existência de equipes especializadas (de
engenheiros, arquitetos, urbanistas, assistentes sociais e advogados), demoram muito para serem
executados, marcados por mudanças demográficas e não raros conflitos sociais, envolvem intricadas
questões ambientais e geotécnicas, e são completamente dependentes de outras legislações locais e
nacionais sobre a regulação da terra, construção e meio ambiente.
33
Vale mencionar algumas exceções: Huchzermeyer (2004), Minnery et al. (2013) e Muchadenyika e
Waiswa (2018) são bons exemplos.
37

incongruências de concepções baseadas na fixidez das escalas e nos países como


unidade de análise primordial. A reestruturação político-econômica implicou em
diferentes formas de reescalonamento que caracterizam a globalização dos fluxos
econômicos, o esvaziamento do estado nacional, a reorganização de economias
localizadas e aglomerados, a organização e regulação do trabalho (PECK, 2002).
Nesse contexto, seriam necessárias abordagens capazes de combinar as múltiplas
escalas (local, regional, nacional, global,) conformando o que Vainer (2002, p. 14)
designou por “estratégias (analíticas e políticas) transescalares”.

No âmbito do Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza (ETTERN) do


IPPUR, um conjunto de estudos, dedicados a examinar a reconfiguração das relações
entre Estado, economia e sociedade, de um lado, e entre Estados nacionais e
corporações transnacionais, de outro (VAINER, 2002, p. 15), foi produzido. Esses
estudos enfocaram o papel de consultores estrangeiros e agências multilaterais na
conformação das políticas urbanas (RIBEIRO FILHO, 2006), especialmente a partir
dos anos 1990, por meio da difusão do planejamento estratégico (VAINER, 2000a,
2000b; SÁNCHEZ, 1997, 1999, 2001; OLIVEIRA, 1999, 2003; LIMA JUNIOR, 2000,
2010) e do financiamento à urbanização de favelas (SILVA JUNIOR, 2006).

Ao propor a construção de uma análise transescalar que permite a comparação


entre casos singulares, pretende-se contribuir para o desenvolvimento do campo dos
estudos comparativos no Brasil. Algumas importantes contribuições feitas para esse
campo merecem ser destacas, como a análise comparativa da estruturação
intraurbana e da segregação em seis metrópoles brasileiras feita por Villaça (1998)
com base nos modelos da Escola de Chicago. E a análise de 14 metrópole brasileiras
empreendida mais recentemente por Ribeiro (2017) combinando resultados empíricos
locais a um todo causal, a partir de uma reflexão das estratégias comparativas
sistematizadas por Tilly (1984) e retomadas por Brenner (2001), as quais serão
tratadas no capítulo 2.
38

1.6 Conclusão do capítulo

Estudos comparativos, como nos lembra Pickvance (1986, p. 180) não


substituem as monografias aprofundadas sobre um único caso, mas permitem
identificar certas estruturas não perceptíveis às análises monográficas, que
comprometidas com as particularidades e a complexidade de explicar uma realidade
singular são pouco dadas ao pensamento abstrato. Para este autor, entre as
monografias e as análises comparativas, estaria o importante trabalho de identificar
possíveis características estruturais ou, mais modestamente, dimensões de
comparação entre casos que sirvam de base para comparações futuras mais
aprofundadas. É o que se espera que seja a principal contribuição desta tese, que
contribua para outras análises comparativas, seja aprofundando as dimensões, aqui
identificadas, das políticas para favelas (e formas similares de moradia alhures), seja
conectando outros urbanismos da periferia.
39

2 COMPARANDO CIDADES ATRAVÉS DE CONEXÕES

É possível observar nos estudos produzidos a partir dos anos 1950,


predominantemente no idioma inglês, a emergência de um campo denominado
“estudos urbanos comparativos” sob o qual passam a serem rotuladas diferentes
abordagens comparativas sobre o fenômeno urbano com origem nas ciências sociais,
sobretudo na sociologia e na ciência política (SJOBERG, 1959; ABU LUGHOD, 1975;
CASTELLS, 1976; WALTON, 1975, 1976, 1981; WARD, 2008). Após o ápice
experimentado nos anos 1970, esse campo se enfraqueceu até ser reavivado no início
do século XXI (NIJMAN, 2007; WARD, 2010; ROBINSON, 2011). Para os estudiosos
envolvidos neste revival, a abordagem comparativa seria essencial à uma necessária
revisão crítica da teoria urbana, em face das mudanças trazidas pela globalização e
pela escala planetária da urbanização no mundo contemporâneo (SCHMID, 2012).

Na justificativa para essa retomada dos estudos urbanos comparativos


argumenta-se que a intensificação da conectividade entre as atividades sociais e
econômicas, por meio de extensivos fluxos espaciais e redes de comunicação, teria
levado urbanistas e governantes de diferentes cidades a se interessarem cada vez
mais pelas experiências de outras cidades (ROBINSON, 2011). Observar-se-ia,
assim, nas últimas décadas um aumento significativo da competição entre cidades,
da produção de rankings34, segundo critérios diversos (WARD, 2010), e a promoção
de políticas prontas (PECK, 2002).

Os representantes dessa literatura, incomodados, de um lado, com a ausência


de uma reflexão nos estudos até então existentes sobre os conceitos de lugar, escala
e espaço (WARD, 2008), e de outro, com a restrição dos estudos e por extensão da
teoria urbana, a um grupo reduzido de cidades (ROBINSON, 2002; ROY, 2003),
passaram a defender uma abordagem comparativa relacional (WARD, 2008, 2010),
aberta a experimentalismos (ROBINSON e MCFARLANE, 2012), e sensível à
realidade de cidades ordinárias (ROBINSON, 2006), aos urbanismos subalternos

34
Esses rankings de cidades são informados por outros há muito feitos por corporações privadas para
informar processos decisórios sobre onde, por exemplo, instalar escritórios regionais, fábricas e etc
como mostra a literatura da economia regional, a qual, no entanto, não será analisada nesta tese.
40

(ROY, 2011) e à mobilidade de projetos e políticas urbanas (PECK e THEODORE,


2010; MCCANN e WARD, 2011; ROBINSON, 2013).

Não obstante o uso da comparação seja intrínseco ao desenvolvimento das


ciências sociais e dos estudos urbanos, ora de modo mais explícito, ora menos,
busca-se, no presente capítulo, sistematizar essa literatura escrita originalmente em
inglês, que passou a refletir de maneira mais sistemática, na última década e meia,
sobre a abordagem comparativa como um caminho para a renovação da teoria urbana
crítica. Uma vez que é essa literatura de natureza teórica que embasa a pesquisa
empírica apresentada nos capítulos seguintes. Antes, porém, de prosseguir com a
sistematização analítica desse debate, considera-se necessário situá-lo
historicamente.

Desse modo, a primeira parte do capítulo apresenta brevemente as diferentes


premissas teóricas que orientaram o uso da comparação nos estudos urbanos, assim
como alguns debates sobre o uso do método comparativo. Em seguida, detém-se
nessa literatura escrita originalmente em inglês, que passou a refletir de maneira mais
sistemática, na última década e meia, sobre a abordagem comparativa como um
caminho para a renovação da teoria urbana crítica. Na última parte do capítulo,
apresenta-se o método comparativo utilizado nesta tese para comparar as trajetórias
das políticas de urbanização de favelas em São Paulo e de in-situ upgrading em
Durban.

2.1 Diferentes premissas teóricas sobre o urbano e o uso da comparação

[As] modificações da visão erudita que uma sociedade adquire dela


própria se produzem periodicamente, e constituem no fundo, a própria
história das ciências sociais. Para interpretá-las devemos tentar
compreender como nasce um objeto de “ciência” dentro da interação
entre o mundo da pesquisa e o mundo propriamente dito (TOPALOV,
1988, p. 15).

Tanto a maneira pela qual o urbanismo é teoricamente entendido se


reflete nos métodos de comparação empregados quanto a escolha do
método restringe o tratamento teórico (WALTON, 1981, p. 24,
tradução nossa).
41

O mundo universitário, como todo universo social, é o lugar de luta


sobre sua própria verdade e a do mundo social mais amplo
(BOURDIEU e WACQUANT, 1992, p. 50)35.

A compreensão do processo de construção de um campo de estudos urbanos


comparativos passa por questionamentos relacionados, de um lado, à própria
definição do que seria o urbano e, de outro, à compreensão do que poderia ser
considerado um estudo comparativo, preocupação compartilhada nas ciências socais
como um todo. Para Walton (1981), uma maneira de analisar a produção no interior
do campo dos estudos urbanos comparativos seria através do agrupamento e
contraste de suas premissas teóricas (muitas vezes implícitas) sobre o que é o urbano,
ou sobre o quê seria mais importante e característico deste fenômeno. Como se verá,
a maneira pela qual o fenômeno é conceituado tem implicações metodológicas, assim
como a escolha do método comparativo pode limitar ou fazer avançar a teoria.

Diferenciar o que seria ou não comparativo é uma tarefa bastante complexa, a


qual historicamente não tem se restringido à problemática do urbano, mas se
estendido à produção das ciências sociais como um todo. Como afirmou Evans-
Pritchard (1978), no seu estudo clássico sobre os Nuer, a comparação faz parte dos
processos mais elementares do pensamento humano. E nas ciências sociais, o uso
da comparação tem sido intrínseco ao seu desenvolvimento desde o século XIX, seja
para o desenvolvimento de teorias explicativas sobre o “outro”, seja para a elaboração
de explicações sobre regularidades empíricas de certos fenômenos sociais ou ainda
sua interpretação em face de critérios substantivos ou teóricos.

Por exemplo, uma pioneira e importante contribuição ao método comparativo,


no campo da antropologia, foi deixada por McLennan (1865 apud WOORTMAN, 1998)
com seu estudo sistemático comparativo das instituições das sociedades primitivas.
Na sociologia, Comte, Marx, Durkheim e Weber, ainda que de modo bastante
diferenciado, utilizaram-se da comparação como instrumento de explicação e
generalização (SCHNEIDER e SCHIMITT, 1998). Marx, por exemplo, trabalhou com
o confronto de diferentes casos históricos singulares, enquanto Weber, contrapondo-

35
Citado em CATANI, A.M. As possibilidades analíticas da noção de campo social. Educ. Soc.,
Campinas, v. 32, n. 114, p. 189-202, 2011.
42

se ao empirismo positivista e monocausal de Durkheim, buscou compreender os


fenômenos sociais por meio da análise interpretativa dos indivíduos e suas ações, a
partir da construção de tipos ideais. Já Bendix (1963, p. 532 apud WARD 2008, p.14),
numa das primeiras obras a lidar com as os fundamentos metodológicos da sociologia
comparativa, sob a influência de Weber, argumentou que essa se constitui de uma
tentativa de elaborar conceitos e generalizações em um nível entre o que é verdadeiro
para todas as sociedades e o que é verdadeiro para uma sociedade em um
determinado ponto do tempo e espaço.

Uma vasta produção sobre a abordagem comparativa nas ciências sociais,


porém, tem explorado não apenas a natureza do que deva ser considerado uma
análise comparativa, como também a escolha das unidades a serem analisadas e os
métodos a serem adotados (BENDIX, 1963; PZEWORSKI e TUENE 1970; LIJPHART,
1971; SKOCPOL e SOMERS, 1980; RAGIN e ZARET, 1983; TILLY, 1984; entre
outros)36. Do ponto de vista metodológico, segundo Ragin (1981, p. 102 et seq), nem
todo estudo sociológico deveria ser considerado comparativo, uma vez que os
desafios enfrentados por aqueles comprometidos com os estudos comparativos não
seriam similares àqueles enfrentados por todos os cientistas sociais. Apenas os
estudos explicitamente comparativos, baseados em um conjunto de metodologias
bem definidas, deveriam ser considerados como tal. Para Ragin, a diferença entre os
estudos comparativos e os não comparativos estaria no criterioso método com o qual
os estudos comparativos são obrigados a especificar as sociedades que buscam
comparar.

Na sistematização de Tilly (1984, p. 83) existiriam quatro métodos histórico-


comparativos ou quatro tipos de comparação. A “comparação individualizada”, na qual
um pequeno número de casos é contrastado com o objetivo de apreender as
peculiaridades de cada caso; a “comparação universalizada” que objetiva estabelecer
que cada caso ou manifestação de um fenômeno segue essencialmente a mesma
regra; a “comparação por determinação de variação” que visa estabelecer um
princípio de variação no caráter ou intensidade de um fenômeno, examinando as
diferenças sistemáticas entre os casos; e a “comparação abrangente”, na qual,

36
Alguns elementos metodológicos discutidos são a equivalência funcional entre unidades
comparáveis, o modo como similaridades e diferenças são teorizadas e a definição de causalidade.
43

diferentes casos seriam compreendidos como situados em posições variadas no


interior de um mesmo sistema (capitalismo, globalização), sendo, portanto, explicados
em função das variadas relações que estabelecem com o sistema como um todo.

No estudo das cidades, embora o uso da comparação remonte à Grécia Antiga,


passando pela publicação de The Greatness of Cities por Giovanni Botero, no século
XVI, e pelos trabalhos de Fustel de Coulanges, Adna Weber e Max Weber, entre
meados do século XIX e início do XX, a reflexão explícita e sistemática sobre o uso
da comparação nos estudos urbanos seria relativamente mais recente, tendo sido
iniciada na segunda metade do século XX (SJOBERG, 1959; WALTON, 1981),
quando a ascendência das cidades sobre o campo nas sociedades modernas tornava-
se cada vez mais perceptível.

Desde então, entre os que se dedicam ao estudo da comparação nos estudos


urbanos, parece ter se construído certo consenso quanto ao fato de que a mera
apreensão da diversidade e a observação de semelhanças e diferenças não seriam
suficientes para constituir uma análise urbana comparativa (WALTON, 1990;
PICKVANCE, 1986, 1995; KANTOR e SAVITCH, 2005). Existiria, assim, uma
diferença entre a mera pesquisa comparativa e a análise comparativa, sendo esta
fundada na atribuição da causalidade aos fenômenos. Em outras palavras, apenas a
pesquisa e o tratamento de dados não seriam suficientes à análise comparativa, para
a qual seria imprescindível a tentativa de atribuição de sentido aos dados, por meio
do uso de um ou mais modelos explicativos. Se é verdade que toda análise, isto é,
qualquer tentativa de busca por causas, poderia ser considerada comparativa, mesmo
quando referente a um único caso, quando uma situação observada pode ser
comparada com uma situação imaginada (PICKVANCE, 2001), a análise urbana
comparativa “por convenção” deveria se diferenciar deste tipo de “comparação
mental” e envolver a análise de dois ou mais casos.

Com relação aos modelos explicativos, Walton (1981, p.24) indica, em sua
revisão sobre os estudos urbanos comparativos, que o campo poderia ser analisado
de acordo com quatro diferentes abordagens teóricas sobre o urbano: a cidade como
um sistema de mercado, a cidade como mecanismo de integração social, a cidade
como um centro de pluralismo social e, a partir dos anos 1970, a cidade como causa
e consequência do desenvolvimento. A seguir, serão brevemente detalhados os
44

elementos conceituais dessas abordagens, procurando contextualizar de forma mais


ampla seu desenvolvimento.

É necessário compreender que por trás da defesa do uso da comparação, a


partir dos anos 1950, estava uma concepção de cidade baseada na existência de uma
associação positiva entre industrialização, urbanização e desenvolvimento. Essa foi a
concepção predominante na primeira metade do século XX, inclusive no campo do
pensamento crítico de inspiração marxista. Esses pressupostos desenvolvimentistas,
centrados na existência de estágios e fases de crescimento das sociedades e, por
extensão, das cidades – que já estavam de algum modo implícitos nas teorias
sociológicas clássicas do século XIX (de Emile Durkheim, Max Weber e Karl Marx) e
de forma explícita na já citada obra de Adna Weber – impulsionaram a construção da
sociologia urbana nos Estados Unidos, representada de modo exemplar pela Escola
de Chicago (SMITH, 1991), dando origem às teorias da modernização37 e da ecologia
humana.

No seio do paradigma da ecologia humana, no final dos anos 1950, Sjoberg


(1959 apud ZUKIN, 1980) argumentava que a expansão dos estudos sobre a
urbanização, a partir da abordagem comparativa ou de uma teoria geral, era um dos
problemas fundamentais da sociologia urbana. Para este autor, a estrutura social e
urbana na América não poderia ser compreendida sem que se recorresse aos estudos
comparativos. A comparação aparecia então como um recurso necessário à própria
definição de cidade e sua transformação ao longo da história (SJOBERG, 1960;
CAHNMAN, 1966). Apenas por meio da abordagem comparativa e da separação entre
o geral e o particular seria possível construir um conhecimento dado à percepção de
aspectos gerais do fenômeno urbano-industrial, comum a muitas cidades, e aspectos
devidos às dinâmicas sociais e culturais singulares de algumas cidades pesquisadas
(Sjoberg, 1959 apud ROBINSON, 2006, p.59-60). Os estudos comparativos estavam
divididos, naquela época, entre aqueles em que a cidade era vista como um
mecanismo de integração social38, seguindo a tradição de Louis Wirth, e aqueles, sob

37
As teorias da modernização desenvolvidas neste contexto terão importantes implicações para o
desenvolvimento de políticas voltadas para os países que se intensificam a partir dos anos 1960. Será
então sob influência desta lógica que as primeiras ações de desenvolvimento urbano do Banco Mundial
serão criadas, a partir dos anos 1970. Esse tópico será melhor tratado no capítulo 4.
38
Walton (1981) destaca no interior dessa abordagem o estudo realizado por Goldrich et al. (1970), o
qual compara a integração política de assentamentos urbanos de classe baixa em Santiago e Lima.
45

a influência dos estudos de Ernest Burgees, em que a cidade seria correspondente a


um sistema de mercado, sendo o espaço de algum modo governado pelas forças
neutras da competição.

Paralelamente a essas abordagens, emergia o community power debate,


preocupado com a discussão do poder político na cidade. A organização social urbana
passava a ser vista menos como um resultado da regulação homeostática ou da
integração normativa, e mais, seguindo a definição de poder de Weber, como produto
da capacidade e dos interesses dos indivíduos em “realizarem sua própria vontade
em ações comunais, apesar da resistência dos outros” (WALTON, 1981, p. 26) 39.

Esse debate que teve início, nos Estados Unidos, com os estudos de Floyd
Hunter sustentando que a cidade seria permanentemente dominada por um grupo
limitado de atores políticos, e de C. Wright Mills, para quem o poder da elite derivava
da posição social ocupada por seus integrantes em uma sociedade desigual, ganhou
proeminência com a contraposição de Robert Dahl insistindo que o poder político
dependia da capacidade de grupos de interesses plurais, constituídos no interior de
uma economia de mercado e governo democrático, em se fazerem prevalecer na
formação de governos e políticas e, portanto, coalizões estáveis poderiam se dissolver
com o tempo (MARQUES, 2017). Essa abordagem foi responsável por uma grande
produção de estudos comparativos entre cidades (WARD, 2008).

A partir dos anos 1970, em contraposição às visões da cidade como produtos


da integração social ou da regulação do mercado vão surgir as explicações derivadas

Em primeiro lugar, Goldrich e seus colegas observaram que a integração das comunidades, em ambas
as cidades, variava ao longo do tempo e declinava a medida em que os assentamentos se tornavam
mais permanentes e os seus habitantes se sentiam menos ameaçados pela falta de ou remoção de
serviços. Em segundo lugar, observaram diferenças nacionais: Santiago se tornara mais integrada que
Lima por conta de posições mais favoráveis dos santiaguenhos em relação ao regime politico da época.
Concluem que, ao contrário de muito da teoria à época, a integração comunitária seria um processo
descontínuo e afetado pela severidade das sanções políticas contra a organização.
39
Um exemplo interessante dentro dessa abordagem é o de Leeds e Leeds (1976), que trata das
diferenças contextuais nacionais e urbanas no comportamento político de “invasores” no Brasil, no
Chile e no Peru. O ponto central do estudo é que a natureza da organização política e da estratégia
empregada pelos pobres depende tanto de suas necessidades quanto das estruturas de oportunidade
que lhes são apresentadas pelos sistemas políticos urbanos e nacionais. Esses sistemas variam entre
países em termos de estruturas partidárias e burocráticas, mecanismos institucionais de cooperação
ou cooptação e repressão. Os “invasores”, portanto, organizam-se instrumentalmente de formas
variadas, porém previsíveis, em resposta a esses mecanismos de poder. Acordos clientelistas são por
vezes a única alternativa factível para os pobres, mas o estudo mostra que essas formas de
organização, ainda que organizadas de modo variado, acabaram sendo bem-sucedidas em todos os
países analisados.
46

da escola de sociologia francesa e da escola marxista norte-americana. Um artigo


exemplar desse período é Is there an urban sociology? publicado por Manuel Castells
em 1968. Nesse artigo, Castells (1976) retoma algumas das revisões de literatura
existentes sobre o fenômeno urbano, como aquela realizada por Sojberg (1959),
buscando averiguar em que medida a cidade, um objeto real, deveria ser
simplesmente concebida a partir de outros objetos científicos, ou poderia ser
considerada uma entidade sociológica.

Para além dos estudos de natureza técnica e econômica sobre problemas


urbanos, incluídos os estudos de planejamento urbano, existiriam os estudos onde a
abordagem sociológica ou “quase-sociológica” se fazia presente (CASTELLS, 1976,
p.33). Estes, porém, eram realizados ora sob o enfoque dos estudos demográficos
sobre a urbanização ao redor do mundo, ora da desorganização social e
aculturamento seguindo a tradição de Chicago, ora da integração social na tradição
dos estudos sobre comunidades, ora da ciência política. Diante da constatação dessa
enorme fragmentação na literatura, a conclusão de Castells é de que no interior do
que se denominava sociologia urbana havia uma combinação de falta de teoria e foco,
tão necessários à uma ciência explanatória, fazendo-se, portanto, necessário a
construção de um novo paradigma para interpretação do urbano.

As concepções dos fenômenos urbanos atreladas à modernidade, de um lado,


não permitiam explicar, por exemplo, a industrialização e urbanização acompanhada
de precariedade e pobreza das cidades do “Terceiro Mundo” (ABU-LUGHOD, 1975).
De outro, pareciam também não serem mais adequadas para explicar transformações
sociais e urbanas que afetavam os países ricos, marcados, de diferentes formas, por
conflitos urbanos contra a segregação racial e a pobreza, pela mobilização política de
comunidades ao redor do emprego e da educação, e por protestos contra projetos de
renovação urbana e em defesa da habitação social (ZUKIN, 1980, 2011) 40.

40
A expressão “Terceiro Mundo” foi criada em 1952 pelo demógrafo francês Alfred Sauvy (em alusão
ao Terceiro Estado da época da Revolução Francesa) e ganhou notoriedade no bojo da Conferência
de Bandung, realizada em 1955 na Indonésia, onde estiveram reunidos 29 líderes de Estados
independentes para discutir solidariedade à África e Ásia, oposição ao colonialismo e às politicas de
guerra fria dos EUA e União Soviética, e buscar formas de cooperação econômica e cultural uns com
os outros (BISSIO, 2015). O Terceiro Mundo reunia um conjunto de nações muito distintas, de limitado
nível de desenvolvimento econômico, e que possuíam em comum o fato de haverem constituído a
periferia colonial ou semicolonial (VISENTINI, 2015). Para Mignolo (2017), a reunião desses países
47

Em consequência, um novo paradigma, o da economia política da urbanização,


passou a ser desenhado, dando origem particularmente nos Estados Unidos,
Inglaterra e França, a uma nova sociologia urbana (ZUKIN, 1980; WALTON, 1993).
Duas obras podem ser consideradas fundacionais no desenvolvimento desse
paradigma: La Question Urbaine, publicada na França por Manuel Castells, em
196841; e Social Justice and the City publicada nos Estados Unidos em 1973, por
David Harvey42 (FRIEDMANN, 1986; FAINSTEIN, 1997). Em linhas bem gerais, a
urbanização passava a ser vista como parte do processo de acumulação do capital,
mas o que interessa destacar aqui é que o desenvolvimento dessas grandes teorias
sobre o urbano teria provocado o crescimento do interesse pela abordagem
comparativa nos anos 1970 (PICKVANCE, 1986).

Uma contribuição fundamental para o desenvolvimento da perspectiva


comparada sob esse novo paradigma, neste momento, é a teoria geral do
desenvolvimento capitalista de Immanuel Wallerstein43. Para Wallerstein (1974b,
p.390), no decorrer dos séculos XIX e XX teria existido apenas um sistema mundial,
a economia capitalista mundial, sendo a posição ocupada pelos países – central,
periférica e semiperiférica – nesse sistema determinante de seu desenvolvimento.
Assim, análises comparativas somente poderiam ser realizadas e fariam sentido se
consideradas no âmbito desta totalidade historicamente específica (1974b, p. 391).

Essa visão sistêmica do mundo servirá de base para o desenvolvimento de


novas teorias urbanas centradas na relação entre colonialismo e urbanização (KING,

evidenciou a materialização da consciência sobre a necessidade de descolonização (fazendo emergir


esse conceito) como uma terceira opção em relação ao capitalismo e ao comunismo (MIGNOLO, 2017).
41
Em A Questão Urbana (1983), muito sinteticamente, Castells argumenta que o sistema urbano
deveria ser entendido como uma estrutura determinante no interior do modo de produção capitalista,
isto é, como lugar para a reprodução da força de trabalho. A cidade passa a ser vista como produto da
estrutura social em sua totalidade, ao mesmo tempo o resultado e o desafio das contradições entre
classes.
42
Em A Justiça Social e a Cidade (1980), o principal argumento de Harvey é que para compreender as
cidades e suas formas espaciais, é preciso analisar as forças sistêmicas que determinam a produção,
a distribuição e a troca no sistema capitalista, o qual geraria riqueza por meio do crescimento
econômico, mas ao mesmo tempo dependeria da reprodução da escassez para o seu próprio
funcionamento.
43
Wallerstein (1974; 1980; 1989) se utiliza da pesquisa histórica empírica para especificar a teoria
geral do desenvolvimento capitalista. Para o autor, a única forma de sistema social existente é o
sistema-mundo, definido por uma única divisão do trabalho e múltiplos sistemas culturais. Nesta
perspectiva, poderiam existir duas variedades de sistemas mundiais: um baseado em um sistema
político comum como no tempo dos impérios mundiais, e outro baseado no desenvolvimento de uma
economia mundial.
48

1989) e no papel desempenhado por cidades mundiais e globais (FRIEDMANN, 1986;


SASSEN, 1991). Os estudos urbanos comparativos tinham por objetivo verificar em
que medida casos empíricos se mostravam aderentes ao novo paradigma. Harloe e
Maartje (1984), por exemplo, analisam sem ignorar a importância das estruturas
nacionais, mas com foco no funcionamento geral do capitalismo, o funcionamento dos
mercados e a produção habitacional em seis diferentes países (Estados Unidos,
França, Alemanha, Holanda, Reino Unido e Dinamarca). Mas não apenas os países
europeus e norte-americanos seriam objeto de releitura a partir da economia política,
uma parte significativa dos estudos urbanos comparativos nos anos 1970 estavam
voltados a compreender a “urbanização do Terceiro Mundo” (ABU-LUGHOD e HAY,
1977).

Na América Latina, onde o pensamento urbano vinha desde os anos 1950 e


1960 sendo influenciado, de um lado, pela sociologia funcionalista, teorias da
modernização e marginalidade, e de outro, pelas ideias cepalinas44 de
desenvolvimento estrutural e industrialização, o novo paradigma da economia política
da urbanização abriu espaço para as teorias da dependência, com centralidade para
as figuras de Aníbal Quijano e Manuel Castells (GORELIK, 2005). Castells, em 1973,
publica o artigo “La urbanización dependiente en América Latina”, no qual argumenta
que a análise da organização espacial latino-americana, deveria ser conduzida à luz
da especificidade da posição historicamente ocupada pela América Latina no âmbito
do modo de produção capitalista, isto é, na perspectiva de uma urbanização
dependente. Em sua análise, a urbanização dependente, derivada dos diferentes tipos
de dominação que traçaram a história do continente: a colonial, a capitalista-comercial
e a imperialista (industrial e financeira), seria marcada por uma crescente aceleração,
grandes concentrações de população geradas pelo êxodo rural, desenvolvimento
insuficiente da capacidade produtiva (ou incompleta assimilação dos migrantes ao
sistema econômico das cidades) e por rede urbana desarticulada.

Concomitantemente, programas dedicados aos estudos urbanos comparativos


são criados em universidades norte-americanas e europeias. Nesses programas, o
interesse pelos países do “Terceiro Mundo”, a “grande novidade sociológica do pós-

44
Referência à CEPAL, Comissão Econômica para a América Latina foi criada pela Organização das
Nações Unidas em 1948, com sede na cidade de Santiago (Chile).
49

guerra” (GORELIK, 2005, p.117), é enorme. Nos Estados Unidos, em 1974, é iniciado
o Comparative Urban Studies Program na Universidade de Northwestern, em
Chicago, sob o comando de Janet Abu-Lughod, seguindo o então já existente
Comparative Urban Studies and Planning Program, dirigido por John Friedmann na
Universidade da Califórnia. Na Inglaterra, o programa de arquitetura tropical iniciado,
na década de 1950, por Otto Koenigsberger na Architectural Association, em Londres,
é transformado em um curso de planejamento para o desenvolvimento incorporado
pela University College London em 1971, onde foi criado o Development Planning
Unit, que terá no seu corpo docente nomes como John F. C. Turner e Alan Gilbert,
citados em diferentes momentos ao longo desta tese. Como se verá no capítulo 4, a
academia norte-americana e europeia terá um papel bastante ativo na expansão da
“ajuda externa” voltada ao “desenvolvimento urbano” dos países do “Terceiro Mundo”.

É importante destacar que, fosse a partir de uma abordagem sociológica e


funcionalista ou centrada na economia política, prevaleceu até o início dos anos 2000
a comparação entre sociedades urbanas similares. Para Walton (1975), por exemplo,
a necessidade de se basear as comparações entre “estruturas equivalentes”,
construídas com base em semelhanças e diferenças especificadas, tinha a finalidade
de demonstrar, por meio de informações empíricas, a ocorrência de processos
comuns. Seguindo um raciocínio similar, Abu-Lughod (1975) chamou de
“comparações legítimas” aquelas construídas entre unidades com similaridades
centrais entre si (e.g. localização regional, nível econômico, aspectos culturais e
históricos comuns), enquanto Castells (1975 apud PICKVANCE, 1986) argumentou
em favor de comparações no interior de um mesmo tipo de sistema e, portanto, contra
as comparações entre ocidente e oriente.

Essa “tradicional cautela” dos estudos urbanos em mover-se em direção a


comparações entre sociedades muito diferentes, para Pickvance (1986), seria
derivada da utilização, até aquele momento, de métodos baseados em modelos
universais de causalidade. Assim, contra a ideia de causalidade única, Pickvance
(2001) sugere a consideração da causação múltipla, onde um mesmo fenômeno seja
analisado como produto de diferentes causas em diferentes ocasiões45. Será essa a

45
Ainda sobre a importância de condições causais combinadas nas metodologias comparativas cf.
Ragin, C. Core versus tangential assumptions in comparative research. Studies in Comparative
50

premissa adotada pelos estudiosos que, a partir dos anos 2000, passaram a defender
uma abordagem da cidade como produto de múltiplas relações em diferentes escalas,
como examinado a seguir.

O que fica evidente a partir da revisão sobre os estudos urbanos comparativos


aqui apresentada, e de outras revisões consultadas (WARD, 2008, 2010; ROBINSON,
2006, 2011; MCFARLANE, 2010; MCFARLANE e ROBINSON, 2012), é o uso da
comparação como recurso metodológico de validação de diferentes paradigmas em
disputa no interior do campo dos estudos urbanos46. O que se observa nas primeiras
décadas do século XXI é mais um esforço de se colocar o método comparativo a
serviço de uma nova abordagem do fenômeno urbano, pós-estruturalista, relacional e
pós-colonial, cuja origem, mais uma vez, encontra-se nos centros acadêmicos norte-
americanos e europeus.

2.1.1 Por uma abordagem pós-estruturalista, relacional e pós-colonial

Uma nova abordagem aplicada aos estudos urbanos ganha força no contexto
de uma longa revisão crítica que passa ser feita, a partir dos anos 1980, em diferentes
lugares e idiomas, quanto à ênfase excessiva colocada sobre as forças estruturais do
capitalismo ou da globalização, e às explicações generalizantes dos fenômenos
urbanos. A revisão apresentada a seguir, no entanto, limita-se à literatura mais
diretamente utilizada para a construção do método comparativo utilizado nesta tese.

No âmbito dessa literatura, Walton (1993, p. 318) critica o "excesso de


confiança" da economia política urbana em simplesmente "ler interpretações de
eventos empíricos", ao invés de perseguir um genuíno senso de perplexidade diante
dos fenômenos urbanos. Esse autor se contrapõe ao modo como a economia política
reduzia questões sociais complexas a uma única explicação causal, e defende que
conexões existentes entre estrutura, consciência e ação deveriam ser aprofundadas.
Na provocação colocada por Massey (1993), a tensão existente entre o

International Development 40.1, 33-38, 2005; e Ragin, C. How to lure analytical social science out of
the doldrums: some lessons from comparative research. International Sociology 21.5, 633-46, 2006.
46
Outra interessante sistematização sobre os diferentes paradigmas de interpretação das cidades,
menos centrada no uso da comparação, foi organizada por Farret (1985).
51

"desenvolvimento desigual" e a "identidade do lugar" deveria ser levada em


consideração, de modo que um contribuísse para a explicação da outra.

É no interior desse debate que começa a ser delineada uma cisão nos estudos
urbanos (e por extensão nos estudos urbanos comparativos). Uma cisão entre os
estudos centrados no desenvolvimento econômico mundial como fator explicativo
chave para a análise urbana e aqueles voltados para a análise de aspectos
relacionados à consciência cultural, localidade e diferença, à constituição do sujeito,
a considerações de gênero e etnicidade. Nas palavras de Massey (2013):

O problema do estruturalismo (e também o problema de outras formas


de temporalidade, tais como a teleologia de certas formas de
marxismo) em relação a uma abertura para a política é concebido
como sendo um fechamento causal. O objetivo tem de ser, portanto, o
de abrir estruturas através da desarticulação que torna a política
possível (MASSEY, 2013, p.72)

Desse modo, embora a natureza relacional do espaço já estivesse presente em


Harvey (1980), esta vai ganhar expansão teórica com as contribuições de Doreen
Massey. Em sua conceituação, inspirada na obra de Henri Lefebvre, o espaço-tempo
é entendido como "construído a partir da multiplicidade de relações sociais em todas
as escalas espaciais" (MASSEY, 1994, p.3). Nesse imaginário, o lugar é concebido
como um "subconjunto das interações que constituem o espaço” ou como “uma
articulação local dentro de um todo mais amplo" (MASSEY, 1994, p. 4). Essa
consideração dos lugares como "redes de relações sociais" tornaria muito difícil
qualquer forma de representá-los no interior de fronteiras desenhadas (MASSEY,
1993, p. 148).

Para Massey, conceituar o espaço como aberto, múltiplo e relacional, não


acabado e sempre em devir, seria um pré-requisito para a compreensão da história
como aberta e, portanto, também para o acontecimento da política. Ao espaço sempre
incompleto e em produção caberiam as características de acaso e eventualidade.
Para essa autora, o espaço deveria ser compreendido como a esfera da
heterogeneidade, das relações, negociações, práticas de compromisso e poder (sob
todas as suas formas) e da coetaneidade. No interior desse arcabouço, as cidades (e
outras entidades espaciais e territoriais) deveriam, portanto, ser compreendidas como
lugares do encontro, momentos articulados em redes de relações muitas vezes
52

construídos numa escala maior do que se costumava considerar e que integra de


forma positiva o global e o local (MASSEY, 2013).

Enfatizando fortemente a particularidade dos lugares, Amin e Graham (1997,


p.418) defendem um olhar para todas as cidades como sendo “ordinárias”, as quais
deveriam ser compreendidas como "espaços onde diversos conjuntos de teias
relacionais se fundem, interconectam e fragmentam". Essa compreensão de
entidades espaciais e territoriais como existentes apenas através de relações ou
conexões mais amplas, as quais por sua vez são também geradas e transformadas
pelas próprias entidades territoriais, trouxe novas percepções para o estudo do
fenômeno urbano, teria feito ressurgir o interesse nos estudos urbanos comparativos,
e transnacionais, que praticamente havia desaparecido após os anos 1980, junto com
o enfraquecimento da interpretação estruturalista (NIJMAN, 2007, p.1).

Nesse sentido, Robinson (2002, 2006) e McFarlane (2010) argumentam,


porém, que a abordagem sistêmica e desenvolvimentista, da qual teria resultado as
teorias da "cidade mundial" (FRIEDMAN, 1986) e "cidade global" (SASSEN, 1991),
assim como, antes, os estudos acerca da modernidade, havia limitado o espectro das
cidades abrangidas pelos estudos urbanos comparativos e, consequentemente, pela
teoria urbana.

Robinson enfatiza que as cidades dos países pobres, quando não


simplesmente deixadas "fora do mapa" dos estudos urbanos, eram retratadas como
megacidades disfuncionais (caracterizadas por sua infraestrutura urbana deficiente,
precariedade construtiva, ausência de planejamento, mercado informal, crescimento
populacional superior ao crescimento econômico e dependência externa). Para essa
autora, todas as cidades, ao invés de serem submetidas a priori a divisões
hierárquicas, deveriam ser tomadas como "ordinárias" e compreendidas em sua
diversidade e complexidade. Tal atitude potencialmente levaria a teoria urbana a um
comparativismo mais cosmopolita, isto é, construído a partir de um conjunto maior e
mais diverso de “cidades ordinárias” (ROBINSON, 2006).

McFarlane (2010, p. 729) incluiu ainda, como parte dessa “herança


empobrecedora” das teorias da modernidade e desenvolvimentistas, os esforços em
torno da adoção de "urbanismos paradigmáticos", a exemplo da Escola de Los
53

Angeles, muito em voga nos anos 1980 e 1990. Mais um caso de "projeção
metodológica" (CONNELL, 2007), no qual dados das cidades na periferia seriam
enquadrados segundo conceitos, debates e estratégias de pesquisa da metrópole,
sem referência ao pensamento social da periferia.

Na crítica de Robinson (2002, 2006) e McFarlane (2010) está também presente


uma postura pós-colonial, influenciada por um conjunto de pensadores críticos do
eurocentrismo como Edward Said, Dipesh Chakrabarty, Achille Mbembe, Partha
Chatterjee. Essa postura, também presente nos trabalhos de Ananya Roy, entre
outros, pode ser traduzida por uma contraposição aos esforços que, centrados em
processos abrangentes, acabaram por reduzir a diferença histórico-espacial à
variação empírica, e na defesa de que maior atenção deveria ser dada a processos
emergentes de múltiplas arenas da prática (ROBINSON, 2002, 2006; ROY 2009,
2011). Roy (2016) argumenta que a diferença deveria ser pensada como constituída
pelas longas histórias do colonialismo e do imperialismo, em sua particularidade. Para
ela, em uma era de urbanização global, os estudos urbanos deveriam ver a diferença
na repetição (JACOBS, 2012) e explorar o desdobramento dos urbanismos "inter-
referenciados" e transnacionais através de "regimes racializados de trabalho e capital"
(ROY, 2016, p. 207).

Em consequência dessas reflexões pós-estruturalistas, relacionais e pós-


coloniais, um novo arcabouço teórico e metodológico começou a ser delineado para
os estudos urbanos comparativos. Ward (2008, 2010) enumera três “fraquezas” que
deveriam ser superadas em direção a “comparações relacionais”: a consideração das
escalas como fixas; a concepção de cidades como unidades fechadas e a
determinação da causalidade por meio de generalizações, isto é, de explicações
universais. Em contraposição, os estudos urbanos comparativos deveriam, na visão
desse autor, considerar as escalas geográficas como contingentes, resultados de
tensões entre forças estruturais e a prática de agentes, de modo a permitir a
compreensão das transformações espaciais e escalares provocadas pela
reestruturação do Estado contemporâneo (BRENNER, 2004; PECK, 2002;
SWYNGEDOUW, 1997, 2000). Em segundo lugar, deveriam considerar as cidades,
ao mesmo tempo, como território e como uma série de atividades não delimitadas,
relativamente desconectas e dispersas, constituídas no interior e através de diferentes
54

redes para além da extensão física das cidades (MASSEY, 1993; ROBINSON, 2006).
Por fim, a relação estabelecida entre causas e efeito também deveria ser vista como
contingente, evitando-se que leis e teorias fossem construídas a partir de resultados
empíricos de certas cidades. Um entendimento que se aproxima da argumentação de
Pickvance (2001) em torno da causalidade múltipla dos processos.

A ideia de “comparações relacionais” foi usada de modo pioneiro pela geógrafa


Gillian Hart (2002). Interessada em questionar análises generalizantes da
globalização e o que denominou de ”modelos de impacto” vindos de outras partes
para a África do Sul, Hart analisa as dinâmicas contrastantes de duas cidades sul-
africanas (Ladysmith e Newcastle) em relação a seus processos históricos de
despossessão rural e industrialização e às conexões estabelecidas com Taiwan e a
China continental. Concebendo a globalização em termos das “múltiplas, divergentes,
mas interconectadas trajetórias de mudança sócio espacial formadas num contexto
de intensificada integração global" (HART, 2002, p. 13), Hart propõe um método
comparativo alternativo, que se recusa a tomar as unidades de análise como partes
de um todo definido a priori.

A defesa de Hart de “comparações relacionais”, baseadas em múltiplas


trajetórias, está fundada na perspectiva teórica de Henri Lefebvre sobre o espaço47 e
na concepção correlata de Doreen Massey (1994) do lugar como constituído por
interconexões socialmente produzidas no espaço-tempo. Foi com base nessas
concepções de espaço e de lugar que Hart traçou as histórias comparativas de
Ladysmith e Newcastle, mostrando como as formas de diferença racial, étnica e de
gênero foram produzidas umas em relação às outras, de maneiras localmente
específicas. Em suma, Hart revelou como interesses políticos e identidades foram
forjados através de jogos de poder e lutas em arenas locais interconectadas, bem
como através de formas muito diferentes de conexão com outros lugares e com
dinâmicas originadas em outras escalas espaciais.

Essa renovada perspectiva do uso da comparação foi reforçada por Robinson


(2011), em sua defesa de um “gesto comparativo” adequado a um “mundo de

47
Concepção relacional da produção do espaço (ou espaço/ tempo) que recusa a separação
convencional do espaço e do tempo. Cf. Lefebvre, H. (1991 [1974]) The Production of Space. Malden,
MA: Blackwell.
55

cidades”. Para a autora, existiriam tantos aspectos de certas cidades reproduzidos em


um mundo de cidades ou influenciados pelos mesmos processos e atores ‒ regimes
de governança, arquitetura e design, tecnologias de gestão, políticas e programas ‒
que as próprias conexões poderiam se tornar o foco da comparação entre cidades.
Dentro dessa proposição, Söderström (2014) vai comparar como duas cidades, Hanói
e Ouagadougou, situadas dentro de múltiplas relações mundiais, foram transformadas
desde o início dos anos 1990. Essa atenção dada às circulações possibilitaria
combinações muito diferentes de cidades num mesmo espaço analítico ou político, e
as relações de comparação evocadas seriam, portanto, muito diferentes daquelas
sugeridas pelas imaginações espaciais territorializadas e formais do comparativismo
convencional.

Roy (2003: 466), por exemplo, utilizou-se de técnicas de estudos


transnacionais para explorar o paradigma da cidadania e suas subversões nos
Estados Unidos. Em vez da busca por "semelhanças e diferenças entre dois contextos
mutuamente exclusivos", a autora se propõe a "trazer questões do Terceiro Mundo
sobre habitação informal para os processos do Primeiro Mundo". Baseado nessa
perspectiva transnacional explorada por Roy, Ward (2010) sugere que trajetórias
interconectadas, onde (alg)uma(s) cidade(s) trazem questões para outra(s), sejam
utilizadas para a construção de comparações relacionais.

Essa perspectiva centrada nas maneiras pelas quais as cidades habitam umas
às outras, menos por relações topográficas, e mais por processos experimentais e
imaginativos que as aproximam ou distanciam, seria dada à observação de
espacialidades topológicas (ALLEN, 2008). Assim, diferentes formas de poder,
operando através e por toda a configuração do espaço, explicariam como pessoas e
atividades em lugares distantes são aproximadas, por meio da circulação e adaptação
de práticas modelos, por exemplo, e como fenômenos próximos são por vezes
"mantidos à distância".

A revisão do campo dos estudos urbanos comparativos, com base numa


literatura predominantemente anglófona, apresentada neste capítulo, evidencia uma
tensão existente entre múltiplas lógicas de explicação dos fenômenos urbanos que se
acumulam historicamente. O uso da comparação, nesse sentido, tem sido um
poderoso recurso para validar ou desqualificar caminhos teóricos. Assim como a
56

crítica de Castells (1976) à falta de coesão dos estudos urbanos até a década de 1970
abre espaço para o desenvolvimento do paradigma da economia política, a crítica de
Ward (2008, p. 30), trinta anos depois, aos estudos urbanos comparativos – “um corpo
de trabalho que tem lutado com questões de identidade organizacional, coerência
teórica e integridade metodológica” – busca pavimentar o caminho para a produção
de estudos comparativos “mais imaginativos e justos da diversidade das cidades”,
explicitamente defendendo o engajamento dos geógrafos nesse processo (WARD,
2008, p. 35).

Nesse sentido, este capítulo contribui para explicitar a luta existente entre as
diferentes abordagens do fenômeno urbano e o uso da comparação. Afinal, como
observou Bourdieu (1989, 2002), o campo intelectual é um espaço, relativamente
autônomo, onde os intelectuais lutam, individual ou coletivamente, para impor sua
visão, pelo monopólio da produção cultural legítima, de acordo com sua posição
ocupada no campo, a qual pretendem transformar ou conservar. Sendo o campo dos
estudos urbanos um campo formado por múltiplas disciplinas, há neste uma disputa
entre distintas “categorias de interesse”.

A compreensão dessa luta no campo dos estudos comparativos não pode


deixar de considerar ainda um aspecto ressaltado por Vainer (2014): o da
colonialidade do saber. Aspecto, em algum grau, reconhecido por alguns dos
estudiosos defensores de uma revisão dos estudos comparativos. Robinson (2002),
por exemplo, sugere que o raciocínio comparativo deva ser de fato “cosmopolita” e
concebido como uma estratégia capaz de revelar novos caminhos para uma teoria
urbana global. Na mesma direção, McFarlane (2010) observa que se deve considerar
a multiplicidade do fenômeno urbano de modo verdadeiramente comprometido em
ultrapassar a oposição entre Norte e Sul48. Para esse autor, um "comparativismo
global" deve ser adotado em reposta aos sistemas hierárquicos herdados do
colonialismo propondo não apenas a comparação entre as mais diversas cidades,
como também a incorporação dos pensadores (e de outras formas de ativismo
intelectual) desses lugares. Dessa forma, sugere McFarlane (2010), a comparação

48
O autor se refere a essas hierarquizações entre Norte e Sul como reflexo de uma longa história de
"categorização geográfica global", nascida no interior do colonialismo europeu, e passando pelas
categorizações Primeiro, Segundo e Terceiro Mundo no contexto da Guerra Fria (McFarlane, 2010, p.
728).
57

deve ser utilizada como um aprendizado ético-político por meio de diferentes culturas
teóricas, da incorporação de uma “corrente de traduções”49 e da consideração do
papel de um conjunto de atores institucionais, desde publicações a formas e padrões
de citações, modos de escrita e disseminação que co-constituem as culturas teóricas.
Isso comprovaria que a pesquisa comparativa nunca é neutra, ao contrário, pode ser
reveladora das relações epistêmicas e institucionalizadas de poder entre
comunidades acadêmicas e não acadêmicas pertencentes a diferentes culturas de
produção de conhecimento.

É a partir desse potencial relacional e decolonial que se procurou desenhar o


método comparativo utilizado nesta tese. O método experimental concebido para
examinar comparativamente a urbanização de favelas no Brasil e o in-situ upgrading
na África do Sul, denominado de comparação por “decomposição de conexões”, parte
das seguintes premissas: a) a concepção relacional do espaço e do lugar (MASSEY,
1993; 1994); b) a preferência por abordagens que não partam de um todo constituído
a priori (MCMICHAEL, 1990; HART, 2002); c) a adoção de conexões existentes como
pontos de partida metodológicos ou até mesmo as unidades da comparação (WARD,
2010; ROBINSON 2011); d) a incorporação das culturas teóricas locais dos casos
analisados. Essas premissas e o método comparativo de “decomposição de
conexões” serão apresentados a seguir.

2.2 O método comparativo de “decomposição de conexões”

Passar a conceber as diferenças juntas. É nesse sentido que o


exemplo de circulação de políticas nos dá algumas linguagens para
pensar sobre outros lugares, pensar sobre apologias, diferentes tipos
de categorias para composições espacialmente mais sutis e
complexas 50.

49
McFarlane (2010, p. 733-734) se refere ao conceito de tradução de Bruno Latour, para quem o
conhecimento seria produzido por meio de uma "corrente de traduções" de modo que ao invés de focar
na questão de se o conhecimento se manteve o mesmo ou não, a tradução leva a atenção para as
múltiplas formas e efeitos do conhecimento. O conceito de "tradução", ainda segundo este autor,
também encontraria ecos nos estudos de Edward Said e seu conceito de "travelling theory", segundo
os quais, interpretações equivocadas seriam parte de uma transferência histórica de ideias e teorias de
um lugar para outro.
50
Robinson, J. Cities in a World of Cities: traces of elsewhere in the making of city futures. Vídeo.
Disponível em: https://www.futureofcities.ox.ac.uk/video/ Acesso em: 10/01/2014.
58

Desde a década de 1970, a pobreza e a informalidade nas cidades do outrora


chamado Terceiro Mundo, analisadas comparativamente sob o paradigma da
economia política, foram alvo de “comparações abrangentes” (TILLY, 1984). Sob esse
paradigma, as práticas informais dos pobres urbanos foram vistas como parte
integrante de processos políticos e econômicos mais amplos relacionados à produção
capitalista (PORTES, CASTELLS e BENTON, 1989). Desse modo, cidades foram
compreendidas a partir de sua posição em um sistema mundial de dominação e
desigualdade (PORTES e WALTON, 1981; ROBERTS, 1995). Embora essa
perspectiva abrangente tenha possibilitado muitos avanços, especialmente em termos
do reconhecimento da interconexão entre cidades dentro de um único sistema
(ROBINSON, 2011), por vezes levou à construção de histórias funcionalistas, nas
quais um todo definido a priori acabou por determinar a interpretação das dinâmicas
das partes analisadas (TILLY, 1984; MCMICHAEL, 1990).

McMichael (1990; 2000) sem negar a relevância dos processos de produção


capitalista e do sistema-mundo, contrapõe-se à definição apriorística de um
mecanismo causal geral para a determinação das unidades de análise. Valorizando a
interconexão entre as unidades para a compreensão da história mundial, propõe o
que denominou de "comparação incorporada". Nessa proposta metodológica, as
unidades da comparação são definidas como historicamente conectadas e, portanto,
mutuamente condicionadas. Em vez da pressuposição de processos gerais abstratos
conectando os casos analisados, porém, o autor propõe que esses sejam analisados
em sua especificidade histórica, de modo que e que a partir das inter-relações
reveladas pela análise histórica um “todo” seja construído.

A proposta de McMichael de “comparações incorporadas” tem muitos pontos


em comum com a ideia de “comparações relacionais” (HART, 2002), isto é, a análise
relacional de múltiplas trajetórias concretas que acabam por iluminar um todo. A
principal diferença entre essas abordagens comparativas é de origem epistemológica
e está fundada na concepção da indissociabilidade entre espaço e tempo e no método
regressivo-progressivo de Henri Lefebvre que fundamenta essa última51 (HART,

51
A autora cita a seguinte passagem da obra A produção do Espaço de Lefebvre, a qual considera-se
relevante de ser aqui reproduzida: “como poderíamos chegar a compreender (...) a gênese do presente,
59

2016).

Assim, evitando-se partir de processos globalizantes, e com base na


concepção relacional e não hierarquizada entre as cidades, adotou-se como ponto de
partida para a comparação das políticas para as favelas e outras formas de moradia
dos pobres em cidades brasileiras e sul-africanas a análise de uma conexão existente
entre as cidades de São Paulo e Durban, como descrito no capítulo 1. Nesse sentido,
aposta-se no entendimento de que a concepção de cidades como territórios que
transcendem fronteiras administrativas, como constituídas por um conjunto de
movimentos transescalares de tecnologias, conceitos e práticas políticas, permite
compreender os processos de urbanização para além dos territórios diretamente
transformados, trazendo implicações para o modo como as próprias políticas urbanas
são analisadas (ROBINSON, 2018).

A opção por explorar uma conexão entre essas cidades foi vista como uma
maneira interessante para a construção da comparação e o entendimento da
urbanização numa escala mais global (WARD, 2010; ROBINSON, 2016, 2018). Parte-
se, portanto, da hipótese de que as conexões têm o potencial de trazer uma variedade
de fenômenos e processos à vista, desde formas socioespaciais e acordos políticos
locais até alianças em outras escalas.

Nessa direção, a construção do método comparativo por “decomposição de


conexões” também dialoga com um conjunto de análises sobre a circulação de ideias
e políticas urbanas. O estabelecimento de trocas entre as cidades pode ser
considerado intrínseco à história do planejamento urbano. Propostas urbanas
historicamente têm se baseado em modelos, fossem estes frutos de esquemas
utópicos (CHOAY, 2005) ou de cidades "de fato existentes" (WARD, 2013). Assim,
historiadores das cidades têm se dedicado, há muitos anos, a considerar as razões e
as formas pelas quais certas ideias e práticas de planejamento circulam entre
diferentes lugares.

A ocorrência de fluxos internacionais de ideias e práticas de planejamento

juntamente com as precondições e processos envolvidos, a não ser partindo desse presente,
trabalhando de volta ao passado e, em seguida, refazendo nossos passos? (Lefebvre, 1991 apud
HART, 2016, p. 7, ênfase no original, tradução nossa)
60

remonta aos colonialismos (KING, 1980, 2003, 2004). O estudo desses fluxos durante
e após a era colonial, em diferentes países, e suas formas variadas de “imposição” e
“empréstimo” (WARD, 2000) têm sido há muito tratados tanto pela história urbana
(SUTCLIFFE, 1981; HALL, 1988; NARS E VOLAIT, 2003; HEALEY, 2013; HARRIS E
MOORE, 2013) quanto pela história transnacional (HIETALA, 1987; SAUNIER, 2002;
CLARKE, 2012).

O historiador francês Pierre-Yves Saunier, por exemplo, partindo da


consideração de que a prática de cidades estabelecerem ligações entre si é tão antiga
quanto a história da Liga Hanseática na Europa medieval, utiliza o conceito de
Internacional Urbana para se referir à promoção de diálogos e conexões que as
cidades – isto é, seus governantes e outros protagonistas mais discretos como
servidores públicos, pesquisadores e prestadores de serviços, entre outros –
passaram a estabelecer, a partir de meados do século XIX (SAUNIER, 2008). Para o
autor, o essencial seria buscar resposta para as seguintes perguntas: Quem circula a
política? O que circula? Como circula? E finalmente, como a circulação muda a
política? (SAUNIER, 1999).

Desde o início dos anos 2000, os estudos sobre mobilidade de políticas


(WARD, 2006; MCCANN, 2008; MCCANN e WARD, 2011; MCCANN e WARD, 2012;
PECK e THEODORE, 2010; PECK e THEODORE, 2015) têm procurado explorar mais
especificamente os processos, fundados na circulação e adoção de fast policies
(PECK 2002, PECK e TICKELL, 2002), ou de “políticas prontas”, relacionados à
transição dos regimes de bem-estar social para os neoliberais. Essas análises,
fundamentadas, de um lado, na tensão entre fixidez e mobilidade do capital (HARVEY,
1982) e, de outro, na concepção relacional do lugar (MASSEY, 2013), têm se
debruçado sobre a circulação global de ideias, modelos e políticas para as cidades,
concebendo a formulação de políticas urbanas como um processo ao mesmo tempo
relacional e territorializado (WARD; MCCANN, 2010, p. 176).

Parte do funcionamento do neoliberalismo estaria na ação de consultores e


avaliadores na promoção de leituras simplificadas de programas e políticas locais
considerados efetivos. Essas leituras, ao serem baseadas em poucos elementos,
normalmente os mais replicáveis, desterritorializariam programas e políticas, os quais
então passariam a ser disseminados em mercados internacionais e nacionais de
61

políticas. Como consequência, o lento processo de aprendizado institucional é


reduzido a processos tecnocráticos de clonagem administrativa e de duração mais
curta (PECK, 2002).

Em diálogo com esse conjunto de referências teóricas e metodológicas, no


método experimental aqui proposto de “comparação por decomposição de conexões”,
o acordo de cooperação estabelecido entre as cidades de São Paulo e Durban, com
o apoio da rede Cidades e Governos Locais Unidos (CGLU) – Mentoring on Upgrading
Informal Settlements – foi utilizado como um objeto, uma composição, que permitisse
colocar questões a respeito das trajetórias da urbanização de favelas em São Paulo
e do in-situ upgrading em Durban, uma em relação à outra e à escala mais ampla das
organizações internacionais e redes transnacionais de cidades.

De maneira sintética a forma pela qual o método de “decomposição de


conexões” foi aqui empregado pode ser descrito em três passos. Primeiro, a partir da
análise da justificativa e dos objetivos divulgados para a promoção do acordo entre
São Paulo e Durban, levantar questões a respeito das partes envolvidas. Em seguida,
o emprego do método envolve um passo atrás na história para compreender: i) as
origens dos termos favelas, slums e outros correlatos na história social e urbana,
respectivamente, de cidades brasileiras e sul-africanas; ii) o processo histórico de
consolidação das ideias de slum upgrading no interior de circuitos internacionais de
formulação de políticas ou da “ajuda externa” para o “desenvolvimento urbano”; e iii)
como ideias e práticas de slum upgrading postas em circulação internacionalmente
atravessam as (e são atravessadas pelas) experiências desenvolvidas em São Paulo
e Durban, a partir do final dos anos 1980. Desse modo, ao mesmo tempo em que a
cooperação existente entre as duas cidades serve para nortear a comparação de suas
trajetórias na institucionalização de políticas de urbanização de favela em São Paulo
e de in-situ upgrading em Durban, a compreensão dessas trajetórias sugere uma
reflexão renovada sobre a cooperação em si.

A análise histórica das “partes” (circuitos internacionais e políticas locais),


mobilizadas pela conexão adotada como caso empírico, procura dar ênfase aos atores
e às narrativas envolvidos na formulação de políticas para os lugares de moradia dos
pobres urbanos. Em 1993, Frank Fisher e John Forester editaram o livro The
Argumentative Turn in Policy Analysis and Planning argumentando que “a linguagem
62

empregada nas análises de políticas e planejamento não apenas retrata, mas também
constrói os problemas em questão” (FISHER e FORESTER, 1993, p. 1). Para os
autores, a “retórica institucionalmente disciplinada da política e do planejamento”
(FISHER e FORESTER, 1993, p. 2) influencia não só a seleção dos problemas a
serem analisados, como também sua própria análise, a definição de ações
institucionais, o acesso e entendimento que o público tem desses problemas, e
merece, portanto, ser investigada.

Isso implicaria, em termos sociológicos, em evidenciar o caráter retórico dos


contextos específicos em que determinadas práticas se desenvolvem, isto é, as
maneiras como certos problemas são construídos e que se relacionam com as
possibilidades de soluções a serem propostas. Em suma, o fato de uma situação ser
ou não percebida como um problema dependeria da narrativa na qual é inserida. Em
termos políticos, isso implicaria em mostrar os modos pelos quais a construção das
políticas e do planejamento estão intimamente envolvidos com relações de poder e
seu exercício ao incluir algumas preocupações, excluindo outras; ao distribuir
responsabilidades e atribuir causalidades, e finalmente optar por certos
enquadramentos para as políticas em vez de outros. A análise de narrativas que se
busca realizar não se restringe à análise da linguagem em sentido estrito, mas agrega
o estudo das condições sociais históricas em que tais narrativas foram produzidas e
recebidas.

Hajer (1993) utiliza o conceito de coalizão discursiva para definir um grupo de


atores que compartilham determinada construção social – por sua vez formada no
contexto de discursos históricos. Discurso sendo compreendido como um conjunto de
ideias, conceitos e categorias através do qual se confere significado aos fenômenos.
Os discursos ao enquadrarem determinados problemas assinalariam alguns aspectos
em vez de outros. A institucionalização do discurso ocorreria quando um discurso é
bem-sucedido, isto é, quando muitas pessoas o usam para conceituar o mundo, ele
se solidifica em uma instituição, seja na forma de práticas organizacionais, seja
apenas como formas convencionais de raciocínio.

De modo semelhante, Rein e Schon (1993) percebem o discurso para além da


linguagem e em referência às interações de indivíduos, grupos de interesse,
movimentos sociais e instituições através das quais situações reais foram convertidas
63

ou enquadradas em problemas de políticas, definindo uma agenda de ações. Para


Escobar (1995), o discurso se assemelharia à ideia de hegemonia tal qual elaborada
por Gramsci. O discurso do desenvolvimento, por exemplo, permitiria que somente
um conjunto de situações pudessem ser enunciadas e imaginadas. Desse modo,
ideias, instituições, práticas e realidades históricas mutáveis estariam articuladas em
um sistema discursivo unificado. Dagnino (2004, p. 144) utiliza o termo projetos
políticos também em sentido próximo à elaboração gramsciana, para designar “os
conjuntos de crenças, interesses, concepções de mundo, representações do que deve
ser a vida em sociedade, que orientam a ação política dos diferentes sujeitos”.

2.3 Conclusão do capítulo

A revisão da literatura, produzida em inglês, sobre os estudos urbanos


comparativos, realizada neste capítulo, ajuda a compreender as formas pelas quais a
comparação tem sido utilizada como método para legitimar os diferentes paradigmas
que, desde o século passado, têm sido acionados para explicar o fenômeno urbano.
O desenvolvimento de uma abordagem pós-estruturalista, relacional e pós-colonial
sobre o fenômeno urbano, na virada do século XX, trouxe novos desafios ao uso da
comparação: em torno da não fixidez das escalas; das cidades como lugares da
diferença e da repetição, e da multicausalidade dos processos urbanos e das
diferentes culturas teóricas que os interpretam. Foi a partir desses que se concebeu
um método experimental para comparar a urbanização de favelas no Brasil e o in-situ
upgrading na África do Sul, denominado de comparação por “decomposição de
conexões”.

Nesse método, o acordo de cooperação Mentoring on Upgrading Informal


Settlements estabelecido entre as cidades de São Paulo e Durban, com o apoio da
CGLU foi utilizado como objeto para o levantamento de questões a respeito da
urbanização de favelas em São Paulo e do in-situ upgrading em Durban, uma em
relação à outra e à escala mais ampla das organizações internacionais e redes
transnacionais de cidades. Assim, na análise da atuação das organizações
internacionais e dos atores locais envolvidos historicamente nas políticas para as
favelas em São Paulo e territórios similares em Durban, ao longo dos capítulos 3, 4 e
64

5, busca-se evidenciar as diferentes narrativas, projetos políticos e representações


em torno tanto da nomeação quanto da ação do estado para os territórios habitados
pelos pobres.
65

3 TERRITÓRIOS HABITADOS PELOS POBRES, CLASSIFICAÇÕES E


REFORMAS URBANAS

A instabilidade dos significados das palavras atesta que estas têm


uma história (TOPALOV, 2017, p.191, tradução nossa).

A cidade do colonizado (...) é um lugar mal afamado, povoado de


homens mal afamados. Aí se nasce não importa onde, não importa
como. Morre-se não importa onde, não importa de quê. É um mundo
sem intervalos, onde os homens estão uns sobre os outros, as casas
umas sobre as outras (FANON, 1968, p. 29).

A colonialidade permite-nos compreender a continuidade das formas


coloniais de dominação após o fim das administrações coloniais,
produzidas pelas culturas coloniais e pelas estruturas do sistema-
mundo capitalista moderno/colonial (GROSFOGUEL, 2008, p.126).

Slums, informal settlements, shanty towns, shack-lands, squatter camps – e


seus equivalentes em línguas africanas como mekuku, mjondolo e hokke – são todos
termos utilizados na África do Sul (HUCHZERMEYER, 2008) para fazer referência às
ocupações informais fora dos preceitos das regras construtivas e urbanísticas. Assim
como na África do Sul, há no Brasil uma pletora de termos para designar estas áreas:
favelas, vilas, loteamentos, baixadas, alagados, invasões. Enquanto as definições de
informalidade e o grau de precariedade podem variar de um território para outro, a
pobreza presente nesses territórios, ainda que não homogênea, é uma constante.

O presente capítulo é dedicado à análise de algumas dessas classificações


urbanas, por meio das quais busca-se uma primeira aproximação entre as políticas
destinadas às favelas e slums nas cidades brasileiras e sul-africanas. Como veremos,
essas classificações surgem de uma necessidade de se distinguir os territórios
habitados pelos pobres e revelam os primórdios das práticas de planejamento urbano
a esses relacionadas. A análise comparativa proposta nesta tese inicia-se, portanto,
pela compreensão dessas classificações na história social e urbana dessas cidades.

De acordo com Topalov (2017), seria possível observar a emergência, na


maioria das línguas ocidentais, durante os séculos XIX e XX, de um termo, de valor
sempre pejorativo, para nomear as áreas, ou a moradia em si, habitadas pelos pobres
66

de uma cidade. Para o autor, não seria a realidade urbana a impor diretamente
inovações lexicais, mas uma tensão nos sistemas classificatórios que atribuem
valores aos espaços da cidade. A existência dessa tensão traria uma nova
necessidade de nomeação dos espaços. É por isso que, para Topalov (2017), o
estudo do processo de nomeação de uma categoria de espaços não deveria se
restringir à etimologia de uma palavra ou um termo, mas incluir a análise das variações
de seu uso com destaque para os atores que o utilizam.

A importância em se conhecer a história social (da emergência) dos problemas


e do trabalho social investido na construção de sistemas de classificação já havia sido
sublinhada por Bourdieu (1989, p. 36-39), que chamou a atenção sobretudo para a
contribuição dos campos político e burocrático para o reconhecimento de certos
problemas como problemas legítimos, publicáveis, oficiais. Segundo ele, a linguagem
seria um enorme depósito de pré-construções naturalizadas e, portanto, ignoradas
como tal, as quais, no entanto, seriam produto da representação de grupos sociais.

De fato, o que a história do uso de termos como slum e favela revela é a


necessidade de identificação, pelos grupos dominantes, dos territórios habitados
pelos pobres como uma ameaça, seja à ordem moral, seja à saúde pública, seja, no
caso da África do Sul, à superioridade racial exercida pelos brancos. A classificação
desses territórios, então disseminada tanto por documentos oficiais como por meio da
imprensa e da literatura, passa a nortear o desenvolvimento de políticas de destruição
dos mesmos com a remoção forçada de seus moradores. Afinal, como também
assinalado por Bourdieu (1989, p.112), as classificações práticas estão sempre
orientadas à produção de efeitos sociais.

Desse modo, a construção da análise histórica das classificações urbanas dos


territórios habitados pelos pobres em diferentes contextos, através do tempo e
espaço, é aqui apresentada em três partes. Para fundamentar uma compreensão
relacional, primeiro são analisados a emergência e os usos das classificações slum e
shanty no contexto das cidades inglesas e norte-americanas ainda no século XIX. Em
seguida, parte-se para a análise de classificações urbanas que vão nomear os
territórios habitados pelos pobres em cidades sul-africanas e brasileiras. Como
veremos, se a circulação de uma “síndrome sanitária” é comum a todos esses
contextos, as ações do estado resultantes serão, nas cidades brasileiras e sul-
67

africanas, atravessadas por relações coloniais e raciais.

3.1 Slums e shantytowns ao Norte do Atlântico

Os processos de nomeação que resultaram nas classificações urbanas aqui


analisadas se deram ora pela generalização do nome próprio de um lugar específico
(um topônimo), ora pela variação semântica de uma palavra pré-existente52. A
utilização da palavra slum, por exemplo, como denominação das áreas habitadas
pelos pobres nos países de língua inglesa, seria um caso de variação semântica
(Topalov, 2017).

Segundo o Dicionário de Inglês Oxford, a palavra slum significa: “1. Cômodo


(Obsoleto); 2. Rua, viela ou pátio situado em área superpopulosa de uma cidade e
habitada por pessoas de classe baixa ou muito pobres; um conjunto de ruas e terrenos
que formam uma vizinhança excessivamente populosa onde as casas e as condições
de vida são esquálidas e miseráveis3”. O tom moralizante da definição é acentuado,
se verifica a indicação etimológica da palavra, no referido dicionário, como uma gíria
de origem popular53.

De fato, seu primeiro registro teria sido encontrado no dicionário de gírias A


New and Comprehensive Vocabulary of the Flash Language, publicado por James
Hardy Vaux, em 1812 (WOHL, 1977; DAVIS, 2006). Criminoso confesso, Vaux,
nascido na Inglaterra, escrevera a obra de um presídio na Austrália, para onde foi
sentenciado a cumprir pena.

A análise dos registros do próprio Vaux indica slum como sinônimo de quarto,
sendo a palavra também utilizada para classificar alguns atos relacionados a fraudes

52
Sobre diferentes processos de nomeação de classificações urbanas, ver Topalov, C. et al. L’Aventure
des mots de la ville. Paris: R. Laffont (Bouquins), 2010. Este livro é resultado da pesquisa internacional
Les mots de la ville, a qual teve por objetivo documentar as variações de significado, através dos
tempos, espaços e idiomas, das palavras comumente usadas para descrever a cidade e seus
elementos.
53
“1. A room. Obsolete; 2. a. A street, alley, court, etc., situated in a crowded district of a town or city
and inhabited by people of a low class or by the very poor; a number of these streets or courts forming
a thickly populated neighbourhood or district where the houses and the conditions of life are of a squalid
and wretched character”. "slum, n.1." OED Online, Oxford University Press, August 2018,
www.oed.com/view/Entry/182267. Accesso em 27/08/2018.
68

e roubos (como nas expressões area-slum e lodging-slum54). De acordo com os


estudos do medievalista William Sayers, a palavra derivaria do irlandês medieval rúm
(a room or interior space) e teria se transformado em gíria na língua inglesa primeiro
na forma srum e depois slum. Segundo o autor, irlandeses, provenientes das áreas
rurais e raramente bilíngues, contribuíram significativamente para o início da Inglaterra
urbana (SAYERS, 2017, p. 33). Em outros estudos sobre os territórios habitados pelos
pobres no Reino Unido do século XIX, embora seja dado o crédito a Vaux pelo seu
primeiro registro escrito, as interpretações quanto ao seu significado variam. Na
interpretação de Whol (1977, p. 5), slum seria uma derivação da palavra slumber
(sono, marasmo, inatividade), sendo usada para se referir a algo escondido, becos
desconhecidos e silenciosos. Já para Prunty (1998 apud DAVIS, 2006, p. 32), slum
seria sinônimo de racket (estelionato ou comércio criminoso).

De qualquer modo, a popularização do uso desta palavra teria ocorrido após a


publicação do manifesto An Appeal to the Reason and Good Feeling of the English
People on the Subject of the Catholic Hierarchy pelo Cardeal Wiseman, em 1850.
Nesse documento, ele denunciava as condições miseráveis encontradas na favela
Devil’s Acre, atrás das mansões dos ricos nos arredores de Westminster:

Perto da Abadia de Westminster há labirintos escondidos de ruas e


cortes, e becos e favelas, ninhos de ignorância, vício, depravação e
crime, bem como de esqualidez, miséria e doença; cuja atmosfera é o
tifo, cuja ventilação é a cólera; nos quais enxames de uma população
enorme e quase incontável, nominalmente pelo menos, católica,
reúne-se em meio ao lodo, que nenhum comitê de esgoto poderia
alcançar – cantos escuros, que nenhum poste de iluminação poderia
alcançar55.

Esta passagem, amplamente citada na imprensa nacional à época, teria


popularizado o uso da palavra slum, associando-a não apenas a formas precárias de

54
AREA SNEAK, or AREA SLUM: the practice of slipping unperceived down the areas of private houses,
and robbing the lower apartments of plate or other articles. LODGING-SLUM: the practice of hiring ready
furnished lodgings, and stripping them of the plate, linen, and other valuables. O completo vocabulário
escrito por Vaux pode ser acessado na página do projeto australiano Gutenberg, criado a partir das
edições impressas de obras de domínio público na Austrália. Disponível em:
http://gutenberg.net.au/ebooks06/0600111.txt. Acesso em: 02/08/2018.
55
Close under the Abbey of Westminster there lie concealed labyrinths of lanes and courts, and alleys
and slums, nests of ignorance, vice, depravity, and crime, as well as of squalor, wretchedness, and
disease; whose atmosphere is typhus, whose ventilation is cholera; in which swarms of huge and almost
countless population, nominally at least, Catholic; haunts of filth, which no sewage committee can reach
– dark corners, which no lighting board can brighten. Passagem citada em The Devils Acre, disponível
em: www.choleraandthethames.co.uk. Acesso em 15/07/2018. Tradução nossa.
69

moradia, insalubres, mas a patologias sociais também. A extensão de seu uso


ocorrera rapidamente, sendo documentada nas décadas seguintes principalmente na
forma back slum (DEPAULE e TOPALOV, 1996), como nas passagens citadas por
Sayers (2017, p. 32): “The back slums lying in the rear of Broad St.” e “when the back
slums of London are going to be invaded”56.

No entanto, antes da popularidade trazida pelo texto do Cardeal Wiseman, o


termo slum já havia sido utilizado por Friedrich Engels em Condition of the Working
Class in England in 1844. Essa obra, sobre a condição da classe trabalhadora na
Inglaterra, foi publicada em alemão em 1845, sob o título Die Lage der Arbeitenden
Klasse in England, e apenas traduzida para o inglês alguns anos mais tarde57. A rica
descrição que faz das slums, uma denúncia das difíceis condições em que vivia a
classe trabalhadora nas grandes cidades, despida do tom desmoralizante das
passagens citadas anteriormente, destaca alguns aspectos, que, como veremos,
permanecem consideravelmente atuais. As slums seriam territórios marcados pela
pobreza, segregados, irregulares, superlotados e de estrutura precária:

Toda grande cidade tem uma ou mais favelas, onde a classe


trabalhadora se amontoa. É verdade que a pobreza muitas vezes
habita em becos escondidos perto dos palácios dos ricos; mas, em
geral, um território em separado tem sido designado à classe
trabalhadora, onde, longe da vista das classes mais felizes, ela luta
como pode. Essas favelas estão de modo muito similar em todas as
grandes cidades da Inglaterra, as piores casas nos piores bairros das
cidades; geralmente casas de um ou dois andares em filas longas,
provavelmente com os porões também usados como habitações,
quase sempre construídas irregularmente. Essas casas de três ou
quatro quartos e uma cozinha formam, em geral, por toda a Inglaterra,
exceto algumas partes de Londres, as habitações da classe
trabalhadora. As ruas comumente não são pavimentadas, são
ásperas, sujas, cheias de restos de vegetais e animais, providas com
piscinas sujas e estagnadas, ao invés de esgotos ou calhas. Além
disso, a ventilação é impedida pelo péssimo e confuso método de se
construir o quarteirão inteiro, e uma vez que muitos seres humanos
vivem amontoados em um pequeno espaço, a atmosfera que
prevalece nos aposentos desses trabalhadores pode ser imaginada
(ENGELS, 2008, p. 26, tradução nossa).

Já o termo shanty, contemporâneo do surgimento do termo slum, surge nos

56
Ambas citadas em Sayers (2017:32) e atribuídas, respectivamente, a Westmacott, The English Spy,
II. 32. The Athenæum from January 18, 1845: “In the thick of the once renowned ‘slums” of St. Giles’s”,
e Dickens, letter of April 3, 1851, in The Letters of Charles Dickens, VI. 345.
57
As primeiras traduções da referida obra para o inglês datam de 1887 em Nova Iorque e 1891 em
Londres.
70

Estados Unidos. Segundo o dicionário Merriam-Webster, shanty seria derivado do


francês canadense chantier, denominação dada aos acampamentos e cabanas,
montados pelos lenhadores. De acordo com Goff (2016, p. 23), a primeira aparição da
palavra shanty na imprensa dos Estados Unidos data de 1822, com a publicação das
memórias do médico Zerah Hawley, relatando sua estada nas fronteiras do estado de
Ohio dois anos antes. Segundo essa autora, o médico teria escrito ao seu irmão, logo
após visitar um jovem paciente, que vivia “no que aqui é denominado Shanty”, descrita
pelo médico como “um casebre de cerca de dez por oito pés, feito um pouco sob a
forma de uma casa de fazenda comum, tendo apenas meio telhado ou telhado de um
lado. Mas, fechado por todos os lados”58. Ainda segundo Goff (2016, p. 91), o uso do
termo shantytown, em substituição a shanty settlements, ocorreria apenas nos anos
1870, quando artistas, compositores, novelistas e jornalistas passaram a fazer uso do
termo.

Foi o termo slum, contudo, que apareceu na primeira pesquisa científica sobre
a vida nos cortiços norte-americanos, The Slums of Baltimore, Chicago, New York,
and Philadelphia, publicada em 1894. Nesta pesquisa, slum é definida como “uma
área de becos e ruelas sujas, principalmente quando habitada por uma população
miserável e criminosa” (DAVIS, 2006, p. 33). A palavra slum, portanto, tanto na
Inglaterra quanto nos Estados Unidos, tinha um valor pejorativo de cunho moral e
estigmatizante.

A ascensão dos movimentos para a reforma urbana em diferentes países, ainda


no final do século XIX, sob influência dos avanços da medicina moderna
(especialmente na França e na Inglaterra) e do surgimento do conceito de saúde
pública, trouxe transformações ao uso do termo slum. Este passaria, tanto na
Inglaterra como nos Estados Unidos, à categoria de termo técnico para designar “uma
casa materialmente inadequada para a habitação humana”59 (DEPAULE e
TOPALOV, 1996, p. 9).

Não tardaria para que novos termos surgissem no bojo de leis autorizativas de

58
Tradução nossa do original em inglês: “a hovel of about ten feet by eight, made somewhat in the form
of an ordinary cow-house, having but a half roof, or roof on one side. It is however inclosed on all sides”
(GOFF ,2016, p. 23).
59
Traduão nossa da citação: “a house materially unfit for human habitation” (DEPAULE e TOPALOV,
1996, p. 9).
71

demolições. No Reino Unido, defective houses (1867) ou unhealthy areas (1875


Housing Act) passaram a ser utilizados em substituição a slum. Já a expressão
improvement schemes substituiu slum clearance (TOPALOV, 2017, p. 201). Dentro
do mesmo contexto, apareceriam novas expressões nos Estados Unidos entre as
décadas de 1890 e os anos 1930, como tenement house, tenement district e
deteriorated neighborhood (DEPAULE e TOPALOV, 1996, p. 9). Por trás dessa
transformação, estaria também a ambição dos reformadores de criar um conceito
geral e operativo que permitisse o mapeamento das slum areas (DEPAULE e
TOPALOV, 1996, p. 9) e o desenvolvimento de estatísticas, tal qual mostram as
pesquisas desenvolvidas por Charles Booth60 em Londres e Seebohm Rowntree em
York.

Ao mesmo tempo em que refletiam as preocupações do nascente campo da


saúde pública, tais reformas urbanas, eram informadas por um novo olhar sobre os
bairros populares que surgia com a emergência do trabalho social a partir da década
de 1910. Dentro dessa perspectiva, slums do final do século XIX seriam elevadas à
dignidade de neighborhoods ou communities em decorrência de um projeto de
reconstrução das relações sociais (DEPAULE e TOPALOV, 1996, p. 9). Assim, no
decorrer do século XX, em ambos os lados do Atlântico Norte, a substituição do termo
slum por termos técnicos contribuiu para a sua relativa obsolescência.

A próxima seção é dedicada à análise da emergência desses e de outros


termos na nomeação das áreas habitadas pelos pobres em cidades sul-africanas.
Logo em seguida, analisa-se a emergência de termos que posem ser considerados
correlatos em brasileiras. Como se verá, nesses contextos, a estigmatização por trás
desses termos não pode ser dissociada do passado colonial desses países e à forma
como as cidades nestes se desenvolveram, impulsionadas pela “chegada” de ideais
de modernidade vindos do Norte do Atlântico.

60
Com o intuito de combater o sensacionalismo com que a pobreza e as slums eram tratadas pela
imprensa à sua época e em reação à natureza insatisfatória dos censos existentes, Charles Booth
coordenou uma investigação sobre a condição dos trabalhadores em Londres, realizada de 1886 a
1903. Publicada sob o título Life and Labour of the People in London, incluía mapas das ruas de
Londres, coloridos segundo os níveis de pobreza e riqueza. Cf. https://booth.lse.ac.uk
72

3.2 Slums, townships e squatter setlements em cidades sul-africanas

Na manhã de sexta-feira, 20 de junho de 1913, o nativo sul-africano


viu-se não um escravo, mas um pária na terra de seu nascimento
(PLAATJE, 1916, p.21, tradução nossa).

Na África do Sul no início do século XX, sob domínio britânico, as ações


sanitaristas para atacar o problema de slums não foram acompanhadas do um
trabalho social, ao modo inglês, imbuído do sentido de atribuir dignidade à vida de
seus habitantes, ao contrário, foram usadas como uma maneira de aprofundar a
dominação e a segregação racial. O entendimento do uso do termo slum na África do
Sul, portanto, não pode ser dissociado da análise do passado colonial desse país,
onde sob o comando de uma burguesia inglesa, desenvolveu-se a atividade
mineradora e as primeiras formas de segregação espacial, aprofundadas durante o
regime do apartheid (1948-1994). É por meio do exame desse contexto histórico que
é possível compreender as distinções de significado no uso dos termos slums,
squatter camps, informal settlements, townships e locations na África do Sul.

A adoção do inglês como idioma na África do Sul remonta à ocupação britânica


em 1806, mas seu enraizamento como língua sul africana resulta dos assentamentos
estabelecidos em 1820, no Cabo Oriental (East London e Port Elizabeth), e entre 1848
e 1962, em Natal, e do posterior influxo para as minas de diamantes, em Kimberley,
e de ouro, em Witwatersrand. A tentativa de imposição do idioma inglês aos
africâneres61, praticantes do Afrikaan (ou Africâner), encontraria forte resistência
(como demonstrou a força deste idioma nos tempos de apartheid), sendo ainda na
atualidade uma fonte de ressentimento para parte desse grupo. Entre os africanos62,
porém, o inglês foi amplamente introduzido, sem muita resistência, por missionários
ainda nos primeiros anos do século XIX, a ponto de, ao final daquele século, existir
um influente corpo de educadores, escritores e líderes políticos africanos fluentes em

61
Descendentes dos colonos fazendeiros de origem holandesa e francesa, também denominados
bôeres, que chegaram à região em meados do século XVII.
62
Utilizarei o terno africano para me referir à população nativa. A literatura sul-africana pesquisada e
citada ao longo da tese utiliza os termos Africans, black people e black population para se referir aos
nativos. O termo nativo é amplamente evitado, provavelmente por ter sido adotado mais de uma vez
pelos colonizadores em medidas segregacionistas como o Natives (Urban Areas) Act de 1923. Antes
disso há referências oficiais há uma “native menace” (South Africa, 1921 apud PARNELL, 1988).
73

inglês (SILVA, 1997).

O uso do termo slum na África do Sul surge no contexto do estabelecimento do


capitalismo neste país pelos ingleses a partir de meados do século XIX. Antes disso,
o sistema de exploração agrária a que se dedicavam os bôeres nos séculos XVII e
XVIII, fundamentado na superioridade branca e na discriminação racial, não era
baseado na segregação espacial dos nativos (PEREIRA, 2012), apesar de restringir
o acesso deles à terra, água e ao gado.

O sistema capitalista implantado pelos britânicos, a partir de 1806, quando


ocupam definitivamente o território sul-africano, era baseado em rígidos contratos de
trabalho63. Tinham por objetivo, mediante a exploração da mão de obra negra e quase
gratuita, forçar a redução dos salários dos trabalhadores brancos que, devido ao
esgotamento de terras agricultáveis no início do século XIX, tornaram-se proletários
(PEREIRA, 2012). A descoberta de diamantes (1867) e de ouro (1886) no Transvaal,
território sob domínio bôer, intensificou o controle dos negociantes ingleses, que
comandavam a atividade mineradora, sobre a força de trabalho, que a partir de então
passou a ser composta também por estrangeiros (moçambicanos, indianos e
chineses) que chegavam à África do Sul.

Inicialmente restrita às colônias do Cabo e Natal, a dominação inglesa se


estendeu por todo o território sul-africano após as Guerras dos Bôeres (1880-1881,
1899 e 1902), também conhecidas como Guerras Sul-Africanas. Elas opuseram os
bôeres ao exército britânico, que pretendia se apoderar das minas de diamante e ouro.
A vitória inglesa garantiu a anexação do Estado Livre de Orange e da República do
Transvaal64 e a declaração da União Sul-Africana como um domínio autônomo do
Império Britânico em 1910.

Logo após a declaração da União Sul-Africana, foi promulgado em 1913, o

63
Código Caledon de 1809: sistema de escravidão compulsória pelo qual era obrigatório o
estabelecimento de um contrato de trabalho que previa severas punições para o trabalhador que
resolvesse mudar de emprego. Em 1843 foi estabelecido o Master and Servant Act, que qualificava
como crime a rescisão do contrato de trabalho.
64
Um grupo de bôeres se rebelaram contra o domínio britânico no Cabo nos anos 1830 e partiram para
a criação de novos Estados no interior, onde eles poderiam ser livres da dominação britânica que então
se resumia às colônias do Cabo e Natal. Fundaram o Estado Livre de Orange em 1842 e Transvaal
(terra para além do Rio Vaal) em 1852, o qual autoproclamou-se República Sul-Africana em 1857. Ao
final da Segunda Guerra dos Bôeres, ambos os Estados foram anexados às colônias britânicas.
74

Natives Land Act, segundo o qual aos nativos não era mais permitido a compra de
terras fora das áreas designadas como “reservas” (territórios que foram sub-divididos
segundo grupos étnicos e batizados de homelands65 durante o apartheid). Como
resultado desse ato (reforçado em 1936), a terra agricultável e produtiva, 87% do
território sul-africano, ficava restrita aos brancos e, assim, as áreas “reservadas” aos
africanos, apesar de rurais, eram extremamente densas e muito pobres (WHYTE,
1995).

Figura 8. União Sul-Africana, declarada em 1910, sob domínio do Império


Britânico.

Fonte: Historical Atlas of British Empire (Disponível em: https://www.atlasofbritempire.com/empire-in-


africa.html. Acesso em 28/04/2019)

65
Passaram a ser popularmente conhecidas como bantustões, termo geralmente usado ironicamente
pelos inimigos do regime do apartheid (PEREIRA, 2012: 83).
75

Os trabalhadores africanos então, assim como a minoria branca proletarizada,


passaram a buscar nas cidades uma saída para a sobrevivência, ainda que em
condições desiguais. Nas cidades o confinamento dos africanos em localidades
específicas, embora já praticado pelos ingleses no Leste da Província do Cabo
(BEAVON, 1982), não era uma regra até o final do século XIX. Nas principais cidades
sul-africanas – Cidade do Cabo, Durban e Joanesburgo – os africanos que viviam nas
áreas centrais das zonas urbanas, em geral homens em busca de trabalho, viviam em
barracks (barracas ou tendas próximas ao porto, como em Cidade do Cabo e Durban),
compounds66, slums, rookeries67 e slumyards.

Na primeira década do século XX, quando o alastramento da peste bubônica


foi associado à população nativa aglomerada em condições precárias nas slums,
foram estabelecidas as locations. Embora fossem uma resposta às preocupações dos
brancos em relação à “invasão” das cidades pela população negra que chegava para
preencher os postos de trabalho, as locations foram justificadas como uma medida de
saúde pública para conter a propagação da doença. A primeira location, assentamento
distante da área central destinado a abrigar os africanos empregados nas cidades foi
estabelecida na Cidade do Cabo em 1901, inaugurando um padrão, repetido em
Durban e Joanesburgo68 (BEAVON, 1982).

Em Durban a maioria dos trabalhadores africanos trabalhavam por diárias


(sistema conhecido como togt) – o que lhes garantia remuneração maior ao mesmo
tempo em que lhes possibilitava escolher quando trabalhar – e eram, portanto,
responsáveis pelo provimento de sua própria moradia, o que fazia aumentar o número
de slums e rookeries nos interstícios do tecido urbano, que, para as autoridades locais
e alguns residentes brancos, traziam para as cidades a “peste social nativa”, marcada
pela ociosidade, alcoolismo, roubos e estupros (Swanson, 1970 apud BEAVON, 1982,
p. 7). Assim, quando a peste bubônica chegou à cidade em 1903 foi prontamente
associada a essas localidades e à população nativa. Em resposta, o Native Location

66
Originariamente termo utilizado para se referir às áreas rigidamente controladas e cercadas
destinadas a abrigar homens trabalhadores das minas de diamante e, posteriormente de ouro.
67
Rookery, literalmente, significa ninho de gralhas. Passou a ser utilizado, na Inglaterra do século XIX,
para designar as áreas densamente ocupadas por casas de baixa qualidade no interior das slum areas.
O termo popularizou-se com a obra Oliver Twist, publicada por Charles Dickens em 1838.
68
Apesar da justificativa higienista, tanto na Cidade do Cabo como em Joanesburgo, locations foram
estabelecidas em áreas destinadas ao lançamento de esgotos.
76

Act foi aprovado em 1904, o qual permitia que a autoridade local transferisse os
trabalhadores africanos para locations fora da cidade. Os recursos para a implantação
das locations eram provenientes da produção e venda de cervejas artesanais entre
os próprios africanos, uma vez que essa, a partir do Native Beer Act de 1908, passava
a ser monopólio da autoridade local. Uma combinação que ficou conhecida como
Durban System.

A situação em Joanesburgo era um pouco mais complexa. Não obstante o


estabelecimento oficial das locations69, os trabalhadores, atraídos pela atividade
mineradora e industrial, encontravam moradia nos subúrbios (black freehold suburbs
ou black freehold townships70), onde eram proprietários, e nos slumyards. Os
slumyards eram acomodações temporárias, “shanties erguidos em pedaços de
terreno baldio” (Trump, 1979 apud BEAVON, 1982, p. 12, tradução nossa) nas
propriedades dos empregadores brancos71.

As permissões para o estabelecimento de slumyards, controladas pela


autoridade local e de início restritas, foram aumentando em face das pressões
exercidas pelos empregadores brancos descontentes com o alto custo de trazer sua
força de trabalho das distantes locations. Tal aumento chegou ao ponto de levar
muitos proprietários, contrários ao seu estabelecimento, a vender suas propriedades.
O resultado foi a transformação de elegantes subúrbios em áreas inteiras de
slumyards superlotados – muitos desses acabaram sendo objeto de remoções
forçadas nos anos 1930 com a promulgação do Slums Act.

Associada às práticas de planejamento urbano, sobretudo britânicas, então em


voga e consideradas modernas, a legislação urbana no contexto sul-africano da

69
Antes da virada do século XX, Joanesburgo já apresentava áreas que poderiam ser consideradas
locations, embora não denominadas como tal, onde viviam africanos e indianos que trabalhavam nas
minas ou no crescente centro industrial da cidade. Quando a peste bubônica se alastrou, em 1904, em
direção a location Coolie (que apesar do nome era majoritariamente ocupada pela população negra),
uma nova localidade, Klipspruit, a 20 km do centro, foi estabelecida para a transferência daquela
população. Após inúmeras reclamações dos patrões brancos a respeito dos prejuízos decorrentes da
distância em que os separava de sua força de trabalho, novas locations surgiram mais próximas à
cidade (BEAVON, 1982, p. 10-11).
70
Sophiatown, Alexandra e algumas partes de Soweto são exemplos de áreas que tiveram origem na
forma desses subúrbios antes do estabelecimento do Natives Land Act.
71
Uma descrição física e socioeconômica detalhada de um slumyard em Joanesburgo pode ser
encontrada em: Hellmann, E. Native Life in a Johannesburg Slum Yard. Africa: Journal of the
International African Institute, Vol. 8, No. 1, Jan. 1935, 34-62.
77

época, como o Public Health Act de 1919, o Housing Act de 1920 e o Slums Act de
193472, serviu para o fortalecimento da segregação racial pré-existente (PARNELL,
1993). Segregação racial que será indubitavelmente estabelecida com a promulgação
pelo governo central do Native (Urban Areas) Act em 1923, o qual dividia a África do
Sul em áreas rurais (non-proclaimed areas) e urbanas (proclaimed areas [of the city]).
Essas medidas definiram controle estrito do movimento de homens africanos entre
essas áreas, ficando cada autoridade local responsável não só pelo fluxo da
população negra como também pela remoção dos “excedentes”, isto é, aqueles
desempregados. Os únicos africanos permitidos a viver na cidade eram os
trabalhadores domésticos.

O advento das locations, apesar de associado diretamente à “síndrome


sanitária” que se estabelecera, era uma forma de a autoridade local, no contexto
específico de cada cidade, reafirmar seu poder (BEAVON, 1982, p. 7). A promulgação
do Slums Act, após a instauração do Native (Urban Areas) Act, não só reforçava as
medidas de expulsão da população negra das cidades, como também dava uma
resposta à crescente revolta dos trabalhadores brancos, cuja demanda por moradia,
emprego e educação – the poor white problem – atraía cada vez mais a atenção de
políticos da época (PARNELL, 1988, p.115).

Apesar dessas medidas, a urbanização para a população negra continuou a


ser crescente até o final dos anos 1940, acompanhando o ritmo da industrialização do
país. Em Durban, por exemplo, eram numerosas as áreas que se desenvolviam pouco
além das fronteiras da cidade à época, como Cato Manor (HINDSON, BYERLEY e
MORRIS, 1993; MARX e CHALTON, 2003), onde a população negra africana
encontrava acomodações, a um custo relativamente baixo, como inquilinos ou sub-
inquilinos de indianos ou ocupando, de modo improvisado, áreas vazias. Em 1936 a
população em Cato Manor de cerca de 2.500 pessoas; passou para 120.000
habitantes em 1958 (HINDSON, BYERLEY e MORRIS, 1993, p. 4).

72
O Public Health Act estendeu o poder de regulação da autoridade local sobre a densidade urbana,
conferindo-lhe o poder de prevenir a superlotação de edifícios, condenar e demolir imóveis insalubres.
O Housing Act, publicado em seguida, disponibilizava recursos aos governos locais para a construção
de casas para os pobres. Contudo, exigia que os empreendimentos fossem racialmente segregados,
separados um do outro por espaços abertos e com vias de acesso diferentes. Finalmente o Slums Act
autorizava a demolição das slums e a remoção forçada da população negra para fora das cidades.
78

A questão de como conter a urbanização dos nativos passou a dominar a


política. O gráfico a seguir mostra as tendências históricas de urbanização, segundo
os grupos populacionais e a população total na África do Sul, nos censos entre 1904
e 2001. Observa-se que, apesar da tendência geral crescente, a intensidade do ritmo
de crescimento da urbanização da população negra africana, e em menor grau da
mestiça (coloured), diminui entre os censos de 1960 e 1985, em comparação com os
outros períodos. Provavelmente em consequência do controle imposto pelo regime do
apartheid sobre o fluxo dessa população das áreas rurais para as zonas urbanas,
como examinado a seguir.

Gráfico 1. Tendências históricas de urbanização na África do Sul, por grupos


populacionais e a população total, 1904- 2001.

Notas do original (em inglês, tradução nossa): os dados de urbanização para 1980, 1985 e 1991 não
foram derivados dos próprios censos, mas são interpolações. Isto porque nesses censos foram
excluídas partes do país correspondentes às antigas homelands do Transkei, Bophuthatswana e Venda
(1980, 1985 e 1991) e também Ciskei (1985 e 1991). Os valores para 2001 são estimativas. Fonte:
Statistics South Africa. Migration and Urbanisation in South Africa. Pretoria: Statistics South Africa,
2006, p.22 (Disponível em: http://www.statssa.gov.za/publications/Report-03-04-02/Report-03-04-
02.pdf Acesso em 28/03/2019)
79

Com o início do apartheid, em 1948, a segregação racial e espacial em curso


desde o início do século foi sedimentada. Dentre as medidas promulgadas durante o
regime do apartheid estão o Population Registration Act e o Group Areas Act, ambas
promulgadas em 1950. A primeira obrigava o registro ao nascimento da população
segundo um dos grupos étnicos estabelecidos: brancos, nativos e mestiços. Apesar
da definição de cada grupo no referido ato não ser precisa73, o registro étnico fazia
parte do documento de identidade de cada indivíduo. O Group Areas Act, por sua vez,
forçava a separação física entre os grupos étnicos em áreas residenciais diferentes,
autorizando, inclusive, a remoção forçada daqueles que estivessem vivendo em
“áreas erradas”, permitindo uma espécie de segregação retroativa.

O Group Areas Act, pela primeira vez, estendia a segregação compulsória, pelo
menos potencialmente, aos mestiços, além de centralizar o controle sobre a
segregação racial como um todo, efetivamente reduzindo a autonomia local. Colocava
ainda as bases para o planejamento de longo alcance de alocação de terras em larga
escala, abrindo caminho para a expansão da provisão pública de habitação,
especialmente para os pobres, ainda que de modo estritamente segregado (MABIN,
1992, p. 407). Com o Group Areas Act multiplicam-se, portanto, as townships.

Originariamente, township, do inglês britânico, significa a terra formalmente


alocada para o desenvolvimento de uma cidade. Na África do Sul, o termo tem
também um significado legal relacionado à propriedade da terra, tanto residencial
quanto industrial. Acabou, porém, sendo associado à prática da segregação racial
institucionalizada durante o regime do apartheid, o qual, dando prosseguimento à
política das locations, estabeleceu um grande número de townships monoraciais.

Ao mesmo tempo em que aumentava a rigidez do controle sobre as áreas


urbanas, o governo determinou por meio do Bantu Authority Act de 1951 a existência
de autoridades próprias nas homelands, como passaram a ser chamadas as

73 o
Ato n 30 de 1950, Population Registration Act: "pessoa branca" designa uma pessoa que na
aparência obviamente o é ou que geralmente é aceita como pessoa branca, mas não inclui uma pessoa
que, embora na aparência seja obviamente uma pessoa branca, seja geralmente aceita como uma
pessoa mestiça ”; "nativo" designa uma pessoa que de fato o é ou que geralmente é aceita como
membro de qualquer raça ou tribo aborígene da África ”; "pessoa mestiça" designa uma pessoa que
não é branca ou "nativa". Disponível em:
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/9/90/Population_Registration_Act_1950.pdf. Acesso
em: 01/08/2018. Tradução nossa.
80

“reservas” estabelecidas em 1913. Em seguida, por meio da promulgação do Bantu


Self-Government Act de 1959, o governo nacional determinou que os negros africanos
fossem separados nessas áreas segundo os diferentes grupos étnicos a que
pertenciam.

Figura 9. Concentração populacional por raça e Homelands, África do Sul,


1979

Fonte: Perry-Castañeda Library, Map Collection


(https://legacy.lib.utexas.edu/maps/africa/south_african_homelands.gif)

Não obstante a segregação espacial imposta e do crescente controle sobre o


estabelecimento dos africanos nas cidades, um número cada vez maior não apenas
de homens negros, como também de mulheres e crianças, passou a migrar das
homelands, assoladas pela pobreza e altas densidades, para as cidades. Os
81

planejadores do Estado optaram então por uma estratégia mais agressiva, baseada
na remoção forçada da população. A fórmula baseada na provisão habitacional em
massa nas townships, de um lado, e na destruição de shack settlements, de outro,
que sustentou a implementação do grande apartheid nas cidades foi viabilizada pelas
altas taxas de crescimento econômico dos anos 1950 e 1960 (MABIN e SMIT, 1997,
p. 206).

Figuras 10 e 11. Provisão habitacional pelo estado nas townships: “Matchbox


houses” 74 em Soweto (Joanesburgo), anos 1970, e Mamelodi (Pretoria), anos
1950

Fontes (da esquerda para direita): Martin West Collection, UCT Libraries Digital Collections e Van der
Waal Collection, University of Pretoria, Merensky Library.

Por meio do Prevention of Illegal Squatting Act de 1951 ficavam autorizados a


remoção forçada de africanos de áreas públicas e privadas e o estabelecimento de
resettlement camps para abrigar essa população. Em seguida, em 1952, o Native
Laws Amendment Act foi aprovado, restringindo o direito de residência nas cidades
da população negra em geral, não mais apenas dos homens. Essa lei definia que,
para se qualificar ao direito de residência permanente nas cidades, o indivíduo deveria
ter nascido na cidade ou ter trabalhado continuamente para o mesmo empregador por
dez anos, ou para empregadores diferentes por 15 anos (PEREIRA, 2012, p. 64).
Ainda no mesmo ano, o Natives (Abolition of passes and Coordination of Documents)

74 2
Como ficaram popularmente conhecidas as casas de 40m construídas pelo governo durante o
regime do apartheid feitas de material barato e sem eletricidade até os anos 1980 (BOND, 2012).
82

Act, mais conhecido como “controle de influxo” ou “lei do passe”, foi aprovado e
obrigava que todos os africanos com idade superior a 16 anos em todas as províncias
carregassem seu “passe” o tempo inteiro. O “passe” incluía detalhes do lugar de
origem, histórico dos empregos, pagamentos de taxas e passagens pela polícia.

Em Cato Manor, Durban, por exemplo, o conjunto dessas leis somado aos
anseios dos governantes locais em proteger a população branca resultariam na
remoção forçada não apenas dos negros africanos, mas também dos indianos, e
dentre estes últimos, inclusive aqueles que eram proprietários de suas terras. A
população removida foi reassentada nas townships: Chatsworth, a cerca de 20km de
Cato Manor, foi o destino dos indianos e em KwaMashu e Umlazi, ainda mais
distantes, foram reassentados os negros africanos. Em meados da década de 1960,
a área já estava praticamente vazia e assim permaneceria por cerca de duas décadas
(HINDSON, BYERLEY e MORRIS, 1993; EDWARDS, 1994).

Figuras 12, 13 e 14. Violência policial e resistência popular contra a remoção


forçada em Cato Manor na década de 1950
83

Fontes: Fotos 12 e 13 (em sentido horário): https://kznpr.co.za/durban-area/nggallery/durban-


area/durban-cato-manor-umkumbane-heritage-centre. Foto 14: Fonte: https://mg.co.za/article/2018-
03-09-00-urban-land-question-is-also-urgent/

O investimento em habitação, infraestrutura, educação e outros serviços


essenciais nas townships, que já era baixo, passou a ser ainda mais reduzido, a fim
de eliminar quaisquer atrações que as cidades pudessem oferecer às pessoas das
áreas rurais (TUROK, 1994). Em 1967, o governo nacional tomou a decisão de
congelar todos os investimentos nas townships, localizadas fora dos limites das
homelands, as áreas reservadas aos nativos. A partir da década de 1970, os enormes
hostels, construídos para acomodar milhares de trabalhadores migrantes do sexo
masculino, eram praticamente a única forma de investimento municipal nas townships.
Ao mesmo tempo em que o governo do apartheid deixava de investir nas townships,
conferia cada vez mais “independência” às homelands com o objetivo último de
separá-las da África do Sul. Assim, em 1970 foi promulgado o Bantu Homelands
Citizenship Act, por meio do qual o governo passava a conceder uma cidadania aos
africanos restrita aos territórios das homelands.

A população empobrecida nas homelands, no entanto, continuou a migrar para


as áreas urbanas. Diante do congelamento dos investimentos em habitação nas
84

townships, começou a aumentar rapidamente, no interior e arredores dessas, o


número de “invasões de terras”, squatter camps ou squatter settlements e de
construção de barracos nas áreas livres ou nos quintais das casas construídas pelo
governo, os backyard shacks ou “barracos de quintal” (HARRISON, 1992; MABIN e
SMIT, 1997). Esses últimos eram mais clandestinos em relação aos squatter camps,
facilmente identificados pela polícia, pois nunca invadiam a face da propriedade
voltada para as ruas. No entanto, eram numerosos, como fica evidente na descrição
abaixo:

Do ponto de vista até mesmo de uma pequena colina, os telhados


densamente compactados dos “barracos de quintal” são claramente
evidentes. Do alto, o impacto visual destas construções informais é
ainda maior: o simples volume dos “barracos de quintal” cria a
impressão de um resíduo de “matchbox houses” formais flutuando em
um mar de barracos (CRANKSAW e PARNELL, 1999, p.4, tradução
nossa).

Figuras 15 e 16. Casas formais e “barracos de quintal” em Eldorado Park (uma


township mestiça durante o apartheid), próximo à Soweto, Joanesburgo.

Fonte: Google Maps, 2019.

A abolição do “controle de influxo”, em 1986, acentuou o crescimento das


“invasões de terra”, em muitos casos realizadas por famílias que fugiam da violência
política instaurada nas townships, como será aprofundado no capítulo 5. Essa nova
onda de “invasões de terra”, no entanto, assim como as ocorridas desde os anos 1960,
não desafiaram a geografia do apartheid. Ao contrário, na maioria das vezes a
85

reforçou com o confinamento dos negros nas periferias urbanas (MABIN, 1992).

Com as crescentes negociações para a transição em direção a uma


democracia não racial, surge então um novo termo: informal settlements. A
emergência de seu uso na África do Sul pode ser considerada como um legado do
documento Informal Housing Part 1: Current Situation, produzido ao final do apartheid
pela Urban Foundation, organização sem fins lucrativos fundada em 1976 com
capitais nacionais provenientes da indústria, cujo papel na definição da política
habitacional sul-africana será mais detalhadamente abordado no capítulo 5.

Nesse documento é introduzido o termo free-standing informal settlements para


definir: “aglomerados de estruturas informais localizados em trechos de terra no
interior de townships formais, em zonas de transição entre townships, em terras
agrícolas não desenvolvidas, em terras tribais perto de centros urbanos e em terras
vagas de áreas anteriormente brancas, coloured e asiáticas” (Urban Foundation, 1991
apud HUCHZERMEYER, 2004, p. 148, tradução nossa).

No mesmo documento, porém, mais adiante, há definições de informal


settlement como: “assentamentos onde as comunidades estão inicialmente abrigadas
em habitações informais”; “o abrigo geralmente construído com materiais de
construção não convencionais adquiridos informalmente, isto é, fora dos mecanismos
formais de provisão habitacional” (Urban Foundation, 1991 apud HUCHZERMEYER,
2004, p. 148, tradução nossa). Dessa maneira, o termo informal settlement ora é
utilizado para se referir a assentamentos originados de modo informal, ora se restringe
à natureza precária, informal e temporária da habitação. Segundo essa última
definição, deveriam ser consideradas habitações informais tanto aquelas casas
construídas “espontaneamente” em áreas invadidas, quanto aquelas construídas nos
quintais das casas das townships criadas pelo governo (backyard shacks), ou ainda
aquelas construídas nos lotes com infraestrutura (sites and services).

Dada essa imprecisão da nomenclatura informal settlement, os termos squatter


camps e sua variação squatting, em geral evitados pelas suas conotações negativas
associadas à estigmatização e forte repressão das “invasões” durante o apartheid,
permanecem sendo utilizados, mesmo em documentos oficiais, pois indubitavelmente
remetem à ocupação não autorizada e, ao menos oficialmente, não planejada da terra.
86

Figura 17. Squatter settlement nas proximidades do Rio Umgeni em Durban

Foto: Johnny Miller (https://unequalscenes.com/durban-metro)

É também por squatter settlement, assim como shanty town e shack settlement,
que os “moradores de barracos” (do zulu abahlali basemjondolo; do inglês shack
dwellers) se referem aos seus locais de moradia75, frequentemente sujeitos a
remoções forçadas. Umjondolo (imijondolo no plural) é o correspondente no idioma
zulu para shack. Acredita-se que tenha se derivado do rótulo “John Deer” contido em
painéis de madeira provenientes de contêineres utilizados para transportar esses
tratores e que, uma vez descartados, passaram a ser utilizados por trabalhadores
portuários na construção de shacks na década de 1970.

Em resumo, as classificações urbanas associadas aos territórios habitados


pelos pobres na África do Sul resultaram de uma série de medidas segregacionistas
que, ao longo do século XX, não apenas reproduziram como reforçaram a
discriminação racial existente desde o início da colonização pelos bôeres. As formas
de controle sobre o trabalhador impostas pela burguesia inglesa promoveram uma
rígida segregação espacial entre os diferentes grupos étnicos. Aprofundada durante o

75
Constatação a partir de visitas e conversas como moradores sul-africanos, confirmada em pesquisa
na página eletrônica do movimento Abahlali BaseMjondolo (http://abahlali.org)
87

regime do apartheid, essa segregação sobrevive até hoje (CHRISTOPHER, 2001;


SEEKINGS, 2008).

3.3 Cortiços, favelas e loteamentos irregulares em cidades brasileiras

Se, como vimos, as classificações urbanas sul-africanas analisadas estão


diretamente relacionadas com a história do colonialismo, o que dizer das
classificações que surgem para distinguir os territórios habitados pelos pobres nas
cidades brasileiras? No Brasil, apesar de a transição do colonialismo para o pós-
colonialismo ter ocorrido quase um século antes da experiência sul-africana, uma
clara ruptura com o modelo de dominação colonial também não ocorreu. O sistema
escravagista, por exemplo, foi extinto oficialmente mais de meio século após a
independência. Como veremos a seguir, a análise das classificações atribuídas aos
territórios habitados pelos pobres nas cidades brasileiras revela uma tensão social
cujas raízes estão fincadas no seu passado colonial e escravocrata.

No fim do século XIX, em duas das principais cidades do país, a capital Rio de
Janeiro e o principal centro econômico São Paulo, os territórios ocupados pelos
pobres e negros também foram alvo de estigmatização. No Rio, onde a população
negra era maior, a violência das transformações urbanas também o foi. Em meados
do século XIX, quando o tráfico de escravos passa a ser proibido no Brasil, cerca de
um terço da população de São Paulo era composta por escravos, enquanto no Rio de
Janeiro, os escravos representavam cerca de metade da população (ROLNIK, 1989).

Logo, porém, as “elites brancas”, que buscavam lidar com a “derrocada do


regime escravocrata, a abolição e a construção de uma sociedade livre e republicana”,
passam a impulsionar políticas de atração de imigrantes europeus, tanto por razões
“lógicas”, isto é, para substituir a mão-de-obra escrava, quanto “ideológicas”, ou seja,
marcadas pelo “ideal do branqueamento materializado pela mestiçagem e a
construção do mito da democracia racial” (GARCIA, 2012, p. 138). Em consequência,
a população brasileira que no século XIX era composta predominantemente por
negros e indígenas, passa a ser, ao final do século XX, majoritariamente branca.

Ao mesmo tempo em que o país optava pela imigração estrangeira, diante do


88

esgotamento do escravismo, era aprovada a Lei de Terras, em 1850, instituindo um


novo regime de propriedade à terra outrora de livre ocupação. O novo regime baseado
na compra assegurava a manutenção do latifúndio e da sociedade aristocrática que
em torno dele se formara (MARTINS, 2010). Aos negros libertos, preteridos pelos
imigrantes europeus no trabalho formal e privados da propriedade da terra, restava
habitar nos cortiços das então incipientes áreas urbanas e, a partir do momento em
que estes passassem a ser demolidos, no início do século XX, nas favelas e
loteamentos irregulares nas periferias.

Dados históricos dos Censos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística


(IBGE) indicam que em 1872, pouco mais de uma década antes da promulgação da
Lei Áurea, cerca de 38% da população era branca contra 58% de pretos e pardos. Em
1980, após as ondas imigratórias, sobretudo das décadas de 1890, 1910, 1920 e
1950, a população branca passou a ser de cerca de 54% contra 45% de pretos e
pardos. Os indígenas só passaram a ser contados no Censo de 1991, e desde então
não ultrapassam 0,5% da população brasileira total. Entre 1820 e 1850, o Brasil
recebeu cerca de 13.700 imigrantes, passando para cerca de 630 mil entre 1850 e
1888. Após a abolição e até a década de 1970 imigraram para o país cerca de 5
milhões de pessoas76.

As reformas urbanas impulsionadas pelos governos locais nas cidades


brasileiras carregam, assim, mais do que um ideal sanitário, uma ideologia do
branqueamento, segundo a qual o “saneamento moral da sociedade brasileira”
passava pelo afastamento, senão eliminação dos elementos africanos da cultura
nacional (PETEAN, 2011, p. 25). A história dessas reformas urbanas e dos usos e
significados atribuídos à favela e aos cortiços nas cidades brasileiras, já amplamente
tratada pela literatura brasileira será a seguir brevemente retomada, enfocando os
casos do Rio de Janeiro e São Paulo.

No Rio de Janeiro, então capital do país, a população havia mais do que


dobrado de tamanho entre 1870 e 1890, passando de 235.381 para 518.292

76
Os dados sobre cor foram sistematizados a partir de
https://seriesestatisticas.ibge.gov.br/series.aspx?no=10&op=0&vcodigo=POP106&t=populacao-
presente-residente-cor-raca-dados. Os dados sobre total de imigrantes foram sistematizados a partir
de https://brasil500anos.ibge.gov.br/estatisticas-do-povoamento/imigracao-total-periodos-anuais.html
89

habitantes (Vaz, 1994 apud QUEIROZ FILHO, 2011, p.34). Esse intenso crescimento
demográfico foi, em parte, consequência da abolição da escravidão, que levou um
grande número de escravos negros libertos a migraram das fazendas de café,
localizadas no interior da província fluminense, em direção à cidade (PEARLMAN,
2010; ROLNIK, 1989).

Na área central cidade, os escravos de ganho e forros já vinham se aglutinando


em cortiços, desde o final do século XVIII, onde encontravam moradia barata
(SODRÉ, 1988, pp. 120-1). Uma definição dos cortiços dessa época aparece no
parecer sobre o problema das habitações populares feito em 1905 pelo engenheiro
Backheuser77:

Construções de madeira que o tempo consolidou pelos consertos


clandestinos, atravessadas nos fundos de prédios, tendo um segundo
pavimento acaçapado como o primeiro e ao qual se ascende
dificilmente por escadas íngremes, circundado também por
varandinhas de gosto esquisito e contextura ruinosa (Backheuser,
1905 apud CHALHOUB, 1996, p. 38-39).

Com o declínio da produção agroexportadora e o desenvolvimento de um


mercado urbano, novos ideais de modernidade inspirados nas cidades europeias
passaram a ser difundidos nas cidades brasileiras. Assim, na virada do século XIX,
valores higienistas trazidos por sanitaristas e engenheiros brasileiros formados na
Europa impulsionaram uma série de reformas urbanas. Assim como na África do Sul,
essas reformas foram deflagradas pelo ímpeto sanitário, sem qualquer apreço pela
integração social dos pobres urbanos. De modo distinto ao qual a segregação espacial
oficialmente tomou forma na África do Sul, entretanto, não houve aqui dispositivos
legais de controle rígido dos espaços urbanos, o que não quer dizer que não tenha se
desenvolvido uma clara distinção entre os territórios habitados pelas elites locais e
pelos pobres urbanos, em grande parte ex-escravos.

No Rio de Janeiro, amplas reformas urbanas foram coordenadas por Pereira


Passos, engenheiro e então prefeito (1903-1906), nas quais os cortiços foram
demolidos. Os cortiços aos olhos dos higienistas eram vistos como “locais de moradia
tanto para trabalhadores como para vagabundos e malandros”, um verdadeiro “inferno

77
Everardo Backheuser, engenheiro civil, foi escolhido em 1905, durante a reforma urbana de Pereira
Passos, para redigir a parte técnico-sanitária do parecer sobre o problema das habitações populares,
encomendado pelo então ministro da Justiça e Negócios Interiores J.J. Seabra (VALLADARES, 2010)
90

social” e “uma ameaça à ordem social e moral” (VALLADARES, 2005, p. 24). As


reformas de Pereira Passos traziam referências de sua experiência em cidades
europeias, como registrado em trecho extraído dos relatórios da Comissão de
Melhoramento da cidade do Rio de Janeiro:

Entre os povos bárbaros, e entre outros adiantados em civilização, as


ruas são igualmente acanhadas e mal dispostas. O mesmo defeito
ainda se nota em quase todas as cidades da Europa que não têm
sofrido alterações no século presente. É que os nossos antepassados
não sentiam as necessidades que têm criado a civilização moderna,
para satisfazer as quais é necessário aumentar a largura das ruas.
Assim, os novos Boulevares de Paris, Ringstrasse em Viena, as ruas
dos novos quarteirões em Londres, a avenida da Pensilvânia em
Washington têm larguras que em alguns casos vão além de quarenta
metros (Passos et al., 1875 apud AZEVEDO, 2009, p. 25)

A demolição dos cortiços, como parte de um projeto modernizador para o centro


do Rio de Janeiro, sem qualquer outra oferta oficial de moradia, fez com que uma
grande parte da população pobre expulsa fosse buscar moradia nas encostas do
Morro da Providência, também conhecido como Morro da Favella. Nesse morro, os
soldados vitoriosos da guerra civil de Canudos78 (1896- 1897), não tendo recebido o
soldo que lhes era devido, tinham sido autorizados a se instalar provisoriamente. O
nome de Morro da Favella, como era popularmente conhecido, vinha da semelhança
da vegetação ali existente com aquela encontrada na Bahia. Para aqueles soldados,
provavelmente, uma oportuna lembrança, já que o morro baiano com este nome tinha
tido um papel decisivo na vitória final pela armada Republicana (VALLADARES,
2010).

O emprego do termo favela como classificação urbana, portanto, surge a partir


da generalização de um topônimo, isto é, a utilização de um nome próprio de um lugar
específico como substantivo para designar habitações precárias não só no Rio de
Janeiro, como em outras cidades brasileiras. A representação dos cortiços levada à
cabo pelos higienistas seria então transferida para as favelas por jornalistas,
reformadores sociais e ilustradores estrangeiros (VALLADARES, 2010), os quais
alimentavam um discurso negativo sobre a favela, promovendo a continuidade da

78
Confronto entre o Exército Brasileiro e a comunidade de Canudos no interior do estado da Bahia
liderado por Antônio Conselheiro, quem pregava a salvação “milagrosa” dos habitantes desta
comunidade, assolados pela pobreza resultante das secas cíclicas e da concentração de terras na
forma dos latifúndios.
91

estigmatização dos territórios habitados pelos pobres nas cidades, de modo muito
similar àquela conferida às slums e aos slumyards, nas cidades sul-africanas.

Em 1905, a paisagem do Morro da Favella, no já citado parecer sobre o


problema das habitações populares de Backheuser, era assim descrita:

Para ali vão os mais pobres, os mais necessitados, aquelles que,


pagando duramente alguns palmos de terreno, adquirem o direito de
escavar as encostas do morro e fincar com quatro moirões os quatro
pilares do seu palacete. Os casebres, espalham-se por todo o morro;
mais unidos na base, espaçam-se em se subindo pela rua (!) da Igreja
ou pela rua (!) do Mirante, eufemismos pelos quaes se são a conhecer
uns caminhos estreitos e sinuosos que dão difícil acesso à chapada
do morro.

Alli não moram apenas os desordeiros e os facínoras como a legenda


(que já tem a Favella) espalhou; ali moram também operários
laboriosos que a falta ou a carestia dos cômodos atira para esses
logares altos, onde se goza de uma barateza relativa e de uma suave
viração que sopra continuamente, dulcificando a rudeza da habitação
(Backheuser, 1906 apud VALLADARES, 2005, p.38)

O Morro da Favella virava, assim, a Favella, referência que permitia definir


outros conjuntos de habitações do mesmo tipo na cidade. Nos anos 1920, o termo
deixaria de ser um nome para se tornar um substantivo da língua corrente, sendo
regularmente utilizado pela imprensa carioca. Segundo Queiroz Filho (2011), ainda
que “Os Sertões”, livro de Euclides da Cunha sobre a Guerra de Canudos, publicado
em 1902, seja posterior à ocupação do Morro da Providência, ele teria contribuído
substancialmente para a consolidação do termo favela, talvez ao modo da
popularização do termo slum pela obra de Charles Dickens.

A palavra favela, assim, passou a designar um tipo de localização (as encostas


dos morros), mas também, de modo pejorativo, um local de moradia que se distingue
por sua morfologia, marcada por construções precárias, pela falta de equipamentos
públicos e implantação ilegal. Seus habitantes, que passaram a ser chamados de
favelados, eram frequentemente acusados de ociosidade e associados ao crime e à
desordem existente na cidade (VALLADARES, 2010).

No plano de 1930 para a cidade do Rio de Janeiro, o urbanista francês Alfred


Agache apresentou a favela como uma doença contagiosa, enfatizando a
necessidade de remoção e relocação de seus moradores em vilas operárias. O
92

reconhecimento jurídico das favelas, importante para que fossem atacadas com ainda
mais eficiência, viria com o código de obras de 1937, o qual proibiu a construção de
novas favelas, assim como o uso de material de construção permanente para a
expansão das comunidades existentes (VALLADARES, 2010; PEARLMAN, 2010). Ao
longo da década seguinte, o debate político-administrativo condenou firmemente as
favelas cariocas, associando-as a uma patologia espacial, mas também social. A
estigmatização dos “favelados” é reforçada pelas assistentes sociais do governo
Vargas, sendo as retaliações a eles dirigidas estendidas a todos os pobres da época
(VALLADARES, 2010).

Esse ideal de higienização, saneamento e extensão das regras da “cidade


moderna” às favelas teria influenciado a elaboração de algumas políticas populistas e
assistencialistas, cujo foco era, portanto, dar condições para a recuperação social de
seus habitantes. No Rio de Janeiro, em 1941, foram criados os Parques Proletários
Provisórios para acolher moradores de favelas em casas de alvenaria construídas nas
áreas até então ocupadas pelas favelas. O encontro desse ideário assistencialista e
reformador com a missão própria da Igreja Católica gerou parcerias significativas: a
Fundação Leão XIII, criada em 1946, com o intuito justamente de assistir material e
moralmente os habitantes das favelas; e a Cruzada São Sebastião, criada em 1955
por D. Hélder Câmara, então bispo na Arquidiocese do Rio de Janeiro79.

A migração em direção às cidades, no entanto, crescia enormemente no Brasil,


após a Segunda Guerra Mundial, devido em parte à migração de pobres da região
Nordeste, economicamente enfraquecida desde o fim do ciclo do açúcar no século
XVIII. Os nordestinos chegavam atraídos pela construção civil, entre outras atividades
que não demandavam nenhuma qualificação. Com a elevada procura de moradia, de
um lado, cada vez mais quintais e terrenos livres davam lugar a pequenas vilas de
casas, enquanto antigas casas eram subdivididas em cômodos, fazendo crescer o
mercado rentista urbano. De outro, surgiam novas favelas80. Nos anos 1950 e 1960,

79
A Fundação Leão XIII foi criada ainda em 1946 pela Arquidiocese do Rio de Janeiro. Entre 1947 e
1954, ela estendeu sua atuação a 34 favelas, implantando em algumas delas serviços básicos como
água, saneamento, luz e redes viárias e mantendo centros sociais em oito das maiores favelas da
cidade na época. Em 1955, a Igreja Católica cria a Cruzada São Sebastião, que, entre 1956 e 1960,
realiza melhorias de serviços básicos em doze favelas, além de construir o conjunto habitacional que
ficaria conhecido como Cruzada, localizado no bairro do Leblon (BURGOS, 1998, p.28 et seq).
80
Os levantamentos oficiais realizados à época pelo IBGE, criado em 1938, restringiam-se às favelas
cariocas. Em 1950, o IBGE incluiu as favelas do Rio de Janeiro, então Distrito Federal, na contagem
93

o uso de termos como favela e favelado no Rio de Janeiro refletiam enormes tensões.

Nesse contexto, de premente necessidade de políticas de intervenção para


melhoria das favelas, o jornalista Carlos Lacerda, apoiado pela União Democrática
Nacional (UDN) e pelo Partido Social Democrático (PSD), foi eleito como primeiro
governador do estado da Guanabara81 em 1960. Conhecido por sua “batalha” de
ideias contra as favelas no final da década de 1940, Lacerda conjugava ideais liberais
e católicos e via as favelas como um problema de assistência social (OLIVEIRA,
2010).

Já no início de seu mandato criou a Coordenação dos Serviços Sociais para


lidar com as favelas, nomeando o sociólogo José Arthur Rios para comandá-la. Em
1958, Rios havia coordenado uma pesquisa detalhada sobre 16 favelas cariocas –
segundo aspectos históricos, demográficos e sociais – no âmbito da Sociedade de
Análises Gráficas e Mecanográficas Aplicadas aos Complexos Sociais (Sagmacs),
criada em 1947 em São Paulo e dirigida pelo padre dominicano Luis-Joseph Lebret,
representante do movimento Economia e Humanismo82, trazido para o Brasil por D.
Hélder Câmara. A pesquisa de Rios revelava a organização dos favelados em torno
de numerosas associações religiosas, recreativas, esportivas e políticas (MELLO,
2014), assim como evidenciava a exploração dessas entidades por certos políticos
clientelistas.

Na recém-criada Coordenação de Serviços Sociais sua primeira medida foi


eliminar os intermediários, "benfeitores políticos", entre a coordenação e os
moradores das favelas, fomentar a capacidade associativa dos moradores e
desenvolver a Operação Mutirão, na qual o governo entrava com o material de
construção, produto de demolições, e com técnicos para orientar o trabalho; os
favelados entravam com a mão-de-obra. Progressivamente, as associações de
moradores, representadas por uma liderança eleita, formaram coalizões que

de população, o que resultou na publicação, em 1953, do documento: “As favelas do Distrito Federal”
(PASTERNAK; D’OTTAVIANO, 2016).
81
Com a mudança do distrito federal para Brasília, o território correspondente ao atual município do
Rio de Janeiro passou a constituir o Estado da Guanabara, que foi extinto em 1975 e fundido ao Estado
do Rio de Janeiro.
82
Movimento criado em 1942 na França foi, segundo depoimento de Lícia Valladares (AMÉRICO e
FREIRE, 2008, p.178) o responsável por transformar a imagem negativa dos cortiços (taudis) naquele
país, mostrando que tinham uma “funcionalidade” que seus moradores eram “pessoas trabalhadoras”
e formavam uma “comunidade”.
94

conduziram à criação da Federação das Associações de Favelas do Estado da


Guanabara (Fafeg) em 1963 (PEARLMAN, 2010).

Para Rios, o problema das favelas era fundamentalmente social e relacionado


à necessidade de geração de trabalho e renda, o que, na sua visão, poderia ser
resolvido por meio da “reformulação das favelas” (FREIRE e OLIVEIRA, 2002). Mas
a pressão exercida por políticos e representantes do mercado imobiliário, contrários à
sua atuação nas favelas (FREIRE e OLIVEIRA, 2002), resultou em sua exoneração
da Coordenação de Serviços Sociais em 1962. Seu posto foi, então, assumido por
Sandra Cavalcanti, deputada estadual eleita pela mesma chapa da UDN de Lacerda
e abertamente contrária à atuação de Rios:

“Nossa posição era diferente. Não tínhamos teorias nem ideologias


sobre favelas. Para nós a questão era simples e objetiva. Se a favela
estava em área de risco, tinha de ser reassentada em outro local. Se
invadia a Mata Atlântica, tinha de ser retirada dali. Se poluía margens
de rios, lagos e lagoas ou se ficava à mercê de marés também tinha
de ser deslocada. A urbanização não era nem dogma nem regra, como
veio a acontecer depois” (FREIRE e OLIVEIRA, 2002, p. 81).

A postura de Cavalcanti, associada ao grande empréstimo dos Estados Unidos


que o governo recebeu para a construção de casas populares, por meio do programa
Aliança para o Progresso, provocou a erradicação de um grande número de favelas,
sobretudo nas áreas mais valorizadas da cidade à época83. O referido programa criado
pelo governo Kennedy em março de 1961 – logo após a revolução cubana e no
contexto da Guerra Fria – pretendia, por meio da ajuda financeira e assistência
técnica, salvar a América Latina do avanço comunista (FREIRE e OLIVEIRA, 2002).
A aproximação entre as favelas e o Partido Comunista Brasileiro (PCB) vinha dos anos
1940, quando Comitês Populares Democráticos foram criados nessas comunidades
(entre 1945 e 1947), como parte da estratégia do partido em aumentar seu número de
votantes e participação na política. (Pandolfi, 1995 apud OLIVEIRA, 2010). A figura
abaixo retrata um dos conjuntos de casas populares construídos com recursos da
Aliança para o Progresso. Uma imagem que guarda muitas semelhanças com o
modelo de implantação das townships sul-africanas.

83
Cf. Valladares, 1978.
95

Figura 19. Vila Kennedy na década de 1960

Foto: Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro

A remoção forçada de mais de 40 mil famílias (VALLADARES, 1978, p. 39)


associada à construção em massa de conjuntos habitacionais durante o governo
Lacerda84, contudo, motivaria críticas até mesmo por parte dos financiadores
externos. No âmbito da Usaid85 já circulavam argumentos de que a urbanização das
favelas parecia ser financeiramente mais compensatória, uma vez que, segundo a
agência norte-americana, o custo de cada habitação reabilitada in loco estava
estimado em metade do custo de cada habitação nova construída no âmbito da
política de remoção (LEEDS E LEEDS, 1977).

84
Além do conjunto Vila Kennedy, foram construídos os conjuntos Vila Aliança e Vila Esperança
(CARDOSO, 2007)
85
United States Agency for International Development, criada em novembro de 1961 pelo então
Presidente J. F. Kennedy com o objetivo de centralizar diferentes programas e organizações de “ajuda
externa”, entre eles a Aliança para o Progresso, e dinamizar a promoção do “desenvolvimento social e
econômico”. Cf. https://www.usaid.gov/who-we-are/usaid-history
96

A violência das remoções e o crescente confronto entre governo e


organizações comunitárias que reivindicavam a urbanização das favelas (SILVA e
FIGUEIREDO, 1981) geraram um debate polarizado entre “remoção” e “urbanização”.
Essa discussão teve importantes consequências para o fortalecimento de movimentos
sociais e a ação pública relacionada às favelas nas décadas seguintes, como será
retomado no capítulo 5.

Foi em meio a esse debate, característico da virada dos anos 1960 para os
anos 1970, que as favelas na cidade de São Paulo começaram a crescer. As favelas
existiam em São Paulo desde os anos 1940 (PASTERNAK, 2001), mas eram poucas
e não muito grandes. Até o final dos anos 1970, a principal alternativa habitacional
para os pobres urbanos em São Paulo estava nos loteamentos periféricos.

Na capital paulista, as obras de “melhoramento” (alargamento de ruas,


transferência e demolição de mercados, construção de praças e boulevards) haviam
sido iniciadas na administração de Antônio Prado (1889-1911), mas foi na
administração seguinte, de Raymundo Duprat (1911-1914), que as reformas
demoliram um grande número de cortiços, pensões e hotéis habitados pela população
mais pobre e em grande parte negra. Essa população continuou, no entanto,
habitando “cômodos e porões” de bairros centrais que se consolidaram como redutos
negros, como é o caso do Bexiga e da Barra Funda (ROLNIK, 1989).

A partir da década de 1930, e mais fortemente na década seguinte, contudo, a


população negra passou a buscar alternativa de moradia nos loteamentos irregulares,
abertos sem qualquer infraestrutura, nas periferias da cidade, uma ação vista como
necessária para que se desvencilhassem da estigmatização atrelada aos cortiços.
Nas palavras de Rolnik (1989):

Para os membros da comunidade [negra], a desmarginalização


colocava-se claramente em termos territoriais – era preciso sair dos
cômodos e porões para organizar um novo território negro, familiar.
Essa foi uma das palavras de ordem da Frente Negra Brasileira,
agremiação política fundada em 1931 que pregava a necessidade de
instrução e organização da vida familiar nuclear na comunidade para
que os negros pudessem atingir a igualdade com o branco. Uma das
ações concretas dos membros da Frente em São Paulo foi comprar
terrenos em loteamentos recém-abertos nas periferias da cidade e
fundar núcleos negros formados por casas próprias. Casa Verde, Vila
Formosa, Parque Peruche, Cruz das Almas e Bosque da Saúde são
97

exemplos dessa nova forma de territorialização: em bairros


inicialmente sem qualquer infra-estrutura e distantes do Centro,
famílias negras começaram a edificar casas próprias em lotes
comprados (ROLNIK, 1989, n.p.)

A abertura de loteamentos periféricos era uma resposta à crise no mercado


rentista de moradias, provocada pela aprovação da lei do inquilinato em 1942. Essa
lei, reeditada até a década de 1960, ao congelar os aluguéis, fez com que, não apenas
em São Paulo como em outras cidades, a locação deixasse de ser um bom negócio,
provocando uma considerável redução da oferta de cômodos para aluguel e inúmeros
despejos (BELOCH,1980; BONDUKI, 1998).

Na capital paulista, a necessidade do empresariado em movimentar o setor da


construção civil parecia convergir com o antigo desejo da elite em eliminar os cortiços
do centro da cidade. Havia uma espécie de consenso entre elite, empresariado e
Estado de que a crise da moradia requeria a implantação de um novo modelo de
atendimento para as necessidades do trabalhador (BONDUKI, 1998). No novo modelo
posto em prática, baseado no loteamento aberto sem infraestrutura nas áreas
periféricas, onde a terra era mais barata, a construção da moradia ficou por conta dos
próprios trabalhadores86.

Com comercialização a longo prazo, o loteamento periférico também se tornou


o principal meio de acesso dos pobres à casa própria entre as décadas de 1950 e
1970 no Rio de Janeiro (SANTOS, 1977), onde aos efeitos provocados pela lei do
inquilinato somava-se a acirrada política de erradicação de favelas. Não obstante a
precária oferta de infraestrutura nesses loteamentos irregulares, e a longa distância
desses com relação às áreas que concentravam a maior parte dos postos de trabalho,
pelo menos ali os moradores tinham a segurança de não serem despejados, como
acontecia nas favelas.

Foi apenas quando a expansão periférica começou a demonstrar certo


enfraquecimento, na década de 1980, que as favelas voltaram a crescer em larga
escala tanto em São Paulo como no Rio de Janeiro (RIBEIRO e LAGO, 2001;

86
Santos (1980, p.31) critica o uso do termo “autoconstrução”. O autor destaca que apesar das casas
serem construídas com recursos dos próprios moradores, resultavam de diferentes tipos de contratos,
parciais e totais, de mão-de-obra, de diversas qualificações. Ele aponta ainda para a existência de
pequenas empresas que atuavam nesse tipo de loteamentos.
98

PASTERNAK, 2001). Diferentes motivos parecem estar associados a esse


enfraquecimento. A diminuição do estoque e o encarecimento da terra, a perda de
capacidade de endividamento dos trabalhadores, e a própria atuação do estado, por
meio da regulação do parcelamento do solo pela lei federal 6.766 e do fortalecimento
de políticas para a urbanização das favelas, são aspectos a serem considerados
nesse processo de diminuição da expansão periférica. A aprovação de programas
para a urbanização das favelas reduzia a insegurança dos moradores de favelas com
relação às remoções forçadas, e dava expectativas de melhores condições de vida,
estimulando novas ocupações” (RIBEIRO e LAGO, 2001, p.147).

Figura 20. Heliópolis, uma das maiores favelas em São Paulo

Foto: Reprodução/Facebook Heliópolis (Divulgação IG-Último segundo)

O crescimento das favelas levou o IBGE a incluir pela primeira no Censo


Demográfico de 1991 a mensuração desse fenômeno. Em consequência do estigma
negativo associado ao termo favela (PEARLMAN, 2010; GOLÇALVES e PILO, 2017),
das diferentes denominações regionais para o fenômeno e da necessidade de que
99

estimativas nacionais fossem embasadas por termos “técnicos”, no censo as favelas


passaram a ser identificadas como “aglomerados subnormais”87. Por aglomerado
subnormal foram designados: “cada conjunto constituído de, no mínimo, 51 unidades
habitacionais carentes, em sua maioria, de serviços públicos essenciais, ocupando ou
tendo ocupado, até período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou
particular) e estando dispostas, em geral, de forma desordenada e densa”88.

As estatísticas produzidas pelos Censos Demográficos passaram a ser


importantes fontes de informação para o desenho de programas de urbanização de
favelas em diferentes municípios a partir dos anos 1980 e de abrangência nacional a
partir dos anos 1990. A institucionalização da urbanização de favelas nesses
programas, porém, será objeto do capítulo 5.

Vale destacar aqui, porém, que essa institucionalização trouxe à tona mais um
termo, supostamente também imbuído de neutralidade técnica: assentamentos
precários. O uso dessa denominação se consolida nas décadas seguintes,
principalmente após o lançamento, em 2004, da nova Política Nacional de Habitação,
a qual passou a incluir um componente para a “integração urbana de assentamentos
precários”. Assentamentos precários passaram a englobar as “diversas tipologias
habitacionais” que têm em comum “a precariedade das condições de moradia e sua
origem histórica”, ou seja, todas as situações de inadequação habitacional e de
irregularidade urbanística e fundiária existentes em cortiços, favelas, loteamentos
irregulares de baixa renda e conjuntos habitacionais degradados (MINISTÉRIO DAS
CIDADES, ALIANÇA DE CIDADES, 2009, p. 80).

3.4 Conectando urbanismos da periferia

Neste capítulo – uma espécie de ”ponto zero” para a comparação das


trajetórias de desenvolvimento de políticas de urbanização de favela em São Paulo e
in-situ upgrading em Durban – a abordagem comparativa relacional foi posta em

87
Discussões do Seminário de Habitação e Reforma Urbana (1963) geraram o termo “habitações
subnormais”, que figurou em anteprojeto de lei que resultou no projeto de lei nº 87, de 1963 (BONDUKI
e KOURY, 2010).
88
https://censo2010.ibge.gov.br/materiais/guia-do-censo/glossario.html
100

prática para analisar as diferenças históricas embutidas em termos como favela, slum,
shanty town e informal settlements, entre outros, quando utilizados para nomear e
classificar os territórios habitados pelos pobres em cidades inglesas, norte-
americanas, brasileiras e sul-africanas.

O resgate comparativo da história da urbanização e do urbanismo dessas


cidades, por meio do uso das classificações dos territórios habitados pelos pobres,
demonstra uma das formas possíveis de se examinar relacionalmente diferentes
contextos, sem a predeterminação de uma teoria que os conecte e explique
(MCMICHAEL, 1990; HART, 2002). Ao contrário, por meio da análise dessas
classificações é que processos mais amplos são revelados. Na análise aqui
apresentada, portanto, as classificações dos territórios habitados pelos pobres foram
consideradas como uma espécie de “terceiro termo” (JACOBS, 2012; ROBINSON,
2016), aquele que serve como base ou como elemento unificador para a reflexões
que, ao atravessar diferentes cidades, permitem explorar a singularidade de
“instâncias repetidas” (JACOBS, 2006, 2012; ROBINSON, 2016).

O que se observa dessa análise das classificações destinadas aos territórios


habitados pelos pobres, seja nos países centrais seja na periferia, é a construção da
estigmatização urbana (DEPAULE e TOPALOV, 1996) pelo Estado que, por meio de
práticas sanitaristas e do desenvolvimento do planejamento urbano moderno, tem o
poder de determinar o que é informal e o que não é e determinar quais formas de
informalidade irão prosperar e quais desaparecerão (ROY, 2005).

Não por acaso, o uso do termo slum como uma classificação urbana é
contemporâneo à própria origem do termo "urbanismo", o qual, carregado com
concepções europeias sobre desenvolvimento e modernização (SHEPPARD, 2014),
aparece em dicionários de língua inglesa e francesa ao final do século XIX como o
estudo das necessidades físicas das sociedades urbanas, a gestão dos espaços
urbanos, o modo característico de vida dos moradores da cidade e a urbanização.

O reconhecimento da circulação de uma “síndrome sanitária” que conecta


diferentes cidades do centro e da periferia, assim como as diferentes mutações,
histórico-dependentes, geradas em cada contexto, sugerem um caminho possível
para o estudo da história urbana transnacional numa perspectiva comparativa e
101

relacional (KENNY e MADGIN, 2015).

Nas últimas décadas do século XIX, num contexto de urbanização de


sociedades e novas tecnologias de transporte e comunicação, surgiram conexões
entre municípios da Europa e da América do Norte. Sistemas complexos para a
circulação de pessoas, ideias, textos, desenhos e etc. foram gradualmente
estabelecidos em torno dessas conexões. Inicialmente, tais sistemas fizeram uso de
redes pessoais e troca de cartas entre indivíduos, exposições universais e congressos
internacionais (a exemplo do Congresso Internacional de Habitação de 188989 e da
Conferência de Planejamento Urbano de 191090). Histórias sobre outras cidades eram
usadas por políticos e funcionários municipais para subverter – ou fortalecer – o status
quo local (SAUNIER, 1999).

É no interior desse movimento que a circulação de ideais e políticas sanitaristas


adquirem força entre o fim do século XIX e início do XX. A análise aqui apresentada
pode ser compreendida como uma maneira de refletir sobre as diferentes cidades,
uma(s) em relação à(s) outra(s), com base na compreensão tanto de processos
internos e específicos aos centros urbanos quanto daqueles que, apesar de neles
realizados, os ultrapassam. Uma difusão de ideias e modelos que não se faz sem
adaptações e mutações condicionadas pelo novo ambiente socioeconômico, cultural
e político onde são implementados.

Assim, a estigmatização presente nos termos utilizados para nomear os


territórios habitados pelos pobres em cidades sul-africanas e brasileiras está
atravessada pelo passado colonial e pelos ideais de ideais de modernidade vindos do
Norte do Atlântico. Portanto, se de um lado, o que a análise comparativa das
classificações urbanas que surgem para nomear os territórios habitados pelos pobres
revela, em todas as cidades aqui analisadas, são os modos pelos quais um estigma
negativo em torno desses foi historicamente construído, por meio de edições e
reedições de normas urbanas postas em prática com o intuito de associá-los a

89
Durante a Exposição Universal de 1889, em Paris, foi organizado o primeiro Congrès international
des habitations à bom marché, onde reformadores de diferentes partes do mundo se reuniram para
discutir preocupações comuns em torno de higiene pública, legislação habitacional, progressos em
esquemas industrializados de habitação, e sociedades privadas de construtores.
90
A Town Planning Conference ocorreu em Londres em 1910 e sucedeu a implementação do então
recém aprovado Housing and Town Planning Act, aprovado em 1909, na Grã-Bretanha.
102

situações de informalidade e/ou ilegalidade. Por outro lado, a análise mostra como
nas cidades brasileiras e sul-africanas o entendimento dessas classificações não se
completa sem um encontro colonial (CONNELL, 2012), capaz de evidenciar uma das
formas pelas quais a lógica colonial de separação entre colonizados e colonizadores
foi perpetuada (QUIJANO, 2000).

Nessas cidades, as teorias e práticas de planejamento europeias, para


controlar a pobreza diante do desenvolvimento urbano trazido pelo desenvolvimento
do capitalismo industrial, parecem ter sido amalgamadas a ideologias racistas que,
baseadas numa visão equivocada de desigualdade entre as raças humanas (e da
suposta inferioridade intelectual, moral, cultural e psíquica dos conquistados ou
escravizados), justificavam a subordinação permanente de indivíduos e povos, sua
destituição material e pobreza (GUIMARÃES, 1999; SHEPPARD, 2014).

Essa fusão, no contexto sul-africano, onde o colonialismo coincidiu com o


desenvolvimento do capitalismo industrial e papel fundamental das cidades, resultará
em medidas segregacionistas que visaram o completo banimento da população negra
africana das áreas urbanas. Já nas cidades brasileiras, a desigualdade de direitos e
de posição social que outrora marcou a relação entre colonizadores e colonizados,
entre senhores e escravos, deu origem a novas e atualizadas formas de discriminação
étnico-racial com a independência e o posterior fim da escravidão.

Estudos sobre desigualdades raciais no Brasil têm procurado demonstrar que


“raça” é uma variável significativa na distribuição desigual de recursos e de
oportunidades (Hasenbalg, 1979; Hasenbalg e Silva, 1988; Telles, 2003 apud LIMA,
2012, p. 235). A tese principal desses estudos é a de que preconceito e discriminação
raciais estão intimamente associados à competição por posições na estrutura social,
refletindo sobre diferenças entre os grupos de cor na apropriação de posições na
hierarquia social. Isto quer dizer que tanto há mais negros (pretos e pardos) entre os
pobres, quanto há maior proporção de pobres no grupo negro do que no grupo
branco91 (LIMA, 2012, p. 236).

91
A autora mostra que, segundo dados da Pesquisa Nacional de Amostra Domiciliar (Pnad), em 1999
entre os 10% mais pobres da população brasileira, 68% eram negros (pretos e pardos); sendo que em
2008, essa proporção era de 70,8% (LIMA, 2012: 236).
103

Figura 21. Favelas, núcleos urbanizados e concentração de negros no


Município de São Paulo

As histórias dos territórios habitados pelos pobres em cidades brasileiras e sul-


africanas, aqui brevemente traçadas, mostram-nos que embora o desenvolvimento
das favelas nas cidades brasileiras não esteja relacionado a formas impostas de
segregação, legalmente reguladas, pode ser compreendido como parte de uma longa
história de discriminação étnico-racial. Como lembra Maylam (1995, p.23), a
segregação nas cidades sul-africanas no século XIX dava-se mais por exclusividade
do que por divisão, forma que viria posteriormente com a imposição legal da
separação política, social e cultural dos grupos étnico-raciais, em benefício de um
desses grupos, pelo apartheid (CHRISTOPHER, 1994, p.1). Em paralelo, podemos
dizer que se nas cidades brasileiras não há divisões oficializadas, há exclusividades
104

veladas que relegam a população negra aos espaços de pobreza.

Não à toa, a revogação das “leis do passe” na África do Sul, em 1986, que
implicou na criação de um mesmo documento de identidade para todos os cidadãos,
foi tratada por alguns como uma “opção brasileira” (PEREIRA, 2012, p.123), para dar
a impressão de desmantelamento do apartheid e fôlego ao monopólio branco no
poder. Vale lembrar que, no Brasil, as leis trabalhistas brasileiras regulando a
exploração do trabalho foram introduzidas durante o Estado Novo por Getúlio Vargas
(KOWARICK e BONDUKI, 1994, p. 128), enquanto o direito ao voto permaneceu
restrito à população alfabetizada, isto é, menos da metade da população brasileira92.

3.5 Conclusão do capítulo

O exercício realizado neste capítulo de se pensar as cidades e suas


classificações urbanas comparativamente foi capaz de desvelar interessantes
paralelos entre os jogos político e simbólico que historicamente operaram para
distinguir o lugar habitado pelos pobres e negros no Brasil e na África do Sul. Ao
mesmo tempo em que o exemplo sul-africano ajuda a refletir sobre a dimensão étnico-
racial das desigualdades de classes no Brasil, a recuperação da história brasileira
provoca conjecturas a respeito da transformação da segregação racial na África do
Sul em desigualdades de classe e de oportunidades entre ricos e pobres (SEEKINGS,
2008).

Há algum tempo Maricato (2000) nos lembra da importância da crítica a


respeito das “ideias fora do lugar e dos lugares fora das ideias” para a construção de
urbanismos (entendido como planejamento e regulação urbanística) adequados à
realidade das cidades “na periferia do capitalismo”. Num movimento parecido, porém
mais teórico e menos propositivo, Roy (2011) propõe que os “urbanismos subalternos”
e as categorias teóricas concebidas a partir da experiência urbana do “Sul global”
(como periferias, informalidade urbana, zonas de exceção e espaços cinzentos)

92
O Censo Demográfico do IBGE de 1940 indicou uma taxa de analfabetismo de 56,8%
(https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-
noticias/releases/13300-asi-estudo-revela-60-anos-de-transformacoes-sociais-no-pais. Acesso em
03/05/2019.
105

devam ser objeto de maior reflexão no interior de um processo de construção da teoria


urbana crítica, capaz de revelar os modos pelos quais o Estado, no exercício de seu
poder violento, formaliza de modo distinto diferentes configurações espaciais. Este
capítulo indica que, de fato, os “urbanismos subversivos do Sul” (SEEKINGS, 2013)
merecem ser analisados comparativamente.
106

4 CIRCUITOS E FLUXOS INTERNACIONAIS DO SLUM UPGRADING

Na virada do século XX, foi criada a Aliança de Cidades, uma iniciativa conjunta
do Banco Mundial e do Programa das Nações Unidas para os Assentamentos
Humanos (ONU-Habitat). Em torno do slogan “Cidades sem Favelas”, o plano de ação
da Aliança de Cidades definiu suas estratégias para a redução da pobreza mundial
em torno da disseminação e suporte técnico ao desenvolvimento de ações de slum
upgrading, isto é, da provisão de infraestrutura e serviços urbanos às áreas
“densamente povoadas e precárias” e de city development strategies, como foi
denominado o planejamento urbano estratégico.93

No referido plano, o termo slum foi utilizado como um “guarda-chuva” para


definir “as áreas negligenciadas das cidades onde a habitação e as condições de vida
são assustadoramente pobres” (WORLD BANK, 2000, p. 1, tradução nossa). A meta
de melhoria das condições de vida de 100 milhões de moradores dessas áreas até
2020, definida para a Aliança de Cidades, logo em seguida foi incorporada a um dos
Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODMs) definidos pela ONU como parte de
um compromisso mundial entre os países em busca de “sustentabilidade ambiental”.

Críticas à ênfase da Aliança de Cidades ao termo slum não tardaram. Os


críticos apontavam as históricas conotações negativas associadas ao termo e os
possíveis mal-entendidos que sua recuperação poderia gerar (GILBERT, 2007;
HUCHZERMEYER, 2011; ARABINDOO, 2011). Na crítica de Gilbert (2007), o retorno
da palavra slum poderia ser responsável por ressuscitar estereótipos relacionados a
um suposto comportamento “desviante” dos moradores dessas áreas. Estereótipos
que haviam levado muitos estudiosos a substituir, desde os anos 1960, o uso de slum
por uma gama de outros termos, tais como: informal housing, irregular settlement,
spontaneous shelter e self-help housing (Abrams, 1964; Turner, 1965; 1967; Mangin,
1967; 1970; Portes, 1972; Cornelius, 1975; Koenigsberger, 1976 apud GILBERT,
2007).

93
Cf. Cities Alliance for Cities Without Slums. Action Plan for Moving Slum Upgrading to Scale, 1999,
p. 1. Disponível em: http://web.mit.edu/urbanupgrading/sponsor/ActionPlan.pdf Acesso em:
25/09/2018.
107

Segundo Gilbert (2007), a produção da imagem de “Cidades sem Favelas”


poderia sugerir ações centradas na remoção desses assentamentos, embora o plano
de ação da Aliança de Cidades fosse explícito quanto à defesa da melhoria das
condições desses territórios por meio do slum upgrading. De fato, na África do Sul,
como aponta Huchzermeyer (2011), o bordão da Aliança de Cidades surtiria efeitos
desastrosos, levando muitos governos locais à prática deliberada de remoções, como
será visto adiante.

Essa polêmica em torno da recuperação do termo slum, de um lado, reforça as


análises apresentadas no capítulo 3 em torno de como classificações práticas se
relacionam à ação94. Por outro lado, instiga a um aprofundamento do próprio contexto
no qual a Aliança de Cidades foi criada. Como descrito no capítulo 1, foi a Aliança de
Cidades que, em 2009, fomentou, em conjunto com a CGLU, o lançamento do
Mentoring Program, programa de aconselhamento e treinamento entre cidades, no
âmbito do qual a cooperação entre Durban e São Paulo, Mentoring on Upgrading
Informal Settlements, foi estabelecida. A compreensão acerca do contexto de criação
da Aliança de Cidades, por sua vez, incita um entendimento mais amplo acerca da
atuação de organizações intergovernamentais na “ajuda financeira” e “assistência
técnica” para o “desenvolvimento urbano” dos ditos países em desenvolvimento.

Desse modo, após a análise das diferenças históricas que atravessam favelas
em cidades brasileiras e shantytowns em cidades sul-africanas, exploradas no
capítulo 3, e considerando as questões provocadas por essa cooperação, o referencial
teórico e metodologia, apresentados no capítulo 2, o objetivo do presente capítulo é
verificar qual o lugar da criação da Aliança de Cidades e da disseminação do slum
upgrading na longa história de conexões entre cidades e da “ajuda externa”95 para o
“desenvolvimento urbano”.

A primeira parte do capítulo, dedicada à atuação das organizações


multilaterais, busca examinar se e em que medida a criação da Aliança de Cidades

94
Sobre este tema ver também SCHON e REIN, 1994; HARRIS e VORMS, 2017
95
Foreign aid ou international aid são as expressões utilizadas na literatura de relações internacionais
e documentos oficiais de governos para se referir à transferência internacional de capital, bens ou
serviços de um país ou organização internacional em benefício (sic.) de outro país ou de sua população.
A ajuda pode ser econômica, militar ou humanitária em situações de emergência, como por exemplo,
após desastres naturais. Cf. https://www.britannica.com/topic/foreign-aid
108

representaria a institucionalização do slum upgrading como um paradigma de política


global para os “países em desenvolvimento”, isto é, um modelo de política legitimado
por um conhecimento técnico especializado e promovido internacionalmente. A
análise da “ajuda externa” desde os anos 1970 e até a criação da Aliança de Cidades
irá indicar, no entanto, a institucionalização de um paradigma de política para as
cidades dos países periféricos, no qual o slum upgrading parece ocupar um lugar
marginal.

4.1 A emergência da “ajuda externa” aos países pobres

Considera-se interessante localizar o surgimento da “ajuda externa” para o


“desenvolvimento urbano” dos países periféricos na história do amplo movimento de
trocas e conexões entre cidades, estabelecido em torno de ideias para o urbano que
começou a tomar forma no século XIX. No interior desse movimento seria possível
observar a existência de três regimes distintos de conexões entre cidades (SAUNIER,
2008).

O primeiro, segundo o autor, seria configurado pelas transferências


internacionais informais entre fins do século XIX e início do século XX. Nesse regime,
a venda de serviços, normalmente entre duas ou mais cidades, e a troca de know-
how, de enquadramentos sobre problemas urbanos e até mesmo sobre a definição de
investimentos municipais foram os processos mais observados. As trocas
estabelecidas entre os reformadores sociais da Europa e da América do Norte, como
aquelas examinadas no capítulo 3, são exemplos desse período. O mecanismo
predominante nesse regime, complementa Saunier (2008), foi a emulação de
soluções consideradas como próprias de uma “metrópole moderna”, por meio da troca
individualizada (ou “peer-to-peer”) de tecnologias, regulamentos e projetos entre
prefeitos, técnicos municipais ou representantes de governos nacionais.

O segundo regime, esboçado nas vésperas da Primeira Guerra Mundial e


consolidado ao longo doa anos 1920, caracterizou-se pela atuação de instituições
transnacionais mais estruturadas, associações de cidades (como a Union
Internationale des Villes, estabelecida em 1913 e absorvida, a partir de 1928, pela
109

União Internacional de Autoridades Locais – IULA) e agências multilaterais. Essas


organizações atuavam, ao mesmo tempo, como plataformas para o estabelecimento
de intercâmbios municipais e como centros de referência de conhecimento, por meio
dos quais informações eram selecionadas, examinadas, traduzidas e adaptadas.

Por fim, um terceiro regime poderia ser observado a partir da década de 1980,
conformado no bojo de grandes mudanças na ordem política e econômica mundial.
Esse regime seria marcado pela competição entre cidades tanto em escala global
como regional. Em torno de um discurso de competição, somente na Europa, mais de
quarenta redes de cidades (SAUNIER, 2008, p.17) foram criadas reunindo diferentes
municípios por temáticas, setor de políticas públicas, extensão territorial, etc96.

O surgimento da “ajuda externa” prestada pelas agências multilaterais


corresponderia assim a esse segundo período. Logo após a Segunda Guerra Mundial,
um momento de reconfiguração do poder capitalista mundial e de emergência do
debate sobre desenvolvimento e subdesenvolvimento (QUIJANO, 2000), o papel
desempenhado por organizações intergovernamentais passa a ser cada vez mais
determinante, apesar do esforço das associações de cidades em se manterem como
importantes centros de referência para o debate sobre o urbano. O crescimento da
urbanização dos países pobres, muitos dos quais apenas recentemente
independentes e, portanto, vistos como carentes de recursos materiais e técnicos,
passou então a justificar a necessidade da “ajuda externa”. Tanto na forma de acordos
bilaterais entre países, como de acordos com organizações intergovernamentais,
como a ONU e o Banco Mundial.

No âmbito dos acordos bilaterais, o peso e o papel dos Estados Unidos são
cada vez maiores, ainda que muitos países africanos e asiáticos mantivessem uma
relação mais estreita no âmbito da “ajuda externa” com suas ex-metrópoles (WARD,
2010). A crescente influência dos Estados Unidos também se manifesta pela atuação
de grandes instituições filantrópicas – como a Fundação Rockefeller e a Fundação

96
Em 1986 a Conferência de Cidades Europeias, realizada em Roterdã, definiu as cidades como
“motores do desenvolvimento econômico”, marcando o início do movimento das Eurocidades, rede
oficialmente constituída na conferência seguinte, realizada em 1989 em Barcelona (BORJA e
CASTELLS, 1996, p. 153).
110

Ford, fundadas, respectivamente, em 1913 e 193697. O discurso do Presidente Harry


S. Truman (1945-1953), no início do seu segundo mandato, em 1949, comunica
explicitamente o “dever” dos Estados Unidos em prestar “assistência técnica” para os
países mais pobres:

“(...) Em quarto lugar, devemos embarcar em um novo programa


ousado para colocar os benefícios de nossos avanços científicos e
progresso industrial em prol do crescimento de áreas
subdesenvolvidas. Mais da metade das pessoas do mundo vive em
condições próximas da miséria. Sua comida é inadequada. Eles são
vítimas de doenças. Sua vida econômica é primitiva e estagnada. Sua
pobreza é uma desvantagem e uma ameaça para eles e para áreas
mais prósperas. Pela primeira vez na história, a humanidade possui o
conhecimento e a habilidade para aliviar o sofrimento dessas pessoas.
Os Estados Unidos distinguem-se entre as nações no
desenvolvimento de técnicas industriais e científicas. Os recursos
materiais que podemos usar para assistência de outros povos são
limitados. Mas nossos recursos imponderáveis em conhecimento
técnico estão em constante crescimento e são inesgotáveis. Acredito
que devemos disponibilizar aos povos que buscam paz os benefícios
do nosso acúmulo de conhecimento técnico, a fim de ajudá-los a
realizar suas aspirações por uma vida melhor. E, em cooperação com
outras nações, devemos promover investimentos de capital em áreas
que precisam de desenvolvimento. Nosso objetivo deve ser ajudar os
povos livres do mundo, através de seus próprios esforços, a produzir
mais alimentos, mais roupas, mais materiais para habitação e mais
energia para aliviar seus fardos. Convidamos outros países a reunir
seus recursos tecnológicos neste empreendimento. Suas
contribuições serão muito bem recebidas. Este deve ser um
empreendimento cooperativo no qual todas as nações trabalhem
juntas através das Nações Unidas e suas agências especializadas
sempre que possível. Este deve ser um esforço mundial para alcançar
a paz, a abundância e a liberdade. Com a cooperação dos negócios,
do capital privado, da agricultura e da mão-de-obra desse país, esse
programa pode impulsionar a atividade industrial em outras nações e
elevar substancialmente seu padrão de vida (tradução nossa; grifo
nosso) 98.

O discurso de Truman definiu as bases para a organização do Point Four


Program, aprovado no ano seguinte pelo Congresso americano. Um programa

97
Apesar de não ser o foco deste trabalho, interessantes análises têm sido feitas sobre a atuação
dessas fundações filantrópicas norte-americanas no urbano, mesmo antes do pós-Guerra. Saunier
(2001), por exemplo, analisa a influência da Fundação Rockefeller em instituições como a IULA por
meio do Spelman Fund, criado por esta fundação no início dos anos 1930, para financiar as áreas de
habitação, planejamento urbano e administração municipal. No Brasil, Faria (1995) aponta o papel
fundamental da Fundação Rockefeller nas reformas sanitárias. Já a Fundação Ford, desde a década
de 1950, vem apoiando estudos sobre problemas urbanos (violência, drogas, pobreza, habitação),
políticas públicas e movimentos sociais” (FARIA e COSTA, 2006, p. 172).
98
Original em inglês disponível em: https://www.cbsnews.com/news/harry-truman-inaugural-address-
1949/ Acesso em: 11/04/2018.
111

justamente destinado a “impulsionar” o desenvolvimento dos países pobres. Será em


torno das ideias, conceitos e categorias, materializadas nesse programa, que se
consolidará a “ajuda externa” aos países “subdesenvolvidos”, isto é, na ênfase à
pobreza como um entrave para a expansão da economia em escala mundial e à
necessidade das nações prósperas, com “conhecimento técnico” e “recursos
tecnológicos” contribuírem para o seu alívio. Sem qualquer menção, portanto, sobre
a diagnosticada pobreza como resultado de desigualdades herdadas de relações
coloniais e escravagistas.

Seguindo a mesma diretriz do Point Four Program, diversos programas e


instituições dedicadas à “assistência técnica” foram criadas, nos anos seguintes, tanto
nos Estados Unidos, a exemplo da Aliança para o Progresso e da própria Usaid, como
também em outros países. Assim, à medida que recuperavam suas economias dos
efeitos deletérios da Guerra, um número crescente de países democráticos
capitalistas passava a fornecer sua “expertise”. O volume e a variedade de acordos
bilaterais entre países ricos e pobres cresciam inclusive no campo do planejamento
urbano e da habitação (WARD, 2010).

Nesse campo, além da “assistência técnica” direta, a formação de “profissionais


nativos” passou também a fazer parte das relações estabelecidas entre os países,
fosse na forma de apoio ao treinamento oferecido em solo nacional, fosse no envio de
recém-formados às escolas de planejamento bem estabelecidas na Europa, como a
University College London (UCL), a Liverpool University e o Institut d’Urbanisme de
Paris, e nos Estados Unidos, como a Cornell University e o Massachusetts Institute of
Technology (MIT) (WARD, 2010, p. 55).

No âmbito das organizações intergovernamentais, a ONU e o Banco Mundial


consolidam-se como os principais responsáveis pela “assistência técnica” ao
“desenvolvimento urbano” dos países mais pobres. A ONU, criada em 1945, em
substituição à Liga das Nações e com o objetivo de impedir novos conflitos de
proporção mundial, passou a ocupar-se da questão habitacional em 1951, com a
abertura de uma pequena seção, a Housing and Town Country Planning –
posteriormente renomeada Centre for Housing, Building and Planning (Ciborowski,
1980 apud WARD, 2010, p. 52-53). Comandado pelo croata-iugoslavo Ernest
Weissmann, esse centro tinha a função de encontrar os experts mais adequados para
112

aconselhar e trabalhar nos países pobres que então começavam a se urbanizar


rapidamente (WARD, 2010).

O envolvimento da ONU em questões habitacionais e urbanas trouxe um fôlego


renovado à atuação de planejadores transnacionais, como Otto Koenigsberger,
precursor do Development Planning, como mencionado no capítulo 2. Após ter servido
na Índia como diretor de habitação entre 1944 e 1951, Koenigsberger passou a atuar
como consultor das Nações Unidas até estabelecer-se, no final da década de 1950,
como professor e pesquisador em Londres (WARD, 2010). Crítico da provisão púbica
da reprodução da habitação em massa em países pobres que se urbanizavam,
Koenigsberger defendia o favorecimento da autoconstrução, o que mais tarde se
incorporaria às suas ideias de “action planning” (KOENIGSBERGER, 1964)99.

Ao longo das décadas seguintes, a defesa da autoconstrução como parte da


solução para o problema habitacional dos pobres urbanos tornar-se-ia base para uma
nova ortodoxia, disseminada pela ONU e, a partir dos anos 1970, também pelo Banco
Mundial. Nessa construção de um novo ideário de planejamento urbano para os
países pobres, o Development Planning Unit (DPU), estabelecido por Koenigsberger
na UCL100, e o MIT, onde John F. C. Turner passou a lecionar em 1965, participaram
como importantes centros de referência acadêmica.

O Banco Mundial, fundado em 1945, como Banco Interamericano para a


Reconstrução e o Desenvolvimento (Bird), com o objetivo de financiar a reconstrução
da Europa, já vinha gradualmente orientando seu foco de atuação para os “países em
desenvolvimento”, como demonstra a criação da Associação Internacional para o
Desenvolvimento (AID) em 1960101. A AID tornou possível a concessão de

99
O uso da autoconstrução foi proposto por Koenigsberger na Índia em resposta às condições locais,
incluindo a relativa ausência de uma indústria de construção privada, especialmente para a baixa renda.
Além disso, convergia, de um lado, com a admiração que Koenigsberger tinha pela estratégia de
Gandhi para o empoderamento da população; e, de outro, com certas propostas trazidas pelo
movimento moderno, na Europa e nos EUA, a exemplo da ideia de construção colaborativa sugerida
por Frank Lloyd Wright (LISCOMBE, 2006, p. 159).
100
Até hoje o DPU da UCL é visto como a principal fonte de suporte acadêmico das Nações Unidas,
especialmente ONU-Habitat, como evidenciam as pesquisas e publicações realizadas por este centro
de estudos. Cf. https://www.ucl.ac.uk/bartlett/development/publications
101
Atualmente o Grupo Banco Mundial, além do Bird e da AID, ainda congrega outras três instituições:
Sociedade Financeira Internacional (SFI), a Agência Multilateral de Garantia de Investimentos (Miga) e
o Centro Internacional para Arbitragem de Disputas sobre Investimentos (Icsid). Para ser membro do
banco, de acordo com o estatuto do Bird, um país precisa antes se juntar ao Fundo Monetário
113

empréstimos aos países pobres que não preenchiam as condições para acessar os
empréstimos concedidos pelo Bird. De acordo com seu estatuto, os propósitos da
associação são:

Promover o desenvolvimento econômico, aumentar a produtividade e,


assim, elevar os padrões de vida nas áreas menos desenvolvidas do
mundo, incluindo os membros da associação, em particular
fornecendo financiamento para satisfazer seus importantes requisitos
de desenvolvimento em termos mais flexíveis e menos pesados para
a balança de pagamentos do que as dos empréstimos convencionais,
favorecendo assim os objetivos de desenvolvimento do Banco
Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (...) e
complementando suas atividades (tradução nossa)102.

Ao longo dos anos 1960, no entanto, o principal foco da “ajuda externa” recaía
sobre as áreas rurais. A experiência com a guerra do Vietnã, a revolução cubana e
outras guerrilhas rurais fazia com que o “desenvolvimento rural” fosse a principal
preocupação. Foi apenas com o fim do conflito no país asiático e as derrotas das
guerrilhas rurais na América Latina que a questão da “pobreza urbana” começou a
ganhar maior destaque na agenda da “ajuda” bilateral e multilateral.

Em 1972, quando o Banco Mundial dá início a suas operações no setor urbano,


as ideias de John F. C. Turner em torno da autoconstrução passam a ser amplamente
mobilizadas (COHEN et al., 1983; WEAVING, 1994; CARDOSO, 2007; HARRIS,
1998). À época era crescente a atenção conferida ao problema habitacional nas
cidades dos países pobres por parte da ONU103, como demonstrou a realização da
primeira Conferência Internacional para o Habitat, HABITAT I, realizada em 1976 em
Vancouver, no Canadá. Como um dos resultados do evento, o antigo Centre for
Housing, Building and Planning foi elevado à condição de comissão, dando origem ao
Centro das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (UNCHS), oficialmente
estabelecido em Nairóbi, Quênia, em 1978.

O trabalho desenvolvido por John F. C. Turner, com comunidades pobres de


cidades peruanas (CHAVEZ et al., 2000), chamou a atenção do Banco Mundial ainda
nos anos 1960, sendo recorrentemente apontado como a principal inspiração desse

Internacional (FMI). A associação à AID, SFI e Miga está por sua vez condicionada à associação ao
Bird. O Brasil é membro do Bird desde 1946 e da AID desde 1963. Cf. www.worldbank.org/en/about
102
Cf. http://ida.worldbank.org/sites/default/files/IDA-articles-of-agreement.pdf
103
Cf. http://www.un-documents.net/a24r2598.htm Acesso em 17/06/2018.
114

organismo multilateral para o desenvolvimento de programas de sites and services e


slum upgrading (COHEN et al., 1983; WEAVING, 1994; CARDOSO, 2007). Na
apropriação feita pelo Banco Mundial, no entanto, as proposições de Turner acerca
adquiriram um outro sentido.

Turner havia se mudado para o Peru no final da década de 1950, por influência
de amigos peruanos, arquitetos, bastante envolvidos na política nacional, que
conhecera na Inglaterra. Seu primeiro trabalho com o governo peruano foi coordenar
a reconstrução de moradias destruídas, por um terremoto em 1958, em Arequipa.
Como a maior parte dos atingidos era muito pobre e o montante de recursos
disponibilizados pelo governo somente permitiria atender uma parte desses, Turner
sugere que um maior número de pessoas poderia ser atendido, com o mesmo
montante de recursos, caso construíssem por conta suas casas (CHAVEZ et al., 2000;
HARRIS, 2003). A autoconstrução, afinal, era uma prática comum para aquela
população recém-saída da zona rural.

Por trás da proposta de Turner, estavam ideias anarquistas que circulavam na


Europa na primeira metade do século XX, em especial aquelas de Peter Kropotkin104;
assim como a influência do pensamento orgânico de Patrick Geddes, biólogo e
planejador urbano; e de Willian Morris, um dos personagens centrais do movimento
Arts and Crafts (WARD, 2010; CHAVEZ et al. 2000; HARRIS, 2003). Turner, contrário
à imposição de soluções prontas pelo Estado e com base na sua experiência peruana,
defendia que a população pobre deveria ter controle sobre a construção e regulação
de seus próprios ambientes, uma experiência em si, segundo ele, libertadora
(TURNER e FICHTER, 1972; CHAVEZ et. al., 2000). O Estado, em sua visão,
portanto, deveria se limitar à provisão de infraestrutura, repassando os recursos e
materiais necessários para que a população construísse suas próprias habitações105.

104
Peter Alekseyevich Kropotkin, (1842-1921) foi um revolucionário russo e geógrafo, principal teórico
do movimento anarquista, embora tenha alcançado notoriedade em diversos campos, da geografia,
zoologia à sociologia e história. Cf. https://www.britannica.com/biography/Peter-Alekseyevich-
Kropotkin
105
Turner continuou reelaborando suas ideias e recentemente tem se dedicado à reunião e
disponibilização de um conjunto de leis, técnicas e etc. para facilitar o planejamento comunitário e a
autoconstrução. Na entrevista que concedeu a Roberto Chavez, entre outros, alguns de seus projetos
mais recentes são por ele descritos. Cf. http://siteresources.worldbank.org/INTUSU/Resources/turner-
tacit.pdf
115

Na apropriação feita pelo Banco Mundial, porém, essa autonomia e controle


por parte dos moradores sobre o processo construtivo da habitação foram anulados
(HARRIS, 2003). Como relata o próprio Turner, a “calorosa acolhida” de suas ideias
pelo Banco Mundial demonstrava que ideias de autoconstrução já circulavam pela
organização antes do contato com o seu trabalho (CHAVEZ et al., 2000). Em Porto
Rico, território estadunidense, a “autoconstrução assistida” já havia sido definida, na
década de 1940, como o principal componente da política habitacional (HARRIS,
1998). Assim, se é verdade que, por um lado, a “autoconstrução assistida” já
influenciava o desenho de políticas de agências doadoras, instituições internacionais
e governos de países “em desenvolvimento”, quando o Banco Mundial decide iniciar,
em 1972, suas atividades no setor urbano; por outro, a popularidade de Turner trazia
mais legitimidade à posição adotada pelo Banco (JONES, 2012; HARRIS, 2003;
2015).

A partir dos anos 1970, o Banco Mundial passou a ser o maior financiador do
“desenvolvimento urbano” (desenvolvimento e gestão urbana, habitação social,
politica habitacional e gestão administrativa) dos “países em desenvolvimento”, ainda
que apenas uma pequena parcela do seu orçamento geral seja destinada a esse
setor. Financiamento complementado pelos bancos de desenvolvimento regionais e
por acordos bilaterais. Entre os bancos de desenvolvimento regionais, também
criados a partir das regras acordadas em Breton Woods, destacam-se o Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID), criado em 1959, o Banco Africano de
Desenvolvimento (Bafd), de 1964, e o Banco Asiático de Desenvolvimento (BAD),
estabelecido em 1966.

Ao contrário de outras áreas que compõem a “ajuda externa”, o setor urbano


tem poucos grandes doadores. Análise dos compromissos de investimentos dos
doadores entre 1995 e 2007 apontou que, em termos de intensidade, isto é, da parcela
que os projetos urbanos representam em seus portfólios, o Fundo Especial do BID
lidera com 8,5% de seus compromissos dedicados a projetos urbanos entre 1995-
2007. Outras importantes fontes de financiamento multilaterais incluem o Fundo
Asiático de Desenvolvimento (3,5%) e a AID (2,1%). Entre as agências bilaterais, a
França (2,5%), a Suécia (2,4%) e o Reino Unido (2,2%) têm programas urbanos
significativos. O envolvimento de outros doadores é mais modesto. O Banco Africano
116

de Desenvolvimento tem apenas 0,3% de participação no setor urbano. Em valores


absolutos, a AID lidera (com pouco mais de US$ 2,5 bilhões ao ano em média),
seguida pela França, Reino Unido, Alemanha e Estados Unidos. A soma dos
investimentos desses cinco maiores doadores corresponde a cerca de 58% do total
de investimentos no setor urbano (KHARAS et al., 2010).

A tabela abaixo mostra os principais acionistas do Banco Mundial e de bancos


regionais selecionados, com destaque para a posição privilegiada do governo norte-
americano em todos eles. Pode-se dizer que, em maior ou menor grau, o chamado às
nações desenvolvidas feito por Truman em seu discurso de 1949 foi atendido.

Tabela 1. Principais acionistas de bancos de desenvolvimento selecionados –


Em %

BM BID Bafd BAD


EUA 17,25 EUA 30,03 Nigéria 8,88 Japão 15,57
Japão 7,42 Argentina 10,76 EUA 6,44 EUA 15,57

China 4,78 Brasil 10,76 Japão 5,49 China 6,43


Alemanha 4,33 México 6,93 Egito 5,14 Índia 6,32
França 4,06 Venezuela 5,76 África do Sul 4,56 Austrália 5,77
Fonte: elaboração da autora a partir de informações consultadas, em abril de 2019, em
http://pubdocs.worldbank.org/en/284471507050951684/investor-brief-worldbank-2017.pdf e
https://www.cgdev.org/sites/default/files/1425484_file_IFI_Briefs_RDB_FINAL_r1_0.pdf

Na seção a seguir busca-se examinar as agendas das organizações


intergovernamentais em torno da construção de “consensos” e de sucessivas
mudanças discursivas, por vezes aparentemente contraditórias. O objetivo dessa
análise, como já ressaltado, é situar e compreender os significados da criação da
Aliança de Cidades, em 1999, com a “missão” de promover “programas municipais e
nacionais de slum upgrading” para sistematicamente “incluir os residentes urbanos
mais vulneráveis e marginalizados, tanto como parceiros quanto como beneficiários
do crescimento da cidade” (CITIES ALLIANCE, 2002, p. 5, tradução nossa).
117

4.2 A construção de um paradigma de política global para as cidades

Paradigmas fornecem aos cientistas não apenas um mapa, mas também


algumas das direções essenciais para a criação de mapas (Kuhn 1962, p.
109, tradução nossa).

O conceito de paradigma de política ganhou força nos anos 1990,


principalmente a partir das análises empreendidas por Hall (1990), baseadas na
existência de homologias significativas entre as comunidades científicas analisadas
por Kuhn (1962) e aquelas onde as políticas eram formuladas. Hall define paradigma
de política (policy paradigm) como uma estrutura interpretativa de ideias e padrões
capazes de determinar não apenas os objetivos da política e o tipo de instrumentos
que podem ser usados para alcançá-los, como também a própria natureza dos
problemas que determinada política busca enfrentar (HALL, 1993, p. 278-279).

As análises e conceituações de Hall (1990, 1993) sobre paradigmas de política


baseiam-se em estudos sobre países, nos quais a escala nacional foi compreendida
como delimitação cartográfica que define os limites de um governo. Considerando,
porém, que políticas possam ser definidas em diferentes escalas (local, nacional,
regional e global), interconectadas e mutuamente constituídas (SWYNGEDOUW,
1997; 2004; BRENNER, 2004; MASSEY, 2013), propõe-se aqui uma ampliação da
noção de Hall de paradigma de política para a noção de paradigma de política
transnacional ou global (BABB, 2013; KENNETT e LENDVAI, 2014), a qual dialoga
com os estudos sobre mobilidade de políticas, apresentados no capítulo 2.

Um paradigma de política global pode ser definido como um modelo de política


que ultrapassa as estruturas domésticas do estado e que, legitimado por um
conhecimento técnico especializado, determina um conjunto de objetivos e de
instrumentos para persegui-los (BABB, 2013; KENNETT e LENDVAI, 2014). De modo
complementar à leitura de Babb (2013), considera-se que paradigmas de políticas
globais são constituídos por um entrelaçamento de práticas, tanto aquelas
encorajadas por instituições internacionais, como as adotadas [e adaptadas] por dois
ou mais governos nacionais. Babb (2013) argumenta que um paradigma de política
global uma vez institucionalizado e enraizado nas práticas de organizações
multilaterais (com poder coercitivo) adquirem durabilidade. Desse modo, pretende-se
118

investigar em que medida criação da Aliança de Cidades, recomendando a


combinação de ações de slum upgrading com planejamento estratégico, para a
construção de Cidades sem Favelas, representou a institucionalização de um
paradigma de política global.

Para compreender a suposta institucionalização desse paradigma, dedica-se a


seguir ao exame crítico de sucessivas agendas da ONU-Habitat e do Banco Mundial,
instituições que impulsionaram a criação da Aliança, desde os anos 1970. Sem dúvida
existe nessas instituições, como observou Ramsamy (2006), dado o seu tamanho e
sua complexidade, uma pluralidade de pontos de vista sobre como abordar o
problema do desenvolvimento urbano (entre os diretores do programa, a gerência e a
equipe geral)106. Procura-se analisar, porém, o conjunto convergente de visões ou
certos “consensos” sobre o desenvolvimento urbano disseminados em nome dessas
instituições, em diferentes momentos históricos, suas rupturas ou continuidades.

Para organizar a narrativa e análise, recorre-se novamente à Hall (1990, p.68)


e sua observação sobre a existência de diferentes estágios no processo de
institucionalização de um paradigma de política. Em sua análise, Hall (1990) sugere a
existência de dois estágios de relativa estabilidade e três estágios de transição até a
institucionalização do novo paradigma. No primeiro estágio, de estabilidade
paradigmática, ajustes de políticas são feitos por um grupo fechado de especialistas
no interior de uma ortodoxia institucionalizada. Após esse estágio inicial, Hall (1990)
sugere um segundo estágio em que acontecimentos não previstos ou explicáveis pela
ortodoxia dominante geram um acúmulo de anomalias, o que faz com que o velho
paradigma entre em um período de transição. No terceiro estágio, de experimentação,
esforços são feitos para lidar com as anomalias. Quando esses são insuficientes, um
quarto estágio de fragmentação da autoridade é gerado, no qual especialistas são
desacreditados e novos participantes passam a desafiar o paradigma existente no

106
Como recentemente destacou Richard Stren, “o direcionamento dessas instituições, apesar do seu
tamanho, é dado por indivíduos que, sob constante pressão de doadores para a apresentação de
soluções, ao invés de se debruçarem longamente sobre avaliações, entregam propostas atrás de
propostas” (comentário feito durante o painel Making Southern Urban Policies em 16 de maio de 2018
no âmbito da International Conference on Policy Diffusion, realizada em São Paulo). Essa observação
vai de encontro com a colocação feita por Ramsamy (2006) de que as subsequentes mudanças de
agenda do Banco Mundial não foram puramente resultados de decisões burocráticas internas com base
em avaliações técnicas de projetos, mas são respostas a tendências geopolíticas e intelectuais dentro
e fora do organismo multilateral.
119

debate político. Isso leva a um quinto estágio de contestação, no qual o debate se


torna público, envolvendo processos políticos mais amplos. No sexto estágio,
finalmente, ocorre a institucionalização do novo paradigma, com seus defensores
garantindo posições de autoridade e alterando arranjos organizacionais e decisórios
existentes para implementar as novas ideias que agora circulam na comunidade
política (HALL, 1990).

Nesse sentido, a crescente urbanização do Terceiro Mundo após a II Guerra


Mundial teria desafiado o paradigma da habitação em massa construída pelo Estado,
baseado nos grandes conjuntos habitacionais que tanto impulsionaram o movimento
moderno. A incapacidade do Estado em prover habitação ao grande contingente de
migrantes que chegava às cidades, associada ao crescimento das favelas e dos
loteamentos periféricos, colocaram em cheque o paradigma então existente. A sua
instabilidade seria tão maior quanto o crescimento da organização popular, na
resistência às remoções forçadas e nas reivindicações por infraestrutura e serviços.
É diante desse quadro que as agências multilaterais passam a atuar no
“desenvolvimento urbano” do Terceiro Mundo.

4.2.1 Experimentação: projetos urbanos de infraestrutura

Até os anos 1970, como mencionado na seção anterior, os empréstimos e a


assistência técnica oferecidos pelo Banco Mundial aos países pobres concentravam-
se no setor rural. A ampliação da atuação da organização em direção ao urbano
deveu-se em muito à eleição de Robert McNamara (1968-1981) para a presidência do
banco (RAMSAMY, 2006; ARANTES, 2006; RIBEIRO E FILHO, 2006). Na gestão de
McNamara, ex-Secretário de Defesa dos EUA (1961-1968), a ampliação dos
empréstimos para áreas sociais como educação, saúde, planejamento familiar e
desenvolvimento urbano (RIBEIRO FILHO, 2006) foi acompanhada do discurso de
“alívio da pobreza” (RAMSAMY, 2006)

McNamara seguia, na interpretação de Ramsamy (2006, p. 29), a mesma


estratégia utilizada pelo presidente Lyndon B. Johnson (1963-1969), quem foi
aconselhado pelo senador americano D. P. Moynihan a lançar mão da estratégia da
“infiltração semântica” em seus discursos como um meio de desarmar as crescentes
tensões sobre os direitos civis e a pobreza. Essa antiga tática diplomática implicava
120

na apropriação da linguagem e da postura de oponentes com o objetivo de obscurecer


as distinções políticas entre eles e os enunciadores do discurso.

Na percepção de Arantes (2006), o empenho de McNamara em convencer os


acionistas do Banco Mundial a investir em políticas urbanas e habitacionais nos
“países em desenvolvimento” era parte de mais uma ofensiva norte-americana para
barrar o fortalecimento do bloco comunista. Em um dos seus discursos aos
conselheiros do banco, McNamara teria deixado evidente sua preocupação com a
exploração do descontentamento e da revolta dos “pobres urbanos” por “extremistas
políticos” (ARANTES, 2006, p. 64).

Por trás do discurso de “alívio da pobreza” de McNamara, e da “acolhida” e


propagação das ideias de Turner, estava a avaliação feita pelos economistas do
banco de que a falta de serviços urbanos essenciais e o congestionamento nas
cidades provocavam o aumento do custo da habitação e do emprego e, portanto,
diminuíam a produtividade das zonas urbanas (COHEN et al. 1983). Parece haver
entre economistas um senso comum de que o setor habitacional contribui
significativamente para o crescimento do produto interno bruto (PIB) e que a expansão
da propriedade imobiliária traz efeitos para a economia em geral (KHARAS et al.,
2010).

Na publicação Urbanization sectoral study, de 1972, é possível identificar os


quatro princípios que deveriam nortear a atuação do Banco Mundial (JONES e WARD,
1994, p. 35). Primeiro, soluções de baixo custo deveriam tornar a moradia acessível
aos pobres; segundo, a extensão dos serviços deveria ocorrer sem a necessidade de
subsídios, em vez disso, a ajuda financeira do Banco Mundial deveria servir como
estímulo para investimentos locais adicionais; terceiro, o fornecimento de assistência
técnica deveria melhorar a formulação e aplicação dessas medidas, alinhando a
mentalidade do planejamento urbano à de procedimentos de investimento; e quarto,
os programas, uma vez autofinanciados, isto é, capazes de retornar o capital investido
(“cost recovery”), deveriam ser replicáveis.

Desse modo, o Banco Mundial, ao mesmo tempo em que defendia o “alívio da


pobreza” ou a contenção dos “pobres urbanos”, considerava que altos investimentos
para as “massas urbanas” e subsídios em grande escala não eram economicamente
121

“sustentáveis” (COHEN et al. 1983; WORLD BANK 1994). Por isso, a solução
baseada no fomento à autoconstução em lotes próprios, providos de serviços básicos,
parecia a mais adequada. Um tipo de solução que combinava a segurança da posse
com baixos padrões de investimento em infraestrutura e flexibilização de códigos
construtivos. Seguindo o mesmo ponto de vista econômico pragmático, a extensão da
oferta de infraestrutura às “slums” e “squatter settlements” era uma forma de tirar
proveito de um menor deslocamento casa-trabalho-casa, propiciado pela localização
menos periférica desses assentamentos (COHEN, 2015).

O financiamento desse tipo de solução urbana, associada à crença de que o


sucesso econômico das cidades decorreria do livre funcionamento das forças de
mercado, da produtividade e competitividade das cidades, tornou evidente o
engajamento do Banco Mundial na propagação do receituário neoliberal no setor
urbano (COCHRANE, 2011). Na primeira década de investimentos no setor urbano, o
Banco Mundial financiou 62 projetos, de “sites and services” e “upgradings”, em 36
países. O valor total dos projetos foi de US$ 4,6 bilhões, dos quais o financiamento
correspondeu a US$ 2 bilhões. Estima-se que esses projetos tenham beneficiado
cerca de 11 milhões de pessoas diante da demanda, calculada pelo próprio banco, de
cerca de 2 bilhões pessoas (COHEN, 2001; RIBEIRO FILHO, 2006).

Na avaliação realizada a respeito dessa década de investimentos, publicada no


relatório “Learning by Doing”, a “recuperação de custos” resultante dos projetos foi
apontada como sendo ineficiente (COHEN et al. 1983). Além disso, as dificuldades
enfrentadas para a replicabilidade desses projetos indicavam a sua incapacidade de
atender consideravelmente a escala das necessidades associadas ao crescimento
urbano. Na avaliação dos especialistas do banco responsáveis pelos projetos
urbanos, para enfrentar os problemas de recuperação de custos, coordenação setorial
e ampliação da escala, muito mais atenção deveria ser dada aos aspectos
administrativos e institucionais relativos às intervenções físicas (COHEN, 2001).

Tem início então uma nova fase, na qual os projetos de infraestrutura não
desaparecem, mas são preteridos, ao mesmo tempo em que o investimento no
“desenvolvimento institucional” do setor público adquire protagonismo. Com o objetivo
de que condições (normativas, administrativas e jurídicas) pudessem possibilitar o
122

bom funcionamento do mercado no atendimento à demanda por habitação nos países


pobres.

Não obstante a centralidade conferida ao “desenvolvimento institucional”,


projetos enfocados na provisão de infraestrutura continuam sendo financiados e vão
impactar significativamente alguns países, onde serão implementados ao longo das
próximas décadas. Na Indonésia, por exemplo, o Kampung Improvement Project
(KIP), iniciado em 1969 pelo governo local em Jacarta, passou a receber
financiamento do Banco Mundial a partir de 1972, e foi adotado como parte da política
nacional entre 1973 e 1994. Estima-se que o KIP tenha coberto mais de 85 mil
hectares de áreas de favelas em toda a Indonésia, abrangendo uma população de
cerca de 36 milhões de pessoas, sendo 5,5 milhões em Jacarta (TUNAS e
PERESTHU, 2010). Submetida em 1997, no entanto, aos pacotes de ajuste estrutural,
a Indonésia se comprometeria, no auge da crise financeira asiática, com mais de cem
condicionalidades, incluindo privatizações, remoção do controle de preços e barreiras
de comércio, revisão da legislação nacional de falências e mudança da legislação
controladora de aquisições e fusões corporativas (BABB, 2013). A atuação do Banco
Mundial em conjunto com o FMI em pacotes de ajuste estrutural será tratada a seguir.

4.2.2 Fragmentação: reformas institucionais para o funcionamento do mercado

O conceito de “desenvolvimento institucional” (do inglês institution buiding),


para descrever o “processo de criar ou fortalecer a capacidade de instituições para
tornar efetivo o uso de recursos humanos, financeiros, etc.” (World Bank, 1980 apud
RIBEIRO FILHO, 2006, p. 92), já vinha sendo utilizado no interior do Banco Mundial
desde a sua criação. Para melhor compreender a maior ênfase que o banco passa a
conferir a esses processos, em detrimento de projetos de infraestrutura, a partir de
meados dos anos 1980, convém recuperar brevemente o contexto político e
econômico no qual essa mudança ocorre.

Com a ascensão ao poder de Margaret Thatcher (1979-1990), no Reino Unido,


e Ronald Reagan (1981-1989), nos EUA, ganha força a reestruturação da economia
e da política orientada para o mercado, em curso desde o início dos anos 1970, em
123

escala mundial. Juntos, Thatcher e Reagan serão as principais lideranças


impulsionadoras da diminuição do papel e tamanho do Estado, da liberalização
econômica, do aumento das trocas internacionais e da financeirização do capital.
Ambos ainda contribuíram indubitavelmente, com colaboração decisiva da China,
para o fim da Guerra Fria e declínio do bloco socialista.

É nesse contexto de fortalecimento de um modelo neoliberal que estoura a crise


da dívida externa na América Latina, com a moratória declarada pelo México, em
1982, e sua repercussão imediata em outros países da região, notadamente Brasil e
Argentina. Como resultado direto da crise, o FMI, que já atuava no controle da inflação
e estabilização das moedas nacionais dos “países em desenvolvimento” (BABB,
2013), foi encarregado pelo governo norte-americano de formular um pacote de
salvamento para os países latino-americanos endividados (CORDEIRO, 2010). O
novo pacote de ajustes estruturais ampliou então as funções do FMI que passou a
exigir amplas reformas nas economias nacionais dos “países em desenvolvimento”, a
começar pelo aumento das exportações com redução drástica das importações.

O Banco Mundial, que já vinha sofrendo forte pressão da ala republicana do


governo norte-americano, fortalecida com a eleição de Reagan, aprovou uma
reorientação de seus programas para o setor urbano (CORDEIRO, 2010; BABB,
2013). Críticos da atuação de McNamara e dos programas voltados para o
“desenvolvimento” do Terceiro Mundo, os conservadores defendiam a implantação de
reformas institucionais e de políticas públicas capazes de lidar com as causas dos
déficits na balança de pagamentos desses países, dentre as quais estavam os
“pesados subsídios financeiros dos investimentos urbanos” (ARANTES, 2004, p. 54).

Nesse clima de tensão e disputas internas, McNamara renunciou ao seu


mandato na presidência do Banco Mundial em 1981, logo após a formulação do
programa de Empréstimos para Ajustes Estruturais (Structural Adjustment Lending -
SAL). Assim, a atuação da organização passou a ser descrita como orientada em
torno de três eixos: diminuição da intervenção do Estado na economia; controle central
da economia para gerenciar a dívida externa, o orçamento e as reformas estruturais;
e descentralização de outras atividades para níveis subnacionais de governo,
empresas públicas, comunidades locais ou para o setor privado (World Bank, 1983
apud RIBEIRO FILHO, 2006, p. 108).
124

A partir desse momento o Banco Mundial e o FMI passaram a atuarem


paralelamente, isto é, via mecanismos de “condicionalidade cruzada”, com os
empréstimos setoriais do banco sendo crescentemente condicionados ao
cumprimento dos programas de estabilização acordados com o FMI107. No Plano
Baker, lançado em 1986, as condicionalidades colocadas por essas instituições são
descritas como:

Veículos para promover reformas políticas voltadas para o aumento


do crescimento, incluindo a privatização de empresas públicas
onerosas e ineficientes, a liberalização dos mercados domésticos de
capital, a reforma tributária e a criação de ambientes mais favoráveis
para o investimento estrangeiro e a liberalização do comércio (Baker's
testimony in US House, 1986 apud BABB, 2013, p. 275, tradução
nossa).

Babb (2013, p. 278) destaca ainda que países com moedas estáveis e sem
problemas de endividamento, como China, Vietnã, Índia e Coréia do Sul (até a crise
financeira asiática) tiveram pouca exposição às condicionalidades, em contraste com
os países latino-americanos. De acordo com dados compilados por esta autora, no
âmbito do setor urbano, de 1986 até 2010, a Argentina adquiriu recursos com base
em 7 empréstimos do FMI e 19 do Banco Mundial, já o Brasil obteve 3 empréstimos
do FMI e 5 do Banco Mundial.

A passagem de um discurso de “alívio da pobreza” para outro enfatizando o


“ajuste” e a descentralização, a redução ao máximo dos gastos públicos e o aumento
da provisão pelo setor privado passaram a serem vistos não apenas como oportunos,
mas indispensáveis. A segunda década de atuação do Banco Mundial no setor urbano
(1982-1992), portanto, resultou em uma carteira de projetos mais diversificada, em
comparação com a década anterior: surgiram pela primeira vez empréstimos
destinados a sistemas de financiamento imobiliário e aumentaram os projetos de
desenvolvimento municipal, enquanto projetos de habitação, projetos urbanos

107
Babb (2013, p. 278) destaca que países com moedas estáveis e sem problemas de endividamento,
como China, Vietnã, Índia e Coréia do Sul (até a crise financeira asiática) tiveram pouca exposição às
condicionalidades. Em contraste, os países latino-americanos foram mais expostos. De acordo com
dados compilados por esta autora, no âmbito do setor urbano, de 1986 até 2010, a Argentina adquiriu
recursos com base em 7 empréstimos do FMI e 19 do Banco Mundial; já o envolvimento do Brasil foi
mais ameno, com 3 empréstimos do FMI e 5 do Banco Mundial.
125

integrados108 e de transporte urbano perderam espaço na agenda desse organismo


multilateral (WEAVING, 1994).

Para os especialistas do Banco Mundial, as cidades haviam provado serem


muito vulneráveis ao desempenho macroeconômico da economia mundial e, portanto,
as políticas futuras deveriam ser desenvolvidas em torno do vínculo entre a economia
urbana e a economia nacional (JONES e WARD, 1994). E para dinamizar esse
vínculo, elevando o “profissionalismo” e a “gestão urbana” dos “países em
desenvolvimento”, deveriam ser privilegiadas “operações urbanas sobre a reforma
política da cidade como um todo” (WORLD BANK, 1991, p. 4). Aparecem então dois
aspectos relevantes no discurso das instituições intergovernamentais: dimensão
fundiária e participação social, menos pautados por ideais redistributivos e
emancipatórios e mais pela eficiência econômica.

A dimensão fundiária ganhou destaque logo após o fechamento da primeira


década de investimentos do Banco Mundial, quando a economista da instituição
Johannes Linn publica, em 1983, “Cities in the Developing World: Policies for their
equitable and efficient growth”, defendendo a importância da “gestão” em detrimento
da “administração” urbana na garantia da liberdade e formalização dos mercados de
terras. Em consequência, na “agenda para os anos 1990” publicada pelo banco, o
excesso de regulamentação sobre a terra e a habitação aparece como um limitador
para o bom funcionamento do mercado já que tornavam as soluções privadas mais
custosas (WORLD BANK, 1991, p.5). Em linhas gerais, o organismo multilateral
recomendava a simplificação dessas regras de modo a facilitar a iniciativa do setor
privado e das próprias comunidades.

A importância dada pelo Banco Mundial à dimensão fundiária, portanto, não se


fazia no sentido de encorajar o Estado a comprar ou expropriar terras em quantidades
suficientes para iniciar programas redistributivos (JONES e WARD, 1994). Ao
contrário, foi ancorada nas ideias disseminadas pelo economista peruano Hernando
De Soto. Como bem apontado por Jones (2012), parece que as ideias de De Soto,

108
Iniciados em meados da década de 1970, essas ações envolviam componentes de diferentes áreas
simultaneamente (habitação, transporte, apoio a negócios, crédito e treinamento, atividades para
geração de renda e creches).
126

assim como no passado as ideias de Turner, foram utilizadas para dar legitimidade a
posições já existentes no Banco Mundial.

Em seus dois livros, “The other path: the invisible revolution in the Third World”
(1989) e “The Mystery of Capital” (2000), De Soto reconheceu a titulação de terras e
de propriedades como motores para uma verdadeira revolução urbana no Terceiro
Mundo, ao possibilitar a entrada de milhões de pessoas pobres no mercado. A ideia
central de De Soto estava baseada na transformação das edificações das favelas,
consideradas um “capital morto”, em ativos que poderiam ser utilizados como garantia
para empréstimos bancários que permitissem aos pobres, por exemplo, abrir
pequenos negócios ou a ampliação e melhoria de suas casas. Essa estratégia, no
entanto, em pouco tempo mostrou sinais de enfraquecimento, uma vez que poucos
bancos comerciais estavam abertos às famílias pobres, dada sua dificuldade de
comprovação de renda, a baixa lucratividade desses empréstimos e certa
desconfiança (GILBERT, 2007, p. 8).

Nesse período, também merece destaque o apoio do Banco Mundial ao


Programa de Gestão Urbana (Urban Management Programme, do original em inglês)
das Nações Unidas, criado em 1986. Uma iniciativa conjunta do Programa para o
Desenvolvimento (PNUD) e do então Centro para Assentamentos Humanos
(UNCHS). Com o objetivo de viabilizar a assistência técnica para governos locais de
“países em desenvolvimento”, o novo programa era motivado pelas mesmas diretrizes
que, desde o início dos anos 1970, norteavam as ações do banco no setor urbano:
fim dos subsídios estatais, maior participação de agentes locais, principalmente do
setor privado, e replicabilidade dos projetos (JONES e WARD, 1994).

A Fase 1 do programa (1986-1991) enfocou o desenvolvimento de “estruturas


e ferramentas de gestão urbana” para lidar com questões fundiárias, finanças e
administração municipal, infraestrutura e ambiente construído. Para fortalecer o
alinhamento sobre essas temáticas, o UNCHS lançou em 1988 a “Estratégia Global
para Moradia até o Ano 2000”, recomendando aos governos nacionais o
desenvolvimento de tarefas institucionais para promover a regularização fundiária e a
regulamentação de construção109. A Fase 2 (1992-1996) visou introduzir as “lições

109
Cf. United Nations. A/RES/43/181. 83ª plenária. 20 de dezembro de 1988. Disponível em:
http://www.un.org/documents/ga/res/43/a43r181.htm
127

aprendidas” na fase anterior, as novas políticas e ferramentas para o nível regional


foram disseminadas por meio da descentralização do programa e criação de
escritórios regionais. A Fase 3 (1997-2001), logo após a segunda Conferência
Internacional para o Habitat, seguiu concentrada na ação em nível local, enfatizando
temas como alívio da pobreza urbana, sustentabilidade ambiental e governança
participativa nas cidades110.

Por meio de programas de assistência técnica, campanhas temáticas,


realização de seminários e outros eventos de disseminação, a ONU assumia, cada
vez mais, o papel de um “centro brando” na disseminação de proposições para o
urbano. Essas “formas brandas” de policy advocacy (isto é, de recomendação
persuasiva em favor de certas políticas) complementavam à atuação mais incisiva
praticada pelo Banco Mundial (THEODORE e PECK, 2011, p. 22; 24). Com menos
poder coercitivo, dada sua própria natureza e poder de financiamento, o UNCHS
(posteriormente, ONU-Habitat) tem contribuído para a construção de consensos sobre
certas ideias de políticas por meio da mediação, avaliação, exortação e persuasão por
meio de redes transnacionais.

Na visão do Banco Mundial, ainda apoiada em De Soto, além de inserir os


pobres e as áreas por eles ocupadas no mercado, era necessário “incorporá-los” nas
decisões sobre as políticas, evitando maiores conflitos e reforçando processos de
expansão e/ou consolidação da democracia e do capitalismo em diferentes “países
em desenvolvimento”.

O papel ativo e o poder político dos grupos comunitários nas cidades


dos países em desenvolvimento, como no caso de Lima, descrito por
De Soto, tornam imperativo que a governança local e a provisão de
infraestrutura e serviços urbanos sejam participativas. Políticas
urbanas passadas frequentemente forçaram as comunidades a
sobreviver fora do quadro legal da cidade. Nos anos 1990 isto não é
mais politicamente aceitável para esses grupos cada vez mais
poderosos (WORLD BANK, 1991, p. 63. Tradução e grifo nossos).

Na leitura de Tim Campbell, especialista do Banco Mundial para América Latina


e Caribe entre 1988 e 2005, a participação que a população em diferentes países da
América Latina alcançava na decisão e formulação de políticas podia ser
compreendida, quando comparada às lutas revolucionárias contra o Estado dos anos

110
Cf. http://mirror.unhabitat.org/content.asp?typeid=19&catid=374&cid=185
128

1950 e 1960, como uma espécie de “revolução silenciosa”. Uma reestruturação do


poder local a partir de uma visão que não era radical como a dos Tupamaros, mas
também estava longe de se restringir às previsões reformistas de funcionários
públicos e analistas políticos dos anos 1970 e 1980 (CAMPBELL, 2003, p. 3).

Tim Campbell via as “inovações” por ele identificadas na região ao longo dos
anos 1990, relacionadas à participação social, financiamentos comunitários, novos
arranjos federativos, provisão de serviços pelo setor privado e fortalecimento de
capacidades dos governos locais, como impulsionadoras da competitividade tanto no
interior de cada cidade como entre cidades (CAMPBELL et al., 1991). Compreendia a
restauração dos vínculos entre eleitores contribuintes e governos locais, quebrados
por décadas de governos centralizados, como fundamental para a mobilização de
financiamentos com recuperação de custos, desse modo, aumentando a receita dos
municípios e conferindo legitimidade e sustentabilidade aos governos locais. Pois,
como afirmaram os executivos latino-americanos entrevistados: “quando os
contribuintes percebem que estão acessando novos serviços, eles ficam mais
dispostos a pagar” (CAMPBELL, 1997, p. 3, tradução nossa). Não tardou para que as
“inovações” em andamento na América Latina, e alhures, passassem a ser vistas
como instrumentos para acirrar a competição entre cidades, e ao mesmo tempo, a
capacidade de oferta de assistência das agências multilaterais ao redor do mundo.

Nesse sentido, a organização da II Conferência das Nações Unidas para os


Assentamentos Humanos – Habitat II foi um importante marco. Durante os
preparativos para a conferência, realizada em Istambul, na Turquia, em 1996, os
governos dos “países em desenvolvimento” foram convidados a documentar “práticas
inovadoras e bem-sucedidas” relacionadas ao alívio da pobreza e à provisão de
moradia. Como resultado, mais de 600 "melhores práticas" foram submetidas, sendo
doze premiadas durante a conferência (BEALL, 1996), as quais deram origem a um
banco de dados de melhores práticas continuamente alimentado até hoje.

Assim, premiação e disponibilização de um rol de “melhores práticas” passou


a ser uma maneira de governos locais comprovarem sua legitimidade não apenas
internacionalmente, mas também no contexto doméstico, e servir para a promoção de
determinados atores políticos, como será tratado no capítulo 5. Não por acaso, Jordi
Borja e Manuel Castells dedicam parte do relatório por eles apresentado na Habitat II
129

111
ao protagonismo econômico das cidades e sua promoção por meio do
planejamento estratégico e da cooperação público-privada (BORJA e CASTELLS,
1997).

Não obstante a ênfase da conferência em temáticas como “moradia para todos”


e “desenvolvimento humano sustentável112” (BEALL, 1996) e as exigências trazidas
por alguns governos locais, organizações não governamentais (ONGs) e populares
em favor do aumento de projetos de infraestrutura e segurança da posse, a Agenda
Habitat II resultante do evento privilegiou o discurso da provisão habitacional pelo
mercado, associada à reforma de sistemas cadastrais, simplificação dos
procedimentos de regularização fundiária, revisão de normas urbanísticas e de
padrões construtivos (HUCHZERMEYER, 2004).

Essa havia sido a mensagem do documento “Housing: enabling markets to


work”, aprovado três anos antes, em 1993, pelo Banco Mundial. Baseando-se no
reconhecimento do setor habitacional como uma atividade econômica-chave, com
efeitos reais, financeiros e fiscais na economia como um todo, e destacando o
exemplo da política habitacional chilena de promoção da habitação pelo mercado, o
documento recomendava reformas políticas e institucionais. Enfatizando o papel do
“Programa de Gestão Urbana” das Nações Unidas no fornecimento de assistência
técnica aos governos locais para a implementação dessas reformas (WEAVING,
1994).

O modelo chileno está centrado em mecanismos de subsídio à demanda, os


quais são determinados em função da renda das famílias atendidas, e na provisão
habitacional pelo setor privado. Esse modelo, implementado desde a década de 1970,
passou a ser amplamente difundido não apenas pelo Banco Mundial, como também
por outras agências como BID e Usaid (GILBERT, 2007). Assim, a partir de 1993, a
criação de sistemas de financiamento habitacional baseados na provisão pelo
mercado passou a ser, cada vez mais, a canalizar os investimentos do Banco Mundial
(CLEGG, 2017; ROLNIK, 2019).

111
Refere-se aqui ao Capítulo 5 do livro Local & Global (BORJA e CASTELLS, 1997).
112
Este último uma clara influência da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente – RIO
92
130

4.2.3 Contestação: flexibilização e resgate de políticas pró-pobres

O crescimento da urbanização, da desigualdade e da pobreza deixavam cada


vez mais evidente, no entanto, que o setor privado sozinho não daria conta da
necessidade de moradia dos grupos mais empobrecidos (GILBERT, 2007). Na
América Latina, as políticas de ajuste macroeconômico exigidas pelo FMI haviam
provocado queda vertiginosa do PIB e dos investimentos públicos, explosão da
inflação e diminuição dos salários reais.

As crises financeiras ocorridas entre fins dos anos 1990 e início dos anos 2000,
como aquelas ocorridas no México, na Argentina, na Rússia e na Ásia Oriental,
alimentavam ondas de protestos globais contra as instituições financeiras
internacionais. No debate político geral, duras críticas eram dirigidas à atuação
“expansiva”113 do FMI, com seus mecanismos de condicionalidade cruzada e a
aplicação de uma mesma receita para todos os países (STIGLITZ, 2002; BABB,
2013).

Um proeminente crítico dos ajustes estruturais foi Joseph Stiglitz, então vice-
presidente-sênior para políticas de desenvolvimento e economista-chefe do Banco
Mundial, no final da década de 1990, e vencedor do prêmio Nobel de economia em
2001. Stiglitz declarou que a defesa exacerbada do FMI e do Banco Mundial pelo
travamento do investimento público em serviços essenciais, delegando-os aos
mercados, só havia agravado os problemas dos “países em desenvolvimento”. Isso
porque, para o economista, os mercados nesses países, diante da ausência de
informações perfeitas, funcionavam imperfeitamente (STIGLITZ, 2002).

Com o afastamento de Stiglitz da organização, logo após suas declarações, o


Banco Mundial passou defender que o problema não estava nas proposições dos
ajustes estruturais, mas na falta de atenção dada aos marcos institucionais e legais
necessários para o correto funcionamento do mercado (BABB, 2013). Em

113
BABB (2013) denomina de “mission creep” (em alusão às mudanças graduais dos objetivos de
exércitos em campanha) essa atuação “expansiva” do FMI, que passa a incluir, por exemplo, a
privatização dos serviços de abastecimento de água e de sistemas públicos de previdência e a
imposição de “taxas de usuários” (como as taxas de acesso à educação pública).
131

consequência, de um lado, as condicionalidades seriam reforçadas em direção às


reformas de “governança”. De outro, seriam impulsionadas políticas “pro-poor”, isto é,
focalizadas na população mais pobre. Uma maneira de responder tanto às
repercussões negativas de sua atuação e imagem no debate público, quanto à
crescente pressão exercida por ONGs e pelas próprias agências da ONU (MORALES,
1999).

O fortalecimento das pautas relacionadas ao desenvolvimento urbano e à


habitação no debate mundial havia ficado evidente com a substantiva participação dos
países na Habitat II, em 1996. Logo após o evento, o UNCHS passou por grandes
reestruturações, envolvendo mudanças tanto na sua direção quanto estrutura
organizacional, com a finalidade de reforçar a promoção, num primeiro momento, dos
objetivos da Agenda Habitat e, posteriormente, das metas da Declaração do Milênio
das Nações Unidas, acordada em 2000. Essas reestruturações culminaram na
criação, em 2002, do Programa das Nações Unidas para Assentamentos Humanos
(ONU-Habitat).

Na leitura de Harris (2015), no final do século XX, os economistas do Banco


Mundial passam a reconhecer a importância da flexibilidade das políticas para as
cidades, caminhando para uma abordagem mais equilibrada cuja segurança da posse
passava a importar mais do que a titulação. No mesmo sentido, os projetos de
infraestrutura ganharam renovado destaque. Os limites da crença exclusiva no
mercado já estavam postos, por exemplo, nas diretrizes operacionais do BID na
América Latina, onde essa agência vinha, desde meados dos anos 1990, orientando
governos a estabelecer programas especiais para o atendimento das famílias de baixa
renda, comprovadamente não atendidas pelo mercado, na forma de projetos de
infraestrutura (IDB, 1999 apud Gilbert, 2007, p. 8)114.

Esse será o teor da agenda do Banco Mundial para os anos 2000, apresentada
a seguir, enfocada na importância das cidades para “a descentralização política e

114
O primeiro empréstimo do BID para urbanização de “bairros” (neighborhoods upgradings) na AL foi
para o Chile em 1986 no âmbito do Programa Vivienda Progresiva, baseado no modelo de lotes com
infraestrutura e unidades mínimas (BRAKARZ, 2010; MAGALHÃES, 2016). Mas foi a partir da década
de 1990, que o BID aumentou significativamente o número de financiamentos para esse fim. Em 1995
financia o Favela-Bairro que havia sido iniciado no ano anterior pela prefeitura do Rio de Janeiro. É
considerado o primeiro caso de urbanização integrada, isto é, englobando assentamentos inteiros,
componentes de infraestrutura e componentes sociais.
132

fiscal, a democracia local participativa, a competitividade e a globalização”


(KESSIDES, 2000).

4.2.4 Institucionalização: cidades sem favelas

Com o título de “Cidades em Transição”, a agenda do Banco Mundial para os


anos 2000 enfatizava a produção de “cidades sustentáveis” e propunha uma
“abordagem multidimensional” centrada na atuação dos governos municipais, como
evidente no trecho abaixo:

O papel dos governos nacionais está sendo redirecionado para facilitar


os mercados, promover a estabilidade econômica e social e garantir a
equidade. Mas as reformas da gestão do setor público ou do
desenvolvimento do setor privado não farão o que é desejado para o
desenvolvimento nacional até que sejam adaptadas e implementadas
adequadamente no nível municipal (KESSIDES, 2000, p. 2).

Assim, a “nova” agenda destacava a centralidade dos governos municipais em


garantir “o sucesso” dos ajustes estruturais, pois na lógica do banco a garantia da
equidade dependia da promoção de firmas, de todos os tamanhos, produtivas e
competitivas (KESSIDES, 2000, p. 9). Os problemas enfrentados pelos “países em
desenvolvimento”, desse modo, eram desvinculados das reformas ocasionadas pelos
“ajustes” e atribuídos à incapacidade dos governos locais em cumpri-las
“adequadamente” e, assim, promover o bom funcionamento do mercado.

Em termos práticos, visando alcançar os objetivos da nova agenda baseada


nos princípios de “habitabilidade, competitividade, liquidez, boa governança e
gestão”115 (KESSIDES, 2000, p. 8 et seq.), o Banco Mundial sugeriu a adoção de
quatro blocos de atividades: 1) formulação de estratégias nacionais; 2) suporte às
“estratégias de desenvolvimento das cidades”; 3) ampliação da escala dos serviços
para os pobres, inclusive a “melhoria de bairros de baixa renda”; e 4) expansão da
assistência para o desenvolvimento de capacidades. Esses blocos são apresentados
a seguir.

115
No original em inglês, livability, competitiveness, bankability, and good governance and
management.
133

As estratégias nacionais propostas, uma combinação de prescrições que já


estavam em documentos anteriores (WORD BANK, 1991, 1993), incluíam:

Relações fiscais interfederativas, políticas nacionais de segurança,


regulamentações que afetam a melhoria ambiental urbana, condições
regulatórias nacionais que afetam o clima de negócios e incentivos à
colaboração público-privada na infraestrutura urbana, e
desenvolvimento dos mercados financeiros domésticos como base
para o crédito municipal (KESSIDES, 2000, p. 14, tradução nossa).

Na escala urbana, que abrange o segundo bloco de atividades, ganharam


destaque a governança e o planejamento estratégico. O renovado interesse no uso
do termo governança (do inglês governance) em oposição à noção clássica de
governo pode ser observado desde meados da década de 1970. O uso desse temo
no interior de um discurso investido de tecnicalidade era uma forma de dar
legitimidade a antigas práticas de concertação corporativista, nas quais o Estado
assume o papel de árbitro entre empresas privadas e trabalhadores com o objetivo de
alcançar a negociação entre esses. Logo, uma solução parcial e provisória à crise do
planejamento estatal (JESSOP, 1995).

Marques (2013), numa revisão mais ampla da literatura internacional, separa o


uso do conceito de governança, utilizado com mais frequência nos anos 1990, em
dois momentos distintos. Em um primeiro momento, o conceito de governança teria
sido recuperado para designar processos específicos de formulação de políticas
envolvendo o Estado e atores privados, marca característica do “new public
management” e de reformas para a redução do Estado. Nessa direção, maior
eficiência e transparência no setor público seriam alcançadas pela introdução da
competição com empresas privadas, assim como pela importação de técnicas
gerenciais do setor privado para órgãos estatais. Já num segundo momento e em
decorrência das críticas à demasiada e ilimitada ênfase nos mecanismos de mercado,
o conceito de governança teria sido reformulado. Ao invés de menos Estado, passaria
a abranger uma separação entre os papéis de regulação e condução do
desenvolvimento e orientar a criação de agências específicas para regular a provisão,
estatal ou privatizada, de bens e serviços (MARQUES, 2013).

É, no entanto, ainda no bojo da construção social dos anos 1970 que se torna
comum a associação entre governança e planejamento estratégico. O planejamento
134

urbano estratégico, de maneira muito sintética, é resultado da transposição de


estratégias de gerenciamento empresarial para o urbano, processo iniciado no final
dos anos 1980 nos Estados Unidos, onde governos municipais, competindo entre si e
com empresas privadas pela atração de investimentos e negócios, passam a adaptar
suas estruturas equiparando-as às de uma empresa. Nesse novo modelo de
empreendedorismo urbano, a manutenção e melhoria dos bens de uso coletivo das
cidades é, portanto, subjugada à construção especulativa do lugar (HARVEY, 1989).
As cidades são, assim, transformadas em cidades-mercadoria, por meio de
numerosas parcerias público-privadas (PPPs) (VAINER, 2000) 116.

De acordo com o Banco Mundial, no interior da proposta de “estratégias de


desenvolvimento da cidade” (CDS, na sigla em inglês), a cidade passava a ser
referida:

Como uma área econômica urbana que representa um mercado


integral, mas que tipicamente ultrapassa as fronteiras administrativas
da cidade em si para abranger sub-regiões vizinhas, incluindo cidades
menores, áreas rurais periurbanas ou adjacentes. Os exercícios de
estratégia da cidade delineariam a visão das partes interessadas,
analisando as perspectivas de desenvolvimento econômico e
identificando prioridades de ação. A estratégia de desenvolvimento da
cidade se concentraria nas questões de maior preocupação local com
a habitabilidade e os requisitos para aumentar a produtividade, o
gerenciamento e o financiamento da cidade (KESSIDES, 2000, p. 15.
Tradução e grifo nossos).

Assim, o que as CDS, cujo protótipo vinha sendo implementado no Vietnã com
o suporte do banco desde 1998, passam a disseminar são as diretrizes do
planejamento estratégico. Só que, como nos lembra Vainer (2000), com pelo menos
uma década de atraso em relação ao início de sua difusão pelos consultores catalães.
Na versão do Banco Mundial a elaboração das CDS tem o objetivo de criar
competitividade entre as cidades e o mercado, cuja liquidez seria dinamizada pela
elevação das receitas municipais, via aumento do pagamento de taxas pelos
contribuintes e a atração de empresas, isto é, a boa governança. Para o alcance desse
objetivo, no entanto, o banco incorpora no modelo das CDS algumas ferramentas
próprias do planejamento tradicional compreensivo e do orçamento participativo, este

116
Para uma descrição menos sucinta e mais aprofundada das origens do planejamento estratégico,
sua transposição para as cidades e sua crítica cf. ARANTES et al., 2000; COMPANS, 2004; NOVAIS,
2010.
135

último uma das “boas práticas” estudadas pelo banco desde o início dos anos 1990,
como mostram os já citados relatórios produzidos por Tim Campbell.

Com o terceiro bloco de atividades, o Banco Mundial se compromete a voltar a


financiar projetos de infraestrutura para garantir a “habitabilidade” à população pobre.
Uma forma de “atender” (e conter) os grupos que desde a Conferência Habitat II
vinham exigindo o acesso dessa população à terra urbanizada e à moradia. Assim,
deveriam ser priorizados tanto os projetos realizados no âmbito de programas locais
e nacionais, quanto aqueles geridos pelas próprias comunidades e ONGs, desde que
“comprovadamente eficientes”.

Para colaborar nesse sentido, é que a agenda do banco para os anos 2000
destaca o quarto bloco de atividades ou o grande esforço da instituição em: “extrair e
disseminar lições da experiência com iniciativas de sucesso para aumentar o
conhecimento global e a compreensão do “upgrading” como parte de programas de
fortalecimento comunitário e de combate à pobreza” (KESSIDES, 2000, p. 15,
tradução nossa). A ambição de expandir a capacidade de “assistência técnica” do
Banco Mundial e de torná-lo um “banco do conhecimento” foi uma marca da gestão
de James Wolfensohn (1995-2005) na presidência da instituição. Desde então, o
organismo passou a investir crescentemente em “redes de conhecimento,
comunidades de prática e tecnologia da informação” para um melhor
compartilhamento de conhecimento tanto interna quanto externamente (STONE,
2013, p. 245). Os aportes na criação, gestão e aplicação de conhecimento passam a
ser, portanto, cada vez mais vistos como cruciais na missão do Banco Mundial de
“redução da pobreza”. Ao disseminar conhecimento construído em torno de “melhores
práticas”, ou seja, colocando-se no lugar de um “intermediador” do conhecimento
(Ravallion et al. 2010 apud STONE, 2013, p. 246).

A promoção de certas práticas e políticas gradualmente passa então a ser feita


não apenas de forma coercitiva, por meio de condicionalidades, mas cada vez mais
por meio da persuasão, posta em prática por meio de redes de pesquisa, conferências
e consultorias, que confeririam validade científica aos objetivos do Banco Mundial. A
instituição, assim, passou a se engajar progressivamente em várias “atividades de
136

sensibilização”117 (publicações, workshops, seminários) e na consolidação de bases


de dados para “conscientizar e educar o público” (STONE, 2003, p.554)

A agenda do Banco Mundial para os anos 2000, nesse sentido, destaca a


importância da complementariedade da “assistência direta” (denominada de
“abordagem no varejo”) prestada para o desenvolvimento municipal, isto é, aquela
praticada por meio das próprias operações do banco e do recém-criado Instituto
Banco Mundial118. Essa complementação (analogamente denominada “abordagem
por atacado”) deveria se dar por meio de redes intermediárias dedicadas à troca de
conhecimento e expertise entre municípios e outras agências envolvidas em gestão
urbana e provisão de serviços. Desse modo, o organismo multilateral passava, em
parte, a confiar a “disseminação de boas práticas, treinamento e assistência técnica”
a associações de governos locais, como a IULA, centros de pesquisa e de treinamento
e acordos de cooperação entre cidades.

É no bojo dessa “missão” de ampliar sua “assistência direta” e implementar a


agenda urbana para os anos 2000, delineada desde a realização da Habitat II, que o
Banco Mundial se juntou ao UNCHS para criar, em maio de 1999, a Aliança de
Cidades, uma parceria entre múltiplos doadores. A nova iniciativa, embora de algum
modo fosse um desdobramento do Programa de Gestão Urbana (UMP), possuía um
enfoque mais claro do que o programa anterior: dedicar-se especialmente a
disseminar e apoiar governos locais e nacionais na implementação do slum upgrading
e das city development strategies. Na avaliação do próprio banco, a Aliança de
Cidades tinha a vantagem de permitir maior flexibilidade e criatividade no uso dos
recursos, os quais não estariam mais amarrados a projetos específicos, como no caso
do Banco Mundial (WORLD BANK, 2008). Além disso, permitia que acordos fossem
firmados diretamente com governos locais, sem a necessidade de aprovação pelos

117
Na expressão do Banco Mundial, policy outreach activities. Cf.
http://web.worldbank.org/archive/website01542/WEB/0__CO-17.HTM
118
Lançado em 2000 em substituição ao Instituto de Desenvolvimento Econômico, fundado em 1955.
Enquanto o antigo instituto dedicava-se ao treinamento de funcionários governamentais de alto nível
em Washington, a nova entidade buscou ampliar a abrangência temática e o público-alvo por meio do
ensino a distância, diálogos de políticas e parcerias com instituições locais. Cf.
http://documents.worldbank.org/curated/en/372291468129005130/A-brief-history-of-World-Bank-
Institute-WBI-or-Economic-Development-Institute-EDI
137

governos nacionais, como era o caso dos empréstimos do organismo multilateral


(STREN, 2014, p. 33).

Atualmente, o Grupo Consultivo da Aliança de Cidades, órgão máximo de


decisão da instituição, co-presidido pelo Banco Mundial e pelas Nações Unidas119, é
composto pelo quadro de doadores e membros associados120, e inclui organizações
de autoridades locais (como a CGLU e Metropolis), governos de países (incluindo
Brasil e África do Sul, entre outros), autoridades regionais (como a União Europeia) e
ONGs (como Slum Dwellers International e Habitat for Humanity).

A relação do Banco Mundial com a Aliança de Cidades é bastante simbiótica.


O banco, além de co-presidir, mantém-se como um dos principais doadores da Aliança
de Cidades, apenas superado pelo Reino Unido (e seguido da Itália, Noruega, e mais
recentemente da Fundação Bill e Melinda Gates). Além disso, não obstante as
doações de recursos, a Aliança também retorna dividendos para o Banco Mundial que
é uma das agências responsáveis pela implementação das atividades de assistência
técnica da Aliança de Cidades. A título de exemplo, no ano de 2005, o valor que o
banco recebeu para implementar tais atividades - US$ 15 milhões, superou as
contribuições do próprio banco no valor de US$ 10,9 milhões, gerando um superávit
de US$ 4,1 milhões. Desse modo, a Aliança de Cidades tem sido uma importante
fonte de financiamento do fundo fiduciário para o trabalho urbano do Banco Mundial
(WORLD BANK, 2008). É por isso que na avaliação do Banco Mundial, a relação com
a Aliança de Cidades é bastante vantajosa, desde que esta permaneça focada na
disseminação das CDS e do slum upgrading, diferenciando seus “produtos” daqueles
ofertados pelo próprio banco.

Por mais de uma década a sede da Aliança de Cidades funcionou nas


instalações do Banco Mundial. Ao mesmo tempo em que, de início, isso foi tido como
uma vantagem dada a experiência, reputação profissional e credibilidade do Banco
Mundial internacionalmente, logo a associação imediata entre as duas instituições
passou a ser apontada como desvantajosa. Segundo avaliações externas, alguns

119
Conforme definido pelo Estatuto da Aliança de Cidades: ‘O Grupo Consultivo será co-presidido pelo
Vice-Presidente de Desenvolvimento do Setor Privado e Infraestrutura do Banco Mundial, e pelo chefe
executivo da Habitat (...) As decisões do GC são feitas por consenso” (Tradução nossa). Cf.
https://www.citiesalliance.org/charter
120
Cf. https://www.citiesalliance.org/who-we-are/about-cities-alliance/our-members-0
138

membros da Aliança viam o Banco Mundial como uma instituição muito coercitiva.
Além disso, os funcionários disponibilizados pelo banco estavam acostumados a
padrões burocráticos e de rigidez que atrasavam os tramites no âmbito das relações
estabelecidas pela Aliança de Cidades com seus receptores (WORLD BANK, 2008;
COWI, 2011). Em consequência, o secretariado da instituição foi transferido em 2013
para o Escritório das Nações Unidas de Serviços para Projetos (Unops) em
Bruxelas121.

Em linhas gerais, a atuação da Aliança de Cidades durante a primeira década


(1999-2009) concentrou-se na concessão de subsídios em apoio a projetos individuais
de city development strategy e slum upgrading. Até 2006, mais da metade dos
recursos doados pela Aliança de Cidades foi para assistência técnica a ações de slum
upgrading (WORLD BANK, 2008). A partir de 2008, iniciou-se um processo de reforma
mais abrangente da Aliança de Cidades, no qual o apoio ad hoc a programas
individuais foi redirecionado para privilegiar a construção de programas nacionais
mais abrangentes (Country Partnerships Programmes - CPPs), principalmente na
África Sub-Saariana122. Um redirecionamento consonante com o próprio histórico do
Banco Mundial de passar do financiamento de projetos para o de políticas. A Aliança
de Cidades com esse novo propósito manteve-se como “veículo de parceria que não
possui capacidade de implementação própria, mas funciona através da capacidade
de seus membros” (COWI, 2011, p. 13, tradução nossa).

Apesar das mudanças mais recentes no “modelo de negócios” da Aliança de


Cidades, as atividades fins dos programas e da assistência técnica pouco se alteraram
e a implementação de CDS e slum upgrading mantiveram-se como o foco da
organização. Seu suporte aos “países pobres” tem sido significativo, principalmente

121
Cf. https://www.citiesalliance.org/newsroom/news/cities-alliance-news/cities-alliance-move-
brussels-track
122
O desenvolvimento desses programas abrangentes e de longo prazo para determinados países,
incluindo a definição da cooperação entre vários parceiros – incluindo cidades, administração nacional,
ONGs, doadores e IFIs –, foi possível graças a uma grande contribuição feita pela Fundação Bill e
Melinda Gates, especificamente para esse propósito. Antes disso, dois países membros (Brasil e
Filipinas) já haviam sido receptores significativos de acordos de parceria num formato um pouco
diferente, criado a partir de 2008, e conhecido como Joint Work Programme (JWP), no qual um
programa de trabalho conjunto entre a Aliança de Cidades e o governo nacional desses países definiu
uma estrutura para os tipos de subsídios que poderiam ser aprovados anteriormente à aprovação
individual desses programas (COWI, 2011, p.13-14).
139

com relação à recuperação da importância dada aos projetos de infraestrutura e sua


institucionalização.

A criação da Aliança de Cidades, contudo, não refletiu em um aumento dos


recursos empenhados por parte do Banco Mundial em projetos de infraestrutura,
apesar do discurso contido na agenda para os anos 2000 em favor da ampliação da
escala dos serviços para os pobres, inclusive a “melhoria de bairros de baixa renda”.
Dados sistematizados referentes aos empréstimos do Banco Mundial para o setor
urbano e habitacional no período 1972-2012123 mostram uma atuação que pouco se
altera a partir dos anos 2000 (CLEGG, 2017). Ao contrário, o que se observa é a
manutenção da inflexão ocorrida na década de 1990 em favor de projetos de
desregulamentação e liberalização financeira dos mercados habitacionais.

Gráfico 2. Distribuição percentual dos empréstimos do Banco Mundial para o


setor urbano e habitacional por tipo de projetos

Fonte: CLEGG, 2017, p. 31

123
De acordo com a presença ou ausência nos projetos de conteúdo relacionado à
“desregulamentação”, “liberalização financeira”, ao “fortalecimento institucional” e às “políticas em favor
dos pobres”, isto é, projetos de infraestrutura na forma de sites and services e slum upgrading.
140

De 1972 a 1982, os dados organizados por Clegg mostram que, além do foco
em projetos de infraestrutura, um número significativo de empréstimos do Banco
Mundial foi destinado ao fortalecimento da capacidade das agências governamentais
locais. Nesse período, mais de 50% dos projetos estiveram relacionados ao
fortalecimento dos sistemas de registro de direitos de propriedade. O nível de atenção
a esses sistemas permaneceu amplamente estável entre 1983 e 1992, enquanto o
número de projetos de infraestrutura caiu consideravelmente nesse período. Entre
1993 e 2002, tanto os empréstimos envolvendo projetos de infraestrutura quanto
fortalecimento institucional continuam diminuindo. Esses empréstimos no período
seguinte, entre 2003 e 2012, apresentaram um aumento pouco significativo se
considerada a ênfase discursiva dada a esses conteúdos a partir dos anos 2000.

Em contraposição, os dados mostram que os movimentos a favor do setor


privado, tanto em termos da provisão direta, via desregulamentação, quanto da sua
entrada em sistemas nacionais de habitação, via liberalização financeira, começaram
a ganhar força entre 1983 e 1992. É válido lembrar que a partir de 1993, consolida-se
o enfoque na criação de sistemas de financiamento habitacional, baseados na
produção pelo mercado, para atendimento da população estratificada pelo seu
rendimento. Tanto na América Latina, como nos países de transição pós-socialista,
nesse período, muitas intervenções foram voltadas à transformação de sistemas
financeiros controlados pelo Estado. A consolidação do direcionamento dos aportes
do Banco Mundial na expansão do mercado de hipotecas, portanto, representou o
principal motivo para a redução da “focalização em favor dos pobres” (CLEGG, 2017,
p. 32).

A análise desses dados, associada ao exame crítico de meio século de atuação


das organizações intergovernamentais, indica que a hipótese inicial acerca da
institucionalização de um paradigma de política global, isto é, de um modelo de política
construído tecnicamente por essas organizações centrado em ações de slum
upgrading e disseminado para as cidades dos “países em desenvolvimento” não se
verifica. Pelo contrário, o que a recuperação das sucessivas agendas e “consensos”,
por vezes aparentemente contraditórios, sugere é a emergência, ao final dos anos
1990, de um modelo de política baseado na legitimação de um conjunto de objetivos
e instrumentos, no qual as ações levadas adiante pela Aliança de Cidades parecem
141

ter importância marginal. Um paradigma de política global, portanto, muito mais


centrado na financeirização da moradia e expansão de mercados especulativos
(CLEGG, 2017; ROLNIK, 2019). O aprofundamento da análise desses processos,
contudo, escapa aos objetivos desta tese.

Quadro 1. Construção de um paradigma de política global para as cidades*

ESTÁGIOS PERÍODOS EVENTOS/ MARCOS DESCRIÇÃO SINTÉTICA


DA “AJUDA EXTERNA”

Acúmulo de 1945-1970 - Point Four Program - Crescimento das favelas


anomalias (1949); e loteamentos periféricos;
- Centre for Housing, - Organização popular e
Building and Planning da resistência de moradores
ONU (1951); contra remoções;
- Aliança para o - Estruturação da ajuda
Progresso e da Usaid externa aos países
(1961) pobres.

Experimentação 1970-1980 - Início da atuação do Projetos de Sites-and-


Banco Mundial no setor services and slum
urbano (1972) upgrading.
- Habitat I (1976)

Fragmentação 1980-1993 - Urban Management - Desenvolvimento


Program (1986) institucional e de
- Lançamento da mecanismos para o
estratégia “Housing: funcionamento dos
Enabling Markets to mercados e a aumento da
Work” (1993) competitividade entre
cidades.

Contestação 1993-1999 - Habitat II (1996) - Best Practices;


- Deslocamento da “ajuda
externa” para as cidades.

Institucionalização Anos 2000 - Aliança de Cidades - Disseminação por


de um novo (1999) “atacado” do slum
paradigma upgrading (SU) e das City
Development Strategies
(CDS).

*Segundo as fases propostas por Hall (1993).


Fonte: Elaboração da autora inspirada em Howlett, 1994, p. 640.
142

Em síntese, o que se observa é que, a partir dos anos 1970, com a entrada do
Banco Mundial na “ajuda externa” voltada à busca de soluções para o problema
habitacional dos países pobres, muito mais modestamente já empreendida pela ONU,
o acesso à terra e à moradia passou a ser enquadrado pelo aumento da produtividade
urbana.

Nas décadas de 1980 e 1990, seguindo as diretrizes emanadas pelo governo


dos Estados Unidos, o Banco Mundial vai reorientar sua atuação, conferindo-lhe
direção ainda mais conservadora e liberal: a elevação da produtividade passa a ser
buscada por meio de reformas institucionais centradas na reconfiguração do papel e
ação do Estado (em escala nacional, regional e local), na ampliação da esfera privada
na prestação de serviços públicos, na subordinação das políticas governamentais às
demandas do mercado imobiliário e habitacional e na adoção de modelos
empresariais de planejamento urbano. Esse discurso sofre adaptações, no final da
década de 1990, mas não se altera, ao contrário, consolida-se num novo paradigma
de política global disseminado em rede ou “por atacado” pelo Banco Mundial.

4.3 Conclusão do capítulo

A análise construída no presente capítulo buscou examinar os circuitos e fluxos


internacionais do slum upgrading, procurando identificar o lugar desse tipo de ação na
suposta institucionalização de um paradigma de política global para as cidades. Isto
é na consolidação de um conjunto modelos e recomendações disseminados por
instituições multilaterais e que são adotadas (por meio de longos processos de
negociação, adaptação e transformação) por dois ou mais governos, nacionais ou
locais.

É válido ressaltar, como já feito no capítulo introdutório desta tese, que a opção
de apresentar a análise da configuração da “ajuda externa” para o “desenvolvimento
urbano” e da atuação das agências multilaterais, antes do capítulo a seguir, que
examina as trajetórias da urbanização de favelas em São Paulo e do in-situ upgrading
em Durban, tem o intuito de situar a singularidade dessas trajetórias em meio aos
fluxos e conjunturas político-econômicas globais que as atravessam e ultrapassam.
143

Não reflete, no entanto, qualquer entendimento de sobredeterminação do global sobre


o local, mas a busca por elucidar as formas de poder em funcionamento enquanto
políticas urbanas “viajam” através de diferentes territórios (Allen, 2004; McFarlane,
2011b). Formas de poder, por vezes, constituídas a partir da imbricação de agências
transnacionais de formulação e disseminação do slum upgrading e da agência local,
como veremos a seguir.

Vale destacar que a perspectiva relacional adotada nesta tese é a de que o


global e o local se integram por meio de múltiplas relações. Em conformidade com
essa perspectiva, mais importante do que determinar o ponto de origem de certas
ideias relacionadas à melhoria, consolidação e integração de favelas é compreendê-
las como mutuamente constituídas, como resultado de fluxos de ideias, pessoas e
materiais circulando em múltiplas escalas e direções (SWYNGEDOUW, 1997;
BRENNER, 2004). Logo, considera-se que a construção de um paradigma de política
global será sempre um processo negociado, mutuamente constituído por diferentes
atores, países, cidades. Considera-se que essa mutualidade e naturalização de certos
conceitos, noções e ideais entre os envolvidos seja fundamental para a difusão de um
paradigma de política global.

Na análise aqui apresentada, a identificação de um paradigma de política global


que articula um discurso de alívio da pobreza, habitabilidade, direito à terra urbanizada
e moradia, de um lado, e a necessidade de aumento da competição, eficiência e
produtividade urbana, de outro, faz com que a campanha da Aliança de Cidades em
torno do bordão “Cidades sem Favelas”, destacado no início deste capítulo, adquira
contornos não apenas ambíguos, sujeito a mal-entendidos, como também
perversos124.

124
Termo utilizado com o mesmo sentido presente em Dagnino (2004, p. 142) para se referir a “um
fenômeno cujas consequências contrariam sua aparência, cujos efeitos não são imediatamente
evidentes e se revelam distintos do que se poderia esperar”.
144

5 DURBAN E SÃO PAULO EM REDE(S): CONSTRUÇÕES


TRANSESCALARES DE POLÍTICAS

Este capítulo é dedicado a analisar as trajetórias das políticas de urbanização


de favela em São Paulo e de in-situ upgrading em Durban, levando-se em
consideração a disseminação internacional de ideias e modelos de políticas. Em
consonância, portanto, com o método de “decomposição de conexões”, descrito no
capítulo 2. A investigação de um paradigma de política global requer não apenas a
análise de como os discursos disseminados internacionalmente são (re)construídos e
legitimados em localidades específicas, como também a compreensão das formas
pelas quais experiências concebidas localmente são transformadas em discursos
disseminados internacionalmente. O estudo da política local, portanto pode ser útil
não apenas para se decifrar a globalização, como também para desafiá-la (HART,
2002). Afinal, por mais extensos e globalizados que sejam os circuitos de circulação
de ideias, é no nível do território que o caráter efetivo da política – em conjunto com a
dinâmica dos mercados, a formação e a dinâmica das classes, as oportunidades e
práticas de participação social e a constituição cotidiana de identidades – pode ser
analisado (SELLERS, 2005, 420).

A recuperação analítica das trajetórias das políticas de urbanização de favela


em São Paulo e de in-situ upgrading em Durban realizada neste capítulo está
orientada pelas perguntas levantadas a partir da cooperação Mentoring on Upgrading
Informal Settlements. Essas questões, já mencionadas no capítulo 1, são: Qual o
histórico de Durban em termos de intervenção em “assentamentos informais”? Quais
os benefícios em se envolver nessa parceria para essa cidade? Em que momento as
políticas de urbanização de favelas de São Paulo começaram a ser
internacionalizadas? Como se chegou ao desenho de um modelo com mobilidade?
Quais os atores políticos envolvidos e seus interesses?

Procurou-se privilegiar na análise do desenvolvimento dessas políticas, e de


suas mudanças em termos de marcos institucionais e discursos, a literatura produzida
em cada um dos países, além de entrevistas com atores locais, buscando, assim, a
construção do diálogo entre diferentes culturas teóricas (MCFARLANE, 2010). Após
145

a recuperação analítica da trajetória do in-situ upgrading em Durban, explora-se a


trajetória da urbanização de favelas em São Paulo. Em seguida, volta-se à análise
relacional entre ambas e vis-à-vis a construção de um paradigma de política global
para as cidades. Na última seção do capítulo, é retomada a reflexão sobre os
significados possíveis da conexão estabelecida entre essas cidades por meio da
parceria Mentoring on Upgrading Informal Settlements.

5.1 A trajetória do in-situ upgrading em Durban

Antes de passar propriamente ao exame do contexto e da emergência de ações


de in-situ upgrading em Durban, considera-se necessário trazer mais algumas
particularidades geográficas, sociais e políticas dessa cidade. Como já mencionado,
Durban é ocupada predominantemente pela etnia Zulu, a qual, nos tempos de
apatheid, foi obrigada a estar confinada na homeland de KwaZulu. Diferentemente de
outras homelands, estabelecidas em outras províncias a milhas de distância das áreas
urbanas, a homeland de KwaZulu tinha grande proximidade com a fronteira urbana,
como ilustra a figura a seguir.

Essa proximidade da homeland de KwaZulu com a fronteira urbana fazia com


que o “controle de influxo” imposto à população africana em direção às cidades,
durante o apartheid, fosse ali particularmente difícil. Além disso, a localização das
townships de KwaMashu e Umlazi no interior da homeland de KwaZulu, fazia com que
o crescimento da população em squatter settlements nessas áreas estivesse fora do
controle do governo do apartheid.

Nessa configuração espacial, uma seca devastadora, no final dos anos 1970,
contribuiu para que um grande número de pessoas fosse buscar condições de
sobrevivência em áreas urbanas (HINDON, BYERLEY E MORRIS, 1993). Estimativas
apotam que se em 1971 havia cerca de 300 mil pessoas habitando barracos
ilegalmente espalhados pela área metropolitana de Durban-Pinetown, em 1981, essa
população já ultrapassava um milhão (HARRISON, 1992). Ao fim dos anos 1980,
cerca de metade da população negra africana de toda a província de Natal vivia em
moradias precárias (Smit, 1997 apud MARX e CHARLTON, 2003).
146

Figura 22. Províncias e Homelands ao final do apartheid e, no detalhe, a


divisão atual das províncias

Fonte: Htonl, CC BY-SA 3.0 (https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=25392438)

Já a área urbana de Durban, historicamente e durante o apartheid, era formada,


de modo geral, por subúrbios brancos que circundavam o centro da cidade até o
primeiro conjunto de colinas. Do outro lado da encosta, estavam os primeiros bairros
indianos. A densidade populacional indiana era particularmente alta em Phoenix, ao
norte, e Chatsworth, ao sul, áreas que juntamente com o centro da cidade,
compunham o núcleo urbano. A área residencial branca continuava ao longo das
rodovias ao norte, sul e oeste. Os bairros suburbanos incluíam Umhlanga Rocks, ao
norte, ainda hoje uma das áreas mais ricas da cidade.

A presença de um grande número de descendentes indianos nessa região


remete, em grande parte, à contratação de trabalhadores indianos, a partir de meados
do século XIX, para suprir a necessidade de mão de obra nas fazendas açucareiras
que se desenvolvem ali após a contenção do exército e subjugação do Reino Zulu. Já
que os Zulus, autossuficientes economicamente, recusavam-se a estarem sujeitos
aos contratos impostos pelos fazendeiros ingleses (MARX e CHARLTON, 2003)1.
147

Uma outra pequena parte foram trazidos pelo império britânico como combatentes
para lutarem nas Guerras contra os Bôeres (MAKHATINI, 1994). Além disso, indianos
chegaram à África do Sul como viajantes independentes com passaporte de súdito
britânico. Vale lembrar que Durban era um importante centro comercial e porto para
escoamento, além da produção açucareira, da produção mineradora da região da
Witwatersrand.

Indianos e Africanos competiam, portanto, por empregos no mercado de


trabalho urbano, no entanto, os primeiros tinham uma vantagem comparativa sobre
os africanos, pois eram mais altamente urbanizados. Com a sua experiência, os
indianos dominavam os empregos semiqualificados e de supervisão que os brancos
rejeitavam. Como resultado das vantagens dos Indianos e de seu progresso material
em relação aos Africanos, as relações entre estes, especialmente na região de
Durban, foram historicamente caracterizadas por conflitos (MAHARAJ; KHAN e
DESAI, 2016), a exemplo do ocorrido em 1985, em Inanda, o qual, mencionado mais
adiante, motivará um dos primeiros casos de in-situ upgrading.

Para além das áreas indianas e depois da zona de amortecimento que incluía
algumas terras agrícolas e também alguns dos terrenos mais íngremes em Durban,
estavam as townships destinadas aos africanos: Umlazi ao sul, KwaMashu, Ntuzuma,
KwaDabeka, Clermont e outras ao norte. Essas ficavam a cerca de 25 quilômetros do
centro da cidade, com pouco acesso a outros meios de transporte além de uma única
estrada (MAHARAJ; KHAN e DESAI, 2016).

Os squatter settlements que surgiram após a abolição do “controle de influxo”,


em 1986, tendiam a ser menores e mais próximos do centro da cidade, geralmente
em áreas anteriormente destinadas aos indianos ou em terras marginais sob risco de
inundações ou deslizamentos de terra125 (HINDON, BYERLEY E MORRIS, 1993;
MARX e CHARLTON, 2003). De um modo geral, no entanto, pode-se dizer que a
maioria dos squatter settlements estavam localizados nas áreas periféricas.

125
Áreas como, por exemplo, Kennedy Road, próximo ao Umgeni River, e Cato Manor.
148

Figura 23 – Durban nos anos 1980

Fonte: Reprodução a partir de Hindon, Byerley e Morris, 1993, p. 16. Optou-se por manter uma
tradução literal da legenda e pela não tradução de termos como townships e squatter settlements.

A comparação entre a localização atual dos “assentamentos informais”


mapeados pela municipalidade e a segregação espacial dos grupos imposta durante
o apartheid, apontada na figura a seguir, confirma como ainda atualmente pode-se
observar uma substantiva sobreposição entre esses “assentamentos” e as áreas
destinadas aos africanos pelo apartheid.

As primeiras intervenções com o objetivo de melhorar as condições dos


squatter settlements surgiram em Durban no final da década de 1980, em meio à
enorme violência civil que abateu as cidades sul-africanas. A explosão da violência
urbana nessa década foi o resultado de um conjunto de fatores: do desmoronamento
do apartheid territorial, da rápida urbanização não planejada, da falência da
administração municipal e de tentativas frustradas de introduzir a liberalização
econômica no âmbito do apartheid residencial (HINDON, BYERLEY E MORRIS,
1993).
149

Figura 24. “Assentamentos informais” na atualidade e segregação espacial e


racial no apartheid

Em termos da administração local, desde a constituição da União Sul-Africana


(1910), que determinou três níveis de governo (nacional, provincial e local) ficou
determinado que as locations, e após o advento do apartheid, as townships, deveriam
ser financeiramente autossuficientes, isto é, mantidas com receita própria, em conta
especial sob controle das “autoridades locais brancas” (CAMERON, 1995). Essa
receita, que vinha sobretudo da produção e venda de cerveja, em Durban, e do
pagamento de aluguéis e taxas de serviços (CAMERON, 1995), era, no entanto,
insuficiente para o provimento de condições adequadas. Com o objetivo de controlar
a situação nas townships, o regime do apartheid, em 1971, passou a administração
dessas áreas de “autoridades locais brancas” para Conselhos Administrativos (Bantu
150

Affairs Administration Boards) ligados diretamente ao governo central126 (CAMERON,


1995). Essa passagem da administração das townships para os Conselhos
Administrativos, no entanto, não resolveu o problema da falta de recursos e
precariedade existente nessas áreas.

Em meio à deterioração das condições sociais e econômicas nas townships, o


massacre ao levante de Soweto127, em 1976, suscitou a eclosão de numerosas
revoltas pelo país contra a opressão do apartheid, indicando de que uma nova força
de resistência política organizada emergia contra o regime. Para compreender o
desenrolar dos fatos que culminariam no fim do “controle de influxo”, reconhecimento
dos “assentamentos informais” e implementação do “informal settlements (in-situ)
upgrading” é preciso examinar as respostas tanto do governo quanto do setor privado
e da sociedade civil que surgem a partir de então.

5.1.1 O contexto

Em 1976, mesmo ano em que o regime do apartheid foi condenado um crime


contra a humanidade pela ONU, um grupo de industriais descrentes do regime
estabeleceu a Urban Foundation (UF). A Fundação, registrada como instituição sem
fins lucrativos, contava inicialmente com recursos provenientes apenas de
empresários locais (na maior parte anglo-americanos) em virtude dos bloqueios
políticos aos financiamentos internacionais. Ainda assim, em 1978, a Fundação já
contava com escritórios regionais em todas as principais cidades sul-africanas:
Joanesburgo, Cidade do Cabo, Durban e Porto Elizabeth (SMIT, 1992).

O ambiente político promovido pelo regime do apartheid era muito desfavorável

126
Os Conselhos Administrativos não tinham poderes de formulação de políticas nem autoridade para
fazer regulamentos, dos quais estava encarregado o ministro responsável pelo “governo local negro”.
De 1984 eles foram chamados de Conselhos de Desenvolvimento. No entanto, isso acabou sendo de
curta duração. Eles foram abolidos em 1986, em sintonia com outras políticas reformistas à época
(CAMERON, 1995).
127
Em 16 de junho de 1976 cerca de 15.000 estudantes realizavam uma marcha de protesto para o
Estádio de Orlando contra a introdução Afrikaans como idioma oficial das aulas nas escolas locais,
quando foram interceptados por policiais armados que abriram fogo. A revolta se espalharia para outras
cidades, onde durante os confrontos havia se tornado prática comum a polícia atirar em manifestantes
estudantis. No inquérito sobre os confrontos em Soweto, East Rand e Península do Cabo, a polícia
admitiu ter matado um total de 284 pessoas e ferido outras 2000. A imprensa, incluindo os jornais pró-
governo, no entanto apontava à época que o número real deveria ser três vezes maior (MAFEJE, 1978).
151

aos objetivos desenvolvimentistas do empresariado ligado à UF (SMIT, 1992). Desde


seu início, a UF assumiu uma postura crítica frente ao envolvimento do estado em
políticas de bem-estar, ao mesmo tempo em que defendia a necessidade de melhoria
das condições socioeconômicas da população negra em termos de habitação, saúde,
educação, bem-estar e etc.

A visão liberal da UF em muito convergia com a visão de “desenvolvimento


urbano” disseminada pelo Banco Mundial a partir da década de 1970: investimentos
autossustentáveis, fim de subsídios e capacitação técnica. Desse modo, a UF se
juntava à espécie de consenso internacional128 de que a autoconstrução da moradia
combinada com projetos de lotes com infraestrutura (sites and services) seria a melhor
abordagem para o problema habitacional dos países em desenvolvimento (COHEN,
2015, p. 414).

Num primeiro momento, com limitados recursos, a UF se concentrou em


promover mudanças na estrutura legislativa e institucional, visando o fim da restrição
à permanência da população negra nas cidades, e o envolvimento do setor privado
na oferta de moradias de baixa renda. Para cumprir com esses objetivos, a UF contava
com um conjunto de pesquisadores e profissionais, os quais não necessariamente
eram motivados pelo mesmo discurso ou projeto liberal da UF, como será examinado
adiante, mas eram unânimes em atacar o regime do apartheid (SMIT, 1992).

Por parte do governo, a explosão de numerosas revoltas após o massacre de


Soweto levou à aprovação de mudanças que pareciam indicar alguma flexibilização
no regime do apartheid, mas que tinham o intuito de prorrogar a sua existência. Em
1977, o governo central lançou por meio do Ministério da Defesa Nacional, sob o
comando de P.W. Botha, uma “Estratégia Total”, como o objetivo de afastar negros,
mestiços e indianos das doutrinas marxistas, conferindo-lhes certa participação
política no regime do apartheid, visando assim prolongar sua existência (CAMERON,
1995). Com P.W. Botha como primeiro-ministro (1978-1984), foi aprovado, em 1983,
o estabelecimento de Autoridades Locais Negras (Black Local Authorities) para a
administração das townships, no lugar dos Conselhos Administrativos ligados

128
Consenso do qual também parecia fazer parte, observando-se a natureza de seus acordos e
projetos à época, a Usaid, a Commonwealth Development Corporation do Reino Unido e a Agência de
Cooperação e Desenvolvimento Francesa.
152

diretamente ao governo central.

Como o próprio P.W. Botha declarou anos mais tarde, em 1984, quando já era
presidente, a “devolução de autoridade aos governos locais dos vários grupos
populacionais” foi um mecanismo constitucional para proteger “os interesses dos
grupos minoritários dentro de uma sociedade heterogênea” (CAMERON, 1995, p.
404). Logo, essa mudança, a exemplo dos Conselhos Administrativos, criados na
década anterior, não alterava o montante de recursos destinados à manutenção das
townships. Pelo contrário, a criação das Autoridades Locais Negras129 sinalizava o
afastamento definitivo do governo no provimento de habitações nas townships, que
passava a ser delegado ao setor privado (BEALL, CRANSHAW e PARNELL, 2002).

Por outro lado, as Autoridades Locais Negras permaneciam sujeitas ao controle


do governo central, que poderia a qualquer tempo determinar a criação de novos
estatutos, intervir nas finanças caso as considerasse incorretas, controlar as
condições de serviço dos funcionários e até mesmo demitir conselheiros (black local
concillors). Na prática, conselhos inteiros chegaram a ser demitidos por corrupção
(CAMERON, 1995).

Diante do forte controle do governo central, da ausência de subsídios


governamentais e da necessidade de aumentar a base de arrecadação para lidar com
o déficit administrativo nas townships, as Autoridades Locais Negras passaram a
aumentar substancialmente os aluguéis (das casas de propriedade do governo) e as
taxas de serviço (em alguns casos em até 100%) nessas áreas (CAMERON, 1995).
Em consequência, uma nova onda de protestos e violência se espalhou pelo país e
duraria até o esfacelamento do regime do apartheid.

Os protestos eram organizados por um grande número de grupos e


associações cívicas que se formava nas townships para reivindicar a justa distribuição
dos investimentos urbanos (BEALL, CRANKSHAW e PARNELL, 2002). Os ativistas
denunciavam o que ficou conhecido como a “economia política da geografia do

129
Para as áreas destinadas aos mestiços e indianos foram criados órgãos consultivos, Management
Committees e Local Affairs Committees (LACs). Neste caso, a intenção era de que tais órgãos
evoluíssem para autoridades locais independentes, ainda que sob forte controle do governo central,
mas além da falta de viabilidade econômica e pessoal treinado, havia também a forte oposição de
indianos e mestiços a essas estruturas do apartheid (CAMERON, 1995).
153

apartheid”, isto é, o fato dos postos de trabalho destinados à população que vivia nas
townships estarem concentrados nas áreas destinadas aos brancos significava que
os tributos pagos pelos empregadores sobre a produção seriam incorporados apenas
à receita orçamentária das “municipalidades brancas”. Mais ainda, restrições impostas
pelo governo do apartheid ao desenvolvimento do comércio nas townships fazia com
que também os salários dos trabalhadores negros fossem gastos nos
estabelecimentos comerciais das “áreas brancas”, cujos impostos pagos seriam
também canalizados para as “municipalidades brancas” (MAYEKISO, 1996, p.211).

Assim, sob o bordão "uma cidade, uma base fiscal" (one city, one tax base!),
associações organizadas para a luta cívica contra o apartheid nas townships
reivindicavam a distribuição equitativa de fundos no interior de um espaço urbano,
funcionalmente integrado, e a criação de uma autoridade metropolitana (MAYEKISO,
1996; BOND, 2012). Os protestos e boicotes que se seguiram evidenciaram a
insustentabilidade do regime do apartheid e foram marcados por ataques físicos aos
conselheiros locais, vistos como legitimadores do regime (MAYEKISO, 1996).

Nos arredores de Durban, a violência da luta por melhores condições de


educação, transporte, trabalho e moradia, estava concentrada, de início, nas
townships mais centrais, e opunha moradores à autoridade local, à polícia e ao
exército. Nas townships de Chesterville e Lamontville, os moradores haviam formado
o Comitê de Ação Conjunta pelos Aluguéis (Joint Rent Action Committee - Jorac),
contra os aumentos abusivos. O assassinato de um dos membros fundadores da
Jorac, em 1983, levou então os jovens às ruas, transformado Chesterville e
Lamontville em verdadeiras “zonas de guerra”: casas de conselheiros foram atacadas;
prédios administrativos, carros, ônibus e veículos da polícia, apedrejados e
queimados; batalhas esporádicas de rua, travadas entre os jovens e a polícia
(HINDON, BYERLEY e MORRIS, 1993, p. 18). A ameaça do governo, ignorando o
aumento da pressão, de incorporar essas e outras townships (Clermont, Inanda, etc.)
à homeland de KwaZulu, o que significaria acesso ainda mais restrito aos já escassos
investimentos do Estado, acirrou ainda mais o clima de confronto (HINDON,
BYERLEY e MORRIS, 1993; MAHARAJ, KHAN e DESAI, 2016).

A partir de meados da década de 1980, a violência alastra-se em direção às


townships mais afastadas, como KwaMashu e Umlazi, pertencentes à homeland de
154

KwaZulu e cercadas por “invasões” (squatter settlements). Nesse momento, a


violência do “povo contra o Estado” progressivamente toma a forma de confrontos
civis. A partir de 1980, em um contexto de crescimento populacional nas áreas
urbanas e consequente aumento da competição por terra, habitação e os já parcos
recursos e serviços disponíveis, somado ao enfraquecimento das autoridades locais,
muitas organizações comunitárias surgiram demandando o controle sobre suas áreas.
(HINDON, BYERLEY e MORRIS, 1993).

A relativa harmonia que existia entre os moradores das townships e dos


squatter settlements, o que incluía o compartilhamento de torneiras coletivas, escolas
e outras instalações, é então substituída pela luta política pela hegemonia no interior
dessas áreas. Logo, os conflitos que haviam se iniciado em torno de questões
habitacionais, acesso a serviços e contra o governo, passaram a girar em torno da
disputa pelo controle dos recursos existentes entre as áreas ocupadas pelos negros
africanos. Esses conflitos opunham os apoiadores do Inkatha, que controlavam os
squatter settlements à Frente Democrática Unida (United Democratic Front - UDF),
que tinha o apoio da juventude nas townships.

A UDF foi criada, em 1983, a partir de uma ampla coalizão de diferentes


associações cívicas, centrais sindicais e outros grupos (McCarthy, 1992 apud
HUCHZERMEYER, 2004). Sob forte influência do Congresso Nacional Africano
(CNA), banido desde 1960130, a UDF tinha o objetivo de articular as demandas
comuns para o desmantelamento do regime do apartheid (BOND, 2012). Por meio da
disseminação do bordão “Tornar a África do Sul sem governo!”, seus representantes,
inspirados em movimentos de organização comunitária norte-americanos131,
buscavam criar uma situação de “ingovernabilidade”, a qual logo se somariam
propostas de construção de “órgãos de poder popular” (MAYEKISO, 1996; BOND,
2012).

130
O CNA, fundado em 1912 por uma elite de africanos negros bem-educados que reivindicavam
direitos iguais para os setores civilizados da sociedade, havia passado a adotar, por pressão da Liga
da Juventude, fundada em 1940 e mais radical, as táticas de resistência pacífica e de protesto em
massa do Partido Comunista (HUCHZERMEYER, 2004). Até que em 1960, após o massacre de
Shaperville, foi posto na ilegalidade, junto com o Congresso Pan-Africanista e o Partido Comunista.
131
Movimentos que tinham emergido nos guetos norte-americanos, nos anos 1950, cujos princípios de
organização comunitária e estratégias de reinvindicação foram reunidos por Saul Alinsky e publicado,
em 1971, com o título de “Regras para os Radicais” (MAYEKISO, 1996).
155

Nos squatter settlements, os warlords, espécie de grileiros (HUCHZERMEYER,


2004), que alegavam ter o direito de propriedade daquelas áreas e cobravam aluguéis
mensais132 dos moradores, eram sustentados pelo Inkhata. O Inkatha National
Cultural Liberation Movement foi criado em 1975, e transformado em Inkatha Freedom
Party (IFP) em 1990, na homeland KwaZulu, por Manossuthu Buthelezi. A criação de
uma única autoridade territorial Zulu, com autonomia de governo, pelos diferentes atos
do regime do apartheid, entre 1951 e 1970, mencionados no capítulo 3, havia
proporcionado o ressurgimento de um tribalismo associado a um espaço geográfico
específico carregado do significado de "pátria" zulu (HARRIES, 1993). Em meio a esse
contexto, Buthelezi, que havia sido membro do CNA, aproveitou-se da identidade
gerada em torno do movimento Inkatha kaZulu, fundado em 1924 pelo seu tio,
Solomon kaDinuzulu, chefe supremo Zulu, para criar o Inkatha National Cultural
Liberation Movement (HARRIES, 1993).

Assim, nos squatter settlements os warlords apoiados pelo Inkatha incitavam


os moradores a lutar pelo acesso aos recursos das townships vizinhas. Nas
townships, a população, sobretudo os jovens, organizava-se para “defender” seu
território e “contra-atacar” (HINDON, BYERLEY E MORRIS, 1993). Nesse conflituoso
contexto, o assassinato de um membro executivo da UDF, Victoria Mxenge, em sua
casa, na township de Umlazi em Durban, em 1985, foi crucial para o acirramento das
tensões entre Inkatha e UDF. Após o crime, o conflito civil rapidamente se espalhou
para outras townships em torno de Durban, Pietermaritzburg e áreas adjacentes
(TRUTH & RECONCILIATION COMMISSION, 1998). Fundado em 1985, o Congresso
dos Sindicatos Sul-Africanos (Cosatu) declarou abertamente sua hostilidade ao
Inkatha (HINDON, BYERLEY E MORRIS, 1993).

Entre 1986 e 1992, mais de 3 mil pessoas morreram em meio aos conflitos
violentos que se espalharam por Durban (MARX e CHALTON, 2003). Durante os
confrontos entre os apoiadores da UDF e do Inkatha, as forças de segurança
frequentemente se recusavam a intervir, embora haja registros indicando seu apoio
ativo ao Inkatha (TRUTH & RECONCILIATION COMMISSION, 1998, p. 231)133. Os

132
Entrevistado 8.
133
A partir de 1987, com o estabelecimento da força policial de KwaZulu, a polícia sul-africana
praticamente se retirou do envolvimento imediato nos conflitos em KwaZulu, embora continuasse a
apoiar o Inkatha de formas ocultas, incluindo financiamento clandestino, treinamento de esquadrões de
156

conflitos apenas diminuíram com as restrições impostas pelo governo à atuação da


UDF e do Cosatu, a retirada das principais lideranças da UDF (por detenção, morte
ou exílio) das townships, e o estabelecimento de diálogos entre governo e líderes
presos do CNA, a partir de 1988. A negociação com o CNA fazia parte da pressão
exercida pelos empresários brancos, prejudicados por sanções financeiras e
restrições econômicas, sob o regime do apartheid.

5.1.2 As iniciativas pioneiras

Outra frente de pressão capitaneada pela Urban Foundation sobre o governo


do apartheid era o reconhecimento da urbanização da população africana e a melhoria
das suas condições de vida. Um dos primeiros projetos baseados na provisão de lotes
com infraestrutura implementados pela Urban Foundation, com o apoio
governamental, foi iniciado em 1981, em Inanda, ao norte de Durban, próxima da
township de KwaMashu. Os lotes com infraestrutura serviram para reassentamento
da população de squatter settlements, que haviam começado a se formar nos anos
1970 e que então eram afetados por um surto de cólera. Inicialmente os moradores
montaram “tendas” nos lotes equipados com “pit toilet” (fossas) que com o tempo
evoluíram para casas de tijolos e depois de blocos, terminando como um subúrbio
residencial, Inanda Newtown C134.

Empreendimentos baseados em lotes com infraestrutura continuaram a ser


apoiados pelo governo, mesmo com o “controle do influxo” em vigor, até que em 1985
foi anunciado o reconhecimento de propriedade aos negros, em áreas urbanas, e o
fim do congelamento dos investimentos habitacionais fora das homelands. Essas
medidas forneceram o aparato legal e institucional para ações de “upgrading”
(HARRISON, 1992).

Com o fim oficial do “controle de influxo”, em 1986, a principal proposta do


governo para promover a “urbanização ordenada” para a população africana estava
inicialmente centrada no estabelecimento de lotes com infraestrutura nas periferias,

ataque e operações secretas diretas contra a UDF e seus apoiadores (HINDON, BYERLEY E MORRIS,
1993).
134
Segundo descrição feita pelo entrevistado 20.
157

para os quais deveria ir o excedente populacional das townships superlotadas e a


população dos squatter settlements. Essa proposta, contudo, no violento contexto de
disputa por áreas entre diferentes grupos políticos, encontrou forte resistência por
parte da população dos squatter settlements, pouco disposta a mudar de suas áreas
(HARRISON, 1992; HINDON, BYERLEY e MORRIS, 1993). Além disso, algumas das
áreas reservadas pelo governo para os empreendimentos de baixo custo eram de
grande interesse imobiliário. Na província de Natal, em Kingsburgh e Umhlanga, a
sudoeste e norte de Durban, por exemplo, as autoridades locais em conjunto com
residentes brancos conservadores se juntaram a líderes comunitários negros,
obviamente por razões muito distintas, para resistir aos planos do governo (HINDON,
BYERLEY e MORRIS, 1993).

Em 1988, uma emenda ao Prevention of Illegal Squatting Act, promulgado em


1951, mencionado no capítulo 3, reforçou o controle sobre as ocupações e, ao mesmo
tempo, forneceu mecanismos para legalizar as áreas ilegalmente ocupadas e
estabelecer lotes com infraestrutura. Durante este período, certos squatter
settlements foram removidos, enquanto outros receberam garantia de posse e
melhorias (HARRISON, 1992). Em resumo, a ação do governo com relação aos
squatter settlements nos últimos anos do regime do apartheid era imprecisa: ao
mesmo tempo “coerciva”, pois continuava ameaçando e demolindo barracos,
“permissiva”, já que permitia que intervenções para a melhoria dessas áreas fossem
realizadas sem a participação do governo, e “conivente”, uma vez que também
promovia lotes com infraestrutura para reassentamento da população removidas
dessas áreas (HARRISON, 1992, p. 18).

Um número significativo de lotes com infraestrutura, assim como ações


pioneiras de in-situ upgrading, foi implantado tanto pela própria Urban Foundation
quanto por organizações voluntárias de profissionais e acadêmicos que começaram
a surgir no violento contexto dos anos 1980. Essas “organizações de serviços”, como
ficaram conhecidas, serão melhor analisadas adiante.

A UF, contudo, desde o início teria mostrado certa ambiguidade entre


concentrar sua atuação em um limitado número de projetos-pilotos e contribuir para a
provisão habitacional pelo mercado (SMIT, 1992). Ao longo da década de 1980, além
de atuar em um limitado número de projetos, a fundação estabeleceu numerosas
158

companhias de habitação registradas como organizações sem fins lucrativos. As


atividades dessas companhias, embora voltadas principalmente para os africanos de
renda mais alta, tinham a intenção de promover uma produção habitacional em grande
escala (SMIT, 1992). O cenário econômico, contudo, marcado por recessão e altas
taxas de juros, não permitiu que essas companhias atingissem a escala almejada,
embora tivessem mantido boa capacidade produtiva no período (SMIT, 1992). Apenas
com o fim do apartheid, como será aprofundado, o setor privado passou a contar com
cenário econômico e arcabouço institucional propícios para a produção de habitação
em escala.

A introdução da habitação produzida pelo setor privado, ainda que não na


escala prevista, gerou entre a população africana enormes desigualdades
residenciais. As famílias pobres que não podiam arcar com os custos de uma unidade
habitacional pronta eram atendidas por empreendimentos do tipo site-and-services
promovidos pelo Estado. Já para as famílias mais abastadas, graças à variedade de
reformas promovidas pelo governo, as companhias de habitação mantinham um
mercado de casas próprias nas townships africanas (BEALL, CRANSHAW e
PARNELL, 2002). Assim, não obstante o esforço do apartheid em suprimir divisões
de classe entre a população negra africana135, a reforma urbana perseguida pelo
governo nos anos 1980 começava a promover divisões (HINDON, BYERLEY E
MORRIS, 1993).

O retorno à legalidade de organizações sociais e ativistas antiapartheid e a


liberdade da atividade política a partir do início de 1990 trouxeram novas mudanças
nos rumos da urbanização e dos “assentamentos informais”. Uma das mudanças mais
significativas foi a promulgação, em 1991, do White Paper on Land Reform, o qual
protegia os direitos sobre a terra nos “assentamentos informais estabelecidos”,
enquanto reconhecia pela primeira vez que o governo tinha responsabilidades para
com essa população, cuja condição resultava de medidas discriminatórias e de uma
política habitacional inadequada no passado (HARRISON, 1992; VAN HOREN, 1996).
Essa medida em conjunto com a abolição das leis de base racial sobre a terra, a partir
de 1991, possibilitou o início de um processo legal de redução da segregação

135
No passado, a principal linha de demarcação social dentro das áreas urbanas negras era entre os
migrantes temporários nos hostels e os residentes permanentes nas casas provisionadas pelo governo
nas townships.
159

residencial. O Less Formal Township Establishment Act, promulgado no mesmo ano,


deu a base legal para a provisão de infraestrutura nos “assentamentos informais”.

Nesse contexto, o estabelecimento do Fundo Independente para o


Desenvolvimento (Independent Development Trust - IDT), a partir da doação feita pelo
governo sul-africano em 1990 de 2 bilhões de rands (equivalente a cerca de US$
772,2 milhões136), possibilitou a ampliação da escala dos projetos de lotes com
infraestrutura e in-situ upgrading. Esses projetos eram executados tanto pela UF
quanto por “organizações prestadoras de serviços” (do inglês, services organisations),
entidades formadas por acadêmicos e profissionais urbanos, nos anos 1980, em
apoio, inicialmente de forma voluntária, à luta das organizações cívicas antiapartheid.

A origem dessas “organizações prestadoras de serviços”, a partir dos anos


1980, está ligada a agregação de um grupo de planejadores urbanos, brancos e de
classe média, identificados com a luta antiapartheid, às organizações cívicas que
então se fortaleciam. Embora alguns planejadores mais liberais também estivessem
envolvidos, uma grande parte deles viam a si mesmos como “progressistas”,
preocupados em refletir sobre como o planejamento poderia contribuir para a
mudança social (HARRISON, TODES e WATSON, 2007). Logo, além dos
planejadores urbanos, outros profissionais e acadêmicos também passaram a
participar de atividades em conjunto com associações de moradores e outras
organizações cívicas, ignorando fronteiras disciplinares.

Um dos grupos pioneiros foi formado por professores ligados ao curso de


planejamento da Universidade de Natal, Dan Smit e Michael Sutcliffe. Ambos haviam
recentemente retornado dos Estados Unidos137 influenciados pela teoria urbana
marxista da época, sobretudo pelos estudos de Manuel Castells, e filiaram-se à UDF.
Junto com outros colegas da então Universidade de Natal – do planejamento (Steve
Horton e Mike Kahn), da arquitetura (Errol Haarhoff e Rodney Harber) e de métodos
quantitativos (Bruce Boaden) – fundaram o Built Environment Supporting Group
(BESG) em 1983. Para esse grupo, a defesa da população do terrorismo do apartheid

136
Em 1990 US$ 1,00 correspondia a 2,59 rands (Cf.
https://businesstech.co.za/news/finance/116372/rand-vs-the-dollar-1978-2016/)
137
Dan Smit completou o seu mestrado em planejamento urbano e regional pela Universidade de
Oregon em 1979. Michael Sutcliffe completou o seu doutorado em geografia pela Universidade de Ohio
em 1982.
160

deveria envolver um processo de desenvolvimento de base comunitária138. Assim, o


BESG, que inicialmente ajudava as comunidades a resistirem às remoções
forçadas139, logo passou a elaborar projetos de lotes com infraestrutura e in-situ
upgrading, dos quais são exemplares os realizados em Inanda, então o maior squatter
settlement de Durban, onde no início dos anos 1990 viviam cerca de 750 mil pessoas.

Em Inanda, logo após o já mencionado assassinato de Victoria Mxenge, em


1985, apoiadores do Inkatha espalharam a acusação de que a UDF era manipulada
pelos indianos. Isso incitou o ataque dos negros africanos que residiam nesse squatter
settlement às propriedades dos indianos, estabelecidas ali ainda no início do século
XX (dentre as quais estavam aquelas pertencentes à família de Mahatma Gandhi).
Em menos de uma semana cerca de quarenta propriedades indianas foram destruídas
e aproximadamente 2 mil indianos mudaram-se para Phoenix, uma township indiana
próxima (MAHARAJ, KHAN e DESAI, 2016).

Em meados da década de 1980, um pouco antes desses conflitos civis que


deixaram “algo em torno de 250 corpos”140, um dos integrantes do BESG havia
começado a se envolver com uma das áreas em Inanda, conhecida como Bhambayi.
Após os conflitos, cerca de 40 pessoas, sendo metade apoiadores do IFP e metade
da UDF, foram então reunidas pelo BESG fora do “assentamento” para buscar um
“acordo de paz”, necessário para a instalação de infraestrutura com mão-de-obra
própria. As obras de canalização e drenagem foram iniciadas sob a vigilância da
polícia. Após três semanas de trabalho intensivo, apoiadores do IFP e da UDF,
passaram a se identificar como os “trabalhadores de Bhambayi” e anunciaram greve.
A partir de então um centro comunitário foi construído na divisa da área ocupada por
cada um dos grupos. Com o apoio do BESG a área foi adquirida (dos descendentes

138
Entrevistado 11.
139
Dentre as primeiras áreas de atuação do BESG estão St. Wendolin e Clairwood. A respeito dessa
última, um dos ex-integrantes do BESG observou: “Mostramos que Clairwood poderia ser um lugar de
residência e trabalho (...) ao invés de um ponto de transferência de lixo (...) e que St. Wendolin não
precisava ser removida (...) Em tudo isso, fomos liderados pelas comunidades, como em St. Wendolin,
que tinha à frente um excelente ativista comunitário, Booysie Dlamini, que combinava seu sindicalismo
de chão de fábrica com o ativismo comunitário” (Trecho traduzido de “The Early Voices: An oral
historical biography of the Built Environment Support Group”. Draft Version, 20 pgs, 2014 – documento
cedido por um dos entrevistados).
140
Entrevistado 20. Essa área passou a ser desde então alvo de disputas entre os apoiadores do IFP,
de um lado, e da UDF (CNA após 1990), de outro. No contexto preparatório para as eleições que
sucederam o fim do apartheid, em 1992, essa área seria mais uma vez palco de centenas de
assassinatos, resultantes de disputas pelo eleitorado da região.
161

de Gandhi) e um projeto para provisão de lotes com infraestrutura foi viabilizado por
meio dos mecanismos aprovados no âmbito do Prevention of Illegal Squatting Act,
resultando em cerca de 800 unidades habitacionais141.

O trabalho realizado em Inanda trouxe para o BESG a confirmação da


importância do engajamento em projetos habitacionais e de infraestrutura das
comunidades, sobretudo daquelas marcadas pela violência, ao mesmo tempo em que
sedimentou a orientação de seu trabalho em direção ao empoderamento dessas
comunidades142. O uso da mediação e do trabalho comunitário associado a melhorias
urbanas e habitacionais contra a violência também foi utilizado por outras
“organizações prestadoras de serviços” que surgiram em outras partes da África do
Sul.

Na Cidade do Cabo, o Development Action Group, criado em 1986, tinha função


inicial de oferta de suporte aos moradores de um “assentamento” ameaçado de
remoção pelo governo. Em Joanesburgo, em 1985 foi estabelecido o Planact sob
influência do modelo do BESG e resultado do suporte pontual que alguns dos seus
fundadores, Mark Swilling e Alan Mabin, já vinham desenvolvendo junto às
organizações civis antiapartheid desde o início dos anos 1980. A formação inicial do
Planact reuniu ainda outros indivíduos-chave para a definição da política habitacional
na África do Sul, como Willian (Billy) Cobbett, quem em 1992 representou a
organização no Fórum Nacional de Habitação, e após as eleições de 1994 se tornou
diretor-geral do Departamento Nacional de Habitação. Em 1998, Cobbett deixou o
cargo para chefiar o escritório da ONU-Habitat em Nairóbi, tornando-se, a partir de
2001, parte da Aliança de Cidades, onde exerce, desde 2006, o cargo de diretor-geral.

O trabalho dessas e outras “organizações prestadoras de serviços” que


surgiam143 estava, sobretudo ao longo dos anos 1980, centrado no empoderamento
das comunidades (Swilling, 1995 apud HARRISON, TODES e WATSON, 2007), com
uma forte ênfase no desenvolvimento de formas participativas de planejamento e
tomada de decisão com o apoio do conhecimento técnico dos profissionais envolvidos.

141
Entrevistado 20.
142
Entrevistado 20.
143
Afesis-Corplan em East London, Urban Services Group em Porto Elizabeth.
162

No caso do BESG, quando o trabalho passa da defesa das comunidades contra


a remoção para intervenções físicas nas comunidades, via provisão de lotes com
infraestrutura e in-situ-upgrading, é a literatura produzida pelo Banco Mundial,
sobretudo em torno dos projetos-piloto que já vinham sendo realizados na Zâmbia
(Lusaka) e no Quênia, que vai servir de suporte (HUCHZERMEYER, 2004). Outros
exemplos de projetos habitacionais com o uso da ajuda mútua vinham sobretudo de
experiências da Costa Rica144, difundidos por Alfredo Stein145, consultor internacional
que no final dos anos 1980 foi responsável por realizar uma avaliação externa do
BESG. Além disso, alguns integrantes do BESG, por meio de uma viagem de estudos
proporcionada pela Fundação Ford no início dos anos 1990, entrariam em contato
com as experiências então desenvolvidas pela primeira gestão do Partido dos
Trabalhadores (PT) em São Paulo, assim como com a experiência chilena de provisão
habitacional em massa pelo mercado146.

Com a mudança do cenário político no final dos anos 1980 e a crescente


demanda de trabalho nos “assentamentos informais”, muitas das “organizações de
serviços” deixariam de ser voluntárias para se tornarem organizações não
governamentais (ONGs) com quadro fixo de pessoal. O principal projeto de in-situ
upgrading realizado em Durban no período de transição do apartheid, contudo, ficou
a cargo da Urban Foundation.

O projeto realizado em Bester’s Camp, iniciado em 1989 pela divisão de


“assentamentos informais” da UF, foi a primeira iniciativa de in-situ upgrading em larga
escala desenvolvida na África do Sul. Realizado em um contexto considerado não
muito favorável, dada a ausência de uma política de desenvolvimento urbano e de
normas e padrões adequados à realidade dos “assentamentos informais” (VAN
HOREN, 2000), contou com investimento do IDT e não teve o envolvimento do

144
Informação compartilhada pelos entrevistados 8 e 16.
145
Alfredo Stein trabalhou como consultor da Agência Sueca de Cooperação para o Desenvolvimento
Internacional (Sida) quando esta instituição financiou a criação do Programa de Desenvolvimento Local
(Prodel) na Nicarágua e a Fundación Promota de Vivienda (Fuprovi) na Costa Rica. A Fuprovi foi criada
em 1987 e desde 1988 tem conduzido um programa de construção de unidades habitacionais com
base na ajuda mútua, na qual a associação/entidade formada pelos moradores fica responsável pelo
processo construtivo, sob a assessoria da Fuprovi que oferece assistência social, técnica e
administrativa. O uso de fundos rotativos (originalmente ajuda de doadores da Suécia) permite que o
dinheiro seja reinvestido em novos projetos. Além de consultor da Sida, Stein também atuou no Banco
Mundial, BID, Pnud, ONU-Habitat, GIZ e KfW.
146
Entrevistado 16.
163

governo central.

Para a liberação do financiamento foi exigida a garantia de que uma entidade


representativa dos residentes fosse constituída e ficasse responsável pelas tomadas
de decisões, assim como pela manutenção do projeto no longo prazo. A organização
da população, que chegava a cerca de 50 mil pessoas à época (VAN HOREN, 1996),
era, no entanto, incipiente, acostumada com anos de controle autoritário exercido
pelos warlords.

No final dos anos 1980, contudo, a intensificação dos diálogos do governo com
o CNA, que logo retornaria à legalidade, tornava a atuação dos warlords, em sua
maioria vinculados ao Inkhata, cada vez mais difícil. Além disso, o crescimento
populacional cada vez mais acelerado nos squatter settlements deixava nítida a sua
incapacidade de cumprir com a garantia mínima de condições de sobrevivência,
função pela qual extorquiam a população local. Nesse contexto, muitos warlords foram
assassinados, fugiram ou mesmo passaram para o lado da UDF/CNA.

A implementação começou em 1990 e dois anos depois a Associação


Comunitária para o Desenvolvimento de Inanda (Inanda Community Development
Trust) foi formalmente constituída, passando a controlar o processo de urbanização.
Os moradores engajaram-se no processo de planejamento e de tomada de decisão e
serviram de mão de obra para quase tudo, à exceção das obras viárias e de
terraplanagem de maior porte.

Em 1995, a maior parte das obras físicas tinha sido realizada e a posse
assegurada para um total de 6.832 lotes. As intervenções físicas incluíram: abertura
e pavimentação de vias carroçáveis e de pedestres, rede de drenagem, pontos de
abastecimento de água (41 no total, o que significava a média de um ponto para casa
170 lotes) e de despejo de lixo (um para cada 205 domicílios). Cada lote foi provido
com um banheiro por fossa ventilada e cada domicílio passou a ser atendido pela rede
elétrica. A quantidade de remoções para a instalação das obras foi mínima, o que
diferenciou Bester’s Camp das intervenções até então realizadas. Desde a fase inicial
da intervenção foram instalados centros comunitários, serviços de saúde e educação.

Essa iniciativa foi precursora de um conjunto de projetos de in-situ upgrading


164

que seriam realizados na área metropolitana de Durban, contribuindo para a


formulação, após o fim do apartheid, de uma política local que incorporava
integralmente a realização de in-situ upgradings. Não obstante o lugar marginal do in-
situ upgrading na política nacional sul-africana a partir de 1994, como será explorado
a seguir.

5.1.3 O abandono

Não obstante as condições para a transição do regime do apartheid para uma


democracia não racial terem começado a surgir a partir da revolta das comunidades
e da convicção cada vez mais generalizada de que apenas a transferência do poder
político para representantes da maioria da população africana iria possibilitar o
atendimento de suas demandas (Swilling, 1992 apud BOND, 2012), a transição, de
fato, foi comandada por uma elite (BOND, 2012). Essa transição “por cima” imprimiu
várias limitações ao processo. Do ponto de vista que interessa a esta pesquisa, o
resultado foi a adoção de uma política habitacional via mercado, de pouca qualidade
tanto construtiva quanto urbana (HUCHZERMEYER, 2004). A provisão em massa da
casa própria, padronizada, produzida pelo mercado e subsidiada pelo governo parecia
ser a solução ideal para contrapor a instabilidade social existente, algo tão necessário
a um novo governo democrático.

Nos últimos anos do regime do apartheid, os investimentos realizados nos


squatter settlements, a provisão de lotes com infraestrutura e os novos
empreendimentos privados haviam gerado uma espécie de apartheid residencial entre
os negros africanos (HINDON, BYERLEY E MORRIS, 1993, p. 15), que refletia a
divisão de classes entre esses: um grupo emergente de renda média com recursos
para adquirir a casa própria nos conjuntos habitacionais recém-construídos, a classe
trabalhadora nas antigas townships, e, finalmente, os pobres – divididos entre os que
se beneficiavam de ações de melhorias e os que continuavam a se aglomerar
precariamente em squatter settlements147. É nesse contexto que, no início dos anos

147
Deve-se salientar, contudo, que nem todos os moradores dos squatter setlements eram igualmente
empobrecidos. A limitada produção habitacional pelo governo desde o final da década de 1960 havia
levado uma parte da população negra empregada (e com rendimento considerável) para essas áreas,
a fim de escapar da superlotação das townships (HINDON, BYERLEY E MORRIS, 1993).
165

1990, diversas campanhas e fóruns foram realizados nacionalmente para definir os


rumos da transição democrática.

Os papéis desempenhados pela Urban Foundation e pelas ONGs, envolvidas


em projetos comunitários, foram decisivos para a defesa de políticas de atendimento
às necessidades de moradia dos pobres urbanos. Essas instituições, em conjunto com
o IDT, o Banco de Desenvolvimento Sul-Africano, organizações cívicas e sindicatos,
constituíram, em 1992, o Fórum Nacional de Habitação. No âmbito dos debates nesse
fórum reconhecia-se que o investimento em in-situ upgrading, feito nas comunidades
mais violentas, tinha um poderoso apelo simbólico, mas que era suficiente para uma
devida reconstrução capaz de conferir legitimidade ao novo governo democrático.
Argumentava-se que as iniciativas de in-situ upgrading tendiam a reforçar a estrutura
racial da cidade ao invés de promover a integração espacial e econômica (HINDON,
BYERLEY E MORRIS, 1993).

Nesse sentido, a experiência da UF em trazer o setor privado para o


desenvolvimento era vista, mesmo por aqueles inicialmente envolvidos com as
organizações cívicas, como valiosa para o movimento democrático na África do Sul
pós-apartheid (SMIT, 1992).

Se há uma área de conhecimento substantivo e expertise que a UF pode


afirmar ter enfrentado, foi o envolvimento do setor privado em iniciativas de
habitação de baixa renda. Enquanto alguns da esquerda podem ser céticos
sobre o valor de tal conhecimento, eu diria que em muitas esferas de
desenvolvimento (incluindo a habitação) um governo democrático não será
capaz de confiar inteiramente no fisco (a fim de financiar tal
desenvolvimento). Níveis elevados de gastos do governo, por um lado, e
inflação alta, por outro, impõem grandes restrições ao que é possível. Isso
não quer dizer que as políticas da aliança democrática não serão mais
redistributivas, mais assistencialistas ou mais estatistas do que aquelas
propostas pela UF. Argumenta-se simplesmente que a mobilização do capital
do setor privado e sua capacidade de entrega serão, contudo, inevitáveis e é
a UF que está à frente de como desenvolver abordagens (técnicas e políticas)
para alcançar isso. Um papel importante para a UF no futuro seria, então,
continuar a desenvolver instrumentos que assegurem o fluxo de capital do
setor privado em moradias de baixa renda e outras iniciativas (SMIT, 1992,
p. 38, tradução nossa)

No trecho citado acima, por exemplo, uma evidência das disputas naquele
período, um dos fundadores do BESG, que também havia trabalhado para a UF,
defende a importância de uma abordagem orientada para o mercado. Indica também,
a partir daquele momento, uma certa convergência entre o trabalho realizado pelas
ONGs e a Urban Foundation. Uma convergência que parecia não se limitar às
166

exigências requeridas pelo IDT148 (HUCHZERMEYER, 2004). Na perspectiva de


Mayekiso (1996, p. 258), ativista na township de Alexandra à época, o trabalho
promovido pelas ONGs passou a ir na direção da “desradicalização das bases”.

De qualquer modo, as disputas no âmbito do Fórum Nacional de Habitação em


torno da solução habitacional a ser privilegiada, um debate entre quantidade ou
qualidade (“the bredth versus depth debate”) foram acirradas149. Ao final, sobretudo
em razão da “necessidade de um pragmatismo operacional e exagerado senso de
urgência em demonstrar resultados” (CHARLTON e KIHATO, 2006), foi privilegiada a
recomendação de um sistema baseado no subsídio único de capital conferido pelo
governo e destinado a famílias com renda mensal inferior a 3,5 mil rands (equivalente
a US$ 1,3 mil) para aquisição da casa ou lote com infraestrutura produzido pelo setor
privado150. O subsídio dado pelo governo, a depender das condições de cada família,
poderia ser combinado com subsídios bancários de modo independente.

A medida em que a proposta do Fórum Nacional de Habitação foi influenciada


por experiências internacionais, sobretudo a chilena, amplamente disseminada pelo
Banco Mundial, é uma questão controversa. Para alguns a nova proposta habitacional
seguia exatamente a agenda do Banco Mundial para os anos 1990 (JONES e DATTA,
2000; BOND, 2000). De fato, ainda que durante o apartheid, o governo da África do
Sul estivesse privado da assistência e dos recursos externos, muitas foram as
aproximações entre o Banco Mundial e o CNA, como ilustra a figura a seguir. Além
disso, um dos entrevistados para a pesquisa151, afirmou que o Banco Mundial à época
facilitou a conexão entre profissionais sul-africanos, envolvidos nos projetos
executados pela Urban Foundation e ONGs, e profissionais chilenos.

148
O modelo de financiamento do IDT estava baseado no subsídio de capital para aquisição da
propriedade individual de um lote com infraestrutura nas periferias. Os critérios para recebimento do
subsídio eram: renda mensal abaixo de 1.000 rands (cerca de US$ 380), idade do responsável pelo
domicílio superior a 21 anos e a existência de dependentes familiares. Os beneficiários poderiam ser
subsidiados até o valor máximo de 7.500 rands (aproximadamente US$ 2,9 mil). A solicitação do
subsídio não era feita individualmente, mas em nome da comunidade a ser beneficiada, por autoridades
públicas, empreendedores privados, companhias habitacionais e entidades comunitárias. Um critério-
chave para a alocação do financiamento era a evidência de envolvimento das comunidades
beneficiadas (HUCHZERMEYER, 2004).
149
Entrevistado 15.
150
Esse era o cerne da proposta que, em 1992, havia resultado da Comissão Loor, estabelecida pelo
governo do apartheid para organizar os diferentes subsídios que existiam à época para os diferentes
grupos raciais (de Loor, 1992 apud GILBERT, 2002).
151
Entrevistado 8.
167

Figura 25. Presidente do Banco Mundial, Lewis Preston, recebe o líder do CNA,
Nelson Mandela, em Washington, em dezembro de 1991

Foto: Banco Mundial (https://www.worldbank.org/en/about/archives/history/exhibits/nelson-mandela-


south-africa-and-the-world-bank-group)

O CNA, temendo a fuga de capitais da África do Sul, já vinha firmando alianças


com o setor privado (GILBERT, 2002). Por outro lado, a ideia do subsídio de capital,
já estava enraizada na África do Sul, vide os projetos financiados pelo IDT e realizados
pela Urban Foundation152. Esse desenho era justamente o cerne de uma proposta que
havia resultado da Comissão Loor, estabelecida pelo governo do apartheid também
em 1992, com o objetivo de organizar os diferentes subsídios que existiam à época
para os diferentes grupos raciais (de Loor, 1992 apud GILBERT, 2002). Uma vez que
o Fórum Nacional de Habitação era contra a provisão habitacional para os mais
pobres baseada no pagamento de juros, modelo que já havia mostrado levar
instituições à bancarrota, como no caso brasileiro, explorado a seguir, uma solução
voltada para o privilégio da quantidade, em detrimento da qualidade, só poderia ser

152
Além disso, a habitação nos anos de apartheid, apesar de marcada pela segregação, tinha sido
amplamente subsidiada.
168

alcançada por meio de uma aliança com o setor privado (SMIT, 1992).

Outro entrevistado153, no âmbito desta pesquisa, destacou que Joe Slovo, um


dos nomes mais importantes do Partido Comunista à época e que seria o primeiro
ministro da Habitação após 1994, afirmava que não seria coerente com os esforços
de um novo governo democrático ter de admitir após cinco anos do novo govrno que
ainda haveria “assentamentos informais” na África do Sul. Assim, parece ser possível
afirmar que exiatia uma grande confluência de interesses e alianças entre CNA, Banco
Mundial e o setor privado sul-africano.

O programa de campanha do CNA “Reconstrução e Desenvolvimento” incluía,


assim, a meta de um milhão de unidades habitacionais154 a ser entregues em cinco
anos. A principal diferença entre o modelo de subsídio implementado pelo IDT e a
nova proposta do governo eleito em 1994 estava no montante do subsídio ofertado
aos setores mais pobres, o qual passou a incluir o custo de uma “casa incremental”
(ou embrião). A política adotada após as eleições parecia, assim, estar baseada numa
fórmula híbrida: de um lado, como no modelo chileno, afirmava a propriedade privada
individual e recorria aos subsídios de capital, estabelecidos segundo a renda do
beneficiário; de outro lado, previa que os subsídios fossem cobertos pelos cofres do
Estado sul-africano (HUCHZERMEYER, 2004).

A pressão para a entrega rápida de unidades padronizadas a baixo custo foram


progressivamente fragilizando as exigências iniciais para que acordos (social
compacts) do setor privado com entidades representativas de comunidades fossem
estabelecidos, garantindo sua voz no desenvolvimento de empreendimentos155. Com
a adoção da nova política, as atividades da UF se encerraram em 2005 e o papel das
ONGs foi reduzido. Muitas dessas organizações diminuíram consideravelmente de
tamanho ou simplesmente fecharam em decorrência da absorção de seus
profissionais pelo novo governo ou pelo setor privado (HARRISON, TODES e

153
Entrevistado 15.
154
Estimava-se que à época haveria a necessidade de pelo menos 1,3 milhão de novas unidades
habitacionais (ANC, 1994, p. 22)
155
Sob pressão de numerosas entidades comunitárias e ONGs foi aprovado em 1998 o People’s
Housing Process (PHP), o qual passou a financiar um importante número de projetos habitacionais
realizados de forma participativa por ONGs e entidades comunitárias, mas marginais em termos de
escala se comparados à entrega de habitações prontas e subsidiadas. Para mais detalhes sobre o PhP
e sua revisão aprovada em 2008, o Enhanced People’s Housing Process (ePHP), ver: Huchzermeyer
(2004); Charlton e Kihato (2006); Huchzermeyer (2011) e Görgens (2016).
169

WATSON, 2007). A eleição do CNA também acarretou a diminuição da resistência


feita por organizações cívicas, as quais desde 1992 eram representadas por uma
única entidade nacional, a South African National Civic Organisations (Sanco)
(HUCHZERMEYER, 2004, p.136).

As grandes expectativas depositadas no novo regime caíram definitivamente


por terra com a adoção de uma nova estratégia macroeconômica, logo a partir de
1996. Conhecida como Growth, Employment and Redistribution (Gear), esta
estratégia implicou em inúmeros cortes em investimentos sociais, inclusive na
habitação (MAHARAJ, KHAN e DESAI, 2016)156. Ao adotar um conjunto de ajustes
estruturais preconizados pela ortodoxia macroeconômica, o novo governo sul-africano
confirmava explicitamente sua adesão à agenda estabelecida pelo Consenso de
Washington, FMI e Banco Mundial (GILBERT, 2002). Paradoxalmente, o subsídio
habitacional aumentou gradualmente até o final dos anos 1990 e padrões mínimos de
tamanho (32 m2) e construtivos foram fixados para as unidades habitacionais. A
entrega de casas “completas”, no lugar de “incrementais”, passou a ser cada vez mais
demandada, tornando-se a prioridade da política (SMIT, 2016).

O envolvimento dos governos municipais, de modo geral, passou a ser mínimo


nos anos que sucederam às eleições de 1994. No início da década de 1990, a partir
do diálogo estabelecido pelo governo com organizações políticas antiapartheid,
haviam sido iniciadas as negociações para o estabelecimento de autoridades locais
não-raciais, de base tributária única e com representação de moradores das
“invasões”. Isso implicou na necessidade de unificação de arranjos jurisdicionais
muitas vezes contraditórios entre si (VAN HOREN, 1996). Além disso, demarcação
das novas fronteiras municipais possibilitava a redistribuição dos escassos serviços
locais, uma vez que a incorporação de determinada área a uma jurisdição mais rica
poderia acarretar em melhora no padrão de qualidade dos serviços, enquanto a sua
inclusão em jurisdições mais pobres poderia representar uma piora desse padrão
(CAMERON, 2006). Assim, o conflituoso processo de reconstrução das autoridades

156
A Gear enfatizava que o desenvolvimento econômico deveria ser liderado pelo setor privado, com a
privatização de empresas estatais, redução das despesas do governo (especialmente os serviços
sociais), diminuição das regulamentações de controle de câmbio e flexibilização do mercado de
trabalho (Departamento de Finanças, 1996 apud MAHARAJ, KHAN e DESAI, 2016).
170

locais com redefinição das fronteiras locais só terminou em 2001.

Nesse contexto, Durban, que já era (e ainda é) uma das cidades que mais
concentra shack settlements, destacou-se devido à manutenção de projetos de in-situ
upgrading, ainda que nenhum programa ou linha de ação específica do governo
nacional estivesse voltado para esse tipo de projeto.

Cato Manor, área que nos anos 1960 concentrava um grande número de
squatter settlements cuja população fora então violentamente removida e reassentada
nas townships, como mencionado no capítulo 3, permaneceu desocupada até os anos
1980, quando passou a receber novas ocupações. Com o avanço das negociações
entre o governo nacional e organizações antiapartheid, Cato Manor foi elencada como
prioridade e, entre 1990 e 1992, foi discutido um plano para reocupação da área, de
cerca de 1.800 hectares e cerca de 21 mil moradores. Em 1993, foi formada a Cato
Manor Development Association, uma agência sem fins lucrativos que, a partir de
1994, passou a ser responsável pela execução do que se tornou o maior projeto
habitacional do país, com recursos provenientes do Reconstruction and Development
Programme (RDP) do governo nacional, da União Europeia e das autoridades local e
provincial (ROBINSON e FOSTER, 1996).

Nessa área, obras de in-situ upgrading do tipo rollover (destruição das


construções existentes para reparcelamento e edificação de novas unidades
habitacionais) tem desde então sido realizadas em meio a inúmeras dificuldades:
warlords que sabotavam as obras; uma população que concentrava sua demanda na
aquisição de casas novas e altas densidades populacionais que enfrentavam a
inexistência de financiamentos para empreendimentos verticais157. A figura a seguir
ilustra a urbanização de uma das áreas de Cato Manor, Cato Crest. Na imagem é
possível ver os barracos em primeiro plano, os alojamentos provisórios destinados a
abrigar as famílias removidas de barracos já demolidos em segundo plano, e as novas
casas no padrão do RDP construídas ao fundo. A partir do início dos anos 2000, os
projetos habitacionais em Cato Manor passaram a ser coordenados pela
municipalidade. Alguns ainda seguem em execução lentamente, assim como novas

157
Entrevistado 16.
171

ocupações continuam ocorrendo.

Figura 26. Cato Crest em Cato Manor, 2015.

Foto da autora.

Além da experiência da Cato Manor Development Association, Durban se


destacava no contexto sul-africano por meio de uma Unidade Metropolitana de
Habitação (Metro Housing Unit), criada em 1997, sob a direção de um dos fundadores
do BESG e primeiro diretor da Cato Manor Development Association.

O pioneirismo do programa da Unidade Metropolitana de Habitação158 não se


devia apenas à experiência acumulada em in-situ upgrading, na década anterior, em

158
De acordo com o entrevistado 19 apenas Durban teria um programa especificamente voltado para
in-situ upgrading à época.
172

Durban, mas também a outros fatores políticos e econômicos. Politicamente, a


autoridade local em Durban, ao ser também governada pelo CNA, funcionava como
uma vitrine do partido e precisava “fazer as coisas acontecerem” independentemente
da autoridade provincial, controlada pelo IFP. Em termos econômicos, para viabilizar
o programa, a municipalidade contava com recursos de um fundo próprio, originado a
partir de operações lotéricas159, além dos recursos provenientes do Programa de
Subsídios Habitacionais (Housing Subsidy Scheme), repassados à autoridade
metropolitana pela província.

Após algumas iniciativas pontuais, a Unidade Metropolitana de Habitação


apresentou, em 2000, um programa mais abrangente para os “assentamentos
informais” 160 baseado em um extenso diagnóstico das condições técnicas, sociais e
políticas de todos os 356 “assentamentos” até então identificados em Durban. O
programa previa três tipos de intervenção de curto a médio prazo: completo in-situ
upgrading utilizando o subsídio provido pelo governo central, serviços prioritários e
“land release”. Esse último tipo de intervenção envolvia a provisão de serviços básicos
e controle da ocupação enquanto subsídios para completar o projeto eram pleiteados
junto ao governo central. O programa previa ainda o desenvolvimento de
empreendimentos para reassentamento (greenfields projects) apenas da população
que precisasse ser removida para a execução de obras de infraestrutura e melhorias
(Metro Housing, 2000 apud CHARLTON e KLUG, 2016).

Paradoxalmente, no entanto, cada vez mais ênfase era dada ao


desenvolvimento de greenfields e intervenções do tipo “terra arrasada” ou rollover, ou
seja, intervenções que implicavam na relocação total da população em instalações
transitórias (transit camps) até o seu término, seguindo os mesmos padrões de um
greenfield. Nesse contexto, as obras iniciadas em diferentes “assentamentos” ao fim
dos anos 1990, buscando preservar a configuração original destes, acabaram
paralisadas devido a problemas fundiários ou ambientais. Como entender essa
mudança de foco em Durban?

159
A Operação JumpStart foi criada em 1992 para administrar os fundos da Lotérica de Natal
(posteriormente KwaZulu-Natal).
160
Informal Settlements Programme for the North and South Central Local Councils. Essas autoridades
locais eram estruturas provisórias, posteriormente amalgamadas na municipalidade metropolitana de
eThekwini.
173

De acordo com um dos entrevistados:

Nos anos 2000, o governo provincial também estava com o CNA,


então nos “anos de ferro” conseguíamos fazer coisas mais inovadoras
(...) as mensagens vindas do governo nacional, através da província e
chegando à cidade, tornaram-se mais simples: entregar casas, e isso
distorceu o in-situ upgrading (Entrevistado 19, transcrição e tradução
nossa).

Charlton e Klug (2016) sugerem que a mudança de foco teria sido o resultado
de uma combinação de fatores: ênfase dos programas nacionais no aumento dos
padrões e tamanho das casas; direcionamento no município para aumentar o total
de unidades entregues; percepção de que existiriam menos organizações e
profissionais com expertise em in-situ upgrading, tanto do setor público quanto do
privado; alto nível de qualidade dos serviços (e tamanho mínimo de lote) exigido pelas
normas de financiamento; certa aversão à presença de barracos na paisagem; e,
finalmente, introdução de um regime de contratos pelo qual a municipalidade teria que
aprovar todos os projetos antes de submetê-los à província para obter financiamento.

5.1.4 A difícil retomada

Após uma década de reconstrução democrática não racial, o desempenho do


atendimento à demanda habitacional no país era insatisfatório. A habitação provida
pelo governo no início dos anos 2000 equivalia à metade do tamanho daquela provida
durante o apartheid, era construída com materiais mais frágeis, em áreas sem
pavimentação e com inadequado provimento de serviços de saneamento, drenagem
e coleta de lixo (BOND, 2008).

No fim do ano 2000, o Ministério da Habitação informou que 1,13 milhão de


casas haviam sido entregues161, além da transferência de propriedade de cerca de
370 mil casas que eram alugadas pelo governo (GILBERT, 2002, p. 1917). Após
quase uma década, porém, o déficit habitacional havia aumentado, com 1,84 milhão
de pessoas vivendo em “assentamentos informais” em 2001 (DH, 2004).

O crescente reconhecimento da impossibilidade, mantidas as restrições

161
Os números chegariam a 1,5 milhão de casas até 2003 (GARDNER, 2003, p. 21)
174

orçamentárias decorrentes das opções macroeconômicas, de manter o ritmo da


produção habitacional necessária para zerar o déficit, a baixa qualidade das
construções162, a persistência da segregação espacial através da localização dos
novos assentamentos nas periferias e a emergência de novos movimentos sociais
urbanos (BOND, 2008) foram determinantes para a revisão da política no início de
2004. Torna-se oportuno retornar às mudanças ocorridas no cenário internacional a
partir do início dos anos 2000.

A revisão da política habitacional sul-africana após uma década de sua


implantação vinha no contexto de criação da Aliança de Cidades. Nelson Mandela
havia sido escolhido para lançar o plano Cities Without Slums dessa então recém-
criada organização em 1999, o qual subsequentemente foi utilizado para o
estabelecimento da uma meta mundial (como parte dos Objetivos de Desenvolvimento
do Milênio) de melhoria das condições de vida dos moradores das slums. O
diagnóstico global, The Challenge of Slums, publicado em 2003, incluía uma descrição
detalhada da situação dos “assentamentos informais” em Durban.

A nova política habitacional, intitulada Breaking New Ground: Comprehensive


Housing Plan for the Development of Integrated Sustainable Human Settlements,
aprovada no mandato de Thabo Mbeki, deveria, em consonância com as
recomendações internacionais, promover o desenvolvimento de “assentamentos
humanos integrados e sustentáveis”. Para tanto, anunciava a “erradicação de
assentamentos informais através do in-situ upgrading em locais desejados, acoplada
à realocação de domicílios onde o desenvolvimento não é possível ou desejável” (DH,
2004, p. 12. Tradução e grifo nossos).

Pela primeira vez, portanto, um programa voltado para os “assentamentos


informais” – o Programa Upgrading Informal Settlements (Uisp) – e subsídios para
áreas ocupadas eram incluídos na política habitacional. O Programa dividia-se me
quatro fases, sendo que apenas na última fase, correspondente à entrega de unidades
habitacionais, o subsídio passaria a ser individualizado. Concebido por uma equipe
formada por funcionários dos governos locais, provinciais e nacional, com a

162
O subsídio habitacional gradualmente aumentou, em 2003 correspondia a aproximadamente 23 mil
rands ou dois mil dólares (MARX e CHARLTON, 2003). E o tamanho mínimo passou de 32m2 para
40m2 em meados dos anos 2000.
175

assessoria de um representante da Aliança de Cidades, o novo programa não levou


em conta as experiências locais dos anos 1990, como aquela da Unidade
Metropolitana de Habitação em Durban (CHARLTON, 2006).

O programa previa a execução de nove projetos-piloto, um em cada província.


Não obstante, nos anos seguintes a sua aprovação, ações de remoção de grande
escala de squatter settlements continuaram ocorrendo e foram associadas à
continuidade da entrega de casas no mesmo modelo do RDP, iniciado em 1994. O
primeiro projeto-piloto implementado no âmbito do Uisp, o N2 Gateway Project na
Cidade do Cabo, resultou na remoção de milhares de pessoas para áreas transitórias
a quilômetros de distância. A maioria das quais não teve subsequentemente meios
para arcar com os custos dos aluguéis cobrados nos novos empreendimentos
destinados à “mistura de grupos em diferentes faixas de renda” (HUCHZERMEYER,
2011).

A criação do Emergency Housing Programme, ao mesmo tempo em que o Uisp


era estabelecido, com recursos específicos para relocação temporária das moradias
em “assentamentos informais” para a realização de obras, acabou por desvirtuar o
sentido, ao menos no discurso, do in-situ upgrading, estimulando intervenções do tipo
“terra arrasada” (rollover), isto é, a completa destruição do antigo “assentamento” para
reparcelamento e reconstrução das casas (CIROLIA, 2014). Afinal, esse tipo de
intervenção era reconhecido como sendo menos complexo, mais barato e rápido do
que ações de in-situ upgrading que visassem atender os padrões mínimos
necessários para a regularização fundiária e entrega de títulos exigidas pelo
financiamento163.

Além disso, a pressão exercida pelo governo central requeria celeridade. Em


função da realização da Copa do Mundo de 2010, anunciada em 2004, as autoridades
provinciais e municipais haviam acordado em atingir a meta de “erradicação dos
assentamentos informais” a tempo do evento (HUCHZERMEYER, 2011). De menor
importância parecia ser o fato de resultarem em um número considerável de famílias
reassentadas em empreendimentos novos (os greenfields) em áreas distantes e

163
Entrevistado 16.
176

pouco integradas ao tecido urbano.

Figura 27. Greenfields e casas “RDP”construídas pelo setor privado para a


municipalidade de Ethekwini, 2015.

Foto: Belakwe & M2M Group (http://www.belakwe.co.za/rdphousing.html)

Nesse contexto, algumas medidas legislativas conflitaram com os objetivos de


integração dos “assentamentos informais” contidos no Uisp. Em 2006, uma emenda
ao Prevention of Illegal Evictions from and Unlawful Occupation of Land Act (PIE),
aprovado em 1998, estendeu a criminalização, antes restrita às ocupações de terras
sem o consentimento do proprietário ou pessoa responsável sob pena de pagamento
de algum valor (prática característica da atuação dos warlords durante o apartheid), a
qualquer ocupação não consentida, mesmo que motivada por necessidade urgente
de moradia (HUCHZERMEYER, 2010). Ao criminalizar essas ocupações, justificava-
se a necessidade das remoções.

No ano seguinte, a Província de Kwa-Zulu Natal aprovou o KwaZulu-Natal


177

Elimination and Prevention of Re-emergence of Slums Act, por meio do qual os


proprietários particulares ficavam responsáveis por impedir a ocupação de suas terras
e autorizados a remover qualquer ocupação ilegal que tivesse menos de seis meses.
Ainda segundo o referido ato, caso os proprietários falhassem em cumprir esse papel
poderiam ser intimados, cabendo à municipalidade efetivar as devidas remoções.
Esse ato foi objeto de numerosas batalhas judiciais, motivadas por movimentos de
moradores de shack settlements164 até ser considerado inconstitucional em 2009.
Mesmo assim, o apoio declarado da ministra de Habitação à época, influenciaria a
sua replicação em diferentes províncias.

O discurso da construção de um programa de in-situ upgrading, com projetos


integrados e participativos previstos no Uisp colidia, portanto, com a perspectiva de
“erradicação dos assentamentos informais”, combinada com práticas enraizadas de
entrega de habitações prontas, que além de agradar à indústria da construção,
geravam dividendos eleitorais. Uma parcela substantiva da população não entendia
por que o in-situ upgrading, com atividades que demandavam sua participação, por
vezes aos finais de semana, seria necessário diante da possibilidade de se obter uma
casa pronta e de graça do governo165. Em 2008 diferentes avaliações, tanto do
governo quanto da Aliança de Cidades166, constataram que nenhum dos nove
projetos-piloto previstos no lançamento do Uisp haviam efetivamente implementado
os objetivos do programa (HUCHZERMEYER, 2011).

Algumas mudanças começaram a tomar forma, no sentido de priorizar o in-situ


upgrading (HUCHZERMEYER, 2011). Reconhecia-se que tal priorização exigia uma
assistência direta às municipalidades, o que resultou na criação do National Upgrading
Support Programme (Nusp) em 2008, o qual passou a contar com financiamento da
Aliança de Cidades entre 2010 e 2011. O Ministério da Habitação foi renomeado
Ministério dos Assentamentos Humanos, sinalizando, ao menos retoricamente, a
diminuição da ênfase na edificação de casas. A política foi novamente revista em 2010

164
As ações foram motivadas pelo movimento Abahlali baseMjondolo com base no argumento de que
à província cabia legislar sobre o provimento habitacional quando o referido ato apenas tratava de
questões relativas à propriedade da terra, além de propiciar ações de remoção arbitrárias em
desacordo com princípios constitucionais.
165
Entrevistados 16 e 19.
166
A instituição vinha desde 2006 financiando e assistindo tecnicamente o município metropolitano de
Ekurhuleni, no East Rand e próximo a Joanesburgo.
178

e a meta167 de 400 mil domicílios em “assentamentos informais bem localizados” com


serviços básicos e segurança foi fixada para 2014. Essa meta abrangia tanto in-situ
upgradings quanto novos empreendimentos, os greenfields (FOSTER e GARDNER,
2014).

A crescente pressão pelo in-situ upgrading como alternativa aos programas


baseados no subsídio de capital para produção da moradia acabada, esbarrava nas
limitações que o Uisp enfrentava para ser executado, tanto no que concernia às
intervenções completas de in-situ upgradings (provisão de serviços de qualidade,
unidade habitacional e regularização plena) quanto à crescente dificuldade para
identificar áreas adequadas (i.e. integradas à cidade) para o estabelecimento de
greenfields. Começou a surgir, então, um debate em torno de abordagens alternativas.

Joanesburgo foi a primeira cidade a desenhar um programa com base nessa


abordagem. Segundo o diretor do departamento de planejamento e gestão urbana da
cidade, responsável por sua formulação168, quando o prefeito de Joanesburgo
pressionou a equipe para regularizar cerca de 180 “assentamentos informais”, onde
na época viviam pouco menos de 20% da população da cidade, com o objetivo de
conseguir recursos governamentais para implantação de infraestrutura e serviços, a
inspiração veio da experiência brasileira. O objetivo era que todos os assentamentos
informais da cidade tivessem um “status legal”. Como os mecanismos em vigor
impunham prazos de até três anos para a regularização169, buscaram-se alternativas:

Eu estive no Rio provavelmente em 2006 (…) e me deparei com ideias


de Zeis e outros instrumentos do Estatuto da Cidade que o Brasil tinha
para apoiar upgradings e dar alguma forma de reconhecimento aos
assentamentos informais. Então voltei para Joanesburgo e
começamos a falar sobre isso como um possível mecanismo de
regularização. (…) poderíamos usar uma variante das Zeis no plano
da cidade existente, no zoneamento. Se introduzíssemos uma nova
categoria no zoneamento, que chamamos de zona transitória de
assentamento residencial, poderíamos designá-la nos assentamentos
informais (...) e poderíamos ter um conjunto simplificado de
regulamentação para essas zonas (...). Eu precisava de apoio político
para isso, então levamos políticos e altos funcionários para uma visita
ao Brasil (...) por volta de 2007. Tivemos várias reuniões com pessoas

167
Cf.
https://www.dpme.gov.za/publications/Outcomes%20Delivery%20Agreements/Outcome%2008%20Hu
man%20Settlement.pdf
168
Entrevistado 18.
169
Em referência aos procedimentos para estabelecimento de townships.
179

do programa Favela-Bairro, porque não se tratava apenas de


regularização, mas também de upgrading, o que poderíamos fazer
depois de regularizar (…). E nós fomos para Salvador (…) onde o
governo italiano estava envolvido. Os políticos ficaram muito
impressionados, muito interessados. Isso deu apoio político ao que
estávamos tentando fazer (…), então voltamos e começamos a
conceber uma nova política (…). Era um modelo muito forte que o
Brasil oferecia e era muito viável, porque era um processo simples
(Entrevistado 18. Transcrição e tradução nossa).

A citação acima é exemplar de como são originados e se desenvolvem os


processos de troca de conhecimento, instrumentos e modelos de política, e deverá
ser retomada posteriormente. Por ora, interessa a análise de que sob influência dessa
troca, Joanesburgo conferia força ao debate sobre uma nova abordagem com relação
aos “assentamentos informais”.

No centro desse debate também estavam consultores ligados ao Urban


LandMark, um think-tank originalmente financiado pelo Departamento para o
Desenvolvimento Internacional (DFID) do Reino Unido170, e defensores do
desvinculamento das intervenções em “assentamentos informais” do subsídio federal
para a construção da unidade habitacional (MISSELHORN, 2008; HUCHZERMEYER,
2011). Desse modo, dois níveis de intervenção deveriam ser previstos:

1. A provisão de medidas de “alívio intermediário” e/ou a introdução


de medidas iniciais de upgrading para atender necessidades
básicas tais como: proteção a incêndios, saneamento básico,
acesso à água potável, coleta de lixo, serviços básicos de saúde e
acessos internos.
2. A realização completa do upgrading, mas utilizando diferentes
métodos e tipologias habitacionais, voltadas ao aumento da
densidade e minimização dos reassentamentos, tais como:
unidades assobradadas ou geminadas; níveis reduzidos de
serviços internos (especialmente vias de acesso), formas
alternativas de posse da terra (MISSELHORN, 2008, p.12,
tradução nossa)

O Programa de Regularização em Joanesburgo foi aprovado de modo


independente das linhas de financiamento nacional ou provincial, criando-se as “áreas
residenciais transitórias” (TRAs). Sua implementação, entretanto, foi

170
"Urban LandMark" é a abreviação de "Urban Land Markets Programme". O programa foi criado em
maio de 2006. Com sete anos de financiamento, até março de 2013, foi administrado financeiramente
pela FinMark Trust. A iniciativa está atualmente no Conselho para Pesquisa Científica e Industrial da
África do Sul.
180

“decepcionante”171. A justificativa dada era de que os problemas geotécnicos, de


qualidade do solo ou densidade excessiva nos “assentamentos informais”, não
justificavam investimentos em serviços provisórios (HUCHZERMEYER, 2011). Como
confirmou, porém, o responsável pela sua criação, o departamento de habitação não
se interessou pelo novo instrumento, uma vez que preferia o desenvolvimento de
greenfields, “the easier model”172.

Especialistas criticaram o programa por não trazer mudanças com relação aos
parâmetros que convencionalmente determinavam os assentamentos passíveis de
consolidação, e, em consequência, em nada contribuia para fazer valer o princípio
mais importante do Uisp: tratar a remoção como último recurso (HUCHZERMEYER,
2011, p. 175).

De qualquer modo, a nova abordagem se firmou. Em 2008, a municipalidade


de eThekwini também lançou uma iniciativa, Interim Services, para “fornecer uma
gama de serviços intermediários básicos” para “assentamentos informais” elencados
como prioritários pelo município. O objetivo era “prover os serviços rapidamente a
tantos assentamentos quanto possível, em vez de fornecer um alto nível de serviço a
apenas poucos seletos” (eThekwini Municipality, 2011). Dentre os serviços
provisionados estavam: vias de acesso, drenagem de águas pluviais, blocos de
saneamento (banheiros e chuveiros coletivos) e fontes coletivas (torneiras públicas),
além da distribuição de eletricidade. Dessa forma a municipalidade visava garantir
também a segurança da posse aos moradores dessas áreas (eThekwini Municipality,
2017, 2018).

O reconhecimento desse tipo de iniciativa na esfera nacional veio em 2011,


com a estruturação de uma verba destinada especialmente à provisão de serviços
intermediários ou incrementais173. Nesse mesmo ano, o parecer da Comissão
Financeira e Fiscal sobre a política habitacional enfatizou a insustentabilidade, no
longo prazo, do modelo baseado no subsídio total da unidade habitacional para os

171
Entrevistado 18.
172
Idem.
173
Urban Settlements Development Grant (USDG). Além dessa verba, outras já existentes poderiam
ser utilizadas para o mesmo fim. Cf.
http://upgradingsupport.org/uploads/resource_documents/participants-combined/Chapter-6-Interim-
Arrangements-and-Relocations-May-2016.pdf
181

mais pobres, destacando a importância de estratégias que atingissem um maior


número de domicílios em um período mais curto de tempo do que o das últimas duas
décadas, sublinhando a importância do in-situ upgrading (FOSTER e GARDNER,
2014).

Figura 28. Exemplos de implantação de Interim Services em Durban

Fotos: eThekwini Municipality


182

Ainda em 2011, o Departamento do Tesouro Sul-Africano passou a negociar


um empréstimo como o Banco Mundial para in-situ upgrading, ocasião em que levou
representantes da prefeitura de São Paulo para apresentar sua experiência à África
do Sul (HUCHZERMEYER, 2011, p.184). Na percepção de um dos técnicos de alto
escalão do Nusp, a capacidade e mesmo a inclinação ao in-situ upgrading, de modo
incremental e com o envolvimento das comunidades, evidente nas experiências
desenvolvidas ao longo dos anos 1990, havia se perdido na África do Sul (Narsoo,
2013 apud CHARLTON e KLUG, 2016).

Após quase duas décadas de ênfase na produção de habitação pelo mercado,


seguindo os parâmetros necessários à regularização plena, mas de baixa qualidade
e em escala insuficiente, o retorno a uma abordagem “mais tradicional” de in-situ
upgrading esbarrava em alguns entraves. Em primeiro lugar, uma lacuna de
conhecimento, já que muitos profissionais envolvidos nas iniciativas pioneiras de in-
situ upgrading no passado haviam se transferido para o setor privado e universidades,
não raro para outros países. Em segundo, mas tão ou mais importante, o sonho da
casa própria, individualizada, isolada em lotes padronizados, alimentado pela
população durante duas décadas, e realimentado por candidatos políticos em troca
de voto a cada eleição174.

5.2 A trajetória da Urbanização de Favelas em São Paulo

A urbanização do “terceiro mundo”, nos anos 1970, ocupou um lugar de


destaque tanto no debate acadêmico, quanto naquele promovido por agências
multilaterais e fundações norte-americanas. O “inchaço” das cidades, o crescimento
da pobreza e insatisfação dos pobres urbanos na América Latina estavam no centro
desse debate internacional, à medida que revoltas populares espalhavam-se pela
região. É nesse contexto que vão surgir as primeiras experiências de urbanização de
favelas na região e no Brasil.

A história dessas políticas no Brasil tem sido um objeto bastante explorado pela
literatura nacional (BUENO, 2000; DENALDI, 2003; CARDOSO, 2007; ANTONUCCI

174
Entrevistados 16 e 19.
183

E SAMORA, 2016; CARDOSO e DENALDI, 2018). De modo geral, o que essa


literatura indica é que as primeiras urbanizações de favelas, diferentemente da
experiência sul-africana, foram viabilizadas pela política estatal após a década de
1970. Até então, embora houvesse algum investimento público nas favelas, mormente
de caráter assistencialista, prevaleciam as remoções.

Em São Paulo, porém, como observado no capítulo 3, as favelas não eram um


fenômeno urbano significativo até a década de 1970. Os conflitos entre Estado e
pobres urbanos estavam concentrados em reivindicações de moradores de
loteamentos periféricos por regularização e melhora na provisão de infraestrutura e
serviços (GROSTEIN, 1987; BONDUKI, 1998). Em outras cidades, como Recife e Rio
de Janeiro, no entanto, onde o número de favelas à época era muito mais
expressivo175, a resistência contrária às remoções forçadas era a tônica predominante
da relação entre Estado e pobres urbanos. Em consequência, experiências pioneiras
de urbanização de favelas terão lugar nessas cidades, cujo contexto merece ser
compreendido.

Diferentemente do pioneirismo de Durban, no contexto sul-africano, portanto,


São Paulo em muito se valeu da circulação do conhecimento produzido em
experiências pioneiras ocorridas em outras cidades brasileiras, principalmente no Rio
de Janeiro. A análise da trajetória da urbanização de favelas em São Paulo inicia-se,
assim, pela compreensão dessas experiências que serviram de contexto para o
desenvolvimento das experiências paulistanas. Em seguida, a análise da trajetória da
urbanização de favelas em São Paulo, propriamente dita, será apresentada dividida
em três períodos: de fins dos anos 1970 até 1992, entre 1992 e 2001 e entre 2001 e
2011, momento em que a parceria com Durban foi estabelecida.

Como se verá, a trajetória da urbanização de favelas em São Paulo será


marcada por um lento e, relativamente, contínuo avanço em termos de consolidação
e escala, isto é, de desenvolvimento de estruturas administrativas, instrumentos legais

175
O Censo Demográfico das Favelas do Distrito Federal realizado pelo IBGE em 1950 apontou que
cerca de 170 mil habitantes, ou 7% da população carioca, morava em favelas, no entanto reconhecia-
se que, dadas as limitações do levantamento à época, esse número pudesse chegar ao dobro, isto é,
cerca de 340 mil pessoas (IBGE, 1953). No Recife da década de 1930, estima-se que mais de 60%
dos domicílios estivessem em mocambos, quando foi criada a Liga Social Contra o Mocambo em 1939
(MELO, 1986).
184

e número de pessoas atendidas. Os momentos de retrocesso no curso dessa trajetória


ao longo das décadas de 1980 e 1990176 não chegaram a alterar a rota de crescente
institucionalização dessas políticas, como no caso sul-africano analisado.

5.2.1 O contexto

No Rio de Janeiro, ainda na década de 1950, já parecia surgir um certo


questionamento crítico em relação à violência que as remoções das favelas
representavam e à possibilidade de urbanizá-las como uma alternativa. Nessa época,
o pensamento humanista e comunitário de Padre Lebret começava a exerver grande
influência sobre diferentes grupos de intelectuais e militantes católicos. O trecho
abaixo extraído do primeiro censo de favelas feito pelo IBGE naquela cidade é, nesse
sentido, ilustrativo:

A extinção das favelas, abstraído seu aproveitamento posterior – e


aqui nos referimos notadamente aos morros – ficaria circunscrita a
uma exigência estética, a um motivo de embelezamento urbano, talvez
não bastante forte para justificar a remoção de 170 000 pessoas. Isso
implicaria a acomodação em zonas distantes de 60 000 famílias, a
construção em prazo curto de cerca de 50 000 novas casas para
venda ou locação a preços limitados e exigiria a solução do problema
dos transportes, ampliando-se e barateando-se consideravelmente os
atuais meios de locomoção. Urbanizar os morros e favelas em geral
não seria, possivelmente, empreendimento menos custoso, embora
parecesse mais de acordo com o sentido social e humano da questão.
(IBGE, 1953, p. 11-12, grifo nosso).

Em consonância com esse debate, na década de 1960, obras pontuais para


melhoria de favelas passaram a ser implementadas pela Coordenação de Serviços
Sociais, sob a gestão de José Artur Rios, por meio da Operação Mutirão (1960-1962),
como mencionado no capítulo 3. Cerca de 80 favelas chegaram a ser atendidas
(BRUM, 2011), mas a insatisfação de políticos e representantes do mercado
imobiliário com esse tipo de ação fez com que esta tivesse curta duração. A
substituição de Rios na Coordenação de Serviços Sociais por Sandra Cavalcanti
representou um recrudescimento das remoções acompanhado da difusão da ideia da
casa própria. Essa foi a orientação da política federal de habitação, instituída pelo

176
Nas gestões de Jânio Quadros (1986-1988), Paulo Maluf (1993-1996) e Celso Pitta (1997-2000).
185

regime militar em 1964. Criada pela Lei 4.380 e implementada por meio do Banco
Nacional de Habitação (BNH) e do Serviço Federal de Habitação e Urbanismo
(Serfhau) 177.

Assim, não obstante a incipiente crítica às remoções de favelas à época, a


política nacional estabelecida em meados dos anos 1960 estava baseada justamente
na construção de “novas casas para venda” em “zonas distantes” e sem que houvesse
uma “solução do problema dos transportes”. A falência desse modelo, duas décadas
depois, faria com que urbanizar as favelas deixasse de ser apenas uma opção “mais
de acordo com o sentido social e humano” para se tornar a única ação possível como
política habitacional. Considera-se, portanto, oportuno retomar brevemente essa
história a seguir.

A criação do BNH e do Serphau dava, de certo modo, dava concretude às


propostas do Seminário Nacional de Habitação e Reforma Urbana, promovido em
julho de 1963 pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB) no Rio de Janeiro e em São
Paulo. O seminário embora tivesse dado destaque a princípios de justiça social e
defesa da habitação como direito universal, no contexto das reformas de caráter social
defendidas pelo então presidente João Goulart (1961-1964), também defendia a
criação de um órgão central federal com autonomia financeira e baseado em formas
de financiamento atraentes à iniciativa privada, cuja participação seria imprescindível
para a promoção do desenvolvimento de novas tecnologias construtivas (BONDUKI e
KOURY, 2010).

A criação do BNH pelo regime militar vinha, contudo, na direção oposta,


motivada pelo desejo de conquistar o apoio da população pobre que poderiam impor
obstáculos, principalmente nas cidades, ao desenvolvimento do novo arranjo de
poder. A casa própria aparece então como solução que a um só tempo permitiria a
manutenção da ordem e o estímulo à poupança. Em sua famosa carta ao presidente
Castelo Branco, Sandra Cavalcanti havia destacado a importância do novo governo
agir sobre as massas “órfãs e magoadas” por meio da solução dos seus problemas

177
O BNH substituiu a Fundação da Casa Popular (FCP), primeiro órgão federal, criado em 1946,
dedicado à provisão pública de habitação. Os recursos da FCP deveriam ser provenientes das
Carteiras Prediais dos Institutos de Aposentadorias e Pensões, de Estados e municípios, o que não
aconteceu, resultando numa produção muito baixa, de cerca de 20 mil unidades entre 1946 e 1964
(KOURY, 2019).
186

de moradia (AZEVEDO e ANDRADE, 1982, p. 57-58). No dizer de Roberto Campos,


um dos formuladores dessa proposta: “o proprietário da casa própria pensa duas
vezes antes de se meter em arruaças ou depredar propriedades alheias” (AZEVEDO
e ANDRADE, 1982, p. 59). Além disso, ao garantir recursos suficientes para a
produção em grande escala, a nova política habitacional era tida como capaz de gerar
um efeito positivo sobre a economia, aquecendo a indústria da construção e gerando
oportunidades de emprego tanto para trabalhadores semiespecializados, como para
profissionais qualificados, engenheiros e arquitetos (AZEVEDO e ANDRADE, 1982,
p. 60).

O modelo de financiamento habitacional do BNH logo demonstraria o seu baixo


efeito sobre a demanda por habitação entre a população mais pobre. O modelo de
financiamento do BNH estava baseado em operações de crédito lastreadas pelas
poupanças voluntárias e involuntárias e, portanto, dependia do retorno desses
recursos. Em linhas gerais, o financiamento habitacional para famílias de renda mais
baixa era realizado por meio de recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço
(FGTS) enquanto o financiamento para famílias de renda média via Sistema Brasileiro
de Poupança e Empréstimo (SBPE). Nos municípios e estados, companhias de
habitação (Cohabs), independentes do ponto de vista administrativo, mas
dependentes financeiramente dos recursos federais, eram responsáveis pela
promoção e comercialização das unidades habitacionais (ARRETCHE, 2000).

A população mais pobre, porém, cuja demanda deveria ser prioritariamente


atendida, logo se mostraria incapaz de arcar com o pagamento das prestações do
crédito imobiliário, mesmo que com juros abaixo daqueles praticados pelo mercado.
Desse modo, ao mesmo tempo em que crescia o número de inadimplentes, o sistema
voltava-se cada vez mais para a produção de habitações para faixas de renda mais
altas. Em consequência, crescia o número de favelas e loteamentos periféricos178, o
que fazia com que a remoção de favelas permanecesse como um elemento central
da agenda da política habitacional.

178
Análises de Azevedo e Andrade (1982) sobre os dados do Censo Domiciliar do IBGE até meados
da década de 1970, mostram que a atuação do BNH não havia contribuído para a queda de domicílios
“rústicos”, classificação que abrangia os domicílios em favelas, por exemplo, e que o percentual de
unidades financiadas para famílias com renda até cinco salários mínimos até 1980 não ultrapassavam
35% do total de unidades financiadas pelo SFH.
187

Diante desse cenário, a urbanização da favela Brás de Pina, na zona norte do


Rio de Janeiro – cujas tentativas de remoção durante o governo Lacerda haviam
fracassado (GONÇALVES e AMOROSO, 2014) – poderia parecer contraditória. Essa
experiência pioneira, porém, deve ser também compreendida no bojo do
relacionamento estabelecido entre o governo do Rio de Janeiro e organizações
internacionais que, como examinado no capítulo 4, disseminavam então ideias de
autoconstrução assistida.

Em 1966, três especialistas em habitação norte-americanos, através de um


convênio com a Usaid, visitaram algumas favelas no Rio de Janeiro e produziram um
relatório179 recomendando que o governo do Estado promovesse um programa de
ajuda mútua, baseado no desenvolvimento habitacional e comunitário, e criasse uma
autoridade para tratar dos problemas urbanos, inclusive das favelas, na escala
metropolitana (LEEDS e LEEDS, 1977, p. 231). O então governador do Estado da
Guanabara, Negrão de Lima, levou a proposta a diferentes órgãos do Estado, sendo
que apenas a Companhia do Progresso do Estado da Guanabara (Copeg),
ironicamente um órgão responsável por estimular o setor privado (incluindo o setor da
construção), demonstrou interesse. A Companhia de Desenvolvimento de
Comunidades (Codesco) foi então estabelecida, como subsidiária da Copeg, em
1968, sendo parcialmente financiada pelo BNH. Na sequencia, estudos para a
urbanização de três favelas na zona norte do Rio de Janeiro tiveram início, incluindo
Brás de Pina, a única que, ao final, seria urbanizada integralmente180.

A contradição entre as atividades da Codesco e o modelo do BNH, centrado no


interesse das companhias de finanças, poupanças e crédito, ficaria explícita com a
criação, apenas quatro meses depois, da Coordenação de Interesse Social de
Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana Rio de Janeiro (Chisam) por
decreto federal181. A criação de um órgão específico para habitação social
correspondia à uma das recomendações do referido relatório produzido pelos
especialistas da Usaid, ironicamente, porém, a Chisam possuía propósitos opostos

179
Wagner, B.; McVoy, D.; Edwards, G. Guanabara Housing and Urban Development Program: Report
and Recommendations by AID Housing and Urban Development Team,1965 (LEEDS e LEEDS, 1977).
180
O ideal de urbanização perseguido incluía o reparcelamento com pavimentação, instalação de redes
de água, esgotos, eletricidade e regularização, além de auxílio financeiro para a reconstrução de casas
(por ajuda mútua) com a supervisão dos arquitetos.
181 o
Decreto Federal n 62.654 de 03/05/1968.
188

aos recomendados: a remoção das favelas. A Chisam executou o maior programa de


remoção de favelas na história da cidade do Rio de Janeiro, por meio do qual, até
1973, cerca de 175 mil moradores de 62 favelas foram transferidos para mais de trinta
mil unidades em conjuntos habitacionais (VALLADARES, 1978, p. 38-46). Em uma
entrevista em 2004, o ex-administrador da Codesco, Sílvio Ferraz, reconheceu a
criação simultânea da Chisam, pelo governo federal, como algo “super contraditório”
e recordou a fala do então governador a ele: “Você pode urbanizar desde que você
não faça um alarde sobre isso, para não provocar o [sic] Chisam” 182.

A urbanização de Brás de Pina, ainda que um caso isolado, tornou-se um


modelo no Brasil. O grupo Quadra, contratado incialmente pela Copeg para a
elaboração de diagnósticos e posteriormente para as obras de urbanização da favela,
era formado por jovens arquitetos183 que haviam se aproximado, no contexto de
questionamento dos fundamentos da arquitetura moderna em face da realidade
brasileira que marcou os anos 1960, do trabalho da igreja junto às áreas pobres,
chegando a assessorar a Fafeg (SANTOS, 1981; PUGLIESI, 2002). O projeto de
urbanização desenvolvido a partir do diálogo entre governo e comunidade, no qual os
arquitetos apenas opinavam sobre os desenhos dos próprios moradores para suas
casas, passou a ser visto como um ponto de ruptura no campo de atuação do arquiteto
junto aos movimentos populares (LOPES, 2011). O debate sobre a indissociabilidade
entre técnica e política impulsionou, após o retorno da democracia, a formação de
assessorias técnicas em São Paulo, como será abordado adiante.

O caso de Brás de Pina é bastante ilustrativo de como ideias vindas de fora se


amalgamam a dinâmicas locais, políticas e sociais, específicas. Houveram, porém,
outros exemplos da disseminação do slum upgrading por agências e fundações
internacionais no Rio de Janeiro.

No final de 1972, Carlos Nelson Ferreira dos Santos, um dos arquitetos que
havia participado do projeto de Brás de Pina foi procurado pela Inter American
Foundation, agência independente criada, em 1969, pelo congresso dos Estados
Unidos para “canalizar a assistência ao desenvolvimento diretamente aos pobres

182
Disponível em: http://rioonwatch.org.br/?p=4676. Acesso em 09/05/2019.
183
Carlos Nelson Ferreira dos Santos, Rogério Aroeira Neves, Sylvia Lavenère-Wanderley, Sueli de
Azevedo e Fernando Casério de Almeida.
189

organizados da América Latina e do Caribe”184. De acordo com o arquiteto:

O objetivo expresso dessa organização era financiar experiências em


comunidades (sic!) rurais e urbanas em países subdesenvolvidos. Ao
mesmo tempo, eles queriam analisar criticamente os resultados do
que estariam financiando, na expectativa de que, através do estudo
de atuações concretas e limitadas a pequenos casos, se adquiria um
know-how aplicável universalmente. Os objetivos da Inter American
representavam uma oposição aos da Usaid e refletiriam a disputa
entre o poder do presidente e o do Congresso nos EUA na época. Eles
não queriam repetir as atuações monumentais da Usaid porque
estavam convictos de que partiam de pressupostos preconceituosos,
que levavam a grandes erros (SANTOS, 1981, p. 102).

Vale lembrar que a Usaid havia estado por trás dos grandes conjuntos
habitacionais desenvolvidos na América Latina no âmbito da Aliança para o
Progresso. De qualquer modo, apesar da força das remoções de favelas e da
centralidade da política habitacional comandada pelo BNH, nos anos 1960 e 1970, no
Brasil, o interesse de agências multilaterais, agências de cooperação bilateral e
fundações internacionais interessadas em contribuir para a urbanização das favelas
brasileiras parecia ser cada vez maior.

No início da década de 1970, a produção pública da habitação no modelo do


BNH já se mostrava inviável. Essa produção havia gerado conjuntos habitacionais
periféricos, de baixa qualidade e destinados a uma população pobre que não podia
pagar por eles (BOLAFFI, 1982). Em consequência, os financiamentos foram
praticamente interrompidos entre 1970 e 1974 e o sistema foi reformulado. Essa
reformulação dos financiamentos do BNH fazia parte de um conjunto de medidas
formuladas, em 1974, pelo Conselho de Desenvolvimento Social envolvendo
diferentes políticas sociais (MELO, 1989). A partir dessa reformulação, o crédito
habitacional para aquisição da casa própria passou deliberadamente a priorizar as
faixas de renda mais altas (AZEVEDO e ANDRADE, 1982) e o atendimento da
população mais pobre passou a ser feito por meio de “programas alternativos”.

Os sinais de esgotamento da política nacional operada pelo BNH ocorriam em


um período de intensa urbanização185 e crescimento de favelas e loteamentos

184
Cf. https://www.iaf.gov/about/
185
Embora a população urbana aumentasse a taxas elevadas desde os anos 1940, foi entre 1960 e
1980 que ocorreu a aceleração do processo de urbanização brasileiro. A taxa de crescimento da
população urbana brasileira –de 4,9% entre 1940 e 1950 e 8,6% entre 1950 e 1960 – chega a 11,2%
190

irregulares, por vezes em torno dos próprios conjuntos produzidos pelo poder público
em periferias distantes. O descontentamento e a organização política dos pobres
urbanos que vinham sendo duramente reprimidos durante os “anos de chumbo” da
ditadura militar começavam a ganhar nova expressão e fôlego na segunda metade
dos anos 1970, durante o período de “distensão” da ditadura militar (MATHIAS, 1995),
com a ascensão à presidência de Ernesto Geisel (1974-1979).

Os programas alternativos criados pelo BNH incluíam: aquisição de terrenos;


construção e aquisição de moradias acabadas, incluindo casas embrionárias, casas
isoladas, apartamentos ou uma combinação destas formas (Planhap, lançado em
1973); aquisição de lotes com infraestrutura (Profilurb, lançado em 1975); e
construção, conclusão, ampliação ou melhoria de habitações individuais através de
empréstimos para materiais de construção (Ficam, lançado em 1977). Para regular
essa nova abordagem foi aprovada a Lei Federal de Parcelamento do Solo 6.766/79.
Essa lei reuniu dispositivos sobre ordenação do espaço urbano (e.g. indicadores
mínimos de áreas públicas, de áreas e testadas de lotes e de faixas não edificáveis),
bem com em relação à compra e venda de lotes, garantindo direitos e estabelecendo
os deveres dos adquirentes de lotes (BARREIROS e ABIKO, 1998).

Esses programas, apesar de concebidos segundo os preceitos disseminados


pelo Banco Mundial, não contaram com seu financiamento até 1979, ainda que
tivessem sido muitas as ofertas feitas pela instituição multilateral, que vinha desde
1973 manifestando seu interesse em financiar sites and services no Brasil (WORLD
BANK, 1988). Nesse período, foram inúmeras as discussões entre o Banco Mundial
e o BNH, o qual, malgrado sua aparente abertura à expertise da instituição
internacional, mostrava relutância quanto à obtenção de empréstimos.

O BNH naquela ocasião, como gestor do Fundo de Garantia do Tempo de


Serviço (FGTS), dispunha de amplos recursos, com baixas taxas de juros, e não
necessitava dos recursos ofertados pelo Banco Mundial, além de ter certas reservas
por considerá-lo “muito rígido, lento e excessivamente exigente” (WORLD BANK,

entre 1960 e 1970, década que o Brasil passa a ser predominantemente urbano, e a 11,7% entre 1970
e 1980. A partir dos anos 1980 o ritmo da urbanização passa a diminuir gradualmente (SARAIVA,
2008).
191

1988, p. 3). Somente após nova investida junto ao alto escalão do governo federal186,
num contexto em que sinais de transição do regime militar para a democracia
tornavam-se evidentes, é que o empréstimo no valor de US$ 93 milhões foi acordado,
inicialmente para abranger os programas Planhap, Profilurb e Ficam, além de um
projeto de slum upgrading no Recife187 (WORLD BANK, 1988).

Logo após a assinatura do contrato de empréstimo, porém, mudanças nos


governos federal, estaduais e municipais, levaram o Banco Mundial a uma
reavaliação. Os recursos inicialmente concentrados nos programas Profilurb e Ficam
foram realocados para projetos de urbanização de favelas, os quais deveriam ser
promovidos no âmbito do Programa de Erradicação da Sub-habitação (Promorar),
estruturado em 1979. O Promorar visava o financiamento de melhorias nas favelas,
incluindo a garantia de posse de terras e a provisão de infraestrutura e serviços para
preservar as comunidades existentes e minimizar o deslocamento da população. Esse
programa seria complementado posteriormente pelo Programa Nacional de
Autoconstrução – Projeto João de Barro, introduzido em 1984 para financiar a
autoconstrução da moradia de baixa renda em núcleos urbanos de pequeno e médio
porte. O impacto trazido por esses programas, contudo, foi muito maior em termos de
uma mudança de enquadramento para o problema dos territórios habitados pelos
pobres do que em termos de resultados efetivos (MELO, 1989).

A assessoria técnica prestada pelo Banco Mundial, a princípio limitada a São


Paulo (Cohab-SP), Bahia (Urbis) e Pernambuco (Cohab-PE), foi expandida para
outros Estados e cidades até o final do contrato em 1987 (WORLD BANK, 1988).
Estima-se que o Profilurb tenha financiado cerca de 70 mil unidades habitacionais
entre 1975 e 1984, e o Promorar, cerca de outras 200 mil até 1989, quando foi extinto
(BUENO, 2000). Uma produção insignificante diante dos mais de 1 milhão de
domicílios em aglomerados subnormais, conforme revelou o Censo Demográfico do
IBGE de 1991.

186
Junto ao Ministro do Planejamento, à época João Paulo dos Reis Veloso (WORLD BANK, 1988).
Era ele quem fazia parte do grupo que participava das reuniões semanais com o presidente Geisel. Cf.
http://www.fgv.br/CPDOC/BUSCA/dicionarios/verbete-biografico/joao-paulo-dos-reis-veloso
187
Inicialmente destinado a Jiquiá-Remédios, zona oeste da capital pernambucana, onde à época
viviam mais de 7 mil famílias. Posteriormente os recursos passaram para a urbanização de Brasília-
Teimosa no centro do Recife, e à bacia do Rio Camarajipe em Salvador.
192

Apesar da pouca expressão numérica desses programas, sua implementação


representou importantes mudanças na postura oficial, a qual, alinhada ao debate
promovido internacionalmente por organizações intergovernamentais, passava a
aceitar a possibilidade de urbanizar e regularizar juridicamente as favelas,
eventualmente financiando a autoconstrução de moradias. Com o advento dessa nova
abordagem, sobretudo no âmbito do Promorar, um conjunto de estruturas
administrativas e de leis municipais começaram a ser criadas em diferentes cidades.

Os primeiros projetos de urbanização de favelas com recursos do Promorar


foram realizados em Salvador, na ocupação de Alagados, e no Rio de Janeiro, na
favela da Maré (Gordilho-Souza, 2000). No caso da Bahia, o governo do Estado já
havia solicitado ao governo federal, em 1972, recursos para a melhoria das condições
habitacionais nessa área, assinando no ano seguinte convênio com o BNH. O plano
desenvolvido pelo Grupo de Estudos para os Alagados da Bahia (Gepab) resultou na
erradicação de todas as palafitas, por meio de aterros e da implementação de
infraestrutura de drenagem, saneamento básico e pavimentação. A execução do
projeto se estendeu até 1984, com a substituição de palafitas por novas habitações
construídas sobre a área aterrada, seguindo o modelo de crédito imobiliário financiado
a longo prazo pelo BNH (CARVALHO, 2002)

Além da intervenção em Alagados, os recursos do Promorar, a partir de 1982,


deram início à produção de peças pré-moldadas (p. ex., escadas drenantes, muros de
contenção de encostas e canalização de córregos) pela Companhia de Renovação
Urbana de Salvador (Renurb), as quais foram implantadas em obras de saneamento
básico das favelas. Essa produção era consequência do trabalho do arquiteto João
Filgueiras Lima, quem, já vinha se ocupando do desenvolvimento de um sistema
construtivo pré-moldado, cujos primeiros protótipos foram implantados em 1979, para
urbanizar assentamentos populares com o mínimo impacto (TEIXEIRA, MOURAD e
SILVA, 2018).

No Rio de Janeiro, o Promorar foi significativo para a urbanização da favela da


Maré. A urbanização dessa favela fazia parte do Projeto Rio, que consistia na
recuperação ecológica e paisagística de uma região às margens da Baía da
Guanabara, desde o bairro do Caju até o município de Duque de Caxias. O anúncio
da urbanização da favela em 1979 foi recebido com desconfiança pela população, que
193

o interpretou como mais uma ameaça de remoção, procurando se mobilizar para


impedi-la188. Dois anos depois, no entanto, o então presidente João Baptista de
Oliveira Figueiredo visitou a favela para a entrega dos primeiros títulos de propriedade,
sendo recebido entusiasticamente pela comunidade (BRUM, 2006).

É importante destacar que a urbanização da favela da Maré ocorreu no


momento em que estruturas administrativas eram criadas no município para lidar com
a necessidade de investimentos nas favelas. Essas mudanças ocorrem logo após a
ocorrência da conferência Habitat I, organizada pelas Nações Unidas em 1976, na
qual o slum upgrading como solução para o problema habitacional das cidades dos
países pobres ganha centralidade. É nesse contexto que, por recomendação do
Fundo das Nações Unidas para a Criança (Unicef), interessado em ações
especialmente relacionadas a crianças e promoção da saúde nas favelas, a
Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS) foi criada em 1979, dois
meses após o lançamento do Projeto Rio. Já nos primeiros documentos produzidos
pela SMDS, a diretriz de remoção foi afastada em favor da urbanização das favelas189
(BRUM, 2006). Além disso, desde sua criação a SMDS passou a discutir a realização
de um levantamento fundiário das favelas cariocas, ponto de partida para sua
regularização.

A regularilazão da posse da terra nas favelas era uma questão que vinha
mobilizando os movimentos de favelados em diferentes cidades, sobretudo com o
apoio da Igreja Católica. No Rio de Janeiro, a Pastoral das Favelas havia criado, em
1978, o Serviço de Assistência Jurídica, para prestar assessoria às comunidades em

188
Havia circulado entre os moradores a informação de que apenas as áreas da favela ocupadas por
casas de alvenaria seriam urbanizadas, devendo ser a área ocupada por palafitas, onde viviam cerca
de um terço dos moradores, aterrada e transformada em parque. A ameaça de remoção levou os
moradores a formar a Comissão de Defesa das Favelas da Maré (Codefam), a qual após reuniões com
os órgãos federais recebeu a visita do Ministro do Interior Mario Andreazza, a quem se vinculavam o
BNH e o Departamento Nacional de Obras Sociais. Durante a visita o ministro garantiu que nenhum
morador seria transferido da área da Maré, que a todos seriam concedidos títulos de posse e que
escolas e postos médicos seriam instalados.
189
De acordo com o primeiro desses documentos “Diretrizes para o estabelecimento de uma política
de ação para as favelas do município do Rio de Janeiro” de 1979: “A tomada de posição política do
Governo municipal, nunca antes explicitada de forma tão inequívoca, é no sentido de reconhecer
oficialmente o fenômeno, incluindo as favelas entre as áreas que deverão receber sua atenção
prioritária. A remoção somente se processará nos casos em que a própria segurança do morador assim
a exija” (BRUM, 2006, p.104).
194

luta pela posse da terra190. Foi a partir dos encontros da Pastoral, por exemplo, que
havia surgido o projeto de reduzir o prazo da usucapião urbana de 20 para 5 anos
(BRUM, 2006), posteriormente incluído na Constituição de 1988. No Recife, a
regularização fundiária das favelas era uma bandeira de luta desde os anos 1970.
Nessa cidade, os recursos provenientes do Promorar possibilitaram ampliar a escala
de intervenções pontuais e já vinham ocorrendo nas favelas, que à época abrigavam
cerca de metade da população total (MORAES, MIRANDA e SOUZA, 2018). Para
atender a exigência do Promorar de regularização da posse, facilitada pela instituição
da já mencionada Lei Federal de Parcelamento do Solo de 1979, foram criadas 26
Áreas Especiais de Interesse Social (Aeis) em 1980191, no interior das quais muitos
processos de legalização da posse foram construídos de forma participativa
(DENALDI, 2003). Em 1983, essas áreas foram transformadas pela Lei 14.511 de Uso
e Ocupação do solo em Zonas de Especial Interesse Social192.

Dois anos antes, por pressão do movimento “Terras de Ninguém”, que reunia
mais de 50 comunidades, o governo do Estado havia desapropriado uma área de
cerca de 350 hectares, onde moravam cerca de 15 mil famílias, para ser urbanizada
e regularizada pela Cohab-PE, o que aconteceu entre 1987 e 1990 (SOUZA, 2007).
Em 1986, quando se iniciou a gestão de Jarbas Vaconcelos (PMDB), primeiro prefeito
do Recife eleito diretamente após a ditadura militar, foi elaborada a lei que instituiu o
Plano de Regularização das Zonas Especiais de Interesse Social (Prezeis), prevendo
gestão participativa através de comissões de urbanização e legalização (Comul). A
Lei 14.957, resultado de um projeto elaborado por entidades e organizações da
sociedade civil, a partir de amplo processo de discussão, tornou-se referência nacional
nos anos seguintes (SOUZA, 2007).

Em São Paulo, não obstante esse contexto de crescente movimento pela


urbanização e regularização das favelas, a existência de uma população pouco
significativa nas favelas193 até os anos 1970 permitia a manutenção de uma postura

190
De 1981 até 1986, a Pastoral chegara até mesmo a contar com o apoio financeiro da Fundação
Ford para o desenvolvimento de suas atividades.
191
Decreto Municipal 1.1670/1980.
192
No mesmo ano de 1983, a prefeitura de Belo Horizonte instituiu o Programa Municipal de
Regularização de Favelas (Profavela).
193
O levantamento da prefeitura de São Paulo realizado em 1973 indicou cerca de 70 mil habitantes,
ou 1% da população do município. Já uma nova pesquisa realizada também pela prefeitura em 1987
195

que articulava o “desfavelamento” ou a remoção ao assistencialismo (BUENO, 2000).


Assim, o Departamento de Habitação e Trabalho (Habi), criado em 1966 no interior da
Secretaria Municipal de Bem-Estar Social (Sebes), restringia-se a remover famílias
moradoras de favelas em situação de emergência194 e a executar obras públicas para
alojamentos provisórios.

5.2.2 As iniciativas pioneiras

O crescimento das favelas195 no período de distensão da ditadura militar,


principalmente após a revogação do AI-5 em dezembro de 1978, fez com que
diferentes setores da sociedade civil passassem a pressionar crescentemente o
Estado por políticas sociais. Ao longo dos anos 1980, numerosos movimentos de luta
por moradia, com o apoio de parte da Igreja Católica e de acadêmicos, passaram a
se articular e a retomar as discussões iniciadas na década de 1960 sobre o caráter de
uma necessária reforma urbana (MARICATO 1996). A implementação dos programas
alternativos do BNH e, principalmente, das iniciativas que os sucederam sofreu
pressão direta desses movimentos. No cenário de transição democrática e retorno do
pluripartidarismo, não se pode negar que houvesse também certa postura clientelista
por trás das intervenções em favelas.

Na gestão de Olavo Setúbal (1975-1979), por exemplo, apesar das remoções


continuarem como a principal diretriz de governo, foram comprados alguns terrenos
em áreas particulares ameaçadas de despejo, contratados os primeiros engenheiros
e arquitetos para lidar com o tema e implementadas melhorias nos terrenos das
próprias favelas, como pinguelas, redes de drenagem e escadarias através de mutirão
(BUENO, 2000). Essa postura ambígua permaneceria até o final do mandato, quando

indicou que a população favelada havia alcançado algo como 812 mil habitantes ou 9% da população
do município (SARAIVA e MARQUES, 2005).
194
Nessas ações, por meio do Movimento Universitário de Desfavelamento (MUD), criado em 1961,
estudantes prestavam assistência a moradores de favelas através de convênios com a prefeitura
o
(BUENO, 2000). Em 1965, o MUD organizou em São Paulo o 1 Seminário Nacional de Estudo do
Problema Favela, trazendo diversos intelectuais, representantes de entidades de classe e do governo
para discutir o assunto (SILVA, 2009).
195
Em 1982 eram contabilizadas 63 favelas com 76.268 barracos e aproximadamente 400 mil pessoas
(PMSP/Emurb, 1982 apud SILVA, 2009, p. 207)
196

sob pressão de assistentes sociais e movimentos de moradores de favelas196,


apoiados pela Pastoral da Moradia, foi criado o Fundo de Atendimento à População
Moradora em Habitação Subnormal (Funaps) (D’ALESSANDRO, 1999).

Os recursos do Funaps, a fundo perdido, podiam ser utilizados para:

I - Aquisição de lote de terreno para a construção de moradia própria,


de preferência em locais próximos às habitações subnormais dos
beneficiários; II - Compra de material de construção para a edificação
de moradia própria; III - Aquisição de edificação para moradia própria;
IV - Melhoria das condições de habilidade em geral, inclusive das
próprias habitações subnormais (Lei 8.906 de 27 de abril de 1979).

No ano seguinte, Reynaldo de Barros (1979-1982), empossado por Paulo Maluf


(um aliado do regime militar) e de olho nas próximas eleições para o governo do
estado, criou, com os recursos do Funaps, dois novos programas: o Profavela e o
Properiferia. Por meio de convênio entre a Cohab-SP, a Empresa Municipal de
Urbanização (Emurb) e o BNH, o município recebeu recursos federais do Promorar e
do Profilurb. O convênio (Lei 9.187/ 1980) previa a implantação de infraestrutura em
16 favelas, com a construção de 3.500 unidades habitacionais do tipo “embriões” (22
e 26m2), e complementação urbana e melhorias habitacionais em 12 loteamentos
periféricos. 197

O Profavela previa ações de melhorias “com o objetivo de minimizar a


precariedade das condições de vida” ou voltadas para a urbanização, nos casos em
que houvesse “condições físicas, jurídicas e sociais” adequadas. Como seria de se
esperar, dada à natureza do fenômeno, a maioria das favelas não apresentava essas
condições e apenas ações de melhorias foram feitas. No total 6.036 domicílios foram
atendidos em 26 favelas (SILVA, 2009, p. 206). Além do convênio com o governo
federal, a prefeitura estabeleceu convênios com as concessionárias estaduais
responsáveis para o fornecimento de luz198 (Proluz) e abastecimento de água
(Proagua) (BUENO, 2000).

196
Destaca-se a atuação do Movimento de Defesa dos Favelados, o qual, criado em 1978 em Santo
André, rapidamente foi ampliado e passou a abranger outras favelas da região metropolitana de São
Paulo (SILVA, 1994).
197
Dados oficiais indicam a construção de 4.512 unidades em 6 conjuntos (PMSP/ Emurb, 1982 apud
SILVA, 2009, p. 224)
198
Até 1982, 715 favelas (62.446 domicílios) foram dotadas de energia elétrica e 311 favelas (18.265
domicílios) dotados de ligações de água, sendo 98% de ligações individuais (SILVA, 2009, p. 222).
197

Os resultados dessas primeiras intervenções representavam uma ruptura na


postura em relação as favelas até então em São Paulo. Em 1982, um “Estudo de
normas legais de edificação e urbanismo adequado às áreas de assentamentos
subnormais ou de baixa renda" foi realizado, a pedido do BNH, pelo Centro de Estudos
e Pesquisas de Administração Municipal da Fundação Prefeito Faria Lima (Cepam)199.
Nesse estudo foram defendidos padrões e dimensão mínima de lotes, ruas e vielas,
distâncias entre postes, fiação e edificação, entre outros aspectos (BUENO, 2000).

Com o fim do BNH, em 1986200, contudo, extinguiram-se os programas federais


visando a melhoria das favelas. A Caixa Econômica Federal assumiu os contratos de
financiamento habitacional, mas o forte viés comercial desse banco dificultou o
desenvolvimento de novos programas habitacionais para baixa renda (AZEVEDO,
2007). Somente na década seguinte, novos programas federais foram criados, com
financiamentos de maior vulto a partir dos anos 2000. A ausência de recursos e
programas habitacionais no governo federal teve como consequência o protagonismo
dos governos subnacionais (ARRETCHE, 1996). Um protagonismo quase sempre
condicionado por conflitos específicos na arena local (MELO, 1989).

Em São Paulo, a existência do Funaps, desde 1979, foi um elemento central


para a atuação descentralizada do município. Com a eleição de Mário Covas (1983-
1985), primeiro prefeito de oposição à ditadura, foram executadas ações de
urbanização e de recuperação (melhorias) nas favelas. Mais importante, talvez, as
favelas passaram a ser tratadas como uma questão de política habitacional, sendo
incluídas no Plano Habitacional do Município de São Paulo (1983-1987).

A urbanização incluía o parcelamento do solo, a provisão de infraestrutura, a


construção de unidades habitacionais e a regularização fundiária de favelas situadas
em áreas municipais, não sujeitas a risco e consolidadas há mais de cinco anos. Nos

Entre agosto de 1980 e janeiro de 1984, 1060 favelas na cidade de São Paulo, com pouco mais de 83
mil barracos, foram eletrificadas (Sachs, 1999, p.186)
199
O Centro de Estudos e Pesquisas de Administração Municipal - Fundação Prefeito Faria
Lima (CEPAM) foi uma instituição pública do estado de São Paulo, extinta em 2015, destinada ao
estudo da administração pública municipal e prestação de serviços de capacitação e consultoria técnica
às prefeituras do estado de São Paulo.
200
Entres as razões para essa extinção estão a crise econômica dos anos 1980, que reduzia a captação
líquida do FGTS e fazia cair a receita de juros e amortizações de empréstimos; o altíssimo nível de
inadimplência dos mutuários; e a renegociação das dívidas de estados e municípios (MELO, 1989, p.
51)
198

casos que não preenchiam esses requisitos, obras mínimas visando a minimização
de riscos e saneamento foram realizadas (D’ALESSANDRO, 1999, p. 47).
Paralelamente às intervenções físicas, foi enviado à Câmara um pedido de
desafetação de oito áreas públicas para Concessão de Direito Real de Uso, a título
oneroso, para as famílias. Esse recurso jurídico passava a ser recorrente em
diferentes cidades brasileiras (BUENO, 2000), possivelmente em decorrência do
trabalho realizado pelas pastorais de moradia junto aos moradores de favelas201.

Ainda na gestão de Covas, os recursos do Funaps também foram utilizados


para financiar empreendimentos por mutirão, uma forte demanda dos movimentos
populares, que foi incorporada pelo governo municipal ao mesmo tempo em que
começaram a se consolidar ações de urbanização de favelas. Entre 1981 e 1984, mais
de 60 ocupações de terra visando pressionar o governo por investimentos em
moradias populares ocorreram em São Paulo, envolvendo um total de cerca de 10 mil
famílias (BONDUKI, 1986). A maior delas ocorreu em 1981, numa grande área de
propriedade particular conhecida como Fazenda Itupú, na zona sul da cidade, e
envolveu cerca de 3 mil famílias, reunindo pela primeira vez diferentes movimentos e
organizações. Essa ocupação foi um primeiro indício da organização do movimento
de luta por moradia em São Paulo. Em 1987, a União de Movimentos de Moradia foi
fundada.

Essas ações ocorridas na gestão de Mário Covas, portanto, podem ser


consideradas como um ponto de inflexão (D’ALESSANDRO, 1999) na política
municipal em direção à aceitação da favela como parte da cidade. Essa mudança de
orientação parece ter tido algum efeito nas próximas gestões. Mesmo naquelas
dirigidas por políticos conservadores e que priorizaram operações imobiliárias e obras
viárias de grande porte, muitas vezes associadas a remoções de favelas. Esse foi o
caso da gestão seguinte, a cargo do Prefeito Jânio Quadros (1986-1988), e das
gestões de Paulo Maluf (1993-1996) e seu sucessor Celso Pitta (1997-2000).
Observa-se, porém, que ainda que com discurso e projeto político muito diferentes,
essas gestões mantiveram ou mesmo criaram estruturas administrativas voltadas
para a habitação e para a melhoria e consolidação das favelas. Cabe, porém, enfatizar

201
No Rio de Janeiro, por exemplo, destaca-se o programa "Cada Família, um Lote" desenvolvido pela
Secretaria Estadual de Trabalho e Habitação durante a gestão do governador Leonel Brizola (1983-
1987).
199

e diferenciar o discurso e projeto político que à época da gestão de Mário Covas


começava a tomar forma na sociedade, relacionado tanto às reivindicações pela
construção de moradias por mutirão como pela urbanização de favelas.

Como se procurou demonstrar até aqui, nos anos 1970 existia forte pressão de
movimentos sociais, assim como de parte da Igreja Católica para a urbanização das
favelas, em diferentes cidades. Essa pressão estendia-se também à academia. Um
grupo de professores da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de
São Paulo, por exemplo, estimulava uma aproximação dos estudantes com a
realidade das favelas e periferias202 (ARANTES, 2002). Essa aproximação era
motivada por um debate intelectual mais amplo promovido em torno das teorias do
sistema mundo capitalista, das relações de dependência entre centro e periferia e da
dimensão excludente do crescimento econômico brasileiro. Buscava-se uma reflexão
sobre as características da urbanização brasileira e o papel das políticas urbanas e
habitacionais em transformar cidades marcadas por desigualdades e pobreza
(MARICATO, 1982). Tratava-se ainda de democratizar a técnica e, ao mesmo tempo,
racionalizá-la por meio dos conhecimentos especiais do arquiteto. Informados por
esse debate, e pela experiência já mencionada de Brás de Pina, pelas cooperativas
de habitação uruguaias203 e, de modo mais amplo, até pelos escritos de John F.C.
Turner e do arquiteto egípcio Hassan Fathy, laboratórios de habitação (no âmbito da
universidade), e assessorias técnicas foram criados, fortemente ligados a movimentos
de moradia (LOPES, 2011).

Assim, no início dos anos 1980, os movimentos de moradia buscavam


desenvolver projetos-pilotos com a assessoria de profissionais – arquitetos,
engenheiros, assistentes sociais, advogados e etc. (BONDUKI, 1986). De maneira
sintética, pode-se afirmar que o sentido do mutirão proposto pelos movimentos de
moradia em São Paulo ultrapassava o que era considerado como possível em
programas que até então implementados nos municípios, seguindo, por exemplo, os
princípios do Projeto João de Barro, criado pelo governo federal em 1984. De acordo

202
Ermínia Maricato, que assumiria a Secretaria de Habitação em 1989, ministrava desde o final dos
anos 1970 (junto com Rodrigo Lefèvre, Siegbert Zanettini e Walter Ono, entre outros) disciplinas que
incluíam visitas à periferia.
203
Organizadas em torno da Federación Uruguaya de Construcción de Viviendas por Ayuda Mutua-
Fucvam.
200

com o depoimento de uma liderança:

“O mutirão do governo continua querendo tutelar o povo, impedir sua


autonomia, trocar favor, funcionar dentro da lógica clientelista
brasileira, enquanto o mutirão do movimento social pretende criar um
espaço popular próprio e por isso é baseado na ideia de “autogestão”
e na de desidentificação com o Estado” (ARANTES, 2002, p. 171).

Assim, parece ser possível estabelecer algum paralelismo, entre a concepção


emancipatória dos movimentos de moradia e a faceta anarquista das ideias de John
F.C. Turner. A construção da própria casa como parte de um processo emancipatório
e libertador não era um ideal presente nos programas federais e nem mesmo nas
propostas das agências multilaterais. Mas o diálogo da administação local com os
movimentos sociais que parecia ganhar forca na gestão de Covas, foi interrompido na
gestão seguinte, com Jânio Quadros (1986-1988) à frente.

Os recursos do Funaps passaram então a privilegiar a construção de unidades


novas pela Cohab-SP associada a um discurso de “desfavelamento”. Na prática,
porém, apenas as favelas localizadas em áreas de grande visibilidade foram
removidas204 com a destinação de casas construídas pela Cohab em áreas periféricas
para as famílias removidas. Diante da extinção do BNH, os recursos para a construção
dessas unidades habitacionais passavam a ser viabilizados pela lei 10.209/86 que
regulamentou a destinação de recursos provenientes de operações interligadas para
a construção de habitações de interesse social destinadas aos moradores das favelas.
De acordo com essa lei, os proprietários de terrenos ocupados por favelas poderiam
requerer a modificação dos índices e características de uso e ocupação do solo do
próprio terreno ocupado pela favela, ou de outros, sua propriedade, desde que se
obriguem a construir e a doar, ao Poder Público, habitações de interesse social para
a população favelada. Esse mecanismo bastante acionado durante a gestão de Paulo
Maluf, a partir da lei 11.733/95, foi considerado inconstitucional em 2001.

Algumas ações importantes, contudo, em relação às favelas devem ser


mencionadas, como a realização de um levantamento cadastral e censo de favelas
em 1987 e a transferência do órgão responsável pelas favelas, a Superintendência de

204
Foram removidas as favelas Cidade Jardim, em frente ao Jóquei Clube, e à Avenida Cidade Jardim,
a favela da Avenida Juscelino Kubitschek e a favela Formigueiro, na Vila Maria, antigo reduto eleitoral
de Jânio (BUENO, 2000, p.69)
201

Habitação Popular (Habi), para a Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano


(Sehab), a qual era até então responsável apenas pela “parte formal” da cidade.

Ao final dessa gestão, em 1987, recursos para o desenvolvimento do Programa


de Canalização de Córregos e Construção de Avenidas de Fundo de Vale (Procav)205
foram aprovados junto ao BID, que já atuava, no Rio de Janeiro, em projetos de
intervenção em favelas, como será visto adiante. O resultado foi a remoção de mais
de 4 mil domicílios em favelas (FRANÇA, 2009) e a extensão do programa às gestões
seguintes. Essa foi a primeira operação acordada entre o município de São Paulo e o
BID no setor de desenvolvimento urbano e habitação206.

Na administração seguinte, liderada por Luiza Erundina (1989-1992), eleita


pelo Partido dos Trabalhadores, as ações de urbanização de favelas foram não
apenas retomadas como ganharam escala. A eleição de uma mulher, assistente social
e cuja carreira profissional e política se desenvolvera de mameira muito próxima dos
movimentos de favelas era um indicativo de que o investimento público seria
canalizado para as periferias. Muitos profissionais que vinham atuando em favelas e
loteamentos periféricos – via universidade, pastorais ou de maneira autônoma –
engajaram-se, assim, com o novo governo municipal207. O momento de reconstrução
democrática vivido no país dava vazão ao exercício de utopias.

A eleição de Erundina foi iniciada apenas três anos após o fim do BNH e com
parcos recursos para enfrentar o problema habitacional. O propósito da gestão foi,
portanto, mostrar que “uma outra política habitacional era possível” (BONDUKI, 2011,
p.41). Caberia à Habi “pensar os programas alternativos e estabelecer a interlocução
com o movimento de moradia”.

A busca por compatibilizar uma boa arquitetura e adequada inserção


urbana com custos compatíveis com a habitação social revelou

205
A operação “Municipal Micro Drainage Program in Sao Paulo- BR0077” foi aprovada em 17/12/1986
no valor total de 302.180.000 de dólares, sendo 224.680.000 correspondentes à contrapartida do
tomador.
206
Uma lista de todos as operações do BID nesse setor no Brasil pode ser encontrada em
https://www.iadb.org/en/projects-
search?query%5Bcountry%5D=BR&query%5Bsector%5D=DU&query%5Bstatus%5D=&query%5Bqu
ery%5D= Acesso em 18/05/2019.
207
Ermínia Maricato assumiu o cargo de Secretária de Habitação, convidando para Superintendente
de Habitação Popular a Nabil Bonduki, um dos profissionais envolvidos no Laboratório de Habitação
da Faculdade Belas Artes, responsável por iniciar a urbanização da favela Recanto da Alegria, na
gestão de Mário Covas.
202

caminhos que criaram referências projetuais inovadoras na produção


da arquitetura da habitação. Isto foi possível graças a novas formas
de gestão, como o mutirão auto-gerido e ao rigor no controle dos
custos de produção, valorizando a etapa de projeto. Uma ampla gama
de profissionais foi mobilizada, combinando arquitetos experientes
com uma nova geração – organizada em entidades de assessoria
técnica – formada num contato mais estreito com os movimentos de
moradia e sob uma perspectiva de projeto participativo (BONDUKI,
2011, p. 43)

A aprovação de um capítulo sobre política urbana na nova Constituição,


promulgada em 1988, parecia finalmente favorecer a redução das desigualdades nas
cidades. A nova Constituição determinou o cumprimento da função social da
propriedade urbana, sujeita a instrumentos como o parcelamento e edificação
compulsórios e o imposto progressivo no tempo, assim como a concessão de uso
após posse ininterrupta para fins de moradia por cinco anos. Essas eram algumas das
propostas presentes na emenda entregue pelo Movimento Nacional pela Reforma
Urbana (MNRU) à Assembleia Nacional Constituinte.

A formação do MNRU, formalmente constituído nos anos 1980, resultava de


diferentes mobilizações sociais em torno do tema da reforma urbana, sobretudo em
torno do direito à terra, como aquela realizada pelas Pastorais da Igreja Católica,
desde meados dos anos 1970, com o intuito de assessorar e defender os direitos dos
moradores de favelas e loteamentos periféricos (MARICATO, 1996). O MNRU, que
também recuperava algumas das propostas debatidas no Seminário Nacional de
Habitação e Reforma Urbana de 1963 (BONDUKI e KHOURY, 2010), reuniu uma série
de organizações da sociedade civil, movimentos, entidades de profissionais,
organizações não-governamentais e sindicatos, além das Pastorais. Entre eles a
Federação Nacional dos Arquitetos, Federação Nacional dos Engenheiros, Federação
de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), Articulação Nacional do Solo
Urbano (Ansur), Movimento dos Favelados, Associação dos Mutuários, Instituto dos
Arquitetos, Federação das Associações dos Moradores do Rio de Janeiro (Famerj),
movimentos sociais de luta pela moradia, entre outros.

Ainda que a regulamentação do capítulo sobre política urbana da Constituição


de 1988 só viesse treze anos depois – com a aprovação do Estatuto da Cidade e da
subsequente Concessão de Uso Especial para fins de Moradia (Cuem) em imóveis
203

públicos208 – sua inclusão na Constituição representava uma importante conquista e


conferia força nacionalmente à luta pela reforma urbana.

Nesse contexto, Luiza Erundina, reafirmando o compromisso de sua campanha


com a participação popular, lançou logo no início de sua gestão um Plano de Ação
Imediata, conferindo prioridade às reivindicações dos movimentos de moradia e à
urbanização de favelas, e garantindo o apoio da administração às cooperativas
habitacionais, associações comunitárias e entidades de assessoria técnica para a
produção da habitação popular209. A prática da “autogestão” nos empreendimentos
populares, até então restrita a poucas experiências iniciadas durante a gestão de
Covas210, foi assim enfatizada e ampliada.

A política habitacional passou a reunir ações de urbanização de favelas;


produção de lotes urbanizados e de novas habitações; reforma de cortiços e
regularização fundiária. Para a produção das unidades habitacionais foram previstas
obras por empreiteiras e por mutirão. O percentual do investimento de Habi em
conjuntos habitacionais por mutirões autogeridos (Programa Funaps Comunitário ou
Funacom) alcançou 18,05 % (entre 1989 e 1991), perto de equiparar-se aos 25,14%
investidos na produção por empreiteiras (BUENO, 2000, p. 116). Para a realização
dessas ações a existência do Funaps foi fundamental211. A autonomia do fundo com
relação ao orçamento municipal conferia flexibilidade operacional e permitia a
participação dos movimentos e entidades através de conselhos gestores
(BARAVELLI, 2006).

Ao longo da gestão, e por demanda dos movimentos sociais, uma parte das
ações de urbanização de favelas também passaram a se dar por mutirão, porém a
urbanização de favelas foi apenas marginalmente financiada pelo Funaps, a partir de
1991 por meio do Programa de Urbanização Comunitária – Urbanacom212. Ao final, a

208
Lei 10.257 de 10 de julho de 2001 e Medida provisória 2.220, respectivamente.
209
Uma interessante análise preliminar da imbricação entre intelectuais paulistas, o Partido dos
Trabalhadores e o MNRU pode ser conferida em RUSSO (2017).
210
A urbanização da Favela Recanto da Alegria e o mutirão da Vila Nova Cachoeirinha eram
consideradas duas importantes referências.
211
Foi nessa gestão que o Funaps apresentou o maior percentual de participação no orçamento
municipal. Esse percentual que até então não ultrapassava cerca de 30% passaria a corresponder a
cerca de 50%, em média, do orçamento da Sehab, chegando a 77% em 1992, último ano da gestão
(ROSSETTO, 2003).
212
Com seis favelas e 2.199 domicílios sendo atendidos por este programa.
204

maior parte dos recursos do Funaps foram destinados à execução de infraestrutura


em glebas destinadas à construção das unidades em mutirão (BUENO 2000).

Em realidade, a pretensão de promover a urbanização de um grande número


de favelas nessa gestão demoraria a avançar. Ainda que a urbanização de favelas já
tivesse entrado na agenda de gestões anteriores, as intervenções realizadas haviam
sido muito pontuais e o fato das políticas para as favelas terem sido por anos
coordenadas por órgãos ligados à assistência social impunha alguma dificuldade.
Apesar da mudança da Habi para a Sehab, os profissionais alocados nessa
superintendência já estavam acostumados a trabalhar com a população das favelas
sob o ponto de vista da assistência social (ou seja, atendimentos emergenciais devido
à pobreza extrema, acidentes ou remoções). Esse destacado papel dos assistentes
sociais na Secretaria de Habitação, motivava muitos conflitos com os arquitetos e
engenheiros da Secretaria de Habitação (D’ALESSANDRO, 1999), dificultando de
início as ações.

O grande envolvimento de assistentes sociais nas ações de urbanização de


favelas em São Paulo e outras cidades brasileiras será um diferencial positivo em
relação a outros países. Na África do Sul, o envolvimento inicial de assistentes sociais
nas intervenções em favelas não perdurou com a descontinuidade das ações de
urbanização a partir de 1994. O diálogo que existia entre profissionais de diferentes
disciplinas, reunidos em torno das organizações formadas no final do apartheid, não
foi, portanto, transferido para as estruturas de governo.

Em São Paulo, aos conflitos entre assistentes sociais, de um lado, e


engenheiros e arquitetos, de outro, somava-se a ausência de estruturas
administrativas e de procedimentos (de projeto e contratação de obras) bem definidos,
assim como de expertise suficiente para a atuação em grande escala; e certa
resistência por parte dos próprios moradores das favelas em aceitar a prioridade dada
à implantação da infraestrutura no tecido existente, em detrimento do reparcelamento
e reconstrução das moradias, o que aproximaria essas áreas do padrão urbanístico
da cidade formal (BUENO, 2000). Esse último é um fator que até hoje, como visto,
predomina na África do Sul.
205

Para contornar esses impasses, ao longo do primeiro ano da gestão, algumas


medidas foram tomadas213. A estrutura de Habi passou a ser mais descentralizada
entre as regiões, passando de 5 para 11 escritórios regionais, o que facilitou a atuação
da gestão junto aos movimentos214, ao mesmo tempo em que os projetos e
procedimentos de contrato eram centralizados em uma única divisão. Além disso,
profissionais de outras cidades, principalmente do Rio de Janeiro, foram contratados,
para cargos efetivos ou como consultores (BUENO, 2000). Além dos engenheiros e
arquitetos contratados do Rio de Janeiro, outros profissionais da Bahia e de
Pernambuco, com experiência prévia em urbanização de favelas, participariam dessa
gestão215.

Cabe aqui recorrer novamente à história da urbanização de favelas no Rio de


Janeiro, onde desde o início dos anos 1980 vinha sendo desenvolvido, com o suporte
do UNICEF e do BID, o Projeto Mutirão e o Projeto de Desenvolvimento Social das
Favelas do Rio de Janeiro (BRUM, 2006; MENDES, 2006; FREIRE; FREIRE-
MEDEIROS e CAVALCANTI, 2009; BARBOZA, 2013; MATIOLLI, 2016). Considera-
se importante esta digressão pois quando o município de São Paulo buscou ampliar
sua atuação na urbanização de favelas, na gestão de Luiza Erundina (1989-1992), as
experiências do Rio de Janeiro foram uma importante referência.

A SMDS havia sido criada em 1979, como mencionado, com a proposta de


urbanizar e regularizar as favelas. Na sequência foi criado o Fundo-Rio para captação
e gerenciamento de recursos externos e estabelecido um contrato com o BID216. Os
recursos do BID financiaram, a partir de 1981, o Projeto de Desenvolvimento Social
das Favelas do Rio de Janeiro, o qual tinha por objetivo traçar o perfil socioeconômico,

213
O deslizamento de parte da favela Nova República com a morte de 14 pessoas teria sido um fator
importante no sentido de dar mais agilidade ao processo de reorganização administrativa voltadas para
a implementação das ações nas favelas (BUENO, 2000).
214
AS Habis Regionais coordenavam a organização dos Fóruns Regionais de Habitação, onde
participavam os representantes de movimentos de moradia e comunidades de favelas, cortiços e
loteamentos (BUENO, 2000).
215
Alguns dos profissionais de outras cidades que contribuíram com as ações de urbanização e
regularização fundiária de favelas na gestão de Erundina foram: Denise Penna Firme, Eduardo Cesar
Marques e Paulo Saad, do Rio de Janeiro; Evangelina Pinho e José Marinho Nery da Silva Júnior, do
Recife; e Jorge Hereda, de Salvador.
216
A operação “Technical Cooperation Special Program -TC7907168” foi aprovada em 18/12/1980 no
valor total de 980.000 dólares sendo 330.000 correspondentes à contrapartida local.
206

físico-urbanístico e jurídico217 de 21 favelas e elaborar um modelo de intervenção de


caráter integrado, centrado no controle do uso do solo e na melhoria da qualidade do
espaço físico das favelas. Em paralelo, foi iniciado o Projeto Mutirão com recursos da
SMDS.

O Projeto Mutirão visou a implantação de infraestrutura com a participação e a


mão-de-obra dos moradores das favelas. A Rocinha recebeu a primeira intervenção,
baseada em três eixos (educação comunitária, saneamento básico e ações
preventivas de saúde), a qual serviu de modelo para ser reproduzida em outras
comunidades. Na coordenação das ações do programa na Rocinha, do Fundo-Rio e
do Projeto de Desenvolvimento Social das Favelas do Rio de Janeiro estavam
arquitetos218 familiarizados com a urbanização de Brás de Pina e treinados em
instituições como Harvard e o Institute of Housing Studies (IHS), o que lhes fazia
também familiarizados com as ideias de ajuda-mútua e slum upgrading que
circulavam internacionalmente.

O modelo de intervenção concebido no âmbito do Projeto de Desenvolvimento


Social das Favelas do Rio de Janeiro, ao final de dois anos, em 1983, e com base na
experiência inicial do Projeto Mutirão, abrangia a adaptação das edificações
existentes, a construção de centros comunitários e áreas de lazer, concessão de
incentivos especiais aos estabelecimentos geradores de emprego, escolas e
prestadores de serviços de saúde. Além disso, previa a utilização de mão de obra da
população residente, a sua participação na definição e controle dos espaços, com o
fortalecimento das instituições locais, e a melhora das condições ambientais
(SMD/BID, 1985 apud MENDES, 2006).

O Projeto Mutirão entrou numa segunda fase a partir de 1984, tornando-se o


principal programa da SMDS219, com várias favelas atendidas, um número maior de

217
Os estudos socioeconômicos deveriam ser realizados pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (Uerj), o diagnóstico físico-urbanístico pelo Instituto Municipal de Planejamento (Iplanrio, atual
IPP) e o levantamento jurídico pela própria SMDS.
218
Entre eles estavam Augusto Ivan Pinheiro, então diretor do Fundo Rio, que havia trabalhado na
urbanização de Brás de Pina e estudado no IHS; e Ephim Shluger, quem coordenou as obras de
saneamento na Rocinha e que havia estudado em Harvard.
219
Com a eleição de Brizola (1983-1987) para o governo do estado, a afinidade partidária com o
município teria permitido a ampliação do orçamento do programa (BUENO, 2000). No âmbito do
governo do Estado, foi criado o projeto de Urbanização Integral de Favelas com a meta de transformar
as favelas, respeitando sua estrutura original, em bairros populares integrados ao entorno urbano. As
favelas Pavão, Pavãozinho e Cantagalo foram as primeiras escolhidas para serem urbanizadas. Ainda,
207

arquitetos e engenheiros contratados e a remuneração da mão-de-obra local. Além


disso, programas complementares para contenção de encostas, recuperação e
regularização das nascentes e mananciais, limitação da expansão das comunidades
em áreas de risco e a recomposição paisagística foram criados (BARBOZA, 2013). O
depoimento220 abaixo resume o amadurecimento do Projeto:

“Já no Plano de Trabalho 86 foi estabelecido então o escopo de


projetos e obras: a construção de redes de esgotamento sanitário e
drenagem de águas pluviais; a humanização das vias de acesso com
escadarias e pavimentações simples; e a criação de espaços
destinados ao lazer, recreação e esportes. Competia aos técnicos
avaliar as características das obras para melhoria da qualidade da
construção, buscar vínculos mais próximos com a SMO e a Cedae,
fortalecer as atividades com a área social da secretaria e a
participação comunitária. (...) Na realidade essas intervenções eram
realizadas muito mais por iniciativas de determinados técnicos e por
necessidades imediatas de obras” (FREIRE; FREIRE-MEDEIROS e
CAVALCANTI, 2009, p. 68)

Consequentemente as intervenções passaram a ser cada vez mais integradas


e complexas, com projetos para favelas conurbadas, como o complexo do Caricó na
Penha e o Sapê em Madureira. Assim, em 1989, quando a urbanização de favelas foi
elencada como uma das prioridades da política habitacional em São Paulo, a
experiência do Rio de Janeiro já era considerada uma importante referência e a troca
estabelecida entre os profissionais e prestadores de serviços nas duas cidades foi
intensa.

O retorno do pluripartidarismo e das eleições diretas para governadores


estaduais e prefeitos, no início dos anos 1980, havia resultado em numerosos
governos locais de “esquerda”, sobretudo ligados ao Partido dos Trabalhadores (PT)
e ao Partido Democrático Trabalhista (PDT), o que favorecia a troca de experiências
entre as cidades.

No último mês da gestão de Luiza Erundina, em 1992, o Programa


Guarapiranga, o primeiro programa em São Paulo com financiamento externo a conter
em seu escopo a urbanização de favelas, foi aprovado. As condições para o

no âmbito do governo estadual, foi criado pela Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de
Janeiro - Cedae um programa para o saneamento básico de comunidades de baixa renda (BARBOZA,
2013).
220
Para detalhes do cotidiano do Projeto Mutirão vale a leitura dos depoimentos de Lu Petersen ao
CPDOC em FREIRE; FREIRE-MEDEIROS e CAVALCANTI, 2009.
208

desenvolvimento desse programa surgiram num momento em que a política de


urbanização de favelas nessa cidade já estava mais consolidada: as intervenções
contavam com um considerável grau de intersetorialidade, mobilizando diferentes
secretarias221; os projetos, antes elaborados internamente, tinham passado a ser
contratados, assim como a execução das obras e às vezes o seu gerenciamento, tudo
com base em “cadernos de especificações” preparados por Habi (BUENO, 2000). A
contratação das obras uma a uma garantia a participação de pequenas e médias
empreiteiras no processo. Ainda que, a maioria das intervenções nas favelas, nesse
período, estivessem limitadas a obras pontuais.

Figuras 29, 30 e 31. Intervenções em favelas em São Paulo, 1989-1992.

Fonte: ANDRADE, BONDUKI, ROSSETTO, 1993, pp.42-43.

Foi nesse contexto que a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São


Paulo (Sabesp), que vinha negociando com o Banco Mundial, desde o início dos anos
1990, um projeto de melhora do abastecimento de água da região metropolitana222,
procurou a prefeitura para solicitar a retirada de favelas cujos esgotos estavam sendo

221
A Secretaria de Bem-Estar Social havia ampliado os programas de creches comunitárias e cursos
profissionalizantes em favelas, não atrelados à realização de obras físicas; a secretaria das
administrações regionais passou a executar as obras de contenção de risco (a partir de estudos e
avaliações de risco geotécnico contratados por Habi); as remoções necessárias para obras viárias e
de macrodrenagem, executadas pela Secretaria de Vias Públicas, passaram a ser compatibilizadas
com a produção de novas habitações; e peças de argamassa armada passaram a ser implantadas pela
Emurb nas canalizações de córregos e caixas de ligação na rede de esgotos (BUENO, 2000).
222
Em consequência de negociações prévias entre o Banco Mundial e o governo federal, que havia
solicitado o apoio do Banco Mundial em projetos junto aos governos estaduais para o controle da
poluição dos corpos d’água, em especial aqueles destinados ao abastecimento da população
(FRANÇA, 2009).
209

lançados na represa Guarapiranga. A resposta da Sehab, no entanto, foi


extremamente contrária a esse tipo de abordagem. À época, isso significaria a
remoção de cerca de 20 mil famílias. Com o intuito de propor uma solução alternativa,
e com base na experiência adquirida nas favelas até então urbanizadas, técnicos
municipais se juntaram a estaduais para vistoriar cerca de 180 favelas que afetavam
o reservatório e concluíram que o saneamento e urbanização era possível na maior
parte dos casos. Apenas 12% do total estimado de famílias precisaria ser removido,
devido a risco geotécnico ou impossibilidade de conexão com a rede de esgotos. Em
consequência, o contrato com o Banco Mundial passou a destinar cerca de 35% do
seu valor total para a urbanização das favelas que apresentavam condições propícias.

No final da gestão de Luiza Erundina, 44 favelas, totalizando 23.569 domicílios,


apresentavam obras executadas ou em execução (por empreiteiras ou mutirão), e 35
favelas, com 11.746 domicílios no total, estavam na fase estudo, projeto e licitação de
obras, dentre as quais estavam sete favelas a serem urbanizadas no âmbito do
Programa Guarapiranga (SILVA, 2009). Pode-se dizer, em suma, que nessa gestão
consolidou-se finalmente a urbanização das favelas em detrimento das tentativas de
eliminá-las do tecido urbano. Além das favelas urbanizadas, algumas outras medidas
importantes com relação à regularização fundiária foram tomadas: convênios com
entidades de prestação de serviços jurídicos foram feitos para defender os moradores
de ações de reintegração de posse e para assessoria em ações de solicitação de
usucapião. Adicionalmente, foram enviados à Câmara dois projetos de lei, um para
desafetação de 139 áreas municipais e concessão de direito real de uso gratuita por
90 anos e outro com a proposta de um novo Plano Diretor, o qual previa a criação de
Zonas Especiais de Interesse Social para todas as favelas em áreas municipais.
Ambos, porém, não foram aprovados, em grande parte por pressão do sindicato dos
empresários imobiliários, Secovi-SP (MARICATO, 1996).

A partir de então, políticas voltadas para a urbanização das favelas estariam


presentes em todas as gestões da capital paulista, mesmo quando lideradas
novamente por alianças partidárias que, no passado, haviam baseado suas políticas
na remoção forçada da população favelada. Isso não significaria, contudo, o fim das
remoções, sobretudo nas áreas mais valorizadas da cidade (FIX, 2001). Parece ser
210

possível afirmar que as agências de financiamento externo tiveram um papel


importante nessa direção.

Não apenas em São Paulo, mas em diferentes cidades brasileiras, como será
explorado a seguir, foi por meio de projetos financiados pelo BID e Banco Mundial
(com importante participação do governo italiano em Belo Horizonte e Salvador) que
a experiência em urbanização de favelas se consolidou. Não obstante o financiamento
de projetos de infraestrutura tivesse passado a um segundo plano na agenda de
organizações multilaterais, como o Banco Mundial, a partir de meados dos anos 1980,
como explorado no capítulo 4. No Brasil, as intervenções em favelas passaram a
integrar progressivamente diferentes setores da administração e a abranger territórios
cada vez maiores, cujas obras beneficiariam não apenas as favelas em si, mas
também o seu entorno.

5.2.3 A consolidação de um modelo com visibilidade internacional

Com o fim da gestão Erundina, teve início a gestão de Paulo Maluf (1993-1996),
eleito pelo Partido Progressista (PP), partido que teve origem na antiga Aliança
Renovadora Nacional (Arena) de apoio à ditadura militar. Assim, os programas da
gestão anterior, de forte apelo popular, foram imediatamente interrompidos. O Funaps
foi extinto e substituído pelo Fundo Municipal de Habitação.

Para as favelas foi lançado o Programa Cingapura (Programa de Urbanização


e Verticalização de Favelas - Prover), cujo objetivo era verticalizar as favelas, na
própria área já ocupada, com a venda financiada das moradias construídas (à
semelhança do modelo do BNH). Desse modo, esperava-se abrir espaço para a
implantação de infraestrutura no restante da área ocupada. O Programa foi iniciado
logo no primeiro ano da gestão, obtendo recursos do BID a partir de 1996. O
financiamento do BID incluiria também a complementação de infraestrutura e
regularização de loteamentos periféricos.

Se por um lado o programa previa originalmente que a intervenção ocorresse


sem a necessidade de reassentamentos, a opção pela venda financiada fazia com
que muitas vezes as unidades acabassem sendo destinadas à demanda de outros
211

lugares e não da favela em si (MAGALHÃES e VILLAROSA, 2012). Além disso, a


solução padrão, de implantação e tipologia única de edifícios, mostrava-se
inadequada às características das favelas, aspecto ao qual se somava a baixa
qualidade física das construções, que rapidamente se deteriorariam.

Diante da prioridade conferida ao Cingapura, o Programa Guarapiranga ficaria


praticamente paralisado até meados de 1994, quando por pressão do governo
estadual, comprometido com o financiamento externo, uma equipe223 foi finalmente
designada na Sehab para dar seguimento à contratação das obras, cujos projetos de
urbanização haviam sido realizados na gestão anterior (FRANÇA, 2009). Essa
retomada do Programa Guarapiranga significou a proeminência de uma nova
concepção de urbanização de favelas, deliberadamente dissociada dos ideais de
participação popular que haviam fomentado as iniciativas desde o início dos anos
1980, em muito associadas à construção de moradias por mutirões.

Na nova orientação conferida à urbanização de favelas ganhava centralidade


o questionamento ao urbanismo moderno, e o desenho urbano passou a ser visto
como principal elemento de transformação do espaço urbano. Na visão da
coordenação do Programa Guarapiranga, era necessária a construção de um
“arcabouço conceitual” que orientasse a criação de uma “nova metodologia” capaz de
superar a interpretação “corretora” das gestões anteriores, isto é, baseada no
atendimento de “necessidades básicas de acesso à infraestrutura”. O ponto de partida
para essa nova metodologia de intervenção deveria ser a “organização territorial”
existente e a não “aplicação de padrões urbanísticos estabelecidos nas normas
urbanas oficiais” (FRANÇA, 2009, p.204), mas visando a elaboração de um projeto
“qualificador”:

O modelo de urbanização que se formulou para intervir sobre a


estrutura urbana precária existente nas áreas de mananciais precisou
estabelecer diretrizes de qualificação no espaço existente, que
pressupõe a elaboração do projeto “qualificador” (BOHIGAS, 1986), o
qual integrando as diferentes disciplinas de projeto, propõe a
construção de espaços públicos que sirvam como referência do novo
espaço qualificado ou alçado à condição de bairro integrado à cidade

223
A equipe de coordenação era formada por: Elisabete França, arquiteta, na coordenação geral;
Cleusa Chimelli Mello, assistente social na coordenação do trabalho social; Violêta Saldanha Kubrusly,
arquiteta, na coordenação do sistema de informações geográficas; e Ricardo Sampaio, engenheiro, na
coordenação de obras.
212

(FRANÇA, 2009, p.162)

O conceito de “qualificação urbana” utilizado vinha do arquiteto espanhol Oriol


Bohigas, quem havia sido responsável pelo Departamento de Planejamento Urbano
de Barcelona, entre 1980 e 1984, logo após o fim da ditadura de Franco. Bohigas
havia definido, diante do desafio de superar a degradação causada pela perda da
indústria e as deficiências das áreas periféricas, que o maior problema de Barcelona
era a falta de espaços públicos. Em consequência, definiu como prioridade da sua
administração a requalificação dos espaços públicos, assim como a abertura de
novos. Foi uma iniciativa sua, por exemplo, a requalificação da orla marítima que
abrigou a vila olímpica dos jogos de 1992 sediados naquela cidade (NARCISO, 2008).

Para a ex-coordenadora do Programa Guarapiranga, existiria certo descrédito


generalizado no planejamento urbano, como disciplina responsável pela formação de
profissionais capacitados para “gerir o espaço urbano, indiferente de sua forma física”
e uma aposta no desenho urbano como “método” capaz de produzir “transformações
qualitativas na produção do espaço urbano” (FRANÇA, 2009, p. 195). Por isso,
especificamente em relação ao Programa Guarapiranga aponta que:

Os dois primeiros anos de aprendizado, bem como os resultados


obtidos, ainda que limitados, apontavam para a adoção de conceitos
urbanísticos adequados à realidade das áreas objeto da intervenção.
Nos estudos realizados à época, destacava-se o conceito de “novo
urbanismo” (LAMAS, 1993), no sentido de “contestação à urbanística
operacional burocrática e às suas formas, procurando novos caminhos
no desenho da cidade”, através do qual seria possível recuperar a
importância da forma urbana projetada com o objetivo de contribuir
para a melhoria da qualidade de vida nas cidades (FRANÇA, 2009,
p.195).

Nessa nova “metodologia de intervenção”, portanto, a interação com o saber


popular parecia estar limitada à consideração das formas pré-existentes para a
proposição do “desenho do novo bairro”, o qual, ao final, teria uma “ampla aceitação
da população” (FRANÇA, 2009, p. 200). Nessa perspectiva, o ideal de se fomentar a
organização dos moradores e sua autonomia nas decisões sobre os seus territórios
de moradia, algo que estava no centro da perspectiva participativa da gestão anterior,
havia se perdido.

As exigências do Banco Mundial quanto à geração de um número mínimo de


remoções, contudo, dificultaram a plena aplicação dessa metodologia e, portanto, a
213

abertura de espaços públicos, fazendo com que fossem consideradas “limitadas” as


possibilidades de intervenção à época. Assim, um novo Termo de Referência e
Diretrizes para Projetos foi elaborado para direcionar as propostas para a urbanização
de favelas, instigando “os proponentes a ir além da integração física entre os
moradores dos dois lados da cidade”, mas indicando “parâmetros” para projetos,
baseados em normas, orientações e especificações técnicas já existentes na Sehab
e que tinham sido utilizadas em programas anteriores (FRANÇA, 2009, p. 205-206).
Num primeiro momento, a seleção dos consultores passou a ser com base na melhor
técnica e não no menor no preço, seguindo as normas do Banco Mundial, permitindo
com que fossem contratadas “equipes de arquitetos, urbanistas e engenheiros de
renomada experiência” (FRANÇA, 2009, p. 207). E após a realização das obras nas
primeiras favelas, “para o cumprimento dos prazos acordados”, foi contratada uma
gerenciadora para elaboração de todos os projetos básicos (a qual contrataria os
escritórios de arquitetura) ficando o desenvolvimento do projeto executivo a cargo da
construtora selecionada para a execução das obras (FRANÇA, 2009, p. 213).

A busca pelo desenvolvimento de um urbanismo contemporâneo a partir das


favelas não foi uma opção isolada do Programa Guarapiranga. Ao contrário, a aposta
no desenho urbano era comum ao Programa Favela-Bairro (1994-2000), desenvolvido
no Rio de Janeiro, sob a coordenação de Sérgio Magalhães. Acredita-se que o
Instituto dos Arquitetos do Brasil tenha sido um ambiente importante de circulação
dessas ideias. Tanto Elisabete França, quanto Sérgio Magalhães, foram conselheiros
ou membros da diretoria nos diretórios de São Paulo e Rio de Janeiro
respectivamente, em diferentes momentos, desde a década de 1980.

No Rio de Janeiro, como visto, projetos mais complexos de urbanização de


favelas – muitas vezes envolvendo favelas conurbadas, tratamento de encostas,
projetos de reflorestamento e construção de áreas de lazer – já vinham acontecendo
desde o final dos anos 1980. Nesse contexto, o Plano Diretor Decenal da Cidade do
Rio de Janeiro (PDDCRJ), aprovado em 1992, no último ano da gestão de Marcelo
Allencar (1989-1992), consolidava a ideia de urbanizar as favelas e de integrá-las à
cidade sob uma nova identidade, a de bairros populares (BURGOS, 1998). O
PDDCRJ determinou a transformação das favelas destinadas a programas de
urbanização e regularização fundiária em Áreas de Especial Interesse Social (AEIS).
214

No final do ano seguinte, já na gestão do prefeito César Maia (1993-1996), foi


criada a Secretaria Extraordinária de Habitação (SEH) – posteriormente renomeada
Secretaria Municipal de Habitação (SMH) – a qual passou a ser responsável pelo
Projeto Mutirão, incorporando o seu quadro técnico. Para dirigir a Secretaria o então
prefeito César Maia (1993-1996) convidou ao arquiteto Sérgio Magalhães, quem
organizou um concurso, realizado em conjunto com o Instituto dos Arquitetos do
Brasil, para selecionar as metodologias para o novo Programa Favela-Bairro. O
surgimento do novo programa, apesar da ligação direta com o conhecimento
acumulado ao longo de mais de uma década de Projeto Mutirão, passava a operar
em torno de um novo discurso. De acordo com Sérgio Magalhães, os trabalhos
urbanísticos tinham “um embasamento teórico” que incorporava “os estudos dos
críticos do urbanismo moderno e formuladores do urbanismo contemporâneo”
presente nos seguintes elementos:

a busca de conexões entre o tecido da favela e do bairro vizinho; a


preservação da estrutura formal do assentamento; a valorização dos
espaços apropriados pela comunidade; a inserção de novas estruturas
ambientais respeitando escalas, imagens e usos pré-existentes; a
definição urbanística com o entendimento entre arquitetos e
moradores (MAGALHÃES, 2005, p.54, grifo nosso).

O “aspecto educativo” do Projeto Mutirão, isto é, o aprendizado por parte das


lideranças locais em encaminhar suas reivindicações vinculadas ao escopo dos
projetos, havia perdido espaço no Favela-Bairro. O aumento da escala de intervenção
passava a exigir a contratação de projetos e de obras e uma prática “bem mais
sofisticada e profissionalizada”224. Apesar dos anos de experiência com o Projeto
Mutirão, “não havia experiência nos trâmites formais a serem seguidos para
aprovação dos projetos” (FREIRE; FREIRE-MEDEIROS e CAVALCANTI, 2009, p.
81), exigências comumente exigidas pelas agências multilaterais de financiamento.
Em 1992, uma missão do BID havia visitado algumas realizações do Projeto Mutirão
em favelas conurbadas e, apesar de positivamente impressionada com o caráter
multidisciplinar e os baixos custos das intervenções, esclareceu que para financiá-lo
seria obrigatório a licitação de projetos e obras, entre outras exigências (PETERSEN,

224
Depoimento de Lu Petersen (FREIRE; FREIRE-MEDEIROS e CAVALCANTI, 2009, pp. 60, 62, 78)
215

2003). As negociações com o BID começaram em fins de 1994 e no ano seguinte foi
aprovado o empréstimo225.

O esvaziamento do conteúdo político no Favela-Bairro, quando comparado às


experiências passadas de urbanização de favelas no Rio de Janeiro, ficou evidente
com a inclusão do Favela-Bairro no Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro,
elaborado entre 1993 e 1995. Enquanto no Plano Diretor aprovado em 1992, a
inclusão das AEIS podia ser considerada uma expressão do diálogo da administração
com as pautas defendidas pelo Movimento Nacional pela Reforma Urbana em torno
da função social da propriedade, no plano estratégico que o sucedia, o Favela-Bairro
era tido como um dos programas a tornar o Rio de Janeiro mais competitivo.

A partir de meados dos anos 1990, portanto, outra modalidade de intervenção


em favelas toma forma. Essa é caracterizada por programas de alcance municipal e
maior volume de recursos investidos provenientes de agências multilaterais226. Essas
iniciativas têm em comum a combinação da intervenção física, com a regularização
fundiária e o trabalho social. A “participação democrática”227 dos moradores tanto nos
projetos de urbanização quanto na gestão dos recursos, contudo, é ressignificada
(MARICATO, 1996b). Ao invés de co-produtores, os moradores passavam a ser
apenas consultados e a acatarem os projetos de urbanização.

Uma grande mudança com relação ao movimento que havia sido considerado
como uma “revolução silenciosa” (CAMPBELL, 2003) pelos expertos do Banco
Mundial. E muito diferente das “práticas bem-sucedidas” selecionadas pela delegação
brasileira para a Habitat II, dentre as quais estavam a experiência dos mutirões
autogestionários em São Paulo, do Prezeis em Recife e do Programa Alvorada em

225
A operação “Rio de Janeiro Urban Upgrading Program - BR0182” foi aprovada em 01/11/1995 no
valor total de 300.000.000 de dólares, sendo 180.000.000 correspondentes à contrapartida do tomador.
226
Na década de 1990, com financiamento do BID destacam-se o Favela-Bairro no Rio de Janeiro
(1994-2000); o Nova Baixada na Baixada Fluminense (1999-2007) e o Habitar Brasil-BID criado em
1999 junto ao governo federal. Com financiamento do Banco Mundial destaca-se o Programa Novos
Alagados (1992-2000) em Salvador e o Prosaner (1990-1996) no governo federal.
227
A “participação democrática”, uma das principais bandeiras do Movimento Nacional pela Reforma
Urbana, era vista como a participação da população no orçamento municipal, nos planos locais, no
projeto e na gestão dos recursos para construção de moradias (MARICATO, 1996b).
216

Belo Horizonte. Na forma de participação proposta pelo Programa Alvorada228, por


exemplo, a intenção era:

Descolar-se de um nível passivo, onde a população apenas referenda


ou não propostas de caráter técnico-operativo, concebidas em
instâncias superiores de decisão [...] a comunidade passa a ter a
possibilidade de interferir nas diretrizes de concepção e implantação
do programa no local. Mais que cliente do programa, a população se
constitui em parceira da intervenção, assumindo-a como co-autora,
investindo nela com vistas à melhoria que se processa em primeiro
lugar a nível coletivo (JACINTO; LIBÂNIO, 1995, p. 298).

A mobilização do Movimento Naciona pela Reforma Urbana em torno da


Conferência Habitat II tinha justamente por trás a pretensão de que o peso político
deste evento internacional trouxesse maior atenção à essas questões no contexto
nacional, em um momento em que muitos despejos violentos de sem terra ocorriam
(MARICATO, 1996b). Contudo, foram as experiências menos emancipatórias e mais
tecnocráticas que a partir de então ganharam maior visibilidade internacional.

Em 1999, o Banco Mundial organizou um grupo temático229 para sistematizar


uma metodologia para elaboração e execução de ações de slum upgrading, a qual
deveria subsidiar o trabalho da Aliança de Cidades, lançada pelo Banco Mundial e o
Programa das Nações Unidas para Assentamentos Humanos (ONU-Habitat) naquele
ano. O trabalho desse grupo em conjunto com a o MIT, representado pelo SIGUS –
Special Group in Urban Settlements, resultou no guia Upgrading Urban Communities:
A Resource for Practitioners230. Esse guia trazia, assim, os princípios do slum
upgrading a serem considerados e os meios para implementá-los. Para ilustrar
“problemas específicos e fornecer informações para o design e desenvolvimento do
projeto”, o referido guia destacava o caso dos Programas Guarapiranga, Favela-Bairro
e Novos Alagados231:

O objetivo é incluir informações suficientes para destacar as lições,

228
Esta metodologia se traduz na elaboração dos Planos Globais Específicos (PGE), instrumentos
previstos no Plano Diretor de Belo Horizonte que, a partir de 1998, passam a ser exigidos para cada
vila que conquista empreendimentos no processo do Orçamento Participativo (MELLO, 2005, p. 6).
229
Urban Services to the Poor Thematic Group.
230
Cf. http://web.mit.edu/urbanupgrading/
231
Dentre os participantes estavam os especialistas do Banco Mundial brasileiros: Jose Brakarz, Ivo
Imparato, Vitor Serra. Além dos agradecimentos às agências financiadoras (GTZ, BID, KfW, Usaid) foi
feito um agradecimento especial à empresa Diagonal, gerenciadora fundada em Pernambuco em 1990
que a partir da gestão de Paulo Maluf em São Paulo ficaria responsável pelo trabalho social nas
urbanizações de favelas.
217

permitindo que o praticante julgue se essas lições se aplicariam a


outro contexto. Quando disponível, as condições necessárias para
uma implementação bem-sucedida são incluídas232.

Pode-se considerar, assim, que por meio desse guia era posta em prática a
diretriz de James Wolfensohn de transformar o Banco Mundial em um Banco do
Conhecimento. Na ocasião do seu lançamento, durante o Upgrading Low-Income
Settlements - A Regional Roundtable for Africa, realizado em Joanesburgo em outubro
de 2000, o Programa Guarapiranga foi apresentado em uma sessão dedicada à
apresentação das Global Experiences and General Lessons (FRANÇA, 2009, p. 194).
Esse evento era visto pelo Banco Mundial e a recém-criada Aliança de Cidades como
um primeiro passo para ajudar a (re)estabelecer uma comunidade de profissionais de
slum upgrading na África (BERGEN, 2001).

Figuras 32 e 33. Intervenções do Programa Guarapiranga: Jardim Imbuias


(arquiteto Paulo Bastos) e Jardim Esmeralda/ Iporanga (arquiteto Raymundo
Paschoal)

Fonte: FRANÇA, E.; BAYEUX, G (2002).

Alguns dias antes um grupo de especialistas, dentre os quais estava a então


coordenadora do Programa Guarapiranga, participaram de um encontro de trabalho,
também organizado pelo Banco Mundial, para discutir a cidade de Joanesburgo,

232
Disponível em http://web.mit.edu/urbanupgrading/upgrading/case-examples/index.html
Acesso em 27/03/2019. Tradução nossa.
218

principalmente o caso da township Alexandra233. Um conjunto de recomendações


foram então desenhadas para a área e no ano seguinte um projeto para renovação
da área, Alexandra Renewal Project, foi lançado pelo então presidente Thabo Mbeki.
Outras visitas de estudo ao Brasil e ao Peru entre 1999 e 2000 também ajudaram a
definr a abordagem a ser seguida no projeto para Alexandra (HARRISON, 2015).

No âmbito do Programa Guarapiranga, foram urbanizadas 74 favelas e 54


loteamentos e outras 12 favelas tinham intervenções em andamento quando este foi
encerrado em 2000234. Estima-se que as obras tenham beneficiado cerca de 8.500
famílias. Cerca de 528 unidades habitacionais novas foram construídas e destinadas
a famílias removidas pelas obras de urbanização (MARQUES e SARAIVA, 2005). Dois
anos após seu encerramento, o Programa Guarapiranga integrou a exposição
“Favelas Upgrading” na 8ª Bienal de Arquitetura de Veneza. Essa exposição, que
contou com a participação da ex-coordenadora daquele programa na curadoria,
também conferiu destaque aos projetos do Programas Favela-Bairro e do Projeto
Novos Alagados.

5.2.4 Uma parceria de sucesso

O portfólio da Aliança de Cidades no Brasil tem sido historicamente o


maior da instituição (...). Essa parceria de longa data produziu
experiências valiosas relacionadas à melhoria integrada de favelas
que são altamente relevantes para outras cidades do mundo,
principalmente na África e na Ásia (JOSÉ KIEL, 2014, p.1).

[A]s colaborações em slum upgrading que iniciaram nos mesmos anos


em Salvador e São Paulo marcaram a trajetória da Cities Alliance no
Brasil (VILLAROSA, 2016, p.11)

233
Interactive Planning Workshop for Johannesburg, Greater Johannesburg Metropolitan Council,
September 27-30, 2000.
234
Ao final da implementação do programa em 2000 haviam sido investidos 338 milhões de dólares
(119 milhões provenientes do Banco Mundial e o restante da contrapartida dos executores, isto é, além
da própria Sabesp, a Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo; a Companhia de
Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU); a Eletricidade de São Paulo
S.A (Eletropaulo) e a Prefeitura do Município de São Paulo. Do total de recursos investidos, 113,9
milhões foram para as ações de recuperação urbana que incluíam a urbanização das favelas
(FRANÇA, 2009).
219

O encerramento do financiamento do Banco Mundial para o Programa


Guarapiranga, em 2000, coincidiu com a eleição de Marta Suplicy (2001-2004),
candidata pelo Partido dos Trabalhadores (PT). O retorno do PT à administração
municipal, de início, sinalizava a retomada da ênfase em habitação social. O contexto
nacional era propício, com a reestruturação de programas habitacionais, voltados para
a implantação de infraestrutura em favelas e loteamentos, a serem desenvolvidos por
estados e municípios. Esses programas, concebidos, ao longa da década de 1990,
refletiam o crescente entendimento de que as intervenções em favelas não deveriam
se ater aos limites da área ocupada pela própria favela, mas buscar integração com o
seu entorno, envolvendo questões, por exemplo, relacionadas à drenagem,
desenvolvimento urbano e ambiental. Esse discurso, porém, nem sempre coincidiu
com a prática.

No início dos anos 1990, com o suporte financeiro do Banco Mundial, o governo
federal implementou o Projeto de Abastecimento de Água e Esgotamento Sanitário
para Comunidades de Baixa Renda – Prosanear I, com caráter de projeto piloto235.
Em seguida, o programa foi continuado pelo governo federal com recursos do FGTS.
A avaliação do governo, no entanto, era de que o desempenho do programa estava
abaixo do esperado e com isso um novo acordo de empréstimo foi buscado junto ao
Banco Mundial. Esse empréstimo centrado na assistência técnica para o
“desenvolvimento institucional” dos municípios, deu origem ao PAT-Prosanear (2000-
2007), cuja proposta inicial era subsidiar tecnicamente os municípios na concepção
de projetos, incorporando as lições aprendidas do Prosanear I e as contribuições de
programas como Favela-Bairro e Guarapiranga, enfatizando a “metodologia
participativa” e o “planejamento integrado – urbanismo, saneamento e trabalho
social”236.

Com financiamento do BID, também na esfera federal, foi implementado, em


1999, o Habitar Brasil-BID. O Programa Habitar Brasil tinha sido estabelecido em 1992
pelo governo federal com recursos do Orçamento Geral da União para urbanização
de favelas e produção de moradias. Assim como no caso do Prosanear, o baixo

235
No valor de 100 milhões de dólares. Para detalhes ver: BAKALIAN, A.E.; KATAKURA, Y, 1998.
236
Serviço de Informação ao Cidadão – SIC Ministério das Cidades. Disponível em:
http://www.consultaesic.cgu.gov.br/busca/dados/Lists/Pedido/Item/displayifs.aspx?List=0c839f31%2D
47d7%2D4485%2Dab65%2Dab0cee9cf8fe&ID=417376&Web=88cc5f44%2D8cfe%2D4964%2D8ff4%
2D376b5ebb3bef
220

desempenho desse programa havia sido utilizado como justificativa para um acordo
de empréstimo com o BID. O novo formato do programa passava a exigir dos estados
e municípios o levantamento dos “assentamentos subnormais”, a definição de
prioridades de intervenção (Plano Estratégico Municipal para Assentamentos
Informais – Pemas), a elaboração de projetos básicos para as obras físicas e de
diretrizes a regularização fundiária e o trabalho social237.

Ainda no contexto nacional havia o início das atividades, a partir de 2001, da


então recém-lançada Aliança de Cidades. O objetivo da atuação da Aliança no Brasil
era apoiar o governo na tarefa de “extrair lições da rica experiência do Brasil em
upgrading até o momento e canalizar essas lições para uma estratégia e plano de
aprimoramento nacional” (BERGEN, 2001, p. 41, tradução nossa). Um projeto de
cooperação, Building an Enabling Strategy for Moving to Scale in Brazil, foi então
estabelecido com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, no âmbito do
qual foi contratado o Instituto Brasileiro de Administração Municipal (Ibam)238. Na
percepção da Aliança, o Brasil possuía condições únicas para lidar com a urbanização
de favela em nível nacional desde que “as falhas de mercado e a falta de aprendizado
sistemático de inovações no nível municipal” fossem resolvidas, permitindo com que
o país se tornasse um modelo para outros “países em desenvolvimento” que
desejassem implementar ações de upgrading (BERGEN, 2001, p. 41, tradução
nossa).

O estabelecimento de “parcerias” pela Aliança de Cidades (leia-se o Banco


Mundial) com universidades e instituições de ensino fazia parte da estratégia da
instituição em fundamentar e legitimar uma de suas principais bandeiras: conferir
escala aos programas de slum upgrading para que abrangessem cidades e, logo,
países inteiros. Desse modo, a Aliança de Cidades recuperava e atualizava a agenda
de desenvolvimento urbano trazida pelas agências multilaterais nos anos 1970, como

237
Era exigido que o projeto fosse aprovado por cerca de 80% das famílias cadastradas nas áreas sob
intervenção, e o cumprimento de normas específicas para os reassentamentos necessários devido à
urbanização. O Programa abrangeu 119 municípios no âmbito do Subprograma de Desenvolvimento
Institucional e em 84 destes municípios foram efetivados contratos de obras de urbanização (REGINO,
2017).
238
O Estudo de Avaliação da Experiência Brasileira sobre Urbanização de Favelas e Regularização
Fundiária desenvolvido pelo Ibam avaliou iniciativas de urbanização de favelas em dez cidades
brasileiras: Belém, Belo Horizonte, Goiânia, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, Santo
André, Teresina e Vitória. O estudo destacou que à exceção do Rio de Janeiro, na maioria das outras
cidades o aporte de recursos municipais para o desenvolvimento dessas iniciativas era significativo.
221

já explorado no capítulo 4. Em troca a Aliança de Cidades se comprometia em facilitar


a captação de recursos e contratação de consultores, sem os mesmos entraves
burocráticos da administração pública.

Foi nesse contexto que a Prefeitura de São Paulo procurou, logo no primeiro
ano da gestão liderada por Marta Suplicy, o suporte Aliança de Cidades para a
reestruturação da política habitacional. Na proposta enviada, a Prefeitura destacou,
por exemplo, a necessidade de superar a prática de intervenções pontuais e isoladas
na prática da urbanização de favelas:

O verdadeiro desafio é lidar com a situação de precariedade na posse


da terra e da moradia daqueles que estão física e socialmente
excluídos. Para enfrentar este desafio, é necessária uma mudança de
paradigmas. Uma abordagem orientada por projetos, focada na
produção de novas moradias e na extensão de redes de infra-estrutura
urbana, idealizada e implementada separadamente pelas diferentes
secretarias da administração municipal, tem que ser substituída por
uma abordagem programática e integrada (ALIANÇA DE
CIDADES/PCSP, 2008, p. 2).

Em consonância o governo federal, a gestão de Marta Suplicy inaugurava


assim uma nova fase de consolidação das ações de urbanização e regularização de
favela e loteamentos em São Paulo. Além dos programas federais voltados para a
urbanização de favelas, a aprovação na esfera federal do Estatuto das Cidades e de
outras medidas legais em 2001, no primeiro ano dessa gestão municipal, favorecia a
regularização dessas áreas, por meio de instrumentos como as Zonas Especiais de
Interesse Social e a Concessão de Uso Especial para fins de Moradia. Os programas
das gestões anteriores, em função do financiamento internacional, foram continuados
e passaram a integrar um novo “programa guarda-chuva”, o Bairro Legal.

Esse programa previa a ampliação das ações de urbanização e regularização


de favelas e loteamentos irregulares, porém, reestruturadas no âmbito de uma nova
política de habitação de interesse social, centrada na participação popular, em diálogo
com movimentos de moradia, articulada com a provisão de moradia em áreas centrais,
com novos marcos de regulação e ações para reduzir a violência urbana (TEIXEIRA
222

e BUDDS, 2005). À frente da Secretaria de Habitação estava um advogado com larga


atuação junto ao MNRU e que vinha de mandatos como deputado estadual pelo PT239.

Com a mediação da Sehab, foi estabelecida a primeira “parceria” da Aliança


das Cidades com uma universidade. A Universidade de São Paulo passou a fornecer
o espaço de escritório para um assessor regional da Aliança de Cidades (financiado
pelo governo italiano que há décadas financiava projetos de urbanização de favelas
em cidades brasileiras) e a se envolver com os “aspectos de aprendizado e
monitoramento da ampliação da urbanização de favelas no Brasil”. Com essas
atividades, a Aliança de Cidades pretendia “criar um quadro de especialistas em nível
nacional” (BERGEN, 2001, p. 19), como esclarece o trecho reproduzido a seguir:

Os futuros esforços da Aliança nesse sentido se concentrarão em


trabalhar com redes existentes de instituições de ensino, bem como
com institutos regionais de desenvolvimento urbano (...), para
fortalecer a capacidade de sustentar bancos de dados nacionais e
regionais de upgrading (BERGEN, 2001, p. 19, tradução nossa).

Na Universidade de São Paulo, foi contratado o Laboratório de Habitação e


Assentamentos Humanos, criado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo pela
professora Ermínia Maricato, uma das principais articuladoras da Ansur e secretária
de habitação na gestão de Luiza Erundina. Essa contratação objetivava a concepção
de uma metodologia para elaboração de Planos de Ação que fosse “replicável” e que
pudesse ser utilizada como “instrumento de capacitação para governos municipais”240.
Prestando consultoria à elaboração dessa metodologia estavam, portanto,
profissionais com experiência em organizações não governamentais, de assessoria
técnica ao movimento de moradia, e em prefeituras que haviam sido lideradas pelo
Partido dos Trabalhadores a partir do início dos anos 1980.

Dentro da ótica do Bairro Legal, o planejamento urbano compreensivo foi


retomado. Uma base cartográfica georeferenciada das favelas do município foi
produzida com o fim de subsidiar a elaboração de um novo plano municipal de
habitação, o qual seria aprovado somente na gestão seguinte, após um conjunto de

239
Paulo Teixeira foi coordenador geral da Articulação Nacional do Solo Urbano (Ansur), entre 1987 e
1991, e deputado estadual pelo PT entre 1994 e 1998 e entre 1998 e 2000. Vereador pelo PT em São
Paulo entre 2004 e 2007, foi eleito e reeleito deputado federal pelo mesmo partido desde então.
240
Cf. http://www.labhab.fau.usp.br/pesquisa/concluidas/2003-2/plano-de-acao-habitacional-e-urbana-
para-areas-em-situacao-de-risco-pela-exclusao-socioespacial-e-a-violencia/
223

alterações. O BID então aprovou que parte dos recursos do Programa de Urbanização
e Verticalização de Favelas (Prover) fosse redirecionada para a contratação de
projetos executivos de urbanização integrada para 16 favelas (MAGALHÃES e
VILLAROSA, 2012), algumas das quais haviam recebido melhorias ainda na gestão
de Luiza Erundina. O Programa Guarapiranga teve sua área de abrangência
ampliada, incorporando as favelas e loteamentos no entorno da Represa Billings e
passou a ser denominado Programa Mananciais. A gestão também avançou no
campo da regularização fundiária, com a desafetação de 160 áreas ocupadas por
favelas e emissão de títulos para cerca de 45.000 residentes. Um novo Plano Diretor
foi elaborado, o qual, aprovado em 2002, definiu mais de 900 áreas como Zonas
Especiais de Interesse Social. Em consequência dessas ações, a Sehab recebeu, em
2004, o prêmio internacional Direito à Moradia do Centro pelo Direito à Moradia contra
Despejos241.

A participação popular nas decisões sobre os investimentos, que havia sido


restringida nas gestões anteriores voltou a ser enfatizada. A construção de novas
moradias por mutirões autogeridos voltou a ser uma prioridade e foi adotado o
Orçamento Participativo, o qual iniciado em 1989 em Porto Alegre durante a gestão
do Partido dos Trabalhadores, já era considerado nos anos 2000 uma best practice
difundida internacionalmente e adotada por cerca de três mil governos em diferentes
países e continentes (PORTO DE OLIVEIRA, 2013). Foi realizada a primeira
conferência de habitação do município e criado o conselho municipal de habitação,
uma das principais demandas que haviam saído da conferência.

Recente avaliação da atuação da Aliança de Cidades no Brasil, ressaltou a


importância do trabalho realizado pela instituição em São Paulo, destacando a
experiência com o Bairro Legal como determinante do que seria o papel da instituição
no Brasil, isto é:

O de seguir (mais do que impulsionar) diretrizes definidas pela


contraparte governamental, diretrizes que já estavam em sintonia com
seus princípios (por exemplo, de abordagem integrada e participativa);
e dentro destas diretrizes, de fornecer apoio para contratação de

241
A ONG internacional Centre on Housing Rights and Evictions (Cohre) foi fundada em 1991 e
encerrou suas atividades em 2014. Durante o período em que esteve ativa foi muito influente junto às
Nações Unidas.
224

consultores e inserção da experiência local numa rede de contatos


nacionais e internacionais (VILLAROSA, 2016, p. 27).

A avaliação ressalta, portanto, a relação simbiótica estabelecida entre as


partes. Ao mesmo tempo em que a Aliança de Cidades conferia legitimidade e dava
visibilidade à cidade de São Paulo, sob a liderança do PT, esta servia de laboratório
do que poderia ser a atuação da Aliança de Cidades em outros lugares e escalas.
Com a eleição de Lula e a subsequente criação do Ministério das Cidades, a ida para
o Ministério de um grande número de profissionais paulistas facilitou a adesão do
governo federal formalmente à Aliança.

Uma confluência entre o governo municipal de São Paulo e a Aliança de


Cidades também pode ser observada na articulação da urbanização de favelas com
mecanismos de incentivo ao funcionamento do mercado e a competição urbana. Ao
mesmo tempo em que o novo plano diretor do município definia a criação de ZEIS
também criava novas Operacões Urbanas Consorciadas. Não obstante a retomada e
os avanços na política habitacional, o compromisso com os movimentos de moradia
e a ampliação da participação popular (por meio por exemplo da instalação do
orçamento participativo no município), também foi impulsionado um “urbanismo de
mercado” (FERREIRA, 2010). Desse modo, parecia que:

A ideologia da “competitividade urbana” já havia se enraizado o


suficiente para confundir até os técnicos e urbanistas “de esquerda”
do governo, e a ideia de projetos urbanos alavancados por altos
investimentos públicos em consonância com o mercado tornou-se
mais forte do que nunca (FERREIRA, 2010, p. 207-208)

De acordo com a prefeita, as operações urbanas eram a saída para grandes


investimentos urbanos diante da situação financeira da cidade naquele momento
(FERREIRA, 2010). Os parcos recursos orçamentários e o limite ao endividamento,
trazido pela recém aprovada Lei de Responsabilidade Fiscal242, podem ainda ser
apontados como parte das razões pelas quais essa gestão foi marcada por um
considerável engajamento em redes e circuitos internacionais. A expectativa de que
a visibilidade internacional pudesse resultar na atração de recursos e investimentos
externos pode explicar, assim, a destacada atuação da prefeita Marta Suplicy na

242
Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000.
225

articulação para a criação da rede Cidades e Governos Locais Unidos em 2004243,


confirmada pela sua presença na primeira presidência compartilhada da organização,
entre 2004 e 2007. Além da possibilidade de atração de recursos, a atuação em redes
e circuitos internacionais de disseminação de modelos de políticas globais tem sido
há muito tempo reconhecida como uma estratégia eficaz de legitimação tanto de
certas políticas no contexto doméstico quanto de promoção de certos indivíduos
(FARIA, 2018).

Nesse sentido, vale destacar, por exemplo, o importante papel que o ex-
secretário de habitação dessa gestão desempenhou ao seu término. Logo após, o
mesmo se tornou um dos membros do Conselho Consultivo de Política da Aliança de
Cidades e da força-tarefa do Projeto do Milênio das Nações Unidas, dedicada a
melhorar as condições de vida dos moradores de slums (UN Millenium Project, 2005).
Este ainda se tornou o principal articulador da atuação da Aliança de Cidades no
governo federal, após a eleição de Lula (também pelo PT) e a criação do Ministério
das Cidades em 2003.

A criação do Ministério das Cidades vinha de encontro às expectativas da


Aliança das Cidades de reproduzir em escala nacional a “parceria” que havia sido
criada com a Secretaria de Habitação de São Paulo a partir de 2001:

Para a Cities Alliance estava claro que, se uma iniciativa nacional


deste tipo desse certo no Brasil, o debate e a advocacy sobre o tema
dos assentamentos precários sairiam reforçados em escala global.
Consequência desta intuição foi também o apoio sucessivo da Cities
Alliance à sistematização e divulgação da experiência brasileira
(VILLAROSA, 2016, p. 33)

O papel da Aliança de Cidades deixava assim de ser o de mero financiador e


passava a ser o de “parceiro” com uma atuação mais programática, apoiando a
construção das políticas e dos arranjos institucionais do recém-criado Ministério
(VILLAROSA, 2016).

243
O PT já havia mostrado uma tendência a dedicar especial atenção às relações internacionais. Sob
sua liderança o município de Porto Alegre havia sido o primeiro município a estabelecer uma secretaria
dedicada à captação de recursos e à cooperação internacional em 1994, a qual teve um papel proativo
na disseminação do orçamento participativo. Até então as cidades brasileiras não tinham uma
participação relevante no movimento internacional de cidades e em redes como a IULA e a FMCU
(SALOMÓN, 2011).
226

A política nacional de habitação, lançada em 2004, conferiu prioridade à política


de urbanização de “assentamentos precários” (favelas, loteamentos irregulares,
conjuntos habitacionais irregulares ou degradados, cortiços e ocupações). Em 2005,
foi criado o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS), o qual
confirmou o protagonismo dos governos municipais na promoção da habitação de
interesse social, e o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS)244.
Para acessar os recursos desse fundo, os municípios deveriam aderir à política
nacional, criando um fundo de habitação de interesse social, um conselho gestor e um
plano local de habitação de interesse social. A partir de 2007, a urbanização de
“assentamentos precários” passou a fazer parte do eixo infraestrutura social e urbana
incluído na primeira fase do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC)245. Ao
final dessa fase em 2010, os recursos gastos com habitação, entre aqueles
provenientes do OGU e do FGTS, somavam aproximadamente 18,6 bilhões de reais.
A segunda fase do PAC foi inciada em 2011. Dados do governo federal apontam que
cerca de 30 bilhões foram destinados para a urbanização de assetamentos precários
entre 2007 e 2016246.

Em São Paulo, as gestões municipais seguintes (2005-2012), embora lideradas


pela oposição ao Partido dos Trabalhadores247, também deu continuidade à “parceria
de sucesso” estabelecida entre a municipalidade e a Aliança de Cidades. Com a ex-
coordenadora do Programa Guarapiranga, entre 1993 e 2000, ocupando o cargo de
Superintendente de Habitação Popular, a urbanização de favelas seguiu como
prioridade política. Com o suporte da Aliança de Cidades, as informações
georreferenciadas sobre as favelas produzidas na gestão anterior foram atualizadas
e reunidas no Sistema de Informações para a Habitação Social (Habisp) para
priorização e acompanhamento das intervenções em favelas e loteamentos248.

244
Com recursos na ordem de 1 bilhão de reais anuais provenientes do Orçamento Geral da União a
partir de 2006.
245
O PAC representou a retomada, após cerca de duas décadas de ajuste estrutural, de uma postura
desenvolvimentista pelo governo federal, por meio de um conjunto de investimentos em infraestrutura
(logística, energética e social e urbana,). A primeira fase do PAC (2017-2010), aproveitando-se da
conjuntura econômica internacional favorável, representou um investimento total de 619 bilhões de
reais, sendo cerca de 255 bilhões correspondentes ao eixo infraestrutura urbana e social. Cf.
http://www.pac.gov.br/pub/up/relatorio/6c57986d15d0f160bc09ac0bfd602e74.pdf
246
Para uma análise da implementação do programa sugere-se a leitura de Cardoso e Denaldi (2018).
247
Foram eleitos os prefeitos José Serra (2005-2006) e Gilberto Kassab (2006-2012).
248
Essa cooperação técnica foi realizada entre 2005 e 2008, a pedido da então Superintendente de
Habitação Popular.
227

O funcionamento do programa (contratação de projetos, obras e


gerenciamento) seguiu o modelo desenvolvido durante a primeira fase do Programa
Guarapiranga. Foi retomada a ênfase nos projetos em espaços de circulação, áreas
livres e edifícios emblemáticos249. A afinidade partidária entre os governos municipal
e estadual e a conjuntura favorável na política nacional garantiu um montante de
recursos até então inédito para a urbanização de favelas.

O estabelecimento, em 2006, de um convênio entre a prefeitura e a Companhia


de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU),
assegurou o repasse de cerca de R$400 milhões ao Programa de Urbanização de
Favelas do município (PMSP/SEHAB, 2008). Já por meio do Programa de Aceleração
do Crescimento (PAC) foram assegurados repasses da ordem de 1 bilhão para a
urbanização de favelas250. O Município de São Paulo, que contava com um Fundo
Municipal de Habitação, com conselho próprio, e a revisão do plano municipal de
habitação em andamento foi amplamente beneficiado pelo novo programa federal.

Os convênios estabelecidos com o governo federal, somados àqueles


estabelecidos com a CDHU, elevaram significativamente a participação dos gastos
com habitação no orçamento municipal. Esses passaram a representar, em 2008, 4%
do orçamento total, sendo que entre 1983 e 2004, não havia ultrapassado em média
1,5% do orçamento total. A partir de 2009, as urbanizações de favelas passaram a
contar ainda com recursos provenientes do Fundo Municipal de Saneamento
Ambiental e Infraestrutura (Lei 14.934) constituído pelo repasse de recursos da
Sabesp251.

O aumento significativo de recursos somado a existência prévia de projetos de


urbanização (elaborados no âmbito do HBB/BID, PAT-Prosanear ou Bairro Legal)
possibilitou a contratação de obras em um grande número de favelas inclusive nos

249
Os projetos da gestão anterior, que privilegiavam o aspecto da regularização fundiária e previam um
grande número de remoções, foram revistos. Para Zuquim (2012) essa diretriz gerou uma cisão no
território das favelas, uma vez que é nítida a diferença entre o tratamento dado às novas áreas de
provisão e o restante do tecido urbano da favela onde a intervenção foi pouco efetiva.
250
Soma dos valores repassados na modalidade urbanização e saneamento integrado, segundo dados
do Ministério das Cidades em dezembro de 2017.
251
7,5% da receita bruta obtida com a exploração dos serviços de abastecimento de água e
esgotamento sanitário no Município de São Paulo.
228

grandes complexos como Paraisópolis, Heliópolis e Jardim São Francisco. Foi


também dada continuidade à regularização de favelas e loteamentos252.

Em 2008, por sugestão da Aliança de Cidades, a Secretaria de Habitação


promoveu o um Diálogo Internacional sobre Políticas Públicas com o tema “Desafios
da Urbanização de Favelas: Compartilhando a Experiência de São Paulo”. O evento
tinha o objetivo de divulgar o suporte dado pela Aliança de Cidades à cidade de São
Paulo por sete anos e ao mesmo tempo promover o “intercâmbio de ideias entre
autoridades municipais de grandes cidades do Hemisfério Sul”. Além de São Paulo,
outras cinco cidades, Cairo (Egito), Ekurhuleni (África do Sul), Lagos (Nigéria), Manila
(Filipinas) e Mumbai (Índia), apresentaram “suas políticas fundiária e habitacional, os
esforços realizados para a urbanização de favelas, metodologias adotadas, resultados
iniciais e inovações” (Aliança de Cidades/PCSP, 2008, p. iii). O evento também reuniu
representantes das cidades de La Paz (Bolívia), Santiago (Chile), e Sekondi-Takoradi
(Gana) e de cidades brasileiras (Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro e Salvador),
na qualidade de observadores, e representantes do Banco Mundial, do Banco Asiático
para o Desenvolvimento (BAD), das redes CGLU e Metropolis e do ONU-Habitat.

Eventos como esse seriam uma forma comum das agências de financiamento
e as organizações interacionais persuadirem os governos das cidades presentes pela
criação de novas parcerias. De qualquer modo, contribuía enormemente para a
visibilidade internacional da política de urbanização de favelas em curso em São
Paulo. Vale lembrar ainda que foi um ano após a realização desse evento que ocorreu
o evento em Durban, co-organizado pela CGLU e pelo instituto municipal sul-africano,
MILE. Evento, no qual, a presença e apresentação dos técnicos de São Paulo era
aguardada com grande expectativa de estabelecimento de cooperação.

252
O balanço das atividades da Sehab e Cohab entre 2005 e 2009, apresentado em janeiro de 2010
na sede da Prefeitura, indicou no âmbito do Programa de Urbanização de Favelas intervenções em 55
áreas (9 concluídas e 46 em andamento), totalizando investimentos na ordem de 2,4 bilhões de reais
(68% provenientes da Prefeitura e o restante dos governos estadual e federal). No âmbito do Programa
Mananciais, o mesmo balanço indicou intervenções em 94 áreas (14 concluídas e 80 em andamento)
com investimentos equivalentes a 1,1 bilhões de reais (70% da Prefeitura). No âmbito do Programa de
Regularização Fundiária, o balanço indicou a entrega de títulos a 18 mil famílias em 115 áreas.
229

Figura 34. Diálogo Internacional sobre Políticas Públicas: Desafios da


Urbanizacao de Favelas: Compartilhando a experiência de São Paulo, 10-14 de
março, São Paulo, 2008

Foto: Divulgação Sehab

A valorização do desenho urbano e da arquitetura nos projetos de urbanização


de favelas foi a principal marca do programa implementado entre 2005 e 2012.
Algumas obras, como a urbanização do assentamento Cantinho do Céu, receberam
prêmios nacionais e internacionais, valorizadas pela arquitetura dos
empreendimentos habitacionais no interior das favelas (SAMORA e ZUQUIM, 2017).
Em 2010, por meio do Concurso Nacional de Projetos (Renova SP), a Sehab contratou
levantamentos e projetos para 209 assentamentos, divididos em 22 Perímetros de
Ação Integrada, os quais incluíam áreas livres para provisão e conjuntos
habitacionais.

Foi, portanto, em torno da “qualidade do design” dos projetos de urbanização


de favelas (Serapião, 2016) que a experiência de São Paulo passou a ser disseminada
e reconhecida internacionalmente. Para tanto o engajamento do alto escalão da
Secretaria de Habitação foi fundamental. Intercâmbios com renomadas universidades
norte-americanas, como Harvard (Graduate School of Design) e Columbia (University
Graduate School of Architecture, Planning and Preservation) foram estabelecidos; foi
assegurada a participação em exposições internacionais como a Bienal Internacional
de Arquitetura de Rotterdam, realizada em 2009, e organizados laboratórios
internacionais com participação de sete cidades (Roma, Nairobi, Medellin, Mumbai,
230

Moscou e Bagdá), cujos representantes estiveram reunidos nas favelas em processo


de urbanização em São Paulo em 2012. Além disso, foi considerável o esforço da
gestão em registrar, documentar e publicar as experiências e os projetos de
urbanização tanto em periódicos de arquitetura como em livros publicados pela própria
Secretaria.

Figura 35. Exemplos de projetos e publicações sobre a experiência de


urbanização de favelas em São Paulo (2005-2012)

Em sentido horário: Heliópolis, publicação resultante da colaboração com parceiros internacionais,


Cantinho do Céu e Sapé. Foto: Divulgação Sehab.

Ainda em 2012, um ano após o início da parceria com Durban, São Paulo
ganhou o prêmio Scroll of Honour, da UN-Habitat destinado a reconhecer as iniciativas
exemplares na área de habitação em todo o mundo.
231

A recuperação da trajetória da urbanização de favelas em São Paulo parece


indicar assim uma relativa continuidade e crescente institucionalização desse tipo de
intervenção como uma alternativa de política habitacional. Os momentos de
retrocesso no curso dessa trajetória ao longo das décadas de 1980 e 1990 – as
gestões de Jânio Quadros (1986-1988), Paulo Maluf (1993-1996) e Celso Pitta (1997-
2000) – ainda que tenham trazido considerável prejuízo para o ritmo e a forma com
que as favelas foram urbanizadas, não chegaram a alterar essa rota de
institucionalização. O financiamento externo, a partir de meados dos anos 1990,
associado à conjuntura nacional favorável, marcada pela retomada de programas
federais e, a partir dos anos 2000, pela aprovação de novos marcos regulatórios,
permitiram a consolidação das políticas de urbanização de favelas em termos de
concepção, gestão e execução de projetos. Esse conhecimento, a medida em que era
aprimorado, foi sendo amplamente disseminado internacionalmente, tanto por
agentes financiadores externos quanto pelos atores locais (de diferentes grupos
políticos) envolvidos, configurando uma aliança vantajosa para ambas as partes.

5.3 Trajetórias entrelaçadas por um paradigma de política global

A recuperação analítica das trajetórias da urbanização de favelas em São Paulo


e do in-situ upgrading em Durban revela enormes diferenças na forma como os
governos nacionais e locais, nos dois países, lidaram com o passivo de décadas de
uma política habitacional que, mantida por regimes autoritários, excluiu os pobres e
os privaram de acessar os recursos que as cidades ofereciam. Essas diferenças
podem ser compreendidas como um legado de decisões, tomadas, nos dois
contextos, em determinados momentos específicos da relação do Estado com os
territórios habitados pelos pobres urbanos, a partir da década de 1970. Pode-se dizer
que, nessa década, guardadas as devidas diferenças entre os processos políticos e
sociais no Brasil e na África do Sul, o arrefecimento de um período de crescimento
econômico, associado à pauperização da população nas periferias urbanas e aos
abusos de regimes autoritários vão servir de estopim para uma série de protestos
populares nos dois contextos.
232

No Brasil, a revisão do sistema habitacional pelo BNH, em meio à crescente


organização dos movimentos sociais com o apoio da Igreja Católica, resultou no
lançamento de “programas alternativos”, baseados nas ideias de slum upgrading e
sites-and-services disseminadas internacionalmente. A instituição do Promorar e a
aprovação da Lei de Parcelamento e Uso do Solo, em 1979, possibilitaram o
desenvolvimento das primeiras estruturas administrativas voltadas para a urbanização
de favelas em diferentes governos municipais.

Na África do Sul, o massacre de Soweto, estopim para uma série de revoltas


populares contra o regime do apartheid, influenciou a criação da Urban Foundation
pelo setor privado, a qual passou a ser o principal articulador das transformações
naquele regime, contribuindo para o seu término. A criação do Independent
Development Trust, em 1990, e a subsequente aprovação das primeiras leis que
reconheciam os “assentamentos informais”, no ano seguinte, permitiram o
desenvolvimento de experiências pioneiras, por meio de uma articulação entre o setor
privado e entidades da sociedade civil, uma vez que os governos locais passariam, a
partir de então e até o início dos anos 2000, por um longo processo de reestruturação.

Esses momentos, considerados em sua especificidade histórica, foram


determinantes para a emergência e consolidação (ou não) de práticas de urbanização
de favelas e de in-situ upgrading como alternativas às remoções, as quais não
deixaram de ser praticadas, mas de serem a única solução possível. Considera-se,
assim, que a criação dos programas alternativos pelo BNH, no contexto brasileiro, e
da Urban Foundation, na África do Sul, possam ser considerados, numa apropriação
conceitual não ortoxa, como momentos críticos da trajetória da prática de urbanização
de favelas e de in-situ upgrading, respectivamente.

O conceito de momento crítico ou conjuntura crítica (do inglês, critical juncture),


bastante utilizado em análises históricas comparativas de instituições253, está
associado à determinação da dependência destas de sua própria trajetória (path
dependency). De acordo com essa abordagem, um evento ou uma série de eventos,
comumente exógenos à instituição e de curta duração, seriam responsáveis por
situações de incerteza política, na qual mudanças institucionais tornam-se mais

253
Amplamente compreendidas como organizações, regras formais, políticas públicas, regimes
políticos e economias políticas (CAPPOCIA, 2015).
233

viáveis (CAPOCCIA e KELEMEN, 2007). Essas mudanças, por sua vez, gerariam um
legado institucional de longa duração que constrangeria a ocorrência de novas
mudanças. Desse modo, o que o conceito de “dependência de trajetória” implica não
é apenas que a história importa, mas que uma vez adotado certo caminho, sua
reversão esbarrará em arranjos institucionais que podem dificultar a realização de
novas mudanças (LEVI, 1997). O acionamento desse conceito da ciência política, aqui
realizado de maneira experimental, possibilita a interpretação da instauração dos
novos regimes democráticos nos dois países como um segundo momento crítico na
trajetória das políticas habitacionais aqui analisadas comparativamente.

No caso brasileiro, a falência do BNH faria com que políticas nacionais para as
favelas somente voltassem a ser estruturadas nos anos 1990, com a assistência
técnica e empréstimos de agências multilaterais. A ausência de um sistema nacional
permitiu que o governo local estruturasse um programa para a urbanização das
favelas, independentemente de recursos externos e federais, e em diálogo com
experiências similares em outras cidades brasileiras (algumas com financiamento
externo). Em geral, essas experiências foram postas em prática por governos
liderados por partidos de esquerda que cultivavam o ideário da reforma urbana, de
direito à cidade e cidadania para todos. A participação no debate sobre os rumos das
políticas urbanas e habitacionais era vista como um meio de partilha do poder.

Essas experiências passaram então a ser consideradas verdadeiras


“inovações” pelas agências multilaterais (CAMPBELL, 1997) que decidiram
impulsioná-las e financiá-las, com base nas premissas de sua agenda de
“desenvolvimento institucional”. Ao longo da década de 1990, houve descontinuidades
e retrocessos nos programas de urbanização de favelas em São Paulo, financiados
com recursos externos, mas de modo geral o que se observa são avanços: a
comunidade de profissionais que adquire expertise em urbanização de favelas é cada
vez maior, assim como são aprimoradas técnicas e parâmetros de intervenção,
regulação e gerenciamento tanto pelo setor público quanto privado.

No caso sul africano, em contraposição, entre meados dos anos 1980 e 1990
– quando internacionalmente são mobilizadas campanhas para a garantia da posse
de terra e inserção de “assentamentos informais” no mercado associadas a
financiamentos para o “desenvolvimento institucional” – as cidades estão imersas em
234

inúmeros confrontos civis, os quais eram, ao mesmo tempo, violentamente reprimidos


e estimulados pelo próprio regime. Iniciativas de in-situ upgrading surgiram como uma
forma de minimizar esses confrontos. Diante do esfacelamento das autoridades locais,
foram levadas à cabo pelo terceiro setor.

Com o fim do apartheid, o novo governo democrático optou por uma política
nacional centrada no subsídio total de unidades habitacionais para os mais pobres
produzidas pelo mercado, uma adaptação do modelo chileno desenvolvido com o
apoio de agências multilaterais. Um modelo que do ponto de vista ambiental, urbano
e social representava um retrocesso em relação às pioneiras iniciativas de in-situ
upgrading. As cidades sul-africanas, em consequência acabaram mais dispersas e a
segregação entre os grupos sociais pouco se alterou, com os pobres mantidos em
áreas distantes e deficientes de infraestrutura e serviços urbanos ou em enormes
“assentamentos informais” sem qualquer infraestrutura. A adoção desse modelo,
porém, de positivos efeitos eleitorais, parece ter sido vantajosa para a manutenção do
CNA no poder, permitindo com que este permanecesse inalterado por uma década,
mesmo diante das dificuldades dos cofres públicos em mantê-lo e de pressões
externas pela revisão do subsídio total e adoção de programas alternativos.

Em Durban, cidade onde ocorreu a maior parte das iniciativas de in-situ


upgrading pela Urban Foundation (HARRISON, 1992) e que, portanto, possuía um
quadro de profissionais com maior conhecimento neste tipo de intervenção, houve a
tentativa de se estruturar de forma independente, com recursos locais, em parte
proveniente de um fundo iniciado pela iniciativa privada, um programa voltado para os
“assentamentos informais” entre 1997 e 2001. Os diagnósticos e planos, no entanto,
pouco saíram do papel, devido à força do modelo nacional de provisão em massa de
unidades novas.

Assim, nos anos 2000, quando, conforme se argumenta aqui, a


institucionalização de um paradigma de política global para as cidades se completa e
é lançado o plano de ação da Aliança de Cidades, as reações locais em São Paulo e
Durban provocadas por esse novo momento serão diversas e condizentes com suas
trajetórias ao longo das décadas anteriores.
235

Em São Paulo, no início de 2001, a Aliança de Cidades vai encontrar condições


e interesses locais convergentes e ideais para o desenvolvimento da urbanização de
favela em escala e integrada. A política local combinava então investimentos em
infraestrutura e regularização fundiária com instrumentos urbanísticos que permitiam
tanto o investimento na consolidação das favelas quanto a promoção de operações
urbanas que agradavam aos interesses imobiliários. O que se observa a partir de
então, mesmo diante da alternância de poder entre partidos opostos no governo
municipal, é o alisamento das diferenças entre as experiências locais e o projeto das
agências multilaterais.

Na mesma época, na África do Sul, as recomendações da Aliança de Cidades


e as inúmeras missões do Banco Mundial, somadas às críticas feitas por setores da
sociedade civil sul-africana (principalmente por meio de ONGs e da academia)
resultaram na revisão da política nacional e a instituição, a partir de 2004, de um
programa nacional destinado ao in-situ upgrading. O novo programa, no entanto, não
vingaria na prática devido à prioridade conferida ao modelo de financiamento baseado
na distribuição gratuita de casas. Pior que isso, para atender as novas metas do
milênio colocadas pelas Nações Unidas, observa-se de um lado, um conjunto de
intervenções do tipo “terra arrasada”, gerando um grande número de remoções – com
o deslocamento de um grande número de famílias para novos empreendimentos nas
periferias (conhecidos como greenfields); de outro, a criminalização de novas
“invasões” e a reprodução pelo governo democrático, surpreendentemente, das
mesmas práticas violentas do antigo regime.

Na África do Sul, onde os governos pós apartheid estariam empenhados “em


andar à direita”, tanto mais quanto seus políticos e funcionários “falem à esquerda”
(BOND, 2006). Apenas mais recentemente, algumas municipalidades, como Durban
passaram a desenhar programas voltados para a implantação de infraestrutura e
consolidação gradual das favelas. Essas ações resultam, em parte, do trabalho de
persuasão promovido por consultores sustentados pela “ajuda externa”, como
demonstrou o caso do centro Urban LandMark. São iniciativas, porém, que não
envolvem qualquer participação da população local, evidenciando que, de fato, nada
parece ter restado das experiências passadas de in-situ upgrading dentro das
estruturas de estado.
236

O quadro a seguir busca sistematizar as decisões de governos nacionais e


locais, envolvendo as favelas em São Paulo e “assentamentos informais” em Durban,
em relação à agenda (eventos e discursos) da “ajuda externa para o desenvolvimento”
em diferentes períodos.

Quadro 2. Urbanização de Favela, In-situ Upgrading e a construção de um


paradigma de política global para as cidades

PERÍODOS MARCOS DISCURSO SÃO PAULO DURBAN


(BRASIL) (ÁFRICA DO SUL)
Anos 1970 • Início da • Sites-and-services NACIONAL NACIONAL
atuação do e Slum upgrading • Profilurb (1975) • Urban Foundation
Banco Mundial • Prromorar (1979) (1976)
no setor
urbano (1972) LOCAL
• Habitat I • Funaps (1979)
(1976)
Anos 1980 e • Urban • Desenvolvimento NACIONAL NACIONAL
1990 Management institucional e de • Prosanear I (1990) • IDT (1990)
Program mecanismos que • Habitar-Brasil (1992) • RDP (1994)
(1986) possibilitem o • Habitar-Brasil BID
• Lançamento funcionamento dos (1999) LOCAL
da estratégia mercados e a • Programa para
Housing: competitividade LOCAL Assentamentos
Enabling • Best Practices • Profavela (1980) Informais (1997-
Markets to • Programa de 2001)
Work (1993) Urbanização de Favelas •
• Habitat II (1989-1992)
(1996) • Programa
Guarapiranga (1992-
2000)
Anos 2000 • ALIANÇA DE • Deslocamento da NACIONAL NACIONAL
CIDADES “ajuda externa” • PAT Prosanear (2000) • Breaking New
(1999) para as cidades; • Ministério das Cidades Ground/ UISP
• CGLU (2004) • Disseminação por (2003) (2004)
“atacado” do Slum • Política Nacional de • NUSP (2008)
upgrading e de City Habitação (2004) e • Recurso específico
Development FNHIS (2005) para
Strategies” • PAC (2007) “desenvolvimento
incremental” (2011)
LOCAL
• Bairro Legal (2001-2004) LOCAL
• Programa de • Interim Services
Urbanização de Favelas (2008)
(2005-2012)
Fonte: Elaboração da autora.
237

Em ambos os casos, percebe-se uma influência considerável da agenda das


agências multilaterais e de ideias disseminadas internacionalmente, porém, como se
procurou destacar, as trajetórias das políticas de urbanização de favelas em São
Paulo e de in-situ upgrading em Durban só podem ser compreendidas a partir das
dinâmicas, discursos e projetos políticos que se conformam a partir do interesse e da
atuação dos atores locais254. Nesse sentido, diferentes autores já chamaram a
atenção para o modo como ideias e discursos que partem de centros de poder são
internalizados por atores locais, de modo que, por vezes, a influência de modelos e
ideias externas é menos importante do que as disputas envolvendo a formulação de
projetos políticos dos próprios atores locais, o que não quer dizer, contudo que seja
irrelevante (APPADURAI, 1990; DAGNINO, 2004) De qualquer modo, o que parece
ser importante observar são as formas singulares, em cada situação histórica
concreta, pelas quais essa internalização ocorre, fazendo com que experiências de
sucesso ou modelos internacionais sejam muitas vezes usados como instrumentos
por diferentes atores locais em disputa.

Após a recuperação analítica das trajetórias das políticas de urbanização de


favelas em São Paulo e de in-situ upgrading em Durban, em relação aos respectivos
contextos nacionais e circuitos transnacionais, considera-se oportuno regressar à
análise dos sentidos possíveis para o estabelecimento da cooperação entre as duas
cidades.

5.3.1 A cidade que aprende torna-se aquela que ensina

A cooperação entre São Paulo e Durban, de um lado, pode ser vista como
resultado do engajamento de diferentes atores políticos brasileiros em promover a
imagem da cidade de São Paulo, através de programas de urbanização de favelas.
Essa promoção, conduzida ao longo de diferentes governos, ora enfatizou um
discurso de participação democrática e direito à cidade, ora de planejamento

254
Não obstante tenha que se ressaltar, no caso de São Paulo e outras cidades brasileiras, a
significativa importância de contratos com financiamento externo, caracterizados pela longa duração,
em garantir a continuidade de certos programas para as favelas entre diferentes gestões. No caso da
África do Sul, esse aspecto parece ser menos relevante, pois os programas municipais são
dependentes dos recursos e normas definidas na esfera federal e provincial. Esse, porém foi um
aspecto pouco explorado.
238

integrado, ora, enfim, de uma transformação por meio do desenho urbano e da


arquitetura. Os meios para essa promoção foram a participação de atores locais em
fóruns e internacionais, assim como o envolvimento dos mesmos em missões e
campanhas específicas organizadas por agências multilaterais. Engajados em
comunidades transnacionais de especialistas, esses atores locais agiram como
“promotores” (MCCANN, 2013) ou “agentes da transferência” (PECK, 2002; STONE,
2004), compartilhando seu conhecimento, contribuindo para a formação de modelos
de políticas, garantindo apoios e financiamentos para as políticas locais.

Diretamente relacionada ao estabelecimento da cooperação entre São Paulo e


Durban está a “promoção” feita por esses “agentes” em torno de um dos projetos de
urbanização de favelas realizado às margens da Represa do Guarapiranga – o
“Cantinho do Céu”. Como detacada por uma das profissionais integrantes da equipe
da Sehab, quem coordenou as atividades da cooperação técnica pela parte de São
Paulo, essa promoção começou muito antes do evento da CGLU sediado pelo MILE
em Durban em 2011.

Figura 36. Cantinho do Céu, às margens da Represa Billings em São Paulo,


após projeto de urbanização e implantação de parque linear

Foto: Divulgação Sehab


239

Em 2007, por exemplo, a então superintendente de habitação popular já havia


apresentado o programa da cidade de São Paulo para as favelas em um encontro
promovido pela rede Metropolis. As obras no “Cantinho do Céu” começaram em 2008
e em 2010 já estava pronta a primeira parte, que envolvia a criação do parque linear.
Logo em seguida, o projeto foi apresentado em diferentes ocasiões em eventos
promovidos pela CGLU e Metropolis na Cidade do México e em Barcelona. Assim, em
2011, quando novamente o Programa de Urbanização de Favelas de São Paulo seria
apresentado num evento apoiado pela CGLU, já havia entre os profissionais de
Durban a intenção de estabelecer uma parceria com São Paulo e assim atender ao
chamado do Programa Mentoring.

Foi uma reunião de três dias, fizemos (…) um exercício de pareamento


(…) na África estamos sempre olhando para a América do Sul; as
pessoas costumavam olhar para o Norte, mas agora elas estão
olhando para a América do Sul como um contexto similar, um contexto
comparativo (…) [mas] a única experiência com a qual Durban queria
se relacionar foi com a urbanização de favelas em São Paulo. (…)
Durban é vista como uma cidade com bons recursos no contexto da
África Austral (...), e também há muito ego na África do Sul (...) Mas a
única coisa que foi comum a todos nós foi que queríamos aprender
sobre upgrading com São Paulo (Entrevistado 13. Transcrição e
tradução nossa).

A centralidade e qualidade do desenho urbano no Programa de Urbanização


de Favelas implementado em São Paulo à época, foi apontada pelo então City
Manager como o principal elemento atrativo para a cooperação. Quando indagado
sobre a necessidade de técnicos da municipalidade de eThekwini buscarem “lições”
em uma área, in-situ upgrading, na qual já haviam sido considerados especialistas,
esse justificou que a experiência em Durban era mais “orientada pelo planejamento”
sendo que a de São Paulo era mais “orientada pelo desenho”255. Essa justificativa
comprova o completo afastamento do CNA das experiências de organização popular
que haviam resultado nos primeiros projetos de in-situ upgrading no início dos anos
1990, para as quais o próprio City Manager havia sido um personagem chave, como
em dos fundadores do BESG.

O acordo de cooperação estabelecido entre Durban e São Paulo, no entanto,


parecia ser mais uma pretensão de atores políticos sul-africanos em reforçar a

255
Comunicação por e-mail em 16/05/2015.
240

destacada posição de Durban como um centro de inovações e expertise, intenções


explicitadas no ato de criação de seu Instituto Municipal de Aprendizagem (MILE),
como apontado no primeiro capítulo da tese.

Essa pretensão, por sua vez, reflete um conjunto de transformações no âmbito


da assistência prestada por instituições como o ONU-Habitat e o Banco Mundial,
iniciadas em meados dos anos 1990, e que passaram pela criação de premiações
para as “melhores práticas” de “desenvolvimento urbano”, pelas alusões discursivas
do Banco Mundial como um banco do conhecimento e pela criação da Aliança de
Cidades e da própria CGLU, a qual iria impulsionar diretamente a criação da
cooperação técnica entre São Paulo e Durban.

Por trás dessas transformações parece estar a ambição do Banco Mundial de


construir uma ampla rede de instituições que permitisse a substituição de sua
assistência técnica direta a governos nacionais e subnacionais por uma “abordagem
por atacado”. Emergia, assim, o discurso da “aprendizagem entre cidades”. De acordo
com Tim Campbell, quem no início dos anos 1990 reportava as experiências
descentralizadas e participativas das cidades latino-americanas como verdadeiras
“inovações” (CAMPBELL, 1991; 1997), haveria uma crescente demanda por
aprendizado entre as cidades baseada na expectativa de que processos de
aprendizagem levam “a um melhor desempenho” e, portanto, constituem “um dos
mecanismos que aumentam a competitividade” (CAMPBELL, 2009, p.195).

A racionalidade e o funcionamento do MILE são expressão desse cenário, o


qual por sua vez parece ser revelador de interesses mais amplos por parte de Durban
na cooperação com São Paulo:

São duzentos e setenta e oito municípios [na África do Sul], nós somos
o único com (...) instituto próprio de ensino e aprendizagem (...) [os
municípios] vêm até nós (...) eles dizem: há algo específico que nos
afeta (...) então chamamos alguém responsável pelo que chamamos
de suporte técnico municipal que vai até o município e pergunta qual
é o seu problema? (…) Mas há também certos aspectos que estamos
dispostos a aprender, por exemplo (…) sistemas de transporte rápido
de ônibus (…) fomos para Curitiba (…) sistemas de transporte
integrados (…) Índia (…) habitação (…) São Paulo. Como MILE, nosso
mandato é levar eThekwini, Durban, para o mundo (...) o que estamos
percebendo agora é que o mundo também está vindo até nós através
da CGLU. (...) E por isso vamos a Moçambique, Namíbia, Malawi,
Tanzânia, Gana, países de língua inglesa (…) Somos apoiados por
241

várias organizações, pela União Europeia, CGLU, Metropolis, AFD,


SIDA (…) eles é que dizem “vocês podem assistir Maputo em
Moçambique (…) eles, a UE, o Banco Mundial, por exemplo, usam-
nos para implantar alguns dos seus programas (…) em vez de
comunicar diretamente com determinado município seria nós que
iríamos (…) (Entrevistado 10. Transcrição e tradução nossa).

Assim, as próprias cidades, isto é, governos locais parecem ter sido


equiparados a think tanks, capazes de fornecer soluções para outros governos locais
sob o comando de agências de financiamento externo e o monitoramento de
instituições como a CGLU, compromissada em garantir a aderência da “consultoria”
prestada ao paradigma global de política para as cidades periféricas institucionalizado
com a criação da Aliança de Cidades. A percepção de um dos profissionais a fazer
parte da cooperação Mentoring on Upgrading Informal Settlements, representando a
Secretaria de Habitação de São Paulo, confirma esse processo:

Era um intercâmbio de conhecimentos, uma coisa mais de workshop,


eram 8 meses, a gente foi para lá, eles vieram pra cá, a gente fazia
uma palestrinha do que era a política de habitação em São Paulo e
eles faziam de lá, e aí rolava uma discussão e tal. A ideia do programa
é de que a gente realmente é o que tem conhecimento a passar,
sempre tem essa questão, uma cidade é a mentora e a outra é
aprendiz (...) A gente trouxe eles para visitarem as favelas, bom, uma
série de workshops. Eles se apaixonaram pelo nosso trabalho (...) Eles
queriam escolher uma área lá (...) uma área piloto, pra fazer um projeto
baseado na nossa experiência e conseguir adaptar ao orçamento
deles, à cultura deles e tudo o mais (...) Eles falaram, a gente quer
estender isso por mais 3 anos (...) Virou uma consultoria. O que era
uma troca de conhecimento, só uma cooperação, na prática virou uma
consultoria256.

Há duas dimensões, portanto, nesse processo que merecem ser especificadas.


A primeira delas refere-se à extensão da “consultoria e assistência técnica” aos
governos locais da periferia, os quais passam a desempenhar papéis anteriormente
reservados a poucos profissionais ligados aos governos de países, e cidades, centrais
e aos próprios consultores das agências multilaterais. A segunda dimensão a ser
sublinhada diz respeito a uma espécie de terceirização da “consultoria”, ou seja, os
governos periféricos que receberam o aval das agências multilaterais, por meio de
premiações e outros tipos de reconhecimento de sua notoriedade, passam a fazer
parte desse grupo seleto de consultores.

256
Entrevistado 5 (transcrição e tradução nossa)
242

Durban pode ter “aprendido” muita coisa com a experiência de São Paulo, a
interface com o trabalho social e a qualificação ambiental almeijada com os projetos,
foram algumas das “lições” destacadas pelos entrevistados envolvidos na cooperação
por parte da cidade sul-africana. O quanto esses “aprendizados” provocarão de fato
mudanças na implementação do in-situ upgrading é algo difícil de ser medido no curto
prazo, dadas as complexidades e temporalidades envolvidas nas mudanças das
políticas. Observa-se, porém, que um aspecto importante a ser destacado está
relacionado à expectativa de projeção, tanto internacional quanto nacional, que
acordos desse tipo poderiam trazer à Durban. Afinal o que a experiência brasileira
demonstrava, após décadas de cooperação com agências multilaterais, fundações
filantrópicas e outras organizações internacionais, é que a cidade que aprende torna-
se aquela que ensina.

5.4 Conclusão do capítulo

Esse capítulo analisou as trajetórias das políticas de urbanização de favela em


São Paulo e de in-situ upgrading em Durban na sua especificidade e na relação
estabelecida com os circuitos e agentes transnacionais de disseminação de modelos
de política urbana. O que se espera ter deixado evidente, com este capítulo, é que
não obstante a identificação de um paradigma de política global para as cidades que
articula financeirização da produção habitacional, planejamento estratégico e
urbanização de favelas, há enormes diferenças na maneira como o slum upgrading
foi incorporado, negociado, adaptado e posto em prática nas diferentes cidades
analisadas.

Em São Paulo, as lutas populares no retorno da democracia, a autonomia


municipal e a ausência de uma política nacional de habitação favoreceram a
consolidação das práticas de urbanização de favelas pelo estado. Nesse processo,
os acordos firmados com agências como o Banco Mundial e a Aliança de Cidades
foram importantes para São Paulo não apenas como fonte extra de recursos, mas
também como forma de legitimação das políticas locais (e de promoção dos atores
envolvidos) nacional e internacionalmente. Para as agências multilaterais, por outro
lado, a propagação do caso de São Paulo como um caso de sucesso contribuía para
243

a persuadir outras localidades na direção de implantação de iniciativas de slum


upgrading.

Em Durban, a consolidação do in-situ upgrading, prática que tem seus primeiros


experimentos ainda no fim do apartheid com o setor privado à frente de seu
desenvolvimento, encontrou uma série de limitações e os esforços da administração
local em ampliar a escala do in-situ upgrading não tiveram resultados efetivos. Essas
limitações deveram-se principalmente à instauração de uma nova política nacional de
habitação pelo governo democrático, baseada na entrega de casas prontas
subsidiadas. Uma opção híbrida que agradava aos interesses do mercado sem deixar
de assegurar a imagem de um estado benfeitor aos olhos da maioria da população,
sustentando, assim, o CNA no poder. A insustentabilidade desse modelo, porém,
trouxe o in-situ upgrading de volta à pauta governamental nos anos 2000, movimento
que contou com o amplo suporte técnico e financeiro do Banco Mundial e da Aliança
de Cidades. Esse movimento, contudo, após uma década, ainda não havia se
mostrado suficiente para contrapor a força do modelo anterior.

A grande visibilidade adquirida pela experiência de São Paulo e as limitações


enfrentadas na África do Sul para a implantação de programas de in-situ upgrading,
desvinculados da produção de lotes e casas padronizadas, poderiam ser vistas como
explicações plausíveis para o acordo de cooperação estabelecido entre as cidades.
Os objetivos do MILE de ganhar destaque nacional e internacional como um
importante centro municipal de aprendizagem, contudo, não podem ser
menosprezados como um fator explicativo para a construção dessa conexão.

A análise comparativa mostrou, em ambos os casos, uma relação irônica entre


o aprofundamento da democracia e a despolitização de projetos de intervenção em
favelas e squatter settlements. Nos dois contextos, as iniciativas inicialmente
baseadas no empoderamento dos moradores desses territórios deram lugar a
práticas, embora enormemente distintas entre si, de caráter mais tecnocrático, nas
quais a participação dos moradores nas tomadas de decisões foi reduzida.
244

6 CONCLUSÃO

A partir da compreensão das cidades e das políticas urbanas como pontos de


encontro de processos mais amplos e, portanto, como interconectadas e mutuamente
referenciadas, o presente estudo buscou construir uma comparação entre as
trajetórias da urbanização de favelas em São Paulo e do in-situ upgrading em Durban.
Considerando o potencial comparativo que conexões existentes entre cidades podem
ter, adotou-se como ponto de partida para essa comparação um acordo de
cooperação entre essas cidades e a rede transnacional Cidades e Governos Locais
Unidos entre os anos de 2011 e 2014: o Mentoring on Upgrading Informal Settlements.

Buscando evitar interpretações da conexão em si e das políticas locais como


meros efeitos e variações do sistema-mundo capitalista – sem pretender, contudo,
negar a sua importância; e procurando analisá-las em sua relacionalidade e
singularidade, propôs-se aqui o método comparativo de decomposição de conexões.
De acordo com esse método, a parceria estabelecida entre as duas cidades e a rede
transnacional de cidades foi utilizada como ponto de partida para a construção de uma
análise transescalar, na qual as trajetórias das ações de urbanização de favelas e de
in-situ upgrading foram recuperadas historicamente, uma em relação à outra, e em
face da circulação internacional de ideias e modelos de políticas que as atravessa e
aproxima.

Com essa análise pretendeu-se: a) refletir sobre as interconexões e as


diferenças entre as políticas para os territórios habitados pelos pobres em diferentes
cidades; b) compreender como ideias de se urbanizar as favelas se transformaram
(ou não) em políticas e sua consolidação; e c) compreender como certas práticas
urbanas ou histórias de sucesso são postas em movimento internacionalmente, e
como influenciam, são apropriadas e transformadas pelas cidades, ou seja, explorar
a aparente tensão entre o que está em movimento e do que está encravado no lugar.

Resumem-se a seguir os principais achados da comparação aqui construída a


partir dessa abordagem comparativa relacional e histórica. Antes, porém, é válido
destacar aqui uma limitação: a fundamentação teórica e metodológica considerada
245

para o desenho da investigação empírica comparativa restringiu-se a uma literatura


anglófona, a qual se desejava explorar. A construção da crítica a essa literatura,
porém, foi deixada como uma tarefa intelectual a ser perseguida uma vez concluída
esta etapa de doutoramento. Pode-se justificar essa limitação com base na crença de
que a construção da crítica passa pela apropriação do que se pretende criticar.

A investigação empírica aqui apresentada iniciou-se pelo exercício de analisar


a origem de classificações urbanas utilizadas nas cidades brasileiras e sul-africanas
– como favelas, loteamentos periféricos, townships e squatter settlements – em
comparação com classificações similares em cidades inglesas e norte-americanas.
Esse exercício levou à recuperação histórica da circulação de práticas higienistas e
modernizantes, as quais, originadas em cidades europeias foram, nas cidades
brasileiras e sul-africanas, amalgamadas a relações de subjugação étnica-racial.

O resultado foi o tratamento historicamente desigual por parte do Estado ao


acesso de pobres e negros à terra urbanizada e à moradia adequada. Ao mesmo
tempo em que o exemplo sul-africano permitiu lançar uma reflexão sobre a dimensão
étnica-racial das desigualdades de classes no Brasil, a recuperação da história
brasileira provocou conjecturas a respeito da transformação da segregação racial na
África do Sul em desigualdades de classe. Essas considerações indicam que a
“natureza”257 das cidades periféricas, assim como a prática do planejamento nessas,
não podem ser compreendidas sem um retorno à diferença histórica e espacial de
suas forças constitutivas, isto é, sem o estudo dos efeitos do colonialismo e da
perpetuação de formas de colonialidade.

Em seguida, a análise histórica da emergência de organizações


intergovernamentais e de bancos multilaterais no pós-Segunda Guerra Mundial, em
meio aos processos de descolonização de parte da África e da Ásia e de instauração
da Guerra Fria entre os Estados Unidos e a antiga União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas, permitiu ampliar a compreensão dos contextos singulares em que as
classificações urbanas examinadas anteriormente foram concebidas.
Fundamentalmente, a análise da atuação dessas instituições, sobretudo a partir dos

257
Em crítica à visão generalista presente em Scott e Storper (2015) as cidades devem ser
compreendidas como entidades separadas entre si e definidas segundo a variação empírica em termos
de aglomeração, densidade e proximidade.
246

anos 1970, permitiu observar como a circulação de ideias e modelos de políticas,


antes baseada na troca entre governos locais e municipais, passou a ser cada vez
mais intermediada por agências de financiamento externo e organizações
intergovernamentais. O exame dos discursos e das concepções de políticas
disseminados ao longo de três décadas por essas instituições, nas quais se basearam
seus empréstimos, evidenciou a construção de um paradigma de política global para
as cidades periféricas visando o livre funcionamento do mercado e o aumento da
competitividade entre as cidades. Nesse paradigma, a urbanização, consolidação e
integração das favelas ocupam um lugar marginal.

As análises das trajetórias de políticas de urbanização de favelas na cidade de


São Paulo e de in-situ upgrading em Durban, ambas em relação ao contexto nacional
e internacional que as atravessam, permitiram lançar luz sobre uma significativa
convergência entre as políticas locais e um paradigma de política global para as
cidades institucionalizado no final dos anos 1990. Essa convergência foi
acompanhada do esvaziamento do sentido político que as práticas de urbanização de
favelas e de in-situ upgrading tiveram até meados dos anos 1990.

Os programas de urbanização de favelas em São Paulo (e outros municípios


brasileiros), face ao vazio deixado pelo fim do Banco Nacional da Habitação,
desenvolveram-se em grande parte devido ao financiamento e à assistência técnica
prestada por agências multilaterais, principalmente o Banco Mundial, o Banco
Interamericano de Desenvolvimento, e, mais recentemente, a Aliança de Cidades. No
contexto de redemocratização do país, muitas dessas iniciativas eram baseadas em
forte participação popular e num projeto mais amplo de reforma urbana. Os resultados
dessas iniciativas, a partir dos anos 1990, serviram para amadurecer a agenda das
agências financiadoras junto a outras cidades e países. Nesse contexto, em diferentes
momentos, não apenas Durban, mas também outras cidades sul-africanas se
conectaram com experiências brasileiras. A partir de então, o que se observa é a
reestruturação da política nacional em uma estreita relação com as agências
multilaterais.

A análise do caso sul-africano, por sua vez, revelou que não obstante o papel
significativo que iniciativas de in-situ upgrading tiveram em minimizar os violentos
conflitos durante os últimos anos do regime do apartheid, a política habitacional após
247

o fim desse regime baseou-se em um modelo de provisão em massa de habitações


novas produzidas pelo mercado e subsidiadas (inteiramente no caso das famílias mais
pobres) pelo governo, com baixos efeitos, porém sobre a demanda por habitações e
a segregação urbana. A centralidade conferida a esse modelo, associada à limitada
autonomia dos municípios e a questões políticas locais, fez com que a tentativa de
estabelecimento de um programa mais abrangente de in-situ upgrading em Durban
fracassasse.

Além disso, percebeu-se que a partir dos anos 2000, uma vez consolidado o
esvaziamento do caráter político das ações pioneiras de urbanização de favelas e de
in-situ upgrading, passaram a ser privilegiadas as trocas e cooperações diretas entre
governos locais, porém sob a supervisão das agências financiadoras com a
intermediação de instituições como a rede Cidades e Governos Locais Unidos,
compromissada em garantir a aderência dessas trocas, por vezes similares a serviços
de consultoria, ao paradigma global de política para as cidades periféricas, cuja
institucionalização se completou com a criação da Aliança de Cidades. A
compreensão das cooperações entre cidades, contudo não pode ser desvinculada
dos interesses dos atores políticos locais, os quais pareceriam atrair visibilidade
internacional e local não apenas para as cidades que buscam promover como para si
mesmos. Assim, em troca da garantia de novos financiamentos e investimentos,
capazes de aumentar a competitividade das cidades beneficiadas, atores políticos
locais se beneficiariam de maior legitimidade política e profissional.

As análises apresentadas motivam ainda o aprofundamento sobre as


metodologias e formas de operacionalização das intervenções em cada contexto,
respectivamente, assim como a investigação de dimensões que não foram incluídas
no escopo dessa tese, mas que não são menos relevantes, como por exemplo, os
efeitos ou impactos das políticas de urbanização de favelas e de in-situ upgrading no
território: afinal estariam essas intervenções, extremamente necessárias, contribuindo
para o exercício da cidadania plena ou apenas perpetuando a diferença? Espera que
esta tese possa contribuir tanto para investigações futuras nessa direção como para
conectar outros urbanismos da periferia.

Deseja-se, assim, que esta tese seja compreendida como uma de muitas
maneiras de se comparar, compreender e clarificar processos mútuos de constituição
248

de políticas urbanas. Certamente mais pesquisas, abordando distintas dimensões e


processos e aproximando diferentes cidades periféricas ou não, são necessárias para
a geração de entendimentos outros sobre as diferenças históricas que as atravessam,
assim como sobre as possibilidades de mudanças socioespaciais que essas
diferenças carregam.
249

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277

APÊNDICE - LISTA DAS ENTREVISTAS REALIZADAS

Identificação Posição/Instituição (na data da entrevista) Data Local


Coordenadora de Cooperação Internacional e Rede de
Cidades da Secretaria Municipal de Relações
Entrevistado 1 Internacionais e Federativas. 2014 São Paulo
Professora do curso de arquitetura da na Faculdade
Armando Álvares Penteado. Foi coordenadora do
Programa Guarapiranga entre 1995 e 2000 e
Entrevistado 2 Superintendente de Habitação Popular entre 2005 e 2012. 2014 São Paulo
Assessora da Secretaria Municipal de Relações
Entrevistado 3 Internacionais e Federativas. 2014 São Paulo
Arquiteto da Secretaria de Habitação. Participou da
Entrevistado 4 parceria Mentoring pela Prefeitura de São Paulo. 2014 São Paulo
Assistente Social aposentada pela Secretaria de
Habitação. Participou da parceria Mentoring pela Prefeitura
Entrevistado 5 de São Paulo. 2014 São Paulo
Secretária Adjunta da Secretaria de Desenvolvimento
Entrevistado 6 Urbano. Coordenou o deenvolvimento do Habisp na Sehab. 2014 São Paulo
Arquiteta aposentada pela Sehab. Coordenou a parceria
Entrevistado 7 Mentoring pela Prefeitura de São Paulo. 2014 São Paulo
Professor do DPU (UCL). Ex-associado do BESG (Built
Entrevistado 8 Environment Support Group ). 2014 Londres

Gerente sênior de Planejamento, Human Settlements Unit,


Entrevistado 9 Municipalidade de eThekwini 2015 Durban
Entrevistado 10 Analista chefe, MILE (Municipal Institute of Learning) 2015 Durban
Arquiteto da Harber & Associates. Foi um dos fundadores
do BESG e Professor do curso de arquitetura da University
Entrevistado 11 of Kwazulu-Natal 2015 Durban
Ex-presidente e membro fundador do movimento Abahlali
Entrevistado 12 baseMjondolo 2015 Durban
Ex-secretária de Planejamento. Coordenou a parceria
Entrevistado 13 Mentoring pela Municipalidade de eThekwini. 2015 Durban
Consultor independente. City Manager de eThekwini entre
Entrevistado 14 2002 e 2011. 2015 Durban
Pesquisador da University of Kwa Zulu Natal. Ex-
funcionário do Durban Metropolitan Council entre 1995 e
Entrevistado 15 2001. 2015 Durban
Consultor independente. Ex-associado do BESG (Built
Environment Support Group) e Diretor da Cato Manor
Entrevistado 16 Development Association. 2015 Durban
Professor da School of Architecture and Planning,
Entrevistado 17 University of the Witwatersrand 2015 Joanesburgo
Professor da School of Architecture and Planning,
University of the Witwatersrand. Foi diretor de
Planejamento e Gestão Urbana na Prefeitura de
Entrevistado 18 Joanesburgo entre 2006 e 2010. 2015 Joanesburgo
278

Identificação Posição/Instituição (na data da entrevista) Data Local


Professora da School of Architecture and Planning,
University of the Witwatersrand. Ex-funcionária da METRO
Entrevistado 19 Housing Durban 2015 Joanesburgo
Consultor independente. Participou das iniciativas pioneiras
Entrevistado 20 de in-situ upgrading em Durban. 2015 Joanesburgo

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