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SAÚDE

Os rituais com ayahuasca estão a aumentar em Portugal, mas não há


conhecimento sobre a quantidade de retiros, quem os organiza, quem neles
participa ou se decorrem em ambientes seguros.
Amílcar Correia
5 de Novembro de 2023, 6:08
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Ana e Beatriz são nomes fictícios de duas mulheres reais que


experimentaram ayahuasca por curiosidade, para se autoconhecerem
e porque precisavam das respostas que não encontravam. “Eu sentia-
me à deriva e decidi fazer a experiência num retiro de oito dias, no
Algarve, por crescimento pessoal e espiritual. A viagem fez-me ter
visões, questionar a maternidade, a relação com a minha mãe.
Descobri”, diz a primeira das duas, “o que era essencial na vida”.

Beatriz, assim como Ana, recorrera à psicologia, à psiquiatria, à


psicoterapia, pela necessidade de fazer o luto da morte da mãe e por
exigência de uma depressão interminável. A oportunidade surgiu em
Ibiza: “Comecei a receber mensagens, umas claramente protectoras e
de confiança, outras mais negativas. Havia uma voz no meio, que ia
fazendo escolhas. Nesta altura, não sabia o que era. Hoje, sei que isso
era o conceito junguiano [Carl Gustav Jung foi um psiquiatra e
psicólogo suíço] de eu superior. Hoje”, continua, “sei o que aconteceu:
foi um contacto com essa voz, que o Jung diz que nos acompanha
incondicionalmente; que é a voz que supera o ego. Essa experiência foi
fundamental, porque estava a viver um processo de depressão. Foi uma
sensação de plenitude indescritível do ponto de vista físico e uma
experiência reparadora”.

As duas têm em comum o desalento com a morosidade dos processos


terapêuticos convencionais, apesar da utilização de fármacos, e uma
vontade de aproximação às filosofias ancestrais, ao que a primeira
chama “descolonização do pensamento” e a segunda um “outro olhar
sobre o mundo”.
A oferta de retiros para a celebração de rituais com ayahuasca — uma
beberagem alucinogénia de origem amazónica — tem vindo a crescer
por todo o lado, e Portugal não é excepção. O maior fluxo de imigração
brasileira ou os anos de pandemia podem explicar esta relação de
procura e de oferta? É especulação. O que podemos dizer com mais
convicção é que esta bebida que muitos grupos indígenas da Amazónia
consideram sagrada, e que curandeiros usam como medicamento em
grande parte da América do Sul, se popularizou.

Dois exemplos. O primeiro está na Netflix: Michael Pollan, o escritor e


professor de Jornalismo na Universidade de Berkeley, nos EUA, além
dos livros, dedicou-lhe um documentário. O outro é este: os ocidentais
descobriram Iquitos, no Peru, como local de peregrinagem para o seu
consumo e deram origem ao ritual turístico da ayahuasca. O destino
mais conhecido é o Templo do Caminho da Luz.

Em Portugal, a oferta de retiros para uma experiência espiritual deste


tipo cresceu e diversificou-se e uma rápida procura num motor de
busca da Internet permite concluir que há muito por onde escolher. Os
retiros podem demorar um fim-de-semana, ou um período mais longo,
e exigem, usualmente, um período prévio de preparação e alguns
cuidados. É recomendável que se faça uma dieta, sem produtos
animais, da qual não conste, por exemplo, ingestão de drogas nem de
álcool, para evitar interacções contraproducentes, e não é
recomendável que a mistura seja experimentada por quem tenha
problemas do foro psicótico. Os preços dependem do número de dias,
da qualidade da acomodação e costumam oscilar entre os 200 e os 300
euros.
Potencial terapêutico
Os índios do Panamá, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia ou Brasil
utilizam a ayahuasca (ou yagé ou caapi) para fins espirituais e
medicinais. O seu uso religioso está protegido em países como Brasil,
Estados Unidos, Países Baixos ou Canadá e está livre de fiscalização
internacional, apesar de incluir um alcalóide sob controlo, a
dimetiltriptamina (DMT).

“A ayahuasca não é uma substância incluída expressamente nas


convenções das Nações Unidas, nem na lei portuguesa, mas sim o
DMT”, explica João Taborda da Gama, docente da Faculdade de
Direito da Universidade Católica. “Há várias tomadas de posição de
órgãos das Nações Unidas que dizem que a ayahuasca, apesar de
conter DMT, é uma substância diferente do DMT e, portanto, não
sujeita a controlo/não proibida. É também essa a minha posição.
Contudo, muitas vezes em todo o mundo, incluindo em Portugal, os
tribunais têm uma posição contrária, mais formalista, e consideram
que a ayahuasca se confunde com DMT. Considero também que,
independentemente de se considerar ou não a ayahuasca como uma
substância controlada, ao abrigo do princípio constitucional do direito
de liberdade religiosa, o seu uso para fins religiosos deve ser permitido
(como é, por exemplo, nos EUA e no Brasil)”, prossegue o autor
de Regular e Proteger: Por Uma Nova Política de Drogas. Em
Portugal, sublinha, “o uso pessoal de qualquer substância controlada
não é crime”.

O DMT integra a mistura final do líquido e é um psicadélico que


funciona como antidepressivo e ansiolítico, com efeitos no
processamento de emoções, sensações ou na percepção e consciência.
Pode-se dizer com segurança que a sua ingestão causa visões, como
relatam os participantes, mas isso não pode ser confundido com
alucinações. São essas potencialidades da DMT que permitem a Maria
Carmo Carvalho, investigadora e professora da Universidade Católica,
comparar os efeitos das substâncias psicadélicas com os dos “processos
de terapia psicodinâmica e de terapia cognitiva comportamental: os
psicadélicos têm potencialmente os mesmos efeitos de uma forma
imediata”.

“A ayhuasca actua no sistema nervoso, farmacologicamente,


como se fosse psilocibina [dos cogumelos ‘mágicos’]".
Maria Carmo Carvalho, psicóloga

“A ayhuasca actua no sistema nervoso, farmacologicamente”, explica,


“como se fosse psilocibina [dos cogumelos ‘mágicos’] ou LSD.
Botanicamente complexa, quer a vinha, quer a planta utilizadas na sua
preparação têm componentes psicadélicos e antidepressivos” que
recomendam a sua utilização em casos de luto ou depressão.

Josep Maria Fàbregas, um psiquiatra espanhol especialista em


dependências, considerava que a psiquiatria estava estagnada, que os
medicamentos prescritos eram os mesmos de há 50 anos: o
Haloperidol tinha mais de 40 anos, o Valium mais de 60, e o Prozac 35.
Só que isto foi dito há dez anos. Fàbregas lamentava que a psiquiatria
tivesse estagnado porque só tratava os sintomas e não abordava a raiz
do problema psiquiátrico.

Pedro Castro Rodrigues, coordenador da Unidade de Depressão


Resistente do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, concorda,
porque os novos medicamentos são variações dos mais antigos, pelo
que se “torna difícil inovar em psiquiatria”. Este psiquiatra e
investigador considera que a utilização de substâncias psicadélicas
como a ketamina, que já é utilizada em hospitais do Serviço Nacional
de Saúde, têm registado “resultados animadores e positivos no
tratamento da depressão resistente: 50% de casos de ausência de
depressão e 70% de redução de sintomas” naqueles que tem
acompanhado.

Foto
O aumento da procura destes rituais neo-xamânicos pode
explicar-se pela não resposta dos cuidados de saúde
convencionais
Pedro Mota, psiquiatra

Experiências com a aplicação de DMT por via intravenosa, com a


vantagem do efeito psicoactivo ser mais curto no tempo, têm
demonstrado resultados positivos na depressão, acrescenta Pedro
Castro Rodrigues e corrobora Pedro Mota.
Necessidade de ambiente seguro
Este último, psiquiatra e presidente da SPACE, uma associação
portuguesa de psiquiatras que estuda a utilização terapêutica de
substâncias psicadélicas, naturais, sintéticas ou semi-sintéticas,
entende que o “aumento da procura destes rituais neoxamânicos pode
explicar-se pela não-resposta dos cuidados de saúde convencionais”,
mas que devem decorrer “num ambiente seguro”, com triagem,
preparação e integração dos participantes, para que aos benefícios não
se sobreponham as “perturbações psicológicas”. Sobre o seu potencial
terapêutico, este grupo de médicos reconhece à ayahuasca efeitos
ansiolíticos e antidepressivos, nomeadamente em casos de depressão
recorrente, sem conhecidos riscos de abuso ou dependência.

Pedro Mota, autor de uma dissertação de mestrado chamada Ao


Encontro da Cura: Trilhando os Caminhos do Xamanismo com
Recurso a Substâncias Psicadélicas, observa que não há conhecimento
rigoroso sobre a quantidade de retiros no país, de quem os organiza e
de quem neles participa, ou se obedecem a boas práticas, e que os
mesmos são de “difícil regulamentação, para já”.
Os retiros deste tipo decorrem sem enquadramento legal, não se tendo
colocado ainda a necessidade de regulamentação, num limbo de
competências que tanto pode dizer respeito ao Infarmed – Autoridade
Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, à Autoridade de
Segurança Alimentar e Económica ou ao Serviço de Intervenção nos
Comportamentos Adictivos e nas Dependências. Ou a todos eles
juntos? “Estamos longe disso”, observa Pedro Mota. A pergunta é:
“Quem iria regulamentar a realização destes retiros?...”

Ayahuasca, a “purga” exige


cuidados
A ayahuasca é um líquido produzido por decocção de duas plantas, uma das
quais contém DMT, um psicotrópico, e é ingerida em cerimónias de grupo
conduzidas por um facilitador experiente ou por um xamã.
Amílcar Correia
5 de Novembro de 2023, 6:08

Foto
Não é possível detalhar com exactidão a sua origem, mas existem evidências
arqueológicas que datam o uso da ayahuasca há mais de um milhar de
anos GETTYIMAGES

As boas práticas aconselham a que os rituais de ayahuasca sejam


inseridos num grupo que não exceda as 15 pessoas, com a condição de
existirem três a quatro “facilitadores”, aos quais compete acompanhar
as reacções de quem a experimenta. A diminuição destes rácios pode
tornar a experiência menos segura, caso surja algum imprevisto.
Porque é preciso ter em conta que a beberagem causa vómitos,
tremores ou sudorese potente. No ritual xamânico, a experiência é
sempre violenta. É aquilo a que se chamam "mecanismos de purga",
como explica a psicóloga e docente da Universidade Católica, Maria
Carmo Carvalho, algo entendido por quem a utiliza como uma
“limpeza” de propriedades catárticas.

Acompanhado por cânticos constantes, os ícaros, e numa introspecção


solitária, o seu efeito pode durar cerca de quatro a seis horas e pode ser
prolongado até às 12 ou 14, caso inclua uma segunda ou terceira toma.
Depois da cerimónia, que se realiza na maioria dos casos em locais
próximos da natureza, rurais e tranquilos, por razões de conforto
espiritual, é importante que o “final da viagem” tenha como corolário o
que na gíria da ayahuasca se designa por “integração”, a forma como
se deixa a experiência após as visões e mensagens que lhe estão
associadas.

Tradicionalmente, a ayahuasca é um líquido produzido por decocção


de duas plantas, uma das quais contém DMT, um psicotrópico, e é
ingerida em cerimónias de grupo conduzidas por um facilitador
experiente ou por um xamã, condições que aparentemente têm
diminuído com a sua profusão.

Este último, no contexto religioso, é um mediador directo entre os


seres humanos e as divindades (antepassados e espíritos do mundo)
com as quais consegue comunicar. Não é possível detalhar com
exactidão a sua origem, mas existem evidências arqueológicas que
datam o uso da ayahuasca há mais de um milhar de anos.

O seu nome tem origem na língua quéchua e pode ser traduzida como
“a videira da alma” ou “a videira da morte”, porque se trata de uma
mistura de uma videira e de uma planta. O resultado é uma bebida
preparada por ebulição de alucinogénios vegetais, que as populações
indígenas e mestiças utilizam como medicina para fins terapêuticos e
mágico-religiosos.

Modificações transitórias nas emoções, pensamentos e percepção são


os efeitos mais recorrentes, sem que isso altere, na maioria das tomas,
o discernimento da interacção com o mundo em redor. É considerada
Património Cultural do Peru e o seu uso religioso é permitido em
algumas igrejas dos EUA e Canadá.

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