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Para Cima ...

Foi a direção do meu olhar ao me despedir de minha mamãe

Talvez muitos de vocês saibam, mas em meados de outubro de 2022, após uma espera que mais pareceu uma
eternidade, recebemos finalmente nossas permissões de viagem, e eu não teria naquele momento um outro
destino ou uma outra missão senão – voar para o Brasil a fim de viver a resposta do clamor que já vinha
derramando diante de Deus por praticamente 3 anos e meio: “Me deixe ver minha mãe, me deixe estar com
minha mãe mais uma vez, Senhor”.

Então, após celebrar a primeira década completa de vida de nosso Menino Mundo Thomaz eu viajei para o
Brasil com uma única agenda – estar com mamãe. Ela vinha de uma sucessão de internações desde julho
quando foi submetida a dois procedimentos bem delicados em relação ao aneurisma cerebral que foi
detectado no início do ano passado após uma jornada de busca por respostas sobre as constantes dores de
cabeça e tonteiras que ela sentia. Quando cheguei ela estava internada no CTI do Hospital Casa. Eu vinha
acompanhando tudo por chamadas de vídeo pelo WhatsApp com a ajuda de minha irmã Sami, que estava
cuidando de toda a condição de saúde da mamãe. Mas, nada como testemunhar pessoalmente uma
realidade. Assim, me dirigi para o hospital e lá fiquei depois que mamãe foi transferida para o quarto.

Como foi difícil testemunhar a condição atual de uma mulher que era tão ativa, longeva, de altas e gordas
gargalhadas, agora tão diminuída do tamanho com o qual eu estava acostumada a enxergá-la. No entanto,
meu clamor havia sido atendido além do pedido em si. Muitas vezes, ao ver minha mãe tão fraquinha,
algumas vezes sem conseguir responder pela telinha do celular de tão falha que estava sua voz, perguntava a
Deus se conseguiria de fato, estar com minha mãe novamente antes dela voltar para a Casa do Pai, o Amado
de sua alma. Mas eu estava lá, e além de poder vê-la e estar com ela, tive o privilégio de cuidar dela. Quantos
momentos tenho agora guardados em forma de memória agregados com todos os outros momentos
anteriores e toda uma galeria de imagens vivas que estão registradas nos tecidos de minha memória. Ela
agora falava pouco, mas os olhares estavam mais profundos, comunicativos e certeiros como nunca.

Mamãe recebeu alta no final de outubro, bem no período que Celso e Thomaz conseguiram viajar para o
Brasil. Então, mesmo com nosso Menino Mundo seguindo sua rotina escolar online, tivemos dias pra lá de
especiais com meus pais. Celso, Thomaz e eu fomos abençoados com a oportunidade de estar com mamãe em
todas as dimensões do que significa estar PRESENTE. Alimentamos, cuidamos, mimamos, Thomaz dançou,
cantou e fez a vovó cantar junto, assistimos filmes juntos, lemos para ela, contamos histórias. Preciosidade,
tesouro em forma de interação.

Como Família Braga, desenvolvemos a tradição de passar as festas de final de ano com nossas famílias, nos
revezando. Então, em nossa última visita ao Brasil em 2019, passamos o Natal com minha família no Rio e o
Ano Novo com a família de Celso em São Paulo; dessa vez faríamos o movimento contrário; uma vez que,
ainda durante a pandemia em 2021 levamos um grande susto com nossa Zaninha que ficou internada por 46
dias com COVID-19 e a maior parte deles entubada. Meus rapazes foram antes para Presidente Prudente, eu
seguiria cuidando da mamãe e iria num período posterior.

Uma semana antes de seguir para Presidente Prudente, estive mais uma vez no hospital com mamãe e um
anjo em forma de gente chamado Sheila Duarte. Uma vez mais uma insistente infecção urinária estava
maltratando a mamãe. Dessa vez, entendi e com concordância da médica, que mamãe poderia receber o
tratamento medicamentoso em casa, já que havíamos conseguido com as mudanças da dieta alimentar e da
rotina diária fortalecê-la um pouquinho. E assim, cuidamos dela. Exames de urina antes e depois,
comprovaram que a infecção ainda estava lá. Teimosa, sem ceder. Diante dessa insistência infecciosa, mamãe
precisou ser internada novamente, uma semana após eu ter chegado em Prudente. Só não foi impraticável
estar longe por causa do amor acolhedor que recebo da família que ganhei ao casar-me com Celso e por ver
que nossa Zaninha estava bem; mas foi difícil. Bem difícil.

Minha oração era que minha mãe pudesse estar em casa para o Natal com papai. E mais uma vez, Deus foi
graciosamente pontual. Mamãe recebeu alta no dia 23 de dezembro e no Natal estava exatamente em casa.
As maneiras de Deus expressar Seu cuidado e amor gracioso são ilimitadas. Não há atrasos, mesmo que soe
dessa forma para nós por conta de nossa percepção estreita e limitada.

Conseguimos voar para o Rio no dia 28 de dezembro, uma quarta-feira. Passamos o dia entre voos e esperas,
saindo na madrugadinha e chegando na casa de meus pais já à noite. Foi o tempo de desejar boa noite e pedir
a benção - e cama.

Nossa quinta-feira não poderia ter sido melhor. Dia tranquilo, feliz, de comer juntos, risadas, companhia,
presença, assistir filmes juntos. Parecia apenas mais um dia feliz apesar de todas as circunstâncias e
limitações. Já era em torno de dez da noite quando Celso e eu levamos mamãe para a cama e comecei a
organizá-la para seu soninho da noite. Durante a troca da fralda geriátrica minha mamãe parece ter dado os
primeiros sinais de que estava apenas nos esperando voltar para se despedir. Meu pai já fragilizado com os
sustos das internações anteriores, acordou assustado com meu gritos chamando por Celso para me ajudar
com tudo o que estava acontecendo mesmo sem eu entender ao certo o que era. Mamãe desmaiou por duas
vezes e clamamos a Deus para que ela voltasse. Seria profundamente traumatizante para meu pai se mamãe
partisse ali, naquele momento, na frente dele.

Mais uma vez, a anja em forma de gente Sheila se fez presente e me apoiou na decisão mais acertada no
momento. Seguir com mamãe para o hospital, uma vez que sua pressão arterial estava indetectável. Celso
ficou com Thomaz e meu pai e partimos para o hospital que não era próximo mas era o que vinha atendendo
mamãe desde julho da melhor e mais humanizada maneira. Meu pai me parou em meio aos movimentos para
sairmos de casa e me perguntou: “Sua mãe vai voltar para casa, minha filha?” E naquele momento, eu
precisava ser muito sábia e acolhedora na resposta. Então, a melhor via que encontrei foi afirmar: “Eu não sei,
papai. Vamos deixá-la nas mãos de Deus”. E segui para o hospital, deixando meus rapazes também nas mãos
de Deus.

Chegamos na zona Oeste do Rio já no início da madrugada do dia 29 de dezembro. Ao entrarmos com minha
mãe na emergência do hospital, já foram acomodando-a e começando a fazer muitos procedimentos. Naquele
momento aprendi que ao ouvir a palavra “intercorrência” você precisa ficar realmente em estado de alerta
porque no vocabulário médico significa complicação e das grandes. Foi tão difícil ver as tentativas
praticamente inúteis das enfermeiras buscando fazer seu melhor para ter acesso a uma veia de mamãe. Ela
estava tão fraquinha. Qualquer coisa era muita coisa para aquele corpinho já tão fragilizado. Ficar ao lado dela
e afirmar que estava ali era tudo o que eu podia oferecer naquele momento. A sensação de impotência era
devastadora. E ao mesmo tempo, era batizada na certeza de que o Acolhedor Todo-Poderoso estava ali,
intervindo naquela intercorrência. E ficamos ali, toda a madrugada esperando por notícias. Fizeram inúmeros
exames e a encaminharam para o CTI, uma maneira de prestarem assistência continuada. Chegamos em casa
com o dia já amanhecendo.

Uma sexta-feira, um dia como outro qualquer para a maioria dos brasileiros, uma antevéspera de um Novo
Ano que estava para começar. E estávamos ali, eu e minha família lidando com uma incerteza gigantesca. Eu
não tinha nenhum tipo de incerteza sobre o destino de minha mãe caso ela partisse, mas definitivamente não
queria mais testemunhar o sofrimento que ela estava administrando. Não sabíamos como seria o retorno de
cada internação que ela encarava, quantas complicações mais, qual a dimensão da fragilizada que só se
acentuava. Então, assim que cheguei no Rio em outubro, e encontrei minha irmã no hospital para visitar a
mamãe pessoalmente no CTI, pontuei para ela que eu estava decidida a não fazer orações egoístas em relação
a mamãe diante de Deus. Eu não iria pedir para Deus manter minha mãe conosco às custas do alongamento
do sofrimento físico dela. Eu estava disposta a liberá-la para Deus para que Nele mamãe encontrasse seu
descanso eterno. Estavamos de acordo.

Aquela sexta-feira foi dia de conversa. Meu pai não estava pronto para deixar a mamãe ir. Então, na tarde
daquela sexta-feira precisei ter uma das conversas mais difíceis que já tomei parte em toda minha vida de 53
anos. Eu e meu pai tivemos alguns conflitos durante a minha estadia na casa deles porque era preciso que
ficasse claro e patenteado que a prioridade naquele momento era a mamãe. Sou muito firme em meus
propósitos e tão firme quanto na forma de comunicá-los, e sei que isso gera atritos e desconfortos em
algumas ocasiões. Então, foi uma conversa altamente redentiva, com pedido e aceitação de perdão de ambas
as partes. Nós dois precisávamos daquilo diante do que estava por vir. Precisávamos estar com nossos
corações alinhados, nossas emoções precisavam estar em acordo e em paz.

E mais que isso, eu precisava caminhar com meu pai até o território da entrega. Era necessário afirmar que
quando amamos alguém de fato deixamos esse alguém livre, inclusive da dor e do sofrimento. Continuar
tendo mamãe conosco estava custando muito para ela. E era necessário também afirmar que mamãe tinha
destino – a Casa do Pai. Nesse ponto, também estávamos de acordo. A madrugada esperando por notícias
sobre as condições da mamãe o levaram a refletir e decidir que ele também não queria mais ver a mamãe
sofrendo. E dessa maneira, a conversa daquele penúltimo dia de 2022 foi sobre amor, entrega e deixar ir. E a
notícia que recebemos do hospital era que mamãe havia passado o dia estável. Mas isso tem dimensões
gigantescas quando se trata de uma idosa de 82 anos.

Fomos todos para a cama cedo. A madrugada havia sido longa para todos nós. Somente Celso estava acordado
quando já passava de 11 horas da noite e ele viu uma chamada da Sheila no meu celular. Ela havia recebido
uma ligação do hospital avisando que era necessário comparecer porque havia ocorrido uma intercorrência.
Celso, todo cuidadoso me acordou e me explicou o que estava acontecendo. Não ouvi nada além da palavra
intercorrência, e perguntei para ele: “Você acha que mamãe faleceu?” Celso em sua sobriedade se utilizou da
resposta mais sábia: “Não sei”. No entanto, nenhum profissional em condições normais liga para a casa de
uma família às 11 horas da noite apenas para tornar comunicado que ocorreu uma intercorrência com um
paciente. Havia muito mais agregado à essa palavra. Eu tinha certeza só não queria acolher.

Costumo ser silenciosa em meus movimentos. Mas naquela madrugada isso precisava ser mais do que
costume e leveza corporal. Precisava ter a certeza de que meu pai e nosso Menino Mundo não iriam acordar
enquanto eu me organizava para sair no meio da noite. Sheila e o amigo motorista já me esperavam no portão
da avenida onde meus pais moram. Mergulhei num silêncio tão profundo que seria capaz de tocá-lo de tão
concreto. A viagem de Nilópolis até a Barra da Tijuca também foi uma viagem de memórias, um tempo onde
finquei a bandeira da gratidão em vários momentos da jornada da mamãe e também na minha jornada com
ela pela vida. Em alguns momentos me perguntava, e perguntava para Deus: “Como se preparar para receber
a notícia da morte de uma mãe?” Não fomos criados para morrer. Não fomos criados para separação em
nenhuma dimensão da vida. Essas dilacerações são heranças que carregamos do Jardim, quando decidimos
deliberadamente reger a vida nos tendo como referência sobre o que é bom e mal (como se fôssemos capazes
por nós mesmos). O senso devastador de perda me convencia a cada quilômetro percorrido por aquele carro
que eu estava indo receber a notícia mais difícil que já tive que administrar na vida até o presente momento.

Chegando ao hospital, fomos informadas que o médico responsável pelo plantão viria conversar conosco. A
demora daquele profissional apenas me assegurou de que tudo o que havia de ser feito já havia sido feito.
Então, lá pelo meio da madrugada ele veio até nós para comunicar que infelizmente, às 11 horas da noite do
dia 30 de dezembro de 2022, mamãe havia tido uma parada cardíaca e mesmo diante de todos os
procedimentos feitos para reanimá-la, ela não resistiu e veio a falecer. Eu respirei o mais fundo que pude, e as
lágrimas vieram, dessa vez sem timidez como as que brotaram enquanto estava no carro e me dirigia para o
hospital. É estranho, mas lembro exatamente dos sensos que me invadiram quase que simultaneamente
naquele instante. Senti um alívio gigantesco por saber que ela não estava mais sofrendo, e eu vi o quanto.
Uma gratidão imensurável por poder estar ali, por ter estado com ela, por ter visto mamãe em seus últimos
meses de vida aqui na terra, e me dei conta de que mais do que ver e estar eu havia tido o privilégio de cuidar
dela. Foi meu rosto que ela viu antes de seguir para o CTI na noite anterior. E eu a vi. Nada me furtará essa
memória. E senti uma dor devastadora chamada separação.

Era hora de comunicar para minha irmã. Era madrugada, ela estava conectada acompanhando tudo e em
comunicação com Sheila que estava ali comigo e também é uma de suas melhores amigas. Como foi difícil,
mas era minha responsabilidade comunicar para ela. Como era madrugada não fazia sentido acordar todos na
família com uma notícia daquele calibre. Eu e minha irmã, Sheila, Celso e Rejane (uma amiga-irmã que Deus
colocou na minha família há mais de 15 anos) já estávamos acordados. Liguei para meu primo que é um
chegado e querido e pedi que ele comunicasse com a família pela manhã e assim que tivéssemos ajustados
todos os detalhes para o sepultamento eu comunicaria. E assim foi.

Sheila, a partir das informações enviadas por minha irmã fez toda a comunicação necessária para ter tudo
encaminhado. Minha palavra para ela sempre será gratidão, porque enquanto eu tentava alinhar meus
pensamentos e me orientar em tudo o que estava acontecendo ela cuidou das burocracias. Minha oração
naquele momento era que tendo Celso e Rejane acordados na casa de meu pai, o Senhor não permitisse que
meu pai e Thomaz acordassem no meio da noite e dessem conta da minha falta.

Precisamos retornar para Nilópolis, era preciso levar um documento e também separar um traje para mamãe
ser sepultada. Foi a coisa mais surreal que já fiz na minha existência. Quando dei por mim estava no meio da
madrugada diante da porta aberta do guarda-roupa separando uma roupa para sepultar minha mãe. E olha
que eu Celso somos pessoas preventivas, planejadas, nos antecipamos em organização. Mas vamos combinar,
ninguém se prepara para isso não. Escolhi um conjunto de blazer e saia que ela gostava de usar quando era
capaz de ir para a igreja onde ela se converteu e serviu por tantos anos com excelência.

Dessa vez voltei para o hospital com Minha Vida Celso, na direção de nosso amigo mais chegado que um
irmão e padrinho de casamento Daniel. Daniel é esposo de Inácia, uma amiga querida. E a única saída que fiz
enquanto estava no Rio foi ir ao sepultamento da Tia Nazaré, mãe de Inácia que havia voltado para a Casa do
Pai em novembro. O luto nos aproxima ainda mais do nosso semelhante.

Celso fez o que eu não conseguiria fazer. Escolhi ficar com as memórias de mamãe viva. Então Celso, mesmo
emocionado fez o que os trâmites legais chamam de reconhecimento do corpo. Ela parecia estar dormindo,
segundo o relato dele. Na entrada do hospital, enquanto Celso e Daniel acertavam os últimos detalhes com o
agente funerário que havia vindo buscar a mamãe, eu me aproximei do carro funerário onde estava o corpo
da mamãe e como o vidro é fumê encostei meu rosto bem perto para tentar ver o caixão. Um funcionário do
hospital talvez tentando entender o que eu estava fazendo ali, me perguntou se eu precisava de ajuda.
Respondi que não, e que era minha mãe que estava ali dentro. Ele apenas conseguiu responder,
provavelmente num ato de solidariedade – “Sinto muito!” Saímos do hospital com tudo o que precisávamos
para não trazer nenhum peso além da dor sobre meu pai que teria que lidar com a despedida da companheira
de vida por 54 anos. Dia, horário e lugar já estavam definidos para a despedida.

Ao chegar na casa de papai, nosso Menino Mundo já estava acordado e já perguntando por nós. Sheila e
Rejane estavam lá dando todo o apoio que precisávamos naquele momento, além de tudo o que já haviam
feito anteriormente. A linha que seguimos na conversa com Thomaz foi a mesma que usamos quando o vô
Dal, pai de Celso, voltou para a Casa do Pai em 2018. Thomaz entendeu perfeitamente. Vovó Helena havia
partido para estar com Jesus e agora estava curada para sempre. Havia voltado a andar e se bem a
conhecemos provavelmente já estava correndo para recuperar o tempo que ficou sem andar.

Não demorou muito, papai acordou. Precisei respirar fundo novamente pois sabia que eu era a pessoa que
precisava contar o que havia acontecido como parte continuativa da conversa que havíamos tido na tarde do
dia anterior. É claro que ao ver Rejane, Sheila, Celso e eu rodeando sua cama, papai sabia o que havia
acontecido. Eu apenas reiterei ... “papai, lembra de nossa conversa de ontem? Então, aconteceu! Mamãe
voltou para Casa”. Meu pai chorou. Chorou doída e profundamente. Todos nós choramos. E ali, na mesma
cama onde por vários anos mamãe havia sido amada e cuidada eu orei agradecendo a Deus pela vida e pelo
legado dela. A filha, a esposa, a mãe, a irmã, a amiga, a trabalhadora, a seguidora de Jesus que ela foi.

Passamos o dia quietos. Mas à tarde conversamos sobre quais eram as memórias mais marcantes que
tínhamos da mamãe. Meu pai se impressiona com a capacidade que mamãe tinha de nunca dizer não para
uma pessoa. Ela sempre encontrava uma maneira de ajudar, mesmo que isso envolvesse muitos
desdobramentos. E de fato, eu e minha irmã crescemos testemunhando nossa mãe servindo pessoas,
acolhendo pessoas, ajudando pessoas das maneiras mais variadas possíveis. E eu gosto do som da gargalhada
cheia que mamãe era capaz de emitir. Ainda hoje consigo ouvir no meu coração. À noite, Celso, Thomaz, papai
e eu jantamos juntos e agradecemos por fé a Deus pelo ano que estava começando. Não demorou muito até
todos nós irmos para a cama. As duas madrugadas anteriores haviam sido longas para todos nós. De qualquer
forma, eu e Celso estávamos em estado de alerta. Papai por várias vezes teve comoções intensas de choro.
Eram muitas emoções para ele administrar em silêncio. Choro é uma das melhores maneiras de entornarmos
a dor que está nos inundando.

No primeiro dia do novo ano, todos acordamos cedo. Planejamos chegar como família na capela do cemitério
antes do horário marcado para o período de velório a fim de termos um tempo só nosso. Era necessário, digno
até. Meu pai precisava tanto quanto nós daqueles últimos momentos com alguma privacidade. E foi assim.

Ao chegarmos, uma amiga de longa data e o esposo já estavam lá. Vieram de longe para se fazerem perto e
presentes naquele momento de tanta dor. Entregamos nosso Menino Mundo Thomaz a eles e fomos dar
suporte a papai. Quanta dor ao ver meu pai se despedir da companheira de longa data. Eu senti a perda como
filha, mas já não moro na casa de meus pais por 27 anos, já lidava com a distância e ausência física de alguma
forma há uma década desde que encaramos o desafio de ampliar nossas ações missionárias na realidade
transcultural. Então, não tinha ideia de como estava sendo para aquele homem avançado em dias lidar com a
partida da companheira de vida. O lugar que definimos para Jesus em nossas vidas também irá definir se
diremos adeus ou até breve a quem amamos e para quem nos importa na vida.

Era 1º de janeiro, então não contava que muitas pessoas pudessem comparecer ao sepultamento da mamãe.
Muitas pessoas viajam nessa época do ano. No entanto, me surpreendi com o número de pessoas que pouco a
pouco foi enchendo o pequeno salão reservado para o velório no cemitério. Amigos nossos, de longa data
simplesmente estavam lá. Familiares, parentes, vizinhos, amigos, irmãos da igreja onde mamãe congregou por
tantos anos também compareceram para dar um até breve à irmã Helena que por experiência aprendeu a
afirmar que Deus é Fidelíssimo. Um superlativo muito bem empregado por sinal.

Em meio a toda comoção, enquanto estava ali diante do esquife de mamãe eu me dei conta da herança e
legado que estava recebendo. Mamãe não foi perfeita, como eu também não sou uma filha perfeita, e muito
menos uma mãe perfeita para o Thomaz. Ela era minha mãe e eu a amo e isso me basta. E ela era de uma fé
rica em entusiasmo e de uma generosidade que era maior do que ela mesma. Isso eu quero manter.
Testemunhei isso durante a vida dela e entendi que em meio aos cânticos e hinos de esperança e de até breve
que estavam sendo entoados era isso que precisava ser dito sobre quem ela foi – uma mulher cheia de fé e de
generosidade.

Foi difícil assistir os funcionários do cemitério fecharem o caixão. Mas eu sabia que o momento mais
dilacerante ainda estava por vir. Ter que assistir o esquife baixar ao solo e ver a terra sendo jogada por cima
daquela que havia feito tantos sacrifícios na vida para que eu pudesse ser quem sou hoje iria ser brutal pra
mim. Enquanto caminhava para o local do sepultamento, tentava tirar forças da fraqueza.

Ao chegarmos ao local, nos deparamos com uma área recente do cemitério onde gavetas em forma de edifício
estavam organizadas em 8 andares. Havia toda uma engenharia para o translado do esquife. Acompanhei
silenciosamente ao lado de Celso, o trabalho dos funcionários que se utilizaram de um carro que funcionava
como um elevador para subir o caixão. Mamãe seria colocada numa gaveta no 7º andar. Então, naquele
momento, fui visitada por um profundo senso de esperança. Eu não estava presenciando o ato que tanto
temia, ver o caixão de minha mãe descer à sepultura e pás e mais pás cheias de terra fria sendo jogadas sobre
ele. Me dei conta que estava olhando para cima, na direção do céu, exatamente para onde acredito que de
acordo com as Escrituras e por ter estabelecido minha fé em Cristo Jesus, minha mãe foi. Mamãe está mais
viva do que nunca esteve e a direção dos meus olhos naquele momento me ajudaram a amalgamar essa
certeza no meu coração. Me despedi de mamãe olhando para o Alto, para o Autor e Consumador da minha fé
e da fé de mamãe também.

Já se passaram mais de 2 meses. E ainda hoje é difícil cozinhar pela manhã em minha casa. Durante os 11 anos
que vivo fora do Brasil, Celso e eu diariamente nos falamos com nossos pais. Desde a China e ao mudar para
cá com o fuso horário menos complicado do que do outro lado do mundo falava com mamãe diariamente.
Então, cozinhar, sem ter o celular apoiado na janela da minha cozinha mostrando pela chamada de WhatsApp
a carinha dela enquanto eu descascava ou picava algum legume ainda é bem dolorido para mim. Não sou
pessoa de lembrar facilmente dos sonhos que tenho durante a noite. No entanto, já sonhei e consigo lembrar
nitidamente que sonhei com mamãe. E em todos os sonhos ela está andando e dona da voz potente e firme
que sempre teve. Minha mãe está viva. Mamãe está em Casa. Adorar um Deus que é Eterno e que trabalhou
de maneira redentora para tornar a eternidade com Ele viável novamente mesmo depois da bagunça que
fizemos no mundo, me garante isso.

Enquanto isso, eu vou diariamente sendo visitada e ensinada pela PRESENÇA que me ajuda a lidar com a
AUSÊNCIA até que ela seja totalmente erradicada no final da História que dará início ao recomeço mais
aguardado pelo universo e por toda a criação, quando estarei no novo céu e nova terra sem separação; onde
não haverá mais dor, sofrimento, choro, luto; onde não haverá mais Morte, o último inimigo a ser vencido.
Enquanto isso, sigo esperançando. Sigo olhando exatamente para onde vi minha mamãe Helena subir; para
cima, para o alto, para o CÉU.

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