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Painel em Cornalina

Retalhos afiados de um quadro que eu abraço


Estendem, quebradiços, surtem expelindo
Lâminas penetrantes de um breve estilhaço
Que aos meus olhos se despedaçam, ferindo.

Fere-te comigo.

Coadunados nós dois, sozinhos, encubro


Teu passar através deste mar ermo rubro.
Transportamo-nos aos serenes vazios,
Neste veleiro côncavo de pisos frios.

Ao castelo: a entranha, as formas ogivais,


Que cerram de reflexo as lousas de cristais,
Produzem a matéria sólida de um sonho...
Do qual refrata o seu luzir no cais tristonho.

Há úmidas torrentes difusas ao ar


Do cais aos jardins desse prado. O alento.
As muretas garbosas sustam o florar.
E da chuva invisível, molha-se o sedento

Tornando-se, a lustrosa praça, mais noturna,


Chuviscam sentimentos, que se atravessam
Da pele aos nossos ossos; se dispersam,
Como gotejo seco na relva soturna.

Do cais, ande comigo, que visitaremos:

As duas criaturas, ali, enamoradas,


Ilustres suas palmas pulcras abraçadas,
Porque elas guiarão os nossos calados passos
A explicar o Painel em Cornalina os fatos

Púrpura ao contorno do luau jazeste,


Tal como uma Parides Ascanius, veste
A bela cauda preta. Bordas de Proneus,
Refratando às sombras os cabelos seus.

Os dois, como fantasmas, são sujeitos puros,


E formam a extensão destes solos escuros.
Pinta-se o conversar como pinta um pincel
Os cumes sob a áurea lua de papel;
Dizeres ele traz para aquelas orelhas,
fervendo sua pele em ardidas vermelhas.

γ, o masculino, diz-lhe:

Da tua intimidade eu bebo com teu beijo,


Cor da joia granada: seus olhos, vicejo,
Arcando-te os soslaios dos sóis de carbono.
Vislumbrando os bordôs áceres dum outono.

ΣΣ, o feminino, responde:

Meu bem, nessa taça que tua mão segura,


Atiço nela reflexos do meu mirar
Para cessar a sede que dele procura,
Pois tua boca, os teus lábios, eu vou molhar.

A escuridão aos céus chegará, no entanto,


Antes, meu amor, as cores eu mesma irei dar.
Os céus! Forçar-lhes-ei as minhas cores banhar.
Antes dos altos astros que nos sobrevêm.

Silhuetas de tuas nobres costas... Vejo


As infinitas coisas daqui arquitetando.
Os teus murmúrios cálidos, ando os amando.
Neste prado, porém, morrerá o desejo.

γ:

E, por fim, neste último ébrio momento,


Tuas danças, e os braços curvos ao vento,
Os teus olhos orvalhando nos ventos
Molham em mim teus doces e tintos fragmentos.

Cheios da espera, os céus a ela desobedecem.


Durante esse cursar volátil e infiel,
Borrada se torna essa imagem do painel.
E, por fim, novos dias noturnos se tecem.

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