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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro Biomédico
Instituto de Medicina Social

Isabel Siqueira Conceição

“A dor e o incômodo são passageiros, mas o orgulho é eterno”:


dores e moralidades entre ultramaratonistas do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro
2018
Isabel Siqueira Conceição

“A dor e o incômodo são passageiros, mas o orgulho é eterno”:


dores e moralidades entre ultramaratonistas do Rio de Janeiro

Dissertação apresentada, como requisito


parcial para obtenção do título de Mestre, ao
Programa de Pós-Graduação em Saúde
Coletiva, da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro.

Orientador: Prof. Dr. Rogerio Lopes Azize

Rio de Janeiro
2018
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CB/C

C774 Conceição, Isabel Siqueira


“A dor e o sofrimento são passageiros, mas o orgulho é eterno”:
dores e moralidades entre ultramaratonistas do Rio de Janeiro /
Isabel Siqueira Conceição. – 2018.
128f.

Orientador: Rogerio Lopes Azize

Dissertação (mestrado) - Universidade do Estado do Rio de


Janeiro, Instituto de Medicina Social.

1. Dor – Teses. 2. Princípios morais – Teses. 3. Esportes – Teses.


4. Atletas – Teses. 5. Pesquisa qualitativa – Teses. I. Azize,
Rogerio Lopes. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Instituto de Medicina Social. III. Título.

CDU 616.8-009.7

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta
dissertação, desde que citada a fonte.

_______________________________ _________________________
Assinatura Data
Isabel Siqueira Conceição

“A dor e o incômodo são passageiros, mas o orgulho é eterno”:


dores e moralidades entre ultramaratonistas do Rio de Janeiro

Dissertação apresentada, como requisito


parcial para obtenção do título de Mestre, ao
Programa de Pós-Graduação em Saúde
Coletiva, da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro.

Aprovada em 27 de maio de 2018.

Orientador: Prof. Dr. Rogerio Lopes Azize


Instituto de Medicina Social - UERJ

Banca Examinadora: __________________________________________________


Profª. Drª. Rafaela Teixeira Zorzanelli
Instituto de Medicina Social – UERJ

____________________________________________________
Prof. Dr. Martinho Braga Batista e Silva
Instituto de Medicina Social – UERJ

____________________________________________________
Prof. Dr. Luis Fernando Dias Duarte
Universidade Federal do Rio Janeiro

Rio de Janeiro
2018
AGRADECIMENTOS

Agradeço a toda comunidade da Universidade Estadual do Rio de Janeiro,


que vem lutando bravamente para manter essa universidade de pé diante de tantos
ataques promovidos pelo Governo do Estado. Agradeço também a cada
contribuinte, que possibilita o recolhimento necessário para que eu e outras mais de
20 mil pessoas tenham uma formação gratuita e de qualidade. Ao CNPq, agradeço
pelo financiamento concedido no último ano desse curso. Sem ele certamente teria
sido mais demorada e difícil a realização dessa pesquisa. Espero retornar à
sociedade o que foi em mim investido nesses últimos dois anos.
Meu orientador, Rogerio Lopes Azize, pelas contribuições essenciais para
minha formação na Saúde Coletiva, pela gentileza durante todo o processo e pela
revisão dedicada e cuidadosa desse trabalho.
Aos professores da minha banca de qualificação, Luis Fernando Dias Duarte,
Kenneth Rochel de Camargo e Rafaela Zorzanelli, pelas inestimáveis contribuições
ao projeto. E aos professores que aceitaram compor a banca da defesa.
Ainda à professora Rafaela Zorzanelli, junto aos professores Claudia Mora e
Benilton Bezerra Jr. pelas disciplinas oferecidas, essenciais ao meu entendimento
da Saúde Coletiva.
Encontrei em minha turma parceiros generosos, cuja colaboração transbordou
a feitura desse trabalho e deu um sentido mais completo e prazeroso à realização do
mestrado. Agradeço a eles: Fernanda (Dix) Castro e Yuri Jahara, por termos nos
irmanado nas conversas diárias, risadas (de alegria ou de "nervoso"), tardes de
escrita coletiva e noites de cantoria, por cada projeto que temos delineado para
depois daqui. Bia Rique, pela presença leve e carinhosa, por toda a ajuda
transmitida por sua experiência de vida e pelas trocas sobre nossas pesquisas.
Ingrid Raiol, pelos improvisos culinários que temperavam nossas conversas sobre
corpo, dor e saúde e, principalmente, por ter me ensinado tanto sobre a escuta de si
e do outro. Junior Augusto (a cada conversa uma referência bibliográfica), pela
alegria e disposição infinita em dividir e trocar conhecimentos. Miguel Gomes, pela
presença equilibrada e confortável e por ter me presenteado com o livro de Haruki
Murakami, usado neste trabalho.
À Georgia Pereira, que tive a felicidade de reencontrar no IMS, agora como
minha mais velha na vida acadêmica, obrigada por todo o essencial apoio.
À Ana Paula Ribeiro, amiga irmã desde minha primeira passagem pelo IMS.
Sem seu incentivo a "fazer logo o mestrado" e a sugestão de regressar à casa, essa
dissertação não existiria. Agradeço também pelo apoio no exame de qualificação.
Aos amigos que a graduação em Ciências Sociais me deu e que foram
essenciais para a elaboração desta dissertação. Carla Ramos, pelas conversas
sobre etnografia, debates acerca dos dados coletados e pela paciência e
amorosidade em ouvir minhas dúvidas e incertezas. José Renato Batista por ter
dado força a ideias incipientes da análise dos dados e por toda disponibilidade em
discutir meu material. À amiga Flavia Braga, pela essencial ajuda na organização do
projeto de qualificação e pelas conversas sobre o prazer no percurso da escrita.
À minha mãe, que me segurou quando o burnout chegou. Agradeço pelo
mesmo aos amigos Bruno Dias, Fernanda Rabello, Heleno Costa e Rodrigo
Menezes. À minha irmã, Clarisse, por sempre.
Finalmente, ao povo das ultramaratonas, aqueles com quem conversei
pensando na pesquisa e aqueles que conheci antes mesmo de cogitar cursar o
mestrado. Apoios, organizadores e atletas, agradeço por tornarem essa pesquisa
possível, por fazerem meu ofício mais divertido, pelos dias fora da rotina e por tudo o
que me ensinam sempre. Sigamos.
RESUMO

CONCEIÇÃO, Isabel Siqueira. “A dor e o incômodo são passageiros, mas o orgulho


é eterno”: dores e moralidades entre ultramaratonistas do Rio de Janeiro. 2018. 128
f. Dissertação de Mestrado em Saúde Coletiva – Instituto de Medicina Social,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.

O objetivo desta dissertação é compreender as práticas e representações que


atravessam o universo da ultramaratona no Rio de Janeiro, com foco especial nos
sentidos atribuídos à dor por estes atletas. Para tanto, foi realizada uma etnografia a
partir de observação-participante em uma prova de ultramaratona de 235Km e seis
entrevistas com ultramaratonistas de ambos os sexos, maiores de idade e que
completaram ao menos uma vez o percurso da prova etnografada. A partir de um
questionamento inicial sobre os sentidos da dor para ultramaratonistas, foi analisada
como se desenvolve uma ultramaratona, sendo lida a partir de teorias da ação ritual.
Os pares mente-corpo e prazer-dor assumem um papel central na forma como estes
atletas significam o doer. Tornar-se ultramaratonista requer vencer a dor, sensação
incitada pela atividade, mas evitada a todo tempo através da gestão de técnicas
físicas e morais, configurando um dispositivo da dor.

Palavras-chave: Dor. Moralidade. Esporte. Ultramaratona.


ABSTRACT

CONCEIÇÃO, Isabel Siqueira. "Pain and nuisance are passengers, but pride is
eternal": pains and morals among ultramarathoners in Rio de Janeiro. 2018. 128 f.
Dissertation of Master in Collective Health - Institute of Social Medicine, Rio de
Janeiro State University, Rio de Janeiro, 2018.

The aim of this dissertation is to understand the practices and representations


that cross the ultramarathon universe in Rio de Janeiro, with a special focus on the
senses attributed to pain by these athletes. For that, an ethnography was carried out
from observation-participant in an ultramarathon test of 235Km and six interviews
with ultra-marathoners of both sexes, of age and who completed at least once the
course of the ethnography test. From an initial questioning on the meanings of pain
for ultramarathonists, it was analyzed how an ultramarathon develops, being read
from theories of ritual action. The mind-body and pleasure-pain pairs play a central
role in the way these athletes mean hurting. Becoming an ultra-marathonist requires
overcoming pain, a sensation stimulated by activity, but avoided at all times through
the management of physical and moral techniques, setting up a device of pain.

Keywords: Pain. Morality. Sport. Ultramarathon


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 8
1. DO DOER À ULTRAMARATONA: BASES TEÓRICAS.................................... 12
1.1 Perspectiva social das ultramaratonas e ultramaratonistas ......................... 17
1.2 Por que correr? A motivação para corridas e ultramaratonas ..................... 22
1.3 Correr por prazer .............................................................................................. 23
1.4 Mente x corpo ................................................................................................... 26
1.5 Provas como períodos liminoides .................................................................. 28
2. O PROCESSO DE COLETA E APRESENTAÇÃO DOS DADOS ..................... 32
2.1 A prova .............................................................................................................. 32
2.2 A entrada em campo......................................................................................... 36
2.3 As entrevistas ................................................................................................... 37
2.4 Apresentação dos dados ................................................................................. 41
3. DA ULTRAMARATONA AO DOER: ETNOGRAFIA E DADOS DE CAMPO .... 44
3.1 Separação.......................................................................................................... 44
3.1.1 A chegada à cidade ............................................................................................ 47
3.1.2 A entrega dos kits ............................................................................................... 55
3.1.3 O congresso técnico ........................................................................................... 61
3.1.4 Os momentos anteriores à largada ..................................................................... 63
3.2 Etapa liminoide ................................................................................................. 65
3.3 Etapa de agregação .......................................................................................... 83
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 87
REFERÊNCIAS .................................................................................................. 93
ANEXO A – Regulamento da prova ................................................................... 96
ANEXO B – Atestado médico ........................................................................... 107
ANEXO C – Declaração do participante ........................................................... 108
ANEXO D – Termo de responsabilidade .......................................................... 109
ANEXO E – Fotografias .................................................................................... 111
8

INTRODUÇÃO

Duzentos e trinta e cinco quilômetros subindo e descendo serras,


atravessando trilhas, estradas e rodovias a pé ou correndo, com o prazo máximo de
sessenta horas para completar a prova. Raramente os corredores param para dormir
e, quando o fazem, o sono não vai muito além de três horas. O detentor do recorde
nesta ultramaratona específica a completou em trinta e duas horas. Como
fisioterapeuta atuante nesta modalidade e como cientista social, pesquisadora em
Saúde Coletiva, interessa-me compreender melhor os sentidos atribuídos à dor em
um esporte na qual ela é inevitável.
Ultramaratona é toda corrida com distância superior à de uma maratona, ou
seja, são corridas acima de 42,195Km – no Brasil as menores competições
costumam ter 50Km e as maiores estendem-se por 450Km. Os terrenos escolhidos
costumam ser estradas não pavimentadas, trilhas e ambientes de baixa
urbanização. Há também as provas determinadas por tempo, que costumam durar
12, 24 ou 48 horas; nessa modalidade, que acontece geralmente em circuitos
fechados em pistas de atletismo ou ruas pavimentadas e ambientes urbanos, vence
o atleta que percorre a maior distância.
Se ultramaratonas são corridas de distâncias maiores que a de uma
maratona, ultramaratonista seria aquele que completa um percurso como esse.
Tecnicamente essa é uma afirmação verdadeira, mas na prática a construção da
identidade de ultramaratonista é mais complexa e construída através de
participações em mais de uma corrida. Apesar de já acompanhar eventos de
ultramaratonas há 07 anos, foi apenas em capo que percebi a importância da
construção da identidade de ultramaratonista no desafio ao sofrimento nessas
corridas de longa distância.
Meu primeiro contato com o universo das ultramaratonas foi em setembro de
2011. Sem ter muita ideia do que era esse tipo de corrida, me inscrevi para participar
da equipe de fisioterapia de uma prova, termo pelo qual se costuma chamar essas
competições. Na reunião de organização do evento, soube que a prova seria
contada por tempo, os atletas teriam vinte e quatro horas para correr em uma pista
de atletismo de 400 metros e a classificação se daria pela distância percorrida. Não
havia regras sobre possíveis paradas do atleta, o competidor poderia parar quantas
9

vezes e por quanto tempo quiser. “Mas eles quase não param”, disse-me o
coordenador da equipe. Os corredores descansam cerca de duas ou três horas,
param para ir ao banheiro, atendimentos na tenda de fisioterapia e comer – muitos
optam por comer caminhando na pista. Assim como grande parte dos que ouvem
falar pela primeira vez desse tipo de prova, pensei que fossem poucas pessoas
inscritas, mas essa edição da prova contou com cerca de 100 inscritos.
Essa foi a primeira ultramaratona na qual trabalhei; desde então, participei de
inúmeras outras – todas por distância, ao contrário da primeira –, sempre como
profissional de fisioterapia, seja como fisioterapeuta do evento, seja como parte da
equipe de apoio de algum atleta. É comum, mas não obrigatório, que
ultramaratonistas corram assessorados por uma equipe de apoio, formadas
geralmente por amigos também ultramaratonistas e familiares do atleta, além de
profissionais de saúde, geralmente fisioterapeutas ou educadores físicos. Aqueles
que prescindem de apoio são chamados “survivor” e devem contar apenas com a
ajuda da organização do evento.
Ultramaratonas nunca são chamadas de competição, mas sim de “prova” ou
“desafio”. Aquele que a completa dentro do tempo previsto é “finisher”; quem
desiste da prova a abandona porque “quebrou”. Um atleta pode “quebrar na mente”
ou “no corpo”: se ele acredita que as dores sentidas o impedirão de permanecer no
percurso, mas seus pares – ou até mesmo ele, posteriormente – creem que existem
condições de seguir na prova, diz-se que “quebrou na mente”; já a ideia de “quebrar
no corpo” é acionada quando alguma lesão ou episódio de desidratação é
irreversível naquele momento, conferindo risco de vida ou de sequelas permanentes
ao “ultra”, diminutivo usado com frequências por atletas.
Como fisioterapeuta, atuei principalmente em casos de ultramaratonistas que
quebravam, ora os incentivando a permanecer na prova e não pararem pela
“mente”, ora os tirando do desafio por verificar uma situação limite “no corpo”, que
não havia condições físicas de seguir, o que foi bem mais raro. Ao exercer um ofício
ligado primordialmente ao alívio da dor, imergi nas discussões e disputas acerca da
fisiologia da dor. Mas minha formação, anterior à fisioterapia, como cientista social
somada ao contato pessoal com pacientes de diversos quadros dolorosos, me levou
a observar sempre aspectos mais subjetivos e culturais envolvidos nesses quadros.
Algumas atividades físicas estão intrinsecamente ligadas à sensação dolorosa
ou à possibilidade dessa sensação: como é conhecido no meio esportivo, o jogo de
10

negociação do atleta com a dor. A ultramaratona, devido a seu caráter fisicamente


extenuante, é um esporte onde essa negociação, com seus aspectos sociais e
culturais, é claramente evidenciada. Procurei na Saúde Coletiva formas de
compreensão da dor que lidassem com o que há de sociológico, antropológico e
biológico nela.
Em busca de contribuir para os estudos do fenômeno doloroso, o objetivo do
presente trabalho é tecer uma análise da experiência de dor entre ultramaratonistas,
observando as estratégias utilizadas para a superação, evitação ou gestão da
sensação dolorosa durante uma prova e os significados e usos sociais da dor neste
contexto.
Para tanto, realizei uma pesquisa de observação-participante em uma prova
de ultramaratona por distância, onde minha dupla posição no campo – pesquisadora
e fisioterapeuta – me levou a prestar apoio a atletas que necessitassem. Também
foram realizadas entrevistas com seis ultramaratonistas.
Por conhecer há certo tempo o universo das ultramaratonas, cheguei a campo
com algumas certezas. A primeira e maior convicção a ser dissolvida foi acreditar
que a palavra “dor” seria central no discurso dos ultramaratonistas. Entretanto,
“sofrimento”, “enjoo”, “tontura”, “cansaço”, “fadiga”, entre outros termos, eram
classificados e entendidos em um campo semântico próximo ao da “dor”. Foi
principalmente na teoria da historiadora neozelandesa Joanna Bourke (2014) e do
antropólogo Luiz Fernando Dias Duarte (1998) que encontrei as ferramentas que
suportam a compreensão desse fenômeno.
O primeiro capítulo lança as bases teóricas para a pesquisa e parte dos
estudos de Bourke sobre a história da dor para a compreensão desse fenômeno
como um tipo de evento, sempre relacional e permeado por dimensões sociais e
culturais. Dessa forma, para compreender o ato de estar em dor em uma prova de
ultramaratona foi analisada a perspectiva social das ultramaratonas, localizando
essa modalidade no campo esportivo e observando que grupos sociais se inscrevem
nela. A dimensão do prazer como fio condutor na adesão ao esporte também foi
observada, além da relação mente-corpo, que constitui um pano de fundo importante
para o desenrolar de uma ultramaratona e para a constituição da identidade do
ultramaratonista. Por fim, lanço mão de hipóteses clássicas a respeito do rito de
passagem na compreensão da ultramaratona, conforme as etapas formuladas por
Van Gennep (2011 [1909]) e desenvolvida posteriormente por Victor Turner (1974).
11

No segundo capítulo é feita a apresentação do cenário e das personagens da


etnografia. São descritos dados gerais da prova etnografada e os perfis dos
entrevistados, assim como se discute a forma de apresentação dos dados
etnográficos.
O terceiro capítulo, por fim, apresenta os dados etnográficos e tece a análise
dos pares de oposição mente-corpo e prazer-sofrimento, além da ideia de hierarquia
e status entre ultramaratonistas, todo o pano de fundo para o entendimento da dor
para atletas de ultramaratona durante uma prova.
Os três capítulos são atravessados por dados etnográficos e por depoimentos
contidos em livros de dois corredores: o brasileiro Marcio Villar e o japonês Haruki
Murakami. A opção por permear todo o trabalho com dados etnográficos foi
assumida com o objetivo de evitar o isolamento de teoria e etnografia, e levar o leitor
a percorrer comigo os caminhos que tomei para escolher o embasamento teórico
deste estudo.
12

1. DO DOER À ULTRAMARATONA: BASES TEÓRICAS

Eu já não tinha mais posição para


acomodar a mochila nas costas, sentia
uma dor só. Eu a colocava em um ombro
só, depois passava para o outro. Os
dedos dos pés estourados e o dedão
machucado doíam bastante. Também
comecei a sentir as bolhas dos pés
estourarem. Porém, tinha que continuar.
Marcio Villar, s/d1, p.54

Ao narrar em um livro uma de suas participações na Jungle Marathon,


ultramaratona na qual se percorre 254 Km pela Floresta Amazônia, Marcio Villar, um
dos atletas de ultramaratona mais conhecidos no país, discorre sobre as dificuldades
físicas passadas na realização de ultras em contraponto com a determinação de
completar a prova. A palavra dor surge nas narrativas dos ultramaratonistas tanto
para se referir a uma sensação forte e difusa por todo o corpo, como em “sentia uma
dor só”, quanto se referindo a sensações localizadas, mais ou menos brandas, como
se vê em “Os dedos dos pés estourados e o dedão machucado doíam bastante” ou
“com o joelho machucado na queda ainda doendo” (Villar, s/d, p.108).
Ao estudar ultramaratonistas mulheres nos EUA, a educadora física Hanold
(2010)2 observa que a dor é classificada seguindo uma gradação de intensidades.
As participantes descreveram três níveis distintos de dor durante os treinos:
“desconforto”, “dor boa” e “dor ruim”. O “desconforto” e a “dor boa” são percebidos
como dores inofensivas e não suscitam nenhuma alteração na rotina de treinamento;
já a “dor ruim” é entendida como um “alerta” do corpo, levando-as a parar o treino e
procurar ajuda de profissionais de saúde. Diferentes classificações para dor também
são encontradas por Cesar Sabino e Madel Luz (2014) em pesquisa sobre
praticantes de fisiculturismo em academias de musculação do Rio de Janeiro. Os
autores observaram a existência das dores positivas e das prejudiciais: enquanto a
primeira aponta para a execução correta dos exercícios físicos e é parte inexorável

1
A publicação citada, “Desafiando Limites”, de Márcio Villar, é particular e vendida pelo próprio autor,
não contendo ficha catalográfica que informe o ano de publicação.
2
O artigo de Hanold foi o único encontrado sobre o tema dor e ultramaratona, em uma pesquisa
realizadas nas bases Scopus e Scielo, utilizando como descritor “pain” ou “dor”.
13

do desenvolvimento muscular, a dor segunda surge como “fruto de excessos e


execuções equivocadas” (p. 474). Como se pode ver, o mesmo termo designa
diferentes experiências que levam a diferentes reações, dores que são qualificadas
e adjetivadas.
Entre ultramaratonistas, dor é uma palavra usada para descrever tanto uma
sensação levemente incômoda e muito comum após um treino, quanto uma
sensação forte e inesperada o bastante para ser compreendida como um indicador
de lesão fisicamente limitante. Essas diferentes formas de doer teriam a mesma
natureza, diferenciando-se entre si apenas por distintas gradações?3 Em outras
palavras, existe a Dor, no singular, como algo dado na natureza, que varia em
intensidade de acordo com o estímulo a que o corpo é submetido?
Em “Story of Pain”, Joanna Bourke (2014) parte do princípio de que dor é
aquilo que sente a pessoa que reivindica para si essa sensação, ou seja, qualquer
pessoa que alega estar "com dor" está com dor, compreendendo o doer como o
encontro pessoal e único com um sofrimento. Trata-se, em sua leitura, de uma
condição auto atribuída, ainda que, no entanto, se precise levar em conta chancelas
sociais do que venha a ser dor, para que esta tenha reconhecimento público.
Inspirada pelos jogos de linguagem de Wittgenstein4, Bourke considera as emoções
em termos de práticas culturais altamente dinâmicas, e defende a ideia de que o ser-
em-dor requer um momento de consciência, do sofredor e/ou da testemunha.
Partindo desse ponto, a historiadora entende que “dor” não descreve o que é
experimentado, mas sim a maneira como experimentamos algo:

Pain describes the way we experience something not what is experienced. It


is a manner of feeling. (...) Crucially, pain is not an intrinsic quality of raw
sensation; it is a way of perceiving an experience. Pains are modes of
perception: pains are not the injury or noxious stimulus itself but the way we

3
Questão semelhante é levantada por Canguilhem em “O Normal e o Patológico”, publicado pela
primeira vez em 1943. O autor questiona e refuta a ideia de que a diferença entre o normal e o
patológico dá-se na intensidade com que um fenômeno acontece, sendo o patológico apenas uma
variação quantitativa do normal.
4
A ideia de jogos de linguagem, desenvolvida pelo filósofo Ludwig Wittgenstein em sua obra
“Investigações Filosóficas”, pode ser entendida como o conjunto de todas as atividades linguísticas,
compreendendo o uso de signos, o contexto e o ambiente em que se desenvolve, os gestos
empregados. De acordo com o filósofo, não há uma essência que permeie todos os jogos linguísticos,
mas sim são algumas semelhanças, denominadas “semelhanças de família”, entretanto, existem
certas regras para o uso da linguagem, que funcionam de modo a sinalizar o caminho a ser seguido.
O importante ao pensar a linguagem não é observar o significado de uma palavra, mas sim seu uso.
Considerando que o uso de uma linguagem só é possível no seio de uma comunidade linguística, os
jogos de linguagem não são fixos e rígidos, ao contrário, modificam-se de acordo com a comunidade
em que se insere.
14

evaluate the injury or stimulus. Pain is a way-of-being in the world or a way


of naming an event (Burke, 2014, p. 20).

Por caminhos distintos, em certo sentido a posição da historiadora mostra-se


em consonância com a assumida pela Associação Internacional de Estudos da Dor
(International Association for the Study of Pain - IASP) – uma instituição formada por
cientistas, profissionais de saúde e profissionais de políticas públicas com o objetivo
de estimular pesquisas sobre dor para expandir as políticas de alívio da dor pelo
mundo –, que define dor de maneira multifatorial e relacional, sendo “uma
experiência sensorial e emocional desagradável associada ao dano tecidual real ou
potencial, ou descrita em termos de tais danos”. Em nota complementar à definição,
a IASP esclarece que a dor é subjetiva e relacional, uma experiência emocional que
não está necessariamente ligada a um estímulo que cause ou possa causar danos
aos tecidos5:

[...] A dor é sempre subjetiva. Cada indivíduo aprende a aplicação da


palavra através de experiências relacionadas a lesões no início da vida. Os
biólogos reconhecem que os estímulos que causam dor são susceptíveis de
danificar o tecido. Consequentemente, a dor é essa experiência que
associamos ao dano real ou potencial ao tecido. É, sem dúvida, uma
sensação em uma parte ou partes do corpo, mas também é sempre
desagradável e, portanto, também uma experiência emocional. (...) Muitas
pessoas relatam dor na ausência de danos nos tecidos ou qualquer causa
fisiopatológica provável; (...) Se eles consideram sua experiência como dor,
e se a relatam da mesma maneira que a dor causada por danos nos
tecidos, ela deve ser aceita como dor. Esta definição evita amarrar a dor ao
estímulo. A atividade induzida no nociceptor e nas vias nociceptivas por um
estímulo nocivo não é a dor, que é sempre um estado psicológico, embora
possamos apreciar que a dor com maior frequência tem uma causa física
próxima6 (IASP - tradução minha).

Bourke propõe a compreensão da dor como um tipo-de-evento (“type-of-


event”). Compreender o estar-em-dor como um tipo-de-evento permite-nos perceber
que tal estado não emerge exclusivamente dos processos fisiológicos – ainda que

5
A nota foi adicionada a partir de pesquisas que subtraem a necessidade do estímulo físico à
sensação de dor, como o experimento da mão de borracha, realizado desde os anos 1990, que
consiste em posicionar as duas mãos da cobaia sobre uma mesa com uma divisória, posicionando
também uma mão de borracha paralelamente a uma das mãos verdadeiras. Enquanto uma das mãos
da cobaia fica fora de seu campo de visão, escondida do outro lado da divisória, a mão de borracha
fica aparente. As duas mãos — a real que está oculta pela divisória e a de borracha — são
estimuladas de forma sincronizada e, depois que os toques param na mão real, os participantes
começam a “sentir” os estímulos aplicados sobre a mão de borracha. Outras pesquisas que
fundamentam a nota adicional à definição da IASP são as realizadas sobre o efeito atenuante da
distração do foco de dor sobre a sensação dolorosa.
6
Do site https://www.iasp-pain.org/Taxonomy#Pain
15

tais processos tenham grande importância –, mas também na negociação com


mundos sociais e culturais. Tal abordagem evita que haja a reificação da dor como
uma entidade ou uma coisa monolítica, identificável e independente. Essa
perspectiva também aponta o aspecto avaliativo do estar-em-dor, no sentido de que
só existe em termos de significado e avaliação. Sob a concepção de um tipo-de-
evento, a dor é considerada uma atividade. As pessoas doem de maneiras diversas,
uma vez que se dói em diferentes contextos ambientais e relacionais. O sociólogo
australiano Pringle (2009) observou em jogos esportivos a relação entre estímulos
dolorosos e prazer. Em um estudo sobre jogadores de rúgbi neozelandeses, o autor
afirma que os prazeres da violência do rúgbi transportavam os entrevistados para
uma fronteira que exigia a negociação dos limites tênues entre prazer e dor,
havendo uma quebra de tabus ligadas ao prazer induzido pela dominação física e ao
medo da dor. Vale notar que o rúgbi é o esporte nacional na Nova Zelândia,
assumindo grande importância nesse país, o que deve influenciar diretamente na
forma como a dor é vivida nesse contexto. Voltando ao mundo das ultramaratonas,
cito novamente o estudo de Hanold (2010), no qual as atletas classificavam suas
dores de diversas maneiras, uma delas como a “dor boa”. Doer, esta é a perspectiva
na qual me embaso aqui, é sempre contextual. Dessa forma, estímulos nociceptivos
podem levar a expressões de sofrimento ou de prazer, como o contraste proposto
nos exemplos dados por Bourke (2014) do castigo corporal e do masoquismo.

Pain may be rendered significant because it is unpleasant but there is no


phenomenological state that is in and of itself ‘bad’, as any zealous saint or
(indeed) keen sadomasochist will tell you. Again, this is not to deny that
sensations may be important, but they tell only part of the story and, in many
instances, a minor part (Bourke, 2014, p. 30).

As formas de estar-em-dor envolvem processos linguísticos, ambientais,


agentes e relações complexas com outros corpos. E, de acordo com Bourke (2014),
só pode ser entendida enquanto um ‘estar em dor’, ou seja, sua compreensão se dá
em relação à maneira como afeta o estado de ser das pessoas. A historiadora não
nega, ao contrário, ela reafirma a importância da natureza sensorial da dor (“after all,
pain is ‘what hurts’” – Bourke, 2014, p. 29), mas refuta a ideia de que a sensação
dolorosa se resume à resposta a um estimulo sensório. Doer pode, então, ser mais a
repercussão de uma resposta ao evento do que um efeito sensorial em si. Existe
uma construção na dor que permite com que situações que pareçam dolorosas não
16

sejam exatamente dolorosas, da mesma forma com que situações que não pareçam
dolorosas sejam extremamente dolorosas em certos contextos:

[...] pain only exists in the act of evaluating it. It has the character of ‘mine-
ness’. Being-in-pain is not a happening – that is, something that impinges
upon a person independent of context ‘from outside’. It is an event, in the
sense that people are active in its construction in sensual, cognitive, and
motivational terms. Conceiving of pain as a ‘type of event’ allows us to
disentangle pain-situations from pain-experiences: it is possible to be in a
pain-situation. This is not to deny that contracting the ebola vírus is likely to
give you an excruciating headache. But many aches and pains are not
caused by bodily damage. And not all situations or stimuli that are expected
to be painful are experienced as such. Not all “acts” are “events (Bourke,
2014, p. 31).

Não existe um corpo natural e pré-cultural aguardando inscrições sociais,


corpos são agentes ativos na criação de mundos sociais, ao mesmo tempo em que
são criados por esses mundos, uma ideia já demonstrada de forma exaustiva pelo
campo da antropologia do corpo (Mauss, 1974; Csordas, 2008; Le Breton, 2010). Da
mesma forma, dor não deve ser compreendida como uma entidade exclusivamente
natural.
Como defende Bourke (2014), as interações sociais e ambientais,
comportamentos culturais e sistemas de linguagem não são entidades
independentes umas das outras, mas sim existem em relação às outras. A saúde e a
doença não são eventos isolados, tampouco de uma estrita manifestação da
natureza, mas sim do produto da interação entre a mente e os corpos individual,
social e político. Em outras palavras, uma forma de comunicação, a “linguagem dos
órgãos” falada simultaneamente pela natureza, a sociedade e a cultura.
Estar-em-dor não é diferente de outras práticas do eu: os componentes
cognitivos, perceptivos, emocionais, avaliativos e sensuais da pessoa estão bastante
entrelaçados. Dessa forma, o modelo proposto por Bourke em sua história da dor
supera as dicotomias entre dor física e sofrimento mental. Estudos em neurociências
compartilham dessa visão e vêm demonstrando que os mesmos centros cerebrais
que processam a dor corporal também são ativados com sofrimento emocional 7. A
dor psicológica ou mental sempre envolve eventos físicos – neuroquímicos,
musculares e nervosos, entre outros. O sofrimento psíquico pode ser doloroso e

7
Harald Gündel, Mary-Frances O’Connor, Lindsey Littrell, Carolyn Fort, Richard D. Lane, ‘Functional
Neuroanatomy of Grief: An fMRI Study’, American Journal of Psychiatry, 160.11 (Novembro 2003),
1946-53.
17

fenomenologicamente parecido com a dor física, devendo, portanto, ser classificado


da mesma maneira (BIRO, 2010). A dor física, em contrapartida, provoca um desvio
do curso esperado da vida da pessoa, interrompendo de maneira menos ou mais
marcante as biografias (BURRY, 1982). No mesmo sentido:

a experiência de uma disrupção das formas e funções regulares da pessoa,


implica necessariamente o ‘sofrimento’, quer se o entenda no sentido ‘físico’
mais estrito, quer se o entenda no sentido ‘moral’, abrangente (...) e que
engloba, inclui, o sentido físico” (DUARTE, 1998, p. 13)

Nos termos da autora, “The body is mind-ful and the mind is embodied”
(Bourke, 2014, p. 41). Ao borrar as fronteiras entre corpo e mente, borra-se também
as fronteiras entre dor e sofrimento.
Considerando a dor como um fenômeno complexo e relacional, deve-se
perguntar: de quem é o corpo que dói? Quem é a pessoa cujo ser foi afetado e cuja
biografia foi interrompida ou afetada por um evento doloroso? De quais significados
estava imbuído esse doer? Esse evento é produtivo, como para um religioso em
penitência, ou destrutivo, como para um prisioneiro torturado? (Bourke, 2014)
Compreender o doer no contexto de uma ultramaratona requer, então, uma
análise de quem são os ultramaratonistas, o que são e como se desenrolam essas
provas, os estados de dor pelos quais passam durante o evento e quais sentidos
são atribuídos por eles a esses estados. Para iniciar o entendimento do mundo das
ultramaratonas, será observado como essa modalidade esportiva localiza-se no
campo dos esportes.

1.1 Perspectiva social das ultramaratonas e ultramaratonistas

Para análise de uma atividade esportiva, é necessário observar o tipo de


relação que ela possibilita com o corpo, além de relacionar essa atividade com o
espaço social em que se inscreve. Melhor dizendo, é preciso observar quais usos do
corpo são necessários para a prática esportiva – presença ou ausência de contato
físico, necessidade de instrumentos ou não – e entender como aquele esporte se
insere em um universo de práticas e consumos, “eles mesmos, estruturados e
18

constituídos como sistema” (BOURDIEU, 1983, p. 209). Perceber a distribuição dos


praticantes, das federações e de seus dirigentes no espaço social, assim como
riqueza gerada e empreendida nele é igualmente relevante para a compreensão da
atividade. (BOURDIEU, 1983)
As ultramaratonas, como dito na introdução, subdividem-se em duas
modalidades: as de pista e as de trilha. As de pista são aquelas em que o tempo é
pré-determinado e ocorrem em circuitos circulares e pavimentados, mais comumente
em pistas de atletismo. Já as de trilha têm a distância total pré-determinada e
ocorrem em terrenos diversos, que incluem trilhas e estradas, passando por
ambientes não urbanos. Apesar dessas duas modalidades serem chamadas de
ultramaratona, elas organizam-se em diferentes instituições internacionais, que têm
seus próprios rankings e formas de pontuação. Haver duas organizações
absolutamente distintas aponta para algo que os ultramaratonistas destacaram ao
longo de minha pesquisa: há uma clara distinção entre provas por tempo e provas
por distância. Este estudo é centrado em ultramaratonas por distância, devido à
minha maior inserção nessa modalidade.
A International Trail Run Association (ITRA) é a associação responsável por
ultramaratonas por distância que ocorrem em ambientes não urbanos. É sua função
atribuir pontuações a provas, de maneira que cada prova terminada vale um
determinado número de pontos para o atleta, levando à construção de um
ranqueamento. A pontuação da prova é determinada pelo seu grau de dificuldade,
medido pela distância total e pelo desnível positivo acumulado 8. Nem todas as
provas do país são reconhecidas e pontuam para a ITRA; para que façam parte do
catálogo da instituição, deve-se solicitar um registro, que, sendo aceito, será
condicionado ao pagamento de taxas por parte dos organizadores do evento. A
ITRA foi criada em 2013, vinculando-se à Associação Internacional de Federações
de Atletismo (International Association of Athletics Federations – IAAF), e declara
como objetivos:

8
Por exemplo, caso a prova tenha 100Km de distância e 3000m de desnível positivo acumulado, o
cálculo será: 100 + (3000/100) = 130. De acordo com a tabela da ITRA, os resultados entre 65 e 89
equivalem a 3 pontos, de 90 a 129 equivalem a 4 pontos, de 130 a 179 equivalem a 5 pontos,
resultados acima de 179 equivalem a 6 pontos. A prova deste exemplo marcaria, então, 4 pontos no
ranking da ITRA.
19

to give a voice to parties involved in trail running in order to promote its


strong values, its diversity, the safety of races and the health of runners, as
well as to further the development of trail running and ensure a constructive
dialogue between the national and international bodies with an interest in the
9
sport (ITRA ).

Há um considerável número de provas não filiadas à ITRA, o que não gera


um impacto negativo sobre o número de inscritos nelas10. A pontuação no ranking
não é um assunto comumente ouvido entre participantes das provas, a não ser
quando o assunto é a Ultramaratona de Mont Blanc (UTMB), uma corrida realizada
em Chamonix, na França, almejada por uma parte dos atletas devido ao seu grau de
dificuldade e ao status conferido aos que a completam.
Em comparação aos eventos brasileiros, a UTMB é uma prova bastante
dispendiosa financeiramente, tanto pelos custos de inscrição e viagem, como
também pelos equipamentos necessários para proteção contra as baixas
temperaturas. A prova aparece como objeto de desejo de atletas com renda mais
alta, sendo pouco mencionada pelos de classes populares. Nestes não foi
observado nem mesmo um querer contido ou uma frustração por perceber alguma
impossibilidade para a participação na prova, simplesmente a UTMB não surgia no
discurso, exceto por uma atleta que dizia não entender porque a prova era tão
cobiçada. Essa é uma das diferenças encontradas entre atletas de acordo com sua
condição social e econômica. As ultramaratonas não compreendem um grupo social
homogêno, tendo entre seus adeptos pedreiros e grandes empresários; isso não
significa que se trate de uma modalidade absolutamente democrática, já que as
diferenças podem aparecer em diversos mecanismos de distinção. Tal diversidade
pode ser percebida pelo tipo de equipamento utilizado, com maior presença de
equipamentos eletrônicos (GPS, smartwatches e frequencímetros, por exemplo) e
de estrutura de equipe de apoio (carros 4x4, tendas para descanso, acessórios para
cozinha), mas não se configura como algo predominante e hegemônico, uma vez
que é muito comum que os participantes de menor poder aquisitivo recebam ajuda
de diversas fontes – desde ultramaratonistas de classes mais altas até parentes,
amigos e pequenos comerciantes que admiram seus feitos. De toda forma, qualquer

9
Do site http://www.i-tra.org/
10
Em julho de 2017 a Confederação Brasileira de Atletismo (CBAt) se filiou à ITRA, buscando uma
maior proximidade com praticantes de ultramaratonas e corridas de trilha – o recente envolvimento da
CBAt não teve efeitos notados no campo.
20

disparidade na qualidade dos equipamentos não é notada durante a prova em si,


período compreendido entre a largada e a linha de chegada, e não atua como fator
de distinção entre os participantes. De maneira semelhante aos fisiculturistas
estudados por Sabino e Luz (2014), os atletas de classes sociais mais altas tendem
a possuir mais equipamentos eletrônicos do que aqueles de classes mais baixas.
Isso não se apresenta como uma regra geral e, como dito anteriormente, também
não causa distinções entre eles quando estão em prova, afinal “quem tem talento,
não precisa de equipamento”. Essa frase é comum entre muitos atletas amadores de
esportes de alta performance e traz em si a ideia de que o principal instrumento
daquele atleta é ele mesmo.
No que tange aos usos do corpo no esporte (Bourdieu, 1983), a ultramaratona
não prescinde de instrumentos. Os tênis são o principal instrumento do corredor,
mas existem também os equipamentos que a organização de cada prova solicita aos
seus participantes, como mochila de hidratação, apito e manta térmica, entre outros
itens que serão apresentados adiante. Além dos instrumentos de uso externo ao
atleta, também existem os instrumentos de uso interno, como medicamentos
analgésicos, bebidas isotônicas e suplementos alimentares de diversos tipos, como
carboidratos em gel, shakes de proteína, cápsulas de sal ou de cafeína, utilizados
com frequência por ultramaratonistas durante uma prova.
Ao tratar sobre o que optei chamar aqui de instrumentos internos, é
importante ressaltar que as provas de ultramaratona não possuem política ou
testagem anti doping. As estratégias e técnicas para o uso de substâncias lícitas ou
ilícitas, como será elaborado no capítulo 3, é compartilhado publicamente entre os
atletas. O conhecimento e a troca pública sobre os usos dos instrumentos internos
pode ser o fator que torna o uso de substâncias como a cafeína, proibida em
algumas modalidades, um instrumento de uso corriqueiro entre os ultras. Afinal, a
ideia de injustiça do doping é também baseada no desconhecimento de outros
atletas acerca das substâncias utilizadas e utilizáveis, o que geraria uma inequidade
nas condições competitivas entre os atletas (Conrad, 2007).
Há também a ideia de que provas de corrida como estas expõem o corpo a
uma atividade de intensidade superior ao que seria saudável. Os instrumentos
internos passam a ser consumidos com o objetivo de restaurar a homeostase do
corpo durante a prova. A cafeína, por exemplo, seja consumida em cápsulas ou em
copos de café preto, é entendida como um ponto de apoio necessário para provas
21

mais longas, quando a noite ou próprio cansaço trazem o sono, condição indesejável
no momento da prova. Ainda que cientes do discurso médico sobre a necessidade
de dormir cerca de 8 horas por dia, muitos atletas passam 24h ou mais acordados
para completarem suas corridas. A cafeína seria, então, capaz de restaurar o
funcionamento regular do corpo quando em estado de alerta. A substância, como os
demais instrumentos internos, não o faria ir além de suas condições regulares em
estado de alerta, ela apenas serviria para restaurar esse estado nos momentos em
que o corpo parece rebelar-se contra os objetivos traçados pelo indivíduo. Os
instrumentos internos não atuam como uma forma de aprimoramento para além do
que consideram o funcionamento regular do corpo humano, tampouco são de uso
secreto ou clandestino. Desse modo, não são classificados como doping, atividade
carregada de moralidade negativa, compreendida por grande parte do meio
esportivo como uma enganação aos seus pares e a si mesmo (Møller, 2008;
Henning, 2014; Moraes et al, 2015).
Os instrumentos internos não são de alto custo, uma vez que podem ser
consumidos a partir de cápsulas, géis e shakes, mas também através de alimentos.
Os instrumentos externos têm custo variável, de acordo com a tecnologia utilizada,
mas, como dito anteriormente, durante a prova qualquer disparidade de recursos
tecnológicos não é notada ou capaz de gerar distinção entre os ultramaratonistas.
Não existe, portanto, traços de predominância de alguma classe social na
prática de ultramaratonas e as diferenças que existem não têm importância durante
uma prova. Os custos que envolvem a participação em um evento podem ser altos,
entretanto é extremamente comum que os organizadores cedam gratuitamente
inscrições e consigam alojamento para participantes menos favorecidos. Além disso,
os eventos realizados também não costumam premiar os primeiros colocados e essa
modalidade esportiva não atrai patrocínios a seus atletas. Desse modo, não se pode
inferir que há motivações financeiras para a participação nessa modalidade
esportiva. A saúde e a estética também não parecem ser os principais motivadores
para a adesão às ultramaratonas, uma vez que os corpos não obedecem um padrão
predominante, apresentando idades diversas, que variam entre 30 e 70 anos, e há
desde corpos de musculatura definida e baixo percentual de massa gorda até
aqueles mais flácidos, com abdômen proeminente. A saúde também é questionada
por muitos participantes, que acreditam que passar mais de 24 horas acordados,
levando o corpo à extrema fadiga, não é uma prática tão salutar.
22

1.2 Por que correr? A motivação para corridas e ultramaratonas

As histórias ouvidas sobre como ultramaratonistas começaram a correr


costumam envolver motivos como estética e saúde. E existe de fato uma relação
entre adesão ao exercício físico e a busca por um ideal de saúde ou de aparência
física, a construção de um projeto estético de si. De acordo com Ortega (2005), essa
procura está ligada à bio-ascese, ou seja, ao deslocamento de uma subjetividade a
outra, centrando-se na disciplina do corpo como ponto central do estilo de vida do
sujeito.
Segundo Deborah Lupton (2000), nas culturas ocidentalizadas o estilo de vida
tem um significado positivo, ligado à individualidade do sujeito, ao projeto estético de
si mesmo e atua como um dos principais recursos na construção de sua
subjetividade11:

[...] a participação em atividades esportivas ou exercícios está largamente


associada à construção da subjetividade. Os termos 'condicionamento físico'
e 'saúde' têm, comumente, se tornado sinônimos no discurso cotidiano,
especialmente para os membros da classe média. As atividades de
condicionamento físico representam a tentativa dos indivíduos de encontrar
os seus 'verdadeiros eus’ (...) para enfrentar com sucesso a natureza
aparentemente caótica da vida no final do século XX, através do controle do
corpo (...). Assim, para alguns indivíduos as exigências da saúde pública e
da promoção da saúde quanto ao exercício e ao gerenciamento do corpo
oferecem diretrizes para a autotransformação, modos de lidar com as
pressões externas e internas, um canal para a agência e a auto expressão
(Lupton, 2000, p. 29).

Dessa forma, pode-se compreender a adesão ao estilo de vida ativo não


apenas como a expressão de um comprometimento com a própria saúde, mas sim
(ou também) com determinados valores estéticos e outras moralidades associadas à
atividade física. Se os ultramaratonistas contam que se iniciaram na corrida por
questões de saúde ou para perder massa gorda, sua evolução para ultramaratonas
nunca está associada a essa busca. Como pretendo demonstrar mais adiante, os
dados desta pesquisa apontam para motivações para além do sacrifício e de uma

11
É importante notar que o estilo de vida está sempre condicionado pela posição social e econômica que o
sujeito ocupa (CASTIEL, 2010).
23

ascese corporal; existem dois aspectos primordiais na escolha da ultramaratona


como modalidade esportiva, que vão dialogar de forma peculiar com as concepções
nativas de dor: a busca pelo desenvolvimento da força mental e o prazer.
A ideia de superação e de força mental associada à identidade do
ultramaratonista parece levar o sujeito, a cada prova, a uma percepção de si como
mais forte e capaz de lidar com os desafios da vida cotidiana. Neste sentido, dialoga
com a relação que Lupton constrói entre estilo de vida, saúde e prática esportiva. Ao
mesmo tempo, parece impor um constante ritual de passagem aos sujeitos, que se
socializam enquanto ultramaratonistas em etapas, marcas de novos desafios
vencidos que podem inclusive se inscrever no corpo através de tatuagens.
Entretanto, conceitos como o de bio-ascese (ORTEGA, 2005) não dão conta
plenamente da adesão a exercícios físicos porque negam um aspecto importante: o
prazer. É importante notar que o esporte hoje é uma das principais formas de lazer e
fontes de prazer. Para compreender como ocorre a oposição prazer-sofrimento, faz-
se necessária uma análise do esporte como produtor de prazer.

1.3 Correr por prazer

O “dispositivo da sensibilidade”, desenvolvido por Duarte (1999), oferece uma


chave teórica adequada para começar a pensar a dimensão do prazer no esporte.
No “dispositivo da sensibilidade”, os “sentidos estão tanto na raiz da razão como na
da ‘imaginação’ ou das ‘emoções’ e ‘paixões’.” (p. 25). Três elementos estruturam-se
no dispositivo da sensibilidade: a perfectibilidade, a experiência e o fisicalismo. A
perfectibilidade é a ideia de que o sujeito pode aperfeiçoar-se continuamente, não
havendo limites para seu progresso e suas transformações. Esse progresso só se
dá a partir da experiência, é através de seus sentidos que o indivíduo entra em
contato com o mundo exterior e, a partir de suas experiências, faz germinar em si o
aprimoramento da razão. A experiência, o contato com o que “está fora” ocorre a
partir de um corpo destacado do espírito, que possui uma lógica própria passível de
ser desvendada, que Duarte defende como constituindo “a consideração da
corporalidade em si, como dimensão autoexplicativa do humano, que se pode
chamar propriamente de fisicalismo” (ibidem, p. 25). Maximizar a vida e otimizar o
24

corpo estruturam-se no e são estruturadas pelo dispositivo da sensibilidade e nele


assumem sentidos opostos: a maximização da vida e a otimização do corpo
concentradas na intensidade imediata ou concentradas na continuidade máxima.
A intensidade constrói-se junto às ideias de singularidade e de experiência,
sob o ideário romântico que permeia as sociedades ocidentais. “Cada momento de
um ente ou da dimensão de um fenômeno tem sua própria intensidade,
incomparável com as que se expressam em outros tempos e espaços” (DUARTE,
2004, p.10). Correr para extrair de cada dia o máximo de prazer que puder é o que
muitos ultramaratonistas parecem buscar. Tratando sobre sua primeira
ultramaratona, o escritor japonês Haruki Murakami, em seu livro “Do que falo quando
falo de corrida”, narra essa perspectiva:

As pessoas às vezes zombam de quem corre todo dia, alegando que é uma
tentativa desesperada de viver mais. Mas não acho que esse seja o motivo
pelo qual a maioria corre. A maioria dos corredores corre não porque queira
viver mais, mas porque queira viver a vida ao máximo. Se você quer
desfrutar os anos, é muito melhor vivê-los com objetivos claros e
plenamente vivo do que numa bruma, e acredito que correr ajude a fazer
isso. Forçar a si mesmo ao máximo dentro de seus limites individuais: essa
é a essência de correr, e uma metáfora aplicável à vida – e, para mim, ao
ato de escrever, também (MURAKAMI, 2010, p. 73).

A concepção de “viver a vida ao máximo” liga-se diretamente à ideia de


prazer e essa é uma dimensão importante para o salto de maratonista a
ultramaratonista. Marcio Villar narra essa transição em seu livro dizendo que “correr
para mim já não era somente uma forma de permanecer magro, era algo que me
fazia bem, me dava prazer. ” (VILLAR, s/d, p. 21)
Do mesmo modo, é bastante frequente ouvir ultramaratonistas localizarem a
partir de quantos quilômetros deixam de sentir o incômodo comum da adaptação do
corpo ao exercício para atingir o prazer que buscam nessa atividade. Em uma
conversa com um atleta que havia acabado de passar por uma cirurgia, falei sobre a
necessidade de passar um mês sem correr, realizando outro tipo de atividade física
de duração menor do que as que estava acostumado em treinos para
ultramaratonas. Sua resposta, repleta de preocupação e frustração foi sobre como a
atividade proposta não seria capaz de fazê-lo sentir o que ele “precisava sentir”.
O que se precisa sentir, a “sensação boa”, o prazer, as emoções ligadas à
prática esportiva podem ser bem compreendidas a partir da obra de Norbert Elias e
Eric Dunning (1992). Os autores apresentam uma visão da prática esportiva ligada
25

às emoções que elas provocam, admitindo a possibilidade de haver fatores


biológicos que influenciam a busca por tais emoções. O esporte pode ser definido
como uma competição entre pessoas, que ocorre em caráter individual ou coletivo,
que pode ser realizada de diversas maneiras, mas mantém a característica principal
de confronto e busca de superação. A regulamentação dos jogos, que dá origem ao
que conhecemos hoje como esporte, é explicada através da chave analítica do
processo civilizador, ocorrido nas sociedades industriais mais complexas, que
aumentou tanto o controle social quanto o autodomínio da excitação exagerada.
Com a consolidação do Estado moderno, a maioria dos indivíduos passou a nutrir
valores mais pacíficos, rejeitando comportamentos tidos como animalescos. Do
adulto civilizado espera-se o autodomínio da própria excitação. Acontece, então, “a
mudança de ênfase, do desejo de vencer um confronto para a aspiração à vivência
da agradável excitação prolongada do confronto” (ELIAS e DUNNING, 1992, p. 256).
Capaz de provocar uma gama de sentimentos geralmente reprimidos, como a
raiva, o medo e a paixão, o esporte, todavia, o faz de modo não ameaçador à ordem
civilizada. As emoções fortes e exageradas ocorrem em ambientes controlados, em
que tais sentimentos são permitidos e previstos. Extravasam-se as tensões
cotidianas nas atividades de lazer, em um efeito catártico restaurador, através de
uma “perturbação temporária e passageira da excitação agradável” (ELIAS e
DUNNING, 1992, p. 138). No esporte, o indivíduo tem a sensação de risco presente
na hiper excitação, mas toda a experiência é mais ou menos regulada de acordo
com as normas sociais vigentes.
A prática esportiva assume, então, um caráter compensatório, que permite um
alívio na vida social ordinária. Alívio porque evoca um tipo especial de tensão e
excitação prazerosa, que permite o fluxo de sentimentos aparentemente
contraditórios – em ambientes controlados e socialmente aceitos. A busca pela
excitação é um traço comum em nossa sociedade. Esse anseio desaparece depois
de saciado, mas torna a voltar de tempos em tempos. Elias e Dunning (1992)
entendem que tal necessidade possa ter raízes biológicas, mas não a admitem
como um fenômeno puro da biologia.
Em um esporte como a ultramaratona, o desejo de superação e de atingir a
excitação e o prazer almejado certamente se justapõe ao sofrimento que seus
praticantes atravessam durante as provas. E o jogo parece ser justamente superar a
própria sensação de sofrimento para atingir o prazer do percurso e a linha de
26

chegada. Sofrimento controlado não apenas pelas regras da prova, mas também
pelo próprio ultramaratonista, que pode se propor a dobrar ou triplicar um percurso
por vontade própria.

1.4 Mente x corpo

As categorias “prova” e “desafio”, mais comuns no universo da ultramaratona,


em detrimento de “competição”, para se referir aos eventos da modalidade, apontam
para o caráter de duelo consigo e não com o outro. Da forma como os
ultramaratonistas compreendem a relação entre o atleta e a prática esportiva, a
cosmologia da modalidade, há um embate entre sua mente e seu corpo. Em busca
da vitória da mente, lança-se em momentos de introspecção durante a prova. Para
os ultramaratonistas, o êxito em uma prova está mais na força mental do que na
capacidade física. Não que os treinamentos físicos não sejam importantes: eles são
vistos como necessários e são executados por todos os participantes. Mas a
essência de um ultramaratonista, defendem os sujeitos desta pesquisa, está em sua
capacidade de dominar a mente para, então, dominar o corpo e cumprir a meta
traçada. Isso vale para a condição atlética do sujeito, mas também para a sua lida
com as inevitáveis dores que provas tão demandantes costumam gerar. No mundo
das ultramaratonas, a relação mente-corpo é colocada de forma que a mente seja
englobante do corpo, ela pode dominá-lo e definir até onde ele é capaz de ir.
Murakami ilustra bem essa perspectiva:

Todas as partes do meu corpo tiveram a chance de subir ao centro do palco


e fazer suas queixas de forma estridente. Elas berravam, choramingavam,
gritavam de aflição, e avisaram-me que não iriam mais aturar aquilo. Para
elas, correr cem quilômetros era uma experiência desconhecida, e cada
parte do corpo tinha sua própria desculpa. Eu compreendia plenamente,
mas tudo o que eu queria era que ficassem quietas e continuassem a
correr. Como um eloquente Danton ou Robespierre tentando persuadir o
Tribunal Revolucionário insatisfeito e rebelde, eu tentava convencer cada
parte do corpo a mostrar um pouco de cooperação. Eu dizia palavras de
encorajamento, abraçava-as, bajulava-as, ralhava com elas tentava incitá-
las a prosseguir. Só mais um pouquinho, pessoal. Não vamos desistir agora
(MURAKAMI, 2010, p. 96).
27

O corpo obedece, nesta cosmologia, aos desígnios da mente, distinguindo-se


os dois não como entidades de igual valor, mas sim como englobado e englobante.
Essa perspectiva de análise, que pressupõe um englobado e um englobante, deriva
da “teoria das hierarquias”, cunhada por Duarte (1986) a partir do exame
pormenorizado que faz da obra do antropólogo francês Louis Dumont. A “teoria das
hierarquias” trata da universalidade da oposição hierárquica nas classificações, que
é permeada por ideias de “valor”, “situação” e “nível”. Apresenta três postulados
básicos: (1) a lógica classificatória não obedece a uma disposição linear, mas
preponderantemente a uma lógica hierárquica. Dessa forma, as classificações são
permeadas pela ideia de valor, refletindo um universo bidimensional, com planos de
significação e espessuras diversos; (2) a bidimensionalidade do modelo expressa a
existência de um nível superior e outro inferior. Um nível englobante, em que existe
uma unidade dos termos, e outro englobado, onde ocorre a distinção e a
contradição; (3) por fim, a totalidade vista como unidade mínima, propiciando
inversões hierárquicas de acordo com a situação.
No caso do par de oposição mente-corpo no universo dos ultramaratonistas, a
“mente” aparece no discurso como englobante do “corpo”, o que se pode perceber
no frequente uso de expressões como “cabeça forte”, “mente forte” em oposição a
“cabeça fraca”, “mente fraca” para se referir à capacidade do atleta de domar seu
corpo. Se a dor é um “instrumento mnemônico eficaz que, antes de qualquer coisa,
não nos faz esquecer (...) da existência do corpo” (Vargas, 1998, p. 130), é preciso
que o atleta transcenda o sofrimento e, por conseguinte, o corpo através da força de
sua “mente”. Um ultramaratonista é essencialmente alguém de “mente forte”, que
consegue direcionar a mente para a superação de todo sofrimento imposto ao corpo
pelas longas distâncias percorridas em uma prova. A identidade de um ultra passa
diretamente por essa característica: provar que a força da mente é maior do que a
incerteza do corpo. Entretanto, há momentos em que o corpo coloca limitações
intransponíveis, como um pé fraturado ou uma desidratação profunda. Como se
distinguem os limites intransponíveis do corpo daqueles que devem ser ignorados e
superados pela mente? Nesses casos há uma diferenciação entre atletas já
estabelecidos como ultramaratonistas e aqueles que ainda não são estabelecidos
como tal. Os estabelecidos como ultramaratonistas podem não terminar uma prova
por “cabeça”, que ainda assim não terão sua identidade de ultramaratonista posta
em xeque. Tampouco quando “quebram no corpo”, não “quebram” por mau
28

condicionamento ou pouco treinamento, mas sim por algo mais forte que realmente
o impede de seguir. Dessa maneira, o status do atleta no esporte influencia
diretamente sobre a forma como ele pode se movimentar nas desistências e como
ele será avaliado pelos seus pares. É importante notar, entretanto, que a
diferenciação entre os já estabelecidos e os novatos só ocorre em momentos pré e
pós prova, uma de nossas hipóteses centrais neste trabalho. Durante as provas não
surge diferenciação na relação entre atletas, há um espírito colaborativo entre os
participantes, em que há ajuda mútua e respeito constituindo-se um espaço onde os
corredores encontram-se indeterminados, destituídos de suas posições sociais
anteriores.

1.5 Provas como períodos liminoides

Encontrar-se como sujeito indeterminado, ao lado de outros igualmente


destituídos de suas posições sociais anteriores é o que representam os períodos de
liminaridade. Proposta pelo antropólogo francês Van Gennep (2011 [1909]), a
liminaridade é uma das etapas que compõem a ação ritual. Os rituais, de acordo
com essa teoria, ocorrem em três fases: (1º) a separação, o momento em que o
indivíduo é apartado de sua vida cotidiana; para entrar no período de (2º)
liminaridade, um período transitório quando ele manifesta suas potencialidades, que
ocasiona aos indivíduos e ao grupo envolvido no ritual a possibilidade de
transformações mais profundas e discrepante da cultura em que estão inseridos;
finalmente ocorre (3º) a agregação, quando o indivíduo transformado se reintegra à
sociedade. Resumindo, o ritual se dá na separação, seguida da instituição da
situação liminar e finalizada pela reintrodução do sujeito na estrutura do grupo
social.
O período de liminaridade foi estudado em profundidade pelo antropólogo
inglês Victor Turner. Durante a liminaridade, o indivíduo está despido de suas vestes
sociais, levando os envolvidos no ritual a desenvolverem um forte sentido de grupo.
Em outras palavras, não há distinções ou separações de poder entre eles, essas
características de integração e igualdade presentes na liminaridade são definidas
por Turner (1974 [1969]) como communitas. A communitas pode ser definida, então,
29

como uma forma de antiestrutura composta pelos vínculos estabelecidos entre


indivíduos ou grupos sociais que compartilham de uma mesma condição em
períodos ritualizados. Ainda que não haja uma relação de dependência entre os
estados de communitas e liminaridade, eles apresentam elementos comuns. Os dois
desenvolvem-se no que é definido por Turner como “antiestrutura social”, momento
em que há transgressão da ordem social estabelecida.
Analisando peregrinações religiosas, Victor e Edith Turner (1974) observam
nesse fenômeno a libertação das estruturas mundanas ou profanas da vida social.
Tal aspecto das peregrinações retira os peregrinos da vida mundana, num curto
intervalo de tempo e espaço, aproximando-os do sagrado, caracterizando-as como
um tipo de liminaridade, caracterizado pela presença da communitas. O tipo de
liminaridade firmado por Victor e Edith Turner para se referir às peregrinações é
denominado liminoide. Os autores utilizam esse termo para tratar de atividades
esportivas e de lazer, ao contrário dos rituais liminares, os estados liminoides são
voluntários.
Da mesma forma que a categoria liminar, liminoide significa estar entre, entre
um ponto e outro. Entre a largada e a chegada, quando os ultramaratonistas têm
seus papéis e hierarquias sociais suspensos entre eles, é esse período que será
analisado aqui como liminoide.
Saindo de seu convívio social, em busca da superação de si e/ou do prazer
da hiper excitação das corridas de longa distância, o indivíduo deixa voluntariamente
sua casa, família, trabalho e demais atividades cotidianas para chegar ao local da
prova, onde encontrará outros corredores e compartilhará com eles seus
sentimentos de ansiedade, informações e histórias sobre a prova a ser realizada.
Nesse momento, as posições sociais de fora do mundo das ultramaratonas já estão
suspensas, mas não os status de ultramaratonistas estabelecidos, admirados, ou
iniciantes. A partir do momento da largada, todos passam a figurar no mesmo lugar,
todos podem ajudar e ser ajudados, não existe mais a distinção entre estabelecido e
iniciante, todos querem atingir a linha de chegada e ajudar os demais a também
atingir o objetivo final. A linha de chegada marca o início do retorno à estrutura
social, instantes em que o ultramaratonista parece ainda não sentir alegria,
felicidade ou alívio pelo fim da prova, sensações que vão crescendo à medida que
os minutos (ou horas) passam. Dias ou meses depois, é comum que participantes
30

marquem o corpo com tatuagens para celebrar a finalização de uma prova. Como
narra Marcio Villar sobre a Jungle Marathon:

Mesmo com todos os sofrimentos, eu tinha certeza de que valeu muito ter
participado daquela ultra. Saí dela mais forte do que nunca, passei por
incontáveis dificuldades, mas cada gota de suor e de sangue que deixei por
lá não tinha sido em vão. Jamais esquecerei o momento em que cruzei a
linha de chegada, toda a euforia que aquele momento me causou.
Completei a prova de cabeça erguida. Sabia da minha capacidade, mas
também que não existem limites quando quer atingir um objetivo. Para mim,
o limite é algo imposto pelo medo. Se não houvesse medo, conseguiria
superar qualquer limite. Não tive medo, nem mesmo de onça (VILLAR, s/d,
p. 60).

É justamente no período liminoide em que se desenrola a ultramaratona, que


será analisada a relação com mente-corpo e prazer-sofrimento/estar-em-dor para
ultramaratonistas. É importante levar em consideração as características do período
liminoide para compreender tais relações.
Estar-em-dor é um fenômeno relacional, que requer uma análise cuidadosa
do contexto em que ele se desenrola. Para compreender como dói um
ultramaratonista em prova, é necessário observar não apenas o ultramaratonista,
mas também as ultramaratonas. Diferentemente de grande parte de modalidades
esportivas, os participantes de ultramaratonas não são socialmente ou
corporalmente homogêneos, sendo comum haver discrepâncias de classes sociais e
poder aquisitivo entre eles, bem como de estética física e composição corporal.
Essas variedades não configuram um problema para os participantes, que, durante
uma prova enxergam-se como iguais, ajudando-se uns aos outros a não desistir e
atingir a linha de chegada. Percorrer tantos quilômetros, permanecendo desperto e
ativo por tão longo tempo, surge no discurso do ultramaratonista mais como uma
vitória da mente do que do corpo; a atividade mental, mais do que a física, é o
principal motor para um ultramaratonista. Aqui a mente distingue-se do corpo e lhe é
hierarquicamente superior porque o engloba. Há momentos em uma prova, no
entanto, quando corpo é quem define a hora de parar, nesse momento ocorre uma
inversão hierárquica que não chega a desestruturar a concepção do moral como
superior ao físico. A afirmação da força mental e a busca pelo prazer na atividade é
o que unifica os ultramaratonistas como um grupo. As provas decorrem em um
fenômeno liminoide, em que o tempo compreendido entre a largada e a linha de
chegada promove a suspensão de distinção hierárquica entre os atletas, não existe
31

o melhor e o pior, o mais novo e o mais velho, e ocorre uma prática de colaboração
intensa entre eles. A dimensão de communitas e de liminaridade de uma
ultramaratona é de grande importância para a compreensão de como ocorre o doer
nesses contextos.
Antes da apresentação e discussão dos dados etnográficos, será feita uma
introdução ao funcionamento da prova etnografada, de modo a facilitar o
entendimento do leitor sobre o campo realizado. Também serão abordadas questões
referentes à entrada em campo e realização das entrevistas, além da apresentação
dos perfis dos entrevistados e principais informantes da etnografia.
32

2. O PROCESSO DE COLETA E APRESENTAÇÃO DOS DADOS

Em julho e agosto de 2017, foi realizada a pesquisa empírica, que é composta


pela etnografia de uma prova e por entrevistas com seis ultramaratonistas. A prova
que etnografei, a Ultramaratona dos Anjos Internacional (UAI), é conhecida
internacionalmente pelo seu alto grau de dificuldade e esse foi um dos critérios
importantes na sua escolha. Foram consideradas também outras características: é
uma ultramaratona que contém diversas provas em si, de 25 a 235 Km, agregando
diversos tipos de participantes; eu já conhecia previamente o seu percurso, o que
me facilitava o desenho de como organizar meu campo, a geografia e a
temporalidade da prova, a logística e os locais onde me concentrar; e o acesso ao
campo seria facilitado por conhecer os membros da organização. As entrevistas
foram realizadas com seis ultramaratonistas voluntários, maiores de 18 anos e que
já completaram a prova etnografada, na modalidade dos 235Km. Neste capítulo
serão apresentadas a prova e os entrevistados e discutida a forma como os dados
empíricos serão apresentados.

2.1 A prova

A Ultramaratona dos Anjos Internacional (UAI), que acontece desde 2010 no


Estado de Minas Gerais, é conhecida como a prova mais difícil do país. Com um
roteiro circular, que sai e retorna à cidade de Passa Quatro, são percorridos 235Km
pela Serra da Mantiqueira em trechos asfaltados e de trilhas, despertando o
interesse de ultramaratonistas de todo o país - e de fora também. Escolhi essa prova
não apenas por seu grau de legitimidade entre os ultramaratonistas brasileiros, mas
também por acreditar que a entrada em campo e o planejamento da observação
seriam mais fáceis, pelo fato de já haver participado de equipes de apoio em outras
edições dessa prova e de outras organizadas pelo mesmo grupo.
Como toda prova de ultramaratona por distância, a UAI conta com postos de
controle durante todo o seu percurso. Posto de controle (PC) é um ponto da prova
de parada obrigatória, onde há uma tenda da organização com água, isotônico e
33

alimentos; ali o atleta tem necessariamente contato com membros da organização,


que anotam seu número e a hora de entrada e saída, controle importante para evitar
fraudes de atletas como carona em carros ou outros veículos. Além da alimentação
e controle de chegada e saída dos ultramaratonistas, os PCs também guardam
equipamentos dos atletas que correm na categoria survivor, como roupas, tênis e o
que mais tiverem separado em sacolas plásticas e entregado previamente à
organização. Survivor é a categoria na qual competem os corredores que não
utilizam carro de apoio, ou seja, que não têm uma equipe própria que o ajuda
durante o percurso com alimentação, hidratação, transporte de equipamento de
corrida ou qualquer outro tipo de assessoria durante a prova. O survivor não pode
aceitar qualquer ajuda que não venha da própria organização da prova, sob o risco
de ser desclassificado. Por isso, faz parte do seu planejamento destinar
equipamentos a PCs pré-determinados, diminuindo assim o peso da mochila que
carregará durante a prova. Os postos de controle funcionam também como ponto de
encontro das equipes de apoio, principalmente nos períodos em que os atletas
correm em trilhas ou trechos pelos quais os carros não podem passar, devido a sua
condição muito estreita, acidentada ou atravessada por rios e outros obstáculos.
A UAI conta com sete postos de apoio, localizados nos quilômetros 25, 65,
95, 110, 135, 180 e 201. Os PCs 25, 65, 95 e 135 marcam o fim de provas menores
do que a de 235km, e geralmente são atingidos de maneira progressiva pelos
atletas. Geralmente, parte dos que correm 235Km hoje já participou anteriormente
das provas de 95Km e de 135Km. A progressão dos 95Km para 135Km é uma das
mais temidas, salto considerado um ritual de passagem importante, porque os 40
quilômetros que separam as duas provas atravessa à noite a Serra dos Papagaios,
especialmente a cachoeira dos Garcias, região considerada muito escura e fria,
objeto de temor e curiosidade dos participantes novatos.
Existem tempos limites para o término de cada prova, definidos para facilitar a
logística da organização do evento. Neste ano em que estive como pesquisadora, foi
adicionado um tempo de corte no PC 95: os participantes das provas de 135 e
235Km não poderiam prosseguir na prova caso saíssem do posto a partir das 6
horas da manhã. Essa regra foi baseada na observação de provas anteriores, onde
nenhum dos participantes que deixaram esse ponto após às 6 horas da manhã
conseguiu completar a travessia da Serra. A prova de 235Km pode ser completada
34

em até 60 horas, a de 135 em 34 horas e a de 95 em 22 horas. As largadas de todas


as distâncias acontecem simultaneamente, às 8 horas da manhã de uma sexta-feira.
Na tarde e noite anteriores à largada é realizada a distribuição dos kits da
corrida, que contêm sempre o número de peito do corredor12 e diversos brindes,
como camiseta e mochila. O atleta só recebe o kit mediante apresentação do
material obrigatório, formado por equipamentos determinados pela organização do
evento, visando manter a segurança física dos participantes13. Ainda sob a
justificativa da segurança – tanto dos atletas, quanto dos organizadores –, são
necessários alguns documentos para a realização da inscrição na prova: atestado
médico (Anexo B), declaração de possuir condições clínicas e psicológicas
adequadas ao evento (Anexo C) e um termo de responsabilidade em que se declara
estar de acordo com o regulamento (Anexo A) do evento, além de ceder direitos de
imagem e se responsabilizar por qualquer dano ocorrido a si ou à sua equipe
durante o evento (Anexo D). Para a prova de 235Km, é necessária a apresentação
do currículo de corridas do atleta nos últimos dois anos, somando pelo menos 12
pontos para os que se inscreverão na categoria com apoio e 16 pontos para os que
irão sem apoio. Esses pontos são elaborados a partir de provas por distância e por
tempo, desde maratonas até ultramaratonas, conforme o quadro abaixo.

12
Número de peito é o identificador do atleta em uma corrida. Vem impresso em um papel pástico e, de acordo
com o regulamento da prova, deve estar preso sempre em local visível. Como essa prova agrega diversas
subprovas, cada número de peito é impresso sobre uma cor diferente, que identifica qual distância o atleta irá
percorrer.

13 O material obrigatório varia de acordo com a prova.


Para 135Km: Mochila ou cinto de hidratação, lanterna, lanterna reserva (cabeça ou mão), colete refletivo, pilhas
sobressalentes, cobertor térmico, corta-vento e celular. Medicamentos: anti diarreico, antitérmico, analgésico e
apito.
Para 235Km com apoio: Carro de apoio, Mochila ou cinto de hidratação, lanterna, lanterna reserva (cabeça ou
mão), colete refletivo, pilhas sobressalentes, cobertor térmico, corta-vento e celular. Medicamentos: anti
diarreico, antitérmico, analgésico e apito.
Para 235Km sem apoio: Mochila ou cinto de hidratação, lanterna, lanterna reserva (cabeça ou mão), colete
refletivo, pilhas sobressalentes, cobertor térmico, corta-vento, agasalho, calça segunda pele, luva, toca e celular.
Medicamentos: anti diarreico, antitérmico, analgésico e apito. Alimentação extra, suficiente para percorrer
aproximadamente 40 km ou a distância entre os PCs. A alimentação extra será útil em caso de acidente em que
o atleta não possa se locomover e tenha que aguardar pelo resgate.
35

Quadro 1 - Relação de pontuação para a participação na prova de 235Km


Provas por KM finalizadas Pontos Provas por tempo Pontos
finalizadas

Maratona 42,195 Km 2 Ultramaratona de 12 10


Horas - Solo 100 km

Provas 50 km 5 Ultramaratona de 24 12
Horas - Solo 120 km

Ultramaratona de até 80 km 6 Ultramaratona de 48 16


Horas - Solo 200 km 16

Ultra Desafio 50 Milhas 80 8 Ultramaratona BR135 - 16


km 217km

Ultra Runner 100 km Com 10 UAI - Ultra dos Anjos 16


limite de 12 Horas Internacional - 235 km

Ultramaratona de 100 13
Milhas – (160km)

Fonte: A autora, 2018.


Encerrando a entrega dos kits, na mesma noite, ocorre o congresso técnico,
um evento presente em todas as ultramaratonas, em que são explicadas as
principais regras e as dúvidas dos participantes podem ser expostas e solucionadas.
Os dois eventos ocorrem no mesmo local: nas edições anteriores aconteceram em
uma pousada, mas nessa edição o congresso técnico foi realizado em uma grande
escola. Ainda que muitos participantes optem por não assistir ao congresso, as
horas de entrega de kits e congresso formam um espaço de socialização importante,
um período em que diferentes participantes se reencontram ou se encontram,
trocando informações e histórias sobre edições anteriores da UAI, sobre outras
provas já realizadas ou que pretendem realizar. Precedendo a largada, acontece
novamente a distribuição de kits para os que não puderam pegar os seus no dia
anterior. Essa distribuição acontece no mesmo local da largada em uma tenda
específica para este fim.
36

2.2 A entrada em campo

Por ser fisioterapeuta com atuação na área esportiva, já participei de edições


anteriores da UAI e de outras provas realizadas pela mesma organização, fazendo
apoio de atletas. Além disso, fiz parte de outros eventos de ultramaratona não
apenas como apoio de atletas, mas também como fisioterapeuta da própria prova.
Isso faz com que eu seja conhecida por alguns ultramaratonistas e organizadores de
provas, facilitando assim meu acesso ao campo. Se, por um lado, minha atuação
profissional facilitou a entrada no campo, o acesso à prova e aos entrevistados, o
entendimento de códigos do grupo e da “língua nativa”, por outro lado, requereu-me
um maior cuidado com o olhar antropológico. Atuar como pesquisadora em uma
área já tão familiar solicitou um exercício mais cauteloso de distanciamento e
estranhamento, que propiciou inclusive uma autorreflexão sobre minhas próprias
práticas e posicionamentos durante as provas.
Foi após o congresso técnico de outra ultramaratona, promovida pelo mesmo
grupo que realiza a UAI, que conversei sobre a pesquisa com Juliana, uma das
organizadoras, e expus a intenção de fazer a pesquisa. Ela me concedeu
prontamente a autorização para a observação participante, propondo os melhores
PCs para me demorar mais e se colocando à disposição para qualquer necessidade
minha.
A partir do meu próprio conhecimento do percurso da prova e de conversas
informais com os organizadores e atletas, planejei os pontos em que me dedicaria
mais fortemente à observação participante. O plano traçado foi me hospedar em um
hostel onde a maior parte dos ultramaratonistas se hospeda, depois participar do
congresso técnico e estar presente na largada. Durante a prova, defini como bases
de observação participante os PCs 95 e 135 e na linha de chegada, considerando
que muito poderia ser visto e percebido nos caminhos entre um PC e outro. O tempo
de permanência em cada posto de controle e na linha de chegada seriam
determinadas pelo próprio campo e pelas minhas condições físicas. Sabendo o quão
extenuante pode ser participar de uma prova de ultramaratona, ainda que de dentro
de um carro, considerei bastante no planejamento do campo um possível desgaste
físico. Mesmo que esperasse cansar-me menos do que em edições anteriores,
quando atuei como apoio, optei por convidar uma pessoa para me acompanhar
37

nessa tarefa. Convidei Arthur, uma pessoa com quem já participo de equipes de
apoio há três anos, não apenas por conhecer o percurso e estar familiarizado com
ultramaratonas, mas por saber que lidamos bem um com o outro em períodos de
privação de sono e desconforto físico. Arthur é marido da Carlinha, ultramaratonista
bastante conhecida no mundo das ultramaratonas, que não estava inscrita na prova,
mas que iria conosco para aproveitar o percurso e realizar alguns treinos longos. Por
terem uma inserção maior do que a minha entre ultramaratonistas, organizadores e
equipes de apoio, a colaboração deles foi parte importante do processo, facilitando o
acesso ao campo e a interação com outros atletas.

2.3 As entrevistas

O caminho para chegar aos entrevistados se deu pela mesma pessoa que me
autorizou o trabalho de campo na UAI. Para evitar qualquer viés que poderia gerar
uma seleção pessoal de entrevistados, cujas histórias conheço parcialmente, pedi à
Juliana autorização para expor minha pesquisa em um grupo de whatsapp que
reunia atletas e equipes de apoio de uma prova a ser realizada em abril de 2017.
Após a breve exposição, solicitei que os interessados em me conceder entrevistas
me procurassem de forma privada, desde que cumprissem os critérios de inclusão, a
saber: (a) ter mais de 18 anos, (b) já ter completado pelo menos uma prova de cem
ou mais quilômetros. Recebi a partir desta estratégia 19 respostas positivas: 13
deles moravam fora do estado do Rio de Janeiro, 05 moravam na cidade do Rio de
Janeiro e 01 em uma cidade da região serrana do estado do Rio. Por questões de
logística e para seguir o número de entrevistas que constava no projeto submetido
ao Conselho de Ética em Pesquisa, realizei entrevistas com os 6 voluntários do
estado do Rio de Janeiro. Todos os entrevistados, já haviam completado os 235Km
da UAI ao menos uma vez. As entrevistas foram abertas, tiveram duração média de
cerca de 2 horas e foram realizadas em locais escolhidos pelos entrevistados. Todos
eles já haviam corrido ao menos uma vez a UAI e eram conhecidos meus, alguns
com maior proximidade, outros com pouquíssima.
38

a) Carlinha: mulher, autodeclarada negra, 40 anos. Moradora da favela de


Cidade de Deus, é técnica em enfermagem e bastante conhecida no
mundo das ultramaratonas pelo seu vasto currículo, carregado de
pódios e quebras de recordes. Foi vencedora da UAI nas três edições
em que participou, batendo duas vezes o recorde da categoria feminina
– com ou sem apoio. Seu equipamento de corrida não inclui eletrônicos
e é comprado com o próprio dinheiro, da mesma forma que as viagens
para provas. Pelo seu alto desempenho em provas e baixa renda
econômica, sempre ganha as inscrições gratuitamente, nacionais e
internacionais, arcando com os custos das viagens – em caso de
provas internacionais, vale-se de sites de “vaquinhas virtuais” para
alcançar o valor necessário. Começou a correr para acompanhar
Arthur, seu então namorado e atual marido. Corria na rua sem se
preocupar com as distâncias, quando conheceu alguns outros
corredores, ouviu sobre as ultramaratonas e decidiu participar. Não tem
problemas com datas de provas porque não tem emprego fixo, mas sim
trabalhos de um ou dois dias substituindo outras técnicas de
enfermagem em serviços domiciliares ou como staff de eventos
esportivos. É acompanhada por um treinador de corrida, faz fisioterapia
preventiva e complementa sua preparação com musculação e aulas de
alongamento em uma academia. Conheci Carlinha há 3 anos durante
um evento de ultramaratona e nos encontramos em mais algumas
provas até que ela se tornasse minha cliente, em busca de um trabalho
fisioterapêutico para prevenção de lesão e aperfeiçoamento de
performance. Desde então, faço parte de sua equipe de apoio em
todas as provas em que não participa como survivor, o que nos deixou
bastante próximas. A entrevista aconteceu em um shopping center na
Barra da Tijuca.

b) João: homem, autodeclarado branco, 34 anos. Mora no bairro da Tijuca


e ocupa um cargo administrativo em um grande laboratório
farmacêutico. Começou a correr através de um programa de incentivo
à atividade física no seu trabalho; fazia maratonas com velocidade
quando assistiu no trabalho uma palestra motivacional para empresas
39

do ultramaratonista Marcio Villar e, em uma conversa com ele, decidiu


começar a fazer ultras. Já fez alguns pódios, ou seja, chegou entre os
três primeiros colocados em ultras de pista, mas nenhum ainda em
provas de trilha. Os custos dos seus equipamentos e de inscrições e
viagens para a prova são cobertos por ele. Procura marcar as férias no
trabalho de modo a fazer as provas internacionais e quando participa
de ultras próximas ao Rio de Janeiro, volta direto ao trabalho. João
treina sob orientação do educador físico do projeto do laboratório onde
trabalha e não realiza nenhum tipo de trabalho complementar. Além
disso, não treina ou participa de provas de dezembro a fevereiro,
porque toca em diferentes baterias de escolas de samba e fica sem
tempo nenhum para a corrida. A entrevista foi realizada na praça de
alimentação de um shopping próximo a sua casa, após o horário de
trabalho. Conheci João por encontrá-lo em algumas ultramaratonas e
sempre tivemos um contato bastante superficial.

c) Marcio Villar: homem, autodeclarado branco, 46 anos. Morador do


Recreio dos Bandeirantes, abriu recentemente uma pequena loja de
material esportivo na Barra da Tijuca e também trabalha com palestras
motivacionais para empresas e com a venda de seus livros. Foi o
primeiro ultramaratonista a completar o circuito mundial de ultras, que
inclui provas de nível alto de dificuldade em continentes diferentes. Foi
ele quem deu início à ideia de dobrar e triplicar provas, que consiste
em percorrer o caminho uma ou duas vezes antes da largada oficial,
fazendo o percurso da prova duas ou três vezes. Marcio Villar já
publicou dois livros: um noo qual relata sua adesão às corridas, com
objetivo de emagrecer, até as primeiras participações em provas de
ultramaratonas em ambientes extremos; o outro fala sobre seu recorde
de corrida em esteira ergométrica, quando percorreu 826Km sobre uma
esteira, durante 7 dias, em um shopping na zona oeste do Rio de
Janeiro. A ideia de ser em um shopping foi para manter o controle
necessário para a inscrição no Guiness Book e recolher leite em pó
para instituições de caridade. Hoje em dia, Marcio não corre em muitas
provas, prefere elaborar os próprios desafios e mobiliza amigos e
40

admiradores para levar a cabo os desafios que cria, dentre eles tem
sido comum a busca por quebra de recordes mundiais, sempre
associando a corrida ao auxílio a instituições filantrópicas ligadas ao
câncer ou ao cuidado de crianças e idosos. Sua presença em provas é
mais centrada no auxílio a amigos ultramaratonistas, como apoio.
Conheci Marcio na ocasião do recorde sobre esteira, quando atuei
como uma das fisioterapeutas que o atendiam; desde então mantemos
contato em seus eventos e em algumas provas que participa correndo
ou apoiando atletas amigos. Nossa entrevista foi realizada em uma
galeria comercial, próximo à sua loja.

d) Neves: homem, autodeclarado branco, 44 anos. Sargento do Exército,


mora em Vicente de Carvalho. Foi goleiro da seleção brasileira de
futebol militar até ser acometido por um câncer agressivo. Depois de
ter alta médica foi impedido de praticar qualquer esporte de contato e
decidiu começar a correr. Um ultramaratonista também do Exército
observava seus treinos e o convidou para participar de ultramaratonas.
Em uma ultra de 24 horas, conheceu Márcio Villar e hoje é seu grande
amigo e principal apoio. Assim como Marcio, prefere realizar desafios
fora de provas, associando as corridas à filantropia. Custeia os próprios
equipamentos, inscrições e viagens. Conheci Neves na mesma
situação em que conheci Marcio Villar: trabalhamos juntos no apoio do
evento do recorde e mantemos contato em provas e outros eventos
esportivos. A entrevista aconteceu no mesmo local e dia da realizada
com Villar.

e) Marcelino: homem, autodeclarado negro, 63 anos. Pedreiro, mora em


Teresópolis. Cresceu nas ruas e, por atuar em roubos e tráfico de
drogas, dividiu períodos de vida entre a liberdade e o sistema prisional.
Foi em um presídio que começou a correr, com o objetivo de não
ganhar peso. Corria nas horas de banho de sol, antes e depois de sua
vez de entrar na pelada. Foram colegas internos que lançaram e
insistiram na ideia da participação de corridas de rua quando voltasse à
liberdade. Já trabalhando como pedreiro e correndo diariamente, foi
41

levado por um cliente para sua primeira ultramaratona, em


Florianópolis. É muito conhecido e respeitado por outros
ultramaratonistas, o que lhe rende inscrições gratuitas. Entretanto, os
gastos com viagens, provas e tênis são geralmente cobertos pelo
patrocínio que recebe da Prefeitura de Teresópolis e de pequenas
empresas locais. Conheci Marcelino quando trabalhava como
fisioterapeuta em uma prova e, desde então, sempre nos encontramos
e conversamos bastante em outros eventos. A entrevista foi realizada
em uma praça na cidade de Teresópolis.

f) Pedro: homem, autodeclarado branco, 29 anos. Geógrafo, mora


no Catete. Começou a correr cedo, influenciado pelo pai, que praticava
corrida de rua. Uma noite, assistindo um canal esportivo na televisão,
ouviu falar sobre ultramaratonas e ficou bastante interessado "naquela
loucura". Pesquisou em um site de busca e descobriu a UAI, fazendo
logo sua inscrição nos 95Km. No ano seguinte percorreu os 235Km,
que repete todos os anos. Não tem tatuagens, mas diz que quando
conseguir completar a prova em 48 horas, vai fazer uma na perna com
a logo da UAI. Conheci o Pedro em uma prova em que trabalhei como
fisioterapeuta e desde então nos encontramos em outras provas e em
redes sociais. A entrevista aconteceu no café de um museu próximo à
sua casa.

O período liminoide de uma ultramaratona, ou seja, entre a largada e a linha


de chegada, se desenrolada em um ambiente de alta concentração dos atletas, além
de haver vários quilômetros em que não há possibilidade de passagem de carros, o
que impossibilita o contato com eles em muitos momentos. Assim, as entrevistas
foram realizadas de forma a complementar os dados colhidos durante a prova. Os
dados das entrevistas são usados, como apoio à descrição etnográfica e chamados
sempre a complementar, ilustrar ou trazer à luz alguma observação.

2.4 Apresentação dos dados


42

Na descrição dos perfis dos entrevistados e em todo o relato etnográfico, opto


por expor minha relação com cada pessoa e com as atividades do campo, de modo
a evidenciar – ou ao menos tentar – as condições em que os dados foram colhidos e
contextualizar o leitor sobre o lugar de onde vejo e escuto, que vão necessariamente
pontuar não somente as informações que chegam a mim, mas também os caminhos
escolhidos para análise.
A escolha de salientar o lugar do observador e sua relação com o observado
decorre da busca da objetividade científica não como algo possível unicamente pela
subtração da humanidade e subjetividade do observador, mas sim pela localização e
explicitação desse investigador em todo o processo do fazer ciência. (Becker, 1997).
Não há leitura ou escrita realizada a partir de uma posição neutra, o que pode
parecer óbvio, mas torna necessário explicitar essa condição de não-neutralidade;
de uma forma peculiar, este trabalho de campo impôs algumas questões
identificadas no campo das ciências sociais e humanas em saúde como os dilemas
do jaleco branco: uma profissional de saúde que pesquisa em seu espaço de
trabalho e precisa lidar com a fluidez destas identidades. Dessa forma, opto não
apenas por apontar minha relação com os participantes, mas também a relação dos
participantes entre si. Em busca de uma forma de apresentação dos dados
etnográficos que revelasse essas relações, segui um modo dialógico, com uso de
citações das falas minhas e dos participantes como diálogos. De acordo com o
antropólogo estadunidense James Clifford (2016):

O referente adequado de qualquer relato não é um mundo reapresentado;


trata-se, agora, de instâncias específicas de discurso. Mas o princípio da
produção textual dialógica vai muito além da apresentação mais ou menos
habilidosa de encontros 'reais'. (...) Nessa visão, a cultura é sempre
relacional, uma inscrição de processos comunicativos que existe,
historicamente, entre sujeitos em relação de poder. (...) Os modos
dialógicos não são, em princípio, autobiográficos; não precisam levar a uma
hiperautoconsciência ou autoabsorção. (...) Quando o dialogismo e a
polifonia são reconhecidos como modos de produção textual, a autoridade
monofônica passa a ser questionada e apontada como característica de
uma ciência que reivindicou representar culturas (Clifford, 2016, p. 47-48).

Do mesmo modo, a apresentação dos dados também é permeada pela minha


relação física e afetiva com o campo – no sentido do que a antropóloga brasileira
Carla Ramos (2017) trata como etno(Ori)grafia, “um tipo de descrição e de
conhecimento que está atravessado pelas reações do corpo às energias de
43

momentos específicos no trabalho de campo” (p. 8), e da dimensão de permitir ser


afetada nas interações, descrita pela antropóloga francesa Fravet-Saada (2005).
Não pretendo, ao dialogar com as referências acima, aderir à chamada visão
pós-modernista da etnografia como literatura e encerrar o estudo de uma prova de
ultramaratona na minha relação com o evento e com os participantes, mas sim
ressaltar o caráter relacional da cultura. A etnografia é apresentada como um
exercício de reflexão produzido a partir de dados coletados em diário de campo e
entrevistas e analisados, em que conta menos investigar a relação da pesquisadora
com as pessoas que participam de ultramaratonas do que a relação entre essas
pessoas.
De acordo com o projeto submetido ao Conselho de Ética em Pesquisa, o
nome dos participantes foi mantido em sigilo, com exceção de Marcio Villa, figura
pública, cujo livro também é citado neste trabalho.
44

3. DA ULTRAMARATONA AO DOER: ETNOGRAFIA E DADOS DE CAMPO

A apresentação e análise dos dados será dividida em três etapas, seguindo a


teoria de análise da ação ritual de Van Gennep (2011 [1909]) e desenvolvida
posteriormente por Edith e Victor Turner (1974): primeiro a separação, quando o
indivíduo separa-se de sua vida cotidiana; seguida pela fase liminoide, um período
provisório de antiestrutura, que propicia transformações profundas através da
manifestação de potencialidades dos que participam dessa etapa; e, finalmente, a
agregação, quando o indivíduo reintegra-se à estrutura social da qual havia
apartado-se.
Na fase de separação será tratado o período anterior à largada, com
abordagem em treinamentos físicos específicos para o evento, a inscrição e as
relações estabelecidas a partir da inscrição entre participantes e entre participantes
e não-participantes, a organização necessária à viagem, a chegada à cidade de
realização do evento e os subeventos que ocorrem anteriormente à largada.
O período liminoide abrangerá tudo o que ocorre da largada à linha de
chegada, a interação entre os participantes – atletas e não atletas –, a relação com o
estado-de-dor de si e do outro e as estratégias usadas para superação e a decisão
de seguir ou de interromper a prova.
A agregação será abordada a partir da linha de chegada, observando também
a relação dos participantes na volta às suas respectivas rotinas e interações com
pessoas que participam ou não de ultramaratonas.

3.1 Separação

Poderíamos começar nossa viagem pelo mundo de uma ultramaratona a


partir da divulgação de uma prova. Entretanto, um evento tradicional e conhecido,
como o que etnografo aqui, pode começar antes mesmo de sua divulgação e da
abertura de inscrições, quando aqueles que já percorreram ou não essa prova
iniciam seus treinamentos e passam a interagir entre si através de redes sociais,
buscando saber quem vai participar da edição desse ano e quem não vai. Os
45

estreantes buscam informações sobre o percurso e, principalmente, sobre como


atravessar a tão temida Cachoeira dos Garcias, um trecho de 40Km que atravessa
uma serra extremamente fria no período da noite.
O treinamento para a prova obedece diferentes diretrizes. Alguns atletas
preparam-se com corridas diárias, outros mesclam dias de corrida com dias de
treinamento de força, uns reservam a si dias de descanso com o objetivo de
“recuperar” o corpo, enquanto outros acreditam que o descanso prejudica a
preparação do corpo para o evento. O que parece ser comum é a opinião de que os
treinos muitas vezes são mais duros do que as provas – esta é uma ideia que surgiu
em todas as entrevistas e nas conversas com ultramaratonistas em campo, antes da
prova. Perguntado sobre a alegria com que correu em algumas provas que
acompanhei, Neves responde:
– Porque é o que eu sempre falo, o dia da ultramaratona, pra mim é um
prêmio. Sofrimento é o que passei pra chegar até lá, treinar sozinho, não ter
companhia porque nenhum louco quer treinar contigo, sofrimento é acordar às 5 da
manhã e ir pruma pista molhada, sozinho. A dificuldade maior é o período do
treinamento, a corrida pra mim é um prêmio.
Outro ponto em comum é o compartilhamento de imagens da logomarca da
prova em redes sociais com legendas exaltando a dificuldade da prova ou “desafio”,
fazendo a contagem de quantos dias faltam para a prova, falando sobre os treinos
ou com frase como “eu vou. E você?”. Registros fotográficos dos próprios treinos
também são comuns, seguindo o mesmo tipo de legenda já citados ou ainda
descrevendo a alegria ou sofrimento com aquele treino registrado. Neste caso, as
legendas costumam terminar com o enaltecimento da força mental para “conquistar
um sonho” ou “vencer o desafio”, como escreveram dois participantes: “Quando a
vida te der motivos para desistir, mostre a ela que quem manda nessa porra é você”;
“Vai doer, vai requerer dedicação, vai requerer força de vontade, vai requerer
sacrifício, mas quando chegares ao teu objetivo, vai valer a pena.”
Ainda que haja uma ideia de sofrimento nos treinos, a dor a que os atletas se
expõem nessa fase é diferente daquela que se prevê sentir durante a prova. “No
treino a gente tá preparando o corpo e a mente, porque a mente a gente também
treina. Vai levando cada vez mais longe e visualizando a vitória”, falou João em sua
entrevista. Entrevistando Carlinha, perguntei se ela distinguia o esforço físico nos
46

treinamentos e nas provas. Uma pergunta cuja resposta acreditava saber, mas que
me surpreendeu pela influência atribuída aos profissionais que a acompanham:
– Claro que tem, isso você sabe. Sempre teve, treino é treino, jogo é jogo.
Mas isso eu aprendi de verdade com você e com o Ribeiro [treinador], vocês que me
colocaram mais freio. E eu sigo porque confio em vocês, vocês estudaram pra isso.
Se deixasse, eu treinava forte todo dia e participava de um monte de prova por ano.
Vocês me ensinaram a segurar um pouco pra render mais... e poder dar tudo de
mim nas provas.
A crença de que o treino deve ter uma evolução gradual e ser mais
confortável do que uma prova é comum entre profissionais esportivos. Em uma
prova de ultramaratona, o corredor é autorizado a se expor a um sofrimento maior.
Mas sigamos no período pré prova, que aqui interpretamos como a etapa de
separação.
Os treinos, sejam discutidos e exibidos publicamente ou não, já marcam o
início da separação. O sujeito inicia sua preparação alterando, mesmo que
minimamente, sua rotina com o objetivo de “cumprir o desafio”. Com a divulgação
das datas do evento e a inscrição, inicia-se a preparação para a viagem. Como a
UAI inicia-se em uma manhã de sexta-feira e pode ser concluída até domingo, é
comum haver a necessidade de se organizar no trabalho para ter pelo menos um dia
de folga. Alguns buscam mais dias de folga visando o descanso na volta, mas é
comum que corredores voltem direto ao trabalho já na segunda-feira. Além do
planejamento de dias fora do trabalho, há também a organização dos custos da
viagem e de equipamentos necessários. Como exposto no capítulo anterior, as
ultramaratonas agregam pessoas de diferentes classes econômicas e sociais. Dessa
forma, há desde os participantes que compram equipamentos novos e custeiam a
viagem com seu próprio dinheiro àqueles que recebem apoio de pequenas
empresas para viagens ou que utilizam equipamentos de amigos – com exceção dos
tênis, todo equipamento pode ser tomado emprestado com outras pessoas. O
calçado é a ferramenta mais íntima do corredor, “amaciado” e “ajustado” nos treinos,
não deve ser emprestado, tampouco novo, sob o risco de machucar os pés e
prejudicar ou até inviabilizar sua participação na prova.
É comum a sensação de ansiedade nos dias ou semanas que antecedem a
prova. Os participantes contam que essa sensação vai aumentando conforme a
proximidade do evento. É comum ouvi-los sobre episódios de insônia ligados à
47

inquietude que a ideia da prova estimula: “eu nunca durmo muito bem na semana
antes da prova, dá aquele nervoso”, “você já viu como fico cheia de bolinha no
braço? É da ansiedade. Depois da prova, passa”. As conversas que antecedem a
prova, já no local onde ela acontecerá, também apontam para esse “nervoso”. Fala-
se muito sobre o percurso da ultra que será feita, sobre outras provas, trocam-se
histórias sobre provas e treinos – novas ou já exaustivamente contadas e ouvidas.

3.1.1 A chegada à cidade

A Ultramaratona dos Anjos Internacional tem a largada e a chegada de seus


235Km na pequena cidade de Passa Quatro, localizada na Serra da Mantiqueira
(MG). O evento, como todo ano, aconteceu no fim do mês de junho (em 2017), auge
do inverno, em uma localidade extremamente fria, sobretudo para uma carioca como
eu. Cheguei na noite de quarta-feira e optei por me hospedar no hostel onde se
hospeda grande parte dos atletas. Trata-se de um casarão antigo, acima do nível da
rua, com duas entradas: um portão de madeira para entrada de carros seguido de
uma pequena ladeira, e uma porta de ferro, mais afastada, seguida de uma escada
estreita. Separando as duas entradas, uma loja de artigos de esportes de aventura –
a loja e hostel pertenciam ao mesmo dono. Como disse anteriormente, era noite de
uma quarta-feira, cerca de nove horas da noite, fazia muito frio e não havia ninguém
na rua. Do comércio, apenas uma pequena lanchonete aberta. Toquei a campainha
do portão e ninguém respondeu; toquei outra vez e também não fui atendida. Passei
pela loja e caminhei até a porta da escadaria, toquei a campainha e também não fui
atendida. Sentada no meio fio, pensava se valeria a pena procurar uma pousada
para passar pelo menos aquela noite, o que não condizia com o meu plano inicial.
Foi quando um carro parou na minha frente e abriu a janela do motorista.
– Oi, Isabel. – Era o Julio, um ultramaratonista que conhecia de outras provas
em que trabalhei como fisioterapeuta. Ele costuma correr com a filha, uma menina
de 17 anos, conhecida como a mais jovem ultramaratonista do país 14. Os dois não

14
A visão da ultramaratona como uma prova primordialmente mental faz com que seja motivo de espanto uma
pessoa com menos de 20 anos se dispor a participar desse evento, cujos participantes têm geralmente mais de 30
48

iriam correr, mas tinham vindo de São Paulo para levar amigos uruguaios e
argentinos para a prova.
– Oi, Julio. Sabe como faz para entrar no hostel? Ninguém atende aqui. Será
que está lotado? Não fiz reserva...
– Meus amigos aqui fizeram. Espera, que vou ali na casa do Carlos. Sabe
onde é? É logo aqui no final da rua. Espera, que já vamos resolver.
Carlos é o idealizador e organizador da prova, um homem de cerca de 50
anos, que idealizou o percurso e que acompanha e coordena de perto a organização
de todas as edições do evento. Enquanto o carro saía, chegava um homem de vinte
e poucos anos, magro e de cabelos pretos, arrastando uma mala de rodinhas.
Nunca o tinha visto. Apresentou-se como Leonardo, vinha de Santarém (PA) para
correr a prova pela primeira vez, na modalidade dos 95Km. Nosso primeiro contato
durou o justo tempo de Julio voltar em seu carro, acompanhado de Carlos e sua
esposa, Mara, a pé.
Carlos, como falei anteriormente, é o criador e organizador da prova. Junto
dele trabalham sua filha, Juliana, e seu genro, Washington, além de funcionários
contratados para trabalhar em seus eventos. Como de costume, Carlos chegou
alegre e, em seu passo tranquilo, nos mostrou uma pequena corda entre as frestas
do portão grande, que servia para abri-lo. Subimos a pé eu, Leonardo, Carlos e
Mara, Julio foi em seguida com seu carro. O casarão onde funciona o hostel é bem
antigo, não muito bem conservado, mas consideravelmente menos frio do que a rua.
Não havia um funcionário ou proprietário lá, tampouco se encontrava qualquer
movimentação de hóspedes. Entramos pela porta da cozinha, enquanto os
cachorros da casa vinham até nós latindo. Carlos dizia para entrarmos e
escolhermos um quarto, porque na manhã seguinte chegaria Dona Crisália,
funcionária antiga de lá, com quem poderíamos acertar os pagamentos da
hospedagem.
Julio estacionou o carro; ele é um homem baixo, que cultiva uma barriga
bastante proeminente, foi o primeiro a sair do carro e, por um instante, me pareceu
que nunca mais pararia de sair gente dali. Do banco carona saiu Eduardo, um
uruguaio alto e largo, com uma considerável quantidade de gordura corporal, do
banco de trás vieram Gabi – filha de Julio – e Rafael, Pedro, Maria e Julia. Esses

anos. Esse fato é bastante comentado e até questionado por outros ultramaratonistas, que acreditam ser uma
exposição precoce e até desnecessária ao esporte.
49

quatro com idade entre 30 e 40 anos e corpos atléticos, com Eduardo foram logo
buscar um quarto com cinco camas para permanecerem juntos.
Não pretendo gastar o tempo do leitor com pormenores da chegada à cidade
em vão, as histórias contadas são importantes para uma maior compreensão da
característica pessoal das provas. Os organizadores sabem quem irá participar, seus
nomes e cidades, ou países de origem, ainda que essa edição tenha sido a maior
em número de inscritos comparada com todas as edições anteriores dessa e de
outras provas de ultramaratona por distância no Brasil. A atmosfera de cooperação
mútua desponta desde a chegada dos participantes à cidade da prova e inicia de
pronto conversas sobre o percurso, os treinos e outras ultramaratonas.
Ainda à noite, Leonardo me contou que é “ex-alcoólatra”, que costumava ser
um problema para a família e, após um longo tratamento psicoterapêutico, parou de
beber. Ao abandonar o vício, entretanto, passou a engordar muito e, para
emagrecer, iniciou a caminhar e, depois, a correr. Foi um tio, que o apoiava muito
nessa mudança de estilo de vida, quem o incentivou a participar de sua primeira
maratona. Não era uma maratona comum, em pista de asfalto, mas sim a Jungle
Marathon. A proposta do tio era que ele corresse 42km, e em troca deveria auxiliá-lo
nos serviços que prestava para o evento, como montar e desmontar postos de
controle.
Leonardo aceitou a proposta e conta com orgulho como completou a prova:
– Lá tem um quilômetro só de Igarapé, com água aqui no peito; mais um
quilômeto só de guipó... mas eu terminei! E quando terminei a organizadora me
tratou como atleta mesmo, me deu a medalha! Agora vim fazer os noventa e cinco
porque se eu consegui fazer quarenta e dois na selva, consigo fazer noventa e cinco
aqui.
Seguiu falando sobre como estava preparado para conseguir concluir os
95Km, que levaria a medalha para casa e que o tio o havia ajudado a estar ali, que
era importante, então, mostrar a ele a medalha que conquistaria em poucos dias. A
perspectiva de conseguir a medalha, ou “conquistar”, como eles costumam falar, é
um aspecto relevante para os ultramaratonistas. Um troféu ou uma medalha é a
reificação de sua conquista, no sentido em que corporifica e funciona como
metonímia de um processo de preparação, esforço e superação pessoal. Na etapa
de separação, já apartados de sua vida cotidiana, surgem com mais frequência os
discursos sobre o que foi feito para chegar até a prova – ressaltam-se o preparo e a
50

viabilidade de atingirem seu propósito – e o que os ajudará a conseguir – destacam-


se estratégias de nutrição, hidratação, trocam-se informações sobre a prova e fala-
se muito sobre a volta para casa, a medalha que mostrarão à família ou amigos, as
histórias que contarão. Esse assunto será mais explorado na análise da etapa de
agregação, mas é preciso ser apontado aqui também, uma vez que a ideia de como
ocorrerá esta etapa em suas vidas é um fator que os leva a participar e a persistir
nas ultramaratonas.
No caso de Leonardo, a própria trajetória de vida – de alcoólatra “perdido” e
desacreditado pela família àquele capaz de ir ao sudeste do país para correr 95Km
com o incentivo do tio – é uma narrativa relevante para crer que conseguirá terminar
a prova e voltar para casa “em um outro nível”, como costumam dizer.
Na manhã seguinte, tomando café da manhã no hostel, conheci Adilson, um
atleta de Teresina que estava inscrito nos 235 Km. Ele falou sobre as filhas, que
ficam esperando que ele leve uma medalha ou um troféu para casa. Perguntei se ele
se importava com a colocação também ou se a medalha e troféu de finisher
bastavam:
– Ninguém que está aqui está preocupado em chegar em primeiro ou
segundo; se você conversar, todo mundo só quer chegar com menos de 60 horas,
porque o importante é terminar. Até porque se você fala pra alguém “corri 100km”, a
pessoa nem pergunta em que posição você chegou, ela fica admirada, nem acredita.
O legal da ultramaratona é isso, é fazer o que quase ninguém faz.
A perspectiva de realizar o que poucos são capazes é um ponto importante
para os ultramaratonistas. É comum usarem a frase “gosto do impossível porque lá a
concorrência é menor”. Sob essa perspectiva, diferenciam-se os ultramaratonistas
novatos dos experientes. Quanto mais provas finalizadas, quanto mais vicissitudes
superadas, mais respeitado e estabelecido na identidade de ultra o sujeito está. O
recém-chegado, aquele que não percorreu uma quantidade de provas entendida
como suficiente ainda tem sua identidade questionada. Como me explicou João em
entrevista, exemplificando um caso extremo em que a identidade de ultramaratonista
pode ser questionada:
– Tem ultras e ultras. Tem gente que chega numa vinte e quatro horas, corre
sessenta e diz que é ultra. Assim, não tá dizendo mentira, porque pra validar ultra
tem que correr mais que quarenta e dois. Aí diz que é ultramaratonista, muda o
nome no facebook, bota “fulano ultra”... Então, não menosprezando a pessoa. Pode
51

até ter ficado vinte e quatro horas acordado, mas não foi vinte e quatro horas nem
andando, porque se ficasse andando faria cem. Então só tira a foto pra postar lá no
facebook.
As acusações de carona são muito graves, assim como as de correr pouco
em uma ultramaratona por tempo. Esses são os casos mais extremos de
questionamento da identidade de um sujeito como ultramaratonista, que parecem
ser mais comuns atualmente, quando o número de participantes dessa modalidade
vem crescendo constantemente. Em entrevista, Marcio Villar falou:
– É moda agora, antes todo mundo queria ser maratonista, aí agora quer ser
ultramaratonista. Aí o cara vai lá numa prova de vinte e quatro horas, anda
cinquenta quilômetros e diz que é ultramaratonista. Ah, vai tomar no cu! Sabe o que
é isso? É o ego, o ego das pessoas. Aí vai pruma prova, corta caminho, pegado
carona. Pra que? Tá enganando quem, a si próprio? Pode chegar em último, mas
sabe que você conquistou aquilo com teu suor. Isso não tem preço. Mas é pra postar
pros outros, é o facebook, mostrar pros outros que é o fodão.
Há casos mais brandos desse tipo de questionamento, como situações em
que o sujeito abandona a prova sem um motivo legitimado pelos demais
participantes. Pedro lembrou, em entrevista, de uma de suas primeiras provas,
quando desistiu por causa de uma tempestade com raios.
– Teve aquela prova, que desisti por causa dos raios... até você naquele
jantar falou a meu favor, nunca esqueço, todo mundo, Marcelino, todo mundo na
mesa falando, “ah, você tem que ser mais forte e tal”, aí eu falei “mas eu não desisti
por dor ou outra coisa, foi por um perigo real, de raio. Raio mata” e aí “mas tava
longe o raio”... eu vou saber se tá longe ou se não tá longe? Talvez hoje eu não
desistisse, mas essa foi a única prova que eu desisti.
A ponderação final na fala de Pedro mostra a ideia de evolução da “força
mental” tão presente no discurso dos ultramaratonistas. Salvo raras exceções, de
estreantes que atingem pódios e surpreendem os mais antigos, a regra é os mais
novos aprenderem com os mais experientes, ouvindo suas histórias e conselhos. A
adesão à modalidade deve-se em grande parte ao estímulo de ultramaratonistas
mais experientes. À pergunta sobre como estreou nas provas de longa distância,
João respondeu:
– E até brinco com o Márcio [Villar], né? Porque ele é o mais importante
nessa coisa, né? Eu era maratonista e virei ultramaratonista. Porque eu fiz uma
52

pergunta importante pra ele, falei “pô, Marcio, tem uma prova lá, que é 6 dias depois
da prova que vou fazer em Berlim”, aí eu falei “mas eu não sei se eu faço, se eu não
faço, meu treinador não quer que eu faça Berlim pra mais de três horas”. Aí ele
chegou pra mim e falou “o que vai te deixar mais feliz? Você correr uma maratona
pra baixo de 3 horas ou você correr duas maratonas seguidas?”, aí eu respondi sem
pensar “claro que são duas maratonas seguidas!”, aí ele falou [sorrindo] “então tu é
ultra, rapá! Vai lá e faz é as duas. Tira o pé de Berlim, se não tu vai sofrer na
seguinte”. Aí eu fui lá e fiz isso, né?
Neves também respondeu ao mesmo questionamento, falando da influência
de um colega de exército para seu início e, posteriormente, de Marcio Villar, que se
tornou um grande amigo e parceiro de ultramaratonas, ora correndo juntos, ora um
trabalhando como apoio do outro:
– Eu era goleiro da seleção brasileira de futebol militar, em 2007 tive o câncer.
Em 2009 fui liberado para praticar esporte, com restrição a esporte que tivesse
atrito, contato, futebol, basquete... Então foi quando comecei a correr, como sou
militar e sou da área de infantaria e o infante, a gente tem que ter um
condicionamento apurado, comecei a correr, até que fui convidado por um amigo a
fazer uma prova de 24 horas lá em campinas. Foi o Jorge que me via treinando lá na
pista que me falou que tinha ultra, eu tinha feito uma maratona em junho e em
outubro fiz essa, fiz 158 km. Foi quando eu conheci o Márcio, ele soube do meu
problema, ele estava com a mãe em tratamento, que veio a falecer depois, aí a
gente criou esse laço.
No café-da-manhã que antecedia ao dia da largada, Adilson contava a mim e
a Leonardo sobre seu começo nas ultramaratonas:
– Eu já corria, corria muito. Em Teresina não tinha muitos corredores, então
todo mundo me achava louco. Quando dizia que queria fazer ultras, aí sim que me
achavam mais louco ainda! Até que um dia eu conheci um gringo, amigo de um
amigo, que morava em Teresina e era ultra. Nessa época eu queria fazer a prova
dos cem quilômetros de Cubatão, mas o gringo disse: “Adilson, nessa prova você
tem o tempo limite de doze horas, você vai ter só doze horas para terminar os cem
quilômetros, e você ainda não está preparado para isso. Por que você não procura
uma prova de vinte e quatro horas e faz os seus cem quilômetros? ”. E foi o que fiz,
em vinte e quatro horas, corri cento e doze quilômetros.
53

Naquela manhã, estávamos os três ao lado do fogão a lenha. Uma carioca,


um paraense e um piauiense em busca de um ponto de calor para aplacar a
sensação ruim que os 10ºC daquela manhã traziam. Não diferente de todas as
conversas em um ambiente de pré-prova, a pergunta inicial foi “vai correr quanto? ”.
Adilson queria saber de qual subprova eu participaria. Falei sobre minha pesquisa,
de experiências anteriores como equipe de apoio e devolvi a pergunta:
– E você? Vai correr quanto?
– Eu vim ano passado, mas quebrei nos cento e oitenta e cinco. Faltavam só
cinquenta quilômetros! Mas não consegui, acho que subestimei a prova... ela é
muito dura. Mas esse ano já corri a BR13515 como treino, então tenho certeza de
que estou pronto para terminar essa – e se voltando para Leonardo, quis saber – e
você?
– Vim fazer os noventa e cinco!
– Essa coisa de correr cinquenta, sessenta e se dizer ultra é só aqui no Brasil.
Lá no Estados Unidos só é ultra quem faz cem. Você pode terminar seus noventa e
cinco, pegar sua medalha, e correr mais cinco quilômetros, só mais cinco. Aí você
termina a prova e liga pro seu treinador e fala: “agora eu sou um homem de três
dígitos, me respeite!".
– Não sei, Adilson... vim com o psicológico para fazer noventa e cinco, não sei
se chego aos cem. – respondeu Leonardo, com um sorriso de quem está tentado,
porém reticente diante da ideia.
– Mas agora você tem um porquê, agora você tem o objetivo de chegar aos
três dígitos e ser ultramaratonista em qualquer lugar. Se você for aos Estados
Unidos, vai poder dizer que é ultra! O ultramaratonista mesmo treina doze
quilômetros todo dia. Se treinar todo dia, o corpo dele vai estar pronto. É a mente
que vai valer na hora da prova, e agora você tem um objetivo que pode te levar até
os cem quilômetros.
– Não sei, preciso pensar melhor nisso. Meu psicológico está fechado nos
noventa e cinco.
– Se você faz cem quilômetros, cem quilômetros! Ninguém na sua cidade faz
isso, nem vão acreditar que você fez. Vai ser um homem de três dígitos! Vai poder

15
BR135 é uma prova de 135 milhas conhecida pelo alto nível de dificuldade e que, assim como a
UAI, pontua no ranking internacional de trail running
54

falar “fiz três dígitos, me respeite! E o bom é entre oitenta e cento e cinquenta
quilômetros, nesse momento você não sente nada. Resolve um monte de problema
na cabeça e cria uns outros tantos. Porque a essa altura você vai sofrer e vai
arrumar um jeito de superar isso... e aí você vai se introspectando.
Leonardo sorriu e me olhou, respondi seu sorriso com mais um estímulo à
ideia de Adilson:
– Bem, meu plano é ficar horas no PC 95 por causa do meu trabalho. Se
precisar de alguém pra rodar esses cinco quilômetros com você, pode me chamar.
Mesmo se eu estiver dormindo, levanto e vou contigo... acho até que ir até o fim da
rua principal e voltar já dá os cinco.
Leonardo coçou a cabeça e foi tomar banho. Talvez esperasse que, como
profissional de saúde, eu dissesse que seria melhor manter-se nos 95Km.
Esse diálogo não foi motivado por um questionamento da capacidade de
Leonardo de se tornar um ultramaratonista. Mas sim pelo desejo de ver o outro
conquistando os tais “três dígitos”, indo além do que ele mesmo pensa que pode
porque os outros acreditam que ele pode mais – e ver o outro indo além é prazeroso
também para quem o incentiva. “Um puxa o outro” é comum ouvir entre os atletas,
tendo como base o “princípio da perfectibilidade” (DUARTE, 1999) em que o
aperfeiçoamento é contínuo e ilimitado.
O aspecto da solidariedade e do desejo de ver não só a si mesmo, mas
também o outro atingindo objetivos (ou desafios) maiores, isso será observado
durante todo o evento e, de maneira mais horizontal entre os participantes na etapa
liminoide. Na etapa de separação ainda é bastante marcada a diferença de
experiência entre os participantes, gerando uma conversa muitas vezes mais
vertical, em que os mais novos escutam mais e opinam menos. O intercâmbio de
informações e dicas também acontece entre equipes de apoio, que cumprem um
papel importante para incentivo de corredores apoiados ou não por eles 16. Entre os
mais experientes as trocas continuam a acontecer, mas aqui surgem como trocas de
histórias de seus feitos. As histórias contadas e recontadas constantemente entre
atletas e equipes de apoio, além de conter episódios cômicos, parecem narrar

16
As equipes de apoio não estão em foco nesse estudo, a troca de experiências entre eles, portanto,
não será abordada. A importância de sua relação com corredores será tratada na discussão sobre a
fase liminoide da prova.
55

primordialmente atos heroicos, em que o atleta consegue superar dificuldades e


terminar a prova ou, em alguns casos, vencer algum adversário.
Outro tema verificado a partir do diálogo acima é a característica introspectiva
das provas. Essa introspecção que resolve “um monte de problema na cabeça” e
cria outros, é relevante para a ideia de transformação de si que a ultramaratona traz.
A história da participação da Carlinha nessa edição da UAI, que aconteceu na
entrega dos kits, é uma boa ilustração desse aspecto.

3.1.2 A entrega dos kits

A entrega dos kits ocorreu na tarde anterior à largada e, no início da noite, foi
realizado o congresso técnico. Os dois eventos aconteceram em uma escola que,
por ocasião de férias do ano letivo, estava sem aulas. Um edifício de três andares
construído em um terreno grande, com pátio para estacionamento na frente e
ginásio nos fundos. O ginásio estava em um anexo, no segundo andar havia um
salão com palco e um corredor largo e extenso onde havia quartos, que
funcionavam como alojamento para os atletas que haviam escolhido essa forma de
hospedagem em sua inscrição. Colado em cada porta de quarto, um papel impresso
com o nome dos atletas que ali se hospedariam. Em toda a extensão do corredor,
havia estandes de venda de material esportivo, somavam-se quatro no total, todos
de lojas ou empresas já consolidadas e um da organização do evento, que vendia
camisetas, canecas e demais acessórios da prova e de outras provas realizadas
pela mesma organização. Os participantes amontoavam-se nos estandes olhando e
comprando produtos. No fim do corredor, achava-se o estande onde ocorria a
entrega dos kits, compostos pelo número de peito e por camisa própria para prática
esportiva, caneca térmica e uma faixa de trilha (uma espécie de gola de tecido, que
pode ser usada como gola no pescoço ou bandana na cabeça), todos os itens
gravados com o logotipo do evento. Os atletas formavam-se em filas de acordo com
a primeira letra do nome e esperavam para pegar seu kit mediante a apresentação
do material obrigatório e do número de inscrição - muitos atletas não apresentavam
material obrigatório completo, e buscavam o que faltava nas lojas do corredor.
Dentro do salão havia cerca de duzentas cadeiras organizadas em duas grandes
56

colunas; no palco, em frente ao espaço central que separava as colunas, havia um


aparelho televisor de 40 polegadas, que passava imagens fotográficas de provas
anteriores.
Ainda faltavam cerca de quatro horas para o início do congresso e resolvi
esperar no estande da loja do Marcio Villar. Hoje com 46 anos, Marcio foi o primeiro
a dobrar ou triplicar provas, prática que hoje é seguida por alguns outros atletas.
No congresso técnico da edição passada dessa mesma prova, ele recebeu
um troféu dado pelo criador e organizador da prova, Carlos, que fez uma retratação
pública:
– Hoje temos uma atleta, que está chegando dos seus duzentos e trinta e
cinco iniciais e amanhã largará com vocês. Mas hoje vou homenagear o cara que
chamei de louco mais de mil vezes, que disse que era absurdo tudo o que ele fazia.
Quantas vezes perguntei se ele queria morrer fazendo isso? Mas ele não só mostrou
que era possível, como abriu caminho para outros fazerem também.
Ao receber o troféu de prova tripla, Marcio lembrou das dificuldades que
passou para triplicar, quando na largada oficial, já havia corrido 470Km:
– Eu tive que cortar a frente do tênis pra calçar porque não tinha mais pé. Se
fosse olhar muito meu pé, não podia nem largar pra prova, tinha que seguir direto.
Mas quando a gente faz o que a gente ama... todo mundo tá aqui por amor, não tem
premiação em dinheiro, não tem nada, é só prazer. Eu tô vendo um pessoal aí meio
frouxo, vindo correr sessenta e cinco quem já correu prova de cem. Eu tava falando
com a Juliana aqui: ‘cancela a inscrição desse pessoal’. Aqui a gente é movido a
desafio, tem que procurar avançar cada vez mais, elevar um pouco mais o patamar
e superar. Aqui é curtir, se divertir... todo mundo treinou, se preparou, aqui é o
momento da gente ser feliz, entendeu? É cada um dar o seu melhor, trabalhar unido,
se um atleta precisar da ajuda do outro, ir junto. E todo mundo chegar e
comemorar... e no máximo domingo [prazo máximo para chegada da prova dos 235
Km] a gente tá fazendo uma festa da chegada. Obrigada pelo apoio! Isso aqui –
mostrando o troféu – foi incrível! A maior quilometragem que fiz até hoje, né?
Setecentos e cinco quilômetros, né? E se deus quiser, ano que vem tô aí de volta,
agora é arrumar o quadril pra quadriplicar. A ideia é essa, né? Quadriplicar!
Obrigado!”
57

Marcio hoje afirma não gostar de participar de provas, não se importa mais
com medalhas ou troféus, sua motivação é a filantropia, como contou em nossa
entrevista:
– Eu não faço mais essas provas, não quero disputar com ninguém, quero me
superar e sempre com uma causa filantrópica. Eu chego pra você: “se eu bater o
recorde, você doa mil latas de leite em pó pro INCA?”, você fala “doo”. Então isso
me motiva. Porque eu sei que se eu não bater o recorde, as crianças vão ficar sem o
leite. O que me motiva é a parte filantrópica. É a força da mente. A gente tem uma
força dentro da gente que a gente desconhece. Ah, deus quis assim. Inventa uma
desculpa. Pra fazer uma prova, eu treino minha mente. Eu tô treinando, parece que
entro em estado de alfa. Parece que eu saio e volto pro meu corpo. Eu fico
imaginando eu chegando, na corrida mesmo. Às vezes eu me pego sorrindo,
correndo sozinho, como se aquilo tivesse acontecendo mesmo. Quando eu olho
assim já passava duas três horas de treino e nem me liguei.
Tanto pelo seu livro, quanto pelas palestras motivacionais que confere
profissionalmente, Marcio é conhecido por inspirar muitos maratonistas a se
tornarem ultramaratonistas. Em todas as provas que participa como atleta, como
apoio, ou como vendedor de seus livros e artigos esportivos, é sempre parado por
muitas pessoas para fotos e conversas. Nesse dia não foi diferente. Em seu estande
havia mais duas pessoas para realizar as vendas: sua esposa, Ana, e seu amigo e
também ultramaratonista Neves. Entretanto, todos os clientes pareciam querer
conversar e comprar diretamente com Marcio, que, prescindindo de muitas
perguntas, falava sobre a prova com propriedade e em uma cadência veloz:
– É a primeira vez que você vai fazer, né? Tem corta vento? Vai precisar lá
em cima. Aquela subida que é dura... tem apito? É material obrigatório, hein!
Entre poses para fotos e autógrafos em seus livros, Marcio vendeu de comida
desidratada a roupas térmicas, passando por apitos e lanternas.
Neves, que mantinha os zíperes das bocas da calça abertos, de modo a
deixar à mostra duas tatuagens de logotipos de provas já realizadas, destacava a
preferência dada a Marcio:
– O que ele fala tem valor, não o que eu falo. Nada do que eu fiz tem valor,
sou só o cara que costura o pé dele.
Ainda que Neves tenha participado e completado muitas ultramaratonas,
como faz questão de expor ao deixar à mostra suas tatuagens, acredita ser visto
58

apenas como apoio do Marcio, que por sua vez tem uma considerável proeminência
sobre os ultramaratonistas. Observa-se aqui a hierarquia existente entre
ultramaratonistas cuja identidade como tal já é estabelecida.
Marcio Villar não é o tipo que faz questão de subir em pódios, prefere
diferenciar-se dos demais fazendo distâncias mais longas. Com seus livros e
palestras motivacionais, busca inspirar outras pessoas, corredores ou não, a
dominarem sua mente para atingir seus objetivos. É a sua força mental que é
celebrada e admirada, não sua forma ou força físicas. Em entrevista, ele demonstra
a ideia da separação e superioridade da mente sobre o corpo.
– A mente é muito mais forte que o corpo. Se eu tivesse com o corpo mais
forte e não tivesse com a mente legal, não tivesse com certeza, ou se tivesse
brigando com minha esposa, ou querendo separar ou triste com alguma coisa...
Muitas vezes quando você tá aborrecido com alguma coisa, você vai dar um trotinho
e não rende, para. Agora quando a mente tá forte, o corpo mesmo sem tá cem por
cento, você tira da onde não tem.
O desenvolvimento da força mental não é um segredo a ser guardado por
ultramaratonistas. Ao contrário, eles conversam a todo tempo sobre a importância
dessa força e estimulam uns aos outros a se inscreverem e a não abandonarem
provas. As palestras motivacionais que Marcio confere profissionalmente são mais
uma forma de divulgar essa ideia e de servir de exemplo para outras pessoas. Aliás,
servir de exemplo é um pensamento comum entre muitos atletas, uma questão a ser
desenvolvida mais tarde, na etapa de agregação.
A hierarquia entre ultramaratonistas já estabelecidos manifesta-se através
dessa classificação moral, da ideia de quem pode servir como um melhor “exemplo”.
São a qualidade e a quantidade dos feitos que fazem de um ultramaratonista mais
ou menos exemplar.
Carlinha e Arthur chegaram enquanto conversava com Neves. Ela é uma
mulher negra, ultramaratonista conhecida, bicampeã e bi recordista dessa prova,
que não competiria nesse ano por estar se preparando para outra prova. Além de
ser minha paciente há alguns anos, tornou-se amiga. Arthur, um homem negro e
bastante alto, é seu marido e o responsável por organizar seu apoio em todas as
provas em que ela participa nessa modalidade e nos últimos dois anos dividimos
dias dentro de um carro, com pouco sono e bastante cansaço. Por isso o convidei
59

para colaborar comigo na tarefa de acompanhar a UAI para a pesquisa – Carlinha


juntou-se a nós para aproveitar trechos da prova como treinos.
É sempre um pouco difícil manter uma conversa com ela em um ambiente pré
prova. Muitas pessoas vão conversar com ela, saber das intenções para aquela e
outras provas, pessoas que se inscreveram por incentivo dela ou por terem visto
alguma de suas postagens em redes sociais vão pedir dicas e dizer que ela foi a
inspiração necessária para “topar o desafio”. Então foi difícil sustentar uma conversa
quando ela me disse, logo após nos cumprimentarmos, que pensava em correr a
prova na distância de 235 Km.
- Estou tão feliz de estar aqui, essa energia contagia... acho que vou correr os
duzentos e trinta e cinco. Mas vou de survivor, não quero atrapalhar vocês, não
preciso de apoio!
- Carlinha – eu disse – você nem deve ter todo o equipamento de segurança
aí. Faz os noventa e cinco como treino, a gente vai te apoiando, não vai ter
problema nenhum. Só vou começar meu trabalho nos PCs nos noventa e cinco
mesmo. Tem dois meses que você correu trezentos, está treinando velocidade para
melhorar distância em vinte e quatro horas... Olha o que você vai fazer com seu
treino!
- Mas aqui é minha casa. Depois que eu terminar a prova, ligo pro Ribeiro
[treinador] e digo que corri e a gente ajusta os treinos.
Não conseguimos prosseguir na conversa, ela se virou para falar com duas
pessoas que chegaram para cumprimentá-la. Arthur me disse que achava besteira,
mas “quando ela chega aqui, ela fica igual pinto no lixo, Bebel”. Começamos a
planejar como seriam os dias de trabalho, eu descrevia para ele os pontos em que
precisaria parar e como planejava ficar em cada um, onde poderíamos cozinhar e
outros detalhes práticos para que o campo corresse bem.
Por um momento ficamos novamente sozinhos, os três, encostados em um
dos poucos trechos livres da parede do corredor. Foi o momento em que o celular da
Carlinha tocou, ela se afastou dois passos de nós e em menos de um minuto
retornou, olhou para o marido, olhos rasos d’água:
- Acharam o corpo dele.
- Puta que pariu!
Arthur abraçou Carlinha, abaixei minha cabeça e concluí naqueles breves
segundos de silêncio, que se tratava de seu sobrinho e afilhado, de 21 anos,
60

desaparecido há dois dias. Carlinha me olhou, segurando o choro, passei meu braço
sobre seus ombros e ela me disse com voz absolutamente determinada:
– Vou correr os duzentos e trinta e cinco e vou de survivor. Agora eu que não
quero apoio, preciso correr sozinha, preciso ficar sozinha, preciso resolver isso na
minha cabeça.
– Tudo bem. Desce um pouco com o Arthur, fiquem juntos um pouco, que vou
avisar à Juliana que você vai correr. Mas dá um confere no que você trouxe porque
pode estar faltando algum item obrigatório. A gente resolve tudo hoje pra pegar o kit
amanhã cedo.
Naquele momento não poderia dissuadi-la da ideia de correr, ainda que na
posição de profissional de saúde da equipe dela, não havia justificativa de excesso
ou mudança abrupta de treinamento plausíveis para impedi-la de correr. Não era
mais sobre treino, sobre melhorar distância em 24 horas, ou sobre poupar o corpo
de uma possível fadiga, mas sim sobre se reorganizar emocionalmente, tentar
superar a dor da perda de um (quase) filho. Entendi ali que a forma que ela teria de
buscar sua paz seria correndo.
Porque, como havia dito Adilson mais cedo, na ultramaratona, com os
momentos de introspecção, vão-se resolvendo “um monte de problema na cabeça”.
Como a análise feita por Le Breton (2010) sobre as escarificações infringidas ao
próprio corpo por adolescentes, há um sentido de contenção, de controle do
sofrimento emocional através da dor auto infringida. Ao promover em si mesmo uma
dor cujo fim o adolescente tem como prever, ele tem a sensação de poder controlar
o sofrimento emocional a que está submetido. “Ferir-se para estar menos ferido. Ela
opõe a dor ao sofrimento, a lesão física à lesão moral” (Le Breton, 2010, p.36). De
modo semelhante, supúnhamos Carlinha, Arthur, eu e todos os que souberam de
sua decisão que a dor de mais uma mulher negra, moradora da favela, ao perder o
sobrinho, igualmente negro e favelado, poderia ser suplantada pelo sofrimento e
prazer suscitados pelos 235 Km da prova.
Não foi difícil inscrevê-la um dia antes da largada: além da situação em que
se encontrava e da necessidade de fazer aquela ultra, Carlinha é muito carismática
e querida pela organização dessa prova. Quando consegui encontrar a Juliana, ela
sabia do que acontecera e já havia providenciado sua inscrição. Lidando com esses
imprevistos delicados, acabei por me atrasar alguns minutos para o congresso
técnico.
61

3.1.3 O congresso técnico

Quando cheguei ao salão, a maior parte das cadeiras estava ocupada, mas
ainda havia muita gente dispersa pelo corredor, pelos estandes, promovendo um
falatório que ainda não tinha visto em edições anteriores da mesma prova. Talvez
isso tenha acontecido por essa edição ter muito mais participantes que as anteriores
– segundo a organização, contavam com o maior número de inscritos não apenas
em relação aos anos anteriores, mas em relação a todas as provas do Brasil, sendo
a maior ultramaratona do país.
Muitos atletas optam por não participar do congresso técnico. Geralmente
alegam que leem todo o regulamento e não precisam ouvir tudo de novo, ou que já
conhecem a prova. Mas há aqueles que preferem participar mesmo tendo lido o
regulamento para saber se houve alguma alteração ou nova orientação da
organização do evento, e também há os que não leem o regulamento e preferem
tirar dúvidas e receber as instruções nesse momento.
Carlos falava em um microfone, ligado a uma caixa de som pouco potente
para a amplidão do espaço. Ele apresentava o atleta que dobraria a prova desse
ano, tendo chegado a Passa Quatro na noite anterior, e largaria com os demais
participantes na manhã seguinte. Após aplausos e celebrações ao “guerreiro”, como
era chamado, ele avisou sobre os mata-burros do percurso. Por ser uma região
rural, há muitos mata-burros no percurso. Geralmente localizado em porteiras de
sítios e fazendas, mata-burro é uma vala coberta por tábuas espaçadas e dispostas
horizontalmente, com o objetivo de evitar a passagem de animais. Carlos advertia
que faltavam tábuas em alguns deles, o que poderia ocasionar acidentes. Falou
também sobre os alimentos oferecidos em cada posto de controle e sobre os valores
dos alimentos vendidos em estabelecimentos onde eram montados alguns desses
PCs. Logo depois abriu para perguntas.
As primeiras dúvidas eram de estreantes na prova, todas sobre o percurso. A
prova toda tem um percurso pré-definido, que é o mesmo desde a primeira edição;
existe um mapa eletrônico disponível para download, que pode ser lido por
aplicativos com GPS de smartphones e tablets, além de uma versão impressa, que
62

todo participante deve ter consigo. A maior parte do percurso pode ser
acompanhada pelos carros de apoio, mas existem trechos em que os carros não
podem passar, seja por uma questão de espaço, seja por ser área de preservação
ambiental. Por isso, há também mapas exclusivos da equipe de apoio. Além dos
mapas, todo o percurso dos atletas é sinalizado por setas amarelas e, nos locais
onde não é possível pintar setas, há uma marcação com tecidos reflexivos também
na cor amarela, que indicam por onde se deve seguir.
O trecho mais longo em que os atletas ficam sem apoio é de 20km, a
travessia de uma serra, onde faz muito frio, sobretudo porque é sempre percorrida
durante a noite ou madrugada. Os atletas costumam demorar de seis a dez horas
para completar esse trajeto. Esse é um dos pontos mais comentados entre os
corredores e Carlos frisou veementemente a necessidade de muito cuidado também
na descida porque o terreno é muito acidentado e pode causar acidentes. Também
explica sobre o funcionamento das vans de volta nas provas menores – cada posto
de controle (25Km, 65Km, 95Km e 135Km) tem um serviço de van que leva os
atletas de volta para Passa Quatro. As vans não têm horário fixo de saída e, muitas
vezes, os atletas precisam esperar mais tempo do que gostariam para voltar. Existe
também a preferência de entrada na van: atletas que completaram a prova naquele
PC podem embarcar antes dos que fariam distâncias maiores, mas por qualquer
motivo, desistiram de seguir. Alguns veteranos lembravam sobre pontos importantes
de serem ditos sobre o percurso, como diferença de desvios para carros de apoio
com tração e sem tração, a obrigatoriedade de parada em um posto no alto da serra,
que muito perdem por ser afastado da trilha.
Durou cerca de trinta minutos todo o congresso, sendo encerrado por
aplausos. Quando eu saía do salão em busca de Carlinha e Arthur, fui abordada por
Osvaldo, atleta conhecido como fenômeno das ultramaratonas desde 2014, mas que
vinha de duas desistências seguidas. Não sabia que havia quebrado nessas provas,
por isso estranhei quando, ao nos cumprimentarmos, ele disse:
– Vim pra reconquistar minha confiança. Porque quando você vai a uma prova
e não consegue completar, vai a outra e não consegue completar, fica sem
confiança, né? Essa eu vim pra completar... porque quando você vai pra competir,
acho que fica muito diferente... e quando você vai pra completar, talvez até
consegue bons resultados.
63

– Todo mundo tem altos e baixos, Osvaldo. Tenho certeza que você vai
terminar essa prova, você é um atleta sensacional e conhece isso aqui muito bem.
Osvaldo tinha o recorde dessa prova e sempre foi conhecido pela sua
velocidade. Quem atua nesse esporte, geralmente acredita que a autoconfiança é
um dos pilares para o bom desempenho do atleta. Comigo não é diferente e, ainda
que estivesse ali como pesquisadora, não pude deixar de me preocupar com seu
abatimento e insegurança. Partilhando da crença de que a mente comanda o corpo,
pedi atletas conhecidos meus e do Osvaldo que conversassem com ele e tentassem
animá-lo.
Encontrei Carlinha ainda na saída do salão. Ela havia assistido todo
congresso e, diante do meu espanto, disse que, se iria correr, não poderia deixar de
ir ao congresso.

3.1.4 Os momentos anteriores à largada

Como a largada seria dada às 8:00 da manhã, às 7:00 cheguei ao local onde
ela aconteceria, um campo aberto de gramado. O pórtico de largada, montado com
uma estrutura de metal, ficava logo após um corredor balizado por cavaletes de
metal, onde os atletas se organizariam minutos antes da largada. Anterior a esse
corredor, a uma distância de cerca de 15 metros, estavam montadas duas tendas,
separadas por um largo espaço também coberto: uma onde havia equipamento de
som e DJ selecionando as músicas que tocavam a um volume alto o suficiente para
ser ouvida por todo o campo; e outra onde eram entregues os kits aos que não
haviam chegado tempo no dia anterior. No espaço que as separava, havia um painel
como logotipos da prova em preto e branco; ali se formava uma grande fila em que
os participantes esperavam para tirar fotografias com o fundo dos logotipos.
Fotografias lá eram comuns: atletas novatos pediam para tirar fotos com os mais
experientes e conhecidos, amigos e colegas de equipe posavam para selfies. Havia
também a gravação de vídeos a partir de smartphones, uma atleta fazia um vídeo,
que parecia ser uma transmissão ao vivo, em que, com uma emotividade vigorosa,
dizia “eu não vou desistir! Não vou desistir! Sei o quanto é difícil, é duro, mas eu não
vou desistir!”. Ouvi outros atletas comentando entre si sobre a moça do vídeo: “se
64

ela já está assim agora, imagina quando chegar na subida?”. A dúvida sobre a força
mental de uma participante cuja identidade de ultramaratonista ainda não foi
estabelecida é externada pela jocosidade em relação às suas afirmações exaltadas
sobre sua própria capacidade de conseguir completar o “desafio”.
Conforme a hora da largada se aproximava, era comum ver grupos de amigos
dando as mãos e formando círculos para fazer orações ou falas de afirmação de
força e de capacidade de chegar bem ao fim da prova. Grande parte deles ostentava
tatuagens em suas panturrilhas com logotipos de provas já realizadas, marcas
corporais de seus feitos heroicos. É nesse momento que muitos ultramaratonistas
lançam mão de medicamentos analgésicos ou anti-inflamatórios para evitar uma
sensação dolorosa logo nas primeiras horas de prova, período de adaptação do
corpo ao exercício físico, conhecido por suscitar uma sensação de desconforto. O
uso desses medicamentos não surge no discurso cotidiano dos ultramaratonistas
como algo classificado de maneira distinta do uso de outras substâncias, como a
cápsula de sal, ou soro ou alimentos salgados, usados durante a prova com o
objetivo de evitar desidratação, tampouco de cápsulas de cafeína, ou copos ou balas
de café, para se manter desperto em todo o percurso.
– Eu, na largada da prova, meia hora antes, tomo dois torsilax pra evitar dor e
relaxar a musculatura. E dias antes da prova – Marcelino aproximou-se de mim
como quem conta um segredo – como angu com leite. Não como batata, nada disso.
Angu com leite é minha preparação. E tomo muita agua, me hidrato bem. Não tem
muito esse negócio... eu não fui acostumado... eu como tudo. Durante a prova eu
como camarãozinho [biscoito salgado sabor camarão] por causa do sal, não tomo
cápsula de sal porque ela me faz mal se eu tomar demasiado. E isso aqui
[camarãozinho] eu coloco controlado. Tem que ter dentro da minha mochila
castanha, amendoim verdinho, isso [camarãozinho] e bala de café. Bala de café por
causa da cafeína.
A utilização dessas substâncias não surgiu espontaneamente nas entrevistas
realizadas, sendo faladas apenas após a pergunta específica sobre o tema. Isso
provavelmente aconteceu porque o discurso sobre as provas é inteiramente
centrado na força mental para superar qualquer dor, inclusive a dor do luto.
Encontrei Carlinha e Arthur, perguntei se estava tudo bem com ela.
– Vou ficar, só preciso correr sozinha. Não dormi nada essa noite.
65

– Vai ficar – e, dando um abraço nela, continuei –, que aquela serra te ajude a
resolver tudo o que precisa. Afastei-me dos dois e fui procurar outros atletas para
desejar boa prova.
A etapa de separação marca o início do evento de ultramaratona. Pode ter
seu começo na inscrição do participante no evento e suas posteriores divulgação e
conversas sobre o tema com amigos ou com desconhecidos em fóruns virtuais, e é
finalizada no momento da largada. Nessa etapa já se observa a solidariedade entre
os participantes – atletas, organizadores e apoios – e o estímulo ao sucesso do
outro, numa situação de communitas. Mas ainda há uma marcação de hierarquia
entre eles, desde os de identidade estabelecida e os que ainda precisam de mais
provas para se firmar como ultramaratonistas, até entre os que já são
ultramaratonistas reconhecidos pelos seus pares como tal. Essa hierarquia borra-se
durante a prova, na etapa liminoide, levando a uma linearidade entre os atletas.
Doer ainda é uma ideia de futuro, a dor aparece nessa etapa como uma entidade
externa a si, que deve ser evitada não apenas com a própria força mental, mas
também com medicamentos analgésicos.

3.2 Etapa liminoide

Faltando um minuto para a largada, todos os atletas esperavam no corredor


que precedia ao pórtico. Carlos, no megafone, advertia:
– Atenção, pessoal, preservem a vida! Vocês são atletas! Vai ter carro de
resgate durante todo o percurso, quero ver vocês chegarem bem!
A preocupação com a segurança é comum desde a inscrição. Da
obrigatoriedade da apresentação de atestado médico às rondas de carros da
organização pelo percurso, passando por recomendações como as feitas na
largada, busca-se prevenir riscos comuns nessa modalidade esportiva.
Seguiu-se uma contagem regressiva e, então, a largada. O tempo da prova
começava a ser marcado, os atletas seguiam em um grande pelotão com calma – é
comum os ultramaratonistas começarem a prova mais lentamente e reservarem sua
força e velocidade para quando já estiverem “na prova”.
66

“Estar na prova” é uma expressão usada para se referir ao período em que o


atleta está se sentindo na corrida de modo confortável e prazeroso, quando já foi
superado o mal-estar da atividade ou qualquer motivo para desconcentração. O
aspecto do prazer aparece no discurso dos ultramaratonistas como o principal
motivo para se manter nessa atividade: “só faço porque a ultra é prazerosa”;
“independente da distância, de tudo que eu sofra, o êxtase de uma corrida me leva
ao extremo de felicidade.”; “eu sempre até me emociono quando eu tô numa prova,
é gratificante demais. Eu acho que superar o limite, não sei, é prazer maior meu
mesmo”. O prazer surge nos períodos em que o ultra “está na prova”.
O plano de acompanhamento da prova era seguir de carro o percurso todo da
prova, fazendo a primeira parada às 19:00 no PC95, na manhã seguinte seguir para
o PC135 e fazer a última parada na linha de chegada. Como Carlinha havia decidido
correr, incluímos uma pausa no posto de controle do Km 65, para verificar se ela
estava bem.
O percurso até os 65Km foi bastante tranquilo; é preciso lembrar que, como
Carlinha corria na categoria survivor, não poderia aceitar qualquer ajuda nossa.
Apesar disso, por mais de uma vez perguntamos se ela precisava de alguma coisa,
sempre com resposta negativa, como todos de sua categoria. Durante uma leve
subida, sob sol forte, avistamos uma atleta ora cambaleando, ora se abaixando e
levando as mãos sobre as coxas, em uma postura de fadiga. Desci do carro e
perguntei se precisava de ajuda, se queria água ou alguma outra coisa. Antes que
ela me respondesse, outra atleta, que caminhava junto dela respondeu que não, “a
gente está survivor”.
Seguimos viagem parando em alguns momentos para conversar com
conhecidos que faziam apoio para outros atletas. As equipes de apoio passam muito
tempo paradas, encostadas na beira da estrada, esperando o atleta chegar.
Geralmente, há um acordo entre eles sobre a distância que o ultramaratonista
percorrerá sozinho. Quando esse acordo é furado, pode acontecer um
desentendimento entre atleta e equipe. Como foi o caso de um carro que
acompanhava três atletas. Um dos corredores foi sensivelmente mais veloz do que
os outros e passou grande tempo correndo sem apoio. Ao passar por ele,
perguntamos se estava tudo bem e se precisava de alguma coisa, como fazíamos
com todos. Sabendo que éramos amigos dos integrantes da equipe de apoio dele,
respondeu em tom de desespero:
67

– Eles falaram que me deixariam sozinho dez quilômetros! Já tem vinte e


cinco e eles não aparecem. Tudo meu está no carro, não tem nada aqui!
Enchemos a garrafa dele com água mineral e voltamos até encontrar a equipe
de apoio dele, que estava bastante confusa com a distância que os atletas que
apoiavam abriram entre si. Pegamos alguns sachês de gel de carboidrato e levamos
até o atleta. Ainda que não compartilhem do caráter liminoide da prova, observando
hierarquias entre atletas e entre as próprias equipes, os apoios encontram-se em um
estado de communitas, em que o compartilhamento dos recursos materiais e sociais
acontece de maneira intensa. Os apoios cumprem importante papel no estímulo e
incentivo à motivação do atleta de permanecer em prova.
O PC 65 localizava-se em uma cidade muito pequena, montado em um
galpão que deveria estar fechado há mais de um ano, dada a quantidade de poeira
que se acumulava sobre o chão. Do outro lado da rua, ficava o clube atlético da
cidade, antigo e pouco conservado, era formado por uma quadra polivalente coberta,
com vestiários e banheiros, que estava aberta para utilização de atletas e apoios.
Ambos os lados da pequena rua de paralelepípedos eram preenchidos por carros
estacionados, veículos de equipes de apoio, da organização do evento e o nosso
carro. Sentei no meio fio em frente ao galpão, entre o carro de um ultramaratonista
que estava acompanhando alguns corredores como apoio e o carro de uma equipe
de apoio formada por duas mulheres, uma de cerca de 40 anos e outra aparentando
70. Um atleta que corria a prova de 135Km chegou nervoso e falou com as mulheres
– esposa e mãe dele – que estava com muita dor nos joelhos:
– Me dá um spray pro joelho! Comecei a mancar! Tô andando, cara! Me dá
um spray!
Ele era da equipe do ultramaratonista, que se aproximou com muita
tranquilidade:
– Calma, Felipão.
Sem dar muita importância à dor e à disfuncionalidade alarmadas, perguntou
se ele já havia se alimentado. À resposta negativa, orienta:
– O que você precisa é comer comida, não pode ficar sem comer, só à base
de gel. Não pode ficar até essa hora sem comer, nem que você vá comendo
caminhando, precisa almoçar. Agora se acalma, tira essa mochila pra aliviar a
lombar.
68

Felipão, ainda muito nervoso, pediu para sentar. Sua mãe prontamente tirou
um banquinho da mala do carro e o armou na calçada. Felipão se sentou e recebeu
um prato de comida do colega, que se agachou para olhar suas pernas:
– Deixa ver esse joelho – enquanto palpava a articulação sem demonstrar
muita importância, muda de assunto; tem muita pedrinha no caminho, elas entram
no tênis e machucam os pés, isso é que é incômodo. Você não quer trocar de meia?
Felipão diz que não, mas descalça os tênis para tirar as pedras, pedindo
Hipoglós à sua esposa. O treinador se levanta e vai falar com outros corredores.
Outro corredor observa Felipão passando a pomada nos pés e senta no meio
fio, ao lado dele, para falar sobre bolhas, tira o tênis, mostra o pé. Eles começam a
conversar sobre os tipos de tênis bons para a prova.
As dores sofridas por Felipão foram ignoradas pelo colega, como uma forma
de demonstrar que elas não importavam e que não eram dignas de atenção. “Se eu
desse trela, ele ia pirar nesse joelho”, me disse o apoio. O aprendizado das
maneiras de doer em uma prova acontece principalmente na relação com
ultramaratonistas mais experientes. As práticas e saberes são transmitidas também
pelos silêncios. Da mesma forma que os fisiculturistas estudados por Sabino e Luz
(2014), os ultramaratonistas desenvolvem sua percepção de estar-em-dor a partir de
um saber corporal e prático adquirido através de conversas entre si e da observação
da performance social dos mais antigos ou bem-sucedidos. A legitimidade de doer é
definida pelo grupo social.
Conversava com o ultramaratonista/apoio quando Arthur se aproximou. Ao
olhar para ele, vi Carlinha logo atrás conversando com a equipe responsável por
aquele PC.
– Não deu pra ela, Isabel. Ela não está bem, chorou muito quando me viu e
disse que não quer mais correr hoje.
– Tudo bem. Se vocês quiserem voltar pro Rio, eu me viro aqui. – respondi.
Caminhando em nossa direção, já próxima de nós, ela responde:
– Não. Tá tudo bem, eu só não consegui entrar na prova, estava me irritando.
O corpo está ótimo, é a cabeça mesmo que não está bem. Só preciso tomar um
banho e a gente segue com você.
Ela não demonstrava nenhum abatimento pela desistência. Reconhecida por
todos como uma grande ultramaratonista, não havia qualquer insegurança sobre a
69

possibilidade de ser levantada alguma dúvida a respeito de sua mente forte. Sua
identidade como ultramaratonista não estava em jogo.
No caminho até Aiuruoca, onde estava instalado o PC 95, Carlinha explicou
algumas vezes para nós e para as pessoas que se surpreendiam ao vê-la dentro do
carro – sempre que parávamos e perguntávamos se precisavam de alguma ajuda –,
que o problema não foi o corpo, mas sim a cabeça. Falando com um
ultramaratonista, que desistira de uma prova no ano anterior, ela justificou da
mesma forma sua desistência:
– Não é o corpo não, é a cabeça.
– É isso aí, nem todo dia é todo dia. Parabéns!
E voltando-se para nós, dentro do carro:
– Ele entende o que é porque ele já desistiu algumas vezes... e foi por coisa
física, imagina quando é da alma. Quisera eu que fosse algo físico.
Carlinha aqui justifica sua desistência não como proveniente do “físico”, do
“corpo”, nem da “cabeça” ou da “mente”, ela usa o termo “alma”, como uma
dimensão mais profunda do que a própria mente. Na maior parte dos momentos, ela
prefere usar o termo “cabeça” e raras vezes “mente”. Conversando comigo durante a
prova, ela explicou a diferença dos termos naquele caso:
– É porque a alma é muito de dentro... mas no fim tudo fica meio junto. A
mente, a cabeça, a alma... Mas a alma que dói, quando a alma dói, a mente não
obedece, a cabeça fica ruim. Mas agora, ajudando os outros, tá aliviando a cabeça,
a alma vai sempre sofrer isso que aconteceu.
Ajudar os outros foi a maneira que Carlinha encontrou para continuar, de
alguma forma, participando da prova. Durante o percurso de carro e nas paradas
nos postos de controle, era visível sua gana de apoiar outros atletas. Ainda no PC
65, esperávamos ela voltar do banho. Veio em nossa direção, caminhando com
rapidez, deixou a bolsa no carro e passou a remexer outras bolsas. Perguntamos o
que acontecia.
– Um rapaz ali no vestiário está super desidratado. Chegou todo coberto de
sal e nem percebeu que tava desidratado. Vou levar uns “sorinhos” para ele tomar,
senão ele não vai conseguir terminar a prova.
“Sorinhos” são pequenas ampolas de soro indicado para reidratação de
pacientes diarreicos, utilizados por muitos ultramaratonistas para evitar a
desidratação. E, ao levar os “sorinhos” para o ultra desidratado, ela não apenas o
70

ajudou a permanecer na prova, mas também o ensinou sobre os sintomas da


desidratação e maneiras de evita-la. O estado de communitas faz corriqueira a
doação de materiais entre os participantes, seja atletas ou apoios, da mesma forma
que proporciona a intensa e contínua atmosfera de aprendizado-ensino, como surge
na fala de Pedro em entrevista:
– Eu acho um ambiente muito solidário, de ajuda mútua. Por isso que eu me
identifiquei, eu nunca pertenci a grupo nenhum, sempre me senti meio peixe fora
d’água nos ambientes, aí na ultra... claro, uma ou outra exceção porque, somos
humanos, sempre tem um outro que destoa, mas em geral... considero que me
encontrei nesse ambiente, muita solidariedade, muita ajuda mútua. Porque quem
vai fazer isso é mais desprendido de mesquinhez, de coisinhas... não é que é melhor
do que os outros... mas acho que estão ali, já passaram por isso, o cara mais
experiente passa pro mais novo. Até eu nessa última prova, num PC o cara me
chamou pelo nome. Eu não conhecia o cara, mas ele pediu pra correr comigo e ele
me conhecia, eu não conhecia ele. E ele era iniciante, primeira prova de mais de
cem, então você passa umas dicas e tal, aprende também com os iniciantes... tô
sempre aprendendo. Então, acho que no geral as pessoas são mais desprendidas e
solidárias.
O espaço de communitas marca ultramaratonistas, apoios e organizadores, já
o espaço liminoide é observado exclusivamente entre atletas. A solidariedade e a
suspenção dos papeis sociais anteriores à prova não apaga o traço de
competitividade que alguns levam consigo, como pode ser observado no posto de
controle do Km 95.
O PC 95 fica localizado na pequena cidade de Aiuruoca e tem seu movimento
no período da noite e madrugada, quando as temperaturas caem bruscamente, em
contraste com o calor que se passa durante o dia. O posto de controle é em frente à
biblioteca da cidade, onde a organização guarda e prepara os alimentos oferecidos
aos atletas: café, copos de macarrão instantâneo, pedaços de bolo e sanduíches de
queijo ficam dispostos sobre duas mesas na calçada, encostadas na parede externa
da biblioteca. Outras duas mesas ficam dispostas na rua, também em frente à
biblioteca. Sobre elas ficam os troféus dos que finalizam a prova de 95Km. No posto
de controle ficava Frederico, um rapaz de vinte e poucos anos contratado pela
organização, Juliana e Washington.
71

“Atleta chegando!”, “Ó o atleta! Atletaaa!”, gritavam eles quando avistavam


algum participante chegando ao posto. Corriam para anotar seu número de peito e
hora de chegada. A hora de saída daqueles que vão correr mais de 95Km também é
registrada.
Para os que finalizavam a corrida ali, muitas felicitações e entusiasmo. Os
primeiros colocados sempre perguntavam o tempo final ou se chegara alguém na
frente. O mesmo acontecia com os que prosseguiriam. Essa competição entre os
primeiros colocados é sempre velada e encoberta com o discurso predominante de
que só se almeja completar a prova.
– Quantos dos cento e trinta e cinco já passaram? – Perguntou um atleta
assim que chegou.
– Quatro – responde Frederico, e completando – Mas dois eram survivor.
– Não, três eram survivor. Tenho certeza, eram três – Respondeu o ateta.
A equipe da organização, eu e Carlinha fizemos as contas de quem já havia
passado, custando a recordar quem seria esse terceiro. Quando lembramos, o atleta
tranquilizou sua expressão e disse, como se não se interessasse:
– Ah, mas não importa, o que importa é chegar.
Olho para a Carlinha e rio. Já entendendo do que achava graça, ela me disse:
– A galera fala que só quer completar, mas tá todo mundo fazendo conta!
[risos] Mas, olha, essa coisa da competição...não é porque a gente quer, é uma
coisa que vem, sobe assim... [risos] A gente nem quer, mas vem.
Outra atleta, inscrita na categoria de 135Km, chega. Era sua primeira vez
nessa prova, mas ela, Roberta, é conhecida por sua velocidade. Ao chegar, abre um
largo sorriso:
– É muito bom ultra, né? A gente quebra, a gente chora, mas é muito bom. Eu
nasci pra isso!
Já sentada em uma cadeira de plástico, comendo um macarrão instantâneo,
Roberta se preocupava com a serra que iria atravessar em alguns instantes.
– Quanto tempo é até o cento e trinta e cinco? Dez horas?
– De oito a nove, não dá pra ir correndo. – Respondeu Carlinha.
– É, não quero me arrepender, se eu fizer em dez, fecho a prova em vinte e
uma horas. Não quero correr, quero fechar a prova. – Engoliu uma garfada e
continuou – Quantas mulheres de cento e trinta e cinco já passaram?
– Olha aí, Isabel! – Gargalhava Carlinha.
72

Roberta, percebendo a incoerência do que acabara de dizer, retrucou:


– Não, não vou acelerar pra chegar lá, só queria saber.
Pronta para seguir caminho, esperava um outro atleta, com quem vinha
correndo desde os 65Km, terminar de comer para atravessarem a serra juntos.
A busca pela superação dos próprios limites parece ter levado à preferência
da categoria “prova” à “competição” para designar os eventos de ultramaratona.
“Competição” é um termo que restringe a disputa de modo inter participantes,
enquanto “prova” tem um sentido mais abrangente, abarcando a competição entre
participantes e também “intra” participantes, dando conta dos que buscam competir
consigo mesmos, como é caso de João: “Meu objetivo é completar, então meu
desafio comigo mesmo é aumentar distância ou dificuldade. ”
A competitividade não se apaga nesse ambiente solidário. Apesar de muitos
atletas manterem velado seu espírito competitivo, outros falam abertamente sobre
ele. É o caso de Carlinha, que afirmou em entrevista:
– Antigamente eu tinha vergonha de dizer que eu sou competitiva, mas hoje...
você não pode é ser desleal, não pode é passar a perna no outro, mas não é ruim
você ser competitivo. Acho que você passa por momentos, você passa por vários
momentos numa prova, às vezes você começa eufórico e depois a euforia vai
diminuindo. Mas você tem que se manter motivado. O que me mantem motivada
acho que é a competitividade. Eu posso melhorar, posso diminuir o tempo, vou
tentar passar aquele... acho que isso é uma forma de me motivar.
Márcio Villar posiciona-se de maneira semelhante, mas faz uma distinção
entre os poucos que disputam as primeiras colocações dos que têm tempos mais
comuns:
– Vamos botar assim, tem uns cinco ou seis na ponta, pra ganhar, e os que
vão pra completar e se superar pessoalmente. E como as ultras são geralmente as
mesmas pessoas que fazem, ficou todo mundo amigo, virou uma família.
Logicamente todo lugar tem sua laranja podre, mas a maioria ali ajudando o outro
incentivando... porque é legal ver o outro se superar. Mas os que estão brigando na
ponta estão sempre meio que competindo.
Seja com a competitividade vista como saudável ou a vista como maléfica, a
característica mais reputada das ultramaratonas, em comparação com outros
esportes de desgaste físico extremo e que celebram a força da mente, são os laços
de solidariedade, de ajuda mútua e senso de coletividade gerados entre os atletas.
73

O Km 95 é um ponto da prova em que muitos atletas, talvez a maioria deles,


sentem cansaço e dor. A grande diferença de temperatura, o cair da noite e a
própria distância são as causas atribuídas por eles para o desafio de prosseguir a
partir desse ponto.
– E aí, Messias? Cem por cento?
– Cem por cento nada! Me faltam as pernas! Olha ali, o Marcelino já está com
um torsilax na mão.
Marcelino segurava o blister em uma mão e buscava um copo de isotônico na
mesa do PC. O uso de substâncias analgésicas é comum e público entre
ultramaratonistas e não surge como uma oposição à força mental. Ao contrário, é o
conhecimento do próprio funcionamento em uma prova somado a conhecimentos
dos efeitos das substâncias que propiciarão seu bom uso. Em entrevista, João falou
sobre o uso de medicamentos:
– Constantemente nas ultras eu alterno o Alginac com o Advil. Eu alterno
orientado pelo médico, apesar de ter trabalhado em farmácia. Justamente por esse
conhecimento é que eu não me auto medico porque você tomar um Alginac porque
você tem uma dor é uma coisa, você tomar um Alginac porque teu corpo tá num
processo de desgaste muito profundo, é outra coisa. Por isso, converso com o
médico. Faço uso dos aminoácidos também, Fortein. Antes da largada, às vezes um
dia antes, já começo a fazer uso de 8 em 8 horas.
No discurso dos ultras não existe uma diferenciação marcada entre
substâncias analgésicas, suplementos alimentares e alimentos, que se tornam
também substâncias à medida que são compreendidos como carboidratos, sal e
proteína, entre outros. No PC 135, sentada no gramado com algumas pessoas,
presenciei o seguinte diálogo:
– Imagina fumar maconha e correr? – Falava uma mulher de cerca de trinta
anos, que fazia apoio de algum atleta.
– Eu fumo. – Respondeu outra, que havia corrido 135Km – Tem vez que eu
fico muito enjoada e nada desce, nem comida, nem líquido. Aí só uma bola ajuda.
Dois concordaram com a cabeça, outros quatro pareciam não prestar atenção
ao assunto e um demonstrou espanto exclamando “Nossa! Deus me livre! ”.
A polêmica sobre o uso da maconha em nossa sociedade é transposta para
cá, sendo mais ou menos aceita de acordo com a visão de cada um sobre o uso
dessa substância em si e não por se tratar de seu uso em um ambiente esportivo. O
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uso descrito pela atleta é terapêutico e não recreativo, usa a maconha para se livrar
dos enjoos, da mesma forma que outros atletas lançam mão de outras substâncias
para isso, como alimentos salgados, por exemplo. De todo modo, a administração
dessas substâncias está ligada ao conhecimento das necessidades do próprio corpo
e dos saberes médicos que as envolvem.
O posto de controle dos 95Km é um ponto onde muitos atletas parecem
precisar não apenas do uso de substâncias, mas também de grande incentivo para
prosseguir. Josemar sentou-se em um dos bancos de plástico, próximo à mesa de
comidas, tirou os tênis e olhou para os próprios pés como quem não sabe o que
fazer. Perguntei se estava tudo bem, ele respondeu que não sabia se continuaria:
– Olha esses pés. Como vou continuar até duzentos e trinta e cinco assim?
– Vai continuar se tratar essas bolhas. Tem jeito ainda. Você tem linha e
agulha? Te ajudo a drenar. – Existe uma técnica comumente utilizada para
drenagem de bolhas, que necessita de agulha e linha de costura.
Ele fez que não com a cabeça, chamei a Carlinha para ajudar. Ela passava
pomadas em seus pés e eu ajudava a colocar absorventes femininos sob seus pés,
dentro das meias, técnica usada por muitos atletas para evitar o excesso de
umidade dentro dos calçados.
– Agora você vai só andar. Nessa serra não dá para correr, né Carlinha?
– É, não dá. Vai com calma. Chega ali em cima, toma um caldo, mas não fica
muito tempo, desce logo... aquela fogueira hipnotiza a gente e aquele calor do fogão
à lenha que tem no PC lá de cima... a gente fica molinho demais. Desistir não é
problema. Ganhei essa prova duas vezes e desisti nesse ano. Não foi corpo, foi
minha cabeça que não tá legal, mas desisti. Então esse não é problema. Mas você,
cara você pode terminar a prova, esse pé aqui é só detalhe. Vai passar e você vai
ficar muito feliz de ter terminado. Na chegada vai me falar isso!
Josemar estava bastante apreensivo. Mas após cerca de 40 minutos de muita
conversa e com os pés tratados, ele seguiu caminho.
Outro atleta, que correria 135Km, chegou querendo desistir. Pediu a
Frederico, membro da organização responsável por aquele posto de controle, que
anotasse sua desistência. Frederico perguntou o porquê, ele falou do cansaço nos
pés.
– Não faz isso. Sobe lá, no alto da serra tem um PC muito bom. Lá você toma
um banho, descansa lá em cima...
75

– A gente cuida do seu pé lá – completou um colega que havia chegado com


ele.
– Não sei...
– Lá você vai tomar um banho esquentada por fogão à lenha! – Carlinha se
intrometeu na conversa.
Após mais um pouco de insistência do colega, de Frederico e de Carlinha, ele
se convenceu e permaneceu na corrida. Frederico sempre repetia após um processo
de convencimento de sucesso: “a gente não estimula desistência. Pelo contrário”.
Em pelo menos dois casos, vi atletas ficarem balançados, mas optarem afinal
por desistir da prova. Um deles me falou:
– É ruim, mas acontece. Comecei a sentir essa dor nos trinta, nos setenta já
estava muito ruim, nem sei como cheguei até aqui. Mas ano que vem tem mais.
Uma atleta, que corria com colegas de equipe de corrida, chegou reclamando
de muita dor nos pés. Um dos seus colegas, disse sem dar muita importância:
– Eu tô com dor desde os 30, é assim mesmo... tem que superar, a gente
corre no pelo.
Foi Carlinha quem tentou convencê-la a continuar e lhe ensinou técnicas para
drenar as bolhas. Seu treinador, que estava presente, a chamou para uma conversa
só com ele – sem a presença dos que torciam para que ela seguisse – e falou sobre
o próximo trecho, que seria composto apenas por subidas e descidas, que ela usaria
muito as partes dos pés que estavam doendo e que, por isso, ele não recomendava
que ela prosseguisse. Ela começou a chorar e o treinador se afastou. Carlinha fica
muito incomodada com a atitude do treinador, reclama que ele jamais poderia ter
falado para ela desistir quando daria para continuar se tratasse bem dos pés, que na
última prova ele chegou todo arrebentado e ela só não chegou na frente dele porque
se perdeu. Repetia que ele jamais poderia fazer aquilo, que se aquela corredora
fosse desistir, deveria ser decisão dela, não pressão do treinador. Pedi a Carlinha
que não falasse mais nada com a atleta, para evitar conflitos com o treinador. Além
do mais, ela já havia falado tudo o que sabia para a moça e havia outras pessoas
para ajudar.
Naquele momento percebi que Carlinha, ainda que estivesse funcionando
naquele contexto como uma espécie de apoio, agia como atleta em prova, não como
apoio. Não que ela não estivesse auxiliando e apoiando os atletas que chegavam no
posto precisando de ajuda, ela era certamente a pessoa mais empolgada e alegre
76

nesse exercício. Sua visão das relações entre as pessoas, no entanto, era a visão
de um atleta em prova, que diante do período liminoide em que está inserido, vê
suspensas as hierarquias entre seus pares. Isso não acontece entre os apoios,
apesar de todos dividirem o espírito de communitas, de forte cooperação mútua,
ainda há marcação de hierarquias. Dessa forma, naquele momento eu observava
que o apoio/treinador da candidata à desistência tinha uma relação mais próxima e
importante com ela do que a Carlinha, ainda que fosse uma atleta bastante
conhecida. Ultrapassar esses limites poderia causar um imbróglio e levar a um
conflito entre eles.
A suspensão das hierarquias entre os ultramaratonistas pode ser observada
na chegada de Osvaldo àquele posto de controle. Mesmo que abalado com sua
performance nas duas últimas provas que participara, ele continuava sendo visto
pelos demais atletas como um fenômeno do esporte. Osvaldo chegou tranquilo, veio
com outros dois atletas mais jovens. Um apoio brincou com ele:
– Osvaldo, cê tá cobrando consultoria dessa molecada, né?
– Ah, eu tenho que pegar a experiência com esse mestre! – Disse um dos
meninos.
Osvaldo riu e continuou a comer. Perguntei se estava tudo bem com ele.
– Tá cem por cento, Osvaldo?
– Cem por cento não, noventa. Mas chego lá.
Ao avistar outros corredores deixarem o PC, passou a comer mais rápido.
Carlinha chegou perto dele e falou baixo:
– Não entra nessa. Faz a sua prova, não a prova dos outros.
Balançando a cabeça em sinal de positivo, voltou a comer calmamente.
O conselho de Carlinha foi na intenção de amenizar o espírito competitivo de
Osvaldo. Momentos antes da largada, outros ultramaratonistas de ponta, como ele,
falavam sobre as duas provas que não havia completado e recomendavam que ele
não pensasse em recorde ou pódio nessa prova, mas sim que se concentrasse em
completar a prova porque “é muita pressão na mente querer colocação, é melhor
voltar às origens e só pensar em completar, a mente fica mais tranquila”; “tem que
curtir a prova, fazer a sua prova, ficar na sua estratégia, aí você não quebra”.
Observa-se aqui a ideia de que a competitividade em excesso pode desvirtuá-lo do
caminho do ultramaratonista, no sentido de tomar-lhe a virtude de um
ultramaratonista, a busca pela superação dos próprios limites através de sua “mente
77

forte”. Vale notar que em momento algum a identidade de Osvaldo é posta em


xeque.
A conversa entre Carlinha e Osvaldo, comum a tantas conversas já descritas
aqui, em que um incentiva o outro a seguir em frente, o engajamento para que o
outro siga fazendo seus tempos extraordinários ou que vá além do que acredita que
consegue, como o diálogo com Leonardo e Adilson um dia antes da largada. Isso
tudo mostra como a capacidade de resistência do outro é importante para si, como
se a força mental de um chancelasse a sua própria força mental e a de todos os
outros.
Houve também os que não precisavam de ajuda alguma no PC 95, aqueles
que chegavam comiam e continuavam, mesmo já chegando a madrugada.
– E aí, Max? Esse ano até o fim, né? – Perguntou entusiasmadamente
Juliana a um atleta que havia desistido da prova no ano anterior.
– Claro! – Respondeu Max e seguiu em direção à serra.
Ao lado da mesa com biscoitos e isotônicos, um ultramaratonista carregava
em sua mochila uma folha tamanho A4, com a fotografia antiga de mulher e os
dizeres “a vida é sofrimento, mas não podemos desistir”. A mulher da foto era a sua
mãe.
– Eu tinha desistido dessa prova porque minha mãe estava doente e eu tinha
que ter os cuidados com ela, não tinha tempo de treinar. Quando disse que tinha
desistido por falta de tempo pra treinar, ela me disse isso, que a vida é sofrimento,
mas não podemos desistir. Umas semanas depois ela morreu, faltava um mês pra
prova, o tempo q eu precisava pra treinar pra prova. Aí estou vindo fazer. Vou fazer
em homenagem a ela.
Quando ele foi embora, Carlinha comentou:
– Esse aí não desiste, pode sofrer que não desiste!
Ela queria dizer não apenas que a motivação dele era maior do que qualquer
infortúnio que a prova poderia apresentar-lhe, mas também que ele estava disposto
a superar qualquer dor para terminar aquela prova. Existe uma espécie de cota de
sofrimento que os ultramaratonistas se programam para sentir. Extrapolá-la pode
levar à desistência. Irritada por se sentir pressionada a acompanhar um amigo mais
veloz do que ela, uma atleta justificou a decisão de seguir sem ele:
– Eu não vim aqui para sofrer! Quer dizer, eu vim sofrer, claro, mas eu sofro o
que vim sofrer não o que o outro veio sofrer.
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Com o objetivo inicial de acompanhar aquele posto de controle até seu


fechamento, eu também flutuei entre o persistir e desistir. Algumas vezes entrava no
carro, em busca de me proteger dos 3°C que a madrugada trazia e descansar, mas
o frio me impedia de dormir, outras vezes enfrentava permanecia do lado de fora
observando e participando, mas em muitos momentos apenas tentando me sentir
menos gelada e cansada.
Em um dos momentos que saí do carro, encontrei Leonardo , o ultra paraense
que Adilso tentou convencer a se tornar um “homem de três dígitos”. Ele já estava
esperando a van chegar, no bar em frente ao PC, enrolado em uma manta térmica,
com mais duas dezenas de atletas na mesma situação.
– Ei, Leonardo! Fez seus noventa e cinco?
– Noventa e cinco quilômetros! Não disse que eu completaria?
Quando o sábado amanheceu, já sem nenhum vestígio da tenda, mesas e da
movimentação do posto de controle da madrugada anterior, partimos para o PC 135.
Esse posto de controle fica em uma venda em frente a um rio, bem próximo
de uma cachoeira. A venda tem banheiro, chuveiro e um quarto com duas beliches,
todos podem ser usados mediante pagamento. Em frente à venda fica acesa uma
fogueira em volta de onde atletas, apoio e organização costumam se sentar para se
aquecer. Fora da venda, o espaço é amplo, gramado e há sempre muitos carros
parados.
Não é comum haver muitas desistências nesse ponto da prova, isso costuma
ser atribuído ao nascer do dia, os atletas costumam passar por ali no mínimo ao
amanhecer. Mas ao descer do carro, avistei Marcelino deitado no gramado e rosto
coberto por uma camisa. Ele não deveria estar ali àquela hora, dado o momento em
que saiu de Aiuruoca.
– Tudo bem, Marcelino?
– Não, minha amiga. – Me respondeu sem tirar a camisa do rosto – Estou
sem enxergar nada. Tomei um tombo ali no mata-burro e decidi voltar, desisti da
prova.
– Mas você já falou ali que desistiu? Porque... lembra naquela outra prova?
Eu pedi pra você descansar um pouco, foram só duas horas de sono e depois você
estava pronto pra completar a prova! – Referia-me a uma prova em cuja organização
trabalhei como fisioterapeuta e precisei força-lo a parar para dormir por algum tempo
para que se recuperasse antes de seguir caminho.
79

– É, minha amiga, aquilo foi bom. Mas que horas são?


– Nove e dezesseis.
– Se eu continuar... bota aí onze e dezesseis... fica ruim, o tempo fica
apertado. Corrida não é pra ser sofrida, é pra fluir.
Marcelino não estava disposto a ultrapassar a cota de sofrimento a que havia
se proposto. Além disso, sua desistência surgiu de um impedimento do corpo, aqui o
limite do corpo é compreendido como maior do que sua já incontestável “mente
forte”. Apesar da mente ser compreendida como superior ao corpo, não existe
conflito quando ocorre a inversão dessa hierarquia em uma prova. Ela é encarada
sem alardes, principalmente entre os ultramaratonistas estabelecidos.
Da mesma forma Carlinha não teve sua força mental questionada pela sua
desistência. Ainda que com motivações opostas para abdicar da prova, os dois
ocupavam-se de destacar suas questões como plausíveis. Carlinha afirmava a todos
que fora a falta de prazer que a tirara da prova, “a cabeça não está boa”, “não entrei
na prova”, “quem me dera fosse o corpo”. Marcelino, ao contrário, falava da limitação
do corpo “não dava pra continuar sem ver nada”, “foi meus olhos, ninguém
continuaria”. Os dois, entretanto, exaltavam a capacidade de suas “pernas” e ‘fôlego”
para continuar. Apesar de suas identidades de ultramaratonistas já firmemente
estabelecidas, é necessário dizer que terminariam a prova, não fosse um infortúnio
maior do que qualquer outro, absolutamente impeditivo para sua continuidade
naquela ultramaratona, dessa maneira, as motivações para suas desistências não
são desacreditadas por ninguém. A tentativa de convencimento a um estabelecido é
menos intensa e insistente do que a um neófito, como podemos comparar com os
encontros descritos no PC 95. Afinal, um “ultra de verdade” sabe exatamente a hora
de parar.
Saímos do PC 135 em direção ao PC 210. A ideia inicial era não parar ali,
mas sim seguir direto para a linha de chegada. Mas decidimos usar a base do posto
de controle do quilômetro 210 para cozinharmos o almoço.
O caminho de estradas de terra e a paisagem rural que essa parte da Serra
da Mantiqueira torna a viagem muito agradável. O posto de controle onde paramos
se localizava em um bar na beira da rodovia. O bar é simples e tem uma casa nos
fundos de sua construção. Atrás, um quintal com muitas árvores frutíferas. Esse é
um dos poucos trechos em que os atletas cruzam alguma rodovia. Não é linha de
chegada de nenhuma prova, como os que havia parado anteriormente, é um ponto
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onde os atletas não permanecem muito tempo e costuma demorar entre a


passagem de um e outro atleta – em uma prova de longa distância, é comum haver
horas de distância entre um atleta e outro. Assim, o PC 210 possuía um ritmo
sensivelmente mais lento do que os anteriores. Eu e Arthur estávamos bastante
cansados, a ideia de que seria mais suave a experiência de não ter nenhum atleta
para seguir e cuidar de toda a sua prova não se realizou, a impressão que tivemos
durante todo o processo é que rodar pelo percurso da prova sem a tensão de fazer
um apoio foi mais cansativo. Em contraste, Carlinha estava muito alegre e entretida
em participar da prova de outra forma:
– É muito bom, me dá outra visão. Quando a gente faz a prova é outra visão,
a gente só pensa no lado do atleta e do nosso apoio... quando você está na
organização é o coletivo todo, tem todo o pessoal que trabalha aqui nos PC’s e a
gente nem pensa neles normalmente... Está me fazendo muito melhor estar na
prova assim, ajudando os outros. A gente que chega na frente não tem ideia do que
passa o pessoal que chega depois, eles sofrem muito! Então quando ele, seja que tá
na frente ou que tá atrás, pergunta quanto falta pra terminar, eu entendo o
sofrimento dele. Mas sei que ele vai terminar, que ele quer sofrer, ele vai terminar.
Semanas depois, em entrevista, Carlinha falou sobre a experiência de fazer a
prova como apoio amenizou o sofrimento que sentia pela perda do sobrinho e como
a experiência a transformou de maneira que ela sente como se tivesse corrido a
prova:
– A corrida pra mim sempre me faz muito bem, só que eu não estava me
sentindo bem correndo, não tava sentindo dor, na verdade eu não tava sentindo
nada. Uma coisa, sabe, uma coisa que nunca senti foi desconforto de as pessoas
me incomodando, o papo tava me incomodando. Aquilo tava me incomodando
demais e me incomodando essa situação de ficar incomodada...porque o negócio
não tava me fazendo bem. Eu poderia continuar, tava dentro de um tempo ótimo pra
mim, mas não tava me fazendo bem. E foi por isso que tomei a decisão, e foi a
melhor decisão porque quando eu parei, em poder ajudar um pouquinho algumas
pessoas. Me fez muito melhor porque me fez esquecer... assim não dá pra
esquecer, mas naquele momento me fez esquecer. Então pra mim naquele
momento foi muito melhor eu ter ficado nos PCs e ser útil do que correr mesmo a
corrida sendo pra mim o que me acalma, o que me transforma, me ajuda. Mas ali eu
não esquecia que tava correndo, não cheguei no momento do prazer. Quer dizer, eu
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ia continuar ruim... não tinha festa, eu tava muito desconfortável, não fisicamente,
mas mentalmente desconfortável. Naquela serra.... eu não queria ficar sozinha, e a
noite é um momento que você tem que ficar bem, não é um problema pra mim correr
a noite, eu curto, mas tava me atormentando pensar em ficar sozinha a noite
pensando na minha tristeza... Na verdade, eu não tava sentindo nada, nem dor. Às
vezes você sente dor e vai passar outra coisa, você esquece as outras coisas. Nem
dor eu tava sentindo. De repente se eu tivesse sentindo dor, eu ia esquecer a dor da
emoção – respirou fundo e, com os olhos cheios d’água, continuou – e eu não tava
sentindo nada. A alma tava triste... Mas eu sinto que eu participei da prova, mas de
uma outra forma. Eu vi um outro lado, das pessoas que organizam e que tem que
ficar motivado pra não desmotivar as pessoas...
Saindo do PC 210, seguimos viagem rumo ao ponto final, a linha de chegada.
Conforme a noite chegava, era mais comum ver mulheres correndo juntas. Comentei
isso no carro e Carlinha concordou:
– As mulheres à noite sempre buscam uma companhia. Por mais forte que
seja, sempre busca alguém, nem que seja outra mulher.
Em entrevistas a questão da mulher também surgiu, mas espontaneamente.
Em ultramaratonas de trilha as mulheres correm com apoio ou, quando na condição
de survivor, buscam estar sempre acompanhadas por outras pessoas, não somente
pelos motivos que os homens também optam por companhia, como a distração das
conversas, a ajuda mútua e o inventivo a continuar, mas principalmente pelo medo
da violência sexual a que se sentem expostas ao percorrerem lugares ermos
sozinhas.
Já se marcava quase 40 horas de prova quando passamos por um atleta
trotando ao lado de um cachorro e de um apoio, o carro do apoio estacionado cerca
de 500m adiante, o ultra falava ao telefone emocionado:
– Filha, o papai tá correndo com um cachorro, filha. Se ele terminar a prova
com o papai, papai leva ele pra casa. Olha, papai tá chegando quase, falta pouco,
papai vai levar o troféu pra casa.
Falar ou pensar na família é um dos recursos de que ultramaratonistas
lançam mão com o objetivo de superar um momento de intenso sofrimento e de
grande vontade de desistência da prova. O compromisso com os filhos,
companheiro ou outros familiares é importante para que reafirmem o compromisso
de finalizar a prova. Da mesma maneira, os que vinculam suas provas a atividades
82

filantrópicas pensam e falam dos beneficiários de suas filantropias como forma de


reforçarem o compromisso que haviam firmado consigo anteriormente.
Mais adiante, avistamos um carro de apoio parado na beira da pequena
estrada de terra. Um atleta deitado sobre uma canga estendida no chão, enquanto
seu apoio o alongava. Diminuímos a velocidade e perguntei se estava tudo bem.
– Tudo. Só dando uma esticada na carcaça dele pra aguentar a última
serrinha.
O alongamento é uma das técnicas de que alguns atletas lançam mão para
diminuir ou evitar a sensação dolorosa, além das substâncias que utilizam sob a
forma de medicamentos, suplementos e/ou alimentos. Essas técnicas mostram que
a dimensão física é bastante respeitada pelos ultramaratonistas, que se utilizam de
conceitos de estudos fisiológicos para definir as estratégias que utilizarão. O
sucesso dessas estratégias não depende somente do domínio de saberes de
estudos da saúde, mas principalmente dos saberes práticos resultantes
conhecimento do próprio corpo, do entendimento de quais momentos requerem
quais técnicas. Os saberes práticos muitas vezes predominam sobre os saberes
médicos, de modo que não é raro que ultramaratonistas fujam do contato com
equipes de saúde em uma prova, não mostrando lesões em seus pés ou deixando
de relatar mal-estares como enjoos e tonturas. Os saberes práticos pertencem aos
domínios da mente, um “mente forte” consegue perceber seu corpo e o que ele
necessita. De tal forma que quando abdica de uma prova é porque não havia outra
alternativa a seguir e permanecer representaria um risco a si mesmo, ao contrário
dos corredores que ainda não são legitimados como ultramaratonistas, cuja “cabeça”
é posta em xeque até que tenha passado por provas suficientes para provar sua
força.
Uma mente forte controla o corpo e é capaz de superar a dor que uma
ultramaratona faz surgir. O corpo então diferencia-se da mente ao mesmo tempo em
que pertence aos seus domínios, há momentos, entretanto, em que o corpo
estabelece os limites para o ultramaratonista. Dado que a hierarquia advinda das
classificações é situacional, permite que ocorra inversões como a descrita.
Ainda que não apague toda a lógica competitiva, a etapa liminoide promove a
suspensão momentânea dos papéis sociais e exacerba a cooperação entre os
participantes na execução da prova, o que abrange principalmente o incentivo à
força mental de si e do outro. O objetivo maior é a linha de chegada, momento em
83

que marca o início da etapa de agregação, quando os ultramaratonistas retornam


renovados a suas rotinas, a seus papeis sociais.

3.3 Etapa de agregação

É interessante notar que os que terminam a prova dos 135 e dos 235Km não
demonstram tanto entusiasmo quanto os que finalizam suas corridas nos 65 ou
95Km. Recebem seus troféus e as informações sobre tempo e colocação quietos,
muitas vezes reclamam justamente do tempo, da colocação ou de algum fato que
passaram na prova. A alegria por terem completado a prova só surge depois de
algumas horas.
A chegada era fisicamente no mesmo local de onde havia ocorrido, há 48
horas antes, a largada. Na linha de chegada fica-se muito tempo esperando, há uma
diferença grande de tempo entre um atleta e outro. Às vezes passa-se mais de uma
hora sem nenhuma movimentação, nem mesmo dos cachorros de rua que
procuravam se aquecer no tapete que cobria o gramado próximo aos estandes.
Muitas vezes chegavam amigos e familiares de algum atleta para esperar a
chegada. Quando algum atleta se aproximava, todos ficavam a postos para anotar
número, hora, ver qual troféu entregar – se de survivor ou de atleta com apoio –
fazer a fotografia do ultramaratonista com seu troféu em frente ao painel das logos
impressas e, antes de tudo isso, colocar em um volume bem alto o tema da vitória,
que embalava as chegadas de Ayrton Senna na transmissão de Fórmula 1 na
televisão há algumas décadas atrás.
O primeiro colocado chegou com 37 horas de prova, cerca de dez da noite, e
esperou até as duas horas da manhã para um amigo chegar. O campeão chegou
com cajado, disse sentir muitas dores nos joelhos e tornozelos, mas não reclamava
das dores, dizia só que preferia esperar o amigo para ir ao hospital.
O tempo passava arrastado na linha de chegada, mas a sensação de tédio
era, vez ou outra, rompida pela chegada de mais um atleta.
– Quando eu vi que o cara de branco tava ali na minha frente, eu fui atrás. Até
esqueci o pé que estava doendo desde os duzentos! – Disse um outro atleta, sobre
84

momentos finais da sua prova. Esse ultramaratonista não reclamou de dor pelo
menos nas duas horas após terminar essa sua primeira prova em 6º lugar.
As dores sofridas são expostas na linha de chegada, mas dividem o
protagonismo com a dificuldade dos 235 Km corridos em, pelo menos, mais de 37
horas seguidas.
– Não era fadiga física, era fadiga mental. Porque a gente começa com
nossas coisas emocionais. Porque é terapia. É isso que a gente vem buscar aqui, a
terapia. – Discorria uma atleta sobre um momento de cansaço na prova. E falando
sobre alguém que não completara a prova: – Ele não tem tolerância à dor, então
ainda não pode fazer esse tipo de prova, ainda não pode ser ultra.
Osvaldo foi o segundo colocado da prova e atribuiu o feito a ter voltado às
origens de um ultramaratonista, que busca completar o percurso e desafia somente
a si mesmo:
– É a cabeça, não dá pra focar a cabeça na prova do outro. Voltei a ser eu na
prova porque voltei a ter o objetivo de completar a prova, de ser melhor que eu e
não melhor que os outros.
– Isso que a gente faz quase ninguém faz! – Um ultramaratonista
comemorava com um amigo a primeira prova de mais de 100Km dos dois.
Ao receber seu troféu, um atleta foi perguntado por um amigo que fazia
seu apoio:
– E aí, nunca mais?
– Não sei, não sei... – respondeu sorrindo.
– Ele me disse no meio da prova que nunca mais ia fazer isso. Mas é sempre
assim, a gente diz que não vai mais fazer, mas sempre faz! – Me falou o amigo.
O troféu é a primeira representação material daquela vitória. Um evento
transformador, capaz de promover mudanças profundas em seus participantes e
comprovar sua “mente forte” é motivo de muitos a produzir em si marcas corporais.
Tatuar a logomarca de uma prova indica que a prova tem um significado especial
para si. Pedro, tem a UAI como sua prova preferida, a primeira que correu e a que
mais gosta de correr, mas ainda espera o momento certo para tatuar seu símbolo:
– Se eu fizer menos de quarenta e oito horas, eu faço minha tatuagem da
UAI. Nem gosto de tatuagem, mas faria se eu fizesse nesse tempo pelo que a prova
representa pra mim.
85

A tatuagem eterniza no corpo o grau de dificuldade superado, a vitória da


pessoa sobre ela mesma. Não existe ultramaratona sem a ideia do desafio e quanto
mais difícil, mais importante é o feito de finalizar (ou dobrar ou triplicar) a prova
porque, como é sentenciado comumente, “se for fácil, não é ultramaratona”. Outra
marca ostentada por ultramaratonistas são as lesões nos pés. Quanto mais dura a
prova, maior a probabilidade de se perder unhas e desenvolver bolhas ou feridas
nos pés, lesões que costumam ser fotografadas e compartilhadas em redes sociais
após as provas. Essas fotografias comunicam aos círculos do ultramaratonista a sua
força mental, que fora capaz de sobrepor-se às dores de ter os pés lesionados e
permanecer correndo uma longa distância.
É justamente o processo de dificuldades em uma ultramaratona que propicia
o desenvolvimento de sua “mente forte” e permite transformações no sujeito
ultramaratonista. Pedro atribui tais transformações aos momentos de introspecção:
– Mudou mesmo quando fiz os 235, aí mudou. Fiquei assim ‘caraca! ’. Fiquei
mais humilde, acho... porque uma prova dessa é muito sofrida, então a gente
aprende a lidar com certas coisas. Muito tempo sozinho, então a gente conversa
muito com a gente mesmo, entra em contato com o universo da gente... e a gente vê
que a gente é bem... que a gente é frágil diante da natureza. E aí pra mim é como se
fosse uma meditação, mas uma meditação com bastante esforço, bastante dor...
mas a palavra que acho é que me tornou mais humilde.
A transformação aparece também fora do sentido mais profundo de eu, surge
constantemente no discurso como a alteração na forma como é visto por outros: “Lá
no trabalho acabo sendo referência no grupo de corrida porque sou o cara que corre
as maiores distâncias”, “eu conto pros meus amigos e eles ficam ‘caraca! Muita
coisa! ”, “quando eu falo, pessoal nem acredita”, foram frases ouvidas nas
entrevistas. A agregação, a volta à rotina, é marcada também por um novo status
diante de amigos e conhecidos, sejam eles desportistas ou não. Esse novo status
não os coloca em condição de total diferença em relação aos não-ultramaratonistas.
Ao contrário dos boxeadores de Wacquant (2002), eles não se tornam ilhas, e
trazem isso como uma característica positiva quando narram histórias de estarem
em confraternizações ou festas e pessoas se admirarem pelo fato de correrem
distâncias tão grandes e serem “pessoas comuns” seja em termos corporais, seja
em termos de estilo de vida.
86

Também por serem “pessoas comuns” afirmam que qualquer um pode tornar-
se ultramaratonista. Assim, o novo status adquirido após ultramaratonas pode ser
incorporado como um aprimoramento moral necessário para servir de exemplo aos
outros. Não que todos os ultramaratonistas intencionem proferir palestras
motivacionais, mas a ideia de ser exemplo ao menos aos que iniciam no esporte é
bastante difundida.
Em prefácio a um livro de Marcio Villar (s/d), o ultraman Adilson Cordeiro trata
da importância em ser exemplo: “Nossa responsabilidade em ser exemplo às novas
gerações é o que nos move (...). Nossa maratona é de mãos dadas”.
A ideia de ser exemplo para os demais também foi exprimida por Carlinha, ao
lamentar os descaminhos do sobrinho:
– Infelizmente conselho e exemplo pra algumas pessoas não serve de nada,
então... não adianta você tentar que... acho que o maior exemplo é a vida que você
segue. O maior exemplo prum filho, prum sobrinho... Mas pra ele não adiantou de
nada... E agora não resolve mais nada. Mas eu quero participar de projetos com
crianças de comunidade, contar minha história, mostrar meu exemplo pra elas.
Atravessar o sofrimento, doer sem ser doído, promove no corredor de
ultramaratona uma transformação tão profunda, que esse doer é marcado por um
importante uso social: o aprimoramento de si. Não aprimoramento físico, mas sim o
aprimoramento moral porque, como já explorado anteriormente, a ultramaratona é
uma atividade em que a dimensão mental/moral é mais valorizada do que seu
aspecto corporal/físico.
87

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Propõe-se no presente trabalho pensar sobre dor não como algo dado na
natureza a espera de ser desvendado, mas sim como um tipo-de-evento
(Bourke,2014), como um ato que só pode ser compreendido dentro do contexto
social e cultural em que se dá. Sem dispensar as dimensões fisiológicas do doer,
entende-se aqui o estar-em-dor também como uma comunicação não verbal, em
que há sempre componentes sociais e culturais envolvidos não de maneira
separável, mas sim imbricados e se influenciando mutuamente. Portanto,
compreender a dor para ultramaratonistas durante uma prova requer analisar como
esses sujeitos doem e o contexto em que se desenrola esses doeres, ou seja, é
necessário analisar os significados de uma prova de ultramaratona.
As longas distâncias percorridas em ultramaratonas atuam como um rito de
passagem em que o sujeito imerge e retorna transformado à sua vida cotidiana. O
modelo proposto por Van Gennep (2011 [1909]) e aprofundado posteriormente por
Turner (1974) é bom para pensar o desenvolvimento de uma prova, dividindo-a em
três etapas: separação, liminoide e agregação.
Na etapa de separação, o sujeito afasta-se de sua rotina cotidiana em uma
preparação para entrar completamente no ritual. Nessa etapa, que compreende os
treinamentos, a inscrição na prova, a interação com demais inscritos, a chegada ao
local da prova e os momentos que antecedem à largada, os inscritos na prova
podem ser ultramaratonistas ou candidatos a ultramaratonistas. Isso não quer dizer
que os “candidatos a ultramaratonistas” não tenham percorrido nunca uma distância
maior do que os 42Km de uma maratona, mas sim que sua identidade de
ultramaratonista ainda em construção, enquanto a identidade de outros já está
consolidada. Nos subeventos que compõem a etapa de separação, há uma
marcação clara da hierarquia e distinção entre os ultramaratonistas. A exposição ao
doer nos treinos é visivelmente menor do que a partir do momento da largada e
abarca, desde já, diversas sensações incômodas. Doer é entendido aqui como todo
incômodo a que o ultramaratonista se submete em uma prova: dores musculares,
enjoos, fadiga e tonturas, dentre outros. Na etapa de separação o sujeito prepara-se
para a etapa liminoide e não tem ainda o contexto necessário para se permitir doer
de maneira mais intensa.
88

O período liminoide borra as demarcações hierárquicas, promovendo uma


momentânea suspensão dos papéis sociais entre os atletas. Esse período, que se
estende desde a largada ao momento de cruzar a linha de chegada, é quando o
ultramaratonista se expõe a situações mais dolorosas. A ideia é menos chegar ao
ponto final sem sofrer do que superar o sofrimento que havia planejado para cumprir
aquela prova, ou “vencer o desafio”.
Ao cruzar a linha de chegada é iniciada a etapa de agregação, em que o
sujeito, transformado pelo percurso retorna à sua vida regular, ostentando um novo
status não somente entre seus pares ultramaratonistas, mas também entre os não-
ultramaratonistas. Como ritos de passagem que são finalizados com marcas
corporais, inscrevendo no corpo a memória dessa passagem, as ultramaratonas
podem ser eternizadas por seus participantes que apresentam publicamente
tatuagens das logomarcas das provas ou expõem em redes sociais imagens das
lesões de seus pés. Da mesma forma que as marcas corporais, troféus e medalhas
também atuam como a reificação de todo o processo de sacrifício, triunfo e
transformação a que se submeteram.
Ainda que analisado aqui a partir de uma teoria de Van Gennep, a prática da
ultramaratona não é única como ocorre em ritos de passagem, mas sim se dá de
maneira frequente e progressiva. Assim, seguindo a recorrência da busca pela
excitação investigada por Elias e Dunning (1992), os atletas participam sempre de
novas provas, propondo-se a “desafios” cada vez maiores – seja em velocidade,
seja em distância. O acúmulo de provas finalizadas é imprescindível para a
construção e a confirmação da identidade do ultramaratonista.
O doer no contexto de uma prova de ultramaratona foi analisado mais
detidamente no período liminoide. Correr ou caminhar a partir do sinal de largada
não significa para os ultramaratonistas que “estão na prova”. “Entrar na prova” ou
“estar na prova” expressa o momento em que o ultra sente prazer na corrida, já
tendo superado o desconforto inicial da adaptação à atividade física. É comum que o
atleta “saia” e “entre na prova” diversas vezes, não havendo uma linearidade fixa e
rígida na sucessão sofrimento-prazer ou desconforto-conforto. Ao contrário, essa
relação é mais variável e se apresenta de maneira oscilante. Geralmente cada
ultramaratonista sabe localizar os pontos em que se sente bem em uma prova, seja
dos 80 ao 150Km, do 90 aos 120Km ou dos 40 aos 80Km, entre tantas outras
possibilidades, pode acontecer da prova ser maior do que o limite de bem-estar do
89

ultra e ele precisar valer-se novamente de recursos para superar o sofrimento e


acessar outra vez a sensação de prazer na corrida.
O prazer é um dos estímulos preponderantes no discurso do ultramaratonista
para a adesão a essa modalidade esportiva e caminha ao lado da ideia de
desenvolvimento e exibição da força mental. Afinal, é a força mental, a “mente forte”
que vai ser responsável pela superação do doer.
O par de oposição dor-prazer é necessário à construção da identidade do
ultra. Superar o sofrimento imposto por uma distância extremamente longa em
terrenos desnivelados torna um corredor ultramaratonista. Se não há sofrimento, não
há o que superar. Sem o sofrimento, não existe o prazer de vencê-lo. Assim como
em outros casos ritualísticos (BOURDIEU, 2008), quanto mais difícil ou “dura” é a
prova, maior o valor que é conferida a ela e maior o status do ultramaratonista que a
completou. Dessa maneira, a relação com o doer não se resume à evitação, mas
também à sua incitação. Essa dupla relação com o doer pode ser delineada no que
aqui chamo “dispositivo da dor”. Nos moldes do que Foucault (2000) tratou como
dispositivo,
um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos,
instituições,
organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas
administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais,
filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo.
O dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes elementos (Foucault,
2000, p. 244).

Se, por um lado, busca-se evitar e superar a dor, por outro lado, busca-se o
doer para então evitá-lo e superá-lo. Dessa maneira, lançam mão de técnicas como,
por exemplo, o uso de medicamentos analgésicos momentos antes da largada, que
atua não sobre uma dor sentida, mas sim sobre a possibilidade de doer. Em
contrapartida, “o fácil não tem graça”, como costumam dizer os ultramaratonistas,
sem a exposição ao sofrimento não existe desafio a ser vencido, não há nada a ser
superado, não se constói a identidade de ultramaratonista.
Diferentes status entre ultramaratonistas promovem uma relação hierárquica
entre eles. No topo da hierarquia encontram-se os maiores exemplos aos iniciantes,
que percorreram maiores distâncias ou têm recordes de tempo em provas
consideradas difíceis. Logo abaixo vêm ultramaratonistas que não dobram provas,
tampouco batem recordes, mas apresentam um currículo longo e constante e, assim
como os anteriores, não têm sua identidade de ultramaratonista questionada. Abaixo
90

desses estariam os que já percorreram algumas provas, mas ainda têm sua
identidade questionada pela pouca quantidade de provas finalizadas. Na base da
cadeia estão os neófitos, maratonistas que buscam entrar no mundo das
ultramaratonas. Oficialmente, um ultramaratonista é aquele que corre uma distância
maior do que uma maratona; porém, na prática, tornar-se ultramaratonista exige
uma demonstração maior e mais duradoura de sua capacidade de correr ultra
distâncias. Um ultramaratonista é um sujeito de “mente forte”, capaz de superar os
diversos estados-de-dor pelos quais passam durante uma prova.
Há diferentes estratégias para vencer o sofrimento e elas requerem não
somente um domínio de saberes médicos, saberes “do papel” (WACQUANT, 2002),
mas também de saberes práticos, que se sobrepõem. É somente na prática que se
aprende, por exemplo, o melhor momento para evitar ou tratar bolhas nos pés e as
formas de fazer isso, se através do uso de vaselina nos pés, absorventes femininos
dentro dos tênis ou de drenagem de bolhas com linha e agulha. E essa prática se
desenrola nos encontros com demais ultramaratonistas, ou seja, é um saber
adquirido individualmente no interior da coletividade de ultramaratonistas, que só
pode ser consolidado de forma prática e coletiva.
O uso de substâncias, alongamentos e massagens e a lembrança de
familiares e causas filantrópicas são exemplos de técnicas de superação da dor
observados na prova etnografada, o que aponta para uma dinâmica física e moral
desta superação.
Por sua vez, as substâncias são utilizadas de acordo com o efeito pretendido
e podem ser ingeridas de diferentes formas, sendo reclassificadas e ressignificadas
em relação à prática da ultramaratona: comprimidos de analgésico ou relaxante
muscular, para evitar ou combater dores musculares; carboidratos em gel ou
rapadura são usados para “dar mais energia”; cápsulas de cafeína ou copos de café
evitam a fadiga e afastam o sono; cápsulas de sal ou alimentos salgados são
usados para evitar desidratação, da mesma maneira que os “sorinhos” e a ingestão
de água e de bebidas isotônicas formuladas para esportistas; a maconha,
refrigerantes de cola ou fazer uma refeição completa, como o almoço, podem ser
usados para combater ou prevenir enjoos.
Alongamento e massagens também atuariam diretamente no físico do
ultramaratonista, já as lembranças da família, principalmente de filhos, e de causas
filantrópicas pelas quais se comprometeram a correr auxiliariam na concentração no
91

objetivo de atingir a linha de chegada. Nenhuma das três técnicas apresentadas,


entretanto, deve ser compreendida como exclusivamente física ou exclusivamente
mental. Como dito anteriormente, as dimensões que compõem o doer estão
imbricadas e não são facilmente desconectadas umas das outras. Além disso, as
técnicas só atingem o efeito esperado quando utilizadas sob uma estratégia, que é
aprendida na relação com outros ultramaratonistas, mas que só é eficiente quando o
ultramaratonista tem o conhecimento de seu corpo, dos limites que pode ultrapassar
e dos momentos em que deve lançar mão das técnicas aprendidas. O conhecimento
de seu corpo pertence à sua mente, é a força mental bem apurada que é capaz de
reconhecer o momento de seguir, de usar determinada técnica ou de parar e desistir
daquela prova.
Não apenas as técnicas e estratégias de superação do estar-em-dor são
construídas e apreendidas no coletivo de ultramaratonistas e na interação com
informações e profissionais de saúde, mas o próprio doer é aprendido dentro do
coletivo. É o grupo social quem determina a legitimidade de seus sofrimentos.
Assim, o ultramaratonista desenvolve classificações sensoriais, através de sua
prática e do contato com outros ultramaratonistas e profissionais do esporte, que o
informam sobre sua gravidade, se é necessário parar, seguir com ajuda de artifícios
ou simplesmente seguir.
A identidade do grupo também se constrói com o desenvolvimento de cada
ultramaratonista. Uma pessoa completar uma prova legitima todo o grupo, dessa
maneira há sempre o estímulo e incentivo para que outros participem e finalizem as
provas. Ainda que saibam que são poucos que se dispõem a percorrer tantos
quilômetros e que digam sempre que “o mais difícil é melhor porque a concorrência
é menor”, a crença comum é que todos podem fazer uma ultramaratona desde que
tenham a “cabeça boa”, a “mente forte”.
Completar uma ultramaratona atua também na construção da identidade
individual. Finalizar uma prova transforma o indivíduo e a percepção que ele tem de
si. Ao tornar-se senhor de seu doer, o ultramaratonista torna-se senhor de si. De
volta à estrutura de sua vida social, em que o indivíduo tem papel preponderante
sobre sua própria vida, o ultramaratonista honra-se com a demonstração e o
desenvolvimento de sua força mental e se vê como um indivíduo mentalmente forte
e capaz de superar as vicissitudes de sua vida. Doer é o caminho necessário à
transformação do sujeito em ultramaratonista, mas é apenas o caminho, não o
92

objetivo final. Afinal, como costumam dizer e tatuar, “a dor e o incômodo são
passageiros, o orgulho é eterno”.
93

REFERÊNCIAS

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Janeiro: Relume Dumará, 2002.
96

ANEXO A – Regulamento da prova

Item 1 – Inscrição / Aplicação:

• A UAI Ultramaratona dos Anjos Internacional 235km está aberta para atletas nas
categorias 235 km XHard, 135 km Hard, 95 km Medium, 65 km
Easy, 25 km Fast em nas modalidades solo com suporte, solo sem
suporte (Survivor) e Revezamento Dupla e Quarteto. • Os atletas
deverão ser maiores de idade (18 anos) e estarem de acordo com
este regulamento.
Item 2 - Categorias: • Devido à alta quilometragem (XHARD 235km) e por se tratar
de uma prova de alta resistência e com um grau de dificuldade
altíssimo, os atletas com a intenção de participar da UAI
Ultramaratona dos Anjos Internacional, na categoria Solo com ou
sem Suporte deverão apresentar seu currículo. A aplicação
passará por uma comissão julgadora formada por quatro atletas
Pioneiros da prova, conhecedores do percurso e seus riscos. • As
aplicações serão aceitas com a soma de pontuação gerada por
provas realizadas nos últimos dois anos. O atleta receberá sua
resposta de aprovação, logo após sua aplicação retornar da análise
via e mail. • Os atletas serão avaliados para a participação nas
categorias solo com e sem suporte. Caso não seja aprovado,
poderá fazer uma nova inscrição normalmente em uma das outras
categorias. • O atleta deve aguardar o e-mail de confirmação para
realizar a inscrição através do site. As inscrições que forem
realizadas sem a análise de aplicação serão “suspensas” até que a
aplicação seja enviada, analisada e aprovada. • A participação
nas modalidades EASY 65km, MEDIUM 95km e HARD 135km em
2016 qualifica o atleta para a XHARD 235km de 2018. Os atletas
que concluíram a prova nas edições de 2012, 2013, 2014, 2015,
2016 e 2017 estão automaticamente aceitos para edição de 2018
não havendo necessidade de envio de aplicação.
modalidades 25, 65, 95 e 135km não é necessário envio de
97

aplicação. Basta que acesse o site e realize a inscrição


normalmente.

Item 3 - Regras para a aplicação: Tabela de Pontuação - UAI - Ultra dos


Anjos Internacional 235km Provas por KM-Finisher
Pontos UAI - 235km UAI - 235km
Solo sem Suporte Solo com Suporte Maratona 42,195
2 16 Pontos 12 Pontos Provas 50 km
5 Ultramaratona de até 80 km 6 Ultra Desafio
50 Milhas 80 km 8 Ultra Runner 100 km Com
limite de 12 Horas 10 Ultramaratona de 100 Milhas – (160km)
13 Provas por Tempo - Finisher Ultramaratona de 12
Horas - Solo 100 km 10 Ultramaratona de 24 Horas - Solo
120 km 12 Ultramaratona de 48 Horas - Solo 200 km
16 Ultramaratona BR135 - 217km 16
UAI - Ultra dos Anjos Internacional - 235 km 16 * O atleta
deverá relatar na sua aplicação a pretensão de tempo para a
conclusão da prova, lembrando que a prova tem 235km de
Montanha. Deverá constar na aplicação apenas a participação nos
eventos realizados nos últimos dois anos. A participação em provas
com mais de dois anos, não contam pontos.

Item 4 - Limite de Participantes: XHARD 235km Solo/ Survivor 50 atletas


XHARD 235km Dupla 10 equipes XHARD 235km Quarteto 10
equipes HARD 135km Solo/ Survivor 50 atletas HARD 135km
Dupla 10 equipes MEDIUM 95km Solo/ Survivor 50 atletas
MEDIUM 95km Dupla 10 equipes EASY 65km Solo/ Survivor
50 atletas EASY 65km Dupla 10 equipes FAST 25km Solo
50 atletas Totalizando o máximo de 250 atletas no “Solo ou
Survivor”. Caso o limite de atletas seja atingido antes da data
de encerramento o atleta interessado poderá aguardar a
98

desistência em fila de espera a ser disponibilizada pela


organização.

Item 5 - Apoio (Suporte e Pace) • O carro de apoio é OBRIGATÓRIO para as


equipes de revezamento e os que se inscreverem como “Solo com
Apoio” em qualquer uma das modalidades. O suporte deverá ser
composto por no mínimo um motorista e um pace. É aconselhável
que o carro de apoio seja 4x4, porém o caminho pode ser feito por
veículo 4x2 tranquilamente. • O carro de apoio poderá seguir o
atleta por todo o percurso, exceto no trecho entre a entrada do
Parque Estadual da Serra do Papagaio - Cachoeira dos Garcia e o
Espraiado do Gamarra. Este trecho é impraticável para veículos
comuns e o fluxo de veículos é proibido, pois é uma área de
preservação ambiental (PARQUE ESTADUAL DA SERRA DO
PAPAGAIO). Neste trecho é aconselhável a companhia do pace ou
subir em grupo. O Pace poderá acompanhar o atleta em qualquer
tempo, sendo aconselhável sua permanência com o atleta durante
toda a noite.

Item 6 - Equipamentos Obrigatórios e Aconselháveis: • Os itens OBRIGATÓRIOS


deverão ser apresentados para checagem na retirada do Kit, caso
falte algum item o atleta deverá providenciar e apresentar a
organização até uma hora antes da largada, caso contrário o atleta
não terá permissão para largar. A organização poderá checar os
itens obrigatórios de todas as modalidades a qualquer momento
durante a prova. FAST 25km: Mochila ou cinto de hidratação
EASY 65km: OBRIGATÓRIO: Mochila ou cinto de hidratação,
apito e lanterna de mão, e cabeça (+ pilha/bateria) e colete
refletivo. ACONSELHÁVEL: Boné, viseira, Óculos escuros, corta-
vento. MEDIUM 95km: OBRIGATÓRIO: Mochila ou cinto de
hidratação, lanterna de mão e cabeça (+ pilha/bateria), colete
refletivo e apito. ACONSELHÁVEL: Boné, viseira, Óculos escuros,
99

corta-vento. HARD 135 km: OBRIGATÓRIO: Mochila ou cinto


de hidratação, lanterna, lanterna reserva (cabeça ou mão), colete
refletivo, pilhas sobressalentes, cobertor térmico, corta-vento e
celular. Medicamentos: anti diarreico, antitérmico, analgésico e
apito. ACONSELHAVEL: Lanterna strobo, cajado ou walkstick,
saca de dormir, agasalho, calça segunda pele, luva e toca.
XHARD 235 km (Solo com apoio e Equipes de Revezamento):
OBRIGATÓRIO: Carro de apoio, Mochila ou cinto de hidratação,
lanterna, lanterna reserva (cabeça ou mão), colete refletivo, pilhas
sobressalentes, cobertor térmico, corta-vento e celular.
Medicamentos: anti diarreico, antitérmico, analgésico e apito.
ACONSELHAVEL: Lanterna strobo, cajado ou walkstick, saca de
dormir, agasalho, calça segunda pele, luva e toca. XHARD 235
km SURVIVOR (Sem apoio): OBRIGATÓRIO: Mochila ou cinto de
hidratação, lanterna, lanterna reserva (cabeça ou mão), colete
refletivo, pilhas sobressalentes, cobertor térmico, corta-vento,
agasalho, calça segunda pele, luva, toca, e celular. Medicamentos:
anti diarreico, antitérmico, analgésico e apito. Alimentação
extra, suficiente para percorrer aproximadamente 40 km ou a
distância entre os PCs. A alimentação extra será útil em caso de
acidente em que o atleta não possa se locomover e tenha que
aguardar pelo resgate. ACONSELHAVEL: Lanterna strobo, cajado
ou walkstick, saca de dormir.

Obs. Mesmo contando com equipe de apoio própria, os atletas das modalidades
HARD e XHARD deverão apresentar todo o equipamento solicitado
para a retirada do kit. Em caso de alteração desta lista de itens o
atleta será comunicado previamente.

Item 7 - Segurança do Atleta e Equipe: • Todo equipamento obrigatório é


indispensável. O uso do colete refletivo a noite é obrigatório para
os atletas, suporte e pace. É também aconselhável o uso pelo
apoio durante o dia. • A organização fornecerá aos atletas, adesivo
100

de identificação que deverá ser fixado em local visível nos carros


de apoio. • Todos os mapas de todas modalidades estão
disponíveis no site <www.ultrarunnereventos.net> em formato GPX
e KML, que poderão ser visualizados em Note Book, Tablet e
Smartphone, através do aplicativo “GPX VIWER” (gratuito para
Android) ou equivalente para Apple. • A operadora que melhor
funciona na região é VIVO.

Item 8 - Apoio e Posto de Controle - PCs

• A equipe de apoio para de todas as modalidades “solo com apoio” e “revezamento”


poderá somente iniciar-se o apoio a partir do km 25. Tendo a
equipe que chegar a Itamonte pela rodovia. O carro não poderá
seguir pela estrada de terra (caminho do atleta). Passível de
desclassificação. Essa regra se deu devido ao alto número de
carros em uma estrada estreita, atrapalhando os atletas!!!
• Serão 8 PCs Fixos (postos de controle), neles o atleta poderá contar com (Água,
Isotônico, Bolachas doce e salgada).
• Os Pc´s poderão ter seu ENCERRAMENTO ANTECIPADO somente no caso de
todos os atletas tiverem passado.

• Os Pc´s não terão seu ENCERRAMENTO PRORROGADO em nenhuma hipótese


ou circunstância.

• É recomendável que todos os atletas montem suas estratégias baseando-se no


tempo de funcionamento do PC.

• Faltando uma hora para encerramento do PC, um fiscal fará o caminho contrário
informando aos atletas quanto o encerramento do PC e a
possibilidade de término pelo atleta. Se o atleta considerar que não
será possível terminar dentro do tempo regulamentar até o
fechamento do PC afim de evitar um desgaste desnecessário uma
101

vez que será considerado desistente se chegar após o horário de


encerramento, poderá solicitar o resgate até o PC.

• Por sua vez, se considerar que mesmo sendo considerado desistente deseja
continuar, poderá fazê-lo desde que entregue ao fiscal seu número
de peito. Ciente de que daquele ponto em diante o atleta não faz
mais parte da prova, isentando a organização de quaisquer
responsabilidades.

Item 9: Ponto de Corte • 1º PONTO DE CORTE para as modalidades 135 Hard, 155
Hard Plus e 235 Xhard no km 95 (Aiuruoca) às 6hs da manhã de
sábado. • O atleta que chegar ao PC após esse horário será
impedido de prosseguir, sendo considerado desistente, podendo
retornar à Passa Quatro com o transporte disponibilizado pela
organização. • 2º PONTO DE CORTE para as modalidades 155
Hard Plus e 235 Xhard no km 135 (Baependi) às 18hs da tarde de
sábado. • O atleta que chegar ao PC após esse horário será
impedido de prosseguir, sendo considerado desistente, podendo
retornar à Passa Quatro com o transporte disponibilizado pela
organização.

Item 10: DROP BAG • Todo atleta inscrito como SURVIVOR em qualquer uma das
modalidades poderá utilizar o serviço de DROP BAG. Para isso
deverá deixar na RETIRADA DO KIT o(s) itens a serem enviados
aos PC´s. • A embalagem será cedida ao atleta no momento da
entrega do kit conforme a necessidade. • A identificação deverá ser
realizada pelo atleta, informando com nitidez seu número de peito e
PC de destino. • No local haverão caixas indicadas para cada PC,
onde o próprio atleta fará a separação de suas drop bags. Evitando
assim quaisquer equívocos no envio. • Não poderão ser enviadas
BAGS para o PC Cachoeira dos Garcias – km 110 • As BAGS
serão ACEITAS até as 20hs da sexta-feira, dia 28 de Junho. • As
102

BAGS NÃO SERÃO aceitas no dia da prova em nenhuma hipótese.


• As BAGS NÃO RETORNARÃO à BASE (local da largada), todos
os itens deixados nas BAGS serão doados e os alimentos
colocados à disposição para outros atletas desde que não tenham
sido manipulados. • As BAGS NÃO PODERÃO SER
RECLAMADAS à organização • A organização não se
responsabiliza pelos itens enviados. • Não é permitido o envio de
nenhum item em embalagem de vidro. • Não é permitido o envio
de alimentos perecíveis fora da embalagem original e lacrada.

• Envie somente itens descartáveis ou que deseje doar.

Item 11 - Atendimento Médico. Ao longo do percurso os atletas cruzarão


por sete cidades, que estarão cientes do evento e em alerta para
qualquer emergência. O apoio, em caso de acidente do atleta ou
sua equipe deverá: 1- Entrar em contato com os pontos de apoio
da organização; 2- Entrar em contato com a unidade médica mais
próxima; 3- Se o atleta puder ser removido, a equipe deverá seguir
sempre para a cidade mais próxima, e comunicar a organização o
mais breve possível.

Item 12 - O Revezamento: Dupla e Quarteto. • A prova é dividida em trechos que


variam de 15 a 40 km entre Pcs. Ficará a critério da equipe sua
estratégia de revezamento (escolha do trecho), sendo permitida a
troca de atleta a qualquer momento. • Os integrantes das equipes
deverão permanecer juntos por toda a prova, sendo obrigatória a
apresentação de todos no PC´s. Assim como LARGADA e
CHEGADA. A falta de um integrante somente será tolerada
conforme item abaixo. • Caso o atleta da vez tenha uma lesão que
o impossibilite de prosseguir, cabe a equipe a decisão de efetuar o
revezamento e remover o atleta lesionado que, poderá permanecer
no carro de apoio ou retornar a base em Passa Quatro. Caso este
103

atleta precise de atendimento médico, e por este motivo tenha que


abandonar a equipe, ele não poderá retornar, porém sua equipe
poderá continuar na competição. • O não cumprimento destas
regras poderá acarretar em desclassificação da equipe.

Item 13 - Identificação do Atleta • Os atletas deverão estar sempre com o numeral


visível, cada categoria terá uma cor diferente. • É de extrema
importância que o numeral esteja visível.

Item 14 -
SETAS AMARELAS PINTADAS (Atenção: As marcações podem
estar em qualquer lugar, tais como: Postes, Moirões, Barrancos,
Arvores, Muros, Guias, Pedras ou no Chão) e também com
PLACAS BRANCAS COM SETAS AMARELAS REFLETIVAS,

noturna é feita com pontos luminosos (Ponto fluorescente refletivo


a luz). Estes estarão colados em todas as curvas acentuadas,
saídas laterais, esquinas e bifurcações juntamente com as setas
amarelas refletivas ou pintadas. Os pontos estarão dispostos em

Amarelo Pintado ou em placa Branca com X Amarelo em locais de


risco para indicar o erro de percurso.

Regras Básicas de navegação noturna: 1- Parar em todo lugar onde houver


dúvida e procurar a marcação, ela vai estar lá. 2- Em entradas
laterais, porteiras e outras saídas da rota sem marcação (Ponto
luminoso ou Seta Amarela) NÃO ENTRE, siga na rota. 3- Seguir
somente as marcações da prova, no local existe outras marcações,
setas de outras cores que não devem ser seguidas. 4- Respeite as
regras de transito. Nunca pare o carro em curvas, no meio da via,
subidas ou descidas ou em locais que ponham em risco atletas,
apoio e membros da organização. Segurança sempre. Atenção -
Grande parte do percurso é em estradas, algumas são estreitas e
merecem atenção redobrada do atleta e sua equipe de apoio.
104

Item 15 - Programação da Prova Dia 28/06 quinta-feira - Entre 14:00 e 20:00


Entrega de Kit / Recebimento de Drop Bags. Dia 28/06 quinta -
feira - Entre 18:00 e 19:00 Congresso Técnico Dia 28/06 quinta -
feira - 19:00 - Jantar de Massas Dia 29/06 sexta-feira - 07:40 -
Chamada para Execução Hino Nacional Dia 29/06 sexta-feira -
08:00 - Largada de todas as modalidades. Dia 01/07 domingo -
20:00 - Encerramento oficial do evento. • O Congresso Técnico é
de extrema importância para todas as modalidades. • Antes da
retirada do kit, verifique se não falta nenhum item obrigatório. • O
local de ENTREGA DE KIT, CONGRESSO TÉCNICO e JANTAR
DE MASSAS serão divulgados através de informativo via e-mail e
posts em nossa Fanpage no Facebook
(https://www.facebook.com/ultrarunner.eventos/) • O local da
LARGADA será divulgada através de informativo via e-mail e posts
em nossa Fanpage no Facebook
(https://www.facebook.com/ultrarunner.eventos/) • A LARGADA
será realizada pontualmente às 8hs da manhã do dia 29 de Junho.
NÃO SERÃO TOLERADOS ATRASOS. O atleta que não estiver
presente na largada será considerado desistente. • Os kits que não
forem retirados dentro do horário informado acima, poderão fazê-lo
entre 6 e 7h00 no local da prova dia 29 de junho, sexta-feira.
Lembrando não serão aceitas DROP BAGS. • Após as 7h00 os
kits não poderão mais ser retirados em nenhuma hipótese ou
circunstância. • Os atletas que não retirarem seus kits dentro dos
horários estabelecidos serão considerados desistentes. • Para a
retirada de seu kit deverá levar consigo impresso e assinado todos
os documentos exigidos para sua modalidade. 25km – Termo
de Responsabilidade. 65km – Termo de Responsabilidade 95km –
Termo de Responsabilidade 135km – Termo de Responsabilidade
e Atestado Médico 235km – Termo de Responsabilidade e
Atestado Médico
105

Item 16 - Tempo limite para o término das provas: 60:00 (Tempo de Prova)
Termino oficial UAI 235 km X-Hard 34:00 (Tempo de Prova)
Termino oficial UAI 135 km Hard 22:00 (Tempo de Prova) Termino
oficial UAI 95 km Medium 15:00 (Tempo de Prova) Termino
oficial UAI 65 km Easy 06:00 (Tempo de Prova) Termino oficial
UAI 25 km Fast

Item 17 – Dever Social Cidadão: • Todo lixo produzido pelo atleta e sua equipe
deverá permanecer em seu carro ou mochila e descartado nas
cidades por onde passar em local apropriado. • Passaremos por
vários lugares de preservação ambiental, o mau uso do local
poderá impedir outra edição do evento, vamos preservar. • Guarde
seu lixo com você e entregue a um carro de apoio ou de outro
atleta ou organização. • A NATUREZA AGRADECE.

Item 18 - As regras • Este regulamento é soberano e deverá ser acatado por todos
os participantes do referido evento, atletas, paces e suporte. • O
não cumprimento das regras estabelecidas neste regulamento,
tanto pelo atleta ou sua equipe de apoio, acarretará a pena em
horas, de 30 minutos a 1 hora e assim por diante até
desclassificação. • A pena será analisada caso a caso pela equipe
da Ultra Runner. • Cabe ao atleta o recurso em caso de
controvérsia. Este será analisado pela equipe de fiscais após a
prova. • O recurso deverá ser entregue a organização por escrito e
com identificação completa do reclamante, nome, número e
documento. • O Atleta é responsável por sua equipe de apoio,
sendo que qualquer comportamento inadequado, anti desportivo ou
que ponha em risco a segurança de qualquer participante do
evento, pode acarretar em pena ou em desclassificação.
106

Item 19 - Desistência Em caso de desistência o atleta deverá comunicar a


organização assim que possível.

Item 20 - Denuncias Reclamações e Recursos

Denuncia e Reclamações A denúncia de irregularidade ou de fraude deve ser feita


por escrita de próprio punho e deverá constar o

documento de identidade, número de peito e assinatura do atleta reclamante e


também o número de peito ou nome do atleta acusado. Este
procedimento deverá ser feito em até 1 hora após a chegada do
reclamante.

Recurso Para o atleta entrar com um recurso ele deverá adotar o mesmo
procedimento acima e anexar o nome e documento de duas
testemunhas e ou apresentar provas concretas, tais como: foto,
filmagem ou flagrante que deverá ser comunicado ao fraudador no
ato do ocorrido.

Item 21 – Cancelamento de Inscrição As inscrições confirmadas e pagas poderão


ser canceladas mediante envio formal pôr o e-mail
financeiro@ultrarunnereventos.net. Havendo antecedência
mínima de 10 dias do evento, o atleta terá o valor integral pago
transformado em CRÉDITO para utilizações futuras em qualquer
evento realizado pela Ultra Runner por tempo indeterminado. O
valor não será REEMBOLSADO em nenhuma hipótese. Item 22
- Este regulamento poderá sofrer alterações visando à necessidade
de segurança e proteção aos atletas. Adaptações serão feitas se
necessário, nos reservados o direito de alteração e inclusão de
Itens deste regulamento a qualquer momento sem prévio aviso.
107

ANEXO B – Atestado médico

ATESTADO MÉDICO (MODELO SIMPLIFICADO)

Eu ______(MÉDICO)_________________________________________________
atesto para os devidos fins que o(a) Atleta_________________________________,
RG___________, data de nascimento ____/____/_____, passou por exames
clínicos e está apto a prática esportiva de alta performance, a nível de competição.

Atestado médico emitido em (local): ____________________________________

Data:__________ Assinatura: ________________ CRM_______________

Dados Complementares:
Grupo sanguíneo (fator RH): ____________________
Frequência cardíaca em repouso: ___________
Alergia (especifique):_________________________________________________
Medicamentos (especifique):___________________________________________
Cirurgias: ( )Sim ( ) Não
Plano de saúde:_________________________N°:_________________________
108

ANEXO C – Declaração do participante

Declaração do Atleta Participante

Declaro ter realizado todos os exames clínicos comprovados através de meu


atestado médico, estou ciente que estou participando de um evento
de alta performance, que minhas condições físicas e psicológicas
estão adequadas para participar deste evento.

Declaro ser verídica todas as informações e atestados por min fornecidas a


organização do referido evento, para tanto firmo a presente
declaração abaixo assinado.

Assinatura do Participante:____________________________________
RG__________________________
109

ANEXO D – Termo de responsabilidade

TERMO DE RESPONSABILIDADE

Ao efetivar minha inscrição eu declaro que, li e estou de acordo como regulamento


e o termo de responsabilidade abaixo descrito.

1- Os dados pessoais fornecidos para efetivar a inscrição no evento UAI Ultra


dos Anjos Internacional são verdadeiros de minha total responsabilidade.
2- Li e estou de acordo com o Regulamento disponível na página deste evento.
3- E de livre e espontânea vontade que participo da UAI Ultra dos Anjos
Internacional, isentando de qualquer responsabilidade os Organizadores,
Patrocinadores e Realizadores, em meu nome e de meus sucessores.
4- Declaro que estou em perfeitas condições de saúde física e psicológica e
capacitado para a participação na referida competição, gozando de perfeita
saúde e treinado especificamente para este evento.
5- Assumo a responsabilidade de quaisquer natureza e valores decorrentes de
danos pessoais ou materiais causados por mim ou por minha equipe durante
a minha participação neste evento, incluindo eventuais despesas médicas e
hospitalares decorrentes de desgaste físico, ataque de animais e acidentes
de qualquer natureza no decorrer da prova.
6- Cedo todos os direitos de utilização de minha imagem neste evento e
renunciando ao recebimento de quaisquer rendas que vierem a ser auferidas
com materiais de divulgação: fotos na internet , Cartaz de informações, TV,
clipes, materiais jornalísticos, promoções comerciais, a qualquer tempo, local
ou meio e mídia atualmente disponíveis ou que venham a ser implementadas
no mercado
7- E de minha responsabilidade as despesas de viagem, hospedagem,
alimentação, seguros, assistência médica e quaisquer outras despesas
necessária ou provenientes da minha participação neste evento; antes,
durante ou depois do mesmo.
8- Aceito não portar, bem como não utilizar dentro das áreas do evento,
incluindo percurso e entrega de kit, ou qualquer área de visibilidade no evento
voltada ao público, ou meios de divulgação e promoção, nenhum material
110

político, promocional ou publicitário, nem letreiros que possam ser vistos


pelos demais sem autorização por escrito da organização; e também, nenhum
tipo de material ou objeto que ponha em risco a segurança do evento,
participantes e / ou das pessoas presentes, aceitando ser retirado pela
organização ou autoridades das áreas acima descritas.
9- Em caso de participação neste evento, representando equipes de
participantes ou prestadores de serviços e/ ou qualquer mídia ou veículo,
declaro ter pleno conhecimento, e que aceito o regulamento do evento, bem
como, a respeitar as áreas da organização destinadas às mesmas, e que está
vedada minha participação nas estruturas de apoio a equipes montadas em
locais inadequados ou que interfiram no andamento do evento, e também
locais sem autorização por escrito da organização, podendo ser retirado em
qualquer tempo.
10- E para tanto, estou ciente, de todo o teor do regulamento da prova, bem
como, de meus direitos e obrigações, dentro do evento, tendo tomado pleno
conhecimento das normas e regulamentações da prova.

Nome: _____________________________________________________________
RG/BI ou Passport Nº:______________________________ DATA: ____/____/___
111

ANEXO E - Fotografias

Fotografia 1: tatuagens
112

Fotografia 2: tatuagens
113

Fotografia 3: tatuagens

Fotografia 4: momentos anteriores à largada


114

Fotografia 5: momentos anteriores à largada


115

Fotografia 6: largada
116

Fotografia 7: percurso - ultramaratonista


117

Fotografia 8: percurso - ultramaratonistas


118

Fotografia 9: carro de apoio


119

Fotografia 10: atleta carregando em sua mochila fotografia em memória da mãe, já


falecida.
120

Fotografia 11: percurso – ultramaratonista à noite


121

Fotografia 12: Posto de controle 95 Km


122

Fotografia 13: percurso - drenagem de bolha


123

Fotografia 14: percurso


124

Fotografia 15: Posto de Controle 200Km


125

Fotografia 16: percurso - ultramaratonista


126

Fotografia 17: linha de chegada


127

Fotografia 18: Linha de chegada


128

Fotografia 19: Linha de chegada

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