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Centro Biomédico
Instituto de Medicina Social
Rio de Janeiro
2018
Isabel Siqueira Conceição
Rio de Janeiro
2018
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CB/C
CDU 616.8-009.7
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta
dissertação, desde que citada a fonte.
_______________________________ _________________________
Assinatura Data
Isabel Siqueira Conceição
____________________________________________________
Prof. Dr. Martinho Braga Batista e Silva
Instituto de Medicina Social – UERJ
____________________________________________________
Prof. Dr. Luis Fernando Dias Duarte
Universidade Federal do Rio Janeiro
Rio de Janeiro
2018
AGRADECIMENTOS
CONCEIÇÃO, Isabel Siqueira. "Pain and nuisance are passengers, but pride is
eternal": pains and morals among ultramarathoners in Rio de Janeiro. 2018. 128 f.
Dissertation of Master in Collective Health - Institute of Social Medicine, Rio de
Janeiro State University, Rio de Janeiro, 2018.
INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 8
1. DO DOER À ULTRAMARATONA: BASES TEÓRICAS.................................... 12
1.1 Perspectiva social das ultramaratonas e ultramaratonistas ......................... 17
1.2 Por que correr? A motivação para corridas e ultramaratonas ..................... 22
1.3 Correr por prazer .............................................................................................. 23
1.4 Mente x corpo ................................................................................................... 26
1.5 Provas como períodos liminoides .................................................................. 28
2. O PROCESSO DE COLETA E APRESENTAÇÃO DOS DADOS ..................... 32
2.1 A prova .............................................................................................................. 32
2.2 A entrada em campo......................................................................................... 36
2.3 As entrevistas ................................................................................................... 37
2.4 Apresentação dos dados ................................................................................. 41
3. DA ULTRAMARATONA AO DOER: ETNOGRAFIA E DADOS DE CAMPO .... 44
3.1 Separação.......................................................................................................... 44
3.1.1 A chegada à cidade ............................................................................................ 47
3.1.2 A entrega dos kits ............................................................................................... 55
3.1.3 O congresso técnico ........................................................................................... 61
3.1.4 Os momentos anteriores à largada ..................................................................... 63
3.2 Etapa liminoide ................................................................................................. 65
3.3 Etapa de agregação .......................................................................................... 83
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 87
REFERÊNCIAS .................................................................................................. 93
ANEXO A – Regulamento da prova ................................................................... 96
ANEXO B – Atestado médico ........................................................................... 107
ANEXO C – Declaração do participante ........................................................... 108
ANEXO D – Termo de responsabilidade .......................................................... 109
ANEXO E – Fotografias .................................................................................... 111
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INTRODUÇÃO
vezes e por quanto tempo quiser. “Mas eles quase não param”, disse-me o
coordenador da equipe. Os corredores descansam cerca de duas ou três horas,
param para ir ao banheiro, atendimentos na tenda de fisioterapia e comer – muitos
optam por comer caminhando na pista. Assim como grande parte dos que ouvem
falar pela primeira vez desse tipo de prova, pensei que fossem poucas pessoas
inscritas, mas essa edição da prova contou com cerca de 100 inscritos.
Essa foi a primeira ultramaratona na qual trabalhei; desde então, participei de
inúmeras outras – todas por distância, ao contrário da primeira –, sempre como
profissional de fisioterapia, seja como fisioterapeuta do evento, seja como parte da
equipe de apoio de algum atleta. É comum, mas não obrigatório, que
ultramaratonistas corram assessorados por uma equipe de apoio, formadas
geralmente por amigos também ultramaratonistas e familiares do atleta, além de
profissionais de saúde, geralmente fisioterapeutas ou educadores físicos. Aqueles
que prescindem de apoio são chamados “survivor” e devem contar apenas com a
ajuda da organização do evento.
Ultramaratonas nunca são chamadas de competição, mas sim de “prova” ou
“desafio”. Aquele que a completa dentro do tempo previsto é “finisher”; quem
desiste da prova a abandona porque “quebrou”. Um atleta pode “quebrar na mente”
ou “no corpo”: se ele acredita que as dores sentidas o impedirão de permanecer no
percurso, mas seus pares – ou até mesmo ele, posteriormente – creem que existem
condições de seguir na prova, diz-se que “quebrou na mente”; já a ideia de “quebrar
no corpo” é acionada quando alguma lesão ou episódio de desidratação é
irreversível naquele momento, conferindo risco de vida ou de sequelas permanentes
ao “ultra”, diminutivo usado com frequências por atletas.
Como fisioterapeuta, atuei principalmente em casos de ultramaratonistas que
quebravam, ora os incentivando a permanecer na prova e não pararem pela
“mente”, ora os tirando do desafio por verificar uma situação limite “no corpo”, que
não havia condições físicas de seguir, o que foi bem mais raro. Ao exercer um ofício
ligado primordialmente ao alívio da dor, imergi nas discussões e disputas acerca da
fisiologia da dor. Mas minha formação, anterior à fisioterapia, como cientista social
somada ao contato pessoal com pacientes de diversos quadros dolorosos, me levou
a observar sempre aspectos mais subjetivos e culturais envolvidos nesses quadros.
Algumas atividades físicas estão intrinsecamente ligadas à sensação dolorosa
ou à possibilidade dessa sensação: como é conhecido no meio esportivo, o jogo de
10
1
A publicação citada, “Desafiando Limites”, de Márcio Villar, é particular e vendida pelo próprio autor,
não contendo ficha catalográfica que informe o ano de publicação.
2
O artigo de Hanold foi o único encontrado sobre o tema dor e ultramaratona, em uma pesquisa
realizadas nas bases Scopus e Scielo, utilizando como descritor “pain” ou “dor”.
13
3
Questão semelhante é levantada por Canguilhem em “O Normal e o Patológico”, publicado pela
primeira vez em 1943. O autor questiona e refuta a ideia de que a diferença entre o normal e o
patológico dá-se na intensidade com que um fenômeno acontece, sendo o patológico apenas uma
variação quantitativa do normal.
4
A ideia de jogos de linguagem, desenvolvida pelo filósofo Ludwig Wittgenstein em sua obra
“Investigações Filosóficas”, pode ser entendida como o conjunto de todas as atividades linguísticas,
compreendendo o uso de signos, o contexto e o ambiente em que se desenvolve, os gestos
empregados. De acordo com o filósofo, não há uma essência que permeie todos os jogos linguísticos,
mas sim são algumas semelhanças, denominadas “semelhanças de família”, entretanto, existem
certas regras para o uso da linguagem, que funcionam de modo a sinalizar o caminho a ser seguido.
O importante ao pensar a linguagem não é observar o significado de uma palavra, mas sim seu uso.
Considerando que o uso de uma linguagem só é possível no seio de uma comunidade linguística, os
jogos de linguagem não são fixos e rígidos, ao contrário, modificam-se de acordo com a comunidade
em que se insere.
14
5
A nota foi adicionada a partir de pesquisas que subtraem a necessidade do estímulo físico à
sensação de dor, como o experimento da mão de borracha, realizado desde os anos 1990, que
consiste em posicionar as duas mãos da cobaia sobre uma mesa com uma divisória, posicionando
também uma mão de borracha paralelamente a uma das mãos verdadeiras. Enquanto uma das mãos
da cobaia fica fora de seu campo de visão, escondida do outro lado da divisória, a mão de borracha
fica aparente. As duas mãos — a real que está oculta pela divisória e a de borracha — são
estimuladas de forma sincronizada e, depois que os toques param na mão real, os participantes
começam a “sentir” os estímulos aplicados sobre a mão de borracha. Outras pesquisas que
fundamentam a nota adicional à definição da IASP são as realizadas sobre o efeito atenuante da
distração do foco de dor sobre a sensação dolorosa.
6
Do site https://www.iasp-pain.org/Taxonomy#Pain
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sejam exatamente dolorosas, da mesma forma com que situações que não pareçam
dolorosas sejam extremamente dolorosas em certos contextos:
[...] pain only exists in the act of evaluating it. It has the character of ‘mine-
ness’. Being-in-pain is not a happening – that is, something that impinges
upon a person independent of context ‘from outside’. It is an event, in the
sense that people are active in its construction in sensual, cognitive, and
motivational terms. Conceiving of pain as a ‘type of event’ allows us to
disentangle pain-situations from pain-experiences: it is possible to be in a
pain-situation. This is not to deny that contracting the ebola vírus is likely to
give you an excruciating headache. But many aches and pains are not
caused by bodily damage. And not all situations or stimuli that are expected
to be painful are experienced as such. Not all “acts” are “events (Bourke,
2014, p. 31).
7
Harald Gündel, Mary-Frances O’Connor, Lindsey Littrell, Carolyn Fort, Richard D. Lane, ‘Functional
Neuroanatomy of Grief: An fMRI Study’, American Journal of Psychiatry, 160.11 (Novembro 2003),
1946-53.
17
Nos termos da autora, “The body is mind-ful and the mind is embodied”
(Bourke, 2014, p. 41). Ao borrar as fronteiras entre corpo e mente, borra-se também
as fronteiras entre dor e sofrimento.
Considerando a dor como um fenômeno complexo e relacional, deve-se
perguntar: de quem é o corpo que dói? Quem é a pessoa cujo ser foi afetado e cuja
biografia foi interrompida ou afetada por um evento doloroso? De quais significados
estava imbuído esse doer? Esse evento é produtivo, como para um religioso em
penitência, ou destrutivo, como para um prisioneiro torturado? (Bourke, 2014)
Compreender o doer no contexto de uma ultramaratona requer, então, uma
análise de quem são os ultramaratonistas, o que são e como se desenrolam essas
provas, os estados de dor pelos quais passam durante o evento e quais sentidos
são atribuídos por eles a esses estados. Para iniciar o entendimento do mundo das
ultramaratonas, será observado como essa modalidade esportiva localiza-se no
campo dos esportes.
8
Por exemplo, caso a prova tenha 100Km de distância e 3000m de desnível positivo acumulado, o
cálculo será: 100 + (3000/100) = 130. De acordo com a tabela da ITRA, os resultados entre 65 e 89
equivalem a 3 pontos, de 90 a 129 equivalem a 4 pontos, de 130 a 179 equivalem a 5 pontos,
resultados acima de 179 equivalem a 6 pontos. A prova deste exemplo marcaria, então, 4 pontos no
ranking da ITRA.
19
9
Do site http://www.i-tra.org/
10
Em julho de 2017 a Confederação Brasileira de Atletismo (CBAt) se filiou à ITRA, buscando uma
maior proximidade com praticantes de ultramaratonas e corridas de trilha – o recente envolvimento da
CBAt não teve efeitos notados no campo.
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mais longas, quando a noite ou próprio cansaço trazem o sono, condição indesejável
no momento da prova. Ainda que cientes do discurso médico sobre a necessidade
de dormir cerca de 8 horas por dia, muitos atletas passam 24h ou mais acordados
para completarem suas corridas. A cafeína seria, então, capaz de restaurar o
funcionamento regular do corpo quando em estado de alerta. A substância, como os
demais instrumentos internos, não o faria ir além de suas condições regulares em
estado de alerta, ela apenas serviria para restaurar esse estado nos momentos em
que o corpo parece rebelar-se contra os objetivos traçados pelo indivíduo. Os
instrumentos internos não atuam como uma forma de aprimoramento para além do
que consideram o funcionamento regular do corpo humano, tampouco são de uso
secreto ou clandestino. Desse modo, não são classificados como doping, atividade
carregada de moralidade negativa, compreendida por grande parte do meio
esportivo como uma enganação aos seus pares e a si mesmo (Møller, 2008;
Henning, 2014; Moraes et al, 2015).
Os instrumentos internos não são de alto custo, uma vez que podem ser
consumidos a partir de cápsulas, géis e shakes, mas também através de alimentos.
Os instrumentos externos têm custo variável, de acordo com a tecnologia utilizada,
mas, como dito anteriormente, durante a prova qualquer disparidade de recursos
tecnológicos não é notada ou capaz de gerar distinção entre os ultramaratonistas.
Não existe, portanto, traços de predominância de alguma classe social na
prática de ultramaratonas e as diferenças que existem não têm importância durante
uma prova. Os custos que envolvem a participação em um evento podem ser altos,
entretanto é extremamente comum que os organizadores cedam gratuitamente
inscrições e consigam alojamento para participantes menos favorecidos. Além disso,
os eventos realizados também não costumam premiar os primeiros colocados e essa
modalidade esportiva não atrai patrocínios a seus atletas. Desse modo, não se pode
inferir que há motivações financeiras para a participação nessa modalidade
esportiva. A saúde e a estética também não parecem ser os principais motivadores
para a adesão às ultramaratonas, uma vez que os corpos não obedecem um padrão
predominante, apresentando idades diversas, que variam entre 30 e 70 anos, e há
desde corpos de musculatura definida e baixo percentual de massa gorda até
aqueles mais flácidos, com abdômen proeminente. A saúde também é questionada
por muitos participantes, que acreditam que passar mais de 24 horas acordados,
levando o corpo à extrema fadiga, não é uma prática tão salutar.
22
11
É importante notar que o estilo de vida está sempre condicionado pela posição social e econômica que o
sujeito ocupa (CASTIEL, 2010).
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As pessoas às vezes zombam de quem corre todo dia, alegando que é uma
tentativa desesperada de viver mais. Mas não acho que esse seja o motivo
pelo qual a maioria corre. A maioria dos corredores corre não porque queira
viver mais, mas porque queira viver a vida ao máximo. Se você quer
desfrutar os anos, é muito melhor vivê-los com objetivos claros e
plenamente vivo do que numa bruma, e acredito que correr ajude a fazer
isso. Forçar a si mesmo ao máximo dentro de seus limites individuais: essa
é a essência de correr, e uma metáfora aplicável à vida – e, para mim, ao
ato de escrever, também (MURAKAMI, 2010, p. 73).
chegada. Sofrimento controlado não apenas pelas regras da prova, mas também
pelo próprio ultramaratonista, que pode se propor a dobrar ou triplicar um percurso
por vontade própria.
condicionamento ou pouco treinamento, mas sim por algo mais forte que realmente
o impede de seguir. Dessa maneira, o status do atleta no esporte influencia
diretamente sobre a forma como ele pode se movimentar nas desistências e como
ele será avaliado pelos seus pares. É importante notar, entretanto, que a
diferenciação entre os já estabelecidos e os novatos só ocorre em momentos pré e
pós prova, uma de nossas hipóteses centrais neste trabalho. Durante as provas não
surge diferenciação na relação entre atletas, há um espírito colaborativo entre os
participantes, em que há ajuda mútua e respeito constituindo-se um espaço onde os
corredores encontram-se indeterminados, destituídos de suas posições sociais
anteriores.
marquem o corpo com tatuagens para celebrar a finalização de uma prova. Como
narra Marcio Villar sobre a Jungle Marathon:
Mesmo com todos os sofrimentos, eu tinha certeza de que valeu muito ter
participado daquela ultra. Saí dela mais forte do que nunca, passei por
incontáveis dificuldades, mas cada gota de suor e de sangue que deixei por
lá não tinha sido em vão. Jamais esquecerei o momento em que cruzei a
linha de chegada, toda a euforia que aquele momento me causou.
Completei a prova de cabeça erguida. Sabia da minha capacidade, mas
também que não existem limites quando quer atingir um objetivo. Para mim,
o limite é algo imposto pelo medo. Se não houvesse medo, conseguiria
superar qualquer limite. Não tive medo, nem mesmo de onça (VILLAR, s/d,
p. 60).
o melhor e o pior, o mais novo e o mais velho, e ocorre uma prática de colaboração
intensa entre eles. A dimensão de communitas e de liminaridade de uma
ultramaratona é de grande importância para a compreensão de como ocorre o doer
nesses contextos.
Antes da apresentação e discussão dos dados etnográficos, será feita uma
introdução ao funcionamento da prova etnografada, de modo a facilitar o
entendimento do leitor sobre o campo realizado. Também serão abordadas questões
referentes à entrada em campo e realização das entrevistas, além da apresentação
dos perfis dos entrevistados e principais informantes da etnografia.
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2.1 A prova
12
Número de peito é o identificador do atleta em uma corrida. Vem impresso em um papel pástico e, de acordo
com o regulamento da prova, deve estar preso sempre em local visível. Como essa prova agrega diversas
subprovas, cada número de peito é impresso sobre uma cor diferente, que identifica qual distância o atleta irá
percorrer.
Provas 50 km 5 Ultramaratona de 24 12
Horas - Solo 120 km
Ultramaratona de 100 13
Milhas – (160km)
nessa tarefa. Convidei Arthur, uma pessoa com quem já participo de equipes de
apoio há três anos, não apenas por conhecer o percurso e estar familiarizado com
ultramaratonas, mas por saber que lidamos bem um com o outro em períodos de
privação de sono e desconforto físico. Arthur é marido da Carlinha, ultramaratonista
bastante conhecida no mundo das ultramaratonas, que não estava inscrita na prova,
mas que iria conosco para aproveitar o percurso e realizar alguns treinos longos. Por
terem uma inserção maior do que a minha entre ultramaratonistas, organizadores e
equipes de apoio, a colaboração deles foi parte importante do processo, facilitando o
acesso ao campo e a interação com outros atletas.
2.3 As entrevistas
O caminho para chegar aos entrevistados se deu pela mesma pessoa que me
autorizou o trabalho de campo na UAI. Para evitar qualquer viés que poderia gerar
uma seleção pessoal de entrevistados, cujas histórias conheço parcialmente, pedi à
Juliana autorização para expor minha pesquisa em um grupo de whatsapp que
reunia atletas e equipes de apoio de uma prova a ser realizada em abril de 2017.
Após a breve exposição, solicitei que os interessados em me conceder entrevistas
me procurassem de forma privada, desde que cumprissem os critérios de inclusão, a
saber: (a) ter mais de 18 anos, (b) já ter completado pelo menos uma prova de cem
ou mais quilômetros. Recebi a partir desta estratégia 19 respostas positivas: 13
deles moravam fora do estado do Rio de Janeiro, 05 moravam na cidade do Rio de
Janeiro e 01 em uma cidade da região serrana do estado do Rio. Por questões de
logística e para seguir o número de entrevistas que constava no projeto submetido
ao Conselho de Ética em Pesquisa, realizei entrevistas com os 6 voluntários do
estado do Rio de Janeiro. Todos os entrevistados, já haviam completado os 235Km
da UAI ao menos uma vez. As entrevistas foram abertas, tiveram duração média de
cerca de 2 horas e foram realizadas em locais escolhidos pelos entrevistados. Todos
eles já haviam corrido ao menos uma vez a UAI e eram conhecidos meus, alguns
com maior proximidade, outros com pouquíssima.
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admiradores para levar a cabo os desafios que cria, dentre eles tem
sido comum a busca por quebra de recordes mundiais, sempre
associando a corrida ao auxílio a instituições filantrópicas ligadas ao
câncer ou ao cuidado de crianças e idosos. Sua presença em provas é
mais centrada no auxílio a amigos ultramaratonistas, como apoio.
Conheci Marcio na ocasião do recorde sobre esteira, quando atuei
como uma das fisioterapeutas que o atendiam; desde então mantemos
contato em seus eventos e em algumas provas que participa correndo
ou apoiando atletas amigos. Nossa entrevista foi realizada em uma
galeria comercial, próximo à sua loja.
3.1 Separação
treinamentos e nas provas. Uma pergunta cuja resposta acreditava saber, mas que
me surpreendeu pela influência atribuída aos profissionais que a acompanham:
– Claro que tem, isso você sabe. Sempre teve, treino é treino, jogo é jogo.
Mas isso eu aprendi de verdade com você e com o Ribeiro [treinador], vocês que me
colocaram mais freio. E eu sigo porque confio em vocês, vocês estudaram pra isso.
Se deixasse, eu treinava forte todo dia e participava de um monte de prova por ano.
Vocês me ensinaram a segurar um pouco pra render mais... e poder dar tudo de
mim nas provas.
A crença de que o treino deve ter uma evolução gradual e ser mais
confortável do que uma prova é comum entre profissionais esportivos. Em uma
prova de ultramaratona, o corredor é autorizado a se expor a um sofrimento maior.
Mas sigamos no período pré prova, que aqui interpretamos como a etapa de
separação.
Os treinos, sejam discutidos e exibidos publicamente ou não, já marcam o
início da separação. O sujeito inicia sua preparação alterando, mesmo que
minimamente, sua rotina com o objetivo de “cumprir o desafio”. Com a divulgação
das datas do evento e a inscrição, inicia-se a preparação para a viagem. Como a
UAI inicia-se em uma manhã de sexta-feira e pode ser concluída até domingo, é
comum haver a necessidade de se organizar no trabalho para ter pelo menos um dia
de folga. Alguns buscam mais dias de folga visando o descanso na volta, mas é
comum que corredores voltem direto ao trabalho já na segunda-feira. Além do
planejamento de dias fora do trabalho, há também a organização dos custos da
viagem e de equipamentos necessários. Como exposto no capítulo anterior, as
ultramaratonas agregam pessoas de diferentes classes econômicas e sociais. Dessa
forma, há desde os participantes que compram equipamentos novos e custeiam a
viagem com seu próprio dinheiro àqueles que recebem apoio de pequenas
empresas para viagens ou que utilizam equipamentos de amigos – com exceção dos
tênis, todo equipamento pode ser tomado emprestado com outras pessoas. O
calçado é a ferramenta mais íntima do corredor, “amaciado” e “ajustado” nos treinos,
não deve ser emprestado, tampouco novo, sob o risco de machucar os pés e
prejudicar ou até inviabilizar sua participação na prova.
É comum a sensação de ansiedade nos dias ou semanas que antecedem a
prova. Os participantes contam que essa sensação vai aumentando conforme a
proximidade do evento. É comum ouvi-los sobre episódios de insônia ligados à
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inquietude que a ideia da prova estimula: “eu nunca durmo muito bem na semana
antes da prova, dá aquele nervoso”, “você já viu como fico cheia de bolinha no
braço? É da ansiedade. Depois da prova, passa”. As conversas que antecedem a
prova, já no local onde ela acontecerá, também apontam para esse “nervoso”. Fala-
se muito sobre o percurso da ultra que será feita, sobre outras provas, trocam-se
histórias sobre provas e treinos – novas ou já exaustivamente contadas e ouvidas.
14
A visão da ultramaratona como uma prova primordialmente mental faz com que seja motivo de espanto uma
pessoa com menos de 20 anos se dispor a participar desse evento, cujos participantes têm geralmente mais de 30
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iriam correr, mas tinham vindo de São Paulo para levar amigos uruguaios e
argentinos para a prova.
– Oi, Julio. Sabe como faz para entrar no hostel? Ninguém atende aqui. Será
que está lotado? Não fiz reserva...
– Meus amigos aqui fizeram. Espera, que vou ali na casa do Carlos. Sabe
onde é? É logo aqui no final da rua. Espera, que já vamos resolver.
Carlos é o idealizador e organizador da prova, um homem de cerca de 50
anos, que idealizou o percurso e que acompanha e coordena de perto a organização
de todas as edições do evento. Enquanto o carro saía, chegava um homem de vinte
e poucos anos, magro e de cabelos pretos, arrastando uma mala de rodinhas.
Nunca o tinha visto. Apresentou-se como Leonardo, vinha de Santarém (PA) para
correr a prova pela primeira vez, na modalidade dos 95Km. Nosso primeiro contato
durou o justo tempo de Julio voltar em seu carro, acompanhado de Carlos e sua
esposa, Mara, a pé.
Carlos, como falei anteriormente, é o criador e organizador da prova. Junto
dele trabalham sua filha, Juliana, e seu genro, Washington, além de funcionários
contratados para trabalhar em seus eventos. Como de costume, Carlos chegou
alegre e, em seu passo tranquilo, nos mostrou uma pequena corda entre as frestas
do portão grande, que servia para abri-lo. Subimos a pé eu, Leonardo, Carlos e
Mara, Julio foi em seguida com seu carro. O casarão onde funciona o hostel é bem
antigo, não muito bem conservado, mas consideravelmente menos frio do que a rua.
Não havia um funcionário ou proprietário lá, tampouco se encontrava qualquer
movimentação de hóspedes. Entramos pela porta da cozinha, enquanto os
cachorros da casa vinham até nós latindo. Carlos dizia para entrarmos e
escolhermos um quarto, porque na manhã seguinte chegaria Dona Crisália,
funcionária antiga de lá, com quem poderíamos acertar os pagamentos da
hospedagem.
Julio estacionou o carro; ele é um homem baixo, que cultiva uma barriga
bastante proeminente, foi o primeiro a sair do carro e, por um instante, me pareceu
que nunca mais pararia de sair gente dali. Do banco carona saiu Eduardo, um
uruguaio alto e largo, com uma considerável quantidade de gordura corporal, do
banco de trás vieram Gabi – filha de Julio – e Rafael, Pedro, Maria e Julia. Esses
anos. Esse fato é bastante comentado e até questionado por outros ultramaratonistas, que acreditam ser uma
exposição precoce e até desnecessária ao esporte.
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quatro com idade entre 30 e 40 anos e corpos atléticos, com Eduardo foram logo
buscar um quarto com cinco camas para permanecerem juntos.
Não pretendo gastar o tempo do leitor com pormenores da chegada à cidade
em vão, as histórias contadas são importantes para uma maior compreensão da
característica pessoal das provas. Os organizadores sabem quem irá participar, seus
nomes e cidades, ou países de origem, ainda que essa edição tenha sido a maior
em número de inscritos comparada com todas as edições anteriores dessa e de
outras provas de ultramaratona por distância no Brasil. A atmosfera de cooperação
mútua desponta desde a chegada dos participantes à cidade da prova e inicia de
pronto conversas sobre o percurso, os treinos e outras ultramaratonas.
Ainda à noite, Leonardo me contou que é “ex-alcoólatra”, que costumava ser
um problema para a família e, após um longo tratamento psicoterapêutico, parou de
beber. Ao abandonar o vício, entretanto, passou a engordar muito e, para
emagrecer, iniciou a caminhar e, depois, a correr. Foi um tio, que o apoiava muito
nessa mudança de estilo de vida, quem o incentivou a participar de sua primeira
maratona. Não era uma maratona comum, em pista de asfalto, mas sim a Jungle
Marathon. A proposta do tio era que ele corresse 42km, e em troca deveria auxiliá-lo
nos serviços que prestava para o evento, como montar e desmontar postos de
controle.
Leonardo aceitou a proposta e conta com orgulho como completou a prova:
– Lá tem um quilômetro só de Igarapé, com água aqui no peito; mais um
quilômeto só de guipó... mas eu terminei! E quando terminei a organizadora me
tratou como atleta mesmo, me deu a medalha! Agora vim fazer os noventa e cinco
porque se eu consegui fazer quarenta e dois na selva, consigo fazer noventa e cinco
aqui.
Seguiu falando sobre como estava preparado para conseguir concluir os
95Km, que levaria a medalha para casa e que o tio o havia ajudado a estar ali, que
era importante, então, mostrar a ele a medalha que conquistaria em poucos dias. A
perspectiva de conseguir a medalha, ou “conquistar”, como eles costumam falar, é
um aspecto relevante para os ultramaratonistas. Um troféu ou uma medalha é a
reificação de sua conquista, no sentido em que corporifica e funciona como
metonímia de um processo de preparação, esforço e superação pessoal. Na etapa
de separação, já apartados de sua vida cotidiana, surgem com mais frequência os
discursos sobre o que foi feito para chegar até a prova – ressaltam-se o preparo e a
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até ter ficado vinte e quatro horas acordado, mas não foi vinte e quatro horas nem
andando, porque se ficasse andando faria cem. Então só tira a foto pra postar lá no
facebook.
As acusações de carona são muito graves, assim como as de correr pouco
em uma ultramaratona por tempo. Esses são os casos mais extremos de
questionamento da identidade de um sujeito como ultramaratonista, que parecem
ser mais comuns atualmente, quando o número de participantes dessa modalidade
vem crescendo constantemente. Em entrevista, Marcio Villar falou:
– É moda agora, antes todo mundo queria ser maratonista, aí agora quer ser
ultramaratonista. Aí o cara vai lá numa prova de vinte e quatro horas, anda
cinquenta quilômetros e diz que é ultramaratonista. Ah, vai tomar no cu! Sabe o que
é isso? É o ego, o ego das pessoas. Aí vai pruma prova, corta caminho, pegado
carona. Pra que? Tá enganando quem, a si próprio? Pode chegar em último, mas
sabe que você conquistou aquilo com teu suor. Isso não tem preço. Mas é pra postar
pros outros, é o facebook, mostrar pros outros que é o fodão.
Há casos mais brandos desse tipo de questionamento, como situações em
que o sujeito abandona a prova sem um motivo legitimado pelos demais
participantes. Pedro lembrou, em entrevista, de uma de suas primeiras provas,
quando desistiu por causa de uma tempestade com raios.
– Teve aquela prova, que desisti por causa dos raios... até você naquele
jantar falou a meu favor, nunca esqueço, todo mundo, Marcelino, todo mundo na
mesa falando, “ah, você tem que ser mais forte e tal”, aí eu falei “mas eu não desisti
por dor ou outra coisa, foi por um perigo real, de raio. Raio mata” e aí “mas tava
longe o raio”... eu vou saber se tá longe ou se não tá longe? Talvez hoje eu não
desistisse, mas essa foi a única prova que eu desisti.
A ponderação final na fala de Pedro mostra a ideia de evolução da “força
mental” tão presente no discurso dos ultramaratonistas. Salvo raras exceções, de
estreantes que atingem pódios e surpreendem os mais antigos, a regra é os mais
novos aprenderem com os mais experientes, ouvindo suas histórias e conselhos. A
adesão à modalidade deve-se em grande parte ao estímulo de ultramaratonistas
mais experientes. À pergunta sobre como estreou nas provas de longa distância,
João respondeu:
– E até brinco com o Márcio [Villar], né? Porque ele é o mais importante
nessa coisa, né? Eu era maratonista e virei ultramaratonista. Porque eu fiz uma
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pergunta importante pra ele, falei “pô, Marcio, tem uma prova lá, que é 6 dias depois
da prova que vou fazer em Berlim”, aí eu falei “mas eu não sei se eu faço, se eu não
faço, meu treinador não quer que eu faça Berlim pra mais de três horas”. Aí ele
chegou pra mim e falou “o que vai te deixar mais feliz? Você correr uma maratona
pra baixo de 3 horas ou você correr duas maratonas seguidas?”, aí eu respondi sem
pensar “claro que são duas maratonas seguidas!”, aí ele falou [sorrindo] “então tu é
ultra, rapá! Vai lá e faz é as duas. Tira o pé de Berlim, se não tu vai sofrer na
seguinte”. Aí eu fui lá e fiz isso, né?
Neves também respondeu ao mesmo questionamento, falando da influência
de um colega de exército para seu início e, posteriormente, de Marcio Villar, que se
tornou um grande amigo e parceiro de ultramaratonas, ora correndo juntos, ora um
trabalhando como apoio do outro:
– Eu era goleiro da seleção brasileira de futebol militar, em 2007 tive o câncer.
Em 2009 fui liberado para praticar esporte, com restrição a esporte que tivesse
atrito, contato, futebol, basquete... Então foi quando comecei a correr, como sou
militar e sou da área de infantaria e o infante, a gente tem que ter um
condicionamento apurado, comecei a correr, até que fui convidado por um amigo a
fazer uma prova de 24 horas lá em campinas. Foi o Jorge que me via treinando lá na
pista que me falou que tinha ultra, eu tinha feito uma maratona em junho e em
outubro fiz essa, fiz 158 km. Foi quando eu conheci o Márcio, ele soube do meu
problema, ele estava com a mãe em tratamento, que veio a falecer depois, aí a
gente criou esse laço.
No café-da-manhã que antecedia ao dia da largada, Adilson contava a mim e
a Leonardo sobre seu começo nas ultramaratonas:
– Eu já corria, corria muito. Em Teresina não tinha muitos corredores, então
todo mundo me achava louco. Quando dizia que queria fazer ultras, aí sim que me
achavam mais louco ainda! Até que um dia eu conheci um gringo, amigo de um
amigo, que morava em Teresina e era ultra. Nessa época eu queria fazer a prova
dos cem quilômetros de Cubatão, mas o gringo disse: “Adilson, nessa prova você
tem o tempo limite de doze horas, você vai ter só doze horas para terminar os cem
quilômetros, e você ainda não está preparado para isso. Por que você não procura
uma prova de vinte e quatro horas e faz os seus cem quilômetros? ”. E foi o que fiz,
em vinte e quatro horas, corri cento e doze quilômetros.
53
15
BR135 é uma prova de 135 milhas conhecida pelo alto nível de dificuldade e que, assim como a
UAI, pontua no ranking internacional de trail running
54
falar “fiz três dígitos, me respeite! E o bom é entre oitenta e cento e cinquenta
quilômetros, nesse momento você não sente nada. Resolve um monte de problema
na cabeça e cria uns outros tantos. Porque a essa altura você vai sofrer e vai
arrumar um jeito de superar isso... e aí você vai se introspectando.
Leonardo sorriu e me olhou, respondi seu sorriso com mais um estímulo à
ideia de Adilson:
– Bem, meu plano é ficar horas no PC 95 por causa do meu trabalho. Se
precisar de alguém pra rodar esses cinco quilômetros com você, pode me chamar.
Mesmo se eu estiver dormindo, levanto e vou contigo... acho até que ir até o fim da
rua principal e voltar já dá os cinco.
Leonardo coçou a cabeça e foi tomar banho. Talvez esperasse que, como
profissional de saúde, eu dissesse que seria melhor manter-se nos 95Km.
Esse diálogo não foi motivado por um questionamento da capacidade de
Leonardo de se tornar um ultramaratonista. Mas sim pelo desejo de ver o outro
conquistando os tais “três dígitos”, indo além do que ele mesmo pensa que pode
porque os outros acreditam que ele pode mais – e ver o outro indo além é prazeroso
também para quem o incentiva. “Um puxa o outro” é comum ouvir entre os atletas,
tendo como base o “princípio da perfectibilidade” (DUARTE, 1999) em que o
aperfeiçoamento é contínuo e ilimitado.
O aspecto da solidariedade e do desejo de ver não só a si mesmo, mas
também o outro atingindo objetivos (ou desafios) maiores, isso será observado
durante todo o evento e, de maneira mais horizontal entre os participantes na etapa
liminoide. Na etapa de separação ainda é bastante marcada a diferença de
experiência entre os participantes, gerando uma conversa muitas vezes mais
vertical, em que os mais novos escutam mais e opinam menos. O intercâmbio de
informações e dicas também acontece entre equipes de apoio, que cumprem um
papel importante para incentivo de corredores apoiados ou não por eles 16. Entre os
mais experientes as trocas continuam a acontecer, mas aqui surgem como trocas de
histórias de seus feitos. As histórias contadas e recontadas constantemente entre
atletas e equipes de apoio, além de conter episódios cômicos, parecem narrar
16
As equipes de apoio não estão em foco nesse estudo, a troca de experiências entre eles, portanto,
não será abordada. A importância de sua relação com corredores será tratada na discussão sobre a
fase liminoide da prova.
55
A entrega dos kits ocorreu na tarde anterior à largada e, no início da noite, foi
realizado o congresso técnico. Os dois eventos aconteceram em uma escola que,
por ocasião de férias do ano letivo, estava sem aulas. Um edifício de três andares
construído em um terreno grande, com pátio para estacionamento na frente e
ginásio nos fundos. O ginásio estava em um anexo, no segundo andar havia um
salão com palco e um corredor largo e extenso onde havia quartos, que
funcionavam como alojamento para os atletas que haviam escolhido essa forma de
hospedagem em sua inscrição. Colado em cada porta de quarto, um papel impresso
com o nome dos atletas que ali se hospedariam. Em toda a extensão do corredor,
havia estandes de venda de material esportivo, somavam-se quatro no total, todos
de lojas ou empresas já consolidadas e um da organização do evento, que vendia
camisetas, canecas e demais acessórios da prova e de outras provas realizadas
pela mesma organização. Os participantes amontoavam-se nos estandes olhando e
comprando produtos. No fim do corredor, achava-se o estande onde ocorria a
entrega dos kits, compostos pelo número de peito e por camisa própria para prática
esportiva, caneca térmica e uma faixa de trilha (uma espécie de gola de tecido, que
pode ser usada como gola no pescoço ou bandana na cabeça), todos os itens
gravados com o logotipo do evento. Os atletas formavam-se em filas de acordo com
a primeira letra do nome e esperavam para pegar seu kit mediante a apresentação
do material obrigatório e do número de inscrição - muitos atletas não apresentavam
material obrigatório completo, e buscavam o que faltava nas lojas do corredor.
Dentro do salão havia cerca de duzentas cadeiras organizadas em duas grandes
56
Marcio hoje afirma não gostar de participar de provas, não se importa mais
com medalhas ou troféus, sua motivação é a filantropia, como contou em nossa
entrevista:
– Eu não faço mais essas provas, não quero disputar com ninguém, quero me
superar e sempre com uma causa filantrópica. Eu chego pra você: “se eu bater o
recorde, você doa mil latas de leite em pó pro INCA?”, você fala “doo”. Então isso
me motiva. Porque eu sei que se eu não bater o recorde, as crianças vão ficar sem o
leite. O que me motiva é a parte filantrópica. É a força da mente. A gente tem uma
força dentro da gente que a gente desconhece. Ah, deus quis assim. Inventa uma
desculpa. Pra fazer uma prova, eu treino minha mente. Eu tô treinando, parece que
entro em estado de alfa. Parece que eu saio e volto pro meu corpo. Eu fico
imaginando eu chegando, na corrida mesmo. Às vezes eu me pego sorrindo,
correndo sozinho, como se aquilo tivesse acontecendo mesmo. Quando eu olho
assim já passava duas três horas de treino e nem me liguei.
Tanto pelo seu livro, quanto pelas palestras motivacionais que confere
profissionalmente, Marcio é conhecido por inspirar muitos maratonistas a se
tornarem ultramaratonistas. Em todas as provas que participa como atleta, como
apoio, ou como vendedor de seus livros e artigos esportivos, é sempre parado por
muitas pessoas para fotos e conversas. Nesse dia não foi diferente. Em seu estande
havia mais duas pessoas para realizar as vendas: sua esposa, Ana, e seu amigo e
também ultramaratonista Neves. Entretanto, todos os clientes pareciam querer
conversar e comprar diretamente com Marcio, que, prescindindo de muitas
perguntas, falava sobre a prova com propriedade e em uma cadência veloz:
– É a primeira vez que você vai fazer, né? Tem corta vento? Vai precisar lá
em cima. Aquela subida que é dura... tem apito? É material obrigatório, hein!
Entre poses para fotos e autógrafos em seus livros, Marcio vendeu de comida
desidratada a roupas térmicas, passando por apitos e lanternas.
Neves, que mantinha os zíperes das bocas da calça abertos, de modo a
deixar à mostra duas tatuagens de logotipos de provas já realizadas, destacava a
preferência dada a Marcio:
– O que ele fala tem valor, não o que eu falo. Nada do que eu fiz tem valor,
sou só o cara que costura o pé dele.
Ainda que Neves tenha participado e completado muitas ultramaratonas,
como faz questão de expor ao deixar à mostra suas tatuagens, acredita ser visto
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apenas como apoio do Marcio, que por sua vez tem uma considerável proeminência
sobre os ultramaratonistas. Observa-se aqui a hierarquia existente entre
ultramaratonistas cuja identidade como tal já é estabelecida.
Marcio Villar não é o tipo que faz questão de subir em pódios, prefere
diferenciar-se dos demais fazendo distâncias mais longas. Com seus livros e
palestras motivacionais, busca inspirar outras pessoas, corredores ou não, a
dominarem sua mente para atingir seus objetivos. É a sua força mental que é
celebrada e admirada, não sua forma ou força físicas. Em entrevista, ele demonstra
a ideia da separação e superioridade da mente sobre o corpo.
– A mente é muito mais forte que o corpo. Se eu tivesse com o corpo mais
forte e não tivesse com a mente legal, não tivesse com certeza, ou se tivesse
brigando com minha esposa, ou querendo separar ou triste com alguma coisa...
Muitas vezes quando você tá aborrecido com alguma coisa, você vai dar um trotinho
e não rende, para. Agora quando a mente tá forte, o corpo mesmo sem tá cem por
cento, você tira da onde não tem.
O desenvolvimento da força mental não é um segredo a ser guardado por
ultramaratonistas. Ao contrário, eles conversam a todo tempo sobre a importância
dessa força e estimulam uns aos outros a se inscreverem e a não abandonarem
provas. As palestras motivacionais que Marcio confere profissionalmente são mais
uma forma de divulgar essa ideia e de servir de exemplo para outras pessoas. Aliás,
servir de exemplo é um pensamento comum entre muitos atletas, uma questão a ser
desenvolvida mais tarde, na etapa de agregação.
A hierarquia entre ultramaratonistas já estabelecidos manifesta-se através
dessa classificação moral, da ideia de quem pode servir como um melhor “exemplo”.
São a qualidade e a quantidade dos feitos que fazem de um ultramaratonista mais
ou menos exemplar.
Carlinha e Arthur chegaram enquanto conversava com Neves. Ela é uma
mulher negra, ultramaratonista conhecida, bicampeã e bi recordista dessa prova,
que não competiria nesse ano por estar se preparando para outra prova. Além de
ser minha paciente há alguns anos, tornou-se amiga. Arthur, um homem negro e
bastante alto, é seu marido e o responsável por organizar seu apoio em todas as
provas em que ela participa nessa modalidade e nos últimos dois anos dividimos
dias dentro de um carro, com pouco sono e bastante cansaço. Por isso o convidei
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desaparecido há dois dias. Carlinha me olhou, segurando o choro, passei meu braço
sobre seus ombros e ela me disse com voz absolutamente determinada:
– Vou correr os duzentos e trinta e cinco e vou de survivor. Agora eu que não
quero apoio, preciso correr sozinha, preciso ficar sozinha, preciso resolver isso na
minha cabeça.
– Tudo bem. Desce um pouco com o Arthur, fiquem juntos um pouco, que vou
avisar à Juliana que você vai correr. Mas dá um confere no que você trouxe porque
pode estar faltando algum item obrigatório. A gente resolve tudo hoje pra pegar o kit
amanhã cedo.
Naquele momento não poderia dissuadi-la da ideia de correr, ainda que na
posição de profissional de saúde da equipe dela, não havia justificativa de excesso
ou mudança abrupta de treinamento plausíveis para impedi-la de correr. Não era
mais sobre treino, sobre melhorar distância em 24 horas, ou sobre poupar o corpo
de uma possível fadiga, mas sim sobre se reorganizar emocionalmente, tentar
superar a dor da perda de um (quase) filho. Entendi ali que a forma que ela teria de
buscar sua paz seria correndo.
Porque, como havia dito Adilson mais cedo, na ultramaratona, com os
momentos de introspecção, vão-se resolvendo “um monte de problema na cabeça”.
Como a análise feita por Le Breton (2010) sobre as escarificações infringidas ao
próprio corpo por adolescentes, há um sentido de contenção, de controle do
sofrimento emocional através da dor auto infringida. Ao promover em si mesmo uma
dor cujo fim o adolescente tem como prever, ele tem a sensação de poder controlar
o sofrimento emocional a que está submetido. “Ferir-se para estar menos ferido. Ela
opõe a dor ao sofrimento, a lesão física à lesão moral” (Le Breton, 2010, p.36). De
modo semelhante, supúnhamos Carlinha, Arthur, eu e todos os que souberam de
sua decisão que a dor de mais uma mulher negra, moradora da favela, ao perder o
sobrinho, igualmente negro e favelado, poderia ser suplantada pelo sofrimento e
prazer suscitados pelos 235 Km da prova.
Não foi difícil inscrevê-la um dia antes da largada: além da situação em que
se encontrava e da necessidade de fazer aquela ultra, Carlinha é muito carismática
e querida pela organização dessa prova. Quando consegui encontrar a Juliana, ela
sabia do que acontecera e já havia providenciado sua inscrição. Lidando com esses
imprevistos delicados, acabei por me atrasar alguns minutos para o congresso
técnico.
61
Quando cheguei ao salão, a maior parte das cadeiras estava ocupada, mas
ainda havia muita gente dispersa pelo corredor, pelos estandes, promovendo um
falatório que ainda não tinha visto em edições anteriores da mesma prova. Talvez
isso tenha acontecido por essa edição ter muito mais participantes que as anteriores
– segundo a organização, contavam com o maior número de inscritos não apenas
em relação aos anos anteriores, mas em relação a todas as provas do Brasil, sendo
a maior ultramaratona do país.
Muitos atletas optam por não participar do congresso técnico. Geralmente
alegam que leem todo o regulamento e não precisam ouvir tudo de novo, ou que já
conhecem a prova. Mas há aqueles que preferem participar mesmo tendo lido o
regulamento para saber se houve alguma alteração ou nova orientação da
organização do evento, e também há os que não leem o regulamento e preferem
tirar dúvidas e receber as instruções nesse momento.
Carlos falava em um microfone, ligado a uma caixa de som pouco potente
para a amplidão do espaço. Ele apresentava o atleta que dobraria a prova desse
ano, tendo chegado a Passa Quatro na noite anterior, e largaria com os demais
participantes na manhã seguinte. Após aplausos e celebrações ao “guerreiro”, como
era chamado, ele avisou sobre os mata-burros do percurso. Por ser uma região
rural, há muitos mata-burros no percurso. Geralmente localizado em porteiras de
sítios e fazendas, mata-burro é uma vala coberta por tábuas espaçadas e dispostas
horizontalmente, com o objetivo de evitar a passagem de animais. Carlos advertia
que faltavam tábuas em alguns deles, o que poderia ocasionar acidentes. Falou
também sobre os alimentos oferecidos em cada posto de controle e sobre os valores
dos alimentos vendidos em estabelecimentos onde eram montados alguns desses
PCs. Logo depois abriu para perguntas.
As primeiras dúvidas eram de estreantes na prova, todas sobre o percurso. A
prova toda tem um percurso pré-definido, que é o mesmo desde a primeira edição;
existe um mapa eletrônico disponível para download, que pode ser lido por
aplicativos com GPS de smartphones e tablets, além de uma versão impressa, que
62
todo participante deve ter consigo. A maior parte do percurso pode ser
acompanhada pelos carros de apoio, mas existem trechos em que os carros não
podem passar, seja por uma questão de espaço, seja por ser área de preservação
ambiental. Por isso, há também mapas exclusivos da equipe de apoio. Além dos
mapas, todo o percurso dos atletas é sinalizado por setas amarelas e, nos locais
onde não é possível pintar setas, há uma marcação com tecidos reflexivos também
na cor amarela, que indicam por onde se deve seguir.
O trecho mais longo em que os atletas ficam sem apoio é de 20km, a
travessia de uma serra, onde faz muito frio, sobretudo porque é sempre percorrida
durante a noite ou madrugada. Os atletas costumam demorar de seis a dez horas
para completar esse trajeto. Esse é um dos pontos mais comentados entre os
corredores e Carlos frisou veementemente a necessidade de muito cuidado também
na descida porque o terreno é muito acidentado e pode causar acidentes. Também
explica sobre o funcionamento das vans de volta nas provas menores – cada posto
de controle (25Km, 65Km, 95Km e 135Km) tem um serviço de van que leva os
atletas de volta para Passa Quatro. As vans não têm horário fixo de saída e, muitas
vezes, os atletas precisam esperar mais tempo do que gostariam para voltar. Existe
também a preferência de entrada na van: atletas que completaram a prova naquele
PC podem embarcar antes dos que fariam distâncias maiores, mas por qualquer
motivo, desistiram de seguir. Alguns veteranos lembravam sobre pontos importantes
de serem ditos sobre o percurso, como diferença de desvios para carros de apoio
com tração e sem tração, a obrigatoriedade de parada em um posto no alto da serra,
que muito perdem por ser afastado da trilha.
Durou cerca de trinta minutos todo o congresso, sendo encerrado por
aplausos. Quando eu saía do salão em busca de Carlinha e Arthur, fui abordada por
Osvaldo, atleta conhecido como fenômeno das ultramaratonas desde 2014, mas que
vinha de duas desistências seguidas. Não sabia que havia quebrado nessas provas,
por isso estranhei quando, ao nos cumprimentarmos, ele disse:
– Vim pra reconquistar minha confiança. Porque quando você vai a uma prova
e não consegue completar, vai a outra e não consegue completar, fica sem
confiança, né? Essa eu vim pra completar... porque quando você vai pra competir,
acho que fica muito diferente... e quando você vai pra completar, talvez até
consegue bons resultados.
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– Todo mundo tem altos e baixos, Osvaldo. Tenho certeza que você vai
terminar essa prova, você é um atleta sensacional e conhece isso aqui muito bem.
Osvaldo tinha o recorde dessa prova e sempre foi conhecido pela sua
velocidade. Quem atua nesse esporte, geralmente acredita que a autoconfiança é
um dos pilares para o bom desempenho do atleta. Comigo não é diferente e, ainda
que estivesse ali como pesquisadora, não pude deixar de me preocupar com seu
abatimento e insegurança. Partilhando da crença de que a mente comanda o corpo,
pedi atletas conhecidos meus e do Osvaldo que conversassem com ele e tentassem
animá-lo.
Encontrei Carlinha ainda na saída do salão. Ela havia assistido todo
congresso e, diante do meu espanto, disse que, se iria correr, não poderia deixar de
ir ao congresso.
Como a largada seria dada às 8:00 da manhã, às 7:00 cheguei ao local onde
ela aconteceria, um campo aberto de gramado. O pórtico de largada, montado com
uma estrutura de metal, ficava logo após um corredor balizado por cavaletes de
metal, onde os atletas se organizariam minutos antes da largada. Anterior a esse
corredor, a uma distância de cerca de 15 metros, estavam montadas duas tendas,
separadas por um largo espaço também coberto: uma onde havia equipamento de
som e DJ selecionando as músicas que tocavam a um volume alto o suficiente para
ser ouvida por todo o campo; e outra onde eram entregues os kits aos que não
haviam chegado tempo no dia anterior. No espaço que as separava, havia um painel
como logotipos da prova em preto e branco; ali se formava uma grande fila em que
os participantes esperavam para tirar fotografias com o fundo dos logotipos.
Fotografias lá eram comuns: atletas novatos pediam para tirar fotos com os mais
experientes e conhecidos, amigos e colegas de equipe posavam para selfies. Havia
também a gravação de vídeos a partir de smartphones, uma atleta fazia um vídeo,
que parecia ser uma transmissão ao vivo, em que, com uma emotividade vigorosa,
dizia “eu não vou desistir! Não vou desistir! Sei o quanto é difícil, é duro, mas eu não
vou desistir!”. Ouvi outros atletas comentando entre si sobre a moça do vídeo: “se
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ela já está assim agora, imagina quando chegar na subida?”. A dúvida sobre a força
mental de uma participante cuja identidade de ultramaratonista ainda não foi
estabelecida é externada pela jocosidade em relação às suas afirmações exaltadas
sobre sua própria capacidade de conseguir completar o “desafio”.
Conforme a hora da largada se aproximava, era comum ver grupos de amigos
dando as mãos e formando círculos para fazer orações ou falas de afirmação de
força e de capacidade de chegar bem ao fim da prova. Grande parte deles ostentava
tatuagens em suas panturrilhas com logotipos de provas já realizadas, marcas
corporais de seus feitos heroicos. É nesse momento que muitos ultramaratonistas
lançam mão de medicamentos analgésicos ou anti-inflamatórios para evitar uma
sensação dolorosa logo nas primeiras horas de prova, período de adaptação do
corpo ao exercício físico, conhecido por suscitar uma sensação de desconforto. O
uso desses medicamentos não surge no discurso cotidiano dos ultramaratonistas
como algo classificado de maneira distinta do uso de outras substâncias, como a
cápsula de sal, ou soro ou alimentos salgados, usados durante a prova com o
objetivo de evitar desidratação, tampouco de cápsulas de cafeína, ou copos ou balas
de café, para se manter desperto em todo o percurso.
– Eu, na largada da prova, meia hora antes, tomo dois torsilax pra evitar dor e
relaxar a musculatura. E dias antes da prova – Marcelino aproximou-se de mim
como quem conta um segredo – como angu com leite. Não como batata, nada disso.
Angu com leite é minha preparação. E tomo muita agua, me hidrato bem. Não tem
muito esse negócio... eu não fui acostumado... eu como tudo. Durante a prova eu
como camarãozinho [biscoito salgado sabor camarão] por causa do sal, não tomo
cápsula de sal porque ela me faz mal se eu tomar demasiado. E isso aqui
[camarãozinho] eu coloco controlado. Tem que ter dentro da minha mochila
castanha, amendoim verdinho, isso [camarãozinho] e bala de café. Bala de café por
causa da cafeína.
A utilização dessas substâncias não surgiu espontaneamente nas entrevistas
realizadas, sendo faladas apenas após a pergunta específica sobre o tema. Isso
provavelmente aconteceu porque o discurso sobre as provas é inteiramente
centrado na força mental para superar qualquer dor, inclusive a dor do luto.
Encontrei Carlinha e Arthur, perguntei se estava tudo bem com ela.
– Vou ficar, só preciso correr sozinha. Não dormi nada essa noite.
65
– Vai ficar – e, dando um abraço nela, continuei –, que aquela serra te ajude a
resolver tudo o que precisa. Afastei-me dos dois e fui procurar outros atletas para
desejar boa prova.
A etapa de separação marca o início do evento de ultramaratona. Pode ter
seu começo na inscrição do participante no evento e suas posteriores divulgação e
conversas sobre o tema com amigos ou com desconhecidos em fóruns virtuais, e é
finalizada no momento da largada. Nessa etapa já se observa a solidariedade entre
os participantes – atletas, organizadores e apoios – e o estímulo ao sucesso do
outro, numa situação de communitas. Mas ainda há uma marcação de hierarquia
entre eles, desde os de identidade estabelecida e os que ainda precisam de mais
provas para se firmar como ultramaratonistas, até entre os que já são
ultramaratonistas reconhecidos pelos seus pares como tal. Essa hierarquia borra-se
durante a prova, na etapa liminoide, levando a uma linearidade entre os atletas.
Doer ainda é uma ideia de futuro, a dor aparece nessa etapa como uma entidade
externa a si, que deve ser evitada não apenas com a própria força mental, mas
também com medicamentos analgésicos.
Felipão, ainda muito nervoso, pediu para sentar. Sua mãe prontamente tirou
um banquinho da mala do carro e o armou na calçada. Felipão se sentou e recebeu
um prato de comida do colega, que se agachou para olhar suas pernas:
– Deixa ver esse joelho – enquanto palpava a articulação sem demonstrar
muita importância, muda de assunto; tem muita pedrinha no caminho, elas entram
no tênis e machucam os pés, isso é que é incômodo. Você não quer trocar de meia?
Felipão diz que não, mas descalça os tênis para tirar as pedras, pedindo
Hipoglós à sua esposa. O treinador se levanta e vai falar com outros corredores.
Outro corredor observa Felipão passando a pomada nos pés e senta no meio
fio, ao lado dele, para falar sobre bolhas, tira o tênis, mostra o pé. Eles começam a
conversar sobre os tipos de tênis bons para a prova.
As dores sofridas por Felipão foram ignoradas pelo colega, como uma forma
de demonstrar que elas não importavam e que não eram dignas de atenção. “Se eu
desse trela, ele ia pirar nesse joelho”, me disse o apoio. O aprendizado das
maneiras de doer em uma prova acontece principalmente na relação com
ultramaratonistas mais experientes. As práticas e saberes são transmitidas também
pelos silêncios. Da mesma forma que os fisiculturistas estudados por Sabino e Luz
(2014), os ultramaratonistas desenvolvem sua percepção de estar-em-dor a partir de
um saber corporal e prático adquirido através de conversas entre si e da observação
da performance social dos mais antigos ou bem-sucedidos. A legitimidade de doer é
definida pelo grupo social.
Conversava com o ultramaratonista/apoio quando Arthur se aproximou. Ao
olhar para ele, vi Carlinha logo atrás conversando com a equipe responsável por
aquele PC.
– Não deu pra ela, Isabel. Ela não está bem, chorou muito quando me viu e
disse que não quer mais correr hoje.
– Tudo bem. Se vocês quiserem voltar pro Rio, eu me viro aqui. – respondi.
Caminhando em nossa direção, já próxima de nós, ela responde:
– Não. Tá tudo bem, eu só não consegui entrar na prova, estava me irritando.
O corpo está ótimo, é a cabeça mesmo que não está bem. Só preciso tomar um
banho e a gente segue com você.
Ela não demonstrava nenhum abatimento pela desistência. Reconhecida por
todos como uma grande ultramaratonista, não havia qualquer insegurança sobre a
69
possibilidade de ser levantada alguma dúvida a respeito de sua mente forte. Sua
identidade como ultramaratonista não estava em jogo.
No caminho até Aiuruoca, onde estava instalado o PC 95, Carlinha explicou
algumas vezes para nós e para as pessoas que se surpreendiam ao vê-la dentro do
carro – sempre que parávamos e perguntávamos se precisavam de alguma ajuda –,
que o problema não foi o corpo, mas sim a cabeça. Falando com um
ultramaratonista, que desistira de uma prova no ano anterior, ela justificou da
mesma forma sua desistência:
– Não é o corpo não, é a cabeça.
– É isso aí, nem todo dia é todo dia. Parabéns!
E voltando-se para nós, dentro do carro:
– Ele entende o que é porque ele já desistiu algumas vezes... e foi por coisa
física, imagina quando é da alma. Quisera eu que fosse algo físico.
Carlinha aqui justifica sua desistência não como proveniente do “físico”, do
“corpo”, nem da “cabeça” ou da “mente”, ela usa o termo “alma”, como uma
dimensão mais profunda do que a própria mente. Na maior parte dos momentos, ela
prefere usar o termo “cabeça” e raras vezes “mente”. Conversando comigo durante a
prova, ela explicou a diferença dos termos naquele caso:
– É porque a alma é muito de dentro... mas no fim tudo fica meio junto. A
mente, a cabeça, a alma... Mas a alma que dói, quando a alma dói, a mente não
obedece, a cabeça fica ruim. Mas agora, ajudando os outros, tá aliviando a cabeça,
a alma vai sempre sofrer isso que aconteceu.
Ajudar os outros foi a maneira que Carlinha encontrou para continuar, de
alguma forma, participando da prova. Durante o percurso de carro e nas paradas
nos postos de controle, era visível sua gana de apoiar outros atletas. Ainda no PC
65, esperávamos ela voltar do banho. Veio em nossa direção, caminhando com
rapidez, deixou a bolsa no carro e passou a remexer outras bolsas. Perguntamos o
que acontecia.
– Um rapaz ali no vestiário está super desidratado. Chegou todo coberto de
sal e nem percebeu que tava desidratado. Vou levar uns “sorinhos” para ele tomar,
senão ele não vai conseguir terminar a prova.
“Sorinhos” são pequenas ampolas de soro indicado para reidratação de
pacientes diarreicos, utilizados por muitos ultramaratonistas para evitar a
desidratação. E, ao levar os “sorinhos” para o ultra desidratado, ela não apenas o
70
uso descrito pela atleta é terapêutico e não recreativo, usa a maconha para se livrar
dos enjoos, da mesma forma que outros atletas lançam mão de outras substâncias
para isso, como alimentos salgados, por exemplo. De todo modo, a administração
dessas substâncias está ligada ao conhecimento das necessidades do próprio corpo
e dos saberes médicos que as envolvem.
O posto de controle dos 95Km é um ponto onde muitos atletas parecem
precisar não apenas do uso de substâncias, mas também de grande incentivo para
prosseguir. Josemar sentou-se em um dos bancos de plástico, próximo à mesa de
comidas, tirou os tênis e olhou para os próprios pés como quem não sabe o que
fazer. Perguntei se estava tudo bem, ele respondeu que não sabia se continuaria:
– Olha esses pés. Como vou continuar até duzentos e trinta e cinco assim?
– Vai continuar se tratar essas bolhas. Tem jeito ainda. Você tem linha e
agulha? Te ajudo a drenar. – Existe uma técnica comumente utilizada para
drenagem de bolhas, que necessita de agulha e linha de costura.
Ele fez que não com a cabeça, chamei a Carlinha para ajudar. Ela passava
pomadas em seus pés e eu ajudava a colocar absorventes femininos sob seus pés,
dentro das meias, técnica usada por muitos atletas para evitar o excesso de
umidade dentro dos calçados.
– Agora você vai só andar. Nessa serra não dá para correr, né Carlinha?
– É, não dá. Vai com calma. Chega ali em cima, toma um caldo, mas não fica
muito tempo, desce logo... aquela fogueira hipnotiza a gente e aquele calor do fogão
à lenha que tem no PC lá de cima... a gente fica molinho demais. Desistir não é
problema. Ganhei essa prova duas vezes e desisti nesse ano. Não foi corpo, foi
minha cabeça que não tá legal, mas desisti. Então esse não é problema. Mas você,
cara você pode terminar a prova, esse pé aqui é só detalhe. Vai passar e você vai
ficar muito feliz de ter terminado. Na chegada vai me falar isso!
Josemar estava bastante apreensivo. Mas após cerca de 40 minutos de muita
conversa e com os pés tratados, ele seguiu caminho.
Outro atleta, que correria 135Km, chegou querendo desistir. Pediu a
Frederico, membro da organização responsável por aquele posto de controle, que
anotasse sua desistência. Frederico perguntou o porquê, ele falou do cansaço nos
pés.
– Não faz isso. Sobe lá, no alto da serra tem um PC muito bom. Lá você toma
um banho, descansa lá em cima...
75
nesse exercício. Sua visão das relações entre as pessoas, no entanto, era a visão
de um atleta em prova, que diante do período liminoide em que está inserido, vê
suspensas as hierarquias entre seus pares. Isso não acontece entre os apoios,
apesar de todos dividirem o espírito de communitas, de forte cooperação mútua,
ainda há marcação de hierarquias. Dessa forma, naquele momento eu observava
que o apoio/treinador da candidata à desistência tinha uma relação mais próxima e
importante com ela do que a Carlinha, ainda que fosse uma atleta bastante
conhecida. Ultrapassar esses limites poderia causar um imbróglio e levar a um
conflito entre eles.
A suspensão das hierarquias entre os ultramaratonistas pode ser observada
na chegada de Osvaldo àquele posto de controle. Mesmo que abalado com sua
performance nas duas últimas provas que participara, ele continuava sendo visto
pelos demais atletas como um fenômeno do esporte. Osvaldo chegou tranquilo, veio
com outros dois atletas mais jovens. Um apoio brincou com ele:
– Osvaldo, cê tá cobrando consultoria dessa molecada, né?
– Ah, eu tenho que pegar a experiência com esse mestre! – Disse um dos
meninos.
Osvaldo riu e continuou a comer. Perguntei se estava tudo bem com ele.
– Tá cem por cento, Osvaldo?
– Cem por cento não, noventa. Mas chego lá.
Ao avistar outros corredores deixarem o PC, passou a comer mais rápido.
Carlinha chegou perto dele e falou baixo:
– Não entra nessa. Faz a sua prova, não a prova dos outros.
Balançando a cabeça em sinal de positivo, voltou a comer calmamente.
O conselho de Carlinha foi na intenção de amenizar o espírito competitivo de
Osvaldo. Momentos antes da largada, outros ultramaratonistas de ponta, como ele,
falavam sobre as duas provas que não havia completado e recomendavam que ele
não pensasse em recorde ou pódio nessa prova, mas sim que se concentrasse em
completar a prova porque “é muita pressão na mente querer colocação, é melhor
voltar às origens e só pensar em completar, a mente fica mais tranquila”; “tem que
curtir a prova, fazer a sua prova, ficar na sua estratégia, aí você não quebra”.
Observa-se aqui a ideia de que a competitividade em excesso pode desvirtuá-lo do
caminho do ultramaratonista, no sentido de tomar-lhe a virtude de um
ultramaratonista, a busca pela superação dos próprios limites através de sua “mente
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ia continuar ruim... não tinha festa, eu tava muito desconfortável, não fisicamente,
mas mentalmente desconfortável. Naquela serra.... eu não queria ficar sozinha, e a
noite é um momento que você tem que ficar bem, não é um problema pra mim correr
a noite, eu curto, mas tava me atormentando pensar em ficar sozinha a noite
pensando na minha tristeza... Na verdade, eu não tava sentindo nada, nem dor. Às
vezes você sente dor e vai passar outra coisa, você esquece as outras coisas. Nem
dor eu tava sentindo. De repente se eu tivesse sentindo dor, eu ia esquecer a dor da
emoção – respirou fundo e, com os olhos cheios d’água, continuou – e eu não tava
sentindo nada. A alma tava triste... Mas eu sinto que eu participei da prova, mas de
uma outra forma. Eu vi um outro lado, das pessoas que organizam e que tem que
ficar motivado pra não desmotivar as pessoas...
Saindo do PC 210, seguimos viagem rumo ao ponto final, a linha de chegada.
Conforme a noite chegava, era mais comum ver mulheres correndo juntas. Comentei
isso no carro e Carlinha concordou:
– As mulheres à noite sempre buscam uma companhia. Por mais forte que
seja, sempre busca alguém, nem que seja outra mulher.
Em entrevistas a questão da mulher também surgiu, mas espontaneamente.
Em ultramaratonas de trilha as mulheres correm com apoio ou, quando na condição
de survivor, buscam estar sempre acompanhadas por outras pessoas, não somente
pelos motivos que os homens também optam por companhia, como a distração das
conversas, a ajuda mútua e o inventivo a continuar, mas principalmente pelo medo
da violência sexual a que se sentem expostas ao percorrerem lugares ermos
sozinhas.
Já se marcava quase 40 horas de prova quando passamos por um atleta
trotando ao lado de um cachorro e de um apoio, o carro do apoio estacionado cerca
de 500m adiante, o ultra falava ao telefone emocionado:
– Filha, o papai tá correndo com um cachorro, filha. Se ele terminar a prova
com o papai, papai leva ele pra casa. Olha, papai tá chegando quase, falta pouco,
papai vai levar o troféu pra casa.
Falar ou pensar na família é um dos recursos de que ultramaratonistas
lançam mão com o objetivo de superar um momento de intenso sofrimento e de
grande vontade de desistência da prova. O compromisso com os filhos,
companheiro ou outros familiares é importante para que reafirmem o compromisso
de finalizar a prova. Da mesma maneira, os que vinculam suas provas a atividades
82
É interessante notar que os que terminam a prova dos 135 e dos 235Km não
demonstram tanto entusiasmo quanto os que finalizam suas corridas nos 65 ou
95Km. Recebem seus troféus e as informações sobre tempo e colocação quietos,
muitas vezes reclamam justamente do tempo, da colocação ou de algum fato que
passaram na prova. A alegria por terem completado a prova só surge depois de
algumas horas.
A chegada era fisicamente no mesmo local de onde havia ocorrido, há 48
horas antes, a largada. Na linha de chegada fica-se muito tempo esperando, há uma
diferença grande de tempo entre um atleta e outro. Às vezes passa-se mais de uma
hora sem nenhuma movimentação, nem mesmo dos cachorros de rua que
procuravam se aquecer no tapete que cobria o gramado próximo aos estandes.
Muitas vezes chegavam amigos e familiares de algum atleta para esperar a
chegada. Quando algum atleta se aproximava, todos ficavam a postos para anotar
número, hora, ver qual troféu entregar – se de survivor ou de atleta com apoio –
fazer a fotografia do ultramaratonista com seu troféu em frente ao painel das logos
impressas e, antes de tudo isso, colocar em um volume bem alto o tema da vitória,
que embalava as chegadas de Ayrton Senna na transmissão de Fórmula 1 na
televisão há algumas décadas atrás.
O primeiro colocado chegou com 37 horas de prova, cerca de dez da noite, e
esperou até as duas horas da manhã para um amigo chegar. O campeão chegou
com cajado, disse sentir muitas dores nos joelhos e tornozelos, mas não reclamava
das dores, dizia só que preferia esperar o amigo para ir ao hospital.
O tempo passava arrastado na linha de chegada, mas a sensação de tédio
era, vez ou outra, rompida pela chegada de mais um atleta.
– Quando eu vi que o cara de branco tava ali na minha frente, eu fui atrás. Até
esqueci o pé que estava doendo desde os duzentos! – Disse um outro atleta, sobre
84
momentos finais da sua prova. Esse ultramaratonista não reclamou de dor pelo
menos nas duas horas após terminar essa sua primeira prova em 6º lugar.
As dores sofridas são expostas na linha de chegada, mas dividem o
protagonismo com a dificuldade dos 235 Km corridos em, pelo menos, mais de 37
horas seguidas.
– Não era fadiga física, era fadiga mental. Porque a gente começa com
nossas coisas emocionais. Porque é terapia. É isso que a gente vem buscar aqui, a
terapia. – Discorria uma atleta sobre um momento de cansaço na prova. E falando
sobre alguém que não completara a prova: – Ele não tem tolerância à dor, então
ainda não pode fazer esse tipo de prova, ainda não pode ser ultra.
Osvaldo foi o segundo colocado da prova e atribuiu o feito a ter voltado às
origens de um ultramaratonista, que busca completar o percurso e desafia somente
a si mesmo:
– É a cabeça, não dá pra focar a cabeça na prova do outro. Voltei a ser eu na
prova porque voltei a ter o objetivo de completar a prova, de ser melhor que eu e
não melhor que os outros.
– Isso que a gente faz quase ninguém faz! – Um ultramaratonista
comemorava com um amigo a primeira prova de mais de 100Km dos dois.
Ao receber seu troféu, um atleta foi perguntado por um amigo que fazia
seu apoio:
– E aí, nunca mais?
– Não sei, não sei... – respondeu sorrindo.
– Ele me disse no meio da prova que nunca mais ia fazer isso. Mas é sempre
assim, a gente diz que não vai mais fazer, mas sempre faz! – Me falou o amigo.
O troféu é a primeira representação material daquela vitória. Um evento
transformador, capaz de promover mudanças profundas em seus participantes e
comprovar sua “mente forte” é motivo de muitos a produzir em si marcas corporais.
Tatuar a logomarca de uma prova indica que a prova tem um significado especial
para si. Pedro, tem a UAI como sua prova preferida, a primeira que correu e a que
mais gosta de correr, mas ainda espera o momento certo para tatuar seu símbolo:
– Se eu fizer menos de quarenta e oito horas, eu faço minha tatuagem da
UAI. Nem gosto de tatuagem, mas faria se eu fizesse nesse tempo pelo que a prova
representa pra mim.
85
Também por serem “pessoas comuns” afirmam que qualquer um pode tornar-
se ultramaratonista. Assim, o novo status adquirido após ultramaratonas pode ser
incorporado como um aprimoramento moral necessário para servir de exemplo aos
outros. Não que todos os ultramaratonistas intencionem proferir palestras
motivacionais, mas a ideia de ser exemplo ao menos aos que iniciam no esporte é
bastante difundida.
Em prefácio a um livro de Marcio Villar (s/d), o ultraman Adilson Cordeiro trata
da importância em ser exemplo: “Nossa responsabilidade em ser exemplo às novas
gerações é o que nos move (...). Nossa maratona é de mãos dadas”.
A ideia de ser exemplo para os demais também foi exprimida por Carlinha, ao
lamentar os descaminhos do sobrinho:
– Infelizmente conselho e exemplo pra algumas pessoas não serve de nada,
então... não adianta você tentar que... acho que o maior exemplo é a vida que você
segue. O maior exemplo prum filho, prum sobrinho... Mas pra ele não adiantou de
nada... E agora não resolve mais nada. Mas eu quero participar de projetos com
crianças de comunidade, contar minha história, mostrar meu exemplo pra elas.
Atravessar o sofrimento, doer sem ser doído, promove no corredor de
ultramaratona uma transformação tão profunda, que esse doer é marcado por um
importante uso social: o aprimoramento de si. Não aprimoramento físico, mas sim o
aprimoramento moral porque, como já explorado anteriormente, a ultramaratona é
uma atividade em que a dimensão mental/moral é mais valorizada do que seu
aspecto corporal/físico.
87
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Propõe-se no presente trabalho pensar sobre dor não como algo dado na
natureza a espera de ser desvendado, mas sim como um tipo-de-evento
(Bourke,2014), como um ato que só pode ser compreendido dentro do contexto
social e cultural em que se dá. Sem dispensar as dimensões fisiológicas do doer,
entende-se aqui o estar-em-dor também como uma comunicação não verbal, em
que há sempre componentes sociais e culturais envolvidos não de maneira
separável, mas sim imbricados e se influenciando mutuamente. Portanto,
compreender a dor para ultramaratonistas durante uma prova requer analisar como
esses sujeitos doem e o contexto em que se desenrola esses doeres, ou seja, é
necessário analisar os significados de uma prova de ultramaratona.
As longas distâncias percorridas em ultramaratonas atuam como um rito de
passagem em que o sujeito imerge e retorna transformado à sua vida cotidiana. O
modelo proposto por Van Gennep (2011 [1909]) e aprofundado posteriormente por
Turner (1974) é bom para pensar o desenvolvimento de uma prova, dividindo-a em
três etapas: separação, liminoide e agregação.
Na etapa de separação, o sujeito afasta-se de sua rotina cotidiana em uma
preparação para entrar completamente no ritual. Nessa etapa, que compreende os
treinamentos, a inscrição na prova, a interação com demais inscritos, a chegada ao
local da prova e os momentos que antecedem à largada, os inscritos na prova
podem ser ultramaratonistas ou candidatos a ultramaratonistas. Isso não quer dizer
que os “candidatos a ultramaratonistas” não tenham percorrido nunca uma distância
maior do que os 42Km de uma maratona, mas sim que sua identidade de
ultramaratonista ainda em construção, enquanto a identidade de outros já está
consolidada. Nos subeventos que compõem a etapa de separação, há uma
marcação clara da hierarquia e distinção entre os ultramaratonistas. A exposição ao
doer nos treinos é visivelmente menor do que a partir do momento da largada e
abarca, desde já, diversas sensações incômodas. Doer é entendido aqui como todo
incômodo a que o ultramaratonista se submete em uma prova: dores musculares,
enjoos, fadiga e tonturas, dentre outros. Na etapa de separação o sujeito prepara-se
para a etapa liminoide e não tem ainda o contexto necessário para se permitir doer
de maneira mais intensa.
88
Se, por um lado, busca-se evitar e superar a dor, por outro lado, busca-se o
doer para então evitá-lo e superá-lo. Dessa maneira, lançam mão de técnicas como,
por exemplo, o uso de medicamentos analgésicos momentos antes da largada, que
atua não sobre uma dor sentida, mas sim sobre a possibilidade de doer. Em
contrapartida, “o fácil não tem graça”, como costumam dizer os ultramaratonistas,
sem a exposição ao sofrimento não existe desafio a ser vencido, não há nada a ser
superado, não se constói a identidade de ultramaratonista.
Diferentes status entre ultramaratonistas promovem uma relação hierárquica
entre eles. No topo da hierarquia encontram-se os maiores exemplos aos iniciantes,
que percorreram maiores distâncias ou têm recordes de tempo em provas
consideradas difíceis. Logo abaixo vêm ultramaratonistas que não dobram provas,
tampouco batem recordes, mas apresentam um currículo longo e constante e, assim
como os anteriores, não têm sua identidade de ultramaratonista questionada. Abaixo
90
desses estariam os que já percorreram algumas provas, mas ainda têm sua
identidade questionada pela pouca quantidade de provas finalizadas. Na base da
cadeia estão os neófitos, maratonistas que buscam entrar no mundo das
ultramaratonas. Oficialmente, um ultramaratonista é aquele que corre uma distância
maior do que uma maratona; porém, na prática, tornar-se ultramaratonista exige
uma demonstração maior e mais duradoura de sua capacidade de correr ultra
distâncias. Um ultramaratonista é um sujeito de “mente forte”, capaz de superar os
diversos estados-de-dor pelos quais passam durante uma prova.
Há diferentes estratégias para vencer o sofrimento e elas requerem não
somente um domínio de saberes médicos, saberes “do papel” (WACQUANT, 2002),
mas também de saberes práticos, que se sobrepõem. É somente na prática que se
aprende, por exemplo, o melhor momento para evitar ou tratar bolhas nos pés e as
formas de fazer isso, se através do uso de vaselina nos pés, absorventes femininos
dentro dos tênis ou de drenagem de bolhas com linha e agulha. E essa prática se
desenrola nos encontros com demais ultramaratonistas, ou seja, é um saber
adquirido individualmente no interior da coletividade de ultramaratonistas, que só
pode ser consolidado de forma prática e coletiva.
O uso de substâncias, alongamentos e massagens e a lembrança de
familiares e causas filantrópicas são exemplos de técnicas de superação da dor
observados na prova etnografada, o que aponta para uma dinâmica física e moral
desta superação.
Por sua vez, as substâncias são utilizadas de acordo com o efeito pretendido
e podem ser ingeridas de diferentes formas, sendo reclassificadas e ressignificadas
em relação à prática da ultramaratona: comprimidos de analgésico ou relaxante
muscular, para evitar ou combater dores musculares; carboidratos em gel ou
rapadura são usados para “dar mais energia”; cápsulas de cafeína ou copos de café
evitam a fadiga e afastam o sono; cápsulas de sal ou alimentos salgados são
usados para evitar desidratação, da mesma maneira que os “sorinhos” e a ingestão
de água e de bebidas isotônicas formuladas para esportistas; a maconha,
refrigerantes de cola ou fazer uma refeição completa, como o almoço, podem ser
usados para combater ou prevenir enjoos.
Alongamento e massagens também atuariam diretamente no físico do
ultramaratonista, já as lembranças da família, principalmente de filhos, e de causas
filantrópicas pelas quais se comprometeram a correr auxiliariam na concentração no
91
objetivo final. Afinal, como costumam dizer e tatuar, “a dor e o incômodo são
passageiros, o orgulho é eterno”.
93
REFERÊNCIAS
BIRO, D. Is There Such a Thing as Psychological Pain? and Why It Matters. Cult
Med Psychiatry. 2010 Dec; 34(4): 658–667.
BOURKE, J. The Story of Pain: From Prayer to Painkillers. Oxford University Press,
2014.
SABINO, C; LUZ, M. Forma da dor e dor da forma: significado e função da dor física
entre praticantes de bodybuilding em academias de musculação do Rio de Janeiro.
Physis Revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, 24[2]: 467-490, 2014.
• A UAI Ultramaratona dos Anjos Internacional 235km está aberta para atletas nas
categorias 235 km XHard, 135 km Hard, 95 km Medium, 65 km
Easy, 25 km Fast em nas modalidades solo com suporte, solo sem
suporte (Survivor) e Revezamento Dupla e Quarteto. • Os atletas
deverão ser maiores de idade (18 anos) e estarem de acordo com
este regulamento.
Item 2 - Categorias: • Devido à alta quilometragem (XHARD 235km) e por se tratar
de uma prova de alta resistência e com um grau de dificuldade
altíssimo, os atletas com a intenção de participar da UAI
Ultramaratona dos Anjos Internacional, na categoria Solo com ou
sem Suporte deverão apresentar seu currículo. A aplicação
passará por uma comissão julgadora formada por quatro atletas
Pioneiros da prova, conhecedores do percurso e seus riscos. • As
aplicações serão aceitas com a soma de pontuação gerada por
provas realizadas nos últimos dois anos. O atleta receberá sua
resposta de aprovação, logo após sua aplicação retornar da análise
via e mail. • Os atletas serão avaliados para a participação nas
categorias solo com e sem suporte. Caso não seja aprovado,
poderá fazer uma nova inscrição normalmente em uma das outras
categorias. • O atleta deve aguardar o e-mail de confirmação para
realizar a inscrição através do site. As inscrições que forem
realizadas sem a análise de aplicação serão “suspensas” até que a
aplicação seja enviada, analisada e aprovada. • A participação
nas modalidades EASY 65km, MEDIUM 95km e HARD 135km em
2016 qualifica o atleta para a XHARD 235km de 2018. Os atletas
que concluíram a prova nas edições de 2012, 2013, 2014, 2015,
2016 e 2017 estão automaticamente aceitos para edição de 2018
não havendo necessidade de envio de aplicação.
modalidades 25, 65, 95 e 135km não é necessário envio de
97
Obs. Mesmo contando com equipe de apoio própria, os atletas das modalidades
HARD e XHARD deverão apresentar todo o equipamento solicitado
para a retirada do kit. Em caso de alteração desta lista de itens o
atleta será comunicado previamente.
• Faltando uma hora para encerramento do PC, um fiscal fará o caminho contrário
informando aos atletas quanto o encerramento do PC e a
possibilidade de término pelo atleta. Se o atleta considerar que não
será possível terminar dentro do tempo regulamentar até o
fechamento do PC afim de evitar um desgaste desnecessário uma
101
• Por sua vez, se considerar que mesmo sendo considerado desistente deseja
continuar, poderá fazê-lo desde que entregue ao fiscal seu número
de peito. Ciente de que daquele ponto em diante o atleta não faz
mais parte da prova, isentando a organização de quaisquer
responsabilidades.
Item 9: Ponto de Corte • 1º PONTO DE CORTE para as modalidades 135 Hard, 155
Hard Plus e 235 Xhard no km 95 (Aiuruoca) às 6hs da manhã de
sábado. • O atleta que chegar ao PC após esse horário será
impedido de prosseguir, sendo considerado desistente, podendo
retornar à Passa Quatro com o transporte disponibilizado pela
organização. • 2º PONTO DE CORTE para as modalidades 155
Hard Plus e 235 Xhard no km 135 (Baependi) às 18hs da tarde de
sábado. • O atleta que chegar ao PC após esse horário será
impedido de prosseguir, sendo considerado desistente, podendo
retornar à Passa Quatro com o transporte disponibilizado pela
organização.
Item 10: DROP BAG • Todo atleta inscrito como SURVIVOR em qualquer uma das
modalidades poderá utilizar o serviço de DROP BAG. Para isso
deverá deixar na RETIRADA DO KIT o(s) itens a serem enviados
aos PC´s. • A embalagem será cedida ao atleta no momento da
entrega do kit conforme a necessidade. • A identificação deverá ser
realizada pelo atleta, informando com nitidez seu número de peito e
PC de destino. • No local haverão caixas indicadas para cada PC,
onde o próprio atleta fará a separação de suas drop bags. Evitando
assim quaisquer equívocos no envio. • Não poderão ser enviadas
BAGS para o PC Cachoeira dos Garcias – km 110 • As BAGS
serão ACEITAS até as 20hs da sexta-feira, dia 28 de Junho. • As
102
Item 14 -
SETAS AMARELAS PINTADAS (Atenção: As marcações podem
estar em qualquer lugar, tais como: Postes, Moirões, Barrancos,
Arvores, Muros, Guias, Pedras ou no Chão) e também com
PLACAS BRANCAS COM SETAS AMARELAS REFLETIVAS,
Item 16 - Tempo limite para o término das provas: 60:00 (Tempo de Prova)
Termino oficial UAI 235 km X-Hard 34:00 (Tempo de Prova)
Termino oficial UAI 135 km Hard 22:00 (Tempo de Prova) Termino
oficial UAI 95 km Medium 15:00 (Tempo de Prova) Termino
oficial UAI 65 km Easy 06:00 (Tempo de Prova) Termino oficial
UAI 25 km Fast
Item 17 – Dever Social Cidadão: • Todo lixo produzido pelo atleta e sua equipe
deverá permanecer em seu carro ou mochila e descartado nas
cidades por onde passar em local apropriado. • Passaremos por
vários lugares de preservação ambiental, o mau uso do local
poderá impedir outra edição do evento, vamos preservar. • Guarde
seu lixo com você e entregue a um carro de apoio ou de outro
atleta ou organização. • A NATUREZA AGRADECE.
Item 18 - As regras • Este regulamento é soberano e deverá ser acatado por todos
os participantes do referido evento, atletas, paces e suporte. • O
não cumprimento das regras estabelecidas neste regulamento,
tanto pelo atleta ou sua equipe de apoio, acarretará a pena em
horas, de 30 minutos a 1 hora e assim por diante até
desclassificação. • A pena será analisada caso a caso pela equipe
da Ultra Runner. • Cabe ao atleta o recurso em caso de
controvérsia. Este será analisado pela equipe de fiscais após a
prova. • O recurso deverá ser entregue a organização por escrito e
com identificação completa do reclamante, nome, número e
documento. • O Atleta é responsável por sua equipe de apoio,
sendo que qualquer comportamento inadequado, anti desportivo ou
que ponha em risco a segurança de qualquer participante do
evento, pode acarretar em pena ou em desclassificação.
106
Recurso Para o atleta entrar com um recurso ele deverá adotar o mesmo
procedimento acima e anexar o nome e documento de duas
testemunhas e ou apresentar provas concretas, tais como: foto,
filmagem ou flagrante que deverá ser comunicado ao fraudador no
ato do ocorrido.
Eu ______(MÉDICO)_________________________________________________
atesto para os devidos fins que o(a) Atleta_________________________________,
RG___________, data de nascimento ____/____/_____, passou por exames
clínicos e está apto a prática esportiva de alta performance, a nível de competição.
Dados Complementares:
Grupo sanguíneo (fator RH): ____________________
Frequência cardíaca em repouso: ___________
Alergia (especifique):_________________________________________________
Medicamentos (especifique):___________________________________________
Cirurgias: ( )Sim ( ) Não
Plano de saúde:_________________________N°:_________________________
108
Assinatura do Participante:____________________________________
RG__________________________
109
TERMO DE RESPONSABILIDADE
Nome: _____________________________________________________________
RG/BI ou Passport Nº:______________________________ DATA: ____/____/___
111
ANEXO E - Fotografias
Fotografia 1: tatuagens
112
Fotografia 2: tatuagens
113
Fotografia 3: tatuagens
Fotografia 6: largada
116