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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro Biomédico
Instituto de Medicina Social

Cristiane de Oliveira Santos

A regulação política da sexualidade no âmbito da família por saberes e


instituições médicas brasileiras (1838-1940)

Rio de Janeiro
2010
Cristiane de Oliveira Santos

A regulação política da sexualidade no âmbito da família por saberes e instituições


médicas brasileiras (1838-1940)

Tese apresentada, como requisito parcial à


obtenção do grau de Doutor, ao Programa de
Pós-Graduação em Saúde Coletiva da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área
de concentração: Ciências Humanas e Saúde.

Orientador: Prof. Dr. Joel Birman

Rio de Janeiro
2010
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CBC

S237 Santos, Cristiane de Oliveira.


A regulação política da sexualidade no âmbito da família
por saberes e instituições médicas brasileiras (1838-1940) /
Cristiane de Oliveira Santos. – 2010.
221f.

Orientador: Joel Birman.


Tese (Doutorado) – Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Instituto de Medicina Social.

1. Sexo – Brasil – História – 1838-1940 – Teses. 2. Crianças e


sexo – Teses. 3. Educação sexual – Brasil – História – Teses. 4.
Família – Aspectos higiênicos – Teses. 5. Comportamento sexual –
Brasil – História – 1838-1940 – Teses. 6. Eugenia – Brasil – História –
1838-1940 – Teses. I. Birman, Joel. II. Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. Instituto de Medicina Social. III. Título.

CDU 392.6(81)“1838-1940”

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese,
desde que citada a fonte.

________________________________________ _________________________
Assinatura Data
Cristiane de Oliveira Santos

A regulação política da sexualidade no âmbito da família por saberes e instituições


médicas brasileiras (1838-1940)

Tese apresentada, como requisito parcial à


obtenção do grau de Doutor, ao Programa de Pós-
Graduação em Saúde Coletiva da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro. Área de
concentração: Ciências Humanas e Saúde.

Aprovado em 30 de abril de 2010.


Banca Examinadora :


Prof. Dr. Joel Birman (Orientador)
Instituto de Medicina Social - UERJ


Profª. Drª. Márcia Arán
Instituto de Medicina Social - UERJ


Profª. Drª. Vera Portocarrero
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UERJ


Drª. Silvia Alexim Nunes
Médica, psiquiatra, psicanalista


Profª. Drª. Cristiana Facchinetti
Casa de Oswaldo Cruz - FIOCRUZ

Rio de Janeiro
2010
DEDICATÓRIA

A minha mãe (in memorian), Durvalina.


A meu pai, Carlos.
AGRADECIMENTOS

A realização desta tese não teria sido possível sem o apoio e colaboração de várias
pessoas e instituições.
Sou grata a Joel Birman, meu orientador, pelo acolhimento no seu grupo de pesquisa,
onde pude conviver com sua liberdade de pensamento; pelo respeito e paciência com que
atentamente escutou os desvios, os impasses, as inconsistências e os avanços da minha
pesquisa; pelas indicações preciosas de pistas para o trabalho, pelo suporte, enfim, ao longo
desse processo. Certamente, foi um encontro que deixou marcas muito importantes não
apenas na tese, mas no meu percurso pela vida acadêmica e pela psicanálise.
Agradeço ao professor Alain Vanier, por ter me recebido no Centre de Recherches en
Psychanalyse et Médecine da Université Paris VII, o que me possibilitou uma experiência de
intercâmbio acadêmico, psicanalítico e cultural que muito enriqueceu minha formação.
Agradeço aos professores do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do IMS-
UERJ, que tanto têm contribuído para a produção crítica e de excelente qualidade de saberes e
práticas no campo da Saúde Coletiva, e aos seus funcionários, pela presteza no atendimento às
demandas administrativas do cotidiano do doutoramento, em especial a Marcos e a Simone
Motta.
Agradeço à CAPES e ao CNPq, pelo subsídio financeiro a este projeto, através de
concessão de bolsas de doutorado e de doutorado sandwich no exterior, respectivamente.
Gostaria de lembrar com reconhecimento a colaboração institucional das bibliotecas
da Academia Nacional de Medicina, da Faculdade de Medicina da Bahia, do Instituto
Médico-legal Nina Rodrigues, da Santa Casa de Misericórdia, da FIOCRUZ – Casa de
Oswaldo Cruz e Manguinhos, da Biblioteca Nacional, da Bibliotèque National de France e da
Bibliotèque Henry Ey – Centre Hospitalier Sainte Anne, que, pelo empenho de seus
funcionários na conservação e acesso aos documentos, subsidiaram esta pesquisa. Em
especial, sou grata a Michele Moraes, da AMN, e a Francisca Santos e Vilma Oliveira, da
FMB.
Agradeço às professoras e pesquisadoras Silvia Nunes, Vera Portocarrero e Márcia
Arán, pela disponibilidade em compor a banca examinadora deste trabalho e pela leitura
acurada e delicada que o dedicaram e, em especial, a Cristiana Facchinetti, que acompanhou
sua construção desde o exame de qualificação.
Contei ainda com a competência e gentileza de Ana Silvia Gesteira no trabalho de
revisão. A ela, o meu agradecimento.
Sou imensamente grata a Ana Paula Cavalcante, pela generosidade com que me
abrigou no Rio de Janeiro; pela grande amizade, construída com alegria e cumplicidade, no
cotidiano compartilhado; pela leitura atenciosa de meus escritos; pelo apoio e incentivo,
enfim, ao longo de todo o processo do doutoramento.
Contei com a generosidade e o apoio afetivo de colegas e amigos no enfrentamento
dos desafios cotidianos do processo de doutoramento. Sou grata aos colegas e amigos do IMS
e da UFRJ, pela cumplicidade e pelas trocas ao longo desses anos, em especial, a Leila
Rippol, Ana Accioly, Diane Viana e Rafaella Zorzanelli, pela escuta generosa, pelo
acolhimento, pela amizade, enfim, que nasceu nos dias cariocas. A Marise Bertha, Umbelino
Brasil, Andréa Fernandes e Giovandro, pelo incentivo amigo ao doutoramento, e a Beatriz,
Ana Licks, Duda, Aline e Állex Leilla, pela amizade duradoura, pela torcida, enfim, quanto às
experiências que precisam ser vividas. Fica o meu agradecimento carinhoso a Elen, Daniele,
Fábio, Rafael, Camila e Elisabeth, pelas trocas acadêmicas, pelo afeto, pela amizade que
nasceu nos dias parisienses.
A Eli, pelo cuidado ao longo desses anos.
Agradeço ainda a Angélia Teixeira, pelo convite ao trabalho psicanalítico.
Agradeço a Ida Freitas, pela disponibilidade e delicadeza com que revisou o texto
sobre a teoria freudiana das pulsões.
Fica ainda o reconhecimento aos meus familiares. Sou muito grata a meus pais, por
tudo. A meu irmão, Aldair e, muito especialmente a Carla, minha querida irmã, pelo apoio e
pela ternura de sempre – sem sua companhia, certamente a vida teria sido mais difícil. A
Catharina, Daniel e Matheus, meus queridos sobrinhos, pela afirmação da vida. Por fim, sou
grata a Messias, pela presença amorosa ao longo de todos esses anos de vida compartilhada;
pelo incentivo ao doutoramento; pela lealdade com que me apoiou nos desafios que me
insistiam; pela leitura acurada e delicada dos esboços da tese.
Talvez um dia cause surpresa. Não se compreenderá que uma civilização tão voltada, por outro lado, para o desenvolvimento
de imensos aparelhos de produção e de destruição tenha achado tempo e infinita paciência para se interrogar com tanta
ansiedade sobre o que é do sexo; talvez haja quem sorria lembrando que esses homens, que teremos sido, acreditavam que
houvesse desse lado uma verdade pelo menos tão preciosa quanto a que tinham procurado na terra, nas estrelas e nas formas
puras de pensamento; talvez cause surpresa a obstinação que tivemos em fingir arrancar de sua obscuridade uma sexualidade
que tudo  nossos discursos, nossos hábitos, nossas instituições, nossos regulamentos, nossos saberes  trazia à plena luz e
refletia com estrépito. [...] É lá, onde vemos a história de uma censura dificilmente suprimida, reconhecer-se-á, ao contrário,
uma lenta ascensão, através dos séculos, de um dispositivo complexo para fazer falar do sexo, para lhe dedicarmos nossa
atenção e preocupação, para fazer acreditar na soberania de sua lei quando, de fato, somos atingidos pelos mecanismos de
poder da sexualidade. [...] E devemos pensar que um dia, talvez, numa outra economia dos corpos e dos prazeres, já não se
compreenderá muito bem de que maneira os ardis da sexualidade e do poder que sustêm seu dispositivo conseguiram
submeter-nos a essa austera monarquia do sexo, a ponto de votar-nos à tarefa infinita de forças seu segredo e de extorquir a
essa sombra as confissões mais verdadeiras.

Michel Foucault

***

O amor, a união e o trabalho de todos nós junto ao pai era uma mensagem de pureza austera guardada em nossos santuários,
comungada solenemente a cada dia, fazendo o nosso desjejum matinal e o nosso livro crepuscular. [...] bastava que um de nós
pisasse em falso para que toda a família caísse atrás; e ele falou que estando a casa de pé, cada um de nós estaria de pé, e que
para manter a casa erguida era preciso fortalecer o sentimento de dever, venerando os nossos laços de sangue, não nos
afastando da nossa porta, respondendo ao pai quando ele perguntasse.

Raduan Nassar

***

Fisicamente fracos pelo gasto da máquina nervosa, numa reação instintiva de vitalidade, procuravam a sobrevivência num
erotismo alucinante, quase feminino. Representavam assim a astenia da raça, o vício das nossas origens mestiças. Viveram
tristes, numa terra radiosa.

Paulo Prado

***

Leninha olhou pelo vidro do automóvel. A paisagem ia passando, as casas, as pessoas, pequenos bois, um menino. Anoitecia;
daqui a pouco, tudo estaria escuro, talvez chovesse, nuvens pesadas e negras acumulavam-se no horizonte. “Estou casada,
estou casada” [...] não queria ter contato nenhum com o marido. [...] Fugir do marido, do casamento, daquela desconhecida e
ameaçadora fazenda Santa Maria, para onde ele a levava. [...] “E não há divórcio, no Brasil não há divórcio”. [...] Leninha
começou a pensar uma porção de coisas desesperadas: “Meu Deus, eu sempre quis amar e ser amada, sempre mas não assim.
Sempre quis ter um namorado, um noivo, um marido que eu amasse, que eu pudesse beijar na boca...” E casara-se com um
bêbado, quase um débil mental.

Suzana Flag (Nelson Rodrigues)

***

É natural amar nossos pais, e igualmente natural amar nosso irmãos, pensei, de novo defronte da janela e olhando a Piazza
Minerva lá embaixo. [...] Não podemos mais indicar o momento exato em que não amamos mais, senão odiamos, nossos pais
e nossos irmãos, e também não nos empenhamos mais em averiguar esse momento exato, porque no fundo temos medo.
Quem deixa os seus contra a vontade deles, e ainda por cima mais implacável como eu fiz, tem de dar o ódio deles, como
certo, e quanto maior tiver sido o amor deles por nós, tanto maior será o ódio deles quando tivermos posto em prática aquilo
que havíamos prometido.[..] A morte deles, só pode ter sido um acidente de automóvel, disse comigo, não altera em nada
esses fatos. Não tinha a temer nenhum sentimentalismo. Minhas mãos nem sequer tremeram ao ler o telegrama e meu corpo
não vacilou nem por um instante.

Thomas Bernhard
RESUMO

SANTOS, Cristiane de Oliveira. A regulação política da sexualidade no âmbito da família


por saberes e instituições médicas brasileiras (1838-1940). 2010. 221f. Tese (Doutorado em
Saúde Coletiva) – Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2010.

Esta tese tem como objeto a regulação política da sexualidade no âmbito da família
por saberes e instituições médicas brasileiras (1838-1940). Orienta-se pelo interesse em
analisar continuidades e descontinuidades na construção de objetos, estratégias e táticas
políticas direcionados para a regulação higiênica e eugênica do casamento e da sexualidade
infantil. De inspiração foucaultiana, inscreve-se no campo da história dos saberes e está
subsidiada por um conjunto heterogêneo de documentos (teses, artigos de periódicos, livros,
anais etc.) circunscritos, majoritariamente, ao campo da medicina. Analisa a constituição de
uma defesa higiênica dos casamentos no pensamento médico novecentista, voltada para
remanejamentos das figuras de esposa e marido na nova configuração de família que
começava a se esboçar no Brasil, contrastando-a com a regulação católica da moral sexual
colonial. Em seguida, descreve a visibilidade higiênica que a medicina dará a infância no
século XIX, problematizando especificamente o interesse pelo tema da masturbação, que
articula simultaneamente a família, centrada na figura da mãe, e a escola na convocação de
zelar pela criança. Partindo das contradições sociais que se apresentaram na construção do
projeto liberal nacional a partir da década de 1870, discute a apropriação do discurso da
degenerescência pelo saber médico-psiquiátrico brasileiro, que propiciou uma leitura da
brasilidade marcada pelo excesso sexual e pela condição “degenerada” da miscigenação, a
fim de pensar as condições de possibilidade para a emergência do projeto de eugenia
matrimonial institucionalizado nas primeiras décadas do século XX e toma como táticas a
campanha pela compulsoriedade do exame pré-nupcial, o combate aos casamentos
consanguíneos, o controle do contágio venéreo e o aconselhamento sexual dos casais. Analisa
a campanha de educação sexual, cuja pretensão de instituir uma sciencia sexual no Brasil, de
legitimidade controversa, tinha como horizonte viabilizar uma profilaxia sexual que mitigasse
a produção da criminalidade, das perversões sexuais e das doenças nervosas, bem como os
desajustes familiares, a partir da fabricação de um novo objeto, qual seja, a sexualidade
infantil, no qual incidirá uma nova pedagogia. Nesse particular, aponta particularidades
discursivas da difusão das idéias freudianas entre higienistas brasileiros. Finalmente, sinaliza
a constituição da higiene mental da criança como um novo domínio para a psiquiatria
brasileira, que tomou a intensa circulação afetiva intrafamiliar como ponto de ancoragem para
um projeto de normalização social, ainda centrado na eugenia, mas já atravessado por uma
psicologia da adaptação.

Palavras-chave: Dispositivo da sexualidade. Saberes e instituições médicas no Brasil.


Miscigenação, excesso sexual e nação brasileira. Eugenia matrimonial. Sexualidade infantil.
ABSTRACT

This thesis focuses on the political regulation of sexuality in the family sphere by
knowledge and medical Brazilian institutions (1838-1940). It is guided by the interest in
mapping continuities and discontinuities in the construction of objects, strategies and political
tactics of intervention, directed toward hygienic and eugenic regulation of marriage and
childhood sexuality. Inspired by Foucault, it falls within the field of history of knowledge and
is subsidized by a heterogeneous set of documents (theses, journal articles, books,
proceedings, etc.) mostly from the scope of medicine. It analyzes the establishment of a
hygienic protection of marriage in nineteenth-century medical thought, focused on relocation
of the pictures of wife and husband in the new configuration of family that began to take
shape in Brazil, contrasting it with the regulation of Catholic sexual colonial morality. It then
describes the hygienic visibility medicine will give children in the nineteenth century,
specifically exploring the interest in the topic of masturbation, combining both the family,
focusing on the mother figure, and the school in the call of caring for the child. On the basis
of social contradictions presented themselves in the construction of national liberal project
from the 1870s, it discusses the appropriation of the discourse of degeneration from the
Brazilian medical-psychiatric knowledge, resulting in a reading of Brazilianness marked by
sexual excess and “degenerate” condition of miscegenation, to consider the conditions of
possibility for the emergence of the matrimonial eugenics project institutionalized in early
twentieth century and takes as campaign tactics a mandatory premarital screening, combating
consanguineous marriages, the control of venereal contagion and sexual counseling of
couples. It analyzes the campaign of sexual education, whose claim to establish a sexual
science in Brazil, of controversial legitimacy, whose horizon was enabling sexual prophylaxis
that mitigated the production of crime, sexual perversions and nervous diseases, as well as
family maladjustments, from the manufacture of a new object, namely, the sex of children,
which will focus on a new pedagogy. In particular, it points the particular discursive
dissemination of Freud's ideas among Brazilian hygienists about childhood sexuality. Finally,
it signals the formation of the mental hygiene of the child as a new domain for psychiatry in
Brazil, which took the intense circulation within the family as emotional anchor for a project
of social normalization, still focused on eugenics, but now crossed by a psychology of
adaptation.

Keywords: Sexuality device. Knowledge and medical Brazilian institutions. Miscegenation,


sexual excess & Brazilian nation. Matrimonial eugenics. Childhood sexuality.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABHM Archivos Brasileiros de Hygiene Mental


ABNP Archivos Brasileiros de Neuriatria e Psychiatria
BES Boletim de Educação Sexual
CBES Círculo Brasileiro de Educação Sexual
GMB Gazeta Médica da Bahia
LBHM Liga Brasileira de Hygiene Mental
SMRJ Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................... 12
1 A VISIBILIDADE DA FAMÍLIA NO PENSAMENTO MÉDICO DO
SÉCULO XIX.............................................................................................. 24
1.1 A institucionalização do saber médico no Brasil...................................... 24
1.2 Estado, medicina e família patriarcal........................................................ 30
1.3 A defesa higiênica dos casamentos............................................................. 33
1.4 Quando o casamento higiênico ainda não existia: sexo e matrimônio
nas confissões inquisitoriais brasileiras..................................................... 37
1.5 Continentes, libertinos e ninfomaníacas na berlinda............................... 44
1.5.1 Celibatários e libertinos: ameaça à família, à pátria e à sociedade............... 44
1.5.2 Continentes e ninfomaníacas: transbordamentos da figura da esposa.......... 46
1.6 O cuidado dirigido à infância e a fabricação da mãe higiênica.............. 51
1.7 A preocupação da medicina brasileira novecentista com a
masturbação................................................................................................. 59
1.7.1 Retrato do onanista........................................................................................ 59
1.7.2 Os perigos morais e higiênicos da instituição escolar................................... 68
2 RAÇA, DEGENERESCÊNCIA E EUGENIA MATRIMONIAL.......... 77
2.1 Raça, nação e desencanto na passagem do século XIX para o XX......... 77
2.2 As origens européias do discurso da degenerescência............................. 84
2.3 Degeneração, mestiçagem e hipersexualidade.......................................... 93
2.4 A fabricação do instinto sexual.................................................................. 102
2.5 O excesso sexual masculino e a preocupação higiênica com a mulher
na instituição matrimonial.......................................................................... 108
2.6 Os contornos da eugenia no Brasil............................................................. 120
2.7 Táticas eugênicas de regulação dos casamentos....................................... 125
3 “LIBERTAR O BRASILEIRO DE SEU CAPTIVEIRO MORAL”:
EDUCAÇÃO, SCIENCIA SEXUAL E FAMÍLIA................................... 130
3.1 O discurso do excesso sexual como marca da brasilidade....................... 130
3.2 A “cruzada” pela educação sexual no Brasil............................................ 145
3.3 A afirmação de uma nova moral sexual.................................................... 149
3.4 A importância da ilustração sexual........................................................... 152
3.5 As táticas de conversão dos inimigos em aliados...................................... 155
3.6 Os agentes da educação sexual................................................................... 159
4 O SEXO DAS CRIANÇAS......................................................................... 162
4.1 Da puericultura........................................................................................... 162
4.2 A sexualidade perverso-polimorfa e a crítica à degenerescência na
teoria freudiana........................................................................................... 166
4.3 A fabricação da sexualidade infantil no Brasil......................................... 174
4.4 A maquinaria erótica intrafamiliar a serviço da adaptação: a
institucionalização da eufrenia................................................................... 183
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................... 196
REFERÊNCIAS........................................................................................... 201
12

INTRODUÇÃO

Esta tese tem como objeto a regulação política da sexualidade no âmbito da família
por saberes e instituições médicas brasileiras (1838-1940). Orienta-se pelo interesse em
analisar continuidades e descontinuidades na construção de objetos, estratégias e táticas
políticas que forjaram uma “ciência sexual” no Brasil, cujo alvo privilegiado eram as relações
intrafamiliares. Inscreve-se no campo da história dos saberes e está subsidiada por um
conjunto heterogêneo de documentos (teses, artigos de periódicos, livros, anais etc.)
circunscritos, majoritariamente, ao campo da medicina, especificamente, da higiene, da
psiquiatria, da medicina legal e da sexologia.
De inspiração foucaultiana, elege como pano de fundo a constituição de tecnologias
políticas vigentes na modernidade à brasileira que, mediadas pela regulação da sexualidade
pela medicina, contribuíram para produzir novos arranjos nas relações intrafamiliares e,
portanto, novos efeitos de sujeição, de modo a forjar um projeto emergente de nação
brasileira. Destaca-se como figura o interesse particular em esquadrinhar, nos discursos e
instituições médicas produzidos entre a primeira metade do século XIX e a primeira metade
do século XX, as estratégias e táticas de regulação higiênica e eugênica das relações sexuais
conjugais e de fabricação da sexualidade infantil.
A pesquisa realizada surge como um desdobramento de alguns aspectos de minha
dissertação de mestrado,1 na qual produzi um estudo de base etnográfica sobre a cultura
sexual de um bairro popular em Salvador, a fim de compreender como os códigos
sancionados pela cultura se faziam presentes no modo como mulheres significavam e lidavam
com o risco de contrair HIV/Aids. Esse estudo estava inserido no contexto do intenso debate
travado no campo da Saúde Coletiva, em meados da década de 1990, acerca da
vulnerabilidade feminina ao HIV/Aids, silenciada nos primeiros anos da epidemia.
Assimilava um incômodo, ainda amorfo na época, que pairava nos “textos” ditos e
não-ditos, relativos à tensão entre a justificativa da valorização da saúde e o desafio de evitar
a normalização excessiva das condutas sexuais. Via, por vezes, nos esforços de luta contra as
iniquidades sociais que assolam o Brasil, especificamente no que dizia respeito aos embates
políticos em torno das desigualdades de gênero, discursos e jogos de poder que, com muita
frequência, acabavam por reproduzir a estrutura que, supostamente, se desejaria contestar.

1
Dissertação defendida em 2002 no Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia e intitulada Fragmentos de
uma cultura sexual em tempos de Aids: uma análise sob a perspectiva de gênero.
13

Esta sombra crítica diante do risco de encarnar a “polícia médica” (ROSEN, 1980), bem como
de endossar uma compreensão política vitimizadora acerca da condição feminina, foi o ponto
de partida de meu interesse pela interpelação discursiva da sexualidade.
No final do século XX, a epidemia da Aids produzia um enorme barulho em todo o
mundo, o que confirmava seu valor de acontecimento (FOUCAULT, 2000a). Nesse sentido, a
constituição e vigilância dos grupos considerados “perigosos” – especialmente os gays –
foram legitimadas pelo discurso médico-sanitarista, a partir de uma transliteração da noção
epidemiológica de fator de risco em grupos de risco (AYRES, 1999), que não apenas
circunscrevia um risco médico, mas sobretudo um risco social, pondo à prova valores de
tolerância e liberdade individual, pretensamente emblemáticos das sociedades ocidentais
(POLLACK, 1990). Com efeito, uma nova forma de inscrição da sexualidade no registro
biológico estava sendo gestada, reduzindo-a a comportamento de risco, o que tornava opacas
as táticas de regulação política do “perigo social” que lhe eram subjacentes (GIAMI, 1994;
PARKER, 1995; VANCE, 1995, LOYOLA, 1999). No âmbito das relações conjugais
heterossexuais, a crescente disseminação da Aids entre mulheres recolocava a medicalização
do erotismo como uma das estratégias de regulação da engrenagem familiar, cuja mecânica
havia sofrido mudanças significativas nas décadas anteriores, conservando, no entanto, o
problema biopolítico relativo à função familiar de preservação da vida (FOUCAULT, 2005a).
O advento da Aids deu, portanto, visibilidade a uma trama bastante complexa de
relações entre a sociedade, a família, a religião e o Estado que, mediadas pelos saberes
científicos, explicitavam tensões políticas muito significativas do século XX, sobretudo da
segunda metade do século XX. Os movimentos pela defesa dos direitos das minorias sexuais
e a consolidação de uma “sexualidade plástica” (GIDDENS, 1994), a partir da qual se tornou
possível desvincular o prazer sexual da reprodução, pelo advento da pílula anticoncepcional, a
produção de novas tecnologias reprodutivas, a fabricação da sexualidade infantil, a
reivindicação de igualitarismo nas relações entre homens e mulheres e o elogio ao “amor
livre”, foram alguns dos acontecimentos que marcaram uma reordenação da vivência sexual
ao longo daquele século (GIDDENS, 1993; HOBSBAWN, 1996).
Essas transformações sociais e culturais ocorridas a partir da segunda metade do
século XX estiveram fortemente vinculadas à relativa emancipação das mulheres de sua
condição de subordinação à “dominação masculina” (BOURDIEU, 2009). Desta forma, a
intensificação de sua inserção no mercado de trabalho, que inicialmente surge como
enfrentamento do empobrecimento gerado pelas guerras mundiais, o aumento do ingresso das
mulheres no ensino superior e o consequente ressurgimento do movimento feminista, são
14

aspectos centrais da chamada “revolução social”. Disso decorre que as mudanças operadas
não apenas nas atividades exercidas pelas mulheres, mas nos papéis esperados para elas,
atribuindo-lhes um novo estatuto social, atingiram proporções tais que as colocam como
agentes cruciais da chamada “revolução cultural” processada no século XX (HOBSBAWN,
1996).
Os efeitos desses remanejamentos sociais têm tido forte incidência nas condições de
procriação, nas formas de parentesco e de filiação, na constituição das identidades sexuais,
redimensionando o lugar simbólico que a família moderna passa a ocupar na produção de
subjetividades, bem como no papel que ela desempenha na sustentação da sociedade (TORT,
2001). Desta forma, o que estava em jogo na intensa logofilia em torno da Aids, do ponto de
vista da regulação política das relações sexuais e reprodutivas, era a tentativa de
agenciamento do “pluralismo do desejo” (BIRMAN, 1994), uma demanda historicamente
contingente produzida pelas profundas transformações que, atravessando o registro da
sexualidade, marcaram o século XX.
Desta maneira, para além de um debate polarizado entre repressão versus liberação
que povoou a problematização teórica da sexualidade no século XX (REICH, 1986, 1988;
USSEL, 1980), tornava-se urgente realocar a análise na imanência das relações de poder que
tomavam o sexo como ponto de atravessamento, descoberta que pôde ser realizada a partir do
interesse em tomar a sexualidade como discurso, indicado anteriormente. Era necessário
pensar o significado dessas transformações, as quais Baudrillard (1994) reúne sob a insígnia
de “pós-orgia”, para além desse antagonismo, pois a liberação, sustentáculo das pretensões
revolucionárias no passado, teria acontecido apenas para “passar à pura circulação” (p. 10),
engendrando jogos de poder que não cessam de se apresentar.
O recurso à historicidade desse estado de coisas foi a primeira decisão tomada para
constituir uma problemática de investigação. Estava confiante no poder da história2 em
libertar tanto de uma leitura repressiva do poder, quanto do essencialismo que envolve a
sexualidade, que conduziam frequentemente a um excesso de normalização, onde nem mesmo

2
Reverberam aí as críticas que Nietzsche, no seu colérico artigo de juventude intitulado “Sobre a utilidade e os
inconvenientes da História para a vida”, faz aos usos monumental, tradicionalista e crítico da história, no que elas podem ter
de negação da vida, ou seja, no que elas têm de busca incessante da origem e desprezo pelo devir. Nesse texto, Nietzsche
afirma que os homens precisam de história por três razões: “porque eles agem e perseguem um fim, porque eles conservam e
veneram o que foi, porque eles sofrem e têm necessidade de libertação”. No primeiro caso, faz-se um uso monumental da
história, que serve para imortalizar exemplos, fixando o passado no continuísmo que apaga o próprio passado na sua
diversidade. O segundo uso especifica a história tradicional que, apesar de velar pelo seu patrimônio, pode indicar o risco de
reagir ao novo, à atualidade em nome da eternização do legado da tradição. Finalmente, o uso crítico da história pode ser
compreendido por esta revolta com as injustiças do passado (NIETZSCHE, 2005).
15

a psicanálise, um dos meus campos de inserção profissional, conseguia escapar. Esse interesse
encontrou aporte no projeto filosófico que foi levado a cabo por Michel Foucault.
No ano letivo de 1974-1975, quando ministrava o Seminário Os Anormais, ele
produziu uma genealogia da anormalidade que localiza no instinto e, especificamente, no
instinto sexual, o ponto de ancoragem para que uma descontinuidade significativa se operasse
no saber e na institucionalização da psiquiatria: o domínio do saber psiquiátrico deixa de estar
exclusivamente centrado na loucura para se constituir como uma ciência da conduta anormal.
É nesse contexto que o criminoso, o indivíduo incorrigível e a criança masturbadora aparecem
como figuras modernas da anomalia. Esboça-se, nesse percurso, a nervura de uma “ciência
sexual” que atravessa o campo da anomalia e está centrada na articulação entre a herança-
degeneração-instinto, com a qual o comportamento desses “desviantes” passa, sobretudo a
partir do século XIX, a ser explicado como uma “patologia do instinto”, manifestação da
transmissão degenerada, utilizado para ler as figuras de anomalia como perturbações da
evolução tanto do indivíduo como da espécie (FOUCAULT, 2001). Desde essa descoberta
analítica, a sexualidade é tomada, no seu pensamento, como objeto que passa a se esboçar
como campo de forças políticas a serem analisadas na sua imanência.
A “ciência sexual” é a instância discursiva do dispositivo da sexualidade
(FOUCAULT, 2005a, 1995b) que, por sua vez, consiste numa densa trama de “discursos,
instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas
administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas”
(FOUCAULT, 1995b, p. 244) na qual o sexo se encontra enredado, servindo como ponto de
atravessamento com vistas à regulação das relações familiares e sociais que emergem com o
liberalismo (FOUCAULT, 2004a). O dispositivo da sexualidade3 situa-se no entrecruzamento
das tecnologias que poder que se investiram, na modernidade, simultaneamente no corpo dos
indivíduos (disciplina) e na regulação das populações, tornando possível a gestão da vida
como constitutiva da política moderna, ou seja, da biopolítica (FOUCAULT, 2005a, 2005b).
Orientado para atender a essa demanda histórica, o dispositivo da sexualidade foi,
paulatinamente, constituído por quatro conjuntos de estratégias – a saturação sexual do corpo

3
Gilles Deleuze (1988) nos apresenta uma interessante imagem para tratar o dispositivo. Para ele, um dispositivo pode ser
visto como um labirinto, cujas linhas falhadas produzem “variações de direção” todo o tempo. Não se pode abordar um
dispositivo, a partir de uma perspectiva evolucionista, nem sistêmica, nem estrutural. A noção foucaultiana de dispositivo se
define por uma teia, constituída a partir de linhas móveis de sedimentação, mas também de fraturas. Um dispositivo é
composto de curvas de visibilidade, de enunciação, linhas de força, linhas de subjetivação, que se enovelam e se entrecruzam.
Deleuze extrai daí duas consequências: o repúdio aos universais, que se traduz pela variabilidade das linhas (mesmo quando
aparecem termos como sujeito, objeto, verdade, eles são processos imanentes ao dispositivo) e a valorização da produção do
novo, ou seja, do devir. Entendido como histórico, contingente, mutável, um dispositivo nos conclama a pensar
simultaneamente sua atualidade e seu arquivo.
16

da mulher; a regulação pedagógica do sexo das crianças; a regulação higiênica da procriação;


e a “psiquiatrização” do prazer perverso. Desta forma, a ciência sexual, longe de produzir
uma otimização do prazer, visa a engendrar, com a verdade do sexo, uma modificação do
sujeito do desejo, o que contrasta com a “arte erótica”, na qual essa verdade, ainda que seu
acesso seja controlado, está vinculada à experiência mesma do prazer (FOUCAULT, 2005a;
1994a).
Essas estratégias biopolíticas, por sua vez, foram sendo modeladas ao mesmo tempo
em que foram se constituindo saberes e instituições voltados a produzir as táticas necessárias
para viabilizar cada uma delas. A biopolítica pôde ser exercida através de uma interpolação de
uma série de regimes de saber-poder, dentre eles a demografia, estatística, economia, ciência
política, a medicina clínica e a medicina social e, mais recentemente, através de uma medicina
experimental. A medicina se destaca desse conjunto como aquela que teve participação mais
expressiva na mediação entre os mecanismos políticos em jogo nessas estratégias, quais
sejam, o poder disciplinar e o dispositivo de segurança. Desta maneira, foi a medicina que, em
grande medida, fundou a “sociedade de normalização” (FOUCAULT, 1995g), a partir da
intromissão dos critérios de normalidade/patologia no âmbito jurídico, antes povoado pelos
critérios lícito/ilícito, e que paulatinamente deixa de ser uma mediação binária, para ser uma
regulação dos riscos (FOUCAULT, 2004a).
O suporte das linhas inaugurais do dispositivo da sexualidade, nos séculos XVIII e
XIX, esteve concentrado na família (FOUCAULT, 2005a). Foi em torno dela que gravitaram
as principais estratégias de regulação e disciplinamento de que falamos anteriormente: a
sexualização do corpo da mulher; a fabricação da sexualidade infantil; a regulação dos
casamentos e a psiquiatrização do prazer perverso (ainda que este último guarde certa
autonomia em face da família, os critérios que o definem são extraídos da norma
heterossexual que a família, de modo exemplar, encarna). Esse agenciamento da família pela
verdade do sexo pode ser localizado genealogicamente nas reformulações da moralidade
sexual cristã do século XVI. É nele que surge uma verdade do sexo como condição de
possibilidade para a emergência de um sujeito do desejo (FOUCAULT, 2001; 2005a).
Desde o Concílio de Trento, quando uma revisão muito profunda das formas de
“governo das almas” (FOUCAULT, 2001, 2005a, 2004a) praticadas pelo catolicismo incluiu
a elaboração de um conjunto de táticas de intromissão da doutrina cristã nas famílias,
fomentou-se uma primeira forma de escrutínio do sexo como via de acesso ao desejo. Desta
forma, a consolidação do casamento enquanto sacramento, uma sofisticação das técnicas de
confissão, o reforço à figura do marido como “chefe” material e espiritual de seu rebanho,
17

intensificando a misoginia (VAINFAS, 1989) como forma de manter a hierarquia no interior


da família e sua correspondência simbólica com o poder clerical e divino, representaram uma
primeira tentativa de regulação das relações familiares que tinha o sexo como ponto de
ancoragem.
As relações familiares, até a emergência dessa grande maquinaria de regulação que é o
dispositivo da sexualidade, eram organizadas por outro sistema de regras, qual seja, o
dispositivo da aliança. Neste, o sexo era um elemento que estaria a serviço da garantia de
equilíbrio da sociedade, sendo necessário definir a estabilidade do status entre os parceiros
como prerrogativa para as uniões, o que garantiria mecanismos estáveis de transmissão de
bens e de filiação. Para tanto, mantinha-se um regime de regras sexuais estritamente prescritas
pela dicotomia entre o proibido e o permitido.
Os remanejamentos no dispositivo da aliança pelo dispositivo da sexualidade teriam
ocorrido a partir das transformações econômicas e políticas no século XVIII, quando uma
nova organização da sociedade, centrada no liberalismo, constituiria novas demandas
históricas. Nesse sentido, a rigidez do sistema de alianças passaria por uma flexibilização,
garantida por novas técnicas de regulação que poderiam manter uma extensão permanente dos
domínios de ingerência política sobre as relações sexuais e reprodutivas, sobretudo a partir de
grande investimento no registro da sensorialidade, que materializa os jogos de poder que se
investem no corpo individual e que se replicam no corpo social. A família é, portanto, “o
permutador da sexualidade com a aliança” (FOUCAULT, 2005a, p. 103). Não é por acaso que
ela, a partir de transformações profundas operadas entre o século XV e XVIII, passa a se
constituir como espaço de afetividade, conquistado pela sua paulatina intimização, para ser a
base de sustentação social (FOUCAULT, 2005a; ARIÈS, 1981).
Com essa digressão teórica, explicitamos, de modo condensado, a cartografia
conceitual que guiou nosso olhar na leitura dos textos médicos, a fim de fundamentar que é no
solo teórico do biopoder que o esforço argumentativo aqui empreendido tem lugar. Foi o
interesse em pensar a sexualidade enquanto dispositivo que forjou a primeira ideia de produzir
uma investigação sobre a emergência de uma “ciência sexual” no Brasil. Configurada dessa
maneira, no entanto, a pesquisa não seria exequível nas condições estabelecidas para o
doutoramento, já que obrigaria a um trabalho de esquadrinhamento de conjuntos muito
amplos de estratégias políticas que incidiam sobre uma pluralidade de objetos tal que
inviabilizaria qualquer investigação.
Foi então que, tomando a família como unidade de análise para uma história de
saberes e instituições médicas orientados para a regulação política dos indivíduos e da
18

sociedade através da sexualidade, priorizamos dois elementos com os quais constituí o objeto
desta tese: a regulação higiênica e eugênica dos casamentos (no eixo das relações conjugais) e
a fabricação higiênica e eufrênica de uma sexualidade infantil (no eixo das relações entre pais
e filhos), cujas implicações nas escolhas metodológicas serão detalhadas mais adiante. É
necessário explicitar que, na tentativa de reduzir o objeto da pesquisa a uma dimensão viável,
ao priorizar a regulação higiênica dos casamentos e a sexualização da criança (dois dos
conjuntos estratégicos do dispositivo da sexualidade), não enfatizamos o problema da
diferença sexual,4 nem a medicalização do corpo da mulher,5 problemas importantes para uma
análise mais abrangente da família enquanto núcleo das regulações biopolíticas da
sexualidade e que certamente constituirão zonas de opacidade no trabalho. Essas questões são
invocadas no texto na medida em que o esforço analítico empreendido tornou necessário
esclarecer o processo de fabricação do lugar da mãe, principal agente de gestão política da
vida na família moderna, bem como para subsidiar, no caso da diferença sexual, argumentos
que se esforçaram por mostrar a interferência do discurso médico nas relações conjugais. Uma
análise mais detida dessas questões será relançada para o trabalho de aprofundamento de
pesquisa que esta tese inaugura.
O trabalho de Costa (1999), intitulado Ordem médica e norma familiar, publicado em
1979, reverberando os ecos de A vontade de saber, de Foucault (2005a), apresenta-nos um
esquadrinhamento da difusão do higienismo na instituição familiar brasileira. Mais
especificamente, a medicalização da família foi o próprio mote para a emergência da família
burguesa no Brasil (que aconteceu no final do século XIX e se acentua nas primeiras décadas
do século XX), que se tornou cada vez mais dependente desses agentes na regulação de sua
dinâmica e de seus conflitos. O alcance do trabalho de Costa, entretanto, extrapola os limites
da instituição familiar, uma vez que explicita uma verdadeira cartografia do processo de
normalização da sociedade brasileira (seus espaços, instituições e discursos) e os efeitos na
constituição de modos de subjetivação que se engendraram na família moderna brasileira.
Essa inspiração acabou se dirigindo, na presente tese, mais para uma análise dos
pressupostos higiênicos e eugênicos da regulação da sexualidade no âmbito da família do que
para um estudo das transformações na estrutura familiar brasileira mediadas pela ordem
médica. Arriscaríamos dizer que a presente tese tentou se organizar em torno daquele eixo
que constituiu a “ciência sexual” de que nos fala Foucault (2001), em detrimento de uma
análise do disciplinamento familiar pela ordem médica. Priorizamos a análise de certos

4
A este respeito, ver: Prokhoris (2000), Laqueur (2001) e Arán (2006).
5
A este respeito, ver: Nunes (2000), Rohden (2003), Edelman (2003) e Dorlin (2006).
19

pressupostos que orientaram as estratégias higiênicas e eugênicas do casamento e da infância


que, no final do século XIX, viabilizaram uma ampliação significativa da intervenção médica
nas relações familiares, que começaram a ser esboçadas pelo saber médico desde a primeira
metade do século XIX. Esta tese representa, portanto, uma tentativa de apropriação desses
pressupostos que engendraram a regulação médica da sexualidade conjugal e infantil,
escapando aos seus limites a confecção de uma história da família no sentido pleno do termo.
Outro aspecto que merece esclarecimento prévio diz respeito ao esforço de dirigir o
olhar para as particularidades do cenário brasileiro. Ainda que a constituição do saber médico
promova a circulação de ideias e conceitos que extrapola seus territórios de origem, nosso
esforço analítico se pretende solidário de um outro, qual seja, o de buscar particularidades que
nos ajudem a matizar o processo de transformação social ocorrido no Brasil, a partir do século
XIX, no âmbito específico da constituição de discursos e práticas médicas de produção da
sexualidade no âmbito familiar. Vale lembrar que o pensamento médico brasileiro se
constituiu junto com as marcas das contradições internas que a longa tradição escravagista
havia gerado na dinâmica social. Desta forma, as tensões sociais que se materializavam em
termos raciais foram muito significativas. Na formação social historicamente construída no
Brasil, o “racismo étnico” e o “racismo contra o anormal”, para usar a categorização
foucaultiana (2001, p. 403), precisariam ser reconhecidos a partir de outra organização dessas
elucidativas chaves de análise que não a relação de recobrimento do primeiro pelo segundo,
como sugere a análise do filósofo francês, menos por uma razão teórica, mas por uma razão
eminentemente política, que cumpre explicitar.
Amparado pelo regime social ao qual pertencia, para o qual o racismo “étnico” não
parecia se configurar como fundamento de suas tensões sociais, Foucault pensou tal forma de
racismo como acoplada à gestão política da vida na modernidade, que define as vidas que
merecem ser vividas. O racismo seria a forma pela qual o Estado conseguiria assegurar o
assassinato em nome da vida (FOUCAULT, 2005b), cumprindo, assim, sua função
biopolítica, interpretação plenamente justificável no seu pensamento e plena de eloquência
política. No entanto, no regime brasileiro é cabível um destaque analítico ao racismo étnico,
pela historicidade de sua formação social e pelos estrondosos efeitos que se manifestam, ainda
hoje, na atualidade do país, se pensarmos que a visibilidade pode ser uma estratégia política.
No Brasil do final do século XVIII e início do século XIX, a valoração biopolítica da
vida foi aclimatada por forte racismo científico. Especialmente a medicina, através do
discurso da degenerescência, fez equivaler a figura do degenerado à do negro. A emancipação
entre essas duas figuras do racismo não parece ter sido efetivada, ainda que se apresente, a
20

partir da década de 1920, no contexto da eugenia, especificamente no pensamento de Renato


Kehl, um combate violento à “fealdade”, aos portadores de deficiências físicas e mentais, que
parecia fissurar a equivalência anteriormente apontada. Se o racismo científico de Nina
Rodrigues generalizava a inferioridade do negro, o racismo eugênico de Renato Kehl o
misturou ao registro da anomalia, mas ainda assim atribuindo destaque à miscigenação como
causa das mazelas brasileiras e defendendo o branqueamento como solução para elas. Como
analisaremos mais detidamente nesta tese, a constituição de um liberalismo à brasileira se fez
às custas não só de uma naturalização das disparidades sociais, a partir da naturalização da
“inferioridade” negra, constitutiva do conceito de raça, mas também da justaposição das
expressões de anormalidade (criminalidade, loucura, desvios sexuais) ao negro brasileiro.
No Brasil, a hiperestesia sexual ganha destaque por sua articulação com o discurso da
degenerescência, explicitando as tensões políticas relativas à viabilidade de uma nação
constituída por uma população miscigenada. Ela aparece discursivamente como uma marca da
brasilidade, mas sobretudo como um legado dos negros, que cumpriria conjurar, a fim de
proteger as famílias – principalmente as crianças – das classes abastadas brasileiras de seus
efeitos degenerantes, tanto físicos, como morais. Nesse sentido, a ligação entre miscigenação,
hipersexualidade e degenerescência criou as bases para a proposição de medidas higiênicas,
eugênicas e pedagógicas que vão se entranhar na intimidade familiar em nome da defesa de
uma “pátria” bem educada e livre das “taras degenerativas”.
Para levar adiante o desafio de realizar uma leitura de alguns traços da história da
regulação da sexualidade pela medicina no Brasil, nesse terreno esburacado, elíptico,
desbotado que é o da memória coletiva, cabe indagar: como saberes e instituições médicas
brasileiras investiram na regulação política da sexualidade no âmbito das relações familiares,
tomando por pano de fundo o processo histórico de constituição de um projeto moderno de
nação brasileira? Que continuidades e descontinuidades podem ser localizadas na abordagem
médica das relações conjugais e das relações parentais no que dizia respeito ao sexo? De que
táticas e estratégias se valeram nessa regulação?
Esta tese se inscreve na história dos saberes e toma como pressuposto metodológico
fundamental a ideia de que os conceitos de um campo científico devem ser analisados
tomando-se por referência o solo político e social que o fundamenta e não apenas a partir de
uma perspectiva estritamente epistemológica, voltada para a análise da racionalidade interna
que organiza determinado campo científico. Nesse sentido, inspira-se nos métodos de análise
arqueológica e genealógica utilizados por Foucault para perseguir, na análise histórica, as
condições de produção de determinados discursos, bem como os jogos de poder que lhe são
21

imanentes (FOUCAULT, 2005c, 2000a, 2000b, 2000c, 2000d, 2005c, 1995d, 1995e, 1995h,
1984).
O olhar empreendido aqui foi também dirigido pelo interesse em mapear as
continuidades, mas sobretudo pelas descontinuidades que se operaram em relação à
construção de objetos e estratégias políticas pela medicina no Brasil. A análise das
descontinuidades históricas6 é uma estratégia enfatizada na analítica foucaultiana para
desmontar essencialismos, bem como para ironizar a pretensa natureza sublime da ideia de
origem e desestabilizar os lugares de verdade (e os poderes neles investidos) que ocupam os
saberes, camuflados pelo discurso do conhecimento. Foucault acusava a história de apegar-se
à ideia de continuidade, fazendo-nos crer que há uma origem essencial que subsiste ao tempo
e que comanda os destinos da humanidade. Fazia eco a uma nova tradição de pensamento que
combatia a noção de progresso, exaltadas tanto pelos discursos filosófico e científico quanto
pelo discurso capitalista, que dava efeito de verdade à ilusão de que o estado atual é a
referência de evolução para a sociedade. Tornar a história uma busca estrita de continuidades
é negar seu fundamento, razão pela qual podemos notar a obstinação do filósofo em
especificar os usos que dela fazia, criando, inclusive, designações alternativas (arqueologia,
genealogia) para seu método. Assim, ele propõe “demorar-se nas meticulosidades e nos
acasos dos começos; prestar uma atenção escrupulosa à sua derrisória maldade”
(FOUCAULT, 1995d, p. 19), para que seja possível perceber as jogadas, os fluxos e
desdobramentos das batalhas sociais.
Foi esse interesse em olhar para as continuidades e descontinuidades que pautou a
escolha por um recorte temporal mais amplo nesta pesquisa. Como já foi mencionado
anteriormente, a regulação higiênica e eugênica dos casamentos e da sexualidade infantil na
primeira metade do século XX constituiu um campo da batalha muito rico e interessante, mas
que poderia ser mais bem compreendido se pudesse ter seus vestígios perseguidos numa
história de duração mais longa (LE GOFF, 2001). O período da história relativamente longo
selecionado para o estudo (1838-1940) foi tratado, então, a partir do estabelecimento de três
cortes temporais em torno dos quais se aglutinavam questões importantes em relação ao tema
tratado e ofereciam elementos para certos contrapontos que puderam ser estabelecidos na
pesquisa. O primeiro deles, compreendido entre 1838-1870, início da institucionalização do
saber médico no Brasil, vai nos servir de referência para a análise de uma verdadeira
campanha higiênica em prol dos casamentos e da fabricação da mãe como agente prioritário

6
Remetemos o leitor interessado a um artigo de nossa autoria sobre a perspectiva da descontinuidade nos usos da história na
arqueologia de Michel Foucault. Ver: Oliveira (2008).
22

de cuidados com a prole. O segundo, situado entre 1870-1915, quando a medicina, e


especialmente a psiquiatria, apropria-se do discurso da degenerescência para articulá-lo à
miscigenação, será tomado como o período em que foram geradas as condições de
possibilidade para a expansão das intervenções médicas na regulação eugênica dos
casamentos e da educação sexual e eufrenização da criança, que se dará entre as décadas de
1920 e 1930, nosso terceiro e último ponto de análise.
Foi constituído um corpus do estudo, nos quais se tornaram elegíveis como
documentos livros, teses, artigos de periódicos, anais e atas de reuniões científicas, no período
compreendido entre 1838-1940, dispersos predominantemente pelos campos da higiene, da
psiquiatria, da medicina-legal e da sexologia. Cabe ressaltar que cada gênero destes possui
uma função estratégica na captura das discursividades e das intervenções que queremos pôr
em evidência. Desta forma, priorizamos inicialmente os artigos de periódicos, que foram
selecionados a partir de sua pertinência aos campos médicos de interesse para a pesquisa,
especialmente aqueles estavam vinculados a sociedades médicas específicas, de modo que
pudéssemos cartografar as vozes institucionais que organizaram certas estratégias e táticas de
intervenção atinentes ao problema estudado. Os anais e atas documentam eventos organizados
pela classe médica que fornecem sínteses interessantes de suas preocupações à época. As
teses de graduação foram selecionadas por representarem o discurso científico legitimado pela
Academia, o que o torna emblema da produção de verdade neste campo, já que carrega a
crença na sua validação pelos seus membros e pela tradição científica encarnada pela
instituição, sendo portanto documentos válidos para analisar os jogos conceituais com que
trabalhava a medicina, bem como identificar temas que preocupavam a categoria de médicos
e que seguramente tinham vinculação com o contexto sociopolítico da época. Foram também
incluídos livros, pelo seu potencial de difusão das ideias médicas e pela marca de autoridade
que normalmente identificavam seus autores.
O levantamento desses documentos foi realizado nos seguintes locais: Biblioteca da
Faculdade de Medicina da Bahia, Biblioteca do Instituto Médico-Legal Nina Rodrigues e
Biblioteca da Santa Casa de Misericórdia (Salvador); Biblioteca da Academia Nacional de
Medicina; Biblioteca Nacional; Biblioteca da Casa de Oswaldo Cruz e Biblioteca de
Manguinhos, ambas da FIOCRUZ (Rio de Janeiro); e Bibliotèque Henry Ey do Centre
Hospitalier Sainte Anne (Paris). Todo esse material constituiu um manancial bastante vasto
para a pesquisa histórica, que não pôde ser analisado na sua totalidade, tendo sido
efetivamente trabalhados para o estágio atual desta pesquisa os documentos submetidos ao
crivo dos sucessivos recortes que foram realizados para a elaboração da tese.
23

Esse percurso culminou na elaboração desta tese, cujo plano descreveremos a seguir.
No capítulo I, analisaremos a constituição de uma defesa higiênica dos casamentos no
pensamento médico novecentista, voltada para remanejamentos das figuras de esposa e
marido na nova configuração de família que começava a se esboçar no Brasil, contrastando-a,
brevemente, com a regulação cristã da moral sexual colonial. Em seguida, descrevemos a
visibilidade higiênica que a medicina deu à infância no século XIX, problematizando
especificamente o interesse pelo tema da masturbação, que articula simultaneamente a
família, centrada na figura da mãe, e a escola na convocação de zelar pela criança.
Partindo das contradições sociais que se apresentaram na construção do projeto liberal
nacional a partir da década de 1870, discutiremos em seguida, no capítulo II, a apropriação do
discurso da degenerescência pelo saber médico-psiquiátrico brasileiro, que propiciou uma
leitura da brasilidade marcada pelo excesso sexual e pela condição “degenerada” da
miscigenação, a fim de pensar as condições de possibilidade para a emergência do projeto de
eugenia matrimonial institucionalizado nas primeiras décadas do século XX, que tomou como
táticas a campanha pela compulsoriedade do exame pré-nupcial, o combate aos casamentos
consanguíneos, o controle do contágio venéreo e o aconselhamento sexual dos casais.
Uma hibridação da eugenia com um modelo pedagógico moral se evidencia no
capítulo III, quando analisaremos a campanha de educação sexual, cuja pretensão de instituir
uma sciencia sexual no Brasil, de legitimidade controversa, tinha como horizonte viabilizar
uma profilaxia sexual que mitigasse a produção da criminalidade, das perversões sexuais e
das doenças nervosas, bem como os desajustes familiares, a partir da fabricação de um novo
objeto, qual seja, o sexo das crianças, no qual incidirá uma nova pedagogia, objeto de nossa
análise no IV capítulo. Nesse particular, apontamos particularidades discursivas da difusão
das ideias freudianas entre higienistas brasileiros acerca da sexualidade infantil. Finalmente,
sinalizamos a constituição da higiene mental da criança como um novo domínio para a
psiquiatria brasileira, que tomou a intensa circulação afetiva intrafamiliar como ponto de
ancoragem para um projeto de normalização social, ainda centrado na eugenia, mas já
atravessado por uma psicologia da adaptação.
24

1 A VISIBILIDADE DA FAMÍLIA NO PENSAMENTO MÉDICO DO SÉCULO XIX

1.1 A institucionalização do saber médico no Brasil

A história da constituição do saber médico no Brasil remonta à segunda metade do


século XVIII, quando uma transição política importante aí se fez notar, explicitando um
conjunto heterogêneo de transformações sociais que começaram a delinear certas prioridades
históricas. No plano econômico, o declínio da monocultura açucareira e a expansão da
exploração do ouro reconfiguraram a geopolítica brasileira, fazendo com que o centro de
produção de riquezas migrasse do Nordeste para o Sudeste brasileiro. Neste particular, o Rio
de Janeiro era uma cidade que foi merecendo cada vez mais atenção do poder colonial, já que
servia de ponto de escoamento do ouro e começava a aglutinar de maneira cada vez mais
caótica uma população crescente. Disso decorria que a normalização7 do espaço social,
através da regulação de seus perigos e da distribuição ordenada dos indivíduos, tornava-se um
imperativo. A sede do governo foi então deslocada de Salvador para o Rio de Janeiro em
1761, estabelecendo, no plano político, uma nova relação entre colônia e metrópole. É nesse
cenário que veremos surgir, na nova capital do Império, o caso exemplar de intervenção
paulatinamente articulada entre Estado e medicina para higienizar o espaço social,
constituindo uma expectativa de institucionalização do saber médico no país (MACHADO et
al., 1978).
Já havia uma demanda da população por médicos no Brasil Colônia, mas o binômio
médico-doença era preterido por formas alternativas de cura, de modo que nesse período a

7
Esse analisador, que atravessará toda a tese, merece aqui uma consideração teórica. Tomada inicialmente no pensamento
foucaultiano como uma estratégia disciplinar por excelência, a normalização, no entanto, sofrerá uma importante redefinição
no seminário “Segurança, Território e População”, de 1977-1978. A fim de distinguir os mecanismos de poder que
diferenciavam a lei, a disciplina e o “dispositivo de segurança”, Foucault tentará precisar a relação de cada um deles com a
norma. Admitindo que a função da lei é codificar a norma, o que, portanto, significa que o campo da norma é mais vasto que
o campo da lei, estaria justificado seu interesse em analisar os mecanismos de normalização que estariam na periferia ou
mesmo na contramão da lei. A disciplina – que prevê um controle minucioso dos gestos, do tempo, da espacialidade que se
constitui entre o individual e a massa – processa-se em relação a uma finalidade, o que permite dizer que a disciplina busca
normalizar, mas a partir da construção de um modelo que se considera ideal para alcançar a finalidade esboçada. Com base
nessas premissas ele afirma, então, que a disciplina estabelece as bases para distribuir os indivíduos em normais e anormais,
mas sua tarefa fundamental seria a construção do modelo, ou seja, da norma. Daí que ele vai admitir uma nova designação
para esse processo: na disciplina temos um processo de normação. É apenas quando a cidade passa a colocar problemas para
a soberania, que ela passa a ser alvo de produção de um saber que visava à intervenção propriamente normalizadora. O
desafio que se coloca, portanto, é o de garantir que a circulação se processe e que se tenham mecanismos de controlar os
perigos dessa circulação, a fim de garantir a segurança da população. As relações de poder se multiplicam, ou melhor, se
capilarizam, de modo que a vigilância, nesse novo dispositivo – o de segurança – incide não sobre um corpo individual, mas
sobre os limites definidos a partir da busca de ordem na aleatoriedade nos movimentos de uma população, nova definição de
normalização, que age em sinergia com a lei e a disciplina.
25

medicina não se impunha como a forma privilegiada de tematizar a saúde. A escassez de


médicos tinha como motivos principais o desinteresse desses profissionais em se instalar no
Brasil e a proibição do ensino superior nas colônias. Até a chegada da família real, em 1808, a
atuação médica era controlada por Portugal. Inicialmente, através dos cirurgiões-mores (cargo
criado em 1260), reproduzindo o modelo institucional da monarquia portuguesa, que fazia do
médico um prolongamento do poder soberano, cujo papel era eminentemente fiscalizador. Ao
longo dos séculos XVI e XVII, esse mecanismo sofreu algumas alterações, basicamente
orientadas por uma especificação das diferentes práticas sob a responsabilidade da medicina.
(MACHADO et al., 1978).
É nesse sentido que cirurgião-mor, físico-mor (categoria que nasce no século XVI) e
boticário deveriam ter funções diferentes, de modo a tornar impossível a superposição de
responsabilidades, passível de punição jurídica. A análise do exame realizado junto à
Fisicatura ilustra o itinerário pelo qual um praticante da medicina deve percorrer para obter
legitimidade jurídica de sua prática: são-lhe exigidos prova documental e testemunho de sua
prática por dois anos, além de realização de exame médico junto aos doentes para receber
licença para exercer a medicina. Esse modelo foi transplantado para o Brasil, de modo a
garantir que, através da medicina, a metrópole pudesse ter controle sobre a colônia, razão pela
qual não se permitia até então formação superior no país. (MACHADO et al., 1978).
O regimento da Fisicatura, no entanto, não parecia ter sido devidamente cumprido na
colônia, já que boticários prescreviam medicamentos livremente, os cirurgiões continuavam a
exercer a medicina e muitos práticos exerciam a medicina sem licença. Após algumas
tentativas não-exitosas de intensificação da fiscalização, foi criada, em 1782, a I Junta do
Proto-Medicato, que centralizava os poderes do físico e cirurgião mores de fiscalização do
exercício da profissão, concedendo licenças e diplomas, substituindo, sem mudanças
substanciais, a Fisicatura. Efetivamente, toda a regulação do exercício da medicina se
restringia à fiscalização da profissão e, com ela, da vida política e econômica da colônia.
(MACHADO et al., 1978).
O reconhecimento da necessidade de formação médica no Brasil pelo poder real em
1808 deixa entrever a necessidade de uma nova forma de regular politicamente a vida no país.
Quando D. João VI, referendando-se na proposta feita pelo cirugião-mor José Correira
Picanço, decide pela fundação de instituições de ensino médico no Brasil, a formação de
médicos, através da criação de duas escolas médico-cirúrgicas (Bahia e Rio de Janeiro)
passou, em 1808, a ser nacionalizada. No caso da Bahia, o curso contava à época de sua
fundação com o ensino de cirurgia, anatomia e obstetrícia, por professores formados em
26

Portugal e que exerciam a medicina no hospital militar (PEREIRA, 1908). Sob a alegação de
demonstrar preocupação com a saúde de seu povo, estava o interesse em modificar a
arquitetura política da cidade, ordenar a circulação de pessoas e bens e constituir uma
população saudável, solucionando os problemas sanitários que se acumulavam nas cidades
brasileiras (e que se agravaram com a chegada da corte portuguesa), a fim de governar e
expandir o potencial econômico da colônia num espaço citadino normalizado. (MACHADO
et al., 1978).
Mas o esforço de institucionalização ainda se estenderia pelas primeiras quatro
décadas de formação médica brasileira, em detrimento da qualificação de seu projeto
científico. (SCHWARCZ, 1993). As escolas cirúrgicas fundadas em 1808 ofereciam um
ensino muito precário, o que mantinha o exercício da profissão muito limitado e pouco
confiável. Essa constatação desencadeou o processo de construção da primeira reforma do
ensino médico, levada a cabo com a conversão das primeiras escolas cirúrgicas em academias
médico-cirúrgicas, em 1813 e 1816, respectivamente, no Rio de Janeiro e em Salvador,
implicando revisão curricular com aumento do número das cadeiras obrigatórias, ampliação
da duração dos cursos de quatro para cinco anos e realocação dos espaços de formação
prática. Em Salvador, por exemplo, essas aulas migraram do Hospital Militar da Bahia para o
hospital da Santa Casa de Misericórdia, com o propósito de possibilitar o atendimento a uma
heterogeneidade maior de casos. (PEREIRA, 1908).
A reforma empreendida nos primeiros anos de institucionalização da formação médica
brasileira configurava, portanto, um conjunto de táticas que afirmava o interesse português de
que ela pudesse efetivamente atender às demandas político-sanitárias que se impunham, ainda
que seu controle sobre esse processo continuasse a existir. Os cargos de cirurgião e físico-
mores foram reabilitados em 1808 e o Proto-Medicato extinto no ano seguinte, mantendo a
centralização da fiscalização e da concessão de títulos para o exercício profissional, o que
ocasionava resistência da categoria médica (silenciada na memória produzida por Pacífico
Pereira, de 1908, e substituída por uma apologia às ações joaninas), que desejava ficar livre da
ingerência portuguesa. Através de alguns projetos de lei que visavam à conquista de
autonomia, preconizava-se, por exemplo, a transformação das escolas médico-cirúrgicas em
escolas de medicina, o que propiciaria a oferta de formação em farmácia, cirurgia e medicina.
(MACHADO et al., 1978).
A Fisicatura foi extinta em 1828, falência decretada por sua inoperância quanto à
possibilidade de constituir efetivamente uma medicina social no país, demanda clara àquela
altura. A progressiva consolidação do saber médico brasileiro vai se dar no rastro dessa
27

contingência e os médicos começam a participar das instâncias que deliberavam acerca das
medidas que assumiam política e programaticamente a missão de modificar o quadro sanitário
nacional. Merecem destaque as ações de colaboração médica ao governo relativas à saúde
pública, veiculadas a partir de decreto imperial que legitimou, em 1830, a parceria das
Câmaras Municipais com a Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro (fundada um ano antes),
instituição importantíssima para o fortalecimento institucional da medicina no país.
(MACHADO et al., 1978).
A atuação da SMRJ foi, inclusive, decisiva na reforma do ensino médico de 1832.
Coube a ela a elaboração do projeto que remodelaria a política de formação profissional no
âmbito da intervenção em saúde, conferindo-lhe uma nacionalização de seu controle.
Converteu-se, com isso, o estatuto das instituições formadoras de escolas médico-cirúrgicas
para faculdades de medicina, tendo sido criadas naquele ano as Faculdades de Medicina da
Bahia e a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. O curso médico passou a ter seis anos de
duração, cujo ensino passaria a contar com 14 cadeiras subdivididas em sciencias acessorias,
sciencias medicas e sciencias cirurgicas, conferindo-lhes maior autonomia política,
administrativa e acadêmica, mas pouco exequíveis no cotidiano das faculdades. (PEREIRA,
1908).
A inscrição do saber médico na formação discursiva do progresso nacional implicou
mudanças em diferentes registros. Em primeiro lugar, como fizeram notar Machado et al.
(1978), houve uma transformação do saber médico, a partir da primeira metade do século
XIX, que passava a se ocupar não apenas da saúde individual, mas sobretudo da saúde das
populações. Além disso, houve uma sofisticação nas táticas de inserção em nichos políticos
de interesse da corporação médica: mudando o objeto, a medicina assumiu-se como
colaboradora do Estado e da família, desestabilizando seus poderes e oferecendo-se como
mediadora dos conflitos. Desta forma, inflacionava-se paulatinamente o prestígio social e
político do médico no Brasil. Mas isso não se fez senão por um conjunto complexo de
correlações de força e por mecanismos intricados de exercício de poder, que se exerciam
entremeados por tensões internas e externas.
Na segunda metade do século XIX, a corporação médica endereçava inúmeras queixas
ao Estado, que iam desde a intromissão considerada indevida do Estado nos assuntos da
corporação – como foi o caso das matrículas realizadas na Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro e na Bahia -, passando por sua negligência no aporte de recursos para a formação
médica e para a divulgação da medicina nacional nos centros de intelligentsia médica
internacional. Entre os anos de 1860-1870, vários artigos na Gazeta Médica deram
28

visibilidade às tensões entre o saber da corporação médica e a máquina estatal. Em 1866,


numa campanha da GMB no ano que antecedeu ao Congresso Médico Internacional de Paris,
insistia-se na necessidade de representação brasileira que, apesar da existência de faculdades e
agremiações médicas, ainda não havia conquistado espaço na medicina internacional.
Reivindicava-se que o Estado pudesse se responsabilizar mais pela formação e especialização
dos médicos brasileiros. Era uma medicina que clamava por reconhecimento social e político
e por expansão de seu domínio de ação8. Em outro artigo, de 1868, também da GMB, sob o
pretexto de condenar o ritual da leitura das memórias históricas anuais na abertura dos anos
letivos, que culminava com sugestões de aprimoramento da formação e da regulação da
profissão médica, de pouco alcance no interior da própria corporação e na resolutividade do
governo imperial, faz-se uma enérgica condenação à intervenção estatal nas políticas de
funcionamento das faculdades de medicina, marcada, por exemplo, pelo favoritismo que
impunha no ingresso ao ensino médico (sem atendimento às prerrogativas legais), ameaçando
o controle médico sobre a formação profissional9.
Nesse breve quadro, sobressai-se a luta pela preservação de identidade profissional
que se queria construir e fortalecer num país em que até o século XVIII o médico não
desfrutava de legitimidade social, sendo preterido em relação aos curandeiros. (COSTA,
1979). No entanto, a atitude queixosa dos médicos frente ao Estado descortinava o que
começava a se configurar como direito de classe, investido de interesses pela defesa da
sociedade, organizados institucionalmente pelas faculdades de medicina, mas impulsionados
pela criação da SMRJ, algumas décadas antes, quando os médicos vão pouco a pouco se
imiscuir nas decisões relativas à constituição de uma medicina social no país.
Por outro lado, no interior da profissão, ainda frágil na sua organização política, uma
série de manobras desejava produzir o espírito de corporação.10 Construíram-se nesse período
agremiações – como a Sociedade de Sciencias Médicas (1866) – com as quais se pretendia
fortalecer os laços de solidariedade pessoal e profissional, através da difusão de códigos de
ética e da criação de sociedades de beneficência mútua. Afirmava-se que a medicina deveria

8
Ver: O CONGRESSO médico internacional de Paris (1866).
9
Ver: A PROPÓSITO das memórias históricas das faculdades de medicina do Império em 1866 (1868).
10
A tentativa de ampliação do domínio de atuação médica não se fez sem tensões internas à própria corporação. No processo
de reforma do ensino médico no último decênio do século XIX, os embates políticos entre os dois centros de formação
médica do país – o da Bahia e o do Rio – se intensificaram, o que foi noticiado pelos dois principais veículos da imprensa
médica da época: a Gazeta Médica e o Brasil Médico. A reação carioca à reforma do ensino em 1882 foi divulgada pelo
Brazil Médico, num artigo que pretendia sustentar a tese de que o tratamento dado aos dois centros de formação deveria ser
diferente, uma vez que o estado civilizatório, o número de alunos, preparo do corpo docente davam ao Rio de Janeiro
condições de formação superiores, o que deveria se reverter em distribuição desigual de recursos entre os dois centros. A
supremacia médica brasileira deveria ser então construída na capital do Império e não na província. A reação baiana veio na
GMB de 1890 (GMB, n. 7, 1890), quando um artigo foi publicado criticando duramente a ofensiva fluminense.
29

ser marcada pela solidariedade11 (médicos, por exemplo, não deveriam cobrar honorários
quando seus pacientes fossem seus colegas e/ou familiares destes). Estabelecia ainda as
questões relativas à regulação financeira da profissão, tanto na relação entre médico e sua
clientela, quanto da relação entre os médicos. Em suma, a relação da medicina com os
indivíduos, com a sociedade e com os pares começava a fazer parte da agenda política dos
médicos, a fim de impulsionar sua capacidade de intervenção política na sociedade.
Externamente, desenvolveu-se uma verdadeira cruzada contra o charlatanismo, de
modo a produzir a conquista do prestígio profissional da medicina que se constituía dentro da
lógica científica novecentista: percorrendo a especificidade da doença para garantir-lhes os
meios adequados de combate avantajava-se, por conseguinte, o reconhecimento social ainda
tímido acerca do saber médico. O medical act, dispositivo jurídico instituído a partir de 1858
na Inglaterra, destinado a regular a educação médica, bem como o exercício da profissão,
havia acrescido também a publicação compulsória e ampla dos “facultativos diplomados”, o
que visava à exposição dos que praticavam a medicina sem o aval da corporação12.
Ainda como tática dessa campanha anticharlatanismo, a GMB publicou, em 1867, o
Código de Ética Médica aprovado pela Associação Médica Americana, que convocava os
médicos para o compromisso com o fortalecimento da categoria, preconizando o respeito à
autoridade e à tradição médica, bem como ao corporativismo. Além disso, o documento
explicitava os riscos das práticas codificadas como charlatãs – sobretudo a prescrição de
fármacos secretos e a ausência de habilitação formal para o exercício da medicina – para a
saúde da população.13
A partir da segunda metade do século XIX, as instituições de formação médica no país
são parte de um movimento mais amplo de constituição de uma elite intelectual que pudesse
construir esse projeto de nação. As instituições que vão se constituir no Brasil do século XIX
– os museus de ciência natural, as escolas de medicina e de direito – deveriam criar uma
intelligentsia robusta e comprometida com os interesses sociais. Mais ainda, deveriam criar os
subsídios discursivos que fizessem coadunar os interesses do liberalismo com a necessidade
de justificar a profunda estratificação social, centralizados no debate sobre a condição
miscigenada14 da população brasileira. (SCHWARCZ, 1993).

11
Numa conclamação à organização da corporação médica, um artigo da GMB de 24 de janeiro de 1867 propunha a criação
de uma associação médica beneficente, cujo objetivo era, por meio do fortalecimento dos laços de solidariedade, coagular os
interesses médicos (ver: NECESSIDADE DE..., 1867).
12
Ver: LIBERDADE PROFISSIONAL (1866).
13
Ver: NECESSIDADE DE criação de uma associação médica em nossa província: sua utilidade e seus fins (1867).
14
Retomaremos essa discussão no capítulo 2.
30

1.2 Estado, medicina e família patriarcal

Apesar das reivindicações de maior reconhecimento que a corporação médica dirigia


ao Estado, a institucionalização do saber médico no Brasil não se deu apenas por uma relação
de antagonismo em face aos interesses estatais. Houve também um progressivo alinhamento
de seus interesses, o que, conforme já assinalamos, pode ser localizado na necessidade de
normalização do espaço citadino e da população, empreendida pela difusão da medicina
social (MACHADO et al., 1978). No entanto, para que esse projeto pudesse ser levado a cabo,
seria necessária uma maior intromissão estatal na regulação dos indivíduos, bem como uma
reestruturação dos próprios mecanismos de controle da ordem social.
Esta empreitada não seria fácil, já que a política colonial lhe havia criado alguns
obstáculos. As cidades foram negligenciadas pelo poder de Portugal até o século XVIII, a
quem interessava fundamentalmente a transferência de riquezas da colônia para seu território,
o que fomentou uma crescente insatisfação diante do caos social e da usurpação econômica da
metrópole, ampliando a ocorrência de tensões econômicas e políticas. A vinda da família real
acabou por transformar a paisagem urbana, sobretudo a do Rio de Janeiro, já que o aumento
expressivo do contingente populacional acabou intensificando os já graves problemas sociais
e higiênicos ali existentes. (MACHADO et al., 1978).
Tornou-se urgente a criação de outros mecanismos que pudessem apaziguar os ânimos
políticos, para que um processo de medicalização do espaço público pudesse ser alcançado. É
nesse cenário que a medicina vai desempenhar uma importante mediação na regulação
individual e social por parte do Estado, o que aconteceu por sua paulatina ingerência na
família. A fim de destacar alguns elementos importantes dessa transformação, serviremo-nos
diretamente da discussão que Costa (1999) promoveu acerca do importante papel que a
medicina desempenhou na mediação entre os interesses do Estado e a pulverização política da
lógica familiar patriarcal, na qual reverbera muito da análise empreendida por Gilberto
Freyre, em 1933, acerca da formação social brasileira.
No processo de reordenamento social das políticas empreendidas pelo Estado
brasileiro, a família patriarcal representava um foco importante de resistência, o que era de se
esperar. Durante os três séculos de colonização, apesar de submetida aos interesses da
metrópole, a família latifundiária acabou por configurar a ordem social e econômica de
acordo com suas conveniências. Essa primazia política da instituição familiar latifundiária
sobre o meio pode ser entendida a partir da política portuguesa de colonização do país, que
31

deixou a cargo da iniciativa individual dos colonos a tarefa de povoamento. Desta forma, essa
tarefa os converteu em proprietários, não apenas de seus lotes, mas do espaço social. Na
lógica da família colonial patriarcal, o privado era soberano, o que se explicitava inclusive na
ocupação do espaço público: era a casa que definia a rua. Além disso, o patriarca latifundiário
exercia forte controle político sobre o meio social, construído a partir do fortalecimento de
sua rede de apoio, que consistia não só nos membros consanguíneos, mas também de
afilhados, compadres e agregados que se voltavam para defender a família de seu protetor
através da defesa do latifúndio.
A manutenção da hegemonia política do latifundiário dependia, então, da coesão de
sua família. Ainda de acordo com os argumentos de Costa (1999), encontramos a
especificação de alguns mecanismos que serviam a essa finalidade. O primeiro deles era o que
o autor denominou de “auto-referência” e se manifestava na tendência em orientar a conduta
dos membros da família exclusivamente em função dos interesses desta, o que representaria
uma dificuldade para o Estado, na medida em que o sentimento familiar estava acima de todos
os outros. O segundo mecanismo era a centralidade da figura do pai no governo da família, de
quem os demais membros eram inteiramente dependentes, o que representaria outra
dificuldade no caminho do poder estatal na assunção dessa tutela.
Como o poder, até o começo do século XIX, estava repartido na cartografia do país
entre litoral e zona rural, sendo o primeiro o território político da administração, e o segundo,
o domínio das famílias oligarcas, as tensões eram relativamente acomodadas ou se resolviam
a partir do controle jurídico-punitivo da metrópole. No entanto, a partir do adensamento das
cidades, as tensões ficaram mais evidentes. Diante desse cenário, era de se esperar que o
projeto de higienização das cidades sofresse obstáculos, muito por uma resistência deliberada
do poder patriarcal, mas também pela dificuldade de modificar comportamentos arraigados
numa tradição muito distinta da que estava sendo proposta.
Tornava-se necessário, então, que novas formas de regulação pudessem dispersar o
poder familiar, criando novas linhas de força na qual uma nova forma de controle dos
indivíduos e da produção de riquezas pudesse se fazer. A família deveria ser posta a serviço
de um projeto de nação, mas esse objetivo só poderia se realizar a partir de um agenciamento
político de seus membros, de modo a produzir uma sedução para os ganhos da adesão ao
interesse nacional. É nesse cenário que tem lugar a divisão do poder no interior daquela
instituição, forjada num lento e instável jogo de antagonismos, por um programa de higiene
familiar, de linhas instáveis, remanejáveis e que serviu para conjurar a dominância que a
instituição familiar exercia no espaço social. Rompendo, então, com uma lógica jurídico-
32

punitiva, a medicina vai privilegiar nas suas intervenções uma abordagem da família de modo
a seduzi-la para o projeto da higienização tanto do âmbito privado quanto público.
Alguns estudos sobre a família, a partir da década de 1980, tomaram esse livro por
referência, ora para admitir suas contribuições para pensar a construção da família burguesa
no Brasil pela mediação da ordem médica, ora para criticá-lo por sua inscrição na tradição de
pensamento que tomou a família patriarcal como modelo de família colonial. (ALMEIDA,
2002; TEYURA, 2000). Interessa-nos comentar especialmente essa crítica, pois, apesar de
não se constituir como uma história da família brasileira, a presente tese adotou para algumas
análises do discurso médico sobre o casamento o pressuposto, extraído de Costa (1999) de
que para que se pudesse levar adiante o processo de higienização das famílias era necessário
desestabilizar a lógica familiar colonial, na qual não se pode desprezar a difusão dos valores
patriarcais, herdados da configuração política das monoculturas escravagistas latifundiárias.
Vainfas (1989) organiza as críticas15 à tese do modelo patriarcal como estruturante da
família brasileira em dois eixos. No primeiro, estão as críticas destinadas não a contestar a
existência da família patriarcal, mas ao seu teor generalizante, subsidiadas por estudos
demográficos que encontraram em algumas regiões do país uma prevalência minoritária dessa
configuração familiar, como em São Paulo, por exemplo; além disso, o nascimento da família
nuclear teria se dado, sobretudo na Região Sudeste, bem antes das transformações nas classes
burguesas do século XIX. O outro eixo das críticas se refere à sujeição da mulher ao poder
masculino na família patriarcal, pois apesar de ser inegável, a opressão da mulher no Brasil
colonial deveria ser matizada pela existência de subversões a essas relações assimétricas, bem
como à presença de mulheres como chefes de família nas classes populares.
A essas críticas, Vainfas (1989) reage afirmando que o pensamento social brasileiro
não justapôs família patriarcal e família extensa, o que teria permitido entrever outras
constelações familiares, mas teria definido como interesse dos cânones as relações de poder e
não as configurações de coabitação familiares. Coerente com esse ponto de vista, localizamos
em Freyre, por exemplo, não uma negação de que existiam outras configurações familiares,
mas que a família patriarcal era aquela em torno da qual estava organizada a base de produção
econômica da colônia – quer dizer, o latifúndio escravagista da monocultura, ênfase
justificada pelo interesse de pôr em evidência os mecanismos de constituição das
verticalidades das relações sociais estabelecidas entre senhores de engenho e seus
subordinados. Vainfas (1989) assinala ainda que não se pode subjugar o poder de penetração

15
Ele se refere aos seguintes trabalhos: SAMARA (1983); CORRÊA (2002).
33

dos valores patriarcais nas famílias que apresentavam conformações alternativas. Estendendo
seu argumento para a realidade europeia, o autor nos lembra que o modelo monárquico da
família está na genealogia da modernidade, na qual aos poderes religiosos e reais
interessavam reforçar a família conjugal, mas desde que estivesse centralizado na figura do
patriarca.
Feita essa ressalva, vale destacar que o conjunto de argumentos de Costa (1999),
brevemente elencados nesta seção, permite justificar, pelo menos parcialmente, o interesse em
analisar como a medicina, desde as primeiras décadas de sua institucionalização no país, na
primeira metade do século XIX, investiu em alguns temas da esfera familiar, dentre eles o
casamento e o cuidado com a infância, sempre abordados por uma perspectiva higienista. Em
particular, a conduta sexual foi, desde esse período, um importante alvo da higienização das
famílias e de paulatina regulação dos indivíduos e da sociedade.
A normalização do espaço urbano, a reordenação do espaço doméstico e escolar, a
preocupação com a noção de “população”, a emergência de novas formas de pedagogia que
produzissem corpos adestrados e robustos, homens polidos, civilizados e autoculpabilizados e
a regulação higiênica da relação conjugal e da relação com os filhos foram alguns dos
componentes deste quadro que nos tece Costa (1999) sobre a medicalização da família. Com
efeito, tais componentes fizeram do sexo, no Brasil do século XIX, uma verdadeira
engrenagem política, que funcionava como “arma de prestígio, vingança e punição”, tornando
a família burguesa uma “filial da ‘polícia médica’”. (COSTA, 1999, p. 15).

1.3 A defesa higiênica dos casamentos

Presente neste primeiro momento de constituição do pensamento médico no Brasil, na


primeira metade do século XIX, o discurso higienista sobre o casamento vai ser atravessado
pelo discurso cristão da instituição do matrimônio. No entanto, trata-se de duas matrizes bem
diferentes de pensamento, que merecem o esforço de estabelecer alguns de seus contrastes, a
fim de descrever suas descontinuidades, o que procuraremos fazer na próxima seção.
Submetida política e economicamente ao poder do senhor latifundiário, a mentalidade cristã
justificava inclusive o poder do patriarca sobre seus súditos. A medicina, ao contrário, para
conseguir intervir na saúde individual e populacional, precisaria, como já anunciamos,
34

desestabilizar a lógica centralizadora do poder do patriarca, avesso à intromissão política de


terceiros no seu modo de comandar a família.
Na primeira metade do século XIX, a medicina enfatizava o casamento como um
remédio para diversos males individuais e sociais. A campanha médica dirigida a esse alvo
está muito bem retratada na tese de Luiz Vianna D’Almeida Valle, de 1847. A puberdade
aparece como uma fase que indicaria o rumo “natural” que a mulher deveria tomar, qual seja,
o de unir-se ao homem para perpetuar a espécie, sendo o casamento a forma mais legítima de
coroamento desse desígnio. Nesse sentido, o celibato, a continência e a esterilidade seriam
situações condenáveis, prejudiciais que seriam à saúde e à longevidade. Mas a medicina não
vai defender o mero acasalamento como prática reprodutiva. É necessário inseri-la na ordem
jurídica do casamento, a fim de preservar a família no cumprimento de sua função de fazer
crescer, com saúde e com educação, a população.16 Era preciso civilizar o Brasil, a partir da
lógica médica emergente.
Uma inversão importante em relação à moral cristã aparece na tese de Valle em
relação ao casamento: agora, tratava-se de afirmar sua superioridade em relação ao celibato,
opinião que havia levado muitos às malhas de Inquisição, por contrariar a ideia de que o
celibato eclesiástico era o estado eticamente superior ao casamento, como veremos. Mas o
argumento médico estava apoiado pelo ideal de longevidade, não de ascese espiritual. O
casamento monogâmico apresentaria algumas vantagens que o tornariam superior ao estado
celibatário ou mesmo à poligenia: possibilidade de laços de solidariedade e de cuidado
mútuos; a satisfação de desejos sexuais, garantindo o usufruto de prazer comodamente
assegurado pela posse, sem danos associados a contágio venéreo; como garantia de educação
dos filhos; como condição segura de crescimento populacional. Dedicando-se um ao outro e à
educação dos filhos, o casal monogâmico estaria a salvo dos prejuízos da poligenia relativos
ao crescimento da população: um homem com várias mulheres não seria capaz de dominar o
ato da geração, no que dizia respeito ao poder de propagação do seu sexo, enfraquecida que

16
A preocupação com a população no Brasil já se insinua desde esse momento e vai se intensificar ao longo de todo o século
XIX e começo do século XX, a partir dos estudos que vão se preocupar em descrevê-la em termos de padrões de morbidade e
mortalidade. Segundo Foucault (2004a), a noção de população ganha positividade quando a partir do século XVII, com a
emergência do mercantilismo uma nova economia de corpos (e vidas), agora em relação ao Estado, é posta em circulação. É
porque a população será “a base da riqueza e da potencia do Estado”, que se desenhará um conjunto de mecanismos que
regularão seus deslocamentos, sua mortalidade e natalidade, sua produtividade, enfim, seu comportamento, que começa com
os mecanismos disciplinares que esquadrinham o espaço social a partir da normação, no século XVII; mas o modelo da
soberania, como modo de governo, dava-lhe inteligibilidade. Posteriormente, no século XVIII, a população implicada nas
estratégias de poder emergentes, não será concebida nem como um conjunto de indivíduos (submetidos à vontade soberana)
que habitam um território, nem como o resultado de uma vontade soberana, nem como uma “vontade de se reproduzir”, não é
uma noção apriorística, mas a produção, por naturalização, de um conjunto de variáveis que então a definem. A população é
tomada por um fenômeno natural, não apenas porque ela vira o resultado de um conjunto de fenômenos cuja regularidade é
minuciosamente observada, mas porque ela teria como motor o desejo dos indivíduos que a compõem. Com isso, o problema
político se coloca de outra maneira: não mais como interditar o desejo dos súditos, mas, ao contrario, como lhe “dizer sim”.
35

era a proporção de sua contribuição na fecundação. O efeito disso seria, com a geração de
mais mulheres do que homens, a perpetuação da poligenia. Esse curioso raciocínio, baseado
nos conhecimentos sobre hereditariedade e embriologia da época, leva à afirmação de que a
monogamia era um destino natural da espécie. Estava esboçado o programa que a medicina
levaria a cabo em relação à família ao longo das décadas seguintes.
As prescrições higiênicas quanto ao casamento começam a ser lançadas desde esse
momento. Valle (1847) recomendava que se observasse a idade ideal para o casamento,
tradicionalmente fixada para os homens entre 15 e 16 anos, e para as mulheres, entre 12 e 13
anos. Ele afirmava que mesmo sendo a puberdade um importante marcador, já que ela
indicaria a prontidão do organismo para a atividade procriativa, seria necessário aguardar
algum tempo para favorecer o amadurecimento físico e moral e, com isso, evitar não só danos
constitucionais da prole, como também permitir que os jovens, em especial as jovens,
tivessem tempo para se preparar para o exercício da maternidade. A recomendação etária da
medicina para o casamento fixava-se em 20 anos para as mulheres e 25 anos para os homens.
Com isso alfinetava-se o costume de então, de produzir casamentos das púberes por
causa do dote a ser recebido ou por outros interesses do patriarca. Uma crítica contundente é
dirigida ao sacrifício das mulheres submetidas a casamentos vivenciados com repugnância
para salvaguardar os interesses familiares. Não seria possível gerar população saudável num
contexto como esse, destituído das condições que a higiene, insuflada pela atmosfera do amor
romântico (COSTA, 1999) na qual o individualismo e sensorialismo se faziam marcantes,
julgava importantes para a consolidação da família medicalizada. Somente um casamento no
qual o amor físico, as afinidades morais e a presença do sentimento amoroso estivessem
presentes poderia ser capaz de criar o ambiente propício à criança higienizada e bem-educada.
O saber médico, ao defender as jovens, portanto, acaba por produzir fissuras no
discurso do patriarca, que deveria ser o único a ditar as regras, efeito oportuno quando se
tratava de instituir uma nova organização familiar, mais afeita à regulação higiênica. A
prescrição da idade propícia ao casamento tem, nesse momento, um alvo certo: a figura
carrancuda do patriarca, senhor de seus filhos e de suas mulheres. Aparecera aí uma crítica
contundente aos casamentos realizados segundo a lógica da aliança, submetida ao crivo das
conveniências familiares. É na desmontagem desse regime que a medicina vai precisar
apostar para conseguir capturar a mulher para seus propósitos políticos de normalização do
espaço familiar.
Outra condição que contrariava a prescrição médica ao casamento eram as
deformidades físicas que, seja pelas dificuldades impostas ao parto, seja pela transmissão
36

hereditária – uma preocupação presente, portanto, desde os primeiros momentos institucionais


da medicina brasileira –, deveriam ser evitadas. Um conjunto de doenças foi estabelecido
como razão suficiente para a contraindicação a determinados casamentos. Era o caso, por
exemplo, de lesões dos órgãos de reprodução; problemas cardíacos, tísica pulmonar,
inflamações viscerais. Interessante que a epilepsia nas mulheres – contrariamente ao homem
epiléptico que, ainda que de posse de oportunidades sexuais, se mantinha normalmente
refratário à cura – não era entendida como necessariamente um obstáculo ao casamento, pois
ela podia ser curada em muitos casos, já que era entendida como efeito da continência,
intensificada numa constituição frágil do sistema nervoso, que seria a da mulher. Uma vez
suspensa a privação sexual, atribuição causal importante dessa doença, a cura poderia advir.
Os males nervosos e/ou mentais também figuram entre essas causas: mania, sonambulismo e
melancolia, como males contraindicados ao casamento.
Nessas prescrições, aparece um apelo explícito aos legisladores para que avalizassem
as opiniões e contraindicações médicas discutidas há pouco. Ou seja, a medicina já clamava,
na primeira metade do século XIX, para que houvesse uma regulação jurídica do casamento,
amparada pelos preceitos higiênicos. Foram também indicadas as condições que a medicina
legal poderia arbitrar em favor da anulação dos casamentos. A alienação mental, o erro de
pessoa (identidade civil e/ou sexual) e a impotência física eram os principais motivos que
habilitaria um médico a subsidiar a anulação de um casamento. Apesar já estar esboçada a
ideia de que o amor físico era uma prerrogativa importante para um casamento feliz e uma
prole saudável, não havia como instituir sua ausência como uma causa de nulidade jurídica. O
autor chega a afirmar, por exemplo, que a mulher poderia se manter num casamento, mesmo
sem prazer ou mesmo com repugnância sexual, pois, do ponto de vista da geração, esses
sentimentos não criavam obstáculo físico à função procriativa, razão pela qual estas não
seriam queixas legítimas para a anulação de uma união conjugal. Seriam necessários novos
recursos para que o tema da satisfação sexual pudesse entrar nas táticas de fabricação de um
novo modelo de família, regulado pelo intenso investimento afetivo17 nas relações entre pais e
filhos e entre cônjuges, paulatinamente conquistados por um movimento crescente de
intimização do convívio familiar, o que vai acontecer no Brasil a partir do século XIX,
demanda histórica que teve o saber médico como importante mediador.

17
Essa foi a marca principal da passagem histórica da família tradicional para a a família moderna, analisada por Phillipe
Ariès, em 1960, no seu célebre livro História social da criança e da família.
37

1.4 Quando o casamento higiênico ainda não existia: sexo e matrimônio nas confissões
inquisitoriais brasileiras

A valorização do casamento como espaço importante de regulação social não é


prerrogativa exclusiva do interesse médico de expansão de sua ingerência sobre a regulação
da instituição familiar. Até a Idade Média, a Igreja exerceu a regulação dos atos sexuais,
especificando os detalhes de como uma vida moralmente reta deveria ser conduzida. A Igreja
entendia que o casamento era um mal necessário para cumprir o mandamento divino da
procriação dentro de regras que visavam a excluir desse âmbito a dimensão do prazer. É nesse
sentido que a longa tradição católica reputou o celibato eclesiástico como a mais pura forma
de vida, seguida pelo casamento, que seria preferível à fornicação, considerada como uma
forma pecaminosa de existência e que deveria ser combatida pela Igreja (RICHARDS, 1993).
No século XII, a Igreja consolidou a conversão do casamento, uma instituição secular
na qual ela Igreja tinha participação secundária, em sacramento. O ritual, que agora se tornava
central para a união matrimonial, envolvia um conjunto de regras para a vida conjugal que
visavam a garantir-lhe maior estabilidade: a monogamia como norma estrita de conduta; a
indissolubilidade do laço conjugal; a proibição de casamento consanguíneo até o 7o grau de
parentesco; e introdução do consentimento do casal na concretização do ritual. A cerimônia
do casamento também havia sofrido significativas alterações nesse processo de sacralização
que surge na França no século IX e se consolida no século XII: elas passam a ser realizadas na
Igreja e não mais na residência dos nubentes; há a introdução do registro documental das
cerimônias; estabelecimento de idade mínima de 12 anos e 14 anos, respectivamente, para
meninas e meninos, além de dias específicos para a cerimônia. (RICHARDS, 1993).
O sexo matrimonial era compreendido sob três pontos de vista teológicos: (1) no
século XII, por Huguccio, o sexo matrimonial, como todo ato sexual, era considerado pecado,
ainda que pudesse ser, por vezes, venial; (2) no século XIII, a visão de São Tomás de Aquino,
mais aceita pela Igreja, segundo a qual o sexo é parte do casamento, desde que para os fins
prescritos e sem excessos; (3) com Jean Gerson, no século XIV-XV, o sexo matrimonial
voltado para a procriação poderia comportar a busca do prazer – se isso não fosse obtido por
práticas transgressivas, ele não seria pecado ou o seria na sua forma venial. A prescrição do
sexo matrimonial pela Igreja se dedicava aos pormenores da vida íntima dos casais:
prescrevia-se a frequência com que deveriam ter relações sexuais, mantendo dias religiosos e
jejuns, domingos e períodos de “impureza” das esposas sob abstinência, a posição adequada
38

para os atos sexuais, qual seja, os cônjuges de frente um para o outro, deitados e o homem por
cima da mulher; qualquer outra forma de relação era passível de penitência; o sexo deveria ser
praticado à noite e os cônjuges não deveriam estar inteiramente nus. (RICHARDS, 1993).
As questões sexuais tinham grande centralidade na atribuição da severidade dos
pecados nas confissões. Prática que se tornou privada a partir do século VI, a confissão
regular foi tornada obrigatória para os cristãos a partir do Concílio de Latrão, que oficializou
o uso dos penitenciais nas confissões, a partir da criação dos Sumae Confessorum, produzidos
pela inteligentsia universitária da época. (RICHARDS, 1993).
Flandrin (1988) afirma que, na moral sexual cristã, a mulher estava subordinada ao
poder do marido em todos os âmbitos da vida, tal qual seus filhos, empregados e agregados,
exceto no leito conjugal. A Igreja pregava que homens e mulheres eram iguais no que dizia
respeito à dívida conjugal contraída. Os cônjuges teriam igual direito sobre o corpo do outro,
o que, quando confrontado com a regra de submissão nas demais instâncias da vida,
configurava um paradoxo. Haveria, como decorrência da desigualdade geral nos outros
âmbitos da vida, um constrangimento da mulher em exercer esse direito, que estaria na base
de uma atitude subreptícia em relação ao desejo sexual, o que poria o homem num lugar de
assujeitamento maior no âmbito do leito conjugal, já que cabe a ele efetivamente explicitar o
desejo sexual. Essa atitude feminina indicaria um “privilégio de ser entendida com meias
palavras” (FLANDRIN, 1988, p. 149), e permaneceria como marca principal da condição
sexual das mulheres, sendo interpretada ora como um dado natural, que permaneceu até o
século XX, quando as expectativas em relação aos encontros amorosos guardam essa
distinção de gênero.
Essa igualdade, portanto, era apenas teórica, já que a mulher estava alijada de seu
desejo e o homem então caba sendo aquele que pode cobrar a dívida conjugal. A análise das
prescrições quanto às posições feminina e masculina no ato sexual não deixa dúvida de que
essa “igualdade” não valeria para esmaecer as diferenças identitárias entre homens e
mulheres: recomendava-se como única posição, no ato carnal, a que mantinha a mulher como
passiva e o homem como ativo, qual seja, o homem deitado sobre a mulher. Qualquer outra se
considerava algo contra a natureza, seja porque subvertia a relação homem/mulher prescrita,
seja porque imitava o mundo animal, semelhança não desejada pela Igreja. Podemos arriscar
dizer que esse estratagema visava a justificar a fidelidade mútua, base na qual estava
assentada a moral conjugal cristã. Desta forma, apesar da supremacia do homem, ele não
estaria autorizado a práticas sexuais consideradas contra a natureza, como por exemplo, a
fornicação. (FLANDRIN, 1988).
39

A atitude da Igreja diante das relações conjugais sofreu duas marcantes mudanças. A
primeira, no século II, regeu, segundo o autor, a moral cristã acerca do casamento até o século
XX e era regulada não pelo ideário amoroso, mas pela procriação, já que passa a ser preciso
encontrar um espaço de legitimação do mandamento divino da multiplicação dos homens.
Antes disso, ele nos adverte, o prazer não era condenado nas uniões; pelo contrário, ele
significava uma concessão da Igreja para a contenção da concupiscência. O que está na base
da explicação para a mudança seria a pressão do gnosticismo, movimento religioso que
pregava a continência, que teria influenciado a Igreja no seu posicionamento. A segunda, no
século XX, quando o casamento passa, então, a ser definido pelo amor entre os cônjuges,
transformação fomentada pelas descobertas do século XX, especialmente a psicanálise.
(FLANDRIN, 1988).
No século XVI, a Igreja Católica, tentando encontrar soluções para a grave crise que
acometia a Igreja após a Reforma, a partir das decisões pactuadas no Concílio de Trento,
concentrou-se, fundamentalmente, na redução da distância entre leigos e a Igreja, através de
um programa que pudesse estabelecer mudanças efetivas que afetavam desde a hierarquia da
Igreja, passando pela qualificação de sua base eclesiástica, chegando à homogeneização dos
procedimentos sacramentais em face dos fiéis e recuperação do poder episcopal. A superação,
pois, da “decadência da cristandade”, pelo projeto humanista que então nascia, deveria se
realizar a partir de um programa de evangelização das massas de tal envergadura que pudesse
fazer face ao avanço protestante. (VAINFAS, 1989).
Para tanto, a redefinição das práticas sacramentais de confissão foi uma das principais
táticas para o intento católico de aproximar-se dos fiéis. A partir da introspecção contrita,
regular e sigilosa, a vida íntima dos indivíduos vai-se redobrando sobre si mesma através do
escrutínio dos pecados, fabricando uma relação que, ao ser rigorosamente abstinente e guiada
pela autoridade moral do padre, garantia à Igreja o acesso aos mecanismos de funcionamento
dos indivíduos e, mais ainda, produzia a assimilação do discurso católico na sua tessitura mais
íntima, aproximando os fiéis pelas suas entranhas. Uma nova arquitetura do confessionário
era tecida a fim de evitar as tentações carnais que poderiam emergir entre clero e fiéis: a
regulação do olhar pela separação física das telas, a exposição do confessionário nos espaços
públicos da Igreja foram algumas das mudanças impostas pelo Concilio de Trento. Ainda,
uma economia da expiação da culpa se sofistica neste movimento de redobramento do
discurso dos pecados sobre si. (VAINFAS, 1989).
As bases reformadoras tridentinas tomaram como principal alvo a vida em família
para a recuperação do espaço perdido para os protestantes após a Reforma. O itinerário da
40

confissão, que se centrava na inspeção do cumprimento dos mandamentos sagrados, dos da


Igreja e nos pecados capitais, era atravessado pelo interesse nas práticas e moralidades
sexuais. Nesse sentido, o sacramento do matrimônio ganhava toda importância. Mas a
prescrição cristã continuava destoante das moralidades populares ibéricas, que incluíam como
casamento várias modalidades de união que viam como legítimas (concubinato, casamentos
clandestinos). A Igreja estava decidida a combater o que considerava formas ilegítimas de
uniões maritais, o que lhe franqueava a ocupação de um enorme e fecundo terreno – a saber, o
matrimônio sacramentado segundo os códigos morais e religiosos – no qual poderiam semear
novos fiéis, não só em número, mas também em adesão ao projeto de reformar a Igreja e
reaproximá-los dos valores cristãos. Para tanto, recorria ao 6º mandamento – o “não
fornicarás” - como instância de demarcação entre o que seriam práticas sexuais legítimas.
(VAINFAS, 1988).
O início das missões jesuíticas no Brasil data dessa época, sucedendo em apenas
algumas décadas o processo de povoamento. Nessa época, o imaginário sobre o Brasil era
povoado pela ideia de que ele era aquilo que Laura de Mello e Souza (1989, p. 80) denominou
de “colônia-purgatório”. Ela analisa o “degredo”18 a partir de uma perspectiva bem diferente
da que foi adotada pelo pensamento social brasileiro,19 inscrevendo-o na lógica teológica que
ordenava o regime colonial. Nessa perspectiva, longe de tomar o degredo como argumento
fundador da má-colonização, a autora o interpreta como uma justificativa para a escravização
dos povos colonizados pelos cristãos. O Brasil era então o “purgatório” de brancos
portugueses que, mesmo exilados, viam nessa condenação a chance de voltar à condição de
habitante da metrópole.
Esse imaginário vai atravessar fortemente as moralidades na colônia, com as quais, em
meio às mudanças impostas pela contra-reforma, a Igreja vai se deparar. O trabalho de
aculturação do projeto tridentino precisava considerar não apenas o ethos dos autóctones, mas
também as condições concretas de colonização, marcadas pela exploração latifundiária
fundamentada na exploração escravagista. A organização eclesiástica brasileira esteve
assujeitada à lógica do patriarcado, que situava a família como a instituição responsável pela
construção da ocupação, unificação territorial e política do Brasil. (VAINFAS, 1988).

18
O degredo consistia num mecanismo punitivo do direito régio português que deportava para o Brasil os indivíduos que
praticassem violação de conventos para raptos de freiras, fornicação com parentes ou com parentes de um eventual anfitrião,
estupro de órfãs ou menores sob tutela, adultérios, corrupção sexual ou alcovitaria de mulheres castas ou sob abstinência
sexual, homicídios, feitiçaria, dentre outros (SOUZA, 1989).
19
Ver Prado (2002).
41

Desta forma, as novas premissas, instituídas pelo Concílio de Trento e que deveriam
pautar a conduta eclesiástica, tiveram de ser flexibilizadas na colônia, o que se aplicaria ao
recuos táticos diante da tarefa de generalizar o casamento cristão como única forma legítima
de união conjugal. Essa flexibilização incidiu sobre dois aspectos: a necessidade de
povoamento das vastas terras brasílicas, o que incluiu uma disjunção entre casamento e
reprodução, inclusive para o clero, que por aqui teria produzido várias exceções ao celibato
eclesiástico; também pela necessidade de manutenção do sistema escravagista, donde o
casamento poderia, aos olhos do senhor de engenho, servir à alforria dos escravos.
(VAINFAS, 1988).
Interessa-nos o modo como o Santo Ofício tipificava os crimes morais.20 Vale lembrar
que a confissão inquisitorial estava submetida ao âmbito jurídico e não ao sacramento da
confissão. Enquanto instauração de um dispositivo jurídico, interessava à Igreja não
exatamente o pecado, mas o crime, que neste caso se situava no âmbito do desvio da fé. O
critério para a classificação de um pecado como crime sexual para o Santo Ofício era a
presunção de que ali havia heresia. Nesse sentido, sodomitas, bígamos, tribadistas, praticantes
de bestialidade – e não o adultério e o concubinato, por exemplo, como bem sinaliza Vainfas
(1988) – eram considerados crimes morais, pois atentavam contra a fé cristã.
Uma análise pontual das confissões da Bahia ao Santo Ofício da Inquisição de
Lisboa,21 datadas de 1591, nos traz algumas constatações interessantes. A primeira delas diz
respeito ao estatuto de heresia dado à crença de que o casamento era um estado superior ao
estado do celibato religioso.22 De acordo com os dogmas da Igreja, havia uma hierarquia entre
esses estados: o estado superior seria o celibato religioso, seguido do casamento e finalmente
viria o celibato dos leigos. Tal hierarquia contrastava com a moralidade sexual vigente, que
entendia ser o casamento mais próximo da natureza e de ser, portanto, uma criação divina.
Rastreando tal representação, a Igreja acreditava aproximar-se de indivíduos que haviam
assimilado o luteranismo. Era a busca da heresia o fundamento de tal inquirição.
Curiosamente, o que vai se suceder no século XIX no pensamento médico é uma
inversão dessa hierarquia: ao celibato religioso será elencado um conjunto de patologias, que

20
O Santo Ofício era uma instituição católica do século XVI, inspirada em uma versão dominicana do século XIII que fora
organizada a mando do Papa Gregório IX para inquirir suspeitos de atentar contra o cristianismo. Sua versão ibérica se
particularizava pela submissão direta ao poder monárquico e pelo acentuado antissemitismo. Pretendia combater os saberes e
moralidades que desafiassem o poder católico, a fim de conter sua fragilização frente aos ataques da reforma protestante, que
incidiam sobre os dogmas da Igreja. Estabeleceu os mecanismos judiciários modernos (tortura, segredo de confissão,
anonimato das testemunhas, dentre outros) (VAINFAS, 1988).
21
As Confissões da Bahia [1591] foram reunidas numa publicação da Companhia das Letras, através da coleção “Retratos do
Brasil, tendo sido organizadas pelo historiador Ronaldo Vainfas (UFF) em 1997.
22
Ver Confissões: 55; 86; 115.
42

seriam ocasionadas justamente pela subversão à ordem da natureza. O que veremos acontecer
desde a primeira metade do século XIX é um elogio higiênico ao casamento, instituição para a
qual irá convergir toda a legitimidade do sexo.
Vainfas (1989) fez notar que a ênfase dada ao casamento nestes casos deixa entrever a
assimilação de um valor que era disseminado pela Igreja, que converte o sacramento do
matrimonio desde o século XII. Difusão que se intensificou pela reorganização do controle da
fé católica pelo Concílio de Trento. A releitura que ele nos oferece da hierarquia dos estados
pela moralidade colonial brasileira serve de argumento contra a imaginarização de um Brasil
primitivo, cuja marca principal seria o excesso sexual. Nesse sentido, havia regras, restrições
que guiavam a conduta dos nossos antepassados seiscentistas, nem sempre reconhecidos pelo
trabalho de decodificação pelo discurso cristão, e que foi assimilado, sem o devido
distanciamento crítico, por Paulo Prado, em 1928, ilustre representante do pensamento social
brasileiro (PRADO, 2002).23
A bigamia24 também comparece como objeto da Inquisição. Nos depoimentos dos
confessantes, a violação do sacramento matrimonial estava enredada numa trama que
envolvia migrações, insatisfações conjugais etc. Para Vainfas (1989), a Igreja elegia
particularmente a bigamia e não o adultério, porque no primeiro caso, o pecador usava o
próprio sacramento para intentar contra ele, o que constituía dupla heresia.
O rastreamento de desvios de fé podia incidir sobre afirmações aparentemente opostas
dos suspeitos de heresia, como é o caso daqueles que entendiam não haver pecado na
fornicação.25 Entendida como prática que contrariava o sexto mandamento, a fornicação era
vista como heresia também porque nele se transgredia a ideia de que o casamento era o único
lugar em que o sexo poderia ter lugar, ainda que fosse visto como mal necessário. Outro crime
curioso é o daqueles que faziam apologia ao matrimônio, situando-o como melhor ou igual ao
estado celibatário dos religiosos. Essa crença popular desafiava o pressuposto fundamental da
Igreja de que o continência santificava os sacerdotes, levando à suspeita, por parte da Igreja,
de que ela representava uma filiação ao luteranismo. (VAINFAS, 1988).
O problema do concubinato merece nossa atenção, pois boa parte do discurso do
“excesso sexual do brasileiro” está ligada a ele. Como identificar dentro da lógica católica a
fornicação? Ora, a definição desse mandamento pressupõe que fornicar é estabelecer relações
sexuais fora do casamento. Mas nesse universo há um conjunto muito heterogêneo de práticas

23
Detalharemos um pouco mais essa questão, quando no capítulo III, analisarmos o discurso do excesso sexual do brasileiro,
revisto nas décadas de 1920-1930 e inserido nas preocupações com a identidade brasileira.
24
Ver Confissões: 4, 34, 36.
25
Ver Confissões: 33, 61, 120.
43

sexuais e de aliança que, se homogeneizados, dão eco ao discurso da hiperexcitação sexual.


Ao mesmo tempo, distinguir concubinato de fornicação não quer dizer que ela tivesse o
mesmo valor no quadro moral do Brasil seiscentista.
Nesse sentido, tolerava-se o concubinato entre escravos, por ser ele útil à reprodução
da mão-de-obra escrava sobretudo, mas também por permitir exploração sexual por parte do
senhor, por não desestabilizar a condição de escravo que poderia representar o casamento
reconhecido pela Igreja. Mas essa não era a única forma de tolerância do concubinato. À
exploração social justapunha-se, por parte de muitos senhores, a exploração sexual, através da
figura da concubina-escrava, sem dar-lhes o privilégio da instituição matrimonial. Nos
segmentos mais pobres da população, uma das interpretações é que o concubinato seria uma
prática difundida por razões estritamente burocráticas e de custeio do ritual matrimonial.
Vainfas (1989) nos mostra que, se o concubinato era prática corrente no Brasil
colonial – alcançando relações entre escravos; senhores e escravas; mulheres e homens
infelizes nos seus casamentos, padres –, seu valor não era homogêneo. Apenas algumas
poucas dentre essas uniões alcançavam legitimidade próxima à do casamento, pela
conjugação da coabitação, relações sexuais e de companheirismo e cuidado dos filhos,
considerados “casamentos informais”, quando impedidos de contrair matrimônio por entraves
sociais e religiosos (casamentos consanguíneos, segundas núpcias etc.), cujos rebatimentos
também se faziam em relação ao custo mais elevado das despesas eclesiásticas. O
concubinato era visto também como “estágio provisório”, depois do qual se reproduzia o
matrimônio.
O fortalecimento do sacramento do matrimônio na colônia portuguesa dependia, antes
de mais nada, da decifração dos códigos locais. Boa parte do insumo discursivo que fez
equivaler o brasileiro ao desregramento sexual – ideia que permaneceu pela assimilação
sintomaticamente acrítica das fontes jesuíticas e dos diários de viajantes por parte do
pensamento social brasileiro, quatro séculos depois, momento crucial de afirmação identitária
nacional – veio a partir deste movimento. Tais relatos difundiram uma ideia de que o
brasileiro padeceria de uma “intoxicação sexual” que estaria na origem de todos os males
sociais.
Mas o que é mais importante sublinhar desse percurso é que, enquanto é o “herege” a
figura maldita da regulação cristã do casamento, na medicina do final do século XIX até as
primeiras décadas do século XX, este lugar será ocupado pelo “degenerado”. Esses dois
discursos, distantes quase três séculos um do outro, nos servem como exercício não para
apenas assinalar a diferença entre eles, o que talvez fosse um esforço em vão, mas para
44

contestar a naturalização das justificativas que o saber médico encontrou, por exemplo, para
suas proposições de regulação eugênica dos casamentos, conforme veremos mais adiante.
Voltemos à primeira metade do século XIX, quando o discurso médico brasileiro
ainda estava interessado numa espécie de campanha pró-casamentos. Mas agora se trata de
analisar o que estava em jogo nas condenações que aparecem nesse período (1840-1870) ao
celibato, à continência, à ninfomania e à libertinagem, atribuindo-lhes efeitos morais e sociais
que seriam estados contrários à natureza e nefastos à sociedade. A continência, fortemente
associada às mulheres, sobretudo as religiosas, era criticada, alegando-se que a função social
da mulher – a de mãe – estava inativa, não podendo ela contribuir nem com o aumento da
população, muito menos com sua qualidade (saudável e bem-educada). O celibato, por sua
vez, referia-se predominantemente ao homem, experiência moral fortemente condenada, pois
estava vinculada à libertinagem, ameaçando, com isso, a instituição familiar.
Com efeito, o casamento era enaltecido como único espaço higiênica e moralmente
legítimo para o desempenho da função sexual e do seu correlato – a função reprodutiva.
Residia no casamento a aposta de uma vida longa e saudável e de uma sociedade próspera,
baseada na premissa de que ali filhos seriam bem cuidados e bem educados, o que forjava
como demanda a necessidade de remanejar o arranjo que havia sido herdado do regime
colonial, centrado no poder patriarcal.

1.5 Continentes, libertinos e ninfomaníacas na berlinda

1.5.1 Celibatários e libertinos: ameaça à família, à pátria e à sociedade

Entre 1869 e 1870, foram produzidas algumas teses26 sobre o celibato no homem. Era
considerado pelos médicos de então como um estado perigoso à saúde individual e da nação,
uma vez que desafiava a inexorabilidade do “instinto” de reprodução, que se enuncia aí como
uma força natural irrefreável que cabe ao homem dominar, submetendo-o aos interesses
sociais que, não raro, aparecem vinculados às leis divinas. Nem o trabalho excessivo, nem
uma contenção espiritual vigorosa seriam, no entanto, capazes de aniquilar a força instintual,

26
Ver Barros (1869), Araújo (1870) e Marques (1870).
45

que, se travestindo de amor, deveria chegar aos fins prescritos pela ordem natural, que seria a
reprodução. A satisfação legítima do instinto só poderia ser alcançada na união de um homem
e uma mulher, perante a instituição do casamento, pois apenas ela poderia viabilizar uma
compatibilidade entre a ordem instintual e a ordem moral. Por sua vez, o celibato seria a causa
de tormentos e desgraças individuais e sociais.
No caso dos homens, o celibato enfatizado pelos médicos não equivalia
necessariamente à abstinência sexual. Quando era este o caso, argumentava-se que o desuso
da função tornaria o corpo frágil, já que diminuiria os benefícios que uma circulação
sanguínea equilibrada traria ao organismo. Além das perturbações somáticas, o celibatário,
nesses casos, é descrito como um indivíduo marcado pela melancolia dos amores
contrariados, obsedado por ideias suicidas e pelo vício alcoolista.
A vida sexual do celibatário era associada à sodomia e à masturbação, considerados
vícios capazes de produzir muitos estragos, mas também aos contatos com as prostitutas,
fortemente associadas, como veremos mais adiante, à sífilis e aos efeitos degenerativos que
levariam às famílias à destruição. Estava, portanto, fortemente associado à libertinagem, cuja
delimitação, na primeira metade do século XIX, não se fazia tão claramente. Entendida como
prática que desvirtua o homem de seu destino de procriação, a libertinagem se convertia numa
aberração gerada pela força dos instintos, depreciando o lugar (sublime) do homem na
Criação. Neste momento, o discurso médico se entrelaça, sem maiores pudores, ao discurso
católico.
É por essa via que a figura do celibatário aparece como uma dupla ameaça: à ordem
natural e à ordem social. Numa tese de 1853, intitulada A libertinagem e seos perigos
relativamente ao physico e moral do homem, Marinonio de Freitas Britto faz taticamente um
elogio à espécie humana, no qual sobrevém a ideia de que os perigos da libertinagem lhes são
ainda mais graves, uma vez que ela desperdiçaria o patrimônio biológico e espiritual que lhe
foi concedido. O celibato era sobretudo “um estado contrário á virtude, á sabedoria, á gloria,
ao patriotismo, trazendo consequências sempre fataes ao que n’elle incorre, ás famillias e a
sociedade” (BRITTO, 1853, p. 4).
Origem de “todas as devassidões” (BRITTO, 1853, p. 4), o celibatário, com sua
conduta sexual errante, além de atentar contra a lei divina do “crescei e multiplicai”, também
ameaçava a ordem familiar, dissipando a doença e o adultério nas famílias. Sobre ele recaía a
pecha de ser o veículo que levava as impurezas físicas e morais vindas da prostituição e da
boemia para o interior das famílias, abalando, com isso, a coesão familiar e contribuindo para
gerar uma descendência fisicamente doente ou moralmente corrompida. O libertino é ainda
46

retratado como aquele que, sendo avesso ao sentimento patriótico, ao interesse por uma vida
familiar, seria também incapaz de sentir-se culpado por seus “crimes contra a natureza, contra
a moral social, e contra a Religião” (BRITTO, 1853, p. 27); em suma, o libertino seria um
perverso, o que o facilmente levaria à criminalidade A conduta social diante deles, por sua
vez, deveria ser então pautada pela perspectiva de que, uma vez representando tantos perigos,
o libertino deveria ser apartado do convívio social:

Ninguém desconhece os terríveis effeitos da libertinagem, todos os dias os estamos


vendo bem ao vivo: porem não contentes com isso, é de nossa obrigação fazer aqui
uma pintura mais, ou menos, perfeita, conforme a nossa mesquinha intelligencia,
dos abusos a que somos levados por ella e dos males que d’destes nascem para a
economia humana. Ao libertino, qualquer que seja sua idade, sexo, profissão,
temperamento, clima, qualquer que seja a estação, nada se apresenta que seja capaz
de commetter as maiores infâmias no altar da devassidão, não está também muito
longe dos maiores crimes: o rubor já não enrubesce suas faces lívidas pelos effeitos
de uma prostituição illimitada a que se tenha entregado: no delirio em que vive por
amor de suas desenfreadas paixões, de seos furores e torpezas se arroja aos delitos
mais hediondos, feixa seos encovados olhos à prudentes conselhos; a depravação de
sua moral, já há muito, corrompida o leva ao homicídio, quer este seja excitado em
sua alma por ciúme mal entendido, que não devia sentir, porque também não sente
as lavras da paixão gêmea delle; ou porque assenta para si que se deve vingar da
mais insignificante ninharia (BRITTO, 1853, p. 29).

Com essa condenação ao celibato dos homens, que resvalava para uma crítica
generalizada aos jogos de prazeres desvinculados do casamento, os médicos acentuavam
fortemente o que deveria ser considerada a conduta ideal de “pai de família”. Utilizando-se de
uma tática de apontar o antiexemplo e de seus destinos nada felizes, intencionava-se
promover o convencimento de que o casamento era o único lugar seguro para o usufruto do
prazer sexual, pois ali havia a segurança afetiva, social e higiênica para que o instinto sexual
pudesse alcançar sua finalidade última, que seria a reprodução.

1.5.2 Continentes e ninfomaníacas: transbordamentos da figura da esposa

O celibato das mulheres era tido, no século XIX, como uma transgressão às leis da
natureza, que previam a função da reprodução como a mais importante entre os seres vivos e
estava frequentemente associado à continência, por sua adesão a regras de reclusão religiosa.
Ambiguidade significativa, uma vez que pressupunha que “uma mulher honesta”,27 se fosse

27
Essa expressão comparece, inclusive, no Código Penal de 1890, como uma condição para a tipificação de crime e
atribuição de pena, no título VIII intitulado “Dos crimes contra a segurança da honra e honestidade da familias e do ultraje
47

celibatária, deveria ser continente. De modo contrastante, no homem, ser celibatário


implicava uma relação mais estreita com a “libertinagem”, como veremos. Abrindo fogo
contra o celibato eclesiástico professado pelo catolicismo (pondo em dúvida mesmo sua
execução entre padres e bispos), o saber médico expressava uma tentativa clara de
desestabilização do poder da Igreja na regulação do sexo; o discurso médico se utilizava do
argumento de que funções biológicas não utilizadas geravam toda sorte de malefícios à saúde.
Acusava o Estado de ser omisso face a esse estado de coisas, o que gerava uma perda para o
país, já que a mulher celibatária não poderia contribuir com o trabalho de reprodução
biológica e social. Desde muito cedo, ela vai se oferecer como defensora das mulheres, pela
importância capital que essas tinham em face da reprodução, mas também por sua fragilidade
na posição social que ocupavam. A figura da mãe será gerada aí como central para a defesa da
saúde da nação.
Na tese de João Pinheiro de Lemos (1851), a figura da mulher celibatária não só
desafiava as leis da natureza, como as leis sociais, uma vez que não contribuía com a
reprodução de capital humano para defender a nação. O desejo sexual aparece como o meio
do qual se utilizaria a natureza para gerar a vida. Sem negar o prazer sexual, mas sem
enfatizá-lo como condição fundamental para a união da mulher ao homem, a medicina o
vinculou habilmente ao trabalho da procriação, como espécie de júbilo pelo trabalho da
reprodução.
Dois artefatos utilizados para justificar o parecer médico acerca dos efeitos maléficos
do celibato na mulher residiam na compreensão acerca do sistema nervoso. O primeiro dizia
respeito ao destino procriativo da mulher, que estava, sob o domínio da natureza, encarregada
de perpetuar as gerações. Na puberdade esse destino se materializaria, através das mudanças
corpóreas e as intensas preocupações voltadas, como que naturalmente, para o tema do amor:
“é a puberdade que dá à mulher o direito de ter o doce nome de mãe” (LEMOS, 1851, p. 7). A
mulher continente, apartada dos apelos de sua biologia, que a destinavam à maternidade e ao
casamento, tornar-se-ia frágil, melancólica e até mesmo louca. Dessa perspectiva não haveria
salvação para a mulher fora da sua condição de mãe-esposa. Na tese do referido autor,
encontramos:

O celibato é um estado de violência contra os impulsos e leis da natureza. É


desfavorável á conservação da saúde; é a fonte donde devirão-se graves
enfermidades, pungentes flagelos, agras dores, cujo termo só póde a mulher
encontrar n’essa união de vida, n’esse estado, em que duas almas são confundidas,

publico ao pudor”, mais especificamente no capítulo I sobre a violência carnal. Para mais detalhes, ver: BRASIL. Decreto nº
847 de 11 de outubro de 1890. Disponível em: <http://www.senado.gov.br>. Acesso em: 22 set. 2009.
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todos os interesses idênticos; em fim n’esse pacto solemne, em que os dois sexos
podem satisfazer as suas necessidades naturaes, de mais se auxiliarão
reciprocamente à supportar o pesado jugo do destino por uma doce permutação de
cuidados e socorros – o casamento. (LEMOS, 1851, p. 1).

Além do argumento do destino reprodutivo, o celibato produziria na mulher um estado


de desorganização do sistema nervoso e de toda a economia corporal, de longe muito mais
significativa do que no homem. Condizente com a ambiguidade discutida anteriormente,
Lemos (1851) defendia a tese segundo a qual não era a continência em si, mas o celibato o
que mais influenciava na produção da loucura. Desta forma, mesmo mulheres que não eram
continentes, como as prostitutas, não estariam isentas desse efeito. Sem entrar no mérito
científico dessa tese, é importante destacar que ela servia de justificativa para a importância
do ingresso e manutenção da mulher na instituição matrimonial, valorizada como espaço de
comunhão e respeito mútuo, somente no interior do qual a satisfação de “necessidades”
naturais poderia ser legítimo.
Partindo do argumento de que a saúde seria resultante de um uso equilibrado de todas
as funções vitais, o que, se não cumprido, ocasionaria a atrofia dos órgãos, o autor afirmava
que a função sexual seria uma exceção e essa regra. À continência prolongada, a economia do
corpo reagiria com estrondoso barulho, uma vez que a função sexual se encontrava em íntima
ligação com o sistema nervoso, cuja constituição seria mais frágil na mulher. Dessa forma, o
útero, que teria íntima relação com os demais órgãos, proporcionaria a difusão das sensações
sexuais por todo o organismo. Mais especificamente, do ovário irradiariam impulsos nervosos
que chegariam diretamente ao cérebro. Como decorrência, um conjunto bastante difuso de
sintomas estaria associado à continência. A fragilidade da aparência virginal, passando pela
intumescência ovariana que geraria a ninfomania, até a corrupção moral que a excitação da
sensibilidade produziria na mulher, histeria e mesmo a loucura, eram efeitos indesejáveis que
a privação do sexo (conjugal) poderiam produzir. Toda a economia comunicaria “os
sofrimentos do útero” das virgens, dado por uma estimulação sexual não satisfeita,
produzindo um agravamento progressivo:

Todos os órgãos tomam parte n’esses accessos, e parece que se empenhão em mais
claramente exprimir os sofrimentos do útero. Para prova temos a loucura, a
monomania que muitas vezes são a terminação da hysteria; temos as más digestões;
o appetite depravado ou malacia; a circulação, a respiração, as secreções, em fim
toda a economia da mulher é doente, quando o útero dá um brado de dor (LEMOS,
1851, p. 15).

A ninfomania (RIBEIRO, 1842) era entendida como uma afecção do sistema


nervoso que afetava e era afetada pelos órgãos genitais. Não estava necessariamente
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vinculada à continência, mas poderia ser uma de suas decorrências. Mulheres jovens, de
temperamento sanguíneo, constituição física que portava órgãos genitais muito
desenvolvidos, em estado de privação sexual prolongada (mulheres casadas com “homens
fracos”, viúvas, meretrizes), seriam mais vulneráveis à doença. Mas a susceptibilidade
aumentaria com a hiperexcitação dos sentidos através do acesso a leituras, espetáculos
teatrais, acesso às belas artes, música; com a ociosidade e má educação – o que queria dizer,
educação não voltada para o aprendizado dos papéis de mãe e de esposa –, contrariedades
amorosas, dieta rica em alimentos considerados excitantes (café, chocolate, canela etc.) e
estimulação uterina excessiva (desregramentos menstruais; abuso de coito; prurido genital,
afecções do útero e ovário).
Interessante que a periodização da ninfomania codificava desde o mais inofensivo
sinal de desejo até manifestações de franca mania sexual. A descrição dos sintomas exibe um
espectro muito vasto, categorizado em três fases: na primeira, aparecem sintomas como
“desejos insólitos, por uma linguagem mais animada, brilhantismo e vivacidade nos olhos,
coincidindo com calor no ventre e seios, prurido nos órgãos sexuaes, e hum corrimento pela
vulva, de natureza e quantidades variáveis” (LEMOS, 1851, p. 10). O pudor é também
identificado como uma tentativa benéfica de repelir a pregnância das sensações eróticas
vivenciadas pelas jovens. Interessante que a prática masturbatória é um sintoma que fica
sugerido, sem, no entanto, chegar a ser enunciado como tal:

[...] outras enfim conquanto entreguem-se a manobras indecentes comtudo


envergonhão-se outras vezes e não usando encarar sua deplorável posição, nem
implorar soccoro temendo manifestar sua deshonra, fogem, embrenhao-se nos
lugares mais recôndidos; e anhelando assim escapar ao seo inimigo, fasem-se ao
contrario suas victimas, deixando-se arrastar pouco a pouco pela perniciosa e louca
inclinação do seo espírito (LEMOS, 1851, p. 12).

Na segunda fase, a sensibilidade ficaria mais exaltada, com oscilações de humor,


grande voluptuosidade, perturbação geral da circulação sanguínea, interesse obstinado pelo
sexo masculino, secreções genitais intensas. Na terceira e mais grave fase, ausência de pudor,
emagrecimento, olhos fundos, sintomas hidrofóbicos, perda de apetite, oscilações violentas de
agitação e marasmo, mania. O autor constata:

Eis finalmente frustrados os trabalhos de hum pai incansável! Eis terminada a sorte
de huma donzella virtuosa, costumada a regular sua conducta, seguindo os conselhos
de huma mãi sabia e prudente! Que he pois a recompensa da virtude, si o delírio de
hum momento destroe os cuidados de huma educação longa e penivel? (LEMOS,
1851, p. 14).
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Os perigos da ninfomania e da continência não estavam apenas circunscritos ao


sofrimento individual. Estavam enunciadas em sua órbita a honra familiar e mesmo a
moralidade do país. A condição erótica da mulher, escancarada na ninfomania, era vista como
uma expressão sexual exacerbada e fora do lugar, pois punha em questão o desejo que deveria
ser regulado a serviço exclusivamente do casamento (e da maternidade). A mulher continente,
por sua vez, era vista como uma afronta à natureza, posto que se baseava numa recusa à
participação no trabalho de reprodução. Figuras estranhas ao ideal normativo de mulher, razão
pela qual era preciso lutar contra ela. De um lado, convinha remodelar sua imagem como
eternamente casta, para lhe imprimir novos traços: a da boa esposa e mãe, de ancas e peitos
fartos, de semblante acolhedor, amparada pela segurança oferecida pelo marido, feliz e bem
adaptada aos seus desígnios, naturalizados no discurso médico. De outro, era necessário
oferecer à ninfomaníaca, essa “doente” do próprio desejo, formas de contenção do seu
excesso, pois ela dava visibilidade a uma figuração de mulher que deveria aparecer, apenas de
modo subreptício, no leito nupcial.
Com ênfases distintas, o que atravessa todos esses temas – celibato, continência,
libertinagem, ninfomania – é uma depreciação de expressões sexuais que estariam na periferia
da instituição matrimonial, seja pelo caráter não-relacional dessas práticas (a masturbação),
seja pelo exercício sexual fora do casamento (libertinagem, ninfomania), ou ainda pela
renúncia a uma vida sexual (continência). Defendendo o casamento e somente aos poucos
livrando-se da moral sexual cristã, a medicina vai se estabelecendo como aquela que lá no
começo do século XX estará autorizada a estabelecer as prescrições normativas do que se
autointitulará uma “nova moral sexual”, regulada por uma emergente ciência – a “sciencia
sexual”. (ALBUQUERQUE, 1929).
A partir da ênfase higiênica no casamento e do escrutínio crítico de condições de
exercício sexual, estavam apresentados no discurso médico certos parâmetros normativos que
deveriam modelar maridos e esposas capazes de assumir essa instituição que se conformava
como a base de sustentação da sociedade. Em paralelo, uma outra “campanha” estava sendo
gestada: a fabricação da “mãe higiênica”. (COSTA, 1979). O desvelo com que os médicos se
preocupavam da higiene na infância permite vislumbrar a importância de que a educação das
mulheres para o exercício da maternidade tinha para o projeto de regulação higiênica da vida.
(NUNES, 2000; DORLIN, 2006). Ao lado de um marido que pudesse ser o lugar de coesão
familiar, a mulher deveria estar devotada à geração, à nutrição e à educação dos filhos. Era
esse o seu lugar no mundo.
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1.6. O cuidado dirigido à infância e a fabricação da mãe higiênica

Os temas vinculados à higiene da infância já figuravam no pensamento médico desde


a primeira metade do século XIX. Estamos diante do primeiro tempo do que vai se configurar
na passagem do século XIX para o XX como a puericultura, quando instâncias institucionais
começam a se organizar para defender, a partir de um repertório conceitual estranho aos
primórdios da medicina no Brasil – degeneração, eugenia–, o que consideravam a semente do
futuro. Nesse primeiro momento, era preciso sensibilizar os próprios médicos acerca da
importância de intervir no cuidado dispensado às crianças, como defende Martins (2008).
As recomendações dos primeiros higienistas brasileiros a tratar dos cuidados com a
infância eram minuciosas. (BRETAS, 1838; LEITÃO, 1840; LOPES-VIANNA, 1855).
Reconhecia-se a importância dos banhos na conservação da saúde. A recomendação exclusiva
do banho frio, uma marca da tradição que a associava à criação de homens moralmente fortes,
é, no entanto, relativizada. Em vez disso, tornar-se-ia necessária uma passagem gradativa,
compatível com o crescimento da criança, dos banhos mornos aos frios, sendo que os
benefícios dos primeiros – proteção do recém-nascido pela redução da irritabilidade e
produção de bem-estar generalizado – seriam acompanhados dos ganhos tonificantes do
segundo.
A vestimenta também não escapava ao olhar dos médicos. Alegavam que as roupas
utilizadas, imitadas da tradição europeia, eram prejudiciais à saúde das crianças, já que eram
quentes e em quantidades excessivas para os parâmetros climáticos brasileiros. Condenavam
o uso das roupas apertadas, a começar pelo uso dos “cinteiros”, tradicionalmente utilizadas
para proteção da região umbilical, mas também dos alfinetes e outros acessórios que,
privando a criança da mobilidade necessária, poderiam ocasionar problemas no
desenvolvimento dos órgãos e da boa forma física. Indicavam-se ainda o tipo e as cores de
tecido que deveriam ser evitadas.
Recomendam-se ainda certos cuidados com o sono do recém-nascido, devendo-se
cuidar para que o leito tivesse uma dureza moderada, que evitaria as deformidades musculares
e favoreceria a força física e a progressão do crescimento; para que a posição da criança no
leito permitisse a boa respiração e eliminação de secreções, evitando sufocamentos; para que
os tecidos do leito mantivessem a temperatura adequada para a criança. Condenava-se ainda o
hábito de embalar as crianças para facilitar o sono, sob a alegação de que não só ela ficaria
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dependente de tal ritual, como também que se colocava em perigo a organização do cérebro,
mudança na economia geral do organismo e perturbação nas vísceras.
A principal incidência do discurso médico nesse período, no entanto, era a
amamentação. Nas teses sobre essa temática, referidas anteriormente, encontramos uma
contundente recriminação médica ao que se considerava um afrouxamento do “instinto
maternal” nas classes mais abastadas. Corrompidas pelos males trazidos pela civilização, as
mulheres estariam recusando o lugar que a elas foi designado pela natureza. Os bailes, os
espetáculos públicos, os romances, as diversões encontradas nas cidades, teriam dissuadido as
mulheres ricas da dedicação que era assimilada ao ideal de mãe. A condenação ao acesso a
bens culturais não era gratuita: esses recursos acabavam competindo com o interesse médico
de fabricar a mãe devotada ao cuidado dos filhos.
A amamentação era um “dever” da mãe, de modo que o aleitamento mercenário
deveria ser vigorosamente combatido, exceto nos casos em que a mãe estivesse
impossibilitada de fazê-lo, como em casos de doença, ou de insuficiência na produção do
leite. O aleitamento realizado por amas-de-leite era, na interpretação dos médicos, uma
tendência que havia sido imitada dos costumes europeus, que haviam ficado em maior
evidência com a chegada de D. João VI e sua comitiva para o Brasil, e era particularmente
facilitado aí pela disponibilidade de mão-de-obra escrava.
Mas o discurso dos médicos mescla o tom recriminatório da condução leiga com a
sedução necessária para que se pudesse construir um ideário da mãe higiênica. Em primeiro
lugar, tratava-se de valorizar os benefícios que o aleitamento poderia trazer para a saúde da
mulher. O aleitamento, dando curso ao trabalho da natureza, favoreceria a recuperação da
mulher após o parto, evitaria o acometimento de uma série de doenças do aparelho genital
feminino, dentre elas o câncer, podendo ser causado pela cronificação da inflamação pelo
leite represado. Em segundo lugar, a amamentação fortaleceria sobretudo a família. A recusa
desta função por parte da mulher causaria o “afrouxamento dos laços familiares”, tanto entre
pais e filhos, quanto entre maridos e esposas, um bom trunfo médico para o convencimento
desejado.
Fazendo apelo à fragilidade do recém-nascido, vimos aparecer um formidável trabalho
de construção da figura da mãe higiênica. A maternidade era pois um “dever” e é isso que os
médicos tentavam incutir na mentalidade da época. Mas esse dever deveria passar
necessariamente pela obediência aos preceitos médicos do que deveria ser considerada a boa
maternidade. Já nesse primeiro período de produção de saber sobre a higiene da infância, os
53

argumentos pró-amamentação são os mesmos: proteção física e emocional da criança. O


trecho a seguir ilustra o embate entre o médico e a figura materna:

A propósito referiremos uma passagem de Aulo Gelio debaixo do nome de


Favorino: “Vossa esposa (diz elle a um senador) propõe sem duvida a nutrir seu
filho. Ah! (exclama a mãe, que se achava presente) seria o mesmo que dar-lhe a
morte, se depois das dores do parto, Ella tivesse ainda de supportar as fadigas, e os
aborrecimentos do alleitamento. Ah! Por favor Manlia (replicou Favorino) permitti
que vossa filha seja completamente mãe de seu filho: He uma partilha odiosa, e
detestada pela natureza; não He senao meia maternidade dar á luz a um ser
innocente, e rejeital-o depois para longe de si; este ser ainda informe, que nutristes
com o mais puro do vosso sangue, quando ainda se achava encerrado no vosso
ventre, que inconsequência funesta recusar-lhe vosso seio agora, que elle se acha é a
vossa vista, agora que suas caricias, e seus gritos reclamao a ternura, e os direitos
inviolaveis da maternidade. (BRETAS, 1838, p. 12).

Apenas nos casos em que mães estivessem impossibilitadas de amamentar – o que


deveria ocorrer apenas quando padecessem de alguma doença que comprometesse a criança
ou que não dispusessem de leite em quantidade suficiente – é que o aleitamento mercenário
era tolerado. Um novo conjunto de prescrições se voltava para a escolha da ama-de-leite. Ela
deveria ter certos atributos que a identificariam como tendo boa saúde física e moral: ter entre
20 e 30 anos, ser puérpera, glândulas mamárias desenvolvidas com fluxo de leite, boa
dentição, pele livre de feridas, bom temperamento, portadora de bons costumes e de uma vida
comedida.
A depreciação das “escravas africanas” era ostensiva: “tiradas d’entre povos de
costumes bárbaros, supersticiosos, estúpidos, de pouco espírito, vingativos” (BRETAS, 1840,
p. 18), essas mulheres trariam a doença para a casa de seus senhores. A condição de escrava
era, no discurso médico, no máximo apenas um agravante, um facilitador de sua constituição
já defeituosa. Neste particular, alertava-se contundentemente para o tratamento que, longe da
vigilância familiar, as amas davam aos filhos de seus senhores: relaxavam nos cuidados,
sobretudo noturnos, necessários à criança, como trocar as roupas, conter adequadamente seu
choro, amamentá-la com o devido cuidado, para preservar o próprio sono; transmitiam pelo
leite a deterioração física e moral às crianças; nos intervalos diurnos para amamentação,
forneciam o leite sem os cuidados higiênicos prescritos pela medicina; faziam uso de
expedientes escusos para conter o choro da criança: usavam láudano, manipulavam os órgãos
genitais da criança para que o prazer masturbatório as adormecesse. Satanizando as amas, o
saber médico tentava, a um só tempo, sensibilizar as mães para que assumissem os cuidados
com seus filhos, como também depositavam nelas a responsabilidade por todos os males que
portavam os filhos de seus senhores: elas, os algozes; a família escravocrata, a sua vítima.
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A ama-de-leite era, nessa formação discursiva, o exemplo da antimãe: depauperada


física e moralmente, acossada pela condição involuntária de escrava, a ama-escrava
representava o abandono das crianças aos vícios e aos erros de educação, com o
consentimento da mãe. Em outras palavras: a ama-de-leite era a figura que marcava a
orfandade dos recém-nascidos. Nesse quadro trágico, o saber médico foi pouco a pouco
matizando o retrato da boa mãe. Aos poucos, as recomendações dos médicos foram
substituindo o saber leigo tradicionalmente utilizado na criação dos filhos: novo modo de
estabelecer contatos físicos, redobrar os cuidados higiênicos – oferecer-se, enfim, sem
reservas à função da maternidade, sob a supervisão dos médicos:

Creae vosso filho mulher, e se não o fizerdes, que amor, que respeito, e que
reconhecimento podeis vós esperar daquelle a quem negastes vossos seios, e
entregastes á uma extranha?! Quando elle chegar á idade da razão terá o direito de
vos dizer: – maes ingrata, vós me desprezastes, quando eu debil e fraco mais
reclamava vossa piedade; vos recusastes a dar-me o leite que me pertencia, como
único alimento que me pertencia, como único alimento que me convinha para
manter a vida que recebi em vossas entranhas; vós vos fizestes substituir por uma
mulher mercenária, a quem comprastes a minha nutrição e vendestes o meu amor;
vós me tendes exposto ao rigor de seus caprichos, de sua cúbica e do seu egoísmo;
vós me fizestes sugar com seu leite o germen das moléstias que infectavam essa
mulher, e talvez os mesmos vícios e paixões que manchavam, e denegriam sua alma;
vós tendes, em fim, renunciado a todos os predicados de mãe, e antes quizestes que
uma extranha merecesse tão doce título! Pois consenti agora que vos lance em rosto
vossa ingratidão, e por minha vez vos negue o meu amor, a minha ternura e cordeal
affeiçao; e reconheça mais por mãe aquella que me nutrio com seu leite, do que a
vós que me negastes todos os soccoros engeitando-me, e escravisando á uma escrava
talvez! (VIANNA, 1855, p. 20).

É recorrente, nas teses médicas brasileiras (sobre amamentação, higiene das crianças,
higiene escolar e mesmo sobre o tema da masturbação), a condenação da convivência dos
escravos com as famílias oriundas das classes mais ricas e o papel que eles ocupavam na
educação e no cuidado com as crianças. Isso se devia menos às razões humanistas – elas estão
no texto, por exemplo, na defesa de que a liberdade de que estavam os negros privados; na
explicação da fragilidade civilizatória dos escravos, cujo trabalho forçado depauperava-o
física, mas sobretudo moralmente – do que a uma proteção higiênica das famílias da elite
contra os escravos.
Alegava-se que as escravas, “classificada pelos physiologistas como a última das
raças” (BARROSO, 1853, p. 6), cuja lubricidade era excessiva, corrompiam moralmente os
jovens, pois estando elas na intimidade da vida familiar, facilmente poderiam seduzi-los. No
caso das meninas, as escravas lhes serviam de alcoviteiras, destruindo a honra familiar tão
protegida pelo patriarca. Mas essa perversão moral praticada pelas escravas tinha ainda, no
discurso médico, raízes mais profundas: começava no berço, quando amamentavam os bebês
55

de suas senhoras. Portanto, desde o leite de qualidade duvidosa até o titilar erógeno que
praticavam com o objetivo de interromper-lhes do choro ou fazer-lhes dormir.

Limitamo-nos à fazer acerca d’este assumpto, uma breve consideração, que tem
relação com o ponto de vista de nossa tese: essa consideração, que não podemos
passar em silencio, é a influencia da escravatura como sendo capaz de perverter a
mocidade. [...] Não há família mais ou menos dotada dos bens de fortuna que não
tenha escravos de ambos os sexos; que fazem parte integrante da família e
reproduzem-se no centro d’ella; que indivíduos desta raça ou à seus descendentes se
confia a educação da maior parte da mocidade Brazileira [...]. ora custa à crer que
crianças vivendo constantemente com taes pedagogos não se habituem a todos os
actos que se exercitam em sua presença.[...] As escravas, principalmente, são mais
nocivas à mocidade do que se pensa; porque pertencendo ellas a um sexo em que se
confia trabalhos domésticos mais particulares, por isso mesmo vivem em contato
com todos os indivíduos da família, podem com toda facilidade exercer seus actos
immoraes; e, ou por malvadeza, ou por uma concupiscência dezenfreada, não se
limitarão só a proferir palavras obscenas, poderão mesmo solicitar os castos entes
confiados a seus cuidados, empregando todos os brandos meios de attrahil-os à
satisfação de suas voluptuosas paixões. [...]Quantos consorcios mal afortunados
effeituados pelas escravas, verdadeiras mensageiras de desgraças de muitas famílias!
Quantas correspondências illicitas, entretidas por intermédio d’escravas! Quantas
filhas evadidas do lar paterno, por insinuações d’escravas! (BARROSO, 1853, p. 5-
7).

O imperativo higiênico era que os pais se aproximassem mais de seus filhos,


vigiassem mais seus corpos. Para isso, uma grande campanha para apartar os escravos da
convivência dos filhos estava em marcha. Podemos ver se insinuarem aí os primeiros passos
no sentido de uma nuclearização da família, que deveria ter como função principal o cuidado
meticuloso com seus filhos. Por outro lado, como nos lembra Donzelot (1977), havia
diferenças importantes na regulação estatal da vida familiar burguesa e a popular. De acordo
com sua análise, o imperativo estatal dirigido às famílias populares não era o de estreitamento
das relações intrafamiliares, apelo fortemente realizado pela medicina, mas a formalização
dos casamentos, de modo que garantissem uma legitimidade jurídica aos filhos que daí se
originavam, evitando que o Estado fosse onerado com a assistência à infância desvalida.
Em suma, tratava-se de efetuar uma retificação vigorosa nos cuidados à infância
praticados pelo saber leigo, de modo a instituir o poder de regulação médica no interior da
família. Foucault (2001, 2005a) já havia chamado a atenção para o fato de que a família se
tornou, a partir do século XVIII, a instância privilegiada de incidência da tecnologia de
normalização. A tese foucaultiana é que a constituição da família burguesa tem como
correlato sua medicalização. É porque passamos historicamente a admitir a relevância do
cuidado com a criança na regulação das relações sociais e políticas, que o estreitamento das
relações familiares se constitui como demanda histórica. Esse acoplamento família-médico
vai acarretar uma nova economia discursiva em torno da criança. É a exigência de cuidado
56

com a vida dos filhos que está em jogo neste novo modelo de família, que fica bastante
permeável aos poderes institucionais médicos e pedagógicos. Fragilizada na sua competência
natural de educar os filhos, ela vai precisar de saberes exteriores que intervenham nessa nova
forma de cuidar dos filhos.
A descontinuidade que marca uma realocação da infância na dinâmica social e,
particularmente, no funcionamento familiar, deixando para trás certa indiferenciação da
criança para torná-la o centro dos cuidados familiares, pode ser compreendida a partir da
análise acerca do valor que a vida havia assumido no quadro social moderno. Foucault
(2005b, 2005a) reconhece uma forte descontinuidade entre a era clássica e a modernidade, no
que diz respeito à relação entre política e vida. O direito de morte, suporte do poder soberano,
converte-se, na modernidade, em defesa da vida pelo corpo social. Herdeiro do patria
potestas, segundo o qual o pai tem o direito de reivindicar para si a vida de seus filhos, o
poder soberano, que se exercia pelo direito ao confisco, necessita dispor indiretamente da vida
e da morte para firmar sua primazia sobre seus súditos nas circunstâncias em que estiver
ameaçado. A partir do século XVIII, na aurora da modernidade, assistimos – supondo
eloquência à chave de leitura fornecida a partir das genealogias foucaultianas – à emergência
de uma nova relação entre vida e política: não mais ameaça à vida, mas incitação à vida e à
saúde, individual e populacional.28 Por essa razão, a criança passará a ocupar lugar central na
preocupações sociais e, em particular, na instituição familiar, a partir da mediação de um
conjunto de saberes, protagonizada pela medicina, mas alvo de interesse também do direito,
da pedagogia e da assistência social.

28
O analisador que articula essas dimensões de regulação política da vida é o biopoder, cuja mecânica é organizada, no
pensamento foucaultiano, a partir do esquadrinhamento dos mecanismos de funcionamento da disciplina (FOUCAULT,
2001, 2005a, 2005b), que opera sobre o corpo-máquina – controlado, vigiado, distribuído num determinado espaço e
adestrado para um repertório de gestos e atos submetido ao tempo, num duplo movimento de individuação e massificação – e
do dispositivo de segurança, posteriormente incorporado à analítica foucaultiana (FOUCAULT, 2004a). O dispositivo de
segurança vai na direção de um controle das aleatoriedades, instaurando um continuum no qual a desordem é avaliada em
termos de riscos, agora analisados em relação aos seus custos, que são fixados na regulação política da população. Essa
tecnologia de poder se faria através de uma análise probabilística dos riscos, ultrapassando uma regulação baseada
exclusivamente na interdição e na permissão, para a fixação de limites aceitáveis entre um e outro extremo, multiplicando,
portanto, seu potencial regulatório. O dispositivo de segurança operaria sobre um novo espaço que se constitui que não é nem
o território (da soberania), nem o corpo individual, mas a população. Na produção do conceito de população e seus correlatos
disciplinares e salubristas, a modernidade trouxe a necessidade de conhecer e regular fenômenos como natalidade,
mortalidade etc., a fim de garantir o controle sobre a situação de saúde da população, nova configuração do corpo social,
necessária ao capitalismo. Aliando saber e poder sobre a vida, a biopolítica pôde ser exercida através de uma interpolação de
uma série de regimes de saber-poder, dentre eles a demografia, estatística, economia, ciência política, a medicina clínica e a
medicina social, de modo a garantir que a nova riqueza das nações – uma população saudável – pudesse ser preservada. Ao
instituir o controle das aleatoriedades, o dispositivo de segurança permite deslocamentos que seriam impensáveis apenas
dentro da regulação estrita da disciplina e da lei. É Foucault pensando contra ele mesmo, quando admite ter situado, de modo
impreciso, a disciplina como constrangedora da liberdade individual, quando a sofisticação desse conjunto de tecnologias de
poder postos em operação visariam a garantir que, na modernidade, o liberalismo pudesse ganhar expressão como modo de
governo dos homens. Sem estabelecer uma sucessão temporal entre aparelho jurídico-punitivo, disciplina e dispositivo de
segurança, encontramos que a transformação histórica dessas tecnologias se deu tanto pela complexificação de seus
mecanismos internos, como na acoplagem entre elas.
57

A medicina brasileira, como bem mostrou Costa (1999), a fim de ampliar sua
ingerência política sobre a vida familiar, necessitava redesenhar sua anatomia, pondo em
questão o modelo colonial. O desvelo com o qual a criança deveria ser cuidada – o que está
bem ilustrado nas teses sobre a higiene da infância, analisadas anteriormente – era uma
aparição do século XIX, marcando uma descontinuidade importante em relação ao século
XVIII, quando a assistência à infância e, em especial infância desvalida, havia ficado a cargo
das instituições filantrópicas.
Lembremos que, desde o século XVIII havia sido instituído, pela Santa Casa de
Misericórdia de Salvador, o dispositivo da “roda dos expostos”,29 que prestava assistência às
crianças abandonadas, mas tal ação estava subordinada a preservar as famílias e os
casamentos do problema que o sistema colonial de reprodução havia deixado como resíduo: a
criação dos filhos ilegítimos. Desta forma, as crianças que eram geradas em condições que
fossem de encontro ao modelo centrado nas regras de aliança (adultério, relações sexuais pré-
conjugais, estupro), que ameaçavam o valor de “troca” das mulheres dentro da lógica
colonial, eram excluídas do convívio de sua família de origem, sendo entregues às freiras
através da “roda”, um artefato no qual a criança era deixada sem que a pessoa que a entregava
pudesse ser identificada. Grande parte dessas crianças era, frequentemente, fruto de relações
entre senhores e escravas, o que punha em evidência certas fissuras na moral do patriarca.
Costa (1999) nos mostra que a medicina soube utilizar a condenação à roda, baseando-se na
mortalidade infantil alarmante que ali ocorria, como denúncia dos excessos do poder
patriarcal, fissurando, pouco a pouco, os alicerces da lógica familiar colonial.
Na lógica colonial, ela era apenas mais uma peça a serviço do poder patriarcal, sobre o
qual montava não apenas a família, mas o edifício social, como já muito já afirmava Gilberto
Freyre, em 1933. A passagem brusca da infância para a vida adulta torna visível que, dentro
da lógica colonial, essa era uma fase da vida sem maior importância. A criança importa pelo
membro da família servil ao pai que ela será. É assim que o “menino-diabo”, figura que
Freyre recupera da mentalidade colonial, se torna homem do dia para a noite. Aos dez anos,
seu vestuário é sisudo, escuro; sua inserção no cotidiano familiar é, no entanto, de respeito à
autoridade paterna, o que era representado pelo silêncio. Conversas de adulto não abriam
espaço para o pronunciamento de criança: lição que parecia fornecer o código do que se

29
Em Salvador estão preservados, na Santa Casa de Misericórdia, documentos relativos à “roda dos enjeitados”. O livro de
registros fornece, por exemplo, informações relativas ao número de crianças abandonadas, sua cor, idade e possíveis
antecedentes sociais.
58

esperava que a criança aprendesse: comportar-se como adulto – respeitar a autoridade, ao


tempo em que perdia o alvoroço da infância, domava seus impulsos.
É essa imagem da infância que a medicina novecentista brasileira tratará de
recodificar. Vimos, com as teses sobre amamentação e higiene infantil, que os médicos
tentavam criar uma sensibilização social para o desperdício das vidas que a ausência de
cuidados apropriados às crianças desde a tenra infância, pelas famílias, acaba imputando. Esse
alerta não se dirigia, contudo, diretamente aos pais, mas ao Estado e aos próprios médicos.
Era o início de uma campanha que colocaria a criança no centro das preocupações higienistas,
remodelando, para isso, as funções sociais implicadas em tal cuidado. Costa (1999)
demonstrou, com argúcia, o lento processo de conversão da lógica familiar colonial pela
insidiosa normalização mediada pela ordem médica, que acabou por fraturar os alicerces
fundamentados na centralidade da figura do patriarca, através da desestabilização das
tradicionais regras de relacionamento filial e matrimonial. A fabricação da figura da mãe –
principal agente biopolítico do cuidado com a criança – através do enaltecimento da
maternidade e, como veremos, da denúncia da vulnerabilidade das mulheres na instituição
matrimonial, foi o trunfo que permitiu essa transição histórica.
A atenção médica com a infância no século XIX não se restringiu, contudo, apenas à
prescrição de cuidados com sua sobrevivência biológica, explicitados na preocupação com a
amamentação, com os cuidados com a higiene corporal, com as vestimentas e mesmo com o
sono. O cultivo da infância precisaria remodelar também suas feições morais e, para isso, a
instância sexual deveria ser alvo de vigilância. Não bastava que a criança tivesse boa saúde
física; era necessário que ela fosse isenta de vícios e males morais. Passemos ao exame da
masturbação, cujo discurso, no século XIX, será tomado como um primeiro ensaio da
intervenção médica na direção de uma profilaxia sexual e mental dirigida à infância.
A outra linha de desenvolvimento da regulação médica novecentista relativa às
práticas sexuais familiares, simultânea à defesa higiênica do casamento, dirigia-se ao
onanismo.30 Apesar de não podermos afirmar que a masturbação alcançou a dimensão de uma
grande campanha nacional – as teses médicas brasileiras específicas sobre o tema, no período
estudado, são escassas, podemos localizá-la como um tema transversal nas preocupações
médico-sanitaristas, explicitadas sobretudo nas teses sobre higiene escolar e, mais tarde, já na

30
A origem do termo onanismo é tributada à passagem bíblica do crime de Onan, filho de Judá, que teria recusado a tradição
de fecundar a cunhada – ele havia aceitado tomá-la por esposa –, após a morte de seu irmão Er, o que o permitiria transmitir
seu pretenso legado à posteridade. Para tanto, Onan expelia o sêmen sobre o solo, passagem muito comentada tanto por
teólogos quanto por médicos, pela ambiguidade da natureza da prática sexual em questão, que punha como central o
significado do sêmen nesses discursos. (STENGERS; VAN NECK, 1998).
59

primeira metade do século XX, nos textos psicopatológicos e de educação sexual de nossos
primeiros sexólogos.
O onanista era visto como fonte de perigo, uma vez que ele ameaçava, com seu langor,
os sentimentos de família, de pátria e de humanidade. Como se fabricou essa figura? Qual o
significado histórico da cruzada antimasturbatória que, alardeada na Europa, a partir do século
XVIII passa a preocupar médicos brasileiros no século XIX? Quais as particularidades do
interesse brasileiro pelo tema da masturbação?

1.7 A preocupação da medicina brasileira novecentista com o onanismo

1.7.1 Retrato do onanista

A segunda metade do século XVII marca o surgimento de uma condenação


incontestável da masturbação no âmbito da medicina e a disseminação gradativa, no seio da
sociedade, de um temor quanto aos seus perigos. Antes disso, havia a condenação teológica e
jurídica,31 na qual o onanismo era codificado pela ideia de pecado, que ainda que se afirmasse
como pecado contra a natureza, punha em causa a obediência ao mandamento divino da

31
O tratamento que a Igreja dispensou à masturbação sofreu transformações importantes na Idade Média. Até o século XI,
tratava-se de um pecado sem grande importância, que poderia ser regulado pelos párocos, mas a partir do século XIV, esse
seria proposto como tema para bispos. Desde o século XIII, a Igreja, com São Thomaz de Aquino, já passaria a empreender
maior rigor na condenação ao onanismo, que o qualificava como um pecado contra a natureza. É do século XV o primeiro
manual de confissão acerca do pecado da masturbação, que refletia um investimento circunspecto nas motivações, nas
circunstâncias e nos pensamentos que levavam o pecador ao ato masturbatório. Mas é no século XVI, a partir do padre
Benedicti, que tal pecado ganha uma sistematização que ficará como herança para os séculos seguintes: (1) a masturbação é
um pecado mortal, que pode ser agravado pelos pensamentos que o acompanham; desta forma, masturbar-se, por exemplo,
desejando uma virgem, acrescia-se ao primeiro o pecado do estupro; (2) a masturbação não é tão somente um pecado contra a
natureza, mas sobretudo contra a palavra divina, atestado pelas escrituras sagradas (em Gênesis e Corínthios); (3) as
circunstâncias em que a polução se torna pecaminosa, incidindo sobre elas o julgamento sobre a intencionalidade do
indivíduo implicada no ato. A severidade do tratamento dado à masturbação na teologia moral permanecerá estável nos
séculos XVII e XVIII, não havendo grandes acréscimos em torno do tema depois da sistematização eclesiástica do século
XVI. Já no discurso penal seiscentista, a masturbação figura como crime sexual, cujas penalidades são, no entanto, teóricas,
pois era praticamente impossível punir seus praticantes, em se tratando se um ato privado, a menos que por denúncia. Nos
dois discursos, o que interessa demarcar é que apesar de a alegação ser que a masturbação era um crime contra a natureza, o
elemento físico não era o aspecto principal. Segundo esses autores, quando ele aparecia nas ideias médicas que os textos
religiosos deixavam entrever, estava submetido à noção de pecado (STENGERS; VAN NECK, 1998; RICHARDS, 1993).
Ressaltamos que a importância da masturbação no quadro penitencial da Igreja, mesmo a partir do século XVI, quando as
historiografias relatam a existência de manuais para dirigir especificamente a confissão de seus pormenores é uma questão
controversa entre esses autores. Foucault (1974-1975) é bastante enfático ao afirmar que a masturbação foi central na
consolidação de uma “sexualidade a revelar” e a “corrigir”. Ele se baseia no fato de que o “aparelho da penitência”
instituído a partir do século XVI pelo Concílio de Trento, terá lugar nos colégios e seminários, onde a única sexualidade a
regular é a masturbação. É uma afirmação categórica e controversa. De toda maneira, o que ele ressaltar é que a dimensão
relacional da sexualidade deu lugar à regulação do corpo solitário do onanista, ainda no discurso cristão da concupiscência.
60

utilização do sexo para multiplicação do rebanho divino. Nesse sentido, não parece ter havido
um combate ostensivo contra a masturbação empreendida pela Igreja – ainda que, no seu
discurso, o exortasse como pecado –, como Ela o fez com a sodomia, a bestialidade ou
tribadismo.32 A partir do começo do século XVIII, a tendência do pensamento médico do
século anterior se fortalece e, com a publicação de Onania, livro inglês anônimo, de autoria
incerta, atribuída a um médico de nome Bekkers, encontramo-nos diante de verdadeira
cruzada antionanismo. Onania foi publicado em 1715 e, três anos depois, já estava na sua
quarta edição. O sucesso editorial pode ser constatado pela marca dos 10 mil exemplares no
seu oitavo ano.33
A difusão de Onania no pensamento médico francês – matriz de pensamento que
influenciou fortemente a apropriação da questão sexual pela medicina brasileira – coube ao
médico suíço Tissot.34 A segunda metade do século XVIII gerou uma linhagem de trabalhos
sobre a masturbação, derivada, em larga medida, desse autor, pondo em marcha a célebre
cruzada antimasturbatória oitocentista (STENGERS; VAN NECK, 1998). Tissot inicia seu
tratado advertindo o leitor de que sua obra nada tinha em comum com Onania, a que ele
qualifica de rapsódia.35 Tissot o considera um tratado teológico e moralista, mas ele se servirá
das observações clínicas – que teriam retiradas de cartas supostamente trocadas com o autor
de Onania –, atribuindo-lhe algum crédito na descrição dos males causados pelo onanismo e
na terapêutica lá proposta. O interesse de Tissot pelo tema vinha de suas leituras e das
observações de seus pacientes, e mesmo de uma casuística de terceiros. O caso do relojoeiro,
que se tornou um clássico, foi sua mais notável fonte de observações. Suas conclusões se
basearam apenas na observação do doente já em estado terminal, tendo recolhido os “fatos”
pelo depoimento de terceiros, já que nem o paciente dispunha de condições para fazer seu
autorrelato clínico. Sua pretensão de cientificidade tinha base bastante frágil e, no entanto, seu
pensamento gozou de relativa perenidade nos meios médicos oitocentista e novecentista.
Tissot afirma, já no prefácio de sua obra, que seu interesse era nas doenças causadas
pela masturbação e não pelo crime, porque antes de mais nada, tratava-se de convencer o

32
A este respeito, ver como fonte primária o livro: Santo Ofício da Inquisição de Lisboa (1997). Ver ainda as seguintes
fontes secundárias: Richards (1997), Vainfas (1989), Mott (1988).
33
Stengers e Van Neck (1998) apontam razões de seu sucesso, o fato de que Onania rompe com o silêncio da época acerca
do tema, que estava envolvido pelo preceito do pudor. O estilo epistolar – no qual o autor responde a cartas, de origem
incerta, que supostamente lhe foram endereçadas por onanistas – é outro motivo que o acabou tornando uma espécie de
“folhetim da masturbação”. Os relatos são característicos da manobra terrorista utilizada pelo discurso higienista, na sua
pretensão de intervir no comportamento individual e social. Os autores nos dizem: «La bonne idée d’un charlatan, d’un
quack qui songe au gain: voilà. Si notre analyse est juste, ce qui est à l’origine de ce qui va être un grand, un puissant
phénomène de société” (p. 64).
34
TISSOT, Simon-André, século XVIII (1758).
35
Onania havia caído em descrédito e adquirido má reputação, por ser julgada uma obra obscena e de fidedgnidade duvidosa,
chegando a ter sua tradução para o alemão proibida. Ver, a este respeito, Stengers e Van Neck (1998).
61

onanista a abandoná-lo, pela necessidade de evitar um mal presente e não por princípios
morais. Defendia-se antecipadamente de acusações de imoralidade, afirmando que nada mais
poderia corromper moralmente a juventude do que a ignorância. Era preciso esclarecê-los
sobre os perigos de seus hábitos, pois só assim seria possível combatê-los. Com este gesto,
cujos desdobramentos veremos em seguida, ele se afastava do discurso teológico que havia
dominado o debate acerca das temáticas sexuais, para imprimir-lhe a sapiência médica,
fundada numa experiência de praticante e no conhecimento da fisiologia de sua época.
Da obra inglesa que inaugura o pensamento moderno acerca da masturbação, Tissot
retirará o quadro de males ocasionados por este “vício”, que ele tipifica em seis grupos: (1)
males da alma – cansaço intelectual, perda de memória, obnubilação, demência, inquietação
anterior, angústia constante, estreitamento de consciência; vertigens, pesadelos,
enfraquecimento dos sentidos; (2) fraqueza, prejuízos no desenvolvimento, insônia,
sonolência excessiva, hipocondria, histeria, tristeza, choro, palpitação, sufocação, febre
[châtiments pour leur crimes]; (3) dores: de cabeça, no peito, de estômago, intestinos,
reumatismo, inchaços; (4) pústulas no rosto e em outras partes do corpo; (5) doenças dos
órgãos da reprodução: incapacidade de ereção, ejaculação precoce, gonorreia, priaprismos
dolorosos, ardor urinário, tumores nos órgãos genitais, esterilidade; (6) funções intestinais
comprometidas (constipações, hemorróidas, diarreia).
Como explicava que um mesmo evento – o vício onanista – fosse o único responsável
por uma constelação tão densa de doenças? Duas são as explicações: uma de origem humoral
e outra de origem nervosa. Tomemos a compreensão fisiológica que constituía o autor de
L’onanisme: Tissot parte da ideia de que a máquina corporal dos seres vivos – ele utiliza esta
metáfora – depende de um equilíbrio na evacuação dos nutrientes. Uma quantidade de
humores, já processados pelo corpo, deve ser mantida. Ele estabelece uma hierarquia entre os
fluidos corporais: o leite é o menos trabalhado pelo corpo, por possuir função apenas
nutritiva; em seguida viria o sangue, fluido essencial, responsável pelo funcionamento dos
órgãos. No topo dessa hierarquia estaria o sêmen, cuja força, ele a demonstra, estaria nas
mudanças radicais produzidas no corpo na puberdade, período em que a produção seminal se
inicia, e cuja perda ocasionaria muitos dos males advindos da prática masturbatória. Mas o
que é o fluido seminal? Como ele comparece na economia corpórea?
Tissot assumia como parte de sua compreensão a concepção hipocrática de que o
sêmen é fruto de uma fermentação de todos os humores do corpo. Esse fruto essencial seria
transportado pela medula espinhal aos órgãos genitais, que portam todas as veias e nervos do
corpo. Essa representação do mecanismo de produção do sêmen adotada por Tissot será
62

acrescida da ideia presente no pensamento de Galeno, segundo a qual o sêmen saía, via
medula espinhal, do cérebro e chegava aos testículos, conexão que intriga os modernos e cujo
desenvolvimento inaugurará uma compreensão essencialmente nervosa do fenômeno
masturbatório.
Mais um obstáculo: como um fluido que se encontra isolado nos testículos poderia
provocar tais efeitos? O sêmen seria um humor que faria funcionar todos os órgãos do corpo;
uma parte dele ficaria nos testículos, gerando a excitação sexual, e uma grande parte migraria
do testículo para a circulação sanguínea, produzindo o efeito de masculinização do corpo e
também otimizaria, uma vez que volta a se misturar a eles, a função dos outros humores. Sua
influência sobre as forças do corpo (em especial da digestão) era muito forte, reproduzindo a
tradição da antiguidade que acreditava que a perda de sêmen era muito mais fragilizante para
o organismo do que a perda do sangue, por ser aquele um derivado já mais processado do
próprio sangue.
Ora, a perda de sêmen ocasionada pela masturbação obrigaria que a energia
consumida fosse retirada de outros fluidos essenciais, o que provocaria o enfraquecimento
generalizado, raiz da precarização do funcionamento de todos os outros órgãos. Uma
lubricidade permanente se apossaria da alma e do corpo, mantendo o circuito energético
sempre em déficit, pois seria alimentado pela imaginação e pela decorrente superexcitação do
corpo, que responderia ao mínimo estímulo.
A preciosidade do sêmen36 estaria, portanto, na raiz de todos os males que a
masturbação causaria. Mas o meio pelo qual essa perda se daria não é impune: ainda que o
excesso sexual fosse já condenado pela tradição médica como passível de produzir diversos
males – ele destaca a ideia hipocrática de “consumação dorsal”, que descreveria um conjunto
de males de que padeciam os recém-casados ou pessoas libidinosas: emagrecimento,
formigamento ao longo da coluna, perda de sêmen pela urina, enfraquecimento geral, febre,
podendo chegar até a morte –, Tissot valoriza a noção de que aqueles advindos da perda de
sêmen pela via da natureza, ou seja, pelo coito fecundativo, não é o mesmo de quando ela
ocorre contra a natureza, como o que acontece na masturbação. É a perversão da função
orgânica que geraria os males. Ora, o ato sexual é da ordem da natureza, mas a masturbação a
perverte, pois aciona sem que haja necessidade a função sexual, subvertendo a economia

36
A partir da segunda metade do século XVIII, uma descontinuidade se operará em torno do sêmen, vinculando-o, ainda que
com resquícios religiosos, ao discurso biológico da perpetuação da espécie e, mais especificamente, no final do século XIX,
ao discurso da degenerescência, como veremos mais adiante.
63

animal; a irrigação dos órgãos pelos humores produziria irritação que, continuada, acarretaria
os males mencionados.37
Mas a perda de sêmen não era suficiente para explicar os efeitos da masturbação. De
outra maneira, como explicar que os efeitos correlatos ocorressem também com as mulheres
que, obviamente, não produziam sêmen? Novamente encontramos uma descrição exaustiva
dos males causados por tal prática, particularizados pelas especificidades do corpo feminino.
Além de toda a constelação traçada para o caso dos homens, as mulheres estariam suscetíveis
à histeria, ao furor uterino, aos corrimentos, às ulcerações do útero, dores nasais, dores de
estômago, à dilatação clitoridiana; ninfomania. Primeiramente, as mulheres, apesar de não
possuírem sêmen, produziriam fluidos que, mesmo sendo menos complexos do que o fluido
dos homens, acarretariam um enfraquecimento, ainda que menos acentuado, de suas forças
vitais. Mas é no sistema nervoso que se encontra a chave explicativa para os efeitos do
onanismo nas mulheres. O excesso sexual – masturbatório, sobretudo – nas mulheres
produziria graves efeitos, uma vez que o sistema nervoso das mulheres seria mais frágil que o
dos homens, predispondo-as “naturalmente aos espasmos”.
A fixação em certas ideias e imagens – a atividade imaginativa enfatizada nos textos
sobre a masturbação – produziria sobrecarga de uma parte do cérebro comparável à fadiga
muscular decorrente de esforço prolongado, resultando, por tradução direta da comparação,
numa incapacidade para outra ação que não os movimentos masturbatórios. A atenção já não
poderia ser desviada dessa produção fantasiosa, pois a irritação que os humores causariam nos
órgãos genitais serviria de estímulo que compeliria o indivíduo ao retorno aos atos
masturbatórios, ocasionando um enfraquecimento mental que, prolongado, desencadearia os
males nervosos. Esse esforço seria muito mais intenso na atividade solitária da masturbação
do que no coito fecundativo, o que ressignifica a dimensão do excesso sexual na produção de
efeitos maléficos ao indivíduo: o coito seria menos fragilizante, pois envolveria um desgaste
nervoso menor. Há ainda outro fator que explicaria essa diferença: o contentamento anímico
que seria produzido pelo ato sexual com uma mulher amada e desejada, diferentemente do

37
Ora, os eunucos parecem dar prova da tese que Tissot defende. Eles não seriam acometidos pelos males causados aos
homens que têm perda de sêmen. O autor assinala dois motivos: (1) os eunucos, que não produzem sêmen, se por um lado
não se beneficiam dos efeitos sistêmicos deste óleo essencial, por outro também não perdem a parte nobre do sangue que se
torna sêmen. E por isso que não possuiriam as marcas corpóreas que indicam a circulação do sêmen (barba, alteração de voz,
produção de pêlos, etc.), mas também não portariam os efeitos de sua perda. E se utiliza de uma nova distinção que é o
“semen in potentia” do “sêmen produzido”. No primeiro tipo, não há uma separação entre sêmen e sangue, não representando
ganhos nem perdas para o organismo. É o que caracterizaria o estado de “infância”. No segundo, teríamos a separação entre
os dois fluidos; quando o sêmen é evacuado, haveria um déficit da economia dos humores. A outra razão para a ausência de
danos venéreos para os eunucos é que eles não experimentariam os efeitos decorrentes dos espasmos da ejaculação sobre o
sistema nervoso.
64

puro e simples impulso animal, favoreceria as funções orgânicas, auxiliando a reparar as


forças que o organismo tinha despendido.
Há em Tissot outra ideia notável, que será legada aos séculos vindouros: aparece uma
observação que articula a ideia de “constituição” à gravidade dos males a que a masturbação
predisporia. Reafirmando que nenhum tipo de constituição evitaria tais consequências, os
mais frágeis constitucionalmente teriam efeitos muito mais graves. O que sobrevém a essa
tese é a ideia de que a hereditariedade é o substrato que amplifica os males do onanismo.
Conexão nova, na qual o próprio efeito faz eclipse com o fenômeno em causa. Curto-circuito
na relação de causalidade. Um onanista que, por exemplo, tem na sua família história de
epilepsia, monomania, ou mesmo problemas digestivos, teria maior facilidade de desenvolver
tais males pela prática masturbatória. Um século mais tarde, teremos uma versão mais
acabada da interpretação da hereditariedade, quando já estivermos em pleno discurso da
degenerescência.
A aproximação grega do coito à convulsão epiléptica é retomada para afirmar os
abalos nervosos provocados pela perda do sêmen. Tissot se vale de uma casuística para
afirmar que, em alguns indivíduos, o coito é sucedido verdadeiramente por uma epilepsia. A
extenuação que se sucederia ao ato sexual também daria provas de seu potente efeito sobre o
corpo. Também haveria um aumento da circulação de sangue no cérebro, o que explicaria
diversos males: apoplexia, mania. Esse aumento de sangue produziria uma distensão dos
nervos, tornando-os fracos. A ênfase na participação do sistema nervoso na mecânica corporal
produzida pela masturbação merece nossa atenção.
O enfraquecimento generalizado das faculdades da alma pela perda de sêmen intriga
Tissot. Partindo de uma espécie de paralelismo psicofísico, ele observara que qualquer
alteração no funcionamento da máquina corpórea acarreta mudanças na percepção e no
julgamento. E nenhum aparelho do corpo afetaria mais a alma do que os abalos do sistema
nervoso. É a equivalência entre epilepsia e ato sexual que lhe fornece a chave explicativa para
o impacto da masturbação no psiquismo: os espasmos sexuais – assimilados a ataques
epilépticos – produziriam, na sua repetição, um enfraquecimento do cérebro e dos nervos e,
por conseguinte, de suas faculdades sensitivas e intelectuais.
O pensamento médico europeu sobre a masturbação, do qual Tissot foi seu maior
representante, será o legado do qual se apropriará a medicina brasileira a partir da segunda
metade do século XIX. Nos documentos médicos, apesar de só termos conseguido encontrar
duas teses específicas sobre o tema, o encontramos disperso em teses sobre higiene escolar,
sobre as afecções nervosas (especialmente a histeria e a neurastenia), sobre a degeneração
65

psíquica e, já no século XX, em livros, tratados e periódicos de sexologia forense e de


educação sexual, que a enquadravam numa taxonomia da psicopatologia sexual. Essa
distribuição temporal dos documentos revela modos de aparição, objetos e táticas, que só
podem ser compreendidos no seu caráter historicamente contingente. Por ora, analisemos esse
primeiro tempo da problematização, qual seja, o período novecentista do interesse médico
brasileiro em relação à masturbação. Posterguemos a análise da inserção do onanismo numa
psicopatologia sexual vintecentista para o momento em que tivermos circunstanciado
devidamente os elementos (degeneração, instinto e eugenia) que lhe possibilitaram esse novo
deslocamento discursivo.
Antecipemos que, através do tema da masturbação, o saber médico pôde montar
táticas para se relacionar politicamente com outras instituições cruciais na regulação da vida
familiar e, em especial, no cuidado com a criança. Desta forma, a escola, a Igreja, além da
própria família, serão habilmente confrontadas, desestabilizadas, ou mesmo protegidas, pela
medicina, de modo a gerar espaço para que ela pudesse fabricar a eloquência do seu saber e a
eficácia de sua intervenção na preservação das crianças e jovens e, com isso, na constituição
de uma população saudável e livre de taras degenerativas.
Nas teses médicas brasileiras na segunda metade do século XIX, encontramos ecos da
matriz europeia do pensamento sobre a masturbação, conforme já assinalamos. Vimos se
repetirem certos traços de uma mesma trama discursiva que enredava a masturbação numa
tríplice definição: pecado contra a natureza, num momento em que o saber médico ainda
preservava certas ideias prevalentes da moral sexual cristã; vício, já que se tratava de uma
perturbação vinculada estritamente à vontade; e um ato suicida e potencialmente genocida, já
que era tido como grande destruidor das sociedades civilizadas, aniquilando a função da
procriação e, com isso, comprometendo a sociedade e a perpetuação da espécie. O projeto
civilizatório que previa homens devotados à família, à pátria e à sociedade se via ameaçado
pela figura do onanista, ideal cuja difusão, no pensamento médico, já estava em curso desde o
primeiro momento de institucionalização desse saber no Brasil, na primeira metade do século
XIX.38.

38
A tese de Manoel Ignacio de Figueiredo Jaime, intitulada Considerações sobre as paixões e affectos d’alma em geral e em
particular sobre o amor, amizade, gratidão e amor da pátria, de 1836, apresenta-nos que a paixão é um afeto vinculado à
conservação individual, social e da espécie, mas paradoxalmente seria prejudicial à “economia animal” quando excessiva.
Mesclando uma espécie de discurso poético com o discurso cristão, ao lado ainda de prescrições médicas, o texto enaltece o
casamento monogâmico e procriativo, em que o prazer e o gozo sexual poderiam ser moderados e, portanto, saudáveis moral
e fisicamente. Valoriza também o patriotismo, afeto derivado do amor nostálgico à terra, necessário para o desenvolvimento
de uma nação, mas ainda frágil na cultura brasileira no começo do século XIX. Tática interessante quando se trata de
estabelecer relações com o Estado na regulação dos indivíduos e, ao mesmo tempo, constituir-se como medicina social. Ver:
Jaime (1836).
66

O fragmento abaixo, extraído de uma tese médica brasileira do começo da segunda


metade do século XIX, da autoria de Sulpicio Geminiano Barroso (1853), relata o caso de um
onanista que nos parece emblemático de uma nova linha que pode ser traçada na produção
médica acerca da experiência sexual:

Dos excessos que o homem pode commeter, os venéreos são, dentre todos, aquelles
que mais debilitão o organismo, e cujos resultados mais difficilmente podem ser
neutralizados; seus mais ordinários effeitos devem ser attribuidos ao definhamento
do corpo, produzido pelas excessivas perdas de liquor seminal, e à susceptibilidade
do systema nervoso, divida ao abalo e grande excitação que soffre o cérebro, e que
este comunica à economia inteira. Entretanto, as perdas occasionadas pela
masturbação abatem ainda mais o organismo, que aquellas que seguem ao coito; os
excessos d’aquelle vicio não só por que o indivíduo, que à elle se dá, tem mais
frequentemente occazião de procurar o prazer venéreo, pois basta achar-se por um
momento á sós para obtel-o; mas principalmente por que o cérebro se acha n’um
estado de turgencia prodigiosa e forçada para experimentar a sensação venérea, para
criar um excitante que lhe falta para fazer efeito (BARROSO, 1853, p. 12).

Alardeava-se um quadro de sinais que poderiam identificar o onanista, que poderia ser
reconhecido pelos efeitos físicos, morais e intelectuais, nem sempre podendo o médico se
servir do relato do paciente, já que se tratava de prática inconfessável, envolvida por uma
densa aura de vergonha. Certos hábitos, como ser visitado por suspeitos, predileção pela
solidão, presença de certos objetos sob o colchão, dificuldade para realizar exercícios físicos e
fraqueza, deveriam estar na mira do saber médico para identificar onanistas. Tristeza,
indiferença ao trabalho e ao estudo, problemas de memória, crescimento anormal dos órgãos
genitais compõem o rol de evidência de crime contra a natureza. Eis o retrato cujo tom
horripilante servia a intimidar os que se sentissem impelidos ao “vício” masturbatório:

[...] magreza geral do corpo, pallidez da face, olhos cavos, pálpebras circuladas
d’uma zona ligeiramente azulada, estatura diminuída e curvada para diante, marcha
vacilante. [...] a respiração altera-se singularmente; ella torna-se fraca, lenta, e
difficil nos indivíduos que se dão à masturbação desde a meninice, dependendo isso
da nutrição incompleta. Assim, não tendo o peito se ampliado até aquelle ponto à
que chegaria, se não houvesse essa causa que retarda sua ampliação, não tendo a
fibra muscular adquirido sufficiente energia para mover as costelas, os movimentos
respiratórios serão incompletos e difíceis: e d’aqui vem a oppressão e fadiga que
sentem os marturbadores infrenis. [...] A intelligencia, a attenção, e em particular a
memória efraquece-se consideravelmente. Indivíduos que davão precedentemente
testemunhos de uma vivacidade d’espirito prodigiosa [...] tornam-se, depois que se
entregão ao habito da masturbação, estúpidos e incapazes de toda applicaçao, a tal
ponto de cahirem muitas vezes no idiotismo adquirido, e no embrutecimento mais
completo (BARROSO, 1853, p. 14-15).

Nos trabalhos dos jovens médicos brasileiros – que, sem serem baseados numa
casuística própria, não eliminam seu potencial para ratificar a imagem do mal e deixá-la como
legado científico – reaparece a ampla constelação de males ocasionados pelo “vício
67

vergonhoso”, coletadas nos tratados médicos europeus. Um quadro hierarquizado de doenças


físicas, morais e intelectuais é reproduzido, muito semelhante ao que Tissot havia extraído de
sua leitura de Onania, de modo a fortalecer a imagem de grande perigo que tal prática
representava para o indivíduo, para a família e para a espécie. Desta maneira, a masturbação
poderia acarretar consequências que atingiam todo o organismo e que iam de males
localizados e tratáveis a males sistêmicos e incuráveis: infecções genitais, incontinência
urinária, nefrite, cistite, câncer de útero, perturbações auditivas e visuais, histeria, epilepsia,
encefalite, ninfomania, catalepsia, tísica pulmonar, loucura, imbecilidade, melancolia, dores
torácicas e sufocações. As narrativas clínicas, tais como as da matriz europeia,
frequentemente possuíam como desfecho a morte precoce e trágica do(a) jovem onanista,
apesar de se admitir que nem todos os casos de onanismo tinham o mesmo fim. Dependeria
do temperamento do indivíduo, da frequência dos episódios masturbatórios e de fatores
sociais que poderiam predispô-lo ao vício (BARROSO, 1853; CAMILLO, 1885).
A reflexão médica acerca da origem do vício masturbatório nos ajuda a descortinar
certas particularidades do pensamento médico brasileiro, no relevo dado a certas tensões
sociais. Apesar de haver um elenco grande de causas físicas – o temperamento bilio-nervoso
ou bilio-sanguíneo, o acúmulo de secreções causado pela deficiência na higiene, que
favoreceriam o contato da criança com seus órgãos genitais pela coceira que causaria,
estimulação esfincteriana, exaltação da sensibilidade infantil, anomalias constitucionais do
aparelho genital, afecções de pele, consumo de alimentos, medicamentos e condimentos
estimulantes – eram as causas sociais que se sobressaíam na discussão do tema. Nesse
sentido, a internação das crianças nos colégios e a intimidade compartilhada com escravos
(especialmente, as escravas), eram tidos como grandes propulsores do vício onanista e das
consequentes degradações física e moral dos jovens (BARROSO, 1853; CAMILLO, 1886). A
significação que os médicos davam para os efeitos que a escravidão tinha para a saúde
individual e social certamente ilustra certas tensões particulares que tiveram forte impacto na
construção de um imaginário brasileiro que afirmava o escravo negro como a principal fonte
de corrupção moral das famílias brasileiras.
68

1.7.2 Os perigos morais e higiênicos da instituição escolar

O enfrentamento médico do tema da masturbação encontrava na escola (SILVA, 1869;


COLLET, 1885) – local para o qual são enviadas as crianças a partir do século XIX,
sobretudo das classes mais abastardas –, uma instituição que seria, estrategicamente, alvo de
contundentes ataques. A tática higienista era de reconhecer a fragilidade dessa instituição na
proteção da vida e da saúde dos que ela intentava proteger, mas, ao mesmo tempo,
desculpabilizar a administração e a família, fazendo-as de aliadas a seus propósitos:

Muitos Pais de família, destinando seus filhos à vida literária, mandão-os ainda na
meninice, por assim dizer, para um Collegio, onde julgão que pelo estado de
recluzao à que vão estar sujeitos os mancebos ficarão isentos de contrahir vícios, e,
mais que tudo impossiblitado de adquirir a syphilis. [...] nos collegios os jovens
discípulos encontrão na verdade muitos amigos e protetores; mas essas amizades e
protecções são insidiozas: promessas, astucias, ameaças enfim empregão ahi para
abusar da virtude dos filhos subtrahidos ä vigilância de seus Pais, e para induzil-os a
praticas degradantes, por cujo uso terão de arrepender-se, e de corar de pejo [...]. E
não é a Sodomia o vicio único que lavra os Collegios; o onanismo também ahi se
manifesta com uma pratica assustadora. [...] Nesta cidade mesma teem havido
mancebos educados em collegios, que se derão ä este perniciozo habito com tal
excesso de ser precizo os soccorros d’um médico para trata-los (BARROSO, 1853,
p. 9).

O saber médico vai paulatinamente se difundindo no que outrora era incumbência da


família – a educação e o cuidado com a saúde dos seus membros. Sob a justificativa que
apenas ele detém o conhecimento necessário para sanar os males físicos e morais que
acometem os indivíduos e, em especial as crianças, a medicina vai ainda se valer da defesa do
país como tática para sua afirmação como saber que podia sobrepujar o que até então era
consagrado exclusivamente à família: poder do patriarca sobre seus súditos (filhos, esposa,
escravos e agregados e até mesmo o pároco). De outro lado, de modo sub-reptício, o saber
médico vai sublinhar a preocupação com o fato de ser a escola a sucessora da família na
formação física, moral e intelectual dos jovens, já que a escola estava até então desvencilhada
da mentalidade higiênica, apesar de responder pela educação física e moral das crianças.

Os collegios são um dos lugares sobre que as Administrações, sollicitas e


incansaveis pelo bem-estar e progresso de seus subordinados, devem lançar as suas
animadoras vistas, quer proporcionando os meios necessários para a conservação de
sua saúde e adiantamento, quer com serias e acertadas medidas obrigando os
gerentes d’esses lugares a observar certos deveres de que não se pode prescindir,
principalmente para com a Mocidade, que bem dirigida e cultivada muito concorrerá
para o augumento e a glória de seu paiz. Remover todas as causas capazes não só de
obstar ao livre ensino, como também as que por sua constante acção podem trazer
sérios perigos á saúde daquelles, que n’esses lugares habitão, tal deve ser uma de
suas precisas obrigações; d’ahi provém a necessidade quase absoluta em fraternal
69

amplexo viver unida á Medicina, que em certos casos é a unia habilitada a conhecer
e a fazer desapparecer certas causas, que se oppoem á boa marcha das cousas
(SILVA, 1869, p. 6).

Oferecendo-se como única saída possível para os problemas de saúde que acometiam
crianças e adolescentes, a medicina, através do discurso higienista, vai prescrever um
conjunto de medidas que redesenham a arquitetura física e moral da instituição escolar. Desta
maneira, prescreve-se, por exemplo, que os colégios sejam instalados em locais
preferencialmente altos e distantes de hospitais, quartéis, mercados públicos, evitando os ares
impuros e atmosferas morais duvidosas, como eram vistos, por exemplo, os quartéis. Colégios
livres de pântanos e de ares viciados e úmidos (de fábricas, próximos de rios e regatos), bem
como distante dos hospitais, poderiam prevenir doenças físicas. Colégios distantes de
atmosferas degradadas moralmente evitariam a corrupção moral da juventude.
No isolamento asséptico do colégio topograficamente definido pela higiene, não
deveria haver espaço para contato com as impurezas que degradavam física e moralmente o
homem. Proteger a infância da doença, mas também da presença dos incorrigíveis, passou a
ser uma das missões que a medicina toma para si, ao se colocar como saneadora social.
Neutralizando o antimodelo, tornar-se-ia mais fácil disciplinar as crianças. Para isso, não
bastava exercer seu poder sobre os indivíduos; era preciso regular o movimento dos corpos
em relação aos outros.
As prescrições médicas acerca da disposição arquitetônica dos colégios eram
minuciosas. Recomendava-se que o colégio não tivesse mais que dois pavimentos; que o
pavimento térreo fosse especialmente cuidado para que a umidade fosse controlada nesse
espaço onde as crianças ficariam por boa parte do tempo; a divisão espacial deveria comportar
salas amplas, ventiladas e iluminadas e deveriam ser localizadas no segundo andar do
edifício. O estilo e os materiais deveriam reproduzir o modelo europeu. O piso de assoalho
pintado, por exemplo, lembraria os colégios de maior reputação da Europa, o que muito
seduzia a crescente burguesia local. A ventilação não deveria ser descuidada, uma vez que ao
ar viciado era atribuída boa parte das moléstias. Distribuídos num espaço arejado e vasto,
controlar-se-ia mais facilmente os movimentos de cada criança em particular e dela na relação
com as outras crianças.
Prescrevia-se de tudo: do regime alimentar e da qualidade da água até a cor da parede
da sala. Assim é um ambiente que, através de sua ordenação, transmite o desejo de
disciplinamento. Era preciso regular também o uso do tempo: ao estudo regular, deve-se
seguir de tempo para o recreio e para a ginástica, evitando que o prolongamento do trabalho
70

levasse os corpos dos alunos à exaustão. O cuidado dispensado à higiene corporal também faz
parte dessa cruzada contra a insalubridade dos colégios: aplicar preferencialmente banhos
frios e regulares. Definia-se inclusive a disposição dos alunos nas salas de aula e a posição de
cada um deles em suas carteiras, seguindo as recomendações dos médicos franceses, para
“evitar os desvios do corpo”; regular o tamanho dos caracteres dos livros, para evitar a
miopia. O que se quer pôr em relevo é menos a utilidade dessas prescrições para a saúde do
que o fato de que, ao fazê-lo com tantas minúcias, o saber médico acabava se entranhando nos
mínimos espaços da instituição escolar, responsável pelo grande internamento das crianças no
século XIX.
A uma velha pedagogia opunha-se uma nova, orientada pelo empenho em fazer com
que os educandos internalizassem a disciplina e pudessem coordenar eles mesmos as
contenções físicas e morais. Uma revisão dos castigos era defendida pelos médicos, como
forma de contraposição à pedagogia herdeira do poder patriarcal. Recomendava-se a
superação do uso da férula; o castigo físico começava a perder sua credibilidade enquanto
instrumento pedagógico. Com isso, duas instâncias estão na mira dos médicos: a educação
familiar, na qual o patriarca podia dispor do corpo de seus filhos, impingindo-lhes, dentre
outras coisas, os humilhantes castigos que visavam à criação do medo como forma de
obediência; e em segundo lugar, ao predomínio da pedagogia na educação dos jovens fora do
âmbito familiar, que acaba reforçando o poder do patriarca, ao imitar suas técnicas. A
condenação dos castigos – prática comum à família e à Igreja – visava a uma importante
manobra médica: a intromissão da medicalização na intimidade da família seria tanto mais
eficaz quanto contasse com a anuência e até mesmo com o desejo de seus membros. Era
necessário subverter a notação de suas ideias, garantindo a elas uma positividade que fizesse
circular o desejo de pais e filhos.
Especial atenção é dada aos dormitórios: espaço que devia ser monitorado pelo olhar
institucional, já que ali se transmitiam os vícios sexuais e morais. O onanismo e a pederastia
eram os dois grandes temores da instituição escolar no século XIX. A vigilância contínua dos
espaços dos colégios era uma das prescrições médicas para evitar tais práticas, sobretudo os
dormitórios. Recomendava-se que os quartos fossem os mais amplos; que não fossem
rodeados por árvores e jardins; que cada indivíduo estivesse a certa distância do outro; que a
iluminação fosse obtida não apenas de forma artificial, mas também pela luz natural vinda da
supressão de paredes. Ou seja: visibilidade máxima num espaço mais bem distribuído
possível.
71

Com um discurso alarmista, que atribui ao onanismo a causa de praticamente todos os


males, a medicina se tornará presente no combate ao grande mal da infância no século XIX,
que supostamente teria, na escola, outra grande fonte de irrupção. Causa generalizada de
quase todas as doenças físicas e mentais, a masturbação era associada à morte prematura e ao
fracasso familiar e da nação. Para isso, o conjunto de prescrições médicas foi enunciado no
combate ao onanismo nas escolas: (1) vigilância contínua por um “sensor moralizado”, que
estaria presente em todos os espaços de sociabilidade escolar; (2) regulação do isolamento e
da aglomeração: nem um, nem outro; antes convivência regulada; (3) vigilância dos
dormitórios: do modo de deitar às atividades que faziam antes de dormir, tudo deveria estar ao
alcance do olhar institucional; (4) proibição de literatura e imagens incitadoras do desejo
onanista; (5) controle etário dos grupos; impedir, pro exemplo, ingresso de jovens maiores de
16 anos; (6) evitar a punição ostensiva; antes agenciar, convencê-los de que atentam contra a
própria saúde; tratar-lhe como viciado, prescrever-lhe técnicas de controle do seu vício, como
viagens, ocupações, boas companhias (SILVA, 1869).
O ócio, que tem como aliados a leitura de romances, o acesso a obras de arte eróticas e
a peças de teatro, deveria ser controlado pela escola e pela família. Sobrevém aí a ideia de que
a imaginação precisava ser domada, faculdade intimamente vinculada ao abandono ao
onanismo. Regular o acesso ao mundo imaginário, à produção da fantasia, portanto, constituía
importante medida profilática. Devia-se evitar o acesso a fontes de incitação à imaginação das
crianças e jovens, principal objeto de preocupação do saber médico embalado pela
prerrogativa de gerar bons frutos para uma nação robusta, a esses artefatos culturais, se
quisesse evitar que as exigências que inevitavelmente o impulso sexual traria ao corpo fossem
antecipadas.

A leitura de Novellas, escriptas em um estilo mui livre, pode muito contribuir para
que o sentido venéreo se desperte prematuramente na mocidade. A phantazia exerce
um grande império nesta idade, criando por associação de ideas os entes chimericos
dezenhados n’um livro, dando-lhe exitencia real na imaginação do indivíduo cuja
accão nervoza mui fraca pode exergerar-se, e manifestar o desejo de possuir d’entre
todos esses entes desenhados, um, que se reprezentou mais voluptuoso. [...] tudo
isso pode influir mui vivamente na mocidade, exaltando-lhe a susceptibelidade, e
concorrer para despertar-lhe um sentido que se achava em torpor: e o que mais
robora essa prezumpção, é que a Hygiene preceitua, conforme o predomínio de
certos temperamentos, que à uns indivíduos se prohiba a leitura e assistenca de
Tragédias, à outros se prescreva evitar os actos tristes e as emoções vivas, que
podem muito impressionar o organismo (BARROSO, 1853, p. 9).

Para evitar que o ócio pudesse exercer seus efeitos insidiosos, a educação física ganha
legitimidade no discurso higienista, insuflada pela difusão do darwinismo social. Num artigo
de Amaral (1889), intitulado “A gymnastica nas escolas”, defende-se a ideia de que o
72

combate cotidiano entre os homens pela sobrevivência – pressuposto da seleção natural de


que se vale Spencer ao justificar a diferença social entre os homens – do qual somente alguns
são vencedores deve ser suportado pela aquisição do vigor físico e mental que seria
propiciado pela atividade física disciplinada. No âmbito social, a defesa da ginástica estava
atrelada à conquista da “robustez” da raça, útil na guerra, no trabalho operário e na contenção
dos vícios. Nesse sentido, a atividade física deveria ser disciplina obrigatória nas escolas e
caberia à medicina o poder de demonstrar seus benefícios físicos e morais inequívocos.

É uma questão vital esta, pois d’ella depende, como se vê, a belleza da raça, o vigor
do operário, a actividade do homem de lettras e a energia do soldado; d’ella
resultará, talvez, o êxito de muitas batalhas, o desenvolvimento das industrias, o
avanço da sciencia e a prosperidade da pátria, objetivos todos dignos de sérios
estudos (AMARAL, 1889, p. 158).

Um tratamento profilático era então prescrito para a masturbação: vigiar os cuidados


das amas para com as crianças, coibindo quaisquer contatos eróticos que daí pudessem advir
(os manuais relatam que muitas amas tinham por hábito friccionar os genitais das crianças
para fazê-las dormir ou conter os acessos de choro), obrigar a ginástica para controlar a
ociosidade, impedir acesso a cenas/óperas/quadros/livros de teor erótico, para não gerar
insumos para a maquinaria da imaginação; gerenciar o ritmo do sono das crianças,
dificultando que permanecessem no leito acordadas; garantir rigor disciplinar, enfim, na
formação moral dos filhos; controlar relações de intimidade com criados; e, se necessário,
fazer uso de camisas-de-força, de cintos de castidade e de castigos para os flagrantes.
(SILVA, 1869; COLLET, 1853; CAMILLO, 1885).
De eficácia questionável, tais tratamentos faziam aparecer o sujeito de que tratavam:
não exatamente um doente, mas um(a) viciado(a); uma espécie de criminoso de si mesmo(a).
A ambiguidade do tratamento proposto ao onanista – uma terapêutica punitiva – seria antes
um reflexo da fabricação desta nova figura na medicina, que é a do anormal. Nem doente,
nem criminoso, o anormal foi a produção da aproximação do campo médico com o jurídico,
que permitiu a ampliação do campo de intervenção da medicina no campo social pela criação
de uma nova área – a medicina legal.
Tissot foi o grande inspirador de uma verdadeira cruzada antimasturbatória que
ocorreu na Europa (especialmente na França, na Inglaterra e na Alemanha) e nos EUA no
século XIX. (STENGERS; VAN NECK, 1998). A manobra médica que procurava combater o
“vício vergonhoso” a partir da ameaça de toda essa formidável constelação de males a ele
atribuído e cuja narrativa, frequentemente, com a morte do onanista, foi reproduzida por
73

vários médicos ilustres. Insistia-se, peremptoriamente, na divulgação dos malefícios do


onanismo aos pais e educadores e prescrevia-se vigilância permanente dos passos de crianças
e jovens, sustentada na concepção de que a masturbação era um ato suicida que, antes de
consumado, deixava seus rastros de destruição na espécie humana. Propalava-se uma
epidemia do onanismo. As evidências predominantemente utilizadas para afirmar o nexo
causal entre a prática masturbatória e as doenças de que padeciam seus praticantes tinham
como referência os casos descritos por Tissot, que por sua vez, em boa medida, tinha a
inspiração da brochura inglesa intitulada Onania. Importa menos observar as fragilidades
científicas – eximamo-nos de adjetivá-las como “pseudocientíficas”, já que os critérios
epistemológicos, sempre frágeis, para validar uma descoberta como científicas são
historicamente contingentes – que teriam construído a guerra contra o onanismo, do que seu
teor político produzido nessa montagem discursiva.
Uma contestação do pensamento de Tissot acerca da masturbação só aconteceria mais
de um século depois, em 1875, quando finalmente, o que hoje pareceria elementar a qualquer
cientista, foi sublinhado. As críticas incidiam basicamente sobre a ausência de plausibilidade
entre o quadro apresentado por Tissot e o juízo de atribuição que ele havia formulado.
Explicando melhor: a partir do último quartel do século XX, alguns médicos – como o
cirurgião inglês James Paget e o sifilógrafo francês Muriac – consideravam não só
exageradas, mas também pouco rigorosas do ponto de vista do nexo causal, uma vez ele havia
apontado, como regra geral, um prognóstico de casos muito específicos (e muito graves) e
interpretado como efeitos da masturbação males provocados por outras causas não
investigadas pelo autor de L’Onanisme. No entanto, afora essas objeções localizadas, o
pensamento médico tradicional sobre o onanismo, caracterizado sobretudo pela crença de tal
vício, era responsável pela produção de diversos males, persistiu e atravessou o pensamento
médico – e, mais especificamente, sexológico – pela primeira metade do século XX
(STENGERS; VAN NECK, 1998).
Segundo Porter (1998), tanto Onania quanto a obra tissotiana refletem uma inflexão
no modo de circulação das temáticas sexuais e constituem exemplares da literatura de
aconselhamento sexual, que alcançou grande importância sobretudo a partir de 1700,
seguindo a trilha da cultura impressa fincada na era pós-Gutenberg e, posteriormente, da
filosofia iluminista, que questionava as diretrizes morais da Igreja, além de ser suportada pela
crescente legitimidade social que a medicina conquistou na modernidade. A questão de fundo
do historiador inglês é a crítica foucaultiana à ideia de repressão sexual.
74

Discutindo a tese foucaultiana que tentava refutar a “hipótese repressiva”,39 Porter


(1998) assinala a pertinência da crítica do filósofo francês que fez aparecer uma complexa e
prolífica ordem discursiva que recobria a ideia de repressão sexual, além de reconhecer o
mérito dele na desmontagem de uma leitura histórica na qual comparece um (falso) teor
progressista nas denúncias contra a opressão sexual que vitimizava os indivíduos. No entanto,
ele não renuncia ao desejo de ver reconhecido que a literatura sexual possuía um modo
particular de circulação em que a censura atuava sub-repticiamente, de modo que insiste em
afirmar as estratégias coercitivas de controle da sexualidade. Como evidência para seu
argumento ele assinala, por exemplo, que nas obras oitocentistas sobre a masturbação, os
autores se defendem antecipadamente da acusação de incitação à lascívia, muito comum,
aliás, quando se trata de literatura de aconselhamento sexual. Além disso, os leitores dessas
obras não as tratavam como uma literatura qualquer, mas o faziam de modo a manter seu
interesse em segredo, fazendo circular uma economia do silêncio quando o assunto era o sexo.
Pelo visto, persiste a querela em torno da ideia de repressão, que, diga-se de passagem, não
foi recusada em si mesma, por Foucault, mas elevada à condição de um discurso encobridor
dos jogos de poder em torno da questão sexual.
Retomemos à pergunta inicial acerca do significado histórico da importância que a
masturbação adquiriu a partir do século XVIII. Para tanto, o seminário de Michel Foucault,
Os Anormais (1974-1975), oferece-nos um conjunto de ideias cuja fecundidade nos será de
grande valia. Ele interpreta a cruzada antimasturbatória oitocentista como historicamente
intermediária entre o discurso da carne e o discurso da psicopatologia sexual, cujo objetivo
era a constituição de um novo “corpo familiar”, marcado pela incitação (médica, sobretudo) à
aproximação parental do cuidado cada vez mais meticuloso com os filhos. Essa teria sido a
condição de possibilidade da emergência de uma nova configuração familiar, qual seja, a da

39
A “hipótese repressiva”, relativa a uma interpretação histórica que enfatiza a repressão sexual como um traço marcante da
cultura ocidental a partir da era vitoriana, é o ponto de partida para Foucault desconstruir uma visão hegemônica da
sexualidade moderna (FOUCAULT, 2001; 2005a). Sua crítica se dirige, nominalmente, ao livro de Jos Van Ussel, intitulado
Repressão Sexual e publicado em 1970, cuja tese central é que repressão sexual foi ocasionada pelo processo de
aburguesamento da sociedade, exigido pelo projeto de civilidade em causa, marcado pela propensão ao rendimento no
trabalho e a contenção de afetos. O foco da crítica residiria menos no quadro geral da explicação de Ussel e mais,
propriamente à mecânica do poder em causa. Ele contesta uma periodização da história, em que teria havido certa liberação
sexual e moral vigente no século XVII e que teria sido abolida no século XIX, representando a transição de um momento
onde “os corpos pavoneavam” – quando a conduta teria sido marcada por uma certa bestialidade – para um outro no qual a
sexualidade se encerrava na intimidade da família, agora nuclear, e tinha na reprodução a sua finalidade. Com efeito, afirma
que nos três últimos séculos, ao contrário do que habitualmente é pensado, houve uma “explosão discursiva” em torno do
sexo, contrariando certa ideia consensual de que houve aí um mutismo em relação ao sexo a partir do século. XVII. Não é
que ele negue a existência da repressão, mas sua análise visa a interrogar os discursos que aí se produziram e que enfatizam,
todo o tempo, o caráter repressivo do sexo. Em Sexualité et Verité (1994c), Foucault defende mais uma vez que ele não tratou
de negar a repressão do sexo, mas tomá-lo como a superfície de uma estratégia muito mais complexa que positivou o sexo, a
partir de uma “vontade de saber”. Haveria, entre sexo, poder e saber, uma relação que se situa menos no âmbito da interdição
– que seria sustentada por uma concepção de poder como algo restritivo, centralizador e como posse – do que no âmbito da
normalização, onde a demarcação do lícito e do ilícito dá lugar ao escrutínio da anormalidade.
75

família nuclear burguesa. Lembremos que essa nova configuração familiar e essa função de
vigilância que ela assume em relação à sexualidade dos filhos responde internamente a uma
regulação externa gerida pelo saber médico, cujo acoplamento vai acarretar uma nova
economia discursiva em torno da questão sexual: o discurso sobre o sexual vai encontrar na
medicina seu lugar exclusivo de enunciação, ao passo que, no interior da vida familiar, há o
aparecimento da experiência de intensificação da vigilância dos pais, seguida de
silenciamento.
A família nuclear fica bastante permeável aos poderes institucionais médicos e
pedagógicos; fragilizada na sua competência natural de educar os filhos, ela vai precisar de
saberes exteriores que intervenham nessa nova forma de cuidar dos filhos. No mesmo
momento em que a cruzada antimasturbatória (segunda metade do século XVIII) acontecia,
havia também uma reivindicação expressiva de que a educação fosse controlada pelo Estado.
Essa aproximação pais-filhos na cruzada antimasturbatória teria possibilitado a introdução de
um tema até então ausente, que é a relação incestuosa dos filhos com os pais, coerente com a
incitação de desejo dos filhos em direção aos pais que teria sido suscitada pelas
transformações pelas quais passou o cuidado com a infância a partir do século XVIII. A posse
dos filhos pelos pais ocorreu não apenas em relação ao corpo, mas sobretudo em relação ao
desejo.
A preocupação médica – especialmente psiquiátrica e médico-legal – com o tema da
degeneração, a partir da última década do século XIX, vai ressignificar o modo como não só a
masturbação, mas também outros “desvios sexuais”, passarão a ser tratados. A atmosfera
social e política do final de século novecentista vai demandar a elaboração de novas táticas
discursivas que possam equacionar uma rede complexa de intencionalidades. Como veremos
no próximo capítulo, a degeneração será um novo artefato político-discursivo que se
construirá em meio a um processo de ampliação da legitimidade social da psiquiatria como
mediador da higienização social em curso desde o início do século XIX. A atmosfera política
e social será a do intenso debate sobre a viabilidade do país, no final do século XIX.
Suportada por uma tradução contextualizada do darwinismo através da recepção local do
pensamento spenceriano, a elite intelectual brasileira em geral, e os médicos, em particular,
estarão particularmente envolvidos na formulação de argumentos que pudessem justificar a
manutenção da acirrada estratificação social que imperava no Brasil, herdada de seu então
recente passado escravagista, com os desafios de sustentação do liberalismo, ideologia que
passa a sustentar o projeto republicano brasileiro.
76
77

2 RAÇA, DEGENERESCÊNCIA E EUGENIA MATRIMONIAL

2.1 Raça, nação e desencanto

Em 1890, Nina Rodrigues, no seu artigo “Os mestiços brazileiros”, publicado numa
seção da GMB intitulada “Anthropologia pathológica”, afirmava que a mestiçagem ainda
estava em curso no Brasil, de modo que lhe parecia equivocado falar naquele momento de
uma raça mestiça unificada. Imaginando que os tipos mestiços da época chegassem um dia à
extinção, o médico maranhense supunha que eles passariam por um longo processo de
“evolução etnológica” até que se pudesse verificar “produto final uniforme” (RODRIGUES,
1890a, p. 402). Ele criticava a classificação racial de uso corrente nas estatísticas médicas,
que admitia apenas três categorias: pretos, brancos e pardos. Considerava um erro, por
exemplo, incluir na categoria de pardos os mulatos e mamelucos, ou na categoria de pretos,
mestiços de negros com índio. Reclamando maior precisão quanto à especificação das
nuanças raciais brasileiras, Rodrigues parecia pôr em questão a imputação etiológica
diferencial que a análise médica por categoria racial veiculava.
Ele classifica o Brasil em seis grupos “raciais” e descreve suas características: branco,
negro, mulato, mameluco ou caboclo, cafuzo e pardo. Ele fala em superioridade racial do
mulato em relação ao mameluco, refratário biologicamente que seria este último ao processo
de aculturação europeia, a escassez de índios para novos cruzamentos e a ausência de
“seletores morais e sociais” que estimulassem o cruzamento dos mestiços indígenas entre si
seriam os motivos apontados pelo médico para o gradual desaparecimento desse mestiço –
raciocínio que pressupõe uma hierarquia entre as raças, cuja sobrevivência é determinada pela
seleção natural. Sua posição face aos negros é ambivalente: ora suas manobras conduzem a
uma relativização dos argumentos racistas prevalente à época – tais como a maior prevalência
de adoecimentos entre os negros, o preconceito por ele sublinhado quanto ao cruzamento
entre negros e brancos –, ora ele reafirma a inferioridade negra e indígena. Afirmando que as
raças primitivas puras estavam se extinguindo no Brasil e, ao mesmo tempo, fazendo aparecer
um tipo mestiço médio, uniforme, Nina Rodrigues parece nos querer mostrar uma raça
brasileira cujo perfil antropológico ainda era desconhecido. Um vazio que ganha sentido pela
possibilidade de abrir uma alternativa esperançosa ao fatalismo que acometia o pensamento
sobre o Brasil.
78

Essa inquietação com a questão racial que, não por acaso, começa a se apresentar após
a abolição da escravatura, estava atravessada por contradições que constituíram a redefinição
do projeto de nação brasileira, que começou se insinuar a partir da década de 1870. As
dificuldades encontradas na inserção do país em patamares civilizatórios europeus começam a
ser imputadas às fragilidades de seu modelo político – uma monarquia hereditária –, mas
também ao seu regime econômico, qual seja, a monocultura latifundiária sustentada pelo
regime escravocrata. Contestada tardiamente no Brasil e, ainda assim, em larga medida por
força das pressões externas (da Inglaterra e da França), a exploração do trabalho escravo
refletia, mesmo nos argumentos abolicionistas mais contundentes que foram se delineando a
partir da década de 1880, uma preocupação com o impacto que a escravatura acabava por
gerar na imagem do Brasil no exterior, mais do que com a condição iníqua em que se
encontraram os negros (SKIDMORE, 1989).
Ao contrário do modelo americano birracial, o Brasil era marcado pela
multirracialidade. Já havia homens negros livres antes da Abolição, de modo que não havia
como demarcar rigidamente as fronteiras entre brancos e negros, através de um regime
segregacionista. Ao mesmo tempo, a inserção do homem negro livre na sociedade reproduzia
a submissão do escravo para com o senhor, de modo que quando a Abolição se realiza, a
relação de superioridade de brancos para com negros, a despeito de que alguns deles tivessem
conseguido alcançar alguma mobilidade social, já havia sido incorporada às relações sociais.
(SKIDMORE, 1989). Essa multirracialidade não implicava, entretanto, ausência de racismo,40
pois havia no ideal normativo da constituição populacional brasileira uma valorização
superlativa do homem branco. O debate travado pela elite intelectual do país, que se instituiu
da passagem do século XIX até a década de 1930, explicitou diferentes posicionamentos para
o problema da modernização da nação brasileira.
O nacionalismo, que surge vinculado ao fortalecimento dos Estados-nação, representa,
no século XIX, uma das soluções encontradas para o enfrentamento de conflitos entre povos,
territórios e formação de identidades nacionais. Nação passa, a partir do século XIX, a ser
uma noção vinculada à consolidação do Estado. Apesar de diferentes formatos, os
nacionalismos estiveram predominantemente vinculados a forças políticas reacionárias que,
imbuídas do valor do patriotismo, pretendiam capturar os indivíduos e os grupos sociais em

40
A rejeição à proliferação de mestiços não foi uma prerrogativa exclusiva do saber médico e jurídico do século XIX. Desde
o século XVIII, ainda no Brasil colônia, portanto, havia o desafio de povoar o Brasil, mas de preferência com “gente
principal e honrada”, como queria dom João VI, de modo que se pudesse controlar a instabilidade e a desordem social. As
uniões interraciais eram malvistas, embora toda a carga de restrições impostas a elas não fosse suficiente para impedi-las,
sendo que a Coroa só podia no máximo tentar estimular a união entre brancos e/ou “mestiços perfilhados” (VAINFAS, 1989,
p. 97).
79

suas estratégias políticas. Além disso, o nacionalismo tomou a língua como eixo organizador
dos Estados-nação (“nacionalismo linguístico”), uma vez que a fixação de um território
(“nacionalismo territorial”), herdado da Revolução Francesa, não era suficiente para
estabelecer a identidade nacional em vários casos (por exemplo, os judeus). Os Estados-nação
eram uma peça importante na ampla homogeneização social que se efetuou a partir daquele
momento histórico (HOBSBAWN, 2006).
A miscigenação foi, no entanto, o tema que dominou o debate nacionalista no contexto
brasileiro,41 pois ela era identificada como o principal entrave à afirmação de uma nação
soberana. A ideia de população saudável significava conjunto racialmente puro e livre de taras
hereditárias. Com a articulação entre a saúde das populações e a pureza racial, se fez
equivaler a miscigenação, com traduções particulares das matrizes de pensamento acerca das
diferenças étnicas, à doença, à degeneração, ao crime, ao vício, à hiperestesia sexual. Desse
problema se ocuparam algumas gerações de médicos, juristas, pedagogos, enfim, que estariam
encarregados de produzir uma saída para o paradoxo racial, qual seja, justificar as diferenças
sociais – o que foi feito pela naturalização presente na categoria “raça” – e enfrentar o
desencanto que a “inferioridade” racial daí decorrente produzia em relação ao projeto de uma
nação forte e saudável.42
Coadunar, portanto, o liberalismo, que começava a se esboçar no programa
republicano ainda em gestação, com a íngreme estratificação social que apartava os
indivíduos, parecia um dos principais desafios da elite intelectual que aqui se formava.
(SKIDMORE, 1989; SCHWARCZ, 1994). Tornava-se necessário, então, produzir
mecanismos de regulação das diferenças entre homens livres e escravos, a fim de preservar as
distâncias que, afinal, não seria desejável obturar.
A assimilação das teses racistas se dará no Brasil numa atmosfera de grande difusão
dos ideais cientificistas da Europa novecentista. É nesse sentido que o positivismo, o
evolucionismo e o darwinismo passam a informar o pensamento sobre as questões sociais,
dentre elas, a problematização em torno da composição “racial” do país. Mas não se tratava,
exclusivamente, como procura defender Schwarcz (1993), de uma mera mimetização de ares
europeus, a fim de se inserir o país na etiqueta nos moldes civilizatórios daqueles países.

41
Foucault (2005b), em A defesa da sociedade, afirmou que sob a insígnia de racismo, o exercício de regulamentação da vida
do projeto biopolítico produzia sua consistência no argumento de matar em nome da vida. O racismo é esta estratificação dos
povos de acordo com o valor da vida que pode ser conferido a cada grupo, o que torna sua existência possível somente no
projeto biopolítico. E aí é necessário nuançar o que Foucault quer dizer com racismo. Não se trata nem do ódio de diferentes
raças, nem tampouco de uma ideologia de Estado que pretende impor a dominação pela subordinação ao quadro de referência
dos dominantes, mas a forma pela qual a tecnologia do biopoder pode funcionar: “fazer viver e deixar morrer”, cuidar da vida
das populações, mesmo que para isso seja necessário matar.
42
A este respeito, ver Schwarcz (1999).
80

Havia particularidades nessa tradução, sobretudo para responder aos dilemas quanto à
regulação interna de seus conflitos sociais. Desta forma, na apropriação das teorias raciais
europeias, nossa elite acabou por selecionar e reinterpretar essas teorias de modo a acomodar
o desafio de encontrar uma ancoragem discursiva para naturalizar as iniquidades do regime
escravocrata com o interesse de viabilizar o projeto de nação brasileira.
Tomemos, inicialmente, a corrente de pensamento que se convencionou chamar de
darwinismo social, cujo representante de maior recepção no Brasil foi Herbert Spencer. No
seu livro intitulado Les bases de la morale évolucioniste, de 1892, considerado pelo próprio
autor como ponto de chegada do seu pensamento, havia uma preocupação com o problema de
definir princípios éticos que pudessem balizar a conduta em geral e, de modo especial, a
conduta política. Diante da fragilização da moral suportada pela metafísica, ele localiza duas
soluções dadas ao vazio por ela ocasionado: a nostalgia da moral sobrenatural e o
secularismo. Propõe, então, uma análise que estaria comprometida com a criação de um
fundamento moral não-transcendente, de caráter utilitarista, para a conduta, empreendimento
que levará a cabo valendo-se da naturalização das diferenças sociais.
Definindo conduta como um conjunto de atos que se dirigem a uma finalidade,
Spencer defende que as formas de vida se estratificam em menos evoluída e mais evoluída,
tendo como núcleo central da diferenciação a distinção entre conduta e atos indiferenciados.
Fará uma comparação entre a conduta humana e a conduta dos seres vivos, através de uma
estratificação que toma o menos desenvolvido como meio de análise para o mais
desenvolvido. Há, no seu pensamento, um ponto de partida comum para as diversas formas de
vida. Suportado pela premissa de que estruturas e funções evoluíram a partir de “tipos
ascendentes de animalidade” (p. 7), o autor propõe que a evolução da conduta é correlata da
evolução biológica, de modo que uma forma de vida superior consegue organizar seus atos de
modo a escapar dos perigos no seu entorno e, ao mesmo tempo, fazer um uso proveitoso de
riscos dos quais pode extrair benefício.
Estendendo seu raciocínio, depois de uma série de exemplos, ele procura mostrar
comparativamente a dependência que a evolução da conduta tem da sofisticação das
estruturas e funções biológicas, às “raças humanas inferiores” e “raças humanas superiores”
(p. 10). A evolução da conduta seria definida pela capacidade de adaptar os atos às suas
finalidades, de modo a prolongar a vida. Mas ressalva que a evolução da conduta em si
mesma não seria medida de evolução da conduta. Comparando a longevidade do “selvagem”
à do homem civilizado, Spencer tenta convencer que a conduta é mais evoluída nas “raças
superiores”, ainda que nem sempre sua forma de vida seja a mais duradoura. Tratar-se-ia,
81

então, de mensurar a evolução pelo cruzamento da complexidade da forma de vida, expresso


pela complexidade de pensamentos, ações e sensações, com sua capacidade de ampliar a
duração. As “raças inferiores” não teriam aprimorado a conduta de “preservação da espécie”;
apenas a preservação individual, que pressupõe um estágio de organização estrutural menos
evoluído do que o da preservação da espécie, através do cuidado intergeracional e social que
as “raças superiores” teriam.
Para coadunar seu raciocínio com a ideia de perfectibilidade, outra marca do
evolucionismo, Spencer acrescenta outra ideia que articula a interação entre intra e extra-
espécie: a luta pela sobrevivência. Apesar de implicar a ideia de competição, já que o êxito
adaptativo de um dependeria do fracasso de outro, raciocínio que vale tanto para membros de
mesma espécie quanto de espécies diferentes, o autor afirma que esse ideal de perfectibilidade
só estaria alcançado se o pressuposto acima fosse superado, ou seja, se houvesse não disputa,
mas cooperação para o alcance da perfeição. Como modelo social de perfectibilidade, ele cita
a sociedade industrial que abandona a guerra para fazer valer a cooperação.
De caráter utilitarista, ou seja, tomada a partir do julgamento acerca da ligação entre
um ato e seu fim como eficaz ou não, a moral defendida por Spencer pressupõe uma escala
progressiva de preservação da vida – nos âmbitos individual, da espécie e social –, segundo a
qual uma boa conduta é aquela que favorece a vida (social e da espécie), e uma má conduta,
aquela que a destrói. Ela só poderia ser alcançada pela espécie humana se a vontade
individual estivesse a serviço da conservação da sociedade. Esta, por sua vez, uma vez
consolidada, seria ela mesma fonte de proteção da vida individual. A oposição de interesses
entre o indivíduo e a sociedade, cuja solução mais evoluída seria defender este em detrimento
da liberdade daquele, só se apresentaria diante da ameaça contingente de grupos humanos
contra outros. De resto, seriam experimentadas como intencionalidades solidárias. Uma forma
de vida perfeita seria aquela que pudesse satisfazer a preservação da vida nas três instâncias
referidas.
Essa leitura sociobiológica era bastante conveniente ao enfrentamento dos embaraços
sociais do final do século XIX no Brasil, já que progresso e naturalização das diferenças
sociais conviviam lado a lado na filosofia spenceriana. Não por acaso, a recepção das ideias
de Darwin no Brasil, marcada por tantas controvérsias, foi fortemente mediada por aquele
autor. A descontinuidade e aleatoriedade presentes na ideia darwiniana de seleção natural
foram, ao que parece, um aspecto que causou resistências, já que nem comportavam a ideia de
progresso, muito menos qualquer alusão ao criacionismo (DOMINGUES; SÁ, 2003).
Portanto, é sobretudo através do spencerismo que a perspectiva darwinista seria relativamente
82

assimilada pela elite intelectual brasileira, já que essa leitura favorecia uma acomodação para
o paradoxo racial já apontado anteriormente.
A condição mestiça passava a ser encarada como um problema a solucionar no país
caso se quisesse reverter o cenário de desencanto que havia se instalado no final do século
XIX. A tese do “branqueamento”, que foi amplamente debatida no Brasil entre as décadas de
1890 e 1920,43 apresentava-se como a saída para os impasses raciais no Brasil, acalentando-se
o sonho de ver aquele ideal de um Brasil ariano realizado. João Batista Lacerda é considerado
um dos principais representantes dessa tese. Em 1911, no I Congresso Universal das Raças,
realizado em Paris, Lacerda afirmava que os mestiços brasileiros estavam dispersos por todo o
país, fruto de uma ausência de controle das uniões sexuais interraciais, solução que ele
condenava. Para ele, os mestiços não formavam uma raça verdadeira, pois não havia
estabilidade dos caracteres físicos, sendo que oscilavam entre o branco e o negro.
Apresentava como modelo a seguir a solução segregacionista americana. O discurso que
associava degenerescência e mestiçagem encontrava nesse autor ressonâncias importantes, já
que ele defendia que o negro teria “inoculado” toda sorte de vícios (superstições, vícios
sexuais, vícios de linguagem), contaminando tanto o mestiço, quanto “rebaixando o nível dos
brancos” (p. 12). Afirmando não ser o mestiço uma nova espécie, apostava que o mestiço
poderia se aproximar do branco, se os cruzamentos pudessem, pouco a pouco, fazer com que
a herança negra fosse sendo diluída.
Curiosamente, Lacerda entendia que o mestiço era inteligência superior ao negro,
sendo-lhe notáveis dons artísticos e técnicos que já os colocavam em postos de alto
reconhecimento social, como os da política e da administração. Longe de se constituir num
elogio à mestiçagem (e muito menos ao negro), o que estava em jogo era o enaltecimento do
elemento étnico branco, o que permitia a afirmação da tese de que o branqueamento do
mestiço seria uma solução viável para o Brasil. Por isso, ele advogava a tese de que a seleção
sexual realizada pela imigração de brancos para o Brasil “purgaria os descendentes do
mestiço de todos os traços característicos do negro. [...] é lógico supor que, no espaço de um
novo século, os mestiços terão desaparecido do Brasil, fato que coincidirá com a extinção
paralela da raça negra entre nós” (LACERDA, 1911, p. 18-9).
Esse chocante discurso que defendia a extinção dos negros, colocando-os como
avessos à civilização e próximos da selvageria, não foi, lamentavelmente, uma exceção no
final do século XIX. Ao contrário, ele pode ser lido como um emblema de uma sociedade

43
Para mais detalhes ver Skidmore (1989).
83

que, tendo escravizado os negros, preferia vê-los como uma excrescência da qual era preciso
se livrar. O futuro da nação almejada por Lacerda continha a afirmação de uma dominância
racial brasileira na América do Sul, marcada uma nova raça – a “raça latina”, “rejuvenescida”
e “depurada” do que ele considerava efeitos da raça negra (LACERDA, 1911, p. 31).
Esse entusiasmo irrestrito para com a imigração como estratégia para o
“branqueamento” racial do Brasil foi questionado por Juliano Moreira, num artigo publicado
nos ABHM, em 1925, quando ele apresentou sérias críticas à política de imigração brasileira,
ainda que não questionasse a estratégia do “branqueamento” em si mesma. Admitindo a
importância da imigração para o Brasil, Moreira criticava a ausência de fiscalização da
imigração de indivíduos mentalmente enfermos, alegando que os esforços eugênicos de
melhoramento físico e mental dos brasileiros estariam comprometidos pela entrada
indiscriminada de emigrados “indesejáveis” e, inclusive, muitas vezes recusados em outros
países. Acentuou as qualidades do controle norte-americano de suas fronteiras, ainda que
visse com exagero o excesso seletivo adotado por aquele país, para que esse exemplo servisse
de justificativa para que o Brasil se mobilizasse para impedir que o Brasil recebesse
estrangeiros portadores de perturbações mentais (congênitas ou adquiridas).
Venâncio e Facchinetti (2005), a partir da análise desse artigo, discutem a participação
do discurso psiquiátrico na produção de uma “nação brasileira”, na qual Moreira é
apresentado como uma das vozes mais importantes no debate sobre a tese do branqueamento.
A perspectiva de Moreira seria antagonizada por uma radicalização das propostas de eugenia
negativa, sob a liderança de Renato Kehl, cujas ideias discutiremos mais adiante, que entendia
que a educação não poderia modificar o “plasma germinativo” e que, portanto, não seria
possível atacá-lo, senão através de controle genético. Opõem-se aí lamarchismo e
mendelismo, como duas estratégias político-discursivas claras para lidar com o problema do
nascimento da nação brasileira.
Esse contexto é também atravessado por outra linha de força engendrada nas
descontinuidades que se operaram no saber psiquiátrico brasileiro no final do século XIX.
Trata-se do discurso da degenerescência, que fazendo avançar seu projeto de expansão de sua
capacidade de intervenção social, iria fundamentar as teses racistas, tanto do ponto de vista
étnico, quanto do ponto de vista da espécie. Uma das particularidades da difusão desse
discurso no Brasil é justamente de que ele foi dirigido simultaneamente ao negro, como
demonstra a tese do branqueamento analisados ainda há pouco. Vejamos como esse estado de
coisas se constituiu.
84

2.2 As origens europeias do discurso da degenerescência

Morel, no seu Traité de dégénérescences physiques, intellectuelles et morales de


l’espèce humaine, de 1857, que pretendia inicialmente fornecer um programa terapêutico que
incidisse sobre a prevenção e o combate da alienação mental, decide, num recuo tático,
contudo, estudar as causas das doenças nervosas. Ele se vale de seu conhecimento sobre os
asilos e os alienados para afirmar que a degenerescência era a única razão plausível na
compreensão da loucura. Atraído pela história natural para entender o que se passava no
âmbito humano, ele pretendia estender o interesse pela alienação às causas da decadência que
enxergava na sociedade como um todo. Para isso, tomou como inspiração o pensamento de
Gall anterior à frenologia propriamente dita e dele aproveitou a ideia de que os estados de
saúde e de doença entre os homens guardam relações com o que acontece com as outras
espécies animais e vegetais.
Morel alimentava a pretensão de que a psiquiatria pudesse ser integrada à medicina
geral, sendo oportuna a ideia que equiparava o homem à condição de todo e qualquer vivente,
de modo a reformular o tratamento moral pineliano. É o estudo do sistema nervoso que
possibilita esse salto. A botânica, a neurologia e a embriologia da época serviram de enquadre
para que Morel pudesse levar a cabo seu interesse em analisar a condição humana, a partir do
registro da espécie, distinguindo suas variações “naturais” e “patogênicas”. Especialmente a
anátomo-patologia comparada deu a Morel recursos para analisar os efeitos das causas de
degeneração nas diferentes espécies, forjando um sentido importante dessa noção, extraído da
observação das transformações dos tecidos submetidos a diferentes condições, que foi o da
degradação tissular como metáfora da degeneração. Essa potente imagem da degeneração será
extrapolada para o campo moral. Partindo da observação de que os tecidos se degeneravam a
partir de agentes intoxicantes nos animais, ele supõe que as “infrações à lei moral e a ausência
de cultura intelectual” (MOREL, 1857, p. 13) teriam os mesmos efeitos no homem.
O interesse de Morel migra do plano estritamente terapêutico da alienação mental para
a busca da “origem e formação das variedades mórbidas na espécie humana”. A doença
mental se diluía no interesse novo para a psiquiatria, que era o de se ocupar das causas da
degeneração. Com isso, ele escapava dos impasses que haviam sido colocados à medicina
85

mental, num momento em que a medicina havia se tornado anátomo-clínica.44 O primeiro


deles, situado no âmbito epistemológico, referia-se à impossibilidade de localizar uma lesão
anatômica que pudesse explicar a loucura. Como nos lembra Serpa-Jr. (1998), não é estranho
que Morel não tenha insistido no modelo lesional, que só desgastava a imagem da medicina
mental como pertencente à medicina geral, uma vez que à exceção de alguns quadros, como a
paralisia geral progressiva e algumas expressões da demência e da idiotia, não era possível
submeter a psicopatologia ao crivo do modelo anátomo-patológico. Ao mesmo tempo,
podemos considerar que Morel soube utilizar a seu favor o modelo lesional. A sutileza tática
de seu gesto reside em fazer uso do modelo lesional, declarar sua concordância com sua
existência e importância, mas submetendo o modelo hegemônico da clínica moderna aos
pressupostos morais que constituíam sua interpretação da ideia de degeneração, então
substrato orgânico da doença mental.
Além disso, no plano sociopolítico, a medicina mental centrada no delírio não
conseguia fornecer, suficientemente, elementos para explicar os problemas sociais emergentes
à época. Era o caso, por exemplo, do problema da criminalidade, uma vez que havia diversos
episódios de criminalidade sem que se encontrasse seu fundamento de inimputabilidade, que
era o delírio. Os psiquiatras enfrentavam, ainda, dificuldades de fazer face às críticas
destinadas ao modelo alienista de tratamento mental, centrado no modelo asilar e em métodos
considerados brutais e de baixa eficácia.
Mas, afinal, o que Morel entendia por degeneração? Sustentado no criacionismo (e,
portanto, monogenismo) da metafísica cristã, ele parte da ideia da existência de um tipo
humano primitivo, representante da síntese perfeita da Criação que, submetido a certas
condições degenerativas, geraria variações maléficas à espécie. Ele considerava que tais
desvios eram produzidos pela violação à lei (divina) segundo a qual a multiplicação dos
indivíduos deveria ter lugar exclusivamente no interior de uma mesma espécie, evitando com
isso a produção de anormalidades.

44
Em O nascimento da clínica, Foucault (2003) analisa as descontinuidades históricas que se processaram no saber médico a
partir do século XVI. A anátomo-patologia, considerada por ele como o fundamento epistemológico do que se poderia
denominar de clínica – na sua acepção moderna –, é o ponto de chegada de um longo processo histórico, no qual se passou de
uma medicina classificatória, espelhada no modelo botânico, em que o corpo do doente era apenas o campo de visualização
de uma taxonomia previamente estabelecida, para o momento em que o interesse pela espacialidade do corpo do doente
ganha centralidade. A emergência das noções de signo e probabilidade como conceitos atrelados à doença, a partir do século
XVIII, corroboram menos a tese progressista dos teóricos da medicina de que a evolução de teorias e métodos justificava a
transformação do modelo classificatório para o modelo clínico, do que uma mudança ao nível do interesse pelo corpo: antes
ponto de aparição de uma taxonomia, dois séculos depois, instância na qual signo, sintoma e doença se indiferenciam na
superfície tissular, através da especificidade da lesão. A doença permanece ontologizada, mas o corpo doente está
intrinsecamente vinculado à doença. Com isso, Foucault denuncia a pretensão a-teórica do discurso médico moderno,
demonstrando como as relações que presidiam a formação dos conceitos instituíam o campo de possibilidades do que podia
ser dito sobre a doença.
86

Seu pensamento se valia de noções como pureza e progresso da espécie humana para a
defesa de que os cruzamentos miscigenantes levariam à degeneração, não havendo aí
qualquer vestígio de uma interpretação darwinista da noção de “espécie humana”. Ele se vale
da defesa bichatiana da fragilidade da vida em face dos fatores de destruição, para afirmar que
a especificidade de seu pensamento não residia na procura de causas degenerantes, mas na sua
filiação com o sistema de pensamento que vê nessas causas a discordância, que ele entendia
como fundamental, entre as instituições sociais e a natureza. Há um antagonismo fundante,
mas ele seria criado pelo homem na medida em que este contraria a natureza, sendo que,
somente a partir daí, as doenças e mazelas físicas se tornariam inteligíveis. Esse estado de
degenerescência seria condicionado, no entanto, por uma causa ancestral que é a degradação
na natureza humana, ameaça à finalidade última que seria manter-se fiel à perfeição de sua
própria origem. Ele recupera a ideia bíblica da “queda original”, a fim de mostrar que a partir
de então, o homem passou a deixar, como legado hereditário para seus descendentes, os
desvios. Sua ênfase recai, portanto, nos cruzamentos.
Ele pensava haver uma matriz racial perfeita, degenerada pelas uniões sexuais não
controladas. O exemplar de sua teoria era o louco: com seu delírio, com sua marcha, com a
forma de seu crânio, tudo no louco era indício de uma variação na espécie humana que havia
degenerado. É daí que Morel extrai a noção de “estigmas degenerativos”. Ele fortalecia as
vozes que, no século XVIII, estavam escandalizadas com o aumento de casos de alienação,
mas também de epilepsia, histeria e hipocondria. Com perplexidade, ele constatou que essas
últimas, consideradas como doenças dos ricos, se difundiam entre operários e camponeses. Os
idiotas são acrescidos à lista, como protótipos de uma degenerescência que emerge desde a
vida fetal. O suicídio, a criminalidade e a mestiçagem também figuravam como aparições
sociais da degenerescência, que deixavam entrever que a hereditariedade em jogo tem um
sentido fortemente colonizado pela preocupação moral.
A hereditariedade é um tema já presente na medicina mental francesa no final do
século XVIII, figurando no alienismo (pineliano e esquiroliano) como causa da loucura
(SERPA-JUNIOR, 1998; BERCHERIE, 1989), mas ela ocupava lugar periférico no quadro de
preocupações. Foi a partir das descobertas sobre as lesões cerebrais que ocasionavam a
paralisia progressiva geral que, no campo psiquiátrico, se acirrou a disputa entre o
organicismo e seus oponentes, na tentativa de estabelecer o estatuto da loucura (CHIFFON,
2003). Morel recoloca a pergunta não mais nessas bases, mas no sentido de indagar por suas
causas e mecanismos de desenvolvimento, abrindo uma nova possibilidade de pensar a
loucura a partir de sua mecânica que, no entanto, não estava reduzida a um fisicalismo
87

extremado; pelo contrário, a teoria moreliana fazia uso do dialeto organicista como estratégia
de suporte para uma visão da condição humana arraigada na metafísica.
A transmissão hereditária ganha centralidade, não apenas como causa específica da
alienação mental, mas sobretudo como mediadora das degenerescências. A hereditariedade
seria um dos traços fundamentais das degenerescências, que intensificaria a cada geração a
extensão do mal, até que, por excesso, a natureza se encarregaria de conter o mal pela
esterilização desses indivíduos. A hereditariedade também aparece, na classificação
moreliana, como um subgrupo das causas de degeneração no qual certas disposições, não
apenas a doença, seriam transmitidas e se manifestariam como degeneração. Mas Morel não
defendia a hereditariedade como um desígnio exclusivo da natureza; antes, sua teoria se
encontra ancorada na premissa de que o problema se encontrava justamente na “degradação
moral”, que acabava por ocasionar a transmissão de certos traços patogênicos à descendência.
Embora ele utilize a ideia de que certos fatores degradantes o são para os seres vivos –
o clima, a alimentação e a domesticação –, ele sublinha outros tantos que são produzidos pelo
homem, questionando a definição de homem da história natural que a restringe à sua condição
animal. Em suma, sua tese é de que o homem é um ser degradado por sua própria
responsabilidade; foi transgredindo a lei moral que a degenerescência se impôs. Aí ele diverge
do raciocínio dos naturalistas, conservando, no entanto, os elementos desses que permitem
ratificar a existência da degeneração.
É de Buffon, naturalista francês, que Morel vai extrair sua concepção das “raças
degeneradas”, os desvios patogênicos do tronco comum de onde provêm todas as raças. Mas é
interessante que Morel, apesar de acreditar na existência de raças inferiores e superiores,
admitindo o europeu branco como o mais próximo da perfeição, não faz equivaler
inferioridade racial e degenerescência. Prova disso é que Morel defendia a ideia de
desigualdade das raças, mas, como monogenista, acreditava que as raças inferiores chegariam
ao estado de perfeição – para tanto, baseava-se na crença de uma unidade anímica no homem.
Ele tenta distinguir, então, sua definição de degenerescência – qual seja, “desvio
doentio do tipo primitivo ou normal da humanidade” (MOREL, 1857, p. 15) – da dos
naturalistas, que tratarão esse termo, a exemplo de Buffon, como resultado do clima, da
alimentação e da “domesticação”, sem ver aí qualquer particularidade dos homens em relação
aos outros seres vivos. Morel se serve, por exemplo, das investigações dos naturalistas acerca
das modificações operadas nos animais a partir da mudança de ambiente, na qual o interesse
pelo clima é central, menos para ratificar que essas mudanças ocorrem, mas para distingui-las
das variações degeneradas que compõem sua tese. Não se trata, portanto, na tese da
88

degenerescência moreliana, de toda e qualquer variação; antes, a degenerescência está


vinculada à capacidade do homem de intervir na natureza, o que nos permite afirmar que tal
conceito é sobretudo moral.
Na contracorrente do pensamento de sua época, pensava que não apenas o similar se
transmitia, mas também as diferenciações. Nesse sentido, o meio não era um antagonista da
hereditariedade, mas uma condição que podia favorecer ou inibir certas tendências
hereditárias. Ele defendia a ideia de que traços adquiridos podiam ser transmitidos à
descendência, como também de que a transmissão hereditária se agravava a cada geração, já
que ele pensava que isso produziria desvios cada vez maiores do tipo primitivo por ele
idealizado, até que a natureza acabasse por esterilizar o degenerado; ele não acreditava, pois,
na extinção da raça.
As causas das transformações degenerativas estariam distribuídas em seis grupos. O
primeiro deles seria o das degenerescências por intoxicação, na qual o homem seria uma
vítima da insalubridade do meio (como era o caso das fábricas e moradias insalubres), mas
haveria também certas circunstâncias que, ainda que consideradas intoxicantes, seriam
geradas pela “depravação do senso moral, pela violação das leis de higiene e de certos
princípios de educação”, como o que ocorre no alcoolismo e no uso voluntário de outras
substâncias intoxicantes. Com isso, ele quer sublinhar o aspecto volitivo do que poderia ser
considerado como degenerescência. O segundo grupo de causas é relativo às
degenerescências resultantes do meio social, especificamente a exposição às indústrias, às
habitações malsãs, à miséria, às profissões insalubres, que, diferentemente das mudanças
impostas ao homem pela natureza (que geram, portanto, variações necessárias à espécie),
gerariam desvios degenerantes do tipo normal. Mas mesmo aí, Morel faz questão de enfatizar
a degradação moral relacionada a essas condições sociais: a falta de instrução, abuso de
álcool, excessos venéreos. Há ainda as degenerescências causadas por afecções mórbidas
anteriores ou temperamento patológico, que figuram como fator de adaptação do organismo a
um elemento predisponente que o constitui. Como quarto grupo, figuram as degenerescências
relativas ao “mal moral”, aparecendo no texto do autor a afirmação de que o tratamento de
que ele dá à questão não pode prescindir nem da instância física, nem da moral. O quinto
grupo é o das causas das degenerescências, o das doenças congênitas, nem sempre causadas
pela hereditariedade, mas, por vezes, transmissíveis à descendência. Finalmente, o grupo das
degenerescências de cunho hereditário, uma categoria curiosa, uma vez que a hereditariedade
está pressuposta como a base de toda e qualquer forma de degenerescência, mas que, como
vimos, parece justificada pela ideia implícita de uma estratificação etiológica que busca
89

abarcar o que seria adquirido (e só depois, potencialmente adquirido) do que já seria uma
manifestação do efeito degenerante do que havia sido transmitido por herança.
Na primeira metade do século XIX, a hereditariedade era considerada como uma das
causas da loucura, mas, além de ela não ocupar lugar central no modelo alienista, não havia
ainda qualquer referência à ideia de degeneração ou degenerescência (SERPA-JUNIOR,
1998). É a partir da segunda metade do século XIX que, motivados não mais pelo problema
da alienação mental, mas pela situação de “decadência física e moral”, que marca a difusão de
pragas, do aumento da criminalidade, da precarização das condições de vida e higiene, que a
medicina mental começa a engendrar um novo conceito que pudesse traduzir os impasses
políticos e morais daquele contexto.
A teoria da degenerescência de Morel estava subsidiada por uma visão fixista da
espécie, razão pela qual ele afirmava que os degenerados acabariam por entrar em extinção.
Além disso, Morel não concebia que a supremacia do homem face aos outros seres pudesse
ser modificada. Essas marcas só podem ser entendidas quando inscritas no quadro do
criacionismo que constituía seu pensamento. Reunidos, esses aspectos põem a teoria da
degenerescência em rota de colisão com o darwinismo, marcado pela ideia de
descontinuidade entre as espécies, dadas pela seleção natural, sem qualquer referência a uma
predeterminação divina. Além disso, coerente com sua leitura criacionista e favorecido pela
atmosfera intelectual de sua época, Morel defendia a ideia de progresso, o que contrasta com
a noção de acaso presente nas transformações das espécies na teoria darwinista (SERPA-
JUNIOR, 1998).
É apenas a partir da leitura que Magnan fará da teoria da degenerescência de Morel,
quando o darwinismo já havia se difundido na França, que a noção de seleção natural,
marcadamente descontínua, é assimilada pelo ideário do progresso. Isto porque a seleção
natural será interpretada como o processo de eliminação dos inaptos em proveito da
sobrevivência dos mais aptos que, de acordo com a nova leitura proposta por Magnan, estava
condicionado ao progresso da espécie. Tal leitura será feita a partir não de Darwin, mas de
Spencer, que já havia produzido uma concepção evolucionista do psiquismo. Com Magnan, o
axioma moreliano do tipo primitivo perfeito dá lugar a uma concepção evolucionista, segundo
a qual a perfeição estaria no ponto de chegada, não no ponto de partida (SERPA-JUNIOR,
1998).
Magnan, cuja influência na apropriação brasileira do discurso da degenerescência foi
marcante, afirma no seu livro Recherches sur les centres nerveux, de 1876, que a
hereditariedade exerceria uma influência em graus diferentes na loucura hereditária, na
90

loucura intermitente e no delírio crônico. Ele faz eco a Morel, quando recupera certos
estigmas físicos e psíquicos que distinguiriam a loucura hereditária das demais. É nesse
sentido que as anomalias oculares e aderência do lóbulo da orelha figuram como sinais físicos
dos degenerados, ao passo que os descompassos intelectuais e a fragilidade do controle dos
impulsos dos instintos figurariam como seus estigmas psíquicos. Nem todo estigma
degenerativo, contudo, seria efeito da hereditariedade para Magnan.
O degenerativo se torna sinônimo do empiricamente observado como estigma, cuja
correlação com os detalhes do funcionamento do sistema nervoso é enfatizada, consolidando,
desta forma, o discurso acerca do eixo voluntário-involuntário como central para definir as
formas psíquicas degeneradas. Magnan vai remanejar a compreensão da degeneração, a partir
da noção de desequilíbrio, possibilitando com isso alargar o espectro do que se poderia
considerar degenerescência. É nesse sentido que o problema da genialidade é recuperado
como evidência de degeneração, mesmo em indivíduos cuja capacidade intelectual e artística
os colocaria acima de qualquer suspeita, sem quaisquer estigmas aparentes, pois padeceriam
de certos desequilíbrios ao nível da vontade, um descontrole do instinto que poderia ocasionar
atos extravagantes ou perigosos. Ainda de acordo com essa leitura magnaniana, nem mesmo o
indivíduo medíocre escaparia ao rótulo de degenerado, pois na regularidade da sua conduta,
alguns furos cognitivos, perceptivos e mesmo de memória indicariam uma falha de equilíbrio.
Defendendo-se da crítica de que ele teria alargado excessivamente os limites do grupo
de “degenerados hereditários”, Magnan fará uso de um sistema explicativo bem diferente de
seu antecessor: seu contra-argumento repousará no plano da ação, ou melhor, na
irresistibilidade do impulso ao ato. Nessa perspectiva, ele vai manter no mesmo grupo
manifestações patológicas que outrora estiveram em categorias nosológicas distintas. Ele
contrasta o caso de um homem bem-sucedido socialmente que aparentemente não portaria
qualquer desequilíbrio mental, mas que na intimidade familiar se sentia irresistivelmente
impelido a dizer palavras grosseiras, como que projetando impulsivamente para fora as
imagens verbais, l’image tonale, a excitação sofrida no córtex cerebral com outro que traduz o
mesmo circuito nervoso em ato violento contra um transeunte qualquer. Segundo sua
perspectiva, uma vez que uma falência da capacidade volitiva de barrar a força instintual se
apresentava nos dois casos, não haveria qualquer diferença entre eles, razão pela qual a noção
de degeneração por ele defendida – desequilíbrio/desarmonia – culminaria mesmo no
alargamento da classe de degenerados. De Morel a Magnan, vimos desaparecer o apelo
metafísico à origem da degenerescência, para emergir uma descrição da figura da loucura
91

hereditária degenerada, na qual se alargam em muito os contornos dessa patologia, adquirindo


em Morel a nosologia magnaniana.45
O que teria possibilitado essa passagem histórica, na qual a degenerescência se torna a
categoria central da medicina mental, levando-se em consideração a persistência da teoria
moreliana, ressalvado o abandono de sua visão estritamente criacionista, até a primeira
metade do século XX? Aqui, mais uma vez, Foucault (2001) nos fornece uma chave
importante de leitura. No seu curso no Collège de France, do ano letivo de 1974-1975,
intitulado Os Anormais, Foucault afirma que a insuficiência do aparelho jurídico em lidar com
certas formas de criminalidade vai se solidarizar com a necessidade da psiquiatria de ampliar
sua legitimidade social, ocasionando, com isso, uma reformulação da função e dos recursos
táticos de que se valerão os psiquiatras, a partir do século XIX. Os crimes aparentemente
imotivados vão provocar o surgimento no discurso médico de outro aparato discursivo e
institucional para lhe fazer face, uma vez que era preciso demonstrar a racionalidade do ato
criminoso, já que quem é punido é o sujeito que cometeu o crime e não o crime em si. É para
responder a essa exigência de racionalidade, lacunar nos episódios de criminalidade onde não
há delírio (problema psiquiátrico de então), nem razões intrínsecas ao próprio crime
(problemas de ordem não-psiquiátrica).
O filósofo francês especifica três mecanismos, a partir dos quais a generalização do
poder psiquiátrico se deu. O primeiro deles pode ser localizado no momento em que a
psiquiatria passa a ter função de reguladora da ordem social, a partir da atribuição de uma
função administrativa no aparelho de Estado de internar aqueles que representassem perigo
para a sociedade – com sua participação na gestão da instituição manicomial e sua
consequente participação na neutralização da desordem e do perigo, questões de higiene
social –, ela passa a valorizar no seu arcabouço conceitual dimensões que pudessem explicar
não o pensamento do doente, mas suas ações. O segundo mecanismo, a relação da família do
doente mental com a instituição asilar: com a lei de 1838, na França, o Estado não precisa
mais do consentimento da família para internar o doente; o circulo familiar restrito passará a
demandar do médico a internação menos por sua incapacidade jurídica e mais pelo perigo
para as relações intrafamiliares que ele representa, nervura do exame psiquiátrico a partir de
então. Os dois mecanismos datam do período de 1840-1850, na realidade francesa, ao passo
que o terceiro, qual seja, o de uma demanda política da psiquiatria entre 1850-1875, vai-se

45
Nela encontramos uma taxonomia, já muito distante do alienismo, em quatro grupos: (1) idiotia, imbecilidade, debilidade
mental; (2) anomalias cerebrais; (3) síndromes episódicas dos degenerados: loucura da dúvida, onomatomania, mania de
jogo, impulsões homicidas e suicidas, agorafobia, fobia de toque, entre outras; e finalmente, (4) delírios, excitação
maníaca,depressão melancólica.
92

exercer sobretudo através da solidariedade da psiquiatria com o discurso biologizante da


segunda metade do século XIX, no qual a categoria do instinto emerge como substituta do
delírio.
Com efeito, esses três mecanismos trariam uma série de consequências para o saber
psiquiátrico. Primeiro encontramos uma nova solução para o que se apresentava como
paradoxo para a psiquiatria alienista: a existência de loucura sem delírio. Abandonou-se a
ideia de “loucura parcial”, localizada em algum lugar da personalidade, sem conexão com as
demais instâncias e sua subsequente afirmação da totalidade da loucura. A interpretação para
o que é perturbado na doença mental migra da faculdade da consciência para um “jogo entre o
voluntário e o involuntário”, ou seja, para a faculdade da vontade. A segunda delas é que,
coerente com esse “afrouxamento epistemológico” da psiquiatria, haverá uma expansão do
seu domínio, pois não é mais a caça ao delírio, mas a caça de discrepâncias entre o
comportamento do indivíduo e a “regularidade administrativa”, ou para com as “obrigações
familiares” ou mesmo para com a “normatividade política e social”. Ela não estará mais
adstrita ao campo da loucura. Efeito disso é a aproximação das doenças orgânicas que
perturbam a volição, ou seja, aproximação com o campo neurológico. Emerge então o
domínio da neuropsiquiatria, que será institucionalizada um pouco mais tarde. A psiquiatria
passará a ter como objeto a “doença da desordem”, ou seja, os ínfimos desvios individuais em
relação a uma expectativa de homogeneidade social forjada no projeto (bio)político da
modernidade.
À preocupação com a anomalia subjaz o problema da herança e, posteriormente, da
degeneração. Para contornar o problema da anomalia, era preciso intervir no que era sua fonte
de produção, que era o degenerado. Foucault assinala que a psiquiatria estava passando de um
saber sobre as descontinuidades envolvidas nos episódios patológicos para a busca de um
estatuto permanente para a patologia. A hereditariedade será a fonte na qual se buscará a
inteligibilidade da anomalia – lembremos que o interesse é configurar uma espécie de
ontologia, de estabilidade essencial, para o comportamento desviante. A degeneração – a
perversão da evolução – comparece aí como a explicação maior da produção do anormal. A
psiquiatria vai então se voltar para o problema da reprodução, não apenas do ponto de vista do
erotismo, mas do controle dos casamentos, a fim de conjurar os perigos decorrentes da
degeneração.
Chiffon (2003) nos lembra que a noção de degenerescência em Morel, se por um lado
suscitava o risco de que a especificidade da medicina mental se perdesse em meio às
preocupações da higiene, dada a polissemia que tal noção implicava, por outro, ela era
93

altamente conveniente à pretensão de ancorar o fenômeno psicopatológico num substrato


orgânico. Com Magnan, a degenerescência se desvencilha do apelo metafísico que lhe fazia a
versão moreliana do termo, para ancorá-lo numa perspectiva evolucionista. A partir desse
lastro, Magnan introduz o termo “desarmonia”, central em sua definição, para afirmar que vai
além dos estigmas físicos que tipificavam o degenerado; havia estigmas psíquicos, nem
sempre evidentes (como no caso da idiotia). A definição de Magnan está absolutamente
ancorada nas alterações do sistema nervoso central, compreendida como um sistema
estratificado, cuja cartografia regionaliza funções cerebrais em correspondência com
instâncias psíquicas precisas.
É nas conexões entre as diferentes regiões cerebrais que Magnan situa o
funcionamento desequilibrado dos degenerados. Ele restringe seu interesse pela
degenerescência aos doentes mentais, subsistindo em sua nosologia certa ambiguidade no que
dizia respeito à tentativa de distinguir o degenerado dos demais doentes mentais. Mas, em
todo caso, a hereditariedade permanece como central na sua teoria, tal como o foi também
para Morel. Seu território de referência é a clínica da medicina mental, que, naquele
momento, construía uma interface importante com o campo jurídico, tendo ele a pretensão de
circunscrever os indivíduos inaptos ao convívio social e de lhes imputar o nível de
responsabilidade social por seus atos. Solidariedade, portanto, entre a psiquiatria e o campo
jurídico, a fim de conjugar os indivíduos perigosos à sociedade.

2.3 Degeneração, mestiçagem e hipersexualidade

O solo em que o discurso da degenerescência no Brasil será fertilizado é aquele no


qual os dilemas acerca dos rumos da nação brasileira, a partir do último quartel do século
XIX, centrados na tensão entre a necessidade de compatibilizar o projeto liberal de sociedade
com a demanda de manutenção das disparidades sociais construídas nos séculos de regime
escravocrata, haviam sido equacionados discursivamente a partir da noção de “raça”. A
assimilação das teorias racistas pela elite intelectual do país naquela época, amparadas
sobretudo pelo spencerismo, estavam gerando as condições políticas para naturalizar as
diferenças étnicas constitutivas da composição da população brasileira.
A proliferação de discursos que fabricariam então o “degenerado” se inseria nesse
contexto, fornecendo subsídios que pudessem por outras vias legitimar a “inferioridade racial”
94

do mestiço, como explicitaremos a partir da contribuição de Nina Rodrigues ao debate que


acabava por articular a degeneração à mestiçagem. Nesse sentido, os discursos médico-legal e
psiquiátrico ofereceram o lastro científico para o “racismo étnico”, que marcou a produção do
conhecimento da passagem do século XIX para o século XX. Mas a utilização do artefato
teórico da degenerescência por esses saberes, ainda que essencialmente racista, não se
restringiram à sua feição estritamente étnica. Como procuraremos mostrar, a psiquiatria,
sobretudo, vai forjar figurações múltiplas com o mesmo artefato, a fim de ampliar seus
domínios de atuação ao tempo em que inflacionava seu poder de intervenção social. Entre a
segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX, o objeto e o domínio desse
saber sofreriam remodelagens importantes para atender a esse novo conjunto de interesses.
Até então a medicina mental brasileira, inspirada no modelo alienista francês, havia
lutado pela criação dos asilos46 e pelo status de especialização médica. Mas antes mesmo da
fundação da psiquiatria no Brasil, que teve como marco o decreto do Imperador determinando
a criação do D. Pedro II, em 1841, já se esboçava uma demanda, no seio da medicina social,
de ordenamento da loucura do cotidiano citadino, já que ela tornava presente um sentimento
de perigo social. Precisamente, desde a década de 1830, nas reuniões da Sociedade de
Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, produziam-se as primeiras manobras de
reordenamento da ordem social, constituindo-se uma agenda de construção da
institucionalização da lógica asilar. A medicina mental já aparecia, ainda que diluída nas

46
Vejamos um fragmento dos documentos de criação do Asylo São João de Deus, segundo hospício brasileiro, criado em
Salvador, em 1874: “Ah! Em poucos e hediondos cubículos situados no pavimento térreo e ao longo do becco que separa o
edifício da Misericórdia do extincto Recolhimento, quase sem luz, nem ar, erão esses infelises confinados e votados à
indifferença ao esquecimento, à morte, e muitas veses (o que punge mais o coração) as escárnio dos transeuntes! Removido o
antigo, digo o Hospital de São Cristóvão para o antigo Colégio dos Jesuítas em 1833, é força confessar que muito ganharão
os doentes. Casa mais vasta, ar mais livre, lús mais viva, trouxerão também cuidados mais assíduos, tratamento mais
confortável, um regimen melhor: isto para os doentes em geral. Mas para os loucos? Com pesar nós os disemos, ficarão
n’esta casa tão mal como na antiga. Em quartos térreos, humidos, abafados, e pouquíssimos crão encerrados esses infelises,
sem nenhuma occupação que as distrahisse, sem nehma diversão que os contentasse. Era isto impraticável pela deficiência
[...] dos commodos, que se poderão destinar aos loucos, e pela deficiência que se poderão destinar aos loucos, e pela
inconvimencia e perigo de misturadas com os outros doentes. As veses 2 e 3 se reunião no mesmo cubículo; e 10 cubiculos,
que tantos eram os existentes servirão para 20 ou 30 loucos. Por outro lado, os erros inveterados, as falsas ideias, em virtude
das quaes o demente, o maníaco, o furioso, os loucos de toda espécie erão geralmente confundidos e olhados com horror,
contribuirão ainda mais para a reclusão e afastamento em que se julgarão preciso conservalos. O doudo era considerado era
considerado uma espécie de animal feros, que era mister engaiolar para poder viver no meio dos homens: o terror, e não a
compaixão era o sentimento que elle inspirava; e d’ahi o emprego dos meios mais deshumanos para contelo, e, segundo se
pensava curalo. O encarceramento, a cadeira de força, os gritos, as ameaças e até a fustigação eram os meios therapêuticos
que se opunham os hospitaes de todo o mundo, e portanto, no (?) até certa época - e não remota – para curar a mais triste e
desgraçada de todas as moléstias. Felismente para a humanidade não é o mundo estacionário o tempo, o instrumento
invariavel da Providencia nas transformações da ordem physica, é também o principal agente na reformação da ordem moral.
A sciencia – mais desenvolvida e firme, a observação – mais multipicada e concorde, a religião – sempre conselheira de
piedade e de brandura, mostrarão que não erão aquelles os meios congruentes para restituir aos míseros alienados o goso das
faculdades perdidas ou momentaneamente perturbadas. Os pinel, os Esquirol, os Delesserb, os Médicos, os philantropos
deram nova direção a cura aos alienados e aos maus tratos que os exarcerbarão e peiorarão, substituirão a doçura, o exercício,
o trabalho, um ar salubre e uma certa liberdade. Salpetrière Bicètre etc., experimentarão uma verdadeira transformação neste
ponto, e novos Asylos (?), dotados e administrados por homens benfazejos, por sábios e médicos illustres, vierão desenvovler
e radicar a obra iniciada” (Fragmento do Termo de Entrega da Fazenda Boa Vista para Fundação do Asylo São João De
Deus, 1969).
95

preocupações da medicina social relativas ao saneamento dos espaços públicos e privados,


constituindo-se como “um instrumento de prevenção” (MACHADO et al., 1978, p. 380).
Inserindo-se no movimento de legitimação do saber psiquiátrico perante a medicina e
perante a sociedade, a criação do hospício representava, para a psiquiatria, o que a inserção
dos médicos nos destinos públicos da saúde representava para a medicina social.
(MACHADO et al., 1978). Mas a defesa do confinamento em uma instituição criada para este
fim, apesar de ter inaugurado institucionalmente a psiquiatria no Brasil, não havia sido
suficiente para consolidar seu domínio político. Seria também necessário consolidar-se como
especialidade médica, o que viria a acontecer quatro décadas depois, em 1881, quando
finalmente foi criada na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro a cadeira de Psiquiatria.
Ainda que temas vinculados à alienação mental já estivessem sendo abordados pelas
teses médicas desde o final da década de 1830,47 isso não configurava uma especialidade. O
que marcou esse período inicial foi a importação de teorias, numa apropriação marcada pela
ausência de nuances analíticas que refletissem, em algum nível, a originalidade das ideias
produzidas nesse contexto. Nesse sentido, reproduziam-se, por vezes de maneira
inconsistente, os dilemas já corriqueiros da racionalidade psiquiátrica: a questão do substrato
orgânico para a doença mental, as dificuldades de inserção da loucura como objeto da
medicina (MACHADO et al., 1978).
Ainda que se tratasse de uma espécie de mimetismo do alienismo francês, a circulação
de ideias psiquiátricas pelas faculdades brasileiras de medicina contribuiu para o adensamento
local desse saber. A loucura estava sendo tematizada, inscrevendo-se no âmbito das
preocupações médicas que povoavam a instituição médica. Para o que nos interessa aqui,
circunscrever de modo bastante breve algumas dessas ideias permitirá situar a passagem
histórica em que se operou uma importante descontinuidade no âmbito desse saber, cujo
impacto na regulação política da sexualidade na esfera familiar será, como veremos, notável.
No conjunto das idéias, o discurso médico sobre a loucura, repetindo os passos da
medicina mental francesa, tomava o delírio como seu objeto. Numa tese de 1858, da autoria
de Francisco Júlio de Freitas e Albuquerque (ALBUQUERQUE, 1858), encontramos a
reprodução do discurso alienista que fundamentava a loucura como uma patologia da
inteligência. Loucura fixada numa única ideia ou sentimento, não necessariamente detectável,
pois que preservaria uma consistência lógica em torno de uma ideia supostamente falsa, a
monomania não fugiria a este discurso, de modo que ela se encontraria enredada numa

47
Ver Peixoto (1837) e Figueiredo (1847).
96

constelação nosográfica construída com base do núcleo ideativo e afetivo que estaria sob
desvio: monomania erótica, monomania religiosa, monomania do casamento, monomania
triste, monomania alegre, dentre outras. A taxonomia das monomanias seria infinita, uma vez
que qualquer ideia ou sentimento poderia apresentar-se como protagonista de uma loucura,
que conferiria ao saber psiquiátrico novas possibilidades de manobras que pudessem ampliar
o espectro de fenômenos ao seu alcance.
Mas as ideias esquirolianas sobre monomanias, esquadrinhadas na tese de
Albuquerque (1858), insinuam a presença de uma loucura sem delírio. Aparece aí uma nova
codificação para a monomania: a “raciocinante”, na qual a faculdade da inteligência está
visivelmente comprometida, e a monomania “instintiva’, categoria que surge da inquietante
constatação por parte do pensamento psiquiátrico de que havia loucura sem delírio, na qual o
sujeito padeceria de um desregramento de sua vontade, sem um delírio que justificasse toda
sorte de comportamentos impulsivos – roubos, assassinatos, incêndios, etc. Essa classificação
deixa entrever que a psiquiatria passava por uma nova ruptura: migrava-se da inteligência
para a vontade,48 uma categoria muito mais elástica na sua capacidade de responder ao projeto
de regulação do espaço social. No entanto, a introdução do tema do “instinto” nas ideias
alienistas que eram reproduzidas pelos médicos brasileiros, na metade do século XIX,
figurava como uma espécie de anomalia (KUHN, 2003) à racionalidade da medicina mental
da época.
A psiquiatria vai, a partir do final do século XIX, no Brasil, constituir-se como numa
nova forma de controle social, que se encarregará de regular socialmente os indivíduos a
partir da demarcação das “fronteiras da anormalidade” (ENGEL, 1999). Através de temas
como a civilização, a raça, a sexualidade, o trabalho, o alcoolismo, a
delinquência/criminalidade, o fanatismo religioso e a contestação política, o discurso
psiquiátrico foi oferecendo novas balizas para a definição dos mais aptos ao projeto de
modernização do Brasil. A civilização/progresso servia como chave interpretativa incorporada
pelos médicos brasileiros para compreensão da loucura, mas esta ideia competia com aquela
que exaltava o triunfo da evolução da humanidade propiciada pelo progresso. O que poderia
ser entendido como uma crítica do progresso para “salvar” a sanidade mental das pessoas

48
Foucault, no seu seminário Os Anormais, de 1975, descreve essa passagem de modo bastante circunstanciado. Segundo
ele, o alienismo, essa primeira forma que tomou o campo da psicopatologia no século XVIII, centrada na ideia do delírio,
será substituída pelo discurso psiquiátrico, fundamentado na ideia de vontade. Seu substrato último será o conceito de
instinto, essa instância que, por sua plasticidade, serviu à redefinição do que seriam os objetos de intervenção desse discurso
emergente. Nem doente, nem criminoso, o anormal seria o fruto discursivo de uma dupla exceção que recobriria
simultaneamente o campo neuropsiquiátrico e o jurídico na constituição da medicina legal.
97

nada mais era do que uma tentativa de tomar as doenças nervosas como signo desse
progresso, para legitimar a oferta que a psiquiatria tinha a fazer (ENGEL, 1999).
A partir do final do século XIX, com a institucionalização da Psiquiatria no Brasil,
tomando por base de uma teoria ambientalista da degenerescência (ENGEL, 1999; PORTO-
CARRERO, 2002), a alienação mental será associada às perturbações do instinto. Mas antes
que essa teoria pudesse ser discutida e aplicada aos problemas brasileiros, certos
deslocamentos discursivos importantes foram sendo engendrados quando, por volta da década
de 1850, as teses médicas começaram a eleger a hereditariedade como tema, o que se tornou
muito frequente na produção das faculdades de medicina no período compreendido entre as
décadas de 1850 e 1880. Desta forma, termos como transmissão do ato, impulso hereditário,
impulso inato foram sendo deslocados numa série discursiva que abriu espaço para que a
“perversão da evolução” (FOUCAULT, 2001) pudesse ser finalmente debatida, o que esteve
envolto na atmosfera desencantada, mas politicamente conveniente, do fin-de-siècle à
brasileira.
Merece destaque aqui o interesse pela “herança moral”, já que em torno desse objeto
gravitou o modo pelo qual a degenerescência seria utilizada, algumas décadas depois, no
Brasil, para patologizar o que se considerava perversão do “instinto genésico”, como veremos
adiante, uma importante tática de regulação higiênica e eugênica dos casamentos. Sob
alegação de discernir entre a boa e a má herança, tratava-se também de inserir a moral como
produto da mesma, através da ideia de transmissão não do ato, mas da disposição, do impulso.
Sutileza que merece um pouco mais de atenção.
O impulso explica toda a heterogeneidade envolvida na transmissão, já que muitos
casos contrariavam o determinismo hereditário, tornando-se assim o recurso tático que
generalizava o perigo. Não bastava olhar para o que supostamente era visível na herança,
como era o caso dos temperamentos. Era necessário regular o perigo desde sempre, já que o
impulso, se por um lado, rompia com o aparente determinismo, por outro, colocava todos
como suspeitos. Mais ainda: antes que o crime fosse cometido, o indivíduo já era considerado
como criminoso,49 em função de um “impulso herdado”. Uma tese de 1857, de José Joaquim
Gonçalves, intitulada Herança, ilustra o argumento:

[...] por herança moral não se deve entender a transmissão do ato, mas sim a da
impulsão, não é a acçao que o pae ou a mãi transmite ao filho, mas a disposição para

49
Essa tese ganhará uma versão mais acabada, na voz de Franco da Rocha, 1909. Em artigo sobre as contribuições da
medicina legal para a reformulação do código penal, este médico paulistano, afirmará que é um equívoco jurídico atribuir a
pena a partir do delito cometido. Na sua proposta, o que deveria ser avaliado, na atribuição da pena, seria o perigo inerente à
condição do criminoso.
98

ella; assim quando se mostra, por exemplo que um filho é assassino como seo pai,
não é diser que esse filho fatal e necessariamente deve assassinar por ter herdado
esta qualidade, é sim que elle recebeo uma impulsão, uma inclinação, uma tendência
para o crime, tendencia que podia ser refreada pela vontade livre, mas é que esta
vontade do filho succumbe n’esse caso ao impulso hereditário, assim como a
vontade livre do pai já tinha succumbido a uma impulsão innata, ou ao gosto, ou a
paixão, ou ao interesse. A tendência, o a inclinação de origem hereditária, por ser
fortíssima não é invencivel, e como as outras informações pode ser abafada por uma
forca de vontade a toda prova (GONÇALVES, 1857, p.18).

O argumento desembocava numa manobra: o saber médico poderia oferecer-se como


tendo a capacidade de sanar este mal, a partir do controle higiênico da herança. À herança
patológica atribuíam-se, neste momento, doenças e defeitos, que se acreditava transmitir-se
mesmo quando estes haviam sido adquiridos. A herança, nesse momento, era tratada como
sendo passível de correção: a educação física e moral, amamentação e alimentação, o clima,
as localidades, profissões, cruzamento das raças, a idade dos progenitores, as causas mórbidas
ocasionais eram identificadas como fatores que podiam modificar a herança (GONÇALVES,
1857). Em especial, merece destaque sua observação monogenista de que o cruzamento das
raças não seria proveitoso à espécie humana, pois não se podiam misturar organizações tão
diferentes:

[...] O esforço que a natureza constantemente emprega para restituir as organizações


ao estado primitivo de sua raça, ou espécie, sempre que uma circumstancia as afasta
d’elle; é claro que a organização filha de um crusamento de raças será solicitada
pelas forças divididas dos dous factores que a chamam á pontos diversos, e por isso
o resultante nunca poderá igualar ás forças reunidas de ambos, que evidentemente
devem ser sommadas na organização que só é atrahida por um ponto único; por
tanto o crusamento das raças não pode aproveitar á espécie humana (GONÇALVES,
1857, p. 24).

A transmissão hereditária dos caracteres morais é problematizada, porque mesmo à


medicina tal ideia não se conformava como fato inequívoco. Não basta apenas controlar a
herança física. É preciso extinguir as monstruosidades e anomalias que tanto perturbam o
projeto de uma população saudável. A distinção entre transmissão da doença e transmissão da
predisposição da mesma potencializa a hereditariedade como fator de distinção social, uma
vez que um espectro muito maior de pessoas é capturado pela teoria reformulada da herança.
Fonte de antecipação dos problemas e, ao mesmo tempo, de distinção entre doentes e sadios,
antes mesmo que qualquer indício mórbido se apresente, a “predisposição” marca o discurso
médico sobre a herança no final do século XIX (SANTOS, 1882).
O discurso da degenerescência aparece exemplarmente na tese de Gonçalves (1891).
Tributário sobretudo da teoria de Magnan, ele parte da premissa de que as leis hereditárias são
o que organiza o campo do vivente, já que permite a repetição dos traços físicos, sentimentais
e morais dos indivíduos nos seus descendentes. Sem uma normatividade que organizasse a
99

transmissão hereditária, a vida estaria sujeita ao acaso. Essa afirmação só se torna


compreensível, a partir da reprodução, por parte deste autor, da leitura evolucionista da noção
de degenerescência formulada por Magnan, já analisada anteriormente, segundo a qual a
seleção natural se encarregaria de expurgar os tipos degenerados, vingando apenas aqueles
que pudessem, ao final, atingir a perfeição. Gonçalves remete a Magnan em vários momentos
de sua tese. São as leis da hereditariedade, portanto, que podem explicar a transmissão não
apenas dos caracteres físicos, mas também morais, tais como os sentimentos, as tendências e
ainda os instintos. Apropriando-se da teoria da evolução, a autor valoriza na herança o seu
potencial de interferência nas características da família, da nação e da raça.
A variabilidade psíquica advinda do patrimônio herdado, assunção que poderia
representar uma quebra com o determinismo da hereditariedade, é afirmada para que se
pudesse incluir o crime, a neurose, a excentricidade e o vício entre os fatores explicativos para
tal variabilidade da herança. É como se, ao descortinar um vasto campo de manifestações
possíveis da herança, pudessem alargar o espectro dos degenerados. O mecanismo explicativo
para a transmissão hereditária dos caracteres psicológicos adquiridos é explicado, a partir da
ideia de lesão no sistema nervoso. Um determinado hábito de um indivíduo deixaria
impressões no seu sistema nervoso, que pode vir a ser transmitido por herança.
Como correlato das anomalias físicas, a interpretação da psiquiatria, que agora
emergia como especialidade médica, vai enfatizar o sistema nervoso, especialmente o cérebro,
como sede dos estigmas psíquicos dos degenerados. Apoiava-se, portanto, numa base
organicista, segundo a qual a doença mental seria produzida pelo “desequilíbrio” nas funções
psíquicas distribuídas pelos centros mentais anteriores e posteriores. Prescinde-se da
localização anatômica da loucura, substituindo-a pela ideia da função, o que preservava a
centralidade da biologia na sua explicação. Portanto, é o equilíbrio funcional que está no
cerne de sua psicopatologia.
Num pequeno artigo transcrito da Medical Record pela GMB,50 em 1894, aparece uma
associação interessante entre gênio e degeneração. Discurso mais comumente afeito a dissecar
a imbecilidade e a loucura, a degeneração aparece vinculada ao espírito criativo superlativo.
O artigo, anônimo, refere dois tipos de genialidade: os gênios de ciência e os gênios de
estética. Mas apenas dos “gênios das emoções” padeceriam de sinais claros de degeneração
(epilepsia, morfinismo, alcoolismo, amnésia, suicídio) ao contrário daqueles. Inscrita numa
matriz crítica da loucura, tal conexão põe em relevo o privilégio da razão como marcador de

50
GÊNIO e degeneração (1894).
100

fronteiras entre o que degenera e o que evolui. O pantanoso terreno as emoções, mas não o da
ciência, é fortemente degenerativo, pois que esfumaça a fronteira entre a razão e a des-razão.
Sem ser louco, pois, se trata de uma anormalidade entendida como dádiva, o gênio pode
também degenerar.
A apropriação de maior alcance do discurso da degenerescência pela medicina do
século XIX, sem dúvida, ficou a cargo de Nina Rodrigues. O médico maranhense, radicado na
Bahia, adepto das ideias spencerianas e lombrosianas, é a personagem que, na época, levou
mais longe as teses racistas que qualificavam a “mestiçagem” como processo que culminaria
na degeneração de toda a população brasileira. A ambiguidade ainda presente no texto de
1890, “Os mestiços brazileiros”, brevemente comentada no início do capítulo, na qual a
aceitação da tese da inferioridade racial do negro e do mestiço convivia com certa tentativa de
relativizar tal condição, por exemplo, quando ele questiona associação indistinta entre
negritude, mestiçagem e adoecimento, vai desaparecer no texto “Mestiçagem,
Degenerescência e Crime”, publicado quase uma década depois em 1899.
Neste ínterim, Rodrigues realizou a que é considerada a primeira etnografia sobre os
negros brasileiros, publicada entre 1896-1897, na Revista Brazileira. Na versão de 1935,
prefaciada por Arthur Ramos, o título dado à primeira parte – “Theologia fetichista dos
africo-bahianos” – se distinguia da primeira versão, que era intitulada “Zoologia fetichista do
africo-bahianos”. Deixava inequívoco, neste caso, o olhar spenceriano como autor ao analisar
a questão racial no Brasil, sobre o qual incidiu a tentativa de reparação de um de seus
discípulos mais fiéis, na qual ele refuta a ideia de homogeneização não apenas da classe
mestiça no Brasil, mas também dos próprios negros.
Ainda que pautado por um raciocínio evolucionista, no qual a existência de raças
superiores e inferiores não é posta em questão, o médico-legista, psiquiatra e etnólogo tentará
evidenciar nessa etnografia as diferenças culturais entre os negros vindos de nações africanas.
Assim, distinguindo iorubanos e malês na organização social e na religiosidade, ele defende
uma visão que distribui essas diferenças em estágios civilizatórios dos negros. Os malês, por
exemplo, vindos na nação africana Haussá, eram mulçumanos, sabiam ler e escrever, tinham
alta capacidade política de resistência. Ainda que amparado pela prerrogativa da
“inferioridade” da raça negra, essa análise parecia representar um esforço de relativismo
antropológico na leitura da composição étnica brasileira, o que desaparece no seu trabalho de
1899, intitulado “Mestiçagem, Degenerescência e Crime”, um texto eivado de racismo
científico.
101

Nesse estudo, Nina Rodrigues apresenta uma pitoresca discussão acerca da


degenerescência, tendo como objeto de investigação o conjunto de “mestiços”, que
singularizavam a assim definida “influência degenerativa da mestiçagem” (p. 3). Tal
influência, aprofundada pela psicologia criminal, fora anotada pela primeira vez, segundo
Nina Rodrigues, em 1889, por Clémence Royer, num Congresso de Antropologia Criminal,
em Paris.
A prescrição do seu discurso se torna clara desde o início do artigo, onde Nina
Rodrigues estabelece, como linha de investigação, o antagonismo operado entre monogenistas
e poligenistas. Alicerçava-se, ali, uma hierarquização racial sustentada por um argumentação
circunstanciada em análises científicas assimétricas, enviesadas e de pouco crivo
comprobatório. O núcleo da investigação era saber se os mestiços conformavam “um produto
normal, socialmente viável, ou, se, ao contrário constituem raças abastardadas, inferiores,
uma descendência incapaz e degenerada” (p. 2).
Para Nina Rodrigues, partidários e contrários à mestiçagem protagonizavam o debate
científico sobre o tema na América Latina sem grandes investimentos de verificação,
problema que ele se propõe a “resolver” a partir de sua observação direta sobre uma
comunidade de mestiços. Seu estudo toma, como conjunto de investigação, a população da
cidade baiana de Serrinha, situada a cerca de 150 quilômetros do litoral. Notória por suas
condições climáticas e ambiente propício ao tratamento da tuberculose, a cidade era pouco
atingida por endemias, à exceção da malária, comum em todo o estado. Ele se ocupa de um
mapeamento detalhado de fatores ambientais que poderiam se configurar como causas
concorrentes para a associação que desejava demonstrar entre mestiçagem e degeneração,
afirmando não haver razão para supor que os casos de degeneração que analisaria deveriam
ser imputados a ela.
Descreve, em seguida, a população de Serrinha constituída por pardos (oriundos do
cruzamento de brancos, negros e amarelos), mulatos, negros (em grande número), brancos
(em minoria) e os curibocas (mestiços de negros e índios) – mais numerosos do que na
capital. São cerca de 12 mil habitantes, pobres em sua maioria, vivendo para a subsistência,
onde o consumo de álcool é alto e as práticas agrícolas são “primitivas” (p. 7). Para ele, o alto
grau de parentesco entre os indivíduos de Serrinha projetava uma espécie de grande família
no entorno dos seus moradores.
Ele se presta à entrevista e ao acompanhamento de diversos indivíduos, referindo-se a
estes enquanto sujeitos anormais, identificando uma ampla lista de problemas físicos e
mentais, cujas raízes são atribuídas ao histórico familiar. Mensurando o tamanho da condição
102

óssea dos indivíduos e realizando, eventualmente, autópsias, ele apoiava sua análise nos
depoimentos sempre caracterizados por um tom repugnante, numa tentativa de associar o arco
de desvios aos progressivos cruzamentos que delinearam a população mestiça. Apesar de
evitar a ideia de que esta comunidade (repleta de mestiços) poderia ser subsumida a um
arraial de “enfermos ou de seres anormais”, Nina Rodrigues entende que há, aí, indivíduos
“predispostos, nos quais a porcentagem da degenerescência-enfermidade pode ser bastante
elevada, o que, nesse caso, pode servir para medir o grau de predisposição” (p. 19).
A tese sugerida por Nina Rodrigues era de um arriscado juízo, prodigalizando a
compreensão de que indivíduos oriundos de cruzamentos raciais significativos (provocados
pela miscigenação entre brancos, índios, negros e seus descendentes) possuíam fortes e
“comprovados” traços de degenerescência, taras, desvios de condutas, tendências ao crime,
epilepsia, caráter violento, defeitos físicos, fealdade, indolência, doenças mentais, neurastenia,
entre outros problemas. Desacreditando os aspectos climáticos, sanitários, as doenças – como
a sífilis – e o consumo de álcool do elenco de possíveis causas para justificar esse cenário, é
na consanguinidade mestiça que ele identifica a origem de todos os “males” daquela
população.
Ele refuta a tese moreliana segundo a qual a natureza se encarregaria de levar os
degenerados à extinção, afirmando, ao contrário, a grande propensão dos negros para a
reprodução. Vem daí a ideia atribuída a ele de que o negro brasileiro e, em especial a negra,
teria como marca a hiperestesia sexual. Com isso, ele tenta justificar que era preciso deter os
efeitos degenerativos criados pelos cruzamentos mestiços, pois a natureza, ao contrário, se
encarregaria de intensificar esses efeitos. A degeneração estava, portanto, vinculada a uma
patologia do instinto sexual dos negros,51 localizada numa impossibilidade de controle dos
impulsos sexuais.

2.4 A fabricação do instinto sexual

Em 1888, Julio Ribeiro escreve A carne, romance que pode ser considerado como
primeiro eco de uma descontinuidade importante no modo como a experiência sexual será
problematizada, através do movimento naturalista brasileiro que havia surgido no início

51
A mesma dificuldade de controle dos impulsos sexuais será transposta para a sua tese de que a criminalidade era “uma
simples manifestação da degenerescência produzida pela mestiçagem” (RODRIGUES, 1899, p. 29).
103

daquela década. A carne narra a história de Lenita, uma jovem moça, filha do advogado
Lopes Matoso, que perdera a mãe ao nascer e recebera todo o estímulo paterno a uma vida
erudita, considerada inadequada para a mulher naqueles tempos. Educada como “homem”,
Lenita não sonhava com casamentos e filhos, destino “natural” das mulheres. E é o próprio
pai quem primeiro a adverte acerca do que viria a emergir como impulso irrefreável que
acabaria por colocá-la diante do casamento como uma necessidade fisiológica. Com a morte
súbita de seu pai, sua vida sofre uma reviravolta. Desamparada e com a saúde frágil, resolve
se mudar para a fazenda de um antigo tutor de seu pai, o coronel Barbosa, no interior paulista.
Essa mudança acabará despertando muitas sensações, fantasias e temores, a partir de
experiências que a colocam diante do enigma sexual e de sua feminilidade até então recusada,
posição que ela experimentava com sentimento de grande humilhação. É aí que ela conhece
Barbosa, homem por quem se apaixonará torridamente, encontro a partir do qual temas que
abordavam o rebaixamento humano diante dos imperativos da natureza, até então não
abordados pela literatura nacional, vieram à tona.
A carne foi considerada uma obra maldita, dessas que, pelo gosto dos mais moralistas,
ficaria trancafiada no inferno das bibliotecas. Na passagem do século XIX para o XX, o tom
naturalista parecia indicar que uma nova inserção do sexo na ordem do discurso estava
emergindo: ele deveria ser posto em discurso. Lenita é a personagem em torno da qual girará
um imenso barulho.52 A razão? A naturalização do sexo. Boa parte do romance explora um
debate em torno da biologia, imprimindo o tom em que a experiência sexual será tratada. Nele
a espécie humana transforma o pecado em necessidade, que emana da animalidade de suas
personagens. Figuram no romance o coito dos bichos e dos homens, igualados na impotência
diante do desejo. Apesar de o título fazer referencia à moral cristã, a crueza com que são
descritas as cenas de masturbação, felação, bigamia é implicitamente justificada pela
necessidade de descrever com realismo o caráter imbatível do instinto sexual.
O tema do instinto já se anuncia no discurso médico brasileiro na segunda metade do
século XIX, quando a psiquiatria vai se ocupar dos critérios que poderiam instituir uma nova
discussão acerca da responsabilidade penal dos criminosos, assumindo a tarefa de reformular
o modo de definição da pena: não mais pelo crime, mas pela “natureza” do criminoso. A
descontinuidade no saber psiquiátrico novecentista é justamente marcada por este artefato
conceitual: como já analisamos, o instinto é o ponto de ancoragem do discurso psiquiátrico

52
Esse romance foi o estopim para um embate virulento entre Julio Ribeiro e o padre Senna Freitas, que escreveu uma crítica
ao livro intitulada “A Carniça”, publicada à época no jornal Diário Mercantil. Para mais detalhes ver: Ribeiro, J.; Senna-
Freitas (1934). Ver também: Bulhões (2003).
104

que substituirá o alienismo (centrado na categoria do delírio), compreendido a partir de sua


vinculação ao problema da hereditariedade e da fisiologia do sistema nervoso.
Em meio aos argumentos das condenações higiênicas à masturbação, ao celibato e à
libertinagem, o instinto aparece como uma ideia difusa de força propulsora do senso genésico,
servindo para inserir, ainda no século XIX, a experiência sexual no registro da fisiologia. No
entanto, é somente no começo do século XX que a categoria do instinto sexual ganhará um
estatuto teórico, que lhe dava proeminência no discurso sexológico nascente. Era necessário
produzir um arsenal teórico que pudesse fundamentar a preocupação com a questão sexual, de
modo a legitimar o poder de verdade com o qual ele seria tratado.
Na tese de José Brandão Maurício, de 1906, intitulada Ensaio de psychologia do
instinto sexual humano,53 podemos notar um jogo tático muito interessante. O autor vai se
servir da embriologia para especificar, a partir da descrição dos mecanismos da geração da
vida, o lugar do instinto sexual do ponto de vista evolutivo. O instinto, como fator de
conservação, seria essencialmente uma força constitutiva do vivo, mas apenas os seres
sexuados possuiriam instinto sexual. Valendo-se da hierarquização spenceriana dos atributos
evolutivos, segundo a qual os interesses do indivíduo são hierarquicamente inferiores ao da
espécie, o autor tomará o problema da reprodução biológica, de modo a enfatizar que o
instinto sexual nasce com a reprodução sexuada – entendida como uma necessidade evolutiva
dos organismos vivos, pois a complexificação das células reprodutivas acabou gerando a
necessidade de especialização dos diferentes órgãos (testículos e ovários) – e que ele se
sofistica à medida que o vivo progride na escala filogenética.
O hermafroditismo será tomado como o primeiro momento da reprodução sexuada,
quando já há especialização dos órgãos, mas ainda no mesmo indivíduo. Seria a necessidade
de cruzamentos que pudessem impulsionar as variações individuais que teria ocasionado a
separação entre masculino e feminino. É aí que surgiria o instinto sexual, quando a natureza
fabricaria um mecanismo biológico que pudesse favorecer a atração dos dois sexos. O grau
máximo de evolução seria a possibilidade de coordenar a propulsão sexual com a seleção
sexual do parceiro, a partir de critérios que procurassem o enaltecimento da prole.
O autor retoma o fundamento nervoso do instinto, a partir da noção de “impulsão
instintiva”. As teorias europeias sobre localização cerebral das faculdades instintivas do
organismo já haviam sido bastante difundidas na época, e o instinto sexual, em particular, já
possuía na cartografia nervosa lugares específicos de aparição: o cerebelo era a sede do senso

53
Tese da Faculdade de Medicina da Bahia. Salvador, 1906.
105

genésico, as sensações de volúpia eram despertadas no bulbo. A degeneração sexual adviria,


então, de alterações nessas áreas específicas, argumento que submetia as doenças nervosas e
mentais à possibilidade de localização orgânica, verdadeiro triunfo para a medicina mental,
que agora tinha a chance de se aproximar do modelo lesional que marcou o nascimento da
clínica moderna. (FOUCAULT, 1963).
Mas a principal inspiração de Maurício é a teoria do instinto sexual de Roux (1899),
que admite ser o instinto sexual um acontecimento da sensibilidade que acometeria todo o
organismo, contrariando a teoria magnaniana da existência de centros sexuais no sistema
nervoso. Ele atribuía a origem dos primeiros fenômenos de ordem sexual à periferia do
sistema nervoso, contrariando a concepção neurológica de que o sistema nervoso central
funcionaria de modo espontâneo. A origem da necessidade (besoin) sexual estaria então no
sistema nervoso sensitivo. Não haveria, segundo essa perspectiva, um centro da função
sexual. Ele discute a teoria que atribuía o instinto sexual como emanação das glândulas
sexuais que, uma vez repletas de secreção, incitariam o senso genésico, contestando a
afirmação daí decorrente, de que o instinto sexual só existiria a partir da maturação
reprodutiva, que deixaria de existir em situações nas quais o funcionamento das glândulas
estivesse desativado, provisória (após o coito) ou permanentemente (infância, menopausa,
castração, doenças). Ele examina todas essas condições, a fim de afirmar que a atividade do
instinto sexual é mantida.
A necessidade sexual seria, pois, originada nas impressões – representações, imagens,
recordações – forjadas a partir do trabalho do aparelho sensorial, ao qual Roux (1899) atribui
um funcionamento associacionista, ou seja, pela repetição de conexões entre uma sensação e
o aparecimento de um correlato à necessidade sexual. O sexual passa a assumir lugar central
na compreensão do organismo e de sua relação com o meio. Ancorado no argumento da
sensorialidade, a biologização do sexo chegava ao seu ponto máximo de inflexão.
Essa compreensão do instinto sexual vai se acoplar a uma concepção evolutiva do
amor, herdeira da metafísica schopenhaueriana,54 marcada pela ideia da supremacia da
“vontade de vida”, entendida como a presença na consciência individual do impulso sexual,
nas vinculações dos indivíduos aos seus objetos amorosos. A espécie se serviria do indivíduo
para fazer com que a geração da descendência pudesse ser cada vez mais aprimorada e, com
isso, fazer valer os interesses da espécie. Esse é o princípio utilizado para explicar a

54
Schopenhauer escreveu, em 1844, o seu Metafísica do Amor, que acabou marcando profundamente muitas leituras
subsequentes acerca do amor. No Brasil, a produção médica acerca da higiene sexual do matrimônio, mas também sobre o
instinto sexual, sobretudo na primeira metade do século XX, não por acaso, esteve calcada nessa matriz de pensamento, que
oferecia subsídios discursivos convenientes à defesa da saúde da espécie.
106

vinculação sexual entre os sexos, cuja tarefa evolutiva se faria a partir de uma seleção sexual.
Os ícones que tornam alguém desejável a um outro estão vinculados ao projeto de
perfectibilidade da espécie. A atração sexual não teria outra finalidade que a geração de bons
e diversos exemplares da espécie. É justamente por isso que Schopenhauer é invocado pelos
médicos brasileiros como inspiração para justificar a legitimidade da privação da liberdade
individual em detrimento da defesa da espécie na busca do parceiro amoroso. Desta maneira,
a afirmação de que o amor conjugal deveria ser higienizado (e, algumas décadas mais tarde,
eugenizado), pois assim o quer o instinto sexual dos humanos, colocava o médico como mero
operário a serviço da ordem da natureza.
Na tese de José Geraldo Vieira, de 1919, vinculada à cadeira de medicina-legal, o
instinto sexual aparece como uma força permanente, inexorável, que governa soberana a vida
individual, a sociedade e na espécie em nome da perpetuidade. Sublimado, torna-se a base da
ética, do amor, da arte, fornecendo o lastro para a criação humana. Não controlado, será a
base para as degenerescências psíquicas. O autor nos apresenta como norma sexual a aparição
do instinto no período da puberdade e sua manutenção durante toda a vida reprodutiva, sua
função por excelência. Fora desses marcos e mesmo não se enquadrando em nenhuma
psicopatologia sexual, a atividade sexual deveria ser considerada anormal. Ele cita o erotismo
infantil e o senil como experiências sexuais fora do lugar, apartadas da finalidade do instinto,
que seria a reprodução, e as cataloga como paradoxias. Sua leitura do instinto sexual é
informada pela psicopatologia sexual, embora ele apresente também o que considera como
instinto sexual em Freud: “quantidade varia de conceitos e energias cineticas que substituem
na hora atual da sciencia o archaico conceito de incitamento vital dos metaphysicos”
(VIEIRA, 1919, p. 41), enquadrado no rótulo de “pansexualista”, que será oportunamente
discutido no capítulo 5.
Esse emaranhado de argumentos dirigido à origem do instinto sexual e ao papel da
fecundação na evolução da espécie servirá de estofo para justificar um conjunto de tensões
sociais que advém do terreno da sexualidade. Em primeiro lugar, tratava-se de naturalizar a
norma heterossexual, imprimindo-lhe a função de garantir a perpetuação da espécie e a saúde
da raça. Além disso, a intricada trama que enredava, a partir do século XIX, a noção de
instinto sexual, permitia oferecer uma explicação para os desvios sexuais como uma patologia
do instinto, indexando-lhes à inevitabilidade da seleção natural. Finalmente, com a noção de
instinto, poder-se-ia justificar a pertinência das estratégias sociais de aprimoramento da
seleção sexual, como foi feito com a deflagração do projeto eugênico. Por conseguinte,
tornava-se possível defender a sujeição dos indivíduos às técnicas de regulação política,
107

partindo da predominância que a conservação da espécie teria em relação à conservação


individual. Afirmar que tal hierarquia é constitutiva da natureza instintual inflaciona o poder
de sujeição, pois naturaliza a mecânica de poder que lhe é subjacente.
Estava arado o terreno para que o projeto de educação sexual no Brasil pudesse ser
legitimado e levado a cabo. A generalização do instinto sexual na economia física, mental,
social e da espécie já havia colonizado de tal modo o saber médico, que se tornava difícil falar
de saúde sem referência a ele. O imaginário vinculado ao “instinto sexual” estava impregnado
por sentidos como “força irrefreável”, “impulso irresistível”, pondo em relevo que se tratava,
portanto, de uma força perigosa, de difícil controle, cujos efeitos poderiam ser nefastos para a
vida dos indivíduos, mas sobretudo para a espécie.
Três décadas mais tarde, essa organização teórica vai aparecer como fundamento
institucional do projeto de educação sexual do CBES. Egas Moniz (MONIZ, 1937), num
fragmento publicado no BES, numa leitura spenceriana do instinto sexual, afirmava uma
hierarquia para os instintos, coordenada pelo aparecimento consecutivo da necessidade de
conservação individual, da espécie e social. O instinto sexual se desenvolveria após os da
conservação individual, vinculando-se à conservação das espécies, pela sua ligação com o
instinto de reprodução e aos instintos sociais, pela influência que estes teriam naqueles. Ao
percurso do desenvolvimento humano, em cada fase haveria a predominância de uma
modalidade instintual. Num artigo de 1935, José de Albuquerque se utiliza de uma metáfora
que faz equivaler o instinto sexual a uma locomotiva (ALBUQUERQUE, n. 1, p. 1, 1935),
estilo que será bastante empregado no BES:

Pretender impor ao instincto sexual, prescripções que contrariam suas naturaes


manifestações, é tão improfícua tarefa, quanto assentar trilho de bitola estreita, para
sobre elles fazer transitar uma locomotiva de bitola larga.
A sexualidade é como o trem de ferro, e a educação sexual como os trilhos, que se
colocam nas estradas, para sobre elles aquelles deslizar. Assim como ninguém
praticaria o desatino de fazer uma locomotiva transitar em uma estrada sem operar o
trabalho prévio dos trilhos, assim também ninguém deve permitir que sua
locomotiva que é a sexualidade se ponha em movimento num terreno pedregoso,
irregular e cheio de precipícios, como é a vida, sem previamente haver estendido os
trilhos que lhe permitam deslisar suave. [...] em consequência da queda de uma
locomotiva, [...] tudo e todos por ella atingidos seriam destroçados. Assim também a
sexualidade que não houvesse sido devidamente controlada, além dos danos que
fatalmente causariam ao organismo, se refletiriam também no organismo do outro
sexo e no organismo social, onde as influencias mórbidas de sua sexualidade se
fariam sentir sob differentes aspectos, podendo chegar as raias da criminalidade
(ALBUQUERQUE, p. 6, 1934).

Tornando o sexo uma função biológica e recusando-se a inscrevê-lo no âmbito dos


jogos de prazeres, viabilizava-se uma moral sexual que pudesse converter a “fera
desenfreada” numa função regulada pelas leis biológicas. Nesse sentido, as regras sociais, se
108

contrariassem essa norma biológica, poderiam sofrer os efeitos intempestivos de sua reação.
O instinto sexual havia sido personificado – era a própria encarnação do mal –, portando ele
mesmo sentidos que apenas a medicina poderia decifrar: “respeitem-se as leis biológicas que
regem a sexualidade e então em vez do rugir da fera enraivecida, se ouvirá na plenitude de sua
serenidade, pacífica e amena, a voz do sexo!” (ALBUQUERQUE, n. 3, p. 6, 1934). A oferta
médica estava apresentada, mas havia um laborioso esforço de convencimento social que, por
vezes, necessitou de manobras hábeis para converter inimigos em aliados, como será
discutido no próximo capítulo.

2.5 O excesso sexual masculino e a preocupação higiênica com a mulher na instituição


matrimonial

A regulação médica do erotismo no final do século XIX gravitava em torno da família.


No interior da vida conjugal, certos jogos sexuais eram tidos como uma ameaça, antes de
mais nada, ao laborioso trabalho de fabricação da figura da mãe abnegada ao cuidado
(higiênico, sobretudo) dos filhos. Birman (2001) nos lembra que o erotismo deveria estar
ausente na mãe novecentista, de modo que qualquer condição que ameaçasse esfumaçar essa
imagem, tornando, por exemplo, indiscerníveis os limites entre a esposa e a prostituta, deveria
ser cuidadosamente regulada. Por outro lado, ao homem era dada a possibilidade de conjugar
o erotismo com sua função reprodutiva, desde que as devidas diferenças entre um e outro
registro se espacializassem: no âmbito familiar, o marido deveria ter relações sexuais
procriativas; nas casas-de-tolerância, ele poderia dirigir, ainda que numa espécie de
clandestinidade, o excedente de erotismo que não podia (nem deveria) ser satisfeito no
casamento.
O entrelaçamento desses espaços colocaria em risco, ao confundir os lugares
estabelecidos, a configuração de família, que vinha sendo gestada para ser o repositório
afetivo capaz de zelar pela vida e pela educação da criança, grande alvo das investidas do
poder sobre a vida na modernidade. (ARIÈS, 1981; FOUCAULT, 2001; 2005a). Esse
paradoxo constitutivo da família nuclear burguesa vai produzir no Brasil um grande barulho
no final do século XIX, tanto no que dizia respeito às práticas sexuais na intimidade conjugal,
quanto à preocupação com os efeitos degenerativos da sífilis e sua consequente ameaça que
109

representavam ao projeto biopolítico nacional, o que levou os médicos a um tenso debate


sanitário e moralista acerca da prostituição.
Tomemos inicialmente as práticas sexuais no âmbito conjugal. Na tese de Alexandre
Camillo, de 1886, intitulada O onanismo na mulher: sua influência sobre o físico e o moral,
encontramos uma análise das particularidades na prática da masturbação quando realizadas
pelas mulheres. Repetindo os passos da matriz francesa, o recurso à análise pela via do
sistema nervoso é a chave de acesso para o onanismo feminino, que procurava ressaltar um
perigo suplementar para a prática da masturbação. Reafirmava-se que tal prática lhes abalava
os centros nervosos, produzindo doenças nervosas que traziam esgotamento do indivíduo, o
que, no caso das mulheres, era ainda mais grave, uma vez que sua constituição lhes dava
maior predisposição à ocorrência das doenças nervosas, sobretudo para epilepsia e histeria.
Camillo pôs em discussão a definição do que seria a masturbação. Para ele, esta
incluiria toda e qualquer prática sexual que produzisse “sensações idênticas ao coito” mas que
dela fosse divergente pela ausência de fecundação. Nesse sentido, mesmo a cópula sem
ejaculação seria considerada prática masturbatória e, portanto, uma forma de expressão sexual
contra a natureza. O onanismo não estaria, portanto, reduzido a um vício solitário, o que terá
impacto especialmente em relação à mulher, pois – essa é a sua tese – seu “vício” seria
adquirido a partir da instituição matrimonial, mesmo assumindo em relação a essa diferentes
destinos.
O jovem médico insiste em descrever minuciosamente o que seriam os jogos eróticos
envolvidos na masturbação, tomando como prática contra a natureza todo e qualquer contato
entre corpos, ou parte destes que contrariem a cópula fecundante: “homens há que provocão o
spasmo friccionando o penis nas mamas, virilhas, axilas da mulher, etc. actuando do mesmo
modo que a mão e entretanto não deixa de haver masturbação ou onanismo” (CAMILLO,
1886, p. 5). O prazer seria uma experiência que só teria legitimidade quando circunscrita à
suposta outorga procriativa da natureza. Nesse sentido, a prática sexual dos casais deveria ser
o menos permeado de desvios possível até a ejaculação, a fim de não perverter a função
sexual.
Apesar da rigorosa prescrição do itinerário a ser cumprido nas relações sexuais,
insinua-se, no final do século XIX, como é o caso desta tese, uma valorização do prazer pelo
discurso médico como peça-chave na manutenção dos laços conjugais. Nesse sentido, a
impotência, a frieza sexual do marido, a incompatibilidade anatômica, a longa privação
sexual, a fealdade ou enfermidades físicas seriam fatores que comporiam o núcleo de causas
que, privando a mulher do prazer sexual, a impeliriam para o onanismo. No entanto, não
110

estamos diante de um elogio ao prazer sexual da mulher; estamos diante de uma captura das
práticas sexuais conjugais pelo discurso da higiene sexual que apenas se insinuava nesse
terreno.
Um novo plano de análise, então ausente, se institui na tese de Camillo. A defesa de
uma ampliação da noção de masturbação – não mais definida pelo autoerotismo, mas pela
ausência de fecundação – tem uma consequência importante: potencializar os perigos da
masturbação, demonstrando, no escrutínio de suas formas, como ela corrompe física e
moralmente a instituição familiar. Além disso, insinua o que vai se configurar no discurso
psicopatológico como perversão sexual, já que aponta para a especificação de práticas sexuais
que se desviam, ainda que minimamente, da estrita prática sexual procriativa. O onanismo
será não apenas vício vergonhoso de alguns infelizes, mas também prática no âmbito da vida
conjugal, dentre outras coisas. Recusando a ideia de um vício solitário, a medicina passará
também a intervir no âmbito dos jogos de prazer no interior dos casamentos. A análise dessa
tese põe em evidência que o que se colocava como desafio para a higienização da família era
a regulação do excesso que era a marca da vida sexual dos homens, que não deveria (nem
poderia) ser saciado no interior da instituição matrimonial, sob pena de corromper
moralmente a mulher, pela incitação de prazeres considerados “perversos”, e desviá-la de seu
“destino” procriativo.
No caso das mulheres, em especial (CAMILLO, 1885), além das medidas citadas
acima, prescreviam-se infibulação, clitorectomia, nevrotomia ischio-clitoridiana, aderência
dos grandes lábios. Essa terapêutica indicada na tese brasileira tem suas origens na casuística
francesa novecentista de inspiração tissotiana,55 que fazia desfilar uma espantosa parafernália
para combater o onanismo. Sob o argumento de que as medidas eram essencialmente técnicas,
a medicina fez experimentações que mais se aproximavam de práticas de tortura do que de
meios para curar.

55
Um importante debate que teve lugar numa sessão da Société de Chirurgie de Paris ilustra bem como os médicos franceses
pensavam a terapêutica para o onanismo no século XIX, herdada, em grande medida, de Tissot. Um caso de uma cirurgia de
infibulação em uma menina de apenas cinco anos é apresentado por Broca, o eminente neurologista francês, que fora
diagnosticada por ele como ninfomaníaca e que havia sido tratada, sem êxito, pelos meios tidos como corriqueiros –
vigilância constante, uso de cinto de castidade etc. Essa mesma garotinha havia sido examinada pelo dr. Moreau, colega do
Dr. Broca no hospital Salpêtrière, que recomendou amputação do clitóris. Alegando que tal procedimento causaria um dano
irreversível na “voluptuosidade” da paciente e admitindo ser um procedimento excessivo para uma criança de tão pouca
idade, o Dr. Broca decide, então, costurar-lhe os grandes lábios, deixando apenas um pequeno orifício para eliminação de
urina e, mais tarde, do fluxo menstrual, procedimento cirúrgico que ele avaliou como tendo ótimo resultado em termos
anatômicos e considerando que se tratava de uma medida paliativa que tinha como vantagem a não extinção da volúpia “da
paciente, atributo que era entendido como favorável à procriação”. Fora, então, interpelado por seus colegas a partir de uma
diversidade de opiniões: desde a ausência de eficácia do método, pois a menina continuaria a me masturbar pelo orifício que
fora deixado, até a concepção moreliana de que não havia cura para o onanismo. Sugestões também não faltaram:
cauterização, técnica que havia sido aplicada num menino e que consistia em cauterizações regulares do canal uretral, a fim
de tornar o lugar tão doloroso que impedisse toda e qualquer tentativa de automanipulação (cf. STENGERS; VAN NECK,
1998).
111

Camillo também defendia que a masturbação poderia ser transmitida aos


descendentes. Mas essa transmissibilidade era ambígua, ainda não aparecendo uma referência
explícita ao modo como tal hereditariedade seria discutida: “filhos de pais lascivos
succumbem mais facilmente ás tentações da volupia do que os outros” (CAMILLO, 1886, p.
23). Nesse período, o tema da hereditariedade e suas ramificações discursivas já estava sendo
discutido pela elite intelectual brasileira, ocasionando uma intensificação no tratamento que o
saber médico dará à questão sexual. O que se esboça nessa tese é que o substrato da
masturbação é uma perversão do “instinto genésico”. Sua multiplicidade de manifestações é,
antes, efeito da força desse instinto, uma noção ainda vaga na apropriação local, cujo estatuto
conceitual virá nas duas primeiras décadas do século XX.
A intervenção política do saber médico nos casamentos tomara para si a tarefa de
proteger a mulher na instituição matrimonial, uma vez que sua vulnerabilidade punha em
risco o “útero da raça”, para usar as palavras de Dorlin (2006). A sífilis foi o advento de saúde
pública que se constituiu num dos mais importantes vetores de difusão da preocupação
higiênica com a mulher na instituição matrimonial. Através dela, problematizou-se o lugar
social da prostituição, cuja legitimidade controversa estava colocada pela capacidade de
acomodar a ambiguidade que constituía o casamento monogâmico. Além disso, a sífilis serviu
para justificar a intromissão do Estado na regulação da intimidade matrimonial, pois a
despeito de a liberdade individual ser uma prerrogativa do modelo de sociedade adotado, a
saúde da população estava acima dela.
Uma luta antivenérea começa a montar suas táticas, que subsidiariam, junto com
outras intervenções, o projeto eugênico que não tardaria a aparecer. Do amplo conjunto de
questões suscitadas pela organização programática de combate à sífilis,56 interessa-nos
analisar como a instituição matrimonial, na sua função biopolítica, foi interpelada pelo debate
sobre a sífilis realizado através do tema da prostituição. É Juliano Moreira quem protagoniza
o início de uma verdadeira campanha de visibilidade daquela infecção. Na sua tese, de 1891,
intitulada Etiologia da Syphilis Maligna Precoce, ele visava a fornecer um conhecimento
aprofundado da sífilis, a fim de convencer os médicos a tratar a questão a partir dos efeitos
degenerativos que ela produzia. Ele pretendia desmontar uma ideia muito presente no
imaginário brasileiro, segundo a qual a sífilis não só não tinha gravidade, como suas marcas

56
Para mais detalhes, ver Carrara (1996).
112

eram vistas como atestado de virilidade dos jovens.57


Apesar de ser uma doença relativamente frequente, era vista com certa banalidade
tanto pelos médicos, como pela sociedade, que compreendiam a sífilis como uma dermatose
comum. Não havia ainda consenso no meio médico em relação ao caráter de “malignidade”
da sífilis, o que servirá a Moreira (1891) de justificativa para a relevância do seu tema de tese,
que consiste em detalhadíssimo estudo acerca da microbiologia do agente sifilítico (com o
que se dispunha na época) e de seus meios internos e externos de cultura (no qual figuram
como agentes que intensificariam a ação da sífilis, o alcoolismo, o escorbuto, o clima, dentre
outros). Esse descaso com que a questão era tratada preocupava o jovem médico:

Pois há brazileiro que não tenha sua tara sifilítica? Ouvireis perguntarem outros. É
quanto mais os quizerdes converter, mais os entranhareis na errada convicção. É
certo também que muitas vezes como aparente e brusco contraste ao que dissemos,
ouvireis dizer, diante de genuínos casos de syphilides: isto é uma impigem, aquillo é
um dardo, isso é uma bouba (MOREIRA, 1891, p. 132-133).

Nessa tese, encontramos ainda uma oposição de Juliano Moreira ao discurso racista de
sua época, que se manifestava quanto à sua opinião em relação à atribuição de diferenças
raciais no desenvolvimento da sífilis. Valendo-se de sua experiência como médico, ele se
recusará a admitir como dado que os negros seriam acometidos das manifestações mais
graves da doença e que teriam a cura e/ou remissão dos sintomas como algo bem mais difícil
de alcançar. Moreira afirma, em contraste, que a evolução dos casos de sífilis em negros por
ele acompanhados não diferia do que verificava entre brancos. Sua explicação para a
gravidade de certos casos entre negros não vinha da “raça”, mas das condições
vulnerabilizantes dos meios de cultura – impaludismo, miséria, alcoolismo, atraso no
tratamento –, tornando a evolução da doença sempre proporcional ao estado geral do doente,
fosse ele branco ou negro. Juliano Moreira defendia como medidas de combate à difusão da
sífilis: regulamentação da prostituição, a fim de controlar os vetores de contágio; regulação

57
Essa mesma linha de argumentação reaparece em outro artigo de sua autoria, intitulado “A syphilis como factor de
degeneração”, de 1899, quando enfatizava os efeitos degenerantes da doença na descendência, na tentativa de convencimento
dos prejuízos individuais, mas sobretudo sociais da doença. Esse é o terreno fértil a partir do qual se tentava convencer dos
prejuízos individuais, mas também hereditários e sociais da doença. Através do recenseamento de manifestações da sífilis nas
famílias ao longo de algumas gerações, Moreira enfatiza os perigos sexuais através da degeneração física e intelectual das
raças. Um interessante mecanismo de visibilidade dos estigmas degenerativos da doença aparece descrito por Juliano Moreira
num relato sobre o IV Congresso de Dermatologia e Syphilografia. A apresentação de doentes, que já havia sido inaugurada
na edição londrina do mesmo evento, em 1896, se constituía num museu de peças vivas e aberrantes, que espetacularizava os
efeitos da doença, enfatizando-os na descendência dos heredo-sifiliticos: “No andar superior da Eschola Lailler
estabeleceram uma serie de quartos, em cada um dos quaes achava-se um doente, salvo em alguns onde foram collocados
paceintes affectados de lesões do rosto ou das mãos. Ao lado de cada um havia a observação summaria, relatando as phases
principaes da moléstia, modo de inicio e algumas particularidades para as quaes o apresentador desejava attrahir a atenção
dos Congressistas. Muitas vezes quem apresentava o doente conservava-se ao seu lado para fornecer aos confrades
explicações complementares. À entrada das salas destinadas ás apresentações, vimos sempre uma lista com a enumeração
succinta dos casos e dos médicos que os apresentava” (p. 345).
113

higiênica do casamento, a fim de reduzir a mortalidade infantil por sífilis, e fortalecimento da


saúde geral dos indivíduos, a fim de aumentar a resistência biológica do organismo.Com
efeito, ele promove uma relativização da relação necessária que se estabelecia entre a
degeneração e os negros, incomum para a época, apoiando-se no argumento de que, se
diferenças entre padrões de morbidade existiam entre negros e brancos, não era a raça, mas as
condições sociais que deveriam ser imputadas como causa.
No âmbito específico do casamento, uma tese da cadeira de Dermatologia e
Sifilografia, que havia sido defendida por Júlio Leite em 1893, sintetiza bem as preocupações
que a medicina vinha demonstrando em relação à transmissão da sífilis para as mulheres.
Doença atrelada à libertinagem e representada, por isso mesmo, como uma doença-punição,
passa a ser abordada a partir de outra perspectiva, qual seja, a da transmissão pelo casamento.
Nas acusações que eram feitas pelos próprios médicos quanto à responsabilidade individual
pela infecção sifilítica, as mulheres não estavam inscritas sob o signo do delito, mas, justo ao
contrário, da inocência, uma vez que haviam contraído a doença a partir do seu engajamento
nas uniões matrimoniais.
Era reconhecido que, tendo as mulheres sido preparadas ao longo da vida para o
casamento, era compreensível que elas depositassem nessa instituição confiança e sentimento
de proteção. O saber médico estava preocupado com a situação da mulher, menos por uma
empatia com a situação de rebaixamento moral e social na qual estavam enredadas, mas
porque entendiam que ela era o agente essencial na intervenção social pelo médico. Era,
então, necessário alterar aquele estado de coisas, divulgando um discurso de proteção da
mulher, ao custo de desagradar as forças sociais conservadoras, para levar adiante a
higienização das relações conjugais, para evitar a “decadência da raça e com ella, a velhice
precoce e a morte prematura” (LEITE, 1893, p. 14). Mas não se tratava, portanto, de um
discurso emancipatório acerca da condição feminina. Longe disso: o que se queria aí era
justamente que ela pudesse ser o agente principal de difusão da mentalidade higiênica, a fim
de se tornar capaz de exercer o cuidado da descendência – eram as crianças o que estava no
horizonte dos higienistas – em conformidade com as prescrições médicas e em nome do
progresso da nação.
Organismos depauperados, raças degeneradas, extinção da espécie: esses são os
efeitos postos em evidência no discurso médico sobre a sífilis, principal ponto de ancoragem
do discurso da degeneração no final do século XIX. Fatores como estado de saúde precário,
lactação prolongada, puerperismo, imapludismo, alcoolismo, desgostos, moradias insalubres,
clima e alimentação inadequada representavam fontes importantes de agravamento da doença
114

nas mulheres. Como importante decorrência do adoecimento, a autor enfatiza as complicações


na gravidez e no puerpério, como as manchas sifilíticas, dor uterina, leucorreia, eclâmpsia,
abortos. A análise minuciosa, na casuística disponível, dos traços patológicos dos filhos de
portadores de sífilis visava a demonstrar sua gravidade em termos de efeitos na descendência.
Infantilismo, crescimento tardio, resistência vital diminuída, desenvolvimento comprometido
do cérebro, atrofia dos órgãos genitais, malformações congênitas: o pequeno sifilítico seria o
próprio retrato do degenerado.
Júlio Pereira Leite emite ainda algumas prescrições no que diz respeito à casabilidade
dos sifilíticos, antecipando o debate acerca das medidas de controle eugênico do casamento.
Se, por um lado, ele não acreditava que o médico deveria interferir na compatibilidade
intelectual e moral dos noivos, competiria a ele defender os interesses sociais, impedindo que
indivíduos – sobretudo aqueles que estivessem na fase secundária, pela alta
transmissibilidade, e na fase terciária, pelos efeitos físicos e mentais que degradavam a
convivência conjugal – que pudessem transmitir a sífilis se casassem. Buscava-se evitar o
impacto sobre a descendência e o custo para o Estado de sustentar famílias que viessem a
ficar sem seu provedor. Mas o veto ao portador de sífilis não seria generalizado, pois isso
geraria o celibato de boa parte da população, contrariando a necessidade de povoamento.
Em 1895, no artigo “A culpabilidade dos sifilíticos que se casam”, Juliano Moreira
defende a necessidade de controlar o “terrível mal” no seio da família, uma vez que nela se
concentra o problema do desenvolvimento das raças e de seu novo correlativo: a população.
Valorizando como vetor de transmissão o homem (marcado pelo excesso sexual) e
condenando o pai da nubente pela negligência na inspeção da saúde reprodutiva do futuro
genro, Moreira se preocupa em elencar os perigos individuais, hereditários e sociais advindos
do contágio venéreo no casamento: (1) para a saúde da mulher (leia-se saúde reprodutiva), de
inferioridade física incontestável (embora ele valorize as virtudes e a beleza), mas que nem
por isso degenerada, que apresenta sintomas mascarados pela própria gravidez; (2) para as
complicações do aparelho reprodutivo que podem ocasionar complicações no parto
(eclampsia, dificuldades na marcha do parto etc.); (3) complicações outras: amenorrhéas,
dysmenorrhéas, metrorrhagias. Além dos danos ocasionados à mulher, havia, sobretudo, a
preocupação com a inviabilidade do produto da concepção (morte ao nascer, aborto,
prematuros) e, mais ainda, com a produção de uma prole não-saudável (com baixo-peso e
resistência; retardo no crescimento, sequelas mentais, malformações congênitas).
O problema da regulação da sexualidade no casamento é emblemático da preocupação
com a geração de uma prole saudável. Argumentando que a transmissão da sífilis no
115

casamento – como qualquer outra infração às prescrições da higiene – deveria ser punida
(matéria, portanto, da recém-criada Medicina Legal), o discurso que atravessa Moreira aqui é
centrado na ideia de degeneração. Em última instância, é a defesa da prole que o faz defender
a necessidade de proteção do Estado à mulher que, indefesa pela instituição matrimonial, deve
ser por ele protegida, já que ela é portadora da função de constituir uma população apta. A
condição de sujeito sexual ficava restrita ao homem, ainda que abordada por seus perigos; à
mulher restava a condição de um ser reduzido ao trabalho reprodutivo. Ao que parece, aí
temos um Moreira que não se distancia dos ideais de cultura da época. Não é à toa que ele
defende a punição do contágio venéreo, pois as relações sociais de sexo, fundadas em
diferenças essencialmente marcantes, não eram provavelmente vistas como passíveis de
mudança58.
Os riscos que se apresentavam à mulher pelo casamento gravitavam em torno das
vicissitudes do erotismo masculino. A prostituição era dos mecanismos sociais de escoamento
desse excesso, estando a prostituta na mediação (anti-higiênica) entre o marido, a esposa e a
descendência. No entanto, o que podia representar uma solução moral para equilibrar a
demanda de satisfação sexual dos homens com a depuração do projeto (em formação) da
família moderna, centrado fundamentalmente no cultivo do sentimento amoroso (1981),
criava vários problemas para a proteção higiênica dessa mesma família.
A prostituição, principal fonte de contágio por sífilis, foi o foco de um polêmico
debate que se arrastou por décadas no pensamento médico brasileiro.59 Desta forma, duas
grandes manobras discursivas se delineiam em torno da prostituição: o abolicionismo e o
regulamentarismo. Em linhas gerais, no primeiro caso, o comércio sexual era entendido como
um mal a ser extirpado, com o qual a sociedade não precisava mais conviver. Já no segundo
caso, a prostituição era um mal necessário, devendo ser controlada, a fim de mitigar os efeitos
negativos sobre a saúde e a moralidade públicas. Vejamos como esse embate se realizou no
pensamento médico brasileiro na passagem do século XIX para o XX.

58
Venâncio (2004), analisando a relação entre doença mental, raça e sexualidade nas teorias psiquiátricas de Juliano Moreira,
mostra como este autor alocava o problema da diferença sexual no seu pensamento. De acordo com a autora, se por um lado
é possível inscrever o pensamento de Moreira sobre raça numa perspectiva igualitária de negação da estratificação racial e de
inclusão do Brasil dentre as nações civilizadas, por outro, no que diz respeito à condição da mulher, ele, que se apoiava da
medicina da primeira metade do século XIX, acreditava que a fragilidade feminina se explicaria por sua especificidade
anatômica uterina, ainda que refutando a ideia de uma natureza degenerada constitutiva da mulher, o que imprimia na sua
leitura a preservação da diferença sexual como forma de naturalização da condição da mulher. sexualidade. Nessa
perspectiva, esclarece-nos a autora, “Juliano Moreira produzia um modo científico de projetar a organização de nossa
sociedade, pautada na igualdade racial e calcada na diferença sexual” (VENÂNCIO, 2004, p. 299-300).
59 As teses específicas sobre o efeito da prostituição na sociedade começam a aparecer por volta de 1869, mas é na passagem
do século XIX para o XX que podemos localizar o momento de maior interesse pela questão, o que pode ser explicado pelo
fato de que ali os sanitaristas começam a organização do combate à sífilis propriamente dito.
116

Na tese de José Borges, de 1900, intitulada Da Regulamentação da Prostituição,


encontramos uma declaração de oposição à tese regulamentarista quanto ao problema da
prostituição. Sendo essencialmente considerada um problema moral, a prostituição deveria ser
abordada a partir de sua origem social e não como uma esfera controlável a partir de medidas
higiênicas. Denominando a prostituição de vício, o autor a atribui ao “monstruoso e secular
connubio da luxuria e da miséria”(BORGES, 1900, p. 3). A volúpia desenfreada dos homens
seria responsável pela degradação das mulheres, uma vez que estavam reduzidas a objeto de
prazer deles. Em contrapartida, a prostituição seria uma resposta dessas mulheres a essa
exploração, fazendo com que a sociedade também fosse degradada a partir de seu gesto. É o
excesso sexual masculino, portanto, que tornaria a mulher (a esposa, mas também as amantes
e as prostitutas) vulnerável moral e fisicamente:

Considerando a mulher inferior a si, o homem a degradava pela escravidão nas


primitvas eras, e, vendo n’ella um simples instrumento de prazer, ora a entregava ao
seu hospede como se fosse um objeto qualquer de uso, ora sacrificava estupidamente
a sua honra aos deuses para alcançar as suas graças; em nossos dias submettendo-a a
uma tutela, reserva-se o direito de atacar a sua virtude em todos os reductos, de
seduzil-a por meio de todas as violências moraes, de roubar-lhe a honra e de
abandonal-a quando se tem saciado de prazeres nos seus braços. [...] Dae a cada
homem uma companheira de amor e vel-o-eis, insaciável, perverso, covarde,
procurar outras mulheres que abandonará logo que seja preciso assumir qualquer
responsabilidade (BORGES, 1900, p. 4).

A permissividade com que se lidava socialmente com tal excesso fazia com que a
mulher, que vivia sob respaldo social, acabasse desonrada e, como tal, sem recursos materiais
e sociais outros, predisposta à prostituição. Comércio sexual e concubinatos sucessivos
estariam intimamente ligados nesse argumento, já que, após o crime de sedução, a
depreciação da mulher era tida como um fato nas uniões subsequentes. Borges (1900)
endereça uma crítica à regulação dessa questão, alegando que apesar de o código penal já ter
previsto pena para crimes contra a honra das famílias, culturalmente a punição se dirigia
apenas às mulheres.
A preocupação com o aumento da criminalidade decorrente do crime de sedução
começava a ganhar relevo no discurso médico, já que ele era convocado a arbitrar sobre
diversas questões a ele relacionadas – infanticídios, crimes passionais, abortos, além da
prostituição – que figuravam na tese abolicionista como excrescência de uma mesma lógica.
Essa denúncia médica pretendia desestabilizar o poder patriarcal de usufruir, sem restrições,
do corpo da mulher, porque esse mesmo corpo deveria ser o grande responsável pelo cuidado
com a saúde da prole. A queixa é, portanto, dirigida ao aparelho jurídico que não protegia a
117

mulher (e a prole), na sua vulnerabilidade para com a cultura centrada no homem (BORGES,
1900).
A regulamentação havia sido concretizada, neste particular, em 1802, na França, como
meio de combater as doenças venéreas. Antes disso, o controle da prostituição era meramente
moral, que visava a reduzir a visibilidade social que estava presente, muitas vezes, em
escândalos nas vias públicas que as envolviam. Nessa época, o conhecimento acerca da
transmissibilidade da sífilis e do diagnóstico diferencial com outras doenças venéreas (como,
por exemplo, a blenorragia e a gonorreia) era ainda muito precário (BORGES, 1900).
Como funcionava a regulamentação? Criavam-se casas de tolerâncias, únicos espaços
que poderiam ser ocupados pelas prostitutas, a fim de que se pudesse exercer o controle
higiênico e moral de sua prática. A um só tempo, elas eram retiradas das ruas (reduzindo o
desconforto social) e tinham sua vigilância facilitada. Em seguida, passavam por um
interrogatório, a fim de se registrarem como prostitutas, recebendo uma carta, documento que
as habilitava a trabalhar com o consentimento sanitário. Com local definido e registro na
“policia dos costumes”, esperava-se combater as que atuavam na clandestinidade. Essa
vigilância se dissipava por outros espaços que fossem suspeitos de ser casas de tolerância,
como era o caso das hospedarias, pois partia-se do pressuposto de que “moças sérias” não
habitavam nesses recintos (BORGES, 1900).
A crítica de Borges a esse mecanismo regulamentarista, considerado como um
“regime de exceção” por seus detratores, residia em alguns pontos. Um deles era a questão da
eficácia da medida, já que se julgava impossível vigiar todas as prostitutas. Além disso, o
regulamentarismo não impedia que a mulher continuasse legalmente desamparada, o que,
como vimos, era a causa da prostituição para essa parcela de médicos abolicionistas.
Denunciava-se a fragilidade dos critérios policiais para identificar as prostitutas ditas “fora da
lei”: uma mulher que estivesse à noite numa calçada qualquer, não importa o que estivesse
fazendo, seria enquadrada como prostituta. Os exames a que eram submetidas as prostitutas
não eram sistemáticos o suficiente para garantir o controle da transmissão, já que elas não
eram inspecionadas em todas as consultas, fazendo com que a aparência saudável escondesse
doenças em estágio de incubação. Nesse sentido, os médicos contrários ao regulamentarismo
iriam alegar que, mesmo ao nível das medidas profiláticas, tal modelo não era eficaz, apesar
de o conhecimento médico a respeito do tema ter avançado bastante na última década
novecentista:
De que tem servido o despreso pela liberdade individual; de que tem servido tantos
abusos de autoridade; de que tem servido a degradação da mulher a ponto de impor-
se-lhe um exame das suas carnes antes de entregal-a ao mercado da luxuria, como se
118

faz aos animaes que devem ser entregues ao cutello do magarefe: de que tem servido
tudo isso, perguntamos nós, se depois de tantos annos de misérias os próprios
escriptores partidários da vigilância vêm dizer “que la syphilis derive surtout des
filles surveillées?” (BORGES, 1900, p. 78).

A reação dos adeptos do regulamentarismo a essas críticas, por sua vez, pode ser
ilustrada no trabalho de Antônio Joaquim de Sampaio, de 1912. Pressupondo que a
prostituição não poderia ser abolida, pois ela tinha uma função social importante para o
equilíbrio da família, esse autor rebatia o ataque que pesava sobre aquele regime quanto ao
desrespeito da liberdade individual, contrapondo-a à defesa da primazia da necessidade de
proteger a sociedade dos males físicos e morais. Acreditava ainda que a regulamentação da
prostituição se apresentava ineficaz pela falta de rigor na execução dos procedimentos de
controle sanitário e moral, causada sobretudo pela falta de preparo específico dos agentes
envolvidos, mas não por uma incorreção estrutural dessa proposta. É em função disso que ele
defende que essa estratégia deveria ser reformada e não banida dos mecanismos de controle
estatais.
Sampaio (1912, p. 53) chega a propor a criação de um “Instituto de Prophylaxia Moral
e Sanitária”, que deveria ser dirigido por um médico, que teria à sua disposição um corpo
médico auxiliar devidamente qualificado para atuar no que ele chamava de “serviço de moral
e prophylaxia”, cujas atribuições seriam os exames clínicos regulares e o trabalho de
educação sanitária, com ênfase na profilaxia de doenças venéreas. Além disso, a instituição
contaria ainda com um serviço de fiscalização que deveria ser executado por um núcleo da
polícia sanitária, devidamente capacitado para lidar especificamente com o controle da
prostituição. Caberia à polícia sanitária disciplinar a conduta pública das meretrizes,
prevenindo ou controlando, por exemplo, os escândalos, os trajes, o que poderia ser feito com
a ajuda da polícia comum, caso houvesse resistência por parte delas. Além disso, estariam sob
sua responsabilidade as visitas semanais às casas das prostitutas, para convencê-las a adotar as
medidas regulamentaristas, além de encaminhar aquelas que estivessem com suspeita de
infecção para avaliação por um médico da instituição que, confirmando a doença, promoveria
a hospitalização forçada da paciente, a menos que ela provasse ter condições de se tratar por
conta própria no domicílio. Todas essas informações seriam rigorosamente registradas e a
habilitação do exercício da prostituição seria monitorada pelas “cadernetas” que elas
deveriam ter sempre com elas.
119

Em 1904, Afrânio Peixoto já antecipava60 a necessidade de superação, no caso


brasileiro, do debate polarizado entre essas duas perspectivas. Valendo-se do jogo de mútuas
acusações entre abolicionistas e regulamentaristas, Peixoto (1904) tomava a saúde como valor
a partir do qual toda e qualquer moral se tornava questionável. Ele se solidarizava com a
perspectiva crítica do abolicionismo na ênfase dada à compreensão de que a prostituição tinha
causas sociais (embora a degeneração também seja uma explicação dada para as mulheres que
se prostituíam) e de que resultavam em degradação moral para a família e para a sociedade.
Também criticava a intervenção legal proposta pelo regulamentarismo, conceituando-a como
“illegal, injusta e inutil” (p. 534): era ilegal por violar a liberdade individual; injusta, por
atingir apenas as prostitutas mais pobres; e inútil, pois apenas uma pequena parcela das
prostitutas se submetia aos exames regulamentares. Sua posição visava a outra forma de
agenciamento: valorizar a defesa da saúde, escapando ao debate dos moralistas. Desta forma,
ele propunha educação para a saúde, dispensários domésticos para as doentes (que poderia
ocasionar redução dos efeitos de estigmatização que afastavam muitos indivíduos do
tratamento), de modo a instituir formas mais efetivas de prevenção e controle para os males
venéreos.
Peixoto (1904) também deslocava o foco da disseminação das doenças venéreas da
figura da prostituta para o homem. Este, por sua excitabilidade sexual excessiva, seria um
vetor ainda mais potente de contaminação venérea, por atuar em duas vias: era o cliente das
prostitutas, mas também o elo entre a prostituta, a família e as outras mulheres. Era, então,
necessário contornar o sexo perigoso, a fim de defender a mulher (leia-se a prole) da
degeneração. O foco da discordância entre abolicionistas e regulamentaristas residia na
concepção que tinham sobre a sexualidade masculina: para os primeiros, os impulsos sexuais
eram passíveis de controle tanto por mulheres quanto por homens, ao passo que para os
segundos, a sexualidade masculina era irrefreável. Concordavam apenas quanto ao vetor de
transmissão e seus receptores: “As prostitutas, como origem do mal, os homens, como seus
intermediários, e suas esposas (e filhos) como suas vítimas inocentes” (CARRARA, 1996,
p.80).

60
A partir da década de 1920, quando se consegue aglutinar em torno da luta antivenérea um corpo de médicos e
pesquisadores que se posicionavam de maneira “pragmática e conciliadora”, o debate moralista sobre a prostituição perde
força e é o controle sanitário da sífilis que passa a ser central. As estratégias preventivas adotadas seguiam essa orientação,
que pode ser evidenciada pela combinação de campanhas educativas (individual e coletiva), cuja ênfase recaía sobre os focos
de transmissão de doenças venéreas (ou seja, evitar as relações pré e extraconjugais), com a divulgação dos meios técnicos de
prevenção (pomadas e soluções desinfetantes), e com o tratamento dos doentes em dispensários e hospitais especializados,
que se propunham a oferecer tratamento ambulatorial para eles, mas também lhes exerciam certo policiamento de suas vidas
privadas (CARRARA, 1996).
120

O intenso debate sobre a regulamentação da prostituição, que perdurou do final do


século XIX até as duas primeiras décadas do século XX, consistiu numa importante manobra
de regulação biopolítica dos casamentos. Justificada pela crescente disseminação da sífilis,
um conjunto de prescrições começou a ser formulado já no final do século XIX, quando o
saber médico foi investido de grande poder de verdade a partir da difusão do discurso da
degenerescência. O que se seguirá a isso no século XX é a codificação desse repertório pelo
discurso eugênico.

2.6 Os contornos da eugenia no Brasil

Os efeitos devastadores da eugenia na “era dos extremos”, designação de Hobsbawn


(1994) para o século XX, produziu, entre vários efeitos, inquietantes questionamentos sobre
os atravessamentos políticos, estéticos e éticos no campo científico. Herdeira das descobertas
genéticas do final do século XIX e das demandas sociopolíticas de uma modernidade já
decadente, a eugenia tornou indiscernível ciência e política, já que colocou a vida como motor
das tecnologias de poder. (FOUCAULT, 2001, 2005a). Potente nos seus argumentos, visível
na sua capacidade de arregimentação de diferentes forças sociais para sua execução, e
sedutora na sua estética, pela promessa de consecução de ideais de beleza e plenitude, a
eugenia foi a estratégia biopolítica por excelência do século XX (AGAMBEN, 1995, 2002).
O problema dos genocídios que ocorreram entre os séculos XIX e XX foi analisado
por Foucault (2005b), em A Defesa da Sociedade, como uma efetivação da tecnologia de
poder a que ele denominou de biopolítica. Sob a insígnia de racismo, o exercício de
regulamentação da vida do projeto biopolítico produzia sua consistência no argumento de
matar em nome da vida. O racismo é esta estratificação dos povos de acordo com o valor da
vida que pode ser conferido a cada grupo, o que torna sua existência possível somente no
projeto biopolítico. E aí é necessário nuançar o que Foucault quer dizer com racismo. Não se
trata nem do ódio de diferentes raças, nem tampouco de uma ideologia de Estado que
pretende impor a dominação pela subordinação ao quadro de referência dos dominantes, mas
a forma pela qual a tecnologia do biopoder pode funcionar: “fazer viver e deixar morrer”,
cuidar da vida das populações, mesmo que para isso seja necessário matar.
Ele analisa o nazismo como o reflexo de uma conjugação do poder soberano com a
biopolítica, o que deixa entrever uma constatação de que o nazismo expressa a lógica
121

biopolítica por excelência. As teses racistas, inspiradas na mentalidade evolucionista do


século XIX, forneciam a razão de ser da matança mundial, pois não há como valorizar a vida,
controlar estatisticamente suas manifestações sem expor os indivíduos e as populações à
morte. Exposição à morte assume aqui diferentes sentidos, que não se reduzem a tirar a vida,
mas também comporta o sentido de que generalizar o risco de morte, protelar a vida,
apregoou a ameaça apocalíptica de fim da espécie.
Solidifica-se para Foucault uma relação de solidariedade entre o poder soberano, que
não mais pode ser exercido de modo direto, ou seja, pelo “fazer morrer ou deixar viver”, já
que se interpôs historicamente outra estratégia, que é a biopolítica, que passava a gerir a vida,
desde o cuidado com a natalidade ou mortalidade até a gestão previdenciária dos riscos. O
inverso também se verifica, quer dizer, a estratégia biopolítica se fazia a partir da exposição
ao risco de morte para fazer valer sua promessa que garantir qualidade de vida ou
prolongamento da vida. Foucault se pergunta se não seria a vida o fundamento do poder
soberano? Com isso, de alguma forma, deixa entrever a relação entre política e vida antecede
o surgimento da biopolítica como tal, perspectiva aprofundada pela análise de Agamben. Ele
nota que a coexistência entre o poder soberano e biopolítica se dá pelo transbordamento do
poder biopolítico sobre o poder soberano e não o contrário.
Agamben (1995) considera este raciocínio plausível, mas insuficiente para explicar o
holocausto, designação que, aliás, ele contesta, por sua vinculação etimológica à ideia de
sacrifício. Neste sentido, o que estaria em jogo na política do século XX não é a gestão da
vida enquanto força a ser controlada dentro dos cálculos estatais, mas a justaposição da “vida
nua” (que estava à margem da polis grega) ao espaço político, num tempo em que o estado de
exceção virou regra como forma de ordenação político-jurídica.
Privada de valor político, mas não de utilidade política (já que ela se torna ferramenta
para o poder soberano), a vida nua não é nem zoé (vida natural) nem bíos (vida politicamente
qualificada). Estes dois termos, que especificavam a diferença entre duas formas de vida que
distinguia o homem dos demais seres vivos, perdem seu valor na modernidade. A redefinição
do limiar a partir do qual uma vida deixa de ser politicamente relevante é uma espécie de
invariante no pensamento agambeniano, que se atualiza na conversão da política em
biopolítica na modernidade. Este limiar reflete a existência da vida nua que, como tal, é a
exposição ao poder de morte do soberano. Desta forma, biopolítica converte-se, então, em
tanatopolítica (e vice-versa), por sua vinculação ao poder soberano, que, nesse contexto, se
autonomiza do estado de exceção, tornando-o indiscernível da regra.
122

Para esse autor, raça não é uma categoria suficiente para explicar a eugenética nazista.
Sabemos que este era um conceito importante para o nazismo, entendido exclusivamente
como herança genética. A definição oferecida por Verschuer, um dos principais responsáveis
pela política sanitarista do Reich, “um grupo de seres humanos que apresentam uma certa
combinação de genes homozigotos que faltam aos outros grupos” (AGAMBEN, 1995). Com
efeito, os nazistas sabiam que determinar pureza racial de acordo com esta definição era
praticamente impossível.
Apesar das preocupações com o patrimônio genético do povo alemão e do seu
consequente objetivo de fortalecimento da nação alemã, o que poderíamos pensar com
Agamben é que eugenética estava submetida ao projeto biopolítico, segundo o qual o Estado
toma pra si a “tutela da vida”. Sua análise da distinção entre política e polícia é esclarecedora:
a política enquanto “luta contra inimigos externos e internos do Estado” torna-se indiscernível
da polícia, ou seja, da “tutela e o crescimento da vida dos cidadãos”. Com efeito, a eugenética
nazista seria o emblema da biopolítica, pois tornou a política constitutiva da vida e fez do
Campo (e não mais a cidade) o paradigma da (bio)política moderna.
Com isso, ele procura questionar a relação “instrumental” entre raça e eugenia,
segundo a qual a primeira seria o dado natural a ser protegido pelas estratégias negativas de
eugenia. Mais do que fazer uso político da noção biológica de raça, tratar-se-ia de constituir
um espaço no qual não fosse mais possível distinguir vida biológica e vida politicamente
qualificada. A este espaço, Agamben dá o nome de Campo, que é esta “terra de ninguém”
habitada pela vida nua, condição do exercício do poder soberano, pulverizado que foi em
distintas e diversas instâncias sociais. O campo substitui, então, o paradigma da polis grega,
espaço político regulado pelas leis e pela exclusão da zoe (vida natural). A existência da vida
no Campo só se coloca como vida nua, “matável e insacrificável”, como vida exposta ao
poder de morte do soberano. É no limite da sua matabilidade que a vida se politiza,
destituindo-se de sua função política, relação já analisada anteriormente por Foucault, em A
defesa da sociedade.
Agamben pretende estabelecer a conexão entre o âmbito jurídico-político e a
biopolítica, sem a qual ele não acredita ser possível compreender os Estados totalitários do
século XX. Sem dúvida, tal empreendimento é de grande valia para nos ajudar a entender o
nosso tempo e foi assinalado por Foucault nos últimos anos de seu trabalho. Mas é importante
que se diga que o fundamento da análise que Agamben faz no Homo Sacer I sobre a
eugenética nazista é eminentemente foucaultiana, posto que é a biopolítica que lhe oferece os
analisadores acerca do entrelaçamento entre vida e política.
123

A eugenia, contou, no âmbito científico, com o darwinismo social de Galton (final do


século XIX), aliado ao mendelismo, sendo subsídios cruciais para o fortalecimento da eugenia
como movimento científico e social. Seu oponente principal no âmbito teórico e político era o
neolamarckismo, cuja ênfase recaía sobre a possibilidade de o patrimônio genético ser
alterado pelas mudanças nas condições ambientais. A validade “científica” do lamarckismo
foi tida como superada pelas descobertas da genética mendeliana no que dizia respeito ao
cromossomo e à impossibilidade de modificação do “plasma germinativo”, ou seja, do núcleo
do material genético na célula (STEPAN, 2006).
Destas disputas político-científicas, surgiriam diferentes modalidades discursivas e
programáticas de eugenia. Por hora, vale salientar que a decorrência programática desta
estratégia ia desde a valorização de indivíduos e uniões eugênicas (eugenia positiva) até a
prescrição de esterilização de indivíduos “disgênicos” (eugenia negativa). Além disso, a
estratégia eugênica do século XIX, apesar das resistências de diferentes segmentos sociais e
científicos, foi gradativamente assimilada pela função estatal de regulação da vida das
populações (FOUCAULT, 2005b; STEPAN, 2006, 2004).
A eugenia, no Brasil, assumiu feições particulares de acordo com o estudo de Stepan
(2004, 2006). A preocupação com a suposta degeneração da raça brasileira, vista como
disgênica já que altamente miscigenada, começa a se acentuar a partir dos primeiros anos do
século XX, embora só ganhe destaque a partir da década de 20. Na América Latina, havia um
sentimento de pessimismo quanto à possibilidade de constituição de nações, pois para muitos
ela não tinha as características de uma nação: compartilhamento linguístico e cultural e
homogeneidade racial. A inserção do Brasil nos nacionalismos do século XX não se deu, no
entanto, pela adesão direta e linear das estratégias eugênicas vigentes nos EUA e na Europa
nazi-fascista, que se fizeram explicitamente pela via negativa, ou seja, por estratégias como
esterilização e extermínio do que era considerado como degeneração, mas pela construção de
uma “modalidade cristã” de eugenia, fruto de negociações entre diferentes instâncias sociais
(STEPAN, 2004, 2006).
Até a década de 20, com as precárias condições de vida e saúde da população mais
pobre, agudizava o medo social que se articulou ao começo da turbulência dos anos de
movimento operário e anarquista no Brasil. No cenário internacional, a preocupação com o
melhoramento da raça fazia ecos importantes por aqui, uma vez que degeneração e estagnação
estavam vinculadas intimamente. Com argumentos que escamoteavam seu tom racista, a
eugenia brasileira se fez, então, por uma compreensão de que era possível melhoramento
racial através da modificação de caracteres adquiridos (CARRARA, 2004; STEPAN, 2004).
124

Deste modo, a equivalência, até da década de 30, entre saneamento e eugenia, criou
diversos mecanismos de intervenção social. Tal projeto era de inspiração neolamarckiana, o
que era conveniente tanto do ponto de vista das forças que se aglutinavam em torno deste
projeto, quanto pela condição inexorável de miscigenação da raça brasileira. No que diz
respeito ao campo de forças que se aglutinavam em torno da eugenia, tanto a Igreja católica
como os setores sociais de diferentes matizes políticas (liberais e conservadoras) eram
simpáticos às perspectiva eugenistas positiva (intervenção no ambiente através do
sanitarismo) e preventiva (pelo controle das alianças através dos exames pré-nupciais,
prevenção do alcoolismo e das doenças venéreas). Viam estas perspectivas como propostas
que poderiam favorecer o desenvolvimento do país, livrando-o da degeneração racial, sem
agredir valores conservadores como a instituição do casamento e da hierarquia. Ao mesmo
tempo, agregava setores que viam na melhoria das condições de vida e de saúde a saída para
um país que estava atolado em graves crises sociais, dentre elas, a herança escravagista.
(STEPAN, 2004, 2006).
No entanto, se recorremos a um autor da envergadura política de Renato Kehl, teremos
elementos para relativizar essa interpretação. Em 1933, Renato Kehl, no seu livro Sexo e
civilização, situa o debate acerca da miscigenação, referindo-se à sua época como a “era da
Eugenia”. Ele busca, na breve análise histórica, a justificativa para o fato de que a
humanidade (através das ciências, da religião ou da política) sempre esteve em busca de
“preservar os homens da degeneração” (KEHL, 1933, p. 11). Sua análise inicial é bastante
cética quanto aos cenários sociais, onde a moral, os valores, as crenças sociais e o
desenvolvimento cedem lugar à barbárie, à miséria e aos indivíduos adjetivados como
“desequilibrados morais, mentais e físicos” (KEHL, 1933, p. 12).
Apesar de reconhecer a importância da educação no processo de desenvolvimento
social – bem como da forte presença de valores difundidos pela religião –, Renato Kehl
remete ao progresso biológico a “alavanca mestra” para o avanço social, especialmente
através dos preceitos da eugenia. Para ele, a precariedade da sociedade se deve à falência de
políticas educacionais e legais para erradicar a miséria. O foco deveria ser, antes, o
incremento constante de indivíduos eugênicos, que pudessem construir “a ordem social sobre
fundamentos fisiológicos” (KEHL, 1933, p. 18).
É recorrente, em sua fala, a hierarquização entre os indivíduos na sociedade, sobretudo
ao se referir ao “pequeno estoque de homens física e mentalmente superiores” no Brasil. A
esta contingência social – qual seja, o amplo conjunto de indivíduos inferiores – Kehl atribui a
plena responsabilidade do contexto político deplorável, cujo futuro aparece incerto e repleto
125

de homens “impuros” (p. 20). Motivado pelo trabalho de Galton, onde a regeneração possui
uma centralidade, Kehl assume a condição de eugenista extremo.
Apesar da hegemonia do neolamarckismo (vinda da influência do pensamento
francês), havia uma estratégia concorrente de inspiração mendeliana no Brasil, que apregoava
práticas mais afinadas com as práticas eugenistas mundiais, a saber: a esterilização e o
controle nupcial rigoroso para evitar casamentos disgênicos. Com o avanço da genética
mendeliana, houve uma fragilização da tese lamarckiana dos caracteres adquiridos, fraturando
o alicerce científico para a prática dos eugenistas que a faziam equivaler ao saneamento.
Surge, então, uma nova nomenclatura para distinguir a eugenia do saneamento: a eutecnia.
Aprendemos com Foucault (2005c, 2000b) que os conceitos nunca são apriorísticos.
Eles são construídos dentro de certas regras discursivas e servem a estratégias que organizam
o embate de forças. A distinção entre eugenia e saneamento, apoiada pela produção de um
sistema de saber-verdade que lhe é contingente, serve como uma pista significativa da
estratégia e das filiações em jogo naquele contexto. Nesta perspectiva, tornar o “eugenizar”
diferente de “sanear” aponta para uma decisão política de filiação política ao nazismo e ao
fascismo, que começa a ser colocada em questão a partir da década de 1920.

2.7 Táticas eugênicas de regulação dos casamentos

O que se apresenta como solução eugênica para o Brasil é o controle dos casamentos.
A “eugenia matrimonial” (STEPAN, 2004, 2006) se fez basicamente por duas vias: uma
primeira, que tentava criar condições que inibissem as interações sexuais entre indivíduos de
diferentes “raças”. Este mecanismo estava sustentado na diferenciação identitária entre as
classes sociais, a partir de recursos simbólicos que mantinham apartados grupos étnicos
considerados disgênicos. Mas o mecanismo de eugenia matrimonial mais pregnante foi o
exame pré-nupcial, que comprovava a saúde dos nubentes. Trata-se de “um controle de
nascimentos sem controle da natalidade”, como bem descreve Stepan (2006), e que contou
com o apoio de setores sociais muito distintos: desde a Igreja, que não viam nesta solução
uma ameaça para os valores católicos de monogamia e reprodução, até expressões do
movimento feminista que via ali a possibilidade de defenderem a saúde das mulheres da
exposição ao casamento, ou seja, da dupla moral que envolvia o exercício da sexualidade
masculina.
126

As mulheres, por sua função social ligada à atividade reprodutiva, foram um alvo
privilegiado de medidas eugênicas. O significado político desta atenção eugênica é discutível,
pois alguns acreditam que a eugenia fosse conservadora por confinar as mulheres ao seu papel
reprodutor, mas outros argumentam que a eugenia propiciou a elas a possibilidade de inserção
no mundo profissional e a preocupação com a saúde serviu de mote para transformações
políticas da situação de opressão em que viviam. O projeto eugênico de controle da
hereditariedade teria servido à reivindicação das mulheres de legalização do aborto, acesso a
contraceptivos e esterilização, promovendo, com isso, o feminismo dentro da eugenia.
(STEPAN, 2004, 2006).
O dote, mecanismo de troca fundamental para as relações tradicionais de aliança, será
substituído pela “saúde”, elevada à condição de valor máximo a ser buscado nos casamentos.
Higienizar as alianças, às custas da superação da tradição. Num artigo de 1904, da autoria de
Alfredo Magalhães, intitulado “Em prol dos filhos”, encontramos:

É doloroso ver o pobre ente, que nenhuma culpa teve, na maioria dos casos, da sua
desgraça, pagar com a morte a sua innocencia e desdita. [...] Uma vez que não é
mais possível (nem humano) praticar, como em outros tempos, a selecção violenta
[...], pratiquemos a selecção razoável e raciocinada. Della depende a saúde dos
filhos, que têm de vir do casamento realizado, e a felicidade deste depende
d’aquelle. Na balança da escolha deve pezar essencialmente a posse de um dote, não
em ouro ou em brazões, mas em saúde, saúde não somente do corpo mas ainda do
espírito (MAGALHÃES, 1904).

A tática eugênica que se manifestava na questão do exame pré-nupcial era a


culpabilização dos pais pelas mazelas que poderiam ser criadas pela geração de filhos sem os
devidos cuidados da profilaxia eugênica. Um quadro trágico que enfatizava o sofrimento de
que padeceriam os filhos de portadores/transmissores de doenças e anomalias era pintado,
fazendo um apelo para que os pais pudessem se aliar à extinção do que se consideravam as
taras transmitidas pelo prazer sexual anti-higiênico. Num artigo intitulado “Educação sexual
em defesa da prole”, na mesma edição, de janeiro de 1935, José de Albuquerque recorre ao
discurso apelativo do “fruto malsão”:

[...] procura o ser humano aprimorar a raça de seus animaes, cruzando-os com outros
de qualidade superior, para tornar o producto mais apto, mais capaz, etc., e, no
entanto, deixa a mercê de sorte a sua própria procreação.
[...] Resulta dahi os casaes ao procriarem, geram, não poucas vezes, filhos
monstruosos, degenerados, verdadeiras aberrações humanas, e isto porque não
foram avisados, em tempo, dos perigos que poderiam advir para a prole, dum
casamento realizado às cegas, sem o beneplacito da sciencia”.
[...] vou transcrever uma phrase que aquelle grande brasileiro [Coelho Neto]
esculpiu no seu livro ‘Os Vencidos’, e que demonstra o interesse que lotava a esses
127

problemas: “que é aquillo, afinal? Uma posta de carne, que geme; uma deformidade
hedionda que soffre e faz soffrer a quem o vê, um horror que os paes escondem,
envergonhados de o haverem produzido”. Devia haver uma lei — ainda é Coelho
Neto quem diz — que responsabilizasse os homens pelo mal que fazem: são mais
funestos à sociedade do que os assassinos, porque não só matam, como arrasam o
sitio, digamos assim, em que commetem o crime (ALBUQUERQUE, 1935).

O exame pré-nupcial seria o instrumento regulador para o pleno controle da


hereditariedade, sendo complementado com a “disposição legal da esterilização ou da
proibição matrimonial para os incapazes de produzir boa progenitura” (KEHL, 1933, p. 167).
Tais estratégias conformam um conjunto de medidas de “ultraprofilaxia racial”, como
reconhece o próprio Kehl (1933, p. 168), declarando-o sem qualquer constrangimento. O
autor destaca o projeto de lei do deputado Amaury de Melo, de 1927, no qual os parâmetros
para o controle compulsório de casamentos eram estabelecidos, impedindo, então, a união
quando um dos cônjuges sofre de “doença grave transmissível ao outro cônjuge ou à prole”,
tais como tuberculose, lepra, sífilis, epilepsia, idiotia, entre outras. No entanto, o projeto foi
modificado, ganhando uma versão definitiva a partir de texto redigido pelo deputado
Marcondes Filho, segundo o qual o exame pré-nupcial deveria ser realizado somente a partir
do pedido de um dos cônjuges ou do seu representante, no caso de menores.
O debate em torno do exame pré-nupcial girava em torno da sua obrigatoriedade, mote
que tornava solidários o discurso médico-sanitarista e o discurso legal. Havia um desejo de
instituir legalmente tal prescrição, pois se acreditava que não seria possível preservar a saúde
da população dos efeitos da degenerescência se esta não fosse uma ação compulsória. A
exigência de comprovação de saúde física e mental passaria a ser, nesta perspectiva, uma
condição de ingresso na instituição matrimonial, cuja função para o projeto nacionalista é
evidente. Por outro lado, certas correntes dentro do movimento eugênico defendiam que não
era possível estabelecer este tipo de controle, pois não era possível controlar rigorosamente as
interações sexuais, já que elas não aconteciam obviamente apenas no âmbito da instituição
matrimonial, civil e religiosamente legitimadas (ALBUQUERQUE, 1929). Além disso, tornar
o exame compulsório poderia ser, já de saída, uma condição aversiva, reduzindo as
expectativas de eficácia de tal controle.
A outra tática era a regulação do casamento consaguíneo, que já aparecia em meados
século XIX (VALLE, 1847) como uma forma de união higienicamente condenável. Primeiro
porque o longo convívio entre parentes, muitas vezes desde a infância, não favorecia o
aparecimento do amor físico, ênfase que a medicina vai dar ao casamento e que contrastava
com os ideais procriativos da época. Segundo, porque a medicina vai apostar nos cruzamentos
128

exógenos como mais favoráveis ao fortalecimento da “raça”, o que não queria dizer que ela
fosse favorável à miscigenação, já que acreditava que o casamento consanguíneo gerava uma
prole doente ou, pelo menos, mais predisposta às “organizações viciosas” (VALLE, 1847, p.
11).
Num artigo de 1935, José de Albuquerque admite que a consanguinidade em si não
seria maléfica à existência de taras se não fosse um dado generalizável, mas ratifica a posição
médica contrária ao casamento consanguíneo, sob o argumento de que essas alianças
acentuariam a transmissão dos estados mórbidos familiares. (ALBUQUERQUE, n. 1, 1935).
A tentativa de evitar cruzamentos disgênicos, o que seria potencializado pela
consangüinidade, pelas chances aumentadas de repetição dos genótipos, seria a justificativa
eugênica para combatê-los. Mas por que esse foi um tema tão discutido não só por médicos,
mas também por juristas? Nos próprios textos médicos, afirmava-se que a consanguinidade
em si poderia ser tão favorável como desfavorável à saúde da prole. Famílias que possuíam
um bom estoque hereditário teriam vantagens nesse tipo de aliança, mas existiam as alianças
disgênicas. O pressuposto era que as taras hereditárias acometiam grande parte das famílias
brasileiras. Estávamos diante de um povo racialmente comprometido, fragilizado. A raça
brasileira (o que não incluía sua elite) era degenerada.
O controle da consanguinidade ganhou formas distintas nos códigos civis. No Código
Civil de 1890, tratava-se de uma união proibida (art. 183, alínea 4). Já no Decreto-lei n. 3.200
(19 de abril de 1941), instituiu-se a obrigatoriedade do exame pré-nupcial para o casamento
de colaterais legítimos ou não até terceiro grau. A desobediência ao parecer desfavorável ao
casamento foi tipificado como crime no Código Penal, art. 237 (MANFREDINNI;
MEDEIROS, 1955).
Os casamentos consanguíneos eram uma prática corrente no Brasil colonial (COSTA,
1999). O temor social da miscigenação e o medo de divisão das riquezas obtidas pela
monocultura latifundiária (e escravagista) faziam com que as famílias ricas privilegiassem
casamento intrafamiliares. A intromissão insidiosa do saber médico na normalização familiar
precisava desestabilizar esse modelo para conseguir viabilizar esse empreendimento. Ora,
questionar o modelo de família colonial era abrir os flancos necessários a essa forma de
regulação social que, diga-se de passagem, interessava ao Estado, que via na família um
reduto de resistência ao controle que este aparelho exerce sobre a vida individual e social.
Romper com o casamento consanguíneo era desestabilizar a lógica de aliança e,
gradativamente, substituí-la pela regulação médica das questões sexuais em jogo na
instituição familiar.
129

A tentativa de preservar a instituição do casamento dos abalos sofridos no patriarcado


gerou uma demanda histórica de conciliar a necessidade de um aparato jurídico de
transmissão de bens e valores com a fustigação à sensibilidade/ideal romântico que parecia
ser o motor para a proliferação discursiva sobre o sexo. Dito de outro modo, a produtividade
biopolítica dos discursos sobre o sexo era mediada também por ideais, como o amor à pátria,
numa perspectiva do agenciamento ao ideal voltado para o espaço público, e o amor ao
cônjuge, voltado para a preservação da espécie.
O que estava em jogo nesse desvelo para com a família? As exigências impostas à
instituição familiar moderna consistiam em conciliar no seu interior o interesse sexual e a
ternura amorosa, prerrogativas do amor romântico (COSTA, 1999), a uma atenção devotada à
educação dos filhos e a manutenção econômica do núcleo familiar. A família começava a
manifestar os primeiros sinais de fracasso deste projeto. Não era possível manter todos os
termos deste pacto indefinidamente, de modo que a indissolubilidade da família era um
objetivo que só se alcançava mediante algumas ações. Em primeiro lugar, ao homem, que
poderia fazer uso da prostituição e de amantes para preservar a esposa no seu devido lugar – o
de mãe de família –, sem com isso retirar inteiramente a função sexual do interior da família.
O sexo das crianças deveria ser reconhecido, mas inteiramente tragado na relação
afetiva com os pais para que pudesse ser devidamente educado. Finalmente, a mulher deveria
amar e se apossar dos filhos: essa seria a contrapartida para as inúmeras decepções que o
casamento lhe traria e para as renúncias que deveria fazer em nome do projeto de ser mãe e
esposa. A tragicomédia do romance familiar representou um importante mote da intervenção
médica: através da família, o saber médico instituía sua função de normalização. E ela sabia
que deveria fazer isso fazendo com que a própria família expusesse suas fragilidades. É como
aliada, e não como detratora, que a medicina se aproxima da família.
130

3 “LIBERTAR O BRASILEIRO DE SEU CAPTIVEIRO MORAL”: EDUCAÇÃO,


SCIENCIA SEXUAL E FAMÍLIA

3.1 O discurso do excesso sexual como marca da brasilidade

A primeira metade do século XX – especialmente, as décadas de 20 e 30 – descortinou


uma intricada formação discursiva sobre a brasilidade. Os textos dos jesuítas e dos primeiros
viajantes são retomados pelo pensamento sociológico nacional, na busca de inscrever os
traços pretensamente originários de nossa identidade.61 Tal interesse virava uma obsessão de
certas camadas da intelectualidade brasileira, vinculadas a diferentes matizes ideológicos, que
buscavam encontrar soluções para o problema da viabilidade da nação brasileira, posta em
questão desde o final do século XIX, a partir da discussão acerca da miscigenação.
O recurso à reconstrução de uma origem será entendido como um meio de redefinição
dos rumos políticos do país. Os ensaios de interpretação do Brasil que surgem na década de
1930 representam um aporte crítico à história monumentalista62 que até então se produzia
sobre o passado brasileiro. As tentativas de soluções produzidas em torno do tema da raça,
bem entendido, a certeza de inviabilidade da nação e a tese do branqueamento pela política de
imigração haviam chegado à saturação. É nesse contexto que o questionamento sobre a
brasilidade ganha sentido, sobretudo na reflexão sociológica e na vanguarda modernista.
Neste arquivo da brasilidade, a hiperestesia sexual aparece como uma de suas marcas
mais profundas. Essa ideia atravessa muitos documentos através dos séculos: das cartas dos
primeiros viajantes, passando pelo registro dos jesuítas, sendo revisitados, séculos mais tarde,
pelo pensamento sobre a formação social do Brasil, pela vanguarda modernista e pelo
discurso higienista. Ainda hoje o imaginário do (e sobre o) brasileiro está marcado por
predicativos como sensualidade, lascívia, malícia. O que em outras nações aparece como
traço do caráter individual, aqui virou matéria da nossa identidade nacional. Qual(ais) o(s)
significado(s) desta perenidade? Como ela se sustentou nos discursos sobre a brasilidade?

61
Tratava-se de buscar o princípio organizador do arquivo, no sentido derrideano (DERRIDA, 2001), através da reinscrição
das linhas de força que forjaram a reinterpretação das raízes do povo brasileiro. Impulsionado por um desejo de futuro, no
qual a nação brasileira pudesse existir, fabrica-se aí um Brasil que recupera sua inscrição fundamental – mítica –, explorando
seus caminhos diferenciais, para inventar uma nova miragem identitária.
62
Reverberam aí as críticas que Nietzsche fez aos usos monumental, tradicionalista e crítico da história, no que
elas podem ter de negação da vida, ou seja, no que elas têm de busca incessante da origem e desprezo pelo devir,
no colérico artigo de juventude intitulado “Sobre a utilidade e os inconvenientes da História para a vida”,
integrante das suas Considerações extemporâneas.
131

Um dos mananciais do tema do excesso sexual como marca identitária da brasilidade


encontra-se em Paulo Prado, no seu livro Retrato do Brasil, publicado em 1928, e de que se
valeram outros intérpretes do Brasil que o sucederam.63 A tese deste autor é que o Brasil é um
país marcado pela tristeza, originada pelo excesso sexual e pela cobiça do ouro. Sua
reconstituição formação social brasileira destaca a tese do mau colonizador (português) e a da
sua corrupção moral pelo escravo negro.
Prado (2002) defendia o argumento, construído a partir de uma adesão que não
demonstra distância crítica para com suas fontes, de que vieram colonizar o Brasil europeus –
portugueses, sobretudo – “degredados” do Velho Mundo, seduzidos pela natureza paradisíaca
que aqui encontravam. Valendo-se de descrições da experiência de colonização norte-
americana, o autor destaca que ao contrário da América Ibérica, os ingleses tiveram que lutar
contra toda sorte de adversidades: clima hostil, fome, doença. Colonização que ele classifica
como austera, feita com trabalho e dedicação de um povo que tinha zelo pela terra que
conquistaram e uma disciplina protestante. Essa velha cantilena, soada desde as nossas
escolas primárias, ajudou a configurar uma interpretação do Brasil que o coloca como sendo o
produto de duas fatalidades: uma colonização usurpadora e de uma raça degenerada.
Os degredados europeus chegaram ao Brasil e se depararam com a tarefa de colonizar
suas terras – não dispunham de gente para isso, nem mesmo de mulheres brancas. Vindos de
uma cultura civilizada que reprimia seus excessos, os “maus colonizadores”, qualificados
como moralmente mestiços, dariam aqui vazão “às paixões de suas almas rudes” (PRADO,
2002, p. 42). O encontro da lascívia indígena com o desregramento do colonizador produziu,
segundo Prado, um modo de ser do brasileiro marcada pela hibridação desses traços,
depreciados no seu discurso:

à sedução da terra aliava-se no aventureiro a afoiteza da adolescência. Para homens


que vinham da Europa policiada, o ardor dos temperamentos, a amoralidade dos
costumes, a ausência do pudor civilizado – e toda a contínua tumescência
voluptuosa da natureza virgem – eram convite à vida solta e infrene em que tudo era
permitido. O indígena, por seu turno, era um animal lascivo, vivendo sem nenhum
constrangimento na satisfação de seus desejos carnais. [...]. do contato dessa
sensualidade com o desregramento e a dissolução do conquistador europeu sugiram
as nossas primitivas raças mestiças. Terra de todos os vícios e de todos os crimes
(PRADO, 2002, p. 38).

Atribuía Prado ao “erotismo exagerado” (PRADO, 2002, p.66) do brasileiro três


fatores coadjuvantes: o clima, a terra e a mulher – indígena ou africana. A tristeza brasileira,
cujo retrato ele acredita realizar com fidedignidade, adviria da preocupação com o erotismo:

63
Ver: Freyre (2005).
132

seria o efeito extenuante do sexo que produziria no brasileiro, junto com a frustração da
ambição por ouro, que ele chega a afirmar como um “derivativo” do apetite sexual, a tristeza
que, segundo sua tese, lhe seria característica. Sua explicação era psicofisiológica: o excesso
sexual produziria um esgotamento não apenas das funções sensoriais e vegetativas; produziria
perturbações psíquicas e somáticas, levando ao “‘velho colapso’ dos médicos, depressão
física e moral, passageira em certas condições normais, contínua no caso dos excessos
repetidos. No Brasil, a tristeza sucedeu à intensa vida sexual do colono, desviada para as
perversões eróticas, e de um fundo acentuadamente atávico” (PRADO, 2002, p. 67).
É interessante que Prado leia nos documentos da Inquisição no Brasil, bem como as
cartas dos jesuítas e de viajantes, de onde extrai essa imagem do país como um “atoleiro de
carne”, como diziam os jesuítas, o pecado sexual como “anormalidade patológica”. Ele
substitui, sem ressalvas, o código de outrora – o pecado –, cujo valor historicamente
contingente poderia ter sido mais bem discutido, pelo do seu tempo, que endereça ao saber
médico a autoridade de redescrever o erotismo pretensamente fundante da brasilidade. É
através do discurso psiquiatrizante do sexo que ele revisita esses documentos seiscentistas.
Sua chave de interpretação revela um Brasil que nasceu como que de uma doença sexual.
Seus filhos eram como verbetes de manual de psicopatologia sexual – sodomia, pedofilia,
tribadismo, bestialidade. E na tela impressionista utilizada por ele como metáfora para
traduzir o modo como fazia história, nos seus contornos esmaecidos, havia nitidamente uma
interpretação culpabilizante do negro.
É sua a tese, e não de Freyre (2005), de que era a condição de escravo e não a de
membro da raça negra um dos fatores de forte degradação social do Brasil. A degradação
física e moral que o negro teria ocasionado à sociedade brasileira seria sua vingança contra a
escravidão. Mas há no texto pradiano um jogo ambivalente com a situação do negro. É
verdade que ele não dá relevo à questão racial. Mas é igualmente verdade que a pretensa
separação entre a condição social e a raça no caso do negro por vezes perde a visibilidade.
Como numa pintura impressionista, como ele gostava de nomear seu trabalho:

O negro cativo era a base de nosso sistema econômico, agrícola e industrial e, como
que em represália aos horrores da escravidão, perturbou e envenenou a formação da
nacionalidade, não tanto pela mescla de seu sangue como pelo relaxamento dos
costumes e pela dissolução do caráter social, de consequências ainda incalculáveis.
(PRADO, 2002, p. 72).

No post-scriptum, Prado atribui superioridade laboral do negro em relação ao indígena


e faz um acréscimo na sua análise acerca do excesso sexual dos escravos: o de que a
133

hiperextesia sexual favoreceu uma aproximação entre brancos e negros que, de outro modo,
não teria sido possível; isso teria evitado a segregação observada no caso norte-americano.
O Brasil era nesse quadro um país doente, pobre, atrasado, indolente, mestiço, de
clima propício à lassidão e ao excesso sexual, e de “patriotismo indolente”, apegados que
seriam os brasileiros à imagem de paraíso tropical que lhes constituía. Seu projeto
civilizatório teria mimetizado o romantismo europeu, que Prado associava a um
republicanismo frágil, pautado pela ideias liberais – soberania popular, liberdade individual,
igualdade racial e política, infalibilidade da nação – aos quais ele era profundamente cético,
dada a origem irremediavelmente degenerada de sua gente. Assim, ele sintetiza o retrato da
brasilidade: “fisicamente fracos pelo gasto da máquina nervosa, numa reação instintiva de
vitalidade, procuravam a sobrevivência num erotismo alucinante, quase feminino.
Representavam assim a astenia da raça, o vício, das nossas origens mestiças. Viveram tristes,
numa terra radiosa” (PRADO, 2002, p. 85).
Cinco anos depois da publicação de Retrato do Brasil, o tema do excesso sexual volta
a ser abordado nos ensaios de interpretação, desta vez por Gilberto Freyre (2005), no célebre
Casa-Grande & Senzala, no qual ele retoma alguns dos principais argumentos de Prado, mas
com sinal invertido e matizes diferentes. Encontramos no discurso freyriano a reafirmação da
ideia de excesso sexual, que será, no entanto, positivada. Além disso, a tese que associava o
negro e o indígena como grandes vetores de emanação da hiperexcitação sexual será refutada.
Freyre (2005) faz uso de informações antropológicas para afirmar que tanto os negros
quanto os indígenas eram povos marcados por um déficit sexual, razão pela qual se utilizavam
de rituais excitatórios, o que foi erroneamente percebidos por viajantes e não devidamente
criticado pelos ensaístas sobre o Brasil, entre eles, Paulo Prado, um interlocutor assíduo em
Casa-Grande & Senzala. Ao contrário do desregramento descrito pelos viajantes e
missionários, supostamente característico da moral sexual indígena, Freyre esquadrinha
algumas destas restrições, a fim de negar a tese da “intoxicação sexual”: (1) exogamia: os
grupos eram divididos em metades exógamas e daí subdivididos em grupos menores e clãs;
(2) incesto e consaguinidade, marcada pela estrutura de parentesco que considerava a
linhagem paterna interditada para uniões sexuais [mas não a materna]; (3) totemismo, no qual
homens e mulheres descendentes ou protegidos pelo mesmo animal não poderiam se unir
sexualmente.
Ele contrapõe, ainda com base na antropologia, a interpretação dos rituais dos
indígenas e dos negros como signo de excesso sexual, afirmando que esses rituais seriam
emblemas não do excesso, mas justamente de sua carência. Ele utiliza como exemplo o
134

procedimento dos Tupinambás do membrum virile, que consistia em produzir o inchaço


peniano a partir do contato destes com animal peçonhento a fim de atrair as mulheres da tribo.
A interpretação de Freyre – contrariando a interpretação presente nos documentos
seiscentistas de que os Tupinambás eram “grandes libidinosos” e insatisfeitos com sua
virilidade e por isso queriam aumentar seu órgão genital – era a de que os “selvagens” se
valiam desses rituais como afrodisíaco para impulsionar a chegada ao estado de excitação
sexual, de modo que não poderiam ser considerados como priápricos. Como contraste, ele
oferece a observação de que, entre os “civilizados”, a intumescência podia ser acessada sem
maiores mediações, já que a preocupação com o sexo era uma constante. Essa sua leitura é
explicitamente atravessada pela sexologia de Havellock Ellis, inspiração que o acompanharia
em vários cantos de sua biografia intelectual.64
O mesmo argumento é utilizado na análise dos rituais africanos, marcados por danças
eróticas e a quem, mais do que aos indígenas, pesou o estigma de “hiperexcitação sexual”,
como vimos no capítulo anterior. Ao deflacionar o erotismo dos negros, Freyre gera subsídios
para refutar a tese segundo a qual a raça brasileira, predominantemente mestiça, seria
degenerada, razão pela qual ele dedicará muita atenção à erótica da casa-grande. Havia uma
ideia bastante difundida, inclusive nas teses médicas sobre higiene da infância (como vimos
no capítulo 2) de que a vida sexual do brasileiro – sobretudo do sexo masculino – era marcada
pela precocidade, induzida pela lubricidade da senzala, mais precisamente, das negras. Freyre
não discorda dessa tese, mas dá outra explicação para ela.
Sem refutar a ideia de corrupção sexual da casa-grande pela escrava, Freyre ataca o
cerne dessa afirmação: não era a mulher negra, mas a escrava quem o fazia. Afirmação
semelhante a de Prado, mais que se distingue dela, no caso de Freyre, pela interpretação que
ele dará à relação da escrava com seu senhor. Lembremos que, no argumento do intérprete
paulista, a corrupção moral da família pela escrava era explicada como uma vingança desta
contra aquela. Havia uma intencionalidade do escravo em retribuir o dolo que sofria. Freyre,
por sua vez, passou, após alguns anos de adesão inconteste ao racismo científico norte-
americano, a levar a sério a distinção entre raça e etnia, aprendida com a antropologia cultural

64
Ver: Bocayuva (2001) e Pallares-Burke (2005).
135

norte-americana da época,65 herdada sobretudo de seu contato com Franz Boas, ainda que não
renunciasse ao interesse em fundamentar biologicamente suas opiniões. Passou a considerar
que o ambiente físico produzia efeitos sobre a acomodação de uma “raça”. E esse percurso lhe
permitiu fazer algumas retificações importantes na sua percepção da escravidão.
Na condição de escrava, a mulher negra estava assujeitada ao poder do patriarca, que
assumiria o controle soberano do seu corpo, o que era bem diferente na sua cultura de origem.
Era a força de trabalho, mas também o ventre da escrava, que tendia a aumentar o “rebanho”
do patriarca, convertidas em quase animais pelo regime da monocultura latifundiária. O corpo
da escrava servia também como solução para as contradições das relações familiares: é serva
sexual de seu senhor, cuja vida sexual com a mulher branca segue o dualismo insolúvel do
desejo de um lado e relação de aliança do outro. A mulher negra, é em Freyre, aquela que, no
cálculo sexual, de seu “dono”, apara (acolhe e ajusta) seus excessos.
O senhor malemolente, por vezes, tomava por “caseiras” ou “concubinas” uma mulher
negra, na leitura de Freyre, porque essa conseguia se impor frente aos brancos. Ele retoma a
figura do colonizador desbragado, que teria ganhado força a partir do século XVII, para
afirmá-lo não como efeito da raça, mas como produto da monocultura latifundiária
escravagista. Sem necessidade de trabalhar, o senhor passava o dia na rede, dando ordens e
em libertinagem. Apesar de uma certa indulgência assinalada para com o colonizador, Freyre
está bem longe de inocentá-lo de seu sadismo, de sua lassidão, da sua gula por riqueza.
Sua genealogia do sadismo patriarcal percorre as linhas de formação social desde a
infância, chegando ao encontro sexual do senhor com a escrava negra. O “menino-diabo”
desponta na casa-grande após anos de sofrimento infantil pelas doenças, pelo adestramento

65
Pallares-Burke (2005), na sua biografia intelectual de Freyre, reconstitui os anos de formação do jovem Freyre e nos
mostra em detalhes sua adesão às teses racistas norte-americanas, no período que antecedeu à elaboração de Casa-Grande e
Senzala, e que se interpôs como obstáculo à produção desta obra, cujo “livro-embrião” (assim denominado pelo próprio
autor) havia sido sua dissertação de mestrado, defendida na Universidade de Columbia 11 anos antes, em 1922, intitulada
Social Life in Brazil in the Middle of Nineteenth Century. Num criterioso cotejamento dos trabalhos de Freyre nesse
intervalo, a autora constata que, a despeito de muitas antecipações do que se tornaria CGS uma obra de ampla difusão, sua
leitura da mestiçagem estava muito próxima das teses racistas e eugênicas em voga na época. Ele defendia, por exemplo, a
tese do branquemento, apostando no “melhoramento da raça escrava” pelo cruzamento com o europeu que daí adviria. Não
faltavam expressões da crença na inferioridade racial do negro, ainda que já dosadas por algumas ponderações sociológicas.
Até 1925, ainda segundo, Pallares-Burke, persistia uma convicção de que mestiçagem representava uma “patologia” (p. 269).
Ela nos esclarece que muitos trechos tanto da dissertação, quanto do seu livro de 1925 – Vida social no nordeste: aspectos de
um século de transição – que explicitavam as ideias racistas do autor, como por exemplo, legitimação da crueldade dos
castigos prescritos pelo senhor aos escravos, o endosso à tese da superexcitação sexual da mulata, a representação do “sangue
negro” como doentio, foram suprimidos nas versões posteriores. Freyre assume essa sua posição nas primeiras páginas de
CGS, quando afirma sua perplexidade diante de alguns marinheiros brasileiros, mulatos, que havia encontrado no Brooklyn,
que lhe deram a impressão de serem “caricaturas de homens” (FREYRE, 2005, p. 31). Era adepto das ideias eugênicas que
apostavam no melhoramento racial, para preservar a sobrevivência do mais “apto”. Na referida biografia, localizamos na
decepção freyriana com a solução racial americana como uma importante razão para que retificasse sua filiação ao racismo
científico; a outra vinha do seu próprio país, com o fracasso do branqueamento racial que se imaginava em curso. Seu
encontro com o culturalista Franz Boas, e com a dependência que a raça teria do meio (físico e social), havia encontrado uma
via possível e, com ele, o esforço de retificação da sua opinião sobre a miscigenação, tendo-se mantido, ainda assim,
controversa, por causa da querela em torno da suposta tese de “democracia racial”.
136

para controle esfincteriano, como germe da crueldade adulta. Desde as brincadeiras mais
despretensiosas, como “lascar o pião” ou “comer-se o papagaio” (F reyre, 2005, p. 452),
passando pelos beliscões nas meninas e nos animais, traça-se uma escalada para a crueldade
que reproduz o universo do adulto que chicoteia e usa a palmatória como modo de dominação
do corpo escravo. Desde a infância aprendia-se, a partir de uma pedagogia do suplício físico e
mental (de joelhos no milho, otimizar a caligrafia, vestir-se de palhaço), a exercitar a
crueldade da autoridade patriarcal. Um dia ainda iria exercê-la. Um adulto feito às pressas e
lapidado sadicamente dia após dia.
Com uns 10-12 anos, o menino diabo se convertia em adulto, sério, sisudo. Pairava
uma certa urgência, por parte dos meninos por sifilizar-se, o que naquele universo simbólico
significava virilizar-se, ascender à condição de homem. O menino-diabo é essa figura que
assinala a inquietação sexual por excelência, que ele procurava satisfazer com as escravas. A
ruptura aparentemente brusca se coordenava à aproximação da escrava que, diferentemente de
sua cultura de origem, marcada por um déficit sexual, se converte numa “superexcitada
sexual”. Tanto a “feminilização” do menino pelo excesso de mimo, pela manutenção através
da segunda infância de uma ligação eroticamente acentuada com a mãe ou a ama, seja na
alimentação, seja na hora do sono ou banho, quanto sua virilização precoce, pela “liberdade
para os meninos brancos cedo vadiarem com os moleques safados na bagaceira, deflorarem
negrinhas, emprenharem escravas, abusarem de animais” (FREYRE, 2005, p. 459) – são
realçados por Freyre, como constituídos na formação escravocrata brasileira.
Nessa segregação promíscua do senhor para com sua escrava, relação na qual Freyre
situa a condição de possibilidade de sustentação do regime econômico social do Brasil
Colônia, neste jogo desejante, permeado de sadismo, havia uma aproximação que de outra
maneira não existiria. Na intimidade da casa-grande, descortinam-se ainda as relações
ambivalentes entre senhoras brancas e escravas: suas rivais e aliadas; disputava com ela o
amor dos filhos e ao mesmo tempo o desejo do marido; senhora igualava-se à escrava. O
sadismo era também da mulher branca, que, aviltada pela traição, se servia de mutilações da
escrava para punir o marido. Nas entranhas do cotidiano colonial, Freyre faz falar a formação
social. É mediada por essa aproximação – promíscua, violenta, ambivalente – que a conversão
de culturas miscigenadas em raça inferior e superior se fabrica.
Observemos, portanto, que ele reafirma o discurso do excesso sexual, mas o coloca do
lado do colonizador, ainda que, ao mesmo tempo, contemporize a imagem de “purgatório da
metrópole”, discutidos anteriormente com base em Laura de Mello e Souza (1989). Freyre
relativiza o argumento de que o Brasil foi colonizado pela escória portuguesa presente na
137

figura dos “garanhões desbragados”, mencionados por Paulo Prado. Também acreditava ser
exagero afirmar que todos os povoadores daquele período eram tarados, criminosos e
semiloucos. Apoiando-se em informações secundárias da jurisprudência criminal portuguesa
dos século XV e XVI, Freyre nos adverte que muitas deportações se davam por motivos
outros (ateísmo, feitiçaria, misticismo) que não os desvios de conduta sexual ou por se tratar
de criminosos.
Além disso, a “colonização por indivíduos” (soldados de fortuna, aventureiros,
degredados, cristãos novos que fugiam da perseguição tridentina, traficantes de escravos, de
papagaios, etc.), como ele classifica esse primeiro tempo do povoamento do Brasil, não teria
deixado vestígios na formação econômica e política do país, não se constituindo, portanto,
como “sistema colonizador”. Acrescenta ainda que, mesmo que fossem realmente
superexcitados sexuais, este seria mais um traço do colonizador a favorecer o processo de
colonização de terras tão vastas e ermas. Para o excesso sexual dos deportados, Freyre teria
encontrado uma finalidade civilizatória.
Mas curiosamente, ele sublinha o efeito genético dessa migração. Da tese da “tara
étnica inicial” 66, Freyre aceita duas “generalizações”: a primeira, a de que o período inicial da
colonização (destituído de um projeto civilizatório), caracterizado como promíscuo, foi
marcado pela heterogeneidade racial e não foi um período estritamente português, cuja marca
estava no predomínio do idioma; com isso, ele descola a “tara étnica” da etnia portuguesa. A
segunda é que era preciso demarcar uma pré-história nacional, pois ela teria deixado suas
marcas na formação do povo brasileiro (leia-se “estigmas degenerados”), mais uma vez
estabelecendo marcadores que livravam o português da responsabilidade pelas taras
hereditárias. Embora defendesse que a grande disponibilidade de índias deve ter favorecido
uma seleção sexual, favorecendo bons frutos, localiza nessas interações sexuais a origem das
“taras sifilíticas” e retifica o pensamento de Azevedo Amaral sobre as “taras étnicas”
originárias do povo brasileiro. Trazida para o Brasil pelos europeus,67 a sífilis deixou na

66
“Traços da fisionomia coletiva do povo brasileiro, inequívocos vestígios dos estigmas hereditários, impressos por aqueles
patriarcas poucos recomendáveis de nacionalidade” (AZEVEDO AMARAL, 1930 apud FREYRE, 2005).
67
O debate em torno da origem da sífilis aparece como grande articulador de diferentes manobras discursivas em torno da
degeneração racial do brasileiro. É por isso que Freyre a analisa minuciosamente. A escória europeia e sifilítica veio para o
Brasil e aqui encontrou a “mulher fácil” dos trópicos, formulação um tanto jocosa, mas que ilustra o tema do excesso sexual
como constitutivo dos “gametas” que formaram o brasileiro. Valendo-se da análise de Oscar da Silva Araújo, Freyre
reconstitui a hipótese da origem europeia da sífilis: a sífilis teria chegado aqui pelos franceses, que teriam sofrido uma
epidemia dessa doença no século XVI, e pelos portugueses, cuja mobilidade também lhe dava um traço de promiscuidade,
tendo sido a eles imputada a disseminação da sífilis no Oriente. Coube-lhe a assinatura para a lues: mal português. A outra
hipótese é a de que a sífilis se originou na América e foi levada à Europa pelos colonizadores, invertendo o circuito anterior
(tese de Sigaud, referência de Freyre). Neste particular, o que se convoca como evidência seriam nos relatos de viajantes a
presença supostamente inequívoca de sintomas venéreos (SIGAUD, 1844); indícios sifilíticos nas sepulturas pré-colombianas
(ROSENAU, 1927). O último autor é também responsável pelo argumento de que a sífilis era inexistente na Europa antes de
1493 ou 1494, ou seja, antes da chegada de Colombo à América. Outra rota da sífilis teria sido africana: teriam sido os
138

população local o único vestígio dessa colonização por indivíduos de que falava
anteriormente.
Mas o tema do excesso sexual estava, no entanto, submetido a um interesse de
implicações políticas mais extensas: a questão da miscigenação. Como nos lembra Ricardo
Benzaquén de Araújo (1994), a tese freyriana sobre a miscigenação contrastava com as duas
outras posições presentes – no debate racial na República Velha, que tentamos explorar no
capítulo anterior. Lembremos, de passagem, que longos anos foram necessários até que essa
posição pudesse se estabelecer. A tese da “inviabilidade” do país, dado o risco de esterilidade
biológica e cultural que a miscigenação traria, mas também a tese do enbranquecimento e
consequente extermínio do mestiço acabaram sendo criticadas pelo autor. Freyre descortina,
numa tradução equilibrante de suas contradições, um esforço de tomar a miscigenação como
um efeito positivo da hibridação de diferentes matrizes culturais e como marca da identidade
brasileira.
Antes de mais nada trata-se, em Freyre, de ressignificar a “herança” portuguesa, à qual
se atribuía as razões do fracasso do Brasil enquanto nação. A afinidade entre o português e o
empreendimento de colonização do Brasil era ressaltada, desestabilizando, com essa manobra,
o estigma de “mau colonizador”. Mais uma vez, a tentativa de contemporizar os antagonismos
se afirma como uma grande marca do discurso freyriano, no qual, sem excluir a negação,
positiva seu antagonista.
Ele recupera os traços de cultura portuguesa que teriam contribuído para uma
colonização relativamente exitosa na América. Servindo-se de farta documentação para
sustentar a ideia da proeza portuguesa de colonizador, vai fundo na história de Portugal para
encontrar sua herança moçárabe, signo de sua alta hibridação cultural, para demonstrar que o
Brasil se tornou possível.
Antes de mais nada, a adaptabilidade ao clima dos trópicos, vantagem que teria sido
conquistada graças à maleabilidade climática do clima português, mais africano do que
europeu, seria um traço do português favorável ao êxito colonizador. Além disso, a
mobilidade e a miscibilidade seriam usadas como parte da explicação para a capacidade de

escravos negros que trouxeram a sífilis para a América e depois ela foi levada à Europa. Outra rota: o registro (feito por
expedição médica à Guatemala, dirigida pelo médico americano Shattuck) de que os maias seriam resistentes ao vírus da
sífilis e que isso provaria a origem americana da doença. Argumento refutado por Freyre, que diz: “a “resistência
extraordinária” dos maias à sífilis é que é um fato; a origem americana da doença, como inferência desse fato é uma
hipótese” (p. 153). Como argumento contrário à tese da origem americana da sífilis, Freyre se vale dos estudos de Roquette-
Pinto, Murilo de Campos e Olimpio da Fonseca Filho, para assinalar que não havia sido encontrado qualquer vestígio de
sífilis entre indígenas isolados do contato com brancos, reinterpretando os depoimentos dos viajantes que teriam, segundo
esses autores, confundido todo e qualquer dermatose com sífilis, bem como só teriam tido contato com os indígenas que já
haviam tido contato com europeus” (FREYRE, 2005, p. 112).
139

um povo tão pouco numeroso conseguir povoar diferentes regiões do mundo. A escassez de
mulher branca, razão defendida por Freyre para a miscigenação do primeiro tempo da
colonização, converteu as caboclas em preferência sexual dos portugueses. Essa característica
primordial teria propiciado um encontro com os indígenas marcado por uma atenuação da
violência em detrimento da necessidade de povoar o vasto território brasileiro. Em função das
trocas sexuais entre eles, haveria uma “transigência” com o povo nativo, marca da “política
colonial portuguesa”. (FREYRE, 2005, p. 161). Reunidas, todas essas predisposições do
português – a aclimatabilidade, a miscibilidade, a mobilidade – teriam garantido uma
tenacidade colonizadora ímpar nas Américas, já que as condições adversas também pareciam
maiores aqui do que na América do Norte, por exemplo, onde o clima e a dieta foram alguns
facilitadores da adaptação com as quais não puderam contar nossos patrícios.
Verificamos que a questão do clima é tratada por Freyre de modo distinto dos estudos
que viam no calor dos trópicos uma das principais razões de degeneração racial. Sem negar a
importância dessa variável para a formação social, desloca o foco dos efeitos diretos do clima
sobre a “natureza” racial dos indivíduos para os efeitos sociais perniciosos que a monocultura
latifundiária teria impresso no povo brasileiro. Tanto por sua forma de sustentação – a
escravidão – como também pela repercussão que ela teria no empobrecimento da dieta dos
brasileiros, fonte produtora de fragilidade, o regime econômico brasileiro deveria ser
responsabilizado pela depauperação de sua gente, e não os efeitos disgênicos da raça, como
haviam sido erroneamente codificadas pelos eugenistas. Trunfo crucial para o deslocamento
do argumento da degeneração racial para o neolamarkiano – segundo o qual o ambiente
coordenava a modificação dos fenótipos, que por sua vez, modificariam os genótipos –
aplicado à realidade “racial” do país contra os eugenistas, graças à influência de Edgar
Roquette-Pinto.
Em 1929, no I Congresso Brasileiro de Eugenia, realizado no Rio de Janeiro, o médico
legista, professor, antropólogo, etnólogo, escritor e arqueólogo carioca Edgar Roquette-Pinto
fez uma intervenção acerca dos tipos antropológicos brasileiros, bastante dissonante do coro
eugênico da época. Diante do problema da necessidade de povoamento colocado ao regime
econômico do Brasil e do argumento da pecha de improdutividade do brasileiro, Roquette-
Pinto responde afirmando que sua origem estava na “falta de organização nacional”, no
ataque direito à elite brasileira, que se refugiava no argumento da indolência do brasileiro
para escamotear suas reais causas, sociais, por certo. Precisamente, ele define organização
social a partir de três termos: educação, nacionalização da economia e circulação de ideias e
riquezas. Com base nessa definição, afirma que a mesmo a suposta “eficiência” do imigrante,
140

quando exposto às mesmas condições do brasileiro rústico, ficaria comprometida. Com efeito,
era o ambiente (e não a raça) a condição desfavorável. Denuncia os maus expedientes
utilizados pela política de povoamento do Brasil: “trucidou o índio; importou escravos negros
[que admitia como necessidade], mas os deixou embrutecidos; manou buscar, a peso de ouro,
gente branca, sem escolha, nem fiscalização, entregando-lhe desde logo um capital apreciável
– terra, casa, ferramentas, assistência; abandonou à triste sorte da sua indigência os melhores
elementos nacionais” (ROQUETTE-PINTO, 1929, p. 123).
A partir desse resgate, ele questiona a autoridade das elites nacionais (e os eugenistas
estavam aí incluídos) para afirmar ser o brasileiro “moralmente degenerado” e parte para
refutar o argumento eugenista de que a raça brasileira era fisicamente degenerada. Após uma
longa análise antropométrica, ele conclui que não havia nos tipos antropológicos qualquer
estigma de degeneração antropológica; pelo contrário, suas características seriam de alta
qualidade. Refutou a tese de que a miscigenação seria disgênica, criticando mesmo a ideia de
“mistura de raças”, definição corrente no Brasil e defende que a miscigenação era, na
verdade, da ordem de uma combinação (no sentido químico do termo), que imporia ao fruto
novas características não redutíveis aos progenitores. Atribuiu o expressivo número de
indivíduos somaticamente deficientes no Brasil a uma ausência de uma política sanitária e
educativa consistente, arrematando sua conclusão com a seguinte frase: “a anthropologia
prova que o homem, no Brasil, precisa ser educado e não substituído” (p. 147). Essa foi uma
influência notável para a revisão de Freyre acerca do problema da miscigenação.
Voltemos à descrição da hibridação racial em CGS. Na tentativa de reconhecimento
das diferenças étnicas que permaneceriam no mestiço, a herança africana foi positivada em
quase todos os seus traços: da valorização da maternagem afetuosa que tinham as amas com
os filhos dos seus senhores, à sua beleza física, inteligência, sensualidade; ritos religiosos ao
regime alimentar. A serialização de suas qualidades, inclusive ressaltadas em CGS por seu
valor eugênico, abre uma fissura na interpretação que atribuía ao negro a degeneração. Muito
do potencial da raça negra foi embotado pela sua condição de escravo.
A ideia de fabricação de novas raças a partir de sua migração para um novo ambiente
aparece, na sua análise da realidade brasileira, tanto na arquitetura abrasileirada da casa-
grande quanto na lascívia da mulher-escrava, serva sexual do senhor. É interessante que
Freyre não recusa nem a categoria “raça”, nem a tese da inferioridade racial do brasileiro, mas
a faz maleável aos constrangimentos e potencialidades da formação social de um povo,
através de um estratagema que foi o resgate do lamarckismo na sua nova versão. Valorizar o
potencial dos caracteres adquiridos servia tanto para retirar do estigma degenerante que tanto
141

assombrava o projeto de Estado-nação moderno, focado na grande massa de mestiços e


doentes, propensos que estavam às taras hereditárias, quanto para afirmar a plasticidade do
hereditário: o que pareciam desvios insolúveis e adoecedores dados pela transmissão se
convertiam na esperança de que estando as causas sociais em primeiro plano na causalidade,
poder-se-ia interferir no seu curso. O hereditário é retirado do exclusivo domínio da
transmissão impassível da genética, inserindo-se no meio do caminho os efeitos no germe dos
condicionantes sociais da “raça”.
Seu raciocínio é atravessado por uma lógica classificatória evolucionista, que
pressupõe a vida cultural organizada em estágios que tomam como referência a cultura
europeia como mais “civilizada” e a indígena como a mais “atrasada”:

[...] o que houve no Brasil [...] foi a degradação das raças atrasadas pelo domínio da
adiantada. Esta desde o princípio reduziu os indígenas ao cativeiro e à prostituição.
Entre brancos e mulheres de cor estabeleceram-se relações de vencedores com
vencidos – sempre perigosas para moralidade sexual (FREYRE, 1933, p. 515).

Freyre, portanto, não recusou de todo a ideia de “inferioridade” racial, mérito político
que poderia ter alcançado, mas lhe atribuía razões sociais e não raciais. No entanto, a
complexidade de seu pensamento reside justamente em matizar esse antagonismo,
solidarizando-se com o dominado ao revelar as atrocidades de que era vítima; revelando as
persistências da cultura dominada hibridizada à dominante, para enaltecer a força daquela. É
interessante que a identidade do português que está o tempo todo na mira de Freyre, tanto
para desconstruir seu estigma de mau colonizador, quanto para questionar a pureza, e
consequentemente, a superioridade racial do branco em relação ao negro. É verdade que
enxergava o colonizador com olhos benevolentes: quando tenta nos convencer de que a
escravidão não foi tão cruel quanto alhures; quando comenta a suposta benevolência do
senhor branco no seu leito de morte em alforriar alguns de seus escravos; ou mesmo quando
procura reconstituir um (sádico) erotismo da casa-grande que a aproximou, o que de outra
forma não seria possível, da senzala.
Freyre foi identificado por muitos de seus comentadores por ter sido um difusor da
ideia de “democracia racial”. O sociólogo pernambucano foi interpretado por alguns como um
nostálgico da escravidão, pois teria assumindo o ponto do vista do senhor de engenho
(CARDOSO, 2005), escamoteando a crueldade do sistema escravagista. A imagem de um
paraíso tropical é rebatida por Hermano Viana (2000), que via a tese da democracia racial,
expressão que Freyre jamais teria utilizado, como uma fabricação fruto da leitura apressada de
alguns de seus críticos. Para esse autor, criou-se no Brasil uma metamitologia, na qual a
142

leitura apressada produziu o mito do mito da democracia racial. Haveria em CGS um esforço
de
[...]salvaguardar esse “equilíbrio de antagonismos” sempre precário, fragilíssimo, que
facilmente pode degenerar em conflito de antagonismos, a parte indigesta balcanizada de
qualquer civilização. [...] A “metafísica social” de Casa-Grande & Senzala é relativista:
existem apenas sociedades nas quais os conflitos estão mais “em equilíbrio” do que em outras
(VIANNA, 2000, p. 1).

Localizamos alguns autores que ajudaram a difundir a ideia da “democracia racial”: o


americano Donald Pierson, por exemplo, que, numa crítica de 1947, afirmou que o
desenvolvimento de uma civilização racialmente democrática era uma das razões pelas quais
esse livro tem importância capital para a compreensão do Brasil. Roger Bastide (1953), numa
apresentação de CGS, também vê ali a tradução, ainda que atravessada pela tensão de
antagonismos, de uma democracia racial. O tom não-categórico das conclusões de CGS, o
estilo literário, foi recebido com ambivalência por seus comentadores (FRANCO, 1934).
Risério e Gil (2000), apesar de reconhecerem o mérito de Freyre de ter descortinado um país
essencialmente mestiço, afirma que ele teria assumido a perspectiva do senhor de engenho.
Mas ao tempo em que tomam como uma falácia a suposta “democracia racial”, surpreende-
nos com o reconhecimento de que Freyre conseguiu produzir uma valorização da saída
nacional para a questão racial, quando comparada à realidade de outros países.
No começo da década de 1990, CGS foi analisada de perto por Ricardo Benzaquén de
Araújo (1994), conduzindo com rigor e delicadeza uma aproximação do pensamento de
Gilberto Freyre. Valendo-se de lição de seu objeto, Araújo nos apresenta um texto que
exprime o esforço de contemporizar, dentre outras intenções, a principal acusação que pairava
sobre o sociólogo pernambucano – o de ter criado, no imaginário brasileiro e sobre o Brasil, o
idílico quadro de paraíso tropical – presente nas críticas muito brevemente mapeadas ainda há
pouco sob a insígnia de “democracia racial”. Sem desmerecer os fundamentos dessa crítica e
assentindo que elas têm, até certo ponto, procedência, o autor nos reenvia para o significado
político do livro, transportando-o para o solo histórico no qual foi originado.
A questão da persistência da lógica racial, conforme pudemos indicar ao longo desta
seção, ancorada num fundamento biológico que tornava difícil uma definitiva autonomização
da positividade étnica de cada um dos povos que geraram essa formação social híbrida, é aí
reaberta para que se possam discutir os significados do conceito de raça que informaram a
leitura de Freyre sobre o cenário brasileiro. Marcadamente originada no contexto da
reivindicação igualitarista do projeto iluminista de sociedade, a noção de “raça” presente em
CGS contrariava a tradição oitocentista acerca da questão racial. Isso ocorreria tanto em
143

relação ao poligenismo, avesso à miscigenação (já que manteria a supremacia da raça branca
como norma), como também em relação ao monogenismo, já que CGS exaltava as
contribuições de cada componente da “raça” brasileira – o que desafiava a ideia cara aos
adeptos da crença numa origem única para o gênero humano, de que a miscigenação era causa
de degeneração.
Assinalando que esse posicionamento escapava tanto ao poligenismo quanto ao
monogenismo, Araújo nos reenvia à categoria do “meio físico” como importante mediador
nas teses expostas em CGS, já que justificavam uma análise neolarmarkiana desse conceito, o
que imprimiria aos humanos “uma ilimitada aptidão para de adaptar às mais diferentes
condições ambientais, enfatiza, acima de tudo a sua capacidade de incorporar, transmitir e
herdar as características adquiridas na sua interação [...] com o meio físico” (ARAÚJO,
1994). Minimizando as possíveis acusações da presença em Freyre de evolucionismo e de um
biologicismo pouco compatíveis com as lições que tivera do culturalismo, este comentador
tenta pôr em relevo um elogio da diversidade que adviria do uso neolamarckiano que Freyre
teria feito do conceito de raça.
Retomando o percurso analítico que Freyre realizou acerca da formação cultural
portuguesa, Araújo resgata a insistência do sociólogo pernambucano em valorizar a intensa e
diversa interatividade como marca desse povo, para assinalar uma leitura da compreensão
freyriana de “miscigenação”. Nesse sentido, essa noção seria definida (destoante, por
exemplo, do pensamento de Roquette-Pinto, ainda há pouco numa nota de rodapé) como a
afirmação da manutenção das singularidades de cada um dos povos na composição do fruto
miscigenado: “temos a afirmação do mestiço como alguém que guarda a indelével lembrança
das diferenças presentes na sua gestação”(ARAÚJO, 1994, p. 41). Seria essa justamente a
noção que teria permitido a Freyre construir uma imagem hibridizada do brasileiro.
Outro aspecto da tese do “paraíso tropical” a ser enfrentado pelo autor de Guerra e
Paz diz respeito à criação de uma atmosfera de confraternização entre senhores e escravos.
Recorrendo a uma digressão importante acerca das matrizes de pensamento sobre a
escravidão, ele nos indica um pertencimento ambíguo de Freyre tanto à concepção clássica da
relação escravagista, marcada pelo despotismo, quanto também à tradição cristã, centrada na
função de controle espiritual do senhor, a fim de garantir a conversão do escravo a partir do
seu exemplo. Essa ambiguidade poderia ser localizada na contradição, descrita anteriormente,
presente no tratamento dado ao escravo e, mais particularmente, à escrava. Nele o despotismo
do senhor escravagista em usufruir (inclusive sexualmente) dos corpos de seus escravos
convivia com o compartilhamento da intimidade e da inclusão do escravo na casa-grande.
144

É justamente a interação sexual entre senhor e escrava que nos reenvia ao tema do
excesso sexual. Tomada como uma categoria explicativa central em CGS, que codificaria a
própria imagem do trópico, o excesso sexual seria o principal acoplador das ambiguidades
presentes na vida relacional entre senhores e escravos: era ele quem agregava o despotismo à
intimidade compartilhada, marcada não pela caridade cristã, mas pelo furor e violência das
paixões. Ele destaca, no entanto, que não se pode reduzir a posição freyriana a um “elogio do
excesso” (p. 56), já que ele também descreve a racionalidade implícita nos cálculos dessa
aproximação entre senhor e escrava (regulados pela escassez de mulheres brancas para
ampliar a força de trabalho disponível para a lavoura açucareira), baseados numa premissa de
que a colonização do Brasil só poderia ser levada a cabo pelo trabalho escravo. Adverte ainda,
com justiça, que esse excesso sexual não é, na maioria das vezes, circunstanciado por Freyre
em tom de elogio; ao contrário: o que sucede a identificação do excesso é uma horripilante
descrição da crueldade do senhor em relação a sua escrava. O excesso viria ainda
acompanhado de seus efeitos mórbidos e mortíferos: a sifilização trazida pelos europeus e aos
vermes e doenças com que, de modo abrupto, Freyre encerra CGS. Desta maneira, o excesso
sexual estaria presente tanto “no que rebaixa quanto no que redime a vida social, na violência
e no despotismo do mesmo modo que na intimidade e na confraternização” (ARAÚJO, 1994,
p. 70).
O excesso sexual, anteriormente interpretado como uma das provas de degeneração da
raça brasileira, foi reinterpretado por Freyre. Carrara (2004) identificou aí uma tática de
“subversão valorativa”, segundo a qual há uma contestação dos valores atribuídos aos fatos
científicos, não dos fatos propriamente ditos. Sem ser negado, o excesso sexual brasileiro não
foi interpretado como determinado pelo clima e pela raça, mas estaria enredado em
condicionantes sociais e culturais importantes como certos costumes tradicionais, ou mesmo
certos constrangimentos sociais, como foi o caso da subjugação moral e sexual da mulher
negra por sua condição de propriedade do senhor de escravos.
O discurso do excesso sexual como marca da brasilidade não estava circunscrito ao
pensamento social. O que aqui tentamos destacar é que esses dois nomes – Paulo Prado e
Gilberto Freyre – deram uma importante visão do debate que, no entanto, se inseria na
ambiência científica e cultural mais ampla das décadas de 1920 e 1930. Vale lembrar que tal
estado de coisas se instituiu num terreno já fertilizado pelo discurso psiquiátrico da
degenerescência, que, ao instituir como marcas da brasilidade uma hiperexcitabilidade sexual
vinculada à miscigenação, justificava no plano político um programa de intervenção para
145

conjurar a propagação social da loucura, do crime, das doenças venéreas, do alcoolismo,


signos do que se considerava à época como degradação social.

3.2 A “cruzada” pela educação sexual no Brasil

No campo político-discursivo da década de 1930, localizamos a tensão entre duas


forças: a que enfatizava a hereditariedade como propulsora maior das degenerações e a que
deslocava a discussão para a educação. Isso pressupunha modelos conceituais distintos, que
repercutiam nas soluções programáticas apresentadas para o fortalecimento da nação
brasileira, através do aprimoramento biológico e moral de sua população. Esse período
comportou tanto uma defesa extremada do discurso eugênico, intrinsecamente vinculado à
noção de degeneração, quando uma reafirmação da educação como saída para os problemas
sociais brasileiros. A afirmação fin-de-siècle de que o projeto de nação brasileira estava
destinado ao fracasso por causa da degeneração de sua “raça”, atribuída à miscigenação que a
caracterizava, obstruía todas as saídas. A educação e, mais especificamente, a educação
médica, passa a ser então alvo de investimento intenso, de modo que seu poder de intervenção
também aumentava significativamente.
Desta maneira, mesmo o sexo, que aparentemente representava o mais irrefreável e
poderoso instinto, poderia ser educado. Na primeira metade do século XX, no Brasil,
instituiu-se um enorme barulho em torno da questão sexual, que começou a ganhar corpo já
na primeira década. O sexo, seus desvios e sua higienização começaram a ser, com maior
regularidade, objeto das teses de doutorado nas escolas médicas. A partir da década de 1910,
começa a aparecer um novo campo, fronteiriço da medicina com a pedagogia, que é o da
educação sexual. Um conjunto muito heterogêneo de forças, a despeito das divergências,
voltou-se para o problema da pedagogização do sexo, sobretudo o sexo da criança. O desvio –
o crime, a perversão, a prostituição, a loucura – deveria ser entendido em seus indesejáveis
efeitos.
Podemos afirmar é na primeira metade do século XX que surge, no Brasil, uma
sexologia propriamente dita. É nesse período que o sexo ganhará estatuto de objeto do
discurso e da intervenção médica, é aí que vamos poder visualizar o sexo como estando na
origem de grande parte dos problemas individuais e sociais. Enquanto a preocupação
novecentista com a questão sexual era localizada – vimos que ela se concentrava em práticas
146

sexuais que se situavam fora do âmbito matrimonial, como frequentemente o eram a


masturbação, a libertinagem e a vida dos celibatários, tanto castos, quanto não-castos –, o
saber médico vintecentista multiplicou os pontos de incidência da questão sexual na regulação
da saúde social e individual, na preservação da nação forte e de um lugar privilegiado na
escala filogenética.
O sexo será aclamado como sendo o centro em torno do qual gravita a vida social.
(BRITO, 1935). É preciso regular as forças instintivas sexuais em favor da modificação dos
costumes nacionais em direção de um projeto civilizatório em curso nos países mais
avançados. Além disso, a seleção eugênica comparece como um dos problemas enfrentados
pelos médicos na captura discursiva da experiência sexual. Eugenia e civilização são dois
termos que articulam o sexo à vida social. Em outras palavras, o projeto civilizatório em
questão tem como marca fundamental a indissociabilidade entre a qualidade moral e o
patrimônio biológico de seus membros.
Já na primeira década do século XX, começam os primeiros esboços de um programa
de educação sexual no Brasil. A institucionalização da educação sexual no Brasil foi
protagonizada pelo Círculo Brasileiro de Educação Sexual (CBES), fundado em 1933. O
CBES se apresentava como tendo por missão uma grande “cruzada” na qual se libertaria tal
povo de seu “cativeiro” moral. Guiados pelo interesse médico de intervenção no social,
delineado, como vimos, ao longo de todo o século XIX, os médicos passavam a investir no
tema da experiência sexual, que já havia se constituído, desde o século anterior, como motor
causal importante de degeneração física e psíquica. Os temas que compunham essa formação
discursiva eram: “educação sexual e religião; reprodução humana, células, aparelhos genitais
masculinos e femininos; alteração das funções sexuaes, causas e estados mórbidos; higiene
sexual, repercussão dos estados gerais e genitais sobre a descendência, exame pré-nupcial;
moral sexual (como dirigir a vida sexual individualmente e no seio da sociedade)”. (BRITO,
1936, s/p).
O saber médico que se insinua no terreno da experiência sexual vai indexar muitos dos
problemas de saúde aos desvios de regulação biológica. (ALBUQUERQUE, 1935, p. 8). Sua
ética prescreveria uma conduta marcada por uma normatividade que admitiria uma espécie de
homeostase sexual: nem excesso, nem continência sexual. No primeiro caso, o excesso
sexual, este traço constitutivo dos discursos sobre a brasilidade, também era condenado pela
medicina, sob a alegação de que isso ocasionaria perturbações nervosas que seriam a base
para muitas doenças. No segundo caso, que veremos adiante, é a moral sexual cristã que será
alvo de combate, já que para afirmar a legitimidade da proliferação discursiva do sexo, será
147

necessário atacar, de modo sutil e fragmentado, a moral sexual católica, fundamentada no


sacramento do matrimônio e, portanto, na equivalência entre função sexual e procriação.
Conferências, programas de rádio, projetos de lei, eventos científicos (cursos livres,
congressos, jornadas), artigos, datas comemorativas, tema de blocos de carnaval, o sexo foi
alardeado como a grande chave da transformação do Brasil, do reposicionamento da nação
nos patamares civilizatórios de países “mais adiantados”.68 Vinculada ao discurso de
modernização das nações, a educação sexual assumia como objetivo a intensificação de um
projeto de civilidade que pudesse retirar o sexual da insígnia da sensualidade que, no caso
brasileiro, coadunava com um dos traços fundantes da constituição de uma brasilidade: o
excesso sexual. É para regular os efeitos sociais do que era discursivamente afirmado como
um defeito da raça brasileira que a educação sexual se afirmaria. Era preciso educar o sexo
dos brasileiros, retirando-o da sensualidade que aí se fazia notar:

Uma das prinicipaes características do homem dos nossos dias, é ver tudo através de
um véo de carne; assim é, que em cada ato, em cada palavra e em cada gesto de
mulher, que encontra em seu caminho, descobre algo de provocador, algo de
convidativo ao ato sexual, pelo que se precipitam sem maior reflexão, às mais
extravagantes aventuras, que no máo sentido, chamam de ‘amorosas’. Sua
conversação, guia de preferência em torno de themas libidinosos; sua leitura favorita
é constituída por novelas sensuaes ou inspiradas no eterno motivo do adultério;
enfim todos os actos de sua vida, deixam transparecer o culto imponderado ao
sensualismo. Em nossos dias, homens e mulheres, jovens e velhos, recebem do
mundo exterior, estímulos que elevam em alto grão sua sensualidade, levando-os a
cumprir de forma desordenada, as leis do sexo, quando não, a transgredi-los mesmo.
Seus hábitos de vida, mantém seus organismos num estado de erotização
permanente, creando typos que sem receio de errar, podemos classificar sob a
rubrica de pathologicos. São enfermos, em consequência do ‘hypergenitalismo
psychico’, no dizer de um dos mais acatados sexólogos contemporâneos. A
gymnastica genésicomental, a que a maioria dos indivíduos é levada, pela vida
luxuriosa de nossos dias, mantem o seu espírito saturado de sensualismo, isto
indistintamente, tanto em relação a homens como a mulheres. O que nos cumpre é
que se substitua o predicado sensual pelo sexual e, mais ainda, que se opere a
educação sexual para que o predicado sexual possa ser bem comprehendido e não

68
Nos primeiros dois anos de trabalho do CBES (julho de 1933-agosto de 1935), encontramos cifras que evidenciam o
barulho que o tema da educação sexual estava produzindo, bem como a voracidade com que o projeto institucional do CBES
estava sendo levado a cabo: o Boletim de Educação Sexual, veículo de difusão da campanha institucional do CBES para
educação sexual, passou de bimestral para mensal, aumentou sua tiragem de 30 mil para 100 mil exemplares por edição,
dobrou o número de páginas; foram realizadas 25 conferências sexológicas nos cinemas do Rio de Janeiro; foram distribuídos
folhetos educativos acerca de temas sexológicos; cursos de sexologia (18 palestras), constituição de um círculo jornalístico de
mais de 700 jornais de capitais e cidades do interior do Brasil; criação de postos de aconselhamento sexual; criação de
biblioteca e pinacoteca de educação sexual; conferências radiofônicas (15 palestras no Rio e 6 em São Paulo), produção de
filme de longa-metragem (ver: SINOPSE DAS atividades do CBES no primeiro biênio, 1935). O CBES organizou no Rio de
Janeiro o “Dia do Sexo”, em 20 de novembro de 1935, assumindo-se como objetivo a “rehabilitação moral do sexo,
mostrando que nenhuma razão existe para que se o tome na conta de immoral”. Um conjunto de atividades foi programado,
tendo como sonoplastia a execução do “Hymno da Educação Sexual” e da sinfonia “Ode ao sexo”, compostos especialmente
para a ocasião. O que é digno de nota nessa data é a adesão do poder público à política de normalização do sexo. A
organização do evento contou com recursos financeiros da prefeitura, o apoio do corpo de bombeiros, espaço publicitário
cedido pelo Ministério da Justiça [via inserção em “A Hora do Brasil”], viabilizou o funcionamento dos equipamentos
urbanos, de modo a garantir presença maciça do público. Além disso, a imprensa e as inserções de rádio ao longo de todo o
dia contribuíram para a fabricação do espetáculo. Ver: DIA DO SEXO decorreu brilhantamente sua commemoração nesta
capital (1935).
148

corra o risco de se ver a todo momento, cedendo o seu logar ao predicado sensual
(ALBUQUERQUE, n. 2, 1934).

Uma dessas insígnias da lassidão brasileira, o carnaval, não passou despercebido pelo
discurso da educação sexual. Tomado como foco de disseminação da associação do sexo com
a imoralidade, o carnaval representava a desmontagem da presunção do CBES de
“reabilitação moral do sexo”.69 Vieira (1919, p. 40) afirmava escandalizado que o carnaval era
“o grande responsável pelos abusos e explosões carnaes”, que, predispondo os indivíduos à
receptividade sexual, atentava contra a honra e o pudor, dada a grande incidência de
defloramentos, traições. O que lhe serve de fundamento é uma imagem da brasilidade
marcada pelo excesso sexual, ecoando as primeiras tentativas de inscrição de um arquivo que
pudesse definir a identidade do brasileiro. Era preciso, para instaurar com êxito a
pedagogização do sexo, combater o que havia se cristalizado no imaginário acerca do modo
de ser do brasileiro: seu molejo, sua predileção pelas piadas obscenas, sua suposta voracidade
sexual, os jogos de sedução que tornavam o adultério um risco frequente. Enfim, era preciso
atacar uma espécie de fragilidade sublimatória do brasileiro, pois ela estaria impedindo seu
acesso ao mundo civilizado.
Para tornar o sexo uma força motriz de um novo projeto civilizatório para o Brasil,
tornava-se necessário deserotizá-lo. Essa é uma das intencionalidades que podemos marcar no
enunciado “sexualidade não é immoralidade”; o sexual escaparia à imoralidade apenas pela
sua filiação à sciencia sexual, constituída por dois registros: o biológico, centrado na noção de
instinto sexual, que é marcado pelo funcionamento hormonal do indivíduo; e o sociológico,
centrado na ideia de “desenvolvimento nacional”, que em última instância tem também seu
fundo biológico, qual seja, o de zelar pela qualidade biológica da sociedade, da população.

69
Albuquerque (n. 2, 1936). No carnaval do mesmo ano em que o CBES divulgou este artigo criticando as canções
carnavalescas, o bloco carioca “Os Fenianos” levou para as ruas como enredo o tema do preconceito sexual, numa
perspectiva que refletia os interesses dos partidários da educação sexual. Ver: OS FENIANOS e a educação sexual. (1936).
149

3.3 A afirmação de uma nova moral sexual

Na primeira metade do século XX, os médicos que faziam parte do CBES,


representados pela figura de José de Albuquerque, anunciavam o nascimento de uma moral
sexual (ALBUQUERQUE, n. 1, 1936) a ser constituída pelo estímulo à colocação do sexo em
discurso, mas um discurso que deveria ser pautado pelo campo biológico. Contando com o
apoio de juristas, parlamentares, jornalistas e pedagogos que, por diferentes manobras
discursivas, defendiam o fim do silêncio frente às questões sexuais, prescrevia-se uma nova
maneira de abordar a experiência sexual, que só ganhava legitimidade se adstrita aos códigos
da sciencia sexual.
Pairava nos textos sobre educação sexual uma crítica contundente à pedagogia do
silêncio,70 esquiva em tomar o sexo como assunto a ser publicamente comentado e, mais
especificamente, como matéria em torno da qual deveriam incidir estratégias de educação
individual e social. O sexo seria um tema do qual pais, professores, jornais, editores, livreiros,
todos se esquivariam, por medo de serem acusados de atentar contra a moral e os bons
costumes. No front desta cruzada pela educação sexual, estaria a interdição como forma
ultrapassada de controle da vida sexual dos indivíduos. Era necessário permitir a circulação
do discurso sexual; e mais ainda: incitá-lo. Seria necessário preencher as lacunas dos livros de
anatomia, reticentes quanto à reprodução humana, romper o silêncio dos pais e educadores,
justificado pelo receio de perda da autoridade, dever-se-iam reeditar os jornais,71 fazendo-os
tematizar a educação sexual em suas editorias, garantindo-lhes que com isso não perderiam o
respeito da família brasileira, e incentivar os próprios médicos a falar sobre sexo.
Mas não se tratava de deixar sem regulação a ordem do discurso, pelo contrário: o que
se queria era redesenhar seus contornos, de modo a fazer aparecer novos mecanismos de
exercício de poder. E na resistência desses agentes, havia sido localizada no enunciado que
tratava a sexualidade como imoralidade: esse seria o foco da negatividade discursiva em torno
do sexo que deveria ser retificado. A subversão tática dessa resistência seria o mote para a
constituição de uma sciencia sexual. Falar sobre sexo com finalidade pedagógica seria
legitimado por seu enquadre no discurso biologizante e sua filiação com outras formações

70
Ver artigo de José de Albuquerque, publicado sob o título “Da improcedencia do conceito de ‘immoralidade’ que se
pretende ligar ao de ‘sexualidade’”, no Boletim de Educação Sexual, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, nov. 1933. Ver também: O
SILENCIO sexual é um crime (1934); Medeiros (1934a).
71
A adesão da imprensa à divulgação das ações do CBES foi bastante expressiva. Ainda no primeiro ano de edição do BES,
constituiu-se um Circuito Jornalístico do CBES, que contou com a adesão de mais de 700 jornais, difundindo as prescrições
médicas acerca da higiene sexual para as mais longínquas cidades do Brasil.
150

discursivas – por exemplo, a da eugenia e a higiene. Atacando as moralidades sexuais


vigentes e dispersas na família, na escola e na religião, e definindo o sexual dentro dos marcos
epistemológicos da fisiologia e da higiene, o saber médico se afirmava como aquele que
poderia combater os malefícios individuais e sociais que daí advinham.
O que parecia uma estratégia de libertação dos prazeres sexuais, na verdade se
convertia numa higienização da experiência sexual sem precedentes na história do Brasil. Não
se tratava de libertar o sexo de sua carga moralizante, mas instituir uma nova moral, na qual
as pessoas pudessem se libertar e apreender a experiência sexual fora dos registros do
erotismo, para reinscrevê-la num registro estritamente biológico. O reconhecimento da
importância do sexual de modo algum significava uma sexualização social. O bas-fond do
sexo precisava ser capturado numa intricada maquinaria biológica centrada no discurso
hormonal e no discurso neuropsiquiátrico, de modo a educar os apetites a partir de uma nova
cartografia do corpo.
A função sexual não regulava apenas a procriação, mas também todas as funções
biológicas e sociais do organismo. Como se deu essa generalização? A partir da expansão da
compreensão hormonal sobre o corpo humano é que foi possível redefinir o papel das
glândulas sexuais: agora não mais exclusivamente atreladas à função genésica, mas a todas as
funções orgânicas e, por conseguinte, ao indivíduo e ao sexo. As glândulas sexuais figuravam
como coordenadoras da homeostase do organismo. É com o repertório conceitual da
endocrinologia que o discurso da biologização do sexo alcança seu grau máximo.
(ALBUQUERQUE, n. 3, 1934; VOIVENEL, n. 29, p. 3, 1937).
Observemos que o recurso à explicação baseada no sistema nervoso fortalece, por sua
vez, a defesa de uma interpretação neuropsiquiátrica das doenças mentais. Ora, o discurso
psiquiátrico já havia depositado no sistema nervoso, desde o final do século XIX, o substrato
das doenças mentais, o que lhe deu a legitimidade epistemológica necessária à expansão de
suas fronteiras para além do alienismo. Com a sciencia sexual que emergia na primeira
metade do século XX vimos que, aliada ao conhecimento biológico sobre a função sexual,
estava a revisão dos fundamentos da psiquiatria no final do século XIX, quando o discurso da
degenerescência remodelou os objetos e táticas neste campo. Podemos localizar nessa aliança
tática o suporte epistêmico para a pretensa cientificidade do discurso sexológico emergente.
Isso escamoteava o teor moral das prescrições pedagógicas, ainda que os partidários do CBES
afirmassem que eles estavam propondo uma “nova moral sexual”.
Desvencilhar prazer e sexualidade foi uma tarefa da qual se ocuparam os defensores
da educação sexual. Desejava-se difundir, por meio do discurso médico, que o sexo era uma
151

função natural, mas que, se utilizado de modo inadequado, ou seja, voltado para a produção
de prazer, poderia se converter em imoralidade. No Catecismo de educação sexual
(ALBUQUERQUE, n. 3, 1936), o CBES tratou de afirmar a disjunção entre sexo e prazer,
alegando que o prazer é um atributo de todas as funções orgânicas, mas não seria sua
finalidade. A imoralidade sexual adviria desta conversão do atributo em finalidade. O
refinamento que coordenava essa manobra conduziria a um importante argumento: buscando
o prazer, os indivíduos tornariam o sexo imoral, pois incorreriam em práticas antinaturais, que
perturbariam o equilíbrio orgânico dado pelo uso adequado da função sexual. Com efeito,
eram os jogos sexuais prazerosos e a fantasia os pontos de incidência da sciencia sexual, que
deveria criar os meios de neutralizar a força instintual e conjurar, com isso, as práticas sexuais
transgressivas.
À autonomia da função sexual face ao prazer, alia-se o problema da finalidade da
existência humana como definidora do lugar que o sexo deveria ocupar na vida dos
indivíduos. Num artigo de Alcino Rangel,72 apesar de encontramos a defesa do argumento de
que a finalidade da existência e do sexo não é o prazer, a ela se associa um argumento um
tanto heterodoxo dentro dessa formação discursiva: a reprodução da espécie também não é a
finalidade da existência humana, mas sim a aquisição de experiências para o crescimento da
consciência. Encontramos uma solidariedade entre o argumento iluminista de superioridade
humana pela posse da razão e a defesa de uma sexualidade para além do prazer erótico.
Solução interessante para um problema que a animalidade parece interpor entre a razão e o
sexo: como afirmar a animalidade do sexo sem animalizar o homem? Para tanto, era
necessário, simultaneamente, afirmar a condição sexual do homem como adscrita a uma
função biológica e retirá-lo de sua animalidade pela exceção da razão.

72
Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 4, set. 1933.
152

3.4 A importância da ilustração sexual

Num debate em torno da importância da cultura sexual, realizado na 1ª. Semana de


Educação Sexual73, podemos visualizar as alianças que o discurso da educação sexual estava
conseguindo realizar para justificar, pela urgência de suas preocupações, a procedência de sua
intervenção social, mas também afirmar que a necessidade de convencimento público de
médicos, juristas, educadores e parlamentares por seus pares, ilustra quão controverso era o
tema nesses cenários. A começar pelos médicos. Na ocasião, Julio Pires Porto-Carrero
(PORTO-CARRERO, n. V, 1934) precisou justificar a importância da sciencia sexual
emergente para os médicos. Alegando que uma parcela significativa dos médicos não possuía
qualquer familiaridade técnica e teórica com a anatomia e fisiologia do aparelho reprodutor de
ambos os sexos, que não receberam lições de embriologia, que estavam despreparados quanto
às questões afetivas em jogo na relação médico-paciente (ele cita a noção psicanalítica da
transferência), padecendo de cultura psicológica sobre a sexualidade, o médico palestrante
sublinhava uma série de efeitos deletérios à prática médica advindos dessa ignorância. O
traumatismo psíquico ocasionado por falta de habilidade médica em exames ginecológicos
nas mulheres; o recrudescimento de conflitos sexuais, explicitados nas reincidentes tentativas
de sedução das pacientes nervosas não devidamente manejadas pelos médicos; os efeitos
sociais, psíquicos e eugênicos de decisões tomadas acerca do aborto; as dificuldades impostas
ao saber psiquiátrico, domínio cuja lógica etiológica estava centrada na esfera sexual, todos
esses fenômenos eram enfatizados como efeitos da ignorância médica em relação ao tema da
sexualidade.
No discurso jurídico, a “cultura” sexual figura como sendo a chave para a decifração
da criminalidade e para a regulação da ordem familiar.74 Entre o instinto e a razão, o direito
deveria se encarregar de produzir normas que pudessem regular seus conflitos. É assim que a
ilustração sexual deveria ser suporte para as perícias médico-legais, que deveriam fortalecer
sua retórica científica e, consequentemente, sua eficácia. As perícias de hímen, por exemplo,
deveriam estar mais bem subsidiadas pelo conhecimento fisiológico, para que o médico

73
Artigos publicados no Boletim de Educação Sexual, Rio de Janeiro, v. 2, n. 5, set. 1934, e no Boletim de Educação Sexual,
Rio de Janeiro, v. 2, n. 8, nov. 1934. Como palestrantes, foram convidados: Julio Pires Porto-Carrero (medicina); Carlos
Sussekind de Mendonça (jurista); Armanda A. Alberto (pedagogia); Maurício de Medeiros (parlamentar).
74
Mendonça (n. 5, 1934). Ver também: Alves (n. 7, 1935). [discurso pronunciado, em São Paulo, na Semana Paulista de
Educação Sexual, organizada pelo CBES, em 1º de julho de 1935].
153

legista não contribuísse para uma atribuição errônea do valor de troca da mulher dentro da
lógica da aliança.
Era também necessário que o jurista pudesse redesenhar, à luz do conhecimento
médico sobre o sexual, nas fronteiras que diferenciariam a doença do crime, o lugar da
anomalia. É somente quando a psiquiatria pôde dispor de uma psicopatologia sexual, centrada
na noção de instinto, que tem lugar uma possível reinterpretação da atribuição de penas.
Carlos Mendonça (MENDONÇA, n. 5, 1934) nos dá a anedota:

Um policial vê, por exemplo, um homem bem trajado [...] comparecer ao


Palácio Tiradentes para empossar a Comissão Legislativa [...], acotovelar a
multidão defronte ao edifício e, em dada ocasião, ao som do hymno
nacional, desabotoar a bargilha [...]. Investe contra elle furioso, arrasta-o até
a delegacia e autua-o em flagrante como “ultraje público ao pudor”. Que
jurista teria o direito de submeter a processo, mesmo sem laudos técnicos
esclarecedores, esse pobre e typico “exhibicionista”?

A cultura sexual do jurista deveria subsidiar uma nova cartografia dos crimes e suas
dirimentes relacionadas ao sexo. A demanda historicamente contingente de redefinição da
família e dos papéis sociais de sexo tornava urgente a produção de novas normas. É assim que
encontramos, por exemplo, no discurso jurídico que defendia o esclarecimento acerca das
questões sexuais, a denúncia de um descompasso entre o tratamento dado às mulheres
infanticidas e aos homens que cometiam crimes passionais. No enquadre jurídico então
vigente, haveria dirimente penal para o segundo – a legítima defesa da honra – mas não para o
segundo. À luz da sciencia sexual emergente, era possível questionar essa norma jurídica, a
partir da explicitação das contradições sociais que geravam a criminalidade. No caso da
infanticida, antes de mais nada, eram as regras sociais que tornavam a gravidez inconfessável
que deveria ser atacada. Regras que podiam ocasionar uma perversão do instinto – o “instinto
materno” – e que deveriam mudar o status de criminosa para doente.
Subjacente ao debate estava o ataque ao modelo jurídico de filiação católica que,
desrespeitando a ideia liberal de um Estado laico, fabricava normas jurídicas atreladas
catolicismo. Denunciava-se aí o emparelhamento jurídico do crime à heresia: crimes
passionais, excomunhão dos filhos ilegítimos. Com isso, a sciencia sexual explicitava um
inimigo a subjugar: a moral sexual cristã. Não por acaso, o debate em torno do divórcio se
intensifica a partir do grande barulho que foi a emergência de uma sexologia na primeira
metade do século XX. No artigo em questão (Carlos Mendonça), o divórcio será aclamado em
detrimento do desquite, a fim de valorizar o potencial higiênico e eugênico daquele em
154

detrimento deste, mas ao custo de pôr em questão o problema da indissolubilidade do


casamento.
O discurso legislativo também se constituiu como linha de força importante do aparato
normativo da sciencia sexual.75 Um dos eixos de sua atuação era a mudança de fabricação de
normas reguladoras das relações sociais de sexo, que colocavam alguns problemas para a
igualdade preconizada pelo liberalismo. No artigo sobre a utilidade da cultura sexual para os
parlamentares, Maurício de Medeiros,76 da série de palestras na 1ª. Semana de Educação
Sexual, combateu o discurso da desigualdade entre os sexos, atacando a misoginia que
subsidiava a constituição cristã do matrimônio.
A legislação deveria ainda incorporar a sciencia sexual para que pudesse criar
dispositivos legais para criminalizar os atentados contra a saúde individual e social que
poderiam acometer as uniões conjugais. Nesse contexto se encontra o debate em torno da
criminalização do contágio venéreo, por exemplo, inserido no código penal apenas em 1941,
mas pleiteado desde o final do século XIX, como vimos no artigo de Juliano Moreira, de
1899. A recomendação ia além: dever-se-ia modificar o princípio de tipificação dos crimes.
Ele deveria estar fundamentado numa psicobiologia do criminoso e não mais no crime,
fundamentada na ideia de uma “personalidade bio-psychica do criminoso” (MACHADO,
1935).
Sugeria-se também a reforma do sistema penitenciário, no que dizia respeito à
regulação da vida sexual dos condenados. A tese que se passava a defender é que o fracasso
das instituições prisionais era agudizado pela privação sexual de que eram vítimas os
detentos, o que gerava vícios sexuais e comprometia o suposto projeto de regeneração dos
criminosos. A ideia latente é que práticas sexuais realizadas naquelas circunstâncias incitavam
poderosamente a manutenção do criminoso na sua anormalidade (MACHADO, 1935;
ALVES, 1935). Diz-nos Machado: “O processo de continência sexual imposto ao presidiário
é errôneo. [...] o indivíduo que sahe da prisão é sempre um doente, um irascível, quase
inadaptavel ao convívio da sociedade [...] os presídios, como os claustros, geram os vícios
sexuaes”.
No discurso pedagógico (ARMANDA, n. 8, 1934), a cultura sexual se dirige a uma
outra finalidade: educar o sexo das crianças, acompanhar de perto o desenvolvimento

75
O próprio José de Albuquerque chegou a se candidatar a deputado federal. Sua plataforma de mandato legislativo incluía a
criação de preventórios antivenéreos, postos para exame pré-nupcial, distribuição gratuita de livros de educação sexual. Esse
gesto não deixa dúvida sobre a filiação do CBES aos interesses de intervenção eugênica. Ver: Boletim de Educação Sexual.
Para que o Brasil seja dotado de uma legislação sexológica. Anno IV, Rio de Janeiro, n. 6, p. 4, out. 1936.
76
Medeiros (n. 8, 1934). Ver também: Machado (n. 7, 1935).
155

psicobiológico da criança, para coibir os vícios sexuais. Para isso seria necessário estabelecer
uma parceria com a pedagogia da família, alvo da atenção dos educadores, que tomaram para
si a tarefa de educar antes os pais acerca das descobertas sexológicas, para que esses então
pudessem exercer vigilância sobre seus filhos.

3.5 As táticas de conversão dos inimigos em aliados

A questão sexual acabava por se difundir como um debate público inadiável. Os


artigos veiculados no CBES atestam a diversidade de forças que estavam a fomentar tamanho
barulho. O tom messiânico com que os membros do CBES se referiam à causa da educação
sexual e às reações a ela não deixam dúvidas da extensão desse acontecimento. No entanto,
esse debate não era uníssono. Em jogo, estava a transição de um modelo de regulação sexual
sustentada no pudor e na lógica da aliança para o do modelo sociobiologicista, que, na
aplicação ao caso particular, estava centrado na lógica da higiene matrimonial e da saúde da
“raça”.
Essas dissonâncias podem ser acompanhadas pelo modo como os adeptos da ciência
sexual respondiam a seus inimigos. Uma das manobras para tornar o projeto de educação
sexual assimilável socialmente era converter os supostos inimigos – precisamente a Igreja e a
família – em aliados. No que dizia respeito à Igreja, o CBES sublinhava que havia um
interesse compartilhado pela educação sexual, que se manifestava na iniciativa do
“Movimento Social Brasileiro” da Igreja em ministrar cursos de educação sexual. Além disso,
alegava-se que se o objetivo da educação sexual era demonstrar que a sexualidade não era
imoralidade, a ressignificação da experiência sexual – centrada na ideia de função sexual –
deveria tornar médicos e padres aliados na contenção da disseminação da hipersexualização
sexual que se julgava estar em curso na sociedade brasileira. O projeto do CBES saía então
em defesa da sexualidade monogâmica familiar, tão cara ao discurso católico.
Por outro lado, a julgar pela defesa que José de Albuquerque é reiteradamente
convocado a fazer, pairava sobre o projeto higienista de educação sexual a crítica de que a
educação sexual contrariava a moral católica. As dissonâncias que se produziram entre os
católicos foram oportunamente utilizadas pelo CBES para incitar a fragilização da solução
156

católica dada ao problema e, consequentemente, fortalecer a educação sexual nos moldes da


apropriação deste tema pelo saber médico.77
Vejamos como se associam o discurso da educação sexual ao discurso católico.
Admitindo que “sexualidade não é imoralidade”, mas uma sciencia sexual que, através da
biologia e da sociologia, intentava redefinir os rumos da moral sexual no Brasil, o CBES
acabava cooptando como seus aliados segmentos da Igreja, que entendiam que era preciso
uma nova pedagogia do sexo, uma vez que estava em curso uma liberalização dos costumes
interpretada como pura fruição da luxúria que invadia os novos tempos. O projeto médico de
educação sexual afastava-se do discurso católico, que insistia numa pedagogia do silêncio e
do pudor como táticas de conjuração dos perigos do sexo para a Igreja.
Herbert Serpa, na sua tese de 1928, intitulada Ensaio em torno do pudor, contrasta o
que ele chama de “pudor” com “falso pudor”, a fim de desestabilizar o discurso contrário à
educação sexual. Nesse sentido, comparece no texto uma busca pelos fundamentos
neurológicos do pudor, que é definido como uma emoção de ordem psicológica que se
manifesta por uma “excitação intencional” e é adquirido pela educação sexual. Encontramos
nessa tese uma constatação escandalizada de que as mudanças em relação à condição
feminina, às expressões artísticas e culturais, como o cinema, teatro e mesmo o carnaval, que
difundiam a licenciosidade generalizada e condenável, conviviam com uma resistência em
assimilar o tratamento higienista prestado à questão sexual. É a essa aparente contradição que
o médico nomeia como “falso pudor”, que seria perniciosa à eugenia, admitida como a
“vitória do belo, do são e do perfeito” (p. 27). Esse falso pudor era um obstáculo à
intervenção médica no campo do sexual, já que ele favoreceria a manutenção do segredo
sobre certos males que seriam prejudiciais não só ao indivíduo, mas à sociedade. Defende,
enfim, que a educação sexual seja a substituta do “falso pudor”, a fim de que a medicina
pudesse cumprir seu desígnio, qual seja, o de tratar da sociedade, ainda que se tivesse que
sacrificar o cuidado dos indivíduos.
Ora, à Igreja interessava revisitar sua montagem discursiva a esse respeito, pois os
dogmas que regulavam a moralidade sexual cristã estavam sendo fragilizados pelo discurso
biologizante do sexo. No livro do padre Negromonte, intitulado Educação sexual para pais e
educadores, publicado em 1939, podemos encontrar os vestígios da visão católica com a qual
se confrontava o projeto higienista de educação sexual. Submetido ao crivo da hierarquia

77
Ver: A IGREJA Romana não combate a educação sexual (1933). Ver também: Albuquerque (n. 3, 1934; n. 8, 1935).
157

eclesiástica,78 propunha-se uma revisão da pedagogia do silêncio praticada quando o assunto


era a moral sexual. Habilmente, o padre Negromonte afirmava que o sexo não é uma
necessidade, mas uma “força de atração” orientada para o fins divinos. Restitui ao instinto
sexual a sua magnitude, depreciada pela Igreja a partir da noção de pecado, para promover
uma mudança significativa em relação à pedagogia sexual. A pedagogia do silêncio passa a
ser criticada em nome da superação da diacronia da Igreja em face das exigências do seu
tempo, por um lado, mas por outro, por uma espécie de solidariedade involuntária ao discurso
médico, no que dizia respeito à importância que o sexo assumia no agenciamento dos
indivíduos e dos grupos sociais.
Argumentando que o sexo não é uma necessidade, a Igreja se punha em tensão contra
o que se chamava de “moral sexual natural”, defensora da supremacia do instinto sobre a
conduta humana. Neste bloco, entrariam tanto os higienistas (que haviam tornado o sexo um
problema de saúde pública), quanto os pansexualistas (“teóricos dos vícios sexuais”), ou
mesmo, simplesmente, aqueles que cultuavam o erotismo como grande força da natureza e ao
qual o homem estaria atavicamente submetido. Esta moral naturalista era combatida, pois
ameaçava frontalmente os dogmas cruciais para a manutenção da supremacia católica: a
castidade, a monogamia, a indissolubilidade do matrimônio, a finalidade estritamente
reprodutiva da experiência sexual. Desta forma, tal moral representaria um “sentido errôneo”
para a educação sexual, não só no valor semântico, mas no seu vetor prescritivo.
A Igreja passava a reconhecer que a pedagogia do silêncio apresentava alguns
inconvenientes: a iniciação clandestina, na qual a criança ou jovem buscaria com amigos ou
outros tutores ilegítimos os esclarecimentos acerca do enigma sexual, o que poderia desviar
do verdadeiro e sagrado sentido do sexo, resvalando para sua depreciação e profanização.
Além disso, o silêncio poderia gerar uma espécie de “orfandade moral”, segundo a qual os
pais, eximindo-se de sua função orientadora, dariam margem ao sentimento de abandono
moral, além de inserir, com esse gesto, o sexo numa espécie de tabu. O silêncio incitaria o
desejo de fazer sexo, mas pô-lo em discurso o desmistificaria e contribuiria para estabelecer
normativamente um sentido mais conveniente à Igreja: o de uma força de atração que deveria
estar a serviço de Deus.
Qual era então o sentido normativo da educação sexual católica? Dominar o instinto e
governá-lo pelo espírito, através da castidade pré-matrimônio e da monogamia do casamento

78
O livro foi prefaciado com um parecer do padre Helder Câmara, então assistente eclesiástico do Secretariado Nacional de
Educação da Ação Católica e Técnico do Ministério da Educação e Saúde Pública, endereçado ao Arcebispo D. Antonio dos
Santos Cabral. Nele, o parecerista ratificava a publicação do livro e o recomendava como guia para os educadores católicos
no enfrentamento de um tema que consideravam de difícil abordagem pelas ameaças aos dogmas católicos.
158

indissolúvel. Como a castidade começava a se tornar um tema anacrônico, o discurso


religioso se solidarizou com o discurso sanitarista, para positivar a castidade dando-lhe um
valor de saúde. Finalmente, o plano de educação delineado se baseava em quatro
procedimentos: legitimar a função sexual como parte da criação divina; continuar a defender
o pudor como elemento central da moral sexual; positivar a castidade pela via de sua inserção
no discurso da saúde; e finalmente, insistir na subordinação dos instintos à civilização.
Soluções táticas diferentes para o mesmo problema, que ora se antagonizam, mas que
também estabelecem pontos de contato: eis o modo como podemos entender o enfrentamento
entre a Igreja e a medicina na pedagogização sexual do brasileiro. Se por um lado a educação
sexual havia se tornado um tema de relevância para ambos, por outro, os encaixes discursivos,
as táticas e as motivações não eram as mesmas, como tentamos esboçar. Interessava à Igreja
uma recondução no modo de governo dos fiéis em relação à questão sexual, mas que
preservasse seu núcleo dogmático, estando por isso justificado o interesse pelo tema. Mas o
que acabou se constituindo como uma concessão política à “moral sexual natural”, para usar
os termos de Negromonte, era utilizado como meio de afirmar, por novos procedimentos
referidos anteriormente, a doutrina católica. O projeto da higiene, por sua vez, estava
interessado em difundir a educação sexual como mecanismo profilático da degeneração,
expressa na criminalidade, na psicopatologia sexual, na doença venérea, na loucura. Tentava
aproximar-se do discurso da Igreja, apresentando-se como um saber que poderia intervir na
crise moral que tornava cativos os brasileiros.
Quanto aos defensores da tradição familiar brasileira, a tática de aproximação era
semelhante, embora se particularizasse no teor dos argumentos. José de Albuquerque também
reagia a uma acusação de que a educação sexual acabaria com a família brasileira, que era
baseada na alegação de que pôr o sexo num circuito de produção discursiva de modo
incessante poderia estimular a licenciosidade. Ele reproduz a crítica de que era vítima da
seguinte forma: seus detratores veriam a estabilidade dos vínculos conjugais e parentais
ameaçados pelos sucessivos ataques que os partidários da educação sexual faziam à
pedagogia do silêncio, núcleo da regulação familiar das questões sexuais, segundo a lógica da
aliança, e que pressupunha um controle ostensivo da castidade das filhas, da iniciação precoce
dos filhos e da monogamia da esposa.
A fim de aproximar politicamente a instituição familiar do programa de educação
sexual, tratava-se de dizer que a “harmonia conjugal” não era ameaçada por tal projeto; ao
contrário, havia um mútuo interesse em relação à manutenção da família. Todo o esforço do
médico na divulgação da pedagogia sexual seria dirigido à prevenção dos fatores que mais
159

comumente levavam à fragilização e consequente dissolução da família. Desta forma, sob a


tutela da sexologia nascente, as famílias poderiam solucionar os traumas sexuais decorrentes
do desconhecimento da anatomo-fisiologia, especialmente da mulher; as desavenças na
relação entre os cônjuges devido às modificações físicas e morais advindas de certas
condições das funções sexuais (menstruação, puerpério, menopausa); e os sofrimentos
ocasionados aos filhos pela falta de integração entre os pais. Somente através de uma sciencia
sexual seria possível promover uma mútua compreensão entre os cônjuges, o que protegeria o
casamento dos desquites obtidos pela alegação de “incompatibilidade de gênios”. Além disso,
os adultérios, as doenças venéreas e os filhos ilegítimos poderiam ser devidamente evitados
pelo acesso à verdadeira moral sexual, que era assegurado pela sciencia.79

3.6 Os agentes da educação sexual

O programa de educação sexual não se dirigia a todos os indivíduos indistintamente. O


interlocutor passivo dos documentos médicos e pedagógicos desse período é a família. Não a
família proletária, que no discurso médico era a fonte do perigo e não alvo da proteção.
Tratava-se de salvaguardar certos princípios de distinção social da burguesia nascente. É aos
pais que são lançados os apelos de vigilância sexual dos seus filhos, de aconselhamento
acerca da instrução sexual. É a criança o alvo privilegiado dessa empreitada.
A colaboração das mulheres com a educação sexual, seja por sua função de esposa,
seja pela função de mãe, foi crucial para o êxito da campanha do CBES. Uma parcela
significativa das audiências nos cursos e eventos promovidos por essa instituição era
constituída por mulheres. Elas também começam a publicar no Boletim matérias acerca da
educação sexual das crianças. (MENDONÇA, n. 1, 1935). Apelava-se para a mãe como
agente importante na difusão da nova moral emergente (ALBUQUERQUE, n. 8, p. 1, 1934).

[...] Além do manual religioso, do romance, do livro de versos, os paes começam a


pôr nas mãos de seus filhos, livros de pedagogia sexual, porque só no dia que sua
leitura for familiar aos jovens de ambos os sexos, poderão elles orientar
racionalmente sua conduta sexual. [...] Ninguém porcerto [as mães], se si assim é,
quão importante se nos afigura essa acquisição, para o êxito integral de nossa
campanha! Por que as mães de familia, se veem expontanea e enthusiasticamente
chegando a nós, assistindo nossas conferencias, applaudindo nosso programma,
procurando adquirir livros sobre sexologia, e no dia seguinte encaminhando suas
filhas e filhos adoelscentes aos mesmos logares onde nos viram pregando na

79
Ver: EDUCAÇÃO SEXUAL e harmonia conjugal (1935).
160

véspera? [...] Incontestavelmente porque sabem que a verdade está do nosso lado, e
que a felicidade só pode ser encontrada pela criatura que a reconhecendo, dirige
conscientemente seus passos, afastando-se do perigo que um sem número de vezes
se lhe há de deparar sua trajectoria de vida! (p. 1)

Além disso, a manobra tática que se empreendia no sentido de agenciar as mulheres no


projeto era de condenar a premissa de “inferioridade do sexo feminino”, dar voz ao direito a
ter um sexo, mas recusar-lhe o direito à igualdade. Afirmar a diferença contra a inferioridade,
sem, no entanto, ferir de morte a submissão da mulher a seus lugares naturalizados,
complementares ao do homem.80 Em outro artigo de autoria de Miguel Couto (1928),
intitulado “Educação e Saúde”, reafirma-se o valor que a saúde vai assumir nessa formação
discursiva. A mãe e a criança são figuras que devem ser assistidas pelo Estado. A tutela da
infância pelo pai simbólico que seria o Estado deveria contemplar saúde, educação, creches e
escolas, cuja iniciação serviria a uma “orthopedia moral”, para garantir a saúde da “raça”.
A tese de Raul Brandão, de 1910, intitulada Breves considerações sobre a educação
sexual (BRANDÃO, 1910), vinculada à cadeira de medicina-legal, nos dá algumas pistas
nesse sentido. Curiosamente, essa é uma tese que apresenta um discurso médico que vai
desferir simultaneamente golpes à família, à escola e à Igreja, atacando pontos que pareciam
criar obstáculos à estratégia médica de normalização dos indivíduos por meio dessas
instituições. A função da mãe é valorizada como sendo a única capaz de produzir uma
verdadeira educação moral à prole. No particular da educação sexual, caberia à mãe instruir
os filhos quanto à questão sexual, respeitando a curiosidade infantil neste quesito e
transmitindo-lhe uma concepção do sexo como uma função biológica, fazendo-a equivaler ao
senso genésico. Para isso, era necessário intervir na constituição da “boa mãe”, precocemente
educada para este fim. A medicina se propunha a redefinir o que seria o bom exercício da
maternidade e da paternidade.
A mãe que aparece no discurso médico é aquela que, malgrado sua nobre função, não
sabia ao certo como exercê-la, pondo em risco a formação física e moral dos indivíduos e,
consequentemente, da sociedade. A primeira delas é a atribuição às amas pela precocidade
sexual dos filhos da família burguesa, razão pela qual era necessário apartá-las da
responsabilidade de educação dos filhos bem nascidos. Convocavam-se as mães a assumir seu
papel na formação de seus filhos. Prescrevem-lhes uma rotina pedagógica que começa com
educação física como meio de “anesthesiar o sentido sexual” de seus filhos.

80
Ver: DA IMPROPRIEDADE do conceito de supremacia de sexo (1935).
161

Considerando ser a família inábil para cuidar de sua prole, os médicos ofereciam seu
saber como o único capaz de defender a sociedade do “cativeiro moral” ao qual estava presa.
Acusavam a escola de asfixiar intelectualmente as crianças e jovens, com suas estratégias
educativas ineficazes e com ambiente produtor de vícios e aberrações sexuais. Os internatos,
especialmente, eram atacados como produtores das mais variadas taras: “adulterinos,
incestuosos, homossexuais, cretinos” (BRANDÃO, 1910, p. 7). Se o internato masculino
produziria a homossexualidade, os conventos seriam uma ameaça à família, uma vez que
afastaria as jovens de sua formação de mãe e esposa. Atacavam a confissão católica como
fonte de incitação do desejo e da curiosidade sexual desde a infância.
Virtualmente, todas as instituições seriam produtoras de patologias morais e mesmo
físicas – do seminário ao exército – menos a família. Taxando-as de anti-higiênicas,
intentava-se neutralizar seu poder e desestabilizar a confiança da família – verdadeiro alvo da
intervenção higiênica novecentista e que seria o único lugar adequado à formação moral (e
mais facilmente cooptada para pela sua permeabilidade ao saber médico), desde que
devidamente assessorada pela figura do médico. Tratava-se de um ensaio que iria defender a
estrutura família nuclear, sob o pretexto de que dessa forma se poderia produzir o tão
almejado equilíbrio social.
Como detalharemos no próximo capítulo, o sexo das crianças deveria ser educado para
que se pudesse fazer profilaxia dos crimes, das doenças e dos vícios que acentuavam o risco
de degeneração social. É com esse intuito que pacientemente a medicina vai aconselhar as
mães a explicarem a seus filhos, sempre que, e somente se, espontaneamente eles a
demandarem, as questões sexuais, que seriam salvas do tom da imoralidade pela filiação do
sexo à ordem da natureza. Mas os rumos dessa empreitada iriam muito além do
esclarecimento sexual das crianças, verdadeiro alvo da educação sexual.
162

4 O SEXO DAS CRIANÇAS

4.1 Da puericultura

Na passagem do século XIX para o século XX, organizava-se uma nova tática na
atenção dos higienistas e, alguns anos depois, dos eugenistas para com a infância: a
puericultura.81 O cuidado com a criança sai do nível estritamente discursivo – cujo escopo era
sensibilizar a própria classe médica no século XIX – e passa ao nível das práticas
institucionais, já inseridas, àquela altura, no discurso da seleção racial. Na memória que
Alfredo de Magalhães (1930)82 apresenta na GMB, com a criação do Instituto de Protecção e
Assistência à Infância, em 1899 no Rio de Janeiro, e em 1903 em Salvador, a “puericultura
profilática” é recodificada como domínio voltado para a eugenização da população. Em nome
da proteção à infância, tal projeto tinha no seu horizonte político defender a sociedade das
taras hereditárias e do avanço de uma massa de desassistidos, a fim de constituir, com isso,
uma população robusta sob o solo da eugenia, já em curso a partir do final da década de 1910,
como vimos anteriormente. Uma campanha pró-puericultura, que contou com 38 colunas
veiculadas no Jornal de Notícias, no período de 20 de outubro de 1903 a 30 maio de 1905,
institui as bases para educação eugênica através da criança:

Herdam os filhos dos pais não somente as boas qualidades, porém ainda as más,
tanto a compleição athlética como a contextura rachitica, a saúde e a moléstia. É
claro, por conseguinte, que, tendo em mente o objetivo de alcançar homens fortes,
não podemos esquecer a necessidade de obter meninos sãos, sadios. A própria
herança poderá ser a nossa arma de combate. Tudo está em saber manejal-a, em
querer aproveital-a utilmente. [...] Os homens pais não sentem a necessidade da
escolha para ter filhos sãos? [..]Pela seleção se consegue conservar os cárteres úteis,
vantajosos, e banir os nocivos, desagradáveis. [...] em prol da infância aconselhamos
e pedimos a seleção dos esposos, effectuada pelo matrimônio (fragmentos do artigo
intitulado “Tal Árvore, Tal Fructo”, publicado originalmente no Jornal de Notícias,
art.XXIX, mar. 1904, transcrito para a GMB em junho 1930).

81
Apesar de a aparição do termo “puericultura” ter ocorrido no século XVIII na Suíça (especificamente, em 1762, num
tratado de Jacques Ballexserd), no Brasil isso ocorrerá a partir do final do século XIX, quando Moncorvo Filho fundou o já
citado Instituto de Protecção e Assistência à Infância, que buscava oferecer serviços vinculados aos aleitamento, mas
sobretudo sensibilizar a elite brasileira acerca da importância do cuidado com a infância. Embora a preocupação higiênica
com a criança já estivesse visível desde o começo do século XIX, como vimos no capítulo 3, é apenas na passagem do século
XIX para o XX que a puericultura se institucionaliza. Entre as décadas de 1930 e 1940, são criadas: a Diretoria de Proteção à
Maternidade e à Infância, a primeira cadeira de Puericultura da Faculdade Nacional de Medicina (Martagão Gesteira será seu
primeiro ocupante, em 1937) e, em 1940, cria-se o Departamento Nacional da Criança. (BONILLHA; RIVOREDO, 2005;
MARTINS, 2008).
82
Este trabalho havia sido originalmente apresentado no 1º Congresso Brasileiro de Eugenia, realizado em 1929. Ver:
Magalhães (1930).
163

O problema da infância desassistida era posto em relevo para reforçar a necessidade


de cuidado devotado à educação, sobretudo nas primeira e segunda infâncias. Esses “seres
esfarrapados” eram o retrato que a medicina utilizava para responsabilizar os pais e
professores pela produção de futuros “homens imprestáveis à família, à sociedade e ao seu
paiz” (p.10). Discurso sedutor, a puericultura empenhava-se em demonstrar que a capacidade
de formar seres humanos saudáveis, felizes e fortes estava na aceitação familiar e escolar
desse desígnio médico: “uma vez normalizada a existência pelas leis da hygiene, poderão
gosar o prazer de ver esses pequenos seres, verdadeiros anjos do lar da família, viverem e
crescerem em uma atmosfera de saúde, vigor e felicidade” (LOUREIRO, 1906, p. 24).
Como podemos notar, as velhas prescrições novecentistas são recodificadas, a partir
da assimilação de novos pressupostos. Em primeiro lugar, não é apenas a preocupação com a
mortalidade infantil que justifica a intervenção médica na atenção à infância. Trata-se, ao
contrário, de fazer uso do darwinismo para abordar o problema pela perspectiva da seleção
natural, difundindo-se o lema de que era preciso vencer a luta pela sobrevivência e, para isso,
era preciso se preparar para estar no grupo dos mais aptos. Em segundo lugar, a ênfase dada à
infância remete à ideia de que ela seria a base para constituir uma população saudável,
categoria de alta importância para o fortalecimento do Estado, algo que já não era novidade
no Brasil do século XIX, mas que ganha novo fôlego a partir da recodificação da higiene da
infância pelo discurso eugenista, cujo núcleo discursivo, como vimos, era subsidiado
politicamente pela noção de degeneração. Em suma, esses pressupostos compõem uma
formação discursiva que possibilita justificar uma estratificação entre as formas de vida que
merecem ser cuidadas e as que estão condenadas pelo discurso médico a nem chegar a existir.
A preocupação com a criança se consolida, definitivamente, a partir da multiplicação
de mecanismos institucionais, como o alvo principal da estratégia de salvaguardar a saúde da
população e da nação. Para tanto, os veiculadores da puericultura pretendiam aprofundar o
convencimento para tornar a própria corporação médica e a família favoráveis ao argumento
da seleção matrimonial e da centralidade da infância, incumbindo-se da tarefa de mediar os
interesses de fortalecimento da regulação estatal dos indivíduos. Com efeito, o movimento de
eugenização do Brasil começa a se apresentar como única solução para viabilizar o
fortalecimento da nação, através de uma população saudável, o que se traduzia como “raça
não-degenerada”:

Cultivemos a criança como plantinha humana que é. O que faz o


arboricultor quando se dispõe a bem alcançar seus intuitos? Escolhe a
164

semente, pondo de lado as verdes e as velhas, as mofadas ou bichadas,


servindo-se das novas, bem sazonadas, perfeitas, integras. Não entrega
esta semente ao seio da terra má, pobre de seiva, incapaz de
recebendo-a dar-lhe o carinhoso e tépido agasalho que permitta
desabrochar, patentear a vida, que encerra, de uma nova plantinha.
Assim precisamos proceder cultivando o menino, fazendo-nos
puericultor. Devemos seleccionar os reprodutores a espécie, o homem
e a mulher, trabalhando activamente, ensinando as condições em que
se podem e em que se devem casar83(MAGALHÃES, 1930, p. 537).

Uma terceira etapa da puericultura se consolidou no Brasil a partir da década de 1930 e


dizia respeito à educação das mulheres para o exercício da maternidade, repetindo, com uma
defasagem de poucas décadas e com algumas particularidades, o movimento da puericultura
que se processou nos EUA, na Inglaterra e na França. Segundo a autora, que analisou os
manuais de puericultura produzidos no Brasil entre as décadas de 1930-1960, os médicos
organizaram aí o terceiro eixo de intervenções voltadas para a fabricação da maternidade
higienizada. Nesses manuais, o tom discursivo era de uma relação de maestria, que
desqualificava frequentemente, de modo rude e autoritário, o saber leigo da tradição de
criação de filhos. O que se consolida nesse endereçamento às mães é a construção de uma
demanda pelo saber médico na criação dos filhos, de modo a criar uma forte dependência das
recomendações médicas nesse âmbito e desestabilizar os pilares da tradição familiar que se
desfaz justamente pela intromissão do saber médico nos diferentes eixos que compõem sua
dinâmica: maridos-esposas; pais-filhos. Esse terceiro eixo – o da pedagogia materna –
concretiza a premissa política da medicina de que a figura da mãe deveria ser o agente
principal da difusão do ideário moderno de construção de uma população saudável.
(MARTINS, 2008).
O enunciado “primeiramente criemos o animal, depois o homem” (LOUREIRO, 1906,
p.4) nos revela que antropologia está em jogo no discurso da puericultura de então. Destacar a
condição animal reflete a inscrição na tradição biológica da compreensão do estatuto de
homem. Era preciso atentar para a espécie, antes de mais nada. Mas, curiosamente, ao estoque
hereditário se superpunha o discurso pedagógico, que previa que os “coeficientes individuaes”
se somariam os “coeficientes externos” na produção do comportamento, razão pela qual pais,
educadores e médicos deveriam estar muito vigilantes em relação à educação de seus filhos.
Para tanto, a partir do começo do século XX, as prescrições acerca da higiene da infância não
vão estar restritas à saúde física das crianças. O controle do vício, da criminalidade e das
anomalias de todas as ordens, vai exigir uma reconfiguração dos alvos dessas intervenções. É

83
Trecho originalmente apresentado em 1919, na cidade de Alagoinhas, Bahia, em comemoração ao Dia da Criança.
165

nesse sentido que a profilaxia mental ganhará cada vez mais espaço dentre os cuidados que
serão ofertados pelo saber médico à infância. Um novo domínio discursivo e novas táticas se
formam, então, a partir de um objeto inusitado: a fabricação do sexo das crianças.
Longe da pretensão de reconhecer a multiplicidade do desejo, os médicos brasileiros
visavam a dois objetivos que, vindos de matrizes diferenciadas, eram, no entanto, solidários:
de um lado, estancar o que se considerava a produção maciça de degenerados (físicos e
morais), cujo núcleo etiológico seria sexual, através da intervenção desde a tenra infância; de
outro, constituir indivíduos plenamente adaptados, que pudessem se ajustar às exigências
sociais. Indivíduo livre de graves taras hereditárias e bem ajustado às regras sociais: essa é a
figura que a medicina vai perseguir no adulto que a criança do século XX deveria se tornar.
Para tanto, era imprescindível fabricar a tese da sexualidade infantil, para demarcar a aparição
de seus perigos. Vejamos como se constituiu, no Brasil, esse novo ideal que deveria ser
fabricado já desde a tenra infância.
O substrato teórico desse projeto consiste numa apropriação higiênica das ideias
freudianas acerca do desenvolvimento psicossexual, que começavam a se difundir já nos
primeiros anos do século XX, que pareciam promissoras para a viabilização do projeto de
uma pedagogia que incidisse, simultaneamente, sobre o físico, moral e intelectual. Antes que
passemos a uma análise mais detalhada dos documentos brasileiros acerca da positivação da
sexualidade infantil, será útil resgatar na obra freudiana dois aspectos: o posicionamento de
Freud face ao discurso da degenerescência e o contraponto oferecido pela ideia da
perversidade-polimorfa infantil, de um lado, e de outro, os lugares do sexual na sua
compreensão do funcionamento psíquico e do mal-estar na modernidade, circunstanciados
pelas descontinuidades operadas na sua teoria pulsional. Essa estratégia de leitura teve como
ponto de partida o comentário de Foucault (2005a, p. 140-141) acerca da recusa freudiana do
discurso da degenerescência e se serviu da análise que Birman vem realizando acerca da
posição da psicanálise no projeto (bio)político da modernidade (2000, 2001, 2003, 2006,
2007).
Esperamos que este breve esquadrinhamento possa gerar mais subsídios para
problematizar certos aspectos da recepção das ideias freudianas acerca da experiência sexual
infantil entre os higienistas e eugenistas brasileiros, sobretudo aqueles que estiveram
vinculados à Liga Brasileira de Hygiene Mental e ao Círculo Brasileiro de Educação Sexual,
suas principais vozes institucionais. As particularidades dessa tradução estiveram enredadas
pela intencionalidade de realizar profilaxia social subsidiada pelo discurso da degeneração,
cuja ênfase recaiu fortemente na tentativa de naturalizar as iniquidades sociais forjadas no seu
166

longo passado escravagista. Como veremos, Freud foi curiosamente assimilado pelos médicos
brasileiros da primeira metade do século XX como afeito às finalidades do discurso da
degenerescência.

4.2 A sexualidade perverso-polimorfa e a crítica à degenerescência na teoria freudiana

Nos prefácios das sucessivas edições do texto “Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade”, publicado em 1905 e modificado ao longo dos vinte anos subsequentes
(historicidade marcada no texto), Freud (1988a) faz notar que o solo de constituição de sua
investigação é a experiência psicanalítica. Esta coordenou as ênfases e supressões que ele
imprimiu ao seu texto e do qual se ressentiram seus críticos à época, sobretudo pelo uso
particular que fez da biologia para pensar os fenômenos sexuais. A defesa de uma
preocupação centrada não na filogenética, mas na ontogênese, será crucial para entender sua
posição crítica em relação ao peso atribuído à hereditariedade e ao seu correlato
psicopatológico, a degeneração. No prefácio à terceira edição (1914), ele demonstra uma
interpretação acerca da noção de predisposição que, se de um lado, arrisca um
reconhecimento de que a filogênese importa para os destinos do sujeito, por outro, ela estaria
submetida, no seu pensamento, à condição de herdeira das vivências acumuladas ao longo da
história filogenética. Para Freud (1988a), a experiência era o que, no fundo, poderia modificar
a filogênese.
A crítica ao discurso da degenerescência há muito já havia sido esboçada. Já em 1894,
no seu artigo “Neuropsicoses de defesa” (FREUD, 1994a), ele critica a perspectiva janetiana
de que a divisão da consciência seria um traço primário da histeria causado pela degeneração,
admitindo como explicação alternativa que a divisão decorreria de uma incompatibilidade da
vida representativa do sujeito, ocasionada por um conflito de ordem sexual, que provocaria
uma perturbação ao nível da vinculação entre afeto e representação. Os subsídios a essa
crítica receberão maior detalhamento, dois anos depois, no seu artigo intitulado “A
hereditariedade e a etiologia das neuroses”, de 1896, quando ele se utilizará alguns
argumentos, baseados na sua experiência como médico, a fim de atacar, pelo seu interior, a
fragilidade da teoria da hereditariedade. O primeiro deles se dirigia à inespecificidade: haveria
vários problemas aos quais se atribui origem nervosa, mas que na verdade não são dessa
ordem. Além disso, atribuir a toda e qualquer afecção nervosa encontrada na família a prova
167

da hereditariedade de uma doença nervosa é tornar indistinta família livre de predisposição


hereditária da que a teria: de onde podemos extrair sua segunda contestação: a da
generalização da degeneração (FREUD, 1994b).
Utilizando-se da distinção entre hereditariedade similar e hereditariedade dissimilar,
Freud alega que há doenças em que a carga hereditária é inegável (no primeiro caso), mas há
outras em que não se consegue estabelecer uma regularidade confiável entre as doenças
apresentadas numa determinada família e a doença específica de um indivíduo, inclusive não
se podendo explicar com segurança por que uma pessoa pode sucumbir a uma doença sem ter
uma carga hereditária, e outra, com a mesma carga hereditária, manter-se saudável. Freud
complexifica o modelo etiológico da hereditariedade atribuindo-lhe três vetores: as
precondições, condições indispensáveis na produção da neurose, mas são de caráter geral; as
causas concorrentes, que estão na etiologia de vários distúrbios, mas não são específicas do
distúrbio em causa; e as causas específicas, que são igualmente indispensáveis, mas como o
nome já diz, comparecem na etiologia de um distúrbio específico. Estava justificada a
necessidade de investigação da “etiologia específica” da neurose e a necessidade de relativizar
o peso atribuído à hereditariedade, recusando sua generalização como explicação etiológica
para as neuroses e sublinhando a aquisição dessas no processo de constituição subjetiva.
Desde lá ele já sabia que a hereditariedade representava um niilismo terapêutico ao qual não
queria de filiar, ao contrário da aposta na “via de acesso”, que poderia ser aberta pela busca da
etiologia específica. Sua aposta residia não na história da espécie, mas na história da
constituição da subjetividade.
Nos “Três ensaios”, reaparece a crítica à teoria da degeneração. Na sua leitura sobre a
“inversão sexual”, Freud (1988a) vai criticar a interpretação psiquiátrica que a considerava
uma manifestação da degeneração. Considerando-a como uma atribuição pertinente apenas
quando houvesse múltiplas incidências mórbidas no mesmo indivíduo e quando sua
capacidade funcional estivesse comprometida, Freud critica a generalização e a importância
dada à degeneração como fator explicativo para a patologia mental. Explicitamente, ele critica
Magnan como tendo estendido a degeneração ao que poderia ser considerado mesmo como
funcionamento nervoso nobre e exemplar.84 O enquadramento do “invertido”85 como
degenerado não procederia nem mesmo se pensado no interior da própria teoria da
degenerescência, pois não atendia nem mesmo aos critérios já discriminados – concomitância

84
Ver comentário sobre a teoria da degenerescência de Magnan no capítulo 2.
85
Os impasses da teoria freudiana em relação ao homoerotismo escapam ao objetivo do argumento em questão, qual seja, o
de situar a posição de Freud em relação à degenerescência. Remeto o leitor interessado ao livro de Jurandir Freire Costa, A
face e o verso: estudos sobre o homoerotismo, de 1995.
168

de desvios em relação à norma e comprometimento da capacidade de funcionamento e de


sobrevivência. Freud recorre ainda ao argumento antropológico segundo o qual a inversão era
muito frequente e culturalmente valorizada nos povos antigos, razão pela qual não poderia ser
atribuída à degeneração, muito frequentemente associada, como vimos no capítulo 4, aos
problemas produzidos pela civilização. Mas o argumento decisivo que lhe servirá de
contraponto ao discurso da degenerescência reside na ideia da disposição sexual perverso-
polimorfa.
Distanciando-se do discurso da degenerescência, Freud vai afirmar muito
precocemente no seu trabalho, em 1905, nos “Três ensaios”, a partir de sua leitura dos
“desvios sexuais”, que a pulsão não possui objeto fixo. No momento inicial da vida humana,
inclusive, a pulsão seria independente do seu objeto, detectável por Freud a partir das
experiências de satisfação sexual, codificadas por ele a partir do conceito de autoerotismo.86
Tal afirmação pretendia esmaecer a ligação entre esses termos, de modo a fragilizar o
argumento da psicopatologia da época, cuja nosografia estabelecia objeto e finalidade fixos
para a pulsão sexual, fora dos quais todo comportamento deveria ser considerado uma
“aberração”. As ditas transgressões sexuais seriam muito mais frequentes na vida cotidiana,
não merecendo por isso o designativo de patológico. Nesse sentido, a fixação de libido, a
inversão, a transgressão anatômica fariam parte do repertório psíquico corriqueiro da pulsão
sexual. Freud tenta desvencilhar a noção de desvio da noção de patologia, criticando a
superpatologização que o discurso da degenerescência teria imprimido ao âmbito sexual.
Nem mesmo nos casos em que a pulsão sexual desafia as resistências psíquicas –
“vergonha, asco, horror ou dor” (FREUD, 1988a, p. 152) – para se satisfazer, e que poderiam
merecer o designativo de patologia (ele cita os atos, não as categorias nosográficas: “lamber
excrementos, abusar de cadáveres”), ele admite como necessária a conexão com a doença
mental (ou seja, com a degeneração). Para Freud, a perversão se denominaria patológica na
presença de atributos (exclusividade e fixação) que regeriam a vida sexual dos indivíduos, ou
seja, a perversão poderia se configurar como patológica apenas quando o alvo desviante
fixasse o sujeito numa relação de exclusividade. Com efeito, sem recusar o termo
“perversão”, pois sustenta a ideia de transgressão sexual do alvo e dos objetos, ele lhe atribui
novo significado: ela sai do registro psicopatológico e se inscreve na dinâmica psíquica

86
Essa noção havia sido proposta por Havelock Ellis em 1910, segundo nota de rodapé acrescentada por Freud, em 1920, ao
texto “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade”, mas divergia do uso psicanalítico por estar centrada na origem da
excitação e não na relação com um objeto.
169

montada para satisfazer o imperativo pulsional de satisfação. Nesse sentido, as perversões


seriam emblemáticas da “onipotência do amor” (FREUD, 1988a, p. 153).
Em 1915, no texto “A pulsão e suas vicissitudes”, Freud (1988b) vai afirmar que a
pulsão é uma força constantemente sedenta de satisfação, sem necessariamente encontrá-la
diretamente; a pulsão sexual estaria atrelada ao trabalho de inscrição de traços psíquicos, pois
provocava uma “exigência de trabalho” ao psiquismo.87 Contrastando com o discurso vigente
à época sobre a psicopatologia sexual, Freud vai afirmar que a sexualidade infantil, na sua
polimorfia-perversa, refletiria a disposição subjetiva por excelência em relação ao desejo
sexual.
A defesa freudiana de que a neurose seria o negativo da perversão, quer dizer, que o
sintoma substituiria uma disposição à satisfação irrefreável da pulsão sexual, está subsidiada
pela análise da persistência no adulto dessa disposição perversa infantil. O indivíduo seria,
portanto, de saída, marcado pela experiência autoerótica, podendo ser sucedida por uma
parcialização das pulsões, cujos objetos – não-fixos, nem suficientes– se dirigiriam à
finalidade de satisfação, sempre incompleta. A integração das pulsões pela genitalidade se
constituiria como um ponto de chegada dessa normatividade sexual engendrada na infância. A
experiência sexual infantil, cujo estatuto aparece agora reafirmado, é o espaço de maior
visibilidade dessa polimorfia, persistindo algo de perverso na vida sexual do adulto normal,
de modo que as estratégias de normalização psíquicas e sociais para o agenciamento do
excesso sexual estariam sempre fadadas a algum nível de fracasso.
Freud, no entanto, hesitou em afirmar a existência da sexualidade infantil. Em
“Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa”, de 1896, ainda sob a influência
da teoria da sedução, ele vai discutir a natureza dos traumas sexuais – cuja existência já havia
sido afirmada no texto de 1894 sobre o tema das neuropsicoses de defesa –, mas sobretudo vai
defender sua origem na tenra infância (FREUD, 1983). As reminiscências que apareciam nos
relatos de seus pacientes lhe ofereceram um caminho que o conduziu a pensar que
experiências sexuais ativas originavam a neurose obsessiva, o que contrastava com a histeria,
cuja causa específica deveria ser situada numa vivência sexual passiva, circunscrevendo aí a
experiência sexual infantil como uma aparição precipitada pela presença de um adulto.88

87
Nesse momento de sua metapsicologia, ainda não estava previsto que pudesse existir pulsão sem representação, ideia que
surgirá somente a partir da década de 1920, quando um novo dualismo pulsional, que trará o conceito de pulsão de morte
como mudança crucial de sua metapsicologia, será enunciado, como discutiremos mais adiante.
88
Numa nota de rodapé, acrescentada em 1924, Freud reafirma a retificação que fez na sua compreensão da neurose, a partir
da desmontagem da teoria da sedução que regia essa consideração acerca da sexualidade infantil. Essa passagem, já bastante
conhecida na história da psicanálise, colocou em relevo o papel da fantasia na dinâmica psíquica, o que possibilitou a
autonomização da vida sexual infantil em relação aos adultos, retirando-a definitivamente de sua aura psicopatológica para
pensá-la em sua normatividade. Ainda assim, é interessante notar no artigo de 1896 que Freud já havia desenvolvido uma
170

Uma mudança na direção da assunção da tese da sexualidade infantil aparece na


“Carta 75”,89 de 1897, quando Freud (1988c) a insere como parte do desenvolvimento da
criança, a partir da noção de “zona sexual”, identificada, então, à genitalidade. Freud já
pensava à época, por exemplo, que a passagem da infância para a adolescência para as
meninas culminaria com a extinção de uma zona sexual, o clitóris (que se encontrava
identificado ao masculino), extremamente sensível na infância, afirmação que aponta para
certos impasses da teoria freudiana em relação à feminilidade, cuja necessária revisão crítica90
escapa, no entanto, ao escopo deste trabalho. A ideia de uma normatividade sexual na infância
está, portanto, esboçada.
Um ano depois, no seu artigo “A sexualidade na etiologia das neuroses”, de 1898, a
existência de vida sexual na infância aparece com certa autonomia, ainda que de modo
cauteloso, quando Freud (1994c) enfatiza que todas as manifestações sexuais psíquicas e
algumas somáticas podem ser encontradas nessa fase da vida. A ideia comum de que a
sexualidade infantil era uma manifestação fora do lugar foi por ele interpretada nesse artigo
menos como algo da ordem da vida sexual da criança em si do que à regulação social dessa
função. A exigência civilizatória de utilização da pulsão sexual a serviço de “grandes fins
culturais” está situada, desde esse momento, como aquilo que torna compreensível a
conversão da experiência sexual infantil em motivo de adoecimento psíquico.
Essa preocupação de Freud com mal-estar na modernidade91 reaparecerá dez anos
mais tarde, no texto “Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna”, de 1908.
Analisando as considerações dos médicos acerca da relação entre civilização e doença
nervosa, ele questiona o julgamento comum que atribuía ao estilo de vida acelerado,
competitivo, repleto de conflitos religiosos e sociais, ao excesso de trabalho – enfim, a razão
de ser do nervosismo crescente. Reafirma aí que, ainda que esses fatores não estejam

compreensão bastante refinada acerca do funcionamento psíquico, presente, por exemplo, na ideia de que o efeito traumático
viria a posteriori como uma reativação dos traços mnêmicos impressos no psiquismo desde a mais tenra infância, marcando
desde aí a diferença do pensamento freudiano em relação à teoria da degeneração, apontando para uma concepção do
aparelho psíquico que o aproximava de um aparelho de escrita (DERRIDA, 1995), cuja mobilidade era propiciada pela
economia pulsional.
89
Freud (1994b).
90
Ver: Nunes (2000), Birman (2001) e Arán (2006).
91
Adotaremos a tradução que Birman (2003, 2006) faz do termo “civilização” por “modernidade”, que toma por referência o
texto freudiano” O Mal-estar na Civilização”, de 1929, por entendê-lo mais sensível à capacidade de leitura crítica de Freud
aos impasses subjetivos e sociais do projeto moderno que tanto o inquietaram desde os escritos da psicanálise. Além disso, a
chave de leitura oferecida por Birman põe em relevo ao mesmo tempo as condições de possibilidade do projeto moderno para
a emergência do saber psicanalítico, sobretudo no que diz respeito aos impasses subjetivos desse projeto, situados sobretudo
a partir do desalojamento do lugar simbólico do pai (referência à Nietzsche) e “do desencantamento do mundo” (referência a
Max Weber) pela racionalização científica. Reunidas, essas observações nos permitem ressignificar as contradições que
marcaram a relação da psicanálise em relação ao que Foucault nomeou como “dispositivo da sexualidade”, discutidas nesta
seção e que vão nos orientar na análise da equivocidade a partir da qual foram recebidas as primeiras ideias freudianas entre
higienistas e eugenistas brasileiros.
171

incorretos, seriam imprecisos, pois seria a repressão sexual dos civilizados, imposta pela
moral sexual “civilizada”, a causa específica e perturbadora da doença nervosa (FREUD,
1988d). Nesse particular, fará uma crítica audaciosa ao casamento monogâmico imposto pela
moralidade sexual vigente na modernidade, descortinando uma leitura fina dos impasses que
foram colocados pela exigência (biopolítica) à família que lentamente fora se constituindo, a
partir do século XVIII.
Assumindo que finalidade da pulsão sexual era, primariamente, o prazer, e apenas
secundariamente a reprodução poderia vir a se organizar, Freud afirmava, ainda no texto de
1908, que era impossível homogeneizar a conduta sexual dos indivíduos, de modo que parte
do sofrimento ao qual estavam submetidos se originaria não na condição da hereditariedade,
mas na inclinação de corresponder a um ideal normativo. As restrições impostas à vida pré-
conjugal – a abstinência, a contenção das demonstrações eróticas, etc. – não só não seriam
resolvidas com a promessa higiênica e moral do casamento, idealmente voltada para sanar os
problemas que a moral sexual civilizada instituía, mas intensificavam seus efeitos.
Em primeiro lugar, porque as restrições sexuais persistiriam no casamento,
inicialmente precipitadas pela necessidade de controle da procriação, mas depois pela
fragilização paulatina do desejo e até mesmo da afinidade psíquica entre os cônjuges. Essa
impossibilidade de fazer coexistir o casamento e a manutenção do desejo, presentes no ideal
da família burguesa devotada aos filhos e à recompensa afetivo-sexual do casal, gerava uma
necessidade de encontrar outros destinos para a força imperiosa das pulsões sexuais, que, por
definição eram uma força constante, como o recurso à satisfação dessa demanda. As
atividades sexuais extraconjugais (prostituição, masturbação, infidelidade), mais facilmente
postas em prática pela dupla moral masculina, mas também o recurso à doença nervosa, mais
prevalente entre as mulheres, embora encontrada também nos homens, e a sublimação, que
expressava os altos fins da cultura, se colocavam como os principais destinos da satisfação
sexual frustrada pelo casamento. Em segundo lugar, o casamento se ressentiria dos efeitos que
a abstinência e o obscurantismo em relação às questões sexuais, sobretudo em relação à
mulher, pondo-a como a que, na contabilidade entre os custos das renúncias pulsionais e suas
compensações civilizatórias (modernas), sairia com o fardo mais pesado. O casamento estaria
atravessado pela paradoxal condição de ser o repositório cultural das pulsões sexuais e, ao
mesmo tempo, a fonte de uma grande miséria subjetiva, marcada pela frustração do ideal que
em princípio a definiria. Finalmente, esse mal-estar no interior da vida conjugal afetaria
diretamente os filhos, pois estariam expostos a uma pesada ambivalência afetiva, o que
172

acarretaria uma espécie de pane na economia erótica familiar como um dos efeitos paradoxais
da moral sexual civilizada.

[...] uma esposa neurótica, insatisfeita, torna-se uma mãe excessivamente terna e
ansiosa, transferindo para o filho sua necessidade de amor. Dessa forma, ela o
desperta para a precocidade sexual. Além disso, o mau relacionamento dos pais
excita a vida emocional da criança, fazendo-a sentir amor e ódio em graus muito
elevados ainda em tenra idade (FREUD, 1988d, p. 185).

Mas essa lucidez freudiana em relação moral sexual moderna traz outra consideração
a ser feita na torção do seu pensamento contra ele mesmo. Podemos ler em Freud um esforço
de se desvencilhar dos embaraços que a ideia de “normalidade” sexual lhe impunha. Apesar
de sua posição crítica em relação à moral sexual moderna, ele foi atravessado por suas
prescrições normalizantes. Freud fala em “perigos do pré-prazer”; advoga a ideia de que a
perversidade polimorfa pela via educativa poderia manter a pulsão em rumos coerentes com
os ideais civilizatórios; demonstra ambiguidade em relação ao poder normativo da
heterossexualidade; prescreve destinos subjetivos possíveis para a feminilidade, tomando a
maternidade como seu desfecho mais adequado. Além disso, a despeito de sua posição crítica
em relação à degenerescência, o discurso freudiano fez reverberar a fustigação moderna em
torno da questão sexual, enunciada por Foucault (2001, 2005a) como “vontade de saber”,
razão pela qual fora acusado por seus detratores de pansexualista. Foi o risco que correu
quando tentou pensar o aparelho psíquico de maneira indissociável do mal-estar produzido na
modernidade.
Birman (2007) nos oferece uma chave importante de leitura para a compreensão da
posição freudiana face ao projeto biopolítico: a inscrição da primeira metapsicologia
freudiana na matriz da força vital. O autor localiza na crítica de Leibniz à inespecificidade da
metáfora descartiana da máquina no que dizia respeito à distinção entre o vivente e o
inorgânico como o contexto no qual a noção de força vital foi enunciado, marcada pelas
propriedades da “excitabilidade” e da “irritabilidade”. No discurso psicopatológico, a noção
de força vital subsidiará de maneira inequívoca a compreensão da loucura, mesmo pelo
alienismo, como uma experiência marcada pela impossibilidade de regular as paixões pelo
registro do pensamento, instaurando, aí, as condições de possibilidade para a posterior
emergência de um novo domínio discursivo da psiquiatria, que foi, como vimos no capítulo 4,
o do “instinto”.
Mesmo levando em consideração as distinções traçadas por Freud no seu texto “Três
Ensaios sobre a Sexualidade”, de 1905, entre instinto e pulsão – quais sejam, a
inespecificidade dos objetos e a condição de parcialidade das pulsões – que tornariam a
173

perversão a regra a e não a exceção, Birman salienta que ambos estavam referidos à matriz da
força vital. O sexual esteve durante todo o desenvolvimento da primeira metapsicologia
significado como a “materialização maior da vitalidade, em oposição tanto ao registro do
espírito quanto ao da natureza inorgânica” (BIRMAN, 2007, p. 542).
Na proposição de um primeiro dualismo pulsional, momento em que começa a
trabalhar com a formação do ego, Freud (1988e) nos apresenta a tensão entre a exigência de
satisfação do inconsciente e as funções conciliatórias da consciência, através da oposição
entre as pulsões sexuais e as pulsões de autoconversação. Analisando um caso de cegueira
psicogênica, Freud apresentará como mecanismo explicativo para a produção do sintoma a
ideia de conflito pulsional, solução de compromisso que demonstrava que a força da pulsão
sexual era tão imperiosa em face do ego que era capaz de promover, no caso em questão, uma
“auto-sugestão inconsciente de que estavam cegas”. A oposição psicodinâmica, que então se
instituía entre pulsões sexuais e pulsões do ego, já havia se insinuado desde seus primeiros
escritos psicanalíticos (alguns dos quais foram mencionados nessa seção), revelando, como
Birman (2007) faz notar, que a pulsão sexual dominava a economia psíquica, o que foi
utilizado pelos seus críticos para enquadrá-lo como pansexualista, afirmação que ele não
cessou de contestar até bem perto do fim de sua vida.
Numa entrevista a uma jornalista húngara, em 1918, Freud afirmou a sexualidade
como tendo papel fundamental na constituição da neurose, o que seria bem diferente da
afirmação de que tudo é sexual no homem para a psicanálise.92 Em 1920, escreve uma nota a
Claparède, que escreveu uma introdução ao pensamento freudiano na primeira tradução
francesa do texto “Cinco Lições de Psicanálise”, publicada na Revue de Genève, acusando-o
de deformar suas ideias acerca do lugar do sexual no funcionamento mental. Freud afirmava
que a afirmação do comentarista, segundo a qual o pensamento psicanalítico compreendia ser
a libido – tomada como sinônimo de pulsão sexual –, a força fundamental de todas as
manifestações psíquicas, era equivocada na medida em que seu conceito de libido não era
extensível, como o era para Jung, a todo o funcionamento psíquico.
A partir do texto “Introdução ao Narcisismo” (1988f), Freud nos apresenta este
primeiro modelo como insuficiente, uma vez que a libido também se concentrava no eu, fruto
das análises que vinha desenvolvendo sobre a paranóia e sobre a distinção entre o luto e a
melancolia. Ele recoloca, então, duas modalidades de pulsão sexual: libido do eu e libido
objetal, mantendo-as, no entanto, atreladas ao primeiro dualismo já comentado. Mas a ruptura

92
Ver: Freud (1995a).
174

com a matriz da força vital viria só após a década de 20, com a formulação do conceito de
pulsão de morte, no seu “Além do Princípio do Prazer” (FREUD, 1988g), no qual é possível
identificar uma ruptura radical com o vitalismo que habitava seu tempo. Um tanto distinto do
modelo conflitual do primeiro dualismo pulsional, o erótico aparece submetido ao trabalho da
pulsão de morte, força psíquica que tende à descarga ao grau zero, regulada que seria pelo
princípio da inércia, colocando como exigência o trabalho permanente da pulsão de vida, que
convoca o psiquismo ao trabalho de ligação, sem o qual a vida se tornaria inviável.
No quarto prefácio dos “Três ensaios”, em 1920, ele sublinha novamente os mal-
entendidos que a aproximação com a biologia gerou e, mais ainda, a dificuldade de
compreender seus achados como indissociáveis da análise. Como principal deles, estaria o
rótulo de pansexualista, fruto, segundo sua interpretação nesse momento, da incompreensão
em que esteve mergulhada a “ampliação” do conceito de sexualidade elaborada por ele –
realizada a partir da análise das crianças e dos perversos –, segundo a qual a sexualidade vai
assumir o sentido do Eros platônico.
É somente quando o conceito de pulsão de morte se coloca, convocado pelos impasses
da experiência como psicanalista, que ele pôde fazer uma retificação quanto ao peso que
atribui à sexualidade na vida psíquica, deixando entrever que ali reconhecia um passado
pansexualista. Em entrevista concedida ao jornalista americano George Sylvester Viereck, em
1926, ela reafirma tal posição:

[...] Do mesmo modo como um pequeno elástico esticado tende a assumir a forma
original, assim também toda matéria viva, consciente ou inconscientemente, busca
readquirir a completa e absoluta inércia da existência inorgânica. A pulsão de vida e
a pulsão de morte habitam lado a lado dentro de nós. A Morte é companheira do
Amor. Juntos eles regem o mundo. Isto é o que diz o meu livro: Além do Princípio
do Prazer. No começo, a psicanálise supôs que o Amor tinha toda a importância.
Agora sabemos que a Morte é igualmente importante93.

4.3 A fabricação da sexualidade infantil no Brasil

Em um necrológio à Freud publicado nos ABHM, Henrique Roxo (1939) exalta as


qualidades do psicanalista vienense, pondo sempre em relevo a preocupação freudiana com o
papel que o sexual desempenhava no adoecimento psíquico. Admitia que Freud teria
realizado uma grande contribuição à psiquiatria, justamente por ter elucidado a doença mental

93
ver: Freud (1995b)
175

a partir dessa perspectiva, e também a partir do que ele chama de “valor do pensamento
humano”, citando para isso trabalhos como a “Psicopatologia da Vida Cotidiana”. Ressalva,
no entanto, a polêmica pansexualista, com a qual se filiava, que atravessava a recepção de
Freud no Brasil. De toda maneira, estava anunciado o reconhecimento da “imortalidade” da
obra freudiana e da grande difusão que havia encontrado até então. Nessa pequena nota, Roxo
valorizava a descoberta freudiana da infância como ponto de formação dos complexos, noção
que compunha de modo emblemático o vocabulário psicanalítico apropriado pela medicina e,
em especial, pela psiquiatria e pela sexologia (então emergente) brasileiras.
A ambivalência em relação ao pensamento freudiano acerca do sexual estava presente
desde os primeiros anos de sua difusão no Brasil. Vinte anos antes, em 1919, o mesmo
psiquiatria havia escrito um texto intitulado “Sexualidade e demência precoce”, no qual
aparece um interesse explícito de explicar as perturbações mentais a partir do papel que o
sexo desempenhava na sua produção. Considerando um exagero a tese freudiana de que não
era possível uma vida sexual normal entre neuróticos, Roxo admite, no entanto, que “o
homem é sempre um escravo eterno da matéria e poder-se-ha notar bem quanto na vida social
influe a vida sexual”. (ROXO, 1919, p. 338). Ele fornece vários exemplos dessa dominância
sexual que observava na vida psíquica e social, consolidando a ideia de que o social estava
repleto de humilhados sexuais, marcados por fracassos de ordens diversas (impotência,
sentimento de inferioridade sexual, nervosismo, neurastenia). Estes se originariam da
tentativa de submissão às exigências sociais que se faria às custas de um opressivo silêncio
frente à insistência com que os dramas sexuais se manifestavam na consciência dos
indivíduos, podendo ser ainda um dos fatores etiológicos principais na produção da loucura,
impressão que extraíra da observação de que o tema era insistentemente tratado pelos que
estavam sob o signo da demência precoce94.
A difusão das ideias psicanalíticas95 pelos seus precursores no Brasil, que havia
começado por Juliano Moreira (PORTO-CARRERO, 1929) ainda na década de 1910,

94
Facchinetti e Venâncio (2006) nos esclarecem que essa compreensão etiológica dos processos psicogênicos atrelados à
vida sexual convivia, no pensamento de Roxo, com uma visão organicista da doença mental.
95
A outra porta de entrada das ideias psicanalíticas no Brasil, assim como aconteceu em outros lugares (como a França, por
exemplo), foi a vanguarda modernista. Posicionados criticamente face ao programa hegemônico de modernidade para a
nação brasileira, os modernistas recuperaram noções que subverteriam o modo de lidar com a linguagem artística, com a
cultura e com o estrangeiro. Particularmente, o modernismo literário figurado por Oswald parece ter possibilitado outra
inscrição para as ideias freudianas no Brasil. O trabalho de Cristiana Facchinetti (2001) nos ajuda a entender a recepção das
ideias freudianas nesta proposta de revolução literária e social. Subsidiada pela crítica aos movimentos literários anteriores na
sua paralisia criativa e ao lugar do estrangeiro na tradição brasileira, tal proposta enfatizava a organização anárquica da
criação como condição para a renovação incessante. Através de paródias, neologismos e subversão da ordem, Oswald teria,
muito longe dos ufanismos, propagado uma crítica da modernidade a partir da denúncia dos erros em torno das verdades
eternizadas e essencializadas. A seu modo, incorporou as noções de pulsão e inconsciente, valorizando aí menos o recalque
do que embate antropófago com a diferença.
176

encontra, portanto, como sua primeira porta de entrada, o discurso psiquiátrico96, que já tinha
abrigado no seu projeto o higienismo, bem como ideias de caráter eugenista. A psiquiatria,
que, como vimos no capítulo 2, lutava pelo controle administrativo dos asilos e pelo status de
especialização médica, também buscava referências que pudessem legitimar sua reputação
terapêutica e a ampliação de seus domínios, projeto que surge no contexto mais amplo na
regulação higienista dos espaços público e privado, movimento marcante a partir da segunda
metade do século XIX. As ideias psicanalíticas sobre o sexual acabaram por se inserir nesse
repertório, pois pareciam promissoras para a viabilização deste projeto através da proposta de
uma pedagogia que incidisse, simultaneamente, sobre o físico, moral e intelectual, interesse
que vai inscrever a recepção das ideias freudianas na mesma linha de pensamento, aberta na
passagem do século XIX para o XX, que constituiu o instinto como novo objeto da
psiquiatria, fruto das descontinuidades operadas nesse saber pela apropriação brasileira do
conceito de degeneração.
Em 1920, é publicado o livro de vulgarização97 da teoria freudiana, intitulado O
pansexualismo na doutrina de Freud, pelo psiquiatra paulista Franco da Rocha, então diretor
do Hospício do Juquery. No prefácio do livro, ele assinala que a relevância de seu esforço era
organizar os principais conceitos da psicanálise, através da leitura dos textos de Freud
diretamente do alemão, de modo a subsidiar um acesso do público brasileiro à “doutrina de
Freud, que é muito falada e bem pouco conhecida”. (ROCHA, 1920, p. 5). Nenhum trabalho
de Freud havia ainda sido traduzido para o português, o que só ocorreria em 1931, quando
finalmente a primeira tradução de um texto freudiano em português foi lançado. Trata-se de
Cinco Ensaios de Psicanálise, lançado pela Editora Nacional de São Paulo, com tradução de
Durval Marcondes e J. Barbosa Corrêa.98
O livro de Franco da Rocha sistematiza, de modo pormenorizado, o primeiro modelo
freudiano do aparelho psíquico, enfatizando não apenas a dinâmica do trabalho psíquico de
representação, mas também a motilidade das pulsões sexuais, que se manifestariam desde a
tenra infância. Franco da Rocha endossará, nessa edição de 1920, a tese segundo a qual o
“instinto sexual” exerceria sobre o psiquismo uma influência generalizada na teoria freudiana,
estando por isso justificada a presença do termo “pansexualismo” no título do livro,

96
Ver a este respeito: Facchinetti (2001), Ponte (1999) e Menezes (2002).
97
Outra fonte de vulgarização da psicanálise no Brasil foi o primeiro livro de psicanálise na França de Régis e Hesnard,
intitulado La psychoanalyse des nevroses et des psychoses, traduzido e publicado no Brasil em 1923. (OLIVEIRA, 2002,
2006).
98
Após a tradução de Durval Marcondes, a edição das primeiras obras de Freud foi realizada pela Editora Guanabara
Waissman Koogan. Nos anos 50, esse trabalho de tradução ficaria a cargo da Editora Delta, que publicou, pela primeira vez
no Brasil, as obras completas em 10 volumes. (OLIVEIRA, 2006).
177

suprimido na edição de 1930,99 depois que o psiquiatria paulista foi advertido por seu colega
Durval Marcondes quanto à reprovação do próprio Freud sobre sua utilização. (PONTE,
1999).
Apesar de demonstrar conhecimento aprofundado acerca da tese da sexualidade
perverso-polimorfa como traço geral da disposição sexual dos seres humanos, Franco da
Rocha vai tributar à degeneração lugar privilegiado no seu elenco de fatores que perturbariam
o desenvolvimento infantil. Estimando que mais da metade dos casos de neurose (histeria,
neurose obsessiva) tratados por ele através de psicoterapia tinha antecedentes de sífilis na
família, ele vai afirmar que certas disposições originais poderiam ser acometidas por uma
“deterioração hereditária”, reinserindo no debate acerca da etiologia das neuroses o discurso
da degenerescência combinado à leitura psicanalítica da pulsão sexual. Essa tradução
particular da teoria freudiana se torna compreensível, se pensarmos as razões pelas quais o
interesse pelas ideias freudianas se fez presente no cenário brasileiro. A questão sexual é
tratada como um perigo social a conjurar, o que servia para justificar uma limpeza social que
pudesse banir figuras consideradas deletérias: perversos sexuais, criminosos, tarados – enfim,
toda sorte de anormais que pusessem em risco a tentativa de normalização social. No entanto,
não estamos falando de um regime estrito de exclusão, mas de inclusão-exclusiva,100 na
medida em que se tratava de revelar a variação num certo espectro de normalidade. Tomado
como causa-mor dos perigos sociais, fica entendido por que degeneração convive no dialeto
psiquiátrico local com a ideia da polimorfia perversa da sexualidade, que tende a apontar na
teoria freudiana para um “pluralismo do desejo”, para usar a expressão de Birman (1994).
No circuito psiquiátrico baiano, encontramos referências à psicanálise como modelo
compreensivo da neurose e mesmo de certas formas de loucura, sobretudo porque essa
passava a ser compreendida como uma perturbação do “instinto sexual”. A vida mental do
“anormal” seria dominada por conflitos sexuais, razão pela qual a psicanálise passa a
interessar à psiquiatria. Na GMB da década de 1920, debateram-se as ideias freudianas
através de Arthur Ramos, José Calasans e Magalhães Neto. A psicanálise era então sinônimo
de pansexualismo, a ponto de o estabelecimento, no discurso psiquiátrico, do que seria

99
O título do livro passa a ser, na edição de 1930, A doutrina de Freud: resumo indispensável para a compreensão da
psicoanalise.
100
Foucault (1995c; 2004a) constrói um analisador interessante para nomear uma nova forma de regulação do perigo, a que
ele denominou de “modelo da peste”: definido pelo mecanismo político de inclusão-exclusiva, vigiada, monitorada. A
descontinuidade entre doente e não-doente, importante no sistema de exclusão (no modelo da lepra) perde força para o
tratamento populacional da doença. A normalidade, não estabelecida por referência a um ideal que compartimenta o tecido
social em normal e anormal, se dará num “jogo de normalidades diferenciais”, que faz da norma uma construção empírica,
estatística, cujo comportamento será descrito em termos de uma curva e suas anomalias passam a ser os casos
estatisticamente desviantes dessa curva. A norma é, portanto, empírica.
178

tratável ou não pela abordagem psiquiátrica da psicanálise, passar pelo crivo do caráter sexual
de sua etiologia. Desta forma, a histeria, a neurastenia ou mesmo a demência precoce seriam
tratáveis pelo método, ao passo que a paranoia, a epilepsia e a imbecilidade, não.
(CALASANS, 1924).
A sexologia emergente no Brasil na década de 1920 foi outro vetor importante na
difusão das ideias freudianas acerca da experiência sexual infantil. Vimos, no capítulo
anterior, que a ampla difusão do programa de educação sexual no Brasil, protagonizado pelo
CBES, mas já em curso desde a década de 1910, esteve voltada para regular a experiência
sexual infantil. Os artigos presentes no principal veículo institucional deste projeto – o
Boletim de Educação Sexual – dirigiam-se fundamentalmente à família e à escola no sentido
de serem eles os propagadores das prescrições normativas que deveriam educar o sexo das
crianças e adolescentes. O que aparecia nessas prescrições?
O sexo deveria ser retirado do mistério que o envolvia, fazendo da instrução sexual às
crianças e aos jovens, pautada na sciencia sexual – mecanismo de legitimação interna e
externa do interesse médico pela questão sexual, bem entendido –, seu substituto. Iluminar os
espíritos juvenis quanto ao sexo, convencendo-lhes de que ele era fonte de doenças, do medo,
do crime. Esse terrorismo sexual, recurso muito presente no discurso higienista, ficava
encoberto pela afirmação aparentemente tranquilizadora do sexo como função biológica,
inscrita nos desígnios naturais, nova sanção moralizadora que deveria substituir a depreciação
do sexo na moral cristã. Criava-se uma imagem benéfica da oferta de esclarecimento sexual
que a medicina disponibilizava, recobrindo o campo do erotismo pela biologização da função
sexual101. Reduzi-lo a uma função biológica: esse era o conselho que pais e professores
deveriam seguir para garantir que o sexo das crianças estivesse em consonância com a
presunção de uma moral sexual que acabara de nascer. Para tanto, era necessário que
adotassem a sciencia sexual como guia; que pudessem acreditar nos benefícios que o
progresso e a iluminação da razão pudessem trazer à vida das futuras gerações, a partir da
conjuração dos perigos sexuais.
Para que a educação sexual pudesse atingir sua finalidade, qual seja, a de empreender
a profilaxia dos desajustes associados ao sexo – perversões sexuais, criminalidade,
disseminação das doenças venéreas, divórcios, filhos ilegítimos, entre outros –, era necessário
afirmar, antes de mais nada, a existência de uma sexualidade infantil Schmidt (1934), já que
não se tratava de uma obviedade. Ao contrário do discurso novecentista acerca da

101
Albuquerque (1933, n.2).
179

masturbação, que tomava o erotismo infantil como sintoma de degeneração, o interesse


médico vintecentista vai dar às experiências infantis de satisfação o estatuto de uma etapa do
desenvolvimento sexual que, se, por um lado, poderia ser considerada normal, por outro
deveria ser devidamente agenciada, já que havia sido convertida numa das mais importantes
fontes de perigos individuais e sociais: “a vida sexual infantil é muito mais intensa do que se
julga. É preciso entendel-a, norteal-a. É preciso ensinar desde cedo a parte mais importante de
sua physiologia, que é a razão de ser da vida individual” (PORTO-CARRERO, 1933, p. 3).
As primeiras ideias freudianas foram recebidas como bastante oportunas para o que se
queria: afirmar a existência da sexualidade infantil para colocá-la a serviço de uma profilaxia
sexual. Júlio Porto-Carrero afirmava ser os impulsos sexuais existentes desde o nascimento, a
fonte que será da reprodução da espécie na vida adulta. Ao médico caberia reconhecer os
estímulos que despertariam tais impulsos, a fim de dirigi-los, pela via da educação sexual, a
uma “exteriorização de energia com um mínimo de damno para o indivíduo e um mínimo de
damno para o ambiente onde ele vive” (PORTO-CARRERO, 1933, p. 3). Para tanto, a
educação sexual não deveria incidir apenas no esclarecimento sexual da criança, mas também
no escrutínio, pelos educadores (pais e professores) das sutilezas das manifestações psíquicas
do erotismo infantil, entendido como esboço da sexualidade adulta.
José de Albuquerque (ALBUQUERQUE, 1929), por exemplo, recupera as fases do
desenvolvimento psicossexual postulados por Freud, demonstrando adesão à tese de que a
infância era a fase de paulatina constituição de zonas erógenas dispersas no corpo. Nesse
sentido, a criança obtinha prazer com um reflexo inato como a sucção, transferindo-o para
outros objetos. A insistência médica em relação à amamentação era recodificada como uma
relação erótica que, se mal regulada pela mãe, geraria vícios que poderia levar a perversões
sexuais (PORTO-CARRERO, 1929). Para Albuquerque, a oralidade fora da amamentação
deveria ser reprimida, sob pena de estimular o aparecimento, na fase da sexualidade genital, a
formas “pervertidas” de satisfação. Vejamos o que ele diz do “beijo”:

O "beijo" que é uma manifestação transitoria da libido infantil, um meio da criança


satisfazer o prazer que lhe proporciona a sensibilidade erotogena dos labios, sendo
incentivado pelo cultivo que delle fazem inconscientemente os paes, concorre para
que se desenvolva na criança o "raffinement" do centro erotogeno labial, que na
phase genital de sua vida sexual, póde ser o responsavel já não digo por perversões,
que são raras, mas por delictos juridicos de natureza sexual (ALBUQUERQUE,
1929, p. 18).

O mesmo raciocínio é aplicado à fase anal. Desta forma, a pederastia e a sodomia


seriam o resultado da volúpia não reprimida causada na fase anal, cuja fonte de excitação
180

seria o controle dos esfíncteres. Sem controle rigoroso dos pais, essa função seria pervertida
pelo prazer que a criança teria aprendido a extrair dela. Finalmente, na fase pré-genital,
quando a libido estivesse localizada nos órgãos genitais, Albuquerque prescrevia que não se
fizesse referência aos órgãos genitais, nem tampouco que ele fosse tocado, a fim de “evitar
graves desvios da normalidade de sua funcção sexual”. (ALBUQUERQUE, 1929, p. 22). O
Freud dos “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade” é capturado pela via do “terrorismo
pedagógico”, que impunha ao desenvolvimento psicossexual e seus correlatos de fixação e
regressão um propósito de advertir para os perigos do prazer sexual.
A masturbação ganhará no século XX, após a fabricação do sexo das crianças, um
novo significado. Se antes o onanismo estava vinculado a toda sorte de mazelas físicas e
morais, configurando o onanista como a decrepitude encarnada do vício, agora se admitia que
sendo a expressão de auto-satisfação, ela poderia ser considerada normal se permitida no
momento da vida em que se deveria interditar o intercurso sexual, ainda que o caráter
perigoso da masturbação estivesse em relevo. (ALBUQUERQUE, 1934, n. 1). José de
Albuquerque, na década de 1930, utilizando-se do conceito freudiano do autoerotismo, afirma
que a masturbação é normal na infância, mas na vida adulta, se persiste, seria considerada
vício, cujo principal efeito psicopatológico é a neurastenia, causada por uma hiperexcitação
nervosa, sobretudo em organismos vulneráveis pelas taras hereditárias.
Um novo modo de abordar a questão da masturbação se faz presente também na
prescrição dada aos pais sobre como deveriam lidar com as crianças. Do mesmo período que
o artigo anterior é o de Arthur Ramos (1933, n. 3), no qual aparece uma contraindicação
veemente à repressão ostensiva dessa prática. Nem proibir, nem autorizar: vigiar. O onanismo
é expandido do seu sentido, como forma de demonstrar sua normalidade na infância: desde o
seio, passando pelos controles esfincterianos, até a masturbação propriamente dita, tudo isso
faria parte da sexualidade infantil. A medicina condenava agora a fórmula antiga da ameaça
de mutilação e morte. Em substituição, dever-se-ia evitar a excitação das zonas erógenas da
criança; facilitar as derivações sublimatórias, por exemplo, a partir dos jogos, que por sua vez,
favoreceriam as identificações; não mimá-la excessivamente; evitar expô-la ao erotismo
adulto, prestar-lhe esclarecimentos sobre sexo quando ela chegar à fase da curiosidade sobre o
tema. A masturbação é recolocada no jogo discursivo da educação sexual. O que promoveu
essa transformação? Como passamos de um mal absoluto para uma tolerância vigiada à
masturbação?
Ora, poderíamos sinalizar, em primeiro lugar, um motivo de ordem epistemológica:
para ser coerente com a ideia de função biológica, era necessário admitir suas transitividades.
181

Assim, aquele que ainda não realiza intercurso sexual poderia satisfazer os impulsos da
função pela vida da masturbação. Somente nesse terreno ela seria tolerável. Necessidade de
coerência interna da sciencia sexual, portanto. Para isso ter-se-ia de afirmar a existência de
uma sexualidade infantil, que foi se construindo, no Brasil, a partir do final do século XIX,
quando da intromissão do discurso médico na instituição escolar. Neste percurso, cada vez
mais a infância foi sendo alvo das inquirições etiológicas no âmbito médico, mas também
jurídico. A descoberta do sexo das crianças deve ser localizada na série histórica proposta por
Foucault (1974) que elegeu o monstro, o incorrigível e a criança onanista, como a constituição
do “anormal”. O olhar que começa a se fabricar cada vez mais é o dos espectros infantis do
adulto. Uma espécie de duplo-olhar aí se constitui: um olhar de horror à infantilidade fora da
infância, ou seja, nos adultos, e um olhar que vê o futuro antecipado em cada criança.
Um cruzamento formidável do discurso da degenerescência com o tema da
masturbação aparece nesse pequeno artigo de Albuquerque (1934, n. 1). A afirmação sutil,
mas importante, é a de que o que aparece como manifestação patológica no onanista é fruto
das suas taras hereditárias e não da masturbação em si. Deve-se buscar a origem dos males
que acometem os onanistas na sua linhagem que, provavelmente, deverá revelar a presença de
neuropatas. O onanista deve ser tomado como signo da degeneração, discurso que nasce com
a psiquiatria da segunda metade do século XIX e que perdura até a primeira metade do século
XX. Diz-nos o autor:

[...] se o indivíduo é constitucionalmente forte, isento de taras nervosas, poderá


ainda suportar por algum tempo essa dilatação do período de masturbação, a que
muita vez é levado devido à falta de quem o oriente a respeito de sua conduta
sexual, ou, o que é peor, devido ao facto de se ter de subordinar à conduta errada,
que lhe é muita vez imposta empiricamente poe seus pais; mas se o indivíduo é
descendente de uma linhagem de neuropathas, ou si é um indivíduo debilitado, não é
impunemente que se submete a tal pratica, visto que seus effeitos se fazerem sentir
maleficamente sobre o systema nervosos, pouco apto a reagir (ALBUQUERQUE,
1934, n. 1).

As previsões médicas anunciadas desde meados do século XIX reaparecem como


constatação médica: o internamento escolar das crianças é prejudicial à saúde. Será necessário
que o saber médico possa higienizar essa instituição: só assim ela estará apta a educar os
filhos das classes abastadas. Os antigos vícios atribuídos à instituição escolar pelos higienistas
assumem uma nova codificação: são agora parte de uma taxonomia volumosa da
psicopatologia sexual, fundada numa anomalia do instinto sexual. A masturbação passava a
ser vista como normal, mas ainda assim inspirava certos cuidados, sobretudo na puberdade,
mas apenas se tornada excessiva, pois daí adviria o esgotamento dos neurastênicos, forjado no
dispêndio físico de energia, mas também no esforço imaginativo de “idealização do objeto
182

amado”.102 Prescreviam-se, então, atividades, agora nomeadas como “sublimatórias”, como a


prática de esportes e mesmo o trabalho.
Na década de 1930,103 após o aparecimento de uma atividade clínica voltada para os
problemas sexuais, procurar-se-á estabelecer nexo causal entre a experiência infantil de
internação escolar e a perversão sexual, especialmente o que eram considerados “vícios”: a
masturbação e a homossexualidade. Esse discurso irá se ancorar numa tática de intervenção
que justifica a vigilância da do sexo das crianças como meio de realização de uma profilaxia
das perversões sexuais, atividade que somente a responsabilidade médica poderia realizar.
Nesse sentido, as “taras degenerativas” dão lugar à ignorância acerca das questões sexuais,
que se arrastaria na vida dos indivíduos desde a infância.104 Livros obscenos, o regime dos
internatos, más companhias figuram entre as principais causas de aquisição dos vícios
sexuais. Se por um lado, a imputação hereditária dos vícios perdia força, mantinha-se uma
linha de continuidade com os fatores sociais que causavam a perversão sexual, presentes nas
teses médicas novecentistas.
A curiosidade infantil acerca das questões sexuais aparece nos conselhos médicos aos
pais e educadores como um sinal de alerta para o esclarecimento sexual. Tão logo essa
oportunidade aparecesse, os pais deveriam responder às perguntas das crianças de maneira
clara e direta, fundamentando-se, para tanto, na sciencia sexual, buscando analogias com a
função reprodutiva dos animais e das plantas, a fim de demonstrar que as sensações
prazerosas seriam decorrentes do “instinto sexual”, força da natureza voltada à conservação
da espécie. O silêncio dos pais e professores, ou mesmo suas evasivas, produziria
recalcamentos, pois a curiosidade infantil não satisfeita converteria o sexo em enigma e
facilmente associado à imoralidade. Acessando a temática sexual através de agentes não
devidamente credenciados para tanto (outras crianças, adultos inescrupulosos, ou literatura de
reputação não-científica), a criança estaria exposta a sentidos pervertidos da função sexual e,
por conseguinte, tornaria imoral o que deveria ser inscrito no registro da biologia. O efeito
mental na criança que decorreria desse estado de coisas seria o “recalcamento”
(ALBUQUERQUE, 1933, n. 2; AUSTREGÉSILO, 1934, n. 1; MENDONÇA, 1935, n. 1).

102
Ver: Porto-Carrero (1929, p. 131).
103
Ver: O PROBLEMA sexual em face dos internatos (1935).
104
José de Albuquerque apresenta uma estatística, segundo a qual, de 1.300 casos de perversões sexuais por ele atendidos,
85% deles seriam atribuídos à falta de educação sexual, sendo 15% devidas à distúrbios endócrinos, nervosos ou psíquicos.
Ver: Albuquerque (1935, n. 10).
183

O recalque será traduzido no vocabulário da sexologia brasileira105 como conceito que


legitimaria a educação sexual, a ser proferida sobretudo pela família e pela escola, a partir da
orientação dos médicos. Na tradução sexológica brasileira das ideias freudianas, atravessada
pelo tom prescritivo de Forel,106 a noção de recalque é invocada como um dos destinos da
curiosidade sexual infantil e, com ela, das futuras neuroses e perversões sexuais. Arthur
Ramos (1933) afirmava que o esclarecimento sexual da criança evitaria o recalcamento
excessivo, numa apropriação do conceito freudiano que o remete à ideia de um embotamento
causado pela repressão sociais. Neste particular, o recalque assumiria o sentido de uma ação
externa de repressão das condutas socialmente inaceitáveis que seria internalizada pelo
sujeito. Como consequência, ter-se-ia, na vida adulta, a proliferação de patologias sexuais.
Através da afirmação da sexualidade infantil, todo um conjunto de relações sociais
poderia ser politicamente regulado: pais e filhos, através do agenciamento da curiosidade
acerca do tema e das práticas masturbatórias; maridos e esposas, pela distribuição das
respectivas responsabilidades em relação à educação sexual dos filhos; escola-criança, por ser
um espaço de vigilância em relação às manifestações sexuais infantis; médico-família, que
centraliza, na figura do primeiro, a autoridade para definir os limiares de normalidade das
condutas da criança; família-sociedade-Estado, por fornecer critérios para forjar as
diferenciações sociais que oferecessem zonas de conforto em relação ao que se considerava
perigoso e abjeto na conduta de certos indivíduos. Esse entrelaçamento de relações políticas
se constituiu atravessado também por um outro domínio discursivo e institucional: o da
higiene mental da infância, no qual será possível visualizar uma intricada constelação afetiva
intrafamiliar, que passa a ser alvo da intervenção dos saberes psiquiátrico, mas também
psicológico.

105
Ver o artigo de José de Albuquerque intitulado “Como se deve conduzir a educação sexual da criança” publicado no BES,
Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, nov. 1933, p.2; e o de A. Austregésilo, “ Consequências da falta de educação sexual”, publicado no
BES, Rio de Janeiro, v. 2, n. 1, jan. 1934.
106
O livro de Auguste Forel intitulado La Question Sexuelle, de 1905, foi traduzido para o português e lançado pela
Companhia Editora Nacional no final da década de 1920. A edição consultada foi a terceira e data de 1929. Amplamente
difundido no meio médico brasileiro, esse trabalho pode ser considerado uma das matrizes da sexologia que nascia na
primeira metade do século XX, sendo muito citado nos artigos do BES como inspirador das recomendações sobre educação
sexual. Um fragmento de A Questão Sexual, publicado nesse veículo do CBES, diz: “Se quizermos combater as perversões
sexuaes adqquiridas em tenra idade ou o desenvolvimento precoce do mao desejo sexual, não será com pudores falsos e
vagos sermões de moral, nem com carrancas que chegaremos a um resultado efficaz, e sim, unicamente pela affeição e pela
franqueza. As respostas evasivas, as dissimulações da moral severa não obtem senão o afastamento e a hypocrisia. Eis um
mal quasi sempre irresponsável” (Rio de Janeiro, v. 2, n. 1, p. 2, jan. 1934).
184

4.4 A maquinaria erótica intrafamiliar a serviço da adaptação: a institucionalização da


eufrenia

O cuidado médico novecentista com a criança, centrado nas preocupações com a


alimentação, as vestimentas e a higiene, ganha notável expansão na primeira metade do
século XX, quando a criança já havia se convertido no principal alvo de investimento da
família. O imperativo não era apenas o de constituir um corpo saudável, mas revirar todos os
cantos da alma infantil, a fim de detectar precocemente as ameaças não apenas à sua vida,
mas à sua evolução mental. Tratava-se, então, de superar o antigo modelo de compreensão da
vida na tenra infância, baseado na ideia de que o infante se relacionava com o meio
exclusivamente a partir do sistema digestivo e respiratório, e substituí-lo por um novo
modelo, marcado por uma compreensão neuropsicológica na qual uma intricada rede de
conceitos e processos poderia explicar a suscetibilidade psíquica da criança aos estímulos
externos. (OLIVEIRA, 1933, n. 3).
Num artigo de Hosannah de Oliveira (1933), aparece a noção de “psiquismo do
lactente”: fruto da ação reflexa e da afetividade, cuja plasticidade tornava justificável a
intervenção médica mais precocemente possível, de modo a garantir um desenvolvimento
infantil saudável. Partindo da ação reflexa, encontramos uma descrição minuciosa das
primeiras reações do recém-nascido ao meio externo expressas por automatismos
constitucionais, signos que seriam da existência arcaica do psiquismo. Aparentemente,
estaríamos diante de um problema de ordem estritamente biológica. No entanto, com a
afirmação da precocidade do psiquismo, sua plasticidade e a vulnerabilidade aos estímulos
externos, ter-se-ia constituído um potente argumento para, pela busca pela normatividade
neurológica, defender o interesse em intervir o mais precocemente possível na produção da
anormalidade.
Esse interesse pelo psiquismo infantil se inseriu no âmbito de uma nova forma de
intervenção social da psiquiatria, que se nomeou, ainda na década de 1920, como higiene
mental. Antes que a Liga Brasileira de Hygiene Mental pudesse dar voz institucional a esse
projeto, a profilaxia mental no Brasil já começa a se esboçar desde o começo do século.
Juliano Moreira, em 1906, vislumbrou a tendência de conversão da psiquiatria num saber
destinado à profilaxia mental. Mas a institucionalização desse projeto ficou a cargo de
Gustavo Riedel, então diretor da Colônia de Psychopatas do Engenho de Dentro, onde, em
185

1919, fundou o primeiro Instituto de Prophylaxia Mental da América do Sul e, em 1923, a


Liga Brasileira de Hygiene Mental. (CALDAS, 1930, n. 3).
No seu momento inaugural, a LBHM assumiu como funções o combate das causas das
doenças mentais e nervosas, a assistência aos doentes mentais e a atenção aos predispostos a
psicopatias, com finalidade profilática. (CALDAS, 1930, n.3). O combate ao alcoolismo,
entendido à época como flagelo nacional, debilitante do sistema nervoso e predisponente à
disseminação de doenças, como as nervosas e mentais, além de doenças venéreas e crimes, foi
outro vetor no qual a LBHM interveio. A luta antialcoolica, aliás, contava com o apoio do
Estado, que reconhecia a utilidade pública da Liga e também a subvencionou
pecuniariamente, ainda que de maneira intermitente; contava ainda com o apoio de juristas,
educadores, jornalistas, além, claro, dos médicos. As ações comportaram ainda a instalação de
um laboratório de psicologia aplicada, voltado para seleção e orientação profissionais,
inaugurando no Brasil a psicometria, destinada à seleção dos “mais aptos”, mais adaptáveis ao
mundo da produção.
Já nos primeiros anos de trabalho, funcionou um “consultorio de psicoanalise”,
coordenado por Porto-Carrero, entre 1926 e 1927, vinculado às ações ambulatoriais da Liga.
Comentando a experiência na ocasião,107 o autor tenta demonstrar a pertinência da
psicanálise, enquanto método terapêutico, ao projeto de higiene mental da LBHM. Ele
argumentava que o saber que a psicanálise, que oferecia acesso aos “complexos recalcados” –
precisamente o Complexo de Édipo e o de Castração – permitiria que se pudesse operar com
um conjunto bastante ampliado de fenômenos psicopatológicos que estivessem à margem do
que se considerava estritamente como loucura. O trabalho psicanalítico na LBHM não se
restringiria, portanto, aos atendimentos ambulatoriais. Seu programa envolveria uma
intervenção na formação das professoras primárias, para que estas pudessem realizar
educação sexual e exercer vigilância dos comportamentos das crianças, de modo a identificar
os “pequenos contraventores”, obstruindo sua conversão, dada como certa, em adultos
criminosos; emprego de táticas de correção junto ao Juizado de Menores para tratar os
contraventores e criminosos; educação sexual para a sociedade em geral, com o auxílio dos
meios de comunicação de massa (conferências radiofônicas e artigos de jornal). Envolveria
ainda tratamento aos toxicômanos, pervertidos sexuais, suicidas e neuróticos em geral.
O que era novo não era a aproximação da psiquiatria com a higiene, já que esse gesto
esteve presente desde os primeiros instantes de inserção do saber psiquiátrico no cenário

107
Comunicação originalmente enviada ao Congresso Médico de Porto Alegre, em outubro de 1926 e publicada
posteriormente no livro do autor, intitulado Ensaios de psychanalyse. Ver: Porto-Carrero (1929).
186

brasileiro, na primeira metade do século XIX. Como Machado (1978) já fez notar, havia uma
solidariedade entre a medicina social e a psiquiatria nascente, manifesta pelo interesse em
comum de normalizar o espaço público. Com efeito, o projeto da medicina social não poderia
ser levado a cabo sem a ajuda da psiquiatria, pois ela dispunha do arsenal técnico e teórico –
asilo e a terapêutica moral – que pudesse justificar que a intromissão higienista chegasse a
determinar quem poderia circular livremente no espaço público e quem deveria estar
impedido de fazê-lo, por representar perigo ao social. No entanto, a psiquiatria nesse
momento não se constituía como “preventiva”, ou seja, ela não tinha a pretensão de realizar
profilaxia das doenças mentais, como será o caso a partir da década de 1920, com a
institucionalização do projeto de higiene mental.
A LBHM apoiava, politicamente, o discurso de fortalecimento eugênico da população,
mas deixava entrever que o projeto da higiene mental estava também voltado para garantir
que os indivíduos pudessem ser tratados pela psiquiatria, a despeito da predisposição à
degeneração. A psiquiatria começa a se voltar para os que supostamente seriam normais ou
para aqueles cujas manifestações das “taras hereditárias” pudessem ser mitigadas pelo
adestramento mental proposto em seu programa. A oferta psiquiátrica passará a conjugar o
controle estrito da herança, através da defesa da eugenia, para a educação dos “instintos” na
direção da adaptação ao convívio social. Coerente com o projeto de adaptação que se
insinuava no interior do discurso da higiene mental, justificava-se o interesse na prevenção da
formação não apenas do “degenerado”, mas também do “desajustado”.
Há uma ressignificação do papel da herança na etiologia dos distúrbios psíquicos, a
partir da assimilação da genética mendeliana pelos psiquiatras da Liga. Numa ata da
assembleia geral ordinária da LBHM, em 1928,108 consta um relato de uma intervenção de
Juliano Moreira acerca dos fatores hereditários em psiquiatria, na qual ele sinalizava que a
compreensão do tema da “herança” não deveria, no que dizia respeito à esfera mental, ser
vinculado à inexorabilidade da degenerescência. Subsidiado pelas ideias mendelianas acerca
da hereditariedade, Moreira toma os conceitos de recessividade e dominância, para afirmar
que apenas a herança dominante é diretamente transmitida; a herança recessiva não o seria, o
que ele demonstra a partir de algumas análises genealógicas de casos de doença mental. Essa
nova forma de tratar a hereditariedade punha a “doença mental” num jogo probabilístico de
ocorrência tal que se tornava difícil sustentar o modelo determinista e generalizado de outrora.
Além disso, o peso da degenerescência no nexo causal deveria diminuir na medida em que a

108
A ata dessa reunião foi publicada no ABHM, um ano depois, em 1929, na edição n. 1, ano II.
187

própria natureza se encarregaria de criar barreiras, afirmação que estava subsidiada pela
descoberta dos mecanismos de transmissão da recessividade, que colocaria impedimentos
“naturais” à reprodução dos “doentes mentais”, além do equilíbrio da qualidade populacional
fornecido pela reprodução dos cônjuges sadios, favoráveis que seriam à regeneração. Além
disso, o controle da “doença mental” apenas pela hereditariedade esbarrava no problema da
transmissão silenciosa dos padrões recessivos, já que alguém aparentemente saudável e,
portanto, não passível de qualquer controle eugênico, transmitiria seu patrimônio genético
predisponente à patologia aos descendentes.
É nessa perspectiva que Fontenele (1925) distingue, no projeto mais amplo da higiene
mental, um duplo objetivo: prevenir as causas da degeneração psíquica (profilaxia mental) e
promover a adaptação do indivíduo ao meio físico e social (que equivaleria à higiene mental
propriamente dita). Essa bifurcação explicita bem a filiação política, de um lado, à eugenia e,
de outro, a uma psicologia da adaptação. Os termos “fracassos de ajustamento” e “adaptação”
já aparecem nesse texto de 1925. Três conceitos o fundamentam: “a estrutura psíquica do
indivíduo”, dependente da hereditariedade, a noção de meio (físico e social), ao qual o
indivíduo deveria se adaptar, e a formação dos “hábitos”, práticas corporais e mentais cuja
regularidade permitiria ao indivíduo adaptar-se às exigências do meio.
É uma psiquiatria que se entranha nas mínimas idiossincrasias para capturar as
manifestações de anormalidade. Tratava-se de não mais restringir a atuação psiquiátrica à
assistência à alienação, cujos equipamentos “terapêuticos” eram o tratamento moral e o
isolamento em hospício, mas intervir de modo profilático no espaço social, tão saturado de
anormais de toda espécie, de modo a evitar “essa multidão de predispostos attinja o
despenhadeiro ou seja tragada pela voragem da alienação mental”. (ABHM, 1934, p.64).
Era preciso conter a “avalanche de degeneração” (ABHM, 1934, p. 64), o que passava não
apenas a incluir as medidas eugênicas propriamente ditas, mas sobretudo a modelagem
psíquica dos indivíduos desde os primeiros instantes de vida. Para tanto, era necessário incluir
como sujeitos psiquiatrizáveis diferentes matizes de irregularidades individuais do que
poderiam vir a se tornar desvios adaptativos.
Remodelando seu objeto, todo o domínio de atuação psiquiátrica é redesenhado.
Pouco mais de dez anos depois de sua criação, a LBHM começa a esboçar a ideia de que já
não é imprescindível o recurso à degenerescência para sustentar a prática psiquiátrica voltada
para o tratamento da anormalidade. (CAMPOS, 1934, p. 15). Um folheto de divulgação em
favor da campanha pró-higiene mental, publicada nos ABHM, em 1934, em estilo epistolar,
fornece-nos algumas pistas de seu projeto:
188

Exmo. Sr.,
O grau de prosperidade a que attingiu V. Excia, pelo seu esforço, se deve
indubitavelmente, a que V. Excia. tem sabido conduzir-se na vida com a necessária
dose de “higiene mental”, sem a qual nenhuma iniciativa poderá ser levada a bom
termo. Critério, actividade, espirito de cooperação, em summa, efficiencia, eis, na
verdade, o que constitue a higiene mental para o homem normal, como V. Excia. Si,
entretanto, foi dotado V. Excia, de taes qualidades moraes e intellecutaes, em parte
porque as herdou dos seus progenitores, em parte porque recebeu uma educação
adequada ao seu temperamento, não ignorará por certo que neste meio social em que
V. Excia. é um vencedor, milhares de creaturas existem que fracassam em todas as
suas tentativas para melhorar de sorte, não porque lhes falte saúde physica, ou
porque não lhes tenham surgido possibilidades favoráveis, mas unicamente porque
carecem dos predicados mentaes que lhes permitam adaptar-se ao meio ambiente.
(ABHM, 1934, p. 63).

Por essas razões, a profilaxia mental deveria atingir sobretudo as crianças109, pois elas
ofereciam condições favoráveis a uma intervenção exitosa da psiquiatria. Os adultos eram
vistos como seres já deteriorados por taras e vícios educativos, de modo que não se
conseguiria com eles demonstrar a eficácia profilática necessária ao crescimento político da
psiquiatria. Às crianças – ou melhor, aos seus cuidadores, ou seja, à família, ao Estado e à
escola – estava endereçado um conjunto de prescrições acerca da evolução normal do
psiquismo.
Mas a higiene mental não estava interessada em toda e qualquer criança. As crianças
acometidas por debilidade mental, que deveriam ter não a assistência dos médicos, mas do
Estado, que deveria amparar a família no cuidado a essas crianças. Num artigo de 1939,
Porto-Carrero (1939, n. 1-2) explicita como debate de interesse nacional a criação de um
espaço de “recolhimento” de crianças anormais e conclama o Estado a tomar para si esta
causa. O que se considerava uma criança anormal? O modelo da lesão cerebral coordena a
taxonomia: havia as crianças com lesões cerebrais graves, mas também as que tinham uma
lesão leve que se manifestava como traços fronteiriços, como excesso de excitação. Seu
interesse incidia justamente sobre o segundo grupo, passível de intervenção higienista. Às
crianças alienadas: hospício; às perversas, malandras, desequilibradas, intervenção médica e
tutela do Estado.
A família é condenada à incompetência no cuidado com os filhos e parte desse
comportamento anormal e tributada a ela, que não teria sabido educar adequadamente os
filhos. Mas é a doença – heredosífilis, distúrbios hormonais, lesões nervosas – que comparece
na etiologia que se traça para esses comportamentos. O Estado é convocado a prestar
educação a essas crianças. À medicina caberia a prescrição de remédios, de educação moral e

109
Ver: Reis (2000).
189

tratamento anti-sifilítico. Mas o que aparece como preocupação central aí é a reprodução dos
anormais:

[...] as crianças anormaes crescem e vão constituir família, formando-se uma série
de degenerados que vão povoar os hospícios ou praticar uma série de desatinos,
atribuíveis á má educação e á perversidade e no entanto tudo dependente da herança
neuro ou psicopatica que sobre eles pese (PORTO-CARRERO, 1939, p. 4).

A infância passível de normalização ganha, portanto, importância renovada na LBHM.


Nos programas dos ambulatórios de psiquiatria preventiva já existentes à época, a intervenção
na infância era enfatizada. Dessa forma, regularmente os psiquiatras ofereciam serviços
voltados para prevenção de “acidentes nervosos da infância”, através de aconselhamento às
mães e amas, sob a responsabilidade de Gustavo de Rezende; assistência profilática aos
“pequenos nervosos”, por Mauricio de Medeiros; tratamento e prevenção de reações anti-
sociais na infância, por Heitor Carrilho; pesquisas genealógicas voltadas para orientação em
higiene mental, por Floriano de Azevedo. Curiosamente, esse programa foi traçado após um
breve período de crise da instituição, no ano de 1925, fomentado pelo interesse em conquistar
adesão social ao projeto de “regeneração social”. (CALDAS, 1934, p. 72-73).
Um novo domínio discursivo no âmbito da higiene mental surgiria alguns anos mais
tarde, em 1933: a “euphrenia”. A designação, fruto de um neologismo cunhado por
Mirandolino Caldas (1932a), visava a situar estrategicamente o cuidado com a infância no
meio caminho entre a eugenia e a higiene mental. Traduzida pelo próprio autor como
“sciencia da boa cerebração” (CALDAS, 1932a, p. 30), a eufrenia consistia numa “eugenia
psíquica”. Inscrever a psiquiatria vintecentista apenas no âmbito da higiene não era suficiente
para nomear seu projeto de intervenção social. A higiene, voltada para ensinar ao indivíduo e
à sociedade a se precaver da doença, não designava bem o alcance do interesse regulatório da
psiquiatria, senão na aplicação restritiva do conceito de higiene mental, voltado para a
prevenção dos distúrbios psíquicos. Era necessário criar algo análogo ao “homem
morfologicamente perfeito” da eugenia, o que no âmbito psiquiátrico seria traduzido por uma
formação psíquica perfeita. (CALDAS, 1932a, p. 30). No entanto, o conceito de eugenia
também parecia inadequado a esse interesse, pois, apesar de o valor eugênico dado à boa
constituição ser útil à psiquiatria, filiação ético-política da qual ela se orgulhava, a “boa”
formação do psiquismo não dependeria apenas da constituição transmitida hereditariamente,
mas também do acompanhamento cuidadoso do desenvolvimento do psiquismo. Além disso,
a hereditariedade psicológica possuía zonas de opacidade à leitura mendeliana, matriz de
interpretação dominante entre eugenistas. Na tentativa de leitura da constituição da esfera
190

psíquica, não era possível mais sustentar com segurança padrões de dominância e de
recessividade, constatação que começava a gerar uma mobilização do saber psiquiátrico em
outra direção. Nesse sentido, cabia ao psiquiatra intervir na vida psíquica dos indivíduos
desde a fase intrauterina, servindo de exemplo o artigo de Hosanah de Oliveira, com o qual
iniciamos esta seção. Através do neologismo “euphrenia”, portanto, a psiquiatria pôde nomear
a emergência de um novo domínio que precisava se distinguir da eugenia geral, pois nem seu
objeto, nem suas táticas de regulação seriam as mesmas.
Nesse novo domínio, a eugenia continuava sendo a base a partir da qual a eufrenia
poderia ser levada a cabo. Tanto é assim que, no plano de ação da eufrenia, em primeiro
lugar, enuncia-se a “seleção nupcial”, analisada no capítulo 4, baseada na seleção de “bem
dotados”, capazes de produzir uma descendência mentalmente hígida; em seguida, cuidar-se-
ia para que os de boa constituição genotípica tivessem boa capacidade de fecundação e que
fosse possível ainda realizar uma seleção da natalidade de modo a evitar o nascimento de
indivíduos disfrênicos, procedimentos qualificados como da ordem de uma “eufrenia
genealógica”. Mas, como vimos, a eufrenia não se restringia à eugenia, e era necessário
formular um conjunto de táticas condizente com essa expansão, que foi nomeado como
“eufrenia médico-pedagógica”, inspirada numa psicologia funcionalista, centrada na ideia de
adaptação, que forneceria as bases para uma intervenção não mais psiquiátrica, mas neuro-
psiquiátrica. Essa era uma atualização que a deixava orgulhosa de seu futuro como disciplina
centrada na função cerebral e, constituída, pelo tão antigo e almejado substrato orgânico.
A LBHM cria, em 1933, a Clínica de Euphrenia, que

[...]orienta a evolução mental da criança, concorre para a boa formação do


psychismo, robustece o caráter e a personalidade infantil, ao mesmo tempo que
procura descobrir precocemente os primeiros signaes de dysfunção neuro-psychica,
para prevenir, a tempo, os distúrbios nervosos que possam sobrevir no futuro
(CALDAS, 1932b, p. 65).

As ações diagnósticas e terapêuticas da Liga nesse momento se concentraram nas


consultas psiquiátricas às crianças nervosas e na assistência social e às famílias dessas
crianças. Testes psicológicos começam a ser aplicados como instrumentos de diagnóstico,
uma vez que a análise da infância se fazia a partir de uma compreensão evolutiva, presente na
ênfase que começava a ser dada ao desenvolvimento das crianças.
Aparece no texto de Coutinho (1939, n. 1-2) um discurso que começa a salientar o
desenvolvimento como um modelo de compreensão que faz aparecer o critério da
normalidade, sem que seja necessário recorrer, necessariamente, à ideia de degeneração. Seria
191

a regularidade esperada para cada fase da vida que permitiria estabelecer os critérios
prescritivos que especificam o que seria a anormalidade. Novo princípio de organização do
discurso psiquiátrico, que, a partir da década de 1940, vai paulatinamente substituir o discurso
da degenerescência pelo da desestruturação.110 Freud é invocado no realce dado à infância na
constituição da vida futura, mas a ideia em relevo são os prejuízos das dificuldades desta fase
na adaptabilidade do indivíduo. É com essa chave que o autor discute o conceito do princípio
de prazer e princípio de realidade, que põe em antagonismo o interesse individual hedonista,
de um lado, e as exigências sociais, de outro.
A família seria esse ponto de acoplagem entre os interesses do indivíduo e as
exigências sociais que, pela via da afetividade, produziria compensações para a renúncia a
que estariam convocados desde a infância os indivíduos. Ela deveria ser o agente que pudesse
difundir uma pedagogia de hábitos considerados saudáveis, aliada à criação de novos
predicados morais pela ativação da afetividade infantil em relação a certas situações sociais,
como em cerimônias cívicas ou religiosas, por exemplo. Mas isso não era incompatível com a
subsistência do modelo degenerativo, pois a ênfase pedagógica tinha também a intenção de
interferir na atualização da carga constitucional que predispunha o indivíduo à anormalidade
(CAMPOS, 1934, p. 15). Num panfleto de divulgação do trabalho de eufrenia realizado pela
Liga, intitulado “Exhortação ás mães”, encontramos um discurso que tentava cooptar a
família, especialmente a mãe, para ser um agente da vigilância eufrênica e aliada dos
psiquiatras no seu projeto de normalização social, que se oferece como único saber legítimo
para regular a convivência familiar e para salvar os futuros adultos do crime, da loucura e dos
vícios.
Mãe extremosa!
Teus filhos são a relíquia mais preciosa que possues.
São o teu sangue e a tua própria vida.
Isto mesmo, instinctivamente, já o tens sentido: cuidas dos teus filhos com
tal interesse, tal carinho, e tal amor, que sómente o instincto de maternidade te fará
comprehender a razão desta exuberancia de ternura e zelo.
[...] Os menores distúrbios physiologicos te preocupam e te fazem soffrer e
perder noites e mais noites...
O teu filho cresceu, tornou-se homem; a tua filha tambem tornou-se
mulher.
Era o momento de sentires a felicidade integrada ao teu lar e a alegria de ter
cumprido condignamente a tua missão de mãe.
E isso acontece, por felicidade muitas e muitas vezes. Não é raro, porém,
apparecerem as terríveis decepções: teu filho que desde a infância se mostrara um
menino teimoso e pugnaz, tornou-se um criminoso e se encontra agora na desolação

110
Escapa aos limites temporais do recorte estabelecido para a pesquisa de tese, mas fica a indicação do livro de sexologia
forense, de Mauricio de Medeiros e Manfredini, no qual prevalece a lógica da desestruturação como critério para estabelecer
as condições psíquicas que tornariam os nubentes adaptados ao casamento e produtores de uma família organizada e
estruturada. Para mais detalhes, ver: Medeiros e Manfredini (1956).
192

do cárcere; tua filha, sempre cheia de esquisitices, foi internada num hospital
psychiatrico.
Quanta tristeza! Quanta desilusão!
De certo que, em alguns casos, é a fatalidade a grande e a única
responsável. Na maioria dos casos, porém, podem ser evitadas essas desgraças.
Muitos doentes mentaes, muitos criminosos e viciados, que hoje se encontram nos
manicômios, nas prisões e até nos salões elegantes da sociedade, seriam pessoas
equilibradas e felizes si a sua infância tivesse sido comveninentemente vigiada, si as
suas anomalias constitucionaes, os seus vicios e defeitos de comportamento
tivessem sido tratados desde o inicio.
[...] Cuida, pois, da alma do teu filho, desde os primeiros annos ou, antes,
desde os primeiros mezes. Mas cuida racionalmente, scientificamente, para que não
prejudiques a sua personalidade.
Muitos desvios do psychismo são frutos da má orientação educacional. E
são os Paes, não raro, os responsáveis por essas graves anomalias. E’ que quasi
todos, ainda os mais esclarecidos, são levados, insensível e involuntariamente, pelos
sentimentos affectivos, que não lhes deixam ver os defeitos dos seus pimpolhos.
[...] corrige-te a ti mesma e procura compreender bem o teu filho, antes de o
corrigires.
Si o não compreenderes, si tiveres duvida, foge de qualquer actuação
directa e pede conselhos a quem te possa dar.
É nas Clinicas de Euphrenia que poderás encontrar esses conselhos de que
careces. [...] A finalidade principal desses serviços não é tratar os psychopatas e os
degenerados: é, sobretudo, aperfeiçoar, cada vez mais, o delicado mechanismo de
elaboração psychica. (ABHM, v. 5, n. 2, out./dez. 1932).

A função familiar de agente de ajustamento social das crianças não deveria mais, no
entanto, ser realizada de forma aversiva. Esta é uma das razões que tornam o castigo
condenável do ponto de vista da higiene mental. O castigo – que representaria a hostilidade
parental – frustra as expectativas de uma renúncia internalizada pelo indivíduo como algo da
ordem do seu desejo, contrariando o regime adaptacionista que a higiene mental lutava por
introduzir. Sem as compensações do amor parental, a criança resistiria, com mais frequência,
aos apelos de ajustamento voluntário ao registro social, preconizado pela LBHM. Mas a
ternura exagerada, por sua vez, era também recriminada: o excesso de proteção, de
afetividade, de liberdade familiar seria igualmente nefasto para a adaptação do indivíduo às
exigências sociais, que deveriam sempre prevalecer.
O que fica patente é que o projeto da higiene mental não poderia prescindir de uma
regulação da economia afetiva intrafamiliar para obter êxito. O tema do “filho único” ilustra
bem esse interesse. Num artigo de Murillo Campos (1934, n. 1), a condição do filho único
aparece como a causa de uma série de distúrbios neuróticos. Seu modelo de análise é a
triangulação edípica, mas a leitura que ele realiza está ancorada na ideia de adaptação.
Vejamos: a convivência exclusiva da criança com pais ocasionaria um excesso de vigilância
que, de um lado, favoreceria uma precocidade do desenvolvimento intelectual, tornando a
criança um imitador do adulto. Essa aproximação demasiada comprometeria, por outro, a
espontaneidade infantil e modificaria a relação da criança com o espaço da brincadeira, que
193

seria do seu universo por excelência. Nesse sentido, muito do que era atribuído à herança, não
passaria da reprodução de uma “educação defeituosa” (p.4), fruto das psicopatias parentais.
Isso poderia ser demonstrado pelo fato de que a convivência intensa e exclusiva com os pais
exporia a criança às oscilações daqueles; ficaria também vulnerável à condição de
dependência gerada pela concentração exagerada da atenção parental; “revelar-se-á um inapto
para a vida”; diminuiria o interesse por contato.
O autor cita o desenvolvimento infantil e situa a interferência dos afetos parentais na
formação da criança. Primeiro, o instinto de conservação seria preponderante e vinculado à
nutrição, o que explicaria um interesse reflexo pela figura da mãe. Aos poucos, a criança
perceberia a importância que tem para os pais, que são vistos como estando a serviço da
vontade dela. Mas a frustração dessa percepção desencadearia um processo psicológico bem
mais complexo: como o egoísmo seria constitucional (é essa a tradução que ele faz da noção
freudiana de narcisismo) e família detém, no primeiro momento, a exclusividade sobre o que
se configura como universo infantil, os jogos ambivalentes começariam a aparecer. Afirma-se
aí o desejo pelas figuras parentais, reproduzindo o conhecido itinerário edípico: desejo da mãe
– introdução da figura paterna – castração. Os irmãos, no caso do filho único, estando
ausentes, tornariam esse jogo afetivo muito mais intenso e dificultariam a renúncia
“instintiva” exigida à adaptação social. O complexo de Édipo figuraria como causa dos
sintomas neuróticos e psicóticos, atravessados pelo reflexo dessa intensa fustigação afetiva no
interior da família, cuja aparição mais contundente seria a vida sexual desses sujeitos.

São indivíduos que, com frequência, revelam atrazos da sexualidade. Em muitos, a


masturbação é a única forma por que chegam à satisfação erótica. Não são
impotentes, mas apenas inhibidos sexuaes: – vêm na mulher, ora a tentação
demoníaca, condemnavel, ora, simplesmente, a imago materna A masturbação,
nessas circunstâncias, equivale ä castração ou desvirilização, por meio della
supprimindo-se a tensão perturbadora, que causa horror. Em muitos, tam’bem
persistem fortes traços de homsexualidade, quasi sempre de typo masochico. Não
raros, fogem á genitalidade normal e procuram compensações de ordem intellectual
ou neurótica (CAMPOS, 1934, p. 15).

A família nuclear havia chegado ao seu ponto máximo de saturação afetiva. O desafio
era enfrentar os efeitos contingentes a essa aproximação intensa entre pais e filhos. O tema do
incesto chegava à psiquiatria brasileira e, com ele, alguns temores. Em primeiro lugar, que a
família, que deveria zelar pela saúde mental de seus filhos, se convertesse ela mesma na fonte
principal de agentes predisponentes à psicopatologia e à criminalidade. Além disso, estava em
jogo, paradoxalmente, a ameaça ao interesse de que a psiquiatria, por sua atuação profilática,
pudesse mediar a transformação da criança ajustada à condição de adulto normalizado e
194

adaptado às exigências do meio, capaz de reproduzir esse modelo pedagógico na constituição


de sua própria família. Ora, havia certos indivíduos (e o filho único seria só um exemplo) que
fracassariam no quesito da maioridade normalizada, justamente como efeito não desejado
dessa saturação afetiva que, paradoxalmente, o saber médico havia ajudado a construir como
norma familiar. A psiquiatria também visualizava que, como efeito do estado potencialmente
incestuoso da família, fosse criada uma figura monstruosa: a de um adulto débil não mais do
ponto de vista intelectual (desse ela já havia, como vimos, desistido), mas do ponto de vista
emocional. Encoberto por esses temores estava justamente o interesse psiquiátrico pela
persistência do infantil no adulto, pois esse era o mote que passava a mobilizar seu saber e seu
poder de intervenção não apenas na vida dos indivíduos, mas também na vida social:

De um modo geral, o celibatário é um imaturo da psico-afetividade. Suas tendências


não lograram alcançar um grau avançado de socialização. Por sua especial condição,
por ausência de sintonia, de comunhão afetiva eficaz, sem solida adesão ao presente,
sem definida perspectiva de futuro, sua vida alimenta-se e reminiscência e hábitos
egoístas da infância. Essas disposições de ânimo, coloridas de infantilismo,
observam-se com maior frequencia nos solteirões, cujos pais ainda vivem. Eles
permanecem na atitude primitiva de dependência parasitária, indecisos, sem vocação
profissional, agindo sempre sob a responsabilidade alheia, em caricato
prolongamento da juventude. (COUTINHO, 1939, p. 44).

Foucault (2001) evidenciou uma descontinuidade importante na aproximação da


psiquiatria com o tema da infância: enquanto a infância e a doença eram excludentes no
modelo alienista, na psiquiatria, é a busca retroativa pela história infantil que daria
inteligibilidade às diversas expressões da anormalidade. Tomando o infantil como alvo de
interesse, a psiquiatria poderá prescindir da “doença mental” para adotar a anormalidade
como seu domínio, que surge justamente quando o controle sobre os instintos não sejam
eficientes para manter a economia dos prazeres dentro da regularidade do desenvolvimento. É
essa centralidade da infantilidade na configuração do campo psiquiátrico que vai permitir a
articulação dos três elementos que caminhavam separados – o prazer, o instinto e a
imbecilidade. Finalmente, como abordagem do infantil, a psiquiatria se aproxima da
neurologia e da biologia em geral, ancorando seu saber num substrato cuja materialidade
insuflava sua pretensão de consolidar para si um estatuto de cientificidade inequívoca.
A solidariedade explícita entre a higiene mental, a educação sexual e a eugenia,
campanhas paralelas que se processaram no Brasil entre as décadas de 1920 e 1940, deixava
entrever o início de um processo de fragilização do discurso da degenerescência, que passa a
conviver, já em meados da década de 1930, com o discurso desenvolvimentista, que
195

centralizava na “adaptação” o objetivo a ser perseguido na busca de “regeneração social” do


Brasil.
A puericultura faz avançar um conjunto de prescrições sobre a criação dos filhos, já
em curso desde o século XIX, mas que passa a contar com novos suportes institucionais, além
de ser recodificado para ser dirigido diretamente aos pais, constituindo-se como campo
crucial na normalização da infância. A vida sexual desses que deveriam se tornar adultos, de
preferência, deveria estar livre de vestígios de perversões sexuais, ponto de incidência do
projeto de educação sexual. Além disso, a higiene mental, campo que indexava claramente a
produção de normalização psíquica ao registro sexual, entra em cena para tornar a criança um
adulto normalizado, zeloso da família e da pátria, livre de toda e qualquer anomalia.
O sexo das crianças é o ponto de entrecruzamento desses discursos, já que se tratava
de uma instância que permitia dar visibilidade à economia erótica que constituía a relação
entre pais e filhos. Com efeito, aspirava-se interferir na antropologia vindoura: fabricar um
indivíduo que, se não podia ser selecionado rigorosamente pela eugenia, deveria receber da
medicina uma profilaxia mental (leia-se sexual) para ser hiperajustado à norma. Com efeito, o
sonho de produzir normopatas em série, a partir da vigilância incessante do sexo das crianças
e da economia emocional intrafamiliar, acalentou os novos saberes psi que surgiram a partir
da higiene mental.
196

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta tese procurou analisar discursos, estratégias e táticas políticas de regulação da


sexualidade por saberes e instituições médicas brasileiras, tomando como pano de fundo o
contexto histórico de produção de um projeto moderno de nação brasileira. Especificamente,
buscamos abordar o interesse do saber médico pela sexualidade conjugal e pelo erotismo
infantil, de modo a reunir alguns elementos para que se possa pensar como as tecnologias
biopolíticas vigentes na modernidade à brasileira se insinuaram nas relações intrafamiliares
do nosso país. Para tanto, o trabalho foi subsidiado por uma pesquisa histórica de inspiração
foucaultiana, guiada pelo pressuposto fundamental de que os conceitos são forjados numa
dependência intrínseca ao seu solo histórico-político de constituição, de modo a produzir
efeitos de verdade, somente a partir dos quais as tecnologias de poder podem se constituir
num determinado campo de forças.
A visibilidade da família no pensamento médico brasileiro até a década de 1870 esteve
enredada no contexto de institucionalização deste saber no Brasil, marcado pelo esforço de
constituição de legitimidade, o que se fez, não sem tensões, junto ao Estado, à sociedade e à
família. A partir de táticas de expansão de suas ações, tanto no espaço citadino, quanto na
vida privada das famílias, bem como a partir da construção de uma cultura profissional
fortemente marcada pelo corporativismo, o saber médico foi, gradativamente, constituindo-se
como de grande relevância para a implementação de um projeto de nação que ambicionava se
inserir nos patamares civilizatórios da modernidade. O saber médico foi, assim, um
importante mediador entre os interesses estatais de regulação dos indivíduos e da sociedade e
a instituição familiar patriarcal, que passa a se colocar em rota de colisão com o poder estatal
a partir das transformações na cartografia das cidades ocorridas a partir do final do século
XVIII (COSTA, 1979).
É nesse contexto que se inscrevem as preocupações dos médicos com o casamento.
Através de um conjunto detalhado de prescrições higiênicas, o casamento era enaltecido como
elemento essências ao progresso da pátria, às custas da condenação virulenta tanto à renúncia
a uma vida sexual, como a vivências sexuais que ocorriam na periferia da instituição
matrimonial. Desta maneira, foram apresentados os traços de um ideal normativo capaz de
modelar maridos e esposas à tarefa de fazer do casamento a base de sustentação para um
projeto de higienização da sociedade.
197

O desafio que se estabelecia em paralelo à consolidação higiênica dos casamentos era


a necessidade de um remajenamento profundo no cuidado dirigido à infância. Nessa
perspectiva, um detalhado escrutínio dos cuidados higiênicos para com a criança foi realizado
pelo saber médico, de modo a estabelecer novos parâmetros para a assunção, pelos pais, da
tarefa biopolítica de cuidado com os filhos. Em particular, uma densa campanha para
conversão das mulheres em mães devotadas aos seus filhos foi empreendida no discurso
médico, ainda no século XIX. Ela será o agente central da tarefa de higienizar e eugenizar a
família brasileira.
Mas as prescrições de cuidado à infância não se restringiam apenas à saúde física, pois
era necessário a criança fosse, além de fisicamente sadia, bem educada. Nestes termos, seria
necessária uma vigilância da família para com a educação moral, de modo a favorecer que a
criança fosse isenta de vícios morais. É nessa perspectiva que as preocupações higiênicas com
o onanismo têm lugar. Ainda que não se tenha empreendido no Brasil uma “cruzada
antimasturbatória” — como ocorreu na Europa —, a partir do século XVIII, o discurso
médico de dedicará ao tema do onanismo, a partir de suas opiniões acerca da interação entre a
família e a instituição escolar, que comparece como co-participante da formação física, moral
e intelectual das crianças. Por esta razão, era também necessário normalizar higienicamente a
escola, o que foi realizado a partir do julgamento de que era preciso estancar os focos de
insalubridade física e moral daquela instituição. O onanismo servirá, então, de ponte para essa
estratégia, já que era difundida a tese de que esse era um vício contraído nos internatos. Ainda
que não estivesse inscrita numa “sexualidade infantil”, a masturbação – que era tida como
uma manifestação sexual fora do lugar (não por acaso, ela era concebida como um “vício”) –
servirá como pretexto para o convencimento acerca da necessidade de que os pais se
aproximassem cada vez mais dos filhos. Seriam necessárias algumas décadas para que se
pudesse visualizar nos saberes e nas instituições médicas uma versão mais acabada da norma
que se julgava necessária ao funcionamento familiar.
As condições de possibilidade dessa passagem histórica começam a se forjar no Brasil
a partir da década de 1870, quando a expectativa de um projeto político-econômico liberal
para a nação brasileira teve de conviver com as profundas desigualdades sociais geradas ao
longo de séculos de regime escravagista brasileiro (SCHWARCZ, 1993). Um estado de
grande descontentamento das elites intelectuais com a realidade miscigenada da população
brasileira será a atmosfera na qual a categoria “raça” será introduzida no debate acerca da
viabilidade do país. Forjada através de teorias científicas que justificavam a “inferioridade”
dos negros, a raça será utilizada como artefato discursivo para deflagrar diferentes tentativas
198

de solução para o problema da viabilidade do país (branqueamento, positivação da


miscigenação, eugenia), que se sucederam no Brasil, sendo que boa parte delas esteve
amparada pelo darwinismo social spenceriano.
É neste cenário que vai se inscrever uma importante descontinuidade na
institucionalização do saber psiquiátrico brasileiro, com a assimilação do discurso da
degenerescência, a partir da última década do século XIX. As tentativas médicas de
teorização da hereditariedade já estavam em curso desde meados daquele século, quando
ocorreu um deslocamento discursivo importante na compreensão da hereditariedade. Partindo
de uma crítica à transmissão da herança do ato, fundamentada na ideia de que o que se herda é
a predisposição a ele, forjou-se a noção de impulso hereditário, que constituiu uma zona de
proximidade com a proposição da existência de um impulso inato. Este, por sua vez, já se
encontrava no esteio do discurso da degenerescência, a partir da assimilação de Morel, mas
sobretudo de Magnan, por sua filiação ao evolucionismo.
Para o que interessa ao objeto desta tese, o discurso da degenerescência encontra em
Nina Rodrigues uma espécie de ponto máximo de articulação com a miscigenação e com a
ideia de hiperestesia sexual do brasileiro. É este médico que, subsidiado por um profundo
racismo científico, vai enunciar um discurso no qual a degeneração estaria vinculada a uma
patologia do instinto sexual dos negros, sendo, portanto, necessário criar estratégias para deter
os efeitos degenerativos resultantes dos cruzamentos mestiços. Essa é uma das chaves de
acesso à noção de instinto sexual que vai passar a ocupar, já a partir dos primeiros anos do
século XX, um lugar proeminente no discurso psiquiátrico, assentando, com isso, as bases
para uma política eugênica dos casamentos.
Essa política, no entanto, esbarraria em algumas dificuldades. Já estavam em curso
lentas, porém estáveis, transformações na lógica que presidia o sistema de reprodução no
Brasil. Saída de um regime colonial – marcado pela lógica das trocas familiares, centrado no
dote e na virgindade como valores de troca – para um regime moderno, centrado no cuidado
com os filhos e no estreitamento dos laços, a família já havia assimilado uma parcela
significativa das prescrições higiênicas. Mas, no início do século XX, o saber médico ainda
teria de recorrer a uma crítica ao antigo regime, promovendo um intenso trabalho de
convencimento de que a saúde deveria ser o valor preponderante na lógica da constituição dos
casamentos.
O tenso debate acerca da prostituição descortina os elementos que justificavam essa
insistência. Argumentando que a mulher estava desprotegida na relação matrimonial dos
excessos sexuais de seu marido – o que o levava, regularmente, à utilização do expediente da
199

“dupla moral” para frequentar as casas de prostituição, vetor principal da difusão da sífilis no
final do século XIX e primeiras décadas do século XX –, os médicos geraram os subsídios
para a proposição de políticas estatais que pudessem garantir a segurança sanitária da
população brasileira. Esse debate fornecerá os códigos para uma nova estratégia de regulação
política do casamento, que viria a ser promovida pela eugenia matrimonial no século XX. Tal
estratégia política orientou uma nova intromissão do saber médico na esfera da vida familiar,
organizada a partir de algumas táticas: a campanha pela legalização da obrigatoriedade do
exame pré-nupcial, a crítica eugênica aos casamentos consanguíneos e a educação sexual, que
tinha por alvo a criança e, como agentes, a família e a escola.
O projeto de educação sexual tem, como pano de fundo, a associação entre a
degenerescência e a hiperestesia sexual, marca fundamental do discurso médico acerca da
brasilidade. O imaginário sobre o Brasil, arquivado na nossa memória coletiva – desde os
primeiros relatos dos jesuítas e viajantes –, esteve fortemente marcado pelo excesso de
lascívia como um dos traços culturais mais expressivos de sua gente. Relidos séculos depois
pelos ensaios de interpretação do Brasil, sobretudo por Paulo Prado (1928) e por Gilberto
Freyre (1933), esse imaginário teve de ser recodificado por uma nova demanda
historicamente contingente: a de fabricar uma identidade brasileira, capaz de impulsionar um
projeto viável para a nação. Vale sublinhar que o gesto sociológico de buscar na origem da
formação social os insumos discursivos para o delineamento de uma identidade brasileira se
fez a partir de noções que surgem no quadro da discussão racial na passagem do século XIX
ao século XX. É nessa perspectiva que o tema do excesso sexual do brasileiro foi revisitado
pelos sociólogos, forjando-o, por um lado, como um perturbador do projeto civilizatório
nacional e, por outro, como um traço que foi positivado por ter sido a condição de
possibilidade da hibridização cultural como constitutiva da nação brasileira.
Baseando-se na premissa de que era necessário enfrentar uma espécie de déficit sublimatório
do brasileiro, uma expressiva “cruzada” pela educação sexual teve lugar no Brasil na década
de 1930, aglutinando, em suas bases, uma adesão às prerrogativas da eugenia, mas dando-lhe
uma inflexão neolamarkista. Somente desta maneira, seria possível justificar um programa
voltado à pedagogização sexual da criança brasileira. Como vimos, o Círculo Brasileiro de
Educação Sexual foi a instância institucional que deu voz a esse programa. Afirma-se a
necessidade de uma nova moral sexual que, subsidiada por uma ciência sexual – centrada na
mais extremada biologização do sexo , deveria viabilizar uma nova tática de educação
sexual que só poderia funcionar se a moral centrada no pudor conseguisse dar lugar à
colocação do sexo em discurso. Essas propostas de mudança se implementaram a partir de um
200

campo de forças em que algumas manobras deveriam ser realizadas para converter os
“inimigos” da legitimidade da educação sexual, localizados, principalmente, nos próprios
médicos, na Igreja e na família. Para esta, um trabalho de convencimento dos pais visando à
necessidade de esclarecimento sexual de seus filhos ocupou um lugar central nas intervenções
dos nossos primeiros sexólogos.
A fabricação da sexualidade infantil será o núcleo discursivo dessa empreitada. É
nesse particular que as ideias freudianas foram assimiladas pelo discurso higiênico e
eugênico, constituindo-se na principal porta de entrada da psicanálise no Brasil. Apesar da
crítica contundente de Freud ao discurso da degenerescência, sua tese da sexualidade
perverso-polimorfa, que lhe servia de munição contra tal discurso, foi assimilada pelos
médicos que se colocavam na vanguarda da sexologia brasileira como a justificativa central
para uma profilaxia sexual. A leitura da teoria freudiana do desenvolvimento psicossexual por
esses médicos esteve centrada na busca de elementos teóricos que justificassem uma rigorosa
normalização do erotismo infantil, calcada numa normatividade biológica da função sexual.
A partir dessa apropriação particular da tese da sexualidade infantil, constituiu-se no
núcleo duro da psiquiatria brasileira do século XX (a Liga Brasileira de Higiene Mental) um
novo domínio: a eufrenia. Argumentando que os perigos sexuais apareciam desde a mais tenra
infância, a eufrenia era uma versão modificada do projeto eugênico, misturada a uma
pedagogia da adaptação que havia feito da maquinaria erótica intrafamiliar o reduto de uma
antropologia vindoura: o normopata.
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