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Lei

e
Evangelho
C. F. W. Walther
C. F. W. Walther

Lei
e
Evangelho

Condensado por Walter C. Pieper

TRADUÇÃO

Vilson Scholz

Tradução feita a partir do original inglês


GOD’S NO AND GOD’S YES
The Proper Distinction Between Law and Gospel
Concordia Publishing House - 1973

DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO
da
Igreja Evangélica Luterana do Brasil

Editoração: Jarbas Hoffimann


Instituto Concórdia de São Paulo
São Paulo-SP
1998

1
INTRODUÇÃO
A Correta Distinção Entre Lei e Evangelho é um conjunto de preleções de C. F. W. Wal-
ther, que foram estenografadas e transcritas por estudantes seus. Walther proferiu-as entre 12 de
setembro de 1884 e 6 de novembro de 1885, nas reuniões das sextas-feiras à noite denominadas
“Momentos com Lutero”. Walther, na qualidade de professor de teologia do Concordia Semi-
nary, St. Louis, julgava que era responsabilidade sua não somente explicar o significado das dou-
trinas das Sagradas Escrituras a seus alunos, mas também “fazer com que a doutrina penetrasse
em seus corações” para que, no exercício do ministério, “se apresentassem como testemunhas vi-
vas com uma manifestação do Espírito e de poder”.
Walter abordou uma variedade de temas nas preleções dos “Momentos com Lutero”, Falou
sobre a Inspiração das Escrituras, a Verdade da Religião Cristão, Sociedades Secretas, Justificação,
Predestinação e Justificação, a “Grande Confissão concernente ao Bendito Sacramento” de Lutero,
e abordou também, a Correta Distinção entre Lei e Evangelho em duas séries de preleções. A
primeira série sobre lei e evangelho foi apresentada em 1878 e reunia 13 teses. Esta série foi pu-
blicada em 1893. A segunda série reunia 25 teses e foi publicada em 1897. W. T. T. Dau traduziu
esta última para o inglês e a publicação saiu em 1929. O presente livro é uma condensação da
tradução de Dau.
Carl Ferdinand Wilhelm Walther preparava cuidadosamente o assunto que estava por apre-
sentar. E se ele já era cuidadoso no preparo de uma palestra, muito mais cuidadosa ainda era
quando se tratava de um trabalho a ser impresso. No preparo do material a ser impresso, ele remo-
delava o que havia sido apresentado oralmente de modo que o leitor recebia realmente o melhor.
Visto A Correta Distinção entre Lei e Evangelho ter sido publicado após sua morte, Walther
não teve oportunidade de remodelar suas preleções e prepará-las para o prelo como era de seu
feitio. Se isso tivesse sido possível, o estilo da obra certamente seria outro. Muito do material
contido nesta obra foi dito de improviso, dirigido às pessoas que lhe eram chegadas. Dau afirma
no Prefácio e Introdução de sua tradução da obra: “Outrossim, é plenamente aceitável uma maior
liberdade, ou até mesmo uma certa espontaneidade, quando um professor amado, já idoso, se dirige
a um auditório constituído quase que inteiramente por estudantes seus”. Neste sentido somos então
duplamente recompensados: familiarizamo-nos com Walther, o pastor de estudantes de teologia,
bem como com a sua teologia propriamente dita.
A importância da correta distinção entre lei e evangelho demostra-se no fato de Walter ter
proferido duas séries de palestras sobre o assunto, na publicação de ambas as séries, e na imediata
tradução da última para o inglês. A repercussão que teve A Correta Distinção entre Lei e Evan-
gelho não é fácil de ser avaliada; contudo, todos os que citam as dádivas de Walther à igreja in-
cluem esta obra. Pode-se inclusive afirmar que esta foi sua maior dádiva à igreja visto que, dentro
do luteranismo, a prática pastoral na pregação, no aconselhamento e na avaliação da missão da
igreja tem emanado da compreensão da correta distinção entre lei e evangelho.
A Correta Distinção entre Lei e Evangelho, da autoria de C. F. W. Walther, é um clássico;
condensá-lo é arriscado. Assumimos este risco na esperança de tornar esta obra conhecida a um
público maior, pois ela fornece muitos critérios e corretivos inusitados. Esta condensação objetiva
reavivar o interesse pela obra completa. Para isto, fizemos com que o próprio Walter falasse, eli-
minando assim as extensas citações das Confissões Luteranas, Martinho Lutero e dogmáticos. Já
que esta obra é produto de preleções apresentadas nos “Momentos com Lutero”, a maioria das
citações extra-bíblicas são de Lutero. Visando unificar a apresentação das diversas teses, elimina-
mos a divisão original por preleções e encaramos cada tese como uma unidade. Na seleção da
matéria que integraria a explicação de cada uma das teses, procuramos reter aquilo que mais dire-
tamente se relacionava com a tese em questão.

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Lei e Evangelho

1ª TESE
O conteúdo doutrinário de toda a Escritura Sagrada, tanto do Antigo quanto do Novo Testamento, é constituído
por duas doutrinas essencialmente distintas entre si: a lei e o evangelho.
2ª TESE
Para ser um teólogo ortodoxo não basta que se exponha todos os artigos de fé em concordância com as Escri-
turas; é necessário também saber diferenciar corretamente lei e evangelho.
3ª TESE
Distinguir corretamente lei e evangelho é a mais difícil e a suprema arte que se apresenta aos cristãos em geral
e em especial aos teólogos. Esta arte é ensinada exclusivamente pelo Espírito Santo, na escola da experiência.
4ª TESE
Conhecer bem a diferença entre lei e evangelho não é apenas maravilhosa luz para a correta compreensão de
toda a Escritura Sagrada; mais do que isto: sem esse conhecimento a Escritura é e continua sendo um livro selado.
5ª TESE
A primeira – bem como a mais grosseira e mais facilmente reconhecível – confusão entre lei e evangelho é
aquela em que, a exemplo de papistas, socinianos e racionalistas, se encara Cristo como um novo Moisés, um legisla-
dor, e se transforma o evangelho em doutrina de obras meritórias ao mesmo tempo em que, como o fazem os papistas,
condenam-se e amaldiçoam-se os que ensinam que o evangelho é a mensagem da graça ilimitada de Deus em Cristo.
6ª TESE
Em segundo lugar, a palavra de Deus não é aplicada corretamente quando a lei deixa de ser pregada em todo
seu rigor e o evangelho em toda sua doçura; quando, ao contrário, componentes do evangelho são adicionados à
pregação da lei, e componentes da lei são adicionados ao evangelho.
7ª TESE
Em terceiro lugar, a palavra de Deus não é aplicada corretamente quando o evangelho é pregado antes da lei;
a santificação antes da justificação; a fé antes do arrependimento; as boas obras antes da graça.
8ª TESE
Em quarto lugar, a palavra de Deus não é aplicada corretamente quando a lei é pregada aos que já estão ate-
morizados em relação a seus pecados, ou quando o evangelho é pregado aos que vivem tranqüilamente em seus peca-
dos.
9ª TESE
Em quinto lugar, a palavra de Deus não é aplicada corretamente quando, ao invés da palavra e dos sacramentos,
se indica o caminho das orações e lutas com Deus aos pecadores que foram atingidos e atemorizados pela lei, para
que desta maneira alcancem o estado da graça. Em outras palavras: quando lhes é dito que devem permanecer em
oração e luta até sentirem que Deus os recebeu em sua graça.
10ª TESE
Em sexto lugar, a palavra de Deus , a palavra de Deus não é aplicada corretamente quando o pregador descreve
a fé de um modo que dá a entender que uma mera aceitação passiva de certas verdades justifica e salva diante de Deus,
mesmo que se esteja vivendo em pecados mortais; ou, também, quando se dá a entender que a fé justifica e salva
porque produz amor e transforma a vida das pessoas.
11ª TESE
Em sétimo lugar, a palavra de Deus não é aplicada corretamente quando se pretende apresentar o consolo do
evangelho somente àqueles que estão contritos pela lei porque amam a Deus e não porque temem o furor e o castigo
de Deus.
12ª TESE
Em oitavo lugar, a palavra de Deus não é aplicada corretamente quando o pregador descreve a contrição, ao
lado da fé, como sendo a causa do perdão dos pecados.
3
13ª TESE
Em nono lugar, a palavra de Deus não é aplicada corretamente quando, ao invés de procurar criar a fé no
coração de alguém apresentando as promessas do evangelho, se faz um apelo à fé que dá a entender que o homem a
si mesmo pode dar a fé, ou, ao menos cooperar para que tal aconteça.
14ª TESE
Em décimo lugar, a palavra de Deus não é aplicada corretamente quando se requer fé como condição necessária
para a justificação e salvação, como se o homem fosse justificado não somente através da fé mas também devido à fé,
por causa da fé, e à vista da fé.
15ª TESE
Em décimo primeiro lugar, a palavra de Deus não é aplicada corretamente quando o evangelho é transformado
em pregação de arrependimento.
16ª TESE
Em décimo segundo lugar, a palavra de Deus não é aplicada corretamente quando se prega que o abandono de
certos vícios e a prática de certas obras piedosas e virtudes são prova suficiente de que se está verdadeiramente con-
vertido.
17ª TESE
Em décimo terceiro lugar, a palavra de Deus não é aplicada corretamente quando se faz uma descrição da fé,
no que diz respeito a sua firmeza, conscientização e operosidade, que não se adapta a todos os cristãos em todas as
épocas.
18ª TESE
Em décimo quarto lugar, a palavra de Deus não é aplicada corretamente quando a corrupção universal da
humanidade é descrita de um modo tal, que causa a impressão de que mesmo os verdadeiros crentes ainda vivem sob
o domínio do pecado e pecam intencionalmente.
19ª TESE
Em décimo quinto lugar, a palavra de Deus não é aplicada corretamente quando o pregador se refere a deter-
minados pecados como sendo não condenáveis em si, mas sim, de natureza venial.
20ª TESE
Em décimo sexto lugar, a palavra de Deus não é aplicada corretamente quando se faz com que a salvação de
uma pessoa dependa de sua filiação a uma igreja ortodoxa visível, e quando se nega a salvação a todo aquele que erra
em qualquer um dos artigos de fé.
21ª TESE
Em décimo sétimo lugar, a palavra de Deus não é aplicada corretamente quando se ensina que os sacramentos
agem salvificamente ex opera operado, isto é, pelo simples levar a efeito extremo de um ato sacramental.
22ª TESE
Em décimo oitavo lugar, a palavra de Deus não é aplicada corretamente quando se faz uma falsa distinção entre
despertamento e conversão, e quando se confunde o não poder crer com o não permitir que se creia.
23ª TESE
Em décimo nono lugar, a palavra de Deus não é aplicada corretamente quando se procura, por meio das exi-
gências, ameaças ou promessas da lei, induzir a pessoa não convertida a que abandone a prática do pecado e se dedique
à prática de boas obras para que, desta maneira, se torne pessoa piedosa; por outro lado, situação idêntica ocorre
quando se procura levar o renascido a fazer o bem, apresentando-lhe as ordenanças da lei ao invés das admoestações
do evangelho.
24ª TESE
Em vigésimo lugar, a palavra de Deus não é aplicada corretamente quando o imperdoável pecado contra o
Espírito Santo é descrito como sendo imperdoável devido a sua grandeza.

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25ª TESE
Em vigésimo primeiro lugar, a palavra de Deus não é aplicada corretamente quando aquele que ensina a palavra
de Deus não permite que o evangelho tenha predomínio geral neste seu ensino.

5
A correta divisão entre Lei e Evangelho
Vocês certamente desejam tornar-se mestres competentes no exercício de sua atividade em nossas congrega-
ções e escolas. Para tanto, é absolutamente necessário que vocês tenham um conhecimento bem detalhado de todas as
doutrinas da revelação cristã. Contudo, além e acima de seu conhecimento das doutrinas, é necessário que vocês
saibam como aplicá-las corretamente. Um mero conhecimento intelectual das doutrinas não basta; todas elas devem
ter penetrado profundamente em seus corações e manifestado ali seu poder divino, celestial. Todas estas doutrinas
devem ter-se tornado tão preciosas, tão valiosas, tão caras para vocês, a ponto de não poderem deixar de, com o
coração ardente, unir suas vozes à de Paulo dizendo: “Nós cremos, por isso também falamos”, e à de todos os apósto-
los: “Nós não podemos deixar de falar das coisas que vimos e ouvimos”.
Dentre todas as doutrinas, a mais importante é a doutrina da justificação. Contudo, em segundo lugar, na ordem
de importância, está a arte de fazer separação entre lei e evangelho.
Lutero diz que estaria disposto a dar o maior destaque entre os demais e que daria o título de doutor das Sagra-
das Escrituras àquele que entende bem a arte de distinguir entre lei e evangelho. Não gostaria que pensassem que
pretendo colocar-me acima de todos os demais e ser considerado doutor das Sagradas Escrituras. Quanto a mim, desejo
permanecer na condição de humilde discípulo e sentar aos pés do Dr. Lutero para dele aprender esta doutrina do
mesmo modo como ele a aprendeu dos apóstolos e profetas.
Comparando a Escritura Sagrada com outros escritos, observamos que não existe livro aparentemente tão cheio
de contradições como a Bíblia. E isto não apenas em questões de somenos importância, mas precisamente na questão
principal: na doutrina de como chegar a Deus e ser salvo. Numa ocasião, a Bíblia oferece perdão a todos os pecadores.
Em determinada passagem Bíblia oferece-se vida eterna gratuita a todos os homens; numa outra, diz-se que eles mes-
mos devem fazer algo para serem salvos. Este enigma é decifrado quando nos damos conta de que as Escrituras contêm
duas doutrinas completamente diferentes entre si: a doutrina da lei e a doutrina do evangelho.

1ª TESE
O conteúdo doutrinário de toda a Escritura Sagrada, tanto do Antigo quanto do Novo Testamento,
é constituído por duas doutrinas essencialmente distintas entre si: a lei e o evangelho.

A diferença entre a lei e o evangelho não consiste em que o evangelho é uma doutrina divina e a lei uma
doutrina humana. De forma alguma; tudo o que a Escritura contém no que diz respeito a qualquer uma das duas
doutrinas, é a palavra do próprio Deus vivo.
A diferença também não está no fato de que apenas o evangelho é necessário, e a lei não, como se a
última fosse mero acréscimo que pode ser dispensado. Ambos são igualmente necessários. Sem a lei não
se compreende o evangelho; sem o evangelho, de nada nos aproveita a lei.
Igualmente é inadmissível afirmar-se que a diferença está em que a lei é a doutrina do Antigo Testa-
mento e o evangelho a doutrina do Novo Testamento. Há evangelho no Antigo, bem como há lei no Novo
Testamento.
A lei e o evangelho também não diferem entre si quanto aos aspectos de seu objetivo último, como
se o evangelho visasse à salvação do homem, e a lei a sua condenação. Tanto a lei quanto o evangelho têm
como finalidade última a salvação do homem; apenas que a lei, desde a queda, não mais nos pode conduzir
à salvação; ela pode apenas preparar-nos para a mensagem do evangelho. Outrossim, é através do evangelho
que recebemos a capacidade de cumprir a lei, até certo ponto.
De modo idêntico, não podemos estabelecer uma diferença entre ambas as doutrinas afirmando que
a lei e o evangelho se contradizem mutuamente. Não existem contradições na Escritura. Cada uma é distinta
da outra, mas ambas estão na mais perfeita harmonia entre si.
Por fim, a diferença não é esta de que somente uma destas doutrinas atinge os cristãos. Mesmo para
o cristão a lei ainda tem sua razão de ser. Na verdade, quando alguém deixa de empregar qualquer uma
destas duas doutrinas, deixa de ser cristão verdadeiro.
Lei e evangelho diferem realmente nos seguintes aspectos:
1. Estas duas doutrinas diferem no que diz respeito à maneira em que são reveladas ao homem;
2. No que diz respeito ao seu conteúdo;
3. No que diz respeito às promessas que cada uma faz;
4. No que diz respeito às suas ameaças;
5. No que diz respeito à função e efeito de cada uma;
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6. No que diz respeito às pessoas às quais, ou esta, ou aquela doutrina, deve ser pregada.
Em primeiro lugar, a lei e evangelho diferem no que diz respeito à maneira em que são revelados
ao homem. O ser humano foi criado com a lei escrita em seu coração. Em virtude da queda em pecado,
esta inscrição da lei no coração foi apagada em grande parte, contudo não totalmente. Pode-se pregar a lei
ao maior pagão que habita a face da terra e em resposta sua consciência lhe dirá: “isto é verdade”. Mas, ao
se lhe pregar o evangelho, sua consciência não mais lhe responderá o mesmo. A pregação do evangelho
pode, isto sim, enfurecê-lo. O viciado da pior espécie admite que ele deveria fazer o que está escrito na lei.
Por que é isto assim? Porque a lei está inscrita em seu coração. A situação muda quando se prega o evan-
gelho. O evangelho revela e anuncia atos que Deus, em sua graça, livremente faz; e estes não são evidentes
por si mesmos. O que Deus fez de acordo com o evangelho ele não estava obrigado a fazê-lo.
O segundo aspecto em que a lei e evangelho diferem é o conteúdo de cada doutrina. A lei nos diz o
que devemos fazer. O evangelho revela-nos apenas o que Deus está fazendo. A lei refere-se às nossas obras;
o evangelho, às grandes obras de Deus. Na lei confronta-nos a intimidação que se repete dez vezes: “não...”
O evangelho, por outro lado, não faz exigências de espécie alguma. A lei nada tem a dizer a respeito de
perdão, graça. Ela apenas emite ordens e exigências. O evangelho, por seu turno, constitui-se puramente de
promessas. O evangelho não contém outra coisa senão graça e verdade!
Lei e evangelho diferem, em terceiro lugar, em virtude de suas promessas. A lei promete as mesmas
coisas grandiosas que o evangelho promete: vida eterna e salvação. Mas, neste ponto, somos confrontados
com uma enorme diferença: todas as promessas da lei são feitas sob a condição de cumprirmos a lei em
todos os seus aspectos. Logo, as promessas da lei são as mais desalentadoras, por maiores que sejam. A lei
nos oferece alimento, contudo coloca-o fora de nosso alcance. Ela de fato nos diz: “Vou matar a sede e a
fome de sua alma”. Mas ela é incapaz de tornar isto realidade, porque sempre adiciona a seguinte condição:
“Tudo isto você vai ter se fizer o que eu ordeno”.
Acima e contraposta à voz da lei, está a do evangelho. Este nos promete a graça de Deus e a salvação
sem impor condição de espécie alguma. É uma promessa de graça incondicional. Ele requer de nós nada
além disto: “Aceite o que eu ofereço e você o terá”. Esta não é uma condição que se impõe, mas sim um
convite amável.
A quarta diferença entre lei e evangelho diz respeito a ameaças. O evangelho não contém ameaças
de espécie alguma; apenas palavras de consolo. Sempre que na Escritura você se confrontar com uma ame-
aça, esteja certo de que esta passagem enquadra-se na lei, pois a lei não é outra coisa senão ameaças.
O quinto aspecto diferencial entre lei e evangelho diz respeito aos efeitos destas duas doutrinas. O
efeito da pregação da lei é tríplice. Em primeiro lugar, a lei nos diz o que devemos fazer, contudo não nos
capacita a atender suas exigências; ela faz, isto sim, com que fiquemos mais contrariados ainda em relação
ao que ela exige de nós.
Em segundo lugar, a lei revela os pecados do homem, mas não lhe oferece ajuda para se livrar deles
e, deste modo, leva o homem ao desespero.
Em terceiro lugar, a lei efetua contrição. Ela faz passar diante de nossos olhos todo o terror do inferno,
da morte, da ira de Deus. Mas ela não tem absolutamente nada de conforto para dar ao pecador.
Os efeitos do evangelho, de natureza completamente diversa, são os seguintes: em primeiro lugar,
quando o evangelho requer fé, ele nos oferece e dá esta fé no próprio ato de requerer. Quando pregamos ao
povo: “Creiam no Senhor Jesus Cristo”, Deus, através do nosso pregar, lhes dá a fé. Nós pregamos a fé, e
todo aquele que não se opõe deliberadamente, obtém fé.
O segundo efeito do evangelho é que ele de maneira nenhuma censura o pecador, antes afasta dele
todo o terror, todo o medo, toda ansiedade, enchendo-o de paz e alegria no Espírito Santo.
Em terceiro lugar, o evangelho não exige que o homem apresente algo de bom: um bom coração, um
bom caráter, uma melhora em seu modo de ser, religiosidade, amor a Deus e aos homens. Nada disso. O
evangelho não emite ordens, mas muda o homem. Ele implanta o amor em seu coração e capacita-o para
todas as boas obras. Ele não exige nada; ele dá tudo.
Finalmente, o sexto aspecto em que lei e evangelho diferem entre si, relaciona-se às pessoas às quais
deve ser pregada cada uma das doutrinas. As pessoas sobre as quais cada doutrina deve agir, bem como a
finalidade deste agir, são completamente diferentes. A pregação da lei se dirige a pecadores imperturbados,
a do evangelho a pecadores atemorizados. Em outras circunstâncias é de fato necessário que se pregue
ambas as doutrinas, mas neste momento a pergunta é: A quem deve ser pregada a lei antes do evangelho?
e vice-versa.
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1 Timóteo 18.8-10: Enquanto um indivíduo vive tranqüilamente em pecado, enquanto se recusa a
abandonar determinado pecado, deve-se-lhe pregar somente a lei, que o amaldiçoa e condena. Mas, no
momento em que ele é atemorizado neste seu estado, imediatamente deve ouvir o evangelho; pois, a partir
deste momento, ele não mais pode ser incluído no rol dos pecadores imperturbados. Portanto, enquanto o
diabo mantiver você seu prisioneiro, por um único pecado que seja, o evangelho ainda não poderá agir
sobre você; o que você precisa ouvir é a lei.
A pecadores miseráveis, abatidos – eu o repito – não se deve pregar nada da lei. Ai do pregador que
insistisse em pregar a lei a um pecador desesperado! Tal pecador, ao contrário, precisa ouvir palavras como
estas: “Venha! Ainda há lugar! Não importa quão pecador você seja, ainda há lugar para você. Mesmo que
você seja um Judas ou um Caim, ainda há lugar. Venha, sem, venha a Jesus!” Indivíduos nesta situação são
o alvo correto para a ação do evangelho.

2ª TESE
Para ser um teólogo ortodoxo não basta que se exponha todos os artigos de fé em concordância
com as Escrituras; é necessário também saber diferenciar corretamente lei e evangelho.

Esta tese compõe-se de duas partes. A primeira parte constata um requisito de um teólogo ortodoxo: é neces-
sário que ele exponha todos os artigos de fé em concordância com a Escritura.
A Escritura requer de nós que conservemos a palavra de Deus absolutamente pura e inadulterada e que sejamos
capazes de dizer, descendo do púlpito: “Eu poderia jurar que preguei a Palavra de Deus corretamente. Mesmo a um
anjo vindo do céu eu poderia declarar: Minha pregação foi verdadeira”. Isso explica a estranha observação de Lutero
de que um pregador não deve orar o Pai-Nosso ao descer do púlpito, mas sim, deveria fazê-lo antes do sermão. Pois
um pregador ortodoxo não tem motivos para, após a exposição de seu sermão, orar: Perdoa-me as minhas dívidas”,
uma vez que ele pode afirmar: “Eu anunciei a verdade genuína”.
Apesar de alguém de fato poder afirmar: “Meu sermão não continha nenhuma heresia”, é possível que todo o
seu sermão tenha sido falso. A segunda parte de nossa tese afirma isto. Teólogo ortodoxo somente é aquele que, além
de outros requisitos necessários, sabe diferençar corretamente lei e evangelho. Este é o critério decisivo para avaliar-
se um bom sermão. O valor do sermão não consiste apenas em que cada afirmação é tirada da Escritura e está concorde
a ela, mas também no poder-se afirmar que lei e evangelho estão sendo diferenciados corretamente.
Pregar o evangelho àqueles que nada temem em relação a seus pecados, implica em aplicá-lo de modo incor-
reto. Por outro lado, situação muito mais terrível é aquela em que o pastor, um teólogo legalista, se recusa a pregar o
evangelho a sua congregação, argumentando: “Essa gente, de qualquer maneira, vai fazer mau uso dele”. É isto motivo
suficiente para negar o evangelho aos infelizes pecadores? Que sucumbam os perversos; não obstante os filhos de
Deus devem saber quão próximo deles existe socorro e quão facilmente pode-se alcançá-lo. Todo aquele que recusa
o evangelho aos que necessitam de consolo, falha no separar lei e evangelho.

3ª TESE
Distinguir corretamente lei e evangelho é mais difícil e a suprema arte que se apresenta aos cris-
tãos em geral e em especial aos teólogos. Esta arte é ensinada exclusivamente pelo Espírito Santo, na
escola da experiência.

Esta tese não pretende dizer que a doutrina da lei e do evangelho é tão difícil a ponto de não se poder assimilá-
la sem a ajuda do Espírito Santo. Ela é fácil – tão fácil que até mesmo as crianças podem aprendê-la. Entretanto, o que
estamos considerando agora é a aplicação e o emprego desta doutrina. A aplicação prática desta doutrina apresenta
dificuldades impossíveis de serem vencidas no campo da pura reflexão racional. É necessário que o Espírito Santo, na
escola da experiência, ensine esta arte aos homens. As dificuldades em dominar esta arte confrontam o pastor, em
primeiro lugar, na vivência do seu cristianismo; em segundo lugar, no exercício do seu ministério.
Em primeiro lugar, a correta distinção entre lei e evangelho apresenta-se como uma arte difícil e grandiosa para
o pastor no campo de seu cristianismo pessoal. De fato, a correta diferenciação entre lei e evangelho é a arte suprema
a ser aprendida.
Salmo 51.10-11: Davi pede que deus lhe dê um espírito reto. Tendo pecado vergonhosamente, derramando
sangue inocente e cometendo adultério. Davi perdeu de vista a certeza da graça de Deus. Na verdade, ele recebeu a
absolvição quando, em arrependimento, reconheceu seu pecado. Contudo, não há indício de que em seguida a alegria
voltou a inundar seu ser. Ao contrário, muitos dos seus salmos demonstram claramente que ele estava em grande
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miséria e aflição. Quando o mensageiro de Deus lhe disse: “O Senhor perdoou o seu pecado”, seu coração suspirou,
“Ah, não! Isto é impossível”. Este nobre rei e profeta conhecia muito bem a doutrina da lei e evangelho. Seus salmos
são repletos de alusões à distinção entre ambos. Entretanto, quando ele pessoalmente caiu em pecado, faltou-lhe apti-
dão prática para aplicar este seu conhecimento. Ele clamou: “Cria em mim um espírito novo e reto”.
Em Lucas 5.8 o Senhor ordena ao discípulo a quem denominara de “Petros”, homem-rocha, e a seus compa-
nheiros de ofício que lancem suas redes no local onde o lago é mais fundo, apesar de terem trabalhado toda noite sem
sucesso. Pedro concordou, apesar de não alimentar esperança alguma. Mas, eis que apanharam tantos peixes que as
redes não resistiram. Imediatamente o temor se apodera de Pedro. Ele raciocina: “Este que falou comigo certamente
é o próprio Deus todo-poderoso. Certamente é meu Criador. Um dia será meu Juiz!” Pedro cai aos pés de Jesus
dizendo: “Senhor, retira-te de mim, porque sou pecador”. Ele espera que o Senhor lhe diga: “Considere seus inúmeros
pecados. Você merece morte e condenação eterna”. Donde provinha este terror de Pedro? Por que não agradeceu ele
a Jesus quando caiu a seus pés? Pela simples razão de que seus muitos pecados lhe vieram à mente, e nesta condição
não lhe foi possível expressar seu agradecimento de louvor. Em conseqüência disto, trêmulo, ele caiu de joelhos e
dirigiu a seu Senhor e Salvador aquelas terríveis palavras: “Retira-te de mim”. O diabo privou-o de todo o consolo e
cochichou em seu ouvido que se dirigisse a Jesus nestes termos. Do Senhor ele não esperava outra coisa senão a morte.
Foi incapaz de distinguir lei e evangelho. Se tivesse sido capaz de fazer isto, ter-se-ia aproximado de Jesus com alegria,
relembrando que todos os seus pecados tinham sido perdoados.
1 João 3.19-20: Quando nosso coração não nos acusa, é fácil separar lei e evangelho. Esta é a condição do
cristão. Mas, pode surgir o momento em que seu coração passa a acusá-lo. Por mais que faça, não há meios de silenciar
aquela acusadora voz interior. Ora, se neste momento o indivíduo sabe distinguir corretamente entre lei e evangelho,
cairá aos pés de Jesus, confortando-se nos méritos deste. Isto, no entanto, não é fácil.
No momento em que os cristãos aprenderam a fazer o correto uso prático da distinção entre lei e evangelho,
eles unem sua voz à de S. João dizendo: “Deus é maior do que o meu coração; Ele deu um veredicto diferente a
respeito da pecaminosidade dos homens, e isto se aplica igualmente a mim”. Vocês são felizes se aprenderam esta
difícil arte. Se vocês a aprenderam, não se julguem perfeitos. Vocês nunca deixarão de ser principiantes nesta arte.
Lembrem-se disto: quando a lei os condenar, então apeguem-se imediatamente ao evangelho.
Quais duas forças hostis, lei e evangelho muitas vezes entram em conflito na consciência de um indivíduo. O
evangelho lhe diz: “Deus o recebeu em sua graça”. A lei lhe diz: “Não confie nisso; examine o seu passado. Quantos
e quão horríveis são seus pecados! Considere os pensamentos e desejos que você teve”. Num momento destes é difícil
separar lei e evangelho. Quando alguém enfrenta uma situação destas, torna-se necessário que ele diga à lei: “Fora!
Tuas exigências foram todas cumpridas. Eu não te devo nada. Alguém pagou a minha dívida”. Um indivíduo morto
em pecados e transgressões não sente esta dificuldade; ele não se importa com a lei. Mas a dificuldade é bastante real
na vida de um convertido.
A correta diferenciação entre lei e evangelho é também a arte suprema e mais difícil para os teólogos como
tal. Tudo o mais que um teólogo deve saber não se compara com o domínio desta arte.
2 Timóteo 2.15: O apóstolo admoesta Timóteo a que maneje bem a palavra da verdade. Isto indica que separar
adequadamente lei e evangelho é uma arte notável e difícil.
Lucas 12.42-44: O que o Senhor considera um grande feito não é o simples anunciar da palavra de Deus, ou,
para ficar dentro dos termos da parábola, a distribuição de certa quantidade de alimento a cada membro da casa; o que
ele tem em alta conta é o fato de que a cada um é dada a medida exata no momento certo, que se leve em consideração
sua situação espiritual. Isto deve ocorrer no momento exato. Aquele que distribui um pouco aos servos hoje, e só torna
a fazê-lo após um longo período de tempo, que não se preocupa em reunir o alimento necessário nem com sua distri-
buição na hora certa, este é um mau mordomo. Eis a lição desta parábola: Um pregador deve dominar bem a arte de
ministrar a cada um, no momento propício, ou a leio ou o evangelho, segundo suas necessidades específicas.
2 Coríntios 2.16; 3.4-6: O apóstolo reconhece que somente Deus pode capacitá-lo para esta nobre e difícil arte.
Pregue de tal maneira que cada ouvinte sinta: “Ele refere-se a mim. Ele descreveu um hipócrita idêntico a
mim”. Por outro lado, é possível que o pastor descreva alguém que está sendo tentado de uma maneira tão real, que o
ouvinte que vive situação idêntica só pode admitir: “Esta é a minha situação”. O ouvinte arrependido deve logo per-
ceber: “Este consolo dirige-se a mim; devo apropriar-me dele”. A alma inquieta deve concluir: “Oh, que doce mensa-
gem; isto é para mim!” Sim, também o impenitente deve ser levado a reconhecer: “O pregador fez uma descrição
exata da minha pessoa”.
Portanto, o pregador deve saber retratar com exatidão o que se passa no íntimo de cada um dos seus ouvintes.
Uma mera apresentação objetiva das várias doutrinas não basta para que se alcance este objetivo. Uma pessoa pode
ser ortodoxa, pode ter compreendido a doutrina pura e mesmo assim não ter comunhão pessoal com Deus, estar em
situação irregular ante Deus, e não ter ainda a certeza de que sua conta de pecados foi paga.
A dificuldade em distinguir corretamente lei e evangelho assume proporções gigantescas quando o pastor mi-
nistra a indivíduos em particular. No púlpito o pastor pode dizer uma série de coisas esperando encontrar receptivi-
dade. Mas quando as pessoas buscam seu conselho pastoral, ele tem diante de si uma dificuldade muito maior. Logo
perceberá qual dos seus consultantes é, qual não é, cristão. Isto evidentemente não elimina a possibilidade de o pastor
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ser iludido pela aparência e modo de ser piedoso de um hipócrita. Entretanto, se ele é capaz de separar corretamente
lei e evangelho, seus consultantes podem tê-lo enganado, todavia é falha deles próprios se aplicaram a si o ensino
indevido. O pastor assume uma terrível responsabilidade apenas quando ele mesmo é culpado pelo fato de o povo
interpretá-lo mal. Se as pessoas agem como cristãos apenas para enganar-me, elas estão antes enganando a si mesmas
do que a mim. A qualquer pessoa que dá a entender que é cristão, o pastor deve considerar como tal, e vice-versa.
Entretanto nem todos os não-cristãos são idênticos. Um é um irreligioso crasso e grosseir9o, zombador da
Bíblia; outro é ortodoxo e tem apenas a fé morta do intelecto. O pastor – a menos que ele próprio seja um escravo do
pecado e incapaz de fazer um juízo da pessoa que está a sua frente – sabe que o último não passa de uma pessoa
espiritualmente cega, que ainda se encontra sob o domínio da morte espiritual. Agora, se um não-cristão está verda-
deiramente amedrontado e possuído de um terror inconsciente, apesar de seu coração ainda não ter sido quebrado, o
pastor precisa concluir: “Este indivíduo em primeiro lugar precisa ser quebrantado”. Alguns são apegados a um de-
terminado vício, outros confiam na justiça própria. Descobrir a que classe pertencem estas várias pessoas incrédulas
e aplicar-lhes o remédio correto, eis a grande dificuldade da qual estou falando. Meu objetivo é convencê-los de que
somente o Espírito Santo é capaz de realmente aparelhar um pregador para o exercício de sua vocação.
Finalmente, o mais difícil é tratar com os verdadeiros cristãos, levando em conta sua situação espiritual pecu-
liar. Este tem uma fé fraca, aquele tem uma fé forte; este está alegre, aquele aflito; este é moroso, aquele bastante
zeloso; um tem pouco conhecimento espiritual, outro está mais profundamente alicerçado na verdade.

4ª TESE
Conhecer bem a diferença entre lei e evangelho não é apenas maravilhosa luz para a correta
compreensão de toda a Escritura Sagrada; mais do que isto: sem esse conhecimento a Escritura é e
continua sendo um livro selado.

Enquanto se ignora a diferença entre lei e evangelho, tem-se a impressão de que as Escrituras contêm um cem
número de contradições. De fato, toda a Escritura parece estar constituída de contradições. Ora as Escrituras declaram
alguém salvo, ora elas o condenam. Quando o jovem rico perguntou ao Senhor: “Que farei eu de bom, para alcançar
a vida eterna?”, ele recebeu a seguinte resposta: “Se queres entrar na vida, guarda os mandamentos”. Quando o car-
cereiro de Filipos dirigiu esta mesma pergunta a Paulo e Silas, ele recebeu esta outra resposta: “Crê no Senhor Jesus
Cristo e serás salvo tu e a tua casa”. Por um lado, lemos em Habacuque 2.4: “O justo viverá pela fé”; por outro lado,
notamos que João, na sua primeira carta (3.7), diz; “Aquele que pratica a justiça é justo”. Contra isto o apóstolo Paulo
declara: “Pois todos pecaram e carecem da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante
a redenção que há em Cristo Jesus”. Por um lado, vemos que a Escritura declara que deus não se agrada de pecadores;
por outro lado, ela constata: “Todo aquele que invocar o nome do Senhor, será salvo”. A certa altura Paulo exclama:
A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e perversidade dos homens”, e no Salmo 5.4 lemos: “Pois tu
não és Deus que se agrade com a iniquidade, e contigo não subsiste o mal”; em outra passagem Pedro diz: “Esperai
inteiramente na graça que vos está sendo trazida”. Por um lado nos é dito que todo o mundo está debaixo da ira de
Deus; por outro lado lemos: “Deus amou ao mundo de tal maneira, que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que
nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”. Outra notável passagem é 1 Coríntios 6.9-11, na qual o apóstolo afirma
inicialmente: “Nem impuros, nem idólatras, nem adúlteros, nem efeminados, nem sodomitas, nem ladrões, nem ava-
rentos, nem bêbados, nem maldizentes, nem roubadores herdarão o reino de Deus” e então acrescenta: “Tais fostes
alguns de vós; mas vós vos lavastes, mas fostes santificados, mas fostes justificados, em o nome do Senhor Jesus
Cristo e no Espírito do nosso Deus”. Não é perfeitamente compreensível que uma pessoa que nada conhece a respeito
da diferença entre lei e evangelho fique totalmente desnorteada ao ler tudo isto? Não é natural que ela exclame indig-
nada: “O quê? Esta é para ser a palavra de Deus? Um livro repleto de tais contradições?”
O que acontece não é que o Antigo Testamento revela um Deus irado e o Novo Testamento um Deus gracioso,
ou que o Antigo ensina a salvação por obras próprias e o Novo Testamento a salvação pela fé. Não; tanto o Antigo
quanto o Novo Testamento contêm ambas as doutrinas: lei e evangelho. Mas no momento em que aprendemos a
diferençar lei e evangelho, é como se o sol nascesse sobre as Escrituras, e notamos que todo o seu conteúdo está na
mais perfeita harmonia. Verificamos que a lei não nos foi revelada para inculcar em nós a idéia de que através dela
podemos nos tornar justos, mas sim para mostrar-nos que somos totalmente incapazes de satisfazer suas exigências.
Uma vez aprendido isto, devemos tomar conhecimento da doce mensagem, da maravilhosa doutrina que é o evange-
lho, e recebê-lo com intenso júbilo.
Entretanto, o pregador deve tomar cuidado para não afirmar que a lei foi abolida; pois isto não é verdade. A lei
continua vigorando; ela não foi anulada. Mas, ao lado da mensagem da lei, temos uma outra. Deus não diz: “Pela lei
vem a justiça”, mas: “Pela lei vem o conhecimento do pecado”. Romanos diz: “Ao que ... crê naquele que justifica o
ímpio, a sua fé lhe é atribuída como justiça”. Por isso, no momento em que somos convencidos de nossa impiedade,
tem início nossa marcha rumo à salvação.
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Romanos 10.2-4: A ignorância dos judeus consiste em que “não reconhecem a justiça que é válida perante
Deus”. Esta é a sua falta de entendimento. Imaginavam que deviam ser zelosos em relação à lei; pois, raciocinavam
eles, se esta é a lei de Deus, como pode alguém ter a ousadia de afastar-se dela? Se eles tivessem dado ouvidos à
pregação de Paulo, logo teriam percebido que este reconhecia que a lei ainda estava em vigor. Percebendo isto, não
se teriam tornado inimigos do evangelho, e se teriam dissipado as terríveis trevas que os envolviam.

5ª TESE
A primeira – bem como a mais grosseira e mais facilmente reconhecível – confusão entre lei e
evangelho é aquela em que, a exemplo de papistas, socinianos e racionalistas, se encara Cristo como um
novo Moisés, um legislador, e se transforma o evangelho em doutrina de obras meritórias ao mesmo
tempo em que, como o fazem os papistas, condenam-se e amaldiçoam-se os que ensinam que o evangelho
é a mensagem da graça ilimitada de Deus em Cristo.

Os decretos do Concílio de Trento afirmam que o evangelho contém as doutrinas da salvação. Entretanto,
imediatamente acrescentam que o evangelho também prescreve preceitos éticos. É desta maneira que interpretam o
propósito de Cristo ao dizer: “Ide por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criatura” (Mc 16.15). Fica evidenciado
que eles não pretendem aceitar o evangelho no sentido real que esta palavra tem. Do modo como eles o concebem, o
evangelho, na melhor das hipóteses, não passa de uma lei tal qual a que Moisés promulgou.
Se Cristo veio ao mundo com a missão de promulgar novas leis para nós, ele perfeitamente poderia ter perma-
necido nos céus. Moisés já nos havia dado uma lei tão perfeita a ponto de não sermos capazes de cumpri-la. Assim
sendo, se Cristo nos tivesse dado leis adicionais, isto só poderia levar-nos ao desespero.
Já o próprio sentido da palavra evangelho derruba este ponto de vista. Sabemos que o próprio cristo denominou
sua palavra de evangelho, pois ele diz em Mc 16.15: “Ide por todo o mundo e pregai o evangelho, a toda criatura”.
Para que se pudesse compreender o sentido em que ele estava empregando a palavra evangelho, ele apresenta o con-
teúdo deste nos seguintes termos concretos: “Quem crer e for batizado”, etc. Se a doutrina de Cristo fosse uma lei, ela
não seria uma boa notícia, mas, sim, uma péssima notícia.
Examinando o Antigo Testamento, vemos que mesmo ali já está expresso o caráter da doutrina de Cristo.
Lemos em Gênesis 3.15: “Este (o Descendente da mulher) te ferirá a cabeça”. O Messias, o Redentor, o Salvador não
viria com o propósito de nos revelar o que deveríamos fazer, que obras deveríamos fazer para escapar do terrível
domínio das trevas, do pecado e da morte. Estes feitos o Messias não deixaria para que nós os executássemos, mas ele
próprio faria tudo. “Ele ferirá a cabeça da serpente” significa que ele destruirá o reino do diabo. Tudo que o homem
tem a fazer é tomar conhecimento de que ele foi resgatado, que ele foi libertado da prisão, que ele não tem outra coisa
a fazer senão crer e aceitar essa mensagem e alegrar-se em função dela. Se o texto dissesse: “Você precisa salvar-se a
sim mesmo”, isto não seria tão confortador; ou, se dissesse: “Você deve crer nele”, ficaríamos perplexos em saber o
que se entende por esta fé. Este primeiro evangelho era a fonte donde emanava o conforto dos crentes do Antigo
Testamento. Era-lhes importante saber: “Está por vir Alguém que não somente nos dirá o que devemos fazer para
alcançar o céu, mas ele próprio, o Messias, fará tudo para nos levar até lá”. Já que o poder do diabo foi destruído, nada
do que eu deva fazer pode entrar em consideração. Se o domínio do diabo foi destruído, eu sou livre. Nada me resta a
fazer senão apropriar-me disto. É isto que a Escritura tem em mente quando diz: “Creia”. Significa: “Declare que é
seu aquilo que Cristo obteve”.
Em Jeremias 31.31-34, Deus diz que vai fazer uma nova aliança. Esta não será uma aliança baseada na lei,
idêntica àquela que ele estabeleceu com Israel no Monte Sinal. O Messias não dirá: “É necessário que vocês sejam
pessoas desta ou daquela natureza; seu modo de viver deve ser conforme este ou aquele padrão; vocês devem fazer
estas e aquelas obras”. Nenhuma doutrina desta espécie será trazida pelo Messias. Ele inscreve sua lei diretamente no
coração, o que faz com que a pessoa que vive nele sirva de lei para si mesma. Tal pessoa não é coagida por uma força
externa, mas é impulsionada por uma força interior. “Pois, perdoarei as suas iniqüidades, e dos seus pecados jamais
me lembrarei” – este é o fundamento, a causa para a afirmação anterior. Estas palavras resumem o evangelho de
Cristo: perdão de pecados pela graça ilimitada de Deus, por causa de Jesus Cristo. Portanto, todo aquele que imagina
que Cristo é um novo legislador e que ele nos trouxe novas leis anula toda a religião cristã.
A religião cristã diz: “Você é um pecador perdido e condenado; você não pode ser seu próprio Salvador. Mas
não desespere por causa disto. Há alguém que obteve salvação para você. Cristo abriu as portas do céu para você e o
convida: Vem, porque tudo já está preparado. Vem para as bodas do Cordeiro”. Esta é também a razão por que Cristo
diz: “Eu curo os doentes, não os sãos. Eu vim para buscar e salvar o perdido. Eu não vim para chamar justos mas
pecadores ao arrependimento.
Por toda parte vemos o Senhor Jesus rodeado de pecadores, sob a espreita dos fariseus. Pecadores famintos e
sedentos estão a sua volta. Apesar da divina majestade que ele emana, eles não receiam em aproximar-se dele; eles
confiam nele. Os fariseus repreendem-no severamente: “Este homem recebe pecadores e como com eles”. E o Senhor
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ouve esta reprimenda. Ele confirma a veracidade da censura deles dando continuidade à ação censurada, como que
querendo dizer: “Sim, eu quero pecadores ao meu redor”; e então ele passa a demonstrar isto, contando a parábola da
ovelha perdida. O pastor ajunta a ovelha perdida, não importando quão ferida e machucada ela esteja. Ele coloca-a
sobre os ombros e, cheio de júbilo, leva-a de volta ao curral. O Senhor igualmente explica seu modo de agir através
da parábola da moeda perdida. A mulher procura a moeda perdida por toda a casa, até mesmo na imundície. Quando
ela a encontra, chama as amigas, dizendo: “Alegrem-se comigo, porque achei a minha moeda perdida”. Finalmente o
Senhor acrescenta a parábola do filho pródigo. De maneira prática ele diz: “Aqui vocês têm minha doutrina. Eu vim
para buscar e salvar o perdido.”
Se você examinar toda a vida de Jesus, notará que ele não se apresenta como um filósofo orgulhoso, nem como
um moralista, rodeado por heróis na prática de virtudes, aos quais ele ensina como podem alcançar o mais alto estágio
da perfeição filosófica. Não, ele caminhas em busca de pecadores perdidos e não receia em dizer aos arrogantes fari-
seus que as meretrizes e publicanos os precedem no reino de Deus. Assim ele nos mostra claramente em que consiste
seu evangelho.
Por diversas vezes, em suas confissões, os papistas afirma que Cristo revelou muitas leis que eram desconhe-
cidas a Moisés. Por exemplo, a lei do amor aos nossos inimigos; a lei de que não se deve buscar vingança pessoal; a
lei de não exigir de volta o que nos foi tirado, etc. A tudo isto os papistas denominam de “novas leis”. Isto está errado;
pois mesmo Moisés já disse: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração de toda a tua alma, e de toda a tua
força” (Dt 6.5) e “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Lv 19.18). Assim sendo, Cristo não abrogou esta lei de
Moisés nem promulgou quaisquer novas leis. Ele apenas esclareceu o sentido espiritual da lei. Pois afirma em Mateus
5.17: “Não penseis que vim revogar a lei ou os profetas; não vim para revogar, vim para cumprir”. Isto significa que
ele não veio para promulgar novas leis, mas para cumprir a lei em nosso lugar, de modo a podermos usufruir deste
seu cumprimento.

6ª TESE
Em segundo lugar, a palavra de Deus não é aplicada corretamente quando a lei deixa de ser pre-
gada em todo seu rigor e o evangelho em toda sua doçura; quando, ao contrário, componentes do evan-
gelho são adicionados à pregação da lei, e componentes da lei são adicionados ao evangelho.

Confunde-se lei e evangelho quando elementos que são próprios do evangelho são adicionados à pregação da
lei, e vice-versa. Examinemos o testemunho das Escrituras a respeito desta questão. Inicialmente, o que diz ela a
respeito da lei? De que maneira demonstra ela que não devemos adicionar nenhum ingrediente evangélico à pregação
da lei?
Gálatas 3.11-12: O homem é justificado diante de Deus pela fé somente. A lei a ninguém pode justificar pelo
simples fato de não conhecer nada a respeito de fé justificadora e salvadora. Esta informação está contida apenas no
evangelho. A lei nada sabe a respeito da graça salvadora. Romanos 4. 16: A fé é exigida de nós não em virtude do fato
de haver ao menos uma pequena obra que compete a nós realizar. Se este fosse o caso, não haveria diferença entre os
que vão para o inferno e os que vão para o céu. Não; a justificação provém da fé para que ela seja segundo a graça.
Ambas as afirmações se equivalem. Se eu digo: “O homem é justificado diante de Deus pela fé”, isto equivale a dizer:
“Ele é justificado gratuitamente, segundo a graça, através do presente da justificação que Deus lhe dá”. Do homem
nada se exige; apenas é-lhe dito: “Apegue-se ao que lhe é oferecido e você o terá”. E a fé não é outra coisa senão este
apegar-se. Vamos supor que uma pessoa nunca tenha ouvido nada a respeito da fé. Entretanto, ao ouvir o evangelho,
ela se alegra, aceita-o, deposita sua confiança nele, consola-se em suas palavras. Esta pessoa tem a fé verdadeira,
genuína, apesar de nunca ter ouvido uma palavra sequer a respeito da fé.
Nenhum elemento do evangelho deve, por conseguinte, ser misturado com a lei. Todo aquele que explica a lei
introduzindo nela a graça, o Deus gracioso, amável e paciente, deturpa-a vergonhosamente. É necessário que o pre-
gador anuncie a lei de tal maneira, que ela não contenha nada de agradável aos ouvidos dos pecadores perdidos e
condenados. Qualquer ingrediente adocicado que se adicione à lei é veneno; neutralizará o efeito deste remédio celes-
tial.
Mateus 5.17-19: Ao pregar a lei, você deve ter em mente que ela não faz concessão de espécie alguma. É
completamente alheio à natureza da lei fazer concessões, ser condescendente; ela apenas faz exigências. A lei diz:
“Você deve fazer isto; se deixar de fazê-lo, de nada lhe adiantará a paciência, bondade e longanimidade de Deus; você
invariavelmente irá para a perdição”. Visando deixar isto bem claro ante os nossos olhos, o Senhor diz: “Aquele, pois,
que violar um destes mandamentos, posto que dos menores, e assim ensinar aos homens, será considerado mínimo no
reino dos céus”. Isto não significa que lhe será destinado o lugar mais baixo no céu, mas sim, que ele de maneira
nenhuma pertence ao reino dos céus.

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Gálatas 3.10: Se, ao estimular as pessoas à prática de boas obras, você, para consolá-las, fizer a seguinte ob-
servação: “Na realidade, você deveria ser perfeito; entretanto, Deus não exige o impossível de nós. Dada a sua fra-
queza, faça o quanto puder; o que vale é a sinceridade de sua intenção!” – se você fizer isto, estará pregando uma
doutrina condenável; você estará deturpando a lei de modo vergonhoso. No Sinal Deus nunca se expressou em termos
semelhantes.
Romanos 7.14: A pregar a lei, é absolutamente necessário que um pregador esteja consciente do fato de que a
lei é espiritual; ela age sobre o espírito, não sobre algum membro do corpo; tem em mira o espírito do homem, sua
vontade, seu coração, seus sentimentos. É deste modo que ela age e não diferentemente.
Uma correta pregação da lei deve enquadrar-se dentro das seguintes exigências: Não se deve atacar os vícios
abomináveis que desenfreadamente se manifestam na congregação, empregando uma linguagem bombástica. O in-
cessante “trovejar” de nada adiantará. É possível que as pessoas abandonem as práticas recriminadas, mas, após duas
semanas, terão retornado ao mesmo caminho. Vocês devem, de fato, denunciar as transgressões contra os mandamen-
tos de Deus com seriedade, mas igualmente deve dizer ao povo: “Mesmo que vocês abandonem seu constante amal-
diçoar, jurar, etc., isto não os tornará cristãos. Vocês podem ir à perdição assim mesmo. Deus se preocupa é com a
atitude de seus corações”.
Romanos 3.20: Deus não deu a lei para que vocês tornem as pessoas justas através dela. A lei não justifica a
ninguém; mas, quando ela começa a agir efetivamente, o indivíduo que é objeto desta ação passa a revoltar-se e
enfurecer-se contra Deus.
Através do espetáculo do monte Sinal. Deus nos ensinou como devemos pregar a lei. É claro que não podemos
reproduzir os trovões e relâmpagos daquele dia, a não ser espiritualmente. Se procedermos assim, nosso sermão será
benéfico. Poderá haver muitos dentre os ouvintes que chegarão à seguinte conclusão: “Se este homem está falando a
verdade, então eu estou perdido”.
Alguns, na verdade, poderão argumentar dizendo que não convém que um pregador do evangelho pregue nestes
termos. Mas é este o caminho que ele deve seguir; ele não seria pregador evangélico caso não pregasse a lei. A pre-
gação da lei deve preceder a do evangelho para que este último surta efeito. Em primeiro lugar vem Moisés, depois
Cristo; ou: Em primeiro lugar João Batista, o precursor, então Cristo. A princípio as pessoas dirão; “Isto é simples-
mente terrível!” Mas, segue-se logo a pregação do evangelho e então as pessoas se animam. Elas compreendem então
o porquê do pregador ao se expressar daquela maneira: pretendia mostrar-lhes o quão manchados de pecados eles
estavam e o quanto necessitavam do evangelho.

7ª TESE
Em terceiro lugar, a palavra de Deus não é aplicada corretamente quando o evangelho é pregado
antes da lei; a santificação antes da justificação; a fé antes do arrependimento; as boas obras antes da
graça.

A palavra de Deus é empregada erroneamente quando as diversas doutrinas são apresentadas fora da seqüência
correta; quando algo que deveria vir por fim é colocado no princípio. São quatro as seqüências incorretas que podem
surgir.
Em primeiro lugar, inverte-se a ordem quando se prega o evangelho antes da lei.
Marcos 1.15: O “arrependei-vos” é sem dúvida alguma uma palavra da lei. Na pregação de nosso Senhor esta
palavra vem em primeiro lugar, seguida pelo resumo do Evangelho: “Crede no evangelho”.
Atos 20.21: O apóstolo pregou em primeiro lugar o arrependimento e depois a fé; primeiramente a lei, então o
evangelho.
Nosso Senhor disse que em seu nome se deveria pregar arrependimento para remissão de pecados a todas
as nações, começando em Jerusalém. O Senhor não mudou a ordem divina: “Perdão de pecados e arrependimento”.
A seqüência que ele indica é “arrependimento e perdão de pecados”.
O segundo caso em que se perverte a ordem correta acontece quando a santificação da vida é pregada antes da
justificação, a mensagem do perdão de pecados. Sim, justificação pela graça não é outra coisa senão perdão de peca-
dos. Sou justificado no momento em que me aproprio da justiça de Cristo.
Salmo 130.4: Na verdade o salmista está querendo dizer para Deus: “Primeiro precisas dar-nos teu perdão;
depois disto passaremos a reverenciar-te através de uma vida nova, uma vida santificada”.
Salmo 119.32: Em primeiro plano está o consolo de Deus, a justificação, o presentear do perdão ao pecador, a
remissão dos pecados. Depois de tudo isto o salmista espera “percorrer o caminho dos mandamentos de Deus”.
1 Coríntios 1.30: A primeira coisa necessária é que alcancemos sabedoria, conhecimento do caminho da sal-
vação. Este é o primeiro passo. A isto segue-se a justiça, a qual obtemos pela fé. Apenas depois da justificação é que
vem a santificação. Preciso antes de mais nada saber que Deus perdoou os meus pecados para que este fato então me
dê a verdadeira alegria de viver uma vida santificada. Antes disto uma grande carga pesada sobre mim. A princípio
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eu estava furioso com Deus; eu o odiava por exigir tanto de mim. Meu desejo era ter podido destroná-lo. Meu pensa-
mento era de que seria melhor mesmo se Deus não existisse. Mas quando ele me perdoou e declarou justo, eu me
alegrei, não somente por causa do evangelho mas igualmente por causa da lei.
João 15.5: A vontade do Senhor é que estejamos enxertados nele como os ramos o estão na videira. Isto signi-
fica que cremos nele de todo coração, depositamos nele nossa certeza e confiança, nos apegamos totalmente a ele com
os braços da fé, de maneira que vivemos apenas nele, nosso Jesus que nos resgatou e salva. Quando isto sucede,
produziremos frutos. Deste modo o Salvador mostra que antes de podermos viver uma vida santificada é necessário
que tenhamos sido justificados. Se nos tornarmos ramos cortados, separados da videira, murchamos e deixaremos de
produzir fruto.
Fazer confusão entre justificação e santificação é um dos erros mais terríveis. O pecador somente poderá com-
preender e ter certeza de que ele está sob a graça de Deus quando se faz uma rigorosa separação entre justificação e
santificação; e esta compreensão lhe dará forças para andar numa nova vida.
Em terceiro lugar, altera-se a seqüência correta – a saber, em primeiro lugar a lei, depois o evangelho – quando
a pregação da fé precede a do arrependimento. Se você quer crer em Cristo, você precisa primeiro adoecer; porque
Cristo é um remédio apenas para aqueles que estão doentes. Ele veio buscar e salvar o perdido; por isso, você precisa
primeiramente tornar-se um pecador perdido e condenado. Ele é o Bom Pastor que sai em busca da ovelha perdida;
portanto, você precisa antes de mais nada reconhecer que é uma ovelha perdida.
Finalmente, a quarta inversão da ordem correta se dá quando se requer boas obras antes de se ter anunciado a
graça de Deus.
Efésios 2.8-10: O apóstolo não diz: “Precisamos praticar boas obras para que Deus nos seja gracioso”. Ele
afirma exatamente o contrário. Quando você recebeu a graça, Deus fez de você uma nova criatura. Neste novo estado
você deve praticar boas obras; você não pode continuar debaixo do domínio do pecado.
Tito 2.11-12: Como primeiro passo nos é revelada a graça, e esta então passa a educar-nos. Somos colocados
debaixo da divina pedagogia da graça. No momento em que o indivíduo aceita a graça que fez com que Deus aban-
donasse os céus e viesse ao mundo, esta graça principia nele um processo de educação. O objetivo desta educação é
ensinar-lhe a praticar boas obras e viver uma vida correta.
A Carta aos Romanos contém a doutrina cristão em sua totalidade. Nos três primeiros capítulos deparamo-nos
com a mais severa pregação da lei. A isto segue-se, na parte final do terceiro capítulo e nos capítulos 4 e 5, a doutrina
da justificação – e nada além dela. A começar no capítulo 6, o apóstolo não fala de outra coisa que não seja santifica-
ção. Temos aqui um modelo exato da seqüência que se deve observar: em primeiro lugar a lei, que ameaça os homens
com a ira de Deus; segue-se o evangelho, a mensagem das consoladoras promessas de Deus. Como complemento
segue a instrução quanto ao que devemos fazer agora que somos novos homens. Igualmente os profetas, quando ten-
cionavam converter o provo, principiavam pela pregação da lei. Quando os açoites da lei tinham surtido efeito, eles
confortavam os miseráveis pecadores. Igualmente os apóstolos, no momento em que seus ouvintes se mostravam
amedrontados, não faziam outra coisa senão consolá-los e anunciar-lhes o perdão. Somente depois disto eles diziam
a seus ouvintes: “Agora vocês devem demonstrar sua gratidão a Deus”. Eles não emitiam ordens; eles não ameaçavam
quando seus mandados eram desconsiderados, mas apenas apelavam e rogavam a seus ouvintes que, pelas misericór-
dias de Deus, se conduzissem como convém a cristãos.
Santificação genuína é aquela que segue a justificação; justificação genuína é aquela que vem depois do arre-
pendimento.

8ª TESE
Em quarto lugar, a palavra de Deus não é aplicada corretamente quando a lei é pregada aos que
já estão atemorizados em relação a seus pecados, ou quando o evangelho é pregado aos que vivem tran-
qüilamente em seus pecados.

1 Timóteo 1.8-10 e Isaías 61.1-3 deixam claro que, de acordo com a palavra de Deus, nem um pingo de consolo
evangélico deve ser dado àqueles que vivem tranqüilamente em seus pecados. Por outro lado, os de coração abatido
não devem ouvir uma ameaça ou censura sequer, senão apenas as promessas, o consolo e a graça, o perdão de pecados
e a justiça, vida e salvação.
Este também era o modo de proceder de nosso Senhor. Certa ocasião aproximou-se dele uma mulher “peca-
dora”(Lc 7.37) que, sob o olhar dos orgulhosos fariseus, se ajoelhou, e com suas lágrimas lavou os pés do Senhor,
enxugando-os com seus próprios cabelos. Ela estava arrasada. Não havia ninguém que a consolasse. Mas, ela veio a
Jesus pois reconhecera nele a fonte de toda a graça. O Senhor de maneira alguma repreendeu-a por causa de seus
pecados – não, não lhe disse uma só palavra de censura. Simplesmente disse-lhe: “Teus pecados estão perdoados”.
Em outra ocasião, semelhante a esta, ele despediu a mulher culpada, assegurando-lhe; “Nem eu tão pouco te condeno”,
e acrescentou a breve admoestação: “Vai, e não peques mais”.
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Com Zaqueu o procedimento do Senhor foi idêntico. Zaqueu chegara à conclusão de que precisava mudar, que
ele não poderia continuar levando esta vida pecaminosa. Ao saber que o Senhor passaria pela circunvizinhança, ele
subiu a um sicômoro pois desejava ver de perto este santo homem. Olhando para cima, o Senhor disse-lhe: “Zaqueu,
desce depressa, pois me convém ficar hoje em tua casa”. Zaqueu certamente esperava que o Senhor faria um relatório
completo de seus pecados e lhe mostraria todo o mal que havia praticado. Mas Jesus não fez nada disto. Ao contrário,
na casa de Zaqueu ele afirmou: “Hoje houve salvação nesta casa, pois que também este é filho de Abraão”. Zaqueu
por sua vez diz: “Senhor, resolvo dar aos pobres a metade dos meus bens; e, se nalguma coisa tenho defraudado
alguém, restituo quatro vezes mais”. O Senhor não exigiu que ele fizesse isto. Sua própria consciência, anteriormente
assustada mas agora já tranqüilizada, exigia que ele praticasse este grande ato de generosidade para com os pobres.
Esta mesma verdade é ilustrada na parábola do filho pródigo. O Senhor nos apresenta o filho pródigo voltando
à casa de seu pai, de coração contrito, após ter esbanjado tudo o que tinha. Sem censuras o pai recebe-o de volta,
dizendo: “Comamos e regozijemo-nos, porque este meu filho estava morto e reviveu, estava perdido e foi achado”.
Houve um banquete, e não se disse uma só palavra de repreensão.
Atitude idêntica o Senhor conserva mesmo estando pregado à cruz. A seu lado está crucificado um homem que
levara uma vida infame. O paciente padecer de Cristo faz com eu reconheça: “Nós na verdade como justiça recebemos
o castigo que os nossos atos merecem; mas este nenhum mal fez”. Então, dirigindo-se a Jesus, ele acrescenta: “Jesus,
lembra-te de mim quando vieres no teu reino”. Ele reconhece que Jesus é o Messias. E convém notar que o Senhor
não lhe respondeu: “O quê?! Lembrar-te de ti? Tu que fizeste tanta coisa errada?” Não, o Senhor em absoluto lhe
apresenta seus pecados. Ele apenas diz: “Hoje estarás comigo no paraíso”.
Através disto o Senhor nos ensina como devemos agir ao termos diante de nós um pecador arrasado, contrito,
aterrorizado em relação a seus pecados. Mesmo que sua vida passada seja totalmente reprovável, não se deve perder
tempo com censuras e reprimendas; deve-se, isto sim, perdoar e consolar. Quem age assim, demonstra que sabe dife-
rençar lei e evangelho.
O procedimento dos apóstolos era idêntico ao do Senhor Jesus. Basta que se relembre a história do carcereiro
de Filipos. O carcereiro estava a ponto de suicidar-se quando Paulo bradou em alta voz: “Não te faças nenhum mal,
que todos estamos aqui”. Durante toda a noite ele tivera oportunidade de ouvir Paulo e Silas cantando louvores a Deus
e isto sem dúvida deu-lhe um bom conhecimento. Ao ouvir o grito de Paulo ele veio e, trêmulo, prostrou-se diante de
Paulo e Silas, dizendo: “Senhores, que devo fazer para que seja salvo?” E a resposta não é de que deve fazer primei-
ramente isto ou aquilo, ou então que deve sentir-se contrito. Não; eles apenas respondem: “Crê no Senhor Jesus, e
serás salvo, tu e tua casa”. Pura e simplesmente convidam-no a aceitar a misericórdia de Deus; porque a fé não é outra
coisa do que a aceitação da misericórdia, a aceitação da graça de Deus.
A segunda parte da tese afirma que a palavra de Deus é aplicada erroneamente quando se prega o evangelho
àqueles que vivem tranqüilamente em seus pecados.
Este erro é tão grave quanto o primeiro. Se eu ofereço o consolo do evangelho a pecadores imperturbados, ou
então, se eu prego de uma maneira tal que os pecadores imperturbados podem concluir que o consolo do evangelho
se dirige a eles, isto implica num dano incalculável. O evangelho não se dirige a pecadores tranqüilos, imperturbados.
É claro que não podemos impedir que estes compareçam a nossos cultos e ouçam o evangelho. Este fato não pode
fazer com que o pregador deixe de apresentar o conforto do evangelho em toda a sua doçura. Ele deve fazê-lo; contudo,
de uma maneira tal que os pecadores imperturbados compreendam que este conforto não é para eles. A própria maneira
em que o pregador apresenta sua mensagem deve tornar isto claro.
Mateus 7.6: O que se entende por “o que é santo”? Nada mais nada menos do que a palavra de Cristo. O que
se entende por “pérolas”? É o consolo do evangelho, sua mensagem que anuncia a graça, a justiça e a salvação. Os
cães, isto é, os inimigos do evangelho, não devem ouvir nada a respeito disto. Nem tampouco os porcos, ou seja,
aqueles que querem permanecer em seus pecados e que procuram seu céu e sua felicidade em meio à imundície de
seus pecados, devem ouvir a mensagem do evangelho.
Isaías 26.10: É praticamente inútil oferecer misericórdia aos ímpios. Eles pensam, ou que não necessitam dela,
ou então que já a têm em sua plenitude. Os insignificantes pecados que cometeram já lhe foram perdoados há muito,
dizem eles. A uma pessoa dessa espécie não se deve pregar o evangelho. Não devo oferecer-lhe misericórdia – e o
evangelho não é outra coisa senão este oferecer da misericórdia – porque de nada lhe adiante. O indivíduo sem Deus,
que insiste em permanecer nos seus pecados, “não atenta para a majestade do Senhor”. Ele não percebe o grande
tesouro que lhe está sendo oferecido. Ele simplesmente não compreende a doutrina da salvação por graça; ou ele a
despreza, ou então emprega-a tremendamente mal. Ele raciocina: “Se é verdade que para ser salvo basta ter fé, então
os meus pecados também estão perdoados. Posso continuar levando esta minha vida e mesmo assim ir para o céu. Eu
também creio em meu Senhor Jesus Cristo”.
Nossa pregação deve seguir o padrão que encontramos, em primeiro lugar, na pregação de Cristo. Examinando
sua conduta, observamos que toda vez que se deparava com pecadores imperturbados – e os fariseus de seu tempo
certamente o eram – ele não tinha nem um pingo de conforto a dar. Sua atitude para com os fariseus foi esta: denomi-
nou-os de serpentes e raça de víboras; pronunciou uma série de dez “ais” contra eles; revelou sua abominável hipo-

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crisia; apontou-lhes a perdição e disse que não escapariam da condenação eterna. Apesar de saber que seriam preci-
samente estes que o pregariam à cruz, ele, sem vacilar, disse-lhes a verdade. Convém que os pregadores se dêem conta
disto. Mesmo sabendo de antemão que sua sorte não será nada diferente da do Senhor Jesus, eles devem pregar a lei
em todo o seu rigor aos pecadores imperturbados, indiferentes, a hipócritas e inimigos. Toda vez que o pregador tiver
diante de si esta classe de pessoas, ele não pode pregar outra coisa que não seja a lei. Além disso, quando o pregador
fala para uma multidão, ele deve deixar claro de que aquilo que ele diz não se aplica indiscriminadamente a todos,
mas sim àqueles que confiam na justiça própria e ainda assim querem o evangelho para si.
É verdade que nosso Senhor afirma: “Vinte a mim TODOS;” contudo ele imediatamente acrescenta: “os que
estais cansados e sobrecarregados”. Com isto ele deixa claro que não está convidando os pecadores imperturbados.
Certo dia um jovem rico veio a Jesus perguntando: “Bom Mestre, que farei eu de bom para alcançar a vida
eterna?” Jesus, tendo rejeitado o título pelo qual o jovem o denominara, lançou-lhe o desafio: “Guarda os mandamen-
tos”. Quando o jovem perguntou, “quais”, Jesus passou a enumerar: “Não matarás, não adulterarás, não furtarás, não
dirás falso testemunho, honra a teu pai e a tua mãe, e amarás o teu próximo como a ti mesmo”. O jovem replicou:
“Tudo isso tenho observado; que me falta ainda?” E qual foi a resposta de Jesus? Respondeu ele, por acaso, “O que
te falta é a fé!?” Não! Acontece que ele tinha pela frente uma pessoa infeliz, um pecador despreocupado e que confiava
na justiça própria. Por isso Jesus não lhe prega nada do evangelho. Ele apenas diz, acertadamente: “Se queres ser
perfeito, vai, vende os teus bens, dá aos pobres, e terás um tesouro no céu; depois vem, e segue-me”. E então o
evangelho relata: “Tendo, porém, o jovem ouvido esta palavra, retirou-se triste, por ser dono de muitas propriedades”.
Ele retirou-se, e sua consciência certamente o acusava, dizendo: “Esta é de fato uma doutrina diferente da que eu
conheço. O que este Jesus requer de mim eu não o posso fazer. Estou por demais preso às minhas propriedades. Se é
necessário desfazer-me delas, então não posso segui-lo. Longe de mim, perambular com ele, país afora, feito um
mendigo!” Sua consciência certamente também lhe assegurou que, de acordo com o ensino de Cristo, ele estava con-
denado, que seu destino era o inferno. E esta era exatamente a reação que o Senhor intentara provocar no jovem. Este
episódio deve servir-nos de exemplo quanto ao modo de tratar aqueles que continuam imperturbados e confiam na
justiça própria.
Os apóstolos adotaram o mesmo método de seu Senhor. Em primeiro lugar pregavam a lei energicamente, a
ponto de calar fundo no coração de seus ouvintes.
Em seu primeiro sermão proferido no dia de Pentecoste, Pedro assegura a seus ouvintes que todos eles têm
culpa na morte de Cristo. E estas palavras surtiram efeito. Atemorizados eles perguntaram: “Que faremos, irmãos?”
Pedro responde: “Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para remissão dos vossos
pecados”. Pedro anuncia o evangelho e garante que para seus pecados também há perdão, mesmo para os mais repug-
nantes. Os apóstolos precediam assim em toda a parte, não apenas em Jerusalém mas também em Atenas. Corinto.
Éfeso, etc. Aonde quer que fossem, em primeiro lugar pregavam o arrependimento e então a fé. Eles estavam certos
de que em toda parte, via de regra, tinham diante de si pecadores imperturbados, ou seja, pessoas que ainda não tinham
reconhecido sua miserável situação de pecadores. Eles, entretanto, não somente pregavam a lei em todo o seu rigor
aos que nada conheciam da religião cristã; pregavam-na também àqueles que se consideravam cristãos e mesmo assim
viviam tranqüilamente em seus pecados.
Os dois últimos capítulos da segunda Carta aos Coríntios são um notável exemplo deste modo de proceder dos
apóstolos. Escreve o santo Apóstolo: “Temo, pois, que, indo ter convosco, não vos encontre na forma em que vos
quero, e que também vós me acheis diferentes do que esperáveis, e que haja entre vós contendas, invejas, iras, porfias,
detrações, intrigas, orgulho e tumultos”. O Apóstolo está dizendo: “Vocês imaginam que eu vá e lhes pregue o evan-
gelho. Mas, vocês vão se surpreender com o que eu vou pregar quando for visitar vocês”. O Apóstolo não diz que vai
pregar contra pecados tais como travessuras, prostituição, roubo, blasfêmia, assassinado; ele vai atacar, isto sim, aque-
les pecados que mesmo hoje ainda infestam as congregações cristãs, especialmente a hipocrisia. Ele prossegue no
versículo 21: “Receio que, indo outra vez, o meu Deus me humilhe no meio de vós, e eu venha a chorar por muitos
que outrora pecaram e não se arrependeram da impureza, prostituição e lascívia que cometeram”. Presentemente eles
não estavam vivendo em prostituição e impureza, mas esta havia sido sua vida passada. Eles se tornaram cristãos
através de uma mera convicção intelectual. Faltava-lhes o verdadeiro arrependimento de seus pecados. Professavam
seu cristianismo com os lábios; faltava-lhes a fé no coração. Ainda não haviam sido regenerados e renovados pelo
Espírito Santo. O apóstolo continua: “Esta é a terceira vez que vou ter convosco. Por boca de duas ou três testemunhas
toda questão será decidida. Já o disse anteriormente, e torno a dizer, como fiz quando estive presente pela segunda
vez; mas agora, estando ausente, o digo aos que outrora pecaram, e a todos os mais, que, se outra vez for, não os
pouparei” (2Co 13.1,2).
Este é um magnífico exemplo a ser seguido pelo pregador. Quando as pessoas se entregam à prática de toda a
sorte de pecados e julgam que todos devem considerá-los bons cristãos, desde que venham aos cultos e participem da
santa ceia, então o pastor precisa chegar à seguinte conclusão: “Está mais do que na hora de pregar-lhes a lei para que
não suceda que, enquanto eu vivo despreocupado, meus ouvintes rumem para o inferno e no Último Dia me acuse
dizendo que eu sou o culpado pelo fato de eles agora terem de sofrer o tormento eterno”.

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O Apóstolo não eliminou a possibilidade de, reassumindo o trabalho na congregação de Corinto, ainda encon-
trar membros imperturbados em seu meio, o que tornaria imperioso que ele os despertasse. Pouco lhe importava se
sua atitude poderia despertar oposição e inimizade da parte do povo, numa época pagã e sodomita como aquela. Ele
avisa que não vai poupá-los. Procuraria fazer com que compreendessem que estavam destinados para a condenação
eterna, caso não houvesse arrependimento. Ele iria censurá-los por pretenderem ser considerados cristãos apesar de
ainda continuarem a pecar contra sua consciência.
Assim sendo, não podemos pregar o evangelho aos pecadores imperturbados; devemos, isto sim, anunciar-lhes
a lei. Se quisermos levar nossos ouvintes para o céu, é necessário que, em nossa pregação, primeiramente os condu-
zamos numa viagem através do inferno. Nossa pregação deve levar os ouvinte à morte para que possam receber vida
através do evangelho. Eles devem vir a reconhecer que estão mortalmente enfermos, para que então, através do evan-
gelho, lhes seja restaurada a saúde. É importante que em primeiro lugar lhes seja revelada sua justiça própria para que
vejam que ela não passa de trapo de imundície; então, sim, poderão ser revestidos pela veste da justiça de Cristo,
através da pregação do evangelho. Em primeiro lugar precisam ser levados a dizer de coração: “Eu sou um homem
perdido e condenado”, para que depois disto sejam levados a clamar com júbilo: “Que homem feliz que sou!” Primei-
ramente a lei deve reduzi-los a nada para que, através do evangelho, possam ser algo, para a glória de Deus.

9ª TESE
Em quinto lugar, a palavra de Deus não é aplicada corretamente quando, ao invés da palavra e
dos sacramentos, se indica o caminho das orações e lutas com Deus aos pecadores que foram atingidos
e atemorizados pela lei, para que desta maneira alcancem o estado da graça. Em outras palavras: quando
lhes é dito que devem permanecer em oração e luta até sentirem que Deus os recebeu em sua graça.

Convém que examinemos alguns exemplos da Escritura Sagrada para que, deste modo, sejamos certificados
por Deus quanto à maneira correta de aplicar (bem) a palavra, bem como para fazer frente aos erros mencionados
nesta tese. Voltamos nossa atenção para os apóstolos de Cristo, que certamente souberam aplicar a palavra de Deus
corretamente, bem como indicar o caminho certo aos pecadores atemorizados que estavam em busca de sossego, paz
e certeza de que se achavam no estado da graça, com Deus.
Atos 2: Tão logo as palavras do apóstolo tinham surtido efeito no coração das pessoas, elas “perguntaram a
Pedro e aos demais apóstolos: Que faremos, irmãos?”
Pedro respondeu-lhes: “Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para remissão
de vossos pecados”. “Metanoiete” (“Arrependei-vos”) significa: “Mudai de mentalidade”. Refere-se obviamente à
assim denominada segunda parte do arrependimento, isto é, refere-se à fé. A expressão “arrependei-vos” é uma siné-
doque, isto é, uma figura de linguagem em que se menciona o todo, o arrependimento, querendo indicar apenas uma
parte, a fé. Isto porque a lei já surtira efeito nestes ouvintes; falava-lhes apenas a fé. Logo, não era intenção de Pedro
levar estas pessoas à salvação através de um sentimento de angústia, agonia e terror maior ainda do que aquele que
estavam experimentando. Seus corações tinham sido quebrados, e com isto ele se deu por satisfeito. Estas pessoas
estavam preparadas para ouvir o evangelho e recebê-lo em seus corações. Por esse motivo o apóstolo diz: “Vocês
precisam mudar de mentalidade e crer no evangelho do Crucificado; abandonem todos os seus erros passados e se
deixem batizar imediatamente em nome de Jesus Cristo para o perdão de pecados”.
Este foi o único pedido que o apóstolo fez a seus ouvintes: que dessem ouvidos às suas palavras e buscassem
consolo nesta doce mensagem, nesta promessa do perdão dos seus pecados, de vida e salvação. Nada nos é dito a
respeito de medidas tais como as adotadas pelas seitas de nossos dias.
Atos 16: “De repente sobreveio tamanho terremoto, que sacudiu os alicerces da prisão; abriram-se todas as
portas; soltaram-se as cadeias de todos. O carcereiro despertou do sono e, vendo abertas as portas do cárcere, puxando
da espada, ia suicidar-se, supondo que os presos tivessem fugido” (v. 26-27). Caso os prisioneiros fugissem da prisão,
o carcereiro era considerado responsável. Quando se tratava de indivíduos realmente perigosos, o carcereiro estava
sujeito à pena de morte. Tendo isto em mente, o carcereiro de Filipos chegou à conclusão: Já que de qualquer maneira
estou condenado à morte, de que me adianta continuar vivendo? É preferível que eu mesmo dê cabo da minha vida.
“Mas Paulo bradou em alta voz: Não te faças nenhum mal, que todos aqui estamos!” (v. 28) Este brado deve
ter causado uma tremenda impressão sobre o carcereiro!
Os salmos que os apóstolos haviam cantado, certamente fizeram-no ver que se tratava de homens que queriam
anunciar ao povo como alcançar um destino feliz além do Hades. Extremamente aterrorizado, ele suplica: “Senhores,
que devo fazer para que seja salvo?” (v. 30) Se os apóstolos tivessem sido entusiastas, fanáticos, certamente teriam
dito: “Meu caro amigo, isto é tão simples assim. Para que um indivíduo ímpio, infame, como você possa ser salvo, é
necessário que lhe prescrevamos uma complexa e demorada cura”. Mas eles não disseram nada disto. Viram no car-
cereiro uma pessoa preparada para ouvir o evangelho. Ele ainda era tão pagão quanto tinha sido anteriormente. Ele

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ainda não estava em condições de odiar o pecado. Ele não diz nada a respeito disto tudo. Tudo o que ele deseja é
escapar da punição do pecado e alcançar um feliz e abençoado destino pós-túmulo.
Naquela mesma noite o carcereiro foi convertido, recebeu a fé e a certeza de que Deus o aceitara e estava
reconciliado com ele. Tornou-se assim um filho amado de Deus.
Que medidas tomaram os apóstolos? Nada além de anunciar-lhe o evangelho de modo incondicional. Sem
impor condição de espécie alguma, eles lhe disseram: “Crê no Senhor Jesus”. Este fato demonstra o procedimento dos
apóstolos. Sempre que, através da palavra, a fé tinha sido criada, imediatamente batizavam. Eles não disseram: “Pri-
meiramente precisamos administrar-lhe um extensivo curso para que você possa entender todos os artigos da fé cristã
de modo exato e em profundidade. Depois disto, você passará por um período de experiência para vermos se você tem
condições de ser um cristão realmente aprovado”. Nada disto. O carcereiro quer ser batizado porque sabe que, através
do batismo, ele entrará no reino de Cristo; e ele foi batizado imediatamente.
Atos 22: Ananias não disse a Paulo: “Em primeiro lugar você precisa orar até sentir a graça internamente”.
Não; ele apenas disse: “Agora que você conheceu o Senhor Jesus, seu primeiro passo deve ser o batismo para que
sejam lavados os seus pecados. E então invoque o nome do Senhor Jesus”. Esta é a ordem salvífica correta: o somente
pode orar pela graça de Deus depois que ele já a recebeu. Antes disto ele simplesmente não pode orar.
Neste incidente nos é apresentado o modo de agir do próprio Senhor. E este certamente deve saber como tratar
com pobres pecadores. Tão logo Saulo estava atemorizado por causa de seus pecados, Jesus trouxe-lhe o seu consolo.
Ele não exigiu que primeiramente experimentasse toda sorte de sentimentos, mas, sim, imediatamente anunciou-lhe a
palavra da Graça. Isto nos mostra como o verdadeiro ministro de Cristo deve proceder quando tem por objetivo levar
os pecadores arrasados pela lei à certeza da graça de Deus em Cristo Jesus.
O método das seitas é precisamente o inverso deste. É verdade que elas também pregam em primeiro lugar a
lei. Pregam-na energicamente, o que está correto. O único aspecto em que erram, nesta parte de sua pregação, diz
respeito à maneira em que descrevem os tormentos infernais. Fazem-no de um modo tão drástico que, ao invés de
tocar o fundo do coração, ativam a fantasia na imaginação do ouvinte. Em geral, suas pregações sobre a lei e suas
terríveis ameaças são excelentes; falham apenas quanto ao não apresentá-la em seu sentido espiritual. Ao invés de
levarem seus ouvintes ao reconhecimento de que são pecadores miseráveis, perdidos e condenados, merecedores do
castigo eterno, levam-nos a um estado mental que os faz dizer: “Não é algo terrível, ouvir Deus proferindo ameaças
tão horrorosas por causa do pecado?” Se através da pregação da lei você não levar o homem a se desfazer completa-
mente do manto da justiça própria e a declarar-se uma criatura miserável, um homem perverso, que a todo instante
está pecando através de más inclinações, pensamentos, desejos, disposições de espírito e aspirações de toda sorte,
esteja certo de que você não pregou a lei corretamente. Quem prega a lei deve fazer com que a pessoa suspeite de si
mesma constantemente, até a hora de sua morte, e confesse: “Eu sou uma criatura miserável! O bem que faço, é na
verdade algo que Deus realiza através de mim”. Se o coração do indivíduo não estiver neste estado, ele não estará
devidamente preparado para receber o evangelho.
Mas, a incorreta pregação da lei ainda não é o aspecto mais negativo nas seitas. O pior é que elas deixam de
pregar o evangelho aos atemorizados e angustiados. Pensam que cometeriam o pior pecado caso imediatamente apre-
sentassem o consolo para tais pessoas. Apresentam então uma extensa lista de pré-requisitos que, se possível, devem
ser cumpridos pela pessoa para que ela seja recebida na graça: quanto tempo deve orar, com que intensidade deve
lutar, contender e gritar até que finalmente possa dizer: “Agora sinto que recebi o Espírito Santo e a graça divina” e
então se levante gritando: “Aleluia!”
Estes sentimentos que se requerem podem, entretanto, ter uma origem bem diversa da que eles imaginam. É
possível que, ao invés do testemunho do Espírito Santo, seja um efeito físico resultante da vigorosa mensagem do
pregador. Isto explica porque muitas pessoas das mais bem intencionadas, que se tornam crentes, em determinado
momento sentem que tem o Senhor Jesus, e logo depois sentem que o perderam novamente; em determinado momento
imaginam que estão na graça, e em seguida afirma que decaíram da graça.
Esta prática errônea é resultante de três terríveis equívocos:
Primeiro: As seitas não crêem nem ensinam a verdadeira e completa reconciliação entre Deus e o homem. Isto
porque julgam que nosso Pai celeste é um Deus extremamente rigoroso, que precisa ser comovido através de gritos e
lágrimas ardentes. Isto implica em negar o mérito de Jesus Cristo, que há muito tempo reconciliou o mundo com Deus,
fazendo com que Deus agora tenha uma disposição favorável para com os homens. Deus não deixa nada pela metade,
inacabado. Em Cristo, Ele ama a todos os pecadores indistintamente. Os pecados de todos os pecadores foram cance-
lados. Toda a dívida foi paga. Não há nada que o pobre pecador tenha a temer quando se aproxima de seu Pai celeste,
com o qual está reconciliado por causa de Cristo.
Entretanto, os homens imaginam que, depois que Cristo fez a sua parte, cumpre igualmente a nós realizar nossa
parcela. Julgam que o esforço conjugado de Cristo e do homem é que efetua a reconciliação. Para as seitas, reconcili-
ação é isto: o Salvador fez com que Deus se mostrasse disposto a salvar os homens, desde que estes, por sua vez, se
demonstrem dispostos em serem reconciliados. Este, contudo, é um anti-evangelho. Deus está reconciliado! Por isso
Paulo roga que nos reconciliemos com Deus (2Co 5.20). Isto equivale a dizer: Deus está reconciliado com vocês por
causa de Jesus Cristo! Por isso agarrem-se à mão que o Pai celeste está estendendo. Além disto o Apóstolo declara:
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“Um morreu por todos, logo todos morreram” (2Co 5.14). Isto vem a significar: Cristo morreu pelos pecados de todos
os homens; logo, a morte de Cristo é como se todos os homens tivessem morrido em pagamento do resgate de seus
pecados. Por isto, da parte do homem nada se requer com vistas à reconciliação; Deus já está reconciliado. A justifi-
cação já é uma realidade não cabe ao homem tratar de consegui-la. Toda tentativa do homem, neste sentido, é um
crime horrendo, uma luta contra a graça, contra a reconciliação e a prefeita redenção do Filho de Deus.
Segundo: As seitas erram na doutrina do evangelho. Consideram o evangelho uma mera instrução que mostra
ao homem o que deve fazer para que receba a graça de Deus. Isto está errado; o evangelho não é outra coisa senão a
mensagem de Deus ao homem, que diz: “Vocês foram redimidos de seus pecados; vocês estão reconciliados com
Deus; seus pecados estão perdoados”.
Terceiro: As seitas erram no que ensinam a respeito da fé. Consideram-na uma qualidade dentro do homem,
que tem por objetivo aperfeiçoar este homem. E pelo fato de a fé aperfeiçoar, melhorar o homem é que eles a julgam
tão importante e salutar.
É evidente e não se pode negar que a fé genuína transforma o homem completamente. A fé faz com que o amor
inunde o coração do homem. Onde há fogo, há calor; do mesmo modo, onde existe fé, é inevitável que haja amor.
Todavia não é este aspecto da fé que nos justifica, que nos dá o que Cristo já adquiriu para nós e que portanto já é
nosso, desde que seja aceito. Para a pergunta: “Que devo fazer para que seja salvo?” a Escritura tem a seguinte res-
posta: “Você deve crer; não resta nada que você mesmo possa fazer”. Foi assim que o Apóstolo respondeu a esta
pergunta. O que ele disse ao carcereiro na realidade foi isto: “Nada lhe resta a fazer senão aceitar o que Deus fez por
você; e você vai recebê-lo e será uma pessoa feliz”.
Nenhuma doutrina da Igreja Evangélica Luterana é mais repulsiva aos reformados do que a doutrina que afirma
que a graça de Deus, o perdão dos pecados, a justiça diante de Deus, a salvação eterna são obtidos exclusivamente
através da confiança que o cristão deposita na palavra escrita, no batismo, na santa ceia e na absolvição. Os reformados
argumentam que este caminho para o céu é por demais mecânico e por isto denunciam a doutrina luterana. Eles dizem:
“De que aproveita o batismo com água terrena? O verdadeiro batismo é o batismo com o Espírito e com fogo”. Do
mesmo modo: “De que adianta comer e beber o sangue natural de Cristo? O verdadeiro alimento que mata a fome e a
verdadeira bebida que mata a sede da alma é a verdade que desceu do céu”. Por último, dizem: “De que me adianta
um homem mortal, pecador, que não pode sondar o meu coração, afirmar que meus pecados estão perdoados? Meus
pecados somente são perdoados quando o próprio Deus diz a meu coração que estou perdoado e permite que eu sinta
esta verdade”.
O batismo, segundo a Escritura Sagrada, não é um mero lavar com água terrena. O Espírito de Deus, sim, o
próprio Jesus com seu sangue está ligado a esta água para purificar-me dos meus pecados. Por esta razão Ananias diz
a Saulo: “Recebe o batismo e lava os teus pecados” (At 22.16); e Jesus diz a Nicodemos: “Em verdade, em verdade
te digo: Quem não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus” (Jo 3.5). Ele menciona em primeiro
lugar a água e então o Espírito. Isto porque é através deste batismo com água que me é concedido o Espírito. Em
Gálatas 3.27 o apóstolo afirma clara e inequivocamente: “Pois todos quantos fostes batizados em Cristo, de Cristo vos
revestistes”; e em Tito 3.5-7: “Deus, segundo sua misericórdia, nos salvou mediante o lavar regenerador e renovador
do Espírito Santo, que ele derramou sobre nós ricamente, por meio de Jesus Cristo nosso Salvador, a fim de que,
justificados por graça, nos tornemos seus herdeiros, segundo a esperança da vida eterna. Fiel é esta palavra”.
Segundo a Escritura Sagrada, a santa ceia não é uma ceia terrena, mas uma ceia celestial na terra, na qual
recebemos não apenas pão e vinho, ou apenas o corpo e sangue de Cristo, mas, junto com estes, nos são dados e
assegurados o perdão dos pecados, vida e salvação. Isto porque Cristo, ao distribuir o pão que havia abençoado, disse:
“Isto é o meu corpo, que é dado por vós. Fazei isto em memória minha”. Com as palavras “por vós” Cristo quer alertar
os discípulos para o fato de que naquele momento eles estavam recebendo e comento aquele corpo cuja morte na cruz
resgataria o mundo inteiro. Ele quer alertá-los para o fato de que eles deveriam estar saltando de alegria e contenta-
mento, visto que o resgate pago pelos pegados de todo o mundo lhes estava sendo, por assim dizer, colocado na boca.
Ao entregar o cálice que abençoara, Cristo disse: “Este cálice é o novo testamento no meu sangue, que é derramado
por vós”. Por que razão acrescentou ele as palavras “derramado por vós?” É que ele queria dizer: “Ao receberem,
nesta Santa Ceia, o sangue da redenção, vocês estão ao mesmo tempo recebendo o que na cruz foi adquirido através
deste sacrifício.”
Por último, de acordo com a Escritura Sagrada, a absolvição anunciada por um pobre e pecaminoso pregador
não é sua absolvição, mas a absolvição do próprio Jesus Cristo. Isto porque o pregador absolve em função da ordem
de Cristo, em lugar de Cristo, em nome de Cristo. Cristo disse a seus discípulos: “Assim como o Pai me enviou, eu
também vos envio” (Jo 20.21). Qual é o significado destas palavras? Simplesmente este: “Eu fui enviado por meu Pai.
Quando eu me dirijo a vocês, estas minhas palavras são as de meu Pai. Vocês não devem levar em conta a forma
humilde em que me apresento. Eu venho em nome do Pai, em lugar do Pai, e as promessas que faço são palavras de
meu Pai. Do mesmo modo como meu Pai me enviou, eu estou enviando a vocês. Vocês também devem falar em meu
nome, em meu lugar”. Por isso ele acrescenta: “Recebei o Espírito Santo. Se de alguns perdoardes os pecados, são-
lhes perdoados; se lhos retiverdes, são retidos”.

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O Espírito Santo vem aos homens através da palavra. Um indivíduo pode imaginar que está cheio do Espírito
a ponto de transbordar, quando na verdade tudo não passa de seu próprio espírito que está imbuído de fanatismo. O
verdadeiro Espírito é recebido apenas mediante a palavra de Deus. Em cada passagem da Escritura Sagrada, em que
se relata a conversão de pessoas, vemos que Deus quer tratar com o homem apenas mediante palavra e sacramentos.
A uma pessoa que está em condições de ouvir, posso anunciar o evangelho mediante palavras. Em se tratando
de uma pessoa surda, que não pode ser atingida por palavras, posso atingir meu alvo tomando um quadro do nasci-
mento de Cristo com os anjos saindo dos céus, ou um quadro da sua crucificação. Por meio de gestos posso instruir o
surdo sem dizer uma única palavra. É exatamente isto que Deus faz nos sacramentos; estes, por assim dizer, nos
apresentam através de um quadro aquilo que Deus proclama de modo audível na palavra. “Os sacramentos são a
palavra visível”. O autor deste belo axioma é Agostinho. Por este motivo, quem deprecia e despreza os sacramentos,
este, na verdade, está desprezando a própria palavra. Ridiculariza a Deus, fazendo com que ele não passe de um
inditoso mestre de cerimônias, que nos prescreveu toda a sorte de pantominas apenas para exercitar nossa fé.
As assim denominadas igrejas protestantes que se encontram fora do círculo da Igreja Evangélica Luterana,
nada sabe do verdadeiro acesso ao perdão dos pecados que se dá através da palavra e, de modo mais generalizado,
através dos meios da graça. Isto se demonstra, em especial, no fato de rejeitarem a absolvição que o pastor anuncia
em público e no aconselhamento pastoral privado. Estas assim denominadas igrejas protestantes afirmam que, de todas
as igrejas protestantes, a que menos foi reformada é precisamente a Luterana. Isto porque, segundo eles, a Igreja
Luterana ainda conserva muito do fermento da Igreja Romana, sendo que o pior de tudo é a absolvição.
Contudo, o que nós ensinamos é completamente diferente do que eles pensam. Ensinamos que “o ofício das
chaves é o poder peculiar que Cristo deu a sua igreja na terra para perdoar os pecados aos pecadores penitentes e
reter os pecados aos impenitentes, enquanto não se arrependerem”. Convém notar esta frase: “o poder peculiar que
Cristo deu a sua igreja!” Estas palavras deixam claro que este poder foi dado, não aos pregadores, mas, sim, à igreja.
Os pregadores não são a igreja; eles são servos da igreja. Se eles são cristãos, então eles também são detentores do
ofício das chaves, juntamente com os demais cristãos. Entretanto, o ofício das chaves não é exclusivamente dos pre-
gadores; ele pertence à igreja, a cada um dos membros da igreja. O mais humilde empregado possui as chaves tanto
quando o mais estimado superintendente geral. Os luteranos praticam a absolvição baseados nos seguintes fatores:
1. Cristo, o Filho de Deus, tomou sobre si e atribuiu a si todos os pecados de cada um dos pecadores, consi-
derando-os como sendo seus próprios pecados. Por esse motivo João Batista aponta para Cristo, dizendo:
“Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo!”(Jo 1.29)
2. Cristo, através de sua vida humilde, seu sofrimento, crucificação e morte, apagou e adquiriu remissão para
todos os pecados. Nenhum homem foi excluído deste plano, desde Adão até o último que vier a nascer
sobre a face da terra.
3. Ressuscitando a Jesus dentre os mortos, Deus Pai confirmou, colocou o selo da aprovação sobre a obra
reconciliatória e redentora realizada por Cristo sobre a cruz. Através da ressurreição de Cristo, Deus decla-
rou: “Sobre a cruz este meu Filho clamou: ‘Está consumado’; e eu agora anuncio: ‘Está consumado de
fato!’ Vocês pecadores estão salvos. Há perdão de pecados para todos. O perdão já é uma realidade; não
lhes resta mais nada a fazer”.
4. Cristo ordenou que se pregasse o evangelho a toda a criatura. Ordenou também que se pregasse perdão de
pecados a todos os homens e que se lhes levasse a boa notícia: “Tudo o que é necessário para a salvação de
vocês já foi feito. Se vocês perguntam: ‘que devemos fazer para que sejamos salvos?’ então lembrem-se de
que tudo já foi feito. Nada mais resta a fazer. Basta que vocês creiam que tudo isto foi feito por vocês, e
vocês serão salvos”.
5. Cristo não apenas ordenou que seus apóstolos e sucessores de ofício pregassem o evangelho e o perdão dos
pecados em geral, mas, também, que anunciassem este doce conforto: “Você está reconciliado com Deus”
a indivíduos que desejam ouvi-lo em particular. Porque, se o perdão de pecados foi adquirido para todos,
então ele também o foi para cada um individualmente. Se eu posso oferecê-lo para todos, posso igualmente
oferecê-lo a cada um em particular. Não somente posso fazê-lo; foi-me ordenado que o fizesse. Caso me
negar a fazê-lo, serei um servo de Moisés e não um servo de Jesus Cristo.
6. Agora que o perdão dos pecados já foi adquirido, não somente o pastor está de modo especial incumbido
de sua proclamação; cada cristão, homem ou mulher, adulto ou criança, tem a incumbência de fazê-lo. A
absolvição anunciada por uma criança é tão segura como a absolvição de S. Pedro, sim, tão certa como a
absolvição do próprio Cristo, caso ele novamente estivesse de modo visível diante dos homens para anun-
ciar: “Seus pecados estão perdoados”. Não há diferença alguma; o que importa não é o que o homem pode
fazer, mas o que já foi feito por Cristo.
A remissão dos pecados não se fundamenta nalgum poder misterioso do pastor, mas sim, no fato de que Cristo,
muito tempo atrás, tirou os pecados do mundo, e que agora cada um está incumbido de falar a seu semelhante a
respeito disto. É claro que esta é uma incumbência que compete de modo especial aos pregadores, todavia não em
virtude de algum poder inerente a eles, mas porque Deus instituiu seu ofício para a administração dos meios da graça:

20
palavra e sacramentos. É evidente que, numa emergência, um leigo tem autoridade para realizar o que um prelado ou
um superintendente faz, e isto de modo legítimo e eficaz.
A contrição é necessária, todavia não para servir de meio para a aquisição do perdão dos pecados. Se eu sou
um orgulhoso fariseu, por que haveria de me preocupar com o perdão dos pecados? Minha atitude será idêntica à do
glutão, saciado, que despreza a melhor comida e bebida que lhe são oferecidas.
Convém que não interpretemos mal a Lutero. Ele não ofereceu o consolo do evangelho a pecadores que viviam
em segurança carnal; para estes ele não tinha nada de conforto a dar. Mas quando se tratava de uma pessoa contrita e
que ansiava pelo perdão dos pecados, ele prontamente dizia: Aqui está o perdão; aceite-o e você o terá.
Lutero igualmente está certo quando aconselha que não se deve procurar investigar a respeito da qualidade ou
da suficiência da contrição. Isto porque qualquer um que quer depositar nisto sua confiança, fatalmente estará edifi-
cando sobre areia. Pelo contrário, o que o indivíduo deve fazer é louvar a Deus pelo fato de já ter recebido a absolvição;
e então sua contrição também será boa. Não devemos fundamentar a validade de nossa absolvição sobre a contrição;
ao contrário, a contrição é que deve fundamentar-se na absolvição.
Lutero insiste em que se tenha fé nas palavras de Cristo: “Seus pecados estão perdoados”. Duvidar desta afir-
mação equivale a fazer Cristo de mentiroso. Mesmo que o pastor anunciasse o perdão a uma tal pessoa por dez vezes
consecutivas, isto de nada lhe adiantaria. Não podemos auscultar os corações das pessoas. Mas isto também não é de
todo necessário. O que devemos fazer é voltar nossos olhos tão somente para a palavra de nosso Pai celeste, a qual
nos informa que Deus absolveu todo o mundo. E este fato nos dá a certeza de que todos os pecados de todos os homens
foram perdoados.
Vale isto também para o malfeitor da pior espécie que planeja um arrombamento para roubar e saquear? Há
perdão pare este? É evidente! O motivo, porém, por que esta absolvição de nada lhe aproveita é que ele não aceita o
perdão que lhe é oferecido; ele não crê na sua absolvição. Se ele desse crédito ao Espírito Santo, ele deixaria de roubar.
Seria correto dar a absolvição a um patife desta espécie? Se você souber quem ele é, estará errado, pois você
sabe de antemão que ele não vai aceitar o perdão. Estar consciente disto e mesmo assim administrar-lhe o sagrado ato
da absolvição, implica em cometer um grande e terrível erro. Entretanto, a absolvição em si sempre é válida. Se Judas
tivesse ouvido a mensagem do perdão, Deus teria perdoado os seus pecados; contudo, teria sido necessário que ele
aceitasse o perdão. Para obter este grande tesouro que é o perdão, deve haver alguém que o conceda e um outro alguém
que o receba. Uma pessoa descrente pode pensar e até mesmo afirmar que aceita o perdão, todavia em seu coração ele
está determinado a levar adiante sua conduta pecaminosa e servir o diabo. Logo, a verdadeira doutrina da absolvição
não faz com que os homens permaneçam tranqüilos e imperturbados; ao contrário, ela arranca-os para fora do reino
do diabo, total e radicalmente.
A última parte da nona tese nos mostra, em especial, que a palavra de Deus não é aplicada corretamente
“quando... se indica o caminho das orações e lutas, com Deus aos pecadores que foram atingidos e atemorizados pela
lei, para que desta maneira alcancem o estado da graça. Em outras palavras: quando lhes é dito que devem permanecer
em oração e luta até sentirem que Deus os recebeu em sua graça.”
Há pessoas que se consideram bons cristãos quando, na realidade, são espiritualmente mortos. Nunca sentiram
uma verdadeira angústia por causa dos seus pecados. Nunca foram aterrorizados por causa deles; o inferno que mere-
cem jamais os amedrontou. Nunca caíram de joelhos diante de Deus, chorando amargamente sua terrível, maldita
condição sob o jugo do pecado. Muito menos ainda choraram de alegria e glorificaram a Deus por sua misericórdia.
Lêem e ouvem a palavra de Deus sem que esta lhes cause um impacto especial. Vão ao culto, recebem a absolvição,
contudo não se sentem reconfortados; participam da santa ceia sem sentir absolutamente nada, permanecendo frios.
Quando, esporadicamente, em seu íntimo, passam a preocupar-se com sua indiferença em assuntos pertinentes a sal-
vação e com sua falta de consideração para com a palavra de Deus, então procuram acalmar seus corações, dizendo
que a Igreja Luterana ensina que a falta de sentimento não quer dizer nada. Argumentam que esta falta de sentimento
não vai prejudicá-los e que, apesar disto, continuam sendo bons cristãos porque julgam que têm fé.
Entretanto, eles estão terrivelmente enganados. Quem se encontra na situação acima descrita, este não tem nada
além de uma fé morta, uma fé no intelecto, uma fé ilusória, ou – para ser mais drástico – uma fé apenas de boca. Seus
lábios dizem: “eu creio”, mas o coração não está consciente disto. O indivíduo que não pode afirmar, conforme o
Salmo 34.8, que ele provou e viu que o Senhor é bom, este não deve afirmar que se encontra no estado da fé verda-
deira. Além disso, diz o apóstolo Paulo (Rm 8.16): “O próprio Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos
de Deus”. É possível que o Espírito Santo testifique dentro de nós sem que o sintamos? Diante dum tribunal a teste-
munha deve falar de um modo que possibilite ao juiz ouvir o que ela está dizendo. O mesmo é necessário no nosso
caso. De acordo com a palavra de Deus, quem nunca sentiu o Espírito testemunhando que ele é filho de Deus, este é
espiritualmente morto. Ele não pode apresentar testemunho a seu favor e erra quando, apesar de tudo, se considera um
bom cristão.
Romanos 5.1: A paz objetiva, estabelecida através do sangue de Cristo, já é uma realidade antes mesmo de
nossa justificação. Logo, o Apóstolo deve estar falando de uma paz que se percebe, sente e experimenta.
Romanos 14.17: O Apóstolo não se refere a uma alegria mundana ou carnal, mas, sim, a alegria no Espírito.
Quem experimentou todas as demais, menos a alegria no Espírito este é espiritualmente morto.
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O exemplo que temos na vida dos santos vem ao encontro deste ponto de vista. Seus corações continuamente
irrompiam em louvores a Deus por tudo o que Deus fizera por eles. Este louvor pressupõe que seus corações estavam
conscientes da misericórdia do Senhor para com eles. Poderia ter Davi exclamado: “Bendize, ó minha alma, ao Senhor,
e tudo o que há em mim bendiga ao seu santo nome. Bendize, ó minha alma, ao Senhor, e não te esqueças de nem um
só de seus benefícios. Ele é quem perdoa todas as tuas iniqüidades; quem sara todas as tuas enfermidades” sem que
para tanto tivesse tido uma experiência interior?
Por último, pergunte a qualquer indivíduo que apresenta todas as características de um cristão verdadeiro, se
ele experimentou todas estas coisas das quais ele fala, e você verá que sua resposta vai ser afirmativa. Ele vai assegu-
rar-lhe que seu coração se comove toda vez que lhe vem à mente o amor de seu Salvador. Por outro lado, ele também
dirá que, apesar da certeza de ter alcançado a graça, ele é freqüentemente sobressaltado por temores e angústia em
vista da lei.
Muitas pessoas afirma que, para obter a certeza do perdão dos pecados, é necessário que se ore, lute, e faça um
empenho tal até que, finalmente, um sentimento de alegria brote no coração do indivíduo indicando, de um modo
misterioso, que a graça está em seu coração e que agora ele pode consolar-se com o perdão de seus pecados. Quem
afirma isto, faz uma grave confusão entre lei e evangelho. Por outro lado, a graça propriamente dita nunca está no
coração do homem, mas, sim, no coração de Deus. Em primeiro lugar, a pessoa deve crer; depois disto ela poderá
igualmente sentir. O sentimento provém da fé, e nunca o inverso. Se a fé do indivíduo provém do sentimento, esta
certamente não será a fé genuína; porque a fé requer uma promessa divina à qual ela se apega. Logo, podemos estar
certos da genuinidade da fé daqueles que podem dizer: “Nada no mundo tem tanto valor para mim quanto o precioso
evangelho. Sobre este eu edifico minha vida”.
1 João 3.19-20: Há momentos em que o cristão sente a acusação de seu8 coração. Na tentativa de tranqüilizá-
lo, uma voz lhe dirá que ele não passa de um condenado, que não há perdão de pecados nem misericórdia para ele,
que ele não é filho de Deus e que portanto não pode contar com a vida eterna. Para aquele que passa por esta experi-
ência, o apóstolo diz: “Se o nosso coração nos acusar, certamente Deus é maior do que o nosso coração”. Isto significa:
O nosso coração na verdade é um juiz; todavia, não passa de um juiz subalterno. Um juiz superior, isto é, Deus está
acima do nosso coração. Por esse motivo posso dizer a meu coração: “Tranqüiliza-te!”; e à minha consciência: “Cala-
te!” E isto porque apelei ao supremo tribunal e inquiri de Deus, o Supremo Juiz, se estou livre de meus pecados ou
não; e o supremo tribunal, que sempre pode alterar a sentença de um tribunal de instância inferior, decretou que meus
pecados estão perdoados, porque estou apegado à palavra de Deus. Feliz ‘;e aquele que, pela graça de Deus, realmente
crê nisto! Ainda que todos os demônios gritem desde o inferno: “Você está condenado!”, ele pode reponder-lhes: “De
maneira nenhuma; eu não estou condenado mas, sim, estou salvo para sempre. Aqui está a evidência escrita na palavra
de Deus”. E a seu tempo a sensação da graça voltará a tomar conta de sua vida. É possível que no preciso instante em
que determinado cristão imagina que lhe falta o sentimento, que ele não passa de um indivíduo frio, morto, miserável,
perdido, para quem a palavra de Deus tem gosto de podridão, que não aprecia o perdão e carece do testemunho do
Espírito dentro de si – é possível que, num momento destes, inesperadamente, um sentimento de grande alegria inunda
seu coração. Deus não permitirá que ele fique no lamaçal do desespero.
Deve ficar claro, entretanto, que não podemos prescrever normas para Deus. Existe uma grande diferença de
cristão para cristão. Alguns têm a ventura de serem conduzidos por Deus através de um caminho sem muitos obstá-
culos; desfrutam uma sensação agradável contínua e nunca são sobressaltados por fortes conflitos. Porque as pessoas
que notam que suas experiências harmonizam com a palavra de Deus, não precisam mais lutar por esta harmonia.
Outros, entretanto, são quase que continuamente conduzidos por Deus através de caminhos tenebrosos, caminhos de
grande angústia, tremendas dúvidas, e aflições as mais diversas. Neste último caso, devemos saber distinguir entre
aquele que é espiritualmente morto e aquele que está aflito. Esta distinção não é difícil. Se eu me preocupo com a falta
de um maior sentimento de graça em minha vida, e se eu o desejo ansiosamente, este fato vem provar que eu verda-
deiramente sou cristão. porque aquele que deseja crer, já é crente. Ou seria possível que alguém se mostrasse disposto
a crer em algo que ele considera falso? Ninguém deseja ser iludido. Tão logo eu desejo crer em algo, eu, na verdade,
já o estou crendo, secretamente.
João 20.29: A admoestação que o Senhor dirige a Tomé mostra que, em primeiro lugar, devemos crer para
somente então ver, e não primeiramente quer ver para crer. Se isto é assim, então também fica claro que não devemos
em primeiro lugar sentir, mas crer e então esperar que Deus nos conceda a doce sensação de que nossos pecados nos
foram tirados.
Hebreus 11.1: Se esta é a definição de fé, a saber, uma confiança inabalável, segura, um não-duvidar, não-
vacilar, então é evidente que esta fé não deve ser baseada naquilo que se vê, sente e experimenta. Se assim for, esta-
remos edificando sobre a areia. E a estrutura edificada sobre a areia em pouco tempo desmorona.
O grande erro que todas as seitas têm em comum é o seguinte: elas confiam, ante de tudo, naquilo que se passa
em sue íntimo ao invés de confiar tão-somente em Cristo e sua palavra. Via de regra imaginam que tudo está bem eus
suas vidas porque se converteram. Como se isto fosse garantia de que se vai alcançar o céu! Para ter esta certeza, esta
garantia, não devemos voltar nossos olhos para a nossa conversão; ao contrário, devemos sempre de novo, dia após
dia, recorrer ao nosso Salvador como se na verdade nunca tivéssemos sido convertidos. Minha conversão no passado
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de nada me adiantará se eu me transformar num pecador imperturbado. Devo diariamente dirigir-me ao trono da graça.
Caso contrário, isto é, se depositar a confiança em minha conversão, que se deu no passado, estarei fazendo com que
esta conversão seja meu salvador. Isto seria terrível; porque, em última análise, eu mesmo seria meus salvador.

10ª TESE
Em sexto lugar, a palavra de Deus , a palavra de Deus não é aplicada corretamente quando o
pregador descreve a fé de um modo que dá a entender que uma mera aceitação passiva de certas verdades
justifica e salva diante de Deus, mesmo que se esteja vivendo em pecados mortais; ou, também, quando
se dá a entender que a fé justifica e salva porque produz amor e transforma a vida das pessoas.

Lutero ensinava que todo aquele que desejava ser salvo deveria ter uma fé que se manifestasse em amor
espontâneo e fosse operosa em boas obras. Isto não significa que a fé salva sem virtude do amor que dela emana,
mas, sim, que a fé, que é obra do Espírito Santo e não pode senão manifestar-se através de boas obras, justifica pelo
fato de se apegar às graciosas promessas de Cristo, pelo fato de apreender a Cristo. Ela se manifesta em boas obras
precisamente por se tratar da fé verdadeira. Não é preciso que se exorte um cristão à prática de boas obras; sua fé
automaticamente as fará. A motivação neste sentido não deve ser um senso de dever em relação ao perdão dos pecados;
a questão simplesmente é esta: ele não pode de modo diferente. É absolutamente impossível que a fé verdadeira no
coração do crente não se manifeste em obras de amor.
Gálatas 5.6: Se a fé é inoperante e não se manifesta em amor, isto não se deve ao fato de haver uma falta de
amor e sim ao fato de a fé que existe ser irreal, incorreta. O amor não é algo que deve ser acrescentado à fé; ele emana
da fé. Uma árvore frutífera não produz frutos porque alguém lhe ordena que assim seja. Não; enquanto há vitalidade
nela, enquanto ela não está seca, ela espontaneamente vai produzir frutos. A fé é uma tal árvore; demonstra sua vita-
lidade produzindo frutos.
Atos 15.9: Quem afirma possuir uma fé inabalável, a qual ele nunca abandonará, mas ainda tem o coração
impuro, este deve saber que ele se encontra em densas trevas e que, em última análise, não tem fé. Você pode consi-
derar verdadeiras todas as doutrinas pregadas na Igreja Luterana; contudo, se o seu coração permanece no estado
original, possuído de amor ao pecado, se você ainda peca contra sua consciência, então saiba que sua fé não passa de
simulação. Sua fé certamente não é aquela à qual o Espírito Santo se refere quando emprega o termo ‘fé’ nas Escrituras
Sagradas. Isto porque esta fé – a genuína, a verdadeira – purifica o coração.
João 5.44: Estas palavras constituem uma terrível sentença do Salvador contra aqueles que procuram a glória
dos homens: eles não têm fé. Um dos frutos da fé é precisamente este: a partir do momento em que ela é implantada
no coração, ela faz com que toda a glória seja dada somente a Deus.
Por natureza todos nós somos arrogantes, orgulhosos e ambiciosos. Somente o Espírito Santo pode banir esta
tendência perniciosa de nossos corações. Contudo, nunca nos livramos dela por completo; um resquício de mal per-
manece no coração. Quando um cristão se dá conta de sua presença, ele o detesta, recrimina a si mesmo, sente-se
envergonhado a respeito de si mesmo e pede a Deus que o livre destas abomináveis tendências para o orgulho.
As palavras do Salvador são uma pergunta retórica e significam: vocês não podem crer simplesmente porque
crer e buscar a glória que vem dos homens são duas coisas que não podem existir juntas. Quando a fé toma conta do
coração, ela faz com que a pessoa que crê se torne humilde diante de Deus e diante dos homens.
Tiago 2.1: Quem considera o rico e despreza o pobre, somente por causa da riqueza daquele, estará levando
em conta a aparência das pessoas. E isto é algo que a fé não pode tolerar. O cristão não deve considerar seu semelhante
do ponto de vista de sua personalidade, mas, sim, do ponto de vista de seu relacionamento com Deus. Para ele, um
pobre mendigo, que também foi resgatado pelo sangue do Filho de Deus, é tão digno quanto um rei ou um imperador.
Tais milagres são operados pela fé em nossos corações!
Entretanto, descrever a fé justificadora e salvadora como sendo uma mera aceitação passiva de certas verdades,
que pode coexistir a pecados mortais, implica em transformar a fé em obra que o próprio homem pode operar em si e
conservar dentro de si, mesmo enquanto está cometendo pecado. A fé verdadeira é um tesouro que somente o Espírito
Santo nos pode conceder.
Fé e boa consciência andam de mãos dadas. A pessoa que não tem a consciência tranqüila, certamente carece
da fé. De tais pessoas o Apóstolo afirma que elas “vieram a naufragar na fé” (1Tm 1.19).
Até mesmo depois de nossa conversão falta-nos muito do verdadeiro temor de Deus, e todos os nossos pecados
continuam sendo pecados de vulto. Mesmo os assim denominados pecados de fraqueza, dos quais o justo não consegue
se livrar, não devem ser considerados de pouca importância. Apesar de não extinguirem a fé, não devem ser levados
na brincadeira.
A segunda parte desta décima tese afirma que a palavra de Deus, lei e evangelho, não é aplicada corretamente
quando o pregador descreve a fé de um modo que dá a entender que ela justifica e salva porque produz amor
e transforma a vida das pessoas.
23
O elemento, o aspecto da fé que justifica e salva o homem, não é a renovação do coração, o amor e as boas
obras que ela produz.
Romanos: 4.16: O verdadeiro motivo por que ensinamos a justificação pela fé é porque também ensinamos que
a pessoa é salva e justificada diante de Deus pela graça. Entretanto, se a fé nos pudesse justificar em virtude de alguma
boa qualidade dentro de nós, então seria errado concluir que o indivíduo é justificado pela fé, já que ele é justificado
e salvo pela graça. A justificação se dá por graça, através da fé; entretanto, não em função das boas qualidades que
acompanham a fé. Estas não entram em consideração na questão da justificação. Na justificação entra em consideração
apenas o fato de que Jesus Cristo há muito tempo redimiu o mundo, fez e sofreu tudo aquilo que os homens deveriam
ter feito e sofrido, bem como o fato de que agora os homens precisam apenas aceitar esta obra como se tivesse sido
realizada por eles próprios. Logo, o caminho da salvação é este: nós não fazemos nada, absolutamente nada para a
nossa salvação; Cristo já fez tudo por nós. Basta que nos apeguemos ao que ele fez, busquemos consolo nesta sua obra
redentora concluída, e confiemos nele para a nossa salvação. Se alguma coisa que nós devemos fazer fizesse parte da
fé, na medida que ela nos justifica, então, nesta passagem, o apóstolo estaria tirando uma conclusão falsa.
Filipenses 3.8-9: O Apóstolo declara-se justo. Entretanto, a justiça que ele obteve através da fé não se trata de
uma justiça própria, mas, sim, da justiça de Cristo. Logo, se somos justificados pela fé, então o somos através de uma
justiça alheia. Em nós Deus não vê absolutamente nada que ele pudesse levar em conta para nossa justificação. Através
da fé recebemos a justiça de Alguém Outro. Nós não a conseguimos por nós mesmos, nem contribuímos em algo para
que ela viesse a existir.
Romanos 4.5: Todo aquele que tem fé verdadeira reconhece que, no passado, ele não era nada mais que um
ímpio e que um milagre da graça de Deus aconteceu em sua vida quando Deus, no momento em que ele creu em seu
Salvador, lhe disse: “Você agora é considerado justo. Em você, não vejo nada que o pudesse justificar; contudo, eu o
envolvo com a justiça de meu Filho e, de agora em diante, não vejo em você outra coisa que não seja justiça”. Todo
aquele que não vem a Cristo na qualidade de ímpio, este de maneira nenhuma pode vir a ele.
Efésios 2.8-9: Estas palavras soam como se o Apóstolo sentisse que ainda não tinha dito o suficiente para evitar
que seus leitores se desviassem para o caminho da justiça próprio. Para começar, ele diz: “Pela graça sois salvos”;
então ele acrescenta: “mediante a fé”. Temendo que alguém pensasse que adquiriu a graça através de sua fé, o Apóstolo
continua: “e isto não vem de vós”. Donde vem, então? “É dom de Deus”. E, para eliminar por completo o mérito
pessoal, ele acrescenta: “não de obras”, tais como o amor, a caridade. E ele concluiu, afirmando: “para que ninguém
se glorie”.
Romanos 11.6: O Apóstolo esforça-se por esclarecer a questão da graça. Ele leva seus leitores a concluir que,
se admitem que sua salvação é “pela graça”, ela não pode de maneira nenhuma ser pelas obras, pois isto fatalmente
destruiria o conceito “graça”. Adicionando-se o mérito à graça, anula-se esta última. Por outro lado, se a salvação é
pelo mérito das obras, então a graça não entra em consideração, pois, se assim fosse, o mérito deixaria de ser mérito.
Nada resta ao indivíduo fazer senão crer firmemente que ele foi declarado justo pela pura, eterna, misericórdia de
Deus, através da fé. O fato de sua fé produzir bons frutos, vem depois, depois que ele já recebeu todo o que é necessário
para sua salvação. Primeiramente a pessoa é salva, e só então ela passa a viver uma vida piedosa. Em primeiro lugar
ela deve ser herdeira do céu, e então ela será uma pessoa diferente.
Por este motivo Lutero diz que a religião cristão é, em resumo, uma religião de gratidão. Todo o bem que o
cristão realiza, ele não o realiza para merecer algo. Nós também nem saberíamos o que fazer para merecer algo. Todo
já nos foi dado: justiça, nossa herança eterna, nossa salvação. O que nos resta a fazer é agradecer a Deus. Deve-se
ainda considerar que Deus, em sua bondade, se dispõe a conceder uma glória especial, além da salvação, àqueles que
são fiéis de modo especial. E isto, na eternidade, não é algo insignificante. Pois quando o Deus de amor concede estes
dons de glória, ele os dá sem medida. Na eternidade haverá uma grande diferença de cristão para cristão. Isto porque
o insignificante “mais” que um dos santos receber além de seus co-herdeiros, no céu será algo extremamente signifi-
cativo, porque será de caráter eterno.
As verdadeiras boas obras são, portanto, aquelas que fazemos impulsionados pela gratidão a Deus. Quem tem
a fé verdadeira nunca vai pensar que merece algo de bom para si em troca do que faz. Ele não pode fazer outra coisa
sen expressar sua gratidão em amor e boas obras. Seu coração foi transformado; foi mitigado pela riqueza do amor de
Deus que experimentou. Além e acima disto, Deus é tão gracioso que recompensa mesmo as boas obras que ele realiza
em nós. Porque as boas obras que o cristão faz, são, na verdade, obras de Deus.

11ª TESE
Em sétimo lugar, a palavra de Deus não é aplicada corretamente quando se pretende apresentar
o consolo do evangelho somente àqueles que estão contritos pela lei porque amam a Deus e não porque
temem o furor e o castigo de Deus.

24
Desde a queda em pecado a lei exerce apenas uma função: levar os homens ao conhecimento do pecado. A lei
não tem força para fazer o homem renascer. Este poder está exclusivamente no evangelho. Somente a fé opera em
amor; a tristeza por nossos pecados não pode fazer com que sejamos ativos em amor. Ao contrário, nós odiamos a
Deus enquanto desconhecemos que, em Cristo, ele se tornou nosso Deus e Pai reconciliado. Se uma pessoa não con-
vertida diz que ama a Deus, ela afirma uma inverdade e está vivendo em terrível hipocrisia, mesmo que não esteja
consciente disto. Tudo não passa de uma pretensão ilusória, porque somente a fé no evangelho pode regenerar o
homem. Logo, ninguém pode amar a Deus enquanto não tem fé. Perverte-se a lei e evangelho quando se exige que
um miserável pecador se atemorize e lamente seus pecados por amor a Deus.
Eis a doutrina bíblica: O pecador deve vir a Jesus tal como está, mesmo que tenha que reconhecer que em seu
coração só existe ódio a Deus e ignore onde possa haver um refúgio salvador. Um verdadeiro pregador do evangelho
mostrará a tal pessoa o quão fácil é ser salvo: Quem reconhece em si um pecador perdido e condenado, que não
encontra a ajuda que procura, este deve vir a Jesus, com seu coração perverso, com todo o seu ódio contra Deus e sua
lei; e Jesus vai recebê-lo assim como ele está. Quando os homens dizem: “Jesus recebe pecadores”, isto representa o
máximo para Jesus. O pecador não precisa se tornar uma pessoa diferente, purificar-se, mudar sua conduta, antes de
vir a Jesus. A única pessoa que pode transformar a vida dele é precisamente Jesus; e ele o fará, desde que o pecador
creia.
Romanos 3.20: A Lei não produz amor mas, sim, leva ao pleno conhecimento do pecado. E este conhecimento
uma pessoa pode ter mesmo sem amar a Deus.
Romanos 3.20: A Lei não produz amor, mas, sim, leva ao pleno conhecimento daquele que ignora a lei.
Quando, entretanto, a lei lhe é pregado com todo o rigor, quando esta se abate sobre sua consciência com a força de
um raio, este indivíduo não vai ficar melhor; pelo contrário, piorará. Ele passará a se opor a Deus, dizendo: “O quê?
Eu vou ser condenado eternamente? É verdade, eu sei que sou inimigo de Deus. Mas isto não é culpa minha; que
posso eu fazer?” Este é o resultado da pregação da lei. Ela leva o homem ao desespero. Feliz é aquele que foi levado
a este ponto: este deu um grande passo rumo à sua salvação. Este aceita o evangelho com grande alegria, enquanto
que outros, que nunca tiveram uma experiência semelhante, ao ouvirem o evangelho, bocejam e dizem: “Este é de
fato um caminho fácil para chegar ao céu!”. Somente um pecador miserável, que se encontra à beira do desespero
reconhece quão boa notícia é o evangelho e o aceita com júbilo. Leia também as passagens de Rm 4.15; 7.7-8; Gl
3.21; 2Co 3.6.
Alguns exemplos da Escritura, que relatam com exatidão o procedimento de certas pessoas antes da conversão
e depois que receberam a fé, ilustram estes textos bíblicos.
No primeiro Pentecoste cristão, estava reunida uma grande multidão que ouviu a mensagem do apóstolo Pedro.
O conteúdo central de sua mensagem foi este: “Vocês assassinaram o Messias, Jesus de Nazaré. Preparem-se para o
juízo de Deus!” Eles haviam acompanhado todo o discurso de Pedro, contudo, no momento em que este lançou a
acusação contra eles, inquietaram-se, por ação do Espírito Santo. O relato diz que “compungiu-se-lhes o coração”.
Eles chegaram à conclusão: “Se nós fizemos isto, então estamos todos perdidos”. Nada nos é relatado de que tenham
dito: “Oh, lamentamos muito o fato de termos ofendido a nosso fiel Deus”. Foi o medo e o terror, e não o amor a
Deus, que os fez clamar: “Que faremos, irmãos?” E o apóstolo também não lhes disse: “Estimado povo, vamos pri-
meiramente investigar se sua contrição é proveniente do amor a Deus ou do medo do castigo e do inferno que vocês
merecem”. Ele lhes disse: “Arrependam-se, e cada um seja batizado em nome de Jesus Cristo, para que sejam perdo-
ados”. E eles foram batizados imediatamente. A mudança em sua mente consistiu nisto: agora não mais desejavam
ser assassinos de Jesus, mas, sim, queriam crer nele. Assim sendo, os apóstolos os receberam e eles foram contados
entre a congregação dos que eram salvos.
O exemplo do carcereiro de Filipos também ilustra este fato. Imaginando que todos os prisioneiros haviam
fugido durante o terremoto, ele foi tomado de desespero e estava por suicidar-se. Então Paulo grito: “Não faça isso!
Todos nós estamos aqui!” Desfigurado e trêmulo, ele caiu aos pés dos apóstolos, implorando: “Senhores, que é que
eu devo fazer para me salvar?” Tão-somente medo e terror levaram-no a proceder assim. E Paulo não lhe diz: “Pri-
meiro você deve estar contrito por amor a Deus”, mas, sim: “Creia no Senhor Jesus, e você será salvo – você e sua
família”.
Saulo passou pela mesma experiência. Quando o evangelho, com seu poder, penetrou seu coração, este mise-
rável homem foi arrancado para fora da miséria e desolação em que se encontrava. E a este pecador, a princípio
aterrorizado e arrasado mas agora já consolado, o Senhor não prescreve outra coisa senão que, ao invés de persegui-
lo, deveria agora passar a confessá-lo. Deveria também receber o batismo como selo do perdão dos seus pecados.
Quando vocês pregam, não sejam econômicos em relação ao Evangelho; levem o conforto evangélico a todos,
mesmo aos pecadores da pior espécie. Se eles estão perturbados por causa do furor de Deus e do inferno, eles estarão
suficientemente preparados para receber a mensagem do evangelho. É verdade, isto entra em choque com nossa razão.
Julgamos estranho que se deva oferecer o conforto do evangelho a tais malandros, imediatamente; em nossa concep-
ção, eles deveriam antes passar por uma ainda maior agonia em suas consciências.
Uma das passagens da Escritura que freqüentemente é interpretada mal é 2 Coríntios 7.10: “Porque a tristeza
segundo Deus produz arrependimento para a salvação que a ninguém traz pesar; mas a tristeza do mundo
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produz morte”. Pensa-se que a “tristeza segundo Deus” é aquela que procede da contrição por amor a Deus. Isto está
errado. O Apóstolo fala da tristeza que não é produzida pelo próprio homem, mas que é resultante da ação de Deus
nele, através da palavra. Outra grave perversão da doutrina cristã é esta: Diz-se ao pecador que ele deve experimentar;
quando ele pergunta o que deve fazer para que isto aconteça, responde-se-lhe que deve sentar, meditar, e procurar
fazer com que o arrependimento brote, emane de seu coração. Não existe ninguém em todo o mundo que possa realizar
contrição em si mesmo. Requer-se tristeza segundo Deus, porque requer-se fé. Deus quer produzir esta tristeza, ate-
morizando-nos. A contrição não é uma boa obra que nós fazemos; é algo que Deus realiza em nós. Deus vem com o
martelo da lei e atinge nossa alma. Quem quer entristecer-se a si mesmo, este tende a aumentar cada vez mais esta
tristeza por causa do pecado. Mas, quem está possuído da verdadeira tristeza, este anseia por se ver livre dela nova-
mente.
As Confissões Luteranas têm, para miseráveis pecadores, o doce conforto, o qual diz que, no momento em que
Deus lhes concedeu a bênção de estarem preocupados por causa de seus pecados, eles já estão preparados para se
aproximarem do trono da graça, onde receberão perdão – o verdadeiro remédio para seus males. Eles devem efetiva-
mente estar contritos; contudo, não com o propósito de, através da contrição, adquirir algum mérito, mas, sim, para
que possam com alegria aceitar o que Jesus lhes oferece.
Quando a lembrança dos meus pecados, quando a realidade do inferno, da morte e da condenação me atemo-
rizam; quando percebo que Deus está irado comigo e que, estando sob sua ira, fatalmente estou condenado por causa
de meus pecados – então estou experimentando a tristeza segundo Deus, que pode me levar à mesma situação em que
se encontrava Lutero antes de ter o conhecimento correto do evangelho. Uma tal tristeza vem de Deus. Quando, por
outro lado, um fornicador, um farrista, um beberrão se entristece porque jogou fora os belos anos de sua juventude,
arruinou sua saúde, envelheceu prematuramente – ele não experimenta outra coisa senão a tristeza deste mundo.
Quando uma pessoa orgulhosa se entristece por seus pecados tão-somente porque estes fizeram com que perdesse
parte de seu prestígio; quando o ladrão lamenta sua conduta porque esta levou-o à prisão – eles estão experimentando
a tristeza do mundo. Entretanto, quando alguém está aflito por seus pecados porque vê diante de si o inferno, onde
será castigado pelo fato de ter insultado o santo Deus, ele está triste segundo Deus, desde que esta tristeza não tenha
sido produzida pela imaginação e esforço próprio do indivíduo. A genuína tristeza segundo Deus é obra exclusiva de
Deus.

12ª TESE
Em oitavo lugar, a palavra de Deus não é aplicada corretamente quando o pregador descreve a
contrição, ao lado da fé, como sendo a causa do perdão dos pecados.

É inquestionável que a contrição é necessária para que alguém receba perdão para seus pecados. Na primeira
oportunidade em que o Senhor exerceu seu ministério publicamente, ele anunciou: “Arrependei-vos e crede no evan-
gelho”. Em primeiro lugar ele cita o arrependimento. Sempre que o termo ‘arrependimento’ é apresentado em oposição
à fé, ele não designa outra coisa senão contrição. Quando Cristo pela última vez se reuniu com seus apóstolos, ele lhes
disse: “Assim está escrito que o Cristo havia de padecer, e ressuscitar dentre os mortos no terceiro dia, e que em seu
nome se pregasse arrependimento para remissão de pecados” (Lucas 24.46-47). Por que se requer o arrependimento?
Não basta a fé? Nosso Senhor expõe o motivo, dizendo: “Os sãos não precisam de médico, e sim os doentes ... não
vim chamar justos, e sim pecadores” (Mateus 9.12-13). Com estas palavras o Senhor deixa claro que a contrição é
absolutamente necessária, pois, sem ela, ninguém está em condições de ser levado à fé. Ele está satisfeito e despreza
o convite para as bodas celestiais. Já Salomão afirma em um de seus provérbios: “A alma farta pisa o favo de mel”
(Provérbios 27.7). Onde não se tem fome e sede espiritual, ali também não se aceita o Senhor Jesus. Enquanto o
indivíduo não reconhece em si um pecador miserável, perdido e condenado, ele fará pouco caso do Salvador dos
pecadores.
Entretanto, a contrição não é a causa do perdão dos pecados. A contrição é necessária, não por causa do perdão
dos pecados, mas, por causa da fé, que apreende o perdão dos pecados. Por que afirmamos que é confusão entre lei e
evangelho ensinar que a contrição é a causa do perdão dos pecados? Pelas seguintes razões:
1. Contrição é um efeito unicamente da lei. Dizer que a contrição é a causa do perdão dos pecados, implica
em transformar a lei em mensagem da graça, e o evangelho em lei – inversão esta que derruba por completo
a religião cristã.
2. Contrição nunca é uma boa obra. a contrição que precede a fé não é outra coisa senão um sofrimento do
homem. Consiste numa angústia, uma dor, um tormento, um sentimento de que se está sendo esmagado,
resultantes da ação de Deus no homem através do martelo da lei. Não é uma angústia que o homem pro-
duziu em si mesmo, pois ele bem que gostaria de se ver livre dela; contudo, ele está impossibilitado para
tanto porque Deus lhe sobreveio com a lei, e ele não vê como escapar do juízo. Se uma pessoa senta para
meditar e pretende desta maneira produzir contrição em si mesma, ela nunca atingirá seu alvo. Ela não
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pode efetuar contrição por si mesma. O verdadeiro arrependimento é produzido apenas por Deus, quando
a lei é pregada em todo seu rigor e o homem não se opõe deliberadamente à sua influência.
Devido à falta de experiência pessoal, muitos pregadores temem que eventualmente poderiam levar alguém ao
desespero. Pregam que a contrição deve precedera a fé, como de fato deve acontecer, mas, receiam que um ou outro
membro da congregação desespere, a menos que acrescentem uma sentença salvadora. Por isso modificam suas pala-
vras, dizendo que o tormento que se deve sentir na contrição não precisa necessariamente ser tão agudo assim, e que
o indivíduo será aceito por Deus desde que manifeste disposição em estar contrito. Quem apresenta este falso conforto,
este, na verdade, faz da contrição a causa do perdão dos pecados. O que o pregador deveria dizer é isto: “Preste
atenção! No momento em que você tem fome e sede da graça de Deus, você está devidamente contrito. Deus não
exige a contrição para que, através dela, você expie seus pecados, mas, apenas para que você seja despertado de sua
segurança e diga: ‘Que devo fazer para que seja salvo?’”
Por isso Lutero diz que, depois que ele compreendeu o verdadeiro sentido da palavra penitência, nenhuma
palavra lhe era mais doce do que esta. Isto porque ele percebeu que seu sentido não era de que ele próprio deveria
expiar seus pecados, mas, simplesmente, que ele deveria estar alarmado por causa deles e ansiar pela misericórdia de
Deus. O termo penitência representava para ele o próprio evangelho, porque reconheceu que, no momento em que
Deus o tinha levado ao reconhecimento de sua situação de pecador miserável e perdido, ele estava em condições de
ser objeto da atenção de Jesus e podia aproximar-se dele na certeza de que seria aceito assim como estava, com todos
os seus pecados, sua angústia e miséria.
Ninguém deve inquirir se sua contrição é suficiente para ser aceito por Jesus. O próprio fato de ele se preocupar
em relação à sua dignidade, demonstra que ele pode vir a Jesus. Se alguém deseja vir a Jesus, ele está verdadeiramente
contrito mesmo que não o sinta. A situação é idêntica àquela em que um indivíduo começa a ter fé.
O pastor incorre no mesmo erro quando se dá por satisfeito ao mais leve indício de contrição em seus congre-
gados. É possível que a consciência de indivíduos perversos, que há muito tempo vivem em pecado e conduta vergo-
nhosa, subitamente desperte, acusando-os de perjúrio, por exemplo. Diante das conseqüências, grande temor apodera-
se deles. Ou então, é possível que suas consciências venham a acusá-los de assassinato. Estas pessoas, entretanto, não
estão preocupadas porque se consideram miseráveis pecadores, mas, porque aquele determinado pecado as atemoriza.
Afora isto, julgam que têm bom coração. Existem muitos patifes desta espécie, e que já ouviram sua sentença de
condenação. É possível que admitam diante do pastor que erraram nisto, naquilo, ou, que em determinado ponto
inevitavelmente escorregaram; contudo, insistem que no fundo têm um bom coração. Caso o pastor se satisfaça com
uma contrição parcial destas, ele estará considerando a contrição como meritória.,
Outros dizem a seus ouvintes que a contrição é necessária e que sua própria razão deve mostrar-lhes que Deus
não pode perdoar os pecados dos quais eles fazem pouco caso. Prescrevem-lhes, então, o tipo de contrição que devem
experimentar, a base de textos como o Salmo 38.6-8. Pastores legalistas inquirirão de seus consulentes se podem dizer
o mesmo a respeito de si: se sentiram-se encurvados e andaram de luto o dia todo, se em algum instante seus lombos
arderam, se podem afirmar que não há parte sã em seu corpo, etc. A menos que o indivíduo preencha os requisitos
daquilo que eles consideram uma contrição genuína, eles lhe asseguram que não deve pensar que esteja realmente
contrito.
Este método está errado. É verdade: o texto citado descreve o arrependimento de Davi. Entretanto, onde está
escrito que todos devem ter o mesmo grau de contrição? Em parte alguma! Ao contrário, constatamos que, no primeiro
Pentecoste cristão, quando o coração dos ouvintes de Pedro se compungiu eles clamaram: “que faremos?”, imediata-
mente foi-lhes anunciada a mensagem da misericórdia de Deus. O próprio exemplo de Davi ilustra este fato. Durante
todo um ano ele vivera em impenitência. Veio então Natã e mostrou-lhe seu pecado. Com o coração contrito, Davi
confessou: “Pequei contra o Senhor”. Nada mais do que isto. Imediatamente o profeta Natã percebeu que Davi estava
aniquilado e arrasado. Por isso assegurou-lhe: “Também o Senhor te perdoou o teu pecado” (2 Samuel 12.13). O
mesmo aprendemos na história do carcereiro de Filipos. Apenas alguns momentos antes ele estivera terrivelmente
perturbado a ponto de pretender tirar sua própria vida. Quando caiu aos pés dos apóstolos, clamando: “Senhores, que
é que eu devo fazer para me salvar?”, estes não lhe disseram que primeiramente deveria produzir uma séria, profunda,
contrição em si; eles não lhe apresentaram o exemplo de arrependimento de Davi, mas disseram-lhe imediatamente;
“Crê no Senhor Jesus, e serás salvo, tu e tua casa”. Os apóstolos viram claramente que este homem estava arrasado, e
clamava por misericórdia; e isto foi-lhes o suficiente. Quando o indivíduo passa a ter fome e sede de misericórdia,
então a contrição alcançou seu objetivo nele.
Se, do ponto de vista humano, verificamos que um indivíduo não mais confia na justiça própria e deseja ser
salvo somente pela graça, então, por vontade de Deus, devemos tranqüilamente pregar-lhe o evangelho. Não será cedo
demais. Nunca é cedo demais para alguém vir a Jesus. O problema é que, muitas vezes, as pessoas realmente não vêm
a Jesus; dizem-se pecadores miseráveis, contudo não o são; querem trazer algum mérito pessoal diante de Deus. Não
passa de hipocrisia quando afirmam que estão indo a Jesus, porque, na realidade, não vêm como pobres mendigos,
com todos os seus pecados. O indivíduo a quem Deus deu a graça de ter sido quebrado e arrasado, que está sem
consolo algum, que ansiosamente busca conforto, este está verdadeiramente contrito. A este não se deve dizer que

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está vindo a Jesus antes do tempo; deve-se-lhe pregar o evangelho. Ele deve saber não somente que pode, mas, que
decididamente deve vir a Jesus a deixar de imaginar que está vindo cedo demais.
Um dos principais motivos que faz com que, nesta questão, muitos misturem lei e evangelho, é que eles não
distinguem o arrependimento diário dos cristãos daquele que precede a fé. O arrependimento diário é descrito no
Salmo 51. Davi considera-o um sacrifício que ele apresenta a Deus e com o qual Deus se agrada. Ele não está falando
do arrependimento que precede, mas, sim, daquele que segue a fé. A grande maioria dos cristãos sinceros, que têm a
doutrina pura, experimentam muito mais o arrependimento que segue a fé do que aquele que precede a fé. Isto porque,
tendo tido pregadores corretos, foram conduzidos a Cristo através do caminho certo. Enquanto estão em Cristo, sempre
é possível que sua anterior justiça própria torne a se manifestar, apesar de ter sido destruída muitas vezes. Torna-se
necessário, então, que Deus sempre de novo atinja estes pobres cristãos com sua Lei, para que se mantenham humildes.
O exemplo de Davi ilustra este fato. Ele recebeu a fé num abrir e fechar de olhos; mas, quanta miséria não teve ele
que passar posteriormente! Um profeta trouxe-lhe a palavra do Senhor; todavia, até a morte seu coração era constan-
temente afligido por angústias, aflições e miséria. Deus cessara de favorecer seus empreendimentos; ele deparou-se
com desgraça após desgraça, até o dia em que Deus lhe deu alívio na morte. Contudo, durante todo este tempo, con-
trição e fé coexistiram no coração de Davi. Este é, de fato, um sacrifício do qual Deus se agrada. Uma contrição deste
tipo não é um mero efeito da lei, causado pela Lei apenas, mas é, ao mesmo tempo, um efeito do evangelho. O evan-
gelho introduz o amor de Deus no coração do homem; e, quando a contrição procede do amor de Deus, ela é, na
verdade, uma tristeza suave, que é aceita por Deus. Deus se agrada com ela; porque não lhe podemos conferir maior
honra do que quando nos lançamos ao pó diante dele, confessando: “Tu, ó Senhor, és justo; eu sou um pobre pecador.
Tem misericórdia de mim por amor de Jesus Cristo”.

13ª TESE
Em nono lugar, a palavra de Deus não é aplicada corretamente quando, ao invés de procurar criar
a fé no coração de alguém apresentando as promessas do evangelho, se faz um apelo à fé que dá a
entender que o homem a si mesmo pode dar a fé, ou, ao menos cooperar para que tal aconteça.

Esta tese não condena o apelo que o pastor faz para que seus ouvintes creiam no evangelho, mesmo que este
seja feito com insistência. Este apelo era parte integrante da pregação de todos os profetas, de todos os apóstolos, e do
próprio Senhor Jesus Cristo. quando fazemos o apelo à fé, não estamos apresentando uma exigência da lei, mas, sim,
fazemos o mais doce convite, nestes termos: “Vinde, porque tudo já está preparado” (Lucas 14.17). Se eu convido um
indivíduo quase morto de fome a que se assente a uma bem suprida mesa e coma do que realmente gosta, certamente
ele não vai me responder que não está disposto a cumprir uma ordem minha. Da mesma forma, o apelo à fé não deve
ser visto como uma exigência da lei, mas, sim, como um convite do evangelho.
Esta tese volta-se contra o erro de que o homem a si mesmo pode dar a fé. Um apelo neste sentido seria uma
exigência da lei e transformaria a fé em obra humana. Teríamos então uma evidente confusão entre lei e evangelho.
Um pregador deve ser capaz de apresentar um sermão voltado à fé sem que, para tanto, empregue a palavra fé. O
importante não é que seus ouvintes ouçam a palavra fé; o que realmente importa é que ele apresente sua mensagem
de um modo tal que em cada pobre pecador nasça o desejo de depositar a carga dos seus pecados diante do Senhor
Jesus, dizendo: “Tu és meu, e eu sou teu”.
É neste aspecto que Lutero revela toda sua grandeza. Raramente ele apelava para que seus ouvintes cressem;
mas, pregava sobre a obra de Cristo, a salvação por graça e as riquezas da misericórdia de Deus em Cristo Jesus de
um modo tal que os ouvintes percebiam que tudo o que tinham a fazer era aceitar o que lhes estava sendo oferecido e
encontrar repouso no regaço da graça divina.
Suponha que você esteja entre uma tribo de índios, descrevendo-lhes o Senhor Jesus, dizendo que ele é o Filho
de Deus que desceu dos céus para salvar os homens dos seus pecados, tomando sobre si a ira de Deus, que venceu a
morte, o diabo, o inferno em seu lugar e abriu o céu para todos os homens, e que agora cada um pode ser salvo desde
que aceite aquilo que nosso Senhor Jesus Cristo nos trouxe. Suponha, então, que neste preciso instante você fosse
atingido por uma bala mortal, disparada por um índio hostil que armara uma emboscada. É bem possível que, mor-
rendo, você deixa para trás uma pequena congregação de índios, mesmo que não tenha uma vez sequer pronunciado
a palavra fé diante deles. Isto porque cada um daqueles seus ouvintes, que não se opôs à graça de modo maldoso e
deliberado, deveria ter concluído que ele também foi redimido.
Por outro lado, você pode gastar inúmeras horas dizendo para as pessoas que devem crer para que sejam salvas,
e, como resultado, elas terão a impressão de que se está exigindo algo que elas precisam fazer. Ficarão preocupadas
se de fato são capazes de fazer isto, e depois que tentaram, se era exatamente isto que se estava requerendo da parte
delas. Assim sendo, é possível que você tenha pregado longamente sobre a fé sem, contudo, ter dado um sermão com
vistas à fé. Aquele que reconhece que algo lhe está sendo oferecido, e de fato o aceita, este tem a fé. Ser salvo pela fé
significa concordar com o plano da salvação de Deus, simplesmente aceitando-o.
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Com isto, em absoluto quero dizer que você não possa pregar sobre o tema “fé”. Em nossa época, de modo
especial, falta uma correta compreensão deste assunto. Os melhores pregadores pensam que fizeram uma grande coisa
quando conseguiram inculcar em seus ouvintes o axioma: “Somente a fé salva”. Entretanto, com seu sermão não
fizeram outra coisa senão levar seus ouvintes a clamar: “Oh, quem me dera ter fé! Fé deve ser algo muito difícil de
conseguir, pois eu ainda não a obtive”. Estes infelizes ouvintes sairão da igreja e voltarão para suas casas com o
coração entristecido. A palavra fé ainda ressoa em seus ouvidos, todavia não lhes traz conforto algum.
Dizer que se requer fé para a salvação não implica em dizer que o homem pode criar esta fé dentro de si mesmo. A
Escritura requer tudo do homem; cada mandamento é uma exigência que diz: “Faze isto, e viverás”. A Escritura requer
que “limpemos o coração” (Tiago 4.8). Somos admoestados: “Desperta, ó tu que dormes, levanta-te dentre os mortos,
e Cristo te iluminará” (Efésios 5.14). O simples fato de se fazer tais exigências não prova que o homem está em
condições de cumpri-las. Quando um credor exige pagamento, isto não prova que o devedor esteja em condições de
efetuar o pagamento. Na vida diária pode suceder que um credor, mesmo sabendo que seu devedor está falido, exija
pagamento da dívida pelo simples fato de notar que seu devedor é displicente e, por cima de tudo, vaidoso e presun-
çoso. O objetivo do credor, ao fazer a exigência, é levar o devedor ao abandono desta conduta orgulhosa, bem como
humilhá-lo. Deus trata conosco de modo idêntico a este. Anunciando que lhe devo obediência em todos os seus man-
damentos, Deus me leva a reconhecer que, mesmo que faça todo o esforço possível, não posso cumprir com minhas
obrigações. E então, quando ele me humilhou, ele vem a mim com o seu evangelho.

14ª TESE
Em décimo lugar, a palavra de Deus não é aplicada corretamente quando se requer fé como con-
dição necessária para a justificação e salvação, como se o homem fosse justificado não somente através
da fé mas também devido à fé, por causa da fé, e à vista da fé.

Quando a palavra de Deus diz que o homem é justificado e salvo somente através da fé, ela não quer dizer
outra coisa senão isto: o homem é salvo, não através de seus próprios feitos, mas somente através da vida e morte
de seu Senhor e Salvador Jesus Cristo, o Redentor de toda a humanidade. Teólogos recentes, entretanto, afirmam que,
na salvação do homem, entram em consideração dois tipos de atividade. Em primeiro lugar, é necessário que Deus
faça algo. A ele cabe a parte mais difícil, a saber, a redenção do homem. Todavia, em segundo lugar, exige-se igual-
mente algo da parte do homem. Pois não é assim sem mais nem menos que o homem, agora que ele foi redimido,
entra no céu. O homem também deve fazer sua parte, algo realmente expressivo – deve crer. Esta doutrina derruba o
evangelho por completo.
Crer no evangelho seria, de fato, algo imensamente remoto e difícil para nós homens, caso Deus não operasse
a fé em nós. Entretanto, suponhamos que não se tratasse de algo por demais remoto e difícil; mesmo que Deus, com
vistas à salvação, tivesse colocado diante de nós uma condição que facilmente poderíamos cumprir, permaneceria de
pé a grande verdade de que neste caso a salvação não seria um dom gratuito; neste caso Deus não teria dado seu Filho
por nós, mas apenas oferecido sob certa condição. Não foi isto que Deus fez. O apóstolo Paulo diz: “Sendo justificados
gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus” (Romanos 3.24). Somos justificados gra-
tuitamente, sem que se exija nada, absolutamente nada de nossa parte. Por isso, nós pobre pecadores louvamos a Deus
pelo refúgio que ele nos preparou, onde podemos nos abrigar, mesmo quando nos aproximamos dele como pessoas
completamente perdidas, como mendigos que não têm a menor possibilidade de apresentar a Deus algo que eles pró-
prios conseguiram. Tudo que nós podemos apresentar a Deus são nossos pecados, e nada mais. E é exatamente por
causa disto que Jesus vê em nós o objeto certo de sua atenção. Nós o honramos como nosso fiel Salvador fazendo do
seu evangelho o nosso refúgio; entretanto, nós o negamos caso nos apresentemos diante dele oferecendo algo por
aquilo que ele nos dá. Diante da afirmação de Pedro: “E não há salvação em nenhum outro; porque abaixo do céu não
existe nenhum outro nome, dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos” (At 4.12), deve ficar claro
que é uma terrível perversão do evangelho exigir a fé como condição para que o homem seja justificado e salvo.

15ª TESE
Em décimo primeiro lugar, a palavra de Deus não é aplicada corretamente quando o evangelho é
transformado em pregação de arrependimento.

Para entender corretamente esta tese, é necessário que você lembre o seguinte: a palavra evangelho tem um
uso semelhante ao termo arrependimento. Nas Escrituras Sagradas a palavra arrependimento tem um sentido amplo
bem como um sentido restrito. Quando usada no sentido amplo, ela se refere à conversão em seu todo, a saber: reco-
nhecimento do pecado, contrição e fé. É este o sentido da palavra em Atos 2.38, onde temos: “Arrependei-vos, e cada
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um de vós seja batizado...”. O apóstolo não diz: “Arrependei-vos e crede”. Logo, ele refere-se à conversão em seu
todo, incluindo a fé. Ele igualmente não poderia ter dito: “Mostrai-vos contritos e cada um de vós seja batizado”. Ao
falar em arrependimento, ele certamente estava pensando em contrição e fé. O que ele na verdade estava querendo
dizer era o seguinte: “Se vocês reconhecem seus pecados e crêem no evangelho que eu anunciei para vocês, então
submetam-se ao batismo para perdão dos pecados”.
A palavra arrependimento tem também um sentido restrito, e significa, então, reconhecimento do pecado,
coração quebrantado e contrição. Em Marcos 1.15 está escrito: “Arrependei-vos e crede no evangelho”. Nesta passa-
gem, João Batista, certamente não inclui a fé sob o conceito arrependimento, pois então teríamos uma tautologia, isto
é, uma repetição inútil, visto que ele expressamente se refere à fé ao dizer, “crede no evangelho”. Na passagem de
Atos 20.21, Paulo relata que ele estava “testificando tanto a judeus como a gregos o arrependimento para com Deus e
a fé em nosso Senhor Jesus”. Já que neste texto a fé é citada separadamente, torna-se evidente que a palavra arre-
pendimento não pode abarcar conhecimento do pecado, contrição e fé. De modo idêntico, o Senhor refere-se aos
judeus dizendo que, apesar da pregação de João Batista, eles não se arrependeram para que pudessem crer nele (Mateus
21.32). Por arrependimento ele entende os efeitos da lei. O que ele quer dizer é que, devido ao fato de eles não se
terem preocupado com seus pecados, foi-lhes impossível virem à fé. Não pode haver fé num coração quer primeira-
mente não esteve atemorizado.
Com a palavra evangelho sucede o mesmo; às vezes ela tem um sentido amplo, às vezes, um sentido restrito.
O sentido restrito é seu sentido próprio; em seu sentido amplo esta palavra é usada apenas como uma sinédoque, e
compreende, então, toda a pregação de Jesus, inclusive sua severa pregação da lei como, por exemplo, a do Sermão
do Monto e as censuras que dirigiu aos homens perversos. Além disto, a palavra evangelho também é usada em
contraste ao Antigo Testamento, o qual muitas vezes significa apenas “doutrina da lei”.
Romanos 2.16: Nesta passagem o Apóstolo não pode estar empregando “evangelho” em seu sentido restrito,
pois este não tem nada a ver com o julgamento. Pelo contrário, a Escritura declara: “Quem crê não é julgado” – “não
entre em juízo” (João 3.18; 5.24). Neste texto, Paulo entende por evangelho a doutrina que ele anunciou e que com-
preende tanto a lei quanto o evangelho.
Em Romanos 1.16, indiscutivelmente usa-se a palavra evangelho no sentido restrito. Em primeiro lugar, fala-
se dele como um evangelho de Jesus Cristo; em seguida, diz-se que ele é um evangelho que salva todo aquele que
crê. Quem requer isto de nós não é a lei. A lei devemos cumprir. Logo, nesta passagem o Apóstolo está falando da
dádiva de Deus ao mundo e da fé. Aqui usa-se evangelho no sentido restrito, excluindo, por conseguinte, a lei.
Efésios 6.15 fala do “evangelho da paz”. A lei não estabelece paz, antes, discórdia. Aqui o Apóstolo emprega
evangelho em seu sentido restrito, isto é, ele fala da boa notícia de que Jesus Cristo veio ao mundo para salvar os
pecadores.
Nossas Confissões Luteranas, a exemplo da Bíblia, usam o termo evangelho ora em sentido amplo, ora em
sentido restrito. Este fato explica a seguinte afirmação contida nas Confissões: “O evangelho prega o arrependimento”.
É necessário que você tenha isto em mente para que compreenda bem nossa tese: mistura-se lei e evangelho quando
o evangelho de Cristo, isto é, o evangelho no sentido restrito, é transformado em pregação de arrependimento.
Não é apenas altamente perigoso, mas de fato prejudicial para as almas das pessoas quando a pregação do
pastor faz com que os ouvintes concluam que ele considera o evangelho, em seu sentido restrito e próprio, uma men-
sagem da lei e da fúria de Deus sobre os pecadores, chamando-os ao arrependimento. Descuido no emprego de pala-
vras, é um grande e sério defeito, mesmo por parte de pregadores que têm a fé verdadeira.
Chamo atenção para duas objeções que são levantadas conta esta tese.
Em primeiro lugar, objeta-se que a própria Escritura considera o evangelho uma lei e que, consequentemente,
pode-se dizer que o evangelho é uma pregação para arrependimento, já que a lei tem por finalidade levar os homens
ao arrependimento. Cita-se a passagem de Romanos 3.27, onde lemos: “Onde, pois, a jactância? Foi todo excluída.
Por que lei? Das obras? Não pelo contrário, pela lei da fé”. Os que se o põem a esta tese dizem que, segundo a
terminologia do próprio Apóstolo, o evangelho também é uma lei. Esta é, entretanto, uma conclusão falsa que se tira
destas palavras do Apóstolo. Nesta passagem o Apóstolo emprega uma figura denominada antanáclase: para refutar
seu adversário, ele cita a mesma palavra que este empregou, apenas que com um outro significado.
Outra objeção que se levanta está baseada em Romanos 10.16: “...nem todos obedeceram ao evangelho”.
Partindo da premissa de que é a lei quem requer obediência, argumenta-se que o evangelho não é uma mera mensagem
de alegria, mas uma lei aperfeiçoada. Entretanto, perverte-se totalmente este texto quando com ele se quer provar que
o evangelho no sentido restrito, é uma pregação do arrependimento. Devemos obedecer não somente à vontade de
Deus expressa na lei, mas também à sua vontade graciosa. Esta, contudo, não é uma vontade da lei. Segundo sua
vontade graciosa, Deus nos oferece e dá todas as coisas. Se aceitamos o que ele nos dá, diz-se que somos obedientes
a ele. É um ato de bondade da parte de Deus chamar isto de obediência. Efetivamente, obedecendo-lhe nestes moldes,
estamos também cumprindo o Primeiro Mandamento; porque a fé é algo que a lei requer, não o evangelho. O evan-
gelho é antes uma “boa notícia”; e aquilo que me incumbe da realização de determinada tarefa, certamente não pode
ser uma boa notícia. Notícia realmente boa só é aquela que me diz que devo abandonar todo o temor porque Deus é
gracioso e vem ao meu encontro.
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Consideremos agora as passagens bíblicas que falam do evangelho no sentido restrito, e descubramos quais os
elementos que nos levam a tal conclusão.
1. Sempre que o evangelho é contrastado com a lei, é absolutamente certo que se está falando do evangelho
no sentido restrito, e não no sentido amplo.
Efésios 2.14-17: Em primeiro lugar vem a lei, que não estabelece a paz; segue-se a pregação do evangelho,
que torna a paz uma realidade.
2. Sempre que o evangelho é apresentado como a doutrina peculiar de Cristo, ou, então, a doutrina que anun-
cia a Cristo, ele exclui por completo qualquer elemento da lei.
João 1.17: Jesus Cristo não veio trazer a lei. Entretanto, para que se possa aceitar o evangelho, é necessário
que se tenha a adequada compreensão da lei. Por isso Jesus purificou a lei das falsas interpretações dos
fariseus.
Lucas 4.18-19: O Senhor Jesus apresenta a missão que ele tem no mundo, e o que ele deve pregar na
qualidade de Cristo, o Salvador do mundo. Ele conclui a afirmação acima, dizendo (v.21): “Hoje se cum-
priu a Escritura que acabais de ouvir”. Ele não pronunciou uma palavra sequer da lei, mas, refere-se apenas
à doutrina que é oferecida aos pobres, aos doentes, aos de coração ferido, àqueles que estão sob a escravi-
dão do pecado e do diabo.
3. Sempre que o evangelho se destina a miseráveis pecadores, fala-se do evangelho no sentido restrito (Ma-
teus 11.5; Lucas 4.18).
4. Sempre que se menciona o perdão dos pecados, justiça e salvação por graça como resultantes do evange-
lho, pensa-se no evangelho em sentido restrito (Romanos 1.16; Efésios 1.13).
5. Toda vez que a fé estiver relacionada ao evangelho, emprega-se este último no sentido restrito (Marcos
1.15; 16.15-16)

16ª TESE
Em décimo segundo lugar, a palavra de Deus não é aplicada corretamente quando se prega que o
abandono de certos vícios e a prática de certas obras piedosas e virtudes são prova suficiente de que se
está verdadeiramente convertido.

Você perceberá a grande importância desta décima sexta tese no momento em que se der conta de que a con-
fusão entre lei e evangelho, abordada por ela, é a pior que pode existir. Ai do pregador que, através do modo como
prega, faz com que seus ouvintes concluam: “No momento em que deixo de furtar e roubar sou um bom cristão, e
pouco a pouco me verei livre de todas as minhas fraquezas”. Estes transformam o evangelho em lei, porque fazem da
conversão uma obra humana, enquanto que a conversão genuína, que cria uma fé viva na pessoa, é fruto tão-somente
da ação do evangelho.
Esta tão grosseira confusão entre lei e evangelho é o mais grave erro dos racionalistas. A essência de sua
religião consiste em ensinar aos homens que eles se tornam novas criaturas quando abandonam seus vícios e vivem
uma vida cheia de virtudes. Contrário a isto, a palavra de Deus nos ensina que, primeiramente, devemos tornar-nos
novas criaturas para somente então abandonar estes e aqueles pecados, passando à prática de boas obras. Apreciam
por demais citar o familiar ditado: “O verdadeiro arrependimento consiste em mudança de conduta”. Este ditado pode
ser usado num bom sentido, e ele o foi por nossos pais na fé. Com este ditado eles queriam dizer: “Vocês que se
vangloriam dizendo que têm a fé verdadeira, mas levam uma vida devassa, deixem de tagarelar a respeito da fé; o
verdadeiro arrependimento consiste em mudança de conduta”. Os racionalistas, entretanto, empregam-no neste sen-
tido: “Não há por que se preocupar! O que Deus requer de um verdadeiro cristão é que ele deixe de fazer o que estava
fazendo, que mude de conduta. Este é o genuíno arrependimento”. Este é o abominável ensino dos moralistas. A
religião cristã nos apresenta o sentido correto numa palavra apenas: metanoeite, que significa: “mudem de mentali-
dade”. Com esta palavra o Senhor confronta o pecador e lhe diz que, antes de qualquer outra coisa, deve ocorrer uma
mudança em seu íntimo. O que ele requer é uma nova mentalidade, um novo coração, um novo espírito, e não o
abandono dos vícios e a prática de boas obras. Ao fazer disto o requisito básico para que se possa ser cristão, nosso
Senhor ataca o mal pela sua raiz.
João 3.3: O Senhor deixa claro diante de Nicodemos: “Tudo o que você se propuser a fazer enquanto estiver
em sua natureza carnal, será pecado. Você precisa primeiramente tornar-se espiritual e então os genuínos frutos espi-
rituais aparecerão em sua vida”.
Mateus 12.33: A menos que uma pessoa esteja completamente transformada, a menos que ela se tenha tornado
uma nova criatura, a menos que tenha sido regenerada, tenha uma nova mentalidade todos os seus atos serão frutos
maus; porque por natureza todo homem é árvore má.
Mateus 15.13: Somente aquelas obras que o próprio Deus operou podem ser consideradas boas. Qualquer obra
que o indivíduo levou a efeito pelo poder de sua razão e desejo natural, é uma planta que terá de ser arrancada. Deus
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não tomará conhecimento dela; antes, ordenará que seja removida de sua presença, e a considerará pecado e abomi-
nação porque partiu de um coração corrupto, um coração que não se preocupa com Deus.
1 Coríntios 13.3: O que realmente importa não são as obras em si, mas, sim, o amor do qual emanam. Admi-
tamos que eu fosse tão pobre a ponto de me ser impossível realizar uma obra sequer. Apesar disto, posso ser conside-
rado rico em boas obras diante de Deus desde que, enquanto estou em miséria por vontade de Deus, o amor acenda
em mim o desejo de fazer o bem a todos os homens.
Até mesmo pastores que têm a fé verdadeira podem, inconscientemente, incorrer no terrível erro de misturar
lei e evangelho, não tanto em seus sermões quanto em seu aconselhamento a indivíduos e no exercício da disciplina
eclesiástica. Muitos pastores e congregações cometem engano na aplicação da disciplina eclesiástica. Pode suceder
que estejam tratando com um beberrão que prontamente se declara entristecido por seus pecados, como estas pessoas
geralmente costumam fazer. O pastor inexperiente facilmente é enganado por uma tal declaração. Pode acontecer que
o beberrão seja suspenso da congregação por um período de três meses. Em breve um dos irmãos aparece com a boa
notícia de que o beberrão se manteve sóbrio durante todo este tempo, e então o pastor chega a conclusão de que agora
ele está convertido, quando, na realidade, ele ainda continua sento tão ímpio quanto sempre fora. Tome cuidado para
não suceder que seja assim enganado! Caso semelhante pode acontecer quando um blasfemador, tendo sido admoes-
tado pela congregação, abandona este seu modo de proceder por um certo tempo. Ou, considere o caso de um indivíduo
que é negligente na freqüência aos cultos e que, por causa disto, certamente não é cristão. Após trazido diante da
congregação, é possível que ele se faça presente aos cultos por alguns domingos consecutivos. Contudo, este ato
puramente externo faz dele um cristão? De maneira nenhuma; qualquer ímpio pode fazer o que ele está fazendo. As
pessoas envolvidas nos casos específicos acima mencionados, devem ser levadas a reconhecer que nenhum cristão
age da maneira como estão agindo; se alguém o faz, é praticamente impossível que se encontre no estado de graça.
Entretanto, requer trabalho da parte do pastor até que estas pessoas renasçam pela palavra de Deus. Se o pastor não
está disposto a assumir esta tarefa, ele se faz negligente para com as almas destas pessoas. – Ou então, considere o
caso de comungantes negligentes que, após terem sido repreendidos pelo pastor, tornam a participar do sacramento.
Satisfazendo-se com isto, o pastor incorre em confusão entre lei e evangelho. Tomemos o caso da avareza. Uma
congregação pode ser tão mesquinha a ponto de se recusar a levantar uma coleta; ou então, não paga o salário do
pastor. Num caso destes, o pastor não deve decidir-se pela pregação de um sermão penetrante para, deste modo, abrir
seus bolsos e carteiras. Abrir carteiras através da lei não é nenhuma façanha. O que ele deve fazer, isto sim, é pregar
visando acordá-los de sua sonolência e morte espirituais. Quem não procede desta maneira, erra contra esta nossa
décima sexta tese.
Lutero insiste que, em se tratando de uma pessoa regenerada, tudo o que ela faz é obra de Deus. Mesmo quando
está saboreando um bom prado, come ou dorme, está fazendo uma boa obra, e não apenas quando se envolvem num
grande empreendimento. Um servo da lei pode trabalhar e labutar até o esgotamento, e apesar de tudo isto seu esforço
não passará de martírio que o conduzirá ao inferno. Um cristão tem a mentalidade correta em tudo que faz; por isso,
todos os seus atos agradam a Deus. De uma boa fonte só pode proceder água boa, água doce e cristalina.

17ª TESE
Em décimo terceiro lugar, a palavra de Deus não é aplicada corretamente quando se faz uma
descrição da fé, no que diz respeito a sua firmeza, conscientização e operosidade, que não se adapta a
todos os cristãos em todas as épocas.

Pastores jovens e inexperientes geralmente cometem este engano. O que eles querem é impressionar seus con-
gregados e arrancá-los para fora de sua acomodação natural. Julgam que, para evitar que hipócritas se considerem
cristãos, nunca se pode exigir demais daqueles que são cristãos. Este, entretanto, é um ponto em que o pastor deve
tomar cuidado para que não vá além da palavra de Deus; caso contrário, por causa de seu zelo, ele causará terrível
dano às almas de seus ouvintes. Os cristãos, em muitos aspectos, são totalmente diferentes da maneira como são
descritos nos sermões, mesmo tratando-se de descrições bona fide. A intenção do pastor é despertar as pessoas de sua
sonolência e alertá-las contra auto-ilusão. Este, entretanto, não pode ser o objetivo último do pastor. Seu objetivo
último deve ser este: fazer com que seus ouvintes tenham a certeza de que seus pecados estão perdoados diante de
Deus, a certeza da esperança da vida eterna futura, e a certeza de que podem enfrentar a morte com tranqüilidade.
Todo aquele que não faz disto seu objetivo último, não é pastor evangélico. Eis porque deve o pastor tomar cuidado
para, por amor de Deus, não dizer: “Todo aquele que faz isto e aquilo não é cristão”, a menos que esteja absolutamente
seguro de sua afirmação. Freqüentemente um cristão age de um modo que não condiz com os princípios cristãos.
Romanos 7.18: O Apóstolo apresenta o cristão como um ser dividido. O verdadeiro cristão sempre deseja fazer
o bem, contudo, freqüentemente, ele não atinge seu alvo. Por este motivo, o pregador estará traçando um quadro que
não é bíblico caso afirme que no fundo o cristão não deseja fazer o bem, já que ele não o pratica em sua totalidade. O
que realmente importa no cristão é que ele procure fazer o bem. Muitas vezes ele não irá além da boa intenção de
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praticá-lo. Antes que se dê conta, ele desviou-se do alvo proposto, o pecado tomou forma e ele está envergonhado de
si mesmo. Mas isto de maneira nenhuma faz com que tenha decaído da graça.
Romanos 7.14: O cristão também experimenta a escravidão. A única diferença, entretanto, é que ele não obe-
dece de bom grado, assim como um servo cristão obedece a seu Senhor; ele obedece com a maior relutância possível.
Por causa disto o Apóstolo exclama no versículo 24: “Desventurado homem que sou! Quem me livrará do corpo desta
morte?” Quando se mostra a um cristão verdadeiro o miserável pecador que ele é, ele se apegará a Cristo com muito
mais firmeza e não dará ouvidos ao cochicho do diabo que diz que ele decaiu da graça e está afastado de Deus.
Filipenses 3.12: Nesta vida, constantemente avançamos em direção ao alvo, sem, contudo, alcançá-lo. É pos-
sível que um cristão tenha a impressão de que em sua vida houve momentos em que era mais santo e estava melhor
aparelhado para vencer o pecado. A situação pode de fato ser esta, e seu estado atual seria, então, fruto de um retro-
cesso espiritual. Entretanto, esta sua situação presente também pode perfeitamente ser explicada da seguinte maneira:
é que agora ele vê mais nitidamente a frágil criatura que ele é.
Gálatas 5.17: Um pregador não tem o direito de afirmar que alguém não é cristão por não estar fazendo tudo o
que deveria, desde que este indivíduo sustente que não é sua intenção praticar o erro. Se ele peca por fraqueza ou por
precipitação, isto não implica necessariamente que não seja mais cristão.
Tiago 3.2: Um cristão peca não apenas por pensamentos, desejos, gestos e palavras, mas também em seus atos.
Isto demonstra a todo o mundo que ele ainda é homem fraco, homem miserável.
Hebreus 12.1: O cristão constantemente está se desembaraçando do pecado, que o ataca de contínuo. Não
consegue bani-lo do coração, e o pecado até mesmo torna-o indolente para tanto. Se não precisasse arrastar consigo
esta sua mente carnal, sua conduta seria totalmente outra e ele viveria feliz, tendo Deus por seu herói.
Nosso Salvador ensinou todos os cristãos a pedirem diariamente, no Pai Nosso: “Perdoa-nos as nossas dívidas”.
Cada dia traz consigo e deposita sobre nosso coração e consciência uma nova dose de culpa. Descrever o cristão como
ele de fato não é, a saber, perfeito, ou então, enumerar características que não são comuns a todos os cristãos, implica
em apresentar um quadro deturpado do cristão e trará terrível dano consigo. Sim, porque a partir de tais caracteriza-
ções, os cristãos mais sensíveis concluirão que eles não são cristãos. Por isto o pastor deve dar aos cristãos o remédio
para que, pecando, prontamente se levantem de sua queda, já que seu pecado não é intencional. Um pecado intencional,
na verdade, expulsaria o Espírito Santo do coração. Um cristão, todavia, em sua experiência, aprende a pressentir o
perigo; e, tendo pecado, ele imediatamente se sente impelido a buscar seu Pai celeste, confessando seu pecado e
pedindo perdão por amor de Jesus. E, em seu íntimo, ele também tem a certeza de que foi perdoado.
Seguidamente apresenta-se o cristão como sendo tão paciente quanto Jó. O pregador afirma: “Você pode tirar
do cristão tudo o que ele tiver, e ele dirá feliz: ‘O Senhor o deu, e o Senhor o tomou; bendito seja o nome do Senhor’”
(Jó 1.21). E o pregador pode pensar que esta sua afirmação é totalmente bíblica. Jó, de fato, pronunciou estas palavras,
contudo, nem todos os cristãos. Apresentar isto num sermão, implica em faltar com a verdade. Não são poucos os
cristãos que ficam impacientes quando os problemas começam a aparecer! Sua paciência, mesmo com respeito a
coisas triviais, pode terminar num acesso de cólera. E então, quando ele, por assim dizer, volta a si espiritualmente,
ele se envergonha de si mesmo.
É impossível afirmar que é característico do cristão nunca cometer um pecado grosseiro. isto acontece de vez
em quando. Mas, neste caso, ele submete-se incondicionalmente à palavra de Deus, mesmo que isto não suceda de
imediato. É possível que a princípio ele esteja tão fascinado pelo diabo, que julgue ter agido corretamente. Por fim,
todavia, a palavra de Deus convence-o de seu erro e ele, humildemente, suplica por perdão, ao passo que um hipócrita
insiste até o fim que não fez nada de mal.
Muitos pregadores descrevem o cristão como pessoa que não teme a morte. Isto é grave deturpação da verdade.
A grande maioria dos cristãos tem medo diante da morte. Se um cristão não tem medo da morte e afirma que está
pronto para morrer a qualquer hora, então estamos diante de uma pessoa que recebeu um dom todo especial de Deus.
Alguns expressaram-se assim antes de terem ouvido da parte do médico que aquela seria sua última noite, mas, depois
disto, foram tomados por um medo terrível.
Pelo amor de Deus, não faça um quadro deturpado do cristão. Toda vez que você for descrever um cristão, veja
primeiramente se você se enquadra na descrição que está por fazer.
Até mesmo o orgulho pode manifestar-se de modo bem acentuado na vida do cristão. Dentre os vícios, este é
um dos piores, porque é uma transgressão contra o primeiro mandamento. Todos somos orgulhosos por natureza.
Também é verdade que um está mais fortemente inclinado para este pecado do que o outro. Indivíduos de tempera-
mento colérico, detentores de uma assim denominada “vontade de ferro”, bem como de grande energia, por via de
regra têm dentro de si grande parcela de autoconfiança e esperam que os demais se mostrem reverentes para com eles
– fruto do abominável orgulho. Este pecado às vezes se manifesta até mesmo na vida de cristãos verdadeiros. Basta
observar os discípulos do Senhor, discutindo entre si a respeito de quem era o maior entre eles. Se este fato não
estivesse relatado na Bíblia, seria até difícil acreditar que os apóstolos, quais crianças pequenas, tivessem discutido
entre si a respeito disto e que a mãe dos filhos de Zebedeu tivesse pedido que um de seus filhos fosse colocado à
direita e outro à esquerda do Senhor. A partir do relato de Lucas, percebe-se que os discípulos não estavam totalmente

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à vontade durante esta discussão, porque sabiam que estavam procedendo vergonhosamente. Repreendidos, pelo Se-
nhor, eles ficaram tão envergonhados que tiveram vontade de sumir do mapa.
De igual modo, é totalmente falso e incorreto descrever o cristão como alguém que constantemente está em
oração fervorosa e que faz da oração sua mais apreciada atividade. Isto não é verdade. Requer muita luta da parte do
cristão até que ele tenha disposição para orar, ore com fervor, e tenha confiança de que Deus vai atender seu pedido.
Apesar de haver momentos em que os cristãos sufocam sua carne e sangue, fazendo com que experimentem a maior
felicidade, como se estivessem conversando com Deus no céu, a grande verdade é que eles ainda conservam sua carne
e sangue naturais.
Os cristãos são até mesmo tentados pelo desejo de enriquecer. Caso não fossem advertidos e admoestados, eles
seriam arrastados para a perdição como que presos numa armadilha, e se perderiam para sempre.
Ao formar um juízo sobre determinada pessoa, é de vital importância saber se ela ama a palavra de Deus bem
como o seu Salvador, ou se ela está empedernida e leva uma vida reprovável. Existem pessoas que querem dar um
“show” de santidade evitando conversa, erguendo os olhos piamente para os céus, recitando as Escrituras constante-
mente, lendo a Bíblia nas horas de lazer para impressionar as pessoas com seu cristianismo exemplar. Não devemos
pensar que somente aqueles que ostentam santidade são cristãos verdadeiros. Não digo que todos eles não sejam
cristãos, contudo, estou certo de que aqueles que estão totalmente entregues ao modo de agir acima mencionado não
passam de miseráveis hipócritas. Leia os evangelhos e você verá como os discípulos conversaram com o Senhor e
como se portaram em sua presença. Se tinham algo a dizer, eles o diziam abertamente, até mesmo João, o discípulo
amado. Cristo, por este motivo, não os teve por pessoas não convertidas, mas, tratou-os como a pessoas convertidas
que, todavia, ainda tinham uma considerável dose de velho homem dentro de si.
Em seus sermões, é evidente que você pode citar o que cristãos fortes ou excepcionalmente fiéis realizaram.
Caso seus ouvintes cheguem à conclusão de que eles ainda não atingiram tal nível de fidelidade, isto não vai lhes fazer
mal; será, antes de qualquer outra coisa, um incentivo a que progridam cada vez mais em seu cristianismo.
Quando a congregação está para receber novos membros e você conversa com eles, você não os deve considerar
ímpios, não convertidos, caso eles não entrem de imediato numa conversação religiosa com você. Existem pessoas
que, apesar de apegadas a seu Salvador, não são capazes de falar muito a respeito de sua fé, mesmo que em outros
assuntos sejam bons proseadores. Com outros pode acontecer que tenham tido pouca experiência, razão pela qual não
têm muito a relatar.

18ª TESE
Em décimo quarto lugar, a palavra de Deus não é aplicada corretamente quando a corrupção
universal da humanidade é descrita de um modo tal, que causa a impressão de que mesmo os verdadeiros
crentes ainda vivem sob o domínio do pecado e pecam intencionalmente.

Convém notar que estou me referindo à afirmação de que a corrupção universal da humanidade inclui também
o viver do crente sob o domínio do pecado e na prática de pecados intencionais. Ninguém que conhece a doutrina pura
faria a inoportuna afirmação de que o cristão pode perfeitamente ser um fornicador e um adúltero. Semelhante pensa-
mento não estaria na cabeça de um verdadeiro mestre da palavra de Deus. Entretanto, na intenção de apresentar a
corrupção universal da humanidade de modo bastante drástico, o pregador facilmente cede à tentação de desviar-se
da doutrina pura. Quanto dano não se pode causar quando se anuncia às pessoas que nós, seres humanos, vivemos em
todas as abominações, atos vergonhosos e vícios possíveis, sem que se faça a devida especificação: “por natureza o
homem é assim”, ou “enquanto alguém continua em seu estado de depravação natural e ainda não foi regenerado”.
Feitas estas ressalvas, é claro que você pode descrever, então, a horrível condição do homem natural do modo mais
drástico possível. Todavia, dirigindo-se a uma congregação cristã, você deve tomar cuidado para não insinuar que
todos os cristãos ainda vivem na prática de tais vícios e atos vergonhosos. A tentativa dos pietistas em dividir a hu-
manidade em tantas classes diferentes, na verdade foi algo prejudicial e perigoso, e fez com que ninguém mais esti-
vesse em condições de dizer a que classe pertencia. Isto, por outro lado, não deve impedir que, em nossos sermões,
apresentemos as duas grandes classes em que a humanidade de fato está distribuída, a saber: crentes e descrentes,
santos e ímpios, convertidos e não convertidos, regenerados e irregenerados. Esta classificação é corrente através de
toda a Escritura. Confira Marcos 16.16; Mateus 5.45; 9.13; 13.38. Seus ouvintes precisam saber que só podem ser, ou
espiritualmente mortos, ou espiritualmente vivos; ou convertidos, ou não convertidos; que eles estão, ou sob a ira de
Deus, ou do estado da graça; que eles são, ou cristãos, ou não cristãos; que estão, ou entorpecidos em seus pecados,
ou então, lúcidos para uma nova vida com Deus; que pertencem, ou ao reino do diabo, ou ao reino de Deus.
Ao final desta vida existem apenas dois destinos – céu e inferno. Haverá apenas duas sentenças para os homens:
ou condenação, ou a vida eterna. Logo, existem apenas duas classes de homens nesta vida. Os de uma classe vão
diretamente ao inferno, ou da outra, para o céu (Mt 7.13-14). Fazer confusão entre estas duas classes de homens,

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consiste numa terrível mistura entre lei e evangelho. A lei produz pecadores condenados, o evangelho, homens livres
e bem-aventurados.
Romanos 6.14: O pecado não será capaz de dominar os cristãos. É absolutamente impossível que alguém que
se encontra no estado da graça, possa permitir que o pecado domine sobre ele.
1 Coríntios 6.7-11: Nenhuma pessoa que incorre nos pecados mencionados nesta passagem, herdará o reino de
Deus, a menos que se arrependa. O arrependimento do cristão consiste em que ele não mais deseja voltar à prática
destes pecados. Quem comete estes pecados intencionalmente tem, com base nisto, uma prova de que não é cristão;
é, isto sim, indivíduo condenado, que é impulsionado por um espírito infernal e não pelo Espírito Santo.
2 Pedro 2.20-22: Nesta passagem o apóstolo Pedro fala de pessoas que uma vez eram filhos de Deus, que
tiveram um vivo conhecimento do Senhor Jesus, e estavam no estado da graça divina. Como pode, então, alguém ser
tão descarado a ponto de afirmar que a pessoa, uma vez convertida, permanece neste estado mesmo que incorra em
determinado pecado, a exemplo de Pedro e Davi?
Romanos 8.13-14: Todos aqueles que não são guiados pelo Espírito Santo, e sim pela sua carne, não são filhos
de Deus; são servos de Satanás.

19ª TESE
Em décimo quinto lugar, a palavra de Deus não é aplicada corretamente quando o pregador se
refere a determinados pecados como sendo não condenáveis em si, mas sim, de natureza venial.

Já constatamos que se deve fazer uma diferenciação entre pecados mortais e pecados veniais. Todo aquele que
não faz esta diferenciação, falha na correta separação de lei e evangelho. Entretanto, deve-se ter bastante cuidado ao
fazer a diferenciação entre estes dois tipos de pecado. Deve-se deixar claro que se faz esta diferenciação apenas para
mostrar que existem determinados pecados que expulsam o Espírito Santo do coração do crente. Expulsando-se o
Espírito Santo, elimina-se igualmente a fé; porque sem o Espírito Santo ninguém pode vir à fé, nem permanecer neste
estado. Denominamos de pecados mortais aqueles que expulsam o Espírito Santo e nos colocam sob o domínio da
morte espiritual. Todo aquele que já foi cristão, imediatamente perceberá quando o Espírito Santo o abandonou. Isto
se demonstrará no fato de estar impossibilitado de orar a Deus numa atitude filial, e por não mais estar em condições
de resistir às tentações como costumava fazer, isto é, ousada e vigorosamente. Ele se sentirá como que acorrentado ao
pecado, tal qual um escravo. Feliz daquele que ao menos reconhece esta sua situação! Ele pode ser reconduzido a
Deus. Mas enquanto ele ainda se encontra neste estado, ele não está em comunhão com Deus.
Denominamos de veniais aqueles pecados que um cristão comete sem que isto elimine a ação do Espírito Santo
dentro de si. São pecados de fraqueza ou precipitação. Muitas vezes são descritos como os pecados do dia-a-dia do
cristão.
Devemos ser extremamente cuidadosos para não criar a falsa noção de que os pecados veniais são pecados com
os quais o indivíduo não precisa se preocupar muito, e pelos quais não precisa pedir perdão. Não raras vezes acontece
que pregadores dão a entender que os cristãos não precisam se preocupar com os pecados veniais. Já que todos são
pecadores e visto que ninguém consegue se livrar completamente do pecado, eles insinuam que não há motivo para
que alguém se inquiete por causa destes pecados. Entretanto, uma tal pregação é de fato terrível e anticristã.
Mateus 5.18-19: É interessante observar o contexto dentro do qual o Senhor profere estas palavras. Justamente
no versículo anterior ele afirma que veio para cumprir a lei. Visto, pois, que o Senhor teve de cumprir cada uma das
leis e todos os mandamentos em nosso lugar, é na verdade espantoso quando um homem, um pecador e miserável
verme, pretende dispensar uma lei de Deus, julgando-a de somenos importância. Quem alimenta noções desta espécie,
não é cristão. Caos alguém, secretamente, tenha se consolado com esta sua idéia, este mentiu para si mesmo e enganou-
se redondamente. Igualmente, nesta questão, o verdadeiro cristão apresenta-se como alguém que teme pela prática de
um só pecado que seja.
O Senhor também se refere a alguém que pretende “ensinar aos homens”. Já temos um grande mal quando
alguém pessoalmente despreza determinada lei e vive desregradamente; contudo, pior do que isto é quando ele prega
estas suas noções ambíguas e, através de sua pregação, conduz os homens para a perdição. Ele terá de prestar contas
de sua pregação diante de Deus, e, naquele dia, ele não poderá apresentar a desculpa de que se tratavam apenas de
questões triviais que ele deixou de ressaltar devidamente, fazendo com que ninguém precisasse se afligir por causa
delas. Um cristão afligi-se até mesmo por coisas insignificantes, mas os ímpios julgam que podem escapar “por meio
de sua iniquidade” (Sl 56.7).
Mateus 12.36: Este concreto nos mostra o quão abominável é dizer que existem pecados que são veniais em si
e que são automaticamente perdoados por Deus, porque ele não os considera um mal tão grande assim. Aqueles que
assim se expressam, fazem do santo e justo Deus um homem velho e fraco, que, a exemplo de Eli, permite que seus
filhos pequem e apenas diz: “Não, meus filhos” (1Sm 2.24), pensando que com isto cumpriu todo o seu dever. É
verdade, Deus é Amor; contudo, ele também é Santidade e Justiça. Deus se transforma num terrível fogo consumidor
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para com aquele que se levanta contra ele, e o godo de sua ira vai ao encalço do pecador até o mais profundo inferno.
Toda a palavra frívola pela qual o homem for interrogado no dia do Juízo, já será suficiente para a sua condenação.
Pergunto, pois, qual é o cristão que, ao final de um dia em que disse muitas coisas, pode afirmar que não proferir uma
só palavra fútil? São poucos. Por uma única palavra fútil que seja, os cristãos devem, de coração contrito, suplicar o
perdão de Deus e prometer que no futuro exercerão maior controle sobre sua língua. Se Deus não lhes perdoasse as
palavras frívolas proferidas, estas já seriam o bastante para condená-los. Pecado venial em si, não existe; existem, isto
sim, pecados que não impedem que se creia em Jesus Cristo de todo o coração.
Tiago 2.10: Se alguém guardasse 999 de um total de 1000 mandamentos, seria culpado de toda a lei. Isto aplica-
se a cada um dos assim denominados pecados veniais. A menos que um cristão tenha uma viva compreensão deste
fato, ele deixará de ser cristão. O que faz de alguém um cristão é o fato de ele reconhecer em fé que, em primeiro
lugar, ele não passa de um miserável e maldito pecador, que estaria perdido para sempre caso Cristo não tivesse
morrido por ele; e, em segundo lugar, que Jesus Cristo, verdadeiro Deus, gerado do Pai na eternidade, e também
verdadeiro homem, nascido da virgem Maria, redimiu a ele, uma criatura perdida e condenada, comprou-o e resgatou-
o de todos os pecados, da morte e do poder do diabo. Um cristão deve reconhecer-se um pecador perdido e condenado;
caso contrário, todo o seu palavrório a respeito da fé será vão e desprezível.
Gálatas 3.10: A maldição atingirá todo aquele que não permanece em todos as coisas escritas no livro da lei.
Logo, não pode haver pecado que seja de natureza venial. Os pecados são veniais apenas por causa de Cristo.
1 João 1.7: O apóstolo deixa claro: “de todo o pecado”. Ele não diz “de todos os pecados mortais, de todos os
pecados graves e grosseiros”. Logo, o sangue de Jesus Cristo, o Filho de Deus, necessariamente, necessariamente
também foi derramado para apagar os assim denominados pecados veniais. Se isto é assim, então os pecados veniais
também devem ser mortais em si. O pecado é algo terrível por se tratar de uma “anomia”, isto é, um ato fora da lei.
O pecado é rebelião contra o santo, onipotente Deus, nosso supremo, celestial Legislador.
Mateus 5.21-22: Não existe cristão que não tenha motivo para queixar-se por ter estado irritado com seu irmão,
mesmo que tenha sido por pouco tempo. Ele o fez num momento de fraqueza; não obstante, cometeu um pecado do
qual deve se envergonhar. Quando Cristo diz: “estará sujeito a julgamento”, ele coloca a raiva e o assassinato no
mesmo plano. A palavra “raca” denota aquela raiva no coração que se manifesta em palavras de ira e através de
gestos. A situação atinge seu pior estágio quando a pessoa furiosa grita: “tolo!” A Lei de imediato destina uma tal
pessoa encolerizada para o fogo do inferno.
Todos estes textos examinados provam que os assim denominados pecados veniais não são veniais em si, me
sua natureza, mas, sim, pecados que levam à condenação, pecados mortais. A respeito daqueles que crêem, entretanto,
está escrito: “Agora, pois, já nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus” (Rm 8.1). Contudo, é preci-
samente o crente quem encara o pecado como assunto da maior seriedade.
Pregação evangélica implica em ressaltar o pecado. O pecador deve emitir um severo juízo sobre o pecado,
pois cabe a ele anunciar o juízo de Deus. Nem mesmo dos pecados veniais você deve fazer pouco caso. Convém
lembrar que cada dia você peca em tal proporção que Deus se veria obrigado a lançá-lo no inferno; entretanto, Deus
não o fará porque você crê em Cristo. Lembre-se constantemente que, caso Deus o tratasse consoante sua justiça, você
seria condenado ao inferno. Você deve temer e agir como se estivesse cheio de pecados mortais.
Por último, a própria experiência cristã comprova que nenhum pecado é venial em sua natureza. Qualquer
cristão verdadeiro lhe assegurará que sua experiência é esta: tão logo peque, sente uma inquietação que persiste até o
momento em que suplica o perdão de Deus. O alarma da consciência é imediatamente acionado dentro de todo o
verdadeiro cristão.

20ª TESE
Em décimo sexto lugar, a palavra de Deus não é aplicada corretamente quando se faz com que a
salvação de uma pessoa dependa de sua filiação a uma igreja ortodoxa visível, e quando se nega a sal-
vação a todo aquele que erra em qualquer um dos artigos de fé.

Parece estranho que certos homens tenham chegado à doutrina de que a Igreja Luterana visível é a igreja fora
da qual não há salvação. A mãe deste terrível erro que estamos estudando é a doutrina que diz que a igreja é uma
instituição visível que Cristo estabeleceu na terra, que em nada diferente de um estado religioso, e que é governada
por superintendentes, bispos, concílios eclesiásticos, pastores, diáconos, sínodos e outros mais. Todo aquele que está
ao menos um pouco familiarizado com a palavra de Deus, sabe que esta é uma concepção errônea. Não é assim que
diz o Salvador: “Sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ele” (Mt
16.18)? Esta pedra é Cristo. Ninguém é membro da igreja a não ser aquele que está edificado sobre Cristo. Ser edifi-
cado sobre Cristo não significa ligar-se mecanicamente à igreja, mas, sim, depositar a confiança em Cristo e esperar
receber justiça e salvação apenas dele. Quem não procede desta maneira, não está edificado sobre esta rocha e, con-
sequentemente, não é membro da igreja de Jesus Cristo.
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Efésios 2.19-22: Edificado sobre o fundamento dos apóstolos e profetas está somente aquele que se apega à
palavra deles com uma fé inabalável. Logo, aquele que não tem uma fé viva, não é membro da igreja.
O Salvador denomina-se de noivo. Todo aquele que não está vinculado a Cristo com o mais profundo afeto de
seu coração, não pode ter a ousadia de afirmar que é um verdadeiro cristão e membro da igreja. No que diz respeito a
seu relacionamento com Cristo, ele não passa de um estranho; a igreja, todavia, é a noiva de Cristo.
Cristo também é denominado de Cabeça da igreja. Logo, somente pode ser membro da igreja aquele que recebe
luz, vida, poder e graça emanados de Cristo, o Cabeça. Todo aquele que não está nesta ligação espiritual com Cristo,
não o tem por seu Cabeça. Todo aquele que é seu próprio senhor, e não é governado por Cristo, não pertence à igreja.
Numa outra passagem o Apóstolo chama a igreja de corpo de Cristo. Este fato levou muitos, mesmo dentre os
mais fiéis luteranos, a afirmar que, já que um corpo é algo que se vê, a igreja também deve ser visível. Tal exegese,
entretanto, é abominável. O ponto de comparação na passagem acima mencionado não é a visibilidade da igreja, mas,
sim, que a igreja, ao invés de ser constituída de muitas partes inertes, é um organismo vivo, constituído de membros
dentro dos quais flui uma fé e uma energia de fé. Isto mostra de modo irrefutável que a igreja não é visível, e, sim,
invisível. Membro da igreja é somente aquele que experimenta o constante fluxo de energia procedente de Cristo, o
Cabeça da igreja.
Cristo também denomina sua igreja de seu rebanho. Logo, ninguém é membro da igreja a menos que pertença
ao rebanho de Cristo, a menos que seja uma de suas ovelhas, apascentadas por ele e obediente à sua voz.
Levanta-se a objeção de que Cristo compara a igreja a um campo no qual crescem tanto o trigo quanto o joio.
Esta objeção, entretanto, deve-se a uma interpretação errônea da parábola. O próprio Cristo deu-nos a chave para a
compreensão desta parábola. Ele não diz: “O campo é o meu reino”. Neste caso a igreja seria uma sociedade consti-
tuída de membros bons e maus. Entretanto, Cristo diz: “O campo é o mundo” (Mt 13.38). A Apologia da Confissão
de Augsburgo acentua este fato. O Salvador compara sua igreja a um campo onde trigo e joio crescem juntos; a uma
rede que apanha peixes bons e ruis; a uma festa de casamento à qual comparecem também virgens néscias, e para a
qual, segundo uma outra parábola, certo homem teve acesso sem trajar a veste nupcial. Por meio de todas estas pará-
bolas, Cristo não pretende descrever a essência da igreja, e sim, o modo como ela se apresenta externamente neste
mundo, bem como deixar claro qual é a sua sorte nesta terra, a saber: mesmo que seja constituída apenas de boas
ovelhas, de pessoas regeneradas, a igreja nunca se apresenta na forma de uma congregação composta apenas de ver-
dadeiros cristãos. Na sua forma visível, a igreja nunca se vê livre de hipócritas e ímpios que se alojam nela. Somente
depois da consumação da vida eterna, a igreja será triunfante, totalmente pura e sem mácula, separada daqueles que
uma adesão externa, buscavam apenas satisfazer seus próprios interesses mundanos. Hipócritas e cristãos fingidos
podem confessar a cristo com os lábios, contudo seu coração está longe deles. Eles servem seus próprios desejos
carnais e não ao Senhor tão somente. Em Lucas 14.26 o Senhor diz: “Se alguém vem a mim, e não aborrece a seu pai,
e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs e ainda a sua própria vida, não pode ser meu discípulo”. Nesta passagem,
Cristo pronuncia juízo sobre todos aqueles que não desejam renunciar aquilo que possuem. Quando todos estiverem
reunidos diante do trono do juízo de Cristo, apenas então será revelada sua hipocrisia. Podemos ver quando as pes-
soas vão para a igreja, contudo não podemos determinar se de fato pertencem à igreja ou não. É impossível
dizer se este ou aquele indivíduo verdadeiramente é membro da igreja.
Nenhum homem o sabe, exceto Deus. A igreja é visível tão somente aos olhos de Deus; aos olhos dos homens
ela é invisível.
Este erro que de momento estamos analisando, constitui-se na principal falsidade de nossos dias. Isto porque
os adeptos desta doutrina falsa pretendem ser bons luteranos, opostos aos papistas, quando, na realidade, apenas tro-
caram armas com os papistas. A princípio os papistas defenderam esta doutrina falsa; agora são os luteranos que
ousam afirmar, contra aqueles, que são a única igreja na qual há salvação. Deste estado de coisas, as únicas conclusões
que se seguem são de que, ou a igreja do papa é a igreja verdadeira, ou a igreja verdadeira havia perecido antes de
Lutero. A Escritura, entretanto, afirma que a igreja verdadeira não pode perecer; ela se manterá de pé até o fim dos
tempos. Todavia, uma igreja denominada “luterana” não existiu antes do décimo sexto século. É verdade, desde os
dias dos apóstolos nenhuma igreja houve que tivesse tido a doutrina pura em tal proporção como nossos pais a tiveram.
Logo, ou a Escritura é falsa, ou a Igreja Romana era de fato a igreja verdadeira e a reforma de Lutero uma rebelião.
Eis o intrincado dilema que se antepõe a todos aqueles que pretendem sustentar uma tal doutrina errônea concernente
à igreja.
Mas o pior de tudo, sem dúvida, é isto: Fazer com que a salvação de alguém dependa de sua filiação e comunhão
com a igreja ortodoxa visível implica em anular a doutrina da justificação pela fé. As pessoas que se filiam à Igreja
Luterana já têm a fé verdadeira antes disto. É um grave engano pensar que Lutero, antes de se tornar luterano, não
tinha a fé verdadeira. Por mais que estimemos nossa igreja, longe de nós este abominável fanatismo de que a nossa
Igreja Luterana é a única igreja que salva! A verdadeira igreja estende-se por todo o mundo e pode ser encontrada em
todas as seitas. A igreja não é um organismo externo, com organização própria, ao qual o indivíduo deve adaptar-se
para que se torne membro. Todo aquele que crê em Jesus Cristo e é membro de seu corpo espiritual, este é membro
da igreja. Esta igreja, por outro lado, não pode ser dividida; ela permanece unida, apesar de seus membros estarem
separados entre si por meio do tempo e do espaço.
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Tira-se uma conclusão falsa a partir das referências que a Escritura faz a comunidades eclesiásticas externas
como as de Roma, Corinto, Filipos, Tessalônica, da Galácia e da Ásia Menor, às quais o Senhor enviou cartas através
de São João. Todas estas comunidades visíveis são denominadas de igrejas. Logo, dizem alguns, a igreja é visível. –
Já o próprio Lutero, para evitar que o povo imaginasse que o papa é a igreja, traduziu a palavra “ekkleesía” por
“congregação”, o que está correto. A conclusão que se tira do emprego desta palavra indicando igrejas locais está
errada, porque as Escrituras, via de regra, empregam o termo “ekkleesía” quando têm em mira, não igrejas locais,
mas, sim a igreja no sentido absoluto. E esta é uma comunidade invisível. Emprega-se “ekkleesía” quando se fala de
organizações locais, porque a igreja invisível está contida nelas. Coisa semelhante a isto acontece quando falamos de
um monte de trigo, mesmo que nem tudo seja trigo, pois grande parte é capim e palha. Ou então, falamos de um copo
de vinho, apesar de lhe ter sido acrescentado água. Em tais casos, o objeto recebe o nome a partir de seu conteúdo
principal. Da mesma forma, as comunidades visíveis são denominadas “igrejas” porque dentro delas está a igreja
invisível, porque elas contêm uma semente celestial. Os falsos cristãos e hipócritas também recebem o nome de “mem-
bros da congregação”, apesar de, na realidade, não o serem. Já que eles confessam o nome de Jesus, lhes atribuímos
este título por consideração, na suposição de que eles de fato crêem o que confessam.
Também a Igreja Luterana, na qualidade de comunidade visível, é denominada “igreja” num sentido sinedó-
quico. Por isso, é um terrível engano afirmar que as pessoas só podem ser salvas dentro da Igreja Luterana. Ninguém
deve ser levado a filiar-se à Igreja Luterana por pensar que só assim terá acesso à igreja de Deus. Em Isaías 55.11,
temos a promessa: “Minha palavra... não voltará para mim vazia”. Onde a palavra de Deus ainda é proclamada e
confessada, ou até mesmo lida durante o culto, ali o Senhor também está reunido um povo para si. A Igreja Romana,
por exemplo, ainda confessa que Cristo é o Filho de Deus e que ele morreu na cruz para redimir o mundo. Isto já é
verdade suficiente para que alguém chegue ao conhecimento da salvação. Quem nega este fato, igualmente é forçado
a negar que existem cristãos em algumas congregações luteranas dentro das quais afloraram doutrinas falsas. Nestas
congregações, sempre existem alguns que são filhos de Deus. Isto porque eles têm a Palavra de Deus que sempre
produz fruto na conversão de algumas almas para Deus.
A doutrina falsa referente à igreja, que estamos abordando nesta tese, implica numa fatal confusão entre lei e
evangelho. O Evangelho diz: “Crê no Senhor Jesus Cristo!” A Lei, ao contrário, confronta o homem com toda sorte
de exigências. Apresentar o cumprimento de certa exigência como necessário para a salvação, ao lado da fé, da acei-
tação das promessas do Evangelho, é fazer confusão entre lei e evangelho. Sou membro da Igreja Luterana pelo sim-
ples motivo de querer permanecer ao lado da verdade. No momento em que reconheço que a igreja a que pertenço
abriga doutrinas falsas em seu meio, com as quais não quero me contaminar, eu abandono esta igreja. Não desejo
tornar-me cúmplice dos pecados de outros e, por isso, abandonando uma comunidade herética, estou confessando a
verdade pura e inalterada. Pois Cristo diz: “Portanto, todo aquele que me confessar diante dos homens, também eu o
confessarei diante de meu Pai que está nos céus; mas aquele que me negar diante dos homens, também eu o negarei
diante de meu Pai que está nos céus” (Mt 10.32-33). E Paulo diz expressamente a Timóteo: “Não te envergonhes,
portanto, do testemunho de nosso Senhor, nem do seu encarcerado que sou eu” (2Tm 1.8).
Dizer que é possível que os homens se salvem dentro de qualquer uma das seitas e que em todas as igrejas
sectárias encontram-se filhos de Deus, de maneira nenhuma nos leva a concluir que se pode permanecer em comunhão
com uma seita. Muita gente não consegue compreender este fato; pensam que afirmar que um indivíduo pode ser salvo
em qualquer uma das seitas é um princípio totalmente unionista. Fato é que pode haver salvação em qualquer uma das
seitas; o motivo para tanto é que somos salvos por fé, e esta alguns membros das seitas podem perfeitamente ter.
Entretanto, se reconheço o erro de minha comunidade sectária e não me retiro dela, serei condenado ao inferno porque,
mesmo vendo o erro, não estive disposto a abandoná-lo.
A Igreja Luterana é de fato a verdadeira igreja visível; entretanto, apenas no sentido de que ela tem a verdade
pura, inalterada. Tão logo você, ao falar da Igreja Luterana, fizer a observação de que ela é a “única que salva”, você
diminuído a doutrina da justificação por graça através da fé em Cristo Jesus, e feito confusão entre lei e evangelho.

21ª TESE
Em décimo sétimo lugar, a palavra de Deus não é aplicada corretamente quando se ensina que os
sacramentos agem salvificamente ex opera operado, isto é, pelo simples levar a efeito extremo de um ato
sacramental.

Quem ensina o grave erro abordado nesta tese, são os papistas. Ensinam às pessoas que, mesmo sendo des-
crentes, terão algum benefício do batismo simplesmente submetendo-se a ele, desde que no momento não estejam
vivendo em pecado mortal! Afirmam que este simples ato já lhes traz o favor de Deus, ou faz com que Deus se torne
gracioso para com eles. Idêntico é o que ensinam quanto à missa e à ceia do Senhor, a saber: obtém-se graça pelo
simples participar destes rituais. Esta doutrina é contrária à palavra de Deus, de modo especial ao Evangelho, que

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deixa claro que o homem é justificado diante de Deus e salvo tão-somente por graça, e que ele não pode praticar uma
boa obra sequer antes de sua justificação.
Romanos 3.28: Se sou justificado, se obtenho a graça, submetendo-me ao batismo, ou pelo fato de participar
da santa ceia, então sou justificado por obras, e por obras tão mesquinhas que nem são dignas de serem mencionadas.
Sim, porque é precisamente nisto que resultam batismo e santa ceia quando encarados como obras que nós fazemos.
Esta doutrina de que a pessoa obtém a graça divina desde que faça uso externo dos sacramentos, é terrível e contradiz
totalmente o ensino da Bíblia. Fato é que o batismo e a santa ceia colocam o homem sob juízo, caso ele não se aproxime
deles com fé em seu coração. Eles são meios da graça apenas porque aos sinais externos (água, pão e vinho) está
ligada uma promessa de Deus. Tão-somente permitir que derramem água sobre mim, de nada me aproveitará. Da
mesma forma, de nada me aproveita comer e beber o pão e vinho consagrados na santa ceia, mesmo que nela eu
verdadeiramente receba o corpo e o sangue do Senhor. Participar da santa ceia sem fé, antes de tudo me será prejudi-
cial, porque me torno culpado do corpo e sangue do Senhor. É da máxima importância que eu creia; que, no batismo
eu considere, não a água, mas, sim, a promessa que está ligada à água. É a promessa que requer que se batize com
água; isto porque a promessa foi ligada tão-somente à água. O mesmo se aplica à santa ceia: imaginar que o ato de
participar da mesa do Senhor, cumprindo assim sua vontade, é mais um mérito que será contado a nosso favor, na
verdade não passa de um pensamento pagão. O Senhor diz: “Tomai, comei; isto é o meu corpo, que é dado por vós”.
“Bebei dele todos; este cálice é o novo testamento no meu sangue, que é derramado por vós para remissão dos
pecados”. Estas palavras encerram todo um céu de graça divina para o comungante. e é em direção a elas que o
comungante deve dirigir sua fé. O simples ato de comer o pão com o corpo de Cristo e beber o vinho com o sangue
de Cristo, não produz efeito benéfico algum em nós. A Palavra, em virtude do fato de Deus continuamente dizer:
“Teus pecados estão perdoados”. A esta palavra devo apegar-me, na fé. Se eu proceder assim, então posso, no Último
Dia, comparecer confiantemente diante de Deus. E mesmo que ele estivesse por condenar-me, eu poderia dizer: “Tu
não podes condenar-me sem que com isto te faças de mentiroso. Intimaste-me a depositar toda minha confiança na
tua promessa. Eu o fiz, logo, não podes condenar-me, como também sei que não vais fazê-lo”. Se Deus quisesse provar
a fé de seus cristãos ainda no Último Dia, todos os santos clamariam: “Não podemos ser condenados ao inferno. Eis
aqui Cristo, nosso Fiador e Mediador. Terás de reconhecer, ó Deus, o resgate que teu Filho pagou pelos nossos pecados
e pela nossa culpa”.
Romanos 14.23: Como pode, então alguém que participa dos sacramentos sem fé, tornar-se aceitável a Deus,
ou obter a graça de Deus através deste ato, já que ele peca ao fazer algo que não procede da fé? Relacionado a isto,
deve-se também considerar o que Hebreus 4.12 diz a respeito da ação da Palavra de Deus sobre o íntimo do homem.
Os falsos mestres admitem que a pregação, a menos que seja recebida com fé, de nada aproveita aos ouvintes,
senão que apenas aumenta sua responsabilidade. Insistem, entretanto, que em seu tratando dos sacramentos, a situação
é diferente, pois estes, segundo eles, têm a seguinte grande vantagem sobre a palavra pregada: sempre que o homem
simplesmente os utiliza. Deus, em sua graça, opera através deles. Esta é uma doutrina pagã! Os sacramentos não são
outra coisa senão a palavra de Deus ligada a um símbolo. Agostinho magnificamente denomina-os de “palavra visível”
(verbum visibile). A palavra de Deus em nada aproveita àquele que não crê. Da mesma forma, um descrente em nada
é beneficiado submetendo-se ao batismo. Quando insistimos com as pessoas para que creiam em seu batismo, nossa
intenção é que creiam em seu Pai celeste, que ligou ao batismo uma tão gloriosa promessa. A idéia de que Deus fica
extremamente satisfeito quando alguém apresenta sua cabeça para que sobre ela seja derramada água, não passa de
um abominável abuso da palavra visível. Assim como a palavra não beneficia aquele que não crê, assim também os
sacramentos beneficiam apenas aqueles que se apegam aos mesmos na fé.
O evangelho simplesmente diz: “Crê, e serás salvo”; a lei, ao contrário, ordena: Faze isto, e viverás”. Se, pois,
o simples fato de ser batizado e participar da santa ceia concede graça a alguém, então o evangelho foi claramente
transformado numa lei, por que neste caso, a salvação baseia-se naquilo que o homem faz. Além disso, a lei foi trans-
formada em evangelho, porque promete-se a salvação como uma recompensa pelas obras que alguém faz.
Alguém poderia pensar que é totalmente impossível que um pregador cristão ensine que os sacramentos agem
saivificamente ex opera operado; entretanto, isto sempre de novo acontece. Este terrível erro é ensinado precisamente
por aqueles que pretendem ser luteranos bastante rigorosos, e acontece toda vez que abordam os sacramentos como
tema. Ao concluírem sua exposição da doutrina do batismo, cada ouvinte tem a clara impressão de que, para alcançar
o céu, basta que alguém se submeta ao batismo. Tendo concluído sua apresentação da doutrina da Santa Ceia, as
pessoas estão convictas de que, para receber o perdão de pecados, tudo o que se precisa fazer é participar da santa
ceia, já que Deus ligou sua graça a este ato externo.
Se a palavra pregada não beneficia o indivíduo, a menos que ele creia nela, então também o ser batizado e
participar da Comunhão de nada adiantará àquele que não tem fé. Anunciar a alguém que ele será salvo através da fé,
não é outra coisa senão dizer que será salvo por graça. A maioria das pessoas apresenta o assunto da seguinte maneira:
“Se você quer ser salvo, você não deve fazer esta ou aquela obra, mas sim – deve ter fé! É isto que Deus requer de
você”. Contrário a isto, convém relembrar o que o Apóstolo diz em Romanos 4.16: “Essa é a razão por que (a justiça)
provém da fé, para que seja segundo a graça”. Qualquer ensino que se levante contra a doutrina de que o homem é
salvo, não por suas próprias obras, sua conduta, ou qualquer outro esforço de sua parte, mas tão-somente por graça, é
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um erro que subverte por completo o fundamento da doutrina cristã. “Você deve crer”, significa: “Você deve aceitar
o que lhe está sendo oferecido”. Nosso Pai dos céus oferece aos homens perdão dos pecados, justiça, vida e salvação.
Entretanto, de que aproveita um presente se ele não é aceito? Aceitar um presente não é uma obra através da qual se
merece o presente; significa, isto sim, tomar posse daquilo que está sendo oferecido.
Marcos 16.16: Jesus não diz: “Quem for batizado e crer”, mas, sim, “Quem crer e for batizado”. A fé é a
necessidade de primeira ordem; o batismo é algo a que a fé se apega. Além disso, o Senhor acrescenta: “Quem,
porém, não crer será condenado”. Isto deixa claro que, mesmo que não tenha sido possível a alguém submeter-se
ao batismo, ele será salvo, desde que creia.
Atos 8.36-37: A única coisa que Filipe exigiu foi a fé. Ele praticamente disse ao eunuco: Se você não crê, de
nada lhe adiantará ser batizado”. No momento do nosso batismo, não somos nós que fazemos uma obra, e, sim, Deus.
Gálatas 3.26-27: No batismo, somente se reveste de Cristo aquele que crê. Esta passagem geralmente é inter-
pretada como se todo aquele que é batizado se revestisse de Cristo. Todavia, não é isto que o apóstolo quer dizer. Ele
diz: “porque todos vós”, a saber, vós que sois “filhos de Deus mediante a fé”. Estes de fato se revestiram de Cristo no
batismo. Um descrente, ao ser batizado, não se reveste de Cristo, mas continua trajando a veste contaminada de sua
carne pecaminosa.
Por ocasião da instituição da santa ceia, o Senhor diz; “Tomai, comei; isto é o meu corpo, que é dado por vós.
Fazei isto em memória minha. Bebei dele todos; este é o novo testamento no meu sangue, que é derramado por vós
para remissão dos pecados”. O Senhor não diz simplesmente: “Isto é o meu corpo”; ele acrescenta: “que é dado por
vós”. Ele não diz apenas: “Isto é o meu sangue”, mas acrescenta: “que é derramado por vós para remissão dos peca-
dos”. Está claro que ele pretende dizer: “O principal é que vocês creiam que este corpo foi dado por vocês e que este
sangue foi derramado para a remissão de seus pecados. É isto que vocês devem crer caso desejem receber a verdadeira
bênção desta ceia celestial”. E se Cristo acrescenta: “Fazei isto em memória minha”, ele quer com isto dizer: “Façam-
no em fé”. Certamente não era sua intenção dizer: “Pensem em mim toda vez que partilharem do meu corpo e sangue.
Não se esqueçam de mim por completo!” Todo aquele que julga que Cristo apenas admoestou seus discípulos a que
não o esquecessem, não conhece o Salvador. A verdadeira memória de Cristo consiste em que o comungante reflete,
na fé: “Este corpo foi dado à morte por mim; este sangue foi derramado para a remissão dos meus pecados. Isto faz
com que eu possa aproximar-me do altar com confiança. Na fé quero apegar-me a esta verdade, e ter em alta estima a
garantia de meu Salvador”. Porque, se Deus adiciona à sua palavra uma garantia visível, quem ousará duvidar que sua
palavra é verdadeira, e que sua promessa de fato se cumprirá? Toda vez que você for participar da santa ceia, tenha
diante de seus olhos estas palavras: “Dado por vós; derramado por vós para a remissão dos pecados”. Caso você não
faça isto; caso você pense que, indo para a Santa Ceia, mais uma vez cumpre sua obrigação, e que Deus vai levar em
conta este seu feito, então sua participação na santa ceia será um ato condenável. Ir para a santa ceia, comer o corpo
de Cristo e beber seu sangue com tal mentalidade, é um atrevimento; entretanto, não é nenhum atrevimento apegar-se
à palavra de sua promessa.
Romanos 4.11: Esta passagem nos diz que Abraão creu antes de ser circuncidado. A circuncisão era para ser
nada mais nada menos do que um selo da justiça que Abraão obteve através da fé. Na verdade, trata-se de um ato da
grande bondade de Deus quando ele, sabendo quão tardos somos para crer, mesmo depois de termos chegado à fé,
acrescenta sinais externos à sua palavra e liga a eles sua promessa; porque os sacramentos estão ligados à palavra e
compreendidos na palavra. A estrela luminosa que brilha nos sacramentos é a palavra.
Freqüentemente acusa-se nossa igreja de que ela ensina que o batismo opera a adoção de filhos de Deus ex
opera operato e que a Ceia do Senhor opera o perdão dos pecados ex opera operato. Seria de fato terrível se primei-
ramente disséssemos: “O homem é salvo não por obras”, e acrescentássemos: “Entretanto, através destas duas insig-
nificantes obras, o homem pode alcançar o perdão dos pecados”. É verdade, muitos luteranos determinam pelo calen-
dário se está ou não na hora de mais uma vez participar da ceia, porque julgam que o participar da santa ceia é uma
obra que o cristão deve fazer, e em relação à qual ele não pode dar-se o luxo de ser negligente. O motivo que deve
impulsionar alguém para a ceia é a promessa da graça que Deus ligou aos sinais externos. Aquele que se aproxima do
altar confiando nesta promessa, este deixará a mesa do Senhor com uma bênção no coração.
A Igreja Luterana dá ênfase tão grande aos sacramentos, a ponto de os entusiastas sentirem verdadeira aversão
em relação a ela. A Igreja Luterana apega-se à palavra do Senhor: “Quem crer e for batizado será salvo”. Eis o motivo
por que ela condena todos os falsos mestres que dizem que o batismo não é outra coisa senão uma cerimônia através
da qual a pessoa é recebida na igreja. Segundo a doutrina luterana, o batismo “opera perdão dos pecados, salva da
morte e do diabo, e dá salvação eterna a todos que crêem, conforme as próprias palavras e promessas de Deus afir-
mam”. A Igreja Luterana sustenta que o batismo é “o lavar regenerador e renovador do Espírito Santo”; que a água,
no batismo, conforme diz Pedro: “nos salva”; e que “todos quantos foram batizados em Cristo, de Cristo se revesti-
ram”. Com respeito à ceia do Senhor, a Igreja Luterana, resistindo a todos os esforços que pretendem levá-la à dúvida,
sustenta a veracidade das palavras do Senhor: “Isto é o meu corpo, que é dado por vós; Isto é o meu sangue, que é
derramado por vós”. A Igreja Luterana encara os sacramentos como o mais sagrado, gracioso e caro tesouro que há
sobre a terra. Quando Deus ordena um ato sacramental, ele ordena algo sobre o qual repousa nossa salvação.

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Entretanto, em momento algum a Igreja Luterana afirmou que os homens são salvos através do simples
uso externo dos Sacramentos. Esta é uma doutrina contra a qual ela sempre levantou sua voz, sempre combateu e
condenou.
O simples ato mecânico de ser batizado, caso não for acompanhado por fé, não trará ao homem outra coisa
senão perdição. A verdade nesta questão é a seguinte: Deus é tão bondoso que, além de fazer com que sua misericórdia
seja pregada aos homens, ele os convida para o Sacramento. E através deste, ele sela a promessa da graça; basta que
os homens creiam nele. De modo idêntico, aquele que imagina que obtém perdão dos pecados pelo simples ato de
comer e beber na ceia do Senhor, está equivocado. O corpo de Cristo não produz efeitos de natureza física assim como
os modernistas alegam quando afirmam que ele implanta no homem a semente da imortalidade. Este pensamento não
passa de um sonho da teologia especulativa, e não tem base escriturística.
Além do mais, assim como a Escritura não diz que o homem é salvo pelo mero ouvir externo da palavra, ela
também não ensina que os sacramentos operam de modo semelhante. O mero símbolo, posto diante dos olhos dos
homens, não opera o efeito salvífico; ele apenas demonstra aquilo que a Palavra proclama. Nós batizamos com água.
Isto significa que o batismo efetua purificação do pecado, santificação, regeneração e renovação. Aquilo que eu ouço
na pregação, eu o vejo no elemento externo do batismo. No coração do homem, entretanto, a palavra e o sacramento
produzem o mesmo efeito.

22ª TESE
Em décimo oitavo lugar, a palavra de Deus não é aplicada corretamente quando se faz uma falsa
distinção entre despertamento e conversão, e quando se confunde o não poder crer com o não permitir
que se creia.

Quem incorreu nesta grave confusão entre lei e evangelho, durante a primeira metade do século XVIII, foram,
entre outros, os assim denominados pietistas. Estes homens fizeram confusão entre lei e evangelho, isto é, mantiveram
as pessoas afastadas de Cristo. Isto se deu porque fizeram uma falsa distinção entre despertamento espiritual e con-
versão. Declararam que, no que tange ao caminho da salvação, deve-se dividir a humanidade em três classes 1) aqueles
que ainda não foram convertidos; 2) aqueles que foram despertados, contudo ainda não convertidos; 3) aqueles que já
foram convertidos.
Esta foi, sem dúvida, uma classificação totalmente incorreta. Eles teriam tido razão caso entendessem por
despertados aqueles que de vez em quando recebem um forte impacto da palavra de Deus, da lei e do evangelho, mas
que imediatamente abafam este impacto a ponto de torná-lo sem efeito. De fato, existem pessoas que não conseguem
mais continuar vivendo em sua segurança carnal, contudo reprimem esta sua inquietação até que Deus, mais de uma
vez, os esmiuça com o martelo de sua lei e então faz com que provem a doçura do evangelho. Entretanto, estes indi-
víduos despertados, aos quais os pietistas se referiam, não podem mais ser contados entre aqueles que ainda não se
converteram. De acordo com a escritura, podemos admitir apenas duas classes: a daqueles que estão, e a daqueles que
não estão convertidos.
É bem verdade que existem pessoas que, caso contrastadas a cristãos verdadeiros, poderiam muito bem ser
consideradas como despertadas. Isto, caso se desconsidere o padrão que temos na Escritura Sagrada. Entre eles esta-
riam, por exemplo, Herodes Antipas, Félix, Festo e Agripa.
Indivíduos como estes não podem ser contados entre os convertidos. Entretanto, não está correto referir-se a
eles como sendo despertados. Quando a Escritura fala em despertamento, ela refere-se sempre à conversão. Vocês
devem dividir a humanidade em apenas duas classes. As passagens que seguem deixaram claro diante de seus olhos
que a Escritura entende o despertamento como conversão: Efésios 5.14; 2.4-6; Colossenses 2.12.
Os pietistas, entretanto, objetam que o indivíduo que não experimentou uma genuína e profunda contrição em
seu íntimo, ainda não é convertido, mas apenas despertado. Por contrição profunda eles entendem uma contrição
semelhante à de Davi, que passou noites inteiras chorando e pranteando em sua cama, e que por diversos dias andou
de um lado para outro, curvado e oprimido pela aflição. Todo aquele que não passou por tais experiências, que ainda
não foi selado com o Espírito Santo, que não está totalmente certo de sua salvação e de que se encontra no estado da
graça, que sempre se mostra indeciso e insensível, que carece de verdadeira paciência e da devida disposição de servir
seu semelhante – tal pessoa, afirmam eles, certamente não pode ser cristã; ela está despertada, contudo ainda não
convertida. Esta é uma falsa suposição. Alguém pode perfeitamente ter-se tornado cristão verdadeiro, sem ter passado
por uma grande e terrível angústia como a de Davi. Isto porque, apesar do fato de Davi realmente ter passado por tais
experiências, não temos nenhuma referência bíblica que indique que todos devem passar pelas mesmas experiências,
e sofrer com a mesma intensidade. No que concerne ao selo com o Espírito Santo, lemos em Efésios 1.13: “Em quem
também vós,... tendo nele... crido, fostes selados com o Santo Espírito da promessa”. Este selar pressupões fé, mesmo
que seja uma fé bastante fraca, uma fé que constantemente tem de lutar com ansiedades e dúvidas. Não é a todos que
Deus, de imediato, concede alegria na fé e coragem heróica. Que esta é a verdade pura e inalterada, pode-se constatar
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em cada uma das passagens que relata a conversão de pessoas. Considere, por exemplo, o auditório do primeiro Pen-
tecoste cristão. Estas pessoas foram como que atingidas por uma flecha em seu íntimo e clamaram: “Que faremos,
irmãos?” E Pedro não lhes responde: “Tenham calma! Primeiramente vocês devem passar por um rigoroso conflito
penitencial; vocês terão que lutar com Deus e gripar por ele até que o Espírito Santo lhes dê a certeza interior de que
receberam graça e estão salvos”. De forma alguma; o apóstolo apenas diz: “Arrependam-se, e cada um seja batizado”.
E imediatamente eles foram batizados. “Arrependam-se” significa: “Arrependam-se” significa: “Voltem-se para seu
Senhor Jesus, creiam nele, e como selo de sua fé recebam o batismo; e então tudo estará bem com vocês”. Um pouco
adiante é-nos relatado a respeito destes recém-convertidos: “E perseveravam na doutrina dos apóstolos e na comunhão,
no partir do pão e nas orações” (Atos 2.37-38, 42). Assim sendo, eles foram de fato convertidos em poucos instantes.
O mesmo verificamos no caso do tesoureiro e administrador das finanças da rainha da Etiópia. Filipe não diz
outra coisa senão isto: “Se você crê de todo o coração, é claro que pode”, a saber, ser batizado. Quando o tesoureiro
respondeu: “Eu creio que Jesus Cristo é o filho de Deus”, Filipe se deu por satisfeito; porque ele estava ciente daquilo
que o tesoureiro queria dizer com esta confissão, a saber, que ele cria no Messias, Deus e homem. Após o batismo,
seus caminhos se separaram, e ele provavelmente nunca mais voltaram a encontrar-se. Filipe de modo algum estava
aflito, perguntando-se se este homem estava de fato convertido ou não; ele estava absolutamente certo de sua conver-
são, porque ele declara: “Eu creio que Jesus Cristo é o Filho de Deus” (Atos 8.37ss).
O carcereiro da cidade de Filipos estava em desespero porque temia a pena de morte, por ter permitido que os
prisioneiros fugissem. Paulo barrou-o no intento de apunhalar-se, gritando: “Não faça isso! Todos nós estamos aqui!”
E então voltaram-lhe à mente os pensamentos que haviam inquietado seu coração durante a noite, enquanto ele ouvia
que os prisioneiros, aos quais ele havia dispensado um tratamento tão cruel, louvavam e glorificavam a Deus. Con-
vencido da perversidade de seu coração e da magnitude de seu pecado, ele caiu aos pés dos apóstolos, exclamando:
“Senhores, que é que eu devo fazer para me salvar?” E Paulo não lhe respondeu: “Isto não pode mais ser feito nesta
noite. Primeiramente precisamos instruí-lo e certificar-nos do estado em que se encontra seu coração. Admitimos que
você está desesperado, contudo, conversão é uma outra história”. Não; ele simplesmente disse: “Creia no Senhor
Jesus, e você será salvo – você e sua família” (Atos 16.27ss). O carcereiro creu e ficou muito contente em função
disto. E isto foi tudo o que Paulo e Silas fizeram. Eles o deixaram e, tendo recuperado a liberdade, prosseguiram a
viagem.
Tente encontrar uma única passagem das Escrituras em que um profeta, apóstolo, ou qualquer outro santo,
tenha indicado às pessoas um caminho para a conversão diferente destes, dizendo que não se deveria esperar que a
conversão se processasse rapidamente e que se teria que passar por estas e aquelas experiências. Você não encontrará!
Eles sempre pregavam de maneira que seus ouvintes ficavam atemorizados, e tão logo estes reconheciam que não
havia saída para eles, tão logo eles se auto-condenavam, perguntando: “Existe solução para o nosso caso?”, eles lhes
respondiam: “Creiam no Senhor Jesus e tudo estará bem com vocês”.
Os fanáticos declaram que esta seqüência na conversão não está correta. Sim, esta, de fato, não é a seqüência
proposta pelos fanáticos; é a seqüência proposta por Deus. Tão logo o evangelho ecoou nos ouvidos das pessoas acima
mencionadas, encontrou eco em seus corações e eles se tornaram crentes. A respeito de Davi lemos que ele, depois de
receber a absolvição, ainda teve que passar por muita angústia. Mas, seus salmos de penitência são, ao mesmo tempo,
uma confissão da certeza que ele tinha de que Deus era gracioso para com ele. Trata-se de um esforço dispendido
totalmente em vão, quando um pregador conduz alguém, que está perturbado por causa de seus pecados, por um
caminho que se estende por meses e anos até que ele finalmente possa dizer: “Sim, eu creio”. Tal pregador não passa
de um charlatão espiritual; ele não levou esta alma a Jesus, mas, sim, a uma confiança em suas obras próprias. A todo
o pecador que está em bancarrota espiritual e que pergunta: Que devo fazer para que seja salvo?, você deve dizer: Isto
é muito simples; creia em Jesus, seu Salvador, e tudo estará bem.
Convém notar que, segundo as Escrituras, não é de todo difícil ser convertido; o difícil mesmo é continuar
neste estado. Por isso, aquele que relaciona as palavras do Senhor, “Entrai pela porta estreita” (Mt 7.13), ao arrepen-
dimento, interpreta-as erroneamente. O arrependimento não é uma porta estreita através da qual alguém precisa força
passagem. O arrependimento é algo que o próprio Deus tem de operar no homem. Todo o arrependimento auto-fabri-
cado, produzido pelo próprio esforço do homem, é uma falsificação bem como abominação à vista de Deus. Nossa
incapacidade de produzir arrependimento em nós mesmos não nos deve preocupar nem um pouco. Devemos tão-
somente aplicar a nós a palavra de Deus, e teremos a primeira parte do arrependimento. Seguindo-se a isto a aplicação
incondicional do evangelho, logo a fé será criada em nós. Ao ouvir o evangelho, tudo o que alguém deve fazer é
aceitá-lo. E então, imediatamente, segue-se um conflito interior. O erro dos falsos mestres, nesta questão, está
no fato de colocarem este conflito antes da conversão. Para um tal conflito, uma pessoa não-convertida não está
capacitada. O conflito surge num estágio posterior, e é bastante agudo. O caminho estreito é a cruz que os cristãos têm
de carregar, a saber: a modificação de sua própria carne, o suportar da zombaria, do desprezo e da desonra que o
mundo lança contra eles, a luta contra o diabo, a renúncia ao mundo com suas vaidades, tesouros e prazeres. Isto não
é fácil. E é bem por isto que, não muito depois da conversão, muitos se desviam e perdem a sua fé. Onde a palavra de
Deus é proclamada com demonstração do Espírito e do poder de Deus, convertem-se muito mais pessoas do que

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imaginamos. Se pudéssemos sondar os corações dos participantes no culto de uma igreja em que a palavra é podero-
samente pregada com demonstração do Espírito e poder, e onde não se mistura o fazer do homem com a doutrina da
graça salvadora, observaríamos muitos dentre eles tomando a decisão de, pela graça de Deus, tornar-se cristãos; e isto
porque estão convencidos de que o pregador tem razão. Muitos, entretanto, mal saindo da igreja, procuram suprimir
estas sensações e persuadem-se de que acabaram de ouvir a conversa de um fanático. Tais pessoas endurecem seus
corações domingo após domingo e ingressam num estado pós-conversão muito perigoso. O próprio Salvador diz que
muitos “ouvem a palavra... com alegria” (Mt 13.20), mas sufocam a semente que está germinando quando surgem as
tribulações. Por tribulações não se entende necessariamente as aflições que partem do diabo, mas, em geral, o tédio
em relação às coisas espirituais, o relaxamento na oração, a negligência no ouvir a palavra de Deus, o desprezo da
parte do mundo que os cristãos têm de suportar, etc. Tudo isto pode desvanecer a impressão que a palavra causou no
coração dos cristãos. Contudo, não afirma o Senhor que eles crêem por algum tempo (Lc 8.13)? Logo, as pessoas
desta segunda classe de ouvintes, que imediatamente aceitam o evangelho, iniciam na fé; mas, impedem que a palavra
lance raízes em seus corações, e, com a primeira tentação a que ficam expostos, entregam-se novamente ao mundo e
à sua própria carne botando tudo a perder.
Não se iludam pensando que os homens podem endurecer seu corações quando lhes é dito quão rapidamente
se pode chegar ao arrependimento e conversão. Pelo contrário, considerem a grandeza da misericórdia de Deus. Depois
que alguém foi convertido, ele deve saber que doravante sua vida será uma luta constante, bem como deve propor-se
dia-a-dia progredir espiritualmente, exercitar-se no amor, na perseverança, na bondade, e lutar contra o pecado. Esta
é uma tarefa para cristãos convertidos, que passam a cooperar com a graça divina que age neles. Os fanáticos, entre-
tanto, em sua doutrina totalmente abominável, colocam estes conflitos espirituais antes da conversão e, desta maneira,
tiram toda a honra que é devida a Deus.
Onde há sinal de verdadeira ânsia por misericórdia, ali existe fé; porque fé não é outra coisa senão ansiar por
misericórdia. Quando isto acontece a alguém, ele não está apenas despertado no falso sentido da palavra, mas, sim,
convertido. É notável que, em Filipenses 2.12-13, o apóstolo inicia dizendo: “Desenvolvei a vossa salvação com temor
e tremor”, e então conclui: “Porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua vontade”.
Devemos desenvolver nossa salvação com temor e tremor, pelo simples motivo de que é nosso Pai celeste quem deve
realizar tudo o que é necessário para nossa salvação. O Apóstolo dirige estas palavras a pessoas convertidas. Alguém
que está com o coração endurecido, que é cego, morto, não pode desenvolver sua própria salvação. Mas, um convertido
pode, e ele realmente o faz. Se ele não o fizer, então ele novamente foi acometido de cegueira espiritual, e voltou ao
domínio da morte espiritual.
Os assim denominados pietistas de tempos passados, bem como os pregadores das seitas entusiastas de nossos
dias, não apenas fizeram uma incorreta distinção entre despertamento e conversão e se recusaram a considerar cristãos
aqueles que estavam espiritualmente despertados, mas também confundiram o não poder crer com o não permitir que
se creia.
Quando os pietistas levavam alguém ao ponto de se considerar um pobre, miserável pecador, incapaz de ajudar-
se a si mesmo, e quando este perguntava o que deveria agora fazer, o pastor não lhe respondia, a exemplo dos após-
tolos: “Creia no Senhor Jesus Cristo, e você será salvo”. Não; por via de regra eles lhe diziam exatamente o inverso.
Advertiam-no a que não passasse a crer antes do tempo. Admoestavam-no a que não imaginasse que, após ter experi-
mentado os efeitos da Lei, poderia de imediato crer que seus pecados haviam sido perdoados. Diziam-lhe que sua
contrição deveria se tornar mais perfeita; que ele deveria sentir-se contrito, não tanto porque seus pecados suscitariam
a ira de Deus e o levariam ao inferno, mas, porque amava a Deus. A menos que pudesse afirmar que lastimava muito
ter provocado a ira de seu misericordioso Pai celeste, sua contrição era considerada sem efeito e sem valor. Assegu-
ravam-lhe que deveria perceber que Deus estava começando a ser misericordioso para com ele; que ele deveria chegar
ao ponto de poder ouvir uma voz inteiro dizendo: “Anime-se; seus pecados lhe serão perdoados; Deus será misericor-
dioso com você”. Ele deveria continuar lutando até que passasse esta agonia. No momento em que estivesse livre do
amor ao pecado e inteiramente convertido, então ele poderia passar a buscar conforto para si.
A verdade é esta: não devemos primeiramente passar pela conversão e apenas então crer. Não devemos, em
primeiro lugar, ter uma sensação de que estamos na graça; devemos, isto sim, sem sentimento de espécie alguma, crer
que recebemos misericórdia. Depois disto virá a sensação da misericórdia, a qual Deus concede a cada um segundo
sua graça. Algumas pessoas passam considerável período de tempo sem tal sensação. Elas não vêem outra coisa ao
seu redor senão trevas.; sentem a dureza de seus corações bem como a violenta agitação e assolação que a inclinação
para o mal e para o pecado provoca em seus íntimos. Por isso, emprega-se um método inadequado quando, ao se
indicar o caminho da salvação para alguém, se diz que ainda não lhe é permitido que creia em sua salvação, mesmo
que esta pessoa reconheça em si um pobre pecador perdido.
É verdade, ninguém pode criar a fé em si mesmo; Deus deve operá-la em nós. É possível que um indivíduo se
encontre num estado tal em que está impossibilitado de crer, e em que Deus não se mostra disposto a conceder-lhe a
fé. Este é o caso daquele que se considera são e justo; ele está impossibilitado de crer. “A alma farta pisa o favo de
mel” (Provérbios 27.7). Uma alma saciada e bem suprida pisoteia o consolo evangélico.

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João 5.44: Estas palavras, sem dúvida alguma, dirigem-se de um modo todo especial aos fariseus. enquanto
alguém busca sua própria glória, não pode vir à fé; porque procurar a glória pessoal é um pecado que está no mesmo
nível de todos os demais pecados mortais. Com isto o Senhor deixou claro que, se alguém não está disposto a aban-
donar determinado pecado, não pode vir a crer nele. A Lei primeiramente tem de esmiuçar o coração do pecador e
então deve-se fazer ouvir o doce consolo do Evangelho. Deste fato, entretanto, de maneira alguma se deve concluir
que não se permite que o pecador creia. É, e continuará sendo verdade, que a possibilidade da fé se abre e qualquer
pessoa, a qualquer hora. mesmo que alguém tenha caído no mais grave pecado, se ele reconhece subitamente que
afastou-se de Deus e volta com o coração contrito, não há nada que impeça que ele creia. Todo aquele que diz a uma
tal pessoa que ainda não lhe é possível crer, ou não é cristão, ou nada sabe a respeito desta questão.
1 João 2.1-2: Dizer a alguém que ele não pode crer, vai contra a plena expiação de todos os pecados que Cristo
realizou, bem como conflitua com a perfeita reconciliação que ele estabeleceu. O mundo inteiro foi reconciliado. A
ira de Deus, que ameaçava o mundo inteiro, foi removida. Através de Jesus Cristo, Deus se tornou o Amigo de cada
um dos seres humanos.
2 Coríntios 5.14: Uma vez que Cristo morreu, isto equivale à morte de todos os homens por seus pecados, e
uma morte como a que Cristo teve que passar. A morte de Cristo é o mesmo como se todos os homens tivessem
expiado seus pecados, através de sua própria morte. Já que todo o mundo foi redimido e reconciliado com Deus, não
é o fato de se dizer a alguém que não lhe é permitido crer que ele foi reconciliado, redimido e que há perdão para seus
pecados, uma doutrina verdadeiramente repugnante? Esta doutrina nega clamorosamente a suficiência da redenção e
reconciliação com Deus.
Além do mais, esta doutrina é contrária ao evangelho. Após concluída a obra da redenção e reconciliação,
Cristo disse a seus discípulos: “Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura” (Marcos 16.15). Pregar o
evangelho não é outra coisa senão levar a todos os povos a boa-nova de que houve redenção, que o céu está aberto
para todos, que todos foram declarados justos, que Cristo lhes trouxe a perfeita justiça, e que os homens devem apenas
vir e adentrar os portais da justiça, da mesma forma como um dia adentrarão os portais da salvação eterna. Não é
simplesmente hediondo dizer-se aos homens que eles não podem crer esta verdade? Cada um individualmente deve
saber que o evangelho é para ele, que Deus lhe anuncia as boas-novas para que ele possa crer nelas, e desta forma
encontre consolo para si. Se ele não quer crer, ele faz Deus, todos seus profetas e apóstolos, de mentirosos. Não é algo
terrível, anunciar-se às pessoas que sabem de experiência própria que são miseráveis pecadores perdidos, e que ainda
se encontram no lamaçal do pecado, que, apesar de Deus efetivamente ter concluído a obra da redenção, muito ainda
lhes resta a fazer até que possam vir a crer e desta forma serem salvos? À vista desta terrível doutrina, o desejo do
pecador é também fazer uma parcela na obra da redenção. E isto não passa de blasfêmia.
Este ponto-de-vista também não harmoniza com o fato de Deus já ter declarado, em presença de céus e terra,
anjos e homens: “Meu Filho reconciliou o mundo para comigo. Eu aceitei seu sacrifício. Dou-me por satisfeito. Ele
era o Refém de vocês, e eu o libertei. Por isso, alegrem-se já que não têm nada a temer”. Através da ressurreição de
Jesus Cristo dentre os mortos, Deus absolveu todo o mundo dos seus pecados. Logo, não é terrível quando alguém
vem e diz que isto de fato é assim, mas que o indivíduo ainda não pode crer nesta verdade? Não implica isto em fazer
Deus de mentiroso bem como negar que Cristo ressuscitou dentre os mortos?
Além do mais, este ensino também conflitua com a doutrina da absolvição. Jesus Cristo, tendo redimido todo
o mundo, deu a seus seguidores poder para perdoar os pecadores a cada um dos pecadores. Alguns afirmam que a
intenção de Cristo era a seguinte: “Quando o pregador percebe que determinada pessoa está na condição adequada,
ele pode persuadi-la a crer que existe perdão para seus pecados”. Estes, entretanto, são pensamentos humanos; o que
o Senhor diz resume-se nisto: “Seus pecados estão perdoados”. No mais, esta afirmação é prontamente compreendida
por aquele que crê na suficiência da redenção e reconciliação com Deus, efetivadas por Cristo.
Por meio da ressurreição de Cristo, Deus declarou que está reconciliado com o mundo e não tenciona mais
castigar a ninguém. Através de seu evangelho, ele faz com que esta verdade seja proclamada a todo o mundo. Além
disso, ele deu a cada pregador do evangelho a incumbência de perdoar aos homens os seus pecados, prometendo que
tornaria realidade no céu aquilo que o pregador faz na terra. O pregador não deve primeiramente levantar os olhos aos
céus para averiguar o que Deus está fazendo: ele deve simplesmente executar as ordens de Deus sobre a terra, perdo-
ando os pecados aos homens, confiante na promessa que Deus fez de que também perdoaria.
No entender de algumas pessoas, esta doutrina é simplesmente horrível; entretanto é a doutrina de maior con-
solo que se possa imaginar. É uma doutrina que está solidamente edificada sobre o sangue divino, derramado sobre a
cruz. O pecado de fato foi perdoado, e toda a preocupação de Deus agora é no sentido de que creiamos esta verdade.
Ao absolvermos as pessoas de seus pecados, nosso objetivo não é outro senão o de fortalecer a fé daqueles que desejam
absolvição a base do que é proclamado do púlpito. Portanto, ninguém dentre eles pode dizer: “Como sabe o pastor o
que se passa em meu coração? De que me aproveita a absolvição se não estou arrependido?” Sim, neste caso ela de
fato em nada lhe aproveita, pois a absolvição só beneficia aquele que a aceita na fé. Uma coisa entretanto é certa: você
foi absolvido! E é bem por isso que seu castigo eterno será mais intenso, porque você não creu na absolvição que o
próprio Deus anunciou a todos os pecadores, e que ele constantemente ainda anuncia através de seus ministros.

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Isto se aplica também aos sacramentos. A água no batismo nos salva. Quando o Senhor oferece aos comun-
gantes o pão consagrado e diz: “Isto é o meu corpo, que é dado por vós”, fica claro que ele pretende dizer que os
homens devem crer, pois, caso contrário, o corpo de Cristo de nada lhes aproveitará. Aquele que confia no fato de que
Cristo, sacrificando sue corpo, pagou o preço que o comungante precisava pagar pelos seus pecados, pode retirar-se
do altar, pulando e saltando de alegria. Quando o Senhor, ao oferecer o cálice, diz: “Este cálice é o novo testamento
no meu sangue, que é derramado por vós para remissão dos pecados”, ele pretende enfatizar de modo especial as
palavras “para remissão dos pecados”, além de fazer com que cada comungante que deposita sua confiança nelas,
vibre de alegria em sue íntimo.
Por último, confundir o não poder crer com o não permitir que se creia, não harmoniza com a praxe apostólica.
Sempre que uma pessoa se revelava um miserável pecador, os apóstolos lhe diziam que deveria crer no Senhor Jesus
Cristo. Nunca eles pediram a alguém que esperasse mais um pouco, até que estivesse em melhores condições. No
primeiro Pentecoste cristão, Pedro assegurou a seus ouvintes que, apesar de terem odiado a Cristo, agora estavam
crendo nele e que por isto deveriam submeter-se ao batismo em seu nome. Relembrem igualmente o incidente com o
carcereiro de Filipos, ao qual tantas vezes eu já fiz referência. Os fanáticos, a menos que argumentem que desconhe-
cemos o método seguido pelos apóstolos, levantam-se contra este modo de proceder porque julgam que, através deste
método, poderiam levar as pessoas a uma segurança carnal e, consequentemente, ao inferno. Os apóstolos também
passaram pela desagradável experiência de ver hipócritas se haviam alojado em suas congregações. Quero apenas
apontar para o caso de Simão, o mágico. O relato diz: “Simão abraçou a fé” (Atos 8.13), aos olhos dos homens, é
claro. Mas, depois foi demonstrado que ele não passava de uma pessoa totalmente pervertida. Este fato não fez com
que os apóstolos tomassem “mais cuidado” e decidissem nem sempre convidar as pessoas a que cressem no Senhor
Jesus. Nada disto; pois todos os belos exemplos de como os apóstolos convidavam os pecadores para crer, tão logo
estes haviam confessando seus pecados, estão relatados na Bíblia depois deste incidente com Simão, o mágico.
De igual forma, é uma grande tolice pensar que se tem um bom propósito em mira. Os pietistas, bem como
muitos pregadores dentre os entusiastas, concluíram que, para fazer com que seus ouvintes tivessem uma conversão a
fundo, não se poderia permitir que eles se apropriassem daquilo que ainda não lhes pertencia, porque isto viria a ser
um falso conforto para eles. Mas, raciocinar deste modo é de fato um fanatismo muito grande. Eles deveriam lembrar-
se que nosso Pai celeste é mais sábio do que eles. ele sabia muito bem que, se o consolo do evangelho fosse comuni-
cado a todos os corações, muitos pensariam que eles também têm condições de crer nele. Mas isto não é motivo para
que se oculte este consolo. Não devemos deixar que as crianças morram de fome pelo fato de temermos que os cães
poderiam eventualmente apanhar parte de sua comida, mas devemos, com alegria, proclamar a graça universal de
Deus, sem impor condições, e deixar nas mãos de Deus a possibilidade de as pessoas crerem nela, ou então, de aplicá-
la de modo incorreto.

23ª TESE
Em décimo nono lugar, a palavra de Deus não é aplicada corretamente quando se procura, por
meio das exigências, ameaças ou promessas da lei, induzir a pessoa não convertida a que abandone a
prática do pecado e se dedique à prática de boas obras para que, desta maneira, se torne pessoa piedosa;
por outro lado, situação idêntica ocorre quando se procura levar o renascido a fazer o bem, apresen-
tando-lhe as ordenanças da lei ao invés das admoestações do evangelho.

Incorre-se numa grande confusão entre lei e evangelho quando, através da lei, se procurar fazer com que os
homens se tornem piedosos, ou, quando até mesmo se procura impulsionar aqueles que já crêem em Cristo a que
pratiquem o bem, apresentando-lhes a lei e emitindo ordens. Isto de modo algum harmoniza com a função que a lei
exerce depois da queda em pecado.
Jeremias 31.31-34: Apesar de a lei ter sido inscrita no coração do homem ainda antes da queda em pecado, ela
não tinha por objetivo tornar os homens santos; isto porque o homem fora criado santo e justo à vista de Deus. O
homem teve a lei inscrita no coração pela simples razão de que, desta forma, poderia saber o que era agradável a Deus.
Neste sentido, não era necessário nenhuma mandamento especial. Eles simplesmente desejavam fazer tudo o que era
agradável a Deus; sua vontade estava em perfeita harmonia com a vontade de Deus. Esta situação alterou-se com a
queda. É verdade, depois da saída dos israelitas da terra do Egito, Deus repetiu a lei e restabeleceu com os judeus uma
aliança baseada na lei. Entretanto, o que lhes disse o Senhor através do profeta Jeremias? Ele lhes disse que a aliança
baseada na lei não havia melhorado a situação deles, porque Deus teve de forçá-los a uma submissão à sua vontade –
e obediência forçada simplesmente não é obediência. E então ele se refere profeticamente a um tempo em que estabe-
leceria um programa de ação totalmente diferente. Isto não significava que este novo plano de ação ainda não estava
vigorando na época do Antigo Testamento. A aliança, na medida em que fora estabelecida com os israelitas, era uma
aliança baseada na lei. Todavia, durante o tempo em que esta aliança estava em vigor, os profetas nunca deixavam de
pregar o evangelho e apontar para o Messias. Como seria esta nova aliança que Deus se propôs estabelecer? Deus
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assegurou que não iria proclamar mandamentos, mas inscreveria a lei diretamente em suas mentes e lhes daria um
coração novo e puro. e isto para que não mais precisassem ser importunados, coagidos e impulsionados pela lei, que
diz: “Faça isto! Não faça aquilo!”, porque tudo isto de nada adianta. Nós não estamos em condições de cumprir a lei.
Por natureza somos carnais, e manifestações do espírito não se originam da ação da lei. Deus diz: “Perdoarei as suas
iniqüidades, e dos seus pecados jamais lembrarei”. Este é o motivo pelo qual a lei está inscrita em nossos corações.
Isto significa que aquilo que a lei não foi capaz de fazer, foi tornado realidade através do evangelho, através da men-
sagem do perdão dos pecados. Todos os que no Antigo Testamento foram salvos, foram-no única e exclusivamente
através deste caminho, como Pedro expressamente declarou por ocasião do primeiro concílio apostólico. Que resulta,
pois, do fato de alguns, atualmente, durante a época do Novo Testamento, estarem empregando a lei de maneira tão
imprópria? Simplesmente isto: eles transforma os cristãos em judeus, e judeus da pior espécie, daqueles que conside-
ram apenas a letra da lei e esquecem a promessa do Redentor. Não apenas misturam lei e evangelho; substituem a lei
pelo evangelho.
Romanos 3.20: A lei não tem outra finalidade senão a de revelar aos homens os seus pecados, e não de removê-
los. Ao invés de removê-los, ela antes de mais nada aumenta o pecado. Pois quando o homem concebe um desejo
pecaminoso em seu coração, a lei de imediato o adverte: “Não cobiçarás”. Isto faz com que o homem julgue que Deus
é cruel, exigindo algo que ele não pode cumprir. Desta maneira a lei incrementa o pecado. Ela não aniquila o pecado;
ela faz com que se torne mais vivo ainda. Confira também Romanos 7.7-13 e 2 Coríntios 3.6.
Que grande tolice, portanto, quando um pregador pensa que a situação de sua congregação vai melhorar caso
ele troveje a lei por cima de seu povo e lhes apresente um quadro bem vivo do inferno e da condenação. isto de nada
adianta no sentido de melhorar as pessoas. De fato, deve haver ocasião para uma tal pregação da lei com o propósito
de inquietar os pecadores imperturbados, fazendo com que assumam sua condição de miseráveis pecadores. Contudo,
a lei não pode operar uma mudança de coração, nem capacitar o homem a amar a Deus e ao semelhante. Se alguém é
movido pela lei a praticar determinadas boas obras, ele as pratica apenas por constrangimento, assim como os israelitas
tiveram de ser coagidos pela aliança da lei.
Gálatas 3.2: Os gálatas se deixaram enganar, e consideram a pregação de Paulo, centrada na salvação pela fé,
através da graça de Cristo tão-somente, como sendo uma doutrina imperfeita e, consequentemente também, bastante
arriscada, podendo facilmente conduzir para a perdição. E assim eles aceitaram a doutrina da lei ensinada pelos falsos
profetas. Com profunda tristeza Paulo ouviu que estas congregações estavam sendo invadidas e devastadas por falsos
mestres. Por isso ele lhes dirige a pergunta de nosso texto, com o intuito de recordar-lhes a substancial mudança que
houve em suas vidas quando ele, Paulo, lhes pregou o doce evangelho da misericórdia de Deus. Paulo lhes diz que
haviam recebido o Espírito, a saber, o espírito da tranqüilidade, da paz, da fé, da alegria. Por isso ele lhes pergunta:
“Terá sido em vão que tantas coisas sofrestes?” Sim, ele inclusive diz: “Se possível fora, teríeis arrancado os vossos
próprios olhos para mos dar” (Gl 4.15). Até este ponto chegaram a ação da graça de Deus em suas vidas. De uma
maneira bem vívida eles haviam percebido quão gloriosa, celestial e preciosa doutrina era esta que Paulo estava anun-
ciando. Eles haviam passado por uma transformação de coração, alma e mente. E agora o Apóstolo pergunta: “Donde
receberam vocês esta nova vida, esta paz celestial em seus corações, esta alegria espiritual, esta extraordinária confi-
ança? Foi, por acaso, através da pregação dos falsos mestres que arrastaram vocês de volta para a servidão da Lei?”
O Apóstolo sabia que os membros das congregações da Galácia estavam andando de um lado para outro, tristes,
deprimidos, inseguros quanto a sua salvação. Eles estavam como que enfeitiçados. Já que a salvação era um tesouro
tão precioso – pensavam eles – tronava-se necessário também fazer algo de grandioso para consegui-la. Posteriormente
seus mestres imprimiram esta noção em suas mentes, dizendo-lhes que este era seu dever. Julgavam que eles mesmos
eram responsáveis por esta situação de miséria e inabilidade para tudo o que é bom, e nem suspeitavam da doutrina
falsa que fora semeada em seus corações.
O Apóstolo está lhe dizendo: Se você quiser reavivar suas futuras congregações bem como fazer com que o
Espírito da paz, da alegria, da fé e da confiança, da mentalidade simples, o Espírito da tranqüilidade da alma tome
conta da vida de seus congregados, então, pelo amor de Deus, não pregue a lei para atingir tal propósito. Se você
encontra suas congregações no pior estado que se possa imaginar, você deve de fato pregar-lhes a lei; entretanto, não
se esqueça de imediatamente anunciar-lhes também o evangelho. Você simplesmente não pode pregar-lhes a lei hoje
e deixar a pregação do evangelho para a próxima oportunidade. Tão logo a lei tenha realizado a parte que lhe cabe, o
evangelho deve entrar em ação.
Esta confusão entre lei e evangelho é feita, em primeiro lugar, por aqueles que passaram por um longo período
de lutas e grande angústia até que alcançaram a certeza de seu estado de graça. É possível que eles tenham lutado
durante anos, sempre recusando o conforto por não conhecerem a doutrina pura. Quando estas pessoas passam a
proclamar a doutrina pura, elas sempre ainda misturam ao evangelho algumas palavras que fazem com que os ouvintes
suspirem: “Este homem de fato deve ser uma pessoa piedosa, mas ele não sabe o quão miseráveis nós somos. Nós não
podemos cumprir as exigências que ele está fazendo”. Estes pregadores ainda são os melhores dentre os que erram
nesta questão.
Em segundo lugar, esta confusão entre lei e evangelho toma força quando pastores se conscientizam de que
toda sua pregação de evangelho é inútil, porque graves pecados da carne ainda se manifestam na vida de seus ouvintes.
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O pregador pode chegar à conclusão de que pregou por demais o evangelho, e agora deve mudar de estratégia: sus-
penda-se a pregação do evangelho e durante certo tempo pregue-se tão-somente a lei, e então a situação certamente
tem de melhorar. Mas, ele está completamente enganado; as pessoas não mudam. Pregadores que conseguiram erra-
dicar determinados males, através da pregação da lei, não devem pensar que conseguiram grande coisa. Até mesmo a
mais corrupta das congregações pode ser melhorada; entretanto, através de nenhuma outra maneira que não seja a
pregação do evangelho em toda a sua doçura. Se uma congregação se encontra neste estado de corrupção, o motivo
para tanto invariavelmente é este: o pregador não anunciou suficientemente o evangelho. Não é de admirar que eles
nada conseguiram realizar; isto porque a lei mata, mas o Espírito, isto é, o evangelho, vivifica.
Que nenhum pregador pense que, através da pregação do evangelho, é possível fazer com que os teimosos
cumpram a vontade de Deus, motivo pelo qual deve-se pregar a lei e anunciar-lhes as ameaças de Deus. Se isto é tudo
o que ele sabe fazer, então ele certamente conduzirá as pessoas ao inferno. Ao invés de bancar o policial em sua
congregação, ele deveria transformar os corações de seus membros para que estes, sem constrangimento, pudessem
fazer aquilo que agrada a Deus com um coração alegre e exultante. Aquele que tem a devida compreensão do que
representa o amor de Deus em Cristo Jesus, este fica assombrado diante deste fogo abrasador que enche céus e terra.
No momento em que ele crê neste amor, ele não pode fazer outra coisa senão amar a Deus e, em gratidão por sua
palavra, perguntar: “que posso fazer pelo seu amor e para a sua glória?”

24ª TESE
Em vigésimo lugar, a palavra de Deus não é aplicada corretamente quando o imperdoável pecado
contra o Espírito Santo é descrito como sendo imperdoável devido a sua grandeza.

Apenas a lei condena o pecado; o evangelho absolve o pecador de todos os pecados indistintamente. O profeta
escreve: “Ainda que os vossos pecados são como a escarlate, eles se tornarão brancos como a neve; ainda que são
vermelhos como o carmesim, se tornarão como a lã” (Isaías 1.18). O apóstolo Paulo escreve em Romanos 5.20: “Onde
abundou o pecado, superabundou a graça”.
Mateus 12.30-32 constata, em primeiro lugar, que toda blasfêmia contra o Pai e o Filho será perdoada; apenas
a blasfêmia contra o Espírito Santo não será perdoada. Agora, uma coisa é certa: o Espírito Santo não é uma pessoa
mais gloriosa ou mais exaltada do que o Pai e o Filho; ele é coigual a eles. Logo, esta passagem não pode estar
indicando que o pecado imperdoável é blasfêmia contra a pessoa do Espírito Santo; porque então em nada seria dife-
rente a blasfêmia contra o Pai e o Filho. A blasfêmia da qual fala o nosso texto dirige-se contra o ofício, a obra do
Espírito Santo. Quem despreza a obra do Espírito Santo está perdido; este pecado não lhe poderá ser perdoado. O
ofício, a obra do Espírito Santo consiste em chamar os homens para Cristo e conservá-los junto a ele.
Quem incorre neste pecado, “fala contra o Espírito Santo”. Isto mostra que o pecado em questão não é cometido
quando se tem pensamentos blasfemos no coração. Não raras vezes cristãos imaginam que incorreram neste pecado
quando são sobressaltados por pensamentos horríveis dos quais não conseguem se livrar. Nosso Senhor Jesus Cristo
previu isto; e por esta razão ele nos informou que a blasfêmia contra o Espírito Santo, que não será perdoada, tem de
ser proferida verbalmente.
Marcos 3.28-30: Aqui está relatada uma blasfêmia contra o Espírito Santo, que de fato se concretizou. Quando
Cristo expeliu demônios, os fariseus declararam que esta ação do Espírito Santo era uma obra do diabo. Eles estavam
convencidos de que se tratava efetivamente de uma obra divina, mas, já que o Senhor censura sua hipocrisia, foram
tomados de um ódio mortal contra Cristo, e isto fez com que blasfemassem contra o Espírito Santo.
Afirmar que uma obra do Espírito Santo é obra do diabo, quando se está convencido de que se trata de uma
obra de Deus, é blasfêmia contra o Espírito Santo. Não há cristão que ocasionalmente não resista à ação da graça
divina e então tente persuardir-se de que estava afugentando pensamentos obscuros. Esta doutrina nos adverte que, se
quisermos ser salvos, devemos de imediato render-nos à ação do Espírito Santo e não resistir tão logo a percebamos.
Porque a pessoa que resiste, no estágio seguinte dirá: “Isto não procede do Espírito Santo”. E o próximo estágio será
este: ele passará a odiar o caminho pelo qual Deus quer conduzi-lo à salvação, e finalmente blasfemará.
A menos que o Espírito Santo nos leve à fé, nunca chegaremos a ela. Todo aquele que rejeita o Espírito Santo,
exclui toda e qualquer possibilidade de ajuda, até mesmo da parte de Deus. Deus deseja que a ordem que ele estabe-
leceu para a nossa salvação, seja conservada. Ele não leva ninguém ao céu à força. Nosso texto refere-se à ocasião em
que Cristo curou o homem da mão ressequida e expulsou um demônio. Todos tiveram oportunidade de ver que o
poder de Deus estava invadindo o reino de Satã. Mas aqueles infames que assistiram a isto disseram: “Ah! Jesus está
possesso de Belzebu; é por isto que ele pode expelir os demônios de categoria inferior”. A própria ação que haviam
testemunhado, as obras e palavras de Cristo deixavam claro que ele investia contra o diabo e estava destruindo o reino
deste. Estava totalmente fora de cogitação imaginar-se que o diabo estaria ajudando Cristo nesta obra.
Hebreus 6.4-8: O que é característico neste pecado contra o Espírito Santo é que a pessoa que incorreu nele
não pode ser reconduzida ao arrependimento. Isto é simplesmente impossível. Não que Deus coloque o homem
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neste estado; é o pecador por sua própria culpa que ingressa neste estado de irrecuperável impenitência. Quando esta
situação atingiu um determinado grau de intensidade, Deus cessa de agir neste homem. A maldição caiu sobre ele, e
elimina-se qualquer outra possibilidade de salvação para esta pessoa. Por quê? Porque ele não pode ser levado ao
arrependimento.
1 João 5.16 nos traz uma importante informação, apenas que não podemos colocá-la em prática. porque, antes
da morte de alguém, não podemos dizer se ele cometeu pecado contra o Espírito Santo ou não. Mesmo que sua boca
profira blasfêmias, não sabemos até que ponto seu coração está envolvido. Igualmente não sabemos se o fenômeno
não pode ser explicado através de uma possível ação do diabo, ou se ele não age acometido de terrível cegueira
espiritual, e se ele não pode ser levado outra vez ao arrependimento. Nos dias dos apóstolos, os cristãos tinham o dom
de discernir os espíritos. Eis o que S. João quer dizer nesta passagem: “Tão logo vocês percebam que este ou aquele
indivíduo incorreu neste pecado, que Deus deixou de ser gracioso para com ele, vocês não devem desejar que Deus
volte a ser graciosos para com ele e devem deixar de orar por ele”. Também não podemos dizer a Deus: “Salva aqueles
que cometeram o pecado contra o Espírito Santo”.
Isto tudo pode parecer muito chocante; todavia, encerra um grande consolo. É possível que alguém lhe diga:
“Eu sou um homem miserável! Cometi o pecado contra o Espírito Santo. Estou absolutamente certo disto!” É possível
que esta pessoa aflita lhe apresente o mal que fez, disse e pensou. Pode ser que as evidências de fato indiquem que ela
blasfemou contra o Espírito Santo. Neste momento você deve lembrar a arma em que se constitui Hebreus 6 para um
caso destes: Este indivíduo de maneira alguma se alegra com o que está relatando; isto tudo é simplesmente terrível
para ele. E através disto você pode perceber que Deus, de qualquer forma, começou a operar o arrependimento nele;
tudo o que este indivíduo precisa fazer é apegar-se à promessa do evangelho. Caso você pergunte se ele cometeu todos
estes males intencionalmente, é possível que ele responda de modo afirmativo, mesmo sem querer. Às vezes isto
acontece. Entretanto, é Satanás quem fala através dele. E se então você perguntar se ele preferia não ter praticado
todas estas coisas, ele responderá: “Sim, de fato; tudo isto me traz a mais terrível preocupação”. Isto é um sinal evi-
dente de que Deus começou a operar o arrependimento neste indivíduo. Um caso destes não deve ser tratado leviana-
mente; deve-se mostrar ao que sofre que, no fato de haver nele um princípio de arrependimento, está uma prova
incontestável de que ele não cometeu o pecado contra o Espírito Santo. De modo geral, ao pregar sobre este assunto,
o pregador deveria empenhar-se mais em convencer seus ouvintes que eles não cometeram este pecado do que em
alertá-los a que não incorram nele. para aquele que realmente cometeu este pecado, de nada adianta a pregação. A
todo aquele que lamenta seus pecados e anseia por perdão deve ser dito que ele é um filho querido de Deus que,
todavia, está passando por uma terrível tribulação.
Este pecado é imperdoável não devido a sua grandeza, pois o apóstolo diz claramente, conforme já constata-
mos: “Onde abundou o pecado, superabundou a graça” – mas devido ao fato de a pessoa que comete este pecado
rejeitar o único meio pelo qual alguém pode ser levado ao arrependimento, à fé e à firmeza na fé.
Com respeito às pessoas que estão aflitas com a possibilidade de terem cometido o pecado contra o Espírito
Santo, deve-se dizer que, se elas realmente tivessem cometido este pecado, elas não sentiriam esta aflição, nem se
encontrariam nesta terrível situação; teriam, antes, prazer em continuamente blasfemar o evangelho. Contudo, cristãos
aflitos ainda têm a fé, e o Espírito de Deus está agindo neles; e se o Espírito de Deus está agindo neles, então não
cometeram o pecado contra o Espírito Santo.
Uma excelente exposição deste assunto pode ser encontrada na obra latina de Baier intitulada Compêndio de
Teologia Positiva. Diz ele na Parte II, cap III, § 24: “O mais grave de todos os pecados atuais, que é denominado
pecado contra o Espírito Santo, consiste numa negação maliciosa e em ataques blasfemos e obstinados à verdade
celestial que já fora conhecida pelo indivíduo que incorre neste pecado”.
A pessoa que cometeu o pecado contra o Espírito Santo é condenada, não tanto por causa deste pecado, quanto
por sua falta de fé. A causa geral de sua condenação é a falta de fé; a causa especial é a maliciosa e constante difamação
da verdade.

25ª TESE
Em vigésimo primeiro lugar, a palavra de Deus não é aplicada corretamente quando aquele que
ensina a palavra de Deus não permite que o evangelho tenha predomínio geral neste seu ensino.

Confunde-se e perverte-se lei e evangelho ao se anunciar a palavra aos ouvintes, não apenas quando a lei
predomina na pregação como também quando, por via de regra, existe um equilíbrio na aplicação de lei e evangelho
e não se dá ao evangelho o predomínio na pregação.
Lucas 2.14: O pregador celeste nos deu um exemplo de como devemos pregar. É verdade, devemos pregar a
lei; contudo, tão-somente em preparação ao evangelho. O objetivo último que nos leva a pregar a lei deve ser a pre-
gação do evangelho. Quem não procede assim, é tudo menos um ministro do evangelho.

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Marcos 16.15-16: Cristo comissionou seus apóstolos a que fossem a todo o mundo pregar o evangelho a toda
criatura. O simples termo evangelho já deixa claro diante deles que sua mensagem deve ser uma mensagem de alegria.
E para que eles não pensem que esta palavra é infinitamente grande, a ponto de ninguém ser capaz de abarcar seu
significado, ele imediatamente acrescenta as palavras: “Quem crer e for batizado será salvo”. Com estas palavras
Cristo pretende dizer: “É isto que eu entendo por evangelho”. E ele prossegue; “Quem, porém, não crer será conde-
nado”. Esta também é uma palavra amena. Sim, porque ele não afirma: “Quem pecou muito, por um longo período de
tempo, será condenado”, mas apenas constada que a única razão para a condenação do homem é sua falta de fé, sua
descrença. Seja quem for a pessoa; tenha ela pecado gravemente em sua vida passada; nada disto vai condená-la. mas,
fica claro que, se alguém se recusa a crer nas palavras de Jesus, será condenado. Esta inquietante referência à conde-
nação não tem outro propósito senão o de instruir os homens a que aceitem e não desprezem a mensagem graciosa de
Cristo. A ênfase nestas últimas palavras do Senhor não deveria ser esta: “Quem, porém, não crer será condenado”,
mas, sem: “Quem, porém, não crer será condenado”. Com isto Cristo quer dizer: “A sua condenação já foi removida;
seus pecados foram levados embora; o inferno eu o venci em seu lugar. Eu apresentei um sacrifício todo-suficiente. E
agora cumpre que você creia nisto para que seja salvo eternamente”.
1 Coríntios 15.3: Além de prestar ouvidos a esta afirmação do Apóstolo, pense também no dia em que você
será pastor de uma congregação. Faça, então, um voto a Deus de que adotará o método do Apóstolo que você não
subirá ao púlpito com o semblante triste, como se estivesse convidando alguém para um funeral, mas se apresentará
como aquele que pede a mão da noiva em casamento ou convida para um casamento. Caso você não misture lei e
evangelho, sempre subirá ao púlpito com alegria. O povo perceberá que você está cheio de alegria, porque está levando
a bendita mensagem de júbilo para sua congregação. Além do mais, perceberão que entre eles estão acontecendo
coisas grandiosas. Ah! muitos pregadores não passam por estas maravilhosas experiências; seus ouvintes permanecem
sonolentos; os avarentos continuam em seu pão-durismo. Por quê? Porque o evangelho não lhes é pregado suficiente-
mente. O povo americano que vai à igreja realmente deseja ouvir a palavra de Deus. Vivemos num país livre, onde
ninguém se preocupa se alguém vai à igreja ou não. De acordo com a vontade de Deus, o pregador deveria ter por
alvo proclamar o evangelho a seus ouvintes até que seus corações se comovam, até que eles deixem de resistir e
confessem que o Senhor tem sido forte demais para eles, e que agora desejam ficar ao lado de Jesus. Não basta que
você esteja cônscio de sua ortodoxia e tenha o dom de expor a doutrina pura de modo correto. Por mais importante
que isto seja, de nada adiantará se você incorrer em confusão entre lei e evangelho. E a mais perfeita confusão entre
ambos se dá quando o evangelho é pregado junto com a lei e contudo não é o elemento predominante no sermão. É
possível que o pregador pense que mui freqüentemente ele tem anunciado a verdade evangélica. Seus ouvintes, entre-
tanto, recordam apenas raras ocasiões em que ele pregou de modo verdadeiramente consolador e lhes disse que deve-
riam crer em Jesus Cristo. Agora, como crerão se o pregador não lhes disser como podem chegar a isto? Se você não
permitir que o evangelho predomine em suas pregações, muitos de seus ouvintes morrerão de fome espiritual. Tornar-
se-ão espiritualmente subnitridos, porque o pão da vida não é a lei e sim o evangelho.

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Índice Analítico

INTRODUÇÃO 2
A CORRETA DIVISÃO ENTRE LEI E EVANGELHO 6
1ª TESE 6
2ª TESE 8
3ª TESE 8
4ª TESE 10
5ª TESE 11
6ª TESE 12
7ª TESE 13
8ª TESE 14
9ª TESE 17
10ª TESE 23
11ª TESE 24
12ª TESE 26
13ª TESE 28
14ª TESE 29
15ª TESE 29
16ª TESE 31
17ª TESE 32
18ª TESE 34
19ª TESE 35
20ª TESE 36
21ª TESE 38
22ª TESE 41
23ª TESE 45
24ª TESE 47
25ª TESE 48

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