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Ijuí – RS
2015
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Ijuí – RS
2015
2
AGRADECIMENTOS
Millôr Fernandes
4
RESUMO
ABSTRACT
This work investigates the premises necessary to understand a text, as well as the
conceptions about language which are underlying the activities of interpretation,
seeking the possibility for a pedagogical practice guided by a hermeneutical
paradigm. Using Gadamer‘s hermeneutics, it investigates the problem of the
comprehension from a reflection about language as a means which constitutes the
way humans act in the world. Based on this premise, it is carried out a study about
the basic categories of Gadamer‘s philosophic hermeneutics, which will be the basis
for the reflections about language and, more precisely, about the literary language.
The theoretical approach involves, besides Gadamer‘s central philosophic
perspective itself, an investigation in the work of other researchers who dialogue with
that author. This work seeks to answer how comprehension happens when the act of
understanding ceases to be a procedure to be analyzed as a way of being. In
developing this research, under the form of a review, text interpretation is considered
in the light of the language‘s role in the constitution of the human life and in the
establishment of a tradition, highlighting the constitutive elements of Brazilian literary
canon. In order to demonstrate the fecundity of Gadamer‘s hermeneutic, it is taken as
the guide for reading a literary text, in a creative perspective that seeks to interact
with this one, carrying out the reading, among the multiple existing possibilities in the
game of the literary language. This work also investigates how the hermeneutic
comprehension may operate as a critic referential for the analysis of the reading
practices present in classroom contexts, offering, from the hermeneutics, indications
to give new dimensions for the pedagogical ways of working with literary texts. It
questions what is expected from literature to produce and what the literary work
produces on the subject-reader, hopping that literature is seen and proposed as an
experience which allows the fruition and, with that, the aggrandizement of the reader.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 7
1 A LITERATURA NO CURRÍCULO DA EDUCAÇÃO BÁSICA:
CONSIDERAÇÕES SOBRE O CÂNONE .................................................................. 15
2 LINGUAGEM E EXPERIÊNCIA HERMENÊUTICA EM GADAMER ...................... 27
2.1 LINGUAGEM E HORIZONTE EXISTENCIAL, SEGUNDO GADAMER ............... 27
2.2 OS TRAÇOS FUNDAMENTAIS DA EXPERIÊNCIA HERMENÊUTICA EM
GADAMER ................................................................................................................. 36
2.2.1 Autoridade e tradição...................................................................................... 38
2.2.2 Fusão de Horizontes ....................................................................................... 41
2.2.3 Círculo Hermenêutico ..................................................................................... 42
2.2.4 História Efeitual ............................................................................................... 45
2.2.5 Sentido de Pertença ........................................................................................ 47
2.2.6 Aplicação ......................................................................................................... 49
2.2.7 A Primazia Hermenêutica da Pergunta .......................................................... 50
2.2.8 A Abertura ao Diálogo..................................................................................... 51
2.3 A EXPERIÊNCIA HERMENÊUTICA E A OBRA LITERÁRIA ............................... 55
2.3.1 Linguagem e Sentido ...................................................................................... 57
2.3.2 Arte e Jogo....................................................................................................... 62
3 A LEITURA LITERÁRIA E A CONCRIATIVIDADE DE SENTIDOS ....................... 72
3.1 O NECESSÁRIO DIÁLOGO ENTRE O LEITOR E A OBRA ................................ 72
3.2 INTERMEZZO: UMA LEITURA CONCRIATIVA DE A FACE DO ABISMO.......... 77
4 FORMAÇÃO E EXPERIÊNCIA COM O TEXTO LITERÁRIO ................................ 93
4.1 ABERTURA À EXPERIÊNCIA ............................................................................. 95
4.2 A EXPERIÊNCIA DA LEITURA ............................................................................ 97
4.3 A LEITURA E A PRODUÇÃO DE SENTIDO DE MUNDO ................................. 100
4.4 EXPERIÊNCIA ESTÉTICA E FORMAÇÃO ........................................................ 102
4.5 FORMAÇÃO COMO TRADUÇÃO DO CONHECIMENTO ................................. 110
4.6 O CARÁTER FORMATIVO SUBJACENTE À AÇÃO EDUCATIVA .................... 113
CONCLUSÃO .......................................................................................................... 120
BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................... 124
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INTRODUÇÃO
Esse ―já estar iniciado nele‖ vem dos nossos estudos realizados na área da
Antropologia, principalmente de autores como Clifford Gertz, James Clifford (2002) e
Roberto Cardoso de Oliveira (1988), de onde, agora, retomamos a base teórica da
Antropologia Interpretativa. Base esta que se inspira na tradição filosófica
denominada hermenêutica, tendo em Geertz seu principal representante. É assim
que pretendemos que o paradigma hermenêutico seja também a base da nossa
11
Gadamer nos deu, com sua hermenêutica filosófica, uma lição nova e
definitiva: uma coisa é estabelecer uma práxis de interpretação opaca como
princípio, e outra coisa bem diferente é inserir a interpretação num contexto
- ou de caráter existencial, ou com as características do acontecer da
tradição na história do ser - em que interpretar permite ser compreendido
progressivamente como uma autocompreensão de quem interpreta (STEIN,
2013, p. 01).
Neste tópico trazemos uma reflexão sobre o potencial expressivo dos textos
literários, no sentido de que esses estão situados na história, de forma que a
literatura pode ser vista como um fenômeno artístico constitutivo da história do
pensamento humano, pois entendemos o literário como parte da tradição. Ao mesmo
tempo, com base no nosso referencial teórico, vemos a tradição como o que fica,
como discurso aberto a ser reconstruído.
Podemos dizer, com base em nossa experiência docente, que os programas
de literatura do Ensino Médio estão baseados, em grande parte, nos textos
considerados clássicos, até porque escola e cânone estão estreitamente vinculados
entre si. Dada a relevância e a atualidade dos clássicos no contexto escolar,
vejamos, a partir da hermenêutica, como os mesmos são tratados. Compreender um
clássico é introduzir-se no acontecer da tradição e da verdade que se apresenta. ―A
arte dos tempos mais antigos só alcança-nos pela passagem do filtro do tempo e da
tradição conservada viva, transformando-se de modo vivo‖ (GADAMER, 1985, p.
79). Dar continuidade à tradição é revitalizá-la com novos sentidos, não meramente
conservá-la como um legado entendido ao modo de dogmas recebidos. Não se
trata, portanto, de produzir o ato mental passado que deu origem ao escrito. O
esforço da compreensão deve ser pensado como um retroceder que penetra num
acontecimento da tradição, pois na compreensão acontece uma mediação de
passado e presente. Ainda devemos considerar que ―uma obra com sentido é aquela
que continua ecoando em cada um de nós‖ (ROHDEN, 2008, p. 52). Tal mediação
não é exclusiva nem especial do clássico. Nesse caso, simplesmente, sai à luz com
especial evidência algo que pertence à essência da tradição.
Na tentativa de compreender a relevância do cânone da literatura brasileira é
que fazemos uma abordagem de como a literatura é ensinada no Ensino Médio,
tendo presente as palavras de Gadamer de que ―o panteão da arte não é uma
atualidade atemporal que se revela à consciência estética pura, mas a obra de um
espírito histórico que se reúne e se congrega historicamente‖ (2008, p. 149). O
professor, ao ensinar o cânone literário aos estudantes, não impõe um culto do
passado, mas oferece-lhes a possibilidade de conhecê-lo, para compreender o
presente e preparar o futuro, de forma que aí se dê uma verdadeira fusão de
horizontes. Como sugere Chris Lawn, ―a ideia de fusão de horizontes1, de alguma
1
No segundo capítulo desta tese faremos uma abordagem do conceito de fusão de horizontes,
segundo Gadamer.
17
Ler, porém, não é soletrar e pronunciar uma palavra após a outra mas,
principalmente, realizar o movimento hermenêutico constante que é
comandado pela expectativa do sentido do todo e preenche-se, a partir de
cada parte individual, finalmente na elaboração significativa do todo
(GADAMER, 1985, p. 45-46).
2
O conceito de jogo será detalhadamente abordado no próximo capítulo.
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Também a Estética da Recepção pretende abordar a arte enquanto processo dinâmico entre autor,
público e obra.
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separada, tem que unir-se com a pergunta que a tradição forma para nós. Jauss,
seguindo Gadamer, defende a impossibilidade de reconstrução do horizonte
histórico original, pois este sempre será abarcado pelo horizonte presente. Sempre
haverá, portanto, uma fusão de horizontes, outro conceito de Gadamer, que será
recuperado por Jauss, considerado o fundador da Estética da Recepção4.
No momento da leitura de uma obra clássica, o horizonte de expectativas do
leitor estará em constante diálogo com o horizonte de expectativa da obra.
Nessa perspectiva hermenêutica a literatura é inconcebível sem o leitor, cuja
atividade é imprescindível para a significação das obras, a fim de efetuar, com isso,
a referência ao mundo presentificado pelo texto, inclusive do clássico, e apropriar-se
do sentido aberto pelo mesmo. Nas palavras de Gadamer (2008, p. 380-81):
[…] o clássico é uma verdadeira categoria histórica por ser mais do que o
conceito de uma época ou o conceito histórico de um estilo, sem que por
isso pretenda ser uma ideia de valor supra-histórico. Não designa uma
qualidade que deva ser atribuída a determinados fenômenos históricos,
mas, sim, um modo característico do próprio ser histórico, a realização
histórica da conservação que, numa confirmação constantemente renovada
torna possível a existência de algo verdadeiro.
4
A aula inaugural proferida por Hans Robert Jauss, em 1967, na Universidade de Constança, por
motivo da celebração do sexagésimo aniversário de Gerhad Hess, reitor da Universidade de
Constança com o título de Literaturgeschichte als Provokation der Literaturwissenschaft (traduzido
para o português, em 1974, por Ferreira de Brito como: A História Literária como provocação à
Ciência Literária), costuma ser referida como ponto de partida da Estética da Recepção
(Rezeptionsästhetik). A partir de então se formou a chamada "Escola de Constança", tendo à frente
Hans Robert Jauss e reunindo outros nomes como Wolfgang Iser, Hans Neuschäfer, Hans U.
Gumbrecht, Karlheinz Stierle e Manfred Fuhrmann (conforme LIMA, em A Folha de São Paulo, 18 de
março de 2007. http://www1.folha.uol.com.br/fsp/inde18032007.shl).
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significar, portanto, ter linguagem e ter mundo, onde esse ter significa algo bem
diferente de dispor de ou dominar. Essa condição fundamental implica por sua vez
que o ter mundo se realiza como pertencimento a uma comunidade vital articulada
por uma linguagem comum, pois ―foi exatamente por adotar padrões de interação
com o meio e com os demais já não determinados instintivamente que a espécie
humana se constituiu em espécie cultural e social, ou seja, passou a ter um mundo‖
(BOUFLEUER, 2013, p. 76). Todas as formas de comunidade humana de vida são
formas de comunidade linguística. A palavra nos dá o acesso à verdade e ao
conhecimento, pois é a partir dela que criamos o mundo. A linguagem tudo envolve.
O diálogo hermenêutico e a compreensão são possíveis porque existe uma
comunidade linguística que compartilha uma mesma tradição, tanto atual como
histórica.
Ao questionar como se dá a linguagem Gadamer nos aponta três aspectos:
- O primeiro é o esquecimento essencial de si mesmo que advém à
linguagem. Quando falamos não pensamos na estrutura, na gramática, na sintaxe
da linguagem.
- O segundo aspecto do ser da linguagem é a ausência de um eu. Quem
fala, fala a alguém. Seguindo as reflexões de Oliveira (2006), podemos dizer que
Humboldt coloca a intersubjetividade, que se manifesta nas diferentes perspectivas
dos participantes da comunicação, na base do entendimento entre si sobre algo no
mundo. Também para Gadamer a realidade do falar consiste no diálogo.
- O terceiro aspecto o autor chama de universalidade da linguagem, e isso
está relacionado à universalidade da razão.
Manfredo de Oliveira5 faz uma ampla descrição da pragmática existencial de
Martin Heidegger. Desse autor, ressaltamos a importância da hermenêutica como
possibilidade de entendimento do nosso cotidiano, como compreensão do ser e das
coisas do nosso mundo. Contra o pensamento moderno, Heidegger situa o estar em
um mundo, o compreender, antes do pensar, porque o nosso ser no mundo é
5
Manfredo Araújo de Oliveira no seu livro ―Reviravolta Linguístico-Pragmática na Filosofia
Contemporânea‖ apresenta, sob o ponto de vista da filosofia, um panorama de como foi entendida a
linguagem, desde a semântica tradicional, que se inicia com Platão e Aristóteles e vai até a primeira
fase de Wittgenstein; considerando a reviravolta pragmática, que se inicia ainda com Wittgenstein, em
oposição a ele mesmo com a proposta da pragmática analítica; passa pelas teorias dos atos de fala
de John Austin e John Searle, e aborda a pragmática existencial de Heidegger; chegando à
reviravolta hermenêutico-transcendental, composta pela hermenêutica de Gadamer, a pragmática
transcendental de Karl-Otto Apel e a pragmática universal de Habermas.
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sempre linguisticamente mediado, de tal maneira, que é por meio da linguagem que
ocorre a manifestação dos entes a nós. Este giro ontológico realizado por Heidegger
em relação aos conceitos de compreensão e interpretação ligados à facticidade,
acontece porque estamos lançados a um mundo que possui uma ordem e formas de
funcionamento que, finalmente, lhe outorga um sentido tal que nosso acesso ao
mundo se leva a cabo como um acesso compreensivo e interpretativo. Assim, é a
linguagem que nos determina e, se o ser emerge enquanto linguagem, esta é o
caminho necessário de nosso encontro com o mundo.
A posição de Heidegger impulsiona o giro hermenêutico descrito por
Gadamer na filosofia, que torna fecundas as intuições de seu mestre a respeito do
processo de compreensão e de interpretação desenvolvidos pelas ciências do
espírito, ampliando o campo de compreensão a partir da categoria dialógica como
um saber peculiar que se articula do ainda não dito, considerando esse como uma
fonte de significação por explorar.
Jean Grondin na abertura de seu trabalho Introdução à Hermenêutica
Filosófica (1999), resenha o aparecimento do termo hermenêutica no século XVII
designando-a como ―ciência ou arte da interpretação‖ (p. 23); uma ciência que
pretende oferecer regras que evitem a arbitrariedade no exercício interpretativo.
Trata-se, pois, de um sentido metodológico da hermenêutica relacionado com
disciplinas a que serve de auxílio na interpretação dos textos que constituem sua
fonte e objeto principal.
Grondin, no entanto, prefere falar de uma hermenêutica filosófica, mais
recente, a qual é apresentada em um sentido que ele qualifica como mais restrito,
posto que ―designa a posição filosófica de Hans-Georg Gadamer, e eventualmente
também a de Paul Ricoeur‖ (1999, p. 24). Reconhece, claro está, o papel da
contribuição dos que antecederam a obra destes dois autores e, adicionalmente,
menciona Schleiermacher, Droysen, Dilthey e Heidegger como predecessores.
Mas é Gadamer que ocupa uma posição paradigmática frente à tradição
hermenêutica, pois,
hermenêutico à sua real agudeza‖ (p. 360). Assim, decorre a crítica do autor de que
há um preconceito iluminista contra os preconceitos em geral e a consequente
despotenciação da tradição. O fato de o conceito de preconceito receber uma
conotação negativa se deve a esse ideário. Como vem sendo tratado nesta tese, o
termo preconceito não significa falso juízo, mas juízo não fundamentado ou esboço
antecipado do conceito. Junto com o preconceito ao termo preconceito está também
a falta de reconhecimento do papel da tradição. A tradição não se configura apenas
como uma transmissão de valores e conceitos válidos de uma vez por todas, mas
principalmente como produção de sentido.
O problema hermenêutico não consiste, então, em eliminar os preconceitos,
uma vez que eles são necessários para alcançar a compreensão. ―Os preconceitos
têm para o filósofo uma função orientadora, sem a qual não se poderia sequer lançar
uma pergunta ao texto que se tem à frente‖ (FLICKINGER, 2014, p. 46). A questão é
distinguir entre preconceitos verdadeiros e falsos, considerando a existência de
pressupostos legítimos de compreensão. A distância temporal trabalha como um
filtro permitindo o aparecimento dos preconceitos que realmente contribuem para a
compreensão. De acordo com Gadamer (2008, p. 395):
façamos uso da própria razão‖ (2008, p.368). Apresenta-se, assim, uma distinção
baseada na oposição excludente entre autoridade e razão. O autor ainda destaca
que tal preconceito não só difama o conceito de autoridade, como também levou a
uma grave deformação desse conceito, (p. 370) sendo referido como oposto de
razão e de liberdade, significando obediência cega.
O autor fala da autoridade como atribuição a pessoas, pois o fundamento da
autoridade está num ato de reconhecimento e de conhecimento: ―reconhece-se que
o outro está acima de nós em juízo e visão, por consequência, seu juízo precede, ou
seja, tem primazia em relação ao nosso próprio juízo‖ (p. 371). Sem isso não nos
abrimos à alteridade.
A autoridade da tradição não depende apenas de um consentimento racional
sobre ela, pois sua validade não se restringe ao plano da razão. ―É isso,
precisamente, que denominamos tradição: ter validade sem precisar de
fundamentação‖ (GADAMER, 2008, p. 372). Apesar dessa afirmação, o autor
declara que entre a tradição e a razão não existe nenhuma oposição incondicional,
porque a tradição sendo conservação, e como tal atuando nas mudanças históricas,
é um ato da razão, pois, ―a conservação representa uma conduta tão livre como a
destruição ou a inovação‖ (p. 374), visto que a tradição não é algo estático sobre o
que seja possível se referir objetivamente, já que estamos inseridos nela e essa
inserção não é objetiva, nem pode ser pensada como estranha ou alheia. Para a
hermenêutica a tradição se reveste de importância, pois é nesse contexto histórico
que o sujeito emerge como sujeito. Por isso que os prejuízos de um indivíduo são,
muito mais que seus juízos, a realidade histórica de seu ser.
A tradição, de maneira especial, se impõe como valor. Somos seus
herdeiros, estamos nela e somos produto do passado; no entanto, como afirma
Gadamer, não nos é lícito ficarmos nela. A prática hermenêutica implica desinstalar-
se do tradicionalmente dado, consagrado pela história oficial, inclusive da
hegemonia dos métodos das ciências naturais, e explorar as possibilidades das
humanidades, necessariamente transitando entre o teorizado e o aplicado.
Quando o autor se refere à investigação feita pelas ciências do espírito
observa que entre a compreensão nessas ciências e a sobrevivência das tradições
há uma pressuposição fundamental que é a de serem interpeladas pela própria
tradição. A interpelação desacomoda, exige resposta. A essência da tradição
aparece na diversidade de vozes do passado, pois ―o que satisfaz nossa consciência
40
6
Chris Lawn, estudioso da obra de Gadamer, observa que nas produções posteriores a Verdade e
Método houve ―um deslize quase imperceptível da fala sobre a tradição para aquela da solidariedade‖
(2011, p. 139), alertando, contudo, que a mudança de um termo para o outro tem uma certa
plausibilidade lógica, já que ―a linguagem e a história são sinônimos da tradição. Da mesma forma, a
linguagem e a história pressupõem formas de solidariedade‖ (2011, p. 140). Uma vez que nossa
investigação está baseada nos conceitos de Verdade e Método, manteremos o primeiro termo em
nossas discussões teóricas.
41
texto forma parte do todo da tradição na qual cada época tem o interesse objetivo e
onde ela também procura compreender a si mesma‖ (GADAMER, 2008, p. 392). Por
isso, nos momentos de confronto com a tradição há a partilha de preconceitos
comuns, que ligam a ela mesma os que pretendem negá-la. O sentimento de
pertença é o momento da tradição no comportamento histórico-hermenêutico que se
realiza através de preconceitos fundamentais e sustentadores e possibilita a
interpretação. Dentre os preconceitos, Gadamer destaca o preconceito da perfeição.
Tal preconceito faz a exigência formal de que um texto deve expressar perfeitamente
sua opinião e pressupõe que aquilo que ele diz seja uma verdade perfeita (2008, p.
390).
Levando em consideração que a condição hermenêutica suprema é de que
―[...] a compreensão começa onde algo nos interpela‖ (GADAMER, 2008, p. 395) e
que a interpelação exige uma resposta, podemos dizer, baseados nessa ideia, que o
texto traz em si uma pergunta. Mas precisamos estar atentos à ameaça de nos
apropriarmos do outro, na compreensão, e com isso ignorar sua alteridade. Por isso
Gadamer diz que a essência da pergunta é manter abertas as possibilidades,
mesmo quando o que o outro ou o texto nos diz seja questionável.
Não se alcança a verdade sem interpelação e sem resposta, ou seja, sem o
consenso obtido. ―O compreender recíproco significa, antes, entender-se sobre algo‖
(GADAMER, 2011, p. 70). Mas a verdade nos ultrapassa, não está com quem fala.
Ela, no seu todo, é que abarca os falantes.
Essa atitude torna muito mais importante o que fazemos no ensino da
literatura. Não apenas ensinamos fatos, mas também abrimos outras realidades
emergentes, outras verdades. Isto permite uma nova justificação para a leitura de
textos literários. Podemos levar a verdade para os alunos, que não é uma verdade
científica, mas uma revelação interessante de como as coisas são. Adotamos aqui
uma concepção não metafísica da verdade como abertura radicada na busca
sempre provisional do sentido da experiência humana.
A estrutura da compreensão na obra de Gadamer está composta por uma
recuperação do valor hermenêutico de conceitos analisados anteriormente, tais
como preconceitos, círculo hermenêutico, fusão de horizontes, história efeitual,
dentre outros. Por isso, e para que realmente se realize a tarefa hermenêutica,
destacamos a importância que possui o conceito gadameriano de pertencimento à
49
2.2.6 Aplicação
encontrar nesse outro uma abertura para que o fio da conversa possa fluir
livremente. Gadamer prenunciava as consequências negativas ao diálogo que
adviriam das técnicas de informação, que não oferecem, como no caso da conversa
telefônica, as reais condições para um verdadeiro diálogo, já que aí não é possível
perceber a disposição do outro para entrar em diálogo. "A questão da incapacidade
para o diálogo refere-se, antes, à possibilidade de alguém abrir-se para o outro e
encontrar nesse outro uma abertura para que o fio da conversa possa fluir
livremente" (p. 244). Isso porque são as objeções ou aprovações, compreensão ou
mal-entendidos advindos do diálogo com os outros que nos permitem uma espécie
de expansão da nossa individualidade e um experimento da possível comunidade a
que nos convida a razão (p. 246). A linguagem (dialógica) é compreendida como
uma ação de ―medir-se‖ diante dos outros, perceber-se em sua diferença e falta; é a
possibilidade de ver no outro uma resistência ao nosso modo de ser, de nos
comportar, de nos perceber. Um dos pressupostos básicos do diálogo é que os
parceiros se encontrem desde o início abertos à possibilidade de transformação
oriunda do diálogo e não há nenhum princípio superior ao de abrir-se ao diálogo, ou
o de pôr-se em perspectiva.
É nessa direção que entendemos a afirmação de Gadamer de que ―o que
perfaz um verdadeiro diálogo não é termos experimentado algo de novo, mas termos
encontrado no outro algo que ainda não havíamos encontrado em nossa própria
existência de mundo‖ (2011, p. 247). Daí a força transformadora do diálogo,
entendido agora como uma testagem de percepções. Um diálogo deve partir de um
acordo mínimo e também de um desacordo mínimo. O acordo vem garantido pela
linguagem comum, graças à qual os interlocutores estão situados a priori na mesma
constelação hermenêutica, no horizonte de sentido compartilhado. Os interlocutores
primeiro devem falar a mesma linguagem para, logo, poder abordar as diferenças. E
é importante que existam essas diferenças porque, se o acordo sobre a coisa for
total, a conversação seria absurda, ou nunca teria lugar. Só quando existe um
acordo mínimo sobre os conteúdos pode-se debater acerca das razões dos
mesmos.
Rohden (2008, p. 158) faz uma distinção entre conversa e diálogo. Na
conversa trocam-se informações:
53
Daí a lugar privilegiado que pode ocupar a literatura na escola. Nesse sentido, a
atividade literária não difere da estrutura de um diálogo em que o escritor, ou leitor,
põe as palavras num fio condutor em que já não são exatamente as palavras, mas
sim momentos de um discurso que vai sendo pronunciado.
Segundo Gadamer, o ponto de partida para relacionar a atividade
hermenêutica com a literária está relacionado ao que é essencialmente a leitura.
Esta se identifica com um âmbito vasto em que as ações giram em torno de um
sentido sobre o qual se sustenta a atitude ouvinte ou leitora. Os elementos deste
âmbito estão contidos na atividade humana do dialogar; a qual representa, não só o
nexo entre hermenêutica e literatura, mas também o resultado de uma essência, a
saber, a do ser que compreende, pois da intenção deste surge o diálogo como
direção a um sentido. Justamente nisso se funda o que entendemos como caráter
hermenêutico do texto literário.
De tudo isso, podemos perceber que a particularidade da obra literária está
orientada à permanência de um discurso que segue de algum modo um sentido
prévio a ele, de onde falar ou escrever é a realização de tal sentido, a partir do que
se disse, desde a palavra mesma. Diálogo e sentido estão, portanto, intrinsecamente
unidos, pois um sentido não existe sem uma atitude dialógica que a realize, e um
verdadeiro diálogo só existe se mantém um sentido que corresponda ao bom
entendimento, ou seja, ao ato e vontade de compreender. Esta palavra chave,
sentido, passa a ser definida como direção.
Na medida em que assumimos uma postura hermenêutica podemos
entender o alcance dos enunciados gadamerianos e sua importância para a
educação e, mais especificamente, para os estudos literários.
Com isso chegamos ao conceito que move nossa pesquisa, que é o da
experiência hermenêutica e a obra de arte. Problematizamos, assim, o ensino da
literatura, questionando como se dá a compreensão dos textos literários com base
hermenêutica, por entendermos que esse referencial se sustenta na tradição,
respaldando e respondendo nossas indagações decorrentes da atividade docente.
7
O conceito de experiência será retomado no IV capítulo desta tese, quando o relacionaremos com a
experiência da leitura.
57
palavras isoladas não têm sentido. Convém destacar que não têm sentido, mas não
que não têm significado. O significado as palavras têm, podem mudar, inclusive,
porém o sentido se dá na linguagem, é o que permite a relação entre as palavras.
Por isso um texto não se reduz a um conjunto de palavras, mas sim a uma
unidade de sentido que tem que ser compreendida. O mesmo se pode entender a
respeito do eu e do tu, o eu separado não existe, e tampouco o tu independente.
Eles se dão precisamente na relação, a relação é o que dá sentido, e não a
separação, até podem existir de maneira separada, porém a relação é o que permite
que existam como eu e como tu. No que se refere ao sentido, este não está dado
pela palavra isolada, mas tem a ver com o contexto, com a tradição e com aquilo
que realmente se quis dizer, isto significa que o sentido faz referência a outros, visto
que ―[...] o sentido de uma frase é relativo à pergunta a que ele responde e isso
significa que ultrapassa necessariamente o que é dito nela‖ (GADAMER, 2008, p.
482). O sentido, por outra parte, tampouco corresponde à estrutura gramatical ou à
semântica. Não se refere ao significado das palavras ou a sua ordem dentro da
oração, mesmo que isso seja importante na linguagem.
compreendemos podemos formar uma ideia sobre o autor do texto ou fazer uma
interpretação histórica da tradição.
Para Gadamer, a escrita ocupa o centro do fenômeno hermenêutico, porque
pela escrita o texto adquire uma existência autônoma, independente do escritor ou
do autor e de um destinatário ou leitor. Na literatura como obra de arte escrita se
cumpre plenamente a concepção que o autor tem da obra de arte como ser. Em
consequência, a ―especificidade artística da literatura só pode ser concebida a partir
da ontologia da obra de arte, e não a partir das vivências estéticas que vão
aparecendo ao longo da leitura‖ (GADAMER, 2008, p. 226). A ontologia da obra de
arte é que faz que passem ao primeiro plano a escrita e a leitura frente à
declamação do rapsodo ou à argumentação do retórico. A essência da literatura não
está na argumentação como no caso da retórica, e sim no poder dizer da linguagem,
na expressão.
Gadamer alerta que a compreensão não é uma transposição psíquica, uma
vez que ―o horizonte de sentido da compreensão não pode ser realmente limitado
pelo que tinha em mente originalmente o autor, nem pelo horizonte do destinatário
para quem o texto foi originalmente escrito‖ (2008, p. 511). Assim, ao mesmo tempo
em que a obra é criação, no sentido de fundar, iniciar, ela só se realiza plenamente
no conservar. Para o autor os textos literários possuem uma espécie de exigência ao
oferecer-se à leitura. Porém não é uma exigência que indique a forma como devem
ser lidos, mas uma aparição da palavra cujo significado próprio é também o do texto,
e cuja pronunciação é também a de sua razão de ser. Trata-se de uma pretensão
viva do texto, não da recapitulação do que pensou o autor ao escrevê-lo.
Nosso autor comenta que houve uma preocupação com a criação artística
manifestada pelo romantismo e predominante no século XIX, quando ―[...] o conceito
de gênio elevou-se a um conceito de valor universal e experimentou, junto com o
conceito de criatividade, uma verdadeira apoteose‖ (GADAMER, 2008 p. 104),
girando muito em torno da estética do gênio de Kant onde o autor é visto como um
gênio que cria sem regras e o sentido tende a ser descoberto na intenção desse
gênio criativo. Deriva dessa concepção a chamada genialidade da compreensão
sendo o encontro com a obra de arte sempre a possibilidade de uma nova produção,
transferindo ao leitor e ao intérprete o poder pleno de criação absoluta. Por isso
conclui que ―[...] a genialidade da compreensão não oferece, na verdade, nenhuma
informação melhor que a genialidade da criação‖ (p. 146). Em contraposição à
62
comunicativo, que elimina a distância entre quem joga e quem se vê frente ao jogo;
―ele é, como alguém que participa do jogo, parte dele‖ (p. 40). Porém, não são todos
os observadores que participam do jogo. Da mesma forma, a obra exige respostas
que alguns se encontram aptos para fornecer. Somente esses são parceiros no jogo.
Identifica-se uma obra como tal quando se consegue perceber que ela diz algo para
alguém; quando se entende que há algo que deve ―ser compreendido‖; mesmo que
esse algo a ser compreendido não seja ―algo conceitual ou significativo‖ (p. 40).
Jogador e jogo se reúnem no mesmo acontecimento. No jogo ―algo‖ se dá a
compreender. ―O que constitui a essência do jogo são as regras e disposições que
prescrevem o preenchimento do espaço lúdico‖ (p. 160).
Gadamer caracteriza o ser do jogo como realização pura, referindo-se à
mudança em que o jogo humano alcança sua verdadeira consumação, em que esse
possui uma autonomia absoluta, tornando-se arte. A transformação ―significa que
algo se torna uma outra coisa, de uma só vez e como um todo, de maneira que essa
outra coisa em que se transformou passa a constituir seu verdadeiro ser, em face do
qual seu ser anterior é nulo‖ (2008, p. 166). A autonomia do jogo permite entender,
por outra parte, que o jogo é autorrepresentação. O cumprimento de uma tarefa o
torna presente, representa. Não tendo nenhuma finalidade alheia a si mesmo, o jogo
se limita realmente a representar-se. Seu modo de ser é, pois, autorrepresentação.
―No jogo, conserva-se e supera-se o dualismo metafísico, uma vez que nele
integram-se, por um lado, regras que são fixas, válidas universalmente e, por outro
lado, exige-se um jogador que as jogue criativamente‖ (ROHDEN, 2008, p. 51),
nesse contexto jogar é sempre já um representar.
Por isso o jogo é apresentado como fio condutor da explicação ontológica da
obra de arte, porque ele tem uma natureza própria, independente da consciência
daqueles que jogam, assim como o que fica e permanece na experiência da arte não
é a subjetividade de quem a experimenta, mas a própria obra de arte.
Na representação estão implicados tanto o artista como o intérprete ou o
espectador. Assim, o encontro com a obra de arte é uma real experiência da
verdade que modifica a quem a tem. A variedade das possíveis interpretações é
requerida pelos possíveis modos de ser da obra, e essas interpretações constituem
um processo histórico cujo sujeito é a obra mesma, e não as subjetividades dos
intérpretes. Não tem sentido, por isso, falar de uma única interpretação justa. Toda
interpretação tende a ser adequada, porque através das interpretações o que
65
Se trata de leer, con todas las antecipaciones y vueltas hacia atrás, com
esta articulación creciente, con esas sedimentaciones que mutuamente se
enriquecen, de tal modo que, al final de ese ejercicio de la lectura, la
conformación, aun con toda su articulada abundancia, se vuelve a fundir en
la unidad plena de una declaración (GADAMER, 2006. p. 262).
como uma forma de vida, ―enquanto médium no qual nos constituímos, pensamos e
somos, poderemos encontrar e explicitar um conjunto de dimensões próprias da
filosofia e da literatura através do fio da linguagem‖ (2008, p. 190). Essa linguagem
contém e remete a uma ponta de mistério. O autor destaca as profícuas relações
entre filosofia e literatura em função da perspectiva da compreensão que as une,
pois tanto uma como a outra ―comungam do projeto de indagar e responder à
pergunta quem é o homem?‖ (2008, p.198).
texto filosófico surgem como lugares privilegiados onde o leitor se constrói como
sujeito. Por isso, em alguns momentos as mesmas se confundem, considerando que
muitas vezes a literatura traz implícitos os grandes debates desenvolvidos na
filosofia.
Após abordarmos aspectos relevantes da hermenêutica gadameriana e
destacarmos o status da linguagem literária no contexto da reviravolta linguística,
nossa pesquisa se volta, no próximo capítulo, para o potencial concriativo da
narrativa literária como possibilidade de pensar nosso acesso sempre implicado ao
sentido ou verdade do texto.
Considerando que a característica universal da formação é ―o manter-se
aberto para o diferente, para outros pontos de vista mais universais‖ (GADAMER,
2008, p. 53), foi de fundamental importância termos aprofundado os conceitos acima
enunciados. A partir desses referenciais da hermenêutica buscaremos desenvolver,
mais adiante, no capítulo IV desta tese, uma reflexão sobre o conceito de formação,
que pressupõe uma tarefa hermenêutica decisiva, devendo ser entendido como o
conjunto de conhecimentos e emoções que constituem o homem, como resultado de
seu esforço de interpretação dos conteúdos da tradição na qual está imerso.
72
Na narrativa literária, "o julgamento moral não é abolido, ele é, antes, ele
mesmo submetido às variações imaginativas próprias da ficção‖ (RICOEUR, 1991, p.
194). Para esse autor ―a literatura é um vasto laboratório onde são testadas
estimações, avaliações, julgamento de aprovação e de condenação pelos quais a
narrativa serve de propedêutica à ética‖ (p. 140). Ricoeur ilustra o modo no qual a
narração, como faculdade humana universal, articula os acontecimentos transmitidos
pela tradição dentro de unidades de ação dotadas de sentido, a partir dos próprios
enlaces temporais que contribuem para estabelecer indefinidamente a própria trama.
Narrar, pois, é trocar experiências, é viver. A narrativa é fundamentalmente
mediação entre uma experiência anterior e uma experiência posterior à qual se
dirige, dá sentido, completa e realiza uma experiência que é configurada na
linguagem ao ser narrada a outro, que por sua vez, a reconfigurará em sua situação
própria, dando-lhe uma nova configuração.
Conforme estudo de Rohden (2009), existem traços filosóficos na obra
literária, pois "algumas mais, outras menos, as obras literárias narram e expressam
o sentido da vida, do mundo, das coisas, de uma maneira peculiar, às vezes tão
intensa quanto uma obra filosófica" (p. 68-69). Pela sugestão dessa
interdisciplinaridade entre a filosofia e a literatura, podemos abordar elementos
comuns às duas disciplinas.
Assim como a literatura, também a filosofia ―nasceu e se constitui,
originariamente, oralmente‖ (ROHDEN, 2008, p. 195). As raízes do romance se
confundem com o discurso dos jograis, que recitavam nas barracas de feira, com as
canções de ruas, com os provérbios e anedotas. O que se perpetuou como
literatura, foi, na sua origem, literatura popular, que tem como característica
intrínseca, além da exemplaridade, um forte conteúdo de verdade humana, de modo
que o discurso romanesco reage de maneira muito sensível às variações da
atmosfera social. "A linguagem do romance, estando tão perto das estruturas da fala
76
Ao interpretar o leitor não irá simplesmente confirmar o que foi dito no texto,
mas estará criando, com o texto, ou ainda, como sugere Ronaldes de Melo e Souza,
concriando um novo evento de compreensão. Pois se o texto supõe uma pergunta,
cuja resposta latente está nele mesmo, buscamos, com base em um mundo comum,
respondê-la, lembrando que ―a latência de uma resposta pressupõe, por sua vez,
que aquele que pergunta foi atingido e se sente interpelado pela própria tradição‖
(GADAMER, 2008, p. 292). Se nos colocamos em situação de diálogo com o texto
temos presente ainda que ―toda conversação pressupõe uma linguagem comum, ou
melhor, toda conversação gera uma linguagem comum‖ (p. 493), trazendo
novamente à fala o dito ou escrito no texto.
8
Charles Kiefer é natural de Três de Maio (RS), onde nasceu em 05 de novembro de 1958. Estreou
na ficção em 1982 com Caminhando na Chuva, novela de temática adolescente que já vendeu mais
de 100.000 exemplares. Em 1985 Kiefer ganhou projeção nacional com a novela O Pêndulo do
Relógio, agraciada com o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro. Em 1988 publicou, pela
Editora Mercado Aberto, o romance A Face do Abismo. Em 1993, com o livro de contos Um Outro
Olhar o escritor recebeu outro Prêmio Jabuti. E em 1996, com Antologia Pessoal, o terceiro Prêmio
Jabuti. Recebeu também o Prêmio Altamente Recomendável para Adolescentes, pela Fundação
Nacional do Livro Infantil e Juvenil, em 1986, para o livro infanto-juvenil Você Viu Meu Pai Por Aí?,
entre outros.
78
romance‖ (KIEFER, 1988, p. 23)9. Mesmo que o leitor perceba que a história contada
no romance se refere às memórias de Alberta, o que ela conta é contado por um
narrador pressuposto. O leitor pode até supor que o narrador seja este neto, mas em
nenhuma passagem do texto vamos encontrá-lo como tal.
Atentos à riqueza e ao poder evocativo da linguagem literária é que
podemos dizer que o título A face do abismo sugere uma imagem que será o topos
definidor da narrativa e, como um rótulo, vai evocar uma metáfora primordial, própria
da linguagem bíblica, pois para a cultura ocidental e no contexto referencial em que
esta obra foi criada, a fala da Bíblia expressa a fala primordial: ―O Espírito de Deus
pairava sobre a face do abismo‖ (Gênesis 1:2). ―E a terra era sem forma e vazia; e
havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das
águas‖ (Gênesis 1:2).
É expressiva a evocação ao valor simbólico das águas, pois, segundo a
tradição, elas precedem toda a forma e suportam toda a criação. Acompanhemos a
conceituação de símbolo proposta por Gadamer: ―Símbolo... é antes de tudo uma
palavra técnica da língua grega e significa pedaços de recordação. Um anfitrião dá a
seu hóspede a chamada ―tessera hopitalis‖. É algo com que se reconhece em
alguém um antigo conhecido‖ (1985, p. 50). Ou seja, o símbolo é aquilo em que se
reconhece algo. Porém, esse reconhecimento não significa ver novamente, mas sim
remeter à completude original que gerou tais pedaços de recordação. Assim, o
simbólico na arte alude a fragmento que busca complementar-se, no particular de
um encontro com a arte se experimenta a totalidade do mundo, a posição do ser do
homem no mundo, nossa historicidade e finitude frente à transcendência. Dessa
forma, a representação simbólica que leva à arte prescinde de qualquer
dependência com coisas dadas a priori. Seu simbolismo remete a si mesmo e
garante a significação a que remete, ―na representação que uma obra de arte é, ela
não representa algo que não é, não sendo, portanto absolutamente uma alegoria, ou
seja: ela não diz algo, para que se pense outra coisa, mas justamente nela se
encontra o que ela tem a dizer‖ (GADAMER, 1985, p. 59). O simbólico não remete
ao significado, mas apresenta o significado. Do que podemos concluir que se a
essência do jogo é o automovimento, a do simbólico seria o autossignificado.
9
Todas as citações dessa obra, de agora em diante, serão identificadas com a abreviação ABI.
81
Cada época deve compreender a seu modo um texto transmitido, por isso
entendemos que, no contexto dessa narrativa, Gumercindo, ao sentir-se ameaçado
ou afrontado em seu poder, usa-o para reprimir a passeata. O órgão oficial de
repressão é a Brigada Militar, que é imediatamente acionada. Os brigadianos não
lutam contra os manifestantes em geral, eles simplesmente aniquilam o líder da
passeata. ―O silêncio descera sobre a praça. Gostava do silêncio: representava
ordem, harmonia, obediência. Barulho era coisa de comunistas, como daquele
Antônio Becker, o amigo do Fidel‖ (ABI, p. 98). Mas quando Gumercindo sabe da
ação extremada da polícia tenta defender-se, dizendo que não tinha autorizado
tamanha barbaridade.
"Um enunciado só consegue tornar-se compreensível quando no dito
compreende-se também o não dito" (GADAMER, 2011, p. 181). No princípio não
tiveram voz os índios, hoje são os colonos e seus líderes que têm sua voz abafada.
A manifestação na praça é uma interpelação que por si só desestabiliza o poder. Na
manifestação se expressa o apelo de um grupo não só diferente, mas diferenciado
socialmente.
Mesmo sabendo da história de San Martin pela voz do narrador, é
impossível não deixar outras vozes se manifestarem, já que na voz do narrador vão
surgindo outras vozes. Neste romance não há coincidência entre a fábula - sucessão
cronológica dos acontecimentos - e a trama - arranjo estilístico dos episódios
ficcionais (Cf. D‘ONOFRIO, 2001, p. 216), pois apresenta os dois planos da
narrativa: o da enunciação – Alberta narrando a história — e o do enunciado – onde
as personagens vivem a história.
88
Pode-se dizer que se celebra o mesmo com certa frequência, porém cada festa é
distinta da que lhe antecede. Na festa se fundem os horizontes do presente e do
passado. No retorno da festa há um fator de repetição, de fazer que volte o passado,
porém nessa repetição há uma referência absoluta ao presente.
Também em A Atualidade do Belo (1985) a festa é descrita por Gadamer
como a representação concreta de um evento que não existe à parte de sua
representação. A festa e a celebração tomam o caráter de experiência de vida que
abarca todos os planos do ser humano no tempo durante sua existência. "Uma festa
é sempre para todos" (p.61). Já os costumes o relacionam com o passado, como
forma de transferência de conhecimentos, que permitem validar com isso o
conhecimento através do vivido.
Na cena da festa descrita no romance destaca-se o caráter de controle
social exercido pelo grupo sobre os membros da comunidade. José Tarquino só
pode fazer parte da festa porque ―um deles‖, Herta Müller, mesmo que contrariando
a vontade do grupo, admitiu-o e apresentou-o como convidado, mesmo que isso
afrontasse a moral e os costumes germânicos. Ela desafia os demais integrantes da
comunidade, mas depois sofre calada as consequências, pois cultua o fetiche
machista de respeito ao homem a quem pertence. A relação homem-mulher descrita
neste romance está desprovida de qualquer visão romântica. O relacionamento,
entre os casais germânicos, é escassamente abordado. A narrativa detém-se mais
nas relações interétnicas entre José Tarquino Rosas e Herta Müller, Gumercindo
Rosas e Laura. Porém a aproximação entre José Tarquino e Herta se dá puramente
movida por um impulso carnal, instintivo, sexual.
Por parte de José Tarquino é muito mais o desejo de domínio, de posse, que
o move até Herta do que propriamente um sentimento amoroso.
Nas situações representadas no romance se realiza plenamente a ideologia
machista no comportamento do homem. Só que houve, por parte de algumas
mulheres, como Herta e Laura, um desafio a esta ideologia. Laura não se manteve
passiva. Ao contrário, buscou despertar em Gumercindo um sentimento que este
90
não conhecia. Mas ele não admitiu. Ele negou o ―outro‖ e isto foi a sua própria ruína.
Houve por parte de Gumercindo uma renúncia absoluta em compreender o que com
ela se passava. Dentro da lógica machista - em que o masculino compreende o
sujeito, a atividade - é inadmissível que um corpo feminino se apresente em toda a
sua feminidade. Isto porque nesta situação o amor é posse e o feminino integra o
objeto, a passividade.
Para Gumercindo, o casamento com uma das filhas de família alemã é mais
uma forma de afirmação social, pois sente a necessidade de ser um deles. A falta de
afeto entre o casal se revela pelo estado depressivo em que vive Laura, até a
consumação do suicídio, no ato de matar-se. Laura foi a mulher que "tivera a
coragem de enfrentar a face do abismo sem temer" (ABI, p.161). Percebemos nesse
eufemismo uma outra conotação, para além da conotação usual de tristeza e
angústia, e com isso uma hermenêutica, no sentido de interpretar, dar uma
explicação do que seria a face do abismo.
Assim o romance vai revelando o conteúdo (ética) imanente ao objeto
estético, ou seja, o sonho e a luta pela Terra Prometida, sonho esse que é desfeito
quando o colono deve encarar a face abismal da terra em que está lançado, fazendo
com que se destruam as regras de convivência solidária. Foi em busca da Terra
Prometida que o imigrante chegou ao Brasil, mas para tanto pagou o preço do
desenraizamento e contraiu, com este país, uma relação ambivalente, de ódio e
amor. Neste romance a dimensão ética e estética se concentra no homem, suas
paixões, lutas e misérias.
Após a leitura dessa narrativa, podemos nos valer das palavras de Nadja
Hermann para dizer que ―a força poética da narrativa literária nos oferece acesso
privilegiado aos conflitos morais, à ruptura de convenções, ao mesmo tempo que se
constitui numa aprendizagem da moralidade‖ (2010, p. 105), pois não se trata de
seguir a ação das personagens, mas de imaginar-nos no seu lugar e aprendermos
com os conflitos vividos por elas. Segundo a autora, ―o caráter exemplar da
literatura, pelo que mobiliza da nossa imaginação, emoção e entendimento, permite
uma experiência estética que abre o horizonte compreensivo da moralidade e
possibilita uma avaliação racional sobre a complexidade das situações, das crenças
e emoções que levam à constituição do sujeito moral" (p. 107). A autora aponta a
relação de complementaridade entre ética e estética, o que permite indicar a
91
história e atualiza espaços e tempos que são negados ou rechaçados pela história
oficial, visto que "[…] a Literatura tem o mérito de articular num só escrito todos os
saberes. Um romance pode apresentar uma visão econômica, social, política,
religiosa e moral de um povo, de uma cultura" (PAVIANI, 2009, p. 65).
Pelas falas, testemunhos e atitudes das personagens podemos dizer que
houve por parte do autor uma opção em favor dos aspectos positivos da imigração e
de crítica contra todas as barbaridades cometidas em nome da manutenção do
status da imigração. Se nas falas das personagens podemos perceber a restauração
do mito da terra prometida, ao mesmo tempo o narrador toma distância crítica para
incorporar dados e avaliações, sempre já historiados, que desconstroem esse mito.
Daí a dimensão ética dessa narrativa, pois por meio da ficção ―aprendemos a viver,
a morrer, a amar, a imaginar, enfim a retomar nosso passado, a nos repensarmos no
presente e projetar nosso futuro‖ (ROHDEN, 2008, p. 131). Nesse texto de ficção
podemos ver a palavra tornada um acontecimento de verdade histórica. O texto se
converte em uma vivência a mais. Trata-se de assumi-lo no horizonte do intérprete,
de assimilá-lo em sua experiência.
O texto literário aponta sempre para algo, para uma exterioridade que o
autor não pode controlar. Do mesmo modo, a interpretação aponta para uma
tradição que envolve o intérprete, tradição esta que conforma seu horizonte. A
compreensão se dá no diálogo entre eles. Já a interpretação, a síntese, a aplicação
se dão na fusão de horizontes entre intérprete e texto. A interpretação serve para
compreender o texto e o texto permite que o intérprete se compreenda em um
horizonte mais amplo.
Considerando o potencial de verdade subjacente a um texto literário é que o
apresentamos como elemento estruturador da aprendizagem, vista como uma arte
de viver, pois entendemos que a prática da leitura do texto literário é condizente com
a concepção de educação com base na hermenêutica. Neste ponto da investigação
assumimos as implicações conceituais do pensamento de Gadamer que remetem à
linguagem e, em decorrência, o diálogo como condição de possibilidade para o
acontecimento da educação.
93
“A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que,
gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma” (Marina Colassanti).
Compete à escola levar o aluno a escrever por conta própria e sobre temas
de sua escolha, em consonância com o princípio educativo do pesquisar
sempre. Não pode o escrever constituir-se em matéria de ensino formal sob
pena de se acentuarem as resistências a ele (MARQUES, 1999, p. 168).
deve ser considerada certa, pois ele é livre para interpretar, onde não podem ser
interpostas barreiras que bloqueiem tal liberdade.
Entendemos que é preciso adotar uma outra atitude pedagógica, pois que
não seria conveniente falar de ensino da língua, mas sim de uma educação na
linguagem. Consideramos ainda que
pode chamar de visão reducionista da língua, visão que, mesmo sem querer, faz da
língua um mero objeto de manipulação" (p. 66), fazendo-se um meio instrumental
afirmativo do não diálogo, da recusa de alternativas.
Proposto como elemento estruturador da aprendizagem, o texto convida à
reflexão e ao diálogo, este agora entendido como condição para a existência da
educação, não simples meio para sua realização.
[…] a obra de arte ganha seu verdadeiro ser ao se tornar uma experiência
que transforma aquele que a experimenta. O ―sujeito‖ da experiência da
arte, o que fica e permanece, não é a subjetividade de quem a experimenta,
mas a própria obra de arte. É justamente esse o ponto em que o modo de
ser do jogo se torna significativo, pois o jogo tem uma natureza própria,
independente da consciência daqueles que jogam. O jogo encontra-se
também lá, sim, propriamente lá, onde nenhum ser-para-si da subjetividade
limita o horizonte temático e onde não existem sujeitos que se comportam
ludicamente (GADAMER, 2008, p. 155).
10
Ruedell é categórico: "Há apenas interpretação, sem perspectiva de ela poder ao menos ser falsa
ou verdadeira" (2007, p. 21).
98
sentido, configurando um acordo com o texto em questão, como uma nova criação,
que provoca outras novas significações e, por fim, a formação, como postula
Gadamer.
O texto literário, como componente da tradição, também apresenta outras
possibilidades de compreensão de nosso entorno e de nossa condição humana
dada pela linguagem, de uma experiência vivida e de seu pertencimento a um
mundo histórico, no contexto da finitude diante da tradição.
Daí decorre o envolvimento do intérprete, o que redundará em uma
autorreflexão. Dessa forma, a interpretação de um texto termina na própria
interpretação do sujeito, considerando que, a partir da visão hermenêutica,
compreender significa essencialmente compreender-se. Está em questão a
concepção de que ―o processo educativo é uma experiência do próprio aluno, que se
realiza pela linguagem‖ (HERMANN, 2002, p. 83-84). Seguindo a perspectiva que
propõe Gadamer, a de pensar a compreensão como uma forma de
autocompreensão, a mesma é, particularmente, um situar-se de frente aos outros, o
que se dá na linguagem. Em outras palavras, ―compreender é sempre um
compreender-se‖ (GRONDIN, 1999, p. 193).
Baseados nessa ideia, podemos deduzir que um problema crucial que
ocorre nas escolas em relação à compreensão de textos decorre da falta de
consideração, por parte de quem ―cobra‖ a interpretação, das opiniões prévias do
leitor. Porém, se interpretar e produzir textos há muito consta nos currículos
escolares, é porque esta atividade já foi validada por muitas gerações e por isso
merece questionamento mais profundo do porquê de tanta dificuldade por parte do
leitor.
O professor, em seu trabalho de mediação entre a palavra escrita e a
interpretação feita pelos alunos em sala de aula, deverá considerar as experiências
interpretativas dos mesmos, bem como sua formação na leitura. Por certo não se
pode desconhecer o papel do docente como leitor, pois só um leitor persuade a
outro leitor, só quem tenha visto a vida por meio das páginas de um livro é capaz de
oferecer essa visão do imaginado, essa imagem formada por palavras.
A obra de arte não é um simples objeto, mas uma experiência que
transforma aquele que a experimenta. A subjetividade que está em jogo é uma
subjetividade ampliada, porque não é só a do autor, é também a do receptor e a da
transmissão.
100
Que a literatura não exista senão para ser compreendida constitui a grande
implicação hermenêutica, pois, nessa perspectiva, hermenêutica e literatura estão
unidas pela ação do compreender. Buscamos, assim, nos aproximar da experiência
da palavra por meio da literatura. Por isso admitimos que a hermenêutica encontra
101
modo. O caráter é a firmeza do ser que busca sobrepor-se a sua própria condição.
Portanto, a formação nos termos em que este filósofo a apresenta, ultrapassa
qualquer reducionismo e instrumentalização. Ela é a habilidade que adquire o sujeito
ao dotar-se de sentido. Sendo assim, na formação nada desaparece, mas se guarda
a partir do qual o espírito desenvolve níveis de percepção únicos. Este
desenvolvimento leva implícito o tato, o que entende-se como uma determinada
sensibilidade e capacidade de percepção de situações, assim como para o
comportamento diante delas, quando não possuímos a respeito delas nenhum saber
derivado de princípios gerais (cf. GADAMER, 2008, p. 51).
Nosso interesse pelo conceito de formação se aguça quando esta noção
adquire o sentido de acesso à humanidade, pois dentro dessa noção pode-se dizer
que o homem não nasce humano, mas torna-se humano. As reflexões que giram em
torno da formação e da educação evidenciam que o homem necessita formar-se
para se fazer humano.
Segundo Hermann (2010), o conceito de formação, transformado pela
hermenêutica, "implica em reconhecer a capacidade de luta do sujeito em se
autoeducar" (p.120). Assim, a autoformação, característica essencial da pedagogia
hermenêutica, se realiza através de um processo de autointerpretação, sempre
aberto a novas compreensões, revivendo as experiências, através da linguagem,
único meio de compreensão e expressão do mundo.
Mas em que sentido formamos nossos alunos? Gadamer apresenta, na sua
pesquisa sobre o significado da tradição humanista para as ciências do espírito, um
estudo sobre a noção moderna de formação, palavra que no contexto alemão é
traduzida como ―Bildung‖, e que é um dos conceitos básicos do humanismo. ―A
formação é um conceito genuinamente histórico, e é justamente o caráter histórico
da ‗conservação‘ o que importa para a compreensão das ciências do espírito‖ (2008,
p. 47). O termo Bildung designa também a cultura adquirida por um indivíduo, graças
à relação com os conteúdos concretos da tradição histórica de seu entorno.
A partir da perspectiva da Ilustração a formação designa o modo
especificamente humano de dar forma às disposições e capacidades naturais do
homem. A ideia de formação não se refere, portanto, a uma quantidade de
conteúdos, nem a habilidades técnicas que alguém seja capaz de adquirir. Supera o
fomento das disposições e capacidades naturais de uma pessoa, o cultivo de seus
talentos, pois a educação pressupõe um processo de inserção num mundo
105
compartilhado de valores e crenças. Nadja Hermann amplia essa noção dizendo que
"o respeito ao outro, a igualdade, a liberdade são uma herança irrenunciável, e a
educação não se constitui sem essas crenças, o que permite compartilhar um
mundo comum" (2005, p. 74). A formação, assim entendida, é um processo que não
começa do nada e que nunca chega a completar-se, constituindo-se numa constante
tarefa com a qual se aprende a visualizar além da própria particularidade.
Os argumentos para estas reflexões vêm de Gadamer, que destaca que a
ideia de formação (Bildung) é o elemento primordial das ciências humanas no século
XIX. O autor afirma que a formação nunca se acaba, ela é um conceito histórico que
permite a conservação histórica de um modo de compreensão humana. Segundo
sua contribuição, a hermenêutica e a teoria da formação humana (Bildung) se
associaram então e continuam ainda hoje unidas. ―Hoje, a formação está
estreitamente ligada ao conceito de cultura e designa, antes de tudo, a maneira
especificamente humana de aperfeiçoar suas aptidões e faculdades‖ (2008, p. 45). A
formação é considerada um dos conceitos básicos do humanismo porque os
conhecimentos humanísticos contêm verdades que nos transformam ao cultivar-nos
e educar-nos, e esse processo, conforme Gadamer, corresponde ao conceito
hegeliano de elevação à universalidade, a qual "não se reduz à formação teórica
nem significa apenas um comportamento teórico em oposição a um prático" (2008,
p. 47), mas, sim, que acolhe a determinação essencial da racionalidade humana.
Nesse sentido, a essência da formação humana é tornar-se um ser espiritual.
Por isso, Gadamer chega a afirmar, em referência à formação prática
descrita por Hegel, que formação é ―reconciliar-se consigo mesmo e reconhecer-se a
si mesmo no ser-outro‖ (2008, p. 49). Disso se deduz que a formação é um processo
de duplo movimento, formar-se, que significa desdobrar todas as potencialidades em
relação a uma tradição e, também, transformar-se que significa uma volta a si
mesmo a partir do outro. Com a ideia de volta a si mesmo desde o outro, se
pretende reconhecer que toda formação é retorno a si mesmo. ―Reconhecer no
estranho o próprio, familiarizar-se com ele, eis o movimento fundamental do espírito,
cujo ser é apenas o retorno a si mesmo a partir do ser-outro (2008, p. 50). A partir
deste ponto de vista a formação se entende como um processo reflexivo que subjaz
ao relato de um indivíduo singular em que aparece dobrado sobre si mesmo e
contado em dois planos: o plano dos acontecimentos vividos temporal e
comunitariamente e o plano reflexivo dessas vivências pelo qual o indivíduo alcança
106
Neste sentido é que podemos dizer que a arte gera esta autonomia, já que
por meio da sensibilidade, que vai além dos sentidos, nos é permitido ver a vida
desde outras perspectivas. O ensino da literatura nos leva a encontrar dita
autonomia, já que por meio do que entendemos como sensibilidade, como porta de
entrada das sensações, vamos além do simples conhecimento. Teremos, assim, o
sujeito autônomo, capaz de estabelecer juízos de valor e assumir responsabilidades
pelas suas escolhas.
Consequentemente, depois de apontar ao educando os valores básicos de
nossa tradição, ao professor caberia um exercício hermenêutico de tomada de
distância, para relativizar precisamente nossos valores e pautas morais, tendo claro
que estas pautas e normas são particulares de uma tradição, a nossa tradição, e
que não são universais. A autonomia exige valor porque pede ao sujeito exercer sua
dignidade e, para fazê-lo, tem que eleger prioridades, correr riscos na aventura da
vida.
não diz exatamente o que se quer dizer. Ela é assim como toda pergunta:
cada pergunta é um fenômeno hermenêutico. Pois a resposta não é
definitiva. (www.apario.com.br/forumdeutsch/revistas/.../umaconversacomga
damer)
postado frente ao outro sem ser afetado, mas a partir de uma pertença específica
que o une com o outro, de modo que é afetado com ele e pensa com ele‖
(GADAMER, 2008, p. 425). Agora o diálogo é uma exigência na educação.
Ao perguntar cada qual toma posição frente ao horizonte. Isto permite criar
um horizonte comum de linguagem. Este, com efeito, é o primeiro passo para o
diálogo. Cada pergunta abre um horizonte, ou seja, em cada pergunta há alguém
que interpela, porém, a questão formulada descobre ou abre o mundo. Em sua
análise do horizonte, Gadamer (2008) se pergunta: ―Existirão aqui realmente dois
horizontes diferentes, o horizonte onde vive o que compreende e o horizonte
histórico a que este pretende se deslocar?‖ (p. 401). Quando se leem textos que não
são da época e da cultura próprias do leitor, em algum sentido, este se desloca do
horizonte próprio para o horizonte de experiência do outro, ao horizonte do estranho,
ao horizonte de vida do outro.
A incidência do enfoque comunicativo da linguagem, como proposta
metodológica, nos permite entender que a competência literária conforma uma outra
dimensão da comunicação, possível de ser desenvolvida no âmbito escolar.
Ler assume hoje um significado tanto literal, sendo nesse caso um problema
da escola, quanto metafórico, envolvendo a sociedade que busca encontrar
sua identidade pesquisando as manifestações da cultura. Sob este duplo
enfoque, uma teoria que reflete sobre o leitor, a experiência estética, as
possibilidades de interpretação e, paralelamente, suas repercussões no
ensino e no meio talvez tenha o que transmitir ao estudioso, alargando o
alcance de suas investigações (ZILBERMAN, 1989, p. 06).
práticas educativas a uma segura condução teórica (Cf. MARQUES, 1990, p. 52-3),
tem sido o produto de acordos humanos, próprios de cada tempo. É imprescindível
pensar sobre os processos comunicativos que se geram entre diferentes
interlocutores, com base nas relações intersubjetivas, e suas visões de mundo. Para
a pedagogia, seja em sua concretização teórica, ou na execução prática, a
comunicação é fundamental. Interessa que nos processos pedagógicos todos
tenham a possibilidade de ser e de se manifestar.
sujeito não se limita a captar o objeto, mas vai além dos dados objetivos para captar
a plenitude do significado da obra que transmite ideias da experiência vivida e que
lhe permitirá abrir horizontes de sentido sempre novos. A educação do gosto, a
formação da capacidade de saber situar-se esteticamente, aprender a fazer juízos
sensíveis, potencializar a capacidade imaginativa e fundamentar a compreensão das
emoções, formam parte do conjunto de aprendizagens ligadas à pedagogia
hermenêutica.
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CONCLUSÃO
da leitura e da escrita, que têm por base a compreensão, servindo de suporte para
os estudos literários.
A principal contribuição que a hermenêutica filosófica traz para os estudos
da literatura é a recuperação do alcance de verdade da arte. Nesse contexto a arte
já não pode ser entendida como atividade sublimada, mas como verdadeira
experiência humana, como forma de reconhecimento que se aprofunda em nosso
autoconhecimento e em nosso conhecimento do mundo. Por isso a atualidade da
hermenêutica se explica pela possibilidade de reintegração humanística às
atividades literárias. Mas para que possamos adotar uma atitude hermenêutica
frente à obra literária faz-se necessária uma formação que permita perceber o
sentido latente ao fundo dessa obra. Vista assim, a obra constitui uma chave de
interpretação da vida humana, daí seu grande poder formativo, pois põe a manifesto
os sentimentos, desde os mais elementares até os mais inusitados e imprevistos.
Este trabalho de investigação teve como propósito a aproximação ao saber
educativo com base no paradigma hermenêutico. No decorrer desta tese
investigamos as implicações conceituais do pensamento de Gadamer que remetem
à linguagem como condição de possibilidade para o acontecimento da educação. A
pedagogia hermenêutica entende a educação como um processo de formação do
homem desde uma perspectiva geral; não propõe um modelo pedagógico canônico,
mas aberto à vivência e à compreensão dos sujeitos. O funcionamento da
hermenêutica se baseia em elementos como o prejuízo, a tradição e a compreensão.
Por prejuízo se entende aquelas pré-compreensões que tornam possível a
comunicação e o próprio entendimento. A tradição faz referência às raízes históricas
e ao contexto que rodeiam o indivíduo, o qual é descrito pelo autor como a
consciência exposta aos efeitos da história. E a compreensão se relaciona com o
que é denominado círculo hermenêutico.
A partir da complementaridade da pedagogia e da literatura se propõe a
formação da subjetividade. A proposta vai além da transmissão de conteúdos ou de
mudanças de conduta, já que a pretensão é superar o domínio conceitual e aceder a
formas de conhecimento mais sensíveis. Ao abordarmos os pressupostos da
modernidade e suas repercussões na pedagogia atual, apontamos a hermenêutica
como uma perspectiva que oferece à educação e à pedagogia uma abertura de
horizontes a partir da qual se poderia pensar em uma formação menos orientada à
tecnologia e à ciência, e sim a propostas educativas que tendam mais à
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BIBLIOGRAFIA
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