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UNIJUÍ – UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO


RIO GRANDE DO SUL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO NAS CIÊNCIAS

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: EDUCAÇÃO NAS CIÊNCIAS

LINHA DE PESQUISA: TEORIAS PEDAGÓGICAS E DIMENSÕES ÉTICAS E


POLÍTICAS DA EDUCAÇÃO

EXPERIÊNCIA LITERÁRIA: UMA ABORDAGEM A PARTIR DA


HERMENÊUTICA GADAMERIANA

MARIA HELENA PAVELACKI OLIVEIRA

Ijuí – RS
2015
1

MARIA HELENA PAVELACKI OLIVEIRA

EXPERIÊNCIA LITERÁRIA: UMA ABORDAGEM A PARTIR DA


HERMENÊUTICA GADAMERIANA

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Educação nas Ciências da
Universidade Regional do Noroeste do
Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ,
como requisito parcial à obtenção do título
de Doutorado em Educação.

Orientador: Prof. Dr. José Pedro Boufleuer

Ijuí – RS
2015
2

AGRADECIMENTOS

Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em


Educação nas Ciências, em especial à Linha de
Pesquisa Teorias pedagógicas e dimensões éticas e
políticas da educação por acolherem o meu projeto,
que ora se apresenta em forma de tese.
À solidária e responsável orientação do Professor
Doutor José Pedro Boufleuer.
Ao Instituto Federal Farroupilha – Campus São
Borja, pela dispensa das atividades docentes, que
me proporcionou o tempo necessário para uma
pesquisa fecunda e voltada para nosso maior
interesse: a formação de nossos alunos.
À minha família: ao Valdir, pela compreensão e
apoio ao meu trabalho; à Graciela, pelo incentivo; à
Lia e à Isaura, por terem enriquecido a nossa vida
com a vinda do Vítor Hugo e da Isabel.
3

Esta é a verdade: a vida começa quando a gente


compreende que ela não dura muito.

Millôr Fernandes
4

RESUMO

A tese investiga os pressupostos necessários à compreensão de um texto, bem


como as concepções de linguagem subjacentes às atividades de interpretação,
vislumbrando a possibilidade de uma prática pedagógica balizada por um paradigma
hermenêutico. Recorrendo à hermenêutica gadameriana, investiga a questão da
compreensão a partir da reflexão sobre a linguagem enquanto médium constituinte
do modo humano de ser no mundo. À luz desse pressuposto é feito um
levantamento das categorias básicas da hermenêutica filosófica de Gadamer, as
quais servem de embasamento para reflexões sobre a linguagem e, mais
precisamente, sobre a linguagem literária. A abordagem teórica envolve, além da
própria perspectiva filosófica central de Gadamer, a pesquisa de autores que
dialogam com o referido autor. Busca responder como se dá a compreensão quando
o compreender deixa de ser visto como procedimento para ser analisado como
modo de ser. No desenvolvimento desta pesquisa a interpretação de textos é
situada à luz do papel da linguagem na constituição da vida humana e no
estabelecimento de uma tradição, destacando elementos constitutivos do cânone
literário brasileiro, ao modo de uma crítica. Para demonstrar a fecundidade da
hermenêutica gadameriana, esta é tomada como balizadora para a leitura de um
texto literário, numa perspectiva concriativa que busca interagir com o mesmo,
fazendo uma leitura, dentre as múltiplas possibilidades existentes que se manifestam
no jogo da linguagem literária. Investiga como a compreensão hermenêutica pode
operar como referencial crítico para a análise das práticas de leitura vigentes no
âmbito das salas de aula, oferecendo, a partir da hermenêutica, indicativos de
redimensionamento da forma pedagógica de trabalhar com textos literários.
Questiona o que se espera que a leitura produza e o que produz a obra literária no
sujeito leitor, esperando que a literatura seja vista e proposta como uma experiência,
que possibilita a fruição e, com isso, o engrandecimento do leitor.

Palavras-chave: Hermenêutica Filosófica. Linguagem. Literatura. Compreensão.


Educação.
5

ABSTRACT

This work investigates the premises necessary to understand a text, as well as the
conceptions about language which are underlying the activities of interpretation,
seeking the possibility for a pedagogical practice guided by a hermeneutical
paradigm. Using Gadamer‘s hermeneutics, it investigates the problem of the
comprehension from a reflection about language as a means which constitutes the
way humans act in the world. Based on this premise, it is carried out a study about
the basic categories of Gadamer‘s philosophic hermeneutics, which will be the basis
for the reflections about language and, more precisely, about the literary language.
The theoretical approach involves, besides Gadamer‘s central philosophic
perspective itself, an investigation in the work of other researchers who dialogue with
that author. This work seeks to answer how comprehension happens when the act of
understanding ceases to be a procedure to be analyzed as a way of being. In
developing this research, under the form of a review, text interpretation is considered
in the light of the language‘s role in the constitution of the human life and in the
establishment of a tradition, highlighting the constitutive elements of Brazilian literary
canon. In order to demonstrate the fecundity of Gadamer‘s hermeneutic, it is taken as
the guide for reading a literary text, in a creative perspective that seeks to interact
with this one, carrying out the reading, among the multiple existing possibilities in the
game of the literary language. This work also investigates how the hermeneutic
comprehension may operate as a critic referential for the analysis of the reading
practices present in classroom contexts, offering, from the hermeneutics, indications
to give new dimensions for the pedagogical ways of working with literary texts. It
questions what is expected from literature to produce and what the literary work
produces on the subject-reader, hopping that literature is seen and proposed as an
experience which allows the fruition and, with that, the aggrandizement of the reader.

Keywords: Hermeneutics. Language. Literature. Comprehension. Education.


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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 7
1 A LITERATURA NO CURRÍCULO DA EDUCAÇÃO BÁSICA:
CONSIDERAÇÕES SOBRE O CÂNONE .................................................................. 15
2 LINGUAGEM E EXPERIÊNCIA HERMENÊUTICA EM GADAMER ...................... 27
2.1 LINGUAGEM E HORIZONTE EXISTENCIAL, SEGUNDO GADAMER ............... 27
2.2 OS TRAÇOS FUNDAMENTAIS DA EXPERIÊNCIA HERMENÊUTICA EM
GADAMER ................................................................................................................. 36
2.2.1 Autoridade e tradição...................................................................................... 38
2.2.2 Fusão de Horizontes ....................................................................................... 41
2.2.3 Círculo Hermenêutico ..................................................................................... 42
2.2.4 História Efeitual ............................................................................................... 45
2.2.5 Sentido de Pertença ........................................................................................ 47
2.2.6 Aplicação ......................................................................................................... 49
2.2.7 A Primazia Hermenêutica da Pergunta .......................................................... 50
2.2.8 A Abertura ao Diálogo..................................................................................... 51
2.3 A EXPERIÊNCIA HERMENÊUTICA E A OBRA LITERÁRIA ............................... 55
2.3.1 Linguagem e Sentido ...................................................................................... 57
2.3.2 Arte e Jogo....................................................................................................... 62
3 A LEITURA LITERÁRIA E A CONCRIATIVIDADE DE SENTIDOS ....................... 72
3.1 O NECESSÁRIO DIÁLOGO ENTRE O LEITOR E A OBRA ................................ 72
3.2 INTERMEZZO: UMA LEITURA CONCRIATIVA DE A FACE DO ABISMO.......... 77
4 FORMAÇÃO E EXPERIÊNCIA COM O TEXTO LITERÁRIO ................................ 93
4.1 ABERTURA À EXPERIÊNCIA ............................................................................. 95
4.2 A EXPERIÊNCIA DA LEITURA ............................................................................ 97
4.3 A LEITURA E A PRODUÇÃO DE SENTIDO DE MUNDO ................................. 100
4.4 EXPERIÊNCIA ESTÉTICA E FORMAÇÃO ........................................................ 102
4.5 FORMAÇÃO COMO TRADUÇÃO DO CONHECIMENTO ................................. 110
4.6 O CARÁTER FORMATIVO SUBJACENTE À AÇÃO EDUCATIVA .................... 113
CONCLUSÃO .......................................................................................................... 120
BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................... 124
7

INTRODUÇÃO

Motivado pela pergunta de como são conduzidas as atividades de


compreensão de textos literários nas aulas de Português e de Literatura Brasileira, o
presente trabalho, recorrendo à hermenêutica gadameriana, investiga a questão da
compreensão à luz da reflexão sobre a linguagem enquanto medium constituinte do
modo humano de ser no mundo.
Esta pesquisa é pautada na investigação de quais os pressupostos
necessários para a compreensão do texto, bem como as concepções de linguagem
subjacentes às atividades de interpretação, principalmente as veiculadas pelos
professores de Português e Literatura do Ensino Básico, vislumbrando a
possibilidade de uma prática pedagógica balizada por um paradigma hermenêutico.
Justifica-se a relevância desta pesquisa pelo fato de que existe, por um lado,
uma cobrança generalizada da sociedade e, principalmente das universidades, em
relação aos alunos que ingressam nos cursos superiores, quanto à constatação de
que esses apresentam sérias dificuldades em interpretar e produzir textos. Por outro,
espera-se da escola de educação básica que a mesma dê condições para que o
aluno, ao concluir e ensino médio, seja capaz, conforme garantia legal expressa nos
Parâmetros Curriculares Nacionais, no que se refere a Linguagens, Códigos e suas
Tecnologias, de:

• compreender e usar os sistemas simbólicos das diferentes linguagens


como meios de organização cognitiva da realidade pela constituição de
significados, expressão, comunicação e informação;
• confrontar opiniões e pontos de vista sobre as diferentes linguagens e
suas manifestações específicas;
• analisar, interpretar e aplicar os recursos expressivos das linguagens,
relacionando textos com seus contextos, mediante a natureza, função,
organização e estrutura das manifestações, de acordo com as condições de
produção e recepção;
8

• compreender e usar a Língua Portuguesa como língua materna, geradora


de significação e integradora da organização do mundo e da própria
identidade (PCNs, p. 95).

Se um grande número dos concluintes da educação básica não têm


desenvolvido as habilidades destacadas, podemos inferir que a escola não está
cumprindo sua função social, de garantia dos direitos mínimos do aluno, expressos
na legislação, considerando que fazemos parte de uma sociedade democrática, em
que a ―política da igualdade se traduz pela compreensão e respeito ao Estado de
Direito e a seus princípios constitutivos abrigados na Constituição: o sistema
federativo e o regime republicano e democrático‖ (PCNs, p. 64). A atribuição dessa
dívida da escola, ou da sociedade, em relação à formação dos alunos pode ser
confirmada pelo estudo feito por Claudio Boeira Garcia (2009), que diz: ―A educação
e a instrução pública têm a ver com a política republicana no sentido preciso de que
cabe aos governos, aos membros de uma comunidade política, aos pais, aos
educadores e às instituições escolares a responsabilidade de acolher e de preparar
suas novas gerações‖ (p. 199). Esta escola que ao mesmo tempo oferece as
alternativas de inserção e, sorrateiramente, sonega ou restringe as possibilidades de
formação, não formando plenamente seu aluno, tem muito a ser criticada.
É justamente o porquê desse despreparo das novas gerações, em relação
ao tema referido que queremos investigar. Com isso, nossa investigação se dá por
motivos oriundos da nossa atividade docente e é pela motivação das perguntas que
nos surgem que estabelecemos o tema e o objeto da mesma.
Daí surge a hipótese de que a experiência do diálogo provocado pelo texto
literário pode ser tomada como base para uma relação dialogal em sala de aula,
problematizando a concepção de linguagem veiculada pelos documentos oficiais,
programas de ensino e, principalmente, pelos professores. Podemos questionar a
concepção, vigente na maioria das vezes, com o primeiro tópico das habilidades que
destacamos anteriormente: ―compreender e usar os sistemas simbólicos das
diferentes linguagens como meios de organização cognitiva da realidade pela
constituição de significados, expressão, comunicação e informação‖. Ao sugerir que
a linguagem é somente um ―meio de organização‖, a própria legislação está
restringindo as possibilidades de compreensão da mesma. Partindo dessa
concepção, o professor, ao trabalhar o texto em sala de aula, vai pressupor que o
mesmo traduz o pensamento do autor, pois a ideia deriva de um conceito de texto, e
9

de linguagem, visto como produto, ou como uma unidade de sentido linguístico, em


que o emissor transmite ao receptor um conteúdo, cujo sentido o leitor deve
apreender. A partir da análise dos processos básicos da experiência estética,
considerada no contexto da comunicação literária, é possível produzir uma proposta
de mediação pedagógica que corresponde à complexidade do fenômeno literário
que contribua para a experiência estético-literária do estudante.
Baseados em nossa experiência, podemos dizer que a linguagem vista
como instrumento tem sido, na maioria das vezes, o objetivo das aulas de leitura, e o
aluno, confrontando-se com o texto, comporta-se como se tal fosse uma fonte, com
um sentido único, derivado do conteúdo apresentado pelo professor, que de alguma
forma sabe o verdadeiro sentido de cada texto. Isso está relacionado com a
concepção de linguagem que se tem quando se ensina Literatura ou Língua
Portuguesa, pois como bem salientou João Wanderley Geraldi (2008, p. 40):

Antes de qualquer consideração específica sobre a atividade de sala de


aula, é preciso que se tenha presente que toda e qualquer metodologia de
ensino articula uma opção política – que envolve uma teoria de
compreensão e interpretação da realidade – com os mecanismos utilizados
em sala de aula.

Para esclarecer, esse autor aponta, alertando para os riscos de


generalização, três concepções de linguagem: a linguagem é a expressão do
pensamento; a linguagem é instrumento de comunicação e a linguagem é uma
forma de interação. Entendemos que o problema advém de que, na prática, opta-se,
geralmente pelas duas primeiras concepções apontadas pelo autor. A terceira
concepção, que simplificadamente está subentendida no tópico dos PCNs que
propõe ―analisar, interpretar e aplicar os recursos expressivos das linguagens,
relacionando textos com seus contextos...‖ quando é trabalhada, ainda o é de uma
forma muito superficial. Entendemos que essa última concepção deveria ser a base
para os estudos de linguagem, uma vez que aqui é vista como um lugar de interação
humana. A essa concepção de linguagem corresponde uma concepção de saber,
descrita por Gauthier como aquela que considera a argumentação como lugar do
saber que ―pode ser definido como uma atividade discursiva, por meio da qual o
sujeito tenta validar uma proposição ou uma ação‖ (2006, p. 334).
10

Considerando que existe uma orientação para a prática pedagógica de


valorização dos sujeitos envolvidos no processo educativo, a distância existente
entre o discurso pedagógico oficial para a formação de leitores e as formas de
operacionalização do ensino da leitura é um fato que não pode ser negligenciado.
Sendo a ação educativa escolar ―um fazer intencional‖ (BOUFLEUER, 1997, p. 10),
a exigência de um compromisso do educador na mediação que estabelece com seus
alunos deve ser assumida como competência primeira desse educador. A partir da
última concepção descrita é que queremos refletir e, de alguma forma, ampliar a
noção de linguagem aí expressa, tendo por base, principalmente, o pensamento de
Gadamer, que tem a percepção de linguagem como fundante de ser humano,
conforme explicitaremos no referencial teórico.
Conduzido por essa linha de reflexão que compreende a linguagem como
acontecimento humano primeiro, fundante de tudo o que possa ser considerado
humano, Boufleuer (2013, p. 80-81) afirma:

É certo que a linguagem sempre teve lugar destacado no âmbito da


filosofia. Mas nem por isso a ela se atribuía a centralidade que atualmente
assume nesse campo de reflexão. Ao longo da tradição do pensamento
incumbiam à linguagem funções num plano derivado, geralmente de caráter
instrumental, como para designar isso ou para simbolizar aquilo, sendo
vista, assim, capaz de transmitir ou de expressar algo do mundo humano
que se acreditava existir antes dela. Esse papel secundário da linguagem é
agora repensado para que ela possa aparecer em todo o seu potencial
constituinte do modo humano de ser.

O fato de embasarmos nossa reflexão no pensamento de Gadamer não se


deu por acaso, pois como diz Ernildo Stein (2004, p. 123):

Na filosofia não se escolhe um autor sem, de algum modo, já estar iniciado


nele. Em outras palavras, é preciso buscar no autor, o que, de algum modo,
já se encontrou. Isso quer dizer que, no fundo, para filosofar de verdade, é
preciso já estar filosofando.

Esse ―já estar iniciado nele‖ vem dos nossos estudos realizados na área da
Antropologia, principalmente de autores como Clifford Gertz, James Clifford (2002) e
Roberto Cardoso de Oliveira (1988), de onde, agora, retomamos a base teórica da
Antropologia Interpretativa. Base esta que se inspira na tradição filosófica
denominada hermenêutica, tendo em Geertz seu principal representante. É assim
que pretendemos que o paradigma hermenêutico seja também a base da nossa
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investigação, uma vez que estabelece um diálogo com a hermenêutica filosófica de


Hans-Georg Gadamer, autor que constituirá o suporte teórico de nossa pesquisa.
Segundo Grondin (2012), no sentido mais restrito e mais usual do termo, a
hermenêutica serve atualmente para caracterizar o pensamento de autores como
Hans-Georg Gadamer e Paul Ricoeur, que desenvolveram uma ―filosofia universal
da interpretação e das ciências humanas que acentua a natureza histórica e
linguística de nossa experiência de mundo‖ (p. 11).
Para Regina Zilberman, Gadamer:

[…] ofereceu ao pensamento alemão a possibilidade de uma reflexão


filosófica que, prosseguindo as investigações de Schleiermacher e Dilthey
no século XIX, Heidegger, no século XX, renova o estatuto da hermenêutica
e possibilita a (re)visão da história sem ter de percorrer a trilha, talvez já
demais batida, do marxismo (ZILBERMAN, 1989, p. 11-12).

Considerando também que:

Gadamer nos deu, com sua hermenêutica filosófica, uma lição nova e
definitiva: uma coisa é estabelecer uma práxis de interpretação opaca como
princípio, e outra coisa bem diferente é inserir a interpretação num contexto
- ou de caráter existencial, ou com as características do acontecer da
tradição na história do ser - em que interpretar permite ser compreendido
progressivamente como uma autocompreensão de quem interpreta (STEIN,
2013, p. 01).

Estar situado no paradigma hermenêutico filosófico para, dessa forma, tentar


compreendê-lo apresenta-se como desafio ao investigador, que ao investigar
também questiona sua existência. Esta hermenêutica aponta para a limitação
existencial e mostra que todo conhecimento é uma reinterpretação da tradição.
Apresentamos esse referencial como possibilidade de uma revisão das
práticas pedagógicas em vista de uma educação que cumpra o seu papel social a
que está submetida. Nessa perspectiva pedagógica, o compromisso com as novas
gerações se coloca em termos de responsabilidade. Como já escreveu Mario Osorio
Marques: ―[...] necessita fundar-se a educação no mundo dos homens que ouvem
uns aos outros, postos à escuta das vozes que o interpelam‖ (MARQUES, 1990, p.
163). Esta pedagogia reconhece a interpelação como ato de fala por excelência.
Com base nesse referencial pensamos a educação como experiência discursiva.
12

Gadamer afirma que todo enunciado é, de alguma forma, a resposta para


uma pergunta e toda pergunta tem uma motivação. Neste sentido é que se reveste
de importância o investigador, que vai romper com os preconceitos herdados
presentes no pensamento e conhecimento. O que caracteriza o investigador é a
capacidade de ruptura, o fazer sempre novas perguntas, gerando novos enunciados.
Partimos do que o próprio Gadamer chama de ―virada ontológica da
hermenêutica no fio condutor da linguagem‖, porque para esse autor a linguagem é
encarada como mediação da experiência hermenêutica. A linguagem destaca-se
como primordial, porque ela é o meio em que se realizam o acordo dos
interlocutores e o entendimento sobre a coisa em questão. Para Gadamer,
―compreender o que alguém diz é pôr-se em acordo na linguagem‖ (2008, p. 497),
visto que quando se compreende não se reproduz as vivências do outro.
Assumimos desde já a necessidade de pensar a educação ancorada no
paradigma da linguagem e reconhecemos que a formação baseada nesse tipo de
racionalidade vai além da informação, considerando que para potencializar uma
prática humanizadora deve-se levar em conta o funcionamento do círculo
hermenêutico, que apresenta a possibilidade de um conhecimento mais originário. A
questão é estar dentro do círculo de um modo adequado, adquirindo consciência de
nossos preconceitos desconhecidos, na tentativa de responder às indagações que
foram surgindo no decorrer das nossas atividades no ensino da literatura.
Estruturamos nossa pesquisa partindo do entendimento de que a linguagem
é fator constitutivo da condição humana. À luz desse pressuposto faremos um
levantamento das categorias básicas da hermenêutica filosófica de Gadamer, as
quais servirão de embasamento para nossas reflexões sobre a linguagem e, mais
precisamente, sobre a linguagem literária.
Para desenvolver esta tese procuramos, no primeiro capítulo, situar a
interpretação de textos à luz do papel da linguagem na constituição da vida humana
e no estabelecimento de uma tradição, destacando alguns elementos constitutivos
do cânone literário brasileiro, ao modo de uma crítica. Tal procedimento se faz
necessário para demonstrar que uma prática pedagógica limitada pelas propostas
correntes nos currículos da Educação Básica, que, na maioria das vezes, ressaltam
a periodização das escolas literárias, autores e obras, corre o risco de produzir uma
distorção de valores e, em vez de aproximar o leitor do texto literário pode afastá-lo
definitivamente, pois impede o livre fluir da linguagem que se tornou clássica.
13

Recorrendo à hermenêutica gadameriana, e valendo-nos da própria experiência


como professora de Literatura, destacamos a necessidade de superação da ideia de
linguagem como simples instrumento de comunicação, averiguando e ressaltando
qual a essência da linguagem e, assim, a essência da linguagem literária. Uma
concepção de ―linguagem como forma de interação‖ permitirá estabelecer novas
práticas de abordagem teórica na leitura e interpretação de textos literários. É a
partir dessa concepção que será construída a reflexão e, de alguma forma, ampliada
a noção de linguagem que se expressa nos textos literários.
A fim de circunscrever esta investigação sobre a linguagem literária no
campo da reflexão filosófica, faz-se necessário admitir que a compreensão é uma
faculdade imanente à constituição humana e que ela se dá na linguagem. Por isso,
no segundo capítulo, faremos uma abordagem teórica destacando o papel da
linguagem na constituição do ser humano, entendendo a linguagem como tradição.
Centramos esforços no sentido de aprofundar a investigação de como se deu a
virada linguística e de como a linguagem passa a ser entendida como meio da
experiência hermenêutica. Aqui ressaltamos as categorias da hermenêutica
gadameriana que contribuem para esse entendimento, tais como a verdade
manifestada na obra de arte, destacando como Gadamer descreve a ontologia da
obra de arte e seu significado hermenêutico e, nesse contexto, a posição limite da
literatura. Buscamos responder nesse capítulo como se dá a compreensão; quando
o compreender deixa de ser visto como procedimento para ser analisado como
modo de ser; por que compreendemos; qual o papel da história, da tradição e dos
preconceitos no momento da compreensão.
No terceiro capítulo atentamos para a fecundidade da hermenêutica
gadameriana, tomando-a como balizadora para a leitura de um texto literário. Trata-
se do romance A face do abismo, de Charles Kiefer, cuja história aborda o tema da
fundação da cidade ficcional de San Martin, surgida sobre uma exterminada aldeia
guarani. Nesse texto, a vinda dos imigrantes alemães é descrita em toda sua
dramaticidade. Ainda se somam questões como o processo de destruição física e
cultural do indígena e a descaracterização dos costumes do meio rural. O enredo do
texto, num jogo de metáforas permanentes e cenas narradas a partir de seus
personagens, também apontam para um dizer que se apresenta para ser decifrável
enquanto apreensão da verdade da obra. Na perspectiva concriativa do texto
buscamos interagir com o mesmo, fazendo uma leitura, dentre as múltiplas
14

possibilidades existentes, manifesta no jogo da linguagem literária. Numa leitura


hermenêutica procuramos também desocultar o aparente para entender as
significações ditas pelo não-dito do texto.
Já no quarto capítulo procuramos ver como a compreensão hermenêutica
pode operar como referencial crítico para a análise das práticas de leitura vigentes
no âmbito das salas de aula, oferecendo, a partir da hermenêutica, indicativos de
redimensionamento da forma pedagógica de trabalhar com textos literários.
Questionamos o que se espera que a leitura produza e o que produz a obra literária
no sujeito leitor. Retomamos a ideia, já sugerida por Gadamer, de que a literatura
seja vista e proposta como uma experiência, que possibilita a fruição e, com isso, o
engrandecimento do leitor que, entregue à obra, vai ampliar seus horizontes,
chegando à fusão de horizontes. Proposto como elemento estruturador da
aprendizagem, o texto literário convida à reflexão e ao diálogo, este agora entendido
como condição para a existência da educação e não simples meio para sua
realização.
15

1 A LITERATURA NO CURRÍCULO DA EDUCAÇÃO BÁSICA: CONSIDERAÇÕES


SOBRE O CÂNONE

“[...] a capacidade de ler, de compreender os escritos, é como uma arte


secreta, como um feitiço que nos liberta e nos prende” (Gadamer).

Sendo um de nossos objetivos situar a interpretação de textos à luz do papel


da linguagem na constituição da vida humana e no estabelecimento de uma
tradição, faremos uma reflexão de como a linguagem literária se manifesta, se
conserva e se renova através do cânone literário; e uma abordagem da forma como
a literatura brasileira está inserida no contexto da tradição ocidental e de como foi,
paulatinamente, constituindo-se com características próprias, tentando demonstrar
como a compreensão hermenêutica pode operar como referencial crítico para a
análise das práticas de leitura vigentes no âmbito das salas de aula.
Para isso, nesta tese, centraremos esforços no sentido de ressaltar a
importância do sentido de pertencimento do intérprete e do texto a uma tradição,
enfatizando que não podemos, na hora de compreender, colocarmo-nos diante da
realidade como se esta não nos afetasse.
Neste capítulo queremos tratar da literatura enquanto disciplina escolar,
quando passa a exercer uma função didática, utilizada no ambiente pedagógico. Aí
vemos transformada em objeto pedagógico o que não foi criado para esse fim. Mas
não vamos dizer, por isso, que não há lugar para a literatura na escola. Vamos,
antes, tecer considerações sobre a metodologia de seu uso, no intuito de apontar a
positividade desse espaço como forma de valorizá-lo.
Uma vez que está instituída a necessidade do ensino da literatura como
forma de despertar o interesse pela leitura de obras literárias, levantemos a pergunta
de que perspectiva teórica se faz esse ensino e busquemos uma metodologia que
faça com que as obras sejam bem aceitas e apreciadas. Para Gadamer, o ideal de
compreensão seria não interrogar o texto, apontando-lhe questões que possam ser
respondidas por seu conteúdo, mas interrogar o próprio leitor, levando a
compreendê-lo e a compreender o que lê, em um processo interdependente. Quer
dizer, o próprio autor já aponta para uma metodologia para que o texto em si seja
valorizado.
16

Neste tópico trazemos uma reflexão sobre o potencial expressivo dos textos
literários, no sentido de que esses estão situados na história, de forma que a
literatura pode ser vista como um fenômeno artístico constitutivo da história do
pensamento humano, pois entendemos o literário como parte da tradição. Ao mesmo
tempo, com base no nosso referencial teórico, vemos a tradição como o que fica,
como discurso aberto a ser reconstruído.
Podemos dizer, com base em nossa experiência docente, que os programas
de literatura do Ensino Médio estão baseados, em grande parte, nos textos
considerados clássicos, até porque escola e cânone estão estreitamente vinculados
entre si. Dada a relevância e a atualidade dos clássicos no contexto escolar,
vejamos, a partir da hermenêutica, como os mesmos são tratados. Compreender um
clássico é introduzir-se no acontecer da tradição e da verdade que se apresenta. ―A
arte dos tempos mais antigos só alcança-nos pela passagem do filtro do tempo e da
tradição conservada viva, transformando-se de modo vivo‖ (GADAMER, 1985, p.
79). Dar continuidade à tradição é revitalizá-la com novos sentidos, não meramente
conservá-la como um legado entendido ao modo de dogmas recebidos. Não se
trata, portanto, de produzir o ato mental passado que deu origem ao escrito. O
esforço da compreensão deve ser pensado como um retroceder que penetra num
acontecimento da tradição, pois na compreensão acontece uma mediação de
passado e presente. Ainda devemos considerar que ―uma obra com sentido é aquela
que continua ecoando em cada um de nós‖ (ROHDEN, 2008, p. 52). Tal mediação
não é exclusiva nem especial do clássico. Nesse caso, simplesmente, sai à luz com
especial evidência algo que pertence à essência da tradição.
Na tentativa de compreender a relevância do cânone da literatura brasileira é
que fazemos uma abordagem de como a literatura é ensinada no Ensino Médio,
tendo presente as palavras de Gadamer de que ―o panteão da arte não é uma
atualidade atemporal que se revela à consciência estética pura, mas a obra de um
espírito histórico que se reúne e se congrega historicamente‖ (2008, p. 149). O
professor, ao ensinar o cânone literário aos estudantes, não impõe um culto do
passado, mas oferece-lhes a possibilidade de conhecê-lo, para compreender o
presente e preparar o futuro, de forma que aí se dê uma verdadeira fusão de
horizontes. Como sugere Chris Lawn, ―a ideia de fusão de horizontes1, de alguma

1
No segundo capítulo desta tese faremos uma abordagem do conceito de fusão de horizontes,
segundo Gadamer.
17

forma, explica a natureza e justifica a existência do cânon filosófico e literário‖ (2010,


p. 94). Os textos são considerados canônicos pela sua atualidade, porque têm ainda
algo para dizer àqueles que estão no presente.
Na perspectiva de apresentar um melhor entendimento de como o clássico
permanece e se renova, Gadamer (1985) traça uma ponte ontológica entre a
tradição artística ou, a grande arte do passado, e a arte moderna dizendo: ―parece-
me uma oposição falsa dizer-se que há uma arte do passado que se pode desfrutar
e uma arte do presente, na qual, através de meios refinados da configuração
artística, deve-se ser obrigado a participar‖ (p. 45). Para demonstrar essa oposição
observa que na antiguidade clássica o divino era manifesto nas obras de arte, na
forma da expressão plástica e configurativa destas. A partir da Idade Média, ―a obra
de arte não é mais o divino propriamente dito a que nós veneramos‖ (p. 16). Já não
mais era possível ―uma expressão adequada de sua própria verdade, na linguagem
formal artística e na linguagem imagética da fala poética‖ (p. 15). A arte passa a ter
como contexto justificativo a tarefa de responder por uma ―evidente integração entre
comunidade, sociedade, igreja e a autoconsciência do artista criador‖ (p. 16). No
século XIX, não mais existia uma comunicação evidente entre os artistas e os
homens, ―entre os quais vive e para os quais cria‖ (p. 16). O artista passa, então, a
ser um artista somente para arte. Assim, não sendo mais o mensageiro da
integração do mundo social, entende que a imagem não é uma contemplação
intuitiva ―assim como a contemplação que nossa experiência cotidiana nos dá da
natureza‖ (p. 18); e faz, através do impressionismo e, principalmente, do cubismo, a
transição de uma arte feita para olhares meramente assimilativos para uma arte que
propõe uma nova visualidade que exige um ―trabalho de elaboração ativa‖ (p. 18);
por parte do espectador. A esse trabalho de elaboração ativa, que se estabelece
entre a obra e o observador, Gadamer chama de jogo.
O jogo, assim, pode ser pensado como uma atividade sem objetivos, mas
desejada como tal. Ou seja, o jogo é a autorrepresentação do movimento do jogo. A
arte como jogo encarna o exemplo humano mais puro de autonomia do movimento.
Segundo o autor, seria um erro pensar que a unidade da obra depende de
um fechamento ―frente aquele que se volta para a obra ou ao que é por ela
alcançado‖ (p. 41), pois ler é um ato inconclusivo. A obra aparece sempre que existe
uma experiência estética, ―pois lá estava algo que eu julgo que ―entendi‖. Identifico
algo como o que foi ou o que é e só essa identidade dá o sentido de obra‖ (p. 42).
18

Há um sentido da obra que compreendemos, porém por nossa historicidade isto


ocorre sempre de um modo diferente, pois a mediação com o presente é sua
condição de possibilidade. ―É justamente a identidade da obra que convida a essa
atividade, que não é arbitrária, mas dirigida e adstrita a um certo esquema‖. Porém,
―cada obra deixa como que, para cada um que a assimila, um espaço de jogo2 que
ele tem que preencher‖ (p. 43) por conta própria. Gadamer aproxima essa ação à
leitura de um texto propondo, então, que essa operação é uma operação intelectual.

Ler, porém, não é soletrar e pronunciar uma palavra após a outra mas,
principalmente, realizar o movimento hermenêutico constante que é
comandado pela expectativa do sentido do todo e preenche-se, a partir de
cada parte individual, finalmente na elaboração significativa do todo
(GADAMER, 1985, p. 45-46).

A experiência do literário é, nesta perspectiva, uma experiência


hermenêutica que possibilita a leitura do estético além da palavra mesma, ainda que
o leitor não seja um experto em literatura.
No encontro com a obra de arte tem lugar uma experiência de verdade e
conhecimento com seu próprio modo de legitimidade que não se deixa limitar pelo
âmbito de controle da metodologia científica. Através da experiência a obra de arte
passará da categoria de objeto a uma categoria experiencial por parte do sujeito.
Vista a partir de tal perspectiva, a obra de arte procede de um modo hermenêutico
em duplo sentido, já que interpreta o mundo e ao mesmo tempo o expressa de um
modo particular que revela seu sentido. No reconhecimento que propicia a obra de
arte emerge o que já conhecíamos e que permite apreender sua essência.
A verdade da arte é uma verdade relacional que tem lugar de maneira
dialógica, trata-se do acontecimento a que pertencemos, trata-se de um
conhecimento que é reconhecimento, que nos confronta com nós mesmos
transformando-nos. O conhecimento da verdade da arte implica um
autoconhecimento, uma autocompreensão e, com isso, crescimento de nosso ser,
pois se a obra nos sai ao encontro, em diálogo renovado com nossa interpretação,
será então, portadora de verdade, historicamente distinta de todas as gerações
passadas. A atualidade da obra para o presente se dá, pelo fato de que diz algo a
cada um, como se o dissera expressamente a ele, como algo presente e simultâneo.

2
O conceito de jogo será detalhadamente abordado no próximo capítulo.
19

Minimizada a distinção entre arte do passado e arte contemporânea, pelo


fato de toda obra de arte impor a mesma tarefa de leitura ao intérprete, falamos de
arte para nos referir tanto à arte antiga como à arte moderna, à arte de todos os
tempos.
Apesar de estar na base da formação da maioria dos professores e constituir
a maior parte de suas experiências, a questão da tradição literária e da sequência
histórica, vista muitas vezes como problemática, é apontada como causa do
enrijecimento das práticas de ensino. De outra parte, essa tradição literária também
pode ser encarada positivamente, no sentido de valorização das velhas leituras, não
simplesmente como uma forma de recuperar a cultura humanística, mas de
estabelecer uma relação com o passado, articulando-o com o presente. ―A isso
corresponde uma co-pertença da obra ao nosso mundo‖ (GADAMER, 2008, p. 384).
Apontamos a possibilidade de percorrer a história da literatura pautada nos
princípios da hermenêutica, porque "as hermenêuticas filosóficas têm dimensões
práticas, pois podem modificar atitudes e práticas e podem oferecer novas
perspectivas sobre atividades e práticas até agora não examinadas e consideradas
como líquidas e certas" (LAWN, 2010, p. 147). Além dos valores do passado,
estaremos trabalhando com novas possibilidades de interpretação.
Com relação ao cânone em pauta, tecemos considerações pessoais, com
base em nossa experiência como professora de Literatura no Ensino Médio, bem
como a partir do nosso referencial teórico da hermenêutica filosófica. Apoiamos
nosso discurso nas opiniões do crítico literário Antonio Candido e do professor
Alfredo Bosi, visto que ambos tiveram uma participação importante na consolidação
de um cânone literário brasileiro. Destacamos, assim, as principais influências que
teve e exerceu a literatura, constituindo-se para nós uma questão teórica que precisa
ser ampliada e, principalmente, compreendida.
Considerando a influência do livro didático nas práticas escolares, podemos
dizer que, de uma forma geral os autores desses livros partem do conceito de
literatura como a arte da palavra. Os mesmos fazem uma série de relações da
literatura com a sociedade, com a imaginação, com o prazer. Também conectam à
literatura a história da literatura, tendo como referência o estudo dos chamados
clássicos.
20

Antonio Candido, ao analisar as obras e autores, propõe um enfoque


dialético, em que elementos da análise formal da obra literária possam se
correlacionar com a ambientação histórica e sociológica, destacando que não há um
trânsito imediato de uma a outra, pois isso caracterizaria uma relação determinista
entre contexto social e obra de arte. Ele, porém, leva em conta a historicidade, ou
seja, avalia mais a qualidade do texto literário na história do que a sequência
cronológica das obras, característico do tradicional enfoque historicista. Para o autor,
a análise da obra não pode desprezar nem o texto nem o contexto. A literariedade
dos textos estará não mais no aspecto imanentista de cada obra, mas, sim, em sua
relação de existência na sociedade. Seus aspectos de produção, recepção e
tradição3 farão da obra um objeto existente em um sistema, articulado por uma
tríade dinâmica e histórica: autor-obra-público.
História concisa da literatura brasileira, de Alfredo Bosi, está entre as
sínteses de história da literatura mais conhecidas dos professores de literatura.
Publicada pela primeira vez em 1970, a obra teve, em 2010, a 46ª edição, tendo
servido de referência para a formação de algumas gerações de professores de
literatura. Bosi também organiza essa obra sob a perspectiva da história.
Tanto os livros didáticos, quanto os teóricos, apresentam certa
homogeneidade, o que significa o seguimento de determinados critérios comuns.
Nos autores referidos há a preocupação de apresentar as obras fundamentais da
literatura nacional, aquelas que representam a identidade literária da nação
brasileira, demonstrando o cuidado, o respeito e a acuidade pela tradição literária.
Na perspectiva hermenêutica, a obra literária não é um acontecimento que
ficou no passado. Ela dialoga com a cultura que a recepciona. Essa cultura produz
novos objetos e estes alteram a tradição, permitindo-lhe outra leitura, assim como a
tradição fornece elementos para a compreensão do contemporâneo. Nessa
perspectiva a obra literária não é encarada como um objeto que desperta a
curiosidade, mas como possibilidade de interlocução.
Uma vez que houver, por parte do professor, o entendimento de que a
literatura deve ser percebida como via de acesso à experiência humana, até mesmo
as listas de livros sugeridas pelas universidades como leituras obrigatórias para o
vestibular, consideradas muitas vezes de caráter autoritário, no sentido de que

3
Também a Estética da Recepção pretende abordar a arte enquanto processo dinâmico entre autor,
público e obra.
21

simplesmente preservam o cânone, passam a ser possibilidade de desacomodação


para os professores. Como essas leituras não ocorrem em sala de aula, elas se
apresentam como oportunidade, para os alunos, de acesso à experiência estética, já
que a experiência da leitura literária é de natureza individual. Nessa situação, a
intervenção do professor para provocar a relação entre texto e leitor parte de
critérios de mediação que se inferem dessa dupla condição, estética e pedagógica,
do ensino da literatura. Cabe à escola e aos educadores propiciar ou criar atividades
que permitam ao aluno o desenvolvimento dessa experiência estética. Com isso
temos uma proposta de mediação pedagógica para a experiência estético-literária a
partir da inferência de conceitos estética e pedagogicamente coerentes.
Para Jauss (1974) ―A obra literária não é um objeto independente que
proporciona a mesma experiência aos espectadores de todas as épocas. Nem é um
monumento que nos revela o seu ser permanente em forma de monólogo‖ (p. 41). A
estética recepcional surge como solução para o problema de como compreender a
sequência histórica de obras literárias no conjunto da história da literatura. Para esse
autor, a historicidade da literatura não depende da coerência de alguns fatos
literários que possa ver-se retrospectivamente, mas do contato vivo da obra com
seus leitores. Ele entende que, em momentos de ruptura, determinadas obras, não
aceitas quando de sua divulgação imediata, podem aos poucos criar um público
próprio e, assim, alterar o modo de ver o cânone literário. Os leitores constroem os
sentidos das obras condicionados tanto pelos horizontes internos das obras quanto
pelos contextos históricos dos próprios leitores, ou seja, a partir do seu horizonte de
expectativas. O horizonte de expectativas é uma característica fundamental de todas
as situações interpretativas, pois quando interpretamos, possuímos já um conjunto
de crenças, de princípios assimilados e ideias aprendidas que limitam o ato
interpretativo; quando lemos um texto literário, o nosso horizonte de expectativas
atua como a nossa memória literária feita de todas as leituras e aquisições culturais
realizadas desde sempre.
A Estética da Recepção propõe um paradigma da investigação literária e
discursiva que considera as obras de arte em seus aspectos produtivos, receptivos e
comunicativos. Jauss declara que adota a crítica do objetivismo histórico promovida
por Gadamer, que descreveu o princípio da história da recepção, e busca a
realidade histórica no próprio ato de entendimento, como uma aplicação da lógica da
pergunta e da resposta à tradição histórica. A pergunta histórica não pode existir
22

separada, tem que unir-se com a pergunta que a tradição forma para nós. Jauss,
seguindo Gadamer, defende a impossibilidade de reconstrução do horizonte
histórico original, pois este sempre será abarcado pelo horizonte presente. Sempre
haverá, portanto, uma fusão de horizontes, outro conceito de Gadamer, que será
recuperado por Jauss, considerado o fundador da Estética da Recepção4.
No momento da leitura de uma obra clássica, o horizonte de expectativas do
leitor estará em constante diálogo com o horizonte de expectativa da obra.
Nessa perspectiva hermenêutica a literatura é inconcebível sem o leitor, cuja
atividade é imprescindível para a significação das obras, a fim de efetuar, com isso,
a referência ao mundo presentificado pelo texto, inclusive do clássico, e apropriar-se
do sentido aberto pelo mesmo. Nas palavras de Gadamer (2008, p. 380-81):

[…] o clássico é uma verdadeira categoria histórica por ser mais do que o
conceito de uma época ou o conceito histórico de um estilo, sem que por
isso pretenda ser uma ideia de valor supra-histórico. Não designa uma
qualidade que deva ser atribuída a determinados fenômenos históricos,
mas, sim, um modo característico do próprio ser histórico, a realização
histórica da conservação que, numa confirmação constantemente renovada
torna possível a existência de algo verdadeiro.

A literatura clássica, como existência de algo verdadeiro, não é somente um


modelo permanente conservado para a posterioridade, mas possui uma tradição
cultural viva que se vai transformando conforme as mudanças do gosto. Se as obras
da literatura universal seguem querendo dizer algo, ainda que o mundo seja
completamente distinto, isto põe em evidência o vínculo essencial entre a literatura,
a escrita e a leitura. Quem sabe ler o transmitido por escrito atesta e realiza a pura
atualidade do passado, com isso se está dizendo que a tradição escrita, a partir do
momento em que se decifra e se lê, é o espírito puro que nos fala como se fora
atual, isto porque na compreensão da escrita acontece ―a transformação de algo

4
A aula inaugural proferida por Hans Robert Jauss, em 1967, na Universidade de Constança, por
motivo da celebração do sexagésimo aniversário de Gerhad Hess, reitor da Universidade de
Constança com o título de Literaturgeschichte als Provokation der Literaturwissenschaft (traduzido
para o português, em 1974, por Ferreira de Brito como: A História Literária como provocação à
Ciência Literária), costuma ser referida como ponto de partida da Estética da Recepção
(Rezeptionsästhetik). A partir de então se formou a chamada "Escola de Constança", tendo à frente
Hans Robert Jauss e reunindo outros nomes como Wolfgang Iser, Hans Neuschäfer, Hans U.
Gumbrecht, Karlheinz Stierle e Manfred Fuhrmann (conforme LIMA, em A Folha de São Paulo, 18 de
março de 2007. http://www1.folha.uol.com.br/fsp/inde18032007.shl).
23

estranho e morto em um ser absolutamente familiar e coetâneo‖ (GADAMER, 2008,


p. 230).
Portanto, pode-se afirmar que o clássico apresenta em sua essência uma
postura que se projeta ―frente à crítica histórica, porque seu domínio histórico, o
poder vinculante de sua validez que se transmite e se conserva, precede toda
reflexão histórica e se mantém nela‖ (GADAMER, 2008. p. 381), estando,
potencialmente, carregado de sentido. Questionar o cânone estabelecido significa
questionar a totalidade da cultura que o sustenta e o transmite. Daí que a pergunta
sobre a formação do cânone inclua uma questão ética, pois postular a validade de
determinados textos sobre outros é postular uma ética dos valores que operam
nessa situação.
Destacamos, ainda, que pela lógica da recepção as obras têm um caráter
atemporal. Essa atemporalidade tem a ver com o tema abordado pela obra literária,
visto que o texto tende a perenizar quando trata profundamente a condição humana.
Também para Antonio Candido, uma das forças que atuam na formação do
sistema literário é a continuidade literária ou a tradição, padrões que se impõem ao
pensamento ou ao comportamento, aos quais somos obrigados a nos referir, para
aceitar ou rejeitar. ―Sem esta tradição não há literatura, como fenômeno de
civilização‖ (CANDIDO, 1975, p. 24). O conceito de literatura pressupõe a existência:

[...] de um sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras e sobre os


leitores; e só vive na medida em que estes a vivem, decifrando-a, aceitando-
a, deformando-a. A obra não é um produto fixo, unívoco ante qualquer
público; nem este é passivo, homogêneo, registrando uniformemente o seu
efeito. São dois termos interatuantes a que se junta o autor, termo inicial
desse processo de circulação literária, para configurar a realidade da
literatura, atuando no tempo (CANDIDO, 1973, p. 74).

Uma vez que estamos fazendo essa abordagem a partir da hermenêutica


podemos dizer que a relação entre literatura e tradição é circular, pois ao mesmo
tempo em que a literatura objetiva expandir nosso horizonte de vida, contribui para o
esclarecimento da própria história do pensamento. Assim, literatura e tradição
interagem, pois, no fundo, compartilham o mesmo material: a experiência humana e
a palavra que a expressa.
O pertencimento a uma tradição, no sentido gadameriano, é pertencimento a
uma comunidade potencial, onde cada qual se sabe vivendo no horizonte de seus
24

congêneres e se referindo às mesmas coisas de experiência, apesar de que os


distintos indivíduos tenham aspectos e perspectivas distintas das mesmas coisas.
Por pertencer a uma tradição, a literatura brasileira tem seu início
intimamente atrelado à cultura europeia, mais especificamente à portuguesa, mas
com um característico sentimento de apego à terra e a tudo de novo que ela tem. ―À
curiosidade geográfica e humana e ao desejo de conquista e domínio
correspondem, inicialmente, o deslumbramento diante da paisagem exótica e
exuberante, testemunhado pelos cronistas portugueses que escreveram sobre o
Brasil‖ (CANDIDO, 2003, p. 11). Assim as origens da nossa literatura prendem-se ao
quinhentismo português e ao seiscentismo peninsular.
―Existem obras científicas, que através de sua qualidade literária
conquistaram a exigência de ser honradas como obras da arte literária, e de ser
contadas entre a literatura universal‖ (GADAMER, 2008, p. 228-29). Exemplificamos
a afirmação do autor com A Carta de Pero Vaz de Caminha, o mais antigo
documento da história brasileira que, apesar de, originariamente, não ter intenções
literárias, passou a ser considerada pelos historiadores como o primeiro texto da
literatura brasileira. É que a Carta fala a partir do significado do seu conteúdo,
confirmando a ideia gadameriana de que a compreensão se volta para o que a obra
de arte nos diz.
Considerando que estamos falando da literatura no espaço formal da escola,
lembramos que existe uma orientação para que esta seja assim encarada. Nos
PCNs consta a seguinte definição:

Desfrute (fruição): trata-se do aproveitamento satisfatório e prazeroso de


obras literárias, musicais ou artísticas, de modo geral bens culturais
construídos pelas diferentes linguagens, depreendendo delas seu valor
estético. Apreender a representação simbólica das experiências humanas
resulta da fruição dos bens culturais (PCNs, 2002, p. 67).

Programas governamentais de aquisição e difusão de livros se destacam na


história da leitura no Brasil. Foram privilegiados, nas últimas décadas, além do livro
didático, obras de poesia e ficção, a produção dirigida à infância e à juventude,
gêneros considerados aptos a motivar uma criança ou um adulto a ler mais e melhor.
Percebemos que, independentemente do período em que a obra literária
está inserida, a literatura vai registrando a visão de mundo que os homens vão
deixando, como uma espécie de testemunho de sua passagem pelo mundo, porque
25

em todas as épocas ela se ocupa da intimidade, dos sentimentos, dos afetos e da


fantasia dos homens. Para isso é imprescindível que o professor entenda as
perguntas, os questionamentos, as reclamações dos alunos, dando respostas que
provoquem novas perguntas, tendo claro que ―os preconceitos e opiniões prévias
que ocupam a consciência do intérprete não se encontram à sua livre disposição‖
(GADAMER 2008, p. 391). A lógica da pergunta e da resposta ajuda a compreender
o diálogo entre o texto e sua época e entre o texto do passado e o leitor do presente.
Para gerar uma mudança de perspectiva, uma forma de abertura da reflexão
consiste em situar a visão hermenêutica além das listas de livros e de autores, pois
não se pode pretender ensinar literatura, nem se pode aprendê-la, a partir de listas
de nomes e taxonomias periodizantes, de modo que não é possível a recepção
literária se não houver processos de interpretação e leitura das obras mesmas.
É possível que algumas obras, não reconhecidas pelo cânone, logrem tocar
a experiência do leitor que está em processo de formação. Com isso assinalamos o
caráter sempre imprevisível da seleção de textos; pois, depende na maioria dos
casos da subjetividade de cada um, razão pela qual não podemos dizer que um livro
é melhor que o outro, já que quem decide isso é o leitor. Há livros que lidos em
diferentes períodos de nossa vida nos dizem sempre algo diferente sobre o mundo e
sobre nós mesmos. Dito de outra forma, um livro só é verdadeiramente acessível
através da própria experiência vivida.
Baseados ainda em nossa experiência, podemos dizer que os textos em
geral e, especialmente, o livro de literatura sempre terão espaço na escola e na vida
do estudante, dependendo da relação que o professor estabelece com a literatura. E
serão encaminhados de maneira conveniente ao ter presente que um dos conceitos
que fundamenta a experiência estética é o de fruição da obra de arte pelo receptor.
―Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade‖ (CÂNDIDO, 2004, p.
186). Ainda podemos dizer que, no fazer diário da escola, o cânone ocupa um lugar
de destaque, mas que, paulatinamente, outras obras vão sendo inseridas no
contexto escolar, fazendo valer aí as prerrogativas da estética da recepção.
O desenvolvimento da competência literária do estudante como um aspecto
de sua competência comunicativa requer do professor uma harmonia dos
paradigmas teóricos com os didáticos. Para isso é necessário estabelecer relações
coerentes entre os conteúdos e a prática pedagógica com o fim de lograr a
experiência estético-literária no ato didático.
26

Na sequência desta tese faremos uma abordagem dos elementos da


hermenêutica filosófica que consideramos significativos para um questionamento
aprofundado sobre a pertinência da obra literária no contexto educativo, na
perspectiva de aí encontrar subsídios para compreender como se produz o sentido
daquilo que se lê. Essa inserção na filosofia se dá tendo claro que ―nós não
filosofamos porque possuímos a verdade absoluta, mas porque ela nos falta‖
(GRONDIN, 1999, p. 202). A verdade que nos falta é que nos leva à investigação.
27

2 LINGUAGEM E EXPERIÊNCIA HERMENÊUTICA EM GADAMER

“Morro cheia de assombro por não sentir em


mim nem princípio nem fim” (Cecília Meireles).

Entendemos que o estudo do processo de compreensão a partir da


perspectiva da hermenêutica filosófica proporciona uma série de considerações de
especial relevância para a prática educativa. Disso decorre que precisamos explicitar
algumas categorias fundamentais para o entendimento do pensamento de Gadamer,
tais como: linguagem, tradição, história, experiência, preconceito, compreensão,
interpretação, destacando que ―a linguagem efetiva-se, como diálogo autêntico,
quando deixa e produz, em nós, algo imprevisto que nos transforma e nos torna
melhores, mais felizes, mais humanos‖ (ROHDEN, 2008, p. 25), gerando o
comprometimento dos que se envolvem no diálogo.
Neste capítulo, primeiramente analisaremos o sentido e as implicações
desses conceitos da hermenêutica filosófica para, em seguida, examinarmos
algumas orientações sobre a experiência hermenêutica e a obra literária.
Considerando o caráter fundante da linguagem na hermenêutica de
Gadamer, lançamo-nos neste estudo com o objetivo de perceber como se dá a
compreensão do texto. Para isso iniciamos com uma advertência de Gadamer, que
diz que ―quem quer compreender um texto deve estar disposto a deixar que este lhe
diga alguma coisa‖ (2011, p. 358). Mas para que essa disposição advenha, para
mostrar-se receptivo, implica apropriação das opiniões prévias e preconceitos
pessoais. Implica o reconhecimento de que somos parte de uma história e que essa
história se apresenta para nós como linguagem.

2.1 LINGUAGEM E HORIZONTE EXISTENCIAL, SEGUNDO GADAMER

Em seu texto ―Homem e linguagem‖, Gadamer (2011, p. 173-182) escreve


que ―é de Aristóteles a definição clássica do homem como ser vivo que possui logos‖
(p. 173), porém a tradição ocidental entendeu o logos como razão ou pensar,
quando ela também e, sobretudo, significa linguagem. Pela linguagem o homem
pode comunicar tudo o que pensa e pode pensar o comum.
28

Conforme Oliveira (2006), Platão, preocupado em definir as relações sobre o


conceito e a palavra que o designa, tenta responder à pergunta: por meio de que
nossa expressão adquire significação? Ou, haverá uma relação necessária entre a
palavra e seu significado? Disso decorre sua tese de que ―as palavras não imitam
propriamente sons, mas apresentam a essência das coisas‖. Por isso a apreensão
das ideias se dá pelo olho do espírito, capaz de captar a verdadeira ordem das
coisas.
Já Aristóteles desenvolveu estudos noutra direção, na tentativa de proceder
a uma análise precisa da estrutura linguística, levando a sério a tarefa de
fundamentação do discurso racional. Para isso acentua o caráter obrigatório da
mediação linguística para o acesso ao ser, considerando a linguagem como
ferramenta do pensamento.
Partindo desta consideração, seria de supor que a linguagem tivesse sempre
um lugar privilegiado no pensamento sobre o homem, mas como observa Gadamer,
―a essência da linguagem não constitui o ponto central do pensamento filosófico do
Ocidente‖ (2011, p. 174). Pois a visão tradicional via as palavras funcionar como
rótulos vinculados a conceitos.
Mesmo com ressalva, Gadamer destaca a fundação da filosofia da
linguagem e da ciência da linguagem por Humboldt, que já dizia que a linguagem é
que define o homem. Esse destaque nos chama atenção, pois foi preciso que um
filósofo do século XX fizesse referência aos estudos de um linguista do século
anterior, uma vez que tal autor, na área da linguística e dos estudos de linguagem
não era muito lembrado, pois existe uma tendência dentro da linguística em dizer
que os estudos de linguagem iniciam com Saussure, com a sua ciência dos signos,
e que tem no Curso de Linguística Geral um de seus marcos. Este autor, por meio
do termo semiologia, procurou designar a ciência geral dos signos, daí a
disseminação da ideia de que a língua é fundamentalmente um instrumento de
comunicação.
Para Humboldt a linguagem não é um mero sistema de signos, e, sim,
constitutiva da atividade de pensar, isto é, a própria condição de possibilidade dessa
atividade. Por isso a linguagem se torna garantia de intersubjetividade e proporciona
o entendimento entre os falantes. ―O mundo está-aí para o homem, e esse ‗estar-aí‘
é constituído linguisticamente. É nesse sentido que se deve compreender a famosa
frase de Humboldt: toda linguagem é uma visão de mundo‖ (OLIVEIRA, 2006, p.
29

236). Observamos assim que as contribuições de Humboldt para o estudo da


linguagem no século XIX foram primordiais para o desenvolvimento dos estudos
linguísticos no século XX. É dele que vem a noção de que a linguagem não é meio
para expor a verdade conhecida; antes disso, ela descobre o que era desconhecido.
Com base nessa ideia, Gadamer vai dizer que ―a linguagem não é um dos
instrumentos, ao lado do signo e da ferramenta – embora esses dois certamente
façam parte da caracterização essencial do homem. A linguagem não é nenhum
instrumento, nenhuma ferramenta‖ (2011, p. 176). Por isso, é enfático ao afirmar que
―jamais nos encontramos como consciência diante do mundo para num estado
desprovido de linguagem lançarmos mão do instrumental do entendimento‖ (p. 176),
pelo contrário, pois em todo conhecimento que temos de nós mesmos e do mundo,
sempre já nos encontramos pela nossa própria linguagem. Da mesma forma, reitera
que ―em todos os nossos pensamentos e conhecimentos já fomos precedidos pela
interpretação do mundo feita pela linguagem‖ (p. 178).
Nosso pensamento habita a linguagem, o que para Gadamer constitui o
enigma profundo que a linguagem propõe ao pensar. Assim, é inviável pensar a
linguagem fora dela mesma, pensá-la como um objeto, pois não há pensamento sem
linguagem, na medida em que todo pensar sobre a linguagem, já foi sempre
alcançado pela linguagem. Neste contexto, a linguagem não é um mero instrumento
ou um dom que possuímos como homens, mas o meio no qual vivemos desde o
começo, como seres sociais, e que mantém aberto o todo no qual existimos.
Reforçando tal argumento, enfatiza o fato de a linguagem se constituir como um
vínculo entre o homem e o seu mundo vital, análoga ao ar que respiramos, já que
ela é, em outras palavras, o meio onde desde o início vivemos, ―a linguagem é, pois,
o centro do ser humano, quando considerada no âmbito que só ela consegue
preencher: o âmbito da convivência humana, o âmbito do entendimento, do
consenso crescente, tão indispensável à vida humana como o ar que respiramos‖
(p.182).
Por isso o entendimento de que ―linguagem não é produto (ergo), mas
atividade (energia), na qual se efetiva toda compreensão. Compreensão que não é
uma faculdade do humano, mas o próprio modo de ser do ser-aí (Dasein)‖
(FENSTERSEIFER, 2009, p. 246).
30

A partir da virada ontológica da hermenêutica no fio condutor da linguagem


esta passa a ser vista como aquilo que possibilita a compreensão do indivíduo no
mundo, de modo que essa mesma linguagem é necessariamente fruto de um
processo de comunicação envolvendo uma relação de intersubjetividade. Isto é,
onde antes havia uma relação sujeito - objeto, instaura-se uma relação sujeito -
sujeito.
Ao falar da linguagem como medium da experiência hermenêutica, Gadamer
afirma que quanto mais autêntica uma conversação, menos ela se encontra sob a
direção da vontade de um outro dos interlocutores. O que surgirá de uma
conversação ninguém pode saber a priori, pois o acordo ou o seu fracasso, como ele
mesmo afirma, ―é um acontecimento que se realizou em nós‖ (2008, p. 497). Neste
sentido, como a conversa toma seus rumos próprios, ao invés dos interlocutores
dirigirem a conversação eles é que são os dirigidos.
Foi a ideia de acordo que permitiu a Gadamer introduzir a linguagem dentro
do âmbito de sua concepção hermenêutica, já que o acordo sobre uma questão,
―que deve surgir na conversação, significa necessariamente que os interlocutores
começam por elaborar uma linguagem em comum‖ (2008, p. 493). É em função da
linguagem que é possível a convivência entre os homens através de uma
experiência do que é comum a todos. Diz o autor:

É somente pela capacidade de se comunicar que unicamente os homens


podem pensar o comum, isto é, conceitos comuns e sobretudo aqueles
conceitos comuns, pelos quais se torna possível a convivência humana sem
assassinatos e homicídios, na forma de uma vida social, de uma
constituição política, de uma convivência social articulada na divisão do
trabalho. Isso tudo está contido no simples enunciado: o homem é um ser
vivo dotado de linguagem (2011, p. 173-174).

Essa citação é uma defesa da centralidade da linguagem como eixo


definidor da própria condição humana.
Todo pensamento sobre a linguagem, toda realização, conhecimento e ato
humano só podem ser pensados através da linguagem mesma, neste estar em tudo
é onde radica seu caráter universal. Gadamer (2011, p. 176) escreve: ―Em todo
conhecimento de nós mesmos e do mundo, sempre já fomos tomados pela nossa
própria linguagem. É aprendendo a falar que crescemos, conhecemos o mundo,
conhecemos as pessoas e por fim conhecemos a nós próprios‖. Ser homem viria a
31

significar, portanto, ter linguagem e ter mundo, onde esse ter significa algo bem
diferente de dispor de ou dominar. Essa condição fundamental implica por sua vez
que o ter mundo se realiza como pertencimento a uma comunidade vital articulada
por uma linguagem comum, pois ―foi exatamente por adotar padrões de interação
com o meio e com os demais já não determinados instintivamente que a espécie
humana se constituiu em espécie cultural e social, ou seja, passou a ter um mundo‖
(BOUFLEUER, 2013, p. 76). Todas as formas de comunidade humana de vida são
formas de comunidade linguística. A palavra nos dá o acesso à verdade e ao
conhecimento, pois é a partir dela que criamos o mundo. A linguagem tudo envolve.
O diálogo hermenêutico e a compreensão são possíveis porque existe uma
comunidade linguística que compartilha uma mesma tradição, tanto atual como
histórica.
Ao questionar como se dá a linguagem Gadamer nos aponta três aspectos:
- O primeiro é o esquecimento essencial de si mesmo que advém à
linguagem. Quando falamos não pensamos na estrutura, na gramática, na sintaxe
da linguagem.
- O segundo aspecto do ser da linguagem é a ausência de um eu. Quem
fala, fala a alguém. Seguindo as reflexões de Oliveira (2006), podemos dizer que
Humboldt coloca a intersubjetividade, que se manifesta nas diferentes perspectivas
dos participantes da comunicação, na base do entendimento entre si sobre algo no
mundo. Também para Gadamer a realidade do falar consiste no diálogo.
- O terceiro aspecto o autor chama de universalidade da linguagem, e isso
está relacionado à universalidade da razão.
Manfredo de Oliveira5 faz uma ampla descrição da pragmática existencial de
Martin Heidegger. Desse autor, ressaltamos a importância da hermenêutica como
possibilidade de entendimento do nosso cotidiano, como compreensão do ser e das
coisas do nosso mundo. Contra o pensamento moderno, Heidegger situa o estar em
um mundo, o compreender, antes do pensar, porque o nosso ser no mundo é

5
Manfredo Araújo de Oliveira no seu livro ―Reviravolta Linguístico-Pragmática na Filosofia
Contemporânea‖ apresenta, sob o ponto de vista da filosofia, um panorama de como foi entendida a
linguagem, desde a semântica tradicional, que se inicia com Platão e Aristóteles e vai até a primeira
fase de Wittgenstein; considerando a reviravolta pragmática, que se inicia ainda com Wittgenstein, em
oposição a ele mesmo com a proposta da pragmática analítica; passa pelas teorias dos atos de fala
de John Austin e John Searle, e aborda a pragmática existencial de Heidegger; chegando à
reviravolta hermenêutico-transcendental, composta pela hermenêutica de Gadamer, a pragmática
transcendental de Karl-Otto Apel e a pragmática universal de Habermas.
32

sempre linguisticamente mediado, de tal maneira, que é por meio da linguagem que
ocorre a manifestação dos entes a nós. Este giro ontológico realizado por Heidegger
em relação aos conceitos de compreensão e interpretação ligados à facticidade,
acontece porque estamos lançados a um mundo que possui uma ordem e formas de
funcionamento que, finalmente, lhe outorga um sentido tal que nosso acesso ao
mundo se leva a cabo como um acesso compreensivo e interpretativo. Assim, é a
linguagem que nos determina e, se o ser emerge enquanto linguagem, esta é o
caminho necessário de nosso encontro com o mundo.
A posição de Heidegger impulsiona o giro hermenêutico descrito por
Gadamer na filosofia, que torna fecundas as intuições de seu mestre a respeito do
processo de compreensão e de interpretação desenvolvidos pelas ciências do
espírito, ampliando o campo de compreensão a partir da categoria dialógica como
um saber peculiar que se articula do ainda não dito, considerando esse como uma
fonte de significação por explorar.
Jean Grondin na abertura de seu trabalho Introdução à Hermenêutica
Filosófica (1999), resenha o aparecimento do termo hermenêutica no século XVII
designando-a como ―ciência ou arte da interpretação‖ (p. 23); uma ciência que
pretende oferecer regras que evitem a arbitrariedade no exercício interpretativo.
Trata-se, pois, de um sentido metodológico da hermenêutica relacionado com
disciplinas a que serve de auxílio na interpretação dos textos que constituem sua
fonte e objeto principal.
Grondin, no entanto, prefere falar de uma hermenêutica filosófica, mais
recente, a qual é apresentada em um sentido que ele qualifica como mais restrito,
posto que ―designa a posição filosófica de Hans-Georg Gadamer, e eventualmente
também a de Paul Ricoeur‖ (1999, p. 24). Reconhece, claro está, o papel da
contribuição dos que antecederam a obra destes dois autores e, adicionalmente,
menciona Schleiermacher, Droysen, Dilthey e Heidegger como predecessores.
Mas é Gadamer que ocupa uma posição paradigmática frente à tradição
hermenêutica, pois,

[...] foi somente por meio de Gadamer que a hermenêutica filosófica


conquistou um perfil sistematicamente claro; foi somente Gadamer que
tornou os seus antecessores em precursores e lhes conferiu um lugar no
desenvolvimento do programa que ele mesmo defende (FIGAL, 2007, p.
11).
33

A questão da linguagem é colocada como fundante na hermenêutica de


Gadamer. Graças à linguagem o fenômeno hermenêutico adquire um alcance
universal: tudo quanto possa ser compreendido é, em princípio, compreensível,
justamente porque pode ser articulado linguisticamente. Este é o sentido da
afirmação, segundo a qual: ―O Ser que pode ser compreendido é Linguagem‖ (2008,
p. 612). Dado que as palavras não podem dar adequada conta de tudo o que se
compreende quando algo se compreende e de tudo o que se disse quando algo se
disse, elas sempre ficam incompletas e buscam outras palavras que permitam a
compreensão.
Seguindo o pensamento de Manfredo de Oliveira, podemos dizer que sem a
linguagem não se pode ver o homem nem o mundo. Assim, temos a linguagem
como lugar central da investigação sobre o homem.

A reviravolta linguística do pensamento filosófico do século XX se centraliza,


então, na tese fundamental de que é impossível filosofar sobre algo sem
filosofar sobre a linguagem, uma vez que esta é momento necessário
constitutivo de todo e qualquer saber humano, de tal modo que a
formulação de conhecimentos intersubjetivamente válidos exige reflexão
sobre sua infraestrutura linguística (OLIVEIRA, 2006, p. 13).

O próprio Gadamer ao levantar as preliminares histórias da hermenêutica


romântica vai dizer que ―este é o contexto a partir do qual se determina a ideia de
Schleiermacher de uma hermenêutica universal‖ (2008, p. 247). Essa ideia nasceu
da noção de que a experiência da estranheza e da possibilidade do mal-entendido
são universais. Com Schleiermacher a hermenêutica deixa de ser entendida como
mera técnica de interpretação de textos e começa também a se tornar compreensão
em geral da estrutura de interpretação que caracteriza o conhecimento enquanto tal.
Gadamer destaca a importância da proposição de Schleiermacher de que
compreender significa entender-se uns com os outros. Assim ―compreensão é, de
princípio, entendimento‖ (GADAMER, 2008, p. 248).
Na primeira metade do século XIX, Friedrich Schleiermacher elabora uma
teoria geral da compreensão, reivindicando ―a superioridade do intérprete sobre seu
objeto‖ (GADAMER, 2008, p. 267). Porém é Heidegger que dá o passo decisivo ao
abordar o fenômeno da compreensão como algo mais que uma forma de
conhecimento, como uma determinação ontológica do homem. Segundo Gadamer, a
estética pós-kantiana, especialmente a partir de Schiller, espera da arte uma
34

elevação das condições de vida humana. No entanto, isso implica um processo de


formação, ou seja, uma elevação à generalidade, a uma experiência comum e
vinculante que não se pode esperar dos gênios artísticos enquanto indivíduos
isolados.
Gadamer pensa a hermenêutica como uma filosofia, que mostra que tanto a
compreensão quanto a linguagem são fatores transcendentais inerentes ao homem.
―A hermenêutica filosófica consiste numa postura, num modo de ser vinculado ao
bem, à verdade, pensado e articulado a partir (e para a) finitude humana‖ (ROHDEN,
2008, p. 24). A universalidade da hermenêutica mediada linguisticamente se
converte em fio condutor que leva à compreensão da finitude do homem, a qual
encontra na tradição, tanto a condição do próprio delimitar-se, como o estímulo para
um constante superar-se. Este comentário de Grondin vem confirmar a definição de
hermenêutica já descrita: ―Gadamer deduz uma estreita conexão entre a
insaciabilidade de nossa busca pela palavra correta e o fato de que a nossa própria
existência se encontra no tempo e perante a morte‖ (1999, p. 204), de forma que a
linguagem tem como balizas a ideia de temporalidade e de finitude.
Ao tratar da virada ontológica da hermenêutica no fio condutor da linguagem
esta se apresenta como horizonte para a elaboração de uma ontologia
hermenêutica. Gadamer insiste no caráter linguístico de nossa experiência de
mundo, o que não significa que o mundo seja um objeto de linguagem, a linguagem
é antes aquilo que faz surgir, que articula e expressa a verdade do mundo. Por isso,
uma vez mais a língua não pode ser entendida como um instrumento, dado que ela
não pressupõe entidades separadas que podem ser misteriosamente reunidas pelo
poder mágico das palavras, ao contrário, a língua se configura como aquilo que
desde sempre faz surgir o vínculo entre mundo e homem. Enquanto meio a
linguagem expressa e faz possível a manifestação de um entendimento entre os
homens e sobre as coisas.
O giro linguístico realizado pela filosofia se relaciona com a derrubada da
metafísica como pensamento fundamentador da cultura. Assim, a filosofia renuncia à
reflexão sobre consciência e realidade, apostando numa meditação sobre o homem
como ser-no-mundo e pelo mundo como nosso mundo, estando coimplicados como
ser-na-linguagem.
Referindo-se à linguagem enquanto ―médium‖ no qual vivemos, nos
movemos e no qual temos o nosso ser, Fensterseifer comenta:
35

O sentido dado aqui à hermenêutica pressupõe esta centralidade da


linguagem, fenômeno que produz na filosofia o que denominamos giro
linguístico, virada linguística ou ainda linguistic turn, o que, resumidamente,
significa o deslocamento da questão da razão e da verdade do plano da
relação sujeito-objeto para o plano da linguagem (2009, p. 245).

A tese de que a experiência hermenêutica tem um caráter linguístico é


demonstrada diretamente na seguinte passagem do artigo ―Linguagem e
compreensão‖:

[...] todo entendimento é um problema de linguagem e de que o sucesso ou


fracasso no entendimento só se obtém no elemento da condição de
linguagem. Todos os fenômenos do entendimento, da compreensão e da
incompreensão, que formam o objeto da assim chamada hermenêutica,
representam um fenômeno de linguagem (GADAMER, 2011, p. 216).

Gadamer reconhecia que essas afirmações eram exigentes e, até certo


ponto, provocativas. Por isso trata de explicar a conexão entre compreensão e
linguagem, questionando a razão de o fenômeno da compreensão ter tal caráter,
sustentando que está implícita na própria pergunta a resposta que é ―a linguagem
que constrói e conserva essa orientação comum no mundo‖ (2011, p. 220).
Quanto mais uma conversa é realmente uma conversa, menos o seu
desenrolar depende da vontade de um ou de outro parceiro. O caráter de abertura
de uma conversa diante dos interlocutores nos revela que a língua,
independentemente da subjetividade destes, impõe-se traçando um caminho e
direcionando os argumentos dos interlocutores. A conversa exige dos intérpretes a
manutenção de uma abertura para a opinião do outro sobre o assunto em questão.
Na conversa se constrói um aspecto comum do que é falado, visto que:

A verdadeira realidade da comunicação humana é o fato de o diálogo não


ser nem a contraposição de um contra a opinião do outro e nem o
aditamento ou soma de uma opinião à outra. O diálogo transforma a ambos.
O êxito de um diálogo dá-se quando já não se pode recair no dissenso que
lhe deu origem. Uma solidariedade ética e social só pode acontecer na
comunhão de opiniões, que é tão comum que já não é nem minha nem tua
opinião, mas uma interpretação comum do mundo (GADAMER, 2011, p.
221).

Para levar uma conversa adiante é necessário em primeiro lugar que os


interlocutores não argumentem ao mesmo tempo, requer ―não abafar o outro com
36

argumentos, mas ponderar realmente a importância objetiva de sua opinião‖


(GADAMER, 2008, p. 479). Outra condição da arte de conversar é assegurar-se de
que o interlocutor acompanha a conversa. Levar uma conversa adiante requer a
submissão ao tema sobre o que se orientam os interlocutores. Requer não diminuir o
outro com argumentos e considerar as opiniões antagônicas. Cada participante, no
desenrolar da conversa, tem que estar disposto a deixar-se afetar nas suas opiniões
pelas opiniões do outro, sobre a coisa em questão. Caso contrário, a conversa não
se realiza.

2.2 OS TRAÇOS FUNDAMENTAIS DA EXPERIÊNCIA HERMENÊUTICA EM


GADAMER

Ao formular as noções fundamentais de uma teoria da experiência


hermenêutica, Gadamer determina a historicidade da compreensão, pois para ele a
compreensão é concebida como um fenômeno histórico, dialético e linguístico
pertinente às ciências humanas e às ciências da natureza. Conforme Manfredo de
Oliveira, ―a pergunta fundamental que vai marcar o pensamento de Gadamer é: que
significa para a compreensão e a autocompreensão do homem saber-se ‗carregado‘
por uma história, que se articula para nós como linguagem dada pela tradição?‖
(2006, p. 226). É no estudo sobre os preconceitos que Gadamer busca compreender
como a hermenêutica pôde fazer jus à historicidade da compreensão. Para isso
retoma a descrição heideggeriana do círculo hermenêutico, observando que toda
interpretação correta tem que proteger-se da arbitrariedade de intuições repentinas e
da estreiteza dos hábitos de pessoas imperceptíveis, e voltar seu olhar para ―as
coisas elas mesmas‖ (2008, p. 355), evitando que ideias que ocorrem ao intérprete
venham lhe desviar a vista.
Os estudos de Gadamer vinculam o ato de interpretação através da
linguagem como um processo radicalmente linguístico. Isto significa ampliar a
consideração da linguagem como mero instrumento de comunicação para integrá-la
dentro do processo hermenêutico, onde se encontram a interpretação e a
compreensão. O que é dito por alguém manifesta a opinião de quem diz, sendo que
quem ouve não precisa, necessariamente, partilhar dessa opinião, e isso pode gerar
uma nova dificuldade para a compreensão, vindo a motivar mal-entendidos.
37

A compreensão de um texto é um projetar, pois a leitura se dá a partir de


certas expectativas e na perspectiva de um sentido determinado. Mas o autor
adverte que quem busca compreender está exposto a erros de opiniões prévias, que
não se confirmam nas próprias coisas, por isso a compreensão só será alcançada se
as opiniões prévias não forem arbitrárias e quando puderem ser expressamente
examinadas quanto a sua origem e validez. Dessa forma, ao ler um texto de outra
época, tanto as opiniões prévias dos hábitos de linguagem, quanto as opiniões
prévias de conteúdo que constituem nossa pré-compreensão devem ser levadas em
consideração, visto que são os preconceitos que testemunham nossa pertença a
uma tradição, ligando intérprete e interpretado no mesmo processo histórico.
Ressaltando o pré de todo conceito e julgamento, ambos ficam situados na
dimensão da história, ou seja, são delimitados.
Para quem trabalha em educação e, particularmente, com atividades de
interpretação de textos, vale a observação de Gadamer de que quando se ouve
alguém ou quando se empreende uma leitura, ―o que se exige é simplesmente a
abertura para a opinião do outro ou para a opinião do texto. Mas essa abertura
implica sempre colocar a opinião do outro em alguma relação com o conjunto das
opiniões próprias, ou que a gente se ponha em certa relação com elas‖ (p. 358). Se
levarmos a sério a dimensão hermenêutica da educação, como interpretação e
vivência da tradição cultural, como propõe Mario Osorio Marques (1992, p. 52),
perceberemos que a hermenêutica questiona a coisa em questão, ou seja, o próprio
compreender.
Retomamos o ponto de partida de nossa reflexão, onde destacamos que na
tarefa de compreensão de um texto, quem o lê deve estar disposto a deixar que este
lhe diga alguma coisa, pois ―uma consciência formada hermeneuticamente deve,
desde o princípio, mostrar-se receptiva à alteridade do texto‖ (GADAMER, 2008, p.
358). Disso pode surgir o confronto da verdade do texto com as opiniões prévias do
leitor. Ao entrar no jogo do texto, preenchendo suas lacunas e espaços vazios, dá-se
o jogo entre leitor e texto, adquirido no âmbito do próprio jogo, e que proporciona a
significação maior da linguagem, do jogo e dos possíveis sentidos ditos a partir dos
caminhos de representação da obra.
Se alguma vez não ouvimos o que nos fala a tradição, Gadamer atribui essa
surdez aos preconceitos não percebidos. ―É só o reconhecimento do caráter
essencialmente preconceituoso de toda compreensão que pode levar o problema
38

hermenêutico à sua real agudeza‖ (p. 360). Assim, decorre a crítica do autor de que
há um preconceito iluminista contra os preconceitos em geral e a consequente
despotenciação da tradição. O fato de o conceito de preconceito receber uma
conotação negativa se deve a esse ideário. Como vem sendo tratado nesta tese, o
termo preconceito não significa falso juízo, mas juízo não fundamentado ou esboço
antecipado do conceito. Junto com o preconceito ao termo preconceito está também
a falta de reconhecimento do papel da tradição. A tradição não se configura apenas
como uma transmissão de valores e conceitos válidos de uma vez por todas, mas
principalmente como produção de sentido.
O problema hermenêutico não consiste, então, em eliminar os preconceitos,
uma vez que eles são necessários para alcançar a compreensão. ―Os preconceitos
têm para o filósofo uma função orientadora, sem a qual não se poderia sequer lançar
uma pergunta ao texto que se tem à frente‖ (FLICKINGER, 2014, p. 46). A questão é
distinguir entre preconceitos verdadeiros e falsos, considerando a existência de
pressupostos legítimos de compreensão. A distância temporal trabalha como um
filtro permitindo o aparecimento dos preconceitos que realmente contribuem para a
compreensão. De acordo com Gadamer (2008, p. 395):

Muitas vezes esta distância temporal nos dá condições de resolver a


verdadeira questão crítica da hermenêutica, ou seja, distinguir os
verdadeiros preconceitos, sob os quais compreendemos, dos falsos
preconceitos que produzem mal-entendidos. Nesse sentido, uma
consciência formada hermeneuticamente terá de incluir também a
consciência histórica.
Uma vez legitimado o conceito de preconceito, para melhor pensarmos uma
educação com base na hermenêutica, trataremos dos conceitos de autoridade e de
tradição.

2.2.1 Autoridade e tradição

No pensamento iluminista a autoridade aparece como oposta à razão.


Segundo Gadamer, essa oposição não se justifica, sendo mesmo indicada a
necessidade de reabilitar a autoridade e a tradição como forma de recuperar os
prejuízos. Por isso propõe a reabilitação da autoridade e da tradição dizendo que,
para o Iluminismo, ―a precipitação é a verdadeira fonte de equívocos que induz ao
erro no uso próprio da razão. A autoridade, ao contrário, é culpada de que não
39

façamos uso da própria razão‖ (2008, p.368). Apresenta-se, assim, uma distinção
baseada na oposição excludente entre autoridade e razão. O autor ainda destaca
que tal preconceito não só difama o conceito de autoridade, como também levou a
uma grave deformação desse conceito, (p. 370) sendo referido como oposto de
razão e de liberdade, significando obediência cega.
O autor fala da autoridade como atribuição a pessoas, pois o fundamento da
autoridade está num ato de reconhecimento e de conhecimento: ―reconhece-se que
o outro está acima de nós em juízo e visão, por consequência, seu juízo precede, ou
seja, tem primazia em relação ao nosso próprio juízo‖ (p. 371). Sem isso não nos
abrimos à alteridade.
A autoridade da tradição não depende apenas de um consentimento racional
sobre ela, pois sua validade não se restringe ao plano da razão. ―É isso,
precisamente, que denominamos tradição: ter validade sem precisar de
fundamentação‖ (GADAMER, 2008, p. 372). Apesar dessa afirmação, o autor
declara que entre a tradição e a razão não existe nenhuma oposição incondicional,
porque a tradição sendo conservação, e como tal atuando nas mudanças históricas,
é um ato da razão, pois, ―a conservação representa uma conduta tão livre como a
destruição ou a inovação‖ (p. 374), visto que a tradição não é algo estático sobre o
que seja possível se referir objetivamente, já que estamos inseridos nela e essa
inserção não é objetiva, nem pode ser pensada como estranha ou alheia. Para a
hermenêutica a tradição se reveste de importância, pois é nesse contexto histórico
que o sujeito emerge como sujeito. Por isso que os prejuízos de um indivíduo são,
muito mais que seus juízos, a realidade histórica de seu ser.
A tradição, de maneira especial, se impõe como valor. Somos seus
herdeiros, estamos nela e somos produto do passado; no entanto, como afirma
Gadamer, não nos é lícito ficarmos nela. A prática hermenêutica implica desinstalar-
se do tradicionalmente dado, consagrado pela história oficial, inclusive da
hegemonia dos métodos das ciências naturais, e explorar as possibilidades das
humanidades, necessariamente transitando entre o teorizado e o aplicado.
Quando o autor se refere à investigação feita pelas ciências do espírito
observa que entre a compreensão nessas ciências e a sobrevivência das tradições
há uma pressuposição fundamental que é a de serem interpeladas pela própria
tradição. A interpelação desacomoda, exige resposta. A essência da tradição
aparece na diversidade de vozes do passado, pois ―o que satisfaz nossa consciência
40

histórica é sempre uma pluralidade de vozes nas quais ressoa o passado‖


(GADAMER, 2008, p. 377). É na diversidade de vozes que aparece o passado. A
compreensão é pensada como um retroceder que penetra num acontecimento da
tradição. Evidenciamos, assim, o lugar privilegiado que ocupa o acontecer da
tradição em todo ato compreensivo.
A suposta detenção da verdade pela ciência é questionada por Gadamer ao
chamar a atenção de que ―Todo enunciado tem uma motivação. Todo enunciado
tem pressupostos que ele não enuncia. Somente quem pensa também esses
pressupostos pode dimensionar realmente a verdade de um enunciado‖ (2011, p.
67). Este acontecer da verdade já está marcado pela tradição e poderia ser
explicitado fenomenologicamente em três esferas da tradição: o acontecer na obra
de arte, o acontecer na história e o acontecer na linguagem.
A tradição é essa história dentro da qual nos encontramos imersos e nos
constitui através de um processo contínuo e dinâmico. Estar lançado no mundo
significa pertencer originariamente a uma tradição, isto é, formar-se e estar se
formando constantemente nela. ―A tradição só se mantém na tradução linguística‖
(SOUZA, 1988, p. 84). É na tradição6 como linguagem que a razão se realiza, pois
esta é uma característica daquela, já que não há nada no mundo que escape à
linguagem. Isso quer dizer que podemos compreender e expressar o mundo de
diversas maneiras.
Evidenciada a relação estreita entre linguagem e tradição, constatamos que
esta tradição não é algo independente do homem, não é algo, tampouco, que lhe
seja imposto como uma carga, mas é algo que leva consigo desde que acede ao
mundo da linguagem, ou seja, desde que tem um mundo. A hermenêutica reivindica
o valor dos saberes da tradição, porque estamos sempre situados na história,
pertencemos a uma tradição que nos forma e informa.
No processo educativo, por exemplo, alguém pretende comunicar algo a
outra pessoa. O professor trata de pôr em comum certa informação, mediante uma
tradição estabelecida em uma cultura determinada. Este processo comunicativo leva

6
Chris Lawn, estudioso da obra de Gadamer, observa que nas produções posteriores a Verdade e
Método houve ―um deslize quase imperceptível da fala sobre a tradição para aquela da solidariedade‖
(2011, p. 139), alertando, contudo, que a mudança de um termo para o outro tem uma certa
plausibilidade lógica, já que ―a linguagem e a história são sinônimos da tradição. Da mesma forma, a
linguagem e a história pressupõem formas de solidariedade‖ (2011, p. 140). Uma vez que nossa
investigação está baseada nos conceitos de Verdade e Método, manteremos o primeiro termo em
nossas discussões teóricas.
41

à fusão de horizontes de compreensão do educando e do educador, isto é, ambos


geram um campo comum em que a compreensão mútua é possível. A fusão desses
horizontes para o mútuo entendimento é também objeto de estudo da hermenêutica.
Nessa fusão o horizonte de quem compreende seu horizonte é ampliado pela
abertura provocada pelo horizonte alheio. Existe, aí, respeito à presença do outro,
que pode ser um texto, uma cultura, uma pessoa, diferentemente de quando se vê o
outro como uma ameaça.

2.2.2 Fusão de Horizontes

Na teoria gadameriana a importância da linguagem se manifesta na relação


entre o intérprete e o objeto de interpretação, produzindo-se uma conversação que
busca essa fusão de horizontes. Gadamer chamou a fusão do nosso horizonte
individual com o horizonte do outro (texto ou pessoa individualizada) de
compreensão. Por isso este processo é conhecido por fusão de horizontes, fusão do
horizonte do presente (do intérprete) com o horizonte do passado (inscrito no texto).
―O conceito de horizonte aparece como algo aberto à nossa frente, do qual nunca
conseguimos nos aproximar e que mais se distancia à medida que avançamos. Esse
horizonte se apresentava tanto com relação ao futuro como em relação ao passado‖
(STEIN, 2008, p. 38). Acontece a fusão de horizontes quando ampliamos nosso
horizonte - limitado, histórico, finito. O ampliamos, mas não o abandonamos. O
horizonte do intérprete se abre, se amplia, se estende até aceitar o estranho. Com
isso chegamos a um novo horizonte compreensivo que inclui horizontes, em origem,
diferentes. ―Na realização da compreensão dá-se a verdadeira fusão de horizontes‖
(GADAMER, 2008, p. 405). Para isso, como afirma o autor, devemos ter uma
consciência hermeneuticamente educada: a que nos faz sensíveis à alteridade do
texto, à alteridade do outro. ―Ter um horizonte é ter uma perspectiva sobre o mundo‖
(LAWN, 2007, p. 92). E quem tem horizontes sabe valorizar corretamente o
significado de todas as coisas que pertencem ao horizonte.
Levar o homem a respeitar a perspectiva do outro, de modo a conseguir ver
para além do que lhe é próximo, para integrá-lo num contexto mais vasto e avaliar
segundo proporções menos egoístas, tal é o objetivo e a força desta fusão de
horizontes, que segundo o autor, caracteriza toda a compreensão.
42

Outro aspecto da fusão de horizontes corresponde ao resultado do acordo


intersubjetivo em que se harmonizam interpretações diferentes e até contraditórias.
O poder do diálogo e a reabilitação da retórica como recurso da argumentação, que
não se deve confundir com manipulação, vêm confirmar esse aspecto.
Essas observações se nos apresentam revestidas de grande importância
quando nos reconhecemos como investigadores da arte literária, na medida em que
cada leitura, orientada à coisa mesma, o texto, permite que ouçamos a cada vez
uma voz diferente, carregada com a história em que ressoa o passado de cada
leitor. O horizonte da leitura está baseado na história, nas circunstâncias concretas
do leitor. Tanto o educando como o educador trazem consigo experiências,
vivências, conhecimentos, crenças e demais construções que representam seu
horizonte de compreensão.
Ao mesmo tempo em que a tradição se faz visível através da literatura ela
também se recolhe, o que ocorre quando o intérprete não consegue perceber todas
as dimensões de seu envolvimento com a obra. Ler os vazios de um texto é ser
convocado para a tarefa da efetivação da palavra na história, recuperando o vigor
expressivo da tradição, com sentido atualizado.
A antecipação de sentido com que se inicia toda tentativa de compreensão
guia, ao mesmo tempo, essa compreensão. ―É por isso que retomamos a descrição
heideggeriana do círculo hermenêutico a fim de que o novo e fundamental
significado que adquire aqui a estrutura circular possa se tornar fecundo para o
nosso propósito‖ (GADAMER, 2008, p. 355). A circularidade do processo
hermenêutico é identificada a partir da necessidade de um pré-conhecimento do
todo da obra a ser interpretada e da indispensável pertença da obra e do intérprete
ao mesmo âmbito. A antecipação de sentido mostra o pertencimento à tradição tanto
do texto como do intérprete, e por isso o círculo hermenêutico será levado à
plenitude na própria estrutura da compreensão.

2.2.3 Círculo Hermenêutico

O círculo hermenêutico havia sido para a hermenêutica clássica um princípio


formal de interpretação de textos, segundo o qual as partes se entendem em
conexão com o todo e o todo em respeito às partes. Contra esta interpretação,
Gadamer segue a Heidegger, que descreveu a estrutura prévia da compreensão,
43

considerando que o círculo hermenêutico não é de natureza formal, mas realmente


ontológica. A estrutura do círculo hermenêutico ―já havia sido mencionada por F.
Schleiermacher e radicalizada por M. Heidegger, mas Gadamer faz dessa figura
argumentativa o cerne de sua análise dos ‗elementos básicos de uma teoria da
experiência hermenêutica‘‖ (FLICKINGER, 2014, p. 44). ―Contudo, uma arte geral do
interpretar e do compreender, levada a cabo pela ideia de círculo, tal como
Schleiermacher desenvolveu, tem um caráter acentuadamente técnico por possuir a
pretensão de esgotar o conhecimento do todo a partir das partes e vice-versa‖
(ROHDEN, 2008, p. 48-49).
Gadamer recorda que a regra da hermenêutica segundo a qual ―é preciso
compreender o todo a partir do individual e o individual a partir do todo‖ (2008, p.
385) procede da antiga retórica e foi transportada pela hermenêutica moderna para
a arte da compreensão. Se não houver concordância de cada particularidade com o
todo significa que não houve compreensão.
O círculo hermenêutico ―só antecipa o sentido do todo enquanto validade
apenas provisória, não afirmativa, portanto, porque sujeita à revalidação constante‖
(FLICKINGER, 2014, p. 45-46). O intérprete que aborda uma obra está já
determinado pelo horizonte aberto pela obra, entrando, assim, neste chamado
círculo hermenêutico.
Por isso a estrutura da compreensão é circular. A compreensão se move em
uma situação circular na qual aquilo que se deve compreender já é, de algum modo,
compreendido. Em virtude do círculo hermenêutico nada é dado como imediato, pois
o indivíduo pertence originariamente ao passado, fato atestado pela existência de
prejuízos e pressupostos.
O intérprete, em contato com o texto, realiza sempre uma projeção do
sentido deste. Este primeiro projeto já é uma primeira compreensão e parte da pré-
compreensão do intérprete. A interpretação começa com conceitos prévios, que vão
sendo substituídos por outros mais adequados, numa constante reformulação do
projeto, conforme se avança no texto. O círculo hermenêutico demonstra, através
dos preconceitos, o copertencimento do intérprete na tradição.
O intérprete se encontra frente ao texto e entre ambos ocorre uma ação
dialógica; o indivíduo projeta no texto seus próprios prejuízos e o texto, por
contraste, projeta no indivíduo as características de sua estrutura e de seu sentido. A
pré-compreensão não pode ser arbitrária, posto que nasce das coisas mesmas e é
44

continuamente controlada. Só os preconceitos ou prejuízos dos quais não somos


conscientes nos fazem surdos à voz do texto. Os prejuízos são o motor principal do
ato interpretativo e não têm essa conotação negativa que possui na fala corrente,
uma vez que são os pressupostos que todo leitor possui baseados no mundo de sua
própria experiência.
Gadamer ressalta que o círculo hermenêutico não é um círculo vicioso, mas,
sim, que tem um valor ontológico positivo. Ele tem um alcance ontológico já que
constitui a estrutura ontológica da compreensão. De acordo com o autor, ―é tarefa da
hermenêutica esclarecer o milagre da compreensão, que não é uma comunicação
misteriosa entre almas, mas participação num sentido comum‖ (2011, p. 73). O
círculo hermenêutico é um recurso explicativo através do qual se estabelece que o
todo sempre é mais que a soma de suas partes, pois os elementos só resultam
compreensíveis dentro de todo o contexto, porém também o contexto se explica em
função de suas partes e das relações existentes entre as mesmas: a palavra dentro
da frase; a frase dentro do capítulo; o capítulo dentro de todo o texto; o texto inscrito
em seu tempo e vice-versa, etc. A estrutura circular que encerra o visível a partir de
um ponto dado permite perceber a distância e a proporção entre os objetos e o
observador. A correta perspectiva que torna possível a autêntica visão deve dar-se
dentro de horizontes abertos, saindo dos estreitos limites do próximo para ganhar
novas perspectivas inseridas em um esquema de círculo aberto. O objetivo do
compreender se constitui como um processo infinito e sempre inacabado, baseado
na mediação entre passado e presente. Por isso a história não nos pertence, uma
vez que somos absorvidos por ela.
Destacamos assim a potencialidade que subjaz ao considerar o processo
compreensivo como intrinsecamente circular. A hermenêutica enfatiza que a
compreensão não é um processo simples em que o sujeito neutramente conhece um
objeto exterior ou compreende o outro sujeito. Podemos entender o círculo
hermenêutico como um argumento que destrói toda pretensão de uma interpretação
neutra, absoluta e inquestionável, visto que a interpretação funde o aspirado pelo
intérprete e o oferecido significativamente pelo texto.

Com o modelo estrutural do círculo hermenêutico é possível superar a


clássica dicotomia entre explicar e compreender ou interpretar e
compreender, uma vez que ele mostra que há uma compreensão originária,
anterior ao momento temático, que denominamos de ontológico – que o
círculo hermenêutico permite explicitar, e que mostra a impossibilidade do
45

retorno ao ponto inicial, à Ítaca, ileso das marcas do tempo e do espaço. A


esquizofrenia filosófica sujeito-objeto não é resolvida pela eliminação ou
supremacia de um dos polos, mas pelo reconhecimento da existência e
constituição de ambos tensional e circularmente (ROHDEN, 2002, p. 170).

O processo hermenêutico integra em sua estrutura circular de pergunta e


resposta todos aqueles preconceitos que se dão no ato de intelecção, tanto os
verdadeiros como os falsos que provocam mal-entendidos. Parte essencial da tarefa
de compreensão é distinguir aqueles prejuízos que nos aproximam da coisa
daqueles que a ocultam. Para que advenha a compreensão é preciso, então, a
participação num mundo comum que se obtém através da linguagem, mediante uma
fusão de horizontes, que instaura uma comunidade de sentido.
Gadamer diz que ao conceito de situação pertence essencialmente o
conceito de horizonte. Horizonte é até onde podemos ver a partir de um determinado
ponto. O horizonte não é algo fechado, está sempre em movimento, ou seja, ao nos
movimentarmos mudamos nosso horizonte. Esse conceito se faz importante quando
do entendimento da tradição, no sentido de não fazer uma assimilação precipitada
do passado, mas, sim, ouvindo a voz da tradição como ela pode fazer-se ouvir em
seu sentido próprio e diverso. Os preconceitos formam o horizonte presente, mas
este não é desvinculado do passado, representando aquilo que não conseguimos
ver, pois ―compreender é sempre o processo de fusão desses horizontes
presumivelmente dados por si mesmos‖ (2008, p. 404). A vigência da tradição é o
lugar onde se dá essa fusão, onde o velho e o novo se encontram e se modificam. A
facticidade da vida é envolta sempre por um passado carregado de significação e
aponta para as projeções que podemos fazer em relação ao futuro. Essa relação
entre passado e presente sempre vai ser conflitiva, uma vez que o passado está
circunscrito por uma tradição já interpretada em distintos preconceitos, e porque o
presente, apesar dos preconceitos da tradição, possui outras expectativas e
interesses com os quais se dirige ao passado. Mas é nessa relação que se dá a
fusão de horizontes.

2.2.4 História Efeitual

O que leva Gadamer a afirmar que a compreensão se dá na fusão de


horizontes é princípio da história efeitual, derivado da estrutura dialógica da pergunta
46

e da resposta, que possibilita a aparição do outro em sua alteridade na medida em


que as próprias antecipações de sentido deixam o outro falar. A pergunta se
constitui como o princípio que antecede e torna possível a realização de todo
diálogo. Estando cada pensamento historicamente ligado aos limites situacionais
que constituem os horizontes, e estando estes sujeitos à própria mobilidade histórica
com que nos movemos nele, Gadamer apresenta o problema da relação entre os
horizontes do passado e do presente a partir da perspectiva dinâmica da fusão de
horizontes.
Existe a coimplicação entre historicidade e linguisticidade, visto que
compreender é, essencialmente, um processo de história efeitual. A historicidade
caracteriza não só o sujeito que compreende e o objeto compreendido, como
também o próprio processo da compreensão, pois ―quando procuramos
compreender um fenômeno histórico a partir da distância histórica que determina
nossa situação hermenêutica como um todo, encontramo-nos sempre sob os efeitos
dessa história efeitual‖ (GADAMER, 2008, p. 397). Ao compreender se vai adotando
e modificando a perspectiva de sentido da tradição e de sua presença no ser
humano que sempre compreende de maneira diferente em razão de que pertence a
uma tradição. O pertencimento e a apropriação da tradição estão vinculados a como
se experimenta a relação com o outro, com as tradições históricas e as condições da
existência.
A história efeitual determina de antemão o que se mostra questionável e se
constitui em objeto de investigação. A consciência da história efeitual é a
consciência da situação hermenêutica. Foi com a noção de história efeitual que
―Gadamer mostrou a impossibilidade de se realizar uma análise e a construção
asséptica dos fatos históricos‖ (ROHDEN, 2008, p. 25), de forma que precisamos
reconhecer que os efeitos da história efeitual operam em toda compreensão. Assim,
esse conceito condensa essa ideia fundamental na filosofia gadameriana que
consiste no caráter envolvente do acontecer representado pela tradição.
Segundo Grondin, a história efeitual de Gadamer ―goza do status de um
‗princípio‘, do qual se pode deduzir quase toda a sua hermenêutica‖ (1999, p. 190).
Reconhecer o nosso passado é fundamental para a compreensão e formação do
conhecimento, uma vez que estamos mais submissos à história efeitual do que
temos consciência. Assumir a própria determinação histórica, nossa radical finitude,
47

comporta, antes de tudo, aceitar nossos próprios preconceitos, reconhecer a


relatividade intrínseca do conhecimento como autorrevelação limitada.
A noção de história efeitual, base de nossa própria consciência da
determinação histórica, é, em resumo, a que melhor expressa a impossibilidade de
objetivação do passado, devido a que, como já foi indicado, não podemos nos
abstrair do devir histórico desde que experimentamos o encontro com esse passado.
Isso consiste em um colocar em questão a segurança das próprias
expectativas, de modo que seja possível que o objeto da compreensão se manifeste
em sua alteridade. Toda experiência está deste modo precedida de uma pergunta,
isto é, de um questionamento das próprias possibilidades frente ao estranho que se
nos apresenta.
Reconhecer a impossibilidade de antecipar o sentido de um fenômeno
histórico sem estar já de antemão determinado por ele é o princípio da consciência
da história efeitual. ―Só então poderemos ouvir a voz da tradição tal como ela pode
fazer-se ouvir em seu sentido próprio e diverso‖ (GADAMER, 2008, p. 404). Daí a
relação entre pergunta e resposta aparecer invertida, sendo que agora o intérprete
como tal é quem está posto em questão.
Podemos, assim, conceber a história efeitual como uma abordagem que
expressa a necessidade de o intérprete fazer-se consciente de seu pertencimento à
tradição e de que não é ele quem determina o que quer compreender.
Tendo visto que a linguagem se constitui como o horizonte do mundo e o
meio no qual tem lugar a experiência hermenêutica, trataremos, na sequência, do
conceito de pertença. Nesta perspectiva se justifica a experiência hermenêutica
como experiência linguística, dentro da qual o conceito de pertença deve ser
entendido como o momento da tradição no comportamento histórico-hermenêutico
que se realiza através da comunidade de preconceitos fundamentais e
sustentadores.

2.2.5 Sentido de Pertença

O sentido de pertença se dá pelo fato de que nós sempre já nos


relacionamos com a tradição e, por nos situarmos no seu interior, não há uma
percepção clara sobre o papel por ela desempenhado, justamente pela proximidade
conosco. ―Cada época deve compreender a seu modo um texto transmitido, pois o
48

texto forma parte do todo da tradição na qual cada época tem o interesse objetivo e
onde ela também procura compreender a si mesma‖ (GADAMER, 2008, p. 392). Por
isso, nos momentos de confronto com a tradição há a partilha de preconceitos
comuns, que ligam a ela mesma os que pretendem negá-la. O sentimento de
pertença é o momento da tradição no comportamento histórico-hermenêutico que se
realiza através de preconceitos fundamentais e sustentadores e possibilita a
interpretação. Dentre os preconceitos, Gadamer destaca o preconceito da perfeição.
Tal preconceito faz a exigência formal de que um texto deve expressar perfeitamente
sua opinião e pressupõe que aquilo que ele diz seja uma verdade perfeita (2008, p.
390).
Levando em consideração que a condição hermenêutica suprema é de que
―[...] a compreensão começa onde algo nos interpela‖ (GADAMER, 2008, p. 395) e
que a interpelação exige uma resposta, podemos dizer, baseados nessa ideia, que o
texto traz em si uma pergunta. Mas precisamos estar atentos à ameaça de nos
apropriarmos do outro, na compreensão, e com isso ignorar sua alteridade. Por isso
Gadamer diz que a essência da pergunta é manter abertas as possibilidades,
mesmo quando o que o outro ou o texto nos diz seja questionável.
Não se alcança a verdade sem interpelação e sem resposta, ou seja, sem o
consenso obtido. ―O compreender recíproco significa, antes, entender-se sobre algo‖
(GADAMER, 2011, p. 70). Mas a verdade nos ultrapassa, não está com quem fala.
Ela, no seu todo, é que abarca os falantes.
Essa atitude torna muito mais importante o que fazemos no ensino da
literatura. Não apenas ensinamos fatos, mas também abrimos outras realidades
emergentes, outras verdades. Isto permite uma nova justificação para a leitura de
textos literários. Podemos levar a verdade para os alunos, que não é uma verdade
científica, mas uma revelação interessante de como as coisas são. Adotamos aqui
uma concepção não metafísica da verdade como abertura radicada na busca
sempre provisional do sentido da experiência humana.
A estrutura da compreensão na obra de Gadamer está composta por uma
recuperação do valor hermenêutico de conceitos analisados anteriormente, tais
como preconceitos, círculo hermenêutico, fusão de horizontes, história efeitual,
dentre outros. Por isso, e para que realmente se realize a tarefa hermenêutica,
destacamos a importância que possui o conceito gadameriano de pertencimento à
49

tradição. Da mesma forma, parece de fundamental importância tratar do conceito de


aplicação, cujo valor radica em referir o sentido do texto ao momento presente.

2.2.6 Aplicação

O termo aplicação costuma ter, para nós, um caráter utilitário, mas em


Verdade e Método se expõe que esta é um componente integrante de toda
compreensão e constitui o problema central da hermenêutica. Para seu autor, a
aplicação equivale à fusão de horizontes, também caracterizada como abertura e
submissão ao sentido, à validade e verdade que possui aquilo que se trata de
entender, seja uma pessoa, um costume, um texto transmitido. Nesse sentido, a
existência se realiza na compreensão, e todo compreender é aplicar: ―A aplicação é
um momento tão essencial e integrante do processo hermenêutico como a
compreensão e a interpretação‖ (GADAMER, 2008, p. 407). O texto se compreende
a cada instante, ou se compreende em cada situação concreta de uma maneira
nova e distinta. Compreender, nessa perspectiva, é traduzir o assunto do texto para
a própria linguagem da situação concreta, onde quem compreende está implicado.
Assim, compreender é aplicar.
Ao tratar do que denomina problema hermenêutico fundamental, o filósofo
faz um retrospecto acerca das questões da compreensão, interpretação e aplicação
e recorda que a hermenêutica romântica insistiu em realizar a correta interpretação e
compreensão de um texto, esquecendo a unidade entre as três questões. Como
expõe o autor, o problema hermenêutico se permitia uma tríplice categorização:
subtilitas intelligendi (compreensão) subtilitas explicandi (interpretação) e subtilitas
applicandi (aplicação). No entanto, a fusão entre compreensão e interpretação
deixou de lado a aplicação (GADAMER, 2008, p. 406). Desta forma, deixa claro que
a concepção romântica da simples interpretação e compreensão de textos não basta
para entender o que de si lhe corresponde à condição humana de entender, que é
sempre aplicar.
Desde suas origens, em sua tarefa de compreender os textos, a
hermenêutica tem identificado esses três momentos: a compreensão, a explicação
ou interpretação e a aplicação. Confundidos em diversos momentos, cada um destes
conceitos tem ocupado espaços dos outros momentos e, por exemplo, o que tem
sido chamado compreensão tem sido também interpretação e vice-versa.
50

Aplicar é o espaço aberto de exercício da compreensão e da interpretação.


"A compreensão, ou, o que aqui é a mesma coisa, a aplicação, é menos uma ação
da subjetividade autossuficiente do que um 'introduzir-se num acontecimento da
tradição, no qual passado e presente se intermedeiam constantemente'" (GRONDIN,
1999, p. 194). Não se reduz a atividade compreensiva à simples intelecção e
explicação metodológica de um texto ou de um fenômeno. Se a aplicação não é um
passo ulterior que o intérprete efetua depois de compreendida a generalidade de um
texto por si mesma, mas que, como afirma Gadamer, é a aplicação mesma quem
determina a compreensão da generalidade, então a compreensão está realmente
mediatizada pelo presente do intérprete, ou seja, pela sua historicidade.
O problema da aplicação teve como resultado o fato de que compreender
significa interpretar, ou seja, mediar entre o geral e o particular. A consciência da
história efeitual expressa justamente esta condição interpretativa de toda
compreensão humana.
Assim entendido, o conceito de aplicação pode proporcionar ao estudo da
literatura orientações para um pluralismo aberto à verdade das obras literárias. Ao
buscar a compreensão do passado, confrontando e interpretando o presente, o
intérprete passa a incorporar a aplicação na experiência da existência. Convém,
então, restaurar os estudos literários e, por extensão, a educação em geral como
paradigma de sutileza aplicativa (subtilitas applicandi).
Quando um texto é interpretado significa que coloca uma pergunta ao
intérprete e precisa ser compreendido como uma resposta a essa pergunta. O
intérprete deve refazer o horizonte da pergunta da qual a obra de arte é uma
resposta, para ativar outras possíveis respostas, geralmente interpeladas pelo seu
horizonte histórico. A primazia da pergunta sobre a resposta se sobressai, uma vez
que o legado da tradição só pode ser assumido como tal se o intérprete se colocar a
caminho da questão fundamental da tradição.

2.2.7 A Primazia Hermenêutica da Pergunta

Gadamer nos ilustra a pertinência da pergunta. Para ele, perguntar quer


dizer abrir; abrir a possibilidade ao conhecimento. O sentido de perguntar consiste
precisamente em deixar em aberto a possibilidade de discutir sobre o sentido do que
se pergunta. Para o autor, o perguntar é também a arte de pensar.
51

Ao destacar a primazia hermenêutica da pergunta, Gadamer lembra que


vem de Sócrates a intuição de que perguntar é mais difícil do que responder. O
diálogo possui a estrutura de pergunta e resposta. O sentido da pergunta dá a
direção da resposta. No sentido de uma pergunta se encontra uma indicação para
sua possível resposta, isto é, ao saber como se pergunta, se pode inferir o que se
busca, ou seja, na colocação da pergunta se vislumbra de maneira relevante qual
resposta se espera. Perguntar significa colocar algo em suspenso e aberto. Ter
abertura é ser capaz de experimentar o tu realmente como um tu, isto é, não passar
ao longo de suas pretensões e permitir que ele nos diga algo. A dialética da
pergunta e da resposta, constitutiva da abertura própria da experiência, representa a
estruturação definitiva da hermenêutica de Gadamer. Nesse sentido é que fala da
pertença mútua, que é a capacidade de ouvir uns aos outros.
Para a hermenêutica, a primazia da pergunta sobre o enunciado significa
que toda pergunta que compreendemos nós temos que fazê-la. O enunciado deve,
assim, ser observado enquanto resposta. Entretanto, as perguntas a que ele
responde também devem ser outras quando consideramos outros leitores e outros
horizontes de expectativas. No evento hermenêutico o leitor possui uma pré-
compreensão que o conduz ao sentido.
Nessa linha de reflexão, a lógica do perguntar deveria se converter em
assunto de vital importância para a educação, porque a força da pergunta põe em
descoberto as possibilidades e as mantêm despertas; abre o universo dos horizontes
de sentido, contendo possíveis respostas, viabilizando o acesso à verdade mediante
a qual se põe em tensão o antigo e o novo. A abertura para o outro traz em si uma
atitude de escuta, de atenção ao que nosso interlocutor quer comunicar. O homem
não só quer falar, mas antes de tudo, comunicar, ou seja, sentir-se escutado por
alguém que o compreende, que o leva a sério. A escuta implica, ademais, o
reconhecimento e respeito à dignidade do interlocutor.

2.2.8 A Abertura ao Diálogo

Uma vez que pensamos que o diálogo viabiliza a compreensão necessária


em sala de aula assumimos essa categoria como norteadora de nossa reflexão, visto
que ―a capacidade para o diálogo é um atributo natural do homem‖ (GADAMER,
2011, p. 243). Para que o diálogo aconteça é preciso abrir-se para o outro e
52

encontrar nesse outro uma abertura para que o fio da conversa possa fluir
livremente. Gadamer prenunciava as consequências negativas ao diálogo que
adviriam das técnicas de informação, que não oferecem, como no caso da conversa
telefônica, as reais condições para um verdadeiro diálogo, já que aí não é possível
perceber a disposição do outro para entrar em diálogo. "A questão da incapacidade
para o diálogo refere-se, antes, à possibilidade de alguém abrir-se para o outro e
encontrar nesse outro uma abertura para que o fio da conversa possa fluir
livremente" (p. 244). Isso porque são as objeções ou aprovações, compreensão ou
mal-entendidos advindos do diálogo com os outros que nos permitem uma espécie
de expansão da nossa individualidade e um experimento da possível comunidade a
que nos convida a razão (p. 246). A linguagem (dialógica) é compreendida como
uma ação de ―medir-se‖ diante dos outros, perceber-se em sua diferença e falta; é a
possibilidade de ver no outro uma resistência ao nosso modo de ser, de nos
comportar, de nos perceber. Um dos pressupostos básicos do diálogo é que os
parceiros se encontrem desde o início abertos à possibilidade de transformação
oriunda do diálogo e não há nenhum princípio superior ao de abrir-se ao diálogo, ou
o de pôr-se em perspectiva.
É nessa direção que entendemos a afirmação de Gadamer de que ―o que
perfaz um verdadeiro diálogo não é termos experimentado algo de novo, mas termos
encontrado no outro algo que ainda não havíamos encontrado em nossa própria
existência de mundo‖ (2011, p. 247). Daí a força transformadora do diálogo,
entendido agora como uma testagem de percepções. Um diálogo deve partir de um
acordo mínimo e também de um desacordo mínimo. O acordo vem garantido pela
linguagem comum, graças à qual os interlocutores estão situados a priori na mesma
constelação hermenêutica, no horizonte de sentido compartilhado. Os interlocutores
primeiro devem falar a mesma linguagem para, logo, poder abordar as diferenças. E
é importante que existam essas diferenças porque, se o acordo sobre a coisa for
total, a conversação seria absurda, ou nunca teria lugar. Só quando existe um
acordo mínimo sobre os conteúdos pode-se debater acerca das razões dos
mesmos.
Rohden (2008, p. 158) faz uma distinção entre conversa e diálogo. Na
conversa trocam-se informações:
53

Já no diálogo, os parceiros movidos pela paixão pelo saber universal


comprometem-se com suas perguntas e suas respostas. No processo
dialógico, os participantes se envolvem de tal modo que não discorrem
apenas sobre diferentes ideias, mas implicam-se, afetam-se e transformam-
se ao longo do processo dialógico.

O diálogo é como uma aventura, é imprevisível, pois sabemos onde


começamos, porém, não sabemos em que lugar nos encontraremos ao final. Seja
como for, haverá um ganho hermenêutico pelo fato de que nem o interlocutor, nem
quem fala, e nem mesmo o sentido primeiro serão os mesmos. Aqui o diálogo é
apresentado como o lugar por excelência da efetivação de uma postura
hermenêutica autêntica.
Ao considerar as diversas formas como se dá o diálogo em nossa vida,
Gadamer tece considerações sobre o diálogo pedagógico, fazendo, o que para nós
é muito grave, a acusação de que por trás desse diálogo pode estar a experiência
da incapacidade para o diálogo, ―[...] a incapacidade para dialogar dá-se
principalmente por parte do professor, e sendo o professor o autêntico transmissor
da ciência, essa incapacidade radica-se na estrutura de monólogo da ciência
moderna e da formação teórica‖ (GADAMER, 2011, p. 248). Nessa situação o
professor fecha-se no limite da resposta já esperada.
Gadamer, diz que, ―aquele que tem que ensinar acredita dever e poder falar,
e quanto mais consistente e articulado por sua fala, tanto mais imagina estar se
comunicando com seus alunos‖ (2011, p. 248). Nesse ponto precisamos parar e
refletir em que medida os educadores estão dispostos a adotar um outro olhar, ou
um outro ouvir, sob novas perspectivas, assumindo o perguntar como a estrutura
própria da experiência educativa. Ouvir o outro, ou seja, a capacidade constante de
voltar ao diálogo é considerada a verdadeira elevação do homem a sua
humanidade.
Dada a importância atribuída ao diálogo nos perguntamos que possibilidades
para melhorar a qualidade da educação oferece a estrutura e o horizonte da
pergunta pedagógica. Se o diálogo é assumido como princípio das relações
pedagógicas, supera qualquer postura autoritária, permitindo ―[...] à educação fazer
valer a polissemia dos discursos e criar um espaço de compreensão mútua entre os
envolvidos‖ (HERMANN, 2002, p. 95). Aprender a construir perguntas em sala de
aula é a busca de encontro de experiências para tornar viável a compreensão, visto
que ―um diálogo produtivo tem, muitas vezes, o efeito de nos forçar a ver as coisas
54

de maneira diferente e sob novas perspectivas‖ (LAWN, 2010, p. 98). No diálogo


pode haver o estranhamento, quando não se fala a mesma língua, ou a
aproximação, quando se encontra uma linguagem comum.
Para compreender a estrutura da pergunta se requer ter presente o sentido
da pergunta. Cada pergunta que se elabora, reconstrói ou reabilita, questiona os
processos e fenômenos da vida fática a partir de um contexto inquisitivo que abre
diferentes possibilidades para compreender a tradição na qual está situado o ser
humano. ―A reconstrução da pergunta a que o texto deve responder está, ela
mesma, situada dentro de uma interrogação com o qual procuramos responder à
pergunta que a tradição nos coloca‖ (GADAMER, 2008, p. 487). Reconstruir uma
pergunta a partir da tradição que está falando, e à qual se escuta para compreendê-
la mediante o diálogo com ela, requer sempre pôr a pergunta reconstruída no aberto
de sua questionabilidade; isso porque o texto precisa ser compreendido como
resposta a uma pergunta real.
Para a compreensão ou apropriação de um texto temos que compreender o
sentido da obra, a sua referência, ou seja, compreender de que nos fala a obra, que
experiência quer nos mostrar através da linguagem. ―[...] o fato de um texto
transmitido se converter em objeto de interpretação significa que coloca uma
pergunta ao intérprete‖ (GADAMER, 2008, p. 482) e compreender essa pergunta é
compreender o texto. O texto nos mostra um mundo, o mundo do texto e sua
temporalidade, para alcançar a compreensão do horizonte que este oferece, ele é
colocado em contato com o horizonte do leitor e, assim, o texto se transforma e o
leitor também.
Isto implica que existe uma pergunta preliminar que o texto está fazendo
para induzir no sujeito que o interpreta o perguntar da pergunta, e, por extensão, da
pergunta pedagógica, princípio do diálogo. Como o jogo, ―o diálogo exige antes de
tudo a disposição dos interlocutores de entregar-se ao risco permanente de ver
colocadas em xeque suas supostamente inabaláveis certezas‖ (FLICKINGER, 2014,
p. 55). A importância da função pedagógica do diálogo decorre do fato de que há,
subjacente a ele, uma lógica própria de produção do saber.
A partir do conceito de diálogo Gadamer ensaia uma ampliação do conceito
de literatura, fazendo-a desembocar em uma ação idêntica ao diálogo mesmo, pois o
que nele se executa de modo efetivo não é outra coisa que a incorporação de
palavras em um sentido, as quais adquirem no diálogo uma referência mais ampla.
55

Daí a lugar privilegiado que pode ocupar a literatura na escola. Nesse sentido, a
atividade literária não difere da estrutura de um diálogo em que o escritor, ou leitor,
põe as palavras num fio condutor em que já não são exatamente as palavras, mas
sim momentos de um discurso que vai sendo pronunciado.
Segundo Gadamer, o ponto de partida para relacionar a atividade
hermenêutica com a literária está relacionado ao que é essencialmente a leitura.
Esta se identifica com um âmbito vasto em que as ações giram em torno de um
sentido sobre o qual se sustenta a atitude ouvinte ou leitora. Os elementos deste
âmbito estão contidos na atividade humana do dialogar; a qual representa, não só o
nexo entre hermenêutica e literatura, mas também o resultado de uma essência, a
saber, a do ser que compreende, pois da intenção deste surge o diálogo como
direção a um sentido. Justamente nisso se funda o que entendemos como caráter
hermenêutico do texto literário.
De tudo isso, podemos perceber que a particularidade da obra literária está
orientada à permanência de um discurso que segue de algum modo um sentido
prévio a ele, de onde falar ou escrever é a realização de tal sentido, a partir do que
se disse, desde a palavra mesma. Diálogo e sentido estão, portanto, intrinsecamente
unidos, pois um sentido não existe sem uma atitude dialógica que a realize, e um
verdadeiro diálogo só existe se mantém um sentido que corresponda ao bom
entendimento, ou seja, ao ato e vontade de compreender. Esta palavra chave,
sentido, passa a ser definida como direção.
Na medida em que assumimos uma postura hermenêutica podemos
entender o alcance dos enunciados gadamerianos e sua importância para a
educação e, mais especificamente, para os estudos literários.
Com isso chegamos ao conceito que move nossa pesquisa, que é o da
experiência hermenêutica e a obra de arte. Problematizamos, assim, o ensino da
literatura, questionando como se dá a compreensão dos textos literários com base
hermenêutica, por entendermos que esse referencial se sustenta na tradição,
respaldando e respondendo nossas indagações decorrentes da atividade docente.

2.3 A EXPERIÊNCIA HERMENÊUTICA E A OBRA LITERÁRIA


56

Nas circunstâncias desta pesquisa, o conceito de experiência resulta


particularmente fecundo no momento de entender a condição ontológica da obra de
arte.
A dificuldade em se conceituar ―experiência‖ vem de seu uso automático,
tanto nas ciências da natureza, onde os experimentos devem ser passíveis de
verificação, como nas ciências do espírito, em que os procedimentos são passíveis
de controle. Isso porque para a ciência moderna a experiência só é válida se se
confirma.
Já para Gadamer, experiência é experiência da finitude humana, ou da sua
historicidade. ―Quem está e atua na história faz constantemente a experiência de
que nada retorna‖ (2008, p. 467). Enquanto não reconhecermos a historicidade da
experiência, continuaremos com dificuldade em conceituá-la, pois a experiência não
é algo que possa ser poupado a alguém, e por isso mesmo, pressupõe
necessariamente que se frustrem muitas expectativas, pois somente é adquirida
através dessa frustração. ―A experiência, para Gadamer, é a qualidade da pessoa
não dogmática se abrir para novas possibilidades‖ (LAWN, 2007, p. 89).
A experiência da arte deve ser vista de tal modo que venha a ser entendida
como experiência, que na arte é genuína e não deixa inalterado aquele que a faz.
Nessa perspectiva, o discurso sobre a arte ganha justificativa própria sobre a
verdade da compreensão artística, conseguida, não pela arbitrariedade, mas por um
acontecer pautado na fusão de horizontes.
O caminho da experiência7 conduz a um saber-se finito, inconcluso e
incompleto, pois sempre haverá a possibilidade de compreender-se mais e melhor,
visto que a abertura e a historicidade própria da experiência hermenêutica
determinam o grau de disposição do saber sobre si mesmo.
Gadamer afirma que o significado de uma obra literária não se esgota nunca
pelas intenções do seu autor. Quando uma obra passa de um contexto histórico para
outro, novos significados podem dela ser extraídos, provavelmente nunca
imaginados pelo autor ou pelo público contemporâneo dele. Mais que isso, também
reconhece que a interpretação de uma obra do passado consiste num diálogo entre
o passado e o presente e que o presente só é compreensível em função do passado
com o qual forma uma viva continuidade. Para Gadamer, compreensão é a fusão do

7
O conceito de experiência será retomado no IV capítulo desta tese, quando o relacionaremos com a
experiência da leitura.
57

nosso horizonte individual com o horizonte do outro (texto ou pessoa


individualizada). Assim, compreensão é o processo constituído pela fusão do
horizonte do presente, do intérprete, com o horizonte do passado, inscrito no texto.
Gadamer reabilita a tradição como condição para que a compreensão se
realize, advertindo que ―o que chegou a nós pelo caminho da tradição de linguagem
não é o que restou, mas é transmitido, isto é, nos é dito‖ (2008, p. 504), tanto na
forma oral quanto escrita. Como a tradição existe pela mediação da linguagem, esta
adquire seu pleno significado hermenêutico onde a tradição se torna escrita, pois na
forma escrita o transmitido está presente para qualquer atualidade, passado e
presente coexistem. A tradição escrita não é apenas uma parte de um mundo
passado, porque ao enunciar um sentido já se eleva acima dele.

2.3.1 Linguagem e Sentido

Com base nestas implicações reforçamos o conceito de sentido, ou direção


de sentido. Do mesmo modo que um diálogo, um texto literário se sustenta em seu
sentido, de forma que este tipo de texto seja uma espécie de conversação que
começa a ser falada cada vez que começa a ser lido, e o fato de estar plasmado faz
com que o sentido escrito fale sempre sem que possa ser interrompido, o que
permite contemplar que o literário contém a forma de atividade hermenêutica mais
elementar. Se o texto tem um sentido, este deixa de ser latente ao ser
compreendido, precisamente sua compreensão é o que o mantém com sentido.
Por isso, reafirmamos a ideia de que um elemento importante da linguagem
é o sentido que esta leva implícito, porém sentido aqui não se deve entender como
um propósito ou objetivo ao dizer algo. O termo gadameriano sentido é,
basicamente, antitético a conceito, ainda que Gadamer também utilize outros termos
como ideia e, principalmente, significado. A pretensão gadameriana é, seguindo
Heidegger, a existência de uma verdade não conceitual e não predicativa, a qual
estaria dada pela compreensão do sentido ou significado da obra de arte.
Consideramos que o sentido é que permite que algo seja dito. Para que o
sentido dos textos seja compreendido é necessário que, a cada vez que sejam lidos,
os seus signos escritos se reconvertam novamente em sentido, sejam mais uma vez
interpretados. ―O sentido, como afirmou Gadamer, é sempre apenas uma direção de
sentido‖ (ROHDEN, 2008, p. 37). As palavras nunca têm sentido por si sós, as
58

palavras isoladas não têm sentido. Convém destacar que não têm sentido, mas não
que não têm significado. O significado as palavras têm, podem mudar, inclusive,
porém o sentido se dá na linguagem, é o que permite a relação entre as palavras.
Por isso um texto não se reduz a um conjunto de palavras, mas sim a uma
unidade de sentido que tem que ser compreendida. O mesmo se pode entender a
respeito do eu e do tu, o eu separado não existe, e tampouco o tu independente.
Eles se dão precisamente na relação, a relação é o que dá sentido, e não a
separação, até podem existir de maneira separada, porém a relação é o que permite
que existam como eu e como tu. No que se refere ao sentido, este não está dado
pela palavra isolada, mas tem a ver com o contexto, com a tradição e com aquilo
que realmente se quis dizer, isto significa que o sentido faz referência a outros, visto
que ―[...] o sentido de uma frase é relativo à pergunta a que ele responde e isso
significa que ultrapassa necessariamente o que é dito nela‖ (GADAMER, 2008, p.
482). O sentido, por outra parte, tampouco corresponde à estrutura gramatical ou à
semântica. Não se refere ao significado das palavras ou a sua ordem dentro da
oração, mesmo que isso seja importante na linguagem.

A presença de sentido oferece a certeza necessária para que, a partir do


presente que interroga o passado se pergunte sobre seu sentido, sobre a lógica que
os fez possíveis. A questão sobre como aceder ao que já ocorreu, ao que só existe
como sombra, se responde através da permanência de sentido nos vestígios do
passado. Sem esse pressuposto o conhecimento do passado seria impossível.
Diálogo e sentido estão, portanto, intrinsecamente unidos, pois um sentido não
existe sem uma atitude dialógica que a realize, e um verdadeiro diálogo só existe se
mantém um sentido que se certifique no ato que sustenta todo pensamento que
corresponda ao bom entendimento, a saber, ao ato e vontade de compreender.
Surge assim uma dialética entre o dito e o não dito, que põe em manifesto que a
finitude do discurso humano consiste em que nele sempre existe uma infinidade de
sentido para desenvolver e interpretar.
A relação entre diálogo e sentido se funda, pois, no ato compreensivo do ser
humano. Do que se conclui que onde há diálogo, há um sentido, algo sendo
compreendido. Assim compreender é apreender um sentido. Esse sentido, porém,
decorre do todo de uma estrutura ou de um contexto de sentido. Não existe jamais
59

uma apreensão isolada de certo conteúdo de sentido; este é, antes, condicionado


por uma totalidade de sentido pré-compreendido ou coapreendido.
Enfim, considera-se que o pressuposto ontológico da hermenêutica é a
permanência do sentido, que se dá na leitura como aplicação, pois ―ao ler não
apenas ocorre uma transposição de sentido, de uma margem para a outra, mas
acontece a instauração de uma terceira margem que antes não existia e que a
leitura configura‖ (ROHDEN, 2008, p. 212). Na medida em que se substitui a ideia de
reprodução de sentido do texto pela ideia de atribuição de sentido é que se dá a
guinada linguística a que nos referimos anteriormente.
Considerando que compreender o que alguém diz é pôr-se de acordo na
linguagem, esta configura ―o meio em que se realizam o acordo dos interlocutores e
o entendimento sobre a coisa em questão‖ (GADAMER, 2008, p. 497). Os acordos
aqui referidos transcendem os espaços meramente individuais. O texto se submete
necessariamente à situação em que se compreende, pois são o horizonte e os
conceitos do leitor que tornam possível a compreensão em que o escrito acede outra
vez a seu verdadeiro ser, o sentido. Se isso parece uma atualização ingênua por
parte do leitor, Gadamer contrapõe o exemplo do processo de linguagem de quem
media como intérprete de uma conversação em duas línguas distintas, em que o
tradutor precisa transpor o sentido a ser compreendido para o contexto do
interlocutor, sendo que o sentido precisa ser mantido, ganhando validez num outro
universo de linguagem. Ainda que pareça estar em uma posição superior porque
domina as distintas línguas, em realidade a função do tradutor é um serviço, facilita
que o dito dê lugar a uma nova situação de acordo.
Linguisticidade e compreensão têm uma relação essencial que se mostra
especialmente na relação entre tradição e linguagem, e que consiste principalmente
em que a tradição existe no meio que é a linguagem; portanto, se a compreensão se
realiza pela interpretação e esta por sua vez na linguagem e, se a tradição se realiza
também na linguagem, o objeto principal da interpretação é de natureza linguística.
Isso traz consequências hermenêuticas.
Para Gadamer, a tradição linguística prima sobre qualquer forma de
tradição, pois ela expressa de maneira peculiar o pertencimento prévio de tudo o
que é linguístico ao âmbito da compreensão. A tradição linguística é aquilo que se
transmite como relato oral, que pode ser de mitos, de lendas, de usos ou costumes;
ou como relato escrito. Em todo caso, nenhum deles por pertencer à tradição pode
60

considerar-se como relíquia do passado. Na fusão dos horizontes, do texto e do


intérprete, se constrói um sentido, não o sentido correto em si, pois isto iria contra a
vida histórica da tradição que se apropria constantemente de novas interpretações.
A compreensão será sempre uma apropriação do dito, seja por outro ou por
um texto, uma concreção do próprio sentido. A pretensão de correção é inerente à
interpretação do texto na hermenêutica, não se dissolvendo no subjetivo ou no
ocasional, mas se realizando na compreensão mesma. Compreensão esta

[…] que não se cumpre apenas para os outros em cujo benefício se


interpreta, mas também para o próprio intérprete e somente no caráter
expresso da interpretação que se dá na linguagem. Graças ao seu caráter
de linguagem, toda interpretação contém também uma possível referência a
outras. Não é possível haver fala que não vincule simultaneamente quem
fala com aquele a quem se dirige. E isso vale também para o processo
hermenêutico (GADAMER, 2008, p. 514).

Emerge, nesse caso, também o significado de aplicação, visto que


―compreender um texto significa sempre aplicá-lo a nós próprios‖ (p. 515).
Gadamer diz que ―na escrita a linguagem alcança sua verdadeira
espiritualidade‖ (2008, p. 506). A consciência do leitor está inserida na sua história, é
consciência que se comunica livremente com a tradição histórica. Através da escrita
é possível à existência remontar a outra existência, contemplando-a. O portador da
tradição não é este manuscrito como uma parte do passado, mas a continuidade da
memória por onde a tradição se converte numa parte do próprio mundo, e, com
efeito, o que a tradição nos comunica ―pode chegar imediatamente à linguagem.
Onde uma tradição escrita chega a nós, não só conhecemos algo individual mas se
faz presente em pessoa uma humanidade passada em sua relação universal‖ (2008,
p. 505).
Chamamos de literatura o que chegou até nós em forma de escrita,
impregnada de uma vontade de sobrevivência. A literatura conquistou uma
simultaneidade própria com o presente, porque compreender literatura significa
participação atual no que foi dito e não necessariamente reconstrução de uma vida
passada.
Na literatura não se trata propriamente de uma relação entre pessoas, mas
de participação no que o texto nos comunica. Apesar de que quando
61

compreendemos podemos formar uma ideia sobre o autor do texto ou fazer uma
interpretação histórica da tradição.
Para Gadamer, a escrita ocupa o centro do fenômeno hermenêutico, porque
pela escrita o texto adquire uma existência autônoma, independente do escritor ou
do autor e de um destinatário ou leitor. Na literatura como obra de arte escrita se
cumpre plenamente a concepção que o autor tem da obra de arte como ser. Em
consequência, a ―especificidade artística da literatura só pode ser concebida a partir
da ontologia da obra de arte, e não a partir das vivências estéticas que vão
aparecendo ao longo da leitura‖ (GADAMER, 2008, p. 226). A ontologia da obra de
arte é que faz que passem ao primeiro plano a escrita e a leitura frente à
declamação do rapsodo ou à argumentação do retórico. A essência da literatura não
está na argumentação como no caso da retórica, e sim no poder dizer da linguagem,
na expressão.
Gadamer alerta que a compreensão não é uma transposição psíquica, uma
vez que ―o horizonte de sentido da compreensão não pode ser realmente limitado
pelo que tinha em mente originalmente o autor, nem pelo horizonte do destinatário
para quem o texto foi originalmente escrito‖ (2008, p. 511). Assim, ao mesmo tempo
em que a obra é criação, no sentido de fundar, iniciar, ela só se realiza plenamente
no conservar. Para o autor os textos literários possuem uma espécie de exigência ao
oferecer-se à leitura. Porém não é uma exigência que indique a forma como devem
ser lidos, mas uma aparição da palavra cujo significado próprio é também o do texto,
e cuja pronunciação é também a de sua razão de ser. Trata-se de uma pretensão
viva do texto, não da recapitulação do que pensou o autor ao escrevê-lo.
Nosso autor comenta que houve uma preocupação com a criação artística
manifestada pelo romantismo e predominante no século XIX, quando ―[...] o conceito
de gênio elevou-se a um conceito de valor universal e experimentou, junto com o
conceito de criatividade, uma verdadeira apoteose‖ (GADAMER, 2008 p. 104),
girando muito em torno da estética do gênio de Kant onde o autor é visto como um
gênio que cria sem regras e o sentido tende a ser descoberto na intenção desse
gênio criativo. Deriva dessa concepção a chamada genialidade da compreensão
sendo o encontro com a obra de arte sempre a possibilidade de uma nova produção,
transferindo ao leitor e ao intérprete o poder pleno de criação absoluta. Por isso
conclui que ―[...] a genialidade da compreensão não oferece, na verdade, nenhuma
informação melhor que a genialidade da criação‖ (p. 146). Em contraposição à
62

abstração da consciência estética e de seu caráter subjetivista, Gadamer demonstra


o caráter ontológico da obra de arte.
Levando em consideração esses ensinamentos, podemos dizer que ao
lermos uma obra literária mobilizamos um saber prévio, com base no qual se dá a
experiência de ler. Por sua vez, a obra já traz, incorporada à sua estrutura,
elementos direcionadores da sua interpretação, podendo conduzir o leitor a uma
determinada postura emocional, antecipando o horizonte de compreensão em que
se dá a leitura. Há na obra um criar e um conservar a verdade. A tradição é
essencialmente conservação, e esta, por sua vez, é um ato de razão, cuja validez se
transmite e se conserva. Segundo Chris Lawn, ―a tarefa hermenêutica é descobrir e
revelar o não dito, atraindo-o para um diálogo explícito com o dito‖ (2011, p. 114).
Com a fundamentação da ontologia da obra de arte Gadamer nos oferece
uma nova forma de compreender a experiência estética, e com isso a educação. ―O
texto literário é um texto que dispõe de um status especial, justamente porque não
remete a um ato de linguagem originário, mas prescreve, antes, todas as repetições
e atos de linguagem‖ (GADAMER, 2011, p. 406). No texto literário, com sua própria
autenticidade, não ocorre a mera fixação de um discurso, mas aí acontece um
verdadeiro ―jogo de palavras‖ em que a palavra, em sua polivalência, adquire um
sentido independente.
Nos significados do termo Hermenêutica percebe-se, conforme Grondin, a
ideia de mediação de sentido:

―Ao expressar‖, o espírito traz, de certa forma, os seus conteúdos internos


para fora, para serem conhecidos, enquanto o ―interpretar‖ procura
desvendar a expressão externada em seu conteúdo interno. Em ambas as
orientações trata-se, portanto, de uma compreensibilidade ou de uma
mediação de sentido. O interpretar procura o sentido interno por detrás do
que foi expresso, enquanto o expressar anuncia, de sua parte, algo interior
(GRONDIN, 1999, p. 52).

2.3.2 Arte e Jogo

Uma vez que caracterizamos a literatura como arte, podemos pensá-la


também como jogo. ―Na apresentação do jogo surge o que é. Nela será sacado e
trazido à luz aquilo que, noutras ocasiões, sempre se encobre e retrai‖ (GADAMER,
2008, p. 167). Gadamer considera que a arte, como atividade que não é nem
63

pragmática nem teórica, deve reconduzir-se ao jogo, à atividade lúdica. O obstáculo


que a consciência estética representa para a compreensão do fenômeno artístico
leva Gadamer a apropriar-se do conceito de jogo. Para o filósofo o conceito de jogo
desempenhou um importante papel na estética. Mas o que importa ao autor é libertar
esse conceito do significado subjetivo. Quando fala de jogo no contexto da
experiência da arte ele está falando do modo de ser da própria obra de arte.
Juntamente com o aspecto lúdico, o jogo possui uma seriedade própria, pois ―o jogar
só cumpre sua finalidade que lhe é própria quando aquele que joga entra no jogo‖
(GADAMER 2008, p. 155). Ao mesmo tempo o autor adverte que aquele que não
entra no jogo é um desmancha-prazeres.
Segundo Gadamer, o que ―experimentamos numa obra de arte e para onde
dirigimos nosso interesse é, antes, como ela é verdadeira, isto é, em que medida
conhecemos e reconhecemos algo e a nós próprios nela‖ (GADAMER, 2008, p.
169). O reconhecimento não é apenas ver de novo algo já visto, mas vermos mais
do que o que já conhecemos, do já visto. Na imitação encontra-se presente o que se
apresenta. ―Quem imita alguma coisa torna presente o que ele conhece e como o
conhece‖ (p. 169), nisto reconhecemos o que é, o que se apresenta. Nessa
concepção, imitar não é copiar, é conhecer a essência para, então, poder imitar. A
verdade é um acontecimento do qual participamos na medida em que
compreendemos; que não controlamos, que nos envolve e nos domina como
acontece em um jogo.
O conceito de jogo, para Gadamer, implica, inicialmente, a ideia de
movimento, o ir e o vir. Esse jogar tem, também, a forma do auto-mover-se, que
seria a característica básica de tudo que está vivo. Assim o jogo seria ―um auto-
mover-se que por seu movimento não pretende fins nem objetivos, mas o movimento
como movimento, que quer dizer um fenômeno de redundância, de
autorrepresentação do estar vivo‖ (GADAMER, 1985, p. 38). Gadamer recorre ao
conceito de jogo como recurso para compreender a obra de arte em sua essência,
que é a representação, visto que seu verdadeiro ser não é separável de sua
representação (2008, p. 179). Para participar do jogo o jogador precisa estar
totalmente em harmonia com suas regras e se comportando de acordo com as
exigências do jogo. Há, também, aquele que vai jogar junto; aquele que observa o
jogo e, no entanto, como espectador, não se evade de dele participar. Mas tal
espectador é mais do que um mero observador. Há na estruturação do jogo um fazer
64

comunicativo, que elimina a distância entre quem joga e quem se vê frente ao jogo;
―ele é, como alguém que participa do jogo, parte dele‖ (p. 40). Porém, não são todos
os observadores que participam do jogo. Da mesma forma, a obra exige respostas
que alguns se encontram aptos para fornecer. Somente esses são parceiros no jogo.
Identifica-se uma obra como tal quando se consegue perceber que ela diz algo para
alguém; quando se entende que há algo que deve ―ser compreendido‖; mesmo que
esse algo a ser compreendido não seja ―algo conceitual ou significativo‖ (p. 40).
Jogador e jogo se reúnem no mesmo acontecimento. No jogo ―algo‖ se dá a
compreender. ―O que constitui a essência do jogo são as regras e disposições que
prescrevem o preenchimento do espaço lúdico‖ (p. 160).
Gadamer caracteriza o ser do jogo como realização pura, referindo-se à
mudança em que o jogo humano alcança sua verdadeira consumação, em que esse
possui uma autonomia absoluta, tornando-se arte. A transformação ―significa que
algo se torna uma outra coisa, de uma só vez e como um todo, de maneira que essa
outra coisa em que se transformou passa a constituir seu verdadeiro ser, em face do
qual seu ser anterior é nulo‖ (2008, p. 166). A autonomia do jogo permite entender,
por outra parte, que o jogo é autorrepresentação. O cumprimento de uma tarefa o
torna presente, representa. Não tendo nenhuma finalidade alheia a si mesmo, o jogo
se limita realmente a representar-se. Seu modo de ser é, pois, autorrepresentação.
―No jogo, conserva-se e supera-se o dualismo metafísico, uma vez que nele
integram-se, por um lado, regras que são fixas, válidas universalmente e, por outro
lado, exige-se um jogador que as jogue criativamente‖ (ROHDEN, 2008, p. 51),
nesse contexto jogar é sempre já um representar.
Por isso o jogo é apresentado como fio condutor da explicação ontológica da
obra de arte, porque ele tem uma natureza própria, independente da consciência
daqueles que jogam, assim como o que fica e permanece na experiência da arte não
é a subjetividade de quem a experimenta, mas a própria obra de arte.
Na representação estão implicados tanto o artista como o intérprete ou o
espectador. Assim, o encontro com a obra de arte é uma real experiência da
verdade que modifica a quem a tem. A variedade das possíveis interpretações é
requerida pelos possíveis modos de ser da obra, e essas interpretações constituem
um processo histórico cujo sujeito é a obra mesma, e não as subjetividades dos
intérpretes. Não tem sentido, por isso, falar de uma única interpretação justa. Toda
interpretação tende a ser adequada, porque através das interpretações o que
65

aparece ou se representa é a obra mesma. Como na arte um significado chega à


representação, deve-se dizer que a arte apresenta um problema de interpretação e
de compreensão, isto é, uma tarefa verdadeiramente hermenêutica.
Gadamer recorre à história e descreve as limitações evidentes da estética do
gênio. A ontologia da obra de arte, ou seja, o modo de ser da arte é muito mais
abrangente que a manifestação restrita à expressão vivencial. Dessa forma o
fenômeno da arte pode ser concebido a partir de outra perspectiva. Ao expor os
problemas da consciência estética chega-se a uma problemática mais ampla, que é
o conceito de Verdade. Daí que a consciência estética não admite pretensão de
verdade. O autor critica o caráter abstrato da consciência estética porque essa se
abstrai da referência da verdade que a arte traz consigo e também porque se abstrai
da atividade do próprio artista. Por conseguinte, a arte não é um âmbito de
irracionalidade ou uma questão subjetiva dependente dos gostos particulares ou do
gênio, mas um dos terrenos privilegiados da verdade e um modo de conhecimento.
Na arte opera uma racionalidade distinta da razão estratégica dominante e, por isso,
a arte atua como modelo para as ciências humanas.
Para demonstrar que a separação entre arte e realidade é um contrassenso,
Gadamer toma como exemplo a alegoria. Ele reabilita a parte de verdade da arte
alegórica desvelando com isso os limites da consciência estética, aquela que não
admite que a obra de arte faça alguma referência a outra coisa que não seja ela
mesma.
Também a questão do acordo na conversação adquire uma formulação
própria no plano hermenêutico, onde está em questão a compreensão de textos. A
―coisa‖ do texto não pertence nem mais ao seu autor nem ao seu leitor, mas é uma
coisa comum a ambos. O autor deixa claro que o texto só pode chegar a falar
através do intérprete, que vai participar do sentido do texto, pois ―no redespertar o
sentido do texto já se encontram sempre implicados os pensamentos próprios do
intérprete‖ (GADAMER, 2008, p. 503). Não se trata de conseguir a congenialidade
com o autor ou o artista, mas em reconhecer o outro verdadeiramente importante
imerso na tradição.
Essa posição de Gadamer deu origem a uma escola da teoria literária
chamada de Estética da Recepção, difundida principalmente por Wolfang Iser e por
Hans Robert Jauss. Este último, com sua obra ―A Literatura como Provocação-
História da Literatura como Provocação Literária‖ (1993) procurou ultrapassar os
66

dogmas marxistas e formalistas que não privilegiam o leitor no ato de interpretação


do texto literário. Como escreve a professora Regina Zilberman:

Jauss com seu programa de reabilitar metodologicamente os estudos da


literatura, transformando-a no fundamento para a formulação de uma teoria
da literatura equidistante do estruturalismo e do marxismo, encontra em
Gadamer um de seus principais guias e modelos. Com o mestre, recupera a
história como base do conhecimento do texto; e, igual ao outro, pesquisa
seu caminho por uma via que permite trazer de volta o intérprete ou o leitor,
sua defesa predileta na luta intelectual contra as correntes teóricas
indesejadas (ZILBERMAN, 1989, p. 12).

Percebemos com esse depoimento que Gadamer edificou uma postura


hermenêutica inovadora, na qual o intérprete, na sua dimensão histórica, abre-se à
recepção e à compreensão do texto. A concepção de que a ―coisa‖ em si mesma
não tem uma essência, e que o seu ser é temporalidade, deu novo rumo aos
estudos hermenêuticos. Se antes se intentava alcançar o que estava oculto por
detrás do texto e dos símbolos, agora se propõe o desvelamento do Ser, fruto de
sua temporalidade. Jauss compartilha com as reflexões de Gadamer a ideia de que
não é possível fazer a leitura de uma obra sempre do mesmo modo, principalmente
em épocas diversas. A distância temporal é determinante para as diferentes
compreensões.
Na Estética da Recepção também está presente a concepção de Gadamer
de que o jogo proposto pela obra de arte não é a orientação ou o estado de espírito
do criador ou do leitor, mas o próprio modo de ser da arte. Assim, recusando a
fronteira entre o jogador e o jogado, o que se vivencia na leitura é a experiência do
jogo. O jogo supera as subjetividades de quem joga e escapa à apreensão dos
jogadores. Por isso "jogar é ser jogado". Aqui o próprio horizonte do intérprete é
determinante, não de forma fixa, mas como uma opinião e possibilidade que se
aciona e coloca em jogo e que ajuda apropriar-se verdadeiramente do que diz o
texto, que só fala através do outro, o intérprete (GADAMER, 2008, p. 502). A isso é
chamado de ―fusão de horizontes‖. Nessa perspectiva o texto demanda um leitor,
sem anular o autor. É a esse entendimento que remete Sírio Possenti (2009, p. 106)
quando questiona:

Por que não explicar o funcionamento dos textos pensando critérios


variados (gêneros, estilos, etc.), consideradas as marcas presentes nos
textos (pistas, sintomas), mas considerando também algum tipo de
67

interação entre os polos 'exteriores' do leitor e do autor, mesmo que


desigualmente, se e quando for o caso?

Isso significa ampliação do horizonte existencial dos envolvidos através da


linguagem, enriquecimento do mundo mediado simbolicamente e emprego ético da
linguagem nas relações intersubjetivas com o outro da linguagem.
Gadamer confere à arte, mais especificamente à literatura, um papel de
destaque em sua hermenêutica filosófica. Quando discorre sobre a ontologia da obra
de arte e seu significado hermenêutico fala da posição limite da literatura. Ao
questionar qual seria o conceito correto de literatura lembra que a literatura como
objeto de leitura é um fenômeno muito tardio. ―A literatura aparece como auxílio aos
rapsodos, não como material de leitura, mas como auxílio para a recitação‖ (2008, p.
225). A obra de arte chega à sua essência histórica como fundação e
consequentemente como conservação criadora da verdade do ser. Ela cria e
conserva a existência histórica de um povo. ―Da tradição poética dos povos,
devemos reconhecer que não admiramos apenas sua força poética, sua fantasia e a
arte de expressão, mas também, e sobretudo, a verdade superior que fala a partir
dela‖ (GADAMER, 2008, p. 443). Aqui a arte é vista como questionamento da
existência. Sob a perspectiva ontológica, a literatura ocupa uma posição limite, já
que a atualização linguística de sua historicidade depende do intérprete. Confirma-
se, assim, que o modo de ser da literatura não pode ser desvinculado da recepção.
A transmissão pela linguagem e seu desenrolar-se na leitura é que concedem essa
posição limite para a literatura.
Nessa perspectiva se evita entender o fenômeno artístico através das
subjetividades implícitas no criador ou receptor e, portanto, se avança na superação
do paradigma moderno das relações sujeito-objeto, devolvendo-se ao fenômeno da
arte sua historicidade e ocasionalidade, através do conceito de representação. Com
isso se confere um caráter festivo ao fenômeno da arte, colocando em relevo sua
temporalidade.
Gadamer toma a obra de arte como exemplo de uma hermenêutica
universal, porque ela cumpre a função de manifestar a verdade na multiplicidade
infinita de seus dizeres. Sua multivocidade é justamente o que exige e possibilita sua
interpretação. É no esforço por nomear a coisa, por encontrar a palavra precisa,
nesse jogo de querer dizer e não poder fazê-lo de maneira absolutamente acertada,
68

onde emerge o poder evocativo da linguagem. Quando se pretende transcender o


fixado na linguagem, o que se disse ressoa em toda sua multivocidade e
ambiguidade e se dirige até o não dito. É nessa cesura entre o dito e o não dito,
entre o que a palavra revela e o que oculta, onde encontra seu lugar e onde alcança
máximo significado a linguagem poética, no revelar ou velar, porém é ali onde
aparece. Se arte se declara deste modo plural é porque nela se conhece e
reconhece algo, fazendo que o sensível fale a cada indivíduo em particular. Nessa
estrutura linguística que refina o sentido das palavras, o que se disse mantém uma
relação muito própria com a verdade. E o peculiar dessa relação, afirma Gadamer, é
que a palavra poética nos interpela, nos pergunta pelo que somos ou poderíamos
ser, nos confronta conosco mesmos e transmite sentidos, experiências e
conhecimentos.
A obra de arte, como já observamos anteriormente, encontra seu
fundamento quando alcança a representação. A representação da arte implica
essencialmente que se realize para alguém. Neste sentido, o representar está longe
de ser uma mera multiplicidade de vivências cambiantes cujo objeto fora uma
espécie de molde vazio que os sujeitos preencheram de significado de um modo
arbitrário; ao contrário, implica sempre interpretar a realidade. Por isso se destacam
algumas coisas e se deixam outras de lado.
No caso particular da literatura, Gadamer vê a chave disto no ato de ler. A
leitura constitui-se em um diálogo profundo, que exige o reconhecimento, o encontro
entre diferentes.

Se trata de leer, con todas las antecipaciones y vueltas hacia atrás, com
esta articulación creciente, con esas sedimentaciones que mutuamente se
enriquecen, de tal modo que, al final de ese ejercicio de la lectura, la
conformación, aun con toda su articulada abundancia, se vuelve a fundir en
la unidad plena de una declaración (GADAMER, 2006. p. 262).

Ainda que a recepção da literatura mostre um grau máximo de


desvinculação e mobilidade e, inclusive, pareça um processo de pura interioridade,
ainda assim a leitura será ―um acontecer em que o conteúdo lido ascenderia à
representação‖. Isto é mais evidente na leitura em voz alta, na medida em que nela
intervêm elementos tais como ―a entonação, a articulação rítmica e demais‖, e vale
de igual maneira para a leitura silenciosa, porquanto estes mesmos elementos
também se acham presentes na ―fala interior‖ contida em toda compreensão. Assim,
69

se a representação artística é interpretação, não pode isolar-se do mundo a que


pertence, ignorando ante que condições se mostram as obras de arte. A
representação artística é, portanto, atualização, torna presente aos espectadores
uma obra que não permanece fixada no passado.
Por outro lado, a literatura não perde a referência a seu receptor, no sentido
de que ―não é sobrevivência morta de um ser alienado que se oferece
simultaneamente à realidade vivencial de uma época posterior‖ (GADAMER, 2008,
p. 227). É na literatura que se dá uma função de preservação e transmissão
espiritual que traz ao presente a história nela contida. É nesse sentido que temos os
chamados ―clássicos‖ de literatura, como abordamos no capítulo anterior.
Nessa linha de reflexão, Gadamer diz que se torna necessário que a
hermenêutica seja compreendida de um modo diferente, na medida em que é esta
disciplina, no seu sentido tradicional, a que se ocupa da arte de compreender textos.
O autor adverte que à luz das reflexões realizadas não só o problema da
hermenêutica terá que se colocar de maneira diferente, mas que inclusive a
hermenêutica mesma terá que entender-se ―de um modo tão abrangente a ponto de
incluir em si toda esfera da arte e sua problemática‖, visto que ―a estética deve
subordinar-se à hermenêutica‖ (2008, p. 231). Com isso, toda obra de arte terá que
ser entendida como se entende todo texto, ou seja, é preciso entender a
compreensão ―como parte de um acontecimento semântico, no qual se forma e se
realiza o sentido de todo enunciado, tanto os enunciados da arte quanto os de
qualquer outra tradição‖ (p. 231).
Para Gadamer, o homem é um ser hermenêutico, ou seja, um ser
interpretante e que se interpreta a si mesmo. O que quer dizer que a interpretação
não é uma forma de conhecer ou de conhecimento, senão que um modo de ser
humano, do qual o homem não pode se despojar:

O fato de a interpretação dar-se no âmbito da linguagem não significa


transposição para um medium estranho. Significa, antes, que se restabelece
uma comunicação de sentido originário. O que foi transmitido em forma
literária é assim recuperado do alheamento em que se encontrava, para o
presente vivo do diálogo cuja realização originária é sempre perguntar e
responder (GADAMER, 2008, p. 481).

Com base na hermenêutica gadameriana, Rohden reflete sobre as


proximidades relacionais entre filosofia e literatura, porque concebe a linguagem
70

como uma forma de vida, ―enquanto médium no qual nos constituímos, pensamos e
somos, poderemos encontrar e explicitar um conjunto de dimensões próprias da
filosofia e da literatura através do fio da linguagem‖ (2008, p. 190). Essa linguagem
contém e remete a uma ponta de mistério. O autor destaca as profícuas relações
entre filosofia e literatura em função da perspectiva da compreensão que as une,
pois tanto uma como a outra ―comungam do projeto de indagar e responder à
pergunta quem é o homem?‖ (2008, p.198).

Diante da literatura, a hermenêutica não se comporta como um inquisidor


que procura extorquir seus conteúdos filosóficos. Antes, sabe que a
literatura constitui um caminho mais longo, um saber mais rico em detalhes
de mediação e de compreensão do ser humano (ROHDEN, 2008, p. 193).

Considerando o compreender como postura própria tanto da hermenêutica


quanto da literatura, Rohden após tecer considerações sobre a relação entre ambas,
apresenta os componentes metafóricos, ficcionais e verossímeis da linguagem
literária e filosófica como instâncias produtivas da autocompreensão, concluindo que
o fato de tanto uma como a outra levarem a perguntar algo é que constitui a
idiossincrasia entre elas, uma vez que ―perguntar é uma forma de ampliar nossos
horizontes e discernir sobre nosso modo de pensar e de agir, o que se realiza
enquanto linguagem‖ (2008, p. 209).
O autor defende aqui a postura gadameriana onde o sujeito que interroga e
o que responde estabelecem uma relação de reconhecimento e compreensão
mútua, regulada pela dialética do diálogo, a lógica da pergunta e da resposta e a
dialética das contradições internas e externas que se gestam no mundo da vida. O
diálogo permite levar adiante a atitude filosófica de querer sempre saber mais, visto
que "filosofar consiste em assumir o desafio de pôr em jogo o horizonte que cada um
carrega consigo para que ocorra uma autêntica fusão de horizontes‖ (ROHDEN,
2008, p. 84).
Elementos filosóficos podem emergir de uma obra literária. A obra literária é
repleta de referências que são parte do universo cultural e social no qual foi gestada.
Por isso os temas das obras literárias são também motivo de reflexão filosófica.
"Enquanto o texto filosófico opera num nível lógico, das razões impessoais e dos
argumentos válidos ou inválidos, o texto literário expressa o filosófico enquanto ato
de vida, de ação ou de comportamento" (PAVIANI, 2009, p. 69). O texto literário e o
71

texto filosófico surgem como lugares privilegiados onde o leitor se constrói como
sujeito. Por isso, em alguns momentos as mesmas se confundem, considerando que
muitas vezes a literatura traz implícitos os grandes debates desenvolvidos na
filosofia.
Após abordarmos aspectos relevantes da hermenêutica gadameriana e
destacarmos o status da linguagem literária no contexto da reviravolta linguística,
nossa pesquisa se volta, no próximo capítulo, para o potencial concriativo da
narrativa literária como possibilidade de pensar nosso acesso sempre implicado ao
sentido ou verdade do texto.
Considerando que a característica universal da formação é ―o manter-se
aberto para o diferente, para outros pontos de vista mais universais‖ (GADAMER,
2008, p. 53), foi de fundamental importância termos aprofundado os conceitos acima
enunciados. A partir desses referenciais da hermenêutica buscaremos desenvolver,
mais adiante, no capítulo IV desta tese, uma reflexão sobre o conceito de formação,
que pressupõe uma tarefa hermenêutica decisiva, devendo ser entendido como o
conjunto de conhecimentos e emoções que constituem o homem, como resultado de
seu esforço de interpretação dos conteúdos da tradição na qual está imerso.
72

3 A LEITURA LITERÁRIA E A CONCRIATIVIDADE DE SENTIDOS

“Mein Gott! O tempo passa. Tudo é passado, o presente é


apenas a ânsia de preservar o que já não é e o futuro o sonho de
pensar que o que já foi possa se repetir” (Charles Kiefer).

Neste capítulo queremos demonstrar a fecundidade da hermenêutica


gadameriana tomando-a como balizadora para a leitura de um texto literário, tendo
presente que "apesar de as hermenêuticas de Gadamer não terem consequências
práticas diretas, no sentido de oferecer orientação na leitura de textos específicos,
ele [o autor] estabelece que a noção da aplicação está no âmago do entendimento
em si..." (LAWN, 2011, p. 147). Como já assinalamos no capítulo anterior, aplicação
não quer dizer aplicação ulterior de uma generalidade dada, mas, sim, a primeira
verdadeira compreensão da generalidade que cada texto dado vem a ser para nós.

3.1 O NECESSÁRIO DIÁLOGO ENTRE O LEITOR E A OBRA

Ao apontarmos para a especificidade do texto literário faremos desta leitura


uma tentativa de que seja uma verdadeira experiência estética, nos termos em que
vem sendo tratada na hermenêutica filosófica. Quando descreve o modo de ser da
obra de arte, Gadamer diz que ―a obra de arte não é um objeto que se posta frente
ao sujeito que é por si. Antes, a obra de arte ganha seu verdadeiro ser ao se tornar
uma experiência que transforma aquele que a experimenta‖ (2008, p. 155).
Sob a ótica da nossa reflexão teórica, a existência da literatura não é a
sobrevivência morta de um ser alienado que se oferece simultaneamente à realidade
vivencial de uma época posterior.
A literatura é, antes, uma função da preservação e da transmissão espiritual
e, por isso, introduz em cada presente sua história oculta, pois há sempre algo mais
a ser dito pelo enredo de um texto literário. O contato com a obra de arte não se
qualifica como uma reconstrução do passado, mas como uma fusão de horizontes
entre presente e passado, intérprete e tradição. Assim, o que fica e permanece da
experiência da arte, o seu sujeito, não é a subjetividade de quem a experimenta,
mas a própria obra de arte. Com isso, a obra de arte se traduz na recepção, na
autocompreensão do intérprete.
73

Na obra literária as preocupações humanas passam pela linguagem. Assim,


as palavras dão a ressonância necessária aos fatos atualizados pelo autor através
dos recursos linguísticos e expressivos que lhe são próprios. ―O sentido do que foi
dito precisa voltar a ser enunciado unicamente com base na literalidade transmitida
pelos signos escritos. Ao contrário do que ocorre com a palavra falada, a
interpretação do escrito não dispõe de nenhuma outra ajuda‖ (GADAMER, 2008, p.
509). Mas o autor ressalta também que o que se fixa por escrito desvinculou-se da
contingência de sua origem e de seu autor, liberando-se para novas relações. Dessa
forma, o caminho hermenêutico começa a ser percorrido quando, além do dito, se
faz a inferência de outros possíveis sentidos e quando se busca a compreensão com
base nesses sentidos.
A posição hermenêutica do leitor será sempre aquela atenta ao não-dito, aos
silêncios que significam e que integram os dizeres e as ações dos personagens e do
narrador. Mesmo que a compreensão seja "uma apropriação do que foi dito, de
maneira que se converta em propriedade de alguém‖ (GADAMER, 2008, p. 515),
―diante da literatura, a hermenêutica não se comporta como um inquisidor que
procura extorquir seus conteúdos filosóficos‖ (ROHDEN, 2008, p. 193). O encontro
com um texto é uma forma especial de conhecimento, por ser simultaneamente
conhecimento de algo e conhecimento de si, ou um enriquecimento que se reflete no
modo de ser e de habitar, poética e ludicamente, o mundo do existir.
A eleição de um autor é já um processo hermenêutico. Colocamos dentro do
círculo determinados autores e não outros. A eleição dos autores nos leva a
determinados discursos. Nas circunstâncias desta tese, elegemos como interlocutor
o romance A face do abismo, do autor gaúcho Charles Kiefer, publicado no ano de
1988.
Nesta leitura estamos implicados a partir do tempo e do local em que nos
encontramos. ―Cada época deve compreender a seu modo um texto transmitido‖
(GADAMER, 2008, p. 392). Por isso é preciso destacar que o intérprete não é um
sujeito autônomo, desenraizado das condições políticas de sua época, também não
se apresenta passivo diante das expressões estéticas, mas é um sujeito que atua e
está visivelmente presente no jogo da arte. Ao nos apontar algo que coloca em jogo
nossas concepções prévias, a leitura exige nossa participação, sem a qual não se
manifestará inteiramente.
74

Ao fazermos desta leitura uma vivência, pensamos como Nadja Hermann


quando diz que ―ao viver as vicissitudes de um personagem, o leitor alcança algo
efetivamente universal, no sentido de que a arte tem algo a nos dizer‖ (2010, p. 51).
Numa leitura hermenêutica é preciso entender as significações a serem ditas pelo
não-dito do texto, visto que ―o dizer significa sempre mais do que ele realmente
expressa‖ (GRONDIN, 1999, p. 204).
O romance não apenas conta uma história, ele articula-se com a fala de uma
multiplicidade de vozes. As narrações sempre se referem a coisas que acontecem
no tempo, ao passo que as descrições dizem respeito a coisas que acontecem no
espaço.

O modo como experimentamos o tempo não se faz valer sem a linguagem.


O tempo articula-se da maneira como a linguagem o apresenta, com
expressões e formas temporais, enquanto presente, passado e imperfeito.
Expectativa e memória precisam ganhar voz; sem que encontremos para
elas uma expressão linguística, aquilo que se acha iminente ou que passou
ainda não existe de um modo apreensível (FIGAL, 2007, p. 357).

As narrativas sofrem implicações éticas, pois ―O enraizamento da narrativa


literária no solo da narrativa oral, no plano da prefiguração da narrativa, permite já
entender que a função narrativa não existe sem implicações éticas" (RICOEUR,
1991, p. 193), porque na troca de experiências que a narrativa opera as ações não
deixam de ser aprovadas ou desaprovadas, e os agentes de ser elogiados ou
censurados. O ato ou a arte de narrar é uma troca de experiências que dizem
respeito à sabedoria prática.
Segundo Ricoeur, a narrativa, ao pisar no solo da ética, reincide sobre a
questão da identidade a qual possui dois modos de permanência no tempo. Trata-se
da mesmidade, marcada pelo caráter que a identifica, e da ipseidade, marcada pela
ética, que se pauta na responsabilidade. Assim, pode-se afirmar que a narrativa está
vinculada à identidade de um sujeito concreto, que age, interage e se comunica com
os outros. Além disso, ―pertence à ideia de ação que ela seja acessível a preceitos
que, sob a forma do conselho, da recomendação, da instrução, ensinam a ter bom
êxito, portanto, a fazer bem o que empreendemos‖ (RICOEUR, 1991, p. 200). Dessa
forma, o leitor pode reconhecer nos personagens de suas leituras atitudes, valores,
virtudes, escolhas e decisões que o ajudam na compreensão de si mesmo e a guiar
suas ações.
75

Posição semelhante é assumida por Nadja Hermann, ao dizer que


aprendemos com os conflitos das personagens, visto que

[...] os exemplos da literatura, pelo que mobilizam da nossa imagianção,


emoção e entendimento, permitem uma experiência estética que abre o
horizonte compreensivo da moralidade e possibilita uma avaliação racional
sobre a complexidade das situações, das crenças e das emoções que
levam à constituição do sujeito moral (HERMANN, 2010, p. 107).

Na narrativa literária, "o julgamento moral não é abolido, ele é, antes, ele
mesmo submetido às variações imaginativas próprias da ficção‖ (RICOEUR, 1991, p.
194). Para esse autor ―a literatura é um vasto laboratório onde são testadas
estimações, avaliações, julgamento de aprovação e de condenação pelos quais a
narrativa serve de propedêutica à ética‖ (p. 140). Ricoeur ilustra o modo no qual a
narração, como faculdade humana universal, articula os acontecimentos transmitidos
pela tradição dentro de unidades de ação dotadas de sentido, a partir dos próprios
enlaces temporais que contribuem para estabelecer indefinidamente a própria trama.
Narrar, pois, é trocar experiências, é viver. A narrativa é fundamentalmente
mediação entre uma experiência anterior e uma experiência posterior à qual se
dirige, dá sentido, completa e realiza uma experiência que é configurada na
linguagem ao ser narrada a outro, que por sua vez, a reconfigurará em sua situação
própria, dando-lhe uma nova configuração.
Conforme estudo de Rohden (2009), existem traços filosóficos na obra
literária, pois "algumas mais, outras menos, as obras literárias narram e expressam
o sentido da vida, do mundo, das coisas, de uma maneira peculiar, às vezes tão
intensa quanto uma obra filosófica" (p. 68-69). Pela sugestão dessa
interdisciplinaridade entre a filosofia e a literatura, podemos abordar elementos
comuns às duas disciplinas.
Assim como a literatura, também a filosofia ―nasceu e se constitui,
originariamente, oralmente‖ (ROHDEN, 2008, p. 195). As raízes do romance se
confundem com o discurso dos jograis, que recitavam nas barracas de feira, com as
canções de ruas, com os provérbios e anedotas. O que se perpetuou como
literatura, foi, na sua origem, literatura popular, que tem como característica
intrínseca, além da exemplaridade, um forte conteúdo de verdade humana, de modo
que o discurso romanesco reage de maneira muito sensível às variações da
atmosfera social. "A linguagem do romance, estando tão perto das estruturas da fala
76

diária, é a menos problemática, pois recorre pouco aos recursos interpretativos e


depende do tipo de confiança que fundamenta as transações diárias" (LAWN, 2010,
p. 134).
Evidenciamos, no primeiro capítulo, o caráter da recepção, em que o leitor
assume seu papel de destinatário a quem, primordialmente, a obra literária visa. As
narrativas literárias e as histórias de vida, não se excluem, mas ―completam-se, a
despeito ou por causa de seu contraste. Essa dialética nos lembra que a narrativa
faz parte da vida antes de se exilar da vida na escrita‖ (RICOEUR, 1991, p. 193).
Depois de escrita ela volta à vida, mas ―no momento em que a obra se destaca de
seu autor, todo o seu ser é recolhido pela significação que o outro lhe atribui‖
(p.185).
A leitura pertence essencialmente à obra de arte literária e ―o conceito de
literatura não deixa de estar atrelado ao seu receptor‖ (GADAMER 2008, p. 227).
Com isso fica claro que a interpretação é um ato de recriação do intérprete, como
compreensão e conhecimento, sendo que toda obra de arte literária só pode se
realizar inteiramente pela leitura. Nessa linha de argumentação, os textos escritos
não querem ser compreendidos como expressão da subjetividade de seus autores,
mas, sim, pelas mensagens de verdade que guardam. A compreensão não
necessita de congenialidade alguma para reconhecer o verdadeiramente
significativo e o sentido ordinário de uma tradição, pois somos capazes de abrir-nos
à pretensão de superioridade do texto respondendo à significação com que nos fala.
Portanto, a obra não é somente o texto escrito criado pelo autor, é a criação feita
pelo leitor a partir da interpretação do texto literário.
O texto literário e sua especificidade artística incitam-nos a perceber, para
seu sentido pleno enquanto linguagem em movimento, a relação indispensável entre
leitor e texto que o constitui por excelência. "Pela leitura continuamos o diálogo que
alguém encetou e explicitou, por escrito, sobre a alma humana" (ROHDEN, 2008, p.
221). A compreensão hermenêutica, no seu caráter de aplicação, produz um
diálogo, onde não só escutamos a tradição, mas somos levados por uma promessa
de verdade do texto. A compreensão hermenêutica nunca se fecha complemente em
função de um único sentido, mas, sim, o de estar contida em um horizonte
compreensivo que possui expectativas.
77

Ao interpretar o leitor não irá simplesmente confirmar o que foi dito no texto,
mas estará criando, com o texto, ou ainda, como sugere Ronaldes de Melo e Souza,
concriando um novo evento de compreensão. Pois se o texto supõe uma pergunta,
cuja resposta latente está nele mesmo, buscamos, com base em um mundo comum,
respondê-la, lembrando que ―a latência de uma resposta pressupõe, por sua vez,
que aquele que pergunta foi atingido e se sente interpelado pela própria tradição‖
(GADAMER, 2008, p. 292). Se nos colocamos em situação de diálogo com o texto
temos presente ainda que ―toda conversação pressupõe uma linguagem comum, ou
melhor, toda conversação gera uma linguagem comum‖ (p. 493), trazendo
novamente à fala o dito ou escrito no texto.

3.2 INTERMEZZO: UMA LEITURA CONCRIATIVA DE A FACE DO ABISMO

Queremos, com a leitura desse romance, perceber em que medida


conhecemos e reconhecemos algo e a nós próprios na obra de arte, ou seja, em que
sentido ela é verdadeira. Por concordarmos que "a arte revela verdades sobre nós
mesmos que nenhuma pesquisa científica jamais conseguiu" (LAWN, 2010, p. 117)
é que nos lançamos nesta busca da verdade, que acreditamos presente neste
romance de Charles Kiefer8 (1988), na medida em que admitimos nos deixar
submeter ―à verdade do assunto em questão‖ (GADAMER, 2008, p. 393). A nossa
compreensão prévia, decorrente do ter que ver com o assunto do texto é, assim,
condicionante para sua leitura.
Souza (1988) ao propor que na obra de Gadamer está subentendida uma
ética concriativa, diz que já o título de Verdade e Método é radicalmente polêmico,
visto que aí a consciência hermenêutica da verdade se contrapõe à ciência da
objetividade do método, apresentando uma hermenêutica ontológica em
contraposição à epistemologia, simbolizada na disputa da verdade, que ―[...] se
impõe como experiência hermenêutica‖ (p. 70), e do método. Também a ética da

8
Charles Kiefer é natural de Três de Maio (RS), onde nasceu em 05 de novembro de 1958. Estreou
na ficção em 1982 com Caminhando na Chuva, novela de temática adolescente que já vendeu mais
de 100.000 exemplares. Em 1985 Kiefer ganhou projeção nacional com a novela O Pêndulo do
Relógio, agraciada com o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro. Em 1988 publicou, pela
Editora Mercado Aberto, o romance A Face do Abismo. Em 1993, com o livro de contos Um Outro
Olhar o escritor recebeu outro Prêmio Jabuti. E em 1996, com Antologia Pessoal, o terceiro Prêmio
Jabuti. Recebeu também o Prêmio Altamente Recomendável para Adolescentes, pela Fundação
Nacional do Livro Infantil e Juvenil, em 1986, para o livro infanto-juvenil Você Viu Meu Pai Por Aí?,
entre outros.
78

experiência da verdade se opõe à estética da consciência da objetividade. ―Fica bem


claro, portanto, que a significação cifrada em Verdade e Método se traduz numa
correlação disjuntiva, em que o conectivo não é aditivo, mas adversativo. Verdade e
não método, ontologia e não metodologia, hermenêutica e não epistemologia‖ (p.
70). Essa contraposição é possível porque não há, de um lado, o ser, e, do outro, a
linguagem que o traduz mais ou menos perfeitamente. O autor destaca que a ética
não é algo separado da hermenêutica, mas seu traço mais fundamental, e
caracteriza-se como ―ética da experiência da verdade‖.
Nossa interpretação é uma das possíveis respostas às perguntas com que
nos interpela o texto em questão e admite ser tocada pela concriatividade da
linguagem, já que ―a concriatividade linguística da mediação exegética consiste em
deixar falar não só o objeto investigado, mas também o sujeito que investiga‖
(SOUZA, 1988, p. 84). Procuramos nos aproximar do texto de forma plausível e
fecunda, mas não definitiva, já que para isso tomamos como ponto de partida nossa
experiência pessoal e temos como referência a hermenêutica filosófica que admite a
circularidade e a concriatividade da interpretação, visto que ―compreender é
comparticipar de sentido consentido pela concriatividade da linguagem‖ (SOUZA,
1988, p. 83).
A importância estética dada ao romance A face do abismo decorre do fato
de aí experimentarmos a verdade, através da história, contada por dois narradores,
que aborda o tema da fundação da cidade ficcional de San Martin, surgida sobre
uma exterminada aldeia guarani. Após 82 anos de existência, no ano de 1985, a
região acabará destruída pelas águas de uma represa que será construída no rio
que a banha, o Uruguai. Alberta Zeller, uma das que narra a história, conta ao neto,
na última noite na cidade antes de a mesma ser invadida pelas águas, a sua versão
de como foi a fundação e o desenvolvimento daquele lugar. De acordo com Ricoeur,
é o personagem o responsável pela ação da narrativa. É quando se passa da ação
ao personagem que se pode conceber uma identidade pessoal pela narrativa. O
encadeamento da narrativa se dá quando se respondem às perguntas: ―quem?‖, ―o
quê?‖, ―como?‖. As respostas a estas perguntas abarcam personagem,
temporalidade e conexão de fatos. ―Relatar é dizer quem fez o que, por que e como,
mostrando no tempo a conexão entre esses pontos de vista‖ (RICOEUR, 1991,
p.174). Nesse romance, a vinda dos imigrantes alemães é descrita em toda sua
79

dramaticidade. Ainda se somam questões como o processo de destruição física e


cultural do indígena e a descaracterização dos costumes do meio rural.
Na concepção gadameriana, o funcionamento da linguagem, ou o modo
como algo é dito, é uma simples condição prévia para a compreensão do que o texto
diz. Mesmo assim destacamos a forma como este romance foi construído para que
pudesse nos dizer algo. O texto intercala capítulos que se referem ao passado –
manifesto nas ações de José Tarquino - e ao presente – representado por
Gumercindo, onde a unidade narrativa é mantida pela personagem José Tarquino
Rosas, síntese do comportamento biófilo e necrófilo de ser humano. A pessoa, ao
ser compreendida como personagem de uma narrativa, não é separada de suas
próprias experiências. Na verdade, sua identidade necessariamente interage com a
história relatada, que também faz parte da identidade. ―A narrativa constrói a
identidade do personagem que podemos chamar sua identidade narrativa,
construindo a da história relatada. É a identidade da história que faz a identidade do
personagem‖ (RICOEUR, 1991, p. 176). A identidade narrativamente compreendida
pode ser chamada identidade do personagem. As ações dessas personagens
encenam no tempo o modo de construção da narrativa.
As duas perspectivas encenadas na construção da ficção dessa obra de
Kiefer não são em si mesmas uma mera narração de acontecimentos. Sabemos de
Gadamer que ―uma obra de arte está tão estreitamente ligada àquilo a que tem
referência que enriquece o ser daquele como que através de um novo processo
ontológico‖ (2008, p. 209). O enredo do texto, num jogo de metáforas permanentes e
cenas narradas a partir de seus personagens, também aponta para um dizer que se
apresenta para ser decifrável enquanto apreensão da verdade da obra.
Na perspectiva concriativa do texto, a narrativa intercalada tem em cada
uma delas pontos que remetem a uma anterior, há pouco contada, caracterizando a
obra e colocando o leitor em contato com o jogo da linguagem no texto. A face do
abismo constitui-se em duas narrativas que promovem leituras intercaladas, mas
que geram um todo em função da relação dos personagens da trama narrativa.
A história de A face do abismo é contada, supostamente, por um neto de
Alberta Zeller, que não se manifesta no romance, só o que sabemos deste é por esta
passagem em que Alberta Zeller ―não estava olhando para as chamas dançantes,
mas para o neto, que anos mais tarde aproveitaria as memórias da avó num
80

romance‖ (KIEFER, 1988, p. 23)9. Mesmo que o leitor perceba que a história contada
no romance se refere às memórias de Alberta, o que ela conta é contado por um
narrador pressuposto. O leitor pode até supor que o narrador seja este neto, mas em
nenhuma passagem do texto vamos encontrá-lo como tal.
Atentos à riqueza e ao poder evocativo da linguagem literária é que
podemos dizer que o título A face do abismo sugere uma imagem que será o topos
definidor da narrativa e, como um rótulo, vai evocar uma metáfora primordial, própria
da linguagem bíblica, pois para a cultura ocidental e no contexto referencial em que
esta obra foi criada, a fala da Bíblia expressa a fala primordial: ―O Espírito de Deus
pairava sobre a face do abismo‖ (Gênesis 1:2). ―E a terra era sem forma e vazia; e
havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das
águas‖ (Gênesis 1:2).
É expressiva a evocação ao valor simbólico das águas, pois, segundo a
tradição, elas precedem toda a forma e suportam toda a criação. Acompanhemos a
conceituação de símbolo proposta por Gadamer: ―Símbolo... é antes de tudo uma
palavra técnica da língua grega e significa pedaços de recordação. Um anfitrião dá a
seu hóspede a chamada ―tessera hopitalis‖. É algo com que se reconhece em
alguém um antigo conhecido‖ (1985, p. 50). Ou seja, o símbolo é aquilo em que se
reconhece algo. Porém, esse reconhecimento não significa ver novamente, mas sim
remeter à completude original que gerou tais pedaços de recordação. Assim, o
simbólico na arte alude a fragmento que busca complementar-se, no particular de
um encontro com a arte se experimenta a totalidade do mundo, a posição do ser do
homem no mundo, nossa historicidade e finitude frente à transcendência. Dessa
forma, a representação simbólica que leva à arte prescinde de qualquer
dependência com coisas dadas a priori. Seu simbolismo remete a si mesmo e
garante a significação a que remete, ―na representação que uma obra de arte é, ela
não representa algo que não é, não sendo, portanto absolutamente uma alegoria, ou
seja: ela não diz algo, para que se pense outra coisa, mas justamente nela se
encontra o que ela tem a dizer‖ (GADAMER, 1985, p. 59). O simbólico não remete
ao significado, mas apresenta o significado. Do que podemos concluir que se a
essência do jogo é o automovimento, a do simbólico seria o autossignificado.

9
Todas as citações dessa obra, de agora em diante, serão identificadas com a abreviação ABI.
81

O símbolo é sempre linguagem e não existe sem interpretação, nem antes


do homem que fala. As águas simbolizam o começo dos começos, e pela sua
atualidade, o fio condutor da narrativa, expresso nesta fala:

Maldito, murmurou Gumercindo entre os dentes, como se o Uruguai


pudesse ouvi-lo. Mil vezes maldito, repetiu em voz alta. Jamais poderia
imaginar que um dia odiaria as águas de sua infância. Agora, olhando o seu
correr infindável, odiava-as, odiava-as intensamente (ABI, p.12).

São essas águas que inundarão a comunidade, pois a construção inevitável


da barragem vem confirmar e refazer a face abismal desse cosmos que estava mais
ou menos organizado. Gumercindo odeia o rio porque com a confirmação da
construção da barragem ele perde todo o poder diante da população que ele
comandava. Ressalta-se no símbolo a necessidade de construção de sentido por
parte do leitor. É ele quem deve reconhecer no símbolo o significado que representa.
Identificando o que representam os símbolos apresentados na obra se abre um
caminho para adentrar-se em seu sentido interno.
É a identidade da história que faz a identidade do personagem. Se o
personagem perder sua identidade a narrativa perde a sua configuração, podendo
cair na configuração do ensaio. Ricoeur fala das regras constitutivas do jogo,
significando um ―valer como‖ que são estendidas também à teoria dos atos do
discurso (1986, p. 183), observando que é de um outro que a regra é aprendida, pois
―o aprendizado e o treino repousam na tradição‖ (p. 185), podendo ser
transgredidas, mas que devem ser assumidas. ―A pessoa, compreendida como
personagem de narrativa, não é uma entidade distinta de suas 'experiências'‖ (p.
176).
A narrativa confere ao personagem "uma iniciativa, isto é, o poder de
começar uma série de acontecimentos, sem que esse começo constitua um começo
absoluto, um começo do tempo...‖ (RICOEUR, 1991, p. 175). O enredo ou a ação da
narrativa inicia-se com a desocupação do território indígena pelo bugreiro José
Tarquino e a chegada dos doze casais de colonos e seus filhos, totalizando setenta
e seis pessoas. ―Eram doze famílias: Müller, Kiefer, Zeller, Walter, Könning, Schmidt,
Schiller, Fischer, Straus, Becker, Hauser e Sauer‖ (ABI, p. 25). Assim se apresenta
uma questão arqueológica, no sentido etimológico do termo: A história que nos é
contada alude a outra história, atrás da sua história se manifesta uma outra
82

realidade, que é a realidade do imigrante, do estrangeiro, pois ―...na ficção nem o


começo nem o fim são necessariamente os dos acontecimentos narrados, mas os
da própria forma narrativa‖ (RICOEUR, 1991, p. 189). Em virtude de a narrativa
literária ser retrospectiva, pode parecer, num primeiro momento, que só pode levar a
refletir sobre o passado da vida. Mas, na verdade, a narrativa literária só parece ser
retrospectiva aos olhos do narrador. ―Entre os fatos narrados num tempo passado,
tomam lugar os projetos, as esperas, as antecipações, através dos quais os
protagonistas da narrativa são orientados para seu futuro mortal‖ (p. 192). Portanto,
a narrativa também aponta para o futuro, pois ela relata uma preocupação.
Assim que as doze famílias chegam à área desocupada a primeira
providência foi construir a igreja. ―Terá sido então que o Espírito Santo os inspirou a
construírem primeiro a Casa do Senhor?‖ (ABI, p. 25). No decorrer da narrativa, a
igreja vai ser um dos principais instrumentos de preservação da identidade
germânica.
Pelo que a literatura "mobiliza da nossa imaginação", podemos dizer que os
colonos estavam fundando a comunidade e a partir desta fundação iniciava a
ordenação do caos, do abismo em que estavam lançados. A permanência da
imagem abismal no percurso da narrativa pode ser associada ao fato de que o
sujeito colonizador jamais poderá dominar o objeto colonizado: a terra e o rio, pois,
de certa forma, são esses elementos que vão determinar o início e o fim da
comunidade.
O ponto fixo onde os colonos fundaram sua comunidade já estava
determinado por José Tarquino. Foi exatamente sobre as cinzas da aldeia indígena
onde ―ainda havia brasas sob as cinzas quando os carroções chegaram. Os corpos
dos índios não estavam mais lá, haviam sido enterrados ou jogados no rio‖ (ABI, p.
24). A partir daí o lugar foi destinado ao colono, mas a dificuldade de adaptação ao
meio geográfico e cultural que se apresenta leva posteriormente a um
questionamento sobre a identidade germânica.
Neste romance de Charles Kiefer o cenário mitificado, sob a ótica da
colonização ou da terra prometida, é a região colonial do alto Uruguai. A interligação
das relações temporais e espaciais, artisticamente assimilados, vão definir a forma e
o conteúdo do romance. O tempo e o lugar apresentados no romance nos mostram
as constantes modificações ocorridas no espaço durante setenta e seis anos – de
1903, ano da chegada dos doze casais, até 1979, ano da morte do líder sindical. O
83

lugar em que transcorre a narrativa está geograficamente demarcado: a colônia está


situada às margens do rio Uruguai, próxima ao rio Buricá, seu afluente. ―Lenta, a
cerração subia, desnudava o rio‖ (ABI, 12). Ao apresentar um dos primeiros
aspectos que constituirá a paisagem da narrativa percebemos que o olhar do
narrador não a fotografa simplesmente, de imediato acrescenta-lhe juízos de valor,
dá-lhe significado. O texto presentifica um mundo: um mundo imaginário é criado
pelo texto com palavras que não podem desaparecer porque devem estar por si
mesmas para configurar esse mundo. A configuração territorial em si não é o espaço
do romance, já que esse espaço existe apenas na ficção e, enquanto espaço, reúne
a materialidade e a vida que o anima.
Na concepção dos colonos, o mundo habitado pelos índios não era um
mundo, assim como os índios que o habitavam não eram humanos, ―eram iguais aos
cães, aos porcos, aos bois‖ (ABI, p. 24), e por isso puderam ser massacrados,
dizimados, destruídos barbaramente. ―Índio não tem alma, Kind!‖ (ABI, p. 24). A
questão moral ou ética da matança dos índios é negligenciada pelo colono ou
justificada pela sua bestialidade. O extermínio do índio é visto como uma etapa
natural do progresso, e com isso toda a carga dramática dessa destruição fica
banalizada. A mãe de José Tarquino era filha de uma índia e de um tropeiro, assim,
supostamente, sua mãe já fora violentada. A mulher índia além de ser violentada é
também aniquilada. O narrador transcreve uma cena em que uma indiazinha tenta
escapar:

O homem que a viu esporeou o cavalo e saiu em disparada. Em poucos


segundos alcançou-a, jogou-se da sela e a derrubou. Ali mesmo, diante de
seus companheiros, violentou-a; depois, os espectadores também se
serviram. O último, ainda que não fosse exatamente o que desejasse fazer,
e sentindo-se um pouco acovardado diante do olhar de súplica e desespero
da menina, executou-a com um tiro na cabeça (ABI, p. 20).

Neste romance o índio é o outro, que será aniquilado.


No dia da chegada, quando iniciaram a derrubada do mato, morre o colono
Hermano Müller, atingido por um galho ou um tronco de árvore, deixando a esposa
Herta com três filhos para criar. Em decorrência dessa tragédia, antes mesmo de
construírem suas casas e a igreja, foi fundado o cemitério. Quando os homens com
seus machados e foices iniciaram a derrubada do mato, o lugar inerte transformou-
se em espaço de colonização. O episódio que vai fazer com que seja acelerado o
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processo de constituição deste espaço será o acidente que provoca a morte de um


deles, fazendo com que ―antes de iniciarem a construção da igreja, tiveram de fundar
o cemitério‖ (ABI, p. 26).
Um ano depois, Herta, mesmo censurada, casa-se com o bugreiro José
Tarquino, filho – nunca reconhecido – de José Casales de San Martin e de mãe que
era filha de um tropeiro uruguaio com uma índia guarani.
José Tarquino determinou que o nome do lugar devia ser San Martin, nome
do jesuíta, seu pai, assassinado pelos índios fugidos das missões de Santo Ângelo
Custódio. "Talvez 'ele' não merecesse a homenagem, pensou o bugreiro, enquanto
sovava o fumo de corda na palma da mão. Não, não merecia, José Casales de San
Martin jamais o reconhecera como filho" (ABI p. 21). Mas este nome foi logo
associado à religiosidade protestante e foi bem aceito pelos colonos, pois lembrava
o nome de Martinho Lutero, líder da Reforma Protestante.
San Martin, que no princípio foi o espaço utópico, pois fazia parte dos
sonhos e dos desejos dos colonos, diante da resistência e exuberância da floresta e
da passividade das águas, também diante do perigo dos ataques dos nativos,
converte-se em espaço atópico, onde vive o inimigo, o espaço do sofrimento e da
luta. Só depois de muito trabalho é que o espaço torna-se tópico.
Com a fundação de San Martin às margens do rio Uruguai inicia-se não só
um novo espaço, mas também um novo tempo. Não mais o tempo nem o lugar do
índio, já que este fora dizimado e permanece somente na feição de José Tarquino
que herdou os traços da mãe. Esta será uma colônia alemã.
Os Rosa são a ameaça à germanidade do grupo. Representam a
desintegração dessa raça, porque ao fundar a colônia o imigrante transplantou sua
verdade germânica. ―Para os outros, Kiefer interrompeu a valsa porque era muita
audácia do estranho vir sem ser convidado, mas não para ela. Para Herta Muller era
a oportunidade que o Destino lhe oferecia‖ (ABI p. 36). O germanismo do grupo é
afrontado em seu destino de preservar a identidade dos teutos. Mas não é só o
estranho que os afronta; um deles, Herta, rompe com o racismo ―- Fui eu que o
convidei‖ (ABI, p. 37). Na atitude de Herta podemos perceber inquietações relativas
à identidade feminina e, por extensão, a toda mulher.
Gumercindo, o filho de José Tarquino com Herta, portanto, já ―meio alemão‖,
carregará consigo o estigma de não ser puro alemão e enfrentará o preconceito
quando for casar com Laura, uma filha dos colonos. Colonos que não conseguem
85

admitir entre os seus um ―estranho‖, um ―brasileiro‖. Como sabemos de Lévi Strauss,


a proibição do casamento com um estranho apresenta-se cada vez que se põe em
jogo a existência física ou espiritual do grupo. Gumercindo opõe duas visões de
mundo: a do imigrante europeu no início e abrasileirada ao longo da narração, que
se sente estrangeiro em relação à terra, à cultura e aos valores nacionais; e a do
brasileiro, de origem mestiça, considerado verdadeiro representante do país. O
comportamento desse personagem que encarna essas visões é de oposição, mas
também de encontro, que não escondem nada da violência e dos dramas vividos:
"Eu estava dividido: corria em minhas veias o sangue de Herta Müller" (ABI, p. 156).
O status da ficção gera o questionamento do referencial criado pelo texto
literário, pois o texto apresenta fatos de um mundo real, mas também cria um outro
mundo possível. Por isso podemos dizer que nesse romance a figura da mulher está
misticamente solidarizada com a terra e a sua capacidade de parir está associada à
fertilidade da terra: ―as mulheres eram boas parideiras e aos homens interessava
que a prole fosse numerosa: a terra era abundante e precisava ser povoada‖ (ABI, p.
25). Percebemos que a fertilidade das mulheres, e da terra, está relacionada
também com a riqueza. Estaria nessa imagem feminina da terra a atração e a luta do
homem pela sua conquista e posse?
Disso depreendemos que a imagem feminina da fecundidade e do abrigo
pode ser associada à terra porque ela já está livre da presença do índio. Eliminado o
índio, o imigrante tem diante de si uma natureza exuberante que também precisa ser
dominada.
Mesmo em território brasileiro a etnia alemã é mantida como uma categoria
cultural que lhes interessa preservar. Entendemos, então, que esse apelo à etnia se
dá no sentido de conquistar e reforçar a dignidade do grupo. O germanismo, definido
como a admiração excessiva a tudo quanto é alemão ou como teuto-mania, é
decisivo para levar adiante o propósito de desenvolvimento da colônia.
Os colonos de San Martin têm um propósito bem definido: o trabalho e o
progresso, bem como a manutenção da sua cultura, do seu etnocentrismo e de sua
religião – no caso desse grupo, o protestantismo. O trabalho chega a ser o marco
caracterizador da religião protestante, conforme estudos sociológicos que apontam
as afinidades do protestantismo com o capitalismo (WEBER, 1989). A fé é associada
ao trabalho incessante e produtivo.
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Apesar das frequentes referências à cultura alemã, no final do romance a


questão da germanidade vai estar decaída, e o colono vai se integrar à luta como
cidadão brasileiro. Isso permite recriar a imagem vulnerável do colono, carregado de
sonhos e defeitos, porém sustentado na convicção do destino que o lança em busca
da terra prometida.
A força expressiva da palavra fica evidenciada no gesto e fala de José
Tarquino: ―San Martin – repetiu, girando o braço em torno da aldeia incendiada -, um
belo nome para uma cidade. Aqui será a rua principal e neste lugar em que tenho os
pés o centro da praça‖ (ABI, p. 22). Ao nomear o lugar, este foi instituído de poder. A
partir desse instante de fundação, nada mais do lugar, que poderia representar o
índio, interessa, pois já adquiriu uma nova denominação.
Considerando a compreensão desse texto como "participação num sentido
comum" é que podemos dizer que assumem grande importância para o
desenvolvimento da narrativa, desde o momento da fundação de San Martin, os
espaços do rio e da praça. A praça fundada por José Tarquino seria, setenta e seis
anos depois, o cenário de uma grande passeata com consequências óbvias para a
época (final dos anos setenta), como a repressão do movimento dos trabalhadores
rurais sem terra e a morte do líder do Sindicato dos Trabalhadores Rurais.
A praça, que foi o primeiro elemento do rito fundacional da colônia, no
decorrer do romance vai adquirindo uma conotação de espaço político. Conforme
estudo realizado pelo antropólogo Roberto DaMatta, na nossa sociedade é evidente
a oposição rua/casa, que são dois domínios mutuamente exclusivos. A categoria rua
pode ser segmentada em outras duas: a praça e o centro. A praça ―representa os
aspectos estéticos da cidade: é uma metáfora de sua cosmologia‖ (DaMATTA, 1997,
p. 94). Em muitas cidades o centro da cidade coincide com a praça. Assim, os
conflitos políticos devem ocorrer nas ruas, sobretudo nas praças, que é um espaço
essencialmente público.
É na praça de San Martin que os colonos, organizados pelo presidente do
Sindicato, protestam, em passeata, contra a decisão oficial de construir uma
barragem no rio Uruguai, que alagaria toda a cidade, forçando-os a um novo êxodo,
uma vez que a terra é a base indispensável para o colono firmar-se como tal e a luta
pela preservação da sua posse apresenta-se como uma forma de resistência.
87

A notícia da construção da barragem no rio Uruguai e a consequente


inundação da cidade são recebidos com indignação pelos habitantes, mas para os
dirigentes da comunidade é proposta como resultado de projetos de
desenvolvimento:

Alberta Zeller ouviu, primeiro com incredulidade e, passando um momento,


com estupefação, o Intendente Gumercindo Rosas, através de seu ridículo
programa matinal de rádio, fazer a apologia da construção da barragem,
dizendo: 'San Martin sai da história para entrar na História' (ABI, p. 30).

Cada época deve compreender a seu modo um texto transmitido, por isso
entendemos que, no contexto dessa narrativa, Gumercindo, ao sentir-se ameaçado
ou afrontado em seu poder, usa-o para reprimir a passeata. O órgão oficial de
repressão é a Brigada Militar, que é imediatamente acionada. Os brigadianos não
lutam contra os manifestantes em geral, eles simplesmente aniquilam o líder da
passeata. ―O silêncio descera sobre a praça. Gostava do silêncio: representava
ordem, harmonia, obediência. Barulho era coisa de comunistas, como daquele
Antônio Becker, o amigo do Fidel‖ (ABI, p. 98). Mas quando Gumercindo sabe da
ação extremada da polícia tenta defender-se, dizendo que não tinha autorizado
tamanha barbaridade.
"Um enunciado só consegue tornar-se compreensível quando no dito
compreende-se também o não dito" (GADAMER, 2011, p. 181). No princípio não
tiveram voz os índios, hoje são os colonos e seus líderes que têm sua voz abafada.
A manifestação na praça é uma interpelação que por si só desestabiliza o poder. Na
manifestação se expressa o apelo de um grupo não só diferente, mas diferenciado
socialmente.
Mesmo sabendo da história de San Martin pela voz do narrador, é
impossível não deixar outras vozes se manifestarem, já que na voz do narrador vão
surgindo outras vozes. Neste romance não há coincidência entre a fábula - sucessão
cronológica dos acontecimentos - e a trama - arranjo estilístico dos episódios
ficcionais (Cf. D‘ONOFRIO, 2001, p. 216), pois apresenta os dois planos da
narrativa: o da enunciação – Alberta narrando a história — e o do enunciado – onde
as personagens vivem a história.
88

A memória do narrador está constantemente presentificando o passado. A


enunciação instaura um presente relativo a um momento e a um lugar. Esses planos
correspondem a tempos e lugares distintos: o da enunciação, que corresponde ao
tempo/lugar atual, e o do enunciado, que corresponde ao tempo/lugar anterior, o da
fundação de San Martin.
Uma abordagem hermenêutica nos convida a fixar a atenção em alguns
episódios que serão decisivos para o desenrolar dos fatos, como é o caso da festa.
Gadamer compara o encontro com a obra de arte com a temporalidade própria da
festa, que também reúne atualidade e historicidade em um único fenômeno ao
afirmar que a temporalidade que se descobre na festa e na arte é o modo de ser
mesmo da compreensão. A experiência estética e a temporalidade da festa remetem
à impossibilidade de pensar em horizontes fechados entre os quais seria possível
deslocar-se.

Este ato de deslocar-se não se dá por empatia de uma individualidade com


a outra, nem pela submissão do outro aos próprios padrões. Antes, significa
sempre uma ascensão a uma universalidade mais elevada, que supera
tanto nossa própria particularidade quanto a do outro. O conceito de
horizonte torna-se interessante aqui porque expressa essa visão superior e
mais ampla que deve alcançar quem compreende. Ganhar um horizonte
quer dizer sempre apreender a ver para além do que está próximo e muito
próximo, não para abstrair dele mas precisamente para vê-lo melhor, em um
todo mais amplo e com critérios mais justos (GADAMER, 2008, p. 403).

O horizonte é desta forma o lugar em que acontece a compreensão, e se


constitui e alarga mediante o ato de compreender.
A festa que ocorre na colônia, um ano após sua fundação, mantém, de
alguma forma, os elementos e atividades comuns, próprios dos dias de festa das
comunidades agrícolas, que são a honra a um santo padroeiro, a cerimônia de ação
de graças, o baile com exibição de trajes e acompanhamento de música, tudo em
caráter tradicional, com intensa relação social entre os indivíduos e compromissos
de noivado e matrimônio. ―Dançaram, os dois, a noite inteira, e as brasas
amortecidas se reacenderam. A ela não importava que as mãos que acariciavam a
sua carne tivessem atirado sobre os índios‖ (ABI, p. 37). Torna-se difícil qualificar
essa festa como religiosa, econômica, política ou social. Existe na arte, como na
festa, uma ocasionalidade muito particular. "A experiência temporal da festa é,
antes, a celebração que é um presente sui generis" (GADAMER, 2008, p.180).
89

Pode-se dizer que se celebra o mesmo com certa frequência, porém cada festa é
distinta da que lhe antecede. Na festa se fundem os horizontes do presente e do
passado. No retorno da festa há um fator de repetição, de fazer que volte o passado,
porém nessa repetição há uma referência absoluta ao presente.
Também em A Atualidade do Belo (1985) a festa é descrita por Gadamer
como a representação concreta de um evento que não existe à parte de sua
representação. A festa e a celebração tomam o caráter de experiência de vida que
abarca todos os planos do ser humano no tempo durante sua existência. "Uma festa
é sempre para todos" (p.61). Já os costumes o relacionam com o passado, como
forma de transferência de conhecimentos, que permitem validar com isso o
conhecimento através do vivido.
Na cena da festa descrita no romance destaca-se o caráter de controle
social exercido pelo grupo sobre os membros da comunidade. José Tarquino só
pode fazer parte da festa porque ―um deles‖, Herta Müller, mesmo que contrariando
a vontade do grupo, admitiu-o e apresentou-o como convidado, mesmo que isso
afrontasse a moral e os costumes germânicos. Ela desafia os demais integrantes da
comunidade, mas depois sofre calada as consequências, pois cultua o fetiche
machista de respeito ao homem a quem pertence. A relação homem-mulher descrita
neste romance está desprovida de qualquer visão romântica. O relacionamento,
entre os casais germânicos, é escassamente abordado. A narrativa detém-se mais
nas relações interétnicas entre José Tarquino Rosas e Herta Müller, Gumercindo
Rosas e Laura. Porém a aproximação entre José Tarquino e Herta se dá puramente
movida por um impulso carnal, instintivo, sexual.

Somou e ressomou, e julgou que o casamento lhe custara o equivalente a


trinta mil metros cúbicos de madeira de primeira qualidade, jatobá, cedro ou
canjerana. Em compensação, acabavam-se o jejum sexual e as dificuldades
que enfrenta um homem solitário (ABI, p. 42).

Por parte de José Tarquino é muito mais o desejo de domínio, de posse, que
o move até Herta do que propriamente um sentimento amoroso.
Nas situações representadas no romance se realiza plenamente a ideologia
machista no comportamento do homem. Só que houve, por parte de algumas
mulheres, como Herta e Laura, um desafio a esta ideologia. Laura não se manteve
passiva. Ao contrário, buscou despertar em Gumercindo um sentimento que este
90

não conhecia. Mas ele não admitiu. Ele negou o ―outro‖ e isto foi a sua própria ruína.
Houve por parte de Gumercindo uma renúncia absoluta em compreender o que com
ela se passava. Dentro da lógica machista - em que o masculino compreende o
sujeito, a atividade - é inadmissível que um corpo feminino se apresente em toda a
sua feminidade. Isto porque nesta situação o amor é posse e o feminino integra o
objeto, a passividade.
Para Gumercindo, o casamento com uma das filhas de família alemã é mais
uma forma de afirmação social, pois sente a necessidade de ser um deles. A falta de
afeto entre o casal se revela pelo estado depressivo em que vive Laura, até a
consumação do suicídio, no ato de matar-se. Laura foi a mulher que "tivera a
coragem de enfrentar a face do abismo sem temer" (ABI, p.161). Percebemos nesse
eufemismo uma outra conotação, para além da conotação usual de tristeza e
angústia, e com isso uma hermenêutica, no sentido de interpretar, dar uma
explicação do que seria a face do abismo.
Assim o romance vai revelando o conteúdo (ética) imanente ao objeto
estético, ou seja, o sonho e a luta pela Terra Prometida, sonho esse que é desfeito
quando o colono deve encarar a face abismal da terra em que está lançado, fazendo
com que se destruam as regras de convivência solidária. Foi em busca da Terra
Prometida que o imigrante chegou ao Brasil, mas para tanto pagou o preço do
desenraizamento e contraiu, com este país, uma relação ambivalente, de ódio e
amor. Neste romance a dimensão ética e estética se concentra no homem, suas
paixões, lutas e misérias.
Após a leitura dessa narrativa, podemos nos valer das palavras de Nadja
Hermann para dizer que ―a força poética da narrativa literária nos oferece acesso
privilegiado aos conflitos morais, à ruptura de convenções, ao mesmo tempo que se
constitui numa aprendizagem da moralidade‖ (2010, p. 105), pois não se trata de
seguir a ação das personagens, mas de imaginar-nos no seu lugar e aprendermos
com os conflitos vividos por elas. Segundo a autora, ―o caráter exemplar da
literatura, pelo que mobiliza da nossa imaginação, emoção e entendimento, permite
uma experiência estética que abre o horizonte compreensivo da moralidade e
possibilita uma avaliação racional sobre a complexidade das situações, das crenças
e emoções que levam à constituição do sujeito moral" (p. 107). A autora aponta a
relação de complementaridade entre ética e estética, o que permite indicar a
91

fecundidade do estranhamento provocado pela experiência estética como fator


decisivo para uma ―abertura à alteridade" (p. 124).
A hermenêutica nos ensina que, além do texto explícito na linguagem
literária, há outras camadas da obra literária dignas de serem observadas e
compreendidas. Uma obra de ficção não é nem uma simples cópia da realidade e
tampouco um puro exercício de imaginação descolado da realidade. A narrativa
ficcional parte da realidade de alguém, de sua experiência de mundo que é dita a
outro, alguém que vive em outra realidade e que assimilará algo dessa realidade que
lhe é dita, a partir de sua própria experiência. O recurso estilístico usado pelo autor
de emprestar um caráter biográfico, com força documental aos narradores, permite
uma descontinuidade dos fatos, intercalando fatos do passado a reflexões do
presente. Já a voz documental permite abordar questões de ordem social e cultural.
Chegamos a essa conclusão, por entendermos, como Rohden (2008), que o
"narrador nos narra, não uma aventura, um desvario, uma alucinação ou uma
elucubração intelectual, mas uma experiência que é um saber constituído por
raciocínio, vivência, argumentação teórica e intuição" (p. 254).
A relação entre enredo e personagem é indissolúvel no interior do universo
ficcional. Nessa estrutura narrativa existe algo que precisa ser desvelado para se
compreender onde a expectativa de leitura da obra a partir de um só enredo se
desfaz. Se hoje compreendemos a ação das personagens de uma forma, sabemos
que as próximas gerações a compreenderão diferentemente. "Cada época deve
compreender a seu modo um texto transmitido, pois o texto forma parte de um todo
da tradição na qual cada época tem um interesse objetivo e onde também ela
procura compreender a si mesma" (GADAMER, 2008, p. 392). Essa concepção
gadameriana está afinada com a narração apresentada, visto que as personagens e
o mundo da ficção são produções da linguagem, também o autor teve, ao narrar,
sua compreensão dos fatos, também ele estava inserido em uma tradição e de
dentro dela é que abordou a tradição das famílias germânicas que ocuparam a
região noroeste do Rio Grande do Sul.
Ao colocar em destaque, ou ao problematizar as aspirações e costumes de
um determinado grupo de colonos, o texto nos proporciona um diálogo, uma
abertura para a reflexão sobre nossa identidade cultural, pois expõe um diálogo
entre etnias e gerações que, através das falas das personagens, atualiza-se a cada
leitura. Essa narrativa literária incorpora as diversas vozes de um evento gerado na
92

história e atualiza espaços e tempos que são negados ou rechaçados pela história
oficial, visto que "[…] a Literatura tem o mérito de articular num só escrito todos os
saberes. Um romance pode apresentar uma visão econômica, social, política,
religiosa e moral de um povo, de uma cultura" (PAVIANI, 2009, p. 65).
Pelas falas, testemunhos e atitudes das personagens podemos dizer que
houve por parte do autor uma opção em favor dos aspectos positivos da imigração e
de crítica contra todas as barbaridades cometidas em nome da manutenção do
status da imigração. Se nas falas das personagens podemos perceber a restauração
do mito da terra prometida, ao mesmo tempo o narrador toma distância crítica para
incorporar dados e avaliações, sempre já historiados, que desconstroem esse mito.
Daí a dimensão ética dessa narrativa, pois por meio da ficção ―aprendemos a viver,
a morrer, a amar, a imaginar, enfim a retomar nosso passado, a nos repensarmos no
presente e projetar nosso futuro‖ (ROHDEN, 2008, p. 131). Nesse texto de ficção
podemos ver a palavra tornada um acontecimento de verdade histórica. O texto se
converte em uma vivência a mais. Trata-se de assumi-lo no horizonte do intérprete,
de assimilá-lo em sua experiência.
O texto literário aponta sempre para algo, para uma exterioridade que o
autor não pode controlar. Do mesmo modo, a interpretação aponta para uma
tradição que envolve o intérprete, tradição esta que conforma seu horizonte. A
compreensão se dá no diálogo entre eles. Já a interpretação, a síntese, a aplicação
se dão na fusão de horizontes entre intérprete e texto. A interpretação serve para
compreender o texto e o texto permite que o intérprete se compreenda em um
horizonte mais amplo.
Considerando o potencial de verdade subjacente a um texto literário é que o
apresentamos como elemento estruturador da aprendizagem, vista como uma arte
de viver, pois entendemos que a prática da leitura do texto literário é condizente com
a concepção de educação com base na hermenêutica. Neste ponto da investigação
assumimos as implicações conceituais do pensamento de Gadamer que remetem à
linguagem e, em decorrência, o diálogo como condição de possibilidade para o
acontecimento da educação.
93

4 FORMAÇÃO E EXPERIÊNCIA COM O TEXTO LITERÁRIO

“A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que,
gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma” (Marina Colassanti).

Neste capítulo procuramos ver como a compreensão hermenêutica pode


operar como referencial crítico para a análise das práticas de leitura vigentes no
âmbito das salas de aula, e oferecer, a partir da hermenêutica, indicativos de
redimensionamento da forma pedagógica de trabalhar com textos literários e, de
forma indireta, de toda prática pedagógica. Questionamos o que se espera que a
leitura produza, e o que produz a obra literária no sujeito leitor. Retomamos a
possibilidade já sugerida por Gadamer e seus seguidores, como Jauss e, no âmbito
da literatura brasileira, Regina Zilberman, de que a literatura seja vista e proposta
como uma experiência, que possibilita a fruição, e com isso, o engrandecimento do
leitor que, entregue à obra vai ampliar seus horizontes, chegando à fusão de
horizontes, onde se funde o horizonte de expectativas do leitor que entrará em
diálogo com o horizonte de expectativas da obra.
Diante das considerações levantadas nos capítulos anteriores e da forma
como foi apresentada nossa fundamentação teórica, aprofundamos agora a reflexão
sobre a importância da linguagem literária, bem como a forma como nós
professores, e a escola em geral, temos tratado desse tema nas nossas aulas. Para
isso faz-se necessário analisar a prática escolar da leitura, da escrita e do discurso,
fazendo com que a leitura seja uma verdadeira experiência existencial para o aluno,
transcendendo a mera acumulação de informação. Neste sentido é que o ato de ler,
de escrever e de falar pode constituir-se numa autêntica expansão do horizonte
existencial. Já Mario Osorio Marques havia levantado essa questão:

Compete à escola levar o aluno a escrever por conta própria e sobre temas
de sua escolha, em consonância com o princípio educativo do pesquisar
sempre. Não pode o escrever constituir-se em matéria de ensino formal sob
pena de se acentuarem as resistências a ele (MARQUES, 1999, p. 168).

Se nas atividades escolares dos alunos constatamos tantas dificuldades na


escrita e na interpretação de textos, isso pode, então, ser decorrência de práticas
pedagógicas, amplamente difundidas nas últimas décadas, baseadas no exercício
da autonomia individual do educando. Daí que qualquer coisa que o aluno escreva
94

deve ser considerada certa, pois ele é livre para interpretar, onde não podem ser
interpostas barreiras que bloqueiem tal liberdade.
Entendemos que é preciso adotar uma outra atitude pedagógica, pois que
não seria conveniente falar de ensino da língua, mas sim de uma educação na
linguagem. Consideramos ainda que

Reconstruir a educação que responda às exigências dos tempos atuais não


significa o abandono do passado, o esquecimento da tradição, mas uma
releitura dela à luz do presente que temos e do futuro que queremos.
Requer a dialética da história que se superem os caminhos andados, mas
refazendo-os. Reconstruir não significa ignorar o passado que, na cultura e
em cada homem, continua presente e ativo, vivo e operante; mas impõe que
nele penetrem e atuem novas formas que o transformem e introduzam na
novidade de outro momento histórico e outros lugares sociais (MARQUES,
1993, p. 104).

Essa mudança de postura exige a revisão dos próprios pressupostos que


interferem na nossa prática educativa. É preciso estar aberto ao diálogo e admitir,
como nos diz Gadamer, que perguntas das quais não se sabe a motivação não
podem ser respondidas, pois ―tudo que é dito não tem sua verdade simplesmente
em si mesmo, mas remete amplamente ao que não é dito‖ (2011, p. 181). Isso
significa ampliação do horizonte existencial dos envolvidos através da linguagem,
enriquecimento do mundo mediado simbolicamente e emprego ético da linguagem
nas relações intersubjetivas com o outro da linguagem.
Tal atitude torna muito mais importante o que fazemos no ensino da
linguagem. Não apenas ensinamos fatos, mas abrimos outras realidades
emergentes, outras verdades. Isto permite uma nova justificação para a leitura de
textos literários. Podemos levar a verdade para os alunos, que não é uma verdade
científica, mas uma revelação interessante de como as coisas são. Nessa outra
atitude pedagógica o cânone não pode ser assumido simplesmente como uma
prescrição, onde se fecham as possibilidades de leitura, ignorando o desafio da obra
de arte na sua simples presença.
Retomamos agora nossa preocupação inicial e reafirmamos com Flickinger
que "ao longo das últimas décadas, o debate principal na pedagogia alimentou-se
das queixas quanto à crescente carência na formação básica das crianças e dos
adolescentes" (2014, p. 66). Como já indicamos em outras passagens desta tese,
para este autor também essas carências "têm algo a ver com o avanço do que se
95

pode chamar de visão reducionista da língua, visão que, mesmo sem querer, faz da
língua um mero objeto de manipulação" (p. 66), fazendo-se um meio instrumental
afirmativo do não diálogo, da recusa de alternativas.
Proposto como elemento estruturador da aprendizagem, o texto convida à
reflexão e ao diálogo, este agora entendido como condição para a existência da
educação, não simples meio para sua realização.

4.1 ABERTURA À EXPERIÊNCIA

No sentido de compreender melhor a racionalidade subjacente à prática


educativa é que recorremos à hermenêutica filosófica, que tem se mostrado fecunda
na busca de sentido para a educação e, de modo mais específico, para o ensino da
literatura, pois ela já exige por si uma "postura inter e transdisciplinar" (ROHDEN,
2008, p. 27). A análise da estrutura da experiência é o ponto de partida do caráter
ontológico que se atribui à compreensão.
Para isso é importante que retomemos de Gadamer o conceito de
experiência, visto que a experiência faz parte da essência histórica do homem. O
autor, porém, adverte que o significado de experiência é um dos menos definidos em
filosofia, precisamente porque se dá por entendido. Por este motivo considera
necessária a análise de seu conceito e procede ao esclarecimento do termo
experiência com vistas ao tratamento da experiência hermenêutica.
Tem experiências aquele que possui uma orientação e um horizonte no
olhar. Essa teorização da experiência se estabiliza nas interações sociais, pelo
reconhecimento dos saberes, numa visão de mundo socialmente compartilhada e
transmitida que configura a percepção dos sujeitos em uma tradição. "Todavia, a
tradição não é simplesmente um acontecer que aprendemos a conhecer e dominar
pela experiência, mas é linguagem, isto é, fala por si mesma, como um tu"
(GADAMER, 2008, p. 467). Por isso a tradição é o topos onde se realiza
ontologicamente a formação dos indivíduos. A relação entre tradição e experiência,
que é circular, se exerce quando há uma abertura. Esta abertura torna possível a
experiência. Nessa condição a experiência é vista como parte da essência histórica
do homem, pois tem a ver com a tradição, como é o caso da experiência da obra de
arte:
96

[…] a obra de arte ganha seu verdadeiro ser ao se tornar uma experiência
que transforma aquele que a experimenta. O ―sujeito‖ da experiência da
arte, o que fica e permanece, não é a subjetividade de quem a experimenta,
mas a própria obra de arte. É justamente esse o ponto em que o modo de
ser do jogo se torna significativo, pois o jogo tem uma natureza própria,
independente da consciência daqueles que jogam. O jogo encontra-se
também lá, sim, propriamente lá, onde nenhum ser-para-si da subjetividade
limita o horizonte temático e onde não existem sujeitos que se comportam
ludicamente (GADAMER, 2008, p. 155).

Obra só é enquanto é interpretada e compreendida por alguém. Se a obra


de arte permanecesse fechada historicamente no sentido que o artista ou sua
sociedade contemporânea lhe deram, sua passagem a outra atualidade fora de seu
horizonte a reduziria a mero objeto de contemplação.
Para Gadamer a experiência não pode ―se consumar em um saber; a
experiência só se consuma ‗naquela abertura para a experiência que é liberada pela
própria experiência‘‖ (FIGAL, 2007, p. 17). A pergunta é a chave para a abertura da
experiência a novas experiências. Ela confronta o pré-juízo estabelecido
suspendendo sua validade, fazendo com que se erijam novas possibilidades
hermenêuticas de sentido linguístico.
A experiência autêntica está caracterizada negativamente, já que adquirimos
experiência sobre algo quando nos damos conta de que não é como havíamos
pensado e de que depois da experiência conhecemos melhor esse objeto. A
negatividade da experiência não é um mero desengano, mas o caráter negativo é
produtivo, já que transforma nosso saber acerca do objeto.
O experimentado não é o que sabe tudo, mas o que é consciente de que
cada experiência é única e irrepetível. Assim, quem possui experiência sabe que não
pode dispor totalmente do futuro, posto que este está aberto e, portanto, é
necessário contar com o inesperado e não confiar-se totalmente às próprias
expectativas, conscientes de que qualquer intenção de submetê-lo ao próprio poder
é vão. Por isso o experimentado é consciente de sua finitude, de seu saber-se
situado.
Dito de outro modo, é na experiência hermenêutica onde se concretiza a
estrutura de toda experiência como abertura à coisa, pois, conforme Gadamer,
adquirimos a experiência autêntica sobre algo quando nos damos conta de que não
é como havíamos pensado e de que depois da experiência conhecemos melhor
esse objeto.
97

Desta forma, o autor termina concluindo sua redefinição deste conceito


ressaltando que "a dialética da experiência tem sua própria consumação não num
saber concludente, mas nessa abertura à experiência que é posta em
funcionamento pela própria experiência" (GADAMER, 2008, p. 465). Isso significa
que só é compreensível aquilo que representa uma perfeita unidade de sentido,
aquilo que se nos mostra em sua própria verdade. Unidade não significa aqui
clausura da obra frente a quem se dirige a ela, mesmo que a obra seja a mesma,
fala cada vez de um modo diferente.
Mostrada a estrutura geral da experiência, Gadamer começa o tratamento
da experiência hermenêutica, visto que o núcleo da hermenêutica filosófica
gadameriana se encontra na experiência.

4.2 A EXPERIÊNCIA DA LEITURA

Por entendermos que leitores de literatura se formam lendo literatura, a


tarefa do professor se apresenta óbvia, observando as regras do jogo, as pistas e
indícios, para ir propondo, aceitando ou questionando opiniões diversas. Entre a
obra e o leitor se negociam as regras do jogo que estão na base da interpretação do
texto. Para isso deve se considerar que a tarefa interpretativa constitui-se também
na intenção com que o leitor interage com o texto. Cada texto determina os
caminhos de acesso, indicando pistas e indícios explícitos ou subentendidos, que
atuam dialogicamente com o leitor. "Quando alguém lê um texto, fica subentendido,
não simplesmente fazendo sentido das palavras na página, mas permitindo que o
horizonte do texto se misture com o horizonte do leitor de tal forma que o leitor seja
afetado pelo encontro com o texto" (LAWN, 2010, p. 95). Assim, a possibilidade de
nos deixarmos levar pela arte, envolvidos no seu jogo, é o que viabiliza seu
acontecer. Não é o professor quem vai determinar a capacidade de o texto dizer algo
ou não10. Entrar no jogo significa dialogar com o texto, decifrar seus códigos,
estabelecer nexos de sentido.
A atribuição de novos sentidos estará relacionada à adaptação ao contexto,
que acontece no diálogo entre o tempo do texto e o tempo do leitor, permitindo que
haja a fusão de horizontes. O intérprete e o interpretado pertencerão ao mesmo

10
Ruedell é categórico: "Há apenas interpretação, sem perspectiva de ela poder ao menos ser falsa
ou verdadeira" (2007, p. 21).
98

horizonte compreensivo, como assegura Gadamer. Para que a relação que se


estabelece entre o texto e o leitor seja criativa deve mediar uma formação, que na
visão do autor é "o manter-se aberto para o diferente, para outros pontos de vista
mais universais" (2008, p. 53). Não é possível a experiência sem abertura. Só vai
experimentar algo aquele que está disposto a deixar-se interpelar, na verdade, tem
experiências aquele para quem o outro tem algo a dizer. Quem escuta o outro
escuta a alguém que tem seu próprio horizonte. Ao escutar o outro se abre o
verdadeiro caminho para viver a solidariedade. Isto faz pensar que a formação não
acontece de forma individual, mas é um processo contínuo, em que todos
compartilham saberes. A obra de arte não é, pois, o produto de um gênio, mas
concriação em colaboração com o mundo, para oferecer símbolos renovados de
conhecimento e de verdade.
Na experiência da arte, trata-se de que aprendamos, na obra de arte, uma
forma específica de demorarmo-nos nela, sem se tornar monótono, pois "quanto
mais nos deixamos entrar na obra — demorarmo-nos — tanto mais expressiva, tanto
mais múltipla, tanto mais rica ela nos parece" (GADAMER, 1985, p. 69).
O texto quando apresentado provoca perguntas, estabelece uma relação de
diálogo. O modo de proceder do diálogo permite o autoconhecimento como
realização aplicada da experiência da compreensão, interpela ao leitor mesmo, de
modo que nele se realize um processo de autocompreensão. "Toda compreensão é
no fundo compreender a si mesmo, mas não no sentido de uma posse de si mesmo
que se alcance de antemão e definitivamente. A autocompreensão realiza-se
sempre quando se compreende alguma coisa e não tem o caráter de uma livre
autorrealização" (GADAMER, 2011, p. 155). Isso ocorre quando o leitor identifica
sua história com aquelas fixadas no texto literário. Neste diálogo com o texto o leitor
experimenta a validade do que o texto lhe comunica. Aquilo que é comunicado pelo
texto já não será mais um dizer estranho, mas será considerado como uma verdade
possível. Compreender é a possibilidade humana de aceder à verdade. Quando se
compreende se compreende a verdade, senão, não se compreende.
Na relação intersubjetiva entre texto e leitor se modifica o leitor, e também o
texto que, como produto cultural, sofre transformações por meio do ato interpretativo.
"A experiência da leitura constitui um dos modos de ser da autoformação, por
constituir uma forma de encontro com o ser-aí, que se faz presente, interpelando-
nos" (LAGO, 2014, p. 106). A análise e a comparação fazem surgir estruturas de
99

sentido, configurando um acordo com o texto em questão, como uma nova criação,
que provoca outras novas significações e, por fim, a formação, como postula
Gadamer.
O texto literário, como componente da tradição, também apresenta outras
possibilidades de compreensão de nosso entorno e de nossa condição humana
dada pela linguagem, de uma experiência vivida e de seu pertencimento a um
mundo histórico, no contexto da finitude diante da tradição.
Daí decorre o envolvimento do intérprete, o que redundará em uma
autorreflexão. Dessa forma, a interpretação de um texto termina na própria
interpretação do sujeito, considerando que, a partir da visão hermenêutica,
compreender significa essencialmente compreender-se. Está em questão a
concepção de que ―o processo educativo é uma experiência do próprio aluno, que se
realiza pela linguagem‖ (HERMANN, 2002, p. 83-84). Seguindo a perspectiva que
propõe Gadamer, a de pensar a compreensão como uma forma de
autocompreensão, a mesma é, particularmente, um situar-se de frente aos outros, o
que se dá na linguagem. Em outras palavras, ―compreender é sempre um
compreender-se‖ (GRONDIN, 1999, p. 193).
Baseados nessa ideia, podemos deduzir que um problema crucial que
ocorre nas escolas em relação à compreensão de textos decorre da falta de
consideração, por parte de quem ―cobra‖ a interpretação, das opiniões prévias do
leitor. Porém, se interpretar e produzir textos há muito consta nos currículos
escolares, é porque esta atividade já foi validada por muitas gerações e por isso
merece questionamento mais profundo do porquê de tanta dificuldade por parte do
leitor.
O professor, em seu trabalho de mediação entre a palavra escrita e a
interpretação feita pelos alunos em sala de aula, deverá considerar as experiências
interpretativas dos mesmos, bem como sua formação na leitura. Por certo não se
pode desconhecer o papel do docente como leitor, pois só um leitor persuade a
outro leitor, só quem tenha visto a vida por meio das páginas de um livro é capaz de
oferecer essa visão do imaginado, essa imagem formada por palavras.
A obra de arte não é um simples objeto, mas uma experiência que
transforma aquele que a experimenta. A subjetividade que está em jogo é uma
subjetividade ampliada, porque não é só a do autor, é também a do receptor e a da
transmissão.
100

A literatura, segundo Gadamer, não depende só da recepção. Pode ser


compreendida como o processo em que algo vem a ser na representação e não
como a experiência estética do leitor, já que a obra não é uma consciência, sim um
mundo, por isso a literatura e a filosofia se entrecruzam constantemente. Entre todas
as manifestações da linguagem, a obra de arte literária é, conforme Gadamer, a que
possui uma relação privilegiada com a interpretação e, nesse sentido, se aproxima
da filosofia. Esta relação especial se produz graças a que a obra é uma realidade
subjetiva e objetiva.
Assim, a literatura pode contribuir como estratégia para a formação da
sensibilidade:

As diferentes estratégias que permitem formar uma sensibilidade aguçada


para com as particularidades da situação e a atenção às emoções em
relação à construção da moralidade, são contribuições da arte de viver e
devem ser consideradas na educação, se quisermos educar pessoas com
capacidade de decidir e conduzir suas vidas (HERMANN, 2010, p. 105).

Quando a leitura é uma verdadeira experiência, então afeta, num sentido


profundo, o que há de mais íntimo no ser humano. A leitura, quando é mais que o
cumprimento de um programa de estudos, põe em questão o que somos. Seguindo
este pensamento, o centro de nosso interesse se situa na leitura como experiência
de formação. Desta maneira se promove a ideia de uma pedagogia centrada na
apropriação lúdica e criativa da obra literária por parte do estudante. A literatura por
ter um caráter polissêmico permite a contínua reconstrução de seu significado.
Diante da abordagem feita, podemos dizer que a linguagem, como tradição,
possibilita a experiência. Assim entendida, a experiência não é um outro metafísico,
não é nada exterior à linguagem: entre ambos há um mútuo pertencimento até o
ponto que a linguagem é experiência consciente de si.

4.3 A LEITURA E A PRODUÇÃO DE SENTIDO DE MUNDO

Que a literatura não exista senão para ser compreendida constitui a grande
implicação hermenêutica, pois, nessa perspectiva, hermenêutica e literatura estão
unidas pela ação do compreender. Buscamos, assim, nos aproximar da experiência
da palavra por meio da literatura. Por isso admitimos que a hermenêutica encontra
101

seu melhor modo de realização no exercício da leitura de textos literários; e que os


textos literários só existem por e para uma atividade hermenêutica.
―A leitura é um processo de pura interioridade" (GADAMER, 2008, p. 225).
Sobre a base deste dado, a função da leitura para a literatura é a realização da
interiorização do texto e, para a hermenêutica, a execução de uma relação dialógica
na qual se faz e segue um sentido. Tanto na interiorização como no diálogo opera a
atitude compreensiva, a qual supera a situação real de ser sempre um modo de
interpretação, já que não se busca o que o texto diz, mas se segue a direção do
apresentado no texto. Direção que é uma espécie de motor próprio do texto em que
a escritura mesma é uma construção de sentido.
Mesmo sendo um processo de pura interioridade, a leitura, como experiência
estética, assume uma postura dialogal, pois a experiência estética provoca uma
ampliação da sensibilidade que nos prepara para o juízo moral. Nesse sentido,

[…] a hermenêutica reconhece a força da arte em romper e desafiar nossas


expectativas e nos lançar a novos sentidos. Disso decorre um sentido ético,
pois a experiência estética, ao revelar as limitações de nossas expectativas
culturais, abre o horizonte interpretativo para o diferente, o que nos põe
diante de outro modo de compreensão moral (HERMANN, 2010, p. 54).

Essa abertura de horizontes admite a existência de múltiplas interpretações


e adquire aqui um sentido particular, pois não se trata de que haja múltiplas
interpretações devido à arbitrariedade do intérprete, ou devido à falta de um critério
de adequação das interpretações. Ao contrário, a multiplicidade de interpretações é
uma consequência de nossa historicidade. Na tese de Gadamer as palavras do texto
literário falam a partir de si mesmas e conformam um sentido que justifica a
continuidade do discurso, ou seja, são elas mesmas, a partir e além de seu
significado, o sentido do texto. Colocar os autores, os textos, as questões prévias e
nossa subjetividade no círculo hermenêutico nos permite dar sentido e significado às
interações dos diferentes atores do processo pedagógico.
Uma das consequências para a educação do reconhecimento da experiência
estética é "poder levar adiante a reivindicação ética da educação, recuperando a
dimensão ético-estética da experiência humana que nos prepara para a capacidade
de julgar" (HERMANN, 2010, p. 57). Também para Gadamer as decisões éticas
exigem gosto. Aqui o gosto é visto como uma primeira manifestação da socialização
ou da humanização das capacidades de um indivíduo, indicando que esta
102

humanização é parte essencial da formação e por isso pode caracterizar-se como


um processo de acesso a um mundo comum.
A compreensão hermenêutica nos processos educativos é visualizada na
aquisição de atitudes de compreensão do outro. Para Gadamer, a compreensão se
concebe e se dá através da linguagem. Isto permite pensar que a escola é um
espaço privilegiado de ação comunicativa centrada na linguagem. No entanto,
justamente aí, a compreensão humana parece não ser alcançada plenamente. Mas
vivemos em uma época em que os fundamentos metafísicos são questionados,
como por Nadja Hermann, quando discute a relação entre ética e estética: "As
normas morais universais, apoiadas na metafísica, resultam em meras abstrações,
incapazes de articular a diferença e a pluralidade. Isso porque, na tradição moderna,
a autoafirmação da subjetividade implica em dominar a diferença" (HERMANN,
2005, p. 12-13). Esse questionamento se reveste de grande importância porque
diminui o caráter dogmático do ensino, associado às certezas, à vigência de uma
razão imóvel, impossível de se discutir.
Quando fala da relação entre ética, estética e educação, Hermann diz que "a
educação, que sempre teve uma vocação inevitável à unidade, em decorrência de
suas bases metafísicas, pode-se beneficiar diante do reconhecimento da pluralidade
de novas configurações de sentido que a estética promove, sem abrir mão dos
princípios éticos que regulam a vida social" (p. 72). Diferente da tradição criticada, a
partir da perspectiva hermenêutica se aceita que existem diferentes formas de
chegar ao conhecimento, não somente a partir do conceito.

4.4 EXPERIÊNCIA ESTÉTICA E FORMAÇÃO

Pensar a formação estética é pensar a formação no campo da experiência


humana mesma, como nos relacionamos com o mundo e que lugar ocupamos nele.
―[...] falar de formação é falar de formação humana em meio a processos
intersubjetivos, em que os sujeitos fazem a experiência de finitude no jogo com a
obra, com o outro, consigo e com o mundo, no mundo. Experienciam-se como
mundo que munda‖ (LAGO, 2014, p. 88).
Segundo Hermann (2010, p. 17):
103

A experiência estética – na medida em que abala nossas convicções


comuns e suspende a normalidade das certezas justificadas – é reivindicada
para uma ampliação da compreensão ética da educação, um modo de
trazer novos elementos para o juízo moral, como alternativa à reflexão ética
exclusivamente racional. Tais experiências de liberação da subjetividade
cumprem um papel formativo do eu.

Podemos destacar as potencialidades pedagógicas da hermenêutica


filosófica, pois entendemos que a partir da perspectiva hermenêutica a atividade
pedagógica responde a uma proposta de retomar a educação sob um enfoque que
contém o saber originário da formação. Na pretensão de oferecer uma alternativa de
autocompreensão viável para a prática educativa, Nadja Hermann fala do significado
da experiência estética para a formação (2010, p. 36), apontando a mesma como
possibilidade de ampliação da nossa compreensão sobre nós mesmos e sobre o
mundo e esclarece o caráter dialogal da experiência estética: ―A experiência estética
tem um caráter dialogal porque reconhece que algo vem à luz como resultado do
enfrentamento do sujeito com a obra de arte. Nesse movimento provocado por
aquilo que é alheio, o outro se interpõe como condição mesmo de compreensão‖
(2010, p. 53-54). O importante para a pedagogia hermenêutica é que estética e
formação não devem ser entendidas de forma separada.
A autora observa, baseada também nos estudos de Gadamer, que o
conceito de formação assume, ao longo de sua trajetória, um significado próximo ao
de cultura e do modo como o homem desenvolve suas disposições e capacidades
naturais. Isso implica que tal conceito tem uma dimensão objetiva e também uma
dimensão subjetiva.
Gadamer elabora seu conceito de formação concluindo que o próprio do
formar-se, da formação como resultado de um processo e elemento em que nos
movemos é o manter-se aberto a outros pontos de vista distintos e mais gerais. Com
isto, nos inteiramos dos aspectos fundamentais da formação.
A formação concerne ao devir do homem. Com efeito, é no conceito de
formação onde mais claramente se faz perceptível a profundidade que tem o
espiritual devir do ser. Gadamer nos insinua a transformação do ser do sujeito a
partir do conhecimento, do desapego e da sensibilidade. A sensibilidade é a
expressão mais aberta do espírito, permite que um sujeito possa maravilhar-se com
as coisas que o rodeiam, com as expressões da arte e da poesia que cria a
harmonia da natureza. Ser sensível é ter o espírito aberto para ver o mundo de outro
104

modo. O caráter é a firmeza do ser que busca sobrepor-se a sua própria condição.
Portanto, a formação nos termos em que este filósofo a apresenta, ultrapassa
qualquer reducionismo e instrumentalização. Ela é a habilidade que adquire o sujeito
ao dotar-se de sentido. Sendo assim, na formação nada desaparece, mas se guarda
a partir do qual o espírito desenvolve níveis de percepção únicos. Este
desenvolvimento leva implícito o tato, o que entende-se como uma determinada
sensibilidade e capacidade de percepção de situações, assim como para o
comportamento diante delas, quando não possuímos a respeito delas nenhum saber
derivado de princípios gerais (cf. GADAMER, 2008, p. 51).
Nosso interesse pelo conceito de formação se aguça quando esta noção
adquire o sentido de acesso à humanidade, pois dentro dessa noção pode-se dizer
que o homem não nasce humano, mas torna-se humano. As reflexões que giram em
torno da formação e da educação evidenciam que o homem necessita formar-se
para se fazer humano.
Segundo Hermann (2010), o conceito de formação, transformado pela
hermenêutica, "implica em reconhecer a capacidade de luta do sujeito em se
autoeducar" (p.120). Assim, a autoformação, característica essencial da pedagogia
hermenêutica, se realiza através de um processo de autointerpretação, sempre
aberto a novas compreensões, revivendo as experiências, através da linguagem,
único meio de compreensão e expressão do mundo.
Mas em que sentido formamos nossos alunos? Gadamer apresenta, na sua
pesquisa sobre o significado da tradição humanista para as ciências do espírito, um
estudo sobre a noção moderna de formação, palavra que no contexto alemão é
traduzida como ―Bildung‖, e que é um dos conceitos básicos do humanismo. ―A
formação é um conceito genuinamente histórico, e é justamente o caráter histórico
da ‗conservação‘ o que importa para a compreensão das ciências do espírito‖ (2008,
p. 47). O termo Bildung designa também a cultura adquirida por um indivíduo, graças
à relação com os conteúdos concretos da tradição histórica de seu entorno.
A partir da perspectiva da Ilustração a formação designa o modo
especificamente humano de dar forma às disposições e capacidades naturais do
homem. A ideia de formação não se refere, portanto, a uma quantidade de
conteúdos, nem a habilidades técnicas que alguém seja capaz de adquirir. Supera o
fomento das disposições e capacidades naturais de uma pessoa, o cultivo de seus
talentos, pois a educação pressupõe um processo de inserção num mundo
105

compartilhado de valores e crenças. Nadja Hermann amplia essa noção dizendo que
"o respeito ao outro, a igualdade, a liberdade são uma herança irrenunciável, e a
educação não se constitui sem essas crenças, o que permite compartilhar um
mundo comum" (2005, p. 74). A formação, assim entendida, é um processo que não
começa do nada e que nunca chega a completar-se, constituindo-se numa constante
tarefa com a qual se aprende a visualizar além da própria particularidade.
Os argumentos para estas reflexões vêm de Gadamer, que destaca que a
ideia de formação (Bildung) é o elemento primordial das ciências humanas no século
XIX. O autor afirma que a formação nunca se acaba, ela é um conceito histórico que
permite a conservação histórica de um modo de compreensão humana. Segundo
sua contribuição, a hermenêutica e a teoria da formação humana (Bildung) se
associaram então e continuam ainda hoje unidas. ―Hoje, a formação está
estreitamente ligada ao conceito de cultura e designa, antes de tudo, a maneira
especificamente humana de aperfeiçoar suas aptidões e faculdades‖ (2008, p. 45). A
formação é considerada um dos conceitos básicos do humanismo porque os
conhecimentos humanísticos contêm verdades que nos transformam ao cultivar-nos
e educar-nos, e esse processo, conforme Gadamer, corresponde ao conceito
hegeliano de elevação à universalidade, a qual "não se reduz à formação teórica
nem significa apenas um comportamento teórico em oposição a um prático" (2008,
p. 47), mas, sim, que acolhe a determinação essencial da racionalidade humana.
Nesse sentido, a essência da formação humana é tornar-se um ser espiritual.
Por isso, Gadamer chega a afirmar, em referência à formação prática
descrita por Hegel, que formação é ―reconciliar-se consigo mesmo e reconhecer-se a
si mesmo no ser-outro‖ (2008, p. 49). Disso se deduz que a formação é um processo
de duplo movimento, formar-se, que significa desdobrar todas as potencialidades em
relação a uma tradição e, também, transformar-se que significa uma volta a si
mesmo a partir do outro. Com a ideia de volta a si mesmo desde o outro, se
pretende reconhecer que toda formação é retorno a si mesmo. ―Reconhecer no
estranho o próprio, familiarizar-se com ele, eis o movimento fundamental do espírito,
cujo ser é apenas o retorno a si mesmo a partir do ser-outro (2008, p. 50). A partir
deste ponto de vista a formação se entende como um processo reflexivo que subjaz
ao relato de um indivíduo singular em que aparece dobrado sobre si mesmo e
contado em dois planos: o plano dos acontecimentos vividos temporal e
comunitariamente e o plano reflexivo dessas vivências pelo qual o indivíduo alcança
106

a plena autocompreensão. Daí que a formação signifique ―[...] o manter-se aberto


para o diferente, para outros pontos de vista mais universais‖ (p. 53). Esta afirmação
de ver ao outro já não como um dado, mas como perturbação do mesmo constitui
um dispositivo de ruptura do egoísmo e de abertura à alteridade. Gadamer dirá que
o conceito de formação tem que ver mais com o processo mesmo que com seu fim
ou objetivo.
Destacamos duas dimensões fundamentais do conceito de formação.
Primeiro a dimensão ontológica de Bildung, onde reconhecemos um momento da
história efeitual num duplo critério: na dimensão constitutiva do pertencimento do
intérprete a sua tradição, porquanto pertencer é formar-se em uma tradição; e no
acontecer mesmo da tradição como um momento que requer uma atitude de
abertura e atenção à voz que me fala a partir da tradição. Bildung é a integração do
passado com o presente como elemento constitutivo do devir.
Clenio Lago (2014, p. 110), em estudo sobre a relação entre estética e
formação, conclui que:

[…] estética e formação sempre estiveram articuladas, mas de formas


diferentes, dependendo da maneira como o homem foi se compreendendo e
respondendo aos desafios da realidade. Por conseguinte, como a estética
compreende a pluralidade de experiências, e a Bildung se baseia na
pluralidade de experiências, as proposições de Gadamer acerca da
dimensão ontológica da obra de arte possibilitam a rearticulação entre
Formação e Estética e, com isso, a atualidade da Bildung.

O conceito formação, assim como vimos tratando, aborda a relação


intersubjetiva entre educador e educando com relação a um conteúdo cultural. Por
isso a formação implica a apropriação da cultura. O conceito de formação subsume
o de educação, visto que educação é uma espécie de formação e não toda
formação.
A relação que se estabelece entre formação e experiência é que para
escutar é preciso que o outro diga algo, e para dizer algo é preciso fazer a
experiência de que não sabemos tudo, isto é, a experiência da finitude. Também
estar disposto, por um lado, a escutar algo ou alguém a quem atribuímos uma
perspectiva mais ampla e, por outro lado, estar disposto a escutar coisas com as
quais não se está necessariamente de acordo. A isto Gadamer chama abertura,
abertura que se alcança pela formação. Por isso, a formação é formar-se.
107

O resultado da formação consiste nesta abertura, em um estar aberto "para


outros pontos de vista mais universais" (p. 53). Esta é, justamente, a principal
característica que Gadamer extrai do conceito de experiência. Formar-se supõe,
portanto, estar aberto a novas experiências. A formação aparece assim menos como
um objeto definido e mais como uma experiência que se dá na linguagem.
Também formação tem a ver com experiência, não no sentido de que quem
é formado sabe tudo, mas de que, apesar de todas as experiências que tenha feito e
de todo o conhecimento adquirido, quem tem experiência sabe estar aberto a novas
experiências, não está preso a um padrão fixo de validade, seus pontos de vista "se
apresentam apenas como ponto de vista de possíveis outros" (GADAMER, 2008, p.
54). O homem formado não apresenta conclusões definitivas ou a última palavra
sobre algum tema dado; assim como a formação é sempre inacabada, o homem
formado não possui regras definitivas ou juízos absolutos. Reconhece que o seu é
um ponto de vista que se desenvolve e se configura tendo em conta outras
perspectivas e seus condicionamentos históricos.
O horizonte de compreensão humana, historicamente determinado, se
amplia em um processo sempre renovado. A formação implica uma distância de si
mesmo para julgar de maneira mais ampla o horizonte sobre o qual o juízo é
realizado. Gadamer concebe o diálogo com o outro como um diálogo que modifica
nosso horizonte de vida atual. Ao compreender o horizonte do passado e dialogar
com ele, ampliamos nosso horizonte e, assim, nossa experiência, por isso "só
através do diálogo é possível aprender‖ (GADAMER, 2000, p. 10). Essa afirmação
revela uma compreensão hermenêutica do processo de educar que se realiza por
meio da linguagem.
Nesse sentido, formação é a experiência como capacidade de reflexão sobre
a história mesma do sujeito. Nadja Hermann observa que ―a educação é o lugar do
diálogo‖ (2002, p. 34), visto que o diálogo se constitui na possibilidade de
experimentar nossa singularidade e a experiência do outro com suas objeções ou
sua aprovação. ―Afirmo que la educación es educarse, que la formación es formarse.
Con ello dejo conscientemente al margen los que puedan ser obviamente, los
problemas entre la juventud y sus preceptores, maestros o padres‖ (GADAMER,
2000, p. 1).
108

É em favor de uma abertura da experiência educativa que Hermann (2010)


também destaca a tese gadameriana segundo a qual ―educação é educar-se‖
(p.120), mas para isso é preciso ―apreciar a posição do outro, respeitar as
capacidades e limites do aluno‖ (2002, p. 85). Retomando algumas ideias do
conceito clássico de Bildung, agora transformados pela hermenêutica, a autora
destaca que isso implica em reconhecer a capacidade de luta do sujeito em se
autoeducar, e reconhecer também a liberdade do indivíduo para determinar seu
processo de formação.
Isto significa que o ser só será consciente de sua própria autoeducação e
autoformação na medida em que entenda a liberdade de que goza para decidir que
direção tomar. ―A hermenêutica, na medida em que reconhece uma dimensão
criadora da compreensão, amplia o sentido da educação para além da prevalência
da normatividade técnico-científica, cuja origem se encontra na racionalidade
moderno-instrumental‖ (HERMANN, 2002, p. 83). Agora ela ―é uma racionalidade
que conduz à verdade pelas condições humanas do discurso e da linguagem‖ (p.
83).
A Bildung assim entendida trata seguramente de uma formação e de uma
formação do juízo e do gosto. A intenção de Gadamer é mostrar que a formação do
gosto nos eleva a uma certa universalidade, a uma independência a respeito de
nossa condição histórica e social. ―Os pontos de vista universais para os quais a
pessoa formada se mantém aberta não são um padrão fixo de validade, mas se
apresentam apenas como pontos de vista de possíveis outros‖ (2008, p. 53-54). Isso
importa no sentido de elevação à universalidade como objetivo fundamental da
formação e da educação.
Isso é Bildung, a capacidade de abrir-se a outras perspectivas, mais
universais. Aqui o que importa não é a celebração da particularidade como tal, mas,
sim, o alçar-se além dela e de seus curtos alcances. É o que tem importância para
Gadamer, porque nisso que consiste a Bildung ou o que se poderia chamar a
cultura, ou seja, a cultura ou o domínio de sua particularidade, elevando-se a um
nível mais universal. Trata-se de uma elevação histórica, e também uma elevação
contra sua própria particularidade histórica.
O que ocorre é que a verdade hermenêutica comporta o critério de abertura
que dá sentido ao processo pessoal de formação. Gadamer insiste em que a
educação é educar-se, que a formação é formar-se, porque cada época, sobretudo
109

cada pessoa, a partir de horizontes novos e diferentes, compreenderão sentidos


novos em um processo infinito de interpretações que darão sentido ao seu processo
de formação. Assim, a responsabilidade de nossa educação recai sobre nós
mesmos.
A autoformação faz com que o indivíduo realmente se determine a si mesmo
na totalidade de horizontes de sentido que ele mesmo pode dar à sua vida, assim
como pode dar significados a uma obra de arte. Hermann (2002, p. 88), no entanto,
adverte:

[…] a necessidade de autocompreensão do processo educativo não pode


significar uma pretensão de total transparência. É uma ilusão considerar que
podemos clarear todas as motivações e interesses que subjazem à
experiência pedagógica. A hermenêutica nos mostra que nem tudo aquilo
que é desconhecido é transformado em conhecido, como pretendia o
conceito iluminista de progresso.

Em consequência, a educação implica uma dimensão autoformativa porque


em último termo ―a experiência estética promove a autoformação, na medida em que
possibilita a experiência profunda de si, de quem a realiza, na relação consigo, com
o outro e com o mundo. Acontece dessa forma, por pressupor uma certa abertura e
receptividade de novas ideias, de novas possibilidades‖ (LAGO, 2014, p. 108). A
possibilidade de que a pedagogia contemple o acesso à esteticidade é um dos
pontos relevantes do enfoque hermenêutico. A esteticidade faz referência à
experiência do sujeito frente a um objeto artístico. No transcurso desta experiência o
sujeito não se limita a captar o objeto, mas vai além dos dados objetivos para captar
sua essência. Captar a plenitude do significado da obra que transmite ideias da
experiência vivida pelo sujeito e que lhe permitirá abrir horizontes de sentido sempre
novos. A educação do gosto, a formação da capacidade de saber situar-se
esteticamente, aprender a fazer juízos sensíveis, potencializar a capacidade
imaginativa e fundamentar a compreensão das emoções, formam parte do conjunto
de aprendizagens ligadas à pedagogia hermenêutica. A estética passa a ser a via
preferencial para a abertura de novos horizontes de compreensão. Uma das chaves
da pedagogia hermenêutica radica no intento de reconciliar o eu e o mundo, de
modo que a formação se apresente como um processo de mediação entre o espírito
subjetivo e o espírito objetivo.
110

4.5 FORMAÇÃO COMO TRADUÇÃO DO CONHECIMENTO

Entendemos ser possível associar o processo de formação ao conceito


gadameriano de tradução. A tradução, segundo Gadamer, guarda grande
semelhança com o processo de compreensão, pois é uma forma de mediação, uma
forma de tornar claro o obscuro. Tradução é a passagem para um novo sentido. A
tradução torna algo estranho em algo próprio. Isso implica que, a partir dos
conhecimentos do interlocutor da tradução, ou seja, os conhecimentos com os quais
habita em uma comunidade inserida na tradição, os saberes com base nas suas
próprias experiências são colocados em prática, entrando no círculo hermenêutico.
Ao entrar no círculo hermenêutico acontece um processo de reflexão e, ao ser
tocado por algo, o interlocutor se torna consciente de suas pré-compreensões, as
quais constituem sua vivência. Dessa forma, assume a autoria da aprendizagem ou
do texto produzido na tradução. A partir do caso proposto por Gadamer, podemos
discernir que o problema hermenêutico tem que ver, não com o domínio da língua,
mas sim com o acordo sobre um assunto e tal acordo tem lugar no meio da
linguagem. Esta busca de acordo que se dá na conversação, o atender realmente o
outro, implica validá-lo como interlocutor e desse modo atender e tentar entender o
que disse; só assim, se pode colocar como meta chegar ao acordo sobre a coisa.
Porém, nem todos podem traduzir, pois o tradutor é alguém que dispõe de
um conhecimento profundo da outra língua. O tradutor "não pode simplesmente
transportar o material da língua estrangeira para sua própria língua sem transformar-
se ele próprio no sujeito que diz" (GADAMER, 2011, p. 181). Ao traduzir ele abre o
espaço infinito do dizer que corresponde ao que é dito na língua estrangeira. Isso
porque a tradução não é a reprodução do que foi dito em seu sentido literal, mas do
que o outro quis dizer quando usou essa ou aquela expressão, ou seja, "é uma
transposição mediada entre nosso horizonte e o horizonte do outro" (ROHDEN,
2008, p. 198).
Também Flickinger (2014), em um estudo sobre o conceito de hermenêutica
observa que a mesma tem a ver com tradução, uma vez que é evidente a
associação daquele termo com a figura de Hermes, da antiga mitologia grega, que
deveria traduzir as palavras dos deuses na linguagem profana dos homens.
111

Em sentido originário, a palavra 'traduzir' remete a um movimento; ela


significa transportar algo ou alguém de um lado, por exemplo, de um rio ou
de um território para um outro nem sempre conhecido. Entendido assim, o
trabalho do tradutor realiza-se no movimento entre dois horizontes
diferentes; ele consiste em tornar compreensível para o destinatário o
sentido da mensagem do autor (p. 13).

Entende-se algo quando se é capaz de compreender o sentido do que se há


de interpretar, expressando com palavras próprias, ou seja, traduzindo. Como já
destacamos anteriormente, no ensino e na aprendizagem o entendimento se dá
como aplicação. Ser capaz de traduzir é ser capaz de aplicar e, consequentemente,
de aprender, uma vez que

os aprendizados resultam em conhecimentos que acabam produzindo um


mundo humano comum, constituído de padrões, sempre abertos e passíveis
de modificação, relativamente ao meio natural, no que se refere às relações
dos sujeitos entre si e no que concerne aos modos de ser e de se expressar
dos indivíduos (BOUFLEUER, 2013, p. 89).

Nesta problemática se insere o tema que abordamos: "O ato de traduzir


constitui o cerne da hermenêutica e da literatura" (ROHDEN, 2008, p. 197). Por isso
é que a hermenêutica pode ajudar a recompor a literatura como um fruir da
imaginação. Também Nadja Hermann ao inserir a acepção ‗traduzir‘ traz à tona a
forma especial de tornar compreensível o mundo a partir da hermenêutica,
envolvendo a linguagem nesse processo de tornar mensagens compreensíveis. ―Ao
inserir-se no mundo da linguagem, a hermenêutica renuncia à pretensão de verdade
absoluta e reconhece que pertencemos às coisas ditas, aos discursos, abrindo uma
infinidade de interpretações possíveis‖ (2002, p.24). A tradução nos remete à
possibilidade de entendermos para além dos limites de nossa própria língua.
É por isso que a obra sujeita à apreciação, interpretação do leitor ou
espectador, necessita sumariamente que seu intérprete lhe formule perguntas: ―é
preciso então que nos aprofundemos na essência da pergunta, se quisermos
esclarecer em que consiste o modo peculiar de realização da experiência
hermenêutica‖ (GADAMER, 2008, p. 473).
―A abertura de horizontes que o diálogo possibilita permite a educação fazer
valer a polissemia dos discursos e criar um espaço de compreensão mútua entre os
envolvidos‖ (HERMANN, 2002, p. 95). Na prática pedagógica, os diferentes espaços
socializados e de convivência escolar podem ser o local ideal para recuperar e
112

aperfeiçoar a arte do diálogo entre alunos e professores. A conversa, como


qualidade adquirida pelo ser humano, implica, sobretudo, corroborar e negociar
ideias e pontos de vistas diferentes; coincidir e chegar a acordos de benefício mútuo
mediante o discernimento das ideias.
Numa perspectiva pedagógica podemos dizer que a pergunta tem uma
grande importância e é suscetível de ser aprendida e ensinada. É importante que o
aluno aprenda a formular suas próprias perguntas. Por isso, a arte de perguntar está
sempre presente como recurso pedagógico, como uma possibilidade dinâmica de
abertura ao conhecimento. A pergunta situa-se na natureza do homem, ou seja, em
um modo de ser que se traduz na compreensão originária do lugar que cada ser
humano ocupa no mundo. Gadamer recupera a dialética da pergunta e da resposta
como substrato ontológico e linguístico do discurso, assim, a pergunta pedagógica
pode ser tematizada como um problema hermenêutico.
A literatura em sala de aula não tem outra função que criar um espaço de
diálogo constante entre o mundo do leitor e o mundo do livro, sem obstáculo para
que o leitor viva esteticamente a obra literária como um espaço próprio de
aprendizagem, que lhe permite expressar seu modo de ver e de sentir o mundo. O
texto literário é um texto em processo que necessita, para existir, de um leitor capaz
de criar um discurso ali onde os vazios o exigem, capaz de entrar em diálogo com
outros modos de pensamento para autorreconhecer-se.
Orientada pela intencionalidade da relação educativa, entendemos que a
literatura, por expressar de maneira privilegiada a multivocidade do mundo da vida,
pode proporcionar pontes de conexão como referentes dessa relação, resultando
assim numa coincidência linguística, ou no chamado mundo comum. Tal conexão se
faz necessária para que os elementos não se apresentem dissociados em diferentes
campos, o que inviabilizaria a compreensão e os envolvidos não se afetariam ao
sistema. Deixar-se afetar e permanecer no texto são exigências da leitura literária.
Desta maneira, a literatura obedece à necessidade de consolidar uma
tradição leitora nos estudantes através da geração de processos que levem ao
desenvolvimento do gosto pela literatura, ao prazer de ler poemas, novelas, contos e
outros produtos da criação literária que permitam enriquecer a dimensão humana,
sua visão de mundo através da expressão própria, autônoma, potencializada pela
estética.
113

No processo de educar tomam parte os professores, os alunos, a família, a


instituição educativa, a sociedade. Cada uma destas esferas deve possibilitar um
clima de respeito e tolerância, de autonomia e independência para a educação na
liberdade. Nadja Hermann fala que a tolerância, na teoria clássica da educação,
assume uma dimensão formativa, na medida em que remete para a fundamentação
moderna do ser racional, do sujeito autônomo e da liberdade individual. Citamos a
autora:
A educação não só é orientada pelas ideias de bem e valores que são
considerados válidos no mundo social, como também passa a ser
determinante para que a própria sociedade efetive a ideia de tolerância, por
meio da formação de sujeitos que podem escolher livremente, respeitar os
outros e conviver com a diferença (HERMANN, 2010, p. 153).

Neste sentido é que podemos dizer que a arte gera esta autonomia, já que
por meio da sensibilidade, que vai além dos sentidos, nos é permitido ver a vida
desde outras perspectivas. O ensino da literatura nos leva a encontrar dita
autonomia, já que por meio do que entendemos como sensibilidade, como porta de
entrada das sensações, vamos além do simples conhecimento. Teremos, assim, o
sujeito autônomo, capaz de estabelecer juízos de valor e assumir responsabilidades
pelas suas escolhas.
Consequentemente, depois de apontar ao educando os valores básicos de
nossa tradição, ao professor caberia um exercício hermenêutico de tomada de
distância, para relativizar precisamente nossos valores e pautas morais, tendo claro
que estas pautas e normas são particulares de uma tradição, a nossa tradição, e
que não são universais. A autonomia exige valor porque pede ao sujeito exercer sua
dignidade e, para fazê-lo, tem que eleger prioridades, correr riscos na aventura da
vida.

4.6 O CARÁTER FORMATIVO SUBJACENTE À AÇÃO EDUCATIVA

Em entrevista a Raquel Abi-Sâmara, ao perguntar qual o significado que a


hermenêutica tem hoje em dia, Gadamer responde:

Eu espero que ela signifique um caminho para o pensar. Deve-se pensar


por si mesmo. Não se aprende nada que não tenha sido pensado por si
mesmo. Nisso ajuda. Para isso serve a hermenêutica, uma vez que ela
deixa muita coisa em aberto. É essa a natureza da hermenêutica, pois ela
114

não diz exatamente o que se quer dizer. Ela é assim como toda pergunta:
cada pergunta é um fenômeno hermenêutico. Pois a resposta não é
definitiva. (www.apario.com.br/forumdeutsch/revistas/.../umaconversacomga
damer)

Os fundamentos da hermenêutica nos permitem vislumbrar possíveis


sentidos para a ação educativa que, sendo dialógica, submete à verdade o assunto
em questão, pois ela contém uma racionalidade que conduz à verdade pelas
condições humanas do discurso e da linguagem. Para Ruedell, "as práticas em sala
de aula e todo o atual estado de discussão teórica sobre ensino e aprendizagem tem
em sua base de sustentação uma discussão hermenêutica" (2007, p. 17). Ao
defendermos uma postura pedagógica baseada no diálogo, em que todos os
envolvidos sejam valorizados, ouvidos e respeitados, estamos já optando pela
positividade do conceito de alteridade que, segundo esse autor, é o conceito
fundamental de todo pensamento hermenêutico. A experiência da alteridade é
central no processo de formação. Nessa perspectiva o outro é visto enquanto
passado e também enquanto alteridade cultural.
Gadamer sustenta que o docente deve ser capaz, através de processos
autorreflexivos, de estabelecer críticas a suas interpretações sobre os valores,
crenças e costumes. Assim, a compreensão real das práticas educativas é
desenvolvida, basicamente, pelos próprios docentes envolvidos nos processos de
ensino e aprendizagem. Uma educação amparada pela hermenêutica filosófica vai
ajudar a compreender e a tornar compreensível esse processo.
Com isso chegamos ao que Ruedell chama de "virada metodológica", já que
a busca do diálogo e o reconhecimento da alteridade em sala de aula constituem
uma questão essencialmente hermenêutica.
Essa postura vai repercutir para além da sala de aula, pois "a sala de aula,
na medida em que aí se constrói conhecimento e partilha responsabilidade, é
apenas uma pequena amostra e, certamente, importante ensaio para uma sempre
maior humanização do mundo" (RUEDELL, 2007, p. 35).
Flickinger (2014), em Gadamer & a Educação, ao reconstruir a trajetória
intelectual de Gadamer, sugere que com base no referencial da hermenêutica
filosófica se poderia desenvolver uma teoria pedagógica (p. 65). Estamos, pois,
diante de um outro modo de pensar a educação. O ponto de vista hermenêutico leva
a superar a divisão sujeito objeto, em direção ao reconhecimento de um recíproco
115

pertencimento de sujeito e objeto. Uma prática pedagógica com base na


hermenêutica terá como intento aproximar-se dos assuntos educativos a partir da
compreensão do mundo, a partir do reconhecimento prático das subjetividades, da
cultura e da sociedade, com base na historicidade e nos horizontes linguísticos do
ser humano, com vistas à aplicação, individual e coletiva, mediante o diálogo. Trata-
se de assumir uma pedagogia que Mario Osorio Marques anunciava quando dizia
que
Não basta entendermos a aprendizagem somente a partir de quem
aprende. Importa entendê-la, igualmente, na atuação daquele com quem se
aprende, ambos, o discente e o docente, não relacionados no abstrato e no
vazio, mas situados em lugares sociais específicos, como é a escola, sendo
que a aprendizagem social precede às aprendizagens individuais em que se
concretiza (MARQUES, 2003, p. 216).

Ao professor cabe o questionamento sobre as condições atuais e sobre a


historicidade que dão suporte à tradição pedagógica vigente. A tradição tem a
essência do saber para ser confrontado com o conhecimento do presente.
Necessário é retomar a essência de verdade da tradição com sua autoridade, aberta
e transformadora na educação.

Dá-se, assim, a aprendizagem no quadro de uma intersubjetividade


específica, que supõe sujeitos diferenciados que buscam entenderem-se
sobre si mesmos e sobre seus mundos e, desde situações desiguais,
progridem na direção da igualdade da relação política, em que se
constituem em cidadãos capazes de se conduzirem com a autonomia
exigida com suas corresponsabilidades (MARQUES, 2006, p. 111).

Neste sentido, a relação dialogal da sala de aula revitaliza o encontro com o


outro, que traz consigo o universo de significações que a cultura lhe impôs através
da socialização. Nas propostas pedagógicas em geral se fala sempre de diálogo, o
que, no entanto, parece consistir mais em uma recomendação para os outros do que
propriamente um princípio educativo a seguir. Considerando que um dos
pressupostos básicos do diálogo é que os parceiros se encontrem desde o princípio
abertos à possibilidade de transformação decorrente do mesmo, a questão é
viabilizar essa situação dialógica em sala de aula. Como busca, o diálogo se orienta
ao acordo, seja sobre o interpelado a respeito de um texto, seja a respeito do mundo
da vida referido; enfim, seja acerca do sentido. Na situação dialógica "se torna claro
que o homem que compreende não sabe e nem julga a partir de um simples estar
116

postado frente ao outro sem ser afetado, mas a partir de uma pertença específica
que o une com o outro, de modo que é afetado com ele e pensa com ele‖
(GADAMER, 2008, p. 425). Agora o diálogo é uma exigência na educação.
Ao perguntar cada qual toma posição frente ao horizonte. Isto permite criar
um horizonte comum de linguagem. Este, com efeito, é o primeiro passo para o
diálogo. Cada pergunta abre um horizonte, ou seja, em cada pergunta há alguém
que interpela, porém, a questão formulada descobre ou abre o mundo. Em sua
análise do horizonte, Gadamer (2008) se pergunta: ―Existirão aqui realmente dois
horizontes diferentes, o horizonte onde vive o que compreende e o horizonte
histórico a que este pretende se deslocar?‖ (p. 401). Quando se leem textos que não
são da época e da cultura próprias do leitor, em algum sentido, este se desloca do
horizonte próprio para o horizonte de experiência do outro, ao horizonte do estranho,
ao horizonte de vida do outro.
A incidência do enfoque comunicativo da linguagem, como proposta
metodológica, nos permite entender que a competência literária conforma uma outra
dimensão da comunicação, possível de ser desenvolvida no âmbito escolar.

[...] a linguagem da arte é uma linguagem exigente e interpeladora. A arte


não se oferece livre e indeterminada à interpretação que vem da disposição
de ânimo, mas nos interpela com significados bem determinados. E o que
há de maravilhoso e misterioso na arte é que essa interpretação
determinada não representa um grilhão para nosso ânimo, mas justamente
abre o espaço de jogo da liberdade lúdica de nossa capacidade de
conhecimento (GADAMER, 2008, p. 94).

Essa interpelação constitutiva da linguagem da arte pode ser a motivação


para que se estabeleça em sala de aula um verdadeiro diálogo. Conforme Boufleuer
(2002, p. 81), educar, no paradigma da comunicação

[...] consiste em se inteirar, em pôr-se a par dos


entendimentos/conhecimentos estabelecidos, das razões que os
produziram, dos argumentos que os mantêm como pretensamente válidos.
Mais do que inteirar-se, é inserir-se, como participante e interessado, nos
processos de validação e de refutação dos saberes, na lógica
argumentativa que constitui os diferentes campos de saber. Como se vê,
não há aí propriamente produto final, um conteúdo dado em definitivo e que,
por isso, seja importante ser retido para sempre e a qualquer custo na
memória.
117

O entendimento se dá de forma hermenêutica, e esta pode ser constitutiva


tanto da atividade de leitura de textos como da própria leitura do processo
compreensivo sobre o mundo. Regina Zilberman, ao apresentar os pressupostos da
estética da recepção, que se fundamenta na hermenêutica, sugere dois significados
para a leitura:

Ler assume hoje um significado tanto literal, sendo nesse caso um problema
da escola, quanto metafórico, envolvendo a sociedade que busca encontrar
sua identidade pesquisando as manifestações da cultura. Sob este duplo
enfoque, uma teoria que reflete sobre o leitor, a experiência estética, as
possibilidades de interpretação e, paralelamente, suas repercussões no
ensino e no meio talvez tenha o que transmitir ao estudioso, alargando o
alcance de suas investigações (ZILBERMAN, 1989, p. 06).

Assim, à medida que o leitor procura entender o ponto de vista do outro


realiza um deslocamento a partir de seu próprio ponto de vista ou sua perspectiva
até o horizonte comum; ou de entender o ponto de vista do outro. Este
deslocamento é que permite compreender, viver ou captar o horizonte do outro, o
horizonte em que o outro tem sua perspectiva.
Quando o leitor segue um texto trata de captar a pergunta a que responde o
mesmo; e, quando o leitor capta a pergunta que outro propôs se dá o passo da
compreensão ou a experiência individual da construção de um horizonte comum.
Compreender, pois, é somente ter uma visão própria das coisas, é captar desse
horizonte próprio a visão própria do horizonte do outro, pois horizonte é ―algo no qual
trilhamos nosso caminho e que conosco faz caminho. Os horizontes se deslocam ao
passo de quem caminha‖ (GADAMER, 2008, p. 402).
Apresentamos, assim, a hermenêutica filosófica como um modo de ser que
ultrapassa a sala de aula, assumida aqui como "uma postura que ouve, discerne e
dialoga" (ROHDEN, 2008, p. 51). Decorre daí uma prática educativa em relações
horizontais e com construções coletivas.
É nesse contexto que se insere a pedagogia, agora numa perspectiva
linguística proposta pela hermenêutica filosófica de Gadamer. A originalidade da
pedagogia hermenêutica é destacar a linguisticidade de toda compreensão, porque
esta é um ato linguístico por excelência em e desde a linguagem. A pedagogia,
enquanto ciência da educação, é vista como entendimento compartilhado pelos
interessados em educação, segundo determinada direção política que vincule as
118

práticas educativas a uma segura condução teórica (Cf. MARQUES, 1990, p. 52-3),
tem sido o produto de acordos humanos, próprios de cada tempo. É imprescindível
pensar sobre os processos comunicativos que se geram entre diferentes
interlocutores, com base nas relações intersubjetivas, e suas visões de mundo. Para
a pedagogia, seja em sua concretização teórica, ou na execução prática, a
comunicação é fundamental. Interessa que nos processos pedagógicos todos
tenham a possibilidade de ser e de se manifestar.

Pensar a educação a partir do enfoque hermenêutico é aceitar que existem


diferentes formas de aceder ao conhecimento. A hermenêutica contribui para a
educação, sobretudo, por viabilizar uma autocompreensão da prática pedagógica,
assim como por gerar condições de possibilidade de se produzir novas
interpretações sobre o sentido da formação.
Nessa perspectiva, o conhecimento não é algo que se pode dispor
individualmente, mas que se constrói na comunicação, mediante a comunidade, com
base na tradição e na convivência com os outros. Essa visão rompe com a
individualidade e requer formas de convivência sólidas e comprometidas.
A partir dessas considerações pode-se concluir, baseado em Gadamer, que
o diálogo constitui o caráter hermenêutico da literatura, o que lhe dá sentido. O que
mantém vivo tanto o diálogo como a literatura é um fenômeno hermenêutico
originário, a saber, a direção de sentido fundada na atitude essencialmente pré-
compreensiva do ser humano.
Ao percebermos a importância que outorga a hermenêutica filosófica ao
texto literário para a construção de um novo saber sobre o humano destacamos a
possibilidade de adotarmos uma postura hermenêutica nas nossas atividades,
principalmente de interpretação de textos em sala de aula, abandonando a
pretensão de recriar o significado original do texto, assumindo a tarefa de
―concriação do sentido‖, pois, conforme Boufleuer, interpretar significa
―operacionalizar a estrutura pressupositiva da compreensão‖.
A experiência da compreensão pressupõe a participação em um acordo.
Esse acordo nunca é definido, justificado ou certo. Mas é condição de compreensão.
A possibilidade de que a pedagogia contemple o acesso à esteticidade é um
dos pontos relevantes do enfoque hermenêutico. A esteticidade faz referência à
experiência do sujeito frente a um objeto artístico. No transcurso desta experiência o
119

sujeito não se limita a captar o objeto, mas vai além dos dados objetivos para captar
a plenitude do significado da obra que transmite ideias da experiência vivida e que
lhe permitirá abrir horizontes de sentido sempre novos. A educação do gosto, a
formação da capacidade de saber situar-se esteticamente, aprender a fazer juízos
sensíveis, potencializar a capacidade imaginativa e fundamentar a compreensão das
emoções, formam parte do conjunto de aprendizagens ligadas à pedagogia
hermenêutica.
120

CONCLUSÃO

A partir da hermenêutica perguntamos pela literatura. Essa foi, em poucas


palavras, a atividade de que nos ocupamos nesta tese. Porém, nossas inquietudes
tiveram que atender algumas precisões conceituais e definir o cenário de questões
em um considerável contexto teórico. Assumimos, em primeiro lugar, uma maneira
de pensar a hermenêutica e seu propósito; o que entendemos por ela, como
concebemos sua tarefa frente ao texto e frente à literatura para, logo, a partir de tal
coordenada, inscrever nossa busca frente ao ensino da literatura em particular.
Como professora de Literatura nos perguntamos qual o lugar do seu ensino
na formação das novas gerações, suspeitando de uma certa obsolência sua,
tacitamente assumida pela escola, haja vista a forma como é ministrada.
Ressaltamos que, não obstante os preconceitos que temos em nossa formação
como professores, a hermenêutica corresponde perfeitamente à nossa perspectiva
de projeto de vida, tanto pessoal como profissional, à qual dedicamos grande parte
do esforço em buscar as melhores possibilidades de ensino. Pensamos os
desdobramentos da nossa própria prática por meio das nossas experiências
enquanto acontecimentos que envolvem o ensino da literatura. Ao problematizar a
forma como a literatura é trabalhada na educação básica constatamos que, apesar
da reconhecida importância da literatura e do fácil acesso a ela, temos que
questionar o conhecimento que se tem sobre a mesma no sentido de evidenciar sua
importância para o processo de aprendizagem para a vida. Para isso foi necessário
agregar questões teóricas que fundamentassem com mais consistência a questão
investigada nesta tese.
Abordamos um conjunto de fatores constitutivos da comunicação literária,
considerando que também o professor possui sua experiência estético-literária, fruto
121

do vínculo pessoal com os textos literários; possui saberes acerca da literatura;


saberes acerca da proposta de mediação e um saber prático que põe em jogo esses
três componentes no ato didático. Destacamos, ainda, que o aluno está sujeito às
experiências de leitura e de formação do seu professor, dependendo do lugar que o
professor atribui à leitura de literatura. Por isso a necessidade de um maior
aprofundamento teórico, investigativo e prático na formação dos professores.
Recorrendo à hermenêutica gadameriana, que recupera uma perspectiva em
que a tradição do mundo humano emerge em seus temas fundamentais e que são
concriados pelos sempre novos intérpretes, percebemos que a literatura traz em si
uma pretensão de validade e verdade, elaborada em forma de um diálogo que
procura considerar todos os elementos do texto e chega a um acordo em torno do
sentido que lhe atribui o leitor. Aprendemos com Gadamer que toda atribuição de
sentido tem como base as percepções valorativas dos indivíduos, e essas
percepções são uma mistura de algumas crenças individuais com muitas crenças
socialmente compartilhadas, que formam o pano de fundo de toda interpretação.
Vimos que a hermenêutica filosófica dispõe de uma plêiade de conceitos que
permitiram desenhar algumas pautas de leitura que nos permitem recuperar o
sentido profundamente humano do texto literário. Por outro lado, a hermenêutica
como possibilidade de acesso à comunicação literária, enfocada em todo o processo
comunicativo, pode dar conta da diversidade de interpretações que um texto
alcança, pois busca nas obras mesmas as razões que o texto requer de seu leitor.
Nosso esforço investigativo não apontou para o desenvolvimento de um
método de leitura aplicável a um texto em particular, visto que não pretendemos um
resultado instrumental. Mas intentamos nos ocupar da experiência da leitura que o
texto literário supõe para inscrevê-lo no cenário interpretativo em geral. Na busca de
possíveis respostas às perguntas com que nos interpela o texto literário, e admitindo
ser tocados pela concriatividade da linguagem, realizamos um exercício de leitura,
tomando para tal o romance ―A face do abismo‖ do autor tresmaiense Charles Kiefer.
Consistindo essa leitura em um momento hermenêutico em que nos apropriamos do
significado da obra, verdadeiramente experienciando o texto e seu potencial de
transformação provocado pela conversação estabelecida com o mesmo. Para tanto,
percebemos a impossibilidade de fazê-lo por fora da hermenêutica, que tem se
mostrado viável para a reflexão sobre o tema em pauta, pois com esse referencial
podemos encontrar elementos teóricos que sustentam processos prioritários como o
122

da leitura e da escrita, que têm por base a compreensão, servindo de suporte para
os estudos literários.
A principal contribuição que a hermenêutica filosófica traz para os estudos
da literatura é a recuperação do alcance de verdade da arte. Nesse contexto a arte
já não pode ser entendida como atividade sublimada, mas como verdadeira
experiência humana, como forma de reconhecimento que se aprofunda em nosso
autoconhecimento e em nosso conhecimento do mundo. Por isso a atualidade da
hermenêutica se explica pela possibilidade de reintegração humanística às
atividades literárias. Mas para que possamos adotar uma atitude hermenêutica
frente à obra literária faz-se necessária uma formação que permita perceber o
sentido latente ao fundo dessa obra. Vista assim, a obra constitui uma chave de
interpretação da vida humana, daí seu grande poder formativo, pois põe a manifesto
os sentimentos, desde os mais elementares até os mais inusitados e imprevistos.
Este trabalho de investigação teve como propósito a aproximação ao saber
educativo com base no paradigma hermenêutico. No decorrer desta tese
investigamos as implicações conceituais do pensamento de Gadamer que remetem
à linguagem como condição de possibilidade para o acontecimento da educação. A
pedagogia hermenêutica entende a educação como um processo de formação do
homem desde uma perspectiva geral; não propõe um modelo pedagógico canônico,
mas aberto à vivência e à compreensão dos sujeitos. O funcionamento da
hermenêutica se baseia em elementos como o prejuízo, a tradição e a compreensão.
Por prejuízo se entende aquelas pré-compreensões que tornam possível a
comunicação e o próprio entendimento. A tradição faz referência às raízes históricas
e ao contexto que rodeiam o indivíduo, o qual é descrito pelo autor como a
consciência exposta aos efeitos da história. E a compreensão se relaciona com o
que é denominado círculo hermenêutico.
A partir da complementaridade da pedagogia e da literatura se propõe a
formação da subjetividade. A proposta vai além da transmissão de conteúdos ou de
mudanças de conduta, já que a pretensão é superar o domínio conceitual e aceder a
formas de conhecimento mais sensíveis. Ao abordarmos os pressupostos da
modernidade e suas repercussões na pedagogia atual, apontamos a hermenêutica
como uma perspectiva que oferece à educação e à pedagogia uma abertura de
horizontes a partir da qual se poderia pensar em uma formação menos orientada à
tecnologia e à ciência, e sim a propostas educativas que tendam mais à
123

humanização. Expusemos as formas que a hermenêutica propõe para aceder ao


conhecimento tendo por base a experiência da arte. Aprofundamos o estudo sobre a
arte tomando como experiência estética a literatura, visto que esta proporciona uma
forma diferente de conhecimento na escola.
Como possibilidade de levar à prática a relação complementar entre
pedagogia e literatura propomos trabalhar o texto literário numa perspectiva
hermenêutica, ressaltando os diversos aspectos que conformam a realidade literária,
independentemente da forma genérica que possa assumir. Intentamos configurar um
modo de ensino da literatura em prol da leitura, valorizando o espaço literário,
aquele em que as palavras se determinam não só pelo seu autor, obra, estilo,
escritura, texto e sentido, mas, sim, pela forma de experiência que determinam, visto
que as possibilidades que oferece a literatura vão além do mundo circunstancial e
dos limites impostos numa sala de aula. Ensinar literatura talvez signifique
simplesmente ajudar a que a literatura ingresse na experiência dos alunos, que faça
parte da vivência dos mesmos.
Temos assim uma educação que insere as novas gerações no mundo
humano comum, familiarizando-as ao mesmo tempo em que elas se tornam
protagonistas dos sentidos recriados, com o que a educação cumpre sua tarefa de
conservar a tradição, renovando-a. Se pensarmos a educação a partir das
orientações dadas pela hermenêutica filosófica gadameriana, então ela atuará
justamente nas lacunas que o aluno possui em sua formação.
Nossa tese ressaltou as coincidências fundamentais entre a hermenêutica
filosófica de Gadamer, suas indicações para a possibilidade de uma hermenêutica
literária e para uma prática pedagógica com base em tal hermenêutica, permitindo
sempre novas circularidades.
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