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O segredo

da chuva
Daniel Munduruku
Ilustrações de Marilda Castanha
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chover. Por que seria? Talvez fosse hora de ir falar com o pajé — homem
famoso na comunidade por saber coisas do passado e do futuro.

— Não tenha receio, Kaluhé. São coisas passageiras. Toda criança vai
aprendendo através de perguntas — disse o pajé.
— Eu sei, meu avô, mas com o Lua parece que é diferente. Ele não está
perguntando porque apenas quer saber na cabeça. Pergunta porque quer saber
de verdade, como se faz, para que se faz e quando se faz.
— Então vamos combinar assim: quando ele vier com perguntas outra vez
mande-o vir aqui.
Kaluhé ficou mais tranquilo com as palavras do pajé, mas ainda assim tinha
receio de que Lua quisesse algo mais. “Ele tem apenas nove anos. Como poderá
aprender?”, pensava Kaluhé enquanto caminhava pelo pátio da aldeia.
— Acho que nosso menino vai nos deixar — disse um dia Kaluhé para
Kumalá, sua esposa.
— O que você está dizendo, meu marido?
— Acho que nosso menino vai nos deixar. Ele anda fazendo muitas perguntas
sobre o Espírito da Chuva.
— Também, é só nisso que vocês falam na casa dos homens! Há muito tempo
tenho reparado que os homens estão preocupados com a falta de chuvas em
nossa terra. A plantação está se perdendo toda. Os rios estão cada vez mais
baixos. Já não temos onde encontrar peixe e os animais de caça vão cada vez
mais longe para buscar alimento. Você sabe que as crianças são as primeiras
a sofrer com isso. Vai ver é por isso que o Lua está querendo saber sobre
o Espírito da Chuva.

O inverno é uma época tão boa! Chove muito e as crianças podem se divertir
tomando banho no grande chuveiro celeste. Quanta alegria e diversão!

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“Olhou os pássaros do céu que havia criado com o sopro de suas narinas e deu
risada com eles porque eles se sentiam felizes por serem os guardiões da Mãe-Terra.
“Olhou para os seres da água que havia criado com suas lágrimas e deu risada
com eles porque eles estavam contentes por terem como missão matar a sede
de nossa Mãe-Terra.
“Tudo era uma coisa só. Tudo era harmonia e Deus estava muito contente,
dando muita risada com os seres criados.
“Foi então que, ao andar pela Terra, topou com algo que Ele não se lembrava
de ter criado. Aproximou-se daquela ‘coisa’, uma espécie de coco tucum,
e tocou-a levemente. A semente então se abriu e de dentro dela saíram três
homens que imediatamente correram mundo afora. Por onde passavam iam
deixando um rastro de destruição e morte.
“Deus ficou triste e para proteger a Mãe-Terra da destruição total criou uma
sabedoria comum a todos os seres, permitindo ao homem conhecê-la apenas
se soubesse ouvir cada um dos seres da natureza.”
Dizendo isso, o pajé sentou-se ao lado do menino Lua e soprou sobre sua
cabeça um vento suave.
— Esta é uma história antiga, contada a mim por meu pai, que já a tinha
ouvido do meu avô. Porém, esta não é a história primeira. Esta é a segunda
história que fala da divisão, da destruição. É, ao mesmo tempo, a história de
como Deus nos deu o poder de ouvir e aprender com todas as outras coisas
que Ele criou. Nossa vida depende desta harmonia. Por isso, fiz este ritual
de purificação sobre Lua. Para saber encontrar o Espírito da Chuva, é preciso
ter corpo forte, protegido. Foi isso que eu fiz hoje aqui diante de todos. Trouxe
o espírito da sabedoria para a cabeça de Lua, trouxe força para suas pernas
e harmonia para seu coração. Com sabedoria, coragem e generosidade, ele
chegará longe.
“Agora o menino Lua pode seguir seu caminho em busca do Espírito
da Chuva.”

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sustentado por um cajado, saiu da escuridão. Ele sentou-se numa pedra e olhou
com certa afeição para o trio de guerreiros.
— Vocês já têm as perguntas que eu nunca saberei responder?
— Já temos sim, meu avô — disse Lua. — Temos as questões mais difíceis
que o avô já ouviu e temos certeza de que não saberá responder.
— E o que o leva a pensar assim?
— O sonho que tive esta noite. Descobri que há coisas que ninguém pode
responder, nem mesmo o Criador de Tudo.
— Acho que você está blefando, meu neto. Eu sei tudo, assim como o Criador
também sabe. Acho que você está com medo de permanecer aqui para sempre.
— Para mim seria um grande prazer ficar aqui dominando o tempo como
o avô faz, mas tenho uma missão que vai além de minha vontade pessoal e que
preciso cumprir para o bem do meu povo.
— Você tem um grande coração, Lua. Fiquei muito zangado porque os
seres do planeta não reverenciam mais as obras da criação. Controlei, então,
o tempo e não mais fiz chover sobre a terra com o intuito de aquecê-la e fazer
todos caírem em si. Meu desejo era poder criar tudo de novo e dar uma nova
chance aos espíritos subterrâneos, aqueles que não conseguiram subir pela
corda de algodão.
— Desculpe minha intromissão, meu avô, porém o avô deve saber, pois sabe
tudo, que nem todos os seres da terra são ingratos. É claro que existem os que
não olham para a criação com olhos de reverência, mas penso que isso não é
motivo para punir a todos.
— Pode ser que você tenha razão, meu neto. A vida subterrânea às vezes
nos deixa sem uma percepção verdadeira do que acontece no lado de cima.
De qualquer forma, o desafio está lançado. Você pode ser o responsável por
mais uma chance para este planeta. Meu neto já tem suas perguntas?
— Tenho sim, meu avô. Aqui estão elas — Lua disse isso apontando para
sua cabeça.

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Bate-papo com
Daniel Munduruku
a uto r/ Arq ui v o d a
o do
Daniel cresceu em uma aldeia do povo Munduruku, no estado Ac
erv
e di
t or
a

do Pará. Ele passou boa parte da infância brincando no meio da


floresta e nadando no rio. Quando ainda era criança, foi para
a cidade estudar e, depois de adulto, formou-se em Filosofia.
Também estudou História, Psicologia, Educação e Linguística.
Em sua trajetória, Daniel Munduruku foi professor,
participou de filmes, entre outros tipos de trabalho, mas do
que ele gosta mesmo é de contar histórias. Um dia, resolveu
escrever as histórias que tinha ouvido na aldeia e, assim, começou
sua carreira de escritor. Ele já escreveu 54 livros, para crianças e
Com seus livros, Daniel
adultos, e ganhou vários prêmios. Neste bate-papo, Daniel conta um Munduruku apresenta
pouco sobre a sua infância, como se tornou escritor e como surgiu um pouco da cultura
de povos indígenas
a ideia de escrever O segredo da chuva. brasileiros.

O seu sobrenome é Munduruku?


Munduruku é o nome do povo ao qual pertenço. Quando nasci, recebi um
nome que tem a ver com os seres da natureza. Naquele tempo, a gente
não sabia nada dos outros povos indígenas, por isso não recebíamos um
sobrenome ligado ao nosso povo, mas, sim, à nossa família.
Localização da Terra Indígena Munduruku
Por lá, a gente fala primeiro o nome da família e, depois, o nos estados do Pará e do Amazonas

Banco de imagens/Arquivo da editora


55° O OCEANO
nome pessoal. O meu nome ficaria assim: Kabá Darebu. Kabá é RR
ATLÂNTICO
AP EQUADOR

nome da família e Darebu, o nome pessoal. Quando me tornei Belém
AMAZONAS
escritor, adotei o sobrenome Munduruku para as pessoas me PARÁ MA
PI
CE RN
PB
AC PE
identificarem com o meu povo. RO
TO
SE
AL

MT BA

DF
GO
MG
Você nasceu em uma aldeia? OCEANO
PACÍFICO
ICÓRN IO
MS
SP
RJ
ES

CO DE CAPR
TRÓPI PR
Nasci num hospital na cidade de Belém, no Pará. Minha mãe SC
ESCALA
LEGENDA
RS
estava na cidade quando sentiu as dores do parto e por isso Terra Indígena
Munduruku
0 830
Quilômetros
nasci lá. Mas toda minha primeira infância – até os 7 anos –
Fonte: ISA. Disponível em: https://tedit.
vivi numa aldeia, chamada Maracanã. net/6mv5v9. Acesso em: 25 out. 2021.

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O mundo
ilustrado de
Marilda Castanha
Quando era criança, Marilda Castanha adorava desenhar. A c e r vo p e
ss o al
/ Ar
qu
i vo
Podia ser no papel, no chão e até nos móveis e nas paredes. da
ed

ito
Ela nasceu em Belo Horizonte (MG) e morou em uma casa

ra
com quintal onde havia jabuticabeira, horta, cachorro e
galinheiro. Aos domingos, costumava fazer passeios de
trem para as cidades vizinhas, e as montanhas sempre
estiveram presentes em seu campo de visão.
Ao se tornar adulta, foi estudar na Escola de
Belas-Artes da Universidade Federal de Minas Gerais.
Na faculdade, uma professora pediu a ela a primeira
ilustração. Essa experiência fez com que Marilda tivesse
uma certeza: sua profissão seria de ilustradora. Isso porque Quando desenha, Marilda
gosta de improvisar, de deixar
ela descobriu que ilustrar era o que ela mais gostava de fazer. no papel texturas diferentes,
de quase brincar com tintas
Para Marilda, as ilustrações não precisam retratar as acrílicas e pincéis.
coisas como elas realmente são. Afinal, para isso existe
a fotografia. Em suas obras, ela procura expressar o seu
modo de entender e enxergar as situações. No caso dos
livros que contam histórias por meio de texto, as ilustrações

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L ua é apenas um menino. Mas tem coragem suficiente para enfrentar os
temíveis seres alados e outros perigos. Afinal, é preciso agir sem demora.
Há tempos não cai nenhuma gota do céu. A aldeia, a floresta e todas as
formas de vida estão ameaçadas. Lua e seus companheiros – um macaco,
uma onça e uma capivara – vão atrás de uma solução. Será que eles
descobrirão o segredo da chuva?

E sta aventura às vezes parece um mito indígena, daqueles contados à


beira do fogo desde que o mundo é mundo. Mas, ao contrário de histórias
como essas, que ninguém sabe ao certo quem inventou, O segredo da
chuva tem um autor: o paraense Daniel Munduruku. Há anos vivendo
entre cidades e aldeias, Daniel ajuda indígenas e não indígenas a se
conhecerem melhor. Seu talento é reconhecido internacionalmente.

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