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O corpo frágil do Messias

O ensaio “estética e anestética” de Susan Buck-Morss reconsiderado


As mudanças no modo de exposição ocasionadas pela reprodutibilidade técnica
também podem ser constatadas no plano político. A atual crise da democracia
burguesa está vinculada a uma crise das condições que são decisivas para a
representação dos governantes. As democracias expõem seus governantes de forma
direta, pessoalmente, diante dos seus representantes: o parlamento é o seu público!
Mas, como as novas técnicas permitem que o orador seja ouvido e visto por um
número indefinido de pessoas, essa exposição do político diante da máquina torna-se
mais importante do que aquela anterior. Esvazia-se assim o parlamento, da mesma
forma que as câmeras de filmar esvaziaram os teatros. O rádio e a televisão modificam
não só a função do intérprete profissional, mas também a daqueles que representam a
si próprios diante desses dois veículos de comunicação, como é o caso dos políticos. O
sentido da transformação é semelhante para o artista profissional e para o governante,
apesar da diferença dos seus objetivos específicos. Seu objetivo é expor certos
desempenhos, de modo que possam ser verificados e adotados sob determinadas
condições sociais. Daí resulta uma nova possibilidade de escolha, da qual emergem
como vencedores as estrelas e os ditadores.

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. Trad. Marijane Lisboa. In:
Benjamin e a obra de arte. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012, p. 37.
O fascismo vê sua salvação não em fazer valer o direito das
massas, mas em permitir que elas se manifestem.

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. Trad. Marijane
Lisboa. In: Benjamin e a obra de arte. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012, p. 32.
No que diz respeito às qualificações de Adolf Hitler, os resultados são conhecidos: na
medida em que se entregava como líder, ele não era absolutamente um contraente
destacado das massas por ele conduzidas, mas o seu subordinado e sua essência. Ele
possuía quando queria a ordem imperativa da vilania. Ele não entrou em campo em
função de alguma extraordinariedade, mas por sua inequívoca rudeza e pela
manifestação de sua trivialidade. Se havia alguma coisa de especial nele, isso residia
somente na circunstância de que parecia ter inventado em tudo a sua própria
vulgaridade, como se fosse o primeiro a ter reconhecido na vilania em si um objetivo
que se podia perseguir até o fim. Nesse sentido, a autoconsciência de Hitler de ser a
encarnação de um sentido era adequada ao seu papel histórico na mídia. Nele o
narcisismo vulgar tornou-se próprio para os palcos. O sonho do grande sucesso sem
mérito tornou-se verdadeiro nele e, através dele, para inúmeras pessoas. Por ser capaz
de reunir em si as infâmias sonhadoras dos mais variados grupos, ele provocava
atração nas mais diversas partes. Somente como um meio multivulgar, era capaz de
formar o denominador comum de sua partícula de sequazes. Irmão Hitler estendia a
mão para todos que queriam realizar fatalidades em seu próprio favor

SLOTERDIJK, Peter. O desprezo das massas: ensaio sobre lutas culturas na sociedade
mdoerna. Trad. Claudia Cavalcanti. São Paulo: Estação Liberdade, 2016, p. 31.
(...) como era um delegado horizontal, o ativista, o animador do ódio, o
bem-compreensível vociferante da vizinhança, que se ofereceu como
contêiner das frustrações da massa – ou seja, somente por isso: como
ele não era diferente demais, não superior, não era realmente talentoso,
não era bonito e sobretudo como não agia distintamente, pode estar
certo da concordância de numerosos muitos para as suas rudezas e
petulâncias, para a sua biologia ruidosa e seu grunhido de crueldade e
grandeza (p. 33-34).

SLOTERDIJK, Peter. O desprezo das massas: ensaio sobre lutas culturas na


sociedade mdoerna. Trad. Claudia Cavalcanti. São Paulo: Estação Liberdade, 2016,
p. 33-34.
Há formas de poder, contudo, que vão além dessa “neutralização do poder”. Na
verdade, é o sinal de um poder que o subordinado queira expressamente aquilo
que o poderoso queira, que o subordinado siga ou, até mesmo antecipe, a
vontade do poderoso como sua própria vontade. O subordinado pode
superdimensionar aquilo que de qualquer modo ele faria, tornando-o conteúdo
da vontade do poderoso e com um “sim” enfático, tornar-se poderoso. Desse
modo, o mesmo conteúdo de ação recebe no suporte do poder uma outra
forma na medida em que a ação do poderoso é afirmada ou interiorizada pelo
subordinado como sua própria ação. O poder também é, portanto, um
fenômeno da forma. É decisivo como uma ação é motivada. O que manifesta
que um poder maior esteja em jogo não é o “eu devo, seja como for”, mas o “eu
quero”. Não o “não” interior, mas o “sim” enfático é a resposta a um poder
maior.

HAN, Byung-Chul. O que é poder? Trad. Gabriel Salvi Philipson. Petrópolis: Vozes, 2019,p. 11.
Ao contrário da violência, o poder não exclui a sensação de liberdade.
Ele a produz até conscientemente para se estabilizar. As ideologias ou
narrativas legitimadoras que estabelecem uma relação assimétrica nos
canais da comunicação estariam fixados ainda no âmbito do poder. A
violência nunca é uma narrativa. Com a menor das narrativas que seja
uma tentativa de mediação, já começa o poder

HAN, Byung-Chul. O que é poder? Trad. Gabriel Salvi Philipson. Petrópolis: Vozes, 2019, p.
167.
• O Homem Vitruviano, c.1492, lápis e
tinta sobre papel, Leonardo da Vinci,
Gallerie dell’Accademia, Veneza,
Itália.
Caravaggio, Judite e Holofernes, óleo sobre tela, 144 cm × 195 cm, 1599. Conservada na Galeria Nacional de Arte Antiga, Roma, Itália.
Caravaggio, Judite e Holofernes, óleo sobre tela, 144 cm × 195
cm, 1599. Conservada na Galeria Nacional de Arte Antiga,
Roma, Itália. (detalhe)
• A Dúvida de Tomé, 1599, óleo sobre tela, 107 x 146 cm, Caravaggio, Stiftung Schlösser und Gärten Postdam-
Sanssouci, Postdam, Alemanha
A Dúvida de Tomé, 1599, óleo
sobre tela, 107 x 146 cm,
Caravaggio, Stiftung Schlösser
und Gärten Postdam-Sanssouci,
Postdam, Alemanha. (detalhe)
Caspar David Friedrich, Der Wanderer über dem
Nebelmeer, óleo sobre tela, 94 cm × 74 cm, 1817.
Hamburguer Kunsthalle.
“O ser verdadeiramente autogerado é inteiramente autônomo. Se é que tem
corpo, este deve ser impermeável aos sentidos e, por conseguinte, protegido
do controle externo. Sua potência encontra-se na sua falta de resposta
corporal. Ao abandonar os sentidos, ele abre mão do sexo, é claro. Coisa
curiosa: é precisamente nessa forma castrada que o ser é gerado como
masculino – como se não tendo nada tão embaraçosamente previsível ou
racionalmente incontrolável quanto um pênis sensorialmente sensível, ele
pudesse afirmar com confiança que é o falo. É essa protuberância não
sensorial e anestésica que constitui este artefato: o homem moderno”.

BUCK-MORSS, Susan. Estética e anestética: Uma reconsideração de A obra de arte de


Walter Benjamin. In: Benjamin e a obra de arte. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012, p. 160.
A especialização do trabalho, a racionalização e a integração das funções
sociais criaram um corpo técnico da sociedade, e ele foi imaginado
como tão insensível à dor quanto o corpo do indivíduo sob anestesia
geral, de modo que era possível praticar um sem número de operações
(ou reformas) no corpo social sem necessidade de nos preocuparmos,
com medo de que o paciente – a sociedade em si – “soltasse
deploráveis gritos e gemidos”

BUCK-MORSS, Susan. Estética e anestética: Uma reconsideração de A obra de arte


de Walter Benjamin. In: Benjamin e a obra de arte. Rio de Janeiro: Contraponto,
2012, p. 181-182.
• Narciso. Caravaggio. 1599 – Óleo
sobre tela (110 x 92cm) – Localização:
Galeria Nacional de Arte Antiga, Roma
(Itália).

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