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MEMORIAS DE UMA INFÂNCIA COLETIVA

REINTEGRAÇÃO DE POSSE

Começa uma fumaça um cheiro forte, todos estão caminhando de um lado para o
outro, olhos grilados e punhos cerrados, coração apertado, olhos fitando as luzes
vermelhas. Estou sentada no asfalto olhando para as luzes vermelhas, a minha
sensação é uma mistura de nervosismo e graça, estou junto com outras crianças e
estamos curiosas. As duas luzes vermelhas discutem sobre o asfalto, o que se sabe é
que uma quer jogar mais fumaça e a outra está tentando "negociar". Estamos ali horas
olhando e nada acontece.

DISCO

Quando ela começava era um baile, todos corriam, gritavam e saiam a pregar os
barracos, colocar lona nos buracos, buscar lenha, recolher as roupas, chamar as
crianças numa tentativa perdida de fazer com que elas não se molhassem. A chuva era
um acontecimento, todos corriam para a rua de pés descalços cantando, dançando e
brincando. Quando a chuva acalmava era a hora deles, os discos voadores. A gente se
reunia nos barracos coletivos, todos abriam eles com as mãos e fritava. Lembro que só
um já era suficiente, a gente sentava e comia os discos vendo e sentindo a chuva cair
sobre a lona.

BANHO

No entardecer sobre as casas pretas, uns quantos pequenos e pequenas iam com suas
mães descendo em fila indiana um barranco um rumor de choro e gritos, lembro que
no verão era uma gritaria e gargalhadas e rostinhos brilhando a água era bem
fresquinha. As mães faziam a gente tomar banho rápido, éramos sempre os primeiros.
Era tão bom o cheiro de sabão de soda e a sensação do frescor da tarde caindo sobre a
sanga onde as mães e as crianças tiravam o cansaço do dia, chegar no barraco e tomar
um leite batido bem quentinho.

FOGUEIRA

Ao entardecer a gente se reunia em volta dela um clarão amarelo que exalava o calor
doce e o cheiro de chá. Sobre a fogueira, olhos curiosos, lembro das músicas dos
rostos das pessoas das histórias, do Vulcano, assim que a gente chamava, quando ele
chegava. Todos nós ficávamos muito animados, era o nosso momento da noite, o
brilho nos nossos olhos era quase como o brilho da fogueira. E lá estava ele: enchia a
boca de líquido inflamável, cuspia fogo e só se ouviam os nossos gritos. Aquele fogo
enchia o nosso peito inocente de uma alegria momentânea.
MARCHA

Se eu caminho sobre o asfalto, eu sou parte de construção. Meu suor paira sobre ele.
As pegadas. Os gritos. A imensidão e tudo que eu enxergo são olhos e rostos. Vou até a
frente e sento, fico fitando as fileiras e sobre elas vejo cruzarem, sobre os dois lados do
meu corpo das minhas mãos, assim levanto e abro os meus braços bem no meio, fecho
os olhos e lá no escuro dos olhos fechados, dá para sentir os rumores das vozes, essa
sensação que adoça a boca e aquece o peito. Eu abro os meus olhos e vejo os rostos
cansados e neles tem algo que faz o corpo caminhar a uma paz embaraçosa que é
impossível não sentir um medo-coragem. O sol é quente este calor se reflete na força
daquele momento E nesse instante dá para sentir a multidão e ela está toda ali.
Novamente fecho os meus olhos para que tudo ali fique na minha cabeça. Quero
conseguir guardar de alguma maneira esse momento, para poder visitar várias vezes
durante a minha vida. Sempre quando estou no meio de uma multidão, eu abro os
braços e fecho os meus olhos, na tentativa momentânea de sentir mais e mais uma vez
a sensação de pertencer a um só corpo.

Marcha de livramento a São Gabriel 2006

FLORES

No meu sonho estou em um lugar cheio de flores e rosas. Eu caminho sobre elas, vou
sentindo o cheiro forte que elas exalam, fico horas ali caminhando entre as flores meio
que tonta com o forte cheiro delas. Não consigo dizer quantas vezes já contei este
sonho, hoje eu sei que é uma memória. A minha mente reconstitui o lugar e assim a
memória afetiva entra em cena. O lugar é um lago calmo e convidativo, perto dali tem
uma casa na árvore muitos pés de nozes, embaixo deles foi onde vi o rosto iluminado
de minha mãe, quando anunciaram o lugar onde estaríamos hoje, lembro do momento
que vi seus olhos e seu sorriso, do vento que soprou naquela tarde. Hoje sobre a
soleira da porta onde escrevo, penso em um fragmento do Ferreira Gullar que diz que
somos feitos de carne e de memória.

Acampamento do MST na Chácara das flores São Gabriel 2006

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