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CULTIVAR O HÁBITO DE LER: MISSÃO ÁRDUA DE AVALIAR

MARIA ANGÉLICA DUPAS


srefer@power.ufscar.br

LÍGIA MARIA SILVA E SOUZA


scultura@power.ufscar.br

Departamento de Ação Cultural da BCo


Universidade Federal de São Carlos
Rodovia Washington Luís, km 235
Caixa Postal 676
13565-905 – São Carlos – SP
Brasil

1 INTRODUÇÃO

Desde agosto de 1995, quando a Biblioteca Comunitária da Universidade Federal de


São Carlos – UFSCar foi inaugurada, alguns programas e projetos de atividades culturais,
visando atender principalmente o público de 1º e 2º graus, começaram a ser implementados,
tendo como objetivo primordial, promover o uso do livro e da Biblioteca, de forma atraente,
agradável e eficiente. Até então, nossa Biblioteca era uma típica Biblioteca Universitária,
atendendo as necessidades de ensino e pesquisa, como tantas outras. Com a aprovação de
alguns projetos de extensão, fomos motivadas a extrapolar os limites geográficos da sala de
leitura infantil e abrirmos nossos horizontes, levando o livro e a leitura para praças, escolas,
feiras e principalmente, os postos de saúde.

Nos Postos de Saúde encontramos ambiente e público favoráveis para desenvolver o


Projeto: “ Ler é prazer: se Maomé não vai à montanha...” . Enquanto as crianças aguardam
atendimento médico, para consulta ou vacinas, montamos nosso espaço com colchonetes,
almofadas, uma repleta mochila com livros infantis da melhor qualidade e iniciamos o
trabalho de mediação de leitura. Nessa atividade, onde é realizada a leitura na íntegra do texto,
o livro é manuseado e explorado em todos os seus aspéctos gráficos e artísticos. A
preocupação primordial é disponibilizar o objeto livro como um instrumento lúdico. Os laços
de intimidade, sonho e distração que envolvem os participantes, principalmente as crianças,
permitem que elas esqueçam a febre, o medo, a ansiedade e aguardem, com menos sofrimento
sua vez de serem consultadas.

2 ALGUNS CONCEITOS IMPORTANTES: leitura, hábito de ler, mediação de leitura,


avaliação dos resultados

Em nossa análise, o tratamento dispensado à leitura não se prende a fundamentação


pedagógica exigida na aplicação do texto em sala de aula ou no profundo entendimento dos
processos de decodificação na narração pelo leitor.

2.1 Leitura

A ênfase da leitura oferecida nos Postos de Saúde através do nosso Projeto, procurando
o engajamento em um programa de democratização preconizado por SILVA (1997)
“compreende uma política de leitura, que mobilizando diferentes segmentos sociais, possibilite
a popularização do livro e sua circulação, livre e desimpedida, sobretudo entre os setores mais
carentes da população”.

Queremos que o livro entre para a vida da criança logo cedo, antes da idade escolar, e
que seja integrado ao seu cotidiano e seus brinquedos, não correndo o risco de ser encarado
como objeto de trabalho e, a leitura, como uma tediosa obrigação imposta pelo adulto. Nessas
atividades nos coube o melhor pedaço: a leitura pelo prazer.

A classe bibliotecária tem sido suficientemente criticada pela falta de uma série de
atributos no trabalho com a leitura, principalmente pela falta de projetos concretos e ações que
transformem a realidade social em que estamos inseridos. Ainda, segundo o parecer do Prof.
Ezequiel (SILVA, 1997), a freqüente atitude do “nada posso fazer” deveria ter sido revista e
substituída pelas atitudes “parar para pensar” e do “ agir para transformar”.
2.2 Hábito de Ler

A formação do hábito de ler pode encontrar um paralelo na formação do hábito


alimentar: assim como a criança come o que a família ou grupo consome, levando em
consideração a cultura, o poder aquisitivo, e o tempo disponível no preparo da alimentação, a
criança também só irá formar hábitos de leitura se esses mesmos fatores forem satisfatórios
(cultura, poder aquisitivo e tempo), com o agravante da leitura não constituir insumo básico
para a sobrevivência física. No entanto, a habilidade de ler e entender o mundo e seus códigos
é um dos principais fatores de inclusão social, competitividade e sobrevivência cultural.

A incorporação de um hábito exige repetição freqüente e apresentação precoce do ato,


para que a criança acostume, assimile, aprenda. E com a leitura, o processo é semelhante,
principalmente se considerarmos o imenso prazer da releitura que existe na infância.
(SANDRONI; MACHADO, 1991). Se considerarmos que muitas das crianças frequentadoras
dos Postos de Saúde, não tem oportunidade de acesso ao livro no ambiente doméstico e que a
maioria dos pais não encontra tempo disponível para ler ou contar histórias para seus filhos, a
tentativa de preenchimento dessa lacuna constitui em uma ação concreta, que embora pequena,
contribui para incutir na criança o prazer de ler e possibilita que os objetivos extensionistas da
Biblioteca Comunitária sejam atingidos.

2.3 Mediação de Leitura

Através da mediação de leitura, toda a grandiosidade do texto é preservada. A


tendência de simplificação de palavras difíceis para facilitar o entendimento, que ocorre
durante a narração e contação de histórias, não acontece quando ele é lido na íntegra. A
preocupação do mediador é adequar a obra a ser trabalhada com a idade e interesses do grupo
em que irá atuar.

A mediação de leitura não exige do mediador grandes habilidades artísticas ou dotes


teatrais. Qualquer pessoa que saiba ler adequadamente e goste de trabalhar com
literatura e pessoas (crianças e adultos) pode e deve participar dessa experiência que permite
que a criança possa manusear e ter um contato íntimo com o objeto de seu interesse,
interagindo com as demais e compartilhando as emoções, alegrias e surpresas contidas nos
livros.

“ A rede afetiva que se estabelece entre todos, através dos livros, abre um espaço no
qual cada criança pode expressar-se, ouvir e contar histórias ou ainda ficar em silêncio,
sem a necessidade de produzir conhecimentos específicos. Nessa situação , as crianças,
cada uma de uma maneira, está produzindo conhecimentos, mas não necessariamente
pré-determinados pelo adulto. Ou seja, ela está aumentando seu repertório cultural, seu
imaginário, sua linguagem, está tendo possibilidade de escolha de livros e de parceiros
para a sua leitura e, além disso, pode conhecer outras visões de mundo e estabelecer
relações com sua realidade “ (ABRINQ, 1999, p.6).

2.4 Avaliação dos Resultados

Durante as atividades de mediação de leitura realizadas nos Postos de Saúde, é feita


uma coleta de dados, em formulário sugerido pela ABRINQ, responsável pelo Projeto
Biblioteca Viva, que foi uma das precurssoras dessa modalidade de leitura, no Brasil.
Registro de Trabalho de Campo

Nome da mediadora:
Instituição:
Data:
Faixa etária das crianças:
Número de crianças:
1- Livros escolhidos para o trabalho de hoje:

2- Livros lidos para as crianças:

3- Registre as situações que você considerou mais importantes no dia de hoje, tentando
reproduzir o que as crianças falaram, suas opiniões e reações em relação aos livros e às
atividades propostas.

Em decorrência dessa coleta de dados, constituímos uma rica documentação, reunindo


relatos de adultos e crianças, que contribuem para as discussões da equipe de mediadores, na
troca de experiências e planejamento de atividades futuras.
Queremos destacar alguns aspectos importantes:

2.4.1 A satisfação do público alvo: as crianças

“ Ler histórias para crianças, sempre...sempre...” (ABRAMOVICH, 1994, p. 17).


Levando em consideração que as crianças precisam ouvir histórias sempre, de
diferentes gêneros e autores, manusear o livro e ter contato com suas ilustrações e formatos,
explorando a imagem da obra, que tem linguagem universal, comprovamos em nossas
experiências de mediação, a profunda impressão que a leitura provoca nas crianças. As
histórias lidas permitem que elas se identifiquem com os personagens, aliviem suas emoções e
consigam solucionar muitos problemas psicológicos de forma descontraída e gostosa. Muitas
delas voltam aos Postos de Saúde nos dias programados para leitura, mesmo sem necessidade
de consulta médica, pelo prazer de encontrar a equipe de mediadoras com seus livros. Outras
manifestam desejo de escrever suas próprias histórias. E todas ficam mais calmas e tranqüilas
contribuindo para que o ambiente das salas de espera permaneça sem choro e sem correria.

A magia e atração que as histórias exercem sobre seus ouvintes, contribui para o
desenvolvimento infantil por ser: recreativa, educativa, instrutiva, afetiva (desperta emoções e
valoriza sentimentos), estimula a socialização, desenvolve a atenção e disciplina e ajuda na
recuperação física de crianças enfermas. A prova maior desse benefício é a proliferação de
grupos que oferecem atendimento e contam histórias nos hospitais, promovendo alegria e
consolo.

2.4.2 A satisfação dos acompanhantes e familiares: os adultos

Para muitos acompanhantes das crianças nos Postos de Saúde, essa oportunidade de
leitura tem sido única. Ainda é grande o número de avós analfabetas que se deliciam com a
beleza das obras literárias infantis e aproveitam para ouvir histórias. Sentem-se muito
valorizadas quando enfatizamos a importância das impressões e lembranças que as crianças
guardam da infância: as histórias antes de dormir, os casos que as vovós contam para os
netinhos e que povoam todo o imaginário infantil e que os acompanham durante toda a vida.
Tem sido grande o número de acompanhantes que pegam os livros, e por livre
iniciativa, começam a ler para suas crianças imitando as mediadoras.

2.4.3 A satisfação do pessoal da área de saúde: médicos, enfermeiras e atendentes

Temos registrado inúmeros depoimentos do pessoal da área de saúde dos dois Postos
onde temos trabalhado atualmente e todos os comentários convergem para os benefícios de se
promover a felicidade em situações de dor, doença e conflitos. A leitura, pela praticidade do
uso do livro e pela facilidade de interação que propicia, tem suscitado reconhecimento e
sugestões para futuras ações do grupo, na expectativa de expandir o campo de atuação para
outros Postos da cidade. Isso tem motivado a organização de um grupo de voluntários da
leitura, para ampliação do quadro e atendimento das expectativas de demanda.
2.4.4 A questão qualitativa

Segundo Demo (1991), “ o centro da questão qualitativa é o fenômeno participativo”.


A avaliação qualitativa, pois , deve levar em conta principalmente a qualidade de vida atingida
e o envolvimento dos atores no processo que busca a transformação social. “ Na qualidade não
vale o maior, mas o melhor; não o extenso, mas o intenso; não o violento, mas o envolvente;
não a pressão, mas a impregnação. Qualidade é estilo cultural, mais que tecnológico; artístico,
mais que produtivo; lúdico, mais que eficiente; sábio, mais que científico” (p.24).

A questão dos direitos da cidadania, também uma qualidade indiscutível e difícil de ser
medida é a preocupação constante de todos que possuem uma consciência política
desenvolvida e atenta para ações que busquem promover a dignidade humana e a decência
social estimulando os anseios de melhoria da qualidade de vida.

3 A IMPORTÂNCIA DE SE FORMAR LEITORES

Na luta pela democratização da leitura no Brasil, acreditamos que a formação de novos


leitores é condição básica para que o livro seja definitivamente incorporado à prática comum e
deixe de ser privilégio de poucos.
Conforme salienta Cagneti e Zotz (1986) temos quatro motivos para formar novos
leitores:

3.1 O acesso à leitura deve ser um direito de todos

Pouco adianta o cidadão ser alfabetizado se ele não tiver livros identificados segundo
sua faixa etária e anseios específicos, para poder usufruir do seu direito a ler. Livros antigos,
obsoletos, mal conservados e danificados, localizados a quilômetros de sua residência não
contribuem em nada para que ele se sinta motivado a substituir a leitura por qualquer outra
atividade.
3.2 A leitura é processo de contínuo aprendizado

Alguém acostumado a ler, sabe onde encontrar respostas para suas dúvidas e procurar
se informar e atualizar continuamente. A criança deve compreender que o ciclo de
aprendizagem não termina na escola. Iniciada desde cedo à leitura ela buscará nos livros, com
naturalidade, a fonte para continuar alimentando sua ânsia de acompanhar a dinâmica do
conhecimento humano. Irá usufruir das informações em todos os seus suportes, desde o jornal
até os computacionais, cada vez mais acessíveis. Quanto mais habilitado o indivíduo, menos
barreiras encontrará e menor será o seu grau de exclusão.

3.3 A leitura ajuda a formar seres pensantes

A possibilidade de fazer uso da reflexão e do espírito crítico é um atributo humano que


diferencia o homem dos seres irracionais. Acumular um indivíduo de conhecimentos não
garante seu sucesso ou realização pessoal. A leitura crítica, engajada na realidade social,
isenta de posições estereotipadas, livre de idéias preconceituosas, fornece subsídios para a “
construção ou produção de um outro texto: o texto do próprio leitor” ... “ Acreditamos que a
leitura se constitui na principal dieta nutricional para o crescimento criativo de um indivíduo”
(SILVA, 1997). Ela é a fonte inesgotável de conhecimento para melhor compreender a si
mesmo e o mundo.

3.4 Leitura é lazer

Conhecendo a realidade brasileira e constatando o poderio imenso da televisão, como o


principal instrumento de lazer das classes sociais menos favorecidas, principalmente pelo seu
baixo custo e acesso imediato, a competição com o livro acaba levando desvantagem, mas isso
deve impelir os defensores do livro como fonte de lazer, à ações mais concretas e efetivas.
Lutar por uma política governamental é fundamental, mas conquistar a criança em todas as
oportunidades, apresentando a uma leitura como atividade de lazer é a esperança de
transformar velhos hábitos em novos comportamentos.
Transportar a criança para outros mundos e dar vida aos seus sonhos através da leitura
é contribuir para a formação do hábito de ler. Conseguir realizar essa ação em conjunto com
crianças e adultos, através da leitura em voz alta, mediação em pequenos círculos separados
por idade, enfim praticando a leitura coletiva, tem sido uma atividade que deixa repleto de
prazer todos os participantes.

4 FINALIZANDO

“O amor pelos livros não é coisa que apareça de repente. É preciso ajudar a criança a
descobrir o que eles lhe podem oferecer” (SANDRONI; MACHADO, p. 16).

No favorecimento desse despertar, todos devem estar engajados: a família, a escola, o


governo, as instituições. A importância de se cultivar o hábito de ler, como fator determinante
na formação de cidadãos críticos e atuantes é tão fundamental na transformação de nossa
sociedade que todos deveriam encarar a formação da criança com muito cuidado e atenção.
Segundo a filosofia indígena, é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança. Todos são
convocados para contribuir.

Nós bibliotecários, enquanto categoria profissional de especialistas em livros, em


informação, em sistemas e redes especializadas , em permitir o acesso rápido à informação,
em democratizar o conhecimento, etc e tal... temos ficado de braços cruzados esperando que o
leitor apareça prontinho, ávido por livros e conhecedores de todas as maravilhas tecnológicas
que temos para oferecer.

Oportunamente, descobrimos que o prazer de levar a leitura e plantarmos pequenas


sementes junto ao público infantil menos favorecido, pode de momento, desabrochar apenas
em felicidade, mas já é um bom começo.
5 REFERÊNCIAS

ABRAMOVICH, F. Literatura infantil: gostosuras e bobices. 4. ed. São Paulo: Scipione,


1994.

ABRINQ. Projeto Biblioteca Viva: a mediação de leitura e as crianças. São Paulo, 1999.

CAGNET, S. S. ; ZOTZ, W. Livro que te quero livre . Rio de Janeiro: Nórdica, 1986.

DEMO, P. Avaliação qualitativa. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1991 (Coleção Polêmicas do
Nosso Tempo, 25).

SANDRONI, L. C. ; MACHADO, L. R. (Org.) A criança e o livro: guia prático de estímulo à


leitura. 3. ed. São Paulo: Ática, 1991.

SILVA, E. T. Leitura e realidade brasileira. 5. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1997.

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