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Luana Trindade
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Sumário
Parte 1 Roubado ...................................................................................................................................12
Prólogo ...............................................................................................................................................14
Capítulo 1 Eventualidades ..........................................................................................................15
Capítulo 2 Fagulha ....................................................................................................................... 26
Capítulo 3 Concentração .............................................................................................................. 36
Capítulo 4 O Olhar que Nunca Conheci ................................................................................49
Capítulo 5 Traição.......................................................................................................................... 60
Capítulo 6 Uma Conspiração na Cozinha ............................................................................ 70
Capítulo 7 Vinte e nove anos........................................................................................................81
Capítulo 8 Química ......................................................................................................................... 92
Capítulo 9 Demissão ..................................................................................................................... 100
Capítulo 10 Pomposa .................................................................................................................... 109
Parte 2 Encontrado ........................................................................................................................... 117
Capítulo 11 Coleção de Cadernos .................................... Erro! Indicador não definido.
Capítulo 12 Dezesseis de Junho ...................................... Erro! Indicador não definido.
Capítulo 13 Tradições ......................................................... Erro! Indicador não definido.
Capítulo 14 Coroação .......................................................... Erro! Indicador não definido.
Capítulo 15 Máscaras ........................................................ Erro! Indicador não definido.
Capítulo 16 Recompensa................................................... Erro! Indicador não definido.
Capítulo 17 A Nobre e o Plebeu .................................... Erro! Indicador não definido.
Capítulo 18 Compromisso .................................................. Erro! Indicador não definido.
Capítulo 19 Um segredo pela justiça ............................ Erro! Indicador não definido.
Capítulo 20 Memória Afetiva ...................................... Erro! Indicador não definido.
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dedicatória
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Parte 1
Roubado
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Luana Trindade
Prólogo
3 anos antes
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Capítulo 1
Eventualidades
A respiração calculada me mantinha concentrada no objetivo ... além de
me acalmar, é claro. Sabia que as minhas roupas casuais me fariam passar
despercebida, mas dessa vez o tráfego de pessoas parecia maior e as chances de
ser descoberta eram igualmente preocupantes. Será por você ter escolhido ir ao
principal parque da cidade em pleno domingo? Refleti com sarcasmo.
Fique quieta. Briguei comigo mesma mentalmente.
Além de ter escolhido um horário e local péssimos, parece ter esquecido ser
ruiva, ou seja, chamativa!
Ninguém vai me reconhecer! Mudei muito desde o meu aniversário de
quinze anos, o cabelo não é suficiente para me expor, ainda mais por eu estar de
touca! Pensei ao virar meu rosto na direção da cerca viva, como se eu estivesse
contemplando a vegetação e não tentando passar despercebida entre as pessoas
na calçada.
Manter o legado de sua família é sua responsabilidade como filha única,
caso não se lembre. Seus avós não estão em condições de terem mais filhos e o seu
pai não parece, exatamente, concentrado em encontrar uma esposa. Resumindo,
a permanência da linhagem O’Carroll está, apenas, em suas mãos.
Virei à direita.
Ah, e não se esqueça que sua mãe deu a vida por você.
Mais alguns passos e eu entraria no parque.
Sim, ela deu, mas ... Eu não vou morrer por passear no parque. Então
vamos respirar e manter o foco. Só cometerei um erro se alguém, além da Yarin,
souber que eu estou aqui, então não devo me preocupar.
Ao parar diante do portão de ferro forjado uma pontinha de dúvida
sussurrou em minha mente, mas balancei a cabeça como se o ato extinguisse a
dúvida, respirei fundo e cruzei a entrada, minhas mãos buscando por um refúgio
no fundo dos bolsos do sobretudo.
Fui acolhida pela intensidade do verde imediatamente, além de uma
sensação de liberdade que eu não tinha nos arredores de minha casa. Talvez fosse
a extensão do parque o motivo pelo qual eu me sentisse tão livre ali ou, quem
sabe, o fato de não ter nenhum guarda andando de um lado para o outro para
garantir a minha segurança, mas pessoas normais vivendo suas vidas e ignorando
a de todas as outras pessoas, como a minha. Qualquer que fosse o motivo eu só
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tinha uma certeza: A saudade de estar visitando diferentes lugares para absorver
cada detalhe deles era desoladora. E fora essa saudade que me levou a planejar
com a Yarin uma maneira de sair até ali em segurança.
O parque era repleto de árvores, mas existia uma em especial, no alto de
um morro e com visão para o enorme campo verde, que era onde eu costumava ir
com o Éloy para observar as pessoas sendo, simplesmente, humanas.
Comecei observando uma mãe brincar com seus três filhos, o sorriso dela
radiante enquanto fugia da criança mais alta, até que ela se cansou e voltou para a
toalha onde o marido estava, meu olhar se desviando da cena quando o homem a
recebeu em um abraço seguro e íntimo, com aquela liberdade que os casais
tinham de poder se tocar sem o medo da rejeição, porque um conhecia o outro ao
ponto de saber os limites do companheiro.
Um senhor caminhava de lixo em lixo, organizando cada um daqueles em
que havia um item descartado no lugar errado, como uma garrafa plástica no
orgânico ou uma casca de banana no reciclável, com uma determinação
incansável. Não muito longe dele havia outro senhor, patinando com uma
garotinha, que eu supunha ser sua neta, cada um em seu próprio patins e um
segurando a mão do outro.
Podia ser de se esperar que eu possuísse inveja da rotina comum de
pessoas como as que eu observava, mas o meu único sentimento era o de
gratidão por nenhuma outra pessoa estar em meu lugar, porque eu jamais
confiaria o cuidado de tanta gente nas mãos de qualquer um. A minha herança e o
meu legado eram o dever de cuidar de toda aquela gente com amor, algo que
sempre tive o desejo de honrar. Afinal, era a única vida que fazia sentido para
mim. E isso sempre ficava claro para mim quando eu tinha o privilégio de olhar as
pessoas vivendo.
Me desiquilibrei, mesmo sentada, quando um cachorro agitado veio para
cima de mim querendo brincar, o dono dele aparecendo ao meu lado com o rosto
corado e desesperado.
— Eu sinto muito! — o rapaz de cabelos castanhos se desculpou ao segurar
o cachorro quando voltei a me ajeitar, meu coração desesperado por ter sido
encontrada ali.
Tarde demais. Você foi descoberta e está ferrada.
— Você está bem? — ele quis saber ao se ajoelhar, segurando o cachorro
de uma raça desconhecida para mim. — O Picolé machucou você?
— Estou bem — murmurei com as sobrancelhas franzidas, meus olhos
concentrados nos verdes dele, que não demonstravam nenhum sinal de
conhecimento.
Ele não me reconheceu?
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— Não conheço o meu pai e ... Isso é o que me faz ter certeza de que ele é
o motivo para ela ter saído daqui, mas se ele não me quis era apenas falar, não
precisaria de todo esse mistério. Entende?
— Ela só deveria estar querendo te proteger da verdade — sugeri ao
ponderar nos motivos que levavam uma mulher grávida a abandonar a Irlanda.
Motivos? Isso está mais para motivo.
— Mas essa verdade que você está cogitando é tão óbvia para mim —
murmurou ao deixar o Picolé morder sua mão para brincar, então deixar de ficar
de joelhos para sentar apoiado na árvore. — E eu não me importo de ter sido
abandonado por meu pai.
— Essa não era, exatamente, minha teoria.
— Não? — questionou com o olhar sedento por respostas. — Qual era?
— Talvez seja melhor você abrir seu coração para sua mãe e pedir por
explicações.
— Eu não estaria aqui se ela tivesse feito isso quando tentei conversar com
ela. Então ... Apenas me diga a sua teoria, porque você é irlandesa, conhece as
possibilidades que eu estou longe de descobrir sozinho.
— Posso estar errada e isso só o deixará mais perdido.
— Já estou assim — insistiu.
Você sabe como é estar do lado dele, com infinitas perguntas e nenhuma
resposta para elas. E sabe, principalmente, que uma verdade cruel é melhor do
que o silêncio.
— Talvez você seja uma criança bastarda — comentei com uma voz suave
ao me ajoelhar ao lado dele. — E sua mãe foi embora para permitir que você
vivesse. O Brasil ... Vamos dizer que é uma terra acolhedora para esse tipo de
realidade, por isso que lá é um país tão receptivo e miscigenado.
— Você fala como se realmente fosse uma situação de vida e morte.
— Porque é, Gael. Por mais que o mundo inteiro esteja sob as leis do
Conselho Mundial, nenhum país funciona da mesma maneira.
— Ou seja, se eu for bastardo, eu estou correndo risco de vida por estar
aqui? — quis saber com as sobrancelhas franzidas e o olhar concentrado no
cachorro, que olhava para o dono como se sentisse algo errado no ar.
— Sim. E você não quer saber como as leis podem ser cruéis com crianças
bastardas.
— Eu realmente acho que o Universo desejava ver esse nosso encontro
acontecendo — suspirou ao me olhar em gratidão e temor. — Obrigado por me
contar isso.
— Você voltará para sua casa?
— Não enquanto eu não descobrir a verdade.
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de correr riscos. Afinal, essas eram as consequências de ser a única neta de Colm
O’Carroll: Você aprende a desobedecer sem ser descoberta.
Mas, voltando para a inglesa, eu não poderia dizer que sua bronca me
atingiu sem consequência, eu estaria mentindo se assim afirmasse. A verdade era
que toda a leveza que eu havia sentido por ver um pouco da vida fora do castelo
havia desaparecido junto de minha diversão por ter fugido de lá sem ser vista,
porque a raiva em suas palavras me levou a refletir no fato dela estar se
distanciando de mim nos últimos anos, principalmente depois de eu ter decidido
me afastar da vida pública por tempo indeterminado.
É como se ela fosse a próxima da lista e sair de sua vida. O pensamento
invadiu minha mente sem que eu pedisse por isso.
Foi um alívio e uma paz sentir e ver o carro parar no estacionamento do
palácio, pois o enjoo que eu sentia desde a primeira curva estava me matando.
Apenas desci do carro em gratidão, caminhando até uma das muitas passagens
secretas na frente da Susana, ainda tentando afastar a observação de como
parecia existir algo invisível a afastando de mim.
Eu era familiarizada com aquelas passagens como era com a palma de
minha mão, cada curva sendo conhecida pelo movimento de meu corpo e as
chaves ou alavancas sendo tocadas quase imperceptivelmente por meus dedos.
Não tardou para entrarmos na antessala de meu quarto, a verdadeira Yarin nos
esperando em um dos três sofás do cômodo, que eram elegantemente estofados
em um tecido azul escuro, com o corpo relaxado enquanto limpava as unhas
compridas e pontiagudas distraidamente.
— Vocês duas foram muito inconsequentes — Susana acusou com o
retorno de sua irritação ao ir até a mesa de canto para se servir da água do
bebedouro elétrico, um toque prático da antessala. — Principalmente você, Yarin
... Pelo jeito vinte e nove anos não foram o suficiente para lhe darem juízo.
— Pelo jeito trinta e seis anos foram o suficiente para lhe deixarem
insuportável — Yarin retrucou, o sorriso de provocação dela se intensificando
junto da vermelhidão do rosto pálido e rechonchudo de Susana.
— Yarin, não estou brincando! — vociferou. — Você tem noção que se algo
acontecesse com a Violet seria responsabilidade sua? Como você pôde ter
aceitado ajudar ela a sair daqui sozinha?
— Eu sei que você não está brincando, mas nada iria acontecer com ela —
falou com segurança.
— Não tem como garantir isso!
Eu as observava da saída da passagem enquanto respirava fundo para
diminuir o enjoo e para manter a calma, porque era sempre irritante quando elas
falavam de mim como se eu não estivesse presente.
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Ela arqueou as sobrancelhas, surpresa por eu ter feito algo do tipo, então
arrancou o papel de minha mão quando o tirei de meu bolso.
— Ele era bonito? — perguntou com um sorriso nem um pouco disfarçado.
— Não peguei o número dele pelos motivos que você pegaria.
Expliquei toda a história para ela quando nos sentamos em um dos vários
sofás que ficavam na sacada. Por fim, escutei o resmungo dela, sempre
acompanhado por sinais de sua mão, que significam o mesmo de suas palavras
ditas, apenas em uma língua diferente.
— Entediante, menos a teoria dele ser um bastardo.
Forcei uma risada e observei a Yarin pegar seu celular.
— O que você está fazendo? — indaguei com as sobrancelhas franzidas.
— Salvando o contato dele — e assim ela o fez, se virando em minha
direção com um sorriso envergonhado ao deixar o celular de lado. — Desculpa por
ter contado para a Susana sobre a sua fuga, mas quando eu vi o risco em que você
se encontrava ...
Franzi ainda mais minhas sobrancelhas ao encará-la, confusa por seu
pedido de desculpas. Entretanto, eu não deveria me surpreender, afinal, se existia
alguém que transitava da irresponsabilidade para a responsabilidade em um
piscar de olhos era a Yarin.
— Você não parecia preocupada durante a discussão.
— Nunca irei admitir que errei para ela — explicou ao jogar seu curto
cabelo castanho escuro para trás, momento que sua semelhança com a Kira
causou um grande aperto em meu coração. — Então, o que escrevemos para ele?
— Como eu me passei por você a ideia é continuar com essa mentira,
então você se apresenta e iremos esperar pela resposta dele.
Não muito tempo depois fomos interrompidas por uma batida na porta do
quarto, algo que me fez trocar um olhar desanimado com a Yarin enquanto eu me
levantava para atender.
— O rei solicita a presença de Vossa Alteza em seu aposento — um guarda
sentenciou após uma reverência quando eu abri a porta. — Tanto Sua Majestade
quanto o avô da princesa deseja ter uma audiência com Vossa Alteza.
Droga ... Meu avô só pode ter descoberto sobre minha fuga.
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Capítulo 2
Fagulha
Meu coração bombeava o sangue com tanta velocidade que eu já estava
com calor e sem ar ao entrar no quarto de meu pai. Ele estava de costas, apoiado
no batente da porta da sacada, encarando o céu com uma mistura de azul e cinza,
seus ombros sempre parecendo carregar mais peso do que ele conseguia
suportar.
Ao seu lado estava o general de Leinster e braço direito de meu pai, Éloy,
que eu torcia por não ter sido o responsável em revelar sobre minha fuga ao meu
avô, pois ele sabia que eu havia estado no parque.
Observando os dois, lado a lado, eu só pude reviver alguns de meus
pensamentos mais antigos, que dizia sobre a semelhança entre os dois homens.
Ambos tinham o cabelo grisalho com poucas partes castanhas, o do meu pai quase
chegando em seu ombro e o do Éloy bem curto. Suas estaturas eram semelhantes,
assim como as feições do rosto. E eles não podiam ser tão parecidos de forma
aleatória. Eu tinha uma teoria, mas nunca encontrei nada que afirmasse ela e
muito menos coragem para perguntar. Não por não ter intimidade para fazer a
pergunta para os dois, mas por medo disso causar alguma reação horrível no
terceiro homem que estava ali no quarto.
E ele também era muito parecido com os dois. Na realidade, os dois eram
parecidos com ele.
— Decidimos quem será o seu parceiro na Damsha Oíche, como você havia
nos pedido para fazer — meu avô avisou com os olhos azuis fixos em mim ao
caminhar até uma mesa de canto, onde as bebidas eram sempre cuidadosamente
selecionadas por meu pai.
Meu pai não deveria estar tão tenso. Observei ao fechar a mão em punho.
— Quem será? — perguntei ao alternar meu olhar entre os três homens,
meu avô com uma postura arrogante, o Éloy e meu pai temerosos.
— Lucca Agnew — ele respondeu depois de beber a bebida em apenas um
gole.
— Quando vocês recusaram a minha sugestão de escolher o Dinesh ou o
Kyle como meu parceiro eu esperava que existisse uma razão inteligente! Não
burra! — falei, meu esforço sendo para soar com arrogância no lugar do
desespero.
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Quando for argumentar com seu avô é sempre melhor demonstrar raiva no
lugar do medo, Violet. Só assim ele a levará a sério. Minha avó sempre aconselhou
e eu sempre levei suas observações sobre o meu avô a sério, pois ela nunca estava
errada sobre elas.
— Faz mais de duas décadas que não há coroações na Irlanda, é uma
benção a sua, não de outro herdeiro, estar dando um fim nesta pausa — ele disse
ao se aproximar de mim. — Principalmente em um momento em que as pessoas
começaram a discutir sobre o retorno do Império da Irlanda! Está na hora de
nossa família conquistar o lugar que ela me-
— E vocês acharam que seria sensato escolher o príncipe de pior reputação
para ser o meu parceiro na coroação? — indaguei ao rir com sarcasmo,
novamente lutando contra o medo que parecia prestes a dominar minha alma.
— Não temos culpa se você estragou a nossa relação com um dos reinos
mais importantes do mundo ao dar um fim para um namoro que nem havia
começado com o príncipe Giacomo — justificou com frieza, seus olhos azuis fixos
nos meus. — Ele seria seu parceiro ideal se você tivesse cumprido com o contrato
que vocês oficializariam um relacionamento em seu aniversário de dezesseis anos,
mas voc-
— Não era para ser ele — meu pai interrompeu com uma raiva controlada
ao se aproximar. — E lembre-se de tudo o que eu disse sobre o Lucca ser a escolha
perfeita para isso, pai. Por favor, eu não quero ter essa discussão novamente.
— E esta escolha vale a pena quando minha reputação está em risco? —
perguntei enquanto minha cabeça buscava por algum sentido nas palavras dele.
Como ele pode achar que o Lucca será meu parceiro ideal na dança mais
importante da Irlanda?
Antes que algum deles respondesse, meu pai pediu para os outros dois nos
deixarem sozinhos, algo que meu avô, surpreendentemente, concordou, claro que
sem deixar de observar que eu puxei o maior defeito de minha mãe: a teimosia.
Sem que ele visse, eu sorri diante da observação, pois era sempre maravilhoso
quando alguém me comparava com minha mãe.
Meu pai se aproximou suavemente quando eu cruzei meus braços contra
meu tórax, abaixando seu olhar para meu rosto. Em momentos como esse, em
que sua altura ficava acentuada, eu me sentia uma criança pequena em busca de
abrigo no pai.
— Violet — chamou com carinho ao se aproximar de mim, apertando meu
ombro com cuidado. — Eu sei como tudo o que dizem sobre ele é terrível ... E o
quanto isto a perturba profundamente — sua voz ficou mais baixa e gentil. — Mas
preciso de sua confiança quando eu digo que ele é a melhor escolha e é inocente.
Todos os boatos sobre ele não passam de mentiras.
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— Pai — suspirei ao sentir minha voz vacilar, o aperto dele em meu ombro
me dando confiança para continuar falando. — Até concordo que todos os
argumentos contra ele são vagos, mas se ele fosse inocente já teria sido absolvido
de todas as acusações há mais de um ano e ... Não consigo deixar de pensar que
ele é igual ao Giacomo. Como poderei fazer uma boa apresentação em minha
coroação se ele nunca me deixaria confortável?
— Confia em mim?
— É claro, mas não no Lucca. Isso eu não posso fazer.
— Olha — meu pai respirou fundo ao ajeitar sua coluna, parecendo ficar
ainda mais alto, não de modo intimidante, mas sim protetor. — Conversei com os
pais dele e ... Eles também não gostaram da ideia, pois sabem como sua reputação
é impecável em todo o mundo e que, tendo o Lucca como parceiro, ela correria
riscos. Entretanto, nós precisamos firmar nossa relação com Ulster. Precisamos
nos apoiar neste momento.
— Por quê? Não tem nada de errado acontecendo no mundo, pai.
— Eu prometo que um dia tudo fará sentido — garantiu com os olhos
marejados. — Mas, por enquanto, saiba que os Agnew precisam de nossa ajuda. E,
um dia, nós é quem precisaremos da ajuda deles. Você precisará do apoio dos
Agnew.
— Nós temos tantos aliados fortes, pai — suspirei, começando a me cansar
de sua insistência. — Os Ferronays, Kimura, Gupta ... Os conselheiros me adoram!
Até os MacKenzie, que mesmo nunca tendo os conhecido de verdade, sei que nos
apoiam por causa de minha mãe.
— É diferente, Violet.
— Então me explique. Por favor.
— Você não vai entender ... — murmurou ao dar um passo para trás, seu
olhar se perdendo no cômodo. — Só preciso de sua confiança. Um dia todas as
respostas virão, isso posso lhe garantir.
Grunhi irritada, mas acabei concordando com ele, pois eu sabia não existir
outra opção além de aceitar o Lucca como meu parceiro de dança. Por fim, saí de
seu quarto e caminhei sem rumo pelo corredor, percebendo seus movimentos
suaves e silenciosos de imediato.
— Caminhe ao meu lado, Éloy, não precisa ficar para trás.
— Eu só quero dizer que sei como o Lucca nunca foi seu príncipe favorito,
mas ... Ele não é uma pessoa ruim, Violet — comentou ao me observar de relance.
— Ele pode possuir um comportamento terrível para um herdeiro, mas isso não o
torna ruim. Talvez inconsequente?
— Para mim os Agnew são apenas malcriados — resmunguei ao dar de
ombros. — E imaturos, insuportáveis, orgulhosos e soberbos.
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— Eles nunca fizeram nada contra você para você possuir essa visão.
— E precisavam? Apenas o modo como eles sempre lidaram com a maioria
dos tutores do Conselho me fez possuir essa visão — destaquei com o coração
acelerado pela indignação. — Agora o mundo irá associar tudo isso a mim.
— É realmente provável que sua reputação sofrerá certo ataque, mas não
será para sempre — admitiu ao parar de andar no topo da escada quando íamos
descê-la. — O povo confia em você, Violet. Eles irão confiar que o Lucca é
inocente se você acreditar nele.
— Essa é a parte difícil, Éloy. Você me conhece, sabe que eu não posso
confiar nele de um dia para o outro.
— Ainda bem que você tem um mês inteiro para se aproximar do príncipe
— falou ao sorrir de canto. — Caso ele seja o príncipe dos boatos, diga nas
entrevistas que essa escolha foi tomada para você decidir se os boatos eram ou
não verdadeiros, visto que eles são tão contraditórios. As pessoas verão que você
é uma mulher cautelosa, que gosta de tirar conclusões por você mesma e não por
terceiros.
É um bom ponto, devo admitir.
Ainda mais por ser algo que você faria.
— E caso ele se mostre bom eu devo defendê-lo?
— Tenho certeza de que seu apoio mudaria a vida dele e isso criaria uma
parceria fundamental para o futuro de seu governo, Violet. As pessoas veriam que
há sinceridade no relacionamento de vocês ...
— Espera um momento — pedi ao movimentar minhas mãos, falando com
minha voz e por meio da língua de sinais, um hábito que persistia em momentos
de muita concentração. — Eu não me liguei antes, mas o plano de vocês é de
insinuar uma aproximação romântica entre o Lucca e eu para alimentar a ideia de
tornar a Irlanda um país unificado? Isso é inteligente e me sinto burra por não ter
chegado nessa conclusão antes.
— Não exatamente, mas foi essa justificativa que usamos com seu avô. A
verdade é que seu pai parece mais focado em firmar a aliança entre Ulster e
Leinster, não de modo a arranjar um casamento entre os herdeiros, mas para criar
uma rede de apoio. Rede essa que lhe daria suporte para você ser a imperatriz da
Irlanda. Mas não devo ignorar o fato de que o povo não enxergará dessa maneira,
mas sim como a possibilidade de um casamento entre dois herdeiros irlandeses.
— Então é como se os Agnew estivessem votando em mim para ser
imperatriz? — Me perguntei ao franzir as sobrancelhas. — Éloy, isso não faz
sentido algum. Ninguém, em sã consciência, desejaria colocar outra pessoa como
sua superior sem nem, ao menos, conhecer suas capacidades de liderança.
— Os Agnew parecem confiar em você para essa posição.
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— Claro, eu teria pedido para você conversar com ele de qualquer forma —
falei ao sentar-me no sofá e soltar um longo suspiro. — Não é como se eu pudesse
recomendar algum lugar.
— O que foi? — ela perguntou ao ficar do meu lado, ignorando a situação
com o Gael instantaneamente ao perceber um pequeno sinal de vulnerabilidade
meu.
— O Lucca vai ser o meu parceiro na Damhsa Oíche.
— Sério? — Yarin fez uma careta.
— Infelizmente.
— E quando os ensaios começam?
— Essa noite.
— Tão empolgante — resmungou com sarcasmo.
Assenti ao engolir em seco e encarar a Yarin com relutância.
— Você poderia me acompanhar no ensaio? — perguntei com a voz fraca,
torcendo para ela enxergar as entrelinhas de meu pedido.
— É claro, Violet.
— Obrigada.
— Imagina, gatona.
Ela se levantou e bateu as palmas, de repente animada.
Yarin sendo Yarin.
— Quanto tempo temos?
— Talvez uma hora?
— Perfeito! Vou arrumá-la e então descemos para ficar com as meninas —
ela disse ao segurar minhas mãos e me puxar para poder levantar.
A Yarin passou um óleo de sua marca em meu cabelo e, infelizmente, me
fez trocar a calça e blusa por um vestido de manga longa azul marinho que ficava
na altura da panturrilha. Era um vestido simples, sem detalhes ou outras cores
além do azul como o de meus olhos.
Não demorei para seguir a Yarin quarto à fora quando ela terminou de me
arrumar, até chegarmos nas dependências que ela e as outras compartilhavam
como se fosse um apartamento no andar abaixo do meu quarto, onde havia
quatro suítes com escritórios e um pequeno closet para cada uma, além da sala de
estar que tinha uma parede inteira de vidro que proporcionava uma linda vista
das árvores que ficavam no espaço interno dos muros. Elas não viviam ali, tinham
suas próprias casas e famílias (menos a Yarin, ela morava sozinha no centro da
cidade com suas duas gatas), mas cada uma tinha seu espaço individual para
descansar ou trabalhar.
— Você não deveria estar trabalhando? — Yarin questionou ao encontrar a
Susana sentada em uma poltrona na sala.
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— Fiz uma pequena pausa, minha cabeça já estava doendo com todas as
papeladas com os gastos para a coroação — ela explicou ao cruzar suas pernas. —
E é a Zoe e a Violet que fazem essas perguntas.
— Justo.
— Falando na Zoe, onde ela está? — perguntei.
— No ateliê dela — Dinah respondeu ao apontar com a cabeça na direção
do corredor que levava aos dormitórios enquanto procurava por algo no armário
da sala, mas assim que ela jogou o cabelo castanho ondulado para trás eu soube
que ela desistiu de sua busca. — Vamos lá, eu a estou ajudando hoje.
A Zoe havia transformado o espaço da suíte que seria o seu escritório em
um ateliê encantador. As paredes foram pintadas em um bege delicado, afinal, os
mais variados tecidos que a Zoe possuía eram os responsáveis por trazer cor ao
espaço, seria exagero pintar as paredes com cores fortes.
Na parede em frente à entrada, onde as janelas ficavam, havia uma mesa
comprida com duas máquinas de costura e, na parede à direita, um suporte com
linhas de todas as cores imagináveis. No centro do ateliê se encontrava uma mesa
retangular e, ao lado, o manequim com meu vestido para a coroação se
destacava. Por fim, na parede esquerda, uma estante com todos os materiais
usados na costura tomava conta daquela parte.
— Oi querida, não consegui vê-la o dia inteiro — Zoe cumprimentou ao
abrir seu sorriso tão doce e se afastar do manequim, apenas para me abraçar com
carinho. — Hoje acabei me atrasando por causa de alguns imprevistos com as
crianças e por isso nem tive tempo de ir ver você mais cedo, ainda mais porque eu
trouxe o Dapo e ele está muito mal, então nem estou conseguindo sair daqui do
quarto hoje.
— A Ayo pelo menos foi para a escola sem reclamar? — Yarin indagou
quando a Zoe se afastou e ajeitou meu cabelo com a naturalidade de sempre, o
olhar cansado da segunda deixando claro qual era a resposta.
— Hoje a Ayo ficou mais insistente do que sempre — suspirou com
cansaço. — A desculpa de hoje é que se ela não fosse para a escola poderia ficar
cuidando do Dapo enquanto eu trabalhasse, mas vocês a conhecem e sabem que
ela daria mais trabalho do que o Dapo.
— Zoe, você sabe que quando o Zaki vai para Dundalk com o pai dele as
crianças são bem-vindas aqui — comentei na esperança de apoiá-la. — Somos
uma equipe e tanto.
— Eu sei, querida, mas ela e os meninos estão em semana de provas, se
eles ficassem aqui não iriam estudar e iriam nos atrasar para os preparativos da
coroação. Além disso, meus pais estão cuidando dos três.
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Capítulo 3
Concentração
Assim que eu o vi, meu corpo travou. Eu não deveria ter aceitado tê-
lo como o meu par na Damsha Oíche, porque eu poderia ...
Confie em mim, Violet. Lembrei do pedido de meu pai quando ele
tocou meu braço com suavidade, que foi suficiente para me deixar mais
focada naquela recepção.
O Lucca e eu tínhamos sido “amigos” em nossa infância, assim como
fui de suas gêmeas inseparáveis, Kelly e Sheila, tudo não passando da
conveniência de sermos os herdeiros mais jovens da Irlanda. Porém, chegou
um momento em que me cansei da constante irreverência e falta de
respeito dos trigêmeos Agnew, o que me fez tomar distância deles.
Adolescentes que viviam fazendo brincadeiras humilhantes para as pessoas
mais velhas apenas mostrava o tamanho da imaturidade deles. Então os
boatos surgiram para intensificar meu desgosto pelo príncipe.
— Seja bem-vindo, príncipe Lucca — falei mantendo uma expressão
formal e distante quando ele se levantou apressado do sofá, ajeitando o
terno com movimentos sérios.
— Muito obrigado — agradeceu com um sorriso pouco expressivo,
nada como o sorriso travesso que ele expunha ao mundo sem hesitação. —
É bom vê-la, princesa Violet.
— Digo o mesmo — menti, por educação.
Observar alguém de outro reino depois de três anos era confuso,
principalmente por esse alguém ser o Lucca. Seu cabelo loiro estava mais
curto do que o normal, deixando-o com a aparência muito mais madura do
que eu me lembrava, uma característica que se intensificava com o
cavanhaque bem aparado do príncipe, mas era sempre isso: Aparências. Não
me importava o que ele demonstrava por meio de sua imagem, eu sabia que
tudo aquilo não passava de uma manipulação para ele recuperar sua
reputação de santo, o que não fazia nenhum sentido, pois ele sempre foi o
oposto disso.
— Seja bem-vindo, príncipe — meu pai falou com cordialidade. —
Espero que tenha feito boa viagem.
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Só tive forças para assentir com a cabeça, pois todo restante de meu
corpo lutava para recuperar o fôlego e, também, não deixar explicito que eu
não conseguia respirar.
E não adianta agir como uma mulher forte apenas na frente de seu
avô, faça isso na frente de todos, Violet. Na frente de nossos súditos, de suas
criadas e, principalmente, de nós. Sua família. Era outro conselho de minha
avó que eu seguia em minha vida.
Você só está ansiosa. Respire com calma para recuperar o controle.
Apenas respire.
— Vamos? — Lucca indagou com um tom de voz suave atrás de mim,
no instante seguinte em que eu ajeitei minha postura ao recuperar o ar.
— Vamos — confirmei ao ajeitar a manga de meu vestido com
distração, uma simples ação para me recuperar.
Iniciamos uma caminhada para o primeiro andar, onde o pequeno
salão era encontrado, em silêncio. Entretanto, não tardou para o herdeiro de
Ulster dar um fim à quietude dos corredores.
— A alteza e seu pai foram inteligentes ao me escolherem para ser o
seu par na Damhsa Oíche — Lucca comentou ao dar uma risada relutante.
— Devo corrigi-lo, pois não participei dessa decisão — comentei ao
ajeitar minha postura já ereta. — Meu pai a tomou por mim. Mas tenho que
concordar, ele foi inteligente.
O Lucca engoliu em seco e se concentrou no caminho, minha única
reação sendo a de franzir as sobrancelhas diante de uma ação tão vulnerável
por parte de alguém tão orgulhoso.
— Eu não sabia ... — ele murmurou com pesar.
— Por que você deveria saber de algo?
— Esqueça ... Enfim, aparentemente você chegou na mesma
conclusão que a minha em relação à essa escolha, correto?
Hm ... Alguém que conhece todas as partes de um plano não
precisaria chegar em uma conclusão sobre o objetivo de decisões
importantes. Será que ele não sabia sobre a reunião de seus pais com o meu?
— De que somos herdeiros irlandeses em um cenário onde isto é
visto como a possibilidade de um casamento? — foi o que decidi discutir
com ele. — E não apenas um casamento entre herdeiros, mas a porta para a
formação de um império?
— Exatamente. A única problemática sendo a minha reputação, que
pode, facilmente, comprometer a sua.
— Eu li o documento de todos os seus julgamentos — revelei ao
observá-lo com a máxima atenção que eu poderia oferecer enquanto
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coreógrafos. — Pense mesmo nisso, pois você irá honrar a memória dela e a
de sua mãe ao dançar e isso irá ajudá-la a perder a vergonha. Tenho certeza.
Por mais que eu carregasse um desejo profundo de honrar o nome de
duas mulheres que eu havia perdido, o desespero que me invadiu ao me ver
diante do príncipe Lucca foi mais forte. Me ver tão próxima de um
“desconhecido”, com meu corpo quase colado ao dele, acabou por me
encher de pavor, mesmo que eu tenha imaginado tudo o que poderia vir a
acontecer ao esperar pelo príncipe no corredor.
Os batimentos de meu coração se perderam nos compassos como
mais cedo, a respiração irregular a um ponto de se tornar uma falta de ar e o
suor se intensificando a cada instante. Eu nem poderia dizer possuir
consciência do presente depois que a Deirdre pediu para ficarmos na
posição.
— Posso? — foi a pergunta fraca e inesperada do loiro.
Assenti, mesmo que não tivesse entendido seu pedido de imediato, a
compreensão só veio quando ele colocou suas mãos em minhas costas e a
outra segurou a minha mão, então, com um movimento automático,
coloquei a outra em seu braço.
Ignore a mão dele. Apenas ignore e se concentre na música.
Não aguentei manter o meu olhar em seu rosto, então tentei me
concentrar na gola de sua camiseta, onde logo passei a encarar uma cicatriz
reta em seu pescoço. Ela deveria ter pouco mais de cinco centímetros e
estava muito alinhada, como se tivesse sido proposital.
Se concentre na dança. Pela Kira e por sua mãe.
Iniciamos a primeira parte da dança, que era valsa, sem a música e a
Deirdre nos guiou com suas palavras e interrupções para mostrar como
deveríamos fazer um determinado movimento (Violet, a alteza está um
pouco atrasada ... O giro deve ser desse outro jeito ... Perfeito! ... Se
concentre no tempo, alteza. Um, dois, três, quatro, cinco, seis ... Fiquem mais
próximos ... Concentração, princesa! Concentração!), até ela interromper a
música e voltarmos do início. Minha atenção sendo melhor na segunda vez,
mesmo que eu estivesse suando frio.
Se esforce mais! Você não está fazendo o suficiente, Violet!
Se esforce! Se esforce! Se esforce! Se esforce!
Eu precisava ter controle na frente das pessoas e eu precisava saber
controlar meus sentimentos. Se eu não fizesse isso, iria estragar a noite mais
importante da minha vida e não seria forte como uma rainha deveria ser.
É só uma valsa.
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Capítulo 4
O Olhar que Nunca Conheci
Continuei parada onde estava, prestando mais atenção na saída do Éloy do
que na presença das duas princesas. Entretanto, isso não importou mais quando
Akemi se adiantou, passando seus braços ao meu redor com toda sua força, como
se eu não tivesse me afastado dela nos últimos três anos. Juliette se aproximou
em seguida, seu abraço sendo menos empolgado e, diferente da Akemi, eu sentia
uma mudança entre nós duas.
— Senti sua falta — Akemi suspirou em japonês quando nossos olhos se
encontraram após eu me afastar da Julie, que foi cumprimentar a Zoe, Susana,
Yarin e Dinah.
— Também senti — murmurei na mesma língua com a boca seca ao
relembrar do último momento em sua presença. Era doloroso reviver a memória,
mas a tranquilidade dela me fez sorrir em gratidão, um sentimento ao qual eu
nunca tive a oportunidade de expressar após a noite em que ela me resgatou. —
Você cresceu.
— Isso é uma piada, não é? — indagou, seu sorriso permanecendo a todo
instante.
— Claro que não! — tranquilizei.
— Vocês duas se lembram que ninguém aqui entende vocês, não é? —
Juliette indagou com a expressão séria ao voltar para nosso lado, como se pudesse
iniciar uma briga a qualquer instante. Ao menos isso não havia mudado.
— Tem algo faltando em seu visual — observei em francês quando Akemi
foi cumprimentar as meninas, que continuavam ao redor da mesa da sacada, só
haviam se levantado para abraçar as princesas.
— Meus óculos, imagino? Só optei por lentes hoje.
— E seu cabelo está inteiro castanho. Desistiu das luzes?
— Sim.
Daqui a pouco ela irá brigar com você.
— Certo, agora eu entendo você, Julie — Akemi interrompeu. — Vamos
voltar a falar inglês.
— Vocês parecem as mesmas de sempre, em contrapartida eu vejo como
mudaram ... — suspirei com um sorriso fraco.
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— Eu mudei mesmo, estou engordando tanto que logo mais recebo uma
notificação do Conselho de que minha imagem deve ser proibida por ter deixado
de ser uma referência de saúde.
— Estava demorando para falar algo do tipo — Akemi murmurou ao
respirar fundo, parecendo acostumada com aquela conversa.
— Mas faz parte, não é? O Conselho é bem claro no fato de que precisamos
ser saudáveis se quisermos manter nossa imagem de influentes. Eu não estou
sendo, então só vamos para o fundo do poço de uma vez.
— Você não precisa ser tão carrancuda — murmurei.
— Isso é tudo o que ela tem sido nos últimos meses — Akemi revelou.
— É meu novo charme — Juliette disse ao sorrir, sua expressão séria
voltando no instante em que ela percebeu ter sorrido. — E eu não estou
mentindo. Lembram do Carwyn? Se afastou de tudo depois que começou a
engordar ... Logo será a minha vez.
— Não acho que essa foi a verdadeira razão, mas enfim ... — Akemi
suspirou. — Vocês estão bem?
— Estamos ótimas! — Yarin respondeu rapidamente. — Agora nos conte
sobre as maiores fofocas dos últimos anos, porque o nosso único meio de
informação era o Palácio dos Escândalos e ele não é, exatamente, confiável.
— Pelo amor — Susana resmungou e a Zoe demonstrou o mesmo
desânimo por ver o rumo da conversa.
— Antes de tudo — Juliette interveio. — Por que nós vimos o Lucca lá
embaixo?
— Ah ... Vamos dizer que ele será o meu par na dança — respondi.
— Horrível!
— Nem me fale.
— Não o acho horrível, mas já que estamos falando da dança ... — a
princesa japonesa comentou ao puxar uma cadeira para sentar-se na mesa com as
outras mulheres, Julie fazendo o mesmo. — Você poderia explicar a origem da
Dam ... Não sei falar esse nome.
— Ah não! — Yarin lamentou, Susana agradecendo em silêncio por ver a
conversa longe das fofocas.
— Damsha Oíche — falei bem devagar.
Akemi e Julie, aproveitando a oportunidade, repetiram o nome poucas
vezes até acertarem, então comecei a explicação quando eu e a Julie também nos
sentamos, ignorando o pedido da Yarin para contar as fofocas antes de tudo.
— Quando o império da Irlanda foi dividido entre os reinos de Leinster,
Ulster, Connacht e Munster houve a coroação dos quatro reis e das quatro rainhas
no castelo de Uisnech.
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— Eu não tinha cabeça para isso na época, Julie, mas agora eu sei que
cometi um erro ao me afastar dessa maneira — admiti com a voz fraca, meu peito
e garganta queimando pela culpa. — Me desculpa.
Juliette olhou para a Akemi, parecendo buscar algum tipo de permissão
para me perdoar. A princesa do Japão assentiu, mantendo um olhar firme para a
Julie, que respirou fundo antes de voltar os olhos para mim.
— Não faça mais isso, tudo bem? — perguntou ao secar suas lágrimas.
— Prometo que não irei.
— E sobre o meu término eu tento não pensar muito nisso, porque foram
quatro anos jogados fora — minha amiga suspirou com o olhar perdido.
— Por favor, vamos parar de lamentar sobre nossas vidas e pensar nas
fofocas como se fossemos dondocas antes de termos conversas mais dignas —
Yarin interveio ao olhar para Akemi. — O que você quis dizer sobre não achar o
Lucca horrível?
— Os boatos são mentirosos — disse com tranquilidade.
Zoe e eu trocamos um rápido olhar, ela parecendo relembrar de nossa
conversa do dia anterior assim como eu e se vendo, de repente, interessada nas
fofocas, que o certo era chamar de informações importantes para entendermos o
herdeiro de Ulster.
— Isso não foi confirmado — Julie acrescentou ao ver a expressão no rosto
da Yarin. — A Akemi que se ilude sozinha.
— Os boatos nem fazem sentido! — argumentou. — Se você parasse de se
lamentar por um segundo para ler o único documento disponível do julgamento
dele, veria que não existem provas lógicas para acusá-lo.
— Tiveram testemunhas.
— Você considera o Lars e a Brenna como testemunhas confiáveis?
— Não, mas não é por isso que devemos ignorar tudo o que eles dizem.
— Ainda assim, acredito que seja uma armação.
— E se a princesa não pôde juntar provas, Akemi? — indaguei com meus
olhos atentos nos dela, seu rosto ruborizando imediatamente por entender as
entrelinhas de minhas palavras. — Eu percebi que faltam provas nas acusações,
mas ... Isso pode acontecer. A princesa pode não ter tido a chance de juntá-las.
Eu só preciso de mais detalhes sobre essa história.
— O Lucca nunca faria isso — murmurou ao desviar o olhar.
— Você nem o conhece — Julie relembrou. — E eu acho curioso que a
Kelly, a irmã gêmea dele, considerou as denúncias contra o próprio irmão. Se ela
acreditou, mesmo que por um instante, isso mostra como a possibilidade de ele
abusar qualquer garota é gigante.
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— Você não viu nada, as pessoas lhe contaram isso! Eu estava lá quando a
Kelly começou a gritar com o Giacomo para ele deixar o Lucca em paz, isso não me
parece a atitude de alguém que acredita na possibilidade do irmão ser um ...
Assediador. Principalmente se considerarmos que a Kelly não é do tipo de entrar
em brigas.
— Um momento, de onde o Giacomo surgiu? — Yarin perguntou quando
eu estava para fazer a mesma indagação.
— Ah ... — Akemi disse engolindo em seco. — Ele soube do boato e foi
atrás do Lucca, então começou a bater nele e dizer que tinha nojo de ter ele como
convidado em seu lar, afinal, tudo começou em um evento na Itália.
— E assim o Lucca apanhou do Giacomo duas vezes ... Quase morrendo em
ambas.
— Um momento — pedi ao repassar aqueles relatos. — O Giacomo disse
ter nojo do Lucca? Eles não eram amigos?
Acho que o Lucca deixou essa questão bem clara para você.
Não custava duvidar da palavra dele.
— Chamá-los de amigos é um eufemismo.
Você deveria ter acreditado no príncipe quando ele disse que não era mais
amigo do italiano, Violet.
— Mas o que o Gi-
— E como assim o Lucca quase morreu? — interrompi a Julie antes dela
terminar a pergunta.
— Como você não se lembra? — a francesa quis saber, a Zoe e a Dinah
olhando para ela apreensivamente. — No seu aniversário, quando o Giacomo
pegou uma espada decorativa ... Você realmente não se lembra? Foi literalmente
aqui ...
— Eu ... Eu não tinha ideia dessa briga — murmurei, a boca seca enquanto
alternava o meu olhar entre a Zoe e Dinah, as duas parecendo petrificadas. —
Vocês sabiam sobre essa briga?
— A espada estava sem fio, é um exagero dizer que o Lucca quase morreu
— Akemi interrompeu um pouco ofegante. — Diferente da segunda briga, onde
aquele italiano desprezível cortou o pescoço do Lucca com um canivete que ele
tinha guardado no bolso.
— O que causou essas brigas? — quis saber, minha voz saindo mais fraca
do que eu esperava.
— A minha teoria é que a primeira foi por causa de alguma coisa que o
Giacomo falou da Kelly, considerando a reputação dela na época e que o Lucca é
explosivo quando suas irmãs estão envolvidas — Julie contou ao respirar fundo. —
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E a segunda foi o Giacomo que começou, pois foi no dia em que o Palácio dos
Escândalos expôs o Agnew.
Se havia um fato impossível de negar, era que o Lucca sempre protegia
suas irmãs gêmeas, uma certeza que foi capaz de, estranhamente, me tranquilizar.
— Vocês sabiam sobre essa briga? — voltei a perguntar para as duas
mulheres.
— Sim — Zoe murmurou. — Mas não tivemos muitas informações além de
que a Julie e o Theo os encontraram nos corredores.
— Se não fosse o Theo, o Giacomo teria continuado a bater no Lucca ... —
Julie suspirou com o olhar perdido, sua voz falhando ao dizer o nome do ex.
— Você sabe se aconteceu algo com os Agnew? — Yarin indagou,
parecendo querer tirar o foco no Giacomo ou na briga dele com o Lucca. —
Porque faz um tempo que a Kelly não é o assunto principal do Palácio dos
Escândalos. Além disso, o Lucca está estranho.
— Você acha? — Julie franziu as sobrancelhas. — Ele parecia o mesmo
connard de sempre quando o encontramos lá embaixo.
— Será que o Conselho pediu para ele se afastar dos holofotes? — supus
com esforço para concentrar meus pensamentos na conversa atual.
— Olha, pelo que sei o Lucca e a Kelly não estão próximos, talvez tenha
acontecido uma briga entre os dois e ninguém está sabendo — revelou. — Mas
são apenas boatos.
— E a Sheila? Você sabe dela?
— Se está difícil saber de algo sobre a Kelly, imagina sobre a Sheila.
— E você, Akemi? — perguntei ao observar a minha amiga. — Você está
quieta como sempre fica ao saber de algo.
— É porque eu sei, porém não posso falar por ter feito uma promessa.
— Você protege os Agnew demais, principalmente o Lucca — Julie
reclamou.
— Um dia você vai ver que eu tenho razão sobre eles.
— Vou esperar sentada.
— Eu realmente não sei o que concluir sobre ele — Yarin suspirou ao se
ajeitar na cadeira. — Mas vamos esquecer os Agnew. Existe alguma outra fofoca
para sermos informadas sobre o meio real?
— Com licença, eu vou embora — Susana avisou ao se levantar revirando
os olhos, então realmente partir, algo que Yarin deu de ombros.
— Sempre há — Juliette confirmou antes de narrar um acontecimento
envolvendo conhecidos, história que deixou todas de queixo caído, antes de
iniciarmos debates mais valorosos sobre nossas vidas e a Yarin convidar minhas
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duas amigas para nos fazer companhia em nossos exercícios matinais quando
Akemi mencionou o fato de ser uma grande sedentária.
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para fora do cômodo e, em seguida, até o quarto ao lado, que um dia pertenceu à
minha mãe.
Há uns seis anos, pouco antes da Kira morrer, ela me revelou que o quarto
de minha mãe não tinha sido reformado após a sua morte, ele só havia sido limpo.
Na época fiquei horrorizada e decidi não trocar de quarto ao me tornar uma
rainha, uma decisão mantida até a atualidade. O quarto podia ser muito maior e
mais bem localizado que o meu, mas não me importava com isso, porque nada
mudaria o fato de minha mãe ter sido assassinada nele. Entretanto, isso não
significava que eu nunca entrava nele. Na verdade, eu o visitava até demais.
Ao adentrar o cômodo, meu peito ardeu. Foi uma dor que se espalhou por
todo o meu corpo, como de costume. Para alguns poderia ser estranho o fato de
eu visitar o local em que a minha mãe foi assassinada, mas ... é. Isso não é nem
um pouco normal, porém, existiam momentos em que eu precisava sentir aquele
aperto em minha alma. Era a única maneira conhecida por mim para nunca
esquecer de minha responsabilidade em estar viva.
O quarto tinha paredes brancas com detalhes em gesso e apenas uma
verde escura, a mesma cor das duas poltronas que ficavam em frente à essa
parede e a uma lareira. De acordo com a Kira, a minha mãe era apaixonada pela
cor verde, principalmente o tom esmeralda. Além da parede e das poltronas,
alguns itens e detalhes de decoração também eram verdes, fazendo com que a
cor estivesse presente em todo lado do quarto de maneira harmoniosa.
Após pegar meu colar relicário no formato de um livro, que eu mantinha
escondido em uma gaveta do criado mudo, caminhei com passos lentos até o
espaço entre a cama e o berço que dormi durante o meu primeiro ano de vida. O
local em que a minha mãe soltou seu último suspiro de vida.
Deitei-me no chão, onde ela estava ao morrer, o lugar que ela me beijou
pela última vez e me permiti perder tempo pensando sobre tudo ao apertar o
colar sobre meu coração, porque a única pessoa viva capaz de me encontrar ali
era a que mais respeitava os meus momentos de isolamento. Eu não teria meus
devaneios interrompidos até decidir por isso
Quando criança eu ia até o quarto para chorar pela falta da mulher que eu
nunca poderia conhecer e isso me fazia querer ser capaz de abraçar a Violet
daquela época, dizer que enquanto eu honrasse o legado dela, a memória dela
permaneceria viva. Entretanto, isso era tão impossível quanto ser abraçada por
minha mãe. Tudo o que me restava era permitir que meus pensamentos me
sufocassem, até chegar no ponto em que mais nada existia. Era apenas o vazio
que me possibilitava seguir em frente com as minhas responsabilidades como a
princesa herdeira de Leinster. Era a única maneira pela qual eu conseguia
permanecer forte.
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Aos meus sete anos a Kira descobriu que eu visitava o quarto e alguns
meses depois ela me presentou com o colar relicário, onde tinha espaço para seis
fotos, mas apenas dois lugares haviam sido preenchidos por ela, um terceiro e
quarto escolhidos por mim. A minha primeira escolha foi uma foto minha com
meu pai em meu aniversário de seis anos. A segunda foi uma imagem com a Kira,
Zoe, Susana, Yarin e Dinah, tirada pouco antes do acidente responsável por tirar a
vida da Kira. Com isso sobravam dois espaços vazios que, provavelmente, ficariam
assim por muito tempo ... Talvez para sempre.
Como mencionado, a Kira já havia escolhido duas fotos, ambas sendo de
minha mãe. Uma ela se encontrava sozinha (e deveria ter minha idade) e na outra
eu estava em seus braços, rindo de algo. Na primeira a minha mãe tinha um
sorriso suave, mas real. Seu sorriso não se tornava sincero apenas pela acentuada
elevação do canto de sua boca, mas pela intensidade de seu olhar. Um olhar que
todos que a conheceram me disseram ser único. A Kira o resumia a um olhar cheio
de amor e determinação. De minhas criadas a Dinah foi a única que não a
conheceu, mas as outras sempre descreveram o olhar dela com palavras que
também me faziam lamentar não ter tido a oportunidade de olhar para eles. Doce,
atencioso e verdadeiro. E era o que eu via naquela primeira foto, além de um
brilho que eu nunca consegui decifrar.
Já a segunda foto eu via todo o amor que ela tinha por mim. Era o olhar de
uma mãe extasiada pela risada de sua filha, uma mulher que estava realizando o
desejo de ser mãe e sonhava com tudo que ainda viria pela frente. Infelizmente,
um homem interrompeu seu sonho quando invadiu o quarto dela e a matou.
— Eu precisava tanto de você, mãe — sussurrei ao apertar o colar contra
meu peito com mais força.
Eu precisava conhecê-la. Precisava saber o que ela faria em meu lugar
como rainha. Precisava escutar seus conselhos. Precisava escutar sua voz de
acordo com as diferentes emoções, sua risada, seus choros. Precisava dela para
me apoiar, me consolar, para estar ao meu lado. Acima de tudo, eu precisava ter
memórias dela. Memórias de seu amor por mim.
Mas ela estava morta e eu não tinha nada além de minha imaginação.
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Capítulo 5
Traição
— Violet — uma voz distante chamou repetidamente.
Ao sentir um toque em meu ombro a minha visão ficou focada e eu percebi
ser a Zoe a pessoa misteriosa a me chamar. Diante a preocupação em seu olhar,
afastei qualquer sentimento de vulnerabilidade que eu poderia estar expressando
naquele momento e me sentei.
— O que foi? — perguntei ao respirar fundo e apertar o colar em minha
mão, tomando a razão de volta ao sentar-me.
Que péssimo. Eu deveria ter me distraído muito para chegar ao ponto da
Zoe aparecer ali.
— Está tudo bem? — perguntou ao ajeitar meu cabelo carinhosamente, a
preocupação marcada em seu olhar.
— Está sim — garanti ao bocejar. — Eu só precisava estar em um lugar
diferente para refletir na situação com o Lucca.
— Entendo — Zoe disse com um sorriso doce ao afastar sua mão de meu
cabelo. Não parecia acreditar em minhas palavras, mas não insistiu.
— Aconteceu alguma coisa?
— Você desapareceu por três horas.
Três horas?!
Endireitei a coluna e forcei outra bocejo enquanto pensava em algo para
fazer ou dizer, algo que mostrasse tranquilidade.
— O que perdi de importante nessas três horas?
— Seu ensaio com o Lucca e uma rodada de degustação de entradas para a
coroação — contou suavemente. — Nós também recebemos uma mensagem de
que a Brenna e a Mirella chegaram.
— Ok — suspirei ao me levantar, esticando minhas pernas e alongando
meu corpo antes de começar a andar.
— A Deirdre adiou o ensaio para mais tarde — avisou ao se levantar e me
seguir até a saída do quarto. — E a Dinah e a Yarin foram degustar os pratos com a
Julie e a Akemi, mas fui avisada de que guardaram uma porção para você.
— Posso pegar quando quiser?
Ela assentiu, me observando com atenção. Muito sutilmente, Zoe colocou
sua mão em meu ombro, me fazendo parar na entrada do quarto.
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— Não falei que existe um problema, só falei que vocês são espertos.
— As relações entre Leinster e Ulster sempre foram excelentes, não vejo a
esperteza em dançar com a Violet na coroação dela — Lucca disse dando de
ombros. — É apenas uma dança.
— Nós sabemos que a Damsha Oíche não é apenas uma dança, Agnew.
Principalmente quando a dupla principal é composta por dois herdeiros
irlandeses.
— A coroação é minha, acredito que eu tenha a liberdade de escolher
quem será o meu parceiro — falei ao olhar para os olhos esverdeados da Brenna.
— Sem falar que não estamos nos casando.
— Você sempre foi ambiciosa e apaixonada em fazer jogos políticos,
senhorita perfeitinha, por isso não me surpreenderia se você se casasse apenas
para se tornar a imperatriz da Irlanda ... Nem mesmo se a sua escolha fosse o
idiota protestante do Agnew.
— Que grosseria usar a denominação dele como ofensa! — Mirella
exclamou.
— Fique tranquila, Brenna, eu não me casaria com a Violet por causa da
política — o príncipe de Ulster garantiu, ignorando a ofensa da outra irlandesa. —
Além disso, por que você está se doendo tanto? As pessoas não desejam um
império. Ou desejam e apenas você, senhorita papagaio, sabe disso?
— Bom, seja como for, não acho que a Violet seja burra ao ponto de
escolher um idiota como você apenas por causa da ótima relação entre Leinster e
Ulster — resmungou ao desviar o olhar, pela primeira vez demonstrando
hesitação. — E não sou besta para ignorar que essa parceria pode, muito bem,
iniciar discussões por todo o país.
— Vamos supor que todos seus temores se tornem verdadeiros — comecei
suavemente ao manter uma postura confiante, meus olhos atentos na Brenna. —
Você realmente acredita que eu arriscaria a chance de me tornar imperatriz ao me
aliar com o príncipe mais odiado da Irlanda? Não é mais fácil concluir que eu fiz
essa escolha por saber que meus pais foram próximos dos pais do Lucca no
passado e isso se perdeu após a morte da minha mãe? Realmente o Kyle seria
uma escolha óbvia, mas eu não preciso me aliar a ele para afirmar o que todos
sabem: Que possuo sangue escocês. Agora, escolhendo o Lucca, eu reafirmo uma
parceria há muito esquecida.
— Desse modo parece que você perdoou o que ele fez, Violet. Nenhuma
parceria antiga deveria justificar isso.
— Talvez eu queira tirar minhas próprias conclusões diante de acusadores
tão duvidosos e esta foi a melhor maneira que encontrei para isso. É uma última
chance para manter a amizade com Ulster.
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Capítulo 6
Uma Conspiração na Cozinha
Os ensaios com os outros só iniciou dois dias depois, quando todos já
estavam presentes no palácio. No início eu estava receosa com mais alguma
discussão durante as refeições, mas, de forma surpreendente, todos pareciam
tranquilos. O Lucca só era bem tratado pela Akemi e pelo David, o Dinesh apenas
curioso com a minha escolha de parceiro. Por fim, a Brenna passou a ser menos
arrogante e intrometida, nos dando a chance de ficarmos em um ambiente sem
discussões.
— Existem três etapas da Damsha Oíche — Deirdre começou a dizer. — A
primeira é focada na Violet e no reino dela, vocês só irão entrar na segunda etapa,
onde a coreografia terá a intenção de representar a parceria entre todos vocês.
— E a última etapa será ao amanhecer do dia seguinte — Donald
relembrou sem tirar os olhos de um papel em suas mãos. — Uma coreografia mais
serene.
— Eu amo essa parte da tradição de passarmos a madrugada acordados e
dançando! — Mirella exclamou com um enorme sorriso.
Se alguém, que conhecesse algumas das regras estabelecidas pelo
Conselho Mundial, entrasse no salão naquele momento não iria acreditar que a
Mirella era uma princesa. Ela usava uma calça de moletom cinza e uma camiseta
larga preta. Era um look que me fazia admirá-la, pois ela agia como uma jovem
normal, não estava presa na maturidade que muitos, eu inclusa, se esforçavam
tanto para transmitir. Ela estava sendo a Mirella, uma jovem que estava
aprendendo a ser adulta. Por outro lado, eu e os outros estávamos menos
despojados. Era um resumo de camisetas sociais e vestidos.
— Agora, todos com os seus pares — Donald pediu ao se concentrar em
nós, erguendo os lábios quando seus olhos encontraram a princesa de Munster.
— Esse nanico tem idade para participar da Damsha Oíche? — Brenna
resmungou, revirando os olhos quando o Dinesh se aproximou dela.
A Brenna estava só um pouco melhor.
— Dinesh, por favor — o príncipe indiano pediu com seu gracioso sotaque
ao erguer o queixo, mantendo uma firmeza admirável. — E para a sua informação
eu já tenho quatorze anos, princesa Brenna.
Ao sorrir eu percebi que não era a única fazendo isso, pois o Lucca, que
estava na minha frente, também ergueu seus lábios ao escutar a resposta tão
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confiante do pequeno Dinesh ao encarar a Brenna, que era cinco anos mais velha
e deveria ser trinta centímetros mais alta.
O primeiro ensaio foi divertido, mesmo que vez ou outra a Brenna fazia
críticas para qualquer coisa que estivesse a incomodando. Fosse a temperatura, a
falta de habilidade do Dinesh ou a insistência da Deirdre para repetirmos algumas
partes da coreografia. Resumindo, a Brenna estava sendo a Brenna.
Eu continuei no salão depois que meus colegas e amigas saíram, pois eu
teria o segundo ensaio com o meu pai. Então, depois de uma hora eu fui atrás de
minhas amigas, encontrando-as no corredor, pois as duas haviam acabado de sair
de uma aula com os outros participantes sobre um assunto que eu desconhecia.
As chamei para passarmos o tempo livre em meu quarto, ambas aceitando o
convite com entusiasmo.
Era um alívio a harmonia entre nós três ter voltado ao normal, mesmo que
no fundo eu não me sentisse mais tão pertencente ao grupo, porque suas
conversas já não me soavam tão interessantes, as únicas que eu realmente me
importava eram as que o Lucca era mencionado, pois eu estava buscando por
todas as informações possíveis sobre o príncipe de Ulster e isso não passava de
um caso específico.
— Eu estava dizendo para a Julie o quanto acho desnecessário tratar o
Lucca da forma que todos, Julie inclusa, o estão tratando — Akemi contou. — Ele é
inocente.
— Essa insistência já está me enchendo — Juliette resmungou ao revirar os
olhos. — Aceita logo, ele é só mais um idiota.
— Não é! Você nem o conhece!
— Você está corada — Julie observou com uma careta. — Por favor, não
me diga que você o defende tanto por gostar dele!
E não era mentira da Juliette. Akemi estava com o rosto vermelho, uma cor
que se intensificou depois da suposição de nossa amiga.
— O quê?! Eu não gosto dele! Não da forma que você está pensando.
— Você está corada — repetiu.
Akemi suspirou, pensativa, sem demorar para encontrar uma resposta.
— Igual você fica quando está com o Jordan?
— Não mude de assunto! Estou falando o quão boba você é por perder
tempo defendendo o Lucca! Porque, além de não ter nenhuma prova para
inocentá-lo, ele não fez nada para merecer seu esforço.
— Eu seria boba se não tivesse os meus motivos para acreditar nele! —
Akemi argumentou. — E eu sei de coisas sobre o Lucca que nenhuma de vocês
sabem, por isso o defendo!
— Por exemplo? — incentivei por minha própria curiosidade.
71
Luana Trindade
— Eu prometi para ele que não iria contar nada para ninguém, Violet ... Eu
gostaria muito, mas o Lucca insistiu para manter segredo. O que acho burrice da
parte dele.
— É difícil defender alguém apenas por palavras de terceiros — falei,
calmamente. — O Lucca nunca teve respeito pelas pessoas, como posso duvidar
dos boatos quando ele demonstrou ser assim durante toda a vida?
Da mesma maneira que a Akemi não falou daquela noite para ninguém
além da Zoe, você deveria confiar que ela respeita a privacidade das pessoas. Uma
vozinha irritante dizia em minha cabeça.
É diferente. Todos possuem conhecimento dos boatos do Lucca, então ele
deveria falar a verdade se fosse inocente. Não havia razões para manter um
segredo desses nessa situação. Isso que não faz sentido.
— Fazer pegadinhas é bem diferente de abusar princesas — Akemi
argumentou com a mandíbula tensa. — E ele fazia isso junto das irmãs dele.
— Akemi, o Lucca sempre foi mais parecido com a Kelly do que com a
Sheila, certo? — Akemi assentiu revirando os olhos, como se já soubesse o que
nossa amiga iria dizer. — E a Kelly é uma princesa que fica com qualquer homem
que aparece na frente dela. Talvez o Lucca seja assim, mas um dia ele perdeu a
noção e ... Bom, a princesa em questão o expôs.
— Eu entendo e respeito seu ponto de vista, mas é impossível ele ter
abusado uma princesa.
— Às vezes as pessoas fazem coisas que nunca esperávamos, Akemi — Julie
falou com a voz fraca. — É difícil aceitar isso ...
— Se o Lucca fosse culpado o Conselho já teria o afastado dos direitos dele
como herdeiro, mas faltam provas para isso.
— Ouvi dizer que ele só tem mais um ano para provar a inocência antes da
Kelly se tornar a herdeira.
— Isso é mais pela reputação manchada, não por terem encontrado uma
prova — resmungou.
— E se a Brenna realmente encontrou a princesa que foi vítima dele? Ela
com certeza possui uma parte dentro de si que se preocuparia com o bem-estar
de uma garota inocente ... Ainda mais em um momento tão vulnerável —
sussurrei ao olhá-la com atenção. Talvez ela tenha encontrado a princesa como
você me encontrou há três anos. Queria dizer.
— Se vocês conhecessem o mesmo Lucca que eu conheço ... — murmurou
ao desviar o olhar de mim.
— Está na hora de começar a acordar desse seu sonho, Akemi. Você já é
muito grandinha para acreditar nas palavras de alguém como o Lucca — Juliette
interrompeu irritada, dando um fim no assunto.
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Legado Roubado
Não conversamos sobre o Lucca depois disso, mas eu ainda não sabia no
que deveria pensar sobre ele. Os boatos eram ou não verdadeiros?
— Vamos dar uma volta pelo palácio? — Julie perguntou no meio de uma
conversa sobre um cachorro que eu havia tido em minha infância e precisou ser
dado para outras pessoas por ter causado muitos estragos no palácio.
— É claro — falei ao me levantar animada por irmos fazer algo diferente.
As duas conheciam o castelo há anos, mas elas aceitaram um tour para eu
apresentar cada lugar como se elas nunca tivessem estado ali. Então passamos
por cada sala e, ao chegarmos no final do corredor que beirava o jardim, eu
lembrei qual era o cômodo seguinte.
— Este nós ignoramos — falei rapidamente ao acelerar os meus passos.
— Aqui não era a biblioteca? — Julie perguntou ao acelerar seus passos
para se manter ao meu lado. — Pensei que era o seu lugar favorito ...
— Exatamente. Ele era — murmurei tão baixo que nenhuma das duas
pareceu escutar.
O último espaço para apresentar foi a piscina, um lugar que fez a Juliette
me observar boquiaberta.
— Como eu não sabia da existência dessa piscina?
Dei de ombros e observei a Akemi, que também parecia surpresa com
aquele lugar. Será que eu nunca tinha levado ninguém ali? Na realidade ...
— Eu falei que a água estaria boa, volpicina — ele sussurrou em meu
ouvido ao colocar uma mecha de meu cabelo molhado atrás da orelha.
— E eu falei que não queria ter entrado — resmunguei ao me afastar dele
com dificuldade, pois era difícil nadar enquanto eu usava um vestido pesado.
— Ah, Violet, por favor, não fique brava comigo — pediu com as
sobrancelhas franzidas, se aproximando lentamente de mim. — Só queria ter um
momento divertido com você.
Ao encarar seus olhos castanhos, que pareciam carregar a mesma solidão
do que eu, eu suspirei em derrota.
Ele entende você. Ele sabe como é estar sozinho nessa vida, vivendo apenas
com a inspiração de ancestrais mortos que também estiveram só.
Foi impossível não desejar ter um momento descontraído ao lado dele e,
por isso, iniciei uma guerra de água com o príncipe, meu sorriso se expandindo
quando ele começou a jogar água em mim no meio de nossas risadas.
— Acho que estou me apaixonando por você — ele declarou ao levar meu
corpo para perto do seu ao me segurar pela cintura.
— Não deveríamos estar tão próximos, ainda faltam dois anos para
podermos namorar e ...
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Luana Trindade
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Legado Roubado
até sua execução; Seguindo a ordem dos lugares vinha Lorde Flynn, conselheiro do
desenvolvimento sustentável e meio ambiente; Para o outro lado do Visconde
Blackwood estava Conde Murphy, o representante do povo que conquistou um
lugar na mesa por voto popular; Então havia Conde White, encarregado do
comércio e dos acordos Internacionais. Por fim, sobravam os dois membros mais
populares do Conselho.
Duquesa Moore, sentada ao meu lado, estava envolvida com as relações
internacionais e diplomáticas de Leinster, um cargo ocupado por um membro da
família Moore desde o reinado de meu bisavô. Era uma família de grande estima
na Irlanda, reputação essa que só melhorou quando eles conseguiram uma
cadeira no conselho. E Lisa Moore, a atual duquesa, entrou no conselho no
primeiro ano de reinado de meus pais há vinte e sete anos, sendo os três jovens
quando conseguiram trabalhos de tamanha responsabilidade.
Ao lado do Éloy estava o Marquês O’Neill, administrador das terras de
Leinster, principalmente das fronteiras com os outros reinos. A maior curiosidade
sobre ele era que há mais de trinta anos ele e a esposa descobriram que não
podiam ter filhos, então, durante uma viagem com a Duquesa Moore para a
Nigéria, ele acabou entrando em contato com um garotinho órfão chamado Zaki,
que um dia se tornaria o esposo da Zoe e o herdeiro da família O’Neill.
Depois de compartilhar a atenção de meu pai para com os conselheiros,
observei que uma garota estava sendo a escrivã daquela reunião, algo que me
surpreendeu, porque esse trabalho sempre fora ocupado por um senhor.
Será que ele morreu? Não seria surpreendente.
— Duquesa Moore, gostaria de iniciar? — meu pai perguntou ao olhá-la
atentamente.
— É claro, majestade! — ela respondeu sem rodeios. — Eu estou com a
resposta de todos os nobres que foram convidados para a coroação, separei cada
um pelo país e sobrenome.
— Posso ver?
Ela entregou a lista para o meu pai, que pulou algumas páginas, como se
estivesse focado em encontrar alguns nomes. Eu teria lido qualquer coisa se ele
não tivesse percebido meu olhar curioso com tanta rapidez que desviou a lista de
minha visão.
— White — chamou ao olhar para o conde em questão quando fechou a
lista, garantindo que eu não a pegasse.
O que ele estava escondendo de mim?
— Tivemos uma queda na exportação de softwares esse mês ...
A reunião foi longa e, por causa da lista, eu não consegui prestar atenção
em quase nada. Se meu pai não tivesse segurado o papel com tanta firmeza eu
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Legado Roubado
estava desalinhado e fora de ordem, então a tutora aproveitou esse erro para
castigar minha irmã. — O Lucca ficou em silêncio por tempo suficiente para eu
imaginar o nível do castigo. A senhorita Lowenna era um monstro.
— Naquele momento eu e a Kelly decidimos nos vingar da professora antes
de revelarmos tudo aos nossos pais — o herdeiro continuou. — Foi necessário um
mês de preparo para realizar tudo perfeitamente. Depois de nosso sucesso
contamos tudo para eles, que seguiram os protocolos para conseguirem a justa
demissão dela.
— Achei muito merecido — o cozinheiro que tinha perguntado sobre ela
falou enquanto ria com os outros.
— E eu pensando que você e suas irmãs aprontavam isso apenas por
diversão! — uma mulher comentou. — Escutar as histórias por outras pessoas é
mesmo um perigo!
— Falando em escutar relatos por terceiros ... — uma outra mulher disse.
— Acho que falo por todos aqui que eu não acredito nos boatos sobre a alteza.
— É verdade, desculpa, não falei alteza!
— Está tudo bem — Lucca tranquilizou de forma muito carinhosa.
— Nós realmente acreditamos que a alteza é inocente das acusações — o
chefe da cozinha declarou, convicto.
Deixei meu queixo cair ao escutar aquelas palavras ditas por um
funcionário antigo de meu reino. Como isso era possível? Primeiro uma de minhas
melhores amigas o defendendo e agora todos os meus cozinheiros.
Meu pai estava certo ao pedir para eu confiar no Lucca.
Claro que estava, ele não falaria algo tão sério por nada.
— Conversamos com os funcionários de outros reinos, inclusive os de
Ulster — a mulher a trazer o assunto voltou a falar. — Eles nos apresentaram
todos os argumentos possíveis para mostrar como era impossível acreditar nos
boatos, pois a alteza recebeu uma criação maravilhosa de seus pais e, desde
criança, o príncipe trata todos que merecem com honra.
— É realmente muito bom ter a confiança de vocês — Lucca admitiu.
— Eu te falei, Lucca! — Dinesh comentou animadamente. — Um dia verão
que você é muito legal! Só é preciso ter paciência.
— Você tem razão, Dinesh.
— Espero que a alteza nos visite mais e, quem sabe, se aproxime de nossa
princesa — uma mulher comentou com a voz sonhadora.
Escutei vozes animadas do outro lado da parede e, por algum motivo, eu
senti meu rosto corar.
—Imaginem quão magnífico seria toda a Irlanda governada pelos dois! —
um homem comentou.
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Capítulo 7
Vinte e nove anos
Uma semana havia se passado e eu continuava apavorada por imaginar as
pessoas acreditando na possibilidade de mim e o Lucca nos casarmos. Além disso,
desde a lista de convidados de minha coroação, o meu pai evitava conversar
comigo, só me dando a certeza de que ele queria me esconder o nome de alguém
do passado de minha mãe. Talvez um parente dela?
— Você já descobriu o motivo de seu pai ter arrancado a página da Escócia
na lista? — Akemi perguntou enquanto assistíamos um filme em meu quarto.
— Não — suspirei ao pegar um pedaço de queijo da tábua sobre a mesa de
centro.
— Alguma teoria de quem possa ser a pessoa que ele esconde?
— Você não sabe quase nada sobre a sua mãe, não é? — Julie perguntou
antes de eu responder a Akemi.
— Apenas algumas informações isoladas, como minha mãe ter nascido na
Escócia e o sobrenome dela de solteira ter sido Mysie. Sobrenome esse que eu,
inclusive, herdei, indo contra os padrões de Leinster de herdar apenas o
sobrenome mais relevante.
— Como assim mais relevante? — Julie quis entender.
— Eu sou herdeira da família O’Carroll, não da Mysie, logo, O’Carroll é o
sobrenome relevante.
— Quanta frescura, na França não existem regras para isso. Mas o que eu
deveria esperar? Estamos falando de Leisnter.
— Bom, eu já estou acostumada com isso, mas continuando ... A Zoe e a
Yarin se lembram de pessoas que viviam perto dela, mas que depois
desapareceram, ou seja, mais peças soltas. E não sei onde, especificamente, ela
nasceu, o nome dos pais dela, se foi criada por eles ou se ela tinha irmãos.
Desconheço sua posição social de nascença ... Até pesquisei mais sobre alguma
família Mysie, mas é um sobrenome comum na Escócia.
— Não existe uma atriz escocesa com esse nome?
— Sim, Maísa Mysie. A Yarin e eu buscamos muitas informações que ligue
ela à minha mãe há uns anos. Entretanto, não encontramos nada além dos
esposos e filhos que ela teve. Mas eu não desisti de acreditar na existência de uma
ligação entre nós, porque ela é ruiva, assim como eu e a minha mãe.
Luana Trindade
— Essa atriz ser ruiva significa muito! — Julie falou ao colocar sua taça com
vinho na mesa de centro. — O maior número de ruivos se encontra na Escócia,
mas isso não diminui a raridade de pessoas ruivas! Ainda mais quando essa atriz
possui o mesmo sobrenome que o da sua mãe!
— Eu só não quero criar expectativas. Ela foi o motivo de meus
questionamentos no passado e ... É doloroso voltar a me questionar sobre o
assunto quando eu acreditava ter superado essa ferida.
— Você já procurou fotos dela na coroação ou casamento de seus pais? —
Akemi perguntou com as sobrancelhas franzidas. — Ou algum tipo de obituário da
sua mãe que tenha citado suas origens?
— É claro, mas não encontrei nada, apenas que ela nasceu na Escócia em
dezembro de quatrocentos e oito.
— Não é possível o passado de sua mãe ter desaparecido dessa forma! —
Juliette exclamou. — Com certeza existem informações em algum lugar! Alguém
deve ter escrito algo sobre sua mãe quando o casamento de seus pais foi
anunciado. É impossível apagar os ... Ela veio para a Irlanda com quantos anos?
— Dezoito.
— É impossível apagar os dezoito anos que ela viveu na Escócia — minha
amiga concluiu. — Tenho certeza de que na época as pessoas ficaram tão curiosas
com as origens dela que buscaram pelo máximo de informações para escrever
algo. Você sabe como os outros gostam de saber sobre nossas vidas ...
— Talvez seja, Julie, porque eu nunca encontrei nada ao pesquisar o nome
dela. Fiz o máximo de pesquisas que consegui pensar e, ainda assim, não
encontrei nada — suspirei. — Além disso, o Éloy e a Kira teriam me contado. E, se
não contaram, deve existir uma razão. Talvez a minha mãe não gostasse da
Escócia e nunca quis revelar suas origens ...
— Você nunca chegou a perguntar para a Kira sobre ela?
— Eu só comecei a me questionar sobre essa atriz depois que a Kira
morreu. — expliquei.
— Ah, eu sinto muito.
Como sempre o silêncio tomou conta do ambiente, porque era sempre
desconfortável demais falar sobre algo que envolvesse a minha mãe morta. E
como julgar as pessoas por evitarem falar sobre ela?
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— Porque da última vez que elas tiveram uma discussão eu era o assunto e
... Quando cheguei a Susana queria falar comigo, mas a Yarin a interrompeu como
se eu fosse escutar algo terrível.
— Esqueça isso, elas irão se resolver. Agora vá descansar — Zoe se
despediu com um rápido beijo em minha testa.
Encarei a porta de meu quarto por um bom tempo depois que a Zoe saiu,
sem saber se eu realmente esqueceria o que tinha acontecido. As brigas entre as
duas não eram raras, mas algo no olhar da Yarin me fez sentir que dessa vez a
discussão era maior do que parecia. E para piorar, eu não conseguia tirar a ideia
de ter sido o estopim para essa briga, o que faria todo o sentido, porque, entre as
quatro, a Yarin era minha maior defensora e a Susana a maior, pela falta de
palavras, crítica. Por isso, eu era o melhor gatilho para uma briga entre as duas e o
exemplo mais recente fora a discussão das duas no dia que fui para o parque
O’Carroll e conheci o Gael.
Deus, por que eu sinto que perderei alguém em razão dessa briga?
86
Legado Roubado
Após comemorar o meu sucesso, levei a Zoe para ver o planeta, segurando
sua mão e a puxando até o telescópio.
— Você sabia que Júpiter possui anéis igual a Saturno? — perguntei
enquanto observava os pontos luminosos que Júpiter e Marte eram à olho nu e a
Zoe observava o maior planeta de nosso sistema através do instrumento
astronômico. — E, entre vinte e quarenta milhões de anos, Marte também terá
anéis? Inclusive, aquele ponto avermelhado próximo à Júpiter é Marte.
— Isso é interessante — ela respondeu ao sorrir ainda mais quando se
afastou do telescópio e eu me aproximei dele.
— A parte triste é que não conseguimos ver os anéis de Júpiter com
telescópios, apenas por sondas enviadas até o planeta.
As curiosidades eram bobinhas em comparação com outras que eu
conhecia, mas dizê-las ainda era reconfortante, afinal, Zoe certamente não tinha
conhecimento delas.
Ao me afastar do telescópio eu peguei o chocolate quente e me sentei
junto da Zoe, que ainda tinha um enorme sorriso no rosto.
— É assustador pensar na idade do Universo, por mais excitante que seja
pensar em nossa insignificância — admiti com um suspiro. — O que são vinte e
nove anos comparados com vinte milhões? Trezentos milhões? Não somos nada
quando comparados com tudo o que existe fora do nosso planeta.
A Zoe respirou fundo ao escutar aquela idade tão aleatória que usei para
comparar com o tempo de alguns eventos astronômicos. Uma idade que podia
não representar nada para muitas pessoas, mas para mim era o oposto disso. E a
Zoe sabia.
— Certamente vinte e nove anos não são nada, mas sua mãe foi capaz de
deixar um excelente legado com essa idade. Ele pode se perder daqui um século,
infelizmente, mas ela impactou a vida de inúmeras pessoas que tiveram o
privilégio de viver ao mesmo tempo do que ela e ... Isso é muito, não acha?
— Sim — admiti com a respiração trêmula. — Ela foi perfeita nesse pouco
tempo e ... Eu penso, Zoe, se irei alcançar as expectativas criadas pelo povo. Se eu
chegarei aos pés de minha mãe.
— Você não deve se esforçar para ser como sua mãe, mas para você ser
sua melhor versão. Isso é tudo o que importa.
— Não tenho cumprido com isso para honrar a memória dela ... Nesses três
anos eu fui praticamente um peso morto para Leinster.
— Você precisava passar por essa fase, Violet ... Você precisa se curar.
Só tive forças para aproximar a caneca de minha boca, porque apenas o
calor da bebida poderia afastar o nó que se formava em minha garganta.
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Luana Trindade
— Se eu tivesse sido mais inteligente para perceber como ele não era bom,
eu não precisaria me curar ... — sussurrei como se contasse um grande segredo.
Não ousei olhar para a Zoe, só pude ficar concentrada em meu chocolate
quente. Inspirando e expirando suavemente o aroma doce que sempre me
acalmava, focada em demonstrar o máximo de tranquilidade que eu era capaz. A
Zoe, a mulher mais paciente e compreensiva que eu conhecia é que estava ao
meu lado. Eu podia confiar nela ... Eu confiava nela! Mas por que eu ficava tão
preocupada em esconder a tempestade que eram os meus sentimentos? Eu só
precisava falar ... Como eu não era capaz de fazer algo tão simples?
Abrir seu coração para ela é torná-la ainda mais fundamental em sua vida.
É tornar a dor de perdê-la insuportável.
— Já irei dormir — falei ao me levantar e entregar a caneca vazia para a
Zoe. — E avise as outras que elas podem dormir até mais tarde nas próprias casas
amanhã, pois eu pretendo fazer isso. E, de qualquer maneira, é sábado ... A Dinah
já não viria trabalhar.
— Vou avisar — Zoe garantiu quando se levantou com a expressão perdida.
— Até amanhã, Violet, bom descanso.
— Igualmente. E mande um beijo para o Zaki e as crianças.
Ela me observou com lágrimas nos olhos e, após colocar as canecas em
uma mesa próxima a nós duas, me abraçou com força, como se nunca mais fosse
me soltar. Hesitante, eu passei meus braços por sua cintura e retribuí aquele
abraço, que a cada segundo eu percebia estar precisando. Por nossa diferença de
altura eu não conseguia encaixar a minha cabeça no espaço entre seu ombro e
pescoço, por isso virei meu rosto e apoiei a cabeça em seu peito.
— Eu amo tanto você, Violet.
— Também amo você, Zoe. E antes que você diga, eu sei o quão
intensamente a minha mãe me amou, nunca me esquecerei disso — comentei e
Zoe riu suavemente.
Aproveitei aquele abraço ao máximo, tomando o cuidado de não começar
a chorar, porque eu não queria estragar aquele momento ou incomodar a Zoe,
afinal, ela tinha uma família para voltar e eu não deveria usufruir de seu tempo
tão precioso. Por causa da dificuldade em segurar as minhas lágrimas durante um
abraço tão amoroso eu me afastei, respirando fundo para recuperar a razão.
— Obrigada pela companhia — agradeci com a voz fraca.
A Zoe deve ter percebido meus olhos marejados, mas ela não insistiu,
apenas depositou um longo beijo em minha testa e foi embora com um sorriso
doce estampado em seu rosto.
Deitei-me na cama pensando em minha mãe, tentando imaginar como ela
conversaria comigo, mas era difícil saber o tom que ela usaria comigo quando o
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Legado Roubado
meu único repertório eram as entrevistas que ela dava como rainha. Ela sempre
falava com muita formalidade e era com os outros, não comigo, a filha dela.
Deixe de lado essas ilusões infantis de que poderá ser como uma mulher
que nem conheceu. Minha avó era a parente dos conselhos, mas esse foi dado por
meu avô quando eu tinha oito anos e desde então ele me importunava como uma
erva daninha.
Peguei um tablet, sempre esquecido na gaveta da escrivaninha, conectei na
tomada ao lado da cama e fui até uma pasta com tudo sobre a minha mãe. Fotos
suas no casamento, coroação, festas, visitas sociais, passeios com a Kira e suas
idas ao pub favorito das duas, eventos esportivos e, é claro, vídeos de entrevistas
e declarações. Era ali que eu podia chegar um pouco mais perto de minha mãe.
Busquei pelo primeiro vídeo em que a minha existência havia sido
declarada ao mundo, o vídeo onde meus pais anunciaram a gravidez de minha
mãe. E, como tudo estava organizado pela data, eu não demorei para achá-lo,
pulando para a parte do anúncio.
— É com alegria que anuncio a minha gravidez para o povo de Leinster, das
Terras Altas e o resto do mundo — a minha mãe falou com os olhos marejados e
um enorme sorriso.
Espera um pouco ...
Terras Altas? Por que especificar um único lugar da Escócia?
Depois de organizar tudo o que eu sabia sobre a minha mãe em um quadro
dentro de meu closet, colocado ali após um dia em que eu e as meninas
começamos a debater qual nome era mais bonito para a uma linha de produtos da
Yarin e nunca mais tirado, cheguei à certeza de que ela só poderia ter nascido
naquela região da Escócia.
Mas por que ninguém nunca disse nada? O que eles queriam tanto
esconder de mim para manter as origens dela em segredo?
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Luana Trindade
Sei que eu não deveria ter descoberto isso, mas caramba! Eu conheci a
princesa de Leinster!
Quais as chances?
Ainda não consigo acreditar que demorei tanto para juntar as peças.
Me perdoe por ter descoberto, mas não se preocupe. Não irei expor que
você andou passeando no principal parque da cidade.
Acho que eu deveria chamá-la de alteza ...
De qualquer forma, agora que eu conheci uma pessoa tão importante para
a Irlanda eu gostaria de saber como entrar em contato com pessoas no mesmo
nível que o seu ... Acho que encontrei informações que podem explicar melhor o
motivo para a minha mãe ter deixado a Irlanda, mas para isso preciso perguntar
para uma pessoa importante.”
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Legado Roubado
— Fiz isso depois de acordar, mas ele não disse nada, como o costume.
Espero que com o Kyle eu consiga alguma dica para pressioná-los — suspirei ao
colocar uma mecha do cabelo atrás da orelha, uma curiosidade me invadindo no
meio do movimento. — Yarin, me empresta o seu celular?
A Yarin me entregou ele sem pensar duas vezes, os olhos azuis curiosos.
Nunca encontrei todas as informações que eu gostaria na internet ou em
livros, entretanto, descobrir o local de nascença de uma atriz famosa não deveria
ser tão difícil. Certo? Mesmo considerando que eu nunca havia encontrado
informações sobre a família dessa atriz, eu tinha a esperança de apenas descobrir
sua cidade de nascença.
— Ela nasceu em Inverness — murmurei ao sorrir, o sentimento de vitória
me invadindo. — Inverness é a principal cidade das Terras Altas.
— De quem estamos falando? — indagou ao franzir as sobrancelhas.
— De Maísa Mysie. Ela é minha parente, não existe outra explicação para
tantas coincidências — falei um pouco sem ar. — E ela só nasceu três anos depois
de minha mãe ... Essa diferença é tão pequena ... É como se ...
— Elas fossem irmãs — Yarin completou com um suspiro.
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Capítulo 8
Química
— Você construiu uma adega no seu quarto? — perguntei para a Julie
quando ela entrou na sala com duas garrafas de vinho. — Quase todo dia você
aparece com uma garrafa diferente.
— Eu tenho orgulho de alguns vinhos do meu país — respondeu, sem
realmente responder.
— Depois ela reclama que eu a acuso de algo por causa dos estereótipos —
Brenna resmungou enquanto ajeitava os jogos na mesa de centro.
— É claro que irei reclamar, porque a traição é um problema individual,
encontrado em qualquer lugar do mundo. Franceses traem, irlandeses traem,
japoneses traem ... Isso é uma falha humana, não francesa. E o vinho é cultural,
principalmente na região que eu cresci, que é muito conhecida pelos ... vignobles.
Não sei como é a palavra em inglês.
Os presentes naquele momento, Brenna, Akemi, David e Mirella,
observaram a francesa sem entender a última palavra. Então eu, a única poliglota
presente, precisei ajudá-los.
— Vinhedo — eu traduzi, Akemi admitindo também não conhecer aquela
palavra em inglês, sendo necessário eu descrever seu significado para ela, pois eu
nunca havia conhecido a palavra em japonês.
— Ah, agora eu entendi o que a sua mãe me disse quando eu estava lá —
Akemi comentou ao rir. — Ela esqueceu que a Violet é a amiga poliglota.
— Será que o Kyle e os outros já estão vindo? — a princesa Mirella
questionou ao se levantar do sofá em que estava sentada. — Acho que vou atrás
deles.
— É uma boa — Juliette respondeu com um sorriso, me observando de
relance, antes que a Mirella saísse da sala.
Levantei do sofá em que estava e fui ajudar a Julie a organizar os vinhos na
mesa com as demais bebidas, essas sendo não alcóolicas, querendo me distanciar
dos acontecimentos daquela manhã.
Por mais que eu tivesse me empolgado para aquela noite, esse não era o
meu sentimento, não depois de ter passado um dia inteiro teorizando sobre as
possíveis ligações entre minha mãe e Maísa Mysie junto da Yarin. Nós duas já
havíamos passado muitas horas buscando informações há uns anos, mas dessa
Legado Roubado
vez era diferente, porque a verdade não parecia tão distante como antes. Por
tudo isso eu queria voltar a fazer pesquisas com a Yarin imediatamente.
— Você está me ouvindo? — Julie questionou.
— Desculpa, me distraí por um instante — respondi ao cruzar meus braços.
— O que você estava dizendo?
— Que a Mirella parecia muito preocupada em chamar o Kyle. Tenho
certeza de que até a coroação os dois ficarão juntos.
— Bom ... Isso é algo irrelevante, se eles ficarão juntos ou não — suspirei
ao ajeitar as garrafas de vinho, que não me pareciam alinhadas o suficiente.
— O que aconteceu com você? — questionou com as sobrancelhas
arqueadas. — Você está no modo calculista.
— Do que você está falando?
— Quando você entra no modo calculista eu sei que algo aconteceu —
explicou rapidamente. — Enfim, estou aqui para ouvir você.
— Eu só estou com a cabeça em outro lugar.
— Qual?
— Sinto que estou a um passo de desvendar o mistério da lista de
convidados e ... Espera um pouco, modo calculista? De onde você tirou isso? Eu
não sou calculista.
— Eu sei que não, mas está agindo como se fosse com esse olhar
inexpressivo, meio com raiva — respirou fundo.
— Calculista não é uma pessoa com raiva, seria mais apropriado dizer que
estou em meu modo irritado.
— Não, seu modo irritado é diferente. O calculista é quando você parece
estar planejando um assassinato nos mínimos detalhes.
— Você tem uma enciclopédia com todos os meus modos descritos?
— Só falta escrever eles no papel — revelou com um sorriso de canto. —
Saiba que eu e a Akemi tivemos muita dificuldade com isso, porque você é a
pessoa mais difícil de lidar que nós conhecemos.
— Então é isso que vocês ficam fazendo quando estão sem mim? —
questionei ao franzir minhas sobrancelhas.
— Na maioria das vezes.
Encarei a Juliette boquiaberta, que apenas riu antes de se apoiar na mesa
com as bebidas e observar a Akemi que, junto do David, ajudava a Brenna a
arrumar os jogos na mesa de centro. Os três estavam descontraídos, criando uma
visão um tanto estranha.
— Tenho pensado na Akemi defendendo o Lucca — comentou ao mexer no
pingente de sua pulseira de ouro. — Você também não tem achado tudo muito
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Luana Trindade
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Legado Roubado
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Luana Trindade
— Talvez você não seja uma pessoa ruim, como costumam dizer na mídia,
mas não entendo o porquê do seu silêncio. Se você é inocente ...
— Você acha mesmo que eu não tentei? É como se o Conselho, como
instituição, estivesse completamente contra mim — revelou com uma expressão
firme. — Não importa que todos os funcionários de Ulster e alguns de outros
reinos tenham me defendido. O fato de eu não ter nada que possa comprometê-
los para usar como um escudo me coloca em uma posição frágil.
— Então você está me dizendo que é culpado de algo, mas que para se ver
livre do castigo é necessário usar o suborno?
— Estou dizendo que o funcionamento do Conselho é falho e podre,
incapaz de fazer a justiça quando necessário — explicou com os olhos tão atentos
em mim que só pude admirar sua postura confiante no fundo de meus
pensamentos. — Não existem provas contra mim, mas por causa da palavra dos
favoritos do Conselho isso é esquecido.
— Mas existem provas a seu favor, Lucca? — indaguei ao firmar meus
olhos nos dele. — Capazes de inocentá-lo?
— Nenhuma que esteja ao meu alcance.
— Por que elas não estariam ao seu alcance?
— Eu precisaria envolver pessoas inocentes nessa bagunça — sua voz
vacilou, assim como seu olhar desviou do meu. — Porque elas poderiam me
ajudar a dar credibilidade na hipótese de que tudo não passou de uma armação
contra mim.
— Já tentou conversar com essas pessoas? Talvez elas possam ajudá-lo —
sugeri, uma parte minha realmente desejando auxiliá-lo com o problema.
— Seria tão cruel, Violet — murmurou com a mandíbula travada, os olhos
verdes, agora marejados, voltando a encontrarem os meus. — Forçar alguém a se
expor sem a certeza de que funcionaria ... Eu nunca poderia aceitar fazer algo
assim apenas para o meu bem.
— Mas quais argumentos concretizam sua hipótese? Se ela for consistente
é possível que você dê um fim nessa história. Converse com as pessoas que
podem ajuda-
— Ei futuros imperadores da Irlanda — Mirella interrompeu nossa conversa
ao se aproximar, jogando as suas boxes braids para trás com um sorriso enorme.
— Vocês querem que os petiscos fiquem na mesa de centro para não termos que
nos levantar?
— Isso, fica os chamando assim mais vezes para atrair isso — Brenna
resmungou em alto e bom som, para todos escutarem e, consequentemente,
ignorarem.
— Sim — respondemos.
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— Não sei! Talvez alguém tenha pedido para que você escondesse
informações da família da minha mãe de mim, porque é óbvio que você tem
conhecimento das origens de minha mãe ... Ela era escocesa.
— Desculpa, Violet, mas não é porque alguém é escocês que eu
automaticamente tenho noção de tudo sobre a vida dessa pessoa — murmurou
antes de se desculpar novamente, me dar as costas e subir para o seu quarto.
Por que ele também mentiria?
Talvez ele não esteja mentindo.
Pelo agir dele eu aposto que isso é impossível.
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— Deixem que fale, isso é que trará ainda mais veracidade à possibilidade
de você se tornar imperatriz.
— Eu odeio quando você tem razão.
— Sempre sou coberta de razão, gatinha — brincou ao retomar a
caminhada para meu quarto, eu apenas ri antes de segui-la pelas passagens por
pouco tempo, pois logo ela estava perdida e pedindo para eu guiar o caminho.
Todo líder memorável precisa de picuinhas o cercando, Violet. O sucesso
dele será determinado pela maneira que ele lida com isso. Foram as palavras de
minha avó que invadiram minha mente naquele momento.
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Capítulo 9
Demissão
Os pares da Damsha Oíche haviam sido liberados há quase uma semana.
Uma semana de inúmeras tentativas para descobrir mais sobre as motivações de
meu pai para tirar os nomes escoceses da lista, de compromissos incontáveis e
estressantes, de ensaios cansativos e que pareciam nunca acabar. De noites mal
dormidas por temer o momento de acordar, pois eu nunca sabia o que poderia
encontrar na internet em todas as manhãs naquela semana, um temor que só se
intensificava ao discorrer do dia, principalmente ao ler as manchetes dos jornais
que inventavam qualquer coisa para irem contra mim. Como consequência, meu
nervosismo se transformou em pura raiva, principalmente quando as minhas
tentativas de descobrir mais sobre os convidados escoceses de minha coroação
eram fracassadas.
— É uma pena ver que o reino de Leinster será entregue para uma garota
tão inexperiente e que não teve o exemplo do que é ser uma rainha! — eu li a
notícia irritada para as meninas. — A princesa Violet escolhendo o príncipe Lucca
como seu par na Damsha Oíche exemplifica perfeitamente o que a falta de uma
mãe causa na vida das crianças.
— Por que você está lendo isso como se fosse a opinião da maioria? —
Dinah indagou ao ajeitar seus óculos. — Ainda mais quando a maioria dos
comentários das pessoas nesses noticiários são contra tudo o que foi escrito.
— Devemos confiar na princesa, pois ela nunca falhou conosco e não faria
isso agora com algo tão bobo — Susana falou tão naturalmente que levei um
tempo para entender que ela estava lendo algo por seu celular. — Esse
comentário tem mais que o triplo de apoios da notícia em si, Violet. Agora
podemos voltar a nos concentrar no que realmente importa?
— É incrível como você consegue soar chata até quando age com sensatez
— Yarin resmungou e Susana revirou os olhos.
— Poderíamos discutir sobre o fato do pai da Violet não ter liberado a lista
de convidados da coroação, porque isso deveria ter sido feito junto com a lista dos
pares da Damsha Oíche — Dinah sugeriu de modo conspiratório e um sorriso
empolgado.
— Ele está escondendo algo do passado da mãe da Violet e não há dúvidas
sobre isso — Yarin comentou. — E nós já discutimos todas as possibilidades, estou
começando a me irritar por não descobrirmos nada.
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com isso, porque um passo em falso é capaz de deixar você se odiando, então nos
forçamos a sempre buscar as palavras certas para que você não se isole mais.
— Se você está se sentindo tão sobrecarregada é melhor ir embora, porque
eu não quero colocar esse peso em suas costas, Susana. E ... seus filhos precisam
de você. Não vou forçar a mãe deles a cuidar de mim, já sou grande o suficiente
para cuidar de mim mesma.
— Que bom você enxerga que nossas vidas não giram em torno de você,
Violet — só pude manter a expressão fria diante de suas palavras sarcásticas. — E
não se preocupe em me chamar para ir em sua coroação, eu não estava com
planos de ir.
Só me restou forças para assentir, porque se eu abrisse minha boca eu
desabaria em lágrimas, algo que eu lutei contra ao fincar minhas unhas nas
palmas de minha mão. Eu não podia permitir que ela estivesse certa sobre eu as
sobrecarregar com meus problemas.
— Antes de eu ir só quero pedir para você não se esquecer que a Zoe não é
sua mãe, essa posição que você tenta usurpar cabe à quatro crianças que são
deixadas de lado para que ela cuide de você. Então, Violet, não é porque você
perdeu a sua mãe que você tem o direito de deixar outras crianças sem a mãe
delas.
Fiquei parada onde estava após a partida da Susana até conseguir respirar
normalmente, minha mão ardendo pela força necessária para aliviar meus nervos
e a mandíbula ardendo com o esforço para não chorar. Entretanto, o importante
foi que eu recuperei o ar quando escutei uma batida hesitante na porta, algo que
me deixou desperta o suficiente para correr até a cama e me deitar a fim de fingir
estar dormindo.
A porta foi aberta e após alguns passos da pessoa eu escutei seu suspiro,
suficiente para me fazer reconhecê-lo. Eu não tinha mais tanta certeza se
conseguiria continuar com minha encenação.
— Eu sinto muito, minha flor — Zoe suspirou com a voz fraca ao depositar
beijos suaves no topo de minha cabeça e pentear meu cabelo com sua mão. —
Mas não se preocupe, pois enquanto eu viver você não ficará sozinha. Eu
prometo.
A minha sorte é que eu estava de costas para ela, então as lágrimas que
escaparam de meus olhos quando ela começou a soluçar não me expuseram, eu
apenas mantive meu corpo relaxado o suficiente para fazê-la acreditar que eu
estava dormindo. Ela jamais saberia que eu estava escutando tudo.
Qual seria o problema em estar acordada?
Ela não é sua mãe.
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Capítulo 10
Pomposa
Eu poderia sentir toda raiva possível de meu pai, mas ao ver a dor em seus
olhos eu decidi escutá-lo antes de tirar minhas próprias conclusões. Tudo
aconteceu há mais de uma década, o que significava que havia a história de uma
vida para ele me revelar.
— Meu pai não queria correr o risco de sua família ficar com você
permanentemente depois que sua mãe morreu, então ele mandou o Éloy buscá-la
em Inverness e ... Ele bloqueou a entrada de todos eles em Leinster. Apagou tudo
que ligasse você a eles.
— Por isso nunca encontrei nada sobre a Maísa na internet — concluí ao
me sentar na cama, meu pai assentindo com pesar.
— Queria levá-la de volta para a Escócia quando a vi aqui — meu pai
admitiu com o olhar distante. — Tinha tanto medo de perdê-la como perdi sua
mãe ... Era melhor que crescesse longe de toda a monarquia. Longe de mim ...
— E por que vocês nunca me contaram nada? — indaguei com a boca seca,
meu coração inseguro com tudo. — Não faz sentido.
— Você o conhece e sabe que ele pode ser orgulhoso quando toma uma
decisão. Além disso, ele é um O’Carroll ... O dever vem sempre em primeiro lugar.
— Entendo isso, mas qual seria o problema de me contar a verdade?
— Sua vida estava em jogo — murmurou.
— Não entendo a ligação disso com o assassinato de minha mãe.
— Você vai entender tudo — meu pai prometeu ao apertar meu ombro
com firmeza, seus olhos azuis focados nos meus. — Paciência.
— Paciência? — indaguei, agora com a raiva me invadindo. — Eu vou fazer
dezoito anos essa semana! Já deveria ter maturidade para descobrir a verdade há
muitos anos!
— O plano sempre foi lhe contar tudo há três anos, mas ...
— Não continue — pedi ao desviar meu olhar, afastando a mão de meu pai
de meu ombro. — Eu já entendi.
Abaixei meu olhar para o edredom, pressionando as unhas na palma da
mão enquanto absorvia aquele curto resumo dado por meu pai. Então, quando a
confiança retornou, ergui o rosto e voltei a encará-lo.
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— Como você, a Kira e o Éloy tiveram certeza de que me contar tudo seria
perigoso? — indaguei com a voz falhando. — Para a Kira ter concordado com isso
deve ter sido algo muito sério.
— Há quatorze anos um casal tentou contar a verdade — meu pai
começou. — Eles até falaram com você, mas ... Você só tinha quatro anos, não
conseguia entender a seriedade dessa questão e acabou falando com o meu pai
sobre a conversa que eles tiveram com você. — Sua respiração foi trêmula ao
relatar tudo aquilo. — O resultado foi proibir a presença desse casal na Irlanda da
mesma maneira que ele proibiu sua família. Nós não queríamos correr o risco de
você ser afastada de nós por meu pai, que com certeza alegaria que era para o seu
bem ser educada por ele. Só assim tivemos liberdade para criá-la da maneira que
criamos.
— Que casal foi esse?
— Alexander e Saoirse MacKenzie.
— O rei e a rainha da Escócia ... Por isso o Kyle foi tão estranho quando o
questionei sobre minha família — murmurei. — Eles foram próximos da minha
mãe? De mim?
— Demais, Violet.
— Não me lembro deles, muito menos dessa conversa que eles tiveram
comigo.
— As lembranças precisam ser estimuladas para permanecerem com você,
é normal se esquecer de algo que aconteceu quando você era uma criança —
suspirou ao desviar o olhar por alguns instantes.
— Obrigada por me contar tudo isso — agradeci ao respirar fundo depois
de alguns instantes em um silêncio desconfortável. — Espero conhecer tudo que
eu ainda não sei sobre a vida de minha mãe.
— Você irá — meu pai prometeu com convicção.
Talvez ele sempre tenha evitado falar de sua mãe por medo de perdê-la
para seu avô. Ele poderia tê-la manipulado de maneiras cruéis para mantê-la
longe de sua família.
Droga, isto faz tanto sentido.
— Como? — quis saber, de repente.
— O quê?... Ah, claro! A Cameron irá lhe guiar nessa jornada assim que
chegar na Irlanda. Ela não vê a hora de se reencontrar com você, então está
contando os segundos para estar ao seu lado.
— Me guiar nessa jornada? — indaguei em confusão. — Que jornada é
essa? Ela vai se sentar comigo em uma sala de reuniões e narrar toda a vida de
minha mãe? Ao menos concluo que isso seja sobre a história dela, já que é a única
coisa que desconheço.
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— Não será dessa maneira — respondeu ao rir com suavidade. — E você irá
adorar a surpresa.
– Como você pode garantir isso?
— Ah, Violet — ele começou ao se levantar com um sorriso mais leve. — Eu
a conheço, sei das coisas que gosta.
— Claro.
— Gostaria de perguntar mais ...
— Não. Eu só preciso organizar meus pensamentos,
Me conhecendo o suficiente para entender o que eu queria, ele se
levantou após um beijo em minha testa e saiu do quarto, os pensamentos
começando a surgir com mais clareza em minha mente.
Minha mãe tinha quatro irmãos! Quatro! Eram muitos irmãos para serem
apagados da minha vida depois que ela morreu e, pela maneira que meu pai falou
deles, eu imaginava que os quatro foram próximos de minha mãe,
consequentemente foram de mim no início de minha vida, mas isso me foi tirado
quando eu só precisava de uma família para manter as lembranças de minha mãe
vivas em minha vida.
Eles parecem estar tão distantes de mim ...
Talvez você só precise conhecê-los para conseguir aceitar essa verdade.
Quando as garotas apareceram para o café da manhã elas estavam
hesitantes, o que me lembrou a Susana e encheu ainda mais a minha cabeça. Com
tudo o que estava acontecendo, e ainda estava para acontecer, eu só consegui
ficar em silêncio.
— Nós renovamos nosso contrato essa manhã — Zoe comentou ao quebrar
o silêncio na mesa, seu olhar atento em mim. — Bom, na realidade iniciamos o
processo, porque existe muita burocracia.
— Mas a parte legal é que nós descobrimos que agora ele é vitalício —
Dinah revelou com um enorme sorriso, eu apenas alternando meu olhar entre as
três mulheres que exalavam toda alegria possível diante de mim.
— Isso é ... Legal — sussurrei com a voz fraca, desejando dizer que na
realidade era uma das melhores coisas que escutei em toda a minha vida.
— Espero que não tenha pensado que nós deixaríamos o melhor trabalho
do mundo com o fim do contrato — Yarin se manifestou com um olhar acusatório
em minha direção.
— Jamais pensaria isso — comentei ao conseguir sorrir, as três rindo de
minha resposta, porque elas me conheciam o suficiente para terem a certeza de
que eu havia pensado naquela possibilidade apenas por meio daquelas palavras.
Aproveitei o momento ao lado delas para atualizá-las sobre a conversa com
meu pai, Zoe aproveitando para me contar da conversa com a Juliette que eu
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Any ... Ela disse o nome que todos que conviviam comigo evitavam dizer,
como se pudessem me machucar com ele, com tanto carinho ...
— Você deve ser ...
— Cameron — ela completou com um sorriso doce.
Eu ia dizer irmã de minha mãe, mas aquela resposta era a mesma.
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Parte 2
Encontrado