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Luana Trindade

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Legado
Roubado
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Roubado

Luana Trindade

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Legado Roubado

Sumário
Parte 1 Roubado ...................................................................................................................................12
Prólogo ...............................................................................................................................................14
Capítulo 1 Eventualidades ..........................................................................................................15
Capítulo 2 Fagulha ....................................................................................................................... 26
Capítulo 3 Concentração .............................................................................................................. 36
Capítulo 4 O Olhar que Nunca Conheci ................................................................................49
Capítulo 5 Traição.......................................................................................................................... 60
Capítulo 6 Uma Conspiração na Cozinha ............................................................................ 70
Capítulo 7 Vinte e nove anos........................................................................................................81
Capítulo 8 Química ......................................................................................................................... 92
Capítulo 9 Demissão ..................................................................................................................... 100
Capítulo 10 Pomposa .................................................................................................................... 109
Parte 2 Encontrado ........................................................................................................................... 117
Capítulo 11 Coleção de Cadernos .................................... Erro! Indicador não definido.
Capítulo 12 Dezesseis de Junho ...................................... Erro! Indicador não definido.
Capítulo 13 Tradições ......................................................... Erro! Indicador não definido.
Capítulo 14 Coroação .......................................................... Erro! Indicador não definido.
Capítulo 15 Máscaras ........................................................ Erro! Indicador não definido.
Capítulo 16 Recompensa................................................... Erro! Indicador não definido.
Capítulo 17 A Nobre e o Plebeu .................................... Erro! Indicador não definido.
Capítulo 18 Compromisso .................................................. Erro! Indicador não definido.
Capítulo 19 Um segredo pela justiça ............................ Erro! Indicador não definido.
Capítulo 20 Memória Afetiva ...................................... Erro! Indicador não definido.

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Luana Trindade

Capítulo 21 Meu Amor .................................................... Erro! Indicador não definido.


Capítulo 22 Bloqueios ........................................................ Erro! Indicador não definido.
Capítulo 23 Pequenos Passos ......................................... Erro! Indicador não definido.
Capítulo 24 Confissão ........................................................ Erro! Indicador não definido.
Capítulo 25 Culpa ............................................................... Erro! Indicador não definido.
Capítulo 26 Lute ................................................................. Erro! Indicador não definido.
Capítulo 27 O Anel Perdido ......................................... Erro! Indicador não definido.
Parte 3 Rejeitado ................................................................... Erro! Indicador não definido.
Capítulo 28 Quem eu sou, afinal? .................................. Erro! Indicador não definido.
Capítulo 29 The Blarney Stone................................... Erro! Indicador não definido.
Capítulo 30 Toque ............................................................... Erro! Indicador não definido.
Capítulo 31 Leis ................................................................... Erro! Indicador não definido.
Capítulo 32 A Forja do Rei......................................... Erro! Indicador não definido.
Capítulo 33 Lembranças Esquecidas .......................... Erro! Indicador não definido.
Capítulo 34 Violetas........................................................... Erro! Indicador não definido.
Capítulo 35 Identidade ................................................... Erro! Indicador não definido.
Capítulo 36 Lar ................................................................... Erro! Indicador não definido.
Capítulo 37 A Herdeira................................................... Erro! Indicador não definido.
Epílogo ................................................................................... Erro! Indicador não definido.
Agradecimentos ................................................................. Erro! Indicador não definido.

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Legado Roubado

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Luana Trindade

dedicatória

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Luana Trindade

Parte 1
Roubado

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Luana Trindade

Prólogo
3 anos antes

No declinar de um dia repleto de pesadelos, com o telhado úmido pela


chuva que há pouco caiu na noite de Natal e céu completamente nublado, a
menina não pôde observar as estrelas que tanto amava. E naquele silêncio, com o
céu tão mórbido da Irlanda, ela se sentiu mais sozinha do que nunca.
— Eu não entendo — murmurou para o nada, as lágrimas escapando de
seus olhos ao se ajoelhar. — Por que eu precisei perder tanto? A Kira costumava
me dizer que o Senhor sempre cuidaria de mim, me mostrava como o Senhor fazia
isso naqueles livrinhos que ela escrevia, mas eu não consigo mais entender isso ...
Ou aceitar como costumava aceitar.
Ela inclinou a cabeça para trás, tentando encontrar alguma estrela no meio
do céu nublado, pois conseguia se lembrar de outras noites, na mesma época do
ano, em que havia estrelas no céu. Entretanto, por que ela não podia vê-las
quando mais precisava? Quando ela precisava saber que Ele continuava ali por ela.
— Meu pai está se afastando desde o que aconteceu em meu aniversário
— sussurrou a garota, com a sensação da garganta se rasgando enquanto
apertava com intensidade o colar relicário na palma da mão, a ação lhe passando
despercebida. — Ele será o próximo que perderei? Porque não posso suportar! E
depois? Perderei a Zoe? A Yarin? A Susana? A Dinah? O Éloy? Sou tão grata por tê-
los em minha vida, mas se isso significa que perderei cada um deles pouco a
pouco ... Não posso suportar que eles me deixem.
Igual a sensação de uma corrente quente tocando-lhe a pele em um mar
gelado, a jovem ruiva foi alcançada por um calor e aconchego único, como se ela
não mais estivesse só. Com uma respiração trêmula, ela se recordou de palavras
nunca ditas, palavras que a consolaram quando mais necessitava.
Você não precisa ver as estrelas para saber que estou contigo, meu amor.

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Capítulo 1
Eventualidades
A respiração calculada me mantinha concentrada no objetivo ... além de
me acalmar, é claro. Sabia que as minhas roupas casuais me fariam passar
despercebida, mas dessa vez o tráfego de pessoas parecia maior e as chances de
ser descoberta eram igualmente preocupantes. Será por você ter escolhido ir ao
principal parque da cidade em pleno domingo? Refleti com sarcasmo.
Fique quieta. Briguei comigo mesma mentalmente.
Além de ter escolhido um horário e local péssimos, parece ter esquecido ser
ruiva, ou seja, chamativa!
Ninguém vai me reconhecer! Mudei muito desde o meu aniversário de
quinze anos, o cabelo não é suficiente para me expor, ainda mais por eu estar de
touca! Pensei ao virar meu rosto na direção da cerca viva, como se eu estivesse
contemplando a vegetação e não tentando passar despercebida entre as pessoas
na calçada.
Manter o legado de sua família é sua responsabilidade como filha única,
caso não se lembre. Seus avós não estão em condições de terem mais filhos e o seu
pai não parece, exatamente, concentrado em encontrar uma esposa. Resumindo,
a permanência da linhagem O’Carroll está, apenas, em suas mãos.
Virei à direita.
Ah, e não se esqueça que sua mãe deu a vida por você.
Mais alguns passos e eu entraria no parque.
Sim, ela deu, mas ... Eu não vou morrer por passear no parque. Então
vamos respirar e manter o foco. Só cometerei um erro se alguém, além da Yarin,
souber que eu estou aqui, então não devo me preocupar.
Ao parar diante do portão de ferro forjado uma pontinha de dúvida
sussurrou em minha mente, mas balancei a cabeça como se o ato extinguisse a
dúvida, respirei fundo e cruzei a entrada, minhas mãos buscando por um refúgio
no fundo dos bolsos do sobretudo.
Fui acolhida pela intensidade do verde imediatamente, além de uma
sensação de liberdade que eu não tinha nos arredores de minha casa. Talvez fosse
a extensão do parque o motivo pelo qual eu me sentisse tão livre ali ou, quem
sabe, o fato de não ter nenhum guarda andando de um lado para o outro para
garantir a minha segurança, mas pessoas normais vivendo suas vidas e ignorando
a de todas as outras pessoas, como a minha. Qualquer que fosse o motivo eu só
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tinha uma certeza: A saudade de estar visitando diferentes lugares para absorver
cada detalhe deles era desoladora. E fora essa saudade que me levou a planejar
com a Yarin uma maneira de sair até ali em segurança.
O parque era repleto de árvores, mas existia uma em especial, no alto de
um morro e com visão para o enorme campo verde, que era onde eu costumava ir
com o Éloy para observar as pessoas sendo, simplesmente, humanas.
Comecei observando uma mãe brincar com seus três filhos, o sorriso dela
radiante enquanto fugia da criança mais alta, até que ela se cansou e voltou para a
toalha onde o marido estava, meu olhar se desviando da cena quando o homem a
recebeu em um abraço seguro e íntimo, com aquela liberdade que os casais
tinham de poder se tocar sem o medo da rejeição, porque um conhecia o outro ao
ponto de saber os limites do companheiro.
Um senhor caminhava de lixo em lixo, organizando cada um daqueles em
que havia um item descartado no lugar errado, como uma garrafa plástica no
orgânico ou uma casca de banana no reciclável, com uma determinação
incansável. Não muito longe dele havia outro senhor, patinando com uma
garotinha, que eu supunha ser sua neta, cada um em seu próprio patins e um
segurando a mão do outro.
Podia ser de se esperar que eu possuísse inveja da rotina comum de
pessoas como as que eu observava, mas o meu único sentimento era o de
gratidão por nenhuma outra pessoa estar em meu lugar, porque eu jamais
confiaria o cuidado de tanta gente nas mãos de qualquer um. A minha herança e o
meu legado eram o dever de cuidar de toda aquela gente com amor, algo que
sempre tive o desejo de honrar. Afinal, era a única vida que fazia sentido para
mim. E isso sempre ficava claro para mim quando eu tinha o privilégio de olhar as
pessoas vivendo.
Me desiquilibrei, mesmo sentada, quando um cachorro agitado veio para
cima de mim querendo brincar, o dono dele aparecendo ao meu lado com o rosto
corado e desesperado.
— Eu sinto muito! — o rapaz de cabelos castanhos se desculpou ao segurar
o cachorro quando voltei a me ajeitar, meu coração desesperado por ter sido
encontrada ali.
Tarde demais. Você foi descoberta e está ferrada.
— Você está bem? — ele quis saber ao se ajoelhar, segurando o cachorro
de uma raça desconhecida para mim. — O Picolé machucou você?
— Estou bem — murmurei com as sobrancelhas franzidas, meus olhos
concentrados nos verdes dele, que não demonstravam nenhum sinal de
conhecimento.
Ele não me reconheceu?

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— A coleira está com algum problema e fica soltando — suspirou ao


prender o animal, então afagar debaixo da orelha do cachorro com um sorriso
discreto. — Então me desculpa por ele ter assustado você.
— Não se preocupe com isso — falei ao continuar o analisando, porque ele
realmente não parecia estar me reconhecendo e o modo dele falar não era como
o de um irlandês.
Talvez esse seja o plano dele. Fingir que não a conhece e, então, fazer
alguma maldade quando você confiar nele.
Bom, então não irei confiar nele. Simples assim.
— Você o chamou de Picolé — comentei ao ajeitar minha postura, mas
então relaxá-la quando o cachorro agitou seu rabo e olhou para mim, parecendo
alegre por ter escutado o nome sendo dito por mim. — E você tem um sotaque
diferente ... É brasileiro?
— Sou — afirmou surpreso. — Como você adivinhou?
— Somado ao seu sotaque e ao fato de você ter dado um nome em
português para seu cachorro a única conclusão seria essa.
— Você parece uma pessoa incrível para se ter como amiga — comentou
aleatoriamente ao sorrir, então estendeu sua mão em minha direção. — Sou Gael.
Prendi minha respiração ao encarar a mão dele na espera de meu
cumprimento. Eu não podia ...
— Yarin — menti, o nome de minha dama de companhia sendo o primeiro
a surgir, ao apertar a mão dele o mais rápido que consegui.
Respire. Está tudo bem, é apenas um aperto de mãos. Respire e aja
naturalmente. Não deixe as lembranças tomarem conta.
Gael sentou-se ao meu lado e ficou com o olhar concentrado no campo,
acariciando o cachorro distraidamente enquanto respirava fundo. Eu apenas o
encarei confusa por vê-lo ficar ao meu lado, como se fossemos amigos de longa
data e não completos estranhos.
Como se você não estivesse dando abertura para um estranho sentar ao
seu lado e conversar com você!
Ele não sabe quem eu sou, como poderia perder essa oportunidade de
conversar com alguém que me acha uma estranha?
Meu Deus, o que deu em mim? Foi o pensamento que começou a me deixar
apavorada, meu coração bombeando o sangue com tanta velocidade que eu
estava começando a perder o ar. As possibilidades de estar ali com um homem
estranho ...
Está tudo bem, você só ficou empolgada pela novidade, mas não é o fim.
Você pode sair daí. Apenas se acalme e busque por uma saída.
Se ele fizer algo e eu chamar alguma ajuda, serei descoberta.

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Luana Trindade

Você irá sair daí, então comece se levantando.


— Com licença, tenho que ...
— Ah, mil desculpas! — Gael pediu ao se levantar apressado, eu dando um
passo para trás assustada. — Ainda estou me adaptando com a cultura irlandesa,
o que é estranho, porque minha família é irlandesa e eu conheço os modos deles,
então deveria estar muito adaptado com a cultura.
— Certo, agora eu irei embora para resolver minhas pendências.
— Olha, com certeza você está querendo ir embora para querer se livrar de
um estranho — começou com a respiração ofegante. — Mas me dê uma chance e
assim deixaremos de ser estranhos.
Antes que eu pudesse protestar ele deu continuidade em suas palavras.
— Você pode estar se perguntando o motivo de eu estar aqui na Irlanda,
mas como eu disse, minha família é irlandesa e se mudaram para o Brasil quando
eu ainda estava na barriga da minha mãe — contou ao se ajoelhar para fazer
carinho no cachorro, então voltar os olhos para mim. — Resolvi vir até aqui para
buscar por explicações sobre a partida de minha família, porque eu nunca entendi
o motivo deles terem apagado tudo da vida deles aqui. E essa experiência tem
sido como acordar de um sonho extremamente realístico, onde me deparo com
uma realidade estranha, como se não pertencesse a ela. É meio louco, mas ...
— Talvez eu o entenda — sussurrei com a respiração fraca.
— É muito bom escutar isso — admitiu com um sorriso fraco, os olhos
brilhando com as lágrimas que não iriam escapar deles. — Você pode me achar
ainda mais louco, mas senti que deveria ter vindo para esse parque hoje e ... Acho
que o Universo gostaria que nós dois tivéssemos esse encontro.
Pelo amor, se você cair nesse papinho ...
Talvez ele realmente acredite nisso. Não é, necessariamente, uma maneira
de ele me iludir com essa visão de mundo.
Apenas fique atenta.
— Vou deixá-la partir, mas ... Aceitaria o meu número de celular? —
indagou ao começar anotar algo em um caderninho que estava em seu bolso da
jaqueta de lenhador. — Não irei pedir o seu em troca, apenas lhe entregarei para
você decidir o que fazer com ele. Podemos continuar sendo apenas dois estranhos
ou amigos. Deixo essa escolha em suas mãos.
— O que você descobriu até agora? — indaguei ao pegar o número dele, o
sorriso de Gael maravilhado por escutar minha pergunta.
— Praticamente nada — suspirou rindo. — Mas todo esse mistério que a
minha mãe criou parece me deixar ainda mais determinado a ir atrás dessa
história perdida.
— Seu pai também nunca falou nada?

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— Não conheço o meu pai e ... Isso é o que me faz ter certeza de que ele é
o motivo para ela ter saído daqui, mas se ele não me quis era apenas falar, não
precisaria de todo esse mistério. Entende?
— Ela só deveria estar querendo te proteger da verdade — sugeri ao
ponderar nos motivos que levavam uma mulher grávida a abandonar a Irlanda.
Motivos? Isso está mais para motivo.
— Mas essa verdade que você está cogitando é tão óbvia para mim —
murmurou ao deixar o Picolé morder sua mão para brincar, então deixar de ficar
de joelhos para sentar apoiado na árvore. — E eu não me importo de ter sido
abandonado por meu pai.
— Essa não era, exatamente, minha teoria.
— Não? — questionou com o olhar sedento por respostas. — Qual era?
— Talvez seja melhor você abrir seu coração para sua mãe e pedir por
explicações.
— Eu não estaria aqui se ela tivesse feito isso quando tentei conversar com
ela. Então ... Apenas me diga a sua teoria, porque você é irlandesa, conhece as
possibilidades que eu estou longe de descobrir sozinho.
— Posso estar errada e isso só o deixará mais perdido.
— Já estou assim — insistiu.
Você sabe como é estar do lado dele, com infinitas perguntas e nenhuma
resposta para elas. E sabe, principalmente, que uma verdade cruel é melhor do
que o silêncio.
— Talvez você seja uma criança bastarda — comentei com uma voz suave
ao me ajoelhar ao lado dele. — E sua mãe foi embora para permitir que você
vivesse. O Brasil ... Vamos dizer que é uma terra acolhedora para esse tipo de
realidade, por isso que lá é um país tão receptivo e miscigenado.
— Você fala como se realmente fosse uma situação de vida e morte.
— Porque é, Gael. Por mais que o mundo inteiro esteja sob as leis do
Conselho Mundial, nenhum país funciona da mesma maneira.
— Ou seja, se eu for bastardo, eu estou correndo risco de vida por estar
aqui? — quis saber com as sobrancelhas franzidas e o olhar concentrado no
cachorro, que olhava para o dono como se sentisse algo errado no ar.
— Sim. E você não quer saber como as leis podem ser cruéis com crianças
bastardas.
— Eu realmente acho que o Universo desejava ver esse nosso encontro
acontecendo — suspirou ao me olhar em gratidão e temor. — Obrigado por me
contar isso.
— Você voltará para sua casa?
— Não enquanto eu não descobrir a verdade.

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Luana Trindade

— Boa sorte nessa busca, então — falei ao me levantar para partir. —


Lamento não ter sido capaz de convencê-lo.
— Não sou mais uma criança, talvez eu tenha uma chance de sobreviver ...
Antes de ir, me diga algo sobre você, Yarin, assim você não será uma completa
estranha para mim.
Observei o jovem por um momento, admirando a combinação de seus
olhos verdes claros com o cabelo escuro e ponderando nas opções que eu possuía
de respostas para sua pergunta.
— Estou em busca de meu passado como você — decidi revelar, pois não
era uma informação capaz de me expor para além do necessário. — A diferença é
que estou buscando pelo lado materno de minha árvore genealógica.
— Também lhe desejo sorte, Yarin — contou ao sorrir de leve antes de
voltar os olhos para o campo verde. — E acho que entendi o motivo que a trouxe
até essa árvore ... A humanidade é linda vista daqui.
— Ela é — afirmei ao respirar fundo.
— Ah, eu já estava me esquecendo, mas havia prometido a mim mesmo
perguntar para o primeiro irlandês o sentimento por saber que a princesa será
coroada. Tenho escutado a empolgação das pessoas em quase todos os lugares
que frequento.
O rapaz sabe adiar o fim de uma conversa.
— Considerando que nunca estive tão próxima de uma coroação é
extremamente animador — comentei ao me esforçar para não sorrir demais,
observando as pessoas pelo parque para me distrair. — Obviamente não serei
convidada para a cerimônia, mas não deixa de ser emocionante saber que a nossa
princesa se tornará a rainha.
Participar da coroação da princesa! Que ideia mais absurda! Refleti com
dificuldade para não rir.
— Entendo, porque também estou animado apenas de saber que vim para
Irlanda logo nessa época. É muita coincidência, não acha?
— Absolutamente.
Ah se ele soubesse ...
— Obrigado por compartilhar isso comigo, pois no Brasil a realeza parece
tão distante de nós que ainda fico admirado com a proximidade que vocês têm
com ela aqui — explicou. — Mas agora irei parar de roubar seu tempo. Até a
próxima, Yarin.
Apenas acenei com a cabeça ao me distanciar daquela árvore, feliz por ter
tido a oportunidade de conversar com alguém que não me conhecia pela primeira
vez na vida. Era uma sensação tão incrível!

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Enquanto caminhava pelo parque cabisbaixa me distraí com a conversa de


alguns grupos, ação que me fez perceber que Gael tinha razão. As pessoas
estavam ansiosas para a coroação, não apenas por eles voltarem a ter uma rainha
depois de dezesseis anos, mas por aguardarem o meu retorno depois de três anos
de isolamento. O retorno da princesa deles. E eles pareciam sentir minha falta de
modo tão intenso quanto eu sentia a deles e isso era, exatamente, a parte em que
eu havia mais dificuldade para compreender.
Como eles podem sentir falta da princesa que os abandonou por três anos?
Porque eles não consideram seu isolamento como abandono. Simples.
— Acredita que a carruagem da princesa passará na frente da casa de
minha vó no dia da coroação? — uma mulher indagou para outra com animação,
as duas sentadas em um banco, observando as crianças brincarem no parquinho e
eu passando pelo caminho atrás delas. — Nós iremos juntar a família para vermos
ela. Se quiser ir, o convite foi dado.
— Se eu quero ir? Com toda certeza! — exclamou empolgada — As
crianças irão adorar vê-la! E eu também, devo admitir.
— Bom, isso se conseguirmos ver algo pela janela — relembrou. — Mas
apenas de ver a carruagem dela será o suficiente.
Para poder parar e escutar a conversa delas eu precisei fingir ler uma placa
que contava a história do parque atrás delas, ficando tão concentrada para agir
naturalmente que meu corpo inteiro paralisou e o ar desapareceu de meus
pulmões quando senti um aperto forte em meu braço.
— O que você está fazendo aqui? — uma voz familiar e britânica perguntou
em um suspiro irritado no meu ouvido, que roçou minha pele e resultou em um
arrepio de pavor por todo o meu corpo.
— Nunca mais faça isso, Susana — mandei ao afastar meu braço de seu
toque com falta de ar, meu sussurro trêmulo muito controlado para as mulheres
não repararem em nós duas.
— Eu deveria estar te falando isso! — ela cochichou quando encontrei seus
olhos. — O que tinha na sua cabeça quando você decidiu sair sozinha?
— Eu queria deixar os pensamentos vagarem em um ambiente diferente.
Ela fechou seus olhos com força, respirando para recuperar a calma
enquanto eu pressionava as unhas nas palmas de minhas duas mãos. A minha
respiração controlada sendo para afastar todas as lembranças que havia invadido
minha mente após o toque de Susana.
— Vamos embora, Violet.
— Não use meu nome em público, Susana — falei ao aperfeiçoar minha
postura naquele momento, me irritando por causa de meu tremor. — Se bem que
seria ótimo me expor ... Quem sabe eu me liberte daquela prisão.

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Luana Trindade

Como se não tivesse sido você a se isolar.


— Prisão? Sério mesmo? O palácio é a sua casa!
— Igual a torre era para a Rapunzel — resmunguei ao pressionar as unhas
em meu bíceps quando tirei as mãos do bolso, a única coisa que me impedia de
me machucar sendo o tecido aveludado do sobretudo.
A minha criada revirou os olhos e ...
Aahh, como eu odeio chamar ela e as outras de criadas! Mas ... Qual
palavra eu poderia usar para me referir àquelas quatro mulheres incríveis que
cuidavam de mim desde sempre?
Segui a Susana por um caminho mais vazio até seu carro, o cuidado para
ninguém reparar em mim permanecendo até estarmos em segurança dentro do
veículo, que não demorou para ter seu silêncio interrompido.
— Você não deveria agir de modo tão irresponsável, Violet.
— O que você acha que poderia acontecer? — indaguei ao me escorar na
porta. — Todas as pessoas que estavam passeando pelo parque me pisoteariam?
Tamanha seria a emoção delas por me encontrarem em público? Eu sei me virar,
Susana. Não sou uma criança.
Ela revirou os olhos e deu a partida no carro com tanta intensidade que
parecia ser provável que ela quebrasse a chave no miolo.
Parece que você falhou em seu plano, pois alguém além da Yarin descobriu
que você veio para o parque.
Cala a boca.
— Avisei o Éloy sobre sua fuga e pedi para ele enviar alguns guardas
comigo, pois eu não queria correr o risco de vir até o parque sozinha e não a
encontrar.
— Muito inteligente de sua parte expor o que eu fiz para os soldados e o
Éloy — resmunguei com raiva. — Quero só ver quando essa informação chegar ao
meu avô.
Droga, Violet, por que você precisa ser tão rude com a Susana?
— Talvez você tome um pouco de juízo, porque está precisando —
comentou com o olhar atento no trânsito, o tom e sua voz dando a impressão de
ela estar falando sozinha. — Deus, você e a Yarin estão precisando ... Como
poderia ser inteligente sair do palácio sem nenhuma segurança?
Por poucos instantes acreditei que ela não falaria mais nada, porém eu
estava enganada. Precisei aguentar em silêncio os sermões da Susana durante
todo o caminho, pois era o que eu sempre fazia quando ela reclamava da minha
irresponsabilidade ou minha desobediência em relação a minha segurança, tudo
isso não passando de um exagero por parte da Susana, afinal, eu seguia as regras
à risca e, quando não o fazia, quase ninguém era capaz de descobrir, ou seja, nada

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de correr riscos. Afinal, essas eram as consequências de ser a única neta de Colm
O’Carroll: Você aprende a desobedecer sem ser descoberta.
Mas, voltando para a inglesa, eu não poderia dizer que sua bronca me
atingiu sem consequência, eu estaria mentindo se assim afirmasse. A verdade era
que toda a leveza que eu havia sentido por ver um pouco da vida fora do castelo
havia desaparecido junto de minha diversão por ter fugido de lá sem ser vista,
porque a raiva em suas palavras me levou a refletir no fato dela estar se
distanciando de mim nos últimos anos, principalmente depois de eu ter decidido
me afastar da vida pública por tempo indeterminado.
É como se ela fosse a próxima da lista e sair de sua vida. O pensamento
invadiu minha mente sem que eu pedisse por isso.
Foi um alívio e uma paz sentir e ver o carro parar no estacionamento do
palácio, pois o enjoo que eu sentia desde a primeira curva estava me matando.
Apenas desci do carro em gratidão, caminhando até uma das muitas passagens
secretas na frente da Susana, ainda tentando afastar a observação de como
parecia existir algo invisível a afastando de mim.
Eu era familiarizada com aquelas passagens como era com a palma de
minha mão, cada curva sendo conhecida pelo movimento de meu corpo e as
chaves ou alavancas sendo tocadas quase imperceptivelmente por meus dedos.
Não tardou para entrarmos na antessala de meu quarto, a verdadeira Yarin nos
esperando em um dos três sofás do cômodo, que eram elegantemente estofados
em um tecido azul escuro, com o corpo relaxado enquanto limpava as unhas
compridas e pontiagudas distraidamente.
— Vocês duas foram muito inconsequentes — Susana acusou com o
retorno de sua irritação ao ir até a mesa de canto para se servir da água do
bebedouro elétrico, um toque prático da antessala. — Principalmente você, Yarin
... Pelo jeito vinte e nove anos não foram o suficiente para lhe darem juízo.
— Pelo jeito trinta e seis anos foram o suficiente para lhe deixarem
insuportável — Yarin retrucou, o sorriso de provocação dela se intensificando
junto da vermelhidão do rosto pálido e rechonchudo de Susana.
— Yarin, não estou brincando! — vociferou. — Você tem noção que se algo
acontecesse com a Violet seria responsabilidade sua? Como você pôde ter
aceitado ajudar ela a sair daqui sozinha?
— Eu sei que você não está brincando, mas nada iria acontecer com ela —
falou com segurança.
— Não tem como garantir isso!
Eu as observava da saída da passagem enquanto respirava fundo para
diminuir o enjoo e para manter a calma, porque era sempre irritante quando elas
falavam de mim como se eu não estivesse presente.

23
Luana Trindade

— Olha, já se passaram dezesseis anos desde a última ameaça contra a vida


da Violet — Yarin iniciou sua argumentação calmamente. — Tenho certeza de que
se quisessem ela morta já teriam encontrado uma forma de fazer isso há muito
tempo. Agora se acalme e não tire a pouca liberdade que a Violet tem, mulher.
— Isso não é sobre liberdade — murmurou ao umedecer os lábios. — Essa
palavra nem deveria ter entrado na conversa, porque a Violet tomou a decisão de
se isolar sozinha, ninguém a proibiu de nada.
— Eu estou aqui, você pode falar na minha cara que eu é que quis me
trancar no palácio — resmunguei ao cruzar meus braços e ser ignorada.
— A questão é que a Violet só tem se colocado em situações de risco nos
últimos anos e ...
— Apenas vá descontar sua raiva em outro lugar, Susana — Yarin a
interrompeu com a expressão fria de repente. — Ninguém merece ser um saco de
pancadas.
— Você entendeu errado — falou ao esfregar os olhos cansada. — Eu só
não quero que ela morra um mês antes de ser coroada, Yarin. Não me importo
dela querer sair do palácio, gosto disso, mas não quando ela decide fazer isso sem
nenhum guarda para protegê-la.
— Eu já falei que sei me cuidar — suspirei ao deixar meus braços caírem na
lateral de meu corpo. — Nunca me colocaria em uma situação de risco, Susana.
— Sair daqui sozinha já é uma situação de risco.
— Mas eu tinha consciência do que estava fazendo! Eu estava segura!
— Igual sua mãe estava no quarto dela há dezesseis anos?
O silêncio não foi desconfortável apenas pela verdade, mas pelo fato de
nem mesmo a Yarin ter encontrado palavras para a contornarem e do olhar de
culpa que tomou conta da Susana por um piscar de olhos.
— Seja como for, eu sei de todas as coisas que aconteceriam se eu
morresse — sussurrei em derrota. — Não preciso de outra pessoa me lembrando
disso, eu mesma já me cobro o bastante.
— Então não tem sido o suficiente.
— Pense como quiser.
Quando entrei em meu quarto fechei a porta de madeira, um sinal claro de
que eu queria ficar sozinha, mas não demorou muito para a Yarin ignorar isso e
entrar nele sorridente, como se nada tivesse acontecido.
— Como foi? Conseguiu escutar várias conversas até a Susana aparecer e
estragar tudo? — perguntou antes que eu pudesse chegar na sacada para relaxar
a mente.
— Mais ou menos. Entretanto, aconteceu algo diferente ... Eu conheci um
rapaz e agora estou com o número dele.

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Legado Roubado

Ela arqueou as sobrancelhas, surpresa por eu ter feito algo do tipo, então
arrancou o papel de minha mão quando o tirei de meu bolso.
— Ele era bonito? — perguntou com um sorriso nem um pouco disfarçado.
— Não peguei o número dele pelos motivos que você pegaria.
Expliquei toda a história para ela quando nos sentamos em um dos vários
sofás que ficavam na sacada. Por fim, escutei o resmungo dela, sempre
acompanhado por sinais de sua mão, que significam o mesmo de suas palavras
ditas, apenas em uma língua diferente.
— Entediante, menos a teoria dele ser um bastardo.
Forcei uma risada e observei a Yarin pegar seu celular.
— O que você está fazendo? — indaguei com as sobrancelhas franzidas.
— Salvando o contato dele — e assim ela o fez, se virando em minha
direção com um sorriso envergonhado ao deixar o celular de lado. — Desculpa por
ter contado para a Susana sobre a sua fuga, mas quando eu vi o risco em que você
se encontrava ...
Franzi ainda mais minhas sobrancelhas ao encará-la, confusa por seu
pedido de desculpas. Entretanto, eu não deveria me surpreender, afinal, se existia
alguém que transitava da irresponsabilidade para a responsabilidade em um
piscar de olhos era a Yarin.
— Você não parecia preocupada durante a discussão.
— Nunca irei admitir que errei para ela — explicou ao jogar seu curto
cabelo castanho escuro para trás, momento que sua semelhança com a Kira
causou um grande aperto em meu coração. — Então, o que escrevemos para ele?
— Como eu me passei por você a ideia é continuar com essa mentira,
então você se apresenta e iremos esperar pela resposta dele.
Não muito tempo depois fomos interrompidas por uma batida na porta do
quarto, algo que me fez trocar um olhar desanimado com a Yarin enquanto eu me
levantava para atender.
— O rei solicita a presença de Vossa Alteza em seu aposento — um guarda
sentenciou após uma reverência quando eu abri a porta. — Tanto Sua Majestade
quanto o avô da princesa deseja ter uma audiência com Vossa Alteza.
Droga ... Meu avô só pode ter descoberto sobre minha fuga.

25
Capítulo 2
Fagulha
Meu coração bombeava o sangue com tanta velocidade que eu já estava
com calor e sem ar ao entrar no quarto de meu pai. Ele estava de costas, apoiado
no batente da porta da sacada, encarando o céu com uma mistura de azul e cinza,
seus ombros sempre parecendo carregar mais peso do que ele conseguia
suportar.
Ao seu lado estava o general de Leinster e braço direito de meu pai, Éloy,
que eu torcia por não ter sido o responsável em revelar sobre minha fuga ao meu
avô, pois ele sabia que eu havia estado no parque.
Observando os dois, lado a lado, eu só pude reviver alguns de meus
pensamentos mais antigos, que dizia sobre a semelhança entre os dois homens.
Ambos tinham o cabelo grisalho com poucas partes castanhas, o do meu pai quase
chegando em seu ombro e o do Éloy bem curto. Suas estaturas eram semelhantes,
assim como as feições do rosto. E eles não podiam ser tão parecidos de forma
aleatória. Eu tinha uma teoria, mas nunca encontrei nada que afirmasse ela e
muito menos coragem para perguntar. Não por não ter intimidade para fazer a
pergunta para os dois, mas por medo disso causar alguma reação horrível no
terceiro homem que estava ali no quarto.
E ele também era muito parecido com os dois. Na realidade, os dois eram
parecidos com ele.
— Decidimos quem será o seu parceiro na Damsha Oíche, como você havia
nos pedido para fazer — meu avô avisou com os olhos azuis fixos em mim ao
caminhar até uma mesa de canto, onde as bebidas eram sempre cuidadosamente
selecionadas por meu pai.
Meu pai não deveria estar tão tenso. Observei ao fechar a mão em punho.
— Quem será? — perguntei ao alternar meu olhar entre os três homens,
meu avô com uma postura arrogante, o Éloy e meu pai temerosos.
— Lucca Agnew — ele respondeu depois de beber a bebida em apenas um
gole.
— Quando vocês recusaram a minha sugestão de escolher o Dinesh ou o
Kyle como meu parceiro eu esperava que existisse uma razão inteligente! Não
burra! — falei, meu esforço sendo para soar com arrogância no lugar do
desespero.
Legado Roubado

Quando for argumentar com seu avô é sempre melhor demonstrar raiva no
lugar do medo, Violet. Só assim ele a levará a sério. Minha avó sempre aconselhou
e eu sempre levei suas observações sobre o meu avô a sério, pois ela nunca estava
errada sobre elas.
— Faz mais de duas décadas que não há coroações na Irlanda, é uma
benção a sua, não de outro herdeiro, estar dando um fim nesta pausa — ele disse
ao se aproximar de mim. — Principalmente em um momento em que as pessoas
começaram a discutir sobre o retorno do Império da Irlanda! Está na hora de
nossa família conquistar o lugar que ela me-
— E vocês acharam que seria sensato escolher o príncipe de pior reputação
para ser o meu parceiro na coroação? — indaguei ao rir com sarcasmo,
novamente lutando contra o medo que parecia prestes a dominar minha alma.
— Não temos culpa se você estragou a nossa relação com um dos reinos
mais importantes do mundo ao dar um fim para um namoro que nem havia
começado com o príncipe Giacomo — justificou com frieza, seus olhos azuis fixos
nos meus. — Ele seria seu parceiro ideal se você tivesse cumprido com o contrato
que vocês oficializariam um relacionamento em seu aniversário de dezesseis anos,
mas voc-
— Não era para ser ele — meu pai interrompeu com uma raiva controlada
ao se aproximar. — E lembre-se de tudo o que eu disse sobre o Lucca ser a escolha
perfeita para isso, pai. Por favor, eu não quero ter essa discussão novamente.
— E esta escolha vale a pena quando minha reputação está em risco? —
perguntei enquanto minha cabeça buscava por algum sentido nas palavras dele.
Como ele pode achar que o Lucca será meu parceiro ideal na dança mais
importante da Irlanda?
Antes que algum deles respondesse, meu pai pediu para os outros dois nos
deixarem sozinhos, algo que meu avô, surpreendentemente, concordou, claro que
sem deixar de observar que eu puxei o maior defeito de minha mãe: a teimosia.
Sem que ele visse, eu sorri diante da observação, pois era sempre maravilhoso
quando alguém me comparava com minha mãe.
Meu pai se aproximou suavemente quando eu cruzei meus braços contra
meu tórax, abaixando seu olhar para meu rosto. Em momentos como esse, em
que sua altura ficava acentuada, eu me sentia uma criança pequena em busca de
abrigo no pai.
— Violet — chamou com carinho ao se aproximar de mim, apertando meu
ombro com cuidado. — Eu sei como tudo o que dizem sobre ele é terrível ... E o
quanto isto a perturba profundamente — sua voz ficou mais baixa e gentil. — Mas
preciso de sua confiança quando eu digo que ele é a melhor escolha e é inocente.
Todos os boatos sobre ele não passam de mentiras.

27
Luana Trindade

— Pai — suspirei ao sentir minha voz vacilar, o aperto dele em meu ombro
me dando confiança para continuar falando. — Até concordo que todos os
argumentos contra ele são vagos, mas se ele fosse inocente já teria sido absolvido
de todas as acusações há mais de um ano e ... Não consigo deixar de pensar que
ele é igual ao Giacomo. Como poderei fazer uma boa apresentação em minha
coroação se ele nunca me deixaria confortável?
— Confia em mim?
— É claro, mas não no Lucca. Isso eu não posso fazer.
— Olha — meu pai respirou fundo ao ajeitar sua coluna, parecendo ficar
ainda mais alto, não de modo intimidante, mas sim protetor. — Conversei com os
pais dele e ... Eles também não gostaram da ideia, pois sabem como sua reputação
é impecável em todo o mundo e que, tendo o Lucca como parceiro, ela correria
riscos. Entretanto, nós precisamos firmar nossa relação com Ulster. Precisamos
nos apoiar neste momento.
— Por quê? Não tem nada de errado acontecendo no mundo, pai.
— Eu prometo que um dia tudo fará sentido — garantiu com os olhos
marejados. — Mas, por enquanto, saiba que os Agnew precisam de nossa ajuda. E,
um dia, nós é quem precisaremos da ajuda deles. Você precisará do apoio dos
Agnew.
— Nós temos tantos aliados fortes, pai — suspirei, começando a me cansar
de sua insistência. — Os Ferronays, Kimura, Gupta ... Os conselheiros me adoram!
Até os MacKenzie, que mesmo nunca tendo os conhecido de verdade, sei que nos
apoiam por causa de minha mãe.
— É diferente, Violet.
— Então me explique. Por favor.
— Você não vai entender ... — murmurou ao dar um passo para trás, seu
olhar se perdendo no cômodo. — Só preciso de sua confiança. Um dia todas as
respostas virão, isso posso lhe garantir.
Grunhi irritada, mas acabei concordando com ele, pois eu sabia não existir
outra opção além de aceitar o Lucca como meu parceiro de dança. Por fim, saí de
seu quarto e caminhei sem rumo pelo corredor, percebendo seus movimentos
suaves e silenciosos de imediato.
— Caminhe ao meu lado, Éloy, não precisa ficar para trás.
— Eu só quero dizer que sei como o Lucca nunca foi seu príncipe favorito,
mas ... Ele não é uma pessoa ruim, Violet — comentou ao me observar de relance.
— Ele pode possuir um comportamento terrível para um herdeiro, mas isso não o
torna ruim. Talvez inconsequente?
— Para mim os Agnew são apenas malcriados — resmunguei ao dar de
ombros. — E imaturos, insuportáveis, orgulhosos e soberbos.

28
Legado Roubado

— Eles nunca fizeram nada contra você para você possuir essa visão.
— E precisavam? Apenas o modo como eles sempre lidaram com a maioria
dos tutores do Conselho me fez possuir essa visão — destaquei com o coração
acelerado pela indignação. — Agora o mundo irá associar tudo isso a mim.
— É realmente provável que sua reputação sofrerá certo ataque, mas não
será para sempre — admitiu ao parar de andar no topo da escada quando íamos
descê-la. — O povo confia em você, Violet. Eles irão confiar que o Lucca é
inocente se você acreditar nele.
— Essa é a parte difícil, Éloy. Você me conhece, sabe que eu não posso
confiar nele de um dia para o outro.
— Ainda bem que você tem um mês inteiro para se aproximar do príncipe
— falou ao sorrir de canto. — Caso ele seja o príncipe dos boatos, diga nas
entrevistas que essa escolha foi tomada para você decidir se os boatos eram ou
não verdadeiros, visto que eles são tão contraditórios. As pessoas verão que você
é uma mulher cautelosa, que gosta de tirar conclusões por você mesma e não por
terceiros.
É um bom ponto, devo admitir.
Ainda mais por ser algo que você faria.
— E caso ele se mostre bom eu devo defendê-lo?
— Tenho certeza de que seu apoio mudaria a vida dele e isso criaria uma
parceria fundamental para o futuro de seu governo, Violet. As pessoas veriam que
há sinceridade no relacionamento de vocês ...
— Espera um momento — pedi ao movimentar minhas mãos, falando com
minha voz e por meio da língua de sinais, um hábito que persistia em momentos
de muita concentração. — Eu não me liguei antes, mas o plano de vocês é de
insinuar uma aproximação romântica entre o Lucca e eu para alimentar a ideia de
tornar a Irlanda um país unificado? Isso é inteligente e me sinto burra por não ter
chegado nessa conclusão antes.
— Não exatamente, mas foi essa justificativa que usamos com seu avô. A
verdade é que seu pai parece mais focado em firmar a aliança entre Ulster e
Leinster, não de modo a arranjar um casamento entre os herdeiros, mas para criar
uma rede de apoio. Rede essa que lhe daria suporte para você ser a imperatriz da
Irlanda. Mas não devo ignorar o fato de que o povo não enxergará dessa maneira,
mas sim como a possibilidade de um casamento entre dois herdeiros irlandeses.
— Então é como se os Agnew estivessem votando em mim para ser
imperatriz? — Me perguntei ao franzir as sobrancelhas. — Éloy, isso não faz
sentido algum. Ninguém, em sã consciência, desejaria colocar outra pessoa como
sua superior sem nem, ao menos, conhecer suas capacidades de liderança.
— Os Agnew parecem confiar em você para essa posição.

29
Luana Trindade

— A ideia de império é um absurdo, não consigo cogitar como algo


próximo de nós — suspirei. — Acredito que a Irlanda chegará nisso em algum
momento, mas não tão cedo. E nunca que confiariam tanta responsabilidade a
uma garota inexperiente ... Não sou a heroína de um livro de fantasia, que de uma
hora para outra tem capacidade para salvar o mundo.
— Violet, você entende que a sua coroação será a primeira em vinte e
quatro anos aqui em nosso país? — ele quis saber com seriedade. — Sempre que
há uma coroação na Irlanda questões como essa são relembradas. É verdade,
talvez não comecem a discutir isso tão cedo, pode demorar anos. Décadas! Talvez
você nunca veja isso acontecendo! Porém, você precisa estar preparada para isso,
porque você é uma das herdeiras mais promissoras do mundo — relembrou com
certo orgulho. — Realmente não é a heroína de um livro de fantasia, mas você é
Violet O’Carroll, a princesa herdeira de Leinster ... Isso já basta para você não ser
uma garota aleatória que, de repente, se encontra diante de uma enorme
responsabilidade. Não. Essa responsabilidade a acompanha desde o dia de seu
nascimento e, por tudo isso, está preparada para ser a líder de nosso país.
— Ser princesa não é o mesmo que ser rainha, muito menos como ser uma
imperatriz — relembrei, não por me desmerecer, porque eu conhecia minhas
capacidades, mas por medo de cair em uma ilusão tão tentadora.
— Veremos quem tem razão — murmurou com um suspiro. — E eu duvido
que será você, Violet.

Depois de uma caminhada reflexiva pelas passagens secretas do castelo,


retornei para o meu quarto, pois havia sido informada pelo Éloy que o Lucca
chegaria em algumas horas para o nosso primeiro ensaio e eu precisava estar
pronta para isso. Quando cheguei em meu quarto me surpreendi por ter ido até
ele tão rápido.
— Violet! — Yarin, que provavelmente estava finalizando alguns detalhes
da agenda dos participantes da Damsha Oíche em meu quarto, disse com um
sorriso ao me ver saindo do closet. — Ele respondeu!
— Quem? — perguntei com as sobrancelhas enrugadas.
— O Gael.
— Eu tinha me esquecido — admiti ao massagear minha testa. — E qual foi
a resposta dele aos nossos cumprimentos?
— Ele pediu recomendações de lugares para conhecer em Leinster e eu
sugeri por você, tudo bem?

30
Legado Roubado

— Claro, eu teria pedido para você conversar com ele de qualquer forma —
falei ao sentar-me no sofá e soltar um longo suspiro. — Não é como se eu pudesse
recomendar algum lugar.
— O que foi? — ela perguntou ao ficar do meu lado, ignorando a situação
com o Gael instantaneamente ao perceber um pequeno sinal de vulnerabilidade
meu.
— O Lucca vai ser o meu parceiro na Damhsa Oíche.
— Sério? — Yarin fez uma careta.
— Infelizmente.
— E quando os ensaios começam?
— Essa noite.
— Tão empolgante — resmungou com sarcasmo.
Assenti ao engolir em seco e encarar a Yarin com relutância.
— Você poderia me acompanhar no ensaio? — perguntei com a voz fraca,
torcendo para ela enxergar as entrelinhas de meu pedido.
— É claro, Violet.
— Obrigada.
— Imagina, gatona.
Ela se levantou e bateu as palmas, de repente animada.
Yarin sendo Yarin.
— Quanto tempo temos?
— Talvez uma hora?
— Perfeito! Vou arrumá-la e então descemos para ficar com as meninas —
ela disse ao segurar minhas mãos e me puxar para poder levantar.
A Yarin passou um óleo de sua marca em meu cabelo e, infelizmente, me
fez trocar a calça e blusa por um vestido de manga longa azul marinho que ficava
na altura da panturrilha. Era um vestido simples, sem detalhes ou outras cores
além do azul como o de meus olhos.
Não demorei para seguir a Yarin quarto à fora quando ela terminou de me
arrumar, até chegarmos nas dependências que ela e as outras compartilhavam
como se fosse um apartamento no andar abaixo do meu quarto, onde havia
quatro suítes com escritórios e um pequeno closet para cada uma, além da sala de
estar que tinha uma parede inteira de vidro que proporcionava uma linda vista
das árvores que ficavam no espaço interno dos muros. Elas não viviam ali, tinham
suas próprias casas e famílias (menos a Yarin, ela morava sozinha no centro da
cidade com suas duas gatas), mas cada uma tinha seu espaço individual para
descansar ou trabalhar.
— Você não deveria estar trabalhando? — Yarin questionou ao encontrar a
Susana sentada em uma poltrona na sala.

31
Luana Trindade

— Fiz uma pequena pausa, minha cabeça já estava doendo com todas as
papeladas com os gastos para a coroação — ela explicou ao cruzar suas pernas. —
E é a Zoe e a Violet que fazem essas perguntas.
— Justo.
— Falando na Zoe, onde ela está? — perguntei.
— No ateliê dela — Dinah respondeu ao apontar com a cabeça na direção
do corredor que levava aos dormitórios enquanto procurava por algo no armário
da sala, mas assim que ela jogou o cabelo castanho ondulado para trás eu soube
que ela desistiu de sua busca. — Vamos lá, eu a estou ajudando hoje.
A Zoe havia transformado o espaço da suíte que seria o seu escritório em
um ateliê encantador. As paredes foram pintadas em um bege delicado, afinal, os
mais variados tecidos que a Zoe possuía eram os responsáveis por trazer cor ao
espaço, seria exagero pintar as paredes com cores fortes.
Na parede em frente à entrada, onde as janelas ficavam, havia uma mesa
comprida com duas máquinas de costura e, na parede à direita, um suporte com
linhas de todas as cores imagináveis. No centro do ateliê se encontrava uma mesa
retangular e, ao lado, o manequim com meu vestido para a coroação se
destacava. Por fim, na parede esquerda, uma estante com todos os materiais
usados na costura tomava conta daquela parte.
— Oi querida, não consegui vê-la o dia inteiro — Zoe cumprimentou ao
abrir seu sorriso tão doce e se afastar do manequim, apenas para me abraçar com
carinho. — Hoje acabei me atrasando por causa de alguns imprevistos com as
crianças e por isso nem tive tempo de ir ver você mais cedo, ainda mais porque eu
trouxe o Dapo e ele está muito mal, então nem estou conseguindo sair daqui do
quarto hoje.
— A Ayo pelo menos foi para a escola sem reclamar? — Yarin indagou
quando a Zoe se afastou e ajeitou meu cabelo com a naturalidade de sempre, o
olhar cansado da segunda deixando claro qual era a resposta.
— Hoje a Ayo ficou mais insistente do que sempre — suspirou com
cansaço. — A desculpa de hoje é que se ela não fosse para a escola poderia ficar
cuidando do Dapo enquanto eu trabalhasse, mas vocês a conhecem e sabem que
ela daria mais trabalho do que o Dapo.
— Zoe, você sabe que quando o Zaki vai para Dundalk com o pai dele as
crianças são bem-vindas aqui — comentei na esperança de apoiá-la. — Somos
uma equipe e tanto.
— Eu sei, querida, mas ela e os meninos estão em semana de provas, se
eles ficassem aqui não iriam estudar e iriam nos atrasar para os preparativos da
coroação. Além disso, meus pais estão cuidando dos três.

32
Legado Roubado

— Essa conversa me faz pensar naquele provérbio de marido distante,


perigo constante — Yarin murmurou, a Zoe e a Dinah a encarando com aquela
irritação reservada apenas para as piadinhas dela. — Só estou brincando, garotas.
Pelo amor ...
— Violet, como você pôde ter dado razão para a Yarin quando ela apoiou
você para sair do castelo? — Dinah quis saber em incredulidade. — O apoio dela
deveria ter servido de alerta para você.
— Deixei o desejo de sair do castelo falar mais alto que a minha razão —
admiti, sorrindo para a Yarin quando ela fingiu uma expressão de traída. — Zoe,
sei que sempre falo isso, mas o vestido está cada vez mais lindo. É melhor do que
eu poderia me permitir sonhar.
A a paixão da Zoe em fazer os meus vestidos sempre fora perceptível em
cada detalhe de seu trabalho, um fato que tornava impossível não sentir alegria e
gratidão, porque seu carinho com aquela atividade me fazia admirá-la por
completo. Além disso, eu me orgulhava pelo dom dela em criar roupas tão belas.
Para mim, Zoe era a maior estilista do mundo.
— Também estou gostando do resultado — ela admitiu daquele seu modo
delicado e confiante. — Não vejo a hora de vê-la vestindo-o.
— E eu não vejo a hora de ver as notícias do retorno da Princesa Violet —
Yarin falou com uma expressão sonhadora. — Está na hora dos Agnew perderem
um pouco do protagonismo nos noticiários ... Se bem que o Lucca o recuperará
assim que revelarem que ele será seu parceiro na Damsha Oíche. Pelo menos você
dará uma ofuscada na Kelly, porque ninguém mais aguenta saber quem foi o novo
homem que ela levou para a cama, já sabemos que ela passou o rodo na metade
do mundo.
— Você já parou para refletir que o seu linguajar é como o de uma
adolescente sem futuro que só acompanha o Palácio dos Escândalos? — Dinah
indagou com uma careta. — Depois não sabe o porquê ser tão difícil encontrar um
homem bacana ...
— Isso foi cruel — Yarin observou, enquanto isso, Dinah parecia
concentrada nos próprios pensamentos.
— E olha que ela só anda em boa companhia — Zoe murmurou ao voltar
sua atenção para o vestido com um suspiro.
— A verdade precisa ser cruel, Yarin — Dinah continuou ao ajeitar seus
óculos. — Mas acho que com você isso não funciona. Aparentemente, nada é
capaz de lhe dar maturidade, nem mesmo as dores da vida.
O olhar da Yarin vacilou por um instante antes de ela voltar com a
expressão de diversão no rosto, como se nada no mundo fosse importante. Mas
nós a conhecíamos, sabíamos que atrás daquela máscara existia uma mulher, não

33
Luana Trindade

uma garota imatura. Só faltava entendermos o porquê de ela se esforçar tanto


para mantê-la nas sombras.
— Espera — Dinah pediu, de repente. — O Lucca vai ser o seu parceiro?
— Sim — confirmei ao respirar fundo, me apoiando com os braços no
balcão que ficava no centro do ateliê, então explicar toda a situação para elas. Foi
no final de toda a explicação que a Susana entrou no ateliê, todas nós ficando
quietas ao observá-la se movimentar pelo cômodo. Era estranho como sua
presença vinha nos deixando temerosas com tanta frequência.
Ela foi para perto de mim e da Zoe, de modo a facilitar a visualização do
enorme contraste entre as duas mulheres mais velhas do nosso quinteto. A
Susana era corpulenta e baixa, diferente da Zoe que tinha um corpo esguio. O
cabelo loiro e liso da primeira criava um contraste maior ainda em comparação
com o castanho e crespo da segunda, assim como sua pele branca perto da pele
preta da Zoe.
— Como a porta estava aberta eu escutei tudo da sala — a loira contou ao
sentar-se em um dos bancos que serviam de conjunto com a mesa onde as
máquinas de costura ficavam, seu tom e suas palavras nos dando a impressão de
termos dito algo errado. — E achei o argumento do Éloy para você aceitar o Lucca
como parceiro muito convincente — Yarin revirou os olhos. — Algum problema,
Yarin?
— Apenas desgosto de elogios dados ao Éloy.
— Não entendo a razão de você não gostar dele, Yarin. Ele é muito
profissional e merece ser elogiado.
— Meu santo não bate com ele — justificou ao dar de ombros. — Igual
nunca bateu com o seu.
— Chega — Zoe interveio antes que a Susana respondesse a Yarin, ela se
afastando do manequim e encarando as mulheres com seriedade. — O que está
acontecendo com vocês hoje?
— Eu e a Dinah nos alfinetamos todos os dias, é normal — Yarin falou
dando de ombros, Dinah concordando com discrição. — E quanto a Susana ...
Bom, estamos falando da Susana e eu.
— Deveríamos estar em um ambiente mais harmonioso — Zoe opinou ao
sentar-se no banco ao lado do da Susana, como se buscando um rápido descanso.
— Ele nunca existiu — comentei com um sorriso de canto, as quatro
mulheres rindo com suavidade, bom, a Susana nem tanto, ela não era de rir
muito, de qualquer maneira.
— Nem quando a minha tia estava com a gente — Yarin relembrou com o
olhar perdido, mas com um sorriso sincero e fraco no rosto.

34
Legado Roubado

O silêncio do luto sempre marcava sua presença ao mencionarmos a Kira


em uma conversa, pois a morte dela deixou um vazio em todas nós. Por mais que
tenhamos aprendido uma rotina sem a sua presença, tudo parecia incompleto e
mórbido.
O celular das quatro vibraram e então escutei o suspiro da Yarin antes que
eu dissesse o quanto sentia falta da Kira.
— O Lucca acabou de chegar e você precisa recebê-lo.
Nem para ele ser de outro país ... Outro continente.
— Vou esperar você no salão — Yarin avisou ao afagar meu braço antes de
deixarmos o cômodo.
Eu poderia caminhar com toda calma e lentidão que era possível até chegar
na recepção no térreo do castelo, mas eu sempre preferiria arrancar o curativo de
uma vez e, por isso, fui para a recepção rapidamente.
— Ah! Você já está aqui! — meu pai observou ao acelerar seus passos para
me alcançar. — Pronta?
— Não — admiti ao rir com desespero.
Ao pararmos diante da porta da recepção o meu pai, com um olhar que
não pude interpretar, se concentrou por completo em mim.
— Lembra que esse é o seu primeiro reencontro depois desses três últimos
anos? — perguntou após pedir que os guardas esperassem para abrir as portas de
madeira.
— Não tinha pensado nisso — comentei ao ficar mais angustiada. — Eu
pensava que seria a Akemi ou a Juliette — compartilhei ao respirar fundo. — Não
o Lucca.
— Foi o que pensei, por isso fiz a pergunta ... Vamos fazer esse reencontro
ser bom, está bem? — prometeu com seu olhar tão presente ao apertar meu
ombro com carinho. — Mesmo que não seja com a pessoa que você esperava.
— Certo.
Fechei meus olhos e respirei fundo.
— Podem abrir as portas — autorizei aos dois guardas.
A porta dupla de madeira foi aberta em câmera lenta, em minha
percepção, revelando a luxuosa sala de espera do palácio e, sentado, em um dos
sofás estava o herdeiro do reino vizinho de Leinster. Lucca Alec Agnew, o próximo
rei de Ulster e meu parceiro na principal dança que acontecia em todas as
coroações dos quatro reinos da Irlanda há quatro séculos.

35
Capítulo 3
Concentração
Assim que eu o vi, meu corpo travou. Eu não deveria ter aceitado tê-
lo como o meu par na Damsha Oíche, porque eu poderia ...
Confie em mim, Violet. Lembrei do pedido de meu pai quando ele
tocou meu braço com suavidade, que foi suficiente para me deixar mais
focada naquela recepção.
O Lucca e eu tínhamos sido “amigos” em nossa infância, assim como
fui de suas gêmeas inseparáveis, Kelly e Sheila, tudo não passando da
conveniência de sermos os herdeiros mais jovens da Irlanda. Porém, chegou
um momento em que me cansei da constante irreverência e falta de
respeito dos trigêmeos Agnew, o que me fez tomar distância deles.
Adolescentes que viviam fazendo brincadeiras humilhantes para as pessoas
mais velhas apenas mostrava o tamanho da imaturidade deles. Então os
boatos surgiram para intensificar meu desgosto pelo príncipe.
— Seja bem-vindo, príncipe Lucca — falei mantendo uma expressão
formal e distante quando ele se levantou apressado do sofá, ajeitando o
terno com movimentos sérios.
— Muito obrigado — agradeceu com um sorriso pouco expressivo,
nada como o sorriso travesso que ele expunha ao mundo sem hesitação. —
É bom vê-la, princesa Violet.
— Digo o mesmo — menti, por educação.
Observar alguém de outro reino depois de três anos era confuso,
principalmente por esse alguém ser o Lucca. Seu cabelo loiro estava mais
curto do que o normal, deixando-o com a aparência muito mais madura do
que eu me lembrava, uma característica que se intensificava com o
cavanhaque bem aparado do príncipe, mas era sempre isso: Aparências. Não
me importava o que ele demonstrava por meio de sua imagem, eu sabia que
tudo aquilo não passava de uma manipulação para ele recuperar sua
reputação de santo, o que não fazia nenhum sentido, pois ele sempre foi o
oposto disso.
— Seja bem-vindo, príncipe — meu pai falou com cordialidade. —
Espero que tenha feito boa viagem.
Legado Roubado

— Muito obrigado, majestade — agradeceu com uma leve reverência


de cabeça, o respeito pela maior autoridade bem destacado em seus
movimentos firmes e sérios.
— Os deixarei agora para resolver minhas responsabilidades — meu
pai disse ao me observar com firmeza, parecendo me dizer que eu estaria
segura na presença do herdeiro de Ulster. — Espero que o príncipe tenha
uma boa estadia neste mês. Até mais.
Onde está o “Vamos fazer esse reencontro ser bom” de meu pai? Me
questionei ao encará-lo em busca de explicações, mas ele apenas retribuiu
meu olhar com firmeza antes de sair.
Voltei meu olhar para o príncipe assim que meu pai fechou a porta, os
olhos verdes de Lucca atentos em mim, parecendo analisar minha mudança
nos últimos três anos da mesma forma que eu fazia aquilo. E isso me deixou
apavorada, pois estávamos sozinhos ali dentro.
— Como a alteza está? — Lucca perguntou ao colocar as mãos nos
bolsos de sua calça social.
— Estou bem. E você, príncipe? — menti novamente enquanto
tentava esconder meu nervosismo por estarmos sozinhos.
— Também estou.
É claro que está ... Você machucou uma pessoa inocente e nenhuma
justiça foi feita ... Enquanto isso a vítima está sofrendo sozinha por uma
responsabilidade sua, mas que você nem mesmo sente o peso.
— Como o príncipe chegou no horário do ensaio nós poderíamos
subir ao salão agora, tenho quase certeza de que a nossa coreógrafa estará
nos esperando — falei na tentativa de afastar as lembranças que começaram
a invadir minha mente, pronta para iniciar uma atividade capaz de me
manter sã na frente dele.
Apenas se concentre no que importa.
— É claro — Lucca disse ao engolir em seco. — A princesa pode ir na
frente, acabei de lembrar que não avisei meus pais que cheguei em
segurança e eles pediram por essa informação.
— Irei aguardá-lo no corredor — comuniquei ao sair da recepção.
Enquanto esperava pelo príncipe, me concentrei em controlar minha
respiração e me preparei mentalmente para o ensaio. Nós iríamos dançar
juntos, com nossos corpos próximos e ...
— Tudo bem, alteza? — um guarda indagou quando me apoiei na
parede do corredor, tentando recuperar o ar.

37
Luana Trindade

Só tive forças para assentir com a cabeça, pois todo restante de meu
corpo lutava para recuperar o fôlego e, também, não deixar explicito que eu
não conseguia respirar.
E não adianta agir como uma mulher forte apenas na frente de seu
avô, faça isso na frente de todos, Violet. Na frente de nossos súditos, de suas
criadas e, principalmente, de nós. Sua família. Era outro conselho de minha
avó que eu seguia em minha vida.
Você só está ansiosa. Respire com calma para recuperar o controle.
Apenas respire.
— Vamos? — Lucca indagou com um tom de voz suave atrás de mim,
no instante seguinte em que eu ajeitei minha postura ao recuperar o ar.
— Vamos — confirmei ao ajeitar a manga de meu vestido com
distração, uma simples ação para me recuperar.
Iniciamos uma caminhada para o primeiro andar, onde o pequeno
salão era encontrado, em silêncio. Entretanto, não tardou para o herdeiro de
Ulster dar um fim à quietude dos corredores.
— A alteza e seu pai foram inteligentes ao me escolherem para ser o
seu par na Damhsa Oíche — Lucca comentou ao dar uma risada relutante.
— Devo corrigi-lo, pois não participei dessa decisão — comentei ao
ajeitar minha postura já ereta. — Meu pai a tomou por mim. Mas tenho que
concordar, ele foi inteligente.
O Lucca engoliu em seco e se concentrou no caminho, minha única
reação sendo a de franzir as sobrancelhas diante de uma ação tão vulnerável
por parte de alguém tão orgulhoso.
— Eu não sabia ... — ele murmurou com pesar.
— Por que você deveria saber de algo?
— Esqueça ... Enfim, aparentemente você chegou na mesma
conclusão que a minha em relação à essa escolha, correto?
Hm ... Alguém que conhece todas as partes de um plano não
precisaria chegar em uma conclusão sobre o objetivo de decisões
importantes. Será que ele não sabia sobre a reunião de seus pais com o meu?
— De que somos herdeiros irlandeses em um cenário onde isto é
visto como a possibilidade de um casamento? — foi o que decidi discutir
com ele. — E não apenas um casamento entre herdeiros, mas a porta para a
formação de um império?
— Exatamente. A única problemática sendo a minha reputação, que
pode, facilmente, comprometer a sua.
— Eu li o documento de todos os seus julgamentos — revelei ao
observá-lo com a máxima atenção que eu poderia oferecer enquanto

38
Legado Roubado

subíamos os degraus. — E admito que eles são um tanto vagos em relação às


provas da acusação. Entretanto, tomei a decisão de acreditar nos boatos por
causa de suas péssimas amizades. Além de cogitar a possibilidade de não ser
possível colher provas em algumas situações.
Fascinante como sua mente foi capaz de se distrair diante das
incógnitas que cercam o príncipe.
— Quais amizades? — ele quis saber com o rosto corado.
— Me recordo de seu grupo de amigos. Você também não deveria se
recordar, alteza?
— Você está falando do Lars, do Giacomo e os outros? — indagou
com a voz fraca. — Céus, eu não sou amigo desses idiotas. O único que
prestava naquele grupo era o Carwyn. Ele é, inclusive, meu único amigo no
meio real.
— Mas você foi amigo deles por um bom tempo, não deveria ter
percebido a péssima índole deles?
— Por apenas dois anos — corrigiu. — E isso só aconteceu por eu e o
Carwyn termos sido forçados a entrar no grupo deles em uma atividade do
Acampamento. Então o tempo foi passando e nós dois começamos a
conhecê-los melhor. Resumindo: descobrimos que não passavam de
babacas.
— Hm.
— Altezas! — a coreógrafa nos reverenciou quando viramos no
corredor do pequeno salão.
— Olá, Deirdre — cumprimentei com um sorriso suave.
— Só irei buscar algo antes de iniciar o ensaio, volto logo — avisou ao
se afastar com pressa, também conhecido como seu estado natural em
noventa por cento do tempo.
Ao entrarmos a minha primeira observação foi a Yarin encolhida em
um canto na lateral direita do salão, mexendo no celular com distração.
Bastou ver o coreógrafo que ajudaria a Deirdre nos ensaios para entender o
porquê de a Yarin estar quieta.
— Boa noite, altezas — o coreógrafo disse com uma reverência. —
Fiquem à vontade, só iremos esperar a Dee voltar.
Donald se afastou da entrada para anotar algo e eu fui até o banco
em que a Yarin estava enquanto o Lucca tirava seu paletó ao caminhar até o
banco perpendicular ao nosso, uma distância razoável para a Yarin e eu
termos privacidade.

39
Luana Trindade

— Dá para acreditar que o Donald irá ser o seu coreógrafo? — Yarin


resmungou. — Pensei que ele nunca mais voltaria para Leinster depois de
ter conseguido uma proposta de emprego em Munster.
— Você não deveria se estressar com ele, Yarin — comentei ao
observá-la de relance. — Ele não merece isso de você ...
— Você tem razão — falou ao respirar fundo. — É só que ... Ver ele é
uma recordação daqueles anos.
Eu tinha apenas doze anos na época em que o Donald foi namorado
da Yarin, mas me lembrava de como ele foi insensível ao terminar o
relacionamento deles por meio de uma mensagem no momento de maior
vulnerabilidade dela. A Yarin poderia tê-lo superado, mas eu nunca diria o
mesmo sobre os eventos de seis anos atrás.
— Imagino que sim — foi tudo o que consegui dizer ao apertar a mão
dela com suavidade, porque ela só precisava saber que eu estava ali por ela,
antes de desviar meu olhar para o príncipe.
Observei o Lucca de relance enquanto ele dobrava a manga de sua
camisa social, me estranhando com seu agir calmo e distante, pois não
parecia com o Lucca atrevido e extrovertido que eu conhecia. Com muito
esforço tentei buscar em minha memória alguma notícia sobre ele e sua
família que pudesse explicar suas emoções, mas não havia nada. Na
realidade, fazia um tempo que sua família não entrava nos noticiários, até
mesmo a Kelly tinha desaparecido do Palácio dos Escândalos, o blog que
atormentava a vida de todos os membros da realeza, menos a de Kelly
Agnew, que se divertia com isso.
Talvez as consequências de não seguir o manual do Conselho Mundial
tenham entrado em vigor e eles foram afastados de tudo. Ela, ao menos.
De qualquer maneira, tudo no Lucca o resumia a uma grande
incógnita. Desde seu estranho comportamento até a falta de provas para
comprovar as acusações contra ele. Ou eu não estava enxergando a situação
com clareza ou uma parte da história do príncipe permanecia nas sombras.
Eu diria que era a segunda opção, considerando o silêncio tão anormal de
sua família.
Confie no Lucca.
— Voltei! — Deirdre avisou com empolgação ao entrar no salão
minutos depois. — Antes de iniciarmos a coreografia eu gostaria que as
altezas sentissem a música. A Damsha Oíche não deve ser apenas uma
dança, precisa ser um show que deixará todos os convidados de queixo caído
e, com certeza, arrepiados! Mas, para isso, eu preciso que os dois se
conectem com a música.

40
Legado Roubado

Assim que o som de um violino soou com suavidade pelo salão eu


sorri espontaneamente, reconhecendo a música de imediato. Há poucas
semanas eu havia separado todas as músicas que haviam criado para a
minha coroação e aquela era a minha favorita da lista, eu teria ficado triste
se ela tivesse sido considerada para, apenas, tocar durante a festa e não
para ser uma das selecionadas para a Damsha Oíche.
— No momento que a escutei soube que essa seria a primeira música,
tem a essência irlandesa que eu procurava — Deirdre revelou com um
sorriso antes de elogiar o meu gosto musical, comentário que agradeci com
um sorriso e aceno positivo de cabeça. — E eu não posso esquecer que a
primeira etapa é focada em apresentar a cultura irlandesa, então ela se
encaixou perfeitamente em minha imaginação.
Cumprindo com a observação da coreógrafa, ficamos todos em
silêncio, a única voz sendo a de Deirdre em momentos de clímax da música,
sua voz soando maravilhada em relação aos próprios pensamentos.
— Conseguem imaginar o salão do palácio de Uisnech todo iluminado
e com os dois dançando? — perguntou com os olhos fechados e um sorriso
de puro encantamento. — Os instrumentos em harmonia?
A Deirdre e o Donald apresentaram a coreografia assim que
escutamos a música inteira. E a dança era perfeita, principalmente para dois
irlandeses, visto que era um conjunto perfeito, e quase estereotipado, de
uma música e dança tradicional irlandesa. O que amenizava o clichê era a
mistura do jig com a valsa. Ainda assim, existia um simples problema, que eu
soube ter passado na mente da Yarin quando ela me olhou de relance rindo.
Eu tinha vergonha de dançar jig, por mais que adorasse o estilo.
Céus, se a Kira estivesse aqui ela teria me puxado para a dança e faria
de tudo para me fazer perder a vergonha. Só depois disso é que ela me
permitiria partir para os ensaios.
— Só consigo imaginar a minha tia puxando você — Yarin sussurrou
no meio da apresentação com uma risada fraca.
— Eu também — admiti ao respirar profundamente e rir com a
mesma suavidade que a Yarin, a saudade de Kira sendo praticamente
insuportável. — Pensar nela me fez perder um pouco da vergonha, pois será
como honrar a memória dela com algo que a definia mais do que muitas
palavras.
— Não mais do que Guinness — destacou ao fazer o sinal da última
palavra quando a primeira lágrima escapou de seus olhos, então segurar
minha mão e pressioná-la com carinho quando voltou os olhos azuis para os

41
Luana Trindade

coreógrafos. — Pense mesmo nisso, pois você irá honrar a memória dela e a
de sua mãe ao dançar e isso irá ajudá-la a perder a vergonha. Tenho certeza.
Por mais que eu carregasse um desejo profundo de honrar o nome de
duas mulheres que eu havia perdido, o desespero que me invadiu ao me ver
diante do príncipe Lucca foi mais forte. Me ver tão próxima de um
“desconhecido”, com meu corpo quase colado ao dele, acabou por me
encher de pavor, mesmo que eu tenha imaginado tudo o que poderia vir a
acontecer ao esperar pelo príncipe no corredor.
Os batimentos de meu coração se perderam nos compassos como
mais cedo, a respiração irregular a um ponto de se tornar uma falta de ar e o
suor se intensificando a cada instante. Eu nem poderia dizer possuir
consciência do presente depois que a Deirdre pediu para ficarmos na
posição.
— Posso? — foi a pergunta fraca e inesperada do loiro.
Assenti, mesmo que não tivesse entendido seu pedido de imediato, a
compreensão só veio quando ele colocou suas mãos em minhas costas e a
outra segurou a minha mão, então, com um movimento automático,
coloquei a outra em seu braço.
Ignore a mão dele. Apenas ignore e se concentre na música.
Não aguentei manter o meu olhar em seu rosto, então tentei me
concentrar na gola de sua camiseta, onde logo passei a encarar uma cicatriz
reta em seu pescoço. Ela deveria ter pouco mais de cinco centímetros e
estava muito alinhada, como se tivesse sido proposital.
Se concentre na dança. Pela Kira e por sua mãe.
Iniciamos a primeira parte da dança, que era valsa, sem a música e a
Deirdre nos guiou com suas palavras e interrupções para mostrar como
deveríamos fazer um determinado movimento (Violet, a alteza está um
pouco atrasada ... O giro deve ser desse outro jeito ... Perfeito! ... Se
concentre no tempo, alteza. Um, dois, três, quatro, cinco, seis ... Fiquem mais
próximos ... Concentração, princesa! Concentração!), até ela interromper a
música e voltarmos do início. Minha atenção sendo melhor na segunda vez,
mesmo que eu estivesse suando frio.
Se esforce mais! Você não está fazendo o suficiente, Violet!
Se esforce! Se esforce! Se esforce! Se esforce!
Eu precisava ter controle na frente das pessoas e eu precisava saber
controlar meus sentimentos. Se eu não fizesse isso, iria estragar a noite mais
importante da minha vida e não seria forte como uma rainha deveria ser.
É só uma valsa.

42
Legado Roubado

Repetimos a primeira parte até lembrarmos da maioria dos passos


sem a ajuda da Deirdre, depois avançamos para a parte em que o contato
físico entre mim e o Lucca era menos frequente em razão da mudança do
estilo de dança, um detalhe que me ajudou a ficar mais concentrada naquele
momento, logo, mais concentrada em sentir vergonha por fazer os saltos da
coreografia.
— Muita coisa precisa ser melhorada, mas como foi a primeira vez eu
devo elogiar ambos — Deirdre comentou depois que eu e o Lucca voltamos
para os bancos, um momento que eu respirei fundo repetidas vezes. — Não
chegamos no final da coreografia, mas avançamos mais do que eu esperava,
principalmente pelas altezas terem se mostrado capazes de realizar a
coreografia avançada que preparamos.
— Existia uma versão mais simples? — indaguei ao secar o suor que
escorria por minha testa, minha respiração ofegante.
— Sim, pois eu não tinha certeza de quem seria o parceiro da alteza e
precisava considerar a possibilidade de ele não saber dançar jig. Estou feliz
por termos um profissional, ou melhor, dois! Será realmente um espetáculo!
Se eu conseguir suportar tamanho sufoco e vergonha.
O ensaio com o meu pai foi mais tranquilo, principalmente pela dança
ser apenas uma valsa, nada de jig. Além disso, o desconforto que senti
durante o ensaio com o príncipe de Ulster não se repetiu com o meu pai, por
isso pude desfrutar mais do momento. Era bom poder dançar com ele,
afinal, fazia muito tempo que não tínhamos um momento de pai e filha
como esse.
No final do ensaio me despedi dos coreógrafos e saí do salão com a
Yarin, rumo ao dormitório que as outras estariam. Meu pai, lamentando não
poder me acompanhar, desceu para o térreo por requisitarem sua presença.
— Sua coroação será mágica — Yarin comentou quando chegamos
nas escadas e cruzou seu braço com o meu.
— Se tudo ocorrer como o planejado tenho certeza de que será.
Caminhamos lado a lado em silêncio, vozes surgindo apenas quando
chegamos no dormitório. Ou melhor, voz.
— Violet — meu avô disse ao se levantar do sofá de três lugares que
ele havia se sentado, as outras três mulheres apertadas em um de dois
lugares. — Eu estava conversando com elas sobre como o povo caminha por
uma linha tênue em relação às expectativas que criaram de você nesses
dezoito anos e como você precisará ser excepcional nesse último mês. Não
podemos permitir que os seus deslizes dos últimos anos acabem com a
oportunidade de nossa família conquistar os quatro reinos.

43
Luana Trindade

— Deslizes? Não me recordo de nenhum, vô.


— Como lhe disse mais cedo, você deu um fim patético ao seu
relacionamento com o Giacomo e ainda se isolou do mundo por três anos —
enumerou ao se levantar e ficar de frente comigo, sua altura e tamanho
corporal sempre intimidantes. — Não finja que não reconhece suas próprias
falhas, Violet.
— Eu e o ... Giacomo não possuíamos nenhum relacionamento, até
porque você e meu pai tomaram a sensata decisão de só me permitirem
namorar quando eu completasse dezesseis anos — murmurei, acenando
com discrição para a Zoe quando ela pareceu se preparar para levantar. —
Então, quando eu publiquei uma nota informando o fim do acordo feito com
o Conselho Mundial há quatro anos, em que permitiria um namoro entre o
Giacomo e eu a partir de meus dezesseis anos, não foi um deslize, mas a
melhor decisão da minha vida.
— Muitos italianos ainda se ressentem por você ter feito isso, Violet,
não podemos ignorar esse detalhe.
— Não tenho culpa se você achou que uma garota de quatorze anos
teria maturidade o suficiente para entender com o que ela estava se
comprometendo ao assinar aquele contrato idiota do Conselho — aumentei
minha voz ao fixar os meus olhos nos dele.
— Nós apenas confiamos que você estava comprometida com aquele
relacionamento! Não venha nos jogar responsabilidades que são apenas
suas! Você é a princesa herdeira e deveria agir como tal!
Para finalizar suas palavras com perfeição ele deu as costas e saiu do
cômodo com passos confiantes. Meu avô havia vencido aquela discussão e
não me daria a chance de mudar aquilo.
— Odeio esse velhote — Yarin resmungou ao se jogar no sofá em que
meu avô estava quando chegamos.
— Ele não está completamente errado — Susana opinou. — A Violet
realmente precisará agir com perfeição para a parceria com o Lucca não a
prejudicar.
— Isso é óbvio, Sus — Zoe suspirou ao se levantar. — Mas ele está
equivocado em afirmar que a Violet errou ao lançar aquela nota há dois
anos.
— Vamos apenas esquecer isso, a Violet não precisa se esforçar para
ser a melhor princesa possível — Yarin disse, convicta com suas palavras. —
Ela já é naturalmente.
— Gostaria que sim — murmurei ao olhar para cada uma delas e
sorrir. — Nos encontramos amanhã? Está na hora de vocês irem embora.

44
Legado Roubado

— Realmente — Zoe comentou ao olhar para o relógio analógico em


seu pulso. — Preciso buscar as crianças nos meus pais.
— Eu e a Yarin vamos ficar aqui a semana inteira — Dinah falou ao
abrir um sorriso animado. — E como está cedo poderíamos ver um filme.
— Amo vocês, mas a minha bateria social chegou ao limite e eu
preciso ficar sozinha — me desculpei com um discreto sorriso.
— Não se preocupe, você fica nos devendo — Yarin falou
inocentemente.
— Só não se esqueça que você já está nos devendo muitos filmes —
Dinah acrescentou ao trocar um sorriso com a Yarin.
— Vocês sabem que eu gosto de acumular os filmes para matarmos
tudo em um dia de folga — relembrei antes de me despedir delas e sair do
quarto sorridente, a Zoe vindo atrás de mim em seguida.
— Como foi o ensaio? — indagou ao caminhar do meu lado.
— A Deirdre gostou muito do nosso desempenho, então eu diria que
foi excelente e produtivo.
— Como o Lucca se comportou?
— Ele estava estranho — admiti e a Zoe assentiu pensativamente. —
Gostaria de saber a história completa, porque nada parece se encaixar.
— A verdade nunca fica escondida por muito tempo, Violet, então só
precisamos ter paciência para entender as motivações de seu pai ao escolhê-
lo como o seu parceiro — ela comentou com o olhar reflexivo.
— Meu pai falou alguma coisa para você? Normalmente ele adora
conversar com você sobre mim.
— Não, eu também fui pega de surpresa com essa decisão dele —
respondeu ao sorrir para mim com diversão.
Assenti em compreensão, então a observei com mais seriedade.
— Qual a sua opinião sobre ele? — perguntei, suavemente. — Seja
sincera, por favor.
— Sinto algo bom com o fato de ele ser o seu parceiro — admitiu ao
me olhar nos olhos e manter a seriedade na conversa. — Mas ainda é muito
cedo para entender isso.
— Você nunca sentiu isso com o Giacomo — sussurrei ao desviar
nossos olhares, suspirando ao encontrar a porta de meu quarto após
cruzarmos com alguns guardas. — Vou considerar como um ponto positivo
para o Lucca e ... Até mais, Zoe. Obrigada por me acompanhar.
— Não foi nada, Violet — ela suspirou ao ajeitar meu cabelo quando
paramos na entrada de meu quarto. — Durma com Deus.
— Você também.

45
Luana Trindade

— E não se esqueça de outra coisa muito importante — pediu ao


sorrir e erguer meu rosto para não ter a oportunidade de desviar o meu
olhar.
— Você me ama e minha mãe me amou — sussurrei.
— Com todo o coração — acrescentou ao respirar fundo. — Jamais se
esqueça disso.
— Não irei — prometi com meus olhos concentrados nos dela.
— Então boa noite e, para deixar mais claro, eu te amo e sua mãe a
amou em cada instante que pôde — declarou ao encher o topo de minha
cabeça com beijos e sorrir. — Até amanhã, querida.
— Amo você — retribuí suas palavras e nos despedimos com um
último abraço antes de eu atravessar as portas de madeira com a respiração
trêmula.
Ao adentrar a antessala de meu quarto os meus olhos percorreram as
paredes adornadas pelos quadros com atenção. Um deles retratava um céu
estrelado com a constelação de Órion em destaque e um segundo mostrava
uma lua crescente radiante, que conseguia me trazer uma serena e
reconfortante diversão. Outro quadro exibia a beleza de planaltos verdes,
um horizonte que desde sempre me encheu de conforto e pertencimento.
Os demais seguiam temáticas semelhantes, o conjunto de todos parecendo
captar uma parte minha que eu não conhecia.
Então, apenas desejando tomar um banho e vestir meu pijama, entrei
em meu quarto de decoração negligenciada. Os móveis de madeira nobre,
como a cama com dossel ao centro e a escrivaninha com entalhes de ouro,
eram imponentes, mas a ausência de detalhes chamativos fazia com que
tudo parecesse monótono e apático.
Como o quarto de uma monarca deve ser, Violet.
Ao lado da cama havia sofás dispostos em um U diante de uma
enorme televisão embutida na parede. O sofá do centro era estofado no
mesmo tecido que os da antessala, os outros dois em um tom claro de cinza,
sendo os três extremamente macios e aconchegantes. Como um toque de
discrição final ao espaço, uma mesa de centro de madeira, finamente
esculpida e ornamentada, completava o espaço.
Próximo à janela para a sacada, e para o outro lado da cama, havia a
escrivaninha com madeira nobre e uma cadeira confortável posicionada à
sua frente. E, como esperado, a mesa estava vazia de objetos decorativos.
Para finalizar, diante de minha cama, tinha uma porta de madeira
dupla que me levava ao closet e ao banheiro, sendo o segundo o meu
destino: Um banheiro com elementos de gesso e flores azuis desenhadas na

46
Legado Roubado

metade de cima das paredes, as duas cores harmoniosas no ambiente e


igualmente divididas.
Após meu banho fui para a antessala e encontrei meu jantar no
acompanhamento de uma caneca com chocolate quente, um acréscimo
comum da Zoe quando ela separava alguns minutos para me preparar a
bebida antes dela voltar para sua casa.
Levei a bandeja para a antessala após finalizar o chocolate quente,
aproveitando para pegar água gelada no bebedouro para mim. Então, depois
de escovar meus dentes, deitei-me em minha cama para dormir, porque
meus olhos estavam pesados demais para conseguir ler alguma coisa e
finalizar mais aquele dia.
A verdade é que eu não dormi tão cedo, pois diversos assuntos
invadiram a minha mente quando fechei meus olhos. Era o medo de Zoe,
Susana, Yarin e Dinah encerrarem seus contratos, pois eles precisariam ser
renovados quando eu completasse dezoito anos. A decepção por ter sido tão
fraca durante meu ensaio com o Lucca e, também por ter me incomodado
tanto com o simples aperto de mãos trocado com o Gael.
Do que adiantava todo o meu conhecimento para governar se eu nem
conseguia me controlar?
A arte de ser uma boa rainha é a de saber a hora certa para desabar e
sem sentir culpa por isso, Violet. Ser forte é mais do que se manter de pé
para o povo, mas de sentir suas dores mais profundas e ainda assim
continuar avançando. Tenha esse foco que você será uma rainha melhor do
que eu e sua mãe fomos, pequena.
Senti o cansaço e a calma me atingir como uma onda antes de
quebrar. Suave e com força para causar uma destruição.

Fechei meus olhos ao abrir as cortinas blecaute e tentei me


concentrar no calor do sol em meu rosto enquanto meu coração palpitava
com intensidade. Imaginei que aquele dia ensolarado pudesse ser um sinal
positivo para o meu dia.
Por ter acordado antes do horário que as minhas criadas costumavam
aparecer em meu quarto, em decorrência de lembranças interromperam
meu sono, eu resolvi ler uma fantasia medieval até elas aparecerem para
darmos início à nossa rotina matinal. Ou seja, eu li muito antes de elas
chegarem.

47
Luana Trindade

— Bom dia, gatinha — Yarin cumprimentou com um enorme sorriso


ao entrar em meu quarto, eu terminando de ler o parágrafo antes de olhá-la.
— Bom dia — respondi ao observá-la com um sorriso fraco.
— Recuperou a bateria social?
— Não como eu gostaria — resmunguei. — Cadê a Dinah?
— Foi buscar o café da manhã. Vou a arrumando para o dia enquanto
ela não chega.
Não muito tempo depois de a Yarin finalizar meu cabelo e minha
maquiagem, a Dinah entrou em meu quarto na companhia de minhas outras
duas criadas, então nós cinco arrumamos uma mesa da sacada para
tomarmos o café da manhã juntas como na maioria dos dias. Foi no meio do
desjejum que uma batida soou na porta do meu quarto, seguida pela
aparição do Éloy e de duas princesas, muito familiares para mim, na sacada.
— Essas duas jovens acabaram de chegar — Éloy comentou com um
enorme sorriso quando me levantei da cadeira, olhando para as duas com
hesitação.
— O que você está fazendo parada feito uma estátua? — Akemi
indagou com seu suave sorriso, mas que era confiante e familiar como
sempre fora. — Pensei que estaria morrendo de saudade de nós duas.

48
Capítulo 4
O Olhar que Nunca Conheci
Continuei parada onde estava, prestando mais atenção na saída do Éloy do
que na presença das duas princesas. Entretanto, isso não importou mais quando
Akemi se adiantou, passando seus braços ao meu redor com toda sua força, como
se eu não tivesse me afastado dela nos últimos três anos. Juliette se aproximou
em seguida, seu abraço sendo menos empolgado e, diferente da Akemi, eu sentia
uma mudança entre nós duas.
— Senti sua falta — Akemi suspirou em japonês quando nossos olhos se
encontraram após eu me afastar da Julie, que foi cumprimentar a Zoe, Susana,
Yarin e Dinah.
— Também senti — murmurei na mesma língua com a boca seca ao
relembrar do último momento em sua presença. Era doloroso reviver a memória,
mas a tranquilidade dela me fez sorrir em gratidão, um sentimento ao qual eu
nunca tive a oportunidade de expressar após a noite em que ela me resgatou. —
Você cresceu.
— Isso é uma piada, não é? — indagou, seu sorriso permanecendo a todo
instante.
— Claro que não! — tranquilizei.
— Vocês duas se lembram que ninguém aqui entende vocês, não é? —
Juliette indagou com a expressão séria ao voltar para nosso lado, como se pudesse
iniciar uma briga a qualquer instante. Ao menos isso não havia mudado.
— Tem algo faltando em seu visual — observei em francês quando Akemi
foi cumprimentar as meninas, que continuavam ao redor da mesa da sacada, só
haviam se levantado para abraçar as princesas.
— Meus óculos, imagino? Só optei por lentes hoje.
— E seu cabelo está inteiro castanho. Desistiu das luzes?
— Sim.
Daqui a pouco ela irá brigar com você.
— Certo, agora eu entendo você, Julie — Akemi interrompeu. — Vamos
voltar a falar inglês.
— Vocês parecem as mesmas de sempre, em contrapartida eu vejo como
mudaram ... — suspirei com um sorriso fraco.
Luana Trindade

— Eu mudei mesmo, estou engordando tanto que logo mais recebo uma
notificação do Conselho de que minha imagem deve ser proibida por ter deixado
de ser uma referência de saúde.
— Estava demorando para falar algo do tipo — Akemi murmurou ao
respirar fundo, parecendo acostumada com aquela conversa.
— Mas faz parte, não é? O Conselho é bem claro no fato de que precisamos
ser saudáveis se quisermos manter nossa imagem de influentes. Eu não estou
sendo, então só vamos para o fundo do poço de uma vez.
— Você não precisa ser tão carrancuda — murmurei.
— Isso é tudo o que ela tem sido nos últimos meses — Akemi revelou.
— É meu novo charme — Juliette disse ao sorrir, sua expressão séria
voltando no instante em que ela percebeu ter sorrido. — E eu não estou
mentindo. Lembram do Carwyn? Se afastou de tudo depois que começou a
engordar ... Logo será a minha vez.
— Não acho que essa foi a verdadeira razão, mas enfim ... — Akemi
suspirou. — Vocês estão bem?
— Estamos ótimas! — Yarin respondeu rapidamente. — Agora nos conte
sobre as maiores fofocas dos últimos anos, porque o nosso único meio de
informação era o Palácio dos Escândalos e ele não é, exatamente, confiável.
— Pelo amor — Susana resmungou e a Zoe demonstrou o mesmo
desânimo por ver o rumo da conversa.
— Antes de tudo — Juliette interveio. — Por que nós vimos o Lucca lá
embaixo?
— Ah ... Vamos dizer que ele será o meu par na dança — respondi.
— Horrível!
— Nem me fale.
— Não o acho horrível, mas já que estamos falando da dança ... — a
princesa japonesa comentou ao puxar uma cadeira para sentar-se na mesa com as
outras mulheres, Julie fazendo o mesmo. — Você poderia explicar a origem da
Dam ... Não sei falar esse nome.
— Ah não! — Yarin lamentou, Susana agradecendo em silêncio por ver a
conversa longe das fofocas.
— Damsha Oíche — falei bem devagar.
Akemi e Julie, aproveitando a oportunidade, repetiram o nome poucas
vezes até acertarem, então comecei a explicação quando eu e a Julie também nos
sentamos, ignorando o pedido da Yarin para contar as fofocas antes de tudo.
— Quando o império da Irlanda foi dividido entre os reinos de Leinster,
Ulster, Connacht e Munster houve a coroação dos quatro reis e das quatro rainhas
no castelo de Uisnech.

50
Legado Roubado

— É o mesmo palácio em que você será coroada? — Akemi perguntou.


— O próprio.
— A divisão da Irlanda aconteceu por causa daquele seu ancestral, o
Eoghan, não foi? — foi a indagação da Juliette na companhia de uma careta.
— Exatamente.
— Nunca me esqueço de quando você revelou fato dele ser o culpado pela
existência de algumas das piores leis do mundo — suspirou ao mexer na pulseira
em seu braço esquerdo.
— Pior do que isso é pensar na desculpa usada pelo Conselho Mundial para
manter essas leis horríveis — Dinah comentou com o olhar distante. — Como se
matar crianças com deficiência fosse uma opção para manter as linhagens.
— Às vezes eu gostaria de não ter conhecimento da pior face de nosso
mundo — Yarin admitiu com uma careta.
— E você não tem — foi a observação da Susana. — Nenhuma de nós tem,
porque o Conselho só nos permiti saber daquilo que eles querem.
— Melhor mudarmos de assunto, pois eu e a Dinah podemos ir longe nas
teorias de conspiração — falei ao trocar um sorriso com minha criada, que
assentiu em diversão. Nós duas podíamos ser um pouco especialistas no assunto.
— Então continue explicando sobre a origem da Damsha Oíche — Akemi
sugeriu. — Gostaria de entender melhor essa tradição.
— Onde eu parei?
Contei sobre a noite onde os oito novos monarcas foram coroados e
compartilharam belíssimas danças, o espetáculo sendo tão aclamado que na
mesma semana eles decidiram tornar esse evento um marco cultural de toda a
Irlanda, não apenas de Leinster ou outro reino, mas da Ilha Esmeralda inteira.
Finalizei a explicação dessa tradição ao trazê-la para os dias de hoje, destacando o
fato dela permanecer ocorrendo mesmo após quatro séculos e meio, além de
compartilhar o exemplo de como seria em minha própria coroação. Lucca
representaria Ulster, Mirella Connacht e Brenna Munster.
— A Brenna? — Juliette interrompeu com uma careta.
— Era ela ou algum de seus irmãos.
— Tradição chatinha.
— Você diz isso por não a conhecer.
— Bom, você que é a amante das tradições — murmurou ao dar de
ombros. — Mas veremos se irei me surpreender.
— Com certeza irá — Yarin afirmou. — Agora vamos para as fofoc-
— E quem são os príncipes escolhidos? — Akemi indagou.
— Além do Lucca é o Kyle da Escócia, Jordan da Alemanha, Dinesh da Índia
e David do Brasil.

51
Luana Trindade

— Ainda bem que você não chamou o Theo — Julie suspirou.


— Meu pai sugeriu convidá-lo, mas eu sabia que o término de vocês foi
recente ... — comentei com hesitação. — Precisaria ser você ou ele.
— Desculpa, Akemi — Juliette suspirou. — Mas não consigo mais fingir que
está tudo bem!
Como esperado.
— Três anos, Violet! — ela explodiu em francês, seus olhos marejados e
ignorando nossas cinco telespectadoras ao ajeitar a postura. — Você desapareceu
durante três anos! Tem noção disso? Não foram alguns meses, foram anos! Se
tivesse sido a dificuldade para nos vermos, tudo bem! Mas você nunca enviou
uma mensagem! Nem em meus últimos aniversários! Somos melhores amigas
desde quando tínhamos seis anos, Violet!
— Julie ... — Akemi tentou chamar, mas foi ignorada, pois os olhos da
Juliette continuavam atentos em mim.
— Eu sei que seu avô é rígido com sua segurança, mas isso nunca nos
impediu de manter o contato! Se aconteceu algo, por que você não confiou em
nós? Tem noção que a última informação que tivemos sua foi aquela nota pública
avisando sobre o fim do contrato que autorizava seu relacionamento com o
Giacomo quando completasse dezesseis anos? Descobrimos isso junto com o
restante do mundo!
— Você tem todo o direito de estar irritada comigo — falei na mesma
língua, ignorando a ardência em minha garganta e o olhar das outras, que não
entendiam nenhuma palavra de nossa conversa. — Mas você não pode me obrigar
a dar explicações.
— Não mesmo, mas esse deveria ser o mínimo de sua parte. Você tem
ideia de como me senti um lixo nesses-
— Cala a boca, Julie — a japonesa mandou ao segurar o braço da Juliette,
dessa vez sua atenção foi direcionada para a expressão irritada da Akemi. — Eu
nem preciso entendê-las para saber o assunto da conversa e que você não me
escutou quando eu disse para esquecer tudo isso.
— Eu só quero entender a razão para a Violet ter desaparecido! — suspirou
em inglês ao deixar suas lágrimas escaparem. — Porque eu fiquei me culpando
por isso durante todos esses anos! Eu acreditava que havia feito algo para magoar
você, Violet! Tem ideia de como é uma merdique?
— Sim. Eu tenho — sussurrei com esforço para ignorar o olhar das outras
em minha direção, meu rosto queimando em desconforto.
— Então por que você não fez nada? Por que não enviou uma mensagem
dizendo que você precisava tirar um tempo para si? Eu realmente entenderia,
Violet! Mas nem isso você fez ...

52
Legado Roubado

— Eu não tinha cabeça para isso na época, Julie, mas agora eu sei que
cometi um erro ao me afastar dessa maneira — admiti com a voz fraca, meu peito
e garganta queimando pela culpa. — Me desculpa.
Juliette olhou para a Akemi, parecendo buscar algum tipo de permissão
para me perdoar. A princesa do Japão assentiu, mantendo um olhar firme para a
Julie, que respirou fundo antes de voltar os olhos para mim.
— Não faça mais isso, tudo bem? — perguntou ao secar suas lágrimas.
— Prometo que não irei.
— E sobre o meu término eu tento não pensar muito nisso, porque foram
quatro anos jogados fora — minha amiga suspirou com o olhar perdido.
— Por favor, vamos parar de lamentar sobre nossas vidas e pensar nas
fofocas como se fossemos dondocas antes de termos conversas mais dignas —
Yarin interveio ao olhar para Akemi. — O que você quis dizer sobre não achar o
Lucca horrível?
— Os boatos são mentirosos — disse com tranquilidade.
Zoe e eu trocamos um rápido olhar, ela parecendo relembrar de nossa
conversa do dia anterior assim como eu e se vendo, de repente, interessada nas
fofocas, que o certo era chamar de informações importantes para entendermos o
herdeiro de Ulster.
— Isso não foi confirmado — Julie acrescentou ao ver a expressão no rosto
da Yarin. — A Akemi que se ilude sozinha.
— Os boatos nem fazem sentido! — argumentou. — Se você parasse de se
lamentar por um segundo para ler o único documento disponível do julgamento
dele, veria que não existem provas lógicas para acusá-lo.
— Tiveram testemunhas.
— Você considera o Lars e a Brenna como testemunhas confiáveis?
— Não, mas não é por isso que devemos ignorar tudo o que eles dizem.
— Ainda assim, acredito que seja uma armação.
— E se a princesa não pôde juntar provas, Akemi? — indaguei com meus
olhos atentos nos dela, seu rosto ruborizando imediatamente por entender as
entrelinhas de minhas palavras. — Eu percebi que faltam provas nas acusações,
mas ... Isso pode acontecer. A princesa pode não ter tido a chance de juntá-las.
Eu só preciso de mais detalhes sobre essa história.
— O Lucca nunca faria isso — murmurou ao desviar o olhar.
— Você nem o conhece — Julie relembrou. — E eu acho curioso que a
Kelly, a irmã gêmea dele, considerou as denúncias contra o próprio irmão. Se ela
acreditou, mesmo que por um instante, isso mostra como a possibilidade de ele
abusar qualquer garota é gigante.

53
Luana Trindade

— Você não viu nada, as pessoas lhe contaram isso! Eu estava lá quando a
Kelly começou a gritar com o Giacomo para ele deixar o Lucca em paz, isso não me
parece a atitude de alguém que acredita na possibilidade do irmão ser um ...
Assediador. Principalmente se considerarmos que a Kelly não é do tipo de entrar
em brigas.
— Um momento, de onde o Giacomo surgiu? — Yarin perguntou quando
eu estava para fazer a mesma indagação.
— Ah ... — Akemi disse engolindo em seco. — Ele soube do boato e foi
atrás do Lucca, então começou a bater nele e dizer que tinha nojo de ter ele como
convidado em seu lar, afinal, tudo começou em um evento na Itália.
— E assim o Lucca apanhou do Giacomo duas vezes ... Quase morrendo em
ambas.
— Um momento — pedi ao repassar aqueles relatos. — O Giacomo disse
ter nojo do Lucca? Eles não eram amigos?
Acho que o Lucca deixou essa questão bem clara para você.
Não custava duvidar da palavra dele.
— Chamá-los de amigos é um eufemismo.
Você deveria ter acreditado no príncipe quando ele disse que não era mais
amigo do italiano, Violet.
— Mas o que o Gi-
— E como assim o Lucca quase morreu? — interrompi a Julie antes dela
terminar a pergunta.
— Como você não se lembra? — a francesa quis saber, a Zoe e a Dinah
olhando para ela apreensivamente. — No seu aniversário, quando o Giacomo
pegou uma espada decorativa ... Você realmente não se lembra? Foi literalmente
aqui ...
— Eu ... Eu não tinha ideia dessa briga — murmurei, a boca seca enquanto
alternava o meu olhar entre a Zoe e Dinah, as duas parecendo petrificadas. —
Vocês sabiam sobre essa briga?
— A espada estava sem fio, é um exagero dizer que o Lucca quase morreu
— Akemi interrompeu um pouco ofegante. — Diferente da segunda briga, onde
aquele italiano desprezível cortou o pescoço do Lucca com um canivete que ele
tinha guardado no bolso.
— O que causou essas brigas? — quis saber, minha voz saindo mais fraca
do que eu esperava.
— A minha teoria é que a primeira foi por causa de alguma coisa que o
Giacomo falou da Kelly, considerando a reputação dela na época e que o Lucca é
explosivo quando suas irmãs estão envolvidas — Julie contou ao respirar fundo. —

54
Legado Roubado

E a segunda foi o Giacomo que começou, pois foi no dia em que o Palácio dos
Escândalos expôs o Agnew.
Se havia um fato impossível de negar, era que o Lucca sempre protegia
suas irmãs gêmeas, uma certeza que foi capaz de, estranhamente, me tranquilizar.
— Vocês sabiam sobre essa briga? — voltei a perguntar para as duas
mulheres.
— Sim — Zoe murmurou. — Mas não tivemos muitas informações além de
que a Julie e o Theo os encontraram nos corredores.
— Se não fosse o Theo, o Giacomo teria continuado a bater no Lucca ... —
Julie suspirou com o olhar perdido, sua voz falhando ao dizer o nome do ex.
— Você sabe se aconteceu algo com os Agnew? — Yarin indagou,
parecendo querer tirar o foco no Giacomo ou na briga dele com o Lucca. —
Porque faz um tempo que a Kelly não é o assunto principal do Palácio dos
Escândalos. Além disso, o Lucca está estranho.
— Você acha? — Julie franziu as sobrancelhas. — Ele parecia o mesmo
connard de sempre quando o encontramos lá embaixo.
— Será que o Conselho pediu para ele se afastar dos holofotes? — supus
com esforço para concentrar meus pensamentos na conversa atual.
— Olha, pelo que sei o Lucca e a Kelly não estão próximos, talvez tenha
acontecido uma briga entre os dois e ninguém está sabendo — revelou. — Mas
são apenas boatos.
— E a Sheila? Você sabe dela?
— Se está difícil saber de algo sobre a Kelly, imagina sobre a Sheila.
— E você, Akemi? — perguntei ao observar a minha amiga. — Você está
quieta como sempre fica ao saber de algo.
— É porque eu sei, porém não posso falar por ter feito uma promessa.
— Você protege os Agnew demais, principalmente o Lucca — Julie
reclamou.
— Um dia você vai ver que eu tenho razão sobre eles.
— Vou esperar sentada.
— Eu realmente não sei o que concluir sobre ele — Yarin suspirou ao se
ajeitar na cadeira. — Mas vamos esquecer os Agnew. Existe alguma outra fofoca
para sermos informadas sobre o meio real?
— Com licença, eu vou embora — Susana avisou ao se levantar revirando
os olhos, então realmente partir, algo que Yarin deu de ombros.
— Sempre há — Juliette confirmou antes de narrar um acontecimento
envolvendo conhecidos, história que deixou todas de queixo caído, antes de
iniciarmos debates mais valorosos sobre nossas vidas e a Yarin convidar minhas

55
Luana Trindade

duas amigas para nos fazer companhia em nossos exercícios matinais quando
Akemi mencionou o fato de ser uma grande sedentária.

— Me permitem retirar a Violet para uma conversa? — Éloy perguntou ao


retornar para o meu quarto enquanto comentávamos sobre o casamento da
Daphné, irmã mais velha da Julie, que se aproximava.
— É claro! — Akemi respondeu com um sorriso suave.
— Conversamos mais depois — falei ao me levantar.
Saí de lá com um sorriso fraco e imediatamente percebi o olhar analítico do
Éloy em minha direção.
— Algo a incomoda?
— Nada importante — murmurei ao dar de ombro, fazendo sinais com
minhas mãos que diziam para ele deixar isso de lado. — Então ...
— Seu pai quer conversar com você.
— Imaginei que fosse isso — admiti antes de caminharmos juntos para o
quarto de meu pai.
— Bom dia, Violet — ele cumprimentou com um sorriso assim que
entramos em seu quarto. — Por favor, sente-se.
Quando eu já estava sentada na poltrona ao lado de sua cama, o meu pai
foi até o segundo móvel e se acomodou nele com um suspiro longo. Seu olhar
estava cansado, como sempre, mas com um toque de culpa dessa vez.
— Recebi a informação de que o David e o Dinesh chegarão mais tarde que
os demais, pois eles precisam resolver algumas questões em seus países antes de
virem, além do fato de a viagem ser mais longa para eles do que para os demais.
— É compreensível.
Seus olhos pareceram desfocados, talvez por sua atenção estar presa em
lembranças ou, quem sabe, ele só se encontrasse preocupado por questões
recentes. Ultimamente meu pai vivia com esse humor melancólico mais intenso
do que eu estava acostumada.
— Como eu queria que a sua mãe estivesse aqui — murmurou ao tapar o
rosto com suas mãos, os ombros caindo derrotados mais rapidamente do que eu
poderia absorver. — Ela estaria tão animada com a sua coroação.
— Eu imagino que se ela estivesse viva eu não seria coroada.
— Seria sim, ela com certeza iria abdicar do trono para você a substituir —
ele disse ao tirar as mãos do rosto e sorrir em meio às lágrimas. — Se essa fosse
sua vontade, é claro.

56
Legado Roubado

— Por que ela faria isso?


— Ela faria isso porque iria querer estar do seu lado nessa nova etapa, te
guiando em cada passo para o desconhecido.
Ao desviar o olhar de meu pai eu reparei que o Éloy também estava
chorando e ...
— Você nunca fala dela — comentei com esforço para não demonstrar a
fraqueza de minha voz pelo nó sendo formado em minha garganta, dolorosa ao
ponto de quase me silenciar. — O Éloy sempre fez questão de me contar histórias
dela. A Kira nunca deixou de “falar” algo sobre minha mãe. Por que você, o marido
dela, tem tanto medo de falar sobre ela? Eu pensava que ao amarmos alguém só
desejamos falar dessa pessoa, mas você não fala nada.
— Porque dói, Violet — meu pai suspirou ao chorar ainda mais. — Dói
lembrar que ela foi morta tão perto de mim e eu não pude fazer nada.
— Ninguém pôde fazer nada, pai.
Ao abaixar a cabeça os seus soluços preencheram o quarto inteiro, uma
cena que eu nunca havia presenciado. Ele era um homem fechado, quase sempre
distante de expressar suas dores, desde as mais íntimas até as mais conhecidas,
mas não era esse homem que eu estava olhando naquele momento. Seu choro
era cheio de culpa e os soluços angustiados, então concluí que nada do que fosse
dito tiraria a culpa que o aterrorizava há dezesseis anos.
Eu nunca culpei ninguém, além de mim mesma, pela morte de minha mãe.
Como saberiam que um homem iria invadir o castelo para me matar? Os soldados,
treinados para proteger o palácio, não foram capazes de perceber a invasão de
um homem no castelo, como qualquer outra pessoa poderia fazer algo por ela?
Porém, foi a minha existência que motivou aquele homem. Apenas a minha
existência. Minha mãe só teve o azar de estar acordada no exato momento em
que eu deveria ter perdido a minha vida.
— Precisam me dizer mais alguma coisa? — perguntei ao me levantar sem
olhar para nenhum dos dois, não por raiva deles, apenas uma tentativa de eles
não enxergarem algum sinal em mim que expusesse meus pensamentos.
— Queríamos saber como foi o ensaio com o Lucca — Éloy explicou ao
secar suas lágrimas quando percebeu que meu pai não seria capaz de dar
continuidade em nossa conversa. — Você acredita que ele merece sua amizade?
— Ainda está muito cedo para eu opinar sobre o príncipe — suspirei. —
Mas ele foi extremamente gentil comigo e, além disso, descobri que a Akemi não
acredita nos boatos. Só o tempo nos responderá se ele merece meu apoio.
— Já é um bom começo.
Quando percebi que eles não falariam mais nada eu fui embora, mas não
fui atrás de minhas amigas e de minhas criadas. Eu apenas dei passos hesitantes

57
Luana Trindade

para fora do cômodo e, em seguida, até o quarto ao lado, que um dia pertenceu à
minha mãe.
Há uns seis anos, pouco antes da Kira morrer, ela me revelou que o quarto
de minha mãe não tinha sido reformado após a sua morte, ele só havia sido limpo.
Na época fiquei horrorizada e decidi não trocar de quarto ao me tornar uma
rainha, uma decisão mantida até a atualidade. O quarto podia ser muito maior e
mais bem localizado que o meu, mas não me importava com isso, porque nada
mudaria o fato de minha mãe ter sido assassinada nele. Entretanto, isso não
significava que eu nunca entrava nele. Na verdade, eu o visitava até demais.
Ao adentrar o cômodo, meu peito ardeu. Foi uma dor que se espalhou por
todo o meu corpo, como de costume. Para alguns poderia ser estranho o fato de
eu visitar o local em que a minha mãe foi assassinada, mas ... é. Isso não é nem
um pouco normal, porém, existiam momentos em que eu precisava sentir aquele
aperto em minha alma. Era a única maneira conhecida por mim para nunca
esquecer de minha responsabilidade em estar viva.
O quarto tinha paredes brancas com detalhes em gesso e apenas uma
verde escura, a mesma cor das duas poltronas que ficavam em frente à essa
parede e a uma lareira. De acordo com a Kira, a minha mãe era apaixonada pela
cor verde, principalmente o tom esmeralda. Além da parede e das poltronas,
alguns itens e detalhes de decoração também eram verdes, fazendo com que a
cor estivesse presente em todo lado do quarto de maneira harmoniosa.
Após pegar meu colar relicário no formato de um livro, que eu mantinha
escondido em uma gaveta do criado mudo, caminhei com passos lentos até o
espaço entre a cama e o berço que dormi durante o meu primeiro ano de vida. O
local em que a minha mãe soltou seu último suspiro de vida.
Deitei-me no chão, onde ela estava ao morrer, o lugar que ela me beijou
pela última vez e me permiti perder tempo pensando sobre tudo ao apertar o
colar sobre meu coração, porque a única pessoa viva capaz de me encontrar ali
era a que mais respeitava os meus momentos de isolamento. Eu não teria meus
devaneios interrompidos até decidir por isso
Quando criança eu ia até o quarto para chorar pela falta da mulher que eu
nunca poderia conhecer e isso me fazia querer ser capaz de abraçar a Violet
daquela época, dizer que enquanto eu honrasse o legado dela, a memória dela
permaneceria viva. Entretanto, isso era tão impossível quanto ser abraçada por
minha mãe. Tudo o que me restava era permitir que meus pensamentos me
sufocassem, até chegar no ponto em que mais nada existia. Era apenas o vazio
que me possibilitava seguir em frente com as minhas responsabilidades como a
princesa herdeira de Leinster. Era a única maneira pela qual eu conseguia
permanecer forte.

58
Legado Roubado

Aos meus sete anos a Kira descobriu que eu visitava o quarto e alguns
meses depois ela me presentou com o colar relicário, onde tinha espaço para seis
fotos, mas apenas dois lugares haviam sido preenchidos por ela, um terceiro e
quarto escolhidos por mim. A minha primeira escolha foi uma foto minha com
meu pai em meu aniversário de seis anos. A segunda foi uma imagem com a Kira,
Zoe, Susana, Yarin e Dinah, tirada pouco antes do acidente responsável por tirar a
vida da Kira. Com isso sobravam dois espaços vazios que, provavelmente, ficariam
assim por muito tempo ... Talvez para sempre.
Como mencionado, a Kira já havia escolhido duas fotos, ambas sendo de
minha mãe. Uma ela se encontrava sozinha (e deveria ter minha idade) e na outra
eu estava em seus braços, rindo de algo. Na primeira a minha mãe tinha um
sorriso suave, mas real. Seu sorriso não se tornava sincero apenas pela acentuada
elevação do canto de sua boca, mas pela intensidade de seu olhar. Um olhar que
todos que a conheceram me disseram ser único. A Kira o resumia a um olhar cheio
de amor e determinação. De minhas criadas a Dinah foi a única que não a
conheceu, mas as outras sempre descreveram o olhar dela com palavras que
também me faziam lamentar não ter tido a oportunidade de olhar para eles. Doce,
atencioso e verdadeiro. E era o que eu via naquela primeira foto, além de um
brilho que eu nunca consegui decifrar.
Já a segunda foto eu via todo o amor que ela tinha por mim. Era o olhar de
uma mãe extasiada pela risada de sua filha, uma mulher que estava realizando o
desejo de ser mãe e sonhava com tudo que ainda viria pela frente. Infelizmente,
um homem interrompeu seu sonho quando invadiu o quarto dela e a matou.
— Eu precisava tanto de você, mãe — sussurrei ao apertar o colar contra
meu peito com mais força.
Eu precisava conhecê-la. Precisava saber o que ela faria em meu lugar
como rainha. Precisava escutar seus conselhos. Precisava escutar sua voz de
acordo com as diferentes emoções, sua risada, seus choros. Precisava dela para
me apoiar, me consolar, para estar ao meu lado. Acima de tudo, eu precisava ter
memórias dela. Memórias de seu amor por mim.
Mas ela estava morta e eu não tinha nada além de minha imaginação.

59
Capítulo 5
Traição
— Violet — uma voz distante chamou repetidamente.
Ao sentir um toque em meu ombro a minha visão ficou focada e eu percebi
ser a Zoe a pessoa misteriosa a me chamar. Diante a preocupação em seu olhar,
afastei qualquer sentimento de vulnerabilidade que eu poderia estar expressando
naquele momento e me sentei.
— O que foi? — perguntei ao respirar fundo e apertar o colar em minha
mão, tomando a razão de volta ao sentar-me.
Que péssimo. Eu deveria ter me distraído muito para chegar ao ponto da
Zoe aparecer ali.
— Está tudo bem? — perguntou ao ajeitar meu cabelo carinhosamente, a
preocupação marcada em seu olhar.
— Está sim — garanti ao bocejar. — Eu só precisava estar em um lugar
diferente para refletir na situação com o Lucca.
— Entendo — Zoe disse com um sorriso doce ao afastar sua mão de meu
cabelo. Não parecia acreditar em minhas palavras, mas não insistiu.
— Aconteceu alguma coisa?
— Você desapareceu por três horas.
Três horas?!
Endireitei a coluna e forcei outra bocejo enquanto pensava em algo para
fazer ou dizer, algo que mostrasse tranquilidade.
— O que perdi de importante nessas três horas?
— Seu ensaio com o Lucca e uma rodada de degustação de entradas para a
coroação — contou suavemente. — Nós também recebemos uma mensagem de
que a Brenna e a Mirella chegaram.
— Ok — suspirei ao me levantar, esticando minhas pernas e alongando
meu corpo antes de começar a andar.
— A Deirdre adiou o ensaio para mais tarde — avisou ao se levantar e me
seguir até a saída do quarto. — E a Dinah e a Yarin foram degustar os pratos com a
Julie e a Akemi, mas fui avisada de que guardaram uma porção para você.
— Posso pegar quando quiser?
Ela assentiu, me observando com atenção. Muito sutilmente, Zoe colocou
sua mão em meu ombro, me fazendo parar na entrada do quarto.
Legado Roubado

— Tem certeza de que é só isso e está tudo bem? — perguntou com os


olhos castanhos fixos nos meus.
Assenti, inexpressiva.
— Ok ..., mas se surgir qualquer coisa pode falar comigo. Ou com as outras,
o que você achar melhor, Violet.
— Tudo bem. Obrigada.
Ela assentiu suavemente e então olhou para trás, concentrada no berço.
Por um momento seu corpo inteiro parou, talvez no instante em que as
lembranças tomaram conta de sua mente. Lembranças da noite em que ela
entrou nesse quarto e encontrou a minha mãe toda ensanguentada no chão, bem
ao lado do berço, além do corpo de um homem já sem vida.
A razão voltou para a Zoe tão rápido quanto se foi, então ela sorriu sem
mostrar os dentes e saímos do quarto da rainha. Do quarto de minha mãe.
— Por algum motivo os empregados as levaram para a biblioteca — Zoe
contou ao me olhar de relance enquanto caminhávamos nos corredores, minha
postura firme o suficiente para não demonstrar nada. — Quer que eu vá com
você?
— Não se preocupe, será uma recepção rápida. Mais tarde nos
encontramos?
— Sempre.
Desci as escadas com tranquilidade ao nos despedirmos e, ao retomar um
pouco de consciência, percebi que estava na frente da biblioteca, minha mão
pairando sobre a maçaneta, o meu peito e a minha garganta ardendo enquanto
observava aquela porta de tão perto. Já fazia três anos, mas parecia ainda mais
recente o dia que eu entrei naquela biblioteca com o Giacomo.
— Você consegue — sussurrei ao fechar os olhos e me concentrar no
presente. — Você consegue.
Foi sufocante receber as minhas duas colegas naquele lugar, cumprimentá-
las e ainda sustentar um diálogo desnecessário dentro do enorme cômodo. Eu
queria sair de lá o mais rápido possível, mas a Brenna simplesmente continuava ali
dentro, mantendo uma conversa inútil comigo e a Mirella para tirar informações
de nossas vidas. Passaram longos minutos, que pareceram horas, até a Mirella
interromper a princesa de Munster, dizendo que era melhor ela ir arrumar seus
pertences no dormitório em que ficaria. Só pude suspirar de alívio quando saí da
biblioteca e quase corri para chegar nos estábulos do palácio, buscando me
concentrar com uma das atividades que eu mais amava. Ao chegar lá vesti minhas
roupas para cavalgar em um quartinho do estábulo e caminhei até a minha égua
de pelos alaranjados.

61
Luana Trindade

— Olá garota — sussurrei ao dar tapinhas em seu pescoço e iniciar uma


escovação em sua crina preta, um momento terapêutico para nós duas.
Não era possível visitar a Rhiannon todos os dias, mas eu fazia questão de
passear com ela até o lago, ao menos, uma vez na semana. O lago ficava no final
de uma das trilhas que se iniciavam no terreno do palácio, eram caminhos seguros
para eu visitar por causa da incômoda presença dos guardas. Quando chegávamos
no lago eu tirava a sela dela e a deixava comer um pouco da grama, enquanto isso
eu me deitava com a cabeça apoiada na sela e observava o céu, quase sempre
nublado.
— Olá fugitiva — Yarin cumprimentou minutos depois de minha chegada
ao local, me fazendo soltar um grito de susto.
— O que vocês fazem aqui? — perguntei ao me sentar na grama e reparar
que a Dinah também estava ali, as duas descendo de um cavalo preto.
— Queremos garantir que dessa vez você não se esquecerá de seu ensaio
com o Lucca — Dinah falou ao ficar do meu outro lado.
A Yarin esticou suas pernas e massageou a coxa esquerda, que por baixo da
calça eu sabia existir apenas um coto. Há seis anos ela e a Kira, sua tia, sofreram
um acidente de carro em que apenas a minha criada sobreviveu. Ela perdeu a
perna esquerda naquele dia, mas essa perda não era nada quando comparada
com a morte da mulher que a criou como uma filha.
— Eu andei conversando com o Gael, admito estar bem magoada com a
nossa diferença de idade. Ele é muito interessante.
— Pessoalmente ele parece ainda mais novo — observei.
— Na foto de perfil dele eu não achei tão novo.
— Posso ver?
Yarin mostrou a foto e eu arqueei minhas sobrancelhas ao ver a barba dele,
algo que realmente o deixou com a aparência mais velha.
— Acho que ele não merece estar sendo enganado dessa forma, Yarin —
suspirei minutos depois ao superar o fato dele ter barba.
— Admito que senti pena dele, o garoto deve estar achando que uma
ruivona está dando bola para ele.
— Eu deveria falar a verdade.
— Violet? — Dinah perguntou com as sobrancelhas arqueadas. — Ninguém
pode saber que você andou saindo do castelo.
— Ele não precisa saber que eu sou a princesa.
— Gata — Yarin chamou ao rir. — Eu não acho que ele seja burro ao ponto
de não juntar as peças. O que você iria dizer para ele saber que eu é que converso
com ele?

62
Legado Roubado

— Que eu não me chamo Yarin e o número é de uma amiga ou irmã


chamada Yarin. Apenas isso é suficiente.
— Ele vai perguntar o seu nome.
— Respondo que é Lindsay, não é uma mentira.
— Se o Gael descobrir que a princesa de Leinster se chama Violet Lindsay
Mysie O’Carroll você acha que ele não vai desconfiar?
Ficamos naquela discussão até elas concordaram que ele deveria saber a
verdade, então decidimos enviar uma mensagem explicando tudo com o mínimo
de detalhes possíveis e sem revelar o meu nome, nem mesmo se ele perguntasse.
Se ele compartilhasse aquilo na internet ninguém poderia afirmar que eu era a
ruiva misteriosa.
— Ah, o príncipe Jordan acabou de chegar — Yarin comentou antes de
guardar seu celular. — E o almoço começa em cinco minutos.
— Queria aproveitar mais esse lugar ... — resmunguei.
Levamos quase dez minutos para chegar no castelo, então eu corri pelas
passagens até chegar em meu quarto. Nós três estávamos ofegantes, mas eu
ainda precisava me arrumar para o almoço. Tirei as minhas roupas de hipismo e a
Dinah me entregou um vestido verde escuro, que vesti aos tropeços.
— Por que você não colocou o mesmo vestido de mais cedo? — foi a
pergunta de Yarin.
— Você tem razão — falei ao tirar o vestido e parar na metade. — Ele está
nos estábulos — lembrei ao resmungar irritada.
Voltei a colocar o vestido verde, ao terminar a Yarin me empurrou em uma
cadeira e ajeitou o meu cabelo e a maquiagem com agilidade.
— Agora coloca os sapatos e corra para o salão. E não se esqueça que
daqui duas horas você terá o ensaio com o Lucca.
A Dinah me entregou uma sandália de salto preta, que eu coloquei
rapidamente, e logo estava andando rumo ao salão de refeições.
— Quer ajuda? — Lucca perguntou ao reparar que eu me sustentava no
corrimão.
— Obrigada — agradeci com a voz baixa. — Mas eu consigo andar sozinha.
— Me perdoe por ser educado, alteza.
Revirei meus olhos ao continuar minha caminhada, dessa vez mais devagar
para não correr o risco de cair na frente do príncipe de Ulster. Eu sabia andar de
salto com excelência, mas era difícil manter a concentração sabendo que atrás de
mim estava alguém que iria esfregar na minha cara que eu rejeitei sua ajuda se eu
tropeçasse.
Espera ... Ele foi sarcástico comigo!

63
Luana Trindade

Não demorei para sentir a mão do Lucca em meu cotovelo quando eu


tropecei, afastando meu braço de seu toque o mais rápido que pude. Meu corpo
queimou de raiva por eu não ter me concentrado no caminho, pelo orgulho e
vergonha, mas principalmente pelo aperto de sua mão em meu cotovelo. Só pude
acelerar meus passos e me afastar dele, concentrada apenas em minha
caminhada até o salão de refeições.
— Violet! — Julie chamou com um enorme sorriso quando entrei no salão.
Ela realmente me perdoou rápido!
Juliette estava sentada com os outros e ao lado do príncipe da Alemanha,
que se levantou com um sorriso sem mostrar os dentes. Ao caminhar até ele para
o cumprimentar reparei no detalhe da comida não ter sido servida.
O que você esperava? Que servissem o almoço sem a anfitriã?
— Seja bem-vindo — falei com um rápido aperto de mãos.
Me concentrei em pedir para os cozinheiros nos servirem antes que eu
pudesse ponderar sobre as sensações que percorriam todo meu corpo após um
aperto de mãos e o toque de Lucca no meu braço. Minha opção de distração foi
caminhar até a ponta da mesa.
A Akemi estava para o meu lado direito, que era seguida pela Mirella e pela
Brenna. Do meu outro lado estava a Juliette, seguida pelo Jordan e reparei no
lugar arrumado ao lado dele, algo que o príncipe alemão também parecia estar
observando.
— Mais alguém chegará para o almoço? — ele perguntou com sua voz
grossa e o sotaque marcante, um claro sinal de que não praticava inglês como a
Juliette ou a Akemi.
— Ele acabou de chegar — Juliette respondeu ao olhar para a entrada
enquanto os cozinheiros começavam a chegar com cestinhos de pães e bandejas
de frios.
Depois do Lucca cumprimentar as princesas irlandesas e apertar a mão do
Jordan, que o encarou friamente, ele se sentou sem atrapalhar os cozinheiros,
então ficamos em silêncio até todos serem servidos.
— Então Julie — Brenna começou ao observar a minha amiga com um
sorriso sarcástico estampado. — Fiquei surpresa com o seu término com o Theo.
Vocês eram lindos juntos.
— Acontece — Julie murmurou em uma tentativa falha de soar tranquila.
O Lucca estava ignorando a conversa, diferente do Jordan que fingia estar
concentrado em sua comida, mas suas mãos estavam perdidas. Enquanto isso, a
Mirella e a Akemi observavam a Brenna e a Julie, respectivamente, apreensivas,
um sentimento que eu retribuía. Uma conversa entre as duas nunca era tranquila.

64
Legado Roubado

— Você o traiu? — Brenna perguntou ao acabar com aquele silêncio tenso,


sorrindo vitoriosa.
— Como? — a princesa francesa perguntou ao se engasgar com a comida.
— De onde você tirou isso? — Jordan perguntou irritado, pronto para
defender sua amiga.
Se o Jordan fosse branco eu tinha certeza de que ele estaria vermelho
como um pimentão, mas graças à sua pele preta ele podia disfarçar o rosto
corado.
Invejável.
— Bom, ela é francesa — Brenna explicou, dando de ombros. — Franceses
traem.
Por outro lado, o rosto da Juliette estava completamente vermelho, então
ela respirou fundo e abriu a boca em incredulidade.
— Oh là là, não fazia ideia de que seu pai era francês!
O Lucca se engasgou e reparei em sua covinha marcada, um sinal de que
ele tentava não rir. Todos os outros, eu inclusa e a Brenna não, encaravam a
Juliette boquiabertos. A princesa de Munster apenas riu, descontraída.
— Sempre com a resposta na ponta da língua. Não é, Juliette?
O silêncio era tenso, parecia que ninguém naquela mesa se dava bem e a
discussão entre a Julie e a Brenna só intensificou esses sentimentos.
A Juliette e o Jordan eram melhores amigos desde a infância, mas eles não
pareciam tão próximos como eu me lembrava. O Lucca estava distante e ninguém,
além da Akemi, parecia ir com a cara dele, mas pela distância deles na mesa, ele
estava quieto. Minha amiga japonesa estava muito tensa e ao me olhar abriu um
sorriso nervoso, que eu retribuí da mesma forma. A Brenna era uma chata, então
eu torcia para ela não falar mais nada. E a Mirella foi a primeira a transmitir
tranquilidade depois de tudo.
— Violet — a princesa de Connacht chamou ao mexer na corrente de ouro
que usava. — Quais príncipes que faltam chegar?
— Kyle, Dinesh e David.
— Legal ... Imagino que o Kyle seja seu par, já que você tem sangue
escocês.
— Na realidade ele será o seu.
— Então quem ... Oh.
A Mirella alternou seu olhar entre o Lucca e eu, curiosa.
— Vocês são muito espertos, não? — Brenna interrompeu com uma
expressão fria.
— Qual o problema, Callaghan? — Lucca perguntou com um sorriso
entediado.

65
Luana Trindade

— Não falei que existe um problema, só falei que vocês são espertos.
— As relações entre Leinster e Ulster sempre foram excelentes, não vejo a
esperteza em dançar com a Violet na coroação dela — Lucca disse dando de
ombros. — É apenas uma dança.
— Nós sabemos que a Damsha Oíche não é apenas uma dança, Agnew.
Principalmente quando a dupla principal é composta por dois herdeiros
irlandeses.
— A coroação é minha, acredito que eu tenha a liberdade de escolher
quem será o meu parceiro — falei ao olhar para os olhos esverdeados da Brenna.
— Sem falar que não estamos nos casando.
— Você sempre foi ambiciosa e apaixonada em fazer jogos políticos,
senhorita perfeitinha, por isso não me surpreenderia se você se casasse apenas
para se tornar a imperatriz da Irlanda ... Nem mesmo se a sua escolha fosse o
idiota protestante do Agnew.
— Que grosseria usar a denominação dele como ofensa! — Mirella
exclamou.
— Fique tranquila, Brenna, eu não me casaria com a Violet por causa da
política — o príncipe de Ulster garantiu, ignorando a ofensa da outra irlandesa. —
Além disso, por que você está se doendo tanto? As pessoas não desejam um
império. Ou desejam e apenas você, senhorita papagaio, sabe disso?
— Bom, seja como for, não acho que a Violet seja burra ao ponto de
escolher um idiota como você apenas por causa da ótima relação entre Leinster e
Ulster — resmungou ao desviar o olhar, pela primeira vez demonstrando
hesitação. — E não sou besta para ignorar que essa parceria pode, muito bem,
iniciar discussões por todo o país.
— Vamos supor que todos seus temores se tornem verdadeiros — comecei
suavemente ao manter uma postura confiante, meus olhos atentos na Brenna. —
Você realmente acredita que eu arriscaria a chance de me tornar imperatriz ao me
aliar com o príncipe mais odiado da Irlanda? Não é mais fácil concluir que eu fiz
essa escolha por saber que meus pais foram próximos dos pais do Lucca no
passado e isso se perdeu após a morte da minha mãe? Realmente o Kyle seria
uma escolha óbvia, mas eu não preciso me aliar a ele para afirmar o que todos
sabem: Que possuo sangue escocês. Agora, escolhendo o Lucca, eu reafirmo uma
parceria há muito esquecida.
— Desse modo parece que você perdoou o que ele fez, Violet. Nenhuma
parceria antiga deveria justificar isso.
— Talvez eu queira tirar minhas próprias conclusões diante de acusadores
tão duvidosos e esta foi a melhor maneira que encontrei para isso. É uma última
chance para manter a amizade com Ulster.

66
Legado Roubado

— Para alguém que quase foi namorada do Giacomo, você se rebaixou


demais, Violet.
— Não sabia que você possuía algum nível de consciência moral para
opinar sobre a minha vida — comentei. — Enfim, não há necessidade de perder
meu tempo discutindo com você sobre algo que não precisa de sua aprovação.
O almoço terminou com aquele clima tenso e quando saímos do salão de
refeições nos separamos em diferentes direções. A Brenna subiu para os quartos
sozinha, assim como Mirella e depois o Lucca. Eu e a Akemi caminhamos juntas
até o jardim ao percebemos que a Juliette ficou para trás com o Jordan.
— Espero que o jantar seja melhor que o almoço — comentei quando
saímos ao ar livre.
— Carrego o mesmo desejo — ela disse com um suspiro quando nos
sentamos em um dos bancos que ficavam escondidos no meio das árvores.
Alguns pássaros cantavam nas proximidades enquanto eu e a Akemi só
conseguíamos respirar fundo. Era a primeira vez que ficávamos sozinhas desde a
minha festa de aniversário há três anos, o último dia que estive em contato com
meus colegas da realeza.
— Obrigada por ... — comecei, envergonhada.
— Está tudo bem, não precisa agradecer — ela disse ao me observar com
um sorriso doce. — E eu deveria estar me desculpando por ter contado para a
Zoe. Não era meu direito. Me desculpa, de verdade.
— O quê? — perguntei ao erguer as sobrancelhas. — Você me fez um favor
ao fazer isso, assim não precisei contar nada para ela e as outras ou para o meu
pai! Eles apenas sabem o que aconteceu porque você informou a Zoe, que contou
para os outros.
— Então você nunca falou sobre aquela noite com ninguém?
— Não, por que eu deveria?
— Bom ... Você ... Você tem razão — ela gaguejou com um sorriso amarelo,
que eu ignorei para sairmos daquele assunto o mais rápido possível.
— Você está reconhecendo o canto de algum pássaro? — questionei ao
escutar os animais pelo jardim, sabendo que Akemi era quase uma ornitóloga.
— Vários — admitiu ao sorrir e suspirar. — Que ir atrás de alguns?
— Eu adoraria — admiti ao retribuir seu sorriso, então segui-la pelo jardim
enquanto buscávamos pelo chamado chapim-azul, como minha amiga contou.
Enquanto caminhávamos pelo jardim, aproveitamos para conversar sobre
um assunto que tínhamos interesse em comum: livros. E começamos falando
sobre uma saga de fantasia que amávamos, escrita por Kelden Molegan, o maior
escritor de fantasia da atualidade, em nossa opinião.

67
Luana Trindade

Uma hora mais tarde, depois de algumas aulas e compromissos de minha


agenda, eu acabei lembrando do ensaio com o Lucca, que foi tão desconfortável
quanto o primeiro, ainda mais quando a lembrança do meu tropeço voltou ao ver
a covinha dele. Eu estava atormentada só de pensar que ele queria rir por causa
do meu tropeço. Porém, eu resolvi me concentrar na coreografia, porque era
minha única opção para compensar o ensaio perdido. Além de minha escapatória
para conseguir ignorar o contato de sua mão em minha própria e em minha
lombar.
A Deirdre pareceu magoada por minha falta no ensaio de manhã, mas
assim que ela viu nosso desempenho já voltou a fazer comentários animados
sobre a coroação.
— Pare de ser tão educado — pedi quando o Lucca me perguntou pela
quinta vez se podia colocar sua mão em minha cintura.
Do que você está reclamando, Violet?
— Está bem — ele murmurou sem me olhar.
— Parem — Donald mandou ao pausar a música um tempo depois. — Cadê
a emoção? Ela desapareceu do nada! Vocês estão parecendo dois robôs.
— Eu estava observando a mesma coisa — Deirdre comentou ao morder o
lábio inferior quando eu e o Lucca já tínhamos nos afastado. — Tem algum
problema?
— Não — Lucca respondeu ao jogar seu cabelo loiro para trás.
— Muita coisa na cabeça — respondi com a desculpa mais fácil.
— Deem uma volta na sacada, respirem o ar puro e depois continuamos —
a coreógrafa sugeriu ao apontar para as portas de vidro que nos levavam à sacada.
Caminhei com calma até um canto da varanda e observei a copa das
árvores, me esforçando para ficar animada com a Damsha Oíche, o que não era
nada fácil. Eu não sabia responder se o problema era, apenas, o Lucca, porque no
fundo eu sentia que tinha algo à mais.
Medo?
— Talvez você devesse escolher outro parceiro — Lucca sugeriu atrás de
mim, sua aproximação me fazendo interromper a linha de raciocínio. — Eu só vou
estragar a sua imagem sendo o seu par.
Fiquei em silêncio por um tempo, fazendo o que a Deirdre sugerira.
Respirar o ar puro.

68
Legado Roubado

— Meu vô não me deixaria mudar de parceiro nesta altura do campeonato


— murmurei por fim. — Nem se eu implorar por isso ... Então, vamos esquecer
isso, está bem?
Ele me observou com atenção, mas não demorou para assentir, mesmo
que ainda parecesse relutante com minhas palavras.
Confie no Lucca.

69
Capítulo 6
Uma Conspiração na Cozinha
Os ensaios com os outros só iniciou dois dias depois, quando todos já
estavam presentes no palácio. No início eu estava receosa com mais alguma
discussão durante as refeições, mas, de forma surpreendente, todos pareciam
tranquilos. O Lucca só era bem tratado pela Akemi e pelo David, o Dinesh apenas
curioso com a minha escolha de parceiro. Por fim, a Brenna passou a ser menos
arrogante e intrometida, nos dando a chance de ficarmos em um ambiente sem
discussões.
— Existem três etapas da Damsha Oíche — Deirdre começou a dizer. — A
primeira é focada na Violet e no reino dela, vocês só irão entrar na segunda etapa,
onde a coreografia terá a intenção de representar a parceria entre todos vocês.
— E a última etapa será ao amanhecer do dia seguinte — Donald
relembrou sem tirar os olhos de um papel em suas mãos. — Uma coreografia mais
serene.
— Eu amo essa parte da tradição de passarmos a madrugada acordados e
dançando! — Mirella exclamou com um enorme sorriso.
Se alguém, que conhecesse algumas das regras estabelecidas pelo
Conselho Mundial, entrasse no salão naquele momento não iria acreditar que a
Mirella era uma princesa. Ela usava uma calça de moletom cinza e uma camiseta
larga preta. Era um look que me fazia admirá-la, pois ela agia como uma jovem
normal, não estava presa na maturidade que muitos, eu inclusa, se esforçavam
tanto para transmitir. Ela estava sendo a Mirella, uma jovem que estava
aprendendo a ser adulta. Por outro lado, eu e os outros estávamos menos
despojados. Era um resumo de camisetas sociais e vestidos.
— Agora, todos com os seus pares — Donald pediu ao se concentrar em
nós, erguendo os lábios quando seus olhos encontraram a princesa de Munster.
— Esse nanico tem idade para participar da Damsha Oíche? — Brenna
resmungou, revirando os olhos quando o Dinesh se aproximou dela.
A Brenna estava só um pouco melhor.
— Dinesh, por favor — o príncipe indiano pediu com seu gracioso sotaque
ao erguer o queixo, mantendo uma firmeza admirável. — E para a sua informação
eu já tenho quatorze anos, princesa Brenna.
Ao sorrir eu percebi que não era a única fazendo isso, pois o Lucca, que
estava na minha frente, também ergueu seus lábios ao escutar a resposta tão
Legado Roubado

confiante do pequeno Dinesh ao encarar a Brenna, que era cinco anos mais velha
e deveria ser trinta centímetros mais alta.
O primeiro ensaio foi divertido, mesmo que vez ou outra a Brenna fazia
críticas para qualquer coisa que estivesse a incomodando. Fosse a temperatura, a
falta de habilidade do Dinesh ou a insistência da Deirdre para repetirmos algumas
partes da coreografia. Resumindo, a Brenna estava sendo a Brenna.
Eu continuei no salão depois que meus colegas e amigas saíram, pois eu
teria o segundo ensaio com o meu pai. Então, depois de uma hora eu fui atrás de
minhas amigas, encontrando-as no corredor, pois as duas haviam acabado de sair
de uma aula com os outros participantes sobre um assunto que eu desconhecia.
As chamei para passarmos o tempo livre em meu quarto, ambas aceitando o
convite com entusiasmo.
Era um alívio a harmonia entre nós três ter voltado ao normal, mesmo que
no fundo eu não me sentisse mais tão pertencente ao grupo, porque suas
conversas já não me soavam tão interessantes, as únicas que eu realmente me
importava eram as que o Lucca era mencionado, pois eu estava buscando por
todas as informações possíveis sobre o príncipe de Ulster e isso não passava de
um caso específico.
— Eu estava dizendo para a Julie o quanto acho desnecessário tratar o
Lucca da forma que todos, Julie inclusa, o estão tratando — Akemi contou. — Ele é
inocente.
— Essa insistência já está me enchendo — Juliette resmungou ao revirar os
olhos. — Aceita logo, ele é só mais um idiota.
— Não é! Você nem o conhece!
— Você está corada — Julie observou com uma careta. — Por favor, não
me diga que você o defende tanto por gostar dele!
E não era mentira da Juliette. Akemi estava com o rosto vermelho, uma cor
que se intensificou depois da suposição de nossa amiga.
— O quê?! Eu não gosto dele! Não da forma que você está pensando.
— Você está corada — repetiu.
Akemi suspirou, pensativa, sem demorar para encontrar uma resposta.
— Igual você fica quando está com o Jordan?
— Não mude de assunto! Estou falando o quão boba você é por perder
tempo defendendo o Lucca! Porque, além de não ter nenhuma prova para
inocentá-lo, ele não fez nada para merecer seu esforço.
— Eu seria boba se não tivesse os meus motivos para acreditar nele! —
Akemi argumentou. — E eu sei de coisas sobre o Lucca que nenhuma de vocês
sabem, por isso o defendo!
— Por exemplo? — incentivei por minha própria curiosidade.

71
Luana Trindade

— Eu prometi para ele que não iria contar nada para ninguém, Violet ... Eu
gostaria muito, mas o Lucca insistiu para manter segredo. O que acho burrice da
parte dele.
— É difícil defender alguém apenas por palavras de terceiros — falei,
calmamente. — O Lucca nunca teve respeito pelas pessoas, como posso duvidar
dos boatos quando ele demonstrou ser assim durante toda a vida?
Da mesma maneira que a Akemi não falou daquela noite para ninguém
além da Zoe, você deveria confiar que ela respeita a privacidade das pessoas. Uma
vozinha irritante dizia em minha cabeça.
É diferente. Todos possuem conhecimento dos boatos do Lucca, então ele
deveria falar a verdade se fosse inocente. Não havia razões para manter um
segredo desses nessa situação. Isso que não faz sentido.
— Fazer pegadinhas é bem diferente de abusar princesas — Akemi
argumentou com a mandíbula tensa. — E ele fazia isso junto das irmãs dele.
— Akemi, o Lucca sempre foi mais parecido com a Kelly do que com a
Sheila, certo? — Akemi assentiu revirando os olhos, como se já soubesse o que
nossa amiga iria dizer. — E a Kelly é uma princesa que fica com qualquer homem
que aparece na frente dela. Talvez o Lucca seja assim, mas um dia ele perdeu a
noção e ... Bom, a princesa em questão o expôs.
— Eu entendo e respeito seu ponto de vista, mas é impossível ele ter
abusado uma princesa.
— Às vezes as pessoas fazem coisas que nunca esperávamos, Akemi — Julie
falou com a voz fraca. — É difícil aceitar isso ...
— Se o Lucca fosse culpado o Conselho já teria o afastado dos direitos dele
como herdeiro, mas faltam provas para isso.
— Ouvi dizer que ele só tem mais um ano para provar a inocência antes da
Kelly se tornar a herdeira.
— Isso é mais pela reputação manchada, não por terem encontrado uma
prova — resmungou.
— E se a Brenna realmente encontrou a princesa que foi vítima dele? Ela
com certeza possui uma parte dentro de si que se preocuparia com o bem-estar
de uma garota inocente ... Ainda mais em um momento tão vulnerável —
sussurrei ao olhá-la com atenção. Talvez ela tenha encontrado a princesa como
você me encontrou há três anos. Queria dizer.
— Se vocês conhecessem o mesmo Lucca que eu conheço ... — murmurou
ao desviar o olhar de mim.
— Está na hora de começar a acordar desse seu sonho, Akemi. Você já é
muito grandinha para acreditar nas palavras de alguém como o Lucca — Juliette
interrompeu irritada, dando um fim no assunto.

72
Legado Roubado

Não conversamos sobre o Lucca depois disso, mas eu ainda não sabia no
que deveria pensar sobre ele. Os boatos eram ou não verdadeiros?
— Vamos dar uma volta pelo palácio? — Julie perguntou no meio de uma
conversa sobre um cachorro que eu havia tido em minha infância e precisou ser
dado para outras pessoas por ter causado muitos estragos no palácio.
— É claro — falei ao me levantar animada por irmos fazer algo diferente.
As duas conheciam o castelo há anos, mas elas aceitaram um tour para eu
apresentar cada lugar como se elas nunca tivessem estado ali. Então passamos
por cada sala e, ao chegarmos no final do corredor que beirava o jardim, eu
lembrei qual era o cômodo seguinte.
— Este nós ignoramos — falei rapidamente ao acelerar os meus passos.
— Aqui não era a biblioteca? — Julie perguntou ao acelerar seus passos
para se manter ao meu lado. — Pensei que era o seu lugar favorito ...
— Exatamente. Ele era — murmurei tão baixo que nenhuma das duas
pareceu escutar.
O último espaço para apresentar foi a piscina, um lugar que fez a Juliette
me observar boquiaberta.
— Como eu não sabia da existência dessa piscina?
Dei de ombros e observei a Akemi, que também parecia surpresa com
aquele lugar. Será que eu nunca tinha levado ninguém ali? Na realidade ...
— Eu falei que a água estaria boa, volpicina — ele sussurrou em meu
ouvido ao colocar uma mecha de meu cabelo molhado atrás da orelha.
— E eu falei que não queria ter entrado — resmunguei ao me afastar dele
com dificuldade, pois era difícil nadar enquanto eu usava um vestido pesado.
— Ah, Violet, por favor, não fique brava comigo — pediu com as
sobrancelhas franzidas, se aproximando lentamente de mim. — Só queria ter um
momento divertido com você.
Ao encarar seus olhos castanhos, que pareciam carregar a mesma solidão
do que eu, eu suspirei em derrota.
Ele entende você. Ele sabe como é estar sozinho nessa vida, vivendo apenas
com a inspiração de ancestrais mortos que também estiveram só.
Foi impossível não desejar ter um momento descontraído ao lado dele e,
por isso, iniciei uma guerra de água com o príncipe, meu sorriso se expandindo
quando ele começou a jogar água em mim no meio de nossas risadas.
— Acho que estou me apaixonando por você — ele declarou ao levar meu
corpo para perto do seu ao me segurar pela cintura.
— Não deveríamos estar tão próximos, ainda faltam dois anos para
podermos namorar e ...

73
Luana Trindade

Fechei meus olhos quando seus lábios finos alcançaram os meus, os


acariciando com uma tranquilidade inexplicável. Sua calma era intensa o
suficiente para amenizar o meu nervosismo e minha surpresa por sua ação. Não
era o meu primeiro beijo e ainda assim eu estava morrendo de medo de cometer
alguma besteira. Mas ele não parecia se preocupar, estava apenas preocupado em
garantir que eu o acompanhasse, para fazermos isso juntos.
— Você é majestosa, volpicina — meu príncipe disse, por fim, ao se afastar
e sair da piscina vitorioso. — Além disso, não se preocupe com os beijos, não é
como se nunca tivéssemos feito isso antes, Violet.
Suas palavras faziam sentido, mas por que eu me sentia tão errada por
beijá-lo ali na piscina? Era apenas mais um beijo como qualquer outro.
— Violet. Terra chamando Violet.
Foquei minha visão e dei de cara com minha amiga japonesa, que estalava
o dedo na minha cara.
— Você está bem? — Akemi perguntou em um sussurro, a Juliette me
observando com preocupação atrás da japonesa.
— Me distraí — expliquei ao retomar o fôlego.
— Ok ... Devemos continuar o tour?
— Sim. Claro que sim.
Não permita as lembranças ficarem no controle.

A sala do conselho era no térreo, com uma enorme mesa circular de


madeira, cadeiras do mesmo material e almofadada para cada conselheiro. Eu e
meu pai ficávamos do lado um do outro e, para o outro lado dele, tinha uma
cadeira reservada para o meu avô. Entretanto, o Éloy é quem se sentou ali, um
sinal de que meu avô não estaria presente naquela reunião.
Ainda bem.
Todos se levantaram de seus lugares e fizeram reverências, tanto para o
meu pai quanto para mim, quando chegamos na sala para iniciarmos a reunião.
— Por favor, sentem-se — meu pai pediu ao acomodar-se em sua cadeira.
O barulho das cadeiras sendo arrastadas preencheu o ambiente até que
todos estivessem acomodados, só então meu pai observou cada conselheiro com
atenção, um hábito antigo e persistente dele.
Visconde Blackwood, sentado do outro lado da mesa, era chefe do
Departamento da Cultura e Educação de Leinster; Barão O'Malley, ao lado do
anterior, era responsável pelos assuntos burocráticos do reino, da criação de leis

74
Legado Roubado

até sua execução; Seguindo a ordem dos lugares vinha Lorde Flynn, conselheiro do
desenvolvimento sustentável e meio ambiente; Para o outro lado do Visconde
Blackwood estava Conde Murphy, o representante do povo que conquistou um
lugar na mesa por voto popular; Então havia Conde White, encarregado do
comércio e dos acordos Internacionais. Por fim, sobravam os dois membros mais
populares do Conselho.
Duquesa Moore, sentada ao meu lado, estava envolvida com as relações
internacionais e diplomáticas de Leinster, um cargo ocupado por um membro da
família Moore desde o reinado de meu bisavô. Era uma família de grande estima
na Irlanda, reputação essa que só melhorou quando eles conseguiram uma
cadeira no conselho. E Lisa Moore, a atual duquesa, entrou no conselho no
primeiro ano de reinado de meus pais há vinte e sete anos, sendo os três jovens
quando conseguiram trabalhos de tamanha responsabilidade.
Ao lado do Éloy estava o Marquês O’Neill, administrador das terras de
Leinster, principalmente das fronteiras com os outros reinos. A maior curiosidade
sobre ele era que há mais de trinta anos ele e a esposa descobriram que não
podiam ter filhos, então, durante uma viagem com a Duquesa Moore para a
Nigéria, ele acabou entrando em contato com um garotinho órfão chamado Zaki,
que um dia se tornaria o esposo da Zoe e o herdeiro da família O’Neill.
Depois de compartilhar a atenção de meu pai para com os conselheiros,
observei que uma garota estava sendo a escrivã daquela reunião, algo que me
surpreendeu, porque esse trabalho sempre fora ocupado por um senhor.
Será que ele morreu? Não seria surpreendente.
— Duquesa Moore, gostaria de iniciar? — meu pai perguntou ao olhá-la
atentamente.
— É claro, majestade! — ela respondeu sem rodeios. — Eu estou com a
resposta de todos os nobres que foram convidados para a coroação, separei cada
um pelo país e sobrenome.
— Posso ver?
Ela entregou a lista para o meu pai, que pulou algumas páginas, como se
estivesse focado em encontrar alguns nomes. Eu teria lido qualquer coisa se ele
não tivesse percebido meu olhar curioso com tanta rapidez que desviou a lista de
minha visão.
— White — chamou ao olhar para o conde em questão quando fechou a
lista, garantindo que eu não a pegasse.
O que ele estava escondendo de mim?
— Tivemos uma queda na exportação de softwares esse mês ...
A reunião foi longa e, por causa da lista, eu não consegui prestar atenção
em quase nada. Se meu pai não tivesse segurado o papel com tanta firmeza eu

75
Luana Trindade

teria ignorado a existência dela e me concentrado na reunião como de costume,


mas ele parecia perceber a minha curiosidade e se esforçou para me impedir de
ver a lista, algo que só aumentou o meu interesse nela.
— Até o próximo mês, senhores — meu pai falou ao se levantar.
— Pai — chamei quando os nobres começaram a sair da sala. — Posso ver
a lista?
— Com certeza — respondeu sem me olhar e então arrancar uma das
folhas, me entregando todo o resto antes de se concentrar no sogro da Zoe. — E
antes que você pergunte sobre essa folha eu peço para você ter paciência, no
momento certo falaremos sobre isso.
— O que o senhor está me escondendo? — questionei de qualquer
maneira ao encará-lo com curiosidade.
— Na hora certa você saberá, agora só preciso conversar com o Marquês
O’Neill — meu pai disse antes de se afastar para conversar com o nobre.
Saí da sala com o Éloy logo atrás de mim, então ele fechou a porta e eu
soltei um suspiro irritada, algo que fez o general abrir um sorriso.
— Irritada com a reunião?
— Não é isso, é o meu pai — expliquei quando começamos a andar. — Ele
arrancou uma página da lista de convidados.
— Bom, tenho certeza de que na hora certa seu pai irá lhe mostrar o resto
da lista. Você sabe que ele não esconderia nada por mal — comentou com um
sorriso leve. — Apenas paciência, na hora certa tudo ficará claro para você, Violet.
— O fato dele ter dito exatamente isso me dá a impressão de que vocês
possuem o objetivo de me esconder informações.
— Talvez tenhamos, Violet, mas nunca por mal.
O general acelerou os passos quando eu parei de andar e o observei
boquiaberta. Eu não suportaria esperar por descobrir o porquê de meu pai
esconder a lista, mas sabia que precisaria confiar em meu pai. Ele merecia isso.
Me joguei em minha cama para poder ler a lista de convidados ao chegar
em meu quarto, ignorando o nome de muitas pessoas para descobrir o país que
faltava. Seria um trabalho difícil, principalmente ao considerar que alguns países
só teria a presença de um único líder, facilitando tudo para eu esquecer um
determinado país.
Itália.
Não sei o que estava esperando, era óbvio que pela etiqueta ele estaria
presente, mas senti meu coração se partir em milhares de pedaços ao ler o nome
do príncipe que havia estragado tudo.
A culpa foi sua por ter dado tanta abertura.

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Legado Roubado

Voltei a folhear a lista de convidados, minha garganta se fechando cada vez


mais enquanto eu não conseguia deixar os pensamentos sobre o Giacomo de lado.
Se concentre no que importa. Esqueça ele.
Acima de minha escrivaninha existia uma decoração do mapa mundi, com
os continentes feitos em pedaços de uma madeira simples, que eu desconhecia o
nome, pintados na cor preta. Eu havia optado por fazer as linhas de contorno de
todos os países com uma tinta branca e suave, apenas para facilitar na hora da
visualização. E não havia o nome de nenhum país naquele mapa, o que não era
um problema, pois eu sabia o nome de todos.
A Lisa poderia ter feito a divisão dos países de acordo com os continentes
em vez de apenas na ordem alfabética ... Facilitaria muito o meu trabalho. Pensei
ao caminhar até a escrivaninha e me sentar na cadeira.
Todos os impérios americanos estavam na lista, então passei para os
europeus ao bocejar. Foi apenas bater meus olhos nas ilhas britânicas para
lembrar de um país que não estava na lista. E meu pai teria muitos motivos para
esconder pessoas desse país!
Escócia.
Fazia todo o sentido! Pensei ao me endireitar, empolgada. Minha mãe ...
— Violet! Você deveria estar indo para a aula de oratória! — Yarin
exclamou ao interromper meus pensamentos depois de entrar em meu quarto. —
O que são esses papéis?
— A lista de convidados — respondi ao levantar da cadeira e entregar os
papéis. — Eu havia esquecido da aula, mas já estou descendo para me encontrar
com o senhor Barry.
— Finalmente — murmurou ao pegá-los. — Algo interessante para
destacar?
— Meu pai arrancou a página da Escócia, me fazendo concluir que alguém
do passado de minha mãe estará presente.
— Uou! Eu não esperava nada ao lhe fazer a pergunta! Caramba! Faria
todo o sentido — falou com animação. — Principalmente por ele sempre fugir das
suas perguntas sobre o passado de sua mãe.
— Foi exatamente o que eu pensei!
— Depois podemos conversar mais sobre isso, mas você precisa descer
para a sua aula e eu preciso terminar meu trabalho.
— O que você está fazendo agora?
— Terminando os testes de penteados para a coroação, você deve saber
que é um desafio encontrar um penteado que mantenha a coroa em sua cabeça
de um modo elegante — explicou ao suspirar, eu rindo disfarçadamente. — Agora
é melhor você descer, Violet. Já está se atrasando muito.

77
Luana Trindade

Senti um delicioso cheiro vindo da cozinha enquanto voltava para o meu


quarto, então caminhei para lá na expectativa de encontrar algo para comer.
Porém, antes que eu pudesse entrar na cozinha, escutei muitas risadas, indicando
que ela estava cheia. E, querendo fugir da atenção, entrei em uma passagem atrás
da parede da cozinha, esperando descobrir o que estava acontecendo antes de
entrar e comer a sobremesa responsável por trazer aquele delicioso cheiro
adocicado ao ambiente.
Sentei-me escorada na parede e escutei as vozes extremamente claras, até
uma inesperada se destacar e me deixar de queixo caído.
O que ele está fazendo na cozinha?
— É verdade que a alteza e suas irmãs foram responsáveis pela demissão
da senhorita Lowenna? — um dos cozinheiros perguntou em um tom de voz
divertido. — Se sim, quero agradecer! Aquela mulher era um terror para todos os
cozinheiros que já conheci.
Ouvi murmúrios de concordância, mas a risada do Lucca se destacou entre
todos. Uma risada muito sincera e que eu não ouvia há anos. A risada travessa de
quando ele aprontava alguma coisa.
— Fomos sim — ele respondeu, descontraído. — E ela era realmente um
terror para mim e minhas irmãs ...
— Até mesmo a Violet não gostava dela — outra voz familiar irrompeu. —
E olha que ela adora seguir as regras.
— Dinesh! — resmunguei, como se pudesse dar uma bronca nele naquele
momento.
Por que o Dinesh estava com o Lucca?
— Todo mês ela ia até o palácio de Ulster nos dar aula de etiqueta — ele
contou. — Certo dia, quando estávamos com doze anos, a Sheila quebrou uma
taça, algo que enfureceu tanto a senhorita Lowenna que ela decidiu dar aulas para
a minha irmã até o final do dia. Eu e a Kelly fomos espionar a aula, então vimos
que ela estava forçando a nossa irmã a arrumar uma mesa, mas essa nem era a
pior parte. Ela queria que a Sheila colocasse os talheres na ordem correta e
alinhados, mas para isso a nossa irmã não podia usar o tato, porque se ela fizesse
isso estaria tocando nos talheres de outras pessoas e seria uma atitude nojenta.
Pelo jeito ela era horrível com todos os seus alunos.
— Todos vocês devem saber que a Sheila é cega e, como esperado, ela não
conseguiu arrumar a mesa da maneira exigida pela senhorita Lowenna. Tudo

78
Legado Roubado

estava desalinhado e fora de ordem, então a tutora aproveitou esse erro para
castigar minha irmã. — O Lucca ficou em silêncio por tempo suficiente para eu
imaginar o nível do castigo. A senhorita Lowenna era um monstro.
— Naquele momento eu e a Kelly decidimos nos vingar da professora antes
de revelarmos tudo aos nossos pais — o herdeiro continuou. — Foi necessário um
mês de preparo para realizar tudo perfeitamente. Depois de nosso sucesso
contamos tudo para eles, que seguiram os protocolos para conseguirem a justa
demissão dela.
— Achei muito merecido — o cozinheiro que tinha perguntado sobre ela
falou enquanto ria com os outros.
— E eu pensando que você e suas irmãs aprontavam isso apenas por
diversão! — uma mulher comentou. — Escutar as histórias por outras pessoas é
mesmo um perigo!
— Falando em escutar relatos por terceiros ... — uma outra mulher disse.
— Acho que falo por todos aqui que eu não acredito nos boatos sobre a alteza.
— É verdade, desculpa, não falei alteza!
— Está tudo bem — Lucca tranquilizou de forma muito carinhosa.
— Nós realmente acreditamos que a alteza é inocente das acusações — o
chefe da cozinha declarou, convicto.
Deixei meu queixo cair ao escutar aquelas palavras ditas por um
funcionário antigo de meu reino. Como isso era possível? Primeiro uma de minhas
melhores amigas o defendendo e agora todos os meus cozinheiros.
Meu pai estava certo ao pedir para eu confiar no Lucca.
Claro que estava, ele não falaria algo tão sério por nada.
— Conversamos com os funcionários de outros reinos, inclusive os de
Ulster — a mulher a trazer o assunto voltou a falar. — Eles nos apresentaram
todos os argumentos possíveis para mostrar como era impossível acreditar nos
boatos, pois a alteza recebeu uma criação maravilhosa de seus pais e, desde
criança, o príncipe trata todos que merecem com honra.
— É realmente muito bom ter a confiança de vocês — Lucca admitiu.
— Eu te falei, Lucca! — Dinesh comentou animadamente. — Um dia verão
que você é muito legal! Só é preciso ter paciência.
— Você tem razão, Dinesh.
— Espero que a alteza nos visite mais e, quem sabe, se aproxime de nossa
princesa — uma mulher comentou com a voz sonhadora.
Escutei vozes animadas do outro lado da parede e, por algum motivo, eu
senti meu rosto corar.
—Imaginem quão magnífico seria toda a Irlanda governada pelos dois! —
um homem comentou.

79
Luana Trindade

Não é possível essa ideia ter aparecido tão rapidamente.


— Posso afirmar que isso é impossível de acontecer! — Lucca interrompeu
com uma risada apreensiva. — Eu não tenho interesse em ser imperador.
Então é como se os Agnew estivessem votando em mim para ser imperatriz.
Relembrei de minhas palavras ditas há uns dias com o coração acelerado ao fixar
meus olhos azuis na parede, pensando, logo na sequência, no fato de que as
pessoas estavam considerando o retorno do Império da Irlanda.
— Carl, não me referi a isso, especificamente — a mulher esclareceu. —
Por mais incrível que pudesse ser! Mas eu estava falando sobre um possível
casamento! Temos comentado sobre isso desde quando soubemos que a alteza
seria o par da princesa na Damsha Oíche!
Ah não. Terrível. Isso tudo é simplesmente terrível.
Meu Deus. Como será depois de minha coroação?
— Olha isso, você o assustou com esse assunto!
— Não, está tudo bem! — Lucca tranquilizou. — Só fui pego de surpresa.
Eu não estava esperando que as pessoas pensariam nisso, porque eu e a Violet
somos apenas colegas respeitando a parceria que existiu entre nossos pais no
passado, nada mais do que isso.
Saí de lá o mais rápido possível, caminhando pelas passagens que me
levariam até o meu quarto.
A Brenna estava certa. As pessoas pensavam na unificação da Irlanda.
Quando chegasse a vez de dançar com o Lucca o mundo interpretaria tudo
da maneira errada. O mundo acharia que iríamos nos casar para podermos
unificar o nosso país, provavelmente começando com a transformação de Leinster
e Ulster em um só reino. E isso era tudo o que eu menos queria.
Esse era exatamente o plano, Violet, por que tanto desespero?
Eu só não estava esperando que ele fosse dar certo.

80
Capítulo 7
Vinte e nove anos
Uma semana havia se passado e eu continuava apavorada por imaginar as
pessoas acreditando na possibilidade de mim e o Lucca nos casarmos. Além disso,
desde a lista de convidados de minha coroação, o meu pai evitava conversar
comigo, só me dando a certeza de que ele queria me esconder o nome de alguém
do passado de minha mãe. Talvez um parente dela?
— Você já descobriu o motivo de seu pai ter arrancado a página da Escócia
na lista? — Akemi perguntou enquanto assistíamos um filme em meu quarto.
— Não — suspirei ao pegar um pedaço de queijo da tábua sobre a mesa de
centro.
— Alguma teoria de quem possa ser a pessoa que ele esconde?
— Você não sabe quase nada sobre a sua mãe, não é? — Julie perguntou
antes de eu responder a Akemi.
— Apenas algumas informações isoladas, como minha mãe ter nascido na
Escócia e o sobrenome dela de solteira ter sido Mysie. Sobrenome esse que eu,
inclusive, herdei, indo contra os padrões de Leinster de herdar apenas o
sobrenome mais relevante.
— Como assim mais relevante? — Julie quis entender.
— Eu sou herdeira da família O’Carroll, não da Mysie, logo, O’Carroll é o
sobrenome relevante.
— Quanta frescura, na França não existem regras para isso. Mas o que eu
deveria esperar? Estamos falando de Leisnter.
— Bom, eu já estou acostumada com isso, mas continuando ... A Zoe e a
Yarin se lembram de pessoas que viviam perto dela, mas que depois
desapareceram, ou seja, mais peças soltas. E não sei onde, especificamente, ela
nasceu, o nome dos pais dela, se foi criada por eles ou se ela tinha irmãos.
Desconheço sua posição social de nascença ... Até pesquisei mais sobre alguma
família Mysie, mas é um sobrenome comum na Escócia.
— Não existe uma atriz escocesa com esse nome?
— Sim, Maísa Mysie. A Yarin e eu buscamos muitas informações que ligue
ela à minha mãe há uns anos. Entretanto, não encontramos nada além dos
esposos e filhos que ela teve. Mas eu não desisti de acreditar na existência de uma
ligação entre nós, porque ela é ruiva, assim como eu e a minha mãe.
Luana Trindade

— Essa atriz ser ruiva significa muito! — Julie falou ao colocar sua taça com
vinho na mesa de centro. — O maior número de ruivos se encontra na Escócia,
mas isso não diminui a raridade de pessoas ruivas! Ainda mais quando essa atriz
possui o mesmo sobrenome que o da sua mãe!
— Eu só não quero criar expectativas. Ela foi o motivo de meus
questionamentos no passado e ... É doloroso voltar a me questionar sobre o
assunto quando eu acreditava ter superado essa ferida.
— Você já procurou fotos dela na coroação ou casamento de seus pais? —
Akemi perguntou com as sobrancelhas franzidas. — Ou algum tipo de obituário da
sua mãe que tenha citado suas origens?
— É claro, mas não encontrei nada, apenas que ela nasceu na Escócia em
dezembro de quatrocentos e oito.
— Não é possível o passado de sua mãe ter desaparecido dessa forma! —
Juliette exclamou. — Com certeza existem informações em algum lugar! Alguém
deve ter escrito algo sobre sua mãe quando o casamento de seus pais foi
anunciado. É impossível apagar os ... Ela veio para a Irlanda com quantos anos?
— Dezoito.
— É impossível apagar os dezoito anos que ela viveu na Escócia — minha
amiga concluiu. — Tenho certeza de que na época as pessoas ficaram tão curiosas
com as origens dela que buscaram pelo máximo de informações para escrever
algo. Você sabe como os outros gostam de saber sobre nossas vidas ...
— Talvez seja, Julie, porque eu nunca encontrei nada ao pesquisar o nome
dela. Fiz o máximo de pesquisas que consegui pensar e, ainda assim, não
encontrei nada — suspirei. — Além disso, o Éloy e a Kira teriam me contado. E, se
não contaram, deve existir uma razão. Talvez a minha mãe não gostasse da
Escócia e nunca quis revelar suas origens ...
— Você nunca chegou a perguntar para a Kira sobre ela?
— Eu só comecei a me questionar sobre essa atriz depois que a Kira
morreu. — expliquei.
— Ah, eu sinto muito.
Como sempre o silêncio tomou conta do ambiente, porque era sempre
desconfortável demais falar sobre algo que envolvesse a minha mãe morta. E
como julgar as pessoas por evitarem falar sobre ela?

82
Legado Roubado

— Você deveria programar algo com os participantes da Damsha Oíche —


meu pai disse quando eu estava saindo do salão após o nosso ensaio. — Não se
esqueça que o objetivo dessa dança é aprofundar as relações entre os reinos.
— O que o senhor sugere? — perguntei distraidamente.
— Uma noite de jogos ... Sua mãe adorava noites de jogos.
Me concentrei no pequeno sorriso estampado no rosto de meu pai para
que eu não pudesse me esquecer do quanto ele parecia feliz ao falar da minha
mãe. Para não me esquecer do brilho em seu olhar por pensar nela.
— Gostei da ideia — falei ao sorrir de canto, pensando que ele havia
puxado um assunto, mesmo que não fosse o que eu queria.
— Que bom, querida.
Observei sua espera por qualquer palavra minha, então respirei fundo e
tomei coragem para tomar a frente da conversa.
— Pai — chamei. — Quem participou da sua Damsha Oíche?
— Os irlandeses foram: Artus de Ulster, Paul de Connacht, Eadbhárd de
Munster e, para completar os homens, Victor do Brasil. De mulheres tivemos
Mako do Japão, Amélie da Alemanha, Layla da Jordânia, Ayana da Etiópia e, é
claro, sua mãe — meu pai respondeu sem dificuldade, o que me surpreendeu.
— Se me perguntassem quem são os meus representantes eu não saberia
falar com tanta facilidade como o senhor fez.
Ele riu, o que me fez abrir um sorriso suave.
Por que ele andava tão estranho?
— A rainha Ayana e o rei Paul estavam juntos nessa época? — perguntei
rapidamente para mudarmos de assunto.
— Não, mas eles se aproximaram durante os ensaios, já que os dois
formaram um par. Se casaram no ano seguinte e logo tiveram o Bradan e o
Tamirat, alguns anos mais tarde a Mirella nasceu — ele explicou.
— Por isso não duvido quando dizem que a Damsha Oíche é a
casamenteira irlandesa — suspirei melancolicamente.
— Não podemos negar que ela ajuda um pouco, já que nem sempre os
membros jovens da realeza conseguem se relacionar uns com os outros
facilmente. Principalmente durante um mês inteiro.
— Faz todo o sentido.
Desci direto para a sala de jantar ao me despedir de meu pai com um
rápido aceno quando não sabíamos mais o que conversar, onde todos os meus
convidados estavam presentes.
Reparei que, pela primeira vez, o Lucca não estava quieto, pois o Dinesh
conversava com ele animadamente, que eu também percebi não ter ficado tão

83
Luana Trindade

entusiasmado em nenhum outro dia. Era como se o indiano tivesse encontrado


uma grande inspiração no Lucca, como um irmão mais velho.
Pelo jeito o Dinesh estava apoiando e se aproximando do Lucca de verdade.
— Uma noite de jogos amanhã será perfeita! — Mirella exclamou com um
grande sorriso depois que apresentei a sugestão dada por meu pai. — Seus
cozinheiros poderiam fazer pizza, inclusive.
— Já estou ansioso — Kyle comentou com os olhos atentos na princesa de
Connacht.
Olhei para a Julie, que estava na minha frente, e pelo seu risinho eu soube
que ela também havia percebido o olhar do príncipe da Escócia na direção da
Mirella.
Espera ... Príncipe da Escócia!
— Que bom vocês gostaram — concluí, sem evitar sorrir, tamanho alívio
que senti por aquilo e pela ideia a invadir minha mente.
— Pessoas odiadas, como eu e a Brenna, — Lucca começou ao esboçar seu
sorriso travesso, — também estão convidadas para essa noite de jogos?
— Não me coloque no mesmo patamar que o seu! — a princesa de
Munster resmungou.
— É claro que sim! — confirmei, minha simpatia para com o príncipe me
surpreendendo, ainda mais por ela ter permanecido pelo restante da refeição.
Voltei para o meu quarto depois de muitas brigas e risadas, aliviada por
todos terem ficado animados com a noite de jogos, porque eu precisava me
envolver com eles como se os três últimos anos não tivessem acontecido. O único
problema foi que eu não consegui chamar o Kyle para uma conversa depois que
saímos do salão, pois ele se afastou com a Mirella para os jardins.
Durante o caminho para o meu quarto refleti que o castelo possuía uma
decoração fria. Os quadros que se espelhavam eram poucos, pois a maioria ficava
em um salão específico para isso, e o máximo de cor que eu podia encontrar era o
verde de algumas plantas. Não podia negar que a arquitetura dele era admirável,
mas era apenas isso. Uma construção muito linda, mas sem transmitir a sensação
de lar ou pertencimento. Era mais como um belíssimo museu, não uma casa.
— Você demorou — Susana comentou quando fechei a porta do meu
quarto.
— Conversamos bastante no jantar — expliquei ao tirar meus sapatos.
— Podemos conversar? — ela perguntou e eu fui invadida por um
equilíbrio entre a empolgação e a hesitação.
— NÃO! — Yarin gritou do closet, saindo de lá logo em seguida. — Você vai
ficar quieta e ir embora, Susana. Inclusive, não sei o motivo de você ainda não ter
feito isso!

84
Legado Roubado

Arqueei minhas sobrancelhas ao ver a raiva borbulhando no olhar da Yarin,


ficando mais surpresa quando ela ficou entre mim e a Susana, como se estivesse
me protegendo da minha criada inglesa.
— O que aconteceu? — perguntei ao afastar a Yarin para o lado.
— Você sabe como a Yarin pode ser dramática — Susana resmungou.
— Dramática? — a outra perguntou, forçando uma risada. — Me desculpe
se sou capaz de expressar meus sentimentos, diferente de você!
— Eu sou muito capaz de expressar os meus sentimentos! A diferença é
que eu não lido com eles de forma exagerada ... ou com bebida!
— Desde quando eu bebo? — Yarin perguntou rindo, mas a mágoa em
seus olhos por ser acusada de consumir álcool não passou despercebida por mim
— Não posso mais ir em um pub com meus amigos que já estou bebendo? Você
sabe muito bem que eu nunca experimentei uma gota de álcool, então vai se fu ...
ferrar se você pensa que eu me arriscaria nesse nível!
— A Violet já não é grandinha? Acho que não tem problema me xingar na
frente dela! Não é? Já estamos tão acostumadas com isso!
A porta foi aberta quando a Susana terminava de falar, então eu me virei,
encontrando a Dinah ofegante e a Zoe com a expressão fria, uma expressão que
se suavizou ao me ver.
— Sério? — ela perguntou com um suspiro ao olhar para as duas mulheres
ao meu lado. — Vocês não conseguem ser maduras o suficiente para discutirem
como duas pessoas civilizadas?
— Se você tivesse escutado todas as coisas que a Susana disse não estaria
falando isso, Zoe — Yarin murmurou ao secar as lágrimas que tinham escapado de
seus olhos.
— Não vamos pensar nas desculpas, Yarin. Apenas desçam e, Dinah, sei
que você já deveria estar indo embora, mas garanta que as duas não fiquem
juntas — Zoe mandou ao vir até mim.
— Me desculpa, Violet — Yarin pediu em um sussurro ao passar por mim,
me assustando por sua vulnerabilidade tão explícita.
— Tudo bem ...
Olhei para a Zoe depois de ficarmos sozinhas, torcendo para ela me dar
explicações. Duvidei que isso fosse acontecer depois de ela soltar um longo
suspiro e colocar uma mecha de meu cabelo atrás da orelha.
— As duas sempre brigam, você não precisa se preocupar com isso — ela
disse, por fim. — Agora tome um banho e descanse, querida.
— Não sou o motivo da briga, certo? — perguntei, hesitante.
— Por que você acha isso?

85
Luana Trindade

— Porque da última vez que elas tiveram uma discussão eu era o assunto e
... Quando cheguei a Susana queria falar comigo, mas a Yarin a interrompeu como
se eu fosse escutar algo terrível.
— Esqueça isso, elas irão se resolver. Agora vá descansar — Zoe se
despediu com um rápido beijo em minha testa.
Encarei a porta de meu quarto por um bom tempo depois que a Zoe saiu,
sem saber se eu realmente esqueceria o que tinha acontecido. As brigas entre as
duas não eram raras, mas algo no olhar da Yarin me fez sentir que dessa vez a
discussão era maior do que parecia. E para piorar, eu não conseguia tirar a ideia
de ter sido o estopim para essa briga, o que faria todo o sentido, porque, entre as
quatro, a Yarin era minha maior defensora e a Susana a maior, pela falta de
palavras, crítica. Por isso, eu era o melhor gatilho para uma briga entre as duas e o
exemplo mais recente fora a discussão das duas no dia que fui para o parque
O’Carroll e conheci o Gael.
Deus, por que eu sinto que perderei alguém em razão dessa briga?

Pela correria do dia a dia eu esquecia que tinha um telescópio na sacada de


meu quarto, apenas me esperando para ser usado. Mas naquela noite eu me
lembrei de sua existência enquanto tomava banho, então fui usá-lo depois de
vestir o meu pijama e pegar um cobertor pequeno. Foi um momento de imensa
alegria encontrar o céu, praticamente, limpo, porque eu morava na Irlanda e o céu
limpo não era um grande amigo de meu país.
— Júpiter e Marte!
Eu estava terminando de ajustar a lente do telescópio quando a porta da
sacada foi aberta, mas, como eu não queria perder o primeiro planeta, não desviei
o meu olhar. Poderia ser alguém invadindo o meu quarto? Sim, não seria uma
novidade em minha vida, mas eu sabia que não era.
— Faz tempo que você não usa esse telescópio — Zoe comentou.
— Sempre que eu lembrava de usar estava nublado — expliquei,
concentrada em deixar a lente focada em Júpiter.
— Azar de morar na Irlanda — ela observou com divertimento. — Eu
trouxe chocolate quente.
— Obrigada, Zoe. Terminando aqui eu já vou beber. E eu espero que você
tenha trazido duas canecas cheias para bebermos juntas.
— Para a sua satisfação eu realmente trouxe.

86
Legado Roubado

Após comemorar o meu sucesso, levei a Zoe para ver o planeta, segurando
sua mão e a puxando até o telescópio.
— Você sabia que Júpiter possui anéis igual a Saturno? — perguntei
enquanto observava os pontos luminosos que Júpiter e Marte eram à olho nu e a
Zoe observava o maior planeta de nosso sistema através do instrumento
astronômico. — E, entre vinte e quarenta milhões de anos, Marte também terá
anéis? Inclusive, aquele ponto avermelhado próximo à Júpiter é Marte.
— Isso é interessante — ela respondeu ao sorrir ainda mais quando se
afastou do telescópio e eu me aproximei dele.
— A parte triste é que não conseguimos ver os anéis de Júpiter com
telescópios, apenas por sondas enviadas até o planeta.
As curiosidades eram bobinhas em comparação com outras que eu
conhecia, mas dizê-las ainda era reconfortante, afinal, Zoe certamente não tinha
conhecimento delas.
Ao me afastar do telescópio eu peguei o chocolate quente e me sentei
junto da Zoe, que ainda tinha um enorme sorriso no rosto.
— É assustador pensar na idade do Universo, por mais excitante que seja
pensar em nossa insignificância — admiti com um suspiro. — O que são vinte e
nove anos comparados com vinte milhões? Trezentos milhões? Não somos nada
quando comparados com tudo o que existe fora do nosso planeta.
A Zoe respirou fundo ao escutar aquela idade tão aleatória que usei para
comparar com o tempo de alguns eventos astronômicos. Uma idade que podia
não representar nada para muitas pessoas, mas para mim era o oposto disso. E a
Zoe sabia.
— Certamente vinte e nove anos não são nada, mas sua mãe foi capaz de
deixar um excelente legado com essa idade. Ele pode se perder daqui um século,
infelizmente, mas ela impactou a vida de inúmeras pessoas que tiveram o
privilégio de viver ao mesmo tempo do que ela e ... Isso é muito, não acha?
— Sim — admiti com a respiração trêmula. — Ela foi perfeita nesse pouco
tempo e ... Eu penso, Zoe, se irei alcançar as expectativas criadas pelo povo. Se eu
chegarei aos pés de minha mãe.
— Você não deve se esforçar para ser como sua mãe, mas para você ser
sua melhor versão. Isso é tudo o que importa.
— Não tenho cumprido com isso para honrar a memória dela ... Nesses três
anos eu fui praticamente um peso morto para Leinster.
— Você precisava passar por essa fase, Violet ... Você precisa se curar.
Só tive forças para aproximar a caneca de minha boca, porque apenas o
calor da bebida poderia afastar o nó que se formava em minha garganta.

87
Luana Trindade

— Se eu tivesse sido mais inteligente para perceber como ele não era bom,
eu não precisaria me curar ... — sussurrei como se contasse um grande segredo.
Não ousei olhar para a Zoe, só pude ficar concentrada em meu chocolate
quente. Inspirando e expirando suavemente o aroma doce que sempre me
acalmava, focada em demonstrar o máximo de tranquilidade que eu era capaz. A
Zoe, a mulher mais paciente e compreensiva que eu conhecia é que estava ao
meu lado. Eu podia confiar nela ... Eu confiava nela! Mas por que eu ficava tão
preocupada em esconder a tempestade que eram os meus sentimentos? Eu só
precisava falar ... Como eu não era capaz de fazer algo tão simples?
Abrir seu coração para ela é torná-la ainda mais fundamental em sua vida.
É tornar a dor de perdê-la insuportável.
— Já irei dormir — falei ao me levantar e entregar a caneca vazia para a
Zoe. — E avise as outras que elas podem dormir até mais tarde nas próprias casas
amanhã, pois eu pretendo fazer isso. E, de qualquer maneira, é sábado ... A Dinah
já não viria trabalhar.
— Vou avisar — Zoe garantiu quando se levantou com a expressão perdida.
— Até amanhã, Violet, bom descanso.
— Igualmente. E mande um beijo para o Zaki e as crianças.
Ela me observou com lágrimas nos olhos e, após colocar as canecas em
uma mesa próxima a nós duas, me abraçou com força, como se nunca mais fosse
me soltar. Hesitante, eu passei meus braços por sua cintura e retribuí aquele
abraço, que a cada segundo eu percebia estar precisando. Por nossa diferença de
altura eu não conseguia encaixar a minha cabeça no espaço entre seu ombro e
pescoço, por isso virei meu rosto e apoiei a cabeça em seu peito.
— Eu amo tanto você, Violet.
— Também amo você, Zoe. E antes que você diga, eu sei o quão
intensamente a minha mãe me amou, nunca me esquecerei disso — comentei e
Zoe riu suavemente.
Aproveitei aquele abraço ao máximo, tomando o cuidado de não começar
a chorar, porque eu não queria estragar aquele momento ou incomodar a Zoe,
afinal, ela tinha uma família para voltar e eu não deveria usufruir de seu tempo
tão precioso. Por causa da dificuldade em segurar as minhas lágrimas durante um
abraço tão amoroso eu me afastei, respirando fundo para recuperar a razão.
— Obrigada pela companhia — agradeci com a voz fraca.
A Zoe deve ter percebido meus olhos marejados, mas ela não insistiu,
apenas depositou um longo beijo em minha testa e foi embora com um sorriso
doce estampado em seu rosto.
Deitei-me na cama pensando em minha mãe, tentando imaginar como ela
conversaria comigo, mas era difícil saber o tom que ela usaria comigo quando o

88
Legado Roubado

meu único repertório eram as entrevistas que ela dava como rainha. Ela sempre
falava com muita formalidade e era com os outros, não comigo, a filha dela.
Deixe de lado essas ilusões infantis de que poderá ser como uma mulher
que nem conheceu. Minha avó era a parente dos conselhos, mas esse foi dado por
meu avô quando eu tinha oito anos e desde então ele me importunava como uma
erva daninha.
Peguei um tablet, sempre esquecido na gaveta da escrivaninha, conectei na
tomada ao lado da cama e fui até uma pasta com tudo sobre a minha mãe. Fotos
suas no casamento, coroação, festas, visitas sociais, passeios com a Kira e suas
idas ao pub favorito das duas, eventos esportivos e, é claro, vídeos de entrevistas
e declarações. Era ali que eu podia chegar um pouco mais perto de minha mãe.
Busquei pelo primeiro vídeo em que a minha existência havia sido
declarada ao mundo, o vídeo onde meus pais anunciaram a gravidez de minha
mãe. E, como tudo estava organizado pela data, eu não demorei para achá-lo,
pulando para a parte do anúncio.
— É com alegria que anuncio a minha gravidez para o povo de Leinster, das
Terras Altas e o resto do mundo — a minha mãe falou com os olhos marejados e
um enorme sorriso.
Espera um pouco ...
Terras Altas? Por que especificar um único lugar da Escócia?
Depois de organizar tudo o que eu sabia sobre a minha mãe em um quadro
dentro de meu closet, colocado ali após um dia em que eu e as meninas
começamos a debater qual nome era mais bonito para a uma linha de produtos da
Yarin e nunca mais tirado, cheguei à certeza de que ela só poderia ter nascido
naquela região da Escócia.
Mas por que ninguém nunca disse nada? O que eles queriam tanto
esconder de mim para manter as origens dela em segredo?

— Olhas as mensagens que o Gael me enviou essa manhã — Yarin disse ao


entrar no meu quarto na manhã seguinte. — Ele descobriu.

“Essa manhã me surgiu um pensamento muito estranho, que agora já se


tornou muito sensato.
Resolvi pesquisar fotos da princesa Violet de Leinster e sabe o que achei
incrível? Que você, ou melhor, a sua amiga que eu conheci no parque é muito
semelhante com ela.

89
Luana Trindade

Sei que eu não deveria ter descoberto isso, mas caramba! Eu conheci a
princesa de Leinster!
Quais as chances?
Ainda não consigo acreditar que demorei tanto para juntar as peças.
Me perdoe por ter descoberto, mas não se preocupe. Não irei expor que
você andou passeando no principal parque da cidade.
Acho que eu deveria chamá-la de alteza ...
De qualquer forma, agora que eu conheci uma pessoa tão importante para
a Irlanda eu gostaria de saber como entrar em contato com pessoas no mesmo
nível que o seu ... Acho que encontrei informações que podem explicar melhor o
motivo para a minha mãe ter deixado a Irlanda, mas para isso preciso perguntar
para uma pessoa importante.”

— O que respondemos? — ela perguntou mordendo o lábio inferior.


— Manda um rostinho feliz e dê as dicas para conversar com alguém
importante ... Eu não faço ideia.
— E como faz para entrar em contato com pessoas importantes? — ela
indagou com sincera dúvida. — Normalmente as pessoas que eu conheço apenas
me procuram quando querem enviar algum tipo de mensagem para você. E,
quando somos nós a desejar conversar com alguém, eu apenas envio uma carta
digital, mas o meu perfil é certificado.
— Também vai depender de quem ele deseja contatar — ponderei por
alguns instantes. — Se bem que ele disse no mesmo nível que o meu. Talvez um
duque ou príncipe? Se for isso, existem pessoas que recebem todos as cartas
digitais enviadas. É a única forma que eu conheço.
— Espera, não é mais fácil ele nos dizer com quem quer conversar e o
assunto? Assim nós podemos ir atrás dessa pessoas. Facilitará e muito o trabalho
dele.
— Dê essa sugestão.
Gael não demorou para responder, sendo sua mensagem um tanto curiosa,
pois ele gostaria de manter o assunto e a pessoa no sigilo para não correr o risco
de fazer exposições desnecessárias.
— Com certeza ele é um filho bastardo — Yarin murmurou e eu concordei.
Depois de ajudarmos o Gael da maneira que era possível, aproveitei para
falar sobre as Terras Altas e minha ideia de perguntar para o Kyle sobre a vida de
minha mãe na Escócia, ao menos sobre o que ele sabia.
— É uma boa perguntar para o Kyle, como herdeiro ele deve saber de algo.
E o Éloy? Você já perguntou para ele?

90
Legado Roubado

— Fiz isso depois de acordar, mas ele não disse nada, como o costume.
Espero que com o Kyle eu consiga alguma dica para pressioná-los — suspirei ao
colocar uma mecha do cabelo atrás da orelha, uma curiosidade me invadindo no
meio do movimento. — Yarin, me empresta o seu celular?
A Yarin me entregou ele sem pensar duas vezes, os olhos azuis curiosos.
Nunca encontrei todas as informações que eu gostaria na internet ou em
livros, entretanto, descobrir o local de nascença de uma atriz famosa não deveria
ser tão difícil. Certo? Mesmo considerando que eu nunca havia encontrado
informações sobre a família dessa atriz, eu tinha a esperança de apenas descobrir
sua cidade de nascença.
— Ela nasceu em Inverness — murmurei ao sorrir, o sentimento de vitória
me invadindo. — Inverness é a principal cidade das Terras Altas.
— De quem estamos falando? — indagou ao franzir as sobrancelhas.
— De Maísa Mysie. Ela é minha parente, não existe outra explicação para
tantas coincidências — falei um pouco sem ar. — E ela só nasceu três anos depois
de minha mãe ... Essa diferença é tão pequena ... É como se ...
— Elas fossem irmãs — Yarin completou com um suspiro.

91
Capítulo 8
Química
— Você construiu uma adega no seu quarto? — perguntei para a Julie
quando ela entrou na sala com duas garrafas de vinho. — Quase todo dia você
aparece com uma garrafa diferente.
— Eu tenho orgulho de alguns vinhos do meu país — respondeu, sem
realmente responder.
— Depois ela reclama que eu a acuso de algo por causa dos estereótipos —
Brenna resmungou enquanto ajeitava os jogos na mesa de centro.
— É claro que irei reclamar, porque a traição é um problema individual,
encontrado em qualquer lugar do mundo. Franceses traem, irlandeses traem,
japoneses traem ... Isso é uma falha humana, não francesa. E o vinho é cultural,
principalmente na região que eu cresci, que é muito conhecida pelos ... vignobles.
Não sei como é a palavra em inglês.
Os presentes naquele momento, Brenna, Akemi, David e Mirella,
observaram a francesa sem entender a última palavra. Então eu, a única poliglota
presente, precisei ajudá-los.
— Vinhedo — eu traduzi, Akemi admitindo também não conhecer aquela
palavra em inglês, sendo necessário eu descrever seu significado para ela, pois eu
nunca havia conhecido a palavra em japonês.
— Ah, agora eu entendi o que a sua mãe me disse quando eu estava lá —
Akemi comentou ao rir. — Ela esqueceu que a Violet é a amiga poliglota.
— Será que o Kyle e os outros já estão vindo? — a princesa Mirella
questionou ao se levantar do sofá em que estava sentada. — Acho que vou atrás
deles.
— É uma boa — Juliette respondeu com um sorriso, me observando de
relance, antes que a Mirella saísse da sala.
Levantei do sofá em que estava e fui ajudar a Julie a organizar os vinhos na
mesa com as demais bebidas, essas sendo não alcóolicas, querendo me distanciar
dos acontecimentos daquela manhã.
Por mais que eu tivesse me empolgado para aquela noite, esse não era o
meu sentimento, não depois de ter passado um dia inteiro teorizando sobre as
possíveis ligações entre minha mãe e Maísa Mysie junto da Yarin. Nós duas já
havíamos passado muitas horas buscando informações há uns anos, mas dessa
Legado Roubado

vez era diferente, porque a verdade não parecia tão distante como antes. Por
tudo isso eu queria voltar a fazer pesquisas com a Yarin imediatamente.
— Você está me ouvindo? — Julie questionou.
— Desculpa, me distraí por um instante — respondi ao cruzar meus braços.
— O que você estava dizendo?
— Que a Mirella parecia muito preocupada em chamar o Kyle. Tenho
certeza de que até a coroação os dois ficarão juntos.
— Bom ... Isso é algo irrelevante, se eles ficarão juntos ou não — suspirei
ao ajeitar as garrafas de vinho, que não me pareciam alinhadas o suficiente.
— O que aconteceu com você? — questionou com as sobrancelhas
arqueadas. — Você está no modo calculista.
— Do que você está falando?
— Quando você entra no modo calculista eu sei que algo aconteceu —
explicou rapidamente. — Enfim, estou aqui para ouvir você.
— Eu só estou com a cabeça em outro lugar.
— Qual?
— Sinto que estou a um passo de desvendar o mistério da lista de
convidados e ... Espera um pouco, modo calculista? De onde você tirou isso? Eu
não sou calculista.
— Eu sei que não, mas está agindo como se fosse com esse olhar
inexpressivo, meio com raiva — respirou fundo.
— Calculista não é uma pessoa com raiva, seria mais apropriado dizer que
estou em meu modo irritado.
— Não, seu modo irritado é diferente. O calculista é quando você parece
estar planejando um assassinato nos mínimos detalhes.
— Você tem uma enciclopédia com todos os meus modos descritos?
— Só falta escrever eles no papel — revelou com um sorriso de canto. —
Saiba que eu e a Akemi tivemos muita dificuldade com isso, porque você é a
pessoa mais difícil de lidar que nós conhecemos.
— Então é isso que vocês ficam fazendo quando estão sem mim? —
questionei ao franzir minhas sobrancelhas.
— Na maioria das vezes.
Encarei a Juliette boquiaberta, que apenas riu antes de se apoiar na mesa
com as bebidas e observar a Akemi que, junto do David, ajudava a Brenna a
arrumar os jogos na mesa de centro. Os três estavam descontraídos, criando uma
visão um tanto estranha.
— Tenho pensado na Akemi defendendo o Lucca — comentou ao mexer no
pingente de sua pulseira de ouro. — Você também não tem achado tudo muito

93
Luana Trindade

estranho? A Akemi que eu conheço nunca se esforçaria tanto para defender


alguém com o histórico como o dele sem provas coerentes.
— Só não entendo o porquê de o Lucca não compartilhar o lado dele na
história. Não pode ser pior do que ser perseguido pelos boatos dia e noite, pode?
— Talvez ele esteja de rabo preso com alguém.
— Sinceramente, eu estou com vontade de interrogar ele e a Akemi,
principalmente quando penso que estamos ensaiando juntos há duas semanas e
em nenhum momento ele demonstrou ser o Lucca dos boatos, pelo contrário, ele
chega a me irritar de tão educado — cochichei ao cruzar meus braços e respirar
fundo. — O pior é que o meu pai pediu para eu confiar no Lucca. Se bem que
ultimamente isso é tudo o que ele tem me pedido ... Tenha paciência, Violet.
Confie em mim, Violet — fiz minha péssima imitação com um suspiro.
— Ma puce, já passou da hora de você incorporar a detective Violet.
— Esse é mais um estado de espírito meu? — quis saber ao sorrir de canto.
— Uma faceta sua, na realidade.
— Meu Deus, estou começando a acreditar que você e a Akemi realmente
inventaram essas coisas.
— É óbvio que sim, não tão sou criativa para inventar algo assim de última
hora.
Antes de concordar com seu comentário, a Akemi nos convidou para jogar
quarenta segundos enquanto os outros não chegavam. Eu apenas me sentei para
jogar com eles, me permitindo esquecer de tudo por uma noite. Minha mente
estava no limite e eu precisava descansá-la o suficiente se quisesse descobrir algo.
Seja apenas uma adolescente, esqueça por algumas horas que você pode
possuir uma tia.
Todos que faltavam chegar entraram na sala juntos, rindo sem parar
enquanto se ajeitavam entre os sofás da sala.
— O que aconteceu? — Julie perguntou quando o Jordan ficou do seu lado,
o príncipe se esforçando para deixar de rir.
— Desculpa, não posso falar.
— Sou sua melhor amiga.
— Eu sei.
— Agora que vocês, finalmente, chegaram, o que acham de começarmos a
jogar? — perguntei ao me levantar do lugar em que estava sentada, reparando no
Kyle e lembrando que eu queria conversar com ele sobre as origens de minha
mãe.
E lá se vai a tentativa de esquecer o assunto por algumas horas.
— Aparentemente vocês já começaram a jogar — Mirella observou,
interrompendo meus pensamentos.

94
Legado Roubado

— Era um jogo rápido — expliquei com um suspiro, reconhecendo que


aquele não era o momento para chamar o príncipe escocês para uma conversa
privada. — Prontos para escolherem os jogos dessa noite?
No final de três partidas de um dos jogos, demos uma pausa para
pegarmos um pouco de bebida e petiscos feitos por meus cozinheiros. Eu poderia
ter ido até os outros conversar com eles, mas por uma razão muito estranha eu fui
até o Lucca, que arqueou as sobrancelhas por me ver indo até ele.
Por que, Violet? Por quê? Você quer conversar com o Kyle não com o Lucca!
— Você é um excelente jogador — comentei, pensando em uma rodada a
qual vencemos juntos.
— Digo o mesmo para você. Seu espírito competitivo é comovente — disse
com o sorriso travesso ao colocar as mãos no bolso da calça. — No meu caso é
pela prática, pois jogo muito com minha família.
— Acho que essa é uma vantagem de ter uma família gigante — supus,
voltando meu olhar para seus olhos verdes ao lembrar de minha conversa com a
Juliette.
— Com certeza, principalmente se considerarmos a minha mãe. Ela
consegue ser mais competitiva do que você.
— Mesmo? — questionei ao arquear minhas sobrancelhas. — Porque ela
não aparenta ser competitiva.
— A Dara que você conhece está longe de ser a verdadeira.
— É o mal de fazer parte da realeza. Ninguém conhece você de verdade.
— Acrescento a minha observação de que na maior parte das vezes a visão
que o mundo tem de nós é sempre o oposto daquilo que realmente somos. Alguns
são vistos como anjos, mas no fundo são lobos disfarçados de ovelhas. E o mesmo
acontece ao contrário.
— Você está querendo dizer algo com isso, príncipe?
— Tenho certeza de que a mensagem ficou muito clara.
Naquele momento eu o observei com atenção, o Lucca com a expressão
muito convicta e seus olhos atentos nos meus. Ele queria me fazer acreditar nele e
eu realmente queria ser capaz disso, mas era difícil para mim, se não impossível. É
claro, suas palavras faziam todo o sentido, porque eu via as pessoas idolatrando o
Giacomo enquanto eu sabia quem ele era de verdade: um príncipe covarde e
mentiroso. Entretanto, confiar no Lucca era diferente, porque eu não o conhecia,
não como conhecia o Giacomo ou como me conhecia. Tínhamos crescido
próximos quando comparados a outros herdeiros, mas ainda éramos dois
estranhos e a minha confiança absoluta não era conquistada por estranhos, o
máximo era de casos como o do Gael.
Confie no Lucca.

95
Luana Trindade

— Talvez você não seja uma pessoa ruim, como costumam dizer na mídia,
mas não entendo o porquê do seu silêncio. Se você é inocente ...
— Você acha mesmo que eu não tentei? É como se o Conselho, como
instituição, estivesse completamente contra mim — revelou com uma expressão
firme. — Não importa que todos os funcionários de Ulster e alguns de outros
reinos tenham me defendido. O fato de eu não ter nada que possa comprometê-
los para usar como um escudo me coloca em uma posição frágil.
— Então você está me dizendo que é culpado de algo, mas que para se ver
livre do castigo é necessário usar o suborno?
— Estou dizendo que o funcionamento do Conselho é falho e podre,
incapaz de fazer a justiça quando necessário — explicou com os olhos tão atentos
em mim que só pude admirar sua postura confiante no fundo de meus
pensamentos. — Não existem provas contra mim, mas por causa da palavra dos
favoritos do Conselho isso é esquecido.
— Mas existem provas a seu favor, Lucca? — indaguei ao firmar meus
olhos nos dele. — Capazes de inocentá-lo?
— Nenhuma que esteja ao meu alcance.
— Por que elas não estariam ao seu alcance?
— Eu precisaria envolver pessoas inocentes nessa bagunça — sua voz
vacilou, assim como seu olhar desviou do meu. — Porque elas poderiam me
ajudar a dar credibilidade na hipótese de que tudo não passou de uma armação
contra mim.
— Já tentou conversar com essas pessoas? Talvez elas possam ajudá-lo —
sugeri, uma parte minha realmente desejando auxiliá-lo com o problema.
— Seria tão cruel, Violet — murmurou com a mandíbula travada, os olhos
verdes, agora marejados, voltando a encontrarem os meus. — Forçar alguém a se
expor sem a certeza de que funcionaria ... Eu nunca poderia aceitar fazer algo
assim apenas para o meu bem.
— Mas quais argumentos concretizam sua hipótese? Se ela for consistente
é possível que você dê um fim nessa história. Converse com as pessoas que
podem ajuda-
— Ei futuros imperadores da Irlanda — Mirella interrompeu nossa conversa
ao se aproximar, jogando as suas boxes braids para trás com um sorriso enorme.
— Vocês querem que os petiscos fiquem na mesa de centro para não termos que
nos levantar?
— Isso, fica os chamando assim mais vezes para atrair isso — Brenna
resmungou em alto e bom som, para todos escutarem e, consequentemente,
ignorarem.
— Sim — respondemos.

96
Legado Roubado

— Excelente escolha — ela disse antes de pedir para os outros príncipes


levarem os petiscos até a mesa de centro.
Voltei a observar o Lucca, meus pensamentos lutando entre si enquanto eu
tentava decidir se deveria dar um voto de confiança ao príncipe. Não por ele, mas
por meu pai e por sentir que tudo naquela história parecia errado.
— Estou muito preocupado com o que irão falar de você quando as
pessoas descobrirem que sou o seu parceiro ... — o príncipe admitiu ao bagunçar
o cabelo, como se para aliviar um pouco da tensão, meus olhos concentrados no
movimento de seu braço e de seu cabelo loiro. — Ainda não entendo como os
meus pais acharam uma boa ideia aceitar o convite. Eles gostam de você, não
poderiam concordar em colocá-la em uma situação ruim diante da mídia.
— Vamos aproveitar essa noite para pensarmos em tudo o que não nos
estressa — pedi ao respirar fundo. — Depois eu precisarei escutar mais de seus
motivos que podem me fazer confiar em você.
— Não gosto disso.
— Está com medo de não ser capaz de mentir para mim?
— Não gosto de estar me aproximando de você por interesse —
especificou.
— É a política funcionando, alteza.
Seu rosto ruborizou em desconforto, mas ele assentiu antes de se afastar
para conversar com o Dinesh enquanto eu me sentava ao lado da Julie ao
perceber que o Kyle estava, novamente, indisponível para conversar comigo
naquele momento.
A oportunidade irá surgir.
E ela surgiu na mesma noite, mesmo que só mais tarde.
— Kyle! — chamei o príncipe quando saímos da sala. — Podemos
conversar?
O herdeiro escocês franziu as sobrancelhas, mas assentiu ao olhar para a
Mirella de relance, que o acompanhava.
— Deixarei vocês a sós — a princesa disse ao se afastar e ser acompanhada
pela Brenna, alguém que não pareceu deixá-la feliz.
— Eu gostaria de fazer algumas perguntas — expliquei ao respirar fundo,
me acalmando para não expor a minha ansiedade. — O que você sabe sobre
minha mãe e Maísa Mysie?
— Nada — resmungou com a voz hesitante e o olhar desfocado.
— Você está mentindo — acusei.
— Por que eu mentiria para você, Violet?

97
Luana Trindade

— Não sei! Talvez alguém tenha pedido para que você escondesse
informações da família da minha mãe de mim, porque é óbvio que você tem
conhecimento das origens de minha mãe ... Ela era escocesa.
— Desculpa, Violet, mas não é porque alguém é escocês que eu
automaticamente tenho noção de tudo sobre a vida dessa pessoa — murmurou
antes de se desculpar novamente, me dar as costas e subir para o seu quarto.
Por que ele também mentiria?
Talvez ele não esteja mentindo.
Pelo agir dele eu aposto que isso é impossível.

— Perfeitos! — Deirdre comentou sorridente no final do meu ensaio de


dança com o Lucca. — Simplesmente perfeitos! Continuem assim que todos na
coroação ficarão fascinados pela química entre as altezas.
Química entre as altezas? Foi o insistente e irritante pensamento em minha
mente pelo restante do ensaio.
— Você concorda com eles — acusei a Yarin quando voltávamos para o
meu quarto pelas passagens ao fim do ensaio.
— É impossível não concordar — ela resmungou antes de fazer uma careta
e aumentar a voz. — Mas isso não significa nada, Violet! Eu já tive química com
muitos homens, mas não é por isso que o relacionamento deu certo. A química
entre um casal vai muito além do exterior, ela também envolve o interior entre os
dois! A dinâmica entre eles! O que a Deirdre disse é verdade, você e o Lucca
dançaram sincronizados, o que acabou criando a chamada química!
— Eu entendo isso, mas a nossa visão não vai evitar os comentários dos
outros! — reclamei. — Os cozinheiros já comentaram sobre um possível
casamento entre nós dois ... Você acha que eles serão os únicos a falar isso depois
da coroação?
— Você não precisa fazer o que os outros querem! Se seu pai lhe garantiu
que ninguém está te forçando a nada, por que se preocupar com esse assunto?
— Minha preocupação vai muito além de ter ou não liberdade para tomar
as minhas decisões, você conhece a vida monárquica a mais tempo do que eu, já
deveria entender que quando uma ideia entra na mente do povo é difícil de
controlá-la, Yarin — resmunguei ao parar de andar e olhar para seus olhos azuis.
— É óbvio que eu não vou me casar com o Lucca se isso não for o que eu desejar,
mas até onde as pessoas irão quando se encantarem por esse possibilidade? Após
a repudiarem? Isso que me preocupa.

98
Legado Roubado

— Deixem que fale, isso é que trará ainda mais veracidade à possibilidade
de você se tornar imperatriz.
— Eu odeio quando você tem razão.
— Sempre sou coberta de razão, gatinha — brincou ao retomar a
caminhada para meu quarto, eu apenas ri antes de segui-la pelas passagens por
pouco tempo, pois logo ela estava perdida e pedindo para eu guiar o caminho.
Todo líder memorável precisa de picuinhas o cercando, Violet. O sucesso
dele será determinado pela maneira que ele lida com isso. Foram as palavras de
minha avó que invadiram minha mente naquele momento.

99
Capítulo 9
Demissão
Os pares da Damsha Oíche haviam sido liberados há quase uma semana.
Uma semana de inúmeras tentativas para descobrir mais sobre as motivações de
meu pai para tirar os nomes escoceses da lista, de compromissos incontáveis e
estressantes, de ensaios cansativos e que pareciam nunca acabar. De noites mal
dormidas por temer o momento de acordar, pois eu nunca sabia o que poderia
encontrar na internet em todas as manhãs naquela semana, um temor que só se
intensificava ao discorrer do dia, principalmente ao ler as manchetes dos jornais
que inventavam qualquer coisa para irem contra mim. Como consequência, meu
nervosismo se transformou em pura raiva, principalmente quando as minhas
tentativas de descobrir mais sobre os convidados escoceses de minha coroação
eram fracassadas.
— É uma pena ver que o reino de Leinster será entregue para uma garota
tão inexperiente e que não teve o exemplo do que é ser uma rainha! — eu li a
notícia irritada para as meninas. — A princesa Violet escolhendo o príncipe Lucca
como seu par na Damsha Oíche exemplifica perfeitamente o que a falta de uma
mãe causa na vida das crianças.
— Por que você está lendo isso como se fosse a opinião da maioria? —
Dinah indagou ao ajeitar seus óculos. — Ainda mais quando a maioria dos
comentários das pessoas nesses noticiários são contra tudo o que foi escrito.
— Devemos confiar na princesa, pois ela nunca falhou conosco e não faria
isso agora com algo tão bobo — Susana falou tão naturalmente que levei um
tempo para entender que ela estava lendo algo por seu celular. — Esse
comentário tem mais que o triplo de apoios da notícia em si, Violet. Agora
podemos voltar a nos concentrar no que realmente importa?
— É incrível como você consegue soar chata até quando age com sensatez
— Yarin resmungou e Susana revirou os olhos.
— Poderíamos discutir sobre o fato do pai da Violet não ter liberado a lista
de convidados da coroação, porque isso deveria ter sido feito junto com a lista dos
pares da Damsha Oíche — Dinah sugeriu de modo conspiratório e um sorriso
empolgado.
— Ele está escondendo algo do passado da mãe da Violet e não há dúvidas
sobre isso — Yarin comentou. — E nós já discutimos todas as possibilidades, estou
começando a me irritar por não descobrirmos nada.
Legado Roubado

— Eu também — murmurei ao me jogar em minha cama. — Porque com a


aproximação de minha coroação só consigo pensar que estou prestes a jogar o
sacrifício de minha mãe no lixo.
— Sua mãe não morreu para manter a linhagem ou para você ser perfeita
em tudo — Zoe falou ao desviar seu olhar da costura das flores que fazia na renda
de meu vestido. — Ela se sacrificou para que você tivesse a chance de viver.
— E que diferença isso faz?
— Toda a diferença, Violet! Ela não se importava com a linhagem, ela só
queria manter você viva. Isso é o que mães fazem, elas-
— Deixam seus filhos sozinhos no mundo? — perguntei ao encarar a Zoe,
então fechar os olhos irritada e tapar meu rosto, o esfregando em uma tentativa
de clarear meus pensamentos. — Droga, não é isso que eu penso. Ela me salvou e
é isso o que mães fazem.
— Ainda bem que não precisei dizer nada para você reconhecer a besteira
que disse — Zoe suspirou cansada. — E você sabe como a sua mãe a amou
profundamente, então nunca cogite a possibilidade de ela ter desejado que você
crescesse sem ela.
— Você está certa.
Conseguimos decidir várias questões de minha aparência para a coroação
depois que deixei todas as preocupações de lado. É claro, as críticas ou lista não
saíram de meus pensamentos, mas consegui me distrair o suficiente para descer
mais tranquila para o jantar com os participantes da Damsha Oíche, que foi
seguido por uma ida ao cinema do palácio para assistirmos um filme em conjunto.
— Nós iremos chegar juntos no palácio de Uisnech, certo? — Lucca
perguntou depois do filme ter acabado, enquanto subíamos os degraus que nos
levariam para nossos quartos.
— Sim, então já devemos estar preparados para uma enxurrada de
perguntas sobre a nossa suposta aproximação.
— Eu passei a noite anterior discutindo com a Sheila sobre as possíveis
perguntas que farão e quais seriam as respostas apropriadas — revelou com seu
sorriso travesso. — Então saiba que já estou me preparando para isso.
— Perfeito — comentei com minha mente refletindo no detalhe dele ter
mencionado apenas a Sheila, não a Sheila e a Kelly, algo anormal para os padrões
dos trigêmeos Agnew. O boato sobre ter acontecido algo entre os três apenas me
parecia mais próximo da verdade.
Depois de me despedir do príncipe eu desejei uma boa noite para minhas
amigas, então subi sozinha para o terceiro andar, indo direto para o meu quarto,
que estava vazio e completamente silencioso naquele momento.
Em três dias você será uma rainha.

101
Luana Trindade

Apenas três dias.


— Respire fundo — murmurei ao fechar meus olhos, me concentrando em
minha respiração. — Respire fundo.
Leinster era um reino pequeno, mas isso não diminuía a importância e a
dificuldade de governar um reino inteiro. Sabia que não faria isso sozinha, já que
meu pai não deixaria de ser o rei. Porém, eu seria a rainha, teria muitas outras
responsabilidades com a coroa sobre minha cabeça.
Foi relaxante entrar na banheira, só que minha ansiedade pareceu se
intensificar naquele momento que deveria ser um descanso. Comecei me afligindo
ao pensar no contrato de minhas criadas, que estava para vencer em meu
aniversário.
Será que elas vão querer deixar seus trabalhos para fazerem coisas novas?
A Zoe e a Yarin desejam focar em suas empresas?
Eu não ficaria brava com elas, ficaria muito feliz, mas seria difícil me
adaptar com o dia a dia sem uma das quatro, porque elas eram tudo para mim, as
únicas pessoas que eu conseguia pensar como uma família. Mesmo com as brigas,
nós cinco éramos próximas e só de imaginar ser uma rainha sem uma delas por
perto era desesperador. Talvez fosse bom, porque eu ficaria mais independente,
mas eu sabia que não se é rainha sozinha, afinal, era importante ter pessoas leais
por perto, principalmente em casos como o meu, em que a minha única família
era o meu pai, porque eu não tinha o hábito de classificar meu avô nisto. E minha
avó ... Bom, ela não estava mais por perto.
Será que se minhas criadas decidirem não renovar seus contratos
continuarão sendo próximas de mim? Ou elas só mantêm a nossa relação por
causa do salário?
Não seja estúpida, elas amam você. Amam de verdade!
Meus pensamentos me levaram para muitos lugares, nenhum feliz, mas
todos solitários. E, mesmo observando as quatro fotos que ficavam em meu colar
relicário, esse medo prevalecia, porque parecia tão fácil perder todas as pessoas
que estavam nas fotos e ficar sozinha para sempre.
Algum dia eu conseguiria me apaixonar novamente e formar a minha
família? Eu não precisava me apaixonar, só confiar em alguém era suficiente para
mim. Mas como fazer isso? As únicas pessoas que tinham conquistado minha
confiança só o fizeram por causa da idade em que nos conhecemos. Quanto mais
velha eu ficava, mais eu perdia a confiança nas pessoas. E se chegasse um
momento em que eu não fosse mais capaz de confiar em pessoas diferentes
daquelas do meu ciclo social? Eu ficaria sozinha para sempre e acabaria com a
linhagem da minha família?
Não.

102
Legado Roubado

Essa não é a sua preocupação.


Eu só queria saber como era ter uma família. Queria mesmo. Mas depois
do Giacomo eu não sabia se seria capaz de realizar esse meu sonho. O sonho de
ter pessoas para compartilhar essa vida tão caótica da realeza. Não apenas dividir
o fardo, mas torná-lo suficientemente suportável para amar essa vida. Porém eu
não podia fazer isso com a Zoe, Susana, Yarin ou Dinah, porque elas tinham suas
vidas fora do castelo. Ninguém compartilhava comigo essa vida. Elas não eram
uma opção. A única que poderia ter compartilhado isso foi arrancada de minha
vida há dezesseis anos e tudo o que me restava era a chance de ir atrás disso, mas
me parecia impossível depois do Giacomo.
Me assustei ao escutar uma batida na porta, que logo se revelou ser a
Susana, sendo para mim a interrupção perfeita, porque nós duas estávamos nos
distanciando demais nos últimos três anos e eu não podia perdê-la, precisava
investir mais em nossa relação e sem usar a desculpa de que estava na correria
por causa da coroação.
— Tudo bem?
— Estou ótima — respondi ao colocar a mão em meu peito, sentindo o
coração acelerado. — Você adora me assustar.
— Desculpa — ela respondeu ao rir. — Você já vai sair?
— Vou sim, Sus.
Depois de seca e vestida saí do banheiro usando o colar relicário na
esperança de ela se recordar dele e termos uma conversa nostálgica. Era um tipo
de conversa que costumava funcionar para reestabelecer vínculos.
— Só precisava relaxar um pouco — expliquei ao caminhar até minha
criada com um sorriso fraco.
— Compreensível, considerando que você guarda tudo para si ... — ela
murmurou, batendo alguns papéis na mesa para ficarem alinhados entre si. —
Você deveria confiar mais em nós.
— Isto não é questão de confiança. E eu só estou ansiosa para a coroação,
não é nada demais.
— Nunca é nada.
Ela guardou os papéis na gaveta da mesa e eu a observei confusa.
Por que ela parece brava comigo?
— Fiz alguma coisa? — perguntei, hesitante.
— Não Violet — ela disse ao me encarar irritada. — Mas esse é o problema.
Você nunca faz nada. Nunca fala nada ... É como se você quisesse continuar
sofrendo com tudo o que acontece em sua vida, continuar sendo sempre a pobre
princesa Violet que perdeu a mãe em um assassinato cruel.

103
Luana Trindade

Senti o nó em minha garganta apertar ao escutar suas palavras, mas o pior


era sua expressão. A Susana parecia muito irritada e decepcionada comigo ... E ela
nunca tinha me olhado dessa forma, mesmo estando em minha vida desde
sempre.
— Por exemplo, você está preparada para se reencontrar com o Giacomo?
— Por que eu deveria me preocupar com ele?
— Você sabe o porquê.
— Não. Eu não sei, Susana — respondi, sentindo a raiva me invadir. —
Porque eu nem farei questão de ir cumprimentá-lo.
— E se ele for até você? Você estará pronta para falar com ele e manter a
sua imagem? Estará segura o suficiente para que isso não estrague a sua noite?
— É claro que sim! Por que eu não ficaria?
— Porque você não fala sobre isso, Violet. Você só sabe trancar seus
sentimentos sobre ele o mais fundo possível, com a ilusão de que está seguindo
em frente, mas isso não funciona.
— E o que vai mudar se eu falar sobre isso?
— Você vai se libertar desse peso!
— Não irei! — explodi, sentindo a pressão em minha mandíbula. — Porque
se eu falar sobre isso nada do que aconteceu há três anos mudará!
— Sei que não — minha criada falou ao respirar fundo para recuperar a
calma. — Mas você pode superar isso de verdade, porque ignorar algo não é
superação.
— Falar sobre o fato da minha mãe estar morta nunca me fez superar o
cruel assassinato dela — disse ao manter confiança. — Por que seria diferente?
— Porque são situações diferentes. Eu só quero que você compartilhe esse
fardo com algum psicólogo ou especialista ... — ela murmurou. — Nós não temos
estrutura para carregar eles por você.
— Mas eu não quero dividir isso com ninguém, porque conversar não
resolve nada.
— Tire essa idiotice da cabeça, garota! Isto não funciona!
— Eu que decido se funciona ou não! E funciona!
— Você se assusta todas as vezes que alguém encosta em você, você não
suportaria dançar com o Lucca se a Yarin não estivesse por perto — ela destacou
com as sobrancelhas franzidas. — Você está tão focada em ser perfeita que
esqueceu de ... apenas ser a princesa de Leinster! E como você acha que será a
rainha se nem ao menos está sendo a princesa? — minha secretária agitou os
braços. — Você escondeu tudo de si há três anos, não apenas os sentimentos
sobre o que aquele príncipe fez com você! E, de brinde, tem nos sobrecarregado

104
Legado Roubado

com isso, porque um passo em falso é capaz de deixar você se odiando, então nos
forçamos a sempre buscar as palavras certas para que você não se isole mais.
— Se você está se sentindo tão sobrecarregada é melhor ir embora, porque
eu não quero colocar esse peso em suas costas, Susana. E ... seus filhos precisam
de você. Não vou forçar a mãe deles a cuidar de mim, já sou grande o suficiente
para cuidar de mim mesma.
— Que bom você enxerga que nossas vidas não giram em torno de você,
Violet — só pude manter a expressão fria diante de suas palavras sarcásticas. — E
não se preocupe em me chamar para ir em sua coroação, eu não estava com
planos de ir.
Só me restou forças para assentir, porque se eu abrisse minha boca eu
desabaria em lágrimas, algo que eu lutei contra ao fincar minhas unhas nas
palmas de minha mão. Eu não podia permitir que ela estivesse certa sobre eu as
sobrecarregar com meus problemas.
— Antes de eu ir só quero pedir para você não se esquecer que a Zoe não é
sua mãe, essa posição que você tenta usurpar cabe à quatro crianças que são
deixadas de lado para que ela cuide de você. Então, Violet, não é porque você
perdeu a sua mãe que você tem o direito de deixar outras crianças sem a mãe
delas.
Fiquei parada onde estava após a partida da Susana até conseguir respirar
normalmente, minha mão ardendo pela força necessária para aliviar meus nervos
e a mandíbula ardendo com o esforço para não chorar. Entretanto, o importante
foi que eu recuperei o ar quando escutei uma batida hesitante na porta, algo que
me deixou desperta o suficiente para correr até a cama e me deitar a fim de fingir
estar dormindo.
A porta foi aberta e após alguns passos da pessoa eu escutei seu suspiro,
suficiente para me fazer reconhecê-lo. Eu não tinha mais tanta certeza se
conseguiria continuar com minha encenação.
— Eu sinto muito, minha flor — Zoe suspirou com a voz fraca ao depositar
beijos suaves no topo de minha cabeça e pentear meu cabelo com sua mão. —
Mas não se preocupe, pois enquanto eu viver você não ficará sozinha. Eu
prometo.
A minha sorte é que eu estava de costas para ela, então as lágrimas que
escaparam de meus olhos quando ela começou a soluçar não me expuseram, eu
apenas mantive meu corpo relaxado o suficiente para fazê-la acreditar que eu
estava dormindo. Ela jamais saberia que eu estava escutando tudo.
Qual seria o problema em estar acordada?
Ela não é sua mãe.

105
Luana Trindade

— Eu amo você — ela declarou com a voz vulnerável e os lábios contra


meu ombro. — Amo de todo o coração.
O momento foi interrompido com uma batida desesperada na porta, Zoe
se afastando assustada antes de ir receber quem quer que estivesse ali. Foi abrir a
porta para a Juliette entrar apressada em meu quarto, apenas a luz da antessala
as iluminando me permitindo observá-las de longe.
— Eu estava conversando com a Daphné sobre Maísa Mysie — Juliette
começou ofegante em francês, o que a forçou a repetir tudo em inglês ao
perceber que era a Zoe diante dela. — A Violet está ...
— Dormindo — Zoe completou com uma voz tão confiante que ninguém
poderia imaginar como ela estava soluçando há poucos instantes.
— Olha, Zoe, eu poderia esperar para contar a descoberta que fiz com
minha irmã amanhã, mas não sou paciente — Julie exclamou ao segurar as mãos
da mulher com intensidade. — Acontece que as informações sobre Maísa Mysie
estão bloqueadas em Leinster. Assim que a Daph viu uma imagem que enviei, ela
percebeu a diferença entre elas.
Ah meu Deus. Como eu nunca pensei em pesquisar pelo nome de Maísa
fora de Leinster? Eu sou tão burra!
— Continue — Zoe incentivou ao olhar para minha amiga com atenção,
captando a informação que ela queria passar.
— Maísa Mysie é uma atriz, musicista e roteirista escocesa que já apareceu
no cinema e teatro. Ela assinou um contrato com o produtor cinematográfico
Héktor Daskalakis durante o seu período de carreira nos teatros aos dezenove
anos — Juliette leu com calma ao retirar o celular de seu bolso. — Esse trecho foi
igual entre a minha pesquisa e da minha irmã, a diferença é que o dela continua
com a informação dela ser filha do duque escocês Wallace Mysie e de Caledônia
Brown, além de aparecer o tópico com o nome dos irmãos dela.
— Você está falando no plural — Zoe observou ao pegar o celular para ver
aquilo com os próprios olhos.
— Ela tem quatro irmãos. Jessie, Maxwell, Cameron e a mãe da Violet —
revelou, palavras que me fizeram prender o ar. — Minha irmã encontrou diversas
fotos dos cinco juntos e as enviou para mim, é só passar para o lado.
— Oh céus, eu lembro deles — Zoe revelou com a voz fraca. — A Violet se
culpará tanto por nunca ter pesquisado por isso fora daqui ...
— Não teria o porquê de ela pesquisar. O que aconteceu agora foi pura
coincidência, eu e minha irmã não somos gênios para ter pensado nessa
possibilidade, foi tudo sem querer.
— Você conhece a Violet.

106
Legado Roubado

As duas olharam para mim em sincronia e eu fechei os olhos


imediatamente, minha mente girando loucamente com aquelas descobertas, mas,
de um modo estranho, comecei a ser invadida por um grande e infinito nada. Eu
não sabia como deveria reagir com aquelas informações.
— Mas isso é algo bom, não é? — Julie indagou com uma voz esperançosa.
— Ela sempre quis uma família e ...
— Enquanto não tiver respostas será terrível — a Zoe suspirou. — Mas
tenho fé de que essa escuridão no passado da rainha logo se iluminará. Nenhum
segredo dura para sempre.
As duas partiram depois da Zoe depositar um último beijo em meu rosto,
então fiquei em uma completa escuridão e estagnação mental, porque eu não
conseguia avançar nas possibilidades de tudo. Eu não sabia mais como pensar.
Não me surpreendi com a entrada dos feixes de luz pela cortina ao
amanhecer, pois eu esperava ser incapaz de dormir naquela noite. O que
realmente me surpreendeu foi o fato de eu não cumprir com a promessa boba
que fiz no meio da madrugada, de que iria me arrumar para o dia seguinte ao
amanhecer. Eu apenas continuei deitada em minha cama e encarando a luz
avançar por meu quarto.
O pequeno feixe de luz já estava alcançando a minha cama quando escutei
outra batida na porta, um sinal de que não eram as garotas, pois elas apenas
entravam em meu quarto de manhã. Foi na terceira vez que uma voz soou através
da porta e eu imediatamente a reconheci.
— Violet? — meu pai indagou com preocupação antes de abrir a porta,
então ligar as luzes mais fracas de meu quarto. — Está tudo bem?
— Só estou com preguiça de levantar — resmunguei.
— Entendo — suspirou ao fechar a porta e se aproximar, sentando-se na
beirada de minha cama. — Eu irei autorizar a liberação da lista de convidados em
duas horas, mas precisava conversar com você antes.
Que incrível ele aparecer logo depois de eu já ter descoberto o motivo de
sua omissão. Refleti com sarcasmo.
Ao menos você poderá fazer todas as perguntas para compreender o
porquê desses segredos. Pense por essa perspectiva, Violet.
— Imagino que seja sobre a Jessie, o Maxwell, a Cameron e a Maísa — falei
sem raiva e sem rancor, eu apenas falei com monotonia.
— O quê? — ele perguntou com a voz fraca. — Como você sabe sobre
eles?
Antes de ele dizer qualquer palavra eu o olhei nos olhos, a confiança me
invadindo naquele único instante.

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Luana Trindade

— Apenas me responda, pai, por que você me escondeu a existência de


minha família quando sempre soube que isso fora o que eu mais desejei possuir?

108
Legado Roubado

Capítulo 10
Pomposa
Eu poderia sentir toda raiva possível de meu pai, mas ao ver a dor em seus
olhos eu decidi escutá-lo antes de tirar minhas próprias conclusões. Tudo
aconteceu há mais de uma década, o que significava que havia a história de uma
vida para ele me revelar.
— Meu pai não queria correr o risco de sua família ficar com você
permanentemente depois que sua mãe morreu, então ele mandou o Éloy buscá-la
em Inverness e ... Ele bloqueou a entrada de todos eles em Leinster. Apagou tudo
que ligasse você a eles.
— Por isso nunca encontrei nada sobre a Maísa na internet — concluí ao
me sentar na cama, meu pai assentindo com pesar.
— Queria levá-la de volta para a Escócia quando a vi aqui — meu pai
admitiu com o olhar distante. — Tinha tanto medo de perdê-la como perdi sua
mãe ... Era melhor que crescesse longe de toda a monarquia. Longe de mim ...
— E por que vocês nunca me contaram nada? — indaguei com a boca seca,
meu coração inseguro com tudo. — Não faz sentido.
— Você o conhece e sabe que ele pode ser orgulhoso quando toma uma
decisão. Além disso, ele é um O’Carroll ... O dever vem sempre em primeiro lugar.
— Entendo isso, mas qual seria o problema de me contar a verdade?
— Sua vida estava em jogo — murmurou.
— Não entendo a ligação disso com o assassinato de minha mãe.
— Você vai entender tudo — meu pai prometeu ao apertar meu ombro
com firmeza, seus olhos azuis focados nos meus. — Paciência.
— Paciência? — indaguei, agora com a raiva me invadindo. — Eu vou fazer
dezoito anos essa semana! Já deveria ter maturidade para descobrir a verdade há
muitos anos!
— O plano sempre foi lhe contar tudo há três anos, mas ...
— Não continue — pedi ao desviar meu olhar, afastando a mão de meu pai
de meu ombro. — Eu já entendi.
Abaixei meu olhar para o edredom, pressionando as unhas na palma da
mão enquanto absorvia aquele curto resumo dado por meu pai. Então, quando a
confiança retornou, ergui o rosto e voltei a encará-lo.

109
Luana Trindade

— Como você, a Kira e o Éloy tiveram certeza de que me contar tudo seria
perigoso? — indaguei com a voz falhando. — Para a Kira ter concordado com isso
deve ter sido algo muito sério.
— Há quatorze anos um casal tentou contar a verdade — meu pai
começou. — Eles até falaram com você, mas ... Você só tinha quatro anos, não
conseguia entender a seriedade dessa questão e acabou falando com o meu pai
sobre a conversa que eles tiveram com você. — Sua respiração foi trêmula ao
relatar tudo aquilo. — O resultado foi proibir a presença desse casal na Irlanda da
mesma maneira que ele proibiu sua família. Nós não queríamos correr o risco de
você ser afastada de nós por meu pai, que com certeza alegaria que era para o seu
bem ser educada por ele. Só assim tivemos liberdade para criá-la da maneira que
criamos.
— Que casal foi esse?
— Alexander e Saoirse MacKenzie.
— O rei e a rainha da Escócia ... Por isso o Kyle foi tão estranho quando o
questionei sobre minha família — murmurei. — Eles foram próximos da minha
mãe? De mim?
— Demais, Violet.
— Não me lembro deles, muito menos dessa conversa que eles tiveram
comigo.
— As lembranças precisam ser estimuladas para permanecerem com você,
é normal se esquecer de algo que aconteceu quando você era uma criança —
suspirou ao desviar o olhar por alguns instantes.
— Obrigada por me contar tudo isso — agradeci ao respirar fundo depois
de alguns instantes em um silêncio desconfortável. — Espero conhecer tudo que
eu ainda não sei sobre a vida de minha mãe.
— Você irá — meu pai prometeu com convicção.
Talvez ele sempre tenha evitado falar de sua mãe por medo de perdê-la
para seu avô. Ele poderia tê-la manipulado de maneiras cruéis para mantê-la
longe de sua família.
Droga, isto faz tanto sentido.
— Como? — quis saber, de repente.
— O quê?... Ah, claro! A Cameron irá lhe guiar nessa jornada assim que
chegar na Irlanda. Ela não vê a hora de se reencontrar com você, então está
contando os segundos para estar ao seu lado.
— Me guiar nessa jornada? — indaguei em confusão. — Que jornada é
essa? Ela vai se sentar comigo em uma sala de reuniões e narrar toda a vida de
minha mãe? Ao menos concluo que isso seja sobre a história dela, já que é a única
coisa que desconheço.

110
Legado Roubado

— Não será dessa maneira — respondeu ao rir com suavidade. — E você irá
adorar a surpresa.
– Como você pode garantir isso?
— Ah, Violet — ele começou ao se levantar com um sorriso mais leve. — Eu
a conheço, sei das coisas que gosta.
— Claro.
— Gostaria de perguntar mais ...
— Não. Eu só preciso organizar meus pensamentos,
Me conhecendo o suficiente para entender o que eu queria, ele se
levantou após um beijo em minha testa e saiu do quarto, os pensamentos
começando a surgir com mais clareza em minha mente.
Minha mãe tinha quatro irmãos! Quatro! Eram muitos irmãos para serem
apagados da minha vida depois que ela morreu e, pela maneira que meu pai falou
deles, eu imaginava que os quatro foram próximos de minha mãe,
consequentemente foram de mim no início de minha vida, mas isso me foi tirado
quando eu só precisava de uma família para manter as lembranças de minha mãe
vivas em minha vida.
Eles parecem estar tão distantes de mim ...
Talvez você só precise conhecê-los para conseguir aceitar essa verdade.
Quando as garotas apareceram para o café da manhã elas estavam
hesitantes, o que me lembrou a Susana e encheu ainda mais a minha cabeça. Com
tudo o que estava acontecendo, e ainda estava para acontecer, eu só consegui
ficar em silêncio.
— Nós renovamos nosso contrato essa manhã — Zoe comentou ao quebrar
o silêncio na mesa, seu olhar atento em mim. — Bom, na realidade iniciamos o
processo, porque existe muita burocracia.
— Mas a parte legal é que nós descobrimos que agora ele é vitalício —
Dinah revelou com um enorme sorriso, eu apenas alternando meu olhar entre as
três mulheres que exalavam toda alegria possível diante de mim.
— Isso é ... Legal — sussurrei com a voz fraca, desejando dizer que na
realidade era uma das melhores coisas que escutei em toda a minha vida.
— Espero que não tenha pensado que nós deixaríamos o melhor trabalho
do mundo com o fim do contrato — Yarin se manifestou com um olhar acusatório
em minha direção.
— Jamais pensaria isso — comentei ao conseguir sorrir, as três rindo de
minha resposta, porque elas me conheciam o suficiente para terem a certeza de
que eu havia pensado naquela possibilidade apenas por meio daquelas palavras.
Aproveitei o momento ao lado delas para atualizá-las sobre a conversa com
meu pai, Zoe aproveitando para me contar da conversa com a Juliette que eu

111
Luana Trindade

havia escutado na noite anterior. E ao terminar de atualizar tudo eu respirei


fundo, feliz por não estar sozinha naquele momento. De algum modo, as três
sempre permaneciam. Eu orava para isso, ao menos, nunca mudar.
— Ah, Violet, estou feliz em vê-la com esse colar — Yarin observou ao
sorrir, seus olhos marejados. — Não o deixe pegando poeira novamente. Por
favor.

— Pronta? — Zoe perguntou ao se encontrar comigo em meu quarto para


irmos ao carro que nos levaria para Uisneach.
— Não — respondi ao fechar meus olhos e me apoiar na parede para
controlar a tontura. — Não estou me sentindo bem. Acho que vou vomitar.
— Você está ansiosa — ela disse ao segurar meu ombro. — Sente-se um
pouco e beba água.
Ela me conduziu até um sofá, onde pude respirar fundo enquanto a Zoe
enchia um copo com água gelada. Bebi tudo com muita calma assim que ela me
entregou o copo, fazendo longas pausas para controlar o meu nervosismo, mas
era difícil ficar mais calma quando os meus pensamentos se concentravam em
tudo o que poderia dar errado nos próximos dois dias.
— Vamos descendo — falei minutos depois ao me levantar com o controle
recuperado.
Caminhei com a Zoe até o térreo, parando apenas para conversar com os
empregados que não iriam para a mansão de minha família em Uisneach ou ao
palácio dos quatro reinos. Eram poucos os que continuavam ali, mas o suficiente
para eu parar no caminho diversas vezes.
Acenei para a Juliette e a Akemi de longe depois de chegar na garagem,
ambas entrando em seus respectivos carros e com seus parceiros de dança, então
entrei na limosine e lembrei que a Zoe não seria a única pessoa a me acompanhar
naquela viagem.
— Alteza — cumprimentei.
— Futura majestade — Lucca retribuiu a saudação com um sorriso de canto
ao observar o colar que eu usava desde a noite anterior. — Gostei do colar, ficou
ótimo em você.
Tinha acontecido tanta coisa nas últimas horas que foi fácil esquecer
minhas dúvidas sobre o Lucca e apenas aceitar sua presença ali, agradecendo por
seu elogio com um sorriso. Eu só precisava de um pouco de paz e por isso não fora
difícil sorrir para o herdeiro.

112
Legado Roubado

A Zoe entrou no carro e cumprimentou o príncipe com um sorriso, então


colocou o cinto e não demorou para a limosine sair dos limites do palácio. Muitas
pessoas estavam esperando aquele momento, e mesmo dentro do carro pude
escutar os gritos de comemoração. Era a primeira vez que eu tinha uma saída
anunciada, podia perceber a empolgação das pessoas.
— Eu já tinha me esquecido dessa sensação — sussurrei para que apenas
ela me escutasse.
A Zoe sorriu e segurou minha mão com carinho, apreciando aquele
momento ao meu lado.
— Acho que vou dormir, assim não passo mal e a viagem acaba rápido —
falei ao me ajeitar no banco, ficando o mais confortável possível quando me
lembrei do último pedido de Susana.
— Quer apoiar a cabeça em meu ombro?
Não respondi, eu simplesmente segui sua sugestão e fechei meus olhos,
pronta para recuperar o sono que não tive naquela noite. A Zoe segurou e apertou
minha mão que estava descansando sobre minhas pernas, então fez carinho nela
ao beijar minha têmpora, como se tivesse percebido a tristeza pela partida da
Susana me invadir naquele instante.
— Descanse em paz, querida, estarei ao seu lado o tempo todo — ela
prometeu em um sussurro, como se não tivesse estado em meu quarto na noite
anterior, enquanto eu apertava o colar relicário com toda força, desejando que ela
realmente continuasse de meu lado, porque eu não suportaria perder outra
pessoa amada.
Ela não é sua mãe. Ela é apenas sua criada.
Cale a boca.

Eu estava sozinha em meu quarto olhando os adesivos de estrelas


brilhando no teto. Em minha mão havia uma caneca de chocolate quente, mas eu
não conseguia ingerir a bebida, por mais que usasse toda a força de meu corpo
para levar a caneca até minha boca. Então, antes que eu pudesse fazer um outro
movimento, a caneca caiu e se espatifou no chão, espalhando a bebida para todos
os lados antes de alguém agarrar o meu braço, me arrancando de meu quarto
enquanto eu gritava por meus pais.
Abri meus olhos e imediatamente busquei pela Zoe, que segurou meu
rosto com carinho e fixou seus olhos nos meus, preocupada por minha agitação.
— Só foi um sonho ruim, querida.

113
Luana Trindade

— Foi aquele sonho — sussurrei ao buscar por um refúgio nos olhos


castanhos dela.
— E ele já acabou — tranquilizou, acariciando meu rosto. — Além disso,
estou aqui e você não será tirada de mim.
— Me promete? — implorei com a voz falhando.
— Eu juro, Violet.
— Confio em você — suspirei antes de desviar meu olhar para o Lucca,
agradecendo por vê-lo dormindo, então me concentrei na estrada pelo restante
da viagem até Uisneach.
— A Deirdre já está esperando vocês — Zoe observou ao apontar para a
coreógrafa, que estava parada na entrada da mansão, quando chegamos em
nosso destino.
O salão da mansão era muito menor em comparação com o do palácio,
passando uma intensa sensação de sufoco. O teto era mais baixo e não havia uma
sacada para ampliar o espaço, a única saída era a porta de entrada e até as janelas
eram poucas. A área era, no máximo, a metade do outro salão.
— Meninos, posso ter uma conversa com a princesa? — Deirdre
perguntou, interrompendo a minha dança com o Lucca minutos depois.
— Fique à vontade — Donald respondeu e saiu do salão atrás do Lucca.
A coreógrafa se aproximou com um sorriso dócil e imediatamente entendi
o motivo para ela querer conversar comigo à sós, algo que só me deixou
incomodada.
— Eu odeio fazer isso, mas não posso ignorar o fato de a alteza estar muito
atrasada no ritmo hoje. Esse atraso não pode continuar depois de amanhã, a
princesa precisa ser a parceira do Lucca, precisa estar em harmonia com ele e com
a música. Entende isso?
Assenti, sem sentir o mínimo de vontade de respondê-la com palavras. Ela
nunca poderia entender a bagunça que a minha mente estava desde a demissão
da Susana e as descobertas sobre minha família, isso sem contar o nervosismo
pela proximidade de minha coroação e o sentimento desesperador que havia me
invadido após meu pesadelo.
— Entendo que a ansiedade para a sua coroação deve ser surreal, mas ...
Foque no príncipe Lucca, ele conduz muito bem. Tenho certeza de que mantendo
sua atenção nele a dança será mágica. A princesa já conhece todos os passos, só é
preciso se concentrar para fazer tudo corretamente e conseguir improvisar se algo
sair errado.
Ela não me esperou responder, por isso foi direto chamar os dois lá fora
para continuarmos com o ensaio.

114
Legado Roubado

— Dance comigo apenas para fazermos uma excelente apresentação, não


se preocupe com o que os outros dirão — Lucca comentou com um sorriso. — E se
for necessário dizer que sou um babaca para você acabar com essa ligação que a
nossa parceria nos dará, fique à vontade. Você não deve nada para mim.
— Não estou dançando mal por causa disso, só estou distraída.
— Ah ... Entendo.
Ele me observou com atenção, então pensei que se o olhasse nos olhos ele
desviaria o olhar como sempre fazia, mas isso não aconteceu. O Lucca não hesitou
em me olhar nos olhos, mesmo com nossa proximidade ele sorriu com leveza,
deixando suas covinhas nas bochechas destacadas.
— Não direi que você é um babaca, Lucca — admiti ao respirar fundo.
— Mas ... — murmurou ao ser dominado pela insegurança.
— Não se preocupe. Eu confio em meu pai e ele acredita em sua inocência
— expliquei, meu coração acelerado ao perceber que eu ainda olhava
diretamente para seus olhos diante de nossa proximidade. — E eu confio que o
meu pai nunca desejaria o meu mal.
— Nem sei como a agradecer por isso, apenas que ficarei te devendo essa
— comentou com uma risada fraca antes que precisássemos nos concentrar por
completo na dança.
Saí do salão o mais rápido possível quando fomos liberados para ficar um
pouco sozinha antes de ir para o jantar, mas parei de andar no momento que
encontrei um retrato com uma foto de dezoito anos atrás. A primeira fotografia
oficial feita após meu nascimento, onde eu era apenas uma bebê recém-nascida
nos braços de minha mãe, que, mesmo com a expressão firme de uma rainha, era
possível ver a alegria mais profunda em seu olhar. Ao seu lado meu pai transmitia
uma leveza que eu nunca tive o privilégio de presenciar.
— Ainda é tão engraçado ver a Any toda pomposa — uma voz feminina e
desconhecida comentou ao meu lado.
Me virei assustada, um sentimento que se intensificou ao ver a enorme
cicatriz ramificada atravessando metade do rosto daquela pequena mulher de
cabelos castanhos. Ela sorriu ao passar o olhar por mim rapidamente, o que
enrugou tanto suas cicatrizes que fiquei arrepiada, mas de alguma forma eu me
acalmei ao ver seus olhos verdes marejados focados no quadro.
— Você está tão grande, Violet — ela comentou ao derramar várias
lágrimas após me estudar novamente, nunca fixando a visão em mim.
Franzi minhas sobrancelhas, sem entender o que estava acontecendo e
quem ela era. Mas então lembrei da descoberta da Julie e sua irmã e de minha
conversa com meu pai, reparando na semelhança de seu nariz e seus lábios aos de
minha mãe. E me concentrei, principalmente, em suas palavras.

115
Luana Trindade

Any ... Ela disse o nome que todos que conviviam comigo evitavam dizer,
como se pudessem me machucar com ele, com tanto carinho ...
— Você deve ser ...
— Cameron — ela completou com um sorriso doce.
Eu ia dizer irmã de minha mãe, mas aquela resposta era a mesma.

116
Parte 2
Encontrado

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