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A Nova Mãe - Luci Clifford
A Nova Mãe - Luci Clifford
A Nova
Mãe INSPIROU
CORALINE
D E NEIL GAIMA N
TRA D U ÇÃO
D E CA RO L
C H IOVAT TO 1
DAS
BY E D ITO R A WIS H
Tradução:
Carol Chiovatto
Preparação:
Karine Ribeiro
Revisão:
João Rodrigues
Capa e projeto gráfico:
Marina Avila
Ilustração de capa:
Ana Milani
2023 ISBN
Copyright 2022 Editora Wish. Este material possui direitos
de tradução e publicação e, ao não divulgá-lo sem prévia
autorização da editora, você está nos ajudando a continuar
publicando raridades para os leitores. Agradecemos por isso.
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88
UMA RELÍQUIA DE
4
Sinopse
Uma lição de moral para
crianças malcriadas, e
que inspirou Coraline,
de Neil Gaiman
5
Só que as garotinhas são
boazinhas demais para ter acesso
ao conteúdo. Para poderem ver
as pessoinhas dançando dentro
da caixa e ouvir seus segredos,
precisam ser malvadas.
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Em 2023, o
ano é delas!
100% das autoras da
Sociedade das Relíquias
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7
A Nova
Mãe
Lucy Clifford, 1882
A
s crianças sempre fo-
ram chamadas Olhos
Azuis e Peru, e acostu-
maram-se a usar esses nomes. A mais
velha era como seu querido pai, que
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estava longe no mar, e, quando a mãe
erguia os olhos, com frequência dizia:
— Filha, você ganhou os contor-
nos dos olhos do seu pai. — Pois o pai
tinha o mais azul dos Olhos Azuis,
e assim, aos poucos, sua menininha
ganhou-os como apelido.
A mais nova, uma vez, quando
ainda era quase um bebê, chorou
amargamente porque um peru, que
vivia perto do chalé e às vezes vagava
floresta adentro, de repente desapa-
receu no meio do inverno. Para con-
solá-la, chamaram-na pelo nome da
ave.
9
Agora a mãe, Olhos Azuis, Peru e
a bebê vivam todas num chalé soli-
tário na orla da floresta, a qual ficava
tão próxima que o jardim dos fundos
parecia integrá-la, e os abetos altos
ficavam tão perto que seus imensos
braços pretos se estendiam sobre o
telhadinho de palha e, quando a lua
resplandecia sobre eles, o emara-
nhado de suas sombras tomava as
paredes brancas.
A vila ficava a uma boa cami-
nhada de distância, a quase dois
quilômetros e meio, e a mãe tinha
de trabalhar duro e não tinha tempo
10
para ir ao correio ver se havia alguma
carta do querido marido. Por isso,
costumava mandar as duas crian-
ças à tarde. As duas ficavam muito
orgulhosas de poderem ir sozinhas,
e frequentemente corriam durante
metade do caminho até lá. Quando
voltavam, cansadas da longa cami-
nhada, lá estaria a mãe à espera, vi-
giando a estrada; o chá estaria pronto
e o bebê, berrando de alegria. Se, por
sorte, houvesse alguma carta vinda
do mar, a felicidade era maior ainda.
A sala do chalé era aconchegante: as
paredes eram brancas como a neve
tanto do lado de fora quanto do de
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dentro, e contra elas ficavam pendu-
radas a fôrma de bolo, a assadeira, a
tampa de uma panela, já desgastada
havia muito mais tempo do que as
crianças conseguiam se lembrar, e a
peixeira, toda polida, brilhante como
prata. De um lado da lareira, sobre a
fole, ficava o calendário e, do outro
lado, o relógio que sempre batia a
hora errada e cuja corda acabava cedo
demais, mas era um bom relógio, com
uma pequena imagem em sua face, e
às vezes rodava por quase uma se-
mana sem parar. O cadeirão do bebê
ficava num canto e, em outro, havia
um armário, preso no alto da parede,
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no qual a mãe guardava todo o tipo
de surpresinhas. As crianças costu-
mavam se perguntar como as coisas
que saíam daquele armário haviam
ido parar lá dentro, pois raramente
viam-nas serem postas ali.
— Filhas queridas — disse a mãe,
numa tarde no final do outono —, está
frio demais para ir à vila, mas vocês
precisam andar rápido e, quem sabe,
podem até trazer de volta uma carta
dizendo que seu amado pai já está
voltando para a Inglaterra. — Olhos
Azuis e Peru aprontaram-se depressa
e logo estavam preparadas para sair.
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— Não demorem — orientou a mãe,
como sempre fazia antes de partirem.
— Vão pelo caminho mais curto, não
olhem para nenhuma pessoa estra-
nha que encontrarem e certifiquem-
-se de não falar com ela.
— Não, mãe — responderam, e a
mãe as beijou e declarou-as boas fi-
lhas queridas, e então as meninas
partiram de bom humor.
A vila estava mais viva do que de
costume, pois houvera uma feira de
variedades no dia anterior, e as pes-
soas entregues à diversão do evento
ainda circulavam pelas ruas, como se
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relutantes em admitir que o feriado
acabara.
— Queria ter vindo ontem — disse
Olhos Azuis a Peru. — Talvez tivésse-
mos visto alguma coisa.
— Olhe ali — exclamou Peru,
apontando para uma barraca ainda
coberta de biscoitos de gengibre.
Mas as crianças não tinham di-
nheiro. No final da rua, perto do Leão
Azul, onde as carruagens paravam,
havia um homem idoso sentado
no chão, com as costas apoiadas na
parede de uma casa e, ao seu lado,
dois cachorros com coleiras bonitas
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no pescoço. Evidentemente, eram
cachorros dançantes, pensaram as
crianças, e desejaram vê-los se apre-
sentando, mas ambos pareciam tão
cansados quanto o dono e manti-
nham-se imóveis ao lado deste, pa-
recendo incapazes até mesmo de dar
uma balançadinha no rabo.
46
2
71
— Ah, nós vamos! — exclamaram.
— Seremos muito malvadas até ou-
virmos você chegando.
— Temo que seja perda de tempo
— apontou a garota educadamente.
— Mas é claro que eu não gostaria de
interferir com vocês. Sabem, o ho-
menzinho e a mulherzinha, acostu-
mados ao melhor da sociedade, são
muito seletivos. Tenham um bom
dia — disse, assim como sempre di-
zia, e virou-se depressa, mas olhou
por cima do ombro e gritou: — Onze
horas. Serei bem pontual; sou muito
minuciosa com meus compromissos.
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E outra vez as crianças voltaram
para casa e foram malvadas. Ah, tão
malvadas que o coração de sua que-
rida mãe doeu e seus olhos enche-
ram-se de lágrimas e, por fim, ela
subiu as escadas e, devagar, colocou
o melhor vestido, seu chapéu novo
e vestiu a bebê com as roupas de do-
mingo, então desceu e parou diante
de Olhos Azuis e Peru. Tão logo o fez,
Peru atirou o espelho pela janela. O
objeto caiu com um som alto de esti-
lhaçamento.
— Adeus, minhas filhas — des-
pediu-se a mãe, triste, beijando-as.
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— Adeus, minha Olhos Azuis, adeus,
minha querida Peru. A nova mãe vai
chegar em casa já. Ah, minhas pobres
filhas.
Chorando amargamente, a mãe
pegou a bebê no colo e virou-se para
deixar a casa.
— Mas, mãe — gritaram as crian-
ças —, nós somos…
De repente, o relógio quebrado ba-
teu dez e meia, e elas souberam que
em meia hora a garota da vila passa-
ria tocando o peardrum. — Mas, mãe,
nós seremos boazinhas às onze e meia.
Volte às onze e meia! — pediram.
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— Nós duas seremos boazinhas.
Seremos mesmo. Precisamos ser mal-
vadas até as onze horas.
Mas a mãe apenas ergueu o pe-
queno embrulho no qual atara o
avental de algodão e um par de sapa-
tos velhos e dirigiu-se lentamente até
a porta. As crianças pareciam enfei-
tiçadas; não conseguiram segui-la.
As duas abriram bem a janela e cha-
maram-na:
— Mãe! Mãe! Ah, querida mãe,
volte! Vamos ser boazinhas agora!
Vamos ser boazinhas para sempre se
você voltar!
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Mas a mãe apenas olhou para trás
e balançou a cabeça. As duas viram
lágrimas escorrendo por seu rosto.
— Volte, querida mãe! — gritou
Olhos Azuis.
Ainda assim, a mãe continuou
atravessando os campos.
— Volte! Volte! — gritou Peru.
Ainda assim, a mãe prosseguiu.
Bem onde o caminho fazia uma
curva, na beira do campo, ela parou
e se virou, acenando para as crianças
na janela com o lenço todo molhado
de lágrimas, e fez a bebê beijar a
76
própria mão. Em um momento, mãe
e bebê haviam sumido de vista.
Então as crianças sentiram o co-
ração doer de remorso e choraram
amargamente, tanto quanto a mãe.
No entanto, não conseguiam acredi-
tar que ela partira. Com certeza vol-
taria, pensaram; não as deixaria de
vez. Mas, ah, se o fizesse — se o fizesse
— se o fizesse…
O relógio quebrado bateu onze ho-
ras e, de repente, veio um som — um
som rápido, estridente, desarmônico,
com uma estranha nota dissonante
a cada alguns intervalos. Elas se
77
entreolharam enquanto seus cora-
ções se aquietavam, pois sabiam ser o
peardrum. Correram para abrir a ja-
nela, e de lá viram a garota do vilarejo
vindo pelos campos em sua direção,
dançando e tocando em sua cami-
nhada. Atrás, caminhando devagar,
embora sempre mantendo distância,
vinha o homem dos cachorros, que
as meninas haviam visto adorme-
cido perto do Leão Azul, no dia em
que avistaram a garota com o pear-
drum. Ele tocava uma flauta cujo
som era estranho e agudo; ouviam-
-na claramente por cima da desarmo-
nia do peardrum. Os dois cachorros
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seguiam o homem, valsando devagar,
em círculos, sobre as patas traseiras.
— Fizemos tudo o que você nos
falou — gritaram as crianças, uma
vez recuperadas do espanto. — Venha
ver. Agora nos mostre o homenzinho
e a mulherzinha.
A garota não parou de tocar ou de
dançar, mas gritou de volta numa voz
que era meio falada e meio cantada,
parecendo acompanhar o ritmo da
estranha música do peardrum:
— Vocês fizeram tudo malfeito.
Jogaram água do lado errado do
fogo, os itens de latão não estavam
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exatamente no meio da sala, o relógio
não quebrou o suficiente, vocês não
puseram o bebê de cabeça para baixo
no chão.
Então as crianças, ainda imóveis
na janela, enfeitiçadas, gritaram, su-
plicando e sacudindo as mãos:
— Ah, mas fizemos tudo o que
você falou, e a nossa mãe foi embora.
Mostre o homenzinho e a mulher-
zinha agora e deixe-nos ouvir o se-
gredo.
Ao dizerem isso, a garota estava
bem na frente do chalé, mas não pa-
rou de tocar. O som das cordas parecia
80
atravessar o coração das crianças.
Ela não parou de dançar; já estava
passando reto pelo chalé. Não parou
de cantar, e tudo o que dizia parecia
parte de uma canção terrível.
O homem continuou a segui-la,
sempre à mesma distância, tocando
sua flauta aguda; os dois cachorros
valsavam e valsavam em círculos
atrás dele — os rabos imóveis, as per-
nas retas, as coleiras claras, brancas e
rígidas. Prosseguiram, todos juntos.
— Ah, parem! — gritaram as
crianças. — E mostre o homenzinho
e a mulherzinha agora!
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Mas a garota cantou, alto e claro,
enquanto a corda desafinada vibrava
mais alto do que sua voz:
— O homenzinho e a mulherzinha
estão bem longe. A caixa deles está
vazia, entendem?
Então, pela primeira vez, as crian-
ças viram que a tampa da caixa es-
tava aberta, pendendo para trás, e
não havia nem homenzinho nem
mulherzinha ali dentro.
— Estou indo para minha terra —
cantou a garota —, para a terra onde
nasci.
E continuou em direção à longa
82
estrada reta que dava na cidade a
muitos e muitos quilômetros de dis-
tância.
— Mas a nossa mãe foi embora —
gritaram as crianças. — Nossa que-
rida mãe vai voltar um dia?
— Não — cantou a garota. —
Nunca vai voltar. Nunca vai voltar.
Eu a vi perto da ponte; ela pegou um
barco no rio. Está velejando rumo ao
mar. Vai reencontrar seu pai e eles
vão continuar velejando, velejando
para os países distantes.
Ao ouvirem isso, as crianças cho-
raram, mas não conseguiram dizer
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mais nada, pois seus corações pare-
ciam estar se partindo.
A garota, com a voz esvanecendo
cada vez mais na distância, chamou-
-as mais uma vez. Mas, apesar do pa-
vor que aguçava seus ouvidos, mal
conseguiam escutá-la, de tão longe
que se encontrava, e de tão desarmô-
nica que era a música.
— Sua nova mãe está vindo. Já está
a caminho. Mas anda apenas devagar,
pois seu rabo é bastante longo e seus
óculos ficaram para trás. Mas ela está
vindo. Está vindo… vindo… vindo…
A ú ltima pa lav ra mor reu na
84
distância. Foi a última que as crian-
ças escutaram da garota da vila. Ela
continuou a avançar, dançando, e o
homem continuou a segui-la. Viam
que ele ainda tocava, mas já não escu-
tavam o som da flauta. E os cachorros
continuaram valsando e valsando
em círculos. Todos eles prossegui-
ram, cada vez para mais longe, até
não serem mais coisas separadas, até
não passarem de uma confusa massa
de cor desbotada, até serem um ob-
jeto escuro e embaçado que nada po-
deria definir, até terem desaparecido
completamente — completa e eterna-
mente.
85
As crianças viraram-se, entreo-
lharam-se e encararam o casebre
que era seu lar, apenas uma semana
antes tão vivo e feliz, tão aconche-
gante e imaculado. O fogo estava
apagado, e ainda havia água entre as
cinzas; a assadeira, a fôrma de pão, a
peixeira e a tampa da panela, que a
querida mãe costumava passar tanto
tempo esfregando, jaziam no chão,
derrubadas dos pregos de onde ha-
viam pendido por anos. Lá estava o
relógio, quebrado e estragado; não se
via mais a imagenzinha de sua face.
E, embora ainda batesse uma hora
aqui, outra ali, era com a sonoridade
86
de um relógio cujas horas estavam
contadas. E ali estava o cadeirão da
bebê, mas sem bebê para se sentar
nele. Ali estava o armário na parede,
sem um pão delicioso na prateleira.
Ali estavam as xícaras quebradas e
as migalhas de pão jogadas por todo
lado e as tábuas oleosas onde a mãe
se ajoelhara para esfregar até fica-
rem brancas como a neve. No meio
de tudo aquilo, estavam as crianças,
fitando os destroços que haviam
causado, com o coração doendo, os
olhos ofuscados pelas lágrimas, suas
pobres mãozinhas dadas em meio ao
tormento.
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— Ah, o que faremos? — chorou
Olhos Azuis. — Queria nunca ter
visto a garota do vilarejo e aquele
peardrum horrível.
— Com certeza a mãe vai voltar —
soluçou Peru. — Tenho certeza de que
vamos morrer, se não voltar.
— Não sei o que vamos fazer se a
nova mãe vier — chorou Olhos Azuis.
— Eu nunca, nunca vou gostar de ou-
tra mãe. Não sei o que vamos fazer se
essa mãe horrível vier.
— Não vamos deixá-la entrar —
disse Peru.
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— Mas talvez ela entre — soluçou
Olhos Azuis.
Por um minuto Peru parou de cho-
rar, a fim de pensar no que deveriam
fazer.
— Vamos passar o ferrolho na
porta e fechar a janela — sugeriu ela.
— E não vamos dar nenhum sinal de
vida quando ela bater.
Então elas passaram o ferrolho
na porta e trancaram bem a janela.
Depois, apesar de tudo o que haviam
dito, sentiram-se malvadas outra
vez, e quiseram muito o homenzinho
e a mulherzinha que nunca haviam
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visto, muito mais do que a mãe que
as amara durante a vida inteira. Mas
não acreditavam de verdade que sua
própria mãe não voltaria, ou que uma
nova mãe tomaria seu lugar.
Quando chegou a hora do jantar,
estavam com muita fome, mas só
conseguiram encontrar pão velho e
tiveram de se dar por satisfeitas.
— Ah, eu queria ter escutado o
segredo da mulherzinha — chorou
Peru. — Se tivesse, isso não importa-
ria.
Durante toda a tarde, ficaram de
vigília, buscando ouvir, temendo
90
a nova mãe. Mas nem viram nem
ouviram nada e, aos poucos, foram
perdendo o medo de que ela fosse
vir. Pensaram que, talvez, quando
estivesse escuro, sua própria querida
mãe voltasse para casa e, talvez, se
lhe pedissem perdão, ela aceitasse.
Olhos Azuis pensou que, se a mãe vol-
tasse, estaria com muito frio, então
as duas saíram de fininho pela porta
dos fundos e juntaram um pouco de
madeira e, depois de um tempo, pois
a grelha da lareira estava úmida e era
bem difícil manejá-la, acenderam o
fogo. Quando viram o fogo brilhante
ardendo, e as pequenas labaredas
91
pulando e brincando em meio à ma-
deira e ao carvão, começaram a ficar
felizes de novo e a ter certeza de que a
mãe retornaria; a visão do fogo agra-
dável lembrou-as de todas as vezes
que ela as havia esperado chegarem
do correio, e de como as recebera e
as confortara e lhes dera um bom
chá quentinho e um pão delicioso,
e conversara com elas. Ah, como se
arrependiam de terem sido malva-
das, e tudo por causa daquela horrí-
vel garota do vilarejo! Já não davam
a mínima para o homenzinho e a
mulherzinha, nem queriam ouvir o
segredo.
92
Foram buscar um balde de água
e lavaram o chão; encontraram uns
farrapos e esfregaram as louças até
elas brilharem de novo e, colocando
um apoio para pés sobre uma cadeira,
subiram com cuidado e pendura-
ram todas as coisas de volta no lu-
gar. Depois, apanharam os cacos das
xícaras quebradas e deixaram o cô-
modo o mais limpo que podiam, até
parecer cada vez mais que as mãos da
querida mãe haviam se ocupado dele.
Tinham cada vez mais certeza de que
ela retornaria, junto com a querida
bebezinha, e pensaram em aprontar
as coisas do chá, exatamente como
93
ela sempre fizera para as filhas mal-
vadas. Desceram a bandeja de chá e as
xícaras e puseram a chaleira no fogo
para ferver. Deixaram tudo o mais
receptivo possível. Não havia pão de-
licioso para pôr na mesa, mas talvez
a mãe trouxesse algo da vila, pen-
saram. Enfim, tudo estava pronto, e
Olhos Azuis e Peru lavaram o rosto e
as mãos, sentaram-se e esperaram,
pois é claro que não acreditavam no
que garota do vilarejo dissera sobre a
mãe ter ido embora de barco.
De repente, enquanto estavam
sentadas perto do fogo, escutaram o
94
som de algo pesado sendo arrastado
pelo chão do lado de fora, e então veio
um tom alto e terrível de alguém ba-
tendo à porta. As crianças sentiram
o coração parar. Sabiam que não po-
dia ser a própria mãe delas, pois esta
teria girado a maçaneta e tentado
entrar sem bater.
— Ah, Peru! — sussurrou Olhos
Azuis. — Se for a nova mãe, o que va-
mos fazer?
— Não vamos deixá-la entrar —
sussurrou Peru, pois temia falar alto.
Outra vez soou uma longa, alta e
terrível batida na porta.
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— O que vamos fazer? O que va-
mos fazer? — choraram as crianças,
em desespero. — Ah, vá embora! —
gritaram. — Vá embora! Não vamos
deixá-la entrar; nunca mais seremos
malvadas. Vá embora, vá embora!
Mas, outra vez, veio um som alto
e terrível de alguém batendo.
— Ela vai quebrar a porta, batendo
tão forte! — exclamou Olhos Azuis.
— Vá apoiar as costas conta a porta
— sussurrou Peru. — E vou tentar ver
pela janela se é mesmo a nova mãe.
Tremendo de medo, Olhos Azuis
apoiou as costas contra a porta, e
96
Peru foi até a janela e, pressionando
o rosto contra um dos lados da estru-
tura, espiou o lado de fora. Conseguia
discernir um chapéu preto de cetim,
com um babado ao longo da aba, e
um longo braço ossudo carregando
uma bolsa preta de couro. Debaixo
do chapéu, cintilava uma estranha
luz clara. O coração de Peru apertou
e suas bochechas empalideceram,
pois sabia se tratar do cintilar de dois
olhos de vidro. Aproximou-se pé ante
pé de Olhos Azuis.
— É… é… é! — sussurrou, com
a voz trêmula de medo. — É a nova
97
mãe! Ela veio e trouxe a bagagem
numa bolsa preta de couro pendu-
rada no braço!
— Ah, o que vamos fazer? — cho-
ramingou Olhos Azuis.
Novamente, soou a batida terrível.
— Venha segurar a porta também,
Peru! — exclamou Olhos Azuis. —
Estou com medo de ela quebrar.
Juntas, mantiveram as costas
miúdas contra a porta. Houve uma
longa pausa. Pensaram que, talvez, a
nova mãe houvesse se convencido de
que não havia ninguém em casa para
deixá-la entrar e decidido ir embora,
98
mas as duas crianças ouviram, atra-
vés da fina porta de madeira, a nova
mãe mover-se um pouco e dizer para
si mesma:
— Tenho de derrubar a porta com
meu rabo.
Por um terrível momento, tudo
ficou em silêncio, mas as crianças
quase conseguiam escutá-la erguer
o rabo e, com um golpe assustador, a
portinha pintada rachou-se e lascou-
-se.
Com um guincho, as crianças voa-
ram do ponto onde haviam estado e
atravessaram o chalé em disparada,
99
saindo pela porta dos fundos e mer-
gulhando na floresta além. Passaram
a noite inteira na escuridão e no frio,
e o dia seguinte, e o que veio depois
deste, e durante todos os dias e noites
sombrios e gélidos que se seguiram.
Lá elas ainda estão, crianças.
Passaram lá longas semanas e meses,
tendo apenas as moitas verdes como
travesseiros, e apenas as folhas mor-
tas e marrons para cobri-las, alimen-
tando-se de morangos selvagens no
verão, de nozes quando ainda estão
verdes, de amoras quando não estão
mais azedas no outono e, no inverno,
100
das frutinhas vermelhas que amadu-
recem na neve. Elas vagam em meio
aos altos abetos escuros, ou sob as
imensas árvores além deles. Às vezes,
param para descansar ao lado de uma
lagoa próxima ao bosque onde as sa-
mambaias crescem mais, e anseiam,
com um desejo muito maior do que
as palavras conseguem descrever, ver
sua querida mãe, só mais uma vez,
para lhe dizer que serão boazinhas
para sempre. Só mais uma vez.
A nova mãe continua no chalé,
mas as janelas ficam fechadas e as
portas, trancadas, e ninguém sabe
101
como são as coisas lá dentro. De vez
em quando, nas ocasiões em que a
escuridão toma conta e a noite está
silenciosa, Olhos Azuis e Peru aproxi-
mam-se de mãos dadas, pé ante pé, do
lar onde foram tão felizes um dia, e,
com o coração disparado, observam e
procuram escutar. Às vezes um cinti-
lar ofuscante aparece na janela, e elas
sabem ser a luz dos olhos de vidro da
nova mãe, ou ouvem um estranho
barulho abafado, e sabem ser o som
de seu rabo de madeira sendo arras-
tado pelo chão..
TH E E N D
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103
E X TR A: BIOGR AFIA
Lucy Clifford
Lucy Lane Clifford nasceu em 1846,
poucos anos depois do início do
longevo reinado da rainha Vitória.
104
Informações acerca dos primeiros
anos de vida de Lucy Clifford são di-
fíceis de encontrar; a própria autora
era extremamente reservada no que
diz respeito à sua vida pessoal.
É sabido que ela se casou com
William Kingdon Clifford em 1875,
um professor de matemática e filó-
sofo, que conheceu quando estudava
artes na cidade de Londres. A resi-
dência do casal se tornou um ponto
de encontro para diversos artistas e
intelectuais da época.
William Clifford morreu apenas
quatro anos depois do casamento.
105
Após o falecimento do marido, em
1879, as amizades que o casal Clifford
desenvolveu com George Eliot, Henry
James e outros não apenas se manti-
veram como floresceram.
Em uma época difícil para uma
mulher se sustentar sozinha, George
Eliot foi uma das várias pessoas que
contribuíram para uma pequena
pensão organizada para sustentar
Lucy Clifford e suas duas filhas. Eliot,
que se tornou amiga de Lucy Clifford,
a encorajou a encontrar conforto na
escrita.
Como uma forma de complementar
106
sua renda, Clifford começou a escre-
ver resenhas para a revista Standard.
Seus primeiros trabalhos publicados
eram voltados ao público infantil,
mas ela também escreveu romances,
coletâneas e peças de teatro.
Sua primeira publicação, Mrs.
Keith's Crime, não foi assinada com
seu nome, o que só aconteceu no tra-
balho seguinte. Lucy não teve medo
de explorar outros gêneros e forma-
tos e tornou-se uma referência para
vários outros autores da época, in-
cluindo nomes como Thomas Hardy.
Muito do que se sabe é fruto das
107
palavras daqueles que conviveram
e se encantaram por sua personali-
dade e presença. Henry James, autor
do período vitoriano e amigo íntimo
de Clifford, queimou seus documen-
tos antes de morrer, nos impossibili-
tando de ter acesso ao lado de Lucy
que ele tanto elogiava nas cartas que
trocavam.
Lucy Clifford morreu em abril de
1929 e quase cem anos depois de sua
morte, seu trabalho continua ins-
pirando adaptações e sendo redes-
coberto por novas gerações. A Nova
Mãe, publicado originalmente em
108
1882, além de aparecer em diversas
coletâneas, foi adaptado algumas ve-
zes para o teatro e agora chega com
exclusividade para os assinantes da
Sociedade das Relíquias Literárias.
109
Profissionais
que trabalharam
neste conto
Carol Chiovatto
TR A DUÇÃO
110
Karine Ribeiro
PRE PA R AÇÃO
Escritora premiada,
tradutora e revisora,
graduanda em Tradução
pela UFMG. @karineescreve
João Rodrigues
RE V ISÃO
Bacharel em Tradução
e especialista em
Produção e Revisão
Textual.
@jojsrodrigues
111
Ana Milani
ILUSTR AÇÃO
Artista, ilustradora
e influenciada por
literatura, ela se
expressa através do
etéreo e do estranho
Insta: @omnifantasmicdraws
Marina Avila
PROJE TO G R Á FICO
Produtora editorial e
fundadora da Wish. Mãe
de gatos e de livros.
@casatipografica
e @marinalivros
Valquíria Vlad
COMUNICAÇÃO E
COMUNIDA DE
Escritora, pesquisadora
e publicitária formada
pela Universidade
Federal do Ceará (UFC).
@valquiriavlad
Laura Brand
ME DIAÇÃO E
PA R ATE X TOS
Editora, coordenadora
editorial, jornalista e
criadora de conteúdo.
Formada pela PUC-MG
e Columbia Journalism
School. @nostalgiacinza
113
Muito obrigada
por apoiar este
financiamento
coletivo!
Neste mês foi possível viabilizar a cura-
doria, tradução, revisão e ilustração do
conto The New Mother! A cada mês de as-
sinatura, a Wish continuará resgatando
os tesouros do passado em novas edições
para os caçadores das Relíquias Literárias.
114
N O P R ÓX I M O M Ê S
Um conto de fadas
Uma história épica nos Alpes,
escrita por Villamaria.
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