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1 86 4 AM ELI A B.

E DWA R DS

A Carruagem
Fantasma

TRA D U ÇÃO DE
K A R EN A LVA R E S
1
DAS

BY E D ITO R A WIS H

Tradução:
Karen Alvares

Preparação:
Karine Ribeiro
Revisão:
João Rodrigues
Capa e projeto gráfico:
Marina Avila

Ilustração de capa:
Marcela Lois

2023 ISBN
Copyright 2022 Editora Wish. Este material possui direitos
de tradução e publicação e, ao não divulgá-lo sem prévia
autorização da editora, você está nos ajudando a continuar
publicando raridades para os leitores. Agradecemos por isso.

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86
UMA RELÍQUIA DE

4
Sinopse
Jamais esquecerei aquele olhar
enquanto viver. Meu coração
gelou, e gela até mesmo agora,
ao recordar.

Após se perder durante uma


caçada no começo do inverno,
um homem precisa de ajuda para
encontrar o caminho de casa.

5
Sua única chance de voltar para a
amada esposa é buscar transporte
em uma estrada que todos sabem
ser abandonada e perigosa. Ele
só não esperava encontrar uma
estranha carruagem.

Publicada originalmente em
1864, A Carruagem Fantasma
é uma clássica história
sobrenatural da Era Vitoriana,
escrita por Amelia Edwards.

6
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ano é delas!
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A Carruagem
Fantasma
Amelia B. Edwards, 1864

O
s acontecimentos que es-
tou prestes a lhe relatar
têm a verdade para re-
comendá-los. Aconteceu
comigo, e as lembranças que tenho
são tão vívidas como se tivessem
ocorrido ainda ontem. No entanto, já
se passaram vinte anos desde aquela
noite. Ao longo desse tempo, contei a
8
história a apenas uma pessoa. Conto-a
agora com uma relutância que me é
difícil superar. Tudo o que suplico,
entrementes, é que se abstenha de
impor suas próprias conclusões so-
bre minha pessoa. Não quero dar ne-
nhuma desculpa, tampouco desejo
discussões. Minha opinião sobre esse
assunto já está feita e, levando em
conta a confiança em meus instintos,
prefiro respeitá-la.
Bem… Foi há apenas vinte anos,
no intervalo entre um ou dois dias, no
fim da temporada de caça aos tetra-
zes. Estive fora o dia todo com minha
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arma, e não tinha nenhum camarada
com quem conversar. O vento so-
prava do leste; o mês era dezembro; o
lugar, uma ampla charneca desolada
no extremo norte da Inglaterra1.
E eu havia me perdido.
Não era um lugar agradável no
qual se perder, com os primeiros
flocos macios de uma nevasca vin-
doura pairando sobre as urzes, e a
noite, escura como chumbo, caindo
1 No Reino Unido, a charneca é uma extensão de terreno
aberto coberto por vegetação rasteira; seu elemento mais
característico são as urzes, arbustos perenes cujas flores
exibem tons de rosa, branco e roxo. No Brasil, entretanto,
o termo tem significado oposto, sendo sinônimo de “pân-
tano” ou “brejo”. [N. T.]

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ao redor. Protegi meus olhos com a
mão e fiquei parado, cheio de ansie-
dade, na escuridão crescente, onde a
charneca purpúrea se dissolvia em
uma cadeia de montanhas baixas,
a cerca de quinze ou vinte quilôme-
tros. Não divisei nem a mais tênue
coroa de fumaça, nem a mais ínfima
terra cultivada, ou cerca, ou sequer
uma trilha de ovelhas, em nenhuma
direção. Não havia nada a ser feito
além de andar e tentar encontrar um
abrigo qualquer, aliás. Então, mais
uma vez guardei minha arma sobre
o ombro e segui adiante, cansado; afi-
nal, estava de pé desde uma hora após
11
o amanhecer e, desde o desjejum, não
havia comido nada.
Enquanto isso, a neve passou a
cair com uma constância agourenta,
assim como o vento a soprar. Depois
disso, o frio se tornou mais intenso e a
noite se aproximou depressa. Quanto
a mim, minhas perspectivas escure-
ceram com o céu cada vez mais som-
brio, e meu coração pesou ao pensar
em minha jovem esposa, já esperando
por mim ao pé da janela na recepção
de nossa pequena hospedaria, ante-
vendo todo o sofrimento que estava
por vir no curso de toda aquela noite
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cansativa. Estávamos casados havia
quatro meses e, tendo passado o ou-
tono nas Terras Altas, agora nos hos-
pedávamos em um vilarejo remoto
situado bem à margem das grandes
charnecas inglesas. Estávamos muito
apaixonados e, é claro, muito felizes.
Naquela manhã, quando nos despe-
dimos, ela havia implorado para que
eu retornasse antes do anoitecer, e
prometi que o faria. O que não teria
dado para cumprir minha promessa!
Mesmo naquele momento, exausto
como estava, senti que, com uma re-
feição, uma hora de repouso e um
13
guia, ainda poderia voltar para mi-
nha esposa antes da meia-noite, isso
se encontrasse um guia e um abrigo.
Durante todo esse tempo, a neve
caía e a noite ficava mais densa. De
vez em quando, eu parava e gritava,
mas meus gritos apenas pareciam
aprofundar o silêncio ainda mais.
Então uma vaga sensação de inquie-
tação me inundou e comecei a me
lembrar de histórias de viajantes
que caminharam e caminharam
sobre a neve até que, exauridos, dei-
taram-se de bom grado e adormece-
ram até partirem desta vida. Seria
14
possível, questionei-me, continuar
dessa maneira durante toda a longa
noite escura? Será que não chegaria
um momento em que meus membros
falhariam e minha determinação ce-
deria? Quando eu, da mesma forma,
deveria cair no sono da morte. Morte!
Estremeci. Como era difícil morrer
então, quando a vida assomava tão
brilhante diante de mim! Quão cruel
para minha amada, de coração tão
apaixonado, mas tal pensamento eu
não deveria carregar! Para eliminá-lo,
gritei mais uma vez, mais e mais alto,
e depois ouvi com muita atenção.
Teria sido meu clamor respondido,
15
ou talvez apenas tivesse imaginado
um grito distante? Voltei a berrar, e
mais uma vez o eco se sucedeu. Em
seguida, de súbito, uma manchinha
trêmula de luz apareceu em meio à
escuridão, movendo-se, desapare-
cendo; por um instante ficando mais
clara e próxima. Correndo naquela
direção a toda velocidade, para mi-
nha enorme alegria, deparei-me com
um velho e um candeeiro.
— Obrigado, meu Deus! — Foi a
exclamação que irrompeu de meus
lábios sem que me desse conta disso.
Piscando e franzindo a testa, ele
16
ergueu o candeeiro e espiou meu
rosto.
— Pelo quê? — rosnou, zangado.
— Bem… por você. Comecei a te-
mer estar perdido na neve.
— Pois, então, é bem verdade que
tem quem se perca por aqui às vezes,
e o que te impede de ter o mesmo fim,
se este for o desígnio do Senhor?
— Se for essa a vontade do Senhor,
de que fiquemos perdidos juntos,
amigo, então devemos aceitar, mas
não tenho a intenção de ficar perdido
sem você — retruquei. — Qual é a dis-
tância daqui até Dwolding?
17
— Uns bons trinta quilômetros,
mais ou menos.
— E o vilarejo mais próximo?
— O vilarejo mais perto daqui é
Wyke, e isso dá uns trinta quilôme-
tros pro outro lado.
— É lá que você mora, então?
— Um pouco mais pra lá — res-
pondeu ele, com um leve balançar do
candeeiro.
— Presumo que esteja indo para
casa?
— Talvez esteja.
— Então irei acompanhá-lo.
18
O velho balançou a cabeça e esfre-
gou o nariz com o cabo do candeeiro,
como se refletisse.
— Não adianta — resmungou ele.
— Ele não vai deixar você entrar…
não vai.
— Veremos — retruquei, depressa.
— Quem é Ele?
— O mestre.
— E quem é o mestre?
— Isso não é da tua conta — res-
pondeu ele, sem cerimônia.
— Bem, bem… Vá à frente, e eu
me encarregarei de garantir que o
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mestre me dê abrigo e uma refeição
esta noite.
— É, você pode tentar — sussur-
rou meu relutante guia.
E, ainda balançando a cabeça, foi
mancando tal qual um gnomo pela
neve a cair. Logo, uma forma grande
e maciça surgiu em meio à escuridão,
e um cão enorme correu para fora,
latindo, furioso.
— Esta é a casa? — perguntei.
— Pois é, a própria. Deita, Bey! —
E ele vasculhou o bolso à procura da
chave.
Fiquei bem atrás dele, preparado
20
para não perder nenhuma oportuni-
dade de entrar, e vi, no pequeno cír-
culo de luz do candeeiro, que a porta
estava cravada de pregos de ferro, tal
qual a de uma prisão. Mais um mi-
nuto se passou, e ele virou a chave,
enquanto eu me lançava logo atrás,
para dentro da casa.
Uma vez lá dentro, olhei ao redor
com curiosidade e encontrei-me num
grande salão com vigas, que, ao que
parecia, serviam para uma variedade
de usos. A um canto, havia uma pi-
lha de milho que ia até o teto, como
num celeiro. O outro canto estava
21
abastecido com sacos de farinha,
equipamentos agrícolas, barris e todo
tipo de tábuas variadas; ao mesmo
tempo, das vigas, de uma altura
acima da cabeça, pendiam fileiras
de presunto, mantas de toucinho e
ervas secas para o inverno.
No meio do chão, havia um ob-
jeto enorme, embrulhado de forma
descuidada em um pano sujo, alcan-
çando metade da altura até as vigas.
Levantando um canto do tecido, para
minha surpresa, vi um telescópio
de tamanho bastante considerável,
montado em uma plataforma móvel
22
grosseira, com quatro rodas peque-
nas. O tubo era feito de madeira
pintada, preso com anéis de metal
grosseiramente moldados; o espelho
primário, até onde eu conseguia esti-
mar sob a luz fraca, media pelo menos
quarenta centímetros de diâmetro.
Enquanto ainda estava examinando
o instrumento, pensando se não se-
ria obra de algum óptico autodidata,
uma sineta tocou de repente.
— É para você — disse meu guia,
com um sorriso cheio de malícia. — O
quarto dele fica mais para lá.
Ele apontou para uma porta preta
23
e baixa, do lado oposto do corredor.
Atravessei-o e bati na porta, um
pouco alto demais, entrando sem
esperar por um convite. Um homem
velho e enorme, de cabelos brancos,
levantou-se de uma mesa coberta de
livros e papéis, encarando-me com
severidade.
— Quem é você? — perguntou ele.
— Como chegou aqui? O que quer?
— James Murray, advogado con-
tencioso. Atravessei a charneca a pé.
Carne, bebida e repouso.
Ele curvou as sobrancelhas espes-
sas em uma carranca agourenta.
24
— Minha casa não é um lugar de
entretenimento — retrucou ele, com
desdém. — Jacob, como se atreve a
deixar este estranho entrar?
— Eu não deixei — resmungou o
outro velho. — Ele me seguiu por toda
a charneca e invadiu bem na minha
frente. Não sou páreo para alguém
com um metro e noventa de altura.
— E posso saber, senhor, com que
direto invadiu minha casa?
— O mesmo com que eu me agar-
raria ao seu barco, se estivesse me
afogando. O direito da autopreserva-
ção.
25
— Autopreservação?
— Já há uma camada de quase dois
dedos de neve no chão — respondi
apenas. — E ela ficará alta o sufi-
ciente para cobrir meu corpo antes
do amanhecer.
Ele caminhou até a janela a passa-
das largas, afastou uma grossa cor-
tina preta e olhou para fora.
— De fato — disse. — Pode ficar,
se quiser, até a manhã. Jacob, sirva o
jantar.
Com isso, indicou-me um assento
e voltou a sentar-se, imediatamente
26
absorvido pelos estudos dos quais eu
o havia interrompido.
Coloquei minha arma em um
canto, puxei uma cadeira para perto
da lareira e examinei meus arredores
com calma. Embora fosse menor e os
objetos não estivessem tão desorga-
nizados quanto no salão, o cômodo
despertou bastante minha curiosi-
dade. O chão estava sem carpete. As
paredes caiadas tinham partes ra-
biscadas com estranhos diagramas,
enquanto outras estavam cobertas
com prateleiras repletas de instru-
mentos filosóficos, muitos dos quais
27
me era desconhecida a finalidade.
De um lado da lareira, havia uma es-
tante cheia de volumes desbotados;
do outro, encontrava-se um pequeno
órgão, decorado de maneira fantás-
tica com entalhes coloridos de santos
e demônios medievais. Através da
porta entreaberta de um armário no
canto mais distante da sala, divisei
uma extensa gama de espécimes geo-
lógicos, preparativos cirúrgicos, cadi-
nhos, retortas e jarros com produtos
químicos; enquanto isso, na prate-
leira da cornija bem ao meu lado, em
meio a uma variedade de pequenos
objetos, havia um modelo do sistema
28
solar, uma pilha galvânica de tama-
nho reduzido e um microscópio. Cada
cadeira tinha sua carga, e cada canto
estava amontoado até o teto com li-
vros. O próprio chão estava repleto de
mapas, moldes, papéis, riscos e rascu-
nhos de todas as espécies concebíveis.

Contemplei ao meu redor com um


fascínio crescente a cada objeto novo
que meus olhos por acaso encontra-
vam. Que cômodo peculiar, como
jamais eu havia visto; ainda assim,
parecia incomum encontrar um
quarto como aquele em uma fazenda
29
isolada, em meio a tais charnecas er-
mas e selvagens.
Mais de uma vez, olhei do meu
anfitrião para seu entorno, e então
de volta para ele, perguntando-me
quem e o que poderia ser tal homem.
A cabeça dele era bela de uma ma-
neira fora do comum, mas era mais
a cabeça de um poeta do que a de um
filósofo. Larga nas têmporas, proemi-
nente sobre os olhos e coberta com
uma profusão de cabelos perfeita-
mente brancos, tinha todo o idea-
lismo e um tanto da aspereza que
caracterizam a cabeça de Louis von
30
Beethoven. Havia as mesmas linhas
profundas sobre a boca e os mesmo
sulcos severos na fronte. E lá estava
a mesma expressão de concentra-
ção. Enquanto eu ainda o observava,
a porta foi aberta, e Jacob trouxe o
jantar. Seu mestre fechou o livro em
seguida, levantou-se e, com mais
cortesia do que já havia me dedicado,
convidou-me para a mesa.
Um prato de presunto e ovos, uma
fôrma com pão de centeio e uma ad-
mirável garrafa de xerez foram colo-
cados diante de mim.
— Tenho apenas comida caseira
31
da fazenda para lhe oferecer, senhor
— disse meu anfitrião. — Acredito
que seu apetite compensará a carên-
cia de nossa despensa.
Com o entusiasmo de um atleta
faminto, já estava devorando as
iguarias; dessa maneira, protestei,
afirmando que jamais havia provado
nada tão delicioso.
Ele fez uma mesura formal e sen-
tou-se para comer sua refeição, que se
resumia a apenas uma jarra de leite
e uma tigela de mingau. Comemos
em silêncio e, quando havíamos ter-
minado, Jacob removeu a travessa.
32
Então aproximei minha cadeira de
volta para perto da lareira. Meu an-
fitrião, para minha surpresa, fez o
mesmo e, voltando-se de súbito para
mim, disse:

— Senhor, tenho vivido aqui em


severa reclusão há vinte e três anos.
Ao longo desse período, não vi muitos
rostos desconhecidos nem li um só
jornal. O senhor é o primeiro estra-
nho que cruzou o umbral de minha
casa em questão de mais de quatro
anos. Pode me fazer a gentileza de di-
zer uma ou duas palavras a respeito
33
do mundo exterior, do qual me afas-
tei há tanto tempo?
— Pois faça-me o favor de me ques-
tionar — respondi. — Estou por com-
pleto à sua disposição.
Ele assentiu em agradecimento.
Então, inclinou-se para frente, com
os cotovelos sobre os joelhos e o
queixo na palma das mãos, encarou
fixamente o fogo e prosseguiu com
as perguntas.
Seus questionamentos eram re-
lacionados sobretudo a assuntos
de cunho científico, cujo progresso
posterior, aplicado aos propósitos
34
práticos da vida, ele desconhecia
quase por completo. Respondi da
melhor maneira que pude, tendo em
vista meus parcos conhecimentos a
respeito do assunto, haja vista o fato
de eu mesmo não ser um estudioso
da área científica; porém, a tarefa era
mais do que simples, e fiquei muito
aliviado quando, passando do inter-
rogatório para o debate, ele começou
a derramar as próprias conclusões a
respeito dos fatos que eu havia ten-
tado lhe apresentar. Ele falou, e eu
ouvi, fascinado; falou até eu acreditar
que ele quase havia se esquecido de
minha presença e apenas pensava em
35
voz alta. Nunca ouvira nada parecido
até aquele momento; e, desde então,
tampouco.
Familiarizado com cada um dos
sistemas filosóficos, de todas as filo-
sofias, sutis em análise e arrojados
em generalização, derramou seus
pensamentos num f luxo ininter-
rupto e, ainda se inclinando para
frente com a mesma postura me-
lancólica, os olhos fixos nas chamas,
divagou de um tema para outro, de
uma conjectura para outra, tal qual
um idealista inspirado. Das ciências
práticas até a filosofia da mente; da
36
eletricidade no fio à eletricidade no
nervo; de Watts a Mesmer; de Mesmer
a Reichenbach; de Reichenbach a
Swedenborg, Espinosa, Condillac,
Descartes, Berkeley, Aristóteles,
Platão, bem como os Reis Magos e os
místicos do Oriente; a transição de
um assunto para outro, embora de-
sorientadora em sua diversidade e
escopo, parecia fácil e harmoniosa
em seus lábios, como sequências na
música.
Em determinado momento —
não lembro agora por conta de qual
linha de conjectura ou exemplo —,
37
ele passou para um campo além do
limite de qualquer filosofia especula-
tiva, chegando a ninguém sabe onde.
Falou da alma e de seus anseios; do
espírito e de seus poderes; do sexto
sentido; da profecia; daqueles fenô-
menos que, sob a denominação de
fantasmas, espectros e aparições so-
brenaturais, têm sido desmentidos
por céticos e atestados por crédulos
de todas as épocas.
— O mundo está cada vez mais cé-
tico em relação a tudo o que está além
de seu próprio e estreito alcance; e
nossos cientistas fomentam essa
38
tendência fatal — explicou ele. — Eles
condenam como fábulas tudo o que
resiste aos experimentos. Rejeitam
como falso tudo o que não é passível
de testes em laboratório ou em salas
de dissecação. Contra qual supersti-
ção travaram uma guerra tão extensa
e obstinada como fizeram contra a
crença em aparições? E, ainda assim,
qual superstição se manteve na mente
da humanidade por tanto tempo e de
maneira tão persistente? Mostre-me
qualquer fato na física, na história,
na arqueologia, que seja apoiado por
testemunhos tão amplos e variados.
Apesar de testemunhado por todas
39
as raças da humanidade, em todas
as épocas, sob todos os climas, pelos
mais sensatos sábios da antiguidade
até os mais rudes selvagens dos dias
de hoje, por cristãos, pagãos, panteís-
tas, materialistas, este fenômeno é
tratado como um conto de fadas pe-
los filósofos do nosso século. As evi-
dências circunstanciais pesam para
eles como penas em uma balança.
A comparação entre causa e efeito,
por mais valiosa que seja na ciência
física, é posta de lado como inútil e
pouco confiável. As provas forneci-
das por testemunhas qualificadas,
embora conclusivas em um tribunal,
40
não servem de nada. Aquele que faz
uma pausa antes de se pronunciar é
condenado como frívolo. Aquele que
crê é visto como idealista ou tolo.
Falou com amargura e, após tais
palavras, permaneceu em silêncio
por alguns minutos. Logo em se-
guida, ergueu a cabeça das mãos e
acrescentou, com diferente postura
e tom de voz:
— Senhor, eu tomei meu tempo,
investiguei, acreditei e não me enver-
gonhei de declarar ao mundo minhas
convicções. Também eu fui rotulado
de visionário, exposto ao ridículo
41
pelos meus contemporâneos e ridi-
cularizado nesse campo da ciência
em que trabalhei com honra durante
todos os melhores anos de minha
vida. Tudo isso aconteceu apenas
vinte e três anos atrás. Desde então,
tenho vivido como o senhor me vê
agora, e o mundo me esqueceu, como
eu esqueci o mundo. Essa é a minha
história.
— É uma história muito triste, de
fato — murmurei, mal sabendo o que
responder.
— É muito comum — retrucou ele.
— Apenas sofri pela verdade, como
42
muitas pessoas melhores e mais sá-
bias sofreram antes de mim.
Ele se levantou, como se desejasse
encerrar a conversa, e foi até a janela.
— A neve parou — observou, en-
quanto largava a cortina e voltava
para perto da lareira.
— Parou! — exclamei, ficando de
pé com entusiasmo. — Ah, se ao me-
nos fosse possível… mas, não. É inútil.
Mesmo se eu fosse capaz de encontrar
o caminho através da charneca, não
conseguiria andar mais de trinta
quilômetros à noite.
— Ca m i n ha r ma is de t r i nta
43
quilômetros à noite! — repetiu meu
anfitrião. — No que está pensando?
— Na minha esposa — respondi,
impaciente. — Na minha jovem es-
posa que não sabe que me perdi e que
neste instante deve estar de coração
partido devido à incerteza e ao medo.
— Onde está ela?
— Em Dwolding, a mais de trinta
quilômetros de distância.
— Em Dwolding — repetiu ele,
pensativo. — É verdade, a distância é
de mais de trinta quilômetros, mas…
está tão ansioso assim para poupar as
próximas seis ou oito horas?
44
— Tão, tão ansioso que daria dez
guinéus neste exato momento em
troca de um guia e um cavalo.

— Seu desejo pode ser concedido a


um valor muito mais baixo — disse
ele, sorrindo. — A carruagem no-
turna do correio, que vem do norte
e troca de montaria em Dwolding,
passa a oito quilômetros daqui e che-
gará a certa encruzilhada em cerca de
uma hora e quinze minutos. Se Jacob
o acompanhasse através da char-
neca e o deixasse na velha estrada
de carruagens, o senhor conseguiria
45
encontrar o caminho até onde ela se
junta à nova estrada, acredito?
— Facilmente… com prazer.
Ele sorriu mais uma vez, tocou a
sineta e deu as ordens ao velho servo.
Então, pegando uma garrafa de uís-
que e uma taça de vinho do armário
onde guardava seus produtos quími-
cos, disse:
— A neve está profunda e será
difícil caminhar pela charneca esta
noite. Um copo de uísque antes de ir?
Eu teria recusado o destilado, mas
ele insistiu, então bebi. Desceu pela
46
minha garganta tal qual chamas lí-
quidas e quase me tirou o fôlego.
— É forte, mas ajudará a manter o
frio afastado — disse ele. — E agora
o senhor não tem mais nenhum mi-
nuto a perder. Boa noite!
Agradeci pela hospitalidade e teria
apertado as mãos dele, mas o homem
já havia se virado para se retirar an-
tes mesmo que eu terminasse minha
frase. Mais um minuto, e eu já atra-
vessara o salão, Jacob havia trancado
a porta externa e encontrávamo-nos
na ampla charneca branca.
Embora o vento tivesse arrefecido,
47
o tempo ainda estava gélido. Nem
uma única estrela brilhava no fir-
mamento lúgubre acima de nós.
Nenhum som, a não ser pelo ruído
rápido da neve sendo esmagada sob
nossos pés, perturbando a profunda
quietude da noite. Jacob, não muito
satisfeito com sua missão, caminhou
oscilante à frente, em um silêncio
taciturno, com o cadeeiro na mão e
a própria sombra a seus pés. Eu o se-
gui, com minha arma sobre o ombro,
tampouco predisposto a conversar.
Meus pensamentos permaneciam
em meu antigo anfitrião. A voz dele
ainda ecoava em meus ouvidos; sua
48
eloquência ainda cativava minha
imaginação. Lembro-me até hoje,
com surpresa, da forma como meu
cérebro demasiado empolgado re-
teve frases inteiras e partes delas,
conjuntos de imagens magníficas e
fragmentos do esplêndido raciocínio,
nas próprias palavras pronuncia-
das pelo homem. Refletindo, assim,
sobre o que ouvira e lutando para
recuperar um elo perdido aqui e ali,
caminhei atrás de meu guia, absorto
e desatento. Logo, no final do que me
pareceram apenas poucos minutos,
ele parou de súbito e disse:
49
— É a tua estrada. Mantenha a
barreira de pedras à sua direita e não
irá se perder.
— Então esta é a estrada velha de
carruagens?
— Isso, é a estrada velha.
— E até onde devo ir antes de al-
cançar a encruzilhada?
— Mais ou menos cinco quilôme-
tros.
Peguei minha carteira e ele ficou
mais comunicativo.
— É uma estrada até que boa para
quem viaja a pé — comentou ele.
50
— Mas íngreme e estreita para o trá-
fego do norte. Preste atenção no tre-
cho em que o parapeito está quebrado,
perto da placa com o sinal. Nunca foi
consertado desde o acidente.
— Que acidente?
— É, a carruagem noturna do cor-
reio caiu bem no vale lá embaixo, uns
bons quinze metros ou mais, justo
no pior trecho de estrada em toda a
região.
— Que horror! Muitas vidas foram
perdidas?
— To d a s . Q u a t r o f o r a m
51
encontrados mortos e outros dois
morreram na manhã seguinte.
— Há quanto tempo isso aconte-
ceu?
— Só nove anos atrás.
— Perto da placa, você diz? Terei
isso em mente. Boa noite.
— Noite, senhor, e ‘brigado.
Jacob colocou sua meia-coroa2 no
bolso, fez um gesto leve como se fosse
tocar o chapéu e arrastou-se de volta
pelo caminho de onde viera.
2 A meia-coroa era uma antiga moeda britânica, no valor
de ⅛ de libra, dois xelins e seis pence, ou trinta pence. Foi
emitida pela primeira vez no reinado de Eduardo VI, em
1549. [N. T.]

52
Observei a luz de seu candeeiro
até desaparecer e, assim, virei-me
para seguir meu caminho, agora so-
zinho. Isso não representava mais a
menor dificuldade, pois, apesar da
escuridão mortal acima, a linha da
barreira de pedras mostrava-se de
maneira distinta contra o brilho pá-
lido da neve. Quão silencioso parecia
então, com apenas meus passos para
serem ouvidos; que silêncio e que iso-
lamento! Uma estranha e desagradá-
vel sensação de solidão tomou conta
de mim. Caminhei mais rápido, can-
tarolei o fragmento de uma melodia,
calculei enormes somas de cabeça e
53
acumulei-as a juros compostos. Em
suma, fiz o meu melhor para esque-
cer as conjecturas alarmantes que
havia acabado de ouvir e, até certo
ponto, consegui.
Enquanto isso, o ar noturno pare-
cia estar mais e mais frio e, embora
eu andasse rápido, comecei a achar
que era impossível me manter aque-
cido. Meus pés eram como gelo. Perdi
a sensibilidade nas mãos e segurei a
arma de forma mecânica. Até respirar
era difícil, pois, em vez de atravessar
uma autoestrada tranquila do norte,
estava escalando os mais altos picos
54
nevados de imensas colinas. Este úl-
timo sintoma logo se tornou tão an-
gustiante que fui forçado a parar por
alguns minutos e inclinar-me contra
a barreira de pedras. Assim que o fiz,
tive a oportunidade de olhar para
trás, estrada além, e lá, para meu in-
finito alívio, vi um ponto de luz dis-
tante, como o brilho de um candeeiro
a se aproximar. No início, pensei que
Jacob havia refeito os próprios passos
e me seguido; mas, assim que tal con-
jectura apareceu, uma segunda luz
brilhou à vista, e ficou claro que essa
luz se encontrava em paralelo com a
primeira, aproximando-se na mesma
55
velocidade. Não precisei pensar duas
vezes para compreender que deve-
riam pertencer aos faróis de algum
veículo particular, embora parecesse
estranho que qualquer veículo do
tipo tomasse uma estrada que todos
sabiam ser abandonada e perigosa.

Não restavam dúvidas, no entanto,


de que as luzes se tornavam maiores
e mais brilhantes a cada instante, e
cheguei a fantasiar que já podia ver
os contornos escuros da carruagem
entre elas. Vinha muito depressa
e um tanto silenciosa, com a neve
56
alcançando quase trinta centímetros
de profundidade sob as rodas.
E agora a carroceria do veículo
tornava-se bastante visível por trás
das luzes; parecia estranhamente ele-
vada. Uma desconfiança repentina
tomou conta de mim. Seria possível
que eu tivesse atravessado a encru-
zilhada no escuro, sem me atentar
à placa, e poderia ser esta a mesma
carruagem que vim encontrar?
Não houve necessidade de ques-
tionar-me uma segunda vez, pois, na
curva da estrada, revelaram-se um
vigia e o condutor, um passageiro do
57
lado de fora e quatro cavalos furiosos,
todos envoltos em uma névoa suave
de luz, através da qual as lanternas
brilhavam feito um par de meteoros
flamejantes.
Saltei para frente, acenando com
meu chapéu, e gritei. A carruagem do
correio veio a toda velocidade e me
ultrapassou. Por um momento, receei
não ter sido visto nem ouvido, mas foi
apenas por um instante. O condutor
parou; o vigia, enterrado até os olhos
em capas e cobertores, ao que pare-
cia adormecido e aos roncos, nem
respondeu ao meu chamado nem fez
58
o menor esforço para descer da car-
ruagem; o passageiro do lado de fora
sequer virou a cabeça. Eu mesmo abri
a porta e olhei. Havia apenas três via-
jantes lá dentro, então entrei, fechei a
porta, escorreguei para o canto vazio
e felicitei-me pela minha boa sorte.
O ar dentro da carruagem parecia,
se possível, mais frio do que o exte-
rior, e estava imbuído de um odor
singularmente úmido e desagradá-
vel. Olhei em volta para meus com-
panheiros de viagem. Todos os três
eram homens e estavam em silêncio.
Não pareciam adormecidos, mas cada
59
um deles recostava-se ao seu devido
canto no veículo, como se absorvidos
pelos próprios pensamentos. Tentei
iniciar uma conversa.
— Que frio faz esta noite — come-
cei, dirigindo-me ao meu vizinho da
frente.
Ele ergueu a cabeça, olhou para
mim, mas não deu qualquer resposta.
— O inverno parece ter começado
de verdade — acrescentei.
Embora o canto em que estava sen-
tado estivesse tão escuro que eu não
fosse capaz de distinguir nenhuma
de suas feições com clareza, vi que
60
seus olhos ainda estavam fixos em
mim. E, mesmo assim, ele não disse
nem uma palavra.

Em qualquer outro momento, eu


deveria ter sentido, e talvez expres-
sado, algum aborrecimento, mas,
naquele instante, também me sentia
demasiado indisposto para fazê-lo. A
frieza do ar noturno me arrepiava até
a espinha, e o estranho odor dentro
da carruagem passou a me afetar com
uma náusea intolerável. Estremeci da
cabeça aos pés e, virando-me para
meu vizinho à direita, perguntei-lhe
61
se teria alguma objeção contra eu
abrir a janela.
Ele não respondeu nem se mexeu.
Reiterei a pergunta, um pouco
mais alto, mas com o mesmo resul-
tado. Então, perdi a paciência e sol-
tei o caixilho. Assim que o fiz, a alça
de couro se partiu na minha mão e
observei que o vidro estava coberto
por uma espessa camada de mofo.
O acúmulo, ao que parecia, vinha
de anos. Assim, minha atenção foi
atraída para o estado da carruagem.
Eu a examinei com mais atenção e vi,
através da luz incerta das lanternas
62
externas, que se encontrava no úl-
timo estágio de deterioração. Cada
parte dela não estava apenas além
de um possível conserto, mas em
condição de putrefação. Os caixilhos
se despedaçavam ao mero toque. As
alças de couro estavam cobertas de
bolor e literalmente apodrecendo
desde a estrutura de madeira. O chão
estava quase cedendo sob meus pés.
Todo o veículo, em suma, estava sujo
de umidade e evidentemente havia
sido arrastado de alguma dependên-
cia onde estivera mofando por anos, a
fim de cumprir mais um ou dois dias
de serviço na estrada.
63
Voltei-me para o terceiro passa-
geiro, a quem ainda não havia me
dirigido, e arrisquei mais uma obser-
vação.
— Essa carruagem está em con-
dições deploráveis — comentei. —
Suponho que o veículo de costume
esteja no conserto?
Ele moveu a cabeça devagar e en-
carou-me sem dizer uma palavra.
Jamais esquecerei aquele olhar en-
quanto viver. Meu coração gelou, e
gela até mesmo agora, ao recordar.
Seus olhos irradiavam um brilho
incandescente que não era natural.
64
O rosto estava pálido como o de um
cadáver. Seus lábios exangues encon-
travam-se repuxados como se estives-
sem na agonia da morte e mostravam
os dentes brilhantes entre eles.
As palavras que estava prestes a
pronunciar morreram em meus lá-
bios, e um estranho horror — um
horror pavoroso — tomou conta de
mim. Àquela altura, minha visão
havia se acostumado à penumbra
da carruagem, e eu conseguia enxer-
gar com razoável nitidez. Voltei-me
para meu vizinho da frente; também
ele me olhava com a mesma palidez
65
chocante no rosto e o mesmo brilho
empedernido nos olhos. Passei mi-
nha mão pela fronte. Virei-me para
o passageiro ao meu lado, e vi — ah,
meu Deus! Como posso descrever o
que vi? Vi que ele não estava vivo —
que nenhum deles estava vivo, como
eu! Uma pálida luz fosforescente, a
luz da putrefação, brincava em suas
faces medonhas; sobre seus cabelos,
úmidos com o orvalho da sepultura;
sobre suas roupas, manchadas de
terra e caindo aos pedaços; em suas
mãos, que eram como as de cadáve-
res havia muito enterrados. Apenas
os olhos deles, seus olhos terríveis,
66
estavam vivos; e todos estavam cra-
vados de forma ameaçadora em mim!
Um grito agudo de terror, um berro
selvagem e ininteligível em busca de
ajuda e clemência, explodiu de meus
lábios enquanto me engalfinhei com
a porta e lutei em vão para abri-la.
Naquele único instante, breve e
vívido como uma paisagem contem-
plada no clarão de um raio de verão,
vi a lua brilhando através de uma
fenda de nuvem tempestuosa: a hor-
renda placa com o sinal erguendo
seu dedo de advertência à beira da
estrada, o parapeito quebrado, os
67
cavalos mergulhando, o abismo es-
curo abaixo. Então, a carruagem ba-
lançou como um navio no mar. Em
seguida, veio uma poderosa batida, a
sensação de uma dor esmagadora e,
por fim, a escuridão.
Parecia que anos tinham se pas-
sado quando acordei uma manhã
depois de um sono profundo e encon-
trei minha esposa observando-me de
perto, ao lado de meu leito. Farei ape-
nas um breve relato da cena que se
seguiu e narrarei, em meia dúzia de
palavras, a história que ela me contou
em meio a lágrimas de gratidão. Eu
68
havia caído de um precipício, perto
da junção da estrada velha e da nova,
e somente fora salvo da morte certa
ao pousar sobre um monte de neve
profunda que se acumulou ao pé da
rocha abaixo. Fui descoberto ao ama-
nhecer nesse mesmo monte de neve
por um casal de pastores, que me car-
regaram até o abrigo mais próximo
e trouxeram um cirurgião em meu
auxílio. O cirurgião encontrou-me
num estado de completo delírio, com
um braço quebrado e uma fratura
grave no crânio. As cartas em meu
bolso revelavam meu nome e ende-
reço; minha esposa foi chamada para
69
cuidar de mim e, graças à juventude
e a uma excelente compleição, enfim
saí de perigo. O local de minha queda,
nem preciso dizer, foi precisamente
aquele em que um terrível acidente
acontecera com a carruagem de cor-
reio do norte, nove anos antes.
Nunca contei à minha esposa os
pavorosos acontecimentos que acabei
de lhe relatar. Contei ao cirurgião que
me assistiu, porém, ele tratava toda
a aventura como um mero devaneio
nascido da febre em meu cérebro.
Discutimos a questão repetidas vezes,
até descobrir que não conseguíamos
70
mais debatê-la sem perdermos a
cabeça e, dessa forma, desistimos.
Outras pessoas podem tirar as con-
clusões que assim desejarem; já eu
tenho a certeza de que, vinte anos
atrás, fui o quarto passageiro no in-
terior daquela Carruagem-Fantasma.

TH E E N D

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A Carruagem Fantasma

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E X TR A: BIOGR AFIA

Amelia B. Edwards
Amelia Edwards foi uma mulher
com múltiplas facetas e talentos, com
uma história digna de ser lembrada.
73
A escrita esteve presente nos basti-
dores de personalidades bem interes-
santes ao longo da história e Amelia é
um exemplo de alguém que usou seu
dom com as palavras e sua sensibili-
dade para advogar por pautas que lhe
eram importantes.
A mel ia Edwa rds nasceu em
Londres, em 1831, filha única de um
soldado aposentado que se tornou
banqueiro. Amelia foi alfabetizada
em casa por sua mãe e, desde cedo,
demonstrou talento para a arte e a
música, mas foi sua escrita que se
destacou desde nova.
74
Sua carreira começou em 1850
como jornalista e escritora. Seu pri-
meiro romance, My Brother’s Wife,
foi publicado em 1855 e, nos anos se-
guintes, ela publicou diversos contos
e histórias.
Após a morte de seus pais, em
1860, Amelia Edwards começou uma
série de viagens que mudariam sua
vida. No século XIX não era comum
ou bem visto que mulheres viajas-
sem sozinhas, mas Amelia não dei-
xou que isso a impedisse. Ao lado de
Lucy Renshaw, uma amiga próxima,
viajou para as Dolomitas, uma cadeia
75
de montanhas nos Alpes do norte da
Itália.
Juntas, as duas mulheres enfren-
taram insetos, lama, frio, calor, estra-
das precárias, aldeões hostis e outras
dificuldades e privações, mas nada
seria demais para elas. Suas aventu-
ras e dificuldades foram contadas em
Untrodden Peaks and Unfrequented
Valleys, livro publicado por Amelia
em 1873. Entretanto, uma viagem
específica mudaria os rumos de sua
carreira.
Em 1873, ao lado de Lucy, Amelia
viajou para o Egito e pôde passar
76
algumas semanas explorando o
Cairo, navegando pelo Nilo e teste-
munhando algumas escavações em
sítios arqueológicos, incluindo o tem-
plo de Ramesses II. A viagem a deixou
encantada pelo país e sua história,
mas ao mesmo tempo despertou
em Amelia o desejo de denunciar ao
mundo a degradação desses sítios e
de diversos artefatos históricos por
parte de turistas europeus.
Em 1877, movida pelo que viu,
publicou Thousand Miles up the
Nile, um best-seller que continua
sendo reeditado e impresso até hoje.
77
Preocupada com a preservação da
história e cultura do Egito, Amelia
Edwards dedicou o resto de sua vida
à causa, deixando a ficção de lado.
Em meio às ameaças aos monu-
mentos e artefatos egípcios, Amelia
Edwards se tornou uma potente
voz pela preservação da história do
Antigo Egito. Foi responsável, em
1882, por fundar o Egypt Exploration
Fund, atual The Egypt Exploration
Society.
Em um período em que as mu-
lheres tinham pouco ou nenhum
es pa ço pa r a e x pressa re m s u a
78
individualidade, Amelia Edwards
também abriu caminhos. Ela se tor-
nou vice-presidente da Bristol West
of England National Society for
Women's Suffrage e foi uma das pri-
meiras colaboradoras do periódico
English Woman's Journal, lançado
em 1858, uma publicação importante
na história feminista.
Sua sexualidade também foi
motivo de especulação. Segundo
Jonathan Rowe, "descrita como uma
mulher charmosa e inteligente,
Amelia Edwards tinha uma enorme
gama de talentos e interesses e foi
79
bastante aberta sobre sua sexua-
lidade em uma época em que isso
era incomum". Segundo Rowe, no
OutStories Bristol, Amelia Edwards
teve diversos relacionamentos com
outras mulheres e não escondia sua
sexualidade nas cartas apaixonadas
que escrevia.
Em abril de 1892, Amelia Edwards
morreu de inf luenza, mas deixou
para a posteridade não apenas uma
pequena marca na literatura, mas um
legado sobre a importância da preser-
vação histórica e da luta por causas
sociais. Em 2015, Amelia Edwards foi
80
prestigiada com uma Blue Plaque na
19 Wharton Street, em Londres. A
placa azul é uma honraria dedicada
a figuras importantes para a história
britânica.
A Carruagem Fantasma é uma
relíquia literária de 1864 e é a prova
de que uma mulher incrível pode ser
muitas em uma. Antes de mergulhar
nas pautas que defenderia até o fim
da vida, Amelia Edwards nos presen-
teou com uma instigante e arrepiante
história de fantasmas.

81
Profissionais
que trabalharam
neste conto

Karen Alvares
TR A DUÇÃO

Karen Alvares é escritora e trabalha com


preparação de textos e diagramação há
quase dez anos.
Twitter: @karen_alvares

82
Karine Ribeiro
PRE PA R AÇÃO

Escritora premiada,
tradutora e revisora,
graduanda em Tradução
pela UFMG. @karineescreve

João Rodrigues
RE V ISÃO

Bacharel em Tradução
e especialista em
Produção e Revisão
Textual.
@jojsrodrigues

83
Marcela Lois
ILUSTR AÇÃO

25 anos, é ilustradora,
capista e designer
gráfica nascida em
Belford Roxo/RJ.
@marcelalois.art

Marina Avila
PROJE TO G R Á FICO

Produtora editorial e
fundadora da Wish. Mãe
de gatos e de livros.
@marinalivros
Valquíria Vlad
COMUNICAÇÃO E
COMUNIDA DE

Escritora, pesquisadora
e publicitária formada
pela Universidade
Federal do Ceará (UFC).
@valquiriavlad

Laura Brand
ME DIAÇÃO E
PA R ATE X TOS

Editora, coordenadora
editorial, jornalista e
criadora de conteúdo.
Formada pela PUC-MG
e Columbia Journalism
School. @nostalgiacinza
85
Muito obrigada
por apoiar este
financiamento
coletivo!
Neste mês foi possível viabilizar a cura-
doria, tradução, revisão e ilustração do
conto The Phantom Coach! A cada mês de
assinatura, a Wish continuará resgatando
os tesouros do passado em novas edições
para os caçadores das Relíquias Literárias.

Vamos resgatar estes contos raros juntos?

Relíquia 039/Jun 2023

86
N O P R ÓX I M O M Ê S

Mary de Morgan
Um conto de fadas de Arasmon
e Chrysea.

87

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