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marcas da cidade

Aleilton Fonseca

3- impressão

V Edição
S a l v a d o r - B a h i a - 2015
Gregório

De manhã bem cedo, como de


costume, Gregório acordou apreensivo
com o relógio. Mas eram ainda cinco
horas da manhã. Jamais se atrasava. E r a
bastante cioso das responsabilidades de
sua posição na empresa, como u m chefe de
seção exemplar. Preparou-se rapidamente,
vestiu o uniforme de trabalho e dirigiu-se
à cozinha. Como sempre, pegou a garrafa
térmica, tomou uns goles de café dormido e
mastigou uns biscoitos. E m seguida, avisou
a mulher, que ainda se revirava na cama:
- Amor, já v o u indo!
A mulher tomou u m susto com o
aviso. Ela, que costumava responder "Deus

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te acompanhe", agora precisava alertá-lo para aquela lembrou dos líderes operários do final dos anos 70.
estranha realidade: Sim, ainda era possível lutar.
- Está maluco, Gregório? Vai pra onde? "Trabalhador unido jamais será vencido" - era o
Ele caiu em si. E r a o seu primeiro dia sem ir ao antigo slogan da classe.
trabalho. Agora era apenas u m número concreto nas E o grito valia agora. Mas, eis que braços se
manchetes que o jornal imprime e o apresentador recita levantam ou se negam nesta hora, contam-se a olhos
aos telespectadores. Desempregado. vistos. A proposta de lutar pela readmissão dos
Gregório não perdia uma reunião do sindicato, demitidos acabou derrotada. A maioria escolheu salvar
mesmo ficando de esguelha, nos cantos, sem altear a o que restava, votando pela suspensão de novos cortes.
voz. Tinha seus receios, pois achava que o diretor da - Companheiros, essa é a única bandeira que hoje,
empresa fazia jogo duplo. Aparentava respeitar a livre objetivamente, podemos levantar.
manifestação sindical. Mas fiscalizava e avisava: "olhe O dirigente discursava, e citava os números do
lá, vá com calma nisso... melhor mesmo é garantir sua desemprego estrutural. Diante da crise, interessava-lhe
posição, seu emprego. É, ou não é?" - Recomendava. O u uma política de resultados. E para os demitidos prometia
melhor, advertia, com u m riso malandro. criar alternativas viáveis. Gregório sentiu-se excluído,
Sem meias palavras, aquilo era u m recado. E abandonado no campo de luta. Perdeu a crença. Seu ser
Gregório entendia a situação: sindical foi se tornando névoa e, aos poucos, sumiu.
- A empresa nos cozinhava, com ameaça constante - Todo domingo a turma passava lá em casa,
de corte, dizia-se que "as coisas não iam bem", e que íamos ao barzinho do Tonho jogar dominó, ver o futebol,
"não era possível reajustar os salários". tomar uma cervejinha. Éramos uns seis a oito amigos,
Eles faziam dinheiro em caixa. Investiam os lucros quase todos companheiros na empresa. Todos tinham
na "modernização do parque". De repente vieram as consideração comigo, era uma boa camaradagem. Mas
enormes caixas made in algum lugar. E vieram os técnicos do grupo, só eu havia sido demitido.
para armar as novas máquinas. Depois o anúncio final: N a primeira semana, passaram em sua casa,
treinamento para uns, corte para outros. A chefia de levaram-no ao bar, tentando animá-lo. E o consolavam:
Gregório acabou. - A coisa vai melhorar, rapaz. Você vai arranjar
- Tomei bilhete azul, sem nenhuma consideração. uma colocação...
Dispensado, Gregório passou a assumir a ponta Aos poucos Gregório foi ficando de fora dos
nas discussões do sindicato. Alteava a voz, queria papos sobre o novo dia a dia do serviço. Comentava-se
entender a lógica dos debates e acompanhar os rumos que as novas máquinas faziam quase tudo sozinhas. E só
das votações. Depois de tantas horas de discursos e se falava em firmar u m pacto com a empresa. Era preciso
discussões, era a vez do voto. Que proposta encampar esquecer o grande corte de pessoal e se concentrar na luta
na luta? Gregório enxergou ali a sua nova trincheira. para manter os empregos atuais. No meio das conversas.

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clfs concordavam sobre a situação: "o sindicato está Haveria consolo no lar? U m dia o dinheiro e a
certo, a coisa tá braba." esperança deram maus sinais. D a tristeza ao desespero,
- E u discordei: aquilo foi uma traição. era apenas u m passo. ' • , ; • '•• -
Para Gregório, o correto seria lutar para reverter - Sem emprego e salário, não se é u m trabalhador.
o quadro. E r a brigar pela readmissão dos colegas Para Gregório, o seguro-desemprego seria u m
demitidos. N a assembleia, usou a palavra, pediu apoio. atestado de falência. Mas, que jeito? Anotou o endereço,
Os companheiros voltaram-se para ele, e o escutaram saiu cedo para enfrentar a fila. Levou o dia inteiro
com inquietação. Depois ficaram em silêncio. E olhavam sentado, com a senha não mão, esperando o atendimento.
para ele desconfiados, como se fosse u m intruso na Quando entregou os papéis, sentiu-se muito mal. Mas
reunião. era preciso aceitar, pois a necessidade não se resolve com
- N a segunda semana, já nem passaram lá em lamentos nem imprecações.
casa. Começaram a me evitar. - Nesse dia, u m pouco de mim mesmo sumiu no ar.
Mesmo assim, por força do hábito, Gregório foi até A situação em casa era muito difícil. De amorosa
o bar do Tonho. Os ex-companheiros estavam lá. Quando e paciente, a mulher de Gregório foi assumindo outra
chegou, eles se calaram de repente. E entreolhavam-se. cara e outros gestos. Preocupava-se muito, pois os
Gregório cumprimentou cada u m deles. De longe apenas meses passavam e nada se resolvia. A s dívidas se
acenaram. Mas ninguém o convidou para sua mesa, ou acumulavam. A s roupas das crianças estavam gastas.
parceria no jogo. Ninguém ofereceu u m copo de cerveja. Faltava dinheiro para os remédios. A alimentação cada
- Me dê uma gelada, Tonho - pediu, altivo. vez mais escasseava na mesa.
Servido, Gregório provou a mais amarga cerveja E m desespero, a mulher passou a cobrar do marido
de sua vida. Bebeu sozinho no balcão. Compreendeu u m emprego, uma solução qualquer. Somente a tristeza
que perdera o lugar na antiga turma. E sua presença prosperava nessa casa. Acumulavam meses de aluguel
incomodava a todos. atrasado. Estava a caminho uma ordem de despejo. O
Gregório deixou o último gole no copo, colocou o casal se agastava, brigando por qualquer coisa. Já nem se
dinheiro no balcão e saiu. Sumiu daquele lugar. abraçavam. Gregório sentiu o ranger da escada, mas era
Gregório passou a procurar uma solução nos tarde. Sentiu-se como u m indigente. E sua condição de
classificados dos jornais. Nos primeiros dias, insistiu classe média sumiu.
nos recortes, nos telefonemas, nas andanças. Conseguiu Como explicar à família que não havia trabalho?
agendar e fazer algumas entrevistas. Mas os próprios Que agora também contava contra ele o fator idade?
jornais advertiam que o desemprego avançava com Permaneceu calado e ensimesmado. E sempre tomava
seus frios algarismos. E m alguns meses, o dinheiro que uns tragos para aliviar a dura realidade. Passou a
recebera da verba rescisória começava a minguar. E nada reagir com quatro pedras se Clara reclamava da falta
de novo emprego. de dinheiro.

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Os filhos de Gregório, dois meninos e u m a ficava após a dura jornada. O marido, como antes ela o
menina, eram acostumados com presentes, mimos queria e gostava, sumiu.
e passeios aos shoppings. Clara costumava fazer as - E u era u m homem, u m marido, u m pai...
suas vontades. No começo, tudo explicado, eles se E m crise profunda, Gregório buscava a si
privavam, e tentavam compreender a situação da mesmo n u m pequeno espelho da pia. Tenso, sentia-se
família. Mas, com tempo, sentiam-se cada vez mais completamente desorientado. Mirava-se no espelho; e
tristes, pobres, chateados. Revoltavam-se porque o não conseguia ver nada.
pai já não lhes dava mais nada. Agora só falavam do - E u não sou mais ninguém...
pai, com os verbos no passado: "quando pai fazia", De repente sentiu muito frio. E teve a sensação
"quando pai comprava", "quando pai p o d i a " . E agora de que estava encolhendo, cada vez mais, até se sentir
Gregório nada mais podia comprar. Aquele pai, como mínimo. Dias e dias em silêncio. U m bicho.
eles queriam e prezavam, sumiu. U m a noite saiu da toca e encarou a rua envolta em
Gregório viu-se sem quaisquer condições de noite e silêncio. N u m ímpeto, começou a andar a esmo
sustentar a casa. E não sabia como explicar aos filhos rua afora, deixando tudo para trás.
o seu fracasso. Embora as estatísticas desmentissem a A brisa da madrugada soprava. Para ele era uma
esperança, o ex-operário sonhava encontrar u m novo imensa tempestade. Levava às costas apenas u m saco
emprego, no qual pudesse honrar o velho diploma do com alguns objetos pessoais e algumas roupas. Horas
velho S E N A I . e horas sem rumo. N u m ponto ermo da longa avenida,
Clara assumiu o sustento da família. Passava o dia sentou-se debaixo de uma árvore. E a copa da árvore,
todo fora de casa, trabalhando como diarista, fazendo ampla e acolhedora, era o seu novo teto.
faxina em casas de família. E r a isso ou nada.
- Dá u m jeito em sua vida, Gregório - ela cobrava.
©caco
Ela exigia que o marido fosse fazer qualquer coisa
para arrumar uns trocados e ajudar em casa. Gregório
tentou vender picolé na rua, pipoca em frente ao estádio
de futebol, água mineral na praia, água de coco na
sinaleira. Mas isso não dava resultado.
Gregório se v i u desesperado. U m dia bebeu
demais. Brigou feio com Clara. Bateu nas crianças.
Saiu de casa.
Isolou-se no quartinho dos fundos. E Clara não
pediu que ele retornasse para a casa. Sentia-se até aliviada
por não sofrer os incómodos da noite, se tão exausta

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