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Série Autores Gregos e Latinos

Gaio Suetónio Tranquilo

Vidas dos
Césares
Livro viii
Os FláviOs
vidas de vespasianO, TiTO e dOmicianO

Com introdução, tradução e notas de


José Luís Brandão
Série “Autores Gregos e Latinos –
Tradução, introdução e comentário”
ISSN: 2183-220X
Apresentação: Esta série procura apresentar em língua
portuguesa obras de autores gregos, latinos e neolatinos,
em tradução feita diretamente a partir da língua original.
Além da tradução, todos os volumes são também carate-
rizados por conterem estudos introdutórios, bibliografia
crítica e notas. Reforça-se, assim, a originalidade cientí-
fica e o alcance da série, cumprindo o duplo objetivo de
tornar acessíveis textos clássicos, medievais e renascen-
tistas a leitores que não dominam as línguas antigas em
que foram escritos. Também do ponto de vista da reflexão
académica, a coleção se reveste no panorama lusófono
de particular importância, pois proporciona contributos
originais numa área de investigação científica fundamen-
tal no universo geral do conhecimento e divulgação do
património literário da Humanidade.

Breve nota curricular sobre o autor


José Luís Lopes Brandão, professor associado do
Instituto de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras
da Universidade de Coimbra e investigador do Centro
de Estudos Clássicos e Humanísticos, dedica-se ao
estudo da língua, cultura e literatura latina (epigrama,
romance latino, biografia, historiografia), bem como da
história de Roma. Entre os autores que tem estudado
salientam­‑se Marcial, Suetónio, a História Augusta
e Plutarco, sobre os quais publicou diversos estudos
e traduções. Coordenou, com Francisco Oliveira,
volumes sobre a história de Roma, publicados na Série
Ensino da IUC. No que respeita ao teatro clássico, tem
desenvolvido atividade relacionada com a produção
dramática no grupo de teatro Thíasos, bem como na
coordenação do Festival de Teatro de Tema Clássico
(2013-2019). Foi, de 2018 a 2022, IR do projeto
BioRom: “Roma nosso lar: tradição (auto)biográfica e
consolidação da(s) identidade(s)”.
Série Autores Gregos e Latinos
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Série Autores Gregos e Latinos

ISSN: 2183-220X

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Universidade de Coimbra

Todos os volumes desta série são submetidos


a arbitragem científica independente.
Série Autores Gregos e Latinos

Gaio Suetónio Tranquilo

Vidas dos
Césares
Livro viii
Os Flávios
Vidas de Vespasiano, Tito e Domiciano

Com introdução, tradução e notas de


José Luís Brandão
Série Autores Gregos e Latinos
Título Title
Gaio Suetónio Tranquilo, Vidas dos Césares. Livro VIII. Os Flávios. Vidas de
Vespasiano, Tito e Domiciano
Gaius Suetonius Tranquillus, Lives of the Caesars. Book VIII. The Flavians. Lives of
Vespasian, Titus and Domitian

Introdução, tradução e notas de


Introduction, translation and notes by
José Luís Lopes Brandão
https://orcid.org/0000-0003-4871-243X

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the Shaping of Identity(ies) (PTDC/
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ISSN
2183-220X
ISBN
978-989-26-2353-5
© abril 2023
ISBN Digital
978-989-26-2354-2 Imprensa da Universidade de Coimbra
Classica Digitalia Vniversitatis
DOI Conimbrigensis
https://doi.org/10.14195/978-989-26- http://classicadigitalia.uc.pt
2354-2 Centro de Estudos Clássicos e
Humanísticos da Universidade de
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Trabalho publicado ao abrigo da Licença This work is licensed under
Creative Commons CC-BY (http://creativecommons.org/licenses/by/3.0/pt/legalcode)
Gaio Suetónio Tranquilo, Vidas dos Césares.
Livro VIII. Os Flávios. Vidas de Vespasiano, Tito
e Domiciano
Gaius Suetonius Tranquillus, Lives of the Caesars.
Book VIII. The Flavians. Lives of Vespasian, Titus
and Domitian

Com introdução, tradução e notas de


José Luís Lopes Brandão

Tradução acompanhada de introdução e notas das Vidas dos Flávios, a dinastia


que governou Roma entre 69 e 96 d.C. Esta família, embora não tivesse ante-
passados tão ilustres como os antecessores e fosse de origem sabina, veio dar
estabilidade a Roma, depois dos sucessivos golpes de estado que aconteceram
depois da morte de Nero. Mas enquanto as biografias de Vespasiano e Tito
salientam aspetos essencialmente positivos (Vespasiano é apresentado como
um restaurador bem-humorado da cidade e da sociedade, e Tito é designado
como “amor e delícias do género humano”), o filho mais novo de Vespasiano –
Domiciano – é associado aos lugares-comuns típicos dos tiranos, um conjunto
de vícios que justificam a sua morte.
(Página deixada propositadamente em branco)
Autor

José Luís Lopes Brandão, professor associado do Instituto de Estu-


dos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e
investigador do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, dedica-se
ao estudo da língua, cultura e literatura latina (epigrama, romance
latino, biografia, historiografia), bem como da história de Roma.
Entre os autores que tem estudado salientam-se Marcial, Suetónio, a
História Augusta e Plutarco, sobre os quais publicou diversos estudos
e traduções. Coordenou, juntamente com Francisco Oliveira, volumes
sobre a história de Roma, publicados na Série Ensino da IUC. No que
respeita ao teatro clássico, tem desenvolvido actividade relacionada com
a tradução e produção dramática no grupo de teatro Thíasos na coorde-
nação do Festival de Teatro de Tema Clássico. Foi, entre 2018 e 2022,
IR do projeto BioRom: “Roma nosso lar: tradição (auto)biográfica e
consolidação da(s) identidade(s)”.

Author

José Luís Lopes Brandão is associate professor at the Institute of Clas-


sical Studies of the Faculty of Arts and Humanities of the University
of Coimbra and researcher at the Center for Classical and Humanistic
Studies. He is devoted to the study of the Latin language, culture and
literature (epigraph, Roman novel, biography, historiography) as well
as the history of Rome published by Coimbra University Press (Série
Ensino). Among the authors who he has studied are Martial, Suetonius,
Historia Augusta and Plutarch, on which he published several studies and
translations. He coordinated with Francisco Oliveira two volumes on the
history of Rome. As far as classical theatre is concerned, he has worked in
the translation and dramatic production (actor, director and consultant)
in the theatre group Thíasos and coordinated (2013-2019) the Festival of
Classical Theatre (FESTEA).
PI at the project Rome our Home: (Auto)biographical Tradition and
the Shaping of Identity(ies) 2018-2022.

7
(Página deixada propositadamente em branco)
Vidas dos Césares

Sumário

Introdução............................................................................ 11
Bibliografia........................................................................... 60
Tradução das Vidas............................................................... 67
Índice...................................................................................... 153

9
(Página deixada propositadamente em branco)
Vidas dos Césares

Gaio Suetónio Tranquilo,


Vidas dos Césares

L ivro VIII. O s Flávios . Vidas de Vespasiano,


Tito e Domiciano

Introdução

O começo do livro VIII parece funcionar como uma intro-


dução às três Vidas dos Flávios, de modo algo semelhante ao
que aconteceu no início do livro VII (Gal. 1). Com efeito, nas
palavras introdutórias, Suetónio faz como que uma súmula
das ideias que vai desenvolver: à errância política causada
pelos sucessivos golpes de estado de três príncipes (i.e. Galba,
Otão e Vitélio), sucede-se finalmente a firmitas conferida pela
família flávia. Salienta-se a humildade da origem desta família
em contraste com os benefícios que trouxe ao Estado; mas
também o justo castigo do último dos Flávios, Domiciano,
pela sua cupiditas e saeuitia1. Deste modo, neste conjunto de
Vidas o fim da dinastia está anunciado desde o início.
No começo da Vida de Galba, o tom era de incerteza pelo
fim da dinastia júlio-cláudia; agora é de esperança. No início
da Vida de Vespasiano, a oposição entre diu e tandem traduz
o efeito psicológico de dezoito meses de guerra civil, entre a

1
Ves. 1.1: Rebellione trium principum et caede incertum diu et quasi
uagum imperium suscepit firmauitque tandem gens Flauia, obscura
quidem ac sine ullis maiorum imaginibus, sed tamen rei p. nequaquam
paenitenda, constet licet Domitianum cupiditatis ac saeuitiae merito
poenas luisse. Vide Girard 1987: 169-173.
11
Vidas dos Césares

morte de Nero (em junho de 68) e a de Vitélio (dezembro


de 69). No livro VII, de três indivíduos distintos se fala; no
começo do livro VIII, surge o colectivo gens Flauia. A nova
dinastia permite, de algum modo, restaurar a progenies Cae-
sarum que morrera com Nero2. Às pretensões de nobreza dos
três imperadores anteriores3 o biógrafo opõe o contributo
efetivo – suscepit firmauitque tandem – desta nova família que,
em vez de ostentar uma linhagem ilustre, mostra a genuína
mediocritas pristina (Ves. 12).
Quanto à organização, em paralelo com o Livro VII, pode-
mos ver também neste uma evolução positiva, que culmina no
segundo elemento da dinastia, Tito, descrito logo na abertura
como “amor e delícias do género humano”. Trata-se do clímax
da evolução moral, a que se segue a anunciada degradação,
representada por Domiciano, descrito com os lugares-comuns
dos tiranos. Assim, o crescendo de otimismo, que se verifica
em Vespasiano e Tito, vem, na segunda parte do principado
de Domiciano, a degenerar em desapontamento, antecipando
novo recomeço.
Suetónio usa os recursos habituais para acentuar o bom
nos bons e o mau nos maus. Em Vespasiano e Tito são esca-
moteados alguns elementos que poderiam enegrecer a imagem
positiva destes imperadores, e, pelo contrário em Domiciano
a tónica é colocada nos aspetos negativos e sublinhada por
uma organização das rubricas que visa deixar no final uma

2
Cf. Gal. 1. Vide Cesa 2000: 34.
3
Cf. Gal. 2: imperator uero in atrio stemma proposuerit, quo
paternam originem ad Iouem, maternam ad Pasiphaam Minonis uxorem
referret; Otho 1.1: Maiores Othonis orti sunt oppido Ferentio, familia
uetere et honorata atque ex principibus Etruriae; Vit. 1.1: Extat Q. Elogi
ad Quintum Vitellium Diui Augusti quaestorem libellus, quo continetur,
Vitellios Fauno Aboriginum rege et Vitelia, quae multis locis pro numine
coleretur, ortos toto Latio imperasse.

12
Vidas dos Césares

imagem de um tirano cuja crueldade, ganância, arrogância e


misantropia vão aumentando com o tempo.
O registo positivo criado nas Vidas de Vespasiano e Tito,
ilustrado com os exemplos da bonomia do primeiro e do afeto
do segundo, contrasta flagrantemente com o ambiente de ter-
ror e arrogância tirânica transmitido na Vida de Domiciano.
A impressão criada pelo biógrafo visa a transmissão de uma
mensagem moral, como é próprio da biografia: exageram-se
determinados traços do carácter, escondem-se outros, para
estabelecer uma imagem coerente e “exemplar” de cada perso-
nagem, de acordo com o ethos “(re)criado”.
Mas o livro VIII das Vidas dos Césares, tal como começa
com uma nota de otimismo, também acaba com uma nota
de esperança, que aponta para a dinastia seguinte, sob a qual
Suetónio escreve. E a mensagem final, por oposição aos vícios
de Domiciano, será a apologia da abstinentia e da moderatio
dos príncipes que lhe sucederão.
Abordaremos, pois, nesta introdução, o desenvolvimento
que Suetónio dá aos tópicos destas biografias: ascensão de
uma nova família, acompanhada de um esforço de restauro
físico e moral da cidade, o escrutínio do ethos de cada um
dos biografados, através da análise sistemática das rubricas
relativas a virtudes e vícios, os retratos, o papel do destino e as
mortes exemplares.

1. A ascensão de uma família

1. Uma nova linhagem

No caso de Vespasiano salienta-se, como se disse, o


caráter despretensioso da linhagem: uma família obscura,
13
Vidas dos Césares

que não ostentava as imagines no átrio (Ves. 1.1); a modéstia


da linhagem e do nome, que não fazia antever ou temer
grandes aspirações (Ves. 4.5). Trata-se, pois, da elevação ao
Palatino de uma nobreza, não já romana, mas itálica. O avô
de Vespasiano, Tito Flávio Petrão seria munícipe de Reate, na
região sabina, e a mãe Vespásia Pola era de Núrcia (Ves. 1.3).
A alegação, lançada certamente pelos detratores dos Flávios, e
que Suetónio descarta, de que o avô de Vespasiano era oriundo
da região transpadana (Ves. 1.4), implicaria que, em rigor, não
seria itálico, pelo que não seria cidadão romano (teria, quando
muito, a cidadania latina), ou teria recebido a cidadania
romana muito recentemente4.
Mas a afirmação de que Vespasiano nasceu na região sabina
sugere, pelo contrário, o culto de antigos costumes que a aris-
tocracia da Urbe ia perdendo5. O orgulho das suas origens
locais e familiares é manifesto no facto de, quando imperador,
visitar frequentemente e preservar o lugar onde cresceu e de
beber nos dias festivos pelo copo de prata da avó Tértula (Ves.
2.1). Além da pietas, virtude implícita em tal comportamento,
o orgulho na sua origem modesta é apresentado mais à frente
como exemplo de ciuilitas (Ves. 12), virtude aqui emparelhada
com a clementia, categorias identificadoras da romanidade
e que se opõem à arrogância e crueldade características do
comportamento tirânico6:

“Pautava-se, nas restantes questões, logo desde o início do


principado até à morte pela civilidade e brandura, sem nunca
dissimular a origem modesta, de que frequentemente até se

4
Vide Braithwaite 1927: 22; Cesa 2000: 42. O Cognome Petro
talvez fosse de origem gaulesa ou etrusca: vide Cesa 2000: 36.
5
Ves. 2.1. Vide Cesa: 2000, 43; Levick 1999: 7.
6
Vide Roller 2001: 20-29, 241-243.
14
Vidas dos Césares

mostrava ufano. Senão vejamos; quando uns fulanos procu-


ravam reportar a origem da família Flávia aos fundadores
de Reate e a um companheiro de Hércules, cujo sepulcro
ainda se conserva na Via Salária, riu-se deles a bandeiras
despregadas”.

Assim Vespasiano se distancia também dos pergaminhos


genealógicos de que as famílias anteriores se orgulhavam, para
se apresentar como o oposto dos Júlios, que se diziam des-
cendentes dos reis e de Vénus ( Jul. 6.1), de Galba, que exibia
no átrio da casa a árvore genealógica a entroncar em Pasífae
(Gal. 2), ou mesmo de Vitélio (Vit. 1.2), que alguns pretendiam
descendente de Vitélia, uma divindade itálica.
Vespasiano representa, por outro lado, a ascensão de uma
espécie de burguesia de origem equestre, dedicada à cobrança
de impostos e agiotagem. O pai dedicava-se à cobrança de
impostos na Ásia (Ves. 1.2), mas salienta o biógrafo, alegando
provas materiais (estátuas com inscrições), que ele granjeara
fama de cobrador justo na Ásia, o que era notável dada prover-
bial cupidez dos publicanos7. Depois foi onzeneiro na Helvécia
(Ves. 1.3).
Na mesma linha, a carreira de Vespasiano parece denotar
falta de ambição, desdenhando durante muito tempo o lati-
clavo, isto é uma carreira senatorial (Ves. 2.2). Talvez se trate
de exagero, ou então de uma preferência pela carreira equestre.
Jones & Milns (2002: 44) sugerem que Vespasiano se atrasa
em requerer o status senatorial por interesses materiais. Com
efeito, há notícia de cavaleiros que preferem esta carreira à de

7
cf. Tac, Ann. 13.50. Vide Braithwaite 1927: 19.
15
Vidas dos Césares

senador por ser mais lucrativa, dadas as restrições impostas à


ordem senatorial no que respeita a atividades comerciais8.
Apesar da tónica que o biógrafo coloca, talvez excessiva-
mente, na falta de ambição, a conexão com a casa imperial,
através do relacionamento com Cénis, liberta de Antónia
Menor (Ves. 3), deve ter impulsionado a carreira de Vespa-
siano, a que se soma uma rede clientelar estrategicamente bem
colocada9. De facto, o curso das honras prossegue: é tribuno
militar na Trácia; questor em Creta e Cirene. Candidato a
edil, obtém o cargo, não à primeira vez, e, quando é eleito,
não consegue melhor que o sexto lugar, isto é, o último; mas,
candidato a pretor, obtém a honra à primeira e entre os primei-
ros (Ves. 2.3), o que pressupõe um bom desempenho do cargo
anterior, contrariamente ao que a punição de Calígula parece
sugerir (Ves. 5.3)10. Soma-se a influência do liberto Narciso:
foi graças a ele que, no principado de Cláudio, Vespasiano foi
enviado, como comandante de uma legião para a Germânia,
de onde depois transitou para a Britânia (Ves. 4.1). Ali, pelo
seu desempenho militar, recebeu triumphalia ornamenta, dois
sacerdócios e o consulado, que exerceu nos últimos dois meses
do ano (Ves. 4.2)11. Mas a influência de Narciso acaba por ser

8
Cf. Plin. Ep. 1.14; Tac. Ann. 16.17, Hist. 2.86. Vide Braithwaite
1927: 50-53; Mrozewicz 2010: 13-16.
9
Por exemplo, Vespasiano fora cliente do pai de Vitélio (cf. Tac.
Hist. 3.66), quando este foi cônsul juntamente com Cláudio (cf. Vit.
2.4). Vide Levick 1999: 11, 14-22; Rodrigues 2020: 112-113.
10
Rossi (1971, 167-168) prefere ver neste êxito uma reacção do
senado à abusiva intervenção de Calígula, quando Vespasiano era edil
(cf. Ves. 5.3).
11
Em 51. Vespasiano teria 42 anos. Vide Cesa 2000: 52; Levick
1999: 19.
16
Vidas dos Césares

prejudicial a Vespasiano, porque provoca o ódio de Agripina,


e Vespasiano acha prudente afastar-se da corte12.
Por outro lado, Suetónio salienta a honestidade de Ves-
pasiano no seu proconsulado de África 13 e o facto de não
enriquecer com o cargo, ao ponto de ter de hipotecar ao
irmão todos os bens e dedicar-se ao tráfico (ad mangonicos
quaestus) de animais para poder manter a quantia que exigia
o censo senatorial, o que lhe valeu a alcunha de mulio. Por
outro lado, a pecha de que fez pagar cara a sua influência, para
obter o laticlavo para um jovem, parece antecipar, do ponto
de vista biográfico, a futura auaritia, o maior vício apontado
a Vespasiano.
Destaca-se, nesta fase, um certo distanciamento no que
respeita a Nero. Tendo em conta o descontentamento que as
atividades circenses e dramáticas do imperador geravam numa
certa aristocracia mais tradicional, parece abonar a favor de
Vespasiano o facto de, durante a viagem pela Acaia (em 66),
perder as graças do imperador, por se ausentar dos espetáculos
ou adormecer enquanto Nero se exibia (Ves. 4.4)14; a comi-
cidade do episódio está de acordo com o carácter divertido
do biografado. Mas tal afastamento deve ter sido exagerado
por Suetónio ou, já antes, pela propaganda dos Flávios, na
tentativa de o desvincular da adulação aos Júlio-Cláudios,

12
Vide Rossi 1971: 171 n. 1; Jones 1984: 581-583; Levick 1999:
20-21; Jones & Milns 2002: 49.
13
Ves. 4.3: Exim sortitus Africam integerrime nec sine magna dig-
natione administrauit, nisi quod Hadrumeti seditione quadam rapa in
eum iacta sunt.
14
Cf. D.C. 63.10.1a e 66.11.2. Já Tácito (Ann. 16.5.3) situa o episó-
dio em Itália e em 65.
17
Vidas dos Césares

pois, logo em 67, Nero nomeia-o para sufocar a revolta que


eclodira na Judeia 15.
Suetónio salienta as razões de Nero pelas quais a escolha do
comandante do exército da Judeia recaiu sobre Vespasiano: por
ser um general de comprovada capacidade (industria experta)
e por ter origem humilde (humilitas generis ac nominis), pelo
que não fazia o imperador temer aventuras. Contrariamente
às expectativas, a origem humilde revela-se determinante para
a ascensão e parece estar de acordo com a aura messiânica
presente nos presságios, como veremos. Apesar de todos os
sinais premonitórios, e da insistência dos partidários, a ação
de Vespasiano é, segundo Suetónio, pautada pela moderação
e prudência 16, ao passo que Tácito (Hist. 2.76.1) o apresenta
mesmo atemorizado17.
Por outro lado, com a revolução em curso, é sublinhada
uma certa ligação a Otão18: Vespasiano parece surgir como
uma espécie de continuador do único dos três efémeros impe-
radores anteriores por quem o biógrafo manifesta simpatia,
uma vez que o pai de Suetónio tinha militado nas fileiras
daquele. As legiões da Mésia que iam em socorro de Otão, ao
saberem da morte deste, escrevem, depois de longa avaliação
dos vários legados, o nome de Vespasiano nos estandartes.
Ora a aclamação de Vespasiano (a 1 de julho de 6919) é descrita
como uma sequência deste acontecimento (diuulgato facto),

15
Vide Jones & Milns 2002: 50-51; Rodrigues 2007: 759-762;
Rodrigues 2020: 114-115.
16
Ves. 6.1: Nec tamen quicquam ante temptauit, promptissimis atque
etiam instantibus suis, quam sollicitatus quorundam et ignotorum et
absentium fortuito fauore.
17
…his pauoribus nutantem et alii legati amicique firmabant.
18
Vide Brandão 2009: 142-143.
19
A confirmação pelo senado só acontece a 21 de dezembro do
mesmo ano, depois da morte de Vitélio.
18
Vidas dos Césares

pela iniciativa do prefeito do Egipto, Tibério Alexandre, a


que se junta, mais tarde, o exército da Judeia (Ves. 6.2-3)20.
Por seu turno, Vespasiano apresenta-se como um vingador de
Otão, numa suposta carta do defunto imperador, não referida
por outras fontes (o próprio biógrafo apresenta a carta como
“verdadeira ou falsa”)21, em que este recomendava a Vespasiano
a vingança da sua pessoa e o auxílio à res publica (Ves. 6.4).
Com a revolta em marcha, Suetónio diz que Vespasiano
vai a Alexandria para “tomar posse da chave do Egipto” (Ves.
7.1)22. Embora o biógrafo se centre sobretudo na ratifica-
ção religiosa do poder (no templo de Serápis), percebe-se a
importância estratégica do controlo do Egipto para garantir
o abastecimento de cereais a Roma 23. A auctoritas e a maiestas
que falta ao novo governante consegue-a segundo Suetónio
por atividade taumatúrgica, que lhe dá uma aura messiânica,
e pelo conhecimento do destino, que marcará os momentos
fundamentais da dinastia, como veremos.

Apesar de se tratar da ascensão de uma dinastia, já vimos


que Suetónio trata cada vida individualmente desde o nasci-
mento, personalizando o processo de ascensão e selecionando
o que diz respeito a cada um. Também no que se refere a Tito,
ao descrever sumariamente o lugar do nascimento, o biógrafo
volta a insistir na origem humilde, comprovada por um por-
menor de gosto antiquário24. E quanto a conexões anteriores, a

20
Ves. 6.2-3. Cf. Tac. Hist. 2.79; J. BJ 4.601. Vide Cesa 2000: 64;
Levick 1999: 59.
21
Sobre a veracidade desta carta, vide Cesa 2000: 65; Gascou 1984:
384.
22
Cf. Tac. Hist. 3.8; Ann. 2.59.
23
Vide Rodrigues 2020: 115.
24
Tit.1: prope Septizonium sordidis aedibus, cubiculo uero perparuo
et obscuro, nam manet adhuc et ostenditur.
19
Vidas dos Césares

educação no palácio (in aula), na companhia de Britânico, e a


grata recordação, que permanecerá em Tito, do filho de Cláu-
dio, sugere também uma associação à linha oposta a Nero,
truncada por ação criminosa (não comprovada, mas afirmada
pelo biógrafo) do último dos Júlio-Cláudios.
Suetónio apresenta Tito como um perito nas artes da
guerra e da paz (Tit. 3.2) e, como habitualmente, resume a
reputação (summae industriae fama nec minor modestiae fama)
que Tito granjeou, como tribuno militar na Germânia e na
Britânia, comprovando-a com dados arqueológicos e epigrá-
ficos (Tit. 4.1)25, a que se somam as artes do foro (Tit. 4.2).
Sucedem-se feitos realizados ao comando de uma legião,
na tomada das ualidissimae urbes de Tariqueias e Gamala,
na Judeia, onde o biógrafo ilustra, com algum exagero26, a
uirtus bellica de um comandante que não hesita em se expor
ao perigo (Tit. 4.3.) e que, quando ele recebe a missão de
subjugar completamente a Judeia, culmina no ato de abater
doze defensores de Jerusalém com igual número de flechas
(Tit. 5.2)27. Na verdade, esta vitória (a cidade só foi tomada
em setembro de 70, depois de um cerco de 5 meses) conferiu
a Tito uma aura militar e política que justificam a ascensão
da família ao governo do império e que culmina no triunfo
conjunto com o pai (Tit. 6.1)28.
Como collega do pai, partilha a censura, a tribunicia potes-
tas e sete consulados (Tit. 6.1). De qualquer modo, mantém-se

25
Estátuas, imagines e respectivos tituli. Vide Gascou 1984: 519-
-520. Syme 1981: 111-112.
26
Vide Jones 1989: 126-134; Gascou 1984: 419, n. 148.
27
Cf. J. BJ 5.288.
28
Ilustrado também de forma monumental no arco de Tito, cons-
truído já por Domiciano. Vide Rodrigues 2020: 128.
20
Vidas dos Césares

na sombra daquele29, num certo paralelo constitucional com a


posição de Agripa e Tibério enquanto sucessores de Augusto30.
Suetónio aponta um excesso de zelo no exercício do cargo
de prefeito do pretório que parece ser a causa da conduta
demasiado despótica (inciuilius et uiolentius). Suetónio nota
igualmente que tal procedimento lhe garantia a securitas
futura, mas, naquele momento, gerava a ódio, de tal modo
que ninguém chegou ao poder com fama tão má e tão contra
a vontade de todos31.

Quanto a Domiciano, referidas as habituais indicações


sobre o nascimento (a data e o lugar que depois se transformou
no templo dos Flávios), a informação assume um tom negativo
e hostil, de acordo com a sentença geral sobre a vida. Além das
carências da família (provavelmente devido à perda do apoio
de L. Vitélio e Narciso e à inimizade de Agripina)32, salienta-
-se que passou a prima adulescentia na inopia e na infâmia: a
inopia é ilustrada com o facto de não possuir nem um vaso de
prata, e a infamia, com o rumor da promessa de uma noite a
Clódio Polião e da prostituição a Nerva, seu imediato sucessor
(Dom. 1.1). Assim, enquanto a origem modesta é usada em
favor de Vespasiano e Tito, no caso de Domiciano é usada em
sentido negativo.
Durante a guerra entre os partidários de Vitélio e dos
Flávios, refugia-se com o tio (Flávio Sabino) no Capitólio e,
perante o ataque dos partidários de Vitélio e do incêndio, foge

29
Vide Martin 1991: 232.
30
Vide Levick 1999: 185-186.
31
Tit. 6.2: (…) ut non temere quis tam aduerso rumore magisque
inuitis omnibus transierit ad principatum. Vide Della Corte 1967: 80;
Rodrigues 2020: 129.
32
Cf. Ves. 4.2. Vide Jones 1996: 12-13.
21
Vidas dos Césares

disfarçado de sacerdote de Ísis e esconde-se em casa da mãe


de um condiscípulo, de tal forma, que não foi descoberto e
sobreviveu. Suetónio compraz-se em descrever os perigos a que
os imperadores escaparam e as eventualidades que poderiam
mudar o curso da história 33. Além disso, as expressões usadas
(clam pernoctauit… Isiaci celatus habitu… ita latuit) parecem
sugerir a tendência para a dissimulação, que definirá o ethos
deste imperador.
O biógrafo reflete a posição desfavorável do seu tempo
contra o terceiro dos Flávios e parece procurar na juventude de
Domiciano traços do carácter do futuro imperador com a afir-
mação de que, depois da vitória da fação, “usou de forma tão
arbitrária a força do despotismo (dominatio), que demonstrou
desde logo o que viria a ser mais tarde” (Dom 1.3)34. As tendên-
cias tirânicas manifestam-se, também, no domínio sexual35 e
na forma arbitrária como distribui os cargos políticos, contra
o parecer do pai imperador.
Outro traço desenvolvido é o do sentimento de infe-
rioridade e inveja em relação a Tito36. O biógrafo sugere,
certamente com algum exagero, que foi repreendido e
colocado no lugar que competia à sua idade e condição. Por
exemplo, no triunfo judaico, acompanha o pai e o irmão, mas
à parte, montado num cavalo branco. Mas tal não parece
desonroso (Dom. 2.1), ao contrário do que o biógrafo sugere37,
e mostra a participação dos três elementos da família na

33
Vide Gascou 1984: 419, n. 148.
34
… ceterum omnem uim dominationis tam licenter exercuit, ut iam
tum qualis futurus esset ostenderet. Vide Gascou 1984: 694-695.
35
Vide Martin 1991: 152.
36
Vide Martin 1991: 233.
37
É semelhante à posição de de Tibério no triunfo de Augusto pela
vitória de Áccio. Tib. 6.4. Cf. D.C. 66.12.1; J. BJ 7.152. Vide Jones 1996:
21-22; Jones & Milns 2002: 124.
22
Vidas dos Césares

condução da política e na partilha das honras de acordo com


a idade e função.

1.2. Uma nova ordem. Restauro da cidade e da


sociedade

Ao chegar à cidade, depois da conquista do poder, Vespa-


siano é precedido da boa fama, ao contrário do que acontecera
com Galba 38. A imagem do bom governante é estabelecida
desde o início, com a alusão à preocupação com a restauração
e embelezamento do Estado (rem p. stabilire primo, deinde et
ornare)39 que se apresentava “abatido e vacilante” (Vesp. 8.1).
Por tal atitude Vespasiano aproxima-se de Augusto, em quem
se assinalara a preocupação em restaurar a beleza e a segurança
da Urbe40.
Uma tarefa urgente, que o acerca de Augusto (Aug. 24-25),
é a de controlar os malefícios da guerra civil: a licentia e a
audacia dos soldados (que obtém com desmobilização e
reforço da disciplina: Ves. 8.2.), e os conflitos nas províncias
e nos reinos. A propósito da correção da disciplina, destaca-se
a resposta dada a um jovem perfumado – ‘maluissem alium
oboluisses’ («‘preferiria que cheirasses a alho’») – reveladora quer
da austeridade e retorno a antigos costumes, quer do humor
que caracteriza Vespasiano.

38
Vesp. 8.1: Talis tantaque cum fama in urbem reuersus. Cf. Gal.
12.1: Praecesserat de eo fama saeuitiae simul atque auaritiae.
39
Vide Baldwin 1983: 287.
40
Aug. 28.3: Vrbem neque pro maiestate imperii ornatam et inun-
dationibus incendiisque obnoxiam excoluit adeo, ut iure sit gloriatus
‘marmoream se relinquere, quam latericiam accepisset’. Tutam uero,
quantum prouideri humana ratione potuit, etiam in posterum praestitit.
Vide Levick 1999: 73.
23
Vidas dos Césares

Depois do stabilire, vem a preocupação com o ornare, pelo


restauro da Urbe na reconstrução do Capitólio destruído na
guerra civil (Ves. 8.5), bem como na construção de edifícios
novos, a culminar no Anfiteatro Flávio, com o argumento de
que era um antigo projeto de Augusto (Ves. 9.1), e de especial
significado porque, como assinala Marcial, se tratava da devo-
lução aos cidadãos do que antes só servia para o usufruto de
Nero, o espaço ocupado pelo Domus Aurea 41. Para fazer face
às despesas com o restabelecimento do Estado, Vespasiano
viu-se obrigado a suprimir isenções, aumentar impostos e a
criar outros42, elementos que o biógrafo trata na rubrica da
avareza (pecuniae cupiditas) (Ves. 16.1).
Acrescentam-se as preocupações sociais e morais. Ves-
pasiano revela-se um restaurador das ordens senatorial e
equestre (Ves. 9.2), da justiça, cujos processos andavam muito
atrasados (Ves. 10), e da moral social, pois a libido e a luxuria
tinham crescido sem peias (Ves. 11)43. Quanto às ordens, Sue-
tónio salienta a purga e renovação operada por Vespasiano
na ordem senatorial e equestre, removendo os mais indignos
(indignissimi) e promovendo os mais distintos da Itália e das
províncias44. As razões apontadas para esta renovação são cir-
cunstanciais e morais: os assassinatos e a corrupção resultante
de longa incúria45. Na linha de Augusto, Vespasiano pretendia

41
Mart. Spec. 2. Vide Rodrigues 2020: 127.
42
Vide Rodrigues 2020: 125-126.
43
Cf. Tac. Ann. 3.53-54.
44
Mrozewicz 2010: 13-27.
45
Ves. 9.2 Amplissimos ordines et exhaustos caede uaria et contami-
natos ueteri neglegentia purgauit suppleuitque recenso senatu et equite,
summotis indignissimis et honestissimo quoque Italicorum ac prouincialium
allecto.
24
Vidas dos Césares

conferir ao senado uma posição de prestígio, ao mesmo tempo


que o tornava um órgão de apoio à sua política46.
Quanto à distinção entre as ordens, Vespasiano deixa claro
que se faz mais com base na dignitas que na libertas, determi-
nando que se um membro da ordem equestre não deve ofender
um senador, tem, no entanto, todo o direito de responder a
uma ofensa (Ves. 9.2). Tal está de acordo com o acréscimo de
prestígio que a ordem equestre vinha ganhando 47.
Tácito (Ann. 3.55) ajuda a explicar as causas desta trans-
formação cultural: em primeiro lugar, a eliminação da antiga
aristocracia, cujos membros estavam dominados pela paixão da
sumptuosidade e, em contrapartida, a elevação de uma nobreza
municipal e colonial mais austera. Mas o principal promotor
de um modo de vida mais restrito foi o próprio Vespasiano,
uma vez que seguia um antigo modo de vida48. E Tácito deixa
claro que a emulação do imperador foi mais eficaz do que a
legislação proibitiva49, o que torna patente a influência da corte
imperial na fixação das modas e atitudes50.
Por aqui se percebe o papel da ascensão de uma nova
aristocracia, que, não tendo sido “corrompida” pelos vícios da
anterior elite do Palatino, apresenta condições para o retorno

46
O que nem sempre terá conseguido, dada a oposição de alguns
senadores, como o célebre caso de Helvídio Prisco, que pertencia a um
grupo com um historial de oposição estóica. Basta lembrar que era
genro de Trásea Peto: vide Rodrigues 2020: 120-121.
47
Vide Braithwaite 1927: 53; Mrozewicz 2010: 13-16.
48
Sed praecipuus adstricti moris auctor Vespasianus fuit, antiquo ipse
cultu victuque. Wallace-Hadrill 1984: 187-188.
49
Obsequium inde in principem et aemulandi amor validior quam
poena ex legibus et metus.
50
Será o caso dos famosos penteados nos retratos femininos, como
patenteia o Busto Fonseca, que, ao contrário do que se pensou, talvez
seja uma forma de contenção através da substituição das joias pelo
aparato do arranjo: vide Rodrigues 2020: 124-125.
25
Vidas dos Césares

ao mos maiorum. Os traços da autenticidade romana parecem


estar já mais fora da Urbe que dentro dela51.
Apesar de transmitir uma imagem essencialmente negativa
de Domiciano, Suetónio relata na parte positiva desta Vida
a expulsão do senado de um antigo questor pela sua afeição
à pantomima e à dança52, paixões que eram partilhadas por
Calígula53. Além disso, o biógrafo aprova a punição severa por
parte de Domiciano de crimes sexuais: adultério, pederastia e
os incesta das vestais (Dom. 8.3-4). No entanto, a condenação
do adultério, que Suetónio subordina à correctio morum54, é
depois retomada por Díon Cássio numa perspetiva negativa55.
Entre as inovações do imperador, Suetónio menciona a proibi-
ção da castração e contenção do preço dos eunucos (Dom. 7.1.)
– medidas que em Díon Cássio assumem um carácter mais
negativo – ao mesmo tempo que omite a paixão do imperador
por Eárino, o eunuco celebrado por Marcial e Estácio56. Cons-
tatamos, por isso aqui perspetivas diferentes em relação a Díon
Cássio no que respeita ao restauro da moral tradicional. Para
Suetónio estes não são os aspetos negativos de Domiciano; os
seus principais vícios são cobiça e crueldade, a que se soma a
arrogância tirânica, como veremos à frente.

51
Vide Brandão 2022: 203-204; 214-216.
52
Dom. 8.3: Quod gesticulandi saltandique studio teneretur. Cecílio
Rufino, de acordo com Díon Cássio (67.13.1).
53
Afeções consideradas desapropriadas de acordo com a moral
romana. Cf. Pl. Pan, 46.4, e 56.1. Vide Jones 1996: 74-75. Ver nota ao passo.
54
Trata-se da restauração da lex Iulia de adulteriis, cf. Mart. 6.2;
6.7; 6.22; 6.91.
55
Pois, segundo Díon Cássio (67.12.1), o próprio imperador tivera
relação ilícitas com mulheres que condenara. Vide Grelle 1980: 345-
-346; Jones 1996: 75; Jones & Milns 2002: 141. Ver nota ao passo.
56
Cf. D.C. 67.2.3; Mart. 9.11; 9.12; 9.13; 9.16; 9.17; 9.36; Stat. Silv.
3.4. Vide Grelle 1980: 340-345; Jones 1996: 64.
26
Vidas dos Césares

2. A evolução do ethos – da civilitas à tirania

Como é sabido, Suetónio, enquanto escritor de biografia,


preocupa-se mais com a descrição do ethos do que com os por-
menores políticos e militares, que tende a apresentar de forma
muito sumária. Neste aspeto, Suetónio ainda é mais radical
que Plutarco, por exemplo, uma vez que tende a apresentar
os elementos factuais dispersos, como ilustração das diversas
rubricas relativas ao carácter ou à descrição pessoal.

2.1. Vespasiano, o imperador bem-humorado

Depois de descrever a atividade de Vespasiano, o biógrafo


entra na descrição do ethos. Começa com o elogio da ciuilitas e
da clementia, qualidades que, segundo o autor, se mantiveram
do início ao fim do seu governo (Ves. 12)57, o que estabelece
implicitamente o contraste com os imperadores dissimulados
(em que há uma gradação no sentido da revelação de uma
essência tirânica, como Tibério, Calígula, Nero e Domiciano,
nos quais as virtudes iniciais degeneraram em vícios58) e, pelo
contrário, o aproximam de Augusto, em quem as virtudes da
ciuilitas e da clementia se fortaleceram59.

57
Ceteris in rebus statim ab initio principatus usque ad exitum ciuilis
et clemens…
58
Cf. Tib. 26.1: Verum liberatus metu ciuilem admodum inter initia
ac paulo minus quam priuatum egit; Cal. 15.4; Nero 10.1: (…) neque
liberalitatis neque clementiae, ne comitatis quidem exhibendae ullam occa-
sionem omisit; Dom. 9.1: Inter initia usque adeo ab omni caede abhorrebat
(cf. 10.1).
59
Ves. 12: Ceteris in rebus statim ab initio principatus usque ad exi-
tum ciuilis et clemens. Cf. Aug. 51.1: Clementiae cuilitatisque eius multa
et magna documenta sunt.
27
Vidas dos Césares

A ciuilitas manifesta-se em não só não dissimular a origem


humilde (a mediocritas pristina) mas até em ostentá‑la, como
vimos, atitude que o distancia dos Júlios ( Jul. 6.1) e de Galba
(Gal. 2), que reclamam origens divinas, mas também de Otão
e de Vitélio, que se ufanam de origens antigas e nobres (Otho
1.1; Vit. 1.1). Soma-se a resistência a aceitar certas honras e
a rejeição de outras: menosprezo do triunfo; adiamento da
aceitação da tribunicia potestas e do título de Pai da Pátria e a
abolição do costume de revistar os que o vinham saudar pela
manhã60.
Quanto à clementia, é demonstrada pela forma como
suportava a libertas dos amigos, as figurae dos advogados e a
contumacia dos filósofos, com exemplos que tornam patente a
lenitas do imperador (Ves. 13). Depois, o biógrafo demonstra
que Vespasiano não guarda rancor 61, recorrendo a exemplos
de benefícios a inimigos. O clímax da descrição da clementia
é atingido com a afirmação de que “não seria fácil encontrar
algum inocente que fosse castigado, a não ser na sua ausência e
sem ele saber ou certamente contra a sua vontade e por dolo”62.
Com efeito, no contexto das guerras civis foram levadas a
cabo execuções por outros, nomeadamente por Muciano.
Além disso, o biógrafo também pode estar a pensar nas ações
de Tito, a quem é imputado um comportamento demasiado
rigoroso no cargo de prefeito do pretório (Tit. 6-7)63.
Paradoxalmente, para ilustrar a extrema clemência, Sue-
tónio aduz a eliminação de Helvídio Prisco, o célebre estoico

60
Medida já adoptada por Cláudio, enquanto iactator ciuilitatis
(Cl. 35.1).
61
Offensarum inimicitiarumque minime memor executorue.
62
Non temere quis punitus insons reperiretur nisi absente eo et ignaro
aut certe inuito atque decepto (Ves. 15).
63
Vide Braithwaite 1927: 57-58; Gascou 1984: 328-332.
28
Vidas dos Césares

e genro de Trásea Peto: a estratégia do biógrafo consiste em


salientar a culpa do condenado (num crescendo de superbia
que culmina em altercationes insolentissimae)64, ao mesmo
tempo que diminui a do imperador, alegando que agiu
contra a vontade e enganado (certe inuitus atque deceptus), e
desviando, assim, para outrem o ónus desta morte 65. Como
assinala Della Corte (1967: 97-98), há uma diferença de
tratamento, por parte do biógrafo, para com membros da
mesma família, réus da mesma culpa: Helvídio Prisco pai
é considerado arrogante e Helvídio Prisco filho, vítima de
Domiciano é considerado inocente (Dom. 10.4). A imagem
da vítima é moldada em prol do que a construção do ethos do
imperador determina. Tácito, pelo contrário, faz o elogio de
Helvídio Prisco, pelo que se depreende que não aprovaria a sua
condenação66. Ao concluir este tema, Suetónio interpreta os
sentimentos do imperador, recorrendo a provável generaliza-
ção, recurso usual do biógrafo67: “de resto, nunca se mostrava
alegre com a morte de quem quer que fosse e até nas execuções
justas derramava lágrimas e suspirava”68. A comparação com
Díon Cássio (66.12) parece sugerir que, no que se refere às
lágrimas de Vespasiano, se trata de generalização a partir do
caso de Helvídio Prisco69.
Uma estratégia de desculpabilização semelhante é usada
no que respeita à ganância, desde logo apresentada como vício

64
Cf. Paratore 1980: 17-18.
65
O responsável talvez fosse Muciano, o promotor da perseguição
aos filósofos, segundo Díon Cássio (66.13).
66
Tac. Hist. 4.5-6. Vide Braithwaite 1927: 57-58; Gascou 1984:
328-332; Cesa 2000: 85-86.
67
Sobre a generalização ao serviço da ilustração do carácter nas
Vidas dos Césares, vide Brandão 2009: 84-85.
68
… ceterum neque caede cuiusquam umquam ‹……› iustis suppliciis
inlacrimauit etiam et ingemuit.
69
Como sugere Gascou 1984: 332.
29
Vidas dos Césares

isolado embora comprovado (Ves. 16.1)70. Mas, depois de referir


alguns exemplos (reativação e aumento de impostos, venda de
cargos públicos e venalidade de atos jurídicos) (Ves. 16.2), as
afirmações passam a ser apresentadas como rumores, o que
as fragiliza – que recorria aos procuradores (creditur) mais
rapaces, como esponjas que depois espremia; que era natura
cupidissimus (tradunt) (Ves. 16.3). E, no que toca a este último
rumor – de que que se trata de um vício da natura, contrapõe
uma opinião (sunt contra qui opinentur) que o anula: “de que
ele foi compelido à espoliação e rapinagem por necessidade
(necessitate compulsus), dada a extrema penúria do erário e
do fisco”71. O biógrafo conclui, dando a sua aprovação a este
último argumento (Vesp. 16.3): quod et ueri similius uidetur,
quando et male partis optime usus est (“tal opinião parece ser a
mais próxima da verdade, uma vez que ele deu um excelente
uso ao que foi mal adquirido”) – juízo que parece contrário
ao de Tácito, para quem Vespasiano, se não fosse a auaritia,
poderia ombrear com os antigos comandantes72 . O único vício
de monta, já minimizado com estas explicações, é depois prati-
camente anulado com a afirmação da virtude contraposta – in
omne hominum genus liberalissimus. A generosidade com todas
a ordens aproxima-o, mais uma vez, do modelo de Augusto73.
Apesar da generosidade de Vespasiano, que abarca vários os
grupos sociais, cidades devastadas por cataclismos, proteção às
artes e os ofícios (Ves. 17-19), o biógrafo constata que a fama de
avareza, embora injusta, é arraigada (Ves. 19.1)74, pelo que os

70
Sola est, in qua merito culpetur, pecuniae cupiditas.
71
Vide Cesa 2000: 88; Levick 1999: 95.
72
Prorsus, si auaritia abesset, antiquis ducibus par (Hist. 2.5.1). Vide
Baldwin 1983: 290.
73
Ves. 17. Cf. Aug. 41.1. Vide Martin 1991: 300-301.
74
Et tamen nec sic quidem pristina cupiditatis infamia caruit.
30
Vidas dos Césares

Alexandrinos, por quem foi aclamado, sentindo-se defrauda-


dos75, o apelidavam de “cibiosactes”, isto é ‘mercador de peixe
salgado’ (Ves. 19.2).

2.2. Tito. A mor ac deliciae generis hvmani

Quanto a Tito, de mau enquanto corregente do pai, trans-


forma-se depois em príncipe modelar. À exceção da saeuitia,
de certo modo justificada pela necessidade, todos os outros
vícios são apresentados como suspeições (Tit. 7.1)76 e cada um
dos vícios é ilustrado com um exemplo. Tais suspeitas fazem
com que vejam nele “um outro Nero”. Mas, ao contrário do
que sucede no caso dos maus imperadores, o biógrafo refere os
aspetos negativos de Tito imediatamente antes da chegada ao
trono, para assim realçar a mudança na conduta77.
Portanto, tal como no caso de Vespasiano, a organização
adotada é em anticlímax, de forma a apresentar os vícios mais
graves em primeiro lugar e os menos prejudiciais no final78. Os
vícios presumidos são suavizados através da contraposição de
factos reais: à suspecta luxuria, materializada em comissationes
(momentos do banquete onde predominava o vinho) prolonga-
das na companhia de amigos dissolutos (Tit. 7.1)79 contrapõe o
biógrafo banquetes agradáveis mais que sumptuosos e amigos
tais que merecem a confiança dos imperadores seguintes por

75
Como nos diz Díon Cássio: 66.8.
76
suspecta in eo etiam luxuria erat… nec minus libido… suspecta
rapacitas….
77
Vide Brandão 2009: 116-117.
78
Vide Cizek 1977: 133-134; Gascou 1984: 696 n. 52.
79
… quod ad mediam noctem comissationes cum profusissimo quoque
familiarium extenderet.
31
Vidas dos Césares

serem úteis ao Estado (Tit. 7.2)80; contra a anterior libido, suge-


rida pelos grupos de catamitos e eunucos e pelo insignis amor
por Berenice (Tit. 7.1), apresenta-se uma atitude, mais racional,
que o leva a afastar de Roma aquela rainha contra a vontade
dos dois (inuitus inuitam), certamente pelas resistências polí-
ticas que gerava81, e a forma como deixa de favorecer os pueri
delicati e de assistir aos espetáculos deles em público (Tit. 7.2);
em contraste com a fama de ganância (suspecta rapacitas), pela
forma venal como supostamente agia nas decisões judiciais
(cognitiones) do pai (Tit. 7.1), constata-se, que “não despojou
ninguém de nada; respeitou o alheio como ninguém antes; e
nem sequer aceitou as contribuições toleradas e usuais” (as con-
lationes): comportamento que ilustra a virtude da abstinentia, o
respeito pelos bens dos súbditos82 . Pela positiva, contrapõe‑se
uma munificentia ímpar, que se manifesta nos espetáculos
oferecidos (munus edidit apparatissimum largissimumque) na
inauguração do Anfiteatro Flávio e das termas e na antiga
naumaquia (Tit. 7.3), uma forma visível e eficaz de propaganda
do poder da nova família83.
Os vícios elencados, que constituem topoi da descrição dos
tiranos, acabam deste modo restringidos a extravagâncias da
juventude e, por isso, perdoáveis, um pouco à semelhança do
que acontecera com Augusto84. Quanto à inciuilitas e a uio-

80
Vide Jones 1975: 454-462.
81
Sobre as implicações políticas deste amor entre Tito e a filha
de Herodes Agripa, vide Rodrigues 2007: 781-798; Rodrigues 2020:
131-133.
82
Vide Gascou 1984: 725-727.
83
Testemunhada no Livro dos Espetáculos do poeta Marcial. Vide
Rodrigues 2020: 129-131.
84
Augusto anulou a fama da impudicitia com o seu comporta-
mento posterior. Cf. Aug. 71.1: Ex quibus siue criminibus siue maledictis
infamiam impudicitiae facillime refutauit et praesentis et posterae uitae
castitate.
32
Vidas dos Césares

lentia, com que o biógrafo começara a exposição dos vícios de


Tito, são definitivamente anuladas pela análise da sua natura
assaz bondosa (natura autem beniuolentissimus), ilustrada com
ditos memoráveis, como é hábito do biógrafo (Tit. 8.1-2).
E, na preocupação implícita de refutar a ideia de que Tito
seja alius Nero (Tit. 7.1), Suetónio salienta uma atuação polí-
tica exemplar: ao contrário do incêndio e saque atribuídos
a Nero85, Tito, perante as catástrofes (erupção do Vesúvio,
incêndio em Roma e uma peste), “não só manifestou o desvelo
de um príncipe, mas também o incomparável amor de pai”86.
Por outro lado, castiga e desencoraja os delatores (Tit. 8.5), os
agentes dos tiranos; diz que aceita o pontificado máximo para
conservar as mãos puras e mantém a palavra; e jura que pre-
fere morrer a matar (Tit. 9.1). O clímax da clementia é poupar
aspirantes ao império, demovendo-os com a sentença de que
“o principado é um dom do fatum”87.
Certamente Tito não governou tempo suficiente sozinho
para se tornar mau. Mas, apesar da imagem geralmente muito
positiva, há, na passagem de Vespasiano para Tito, alguma
gradação nas características tirânicas que faz antecipar um
agravamento no terceiro dos Flávios.

2.3. Domiciano e a degeneração em tirania

Quanto a Domiciano, parece ter sido afetado pelos topoi


da retórica contra a tirania. Suetónio molda desde o início

85
Cf. Nero 38. Também as catástrofes naturais ( fortuita) serviram
para aumentar a impopularidade de Nero: Nero 39.1.
86
Tit. 8.3: In iis tot aduersis ac talibus non modo principis sollicitu-
dinem sed et parentis affectum unicum praestitit.
87
Ideias retomadas de Brandão 2009: 246-247. Vide Martin 1991:
342; Jones & Milns 2002: 116; Levick 1999: 198.
33
Vidas dos Césares

a imagem de um tirano misantropo e cruel. A ascensão ao


poder é, desde logo, manchada com uma suspeita de crime em
relação a Tito – “mandou-o abandonar, antes que ele exalasse o
último suspiro, como se já estivesse morto” (Dom. 2.3) – culpa
que Suetónio não tinha sugerido no relato da morte daquele88.
O carácter tendencialmente misantropo e cruel é imediata-
mente sugerido por meio de uma anedota: de que se costumava
fechar a caçar moscas e a trespassá-las com um estilete (Dom.
3.1)89
A associação entre a essência de Domiciano (natura) e as
vicissitudes dos tempos é apresentada como causa de uma evo-
lução do principado no sentido negativo. Suetónio estabelece,
pois, uma correspondência entre a evolução moral e a evolução
cronológica, em que uma característica psicológica (metus)
e circunstâncias externas ao sujeito (inopia) impulsionam a
manifestação dos vícios naturais do imperador: a rapacitas e
a saeuitia.90

“Ora no que respeita à administração do Império, mostrou‑se


longo tempo variável, com uma mistura igualmente equili-
brada de vícios e virtudes, até que fez mesmo descambar as
virtudes em vícios: quanto se pode conjeturar, na sequência
das suas inclinações naturais (natura), a carência tornou-o
rapace (rapax), o medo cruel (saeuus)”. (Dom. 3.2.)

Deixando embora incerta a extensão da parte positiva91,


ao assumir que esta acontecia inter initia (Dom 4.1 e 9.1) e

88
Cf. D.C. 66.26.2; Aur. Vict. Caes. 10.5. Vide Gascou 1984: 385-
-386; Martin 1991: 196; Jones 1996: 28; Jones & Milns: 2002: 126.
89
Cf. D.C. 66.9.4-5; Aur. Vict. Caes. 11.5-6. Jones 1996:29. Martin
1991: 120; Galli 1991: 62.
90
Vide Gascou 1984: 398; 431 e 684; Baldwin 1983: 298.
91
Vide Baldwin 1983: 298.
34
Vidas dos Césares

aliquamdiu (Dom. 9.1), Suetónio antecipa, desde logo, uma


mudança ineludível. Feita esta apreciação geral, o biógrafo
detém-se primeiro nos aspetos positivos, a começar pelo ever-
getismo – jogos, distribuições ao povo, banquetes públicos
(Dom. 4) e uma política de grandes construções (Dom. 5).
Acrescenta as campanhas militares (contra os Catos, contra
os Sármatas e contra os Dacos), resumidas, como é hábito do
biógrafo (Dom. 6.1), e um longo catálogo das medidas admi-
nistrativas e de carácter moral a que aludimos atrás (Dom.
7-9). Mas, ao acentuar uma progressão cronológica de bom
para mau, o biógrafo sugere que estas as medidas positivas
aconteceram numa fase inicial (Dom. 8.4.), quando em rigor
não se pode assumir isso92.
Tal ficção de uma progressão cronológica93 é continuada
com a afirmação (Dom. 10): “mas não perseverou nem na cle-
mência nem no respeito pelo alheio, e, no entanto, degenerou
muito mais rapidamente para a crueldade que para a cobiça”94.
Segue-se uma série de exemplos: execuções sob pretextos fúteis,
de diversas pessoas, incluindo senadores e antigos magistrados
(Dom. 10.1-4). Tornam-se manifestos os conflitos com a ordem
senatorial, como já acontecera com Calígula e Nero95.
As anedotas evidenciam uma progressiva hipersensibilidade
do imperador, que, distanciando-se da atuação do pai, não

92
Por exemplo, a punição da vestal Cornélia terá acontecido de
uma fase adiantada do principado de Domiciano. Vide Galli 1991: 78;
Grelle 1980: 347; Gascou 1984: 400; Jones 1996: 78; Jones & Milns
2002: 142-143.
93
Dom. 10.1. Vide Gascou 1984: 696. Segundo Baldwin (1983:
487), com esta transição Suetónio pretende associar Domiciano à
imagem de um novo Tibério (cf. Tib. 42.1).
94
Sed neque in clementiae neque in abstinentiae tenore permansit,
et tamen aliquanto celerius ad saeuitiam desciuit quam ad cupiditatem.
95
Vide Rodrigues 2020: 134-135.
35
Vidas dos Césares

tolera alusões hostis à sua pessoa96: é a antítese da comitas de


Vespasiano (cf. Ves. 22). O facto de entre as vítimas figurar
Métio Pompusiano, que Vespasiano poupara, permite estabe-
lecer o flagrante contraste entre a clementia deste e a saeuitia
de Domiciano (Dom. 10.3.)97. E se compararmos o tratamento
da morte de Helvídio Prisco, no principado de Vespasiano,
e da morte Helvídio filho, no de Domiciano, constatamos a
dualidade de critério no tocante a dois destacados membros da
oposição estoica98.
A referência à guerra civil movida por Lúcio António,
ocorrida em janeiro de 89 torna-se uma marca temporal na
gradação na saeuitia (Dom. 10.5): “de facto, tornou-se bastante
mais cruel depois da vitória na guerra civil”99. Mas, mais uma
vez, a cronologia é fictícia: a maioria das mortes que refere
antes (Cívica Cereal; Salvidieno Órfito; Acílio Glabrião, Élio
Lâmia; Métio Pompusiano; Salústio Luculo; Júnio Rústico),
bem como a expulsão dos filósofos de Itália, são aconte-
cimentos certamente posteriores àquela revolta armada 100.
Neste contexto, são então referidas atrocidades reveladoras
de um carácter insano, como lançar fogo aos órgãos genitais e
amputações de mãos, sem referir nomes de vítimas101. Acresce
o cinismo com que aplicava as penas e que estabelece mais
uma etapa nesta gradação (Dom. 11.1)102. Nos exemplos que

96
Vide Martin 1991: 295.
97
Cf. Ves. 14; D.C. 67.12.3. Vide Gascou 1984: 326-328.
98
Vide Southern 1997: 113-114.
99
Verum aliquanto post ciuilis belli uictoriam saeuior.
100
Vide Gascou 1984: 411-413, 691; Galli 1991: 59; 82.
101
Talvez porque Domiciano proibiu a menção dos nomes nos
registos: cf. D.C. 67.11.3.
102
Erat autem non solum magnae, sed etiam callidae inopinataeque
saeuitia.
36
Vidas dos Césares

Suetónio aduz há alguma semelhança com o comportamento


de Calígula, cujo humor negro é notável103.
A hipocrisia do imperador é ainda exemplificada com a
transcrição, um tanto suspeita, das suas próprias palavras ao
senado. Fez comparecer na Cúria uns acusados de lesa-majes-
tade e induziu os senadores a condenar o réu segundo o uso
antigo. Depois, temeroso do rigor de tal pena e para suavizar
o ódio que tal medida lançaria sobre a sua pessoa, sugere que
lhes seja permitido escolher o género de morte, num discurso
citado pelo biógrafo: “permiti-me, Pais Conscritos, … que
concedais aos condenados a liberdade da escolha do género
de morte.” 104. As palavras do imperador, só por si, seriam
favoráveis a Domiciano: poderiam ser usadas, se fosse esse o
caso, para provar quer a clementia do imperador, que intercede
pelos condenados, quer a sua ciuilitas, por não usar o seu esta-
tuto para impor uma decisão ao senado; mas o contexto em
que Suetónio as cita acentua a cruel e arbitrária manipulação
daquele conselho por parte do imperador105. Assim, Suetónio
adapta os exemplos à imagem que do imperador quer fazer
passar.
O biógrafo passa depois ao tópico da rapina, já anunciado
atrás (Dom. 3.2.). O fator que espoleta este vício é, como se
disse, a inopia: tal como no caso de Calígula e Nero, a carência
das finanças, devido aos gastos com construções, espetáculos
e aumento do soldo.106 Fica assim anulado o efeito positivo do

103
Cal. 29.1: Immanissima facta augebat atrocitate uerborum.
104
Dom. 11.3: ‘Permittite, patres conscripti, … ut damnatis liberum
mortis arbitrium indulgeatis…’ A descrição do castigo de acordo com o
mos maiorum figura em Nero 49.2.
105
Como nota Murphy 1991: 3788.
106
Dom. 12.1: Exhaustus operum ac munerum inpensis stipendioque,
quod adiecerat. Cf. Cal. 38.1: Exhaustus igitur atque egens ad rapinas
conuertit animum; Nero 32.1: iam exhaustus et egens… calumniis
37
Vidas dos Césares

evergetismo imperial antes descrito107. A abstinentia (Dom. 9.1),


manifesta na recusa das heranças da parte de quem tinha filhos
vivos (Dom. 9.2), na repressão das falsas denúncias de crimes
fiscais e no castigo dos delatores (Dom. 9.3), é agora desmen-
tida com as confiscações de vivos e mortos a qualquer pretexto
(Dom. 12.1)108 – uma atitude que contrasta com a de Tito, que
desencoraja e castiga os delatores (Tit. 8.5). Para punir os ditos
contra o príncipe, restaura-se a lex maiestatis, abolida depois
da queda de Nero109. E, no clímax dos atos de rapina, Suetónio
coloca o rigor posto na coleta do Iudaicus fiscus 110, cujo exagero
atesta com o seu testemunho pessoal (interfuisse me adulescen-
tulum memini): a inspeção de um ancião, na presença de largo
conselho, para apurar se era circunciso (Dom. 12.2)111.
A seguir, faz-se a apresentação diacrónica da inciuilitas,
a típica arrogância dos tiranos (Dom. 12.3)112. Os exemplos
seguintes recordam os facta e dicta e falta de moderação na
aceitação de honras que já antes tornaram César digno de ser
morto ( Jul. 76.1) e incluem o facto de se intitular dominus
et deus ao ditar cartas (Dom. 13.2)113. E a gradação na cons-
trução da imagem de Domiciano como imperador culmina

rapinisque intendit animum. Vide Gascou 1984: 749 n. 261; Jones &
Milns 2002: 150-151.
107
Cf. Dom. 4-5; Vide Gascou 1984: 372.
108
bona uiuorum ac mortuorum usquequaque quolibet et accusatore
et crimine corripiebantur.
109
Vide Martin 1991: 342-343; Southern 1997: 119.
110
A taxa da didracma, que os Judeus pagavam para o templo de
Jerusalém e, que, depois da destruição deste, no ano 70, passaram a
pagar para o templo de Júpiter Capitolino.
111
Vide Keresztes 1973: 1-7; Galli 1991: 86-88.
112
Ab iuuenta minime ciuilis animi confidens etiam et cum uerbis tum
rebus immodicus. Vide Martin 1991: 312-313.
113
Como nota Rodrigues (2020: 134), este seria um retrato mais
adequado a Tito, dada a sua afinidade com o Oriente, mas que ficou
colado a Domiciano.
38
Vidas dos Césares

no tirano odiado de todos (Dom. 14): “com tais atitudes,


tornou-se objeto de terror e de ódio para todos e acabou por
ser morto”114. E assim se dá início ao relato da morte.
Domiciano, apresenta-se como o típico tirano solitário e
paranoico, sempre temeroso de que caísse sobre ele a “espada
de Dâmocles” (Dom. 21), pelo que é revelador o seu hábito de
passear sozinho num lugar isolado depois de jantar e o facto de
mandar espelhar as paredes dos pórticos por onde costumava
passear para ver o que acontecia atrás das costas (Dom. 14.4)115.
A referência à natura, que surge diversas vezes nas Vidas
de Suetónio116, permite estabelecer uma distinção entre o que
é aparente e o que é próprio da essência: entre os Flávios,
Domiciano representa uma espécie de degeneração decorrente
dos seus vícios. Desde o início da Vida de Vespasiano fica
claramente estabelecido que Domiciano será punido pela sua
cupiditas e pela saeuitia (Ves.1.1). Mas, enquanto a ganância
(cupiditas) da natura de Vespasiano é controversa entre as
fontes do biógrafo e, de acordo com alguns, justificada com
a necessitas do Estado (Ves. 16.3)117, a tendência para a rapina
(rapacitas) é em Domiciano um traço da natura agravado por
dificuldades financeiras (Dom. 3.2), como vimos118. Além
disso, a crueldade, apenas suspeitada 119, de Tito e a revelação

114
Per haec terribilis cunctis et inuisus, tandem oppressus est. Cf. Cal.
56.1; Nero 40.
115
Sobre Domiciano, como exemplo tirano solitário, vide Hulls
2014: 180-184. Sobre a gradação no sentido da tirania na Vida de Domi-
ciano, vide Brandão 2009: 230-236.
116
Vide Wallace-Hadrill 1984: 159 n.26.
117
Quidam natura cupidissimum tradunt… Sunt contra qui opinen-
tur ad manubias et rapinae necessitate compulsum summa aerarii fiscique
inópia.
118
Vide Gascou 1984: 271; Wallace-Hadrill 1984: 151 e n.13; Jones
1996: 34.
119
Tit. 7.1. Praeter saeuitiam suspecta in eo etiam luxuria erat…
39
Vidas dos Césares

final da sua natura claramente benévola 120 contrasta com a


progressiva manifestação da crueldade natural do irmão mais
novo, agravada pelo medo121. Deste modo, Suetónio concebe
a qualidade de cada principado como resultado da dialética
entre as qualidades de carácter do imperador e as circunstân-
cias políticas, sociais e culturais em que atua.

2.4. Retratos: físico, costumes e qualidades

Entre as rubricas descritivas das características pessoais


(aspeto, hábitos, dotes) dos biografados, Suetónio começa
frequentemente com a do retrato físico, estabelecendo uma
linha de continuidade entre este e o retrato moral desenvol-
vido. Assim se estabelece uma ligação entre o eidos e o ethos,
quebrada apenas de modo assumido no caso de Otão122.
As rubricas descritivas de Vespasiano precedem a narra-
tiva da morte, como acontece com César, Augusto, Tibério,
Calígula, Cláudio. O retrato físico do fundador da dinastia
dos Flávios, Vespasiano, é apresentado em termos bastante
favoráveis (Vesp. 20.1) e numa linha de continuidade com o seu
carácter e feitos123. O aspeto faz apelo à força do general (Cf.
Ves. 4.6): uma estatura bem proporcionada, com membros sóli-
dos e rijos (statura fuit quadrata, compactis firmisque membris).
A expressão do rosto de quem está a fazer esforço (uultu uelut
nitentis) motiva a inserção de uma anedota, associada a uma
característica bastante salientada pelo biógrafo: um sentido
de humor que, como neste caso, rasava por vezes o obsceno

120
Tit. 8.1: Natura autem beniuolentissimus…
121
Dom. 3.2 and 10.1. Vide Brandão 2009: 90-91, 123.
122
Brandão 2004: 83-113.
123
Vide Brandão 2009: 343.
40
Vidas dos Césares

(cf. Ves. 22)124 e que até na hora da morte se manifesta (23.4).


Acrescenta-se a referência à sua saúde firme (ualitudine pros-
perrima usus est), mas é curioso que Suetónio omita a calvície,
mencionada por Díon Cássio (66.17.3) e sugerida pelo próprio
Suetónio num dito de espírito do imperador (Ves. 23.4)125.
Do retrato físico o biógrafo transita para a descrição do
regime diário (Ves. 21)126, de que se destaca um estilo de vida
simples, bem como a sua acessibilidade nos momentos de
descontração. E encadeada no regime de vida, surge a caracte-
rização dos momentos e motivos de humor (“tanto durante o
jantar como em todas as ocasiões se mostrava bastante afável e
levava muitos assuntos para a brincadeira”), associado pelo bió-
grafo à comitas de Vespasiano (comissimus) (Ves. 22): “mostrava,
de facto, ter humor aprimorado, se bem que folgazão e bre-
jeiro, a ponto de nem sequer evitar usar palavras obscenas”127.
Os ditos dos imperadores contribuem para revelar o carácter128:
a comitas e ciuilitas de Vespasiano é o inverso do humor negro
e da arrogância dos tiranos. Além disso, usa o sentido de
humor em relação a si próprio como forma de atenuar, através
do riso, a má fama que o seu principal vício, a ganância, gerava
(Ves. 23.1)129. É o caso do famoso imposto sobre as ânforas de
recolha de urina dos curtidores (uectigal urinae) (Ves. 23.3) que
terá suscitado comentários sarcásticos130. O humor, associado
ao carácter de Vespasiano, contribui, pois, para favorecer o

124
de quo quidem urbanorum non infacete siquidem petenti, ut et in
se aliquid diceret: dicam, inquit, ‘cum uentrem exonerare desineris’.
125
Vide Brandão 2009: 343.
126
Cf. D.C. 66.10.3-6.
127
Erat enim dicacitatis plurimae, etsi scurrilis et sordidae, ut ne
praetextatis quidem uerbis abstineret.
128
Vide Della Corte 1967: 152.
129
Maxime tamen dicacitatem adfectabat in deformibus lucris, ut
inuidiam aliqua cauillatione dilueret transferretque ad sales.
130
Rodrigues 2020: 125-126.
41
Vidas dos Césares

imperador, deixando uma imagem positiva antes da narrativa


da morte. Suetónio usa nesta Vida a técnica sugerida pelo
próprio biografado ao suavizar os vícios com os ditos espi-
rituosos131. A descrição do sentido de humor acaba por servir
de enquadramento para o relato de morte, precedida pelos
habituais presságios: “e nem sequer com o medo e o extremo
risco de morte se absteve de gracejos” (Ves. 23.4)132.

Também o retrato de Tito se apresenta bastante positivo


e, contrariamente ao habitual, Suetónio coloca-o no início
da biografia e indissociado das características espirituais:133 é,
pois, introduzido pela referência aos dotes precoces de corpo e
da alma; a forma egregia, a auctoritas que igualava a gratia e a
grande robustez. O retrato está, pois, em continuidade com a
nota de abertura da breve biografia: Tito era amor ac deliciae
generis humani (Tit. 1). A ressalva feita ao ventre sugere o seu
lado negro comum com os tiranos: o gosto das orgias (Tit. 7).
Os dotes do espírito manifestam-se na memoria singula-
ris; na docilitas ad omnis fere tum belli tum pacis artes. Tito
incarna, por isso, o príncipe belo e bom, a que se junta a com-
ponente da cultura: o retrato, de tipo encomiástico, lembra o
de Germânico (Cal. 3.1-2) e aproxima-o de César, campeão
das armas e da oratória 134. De resto, no que toca às belli artes,
em consonância com a especial robustez, os termos em que

131
Esta caracterização de Vespasiano retoma Brandão 2009: 243-
-246.
132
Ac ne in metu quidem ac periculo mortis extremo abstinuit iocis.
133
Tit. 3.1: In puero statim corporis animique dotes explenduerunt,
magisque ac magis deinceps per aetatis gradus: forma egregia et cui non
minus auctoritatis inesset quam gratiae; praecipuum robur, quamquam
neque procera statura et uentre paulo proiectiore. Cf. Tac. Hist. 2.1.4.
Vide Brandão 2009: 342.
134
Jul. 55.1: Eloquentia militarique re aut aequauit praestantissimo-
rum gloriam aut excessit.
42
Vidas dos Césares

é descrito são ipsis verbis os de César: armorum et equitandi


peritissimus 135. Em relação às pacis artes, salienta-se a capaci-
dade de fazer discursos e versos em latim e em grego e de
improvisação, essencial para a prática da oratória ( facilis ad
extemporalitatem usque)136. Além disso, acrecenta-se que canta
e toca lira iucunde scienterque, o que denota um acolhimento
de costumes gregos antes censurados, uma vez que aqui não
assumem tom de reprovação137.

No que respeita a Domiciano, as rubricas descritivas


figuram depois da narrativa da morte com nítido paralelismo
estrutural com Nero (Nero 51ss.), mas também Galba (Gal.
21-22) e Otão (Oth. 12): o retrato físico (Dom. 18), os gostos
desportivos (Dom. 19), os estudos liberais (Dom. 20), os hábitos
(Dom. 21) e a libido (Dom. 22). Estes elementos descritivos em
outros imperadores antecedem a narrativa da morte138.
Embora Domiciano seja apresentado como um terrível
tirano, o seu retrato físico regista aspetos positivos139, tais
como certos traços comuns ao pai e ao irmão (a beleza de
Tito e a tendência para a obesidade, bem como a calvície de
Vespasiano), mas trata-se de um retrato ambíguo de metamor-
fose. Através da ideia da decadência física (postea … deformis),

135
Cf. Jul. 57.
136
Como salienta Garuti 1983: 307-312. Vide Martin 1991: 239.
137
Cf. Nep. Praef. 1.1; Epam.1.1-2. Vide Wallace-Hadrill 1984: 181-182.
138
Cf. Jul. 44.4; Aug. 72ss; Tib. 68ss; Cal. 50ss; Cl. 30ss. Ves. 20ss.
139
Dom. 18.1-8: Statura fuit procera, uultu modesto ruborisque
pleno, grandibus oculis, uerum acie hebetiore; praeterea pulcher ac decens,
maxime in iuuenta, et quidem toto corpore exceptis pedibus, quorum
digitos restrictiores habebat; postea caluitio quoque deformis et obesitate
uentris et crurum gracilitate, quae tamen ei ualitudine longa remacrue-
rant. Commendari se uerecundia oris adeo sentiebat, ut apud senatum
sic quondam iactauerit: ‘usque adhoc certe et animum meum probastis et
uultum’. Caluitio ita offendebatur, ut in contumeliam suam traheret, si
cui alii ioco uel iurgio obiectaretur.
43
Vidas dos Césares

Suetónio parece querer sugerir140 a degradação moral que assi-


nala na evolução do poder141. A gracilitas crurum, comum aos
príncipes que levam um regime de vida decadente (Calígula
e Nero)142, associada ao ventre obeso (que partilha com Nero
e Vitélio), são traços congruentes com a vida sedentária de
Domiciano, que não andava a pé nem a cavalo (Dom. 19)143.
A calvície despertaria comentários: Juvenal (4.38) chama-lhe
Nero Calvo. Domiciano escreve mesmo um livro de cura
capillorum (18.2).
O tema do uso para benefício próprio da aparência
modesta do rosto ruborizado, sugerem a capacidade de dissi-
mulação, comum a outros príncipes tirânicos, como Tibério,
Calígula e Nero. Diz o biógrafo que Domiciano, durante o
principado do pai e do irmão, simulou admiravelmente modés-
tia e dedicação à poesia (Dom. 2.2).
Domiciano é apresentado como um preguiçoso, incapaz
de fazer qualquer tipo de esforço144. Não se aplicava ao manejo
das armas, à exceção do tiro ao arco que praticava com perícia.
Também Tito mostrara destreza no uso do arco, mas usara-o
para fins militares, e com bons resultados (Tit. 5.2.). A negli-
gência nos liberalia studia (Dom. 20), contrasta com o facto de,
em outros passos (Dom 9.1; 12.3; 18.2), o biógrafo lhe atribuir
citações de Virgílio e Homero e com a preocupação em recons-
tituir as bibliotecas. Dizer que “nada lia além das memórias
e atas de Tibério César”, além de provavelmente injusto145,

140
Como sugere Stok 1995: 130-131.
141
Dom. 3.2; 9.1; 10.1.
142
Stok 1995: 127.
143
Ora esta debilidade física combatia‑a Germânico com frequentes
exercícios de equitação, cf. Cal. 3.1. Vide Stok 1995: 127.
144
Dom. 19. A mesma ideia em Tácito, Agr. 40; Plínio, Pan. 14;
Díon Cássio, 67.6.3.
145
Vide Coleman 1986: 3087-3095.
44
Vidas dos Césares

parece ser mais uma forma de o aproximar do carácter


daquele imperador. E o facto de recorrer ao engenho alheio
para compor cartas, discursos e editos parece aproximá-lo de
Nero146. Suetónio parece estar a generalizar, pois anteriormente
apresentara Domiciano a ditar um documento oficial, no qual
revelava a sua inciuilitas ao declarar-se Dominus et Deus (Dom.
13.2)147.
A tendência para o isolamento, observada no início do
império (Dom. 3.1), é confirmada pelo hábito de passear sozi-
nho em lugar isolado entre a hora de jantar e a de ir dormir
(Dom. 21) e parece ser resultante de uma paranoia148, de acordo
com a sua observação de que a condição dos príncipes era
muito triste, pois “ninguém acreditava neles, senão depois de
serem assassinados”. Tal vem explicar o progressivo terror em
que vivia (Dom. 14.2) e a iniciativa de forrar os corredores com
fengite para ver o que se passava nas suas costas (Dom. 14.4):
trata-se de retomar, no final, a ideia de que o medo o tornou
cruel (cf. Dom. 3.2).
Como é habitual nos tiranos, tem um apetite sexual des-
medido149. A tirania sexual manifesta-se também na forma
como recusa o casamento com Júlia, filha do irmão, mas não
hesita em seduzi-la, depois de casada, ainda em vida de Tito.
E, mais tarde, causa-lhe a morte ao obrigá-la a abortar150. Tal
relacionamento era considerado incestuoso; por isso, o casa-
mento de Cláudio com a sobrinha Agripina necessitara de uma
autorização especial do senado (Cl. 39.2). Também a Calígula

146
Cf. Tac. Ann. 13.3.
147
Vide Martin 1991: 240.
148
Vide Southern 1997: 124-125.
149
Dom. 22. Cf. D.C. 67.6.3-4.
150
Cf. Juv. 2.29-33; Plin. Ep. 4.11.6; D.C. 67.3.1. O texto de Marcial
(6.3.5) não pressupõe tal relacionamento, o que faz Jones (1996: 151)
duvidar. Cf. Jones & Milns 2002: 167.
45
Vidas dos Césares

e a Nero eram feitas acusações de incesto (Cal. 24; Nero 28.2),


nestes casos, respetivamente, com as irmãs e com a mãe, uma
forma de os assimilar a tiranos orientais.
O boato de que Domiciano nadava no meio das mais vis
cortesãs (Dom. 22) parece inscrever-se no topos do erotismo
na piscina, um tema da diatribe contra os tiranos já presente
no que se refere a Tibério, de quem se diz que tomava banho
rodeado dos chamados pisciculi (Tib. 44.1)151.

3. Joguetes da fortuna e dos deuses

O destino assume grande relevo em Suetónio, como é


sabido, e como ficou patente no início da Vida de Galba. A
ascensão de Vespasiano é envolvida como que numa aura mes-
siânica, onde se incluem oráculos orientais. Suetónio credita a
favor dos Romanos uma antiga profecia que atribuía o poder
a chefes vindos da Judeia 152.
A spes imperii de Vespasiano é sancionada pelos ostenta,
apresentados cronologicamente e numa lista particularmente
longa (Ves. 5)153. Dos prodígios relatados, de significado
bastante óbvio, há vários elementos significativos: árvores
(florescimento dos rebentos de um carvalho consagrado a

151
Vide Dupont and Éloi 2001: 293-306; Gascou 1984: 438; Martin
1991: 153-157; Brandão 2005: 92-94.
152
Vesp. 4.5: Percrebruerat Oriente toto uetus et constans opinio esse
in factis ut eo tempore Iudaea profecti rerum potirentur. Id de imperatore
Romano, quantum postea euentu paruit, praedictum Iudaei ad se trahen-
tes rebellarunt. Cf. Tac. Hist. 5.13.2). Vide Griffiths 1970: 363-368;
Rodrigues 2020: 118.
153
Apenas excedida pela de Augusto. Porque tanto Augusto como
Vespasiano são fundadores de dinastias, como salienta Cesa 2000: 6-7.
Vide Levick 1999: 67-69.
46
Vidas dos Césares

Marte; um cipreste que colapsa e se ergue de novo no dia


seguinte revigorado154); terra (lançada, por ordem de Calígula,
no regaço de Vespasiano edil, como castigo, mas interpretada
como sinal da futura proteção que este haveria de dar ao
estado)155; uma mão humana (depositada por um cão junto de
Vespasiano durante a refeição)156; animais (além do referido
cão, um boi que se liberta do jugo e se vem prostrar aos pés do
futuro imperador, quando estava a jantar157) e sonhos premo-
nitórios (do próprio Vespasiano: alcançaria a felicitas, depois
de arrancado um dente a Nero, facto que se verificou no dia
seguinte)158.
A novidade está nos prodígios de influência oriental: o
oráculo do deus do Carmelo, que lhe prometia a realização de
todos os seus desejos159; um cativo judeu, Josefo, que profetizou
que seria libertado por Vespasiano, quando imperador160, o que
não só sugere que Suetónio se pode ter servido de Flávio Josefo
como fonte, mas também torna evidente o aproveitamento
propagandístico deste episódio e da tradição messiânica em
torno de Vespasiano161.
O biógrafo volta depois aos ostenta tipicamente romanos e,
no cúmulo, coloca sinais especialmente fortes de significado:
um sonho de Nero (em que era aconselhado a “conduzir o

154
Cf. Tac. Hist. 2.78.2; D.C. 66.1.3. Vide Cesa 2000: 60. Cf.
significado do abatimento deste cipreste: Dom. 15.2.
155
Ves 5.3. Cf. D.C. 59.12.3. A hostilidade de Calígula pode ter
paradoxalmente aumentado a popularidade de Vespasiano. Vide Rossi
1971: 164-171; Gascou 1984: 359.
156
Ves. 5.4. Vide Braithwaite 1927: 33.
157
Cf. D.C. 66.1.2. Vide Cesa 2000: 60.
158
Ves. 5.5. Cf. D.C. 66.1.3.
159
Ves. 5.6. Cf. Tac. Hist. 2.78.3. Vide Morgan 1996: 41-55.
160
Cf. D.C. 66.1. Trata-se de Flávio Josefo, cf. J. BJ 3.8.2. Vide
Cesa 2000: 60-61; Braithwaite 1927: xv n.2 e 34; Gascou 1984: 282-283;
Rodrigues 2007: 771-780.
161
Vide Rodrigues 2020: 118-120.
47
Vidas dos Césares

carro de Júpiter Óptimo Máximo do santuário para a casa de


Vespasiano e daqui para o Circo”)162; uma estátua do divino
Júlio que se volta para o Oriente,163 e a luta de duas águias no
campo de Betríaco (onde se deu a batalha entre os apoiantes
de Vitélio e de Otão), cuja vencedora é superada por uma ter-
ceira, vinda do Oriente164. Também os dois últimos reforçam a
importância do Oriente na aclamação de Vespasiano.
Já em Alexandria, Vespasiano consulta Serápis sobre o seu
poder (de firmitate imperii). Ao regressar do santuário, encon-
tra miraculosamente o liberto Basílides (que não podia estar ali
naquele momento, por se encontrar enfermo), que lhe oferece,
de acordo com o costume local, verbena, coroas e bolos165.
O biógrafo acrescenta que imediatamente (ac statim) chegaram
cartas com a notícia da derrota das tropas de Vitélio e a morte
do próprio em Roma, o que representa uma falsa coincidên-
cia 166.
Para suprir a falta de auctoritas e a maiestas do novo e
imprevisto príncipe,167 acrescentam-se dois feitos taumatúr-
gicos, forjados, certamente, pela propaganda flaviana. Um
homem cego e um coxo vêm, por conselho de Serápis, que
lhes aparecera em sonhos, pedir a cura a Vespasiano, a um,
cuspindo-lhe nos olhos, a outro, tocando-lhe com o pé na

162
Ves. 5.7. Cf. D C. 1.3.
163
Cf. Tac. Hist. 1.86.1; Plu. Oth. 4.8.
164
Cf. Tac. Hist. 2.50.2.
165
Ves. 7.1. Cf. Tac. Hist. 4.82. Os dons (verbena, coroas e bolos)
fazem parte do ritual de coroação dos monarcas egípcios: vide Derchain
1953: 261-279; Derchain et Hubaux 1953: 38-52; Herrmann 1953:
312-315.
166
Estas notícias não teriam chegado ao mesmo tempo a Ves-
pasiano. O confronto com Tácito (Hist. 3.48.3) mostra que recebeu
a notícia da vitória das suas tropas (em Cremona) antes de chegar a
Alexandria. Vide Braithwaite 1927: 38-39; Levick 1999: 68.
167
Ves. 7.2: Auctoritas et quasi maiestas ut scilicet inopinato et adhuc
nouo principi deerat; haec quoque accessit. Vide Baldwin 1983: 287.
48
Vidas dos Césares

perna doente. O imperador acede, depois de alguma hesitação,


e opera os milagres168. Acresce uma descoberta maravilhosa
na Arcádia: um vaso com uma figura muito semelhante a
Vespasiano169.
Vindo do outro extremo do Império, há uma simetria com
Galba. Favorece a ambos uma profecia antiga de que da pro-
víncia que governa sairá um chefe; tal profecia é confirmada
– além dos prodígios individuais, em que figuram árvores (em
comum o carvalho), animais (em comum, águias), sonhos –,
por oráculos locais (cf. Gal. 9.2) e pelo achado de uma anti-
guidade: um anel com a imagem da Vitória, no caso Galba
(cf. Gal. 10.4); pelo seu próprio retrato, no caso de Vespasiano
(Ves. 7.2).
A Vida termina com um sonho de Vespasiano sobre a sua
dinastia: um enquadramento da intenção dinástica nas voltas
do fatum. A crença nas predições astrológicas faz Vespasiano
não temer as constantes conspirações, ousando afirmar
que: “ou os filhos lhe sucederiam ou ninguém!” (Ves. 25)170.
Não é improvável que tal presságio assente numa afirmação
pragmática de Vespasiano, sugerindo que, se os filhos lhe não
sucedessem voltaria o caos171. Mas, do ponto de vista biográ-
fico, fica implícito o fim da dinastia, uma vez que o tempo de
governo dos filhos é delimitado. Opera-se uma conjugação do
destino e do tempo que se intensifica com a aproximação do
fim do principado de Domiciano e se transforma em motor da

168
Vesp. 7.2-3. Cf. Tac. Hist. 4.81 e D.C. 66.8.1. Vide Cesa 2000:
6-7; 69; Henrichs 1968: 51-80.
169
A antiguidade dos objectos conferia‑lhes uma espécie de santi-
dade religiosa, como acontece com a placa de bronze que pressagia a
morte de César: Jul. 81.1.
170
‘Aut filios sibi successuros aut neminem’. Cf. D.C. 66.12.1. Vide
Murphy 1991: 3784; Cesa 2000: 98.
171
Vide Rodrigues 2020: 120.
49
Vidas dos Césares

paranoia deste. Mas antes que tal ocorra, há um principado


de felicidade.
O destino de Tito e Domiciano fica, pois, determinado na
Vida do pai. Desde o início da Vida de Tito se destaca o papel
da fortuna a par dos méritos pessoais que lhe granjearam a
fama de “amor e delícias do género humano” (Tit. 1)172. Além
disso, é favorecido pelo oráculo de Vénus em Pafos que con-
sulta, depois da revolta de Otão contra Galba, e vê confirmada
a imperii spes 173. Ele próprio, responde a uns conjurados que
“o principado é oferta do fatum” (Tit. 9.1). No final, a morte
prematura é precedida da fuga da vítima durante um sacrifício
e de trovoada quando estava bom tempo (Tit. 10.1), sinais de
péssimo agoiro para um romano174.
Pelo contrário, toda a vida de Domiciano é uma luta vã
contra um destino adverso, que está traçado desde a Vida
de Vespasiano. Afortunados foram somente os presságios
por ocasião da revolta militar de Saturnino (Dom. 6.2). O
conhecimento prévio do destino cruza-se com a narrativa
da morte, tornando dramáticos os últimos momentos, pois,
como diz o biógrafo “havia muito que previa quando seria o
derradeiro ano e o derradeiro dia da sua vida, e mesmo a hora
e até o género de morte” (Dom. 14.1). É na sequência temporal
(continuis octo mensibus…) da morte de Flávio Clemente, o
crime que precipitou o seu assassinato (Dom. 15.1), que se
se narra uma série de prodígios, onde é manifesta a cólera
dos deuses conta si (Dom. 15.2-3)175: raios atingem o templo

172
Tantum illi… uel igenii uel artis uel fortunae superfuit. Cf. Tac.
Hist. 2.1 e 5. Vide Gascou 1984: 694; Grassi 1972: 155.
173
Tit. 5.1. Cf. Tac. Hist. 2.4.1-2.
174
Um mau presságio, segundo Suetónio: Jul. 59; Gal. 18.1; e
segundo outros autores: Tac. Hist. 3.56.1; Plin. Nat. 8.183.
175
Como salienta Gascou 1984: 790.
50
Vidas dos Césares

da gens Flávia, o palácio do Palatino e o próprio quarto do


imperador, e uma tempestade violenta arrancou uma inscrição
de uma estátua triunfal de Domiciano e lançou-a sobre um
sepulcro próximo. Como o loureiro que secara pelo ocaso
de Nero (Gal. 1), também a árvore, que se reerguera quando
Vespasiano era um cidadão privado (um cipreste: Ves. 5.4),
abateu-se subitamente: a queda de Domiciano representa,
tal como a de Nero, a queda de uma dinastia 176. A Fortuna
de Preneste e, sobretudo, Minerva, divindade por quem
Domiciano tinha grande veneração,177 retiram-lhe o favor,
num paralelo com o que acontecera com a Fortuna de Galba
(Gal. 18.2).
Tal como a Vida de Vespasiano, também a de Domiciano
termina com um sonho. Mas se o sonho de Vespasiano deli-
mitava o tempo de governação dos filhos, o de Domiciano
promete, sem limitações de tempo, um futuro próspero: uma
espécie de idade de ouro178. Assim, com uma referência, algo
adulatória e vaga, aos príncipes seguintes, o biógrafo termina,
de forma optimista, três ciclos de vidas sangrentas, apontando
para um recomeço: como que a dizer que, depois destas doze
Vidas, se não repetiram os mesmos erros. A profecia de Domi-
ciano cumpre-se com os Antoninos. Mas o otimismo final
não arreda um conceito determinista da história e da vida dos
homens.

176
Vide Gascou 1984: 778.
177
Quam superstitiose colebat. Vide Gascou 1984: 729 n. 94. Cf.
Mart. 5.2.6-8; 6.10.9-12; 7.1.1-2; 8.1.4; 9.3.10. D.C. 67.16.1. Vide Girard
1981: 233-245.
178
Dom. 23.2. Vide Baldwin 1983: 491.
51
Vidas dos Césares

4. A s mortes exemplares

A narrativa da morte de Vespasiano é a de um imperador


bom, que cumpriu o seu papel e encara o seu fim com natura-
lidade e e mantém o característico humor. Troça dos presságios
e, se antes zombara da origem divina que lhe queriam atribuir,
no primeiro acesso da doença, zomba da futura divinização:
‘uae’, inquit, ‘puto deus fio.’ 179 («‘ai! – exclamou ele – acho que
me estou a tornar um deus!’»).
Além disso, a morte representa um retorno ao lugar de
origem, Reate, onde sucumbe à febre, mas continua a cumprir
as obrigações do imperador. Os pormenores realistas, menos
decorosos (intestina uitiasset… ad defectionem soluta), estão de
acordo com a habitual realismo de Suetónio e dão uma feição
mais humana a um imperador bem-humorado180. Mantém a
dignidade (Ves. 24) com a célebre afimação ‘ imperatorem’ ait
‘stantem mori oportere’ («‘um imperador – afirma ele – deve
morrer de pé!’») – e sucumbe nos braços dos que o sustêm. Se
os ditos servem para iluminar o carácter181, uma frase dita à
hora da morte assume especial significado.182 Trata-se da morte
digna de uma bom príncipe, pelo que Suetónio não veicula

179
Ves. 23.4. Paródia das últimas palavras de Cláudio na Apoco-
locyntosis (4.13): uae puto concacaui me. Vide Fishwick 1965: 155-157;
Cesa 2000: 96; Levick 1999: 196-197.
180
Vide Grassi 1972: 153.
181
Como observa Della Corte 1967: 152.
182
A última frase do imperador moribundo reflete o respeito pela
função que desempenhou, e a ausência de angústia manifesta‑se no
humor, como sugere Martin (1991: 352-353), que aproxima a morte de
Vespasiano da de Augusto. Vide Murphy 1991: 3784.
52
Vidas dos Césares

os rumores de envenenamento por Tito183. A morte serena e a


consciência do dever cumprido aproximam-no de Augusto184.

Tito é alvo do afeto dos que morrem cedo, como Germânico,


de quem se aproxima no retrato físico e psicológico, e como
Britânico, o amigo nunca esquecido, com quem, sem saber,
chegara a partilhar um pouco do cálice envenenado (Tit. 2).
A forma positiva como é apresentado na abertura da Vida é
reforçada no final.
Toda a Vida de Tito parece estruturada de forma a salien-
tar o carácter prematuro e injusto da morte que ocorre numa
atmosfera de melancolia manifesta 185. Suetónio acentua tam-
bém deste modo o contraste entre os dois irmãos em proveito
de Tito: em resposta às insídias da parte de Domiciano, Tito
continua a proclamá-lo “sócio e sucessor” e pede-lhe, de lágri-
mas nos olhos, que se esforce por corresponder à sua afeição186.
Tito é o homem do afecto187, e a magnanimidade, o clima de
emoção e a morte prematura apelam à compaixão do leitor.
A morte ante diem é considerada maior dano para a humani-
dade que para o próprio188, o que sugere, à partida, um juízo
implícito sobre o sucessor. O damnum suum é ilustrado com
as reações emotivas, o choro copioso à frente do povo no final

183
Cf. D.C. 66.17.1-3. Martin 1991: 193-195; Baldwin 1983: 190;
Gascou 1984: 793.
184
Vide Brandão 2009: 273-274.
185
Vide Martin 1991: 353-354.
186
Tit. 9.3: Cf. D.C. 66.26.2; Aur. Vict. Caes. 10.11. Vide Jones
1970: 346-347; Jones & Milns 2002: 117.
187
Vide Marastoni 1983: 120.
188
Tit. 10.1: Inter haec morte praeuentus est maiore hominum damno
quam suo.
53
Vidas dos Césares

de um espetáculo189 e com a profunda tristeza 190. Afirma que


não merece morrer e deixa a nota de que “nada fizera de que se
arrependesse – a não ser, quando muito, um só acto”191 o que
dá azo a especulações. Levantou-se o rumor de que se estaria
a referir ao adultério com a esposa do irmão, mas o biógrafo
refuta tal ideia com o testemunho da própria Domícia 192, em
consonância com o que dissera sobre a mudança na libido
deste imperador, depois da sua chegada ao poder (Tit. 7.2)193.
Mas, ao introduzir o juramento de Domícia, Suetónio está a
glorificar Tito e a amesquinhar Domiciano. Também podemos
supor que se podia estar a referir à forma como renunciara
ao especial amor de Berenice por razões políticas e contra a
vontade de ambos194.
Significativo é o facto de não mencionar rumores da
implicação de Domiciano na morte do irmão, talvez para não
ensombrar a morte de Tito, enquanto na Vida daquele (Dom.
2.3) aparecem insinuações nesse sentido195. A coincidência de
morrer na mesma casa de seu pai salienta o regresso às origens
humildes da família na terra dos Sabinos e a aproximação dos
dois na vida e na morte.

No que respeita a Domiciano, Suetónio inicia o relato de


forma semelhante à das Vidas Calígula e Nero, mas também

189
Cf. D.C. 66.26.1.
190
Tito aparece, segundo (Baldwin 1983: 517), como a vítima
desafortunada de uma tragédia grega.
191
Tit. 10.1-2. Vide Martin 1991: 197; Jones & Milns 2002: 118.
192
Dion Cássio (66.26.3-4) pensa que Tito lamenta não ter
executado Domiciano quando ele conspirou contra ele. Sobre as espe-
culações, vide Martin 1991: 355; Levi 1954: 288-293; Ambrosio 1980:
232-241; Jones & Milns 2002: 120. Cf. notas ao passo.
193
Cf. D.C. 66.18.1. Vide Martin 1991: 151.
194
Como sugere Rodrigues 2020: 133.
195
Cf. Aur. Vict. Caes. 10.5.). Vide Gascou 1984: 385-386 e 793.
54
Vidas dos Césares

de César, como o culminar de uma série de atos tirânicos


apresentados em gradação: “com tais atitudes, tornou‑se fonte
de terror e de ódio para todos e acabou por ser morto, numa
conjugação de esforços dos amigos e libertos mais chegados e
até da mulher”196. A imagem de um tirano solitário e odiado
por todos sugere também algum paralelismo com Tibério, de
resto aparente em outros passos desta Vida197. O tema do medo
em que vive o tirano é potenciado pelo conhecimento prévio
da hora da morte, à medida que se aproxima o momento198,
e retoma a ideia levantada no início de que o medo o tornou
cruel (Dom. 3.2). Como acontecera com Calígula (Cal. 51.1),
Suetónio analisa a explicação psicológica para os atos do
imperador pelo crédito dado aos astrólogos199. As exageradas
precauções revelam o proverbial receio da espada de Dâmo-
cles200.
Ao tentar evitar o destino, Domiciano contribui para o
apressar. O crime que precipitou o assassínio do imperador
foi, segundo o biógrafo, a execução, repentina e infundada
(repente ex tenuissima suspicione), do primo e ex-cônsul Flávio
Clemente, cujos dois filhos Domiciano tinha designado como

196
Dom. 14.1: Per haec terribilis cunctis et inuisus, tandem oppressus
est <…> amicorum libertorumque intimorum simul et uxoris. Cf. Cal.
56.1; Nero 40.1. Vide Croisille 1970: 78 n. 5; Gascou 1984: 790.
197
Cf. Tib. 63.1: Quam inter haec non modo inuisus ac detestabilis,
sed praetrepidus quoque atque etiam contumeliis obnoxius uixerit, multa
indicia sunt. Vide Martin 1991: 323.
198
Quare pauidus semper atque anxius minimis etiam suspicionibus
praeter modum commouebatur (Dom. 14.2).
199
Vide Della Corte 1967: 73; Martin 1991: 342-343.
200
Tempore uero suspecti periculi appropinquante sollicitior in dies
porticuum, in quibus spatiari consuerat, parietes phengite lapide distinxit,
e cuius splendore per imagines quidquid a tergo fieret prouideret (Dom
14.4).
55
Vidas dos Césares

sucessores (Dom. 15.1)201. Na sequência desta condenação,


o biógrafo introduz os presságios de morte, uma série de
prodígios onde se torna manifesta a cólera dos deuses, como
vimos atrás202.
O tempo tem uma importância fundamental na tragédia
de Domiciano, uma vez que suspeitava do seu destino. A luta
contra o destino prolonga-se até ao último dia, e a ansiedade
aumenta com o aproximar da temida hora quinta: tempus
suspecti periculi (Dom. 14.4). O biógrafo, que habitualmente
é impreciso nas notações temporais sugere, neste caso, a apro-
ximação da hora da morte com indicações cronológicas cada
vez mais precisas203. Na verdade, a contagem decrescente já
começara muito antes: vimos que a Vida de Vespasiano ter-
mina com a referência ao sonho do imperador sobre o tempo
de governo da dinastia (Ves. 25).
O crime acontece quando o imperador considera passado
o momento crítico: Domiciano pergunta as horas e dizem‑lhe
que é a sexta por dolo (ex industria). No momento em que o
imperador julga que o perigo passou é que chega o assassino
Parténio: o camareiro‑mor, que se revelará cúmplice, anuncia-
-lhe o visitante, com um pretexto que não admite adiamento
(Dom. 16.2).

201
Cf. D.C. 67.14.1. Vide Galli 1991: 92-93. Sobre as possíveis
motivações religiosas desta morte (ligação a Judeus ou cristãos), vide
Keresztes 1973: 1-28; Pergola 1978: 407-423; Southern 1997: 115. Cf.
nota ao passo.
202
Continuis octo mensibus tot fulgura facta nuntiataque sunt, ut
exclamauerit: ‘Feriat iam, quem uolet’. Vide Gascou 1984: 790.
203
Começa por se referir a uma duração de continuis octo mensibus
(Dom. 15.2), para depois ir indicando espaços de tempo cada vez mais
curtos: Pridie quam periret …; at circa mediam noctem…; dehinc mane
(Dom. 16.1); horas requirenti pro quinta, quam metuebat, sexta ex indus-
tria nuntiata est (Dom. 16.2).
56
Vidas dos Césares

Neste ponto, o biógrafo introduz uma breve analepse para


dar os pormenores da preparação da conjura, a que adiciona a
narrativa do magnicídio (Dom. 17.1), com indicação do nome
do executor (Estéfano, procurator de Domitila)204, do plano
e do pretexto que o criado de quarto, Parténio, usou para
introduzir o assassino junto do imperador (a denúncia de uma
suposta conjura 205).
Sobre a execução, Suetónio, tal como em relatos de assassi-
natos anteriores (César, Calígula, Galba), inclui duas versões.
Numa primeira versão, Domiciano, apunhalado no baixo-
-ventre enquanto lia, atónito, o libellus da falsa denúncia, luta,
mas é morto por vários conjurados que acorrem. O biógrafo
nomeia os agressores, salientando a proximidade deles em
relação ao imperador através da referência à suas funções no
interior do palácio206. Uma segunda versão baseia-se no relato
de uma testemunha ocular (Dom. 17.2): um rapaz, que cuidava
dos Lares do quarto, refere um pedido de ajuda de Domiciano
(pedira-lhe um punhal que estaria debaixo da almofada e orde-
nara-lhe que chamasse os guardas; mas do punhal o escravo
só encontrou o cabo207 e achou as portas todas fechadas), bem
como a desesperada luta corpo a corpo que o imperador trava
com Estéfano, com pormenores do realismo mórbido (que vai

204
Domitila era a sobrinha do imperador e esposa de Flávio Cle-
mente, cuja execução precipitara a decisão de assassinar o imperador.
Estéfano foi escolhido como executor, segundo Díon (67.17.1-2), por ser
mais forte que os outros. Vide Martin 1991: 374-378.
205
Segundo Filóstrato (VA 8.25), Estéfano alegava que Flávio Cle-
mente havia escapado à morte e se preparava para atacar o imperador.
206
Clodiano, oficial subalterno (cornicularius); Máximo, liberto de
Parténio; Sátur, chefe dos criados de quarto (decurio cubiculariorum) e
alguns gladiadores. Marcial (5.6.2) e Dión Cássio (67.15.1), bem como
as outras fontes, apresentam o criado de quarto Parténio como o mentor
da conjura, mas Suetónio deixa o seu papel na ambiguidade.
207
Segundo Díon Cássio (67.17.1), foi Parténio quem retirou a
lâmina do punhal.
57
Vidas dos Césares

ao ponto do dilacerar de olhos) característico do biógrafo e


manifesto em outros assassinatos, como assinala Gascou 208.
Suetónio, ao contrário de Díon Cássio209, omite qualquer
ajuda, pelo que apresenta Domiciano como uma personagem
totalmente solitária na morte 210. A solidão é acentuada no
funeral, ou quase ausência dele. O biógrafo não deixa de notar
que foi levado pelos uispillones e na indigna sandapila, o caixão
dos pobres211. Os últimos cuidados são prestados ao cadáver
pela ama, Fílis, que, às escondidas (clam), coloca os restos
mortais no templo dos Flávios, junto às cinzas de Júlia 212.
O carácter solitário do imperador é manifesto através das
próprias palavras de Domiciano – transmitidas nas rubricas
descritivas, já depois do relato da morte –, que considerava
muito infeliz a condição dos príncipes, pois ninguém acredi-
tava que uma conspiração fora descoberta, a menos que fossem
assassinados (Dom. 21)213.

Domiciano representa, do ponto de vista da biografia


suetoniana, a degeneração da dinastia flávia, a catástrofe deste
conjunto de três Vidas. Incarna o retrato de um tirano: sobre
ele pende uma espada de Dâmocles, pelo que a morte surge,
na linha de César, Calígula ou Nero, como o castigo merecido.
Se a morte de Tito aparecia como injusta, dado o encareci-
mento que merecera durante a vida, a morte de Domiciano
é consequência de uma culpa pessoal: a progressão até um
estádio intolerável de crueldade, rapacidade e arrogância. Uma

208
Gascou 1984: 308 e 796.
209
Na versão de Díon Cássio e Filóstrato, o assassino é morto pelos
que vieram em socorro de Domiciano.
210
Vide Pimentel 1993: 94-103.
211
Vide Jones 1996: 136; Jones & Milns 2002: 162.
212
Dom. 17.3. Cf. D.C. 67.18.2.
213
Vide Southern 1997: 124-125.
58
Vidas dos Césares

gradação conseguida, como habitualmente, à custa de alguma


deformação histórica.
Depois de decretada a Damnatio memoriae pelo senado
(Dom. 23.1), o equilíbrio é restabelecido com a referência aos
optimi principes que se seguirão a Domiciano (Dom. 23.2).
Com a referência, algo adulatória e vaga, aos príncipes seguin-
tes, o biógrafo termina, de forma otimista, três ciclos de Vidas
sangrentas, apontando para um recomeço: como que a sugerir
que, depois destas doze Vidas, se não repetiram os mesmos
erros. Se Domiciano representa o regresso à tirania, ele é
também, para Suetónio, o último dos tiranos. Além disso, o
biógrafo indica as virtudes que presidirão a um beatior laetior-
que rei publicae status: a abstinentia e a moderatio.
Com este final, Suetónio retoma a história no preciso
momento em que a deixara na súmula introdutória às vidas
dos Flávios, quando dissera que Domiciano fora castigado
pelos vícios da cupiditas e da saeuitia214. Sem as virtudes opos-
tas a estes vícios (a abstinentia e a moderatio), os méritos que
existam são inoperantes215. Trata‑se do restabelecimento do
equilíbrio final: tudo está bem, como diz a cornix (Dom. 23.2),
quando acaba bem.

214
Ves. 1.1: … constet licet Domitianum cupiditatis ac saeuitiae merito
poenas luisse.
215
Como afirma Gascou 1984: 784-785. Segundo este autor, é para
a exaltação dos Antoninos que se encaminha a concepção do principado
presente na obra de Suetónio.
59
Vidas dos Césares

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66
Vidas dos Césares

Suetónio, Livro VIII: Vidas de Vespasiano,


Tito e Domiciano

Vida de Vespasiano

1. 1. Ao império, que por longo tempo216 esteve titubeante


e como que errante, por causa da sublevação e assassínio de
três príncipes 217, susteve-o e refirmou-o, por fim, a família
dos Flávios, desconhecida, por certo, e sem quaisquer retratos
de antepassados218, mas de modo algum indigna do Estado,
embora seja sabido que Domiciano foi justamente castigado
pela sua cobiça e crueldade.

2. Tito Flávio Petrão, munícipe de Reate219, centurião ou


veterano voluntário220 do exército da fação de Pompeio na
guerra civil, escapou do recontro de Farsalo e foi-se recolher

216
Por 18 meses, entre o suicídio de Nero em junho de 68 e o
assassínio de Vitélio em dezembro de 69.
217
Galba, Otão e Vitélio.
218
As máscaras em cera dos antepassados importantes que costu-
mavam ser expostas no átrio das casas dos poderosos, acompanhadas
das inscrições (tituli) onde se mencionavam as honras. Eram levadas nos
funerais. Poderemos ver aqui um contraste com a linhagem de Galba,
ilustre e antiga, e a de Otão e Vitélio, que se tornou ilustre sobretudo
durante o governo dos Júlio-Cláudios.
219
Cidade da região sabina. Hoje Rieti. Então não era ainda
município, estatuto que adquiriu mais tarde, pelo que munícipe é um
anacronismo do biógrafo.
220
Euocatus é um veterano reincorporado voluntariamente no
exército.
67
Vidas dos Césares

em casa, onde, depois de obter o perdão221 e a desmobiliza-


ção, se dedicou à cobrança de dinheiro222. O filho dele, de
cognome Sabino, não participou no exército (embora alguns
afirmem que foi primipilo; e outros que quando comandava
uma coorte foi dispensado do serviço por razões de saúde) foi
recolector público do imposto da quadragésima 223 na Ásia.
Perduraram estátuas que as cidades lhe erigiram com esta ins-
crição: “Ao cobrador justo”224. 3. Depois, dedicou-se ao ofício
de onzeneiro entre os Helvécios e lá morreu. Sobreviveram-lhe
a esposa, Vespásia Póla, e dois filhos que dela teve, dos quais
o mais velho, Sabino, alcançou a prefeitura da cidade e o mais
novo, Vespasiano, atingiu o principado. Póla, oriunda de uma
respeitada progénie de Núrsia, teve por pai Vespásio Polião,
três vezes tribuno militar e prefeito dos acampamentos, e
por irmão um senador com a categoria de pretor. Existe uma
localidade no alto de um monte, ao sexto marco miliário, para
quem vai de Núrsia a Espoleto, que é designada por Vespásias,
onde subsistem muitos monumentos fúnebres dos Vespasianos,
como relevante vestígio do lustre e antiguidade da família.
4. Não vou negar as insinuações de alguns de que o pai de

221
César concedeu uma amnistia aos soldados que combateram
por Pompeio.
222
O ofício era desempenhado sobretudo por libertos e descen-
dentes de libertos. Coactores desempenhavam uma atividade próxima
da do usurário: aceitavam depósitos em dinheiro, e, a partir destes,
faziam empréstimos. Emprestavam dinheiro, com uma comissão, a
quem comprasse bens colocados em hasta. Vide Cesa 2000: 37.
223
Imposto aduaneiro correspondente a 2,5% das trocas comer-
ciais: portoria.
224
A observação é tanto mais válida quanto um publicano íntegro,
no início do principado, era considerado uma exceção, dada a necessi-
dade que Nero teve de moderar as publicanorum cupidines (cf. Tac. Ann.
13.50); Vide Braithwaite 1927: 19.
68
Vidas dos Césares

Petrão, natural da região transpadana 225, fora um contrata-


dor da mão-de-obra que costumava deslocar-se a cada ano
da Úmbria para a região dos Sabinos para trabalhar na agri-
cultura; mas que se estabelecera na cidadela de Reate depois
desposar uma local. Quanto a mim, não encontrei qualquer
prova de tal, apesar de ter investigado com bastante rigor226.

2. 1. Vespasiano nasceu entre os Sabinos, além de Reate,


numa pequena aldeia de nome Falacrinas, na tarde do dia
15 antes das calendas de dezembro, no consulado de Quinto
Sulpício Camerino e Gaio Popaeo Sabino227, cinco anos
antes da morte de Augusto228. Foi criado sob a guarda da avó
paterna, Tértula, numa herdade em Cosa 229. Por isso, mesmo
já imperador, visitava frequentemente o lugar da sua infância,
conservando a quinta tal como fora outrora, certamente para
não ser privado da familiaridade das vistas. E reverenciou
com tal empenho a recordação da avó, que, nas solenidades e
dias festivos, continuava também a beber pelo copo de prata
dela 230.

225
Se tal for verdade, o avô de Vespasiano nem sequer era itálico
ou então recebera a cidadania romana recentemente. A Gália Cisalpina,
embora profundamente romanizada, teria recebido a cidadania latina
em 89, na sequência da Guerra Social, e a cidadania romana em 49, por
iniciativa de César. Vide Braithwaite 1927: 22; Cesa 2000: 42.
226
A alardeada independência da pesquisa de Suetónio não será tão
neutral como parece, uma vez que é colocada ao serviço da boa imagem
desta família.
227
A 17 de novembro de 9 d.C.
228
Como nota Braithwaite (1927: 23), Suetónio indica habitual-
mente o ano do nascimento dos imperadores por referência ao ano dos
cônsules ou a um facto histórico de relevo. Só no caso de Tibério e
Vespasiano se mencionam ambos. Vide Cesa 2000: 43.
229
Na Etrúria. A atual Ansedónia.
230
Trata-se de manifestações de pietas.
69
Vidas dos Césares

2. Depois de envergar a toga viril 231, desdenhou por longo


tempo o laticlavo232, apesar de o irmão o ter obtido, e não
se conseguiu forçá-lo a solicitá-lo a não ser, finalmente, por
insistência de mãe233. Forçou-o finalmente mais com reprimen-
das do que com súplicas ou com a sua autoridade, já que lhe
chamava continuamente por agravo lacaio234 do irmão.

3. Serviu na Trácia como tribuno militar. Como questor,


obteve por sorteio a província de Creta e Cirene. Como
candidato aos cargos de edil e, logo, de pretor, obteve o
primeiro só depois de uma derrota e ainda assim em sexto
lugar; mas o segundo cargo obteve-o à primeira e foi eleito

231
Pelos 16 anos, assinalando a passagem da puerícia à idade adulta.
232
Faixa de púrpura larga que se usava sobre a túnica na posição
vertical, símbolo do estatuto de senador: latus clavus por oposição ao
angustus clavus, da toga dos cavaleiros.
233
Tradicionalmente, afirmava-se que, como filho de cavaleiro,
Vespasiano obteve o laticlavo graças a uma concessão especial de Tibé-
rio: Vide Rossi 1971: 166-167. Só uma reforma de Calígula, em 38, veio
alterar esta prática. Chastagnol (1976: 253-25) sugere, pela combinação
das informações de Díon Cássio (59.9.5) e Suetónio, que Vespasiano só
terá recebido a túnica laticlava em 35 ou 36, quando foi questor, honra
a que se candidatou por insistência da mãe. Este autor sustenta que
o que levou os estudiosos a uma interpretação errónea foi o facto de
Suetónio alterar a ordem: Vespasiano terá começado a carreira como
tribuno angusticlavo (cargo equestre) da legião da Trácia, e só em 35 ou
36 conseguiu o direito de ser candidato à questura. O biógrafo prefere
insistir no facto de Vespasiano se recusar, durante muito tempo, a sair
da ordem equestre. Levick (1991: 239-244) duvida desta teoria e lembra
que já Augusto encorajara jovens de classes não senatoriais a solicita-
rem aquela honra –portanto, Suetónio quereria, de facto, afirmar que
Vespasiano não pretendia requerer o cargo senatorial. Sobre a aceitação
ou rejeição da teoria de Chastagnol, vide Cesa 2000: 44-45. Por seu
turno, Jones & Milns (2002: 44) sugerem que Vespasiano se atrasa
em requerer o status senatorial por interesses materiais: ao contrário
do irmão, prefere seguir as atividades do pai e do avô. Havia outros
cavaleiros que preferiam continuar neste estatuto: cf. Plin. Ep. 1.14; Tac.
Ann. 16.17 e Hist. 2.86.
234
Anteambulo. Aquele que vai à frente a abrir caminho.
70
Vidas dos Césares

entre os primeiros235. No cargo de pretor, para não perder o


ensejo de merecer o favor de Gaio, que estava ofendido com
o senado236, reivindicou uns jogos extraordinários pela vitória
dele na Germânia e propôs acrescentar à pena dos conjurados
que fossem deixados sem sepultura 237. Deu-lhe também graças
em presença da mais alta ordem por ele lhe ter concedido a
honra de um convite para jantar.

3. Entretanto, desposou Flávia Domitila 238, que tinha sido


a amante de Estatílio Capela, um cavaleiro romano de Sábrata
em África 239. Tivera outrora o estatuto de latina 240, mas depois
declarada livre por nascimento e cidadã romana por um júri
de recuperação241, por iniciativa do pai, Flávio Liberal, nascido
em Ferêntio, e que não foi mais que escrivão de questor. Desta
teve os filhos Tito, Domiciano e Domitila. Sobreviveu à esposa
e à filha, tendo perdido uma e outra quando ainda era um

235
Rossi (1971: 167-168) sugere que tal êxito resultou da reação do
senado à abusiva intervenção de Calígula, que castigou Vespasiano pelo
desempenho do cargo edil: cf. à frente Ves. 5.3.
236
Particularmente no regresso da expedição à Germânia.
237
Era a punição dos inimigos públicos. Refere-se à conjura de
Lépido e Getúlico. O primeiro foi esposo de Drusila, irmã do impera-
dor. Getúlico era o comandante da Germânia, depois substituído por
Galba. Rossi (1971: 171 n. 1) sugere que, se Vespasiano tinha efetiva-
mente o carácter que Suetónio lhe atribui, é provável que o exagero das
propostas traduzisse uma subtil ironia.
238
Dado o nome da esposa, poderá tratar‑se de um casamento
entre parentes, em que, antes do prestígio, está o intuito de conservar o
património familiar: vide Levick 1999: 12.
239
Cidade de fundação fenícia.
240
Trata-se dos chamados Latini Iuniani: antigos escravos liber-
tados sem cumprir as formalidades da lei. Adquiriam o estatuto de
cidadãos latinos. À morte, a propriedade revertia para o antigo patrão.
241
Reciperatorium iudicium – isto é, da competência dos recupe-
ratores ou reciperatores, i.e. cidadãos com competências de decisão no
que concerne a questões de propriedade e de estatuto das pessoas. Cf.
Dom. 8.1.
71
Vidas dos Césares

cidadão privado. Depois da morte da esposa, retomou a relação


com Cénis, liberta e escrivã de Antónia 242, que fora outrora
sua amante, e manteve-a na sua companhia mesmo quando já
imperador, tratando-a quase como esposa legítima 243.

4. 1. No principado de Cláudio, foi, graças à influência de


Narciso244, enviado à Germânia como legado de uma legião.
Dali passou à Britânia e combateu trinta vezes com o inimigo.
Subjugou dois poderosíssimos povos245, além de vinte cidades e
a ilha de Vecta junto à Britânia 246, em parte sob o comando do
legado Aulo Pláucio247 e, em parte, sob o comando do próprio
Cláudio. 2. Por tais feitos, recebeu ornamentos triunfais e,
pouco depois, um duplo sacerdócio, além do consulado, cargo
que desempenhou nos dois últimos meses do ano248. O tempo
até ao proconsulado passou-o no ócio e retirado, por medo de

242
Antónia Menor, esposa de Druso, o irmão mais novo de Tibé-
rio. Continuou influente na corte até à sua morte em 37 d.C. Tibério
confiava nela. Foi ela que, através de uma carta ao cunhado imperador,
denunciou os planos Sejano, provocando assim a execução do ambicioso
prefeito do pretório.
243
No entanto, o filho mais novo de Vespasiano, Domiciano,
recusara‑se a beijá‑la, quando ela regressava de uma viagem (Dom.
12.3). Pode ter sido graças à influência de Cénis junto de Antónia que
Vespasiano avançou na carreira das honras. O retomar da ligação à
liberta deve ter permitido o acesso de Vespasiano ao grupo dos cortesãos
de Calígula por volta de 38 d.C., como sugere Levick 1999: 11.
244
O poderoso liberto de Cláudio.
245
Os Belgas e os Atrébates ou os Durotriges. Suetónio é o único
autor a apresentar números para as empresas britânicas de Vespasiano.
Vespasiano comandava a legião II Augusta. Vide Braithwaite 1927: 28;
Levick 1999: 18 e 214 n.12.
246
Atual ilha de Wight. Ao contrário do que sugere Suetónio, a
tomada da ilha deve ter acontecido muito cedo na ordem das conquis-
tas, segundo Levick 1999: 18.
247
Cônsul em 29 d.C. Liderou a invasão da Birtânia e foi o pri-
meiro governador (de 43 a 47) da nova província.
248
Terá sido suffectus com Cláudio 51. Vespasiano teria 42 anos,
idade normal para a ascensão de um homo nouus a esta honra. Os
72
Vidas dos Césares

Agripina, então poderosa junto do filho e inimiga do amigo de


Narciso, mesmo depois da morte deste249.

3. De seguida, por sorteio, administrou África de forma


assaz honesta e não sem grande reputação, se bem que numa
revolta em Hadrumeto250 lhe atiraram nabos. Regressou, por
certo, não mais rico, ao ponto de, praticamente desprovido
de crédito, hipotecar ao irmão todas as herdades251 e se ver
obrigado a traficar animais para manter o estatuto social 252,
pelo que era chamado “muleteiro” pelo vulgo. Diz-se também
que recaía sobre ele a suspeita de ter extorquido duzentos mil
sestércios a um jovem para quem obtivera o laticlavo253 con-

últimos dois meses do ano eram os menos prestigiados e Vespasiano,


dados os seus feitos, esperaria melhor. Vide Cesa 2000: 52; Levick 1999:
19.
249
Narciso opôs-se ao casamento de Cláudio com Agripina,
preferindo Élia Petina. Pode também ter contribuído para o ódio de
Agripina a Vespasiano a proposta deste de deixar os conspiradores
insepultos, como sugere Rossi 1971: 171 n. 1, e Jones 1984: 581-583. O
afastamento da corte pode também ter acontecido por influência dos
conselheiros de Nero, Séneca e Afrânio Burro, que queriam reforçar o
poder de decisão do senado e evitar que Britânico chegasse ao poder e
restabelecesse o poder dos libertos. Vide Levick 1999: 20-21. Mas Sue-
tónio parece exagerar no âmbito do retiro de Vespasiano, como notam
Jones & Milns 2002: 49. Tito continua a ser educado em companhia de
Britânico, e Vespasiano continua a desempenhar as funções senatoriais
e sacerdotais em Roma.
250
Moderna Sousse.
251
A Sabino, o irmão mais velho. Segundo Tácito (Hist. 3.65), era
um rumor que parecia explicar o pouco entusiasmo de Sabino, então
prefeito da cidade, a tratar com mais diligência os assuntos do irmão
mais novo.
252
O censo senatorial. O expediente parece contraditório com a
dignitas que pretende manter, pelo que deve ter sido posto a circular
pelos opositores, mas seria certamente rentável. Vide Levick 1999: 24.
253
O estatuto de senador. Informação retirada provavelmente de
algum panfleto de propaganda contra os Flávios, como sugere dicitur.
Mas o facto de ser apresentada como um rumor pode ser uma forma de
atenuar o efeito da pecha. Vide Cizek 1977: 142-143; Cesa 2000: 54-55.
73
Vidas dos Césares

tra a vontade do pai, pelo que, à conta disso, foi duramente


repreendido.

4. Integrado entre os acompanhantes na viagem de Nero


à Acaia 254, incorreu numa gravíssima ofensa, quer por se esca-
pulir frequentemente quando o imperador cantava, quer por
dormitar quando estava presente255. E, tendo sido afastado não
apenas do acompanhamento, mas até da saudação pública,
retirou-se para uma cidade pequena e fora de mão, onde se
manteve escondido e mesmo com receio, até que, por fim, lhe
foi oferecida uma província juntamente com um exército256.

5. Tinha-se espalhado pelo Oriente inteiro uma crença


antiga e firme de que estava inscrito nos fados que, naquele
tempo, se apoderariam do poder homens provenientes da
Judeia. Tal previsão, que se referia ao imperador romano,
como depois se tornou evidente pelo porvir257, reportaram-na

254
Entre 66-68 d.C. Cf. Suet. Nero 22-24.
255
Com esta falta Vespasiano foi proibido de aceder ao palácio (cf.
Ves. 14). O biógrafo insere aqui parte da censura de Febo a Vespasiano:
Cf. D.C. 63.10.1a e 66.11.2. Ao contrário de Suetónio e Díon Cássio,
Tácito (Ann. 16.5.3) situa o episódio em 65, em Itália, o que parece
fazer mais sentido.
256
Nesse caso, a ausência de Vespasiano foi curta. A partida para
a Grécia foi em finais de 66 e Vespasiano assumiu o exército da Judeia
no ano seguinte. A propaganda dos Flávios pode ter exagerado a ofensa
a Nero, para minimizar os efeitos da adulação de Vespasiano para com
o imperador. Vide Jones & Milns 2002: 50-51.
257
Tácito (Hist. 5.13.2) considera que a profecia se refere concreta-
mente a Vespasiano e Tito. Griffiths (1970: 363-368) compara a profecia
com as dos rolos de Qumram e conclui que os dois autores (Suetónio
e Tácito) se apoiam numa profecia mais antiga e mais próxima Livro
de Daniel, 2.44, do Velho Testamento, do que dos manuscritos do mar
Morto, nos quais havia referências hostis aos romanos (nomeadamente
no Rolo da guerra dos filhos da luz contra os filhos das trevas, da segunda
metade do séc. I a. C.).
74
Vidas dos Césares

os Judeus a si próprios, rebelando-se; e, além de matarem o


governador258, ainda puseram em fuga o legado consular da
Síria 259, que acorreu em auxílio, depois de lhe arrebatarem
uma águia. Para reprimir tal sublevação, tornava-se necessário
enviar, juntamente com um exército bastante grande, também
um general não desprovido de bravura, a quem se pudesse con-
fiar com segurança tamanha empresa. Sobre ele próprio recaiu
a primeiríssima escolha, pela sua comprovada diligência e por
não causar qualquer tipo de receio, dada a modéstia da linha-
gem e do nome. 6. Depois de acrescentar às tropas duas legiões,
oito alas e dez coortes260 e de integrar o filho entre os legados261,
mal chegou à província 262 fez voltar para si também os olhos
das províncias limítrofes263, por ter imediatamente restabele-
cido a disciplina do acampamento, e entrou em uma ou duas
batalhas com tal temeridade que, no assédio a uma fortaleza,
recebeu um golpe de uma pedra num joelho e algumas setas no
escudo264.

5. 1. Quando, depois da morte de Nero e Galba, Otão e


Vitélio disputavam o principado, acometeu-o a esperança do
império, já antes acalentada pelos seguintes presságios.

2. Num campo dos Flávios perto da cidade, um antigo


carvalho, que fora consagrado a Marte 265, produziu

258
Géssio Floro. Suetónio equivoca-se: ele não foi morto, mas
retirou-se para Cesareia.
259
Céstio Galo. Cf. Tac. Hist. 5.10.
260
Josefo (BJ 3.66) apresenta números diferentes.
261
Tito, o futuro imperador. Comandante da XV legião
262
A Judeia.
263
Egipto e Síria.
264
Certamente em Jotapata: Cf. J. BJ. 3.236. Sobre a fortaleza cf.
J. BJ. 3.158-160
265
Habitualmente a árvore consagrada a Júpiter.
75
Vidas dos Césares

inesperadamente, a cada um dos três partos de Vespásia, um


novo ramo do tronco, sem dúvida como sinal do futuro des-
tino de cada um. O primeiro era débil e rapidamente secou,
pelo que a menina que nasceu não chegou a um ano de idade;
o segundo era bastante forte e frondoso, pelo que augurava
grande fortuna; o terceiro então mais parecia uma árvore. Por
isso, diz-se que o pai, Sabino, encorajado, além disso, por um
ritual de arúspice, foi anunciar à mãe que lhe tinha nascido
um neto César. E ela não fez outra coisa senão rir às garga-
lhadas, admirada por continuar sã da cabeça, quando o filho
já delirava.

3. Mais tarde, quando já era edil, Gaio César266, irritado


com falta de cuidado no varrer as ruas, mandou cobri-lo de
lama, que os soldados juntaram na prega da sua toga pre-
texta 267, pelo que não faltou quem interpretasse que um dia o
Estado, pisado e desprotegido por causa de alguma agitação
civil, recairia sob a sua proteção e, por assim dizer, no seu
regaço268.

4. Certa vez, enquanto ele estava a almoçar, um cão vadio


trouxe de uma encruzilhada uma mão humana e colocou-a

266
Calígula.
267
A toga oficial usada pelos edis, curuis, cônsules e principais
sacerdotes.
268
Cf. D.C. 59.12.3. Este autor diz que ninguém, então, atribuiu
qualquer significado especial ao acontecimento. Segundo Gascou
(1984: 359), este acontecimento explicaria a adulação de Vespasiano
a Calígula, na busca das boas graças do imperador (Ves. 2.3); mas o
biógrafo fracionou as informações sobre a relação de Vespasiano com
este imperador, distribuindo-as entre narrativa cronológica e os ostenta.
Para uma interpretação do acontecimento à luz das tensas relações de
Calígula com o senado, vide Rossi 1971: 164-171.
76
Vidas dos Césares

debaixo da mesa 269. Noutra altura, quando estava a jantar,


um boi que andava a lavrar libertou-se do jugo, irrompeu pelo
triclínio, pôs em fuga os serviçais, e, caindo aos pés dele como
que subitamente esgotado, baixou a cerviz 270. Também um
cipreste de um campo do avô que tinha sido arrancado pela
raiz e derrubado, sem a força de qualquer tempestade, levan-
tou-se de novo no dia seguinte mais viçoso e mais firme271.

5. Além disso, na Acaia sonhou que adviria um futuro


ditoso para si e para os seus no momento em que fosse arran-
cado um dente a Nero. Ora aconteceu que, no dia seguinte,
um médico ao entrar no átrio lhe mostrou um dente que
acabara de lhe extrair272.

6. Quando consultou na Judeia o oráculo do deus do


Carmelo, as predições foram de tal modo seguras, que lhe
prometeram que, por maior que que fosse o que quer que ele
cogitasse e planeasse, se realizaria 273. E um dos nobres cativos,
Josefo, ao ser lançado na prisão asseverou com toda a con-
fiança que seria em breve libertado por Vespasiano, mas então

269
Cf. D.C. 66.1.2. A mão é o símbolo natural do poder: aparecia
desenhada nas insígnias dos manípulos.
270
Cf. C.D. 66.1.2. O boi simboliza o Estado que se liberta
do tirano para se submeter a Vespasiano. O facto de Vespasiano se
encontrar à mesa é significativo, dada a importância dos banquetes
assimilados às refeições sacrificiais. Vide Cesa 2000: 60.
271
Cf. Tac. Hist. 2.78.2.4. Segundo Díon Cássio (66.1.3), a árvore
caiu devido à violência do vento. O cipreste é símbolo da vida no
mundo antigo, ligado às divindades procriadoras e consagrado a Apolo.
O abatimento deste mesmo cipreste prenuncia o fim da dinastia dos
Flávios, como então diz o biógrafo (Dom. 15.2).
272
Cf. D.C. 66.1.3.
273
Segundo Tácito (Hist. 2.78.3), o sacerdote chamava-se Basílides.
Vide Morgan 1996: 41-55.
77
Vidas dos Césares

já imperador274. 7. Também da Urbe chegavam notícias de


presságios: de que Nero, nos seus últimos dias, foi aconselhado
num sonho a conduzir o carro de Júpiter Óptimo Máximo do
santuário para a casa de Vespasiano e daqui para o Circo275;
de que não muito depois, quando Galba entrava nos comícios
do seu segundo consulado, a estátua do Divino Júlio se virou
espontaneamente para o Oriente276; e de que, no recontro de
Betríaco277, antes de se travar o combate, duas águias desata-
ram a lutar à vista de todos e que, depois de uma ser vencida,
sobreveio uma outra do lado do sol nascente que pôs em fuga
a vencedora 278.

6. 1. Em todo o caso, apesar da extrema prontidão e insis-


tências dos seus apoiantes, nada tentou até que foi instigado
pelo apoio casual de alguns desconhecidos e afastados 279.

274
Cf. D.C. 66.1.4 e J. BJ 3.401. Trata-se de Flávio Josefo, que se
rendeu na altura da tomada de Jotapata pelos Romanos e que mais
tarde recebeu a cidadania romana. Josefo diz que profetizara a ascensão
de Vespasiano ao governo do império, sem mencionar a sua própria
libertação. As discrepâncias são para Braithwaite (1927: xv n. 2 e 34)
uma prova de que Suetónio não conheceria o Bellum Iudaicum, pois só
nomeia Josefo como personagem histórica. Mas, para Gascou (1984:
282-283), o facto de o biógrafo não seguir o relato de Josefo não signi-
fica que o não tenha consultado.
275
Cf. D.C. 66.1.3. Trata-se da carroça destinada a transportar a
estátua do deus na procissão de abertura dos jogos do Circo.
276
Cf. Tac. Hist. 1.86.1; Plu. Oth. 4.8. Trata-se da estátua situada na
Ilha Tiberina. Tácito e Plutarco colocam o presságio no principado de
Otão. O fenómeno simboliza a passagem de uma família à outra, pois
Júlio César é o fundador da dinastia júlio‑cláudia. Vide Cesa 2000: 62.
277
Refere-se à primeira batalha de Betríaco (14 de abril de 69),
entre as tropas de Otão e as de Vitélio, em que as de Vitélio foram
vencedoras. A segunda batalha (24 de outubro de 69) foi entre as forças
de Vitélio e as de Vespasiano, saíndo vencedoras estas últimas.
278
Apenas Suetónio relata o primeiro e o último prodígio desta
lista, embora Tácito (Hist. 2.50.2) refira uma ave estranha que desapa-
rece depois da morte de Otão.
279
Ves. 6.1. Tácito diz que estava receoso (Hist. 2.76.1).
78
Vidas dos Césares

2. Uns destacamentos de dois mil soldados de três legiões do


exército da Mésia tinham sido enviados para prestar auxílio
a Otão. Depois de se lançarem ao caminho, foi-lhes anun-
ciado que ele tinha sido vencido e que pusera fim à vida. No
entanto, continuaram sem detença até Aquileia, por não darem
crédito ao que parecia um rumor. Uma vez ali, aproveitaram
a ocasião e a liberdade para se envolverem em toda a espécie
de pilhagens. Mas, com medo de que, depois de regressarem à
base, tivessem de prestar contas e suportar o castigo, tomaram
a decisão de escolher e aclamar um imperador; pois não se
consideravam piores que o exército da Hispânia, que escolhera
Galba, ou os pretorianos, que escolheram Otão, ou o exército
da Germânia, que escolhera Vitélio. 3. Foram, então, sugeridos
os nomes de quantos legados consulares havia e onde quer
que se encontrassem, mas rejeitaram-nos a todos, uns por
um motivo, outros por outro. E, como alguns elementos da
terceira legião, que por altura da morte de Nero tinha sido
transferida da Síria para a Mésia 280, indicaram Vespasiano
com louvor, aprovaram-no por unanimidade e escreveram sem
demora o nome dele em todos os estandartes281. Na altura, a
questão foi contida, e aquele corpo voltou ao cumprimento
do dever por algum tempo. De resto, uma vez espalhada a
notícia do acontecimento, Tibério Alexandre282, prefeito do
Egito, foi o primeiro a fazer as legiões jurarem fidelidade ao
nome de Vespasiano, nas calendas de julho, data que foi de
futuro celebrada como o dia do seu principado283. De seguida,

280
A III Gallica.
281
Cf. Tac. Hist. 2.85; J. BJ 4.619.
282
Um judeu apóstata que fora procurador da Judeia e mais tarde
prefeito do Egito.
283
1 de julho do ano 69.
79
Vidas dos Césares

o exército da Judeia fez o juramento em presença do próprio


no dia cinco antes dos idos de julho284.

4. Contribuíram em muito para tal empreendimento a


circulação de uma cópia de uma carta, verdadeira ou falsa,
do falecido Otão a Vespasiano, a recomendar-lhe, em tom de
grande súplica, a vingança e a desejar que ele fosse o remédio
para o Estado285, bem como o rumor que se espalhou de que
Vitélio planeava, depois da sua vitória, fazer uma permuta nos
acampamentos de inverno das legiões e enviar as da Germânia
para o Oriente, para que o serviço militar fosse mais seguro
e mais fácil 286; além disso, o apoio de, entre os governado-
res, Licínio Muciano287, e de, entre os reis, Vologeso, rei dos
Partos288: o primeiro, pondo de lado a hostilidade, que até
aquela altura não escondia por causa da rivalidade, prometeu

284
A 11 de julho; ou 3 de julho, segundo Tácito. Cf. Tac. Hist. 2.79;
J. BJ 4.592-620. Segundo Josefo (BJ 4.601), Vespasiano foi aclamado
na Judeia, mas tal versão é rejeitada como tendenciosa pelos autores
modernos. Vide Cesa 2000: 64; Jones & Milns 2002: 56-57.
285
Suetónio é o único a falar deste documento – talvez fosse uma
ação da propaganda dos Flávios para atrair as tropas fiéis a Otão. Há
contradição entre este passo e a menção a somente duas cartas na Vida
de Otão (10.2): uma à sua irmã, outra a Estatília Messalina. A incongru-
ência fica a dever‑se, segundo Gascou, à técnica do biógrafo que trata
cada Vida como um unidade independente das outras. Vide Gascou
1984: 384; Cesa 2000: 65; Jones & Milns 2002: 57.
286
Suetónio torna‑se elítico pela sua concisão: a permuta era gra-
vosa para o exército da Síria, pois pressupunha a transferência destas
legiões para a Germânia. Tácito integra o rumor sobre tais planos de
Vitélio nos argumentos do discurso de Muciano ao exército (Hist.
2.80.3). Vide Cesa 2000: 65.
287
Muciano, governador da Síria, era sobretudo favorável a Tito,
segundo Tácito (Hist. 2.74.1).
288
Vologeso I, rei dos Partos entre 51 e 79.
80
Vidas dos Césares

o exército da Síria; o segundo prometeu quarenta mil


arqueiros289.

7. 1. Depois de empreender a guerra civil e de enviar à


frente os generais290 e as tropas para Itália, viajou para Ale-
xandria 291 para tomar posse da chave do Egipto292. Uma vez
ali, para tomar auspícios sobre a duração do seu império,
dispensou toda a gente e entrou sozinho no templo de Serápis.
E, quando, depois de propiciar bastante o deus, finalmente se
voltou, pareceu-lhe ver o liberto Basílides a oferecer-lhe ver-
bena, coroas e bolos, como é costume daquele lugar, embora
fosse certo que este não tinha sido autorizado por ninguém a
entrar, que havia tempo caminhava com dificuldade, por causa
de um problema de saúde nos tendões, e que se encontrava
longe293. Imediatamente chegaram cartas a anunciar que as

289
Como resultado do envio de embaixadores com o pedido (Tac.
Hist. 2.82). Tácito (Hist. 4.51) refere a chegada dos embaixadores, com
a oferta de 40 000 cavaleiros (certamente archeiros a cavalo), depois da
batalha de Cremona, pelo que regista a ironia de Vespasiano receber
tão magnífica e auspiciosa ajuda dos aliados e não necessitar já dela.
290
Muciano e António Primo.
291
Cf. D.C. 65.9.2; Tac. Hist. 2.82.
292
Designação dada pela importância estratégica do Egipto. Cf.
Tac. Hist. 3.8; Ann. 2.59.
293
Segundo Tácito (Hist. 4.82), Basílides é um dos ilustres do
Egipto; e Vespasiano retira um presságio do nome (formado a partir
de basileus ‘rei’). Herrmann (1953: 312-315) sugere que o Basílides do
monte Carmelo (identificado por Tácito, Hist. 2.78.3) possa corres-
ponder ao mesmo indivíduo: este, depois de vaticinar naquele monte,
ter-se-ia deslocado, por causa da doença, para Leontópolis (a cerca
oitenta milhas de Alexandria), onde existia um templo rival do de
Jerusalém. Os elementos apresentados (verbena, coroas e bolos) faziam
parte do ritual de coroação dos monarcas egípcios. Vide Derchain 1953:
261-279; Derchain et Hubaux 1953: 38-52.
81
Vidas dos Césares

tropas de Vitélio tinham sido desbaratadas junto de Cremona


e que ele próprio tinha sido assassinado na Urbe294.

2. Faltava autoridade e uma certa majestade, por assim


dizer, ao inesperado e novo príncipe, mas também estas ele
conseguiu. Um homem do povo, privado de vista, e outro
defeituoso de uma perna apresentaram-se ambos diante dele,
quando estava sentado no tribunal, a rogarem-lhe a cura,
segundo lhes tinha sido indicado por Serápis em sonhos: que
restituiria os olhos se lhes cuspisse295; que refirmaria a perna, se
consentisse tocar-lhe com o calcanhar. E como ele tinha pouca
fé de que pudesse de alguma forma ter êxito e nem sequer se
atrevia a experimentar, exortado pelos amigos, lá tentou, por
fim, fazer uma coisa e outra às claras diante da assembleia
e não deixou de ser bem-sucedido296. Por essa altura foram,
por instigação de uns adivinhos, desenterrados em Tegea, na

294
Estas notícias não teriam chegado na mesma altura, uma vez
que há um intervalo de dois meses entre a vitória em Cremona e a
execução de Vitélio. Segundo Tácito (Hist. 3.48.3), a notícia da vitória
de Cremona chega ao conhecimento de Vespasiano antes de ele chegar
a Alexandria. Josefo (BJ 4.656) apresenta a mesma cronologia de Suetó-
nio. Vide Braithwaite 1927: 38-39; Jones & Milns 2002: 59.
295
A cura das doenças dos olhos com saliva é bem conhecida no
mundo oriental, e documentada nos evangelhos de Marcos (8.23) e
João (9.6).
296
Cf. Tac. Hist. 4.81 e D.C. 66.8.1. Tácito coloca a realização de
tais milagres antes da visita ao Serapeu. Cesa (2000: 6-7; 69) fala de
um consensus deorum (o deus do Carmelo, o deus dos Judeus e Serápis).
Tácito refere a consulta de médicos que asseguram não se tratar de
doenças incuráveis. Enquanto Suetónio menciona uma enfermidade
da perna, Tácito e Díon referem uma doença na mão. Tais milagres
podiam sugerir a assimilação, por ação da propaganda, de Vespasiano
a Serápis ou o favor divino que lhe conferia dons miraculosos: vide
Henrichs 1968: 51-80.
82
Vidas dos Césares

Arcádia, num lugar sagrado, uns vasos de fabrico antigo nos


quais se via uma imagem semelhante a Vespasiano297.

8. 1. Ao regressar a Roma com tal e tão grande reputação


realizou o triunfo sobre os Judeus e acrescentou oito consula-
dos ao anterior298, assumiu a censura e por todo o tempo do
seu império a nada deu mais importância do que proporcionar,
antes de mais, estabilidade ao Estado, que estava quase abatido
e vacilante, e depois, embelezá‑lo299.

2. Os soldados, uns pela jactância da vitória, outros pela


dor da humilhação da derrota, entregaram-se por completo à
libertinagem e ao atrevimento300. E até as províncias e cidades
livres, e não menos certos reinos, agiam entre si de forma
assaz violenta. Por isso, a muitos dos soldados de Vitélio,
desmobilizou-os301 e reprimiu-os, e com os que participaram
na vitória não se mostrou mais indulgente do que era de regra,
ao ponto de só tardiamente lhes conceder o prémio devido. 3.
E, para não perder qualquer oportunidade de corrigir a dis-
ciplina, a um rapazola que cheirava a perfume, que lhe vinha
agradecer a concessão de uma prefeitura, mostrando o desdém
com um meneio da cabeça, repreendeu-o com estas gravíssi-

297
A antiguidade dos objectos conferia‑lhes uma espécie de santi-
dade religiosa, como acontece com a placa de bronze que pressagia a
morte de César ( Jul. 81.1). Também a aclamação de Galba é precedida
do achado de uma antiguidade: o anel com a imagem da Vitória (Gal.
10.4.)
298
Tinha sido cônsul suffectus em 51.
299
Segundo Braithwaite (1927: 41), seria difícil definir a política
de Vespasiano de forma mais clara ou mais concisa do que nesta frase.
300
Também Augusto tomara providências quanto à situação dos
soldados depois da guerra civil: Aug. 24-25.
301
Só alguns destacamentos. Reduziu o número dos pretorianos
de Vitélio.
83
Vidas dos Césares

mas palavras: “preferia que cheirasses a alho!”302; e revogou a


nomeação. Quando os marinheiros, que caminhavam a pé,
por turnos, de Óstia e Putéolos até Roma, lhe pediram que
lhes fosse atribuído um subsídio à conta do calçado, como se
já fosse pouco despedi-los sem resposta, mandou-os depois
percorrerem o trajeto descalços – e desde então assim o per-
correm303.

4. Foi retirada a independência da Acaia 304, da Lícia, de


Rodes, de Bizâncio e de Samos, transformando-as em pro-
víncias, e o mesmo fez com a Trácia, Cilícia e Comagene que,
até então, tinham governos monárquicos305. Para a Capadócia
enviou legiões, por causa das frequentes incursões dos bár-
baros, e colocou-lhe à frente um governador de categoria
consular em vez de um cavaleiro306.

302
Cheirar a alho é típico de um romano. Segundo Plauto (Poen.
1309-14), os remadores romanos cheiram a alho. Na Mostelaria (23-24;
39-48; 64-65), dois escravos contrastam os sabores exóticos gregos com
o nacional de sabor a alho.
303
Suetónio refere‑se aos destacamentos da frota de Miseno que
se encontravam em Óstia e Putéolos. No Adriático existia a frota de
Ravena. Os classiarii exerciam também a função de correios. Vide Cesa
2000: 73; Jones & Milns 2002: 62.
304
Que Nero tinha declarado live: Cf. Suet. Nero 24.2. Vespasiano
tornou-a de novo província senatorial.
305
A perda da autonomia daquelas comunidades sob Vespasiano foi
em alturas diversas. De resto, muitas delas tinham já antes perdido e
recuperado a libertas sob os Júlio-Cláudios, de acordo com as circuns-
tãncias. Além disso houve outras anexações (Palmira, Émesa, Arménia
Menor). Embora sob pretexto de conflitos internos, as alterações foram
feitas para aumentar a coleta de impostos e reforçar as fronteiras a leste.
Para mais pormenores e perspetivas, vide Cesa 2000: 73-75; Jones &
Milns 2002: 62-64.
306
O que significa que antes era uma província procuratorial.
84
Vidas dos Césares

5. A Urbe apresentava-se desfeada por antigos incêndios


e desabamentos. Permitiu a quem quisesse ocupar as áreas
vagas e construir ali, se os proprietários as negligenciavam.
Ele próprio, iniciando a reconstrução do Capitólio, foi o pri-
meiro a deitar mão à limpeza do entulho e a carregar algum
às costas307. Tratou também de recuperar três mil tábuas de
bronze, que tinham ardido na mesma altura 308, procurando
cópias por toda a parte – um registo do império excelente
e muito antigo, em que estavam contidos quase desde as
origens da Urbe decretos do senado, plebiscitos sobre a alian-
ças e tratados, bem como privilégios concedidos a diversas
pessoas.

9. 1. Também edificou novas obras: o templo da Paz 309


perto do Foro e, no Monte Célio, o do Divino Cláudio – já
antes começado por Agripina, mas destruído por Nero até
aos alicerces310 – e ainda o Anfiteatro no meio da Urbe311, de
acordo com um plano de Augusto que descobrira 312.

307
O templo ardeu no confronto entre os partidários de Vespasiano
e os de Vitélio. O biógrafo atribui as culpas Vitélio (Vit. 15.3). Tácito
(Hist. 3.71.4) atribui as responsabilidades de modo diferente. Quanto
à interpretação do gesto de Vespasiano como exemplar e encorajador,
vide Keaveney 1987: 213-216.
308
No incêndio do templo.
309
Cf. J. BJ 7.158-161.
310
Por causa da construção da Domus Aurea. Rodrigues 2020:
127-128.
311
Conhecido como Colosseum a partir da época medieval, devido
à presença do colosso de Nero. O Poeta Marcial assistiu à inaugura-
ção, já por Tito, no ano 80, e escreveu o “Livro dos Espetáculos” (De
Spectaculis), para celebrar o evento. Domiciano completou, escavando
provavelmente a cave sob a arena, uma vez que Tito, ainda ali realizou
batalhas navais (o que pressupõe que a cave ainda não existiria, embora
alguns autores achem que sim).
312
A ideia de que era uma intenção de Augusto terá sido obra da
propaganda dos Flávios. O biógrafo não trata as grandes e numerosas
85
Vidas dos Césares

2. Quanto às mais distintas ordens313, desfalcadas por um


sem-número de mortes e corrompidas por um prolongado
desmazelo, expurgou-as e preencheu-as, através da revisão
do senado e dos cavaleiros, removendo os mais indignos
e adscrevendo também os mais ilustres entre os itálicos e
os provinciais314. E, para deixar claro que as duas ordens se
distinguiam uma da outra não tanto pelos direitos como pela
categoria social, a propósito de uma contenda entre um sena-
dor e um cavaleiro, sentenciou o seguinte: não se deve ofender
os senadores, mas responder a uma ofensa é um direito cívico
e divino.

10. O número dos litígios tinha-se tornado excessivo por


toda a parte, uma vez que aos antigos, que continuavam por
causa da interrupção dos julgamentos315, se acrescentavam os
novos, resultantes da situação conturbada dos tempos. Esco-
lheu por sorteio delegados que restituíssem os bens roubados
por causa da guerra 316 e que julgassem de forma extraordinária
os pleitos atribuídos aos centúnviros317 e os reduzissem a um
pequeníssimo número, uma vez que a idade dos litigantes
dificilmente parecia chegar para levar a cabo os processos.

obras públicas de Vespasiano fora de Roma, porque se centra aqui,


como foi enunciando, na preocupação com stabilire e ornare a res
publica (8.1) no que concerne à fealdade da Urbe (deformis urbis) (8.5).
Mesmo assim deixa de fora várias construções na cidade.
313
Senatorial e equestre.
314
Cf. Tac. Hist. 2.82. Os precedimentos eram a adlectio, para
integração no senado, e a probatio ou recognitio para a ordem equestre.
A adlectio no senado era uma forma de premiar serviços prestados.
Entre os provinciais estavam familiares dos Antoninos.
315
Por causa das guerras.
316
Cf. Tac. Hist. 4.40.
317
Tratavam questões de direito civil, como heranças, propriedade,
status, liberdade etc. Os processos podiam tornar-se excessivamente
longos, porque tornavam-se palco para eloquência dos advogados.
86
Vidas dos Césares

11. A devassidão e a sumptuosidade, sem freio que as con-


tivesse, tinham prosperado. Foi, por iniciativa dele, emitido
um decreto do senado a determinar que se alguma mulher se
unisse a algum escravo de outrem, fosse ela mesma considerada
escrava 318; e que os usurários não tivessem jamais o direito de
exigir o pagamento do empréstimo aos filhos de família, isto
é, nem sequer depois da morte dos pais319.

12. Pautava-se, nas restantes questões, logo desde o início


do principado até à morte pela civilidade e brandura 320, sem
nunca dissimular a origem modesta, de que frequentemente
até se mostrava ufano. De facto, quando uns fulanos procu-
ravam reportar a origem da família Flávia aos fundadores de
Reate e a um companheiro de Hércules321, cujo sepulcro ainda
se conserva na Via Salária, riu-se deles a bandeiras despre-
gadas322. Estava tão alheado do desejo do aparato, que no dia

318
Não era algo novo, mas o reafirmar do Senatus Consultum Clau-
dianum de 52: cf. Tac. Ann. 12.53.
319
Também aqui se trata de pôr em prática o Senatus Consultum
Macedonianum de 47: cf. Tac. Ann. 11.13.
320
Civilis et clemens. A ciuilitas, a atitude do bom cidadão, e a cle-
mentia são virtudes que em Suetónio estão associadas à moderatio: vide
Gascou 1984: 722-723. Representam o inverso das tendências tirânicas
que são a arrogantia ou inpotentia e a saeuitia ou crudelitas. A constância
de Vespasiano distingue‑o de imperadores dissimulados, como Tibério,
Calígula, Nero e Domiciano, onde tais virtudes se manifestam de início
para depois degenerarem em vícios (cf. Tib. 26.1; Cal. 15.4; Nero 10.1;
Dom. 9.1), e aproximam‑no de Augusto, em quem prevalecem (Cf. Aug.
51.1: Clementiae cuilitatisque eius multa et magna documenta sunt).
321
Hércules estava ligado a Itália, por onde passara depois de rou-
bar os bois de Gérion na Hispânia. Aparece como um civilizador, por
ter libertado o Lácio de Caco, segundo a lenda.
322
Recusar honras divinas era manifestação de ciuilitas. Aos Júlios
atribuía-se uma descendência de Eneias e Vénus. Galba expôs no Átrio
uma árvore genealógica a entroncar em Pasífae e no Sol (Gal. 2), infor-
mações que talvez encontrasse nos arquivos da família. Havia quem
87
Vidas dos Césares

do triunfo323, cansado pela demora e aborrecimento do cortejo,


não escondeu que tinha o castigo merecido por, com a sua
idade324, ter desejado estupidamente um triunfo, como se fosse
uma dívida para com os antepassados ou aspiração que alguma
vez acalentasse. Mesmo o poder tribunício325 e o título de Pai
da Pátria não os aceitou senão mais tarde326. De facto, também
o costume de revistar os que o vinham saudar pela manhã já
o abandonara durante a guerra civil327.

13. Suportava com notória mansidão328 as liberdades dos


amigos, as alusões329 dos advogados e a intransigência dos
filósofos. Em relação a Licínio Muciano330 cuja homossexua-
lidade 331 era conhecida, mesmo sendo este menos respei-
toso para com Vespasiano, pela confiança decorrente dos
serviços prestados, nunca tratou de o repreender, a não ser
discretamente e limitando-se a dizer a um amigo comum:

fizesse entroncar a família dos Vitélios (Vit. 1.1) numa divindade itálica,
Vitélia. Para uma origem ilustre etrusca de Otão, cf. Otho 1.1.
323
Sobre os Judeus, em 71, juntamente com Tito.
324
Tinha 60 anos.
325
Existe aqui uma lacuna no texto que alguns autores tentaram
colmatar.
326
Mas há inscrições e datas que situam a atribuição da tribunicia
potestas em 69.
327
Para verificar se tinham algum punhal escondido, de modo a
prevenir atentados: cf. Cl. 35.1; D.C. 60.3.3.
328
Lenissime. Depois de dar exemplos de ciuilitas, Suetónio passa
agora a dar exemplos de clementia, conforme enunciara na secção
anterior (Ves. 12).
329
Figurae. Neste caso, significa artifícios retóricos dos advogados.
Domiciano faz condenar Hermógenes de Tarso devido a figurae que usa
na sua Historia (Dom. 10.1). Vide Cesa 2000: 83.
330
Muciano foi determinante na consolidação do poder de Vespa-
siano. Foi moderadamente recompensado. Tornou-se cônsul suffectus
em 70 e 72. Suetónio desdobra os exemplos de lenitas: um amigo, um
advogado e um filósofo.
331
Impudicitia, isto é, neste contexto, homossexualidade passiva.
88
Vidas dos Césares

“eu ao menos sou um homem!”. Quando Sálvio Liberal 332, ao


defender um cliente rico, se atreveu a dizer “que tem César
a ver com o facto de Hiparco ter milhões de sestércios?” ele
próprio o elogiou333. Ao cínico Demétrio, que lhe apareceu no
caminho depois de ter sido condenado e que, sem se dignar
levantar-se ou saudá-lo, ainda lhe rosnou qualquer coisa,
limitou-se a chamar-lhe “cão”334.

14. Sem qualquer propensão para lembrar as afrontas e


hostilidades, casou de forma magnificente a filha do seu ini-
migo Vitélio, deu-lhe um dote e providenciou o necessário335.
Quando ele, no tempo de Nero, temeroso por lhe ter sido
proibida a presença no palácio336, perguntou o que havia de
fazer ou para onde havia de ir, um responsável pela entrada,
enquanto o punha na rua, mandara-o ir para o raio que o par-
tisse337. Mais tarde, quando este se veio desculpar, ele, na fúria,

332
Um cavaleiro do Piceno, integrado no senado, recebeu vários
comandos nas províncias.
333
O advogado sugeria que Vespasiano o queria ver condenado para
que a sua fortuna revertesse para o Estado, que enfrentava dificuldades
financeiras. O réu seria certamente Tibério Cláudio Hiparco Ático
Herodes, avô de Herodes Ático. De facto, foi condenado e a sua fortuna
foi confiscada.
334
Cf. D.C. 66.13.2-3. Referência humorística por associação do
nome da escola filosófica ao do animal. Igual motivo de cómico figura
em Marcial: 4.53. Mas Suetónio cala a expulsão dos filósofos, incluindo
Demétrio, por ação de Muciano: cf. D.C. 66.13.1. Demétrio foi próximo
de Trásea Peto e admirado por Séneca. Já antes tinha sido expulso de
Roma por Nero.
335
Tinha sido prometida a Valério Asiático, governador da Gália
Belga. Gascou (1984: 322) avança a hipótese de se tratar de uma tenta-
tiva de restaurar a imagem negativa causada pelas execuções (inclusive
do filho de Vitélio), perpetradas sob a orientação de Muciano (Tac.
Hist. 4.11 e 4.80), antes de Vespasiano chegar do Oriente.
336
Cf. atrás Ves. 4.4.
337
Morbouiam é um hápax, composto de morbus ‘doença’ e uia
‘caminho’.
89
Vidas dos Césares

não foi além das palavras, e até aproximadamente o mesmo


número e as mesmas338. Assim, estava tão longe de ser levado a
condenar alguém com base em alguma suspeita ou temor, que,
apesar de os amigos o aconselharem a ter cuidado com Métio
Pomposiano, porque se acreditava entre o povo que tinha um
horóscopo relativo ao governo do império, ele até o fez cônsul,
respondendo que um dia aquele se iria lembrar da mercê339.

15. Não seria fácil encontrar algum inocente que fosse cas-
tigado, a não ser na sua ausência e sem ele saber ou certamente
contra a sua vontade e por dolo340. Quanto a Helvídio Pisco341,
o único que saudara Vespasiano pelo nome privado342, quando
este regressou da Síria, e que, no exercício da pretura, não
incluíra em nenhum dos editos qualquer referência honorí-

338
Tibério teve uma desforra semelhante para com um gramático
de Rodes: Tib. 32.2. A resposta do interlocutor (de nome Febo, segundo
Díon Cássio) integra-se no contexto das consequências da ofensa a Nero
na viagem à Grécia. Díon Cássio apresenta duas versões: 63.10.1 a e
66.11.2. Tácito situa o facto em Roma: Ann. 16.5.3. Braithwaite (1927:
30) acha que são versões distintas e que Vespasiano incorreu em duas
ofensas, uma em Roma e outra na Grécia. Pelo contrário, Gascou (1984.
323-326 e 360) acha que se trata do mesmo acontecimento e que o
biógrafo omite neste passo as informações que já deu em 4.4, o que
dificulta a identificação do incidente. Vide Cesa 2000: 55.
339
Domiciano mandou exilá-lo e depois executá-lo (Dom. 10.3).
Cf. D.C. 67.12.2-4. Gascou (1984: 326-328) sugere que a ação de Ves-
pasiano e a de Domiciano viriam juntas em relatos posteriores à morte
de Domiciano, pelo que Suetónio terá separado e usado o material que
dizia respeita a cada um dos biografados.
340
Absente eo alude às execuções levadas a cabo por Muciano em
Roma, em 70; ignaro poderá referir‑se às crueldades imputadas a Tito,
durante a sua prefeitura do pretório em 71 (Cf. Tit. 6-7); e inuito atque
decepto dirá respeito ao caso de Helvídio Prisco, tratado imediatamente
a seguir. Vide Braithwaite 1927: 57-58; Gascou 1984: 328-332.
341
Célebre estoico, genro de Trásea Peto. Foi exilado na sequência
da morte de Peto e foi de novo reabilitado por Galba. Foi pretor em 70.
Cf. Tac. Hist. 4.5-6; D.C. 66.12.1.
342
Não o tratando por Caesar ou Imperator.
90
Vidas dos Césares

fica nem lhe fizera alusão alguma 343, não se encolerizou com
ele senão quando através altercações de extrema insolência
foi quase humilhado344. Embora o desterrasse345 primeiro e,
de seguida, o mandasse executar, desejou muito poupá-lo
fosse por que meios fosse, enviando emissários para mandar
regressar os algozes. E tê-lo-ia salvo, se não lhe anunciassem,
falsamente, que já estava morto346. De resto, não havia exe-
cução alguma, de quem quer que fosse347… e até perante os
suplícios justos ele desatava em lágrimas e lamentos.

16. 1. Há só um vício, do qual é acusado com razão: a


avidez de dinheiro348. De facto, não se contentou em recuperar
os impostos descurados no tempo de Galba349, mas acrescentou

343
Cf. Tac. Hist. 4.6-9.
344
In ordinem redactus. A expressão é de uso militar. Della Corte
(1967: 97-98) destaca a diferença de tratamento de Suetónio em relação
aos dois filósofos da mesma família, réus da mesma culpa: considera
Helvídio Prisco pai arrogante e Helvídio Prisco filho inocente (Dom.
10.4). Tácito faz o elogio de Helvídio Prisco (Hist. 4.5-6), pelo que se
depreende que não aprovaria a sua condenação.
345
Relegatum. Religatio era uma forma mais suave de exílio em que
não se perdia os direitos cívicos.
346
A estratégia do biógrafo é salientar a culpa de Prisco, num
crescendo de superbia a culminar em altercationes insolentissimae. Por
outro lado, minimiza a culpa de Vespasiano, dizendo que agiu certe
inuitus atque deceptus. A culpa da morte é assim desviada para outrem:
talvez para Muciano, uma vez que Díon Cássio (66.13), o apresenta
como instigador da perseguição aos filósofos. Vide Paratore 1980: 17-18.
347
Lacuna. É geralmente aceite laetatus (omitido nos manuscritos
mais antigos) para suprir a lacuna. No que respeita às lágrimas, Gascou
(1984: 332) sugere que se trate de generalização de Suetónio a partir do
caso de Helvídio Prisco. De facto, Díon Cássio (66.12) fala das lágrimas
a propósito da prisão daquele filósofo.
348
Cf. opinião semelhante em Tácito (Hist. 2.5).
349
Provavelmente Galba concedeu benefícios fiscais às províncias
que o proclamaram imperador: a Hispânia e a Gália: Vide Braithwaite
1927: 60.
91
Vidas dos Césares

novos e mais graves350, aumentou o tributo das províncias, a


algumas até os duplicou, praticou abertamente negociatas ver-
gonhosas até para um cidadão privado, comprando certos bens
apenas para os vender depois por partes e mais caros. 2. Nem
sequer hesitou em vender cargos públicos351 aos candidatos ou
absolvições aos réus, tanto aos inocentes como aos culpados352.
Acredita-se também que costumava promover os procuradores
mais rapaces de forma propositada aos postos mais elevados,
para, depois de enriquecerem mais, os condenar. Corria entre
o vulgo que os usava como esponjas, pois, quando estavam
secos, punha-os de molho, e espremia-os quando estavam
encharcados.

3. Dizem alguns que era assaz ganancioso por natureza 353,


e isso mesmo lhe foi lançado em rosto por um vaqueiro, que,

350
Cf. D.C. 66.8.3-4. Por isso, os Alexandrinos odiaram Vespa-
siano: cf. Ves 19.
351
Honores.
352
Tácito (Hist. 2.84) atribui venalidade da justiça antes de mais a
Muciano, cujo mau exemplo é depois seguido por Vespasiano; e Díon
Cássio (66.14.3) atribui a Cénis, a companheira de Vespasiano, a venda
dos cargos.
353
Natura cupidissimus. Suetónio usa amiúde o termo natura, para
salientar que determinada virtude ou vício eram arreigados e verdadei-
ros, mesmo que fossem dissimulados: Tibério caracteriza‑se pela saeua
ac lenta natura (Tib. 57.1); Calígula manifesta natura saeua ac probrosa;
sobre Cláudio diz-se que saeuum ac sanguinarium natura fuisse, magnis
minimisque apparuit rebus («tanto nas coisas grandes como nas mais
pequenas se via que era cruel e sanguinário por natureza») (Cl. 34.1);
sobre os vícios de Nero (petulantia, libido, luxuria, auaritia, crudelitas)
conclui-se que são próprios da natura (Nero 26.1: dubium nemini foret
naturae illa uitia, non aetatis esse); Domiciano representa a degeneração
dos Flávios (Dom. 3.2; ingenii natura). Mas, embora menos frequen-
temente, também sevem para afirmar virtudes verdadeiras – de César
( Jul. 74.1: sed et in ulciscendo natura lenissimus); de Augusto (Aug. 77.1:
uini quoque natura parcissimus erat) e de Tito (Titus 8.1: natura beniuo-
lentissimus). Vide Wallace-Hadrill 1984: 159 n.26; Brandão 2009: 90-91.
92
Vidas dos Césares

ao ver que lhe era negada, gratuitamente, a liberdade que ele


suplicava encarecidamente depois de Vespasiano assumir o
império, terá exclamado: “a raposa muda de pelo, mas não de
carácter!354”. Há, em contrapartida, quem alvitre que ele foi
compelido à espoliação e rapinagem por necessidade355, dada
a extrema penúria do erário e do fisco356, sobre a qual deu tes-
temunho logo no início do principado, quando confessou que
eram necessários quarenta mil milhões357 para que o Estado
pudesse subsistir. Tal opinião parece ser a mais próxima da
verdade, uma vez que ele deu um excelente uso ao que foi mal
adquirido.

17. Muito generoso com todas as classes358, colmatou o


censo dos senadores; apoiou os ex-cônsules em dificuldades
com uma tença de quinhentos mil sestércios ao ano; a muitas
cidades que através do orbe terrestre foram afetadas por ter-
ramotos ou incêndios, restaurou-as para melhor; favoreceu ao
máximo os talentos e as artes.

18. Foi o primeiro a estabelecer uma pensão anual de


cem mil sestércios a cargo do fisco para os retores latinos
e gregos359; concedeu aos poetas destacados, e não menos

354
Mores.
355
Por oposição a natura cupidissimus. Vide Cesa 2000: 88.
356
O Aerarium era o tesouro público, para onde revertiam os
impostos das províncias senatoriais, e o fiscus representava os fundos
do imperador, para onde revertiam os fundos das províncias imperiais
e das propriedades dos imperadores nas províncias senatoriais.
357
De sestércios. A carência devia-se aos excessivos gastos no prin-
cipado de Nero e às guerras civis de 68-69.
358
O bom príncipe é generoso com todas as ordens, cf. Aug. 41.1:
Liberalitatem omnibus ordinibus per ocasiones frequenter exhibuit. Vide
Martin 1991: 300-301.
359
Cf. D.C. 66.12.1. Quintiliano foi o primeiro a beneficiar da
medida.
93
Vidas dos Césares

aos artistas, como o restaurador da Vénus de Cós360 e o do


Colosso361, um assinalável donativo e grande recompensa; tam-
bém a um engenheiro, que prometia transportar a baixo preço
as grandes colunas para o Capitólio, outorgou um prémio não
escasso pelo invento – quanto à tarefa, dispensou-a, dizendo-
-lhe que lhe deixasse alimentar o povinho362.

19. 1. Nos jogos de dedicação da reconstrução do palco


do teatro de Marcelo363 retomou também os antigos entrete-
nimentos364. Deu ao ator trágico Apeles365 quatrocentos mil

360
Quanto à identificação desta Vénus, seja uma estátua, seja uma
pintura, só há meras hipóteses. Vide Jones & Milns 2002: 79.
361
A estátua colossal de Nero, construída em bronze, transformada
por Vespasiano em estátua dos sol (Plin. Nat. 34.45).
362
Plebicula. Casson (1978: 43-50) contesta a interpretação habitual
do texto, sugerindo que o trabalho seria feito, em grande parte, por
escravos e dificilmente Vespasiano se lhes referiria como plebicula. A
proposta do mechanicus poderia referir‑se não a uma invenção, mas a
um projeto inovador de recrutar o trabalho da plebe usando o suple-
mento de trigo como quid pro quo. E Vespasiano rejeita a proposta,
dizendo que prefere continuar a dar o alimento gratuitamente, em
vez de eles o ganharem com esforço. Mas Brunt (1980: 81-100) alega
que commentum, no contexto, significa invenção mecânica e que a
distribuição de trigo não é suficiente para uma família e o número
dos beneficiários é limitado: são, pois, necessárias obras públicas para
empregar a população. Vide Cesa 2000: 90-91; Jones & Milns 2002:
79-80.
363
Começado a construir por César e concluído e dedicado por
Augusto em 11 a.C. Tinha o nome do sobrinho, Marco Marcelo, que
depois casou com Júlia, tornando-se candidato a sucessor do princeps,
mas morreu em 23 a.C.
364
Ou chamou os antigos atores, ou músicos. A Palavra acroamata
é ambígua.
365
Nos manuscritos está Apelar, mas os críticos têm optado por
ver aqui Apeles, um ator do tempo de Calígula, mas que ainda poderia
continuar em atividade.
94
Vidas dos Césares

sestércios366; aos citaristas Terpno367 e Diodoro368, duzentos mil


a cada um; a outros cem mil; a alguns menos: quarenta mil –
tudo isto além de muitas coroas de ouro. Dava frequentemente
banquetes e a maior parte das vezes formais369 e fartos, de
forma a ajudar os fornecedores. Tal como oferecia presentes370
aos homens pelas Saturnais 371, assim também oferecia às
mulheres nas calendas de março372. E, no entanto, nem assim
se livrou da antiga má fama de avareza 373. 2. Os habitantes
de Alexandria continuaram a chamar-lhe “Cibiosactes”374,
alcunha de um dos reis deles de asquerosa mesquinhez. E,

366
Correspondente ao censo equestre.
367
Referido na Vida de Nero (20.1), acompanhou-o na visita à
Grécia: cf. D.C. 63.8.3.
368
Também participou na visita à Grécia: cf. D.C. 63.20.3.
369
Cena recta, segundo as normas; constituída pelo menos por 3
pratos.
370
Apophoreta – o que se leva do banquete. Marcial tem um livro
com este nome, o 14, onde colige epigramas curtos que celebram os
presentes (não só de comida) que se ofereciam nos banquetes. O Livro
13 deste autor, Xenia, celebra os presentes especificamente de comida,
ordenados segundo as partes do banquete.
371
O festival em honra de Saturno, de 17 a 23 de dezembro, em que
se celebrava o retorno a uma idade de ouro, pelo que escravos e patrões
trocavam de papéis.
372
O dia da festa dos matronalia, o festival em honra de Juno
Lucina, a deusa que presidia aos casamentos e aos partos. Nesta data,
os maridos ofereciam presentes às esposas.
373
Suetónio procura separar a atuação presente da anterior, a rea-
lidade da opinião, Vespasiano da sua fama. Como nota Gascou (1984:
702‑703), Suetónio renuncia a deixar falar os factos, mas interpreta‑os
e decide, de modo arbitrário e parcial, que uns são do domínio da
aparência e outros da realidade.
374
Palavra grega que significa “traficante de pedaços de peixe
salgado”. Segundo Díon Cássio (66.8), os alexandrinos sentiam‑se desi-
ludidos com Vespasiano: esperavam favores pelo facto de este imperador
ter sido aclamado em Alexandria, mas sofreram aumento de impostos.
Com efeito, Vespasiano optou por uma política não orientalizante.
Ainda estava presente, entre os aristocratas, a reação ao comportamento
de Nero, que se apresentava como artista, à moda grega, e agia como
um déspota oriental. Vide Grassi 1972: 147.
95
Vidas dos Césares

no seu funeral, o arquimimo Favor, que envergava a máscara


com os traços dele e que, segundo o costume, lhe imitava as
atitudes e as palavras, perguntou abertamente aos procuradores
quanto custara a cerimónia fúnebre e o cortejo. Ao ouvir “dez
milhões de sestércios”, respondeu que “lhe dessem cem mil e
o atirassem ao Tibre!”.

20. Tinha uma estatura bem proporcionada, membros


maciços e rijos, um rosto como o de quem que está a fazer
esforço, sobre o qual um certo brincalhão terá dito, não sem
graça, quando Vespasiano lhe pedia que dissesse algo também
sobre ele próprio: “direi, quando terminares de aliviar a tripa”.
Tinha uma saúde excelente, apesar de, para a preservar, não
fazer mais que friccionar ele próprio a garganta e o resto do
corpo de forma ritmada, no campo da bola, e de se impor um
dia de jejum por cada mês.

21. Manteve aproximadamente o seguinte regime de


vida 375. No seu principado, acordava sempre cedo e ainda de
noite; a seguir, depois de terminar de ler as cartas e os resumos
de todos os ofícios, recebia os amigos e enquanto o saudavam
calçava-se e vestia-se sozinho376. Depois disso, resolvidas todas
as questões que surgissem, tirava um tempo para passear de
liteira e a seguir repousar, deitando-se com alguma das con-
cubinas, que arranjara em grande número depois da morte
de Cénis. Da zona privativa passava ao balneário e ao triclí-
nio. Diz-se que em nenhuma outra altura se mostrava mais
acessível ou condescendente, pelo que o pessoal de serviço

375
Sobre a simplicidade da vida e acessibilidade de Vespasiano, cf.
Tac. Ann. 3.55; D.C. 66.10.3-4.
376
Sem a ajuda de criados para o efeito, como era costume.
96
Vidas dos Césares

aproveitava com grande empenho estas ocasiões para lhe fazer


pedidos.

22. Tanto durante o jantar como em todas as ocasiões


se mostrava bastante afável, e levava muitos assuntos para a
brincadeira 377. Mostrava, de facto, ter humor aprimorado, se
bem que folgazão e brejeiro, a ponto de nem sequer evitar usar
palavras obscenas. E ainda subsistem alguns ditos dele cheios
de graça, entre os quais os seguintes. Como o ex-cônsul Més-
trio Floro378 o advertira que devia dizer “plaustra379” em vez
de “plostra”, ele, no dia seguinte, saudou-o como “Flaurus”380.
Outra vez, tendo sido seduzido por uma fulana que fingia
estar a morrer de amor por ele, ofereceu-lhe, em troca de a
levar para a cama, oitenta mil sestércios. Como o tesoureiro
lhe perguntava como queria reportar tal soma no relatório de
contas, ele respondeu: “por um amor a Vespasiano!” 381.

377
Cf. D.C. 66.11.1.
378
Amigo e protetor de Plutarco, que lhe garantiu a atribuição da
cidadania romana. O queronense cita-o na sua Vida de Otão (14.2),
onde diz que o acompanhou numa visita ao campo de batalha de Betrí-
aco entre as forças de Vitélio e do seu antecessor, Otão.
379
Que significa ‘carroça’.
380
Assim Florus, derivado de flos (‘flor’), passa a soar como o grego
phlauros (‘mau’; ‘insignificante’; ‘desagradável’). Segundo Reekmans
(1992: 189-232), trata‑se de uma réplica com recurso a humor in uerbis
e não in rebus. Vide Cesa 2000. 94.
381
Zinn (1951: 10) contesta esta leitura do chiste, sugerindo que
pro concubitu deve traduzir‑se por ‘em vez de deitar com ela’ e não ‘em
troca de…’; e que adamatus se trata de um jogo de palavras com o grego
adamatos (‘não seduzido’): segundo ele, Vespasiano pagou à mulher, sem
se deitar com ela, e mandou relatar a despesa como “para preservação
da castidade de Vespasiano”. De modo diferente, Reekmans (1992: 210
n. 74) diz que adamatos não deve ser explicado pela presunção de que o
imperador se não deitou com a tal mulher, mas pelo facto de ele, depois
da morte da esposa (Flávia Domitila), ter decidido não voltar a casar
(e ‘livre’ é o significado de adamatos, quando aplicado a uma mulher).
Grassi (1972: 149) nota que o motivo da graça reside no inesperado:
97
Vidas dos Césares

23. 1. Empregava versos gregos de forma bastante opor-


tuna, pelo que, a propósito de um fulano de estatura elevada
e de partes íntimas enormes, disse:

“dá grandes passadas, brandindo a lança que projeta ao longe


a sombra”382

E sobre o liberto Cerilo383, que, sendo bastante rico, para


fugir aos direitos do fisco começara a apresentar-se livre de
nascimento384 e mudara o nome para Laques, disse:

“Ó Laques, Laques, quando morreres, serás de novo, como


no princípio, Cerilo”385.

Usava sobretudo o humor no que respeita aos rendimentos


torpes, para atenuar com algum dito de espírito a impopulari-
dade, de modo a transformá-la em gracejo.

2. Certa vez em que um dos funcionários mais diletos lhe


vinha solicitar um cargo administrativo para um suposto irmão,
ele adiou a questão e convocou o próprio candidato. Depois de
lhe arrancar a soma que este acordara com o seu intercessor,

normalmente seria o inspirador do amor a exigir pagamento pelos seus


serviços, mas Vespasiano faz o contrário, pois considera tal paixão
fingida para obter uma recompensa. A teoria de Zinn parece cair logo
por terra com as palavras introdutórias, onde se diz que o impurador foi
Expugnatus autem a quadam, quasi amore suo deperiret. Segundo Martin
(1991: 149), a sexualidade de Vespasiano foi muito moderada, à imagem
do comportamento do general e do homem.
382
Verso de Homero, Il. 7.213.
383
Talvez o Cerilo a que se refere Marcial em 1.67.
384
Ingenuus. Em caso de morte, o senhor herdava os bens do
liberto.
385
Versos de comédia. Mnandro, frg 223,2 Kock.
98
Vidas dos Césares

nomeou-o sem demora. Quando o funcionário lhe voltou a


falar no assunto, ele respondeu: “trata de arranjar outro irmão
para ti; este, que julgas teu, já é meu!”. Durante uma viagem,
suspeitando de que o muleteiro tivesse desmontado para ferrar
as mulas, para dar ensejo e tempo a um litigante de abordar o
imperador, perguntou-lhe quanto tinha rendido a ferragem e
exigiu a partilha do lucro. 3. Como o filho Tito o repreendia por
ter inventado uma taxa 386 sobre a urina, ele chegou-lhe ao nariz
o dinheiro proveniente da primeira coleta e perguntou-lhe se
lhe cheirava mal. Como aquele disse que não, respondeu: “mas
olha que vem da urina!”387. Perante uma delegação que lhe vinha
anunciar que lhe ia erigir uma estátua colossal por não pequena
soma a expensas públicas, ele mostrou-lhe a mão em conha e
replicou: “já está preparada a base!”. 4. E nem sequer por medo
ou no derradeiro perigo de morte se absteve de gracejos. Pois
quando, entre outros presságios, o Mausoléu 388 subitamente se
abriu e apareceu um cometa no céu 389, ele dizia que o primeiro
dizia respeito a Júnia Calvina, que era da família de Augusto390,
e o segundo ao rei dos Partos, que tinha muito cabelo391. E
mesmo no primeiro acesso da doença: “ai! – exclamou ele – acho
que me estou a tornar um deus!”392.

386
Vectigal.
387
Cf. D.C. 66.14.5. Trata-se da urina usada pelos pisoeiros ( fullo-
nes) e que era recolhida junto às lavandarias e cortumes. Vide Rodrigues
2020: 125-126.
388
De Augusto, onde era acolhida a família deste.
389
Cf. D.C. 66.17.2.
390
Era descendente (a última) de Augusto: filha de Júnio Silano
Torcato e Emília Lépida.
391
Vespasiano era calvo.
392
C. D.C. 67.17.3. Trata-se de uma paródia das últimas palavras
de Cláudio na Apocolocyntosis (4.3): uae puto concacaui me ‘ai, acho que
me larguei todo”. Fishwick (1965: 155-157) afirma que as palavras de
Vespasiano não devem ser interpretadas como uma troça grosseira do
ritual da apoteose. Este imperador tinha clara noção da importância da
99
Vidas dos Césares

24. No seu nono consulado, depois de ter na Campânia leves


acessos de febre, retornou imediatamente à Urbe e dirigiu-se para
Cutílias393 e para os campos de Reate, onde costumava passar o
verão todos os anos. Ali, além do avanço da doença, ainda irritou
os intestinos com o excessivo abuso de água fria. Mas, apesar
disso, continuava a desempenhar como de costume as funções
de imperador, ao ponto de ouvir as delegações deitado no leito.
Até que um dia um súbito ataque de diarreia o fez desfalecer394:
“um imperador – afirma ele – deve morrer de pé!”395. E enquanto
se erguia e se esforçava por se manter, morreu entre as mãos dos
que o amparavam 396 no nono dia antes das calendas de julho397,
com setenta e nove anos de idade, mais sete meses e sete dias.

divinização nas províncias, e não só do Oriente. Há quem pense que se


não trata de um gracejo de Vespasiano, mas de uma brincadeira hostil
aos Flávios. Vide Cesa 2000: 96; Jones & Milns 2002: 87-88.
393
Pequena aldeia na região sabina.
394
Os pormenores realistas indecorosos (intestina uitiasset… ad
defectionem soluta) não parecem diminuir a grandeza da personagem,
antes lhe conferem uma dimensão mais humana, como afirma Grassi
1972: 153. Martin (1991: 193-195), sugere, como provável causa de
morte, tuberculose pulmonar, pois a diarreia corresponde a uma fase
mais aguda da evolução da doença e, se acompanhada de febre, prenun-
cia uma morte iminente. Díon Cássio (66.17.1) afirma que alguns, entre
os quais Adriano, espalharam o falso rumor de que Vespasiano fora
envenenado por Tito durante um banquete. Suetónio exclui tal boato,
o que, segundo Baldwin (1983: 190), pode sugerir a crítica a Adriano
que alguns autores querem entrever nas Vidas dos Césares. Mas é mais
provável que Suetónio não quisesse macular a boa morte reservada aos
imperadores bons, como nota Gascou 1984: 793. De resto, tal crime
não se coadunaria com a imagem que quer apresentar de Tito desde o
início da Vida.
395
Os ditos servem para iluminar o carácter (vide Della Corte 1967:
152.). A última frase do imperador moribundo manifesta o respeito
pela função que desempenhou e a ausência de angústia manifesta‑se no
humor, como sugere Martin 1991: 352-353, que aproxima a morte de
Vespasiano da de Augusto. Vide Murphy 1991: 3784.
396
Cf. D.C. 66.17.1-3.
397
Dia 23 de junho de 79.
100
Vidas dos Césares

25. É consensual entre todos que ele tinha tanta confiança


no seu horóscopo e no dos seus, que, até depois de frequentes
conjuras398 contra si próprio, ousou afirmar no senado que
“ou os filhos lhe sucederiam ou ninguém”399. Diz-se também
que ele tinha visto certa vez em sonhos uma balança colocada
no meio do vestíbulo do Palácio, com o fiel a meio, e num
dos pratos estava Cláudio e Nero e, no outro, ele próprio e
os filhos. E não se tratou de uma ilusão, já que uns e outros
foram imperadores por igual número de anos e igual espaço
de tempo 400.

398
Assiduas in se coniurationes parece exagero do biógrafo. Além
da captura e execução, em 78, de Júlio Sabino, um nobre Gaulês que
se dizia descendente de César por via bastarda (e tinha participado na
revolta de Júlio Clássico na Gália), a única conspiração propriamente
dita que conhecemos é a de 79, protagonizada por A. Cecina Alieno e
Éprio Marcelo: cf. D.C. 66.16.1-4; Suet. Tit. 6.
399
Cf. D.C. 66.12.1. Murphy (1991: 3784) salienta que Vespasiano
é uma pessoa direta, que diz o que pensa. Díon fala de um só filho, pelo
que é possível que o plural filios sibi successuros, em Suetónio, seja uma
alteração da época de Domiciano, não acolhida pelo historiador grego.
Talvez Vespasiano tivesse feito mesmo a afirmação, querendo assinalar
que sobreviria o caos se os filhos lhe não sucedessem. Vide Cesa 2000:
98; Rodrigues 2020: 120.
400
Isto é 27 anos. Há quem veja uma subtil nota negativa na com-
paração com Cláudio e Nero: vide Levick 1999: 201; Cesa 2000: 98.
101
(Página deixada propositadamente em branco)
Vidas dos Césares

Vida de Tito

1. Tito, que ostentava o cognome do pai401, era amor e


delícias do género humano402, de tal forma nele superabundou
o talento natural ou a habilidade ou a fortuna403 para conciliar
a benevolência de todos, e, coisa que é extremamente difícil
no exercício do poder404, quando enquanto privado, e mesmo
durante o principado do pai, não se livrou da antipatia405 e
ainda menos da reprovação pública406. Nasceu no terceiro dia
antes das calendas de janeiro, no extraordinário ano da morte

401
O nome de cidadão privado era Tito Flávio Vespasiano.
402
Bajoni (1983: 189-194) interpreta esta caracterização de Tito à
luz do topos sobre a figura do príncipe bom (p. 189) e considera que o
retrato que Suetónio apresenta corresponde à incarnação do modelo do
príncipe estoico apresentado no De clementia de Séneca.
403
Ingenium, ars, fortuna, qualidades também assinaladas em Tac.
Hist. 2.1 e 5. Em Tito e Domiciano, Suetónio formula uma apreciação
global desde o início das biografias, condicionando assim o juízo do
leitor: vide Gascou 1984: 694. Grassi (1972: 155) interroga‑se se se
trata da ideia, difundida na antiguidade, de que as ações humanas só
podem ter êxito se contarem com uma fortuna favorável; ou da opinião,
referida por Díon Cássio (66.18.3-5), de que Tito deve a boa fama mais
à eutychia que à arete, uma vez que a brevidade do principado impediu
que degenerasse. De facto, este autor constata que, ao contrário de Tito,
Augusto nunca alcançaria a boa fama que tem se morresse cedo. Vide
Jones & Milns 2002: 90.
404
…quod difficillimum est, in imperio. Baldwin (1983: 512) consi-
dera a expressão uma manifestação do sentido de humor de Suetónio:
uma reflexão cínica sobre o impacto que o poder exerce nas relações.
405
Quando era prefeito do pretório: cf. à frente Tit. 6.
406
Cf. à frente Tit. 7.
103
Vidas dos Césares

de Gaio 407, perto do Septizónio408, numa casa miserável, num


quarto deveras pequeno e escuro, tal como ainda subsiste e se
pode visitar409.

2. Foi criado na corte juntamente com Britânico 410,


instruído nas mesmas disciplinas e pelos mesmos professo-
res411. Dizem até que, nessa altura, um metopóscopo 412 que
foi trazido por Narciso, liberto de Cláudio, para examinar
Britânico, afirmou categoricamente que este de modo algum
seria imperador, mas que Tito, que estava de pé ao lado, o
seria certamente. Eram de facto tão íntimos, que até se julga
que Tito terá provado da poção, por causa da qual Britânico

407
A coincidência é forçada: Calígula foi morto a 24 de janeiro
de 41 d.C. e Tito nascera a 30 de dezembro, mas de 39 (como sugere a
informação de Suetónio, Tit. 11). Vide Martinet 1981: 6-7; Levi 1954:
288-289. Segundo Levi, com tal falsa coincidência (atribuível à fonte de
Suetónio) e com a associação a Britânico, na secção seguinte, o biógrafo
sugere uma orientação política oposta à de Calígula e à de Nero.
408
Não se deve confundir com o Septizonium de Septício Severo
(SHA, Sep Sev. 19.5.).
409
Tal como fez para Vespasiano, Suetónio insiste de novo na
origem humilde, usando pormenores de gosto antiquário, para não
os conotar com êxito no tempo de Calígula e Nero. Cf. Ves. 1, 4, 5;
Dom. 1.
410
O filho de Cláudio e de Messalina, alegadamente envenenado
por Nero.
411
Um deles era o gramático Sosíbio, mais tarde afastado: Tac. Ann.
11.4; cf. 11.1 e 12.41; D.C. 60.32.5.
412
Ou fisiognomonista, que deduzia o carácter com base na apa-
rência, e, neste caso, previa o futuro. Há autores que defendem que
Suetónio é influenciado nos seus retratos por teorias fisiognomonistas:
vide Couissin 1953: 234-256; Stok1995: 109-135. Pelo contrário, Gascou
(1984: 592-616) contesta a aplicação desta teoria aos retratos de Suetó-
nio. De facto, Suetónio não parece restringir‑se aos ensinamentos da
fisiognomonia, mas ao explorar os defeitos físicos, procura por vezes
iluminar os morais, como é o caso do retrato de Vitélio. Vide Baldwin
1983: 498-501.
104
Vidas dos Césares

morreu413, uma vez que que estava reclinado a lado, e que foi
acometido de grave doença por longo tempo414. Em memória
desses tempos, colocou mais tarde no palácio uma estátua dele
em ouro e dedicou-lhe uma outra, equestre, de marfim, que é
hoje em dia levada à frente da procissão dos jogos de circo, e
acompanhou-a com reverência415.

3. 1. Logo em criança lhe resplandeceram os talentos do


corpo do espírito, e cada vez mais daí em diante pelas fases da
vida416. Apresentava uma beleza distinta, e nele a autoridade
igualava a graça; tinha grande robustez, embora não fosse de
estatura elevada e tivesse a barriga um tanto proeminente417.
Possuía uma memória invulgar, habilidade para quase tudo,
tanto nas artes da guerra como nas da paz418. 2. Apresentava
grande destreza nas armas e na equitação 419 e uma rapidez e
facilidade em fazer discursos ou compor versos, em latim ou
em grego, que ia até ao improviso 420. Mas nem para a música

413
Cf. descrição do envenenamento, através dos serviços da famosa
envenenadora, Locusta: Nero 33.2-3. Cf. Tac. Ann. 13.16; D. C. 71.7.4.
Tácito (Ann. 13.17.1) diz que o vulgo viu numa tempestade que se
levantou uma manifestação da ira divina por causa do crime. Fini
(1993: 125-129) apresenta dez razões que contradizem a culpa de Nero
na morte de Britânico.
414
As fontes paralelas não mencionam este facto. Talvez se trate de
uma invenção da propaganda Flaviana. Vide Jones & Milns 2002: 93.
415
Referência à procissão que dava início aos jogos no Circo
Máximo, já mencionada também entre os presságios da ascensão de
Vespasiano: cf. Ves. 5.7.
416
Cf. semelhanças com o que Suetónio diz de Augusto: forma fuit
eximia et per omnes aetatis gradus uenustissima (Aug. 79.1).
417
Cf. Tac. Hist. 2.1.4.
418
O retrato de Tito, de tipo encomiástico, lembra o de Germânico:
Cal. 3.1-2.
419
Traço que o aproxima de Júlio César; cf. Jul. 57: armorum et
equitandi peritissimus.
420
Garuti (1983: 307-312) sugere que Suetónio dá novo âmbito
semântico ao conceito docilitas (“capacidade intelectual para ser
105
Vidas dos Césares

era desajeitado, já que cantava e tocava cítara de forma aprazí-


vel e com perícia421. Encontrei em vários autores a informação
de que costumava também tomar apontamentos de forma
muito veloz, competindo com os seus amanuenses por diversão
e passatempo, e que era capaz de imitar qualquer caligrafia que
tivesse visto, pelo que confessava muitas vezes que poderia ser
o maior dos falsificadores.

4. 1. Serviu como tribuno militar na Germânia422 e na


Britânia423, adquirindo reputação de grande diligência e não
menos moderação, tal como se evidencia pela grande quanti-
dade de estátuas e de inscrições em honra dele através das duas
províncias424.

instruído”), que inclui a vontade para se instruir. Extemporalitas é apti-


dão para improvisar, considerada indispensável para a oratória com fins
práticos. O estilo de Tito apresentava influência dos neociceronianos
que beneficiariam então de grande sucesso. Vide Martin 1991: 239.
421
Parece ser um sintoma da evolução da mentalidade romana,
uma progressiva introdução da música no curriculum de estudos, como
demonstra Wallace-Hadrill (1984: 181-182): no tempo em que Cornélio
Nepos escrevia o seu Epaminondas, cantar e dançar eram costumes
gregos que colidiam com a grauitas romana, pelo que o autor sente
necessidade de justificar o elogio (Praef. 1.1; Epam.1.1-2). Nero é instru-
ído, entre outras disciplinas, na música (Nero 20.1) e Britânico provoca
a inveja de Nero ao cantar (Nero 33.2); Tito fora, como vimos, educado
na corte de Cláudio juntamente com Britânico.
422
De 57 a 59 d.C.
423
Por volta de 60. A história do heroico salvamento de Vespasiano
por Tito contada por Díon Cássio (60.30.1) não pode ser verdadeira,
porque, quando Vespasiano lá esteve, Tito era muito novo. Vide Jones
& Milns 2002: 95.
424
Fundamentação das afirmações com provas da antiquária:
exemplos que demonstram um espírito de epigrafista e arqueólogo,
mas que sugerem que Suetónio faz uma utilização pessoal deste tipo
de documentos: vide Gascou 1984: 519‑520. Syme (1981: 111-112) sugere
uma viagem de Suetónio à Britânia, inferência que Gascou não julga
necessária.
106
Vidas dos Césares

2. Depois do serviço militar dedicou-se às artes do foro, de


forma mais honrosa que assídua. Nessa altura casou-se com
Arrecina Tértula425, filha de um cavaleiro, mas outrora prefeito
das coortes pretorianas426 e, depois da morte dela427, casou com
Márcia Furnila, mulher de esplêndida linhagem, da qual se
divorciou depois de com ela ter uma filha.

3. A seguir ao exercício da questura, colocado ao comando


de uma legião 428, subjugou Tariqueias 429 e Gamala430, duas
fortíssimas cidades da Judeia431, tendo numa batalha visto
perecer o cavalo entre as suas pernas e montado outro, cujo
cavaleiro tombara a combater a seu lado 432.

5. 1. Quando, mais tarde, Galba assumiu o poder, foi


enviado 433 para o felicitar e, por onde quer que passasse, fazia
voltar os olhos das gentes, na suposição de que fora chamado

425
Em 63.
426
Arrecino Clemente, que foi prefeito do pretório (cargo equestre)
no tempo de Calígula e esteve envolvido na morte deste. Os pretorianos
tinham nesta altura 9 coortes.
427
Em 65.
428
Em 66-67.
429
Cidade fortificada por Josefo junto ao lago de Tiberíades, ou
mar da Galileia, do lado sul. Cf. J. BJ 3.462ss.
430
No final, todos os habitantes se suicidaram, à exceção de duas
mulheres. Cf. J. BJ 4.17-83.
431
Jones (1989: 126-134) aponta o exagero de Suetónio, que reflete
a ideia oficial do imperador guerreiro a quem se atribuem façanhas
sobrevalorizadas: daí o aparecimento teatral de Tito naquelas cidades,
como se fosse um deus ex machina. Antes do ano 70, as tarefas de Tito
eram essencialmente diplomáticas, não militares, e o seu papel nos
assédios das cidades foi secundário.
432
Suetónio compraz-se frequentemente em apresentar os perigos
a que os Césares são expostos e a que escapam como que por milagre.
Cf. Gascou 1984: 419, n. 148.
433
Por Vespasiano. Cf. Tac. Hist. 1.10.
107
Vidas dos Césares

para ser adotado 434. Mas quando percebeu que tudo entrava
de novo em convulsão 435, voltou para trás e, dirigindo-se ao
oráculo de Vénus em Pafos436, enquanto o consultava sobre
a sua navegação, foi-lhe fortalecida também a esperança do
império. 2. Esta tornou-se em breve efetiva e, deixado para
trás437 para levar a cabo a subjugação da Judeia, no último
ataque a Jerusalém, abateu doze defensores precisamente com
o mesmo número de disparos de setas438. Ao tomar a cidade
no dia do nascimento da filha, foi tal o júbilo e a devoção dos
soldados, que estes o saudaram como imperador e, de seguida,
quando se dispunha a abandonar a província, procuraram
detê-lo, pedindo-lhe com súplicas, e mesmo ameaças, que
permanecesse com eles ou os levasse a todos também consigo.
3. Daqui nasceu a suspeita de que tentou desertar do pai e
reclamar para si um reinado no Oriente. Fez aumentar esta
suspeita quando, depois de se dirigir a Alexandria439, ao fazer
a consagração em Mênfis ao boi Ápis, envergou o diadema440

434
Cf. Tac. Hist. 2.1.
435
Quando chegou a Corinto, chegaram-lhe as notícias da morte
de Galba e da insurreição do exército da Germânia.
436
Em Chipre. Sobre a visita a este templo, cf. Tac. Hist. 2.2-4.
437
Vespasiano fora aclamado imperador, o que abria a Tito o acesso
ao poder. Este assume o poder na Judeia, enquanto Vespasiano está em
Alexandria.
438
Cf. J. BJ 5.288.
439
Para o resumo das atividades de Tito depois da queda de Jeru-
salém, cf. J. BJ 7.23-105.
440
Trata-se de uma fita em volta da cabeça, usada por alguns
monarcas orientais, pelo que para os romanos se torna sinal suspeito de
aspiração à realeza por parte de quem o usa. O comportamento de Tito
no Egipto insere‑se na perspetiva da imitação, por parte dos Flávios, de
Alexandre Magno. Também este visitou Mênfis, venerou o boi sagrado
e terá sido investido como rei do Egipto. Vide Henrichs 1968: 60.
Augusto, pelo contrário menosprezou o culto do boi Ápis no Egipto,
não se desviando do caminho para ir celebrar o ritual, de acordo com
a sua prática de, em relação às religiões estrangeiras, respeitar os cultos
antigos e respeitados pela tradição e desprezar os outros (Aug. 93).
108
Vidas dos Césares

– sem dúvida de acordo com o costume e o ritual da antiga


religião 441, mas não faltou quem o interpretasse menos bem.
Por isso, tratou de se apressar a viajar para Itália e, depois de
aportar em Régio, e depois em Putéolos, num navio de carga,
dirigiu-se a toda a pressa para Roma e, aparecendo de surpresa
diante do pai442, como se quisesse esclarecer a imponderação
dos rumores que sobre si corriam, exclamou: “cheguei, pai,
cheguei!”.

6. E, desde então, não deixou de agir como parceiro e


protetor do império. Celebrou o triunfo juntamente com o
pai443 e com ele exerceu a censura; dele foi colega também
no poder tribunício e em sete consulados. Acolheu sobre si
quase todas a responsabilidades das funções públicas, pelo
que ditava ele próprio cartas em nome do pai, redigia editos
e proferia discursos no senado em vez do questor444. Assumiu
também a prefeitura do pretório, posto que até então não tinha
sido desempenhado senão por um cavaleiro445, e procedeu de
forma assaz prepotente e violenta, tanto que, se alguém caísse
fortemente sob a sua suspeita, enviava agentes para, através de
teatros e aquartelamentos, reclamarem a pena, como se fosse
consensual, e executava-a sem delongas. 2. Entre estes se conta
o ex-cônsul Aulo Cecina, que ele convidara para jantar, e que
mandou trespassar mal ele saiu do triclínio446, certamente pela

441
O ritual é descrito por Plínio (Nat. 8.71).
442
Segundo Josefo (BJ 7.119), não houve surpresa e Vespasiano foi
ao encontro do filho.
443
O triunfo, sobre os Judeus, realizou-se num desfile conjunto
(pela primeira vez de pai e filho) em 71. Cf. J. BJ 7.121-157.
444
Os questores costumavam ler os discursos dos imperadores no
senado: cf. Aug. 56.2; Nero 15.2.
445
Na verdade, havia o precedente de Arrecino Clemente.
446
Em vez de descrever os pormenores da alegada conjura, Suetó-
nio centra‑se no excesso da reação de Tito. Aulo Cécina foi partidário
109
Vidas dos Césares

pressão do perigo, já que tinha intercetado o esboço do seu


punho de uma arenga preparada para ser lida aos soldados447.
Com tais atitudes, tal como cuidou bem da segurança para o
futuro, também atraiu bastante ódio no momento, de modo
que dificilmente alguém chegou ao principado com tão desfa-
vorável reputação e contra a vontade de todos448.

7. 1. Além da crueldade 449, suspeitava-se também da sua


sumptuosidade450, porque estendia os beberetes451 até à meia
noite com os mais pródigos dos íntimos; e não menos da
sua concupiscência452, por causa dos bandos de favoritos e
eunucos, bem como por causa do notável amor pela rainha
Berenice, com quem até se dizia que tinha prometido casar453.
Suspeitava-se também de avidez de lucro454, porque constava
que, nas decisões judiciais do pai455, costumava fazer tráfico
de influências e receber gratificações. Em suma, era opinião
corrente e afirmava-se abertamente que seria outro Nero 456.

de Galba; depois, de Vitélio; e, finalmente, de Vespasiano. Cf. Ves. 25.


Vide Jones & Milns 2002: 89 e 104.
447
Os traços aparentes de Tito (neste caso, a crueldade) revelam‑se
sob o efeito de circunstâncias particulares; cf. Gascou 1984: 431, n. 173.
448
Havia até quem suspeitasse de que envenenara Vespasiano: cf.
D.C. 66.17.1.
449
Saeuitia.
450
Luxuria.
451
Comissatio, parte do banquete onde abundava o vinho. Também
Nero estendia os banquetes do meio dia à meia noite: cf. Nero 27.2;
Vit. 13.1.
452
Libido.
453
Júlia Berenice, filha de Agripa I, uma descendente de Herodes
o Grande.
454
Rapacitas
455
Cognitiones.
456
Segundo Marastoni (1983: 110-111), Nero é um tema caro ao
contexto cultural da época de Trajano. Tito é apresentado como um
Nero ao contrário, ao evoluir da má reputação para a admiração geral.
O passado militar de Tito, as emissões monetárias enquanto herdeiro
110
Vidas dos Césares

Mas esta má reputação cedeu lugar à boa e foi transformada


nos maiores elogios, já que se não lhe descobria nenhum vício
e, pelo contrário, as maiores virtudes457.

2. Promoveu banquetes mais agradáveis que esbanjadores.


Escolheu amigos tais que também os imperadores que lhe
sucederam concordaram em manter como indispensáveis a
eles próprios e aos Estado e que se mostraram particularmente
úteis458. Logo mandou Berenice sair da Urbe, contra a vontade
dele e contra a vontade dela459. Quanto aos tão amados cata-
mitos, apesar de serem talentosos na dança, ao ponto de em
breve dominarem o palco, não só deixou logo de os favorecer
por mais tempo, como também se absteve completamente de
assistir aos seus espetáculos públicos.

designado do império, a ligação à princesa judia Berenice faziam sus-


peitar de que iria seguir uma política orientalizante: daí a designação
de alius Nero. Tito assemelha‑se a Nero na perícia em compor versos,
em tocar cítara e em cantar, pela gordura e pelos sumptuosos banquetes
nocturnos, pelos eunucos e favoritos. Vide Levi 1954: 291-292; Baldwin
1983: 293; Martin 1991: 118.
457
O verdadeiro carácter manifesta‑se na forma como consegue
subverter a má fama. Vide Wardle 2001: 64-69.
458
Suetónio é neste aspeto refutado por Díon Cássio (67.2.1), que
diz que Domiciano se empenha em lançar a desgraça e a ruína sobre os
amigos do pai e do irmão. Sobre a política de Tito na seleção dos amici,
vide Jones 1975: 454-462.
459
Cf. J. AJ 18.5.4; 19.5.1; 20.7.3; Tac. Hist. 2.2.1; D.C. 66.15.3-4.
Berenice regressará depois a Roma (cf. D.C. 66.18.1). Tal corte tinha
motivações políticas. Teve lugar na mesma altura da execução dos
conspiradores Cecina e Marcelo, que terá provocado hostilidade entre
os senadores. Tito poderá ter sido pressionado por Vespasiano para afas-
tar Berenice de Roma, de modo a minimizar o descontentamento dos
senadores. Esta ambiciosa rainha do Oriente poderia se vista como uma
nova Cleópatra. Vide Rogers 1980: 94; Martin 1991: 150-151 e 167‑168;
Jones & Milns 2002: 105-107; Rodrigues 2007: 781-798; Rodrigues
2020: 131-133.
111
Vidas dos Césares

3. Não despojou ninguém de nada460; respeitou o alheio


como ninguém antes; e nem sequer aceitou as contribuições
toleradas e usuais461. No entanto, não foi inferior a nenhum
antecessor em munificência. Depois de dedicar o anfiteatro462
e de construir rapidamente umas termas ao lado, ofereceu um
esplendoroso e abundante espetáculo de gladiadores. Ofereceu
ainda uma batalha naval na antiga naumaquia463, e, ainda
nesse local, um espetáculo de gladiadores464 e, num só dia,
cinco mil feras de todas as espécies.

8. 1. Era extremamente benevolente por natureza 465:


embora, de acordo com uma determinação de Tibério, todos
os Césares a partir daí não considerassem válidos os benefícios

460
É uma afirmação da abstinentia. Tal virtude é, a par da modera-
tio, essencial no comportamento do bom princeps: como se confirma no
final das Vidas dos Césares. Implica o respeito pela propriedade alheia; e
que o poder não é usado para conseguir lucros indevidos. Vide Gascou
1984: 725-727.
461
Contribuições voluntárias ou não para ajudar em situações de
catástrofe.
462
Cf. atrás Ves. 9.
463
Esta Naumaquia foi construída por Augusto, como ele próprio
diz (RG 23): “Ofereci ao povo um espetáculo de combate naval do outro
lado do Tibre, no local onde agora se encontra o Bosque dos Césares,
tendo escavado o solo numa extensão de 1800 pés (540 m) de compri-
mento por 1200 (360 m) de largura. Aí se bateram trinta navios com
esporão, trirremes ou birremes, e muitos outros mais pequenos. Nestas
armadas, além dos remadores, combateram cerca e 3000 homens”.
Também há notícia de combate Naval oferecido por Tito no próprio
Anfiteatro, certamente antes de serem construídas as galerias sobre a
arena, que talvez sejam obra já de Domiciano.
464
Para o que se colocou uma plataforma de cobertura: cf. D.C.
66.25.3-4. Díon Cássio menciona combate de gladiadores, caçada e
corrida de carros. Cf. Mart. Spec. 34.
465
Natura autem beniuolentissimus. Enquanto o mau imperador
dissimula virtudes, Tito prova que é essencialmente bom, como nota
Wardle 2001: 65. Vide Gascou 1984: 431, n. 173.
112
Vidas dos Césares

concedidos pelos antecessores466, a menos que eles próprios


os concedessem, foi ele o primeiro a confirmá-los todos por
um único edito 467, e sem admitir que lhos pedissem. De
resto, no que respeita a todos os pedidos que as pessoas lhe
faziam, mostrou-se sobremaneira determinado a não as deixar
ir embora sem esperança. Ainda mais, quando os serviçais o
admoestaram de que estaria a prometer mais do que poderia
dar, “não convém” – disse ele – “que ninguém saia desalen-
tado de uma entrevista com o imperador!”. E certa vez, ao
recordar-se durante o jantar que, em todo o dia, não concedera
nada a ninguém, proferiu aquelas palavras dignas de nota e de
merecido louvor: “amigos, perdi o dia!”

2. Tratou especialmente o povo no seu conjunto com tal


afabilidade468 em todas as ocasiões, que ao propor um espe-
táculo de gladiadores, proclamou que “não o iria produzir
segundo a sua vontade, mas segundo a dos espetadores”.
E cumpriu à risca, pois não só não negou nada do que lhe
pediram, como até os exortou a que lhe pedissem o que
quisessem. E mais ainda, mostrando-se um ferranho adepto
dos gladiadores Trácios, trocou, enquanto apoiante deles, fre-
quentes zombarias com o povo, por palavras e por gestos, sem
comprometer a dignidade469 e muito menos a imparcialidade.
Para não desaproveitar nenhuma oportunidade de cortejar o
povo, banhava-se por vezes nas suas termas deixando entrar o
povo simples.

466
Trata-se de certos privilégios concedidos a um indivíduo ou a
uma comunidade. Vide Jones & Milns 2002: 110.
467
Cf. D.C. 66.19.3.
468
Comitas.
469
A maiestas.
113
Vidas dos Césares

3. Durante o seu governo deram-se alguns acontecimentos


fortuitos e trágicos, como a erupção do monte Vesúvio na
Campânia470 e um incêndio em Roma471, que se prolongou
por três dias e três noites, e uma epidemia como não houve
outra. No meio de tantas e tão graves adversidades, não só
manifestou o desvelo de um príncipe, mas também o incom-
parável amor de pai, ora levando conforto através de editos,
ora prestando ajuda com todos os recursos de que dispunha.
4. Escolheu por sorteio entre os ex-cônsules um grupo de
curadores para a reconstrução da Campânia472. Quanto aos
bens das vítimas do Vesúvio, de que não restavam herdeiros,
aplicou-os na reconstrução das cidades atingidas. Aquando do
incêndio na urbe nada disse publicamente, a não ser que estava
perdido, e destinou todos os adornos das suas residências aos
imóveis públicos e aos templos e entregou a tarefa a um nume-
roso grupo da ordem equestre, para que se levasse a cabo mais
rapidamente. Para restaurar a saúde e aliviar as enfermidades,
não houve recurso humano ou divino a que não deitasse mão,
buscando todo o tipo de rituais e fármacos.

5. Entre as calamidades dos tempos contavam-se os


delatores e acusadores por causa de uma permissividade 473
prolongada. Ordenou amiúde que estes fossem açoitados no
Foro com azorragues e cacetes e que, finalmente, depois de
conduzidos através da arena do anfiteatro, fossem uns postos a
leilão e vendidos e outros desterrados para as ilhas mais agres-
tes. Também para pôr definitivamente cobro a semelhantes
ousadias, proibiu entre outras coisas que o mesmo assunto

470
Em 24 Agosto de 79.
471
Em 80.
472
Cf. D.C. 66.24.3.
473
Licentia.
114
Vidas dos Césares

fosse julgado segundo diversas leis e se inquirisse sobre o esta-


tuto social474 dos defuntos passado um determinado número
de anos.

9. 1. Confessou que aceitava o cargo de Pontífice


Máximo475 para conservar as mãos puras e manteve a palavra.
Não foi, depois disto, mandante ou cúmplice da morte de
ninguém, apesar de, entretanto, lhe não faltarem motivos de
retaliação 476. Mas jurava que antes morreria do que mataria.
A dois patrícios suspeitos de aspirarem ao império não fez mais
do que aconselhá-los a desistirem com a explicação de que “o
principado é dádiva do destino” e com a promessa de que,
se desejassem outra coisa, lha concederia477. 2. E até enviou
imediatamente à mãe de um deles, que estava longe, estafetas
dos seus para anunciarem à ansiosa mulher que o filho estava
salvo. De resto, não só os admitiu a eles próprios a um jantar
íntimo, mas também, no dia seguinte, tendo-os colocado pro-
positadamente junto de si, quando as armas dos combatentes
lhe foram dadas a inspecionar, ele passou-as a eles. Diz-se
ainda que, depois de conhecer o horóscopo de um e de outro,
afirmou que estava para cair sobre eles um perigo, mas noutra
altura e da parte de outro, como de facto aconteceu478.

474
Se era de nascimento livre, escravo ou liberto, o que tinha efeito
sobre a validade do testamento, como se viu atrás no caso do liberto
de Vespasiano, Cerilo, que se pretendia de nascimento livre: Ves. 23.
475
Todos os imperadores até Graciano acumulam o cargo de Pon-
tífice Máximo.
476
Cf. D.C. 66.19.1.
477
Também Aurélio Victor, Caes. 10.3, refere as pretensões dos dois
patrícios; vide Martin 1991: 342; Jones & Milns 2002: 116.
478
Sobre este episódio, vide Konstan 2009: 447-462.
115
Vidas dos Césares

3. Apesar de o irmão não cessar de tramar insídias contra


ele, e quase às claras, incitando os exércitos e planeando a
fuga479, ele não deliberou nem matá-lo, nem afastá-lo e nem
sequer conceder-lhe menor honra, mas, tal como desde o
primeiro dia do seu império, continuou a declará-lo parceiro e
sucessor e, por vezes, rogava-lhe em particular, entre súplicas
e lágrimas, que se dignasse corresponder finalmente à estima
que por ele nutria480.

10. 1. Entretanto, foi surpreendido pela morte, maior


prejuízo para a humanidade que para ele próprio. Terminado
um espetáculo, no fim do qual verteu abundantes lágrimas
na presença do povo 481, dirigiu-se para a região sabina um
tanto abatido, porque ao fazer um sacrifício a vítima fugira482
e porque soaram trovões estando o céu claro. De seguida, foi
acometido de febre logo ao chegar à primeira estação 483; e,
ao ser transferido, a partir daí, para uma liteira diz-se que,
correndo as cortinas, levantou os olhos ao céu e lamentou
profundamente que lhe fosse arrebatada a vida sem ele o
merecer, pois não tinha ação alguma de que se arrepender, a

479
Cf. Dom. 2.3; D.C. 66.26.2. A ideia da traição deve ter surgido
depois da morte de Domiciano.
480
Cf. D.C. 66.26.2; Aur. Vict. Caes. 10.11. Jones (1970: 346-347)
sugere que Aurélio Victor tenha copiado Suetónio de perto. A rela-
ção entre os dois irmãos seria pautada por mútua indiferença, dada a
diferença de idades, de educação e as ausências de Tito. Vide Jones &
Milns 2002: 117.
481
A mesma observação em Díon Cássio (66.26.1).
482
Um mau presságio, segundo Suetónio: Jul. 59; Gal. 18.1; e
segundo outros autores: Tac. Hist. 3.56.1; Plin. Nat. 8.183.
483
A causa da febre súbita poderia ser paludismo cerebral, e,
segundo o Talmud, representaria um castigo divino pela destruição do
templo de Jerusalém. Vide Martin 1991: 197; Jones & Milns 2002: 118.
116
Vidas dos Césares

não ser, quando muito, um só 484. 2. O que quer que essa ação
fosse nem ele próprio então revelou nem é fácil que ocorra
a quem quer que seja485. Alguns sugerem que ele se estaria a
recordar da intimidade que tivera com a mulher do irmão.
Mas a própria Domitila jurava pelos deuses que nada tivera
com ele e que não negaria se algo, de facto, houvesse; e, pelo
contrário, até se vangloriaria, como estava sempre disposta a
fazer no que toca a todas as ações vergonhosas486.

11. Morreu na mesma quinta do pai, nos idos de setem-


bro , passados dois anos, dois meses e vinte dias desde que
487

sucedera ao pai, com quarenta e um anos de idade. Mal o


acontecimento se tornou conhecido, todos desataram publi-

484
Segundo Aurélio Victor (Caes. 10.11), foi envenenado por
Domiciano. Suetónio não faz referência a esse facto, embora na Vida de
Domiciano sugira que este o abandonou à morte (Dom. 2.3). O biógrafo
parece seguir o princípio de que a uma vida bela sucede‑se uma morte
bela (como acontecera com Augusto e ao invés dos maus imperadores);
daí resulta a omissão dos pormenores que obscurecem a morte. Vide
Gascou 1984: 385-386 e 793.
485
O mesmo mistério se encontra em Díon Cássio (66.26.3-4).
Este historiador pensa que Tito lamenta não ter executado Domiciano
quando ele conspirou contra ele, em vez de lhe entregar o império. Esta
hipótese parece provável para Martin (1991: 355) e Levi (1954: 288-293).
Segundo Ambrosio (1980: 232-241, especialmente 235), o arrependi-
mento era antes por não ter associado Domiciano ao império, como era
desejo do pai. Este autor conjetura um plano bem urdido do senado
para a destruição desta dinastia: convence Tito (bom imitador de grafia)
a falsificar o testamento de Vespasiano por razões de estado, na mira
de provocar a discórdia entre os irmãos. Outras hipóteses surgiram:
arrependimento pela morte de Cecina; por ter alterado o testamento de
Vespasiano; pela destruição de Jerusalém ou por ter entrado no Santo
dos Santos do templo. Vide Jones & Milns 2002: 120.
486
O biógrafo procura afastar a responsabilidade de Tito, de acordo
com o que estabelecera atrás sobre a mudança na libido dele depois de
assumir o império. Tito, depois de assumir o poder, procura manter‑se
irrepreensível, cf. D.C. 66.18.1. Vide Martin 1991: 151.
487
13 de setembro de 81.
117
Vidas dos Césares

camente em lamentos, como se fosse por um familiar. E o


senado, antes de ser convocado por um edito, precipitou-se
para a cúria quando as portas ainda estavam fechadas. De
seguida, abertas as portas, deu tantas graças ao defunto e
cumulou-o de tais louvores, como nunca fizera quando ele
estava vivo e presente488.

488
De forma semelhante ao que acontece no fecho da Vida de
Otão, no da Vida de Tito há como que uma reconciliação popular em
relação à sua conduta anterior. Vide Vidal Sánchez 1989: 332.
118
Vidas dos Césares

Vida de Domiciano

1. 1. Domiciano nasceu no nono dia antes das calendas de


novembro, quando o pai foi eleito cônsul e estava para assumir
o cargo no mês seguinte489, na sexta região de Roma, no quar-
teirão da “Romã”, na casa que depois converterá em templo
da família flávia490. Passou os anos da puberdade e primeira
adolescência em tal carência e tal degradação, segundo consta,
que nem um vaso de prata tinha para seu uso. É facto bem
conhecido que Clódio Polião491, um ex-pretor contra quem foi
dirigido o poema de Nero intitulado “O zarolho”, guardava
e às vezes exibia uma carta do punho dele a prometer-lhe
uma noite. E não faltou quem afirmasse que Domiciano foi
desonrado também por Nerva, o seu sucessor492. 2. Durante a
guerra com Vitélio, refugiou-se no Capitólio com o tio Sabino
e parte das tropas às suas ordens493, mas, perante o assalto dos
inimigos e o incêndio do templo, passou a noite escondido
na casa do guardião e, pela manhã, disfarçado com hábito
do culto de Ísis e entre os devotos daquela crença estrangeira,
dirigiu-se com um só companheiro para o outro lado do Tibre

489
24 de outubro de 51. Foi cônsul suffectus juntamente com
Cláudio.
490
No Quirinal.
491
Desconhecido para nós.
492
A expressão corruptum Domitianum et a Nerua indica passivi-
dade, o que aumenta a pecha contra Domiciano. Vide Jones 1996: 14;
Jones & Milns 2002: 122. Sobre a homossexualidade de Domiciano,
vide Martin 1991: 168.
493
Cf. Tac. Hist. 3.59 ss.
119
Vidas dos Césares

e escondeu-se na casa da mãe de um seu condiscípulo 494.


Escondeu-se tão bem que os que, na busca, lhe foram no
encalço não foram capazes de dar com ele 495. 3. Avançando
finalmente, depois da vitória, e saudado como César496, assu-
miu a pretura urbana com poder consular497, mas somente
de nome, porque transferiu o poder judicial para o colega
seguinte. De resto, usou de forma tão arbitrária a força do
despotismo 498, que demonstrou desde logo o que viria a ser
mais tarde. Para não entrar em pormenores, além de abusar
das esposas de muitos 499, arrebatou Domícia Longina500,
a esposa de Élio Lâmia, e até casou com ela. E num só dia
distribuiu mais de vinte cargos na cidade ou fora dela, pelo
que Vespasiano repetia que se admirava que não lhe enviasse
um sucessor a ele próprio501.

2. 1. Deu início a uma expedição militar contra a Gália e


a Germânia502, desnecessária e desaconselhada pelos amigos
do pai, somente com o fito de emular o poder e o estatuto do

494
Com o primo, Flávio Sabino, filho do prefeito da cidade do
mesmo nome. Cf. D.C. 65.17.4.
495
Suetónio compraz-se em explorar perigos a que os imperadores
escaparam por pouco; os pequenos acasos que por pouco não alteravam
a grande história. Vide Gascou 1984, 419, n. 148.
496
Tal como Tito: D.C. 66.1.1. Cf. Tac. Hist. 3.86. Com Vespasiano,
o título de César passa a designar os herdeiros. Vide Jones 1996: 16.
497
Cf. Tac. Hist. 4.3.
498
Dominatio.
499
Abuso de esposas de aristocratas era um comportamento tirâ-
nico: tanto Augusto (Aug. 69.1.) como Calígula (Cal. 25.1) são acusados
de abusarem da mulher de um cônsul à frente do marido. Mas, no caso
do monstrum Calígula, o comportamento é apresentado em tons mais
graves do que no caso de Augusto.
500
Filha de Corbulão, o famoso general forçado ao suicídio por Nero.
501
Cf. D.C. 66.2.3.
502
Tratava-se lidar com a revolta de Civil e de Clássico, contra os
quais foi enviado Júlio Cereal. Muciano e Domiciano acorreram depois
com reforços que se revelaram desnecessários. Cf. Tac. Hist. 4.68.
120
Vidas dos Césares

irmão. Por tal ação foi repreendido. Para que se recordasse


da sua idade503 e condição, habitava juntamente com o pai;
seguia, numa liteira, a cadeira gestatória do pai e do irmão,
sempre que saíam à rua504, e acompanhou o triunfo judaico
deles montado num cavalo branco505. E mais, dos seis consu-
lados que exerceu, só um foi ordinário e por cedência e apoio
do irmão. 2. Ele próprio simulou modéstia de forma espantosa
e, acima de tudo, uma dedicação à poesia, arte que estava tão
fora dos seus hábitos anteriores como foi depois desprezada
e abandonada506. Chegou mesmo a recitar em público. Mas,
no entanto, quando Vologeso, rei dos Partos, pediu tropas
auxiliares para combater os Alanos e, como comandante, um
dos filhos de Vespasiano, pugnou com todas as forças para
que fosse de preferência ele próprio o enviado. E, uma vez
que esta questão foi ultrapassada, tentou aliciar outros reis do
Oriente com presentes e promessas para que fizessem pedidos
semelhantes.

3. Depois da morte do pai, Domiciano, longo tempo inde-


ciso sobre se devia ou não oferecer aos soldados o dobro do
donativo, nunca hesitou em proclamar que lhe fora legada a
comparticipação no império, mas que o testamento fora objeto
de fraude507. E, desde então, não deixou de armar ciladas ao

503
Tinha 18 anos.
504
Seguia numa lectica, na qual se viajava reclinado, enquanto o pai
e o irmão iam sentados numa sella.
505
Cf. D.C. 66.12.1; J. BJ 7.152. A verdade é que se trata de lugares
de honra, dignos de um príncipe imperial. Tibério teve uma partici-
pação semelhante no triunfo de Augusto (Tib. 6.4). Vide Jones 1996:
21-22; Jones & Milns 2002: 124.
506
Cf. à frente Dom. 20.
507
Segundo Ambrosio (1980: 234-235), o senado, a pretexto da
preservação da paz, convencera Tito a alterar o testamento de Vespa-
siano, que decidira legar o império aos dois irmãos. Suetónio manobra o
121
Vidas dos Césares

irmão508, de esconso e às claras, de tal sorte que, quando este


foi atacado por doença grave, o mandou abandonar, antes que
ele exalasse o último suspiro, como se já estivesse morto509. E,
depois de ele morrer, não lhe atribuiu honra alguma510, além da
apoteose; e amiúde o criticou com alusões indiretas e editos.

3. 1. Nos inícios do seu principado, costumava recolher-


-se diariamente em privado durante várias horas, sem fazer
mais que caçar moscas e trespassá-las com um estilete afiado.
Daí que, quando alguém perguntou certa vez quem estava lá
dentro com o imperador, recebeu da parte de Víbio Crispo511
uma reposta não desprovida de sentido: “nem sequer uma
mosca!”512. Depois, saudou como Augusta a esposa Domícia,

material para o tornar hostil a Domiciano. Mas, se Vespasiano quisesse


de facto legar o poder aos dois filhos, não teria estabelecido distinção
pública entre eles (cf. Dom. 2.1). Plínio (Pan. 8.6) atesta que Vespasiano
só legou o poder a Tito. Vide Jones 1996: 27.
508
Cf. atrás Tit 9.
509
Esta ideia figura também em Díon Cássio (66.26.2): de que
Domiciano, para apressar o fim, colocou Tito num cofre com gelo, a
pretexto de necessitar de refrigeração. Segundo Aurélio Victor (Caes.
10.5), Tito foi envenenado por Domiciano. Segundo Gascou (1984:
385-386), ao colocar tal revelação na Vida de Domiciano, Suetónio
pretende tornar manifesta a impietas do último Flávio. Se a colocasse
na Vida de Tito, ensombraria a perfeição deste príncipe com uma morte
menos digna, a que era destinada aos maus imperadores. Vide Martin
1991: 196.
510
Informações tendenciosas. Na verdade, Domiciano honrou o
irmão com cunhagens, inscrições, o arco de Tito, o templo de Vespa-
siano e de Tito. Vislumbra-se aqui o antigo topos do ódio fraterno. Vide
Jones 1996: 28; Jones & Milns: 2002: 126.
511
Senador que fizera carreira desde o tempo de Nero e um dos
conselheiros de Vespasiano e Domiciano.
512
Cf. D.C. 66.9.4-5; Aur. Vict. Caes. 11.5-6. Para Galli (1991: 62),
tal atitude é sintoma de amargura e humilhações, bom como ambição
de poder, pelo que seria indício de ressentimento contra o pai e inveja
do irmão. Suetónio sugere assim uma tendência para a misantropia e
para a crueldade. Vide Martin 1991: 120.
122
Vidas dos Césares

de quem tivera um filho513 no seu segundo consulado e, no ano


seguinte….514. Como ela estava perdida de amores pelo histrião
Páris, repudiou-a e, pouco tempo depois, incapaz de suportar
a separação, mandou-a regressar, a pretexto das instâncias do
povo515.

2. Ora no que respeita à administração do Império, mos-


trou‑se longo tempo variável, com uma mistura igualmente
equilibrada de vícios e virtudes, até que fez mesmo descambar
as virtudes em vícios: quanto se pode conjeturar, além das
suas inclinações naturais, a carência tornou‑o rapace, o medo
cruel516.

4. 1. Promoveu frequentemente espetáculos sublimes e dis-


pendiosos, não apenas no Anfiteatro, mas também no Circo,
onde, além das corridas da praxe, de bigas e de quadrigas,
apresentou ao mesmo tempo uma batalha dupla, de cavalaria
e infantaria. E no Anfiteatro, deu até uma batalha naval. Com
efeito, ofereceu caçadas e combates de gladiadores, também à
noite à luz de tochas, não só lutas entre homens, mas também
entre mulheres. Esteve sempre presente nos espetáculos ofe-
recidos pelos questores517, que ele restaurara depois de terem

513
Que morreu pouco depois.
514
Lacuna no texto.
515
Díon Cássio (67.3.2) conecta o episódio com a relação de Domi-
ciano com a sobrinha Júlia, sem sugerir tal paixão de Domiciano pela
esposa, e sem questionar as insistências do povo. Diz também (67.3.1)
que Páris foi morto no meio da rua.
516
Suetónio sugere assim uma evolução cronológica em que os
vícios naturais do imperador se manifestam gradualmente, sob o
impulso de um traço psicológico (metus) e das circunstâncias (inopia).
Vide Gascou 1984: 398; 431 e 684; Baldwin 1983: 298.
517
Costume introduzido por Cláudio (Cl. 24.2) e depois inter-
rompido.
123
Vidas dos Césares

sido abandonados durante um tempo, de modo que dava


possibilidade ao povo de pedir dois pares de gladiadores da
sua escola e apresentava-os em último lugar com o ornato da
corte. 2. Durante todos os espetáculos de gladiadores, per-
manecia aos pés dele um rapazinho vestido de vermelho com
a cabeça assombrosamente pequena, com o qual conversava
amiúde e por vezes dsobre coisas sérias. Ouviram-lhe por
certo perguntar se sabia porque lhe parecera melhor colocar,
na última nomeação, Métio Rufo à frente do governo do Egito.
Apresentou batalhas navais de esquadras quase normais, tendo
escavado um lago com construções ao redor junto ao Tibre, e
assistiu até ao fim e entre grandes chuvadas.

3. Realizou também uns Jogos Seculares, depois de fazer


a contagem dos anos, não por referência à recente edição de
Cláudio, mas à de outrora de Augusto518. Nestes jogos, no dia
consagrado às corridas do circo, para mais facilmente com-
pletar as cem provas, reduziu o número de voltas de sete para
cinco.

4. Instituiu ainda um certame quinquenal em honra de


Júpiter Capitolino com três modalidades – musical, equestre
e gímnico – e com um número consideravelmente maior de
coroas que o de hoje em dia. Competiam declamadores em
grego e em latim e, além dos que tocavam cítara e cantavam,

518
Augusto celebrou os jogos Seculares em 17 a.C., como para
inaugurar uma nova era de prosperidade e retorno aos antigos costumes,
e Cláudio celebrou-os 64 anos depois, em 47 d.C., certamente com
objetivos semelhantes e para emular Augusto. Cláudio celebrou-os
naquela data com o pretexto de que Augusto os tinha antecipado (Cf.
Suet. Cl. 21.2). Há quem pense que Cláudio terá querido celebrar os
800 anos a fundação de Roma, data que, no entanto, cairia em 48. Vide
Mottershead 1986: 83-84.
124
Vidas dos Césares

citaristas que acompanhavam coros e citaristas a solo. No está-


dio havia também corridas de raparigas. Domiciano presidiu
ao certame calçado com sandálias gregas519 e trajado com toga
de púrpura à grega, levando na cabeça uma coroa de ouro com
uma imagem de Júpiter, Juno e Minerva. Tomavam assento
junto dele o sacerdote de Júpiter520, e o colégio dos Flaviales521,
com traje igual ao seu, tirando as coroas, nas quais figurava
a imagem dele próprio. Celebrava também anualmente no
Monte Albano as Quinquátrias em honra de Minerva522 ,
para quem instituíra um colégio, do qual eram tirados à
sorte os que exerceriam a presidência e ofereciam magníficas
caçadas e jogos cénicos, além dos concursos de oratória e
poesia.

5. Concedeu por três vezes ao povo um congiário523 de


trezentos sestércios por cabeça e, entre os espetáculos celebra-
dos na festa dos Sete Montes524, um grandioso banquete em

519
crepidae.
520
Trata-se do Flamen Dialis, embora Suetónio empregue aqui o
termo genérico sacerdos.
521
Os sodales Titiales Flaviales. O colégio era constituído por 15
membros e presidiam ao culto dos Divinos Vespasiano e Tito.
522
Festival que durava cinco dias, de 19 a 23 de março. Domiciano
experimentava grande devoção por Minerva: cf. Dom. 15.3.
523
Congiarium. Distribuição que consistia inicialmente numa
oferta dos magistrados ao povo de vinho ou azeite, numa vasilha que
levava um côngio (congius – uma medida romana usada sobretudo para
líquidos que correspondia à oitava parte de uma ânfora: c. 3,25 l). Pas-
sou a ser uma designação geral para qualquer donativo dos imperadores
ao povo, mesmo quando os donativos incluíam já dinheiro, cereais ou
outros presentes de ocasião. Tais distribuições eram comemoradas em
moedas.
524
Um festival da Roma pré-urbana referido pelo antiquário Festo
como Septimontium, que envolvia 7 áreas da cidade e que parece estar
na origem da ideia de Roma como cidade das sete colinas. De qualquer
modo a etimologia não é consensual: de Sept- “sete” ou de saept- “divi-
dido” com paliçadas. Tratava-se de uma procissão lustral realizada a 11
125
Vidas dos Césares

que distribuiu cabazes de pão com iguarias aos senadores e


cavaleiros e pequenos cestos ao povo miúdo e ele mesmo foi
o primeiro a começar a comer. No dia seguinte lançou todo
o tipo de presentes, e como a maior parte caiu entre o povo
simples, atribuiu quinhentas tésseras para cada uma das áreas
ocupadas pelas ordens senatorial e equestre.

5. 1. Reconstruiu muitos e grandiosos edifícios que tinham


sido consumidos por incêndios, entre os quais também o
Capitólio, que voltara a arder525, mas em todos registou ape-
nas o seu nome, sem qualquer menção dos autores originais.
Erigiu, além disso, um novo templo, no Capitólio, em honra
de Júpiter Guardião526 e um fórum que agora tem o nome de
Nerva527. Erigiu de igual modo o Templo da Família Flávia528,
o Estádio529, o Odeão530 e a Naumaquia531, cuja pedra foi
depois usada no restauro do Circo Máximo532, uma vez que
este sofreu um incêndio em ambos os lados.

de dezembro, no encerramento do ano agrícola, à volta do Palatino e


do Esquilino.
525
Tinha ardido em 69, nas lutas entre os partidários de Vespasiano
e de Vitélio (cf. Vit. 15.3) e voltara a arder em 80: cf. Tit. 8.
526
Iuppiter Custos.
527
Porque foi dedicado por Nerva. Também designado por Forum
Transitorium…
528
No Quirinal. Cf. Dom. 1.1.
529
Corresponde ao espaço agora ocupado pela Piazza Navona.
530
Teatro coberto com capacidade para 5000 espetadores.
531
Suetónio, mais completo neste domínio do que os outros his-
toriadores, deixa uma imagem de Domiciano grande construtor: vide
Gascou 1984: 668. Pelo contrário, Jones (1996: 49-50) demonstra que
tanto Suetónio como outros autores são pouco generosos em relação à
obra de Domiciano.
532
A reconstrução só ficou completa no tempo de Trajano: cf. D.C.
68.7.2.
126
Vidas dos Césares

6. 1. Empreendeu expedições militares533, em parte por


sua iniciativa e, em parte, por necessidade: por sua iniciativa,
contra os Catos534; por necessidade, uma contra os Sármatas535,
depois de uma legião ter sido aniquilada juntamente com o
comandante. Empreendeu duas contra os Dacos536: a primeira,
na sequência da derrota do ex-cônsul Ópio Sabino; a segunda,
por causa da derrota de Cornélio Fusco, prefeito das coortes
pretorianas, a quem tinha confiado o comando supremo da
guerra. Depois de combates, de resultado variável, celebrou um
duplo triunfo sobre os Catos e os Dacos537. No que respeita à
vitória sobre os Sármatas, apenas ofereceu uma coroa de louros
a Júpiter Capitolino.
2. Quanto à guerra civil movida por Lúcio António,
comandante da Germânia Superior, pôs-lhe termo embora
ausente com espantosa fortuna, pois, no momento do recon-
tro538, um súbito degelo do Reno impediu as tropas dos
bárbaros de atravessarem para se juntarem a António. Teve
notícia desta vitória por presságios, antes de a receber por men-
sageiros, já que no próprio dia do recontro, uma extraordinária
águia envolveeu com as asas a estátua dele em Roma e desatou
em gritos de grande alegria. Pouco depois, a notícia da morte

533
Uma lista muito incompleta, mas um relato menos hostil que
o de Tácito (Hist. 1.2), segundo Jones 1996, 53 e Jones & Milns 2002:
134-135.
534
Em 82-83.
535
Em duas campanhas em 92 e em 95-96.
536
Iniciada por volta de 85.
537
Em 89. Mas celebrou outros anteriormente, em 83 e 86.
538
Lúcio António Saturnino foi derrotado pelo comandante da
Germânia Inferior, Lápio Máximo, e pelo procurador da Récia, Nor-
bano.
127
Vidas dos Césares

de António tornou-se tão corrente, que muitos até asseveravam


com veemência terem visto trazer a cabeça dele539.

7. 1. Introduziu ainda muitas inovações nos usos e costu-


mes: aboliu as espórtulas públicas, retomando o costume dos
jantares formais; acrescentou às quatro equipas já existentes
nos jogos de circo mais duas, a de divisas de ouro e a de púr-
pura; proibiu o palco aos atores, concedendo-lhes, no entanto,
o direito de exercerem a sua arte em casas particulares; proibiu
a castração dos homens; conteve o preço dos eunucos que
restavam na posse dos traficantes de escravos540. 2. Certa
vez, perante a grande abundância de vinho e a carência de
trigo, julgando que os campos eram negligenciados por causa
da excessiva dedicação às vinhas, determinou que ninguém
plantasse novas cepas em Itália e que fossem cortadas as vinhas
nas províncias, deixando, quando muito, a metade; mas não
porfiou no cumprimento da determinação. Distribuiu alguns
dos mais altos cargos aos libertos e aos cavaleiros romanos. 3.
Proibiu a duplicação de legiões por acampamento e que cada
qual depositasse mais que mil sestércios no cofre da legião,

539
Díon Cássio (67.11.3) diz que Domiciano expôs a cabeça de
António no fórum, juntamente com as de outros condenados neste
contexto.
540
Medida que Díon Cássio não vê com olhos tão benévolos.
Díon Cássio (67.2.3) integra a proibição da castração (referida entre os
primeiros actos do príncipe: no segundo ano de principado, segundo
o Chronicon eusebiano) na polémica de Domiciano com Tito: visava
insultar a memória do irmão, que tinha paixão por eunucos. Suetónio
apresenta as ofensas ao irmão defunto em contexto diverso, e de modo
vago: saepe etiam carpsit obliquis orationibus et edictis (Dom. 2.3). Neste
contexto, e a demonstrar a hipocrisia da lei imitida, Díon apresenta a
paixão de Domiciano por Eárino, tão cantado por Marcial e Estácio,
mas que Suetónio ignora. Cf. Mart. 9.11; 9.12; 9.13; 9.16; 9.17; 9.36; Est.
Silv. 3.4. Díon conserva, assim, uma tradição mais hostil a Domiciano:
vide Grelle 1980: 340-345.
128
Vidas dos Césares

porque lhe parecia que Lúcio António, ao preparar a revolta no


acampamento de inverno de duas legiões, ganhara confiança
também por causa grande soma dos depósitos. Acrescentou
também em um quarto o soldo com mais três moedas de ouro
para cada soldado.

8. 1. Administrou a justiça com cuidado e empenho,


geralmente também no Foro, na tribuna, em sessões extraordi-
nárias. Rescindiu as sentenças interesseiras dos centúnviros541.
Advertiu frequentemente os “recuperadores”542 para não acei-
tarem reclamações superficiais de liberdade; puniu os juízes
venais juntamente com os seus consultores. 2. Fez também
com que os tribunos da plebe acusassem um edil corrupto
de concussão e que solicitassem ao senado juízes para o caso.
Usou ainda de tal cuidado no refreamento dos magistrados
da Urbe e dos governadores das províncias, que nunca os
houve mais moderados e mais justos, enquanto, depois disso,
vimos muitos daqueles acusados de todos os crimes. 3. Tendo
assumido a correção dos costumes543, pôs cobro ao abuso que
existia no teatro com misturada entre espetadores nos lugares
reservados aos cavaleiros544; acabou com a divulgação pública
de escritos difamatórios que tachavam os mais ilustres homens
e mulheres, aplicando penas de desonra aos autores; removeu
do senado um ex-questor por ser dado ao gosto da imitar os

541
Cf. nota a Ves. 10.
542
Os recuperatores eram árbitros que intervinham em questões,
como propriedade, estatuto social, débito e extorsão. Cf. Ves. 3. Vide
Jones 1996: 70-71.
543
Correctio morum. Refere-se à assunção por parte de Domiciano
do poder de censor para toda a vida.
544
Os primeiros 14 degraus do teatro eram reservados à classe
equestre, mas muitos espetadores do povo tentavam ocupar esses luga-
res. Calígula teria promovido a mistura (cf. Cal. 26.2).
129
Vidas dos Césares

gestos do pantomimo545 e de dançar; privou as mulheres mal


afamadas do uso da liteira e retirou-lhes o direito de receber
legados e heranças; a um cavaleiro romano, que retomou o
casamento com a esposa, depois de a ter repudiado e acusado
de crime de adultério, mandou-o apagar do livro branco dos
juízes546; condenou certos membros de ambas as ordens em
virtude da lei Escantínia547; quanto aos incestos548 das virgens
vestais, negligenciados tanto pelo seu pai como pelo irmão,
reprimiu-os de formas variadas e severas: a princípio, com
a pena capital; posteriormente, segundo o antigo costume.
4. Com efeito, enquanto às irmãs Oculatas, e igualmente a
Varonila, concedeu a liberdade de escolher o género de morte e
desterrou os que as seduziram, mais tarde, no que diz respeito
a Cornélia, a virgem superiora549, que, tendo sido outrora
absolvida, foi, passado longo tempo, de novo acusada e consi-
derada culpada, ordenou que fosse enterrada e que os amantes
fossem vergastados até à morte no Comício, com exceção de

545
Também Calígula era acusado de imitar os gestos do pan-
tomimo. A gesticulação dos pantomimos e a dedicação à dança são
consideradas por Plínio efeminadas e indecorosas: Pan. 46.4 (sobre a
imitação dos pantomimos); Pan. 54.1 (Sobre a dança). Cf. Cic. Mur.
13. Vide Jones 1996: 74-75.
546
O album. Trata‑se da restauração da lex Iulia de adulteriis, cele-
brada por Marcial (6.2; 6.7; 6.22; 6.91). Segundo Díon Cássio (67.12.1),
Domiciano condenou muitos homens e mulheres por adultério, mas
acrescenta que com algumas destas mulheres o próprio Domiciano
tivera relações ilícitas. Vide Grelle 1980: 345-346; Jones 1996: 75; Jones
& Milns 2002: 141.
547
Lei de 149 a.C. sobre práticas de pederastia com rapazes livres
por nascimento.
548
Enquanto irmãs do povo romano, os adultérios das vestais eram
incesta. Plínio o Moço (Ep. 4.11) compara o acontecimento ao incesto
de Domiciano com a sobrinha Júlia, cuja morte, alegadamente em
consequência de um aborto forçado pelo imperador (Dom. 22), ocorreu
pela mesma altura da execução de Cornélia.
549
A mais velha do colégio, constituído por 6 virgens.
130
Vidas dos Césares

um ex-pretor550, a quem concedeu como indulgência o exílio,


por ele ter confessado, quando era ainda incerto o processo
e inconclusivas as investigações e torturas551. 5. E para que
nenhum culto divino fosse impunemente manchado, derrubou
um sepulcro, que um liberto dele construíra para o filho com
pedras destinadas ao templo de Júpiter do Capitólio, e fez
lançar ao mar, recorrendo aos soldados, os ossos e cinzas ali
depositados.

9. 1. Nos inícios, era tal o horror que manifestava por


todo o género de morte, que, estando o pai ainda ausente,
ao recordar aquele verso de Virgílio – “antes que a geração
ímpia se banqueteasse com os novilhos imolados552” – con-
siderou promulgar um edito a proibir a imolação de bois553.
Também dificilmente levantou alguma suspeita de cobiça
e avareza enquanto cidadão privado, ou, durante algum
tempo, enquanto príncipe. Bem pelo contrário, deu amiúde
grandes provas não só de respeito pelo alheio, mas até de

550
Trata-se se de Valério Liciniano: cf. Plin. Ep. 4.11.
551
Para estabelecer uma gradação na biografia, Suetónio leva o
leitor a pensar que todas as medidas positivas acontecem na primeira
fase do governo, o que não corresponde à verdade histórica. De facto,
situa indevidamente nesta fase a punição da vestal Cornélia e seus cúm-
plices, facto que terá acontecido numa fase adiantada deste principado.
Sobre a datação do acontecimento, vide Galli 1991: 78; Grelle 1980:
347; Gascou 1984: 400. Também a uma fase adiantada deste governo
pertence a repressão da prostituição dos meninos, medida louvada por
Marcial no livro IX [9.5 (6); 9.7 (8)], publicado por volta de 94 ou 95.
Vide Jones 1996: 78; Jones & Milns 2002: 142-143.
552
Verg. G. 2. 538: ‘ impia quam caesis gens est epulata iuuencis’. O
contexto é o da mítica idade de ouro no reinado de Saturno.
553
Scott (1934: 225‑226) põe a hipótese de as razões de Domiciano
não serem religiosas ou sentimentais, mas económicas: proteger as
depauperadas manadas de Itália, até recuperem das perdas da guerra
civil, e evitar mais abates devidos ao cumprimento de votos feitos
durante a guerra.
131
Vidas dos Césares

generosidade554. 2. Procedia com extrema generosidade para


com os que o rodeavam e nada havia que recomendasse
primeiro e com maior ardor do que nada fizessem com mes-
quinhez. Não aceitava heranças a si deixadas por aqueles que
tinham filhos. Tratou inclusivamente de anular um legado
incluído no testamento de Rústio Cipião, que garantia que
o seu herdeiro desse anualmente uma determinada quantia a
cada um dos senadores que ingressasse na Cúria. Libertou de
culpa todos acusados que tinham pendentes dívidas ao erário
ao fim de um quinquénio e não permitiu a renovação senão
por um ano e com a condição de que os acusadores que não
ganhassem a causa sofressem pena de exílio. 3. Aos secretários
dos questores que se dedicavam aos negócios segundo a prá-
tica, mas contra a lei Clódia555, perdoou-lhes os atos passados.
As parcelas remanescentes dos campos que, depois de feita
a distribuição pelos veteranos, sobravam de um lado e do
outro556 concedeu-as aos antigos proprietários por usucapião.
Reprimiu as falsas denúncias de crimes fiscais com severos
castigos para os denunciantes, pelo que corria um dito dele: “o
príncipe que não castiga os delatores, incentiva‑os”.

10. 1. Mas não permaneceu no caminho nem na clemência


nem no respeito pelo alheio, e, no entanto, degenerou muito
mais rapidamente para a crueldade que para a cobiça557. Matou

554
Aos vícios da cupiditas e da auaritia opõem-se as virtudes da
abstinentia e da liberalitas.
555
Não é claro a que lei se refere. Uns pensam que se trata de uma
lei do tribuno Públio Clódio de 58 a.C.; outros pensam que se trata da
mais antiga lex Claudia de senatoribus, sobre a proibição dos senadores
e seus filhos se dedicarem ao comércio.
556
As partes irregulares que ficavam de fora, depois de estabelecidas
as parcelas regulares pelos agrimensores.
557
Suetónio pretende sugerir a ideia de uma progressão cronológica.
Vide Gascou 1984: 696.
132
Vidas dos Césares

um discípulo do pantomimo Páris, ainda impúbere e naquela


altura muito doente, porque na arte e na aparência parecia
não ser diferente do mestre558. Fez o mesmo a Hermógenes de
Tarso, devido a umas alusões na sua história, além de cruci-
ficar até os amanuenses que a copiaram. A um pai de família
que dissera que um gladiador Trácio igualava um Mirmilão,
mas não igualava o patrocinador dos jogos559, arrancou-o
da assistência e lançou-o aos cães na arena acompanhado
do seguinte letreiro: “adepto dos Trácios autor de palavras
ímpias”.

2. Eliminou numerosos senadores, entre eles alguns ex-


-cônsules. Destes, Cívica Cereal no próprio exercício do
proconsulado da Ásia560; Salvidieno Órfito561 e Acílio Glabrião
no exílio562, por alegadamente promoverem revoltas; os res-
tantes por qualquer motivo, por muito leve que fosse; Élio
Lâmia, por gracejos de facto geradores de suspeição, mas por
demais antigos e inócuos: porque, depois de lhe ser arrebatada

558
Também o mestre, Páris, foi suprimido (cf. Dom. 3.1) porque a
esposa imperial por ele se apaixonara. Cf. D.C. 67.3.1.
559
Isto é, Domiciano, que apoiava os Mirmilões. Encontramos
semelhantes sinais de partidarismo da parte dos imperadores em Cal.
32.2 e Vit. 14.3.
560
Vetuleno Cívica Cereal pode ter estado associado ao levanta-
mento do falso Nero no Oriente em 88‑89; ou, pelo menos, Domiciano
não acreditou que ele não estivesse: vide Southern 1997: 104 e 112.
561
Este foi desterrado em consequência de um processo que envol-
via Nerva e Apolónio de Tíanos, como nota Filóstrato, VA 7.8; 7.33;
8.7.10. Foi executado mais tarde, talvez por envolvimento em algum
tipo de conjura. Já o pai dele tinha sido executado por Nero. Vide
Southern 1997: 116.
562
Segundo Díon Cássio (67.14.2-3), Acílio Glabrião foi morto,
acusado de ateísmo e muitos outros crimes, entre os quais, de combater,
como gladiador, com bestas ferozes. Os feitos na arena provocaram a
inveja (chegou a matar um leão) do imperador. Há quem tente provar
que ele era cristão. Vide Southern 1997: 15.
133
Vidas dos Césares

a mulher563, retorquira a alguém que lhe elogiava a voz: “pra-


tico a castidade564”; e também a Tito, que o exortava a voltar
a casar, respondera: “também tu te queres casar?!565”; 3. Sálvio
Coceiano porque celebrara o aniversário do imperador Otão,
seu tio paterno566; Métio Pomposiano, porque corria entre o
povo que ele tinha um horóscopo relativo ao poder imperial,
porque transportava consigo um pergaminho com uma
representação do orbe terrestre e os discursos dos reis e dos
generais, extraídos de Tito Lívio, e porque pôs a uns escravos
os nomes de Magão e de Aníbal567; Salústio Luculo, legado da
Britânia, porque consentira que se chamasse “lucúleas” a um
novo tipo de lanças568; Júnio Rústico, por ter publicado um
elogio de Peto Trásea e de Helvídio Prisco569 e lhes ter cha-

563
Por Domiciano: cf. supra Dom. 1.3.
564
Havia a crença de que a abstinência de sexo melhorava o canto.
565
O ressentimento deve ter atirado Élio Lâmia para a oposição,
mas Domiciano, desconfiado, devia temer uma reação violenta e pro-
curou suprimi‑lo. Vide Southern 1997: 116.
566
Tratava‑se da subversiva veneração da memória de um homem
que fora imperador: assim se lembraria que o familiar vivo podia aspirar
ao principado. Segundo Plutarco (Oth. 16.4), o tio ter-lhe-ia recomen-
dado: “nem te esqueças por completo de que tiveste um tio César, nem
o recordes em demasia”. Cf. recomendação semelhante em Tac. Hist.
2.48.2. Vide Galli 1991: 81-82; Southern 1997: 116.
567
Vespasiano poupara Métio Pompusiano: Cf. supra Ves. 14 e res-
petiva nota. A morte deste nobre acentua o contraste entre a clementia
de Vespasiano e a saeuitia de Domiciano. Cf. D.C. 67.12.2-4. Vide
Gascou 1984: 326-328.
568
Dificilmente seria apenas esta a razão. Talvez tivesse aderido à
revolta de Lúcio António Saturnino em 89; ou tenha caído em desgraça
por mostrar oposição à política não expansionista de Domiciano na
Britânia, o que o tornava um potencial traidor aos olhos do imperador,
que se mostrava mais consciente dos perigos depois da revolta de Satur-
nino. Vide Jones 1983: 629-633; Galli 1991: 82; Jones 1996: 91; Jones
& Milns 2002: 147.
569
Trásea foi forçado ao suicídio em 66 por Nero. Helvídio Prisco,
genro do primeiro, foi executado no principado de Vespasiano: cf. Ves.
15.
134
Vidas dos Césares

mado “varões assaz venerandos”570, julgamento que serviu de


ensejo a Domiciano para afastar todos os filósofos da Urbe e
de Itália. 4. Assassinou ainda Helvídio filho, por alegadamente
ter, no exódio571 de uma peça de teatro, censurado o divórcio
do imperador e da esposa, implícitos nas personagens de Páris
e Enone572; Flávio Sabino, um dos primos, porque, no dia dos
comícios consulares, o arauto, por lapso, o proclamou ao povo
não como cônsul eleito, mas como imperador573.

5. De facto, tornou-se bastante mais cruel depois da vitória


na guerra civil574 e torturou muitos dos da fação contrária, na
procura de descobrir os cúmplices escondidos, com um novo

570
Parece haver aqui amálgama de informação e omissão. Júnio
Aruleno Rústico é autor da laus de Trásea, mas não consta que tenha
escrito também um elogio de Helvídio Prisco: tal seria da autoria de
Herénio Senecião (que Suetónio omite). Cf. D.C. 67.13.2; Tac. Ag.
2; Plin. Ep. 1.5. Segundo Díon Cássio, o apelido de santo é apenas
atribuído a Trásea (por Aruleno Rústico). Vide Della Corte 1967: 96-98.
571
Uma representação breve e cómica que tinha lugar no final de
uma peça de teatro.
572
Enone era a primeira esposa de Páris, que a trocou por Helena.
Helvídio pertence a um grupo com um longo historial de oposição
estóica, unido por laços familiares e de amizade: Cecina Peto, Trásea
Peto, Helvídio Prisco, Aruleno Rústico, Herénio Senecião, os dois
últimos executados por Domiciano e talvez em conjunto com Helvídio
filho. No grupo se incluem mulheres como Árria, a heróica esposa de
Cecina Peto, e Fânia, filha de Trásea Peto e esposa de Helvídio Prisco.
Vide Southern 1997: 113-114.
573
Tratava-se do neto de Tito Flávio Sabino, irmão de Vespasiano.
É suspeita a ligação da morte ao equívoco do praeco, uma vez que T.
Flávio Sabino foi designado como colega de consulado de Domiciano
para o ano de 82 e viveu o suficiente para ocupar o cargo. Existiria
certamente a suspeita de adesão a uma conjura: cf. Galli 1991: 84;
Southern 1997: 43.
574
Suetónio para criar um efeito de crescendo sugere uma falsa cro-
nologia: a maioria das mortes acima referidas são certamente posteriores
a esta guerra civil, ocorrida em janeiro de 89. Sobre estas execuções vide
Brandão 2009: 231-233.
135
Vidas dos Césares

tipo de interrogatório que consistia em chegar fogo aos órgãos


genitais; a alguns até cortou as mãos. É do conhecimento
geral que só a dois dos notáveis foi concedido o perdão, um
tribuno laticlávio e um centurião, que, para mais facilmente
demonstrarem que estavam livres de culpa, provaram que eram
homossexuais e que, por isso, não podiam ter qualquer influ-
ência nem junto do comandante, nem junto dos soldados575.

11. 1. Era pois de uma crueldade não só desmedida, mas


também ardilosa e imprevisível. Convocou o tesoureiro para
o seu quarto na véspera do dia em que o crucificou, mandou-
-o sentar no leito junto a si, deixou-o ir embora sossegado
e bem-disposto, e até o honrou com partes do seu jantar.
Quando estava para condenar à morte o ex-cônsul Arrecino
Clemente, um dos seus íntimos e agentes, continuou a tratá-lo
com a mesma benevolência, ou ainda maior, até que, por fim,
quando eram levados os dois liteira, lhe perguntou ao ver o
delator: “queres que dêmos audiência amanhã a este miserável
escravo?”576.

2. E para, de forma mais desprezível, abusar do sofrimento


das pessoas, nunca pronunciou uma sentença mais dura, sem
um prólogo sobre a clemência, pelo que já não havia sinal mais
claro da atrocidade do desfecho que a brandura da introdução.

575
Cf. D.C. 67.11.4. O tribuno seria Júlio Calváster, como se depre-
ende das palavras de Díon Cássio. Os acusados terão argumentado que
a sua ligação a António Saturnino era de natureza sexual e não política.
Vide Jones & Milns 2002: 149.
576
Foi prefeito dos pretorianos no principado de Vespasiano.
Segundo Jones (1972: 320-321), é possível que Arrecino Clemente,
sendo irmão da mulher de Tito e também tio de Júlia e amigo de
Domiciano, tenha censurado a relação de Domiciano com a sobrinha,
o que terá desencadeado o conflito entre os dois amigos. Clemente foi
provavelmente exilado e não executado.
136
Vidas dos Césares

Tinha certa vez conduzido à Cúria uns acusados de lesa-


-majestade e, como começara por dizer que, naquele dia, iria
comprovar a estima que o senado lhe devotava, facilmente
conseguiu que fossem condenados e, para mais, punidos
segundo o costume dos antepassados577. 3. Depois, assustado
com a atrocidade do castigo, para suavizar o ódio contra si,
vetou a decisão com estas palavras – pois interessa conhecer
os termos exatos: “permiti‑me, Pais Conscritos, alcançar da
vossa devoção o que sei que dificilmente poderei alcançar: que
concedais aos condenados a liberdade da escolha do género de
morte. Assim não só poupareis os vossos olhos, mas também
todos compreenderão que eu estive presente no senado”.

12. 1. Depauperado578 por causa das despesas com obras e


espetáculos públicos579, bem como com o soldo militar, que
aumentara, tentou, de modo a aliviar os gastos do exército,
diminuir o número dos soldados. Mas como percebeu que,
deste modo, se tornava vulnerável perante os bárbaros e
não ficava em menor dificuldade na resolução dos encargos,
não teve qualquer pejo em espoliar por todos os meios580.
Confiscavam‑se os bens dos vivos e dos mortos onde quer

577
Cf. Nero 49.2. O próprio Nero não sabia já em que consistia
o castigo. Tratava-se prender o réu nu pelo pescoço e vergastá-lo até
à morte.
578
Exhaustus será exagero do biógrafo, como notam, Jones & Milns
2002: 150-151. Domiciano teria recursos suficientes, mas quereria mais
(cf. Plin. Pan. 50.5) para o seu programa de construções monumentais.
579
Ficam assim ensombradas pela sumptuosidade as medidas ante-
riormente apresentadas como positivas (Dom. 4-5). Então sublinhou
apenas a generosidade do imperador: só agora aborda as consequências
nefastas. Vide Gascou 1984: 372.
580
A gradação, bem como o vocabulário, é comparável com outros
imperadores sumptuosos: cf. Cal. 38.1: Exhaustus igitur atque egens ad
rapinas conuertit animum; Nero 32.1: iam exhaustus et egens… calumniis
rapinisque intendit animum. Cf. Gascou 1984: 749 n. 261.
137
Vidas dos Césares

que fosse, qualquer que fosse o acusador ou a acusação. Bas-


tava apresentar qualquer ação ou dito contra a majestade do
príncipe581. 2. Arrestavam-se propriedades de quem não tinha
qualquer relação de parentesco com ele, bastando, por exem-
plo, que aparecesse um só que dissesse ter ouvido ao falecido,
enquanto este estava vivo, que o imperador era seu herdeiro.
Além dos outros, era recolhido com extrema dureza o imposto
judaico582, para o qual contribuíam tanto os que de forma
não professa cumprissem as normas de vida judaicas, como
os que, disfarçando a origem, não saldassem os impostos que
pendiam sobre este povo. Lembro-me de, quando eu era rapa-
zola, estar presente na altura em que um ancião de noventa
anos foi inspecionado por um procurador, perante uma
assembleia bastante apinhada, para averiguar se era circun-
cidado.

3. Tinha desde a juventude um temperamento muito


pouco cortês, sendo enfatuado e excessivo tanto nas palavras
como nos atos: certa vez em que Cénis, a companheira do

581
Esta restauração da lex maiestatis, abolida depois da queda de
Nero, explica‑se, segundo Martin (1991: 342-343), por um comporta-
mento patológico de desconfiança, misantropia e dissimulação: uma
verdadeira fobia que o leva a suprimir sistematicamente todas as pessoas
suscetíveis de subirem ao governo do império ou de atentarem contra a
sua vida. Southern (1997: 119-125) tenta explicar o carácter desconfiado
de Domiciano com base em estudos de psicologia sobre os efeitos da
perda da mãe muito cedo, numa idade em que não podia compreender.
Seria essa a razão que levaria Domiciano a declarar‑se filho de Minerva.
582
O Iudaicus fiscus era a taxa da didracma, que os Judeus pagavam
para o templo de Jerusalém e, que, depois da destruição deste, no ano
70, passaram a pagar para o templo de Júpiter Capitolino, o que lhes
dava o direito de praticarem livremente a sua religião: cf. J. BJ 7.6.6;
D.C. 66.7.2. Muitos dos acusados poderiam ser cristãos, mas a destrinça
não contava para o governo imperial. Vide Keresztes 1973: 1-7; Galli
1991: 86-88.
138
Vidas dos Césares

pai, ao regressar da Hístria, lhe ia dar um beijo, como era seu


costume, ele estendeu-lhe a mão; e achando intolerável que o
genro do irmão583 tivesse também criados vestidos de branco,
exclamou:

“Não é bom que haja muitos governantes!”584

13. 1. Mas quando alcançou o principado, não hesitou em


vangloriar-se no senado que tinha dado o império ao pai e ao
irmão e que eles lho tinham devolvido, nem em declarar, ao
reassumir a mulher, depois do divórcio, que a tinha chamado
de novo para o seu leito divino585. Foi também com prazer que
ouviu no anfiteatro em dia de banquete a aclamação: “felici-
dades para o Senhor e para a Senhora!”586. Mas, no certame
capitolino587, como todos lhe suplicavam por geral consenso
que reintegrasse no senado Palfúrio Sura588, anteriormente
expulso e que recebia então a coroa dos oradores, não se
dignou a dar-lhes qualquer resposta, limitando-se a mandá-
-los calar pela voz de um arauto. 2. Com igual sobranceria589,

583
Flávio Sabino, que casou com a filha de Tito.
584
São palavras de Ulisses na Ilíada: Il. 2.204. Trata-se da primeira
parte do verso referido em contexto semelhante em Cal. 22.1. Sobre
as manifestações da cultura grega (e homérica) dos imperadores, vide
Berthet 1978: 325.
585
Puluinar era a almofada onde se colocavam as imagens dos
deuses no Lectisternium, um banquete ritual oferecido aos deuses. César
recebeu a honra de ter a sua estátua numa destas almofadas, o que foi
visto por Suetónio como excessivo: cf. Jul. 76.1.
586
Augusto e Tibério recusaram o título de dominus: cf. Aug. 53.1
e Tib. 27.
587
Cf. supra Dom. 4.4.
588
Um delator, segundo Juvenal (4.53). Costuma ser identificado
com o Seras, delator condenado por Nerva: cf. D.C. 681.2.
589
Par arrogantia corresponde à expressão multo arrogantius fac-
tum que qualifica as aspirações monárquicas de César ( Jul. 79.1): vide
Gascou 1984: 724 n.41.
139
Vidas dos Césares

enquanto ditava uma circular em nome dos seus procura-


dores, começou assim: “o nosso deus e senhor manda fazer
o seguinte…”. A partir daí ficou determinado que não seria
nomeado de outra forma nos escritos ou discursos de quem
quer que fosse590. Não permitiu que erigissem estátuas a si
próprio no Capitólio se não fossem de ouro e prata e de um
peso determinado. Edificou pórticos e arcos com quadrigas
e símbolos das suas vitórias por todas e em cada uma das
regiões da Urbe, até que num deles apareceu escrito em grego:
“basta!”591. 3. Assumiu dezassete consulados, tantos quantos
nenhum outro antes de si; destes, os sete do meio foram
contínuos592, mas a todos ocupou por assim dizer de nome, e
nenhum deles além das calendas de maio; na sua maior parte,
apenas até aos idos de janeiro593. Tendo assumido, depois dos
dois triunfos594, o cognome de Germânico, rebatizou os meses
de setembro e outubro a partir dos seus próprios apelidos de
Germânico e Domiciano, porque num assumira o império, no
outro nascera.

14. 1. Com tais atitudes, tornou‑se objeto de terror e de


ódio para todos e acabou por ser morto numa conjugação
de esforços dos amigos e libertos mais chegados e até da
mulher595. Havia muito que previa quando seria o derradeiro
ano e o dia da sua vida, e mesmo a hora e até o género de

590
Díon Cássio (67.13.3-4) conta o caso de Juvêncio Celso que,
acusado de conspiração, salva a vida por tratar Domiciano por senhor
e deus.
591
Arkei.
592
De 82 a 88.
593
Dia 13.
594
Na verdade, Domiciano celebrou 3: em 83, 86 e 89.
595
Note-se o paralelismo com as Vidas de Calígula e de Nero:
Ita bacchantem atque grassantem non defuit plerisque animus adoriri
(Cal. 56.1); Talem principem paulo minus quattuordecim annos perpessus
140
Vidas dos Césares

morte. Foram os astrólogos que lho prognosticaram quando


era jovem596. Também o pai, certa vez ao jantar, se riu na cara
dele por se abster de cogumelos, alegando que ele não tinha
consciência do destino, porque não temia antes o ferro. 2.
Por isso, sempre cheio de medo e ansioso, à mínima suspeita
ficava sobremodo abalado597. Acredita-se que nada o levou
mais a fazer letra morta do edito que publicou sobre o corte
das vinhas do que o facto de se terem divulgado uns panfletos
com os seguintes versos:

“Ainda que me devores pela raiz, produzirei


o bastante para derramar sobre ti, ó bode, quando fores
imolado!”598

3. Foi por semelhante pavor que, ao ser agraciado pelo


senado com uma nova honra arquitetada, a recusou, apesar
da extrema avidez que tinha por tais distinções: fora-lhe,
pois, decretado que, cada vez que ele assumisse o consulado,
o precedessem, entre os lictores e batedores, cavaleiros roma-
nos, tirados à sorte, vestidos de trábea599 e envergando lanças
militares.

terrarum orbis tandem destituit (Nero 40.1). Díon Cássio (67.15.1-2)


indica os nomes dos conjurados.
596
O tema tradicional do tirano inquieto e desconfiado recebe um
novo tratamento: o fundamento desta apreensão doentia reside nas
predições astrológicas: vide Brind’Amour 1981: 338-344.
597
Trata-se de retomar a ideia de que o medo o tornou cruel (cf.
atrás Dom. 3.2).
598
Versos de Eveno de Ascalão, imitados por Ovídio, Fast. 1.355-9.
599
Toga ornada com bandas ou listras de púrpura, usada outrora
pelos reis e então pelos cavaleiros em ocasiões oficiais, mas também por
alguns sacerdotes.
141
Vidas dos Césares

4. Mais inquieto de dia para dia, à medida que se apro-


ximava a data do suspeitado perigo, ornou as paredes dos
pórticos, pelos quais costumava passear, com placas de fengite,
que lhe permitiam vislumbrar o que se passava atrás das suas
costas. E não ouvia a maior parte dos prisioneiros senão em
lugar apartado e em particular, segurando mesmo nas mãos
as cadeias 600. E para convencer os serviçais de que não era
bom exemplo atrever-se a atentar contra a vida do patrono,
fez condenar à pena capital Epafrodito, o secretário para as
petições601, porque se julgava que, depois que Nero foi aban-
donado, o tinha ajudado a suicidar-se602.

15. 1. Por fim, quanto a Flávio Clemente, seu primo,


homem de uma indolência assaz desprezível – cujos filhos,
então ainda pequeninos, designara publicamente como suces-
sores e a quem, depois de lhes retirar os nomes anteriores,
dera os nomes de, respetivamente, Vespasiano e Domiciano
– eliminou-o subitamente com base numa levíssima suspeita
e por pouco não no exercício do próprio consulado 603. Foi
sobretudo este feito que precipitou o fim dele.

600
Cf. D.C. 67.12.5. Este autor sugere que os interrogava sozinho
para evitar que outros conhecessem o conteúdo da conversa.
601
A libellis.
602
Cf. Nero 49.3. O facto é referido também por Díon Cássio
(67.14.4) e Plínio (Pan. 53.4).
603
Cf. D.C. 67.14.1. Flávio Clemente, neto do irmão de Vespasiano,
Flávio Sabino, foi consul ordinarius nos primeiros quatro meses de 95.
Dado que foi executado na última parte do ano, seria então ex‑cônsul.
Vide Galli 1991: 92-93. Segundo Díon Cássio, Flávio Clemente foi
acusado de ateísmo, tal como muitos convertidos ao judaísmo, e a
esposa, Flávia Domitila, sobrinha do imperador, foi exilada na ilha de
Pandatária. Segundo Keresztes (1973: 1-28), Flávio Clemente e a esposa
seriam judeus prosélitos e não cristãos. Pergola (1978: 407-423) tenta
demonstrar a forte possibilidade de serem cristãos. A contemptissima
inertia poderá dever-se à ausência de sacrifícios oficiais às divindades
142
Vidas dos Césares

2. Durante oito meses seguidos foi tal o número de


relâmpagos que ocorreram e que foram reportados, que
ele exclamou: “pois que atinja lá a quem quiser!”604. Foram
atingidos do alto o Capitólio e o templo da Família Flávia,
bem como a residência do Palatino e o próprio quarto dele;
e até uma inscrição foi arrancada pela força da borrasca do
pedestal de uma estátua triunfal e precipitada num sepulcro
das imediações. A árvore que, depois de ter sido derrubada,
se reerguera quando Vespasiano era ainda cidadão privado,
tombou então subitamente 605. A Fortuna de Preneste, que
por todo o tempo do seu poder lhe costumava dar sempre o
mesmo oráculo feliz quando ele colocava o novo ano sob a sua
proteção, no último ano deu-lhe uma réplica assaz funesta e
não isenta de alusão a sangue606.

3. Sonhou que Minerva, que ele venerava de forma


supersticiosa607, se retirava do sacrário e que dizia que não lhe

pagãs. Talvez a verdade nem mesmo dos contemporâneos dele fosse


conhecida. Vide Jones 1996: 121-124; Southern 1997: 115.
604
Calígula (Cal. 22.4) lançara palavras semelhantes de desafio a
Júpiter.
605
Tratava-se de um cipreste: Ves. 5.4. A queda de Domiciano
representa a queda de toda a dinastia, tal como a de Nero, cuja queda
é simbolizada pelo loureiro que secara (cf. Gal. 1). Vide Gascou 1984:
778.
606
Famoso oráculo. Também Tibério sofreu a oposição deste: Tib.
63.1.
607
Superstitiose colebat. A ligação de Domiciano a Minerva (Pallas
Caesariana) é celebrada por Marcial, 5.2.6-8; 6.10.9-12; 7.1.1-2; 8.1.4;
9.3.10. Díon Cássio (67.16.1) apresenta uma versão ligeiramente diferente
desta. Superstitio exprime habitualmente em Suetónio crenças espúrias,
religiões alheias, práticas de magia; mas, neste caso, sugere censura do
exagero e demasiada exclusividade da veneração por uma divindade
do panteão, Minerva: vide Gascou 1984: 729 n. 94. Segundo Girard
(1981: 233-245), nenhuma divindade ilustraria tão bem os traços da
personalidade e do principado de Domiciano como Minerva, terceira da
143
Vidas dos Césares

poderia conceder doravante proteção porque Júpiter a tinha


desarmado. Mas nenhum facto o impressionou tanto como
a resposta e a tragédia do astrólogo Ascletarião. Este, que,
denunciado, não negara ter divulgado as previsões derivadas
da sua arte, foi interrogado acerca do fim que estava reservado
para ele próprio. E, como afirmou que seria em breve dilace-
rado pelos cães, Domiciano mandou‑o matar sem demora;
mas, para demonstrar a incongruência da arte, mandou tam-
bém que lhe fizessem o funeral com todo o cuidado. Enquanto
tal se cumpria, aconteceu que uma violenta tempestade derru-
bou a pira e os cães despedaçaram o cadáver meio cremado. E
isto lhe contou ao jantar, entre outras histórias do dia, o mimo
Latino que, ao passar, presenciara por acaso o facto608.

16. 1. Na véspera de morrer, ao mandar guardar para o dia


seguinte umas túberas que lhe tinham oferecido, acrescentou
“se ao menos me for permitido saboreá-las!” e, voltando-se
para os íntimos, asseverou que no dia seguinte a lua iria
cobrir-se de sangue no signo de aquário e ocorreria algo de
que todos os homens falariam por todo o mundo 609. E por
volta da meia noite, foi acometido de tal terror, que saltou
do leito. Na manhã seguinte, ouviu e condenou à morte um

tríade capitolina (como Domiciano era terceiro da tríade dos Flávios),


guerreira, vingadora, terror dos inimigos, patrona das artes.
608
Segundo Díon Cássio (67.16.3), Ascletarião foi condenado a
ser queimado vivo. Este astrólogo pertenceria a um pequeno grupo de
astrólogos egípcios que exercia esta atividade em Roma no primeiro
século e cuja fama se estendia por todo o império. Vide Sijpesteijn 1990:
164-165.
609
Na opinião de Brind’Amour (1981: 338-344), trata‑se de um
registo póstumo da vida e da morte de Domiciano, segundo uma visão
da astrologia (elaborada por uma fonte competente nesta matéria), que
se manifesta várias vezes ao longo da vida. Assim, na narrativa da vida
de Domiciano composta por Suetónio, há uma trama astrológica que
pouco a pouco conduz o imperador ao seu destino.
144
Vidas dos Césares

arúspice enviado da Germânia, que, consultado acerca de um


relâmpago, tinha vaticinado uma mudança no poder 610. 2. E,
ao arranhar com força uma verruga inflamada na fronte até
fazer sangue, disse: “oxalá seja quanto baste!”. Então, quando
perguntou as horas, disseram-lhe propositadamente que era a
sexta, em vez da quinta que ele temia. Satisfeito com tal res-
posta, julgando o perigo passado, tratava de ir entregar-se aos
cuidados do corpo611, quando Parténio, o criado de quarto612,
o fez alterar os planos, com a notícia de que estava ali alguém
para tratar de um assunto qualquer de grande importância e
que não podia ser adiado. E assim, mandou embora toda a
gente, recolheu-se ao quarto e foi aí assassinado.

17. 1. Sobre a organização da conjura e do homicídio foi


propalado o seguinte. Estavam os conjurados hesitantes sobre
o momento e o modo de o atacar – se durante o banho ou
durante o jantar –, quando Estéfano, procurador de Domi-
tila613, e na altura acusado de desvio de dinheiros, lhes ofereceu
o seu conselho e ajuda614. Andou durante alguns dias com o

610
Segundo Díon (67.16.2,) chamava‑se Largino Próculo e sobrevi-
veu, porque a sua execução foi adiada para poder ver que o imperador
escapara à sua previsão. Foi recompensado por Nerva.
611
Díon Cássio (67.17.1) diz que se preparava para ir dormir uma
sesta.
612
Parténio era o camareiro, com acesso privilegiado a Domiciano.
Marcial (5.6.2) e Dión Cássio (67.15.1), entre outros, apresentam-no
como o mentor da conjura, mas Suetónio deixa a sua posição na ambi-
guidade. Suetónio sabia bem da sua participação e da morte atroz que
sofreu mais tarde às mãos dos pretorianos, castigo consentido por Nerva
para acalmar os soldados que reclamavam a cabeça do assassino. Tinha
sido altamente honrado por Domiciano, que lhe concedera o privilégio
extraordinário de usar a espada (ius gladii).
613
A sobrinha do imperador e esposa de Flávio Clemente.
614
Segundo Díon Cássio (67.17.1), Estéfano foi escolhido como
executor, porque era mais forte que os outros, mas acabou morto pelos
que acorreram em auxílio do imperador.
145
Vidas dos Césares

braço esquerdo envolto em tiras de lã, a pretexto de uma lesão,


para evitar suspeitas, e, chegada a hora certa, inseriu ali um
chuço. Afirmando que ia revelar uma conspiração, foi por este
motivo recebido, e, enquanto o imperador lia estupefacto o
bilhete que ele lhe entregara615, trespassou-lhe as virilhas. 2.
Como o imperador, gravemente ferido, resistia, acometeram-
-no Clodiano, oficial subalterno, Máximo, liberto de Parténio,
Sátur, chefe dos criados de quarto, e um fulano da escola de
gladiadores e assassinaram-no com sete golpes. Um rapaz, que
costumava prestar serviço aos Lares do quarto e presenciou
o assassínio, contava ainda o seguinte: que, mal Domiciano
recebera o primeiro golpe, lhe mandara ir buscar o punhal,
que estava escondido debaixo da almofada, e chamar os cria-
dos. Mas, à cabeceira da cama, nada encontrou à exceção do
cabo e, além disso, deparou com todas as portas fechadas616.
E o imperador, agarrando e derrubando Estéfano por terra,
lutou longo tempo com ele, tentando ora arrebatar-lhe o ferro,
ora furar-lhe os olhos com os dedos, apesar de dilacerados617.

3. Foi morto aos catorze dias das Calendas de Outubro,


com quarenta e cinco anos de idade, no décimo quinto ano do
seu principado. Depois que o cadáver dele foi transportado por
uns defunteiros num vulgar esquife618, a ama Fílis tratou de lhe

615
Segundo Filóstrato, na sua Vida de Apolónio, (VA 8.25), Estéfano
sustentava que Flávio Clemente havia escapado à morte e se preparava
para atacar o imperador.
616
Segundo Díon Cássio (67.17.1), foi Parténio quem retirou a
lâmina do punhal.
617
Gascou (1984: 308 e 796) vê aqui a presença do realismo mór-
bido e atroz, muito ao gosto de Suetónio e presente em muitas outras
mortes. Ao contrário de Díon (67.17.2) e Filóstrato (VA 8.25), omite
qualquer ajuda e faz de Domiciano uma personagem solitária na morte.
618
Sandapila, o caixão dos pobres. Sobre a morte de Domiciano
vide Pimentel 1993: 94-102; Brandão 2013: 135-145.
146
Vidas dos Césares

prestar as honras fúnebres na sua casa de campo, junto à Via


Latina, mas depositou os restos mortais no templo da família
Flávia e juntou-os às cinzas de Júlia, a filha de Tito, a qual ela
tinha também criado.

18. 1. Tinha uma elevada estatura, um semblante modesto


e muito corado, olhos grandes, mas a vista muito baça. Era
além disso formoso e esbelto, sobretudo na juventude, e por
todo o corpo à exceção dos pés, cujos dedos eram retraídos619.
Mais tarde, desfiguraram‑no a calvície, o ventre obeso 620 e
as pernas delgadas, que emagreceram ainda mais, devido a
uma longa doença621. 2. Confiava tanto no ar tímido do rosto,
que um dia disse no senado: “até aqui, não há dúvida, apro-
vastes não só o meu carácter, como também a minha face”.
Desgostava‑o tanto a calvície, que tomava mesmo como ofensa
pessoal, se se apontava a outro este defeito numa brincadeira
ou numa altercação622, se bem que num opúsculo – “Sobre os

619
Couissin (1953: 252) sugere que restrictiores se deve traduzir
antes por ‘recurvados’, como garras, traço que, segundo as teorias
fisiognomonistas, seria sinal da rapacitas característica de Domiciano.
Gascou (1984: 598) contesta o significado de tal característica, a
intenção fisiognomónica de Suetónio e a nova tradução sugerida para
a palavra.
620
O ventre obeso, que partilha com Nero e Vitélio, são traços
congruentes com a vida sedentária de Domiciano, que, sendo inimigo
da fadiga, não andava a pé nem a cavalo (cf. Dom. 19).
621
A gracilitas crurum, comum aos príncipes que levam um
regime de vida decadente (Calígula e Nero). A mesma debilidade física
combatia‑a Germânico com frequentes exercícios de equitação: cf. Cal.
3.1. Vide Stok 1995: 127.
622
Juvenal (4.38) chama‑lhe Nero Calvo. Também César convive
mal com a sua calvície – Jul. 45.2: “por isso, costumava recompor o
cabelo em falta, puxando‑o do alto da cabeça; e, de todas as honras
que lhe foram decretadas pelo senado e pelo povo, nenhuma recebeu e
aplicou com maior vontade do que o direito de usar sempre uma coroa
de louros”. E Calígula também suporta mal dichotes sobre o aspeto do
cabelo – Cal. 50.1: “o cabelo ralo e nenhum no alto da cabeça, o resto
147
Vidas dos Césares

cuidados do cabelo” – que publicou para um amigo, incluiu


o seguinte, para servir de consolo tanto ao destinatário como
a si próprio:

“Não estás a ver como eu sou belo e alto?!”623


“Mas resta-me o mesmo destino no que respeita aos cabelos e
suporto com grande coragem o envelhecimento da cabeleira
na juventude. Fica sabendo que nada há mais agradável que
a beleza, nem nada mais breve!”

19. 1. Incapaz de suportar o exercício, quase nunca andava a


pé pela cidade e raramente a cavalo, quando em expedição ou
em marchas do exército; era transportado frequentemente de
liteira; não era nada devotado à prática das armas, mas muito
ao tiro com arco 624. Foram muitos os que o viram amiúde
matar centenas de animais selvagens de várias espécies no
retiro do Albano, inclusivamente atingia a cabeça de alguns
com uma habilidade tal, que com dois dardos simulava uns
chifres. Por vezes, colocava um rapaz à distância com a mão
direita aberta a servir de alvo e disparava as setas com tal
habilidade, que todas passavam pelo intervalo dos dedos sem
os ferir.

20. 1. Quanto aos estudos liberais, negligenciou-os no


início do exercício do poder, embora tratasse de reconstituir
sem olhar a despesas as bibliotecas consumidas pelo fogo625.

do corpo hirsuto, pelo que era considerado crime, e de morte, olhar de


cima, à passagem dele, ou sequer pronunciar a palavra ‘cabra’ a qualquer
pretexto”.
623
Trata-se de um verso da Ilíada, 21.108.
624
O arco não era considerado uma arma militar. No exército, os
archeiros eram aliados.
625
Certamente os incêndios de 64, 69 e 80.
148
Vidas dos Césares

Para tal foram solicitadas de toda a parte cópias das obras e


enviados a Alexandria copistas para os copiarem e corrigirem.
Todavia, nunca se aplicou ao estudo da história ou da poe-
sia ou sequer a cultivar um estilo adequado. Nada lia além
das memórias e atas de Tibério César 626. Cartas, discursos e
editos compunha-os recorrendo ao talento de outrem627. No
entanto, tinha um discurso não deselegante, por vezes com
ditos e citações memoráveis: “gostaria” – dizia ele – “de ser
tão belo como Mécio se acha!”; e, a propósito da cabeça de
um fulano que, devido à variação do cabelo, se apresentava
meio arruivada, meio encanecida, disse que era “vinho doce
polvilhado de neve”628.

21. Dizia que a condição dos príncipes era muito infeliz,


pois, quanto à descoberta de uma conspiração, ninguém acre-
ditava neles, senão depois de serem assassinados629. Sempre que
dispunha de tempo livre, entretinha-se a jogar aos dados630,
mesmo nos dias de trabalho e nas horas da manhã. Tomava
banho em pleno dia e almoçava à farta, de modo que, ao jan-

626
As críticas de Suetónio parecem injustas. Segundo Coleman
(1986: 3087-3095), Domiciano teria talento literário, mas, ao chegar ao
poder, terá revelado uma conscienciosa preocupação com o governo e
legislação, facto que o levou a abandonar a atividade literária.
627
Tal como fazia Nero, por exemplo: Tácito (Ann. 13.3) afirma que
este foi o primeiro a recorrer à aliena facundia, no caso, Séneca. No caso
de Domiciano, Suetónio pode estar a generalizar, pois anteriormente
criticara os termos com que Domiciano ditou um documento oficial
(Dom. 13.2). Cf. Martin 1991: 240.
628
O mulsum era vinho misturado com mel. Havia a prática de
arrefecer o vinho com neve.
629
Southern (1997: 124-125), considera estas palavras como uma
manifestação da paranóia do imperador.
630
Como faziam muitos outros imperadores, a começar por
Augusto, apesar de ser reprovado: cf. Aug. 70.2; Cal. 41.2; Cl. 5 e 33.2;
Nero 30.3; Vit. 4.
149
Vidas dos Césares

tar, não tomava mais que uma maçã631 e um módico sorvo de


um jarro de vinho. Dava frequentes e abundantes banquetes,
mas quase a correr; por certo, não além do pôr-do-sol e sem
incluir mais tarde o beberete632. De facto, até à hora de dormir,
não fazia mais que passear sozinho num lugar isolado.

22. Como tinha um apetite sexual desmedido, referia-se


à sua frequente prática do coito como “ginástica de cama”633,
como se fosse uma espécie de exercício634. E corria o boato de
que ele mesmo depilava as concubinas e que nadava no meio
das mais reles prostitutas. Embora, quando estava unido pelas
núpcias a Domícia, recusasse obstinadamente o casamento
com a filha do irmão, que lhe era oferecida ainda virgem,
seduziu-a não muito depois, quando já estava casada com
outro, e mesmo enquanto Tito era vivo. Mais tarde, depois
de ela perder o pai e o marido, amou-a com todo o ardor e
às claras, ao ponto de se tornar a causa da morte dela, por a
obrigar a abortar o filho que dele concebeu635.

631
Matianum malum, um tipo de maça que recebeu o nome a partir
de Gaio Mátio que a cultivou (cf. Plin. Nat. 15.49).
632
Refere-se à comissatio – um festim a altas horas com abundantes
vinhos. Cf. Nero 27.2.
633
Suetónio cita a palavra grega que Domiciano usava: clinopale.
634
Díon Cássio (67.6.3-4) afirma que ele gostava de ter comércio
com mulheres e rapazes. Domiciano, tal como Tibério, Calígula e Nero,
terá sido vítima de uma tradição desfavorável também no campo sexual,
de acordo com o discurso contra a tirania. É surpreendente que Sue-
tónio não mencione o favorito Eárino, o eunuco por quem Domiciano
nutria uma paixão: cf. D.C. 67.2.3. Vide Martin 1991: 161.
635
Cf. Juv. 2.29-33; Plin. Ep. 4.11.6; D.C. 67.3.1. Jones (1996: 151;
bem como Jones & Milns 2002: 167) questiona a tradição sobre o
relacionamento de Domiciano com Júlia. Sugere, pois, que os rumores
sobre a morte desta devem ter surgido depois da morte de Domiciano;
caso contrário, dificilmente Marcial (6.3.5) se referiria a Júlia como
divina protetora de um futuro filho de Domiciano e Domícia, que
Roma esperava, humilhando assim publicamente a imperatriz; para
150
Vidas dos Césares

23. 1. O povo suportou a morte dele com indiferença,


os soldados com bastante pesar e tentaram imediatamente
apelidá-lo de Divino. Preparavam-se até para o vingarem, se
não lhes faltassem os comandantes, o que fizeram não muito
depois, exigindo com toda a determinação o castigo dos
autores do crime 636. Em contrapartida, os senadores desata-
ram num regozijo tal, que, acorrendo em peso à cúria, não
se coibiram de crivar o morto dos mais insolentes e azedos
impropérios. Mandaram até trazer escadas para, à vista de
todos, retirarem os escudos e estátuas dele e os lançarem ali
mesmo ao chão. Por último, decretaram que por toda a parte
fossem rasuradas as inscrições dele e fosse apagada toda a sua
memória.

2. Poucos meses antes de ele ser assassinado, uma gralha,


sobre o Capitólio, gritou “tudo está bem!”, e não faltou quem
interpretasse o presságio do seguinte modo:

“A gralha que pousou há pouco sobre o tarpeio cume


não pode ter dito ‘está bem’, mas disse ‘estará bem’!”637

mais, com a referência a um filho cujo nome (Iulius) perpetuaria a lem-


brança da amante do marido. Além disso, este epigrama figura no VI
livro entre outros que louvam as leis de Domiciano contra o adultério:
não parece que Marcial se atrevesse a sugerir hipocrisia do imperador
de forma tão descarada.
636
A indiferença do povo talvez se explique pelo facto de ele não ter
muito contacto com as massas. A história de Domiciano seria diferente
se fosse escrita por militares: vide Ambrosio 1980: 238-239.
637
Segundo Clauss (1993: 167-173), a frase dita pela gralha (ἔσται
πάντα καλῶς), dados os requisitos métricos, poderia ser uma remi-
niscência literária de um poema de Calímaco, Hecale, onde também
aparece uma gralha. A semelhança de Domiciano com a infortunada
gralha de Calímaco é que esta perde o favor de Atena e é substituída
pelo mocho, como Domiciano perde o favor de Minerva. A gralha de
151
Vidas dos Césares

Contam que o próprio Domiciano sonhou que uma giba


de ouro lhe nascera por detrás da nuca, e teve como certo
que prognosticava, para depois dele, um estado mais feliz e
mais próspero, tal como efetivamente aconteceu em breve,
graças ao carácter íntegro e moderado638 dos príncipes que se
lhe seguiram.

Calímaco pronuncia a frase para o seu sucessor e o carácter auspicioso


da mensagem fez com que a frase tivesse muitos imitadores.
638
Trata-se das virtudes da abstinentia e moderatio. Suetónio refere-
-se certamente aos primeiros Antoninos: Nerva, Trajano e Adriano.
152
Vidas dos Césares

Índice de nomes e de temas

abstinentia – vide virtudes 111 n. 456; 125 (arqui)mimos


Acaia – 17; 74; 77; 84 – 96; 144; pantomimos – 130
Acílio Glabrião – 36; 133 n. 545; 133
África – 17; 71; 73 Ascletarião, astrólogo – 144
Agripa – 21 Ásia – 15; 68
Agripina – 17; 21; 45; 73; 73; 85 astrologia – 49; astrólogos – 55;
Alanos – 121 141; 144
Albano, monte – 125; 148 auaritia – vide vícios
Alexandria – 19; 48;; 81; 82 n. auctoritas – 19; 42; 48
294; 95; 108; 149 audacia – vide vícios
Alexandrinos – 31; 92 n. 350; 95 Augusto, Imp. – 21; 22 n. 37;
n. 374 23; 24; 27; 30; 32; 40; 46 n.
Anfiteatro Flávio (Coliseu) – 24; 153; 52 n. 182; 53; 69; 70
32; 85; 112; 114; 123; 139 n. 233; 83 n. 300; 85; 87 n.
Aníbal – 134; 72 320; 92 n. 353; 94 n. 363;
Antónia Menor – 16; 72 99; 100 n. 395; 103 n. 403;
Antoninos – 51; 59 n. 215; 86 n. 105 n. 416; 108 n. 440; 112
314; 152 n. 638 n. 463; 117 n. 484; 120 n.
Ápis, boi – 108 499; 121 n. 505; 124; 139
apoteose – 99 n. 392; 122 n. 586; 149 n. 630
Aquileia – 79 Aulo Cecina – 109
Arcádia – 49; 83 Aulo Pláucio – 72
aristocracia – 14; 17; 25; vide banquetes – 31; 35; 77 n. 270;
senatorial, equestre 95; 100 n. 394; 110 n. 451;
Arrecina Tértula, 1ª esposa de 111; 125; 131; 139; 150
Tito – 107 Basílides, liberto – 48; 77 n. 273;
Arrecino Clemente, pref. do 81
pret. no tempo de Calígula – Berenice – 32; 54; 110-111
107 n. 426; Betríaco – 48; 78; 97 n. 378
Arrecino Clemente, filho do bibliotecas – 44; 148
anterior, pref. do pret. no Bizâncio – 84
tempo de Vespasiano – 109 Britânia – 16; 20; 72; 106; 134
n. 445; 136 Britânico, do filho de Cláudio –
artistas – 94; 95 n. 374; atores – 20; 53; 73 n. 249; 104-105;
94; 128; citaristas – 95; 106; 106 n. 421
153
Vidas dos Césares

Calígula, Imp. /Gaio – 16; 26; Clodiano, oficial – 57 n. 206;


27; 35; 37; 40; 44; 46; 47; 146
54; 55; 57; 58; 70 n. 233; Clódio Polião – 21; 119
71; 72 n. 243; 76; 87 n. 320; Coliseu – vide Anfiteatro
92 n. 353; 94 n. 365; 104; Colosso de Nero – 85 n. 311; 94
107 n. 426; 120 n. 499; 129 Comagene – 84
n. 544; 130 n. 545; 140 n. Comício – 130
595, 143 n. 604; 147 n. 621 comícios – 78; 135
e 622; 150 n. 634 comissatio – 31; 110; 150
campanhas militares – 35; 127 comitas – vide virtudes
n. 535 confiscações – 38; 89 n. 333;
Campânia – 100; 114 137
Capadócia – 84 congiário – 125
Capitólio – 21; 24; 85; 94; 119; conjuras/conspirações – 49; 50;
126; 140; 143; 153vide 57; 58; 71; 101; 109 n. 446;
templo de Júpiter 111 n. 459; 133 n. 561; 135
Carmelo, deus do – 47; 77; 82 n. 573; 140 n. 590; 141 n.
n. 296 595; 145-146; 149
Catos – 35; 127 construções, política de – 24; 35;
cavaleiros – vide equestre, ordem 37; 85; 114; 124; 126; 137
Célio, Monte – 85 consulado, consul – 16; 20; 69;
Cénis, liberta amante de 72; 76 n. 267; 78; 83; 88 n.
Vespasiano – 16; 72; 92 n. 330; 90; 100; 109; 119; 120
352; 96; 154-155 n. 499; 121; 123; 135; 140;
centúnviros – 129 141; 142
cidadania: latina – 14; 69 n. 225; consular / ex-cônsul – 55; 75;
romana – 14; 69 n. 225; 78 79; 84; 93; 97; 109; 114;
n. 274; 97 n. 378 120; 127; 133; 136
Cilícia – 84 contumacia – vide vícios
circo – vide jogos Cornélio Fusco – 127
Circo – 48; 78; 123; C. Máximo Cosa – 69
– 105 n. 415; 126 Cremona – 48 n. 166; 81 n. 289;
Cirene – 16; 70 82
ciuilitas – vide virtudes Creta – 16; 70
Cívica Cerial – 36; 133 crimes – 26; 34; 38; 50; 55; 56;
Cláudio, Imp. – 16; 20; 28 n. 100 n. 394; 105 n. 413; 129;
60; 40; 45; 52 n. 179; 72; 73 130; 132; 133 n. 562; 151
n. 249; 85; 92 n. 353; 99 n. cultura – 25; 40; 42; 110 n. 456;
392; 101; 104; 106 n. 421; 139 n. 584
119 n. 489; 124 cupiditas/cobiça – vide vícios
clementia – vide virtudes Cúria – 37; 118; 132; 137; 151

154
Vidas dos Césares

Dacos – 35; 127 399; 103 n. 403; 111 n. 458;


dados, jogo dos – 149 112 n. 463; 116 n. 479; 117
damnatio – 37 n. 104; 59 n. 484 e 485; 119-152
delatores – 33; 38; 114; 132; dominatio – vide tirania
136; 139 n. 588 Domitila, Flávia, esposa de
Demétrio, cínico - 89 Flávio Clemente – 57
destino – 13; 19; 46-51; 55-56; Domitila, filha de Vespasiano –
75-78; 115; 140-141; 143- 71
145 Domus Aurea – 24; 85 n. 310
diadema – 108 edil – 16; 47; 70; 71 n. 235; 76;
dignitas – 25; 73 n. 252 129
Díon Cássio – 26; 29; 31 n. 75; editos – 118; 131; 141
41; 44; 54 n. 192; 57 n. 204, Egipto – 19; 75 n. 263; 81 n.
206 e 207; 58; 74 n. 255; 77 292 e 293; 108 n. 440
n. 271; 82 n. 296; 90 n. 338 Élio Lâmia – 36; 120; 133; 134
e 339; 91 n. 346 e 347; 92 n. 565
n. 352; 95 n. 374; 100 n. equestre, ordem – 15; 24; 25; 70
394 e 396; 101 n. 399; 103 n. 232 e 233; 71; 84; 86; 89
n. 403; 106 n. 423; 111 n. n. 332; 95 n. 366; 105; 107;
458; 112 n. 464; 116 n. 481; 109; 114; 124; 126; 128;
117 n. 485; 122 n. 509; 123 129; 130; 141
n. 515; 128 n. 539 e 540; erário – 30; 93; 132
130 n. 546; 133 n. 562; 135 espetáculos – 17; 32; 37; 54; 85
n. 570; 136 n. 575; 140 n. n. 311; 111; 116; 123-125;
590; 141 n. 595; 142 n. 602 137; batalha naval – 112;
e 603; 143 n. 607; 144 n. gladiadores – 112; 113; 124;
608; 145 n. 610, 611 e 612, bigas – 123; quadriga – 123;
614; 146 n. 616 e 617; 150 certame – 124; 125; 139;
n. 634 vide jogos
disciplina – 23; 75; 83 Estácio – 128 n. 540
distribuições ao povo – 35; 125 Estéfano, procurador de Do-
n. 523 mitila – 57; 145-146
Domícia Longina, esposa de estoicos – 28; 90 n. 341; 103 n.
Domiciano – 54; 117; 120; 402
122; 150 estudos – 43; 106 n. 421; 138 n.
Domiciano, Imp. – 11; 12; 13; 581; 148-149
20 n. 28; 21-23; 26; 27; 29; eunucos – 26; 32; 110; 111 n.
33-40; 43-46; 50; 51; 53; 456; 128; 150 n. 634
54-59; 67; 71; 72 n. 243; 85 evergetismo – 35; 38
n. 311; 87 n. 320; 88 n. 329; exércitos – 18; 19; 67; 68; 74;
90 n. 339; 92 n. 353; 101 n. 78; 79-81; 108 n. 435;

155
Vidas dos Césares

116; 137; 148; vide legiões, n. 297; 87 n. 322; 90 n. 341;


soldado 91; 107; 435; 110 n. 446
Falacrinas – 69 Gália – 91 n. 349; 101 n. 398;
Farsalo, batalha de – 67 120; Gália Belga – 89 n.
fatum – vide destino 335; Gália Cisalpina – 69
felicitas – 47 n. 225
Fílis, ama de Domiciano – 58; Gamala – 20; 107
146 Germânia – 16; 20; 71; 72; 79;
filósofos – 28; 29 n. 65; 36; 88; 80; 106; 108 n. 435; 120;
89 n. 334; 91 n. 344, 346 e 145; Germânia Superior
347; 135 – 127; Germânia Inferior –
finanças – 37; vide erário, fisco 127 n. 538
fisco – 30; 93; 98 Germânico – 42; 44 n. 143; 53;
Flávia Domitila, esposa de 105 n. 418; 140; 147 n. 621
Vespasiano – 97 n. 381 gladiadores – 57 n. 206; 112;
Flaviales, colégio sacerdotal – 125 113; 123; 124; 146; Trácios
Flávio Clemente, sobrinho de – 113; 133; Mirmilões – 133
Domiciano – 50; 55; 57 n. governadores – 72 n. 247; 75;
204 e 205; 142; 145 n. 613; 80; 84; 89; 129
146 n. 615 gratia – 42
Flávio Liberal, pai de Flávia Hadrumeto – 73
Domitila – 71; Helvécia – 15
Flávio Petrão, Tito – 14; 67; 68 Helvídio Prisco – 25; 28-29; 36;
Flávio Sabino, Tito, pai de 90; 91 n. 344; 134; 154 n.
Vespasiano – 68 570 e 572
Flávio Sabino, Tito, irmão de Helvídio Prisco filho – 91 n.
Vespasiano (côns. 47) – 21; 344; 135
68; 73 n. 251; 119; 142 n. Hércules – 15; 87
603 Hermógenes de Tarso – 88 n.
Flávio Sabino, Tito, filho do 329; 133
irmão de Vespasiano (côns. Hispânia – 79; 87 n. 321; 91 n.
69 d.C.) – 120 n. 494 349
Flávio Sabino, Tito, neto do Hístria – 139
irmão de Vespasiano (côns. Homero – 44; 98 n. 382
82 d.C.) – 135 horóscopo – 90; 101; 115; 134
Foro – 20; 85; 107; 114; 129 humor – 23; 27; 37; 40-42; 52;
fortuna – 50; 103 89 n. 334; 97-99; 100 n.
Fortuna de Preneste – 51; 143 395; 105 n. 404
Galba, Imp. – 11, 15; 23; 28; 43; imagines – vide linhagens
46; 49; 50; 51; 57; 67 n. 217 impostos – 30; 68; 84 n. 305;
e 218; 71 n. 237; 75; 78; 83 91; 93 n. 356; 95 n. 374

156
Vidas dos Césares

Iudaicus fiscus – 38; 138; justiça – 24; 92 n. 352; 129;


uectigal urinae – 41; 99 julgamentos – 86; 135
industria – vide virtudes Juvenal – 44; 139 n. 588; 147
Ísis, culto de – 22; 119 n. 622
Itália – 17 n. 14; 24; 36; 74 n. Lares – 57; 146
255; 81; 87 n. 321; 109; Laticlavo – 15; 17; 70; 73
128; 131 n. 553; 135 legados – 18; 72; 75; 79; 86;
Jerusalém – 20; 38 n. 110; 81 n. 130; 132; 134
293; 108; 116 n. 483; 117 n. legiões – 16; 18; 20; 70 n. 233;
485; 138 n. 582 72; 75; 79; 80; 84; 107; 127;
jogos – 35; 71; 78 n. 275; 94; 128-129; vide exércitos,
105; 125; 128; 133; Jogos soldados
Seculares - 124 leis – 71 n. 240; 115; 128 n.
Josefo, Flávio – 47; 75 n. 260; 540; 151 n. 635; lei Clódia
77- 78; 80 n. 284; 82 n. 294; – 132; lei Escantínia –
107 n. 429; 109 n. 442 130
Judeia – 18; 19; 20; 46; 74; 75; lenitas – vide virtudes
77; 79 n. 282; 80; 107; 108 lex maiestatis – 38; 138 n. 581
Judeus – 38; 47; 56 n. 201; 74; liberalitas – vide virtudes
282; 82 n. 296; 83; 88 n. libertas – 25; 28; 84 n. 305
323; 108 n. 443; 138 n. 582; libido – vide vícios
142 n. 603 licentia – vide vícios
julgamentos/processos – 86; Lícia – 84
135 linhagem – 12; 13-15; 67 n.
Júlia, filha de Augusto – 94 n. 218; 75; 107;
363 Lúcio António Saturnino – 50;
Júlia, filha de Tito – 45; 58; 123 127 n. 538; 134 n. 568; 136
n. 515; 130 n. 548; 136 n. n. 575
576; 147; 150 n. 635 luxuria – vide vícios
Júlio César/Divino Júlio – 48; Magão – 134
78; 105 n. 419 magistrados – 35; 125 n. 523;
Júlio-Cláudios – 11; 15; 17; 20; 129; censor – 129 n. 543;
28; 67 n. 218; 84 n. 305; 87 cônsul – 16; 20; 69; 72; 78;
n. 322 83; 100; 109; 119; 121; 123;
Júnia Calvina – 99 135 n. 573; 140; 141; edil –
Júnio Rústico – 36; 134; 135 n. 16; 47; 70; 71 n. 235; 76;
570 129; pretor – 16; 68; 70; 71;
Juno – 95 n. 372; 125 90 n. 341; 119; 131; questor
Júpiter – 38 n. 110; 48; 76 n. – 16; 26; 70; 71; 109; 124;
265; 78; 124; 125; 126; 127; 129; 132; vide consulado,
131; 138; 143 n. 604; 144 proconsulado

157
Vidas dos Césares

maiestas – 19; 23 n. 40; 38; 48; natura – 112 n. 465; 30; 33-34;
113; 581 39-40; 92 n. 353; 93 n. 355;
Márcia Furnila, 2ª esposa de Tito 112 n. 465
– 107 Naumaquia – 32; 112; 126
Marcial, M. Valério – 24; 26; 32 Nero, Imp. – 12; 17-18; 20; 24;
n. 83; 45 n. 150; 57 n. 206; 27; 31; 33; 35; 37; 38; 43;
85 n. 311; 89 n. 334; 95 n. 44; 45; 46; 47; 48; 51; 54;
370; 98 n. 383; 128 n. 540; 58; 67 n. 216; 68 n. 224; 73
130 n. 546; 131 n. 551; 143 n. 249; 74; 75; 77; 78; 79;
n. 607; 145 n. 612; 150 n. 84 n. 304; 85 n. 311; 87 n.
635; 151 n. 635 320; 89; 90 n. 338; 92 n.
marinheiros – 84 353; 93 n. 357; 94 n. 361;
Máximo, liberto – 57 n. 206; 95 n. 367; 95 n. 374; 101;
146 104 n. 409 e 410; 105 n.
Mênfis – 108 413; 106 n. 421; 110; 111 n.
Mésia – 18; 79 456; 119; 120 n. 500; 122 n.
messianismo – 18; 19; 46; 47 511; 133 n. 560 e 561; 134
Méstrio Floro – 97 n. 569; 137 n. 577; 138 n.
Métio Pompusiano – 36; 90; 581; 142; 143 n. 605; 147 n.
134 620, 621 e 622; 149 n. 627 e
Minerva – 51; 125; 138 n. 581; 630; 150 n. 632 e 634
143; 151 n. 637 Nerva, Imp. – 21; 119; 126; 133
Moderatio – vide virtudes n. 561; 139 n. 588; 145 n.
Monte Albano – vide Albano 610 e 612; 152 n. 638
mortes, relatos – 11-12; 13; 29; Núrcia – 14
34; 36; 37; 39; 40; 42; 43; Ópio Sabino – 127
48; 50; 52-59; 75; 99- 100; Oriente – 38 n. 113; 46 n. 152;
116-118; 130-131; 136- 48; 74; 78; 80; 89 n. 335;
137; 140-141; 144-147; 100 n. 392; 108; 111 n. 459;
150; 151 121; 133 n. 560
mos maiorum/costume dos ante- Óstia - 84
passados – 26; 37 n. 104; 137 Otão, Imp. – 11; 18; 19; 28; 40;
Muciano, Licínio – 28; 29 n. 65; 43; 48; 50; 67 n. 217 e 218;
80; 81 n. 290; 88 n. 330; 89 75; 78 n. 276, 277 e 278;
n. 334 e 335; 90 n. 340; 91 78; 80; 88 n. 322; 97 n. 378;
n. 346; 92 n. 352; 120 n. 118 n. 488; 134
502 Palatino – 14; 25; 51; 126 n.
munificentia – vide virtudes 524; 143
música – 105-106; 124 Palfúrio Sura – 139
Narciso, liberto de Cláudio – 16; pantomima – 26; 130 n. 345
21; 72-73; 104-105 Páris, pantomimo – 123; 133

158
Vidas dos Césares

Parténio, camareiro mor de recuperatores – 71 n. 241; 129 n.


Domiciano – 56; 57; 145- 542
-146 regime de vida – 41; 44; 96; 147
Pasífae – 15; 87 n. 322 n. 621
pietas – vide virtudes Régio – 109
Plínio o Velho – 109 n. 441 retratos – 13; 40-66; 53; 96; 104
Plínio o Moço – 122 n. 507; 130 n. 412; 105; 147-148
n. 545 e 548; 142 n. 602; 44 Rodes – 84; 90 n. 338
n. 144 Sabinos – 54; 69
Plutarco – 27; 78 n. 276; 97 n. saeuitia – vide vícios
378; 134 n. 566 Salústio Luculo – 36; 134
Pompeio – 67; 68 n. 221 Salvidieno Órfito – 36; 133
Pontífice Máximo – 115 Sálvio Coceiano – 134
prefeito da cidade – 68; 73; 10 Sálvio Liberal – 89
n. 494 Samos – 84
prefeito do Egipto – 19; 79 Sármatas – 35; 127
prefeito do pretório – 21; 28; Sátur, criado de quarto – 57 n.
72 n. 242; 90 n. 340; 103 206; 146
n. 405; 107; 109; 127; 136 Saturnais – 95
n. 576 Saturnino – vide Lúcio António
presságios – 18; 42; 46-51; 56; senado, órgão – 16 n. 10; 18 n.
75-78; 81 n. 293; 99; 105 n. 19; 25; 26; 37; 46; 59; 71;
415; 116 n. 482; 127; 151; 73 n. 249; 73 n. 253; 76 n.
vide destino 268; 85; 86; 87; 89 n. 332;
pretor – vide magistrados 93; 101; 109; 111 n. 459;
pretorianos – 79; 83 n. 301; 107; 117 n. 485; 118; 121 n. 507;
127; 136 n. 576; 145 n. 129; 132; 133; 137; 139;
612 141; 147; 151
primipilo – 68 senatorial, ordem – 15-16; 17;
proconsulado – 17; 72; 133 24, 35; 70 n. 232 e 233; 73
procuradores – 30; 79 n. 282; n. 249 e 252; 84 n. 304; 85;
92; 96; 127 n. 538; 138; 86 n. 313; 93 n. 356; 126;
140; 145 132 n. 555
Putéolos – 84; 109 senatus consultum – 85; 87 n. 318
questores – vide magistrados e 319.
Quinquátrias – 125 Septimontium – 125 n. 524
rapacitas – vide vícios Septizónio – 104
realismo – 52; 57; 100 n. 394; Síria – 75; 79; 80 n. 286 e 287;
146 n. 617 81; 90
Reate – 14; 15; 52; 67; 69; 87; soldados – 23; 68 n. 221; 76; 79;
100 83; 108; 110; 121; 129; 131;

159
Vidas dos Césares

136; 137; 145 n. 612; 151; Tibre – 96; 112 n. 463; 119; 124
vide exércitos, legiões Tirania – 12; 13; 14; 22; 26; 27;
superbia – vide vícios 32; 33-34; 38-39; 41; 42;
Tácito – 17 n. 14; 18; 25; 29; 30; 43; 44; 45-46; 55; 58; 59;
44 n. 144; 48 n. 166; 73 n. 77 n. 270; 87 n. 320; 120 n.
251; 74 n. 255 e 257; 77 n. 499; 141 n. 596; 150 n. 634;
273; 78 n. 276, 278 e 279; vide vícios
80 n. 284, 286 e 288; 81 n. Tito Lívio – 134
289 e 293; 82 n. 294 e 296; Tito, Imp. – 12-13; 19-21; 22;
85 n. 307; 90 n. 338; 91 n. 28; 31-33; 34; 38; 39; 42-
344 e 348; 92 n. 352; 105 n. 43; 44; 45; 50; 53-54; 58;
413 e 417; 127 n. 533; 149 71; 73 n. 249; 74 n. 257;
n. 627 75 n. 261; 80 n. 287; 85 n.
Tariqueias – 20; 107 311; 88 n. 323; 90 n. 340;
teatro – 17; 129; 135 92 n. 353; 99; 100 n. 394;
Teatro de Marcelo - 94 103-118; 120 n. 496; 121 n.
Templo da Paz – 85 507; 122 n. 509 e 510; 125
Templo de Jerusalém – 38 n. n. 521; 128 n. 540; 134; 136
110; 81 n. 293; 116 n. 483; n. 576; 139 n. 583; 147; 150
117 n. 485; 131; 138 n. 582 Trácia – 16; 70; 84
Templo de Júpiter – 38 n. 110; Trásea Peto – 25 n. 46; 29; 89 n.
85; 119; 126; 131; 138 n. 334; 90 n. 341; 134; 135 n.
582 570 e 572
Templo de Serápis – 19; 81 tribunicia potestas/poder tribunício
Templo de Vénus em Pafos – 108 – 20; 28; 88; 109
Templo dos Flávios – 21; 51; 58; tribunos da plebe – 129; 132 n.
119; 122 n. 510; 126; 143; 555
147 tribunos militares – 16; 20; 68;
termas – 32; 112; 113 70; 106; 136
Tértula, avó de Vespasiano – 14; triunfo – 20; 22; 28; 83; 88; 109;
69 121; 121 n. 505; 127; 140
testamento – 115 n. 474; 117 n. uectigal urinae - vide impostos
485; 121; 132 uirtus – vide virtudes
Tibério Alexandre – 19; 79 Úmbria – 69
Tibério, Imp. – 21; 22 n. 37; Vecta (ilha de wight) – 72
27; 35; 40; 44; 46; 55; 69 n. Vénus de Cós – 94
228; 70 n. 233; 72 n. 242; Vénus de Pafos – 50; 108
87 n. 320; 89 n. 333; 90 n. Vespásia Pola, mãe de Vespasiano
338; 92 n. 353; 112; 121 n. – 14; 68
505; 139 n. 586; 143 n. 606; Vespasiano, Imp. – 11-19; 21;
149; 150 n. 634 23-25; 27-31; 33; 36; 39;

160
Vidas dos Césares

40-42; 43; 46-51; 52-53; 39 n. 119; 87; 92 n. 353;


56; 67-101; 103 n. 401; 110; 111 n. 456; 137 n. 579
104 n. 409; 105 n. 415; 106 e 580; rapacitas/rapina – 30;
n. 423; 107 n. 433; 108 n. 31 n. 76; 30; 32; 34; 37-
437; 109 n. 442; 110 n. 446 39; 58; 93; 110; 137; 147
e 448; 111 n. 459; 115 n. n. 619; saeuitia /crueldade
474; 117 n. 485; 120; 121; – 11; 13; 14; 23 n. 38; 26;
122 n. 507, 510 e 511; 125 31; 34; 35; 36; 39; 40; 58;
n. 521; 126 n. 525; 134 n. 59; 67; 87 n. 320; 90 n. 340;
567 e 569; 135 n. 573; 136 110; 123 n. 512; 132; 134 n.
n. 576; 142; 143 567; 136; superbia – 29; 91
Vespásias – 68 n. 346, uiolentia – 21
Vespásio Polião, sogro de vinhas – 128; 141
Vespasiano – 68 Virgílio – 44
Vestais – 26; 35 n. 92; 130; 131 virtudes – abstinentia/respeito
n. 551 pelos bens alheios – 13; 32;
Vesúvio, erupção do – 33; 114 94; 35; 38; 59; 112 n. 460;
Via Latina – 147 131; 132; 638; ciuilitas –
Via Salária – 15; 87 14; 27-28; 37; 41; 87; 88 n.
Víbio Crispo - 122 328; comitas/afabilidade –
vícios – 13; 17; 25; 26; 27; 29- 36; 41; 113; indústria – 18;
30; 31; 33; 34; 37; 39; 41; 20; 56; lenitas – 28; 88 n.
42; 59; 87 n. 320; 91; 92 n. 330; liberalitas/generosidade
353; 111; 123; 132 n. 554; – 27 n. 58; 30; 93; 132; 137
arrogância – 13; 14; 26; 38; n. 579; munificentia – 32;
41; 58; auaritia/avareza – 17; 112; pietas/devoção – 14;
23 n. 38; 30; 92 n. 353; 131; 69 n. 230; 125 n. 522; 137;
132 n. 554, audácia – 23; uirtus bellica - 20
contumacia - 28; cupiditas/ Vitélio, Imp. – 11; 12; 15; 16;
cobiça/ganância – 11; 24; 18 n. 19; 21; 28; 44; 48; 67
26; 29-30; 35; 39; 59; 67; n. 216, 217 e 218; 75; 78
131; 132 n. 554; impietas n. 277; 79; 80; 82; 83; 85
– 122 n. 509; inciuilitas n. 307; 88 n. 322; 89; 97
– 21; 32; 38; 45; libido/ n. 378; 104 n. 412; 110 n.
devassidão/concupiscência - 446; 116; 126 n. 525; 147 n.
24; 31 n. 76; 32; 43; 54; 87; 620
92 n. 353; 110; 117 n. 486; Vitória, deusa – 49; 83 n. 297
licentia – 23; 114; luxuria/ Vologeso, rei dos Partos – 80;
sumptuosidade – 24; 25; 31; 121

161
(Página deixada propositadamente em branco)
Volumes publicados na Coleção Autores
Gregos e L atinos – Série Textos

1. Márcio Meirelles Gouvêa Júnior: Gaio Valério Flaco. Cantos


Argonáuticos. Tradução do latim, introdução e notas (Coim-
bra, CECH, 2010).
2. José Henrique Manso: Arátor. História Apostólica – a gesta de S.
Paulo. Tradução do latim, introdução e notas (Coimbra,
CECH, 2010).
3. Adriano Milho Cordeiro: Plauto. O Truculento. Tradução do latim,
introdução e notas (Coimbra, CECH, 2010).
4. Carlota Miranda Urbano: Santo Agostinho. O De excidio Vrbis
e outros sermões sobre a queda de Roma. Tradução do latim,
introdução e notas (Coimbra, CECH, 2010).
5. Ana Alexandra Sousa: Séneca. Medeia. Tradução do latim,
introdução e notas (Coimbra, CECH/CEC, 2011).
6. Cláudia A. Teixeira, José Luís Brandão e Nuno Simões Rodrigues:
História Augusta. Volume I. Tradução do latim, introdução e
notas (Coimbra, CECH, 2011).
7. Reina Marisol Troca Pereira: Plauto. A Comédia do Fantasma
(‘Mostellaria’). Tradução do latim, introdução e comentário
(Coimbra e São Paulo, IUC e Annablume, 2014).
8. Reina Marisol Troca Pereira: Plauto. As três moedas (Trinummus).
Tradução do latim, introdução e comentário (Coimbra e São
Paulo, IUC e Annablume, 2014).
9. Aires Pereira do Couto: Plauto. O Mercador. Tradução do latim,
introdução e comentário (Coimbra e São Paulo, IUC e
Annablume, 2017).
10. Nuno Simões Rodrigues, Cláudia Teixeira, Francisco Oliveira,
José Luís Brandão: Vidas de Pertinaz, Dídio Juliano, Severo,
Pescénio Nigro, Clódio Albino, Antonino Caracala, Antonino
Geta, Opílio Macrino, Diadúmeno Antonino, Antonino
Heliogábalo (Coimbra, IUC, 2021).
11. Priscilla Adriadne Ferreira Almeida: Bébio Itálico. A Ilíada latina.
Tradução do latim, introdução e notas (Coimbra, Imprensa da
Universidade de Coimbra, 2021).
12. José Luís Brandão: Gaio Suetónio Tranquilo, Vidas dos Césares.
Livro VII. Vidas de Galba, Otão e Vitélio. Tradução do latim,
introdução e notas (Coimbra, Imprensa da Universidade de
Coimbra, 2023).
13. José Luís Brandão: Gaio Suetónio Tranquilo, Vidas dos Césares.
Livro VIII. Vidas de Vespasiano, Tito e Domiciano. Tradução do
latim, introdução e notas (Coimbra, Imprensa da Universidade
de Coimbra, 2023).
Tradução acompanhada de introdução e notas das
Vidas dos Flávios, a dinastia que governou Roma
entre 69 e 96 d.C. Esta família, embora não tivesse
antepassados tão ilustres como os antecessores e fosse
de origem sabina, veio dar estabilidade a Roma, de-
pois dos sucessivos golpes de estado que aconteceram
depois da morte de Nero. Mas enquanto as biografias
de Vespasiano e Tito salientam aspetos essencialmente
positivos (Vespasiano é apresentado como um restau-
rador bem-humorado da cidade e da sociedade, e Tito
é designado como “amor e delícias do género huma-
no”), o filho mais novo de Vespasiano – Domiciano
– é associado aos lugares-comuns típicos dos tiranos,
um conjunto de vícios que justificam a sua morte.
OBRA PUBLICADA
COM A COORDENAÇÃO
CIENTÍFICA

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