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Nº 518 | Ano XVIII | 26/3/2018

Violência
e suas múltiplas dimensões
Felipe Dittrich Ferreira
Daniel Hirata
Sérgio Adorno
Rodrigo de Azevedo
David Léo Levisky
Bruno Paes Manso
Marcos Rolim
Marcos Sassatelli
Angelina Batista
Patrícia Krieger Grossi

Leia também
Denise Gentil
Leonardo Boff
Ferdinando Sudati
Heloisa Hollnagel
Luiz Fernando Scheibe
Fernando Del Corona
Gabriel Pessin Adam
EDITORIAL

Violência e suas múltiplas dimensões

A
brutal execução da vereadora carioca Ma- toda situação de injustiça é uma violência es-
rielle Franco e de seu motorista Anderson trutural permanente”, pontua o frei dominicano
Gomes, ocorrida na noite de 14 de março, Marcos Sassatelli.
expôs a violência contínua e sistêmica sob a epi- Angelina Batista, professora aposentada do
derme da sociedade brasileira. Se de um lado o Departamento de Educação da Universidade Es-
episódio provocou levantes em defesa dos direitos tadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - Unesp,
humanos em diversos quadrantes do país, de ou- retoma a discussão a partir do raciocínio de que a
tro exibiu o teatro do horror de quem, na maioria violência é, também, um instinto humano.
dos casos por meio de notícias falsas, tentou justi-
- Patrícia Krieger Grossi relaciona a violên-
tra a complexidade do xadrez da violência e suas cia de gênero com desigualdades.
múltiplas dimensões para além da caricatura po- Este número tem, ainda, entrevista com Deni-
licialesca que divide mocinhos, frequentemente as se Gentil, professora de Economia no Instituto
forças militares, e bandidos, normalmente o crime de Economia da UFRJ, sobre a questão da refor-
organizado. Para debater o tema, a IHU On-Line ma da Previdência neste ano de eleições.
reúne uma série de professores e pesquisadores
Na semana da Páscoa, publicamos duas entre-
os signos da violência e como eles operam?
o tema da Ressurreição de Cristo. Uma com o te-
Ainda sobre o assassinato de Marielle, publi- ólogo Leonardo Boff e outra com Ferdinan-
camos o artigo de Felipe Dittrich Ferreira, do Sudati, teólogo italiano que comenta recente
mestre em Antropologia Social pela Unicamp. livro de Roger Lenaers, jesuíta belga na Áustria,
A violência, cada vez mais, é pesquisada no Bra- intitulado La nascita di Gesù tra miti e ipotesi [O
2 sil. No que tange às periferias, no entanto, falta nascimento de Jesus, entre mitos e hipóteses].
um detalhe importante: ouvir. É nessa perspecti- Agora em março, em Brasília, foi realizado o
va que Daniel Hirata
Para o cientista social Sérgio Adorno, não esse tema, foram entrevistados dois especialis-
há respostas simples para explicar a gênese da tas nessa área: Heloisa Hollnagel, professora
violência no Brasil. da Unifesp, e Luiz Fernando Scheibe, pro-
fessor emérito da UFSC
O pesquisador Rodrigo Ghiringhelli de
Azevedo, professor na PUCRS, aborda as im- Ainda pode ser lida a crítica de cinema de Fer-
plicações da vingança como desejo prioritário nando Del Corona Me chame
em relação à justiça. pelo seu nome (2017) e o artigo de Gabriel
Pessin Adam, professor dos cursos de Rela-
Para David Léo Levisky, psicanalista e pro-
ções Internacionais e Direito na Unisinos, sobre
fessor da Sociedade Brasileira de Psicanálise de
São Paulo, é preciso superar uma visão rasteira
efeitos no Oriente Médio.
sobre a questão da violência incapaz de perce-
ber seus mecanismos que dizem respeito ao de- A todas e a todos uma boa leitura e uma Feliz
senvolvimento humano. Páscoa da Ressurreição!
Bruno Manso, pesquisador do Núcleo de Es-
tudos da Violência da USP, observa as transfor-
mações das dinâmicas da violência entre os gru-
pos criminosos e como o acesso ao armamento
tornou-se o calcanhar de Aquiles da segurança.
Para Marcos Rolim, presidente do Instituto Ci-
dade Segura e membro do Conselho Administrativo
do Centro Internacional de Promoção dos Direitos
Humanos (Unesco), nem a direita nem a esquerda

Nem toda a violência é explícita e alguns pro-


cessos são invisibilizados, como o da injustiça.
Foto: See-Ming Lee/
“A desigualdade é uma situação de injustiça e Flickr CC

26 DE MARÇO | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

Sumário
4 Temas em destaque
6 Agenda
8 Denise Gentil: De olho nas urnas, parlamentares param rolo compressor do mercado
e freiam reforma da Previdência
12 Dossiê Água | Heloisa Hollnagel: Gestão de recursos hídricos e os desafios para compreender
o valor da água
16 Dossiê Água | Luiz Fernando Scheibe: Água: de bem comum a produto mercantilizado
20 Tema de Capa | Felipe Dittrich Ferreira: Por que foi morta Marielle Franco?
24 Tema de Capa | Daniel Hirata: Ouvir as pessoas implicadas na vida das periferias
é imprescindível
29 Tema de Capa | Sérgio Adorno: Crise política e fragilidade das instituições agravam
a violência
34 Tema de Capa | Rodrigo de Azevedo: Afirmação dos direitos humanos deve se sobrepor ao
clamor punitivista
41 Tema de Capa | David Levisky: Quando a segurança pública é só caso de polícia,
a violência juvenil explode
46 Tema de Capa | Bruno Manso: A violência no Brasil e o risco da tirania dos homens
armados
51 Tema de Capa | Marcos Rolim: Na segurança, direita e esquerda insistem no que não funciona
55 Tema de Capa | Marcos Sassatelli: A impossível superação da violência sem o combate 3
às injustiças
58 Tema de Capa | Angelina Batista: Instinto de agressão preserva a existência
60 Tema de Capa | Patrícia Krieger Grossi: Desigualdade: um outro nome para a violência de gênero
64 Teologia Pública | Leonardo Boff: Ressurreição é uma revolução na evolução
69 Teologia Pública | Ferdinando Sudati: O túmulo vazio significa que Jesus é mais forte
do que a morte
76 Cinema | Fernando Del Corona: A doce e utópica paixão adolescente
79 Crítica Internacional | Gabriel Pessin Adam: A inconsequência de Trump tem poucos limites
81 Publicações | Giuseppe Tosi: O que resta da ditadura?
83 Outras edições

Diretor de Redação Fachin, Cristina Guerini, Evlyn Zilch,


Inácio Neutzling
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Wagner Fernandes de Azevedo e Éric
Coordenador de Comunicação - IHU Machado.
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A IHU On-Line é a revista do Institu-
to Humanitas Unisinos - IHU. Esta Revisão Instituto Humanitas Unisinos - IHU
publicação pode ser acessada às segun- Carla Bigliardi
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Editoração
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ras, a partir das 8 horas, na Unisinos. O Diretor: Inácio Neutzling
conteúdo da IHU On-Line é copyleft. Atualização diária do sítio Gerente Administrativo: Jacinto Schneider
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EDIÇÃO 518
TEMAS EM DESTAQUE

Entrevistas completas em www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias

Discutir a função das terras públicas é


fundamental para superar as desigualdades
“Existe uma tendência histórica no Brasil relacionada à desigualdade de
terras e à concentração ou por omissão ou por pró-atividade, fomentada
pelo Estado por meio de políticas públicas”
Gustavo Ferroni é graduado em Relações Internacionais e atualmente é assessor de Políticas e
Incidência da Oxfam Brasil.
Acesse a entrevista completa em http://bit.ly/2pGzizb.

Marielle e os pilares do poder e do capitalismo:


patriarcado e o aparato do Estado penal racista
O assassinato da vereadora do PSOL Marielle Franco assinala a conso-
lidação em um novo patamar da estrutura do crime organizado no Rio de
Janeiro e na Baixada Fluminense.
José Cláudio Alves é doutor em Sociologia pela USP e leciona na UFRRJ. Alana Moraes é mestra
em Sociologia e Antropologia pela UFRJ. É feminista e integrante do coletivo Urucum pesquisa-luta.
Acesse a entrevista completa em http://bit.ly/2ustn6P

4 “Quem matou Marielle?”


Para entender quais são as causas envolvidas no assassinato da vere-

sobre a violência e a situação política na cidade e no Estado.


Bruno Cava é graduado em Engenharia (ITA) e Direito (UERJ), mestre em Direito (UERJ). Marcelo
Castañeda é doutor em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela UFRJ.
Giuseppe Cocco é doutor em História Social pela Université de Paris I.
Acesse a entrevista completa em http://bit.ly/2G8iH2z.

O cibernético e o humano no trabalho


“É o lado humano que precisa ser trabalhado. Temos que evoluir no tra-
balho em equipe, reconhecer e entender o outro, motivar pessoas, traba-
lhar com pessoas. O computador não consegue fazer nada disso. Essa é
uma fronteira importante”.
Cesar Alexandre de Souza é doutor em Administração pela USP, onde leciona.
Acesse a entrevista completa em http://bit.ly/2GdhR0k.

Novos conflitos no Pará: a disputa entre os


Xikrin e a Vale no empreendimento Onça Puma
“Não tenho perspectiva de que as complexas realidades decorrentes da
obra [construção da hidrelétrica de Belo Monte] deixem de ocupar a pauta
do MPF pelas próximas décadas.”
Ubiratan Cazetta é graduado em Direito pela USP e mestre em Direitos Humanos pela UFPA. É
procurador da República em Belém.
Acesse a entrevista completa em http://bit.ly/2GryLvz.

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Textos na íntegra em www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias

Violência de fazendeiros Grandes projetos na Cem entidades


gaúchos contra Lula tem Amazônia expõem a denunciam Brasil na ONU
origem secular, afirma influência da China em por morte de Marielle
João Pedro Stédile violações socioambientais

Para João Pedro Stédile, Grandes obras de logística Mais de cem ONGs e en-
a origem dos homens que na Amazônia Legal mostram tidades internacionais se
agridem a caravana de Lula o peso da China na mudança uniram para denunciar o
no Rio Grande do Sul re- da dinâmica econômica da
monta ao século 18, quando região. A ferrovia Transoceâ- pediram investigações inde-
receberam grandes exten- nica, a Ferrovia Paraense e a pendentes sobre a morte da
sões de terras pela matança Ferrogrão são alguns dos em- vereadora carioca Marielle
de índios guaranis. preendimentos que, contando Franco.
Reportagem de Luciano Velleda, Reportagem de Jamil Chade, publi-
publicada por Rede Brasil Atual - RBA, mudam a paisagem da Ama- cada por O Estado de S. Paulo em
em 22-3-2018, disponível em https:// zônia, violam garantias fun- 20-3-2018, disponível em https://goo.
goo.gl/GGrYoD. gl/nmz3Uf.
damentais de povos indígenas
e comunidades tradicionais, e
ainda trazem impactos am-

Reportagem de Maurício Angelo,


publicado por Inesc em 19-3-2018, 5
disponível em https://goo.gl/T5XPJf.

‘As derrotas da esquerda A morte de Marielle é um As estratégias das


são filhas de suas sinal ao qual devemos marcas para infiltrar
divisões’, diz Mujica em estar atentos propaganda nas escolas
conversa com Lula brasileiras

Foi um encontro de qua- “Marielle, em resumo, en- A publicidade direciona-


tro ex-presidentes latino-a- capsulava um futuro pos- da para o público infantil é
mericanos em uma praça sível para o Brasil: mais considerada abusiva pelo
que marca o encontro entre mulheres na política, mais Conanda (Conselho Nacio-
negros na universidade, nal dos Direitos da Criança e
Lula da Silva, Dilma Rou- mais visibilidade para a po- do Adolescente) desde 2014.
sseff, Pepe Mujica e Rafael pulação LGBT, mais igual- E o Ministério da Educação
Correa conversaram sobre dade de oportunidades e tem uma portaria proibindo
acesso a direitos para todos, qualquer tipo de propagan-
América Latina no período mais responsividade e res- da em escolas públicas.
posterior aos governos de peito do Estado – serviços, Reportagem de Leticia Mori, publicada
orientação social que mar- por BBC Brasil em 20-3-2018, disponí-
caram a primeira década do – diante da população.” vel em https://goo.gl/uxsdr5.
século XX. Artigo de Rodrigo Nunes publicado
Reportagem de Luís Eduardo Gomes, por El País, em 19-3-2018, disponível
publicada por Sul21, em 19-3-2018, em https://goo.gl/DF99KP.
disponível em https://goo.gl/jsCwBq.

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AGENDA

Programação completa em ihu.unisinos.br/eventos

Oficina Estatística Trajetória da Violência contra


básica desigualdade econômica crianças, adolescentes
no Brasil contemporâneo e jovens
e possibilidades de
superação

27/mar 2/abr 5/abr


Horário Horário Horário
14h às 17h 19h30min às 22h 17h30min às 19h
Ministrante Conferencista Conferencista
Prof. MS Renato Luiz Ro- Profa. Dra. Marta Prof. MS Afonso Armando
mera Carlson – Unisinos Arretche – USP Konzen – FMP
Local Local Local
Sala Ignacio Ellacuría e Sala Ignacio Ellacuría e Sala Ignacio Ellacuría e
Companheiros – IHU Companheiros – IHU Companheiros – IHU
Campus Unisinos Campus Unisinos Campus Unisinos
São Leopoldo São Leopoldo São Leopoldo

6
Novos Smart cities, cultura Violências,
desenvolvimentismos digital e renovação resistências e
no Brasil. Tendências política. Contradições enfrentamento no
e desafios para a e possibilidades da mundo urbano
economia brasileira revolução 4.0

9/abr 10/abr 12/abr


Horário Horário Horário
19h30min às 22h 19h30min às 22h 19h30min às 22h
Conferencista Conferencista Conferencista
Prof. Dr. Ricardo de Prof. Dr. Massimo Prof. Dr. David Léo Levisky
Medeiros Carneiro – Canevacci – USP – SBPdePA
Unicamp – SP
Local Local
Local Sala Ignacio Ellacuría e Sala Ignacio Ellacuría e
Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU Companheiros – IHU
Companheiros – IHU Campus Unisinos Campus Unisinos
Campus Unisinos São Leopoldo São Leopoldo
São Leopoldo

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EDIÇÃO 518
ENTREVISTA

De olho nas urnas, parlamentares


param rolo compressor do mercado
e freiam reforma da Previdência
Para Denise Gentil, a retirada da pauta do Congresso é uma
vitória da sociedade. Porém, a discussão em torno do déficit
previdenciário segue inebriada por muitos interesses
João Vitor Santos

A
economista Denise Gentil en- se reelegerem podem mudar de ideia.
dossa a tese de que a proposta -
zação, construir alternativas à reforma.
Previdência Social está no bojo dos pro- “Não acredito, por outro lado, que a so-
jetos neoliberais. O jogo é pesado e, se- ciedade brasileira já tenha conseguido
gundo ela, o Planalto só não conseguiu -
aprovar a reforma porque senadores e temente sólidas para propor alterna-
deputados perceberam o quão impopu- tivas para o futuro”, alerta. Mas tam-
lar é a medida e, com medo de não se
reelegerem em outubro, declinaram. “A consolidado ao longo deste ano e no
resultado das eleições de 2018, com a
8 é um rolo compressor, mas o governo renovação do Congresso, dos governos
não achou espaço político para colocar estaduais e com a eleição de um presi-
a reforma em votação”, pontua. E, no dente progressista. Se não estivermos
desejo de não assumir a derrota e não -
abandonar a reforma, a intervenção no zados para vencer as eleições, a refor-
Rio de Janeiro surge como uma saída. ma poderá ser aprovada logo depois do
“Sem conseguir criar nenhum fato po- pleito de outubro”.
lítico que lhe trouxesse dividendos elei- Denise Lobato Gentil é bacharel
toreiros, para si e para o MDB [antigo em Economia pelo Centro de Estudos
PMDB], entrou com a agenda da segu- Superiores do Estado do Pará, realizou
rança e decretou a intervenção no Rio mestrado em Planejamento do Desen-
de Janeiro”, sugere. volvimento pela Universidade Federal
Na entrevista concedida por e-mail à do Pará - UFPA e doutorado em Eco-
IHU On-Line, Denise reconhece o re- nomia pelo Instituto de Economia da
cuo como uma “vitória dos movimentos Universidade Federal do Rio de Janeiro
de resistência da sociedade”. “O gover- - UFRJ, onde atualmente é professora.
no não esperava tanta mobilização, de É autora de diversos artigos acadêmi-
todos os lados”, completa. Entretanto, cos e organizadora do livro Produto Po-
adverte que, passado o pleito de outu- (Rio de Janeiro:
bro, tudo muda e parlamentares que Ipea, 2009).
não fecharam com o governo e que não

IHU On-Line – Como a senho- putados que entendiam que aprovar achou espaço político para colocar a
ra interpreta essa decisão do a reforma da Previdência num ano reforma em votação. Sem conseguir
Governo Federal de suspender criar nenhum fato político que lhe
a tramitação da reforma da risco nas urnas que poucos estavam trouxesse dividendos eleitoreiros,
Previdência? interessados em correr. A pressão do para si e para o MDB [antigo PMDB],
Denise Gentil entrou com a agenda da segurança e
teve que ceder à resistência dos de- rolo compressor, mas o governo não decretou a intervenção no Rio de Ja-

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“A pressão do lobby do mercado


financeiro é um rolo compressor,
mas o governo não achou
espaço político para colocar
a reforma em votação”

neiro. É difícil ser brasileiro. Congresso, dos governos estaduais exemplo, de 25 anos de contribuição
e com a eleição de um presidente mínima como pretendia no início
- das negociações no ano passado; e
IHU On-Line – Em que medi- cientemente mobilizados e organiza- o governo também pode reduzir o
da esse recuo do governo re- dos para vencer as eleições, a refor- alcance dos benefícios assistenciais
presenta uma vitória para os ma poderá ser aprovada logo depois como o Benefício da Prestação Con-
críticos da proposta de reforma do pleito de outubro. tinuada - BPC, fazendo a idade mí-
e até que ponto pode aumentar nima de concessão se elevar de 65
a possibilidade de se construir para 70 anos. Essas possibilidades
uma alternativa para o chama- IHU On-Line – De que forma são preocupantes e a sociedade não
a senhora avalia os 15 projetos pode se desmobilizar, porque são es-
Denise Gentil
da área econômica anunciados 9
pelo governo para “compen- corte de despesas que viabilizariam
sim, uma vitória dos movimentos de
resistência da sociedade. O governo o cumprimento do teto de gastos es-
da reforma da Previdência? tabelecido para este ano.
não esperava tanta mobilização, de
todos os lados, dos vários sindicatos, Denise Gentil
centrais de trabalhadores, servido- como “compensações” ao que o go-
IHU On-Line – Entre esses
res públicos, trabalhadores rurais, verno pretendia com a Previdência.
15 projetos, está a proposta de
mulheres, juízes comprometidos Alguns dos temas que não têm re-
“nova Lei das Finanças Públi-
com as causas populares, militares,
-
imprensa alternativa e deputados e exemplo, a autonomia do Banco
posta e em que medida endossa a
senadores com mandatos engajados Central, a atualização da lei geral das
na defesa dos problemas dos mais telecomunicações, o marco legal de
necessitados, a ponto de ser criada licitações e contratos e o projeto de Denise Gentil
a CPI da Previdência no Senado. O lei das agências reguladoras. O que -
governo encontrou resistência, sim, preocupa agora são as mudanças nas las peças que dão esteio ao “austeri-
e razoavelmente organizada. Penso regras da Previdência e Assistência
que também não esperava o surgi- Social por meio de alterações infra- de atualizar a Lei 4.320, de 1964 e
mento de tantos estudos demons- constitucionais que o governo pode disciplinar tudo o que ainda não foi
trando a farsa do modelo atuarial fazer por projeto de lei e medidas feito pela Lei de Responsabilidade
da Previdência federal e o jogo de provisórias. A aprovação seria muito Fiscal. Ela vem para reforçar o que
concessão de privilégios ao sistema mais fácil. Um projeto de lei ordiná- -
ria exige maioria simples.
de reforma.
O governo poderia mudar o cálculo
permitir o controle da dívida pú-
Não acredito, por outro lado, que a dos benefícios, por exemplo, estabe-
-
sociedade brasileira já tenha conse- lecendo que a pensão por morte dei-
dução de salários do funcionalismo
guido construir condições políticas xe de ser integral em qualquer caso
público, corte de investimentos e de
e passe a ser de 50% mais 10% por
benefícios assistenciais.
alternativas para o futuro, a não ser dependente; poderia alterar o tempo
de contribuição para aposentadoria A austeridade se apoia em argu-
deste ano e no resultado das elei- por idade, que hoje, é de 15 anos, e mentos falaciosos. A recente expe-
ções de 2018, com a renovação do estabelecer um tempo maior, por riência internacional com políticas

EDIÇÃO 518
ENTREVISTA

cessão de autonomia ao Ban-


União Europeia, vem demonstrando
resultados contraproducentes, não torne anticíclica dentro dos limites dessa proposta?
gerando crescimento e nem tam- da banda estabelecida.
Denise Gentil -
A nova lei também poderia estabe- to da proposta do governo é conce-
lecer que para cada patamar de cres- der ao presidente do Banco Central
provocou a demolição no Estado
cimento do Produto Interno Bruto um mandato fixo, protegido contra
brasileiro, a deterioração dos servi-
- a demissão e não coincidente com
ços públicos mais essenciais, como
- o mandato do presidente da Repú-
serviços de saúde, educação e segu-
blica. A autonomia pretende per-
rança pública, a perda de direitos so-
ciais e gerou uma mudança na corre- exigido e vice-versa. É fundamental mitir à diretoria do Banco Central
lação de forças claramente favorável preservar os projetos de investimen- supostamente resistir às pressões
to público e, portanto, seria impor- políticas do executivo federal. Mas
tante retirar do cálculo do resultado resistiria às pressões do mercado
Desde a gestão Levy1 na Fazenda, primário estrutural a totalidade dos financeiro? Poderia ser, de fato, in-
- investimentos públicos, porque tra- dependente?
sou em retomar o dinamismo da zem retornos sociais e econômicos e
economia e em estabilizar a dívi- -
não deveriam ser paralisados.
da pública. Mas foi funcional para nir em lei que o Banco Central tem
provocar desemprego, reduzir sa- Por fim, a nova Lei poderia esta- um único objetivo, o de perseguir
lários e elevar a pobreza. Acabou belecer que o equilíbrio das contas
contribuindo para transformar públicas fosse prioritariamente elimina a possibilidade de o Banco
uma desaceleração em uma de- viabilizado com medidas adminis- Central perseguir tanto uma meta
pressão econômica. É o caso de trativas que elevassem a receita,
se perguntar qual é a responsabi- como o fortalecimento da fiscali- crescimento ou meta de emprego.
lidade que existe num orçamento zação para evitar a sonegação, es- No Brasil, já tem sido assim desde
equilibrado se ele produz o dese- timular a cobrança da dívida ativa 1999 e esse é um dos motivos pelos
10 tributária e reversão criteriosa das quais as taxas de crescimento são
quilíbrio social e econômico? No
desonerações. baixas. Os objetivos da política mo-
públicas vem aí para produzir a
“austeridade permanente”. de uma diretoria e do presidente do
“Se não esti- verno democraticamente eleito. As
-

IHU On-Line – Como consti-


tuir uma Lei de Finanças Públi-
vermos sufi- necessidades do povo devem estar

cas que assegure os direitos da


população e rompa com a pana-
cientemente
ceia das privatizações? mobilizados e IHU On-Line – O ministro da
Fazenda, Henrique Meirelles,
Denise Gentil
muito interessantes. A nova Lei de
organizados declarou que a reforma da Pre-
vidência “vai voltar à pauta as-
Finanças Públicas poderia mudar a
para vencer
as eleições, a
ainda tem chance de ocorrer no
ajustando as metas ao ciclo econô-
Governo Temer? Ou seria uma
mico e, para isso, uma alternativa é

estrutural”. Neste conceito estrutu-


reforma po- sinalização de que essa será
uma das propostas centrais do
-
rar o elemento cíclico do cálculo da
derá ser apro- candidato desse governo à Pre-
sidência da República?
- vada logo de- Denise Gentil – Sim, acho que
as duas coisas. A reforma da Pre-
- pois do pleito vidência tem chance de voltar logo

de outubro”
melhante ao que se usa no regime de depois de concluída a eleição des-
te ano. A equipe econômica parece
1 Joaquim Levy (1961): engenheiro e economista brasilei- entender que os parlamentares que
ro, foi ministro da Fazenda do Brasil no início do segundo
mandato de Dilma Rousseff. É PhD em economia pela Uni- hoje não votam com o governo po-
versidade de Chicago (1992), mestre em economia pela
Fundação Getúlio Vargas (1987) e graduado em engenha- IHU On-Line – Outra medida dem mudar de ideia caso não sejam
ria naval pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi anunciada pelo governo como reeleitos. E, certamente, a reforma
secretário do Tesouro Nacional (2003-2006) e ministro da
Fazenda (2015). (Nota da IHU On-Line) alternativa à reforma é a con- da Previdência será a proposta cen-

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tral da candidatura de Henrique para uma discussão franca e


Meirelles, primeiro, porque ele é o honesta acerca da Previdência denunciem os enormes privilégios
candidato do mercado financeiro; no Brasil? tributários concedidos aos bancos,
e, segundo, porque terá a oportu- ao agronegócio e às empresas petro-
Denise Gentil – Só os candidatos leiras às custas da dilapidação das
nidade de repetir, exaustivamente,
de esquerda podem fazer com que a receitas da seguridade social para os
que o baixíssimo crescimento eco-
discussão se torne franca e educativa próximos 25 anos. É da mais elevada
nômico de 2017 não foi sua culpa,
mas decorreu da não aprovação para a população brasileira. É preci- importância que a população com-
das mudanças na Previdência. so que os candidatos comprometidos preenda o domínio das instituições
com os interesses populares denun-
ciem a precariedade das previsões públicas, sobre os recursos do orça-
IHU On-Line – Em que medi- do modelo atuarial brasileiro que mento público e a privatização da
da o debate eleitoral de 2018 - Previdência e dos serviços de educa-
poderá abrir a possibilidade rio para a Previdência sem nenhum ção e saúde.

Leia mais
- Entre a insustentável retórica do déficit e as verdadeiras razões da reforma previden-
ciária. Entrevista especial com Denise Gentil, publicada nas Notícias do Dia de 26-2-2016,
no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2oB0TSO.

11

EDIÇÃO 518
DOSSIÊ ÁGUA

Gestão de recursos hídricos e os desafios


para compreender o valor da água
Heloisa Hollnagel destaca que é preciso discutir o papel do Estado
e da sociedade na preservação dos mananciais
João Vitor Santos

E
ntre os dias 18 e 23 de março em custo) como no princípio contábil
deste ano, ocorreu em Brasília o da continuidade”, aponta. E acrescen-
8º Fórum Mundial da Água. Foi ta: “em 2014, a crise hídrica de São
a primeira vez que o encontro acontece Paulo foi transformada em oportunida-
abaixo da linha do Equador. A profes- de (como acreditam os chineses) para
sora da Universidade Federal de São repensar os processos de consumo do
Paulo - Unifesp Heloisa Hollnagel des- recurso hídrico por organizações e toda
taca essa como uma das oportunidades a sociedade”.
de promover o debate no Brasil como
Heloisa Hollnagel é professora da
“uma forma de aplicar um dos mais im-
Universidade Federal de São Paulo,
portantes princípios da Lei das Águas:
responsável pela disciplina Contabili-
contar com a participação do Estado,
dade Social e Ambiental e Elaboração e
dos usuários e das comunidades para
12 discutir a gestão dos recursos hídricos”.
Viabilização de Projetos Socioambien-
tais para alunos da Escola Paulista de
-
der que a água é “um recurso limitado Política, Economia e Negócios da UNI-
dotado de valor econômico”.
“Análise de Políticas Públicas”. Ex-con-
Na entrevista a seguir, concedida por selheira do Conselho Estadual do Meio
e-mail à IHU On-Line, Heloisa ainda
Ambiente de São Paulo, representando
destaca que, no caso brasileiro, é bem
entidades ambientalistas. Atua tam-
claro o custo para tratamento e distri-
bém no terceiro setor a mais de uma
buição da água. Inclusive, há legislação
década colaborando em projetos de
que prevê a cobrança, meio pelo qual
recuperação de áreas degradadas e pro-
se deve gerar recursos que sejam des-
teção de mananciais e mudanças climá-
tinados para a recuperação das bacias
-
e internacionais. Atualmente coordena
to em despoluição etc., demonstrando
o real valor da água a toda sociedade.
Políticas e Organizações Públicas (MP-
“Dessa forma, qualquer organização
GPOP) da UNIFESP e é Embaixadora
deveria prever em seu planejamento
estratégico investimentos com essa da Água pela BPW (Business Professio-
premissa: uso racional da água, seja nal Women).
pelo aspecto normativo (que implica

IHU On-Line – Pela primei- Heloisa Hollnagel – Conside- tância. Minha expectativa é de um
ra vez, o Fórum Mundial das rando a importância desse tema alcance ainda maior dos debates.
Águas1 foi realizado no hemis- para todas as nações, é necessário
- que haja alternância nos locais des- Considerando a importância da
tou? se evento, permitindo que países em realização desse Fórum no Bra-
economias emergentes, como os da sil para os brasileiros, parece ser
América Latina, tenham sua parti- uma forma de aplicar um dos mais
1 Saiba mais no site do evento. O endereço é worldwater-
forum8.org (Nota da IHU On-Line) cipação facilitada pela menor dis- importantes princípios da Lei das

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“Fico preocupada com a possibilidade


de serem feitas estações de
tratamento de esgoto sem o devido
licenciamento ambiental como tem
sido veiculado na mídia recentemente”

Águas: contar com a participação três setores da economia (Estado, táveis que permitem o uso de água
do Estado, dos usuários e das co- o setor privado e sociedade civil), cinza para seu funcionamento, dimi-
munidades para discutir a gestão visando atender ao previsto na Lei -
dos recursos hídricos. Nada como sumo de água potável.
um evento dessa magnitude para Recursos Hídricos - PNRH; na Lei
ampliar as discussões.
Nacionais para o Saneamento Básico
- IHU On-Line – Como avalia a
lítica Nacional de Resíduos Sólidos chamada Lei das Águas no Bra-
IHU On-Line – Quais os maio- - sil? Em que pé está a aplicação?
lítica Nacional de Educação Ambien- Heloisa Hollnagel – A década de
diz respeito à preservação dos
1990 foi marcada por uma política de
mananciais de água potável? de implementar o que já está previs- descentralização, aumentando a par-
Como superá-los?
ticipação dos municípios na gestão, 13
Heloisa Hollnagel – Apesar da pode intervir ou estimular a redução
abundância descrita como sendo um do consumo de água do setor indus- -
dos maiores “ativos” da nossa nação, trial e agropecuário, os maiores con- tituiu a Política Nacional de Recursos
a desigual distribuição e a escassez sumidores do recurso hídrico. Hídricos - PNRH. Por exemplo, águas
Além da cobrança pela outorga da
mais evidentes considerando a con- água que já é realidade em muitos estado são de responsabilidade dos
taminação/poluição e interrupções estados para grandes consumidores, municípios por onde ele passa. Im-
no abastecimento de água em alguns portante destacar que esse é um gran-
- projetos de recuperação de manan-
des prejuízos sociais, ambientais e ciais (Fundos Estaduais de Recursos gestor municipal, pois os principais
econômicos principalmente para - problemas da urbanização e ocupa-
as comunidades mais vulneráveis. nanceiro à execução da Política Esta- ção de novas áreas urbanas é garantir
dual de Recursos Hídricos), está em o atendimento da demanda por água,
discussão o Projeto de Lei da Câma- a ampliação do saneamento básico e o
análise de Projetos de Licenciamen- ra nº 315/2019, que trata da parcela controle da contaminação dos corpos
to Ambiental para muitos empre- pertencente aos estados e municí- hídricos por resíduos domésticos e in-
endimentos, a Política Nacional do pios do produto da Compensação Fi- dustriais. Uma das questões que tam-
Meio Ambiente (Lei n° 6.938/81) é nanceira pela Utilização de Recursos bém merece atenção, considerando a
uma garantia de proteção ambiental Hídricos - CFURH. Não podemos es- Gestão de Recursos Hídricos, é o fato
e social e necessário para pensar em quecer também o papel da academia de a extensão das águas subterrâneas
Desenvolvimento Sustentável. Fico (principalmente as universidades) e não coincidir com a delimitação das
preocupada com a possibilidade de das tecnologias resultantes de pes- -
serem feitas estações de tratamento quisas públicas ou privadas na busca rio articulação entre diferentes níveis
de esgoto sem o devido licenciamen- da administração pública.
to ambiental como tem sido veicula- A inovação na indústria química, por Um dos princípios da Lei das Águas
do na mídia recentemente. exemplo, tem permitido o uso circu- que eu mais discuto com os meus
Para que a quantidade e a qualida- lar da água em muitos processos. alunos na disciplina de Contabilida-
de da água sejam adequadas para a Na agricultura, por exemplo, já são de Social e Ambiental é que a água
demanda atual e futura, são neces- utilizados mecanismos de irrigação é um “recurso limitado dotado de
sárias ações coordenadas entre os “inteligentes” e construções susten- valor econômico”. Dessa forma, essa

EDIÇÃO 518
DOSSIÊ ÁGUA

Lei prevê a cobrança pelo uso da água reduzir esse desperdício? alta densidade urbana), garantindo
com os objetivos de obter verba para o tripé da sustentabilidade.
Heloisa Hollnagel – Entendo
que todos nos sentimos impotentes
brasileiras, estimular o investimento
com esse fato, é absurdo esse des-
em despoluição, dar ao usuário uma
perdício de água tratada. Porém, esse IHU On-Line – Quais os maio-
sugestão do real valor da água e incen-
-
tivar a utilização de tecnologias limpas
do de difícil solução pelas concessio- de que a água é bem universal e
e poupadoras de recursos hídricos.
Dessa forma, qualquer organização nárias, pois a maior parte das perdas que deve ser de acesso a todos?
deveria prever, em seu planejamento está em zona urbana e o custo de re- Qual o papel do Estado e da so-
estratégico, investimentos com esta paro parece ser inviável a curto prazo. -
premissa: uso racional da água, seja versalização da água potável?
pelo aspecto normativo (que implica Heloisa Hollnagel – O papel
em custo), como no princípio contá- IHU On-Line – Apenas 51,92% do Estado é fazer valer a legisla-
bil da Continuidade. Em 2014, a crise da população brasileira tem ção e viabilizar a operacionalização
hídrica de São Paulo foi transformada das Políticas Públicas, promovendo
em oportunidade (como acreditam os campanhas de educação ambiental
chineses) para repensar os processos e sensibilização de forma articulada
de consumo do recurso hídrico por Por que a coleta e tratamento com outros atores sociais. O da po-
- de esgotos no país ainda é um pulação é exercer o controle social.
mos uma matriz energética conside-
rada “Limpa e Sustentável”, baseada
em hidrelétricas, portanto cuidar do Heloisa Hollnagel – O saneamen-
recurso hídrico é importante também to básico é um direito assegurado pela IHU On-Line – Dentro da ló-
nesse aspecto. gica desenvolvimentista, em-
11.445/2007. Mesmo assim os dados pregada há anos no Brasil, a
e fatos comprovam que o Brasil ainda água é um dos bens públicos
14 tem um longo caminho para ter uma que mais serve a produção in-
IHU On-Line – Qual a inser- saúde pública adequada, com maior
ção do Brasil no Conselho Mun- carência nas áreas periféricas dos cen- água e tratamentos de resíduos
dial das Águas? tros urbanos e nas zonas rurais, onde se de processos industriais hoje
Heloisa Hollnagel – A Agência concentra a população mais vulnerável. no país? O quanto se avançou e
Nacional de Águas - ANA tem atua- Acredito que isso se deve à fragmenta- o quanto se precisa avançar so-
do organizando o Fórum Nacional de ção das políticas públicas e à carência bre uso e reaproveitamento de
Órgãos Gestores das Águas - FNOGA, de instrumentos de regulação efetivos. água nesse mundo industrial?
cujos representantes estarão parti- Por exemplo, sistemas e infraestrutura
Heloisa Hollnagel – Destaco
cipando do Fórum. Pelo que tenho muitas vezes são compartilhados por
nesse cenário o Relatório do Uso da
acompanhado, cada vez mais represen- vários municípios, implicando em dis-
tantes brasileiros fazem parte do Con- cussões sobre a titularidade.
-
selho Mundial das Águas, o que mostra
Estudos mostram que para os sis- cado pela Confederação Nacional da
a nossa maturidade nesse tema.
temas de esgotos, geralmente, as Indústria - CNI que mostra que, no
caso da indústria do aço, a recircula-
viáveis técnica e economicamente. ção da água tem índices superiores a
- -
gundo dados do Instituto Trata bre a diferença entre “tecnologias de de tecnologia a pressão sobre corpos
Brasil, a cada 100 litros de água baixo custo” e “atendimento de baixo d’água na captação ou lançamento
coletados e tratados, apenas padrão” (considerando que esse pro-
blema ocorre em locais onde vivem processo de geração de riqueza e de-
populações de baixa renda e áreas de senvolvimento econômico.

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DOSSIÊ ÁGUA

Água: de bem comum a


produto mercantilizado
Luiz Fernando Scheibe denuncia o avanço
do projeto de privatização de reservas hídricas
no país, entre elas o Aquífero Guarani
João Vitor Santos

Q uem visita Roma não poupa


elogios às fontes de água crista-
lina, onde bastar unir as mãos
em concha e beber o quanto quiser gra-
cio das águas engarrafadas colocaram
na agenda até da grande imprensa a
possibilidade de uma privatização das
grandes fontes de água do Brasil, e em
tuitamente. No Brasil, ainda há cacho- especial do próprio Aquífero Guarani”,
eiras e riachos límpidos onde se pode pontua. Isso, segundo ele, pode ser fei-
fazer o mesmo. Agora, imagine se a li- to através da imposição de mudanças
beração desse líquido fosse associada a na lei que regulamenta exploração de
uma máquina de moedas. A cena choca, reservas hídricas. Por isso, o profes-
mas é caricatura que serve para chamar sor destaca a importância de discutir o
atenção para a realidade em muitos lu- tema, mas de forma independente. “A
gares no mundo. Em terras brasileiras, estrutura, a organização e os patrocina-
as reservas hídricas estão ameaçadas dores do 8º Fórum Mundial da Água,
16 não só pelo desperdício e pela poluição, assim como dos precedentes, estão to-
mas por interesses privados. “Não só no talmente dominados pelos maiores in-
caso da água engarrafada, mas em inú- teressados na transformação total da
meros outros aspectos já vivemos um água em commodity”, dispara.
estado de privatização da água. Quan- Luiz Fernando Scheibe é geólogo,
do, numa cidade como São Paulo, um professor emérito do Departamento de
condomínio ou uma indústria perfura Geociências da Universidade Federal
um poço profundo para retirar para seu de Santa Catarina - UFSC e voluntário
uso privado do subsolo uma água que junto aos programas de Pós-Graduação
faz parte de uma reserva que é públi- -
ca”, destaca o professor Luiz Fernando ências Humanas da UFSC. Em Santa
Scheibe, que ainda lembra que, nesses Catarina, ainda coordena a Rede Gua-
casos, só mata a sede quem pode pagar. rani/Serra Geral, projeto que congrega
Na entrevista a seguir, concedida por cientistas, pesquisadores, educadores
e-mail à IHU On-Line, Scheibe de- ambientais, universidades, fundações,
nuncia que a situação pode piorar. “As agências governamentais nacionais e
entidades internacionais, pela defesa
com os dirigentes de empresas direta- das águas.
mente interessadas no bilionário negó-

IHU On-Line – A privatização nário negócio das águas engarrafa- comércio dessas águas no Brasil e no
da água está na agenda política 1
, que
já detêm uma fração majoritária do da grande imprensa a possibilida-
os riscos dessa privatização? de de uma privatização das grandes
fontes de água do Brasil, e em espe-
Luiz Fernando Scheibe 1 Na seção Notícias do Dia, em seu sítio, o IHU vem acom-
cial do próprio Aquífero Guarani2.
panhando esse tema através da publicação de diversos
- textos, entre eles Privatização da água ameaça meio am-
mer com os dirigentes de empresas biente e saúde humana, disponível em http://bit.ly/2I5mT-
NQ, leia mais em ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias. 2 Aquífero Guarani: uma das mais importantes reservas
diretamente interessadas no bilio- (Nota da IHU On-Line) hídricas do planeta, sua manutenção está relacionada à

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“A apropriação da água para


atender a interesses privados e em
detrimento de seu uso comum,
pela maioria da população,
já acontece no nosso país”

A legislação mineral atual outor- to de seu uso comum, pela maioria Austrália, Chile e Espanha, países
ga aos interessados a possibilidade da população, no entanto, já aconte- que também possuem forte vocação
de lavrar fontes de águas minerais, ce no nosso país. E isso ocorre seja
- por grandes empresas engarrafado- das políticas neoliberais. É preciso
das nunca maiores do que 50 hec- ras de água, indústrias de cerveja e nos manifestarmos com veemência
tares (equivalente a 0,5 km2) para refrigerantes, outras indústrias, ou contra esse projeto.
pela mineração e especialmente para
o Aquífero Guarani ocupa na Ar-
gentina, Brasil, Paraguai e Uruguai irrigação. IHU On-Line – A construção
uma área da ordem de 1,1 milhão de de redes e estações de trata-
km2, dos quais cerca de 70% só no Alterações para os “merca- mento de esgoto são questões
Brasil, certamente não é a este tipo nevrálgicas em muitas cidades
de privatização, a concessão legal e -
exclusiva do direito de lavra confor- Visando aumentar ainda mais as 17
refa é concedida à iniciativa
me a legislação atual a duas ou mais possibilidades de privatização da
privada através de parcerias
empresas de toda a área do Aquífero -
Guarani, que devemos temer. -
senhor avalia essas parcerias?
mado de “o dono da Coca-Cola” no
O que se tem visto neste sentido é Luiz Fernando Scheibe -
outro tipo de apropriação, ou seja, a próprio uma proposta para alterar a re também uma privatização quan-
compra das principais autorizações Política Nacional de Recursos Hídri- do se concede a empresas privadas,
já existentes, com utilização de todo cos de modo que seja possível criar mesmo que através de parcerias
o aparato publicitário/comercial os “mercados de água”. O projeto de público-privadas, os serviços muni-
dessas empresas para o aumento lei (PLS) 495/2017 está na Comissão cipais de abastecimento e esgotos.
desmesurado da produção, com- de Constituição, Justiça e Cidadania Aquilo que deveria ser um serviço
prometendo até, como no caso da - CCJ aguardando emendas e desig- público, controlado pelo poder pú-
conhecida e apreciada fonte da água nação de relator. Segundo o site do blico e, portanto, voltado para o bem
São Lourenço em Minas Gerais, os Senado Federal, que promove atu- -estar de toda a população, passa a
demais usos turísticos e medicinais almente uma consulta pública sobre ser uma mercadoria cuja comerciali-
dessas fontes pelo município. O ró- a proposição, “os mercados de água zação deve, em primeiro lugar, aten-
tulo e apresentação do produto são são um instrumento de gestão de der aos interesses dos anônimos (ou
os mesmos, e é preciso ler com muita crises hídricas e funcionam median- nem sempre) acionistas ou proprie-
atenção para perceber, em letras mi- te a cessão dos direitos de uso de tários dessas empresas.
údas, a inscrição www.nestle.com, recursos entre usuários da mesma
assim como em inúmeros outros ca- Apontada como uma forma de
sos de águas engarrafadas em nosso amealhar recursos muitas vezes es-
tempo determinado.” Ou seja, reco-
país. cassos para viabilizar obras de sa-
nhece-se explicitamente a possibili-
neamento, esta estratégia tem sido
A apropriação da água para atender dade de comercializar os direitos de
a interesses privados e em detrimen- outorga da água, especialmente em
desmesurado de tarifas, exclusão
“situações de escassez hídrica”.
das parcelas mais pobres ou situadas
capacidade de recarga, que ocorre em território brasilei-
ro, no estado do Mato Grosso do Sul. Sobre o aquífero Segundo o senador, a ideia se ins- fora do centro urbano e descumpri-
guarani, confira a entrevista especial realizada pelo site
do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Águas do Aquífero pira em experiências internacionais mento das promessas de investi-
Guarani: um recurso nobre, com Ricardo Hirata, em 2-8- de sucesso com mercados de água, mento, especialmente quanto aos
2006, disponível em http://bit.ly/1uZOXWl. (Nota da IHU
On-Line) observadas nos Estados Unidos, sistemas de esgotos. Há, até mesmo,

EDIÇÃO 518
DOSSIÊ ÁGUA

sucateamento dos próprios sistemas mente rentáveis, como a Embraer em commodity? De certa for-
de abastecimento de águas. e, no caso do petróleo, a alienação a ma, já não vivemos um certo
preço vil não só de nossos melhores estado de privatização da água,
- onde água engarrafada faz par-
- po de Carcará, por exemplo, foi ven- te do cotidiano?
periência da guerra da água na dido por um trigésimo de seu valor
Luiz Fernando Scheibe – Não
Bolívia, a guerra de Cochabam- para a empresa estatal norueguesa
só no caso da água engarrafada,
ba3, pode inspirar a resistência Statoil, que mantém com seus lucros
mas em inúmeros outros aspectos
no caso brasileiro? o “Oil Fund”, o fundo de previdên-
já vivemos um estado de privatiza-
cia que já conta com recursos para
Luiz Fernando Scheibe – Em- ção da água. Quando, numa cidade
atender pelos próximos cem anos
bora o exemplo mais conhecido e como São Paulo (ou Chapecó, entre
divulgado, até através de documen- outras), um condomínio ou uma in-
ainda por cima, o maior gasoduto do
dústria perfura um poço profundo
país, responsável pelo abastecimen-
“Guerra da Água de Cochabamba”, para retirar para seu uso privado do
to do Rio de Janeiro e de São Pau-
na Bolívia, a reversão contenciosa subsolo uma água que faz parte de
lo, alienado para o fundo rentista
de concessões já aconteceu em Paris, uma reserva que é pública. Ou, ain-
4
: doravante,
Buenos Aires e inúmeras outras ci- da, como no recente caso da “Guerra
para transportar cada metro cúbico
dades. É um fenômeno que tem sido pela água em Correntina”5, Bahia,
do gás de nossos poços para nossas
descrito como de remunicipalização em que mais de 500 habitantes da
indústrias e consumidores domésti-
dos serviços. cidade invadiram e destruíram os
cos, através de um gasoduto que foi
equipamentos de irrigação de uma
implantado com recursos da Petro-
fazenda, que estaria, com seus 32 pi-
“Esses projetos bras, pagaremos “pedágio” para um
vôs centrais de irrigação rebaixando
o nível da água do rio que servia a
de privatização sinal já foi constituído para lucrar
-
todos os demais habitantes do muni-
cípio. O apoio popular a esta iniciati-
18 não se limitam blicos no Brasil.
va foi manifestado por uma passeata
Mas acredito que este não seja com a participação de oit0 a doze mil
às concessões o principal problema: é simples- pessoas, uma semana depois da ação

municipais”
mente que eles poderão a qualquer
momento “fechar as torneiras” do 33 mil habitantes.
gasoduto, ou, mais provavelmente,
visando uma melhor remuneração
IHU On-Line – Em que medi- de seus acionistas, investir cada vez IHU On-Line – Como abrir li-
da o projeto de privatização de menos nos serviços de manutenção nhas de resistência para impe-
água no Brasil se associa com dir que a água, essencialmente
outros na mesma linha? aparentemente aconteceu no caso de
Mariana, em Minas Gerais. Isso tudo um bem público e universal?
Luiz Fernando Scheibe – Esses
projetos de privatização não se limi- até o momento em que o gasoduto Luiz Fernando Scheibe – Em-
tam às concessões municipais, mas se torne inoperante ou tenha que bora o assédio a esse recurso essen-
fazem parte de toda uma inexplicá- ser abandonado. Bem, isso talvez cial à vida seja uma questão pla-
vel(?) estratégia do governo golpista não seja um problema insolúvel: o netária, que tem relação com um
que assumiu em 2016, já instrumen- pro- estilo de vida integralmente voltado
talizado com o programa neoliberal ao aumento do consumo em todas as
derrotado nas urnas em 2013, de de um gasoduto mais moderno... suas formas, no caso brasileiro, essa
entregar ao capital internacional o -
controle total de todos os recursos to em que vivemos um verdadeiro
IHU On-Line – Quais os ris-
da nação. Isso envolve não apenas período de exceção da democracia,
cos de se transformar a água
a água, mas a energia hidrelétri- com um governo que assumiu ilegi-
ca, com a venda da Eletrobras e de -
centrais hidrelétricas em pleno fun- 4 Segundo o próprio site da companhia, a empresa Brook- mente determinado, com o apoio do
field Asset Management foi fundada em 1899 para finan-
cionamento e já quitadas. E, ainda, ciar bondes e energia elétrica no Brasil. Hoje, essa firma Congresso e a conivência do Poder
com base em Toronto tornou-se uma “global player” em Judiciário, a deter toda a evolução
empresas de alta tecnologia e plena- investimentos alternativos, gerenciando cerca de 250 bi-
lhões de dólares em imóveis, infraestrutura, projetos de
energia renovável e “private equity”. Faz lembrar a origem
3 Na seção Notícias do Dia, no seu sítio, o IHU vem publi- de nosso gentílico: não é “brasilês”, ou “brasilense”, mas
cando uma série de textos que acompanham esse tema. “brasileiro” (como garimpeiro, madeireiro, fazendeiro...): 5 Na seção Notícias do Dia, em seu sítio, o IHU publicou
Entre eles Bolívia. Seca provoca escassez de água e crise os portugueses que vinham para esta terra para enricar diversos textos sobre esse tema. Entre eles, O que levou
em La Paz, disponível em http://bit.ly/2FemQkZ. Leia mais comerciando com o pau brasil. Ou seja, já temos traça- 10 mil pessoas às ruas de Correntina (BA)?, disponível em
em ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias. (Nota da IHU do no nome o destino de sermos explorados. (Nota do http://bit.ly/2Fpe8zy. Leia mais em ihu.unisinos.br/mais-
On-Line) entrevistado) noticias/noticias. (Nota da IHU On-Line)

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positiva das conquistas populares não só por ações de conscientização foi organizado o Fórum Alternativo
dos últimos quinze anos. Muitas sobre a importância deste postula- Mundial da Água7, uma “iniciativa
das garantias constitucionais foram do, mas também por uma crítica à que questiona a legitimidade do Fó-
crise societária que deriva da nossa rum Mundial da Água como espaço
e mesmo o sistema de outorga de sociedade de consumo, e por uma político para promoção da discussão
lavra que restringe a área concedida concertação nacional que devolva o sobre os problemas relacionados ao
a cada empresa para a lavra da água poder a quem de direito, ou seja, a tema em escala global, envolvendo
mineral, por exemplo, pode aparen- maioria do povo brasileiro. governos e sociedade civil”.
Segundo os organizadores do Fó-
momento, para atender os interes-
IHU On-Line – Como esse de- rum Alternativo, é necessário dizer
bate sobre privatização da água “não ao Fórum Mundial da Água,
ou da Coca-Cola, ou simplesmente
deveria aparecer no 8º Fórum apontando a falta de independên-
da “Casa Grande”, no dizer de Mino
Mundial da Água? cia, representatividade e legitimi-
Carta, da revista Carta Capital6.
dade do conselho organizador, por
Assim, não podemos pensar se- Luiz Fernando Scheibe – A estar comprometido com empresas
quer que estamos garantidos con- estrutura, a organização e os patro- que têm como objetivo a mercan-
tra uma eventual privatização de cinadores do 8º Fórum Mundial da
recursos como aqueles representa- Água, assim como dos precedentes, -
dos, até miticamente, pelo Aquífero estão totalmente dominados pelos resses econômicos e o direito fun-
Guarani. A resistência para impedir maiores interessados na transfor- damental e inalienável à água, bem
que a água, essencialmente no caso mação total da água em commodity, comum da humanidade e de todos
brasileiro, deixe de ser um bem pú- que possa colocá-la inteiramente na os seres vivos”.
blico e universal passa, portanto, mão das famosas mãos do “merca-
do”, ao lado de outras atividades es-
6 Mino Carta concedeu entrevista à IHU On-Line em senciais, como a energia e a própria
2016, quando retoma essa perspectiva. Acesse a entrevista 7 Saiba mais sobre o evento através do site fama2018.
em http://bit.ly/2H5HFeP. (Nora da IHU On-Line) educação pública. Por isso mesmo, org/. (Nota da IHU On-Line)

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EDIÇÃO 518
TEMA DE CAPA

Por que foi morta Marielle Franco?


Felipe Dittrich Ferreira

“ O
assassinato de Marielle não caiu sobre o Brasil
como um raio num dia de céu azul. O céu estava
carregado e trovejante no dia em que Marielle mor-
reu. E agora está ainda mais sombrio.” escreve Felipe Dit-
trich Ferreira, mestre em Antropologia Social pela Univer-
sidade Estadual de Campinas – Unicamp.
Felipe Dittrich Ferreira é mestre em Antropologia
Social pela Unicamp e mestre em Migrações Forçadas pela
Universidade de Oxford, na Inglaterra. É, ainda, pesquisa-
dor associado ao Centro de Estudos de Migrações Interna-
cionais da Unicamp e funcionário do Museu Histórico e Di-
plomático do Ministério das Relações Exteriores no Rio de
Janeiro. O artigo foi publicado em ‘Notícias do Dia”, 25-03-
2018, na página eletrônica do IHU, disponível em http://
bit.ly/2pHSjBi.
20
Eis o artigo.

Quem matou Marielle Franco? Essa questão deve ser respondida pela polícia. Por que foi mor-
ta Marielle Franco é uma questão mais complexa, a ser respondida pela sociedade brasileira.
Jandira Feghali, deputada federal do PCdoB, bem resumiu o ponto de vista da esquerda: “Ma-
rielle morreu porque sintetizava as três opressões que [caracterizam o] país: a opressão de gê-
nero, a opressão de classe e a opressão racial.” André Singer interpretou a tragédia em termos
semelhantes, acrescentando um dado fundamental: “uma cidadã que escolheu o caminho ins-
titucional democrático, e nele foi bem-sucedida, terminou sumariamente eliminada pela ação
violenta dos que são, na prática, contra a democracia.”
Marielle, portanto, foi vítima de um crime, para fazer uso da linguagem policial, tripla ou qua-

ingressar na política, ousou ocupar um espaço caracteristicamente masculino. É notável que

alegre, contestadora e ao mesmo tempo suave. Seria exagero dizer que havia nela algo de mater-

tristes galerias históricas e que ainda ocupam gabinetes de norte a sul, como fantasmas que se
-
mo Ortega y Gasset certa vez notou: “quem não é como todo mundo, quem não pensa como todo
mundo, corre o risco de ser eliminado”. Marielle foi vítima dessa mentalidade.
Marielle violou outra fronteira: negra, nascida e criada na favela, não se resignou a um papel
subalterno. Conciliando trabalho, estudo e maternidade, graduou-se em ciências sociais e es-
pecializou-se em administração pública. Ao mesmo tempo, engajou-se na luta política, como
defensora dos direitos humanos. Preparava-se, de maneira clara e consistente, para transformar

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bancos ou empreiteiras. Seu breve mandato foi exercido com dignidade e valentia.
Para se compreender a importância das conquistas de Marielle, assim como as razões de seu

ilustre pintor, escreveu um livro denominado “Manual do Agricultor Brasileiro”. Essa obra,
reeditada em 2001 por iniciativa de Rafael de Bivar Marquese, revela traços fundamentais da
mentalidade das elites brasileiras. É constrangedor citar os trechos a seguir. É necessário, no
entanto, lançar luz sobre os antecedentes da violência que atingiu Marielle e que atinge, cotidia-
namente, jovens negros Brasil afora.
Segundo Taunay, “a inferioridade física e intelectual da raça negra (...) a reduz naturalmente,
-
mentares da sociedade”. Inaptos para o trabalho, os negros precisariam ser submetidos a severa
vigilância, “com o castigo sempre à vista”. Apenas o medo seria capaz de “obrigar os escravos
a cumprirem com o dever que a sua condição lhes impõe”. Taunay recomenda, nesse contexto,
que punições sejam executadas sempre “à vista de toda a escravatura, com a maior solenidade,
servindo assim o castigo de um para ensinar e intimidar os demais”.
O autor dá-se ao trabalho de explicar que os negros, no Império do Brasil, não eram propria-
mente escravos, mas sim “proletários, cujo trabalho vitalício se acha pago, em parte pela quantia
que se deu na ocasião da compra, em parte pelo fornecimento das precisões dos escravos e [em
-
-
cessidade] que o [nascido] tem para viver do leite da mãe, e [portanto] do pão do senhor desta. A
lei considera que o senhor não trataria da cria e não faria desembolsos durante a longa duração
da infância, se não tivesse em perspectiva o trabalho do resto da vida. O voto da lei legitima a
este respeito o jus do senhorio”.
Durante séculos, assim foram tratados os negros no Brasil. Vieram à América sequestrados.
Levados às fazendas, foram consumidos como lenha. Quando o regime escravista enfraqueceu- 21
se houve quem propusesse deportações em massa, já que os negros não seriam propriamente
brasileiros. Libertos mas não integrados, os negros acabaram, no interior da própria terra, exila-
dos. Essa dubiedade é hoje encarnada pela favela, situada ao mesmo tempo dentro e fora da ci-
dade. Contra isso, ou seja, contra os resquícios do escravismo, insurgiu-se Marielle. Ela militava
pela integração das favelas ao estado de direito, como passo inicial, indispensável, para medidas
mais de maior envergadura, relativas à superação de desigualdades sócio-raciais.
A execução de Marielle pode ser compreendida, desse modo, como um atentado à retomada
do projeto abolicionista. O abolicionismo, cabe recordar, desmantelou-se após a assinatura da
lei áurea, em 1888. A possibilidade de que os negros fossem indenizados pelo período passado
no cativeiro não chegou a ser considerada. Debateu-se, ao contrário, a possibilidade de que os

deixados à própria sorte. Sucedeu-se à violência o descaso. Os negros saíram da escravidão para
entrar na miséria. Marielle, como fosse sucessora de Joaquim Nabuco, trabalhava para dar à
abolição sentido concreto. Integrar os “favelados” à cidadania, isto é, ao universo dos direitos
civis, sociais e políticos, foi a sua missão.
Estamos diante de um crime racial, portanto, tanto no sentido estrito do termo, quanto no
sentido amplo: Marielle foi morta por ter ousado romper os limites impostos pela tradição brasi-

a plena integração dos descentes de escravos à sociedade nacional.


É preciso enfatizar, ainda, outro aspecto da trajetória de Marielle. O liberalismo à brasileira,
embora oculte uma tendência ao apartheid, não é completamente avesso à mobilidade social.
A ascensão social no Brasil, no entanto, é admitida apenas quando acompanhada de adesão ao
ponto de vista da casa grande. Isso é particularmente claro no âmbito da política. Admite-se que
lideranças populares ingressem, a duras penas, no parlamento ou mesmo no poder executivo.
A permanência dessas lideranças no poder, no entanto, depende de uma conversão, súbita ou
gradual, à ideologia das classes dominantes. A ascensão social, em outras palavras, é tratada
entre nós como concessão. Aquele que, dotado de algum poder, não se alinha aos interesses do-
minantes, expõe-se a riscos diversos, que vão da inviabilização ao assassinato.
Ora, Marielle, sem dúvida, ascendeu na escala social, sem, porém, mudar de lado. Dotada de

EDIÇÃO 518
TEMA DE CAPA

inteligência e força de vontade, ingressou na universidade. Não se deixou levar, no entanto, pela
ideia de virar “doutora”. Buscou no meio acadêmico elementos para compreender e transfor-
mar o Brasil, recusando as ilusões tanto do “bacharelismo” quanto do “tecnicismo”. Da mesma

aferrada à defesa dos interesses populares.


Essa constatação leva-nos ao ponto mencionado por André Singer. Marielle, insatisfeita com a re-
alidade, optou pelo caminho institucional-democrático, isto é, apostou na possibilidade de transfor-
mação das estruturas sociais pela via política. Em resposta, foi brutalmente assassinada. Isso mostra
que a democracia, no Brasil, é tolerada apenas na medida em que produz poucos resultados. No
momento em que adquire, de fato, algum potencial transformador, entra na linha de fogo.
Marielle, negra, nascida e criada numa favela, não poderia ter frequentado a universidade. Uma
vez graduada, deveria ter aceitado o papel de porta-voz das classes dominantes ou gestora de seus
interesses. Usou seus conhecimentos, entretanto, para contradizer o discurso naturalizador das de-

Está em andamento no Brasil um amplo movimento reacionário. De acordo com o capitalismo pós-
varguista, que agora se procura implantar, já não trabalhamos para viver, mas simplesmente para não
morrer. Em nome de palavras de ordem como “racionalização” e “competitividade”, a pretensão, já
modesta, de equilíbrio entre vida laboral e a vida no sentido amplo do termo foi completamente aban-
donada. O motor oculto da suposta modernização é o escravismo, jamais inteiramente derrotado. O
embrutecimento da população, nesse contexto, tornou-se, por ação e omissão, política de estado.
Às inevitáveis crises produzidas pelo esforço regressista as autoridades respondem, logicamen-
te, com medidas repressivas. O anti-humanismo não conhece outra linguagem. Debate-se no

22 dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.


O assassinato de Marielle, portanto, não caiu sobre o Brasil como um raio num dia de céu azul.
O céu estava carregado e trovejante no dia em que Marielle morreu. E agora está ainda mais
sombrio. Se não houver uma reação política forte, fatos vão se acumular sobre fatos. O medo vai
instalar-se, trazendo consigo o silêncio, a covardia e a corrupção. No dia em que a democracia,

É possível, no entanto, que Marielle, com sua morte, logre nos despertar de um longo entor-
pecimento. Temos, no Brasil, população, mas ainda não temos um povo. Por essa razão, jamais
conseguimos constituir um governo capaz de organizar o território e a sociedade de acordo com

de capacidade humana, mas até agora a empregamos em favor de interesses estranhos aos da
coletividade. Tudo se passa como se fôssemos os titulares displicentes de uma grande herança.
Temos vivido como estrangeiros em nossa própria terra. A razão para isso, ironicamente, é a
seguinte: temos nos tratado uns aos outros como estrangeiros. Quando nos reconhecermos mu-
tuamente como titulares de direitos, descobriremos de que é capaz a soberania popular.

Leia mais
- Marielle Franco, vereadora do PSOL, é assassinada no centro do Rio na saída de even-
to que reunia ativistas negras, reportagem publicada nas Notícias do Dia de 15-3-2018, no
sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2pI1tP2.
- “Quem matou Marielle?”. Entrevista especial com Bruno Cava, Marcelo Castañeda e Giu-
seppe Cocco, publicada nas Notícias do Dia de 20-3-2018, no sítio do Instituto Humanitas
Unisinos – IHU, disponível em de http://bit.ly/2G8iH2z.
- Brasil é 10º país que mais mata jovens no mundo; em 2014, foram mais de 25 mil ví-
timas de homicídio. Reportagem publicadas nas Notícias do Dia de 21-2-2018, no sítio do
Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2G765c2.

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- Os direitos humanos em um mundo pluralista e desigual: contribuições das universi-


dades jesuítas. Artigo reproduzido nas Notícias do Dia de 18-7-2017, no sítio do Instituto
Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2GpiCqq.
- O que uma nova universidade na África está fazendo para descolonizar as Ciências
Sociais. Reportagem reproduzida nas Notícias do Dia de 13-5-2017, no sítio do Instituto
Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2G78KSN.
- A difícil reinvenção da democracia frente ao fascismo social. Entrevista especial com
Boaventura de Sousa Santos, publicada nas Notícias do Dia de 8-12-2016, no sítio do Insti-
tuto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2I1pHe3.
- ‘Ser negra aqui é ser estrangeira no próprio país’, diz Djamila Ribeiro. Entrevista repro-
duzida nas Notícias do Dia de 20-12-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU,
disponível em http://bit.ly/2pLbMkW.
- A interconexão das desigualdades na América Latina: da violência à pobreza. Entrevis-
ta especial com Mara Manzoni Luz, publicada nas Notícias do Dia de 9-5-2017, no sítio do
Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2G6w1El.
- “A Justiça reforça a segregação racial no Brasil”. Reportagem publicada nas Notícias
do Dia de 26-4-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.
ly/2GcTcZL.
- O Brasil na potência criadora dos negros – O necessário reconhecimento da memória
afrodescendente. Revista IHU On-Line, Nº 517, disponível em http://bit.ly/2ITOzFZ.

23

EDIÇÃO 518
TEMA DE CAPA

Ouvir as pessoas implicadas na vida


das periferias é imprescindível
Para Daniel Hirata, essa escuta é necessária para se estabelecer
o que é pertinente quando se discute violência
João Vitor Santos | Edição: Vitor Necchi

A
violência, cada vez mais, é pes- Nas cadeias, havia um espelhamento,
quisada no Brasil. No que tange e o convívio era dividido por bairro, por
às periferias, no entanto, falta quebrada. “Essas quadrilhas foram se
um detalhe importante: ouvir. “Vale a organizando para matar os pés de pato
pena o esforço de escuta sobre o que as fora/dentro das cadeias. E mataram”,
pessoas dizem. Todas as pessoas. É im- -
prescindível ouvir as pessoas que estão ciantes para pagar pelas execuções ou
direta ou indiretamente implicadas na pela proteção, não dependiam dos po-
vida das periferias para estabelecermos liciais para fazerem a sua proteção em
os contornos de o que é pertinente e o troca de outras mortes.” Desta forma,
que não é para tudo o que discutimos”, o negócio do crime cresceu. O Primei-
destaca Daniel Hirata. Sem isso, “pode- ro Comando da Capital – PCC, “como
- grupo prisional, produz uma articula-
portante e sem conseguir dar respostas ção dessa história interna à cadeia, e
24 ao principal, que é o fato de o Brasil ser essa história das ruas, das quebradas”.
um país onde se mata e morre muito”. -
mandas dos prisioneiros e das quadri-
Hirata, em entrevista concedida por
lhas. Isso explica o lema “paz entre os
e-mail à IHU On-Line, estabelece uma
ladrões e guerra com a polícia”.
espécie de genealogia do controle das
periferias. A começar pelos anos 1990, Daniel Hirata é doutor e mestre
quando os policiais eram amigos dos em Sociologia e graduado em Ciências
comerciantes mais estabelecidos nos Sociais pela Universidade de São Pau-
bairros, ao mesmo tempo em que se lo – USP. Realizou estágio pós-douto-
relacionavam com os chamados pés de ral na Universidade Federal do Rio de
pato – “justiceiros, herdeiros históricos Janeiro – UFRJ. Leciona na Univer-
dos famosos grupos de extermínio dos sidade Federal Fluminense – UFF. É
anos 1970/80”. pesquisador do Núcleo de Estudos de
-
Dessas relações emanava a gestão da
ordem do bairro. Sem melindres, coloca- Trabalho do Laboratório de Pesquisas
vam na linha ou matavam “vagabundo” e
“malandro”. Ao mesmo tempo, “tinham Pesquisas em Economia e Cultura –
uma certa coerência: moral do trabalho, NUCEC-UFRJ.
respeito à família e aos mais velhos, o
fascínio da ordem”. Conforme Hirata, “é A entrevista foi publicada nas Notícias
o velho conservadorismo autoritário com do Dia, de 19-3-2018, no sítio do IHU,
cara de extermínio que sempre assolou as disponível em http://bit.ly/2DYBOG5.
periferias de São Paulo”.

IHU On-Line – Quais são e Daniel Hirata – Hoje existe um cada cidade e mesmo no interior de
como compreender os proces- corpo relativamente grande de pes- cada cidade. Então vamos encontrar
- quisas sobre o tema, que é muito várias composições diferentes entre
- variado porque as territorialidades dinâmicas societárias e institucio-
urbanas são bastante diferentes em nais em cada um desses territórios,

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“Os coletivos criminais são


compostos de dimensões sociais,
políticas, morais e econômicas, e tudo
isso se associa para sua formação.”

tudo isso é matéria de pesquisa em- gravitação maior dos ilegalismos no servação Criminológica]. Essas qua-
bairro. Tinham uma certa coerência: drilhas foram se organizando para
Existem processos históricos situ- moral do trabalho, respeito à famí- matar os pés de pato fora/dentro das
ados que dizem respeito à maneira lia e aos mais velhos, o fascínio da cadeias. E mataram. Não dependiam
pela qual isso foi sendo construído, ordem. É o velho conservadorismo dos comerciantes para pagar pelas
e por aí temos um caminho para en- autoritário com cara de extermínio execuções ou pela proteção, não de-
tender a coisa toda. que sempre assolou as periferias de pendiam dos policiais para fazerem
São Paulo (acho que isso no Rio tem a sua proteção em troca de outras
No que diz respeito ao que venho
cara de Baixada Fluminense, com mortes. E assim a coisa cresceu. O
pesquisando e nos lugares onde ve-
uma temporalidade que é até pare- crescimento dos negócios é o que me
nho pesquisando em São Paulo, es-
cida, mas isso é outra conversa...). chama mais a atenção, mas não vou
ses processos históricos podem ser
Tudo isso não é algo que apareceu de poder entrar muito nisso.
bem delimitados. Tenho feito esse
repente no Brasil, todo mundo sabe.
esforço com a professora Vera Tel- Tudo isso se acoplou com uma de-
les1. Já temos coisas publicadas so- É contra isso que “o crime” se in- manda interna às prisões que vinha 25
bre isso, mas estamos preparando surge, pensando “o crime” pela de- se construindo: dentro do cárcere,
algo que deve sair em breve. 2
. Eram 1992, depois 2001, depois 2006. Os
- trabalhos de Karina Biondi4, Gabriel
Nos anos 1990 (e de outras formas
Feltran5 e Camila Dias6, entre muitos
até hoje), os policiais eram amigos
por vezes vendiam uma parada ou
dos padeiros, do açougueiro, dos
saíam para roubar. Na cadeia, havia 4 Karina Biondi (1983): graduada em Ciências Sociais pela
donos de mercadinhos – dos comer- Universidade de São Paulo - USP, mestra e doutora em
um espelhamento, o convívio era di- Antropologia Social na Universidade Federal de São Car-
ciantes mais ricos do bairro. E eram los - Ufscar. Realizou estágio pós-doutoral na Universida-
vidido por bairro, por quebrada, por
amigos dos pés de pato – os justicei- de Estadual de Campinas - Unicamp e na Ufscar. Leciona
área (se falava assim) – e o seguro na Universidade Estadual do Maranhão. É também pes-
ros, herdeiros históricos dos famo- quisadora do Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Relações
era o lugar dos pés de pato, no Ca- de Poder, Conflitos, Socialidades – Hybris, do Núcleo de
sos grupos de extermínio dos anos Antropologia Política – NuAP e do Núcleo de Estudos
randiru3 era o COC [Centro de Ob-
1970/80. Por sua vez, essas relações Interdisciplinares sobre Psicoativos - NEIP. Escreveu Junto
e Misturado: Uma Etnografia do PCC (São Paulo: Editora
estruturavam a gestão da ordem do Terceiro Nome, 2014), cuja versão em inglês foi publicada
pela University of North Carolina Press com o título Sha-
bairro. O que se conta deles é muito 2 Adalton José Marques: graduado em Sociologia e Polí- ring This Walk: An Ethnography of Prison Life and the PCC
impressionante, matavam ou davam tica pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São in Brazil. (Nota da IHU On-Line)
Paulo - FESPSP, mestre em Antropologia Social pela Uni- 5 Gabriel Feltran: etnógrafo urbano. Doutor em Ciências
uma dura em qualquer pessoa que versidade de São Paulo - USP e doutor em Antropologia Sociais e mestre em Ciência Política pela Universidade
parecesse “vagabundo” ou “malan- Social pela Universidade Federal de São Carlos - UFSCar. É Estadual de Campinas - Unicamp, com estágio doutoral
professor do Colegiado de Ciências Sociais da Universida- na École des Hautes Études en Sciences Sociales - EHESS.
dro”, nos termos deles – os dados de Federal do Vale do São Francisco - Univasf. É pesquisa- Graduado em Medicina Veterinária pela Universidade de
dor do Krisis – Antropologia Crítica – Univasf e do Hybris São Paulo - USP. Professor do Departamento de Sociologia
sobre homicídios mostram que os – Grupo de Estudo e Pesquisa em Relações de Poder, Con- da Universidade Federal de São Carlos - UFSCar, coorde-
flitos e Socialidades – USP/UFSCar. Pesquisa correlações nador de Pesquisa do Centro de Estudos da Metrópole -
entre: 1) políticas de direitos humanos, controles demo- CEM e pesquisador do Núcleo de Etnografias Urbanas do
parte importante considero que era cráticos e segurança pública; 2) saberes e estratégias de Centro Brasileiro de Análise e Planejamento - CEBRAP. Foi
presos, “comandos” prisionais e controles penitenciários; professor visitante no CIESAS Golfo (México, 2015) e na
por essas ações. 3) políticas de “quebrada”, “crime” (relação) e gestões dife- Humboldt University (Berlim, 2017). Atualmente pesquisa
renciais de ilegalismos. A sua dissertação resultou no livro as dinâmicas sociais, políticas e de mercado nas periferias
O que acontecia? Esses eram os Crime e proceder: um experimento antropológico (Alameda urbanas, a partir da perspectiva de grupos marginalizados
Editorial, 2014). (Nota da IHU On-Line) e do “mundo do crime” em São Paulo. Coordenador do
caras que dominavam a quebrada, 3 Carandiru: nome popular da Casa de Detenção de São NaMargem – Núcleo de Pesquisas Urbanas, que integra os
essa trinca entre pés de pato, polícia Paulo, complexo penitenciário que se localizava na zona projetos “As margens da cidade” (CEPID/CEM - FAPESP),
norte da cidade de São Paulo. Foi fundado na década “A gestão do conflito na produção da cidade contempo-
e comerciantes. Esse era o poder de de 1920. Chegou a abrigar mais de 7 mil presos, sendo rânea” (Temático FAPESP/USP) e “State Paradoxes” (CEM
o maior presídio do Brasil e da América Latina. Um dos -Humboldt Universtity). Autor de Fronteiras de Tensão: po-
fatos mais conhecidos da história do presídio ocorreu em lítica e violência nas periferias de São Paulo (UNESP/CEM,
1992, quando 111 detentos foram mortos pela Polícia Mi- 2011). Concedeu várias entrevistas para a IHU On-Line,
1 Vera Telles: graduada em Ciências Sociais, mestra em Ci- litar do Estado de São Paulo durante uma rebelião. Esse entre elas, Periferia de São Paulo. “Polícia, crime, igreja e
ência Política e doutora em Sociologia pela Universidade fato teve grande repercussão nacional e internacional. Em trabalho são esferas de vida que se interpenetram’, publica-
de São Paulo - USP. Realizou estágio pós-doutoral na École 2002, iniciou-se o processo de desativação do Carandiru, da nas Notícias do Dia de 5-7-2016, disponível em http://
de Hautes Etudes en Sciences Sociales – Paris, França. É com a transferência de presos para outras unidades. Hoje bit.ly/2smKfGS. (Nota da IHU On-Line)
professora livre-docente do Departamento de Sociologia o presídio já se encontra totalmente desativado. (Nota da 6 Camila Nunes Dias: graduada, mestra e doutora em So-
da USP. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line) ciologia pela Universidade de São Paulo - USP. É professo-

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TEMA DE CAPA

outros, detalham isso de forma bas- Claro que isso tem uma distribui-
tante clara. O PCC7, como grupo pri- ção desigual, aliás, como tudo, nos
sional, produz uma articulação des- diversos territórios urbanos. Outro
sa história interna à cadeia, e essa dia o comandante da ROTA9 falou
história das ruas, das quebradas – o explicitamente que a abordagem
Daniel Hirata – Isso se relaciona
- era diferente nas periferias ou nos
à gestão da ordem que você se refe-
das dos prisioneiros e das quadrilhas Jardins. Isso é explícito. “A carne
riu anteriormente. O dispositivo de
e, não à toa, vem o lema: “paz entre mais barata do mercado é a carne
gestão de mortes é como essa gestão
os ladrões e guerra com a polícia”. negra”10, “negra, pobre e periférica”,
Do ponto de vista da história ur- relação à questão da vida e da mor-
bana, é claramente uma disputa te, ou seja, é uma expressão analíti-
é assim mesmo que funciona e temos
pelo controle das quebradas, outras ca que procura entender quais são
que enfrentar isso sem concessão.
facções de classe em aliança, outros as situações em que alguns perdem
Não é casual, é uma coisa que tem
ilegalismos, outra política – igual- suas vidas. Isso tem uma modulação
mente mortal, diga-se de passagem, histórica, como disse antes.
temos muitas pesquisas que susten-
eram os “feios, sujos e malvados” –,
Esse dispositivo de gestão das mor- tam esse sentido.
nem por isso eram os bonzinhos da
tes é feito em uma articulação com-
história, não é isso que quero dizer,
quero dizer que é outra composição
social, outras associações sociológi-
forças da ordem (as diversas polícias “O CV se
cas. O que me parece importante é
que não tem, ao menos para mim,
informais ou criminais. O Michel formou nos
nada que foi propriamente inventa-
do pelo PCC, mas tem muita resso-
Misse8 vem insistindo há tempos
no conceito de mercadoria política anos 1970 e
-
para falar sobre os chamados mer-
cados da proteção. Acho que esse é
o PCC, nos
anos 1990. São
ca das quadrilhas. Tanto da política
um conceito fundamental, porque
26 quanto dos negócios que foram fei-
ajuda a entender como existe uma
momentos
tos depois. O PCC, para usar um ter-
articulação nas interações entre as
mo luminoso que a Vera Telles usa
forças da ordem e os coletivos crimi-
em outro contexto, é um operador
de escala. Operador de escalas po-
nais. Não é que existe um equilíbrio,
mas existe uma articulação que vai
diferentes, que
líticas e econômicas. Foi um opera-
dor de escala de uma disputa dentro
quais as mortes acontecem. A dele-
lidam com
das periferias, de estratos sociais
diferentes, de visões políticas di-
gação dos poderes soberanos de vida repertórios
ferentes, de práticas diferentes, ou
seja, cada um mobilizando aliados
coletivos criminais entre si ou com sociais
diferentes,
-
essa era a disputa, a disputa sobre a
então isso tem
por essa articulação, que tem direta
gestão da ordem.
ou indiretamente a ver com os ne-

-
gócios, porque a proteção é a condi-
ção de possibilidade de os negócios que ser levado
acontecerem. Então as duas coisas
estão conectadas, o que sempre está em conta.”
em disputa é a gestão da ordem, o
ra da Universidade Federal do ABC - UFABC, pesquisadora
do Núcleo de Estudos da Violência - NEV da USP e asso-
-
ciada ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública. (Nota da mortes vão acontecer. te a adesão de comunidades de
IHU On-Line)
7 Primeiro Comando da Capital (PCC): organização crimi-
nosa que comanda rebeliões, assaltos, sequestros, assas-
sinatos e narcotráfico. Atua principalmente em São Paulo, 9 ROTA [Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar]: tropa do
mas tem presença em 22 dos 27 estados brasileiros, além 8 Michel Misse: bacharel em Ciências Sociais pelo Institu- Comando Geral da Polícia Militar do Estado de São Paulo.
de países próximos, como Bolívia, Paraguai e Colômbia. to de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal É o maior batalhão de Polícia Militar do Brasil, possuindo
Estima-se que tenha cerca de 30 mil membros, sendo mais do Rio de Janeiro - UFRJ, mestre e doutor em Sociologia cerca de 900 homens e 150 viaturas. Em 1851, foi bati-
de 8 mil em São Paulo. É considerada uma das maiores or- pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro zado como Batalhão de Caçadores Tobias de Aguiar. O
ganizações criminosas do país. Seu financiamento decorre - Iuperj/SBI/Ucam. Atualmente é professor Associado do presidente da província Rafael Tobias de Aguiar, antigo
principalmente da venda de maconha e cocaína, além de Departamento de Sociologia da UFRJ. Publicou Crime e nome dado ao então governador, ficou conhecido como
roubo de cargas e assaltos a bancos. Está presente em Violência no Brasil Contemporâneo. Estudos de sociologia o Patrono da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Cons-
90% dos presídios paulistas e fatura cerca de 120 milhões do crime e da violência urbana (Rio de Janeiro: Editora Lu- titui-se na Tropa de Elite da PM de São Paulo. É utilizada
de reais por ano. O PCC surgiu em 1993 no Centro de Rea- men Juris, 2006; 2a. edição: 2011), Acusados e Acusadores: na necessidade do controle de distúrbios civis. (Nota da
bilitação Penitenciária de Taubaté, no Vale do Paraíba, que estudos sobre ofensas, acusações e incriminações (Rio de IHU On-Line)
acolhia prisioneiros transferidos por serem considerados Janeiro: Editora Revan/Faperj, 2008), As Guardas Muni- 10 Trecho da canção A carne, composição de Seu Jorge,
de alta periculosidade pelas autoridades. Vários dos ex-lí- cipais no Brasil (Rio: Booklink/Finep, 2010) e O Inquérito Marcelo Yuca e Wilson Capellette, gravada pela cantora
deres da organização estão presos, como Marcos Willians Policial no Brasil (Rio de Janeiro: Booklink/Fenapef, 2010). Elza Soares no álbum Do cóccix até o pescoço (2002). (Nota
Herbas Camacho (Marcola). (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line) da IHU On-Line)

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do Rafaat11 e do ocorrido no Com- associações que se encontram, en-


plexo Penitenciário Anísio Jobim tão elas mudam. Bom, então a coisa
algumas comunidades pare- na virada do ano passado, as coi- -
cem aceitar mais esses grupos sas ficaram meio loucas, não exata- -
mente no mundão, mas na maneira
pela qual as pessoas vêm analisan- coletivos está mudando. Como você
Daniel Hirata – Não acho que
do a situação, inclusive aquelas disse, são redes políticas, econômi-
exista adesão das pessoas das peri-
contrárias ao uso da categoria “cri- cas e morais, então tem que enten-
ferias ao crime organizado, claro que
me organizado”. É como se dissés- der as articulações que cada uma
as pessoas sempre têm opção. Tam-
semos “bom, agora é crime organi- dessas coisas produz.
bém não acho que aceitam mais o
“crime” do que o Estado. Inclusive, zado”. Em relação ao que ocorreu
em Manaus, o Fabio Candotti 12, a
a coisa, me parece, tem que ser me-
lhor colocada, ou seja, não uso a ca- Flávia Cunha 13 e o Ítalo Siqueira 14 “É
imprescindível
tegoria crime organizado justamente já cantaram a bola de que temos
porque ela separa muito claramente que entender a coisa situada histo-
Estado e crime, e todo um conjunto
bem consolidado de pesquisas vem
ricamente e com um outro nível de
complexidade. Em relação à morte ouvir as
mostrando como essas duas dimen-
sões são articuladas. Também não
do Rafaat, eu gostaria de ver algo
parecido. Desde os anos 1990 os pessoas que
acho que a questão é dizer simples-
mente “os criminosos são outros”.
caras do PCC já tinham cumprido
pena no Centro-Oeste e no Paraná.
estão direta ou
É isso, mas é mais que isso, são es- Os negócios começaram ontem? indiretamente
implicadas
sas articulações entre crime e Esta- Cada coletivo criminal tem uma
do que vão pontuando a construção história de associações diferente,
conjunta e articulada dessas duas
coisas.
quando eles se encontram são essas
na vida das
27
IHU On-Line – Como compre-
ender a complexidade dos co-
11 Jorge Rafaat Toumani: poderoso narcotraficante, se-
gundo a Polícia Federal do Brasil, no entanto, nunca se
conseguiu comprovar vínculos dele com o mercado de
periferias para
drogas no Paraguai. Por isso circulava livremente pelo
país, embora haja indícios contundentes em contrário.
Conhecido como um “próspero empresário de Pedro
estabelecermos
os contornos
Juan Caballero”, chegou a disputar a gerência deixada na
fronteira por Fernandinho Beira Mar. Foi processado pela
Justiça brasileira quando tentou enviar do Paraguai 492

de o que é
quilos de cocaína em agosto de 2004, e a operação foi
abortada por agentes federais, que interceptaram o carre-
gamento em 22 de agosto de 2004. Conhecido como “Rei

pertinente e o
da Fronteira”, morreu em um tiroteio na noite de 15 de
Daniel Hirata – Eu gosto da ex- junho de 2016, em uma emboscada realizada no centro da
cidade paraguaia de Pedro Juan Caballero, onde morava.
pressão coletivos criminais porque,
que não é para
Rafaat teria assumido as rotas do tráfico que pertenciam
ao então maior traficante do país, Fernandinho Beira-Mar,
ao contrário da expressão “crime nos anos 2000. (Nota da IHU On-Line)
organizado”, ela dá conta mais das 12 Fábio Magalhães Candotti: doutor em Sociologia pela

associações que dos limites, espe-


Universidade Estadual de Campinas - Unicamp e gradua-
do em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo -
USP. É professor do Departamento de Ciências Sociais e do
tudo o que
discutimos.”
cialmente aqueles entre Estado Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universi-
(Estado de direito, as instituições dade Federal do Amazonas - Ufam. Desenvolve pesquisas
em sociologia e antropologia urbana, com ênfase em mo-
formais que são normalmente vin- bilidades e saberes, relações de poder e violências, gênero
e raça, fronteiras e territorialidades. É coordenador do gru-
culadas a esse conjunto) e socieda- po de pesquisa Ilhargas – Cidades, Políticas e Saberes na
de (os criminosos, os delinquentes Amazônia - Ufam, do programa de extensão Observatório IHU On-Line – Quais são os
da Violência de Gênero no Amazonas (MEC/Sesu/Ufam) e
etc.). Os coletivos criminais são do projeto de pesquisa Regimes de mobilidade espacial

compostos de dimensões sociais,


na Amazônia urbana (CNPq). (Nota da IHU On-Line) -
13 Flávia Melo da Cunha: doutoranda em Antropologia
Social pela Universidade de São Paulo - USP, mestra em
políticas, morais e econômicas, e Antropologia Social pela Universidade Estadual de Cam-
tudo isso se associa para sua for- pinas - Unicamp e bacharel em Ciências Sociais pela Uni- Daniel Hirata – Essa é uma per-
versidade Federal do Amazonas - Ufam. Docente da Ufam.
mação. Tem que ver como histo- Dedica-se a projetos de pesquisa e extensão em Antropo- gunta difícil, saber “quais os prin-
logia do Direito, Estudos de Gênero e Violência, Direitos
ricamente isso foi se formando, Humanos, Segurança Pública e Justiça na região do Alto
cipais”. É difícil, mas a longo prazo
reformando, mudando, tem linhas Rio Solimões, na tríplice fronteira de Brasil-Peru-Colômbia. temos que conhecê-los e como eles
Integra o corpo docente do Programa de Pós-Graduação
de continuidade, enfim, é necessá- em Segurança Pública, Cidadania e Direitos Humanos da estão mudando.
Universidade do Estado do Amazonas. Pesquisadora do
rio entender como essas coisas vão Programa Observatório da Violência de Gênero no Ama- Estou atualmente em uma emprei-
acontecendo. zonas. (Nota da IHU On-Line)
14 Ítalo Barbosa Lima Siqueira: bacharel em Ciências So- tada com a Carolina Grillo15, um tra-
ciais e mestre em Sociologia pela Universidade Federal
Atualmente temos que dar um do Amazonas - Ufam. Doutorando em Sociologia pela
passo para trás e pensar com muita Universidade Federal do Ceará - UFC. É pesquisador do 15 Carolina Grillo: doutora em Ciências Humanas, mestra
grupo de pesquisa Ilhargas – Cidades, Políticas e Saberes em Sociologia e graduada em Ciências Sociais pela Uni-
atenção, porque, depois da morte na Amazônia (Ufam/CNPq). (Nota da IHU On-Line) versidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Realizou es-

EDIÇÃO 518
TEMA DE CAPA

balho de colocar em perspectiva as ge como um coletivo mais móvel São momentos diferentes, que li-
nossas pesquisas sobre os coletivos e translocal, e o CV17, como mais dam com repertórios sociais dife-
criminais, pensando as possíveis centralizado e hierárquico. Assim, rentes, então isso tem que ser leva-
comparações entre Rio de Janei- os conflitos e negociações com as do em conta.
ro e São Paulo. Em um primeiro forças da ordem tendem a se carac-
artigo, tentamos pensar alguns terizar de forma distinta também
parâmetros comparativos no que – ainda que os arranjos políticos IHU On-Line – Quais os limi-
diz respeito ao mercado varejista ao redor das mercadorias políticas -
de drogas. Trabalhamos três di- sejam comuns às duas cidades. -
mensões: os lugares de venda de
Isso é acionado no Rio de Janeiro
droga, os coletivos criminais e as Daniel Hirata – Vale a pena o
em contornos intra e interfaccio-
relações com as forças da ordem. esforço de escuta sobre o que as
nais mais bélicos que em São Paulo,
A distribuição de drogas é muito pessoas dizem. Todas as pessoas.
onde acentuam-se as negociações
distinta em cada uma dessas cida- É imprescindível ouvir as pessoas
intramuros seguidas de demonstra-
des. A circulação de mercadorias que estão direta ou indiretamente
ções de força em práticas de execu-
ocorre no Rio de Janeiro tendo por implicadas na vida das periferias
ções extralegais, ao passo que, no
base uma extensão organizacional para estabelecermos os contornos
Rio de Janeiro, os confrontos por
e territorial que multiplica as fun- de o que é pertinente e o que não
regiões mais lucrativas têm impac-
ções intermediárias e fragmenta é para tudo o que discutimos. Esse
tos nas prisões. Essas três dimen-
progressivamente as quantidades trabalho ainda não é muito valori-
sões ajudam a entender como os
de droga. Em São Paulo, utilizam- zado, mas, sem ele, podemos ficar
se unidades de venda compactas e sem entender o que é mais impor-
com pouca abrangência, que con- têm maiores consequências deses-
tante e sem conseguir dar respos-
centram a venda no aumento de sua tabilizadoras na dinâmica faccional
tas ao principal, que é o fato de o
densidade e volume na circunscri- no Rio de Janeiro que em São Paulo
Brasil ser um país onde se mata e
ção territorial. Assim, mesmo que e como se relacionam de forma dis-
morre muito. Essa tem que ser a
os comandos paulistas e cariocas tinta com a gestão das mortes em
28 questão principal. Nesse ponto, até
possam ser caracterizados como cada cidade.
tem uma rede de alianças possí-
redes de alianças, como apontaram Tudo isso tem que ser feito com veis bastante forte para contrapor
Antônio Rafael Barbosa16 e Michel cuidado, porque quando compara- aquelas políticas (hegemônicas)
Misse, cujo alinhamento com uma mos meio indistintamente os coleti- que só ampliam os confrontos e
ou outra facção determina a adesão vos criminais por meio de categorias jogam gasolina na fogueira. Temos
de todos os seus subordinados, as muito genéricas, o risco é perder o que esvaziar o balão.
diferenças são marcantes. mais importante, que são as diferen-
Vemos horizontalidade entre os ças de cada um que podem apontar
elementos para se pensar o conjun- IHU On-Line – Como pensar
“donos de morro” do Rio de Ja- -
neiro e os “patrões” em São Paulo, to. É complicado, complexo, longe
de ser evidente. -
assim como hierarquia desses com lhadas nessas disputas entre o
seus subordinados nas “firmas”. Também tem uma questão im-
Contudo, como a venda de drogas portante, que é o tempo, a história
em São Paulo conforma um siste- desses coletivos. Podemos fazer
ma de alianças formadora do co- comparações mais diacrônicas e
letivo composto por um número mais sincrônicas, mas a dimensão
muito maior de “patrões” do que Daniel Hirata –
do tempo, das camadas históricas,
de “donos de morro”, o PCC emer- no ar: como negociar com esses
é fundamental. O CV se formou nos
atores? Porque a preocupação prin-
anos 1970 e o PCC, nos anos 1990.
tágio pós-doutoral na Universidade de São Paulo - USP. cipal – acho que em relação a isso
Pesquisadora associada do Núcleo de Estudos da Cidada-
nia Conflito e Violência Urbana (NECVU/IFCS/UFRJ). (Nota 17 Comando Vermelho: é uma das maiores organizações
avançamos bastante – tem que ser
da IHU On-Line) criminosas do Brasil. Foi criada em 1979 na prisão Cândido baixar ao máximo as mortes. Como
16 Antônio Carlos Rafael Barbosa: doutor em Antropo- Mendes, na Ilha Grande, Angra dos Reis, Rio de Janeiro,
logia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro/ como um conjunto de presos comuns e presos políticos, faremos? Não me parece que seja
Museu Nacional, mestre em Antropologia e graduado em militantes de grupos armados, sendo os presos comuns possível minorar isso sem negociar
Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense - membros da conhecida Falange Vermelha. Entre os inte-
UFF. Realizou estágio pós-doutoral na Universidade Nova grantes da facção, que se tornaram notórios depois de publicamente com todos os envol-
de Lisboa e na UFF. Professor associado do Departamento suas prisões, estão o líder Fernandinho Beira-Mar, Marci-
de Antropologia e do Programa de Pós-graduação em An- nho VP, Mineiro da Cidade Alta, Elias Maluco e Fabiano vidos e prestar atenção no que estão
tropologia da UFF. Autor do livro Um abraço para todos os Atanazio (FB). O CV tem ramificações em outros estados dizendo. O que acontece é que as ne-
amigos: algumas considerações sobre o tráfico de drogas brasileiros como Rondônia, Roraima, Tocantins, Mato
no Rio de Janeiro (Niterói: EDUFF, 1997) e organizador, em Grosso, Espírito Santo, Acre, Pará, Maranhão, Alagoas, Rio gociações são feitas todas de forma
colaboração, do livro (I)legal: etnografias em uma fronteira Grande do Norte, Ceará, Mato Grosso do Sul, Amazonas
difusa (Niterói: Eduff, 2013). Atualmente coordena o Grupo e algumas partes de Minas Gerais, Piauí, Paraíba, Pernam- encoberta e todos os holofotes são
de Estudos em Antropologia e Movimentos Minoritários buco e da Bahia. Nos estados do Rio de Janeiro, Rondônia, jogados nas ações bélicas e milita-
no âmbito do Núcleo de Pesquisa “Cosmopolíticas” da Mato Grosso, Acre, Ceará e Tocantins o CV é maioria no
Universidade Federal Fluminense. (Nota da IHU On-Line) sistema penitenciário. (Nota da IHU On-Line) ristas. O melhor seria inverter isso.

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REVISTA IHU ON-LINE

Crise política e fragilidade das


instituições agravam a violência
Para Sérgio Adorno, isso estimula a adoção de medidas
extralegais e a precipitação de medidas como a
intervenção federal no Rio de Janeiro
Ricardo Machado | Edição: Vitor Necchi

N
ão há respostas simples para ex- Adorno garante que a crise política e
plicar a gênese da violência no a fragilidade das instituições agravam
Brasil, entende o cientista social o problema da violência porque desor-
Sérgio Adorno. “As raízes devem ser bus- ganizam os serviços públicos, geram in-
cadas na colonização e em seus modos
cruéis e rudes de dominação. No entan- a alocação de recursos, modernização
to, convém lembrar que a condenação de equipamentos e de infraestrutura
da violência, em suas múltiplas formas, é em geral. “O resultado é sempre o en-
fraquecimento do poder institucional e
A violência, em grande parte, pode ser o apelo, mais e mais, a medidas extrale-
atribuída ao Estado, “que é justamente gais, à violência abusiva e a precipitação
a comunidade política que detém o mo- de medidas como a intervenção federal
nopólio legítimo do poder coercitivo”. O -
fenômeno, no entanto, é amplo. Adorno to, não apenas no campo da segurança
29
salienta que “mais recentemente histo- pública, uma certa atitude de desprezo
- pela vida dos mais pobres, daqueles
do, nas sociedades contemporâneas, não alcançados pelas políticas públicas
um processo descivilizatório, marcado sociais distributivas”, o que evidencia
pela ruptura das regras de cortesia nas uma espécie de “anestesia moral” em
relações interpessoais [...] e pelo enfra- grupos socialmente privilegiados.
quecimento do Estado-nação por força
é graduado em Ci-
do processo de globalização”.
ências Sociais e doutor em Sociologia
Ainda não há consenso entre pesqui- pela Universidade de São Paulo – USP,
sadores acerca do que sejam sociedades com estágio pós-doutoral no Centre de
seguras. “Muitos de nós sustentam que, Recherches Sociologiques sur le Droit
naquelas sociedades onde são meno- et les Institutions Pénales, CESDIP, na
res as desigualdades sociais e há maior França. Leciona na USP, onde é coorde-
solidez institucional e reconhecimento
das autoridades encarregadas de apli- da Violência. Sérgio Adorno é uma refe-
car lei e ordem, as taxas de crimes, es- rência nos estudos sobre violência.
pecialmente os violentos, são menores
e não constituem uma preocupação A entrevista foi publicada nas Notícias
exacerbada na agenda pública”, expli- do Dia, de 9-3-2018, no sítio do IHU,
ca Adorno em entrevista concedida por disponível em http://bit.ly/2DXHUXz.
e-mail à IHU On-Line.

IHU On-Line – Quais são as No entanto, convém lembrar que a de poder e mando, se estendia a tudo
condenação da violência, em suas o que gravitava em torno do patri-
Não há res- múltiplas formas, é um fenômeno mônio e de sua organização social
postas simples. As raízes devem ser moderno. No passado, seu emprego – o patrimonialismo, inclusive o cor-
buscadas na colonização e em seus não era objeto de censura. Na era co- po das mulheres, dos escravos e das
modos cruéis e rudes de dominação. lonial, a propriedade da terra, fonte crianças. Tudo era concebido como

EDIÇÃO 518
TEMA DE CAPA

uma espécie de extensão do poder explorado por Paulo Sérgio Pinhei-


senhorial. armadas e policiais, o monopólio da ro3. Durante o processo de transição
aplicação das leis – em especial as democrática, muitos de nós, cientis-
No mesmo sentido, empregar vio-
lência desmedida para extinguir
bem, mais recentemente historiado- da ditadura militar implicaria ne-
inimigos, opositores políticos ou
movimentos de protesto coletivo era
nas sociedades contemporâneas, um da sociedade brasileira. No entanto,
recurso de poder legítimo. Ainda que
processo descivilizatório, marcado no curso da transição política para
saibamos que o presente não é mera
pela ruptura das regras de cortesia a democracia e, sobretudo, em seu
repetição do passado, traços dessa
nas relações interpessoais – de que momento subsequente – o da conso-
cultura que associa violência – como
os xingamentos públicos de uns em lidação democrática –, observou-se
se legítima fosse – ao poder social
relação aos outros e as agressões às
e político se atualizaram na cultura
identidades coletivas e pessoais são interpessoais no interior da socieda-
política brasileira, ao longo da his-
alguns dos sintomas mais notórios de civil, representada sobretudo pelo
tória, concorrendo com a cultura
– e pelo enfraquecimento do Esta- crescimento do crime urbano e pela
política democrática que justamente
do-nação por força do processo de chegada do crime organizado, sob a
apela para a tolerância, para o res-
globalização. forma de comércio ilegal de drogas
peito às diferenças.
instalado nos bairros que concen-
tram grandes contingentes de traba-
IHU On-Line – Como com- “Quando alguns lhadores de baixa renda. Portanto,
o autoritarismo político era apenas
grupos sociais uma faceta de um autoritarismo en-
raizado socialmente. Infelizmente,
Que dimensões – sutis e grotes-
se sentem mais até hoje esse conceito carece de uma
fundamentação teórica e histórica
Como é sabido,
a partir dos estudos de Norbert Elias1
seguros do mais adequada e densa.

30 (O processo civilizador), a emergên-


cia e a consolidação da sociedade
que outros por-
moderna foram tributárias de dois
processos distintos, porém conver-
que são prefe-
gentes entre si: uma nova economia
moral, que implicou o retraimento
rencialmente -

do emprego na violência nas rela- beneficiários Ainda não há


ções interpessoais e intersubjetivas,
nascidas de uma gramática de eti- da proteção um consenso, entre pesquisadores
e especialistas, em que de fato con-
estatal, temos
quetas e da consideração da digni-
sistem sociedades seguras. Muitos
de nós sustentam que, naquelas so-
um processo de centralização do po-
der político, que extorquiu dos civis um cenário ciedades onde são menores as desi-
gualdades sociais e há maior solidez
o direito consuetudinário de apelo à
violência como forma de mediação de divisão.” institucional e reconhecimento das
autoridades encarregadas de aplicar
-
de particular contra outras vontades
particulares. - tarismo (1972), El Estado burocrático autoritario (1982),
Democracia macro y micro (1982), Transiciones desde un
ta o autoritarismo socialmen- gobierno autoritario (1988), Contrapuntos: ensayos escogi-
No curso histórico, o Estado mo- dos sobre autoritarismo y democratización (1997), Pobreza
y desigualdad en América Latina (1999) e La (in)efectividad
derno é justamente a comunidade de la ley y la exclusión en América Latina (2001). (Nota da
política que detém o monopólio legí- IHU On-Line)
dado “normal” das relações so- 3 Paulo Sérgio Pinheiro (1944): diplomata e acadêmico
timo do poder coercitivo, o que sig- nascido no Rio de Janeiro, doutor em Ciência Política pela
Universidade de Paris. É professor aposentado do Depar-
tamento de Ciência Política da Universidade de São Pau-
1 Norbert Elias (1897-1990): sociólogo alemão. De famí- O autoritarismo lo. Leciona no Watson Institute da Brown University, em
lia judaica, teve de fugir da Alemanha nazista, exilando-se socialmente implantado foi um con- Providence, EUA. Dentro da Estrutura da Organização das
na França em 1933, antes de se estabelecer na Inglaterra, Nações Unidas, exerceu o cargo de relator especial para a
onde passou grande parte de sua carreira. Em 1954, co- ceito utilizado pelo cientista político situação dos direitos humanos de Myanmar. Em 2011, foi
meçou a lecionar na Universidade de Leicester. Suas obras nomeado coordenador (chairman) da Comissão Interna-
focaram a relação entre poder, comportamento, emo- Guillermo O’Donnell2 e largamente cional de Inquérito para a Síria. Foi secretário de Estado de
ção e conhecimento na História. Devido a circunstâncias Direitos Humanos no governo Fernando Henrique Cardo-
históricas, Elias permaneceu durante um longo período so e integrou o grupo de trabalho nomeado pelo ex-pre-
como um autor marginal, tendo sido redescoberto por 2 Guillermo O’Donnell (1936-2011): cientista político sidente Luiz Inácio Lula da Silva que preparou o projeto de
uma nova geração de teóricos nos anos 1970, quando argentino, que passou a maior parte de sua carreira tra- lei da Comissão Nacional da Verdade - CNV. Pinheiro foi
se tornou um dos mais influentes sociólogos de todos os balhando na Argentina e nos Estados Unidos. Fez contri- um dos sete integrantes da CNV, órgão responsável por
tempos. A obra mais importante de Elias foram os dois buições duradouras para a teorização do autoritarismo, da investigar e apresentar conclusões sobre crimes cometi-
volumes de O processo civilizador (Rio de Janeiro: Jorge democratização e da qualidade da democracia na América dos durante a ditadura militar instaurada no Brasil com o
Zahar Editores). (Nota da IHU On-Line) Latina. Algumas de suas obras: Modernización y autori- golpe de 1964. (Nota da IHU On-Line)

26 DE MARÇO | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

lei e ordem, as taxas de crimes, espe- copioso estudo, tais atos simbolizam
cialmente os violentos, são menores punições post-mortem, isto é, impe-
e não constituem uma preocupação dir que a vítima possa ver, ouvir ou
Não tenho
exacerbada na agenda pública. se reproduzir sequer na eternidade.
ainda respostas convincentes. Há
Mas é preciso estudar mais, notada-
Certamente, um fator que não se alguns anos, dediquei parte de
minha investigação ao estudo de
subjacentes a essa mudança de hábi-
políticas de controle da ordem públi- fenômenos como linchamento e
tos e de práticas sociais.
ca que devem proporcionar seguran- execuções cometidas por esqua-
ça independentemente de clivagens drões da morte, que agiam (e ainda
econômicas ou sociais, como classe, agem) impunemente na periferia
poder, riqueza, gênero, geração, raça
ou etnia. Quando alguns grupos so-
da região metropolitana de São
Paulo. Resultavam, na maior par-
“Jamais
ciais se sentem mais seguros do que
outros porque são preferencialmen-
te dos casos, de ajustes de contas
entre quadrilhas ou entre bandidos
esqueçamos,
temos um cenário de divisão.
e policiais. Até meados dos anos
1990, havia uma espécie de interdi-
a Europa
Exemplos são muitos. Por exem-
tos morais. Não se matava indiscri-
minadamente. Evitava-se vitimizar
foi berço do
plo, veja a distribuição das taxas de
homicídios entre os bairros de um
mulheres grávidas, crianças peque- genocídio
moderno.”
nas, idosos e pessoas portadoras de
município determinado. Nos bair-
limitações físicas ou mentais. Na
ros onde habitam preferencialmente
segunda metade, verificou-se uma
cidadãos e cidadãs procedentes dos
radical ruptura desses interditos
estratos médios e altos das hierar-
morais. Execuções em moradias
quias sociais, as taxas estão quase IHU On-Line – Como noções
não poupavam ninguém.
sempre abaixo da média local, regio-
nal ou nacional. O mesmo não ocor- Estudei também rebeliões nas -
re nos bairros onde se concentram prisões. Não me constam que as 31
aqueles procedentes dos estratos ocorridas nas décadas de 1950 a -
socioeconômicos de baixa renda. Pa- 1980 praticassem decapitações. No
radoxalmente, naqueles bairros de entanto, ao longo dos anos 1990, -
classes médias e altas, o medo do cri- em São Paulo, elas ocorreram com -
me é exacerbado, e frequentemente frequência, ao que tudo indica nas
os pobres são acusados de responsá- disputas entre facções pelo controle
veis pelos crimes e pela insegurança das massas carcerárias, que acabou Volto ao argu-
em geral. Nos bairros onde os pobres resultando na hegemonia do PCC4. mento do processo civilizador. Cer-
predominam, é comum observarmos Nos linchamentos, a brutalidade tamente, há muitas singularidades
a naturalização das mortes, como se sempre esteve presente, como furar sociais, políticas e culturais que ex-
fossem uma espécie de destino a ser olhos, cortar orelhas, extirpar geni- plicam essa partilha entre amigos e
cumprido. tais. Como bem apontou o professor inimigos, bem e mal, justo e injusto,
José de Souza Martins5, autor de um como se fossem categorias de enten-
Na sociedade brasileira, onde – na
esteira das tendências internacio- dimento da realidade absolutamente
4 Primeiro Comando da Capital (PCC): organização cri-
nais – a militarização da segurança minosa que comanda rebeliões, assaltos, sequestros, assas- excludentes. Não é o caso de valori-
sinatos e narcotráfico. Atua principalmente em São Paulo, zar o processo civilizador ocidental,
pública caminha a passos largos e mas tem presença em 22 dos 27 estados brasileiros, além
de países próximos, como Bolívia, Paraguai e Colômbia. Es- porque, jamais esqueçamos, a Euro-
rápidos, dado os lastros anteriores tima-se que tenha cerca de 30 mil membros, sendo mais
de 8 mil em São Paulo. É considerada uma das maiores pa foi berço do genocídio moderno.
nos regimes autoritários que tive- organizações criminosas do país. Seu financiamento decor- Essa divisão é histórica, como bem
re principalmente da venda de maconha e cocaína, além
de roubo de cargas e assaltos a bancos. Está presente em demonstrou Foucault6 em seu curso
nas ditaduras de 1937-45 e de 1964- 90% dos presídios paulistas e fatura cerca de 120 milhões
85, acentuam-se as diferenças que se de reais por ano. O PCC surgiu em 1993 no Centro de Rea-
bilitação Penitenciária de Taubaté, no Vale do Paraíba, que eleito fellow de Trinity Hall. Professor visitante da Univer-
convertem em desigualdades sociais. acolhia prisioneiros transferidos por serem considerados de sidade da Flórida (Gainesville, EUA) e da Universidade de
alta periculosidade pelas autoridades. Vários dos ex-líderes Lisboa. (Nota da IHU On-Line)
da organização estão presos, como Marcos Willians Herbas 6 Michel Foucault (1926-1984): filósofo francês. Suas
Camacho (Marcola). (Nota da IHU On-Line) obras, desde a História da Loucura até a História da sexu-
5 José de Souza Martins (1938): escritor e sociólogo nas- alidade (a qual não pôde completar devido a sua morte),
cido em São Caetano do Sul - SP. Professor aposentado do situam-se dentro de uma filosofia do conhecimento. Fou-
à extinção de uma certa “eco- Departamento de Sociologia e professor emérito da Facul- cault trata principalmente do tema do poder, rompendo
dade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universi- com as concepções clássicas do termo. Em várias edições,
dade de São Paulo - USP. Na USP, fez o bacharelado e a a IHU On-Line dedicou matéria de capa a Foucault: edição
licenciatura em Ciências Sociais, o mestrado, o doutorado 119, de 18-10-2004, disponível em http://bit.ly/ihuon119;
- e a livre docência. Foi o terceiro brasileiro, depois de Celso edição 203, de 6-11-2006, disponível em https://goo.gl/
meno de aumento do grau de Furtado e de Fernando Henrique Cardoso, a ocupar, em C2rx2k; edição 364, de 6-6-2011, intitulada ‘História da
1993-1994, a prestigiosa Cátedra Simón Bolivar da Uni- loucura’ e o discurso racional em debate, disponível em
- versidade de Cambridge, Inglaterra, quando foi também https://goo.gl/wjqFL3; edição 343, O (des)governo biopolí-

EDIÇÃO 518
TEMA DE CAPA

Em defesa da sociedade, no Collè- gumentam que, na ditadura, havia Venho, junto


ge de France (1975-76), no qual ele segurança. Nós, de nossa parte, não com outros pesquisadores (Renato
aborda essas divisões como guerras concordávamos que havia segurança Sérgio de Lima7 e Isabel Figueire-
de raça que desembocaram no racis- na ditadura e buscamos realizar uma do8), estudando os Planos Nacionais
mo de Estado. crítica radical à militarização da se- de Segurança. Primeiramente, é
gurança, sobretudo ao uso abusivo sempre bom lembrar, há quem sus-
No Brasil, convivemos ambigua-
da força nas instituições de controle
mente com formas de solidariedade
da ordem pública e nas ruas, sobre- ditadura militar, nunca houve polí-
-
tudo contra trabalhadores desprovi- tica de segurança no Brasil. Eu não
to que apontam para o emprego da
dos de imunidades e garantias. me situo nessa corrente. Havia, sim,
violência. Em momentos críticos
diretrizes impressas aos órgãos de
da sociedade, tais como pobreza Policiais menosprezam direitos
extrema de segmentos das popu- humanos. Nós achávamos que lei e
da República Velha. Durante a dita-
lações, prevalecem cooperação de ordem era uma formulação inade-
dura militar, por causa da censura e
vizinhança diante de infortúnios so- quada, forjada na academia ameri-
do silêncio do aparelho repressivo de
Estado, aparentemente tudo se resu-
extrema tensão, diante, por exem- policiais e militares. O curso da de-
mia ao uso da força arbitrária. Mas
plo, de crimes com elevada reper- mocracia foi reduzindo distâncias
alguns estudos já sugerem que havia
cussão na consciência pública, for- e amenizando os confrontos, ainda
planos em gestação, ainda que não
tes correntes de opinião se inclinam que eles não tenham sido abolidos,
tenham sido formulados como Pla-
para medidas repressivas rigorosas como se viu recentemente no de-
nos de Estado ou Planos Nacionais.
como pena de morte, liberação das bate sobre a intervenção federal no
armas, encarceramento e redução Rio de Janeiro (fevereiro de 2018). Nosso estudo vem demonstran-
- do que, desde o governo Collor, foi
é bastante discutível. formulado ao que parece o primeiro
novas gerações de policiais, melhor Plano Nacional de Segurança Pú-
Há, no fundo, uma divisão entre
preparadas inclusive com doutorado blica. Com a plena retomada da de-
“quem tem direitos” e “quem não
32 acadêmico nas universidades públi- mocracia, os governos FHC9 e Lula
merece ter direitos”, que traduz uma
cas, começou a considerar a agenda da Silva10, partindo de diagnósticos
concepção diferenciada em relação
de direitos humanos em suas ativi-
ao direito à vida. Na civilização mo-
dades. 7 Renato Sérgio de Lima: diretor-presidente do Fórum
derna, a vida é um direito universal Brasileiro de Segurança Pública e professor da Escola de
Administração de Empresas de São Paulo da Fundação
que não pode ser aplicado a uns, em Por sua vez, nós, pesquisadores e Getulio Vargas - FGV-EAESP. Fez doutorado e mestrado
detrimento de outros. Estou traba- - em Sociologia, além de graduação em Ciências Sociais,
pela Universidade de São Paulo - USP, com estágio pós-
lhando nesses temas, mas confesso car a questão de lei e ordem e sair da doutoral no Instituto de Economia da Unicamp. (Nota da
IHU On-Line)
que não ultrapassei ainda o nível das armadilha da ideologia como ponto 8 Isabel Figueiredo: graduada em Direito e mestra em
constatações e descrições. de partida da discussão. Hoje, estou Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católi-
ca de São Paulo – PUC-SP, especialista em gestão pública
convencido que a agenda de direitos pela Escola Nacional de Administração Pública. Foi gestora
da área de segurança pública, com experiência no âmbito
humanos não pode ignorar o poder estadual, distrital e federal. É consultora em segurança pú-
coercitivo legítimo quando se trata blica e desenvolve pesquisas nas áreas de controle da ati-
o impasse entre os conceitos de de proteger o direito de maior nú-
vidade policial, atividade pericial criminal, uso da força por
agentes da lei e controle de armas. (Nota da IHU On-Line)
“lei e ordem” e “direitos huma- mero, senão de todos cidadãos. No 9 Fernando Henrique Cardoso (1931): sociólogo, cientis-
ta político, professor universitário e político brasileiro. Foi
entanto, lei e ordem não pode ultra- o 34º Presidente do Brasil, por dois mandatos consecuti-
- passar os limites ditados pelo Estado vos, entre 1995 e 2003. Conhecido como FHC, ganhou no-
toriedade como ministro da Fazenda (1993-1994) com a
- de Direito, pelo respeito aos direitos instauração do Plano Real para combate à inflação. (Nota
da IHU On-Line)
civis, pela observância das normas 10 Luiz Inácio Lula da Silva (1945): trigésimo quinto pre-
sidente do Brasil, cargo que exerceu de 2003 a 1º de janei-
Expus sobre constitucionais e das convenções ro de 2011. É cofundador e presidente de honra do Partido
esse tema em estudos anteriores. internacionais de que o Brasil é sig- dos Trabalhadores - PT. Em 1990, foi um dos fundadores e
organizadores do Foro de São Paulo, que congrega parte
Durante o processo de transição de- natário. dos movimentos políticos de esquerda da América Latina
e do Caribe. Foi candidato a presidente cinco vezes: em
mocrática e às expensas da experi- 1989 (perdeu para Fernando Collor de Mello), em 1994
(perdeu para Fernando Henrique Cardoso) e em 1998
ência de repressão política ocorrida (novamente perdeu para Fernando Henrique Cardoso) e
-
na ditadura, policiais e intelectuais ganhou as eleições de 2002 (derrotando José Serra) e de
peito aos planos de segurança 2006 (derrotando Geraldo Alckmin). Lula bateu um recor-
(pesquisadores) mantinham estra- de histórico de popularidade durante seu mandato, con-
forme medido pelo Datafolha. Programas sociais como o
nhamento e distância. Policiais ar- Bolsa Família e Fome Zero são marcas de seu governo,
programa este que teve seu reconhecimento por parte
distinções podem ser traçadas da Organização das Nações Unidas como um país que
tico da vida humana, de 13-9-2010, disponível em https:// saiu do mapa da fome. Lula teve um papel de destaque
goo.gl/M95yPv, e edição 344, Biopolítica, estado de exce- - na evolução recente das relações internacionais, incluin-
ção e vida nua. Um debate, disponível em https://goo.gl/ do o programa nuclear do Irã e do aquecimento global.
RX62qN. Confira ainda a edição nº 13 dos Cadernos IHU É investigado na operação Lava Jato e foi denunciado
em formação, disponível em http://bit.ly/ihuem13, Michel em setembro de 2016 pelo Ministério Público Federal -
Foucault – Sua Contribuição para a Educação, a Política e a MPF, apontado como recebedor de vantagens pagas pela
Ética. (Nota da IHU On-Line) empreiteira OAS em um triplex do Guarujá. No dia 12 de

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bem formulados, procuraram, me- rece ter enfraquecido o alcance medidas como a intervenção federal
diante um plano de ações articuladas das medidas. Já o atual governo no Rio de Janeiro.
entre si, atacar os principais proble- Temer12 não logrou apresentar um
-
mas relacionados à gestão da segu- programa articulado e bem cons-
rança pública, conferindo-lhe não só truído. Escolheu medidas de seus
- antecessores a dedo e desprezou
dernidade administrativa. outras, ao que parece, por razões -
políticas e de concepção ancorada
Há diferenças entre eles. Talvez o
em práticas tradicionais. Todas
governo FHC, nesta área, tenha se
essas iniciativas revelaram baixa
voltado mais para implementação
capacidade de implementação por
de lei e ordem no domínio do estado razões diversas, internas e exter- Infelizmente,
de Direito, e o de Lula da Silva, para nas. Do ponto de vista interno, não se logrou ainda um consenso,
proteção dos grupos sociais de maior mencionam-se restrições orça- mínimo que seja, a respeito de va-
vulnerabilidade, trabalhadores de mentárias e ausência de quadros lores que não podem ser transgredi-
baixa renda, mulheres, crianças, ne- dos, não importa em nome do quê. A
gros e índios. Ambos revelaram pre- do ponto de vista externo, lobbies vida, por exemplo. Temos visto, não
corporativos, interesses dos go- apenas no campo da segurança pú-
das forças policiais e judiciais, assim vernantes de manter sob seu con- blica, uma certa atitude de desprezo
como reconheceram o imperativo do trole as polícias Militar e Civis es- pela vida dos mais pobres, daqueles
federalismo e buscaram estabelecer taduais, o que encadeia interesses não alcançados pelas políticas pú-
bases para o relacionamento entre o nas esferas parlamentares estadu- blicas sociais distributivas. É como
governo federal e os governos esta- ais e federais. se aceitássemos, de bom grado, que
duais e municipais. uns devem morrer para que os “mais
competentes” possam sobreviver.
Embora focado na meta de re- Questão indicativa de uma espécie
dução dos homicídios, o governo de anestesia moral que se manifesta
Dilma Rousseff 11 fragmentou di- em alguns grupos socialmente privi- 33
ferentes iniciativas de seu ante- legiados e que não revelam empatia
cessor em secretarias, o que pa- e sequer compaixão com a vida e o
Sim, segura- destino social de milhares de famí-
julho de 2017, Lula foi condenado pelo juiz federal Sérgio mente. Principalmente quando de- -
Moro, em primeira instância, a nove anos e seis meses de
prisão em regime fechado por crimes de corrupção pas- sorganizam os serviços públicos, mente, repetirão a trajetória trágica
siva e lavagem de dinheiro. No dia 24 de janeiro de 2018,
por unanimidade, os três desembargadores da 8ª Turma
- de seus pais.
do Tribunal Regional Federal da 4ª Região confirmaram nais competentes e responsáveis e
a condenação de Lula, elevando a pena para 12 anos e
um mês de prisão. Foi a tramitação mais rápida de todos impedem alocação de recursos, mo- É preciso mudar esse cenário,
os processos da Lava Jato de Curitiba. A única alternativa
dernização de equipamentos e de transformar mentalidades, recons-
recursal que resta a Lula são os embargos declaratórios,
cujo objetivo é esclarecer pontos da decisão. Não é possí- infraestrutura em geral. O resulta- truir princípios de vida associativa
vel reverter a condenação com esse tipo de recurso. (Nota
da IHU On-Line) do é sempre o enfraquecimento do e cooperativa que ultrapassam as
11 Dilma Rousseff (1947): economista e política brasileira,
poder institucional e o apelo, mais clivagens socioeconômicas, as desi-
filiada ao Partido dos Trabalhadores - PT, eleita duas vezes
presidente do Brasil. Seu primeiro mandato iniciou-se em e mais, a medidas extralegais, à vio- gualdades de poder. Trata-se de uma
2011 e o segundo foi interrompido em 31 de agosto de -
2016. Em 12 de maio de 2016, foi afastada de seu cargo lência abusiva e a precipitação de
durante o processo de impeachment movido contra ela. versidades, aos formadores de opi-
No dia 31 de agosto, o Senado Federal, por 61 votos fa-
voráveis ao impeachment contra 20, afastou Dilma defini- 12 Michel Temer [Michel Miguel Elias Temer Lulia] (1940): nião, aos gestores de redes sociais,
tivamente do cargo. O episódio foi amplamente debatido político e advogado nascido em Tietê (SP), ex-presidente -
nas Notícias do Dia no sítio do IHU, como, por exemplo, a do Partido do Movimento Democrático Brasileiro - PMDB.
Entrevista do Dia com Rudá Ricci intitulada Os pacotes do É o atual presidente do Brasil, após a deposição por im- -
Temer alimentarão a esquerda brasileira e ela voltará ao peachment da presidente Dilma Rousseff naquilo que
poder, disponível em http://bit.ly/2bLPiHK. Durante o go- inúmeros setores nacionais e internacionais denunciam mum, capazes de oferecer às próxi-
verno do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, assumiu a como golpe parlamentar. Foi deputado federal por seis mas gerações uma qualidade de vida
chefia do Ministério de Minas e Energia e posteriormente legislaturas e presidente da Câmara dos Deputados por
da Casa Civil. (Nota da IHU On-Line) duas vezes. (Nota da IHU On-Line) e de democracia superior.

EDIÇÃO 518
TEMA DE CAPA

Afirmação dos direitos humanos deve


se sobrepor ao clamor punitivista
Para Rodrigo de Azevedo, a violência em uma sociedade democrática
é combatida pela produção de mecanismos policiais e de justiça
criminal que atuem dentro da lei, e não por vingança
Vitor Necchi

A
sociedade brasileira historica- vem para impor uma ordem e obrigar a
mente é muito violenta. Segmen- sociedade a se curvar a esta ordem que
tos da população como índios, interessa a poucos, a apenas uma elite”.
negros, mulheres, crianças e idosos há
Azevedo observa “o crescimento de
muito tempo são “afetados e vitimiza-
uma demanda social punitiva que se
dos por práticas de violência bastante
relaciona com o aumento da violência,
disseminadas” por conta de “uma hie-
com a sensação de insegurança e com a
rarquia social tradicionalmente aceita,
falta de políticas de segurança efetivas”.
quando os homens brancos possuido-
Em consequência, boa parte da socie-
res de propriedade detinham um poder
dade adere “ao discurso do chamado
legitimado sobre todo este conjunto de
populismo punitivo, ou seja, a ideia de
grupos sociais”, explica o professor Ro-
que o puro e simples endurecimento
drigo Ghiringhelli de Azevedo.
34 penal, mesmo nas condições precárias
do nosso sistema carcerário, poderia
violência no Brasil, um dado novo é que ser um mecanismo de contenção da cri-
há, nas últimas décadas, um grande minalidade”. O sistema político, pres-
questionamento à legitimidade dessa sionado, responde com o “aumento de
penas e a relativização de direitos e ga-
Azevedo em entrevista concedida por rantias processuais, o que incrementa
telefone à IHU On-Line. Em consequ- -
ência, “diversos grupos sociais vitimi- mente, o aprisionamento provisório”.
zados e historicamente excluídos ou
marginalizados começaram a produzir O cenário é desalentador, porque
uma nova subjetividade, começaram “quem sofre cotidianamente com o
a se mobilizar no sentido de enfrentar crescimento da violência e com a disse-
esta situação histórica, e isso levou a minação da criminalidade acaba desa-
um profundo questionamento dessas creditando do poder público e aderindo
relações instituídas no Brasil”. Outro ao discurso de que é preciso que cada
elemento novo e importante, na aná- um tenha a sua arma para garantir a
lise do pesquisador, “é a disseminação autodefesa”. Azevedo, no entanto, res-
em áreas de periferia, geralmente de- salva que “a única possibilidade de se
sassistidas da presença do Estado e de enfrentar a violência e o crime em uma
serviços públicos, de uma cultura de
violência”. dos direitos humanos e pela produção
de mecanismos policiais, e especial-
A sociedade brasileira é muito violen-
mente de justiça criminal, que atuem
ta, mas “a polícia historicamente é pou-
dentro da lei, que atuem de forma pro-
co preparada para atuar em contextos
democráticos, utilizando a violência de
forma excessiva e negociando seu po- forma universal”.
der de sujeição criminal”, avalia Aze-
vedo. “Boa parte da violência que aco- é graduado em Ciências Jurídicas e So-
mete a história do Brasil foi praticada ciais, especialista em Análise Social da
pelo Estado.” No entendimento do pes- Violência e Segurança Pública, mestre
quisador, “desde a sua origem, o Estado e doutor em Sociologia pela Univer-

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sidade Federal do Rio Grande do Sul rança e Administração da Justiça Penal


– UFRGS. Realizou estágio pós-dou- – GPESC e integra o Fórum Brasileiro
toral em Criminologia na Universitat de Segurança Pública. É pesquisador
Pompeu Fabra e na Universidade de associado e membro do Comitê Gestor
Ottawa. É professor na Pontifícia Uni- do Instituto Nacional de Estudos Com-
versidade Católica do Rio Grande do parados em Administração Institucio-
Sul – PUCRS. Lidera o Grupo de Pes-
quisa em Políticas Públicas de Segu-

la uma sociedade que busca romper disputas de territórios e confrontos


- com padrões tradicionais de domi- armados como forma de produção
nação, de exclusão e de violência, identitária.
que busca colocar na esfera da cida-
-
dania setores sociais historicamente
do – A sociedade brasileira historica-
excluídos. Talvez o que estejamos vi-
mente é muito violenta. A história so-
venciando no momento é ainda um
cial do Brasil pode ser contada como
bloqueio a esta demanda por cida- -
a história social da violência. A colo-
nização e o massacre da população Boa parte da violência que
indígena, a questão da escravidão e o chegou a um patamar que passou a acomete a história do Brasil foi
tratamento dado à população negra, encontrar resistência cada vez maior praticada pelo Estado. O Estado
a relação entre a sociedade de uma das elites favorecidas pelo sistema brasileiro se constitui não por uma
tradicionalmente implantado. demanda social, de construção de
maneira geral com crianças, mu- 35
lheres e idosos – tradicionalmente instituições que garantam o exer-
Por outro lado, temos um outro
esses setores da população têm sido cício da cidadania. Desde a sua ori-
elemento novo importante que é a
afetados e vitimizados por práticas gem, o Estado vem para impor uma
disseminação em áreas de periferia,
de violência bastante disseminadas. ordem e obrigar a sociedade a se
geralmente desassistidas da presen-
No entanto, quando essas relações curvar a esta ordem que interessa
ça do Estado e de serviços públicos,
estavam vinculadas a uma hierarquia a poucos, a apenas uma elite. Isso
de uma cultura de violência. Nas pe-
social tradicionalmente aceita, quan- produz instituições, tradições, uma
riferias urbanas, até pela presença
do os homens brancos possuidores cultura institucional autoritária, em
- que o poder público e seus integran-
de propriedade detinham um poder to, acabou surgindo uma cultura
legitimado sobre todo este conjunto tes não se colocam no papel de ser-
juvenil vinculada a manifestações vidores, mas muito mais no papel de
de grupos sociais, a violência podia simbólicas de uso da força e da vio-
ter um caráter muito mais simbólico detentores do poder, e exercem esse
do que propriamente físico, embora a poder para excluir demandas so-
-
violência física estivesse sempre pre- ria, na medida em que esses setores vistos como atentatórios à própria
sente, principalmente em situações sociais são alvo do controle punitivo, ordem jurídica e social.
colocados em presídios superlota-
dos e dominados internamente por No âmbito da segurança pública,
O dado novo no Brasil, nas últimas
esses mesmos grupos. Isso acabou muitas vezes já foi utilizada, e con-
décadas, é que há um grande ques-
produzindo essa cultura que alguns tinua sendo, a ideia de manutenção
tionamento à legitimidade dessa
chamam de masculinidade violenta, da ordem pública em detrimento da
hierarquia social tradicional. Diver-
que se dissemina e se relaciona com prestação de serviços de seguran-
sos grupos sociais vitimizados e his-
o poder público, especialmente por ça que trabalhem na perspectiva da
toricamente excluídos ou margina-
lizados começaram a produzir uma meio das polícias.
a tradição do Estado brasileiro. As
nova subjetividade, começaram a se A polícia brasileira historicamen- instituições de justiça e de segurança
mobilizar no sentido de enfrentar
te é pouco preparada para atuar em tradicionalmente foram instrumen-
esta situação histórica, e isso levou
contextos democráticos, utilizando talizadas para cumprirem esse papel
a um profundo questionamento des-
a violência de forma excessiva e ne- de manutenção de uma ordem social
sas relações instituídas no Brasil.
gociando seu poder de sujeição cri- injusta e desigual, e não para dar va-
O próprio processo de democrati- minal, então tudo isso gera uma si- zão e equacionar as demandas sociais
zação, a partir dos anos 1980, reve- tuação em que se tornam frequentes por reconhecimento e cidadania.

EDIÇÃO 518
TEMA DE CAPA

IHU On-Line – O senhor des- ma como se deu a abolição da escra- forma tão explícita no espaço públi-
vatura no Brasil acabou produzindo co. Hoje, no entanto, inclusive pela
grandes contingentes populacionais disseminação nas redes sociais, aca-
marginalizados vinculados, eviden- baram surgindo bolsões de grupos
- temente, à população negra. No en- racistas que sustentam uma ide-
tanto, a questão da escravidão não ologia de supremacia branca, por
- foi exclusividade brasileira. Vários exemplo. Esses grupos, não apenas
países tiveram situações similares, no Brasil, mas em outros contextos,
mas muitos acabaram de alguma têm se manifestado e demonstrado o
forma enfrentando esse processo quanto o problema é ainda bastan-
- de transição de uma situação como te presente e precisa ser enfrentado
Com certeza, por isso essa aquela para um contexto em que a -
caracterização como uma cultura da questão da cor da pele não tem mais va, quanto pela necessária criminali-
masculinidade violenta. O patriar-
zação do racismo nas suas diferentes
calismo e a ideia do poder mascu- cidadania. formas de manifestação.
lino – mesmo que questionados e
cada vez mais colocados em xeque, A própria sociedade norte-ameri-

“A história
especialmente pelo movimento fe- cana, a partir do movimento dos di-
minista – ainda estão muito presen- reitos civis, somente nos anos 1960

social do
tes em diferentes contextos sociais, começa a enfrentar essa questão
sem distinção de classe e de renda. de uma forma mais direta, mas, de
E talvez até pela crise dessa mascu-
linidade o elemento violência aca-
qualquer maneira, de lá para cá há
muitos avanços no sentido de garan- Brasil pode ser
ba se colocando como uma forma
de manutenção de uma identidade
tia de direitos e de igualdade, não
importando qual seja a etnia. contada como
que, embora questionada, ainda
tem muita força, não apenas nas pe-
No Brasil, todo o debate sobre de- a história social
mocracia racial e sobre o fato de
36 riferias urbanas, mas inclusive em
outros setores sociais.
que nós seríamos uma sociedade da violência.”
miscigenada – que marca inclusive
Isso agrava problemas que se rela- boa parte da produção das ciências
cionam com a questão do armamento, sociais sobre este tema durante um
grande período – acabou encobrin- o encarceramento em massa e
o confronto violento, a honra, o acerto
de contas e disputas que envolvem in- do esta situação. Levamos muito
clusive relações afetivas, chegando ao tempo para enfrentar o problema -
de uma forma mais direta por meio O tema do encarceramen-
tema da violência contra a mulher, a
violência doméstica. Tudo isso acaba to traz alguns elementos novos no
pudessem compensar esta desigual- contexto contemporâneo. Desde os
sendo exacerbado, apesar de todas as
dade original que nunca foi enfren-
mobilizações, inclusive da mudança
tada e que produziu essa barreira a de superencarceramento que come-
legal no sentido de uma maior preo-
esse grupo étnico de ter acesso tanto ça no contexto norte-americano, a
cupação e criminalização de condutas
a direitos de cidadania quanto a pos- partir da política de guerra às drogas
ligadas a práticas tradicionalmente
sibilidades de ascensão social. e de toda uma mudança social que
aceitas. Neste contexto de uma crise
da identidade masculina, desse poder Neste momento, este tema se colo- acontece a partir da implantação do
patriarcal tradicionalmente instituído, ca de uma forma mais importante na programa neoliberal, com o enxu-
tudo isso resulta que a violência surja pauta política do país porque há uma gamento de gastos sociais, corte de
como um mecanismo de reação a essa mobilização do movimento negro direitos sociais e ampliação da uti-
mudança social. para que as conquistas obtidas na lização do sistema penal para con-
última década, especialmente, sejam tenção de determinadas populações
consolidadas, para que possamos ter marginalizadas, o que afetou muito
de fato o enfrentamento dessa ma- especialmente a população negra.
zela social que ainda marca a socie-
No Brasil, esse processo começa
- dade brasileira e tem sido reavivada
nos anos 1990. Nas últimas déca-
pela questão do racismo.
das, tivemos um incremento muito
Cada vez parece mais claro que o grande das taxas de encarceramento
-
racismo ainda está bastante presen- no país, que hoje está entre os qua-
te e começa a ser objeto de manifes- tro que mais encarceram no mun-
- tações discursivas que há bastante do e tem entre eles a maior taxa de
Não há dúvida de que a for- tempo não se faziam presentes de crescimento do encarceramento na

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última década. Isso, em grande me- grande descontentamento social, ção, e que acabam sofrendo uma tu-
dida, em virtude da lei de drogas com alta rejeição por parte da opi- tela por parte dessas forças.
(Lei 11.343/2006), em que pese a nião pública (taxas de aprovação em
A intervenção gera desconforto
ideia de que pudesse ter avançado torno de 5%) e manifestações cada
dentro do próprio meio militar. Te-
no sentido de uma despenalização vez mais amplas contra o corte de
mos acompanhado manifestações
do usuário, mas que acabou levando direitos trabalhistas e a reforma da
que denotam a existência de uma
a um endurecimento em relação ao Previdência – ações propostas por
divisão dentro das Forças Armadas.
varejo da droga. Os pequenos vende- um governo que carece de legitimi-
Há um setor, que se poderia chamar
dores são penalizados de forma dura dade eleitoral, além de toda a situ-
e constituem hoje, na população pri- ação envolvendo denúncias de prá-
o papel do Exército neste âmbito e
sional masculina, em torno de 30% ticas criminosas por parte tanto do
considera a possível perda de apoio
dos presos e, na feminina, em torno presidente da República quanto de
e de legitimidade social duramente
de 70%. vários ministros.
reconquistados nos últimos 30 anos
Além disso, temos o crescimento de A intervenção no Rio de Janeiro de democracia. Outro setor tem pro-
uma demanda social punitiva que se aparece como uma tábua de salva- duzido uma nova doutrina de segu-
relaciona com o aumento da violên- ção, uma boia em ano eleitoral para rança nacional que vincula o papel
cia, com a sensação de insegurança e que haja uma mudança de orienta- das Forças Armadas ao combate à
com a falta de políticas de segurança ção da agenda política em direção criminalidade e combina isso com o
efetivas, que não são implementadas àquilo que é a principal demanda combate a movimentos sociais rei-
e que levam boa parte da sociedade social, que é a demanda por segu- vindicatórios. Isso apresenta uma
a aderir ao discurso do chamado po- rança. Fazendo isso, o governo – que nova roupagem, digamos assim,
pulismo punitivo, ou seja, a ideia de - para uma presença das Forças Ar-
que o puro e simples endurecimento timação social – deixa de lado uma madas intervindo na vida social e
penal, mesmo nas condições precá- agenda bastante criticada, pratica- política brasileira.
rias do nosso sistema carcerário, po- mente inviabilizada no Congresso
deria ser um mecanismo de conten- em ano eleitoral, e adota outra que
ção da criminalidade. atende a uma demanda social. “Boa parte 37
Isso leva a uma resposta do sistema
político que é o aumento de penas e
A princípio, uma intervenção fede-
ral em um estado federativo não tem da violência
a relativização de direitos e garan-
tias processuais, o que incrementa o
caráter militar. Não há previsão de
uma intervenção militar na Consti- que acomete
mente, o aprisionamento provisório.
- tuição Brasileira. Quando a União
intervém em um estado, seja de uma
a história
Em torno de 40% das pessoas pre-
sas ainda não foram julgadas, mas mente na área da segurança pública,
-
do Brasil foi
são mantidas nesta condição porque
o sistema é moroso e muitas vezes
é uma intervenção civil por parte do
governo federal para atender a uma
praticada pelo
incapaz de produzir os elementos situação de crise. No entanto, ao dar
um papel de interventor a um gene-
Estado.”
probatórios que garantam uma con-
denação criminal. Mas, dependendo ral, comandante das Forças Arma-
das na região Sudeste, e de alguma
em situação de encarceramento du- maneira vincular esta intervenção -
rante todo o processo, o que agrava a a uma presença maior das Forças
situação de superlotação. Armadas na operação da segurança -
pública no estado do Rio de Janeiro, tão mais restritas a São Paulo e
o governo estabelece um caráter mi-
litar para esta intervenção.
-
eleitorais do tema segurança
É algo extremamente grave, tan- É importante fazer uma
to pela inadequação da atuação das distinção desses dois conceitos. As
Forças Armadas neste âmbito, quan- facções criminais no Brasil são uma
to pela histórico delas de ingerência denominação que se generalizou no
sobre a sociedade civil e o sistema debate a respeito dos grupos ligados
político. Isso reaviva o fantasma de
um endurecimento do regime por projeção e consolidação a partir, jus-
- meio da presença cada vez maior das tamente, da superlotação carcerária
Com certeza. O governo Forças Armadas em setores que não e do domínio desses grupos dentro
se encontrava em uma situação de são de sua competência, sua atribui- do ambiente prisional. A presença de

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TEMA DE CAPA

grupos ligados ao mercado da droga dos presos à violência do Estado –, ses dois conceitos acaba levando a
por uma série de mecanismos identi- que se acredite que, no combate ao
início dos 1980, quando o comércio tários e também de funcionamento, crime, a prioridade seria o combate
- acabou adquirindo um monopólio ao pobre, esse indivíduo que está
cialmente produziu um reforço do sobre o varejo da droga em todo o vinculado às facções nas periferias
poderio econômico de quem vendia a estado. O PCC adquiriu um poderio urbanas, pratica o varejo da droga,
droga. Isso, vinculado ao contexto da que não é comparável ao que havia mas que é apenas a ponta de uma
ditadura e da vinculação de grupos antes da sua criação e do seu cres- grande estrutura criminal que en-
criminosos e de dissidentes políticos cimento. Talvez por isso, cada vez volve todos esses setores que, muitas
em determinados ambientes carce- mais se vincula essa ideia de facções -
rários, acabou produzindo no Rio de criminais com a ideia de crime or- gem do poder punitivo e do sistema
Janeiro uma primeira grande facção, ganizado. No entanto, essa crimi- penal.
que foi a Falange Vermelha, depois nalidade do varejo da droga é mui-
tornada Comando Vermelho1. Nos to pouco organizada, é muito frágil,
anos 1980, ela se desagrega, produ-
zindo outras facções e uma disputa
muito móvel e volátil. Existem vá-
rias disputas, com a grande exceção
“A forma
que se mantém até hoje nas favelas do PCC, que conseguiu estabilizar e
consolidar um domínio durante es-
como se deu
cariocas, em torno desse mercado.
A inexistência de um monopólio do sas últimas décadas no estado de São
Paulo e começa a se disseminar tam-
a abolição da
comércio da droga no varejo acaba
levando à presença muito constante bém para outros estados, inclusive escravatura no
tendo hoje o controle de algumas ro-
da violência, do armamento, da dis-
puta de território e assim por diante. tas internacionais da droga. Brasil acabou
Em São Paulo, a situação se tornou Crime organizado é outra coisa.
Trata-se de um nível de criminalida-
produzindo
grandes
diferente porque uma facção, o Pri-
meiro Comando da Capital - PCC2 de que envolve geralmente o poder
38 público, ou seja, que tem na sua base
– produzido a partir do massacre do
Carandiru3 como forma de reação
a participação de pessoas ligadas às
próprias forças de segurança públi-
contingentes
1 Comando Vermelho: é uma das maiores organizações ca, às polícias, ao sistema político populacionais
ou ao meio empresarial. O crime
marginalizados
criminosas do Brasil. Foi criada em 1979 na prisão Cândido
Mendes, na Ilha Grande, Angra dos Reis, Rio de Janeiro,
como um conjunto de presos comuns e presos políticos, organizado, nesse nível, envolve a
militantes de grupos armados, sendo os presos comuns

vinculados,
membros da conhecida Falange Vermelha. Entre os inte-
comercialização de mercadorias ilí-
grantes da facção, que se tornaram notórios depois de citas que vão muito além da droga
suas prisões, estão o líder Fernandinho Beira-Mar, Marci-
nho VP, Mineiro da Cidade Alta, Elias Maluco e Fabiano
Atanazio (FB). O CV tem ramificações em outros estados
brasileiros como Rondônia, Roraima, Tocantins, Mato
no varejo. E aí teríamos que falar
evidentemente,
Grosso, Espírito Santo, Acre, Pará, Maranhão, Alagoas, Rio
Grande do Norte, Ceará, Mato Grosso do Sul, Amazonas
e algumas partes de Minas Gerais, Piauí, Paraíba, Pernam-
e de armas, mas teríamos que falar
também da subtração de dinheiro à população
negra.”
buco e da Bahia. Nos estados do Rio de Janeiro, Rondônia,
Mato Grosso, Acre, Ceará e Tocantins o CV é maioria no
público por licitação fraudulenta,
sistema penitenciário. (Nota da IHU On-Line) de desvios praticados nos mais dife-
2 Primeiro Comando da Capital (PCC): organização cri-
minosa que comanda rebeliões, assaltos, sequestros, assas- rentes âmbitos da economia formal
sinatos e narcotráfico. Atua principalmente em São Paulo,
mas tem presença em 22 dos 27 estados brasileiros, além
que acabam também dando origem
de países próximos, como Bolívia, Paraguai e Colômbia. Es- a uma série de processos vinculados IHU On-Line – No Rio Grande
tima-se que tenha cerca de 30 mil membros, sendo mais
à lavagem desse dinheiro obtido de -
de 8 mil em São Paulo. É considerada uma das maiores
organizações criminosas do país. Seu financiamento decor-
re principalmente da venda de maconha e cocaína, além
forma ilícita, e isso também se co-
de roubo de cargas e assaltos a bancos. Está presente em necta à circulação do capital em ní- -
90% dos presídios paulistas e fatura cerca de 120 milhões
de reais por ano. O PCC surgiu em 1993 no Centro de Rea- vel internacional. do – O Rio Grande do Sul tradicional-
bilitação Penitenciária de Taubaté, no Vale do Paraíba, que
mente tem uma dinâmica própria das
acolhia prisioneiros transferidos por serem considerados de O conceito de crime organizado
alta periculosidade pelas autoridades. Vários dos ex-líderes facções criminais, tanto que até hoje
da organização estão presos, como Marcos Willians Herbas está muito mais vinculado a esse
Camacho (Marcola). (Nota da IHU On-Line) o PCC não conseguiu estabelecer no
3 Carandiru: nome popular da Casa de Detenção de São -
estado uma base mais sólida, ao con-
Paulo, complexo penitenciário que se localizava na zona jeitas ao controle público e à própria
norte da cidade de São Paulo. Foi fundado na década trário do que acontece em outros lu-
de 1920. Chegou a abrigar mais de 7 mil presos, sendo opinião pública, pois não têm tanta
o maior presídio do Brasil e da América Latina. Um dos gares. Há grupos que se rivalizam es-
fatos mais conhecidos da história do presídio ocorreu em
visibilidade, não têm um caráter tão
pecialmente na Região Metropolitana,
1992, quando 111 detentos foram mortos pela Polícia Mi- midiático quanto a violência cotidia-
litar do Estado de São Paulo durante uma rebelião. Esse e eles têm o seu ponto de aglutinação
fato teve grande repercussão nacional e internacional. Em na praticada por esses grupos que
2002, iniciou-se o processo de desativação do Carandiru, no Presídio Central de Porto Alegre,
com a transferência de presos para outras unidades. Hoje
dominam áreas de periferia.
o presídio já se encontra totalmente desativado. (Nota da
na hoje chamada Cadeia Pública de
IHU On-Line) De alguma forma, a confusão des- Porto Alegre, onde muitas vezes tive-

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ram a possibilidade de negociar com xandre de Moraes6, que muito pouco


os gestores do sistema carcerário e tinha de conteúdo e até hoje não se
-
com a própria Polícia Militar, que há sabe o que de fato foi implementado.
Diante da situação da se-
bastante tempo administra o presídio. Agora o governo vem novamente,
gurança pública no Brasil e do fato
Já houve relatos de que determinados tanto com a questão da intervenção
de que o poder público tem limita-
- no Rio de Janeiro quanto com a ideia
ções muito sérias, tanto em termos
cidos pela administração prisional em de criação de um Ministério da Se-
orçamentários, como em termos de
detrimento de outros que se coloca- gurança Pública, querendo se apro-
planejamento para intervir na cri- priar desta pauta, desta agenda em
vam nessa disputa.
minalidade, evidentemente que nós ano eleitoral, mas tanto uma propos-
Nos últimos anos, houve o surgi- - ta quanto a outra são bastante ques-
mento de um novo agrupamento li- dades. No segundo governo Dilma4, tionáveis.
gado ao comércio ilegal da droga, que ela – fazendo a autocrítica da falta
se caracterizou pela utilização da vio- de política de segurança e do papel
lência de forma mais exacerbada do mais efetivo da União nesta área no -
que em períodos anteriores, invadin- primeiro governo –, por meio do mi- nalidade, seu foco, assim como não
do áreas que eram de outras facções nistro da Justiça, compôs um grupo se sabe qual é a viabilidade da cria-
na região da Grande Porto Alegre. de especialistas que foram chamados ção de um Ministério da Segurança
Talvez seja isso que tenha levado a a Brasília para realizar este debate. Pública em um último ano de gover-
esta situação de aumento bastante - no, quais seriam suas atribuições,
considerável das taxas de homicídio bilidade de uma intervenção federal seu papel e sua estrutura. Carecemos
no estado, especialmente na Região nesta área e qual seria o foco dessa de uma política efetiva de enfrenta-
Metropolitana, e a um descontrole do intervenção? mento do problema dos homicídios
poder público sobre este contexto de que atingem prioritariamente os mo-
disputa de território entre facções. Nós todos que participamos desse radores de periferia, pobres, negros,
processo fomos unânimes em de- que são as vítimas dessa situação de
Há, portanto, uma situação de dis- fender que fosse dada prioridade à falta de políticas públicas nessa área,
puta, de desequilíbrio, em que o poder
público e as polícias combatem deter-
questão da criminalidade violenta, e isso leva à exacerbação do chama- 39
- do fascismo social, desse discurso
minados grupos e até prendem líderes borou-se uma proposta de pacto na- punitivo, muito vinculado à ideia de
cional pela redução dos homicídios, que bandido bom é bandido morto,
deixando esses territórios à mercê da
com políticas e metas estabelecidas mas bastante distante de propostas
entrada de grupos rivais. Quando es-
para serem implementadas ao longo concretas para o enfrentamento do
sas operações acontecem, muitas ve-
do tempo. Com o processo de impea- problema.
chment e com o enfraquecimento do
Tudo isso coloca em questão o governo federal, evidentemente, não
próprio modelo de enfrentamento se teve condições de implementar.
da questão da droga. O Rio Grande
Com o governo Temer5, esse plano
do Sul é um exemplo de como esta
simplesmente foi abandonado e, no
política de guerra às drogas e de cri- -
seu lugar, quase nada foi apresenta-
minalização do varejo acaba levando Se existe um consenso entre
do, a não ser um conjunto de slides,
apenas a um efeito prático, que é a os especialistas da área, é de que a
pelo então ministro da Justiça, Ale-
superlotação carcerária. O estado, nossa política de drogas está fali-
em três anos, passou de 27 mil para 4 Dilma Rousseff (1947): economista e política brasileira,
36 mil presos no sistema prisional. filiada ao Partido dos Trabalhadores – PT, eleita duas vezes 6 Alexandre de Moraes (1968): ministro do Supremo
presidente do Brasil. Seu primeiro mandato iniciou-se em Tribunal Federal (STF). Professor associado da Faculdade
Talvez seja o que mais tem crescido 2011 e o segundo foi interrompido em 31 de agosto de de Direito do Largo de São Francisco - USP, onde se gra-
em termos de taxas de encarcera- 2016. Em 12 de maio de 2016, foi afastada de seu cargo duou e obteve o título de doutor em Direito do Estado.
durante o processo de impeachment movido contra ela. Foi membro do Ministério Público de São Paulo, em que
mento, sem que haja investimento No dia 31 de agosto, o Senado Federal, por 61 votos fa- foi promotor e exerceu diversas funções, de 1991 a 2002.
voráveis ao impeachment contra 20, afastou Dilma defini- Deixou o MP para assumir a Secretaria da Justiça e da De-
em aumento de vagas e na melhoria tivamente do cargo. O episódio foi amplamente debatido fesa da Cidadania do Estado de São Paulo, nomeado pelo
das condições carcerárias, deixando nas Notícias do Dia no sítio do IHU, como, por exemplo, a governador Geraldo Alckmin, cargo que exerceu até 2005,
Entrevista do Dia com Rudá Ricci intitulada Os pacotes do tendo sido, de 2004 a 2005, o presidente da Febem/SP,
essa massa à mercê justamente dos Temer alimentarão a esquerda brasileira e ela voltará ao atual Fundação CASA. Compôs o Conselho Nacional de
poder, disponível em http://bit.ly/2bLPiHK. Durante o go- Justiça de 2005 a 2007. Foi secretário Municipal de Trans-
grupos que dominam o ambiente verno do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, assumiu a portes de São Paulo da gestão de Gilberto Kassab, de
carcerário e que praticam as suas chefia do Ministério de Minas e Energia e posteriormente 2007 a 2010, e secretário Municipal de Serviços, cumulati-
da Casa Civil. (Nota da IHU On-Line) vamente, de 2009 a 2010. Em 2010, fundou um escritório
atividades fora dos muros da prisão 5 Michel Temer [Michel Miguel Elias Temer Lulia] (1940): dedicado ao direito público, em que exerceu a advocacia
político e advogado nascido em Tietê (SP), ex-presidente até o fim de 2014, quando Geraldo Alckmin o nomeou se-
também. do Partido do Movimento Democrático Brasileiro - PMDB. cretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo. Foi
É o atual presidente do Brasil, após a deposição por im- ministro da Justiça e Segurança Pública do governo Mi-
peachment da presidenta Dilma Rousseff naquilo que chel Temer a partir da abertura do impeachment de Dilma
inúmeros setores nacionais e internacionais denunciam Rousseff, em 12 de maio de 2016. Em 2017, foi nomeado
como golpe parlamentar. Foi deputado federal por seis por Temer para o cargo de ministro do Supremo Tribunal
legislaturas e presidente da Câmara dos Deputados por Federal, na vaga do ministro Teori Zavascki, que morrera
- duas vezes. (Nota da IHU On-Line) em um acidente aéreo. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 518
TEMA DE CAPA

da. Não temos dúvida. O que há é mo em alguns estados dos Estados tema penal cumpre este papel, pelo
um aumento do encarceramento de Unidos e também na Europa. Esta é contrário, ele é um mecanismo de
pessoas ligadas ao varejo da droga, a tendência cada vez maior de parti- controle justamente do sistema pu-
que superlotam prisões e reforçam o cipação do poder público neste con- nitivo, por meio de regras que devem
domínio das facções criminais. Isso, texto não mais por meio do sistema orientar a ação do poder público, des-
no entanto, não afeta o comércio da penal, mas por meio de saúde públi- de a polícia até a execução da pena.
droga e não tem nenhum impacto ca e de mecanismos que garantam O papel fundamental e prioritário
sobre a demanda de consumo. que o mercado da droga seja retirado do Judiciário é garantir a vigência
Seria preciso repensar essa polí- da ilegalidade, com isso enfraque- desse sistema de garantias, o que
tica. Uma primeira medida viável, cendo as estruturas criadas em torno não é nada fácil, especialmente em
factível e que poderia ter impacto da demanda pela droga. países como o Brasil, com uma tra-
concreto nesse contexto seria destra- dição autoritária e inquisitorial, em
var no Supremo Tribunal Federal a
tramitação do processo de descrimi- “Temos o que o Estado, por meio dos seus ór-
gãos de controle penal, exorbita de
nalização do uso de drogas no Brasil,
que é a tendência que vinha sendo crescimento suas atribuições, se excede no uso da
violência, produz provas por meios
apresentada pelos votos do relator e
dos que o seguiram, até que foi feito de uma ilícitos e tudo isso acaba levando a
uma situação de absoluta inseguran-
um pedido de vistas pelo ministro
Alexandre de Moraes. Até hoje esse demanda social ça jurídica que vitimiza o cidadão,
tenha ele praticado ou não delitos.
processo se encontra engavetado. Se
fosse adiante e o Supremo se mani-
punitiva que se Em democracia, direitos e garantias
devem ser assegurados, caso contrá-
festasse no sentido da descrimina-
-
relaciona com rio estamos no âmbito de um regime
autoritário. O papel do Judiciário
tiva, isso seria um grande avanço,
desde que seguido por uma grande
o aumento da fundamentalmente é este.

40 tendência manifestada nos votos do


Supremo que é o estabelecimento de
violência, com No Brasil, lamentavelmente, te-
mos acompanhado a existência de
um critério objetivo para distinguir o a sensação de práticas judiciais desvinculadas
dessa preocupação com os direi-

Da forma como está colocada na


insegurança tos e garantias, que cada vez mais
aderem à demanda social por puni-
lei, a situação é absolutamente sub-
e com a falta ção, colocando juízes e tribunais a
serviço de uma suposta segurança
-
sado, e isso leva à criminalização da
de políticas pública que, para que seja efetiva,
deve abrir mão justamente da vi-
pobreza. O que se pretende com essa
ação no Supremo Tribunal Federal
de segurança gência das regras constitucionais e

é que se estabeleça uma quantidade efetivas.” do juiz inquisidor, do juiz xerife, do


juiz que não apenas recebe as par-
a partir disso, todos os que forem tes para realizar o seu papel de jul-
presos com quantidades menores gador, mas acaba assumindo uma
do que essa não poderiam receber a IHU On-Line – Qual o papel função de combate ao crime. Esse
- é o pior cenário, a pior possibilida-
de que se tem em relação ao Poder
Esta é a possibilidade mais concre-
- Judiciário. Lamentavelmente, isso
ta de que a questão avance no Brasil
O papel fundamental do acabou derivando para a aceita-
no sentido de uma nova política de
Poder Judiciário, na sociedade bra- ção cada vez mais generalizada por
drogas que deixe de lado a interven-
sileira e em um contexto de norma- operadores jurídicos ligados tanto
ção penal e avance em políticas de
lidade democrática e constitucional, ao Judiciário, quanto ao Ministé-
redução de danos, de contenção do
é garantir a vigência das leis, ou seja, rio Público, inclusive em virtude do
consumo por meio de campanhas
no âmbito do processo penal, a vi- efeito da Operação Lava Jato e de
educativas, de conscientização, sem
gência dos direitos e das garantias todo o discurso midiático de com-
criminalização.
bate à corrupção no Brasil. Esses
fundamentais.
Um passo seguinte talvez seja a re- expedientes estão desconectados
gulamentação do mercado das dro- O sistema penal, e especialmente a da ordem jurídica constitucional e
gas, tal como aconteceu no Uruguai justiça criminal, não são mecanismos -
em relação à maconha, tal como tem adequados de prevenção ao crime. mados pelo discurso de combate ao
acontecido em outros países, mes- Em nenhum lugar do mundo o sis- crime.

26 DE MARÇO | 2018
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Quando a segurança pública é só caso


de polícia, a violência juvenil explode
David Levisky observa como a falta de investimento e de atenção
a crianças e adolescentes compromete o amadurecimento
do jovem, que reage com arroubos de violência
João Vitor Santos

A
explosão hormonal e todas as que o psicanalista propõe outro concei-
transformações da adolescência to de segurança pública. “Para mim, o
levam os jovens a manifestar lixo abandonado na rua é questão de
com mais facilidade os traços violentos -
inerentes ao ser humano. Entretanto, goto correndo a céu aberto e as crian-
é desde muito cedo que se precisa es- ças brincando ali com todo o tipo de
tar atento, porque o fator ambiental infecção, é caso de segurança pública.
é crucial e pode levar ao descontrole. -
“O que precisamos discutir é o que se- derando o sujeito, agredindo a pessoa”,
ria a violência própria do processo de explica.
desenvolvimento humano”, sinaliza o
é psicanalista
psicanalista David Léo Levisky. Para
e professor da Sociedade Brasileira de
ele, a criança e o jovem que vivem num
Psicanálise de São Paulo. Formado pela 41
ambiente de negligências afetivas, so-
Escola Paulista de Medicina da Univer-
ciais e até de infraestrutura naturali-
sidade Federal de São Paulo, possui es-
zam a violência e a tomam como única
pecialização em Psiquiatria e nas áreas
resposta. “Quando há um crime, é fácil
da infância e da adolescência. Também
é doutor em História Social pela Uni-
Mas o que está subjacente, no contexto
versidade de São Paulo. Recentemen-
da malha social? Aquelas situações em
te, teve seu artigo Uma contribuição
que um garoto tem uma arma, naquele
psicanalítica para políticos e cidadãos
ambiente, é parte do processo de de-
publicado no livro Winnicott: integra-
senvolvimento e faz parte do rito de
ção e diversidade (Rio de Janeiro: Pers-
passagem”, analisa.
pectiva, 2018), organizado por Anna
Na entrevista a seguir, concedida por Melgaço. Entre outras publicações,
telefone à IHU On-Line, Levisky ainda destacamos Adolescência e Violência:
revela que a sociedade de nosso tempo ações comunitárias na prevenção (São
cria cisões de mundos. Isso gera violên- Paulo, Casa do Psicólogo. 2001) e Um
cia que acaba sendo naturalizada por monge no divã – a trajetória de um
todos. “E a nossa sociedade, ao criar adolescer na Idade Média Central (São
uma cisão, fez com que o jovem fosse Paulo. Casa do Psicólogo. 2007).
buscar na criminalidade uma valoriza-
- A entrevista foi publicada nas Notícias
bem que podem contar com os jovens. do Dia, de 12-3-2018, no sítio do IHU,
disponível em http://bit.ly/2GwqK8M.
cotidiano dele”, provoca. É por isso

Existem agravantes, na cultura contempo-


- problemas de violência que são ine- rânea e na realidade brasileira, que
rentes à adolescência, mas existem contribuem para a exacerbação des-

EDIÇÃO 518
TEMA DE CAPA

sa violência. O que precisamos dis- na intensidade amorosa – grandes foi excluída desde o início – o jovem
cutir é o que seria a violência própria paixões e imensas depressões –, isso já nasce em situação de exclusão –,
do processo de desenvolvimento tudo sem perceber os desdobramen- toda aquela situação tem uma certa
humano, isto é, os arroubos de vio- tos que essas coisas podem ter para normalidade. E nós também aceita-
lência dependendo da circunstância ele mesmo e para os outros. Ainda mos e convivemos com isso com uma
para que não caiamos na ideia vulgar que racionalmente ele saiba de todos certa normalidade. Saímos preocu-
de que a violência é algo intrínseco à os perigos, emocionalmente ainda pados, olhamos se não há ninguém
adolescência. não tem a vivência do que aquilo que nos espreitando para nos atacar e
ele está fantasiando pode trazer na roubar, mas isso passa a ser um fe-
realidade. nômeno da cultura contemporânea
- das grandes cidades, como aqui em
responde aos componentes São Paulo, aí em Porto Alegre, Brasí-
- - lia, Rio de Janeiro. Isso toma outras
- dimensões porque, além de tudo, os
valores culturais que servem de ali-
Eu costu-
O jovem cerce para a organização da socieda-
mo dizer que tudo que se torna re-
passa pelas transformações hormo- -
petitivo na cultura se transforma em
nais, que geram as transformações ve pelas questões da tecnologia, da
um valor de cultura. O que se vê de
da adolescência, que têm repercus- velocidade da informação, fatores
violência na televisão, nos jogos ele-
sões na vida social, afetiva, familiar, muito conhecidos por todos nós.
trônicos, no noticiário é tão repetiti-
e a estrutura egoica. Todo o instru- vo na vida do sujeito, sem ser acom-
mental que ele tem para lidar com o panhado de uma análise crítica, com
mensagens com pouca discussão, O que pouco se observa é o sub-
enfraquecido e dá espaço a uma re- jetivo, como as questões subjetivas
estruturação da personalidade e da que está acontecendo. Tudo é trans- permeiam a sociedade. Quando há
identidade. É um processo biológico mitido como uma informação cha- -
que varia de cultura para cultura, de pada (sem profundidade) em que
42 vo, a razão prática. Mas o que está
época para época. Assim, existe uma não entramos na intimidade dos subjacente, no contexto da malha
violência que é resultado de intensa processos. Esta repetição contínua social, no inconsciente dessa malha
atividade pulsional, porque os me- das mais variadas violências – dos social, que favorece determinadas
canismos de defesa da infância são políticos, sua corrupção e desfaçatez situações? Aquelas situações em que
atenuados, os egos de determinada aos noticiários policiais ou dos jogos um garoto tem uma arma, naque-
que, se por um lado ajudam a cana- le ambiente, é parte do processo de
contudo, abre espaço para novas lizar a violência e destrutividade in- desenvolvimento e faz parte do rito
experiências afetivas, sociais, inte- terna de uma forma fantasiosa, por de passagem. Assim como na outra
lectuais, o que promove uma reorga- outro contribuem para transformar sociedade, a do outro lado, entre
nização. essa violência num valor da cultura muitos jovens o uso da droga, o ra-
Isso, porém, não é tão linear como – torna a violência um modo de ser. cha de carro ou a aprovação no vesti-
estou colocando, é um processo de bular são processos do rito moderno
A
subidas e descidas, êxitos e fracas- de passagem da adolescência para a
cidade de Deus (2002), onde é re-
sos onde as frustrações fazem par- vida adulta.
tratada uma sociedade muito bem
te de um processo de vivências que organizada naqueles padrões. Quan- Todas essas são situações de com-
dão aprendizado a um sujeito e dão do o jovem conquista uma arma, plexidade em que não basta agir de
a ele a chance de se organizarem conquista um valor daquela socie- forma linear e não integrada nos
da maneira diferente. O jovem, na dade. E a nossa sociedade, ao criar vários setores. Num país onde o
faixa etária entre 14 e 16 anos, não uma cisão, fez com que o jovem fosse processo educacional não consegue
tem muita noção da força dele, vem buscar na criminalidade uma valori- ensinar a língua materna – veja os
um impulso de fazer um movimen- índices de reprovação em provas de
-
to mais brusco e ele pode machucar Português e Matemática, que são al-
gas, os chefes daquela região, sabem
o outro e se machucar, uma vez que tíssimos –, o que se pode esperar?
que podem contar com os jovens. A
ele ainda está aprendendo a modu-
lar emocionalmente a intensidade
cotidiano dele.
de sua energia. Paralelamente, este IHU On-Line – O senhor des-
jovem tem um sistema de valores Se entendermos isso, é preciso pa-
superegoicos que servem também rar para pensar o que existe na so-
de freio. Por isso que é comum o jo- ciedade de um lado e na sociedade
vem passar por movimentos de os- de outro lado. Por isso não está in-
cilação no humor, na agressividade, tegrado? Para aquela sociedade que

26 DE MARÇO | 2018
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A violência física é fácil de ser de- sociedade dominante espera que ele
tectada, mas as outras são mais di- se adapte. O método que se usa não
fíceis. São aquelas violências que, importa. Essas rebeliões que acom-
É difícil sa-
por exemplo, humilham o sujeito, panhamos demonstram que esses
bermos o que vem primeiro. É a situ-
as questões de racismo, as homofo- jovens já chegaram à adolescência
ação da desigualdade que leva a esse
bias e preconceitos em geral, e que com seu equipamento neuropsíqui-
estímulo contínuo de situações de
geram um clima de hostilidade que co, com sua capacidade simbólica
violência ou são situações de violên-
pode acabar caminhando para a vio- de investimento afetivo, comprome-
cia que são manifestações, às vezes
lência até física. É a violência moral,
até necessárias, que buscam dimi-
que atinge a autoestima. Existe uma de um processo de reeducação. Mas
nuir a desigualdade? Por isso é im-
questão narcísica, pois todos nós não basta, se não se trabalhar emo-
portante compreender o que chamo
queremos ser, em algum momento, cionalmente as feridas profundas
de violência. Uso um conceito que
principalmente no início da vida, causadas na estruturação do sujeito.
extraí de um livro do professor Ze-
o centro das atenções. Como dizia
ferino Rocha1, chamado Paixão, vio- O ECA não leva em consideração o
Freud2, “sua majestade, o bebê”. Ou
lência e solidão – o drama de Abe- sujeito. Se o camarada está pratican-
seja, a criança nasce e requer uma
lardo e Heloisa no contexto cultural do delito você pode bater porque ele
série de cuidados que vão dar con-
do século XII (Recife: UFPE, 1996). precisa se enquadrar na norma. Não
dições para estruturar uma perso-
Trabalhei com esse texto em minha entra o conceito da formação psico-
nalidade adequada, equilibrada para
tese de doutorado em que juntei His- lógica, a história do sujeito. A pessoa
aprender a lidar com seus amores,
tória e Psicanálise. O professor diz o chegou àquele ponto de delinquên-
suas paixões e suas violências. Isso é
seguinte: “entende-se como violên- cia por um conjunto de fatores. Pode
necessário para poder, assim, anali-
cia em todas as suas formas de ma- até ser genético, mas é a minoria. Há
-
nifestação a força que transgride os outros fatores, como os familiares,
gia.
limites dos seres humanos, tanto na sociais, que se agregam a tudo isso e
sua realidade física e psíquica, quan- Entretanto, essas questões não que a resultante é ele ter virado um
to no campo de suas realizações so- são levadas em consideração, seja delinquente. Simplesmente prender
ciais, estéticas, políticas e religiosas. na família ou na grande sociedade. e punir vai só reforçar a delinquên- 43
É uma força que desrespeita os di- Não levando em consideração essas
reitos fundamentais do ser humano, questões, se abrem feridas profun- com alguma situação de educação,
sem os quais o homem deixa de ser das na estruturação do sujeito, tanto mas não faz parte da lei o conceito
considerado como sujeito de direitos do ponto de vista neuropsicológico psicossocioeducativo. Tudo isso gera
e deveres e passa a ser olhado como e neuroquímico como do ponto de violência.
um puro e simples objeto”. vista simbólico, da organização da
Aliás, o Brasil tem uma frase bonita
atividade simbólica. Se não olhamos
A partir disso, podemos imaginar na sua bandeira: Ordem e Progresso.
para isso, a coisa vai se degenerando.
as consequências do descuido social Estamos vivendo a desordem e da
que existe nas nossas favelas – e aqui desordem vem a violência, em que a
violência não é só negativa. Ela pode
falo de uma questão humanitária. ser um grito de esperança. Se seguir-
Faço questão de deixar isso claro. Veja um exemplo: no Estatuto da mos na linha do Winnicott3, veremos
Uma sociedade que sofre abandono Criança e do Adolescente - ECA exis- que pode ser um grito de esperan-
pelo poder público, como é o caso te uma expressão chamada “medi- ça, porque se alguém está brigando
de uma família em que um jovem das socioeducativas”. Ou seja, o lado por mudar alguma coisa, ainda que
ou criança é abandonado, ou alguém psicológico não consta na lei. O jo- usando um meio errado, se formos
que é abandonado dentro de sua co- vem tem que se adaptar àquilo que a analisar o contexto pelo qual ele está
munidade, ou a comunidade que é brigando – e aqui não estou falando
abandonada dentro da malha social a favor da briga –, perceberemos que
2 Sigmund Freud (1856-1939): neurologista nascido em
do seu estado ou de seu país, acaba Freiberg, Tchecoslováquia. É o fundador da psicanálise. os meios democráticos institucionais
Interessou-se, inicialmente, pela histeria e, tendo como
produzindo uma violência da auto- método a hipnose, estudou pessoas que apresentavam
de diálogo não estão funcionando. E
estima do sujeito. esse quadro. Mais tarde, interessado pelo inconsciente aí vem a violência. Se pegarmos o
e pelas pulsões, foi influenciado por Charcot e Leibniz,
abandonando a hipnose em favor da associação livre.
Estes elementos tornaram-se bases da psicanálise. De-
1 Zeferino de Jesus Barbosa Rocha: falecido em 2016, senvolveu a ideia de que as pessoas são movidas pelo 3 Donald Woods Winnicott (1896-1971): foi um pediatra
foi professor no Programa de Pós-Graduação em Psico- inconsciente. Freud, suas teorias e o tratamento com e psicanalista inglês. Para Winnicott, cada ser humano traz
logia Clínica da Universidade Católica de Pernambuco. seus pacientes foram controversos na Viena do século um potencial inato para amadurecer, para se integrar; po-
Cursou Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana 19 e continuam ainda muito debatidos. A edição 179 da rém, o fato de essa tendência ser inata não garante que ela
de Roma- Itália, mestrado em Filosofia pela Pontifícia Uni- IHU On-Line, de 8-5-2006, dedicou-lhe o tema de capa realmente vá ocorrer. Isto dependerá de um ambiente fa-
versidade Gregoriana de Roma-Itália e doutorado em Psi- sob o título Sigmund Freud. Mestre da suspeita, disponível cilitador que forneça cuidados, sendo que, no início, esse
cologia pela Universidade de Paris X, Nanterre, França. Foi em http://bit.ly/ihuon179. A edição 207, de 4-12-2006, ambiente é representado pela mãe suficientemente boa.
professor de História da Filosofia na Faculdade de Filosofia tem como tema de capa Freud e a religião, disponível em É importante ressaltar que esses cuidados dependem da
do Recife, de Teologia no Seminário Maior de Olinda e no https://goo.gl/wL1FIU. A edição 16 dos Cadernos IHU em necessidade de cada criança, pois cada ser humano res-
Seminário Regional do Nordeste (1952-1965) e de Psica- formação tem como título Quer entender a modernidade? ponderá ao ambiente de forma própria, apresentando, a
nálise na Universidade René Descartes em Paris V. (Nota Freud explica, disponível em http://bit.ly/ihuem16. (Nota cada momento, condições, potencialidades e dificuldades
da IHU On-Line) da IHU On-Line) diferentes. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 518
TEMA DE CAPA

caso individual, teremos um tipo de ganização mais atualizada o jovem é classes sociais e, ainda, observar se
- capaz de passar por muitos transtor- havia possibilidade de atenuar a vio-
vos, teremos outro tipo de história. nos. É diferente quando o jovem vem lência. Usando conceitos psicanalí-
de uma família mais estável. Quando ticos, sociológicos, de autores como
falo estável não quer dizer que não Michel Foucault5, fomos estudar
- haja briga familiar, sempre tem, pois num grupo quais os fatores motiva-
cada sujeito é uma entidade diferen- dores e atenuadores da violência na
te. A discussão faz parte do processo família e na sociedade. Tentamos
de elaboração e do encontro criativo construir um modelo com base nes-
de novos caminhos. Numa famí- ses conceitos para que pudéssemos
Vamos lia onde se conversa, tem diálogo, ver isso na prática.
pensar na linha do artigo que escrevi onde aquele que se excedeu pode ter
Selecionamos três bairros da ci-
há muito tempo, chamado Adoles- a oportunidade de rever o seu pen-
dade de São Paulo que tivessem, no
cência e violência – uma sociedade samento e está levando o outro em
mínimo, uma delegacia, uma escola
carente de pai e mãe4. Tome como consideração, o jovem amadurece de
e um posto de saúde. Se não tiver
exemplo uma família – depois pode- forma mais saudável. O fato de po-
isso não tem estrutura social mínima
mos expandir esse modelo para uma der levar o outro em consideração
para uma vida civilizada, pois é pre-
sociedade, mas vamos tomar uma ajuda que o jovem também leve os
ciso o acolhimento, a ordem e uma
família porque é mais simples – em outros – pais, irmãos etc. – em con-
orientação. Sem educação não con-
sideração.
seguimos fazer nada. Só polícia tam-
casamento mal organizado – quan- bém não adianta, porque eles não
- têm métodos adequados para edu-
os tipos de casamento, indiferente car, têm uma visão repressiva. Em
cada bairro desses escolhemos uma
vínculo. Nascendo dentro desse am- escola particular, uma escola muni-
-
biente conturbado, com pais alcoó- cipal e uma escola estadual para sa-
44 ber se havia diferenças na população
em violências domésticas, abando- e no manejo das situações. O que,
nos, tendo tudo isso precocemen- para cada escola, era compreendido
te ou mesmo antes do nascimento,
será gerada uma relação com os pais a violência? Entre as respostas, ti-
cheia de tensões internas. vemos coisas surpreendentes. Por
Claro. Se exemplo, ver um computador tran-
Existem, nesses casos, ainda, ques-
você, por exemplo, dentro de um eixo cado numa sala porque não tinha
tões que envolvem a violência de
metropolitano, criar lugar onde não dinheiro para pagar a luz ou porque
poder e também de tensão. Numa
há oportunidade, acaba mobilizando ninguém sabia mexer foi entendido
família desorganizada, geralmente a
coisas como inveja, frustração e rai-
autoridade dos pais é vivida de uma
va, e, de outro lado, estimula a oni- estavam sendo privados de um pro-
forma distorcida. Pode caminhar
potência, a prepotência, uma ilusão cesso educacional.
para um autoritarismo, que é mui-
de superioridade que só contribui
to diferente de autoridade. Assim, o Outro grupo de jovens entendeu
poder é exercido de uma forma re- que violência era falta e falha de co-
as partes em choque, promovendo o
pressiva, aniquiladora, e não como municação dentro da escola. O que
antagonismo. Quando se criam situ-
um poder estruturante e organiza- queriam? Um quadro de avisos,
ações mais justas, com oportunida-
dor, acolhedor, que ajuda a pensar, onde pudessem se comunicar com
des com estímulo ao trabalho, pos-
a direcionar, a selecionar. os professores, com a direção, com
sibilidade para que o ser humano se
Ou seja, se essas relações primárias envolva, conquiste e enxergue o ou-
são muito conturbadas, elas vão de- tro – porque ninguém se desenvolve 5 Michel Foucault (1926-1984): filósofo francês. Suas
obras, desde a História da Loucura até a História da sexu-
generar a formação do sujeito. E na sozinho, sempre se depende de uma alidade (a qual não pôde completar devido a sua morte),
situam-se dentro de uma filosofia do conhecimento. Fou-
adolescência isso vem à tona com relação – surge uma possibilidade de cault trata principalmente do tema do poder, rompendo
muita intensidade, porque os núcle- construção mais harmônica. com as concepções clássicas do termo. Em várias edições,
a IHU On-Line dedicou matéria de capa a Foucault: edição
os traumáticos já estavam presentes. 119, de 18-10-2004, disponível em http://bit.ly/ihuon119;
edição 203, de 6-11-2006, disponível em https://goo.gl/
Mesmo que depois tenha havido uma C2rx2k; edição 364, de 6-6-2011, intitulada ‘História da
fase de atenuação, quando chega a loucura’ e o discurso racional em debate, disponível em
https://goo.gl/wjqFL3; edição 343, O (des)governo biopolí-
adolescência, a organização egoica tico da vida humana, de 13-9-2010, disponível em https://
- Nós desenvolvemos um projeto goo.gl/M95yPv, e edição 344, Biopolítica, estado de exce-
ção e vida nua. Um debate, disponível em https://goo.gl/
em São Paulo em que tentamos en- RX62qN. Confira ainda a edição nº 13 dos Cadernos IHU
tender os mecanismos geradores de em formação, disponível em http://bit.ly/ihuem13, Michel
4 A íntegra do texto está disponível em http://bit.ly/2oI- Foucault – Sua Contribuição para a Educação, a Política e a
BO7G. (Nota da IHU On-Line) violência no meio juvenil, em várias Ética. (Nota da IHU On-Line)

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REVISTA IHU ON-LINE

os servidores e mesmo entre os co- visto como violência – e ofertamos


legas. Em outra escola, que era total- a eles um diretor de teatro. Ele aju- crianças que, quando acabam de co-
mente gradeada supostamente para dou os jovens a escrever uma peça mer, recolhem o lixo e não jogam em
se proteger da violência externa, os sobre aquilo que estavam vivendo, qualquer lugar. E se brincaram e dei-
jovens entravam no prédio e só viam como por exemplo, como desper- xaram tudo espalhado, cada um vai
grades. Eram todas as janelas gra- diçavam a comida, jogando-a um ajudar o outro a recolher aquilo que
deadas, no centro de São Paulo, ao no outro. Isso acabou numa gran- -
lado da Sala São Paulo, maior sala de mostra de teatro, tudo foi muito tivo e integração é completamente
de concertos onde a elite cultural e discutido e publicado. diferente. Se temos um conceito de
intelectual frequenta. Era uma esco- articulação e cooperação, todos ire-
Teríamos que transformar isso em
la estadual totalmente cercada para mos nos ajudar. Senão, contribuí-
política pública. Mas aí veio o pro-
proteger os alunos, mas, na verdade,
blema, pois primeiro se avaliava se
os alunos se sentiam excluídos da vivendo: o caos. Aliás, o caos é bom,
isso dá voto, se dá dinheiro – aliás,
sociedade. pois leva a buscar saídas criativas.
não dá nenhum –, se dá visibilida-
Cada um desses grupos que se de etc. Aliás, isso tudo está dentro
formaram, foram nove ao todo, do processo educacional. Quando
precisou identificar os fenômenos se tem uma educação bem organi- -
e estabelecer um projeto que acre- zada com chance para que cada um
ditassem que atenuaria a violên- tenha oportunidade de pensar, de -
cia. E eles tinham que encontrar se posicionar e ver o coletivo, o va-
recursos para executar o projeto lor do sujeito, de o sujeito perceber
que deveria ter começo, meio e o valor do coletivo e vice-versa, as Num cer-
fim. Nesse caso do quadro de avi- coisas mudam. to sentido, sim. Se considerarmos a
sos, os alunos fizeram uma coleta, velocidade, a violência com que os
conseguiram um pedaço de ma- valores mudam, em que as informa-
deira, outro conseguiu tachinhas IHU On-Line – O senhor re- ções são substituídas por outras in-
formações sem que tenhamos a pos-
para pregar a folha de papel, outro 45
tinha uma tinta especial em que se sibilidade de elaborar, de incorporar,
poderia escrever as diversas co- ponderar e analisar, veremos que isso
municações e se organizaram com gera vazios. E esses vazios são preen-
isso. Durante um ano, o que nós chidos cada um à sua maneira. Essa
fazíamos era só ajudar a perceber compulsão pelo uso do celular, da in-
e pensar antes de fazer. - ternet, de um lado atrai e dá prazer,
mas de outro lado gera vazios, porque
Presença e atenção para não tem isso que estamos fazendo
A visão do
agora: dialogar sobre questões que
Estado sobre segurança pública é
nos envolvem.
diferente da que apresentei. Para
Ao fim, era preciso terminar de
mim, o lixo abandonado na rua é Há uma quebra de valores, e como
uma forma que desse uma gra-
novos valores são substituídos mui-
tificação para eles, pois sem gra-
favela com esgoto correndo a céu
tificação não adianta. Poderiam
aberto e as crianças brincando ali que nos alicerçarmos. Quando uma
ser questões como: tirar o lixo da
sujeitas a todo tipo de infecção, é família passa por isso e tem a chance
escola. O que é preciso para ti-
caso de segurança pública. Afinal, de dialogar entre si ou com amigos,
rar esse lixo? Tinha uma parede
nesses casos, você está descon- quando tem a possibilidade de criar
esburacada. O que precisa fazer
siderando o sujeito, agredindo a um campo relacional que permite
para tapar o buraco? E assim por
pessoa. Só que essa pessoa se acos- -
diante. Com isso, eles começaram
tuma a viver naquilo e acha natu- gressivamente novos valores vão se
a perceber que são ouvidos, que
ral. É diferente do índio que vivia criando. Mas quando não tem isso,
tem continência afetiva, que a pa-
na oca, sem esgoto, mas que sabia esse vazio se perpetua. Cada um pre-
lavra deles tem presença, tem uma
usar o rio e o respeitava. Ai dele se enche da maneira mais imediata que
autoridade, um poder, e exemplos
usasse o rio de forma errada, pois estiver à disposição, e aí entram dro-
desse tipo foram ajudando a ate-
dali era aonde caminhava seu esgo- gas, compulsões, vícios, aderências a
nuar a violência.
to e dali ele retirava comida. Mas situações que dão prazeres, mas que
Paralelamente, um outro grupo ele sabia usar, tinha uma ordem. não levam a um processo de trabalho
fez também a leitura do que eles Aqui, nós vivemos numa desor-
entendiam como violência – como dem. Existe a ordem no papel, mas comparação antes de agir. Hoje, pre-
no caso em que um terreno baldio uma desordem na prática e uma valece muito o ter e o fazer. E não o
abandonado ao lado da escola era não integração. ser e o pensar.

EDIÇÃO 518
TEMA DE CAPA

A violência no Brasil e o risco


da tirania dos homens armados
Bruno Manso escrutina as nuances e as transformações
da violência no país nas duas últimas décadas
Ricardo Machado

A
violência que atravessa a história
do Brasil como uma enorme e vi- líderes dessas ações fossem transfe-
sível ferida aberta pode ser expli- ridos para as detenções federais. Isso
cada pelo contínuo processo de exclusão permitiu que esses chefes do crime pas-
a que a população mais pobre é subme- sassem a ter contato permanente e es-
tida. Ela se explica menos pela pobreza, tabelecessem redes para planejar coisas
também histórica, e mais pelas intrinca- em conjunto”, explica.
das e complexas relações entre as popu- Não obstante este cenário, propos-
lações marginalizadas e a truculência de
o acesso à compra de armas, o que,
de janeiro, que matou 12 pessoas e dei- segundo o professor, é uma tentativa
xou outras dez feridas, revela uma nova equivocada. “O controle de armamen-
face da violência no país, infelizmente, tos é fundamental, inclusive a diminui-
46 mais bárbara. “Existe uma peculiarida- ção do porte de armas, pois as armas
de na cena de Fortaleza que assustou são roubadas e essa é a principal fonte
todo mundo. As duas maiores chacinas dos criminosos, as armas que são toma-
de São Paulo nos anos 1990 produziram das dos cidadãos comuns”, analisa. “O
12 mortes cada uma delas e as pessoas
que morreram, segundo os matadores, inteiro para que a tirania de homens
tinham, de alguma forma, provocado armados não prevaleça e crie um retro-
aquele destino. Por mais bárbaro que cesso civilizacional”, complementa.
fosse, existia um certo limite no crime
Bruno Paes Manso é formado em
que costumava ser respeitado. No caso
Economia pela Faculdade de Economia
do Ceará, a morte de oito mulheres, sim-
e Administração da Universidade de São
plesmente, por morarem em um lugar
Paulo - FEA-USP e em Jornalismo pela
associado a outra facção, vai além dos li-
Pontifícia Universidade Católica - PU-
mites que costumavam ser estabelecidos
C-SP. Realizou mestrado e doutorado
pelos criminosos”, pondera o professor
em Ciência Política pela Universidade
e pesquisador Bruno Paes Manso, em
de São Paulo - USP. Atualmente realiza
entrevista por telefone à IHU On-Line.
pesquisa de pós-doutorado no Núcleo
Na entrevista a seguir, o pesquisador de Estudos da Violência da USP sobre
explica como as facções criminosas têm
se organizado no Brasil, cada vez mais, legitimidade. É pesquisador-pleno do
a partir de uma dinâmica nacionaliza- grupo de pesquisa Jornalismo, Direito e
da, produzindo alianças entre grupos Liberdade, ligado à Escola de Comuni-
de diversas regiões. Essa é a ponta do cação e Artes - ECA USP e ao Instituto
iceberg da incompetência dos Estados de Estudos Avançados (USP). Foi visi-
e da União em gerirem tanto a questão ting fellow no Centre of Latin American
da violência social quanto de suas po- Studies da Universidade de Cambridge.
líticas de segurança pública. “As crises A entrevista foi publicada nas Notícias
que passaram a ocorrer nos Estados, do Dia, de 12-3-2018, no sítio do IHU,
que envolviam lideranças criminais, disponível em http://bit.ly/2G80wKa.
-
gas e que lideravam rebeliões e ações

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REVISTA IHU ON-LINE

“Por mais bárbaro que fosse,


existia no crime um certo limite
que costumava ser respeitado”

IHU On-Line – Como enten- delas cresceram a partir dos conta- uma certa dissidência, os Guardiões
tos prisionais, criando novas dinâ- agem junto com o PCC. A partir de
2016 eles têm a oposição do Coman-
PCC chegou fora de São Paulo. do Vermelho, que passa a disputar
Bruno Paes Manso – Para en-
mercado com o PCC, em parceria
tender a violência no Brasil, é preci- Ao mesmo tempo que o PCC em
com a Família do Norte, e a disputar
so pensar na história dos Estados e São Paulo consegue organizar a dis-
territórios.
pensar como essa curva cresceu em tribuição e venda de drogas, dentro
diferentes regiões. Nos anos 1980 e fora das prisões, quando ele chega Existe uma peculiaridade na cena
e 1990, São Paulo e Rio de Janeiro como mais um mercado em outras de Fortaleza que assustou todo
eram os mais violentos do Brasil, regiões acaba desequilibrando a mundo. As duas maiores chacinas
junto com Espírito Santo e Per- de São Paulo nos anos 1990 produ-
nambuco. Os Estados do Nordeste, atores, a polícia e as milícias locais, ziram 12 mortes cada uma delas, e
em ciclos de vingança e embates que as pessoas que morreram, segundo 47
entre os menos violentos. O que produzem o alto número de homicí- os matadores, tinham, de alguma
aconteceu a partir dos anos 2000 foi dios nesses lugares. Essa, contudo, forma, provocado aquele destino.
uma redução das taxas em São Pau- é uma análise mais global e cada Por mais bárbaro que fosse, existia
lo e no Rio, assim como, durante um no crime um certo limite que cos-
período, em Pernambuco e Espírito que deve ser pensada de acordo com tumava ser respeitado. No caso do
Santo, e o crescimento no Nordeste suas lógicas regionais. Ceará, a morte de oito mulheres,
e no Norte, demonstrando uma in- simplesmente por morarem em um
versão nas dinâmicas de variação da lugar associado a outra facção, vai
além dos limites que costumavam
violência. Os Estados do Nordeste a chacina ocorrida recente- ser estabelecidos pelos criminosos.
passaram a liderar o ranking dos ho-
O que se pode ver é uma cena mui-
micídios e os do Sudeste reduziram
to conflagrada que considera as
suas taxas.
pessoas que moram nesses locais
Bruno Paes Manso – As dispu- como inimigos, o que serviria de
que explique essas variações. Trata- tas das facções que levaram a esta justificativa para serem assassina-
se de fenômenos multicausais. Sem chacina é mais uma das cenas liga- dos. Isso é assustador.
dúvida, é importante compreender das ao mercado de drogas. O Ceará Vale lembrar que, para as pessoas
a dinâmica das cenas criminais nos é um Estado estratégico, por causa que se interessam particularmente
diferentes lugares, o que passa tam- do porto de Fortaleza, para o esco- pela questão da violência no Ceará,
bém pelas prisões. A transformação amento da droga para a Europa, a Universidade Federal do Ceará -
da cena criminal e do mercado de então as facções têm trabalhado na UFC tem o Laboratório dos Estados
drogas, que surge a partir de um região desde os anos 2000. O PCC da Violência - LEV e esse grupo tem
novo tipo de gestão nos anos 2000, começou a se expandir nas prisões dado entrevistas sobre o tema e so-
feito pelo Primeiro Comando da do Ceará, principalmente a partir de bre a organização das facções.
Capital - PCC, passou a organizar a 2014, com seus métodos e regras, o
que acabou gerando uma certa re-
- sistência porque o mundo do crime IHU On-Line – Como compre-
cientes e menos brutais, permitindo ender o surgimento do Primei-
que houvesse uma expansão para cultura própria, criando uma dis-
sidência, que são os Guardiões do -
redes para outros lugares. Muitas Estado. Segundo a polícia, apesar de -

EDIÇÃO 518
TEMA DE CAPA

ces de aumento e redução da nesse ambiente muito politizado


e diversificado fez com que o PCC “No caso do
Ceará, houve
criasse uma identidade bastante
Bruno Paes Manso – O PCC só
própria e relacionada com a his-
pode ser compreendido se enten-
dermos a própria história das pe-
riferias de São Paulo e como foram
tória das periferias paulistas. Uma
organização que precisa aprovei- a morte de
estabelecidas as políticas públicas
de segurança. São mais de 20 anos
tar as brechas do sistema e evitar
confrontos com os diferentes gru- oito mulheres,
de histórias e conflitos dentro do
PCC até chegar à estrutura atu-
pos políticos da periferia e com
o próprio mercado, que é muito
simplesmente,
al, que permite uma regulação do forte em São Paulo, para construir
um caminho alternativo.
por morarem
mercado de drogas. As histórias
das periferias de São Paulo são Esse caminho é construído sem- em um lugar
associado a
muito ricas, pois são o berço dos pre em tensão e em resposta a um
movimentos sociais e políticos que convívio com as políticas de segu-
foram muito influentes no Brasil rança pública do Estado, de modo
que o PCC é o efeito e o resultado outra facção”
aos grupos que lutam por habita- dessas políticas. A violência po-
ção, todos tiveram papel importan- licial sempre fez parte da história
te na redemocratização. de São Paulo. O extermínio tanto
Ao mesmo tempo são lugares que das polícias quanto dos justiceiros,
produziram fenômenos importan- nessa juventude urbana que nas-
-
tes como neopentecostalismo. As ceu nesse contexto violento e que
igrejas evangélicas se expandiram se sentia ameaçada pela polícia e
como movimentos de resposta à por essa guerra, transformou o cri- Bruno Paes Manso – São fe-
miséria vivida nesses contextos, me em uma saída honrosa diante nômenos complexos e multicau-
48 como forma de se organizar com da alternativa de viver pobre sendo sais. Existe uma peculiaridade no
um novo vocabulário e uma forma humilhado ou morto. O discurso Nordeste que é o fato de os crimes
do crime começou a tomar corpo, crescerem em um período em que a
e sociais do dia a dia. Essa religio- o PCC aproveitou (e aproveita) região vivia uma conjuntura muito
sidade é algo bastante característico muito essa raiva do Estado e do próspera, relacionados ao acesso à
das periferias das grandes cidades, sistema para unir os criminosos, educação e ao aumento de renda. A
em especial de São Paulo. O próprio isso faz parte, inclusive, do discur- região foi o lugar onde esse tipo de
movimento hip-hop é uma outra so de fundação em que os “irmãos avanço foi mais forte. Então não dei-
grande resposta à criação desses têm que parar de se matar e se unir xa de ser um aparente paradoxo que
bairros de periferia e que, a partir contra o Estado e a polícia”. Eles a fase de mais prosperidade do Nor-
dos anos 1990, passou a construir aproveitam essa revolta para criar deste seja a mesma do aumento da
um discurso sobre o homem perifé- uma solidariedade de grupo e que violência. Esses fenômenos de cres-
rico e sobre a masculinidade dessa passa a ser possível de ser constru- cimento acelerado acontecem, às ve-
- ída por causa das prisões. zes, quando o poder político perde a
tes que sofria muita violência poli- capacidade de exercer o monopólio
O PCC surge primeiro como uma
cial, sem muitas perspectivas eco- legítimo da força em defesa de uma
proposta de solução para produzir
nômicas. A partir dos anos 1990, lei que valha para todos.
uma vida suportável no mundo do
porém, esses grupos passam a criar sistema prisional. As prisões, dos Me parece fazer sentido pensar em
uma identidade. anos 1990 até 2010, saltam de 30 uma hipótese, que vimos acontecer e
Retomando a questão, o crime e mil para 230 mil presos, criando que existe em muitos casos, na qual
o PCC surgem nesse meio e essas um mundo novo atrás das grades,
tiranias armadas começam a sur- onde o PCC aparece como um go- lado em função das drogas e, de ou-
gir como uma alternativa de vida, verno desse mundo, cuja gestão é tro, por conta de uma população em
principalmente para os homens. terceirizada aos presos pelo Es- melhores condições sociais relativas
Contudo elas sempre foram con- tado. A partir dos anos 2000 vai (considerando os anos anteriores)
trapostas a esses outros movimen- para o lado de fora e passa a orga- que passa a ter medo desta cena e
tos – as igrejas e o hip-hop –, que, nizar o mercado de drogas e usar cobrar do poder político, incapaz
de alguma forma, sempre fizeram o dinheiro para financiar a estru- de dar respostas à altura, soluções.
com que o crime organizado res- tura burocrática da organização, Muitas vezes a polícia se vale da vio-
peitasse certos limites. A neces- uma verdadeira agência regulado- lência em uma tentativa de tentar
sidade de conviver e sobreviver ra do crime. exercer o controle. Então a violência

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REVISTA IHU ON-LINE

policial aumenta nesse período, os outros Estados, mas nada disso exis- -
grupos de segurança privada e de ex- tia, é tudo muito novo para nós. vam prejuízo. Com o tempo virou
termínio passam a ser mais frequen- uma fala no crime de que violência
tes, inclusive como uma resposta à produz queda nas vendas. Essas são
sensação de medo que cresce com o formas de diálogo não pela truculên-
aumento da renda e da escolaridade, “O PCC só cia e pela guerra, mas pela estraté-
gia. As próprias Unidades de Polícia
pode ser
uma situação típica da classe média
dos grandes centros.

compreendido
isso, cujo aspecto inteligente é justa-
mente esse, o de reduzir a violência

se entendermos -

- a própria po gravado em São Paulo em que um


-
história das ga paulista que não estão mais em
guerra com os rivais porque senão
Bruno Paes Manso – É muito
difícil de entender a disputa entre
periferias de a polícia ocupa o morro. Toda essa
política, é verdade, desmoronou com
PCC e Comando Vermelho, cujos São Paulo” a prisão dos governadores. A ideia,
desdobramentos só começamos a
compreender inicialmente agora. porém, era muito interessante como
É algo difícil de prever, mas come- medida de emergência para reverter
uma tendência de alta da violência.
-
problemáticos. O que percebemos é - Além disso, tem as questões de
que começam a ser formadas alian- medidas preventivas à violência,
ças e que algumas rivalidades que - relacionadas à educação, trabalho
existiam no Amazonas, por exem- - de egressos do sistema prisional, 49
ações com gangues de jovens sobre a
eventos locais, acabam se espraian- conscientização dos riscos a que eles
do para outros Estados, criando Bruno Paes Manso – São neces- estão expostos, a exemplo do que é
alianças e rivalidades decorrentes de sárias, em um primeiro momento, feito nos Estados Unidos e é muito
um fenômeno que estava isolado a medidas urgentes para estancar as bem sucedido com as gangues de Los
uma localidade. É um efeito dominó curvas em ascensão dos Estados do Angeles e Chicago. Essa tarefa é feita
de uma nova cena criminal brasileira Nordeste e do Norte, esses são os por pessoas que viveram essa reali-
que está nacionalizada. Isso ocorre lugares com maiores problemas e dade e perceberam que é uma gran-
em decorrência dos presídios fede- reverter essa tendência é o primeiro de ilusão, aí eles vão para as comuni-
rais e do convívio de presos de diver- passo. O que alguns países e cidades dades conversar com essas pessoas.
sas regiões, que passaram a conver- têm conseguido e priorizado, como Ainda se pode aproveitar a liderança
sar a respeito de alianças, estratégias medida de emergência, é um tipo de das mães e das mulheres dessas co-
etc. Isso tudo se torna uma espécie policiamento baseado na inteligên- munidades, as próprias igrejas evan-
de guerra fria do crime. Essas apro- cia e na força, focado nos chamados gélicas e católica, fortalecer as redes,
ximações se estabelecem a partir de hot-spots, os bairros mais quentes, diminuir a possibilidade de as comu-
tensões, episódios de grupos e pon- que concentram grande quantidade nidades viverem em silêncio.
de homicídios para eliminar a he-
gemonia dessas tiranias que estão Quando o Estado de Direito deixa
dimensão que basta uma faísca para
matando nesses lugares. Como isso de vigorar, o que resta é a lei do mais
pegar fogo.
costuma ser feito? Às vezes, diante forte e os garotos passam a acreditar
Isso tudo está em pleno processo de que o mais forte é o que sobrevive e
formação. Temos visto isso se repro- são drenados para essa engrenagem
grupos locais, a estratégia adotada é
duzir no Acre, com o PCC se aliando de violência, porque essa se torna a
a ocupação por forças militares, pre-
ao Grupo dos 13, no Ceará da mesma única forma de você se relacionar
judicando a venda de drogas, o lucro
forma. Na Paraíba, o Bonde dos 40 com outros, por meio da imposição
das facções e o dia a dia desses cri-
e no Maranhão, o Primeiro Coman- da força. Quando o Estado perde o
minosos, que vão perceber, com esse
do Maranhense também fazem suas monopólio da força, essa estabilida-
tipo de ação, que a violência produz
alianças estratégicas com as facções
uma reação que pesa no bolso deles.
nacionais, no Rio Grande do Norte reverter isso e lutar o tempo inteiro
a mesma coisa. As cenas locais pas- Em São Paulo isso se chamava de para que a tirania de homens arma-
sam a ter ligações com outros grupos Operação Saturação, em que a po- dos não prevaleça e crie um retroces-
lícia ocupava regiões com muitos so civilizacional.

EDIÇÃO 518
TEMA DE CAPA

um castigo mais duro e são, de al- muito intenso entre a população,


- guma forma, anuladas nos Estados que envolve questões políticas, mas
de origem, mas, em compensação, também crimes comuns.
- passaram a fazer contato com outras
A violência, a gente percebe, é algo
muito fácil de se espalhar e de se
nacional, como mencionei na per- multiplicar diante de desequilíbrios
gunta acima. sociais e territoriais, quando gru-
Bruno Paes Manso – As po-
líticas de segurança pública têm pos armados tentam se impor em
produzido esses efeitos colaterais determinadas localidades e outros
imprevisíveis que não se imagina
em um primeiro momento, mas
“As histórias grupos tentam se defender. Essa de-
fesa é norma, mas dá início a ciclos
que se revela depois, quando o erro
já foi praticado. O ministro Márcio
das periferias de vingança que se tornam possíveis
pela possibilidade de armamento da
Thomaz Bastos, ainda no primei- de São Paulo população. Dar a facilidade a jovens
ro governo Lula, implementou os imaturos de impor uma liderança
presídios federais para que a União são muito ricas” porque têm a disponibilidade de ar-
pudesse ajudar os Estados a lida- mas é o que tem feito bairros de For-
rem com os criminosos mais pe- taleza, por exemplo, entrarem em
rigosos. Havia a ideia de fazer um IHU On-Line – Parlamenta- instabilidade permanente.
sistema mais amplo, mas acabou
O controle de armas é fundamen-
ficando somente em quatro pre- - tal para diminuir o risco de confla-
sídios federais. As crises que pas-
gração e disputas entre grupos ar-
saram a ocorrer nos Estados, que
mados, que podem ser socialistas
envolviam lideranças criminais, - versus antissocialistas ou grupos
com o fortalecimento do tráfico de
de vendas de drogas versus segu-
drogas e que lideravam rebeliões e
ranças privados, ou, até mesmo, ri-
50 ações fora dos presídios, como ata-
Bruno Paes Manso – Esse tema vais da disputa do mercado de dro-
ques a ônibus, fizeram com que os
é tão discutido e polarizado, onde gas. Independente da ideologia, a
líderes dessas ações fossem trans-
aparecem até robôs virtuais do lo- facilidade de se armar permite que
feridos para as detenções federais.
bby das indústrias de armas, onde tiranias se estabeleçam e passem a
Isso permitiu que esses chefes do
parece um debate entre dois grupos impor as regras dessas localidades.
crime passassem a ter contato per-
muito associados a determinadas Isso é o que tem acontecido em vá-
manente e estabelecessem redes
ideologias ou ideias. Contudo, tra- rios lugares da América Latina e
para planejar coisas em conjunto.
ta-se de um assunto muito prático faz com que as taxas de homicídios
e claro para quem vive esse drama disparem.
documentado, no Rio Grande do da violência, muito comum nos pa- O controle de armamentos é fun-
Norte, do Sindicato do Crime, que íses da América Latina. Basta ver a damental, inclusive a diminuição
era ligado à Família do Norte, do situação da Venezuela, por exemplo, do porte de armas, pois as armas
Amazonas, e teve contato nos presí- onde a população acabou sendo ar- são roubadas e essa é a principal
dios federais com as lideranças de lá
fonte dos criminosos, as armas que
e acabou se tornando uma liderança por incentivo do então presidente são tomadas dos cidadãos comuns.
no crime da região. Há outros exem- Hugo Chaves. Ironicamente, Bolso- Hoje cada vez mais existe uma rota
plos de Norte a Sul do Brasil, em naro o elogiou quando foi eleito, pois importante de importação e con-
Santa Catarina, por exemplo, há o
era militar e defendia o armamento trabando de armas. As batidas que
Primeiro Grupo Catarinense.
da população, mas a Venezuela se as polícias se esforçam em fazer
O presídio federal ajuda a isolar e tornou o país mais violento do mun- são muito importantes como polí-
diminuir a liderança dessas pessoas do. Lá estão as maiores taxas de ho- tica pública para tentar prevenir a
em seus Estados, elas passam por violência.

26 DE MARÇO | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

Na segurança, direita e esquerda


insistem no que não funciona
Para Marcos Rolim, ao amontoar pessoas em masmorras,
o Estado abriu mão do controle sobre a execução das penas
e permitiu o surgimento das facções prisionais
Vitor Necchi

O
Brasil ocupa a terceira posição entretanto, não decorre da lei, mas da
na lista de países com maior ausência da prova.” Para o especialis-
número de pessoas encarcera- ta, “o problema da impunidade é um
das, com mais de 750 mil presos. Para problema de polícia, não de legislação”.
Marcos Rolim, chegou-se a esse ponto Por exemplo: apenas 10% dos homici-
por conta da política criminal. “Ela é lar-
gamente inspirada no modelo norte-a-
mericano de encarceramento em massa
Rolim se mostra favorável à criação de
e está assentada em posições equivoca-
um Ministério da Segurança Pública,
das”, explica. O resultado, no entanto,
“mas essa estrutura deveria ser concebida
é negativo. “Ao amontoar milhares de
de modo a ser o núcleo dinâmico de um
pessoas em masmorras, normalmente
processo de profundas reformas na segu-
por conta de crimes sem violência real,
o Estado abriu mão do controle sobre
rança”. No entanto, o que se presencia é 51
uma estrutura para consagrar a atual es-
a execução das penas, o que permitiu o
surgimento das facções prisionais.” trutura da segurança. “Essa, aliás, parece
ser nossa sina na área da segurança, repe-
A atual política de drogas é determi- tida pela direita e pela esquerda: insistir
nante para se entender a expressivida- naquilo que não funciona”, critica.
de da população carcerária. “Suspeitos
são presos no Brasil, como regra, não Marcos Rolim é doutor e mestre em
como resultado de investigações, mas Sociologia pela Universidade Federal do
- Rio Grande do Sul - UFRGS, especialista
lho da Polícia Militar se restringe aos em Segurança Pública pela Universida-
delitos praticados nas ruas, basicamente de de Oxford e jornalista pela Universi-
os crimes contra o patrimônio (furtos e dade Federal de Santa Maria - UFSM. É
roubos) e os crimes de drogas. “Os pre- presidente do Instituto Cidade Segura
- e membro do Conselho Administrativo
do Centro Internacional de Promoção
dos Direitos Humanos (Unesco). Autor,
do negócio.” Rolim é taxativo: “Nossos entre outros, de A Síndrome da Rainha
presídios são máquinas de ampliação e Vermelha, policiamento e segurança pú-
agravamento das dinâmicas criminais”. blica no século XXI (Zahar) e A Forma-
Há um equívoco na crença de que ção de Jovens Violentos, estudo sobre a
penas mais duras desencorajariam po- etiologia da violência extrema (Appris).
tenciais criminosos. “A impunidade,

IHU On-Line – O Brasil ocupa Marcos Rolim – Chegamos a esse do Direito Penal que integram o sen-
a terceira posição na lista de ponto por conta de nossa política cri- so comum e são compartilhadas pela
minal. Ela é largamente inspirada no maioria dos operadores do Direito e
pessoas encarceradas (mais de modelo norte-americano de encarce- pelos políticos. Segundo essa visão,
- ramento em massa e está assentada prender seria a melhor forma de re-
em posições equivocadas a respeito duzir o crime, por conta do alegado

EDIÇÃO 518
TEMA DE CAPA

“efeito dissuasório” da pena. Na prá- criminais para os presos, agravando -


tica, as coisas não funcionam assim. o quadro geral de insegurança.
Ao amontoar milhares de pessoas
Marcos Rolim – Os efeitos são
em masmorras, normalmente por
objetivamente um critério para se todos criminogênicos. Vale dizer:
conta de crimes sem violência real, o
- nossos presídios são máquinas de
Estado abriu mão do controle sobre
dores. Em vários países, a legislação ampliação e agravamento das dinâ-
a execução das penas, o que permi-
estabelece uma quantidade de droga micas criminais. O tempo de cárcere
tiu o surgimento das facções prisio-
no Brasil, que deveria ser empregado
nais. Prender mais, nesse quadro, é
assim como há outros limites para para a alfabetização, instrução e pro-
uma receita infalível para aumentar
o crime e a violência. Não por outra - vida real, um espaço de “associação
razão, os EUA estão reduzindo suas tivamente por policiais, promotores diferencial” com as facções. Manter
taxas de encarceramento. No Brasil,
essa dinâmica equivale a contratar
elas só aumentam.
violência futura.
quantidade de droga ilícita, ele será
considerado obviamente um usuá-
-
IHU On-Line – Quais as chan-
determinante para se entender

IHU On-Line – O encarcera- Marcos Rolim – Não temos


- pesquisas no Brasil que tenham se
Marcos Rolim – Sim. Suspeitos
dedicado ao tema da desistência
são presos no Brasil, como regra,
criminal. A própria expressão é des-
não como resultado de investiga-
conhecida entre nós, em que pese a
Marcos Rolim – Os presos bra- existência de uma impressionante
52 sileiros são, em sua grande maioria, tradição de pesquisas criminológicas
– que os policiais testemunharam o muito jovens e muito pobres. Os ne- sobre o fenômeno em todo o mundo.
cometimento do crime e prenderam gros estão sobre-representados, e a No Brasil, falamos em reincidência
população carcerária é semialfabeti- criminal, mas não em seu contrário,
referem os noticiários é o presumi- zada. O modelo de polícia que temos que é a desistência criminal. Isso
do, aquele que ocorre até 24 horas determina a extração social dos que ocorre porque não acreditamos que
após o fato delituoso. Dizer que al- serão presos, porque os crimes de co- as pessoas sejam capazes de mudar.
- larinho branco não são cometidos na
ca que a polícia deteve um suspeito - Contra todas as evidências, se ima-
grados. Para se chegar aos bandidos gina que pessoas que cometeram
muito diferente de provas. ricos e poderosos, é preciso investiga- delitos jamais irão se submeter à lei.
ção de alta complexidade. O sistema A grande maioria das pessoas envol-
A maior polícia que temos é a mili-
que temos não seleciona os crimes vidas com práticas criminais como o
tar. Pelo nosso modelo de polícia, as
PMs estão proibidas de investigar. praticados pelas elites, e essa é a ra-
zão pela qual a grande maioria dos outra vida. O fato é que não oferece-
Por isso, elas só podem efetuar pri-
policiais nunca irá prender um ban- mos aos egressos do sistema prisional
dido rico. A exceção a essa tradição qualquer chance. Quando isso é feito,
trabalho das PMs aos delitos que são
foi inaugurada há alguns anos pela os resultados são surpreendentes.
praticados nas ruas, basicamente os
crimes contra o patrimônio (furtos Polícia Federal, com os resultados No Rio Grande do Sul, a experiên-
e roubos) e os crimes de drogas. Os que conhecemos e que estão mudan- cia com o Programa Oportunidade e
- do a realidade política brasileira. Não Direitos - POD Socioeducativo, com
por acaso, a Polícia Federal é a úni- os egressos da Fase [Fundação de
ca polícia brasileira que possui “ciclo Atendimento Socioeducativo do Rio
são os donos do negócio, os respon- Grande do Sul], evidencia as extra-
mesmo de todas as polícias modernas ordinárias possibilidades da preven-
que atuam na prevenção, asseguram
lavagem de dinheiro etc. Os peque- ção terciária. Uma avaliação inicial
a ordem democrática, investigam, co-
do programa revelou que de cada
lhem provas e efetuam prisões.
que é substituída com muita facili- cem jovens egressos da Fase que fre-
dade, de modo que essas prisões não quentaram o POD de seis meses a um
ano, 92 desistem do crime. Então, o
Elas fortalecem as facções, entretan- -
to, e agenciam novas oportunidades ces dos encarcerados se afastarem

26 DE MARÇO | 2018
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do crime são pequenas por conta do oferecida pela Justiça Restaurativa, caracterizam essa exceção. Segun-
estigma social, que suprime alterna- empregada em todo o mundo e, até do o artigo 312, é possível a prisão
hoje, ignorada pela legislação brasi- preventiva quando ela for necessária
tornar muito expressivas diante de leira. para garantir a ordem pública ou a
uma política pública efetiva de apoio ordem econômica, por conveniência
ao egresso, algo que nunca tivemos. da instrução criminal, ou para asse-
gurar a aplicação da lei penal. Tais
IHU On-Line – Crimes de
expressões, entretanto, são genéri-
cas e têm sido empregadas de forma
IHU On-Line – O senso co-
- descriteriosa pelo Poder Judiciário.
-
O que deveria ser exceção, então,
para conter a criminalidade. estão lotados de criminosos de virou regra e, atualmente, cerca de
menor periculosidade. Isso não 40% dos presos brasileiros estão en-
carcerados por conta de preventivas.
Marcos Rolim – Há um raciocí- Há um entendimento na jurispru-
nio mágico nessa demanda por “en- Marcos Rolim – Trata-se de uma dência de que as prisões preventivas
durecimento penal”. Observe que as das maiores distorções de nosso sis- não deveriam ultrapassar os 81 dias,
pessoas imaginam que penas mais tema. O Rio Grande do Sul possui, tempo considerado razoável para
“duras” desencorajariam potenciais atualmente, quase 40 mil presos. conclusão do inquérito e para o jul-
criminosos. Na verdade, pouco im- Desse total, uma pequena parcela, gamento. É muito comum, entretan-
porta a gravidade das penas se os em torno de 4%, é composta por to, que pessoas sejam mantidas em
autores contarem com a impunida- condenados por homicídio. O que
de. A impunidade, entretanto, não ocorre é que crimes como homicídio excesso de prazo tem sido frequente.
decorre da lei, mas da ausência da e estupro, que estão entre os mais
prova. Logo, o problema da impuni- graves, demandam investigações de
dade é um problema de polícia, não maior fôlego. Como não temos uma
de legislação. De que adiante au- política de segurança que organize a IHU On-Line – No Rio Grande
mentar, por exemplo, as penas para atividade policial com esse foco, boa - 53
homicídio se apenas 10% dos mata- parte dos casos de homicídio sequer
é investigada. Isso porque as vítimas
no Brasil? Os poucos homicidas que são quase sempre excluídas social- Marcos Rolim – O Rio Grande
forem presos passarão mais tempo mente e não há uma pressão social do Sul nunca teve uma política de
encarcerados, mas 90% deles segui- pelo esclarecimento. Para piorar o segurança pública. O que ocorre,
rão impunes. quadro, há quem acredite que homi- então, é que as polícias atuam sem
cídios praticados na guerra dos gru- uma referência que lhes oriente, sem

uma boa notícia, o que torna a reali- Os secretários de Segurança Pública


dade ainda mais bizarra. são reféns das corporações e atuam
de forma a não contrariar seus in-
Marcos Rolim – Sim. A alternati- teresses. Em geral, são pessoas sem
va seria a de reservar as prisões para formação na área e sem capacidade
-
os crimes mais graves, como os cri- política de construir um caminho
mes contra vida e contra a liberdade consistente de reformas. Sem rumo,
sexual. No caso brasileiro, penso que as polícias fazem o que acham que
deveríamos agregar a essa lista tam- devem fazer e isso se resume, basica-
bém os crimes de corrupção. Os de- Marcos Rolim – A regra bási- mente, à missão de efetuar prisões.
mais delitos deveriam receber penas ca do processo penal é a liberdade.
socialmente úteis, e muitas condutas Todos deveríamos lembrar sempre Pouco importa a qualidade dessas
- isso, porque se trata de uma garantia prisões, o impacto que isso poderá
tadas no âmbito do Direito Civil. A civilizatória. Por conta dela, nenhum -
maioria dos países europeus tem se de nós poderá ser encaminhado a ciência do encarceramento etc. O
orientado por esse caminho e apos- um presídio apenas porque houve que importa é prender. Então temos
tado bastante nas penas alternativas uma acusação. Pessoas acusadas, aplicado essa receita e prendemos
à prisão. Há mecanismos que podem como regra, devem responder em cada vez mais. Nunca, entretanto,
- liberdade porque são inocentes até estivemos tão inseguros. Isso tem a
ponsabilização dos autores de certos que se prove o contrário. As prisões ver com a realidade da execução pe-
tipos de crimes e que evitam os efei- cautelares são uma exceção a essa nal. Quando passamos a prender em
tos criminogênicos do cárcere. Esse regra. O Código de Processo Penal galerias, não mais em celas – o que
é, por exemplo, o caso da abordagem estabelece quais as situações que já ocorre há décadas –, perdemos

EDIÇÃO 518
TEMA DE CAPA

qualquer possibilidade de assegurar arquitetônica absurda e perigosa de disposição para reformas deve-
uma execução penal decente. Pelo (especialmente insegura em caso de rão conduzir a experiência a inicia-
contrário, o Estado permitiu que as incêndio), que custou uma fortuna e tivas inócuas de presença militar em
facções controlassem os presídios não tratou do básico como educação
em uma verdadeira parceria públi-
co-privada. O acordo explícito foi: ano e que terá custado centenas de
vocês não se amotinam, nem orga- milhões de reais.
nizam fugas e nós permitimos que
IHU On-Line – Como o senhor
vocês toquem seus negócios aqui
-
dentro. Neste ponto, o discurso em
favor do endurecimento penal mos-
-
tra sua verdadeira face, a da capitu-
lação diante do crime. -
Marcos Rolim – Sou favorável à
criação de um Ministério da Segu-
Marcos Rolim – Todos os indí- rança Pública, mas essa estrutura
IHU On-Line – Frente ao caos
cios apontam para uma manobra deveria ser concebida de modo a ser
política do governo Temer1 voltada o núcleo dinâmico de um processo
Marcos Rolim – Precisamos mu- à tentativa de lhe conferir alguma de profundas reformas na seguran-
dar o Código Penal no sentido de um aprovação popular. O próprio gene- ça. Caberia ao Ministério propor,
Direito Penal Mínimo, reduzindo a ral Braga Netto2, nomeado como in- por exemplo, a criação de uma Ins-
demanda por encarceramento. Ao petoria Nacional das Polícias, capaz
mesmo tempo, teríamos que criar coletiva de imprensa que não havia de exercer o controle externo sobre
novos mecanismos de responsabili- plano algum, e que eles iriam “pen- -
zação e muitas outras modalidades sar no que fazer”. A intervenção po- ção de uma Escola Nacional de Po-
de penas alternativas, entre elas a deria fazer sentido se o objetivo fosse lícia, para formar uma nova geração
pena de restrição de liberdade (com limpar as polícias do Rio, historica- de gestores em segurança pública no
54 - -
mente relacionadas com o crime
culação ao condenado em casos de organizado, particularmente com as cional de Pesquisas em Segurança,
crimes de menor gravidade). Pre- milícias que controlam 167 favelas para medir resultados em políticas
cisaríamos investir em uma nova onde moram mais de 2 milhões de públicas na área e encontrar evidên-
arquitetura prisional, para uma pessoas. O improviso e a ausência cias que orientem o policiamento.
execução penal modelar, com celas O que estamos presenciando é algo
individuais, como determina a lei. 1 Michel Temer [Michel Miguel Elias Temer Lulia] (1940): completamente diverso. O novo ór-
político e advogado nascido em Tietê (SP), ex-presidente
É incrível que tenhamos chegado ao do Partido do Movimento Democrático Brasileiro – PMDB.
gão será um “ministério provisório”
ponto de considerar a Pecan [Peni- É o atual presidente do Brasil, após a deposição por im- vocacionado exatamente para que
peachment da presidenta Dilma Rousseff naquilo que
tenciária Estadual de Canoas] um inúmeros setores nacionais e internacionais denunciam a atual estrutura da segurança se
“presídio modelo”, quando se trata como golpe parlamentar. Foi deputado federal por seis consagre. Teremos, então, mais do
legislaturas e presidente da Câmara dos Deputados por
do único presídio brasileiro que foi duas vezes. (Nota da IHU On-Line) mesmo. Essa, aliás, parece ser nossa
2 Walter Souza Braga Netto (1957): general de exército
planejado para ser superlotado, com do Exército Brasileiro, nascido em Belo Horizonte. É o atual sina na área da segurança, repetida
celas para oito presos. Um verdadei- Comandante Militar do Leste e, desde fevereiro até 31 de pela direita e pela esquerda: insistir
dezembro de 2018, o interventor federal na Segurança Pú-
ro pardieiro, com uma concepção blica do Rio de Janeiro. (Nota da IHU On-Line) naquilo que não funciona.

Leia mais
As alternativas às políticas de encarceramento em massa do Estado brasileiro. Publica-
do nas Notícias do Dia de 17-3-2018, no site do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponí-
vel em https://goo.gl/CTfbo3.
Toda noção de supremacia é tradução da ignorância. Entrevista especial com Marcos Ro-
lim, publicada na revista IHU On-Line nº 510, de 4-9-2017, disponível em https://goo.gl/PmeyjK.
Mecanismos de controle policial não funcionam. Entrevista especial com Marcos Rolim,
publicada na revista IHU On-Line nº 497, de 14-11-2016, disponível em https://goo.gl/DRi5dQ.
O RS não possui política de segurança pública. Entrevista especial com Marcos Rolim, publi-
cada na revista IHU On-Line nº 293, de 18-5-2009, disponível em https://goo.gl/w1iQAA.

26 DE MARÇO | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

A impossível superação da violência


sem o combate às injustiças
Marcos Sassatelli analisa os arranjos estruturais da desigualdade
que colocam em marcha uma sociedade latente de violência
João Vitor Santos | Edição: Ricardo Machado

H
á um tipo de violência que, de a violência, a maior violência”, ressal-
tão cotidiana, não estampa as ta. O entrevistado aborda criticamente
manchetes de jornais. O frei a proposta da Campanha da Fraterni-
dominicano Marcos Sassatelli chama dade de 2018 de discutir a violência.
- “O Texto-Base da Campanha da Fra-
ca com a provocação: “Quantas pessoas -
morrem todo dia por falta de atendi- santes, mas é bastante genérico e não
mento médico e por falta de vagas na aprofunda o tema central da questão da
UTI no Brasil e no mundo. É, na prá- violência, que é a violência estrutural.
tica (mesmo que não o seja na teoria), Não é um texto profético e parece que
a pena de morte institucionalizada e tem medo de falar a verdade”, pondera.
legalizada”. Em entrevista por e-mail “Sem justiça não há superação da vio-
à IHU On-Line, Sassatelli comenta so- lência e sem superação da violência não
bre os processos de desigualdade, que
produzem uma das formas mais hege-
há fraternidade”, complementa. 55
mônicas de violência, a injustiça. “A Marcos Sassatelli, frade dominica-
desigualdade é uma situação de injus- -
tiça e toda situação de injustiça é uma sidade de São Paulo - USP e em Teolo-
violência estrutural permanente, mani- gia Moral (Assunção - SP). É professor
festa-se de diferentes maneiras e com -
diversos rostos”, pontua. de Federal de Goiás - UFG. Assessora
e participa de CEBs, Pastorais Sociais e
“Portanto, a violência não é ‘resultan-
Ambientais, e Movimentos Populares.
te da desigualdade econômica’, mas é a
própria desigualdade econômica que é

- ciosa, que exclui, descarta e mata uma coisa”, independente do indi-


24 horas por dia. Do ponto de vista víduo, exterior e que se impõe a ele.
ético, podemos chamá-la “um mal
Marcos Sassatelli – Em nosso Portanto, o “mal moral social ou
tempo, a violência é uma constan- moral social ou estrutural” (em lin- estrutural”, o “pecado social ou es-
te. Fundamentalmente, temos dois trutural” é “um mal humano que
tipos de violência: a violência social social ou estrutural” (em linguagem adquire uma existência exterior à
ou estrutural e a violência individual teológica). consciência dos indivíduos, impon-
ou pessoal. Para entendermos o que é “mal do-se a ela. É exatamente a isso que
moral social ou estrutural”, “pecado aludimos quando falamos de ‘estru-
A violência social ou estrutural
social ou estrutural”, devemos en- turas de pecado’. As estruturas não
não é uma simples dimensão (ou re-
- são coisas, mas um modo de relação
percussão) social da violência indi-
entre coisas” (BOFF, C. O pecado so-
vidual, mas uma realidade objetiva,
“É fato social toda maneira de fazer, cial, em “REB” 148 (1977) 675-701).
institucionalizada e legalizada, que
adquiriu uma consistência própria A violência individual ou pessoal
e independe da consciência ou não sobre o indivíduo uma imposição é todo tipo de violência entre pes-
das pessoas. É uma violência silen- externa”. Assim, o “social” é “como soas, famílias e grupos. É uma vio-

EDIÇÃO 518
TEMA DE CAPA

lência direta, que – por sua visibi- - no divino sobre a vocação integral
lidade imediata – assusta e choca ma podemos compreender as do ser humano. E por isso orienta
as pessoas, sobretudo quando mata a mente para soluções plenamente
3
friamente. - humanas” (Concílio Vaticano II .
A Igreja no mundo de hoje - GS,
Não podemos esquecer, porém, que a
Marcos Sassatelli – Adquirindo 11). “O mistério do ser humano só
violência estrutural é muito mais grave
uma consciência crítica da realidade se torna claro verdadeiramente no
e mata muito mais gente. Por exemplo
e entendendo como funciona o siste- mistério do Verbo encarnado. (…)
– só para citar uma situação de violên-
ma capitalista: um sistema estrutu- Cristo manifesta plenamente o ser
cia estrutural –, quantas pessoas mor-
ralmente violento e perverso. O Papa humano ao próprio ser humano e
rem todo dia por falta de atendimento
Francisco lembra-nos de que a idola- lhe descobre a sua altíssima voca-
médico e por falta de vagas na UTI no
tria do dinheiro mata e que, quando ção” (GS, 22). “Todo aquele que
Brasil e no mundo. É, na prática (mes-
as pessoas se tornam escravas do di- segue Cristo, o Homem perfeito,
mo que não o seja na teoria), a pena de
morte institucionalizada e legalizada. nheiro, perdem o sentido da existên- torna-se ele também mais ser hu-
cia e vivem para adorar o dinheiro e mano” (GS, 41).
Sem querer negar – a não ser em para fazer dele o seu deus.
casos patológicos – a responsabili- Os cristãos e cristãs devem ser es-
dade individual das pessoas, embora 4
“situada e datada” (ou seja, histori- – diz o teólogo Hans Küng – ser
camente condicionada), a violência radicalmente seres humanos. Ora,
estrutural é, em grande parte, a cau- como o ser humano é parte inte-
-
sa principal das diversas formas de grante da natureza e a natureza é
violência pessoal. também ser humano, não podemos
- separar o ser humano da natureza e
Como já disse no meu artigo sobre a natureza do ser humano. É por isso
a Campanha da Fraternidade 2018, que o cristianismo deve ser um hu-
a violência estrutural, na sociedade Marcos Sassatelli – Historica- manismo natural e um naturalismo
56 e também na Igreja (que é parte in- mente falando, as Igrejas e Institui- humano radical.
tegrante da sociedade), se manifes- ções religiosas sempre foram e conti-
ta de muitas maneiras e tem vários nuam sendo contraditórias. Às vezes O humano natural e o natural hu-
rostos.
1
– por terem uma visão crítica da mano é, pois, o ético. Portanto, pode-
realidade e de sua missão no mundo mos dizer que o comportamento ético
– tornam-se uma força libertadora e
3 Concílio Vaticano II: convocado no dia 11-11-1962
pelo papa João XXIII. Ocorreram quatro sessões, uma em
vezes, por terem uma visão ingênua cada ano. Seu encerramento deu-se a 8-12-1965, pelo
papa Paulo VI. A revisão proposta por este Concílio estava
da realidade ou por interesses insti- centrada na visão da Igreja como uma congregação de fé,
substituindo a concepção hierárquica do Concílio anterior,
Marcos Sassatelli – Fazendo tucionais não sempre transparentes, que declarara a infalibilidade papal. As transformações
tornam-se uma força conservadora, que introduziu foram no sentido da democratização dos
uma análise histórico-crítica do sis- ritos, como a missa rezada em vernáculo, aproximando
tema (sócio-econômico-político-e- que serve para legitimar – muitas a Igreja dos fiéis dos diferentes países. Este Concílio en-
controu resistência dos setores conservadores da Igreja,
cológico-cultural) em que vivemos e vezes, em nome de Deus – uma so- defensores da hierarquia e do dogma estrito, e seus fru-

tendo consciência que o ser humano ciedade desigual, injusta e violenta. tos foram, aos poucos, esvaziados, retornando a Igreja à
estrutura rígida preconizada pelo Concílio Vaticano I. A
revista do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, publicou
é capaz de construir novos espaços Hoje, nas Igrejas e Instituições re- na edição 297 o tema de capa Karl Rahner e a ruptura
e abrir novos caminhos, que – a ligiosas, há muita falta de interesse, do Vaticano II, de 15-6-2009, disponível em https://goo.gl/
GVTuEO, bem como a edição 401, de 3-9-2012, intitulada
médio e longo prazo – levem à mu- muita indiferença e muita omissão a Concílio Vaticano II. 50 anos depois, disponível em https://
goo.gl/5IsnsM, e a edição 425, de 1-7-2013, intitulada O
dança do sistema. Como diz o Papa respeito dos grandes problemas da Concílio Vaticano II como evento dialógico. Um olhar a par-
2
Francisco , este sistema ninguém sociedade e do mundo. São Igrejas tir de Mikhail Bakhtin e seu Círculo, disponível em https://
goo.gl/8MDxOM. Em 2015, o Instituto Humanitas Unisinos
suporta mais. – IHU promoveu o colóquio O Concílio Vaticano II: 50 anos
depois. A Igreja no contexto das transformações tecnocien-
fechadas sobre si mesmas, sem pro- tíficas e socioculturais da contemporaneidade. As repercus-
1 Para saber mais, ler o artigo Campanha da Fraternidade fecia, sem compromisso e com medo sões do evento podem ser conferidas na IHU On-Line 466,
2018 - A utopia de Jesus: “vocês são todos e todas irmãos de 1-6-2015, disponível em https://goo.gl/LiJPrZ. (Nota da
e irmãs”, disponível em http://bit.ly/2GZQiYb. (Nota do de falar a verdade. Não são – como IHU On-Line)
entrevistado) 4 Hans Küng (1928): teólogo suíço, padre católico desde
2 Papa Francisco (1936): argentino filho de imigrantes deveriam sê-lo – Igrejas “em saída”, 1954. Foi professor na Universidade de Tübingen, onde
italianos, Jorge Mario Bergoglio é o atual chefe de estado luz do mundo, sal da terra e fermento também dirigiu o Instituto de Pesquisa Ecumênica. Foi
do Vaticano e Papa da Igreja Católica, sucedendo o Papa consultor teológico do Concílio Vaticano II. Destacou-se
Bento XVI. É o primeiro papa nascido no continente ameri- na massa. por ter questionado as doutrinas tradicionais e a infalibi-
cano, o primeiro não europeu no papado em mais de 1200 lidade do Papa. O Vaticano proibiu-o de atuar como teó-
anos e o primeiro jesuíta a assumir o cargo. A edição 465 Para os que são realmente cristãos logo em 1979. Nessa época, foi nomeado para a cadeira
da revista IHU On-Line analisou os dois anos de pontifi- de Teologia Ecumênica. De 21 a 26 de outubro de 2007
cado de Francisco. Confira em http://bit.ly/1Xw2tgu. Leia, e cristãs, discípulos missionários e aconteceu o Ciclo de Conferências com Hans Küng - Ciên-
ainda, a edição Amoris Laetitia e a ‘ética do possível’. Limi- cia e fé – por uma ética mundial, com a presença de Hans
tes e possibilidades de um documento sobre ‘a família’, hoje, discípulas missionárias de Jesus de Küng, realizado no campus da Unisinos. Confira no sítio
disponível em http://bit.ly/1SseNSc e a edição O ECOme- Nazaré, “a fé esclarece todas as coi- do IHU, em http://migre.me/R0s7, a edição 240 da revista
nismo de Laudato Si’, disponível em http://bit.ly/1S6Luik. IHU On-Line, de 22-10-2007, intitulada “Projeto de Ética
(Nota da IHU On-Line) sas com luz nova. Manifesta o pla- Mundial. Um debate”. (Nota da IHU On-Line)

26 DE MARÇO | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

do ser humano é o comportamento ta saber se temos coragem de fazer


mais humano natural e mais natural isso. A “desobediência civil e religio-
humano possível numa determinada sa” pode ser praticada por meio de
situação histórica concreta. gestos proféticos pessoais (mesmo -
tendo que enfrentar perseguições
e cadeias) ou, quando possível, por
IHU On-Line – O senhor de- meio de manifestações públicas de
Movimentos Sociais Populares orga-
Marcos Sassatelli – As es-
nizados.
tratégias do Estado de combate à
violência, apenas na perspectiva
Marcos Sassatelli – Porque a pessoal, são medidas paliativas
IHU On-Line – Que caminhos
desigualdade é uma situação de in- que – mesmo resolvendo ou ame-
justiça e toda situação de injustiça nizando a situação de alguns casos
é uma violência estrutural perma- concretos – servem para enganar
nente, manifesta-se de diferentes o povo, mantendo-o submisso aos
maneiras e com diversos rostos. A interesses dos detentores do poder
violência estrutural é a maior violên- econômico. No campo da violência
-
cia e é também a principal causa das estrutural não podemos esperar
violências pessoais (somente nesse nada do Estado. Por ser aliado e
sentido, podemos dizer que a desi- defensor dos interesses financeiros
gualdade – como violência estrutu- Marcos Sassatelli – Para se das empresas multinacionais – os
ral – “gera” violências pessoais). compreender a violência estrutural esteios do sistema capitalista neo-
e pessoal do nosso tempo, a teo- liberal –, o Estado é o agente prin-
Portanto, a violência não é “re-
sultante da desigualdade econô- cipal da violência estrutural.
pesquisas, deve vivenciar o método
mica”, mas é a própria desigualda-
(caminho) “ver-julgar-agir” (“ana-
de econômica que é a violência, a -
maior violência. O Texto-Base da
lisar-interpretar-libertar”) e “cele- 57
brar”. Não precisaria nem dizê-lo,
Campanha da Fraternidade 2018
toda a teologia é da libertação. Se Marcos Sassatelli – Como diz
traz reflexões interessantes, mas é
não for da libertação, não é teolo- sempre o nosso irmão Pedro Casal-
bastante genérico e não aprofunda
gia. Sempre devemos apontar e ter 5
dáliga , a esperança nunca morre.
o tema central da questão da vio-
presente a utopia de Jesus de Naza- Outro mundo é possível e neces-
lência, que é a violência estrutural.
ré “vocês são todos e todas irmãos sário! Vamos à luta, participando
Não é um texto profético e parece
e irmãs” (Mt 23,8) como um ideal ativamente de Partidos Políticos
que tem medo de falar a verdade.
a ser perseguido e – vivenciando o Populares, de Movimentos Sociais
“A verdade vos libertará” (Jo 8,32).
método acima – indicar também, Populares, de Sindicatos autênti-
Nas preces da Oração da Tarde
em cada situação concreta, os pas- cos de Trabalhadores e Trabalha-
(Vésperas) da Liturgia das Horas
sos a serem dados para que esse doras, de Conselhos de Direitos, de
de quarta-feira da 2ª Semana da
ideal se torne cada vez mais uma Fóruns ou Comitês de Defesa dos
Quaresma, lemos: “Fazei que to-
realidade histórica. Na medida em Direitos Humanos e de outras Or-
dos/as rejeitem qualquer desigual-
que esse ideal se tornar uma rea- ganizações Populares, que traba-
dade injusta”. Pergunto: por acaso,
lidade histórica, estaremos cons- lham por mudanças não só conjun-
existe desigualdade justa?
truindo novos espaços de justiça e turais, mas sobretudo estruturais,
paz, de superação da violência e de e abrem caminhos que fazem acon-
- tecer um Projeto Político alterna-
- também abrindo caminhos para a tivo, o Projeto Popular: Projeto de
- mudança do “sistema econômico um Mundo Novo.
iníquo” (Documentos de Aparecida
- DA, 385), no qual vivemos. Sem
Marcos Sassatelli – Em nome justiça não há superação da violên-
da “objeção de consciência”, diante cia e sem superação da violência 5 D. Pedro Casaldáliga: bispo prelado de São Félix, Mato
Grosso. É poeta e escritor de renome internacional. Quan-
de leis, civis ou religiosas, claramen- não há fraternidade. Falar em fra- do assume a prelazia de São Felix, em pleno regime mi-
litar, denuncia veementemente o latifúndio e defende a
te injustas, todos e todas somos obri- ternidade, sem superação da violên- reforma agrária e o direito indígena à terra. Foi duramente
gados e obrigadas – do ponto de vis- cia, é mentira, é hipocrisia. perseguido pelo regime militar. Pe. João Bosco Penido
Burnier, jesuíta, foi assassinado ao lado dele, no dia 12 de
ta ético – a praticar a “desobediência outubro de 1976. A edição 137 da IHU On-Line, de 18 de
abril de 2005, publicou uma entrevista com Casaldáliga: O
civil e religiosa”, que são também próximo pontificado será um tempo de transição significati-
caminhos (não os únicos) para que vo. A edição 89, de 12 de janeiro de 2004, trouxe entrevista
com o religioso, falando sobre a homologação de terra
se supere a violência estrutural. Res- contínua para índios. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 518
TEMA DE CAPA

Instinto de agressão
preserva a existência
Angelina Batista salienta que, para além da violência
de superfície expressa em atos divulgados pela mídia,
há um impulso que leva ao enfrentamento da vida
Ricardo Machado | Edição: Vitor Necchi

A
violência é inerente à espécie O impulso vital consta de todas as di-
homo sapiens “porque está mensões da vida humana e se torna vio-
ligada ao instinto de agressão lência quando usado inadequadamente.
que, como instinto, pode servir para Nenhuma dimensão humana escapa a
o bem ou para o mal e existe para esse impulso vital, mas as que menos
preservar a vida”, afirma a profes- manifestam o lado negativo (violento) da
sora Angelina Batista em entrevista energia vital, no entendimento de Ange-
concedida por e-mail à IHU On-Li- lina, são a lúdica e a estética. “Não se dá
ne. “A violência seria uma resposta a trégua a instintos. O que podemos é edu-
uma estimulação inicial desencadea- car nossas práticas sociais. Nossas regras
dora de atitudes, entre as quais a de de conduta podem possibilitar uma con-
defesa.”
58 Para que a vida seja preservada, a é professora apo-
agressão existe como instinto, e isto é sentada do Departamento de Educação
constitutivo do ser. “Vivemos em um da Universidade Estadual Paulista Jú-
mundo que privilegia determinadas lio de Mesquita Filho - Unesp - Cam-
práticas, muitas delas altamente vio- pus de Botucatu. É doutora e mestra
lentas”, salienta a professora. “Não em Educação pela Universidade de São
estamos falando da violência de super- Paulo - USP, graduada em Letras, Por-
fície, que se expressa em atos ampla- tuguês, Latim e Grego pela USP e em
mente divulgados pela mídia. Falamos Pedagogia pelas Faculdades Integradas
de um impulso que nos leva ao enfren- Campos Salles.
tamento da vida”.

- - todos os homens e todas as épocas


cia se constitui em um traço ine- ta o conceito de homo violens -
homo sapiens pulso vital precisa ser administrado.
A violência é -
um traço inerente à espécie homo sa- A meu ver, o tura do homo violens
piens porque está ligada ao instinto de conceito de homo violens, segundo -
agressão que, como instinto, pode ser- Roger Dadoun1, apresenta os seguin-
vir para o bem ou para o mal e existe tes aspectos: a) manifesta-se des-
para preservar a vida. Neste sentido, A agressão,
a violência seria uma resposta a uma intrinsecamente ligado ao impulso como instinto, existe para preser-
estimulação inicial desencadeadora var a vida. E isto é constitutivo do
de atitudes, entre as quais a de defesa. ser. Determinadas práticas sociais
Este instinto está presente na energia 1 Roger Dadoun (1928): filósofo, psicanalista, apresentam-se ora mais ora menos
tradutor e crítico de arte francês. Professor emé-
vital que é força para viver, enfrentar rito da Universidade Paris-Diderot (Paris-VII). No violentas. Vivemos em um mundo
- Brasil, seu livro A violência. Ensaio acerca do homo que privilegia determinadas práti-
violens foi lançado em 1998 pela editora Difel.
ção de si mesmo, por exemplo. (Nota da IHU On-Line) cas, muitas delas altamente violen-

26 DE MARÇO | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

“Em todas as dimensões da vida


humana, o impulso vital está
presente. Ele se torna ‘violência’
quando usado inadequadamente.”

tas. Não estamos falando da violên- serviço de liderança exige uma ciais deveriam favorecer o controle
cia de superfície, que se expressa energia que precisa ser posta a ser- desse impulso.
em atos amplamente divulgados viço do grupo. Quando essa ener-
pela mídia. Falamos de um impul- gia não é usada a serviço do grupo,
so que nos leva ao enfrentamento mas a serviço de outros interesses,
da vida. A pergunta seria: “em que ela se torna violência. Nenhuma di-
momento esse impulso que nos mensão humana escapa a esse im-
leva à vida torna-se um impulso de pulso vital, mas as dimensões que
morte”? menos manifestam o lado negativo
(violento) da energia vital, a meu Não se dá
ver, são a dimensão lúdica e a di- trégua a instintos. O que podemos
- mensão estética. é educar nossas práticas sociais.
ra se pode pensar o aspecto da Nossas regras de conduta podem
- 59
possibilitar uma convivência mais
IHU On-Line – Que aspectos
harmoniosa.
-
Como impul- homo sapiens
so vital, o homo violens prescinde
das dimensões morais e religiosas. homo sexualis homo faber
As dimensões morais e religiosas, -
homo politicus na como homo violens não pa-
entre outras práticas simbólicas, torno do homo violens
existem como norteadoras do exis- rece ser o reconhecimento de
tir humano e, portanto, como bali- As dimen-
zadoras do agir humano. Lembran- sões do homo sapiens não orbitam
do sempre que este impulso vital em torno do homo violens. Os as- -
leva ao agir. O agir humano, porque pectos históricos e sociais da espé-
liberto de uma determinação bioló- cie humana são práticas sociais que De que pi-
gica (o instinto nos animais), pre- levam ao enfrentamento da própria lares da modernidade estamos fa-
cisa ser “educado” pelo outro, pelo existência. lando? Podemos falar não de um
tempo e espaço, pelas circunstân- fracasso, mas sim de modos de en-
cias. As práticas simbólicas, como frentamento da violência que, de
IHU On-Line – Partindo da
práticas sociais, cumprem esse pa- fato, não levaram ainda a um domí-
-
pel “educador”. nio mais adequado do impulso vital.
IHU On-Line – Que dimen- -

-
A violência O conheci-
ocorre em relação à interação com mento que temos sobre o HOMEM
Em todas o outro, seja esse outro eu mesmo, é ainda muito pequeno em relação a
as dimensões da vida humana, o o outro da minha espécie, os ou- toda a sua complexidade. Ao tratar
impulso vital está presente. Ele se tros de outras espécies e em relação a violência buscando apenas as cau-
torna “violência” quando usado ao próprio meio ambiente. Não há sas pontuais de sua manifestação,
inadequadamente. Tomemos como uma violência originária. Na ori- talvez não se chegue ao cerne da
exemplo o homo politicus: o viver gem, há um impulso para a vida e questão. Trata-se de HUMANIZAR
em grupo pede uma liderança. Esse seu enfrentamento. As práticas so- o humano.

EDIÇÃO 518
TEMA DE CAPA

Desigualdade: um outro nome


para a violência de gênero
Patrícia Krieger Grossi analisa como os processos sistêmicos
de exclusão produzem opressão às mulheres
Vitor Necchi | Edição: Ricardo Machado

N
em toda violência tem estam- dimensões da vida. “A violência tem
pada na cara seu próprio hor- um impacto emocional muito grande
ror. Ao considerar as diferen- na vida das mulheres, pois afeta sua
ças sociais produzidas pela divisão de autoestima, percepção de sua pró-
- pria identidade, desejos e necessida-
dente as mil faces da violência. “Essas des. Suga as energias das mulheres,
desigualdades de gênero se expressam que utilizam diversas estratégias de
na divisão sexual do trabalho, nos me- enfrentamento à violência, inclusive
nores rendimentos às mulheres pelas através do silêncio”, descreve a Gros-
mesmas funções desempenhadas por si. “O que para muitos na sociedade é
homens, menor participação nos espa- visto como submissão à violência, na
ços políticos e de poder”, avalia Patrícia realidade é uma estratégia de sobre-
Krieger Grossi em entrevista por e-mail vivência, uma resistência na tentativa
60 à IHU On-Line. de evitar novos abusos.”
Há também um lado da violência é gradu-
que é socialmente escondido, inclu- ada e mestra em Serviço Social pela
sive de dados estatísticos. “A violên- Pontifícia Universidade Católica do Rio
cia contra a pessoa idosa é uma das Grande do Sul – PUCRS. Realizou dou-
mais invisibilizadas e silenciadas. Na torado em Serviço Social pela Universi-
maioria das vezes, as mulheres idosas dade de Toronto, Canadá. É professora
sofrem agressões dos próprios filhos, da PUCRS, onde coordena o Núcleo de
o que dificulta a denúncia”, pondera. Estudos e Pesquisa em Violência, Ética
Muito além de questões policiais e e Direitos Humanos – NEPEVEDH e o
burocráticas em relação à violência, Grupo de Estudos e Pesquisa em Vio-
as cicatrizes psicológicas são per- lência – NEPEVI.
manentes e trazem efeitos em várias

IHU On-Line – O machismo todas as sociedades. Atinge mulhe- vezes, ela é quem tem que provar
res de todas as classes sociais, et- que não é a culpada. Ainda hoje
- nias, idades, religiões e culturas. prevalece a dupla moral sexual e o
Entretanto, algumas mulheres es- comportamento da vítima é ques-
tão mais vulneráveis à violência. O tionado, por exemplo, vestimen-
machismo e o patriarcado arraiga- ta, local que está frequentando, se
Em dos na estrutura da nossa socieda- usou álcool e ou drogas, como se
primeiro lugar, é importante desta- de contribuem para o agravamen- isso justificasse o abuso sofrido.
car que a violência contra mulheres to das situações de violência, pois Dentro desse sistema, perpetuam-
é um fenômeno histórico, social e dentro de uma estrutura patriarcal, se papéis estereotipados de gênero
complexo, que tem raízes profun- o poder masculino se sobressai e o que reforçam a submissão femini-
das na estrutura patriarcal da nos- sistema tende a culpabilizar a víti- na e estruturam as desigualdades
sa sociedade, mas está presente em ma pela violência sofrida. Muitas de gênero na nossa sociedade.

26 DE MARÇO | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

“Essas desigualdades de gênero


se expressam na divisão sexual
do trabalho, nos menores
rendimentos às mulheres”

Essas desigualdades de gênero se cialmente, na tessitura das relações tância até uma rede de serviços contri-
expressam na divisão sexual do tra- sociais, nas quais as diferenças são bui para a invisibilidade da violência.
balho, nos menores rendimentos às transformadas em desigualdades. Agrava a situação o fato de a maioria
mulheres pelas mesmas funções de- dos serviços especializados estarem
sempenhadas por homens, menor em grandes centros. A mulher rural
participação nos espaços políticos IHU On-Line – Quais os tipos tem que percorrer às vezes 50, 100 e
e de poder. Além das desigualdades até 200 quilômetros, de acordo com a
de gênero decorrentes do patriarca- pesquisa que realizamos, para chegar
do, temos as desigualdades étnico As a uma Delegacia da Mulher. Os gritos
-raciais. Neste sentido, as mulheres mulheres sofrem vários tipos de vio- da mulher no campo não podem ser
negras estão mais vulneráveis à vio- lência, desde emocional, que é mais ouvidos. A divisão sexual do trabalho
lência e também recebem menores invisibilizada, até física e sexual, além também é acentuada, com a mulher
salários que as mulheres brancas. de assédio moral, violência patrimo- auxiliando na roça e demais ativida-
Compartilhamos a posição de Saf- des do campo, além de assumir tarefas 61
nial e violência institucional, entre
1
de que o capitalismo, o racismo outras. A veiculação nas redes sociais
e o patriarcado interagem entre si, de nudes de mulheres, muitas vezes contribuindo para exaustão física,
formando um sistema de opressão adolescentes e jovens, sem o con-
que promove uma hierarquia de gê- sentimento delas, também se cons- jornada de trabalho.
nero e, no topo da pirâmide, está o titui em um fenômeno recorrente e Estudo recente desenvolvido por
homem branco, rico e heterossexual. uma violência que acarreta agravos Costa (2012) em oito municípios do
As situações de violência são agra- na saúde física e mental das vítimas, Rio Grande do Sul enfocando na vio-
vadas, pois, muitas vezes, são na- podendo levar à depressão, à ideação lência contra mulheres rurais, nas
turalizadas e não percebidas como suicida e até à morte. Segundo o Dos-
siê da Violência contra a Mulher, que agendas públicas municipais em re-
Além disso, algumas mulheres so- compilou vários dados de estudos, lação ao enfrentamento dessa violên-
frem revitimização quando buscam uma mulher sofre um estupro a cada cia, concluiu que a violência contra a
auxílio nos serviços, pois sua situa- minuto, uma mulher é assassinada a mulher no cenário rural é considerada
cada duas horas e 503 mulheres são como “destino de gênero”. Na fala dos
que a julgam e não compreendem o vítimas de agressão por hora. A Fun-
ciclo da violência em que estão inse- dação Perseu Abramo realizou uma mulher é vista sob a ótica da “subordi-
ridas. Podemos dizer que a violência pesquisa em 2010 que revelou que nação” e da “obediência”, da respon-
uma mulher era agredida a cada 24 sabilidade exclusiva pela reprodução
é sistêmica e extrapola o âmbito do-
segundos no Brasil. biológica, afazeres domésticos e da
méstico. A violência é construída so-
lavoura, com pouco espaço para resis-
1 Heleieth Iara Bongiovani Saffioti (1934-2010): sociólo- tência a esses papéis tradicionais de
ga marxista, professora, estudiosa da violência de gênero e gênero socialmente atribuídos.
militante feminista brasileira. Graduada em Ciências Sociais
pela Universidade de São Paulo – USP em 1960, quando
começou suas pesquisas sobre a condição feminina no Bra-
sil, tema de sua tese de livre-docência para a Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara, da Universidade
Estadual de São Paulo (Unesp), intitulada A mulher na so-
ciedade de classe: mito e realidade, trabalho realizado sob No
orientação de Florestan Fernandes. O texto foi publicado
pela editora Vozes em 1976 e se tornou um best-seller na campo, a mulher está mais vulnerá- A vio-
época. Até hoje trata-se de uma referência nos estudos de
gênero. Lecionou na Pontifícia Universidade Católica de São vel, pois o acesso à rede de proteção lência contra a pessoa idosa é uma
Paulo e na Faculdade de Serviço Social da UFRJ. Criou o das mais invisibilizadas e silencia-
Núcleo de Estudos de Gênero, Classe e Etnia na UFRJ. Apo-
sentou-se pela Unesp. (Nota da IHU On-Line) a denúncia da violência, e a longa dis- das. Na maioria das vezes, as mulhe-

EDIÇÃO 518
TEMA DE CAPA

res idosas sofrem agressões dos pró- minações de gênero e étnico-raciais. de atuação, sendo que foram incor-
Compartilhamos a posição de Kim- porados, após a primeira avaliação
Idosas com idade mais avançada, com berlé Crenshaw2, que trabalha com a do Pacto pelo governo, os seguintes
alguma dependência, ou acamadas, perspectiva interseccional para po- eixos estruturantes: 1) Garantia da
são mais vulneráveis à violência. der compreender as múltiplas opres- aplicabilidade da Lei Maria da Pe-
sões que a mulher negra vivencia,
- da rede de serviços para mulheres em
cadores sociais como gênero, raça/
- etnia, orientação sexual, condição
física e classe social, entre outros. O 4) Garantia dos direitos sexuais e re-
sexismo, aliado ao racismo na socie- produtivos, enfrentamento à explora-
O Atlas da Violência 2017, lançado dade, faz com que as mulheres ne-
pelo Instituto de Pesquisa Econômi- gras sejam as vítimas preferenciais. Garantia da autonomia das mulheres
ca Aplicada – Ipea e o pelo Fórum em situação de violência e ampliação
Isto pode ser evidenciado no Mapa de seus direitos.
Brasileiro de Segurança Pública, re- da Violência 2015: homicídio de mu-
vela que homens jovens, negros e de lheres no Brasil, pois, no período entre Uma das premissas previstas no
baixa escolaridade são as principais 2003 e 2013, o número de homicídios Pacto é a transversalidade de gênero
vítimas de mortes violentas no país. de mulheres negras saltou de 1.864, em nas políticas públicas e a interseto-
A população negra corresponde à 2003, para 2.875, em 2013. Em con- rialidade entre as políticas para poder
maioria (78,9%) dos 10% dos indi- traposição, houve recuo de 9,8% nos atender às demandas das mulheres.
víduos com mais chances de serem crimes envolvendo mulheres brancas,
vítimas de homicídios. que caiu de 1.747 para 1.576 entre os da rede especializada de atendimento
anos. As vítimas de crimes violentos à mulher em situação de violência e
Atualmente, de cada 100 pessoas as-
são mulheres jovens, a maioria entre trabalhar no eixo da prevenção. Con-
sassinadas no Brasil, 71 são negras. De
18 e 30 anos, negras e pobres. O estu- sidero que o trabalho de prevenção à
acordo com informações do Atlas, os
do mostra ainda que 50,3% das vítimas violência nas escolas, nas comunida-
negros possuem chances 23,5% maio-
62 res de serem assassinados em relação são assassinadas por familiares e 33,2% des, nas associações, na mídia, com
dos crimes são cometidos por parceiros as crianças, adolescentes, jovens para
a brasileiros de outras raças, já descon-
ou ex-parceiros. Urge a necessidade de transformar a cultura de violência e
tado o efeito da idade, da escolaridade,
desvendarmos os processos vivencia- crenças arraigadas que perpetuem
do sexo, do estado civil e do bairro de
dos pelas mulheres negras na busca práticas discriminatórias, é funda-
residência. Na realidade, existem vá-
de acesso aos seus direitos e como vêm mental, principalmente, porque 60%
rias hipóteses em relação a esse maior
enfrentando essas violências. Esses das crianças testemunham a violên-
índice de violência contra os negros.
dados mostram a falha do sistema em cia sofrida pela mãe ou sofrem dire-
Os autores desse estudo apontam, en-
proteger essas mulheres. tamente a violência doméstica em
tre esses fatores, o racismo estrutural
suas casas. Acesso à informação so-
ou institucional que nega oportunida-
bre os direitos e onde buscar auxílio
des aos jovens negros no mercado de
IHU On-Line – O Pacto Nacio- é essencial para o rompimento das
trabalho, agravando as desigualdades
- situações de violência, mas sempre
sociais. Esse processo excludente vi-
respeitando o processo de autono-
venciado pela população negra é decor-
mia da mulher em relação à sua vida.
rente da raiz escravocrata do Brasil, na
-
qual os negros eram vistos como “coi-
-
sas”, objetos a serem comercializados
e, mesmo com a abolição da escravatu- -
ra, não foram indenizados e passaram
a viver em guetos, nas periferias, com O Pac-
pouco acesso às políticas públicas e di- to Nacional pelo Enfrentamento à Não
reitos básicos de cidadania. Violência Contra a Mulher foi lança- há dúvidas que a Lei Maria da Penha
do em agosto de 2007, como parte da foi um avanço na garantia de prote-
Agenda Social do Governo Federal, ção às mulheres, pois criou mecanis-
IHU On-Line – E as mulheres sendo o Rio Grande do Sul o último mos para coibir a violência contra
- estado do Brasil a assiná-lo, em 2011. elas, como o encarceramento, porém
O documento previa vários eixos precisamos avançar muito ainda,
principalmente no que se refere à
2 Kimberlé Williams Crenshaw (1959): defensora dos di-
As reitos civis nos Estados Unidos, especialista em questões consolidação de uma rede de aten-
mulheres negras sofrem mais vio- de raça e gênero. É professora na Escola de Direito da Uni- -
versidade da Califórnia, em Los Angeles, e na Escola de
lência devido ao acúmulo das discri- Direito de Columbia. (Nota da IHU On-Line)

26 DE MARÇO | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

da cultura machista secular que ain- estudos na área da saúde que refe- zes se agrava, com risco de feminicí-
da culpabiliza e julga a mulher pela rem essas mulheres como “poliquei- dio. Entre os agravos na saúde física
situação vivenciada. O Dossiê da xosas crônicas”, que contribui para e emocional da mulher decorrentes
Violência mostra que houve recuo sua estigmatização. Ainda ocorre de da violência, podemos destacar an-
de quase 10% na violência cometida a violência não ser investigada e tra- siedade, depressão, estresse pós-
contra mulheres brancas, mas um tarem os sintomas, sendo assim, os traumático, distúrbios gastrointesti-
aumento de mais de 50% nas come- abusos permanecem. Desnaturalizar nais, insônia, pesadelos constantes,
tidas contra mulheres negras. Isso a violência e propiciar um espaço sobressaltos, sentimento de desam-
de escuta, acolhimento e não julga- paro e impotência, entre outros.
mento é essencial. As delegacias têm Existe uma teoria desenvolvida
mulheres negras. que estar preparadas para encami- pelo psiquiatra Biedermann, na dé-
Temos que pensar em políticas es- nhar também as mulheres à rede cada de 1970, de que as mulheres,
truturantes nos eixos da prevenção, de serviços disponível, e não apenas nos primeiros incidentes de violên-
da assistência e do enfrentamento à registrar a ocorrência ou buscar a cia, minimizam e procuram agra-
violência que vá além da criminali- conciliação do casal, em certas cir- dar o companheiro na tentativa de
zação dos atos. Há a necessidade de cunstâncias. cessar o abuso. Costumam atribuir
políticas públicas que promovam a
autonomia econômica e social das o comportamento agressivo dele.
-
mulheres em situação de violência, Com o passar dos anos, as violên-
para que elas possam ter condições de cias aumentam, e elas passam a ter
-
enfrentamento e superação da opres- pesadelos e sobressaltos constantes.
são vivenciada. Muitas mulheres não Chegam a procurar auxílio, mas, não
chegam a denunciar a violência, pois A vio- encontrando, internalizam a culpa e
têm medo do agressor, sentem vergo- lência tem um impacto emocional somatizam a violência sofrida.
nha, não têm um local para ir e não muito grande na vida das mulheres,
pois afeta a autoestima, a percepção
A Lei Maria da Penha prevê, em seu de sua própria identidade, os desejos 63
capítulo II, medidas de assistência à e as necessidades. Suga as energias -
mulher em situação de violência do- das mulheres, que utilizam diversas
méstica que demanda um trabalho estratégias de enfrentamento à vio- -
intersetorial envolvendo as políticas lência, inclusive através do silêncio.
de saúde, de assistência social e de O que para muitos na sociedade é No
segurança pública, entre outras. Na visto como submissão à violência, na Rio Grande do Sul, houve o fecha-
Lei Maria da Penha, também estão realidade é uma estratégia de sobre- mento da Secretaria de Políticas para
previstos centros de reabilitação de vivência, uma resistência na tentati- as Mulheres, o que foi um retroces-
agressores, o que ainda é incipiente. va de evitar novos abusos. so no âmbito do fortalecimento das
Compartilhamos a posição de Sa- políticas para as mulheres. Urge a
necessidade de maior investimento
permanecer em um relacionamento na área de formação dos agentes pú-
-
ela aceite a violência. Este é um as- do às vítimas, programas de abrigos
- ainda incipientes no estado, que tem
tar a culpabilização da mesma. Exis- apenas 12 casas-abrigos para mulhe-
Par- tem ainda crenças de que ela não sai res em situação de violência em 497
cialmente. Existem vários estudos de casa porque não quer ou, se ela municípios. No Interior, a lacuna de
sobre as rotas críticas, caminhos serviços é maior, podendo ser im-
percorridos pelas mulheres para plementados serviços em forma de
se ela apanhou, fez algo para mere-
acessar seus direitos, na busca do consórcios para viabilizar um atendi-
cer, ou de que em briga de marido
enfrentamento da violência. E, de- mento regionalizado. Ampliação das
e mulher, ninguém mete a colher.
pendendo da resposta dos agentes delegacias das mulheres, prioridade
Todas essas crenças sociais e valores
públicos, que, muitas vezes, é condi- de moradia para mulheres em situa-
-
cionada por valores e representações ção de violência doméstica, amplia-
da de decisões da mulher, além das
sociais acerca da violência domésti- ção das unidades itinerantes para
condições concretas para superação
ca contra a mulher, esta acaba sendo atendimento às mulheres do campo
da violência.
estigmatizada e culpabilizada pela
situação em que se encontra e pela Existe também a crença de que se a de salas lilás que dão um atendimen-
mulher sair de casa, a violência ces- to diferenciado e mais humanizado
implica uma revitimização. Existem sará, o que, na realidade, muitas ve- às mulheres vítimas de estupro.

EDIÇÃO 518
TEOLOGIA PÚBLICA

Ressurreição é uma revolução


na evolução
Leonardo Boff destaca que a ascensão de Cristo da morte não
é algo circunscrito ao mundo do bios e por isso exige que se
acolham narrativas minimamente capazes de “expressar o indizível”

João Vitor Santos

A Ressurreição do Cristo requer


-

-
isso que o teólogo Leonardo Boff rei-

Leonardo Boff é doutor em Teo-

-
64 - -
-

- -
Nossa ressurreição na morte
- Jesus Cristo
libertador
Cristianismo: o mínimo do mínimo
e-mail à IHU On-Line - Imitação
- de Cristo de Tomás de Kempis e Segui-
mento de Jesus (Livro V)
- Ecologia - Grito da terra,
grito dos pobres. Dignidade e direitos
da mãe terra
-

IHU On-Line – Em que medi-


da a Modernidade inebria o en- -

Leonardo Boff –

26 DE MARÇO | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

“Não vejo que a Modernidade


tenha interesse no tema
da Ressurreição”

e Freud - genes

autobasileia tou Chritou -


-

Ressurreição representa o momeem Quando as realidades são grandes


- -

-
- 65
-
-

-
- Leonardo Boff – -

-
Leonardo Boff – Ressurreição
- -
-
-
3
- -
-
1 Aristóteles de Estagira (384 a.C.-322 a.C.): filósofo nas- -
cido na Calcídica, Estagira. Suas reflexões filosóficas – por
um lado, originais; por outro, reformuladoras da tradição -
grega – acabaram por configurar um modo de pensar que
se estenderia por séculos. Prestou significativas contri-
buições para o pensamento humano, destacando-se nos -
campos da ética, política, física, metafísica, lógica, psicolo- Leonardo Boff – -
gia, poesia, retórica, zoologia, biologia e história natural. É do do bios
considerado, por muitos, o filósofo que mais influenciou o
pensamento ocidental. (Nota da IHU On-Line)
2 Sigmund Freud (1856-1939): neurologista nascido em
Freiberg, Tchecoslováquia. É o fundador da psicanálise. Inte- -
ressou-se, inicialmente, pela histeria e, tendo como método Zoé -
a hipnose, estudou pessoas que apresentavam esse quadro.
Mais tarde, interessado pelo inconsciente e pelas pulsões, foi -
influenciado por Charcot e Leibniz, abandonando a hipnose óphte
em favor da associação livre. Estes elementos tornaram-se ba- -
ses da psicanálise. Desenvolveu a ideia de que as pessoas são oráo
movidas pelo inconsciente. Freud, suas teorias e o tratamento
com seus pacientes foram controversos na Viena do século 4 Orígenes de Alexandria ou Orígenes, o Cristão (185-
19 e continuam ainda muito debatidos. A edição 179 da IHU 253): foi um teólogo, filósofo neoplatônico patrístico e é
On-Line, de 8-5-2006, dedicou-lhe o tema de capa sob o títu- um dos Padres gregos. Um dos mais distintos pupilos de
lo Sigmund Freud. Mestre da suspeita, disponível em http://bit. - Amônio de Alexandria, Orígenes foi um prolífico escritor
ly/ihuon179. A edição 207, de 4-12-2006, tem como tema de cristão, de grande erudição, ligado à Escola Catequética
capa Freud e a religião, disponível em https://goo.gl/wL1FIU. A de Alexandria (Nota da IHU On-Line)
edição 16 dos Cadernos IHU em formação tem como título 5 Friedrich Nietzsche (1844-1900): filósofo alemão, co-
Quer entender a modernidade? Freud explica, disponível em nhecido por seus conceitos além-do-homem, transvalora-
http://bit.ly/ihuem16. (Nota da IHU On-Line) ção dos valores, niilismo, vontade de poder e eterno retor-
3 O entrevistado refere-se à passagem bíblica de João, ca- no. Entre suas obras, figuram como as mais importantes
pítulos 11 e 12. (Nota da IHU On-Line) - Assim falou Zaratustra (Rio de Janeiro: Civilização Brasilei-

EDIÇÃO 518
TEOLOGIA PÚBLICA

- 9
-

-
-

-
Leonardo Boff – -
o formulou
-
-
-

-
- 7
-
Leonardo Boff – - possam irromper sob as formas mais
-
- -
Leonardo Boff – -
ção pela Ressurreição foi totalmente
- -
-
-
-
-

66 que Ressurreição é uma pequena


-
-
-

ra, 1998), O anticristo (Lisboa: Guimarães, 1916) e A gene-


alogia da moral (São Paulo: Centauro, 2004). Escreveu até
1888, quando foi acometido por um colapso nervoso que IHU On-Line – De que forma
nunca o abandonou até o dia de sua morte. A Nietzsche,
foi dedicado o tema de capa da edição número 127 da
IHU On-Line, de 13-12-2004, intitulado Nietzsche: filósofo -
do martelo e do crepúsculo, disponível para download em
http://bit.ly/Hl7xwP. A edição 15 dos Cadernos IHU em
formação é intitulada O pensamento de Friedrich Nietzs-
che, e pode ser acessada em http://bit.ly/HdcqOB. Confira, Leonardo Boff – -
também, a entrevista concedida por Ernildo Stein à edição
328 da revista IHU On-Line, de 10-5-2010, disponível em
http://bit.ly/162F4rH, intitulada O biologismo radical de
Nietzsche não pode ser minimizado, na qual discute ideias 9 Ernst Bloch (1885-1977): filósofo alemão marxista hete-
de sua conferência A crítica de Heidegger ao biologismo de - rodoxo, que construiu vasta obra que ressalta o papel da
Nietzsche e a questão da biopolítica, parte integrante do utopia na história do homem. Seu livro O Princípio Espe-
Ciclo de Estudos Filosofias da diferença – Pré-evento do XI rança (Rio de Janeiro: Contraponto, 2005), foi destacado
Simpósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da na editoria Livro da Semana da 151ª edição da revista IHU
vida humana. Na edição 330 da revista IHU On-Line, de On-Line, de 15-8-2005, com a realização de duas entre-
24-5-2010, leia a entrevista Nietzsche, o pensamento trá- - vistas sobre a obra: uma com o tradutor do livro, Nélio
gico e a afirmação da totalidade da existência, concedida Schneider, e outra com o professor da UFRGS Edson Sou-
pelo professor Oswaldo Giacoia e disponível em https:// - sa. (Nota da IHU On-Line)
goo.gl/zuXC4n. Na edição 388, de 9-4-2012, leia a entre- 10 Jürgen Moltmann (1926): professor emérito de Teolo-
vista O amor fati como resposta à tirania do sentido, com gia da Faculdade Evangélica da Universidade de Tübingen.
Danilo Bilate, disponível em http://bit.ly/HzaJpJ. (Nota da Um dos mais importantes teólogos vivos da atualidade. Foi
IHU On-Line) um dos inspiradores da Teologia Política nos anos 1960 e
6 D. Pedro Casaldáliga: bispo prelado de São Félix, Mato - influenciou a Teologia da Libertação. É autor de Teologia da
Grosso. É poeta e escritor de renome internacional. Quan- - Esperança (São Paulo: Herder, 1971) e Deus crucificado: a cruz
do assume a prelazia de São Felix, em pleno regime militar, de Cristo como fundamento e crítica da teologia cristã (Petró-
denuncia veementemente o latifúndio e defende a reforma - polis: Vozes, 1993), entre outros. Do autor, a Editora Unisi-
agrária e o direito indígena à terra. Foi duramente perse- nos publicou o livro A vinda de Deus. Escatologia cristã (São
guido pelo regime militar. Pe. João Bosco Penido Burnier, Leopoldo, 2003). Confira a entrevista de Moltmann na IHU
jesuíta, foi assassinado ao lado dele, no dia 12 de outubro On-Line nº 94, de 29-3-2004 em http://bit.ly/ihuon94. Sobre
de 1976. A edição 137 da IHU On-Line, de 18 de abril de o tema, Frei Luiz Carlos Susin deu uma entrevista na edição
2005, publicou uma entrevista com Casaldáliga: O próximo 72, de 25-8-2003, disponível em http://bit.ly/ihuon72.A edi-
pontificado será um tempo de transição significativo. A edi- ção 23 dos Cadernos Teologia Pública, de 26-9-2006, tem
ção 89, de 12 de janeiro de 2004, trouxe entrevista com o 7 Marcos 16. (Nota da IHU On-Line) como título Da possibilidade de morte da Terra à afirmação
religioso, falando sobre a homologação de terra contínua 8 Ver um aprofundamento no meu “Cristianismo: o mínimo da vida. A teologia ecológica de Jürgen Moltmann, de autoria
para índios. (Nota da IHU On-Line) do mínimo, Petrópolis: Vozes 2015. (Nota do entrevistado) de Paulo Sérgio Lopes Gonçalves. (Nota da IHU On-Line)

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REVISTA IHU ON-LINE

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por um teólogo protestante de nome
Krause
- Leonardo Boff – -
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intro e retro relação de
responder a esta pergunta e que se
- Ecologia: gri-
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- to da Terra - grito dos pobres

um não pode ser entendido sem o


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sentes um no outro e que não podem 67
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de 5-5-2005, em http://bit.ly/ihuon135 e Teilhard de Char-
din, Saint-Exupéry, publicada na edição 142, de 23-5-2005,
em http://bit.ly/ihuon142, ambas com Waldecy Tenório.
Na edição 143, de 30-5-2005, George Coyne concedeu a
entrevista Teilhard e a teoria da evolução, disponível para -
download em http://bit.ly/ihuon143. Leia também a edi-
11 Karl Christian Friedrich Krause (1781-1832): filósofo ção 45 edição do Cadernos IHU ideias A realidade quân-
alemão, nascido em Eisenberg, em Saxe-Gotha-Altenburg. tica como base da visão de Teilhard de Chardin e uma nova
Sua filosofia, conhecida como “Krausism”, foi muito in- concepção da evolução biológica, disponível em http://bit.
fluente na Restauração da Espanha. (Nota da IHU On-Li- ly/1l6IWAC; a edição 78 do Cadernos de Teologia Públi-
ne) ca, As implicações da evolução científica para a semântica -
12 Voltaire (1694-1778): pseudônimo de François-Marie da fé cristã, disponível em http://bit.ly/1pvlEG2; e a edição
Arouet, poeta, ensaísta, dramaturgo, filósofo e historiador 22 do Cadernos de Teologia Pública, Terra Habitável: um
iluminista francês. Uma de suas obras mais conhecidas é o desafio para a teologia e a espiritualidade cristãs, disponí-
Dicionário Filosófico, escrito em 1764. (Nota da IHU On-Line) vel em http://bit.ly/1pvlJJL. (Nota da IHU On-Line)
13 Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955): paleontólogo, 14 São Francisco de Assis (1181-1226): frade católico,
teólogo, filósofo e jesuíta que rompeu fronteiras entre a fundador da “Ordem dos Frades Menores”, mais conhe-
ciência e a fé com sua teoria evolucionista. O cinquente- cida como Franciscanos. Foi canonizado em 1228 pela -
nário de sua morte foi lembrado no Simpósio Internacional Igreja Católica. Por seu apreço à natureza, é mundialmente
Terra Habitável: um desafio para a humanidade, promovi- conhecido como o santo patrono dos animais e do meio
do pelo IHU em 2005. Sobre ele, leia a edição 140 da IHU ambiente. Sobre Francisco de Assis confira a edição 238
On-Line, de 9-5-2005, Teilhard de Chardin: cientista e mís- da IHU On-Line, de 1-10-2007, intitulada Francisco. O
tico, disponível em http://bit.ly/ihuon140. Veja também a santo, disponível para download em http://bit.ly/1NLAtl7
edição 304, de 17-8-2009, O futuro que advém. A evolução e a entrevista com a medievalista italiana Chiara Frugoni,
e a fé cristã segundo Teilhard de Chardin, em http://bit.ly/ intitulada Uma outra face de São Francisco de Assis, na re-
ihuon304. Confira, ainda, as entrevistas Chardin revela a vista IHU On-Line número 469, de 3-8-2015, disponível
cumplicidade entre o espírito e a matéria, na edição 135, em http://bit.ly/2erAzUq. (Nota da IHU On-Line) 15 Petrópolis: Vozes, 2015. (Nota da IHU On-Line)

Leia mais

- “Morrer é penetrar no coração do universo onde todas as teias de relação encontram o


seu nó de origem e de sustentação”. Entrevista especial com Leonardo Boff, publicada nas
Notícias do Dia de 2-11-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em
http://bit.ly/2GKwdq1.

EDIÇÃO 518
TEOLOGIA PÚBLICA

- Humano assim como Jesus só Deus mesmo. Artigo de Leonardo Boff, publicado nas
Notícias do Dia de 20-12-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em
http://bit.ly/2GPRRta.
- Francisco de Assis. O protótipo ocidental da razão cordial e emocional. Entrevista especial
com Leonardo Boff, publicada nas Notícias do Dia de 2-10-2015, no sítio do Instituto Humanitas
Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2prAFle.
- Ecologia integral. A grande novidade da Laudato Si’. “Nem a ONU produziu um
texto desta natureza’’. Entrevista especial com Leonardo Boff, publicada nas Notícias
do Dia de 18-7-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em
http://bit.ly/2GJ8c2x.
- Os intelectuais que têm algum sentido ético precisam falar sobre a Terra ameaçada.
Entrevista especial com Leonardo Boff, publicada nas Notícias do Dia de 16-10-2012, no
sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2eZz17B.
- “Quem vai derrotar o capital será a Terra”. Entrevista com Leonardo Boff, publicada nas
Notícias do Dia de 3-8-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em
http://bit.ly/2G8LIdu.

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REVISTA IHU ON-LINE

O túmulo vazio significa que Jesus


é mais forte do que a morte
Ferdinando Sudati, à luz das obras de John Shelby Spong e Roger
Lenaers, analisa como o moderno pensamento cientificista nos leva
a retomar a busca do significado da ressurreição do Cristo
João Vitor Santos e Patricia Fachin | Tradução: Ramiro Mincato

Q - -
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e-mail à IHU On-Line -

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di Nazaret: Uomo come noi?3 4


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La nasci-
ta di Gesù tra miti e ipotesi1 da Igreja Episcopal. Vive nos Estados Unidos e de 1979 a 4 Roger Charles Lenaers (1925): padre jesuíta na diocese
2000, foi bispo de Newark (baseado em Newark , Nova Je- de Innsbruck, no oeste da Áustria. Ingressou na Compa-
2
Gesù rsey ). Considerado teólogo cristão liberal, com seus escri- nhia de Jesus em 1942 e seguiu os cursos regulares na
tos e reflexões tenciona que se repense fundamentalmen- Escola Jesuíta de Filosofia e Teologia. Em 2000 e 2002 ga-
te a crença cristã, afastando-se do teísmo e das doutrinas nhou destaque pelas suas reflexões sobre o choque entre
1 Massari Editore, 2017. (Nota da IHU On-Line) tradicionais. (Nota da IHU On-Line) a modernidade e as convicções religiosas modernas. Ao
2 John Shelby “Jack” Spong (1931): é um bispo emérito 3 Gabrielli Editori, 2017. (Nota da IHU On-Line) reinterpretar a essência, ele tentou reconciliar a mensa-

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TEOLOGIA PÚBLICA

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- tamente não seria mais aquela de
e Cal-

Declaração Dominus Iesus 9


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aos bispos Placuit Deo
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- Resurrection: Myth or Reali-
ty? A Bishop’s Search of the Origin’s
of Christianity . -
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70

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MicroMega
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que são os usados para se falar de
-
-
-
transcendente a elas, sem necessariamente perder sua
unidade, ou seja, a mesma divindade é todas as coisas e
algo a mais. (Nota da IHU On-Line)
- 7 Concílios de Niceia: o I Concílio de Niceia é o primeiro
Concílio Ecumênico do Cristianismo, que aconteceu em
325, para discutir questões cristológicas. O II Concílio de
- Niceia, o sétimo ecumênico, foi realizado em 787, reco-
- nheceu a veneração, e não adoração, dos ícones religio-
sos. (Nota da IHU On-Line)
8 Concílio de Calcedônia: concílio ecumênico realizado
entre 8 de outubro e 1º de novembro de 451 na Calce-
dônia, cidade da Bitínia, na Ásia Menor. Foi o quarto dos
primeiros sete Concílios da história do Cristianismo, onde
foi repudiada a doutrina de Eutiques do monofisismo e
declarada a dualidade humana e divina de Jesus, a segun-
da pessoa da Santíssima Trindade. Por não ter sido aceito
por alguns movimentos cristãos ortodoxos, o Concílio deu
- origem à Igreja Copta e outras Igrejas nacionais. (Nota da
- IHU On-Line)
9 Dominus Iesus (ou “Senhor Jesus”): é um documento so-
bre a unicidade e a universalidade salvífica de Jesus Cristo
e a doutrina da Igreja. Foi emitido pela Congregação para
- a Doutrina da Fé, no dia 6 de agosto de 2000, assinado
pelo então prefeito da Congregação, o Cardeal Joseph
Ratzinger, que se o tornou Papa Bento XVI. (Nota da IHU
On-Line)
gem teológica com a modernidade. Desde 1995, Roger 6 Panenteísmo: sistema filosófico e teológico que diz que 10 O Instituto Humanitas Unisinos – IHU, na seção Notícias
Lenaers é pároco em Vorder - e Hinterhornbach (Lechtal, o Universo está contido em Deus (ou nos deuses), mas do Dia, em seu sítio, publicou diversas análises sobre a
Tirol, Áustria). Em 2013, concedeu uma entrevista à IHU Deus (ou os deuses) é maior do que o universo. É diferente carta. Entre elas Placuit Deo e o magistério de Francisco: a
On-Line, intitulada A despedida da religião e a dedicação do panteísmo, que diz que Deus e o universo coincidem salvação integral como dom e tarefa, disponível em http://
ao amor que sustenta tudo e todas as coisas (Revista IHU perfeitamente (ou seja, são o mesmo). No panenteísmo, bit.ly/2GelcfJ; e Ladaria: ‘’Carta ‘Placuit Deo’? Alinhada
On-Line, número 424, de 24-6-2013, disponível em http:// todas as coisas estão na divindade, são abarcadas por ela, com a ‘Dominus Iesus’ contra as novas heresias’’, disponível
bit.ly/2G9XkJZ. (Nota da IHU On-Line) identificam-se (ponto em comum com o panteísmo), mas em http://bit.ly/2I8nZrs. (Nota da IHU On-Line)
5 Nº 8 / Dezembro de 2017. (Nota do entrevistado) a divindade é, além disso, algo além de todas as coisas, 11 HarperOne, 1994. (Nota da IHU On-Line)

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sobre a sepultura ou a presença de

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mento pré-moderno era impregnado
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Jo
Mt Lc e Atos -
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12 Lucas 24:13. (Nota da IHU On-Line) - -

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Gesù di Nazaret: Uomo -
come noi? -

obri-
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MicroMega, -
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teiras entre matéria e energia torna-

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- fato de usarmos linguagens dife-
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13 Congregação para a Doutrina da Fé: é a mais antiga das
nove congregações da Cúria Romana, um dos órgãos da
Santa Sé. Substituiu a Suprema e Sacra Congregação do -
- Santo Ofício, que anteriormente chamava-se Suprema e
Sacra Congregação da Inquisição Universal da Idade Mo-
mos mais nos entender dentro das
derna e era responsável pela criação da Inquisição em si.
A Congregação para a Doutrina da Fé engloba a Comissão
Teológica Internacional e a Pontifícia Comissão Bíblica.
(Nota da IHU On-Line)
- 14 Papa Pio XII (1876-1958): nascido Eugenio Maria Giu-
seppe Giovanni Pacelli, foi eleito Papa no dia 2 de março
de 1939. (Nota da IHU On-Line)

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dentro de momentos de oração e


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- ção de que de alguma forma ainda -

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pensamento predominante nos teó-
sentido depois entendido pela dog-

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TEOLOGIA PÚBLICA

isso que nos obriga a repensar nossa


Um ponto em que gostaria de des-
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detrimento de uma interpretação -

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Certamen- -
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74
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- denadas da modernidade e da pós-
-

Leia mais
- Uma linguagem nova para a Boa Nova de Jesus: a releitura de Spong e Lenaers. Re-
portagem publicada nas Notícias do Dia de 10-1-2018, no sítio do Instituto Humanitas Uni-
sinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2I6yefw.
- O nascimento de Jesus, uma nova visão. Perguntas e respostas com John Shelby Spong.
Reportagem publicada nas Notícias do Dia de 11-1-2018, no sítio do Instituto Humanitas
Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2ISBfS8.
- Ressurreição, o desafio do padre Lenaers. Artigo de Carlo Molari, publicado nas Notícias
do Dia de 3-3-2018, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.
ly/2GqTcZt.
- Doutrina trinitária: o desafio do jesuíta Roger Lenaers. Artigo de Carlo Molari, publicado
nas Notícias do Dia de 22-3-2018, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível
em http://bit.ly/2pFZP0C.

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REVISTA IHU ON-LINE

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EDIÇÃO 518
CINEMA

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A doce e utópica paixão adolescente
“Me chame pelo seu nome” propõe questionamentos usualmente
negados a narrativas queer

Fernando Del Corona

Meninas não choram Brokeback Mountain

Me chame pelo seu nome

1 Fernando Del Corona é mestrando em Comunicação e especialista em Televisão e Convergência Digital pela Universidade do
Vale do Rio dos Sinos - Unisinos, graduado em Produção Audiovisual pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul - PUCRS. Em seu artigo de conclusão da especialização, pesquisou a relação de fãs da série Game of Thrones com spoilers
no ambiente do site reddit. Em sua dissertação, em fase de desenvolvimento, investiga a presença da imagem-tempo na obra da
diretora norte-americana Sofia Coppola.

26 DE MARÇO | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

120 batimentos por mi-


nutos Uma mulher fantástica
de Moonlight
Me chame pelo seu nome

Moonlight

Me chame pelo seu nome -

– later –

77

Re-
torno a Howard’s End Vestígios do dia Maurice

Me chame pelo seu nome

rapidamente relegados sob a ideia de que são pensamentos

-
-

Filme (ano), autor


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CINEMA

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Me chame pelo seu nome

Moonlight
Me chame pelo seu nome ser

Ficha técnica
Me chame pelo seu nome
Título original: Call Me by Your Name
Direção: Luca Guadagnino
Roteiro: James Ivory
Produção: Emilie Georges, Luca Guadagnino, James Ivory, Marco Morabito
Elenco: Timothée Chalamet, Arnie Hammer, Michael Stuhlbarg, Amira Casar, Esther Garrel
Itália/ Brasil/ França/ EUA, 2017, 131 min.

26 DE MARÇO | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

A inconsequência de Trump
tem poucos limites
Gabriel Pessin Adam

T -

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1 Fonte: UN Data. Endereço eletrônico: http://data.un.org/Data.aspx?d=POP&f=tableCode%3a240. Último acesso em 18/12/2017.

EDIÇÃO 518
CRÍTICA INTERNACIONAL – RI UNISINOS

80

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-

2 Fonte: Sputnik News. Endereço eletrônico: https://sputniknews.com/world/201712201060157251-kremlin-russia-us-palestine-israel/. Último acesso


em 21/12/2017.

Expediente
Coordenador do curso de Relações Internacionais da Unisinos: Prof. Ms. Álvaro Augusto
Stumpf Paes Leme
Editor: Prof. Dr. Bruno Lima Rocha

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REVISTA IHU ON-LINE

O que resta da ditadura?

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O que resta da ditadura? Estado democrático
de direito e exceção no Brasil

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de transição da ditadura para a demo-

doutoral no Departamento de Teoria

EDIÇÃO 518
82

26 DE MARÇO | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

Outras edições em www.ihuonline.unisinos.br/edicoes-anteriores

Gênero e violência - Um debate sobre a


vulnerabilidade de mulheres e LGBTs
Edição 507 – Ano XVII – 15-6-2017

uma questão que merece destaque por evidenciar a vulnerabilidade das


pessoas envolvidas: a violência que decorre do gênero. A esse assunto a
revista IHU On-Line dedica esta edição”.

Desejo e violência
83
Edição 298 – Ano IX – 22-7-2009

“O laço que une a violência com o direito universal ao desejo é o tema de


capa da IHU On-Line desta semana. A presente edição constitui-se num
subsídio para os debates do Colóquio Internacional A ética da psicanálise:

Humanitas Unisinos - IHU, em parceria com, entre outros, a Association


Lacanienne Internationale - ALI, Escola de Estudos Psicanalíticos - EEP e

Jovens, violência e mídia: construções de


significados

Edição 82 – Ano III – 3-11-2003

jovens, num ano em que o assunto sobre o nomadismo das novas ger-
ações estava em voga. Assim, a edição se debruça no debate sobre o de-

EDIÇÃO 518
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