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Famalicão, 2020
NOTAS À MÁRGEM
Sempre desejei escrever alo para piano e orquestra, neste caso, pequena
orquestra.
As circunstâncias atuais propiciam-me tempo e ócio, o catalisador para
desenvolver qualquer atividade criativa. Mas, também, estas circunstâncias,
catalisam a necessidade de colocar a mente e o espírito em algo “longe” da
realidade.
Dois dias atrás comecei. A ideia? A de escrever algo neoclássico para pequena
orquestra baseado na lembrança (que acabou traindo-me) da vigésimo
terceira Sinfonia de Mozart. Ficaram no início o desenho dos baixos, e no
segundo compasso, ficaram as notas repetidas em semicolcheias. Uma
paráfrase algo adulterada.
Humor? Sarcasmo? Não sei...
Não penso em nada que não sejam a estrutura musical e o efeito que gostava
de provocar em quem escuta ou toca, mas isto é subjetivo.
Não é casual a referência à sequência de Fibonacci, noventa (89) compassos o
primeiro andamento; trinta e seis (34) compassos o segundo andamento e
cento e cinquenta e um compassos o segundo andamento, que realmente acaba
no compasso cento e quarenta e quatro, os outros são uma sorte de Coda.
Alguns percursos tonais, principalmente os do terceiro andamento, lembram
aos eixos bartokianos.
Sei que não é uma composição moderna, nem pós-moderna, mas penso que é
honesta.
1. Giocoso
Gioioso = 132
Flauta
Fagote
Trompa em Fá
Trompete
em Si bemol
Tímpanos
Piano
Violinos I
Violinos II
Violas
Violoncelos
Contrabaixos
famalicão@2020
2 Giocoso
A
3
Giocoso 3
6
4 Giocoso
8
B
Giocoso 5
10
6 Giocoso
12
C
Giocoso 7
14
D
8 Giocoso
16
Giocoso 9
18
10 Giocoso
Poco più lento
E
20
Giocoso 11
23
F
12 Giocoso
27
Giocoso 13
31
Tempo I
G
pizz.
pizz.
14 Giocoso
33
cresc.
cresc.
cresc.
arco
arco
Giocoso 15
35
H
au talon
au talon
au talon
16 Giocoso
38
I
Giocoso 17
41
J
18 Giocoso
44
pizz.
pizz.
pizz.
Giocoso 19
46
K Quase cadenza
20 Giocoso
48
Giocoso 21
50
22 Giocoso
52
Riten.
cresc.
Giocoso 23
L Tempo I
a tempo
55
arco
arco
arco
24 Giocoso
M
58
Giocoso 25
61
26 Giocoso
63
N
Giocoso 27
65
28 Giocoso
O
67
Giocoso 29
69
P
30 Giocoso
71
Giocoso 31
73
32 Giocoso
75
Poco più lento
Q
Giocoso 33
78
R Tempo I
34 Giocoso
82
Giocoso 35
86
S
pizz.
pizz.
36 Giocoso
88
arco
arco
Giocoso 37
89
cresc.
cresc.
cresc.
2. Andantino
Andantino = 132
Flauta
Fagote
Trompa em Fá
Trompete
em Si bemol
Piano
pizz.
Violinos I
pizz.
Violinos II
pizz.
Violas
Violoncelos
Contrabaixos
Andantino 39
5
A
harmon mute
pizz.
40 Andantino
10
Andantino 41
14
B
42 Andantino
18
Andantino 43
21
C
44 Andantino
24
D
cresc.
Andantino 45
E
29
straight mute
arco
arco
arco
pizz.
46 Andantino
33
rall.
3. Allegro
= 140
Allegro
Flauta
Fagote
Trompa em Fá
Trompete
em Si bemol
Caixa clara
Tímpanos
Piano cresc.
Violinos I
Violinos II
Violas
Violoncelos
Contrabaixos
48 Allegro
A
4
straight mute
Allegro 49
8
50 Allegro
12
Allegro 51
17
B
cresc.
52 Allegro
21
C
pizz.
pizz.
pizz.
Allegro 53
25
54 Allegro
29
D
cresc.
Allegro 55
33
E
arco
56 Allegro
38
F
straight mute
arco
arco
Allegro 57
G
43
58 Allegro
50
H
cresc.
Allegro 59
I
56
60 Allegro
61
Allegro 61
66
J
cresc.
cresc.
62 Allegro
71
K = 52
rall. Malinconico
una corda
pizz.
pizz.
Allegro 63
76
(u.c.)
64 Allegro
80
(u.c.)
Allegro 65
84
(u.c.)
66 Allegro
88
Molto riten. L Tempo I
cresc.
(u.c.)
tre corde
arco
arco
Allegro 67
M
92
straight mute
68 Allegro
97
Allegro 69
101
N
cresc.
70 Allegro
106
Allegro 71
O
110
pizz.
pizz.
pizz.
72 Allegro
114
Allegro 73
118
P
cresc.
74 Allegro
Q
122
arco
Allegro 75
127
R
straight mute
arco
arco
76 Allegro
132
S
Allegro 77
139
Tempo I
T = 66
Misterioso
COMENTÁRIOS ANALÍTICOS
Concertino para piano e pequena orquestra
UMA APROXIMAÇÃO ANALÍTICA
INTRODUÇÃO
A justificação é um vicio académico, é um vicio de professor, lembro a
Schönberg analisando a sua Sinfonia de câmara op.9; lembro aos professores
do Conservatório de Paris escrevendo tratados de contraponto e fuga; lembro
a Olivier Messiaen e os seus textos didáticos utilizando a sua obra como
exemplo; lembro a Rimsky Korsakov, como recorre a sua própria obra para
exemplificar o seu tratado de orquestração.
Desde a minha posição, que não é a do compositor com uma estética definida,
ou uma filosofia da criação esclarecida, procuro produzir materiais que me
proporcionem contemplação estética e ferramentas para o ensino. Ensino de
matérias que tenham a ver com os elementos intrínsecos da música, a forma,
a harmonia, o contraponto, a instrumentação, a orquestração, a textura, o
material temático, etc.
Este Concertino breve, económico em todos os aspetos nasceu durante dois
dias de trabalho. Particularmente o meu foco foi o “efeito” a que se refere Poe
na sua Filosofia da composição. Depois, com alguma consciência, procurar os
materiais que possam ajudar a provocar o “efeito”.
Estas linhas elucidativas não serão muito desenvolvidas, funcionaram como
rastilho para que, quem leia com atenção, consiga chegar até o barril de
pólvora.
A linguagem não está em causa, a estética também não, só escreverei sobre
questões objetivas como a forma, as proporções, os percursos tonais que
ordenam e orientam o discurso musical com as suas tensões relativas; o
tratamento dos motivos, motivo como pretexto que dá origem a algo, seja uma
conversa, seja uma elocução.
Nada será dito sobre a instrumentação, nem sobre o “efeito” desejado ou
procurado.
ANÁLISE ESTRUTURAL
PRIMEIRO ANDAMENTO
A estrutura do primeiro andamento de uma sonata, uma sinfonia, um
concerto, um quarteto, obedece a cânones que foram perfilando-se durante o
século XVIII, e sobre o qual muito foi escrito.
O princípio fundamental é o da oposição de tonalidades, a do contraste tonal,
mais que o contraste temático, que depois de a forma estar aprumada foi
envergado por Beethoven, e comentado pelos analistas como o princípio da
oposição entre o masculino e o feminino.
Mas, parafraseando ao Livro dos Livros, - “no início era a tonalidade”.
Este princípio se baseia entre a oposição de estabilidade e a instabilidade
tonal, onde na exposição, os dois grupos temáticos se estabelecem em duas
tonalidades estáveis; no desenvolvimento a instabilidade determina o caráter
da seção, e, na reexposição, uma linha horizontal nos conduz até o fim do
andamento.
Neste trabalho as três seções, exposição, desenvolvimento e reexposição
enquadram-se entre os seguintes compassos:
1 – 1 – 2 – 3 – 5 – 8 – 13 – 21 – 34 – 55 – 89 – 144 - ...
A sequência enunciada pelo matemático italiano Fibonacci, ou Leonardo
Bigollo Pisano, responsável pela utilização em ocidente dos algarismos árabes
em substituição dos números romanos, está baseada na progressão que
resulta de obter um algarismo como resultado da soma dos dois anteriores.
Na medida em que nos afastamos do início da sequência, a proporção entre
dois números adjacentes se aproxima, cada vez mais, ao número de ouro, ou a
proporção áurea. A divisão, aparentemente, mais perfeita na natureza.
O matemático francês do século XIX, Edouard Lucas, foi um dos responsáveis
pela redescoberta de Fibonacci, chegando a enuncias uma sequência própria.
Neste primeiro andamento, os números de Fibonacci coincidem com as seções
principais, como se pode ver na Figura 1. E a seção de ouro, de 90 = 55,624,
está entre o fim do desenvolvimento e a volta a casa, a desejada e necessitada
reexposição.
Compositores como Béla Bartók e talvez, quem sabe, Debussy, escreveram
algumas das suas composições tendo em conta princípios que levam em
consideração as proporções baseadas nas sequências de Fibonacci ou de
Lucas.
Um princípio observado na música de Bartók, mas nunca reconhecido por ele
(como as bruxas que, se bem ninguém acredita nelas, elas existem), é o da
teoria dos eixos. Eixos ou retas que passam pelos pontos opostos do círculo
das quintas vão de três em três, atribuindo-se a categoria de subdominante,
dominante e tónica.
Assim, o eixo que passa entre dó e fá sustenido, se se considera T, o outro eixo
que obedecerá a esta categoria, a de T, será o que passa entre lá e mi bemol,
sendo as quatro tonalidades relacionadas com a função de tónica: dó, lá, fá
sustenido e mi bemol.
O eixo que passa por sol (dominante de dó) e dó sustenido, tem o seu par
naquele que passa por mi e si bemol, sendo que estas quatro tonalidades, sol,
mi, dó sustenido e si bemol, assumem a categoria de dominante.
O eixo que passa por fá (subdominante de dó) e si, tem o seu par naquele que
passa por ré e lá bemol, sendo que estas quatro tonalidades, fá, ré, si e lá bemol,
assumem a categoria de dominante.
O plano tonal deste primeiro andamento de concerto assume esta equação e
estrutura a sua forma, como a da Sonata clássica, tónica, dominante, tónica.
Onde a primeira tónica, sol é contraposta pela tonalidade de fá maior,
tonalidade que pertence aos eixos da dominante, ré, fá, lá bemol e si,
relativamente à tonalidade de sol maior.
Figura 1
Figura 2
SEGUNDO ANDAMENTO
O segundo andamento é mais simples em todos os sentidos, trata-se de uma
forma Lied, canção, ABA.
Aqui não há especulações estruturais, as dimensões das frases estão mais
determinadas para manter uma certa quadratura que para estabelecer
proporções naturais (se é que em arte algo pode ser natural).
Na Figura 3 se ilustra a forma geral do andamento, onde a primeira frase se
repete duas vezes para ser seguida da seção B. Na reexposição de A evitou-se
a repetição.
10 20 30
A A' B A''
Dó Dó
Figura 3
A A' B A''
Dó Dó
sibm
D
Figura 4
T T
TERCEIRO ANDAMENTO
O terceiro andamento retoma e vinca a relativa complexidade do primeiro. O
princípio é basicamente o mesmo, o de uma evolução baseada na oposição de
tonalidades que provoquem uma reexposição dos materiais temáticos e a
tonalidade inicial de maneira estável.
A forma conclui no compasso 144, algarismo da sequência de Fibonacci, os
compassos que faltam para concluir, são uma brevíssima coda. A seção de ouro
encontra-se, com a diferença de três compassos, na reexposição, como no
primeiro andamento (ver Figura 5).
A primeira parte da forma está estruturada em subsecções que começam nos
compassos: 5, 21, 34, e 55 até 89, em 90 começa a reexposição. Estes algarismos
fazem parte, causalmente, da sequência de Fibonacci.
reexposição
90(93)
5 21 34 55
dó# dó#
Figura 5
Sol mi
Dó
A Figura 6 ilustra à maneira das Figuras
ré 2 e 4, a evolução ou o percurso tonal
dó
básico. fá
dó# dó#
Sol mi
Dó
ré
dó
fá
mib Solb
sib
D D D
T T T T T
SD SD
T T
Figura
SD
6
fá ré
(D) (D)
SOL dó# Sol Sol mi Sol dó# Sol
(T) (T) (T) (T) (T) (T) (T) (T)
mib dó Dó Solb
(SD) (SD) (SD) (SD)
ANÁLISE MOTÍVICO
O motivo, de motivus, mover, colocar em movimento é a causa o razão de um
movimento, neste caso a causa ou razão ou pretexto da obra musical.
Já Machaut na sua Missa de Nossa Senhora teve essa intuição e semeou a
sua partitura com um “motivo” de poucas notas com um contorno
descendente.
Os compositores do tonalismo perceberam a necessidade de construir a obra
a partir de uma célula inicial, a partir de um ADN que caraterize aquela obra
e a diferencia das outras.
Este Concertino não é a exceção, e recorre a três células principais que são
apresentadas logo no início do primeiro andamento.
A primeira célula é o acorde diluído melodicamente, como pode ver-se no
primeiro compasso, acorde da tonalidade principal da obra. Este recurso, este
tipo de inícios foi utilizado ad nauseam pelos compositores de finais do século
XVIII (Figura 7).
Figura 7- compasso 1
A segunda célula está construída sobre a nota repetida e o ritmo (ver Figura
8):
longo – breve – breve
Figura 8 – compasso 2
Figura 9 – compasso 3
Como pode ver-se, são células vulgares, correntes e que utilizam o material
musical mais frequentado pelos compositores do passado.
Na seção que começa no compasso 13 (Fibonacci), o motivo melódico a cargo
da flauta e do fagote é uma mistura, muito reduzida dos três motivos iniciais
(Figura 10).
Figura 10 – compasso 13
Figura 11
Figura 12
CONCLUSÕES
Seguindo os preceitos que enuncia Poe no seu trabalho sobre a filosofia da
composição, segui o impulso de uma ideia, de um efeito a provocar “no outro”,
e, para isso delineei um plano, um mapa, um percurso por onde ia a transitar
a música, umas linhas por onde iam passar as ideias mais abstratas.
O resto do trabalho foi tentando lembrar a lição de Borges, não interferir
demasiado no que o inconsciente me ditava.
Famalicão 31 de março de 2020
Roberto Alejandro Pérez