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FLORESTAN FERNANDES E A ANÁLISE DO PENSAMENTO MÁGICO 1

Dr. Emanuel Freitas da Silva

Introdução.

Tornado um marco da sociologia brasileira, como bem lembra o título desde seminário cuja
última mesa agora ocupa a nossa atenção, Florestan Fernandes é conhecido como o pensador
brasileiro, dentre os chamados “clássicos do pensamento social”, que melhor teria se ocupado
das dinâmicas do capitalismo no Brasil, das relações entre as raças e as classes aqui produzidas
e de como a revolução burguesa, ou a ausência dela, teria forjado aquilo que se conhece como
“sociedade brasileira”. Pensar em Florestan é, necessariamente, pensar nas análises da
burguesia dependente, da autocracia, do negro no mundo dos brancos, da crítica à suposta
ideia de democracia racial, no protesto negro etc. Mesmo publicações que organizaram textos
de Florestan, como a coletânea organizada pela Editora Expressão Popular, por exemplo,
propuseram-se a mostrar ao leitor o Florestan “crítico e militante”, que seria autor de vasta
obra dentro das temáticas a que me referi, reproduzindo, assim, a ideia de um pensador dessa
área de estudos, e tão somente desta.
Meu caminho, contudo, é diferente, como bem se pode notar a partir do título que dei à esta
modesta comunicação que aqui proferirei. Será a um outro Florestan, pouco lido, pouco
conhecido, que apontarei: o Florestan Fernandes que se dedicou à análise do chamado
“pensamento mágico” em alguns grupos precisos da estrutura social paulista, à qual dedicou
tempo de sua vida inicial de pesquisador das Ciências Sociais, ainda nos anos de 1940. Tentar,
rapidamente, apresentar um outro Florestan, preocupado com questões que tocam de perto o
campo de estudos do imaginário, da religião, da antropologia, e mesmo da cultura sob uma
outra perspectiva que não a das classes, do capitalismo, das relações raciais ou das mudanças
sociais, já tão bem analisadas por estudiosos do pensamento do sociólogo paulista, alguns
deles tendo passado por este seminário.
1.(apresentação da questão do folclore)
Existe um conjunto de textos publicados por Florestan no início de sua carreira acadêmica,
alguns deles inclusive ainda na condição de estudante de graduação, que versam sobre a
problemática do folclore, sobretudo a partir de 1942. Neles, Florestan procura definir o que
seria uma abordagem sociológica dos fenômenos sociais ligados à transmissão de uma
tradição cultural, antes às transformações de uma sociedade em vias de modernização, como
o era a paulista, e toma o folclore como seu córpus de análise. Mostrando uma importante
dimensão do trabalho sociológico, aquela que aponta para a participação dos intelectuais no

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Comunicação proferida em 30 de setembro de 2020 por ocasião do Seminário Gilberto Freyre e
Florestan Fernandes: marcos da Sociologia brasileira, realizado pelo LEPEC-UFC.
debate público, na esfera pública, parte considerável destes textos, de debates com
importante folclorista de seu tempo, foi publicada como artigos no jornal O Estado de São
Paulo, reunidos depois na coletânea intitulada “O Folclore em questão”. Foi valendo-se do
espaço desse jornal, transformando-o numa tribuna pública, como lembra Garcia (2001), que
ele publicou uma série de artigos entre os anos de 1942 e 1962, antes, portanto, das análises
que lhe consagraram no campo sociológico brasileiro, sobretudo suas publicações dos anos de
1960 e 1970. As trocinhas do Bom Retiro , Folclore e grupos infantis, Congadas e batuques em
Sorocaba e Educação e cultura infantil são todos textos dessas época, e mesmo os mais
conhecidos de sua produção do “período de aprendizagem”, expressão com a qual ele mesmo
se referia a esse tempo. Em um desses textos, que considero um dos mais importantes por
tocar de perto a questão do religioso, publicado no referido jornal em novembro de 1944 (e
presente na obra O Folclore em questão), Florestan opera uma cisão com as definições de
folclore que corriam em sua época, e que ainda repercutem em nosso tempo, mostrando o
que ele entende pelo termo. O nome do texto é Mentalidades grupais e folclore; nele se vê um
pesquisador preocupado em “determinar o tipo de conhecimento peculiar ao povo”, por meio
da determinação daquilo que constitui a sua cultura, com destaque para “lendas, tradições,
superstições, advinhas, provérbios”, como se fosse aí, e tão somente aí, que se pudesse
encontrar o povo, numa definição ao mesmo tempo reificada e evolucionista daquilo que seria
o elemento do folclore: aquilo que sobrevive no povo, sinônimo de elemento atrasado. Tal
elemento seria composto, antes e acima de tudo, na concepção popular e também de
folcloristas, das “classes baixas”, dos “meios populares”, que “lançariam mão desses
elementos”, fazendo sobreviver aqueles elementos que impediriam a “secularização da
cultura” (esclerecer). Pensar assim, como pensavam alguns intelectuais e membros da
sociedade, diz Florestan, era repetir “pura e simplesmente o que Levy-Bruhl, autor de a
mentalidade primitiva, fizera ao analisar a cultura dos primitivos, caracterizando uma
mentalidade pré-lógica”. Foi alimentado por essa concepção que, no Brasil, se difundiu a ideia,
em parte até hoje ainda vigente em alguns, de que “um homem do povo apelaria às mágicas e
ao tratamento empírico das doenças, enquanto o burguês procuraria, na mesma situação, a
intervenção de um clínico especializado”. Ledo engano, diz ele; o que pensaria, então, ao ver as
multidões de “burgueses” e grã-finos que, por exemplo, acorriam à cidade de Abadiânia, só
para ficar em um exemplo, em busca das cirurgias, dos passes ou mesmo dos cristais curativos
de João de Deus? Como Florestan teria escapado dessa concepção comum até mesmo entre os
estudiosos da área? Ele responde: “o trabalho de campo abriu lentamente outras
perspectivas”. Empiria. Observação. Participação. Não há saber, diz-nos nosso mestre, como
bem lembrou a professora Irlys, sem o campo, sem a observação sociológica, que dá, segundo
suas palavras, o “fundamento da explicação sociológica”, como lembra o título de um de seus
livros. Finalizando esse texto, ele nos diz que, a partir da observação, pôde concluir que “as
mesmas superstições, as mesmas crendices ocorrem entre as pessoas do povo, como entre os
membros das classes elevadas e cultas”; a diferença é apenas “de grau”. Assim, quer ele nos
dizer no contexto do debate em torno da modernização e do suposto atraso brasileiro, se
eram as crendices ou o folclore a causa do atraso, elas não eram propriedades das classes
subalternas, mas do conjunto da sociedade. Burgueses e proletários. Logo, se folclore
compreendia elementos como advinhas, atos mágicos, superstições etc, ele precisaria de uma
definição mais abrangente que não a de “povo”, ou deveria essa palavra “povo” compreender
um conjunto maior de indivíduos que não somente os das camadas populares. Mas esse
debate não nos interessa aqui, apenas fiz referência a ele para melhor nos situarmos na
questão do pensamento mágico e suas relações com o folclore, como o próprio Florestan a
põe.
2.(o pensamento mágico).
No ano de 1941, a partir de um conjunto de dados obtidos pelo autor em alguns bairros da
capital paulista, Florestan publica o texto Aspectos mágicos do folclore paulistano. Indícios,
simpatias, práticas medicinais, superstições, sonhos e crendices relativas aos santos católicos
compõem o acervo que embasa a riquíssima discussão que se pode ler nas quase 40 páginas
do texto. Citando alguns importantes nomes da Antropologia e da Sociologia (Durkheim,
Frazer, Mauss, Hubert, Bergson, Malinowski, Bastide), o texto inicia com a pretensão de revisar
as relações postas por eles entre “a magia e a mitologia, a religião, a técnica e a ciência”, uma
vez que seria essa “relação” que geraria incompreensão e preconceito com relação às
dimensões reais do folclore no Brasil, que atravessariam as classes, uma vez que na esteira da
divisão entre a magia e os outros componentes da vida social se produziu a representação
desta como prática específica das populações incultas. Mesmo citando nominalmente esses
atores em nota de rodapé, um merecerá destaque no corpo do texto, logo de início: o
sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, para quem, como lembra Florestan, “as estatísticas
acusam o maior número de superstições entre camponeses do que entre habitantes das
cidades” (Problemas Brasileiros de Antropologia). Após transcrever essa passagem de Freyre,
Florestan faz questão de dizer que “essas hipóteses e tantas outras ainda não foram
cientificamente comprovadas”, pondo, assim, Freyre no campo da hipótese e do não
comprovado, do “achismo”, diríamos hoje; e, mais à frente, diz de si mesmo que, “com o
material recolhido, está longe de se provar” a afirmação de Freyre, afirmação que, segundo
ele, tornou-se o senso comum das definições de folclore, que ficou como sendo “a ciência do
saber popular”, que “estuda os grupos mais atrasados nos povos civilizados”. Assim, será com
dados que Fernandes irá se contrapor à Freyre e a tantos outros folcloristas, pois encontrara
indícios de elementos folclóricos/mágicos entre as camadas sociais mais altas; daí sua ideia de
diferença de grau das práticas mágicas entre as classes, não de diferença de natureza (em
outras palavras, mesmo a religião praticada pela burguesia apresentava sinais de
comportamento mágico, não apenas a das classes populares). Se pensarmos, em nossos dias,
em cenas como a da líder do grupo Diante do Trono, imitando um leão a caminhar pelo palco,
atestaremos a veracidade da afirmação de Florestan. Os elementos da magia encontrados por
Florestan mostravam que “implicavam numa determinada representação do mundo, das
coisas, dos seres e dos seus atos”. Existem “mistérios do mundo” que o homem “deve
conhecer e dominar na medida do possível, procurando utilizá-los em seu próprio proveito”. Daí
ser magia e não religião. As coisas e os seres ocultam sua essência aos homens, cabendo-lhes
descobrir. Existem “espíritos inerentes às coisas e aos seres”. Por exemplo: uma dor de cabeça,
um choro de uma criança, uma queda, um acidente: que mistério está aí contido? Como
“tratar” disso? A doença, de mera reação biológica do corpo, o casamento desfeito, a queda, o
choro da criança: tudo passa a ser entendido como “ação de uma froça espiritual”.
Obviamente, como muito depois lembrará Pierre Bourdieu, esse mistério dos seres e das
coisas produzirá indivíduos dedicados a eles, que serão especialistas do sagrado, com destaque
para as benzedeiras, tão bem conhecidas por nós, do Nordeste. São elas cridas como pessoas
que portam “forças, poderes sobrenaturais” que se creem “imanentes a elas”. Uma
diferenciação social, pois, que cria funções. Por isso, Florestan, sociólogo apurado que não se
deixou seduzir pela beleza do campo, conseguiu observar a “competição consciente” (para
lembrar a disputa do campo bourdieusiano) entre as benzedeiras e os curandeiros, algumas
evoluindo para o conflito social propriamente dito. Crença mágica interferindo na estrutura
social. Tais conflitos chegavam, inclusive, a afetar o prestígio do rival, diz Florestan. Numa
cidade de São Paulo cada vez mais urbanizada, em vias de secularização (no sentido que à
época se dava ao termo), observava-se como “os elementos da magia que não mais
correspondessem às necessidades dos indivíduos” seriam “substituídos por outros de maior
eficiência”. A magia, pois, cedendo lugar à técnica, à ciência. Será mesmo assim? Seria assim,
no futuro, afirma Florestan. No presente, naquele presente, o que ele observava era que “os
elementos mágicos interferem continuamente na vida cotidiana dos indivíduos, que a quase
todas as situações possíveis associam uma prática ou uma simpatia determinada”: entrar em
casa com pé direito, não passar debaixo da escada etc. Há momentos, diz ele, em que os
elementos sociais se confundem com elementos mágicos: arroz nos noivos, por exemplo. O
que dizer, ainda mais de “figas, amuletos, rezas, usados com a intenção de afastar as forças
negativas”? “Ao entrar, deus te abençoe, ao sair, deus te acompanhe”, por exemplo. Vai dar
tudo certo, diríamos nós nos nossos dias. “A interpretação lógica dá lugar à interpretação
mágica”, diz ele. Cortar cabelo em lua nova para crescer, não fazer negócios no dia 13, tomar
água antes de deitar para a alma não ter sede, não dormir sem blusa por causa do anjo da
guarda etc. Na distinção que faz entre religião e magia, Florestan nos lembra que na primeira
“o indivíduo adora o sagrado e lhe concede graças”; na segunda, “as divindades trabalham
para o homem”, estando deus e os santos a ele submetidos, devedores de favores aos
homens; assim, nossa religião estaria muito mais próximo de comportamentos mágicos do que
deles distantes; religião mágica. “Vamos fazer deus cumprir suas promessas”, diz-se hoje em
alguns templos. Florestan identifica elementos mágicos em: indícios (encontrar um cachorro
morto é sinal de muita sorte no dia; cachorro que uiva é uma desgraça certa, quebrar espelho
dá azar, emprestar sal jamais); simpatias (ter elefantes sobre os móveis para dar sorte, nome
da pessoa amada debaixo do chinelo); práticas medicinais (só o curandeiro pode curar o
cobreiro); superstições (para a criança não nascer aguada é preciso dar à mulher grávida tudo
o que ela tiver vontade); sonhos (jogo do bicho ou previsão de algo) e crendices relacionadas
aos santos. Todos esses elementos intersecionavam-se entre as classes; longe estavam, pois,
de serem próprios dos atrasados. Eram elementos da brasilidade. Formatavam estilos de vida,
sejam da burguesia seja das camadas populares. Não seria por aí, pelo folclore, que se
explicaria a modernização ou não modernização do país; poucas saídas analíticas eram aí
possíveis. Daí, talvez, que o caminho trilhado por Florestan, nos anos 1960 em diante, tenha
sido o da explicação da capitalismo, da burguesia nacional, da dependência, da relação entre
negros e brancos. Não, portanto, do mundo das crenças e costumes.
3. (a questão da guerra/religião entre os tupinambás).
Falei daquilo que propus como título: a análise do pensamento mágico elaborada por
Florestan. Mas, um outro elemento presente em outra importante, mas esquecida, obra sua é
o da religião. Interessante pontuar que, nas duas oportunidades em ministrei disciplinas na
área de religião, pus-me a buscar em uma série de cursos de graduação e de pós sugestões de
autores brasileiros “clássicos” sobre a temática, sempre uma busca frustrante. Freyre,
Holanda, Prado Jr, nenhum destes, da geração de 30, apresenta uma reflexão sobre o
fenômeno religioso, mesmo porque tal fenômeno começará a ser explorado, em terras
tupiniquins, apenas nos anos 1950, e dentre os autores que aí figuram não está o nome de
Florestan. Estranhamente não está, e isso tem muito a ver com aquilo que Mariza Correia
chamou de “a antropologia esquecida de Florestan”, e que diz respeito à sua produção
etnográfica presente em Organização social dos tupinambás, por muito tempo tido como obra
“funcionalista” e não “antropológica”. Obviamente, não irei aqui esmiuçar a obra, mas duas
citações dessa obra, em que Florestan analisa as relações entre a religião e a estrutura social
dos Tupinambás, me parecem ser interessantes para se tentar alguma reflexão sobre a religião
em nossos dias. Ambas dizem respeito a um lugar muito preciso da religião na sociedade
tupinambá: o da guerra. Na primeira delas, diz ele: “a guerra tinha, naquelas sociedades
tribais, uma origem religiosa – os espíritos interferiam na determinação das incursões e das
expedições guerreiras; ou visava a um fim religioso – a captura de inimigos para o sacrifício
ritual; ou ainda, que ela seguia um curso religioso, estranho aos princípios da arte militar
racional – o sucesso ou o insucesso das atividades guerreiras dependia diretamente do
sobrenatural”. Em outra passagem, ele diz: “na sociedade tupinambá a guerra não servia à
religião, simplesmente: antes, fazia parte dela”. Guerra, religião, sacrifício, inimigos. Tudo isso
nos lembra algo? Haveria elementos da religião tupinambá entre nossos pentecostalismos?

4.(considerações finais e desdobramentos).


Postas estas questões, da obra de Florestan e da minha modesta e (pode até ser) equivocada
leitura no que diz respeito à sua análise sobre o pensamento mágico, encerro por aqui minha
participação na mesa de hoje. Obrigado pela atenção.

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