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Animais impuros: uma análise bíblica

[1]

Jean-Marc Berthoud
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1ª edição, 2020

Tradução: P. S. Athayde Ribeiro


Revisão: Felipe Sabino de Araújo Neto

Proibida a reprodução por quaisquer meios, salvo em breves citações, com indicação da
fonte.
Todas as citações bíblicas foram extraídas da versão Almeida Revista e Atualizada (ARA) salvo
indicação em contrário.
Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a
repreensão, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus
seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra.
(2 Timóteo 3.16-17)

Vocês creem nesse versículo ? Vocês creem realmente que toda


Escritura é inspirada por Deus (neste caso, principalmente o Antigo
Testamento e, desde o encerramento do cânon, também o Novo
Testamento), e que ela é útil para ensinar, para repreender, para corrigir,
para educar na justiça, a fim de que o homem de Deus seja adaptado e
preparado para toda boa obra?
Leiamos Atos 10.9-20:
No dia seguinte, indo eles de caminho e estando já perto da cidade, subiu Pedro ao
eirado, por volta da hora sexta, a fim de orar. Estando com fome, quis comer; mas,
enquanto lhe preparavam a comida, sobreveio-lhe um êxtase; então, viu o céu aberto e
descendo um objeto como se fosse um grande lençol, o qual era baixado à terra pelas
quatro pontas, contendo toda sorte de quadrúpedes, répteis da terra e aves do céu. E
ouviu-se uma voz que se dirigia a ele: Levanta-te, Pedro! Mata e come. Mas Pedro
replicou: De modo nenhum, Senhor! Porque jamais comi coisa alguma comum e
imunda. Segunda vez, a voz lhe falou: Ao que Deus purificou não consideres impuro.
Sucedeu isto por três vezes, e, logo, aquele objeto foi recolhido ao céu. Enquanto Pedro
estava perplexo sobre qual seria o significado da visão, eis que os homens enviados da
parte de Cornélio, tendo perguntado pela casa de Simão, pararam junto à porta; e,
chamando, indagavam se estava ali hospedado Simão, por sobrenome Pedro. Enquanto
meditava Pedro acerca da visão, disse-lhe o Espírito: Estão aí dois homens que te
procuram; levanta-te, pois, desce e vai com eles, nada duvidando; porque eu os enviei.

Todos conhecemos esse texto magnífico que marca o momento da abertura


divina da proclamação do Evangelho às nações pagãs. Foi por causa dessa
abertura que nós estamos aqui. Foi preciso que as prevenções judaicas de
Pedro fossem rompidas para que ele pudesse se voltar às nações e lhes
anunciar o Evangelho e não considerasse mais os pagãos, os gentios, como
impuros. Este é o sentido profundo dessa passagem e que foi considerado
por John MacArthur em seu Comentário sobre Atos. Entretanto, as
explicações que ele nos dá sobre esse texto não nos satisfaz, porque nem
mesmo tenta explicar o que Pedro queria dizer no versículo 14 quando disse
em sua oração a Deus:
De modo nenhum, Senhor! Porque jamais comi coisa alguma comum e imunda.
O que Pedro quis dizer com essa afirmação e o que pode significar a
resposta da voz celeste:
Ao que Deus purificou [katharizo] não consideres impuro ?

Claramente a expressão “ao que Deus purificou” se refere aos animais


recolhidos pelo lençol. No entanto, MacArthur não diz uma palavra sobre
esses animais, ainda que tenha percebido o profundo significado espiritual
dessa passagem do livro de Atos, ou seja, a abertura ao Evangelho, graças
ao sacrifício de Cristo, para todas as nações do mundo. Agora, nos diz
Lucas, por causa da obra da cruz, com toda a evidência não há mais
distinção absoluta (como era o caso na Antiga Aliança) entre a nação
judaica, pura aos olhos de Deus, e as nações não judaicas que permaneciam
em sua impureza. O muro de separação entre judeus e pagãos foi derrubado;
o muro que os separava desapareceu; o véu do Templo agora foi rasgado. O
Evangelho desde então pode ser proclamado livremente entre todas as
nações. Mas o que nos interessa aqui, (e que não foi considerado por John
MacArthur) é compreender o que Pedro queria dizer quando declarou,
peremptoriamente, jamais ter comido algo sujo ou impuro, e o que
significa, precisamente, a resposta dada por Deus através do seu anjo.
Em primeiro lugar examinemos alguns textos do Novo Testamento.
Jesus Cristo, dirigindo-se ao povo, declarou:
Convocando ele, de novo, a multidão, disse-lhes: Ouvi-me, todos, e entendei. Nada há
fora do homem que, entrando nele, o possa contaminar; mas o que sai do homem é o que
o contamina. [Se alguém tem ouvidos para ouvir, ouça.] Quando entrou em casa,
deixando a multidão, os seus discípulos o interrogaram acerca da parábola. Então, lhes
disse: Assim vós também não entendeis? Não compreendeis que tudo o que de fora entra
no homem não o pode contaminar, porque não lhe entra no coração, mas no ventre, e sai
para lugar escuso? E, assim, considerou ele puros todos os alimentos.[2] E dizia: O que
sai do homem, isso é o que o contamina. Porque de dentro, do coração dos homens, é
que procedem os maus desígnios, a prostituição, os furtos, os homicídios, os adultérios,
a avareza, as malícias, o dolo, a lascívia, a inveja, a blasfêmia, a soberba, a loucura. Ora,
todos estes males vêm de dentro e contaminam o homem. (Marcos 7.14-23)

Acima de tudo, o que se destaca neste texto é a declaração de Jesus Cristo :


“Todos os alimentos são puros”. Ora, até a vinda do Messias de Israel, o
Senhor Jesus Cristo, a Bíblia ensinava que certos alimentos, em razão da
condição que adquiriram após a queda, eram intrinsecamente impuros. E
agora, Cristo, enquanto Deus soberano, muda radicalmente esse termo da
lei. Ele declara puro o que o Antigo Testamento declarava impuro. Então
podemos colocar a seguinte questão: “Jesus Cristo anula ou cumpre a lei?”.
Ou melhor, “ele próprio, em sua Pessoa divina e humana, como também em
sua obra de salvação, tornou-se o cumprimento da lei ?”.
O verbo grego em Atos e traduzido aqui para o português por
“purificou” — katharizo — tem importância capital. É a mesma palavra
utilizada pelo anjo na visão de Pedro: “Ao que Deus purificou não
consideres impuro”. Somente Deus pode declarar alguma coisa pura ou
impura. Somente a obra redentora de Deus pode transformar algo impuro
em puro.
Voltemos agora ao livro de Levítico :
O Senhor falou a Moisés e a Arão, dizendo-lhes: Digam aos filhos de Israel: De todos os
animais que existem sobre a terra são estes que vocês podem comer: todos os que têm
unhas fendidas, cujo casco se divide em dois e que ruminam, esses vocês podem
comer. Mas dos que ruminam ou dos que têm casco dividido são estes que vocês não
podem comer: o camelo, que rumina, mas não tem casco dividido; este será impuro para
vocês; o arganaz, porque rumina, mas não tem casco dividido; este será impuro para
vocês; a lebre, porque rumina, mas não tem casco dividido; esta será impura para
vocês. Também o porco, porque tem unhas fendidas e o casco dividido, mas não rumina;
este será impuro para vocês; não comam da sua carne, nem toquem no seu cadáver. Estes
animais serão impuros para vocês. De todos os animais que há nas águas vocês podem
comer os seguintes: todo o que tem barbatanas e escamas, nos mares e nos rios; esses
vocês podem comer. Porém todo o que não tem barbatanas nem escamas, nos mares e nos
rios, todos os que enxameiam as águas e todo ser vivo que há nas águas, estes serão
abominação para vocês. Vocês devem considerá-los uma abominação; não comam da sua
carne e abominem o cadáver desses animais. Todo o que nas águas não tem barbatanas ou
escamas será abominação para vocês. Das aves, estas vocês abominarão; não se comerão,
serão abominação: a águia, o urubu e a águia marinha; o milhano e o falcão, segundo a sua
espécie; todo corvo, segundo a sua espécie; o avestruz, a coruja, a gaivota, o gavião,
segundo a sua espécie; o mocho, o corvo marinho, a íbis, a gralha, o pelicano, o abutre, a
cegonha, a garça, segundo a sua espécie; a poupa e o morcego. Todo inseto que voa e que
anda sobre quatro pés será abominação para vocês. Mas de todo inseto que voa, que anda
sobre quatro pés, cujas pernas traseiras são mais compridas, para saltar com elas sobre a
terra, estes vocês podem comer. Deles, vocês podem comer estes: a locusta, segundo a sua
espécie; o gafanhoto devorador, segundo a sua espécie; o grilo, segundo a sua espécie; e o
gafanhoto, segundo a sua espécie. Mas todos os outros insetos que voam e que têm quatro
pés serão abominação para vocês. E por estes vocês se tornam impuros; quem tocar o
cadáver deles ficará impuro até a tarde. Quem levar o cadáver desses animais deverá lavar
as suas roupas e ficará impuro até a tarde. (Levítico 11.1-25)[3]

Então, se coloca a questão : quais são as três categorias de criaturas


viventes mencionadas no texto? Os animais que vivem sobre a terra, nos
mares e nos ares. Isso imediatamente nos faz lembrar a ordem da criação.
Estamos aqui claramente lidando com algo relacionado à ordem
estabelecida por Deus no princípio, nos seis dias da criação, para todos os
seres viventes. É exatamente isso que a própria estrutura do nosso texto faz
entender. Há uma certa ordem no relato feito por Moisés da obra da criação.
Essas diferentes ordens de animais, como mamíferos, pássaros e peixes,
foram criados em dias diferentes (5º e 6º dias). No final de toda sua obra
criadora, Deus pronunciou estas palavras magníficas sobre o que acabara de
fazer:
Deus viu tudo o que havia feito, e eis que era muito bom. (Gênesis 1.31)

Podemos imaginar que numa criação “muito boa” pudesse haver qualquer
coisa impura? Isso é totalmente impossível. Deus, que é puro em si mesmo,
não pode criar o que quer que seja impuro. A impureza não estava no
princípio. O que veio primeiro foi a perfeita bondade da obra de Deus. A
impureza só veio e se propagou depois.
Se consigo — pelo menos espero — colocar um pouco de luz sobre
esse assunto bastante difícil, isso se deve a um livro que descobri há muitos
anos, na minha distante juventude, quando ainda era um estudante
descrente, o qual tinha o título de Sobre a impureza.[4] Ali há um pequeno
capítulo extraordinário sobre o seguinte tema: “As abominações de
Levítico”. A autora, Mary Douglas, uma antropóloga, não estuda essa
questão sob o ponto de vista cristão e não tem interesse na Bíblia enquanto
livro espiritual e nem na teologia como tal. Ela se refere à Bíblia
unicamente como um testemunho antropológico e fez o que poucos
exegetas antes dela pensaram fazer, ou seja, estudar seriamente o que se
encontra nesse texto da Torá. Sinto dizer, mas nenhum comentarista da
Bíblia que eu conheça, crente ou descrente, efetuou um trabalho como esse
antes de Mary Douglas. Ela simplesmente estudou os detalhes e a estrutura
do texto, procurando compreender exatamente o que ele dizia.
Mary Douglas mostra muito bem a ligação que há entre completude,
integridade, pureza e santidade:
Podemos concluir que [do estudo de alguns textos da Torá sobre santidade] a completude
é típica da santidade. Esta exige que os indivíduos se conformem à sua classe, e que não
haja confusão entre os diferentes grupos de objetos.

Mary Douglas acrescenta:


Ser santo é distinguir, cuidadosamente, as diferentes categorias da criação, é elaborar
definições justas, é ser capaz de discriminação e ordem.

Falando da moral sexual e da santidade, escreveu:


A moral não entra em conflito com a santidade, mas esta consiste mais em separar o que
deve ser separado do que proteger os direitos dos maridos e irmãos.[5]

A primeira referência à impureza na Bíblia se encontra em Gênesis. Trata-


se do relato da entrada dos animais na arca de Noé:
De todo animal puro leve com você sete pares: o macho e sua fêmea. Mas dos animais
impuros leve um par: o macho e sua fêmea. (Gênesis 7.2)

Aqui encontramos a primeira indicação bíblica de uma distinção entre


animais puros e impuros. Não se trata de uma distinção proveniente das leis
do livro de Levítico, mas de uma realidade que já existia há muitos séculos
antes e que o livro de Levítico apenas explicou. Essa impureza está ligada à
condição de um mundo então caído. Após a queda, alguns animais se
tornaram impuros e outros permaneceram puros. Noé devia introduzir na
arca sete pares de animais puros, mas somente um par dos animais impuros.
Por que era preciso preservar na arca maior número de animais puros do
que impuros? Fica claro que Noé já fazia a distinção. Mais ainda, ele sabia
que os animais impuros jamais deveriam ser oferecidos como sacrifício a
Deus. Esta constatação também nos leva a pensar que, desde a queda, Abel
devia conhecer essa regra sobre os sacrifícios agradáveis a Deus, ainda que
a Bíblia não nos indique isso explicitamente. Abel ofereceu um sacrifício
que agradava a Deus. Um animal impuro certamente não teria agradado ao
Criador. Deus preservou os animais impuros porque ele mantém sua
criação. Deus derrama ainda hoje suas bênçãos sobre todos os homens,
sejam bons ou maus. Leiamos agora a distinção noaica entre o puro e o
impuro :
Noé levantou um altar ao Senhor e, tomando de animais puros e de aves puras, ofereceu
holocaustos sobre o altar. (Gênesis 8.20)

Aqui Noé oferece como sacrifício a Deus apenas animais puros.


Agora, façamos uma nova pergunta: O que faz com que um animal
seja puro ou impuro? Este é um assunto sobre o qual a Igreja tentou dar
explicações inúmeras vezes. Toda sorte de interpretações tipológicas e
simbólicas (e até morais) foram inventadas para explicar por que esse ou
aquele animal seria puro ou impuro. No decorrer dos séculos, muito se
escreveu sobre os vícios ou virtudes dos homens, simbolizados de maneira
alegórica por diversos animais citados pela Torá como impuros ou puros,
sobre as virtudes expressas pelo caráter de alguns animais e sobre os vícios
que simbolizavam a natureza de outros animais. Durante os séculos a
exegese nos forneceu muitas outras explicações fantasiosas, infelizmente
totalmente distantes do texto de Levítico que consideramos.
Vejamos, então, o que diz o texto de Levítico. Esse texto descreve as
estruturas zoológicas de diversos tipos de animais, em particular suas
características anatômicas. Trata-se de distinguir, dentre as criaturas criadas
por Deus, aquelas que são puras das que não são. O texto afirma que uma
certa coerência anatômica deve caracterizar um animal para que seja puro.
Ele deve, por exemplo, ter tanto o casco dividido (ou a unha fendida) como
ruminar. Dessa maneira, para que essa categoria de animal ruminante seja
considerada pura, é necessário que ela tenha uma dessas duas
características: o casco dividido ou a unha fendida. A palavra hebraica
traduzida aqui para o português por “ruminar” não tem exatamente o
mesmo sentido atribuído pela biologia moderna, uma vez que alguns
animais colocados nessa categoria não ruminam, como, por exemplo, o
bisão, mas que, na realidade, mastigam longamente seu alimento.[6] Então,
em nosso texto, a palavra “ruminar” significa, para esse animal, o fato de
mastigar longamente o alimento. Portanto, os animais puros devem ter essas
duas características anatômicas: “ruminar” e ter cascos divididos ou unhas
fendidas. Então, estritamente, isso não tem nenhuma relação com as
pretensas qualidades “morais” ou “imorais” atribuídas pela exegese
alegórica a esses animais. Não passam de fantasias de exegetas padecendo
de mania metafórica. Isso também não tem relação nenhuma com
considerações de higiene, mania exegética medicinal mais recente. São
também fantasias — desta vez do homem do século XX — quando,
preocupado com a higiene científica, imagina o mundo como tendo sido
feito à sua imagem. Não, o próprio texto nos diz claramente: isso tem
relação somente com a estrutura fisiológica, própria de diversos tipos de
animais.
Mary Douglas resume a questão nestes termos:
Mas de uma maneira geral, são puros somente os animais que se conformam inteiramente
à sua classe. As espécies impuras são aquelas cujos membros são imperfeitos em relação à
sua classe, ou a classe desafia o esquema geral do universo.

E afirma:
Para ter uma ideia desse esquema, é preciso retornar ao Gênesis e à Criação, onde
encontramos uma primeira classificação do conjunto: a distinção entre a terra, as águas e o
firmamento [a atmosfera]. O livro de Levítico [e com ele toda a Bíblia] retoma o esquema
e designa os animais limpos de cada elemento. No firmamento, são as aves aladas com
duas patas; nas águas, os peixes com escamas que nadam com nadadeiras; sobre a terra,
são os animais com quatro patas e que saltam ou andam. Toda espécie de criaturas não
equipadas para o modo de locomoção que lhe é atribuído em seu elemento, é contrária à
santidade.
E conclui:
O indivíduo que entra em contato com algum desses animais, não está autorizado a entrar
no Templo.[7]

Agora, vejamos quais são os animais que nosso texto declara impuros. O
camelo, por exemplo, é impuro não porque tivesse deficiências morais,
simbólicas ou alegóricas, mas porque em si mesmo é organicamente mal
estruturado em relação ao modelo puro, íntegro, sem defeito; ele é
objetivamente (ontologicamente) desestruturado. Sua estrutura anatômica
não é adequada àquela que Deus lhe deu quando de sua criação. Em certa
medida ele perdeu a forma, a estrutura que lhe foi dada por Deus no
princípio. Falamos aqui de uma espécie de evolução regressiva, mais
precisamente, de um salto regressivo produzido pela queda do homem e
pela corrupção da criação que se seguiu à maldição divina, isto é,
afirmamos que a Bíblia testemunha uma mudança estrutural que teria sido
produzida desde a boa e perfeita criação divina de todas as coisas,
modificação anatômica estrutural que encontramos em certas criaturas. Essa
desestruturação não afeta a estabilidade das diversas espécies, mas estas
ainda se reproduzem como no começo, “segundo sua espécie”.[8] É preciso
destacar aqui uma nova questão. Haveria provas bíblicas de que uma
mudança aconteceu na ordem das criaturas após o momento em que tudo
foi criado de modo perfeitamente bom, numa integridade corporal
totalmente pura, a qual Mary Douglas chama de santidade ou integridade (a
“completude”) da criatura? Sabemos que alguma desordem se instalou no
mundo das criaturas a partir da queda. A morte entrou no mundo. O homem
agora tem de trabalhar no suor do seu rosto. Espinhos e ervas daninhas
invadem o mundo vegetal. A mulher agora dá à luz em meio a dores. No
que concerne aos animais impuros, vemos nisso um aspecto dessa maldição
que caiu sobre a terra. Ou seja, uma desordem se instalou, o que nos leva a
concluir que tanto na esfera da matéria como na esfera da vida, as criaturas
perfeitamente criadas manifestaram alguns efeitos perturbadores da queda.
Nos capítulos seguintes do livro de Levítico, pode-se dizer, por
exemplo, que o fluxo seminal do homem é sinal de desordem, ou seja,
segundo o ensino de Levítico, uma impureza. A menstruação da mulher
também é fonte de impureza. As próprias relações sexuais, mesmo sendo
um dom de Deus excelente, carregam inevitavelmente uma certa impureza,
mesmo naqueles que se uniram corporalmente no âmbito santo do
casamento. O nascimento de uma criança, nos diz a Bíblia, também leva a
mulher a uma condição temporária de impureza. Poderíamos estudar as
diversas razões relativas a esse estado de coisas e nesse caso descobriríamos
que a principal delas é que os fenômenos ligados à transmissão da vida têm
um ponto em comum, ou seja, uma certa perda de vitalidade: perda de
sangue pelas mulheres, que não é outra coisa senão uma diminuição da
força de vida; o fluxo de sêmen pelos homens é também uma perda vital, o
que também explica o caráter bastante nocivo da masturbação e sua
condenação pela Bíblia (Gênesis 38.6-10).[9]
Mas voltemos, após esse desvio, ao nosso camelo. O camelo rumina,
mastiga, mas em sua estrutura anatômica há alguma coisa que não funciona
bem. Como ruminante, ele deveria estar na categoria e na ordem dos
animais que têm o pé dividido ou o casco fendido, como é o caso, por
exemplo, do antílope, da vaca, da ovelha ou da cabra. Mas não é assim com
o nosso camelo, o que faz com que seja impuro, não perfeito, aos olhos do
Criador. O mesmo vale para o porco e isso não tem nenhuma relação com
um pretenso caráter higiênico nocivo de sua carne e menos ainda com seus
hábitos evidentes que qualificamos como “porcarias”, mas diz respeito
unicamente à desordem estrutural que adquiriu após a queda. Ele tem a
unha fendida e o pé dividido, mas não rumina.
Prossigamos em nossa análise. O damão, espécie de marmota,
rumina, ou melhor, mastiga seu alimento; entretanto, não tem casco
dividido; portanto, deve ser corretamente classificado entre as criaturas
impuras. O mesmo vale para a lebre. Esses animais são assim considerados
porque são estrutural e anatomicamente desordenados. Pois não
esqueçamos que para a Bíblia um aspecto fundamental do pecado se chama
desordem. O desenvolvimento progressivo da criação, durante os seis dias
da atividade criadora de Deus, é marcado por seu magnífico crescimento na
ordem.
Tomemos um exemplo. Deus havia separado as águas do alto, as
nuvens, das águas de baixo, o mar, quando criou o firmamento, a atmosfera.
Quando Deus manifestou seu julgamento pelo dilúvio universal, ele
reinstaurou a desordem primária. Ele fez cair as águas do alto para baixo e
abriu as águas subterrâneas para inundar os mares. Por esse movimento
duplo tudo foi novamente inundado, como estava no início da obra criadora
divina. Os continentes haviam desaparecido. Deus, pelo dilúvio, fez
desaparecer a distinção entre os continentes e os mares, eliminando assim,
pelo julgamento, aquela primeira criação cuja corrupção havia chegado a
seu clímax.
Mas, por amor a Noé e sua família, pequeno núcleo portador da
renovação da aliança, Deus restabelece a ordem criacional, a qual, no
entanto, não será exatamente igual à criação original. Por exemplo, antes do
dilúvio, aparentemente, não havia chuva. Caía uma espécie de orvalho, uma
garoa muito fina, provocada pela neblina, e vagarosamente a água
impregnava a natureza. Por isso, sem dúvida, não se conhecia ainda o arco-
íris. O arco-íris apareceu somente após o dilúvio, com as nuvens como as
vemos hoje, misturadas entre os raios do sol num céu tempestuoso.
A Torá nos fala sobre essas categorias particulares de animais
impuros :
[...] não comam da sua carne, nem toquem no seu cadáver. Estes animais serão impuros
para vocês. (Levítico 11.8)

Mais adiante, ainda escreve :


[...] quem tocar o cadáver deles ficará impuro até a tarde [...] Quem levar o cadáver
desses animais deverá lavar as suas roupas e ficará impuro até a tarde. (Levítico 11.24-
25)

Portanto, aquele que tocar um cadáver terá de se purificar e ficará impuro


durante um dia.
Então, o que significa essa palavra “impuro”? Impuro é alguma coisa
que faz com que a pessoa afetada se torne inapta a ter acesso ao que é santo,
a entrar em relação com Deus, como também com tudo que diz respeito ao
culto que é dado a Deus. Deus é santo, Deus é puro. O Sumo Sacerdote não
devia, por exemplo, ter nenhum contato com a impureza qualquer que
fosse. Até mesmo não devia se ocupar pessoalmente com a morte do seu
pai. A morte, nos mostra esses textos, é um dos sinais mais importantes de
impureza. Como vimos, a desordem estrutural é a fonte primária de
impureza; em seguida, como acabamos de ver, a morte é, nela mesma, algo
absolutamente impuro, qualquer que seja a sua forma. Evidentemente, toda
forma de pecado, toda transgressão da Torá resulta, automaticamente, num
estado de impureza. É evidente que quando pecamos, também na Nova
Aliança, perdemos a comunhão com Deus, até que nos arrependamos. Por
causa dos nossos pecados entristecemos o Espírito Santo.
Em seguida vêm os animais aquáticos.
De todos os animais que há nas águas vocês podem comer os seguintes: todo o que tem
barbatanas e escamas, nos mares e nos rios; esses vocês podem comer. Porém todo o que
não tem barbatanas nem escamas, nos mares e nos rios, todos os que enxameiam as
águas e todo ser vivo que há nas águas, estes serão abominação para vocês. (Levítico
11.9-10)

A palavra “abominável” é ainda mais forte do que “impuro”. Por exemplo,


a idolatria para Deus é uma abominação. A homossexualidade é também,
em relação à ordem criada, uma abominação. A feitiçaria é uma
abominação. Os sacrifícios humanos são abominações, em particular o
aborto e a eutanásia. Vemos nisso que as impurezas fisiológicas, que
recebem o qualificativo de “abominável”, são coisas graves.
Que indicações são dadas aqui para distinguir os animais aquáticos
impuros dos que não são? Os animais puros têm de ter escamas e
nadadeiras. Os peixes que possuem escamas e nadadeiras estão nessa
categoria, porque estão na classe dos animais puros, uma vez que
permaneceram na condição em que Deus os havia criado. Mas há animais
marinhos que não têm nadadeiras, nem escamas e que, consequentemente,
são impuros. Por exemplo, a baleia não tem escamas. Isso não tem relação
nenhuma com a qualidade nutritiva de sua carne, nem com o peso desse
mamífero. Na África do Sul, notadamente, costuma-se comer bife de
baleia, que é considerado uma excelente carne. Mas é na estrutura
anatômica da baleia, propriamente, que se manifesta a desordem. A baleia
é um mamífero marinho e não um peixe. Portanto, ela não tem como
vocação primária viver exclusivamente na água. A ordem de Deus exige
que os peixes estejam na água, os mamíferos sobre a terra e as aves nos
ares. Isto é ser conforme a ordem criacional.
A desordem em relação à criação está também (e diríamos,
sobretudo) no pensamento dos homens. Hoje nossa civilização sofre
profundas desordens conceituais, que afetam nossa maneira de pensar
como um todo e, consequentemente, nossas ações. As pessoas, por
exemplo, não sabem mais que existe uma diferença fundamental e
essencial entre um animal e um ser humano. Há algum tempo, uma
senhora, na Livraria La Proue, me disse que quando Deus tinha dito: “Não
matarás”, ele estava ordenando, em primeiro lugar, que não matassem os
animais. E estava totalmente convencida disso. Por outro lado, essa
posição não lhe causou nenhum problema moral, por um dia ter cedido à
tentação de matar, pelo aborto, um filho que havia concebido em seu
ventre. Essa senhora mostrou que há muita desordem nos seus conceitos e
essas desordens às vezes podem ter consequências incalculáveis, até
mesmo mortais, como acabamos de ver.
Entre outras coisas, é contra esse tipo de desordem conceitual que os
textos de Levítico nos alertam. A Bíblia nos diz que a queda desordenou a
criação e em razão disso somos obrigados a reconhecer que há desordem
em nossos pensamentos, a fim de poder refletir corretamente sobre as
categorias estabelecidas pelo próprio Deus na criação, de acordo com a
realidade e, sobretudo, sob uma lógica sã, ou seja, a lógica que
encontramos em cada página da Palavra de Deus. Então, agora vemos até
que ponto essas passagens, aparentemente estranhas, podem ser
edificantes, fortalecedoras da fé e saudáveis para nossa mente.
Prossigamos nossa reflexão.
Não era permitido comer de todos os animais aquáticos, porque os
que se encontravam numa condição de desordem eram proibidos. Segundo
alguns estudos científicos americanos, parece que os animais impuros
inumerados pela Torá teriam uma toxidade maior que os animais
reconhecidamente puros pela Bíblia. Por isso, algumas pessoas recusam
comer esses animais aquáticos por simples razão de saúde. Mas, como
vimos, esse não é o conteúdo verdadeiro dos textos de Levítico que
estamos estudando.
Todas essas proibições deviam lembrar continuamente os judeus; de
que a criação era a expressão de uma ordem vinda de Deus; de que os
efeitos do pecado de Adão se manifestaram na criação, introduzindo nela a
desordem; de que era possível ver os efeitos dessa desordem na realidade de
todos os dias; de que essa distinção entre ordem e desordem podia ser
observada quando das refeições dos israelitas, nas quais cada um deles
devia cuidar para não desonrar a Deus, apresentando um animal impuro
qualquer que fosse.
Foi por essas razões que, diante do lençol cheio de animais de todas as
espécies, Pedro respondeu ao anjo de Deus que lhe ordenava “Mata e
come”, que jamais havia comido um animal impuro ! Também foi o caso do
próprio Jesus Cristo, porque de outra maneira ele teria cometido um ato de
impureza ao desobedecer as injunções da Lei nessa área.
A terceira ordem de animais referidas em Levítico são as aves. Pode-
se perguntar: Por que o avestruz seria considerado um animal impuro? A
resposta é fácil: mesmo sendo uma ave, o avestruz não voa. Uma desordem
análoga ocorre no pinguim. Ele anda sobre a terra e tem tocos de asas, por
isso jamais poderá voar; mais ainda, ele põe ovos como as aves, mas se
comporta como um peixe na água. A maior parte das aves impuras são
consumidores de carne; muitas delas são necrófagas, que se alimentam de
sangue e cadáveres, vivendo da morte. É bem sabido que os judeus não
podiam comer carne com sangue. Essa lei da Torá, estabelecida após Noé
ter deixado a arca depois do dilúvio, ainda é observada pelos judeus
“ortodoxos”. Ela se aplicava, igualmente, a todos os animais, puros ou
impuros.
A razão disso é simples. A alma, a vida do animal se encontra em seu
sangue; ainda que sejamos autorizados desde o dilúvio a comer carne, no
entanto é preciso respeitar o animal, criatura de Deus. Por isso é proibido
comer seu sangue. Aliás, a obediência a essa proibição de comer o sangue
com a carne tinha sido recomendada aos primeiros cristãos de origem pagã
no primeiro Concílio de Jerusalém (Atos 15.29). Talvez tal proibição fosse
ainda normativa para a Igreja. Não vejo muita razão bíblica para que isso
não seja o caso. Assim, não penso que seja conveniente, por exemplo, para
um cristão comer chouriço de sangue.
Aqui entra um outro elemento a ser levado em conta: a presença da
morte, porque tudo no tocante à morte é impuro. Por quê ? Porque a morte é
a consequência direta do pecado e, afora as bênçãos da expiação e da
ressurreição de Cristo, toda criatura traz sua marca indelével. Portanto, a
morte é algo completamente anormal e impuro. Deus deu a vida e então
aconteceu essa terrível desordem que é a morte. Ela não deveria existir.
Para aqueles que estão em Jesus Cristo, num certo sentido ela não existe
mais. No entanto, a morte continua sendo uma passagem difícil, mesmo
para um cristão. A morte é o último inimigo. Mas, como cada cristão
recebeu as primícias da vida eterna, resta para cada um de nós que estamos
em Jesus Cristo, uma esperança certa nesse último combate que é a nossa
própria morte.
Uma outra questão nos é colocada. Por que vemos tanta desordem na
criação de Deus? Com a introdução do pecado no mundo se produziu uma
mudança brusca nessa boa ordem das coisas criadas desde o início por
Deus. A Bíblia nos fala disso quando evoca o surgimento de cardos e
espinhos, o suor do trabalho e o sofrimento que agora acompanha o parto e
o nascimento de uma criança. A desordem se introduziu nesta criação
originalmente tão boa e tão perfeitamente ordenada. É o que nos diz o
oitavo capítulo da epístola de Paulo aos romanos, quando se refere à noção,
para nós estranha, dos sofrimentos da criação que, com ardente desejo,
espera sua redenção da “vaidade”, pela manifestação completa dos filhos de
Deus (Romanos 8.19).
Voltemo-nos, agora, para o Novo Testamento. No Evangelho segundo
João, lemos:
No dia seguinte, vendo que Jesus vinha em sua direção, João disse: Eis o Cordeiro de
Deus, que tira o pecado do mundo. (João 1.29)
O que significa essa palavra “mundo”? É o termo grego “cosmos”, que quer
dizer universo. Deveríamos melhor traduzi-la por: “Eis o cordeiro de Deus
que tira o pecado do universo”. Essa declaração tão simples nos ajuda a
entender de forma mais clara essa questão da impureza dos animais. Diante
de João Batista estava Cristo, o Filho de Deus feito homem, que mais tarde
vai, voluntariamente, morrer sobre uma cruz para retirar, nele mesmo, a
justa condenação dos nossos pecados. Mas precisamos também aí
acrescentar — e isso é muito importante — a impureza de todos os animais
estruturalmente desordenados. Certamente, tal purificação do universo em
toda sua extensão passará pela manifestação dos eleitos, dos filhos de Deus,
da Igreja, as primícias da nova criação, pura e sem mancha. Quando da
Segunda Vinda de Jesus Cristo os eleitos serão todos reunidos na Jerusalém
celeste e tudo terá mudado. Os gemidos de uma criação até então entregue à
vaidade cessarão para sempre. Estamos aqui diante de um Evangelho
extraordinário, ou seja, pelo sacrifício do Filho de Deus feito homem e a
fidelidade de seu povo, a Igreja, o restabelecimento da ordem original é
realizado, agora numa criação totalmente purificada, nova terra e novos
céus, dos quais toda impureza e a própria morte terão desaparecido.
Enfim, o livro de Levítico nos descreve uma quarta categoria de
animais impuros. Trata-se aqui de todos aqueles seres que rastejam e que
levam assim a marca da maldição divina sobre a Serpente antiga (Gênesis
3.14). Esses são impuros porque levam em sua natureza caída, selada pela
desordem, a marca da serpente maldita, isto é, o fato de rastejarem sobre o
ventre. Eles nos falam do pecado original, nos lembram da queda de nossos
primeiros pais, evocam a devastação da boa criação de Deus. É por essa
razão que, até um período recente, os homens tinham, habitualmente, um
santo horror das serpentes. Podemos dizer que a perda atual, em muitos de
nossos contemporâneos, dessa aversão antiga e instintiva à serpente, seria
um indício de que vivemos mesmo sob o selo da Serpente antiga, solta por
um pouco de tempo dos abismos infernais (Apocalipse 20.7-8).
Poderíamos caminhar longamente em nosso estudo sobre esse capítulo
surpreendente de Levítico. Muitas outras coisas interessantes poderiam ser
tiradas dali. Veríamos que a impureza afeta os próprios objetos: roupas,
utensílios e casas. Se um animal impuro tem contato com uma panela, é
preciso lavá-la, purificá-la, até mesmo destruí-la. Tudo isso mostra como é
impossível imaginar que possamos nos salvar por nós mesmos, pela ação de
nossa própria vontade, por nossa própria decisão ou esforços. Porque a
natureza caída daquele que procura salvar-se a si mesmo está corrompida,
desordenada, incapaz de qualquer bem diante de Deus. Também não é
possível que nos salvemos por nossos próprios esforços, uma vez que toda a
criação mergulhou numa tal corrupção estrutural e desde a queda
permanece nesse estado. É essa a ilusão da ideologia ecológica. Hoje nos
encontramos face à sujeira crescente de um mundo que, em consequência
de suas ambições faraônicas, tornou-se intrinsecamente poluidor, em razão
de seu orgulho e por sua ambição tecnocrática que domina todas as coisas.
[10]
Entretanto, em seu orgulho e utopia como pecadores endurecidos, os
ecologistas panteístas de nosso tempo imaginam que, por seus esforços
técnicos, têm o poder de salvar a natureza ameaçada por uma poluição
irreversível. Mas eles se enganam em seu sonho messiânico de uma nova
ordem.[11] O mal, que é essa poluição da natureza, está muito além de tudo
que seus vãos esforços poderiam fazer.
Mary Douglas resume mais uma vez e de maneira muito clara as
implicações dessa legislação bíblica:
Se a interpretação dos animais proibidos que acabamos de propor está correta, então as
prescrições alimentares teriam sido como sinais que, a todo momento, inspirariam a
meditação sobre a unicidade, a pureza e a plenitude de Deus. Essas regras de abstinência
permitiam aos homens exprimir materialmente a santidade em cada encontro com o reino
animal e em cada refeição. A observância das prescrições alimentares seria, então, uma
parte significativa do grande ato litúrgico que era o reconhecimento de Deus e sua
adoração – ato que culminava no sacrifício do Templo.[12]

E o momento culminante do sacrifício no Templo foi concretizado no


sacrifício oferecido pelo Salvador do mundo, o Redentor do cosmos, nosso
Salvador pessoal, o Senhor Jesus Cristo que, por esse ato propiciatório
único, tirou, para aqueles que põem nele sua confiança, o pecado e a sujeira
do mundo.
Leiamos, ainda, alguns textos bíblicos que podem deixar mais claro o
conteúdo surpreendente e atual dessas antigas regras de pureza.
Então o Senhor falou a Arão, dizendo: Você e seus filhos não devem beber vinho ou
bebida forte, quando entrarem na tenda do encontro, para que não morram. Isso será
estatuto perpétuo entre as suas gerações, para que vocês façam diferença entre o santo e o
profano e entre o impuro e o puro e para ensinarem aos filhos de Israel todos os estatutos
que o Senhor lhes tem falado por meio de Moisés. (Levítico 10.8-11)
Guardem, portanto, todos os meus estatutos e cumpram todos os meus juízos, para que a
terra para a qual eu os estou levando, para nela habitar, não os vomite de lá. Não andem
nos costumes dos povos que eu vou expulsar de diante de vocês, porque fizeram todas
estas coisas; por isso, me aborreci deles. Mas a vocês eu já disse que herdarão a terra
deles; eu a darei a vocês em herança, terra que mana leite e mel. Eu sou o Senhor, o Deus
de vocês, que os separei dos outros povos. Portanto, façam distinção entre os animais
puros e os impuros e entre as aves impuras e as puras; não se façam abomináveis por
causa dos animais, ou das aves, ou de tudo o que se arrasta sobre a terra, os quais separei
de vocês, para que as considerem impuras. Sejam santos para mim, porque eu, o Senhor,
sou santo e os separei dos outros povos, para que sejam meus. (Levítico 20.22-26)

Lemos também, no livro do profeta Jeremias, estas palavras muito


encorajadoras:
Portanto, assim diz o Senhor: “Se você se arrepender, eu o farei voltar e você estará
diante de mim. Se separar o que é precioso daquilo que não presta, você será a minha
boca. Eles se voltarão para você, mas você não passará para o lado deles. (Jeremias 15.19)

Vemos, nesses textos, que a função dos levitas (e dos profetas, quando os
levitas não cumpriam fielmente sua vocação) era fazer a separação (ou seja,
distinguir bem) o puro do impuro. Mas atualmente, não se respeita mais
nenhuma dessas distinções. Na melhor das hipóteses são consideradas como
contendo um ensino moral, espiritual, retirando desses textos seu sentido
literal e cósmico, isto é, alegorizando-os e espiritualizando-os. Ou ainda,
dando a eles uma interpretação higiênica totalmente fantasiosa. No entanto,
a epístola aos Hebreus nos mostra que esse ensino, de certa maneira, ainda é
válido para os cristãos. Falo aqui do sentido profundo desses preceitos e não
de sua aplicação prática para aqueles que, em Cristo, participam da nova
criação.
Mas o alimento sólido é para os adultos, para aqueles que, pela prática, têm as suas
faculdades exercitadas para discernir não somente o bem, mas também o mal. (Hebreus
5.14)

Voltemos, então, ao nosso ponto de partida, ao texto de Marcos 7, versículo


19 que, em sua segunda parte, nos diz que Jesus considerou puros todos os
alimentos. Então Deus teria contradito todos os ensinos de sua Palavra que
acabamos de estudar? Vejamos, então, na tentativa de encontrar resposta
para essa questão, um texto do livro de Atos. Tiago, o chefe da Igreja de
Jerusalém, toma a palavra no primeiro Concílio da Igreja universal:
Por isso, julgo que não devemos perturbar aqueles que, entre os gentios, se convertem a
Deus, mas escrever-lhes que se abstenham das contaminações dos ídolos [da
idolatria], bem como da imoralidade [das perversões sexuais] sexual, da carne de animais
sufocados e do sangue. (Atos 15.19-20)

Claramente aqui não se trata das impurezas dos animais. Por que todas
essas leis agora seriam ignoradas pelos Apóstolos reunidos nesse Primeiro
Concílio da história da Igreja? Escrevendo aos Coríntios, Paulo se mostra
ainda mais categórico sobre a grande liberdade alimentar dos cristãos :
Comam de tudo o que se vende no mercado, sem questionamento algum por motivo de
consciência. Porque do Senhor é a terra e a sua plenitude. Se alguém que não é crente
convidá-los para comer, e vocês quiserem ir, comam de tudo o que for posto diante de
vocês, sem questionamento algum por motivo de consciência. (1 Coríntios 10.25-27)

Aos Colossenses, Paulo escreve ainda sobre esse assunto, diante do ensino
de Levítico que acabamos de estudar :
Portanto, que ninguém julgue vocês por causa de comida e bebida, ou dia de festa, ou lua
nova, ou sábados, porque tudo isso tem sido sombra das coisas que haviam de vir; porém
o corpo é de Cristo. (Colossenses 2.16-17)

E Paulo escreve ainda a Timóteo sobre os judeus que queriam impor as


regras alimentares de Levítico — e também aquelas provenientes da gnose
que não têm relação nenhuma com o que lemos no Antigo Testamento —
aos cristãos vindos do paganismo e que agora são novas criaturas em Jesus
Cristo :
[...] que proíbem o casamento e exigem abstinência de alimentos que Deus criou para
serem recebidos com gratidão pelos que creem e conhecem a verdade. Pois tudo o que
Deus criou é bom, e, se recebido com gratidão, nada é recusável, porque é santificado pela
palavra de Deus e pela oração. (1 Timóteo 4.3-5)

A palavra de Deus é Jesus Cristo, e a oração é fé. Por Jesus Cristo e pela
fé nele, tudo para o cristão é puro.
Todas as coisas são puras para os puros; mas, para os impuros e descrentes, nada é puro.
Porque tanto a mente como a consciência deles estão corrompidas. (Tito 1.15)

Aquele que está em Cristo jamais peca. Nós pecamos quando olhamos para
outras coisas, em vez de Cristo. Se estivéssemos em perfeita comunhão com
Cristo, jamais pecaríamos. Se estivéssemos em perfeita comunhão com
Jesus Cristo, jamais ficaríamos inquietos pelo futuro. Quando Deus nos faz
passar por provações, tem o objetivo de nos trazer ainda mais próximos
dele, para aumentar nossa intimidade com Jesus Cristo. É assim que, por
dificuldades diversas, Deus nos educa e nos santifica. É nessa perspectiva
que:
Todas as coisas são puras para os puros.

Mas nada é puro, absolutamente nada é santo, para aqueles que são sujos e
incrédulos.
Portanto, há somente duas raças. Há aqueles que, pelo novo
nascimento, entraram na nova criação, por quem Cristo morreu, a fim de
limpar todas as suas impurezas, todos os seus pecados, todas as suas
sujeiras, as do seu corpo, da alma e do espírito. Desde então, pertencem à
nova criação. É por essa razão que agora estamos livres, nós que estamos
em Cristo, para comer carne de porco sem com isso ficarmos sujos, porque
tudo é santificado pela palavra de Deus e pela oração.
Mas de maneira nenhuma isso vale para os que não estão em Cristo,
porque quando transgridem essas leis antigas de santidade e de pureza (o
que fazem todos os dias !), tornam-se, inevitavelmente, cada vez mais
impuros.
É isso que estamos vendo ao nosso redor hoje. Vemos duas coisas: por
um lado a santificação dos verdadeiros cristãos e, por outro — e isso ao
mesmo tempo! — o crescimento sem freio da impureza mais extraordinária,
da sujeira física, moral e espiritual que se alastra por tudo e cada vez mais
no mundo. Se pertencemos a essa nova criação, a Jesus Cristo, se
pertencemos a essa ordem nova que Cristo estabeleceu sendo as primícias
por sua morte na cruz, somente ele poderia, por sua Palavra recriadora,
declarar puro o que outrora era impuro; então podemos compreender duas
coisas: 1) por um lado, a imensidão desse fardo de impureza e de pecado do
qual fomos libertados, o que deveria fazer crescer, além de toda medida,
nossa gratidão para com Deus ; 2) por outro lado, um certo temor que temos
pelos homens, aqueles que estão ainda atolados em todo esse sistema de
impureza que, hoje ainda, mantém cativa a criação caída.
Os homens sem Deus não são protegidos dos efeitos dessa sujeira,
porque não pertencem, como nós pertencemos, à nova criação. Mas tem
mais. Eles esqueceram essa regras antigas que, em certa medida, protegiam
os homens das civilizações antigas dessa corrupção que está no mundo
como consequência do primeiro pecado. Porque, conforme os diversos
estudos contidos no livro de Mary Douglas, De la Souillure [Sobre a
impureza], nota-se que as sociedades antigas compreendiam, com toda
probabilidade, embora de maneira imperfeita, a importância dessas
realidades. Em consequência disso, procuravam precaver-se contra tais
perigos; para elas essas questões eram sérias, consideradas até mesmo
fatais. Hoje, não compreendemos mais nada de todas essas realidades.
Nessa área nos tornamos ainda mais ignorantes do que aqueles que
costumávamos chamar de primitivos. Os verdadeiros primitivos, os
ignorantes e cegos, são as pessoas do nosso tempo. É por tais razões que a
situação espiritual atual do Ocidente é muito mais grave do que a situação
do paganismo nos tempos do apóstolo Paulo. Entre outros fatores, isso é o
que explicaria por que a evangelização, verdadeiramente bíblica, tornou-se
hoje tão difícil em nossas terras.
Terminaremos nosso estudo com um texto extraído do Apocalipse:
Disse-me ainda: Não sele as palavras da profecia deste livro, porque o tempo está
próximo. Continue o injusto a fazer injustiça, e continue o imundo a ser imundo. O justo
continue na prática da justiça, e o santo continue a santificar-se.[13] Eis que venho sem
demora, e comigo está a recompensa que tenho para dar a cada um segundo as suas
obras. Eu sou o Alfa e o Ômega, o Primeiro e o Último, o Princípio e o Fim. Bem-
aventurados aqueles que lavam as suas vestes, para que tenham direito à árvore da vida e
entrem na cidade pelos portões. Fora ficam os cães, os feiticeiros, os impuros, os
assassinos, os idólatras e todo aquele que ama e pratica a mentira. Eu, Jesus, enviei o meu
anjo para dar testemunho destas coisas a vocês nas igrejas. Eu sou a Raiz e a Geração de
Davi, a brilhante Estrela da Manhã. O Espírito e a noiva dizem: Vem! Aquele que ouve,
diga: Vem! Aquele que tem sede venha, e quem quiser receba de graça a água da vida. Eu,
a todo aquele que ouve as palavras da profecia deste livro, testifico: Se alguém lhes fizer
qualquer acréscimo, Deus lhe acrescentará os flagelos escritos neste livro. E, se alguém
tirar qualquer coisa das palavras do livro desta profecia, Deus tirará a sua parte da árvore
da vida, da cidade santa e das coisas que estão escritas neste livro. Aquele que dá
testemunho destas coisas diz: Certamente venho sem demora. Amém! Vem, Senhor Jesus!
A graça do Senhor Jesus esteja com todos. (Apocalipse 22.10-21)
[1]
Estudo bíblico, Eglise Réformée Baptiste de Lausanne, na quinta-feira 28 de fevereiro de 2003,
com o título “O significado, na Bíblia, dos animais impuros”. Mantivemos o estilo oral desse estudo.
[2]
Esta é a nota da Bíblia à la Colombe (Aliança Bíblica Universal, Paris, 1978, Novo Testamento, p.
62) sobre essa passagem: “Literalmente: a ação de declarar puro todos os alimentos só poderia vir de
Jesus”.
[3]
Veja, entre outros textos, Deuteronômio 14.1-21.
[4]
Mary Douglas, De la souillure. Essais sur les notions de Pollution et de Tabou, François Maspero,
Paris, 1971. “Les abominations du Lévitique”, p. 61-76. A versão inglesa original, intitulada Purity
and Danger, data de 1966.

[5]
Mary Douglas, De la souillure, op. cit., p. 72-73.
[6]
Esta é a definição dada à palavra “ruminar”, pelo Littré resumido : “Engolir os alimentos sem
mastigar e mastigá-los novamente, antes de sua passagem para os intestinos”. Émile Littré,
Dictionnaire de la Langue française, abrégé par A. Beaujean, Éditions Universitaires, Paris, 1958, p.
1088.
[7]
Mary Douglas, De la souillure, op. cit., p. 74-75.
[8]
Veja as obras seguintes sobre a estabilidade das espécies: Olivier Nguyen, Stabilité des espèces.
L’Enquête, Éditions du Jubilé, Montrouge, 2014 ; A. C. Cotter, Natural Species. An Essay in
Definition and Classification, The Weston College Press, Weston, 1947.
[9]
Veja: J. M. Berthoud, W. Chantry, C. Provan, S. Scharf, Les Saintes-Écritures et le contrôle des
naissances, La Société Thénomiste de France, Golfe-Juan, 2002.
[10]
Trata-se do slogan do mundo moderno, de Francis Bacon e René Descartes: o homem
tecnocrático moderno, mestre e dominador de todas as coisas.
[11]
A utopia messiânica, racista e ecologista nazista é uma das maiores fontes da ecologia moderna.
[12]
Mary Douglas, op. cit., p. 76.
[13]
Nós subscrevemos.

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