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[1]
Jean-Marc Berthoud
Copyright © 2020, de Editora Monergismo
Proibida a reprodução por quaisquer meios, salvo em breves citações, com indicação da
fonte.
Todas as citações bíblicas foram extraídas da versão Almeida Revista e Atualizada (ARA) salvo
indicação em contrário.
Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a
repreensão, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus
seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra.
(2 Timóteo 3.16-17)
Podemos imaginar que numa criação “muito boa” pudesse haver qualquer
coisa impura? Isso é totalmente impossível. Deus, que é puro em si mesmo,
não pode criar o que quer que seja impuro. A impureza não estava no
princípio. O que veio primeiro foi a perfeita bondade da obra de Deus. A
impureza só veio e se propagou depois.
Se consigo — pelo menos espero — colocar um pouco de luz sobre
esse assunto bastante difícil, isso se deve a um livro que descobri há muitos
anos, na minha distante juventude, quando ainda era um estudante
descrente, o qual tinha o título de Sobre a impureza.[4] Ali há um pequeno
capítulo extraordinário sobre o seguinte tema: “As abominações de
Levítico”. A autora, Mary Douglas, uma antropóloga, não estuda essa
questão sob o ponto de vista cristão e não tem interesse na Bíblia enquanto
livro espiritual e nem na teologia como tal. Ela se refere à Bíblia
unicamente como um testemunho antropológico e fez o que poucos
exegetas antes dela pensaram fazer, ou seja, estudar seriamente o que se
encontra nesse texto da Torá. Sinto dizer, mas nenhum comentarista da
Bíblia que eu conheça, crente ou descrente, efetuou um trabalho como esse
antes de Mary Douglas. Ela simplesmente estudou os detalhes e a estrutura
do texto, procurando compreender exatamente o que ele dizia.
Mary Douglas mostra muito bem a ligação que há entre completude,
integridade, pureza e santidade:
Podemos concluir que [do estudo de alguns textos da Torá sobre santidade] a completude
é típica da santidade. Esta exige que os indivíduos se conformem à sua classe, e que não
haja confusão entre os diferentes grupos de objetos.
E afirma:
Para ter uma ideia desse esquema, é preciso retornar ao Gênesis e à Criação, onde
encontramos uma primeira classificação do conjunto: a distinção entre a terra, as águas e o
firmamento [a atmosfera]. O livro de Levítico [e com ele toda a Bíblia] retoma o esquema
e designa os animais limpos de cada elemento. No firmamento, são as aves aladas com
duas patas; nas águas, os peixes com escamas que nadam com nadadeiras; sobre a terra,
são os animais com quatro patas e que saltam ou andam. Toda espécie de criaturas não
equipadas para o modo de locomoção que lhe é atribuído em seu elemento, é contrária à
santidade.
E conclui:
O indivíduo que entra em contato com algum desses animais, não está autorizado a entrar
no Templo.[7]
Agora, vejamos quais são os animais que nosso texto declara impuros. O
camelo, por exemplo, é impuro não porque tivesse deficiências morais,
simbólicas ou alegóricas, mas porque em si mesmo é organicamente mal
estruturado em relação ao modelo puro, íntegro, sem defeito; ele é
objetivamente (ontologicamente) desestruturado. Sua estrutura anatômica
não é adequada àquela que Deus lhe deu quando de sua criação. Em certa
medida ele perdeu a forma, a estrutura que lhe foi dada por Deus no
princípio. Falamos aqui de uma espécie de evolução regressiva, mais
precisamente, de um salto regressivo produzido pela queda do homem e
pela corrupção da criação que se seguiu à maldição divina, isto é,
afirmamos que a Bíblia testemunha uma mudança estrutural que teria sido
produzida desde a boa e perfeita criação divina de todas as coisas,
modificação anatômica estrutural que encontramos em certas criaturas. Essa
desestruturação não afeta a estabilidade das diversas espécies, mas estas
ainda se reproduzem como no começo, “segundo sua espécie”.[8] É preciso
destacar aqui uma nova questão. Haveria provas bíblicas de que uma
mudança aconteceu na ordem das criaturas após o momento em que tudo
foi criado de modo perfeitamente bom, numa integridade corporal
totalmente pura, a qual Mary Douglas chama de santidade ou integridade (a
“completude”) da criatura? Sabemos que alguma desordem se instalou no
mundo das criaturas a partir da queda. A morte entrou no mundo. O homem
agora tem de trabalhar no suor do seu rosto. Espinhos e ervas daninhas
invadem o mundo vegetal. A mulher agora dá à luz em meio a dores. No
que concerne aos animais impuros, vemos nisso um aspecto dessa maldição
que caiu sobre a terra. Ou seja, uma desordem se instalou, o que nos leva a
concluir que tanto na esfera da matéria como na esfera da vida, as criaturas
perfeitamente criadas manifestaram alguns efeitos perturbadores da queda.
Nos capítulos seguintes do livro de Levítico, pode-se dizer, por
exemplo, que o fluxo seminal do homem é sinal de desordem, ou seja,
segundo o ensino de Levítico, uma impureza. A menstruação da mulher
também é fonte de impureza. As próprias relações sexuais, mesmo sendo
um dom de Deus excelente, carregam inevitavelmente uma certa impureza,
mesmo naqueles que se uniram corporalmente no âmbito santo do
casamento. O nascimento de uma criança, nos diz a Bíblia, também leva a
mulher a uma condição temporária de impureza. Poderíamos estudar as
diversas razões relativas a esse estado de coisas e nesse caso descobriríamos
que a principal delas é que os fenômenos ligados à transmissão da vida têm
um ponto em comum, ou seja, uma certa perda de vitalidade: perda de
sangue pelas mulheres, que não é outra coisa senão uma diminuição da
força de vida; o fluxo de sêmen pelos homens é também uma perda vital, o
que também explica o caráter bastante nocivo da masturbação e sua
condenação pela Bíblia (Gênesis 38.6-10).[9]
Mas voltemos, após esse desvio, ao nosso camelo. O camelo rumina,
mastiga, mas em sua estrutura anatômica há alguma coisa que não funciona
bem. Como ruminante, ele deveria estar na categoria e na ordem dos
animais que têm o pé dividido ou o casco fendido, como é o caso, por
exemplo, do antílope, da vaca, da ovelha ou da cabra. Mas não é assim com
o nosso camelo, o que faz com que seja impuro, não perfeito, aos olhos do
Criador. O mesmo vale para o porco e isso não tem nenhuma relação com
um pretenso caráter higiênico nocivo de sua carne e menos ainda com seus
hábitos evidentes que qualificamos como “porcarias”, mas diz respeito
unicamente à desordem estrutural que adquiriu após a queda. Ele tem a
unha fendida e o pé dividido, mas não rumina.
Prossigamos em nossa análise. O damão, espécie de marmota,
rumina, ou melhor, mastiga seu alimento; entretanto, não tem casco
dividido; portanto, deve ser corretamente classificado entre as criaturas
impuras. O mesmo vale para a lebre. Esses animais são assim considerados
porque são estrutural e anatomicamente desordenados. Pois não
esqueçamos que para a Bíblia um aspecto fundamental do pecado se chama
desordem. O desenvolvimento progressivo da criação, durante os seis dias
da atividade criadora de Deus, é marcado por seu magnífico crescimento na
ordem.
Tomemos um exemplo. Deus havia separado as águas do alto, as
nuvens, das águas de baixo, o mar, quando criou o firmamento, a atmosfera.
Quando Deus manifestou seu julgamento pelo dilúvio universal, ele
reinstaurou a desordem primária. Ele fez cair as águas do alto para baixo e
abriu as águas subterrâneas para inundar os mares. Por esse movimento
duplo tudo foi novamente inundado, como estava no início da obra criadora
divina. Os continentes haviam desaparecido. Deus, pelo dilúvio, fez
desaparecer a distinção entre os continentes e os mares, eliminando assim,
pelo julgamento, aquela primeira criação cuja corrupção havia chegado a
seu clímax.
Mas, por amor a Noé e sua família, pequeno núcleo portador da
renovação da aliança, Deus restabelece a ordem criacional, a qual, no
entanto, não será exatamente igual à criação original. Por exemplo, antes do
dilúvio, aparentemente, não havia chuva. Caía uma espécie de orvalho, uma
garoa muito fina, provocada pela neblina, e vagarosamente a água
impregnava a natureza. Por isso, sem dúvida, não se conhecia ainda o arco-
íris. O arco-íris apareceu somente após o dilúvio, com as nuvens como as
vemos hoje, misturadas entre os raios do sol num céu tempestuoso.
A Torá nos fala sobre essas categorias particulares de animais
impuros :
[...] não comam da sua carne, nem toquem no seu cadáver. Estes animais serão impuros
para vocês. (Levítico 11.8)
Vemos, nesses textos, que a função dos levitas (e dos profetas, quando os
levitas não cumpriam fielmente sua vocação) era fazer a separação (ou seja,
distinguir bem) o puro do impuro. Mas atualmente, não se respeita mais
nenhuma dessas distinções. Na melhor das hipóteses são consideradas como
contendo um ensino moral, espiritual, retirando desses textos seu sentido
literal e cósmico, isto é, alegorizando-os e espiritualizando-os. Ou ainda,
dando a eles uma interpretação higiênica totalmente fantasiosa. No entanto,
a epístola aos Hebreus nos mostra que esse ensino, de certa maneira, ainda é
válido para os cristãos. Falo aqui do sentido profundo desses preceitos e não
de sua aplicação prática para aqueles que, em Cristo, participam da nova
criação.
Mas o alimento sólido é para os adultos, para aqueles que, pela prática, têm as suas
faculdades exercitadas para discernir não somente o bem, mas também o mal. (Hebreus
5.14)
Claramente aqui não se trata das impurezas dos animais. Por que todas
essas leis agora seriam ignoradas pelos Apóstolos reunidos nesse Primeiro
Concílio da história da Igreja? Escrevendo aos Coríntios, Paulo se mostra
ainda mais categórico sobre a grande liberdade alimentar dos cristãos :
Comam de tudo o que se vende no mercado, sem questionamento algum por motivo de
consciência. Porque do Senhor é a terra e a sua plenitude. Se alguém que não é crente
convidá-los para comer, e vocês quiserem ir, comam de tudo o que for posto diante de
vocês, sem questionamento algum por motivo de consciência. (1 Coríntios 10.25-27)
Aos Colossenses, Paulo escreve ainda sobre esse assunto, diante do ensino
de Levítico que acabamos de estudar :
Portanto, que ninguém julgue vocês por causa de comida e bebida, ou dia de festa, ou lua
nova, ou sábados, porque tudo isso tem sido sombra das coisas que haviam de vir; porém
o corpo é de Cristo. (Colossenses 2.16-17)
A palavra de Deus é Jesus Cristo, e a oração é fé. Por Jesus Cristo e pela
fé nele, tudo para o cristão é puro.
Todas as coisas são puras para os puros; mas, para os impuros e descrentes, nada é puro.
Porque tanto a mente como a consciência deles estão corrompidas. (Tito 1.15)
Aquele que está em Cristo jamais peca. Nós pecamos quando olhamos para
outras coisas, em vez de Cristo. Se estivéssemos em perfeita comunhão com
Cristo, jamais pecaríamos. Se estivéssemos em perfeita comunhão com
Jesus Cristo, jamais ficaríamos inquietos pelo futuro. Quando Deus nos faz
passar por provações, tem o objetivo de nos trazer ainda mais próximos
dele, para aumentar nossa intimidade com Jesus Cristo. É assim que, por
dificuldades diversas, Deus nos educa e nos santifica. É nessa perspectiva
que:
Todas as coisas são puras para os puros.
Mas nada é puro, absolutamente nada é santo, para aqueles que são sujos e
incrédulos.
Portanto, há somente duas raças. Há aqueles que, pelo novo
nascimento, entraram na nova criação, por quem Cristo morreu, a fim de
limpar todas as suas impurezas, todos os seus pecados, todas as suas
sujeiras, as do seu corpo, da alma e do espírito. Desde então, pertencem à
nova criação. É por essa razão que agora estamos livres, nós que estamos
em Cristo, para comer carne de porco sem com isso ficarmos sujos, porque
tudo é santificado pela palavra de Deus e pela oração.
Mas de maneira nenhuma isso vale para os que não estão em Cristo,
porque quando transgridem essas leis antigas de santidade e de pureza (o
que fazem todos os dias !), tornam-se, inevitavelmente, cada vez mais
impuros.
É isso que estamos vendo ao nosso redor hoje. Vemos duas coisas: por
um lado a santificação dos verdadeiros cristãos e, por outro — e isso ao
mesmo tempo! — o crescimento sem freio da impureza mais extraordinária,
da sujeira física, moral e espiritual que se alastra por tudo e cada vez mais
no mundo. Se pertencemos a essa nova criação, a Jesus Cristo, se
pertencemos a essa ordem nova que Cristo estabeleceu sendo as primícias
por sua morte na cruz, somente ele poderia, por sua Palavra recriadora,
declarar puro o que outrora era impuro; então podemos compreender duas
coisas: 1) por um lado, a imensidão desse fardo de impureza e de pecado do
qual fomos libertados, o que deveria fazer crescer, além de toda medida,
nossa gratidão para com Deus ; 2) por outro lado, um certo temor que temos
pelos homens, aqueles que estão ainda atolados em todo esse sistema de
impureza que, hoje ainda, mantém cativa a criação caída.
Os homens sem Deus não são protegidos dos efeitos dessa sujeira,
porque não pertencem, como nós pertencemos, à nova criação. Mas tem
mais. Eles esqueceram essa regras antigas que, em certa medida, protegiam
os homens das civilizações antigas dessa corrupção que está no mundo
como consequência do primeiro pecado. Porque, conforme os diversos
estudos contidos no livro de Mary Douglas, De la Souillure [Sobre a
impureza], nota-se que as sociedades antigas compreendiam, com toda
probabilidade, embora de maneira imperfeita, a importância dessas
realidades. Em consequência disso, procuravam precaver-se contra tais
perigos; para elas essas questões eram sérias, consideradas até mesmo
fatais. Hoje, não compreendemos mais nada de todas essas realidades.
Nessa área nos tornamos ainda mais ignorantes do que aqueles que
costumávamos chamar de primitivos. Os verdadeiros primitivos, os
ignorantes e cegos, são as pessoas do nosso tempo. É por tais razões que a
situação espiritual atual do Ocidente é muito mais grave do que a situação
do paganismo nos tempos do apóstolo Paulo. Entre outros fatores, isso é o
que explicaria por que a evangelização, verdadeiramente bíblica, tornou-se
hoje tão difícil em nossas terras.
Terminaremos nosso estudo com um texto extraído do Apocalipse:
Disse-me ainda: Não sele as palavras da profecia deste livro, porque o tempo está
próximo. Continue o injusto a fazer injustiça, e continue o imundo a ser imundo. O justo
continue na prática da justiça, e o santo continue a santificar-se.[13] Eis que venho sem
demora, e comigo está a recompensa que tenho para dar a cada um segundo as suas
obras. Eu sou o Alfa e o Ômega, o Primeiro e o Último, o Princípio e o Fim. Bem-
aventurados aqueles que lavam as suas vestes, para que tenham direito à árvore da vida e
entrem na cidade pelos portões. Fora ficam os cães, os feiticeiros, os impuros, os
assassinos, os idólatras e todo aquele que ama e pratica a mentira. Eu, Jesus, enviei o meu
anjo para dar testemunho destas coisas a vocês nas igrejas. Eu sou a Raiz e a Geração de
Davi, a brilhante Estrela da Manhã. O Espírito e a noiva dizem: Vem! Aquele que ouve,
diga: Vem! Aquele que tem sede venha, e quem quiser receba de graça a água da vida. Eu,
a todo aquele que ouve as palavras da profecia deste livro, testifico: Se alguém lhes fizer
qualquer acréscimo, Deus lhe acrescentará os flagelos escritos neste livro. E, se alguém
tirar qualquer coisa das palavras do livro desta profecia, Deus tirará a sua parte da árvore
da vida, da cidade santa e das coisas que estão escritas neste livro. Aquele que dá
testemunho destas coisas diz: Certamente venho sem demora. Amém! Vem, Senhor Jesus!
A graça do Senhor Jesus esteja com todos. (Apocalipse 22.10-21)
[1]
Estudo bíblico, Eglise Réformée Baptiste de Lausanne, na quinta-feira 28 de fevereiro de 2003,
com o título “O significado, na Bíblia, dos animais impuros”. Mantivemos o estilo oral desse estudo.
[2]
Esta é a nota da Bíblia à la Colombe (Aliança Bíblica Universal, Paris, 1978, Novo Testamento, p.
62) sobre essa passagem: “Literalmente: a ação de declarar puro todos os alimentos só poderia vir de
Jesus”.
[3]
Veja, entre outros textos, Deuteronômio 14.1-21.
[4]
Mary Douglas, De la souillure. Essais sur les notions de Pollution et de Tabou, François Maspero,
Paris, 1971. “Les abominations du Lévitique”, p. 61-76. A versão inglesa original, intitulada Purity
and Danger, data de 1966.
[5]
Mary Douglas, De la souillure, op. cit., p. 72-73.
[6]
Esta é a definição dada à palavra “ruminar”, pelo Littré resumido : “Engolir os alimentos sem
mastigar e mastigá-los novamente, antes de sua passagem para os intestinos”. Émile Littré,
Dictionnaire de la Langue française, abrégé par A. Beaujean, Éditions Universitaires, Paris, 1958, p.
1088.
[7]
Mary Douglas, De la souillure, op. cit., p. 74-75.
[8]
Veja as obras seguintes sobre a estabilidade das espécies: Olivier Nguyen, Stabilité des espèces.
L’Enquête, Éditions du Jubilé, Montrouge, 2014 ; A. C. Cotter, Natural Species. An Essay in
Definition and Classification, The Weston College Press, Weston, 1947.
[9]
Veja: J. M. Berthoud, W. Chantry, C. Provan, S. Scharf, Les Saintes-Écritures et le contrôle des
naissances, La Société Thénomiste de France, Golfe-Juan, 2002.
[10]
Trata-se do slogan do mundo moderno, de Francis Bacon e René Descartes: o homem
tecnocrático moderno, mestre e dominador de todas as coisas.
[11]
A utopia messiânica, racista e ecologista nazista é uma das maiores fontes da ecologia moderna.
[12]
Mary Douglas, op. cit., p. 76.
[13]
Nós subscrevemos.