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Rafael Tadashi Miyashiro

gestos da escrita

CaMpinas
2015

i
ii
UniVERsiDaDE EsTaDUal DE CaMpinas
insTiTUTO DE aRTEs

Rafael Tadashi Miyashiro

gestos da escrita
Tese apresentada ao programa de pós-Graduação
em artes Visuais do instituto de artes da
Universidade Estadual de Campinas para a
obtenção do título de Doutor em artes Visuais.

Orientadora pROfa. DRa. anna paUla silVa GOUVEia

Este exemplar corresponde à versão final da tese


defendida pelo aluno Rafael Tadashi Miyashiro, e
orientada pela profa. Dra. anna paula silva Gouveia.

CaMpinas
2015

iii
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Artes
Eliane do Nascimento Chagas Mateus - CRB 8/1350

Miyashiro, Rafael Tadashi, 1975-


M699g MiyGestos da Escrita / Rafael Tadashi Miyashiro. – Campinas, SP : [s.n.], 2015.

MiyOrientador: Anna Paula Silva Gouveia.


MiyTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes.

Miy1. Gestos. 2. Corpo humano. 3. Desenho de letra. 4. Caligrafia. 5. Impressão.


I. Gouveia, Anna Paula Silva,1964-. II. Universidade Estadual de Campinas.
Instituto de Artes. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Gestures of Writing


Palavras-chave em inglês:
Gestures
Human body
Letter Design
Printing
Calligraphy
Área de concentração: Artes Visuais
Titulação: Doutor em Artes Visuais
Banca examinadora:
Anna Paula Silva Gouveia [Orientador]
Daniela Kutschat Hanns
Priscila Lena Farias
Luise Weiss
Sylvia Helena Furegatti
Data de defesa: 24-02-2015
Programa de Pós-Graduação: Artes Visuais

iv
v
vi
resumo

Esta é uma pesquisa sobre os gestos na escrita no design gráfico, que


se manifestam na forma de caligrafia, letreiramento e design de ti-
pos. De natureza qualitativa, ela se inspira tanto na fenomenologia
quanto na complexidade, na sua forma de abordar o corpo e seus
movimentos. O gesto é visto como um intervalo de espaço-tempo,
cujas fronteiras são a intenção e a intenção materializada, no qual
o corpo é protagonista. assim, a pesquisa buscou cobrir elemen-
tos que estão envolvidos nesse intervalo: a escrita, a imaginação,
o aprendizado (que inclui uma parte teórica e uma prática, com o
desenvolvimento de workshops e uma disciplina de graduação) e
o gesto como consequência do ser no mundo. nas considerações
finais retoma-se o que foi discutido ao longo da tese, reforçando
que os gestos podem ser vistos como algo mais que o movimento
físico do corpo – eles trazem em si a profundidade de um intervalo
que envolve várias realidades, e, sobretudo, um ser que se manifesta
por meio do corpo e da escrita.
palavras-chaves gesto, corpo, tipografia, caligrafia, letreiramento, design de tipos

abstract

This is a research about gestures of writing in graphic design. These gestures present
themselves as calligraphy, lettering and type design. The body – and the gesture –
approach is inspired by phenomenology and complexity theory. Gesture is seen as a
space-time interval, and the body is its protagonist. Therefore, this research involves
the elements of this interval: writing, imagination, knowledge (through theory and
practice experience based on workshops and undergraduate course) and gesture as
expression of being in the world. At the conclusion, gestures of writing are seen as
something that must be discovered in its depth: more than just a single physical
movement, they are an interval which involves many realities and, above all, a
human being that manifests himself through the body and writing.
keywords gesture, body, typography, calligraphy, lettering, type design

VII
VIII
sumário

apresentação
.......................................................................................................................................... 01

introdução
princípios de uma visão dos Gestos da Escrita ....................................................... 09
Os gestos – intenção e corpo ................................................................................... 20
capítulo 01
Entornos da palavra:
considerações sobre a escrita e o alfabeto romano ................................................ 27
1.1 os registros gráficos: o homem e a escrita ..................................................... 28
1.2 escritas latinas: arquétipos ................................................................................ 41
capítulo 02
a imaginação e o gesto................................................................................................. 57
2.1 Escrita e devaneio ............................................................................................... 66
2.2 Devaneio e gesto ................................................................................................. 82
capítulo 03
a escrita corporificada:
o aprendizado do artífice ............................................................................................ 85

capítulo 04
Um outro lado do aprendizado................................................................................... 113
4.1 aprendizado em campo ..................................................................................... 113
4.2 Workshops ............................................................................................................ 121
4.3 Oficina de Criação de letras............................................................................. 139
capítulo 05
Gestos e mundo .............................................................................................................. 153
5.1 liberato dos Reis Brito Júnior .......................................................................... 162
5.2 Gustavo lassala.................................................................................................... 170
5.3 Rubens Matuck .................................................................................................... 176
5.4 Ítacas ...................................................................................................................... 188
considerações finais
a profundidade dos gestos da escrita................................................................... 191

Referências .......................................................................................................................... 197

IX
X
à minha família

XI
XII
agradeço muito

à minha família, sempre, e aos amigos, pelo incentivo e torcida


a Belkis Trench e laerte Coaracy, pelas conversas e suporte
à profa. Dra. anna paula Gouveia | aos membros da banca
profa. Dra. Daniela Kutschat Hanns, profa. Dra. luise Weiss, profa. Dra.
priscila farias, profa. Dra. sylvia furegatti | prof. Dr. arthur lara,
prof. Dr. Cassiano Quilici sydow, prof. Dr. Márcio périgo
à generosidade de liberato dos Reis Brito Jr., Gustavo lassala, Rubens
Matuck, Dora levy, andréa Branco e alunos da disciplina Design de
Tipos/ faU-Usp / 1º sem.2010
aos alunos do Mackenzie, com quem aprendo muito, especialmente
aqueles presentes nos workshops e na Oficina de Criação de letras/2014,
e aos colegas professores andréa de souza almeida, Zuleica schincariol
e Grace Kishimoto pelo incentivo durante o percurso
aos amigos, colegas e sensei do shodô aikoukai | assoc. shodô do Brasil
in memorian Marcia Cristina naomi Yoshioka e Eraju pereira

XIII
XIV
[ apresentação ] Esta é uma tese sobre os gestos da escrita.
Considero a escrita uma “representação
do pensamento e de palavras por meio de sinais gráficos [...]” (HOUaiss,
2004, p. 300), entendidos como um sistema complexo que envolve tam-
bém seus aspectos formais, usos, disseminação e modos de produção, tais
como são entendidos no contexto do design gráfico1, como a caligrafia, o
letreiramento e o design de tipos2 3 4.
a caligrafia é um modo direto de produção da escrita: executada de
uma vez só, não permite retoques. Caso seja retrabalhada, ela se tornará
letreiramento (ou lettering5). no letreiramento, as letras (ou palavras e até

1. segundo a associação dos Designers Gráficos do Brasil (aDG-BR), “O design


gráfico é um processo técnico e criativo que utiliza imagens e textos para co-
municar mensagens, ideias e conceitos, com objetivos comerciais ou de fundo
social” (aDG, 2014). O que chamo de contexto do design gráfico inclui não
apenas a definição acima, mas também seus praticantes (além de graduados em
design, artistas, ilustradores, arquitetos etc) e os trabalhos que não têm ‘obje-
tivos comerciais’, ou seja, trabalhos pessoais (de expressão artística e, em geral,
não comissionados), que utilizam, muitas vezes, os mesmos recursos técnicos e
criativos do design com objetivos comerciais.
2. Tipos ou fontes como aquelas utilizadas nos processadores de texto, como
arial, Comic sans e Times new Roman. Às vezes, elas são referidas pela
palavra tipografia – que frequentemente assume um caráter genérico, de-
signando não apenas o design de tipos e o design com tipos, para usar os
termos apresentados por priscila farias (2000), mas também, erroneamente,
caligrafia e letreiramento.
3. a separação dessas três práticas vem de fred smeijers (2011), mas o autor
classifica como escrita, letreiramento e tipo. aqui, optei pelo uso da pala-
vra caligrafia no lugar de escrita, pois escrita, nesta tese, significa mais que
o modo de produção de letras; além disso, é uma palavra recorrente em
todo este trabalho. poderia ser confuso adotá-la, somente nesses trechos,
com o sentido de modo de produção.
4. O design de tipos, nesta tese, refere-se ao processo de desenvolvimento de
fontes ou tipos.
5. Lettering, tal como entendido atualmente, parece ser um termo construído
nas últimas décadas. não parecia haver diferenciação entre o lettering e a
caligrafia nos manuais de escrita, nem em livros contemporâneos, como o
de nesbitt (1957) ou o de nicolete Gray (1982, publicado originalmente em
1971) – embora esse autores tratem das letras ‘construídas pelo desenho’,
sem nomeá-las de lettering: são built-in shapes. É possível que essa diferencia-
ção tenha sido construída com o desenvolvimento do Desktop Publishing, nas
décadas de 1980 e 1990.

[ 01 ]
figura AP1
Exemplos de caligrafia feitos

numa sequência, a partir

de um mesmo ideograma

(MIYASHIRO, 2014).

[ 02 ]
frases) são construídas por partes, ou seja, não são feitas de uma única
vez: pode-se refazê-las, modificá-las, e assim por diante – seja com lápis,
pincel, goiva, ferramentas de entalhe etc. Já o design de tipos é feito com
finalidade de reprodução, para formar palavras (sMEiJERs, 2011, p. 24)6.
Os tipos assumem a forma das letras, diacríticos e números. por meio da
combinação deles é que se forma um conjunto (digital ou físico), que se
denomina fonte, e que poderá ser reproduzido tanto física (por exemplo,
em folhetos) como digitalmente (num website).
Cada modo de produção "tem sua própria circunstância e caracte-
rística, seu escopo e seus limites, suas próprias liberdades, sua própria
história” (sMEiJERs, 2011, p.22)7, sugerindo usos mais adequados para
cada um deles. a caligrafia e o letreiramento, por exemplo, podem ser
indicados para casos em que se queira algo customizado. ao invés de
escolher as letras que formam um logotipo a partir de uma fonte digi-
tal, o designer poderia optar pelo letreiramento ou pela caligrafia, já
que eles permitem mais possibilidades de alteração e customização na
forma, ao contrário dos caracteres já 'prontos' da fonte. Já o uso dos
tipos, por sua vez, seria mais indicado para a produção de um livro
impresso, pois permite uniformidade e rapidez na sua diagramação.
Embora se diferenciem, esses modos de produção tem algo em co-
mum, que se revela essencial na abordagem desta tese: eles lidam, antes
de tudo, com a escrita como algo a ser gerado/transformado/desenhado.
Tal escrita não se faz sozinha: ela é feita por alguém, o que traz à tona o
protagonismo criativo do corpo, por meio dos seus gestos.
O conceito de gesto, aqui, difere do que se atribui a ele em geral.
Gesto, para muitos, é o movimento físico do corpo quando ele faz algo.
Essa definição, no entanto, não me parecia completa. Como praticante de
caligrafia japonesa há doze anos e tendo feito mestrado sobre a criação
nesse tipo de caligrafia, aprendi que no momento dessa escrita há algo

6. no original: "But it distinguishes itself from other kinds of letters [...] by


being intended for reproduction and by the way in which it is designed to
form words" (sMEiJERs, 2011, p.24).
7. Embora o sistema de impressão com tipos móveis já fosse conhecido na
China desde o século Xi, foi só no século XV, com a prensa de Gutenberg,
que se iniciou a produção tipográfica no Ocidente. Já a caligrafia e o letrei-
ramento encontram-se enraizados na história da escrita, estando presentes
em inscrições em pedras na Mesopotâmia e pergaminhos no Egito, ambos
datados de mais de 3 mil anos.

[ 03 ]
maior que o aspecto visível do corpo. Morita shiryu (1912-1998), calígrafo
japonês de vanguarda8, descreveu bem isso, quando explicou o que era
sho, palavra que designa caligrafia japonesa expressiva pessoal:

Sho é a escrita dos ideogramas num movimento único, sem


retoque. […] quando o próprio ser emerge com o ideograma
e é identificado com o movimento da mão e do corpo, o sho
transborda. […] isto é sho…
Um movimento único e sem volta, que assimila e absorve tudo
– ideograma, pincel, papel, espaço – em si mesmo… Quando
o movimento, que é a convergência de todas as forças numa
única execução, vem à tona, e mais, quando ele é transcendido,
e eu, ideograma, pincel, papel, forma, ritmo, tempo, espaço,
minha mente, enfim, quando tudo foi transcendido, tudo existe
como um. Neste momento, nada me segura e eu posso ser eu
mesmo (SHIRYU citado por HOLMBERG, 1998).

nas palavras de Morita shiryu percebo minha própria prática e meu


corpo, que nela se manifesta. Quando faço caligrafia (fig. ap1), o que está
em cena não é só o que está visível, nem apenas o aspecto físico do meu
corpo. É minha intenção, são os conhecimentos que adquiri, o treinamen-
to, minha relação com os materiais, a identificação com determinados ca-
lígrafos, o que meus sensei (professores) me disseram e tantas outras coisas.
É meu ser que se expressa.
Essa vivência me levou à consideração de que o gesto nunca é um
ato físico isolado e também à seguinte diferenciação: esse movimento, o
mais visível, aquele que o corpo faz, geralmente denominado gesto, deve
ser chamado gestualidade.
O objetivo desta tese é investigar os gestos da escrita. Esses ges-
tos são considerados como um intervalo tempo-espaço, no qual o corpo
atua, e tem como fronteiras a intenção e a intenção materializada. Bus-
cou -se aprofundar a interação do corpo com elementos presentes no in-
tervalo-gesto: a imaginação, a cognição, os modos e meios de ser e fazer.

8. no Japão, após a segunda Guerra Mundial, surgiu um movimento de ca-


ligrafia japonesa de vanguarda chamado zen’ei’sho, do qual Morita shiryu é
um dos principais expoentes. Ele propunha uma caligrafia bastante expres-
siva e autoral, que se aproveitava da caligrafia tradicional, mas a levava a
outro patamar: o sho (ver MiYasHiRO, 2009).

[ 04 ]
no design gráfico, ao contrário das artes, parece haver pouco estí-
mulo para o desenvolvimento de trabalhos que ressaltem a singularidade
do designer, que deem expressão pessoal à comunicação, em geral vis-
ta como 'neutra' e 'objetiva'. É importante salientar que, sobretudo no
design de tipos, têm havido uma produção de qualidade crescente, que
reflete o número de profissionais envolvidos na área; o reconhecimento
do mercado9 e de instituições como o Museum of Modern art (MoMa)10,
de nova York; e o interesse do público de designers, manifestado pelo
número cada vez maior de eventos e cursos ligados a esse campo até
mesmo no Brasil, país que não tem tradição tipográfica11. a caligrafia e
o letreiramento também tem ganhado mais relevância neste país, como
se pode ver em aplicações de design ambiental e editorial e nos interes-
ses por workshops dessas práticas. no entanto, em tempos nos quais se
discutem a economia criativa12 e o fomento de serviços nesse setor, há

9. Basta notar o número de fontes distribuídas em sites como Myfonts.com e


fontshop.com.
10. O MoMa, em 2011, adquiriu alguns tipos para sua coleção, o que significou
um reconhecimento do importante papel que a tipografia tem como mani-
festação cultural. Os critérios foram variados, incluindo tipos com uma fina-
lidade específica (Bell Centennial para listas telefônicas, OCR-a para leitores
de caracteres ópticos) e outros experimentais (Beowolf e Dead History). so-
bre tais escolhas, ver <http://observatory.designobserver.com/entry.html?en-
try=26428>. acesso em: maio 2014.
11. fora do Brasil, eventos como o encontro da atypi, associação internacio-
nal ligada à tipografia, ocorrem há anos e movimentam a cena tipográfica
mundial. Já no Brasil, anualmente, acontece o Diatipo, evento de palestras e
workshops cujos temas envolvem o mundo da tipografia, criado pelo Tipo-
cracia, organização fundada por Henrique nardi e Marcio shimabukuro em
2003, que divulga e fomenta a tipografia no Brasil. ao mesmo tempo, nota-
se um número maior de workshops das áreas de caligrafia e letreiramento,
como aqueles ministrados por andréa Branco, em são paulo; Cláudio Gil,
no Rio de Janeiro; e Eduílson Costa, em Curitiba. Em 2014 foi inaugurada a
primeira pós-Graduação em Tipografia do Brasil, no senac-sp.
12. a expressão economia criativa, segundo ana Carla fonseca Reis (2008,
p.16), deriva de indústria criativa, expressão inspirada no projeto austra-
liano Creative nation, de 1994. a inglaterra foi a pioneira em estabelecer
políticas públicas para o setor de forma sistematizada, de modo que sua
agenda tornou-se referência por: considerar essa indústria como resposta
ao quadro socioeconômico em transformação; priorizar o setor, prevendo
ações de fomento a essas áreas; divulgar estatísticas de crescimento e re-
presentação do setor; e reconhecer o potencial da indústria criativa como

[ 05 ]
necessidade de buscar um diferencial maior. Espera-se que as reflexões
apresentadas nesta tese possam contribuir para abordagens e ações que
estimulem e potencializem a criação nos gestos da escrita, por meio da
valorização do corpo/ser e das suas singularidades13.
para tanto, esta pesquisa, de caráter qualitativo, se apoia tanto na fe-
nomenologia quanto na complexidade. Da primeira veio a abordagem do
fenômeno – se algo se mostra, ele se mostra a alguém –, o que implicou
considerar não apenas a escrita, mas também o corpo de quem escreve. Em
geral, os métodos fenomenológicos, em pesquisas qualitativas das Ciências
Humanas14, utilizam entrevistas para compreender a vivência dos entrevis-
tados. no entanto, nas obras de flusser (2004, 2005, 2007) e Gaston Bache-
lard (1991, 2002, 2008) percebe-se um outro uso da fenomenologia, aqui ado-
tado, que a utiliza como discurso. Mais do que por meio de entrevistas, esses
autores realizam uma abordagem que circunda o objeto de pesquisa; e, a par-
tir deste movimento, comentam, descrevem e revelam reflexões, mostrando
essências e particularidades. Já a complexidade sugeriu que esse movimento
fosse feito em vários níveis, em diálogo com as artes, as artes do corpo, a
filosofia, a história da escrita, as neurociências, a anatomia humana, entre
outros. Os dados da pesquisa foram coletados por meios diversos. além
da pesquisa bibliográfica, houve pesquisa de campo, com observação par-
ticipante no acompanhamento de uma disciplina de graduação (Design de
Tipos15) e na participação em eventos como os Diatipo, e em workshops, como
aqueles promovidos pela calígrafa andréa Branco, todos em são paulo. Re-
alizou-se também uma pesquisa-ação, com o desenvolvimento de workshops
e de uma disciplina na graduação, de criação de letras, no segundo semestre

capaz de gerar uma nova imagem para o país. Desde então, o conceito foi
replicado em Cingapura, líbano e Colômbia (REis, 2008, p.16-7). O design
como um todo, incluindo o que aqui se denomina escrita, faz parte da eco-
nomia criativa.
13. numa abordagem do projeto como algo isolado, sem envolvimento, a cria-
ção tem um raio de ação centrípeta, fechada em si mesma, apenas em seus
objetivos. Mas quando esse primeiro caso é superado, a criação se poten-
cializa, pois o raio se amplia, envolvendo não apenas as forças centrípetas,
que forçam as coisas ao centro, mas também as centrífugas, de direção
oposta, construindo um campo de força mais rico e que se relaciona com
mais coisas.
14. Como aqueles descritos por Moreira (2002).
15. Ministrada pela prof. Dra. priscila farias no curso de Design da faculdade
de arquitetura e Urbanismo da Universidade de são paulo (faU/Usp), 2010.
[ 06 ]
de 2013 e 2014, respectivamente, na Universidade presbiteriana Mackenzie
(UpM), onde sou professor do curso de Design. por fim, quatro entrevistas,
de caráter semiaberto16, com alguns profissionais da área possibilitaram uma
perspectiva mais profunda de quem pratica os gestos da escrita.
a introdução apresenta embasamentos da fenomenologia e da com-
plexidade e os princípios de uma visão dos gestos da escrita, desenvol-
vendo o conceito do gesto como um intervalo tempo-espaço.
O Capítulo 1 é uma reflexão sobre o uso de sinais gráficos para a
expressão do homem no contexto histórico. Já que os gestos da escrita
partem de uma intenção – a escrita em si –, é importante compreender
como o homem buscou sua expressão na História, por meio de sinais grá-
ficos. O capítulo parte dos registros desses sinais na pré-História e abarca
até o momento da idade Média em que se organizou o alfabeto romano
tal como é conhecido hoje17. O gesto constitui presença importante que
desenvolve, nos sinais da escrita, particularidades de seu tempo. nota-se,
na história da escrita ocidental, que o empréstimo da escrita de outros
povos é frequente, além de ser fruto de gestos que queriam deixá-la mais
próxima a sua cultura, e, por isso, a transformaram e a adaptaram.
no Capítulo 2, partindo da ideia de que a imaginação é essencial à
natureza humana e à produção da escrita, busca-se compreender o que
o filósofo Gaston Bachelard chama de imaginação material – baseada nos
quatro elementos naturais: terra, ar, fogo e água – e sua relevância para os
gestos da escrita. O que dirige e orienta esse tipo de imaginação é o deva-
neio. Devaneio, na interpretação desta tese, é o fluxo entre a imaginação e a
imaginação materializada que faz, promove e orienta os gestos da escrita.
Baseado no conceito de artífice – profissional que se caracteriza pela
busca da excelência e de um diálogo entre o fazer e o pensar –, o Capítulo
3 procura responder como o corpo do artífice aprende. O Capítulo 4 apre-
senta reflexões sobre o aprendizado da escrita dentro da universidade. para
isso, utiliza a observação de campo e o desenvolvimento de dois workshops e
uma disciplina sobre a criação de letras já referidos. nesses dois capítulos, de
formas diferentes mas complementares, a cognição revela-se como essencial
ao gesto.

16. Que têm um roteiro de perguntas, mas também tem abertura para outras
que surjam, eventualmente.
17. Considerando a estrutura básica desse alfabeto, que depois foi sendo adap-
tado por diversos povos, de acordo com a sua língua e costumes.

[ 07 ]
O Capítulo 5 apresenta o gesto como visão de mundo. partindo das
reflexões dos filósofos Giorgio agamben (2008) e Martin Heidegger
(2007), vê-se que os gestos são fruto da vivência do homem no mundo,
que, na escrita, trabalha na essência da técnica. assim, são entrevistados
três designers que, de diferentes formas, geram gestos singulares: libera-
to dos Reis Brito Jr. (2013), Gustavo lassala (2012) e Rubens Matuck (2010).
novamente, a cognição apresenta-se de forma essencial, mas, nesse caso,
ela está aliada à vivência pessoal, ao modo como cada um apreende o
mundo e devolve essa percepção na forma de letras e palavras.
nas Considerações finais, os gestos da escrita são apresentados
como algo que é descoberto em sua profundidade: mais do que um sim-
ples movimento físico, eles trazem em si a profundidade de um intervalo
que envolve várias realidades, e, sobretudo, um ser que se manifesta por
meio do corpo e da escrita com suas singularidades.

[ 08 ]
Princípios de
uma visão dos
Gestos da Escrita
[ introdução ]
Grãos de açúcar dão forma a le-
tras e ornamentos sob uma mesa
de madeira. peças de um quebra-
cabeça combinam-se, gerando aleatoriamente letras e padrões abstratos
numa revista inglesa. palavras feitas com macarrão lembram os trabalhos
escolares de crianças. Cartões de Valentine’s Day revelam a diversidade
dos adereços e da riqueza de suas letras, em 150 versões diferentes, todas
desenhadas à mão.
Esses são alguns exemplos do trabalho da designer Marian Bantjes
(2013) e representam apenas uma parcela de sua produção. Em palestra
realizada no evento TED x, em 2010, a designer define sua trajetória pro-
fissional como uma busca pessoal:

Depois de 20 anos como designer e tipógrafa, eu mudei


meu modo de trabalhar, o modo como a maior parte dos
designer gráficos trabalha, para perseguir uma visão mais
pessoal para o meu trabalho; com a tentativa humilde de
só viver fazendo aquilo que eu amava [...]
Meu trabalho como designer gráfica era seguir a estratégia,
meu trabalho agora segue meu coração e meus interesses
– com a direção do meu ego, para criar um trabalho que
seja bom tanto para meu cliente quanto para mim. Mas
isso é heresia no mundo do design. O ego não deveria estar
envolvido no mundo do design gráfico. Mas eu penso que, sem
exceções, quanto mais eu lido com o trabalho como uma coisa
pessoal minha, como algo que é pessoal, mais bem-sucedida é
como peça, atraente, interessante e que se sustenta [...] aonde
outros possam procurar resultados mensuráveis, eu tendo a
estar mais interessada em qualidades como: isso dá alegria,
uma sensação de questionamento, expressa curiosidade?
(BANTJES, 2013)

no depoimento de Bantjes (2013) há uma crítica à objetividade pre-


sente no mundo do design gráfico. Justamente quando a designer olha

[ 09 ]
Figura I.
Variedade de suportes

no trabalho de Marian

Bantjes (açúcar [acima];

macarrão, papel, caneta

e digital [página

ao lado])

(BANTJES, 2010)

[ 10 ]
[ 11 ]
para si mesma, procurando fazer algo pessoal, do “coração”, é que seu
trabalho parece se popularizar e chamar a atenção das pessoas. Ela lida
principalmente com o universo gráfico da palavra e mostra uma visão
distinta daquela predominante no design gráfico.
na literatura especializada que envolve a criação de letras e pala-
vras no design gráfico, por exemplo, percebe-se que a objetividade pa-
rece dominar. Manuais abordam as técnicas de caligrafia, livros falam
de metodologias do projeto tipográfico e da história da tipografia; além
disso, a internet oferece uma ampla gama de artigos, cases, entrevistas
e portfólios de profissionais da área, ressaltando especificidades e de-
talhes técnicos.
Em congressos ligados ao do design e à criatividade realizados
no Brasil, ocasiões em que foram apresentadas algumas das ideias que
cruzavam corpo e criação1, e que fogem de uma abordagem mais ra-
cionalista, presentes nesta tese, havia sempre um silêncio no final da
apresentação, o que talvez remetesse a um estranhamento quanto ao
assunto, associado mais à tecnologia e aos aspectos formais e históri-
cos. Quando se fala de processo criativo na área do design, a discussão
envolve, em geral, metodologias ou cases, centrando-se em uma narra-
tiva linear a respeito de como construir fontes ou letreiramentos. as
letras, no contexto do design gráfico, parecem adquirir status próprio,
como se fossem quase independentes de quem as escreve, constrói, cria.
Essa ‘independência’ remete a algo bastante frequente no pensamento
ocidental: a dicotomia sujeito e objeto, corpo e ambiente.
É claro que a objetividade apresenta seus resultados e tem sua re-
levância, mas às vezes parece impor-se como algo que ofusca todo o
resto. Há alguns anos, em visita à Vi Bienal de Design Gráfico2, John
Warwicker, do estúdio inglês Tomato, fez uma crítica generalizada: os
trabalhos estavam muito bem-feitos – e só. Era como se faltasse algo,
possivelmente uma abordagem mais pessoal no fazer.

1. Como naquelas feitas no Congresso Brasileiro de pesquisa e Desenvolvi-


mento em Design (p&D) em 2010 e 2012, em são paulo e são luís do Mara-
nhão, respectivamente.
2. a Bienal de Design Gráfico é um evento organizado pela associação dos
Designers Gráficos (aDG) desde 1992 e constitui uma importante vitrine de
parte da produção do design gráfico no país. a sexta edição ocorreu em 2002,
no sesc pompeia, em são paulo. a mais recente foi a nona edição, realizada
em 2013, no Memorial da américa latina de são paulo.

[ 12 ]
Em práticas do Oriente, como a caligrafia japonesa, por exemplo, não
há dicotomia escrita e sujeito. Embora existam livros e vídeos que expli-
quem detalhes práticos de como fazer determinados estilos, realçando a
posição do corpo e as técnicas do manejo do pincel, há o entendimento
de um corpo que escreve em sua totalidade: que se faz um com o pincel,
tinta e papel, consciente do espaço que ocupa; que registra, por sua vez,
instantâneos do corpo traduzidos no preto da linha e no branco do pa-
pel; e que corporifica conhecimentos por meio do estudo dos clássicos
das caligrafias chinesa e japonesa, o rinsho.
a reverência aos clássicos na caligrafia japonesa não é mero deta-
lhe. Ela remete à escrita como uma arte da linha, a sua herança enquan-
to conhecimento construído pelas várias escolas que se constituíram
ao longo da história do Japão, ao seu profundo respeito à história e aos
mestres chineses da escrita, e à influência do Zen Budismo na cultura
japonesa.
O rinsho tem três etapas: a primeira é para o aprendizado de aspectos
técnicos da caligrafia, do estilo específico estudado; a segunda serve para
captar o hitsu-i, o espírito da letra; e a terceira é voltada a uma interpre-
tação pessoal: longe do ‘modelo’, mas tendo absorvido e corporificado
conhecimentos, o calígrafo pode escrever livremente seu caractere ou
seus caracteres, expressando-se de forma mais pessoal3.
O que o rinsho deixa subentendido é a relação cognitiva escrita-cor-
po: o aprendizado da escrita passa pelo corpo, que, por sua vez, ‘devolve’
a escrita. Chama atenção também o fato de a etapa final desse processo
estar ligada à expressão pessoal, que só pode acontecer no/por meio do
corpo.
O que foi descrito até agora – além de uma vivência pessoal com a
caligrafia japonesa, já descrita anteriormente – deixou pistas e suscitou
questões a serem investigadas, aprofundadas e ruminadas, ligando o
corpo e as práticas da escrita. antes de tudo, foi necessário olhar so-
bre o próprio corpo e a cultura4 na qual está inserido. Há uma relação
íntima entre a visão do corpo e a visão do mundo: se penso o corpo
como algo mecanicista, então a natureza também será vista por esse

3. Ver mais detalhes em flint sato (1999) e nakamura (2006).


4. segundo o filósofo andré Comte-sponville (2003, p. 135), há dois significa-
dos para o termo cultura: um está ligado aos conhecimentos que uma so-
ciedade transmite e valoriza; outro, inspirado pelo alemão kultur, e adotado
nesta tese, refere-se ao que é produzido ou transformado pela humanidade.

[ 13 ]
viés, bem como as coisas, a ciência e o design. a saída, então, está na
busca de alternativas.
no Oriente, por exemplo, nas culturas chinesa e japonesa, influên-
cias do Taoísmo, Confucionismo, Budismo e Zen Budismo5 moldaram
tanto o “ver” o corpo, como sua relação com as coisas e com o ambiente.
por conta disso, unidade, não dualidade e complementaridade são alguns
dos pontos que colocam sujeito/objeto e sujeito/ambiente em relações
que não são estáticas, nem isoladas.
Já no Ocidente há uma rede que domina e conforma uma visão es-
pecífica de corpo e de mundo, construída ao longo dos séculos e até
hoje presente, tendo como ponto de partida a filosofia de René Descartes
(1596-1650), e que recebe influências do positivismo e do desenvolvimen-
to da ciência moderna.
Descartes fala da divisão do corpo e da alma, e do cogito, uma pro-
posta de ver as coisas por meio do isolamento. Dulce Mára Critelli (2006,
p. 14) critica a percepção cartesiana de mundo:

Descartes requisita claramente a procura de um ponto de segu-


rança para o pensar: um ponto fora do mundo, como o de Arqui-
medes, para, desde a exterioridade e a distância, poder olhar o
mundo, a existência e o que deles faz parte. Um ponto fora do
mundo que “ex-tranhe” o homem de suas situações de vivência,
de suas sensações e sentimentos; um ponto que possa retirar o
homem das condições mais básicas de sua humanidade. E é aí,
num suposto ponto em que o homem se alocaria fora de si mes-
mo, que Descartes instala o cogito – um poder humano, embora
sem humanidade, equivocado quanto a sua soberania e sua
independência em relação às condições ontológicas plenas do
homem (CRITELLI, 2006, p. 14).

O isolamento e o idealismo do cogito trabalham a partir de uma


falsa suposição, como se os objetos de estudo se apresentassem sem-
pre em condições ideais, separadas da vivência e da livre interferên-
cia de seus agentes. nos séculos posteriores a Descartes, a ciência
moderna se estabeleceu com uma visão positivista, tendo a prova

5. O Zen Budismo influencia principalmente a cultura japonesa, mais do que a


chinesa.

[ 14 ]
científica como seu validador e refutando conhecimentos não cien-
tíficos, como os saberes popular, xamânico, étnico etc. a medicina
alopática tradicional, pelas mãos de médicos especialistas, parece
dar conta de todas as questões, desconsiderando o todo, apostando
na medicalização de partes específicas do corpo como solução de
problemas. Contudo, não trata suas causas, já que o que propõe é
uma visão vertical.
Muitos problemas ligados à cidadania são vistos de forma li-
near, como causa e efeito, e tratados de forma isolada, resolvidos
com propostas redutoras. O problema da violência é resolvido com a
construção de cadeias, e a redução da maioridade penal é apresenta-
da como 'solução' para jovens infratores. pouco se discute a inclusão
e a desigualdade social e seus impactos, e há pouco espaço para um
pensamento que saia da linearidade (problema e solução) ou que re-
flita as coisas de forma mais ampla. nesse cenário contemporâneo,
esse pensamento linear, que tende ao isolamento e à especialização,
parece construir um modus operandi, ainda dominante e sorrateiro, de
refletir e viver no mundo. É natural que tal visão – ‘ex-tranhada’,
porque está fora do viver mais íntimo do homem – se desdobre em
objetividade e racionalismo também na pesquisa e no design.
É verdade que, na mesma época de Descartes, o filósofo Baru-
ch spinoza ofereceu uma alternativa ao dualismo cartesiano corpo-
mente, mas foi especialmente ao longo do século XX que se forta-
leceram as correntes de pensamento alternativas. no início desse
século, a fenomenologia surgiu como uma filosofia das essências.
Com ela, o sujeito neutro e desencarnado da objetividade positivista
foi substituído por um sujeito que tinha uma consciência, propondo
um novo enfoque sobre as coisas. isso porque Edmund Husserl, seu
fundador, propunha uma visão mais integrada entre sujeito e objeto,
uma volta às 'coisas mesmas’ (allEs BEllO, 2006).
Como ressalta angela alles Bello (2006, p. 17), fenômeno é “aqui-
lo que se mostra”, o que é diferente daquilo “que aparece ou parece”:
se algo “se mostra”, diz a autora, mostra-se a alguém. O que 'se mos-
tra' está ligado à consciência, e aqui há uma diferença entre a prática
fenomenológica e a prática cartesiana: essa consciência é sempre
intencional, faz-se colocando sentido. Yolanda forghieri (1993, p.15)
diz:

[ 15 ]
[Husserl] afirma querer “voltar às coisas mesmas”,
considerando como o ponto de partida do conhecimento.
Entretanto, a “coisa mesma” é entendida por ele não como
realidade existindo em si, mas como fenômeno, e o considera
como a única coisa à qual temos acesso imediato e intuição
originária; e o fenômeno integra consciência e o objeto,
unidos no próprio ato de significação. A consciência é sempre
intencional, está constantemente voltada para um objeto,
enquanto este é sempre o objeto para uma consciência; há
entre ambos uma correlação essencial, que só se dá na intuição
originária da vivência.
A intencionalidade é, essencialmente, o ato de atribuir um
sentido; é ela que unifica a consciência e o objeto, o sujeito
e o mundo. Com a intencionalidade há o reconhecimento de
que o mundo não é pura exterioridade e o sujeito não é pura
interioridade, mas a saída de si para um mundo que tem uma
significação para ele (FORGHIERI, 1993, p. 15).

a obra de Husserl é complexa e esteve em permanente construção


ao longo de sua vida, com termos que foram sendo revistos e ressigni-
ficados. pensadores distintos deram continuidade aos estudos da feno-
menologia, estendendo a abordagem fenomenológica aos mais diversos
assuntos. no que tange o corpo, uma contribuição importante foi a de
Merleau-ponty (2011, p. 465), que considerava haver uma unidade entre
o sujeito e o ambiente:

Assim como a natureza penetra até no centro de minha vida


pessoal e entrelaça-se a ela, os comportamentos também descem
na natureza e depositam-se nela sob a forma de um mundo
cultural (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 465).

para Merleau-ponty (2011, p. 206-7), o sujeito e o mundo que ele vi-


vencia estão ligados. Essa relação entre o corpo e o mundo vivido – termo
cunhado pelo autor que diz respeito às percepções, pensamentos e vivên-
cias da pessoa no meio natural – não pode ser vista de maneira isolada. ao
mesmo tempo, esse corpo tem uma unidade dentro de suas várias composi-
ções, refletindo uma visão mais holística e ao mesmo tempo complexa, que
une a fisiologia, a percepção, a consciência e o aparelho motor, entre outros:

[ 16 ]
Reencontramos na unidade do corpo a estrutura de implicação
que já descrevemos a propósito do espaço.
As diferentes partes de meu corpo – seus aspectos visuais,
táteis e motores – não são simplesmente coordenadas. Se
estou sentado à minha mesa e quero alcançar o telefone, o
movimento de minha mão em direção ao objeto, o aprumo do
tronco, a contração dos músculos das pernas, envolvem-se
uns aos outros [...] Da mesma forma, quando estou sentado
à minha mesa, posso “visualizar” instantaneamente as
partes de meu corpo que ela me esconde. Ao mesmo tempo que
contraio o pé em meu sapato, eu o vejo. Esse poder me pertence
até mesmo para as partes de meu corpo que nunca vi
(MERLEAU-PONTY, 2011, p. 206-7).

Merleau-ponty (2011, p. 206-7) descreve também a diferença entre o


corpo objetivo e o corpo fenomenal. ao primeiro são atribuídas as con-
cepções vindas da Biologia e da anatomia. Já o corpo fenomenológico
é um corpo que ultrapassa o corpo objetivo, aquele que é percepção e
possibilidade de ação no mundo.
O início do século XX também testemunhou o surgimento de novos
domínios teóricos. na física, os estudos da física Quântica, centrados
nos níveis atômico e subatômico, trouxeram conceitos como aleatorie-
dade, caos, imprevisibilidade, e mostraram os limites da física Mecânica
quando aplicada a fatos que envolviam mais variáveis ou que se en-
contravam fora das condições ideais dos estudos clássicos, mostrando a
necessidade de um novo paradigma nas ciências.
Especialmente a partir da metade do século XX, começou a se for-
talecer a Teoria dos sistemas. a expressão foi cunhada por ludwig von
Bertalanffy, biólogo que considerava que o estudo da vida deveria ter
um enfoque mais amplo, uma visão “organísmica” na Biologia, isto é,
do organismo como um todo, procurando a descoberta de princípios em
diversos níveis. Os primeiros estudos são de meados da década de 1920,
mas o conceito só tomou força nos anos 1950, com o diálogo com outras
áreas, como a Cibernética e a Teoria da informação. Há uma crítica ao
procedimento analítico – a ideia de que algo pode ser estudado após
tendo sido dividido em partes e, portanto, constituído ou reconstituí-
do pelas partes. Embora reconheça que isso funciona em determinados
casos, especialmente em causas isoláveis, o biólogo diz que tal procedi-

[ 17 ]
mento não é aplicável quando ligado a fenômenos presentes em siste-
mas que têm suas partes “em interação”6 (BERTalanffY, 2006).
Esse autor ainda diz que é possível pensar numa Teoria Geral dos
sistemas, em que seria possível discernir certas estruturas, com deter-
minadas características, que seriam aplicadas a diferentes campos de
estudo. nos capítulos dedicados às Ciências sociais e à História, o au-
tor acentua especialmente as relações e as visões sistêmicas, critican-
do também teorias que tenderiam à ‘simplificação’, ignorando o caráter
complexo que envolve, por exemplo, a cultura, e mesmo teorias como
o behaviorismo, que tende a considerar o comportamento do homem
como resposta a estímulos externos.
Bertalanffy (2006), ao diferenciar sistemas fechados (aqueles iso-
lados em seu ambiente) de sistemas abertos (com fluxos contínuos de
entrada e saída), esclarece que neste último há uma estrutura mais con-
dizente com os estudos do corpo e da vida:

Todo organismo vivo é essencialmente um sistema aberto.


Mantém-se em um contínuo fluxo de entrada e de saída,
conserva-se mediante a construção e a decomposição de
componentes, nunca estando, enquanto vivo, em um estado
de equilíbrio químico e termodinâmico, mas mantendo-se no
chamado estado estacionário, que é distinto do último. Isto
constitui a própria essência do fenômeno fundamental da
vida, que é chamado metabolismo, os processos químicos que
se passam no interior das células (BERTALANFFY, 2006, p. 65).

a Teoria Geral dos sistemas motivou diversos estudos ao propor um


novo paradigma que incentivasse a atenção ao todo e às relações entre
suas partes, desdobrando-se o que, em geral, se chama pensamento com-
plexo ou complexidade. as aplicações da complexidade se espalharam por
várias disciplinas, como no trabalho do físico fritjof Capra. Desde os anos
1970, ele tem refletido a respeito do pensamento complexo. À estrutura
desse modo de pensar de forma complexa, que foi desenvolvida ao lon-
go dos anos, Capra nomeou “visão sistêmica da vida”, referência direta

6. Bertalanffy (2006, p. 40) aponta duas condições para que o procedimento


análitico funcione: a ausência ou um elo frágil nas relações entre as partes,
que podem então ser descritas lógica e matematicamente, e a condição da
aditividade das relações – elas devem ser lineares, em sequência.

[ 18 ]
à Teoria dos sistemas, na qual reconhece o valor intrínseco de todos os
seres vivos (CapRa, 2002, p. 15). nesse sentido, tudo o que gira em torno
do homem (suas questões, como saúde, justiça social, proteção ao meio
ambiente, negócios etc.) está ligado ao homem e suas relações, tanto em
nível individual, como enquanto sistema social e ecossistema. as questões
devem ser consideradas nas “quatro dimensões da vida: a biológica, a cog-
nitiva, a social e a ecológica” – o que significa pensar as múltiplas camadas
existentes no corpo em si, sua relação com o conhecimento, o relaciona-
mento com os outros e com o ambiente (CapRa, 2014).
nas últimas décadas, outro pensador, o filósofo Edgard Morin tem
explorado a complexidade sob um viés mais epistemológico, aberto às
diversas interações entre os elementos envolvidos na cultura. O conhe-
cimento, diz Morin (1998), sofre as restrições do imprinting cultural, uma
rede que determina, retém, molda e normaliza o conhecimento. furar
esse imprinting é o que permite que o conhecimento questione a si mes-
mo, se expanda e se (re)crie. Dialogia, polifonia, calor cultural e a pos-
sibilidade de expressões de desvios são alguns dos fatores que afetam e
colaboram nesta epistemologia. nesse sentido, percebe-se que a visão de
Morin vai além daquela linear e especializada e tem um espectro amplo,
no qual rondam incertezas, desvios, potências e singularidades.
De certa forma, isso dialoga com estudos do corpo contemporâneos,
que rompem com premissas cartesianas e se aproveitam das possibilida-
des do desvio e do furo do imprinting cultural, ou que propõem um debate
capaz de provocar uma revisão em conceitos profundamente enraizados
na cultura.7 nesse sentido, toda mudança de paradigma está envolvida
num cenário como o proposto por Morin. É interessante que essas novas
formas de pensar do século XX, brevemente apresentadas aqui, tenham
trazido questionamento sobre o modo de pensar e vivenciar o corpo. ao
fazê-lo, puseram-no sob outras perspectivas, abrindo caminhos que ini-
ciaram um processo de ‘restauração’ desse corpo, promovendo-o como
organismo complexo e que se situa em um ambiente. E porque restauram
o corpo, estimulam um olhar múltiplo na relação deste consigo mesmo e
seu entorno, e, portanto, com seus gestos.

7. O neurocientista antónio Damásio (2010), em seu livro O erro de Descartes,


questiona o dualismo corpo-mente e lembra a integração entre essas partes,
mencionando que o processo evolutivo acontece a partir de um corpo e de sua
interação com o ambiente – incluindo a hipótese de que as emoções e sentimen-
tos estão ligados a processos racionais, afetando diretamente a consciência.

[ 19 ]
os gestos – intenção e corpo8
Uma pesquisa pela internet mostrará a diversidade de sentidos
atribuídos à palavra gesto, como: ‘complemento da linguagem oral’,
‘linguagem de sinais’ (caso da libras), ‘processo expressivo das artes
do corpo’, ‘ato político’ etc. alguns estudos tendem a classificar os
gestos, como o proposto por David Mcneill (2000). Esse autor divi-
de-os em gesticulação, linguagem de sinais, mímica e emblema/sinal.
no entanto, embora tal classificação se encaixe bem no campo da
linguística, parece feita a partir de imagens “fixas”, estanques, que
deixam pouco espaço para uma abordagem dos gestos nas artes do
corpo e na escrita. Como pensá-los, então?
Vilém flusser (1994) diz que a intenção é o que diferencia os ges-
tos de “outros” movimentos do corpo, como a dilatação das pupilas e
o movimento peristáltico dos intestinos. “Os gestos são movimentos
do corpo que expressam uma intenção” (flUssER, 1994, p. 8). flusser
fala da impossibilidade de ter uma compreensão completa a respeito
deles e afirma que um estudo sobre os gestos não deve limitar-se a
explicações causais, mas considerá-los dentro do campo da comuni-
cação, incluindo sua interpretação codificada.
segundo Comte-sponville, a intenção é “uma vontade presente,
mas voltada para o futuro ou para o fim perseguido. É o projeto de
querer ou a meta da vontade” (COMTE-spOnVillE, 2003, p. 320). Ela
estabelece um percurso para o gesto, um intervalo entre a vontade
presente e o fim perseguido, ou entre a intenção e sua materialização.
algumas dessas intenções produzem coisas tangíveis, como a escri-
ta, a barba, a fotografia; outras, entretanto, dizem a respeito a coisas
intangíveis, como a transmissão de uma fala, o que pode diferir do
conceito mais usual de material9 – algo que pode ser pego, que existe

8. Esta seção apresenta alguns conceitos iniciais que embasam a reflexão do


gesto nesta tese. alguns deles são retomados e aprofundados em sua espe-
cificidade nos gestos da escrita ao longo dos capítulos.
9. na filosofia, por exemplo, andré Comte-sponville afasta do conceito de ma-
téria a noção de algo que tem propriedades físicas: “Tudo o que existe, dizia
eu, ou parece existir, fora do espírito e independentemente do pensamento
[...] Engana-se, pois, quem pretende definir a matéria, no sentido filosófico
do termo, por meio de características físicas (a matéria seria o que se con-
serva, o que podemos tocar, o que é sólido, o que tem uma forma, o que
tem uma massa...) [...] “ (COMTE-spOnVillE, 2003, p. 370). E mais à frente:
“nem no cérebro humano, o pensamento é menos material que esse cérebro

[ 20 ]
num plano físico10.
a noção intervalar se encontra na própria etimologia de gesto: do la-
tim gestus e tendo como particípio passivo gerere, a palavra dá origem a
outras com conotações distintas, como ‘levar’, ‘trazer’, ‘fazer’, ‘administrar'
(alTERnaTiVa, 2012), mas que apresentam, em sua essência, uma relação
entre os estados antes e depois, entre o fim e os meios, entre o corpo que
é/está e o corpo que será/estará. Vale a pena refletir sobre algumas das
qualidades e características desse intervalo, bem como das do corpo que
aí se manifesta.
O conceito de ma, presente na cultura japonesa, possibilita aproxi-
mações. atribui-se a ele um intervalo (que pode ser relacionado a tem-
po, espaço e tempo-espaço) cheio de possibilidades, no qual a ação está
latente (OKanO, 2007, p. 91). Michiko Okano distingue dois modos de
refletir sobre ele: o primeiro é o próprio ma, que não é conceituável por
ainda não ter existência, pois é apenas possibilidade; o segundo é o que
a autora chama de espacialidade ma, que é quando o ma adquire visibi-
lidade:

A “espacialidade-entre” denominada ma pressupõe divisão


e intermediação de instâncias em que a noção de fronteira
se torna uma constante. Entretanto, não se trata apenas da
fronteira que separa, mas daquela que também ata, criando
relações e conexões (OKANO, 2007, p. 91).

suas instâncias comportam-se como elementos de um sistema pron-


to a estabelecer as mais ricas e variadas conexões e relações entre corpo
e mente, corpo e ambiente, o dentro e o fora, a ação e a não-ação (OKa-
nO, 2007). Ou seja, há uma passagem do potencial para a atualização, e
nesse intervalo são múltiplas as suas possibilidades. a visão de ma, então,
aproxima-se do gesto por três vias: como um intervalo, que envolve um
estado anterior/posterior; por seu comportamento sistêmico, cheio de

mesmo. É aqui que o círculo se fecha: matéria é tudo o que existe, indepen-
dentemente do espírito ou do pensamento, inclusive (para o materialista) o
espírito e o pensamento” (COMTE-spOnVillE, 2003, p.370).
10. O termo materializado, nesta tese, quer dizer algo que adquire um status de
completude, quer com propriedades físicas, como tamanho, peso, superfície
etc., quer como existente num plano não físico, como pode ocorrer na co-
municação e nas artes.

[ 21 ]
possibilidades; e porque acontece por intermédio do corpo. Ma chama a
atenção para os gestos de manifestações do corpo, como desenho, dança,
teatro, escrita, assim como para as possibilidades de aproveitar, em seu
fazer, a potência de sua ação.
Christine Greiner, em parceria com Helena Katz, lembra que há
fluxos de informação constantes entre o corpo e o ambiente. Essas
informações, capturadas pelo nosso processo perceptivo, “que as re-
constrói com as perdas habituais a qualquer processo de transmis-
são, [...] passam a fazer parte do corpo de uma maneira bastante sin-
gular: são transformadas em corpo” (GREinER e KaTZ, 2000, p. 130).

O corpo não é um meio por onde a informação simplesmente


passa, pois toda informação que chega entra em negociação
com as que já estão. O corpo é resultado desses cruzamentos,
e não um lugar onde as informações são apenas abrigadas
(GREINER e KATZ, 2000, p. 131).

Esse fluxo não cessa e “vive no estado do sempre-presente”, o que


propõe atualização constante. O corpo do "estado do sempre-pre-
sente", no entanto, se relaciona, também, àquilo que já foi vivencia-
do e corporificado, que remonta a outros tempos, pessoais e coletivos.
isso pode ser entendido parcialmente pela consciência. O neurocientista
antónio Damásio (2011) divide a consciência em duas: a consciência cen-
tral e a consciência ampliada. a primeira dá ao self o sentido do tempo e
espaço (aqui e agora); a segunda, que se alicerça na primeira, é a que faz
relações com o tempo passado e o futuro antevisto, e é uma consciência
que evolui ao longo da vida. a essas consciências, Damásio atribui dois
self11: o self central, que é transitório e se recria a cada interação do cérebro
com um objeto; e o self autobiográfico, que está ligado à identidade e ao
conjunto de lembranças sistematizadas de situações vivenciadas, antes,
pela consciência central (por exemplo, seus gostos e aversões, nome, re-
ações diante de determinados conflitos etc).
por conta da consciência central, no gesto há a percepção do agora –
a intenção, o movimento iniciado por ela. no entanto, as possibilidades
de ação são mais complexas e ganham mais significado, uma vez que a

11. Um self mais primário seria o que Damásio chama de proto-self, que cor-
responde à representação dos estados corporais do organismo.

[ 22 ]
cada vez que o movimento é atualizado, o self autobiográfico, por meio
da consciência ampliada, faz as ligações com as memórias da pessoa, sua
vivência e a intenção do gesto.
Toda a interação com objetos no exterior, assim como a evocação
de memórias, diz Damásio (2011), ocorre pela formação de mapas pelo
cérebro. Os mapas (ou “imagens”, considerando que podem ser visuais,
auditivas etc) ajudam o cérebro a tomar decisões e a se proteger, caso
haja algum sintoma que considere sua sobrevivência uma ameaça. Eles
são dinâmicos, instáveis e adaptáveis ao comportamento do homem.
Damásio explica ainda que, na mente, as imagens ganham maior ou
menor destaque, o que acontece de acordo com os valores de cada um,
adquiridos ao longo de sua história de vida. Ou seja, há um filtro, uma
edição dentro da mente:

[...] as imagens baseiam-se em mudanças que ocorrem no


corpo e no cérebro durante a interação física de um objeto com
o corpo. Sinais enviados por sensores localizados em todo o
corpo constroem padrões neurais que mapeiam a interação
do organismo com o objeto. Os padrões neurais são formados
transitoriamente nas diversas regiões sensoriais e motoras
do cérebro que normalmente recebem sinais provenientes
de regiões específicas do corpo. A montagem dos padrões
neurais transitórios é feita a partir de uma seleção de circuitos
neuronais como tijolos preexistentes no cérebro para serem
usados na construção de imagens (DAMÁSIO, 2011, p. 98).

O neurocientista também comenta que há mapas simples, como os


que indicam a posição de um objeto no espaço ou sua trajetória. Mas os
mapeamentos podem se combinar, enriquecendo as possibilidades de ação:

E, quando nossa mente se serve de múltiplos mapas de todas


as variedades sensoriais e cria uma perspectiva multíplice
do universo externo ao cérebro, podemos reagir com mais
precisão aos objetos e fenômenos nesse universo. Além
disso, quando os mapas são gravados na memória e podem
ser trazidos de volta, evocados na imaginação, tornamo-
nos capazes de planejar e inventar respostas melhores
(DAMÁSIO, 2011, p. 98-9).

[ 23 ]
isso permite uma aproximação com o processo criativo. nas artes e
nas artes aplicadas, por exemplo, o objeto a que se refere Damásio pode
ser qualquer coisa relacionada ao homem, desde instrumentos e matérias
-primas que se apresentam a ele até “tarefas” mais complexas, como o
desenho de um alfabeto ou um espetáculo de dança. Enquanto acontece,
o gesto e seus elementos fazem pontes com o passado, o presente e o
futuro, criando possibilidades de atualizar gestos passados e de (re)criar
outras possibilidades estéticas a partir do que já foi visto, experimentado
e vivenciado.
Mas nem tudo que acontece no gesto ocorre de forma consciente.
no gesto há a presença de 'pensamentos sutis', algo que leila Reinert
(2012) descreve como percepções sensíveis, aquelas que se encontram entre
as sensações inconscientes e o que é percebido na consciência. Elas en-
gendram o que será percebido conscientemente, dentro do "domínio das
'pequenas impressões, sensações ínfimas, imperceptíveis', que pertencem
a apreensão do sensível, tanto na experiência comum como em outras es-
feras da atividade humana" (REinERT, 2012, p.20-21). assim, da vivência e
do olhar que uma pessoa tem diante do mundo, emergem os pensamentos
sutis, que influenciarão decisões e olhares manifestados nos gestos.
Essa sutileza também se encontra no que Hupert Godard denomina
pré-movimento. Godard (2000, p.14) considera que o corpo tem um peso
e uma estrutura (músculo, ossos, órgãos etc), que atuam sob a força da
gravidade. Esse pré-movimento tem um caráter pessoal pela particulari-
dade de cada organismo.

O sistema dos músculos gravitacionais cuja ação escapa


em grande parte à consciência e à vontade é encarregado de
assegurar nossa postura. São esses músculos que mantêm
nosso equilíbrio e que nos permitem ficar em pé sem que
tenhamos de pensar. São ainda esses músculos que registram
as mudanças em nossos estados afetivo e emocional. Assim,
toda modificação de nossa postura terá uma incidência em
nosso estado emocional e, reciprocamente, toda mudança
afetiva provocará uma modificação, mesmo que imperceptível,
em nossa postura (GODARD, 2000, p. 14).

Esse mesmo autor dá como exemplo o movimento de esticar o braço


à frente: quando isso acontece, o primeiro músculo a se mover é o da pan-

[ 24 ]
turrilha, prevendo a desestabilização que tal movimento do braço gerará.
O pré-movimento antecede, influencia e potencializa todos os movimen-
tos posteriores e, tal como com os pensamentos sutis, ele é invisível e im-
perceptível para quem faz o gesto, mas tem como consequência mudanças
nos níveis mecânicos e afetivos do organismo do indivíduo. a relação com
a qualidade do instante vivido influenciará o gesto:

De acordo com nosso humor e com o imaginário do


momento, a contração da panturrilha que prepara, à
nossa revelia, o movimento do braço será mais ou menos
forte e modificará a significação percebida. A cultura, a
história do dançarino, a sua maneira de perceber uma
situação, de interpretar, vai induzir uma “musicalidade
postural” que acompanha ou despista os gestos
intencionais executados. Os efeitos desse estado afetivo
que concedem a cada gesto sua qualidade [...] não podem
ser comandados apenas pela intenção
(GODARD, 2000, p. 15).

Também ocorrem de forma não consciente o que antónio Damásio


chama de habilidades sensitivo-motoras. Essas habilidades exigem repe-
tidas execuções, e, com o tempo, vão melhorando a realização da tarefa
pretendida, como, por exemplo, tocar um instrumento, nadar, andar de
bicicleta (DaMÁsiO, 2010).
percebe-se que nos gestos há uma complexidade que envolve dife-
rentes aspectos do corpo, que ultrapassa a definição do gesto como um
ato motor apenas, pedindo uma definição mais completa. assim, gesto,
nesta tese, é considerado como um intervalo espaço-temporal no qual o
corpo atua, cujas fronteiras são a intenção, de um lado, e sua materializa-
ção, de outro. segundo Moura (2000), fronteira e limite são coisas distintas
– o limite é algo fixo, uma linha que permanece como obstáculo fixo; já a
fronteira é fluida, tem vida própria e não se prende ao limite12. no gesto,
essa 'vida própria' que ultrapassa os limites, se deve à presença do corpo,

12. as zonas de fronteira são sempre vistas como zonas não limitadas em que
acontecem contaminações, misturas, confrontos. Uma exploração interes-
sante sobre o tema acontece com o documentário Terras (2009), de Maya
Da-Rin, que trata das cidades gêmeas letícia e Tabatinga, fronteira entre a
Colômbia e o Brasil, respectivamente.

[ 25 ]
que articula particularidades para cada tipo de gesto. Essa articulação pode
ser vista dentro de um sistema, de caráter aberto, pois depende de como o
corpo13 lida com cada uma das particularidades e as relaciona, na materia-
lização da intenção.
no caso dos gestos da escrita, essas particularidades são a matéria-pri-
ma da escrita, especialmente o alfabeto romano; a imaginação; a cognição
e o aprendizado; e o modo de ser e fazer no mundo. são elas que sustentam
os gestos da escrita e serão aprofundadas nos próximos capítulos.

13. O corpo, enquanto elemento do sistema-gesto, é considerado em sua rea-


lidade psicofísica e seu relacionamento complexo com o meio circundante.

[ 26 ]
Entornos da palavra:
considerações
sobre a escrita e
o alfabeto romano
[ capítulo 1 ] na busca da compreensão do que
são os gestos da escrita, inevitavel-
mente, relaciona-se ao corpo que faz
a matéria-prima que é transformada e trabalhada: a palavra. se em algumas
línguas uma palavra pode ser representada por um único signo – como o
ideograma chinês –, no caso do Ocidente, em geral, precisamos da junção
das letras, que, combinadas, terão uma forma gráfica e sons corresponden-
tes1. nesse caso, é o alfabeto romano. Ele é fruto de um processo de comu-
nicação que começou há milhares de anos, tendo o corpo, e unicamente
ele, como suporte. Mais tarde, o homem foi se apropriando de materiais,
sobrepondo e ampliando as possibilidades de comunicação, chegando à
escrita, que envolve vários fatores:

Para escrever necessitamos, entre outras coisas, dos


seguintes fatores: uma superfície (a folha de papel), um
instrumento (a pena estilográfica), alguns signos (as letras),
algumas regras (a ortografia), um sistema (a gramática), um
sistema marcado pelo sistema da língua (um conhecimento
semântico da língua em questão), uma mensagem para
escrever (as ideias) e a escrita. A complexidade não está tanto
na pluralidade dos fatores indispensáveis, quanto em sua
heterogeneidade (FLUSSER, 1994, p. 32).

Uma pesquisa sobre as origens da escrita e do abecedário romano


trouxe luz ao papel do corpo na construção da escrita, e chamou a aten-
ção para algumas características inseridas nesse processo, como o porquê
da escrita2, a ferramenta e o suporte utilizados e a contribuição de diver-
sos povos3, descritas posteriormente neste capítulo.

1. no caso, é a correspondência entre a língua falada e seu aspecto visual.


2. Ou da pré-escrita, no caso das pinturas rupestres e dos objetos do período
pré-histórico.
3. Estudos de paleografia mais recentes tendem a ter essa visão mais comple-
xa, não se limitando ao estudo da escrita ocidental (considerando apenas a
origem do alfabeto romano, por exemplo), mas levando em conta também

[ 27 ]
a aproximação com o termo herança é oportuna: essa palavra deriva
do espanhol herencia, que, por sua vez, vem do latim Haerîntîa, que em
português significa “coisas vinculadas, pertences, do verbo Haereere, ‘es-
tar ligado, fixo, preso, pregado a; estar parado, imobilizado” (MaCHaDO,
1967). Os “pertences”, as “coisas vinculadas”, no caso da escrita, signifi-
cam o repertório gráfico e simbólico passado de geração a geração, de
povo a povo, e assim por diante.
O papel do corpo, nesse caso, é essencial: os pertences e as coisas
vinculadas são transformados pelos gestos do homem, no seu tempo, ou
seja, pode-se dizer que são construídos culturalmente. Esse fazer pode
envolver mudança, edição, ampliação e ressignificação a partir daquilo
que estava “preso”, “fixo”, “imobilizado”. O resultado dessa construção
deixa um legado, e novas mudanças – estruturais ou formais – podem
acontecer4, ressaltando o dinamismo da escrita5.

1.1 os registros gráficos: o homem e a escrita


Há dois grupos de registros gráficos – usarei a palavra gráfico e
seus derivados para significar o que tem representação visual – que
valem ser mencionados, antes de tudo, por serem os mais antigos, a
princípio, e que datam de milhares de anos. O primeiro é aquele que
se encontra nas cavernas ou paredes de abrigos de chuva, onde po-
dem-se encontrar impressões de mãos e desenhos de animais, entre
outros.

as contribuições de diversas outras escritas e pré-escritas (ver fisCHER,


2009).
4. É oportuno ressaltar que esta tese centra-se mais no aspecto visual das pa-
lavras, mas não se pode deixar de considerar que o repertório de palavras
e letras também sofre a influência da linguagem oral e, por vezes, do uso
cotidiano (ver o artigo de amanda polato, disponível em: <http://revista-
escola.abril.com.br/lingua-portuguesa/pratica-pedagogica/lingua-viva-42.
shtml>. acesso em: jul. 2014).
5. Os gestos que constroem e trabalham essa herança podem ser feitos tanto
por indivíduos quanto por grupos e até por sociedades inteiras, pois há
uma influência mútua entre eles. aqui vê-se uma complexidade maior:
deve-se considerar o gesto e seu poder 'acumulativo', que envolve sobrepo-
sição e memória. afasta-se a ideia de um gesto 'único', isolado, pois mesmo
no gesto caligráfico de determinada letra, outros atos, passados, estão en-
volvidos naquele intervalo, influenciando e determinando o que está sen-
do traçado

[ 28 ]
no parque nacional da serra da Capivara, a presença humana re-
monta a cerca de 100.000 anos, encontram-se pinturas de períodos
posteriores (12.000 a 6.000 anos), feitas em abrigos de chuva, formados
pela ação da erosão na base dos paredões. Já puderam ser identificadas
cinco tradições8. na tradição nordeste de pintura rupestre, que tem
presença maior nos terrenos da bacia sedimentar, há tantos grafismos
reconhecíveis (figuras em sua maioria humanas e de animais, além de
plantas e objetos) e grafismos puros que ainda não puderam ser identi-
ficados. na serra da Capivara domina a subtradição Várzea Grande, do
estilo ‘serra da Capivara’, que traz:

grafismos cujos contornos são completamente fechados,


desenhados por traços contínuos e uma boa técnica gráfica.
Na maioria das vezes, sobretudo quando o tamanho o permite,
as figuras são pintadas inteiramente com tinta lisa. As
representações humanas são pequenas, geralmente menores
que as figuras animais. Estas últimas são, em geral, colocadas
em um local visível e dominam o conjunto das composições; a
cor dominante é o vermelho (FUMDHAM, 2014).

Deve-se ressaltar que os temas registrados estão ligados à vida coti-


diana do homem e podem ser divididos em quatro temas: dança, práticas
sexuais, caça e manifestações rituais em torno de uma árvore (fUM-
DHaM, 2014).
O segundo grupo de registros gráficos é aquele presente em objetos. Eles
têm caráter mnemônico, isto é, eram usados como ferramenta de memó-
ria9 (KEsTERinG et al., 2012). Há registros que datam cerca de 412.000 anos,
como os ossos revelados em Bilzingsleben (fig.1.3), alemanha, que apresen-
tam entalhes com intervalos regulares, de significado ainda hoje obscuro

mostra uma arte anterior à de lascaux, porém mais complexa.


8. Tradições referem-se a classificações preliminares, que distinguem os re-
gistros segundo suas características, pelo tipo de grafismo, proporção que
essas imagens guardam entre si etc. as tradições podem se dividir em sub-
tradições.
9. Os quipus, feitos com nós, também são um recurso mnemônico e remon-
tam ao menos ao período neolítico, O guipu inca é o mais conhecido e
desenvolvido deles, contendo um sistema complexo de contabilidade (fis-
CHER, 2009, p. 15-7).

[ 31 ]
figura 1.3

Osso de elefante

com marcas, achado

em Bilzingsleben

(LANDESMUSEUM, 2014)

(fisCHER, 2009). Registros em pedra e ossos datados de aproximadamente


100.000 anos apresentam marcas parecidas – quando contadas, essas marcas
parecem corresponder aos ciclos lunares. no entanto, como notado por fis-
cher (2009), outras explicações são possíveis, deixando a questão em aberto –
o que importa, para ele, é que esses registros indicavam e marcavam alguma
percepção humana, por alguma razão.
Tanto nas cavernas quanto nesses objetos nota-se a intervenção do ho-
mem em seu universo, seja no ambiente em que vivia, seja em sua vida co-
tidiana: ele interferia graficamente nos objetos que criava ou adaptava da
natureza (fig. 1.3).
É interessante notar a necessidade de registro material, que se fazia,
às vezes, com riqueza de detalhes: os animais apresentam-se em grada-
ções de tons, no caso de Chauvet, e são diferenciados pelos traços e pela
forma; em outros sítios, como a caverna de El Castillo, na Espanha, há
impressões de mãos nas paredes. O que acontecia quando a mão, cheia
de pigmentos, tocava a superfície da pedra? nesse momento, homem e
natureza se uniam e a pressão da sua mão transferia parte do pigmento
para a pedra: de certa forma, era o próprio homem que se transferia para
aquele plano. Outras vezes, o pigmento era armazenado dentro da boca:
a mão posta na parede funcionava como molde, enquanto o sopro sobre
ela denotava e conformava a forma em negativo10. Essa mão, em positivo
e negativo, mostra que há milhares de anos já havia uma consciência da

10. patricia Dobrez (2013), em seu artigo “The Case for Hand stencils and
prints as proprio-performative”, afirma que essas mãos impressas em
positivo e negativo significam mais que uma assinatura: estão relacionadas
à consciência de si e de seu corpo dentro do ambiente.

[ 32 ]
forma e a possibilidade da contraforma, antevendo conceitos fundamen-
tais no universo das letras.
no entanto, parece ter havido necessidade de ampliar as possibi-
lidades de expressão. O registro por meio de pictografias , recurso de
figuração de seres e objetos familiares, foi um passo adiante em relação
àqueles já descritos. foi na Mesopotâmia que se encontraram alguns dos
registros mais antigos da história do alfabeto.
Esse tipo de registro surgiu por uma questão prática: era preciso
contar e registrar recipientes de cerâmica e sacas de alimentos. isso era
feito com pequenas etiquetas de argila contendo um pictograma e um
“número”, que correspondia à contagem com os dez dedos das mãos
(MEGGs e pURVis, 2010, p. 21). O mais antigo registro é o da cidade de
Uruk, cerca de 3100 a.C.. Dele constam desenhos de objetos, números e
nomes de pessoas, dispostos em colunas bem organizadas11 (fig. 1.4).
a necessidade de registro era impulsionada tanto pela propriedade
privada – para marcar gado, por exemplo – quanto pela especialização
em artes e ofícios, que demandava marcas de autoria. sinetes cilíndri-
cos, quando rolados sobre uma tabuleta de argila úmida, deixavam uma
impressão em alto-relevo, uma “marca registrada” que podia ser usada

figura 1.4

Registros em tabuleta

de argila da Mesopotâmia

(MEGGS e PURVIS, 2010, p. 21).

11. as datações e objetos a respeito do registro mais antigo podem variar


segundo a fonte consultada. Como o objetivo não é fazer uma revisão
bibliográfica comparativa, optei por manter o que é sugerido por
Meggs e purvis (2010).

[ 33 ]
para autoria de proclamações religiosas e reais, documentos e contratos
comerciais (MEGGs e pURVis, 2010).
Vale dizer que houve uma evolução crescente na complexidade
do uso dos pictogramas. Das simples relações com imagens, eles fo-
ram evoluindo e passaram a incluir também conceitos abstratos (‘em
cima’, ‘embaixo’), bem como a combinação de dois pictogramas, geran-
do significados correlacionados. na suméria12, região que compreende
o sul do iraque e do Kwait atuais, por volta de 2.800 a.C., houve uma
importante mudança: o uso do pictograma por um valor fonético, pelo
princípio rébus13. Entretanto, levou mais de mil anos para que esse uso
prevalecesse, reduzindo os 1.500 pictogramas e símbolos para 800 pic-
togramas, símbolos e sinais. posteriormente, outras escritas da região
foram influenciadas por essa ideia, incluindo a egípcia (fisCHER, 2009),
que diminuía e tentava sistematizar os signos gráficos.
O material utilizado na escrita da Mesopotâmia, a argila, era
abundante na região. Ela era inscrita com um instrumento de jun-
co bem afiado, enquanto a mão esquerda segurava a tabuleta. Depois
de inscritas, as tabuletas de argila eram postas ao sol para secar ou
queimadas em um forno (MEGGs e pURVis, 2010). O ato de secar a
argila, segundo Vilém flusser, estava relacionado à necessidade de
prolongar a escrita para que servisse de testemunho do livre-arbítrio
ali marcado: “endureço-o para forçá-lo a não esquecer rapidamente”
(flUssER, 2010, p. 28). Essa argila marcada e endurecida, mais do que
se constituir em simples suporte, escondia, por trás da necessidade
prática de contar coisas, um desejo inscrito no próprio homem: não
só a possibilidade de voltar atrás, por meio da evocação da memória,
mas também a vontade de prolongar o tempo ou fixar determinado
período do tempo em um suporte.
Os registros evoluíram, tanto em termos de conteúdo – o que po-
deria ser registrado –, como pela necessidade de guardar mais coisas.
assim, por volta de 2.800 a.C., os escribas inclinaram os pictogramas de
lado14, o que tornou a escrita mais rápida e fluida, bem como as picto-
grafias menos literais, mais simplificadas (MEGGs e pURVis, 2010, p. 21).

12. Também parte da região da Mesopotâmia.


13. Ou seja, o uso do pictograma para expressar um valor fonético semelhante.
14. por exemplo, o rio, antes representado por dois traços curvos horizon-
tais, passou a ser gravado por dois traços verticais.

[ 34 ]
figura 1.5
Evolução da escrita
cuneiforme, segundo tabela

de Higounet (2003, p.31-

5). Partindo do formato

ideogramático, foram

rotacionados, visando maior

rapidez.

O cuneiforme aproveitou-

se dos traços principais

dos registros anteriores e

eliminou as curvas, gerando

formas mais precisas e

resistentes ao cozimento.

[ 35 ]
figura 1.6
Imagens do processo

da escrita cuneiforme

(WRIGHT, 2014).

a mudança do instrumento também auxiliou no aumento da ve-


locidade da escrita. Em cerca de 2500 a.C., o estilete pontiagudo foi
substituído pelo estilete de ponta triangular, que era pressionado den-
tro da tábua de argila em vez de arrastado. Essa alteração conduziu
à escrita cuneiforme (feita com auxílio de uma cunha), que que par-
tia dos ideogramas, mas tornava-se abstrata (MEGGs e pURVis, 2010,
p. 21-22).
David p. Wright (2014), professor associado da Brandeis University,
nos Estados Unidos, apresentou alguns resultados práticos da escrita
cuneiforme feita com um estilete confeccionado com palitos de madei-
ra. a ponta triangular, como se pode observar na fig. 1.6, aproveitava
bem seu formato, permitindo traços específicos, dependendo da posi-
ção utilizada.

[ 36 ]
Mais tarde, o Egito e a fenícia tiveram um papel importante no de-
senvolvimento da escrita. Os egípcios aproveitaram a logografia, a fono-
grafia e a linearidade com sequência. além disso, devido à especificidade
da língua, estabeleceram novos recursos, como a acrofonia (uso de um
hieróglifo para representar apenas a primeira consoante de uma pala-
vra), signos representando complementos fonéticos e signos que eram
logogramas individuais e determinativos. Havia certa preocupação em
assegurar a interpretação correta, e, para isso, usava-se muita redundân-
cia (fisCHER, 2009, p. 36-7).
para fischer (2009, p. 36-7), a grande contribuição egípcia foi o uso
de cerca de 26 signos uniconsonantais, o primeiro alfabeto. por meio de
seu uso era possível, dentro do contexto, identificar o que estava escri-
to na estrutura de consoantes, bastando apenas acrescentar as vogais.
O uso do papiro (fino, leve, flexível, mais fácil de guardar e de escrever)
e do pincel, em contraponto à argila e ao estilete, também apontam
gestos que buscam tanto a racionalidade quanto a praticidade da escri-
ta. a presença de quatro escritas também mostra a diversidade de usos
dentro da sociedade: o hieróglifo (para ocasiões grandiosas, cerimo-
niais), duas cursivas (hierática e demótica) e o cóptico, que se aprovei-
tou de letras gregas para transcrever palavras egípcias, posteriormente,
como mostra a fig. 1.7.

figura 1.7
Variações nas escritas demótica

e cóptica (WIKICOMMONS,
2014).

[ 37 ]
O escriba era bastante valorizado no Egito antigo. Um de seus ma-
teriais era a paleta de madeira, que continha pastilhas de tinta, especial-
mente a preta e a vermelha. Os pincéis úmidos, fabricados com caules de
junco, eram esfregados nas pastilhas e, assim, carregados de tinta. O es-
criba mascava as pontas do caule, cortadas na diagonal, a fim de separar
as fibras. O papiro era segurado com a mão esquerda, e o escriba escrevia
em colunas, da direta para a esquerda, e de cima para baixo (Meggs e
purvis, 2010, p. 29).
a influência da escrita egípcia se estendeu para outros povos e repre-
sentou uma etapa importante no desenvolvimento da história da escrita:

É evidente que os egípcios, e não os gregos ou fenícios,


foram os primeiros a representar consoantes individuais
com apenas um sinal correspondente a cada fonema con-
sonantal em sua língua. (Um fonema é um som de fala con-
siderado a partir de suas relações funcionais num sistema
linguístico, como b e p, em inglês [...]. Esta forma brilhante
de escrita – um, e só um sinal para cada fonema – espalhou-
se para o Sinai e Canaã e revolucionou a escrita em termos
de flexibilidade e economia. Não era mais preciso aprender
centenas de sinais; em geral, menos de trinta “letras” (si-
nais em um alfabeto) eram necessárias para transmitir os
fonemas consonantais de qualquer idioma. Dessa forma, a
escrita se tornou acessível a todos.
A inovação como foi particularmente desenvolvida
e documentada nas escritas semitas do norte,
espalhou-se rapidamente, tornando-se ancestral de
três desenvolvimentos geográfica e linguisticamente
diversificados. Os fenícios inspiraram a escritura aramaica
que, por sua vez, inspiraram centenas de escrituras do sul
e sudeste da Ásia. E mais, a escritura aramaica inspirada
na fenícia também motivou as escrituras da Mongólia e do
império Manchu [...]. Antes de tudo isso, porém, os fenícios
inspiraram os gregos. E foi por meio do empréstimo que
os gregos fizeram, e da esplêndida adaptação do alfabeto
fenício, que o alfabeto “completo” – dando às vogais o mesmo
status das consoantes – surgiu (FISCHER, 2009, p.109-10).

[ 38 ]
na época da adoção do alfabeto fenício, entre 1000 a.C. e 850 a.C., a
região da Grécia atual era, composta de cidades-estado independentes.
Os gregos cipriotas foram os primeiros a fazer a adaptação do fenício
para sua língua: para isso, utilizaram a sequência semita, mas com pro-
núncia grega15. alguns sinais foram convertidos de consoante para vogal,
ampliando o alcance desse alfabeto para outras línguas. Embora esse al-
fabeto inicial tenha se espalhado pelo território grego, gerando algumas
outras variações, por volta da metade do século iV a.C., o alfabeto jônico
(a Jônia fazia parte da região da Turquia atual) foi o que prevaleceu,
sendo adotado em 403-402 a.C. de forma compulsória em documentos
atenienses (fisHER, 2009).
Os gregos aplicaram ao alfabeto uma estrutura geométrica. Meggs e
purvis (2010, p. 40-1) mencionam a harmonia e a beleza do alfabeto grego
presente no manuscrito de Os persas, datado de iV a.C.: as letras mostram
simetria e um ritmo regular, pelo fato de seguirem um sistema com tra-
ços horizontais, verticais, curvos e diagonais. Em outro manuscrito, uma
estela do século V a.C., há uma aplicação epigráfica do alfabeto: as formas
têm grande beleza, e várias delas seguem a proporção de um triângulo
(a), quadrado (E, M) e um círculo quase perfeito (O). algumas particula-
ridades marcam essa inscrição: o E apresenta, no lugar da barra central
atual, um ponto; o a tem uma barra horizontal em sua base, transfor-
mando-se num triângulo (MEGGs e pURVis, 2010).
a existência de mais de uma escrita ou de mais de uma versão dela,
dependendo do caso, em uma mesma cultura é uma constante na his-
tória da escrita, como já se viu antes, no Egito. são manifestações que
se empregam devido a usos distintos (cerimonial, formal ou cotidiano,
por exemplo) e, frequentemente, apresentam materiais distintos em sua
produção – o mesmo aconteceu na Grécia.
por muito tempo, as letras monumentais das inscrições gravadas em
pedra conservaram suas formas clássicas, e os papiros mais antigos (século
iV a.C.) seguem a escrita lapidar. Mas a escrita na vida intelectual, cotidia-
na e administrativa, a partir da era helenística (323 a.C.-146 a.C.), evoluiu
de forma diferente, dividindo-se em escrita dos “livros” (libraria), escrita da
chancelaria e escrita dos documentos privados (HiGOUnET, 2004, p. 90).

15. O sistema de sons fenício era bastante diferente do grego. por exemplo, as
palavras fenícias começavam com consoantes, mas muitas do grego co-
meçavam com vogais. além disso, era a aplicação de um alfabeto semita a
uma língua não semita (fisCHER, 2009, p. 112).

[ 39 ]
figura 1.10
Documentos gregos do século

III a.C., em estilo cursivo.

Notam-se o ritmo e a harmonia

fluída dos caracteres.

[ 40 ]
É interessante constatar que cada uma delas exigia gestos próprios,
tanto pelas ferramentas e suportes, quanto pela necessidade da escrita.
O corpo que faz a escrita dos monumentos é um corpo que exige rigor,
atenção e força no entalhamento das letras em pedra. O dos manuscri-
tos nos pergaminhos, por outro lado, trabalha em escala menor e é uma
escrita que se faz de forma direta: trata-se em grande parte de caligrafia,
o que requer prática e atenção, já que não permitia retoques. a escrita
desenvolvida dentro dos documentos de chancelaria era cursiva, pois
demandava algo mais pragmático e rápido. Como se pode ver na fig. 1.10,
isso não significa descuido – ao contrário, ela possui ritmo e harmonia.
O alfabeto grego estendeu-se até a península itálica, sendo adotado
pelos etruscos para escrever, pela primeira vez, sua língua, ainda hoje
desconhecida. Esse alfabeto etrusco foi tomado emprestado pelos roma-
nos, e foi especialmente a partir deles que o alfabeto latino se desenvol-
veu no formato conhecido atualmente.

1.2 escritas latinas: arquétipos


Os gestos que comunicam por meio dos sinais gráficos buscaram,
ao longo da História, formas de registrar a consciência de si, seu pen-
samento, sua cultura – o alfabeto e a combinação dessas letras são re-
sultado dessa busca na cultura ocidental. Mas essas letras não são um
fim em si; elas existem para criar sentido. Como lembra Vilém flusser,
a palavra texto quer dizer ‘tecido’, e a palavra linha, ‘um fio de tecido
de linho’. Combinar tais linhas, tecer tais fios constitui um processo
aberto: “Quem escreve tece fios, que devem ser recolhidos pelo recep-
tor para serem urdidos. só assim o texto ganha significado” (flUssER,
2010, p. 51).
Uma confluência de fatores nos primeiros séculos da nossa era in-
fluenciou o desenvolvimento da escrita ocidental tal como ela é conhe-
cida hoje, devendo muito à contribuição romana. O império Romano es-
tendeu-se por um largo território, desde as ilhas Britânicas, no norte, até
o Egito, no sul; da Espanha, a oeste, até o Golfo pérsico, no leste (MEGGs
e pURVis, 2010, p. 43), o que significava o domínio de culturas locais, va-
riadas, já existentes. não por acaso, paulo Heitlinger (2014) chama o alfa-
beto romano de “a primeira letra global”, impulsionada pelo latim, língua
falada pelos dominadores e imposta aos povos subjugados. apenas na
porção oriental do império Romano o grego foi tolerado (HEiTlinGER,
2014, p. 13-4). Outro fator foi o cristianismo, que se fortaleceu e passou

[ 41 ]
de seita a religião oficial do império Romano, em 325 d.C., graças a de-
terminação do imperador Constantino. por fim, o desenvolvimento da
escrita dentro da sociedade romana, com sua diversidade de formatos,
foi decisivo para a constituição do alfabeto latino atual.
O mais antigo registro de uma inscrição latina é o lapis niger (‘pe-
dra negra’), no fórum de Roma, do segundo quarto do século Vi a.C. .
por ser um empréstimo dos etruscos, algumas adaptações foram neces-
sárias: o G foi criado a partir do C, com um gancho, (fisCHER, 2009);
após a conquista de Roma pela Grécia, no século i a.C., as letras Y e Z16
foram acrescentadas ao alfabeto, devido à apropriação de palavras gregas
que tinham esse som.
se os gregos não valorizavam tanto a escrita, demonstrando
apreço maior pela tradição oral, os romanos a aproveitavam para de-
monstrar seu poder, como se vê em monumentos como a Coluna de
Trajano, que contém inscrições entalhadas, no fórum de Trajano, em
Roma17, com suas capitalis monumentalis feitas com traços grossos e
finos, linhas retas e curvas – ainda hoje referência em elegância e
proporção clássica. Mandel (2006, p. 61) chama a atenção para o ritmo
criado devido ao contraste, o que gerava identidade gráfica, e para o
cuidado com a dimensão dos caracteres, prevendo a distância neces-
sária para ser lida.
as letras entalhadas – epígrafes – romanas eram feitas com plane-
jamento, em etapas que envolviam a redação (provavelmente no papiro
ou em outro material); a construção de linhas de apoio e o traçado em
pincel, feito pelo compositor ordinator; e a incisão definitiva com cinzel
ou goiva pelo lapidador18. Essa colaboração entre ordinator e lapidador
nem sempre era mútua, pois em alguns casos as letras talhadas fugiam
ao padrão caligráfico19 e tinham aspecto mais simétrico e geométrico.

16. O Z na verdade foi reincorporado, pois tinha sido removido do alfabeto no


período da criação do G (fisCHER, 2009).
17. Os romanos costumavam usar a escrita lapidar para proclamar seus feitos
e vitórias, especialmente nos territórios ocupados. ladislas Mandel (2006,
p. 61) fala desses letreiramentos monumentais, comentando a passagem da
decifração para a fase de leitura pública.
18. O original, em português de portugal, é lapicida. Mas aqui utilizei o termo
lapidador, que parece se adequar melhor ao contexto.
19. paulo Heitlinger (2014, p. 19-20) menciona a existência de epígrafes de ca-
pitulares sem nenhuma influência caligráfica, outras com alguma influên-

[ 42 ]
figura 1.8
Manuscrito Os persas.

Abaixo, detalhe

(MEGGS e PURVIS, 2010).

[ 43 ]
nas epígrafes romanas da Capitalis Monumentalis também se veem as
proporções do desenho “clássico” romano: as letras se encaixam em um
quadrado ou em um triângulo que cabe em um quadrado; outras são me-
nores (como o i) ou maiores do que essa referência (como o M), enquanto
também há exceções, como p, B, R e Q (HEiTlinGER, 2014, p. 30).
a escrita, no entanto, não estava presente apenas nos monumen-
tos; ela também se estendia à vida cotidiana. nota-se que nas ruínas de
pompeia e Herculano (século i d.C.) ela se espalhava de forma ampla
pela vida social, em avisos, material de campanhas políticas, anúncios de
publicidade nas paredes externas, cartazes em painéis de madeira, como
marcas de propriedade privada, e em registros comerciais, documentos
de Estado e literatura (MEGGs e pURVis, 2010, p. 46).
alexander nesbitt chama a atenção para a escrita corrente20, dizen-
do que ela tem grande impacto no desenvolvimento de estilos mais no-
vos e simples. no caso dos romanos, houve, na prática cotidiana, uma
tendência a escrever mais rápido, o que deformava as letras. para manter
a legibilidade, algumas eram levadas acima e abaixo do nível das outras,
já que não havia espaço entre as palavras. Essa tendência influenciou
as letras manuscritas formais (nEsBiTT, 1957, p. 14-5). Essa escrita tinha
raízes nos séculos anteriores:

Podemos pensar que desde o século VI a.C., paralelamente


à letra gravada, os latinos utilizaram uma escrita cursiva
mais prática, de uso cotidiano, uma grafia inspirada no
alfabeto etrusco e que conservava todos os cortes da
capital. Desde o final do do século III a.C., observamos uma
grande atividade escriturária e provavelmente a aparição
da ideia de grosos e finos, sem dúvida como consequência
do uso intensivo do instrumento de junco. Mais tarde, no

cia (mas mal construídas) e um grupo em que as formas são regulares e de


grande qualidade estética – pela uniformidade e regularidade das linhas
direitas e curvas, pelas distâncias entre elas e nas proporções entre largura
e altura. nesse último grupo, é possível encontrar também o uso harmôni-
co de capitulares regulares e condensadas usadas conjuntamente.
20. nesta tese, traduzi current no sentido de ‘corrente, em uso’ (no período),
mas há diferenças entre os autores. Claude Mediavilla (2005) destaca que os
paleógrafos geralmente empregam o termo comum. Já Mandel (2006) adota
o termo usual.

[ 44 ]
figura 1.9
Estela com 4 pessoas.

Abaixo, imagem em negativo

com as letras E, A, M e O, que

mostram a proximidade com as

formas geométricas

(MEGGS e PURVIS,

2010, p. 44).

[ 45 ]
figura 1.11
Grafite em Pompeia, na

Itália (5SENSE, 2014).

[ 46 ]
século II a.C., a escrita latina se diversificou em três tipos
principais: a escrita livreira, que viu o desenvolvimento
da rústica primitiva [...], a escrita comum ou cursiva,
muito próxima à capital, que se orienta paulatinamente
até a minúscula; finalmente, a capital gravada, chamada
monumental, que se diferencia segundo o cuidado com
que se executava. Desde o século VI ao século III a.C., esta
capital gravada se mantém estável. Com a introdução
de grossos e finos e dos remates, o aspecto da letra se
regulariza (MEDIAVILLA, 2005, p. 122).

não havia o uso de maiúsculas e minúsculas tal como atualmente.


foi um desenvolvimento a partir das mãos21 do período, que lentamen-
te originaram o que reconhecemos como o 'alfabeto minúsculo'. Claude
Mediavilla (2005) considera o estudo da De bellis (ii d.C.) e da Epítome de
Tito Livio (iii d.C.) como indispensável para entender esse processo. a
De bellis é um dos manuscritos mais antigos de um manuscrito latino
no formato códice. apresenta algumas semelhanças com a Rustica, mas
guarda uma diferença na angulação da pena, cerca de 50º (mais reclinada
à direita do que a Rustica, 70º): o a é menor; o D se reclina, ; o H perde
parte da haste direita, ganhando um canto, ; o M é feito com três linhas,
entre outros exemplos (Ver fig. 1.12) (BisCHOff, 1990).
Já a Epítome de Tito Lívio, documento jurídico, é escrito em papiro (iii
d.C.)22. Mediavilla (2005) considera-o um intermediário entre a De Bellis
e a minúscula:

[…] ainda que A, E, G e N sejam unciais, o resto do alfabeto é


de minúsculas23. É evidente que, do ponto de vista do escriba,
as alterações que experimenta a morfologia das letras são
involuntárias, do mesmo modo que uma série de modificações

21. Utilizo o termo mão para designar um conjunto de letras que segue deter-
minadas características em seus atributos formais. Esse termo é usado na
caligrafia, mas adoto-o aqui de forma mais ampla, que inclui também a
epigrafia. Uma palavra comum para designá-la seria alfabeto, mas evitei seu
uso para que não criasse confusão com o termo alfabeto como empregado
posteriormente.
22. Em seu verso contém a Epístola aos hebreus, feita no século iV a.C.
23. percebe-se facilmente em letras como a e D (agora com ascendente vertical).

[ 47 ]
figura .1.12

Fragmentos dos

manuscritos De Bellis

e Epítome de Tito Lívio

(MEDIAVILLA, 2005)

figura 1.13
Fragmento de Quedlinburgo,

século IV d.C.

(MEDIAVILLA, 2005)

[ 48 ]
ínfimas, quase imperceptíveis, podem acabar criando formas
novas, em situações muito longe do modelo inicial. No caso que
nos ocupa, não seria irracional alegar que o desejo de escrever
com rapidez e, portanto, do módulo das letras, a simplificação
do número de traços interferiu na formação dos signos ou em
busca da cursividade.
Finalmente, outros fatores importantes, como a transição do
papiro ao pergaminho ou a troca do ângulo de escrita, provavel-
mente também contribuíram para esta transformação (MEDIA-
VILLA, 2005, p. 111-3).

À medida em que o império Romano perdia sua influência, nos sécu-


los iV e V, a igreja católica se fortalecia e espalhava a sua pela região desse
governo em franca decadência. O latim assumiu o lugar do gaulês como
língua oficial da igreja. Em relação à escrita, a instituição a considerava um
meio importante, pois servia ao estudo e à preservação dos textos sagrados
– e por isso tinha clara preferência pelo pergaminho24 e seus códices, mais
duráveis, em detrimento do papiro, mais efêmero. Com a ameaça das inva-
sões bárbaras ao império, a igreja construiu abadias e mosteiros, organizan-
do os scriptoria, oficinas de escrita em que os textos sagrados eram copiados,
e também formaram bibliotecas (ManDEl, 2006, p. 77).
Dentro das abadias e dos mosteiros, surgiu a uncial, ao longo do sé-
culo iV (fig.1.14). influenciada pelo desenvolvimento do velino (que ti-
nha mais qualidade, sendo macio e liso, formando menos volume) e da
cursividade, além das mudanças incorporadas da Epitome e De Bellis, as
letras adquiriram um formato mais arredondado (MEDiaVilla, 2005,
p. 129). seguindo a tendência de um eixo com ângulo menos inclinado,
20º, ao realizar o ductus (sequência da criação das letras) é fácil ver o
quanto a uncial não representava fluidez e harmonia. Como Mediavilla
ressalta, na uncial se reconhecem traços da Epítome:

Compromisso gráfico entre as letras presentes na


Epítome e na De Bellis, as formas da uncial evoluíram
sobretudo devido a fatores como a utilização do velino e da
cursividade. As capitais provavelmente se arredondaram
de forma natural a partir do momento em que foram

24. sua chegada à Europa era dificultada pelas guerras.

[ 49 ]
traçadas sobre um suporte de pele mais liso e melhor
preparado [...] Aparecem traços completamente novos, sendo
particularmente característicos o ductus das letras A, D, E,
H, M, N e U (MEDIAVILLA, 2005, p. 129).

Outro estilo desenvolvido foi a semiuncial. Embora o nome remeta


à uncial, na verdade esta não descende daquela, mas ambas têm uma ori-
gem comum, a Epítome (MEDiaVilla, 2005, p. 130); uma novidade era a
pena quadrada, com corte oblíquo, o que permitia traçar a haste com um
ângulo de pena mínimo (HaRRis, 2003). na irlanda, o estabelecimento
da igreja católica, com a fundação de centros religiosos, propiciou o de-
senvolvimento de uma escrita específica, a semiuncial irlandesa25 (ver
fig.1.15), derivada, como próprio nome diz, da semiuncial. Ela é escrita
com um ângulo quase horizontal, variando de 5º a 20º: é robusta, larga e
de execução lenta; tem ascendentes e descendentes curtas e seu conjunto
misturava maiúsculas e minúsculas (MEDiaVilla, 2005). ao se com-
parar a fluida uncial com a semiuncial irlandesa, nota-se que a irlande-
sa tem mais detalhes, com caracteres formalmente mais complexos, que
exigem finalizações – as hastes do i e H, por exemplo, eram feitas em três
passos – ou que apresentavam formas assimétricas, particulares, como o
X, Y, Z e as ligaturas ET e EG. a própria posição da pena, quase horizon-
tal, força a posição da mão, deixando o antebraço quase perpendicular à
letra traçada, o que não permite um movimento fluido e contínuo.
Em 768 d.C., com a morte do rei pepino, o Breve, o reino dos francos foi
dividido entre seus dois filhos, Carlos Magno e Carloman. Carlos Magno
assumiu e unificou o reino após a morte de seu irmão, iniciando a expan-
são de seu território. Ele era bastante ligado às tradições culturais e “se
esforçou em promover o conhecimento, se rodeou de letrados e eruditos e
impulsionou a criação de monastérios, especialmente mediante a difusão
de textos sagrados” (MEDiaVilla, 2005, p. 140). foi graças ao apoio de
Carlos Magno que surgiu a carolíngea, mão que originou o alfabeto que
hoje conhecemos como minúscula ou caixa-baixa – muito provavelmente
na área dos centros caligráficos de lyon, autun, Tours, luxeuil e Corbie,
que tinha proximidade cultural com a itália. Esse tipo de letra espalhou-se
por várias regiões da Europa e parte da África (MEDiaVilla, 2005).

25. a semiuncial irlandesa teve grande uso do final do século Vii até o século
iX (MEDiaVilla, 2005, p.130).

[ 50 ]
figura 1.14
Evangelho de São Mateus, com

exemplo da letra uncial

(MEDIAVILLA, 2005).

figura 1.15
Ductus da semiuncial

maiúscula (HARRIS, 2003).

A semiuncial é a mão presente

no Livro de Kells.

[ 51 ]
figura 1.16
Corte de livro com

escrita carolíngea.

figura 1.17
Alguns detalhes da letra

carolíngea – G aberto, S

(estrutura de F, com o F

carolíngeo, na sequência) e a

palavra misericordia, com o S

específico do estilo.

[ 52 ]
Com exceção da tradição celta, a escrita europeia era pobre e
indisciplinada, praticada por escribas pouco experientes, que
produziam manuscritos difíceis ou impossíveis de ler. Daí que
em 789 Carlos Magno tivesse ordenado uma reforma através
de um édito que tentava impor uniformidade de composição,
decoração e escrita. A uniformidade da escrita conseguiu-se
com a adoção de um modelo de escrita comum da era antiga
tardia, combinada com inovações celtas que incluíam as
quatro linhas-guia com traços ascendentes e descendentes,
e que foram adaptadas e ordenadas por escribas com a
supervisão do abade Alcuíno. O resultado foi um alfabeto
planejado como um sistema gráfico, onde cada letra ou mancha
foram cuidadosamente estudadas – a carolíngea minúscula,
que também constitui um excelente trabalho de identidade,
ainda hoje permite datar documentos da época de Carlos
Magno (COSTA e RAPOSO, 2010, p. 77).

Embora as letras carolíngeas (fig.1.16) sejam a base das minúsculas,


alguns dos caracteres tinham especificidades: o G tinha uma abertura no
miolo; o s tinha a estrutura de um f (s longo; o s atual só apareceu no
final do século X); a barra do T não cruzava sua haste; o Y tinha um pon-
to acima. O módulo da carolíngea tinha proporção de três penas e meia
de altura, com as ascendentes e descendentes maiores que as das unciais.
Em termos de mancha tipográfica, pode-se dizer que esses espaços per-
mitiam um respiro maior em um texto com várias linhas, e que a letra
destacava-se por sua elegância.
a carolíngea encontrou solo fértil em grande parte da Europa e
África do norte, por onde foi espalhada. no entanto, com a queda do
império de Carlos Magno, a situação europeia como um todo mudou.
ao longo da idade Média, a carolíngea originou a gótica, que, na ver-
dade, é uma denominação generalista para vários outros estilos de cali-
grafia: primitiva (1070 até o início do século Xiii), textura (século Xiii a
XV), fratura (século XVi), suma (século XiV), cursiva (século XiV), bas-
tarda (século XV) e civilité (século XVi)26. as três últimas fazem parte

26. Essa divisão está de acordo com a escolha de Claude Mediavilla (2005), que
a faz seguindo o consenso entre os paleógrafos, já que há divergências e
contradições.

[ 53 ]
figura 1.18
Manuscrito de Poggio Bracciolini

(1380-1459), do século XV. Ele foi

um dos importantes humanistas

italianos, a quem se atribui a

invenção da escrita minúscula

humanista (Lettera Antiqua)

(WIKICOMMONS, 2014).

[ 54 ]
das letras cursivas latinas, e não há certeza quanto à criação delas.
Mediavilla (2005) afirma que um contexto possível é o da democrati-
zação da escrita e de seu uso nas universidades (os estudantes anota-
vam o que era ditado, o que exigia uma escrita rápida e, não por acaso,
recheada de abreviaturas).
foi na região da itália, na fase tardia da idade Média, que flores-
ceu uma cultura que reforçava valores humanísticos ligados à anti-
guidade clássica e era voltada ao conhecimento das coisas, do mundo
e do próprio ser humano: o Renascimento. a escrita, como um espe-
lho desse novo paradigma, incorporou tais valores. Mais do que uma
evolução natural, as letras desse novo tempo, segundo Mediavilla
(2005), foram uma construção, uma escolha deliberada levada a cabo
por alguns meios intelectuais e artísticos.
até então, não se fazia uso do alfabeto bicameral, termo que
designa o uso conjunto de duas mãos, no caso as maiúsculas (Capitalis
Quadratta) e minúsculas (carolíngea). Com a escrita humanística,
houve uma combinação de maiúsculas e minúsculas para serem
utilizadas conjuntamente, no que ficou conhecido como lettera
antiqua.
no uso da lettera antiqua havia mais três letras, as quais fo-
ram incorporadas durante a idade Média: o J (como extensão do i),
alongado dos manuscritos do século XiV, indicando uso com força
consonantal; e o U e W, estas como variantes do V, designando sons
diferentes27 (Meggs e purvis, 2010, p. 43-5).
O Renascimento marca um período de consolidação do alfabeto
romano enquanto estrutura gráfica básica, não apenas chegando a sua
constituição final (as letras do abecedário), como também inauguran-
do o uso de maiúsculas e minúsculas utilizadas conjuntamente. nesse
período, começou a surgir uma demarcação mais clara e duradoura
entre as letras de texto, baseadas nas romanas – a serem desenvolvi-
das pela tipografia –, e as letras cursivas, usadas no dia a dia e mar-
cadas pela caligrafia.

27. O J surgiu como um prolongamento do i, indicando o uso com força


consonantal, especialmente no começo de algumas palavras. no início
do século X, o U representava uma vogal mais suave, em oposição ao V,
consonantal. O W é resultado da ligação entre dois V, o doble U (MEGGs r
pURVis, 2009, p. 45).

[ 55 ]
na medida em que a mecanização28 das letras permitiu uma rápida
reprodução por meio da tipografia, a caligrafia perdeu parte importante
de seu domínio. a partir do Renascimento, as tensões entre a escrita feita
à mão, de um lado, e aquela reproduzida pela tipografia, por outro, passa-
ram a revestir a estrutura do alfabeto então consolidado, propondo, cada
uma a sua maneira, novas formas de expressão de letras. para qualquer
expressão, no entanto, é necessária imaginação, tema do Capítulo 2.

28. Com o desenvolvimento da tipografia, houve uma ruptura do modo de


produção da escrita, pois a mecanização da tipografia provocou a substi-
tuição do escriba/calígrafo por matrizes e prensas de impressão, que pro-
duziam muito mais rapidamente. isso deslocava a responsabilidade da pro-
dução do escriba/calígrafo para o impressor, que iria buscar, nos próximos
séculos, uma linguagem própria para os tipos.

[ 56 ]
A
imaginação
e o gesto
[ capítulo 2 ]

É atribuída à lady Wei1, professora de Wang Hsi-chih2, o seguinte pensamento:

A escrita de alguém que tem a força do pincel “tem osso” e a


escrita de quem não tem a força “tem carne”. A escrita que tem
osso com pouca carne é chamada de “muscular”; a escrita que
tem carne e pouco osso é chamada banha de porco. A escrita
que tem muita força e é rica em músculo é sagrada; a escrita
sem força e sem músculo é doente3. Cada uma é usada de
acordo com a situação (DRISCOL e TODA, 2007, p. 45).

a metáfora de uma caligrafia que tem osso, carne, músculo, nas cali-
grafias chinesa e japonesa, indica qualidades na linha que um praticante
de caligrafia chinesa ou japonesa deve perseguir. O calígrafo não deve
retratar apenas o ideograma de forma bem-feita; ele deve, sobretudo,
trabalhar em sua estrutura – osso, carne, músculo – dando-lhe profun-
didade. Ela aparece duplamente na linha: em seu aspecto visível, externo
(fig. 2.1), e também no que não pode ser separado do que calígrafos ex-
perientes veem, que está ‘escondido’ do olhar ordinário4.
no Ocidente, Vilém flusser, analisando o trabalho de Mira schen-
del , menciona um olhar capaz de revelar coisas, descobrindo profundi-
5

dade na transparência6:

1. Em japonês, Eifujin.
2. Em japonês, Ogishi, considerado um dos melhores calígrafos da caligrafia
chinesa (ver MiYasHiRO, 2009, nota 83, p. 149).
3. Em japonês, também se fala de uma “escrita magra”.
4. sobre essa percepção, ver nakamura (2006).
5. Mira schendel (1919 -1988), nasceu em Zurique, suíça. Depois de estudar
arte e filosofia na itália, se mudou para o Brasil em 1949, fixando residência
em porto alegre e, posteriormente, em são paulo (iTaÚ, 2014).
6. O texto faz parte do livro Bodenlos, autobiografia de Vilém flusser formada de
textos diversos. nesse, o filósofo fala da obra de Mira schendel e aponta, em
dois de seus trabalhos, a capacidade da artista de pensar nas “imagens dos
conceitos”. Como notado por Cauê alves (2014, p. 40), essa mediação, para
flusser, poderia ajudar “a compreender a complexa estrutura do mundo, ou
melhor, a tratar objetivamente os conceitos”.

[ 57 ]
figura 2.1
Diversos tipos de linha na

caligrafia japonesa. Os dois

primeiros são trabalhos

contemporâneos de Tan

Misturu (FLINT-SATO, 1999).

O último é do monge budista

Nakahara Nantenbô (1839-1925)

(WESTGEEST, 1999)

“Transparência” é a consequência da capacidade do


olhar humano de penetrar a superfície das coisas. Tal
a capacidade do olhar humano o distingue das demais
formas de ver que conhecemos [...]. O seu olhar pode
perfurar superfícies (disciplinada ou brutalmente) e abrir
uma dimensão de profundidade que faz com que seu
mundo seja Lebenswelt (mundo para a vida humana). Falei
em dois métodos de perfuração: o brutal e o disciplinado.
O olhar brutal (por exemplo, o fenomenológico, o artística
ou o místico) rasga as superfícies e revela abismos por
detrás das coisas (FLUSSER, 2007, p. 186)7.

a série comentada por flusser é Objetos gráficos8 (fig.2.2), que utili-


zava grandes chapas de acrílico transparente dispostas no espaço. Esse
material revelava a frente e o verso da escritura, “por meio de letras
que são aplicadas ou desenhadas sobre a superfície do acrílico, ora
escritas, ora datilografadas em folhas de papel arroz, posteriormente

7. flusser menciona que o olhar disciplinado, o da pesquisa científica, começa


a ser contaminado pelo olhar brutal. Mais à frente, propõe um jogo duplo
com esse conceito: “transparência, em última análise, é possibilidade de ver
um significado por trás de tudo. E ‘significado’, em última análise, é possibili-
dade de transformar tudo em coisa transparente” (flUssER, 2007, p. 187).
8. Exibida na 9a. Bienal de arte de são paulo, em 196.

[ 58 ]
figura 2.2
Objetos gráficos

exibidos na exposição da

Pinacoteca do Estado de

São Paulo, em 2014.

colocadas entre as chapas” (MiRa, 2014). Era por meio dessas chapas,
e da escrita, que a artista tentava “Mostrar que o ‘lado atrás’ da trans-
parência está na sua frente e que o ‘o outro mundo é Este” (flUssER,
2007, p.186).
Observa-se que a escrita não está isolada. schendel, trabalhando com
letras, mostra que elas criam relações entre si, bem como com o papel
arroz, o acrílico, as outras chapas e o espaço da instalação. a profundi-
dade que flusser menciona pode se estender também às relações com os
gestos da artista e o seu trabalho. Os objetos revelam a artista, assim como
a artista se revela por meio dos objetos.
Essas reflexões sobre a obra de schendel, que também fazia trabalhos
de design gráfico, como capas de livros, junto com aquela sobre a linha
da caligrafia japonesa e chinesa feitas inicialmente, propõem enxergar
algo além da aparente superfície das letras. Ou, no caso desta tese, 'ras-
gar' a superfície da escrita e dos seus gestos.
no Ocidente, a matéria-prima da escrita é especialmente o con-
junto de letras romanas9, mas inclui também os diacríticos e os nú-
meros. a maioria das letras teve como origem um significado próprio,
um pictograma, como descrito no Capítulo 1. Com a simplificação de

9. alfabeto romano, com 'romano' grafado em caixa-baixa, é a denominação


comum da estrutura do alfabeto utilizado hoje no Ocidente, isto é, o resul-
tado de uma construção bicameral que juntou as capitais romanas deriva-
das de alfabetos como o da Coluna de Trajano, com as minúsculas.

[ 59 ]
sua forma e sua adaptação por diversos povos e períodos, esse sentido
primeiro desapareceu. ao tornarem-se parte de um sistema alfabéti-
co, essas letras potencializaram a linguagem verbal, enriquecendo-a.
ao mesmo tempo, no desenvolvimento do alfabeto latino – ou, como
ele é nomeado, o alfabeto romano –, assumiram-se como arquétipos,
no sentido etimológico, “modelo de seres criados; padrão, modelo,
protótipo” (CUnHa, 2013, p. 57). Eles são reconhecíveis em toda cul-
tura ocidental que usa o alfabeto romano.
Os arquétipos-modelo assumem formas que são reveladas, sobre-
tudo, por seus atributos formais (fig.2.3). Eles dizem respeito à cons-
trução das letras, ao formato, à proporção, à modulação, à presença ou
não de serifas e remates. assim, o que à primeira vista são apenas letras
se revela mais profundo, com possibilidades formais variadas, como se
pode ver na figura abaixo:

figura 2.4
Variedade de atributos

formais presentes

em algumas fontes

comercializadas pelo site

Myfonts.com (2015).

[ 61 ]
(ver fig.1.15)
E se ousarmos 'rasgar' a superfície das letras, no que os atributos formais
apresentam, veremos traços da imaginação que as inspirou. para que isso
aconteça é necessário o uso da imaginação. para Christoph Wulf, antropó-
logo e professor na Universidade livre de Berlim, a imaginação é essencial
para o desenvolvimento humano e parte integral da condição humana:

Em uma primeira aproximação, podemos descrever a


imaginação como uma potência que faz o mundo aparecer
ao homem, no sentido do grego phainestai [fantasia, no
sentido de algo aparecendo ou sendo feito para aparecer].
Duas facetas dessa conceitualização precisam ser
distinguidas. Por um lado, “fazer aparecer” implica que
o mundo aparece ao homem e é percebido de maneira
circunscrita pelas condições do ser humano. Por outro
lado, “fazer aparecer” significa conceber o mundo através
de imagens mentais e criá-lo em conformidade formal.
Imaginação, portanto, é a energia que liga o homem
ao mundo e vice-versa. Ela age como uma ponte entre
exterior e interior, é de caráter quiástico e desdobra seu
significado exercitando sua função. A linguagem expressa
a característica da imaginação que tornou o mundo
exterior em imagens e transferiu-as a um mundo interior de
imagens. Em língua alemã, a imaginação torna-se “potência
de imaginação” nos escritos de Paracelso; um poder que
projeta o mundo no homem e, assim, faz seu mundo interior
conter o exterior. Na ausência dessa possibilidade, não
haveria o mundo humano da cultura, o imaginário ou a
linguagem (WULF, 2013, p. 22-3).

Wulf distingue vários tipos de imagens, como aquelas produzidas


fora do homem e as interiores. Estas trazem imagens do exterior à cons-
ciência humana, em um processo no qual o homem tanto se abre ao
mundo como se apropria dele na forma de imagens. para o antropólogo
pode haver sobreposição e interação entre aquelas individuais e coletivas
do imaginário interior com as do mundo exterior10, o que caracterizará
as imagens de um sujeito (WUlf, 2013). isso pode ser importante de dois

10. Wulf cita como referência o italiano Remo Bodei (ver BODEi, 2004).

[ 62 ]
modos: um diz respeito ao mundo das letras que circunda o indivíduo e
que é absorvido (criticamente ou não) por ele, alimentando seu imaginá-
rio. O outro é a aproximação do que Mark Johnson (2007, p. 165) chama
de metáforas conceituais, importantes no modo como apreendemos algo do
mundo externo e o transformamos (daí o termo metáfora), inserindo em
nossa própria vivência. Ou seja, é possível que as imagens externas se
traduzam em sentimentos, comportamentos, ações etc, o que se aproxi-
ma do que que lady Wei recomenda, quando recomenda uma caligrafia
com carne, osso, músculo.
nesse sentido, a teoria da imaginação de Gaston Bachelard, descrita
a seguir, pode ser vista como um modo de apropriação do mundo pelo
ser, reelaborado em outro campo de domínio. a obra de Bachelard pode
ser dividida em um pensador diurno, que se ocupa de reflexões sobre
o espírito científico, “formulador de um novo racionalismo11 – aberto,
setorial, dinâmico, militante” (pEssanHa, 1991, p. V), e outro noturno,
que formula a teoria da imaginação poética e o devaneio, que é o que
interessa a esta tese.
Em A água e os sonhos – Ensaio sobre a imaginação da matéria (2002), Gaston
Bachelard apresenta a imaginação formal e a imaginação material, dis-
tintas, mas ao mesmo tempo complementares. a primeira está associada
à razão, ao que já é conhecido e visto – por isso mesmo, mais dependente
da visão e da percepção. Já a imaginação material é regida pelos quatro
elementos naturais12: fogo, terra, água e ar. Esses elementos funcionam
como forças potencializadoras, geradas pelas próprias imagens que lhe
inspiraram, que darão substância (a poética específica) da criação; sendo
assim, são capazes de revelar a essência da criação:

A exigência fenomenológica com relação às imagens poéticas,


aliás, é simples: resume-se em acentuar-lhes a virtude de
origem, em apreender o próprio ser de sua originalidade e em
beneficiar-se, assim, da insigne produtividade psíquica que é a
da imaginação (BACHELARD, 2009, p. 2).

11. nas reflexões diurnas, Bachelard clama para um novo espírito científico,
que rompa com o senso comum, se afastando do empirismo, e abrace o ra-
cionalismo (MElO, 2006). Com a publicação de Psicanálise do fogo, o filósofo
inicia um conjunto de obras que estuda a imaginação e que se desenvolveu
ao longo de décadas até sua morte em 1962.
12. Bachelard se aproveita dos elementos da física aristotélica.

[ 63 ]
Oposta à imaginação formal, a imaginação material tem uma relação
direta com o fazer:

A vista lhes dá nome, mas a mão as conhece. Uma alegria


dinâmica as maneja, as modela, as torna mais leves. Essas
imagens da matéria, nós as sonhamos substancialmente,
intimamente, afastando as formas, as formas perecíveis, as
vãs imagens, o devir das superfícies. Elas têm um peso, são um
coração (BACHELARD, 2002, p. 2).

Os elementos naturais que regem a imaginação, segundo alexander


de freitas (2006), encontram-se regidos sob o princípio fac fixum volatie,
expressão em latim que pode significar tanto ‘faça o volátil fixo’ quanto
‘faça o fixo volátil’. isso significa que na criação poética a imaginação
material se fixa; por outro lado, aquilo que foi criado se volatiza no(s)
elemento(s) que lhe originaram.
segundo Bachelard (1994, p. 22), o que orienta a imaginação é o de-
vaneio, um sonho ‘desperto’: “O sonho avança linearmente, esquecendo
seu caminho à medida que avança. O devaneio opera como estrela. Re-
torna a seu centro para emitir novos raios”. Ou seja, podemos dizer que
o devaneio opera no trânsito entre a imaginação e sua materialização,
na tensão entre a imaginação material, de onde sai e se alimenta, e a
imaginação formal.
O que pode atrapalhar o devaneio é a completa adesão à imaginação
formal, bloqueando a força propulsora da matéria, o que, no caso das
escritas, pode acontecer quando se fica preso a uma imaginação mais
reprodutora, no aspecto externo das letras, sem espaço para a criação e
para o sonho desperto.

Para ter essa constância do sonho que dá um poema, é preciso


ter algo mais que imagens reais diante dos olhos. É preciso
seguir essas imagens que nascem em nós mesmos, que vivem
em nossos sonhos, essas imagens carregadas de uma matéria
onírica rica e densa que é um alimento inesgotável para a
imaginação material (BACHELARD, 2002, p. 20) [grifo meu].

Uma sensibilidade que permita recolher a palavra (ou letra) em seu


material mais íntimo, que a escute e a veja é necessária:

[ 64 ]
Outros sonhos nascem ainda quando, em vez de ler ou de
falar, escrevemos como se escrevia outrora, no tempo em
que estávamos na escola. No cuidado em fazer letra bonita,
parece que nos deslocamos no interior das palavras. Uma
letra nos espanta, nós a ouvíamos mal ao lê-la, escutamo-la
diversamente sob a pena atenta (BACHELARD, 2009, p. 48).

O sonho13 que as palavras suscitam parte do elemento material que


lhe dá substância. Bachelard (1994, 2002, 2009), em seus escritos sobre a
imaginação, mostra que há diversidade dentro de um mesmo elemento.
assim, no que tange a água, há as águas rasas, claras, violentas, profun-
das etc. a matéria terrestre também é variada, podendo ser caracterizada
como dura ou mole e se apresentar como cristal, rocha, mineral etc. Às
vezes pode haver mistura de dois elementos, ocorrendo o predomínio de
um sobre o outro (BaCHElaRD, 2002, p. 100). Um desses exemplos é a
massa, a mistura de terra e água, que pode ser vista como a massa do pão
e a argila e propõe uma relação direta com o fazer.

Na massa, a ação da água é evidente. Quando a amassadura


continuar, o operário poderá passar à natureza especial da
terra, da farinha, do gesso; mas no início do seu trabalho, seu
primeiro pensamento é para a água. É a água que constitui seu
primeiro auxiliar […].
Quando se conseguiu fazer penetrar realmente a água na
própria substância da terra esmagada […] então começa
a experiência da “ligação”, o longo sonho da “ligação”.
Esse poder de ligar substantivamente, pela comunhão de
vínculos íntimos, o operário, sonhando sua tarefa, atribui-o
ora à terra, ora à água (BACHELARD, 2002, p. 109).

Um trabalho em que a água amolece as substâncias, penetrando-as,


rende uma massa que, por sua virtude composta, desperta no sonhador
a “ligação”. implica uma imaginação ativa14, que segue os instintos da

13. Bachelard de fato apresenta a diferença entre o sonho e o devaneio (sonho


acordado), mas parece que, uma vez feito isso, em várias ocasiões, quando
fala em sonho está querendo dizer o o sonho ativo, potencial. É nesse sen-
tido que o sonho será utilizado a partir de agora.
14. Bachelard fala de uma imaginação muscular, dinâmica (ou dinamizadora),

[ 65 ]
massa, levando à frente seu devaneio, que se regozija com essa atividade,
suscitando possibilidades15.
Dos quatro elementos naturais é especialmente com a água e a terra,
e a junção deles, a massa, que se podem ver aproximações com a caligra-
fia, o design de tipos e o letreiramento. isso porque o devaneio permitiu
(e permite, ainda hoje) construir identidades e narrativas, abrindo novas
possibilidades que até então eram limitadas pela imaginação formal.

2.1 Escrita e devaneio

Sim, de fato, as palavras sonham (BACHELARD, 1996, p. 18).

por volta de 1450, Johannes Gutenberg (1398-1468), nascido em


Mainz, reuniu os mecanismos de impressão necessários para imprimir
um livro tipográfico. O desenvolvimento desse sistema16 representou
um grande avanço na forma como as letras eram produzidas. Com um
molde de tipos, era possível fazer letras individuais, que poderiam ser
combinadas de modo a formar novas palavras. isso não apenas agi-
lizaria o processo, uma vez montada a matriz para impressão, como
também permitiria sua reprodução quantas vezes fossem necessárias
(MEGGs e pURVis, 2009). por outro lado, representou também o declí-
nio do livro manuscrito.
as primeiras impressões tipográficas eram feitas com tipos que si-
mulavam a mão Textura Quadrada (MEGGs e pURVis, 2009). na itália,
no entanto, devido à cultura humanista, buscou-se o desenvolvimento
de um tipo que representasse tal cultura e se distanciasse dessa mão
caligráfica – que dava à mancha tipográfica um grande peso, devido ao
aspecto fechado de sua construção (sMEiJERs, 2011).
para fred smeijers, é no século XVi que a tipografia desenvolve-se
como “design”:

que acontece no trabalho e é suscitada com a matéria.


15. Eventualmente, pode até conduzir ao trabalho com um terceiro material,
como o fogo, o que caracteriza um devaneio ainda mais dinâmico e com-
plexo.
16. inicialmente, as casas de impressão (tipografias) se concentraram em Mainz,
mas, devido aos saques e pilhagens promovidos por adolfo nassau ii (1423-
1475) em 1462, vários comerciantes e artesãos fugiram da cidade e estabelece-
ram casas tipográficas em outras regiões, como a frança e a itália.

[ 66 ]
figura 2.5
Manuscrito humanista do

século XV apresentando uma

mistura de mãos de caligrafia.

Há maiúsculas romanas;

as minúsculas têm uma

mistura de cursivo gótico com

as humanistas; a capitular tem

influências da mão insular

(SMEIJERS, 2011).

O tipo veio a ser visto como algo à parte da escrita


só depois de 1500, e isso aconteceu especialmente na
Itália. Ainda que os humanistas italianos daquele
tempo vissem o tipo intimamente ligado com a
escrita17, é em seu trabalho que podemos ver primeiro
a ideia do tipo. E esta ‘ideia’ nós chamamos ‘design’:
uma forte consciência da forma das letras e sua
disposição na página. O humanismo italiano se fez
sentir antes dos anos 1460, quando os primeiros
impressores se estabeleceram ali. Mas seu pico,
que chamamos de Renascimento, coincide com este
primeiro florescer da tipografia italiana
(SMEIJERS, 2011, p. 43).

17. O autor usa esse termo como equivalente a caligrafia.

[ 67 ]
figura 2.6
As serifas paralelas mostram

letras que obedecem

estritamente às possibilidades

conhecidas pela pena no

período (SMEIJERS, 2011).

Esse autor revê a ideia corrente, presente em livros de história (do


design, da tipografia e da caligrafia)18, de que os tipos humanistas sur-
giram inspirados pela mão humanista. isso é apenas parcialmente ver-
dadeiro, pois dos manuscritos humanistas vinham algumas influências
como o uso do alfabeto bicameral. smeijers (2011,) propõe um olhar aten-
to e comparativo aos manuscritos feitos décadas antes e no início do
século XVi.
Os manuscritos de antes mostram um layout humanista, que se nota
pela presença das letras romanas, mas também apresentam uma mistura
com o gótico cursivo. É especialmente nas serifas, entretanto, que se vê
que elas não acompanham o desenho tal como era difundido pelos ti-
pos humanistas no período. isso porque os tipos humanistas adaptaram
a serifa das maiúsculas romanas às minúsculas, aplicando-as simetrica-
mente. Já nos manuscritos anteriores a 1500, as serifas ainda se manti-
nham paralelas, como na mão carolíngea, ou no máximo apresentavam
simetria, mas ainda com o traço inclinado da caligrafia (sMEiJERs, 2011),
como na fig. 2.6.
para os calígrafos do período deve ter sido difícil imitar, inicialmen-
te, aquilo que era visto na tipografia, porque as letras eram feitas pela
pena utilizada no período. Eram outros gestos, que ultrapassavam o duc-
tus caligráfico, aproximando-se mais de algo construído e desenhado do
que caligrafado.

18. Como Meggs (2009) e Mediavilla (2005).

[ 68 ]
figura 2.7
Processo de geração

da punção final, o tipo.

Vê-se o início com a

contrapunção, que marca

a barra de ferro aquecida,

que gerará a punção,

que será então refinada

(SMEIJERS, 2011).

O metal era a matéria-prima dos tipos, que eram feitos, em geral, pelo
uso da contrapunção19, que marcava espaços internos da letra20. a contra-
punção era enrijecida pelo calor e pressionada contra outra barra, também
de aço, e amolecida pelo fogo, que originava a punção. Em seguida, depois
de eliminadas as rebarbas, a punção passava pelo processo de refinamento,
deixando a letra mais precisa. O profissional responsável por isso era o pun-
cionista21, que, em geral, especialmente entre 1520 e 1600, não eram apenas
puncionistas22, mas também editores e impressores (sMEiJERs, 2011).
Como o metal era uma matéria-prima bastante maleável, era possível
moldar letras que não estivessem presas às formas limitadas da pena de
caligrafia, o que impulsionou a descoberta de uma linguagem própria no
design de tipos23 no período.

19. Também inicialmente uma punção, que poderia ser feita cavando ou pro-
duzindo outra contrapunção.
20. Outro modo seria cavar a superfície, mas esse método não seria tão preciso
quanto partir da contrapunção (sMEiJERs, 2011).
21. antes do século XVi, um ourives, provavelmente (sMEiJERs, 2011).
22. puncionistas que nesse período tornaram-se notórios por seus trabalhos:
Garamond, Granjon e pierre Haultin.
23. a expressão design de tipos significa o processo de desenvolvimento e a pro-
dução de tipos.

[ 69 ]
a inspiração e a força, ou, usando o termo bachelardiano, o deva-
neio, no design de tipos levou, no período de 1520 a 1600, a um grande
desenvolvimento na tipografia:

Muitas mudanças e desenvolvimentos ocorreram nos anos


1520-1600. O tipo para música começou a ser feito; o hábito de
usar maiúsculas como versalete cresceu, e eventualmente o
versalete se tornou uma fonte separada; o itálico e o romano
começaram a serem empregados juntos e a pertencer a um
design. Textura continuava a ser usada no norte da Europa
e, junto com a romana, itálica e as maiúsculas, se juntava à
desconexão de tamanhos definidos pela mão humana [...] o
grego era feito em tamanhos maiores. As maiúsculas itálicas
surgiram. Tipos display verdadeiros foram feitos por Van den
Keere: isto significava que eles tinham proporções de display,
e não apenas o tamanho aumentado [...]. Tipos mais estreitos e
com mais peso apareceram; descendentes tornaram-se curtas,
ascendentes mais vivas, e altura x mais generosa. O tipo
arábico foi feito para a Imprensa do Vaticano
(SMEIJERS, 2011, p. 70).

O design de tipos descobria suas especificidades, mas a caligrafia


perdia sua função principal, a propagação e a manutenção do conheci-
mento por meio dos livros. Restava a ela traçar novos caminhos, atenta
ao seu elemento material. a caligrafia se lançou, então, aonde o impresso
ainda não chegara, aproveitando para ressaltar suas qualidades.
no sentido etimológico, o cal de caligrafia significa "belo, formoso"
(CUnHa, 2013, p. 115), levando à definição de caligrafia como uma escrita
bela, formosa. se na superfície pode-se dizer que a caligrafia é formada
de letras belas, um olhar mais profundo revela que o que cria essa beleza
é o que lhe constitui: sua fluidez. Há um fio invisível, fluido, que tece as
letras quando caligrafadas, seja pelo veículo da caligrafia (a tinta, por
exemplo), seja pelo ductus que forma as letras. O ductus ainda esconde algo
mais: não é apenas a sequência de peças caligráficas, mas o próprio regis-
tro de um percurso linear do corpo, uma dança, um rito corporal: é uma
manifestação direta, que não permite retoques. a fluidez da caligrafia
reclama para si o elemento material água para desenvolver sua potência,
seu devaneio.

[ 70 ]
figura 2.8
Representação das forças

que atuam no curso de um

rio, segundo Schwenk (1978).

a água, segundo Theodor schwenk (1978) é um elemento ativo que


pode se desdobrar nos estados gasoso, sólido e líquido: circula pelos rios,
lagos e oceanos; pelo ar, faz-se presente nas correntes atmosféricas ao
redor da terra, o que lhe dá mobilidade, e pode se contrair em neve e
chuva, retornando à terra.
Bachelard (2002) menciona diferentes imagens de água, afirmando
que há desde as superficiais até as mais profundas. Expandindo um pou-
co os exemplos de água mencionados por esse autor, parece ser nas águas
de um rio que a caligrafia encontra sua substância. ao contrário do que
se costuma pensar, o fluxo de um rio não envolve apenas o movimento
‘rio abaixo’, vertical; em seu centro, há também movimentos circulares,
em espiral, que se entrelaçam como em uma corda. Esse movimento en-
volve movimentos menores, circulares, que se entrelaçam e promovem
a fluidez das águas (fig. 2.8). Essas forças estão em constante interação
com seu entorno, em uma paisagem que pode ser bastante variada:

Todas as águas que fluem naturalmente têm seu ritmo, talvez


seguindo o curso do dia, talvez mantendo ritmos sazonais
maiores. Além disso, há vezes em que os rios se aprofundam e
outras em que se alargam (SCHWENK, 1978, p. 20).

[ 71 ]
a imagem material do rio torna-se ainda mais apropriada na cali-
grafia, quando se visualizam também suas variações físicas: ele pode ser
sinuoso ou mais linear, largo ou estreito, rodeado de rica vegetação ou
de deserto. Cada uma dessas imagens, como elemento material, propõe
caligrafias distintas, pois a cada uma delas se relaciona um devaneio es-
pecífico. É como o percurso de um rio, que se transforma conforme a
geografia e a interação com o meio..
Com o surgimento da tipografia, a caligrafia parece criar, cada vez
mais, consciência de sua fluidez, procurando expressá-la em prolonga-
mentos das ascendentes e descendentes de suas letras, bem como na de-
coração e nos floreios que acompanham a escrita24. Esse prolongamento
das letras já aparecera em algumas mãos do período gótico e podia ser
percebido também nas variações cursivas das letras da alta idade Média.
sobre a escrita cursiva, David Harris diz:

[Ela] foi, provavelmente, redescoberta para o uso em


documentos na Inglaterra por volta do final do século XII.
Embora a velocidade fosse a característica mais importante,
a escrita também se destinava a impressionar, como indicam
os laços e as letras conectadas. A versão francesa desta letra,
chamada de Secretaria ou Chancelaria, foi introduzida na
Inglaterra e na Alemanha no final do século XIV. Quando as
características da Textura foram incorporadas, ela se tornou
conhecida como Bastard Secretary em inglês, Batarde, em
francês (HARRIS, 2009, p. 66).

para escrever a Bastarda de Secretaria, deve-se levantar a pena minima-


mente, procurando conectar as letras sempre que possível: as ascendentes
têm curvas complementares, desenhadas para a direita em um ângulo de
45º, característica conhecida como “tromba de elefante” (HaRRis, 2009, p.
68-9). Essa mão apresenta fluidez e consciência do contraste nas letras, que
ocorre em momentos nos quais se usa apenas a ponta da pena para produzir
os fios finos25 que as acompanham ou que fazem a ligação entre uma e outra.

24. só no fim do século XX, com os recursos OpenType, tecnologia que per-
mite o uso de caracteres alternativos e grande armazenamento de glifos,
que a tipografia pode imitar, mais facilmente, esses detalhes da caligrafia.
25. na mão Textura Quadrata, estilo gótico não cursivo, que surgiu no início do
século Xiii, já se podia observar a presença de floreios em fio. Mas na Bastar-

[ 72 ]
figura 2.9
Bastarda Secretaria

aplicada no livro Adão e

Eva, escrito em inglês,

em 1435 (HARRIS, 2013).

[ 73 ]
no século XVi, na região da atual itália, os trabalhos de ludovico
degli arrighi (1475-1527), Giovambattista palatino (1515-1575) e Gio-
vanni francesco Cresci26 (fig.2.8) possuem variações da mão Chance-
laresca, criada a partir da escrita utilizada pelo Vaticano nesse perío-
do. a importância da Chancelaresca, e de suas variações, ainda se faz
sentir hoje, já que ela é a base de grande parte da escrita cotidiana feita
com caneta. inicialmente, a Chancelaresca do Vaticano era exclusiva
para o uso da instituição, mas a simplicidade e a elegância dessa mão
levaram os calígrafos das secretarias dos principados e dos meios
intelectuais a adotarem-na, acrescentando arabescos a seu gosto
(MEDiaVilla, 2005, p. 196).
Ter uma boa caligrafia, a partir do século XVi, era algo apreciá-
vel, especialmente nas sociedades com altos níveis de alfabetização,
como a Holanda. Muitos calígrafos não eram apenas mestres da es-
crita, mas também podiam ensinar e divulgar, por meio de manuais
da escrita, sua pedagogia e as mãos caligráficas que tinham mais
destreza.
Os mestres da escrita holandeses27, do século XVi em diante,
desenvolveram ainda mais as curvas e os detalhes de decoração de
suas letras (uma de suas características é a presença de floreios arre-
dondados). a Holanda oferecia um ambiente propício ao desenvolvi-
mento das ciências, das artes e do pensamento no século XVi, com a
chegada de intelectuais estrangeiros e a riqueza gerada pelas trocas
comerciais realizadas no período. Com a tomada de flandres (atual-
mente parte da Bélgica) pelos espanhóis, muitos mestres calígrafos
fugiram para a região da atual Holanda. nas cidades holandesas, o
ensino fundamental incluía o ensino de línguas e a prática de ofícios
como a caligrafia (MEDiaVilla, 2005), fomentando uma geração de
profissionais calígrafos, bem como o reconhecimento da caligrafia
como uma prática a ser valorizada.

da de secretaria isso fica mais evidente, pois os fios são mais explorados.
26. sua data de nascimento e morte não são precisas. Estima-se que tenha
nascido no segundo quarto do século XVi.
27. na Espanha, o trabalho dos mestres da escrita nesse período também é
importante. Mas, como o objetivo não é fazer um resgate histórico, mas
pensar nas imagens de matéria e em sua relação com os gestos da escrita,
foi escolhido o foco na Holanda, país relevante na cena da escrita até
hoje, devido a sua tradição em caligrafia e design de tipos.

[ 74 ]
figura 2.10
Exemplo de documento de

Francesco Cresci (c.1557)

(MEDIAVILLA, 2005).

[ 75 ]
a grande liberdade de movimento e a aparente despreocupação
com uma legibilidade imediata são, segundo nicolete Gray (1982, p.
31), uma continuação do que foi desenvolvido no período gótico tar-
dio28. Há uma preocupação em valorizar o conjunto das letras como
um todo. Jan Van den Velde, mestre da escrita holandês, tinha uma re-
putação que ultrapassava o território holandês, devido a seu domínio
caligráfico. suas pranchas e manuais de escrita circulavam em países
como a inglaterra e a Espanha. sobre seu trabalho, Gray comenta:

O exagero escolhido em cada caso particular é claramente


ditado pelas exigências do padrão que vai sendo construído
em toda peça; quanto mais se olha, mais se vê a grandeza
deliberada e magistral de um trabalho planejado de desenho
(GRAY, 1982, p. 31).

a lâmina de Van den Velde (ver fig. 2.10) pouco se compara com
os exemplos do período renascentista (ver fig. 2.9). são devaneios dis-
tintos: no renascentista, os floreios e prolongamentos das letras têm
forma mais comedida, propondo águas mais tranquilas, cristalinas; já
no de Van den Velde, as águas são mais dinâmicas.
na fig. 2.1129 vê-se que, fora a presença de uma mão flamenca que
expressa o texto principal, há algumas frases iniciais em uma mão
que parece ser derivada da gótica fraktur. Mas o que complementa a
lâmina de forma exuberante é a presença de uma capitular que remete
àquelas do período gótico, porém um pouco mais fluidas. Ela se afasta
da linearidade da caligrafia, porque propõe uma construção por meio

28. a oposição entre os períodos da história da arte, aqui, acontece com o


gótico e o barroco de um lado e o Renascimento de outro, opondo visões
racionalistas e não racionalistas.
29. as imagens mostradas fazem parte do manual de Van den Velde, Spieghel
der Schrijfkonste, publicado em 1605. Esse manual é dividido em três partes:
a primeira mostra exemplos da gótica holandesa, de escritas francesas,
alemãs e inglesas; a segunda apresenta modelos espanhóis, latinos e italia-
nos; e a terceira apresenta orientações quanto ao modo de escrever essas
mãos. O manual era impresso por meio da gravura em metal, que, devido
à técnica de talho-doce, podia emular a escrita feita com instrumentos de
ponta fina, como a pena de ave e o bico de pena. O trabalho de Rembrandt
em gravura é outro exemplo do nível de detalhamento proporcionado pela
gravura em metal.

[ 76 ]
figura 2.10
Detalhe em lâmina de Jan

Van den Velde, feita por

meio de caligrafia com tinta

férrica e pena de ganso.

Para Mediavilla (2005),

a caligrafia é superior à

gravura em metal – no

caso de Van den Velde,

pela riqueza de detalhes,

especialmente nos floreios

(MEDIAVILLA, 2005).

figura 2.11
Lâmina de Jan Van den Velde,

feita em gravura em metal

(CIVILITÉ, 2014).

[ 77 ]
de várias linhas que são acrescentadas, rendendo formatos únicos –
mais próxima da ideia de um desenho construído –, impossíveis de se-
rem feitos de uma só vez. Em outras palavras, o que vemos combinado
com a caligrafia é lettering ou letreiramento.
O letreiramento da fig. 2.12, na leitura desta tese, propõe imagens
de água em profusão, que se fazem pela gestualidade da mão, que se
mostra especialmente nas curvas. parecem vir de um devaneio que
não se contenta apenas com o elemento água, mas requer uma paisa-
gem mais ampla, que envolve mais um elemento, a terra, e convida à
contemplação do dinamismo das águas: percebem-se os traços orgâ-
nicos da letra D, que se complementam com os floreios circulares, os
quais se superpõem e se somam, criando sobreposições que ora variam
pelo contraste, ora pela escala.
assim como há diferentes rios, com qualidades distintas, que re-
sultam em caligrafias distintas, podem ocorrer mudanças ao longo do
tempo na relação escrita-elemento. se a massa, como mistura de terra
e água, parece caracterizar o design de tipos no Renascimento, isso
não parece ser algo estanque.
Desde o Renascimento, houve uma crescente busca pela racionali-
zação das formas das letras. isso gerou estudos geométricos das letras
Romanas capitais, as maiúsculas, das quais aquela presente na Coluna
de Trajano é, por suas proporções, a considerada mais clássica. albert
Dürer fez uma descrição completa de como traçar cada uma das le-
tras; paulo Heitlinger (2014) lembra que atualmente esses estudos se
relacionam com a aplicação vetorial das fontes, que descrevem para
o computador, em curvas vetor, as formas das letras. na frança, luís
XiV ordenou estudos dos ofícios do período, incluindo um a respeito
do desenho das letras, que procurou detalhar letras romanas e itálicas
dentro de um grid geométrico30. Esse estudo serviu de pano de fundo
para o tipo Roman du Roi, feito por philippe Granjean para a im-
prensa Real francesa, em 1702. Esse tipo é considerado o precursor das
letras chamadas ‘modernas’, no período (GRaY, 1986).
Da crescente racionalização do design de tipos, pareceu emergir,
lentamente, outro elemento material terrestre que alimenta o deva-
neio. O afastamento das formas humanistas e a verticalização do eixo,

30. Elas foram gravadas em chapas de metal entre 1695 e 1716, mas só foram
impressas em 1965 (GRaY, 1986).

[ 78 ]
figura 2.12
Lâmina de Van den Velde,

feita por meio de gravura em

metal (EXQUISITE, 2014).

[ 79 ]
junto à consciência de que a modulação poderia ser abrupta, estimu-
laram desenhos de letras muito distintos da letra humanista, apre-
sentando grande diferença nas hastes e valorizando o alto contraste.
além disso, as serifas foram se tornando delicadas, até que se trans-
formassem apenas em um fio extrafino. Tudo isso gerou uma página
mais leve, nem sempre proporcionando uma boa leitura (GRaY, 1986;
nEsBiTT, 1957). Os tipos Didot e Bodoni, produzidos em 1783 e 1798,
respectivamente, são aqueles que melhor apresentam as característi-
cas descritas.
a respeito da imaginação material, pode-se dizer que o elemento
material massa dos tipos humanistas cedeu lugar à matéria terrestre
das pedras e dos cristais. O designer de tipos pode ser comparado a
um lapidador de pedras preciosas, que observa a pedra em seu estado
mais bruto e, por meio de sua produção e interferência, evidencia suas
melhores qualidades, entregando uma pedra precisa, polida, refinada.

Naturalmente, é em torno da beleza rara e profunda de


um cristal isolado que precisamos procurar a raiz do
devaneio cristalino. Quando é cativada pela lição do
cristal, a imaginação transportará esse devaneio a toda
parte. Um químico do século XVII, Guillaume Davisson,
“estende o princípio da cristalização não somente aos sais
e às substâncias minerais, mas também aos alvéolos das
colmeias e a certas partes dos vegetais, tais como as folhas
e as pétalas de flores”. Mas tais cristalizações são de certo
modo externas, é em profundidade que o devaneio cristalino
pancalisa seu objeto, buscando a intimidade das gemas.
Os olhos sonhadores – curiosa atitude – orientam-se para
o centro da pedra preciosa. O sonhador sonha com atenção
[grifo do autor] (BACHELARD, 2008, p. 232-3).

2.2 Devaneio e gesto


as imagens materiais aqui apresentadas representam apenas par-
te das possibilidades. a teoria da imaginação material de Bachelard
descrita anteriormente parece convidar a outro olhar nos gestos da
escrita. a princípio, desenhar letras parece se concentrar no domínio
da imaginação formal: é preciso uma estrutura e atenção aos detalhes,
que darão identidade às letras. no entanto, pela imaginação material

[ 80 ]
figura 2.13
Detalhe da abertura do

Manual Tipográfico de

Bodoni, com seu caractere

impresso (BODONI, 2010).

[ 81 ]
entra-se em outro universo, que complementa o da forma – aquele
dos elementos naturais que ressoam no profundo do inconsciente, que
suscitam e conduzem os devaneios nos gestos.
O perigo está, no entanto, em considerar os devaneios e os ele-
mentos materiais como estereótipos, imagens fixas. Quando a água
é apresentada como elemento da caligrafia, ela não o é por conta de
uma relação direta com a tinta líquida – embora isso auxilie nas re-
flexões sobre a materialização da imaginação –, mas sim porque tem
como característica a fluidez, uma fluidez que será conduzida pela ges-
tualidade.
pelas obras do Bachelard noturno consultadas, no seu modo de
construir o conhecimento pela imaginação, por meio dos elementos,
não há prisão; ao contrário, os exemplos e suas leituras são tão varia-
dos, misturando reflexões de caráter universal (porque arquetípicas no
sentido junguiano) e pessoais, que deixam possibilidades de interpre-
tação abertas. E quando aplicadas a um campo que não o da literatura,
como é caso desta tese, parece que o mais importante é fazer aproxi-
mações, de forma poética, e não tentar 'encaixar', objetivamente, nas
categorias do autor.
Refletir a partir dos elementos nos exemplos dados ao longo do
capítulo suscita algumas considerações. O gesto é o intervalo entre
intenção e intenção materializada, e o devaneio, na leitura desta tese,
propõe trânsitos nesse intervalo, um sonho acordado, que é ativo. Ele
sustenta o elemento material, dando uma identidade particular, como
se pode ver no trabalho de Van den Velde, mas é possível identificar
um devaneio mais geral, que marca épocas, como o desenvolvimento
do tipo no século XVi.
para que o devaneio aconteça, é necessário deixar emergir o ele-
mento material, pois ele pulsa e deseja a materialização, uma vez que
“quando se sonha com toda sinceridade, as linhas de força do sonho
seguem sua disciplina própria” (BaCHElaRD, 1991, p. 47).
isso só pode acontecer reconhecendo-se que a imaginação mate-
rial é complementada pela imaginação formal. a questão da imagina-
ção, como Christolph Wulf (2014) ressaltou no início deste capítulo,
depende tanto do imaginário já existente do homem quanto do que
ele capta e interpreta ao seu redor. nos gestos da escrita, pode-se acres-
centar mais um verbo a frase anterior: capta, interpreta, faz. nesse senti-

[ 82 ]
do, é necessário refletir a respeito dos aspectos cognitivos do homem31
. Outro ponto necessário é olhar para o homem que faz a escrita, isto
é, para o ser que se manifesta em meio a esses gestos – temas dos pró-
ximos capítulos.

31. Essa reflexão será feita em dois capítulos: o primeiro busca responder a
pergunta: como o corpo aprende; o segundo lida com o aprendizado nos
ambientes universitários.

[ 83 ]
[ 84 ]
A escrita
corporificada:
o aprendizado
do artífice
[ capítulo 3 ]

Cada artista luta com uma determinação dupla para


refletir sua personalidade e seu tempo. [...]
A tipografia é uma expressão artística, e não é presunção
elevar essas duas demandas também para o compositor
designer. Personalidade e tipografia não podem ser
separadas. O trabalho de design revela o ser interior do
criador, reflete sua maturidade.
Não há livros de design, nem receitas ou regras que levem
a um trabalho maduro; eles servem a maior parte do
tempo para abrigar o vazio do ser interior. Eles levam a
uma frieza e logo, no fim, a um trabalho de fábrica sem
alma [...] Qualquer impressor [tipógrafo] que ame sua
profissão estará insatisfeito com tamanho resultado
(RUDER, 2009, p. 38).

nessa citação de Emil Ruder, um dos responsáveis pelo desenvolvi-


mento do Estilo internacional no design gráfico, é evidente a preocupa-
ção com o perigo de pensar o design gráfico como algo fechado por re-
gras e ordenado como uma receita. Embora sua visão do design de tipos
seja modernista – uma leitura de seu livro Typography (1977) demonstra
isso –, ele considera a tipografia uma expressão artística e pessoal. E vai
além: seguir as regras, como uma receita, gera um ‘trabalho de fábrica
sem alma’1. para Ruder, é possível identificar na produção do designer
sua maturidade, que vem de muita prática e esforço.

1. no livro citado, Ruder (1977, p. 8) menciona que o designer deve manter


uma distância em seu trabalho, evitando idiossincrasias. Ele menciona que
a “individualidade deliberada e emoção” tem pouco lugar no trabalho do
tipógrafo, o que reafirma sua visão modernista. no entanto, é interessante
ver o quanto mesmo essa visão ressalta que, por trás do trabalho, há um
profissional que deve ter uma relação bastante próxima e pessoal com seu
trabalho, sem a qual os trabalhos serão frios e sem vida.

[ 85 ]
Giambattista Bodoni, designer de tipos do século XViii, já ressalta-
va, em seu Manuale Tipografico2, que a ‘beleza da letra’ estaria relacionada
a quatro aspectos:

O primeiro é a regularidade. Analisando o alfabeto de qualquer


língua, não só se acham linhas similares em muitas letras di-
ferentes, mas também se verá que todas elas podem ser forma-
das com um pequeno número de partes idênticas, combinadas
e dispostas de vários modos.
Além disso, ao deixar regular tudo que é preciso, sem distinção,
e ressaltar a diferença que é requerida do modo mais impres-
sionante, nós finalmente damos regras e leis fixas à forma de
todas as letras, que produzem harmonia sem ambiguidade, va-
riedade sem dissonância, e igualdade e simetria sem confusão
[...]. Uma segunda, não menos importante, qualidade, vem da
precisão e do refinamento, que, derivada da perfeição das pun-
ções, consiste na limpeza de letras bem moldadas [...].
Até que se chega à terceira qualidade, que consiste no bom
gosto que escolhe as mais belas formas e as que se encaixam
ao período e à nação, já que, como em outras coisas, também
na impressão, a moda reina e dita regras certas do que é certo
e errado. Quando, no entanto, não há nenhuma boa razão, nem
a moda oprime com a sua tirania, o bom gosto se inclina a um
modo não vulgar de simplicidade, como desenhar letras com
linhas da mesma espessura, mas gentis e originais, como aque-
las que se vê o contraste luz e sombra, peculiar a tudo que é
escrito com uma pena bem afiada e firme [...].
A graça é a quarta e última qualidade requerida para a beleza
dos tipos. Todos sabem o quanto é difícil definir a beleza, en-
canto e a delicadeza, chamada graça. Mas, já que deve parecer
natural e instintivo, deve ser espontâneo e natural, de forma
que não seja errado procurarmos nela o que é raro e perfeito, e
pareça puro dom de Deus e da natureza, ainda que resulte, fre-
quentemente, de longa prática e exercício, fazendo as dificulda-
des parecerem tão fáceis, de modo que elas pareçam belas, sem
que se pense nelas.

2. Veja detalhes sobre o manual de escrita de Bodoni em Bomeny (2010).

[ 86 ]
Quanto mais um caractere é maravilhoso, mais tem regularida-
de, precisão, bom gosto e graça
(BODONI, 2010, p. 49-50).

pode-se perceber a intimidade do designer de tipos com seu ofício. ao


explicar o que caracteriza uma boa forma de letra, Bodoni o faz como se
falasse a pessoas próximas, e se vê uma relação entre sujeito e objeto que
não é dicotômica, mas que propõe, antes de tudo, uma unidade entre eles.
Detalhes técnicos da prática tipográfica, como a menção às punções que
reproduzem as letras na impressão, misturam-se com adjetivos como belo,
perfeito, raro, natural, mostrando um profissional cuidadoso com sua prática
e apaixonado por seu ofício.
Esse perfil mostra um profissional que transcendeu o nível mais
pragmático de sua profissão e encontrou algo essencial em sua vida, no
qual sujeito e obra, sujeito e objeto fundem-se ou, ao menos, misturam-
se ou amalgamam-se. Bodoni, no citado manual, já mencionava que, na
busca por oferecer edições belas, o tipógrafo às vezes assumia os custos,
com menos lucro (BODOni, 2010). não se trata de idealismo ingênuo,
mas de uma forma pessoal de pensar e fazer.
Richard sennett chama esse profissional, que tem o desejo do traba-
lho benfeito por si só, de ‘artífice’. O autor relaciona esse termo à “habi-
lidade artesanal”, que não se restringe a habilidades manuais:

A expressão “habilidade artesanal” pode dar a entender um


estilo de vida que desapareceu com o advento da sociedade
industrial – o que, no entanto, é enganoso. Habilidade artesanal
designa um impulso humano básico e permanente, o desejo
de um trabalho benfeito por si mesmo. Abrange um espectro
muito mais amplo que o trabalho derivado de habilidades
manuais; diz respeito ao programa de computador, ao médico e
ao artista; os cuidados paternos podem melhorar quando são
praticados como uma atividade bem capacitada, assim como
a cidadania. Em todos esses terrenos, a habilidade artesanal
está centrada em padrões objetivos, na coisa em si mesma. [...]
(SENNETT, 2009, p. 19).3

3. Mais à frente, o autor dirá: “O artífice representa uma condição humana


especial: a do engajamento” (sEnnETT, 2009, p.30).

[ 87 ]
as habilidades dos artífices são desenvolvidas no fazer, na insistên-
cia e na vontade. Bachelard, em sua teoria sobre a imaginação material,
como se viu anteriormente, fala da imaginação que estimula o fazer, das
“imagens do despertar” (BaCHElaRD, 2008).
O despertar de Bachelard tem como consequência uma relação que
se faz cumplicidade entre artífice e matéria. Dela advém a consciência
material, termo empregado por sennett (2009), a partir de três princí-
pios: metamorfose, que lida com a transformação, como a mudança de do-
mínio4; autoria, que reúne as diversas formas pelas quais o artífice pode
afirmar sua presença, como uma marca ou alguma característica física
específica; e a antropomorfose, que indica o grau de relação com a matéria,
atribuindo a ela qualidades humanas.
para que haja tal consciência, no entanto, é necessária intimidade,
que, por sua vez, exige conhecimento: eu conheço aquilo que me é pró-
ximo, e a proximidade/intimidade me ensina – trazendo tanto conheci-
mentos diretos quanto indiretos. ambos acontecem no corpo – e vale a
pena levar adiante as reflexões apresentadas na introdução, impulsiona-
das pela questão: Como o corpo do artífice aprende?
se a fenomenologia em Husserl, e especialmente em Merleau-ponty,
já priorizava a relação sujeito-ambiente, a complexidade mostrou que
isso implica pensar num sistema. ao mesmo tempo, nas últimas décadas
do século XX, especialmente com as neurociências, foram sendo pesqui-
sados os aspectos cognitivos do homem, que são indissociáveis do am-
biente em que ele habita. para suzana Herculano-Houzel (2013), o apren-
dizado é um processo, construído por meio da experiência, de vivências,
e de tentativas e erros. Esse aprendizado se fixa pela neuroplasticidade
(lEnT, 2011), que pode traduzir as experiências em aprendizado – ora
ativando determinados circuitos, ora tornando-os menos ativos – de
acordo com a necessidade do meio, e pelas operações mentais. Ou, nas
palavras de Herculano-Houzel (2009), no aprendizado “o cérebro que faz
alguma coisa se modifica, de forma que, da próxima vez, ele age de ma-
neira diferente”.
a cognição, no entanto, não implica apenas os aspectos racionais
envolvidos no processo. Henri Wallon, médico psiquiatra nascido na
frança, em 1879, propôs que o desenvolvimento humano é um processo

4. Quando um conhecimento específico de uma área é transposto e adapta-


do a outra.

[ 88 ]
que se desenvolve contínuo de transformações: dentro de seu ambiente,
o ser humano trava relações dialéticas que envolvem o que Wallon cha-
ma de conjuntos funcionais: a afetividade, o ato motor, o conhecimento e a
pessoa5. Eles estarão presentes durante todo o desenvolvimento humano
– afetividade e conhecimento se alternarão em fases nas quais o indívi-
duo está voltado para o conhecimento de si mesmo, cujo predomínio é
da afetividade, e em outras nas quais está voltado para o mundo exterior,
em que prevalece o conhecimento modelado pela cultura. apesar da pre-
valência de uns ou outros, Wallon ressalta que os conjuntos funcionais
estão interligados. Esse processo de alternância representa uma ‘cons-
trução do eu’, dialética, que continua por toda a vida, incluindo a fase
adulta. (MORaEs e OnCalla, 2011). a teoria de Wallon traz unidade ao
homem, restaurando afetividade e racionalidade como partes de seu ser.
Quando um homem atua no mundo, ele o faz com suas várias dimensões
.
para Rupert Cox, essa atuação implica um ato estético. O autor re-
corda que a cognição e os sentidos estão intimamente ligados – uma das
definições dadas para a estética:

Mas há um outro jeito, mais original e menos etéreo de


entender e usar a estética. A etimologia do termo em si vem
do grego aisthitikos, significando “perceptível através do
sentir”. Como Terry Eagleton menciona: “A estética nasce como
um discurso do Corpo (1990: 13)”. É uma forma de cognição,
alcançada através dos sentidos: gosto, toque, escutar, ver,
cheirar (COX, 2003, p. 74).

a estética, nesse sentido, denota verbos e substantivos que se rela-


cionam a uma experiência concreta, que une aspectos sensoriais e cog-
nitivos. a pesquisa de Mark Johnson segue esse viés: contra a ideia de
que a mente atuaria como um computador inato, que codifica as coisas
por ‘símbolos’, ele defende que a cognição é construída na interação pes-

5. seus escritos foram formulados especialmente na segunda metade do sécu-


lo XX. a teoria do desenvolvimento de Wallon foi desenvolvida como um
contraponto às teorias do desenvolvimento da criança vigentes na época:
uma que considerava que havia um salto entre o adulto e a criança, como
coisas distintas, separadas, e outra, que considerava a criança uma versão
do adulto ‘em miniatura’ (naUJORKs, 2000).

[ 89 ]
soa-meio, em que os sentidos têm um papel importante antes mesmo da
criação do significado das coisas. Os bebês, diz Johnson (2007), aprendem
a pegar as coisas, a explorar as affordances6, e só depois dão significado e
identidade ao que estão pegando. À medida que seu corpo evolui, a mus-
culatura se desenvolve com a coordenação, ampliando as possibilidades
de expansão de seu mundo: “O mundo da criança é o mundo das intera-
ções sociais e corporais. Um mundo que é aprendido ao observar, imitar
e agir, frequentemente em modos que requerem muita tentativa e erro”
(JOHnsOn, 2007).
as dimensões estéticas da atividade corporificada – que inclui ima-
gens, padrões de processos sensoriomotores e emoções, entre outros –
não ocorrem sempre de forma consciente7. Dar sentido e significado,
segundo Johnson, não é algo feito apenas pela mente, mas também por
todo o corpo e pelos sentidos. até mesmo conceitos abstratos surgem
a partir das “metáforas conceituais”, termo descrito no capítulo 02 – a
possibilidade de o pensamento ser construído por metáforas, propondo
que a vivência influencia o modo de construirmos o pensamento.
Beatrice Warde parece ter cunhado uma das metáforas mais conhe-
cidas na área da tipografia com base em sua própria vivência. Ela com-
parou o uso da tipografia a partir de dois cálices: um todo feito de ouro,
com detalhes complexos, e outro de cristal, fino, transparente. “Depen-
dendo da sua escolha, eu saberei se você é um especialista em vinho”
(WaRDE, 1932). para ela, a mais perfeita escolha seria a do cálice de cris-
tal, interessado em revelar, mais do que esconder, seu conteúdo. assim
deveria ser um design tipográfico: preocupado com o conteúdo, sendo
uma estrutura transparente para ele. É interessante ver que ambas as
experiências da metáfora – o vinho e a tipografia – envolvem sensações
que passam pelo corpo, especialmente pelo olfato e visão. a sensualidade
do vinho de Warde, no entanto, é incompleta por sua radicalidade: o vi-

6. Termo que se refere às possibilidades de ação diante de um objeto, pessoa


ou do ambiente que o circunscreve, e que será retomado a seguir.
7. a integração dos sentidos se dá dentro do córtex cerebral, em que há três
áreas que se ligam com os aspectos sensoriais, motores e de integração.
Eles captam as informações do exterior por meio dos sentidos (pele, boca,
nariz, ouvidos, olhos), integram o que foi percebido, somando-as, dando-
lhes significado (ideias, pensamentos, planos); por fim, geram ações e mo-
vimentos apropriados ao contexto (ZUll, 2002).

[ 90 ]
nho não perde suas propriedades por ser servido em um cálice de ouro8;
apenas propõe uma experiência distinta que a daquele servido em cálice
de cristal.
Diante do homem, o ambiente também lhe propõe ações. James Gib-
son chamou essas possibilidades de ação de affordance, ressaltando que
elas vêm de forma direta.

As affordances do ambiente são o que ele oferece ao animal, o


que ele providencia ou fornece, seja bom ou ruim. O verbo to
afford existe no dicionário, mas o substantivo affordance não.
Eu inventei. Me referi a algo que se relaciona tanto ao ambiente
e ao animal num jeito que nenhum termo denota. Implica a
complementaridade do animal e do ambiente [...].
Pode haver outros exemplos. As diferentes substâncias do
ambiente têm diferentes affordances para a alimentação e para
a manufatura. Os diferentes objetos do ambiente têm diferentes
affordances para a manipulação. Os outros animais permitem
[afford], acima de tudo, um conjunto complexo de interações,
sexual, predatória, cultivo, luta, brincadeira, cooperação e
comunicação. O que as outras pessoas permitem [afford] inclui
toda a realidade de significado social para seres humanos
(GIBSON, 1986, 127-8).

nesse sentido, o conceito de affordance relativiza uma postura fixa do


mundo e suas coisas, pois propõe ver sempre as coisas, e suas possibilida-
des, em função e em relação ao corpo (humano ou animal) e suas especi-
ficidades – sua realidade, seu ambiente e seus recursos. Gibson reforçou
que as affordances eram propriedades das coisas feitas em referência a um
observador, e não propriedades da experiência (subjetiva) do observador.
Talvez por conta disso, alguns autores ampliaram a reflexão presente
no conceito de affordance. Carl Knappett (2005) menciona a necessidade
de se considerar além do que é percepção direta, relevando também a
cultura e sua significação como meios indiretos de transmissão de in-
formação e ação. Knappett menciona a influência da psicologia cultural,
que afirma que os homens usam artefatos culturais quando estão envol-
vidos em uma ação e que tais artefatos servem de mediadores, dando-

8. Considerando que o vinho está sendo servido, e não armazenado a longo prazo.

[ 91 ]
lhes significações (KnappETT, 2005). Esse autor usa o exemplo da caixa
de correio, que tem um formato retangular com uma fresta para pôr as
cartas. O que faz um carteiro colocar as cartas especificamente nessa cai-
xa, e não em outras parecidas, está relacionado a um contexto cultural
– isto é, de forma indireta –, mais do que às propriedades do objeto, ou
a sua affordance.
nesse sentido, junto às affordances, há o mundo cultural que cerca o
homem, que propõe tanto (re)ações afetivas quanto motoras e cogniti-
vas, abrindo possibilidades para reflexões como o homem e o fazer, o
homem e os meios, o homem e seu espaço (privado ou público). Há um
ser, integral, que se põe a fazer e descobre-se – e desenvolve-se – no ofí-
cio. É um fazer que não se separa do refletir, tal como Martin Heidegger
propõe:

Tentamos aprender a pensar. Talvez pensar, também, seja


como construir um armário. Seja como for, é um ofício, um
“trabalho manual”. “Ofício”, literalmente, significa a força e
habilidade em nossas mãos. A mão é uma coisa peculiar. Na
visão comum, a mão é parte do nosso organismo corporal.
Mas a essência da mão nunca pode ser determinada, ou
explicada, por ser um órgão que pode pegar. Primatas,
também, têm órgãos que podem pegar, mas eles não têm
mãos. A mão é infinitamente diferente de todos os órgãos
que pegam – patas, garras ou dentes caninos –, diferentes
por um abismo de essência. Só um ser que pode falar, isto é,
pensar, pode ter mãos e pode ter destreza em fazer trabalhos
manuais. Mas a mão é mais rica que imaginamos. A mão
não só agarra e pega, ou empurra e puxa. A mão alcança
e estende, recebe e dá boas vindas [...]. Mas os gestos das
mãos alcançam todo lugar através da linguagem, na sua
pureza mais perfeita precisamente quando o homem fala em
silêncio [...] (HEIDEGGER, 1977, p. 357).

Cada movimento da mão em cada um dos seus trabalhos se


sustenta e se torna gesto em meio ao elemento do pensamento.
Toda obra da mão repousa (beruht) no pensamento)
(HEIDEGGER apud LIMA, 2013, p. 60).

[ 92 ]
assim, o pegar (ferramentas e suportes) e o lidar (com as mesmas),
como extensão do corpo, revelam-se como potencializadores para o re-
fletir. segundo lenira peral Rengel e Maria Mommensohn (1992), o fato
de o homem ter adotado a postura bípede fez que seu corpo fosse revisto:
uma vez ereto, liberou as mãos da função de apoio, e as mandíbulas da
preensão e da defesa, passando a projetar instrumentos que o auxilias-
sem: “seu sentido de temporalidade despertou e, assim como a criança
adquire a faculdade da permanência do objeto, da diferenciação entre o
eu e o mundo, gradativamente esse animal percebeu-se pensando, proje-
tando e nominando” (REnGEl e MOMMEnsOHn, 1992, p. 99-100).
Também deve-se considerar a háptica9. Em geral, fala-se de percep-
ção háptica quando há uma relação conjunta do sentido do tato (que
permite a sensibilidade das propriedades de um objeto, como textura,
peso, dimensão) com a cinestesia (que faz relação com a localização es-
pacial do corpo e com os movimentos do corpo). no toque de um ob-
jeto, acionam-se percepções que variam de acordo com a superfície de
contato – o toque de um dedo, por exemplo, tem área sensível menor
que a do toque de duas mãos em um mesmo objeto. pode-se captar mais
informações a respeito dos objetos, no entanto, unindo o movimento
dos membros superiores por meio do sistema mão-braço, cobrindo uma
superfície de contato mais complexa, com maior número de receptores
sensoriais (TOsETTO, 2005).
a háptica está intimamente ligada às affordances e está presente no
dia a dia em tarefas corriqueiras.

A percepção háptica, que envolve movimentos rotatórios e


esforço muscular para manipular e explorar objetos e membros,
é conhecida na literatura como tato dinâmico (dynamic touch)
ou percepção baseada em ação muscular (muscle-based
perception). Este tipo de percepção háptica permite ao indivíduo
perceber propriedades necessárias à realização de atividades
de manuseio de objetos e ferramentas, como, por exemplo,
erguer um copo, carregar objetos, utilizar um martelo, entre
outras. Além disso, tem sido proposto que a percepção baseada
em ação muscular é importante também para manutenção

9. Termo também trabalhado antes por James Gibson (1966). Tosetto (2005)
utiliza-o de forma semelhante.

[ 93 ]
de postura e eficiência de movimentos como andar, correr,
alcançar objetos entre outros (OCARINO, 2009, p.15).

para desenvolver as affordances, o toque e o modo de segurar o


instrumento são fundamentais. segundo frank Wilson (1999), há dois
modos de pegada10, um que corresponde à força (como no malabares,por
exemplo), e outro que corresponde à precisão (como na escalada)11. na
pegada, o sistema musculoesquelético como um todo – os tendões que
auxiliam os movimentos musculares; os músculos que são acionados e
contraídos no movimento; o pré-movimento de Hupert Godard, que
relaciona o corpo à gravidade – atua, canalizando a força por meio da
motricidade fina12 para lidar com os instrumentos.
Essa relação com os instrumentos (e por consequência, com os su-
portes, como o papel) tem seus desdobramentos. Os pincéis, os lápis, as
penas, os papéis: eles também têm vida e comportamento próprios, re-
velando um humor – que pode ser instável ou não, nem sempre con-
dizendo completamente com suas affordances, com o que se percebe ser
possível. Quanto maior a intimidade do artífice com seus instrumentos,
no entanto, melhor ele entenderá esse comportamento e suas possibili-
dades de ação no suporte, pois tal relação construirá maior sensibilidade
da pegada, seja de força, seja de precisão, e a dosagem de uma e de outra
no momento em que está fazendo letras, por exemplo.
O uso das ferramentas e suportes também envolve aspectos afetivos.
na caligrafia japonesa – e na cultura nipônica como um todo –, há o
aichaku, palavra cujo sentido é o ‘amor pelas coisas’13. O aichaku explica o
cuidado que os japoneses têm, no caso da caligrafia, por seus ‘quatro te-

10. Escolhi traduzir grip como ‘pegada’, no sentido de um movimento que se-
gura alguma coisa com consistência. Embora atualmente essa palavra seja
usada como gíria, o que pode conferir à tese um tom estranho, ela é usada
frequentemente na Ergonomia para designar o sentido aqui empregado.
11. Esses termos surgiram na pesquisa de John napier, em 1956, cujo objetivo
era melhorar a avaliação clínica da função da mão e seus efeitos em aci-
dentes nesse membro.
12. aquela que cuida dos movimentos musculares finos, de ação mais refina-
da, em contraponto aos grandes músculos, responsável pelos movimentos
‘maiores’, como andar e correr.
13. Veja outros detalhes em Miyashiro (2009). John Maeda (2007) recorda a ori-
gem animista do aichaku: as coisas têm, cada uma, o seu ‘espírito’ e por isso
devem ser respeitadas.

[ 94 ]
souros’: tinta, pincel, papel e recipiente de tinta. a escolha de um pincel
(cerdas duras ou macias, por exemplo) pode se juntar à de determinada
tonalidade de tinta sumi (que, além de preto, pode apresentar diversas
tonalidades de cinza) e papel – são opções que refletirão a expressão e a
intimidade do calígrafo com seus materiais. Esse conceito pode ser trans-
posto do Oriente para o Ocidente para ressaltar a ligação afetiva que o
artífice estabelece com seus materiais, mostrando os vínculos com os
objetos que o circundam, elegendo alguns como seus preferidos, às vezes
de acordo com um trabalho específico, às vezes em relação ao conjunto
de sua obra.
a relação entre a mão e a ferramenta se completará com a atividade
visual do corpo14. na neurofisiologia diferencia-se a visão central, que é
o foco da atenção, da visão periférica, aquela que está nos limites da pri-
meira. Enquanto copiava uma das citações diretas deste capítulo, obser-
vei o que estava na minha visão central e o que estava nas áreas perifé-
ricas. foquei a atenção na leitura do parágrafo (visão central), enquanto
lia e digitava. Minha visão periférica me mostrava o que estava fora de
foco: o movimento de meus dedos no teclado, à direita. Essas visões, pe-
riférica e central, são como scans, que dão informações aos mais diversos
elementos do sistema visual, gerando mapas topográficos. por meio dos
mecanismos ligados à fóvea, a imagem terá foco (na formação do mapa
topográfico, essa região é deformada, como se estivesse ampliada), alto
nível de detalhamento, exatidão. Já fora dela, nas áreas periféricas, liga-
das à retina, os mapas não são tão deformados e apresentam uma função
visuomotora: é a partir delas que os movimentos reflexos dos olhos, da
cabeça e do corpo são ativados para posicionar melhor a fóvea no objeto
de interesse (lEnT, 2010).
a integração entre a visão e as outras partes do corpo e sistemas
específicos aprimora a realização de tarefas distintas:

Localizar objetos no mundo visual é importante sob vários


pontos de vista. Primeiro, é preciso dispor de reflexos
visuomotores que possibilitem orientar os olhos, a cabeça e o
corpo em relação a um determinado setor do campo de visão,
para que este seja examinado pela fóvea, a região da retina
capaz de suficiente acuidade para a identificação de detalhes

14. Considerando, no caso, pessoas sem deficiência visual.

[ 95 ]
presentes nessa região do campo. Além disso, é necessário
conhecer as relações topográficas entre as diversas partes de
uma cena visual, ou entre as diversas partes de um objeto, para
que elas façam sentido perceptual. O sistema visual, portanto,
torna-se mais vantajoso a um animal se é de alta precisão,
para que a orientação visuomotora do corpo e a percepção
propriamente dita sejam realizadas com mais sucesso
comportamental. (LENT, 2010, p. 322).

Quanto à escrita, especificamente,

[...] [ela] representa uma atividade motriz usual que requer


a atividade controlada de músculos e articulações de um
membro superior associada à coordenação visuomanual15.
Considerando que a mão e o olho não são absolutamente
indispensáveis, a escrita manual guiada pela visão
proporciona o modelo gráfico mais regular e rápido. A
escrita consiste em uma organização de movimentos
coordenados para reproduzir as formas e os modelos;
constitui uma praxia motora. A coordenação visuomanual
se elabora de modo progressivo com a evolução motriz do
ser humano e do aprendizado. Visão e feedback perceptivo-
motor estão estruturados e coordenados visando produzir
um comportamento motor adaptado em qualquer situação
(ROSA NETO, 2009, p. 15).

assim, nas práticas da escrita, em geral, saber fazer qualquer mo-


vimento inclui a integração do sistema motor mão-braço e do sistema
visual em toda a sua complexidade. Essa prática se constrói por meio
do aprendizado, que pode ser dividido em três caminhos: um tem a ver
com o treinamento do corpo para o ofício; outro, com a prática do ofí-
cio em si; e o último, que se relaciona aos dois primeiros, mas vai além,
é aquele que envolve o aprendizado da própria vivência do artífice. Os
três se intercalam e certamente se sobrepõem, moldando o corpo do
artífice.

15. É um processo de ação em que há coincidência entre um ato motor e um


estímulo visual percebido (ROsa nETO, 2009).

[ 96 ]
É necessário que se acumulem horas em que o corpo se volta para
esse fim, formando-o integralmente. no campo da psicologia há pesqui-
sas que se dedicam ao treinamento necessário para a formação de um
profissional excepcional – o número de horas para alcançar tal nível é,
em geral, de cerca de 10.000, segundo Ericsson, Krampe e Tesch-Romer
(1993). Esses mesmos autores consideram que, embora se possam ver nos
especialistas características e habilidades distintas da média padrão, isso
não é algo completamente fixo. seus resultados são fruto do esforço de-
liberado para melhorar sua atuação em um longo período de tempo. no
entanto, esses autores também destacam que um ambiente favorável (no
caso de crianças e jovens, apoio e suporte dos pais, infraestrutura para
desenvolver as habilidades, possibilidade de prática intensiva) também
tem um papel importante16.
O treinamento tem a ver com o modo de ‘conformar’ o corpo para o
ofício. Uma das formas é a repetição:

O treino e a aprendizagem podem levar à criação de novas


sinapses17 e à facilitação do fluxo da informação dentro de um
circuito nervoso. É o caso de um pianista, que diariamente se
torna mais exímio porque o treinamento constante promove
alterações em seus circuitos motores e cognitivos, permitindo

16. Há discussões variadas a partir do estudo de Ericksson, Krampe e Tesh-Ro-


mer (1993). Malcolm Gladwell escreveu sobre o domínio dos experts, dando
como exemplos os ensaios que os Beatles fizeram em Hamburgo, antes de
fazerem sucesso, e Bill Gates, que passou a programar intensamente com
seu primeiro computador, aos 13 anos, em 1968, estimando um tempo de
‘aprendizado’ de 10.000 horas. David Epstein, por outro lado, ressalta em
sua pesquisa sobre esportes que é necessário considerar as capacidades ina-
tas. segundo ele, além do treinamento, as características físicas herdadas
são um ponto importante na quebra de recordes constantes nas últimas
décadas (veja Glaxwell, 2013, disponível em (<www.newyorker.com/news/
sporting-scene/complexity-and-the-ten-thousand-hour-rule>. acesso em:
dez. 2014.
17. sinapses são ligações que ocorrem entre neurônios – elas transmitem um
impulso nervoso, que pode ser químico ou elétrico. Essas conexões podem
ser feitas, desfeitas e/ou bloqueadas. Elas são importantes no processo de
aprendizado, pois podem produzir circuitos ligados a determinados compor-
tamentos ou tarefas. É por meio delas, dos circuitos que se formam, o que
antónio Damásio chamaria de imagens, que o conhecimento é adquirido.

[ 97 ]
maior controle e expressão na sua execução musical. Por outro
lado, o desuso, ou uma doença, pode fazer com que ligações
sejam desfeitas, empobrecendo a comunicação nos circuitos
atingidos (CONSENZA e GUERRA, 2011, p. 36).

nas tarefas realizadas constantemente também há repetição. a de-


signer gráfica Dora levy conta como, antes da popularização do compu-
tador na prática do design no Brasil18, havia muito trabalho manual, que
incluía desenhar, pintar e refazer.

Antigamente [...] quando você pensava uma marca, um layout...


entre você pensar e visualizar o que você criou existia um tempo
muito grande. [...] Se você está criando uma marca, você tem que
desenhar a letra, você imaginou que é uma tipografia, daí você ti-
nha que desenhar a letra, a palavra... pintar. Aí quando você está
com aquilo pronto você olha, não era nada disso. Aí você começa
de novo. Desenha de novo... entre você pensar a coisa, por no
papel, tinha um tempo muito grande, muita refação... o espaceja-
mento da letra estava errado, o formato da letra estava errado,
ou a compressão, ou a expansão... era tudo muito distante, muito
longo e era muito braçal. Isso era uma coisa que me incomodava
muito. Você tinha que passar por muitos processos às vezes. Por
exemplo, você queria uma coisa maior, fazer crescer, você dese-
nhava [...], você tinha que ir para um xerox; [isso] quando você
passou a ter a xerox que tinha podia ampliar, reduzir – porque
antes não tinha também isso. Você tinha que projetar, às vezes,
na parede, com projetor de slide, para crescer, e você poder olhar
maior. Era um processo muito braçal, é difícil para a geração
hoje entender o que era isso. [Hoje, com o computador] Está tudo
pronto, a gente não tinha isso. Tinha que procurar referência,
como faz uma serifa [...] era uma loucura isso! (LEVY, 2012).

18. a chegada do Desktop publishing, com os microcomputadores, impressoras


laser com linguagem postscript, softwares de editoração eletrônica, nos anos
1980 (Estados Unidos, Europa e Japão, principalmente) e 1990 (Brasil), alterou
o modo de produção do design gráfico, eliminando várias etapas do sistema
de produção. Tarefas que antes levavam horas e dias, e eram feitas à mão,
puderam ser feitas muito mais rapidamente e com menos custo.

[ 98 ]
Fiz estágios em duas agências de publicidade [...]. E eles es-
tavam fazendo rótulo para a cerveja Brahma. Você não tem
ideia da quantidade de ilustrações que chegavam com arte,
tudo com guache... chegava todo dia, de ilustração, de layout
de rótulo para a cerveja.. Era a cevadinha com a folhinha as-
sim, com a folhinha embaixo. Arte todinha pintada com gua-
che, com a cerveja, tudo pintado e desenhado à mão... com
a cerveja escrita aqui, com a Brahma com a outra letra [...].
Hoje em dia, você põe no computador, ele te gera aquilo, tro-
ca a cor do fundo, põe o dourado aqui, põe na frente, atrás...
e letra vermelha, dourado na frente. É bico! [riso]. [Antes]
quanto tempo você levava para fazer as coisas? Por isso
acho que mudou muito essa relação com o tempo... (LEVY,
2012)

É interessante pensar que, na repetição do trabalho, a reflexão so-


bre ele acontecia em um tempo mais prolongado19. posteriormente, Dora
levy também conta na entrevista que o que aprendeu nesse período
antes do computador foi algo que ainda a influencia. O processo de re-
petição manual deixou seu olhar mais apurado, a ponto de, hoje, ao visu-
alizar uma proposta de logotipo impressa, pedir mudanças milimétricas
de espaçamento entreletras (lEVY, 2012) – é quase como se ela quisesse
pegar as letras com as mãos e afastar “um pouquinho” –, algo que só
pode ser percebido por quem teve um contato íntimo com as letras, ain-
da no papel.
a repetição também esconde outros ganhos. Robert lent (2011) explica
que, no acompanhamento de crianças com e sem treinamento musical20,
houve desenvolvimento cerebral maior nas que praticavam as atividades,
especialmente em áreas correlatas à atividade (transferência próxima), isto
é, as áreas motora e auditiva. Mas também houve ganho nas áreas com
funções menos relacionadas (transferência transmodal ou distante), como
aquelas ligadas à atenção (lEnT, 2011). na caligrafia japonesa praticada no
Japão, por exemplo, percebe-se que os ‘ganhos’ estendem-se além da profi-

19. Christina Haas (1996 apud ManGEn e VElaY, 2010), em um contexto que
discute alfabetização e tecnologias, afirma que as mudanças nas tecnolo-
gias constroem relações (visuais, táteis, espaciais e temporais) diferentes do
modo análogico, entre o corpo de quem escreve e seu texto material.
20. Quinze meses, na pesquisa indicada por lent (2011).

[ 99 ]
figura 3.1
Página da apostila da

Escola de Arte Butera,

com os traços básicos a

serem feitos no papel, em

seu primeiro ano (LEVINE

e MACON, 2014).

figura 3.2
Página do Modern Showcard,

com sugestão traços e formas

básicas (MODERN, 1901).

[ 100 ]
figura 3.3
Caligrafia abstrata de

Claude Mediavilla (Abstract

calligraphic rhythmn. Aquarela

sobre papel Arches, s/data)

(MEDIAVILLA, 2005).

[ 101 ]
ciência da escrita – além de maior poder de concentração, há um senso de
bem-estar e relaxamento (naKaMURa, 2006).
nos gestos da escrita, há pelo menos duas formas de materializar le-
tras: uma que acontece de forma direta, como a caligrafia, e outra que se
faz pela construção21. Embora distintas em sua execução, ambas exigem
treinamento e, portanto, aprendizado do corpo para fazer as letras. Há
pelo menos dez anos, andréa Branco22, calígrafa paulistana responsável
pela formação caligráfica de muitos designers, artistas e tatuadores, por
meio de seus cursos de curta duração (2 meses) e workshops (12 horas),
recomenda, em seu primeiro módulo, traçar algumas peças (partes das
letras) separadamente para depois juntá-las no ductus das letras. assim,
linhas verticais, horizontais, curvas e inclinadas a 30º antecipam alguns
dos traços que serão usados depois nas letras dos alfabetos sem serifa
e da mão fundamental23, utilizando a pena quadrada. Em seus módulos
avançados, outras mãos são trabalhadas, como a Cooperplate, que é feita
com bico de pena e tem grande variação de contraste. Em todos os cursos
e workshops, no entanto, a calígrafa recomenda um treino intensivo nas
pautas caligráficas, pela repetição. pode-se dizer que, independentemen-
te da mão caligráfica que se faz, a caligrafia revela diretamente as letras
que está gerando: estrutura e forma estão diretamente ligadas.
fora do Brasil, a Escola de artes Butera, criada em 1910, em Boston
– tradicional espaço de caligrafia e letreiramento para sinalização – ,
propõe um ano básico de aprendizado dos fundamentos do pincel apenas
no papel, antes do segundo ano, com propostas formais mais livres em
diversos suportes e ferramentas24. Richard Thuillier, professor do pri-
meiro ano, diz: “O primeiro ano é para [aprender] o controle do pincel,
traços básicos [...] fazemos várias dessas páginas [fig. 3.1], [...] sem esses

21. Como será explicado adiante, em geral, por meio da linha de contorno.
22. andréa Branco tem uma trajetória peculiar. formada em pedagogia, mais tarde
ela fez cursos de caligrafia e começou a atuar na área. Ela oferecia cursos de
caligrafia para convites, mas o crescente interesse de pessoas ligadas ao design
e às artes fez com que passasse a oferecer cursos específicos de caligrafia para
essas áreas. Hoje, além de são paulo, a calígrafa dá cursos e palestras em todo o
Brasil. Um trabalho similar é realizado por Cláudio Gil, no Rio de Janeiro.
23. O alfabeto fundamental foi proposto por Edward Johnston no início do
século XX, período de reavivamento da caligrafia, iniciado por ele na in-
glaterra e por Rudolph Koch na alemanha.
24. incluindo o uso de aerógrafo, pinstripe (letras e desenhos em metal), folha
de ouro.

[ 102 ]
traços básicos, não há muito o que fazer” (lEVinE e MaCOM, 2014). Jim
Birmingham, do segundo ano, comenta que “Eles [os alunos] têm que
trabalhar o básico, e no segundo ano é o ano divertido” (lEVinE e Ma-
COM, 2014). a instrução de começar pelos traços básicos remete a livros
do início do século XX, como Modern Show Card Lettering Designs etc (1901) e
The Practical Show Card Write (1904).
a repetição exigida para o aprimoramento permite não apenas a
incorporação do que se repete, mas também o desenvolvimento de ou-
tras ações a partir daquela tarefa ou ato repetitivo. segundo Richard
sennet (2009), o jogador de tênis que repetir o saque muitas vezes apren-
derá a fazer isso de diferentes maneiras, demonstrando uma diferença
qualitativa. na caligrafia, isso parece equivaler a ultrapassar a fase em
que se domina o traçado das letras com destreza e perfeição técnica.
se esse treinamento ganhar complexidade, pode haver condições para
novos aprendizados – como o trabalho ‘divertido’, segundo Jim Birmi-
gham. isso também pode significar estudos iniciais para um tipo ou para
um trabalho pessoal, mais artístico, como demonstram calígrafos como
Claude Mediavilla, que mostra um domínio de diversas mãos caligráficas,
mas também desenvolve uma caligrafia pessoal e, muitas vezes, abstrata.
Gilles Deleuze (2000) diferencia a repetição da generalidade, que
seria extrair um caráter comum, e redutor, de coisas semelhantes. a
repetição, conforme o autor, lida com a identidade e se constrói na
diferença, em sua singularidade. luiz Orlandi, comentando a repetição
deleuzeana, menciona que a repetição sempre tem a ver com o presente
das pessoas, que, paradoxalmente, revela que aquilo que é repetido vai
se revelando, embora não pareça ser a mesma coisa. “Digamos que a
repetição deleuziana é paradoxal porque o encontro repetitivo impli-
ca diferencial que pode, repentinamente, transfigurá-lo num encontro
intensivo” (ORlanDi, 2013)25. O ser que repete nunca é o mesmo, uma
vez que a cada repetição seu corpo está sendo reconstruído, ressaltan-
do a potência do ser e do agir. ao mesmo tempo, é curioso notar que,

25. a repetição também pode estabelecer relação com a discussão do livre-ar-


bítrio. na década de 1980, Benjamin libet fez um experimento em que, por
meio de medições, constatou que seria possível prever que um participante
apertaria o botão até 1s antes de ele fazê-lo. suzana Herculano-Houzel ex-
plica que um dado bastante interessante desse estudo é o fato de o partici-
pante ainda ter 0,5s para mudar de ideia. a discussão pode ser assistida em
<www.youtube.com/watch?v=pu8Ew0mtWvE>. acesso em: abr. 2013.

[ 103 ]
no ato da escrita, sempre ocorre uma repetição, uma vez que estamos
falando de uma estrutura alfabética que é aprendida e pode ser recom-
binada.
Já o modo de fazer letras pela construção geralmente permite seu
traçado por meio de seu contorno26. É como se a caligrafia propusesse
um movimento de dentro para fora, como se da pena, ou dos pelos do
pincel, fossem geradas as formas, enquanto a construção faz um movi-
mento externo, que demarca o território das letras. para muitos profis-
sionais que criam letras para letreiramento e design de tipos, mais do
que de modo direto, é pelo contorno da linha que se vão construindo
as letras, na separação entre a forma e a contraforma. Em geral, um O
em caixa-alta feito pela ductus caligráfico é constituído de duas peças.
Um O construído pode ser iniciado pela parte mais externa, que de-
marca os limites da letra, e depois se completar com a parte interna,
seu miolo. pode-se dizer que quanto maior a prática da pessoa com o
traçar, melhor será a relação entre aquilo que se imagina e o que se cria.
Da mesma forma que na caligrafia, a prática extensiva vai moldando o
corpo e, na repetição, uma vez ultrapassada a fase do domínio técnico,
pode haver a diferença.
O treinamento adquirido pelo artífice, no entanto, só faz sentido
quando ele o aplica à prática do ofício, uma das três formas de apren-
dizado do corpo. participando de alguns workshops de caligrafia e letrei-
ramento nos últimos cinco anos, pude ver de perto alguns calígrafos,
letristas e designers de tipos. Observar como esses profissionais demons-
tram seu ofício, permite refletir a respeito dos movimentos corporais
nesses momentos. além do que já foi dito sobre o aprendizado, acrescen-
tarei alguns conceitos propostos por Rudolf laban27 em seu estudo sobre
o corpo em movimento.
laban desenvolveu, na primeira metade do século XX, uma filo-
sofia do movimento do corpo28, que derivou um sistema de notação

26. além do contorno da linha, a construção pode envolver o uso de formas


sólidas, por exemplo, que não são linhas.
27. nascido na Bratislava, então Hungria, em 187. Desenvolveu parte de seu traba-
lho na alemanha, de onde, por conta do nazismo, se mudou para a inglaterra.
28. nos Estados Unidos, uma discípula de laban, irmgard Bartenieff, prosse-
guiu com esses estudos e ganhou visibilidade especialmente a partir da
década de 1950. assim, algumas vezes, o sistema de laban será conhecido
como laban/Bartenieff (veja outros detalhes em MiRanDa, 2008).

[ 104 ]
chamado de Labanotation, especialmente utilizado na dança (laBan,
1978). Ele chamou de ‘Esforço’29 os impulsos internos que originam o
movimento: “afim de discernirmos a mecânica motora intrínseca ao
movimento vivo, no qual opera o controle intencional do movimento
físico, é útil denominarmos a função interior que dá origem a tal movi-
mento: [...] é o esforço ['Esforço]” (laBan, 1978). segundo ele, ‘Esforço’
e ação podem ser inconscientes e involuntários, mas apresentam-se
em todo movimento, seja no de um operário30, seja no de um bailarino
(laBan, 1978).
lenira Rengel procurou reunir em um dicionário os termos usados
por laban; nele o ‘Esforço’ mostra-se como um conceito-chave para o
estudo do movimento, de natureza qualitativa31:

‘Esforço’ é a pulsão de atitudes que se expressa


em movimento visível, imprimindo-lhes variadas e
expressivas qualidades [...] é o ritmo dinâmico do
movimento do agente. A partir de uma atitude interna
do agente para com os fatores de movimento e de sua
maneira de responder ao mundo, desenvolve-se o esforço
que comunica a qualidade expressiva do movimento
[...] é tanto intelectual, emocional, quanto físico. [...]
‘Esforço’ não foi formulado no Método de Laban em
termos quantitativos, refere-se a aspectos qualitativos,
a características únicas a cada agente e vistas em
diferenças de uso de tempo e peso, de padrões espaciais
e fluência que o agente demonstra em suas preferências
pessoais, em suas atividades de trabalho ou elabora
criativamente (RENGEL, 2003, p. 60).

29. Grafei com caixa alta e baixa e usei aspas simples nos quatro fatores (e em
‘Estado’) para diferenciá-los de seu uso comum, fora das referências do sis-
tema laban, tal como Miranda (2003) utiliza.
30. laban chegou a pesquisar o movimento de operários nas fábricas, na déca-
da de 1940, com f. C. lawrence, visando a sua melhor execução nas linhas
de produção (veja <www.dance-archives.ac.uk/about/laban>. acesso em:
dez. 2014).
31. a partir dos escritos desse autor e de entrevistas com especialistas (ver
REnGEl, 2001; 2003).

[ 105 ]
laban (1978) destacou quatro fatores que influenciam a qualidade do
esforço: ‘peso’ (de leve a forte), ‘Tempo’ (de lento a rápido), ‘Espaço’ (de
direto a indireto) e ‘fluxo’ (de livre a contido). na análise dos movimen-
tos, laban priorizava aquilo que se sobressaía, fosse com um único fator,
ou pela combinação de dois (‘Estado’) ou três (‘impulsos’). Essas asso-
ciações sugerem combinações como o ‘Estado’ forte-lento (‘peso’-‘Tem-
po’), o ‘Estado’ leve-livre (‘peso’-‘fluxo’), o impulso visual (‘fluxo’-‘Tem-
po’-‘Espaço’), entre outros. segundo Regina Miranda (2003), o uso desses
fatores aliados à imaginação pode propor explorações do corpo na práti-
ca da dança, do teatro e da terapia corporal. no caso da escrita, olhar os
gestos do que é suscitado pelo ‘Esforço’ ajuda a descrever o movimento
por meio dos fatores que mais o orientam, bem como a pensar em suas
qualidades.
Dos registros feitos nos workshops que participei, escolhi duas de-
monstrações32 para análise: a primeira, de caligrafia, feita pela calígrafa e
letrista andréa Branco; a segunda, uma das possibilidades de fazer letrei-
ramento, realizada pelo norte-americano Ken Barber. Os dois profissio-
nais se encaixam na definição de artífice de sennett, que tem paixão por
seu ofício e mais de dez anos de treinamento e prática intensiva.
Em seus workshops, andréa Branco intercala aulas expositivas (histó-
ria da caligrafia, modos de fazer a caligrafia) com práticas nas quais os
participantes são convidados a treinar caligrafia de acordo com a técnica
estudada. a inclinação do instrumento, a ordem das peças e a proporção
são alguns dos detalhes a serem observados33.
Um outro momento é aquele em que andréa demonstra o uso de
diversos instrumentos. nessa demonstração (ver vídeo 01, no CD anexo),
que simula uma prática do ofício, como a criação de um logotipo, todo
o corpo da calígrafa coloca-se a serviço da escrita. Como já foi visto, a
visão central atua como lente de aumento em cada letra escrita, forne-
cendo detalhe e foco. Já a visão periférica – em parceria com a percepção
háptica – a complementa, porque a caligrafia, como um modo direto, exi-

32. O objetivo aqui não é aplicar o método laban/Bartenieff nos gestos da es-
crita, mas aproveitar-se dos conceitos e das reflexões propostas pelos dois
autores.
33. Minhas duas experiências foram em cursos rápidos, de 12h, feitos durante
um fim de semana. Mas há cursos que duram dois meses, com uma aula
por semana, o que certamente ajuda a fixar melhor os conceitos e as técni-
cas apresentadas.

[ 106 ]
ge que a andréa tenha domínio do espaço em que a palavra está sendo
traçada. Enquanto escreve uma letra, a calígrafa precisa ter consciência
do espaço que as próximas letras ocuparão, pensando no equilíbrio e na
identidade que terão com as demais já escritas. a demonstração foi feita
com uma pena cuja ponta era feita de lata, diferente da ponta quadrada,
pois é dobrada.
‘peso’, ‘Tempo’ e ‘fluxo’ denotam qualidades que se manifestam en-
quanto a calígrafa escreve gestual. O ‘fluxo’ é livre, pois as letras seguem
o formato da letra cursiva – o que não significa que não haja precisão ou
controle. O instrumento exige um ‘peso’ médio, que acontece pela pega-
da (de força), na qual a mão segura o instrumento de forma a mantê-lo
firme, mas que ainda seja possível usar da flexibilidade da pena. isso se vê
nas curvas mais fechadas – as que mostram variação no contraste, como
nas letras E e U – e também nas abertas, como na cauda do G e no l. a
palavra é escrita em três momentos, cada qual exigindo um carregamen-
to de tinta (GEsT, TU [com reforço na barra do T], al).
a variação e a velocidade com que a tinta será depositada no papel
dependerão da força e da velocidade do sistema mão-braço. a barra do
T, por exemplo, expõe a segurança do gesto, que tem auxílio também dos
músculos do tronco e do braço que permanece como apoio, enquanto o
antebraço e a mão realizam o movimento semicircular da barra.
O corpo precisa de um apoio estável – no caso dessa demonstração,
os principais apoios são o do cóccix e das coxas, em contato com a ca-
deira, além dos pés no chão e da mão esquerda que se apoia sobre a mesa.
a mão direita, que conduz a pena, fundamenta seu apoio no cotovelo
direito e na tensão entre a pena e o papel, ao mesmo tempo que a mão
também sustenta a pena. nesse caso, o corpo é uma base dinâmica para
os gestos e, na medida em que o corpo se movimenta e as forças se alter-
nam em intensidade e localização, ele busca manter seu equilíbrio.
Em 2011, por ocasião do DiaTipo, evento organizado por Henrique
nardi em são paulo, participei do workshop de letreiramento ministrado
por Ken Barber34. a proposta era trabalhar a palavra paulista a partir de
diferentes referências tipográficas que ele havia trazido em fotocópias. O
letreiramento, nesse caso, é feito por meio da construção das linhas de
contorno, de seu traçado. Embora seja possível estruturar a palavra com

34. filmagem feita no workshop durante o DiaTipo natal, nos dias 8 e 9 de de-
zembro de 2011, em são paulo. Câmera: Rafael Tadashi Miyashiro.

[ 107 ]
figura 3.4
Palavra gestual, escrita

por Andréa Branco em

workshop em São Paulo.

[ 108 ]
cotovelo direito, com ângulo pouco
maior que 90º, dá apoio ao siste-
ma mão-braço, enquanto o sistema
sistema mão-braço
mão-braço esquerdo segura a folha e
conduz o 'Fluxo' da escrita
fornece outro apoio

figura 3.5
Observações a partir

da demonstração de

Andréa Branco.

a pena exige um modo visão e preensão atuam


específico de pegada, no juntas para conduzir a escrita
encontro entre a pena e
seu cabo, o que permite
mais controle da escrita

[ 109 ]
figura 3.6
Ken Barber demonstrando

formas de fazer o

letreiramento.

[ 110 ]
o esqueleto das letras (suas formas mais básicas), Ken Barber alerta que,
às vezes, isso pode não funcionar tão bem com letras mais expandidas
ou com maior peso35.
Depois de definir algumas palavras-chaves que o letreiramento deve
ter (peso, expansão), Ken Barber começa a traçar com o lápis as linhas ex-
ternas das letras, para depois trabalhar com o miolo (ver vídeo 02, no cd
anexo). são linhas de ‘Tempo’ rápido, ‘peso’ médio, apenas para sustentar
o lápis firmemente, e o ‘fluxo’ não é livre, pois ele constrói, com várias
linhas, o contorno das letras que vão sendo apresentadas.
À medida que finaliza o contorno de uma letra, Ken Barber preenche
suas formas. isso permite visualizar a forma/contraforma resultante, e,
uma vez que não é um modo direto, permite corrigir determinadas par-
tes da letra. para Ken Barber, o que importa é de que maneira o espaço
positivo e negativo se relacionam um com o outro, ou com o termo
tipográfico conhecido como cor (que se refere ao peso visual das letras).
Da mesma forma que na demonstração de andréa Branco, o siste-
ma mão-braço é sustentado pelo braço, em um ângulo de 90º, mas aqui
a maioria dos movimentos visíveis vem da mão e dos dedos. Os dedos
seguram o lápis apoiado no dedo médio e no indicador, e a lateral direita
da mão direita serve de ponto de apoio para os movimentos dos dedos
que traçam as letras. a mão esquerda serve de apoio, a cabeça está leve-
mente inclinada. O apoio se encontra no cóccix e nas coxas, que estão
apoiados na cadeira.
percebe-se que o instrumento muda a relação com a criação das for-
mas das letras. O lápis propõe linhas finas e, portanto, uma construção
pelas linhas de contorno; já a pena caligráfica propõe, quase automati-
camente, a estrutura da letra. Deve-se ressaltar, no entanto, que isso não
é absoluto, pois é possível pensar no contorno por meio da pena, assim
como no lápis como estrutura.
É interessante dizer que aquilo que andréa Branco e Ken Barber
demonstram nos workshops é o trabalho que vem de um corpo moldado
para a caligrafia e o letreiramento. percebe-se que há precisão e seguran-
ça em seus traçados, e ambos demonstram um poder de visualização do
que ainda se está fazendo – isso só vem com a prática, como ressalta Ken
Barner. apesar de haver modos distintos de fazer o letreiramento, “Você
ainda precisa saber para onde mover o seu braço. Você precisa saber essas

35. Ele mesmo não usa essa estruturação.

[ 111 ]
coisas... elas vêm pela prática... praticar com a pena [caligráfica] ou dese-
nhando. Em ambos os casos, tem que funcionar” (BaRBER, 2011).
Uma das faces dessa prática é aquela que está ligada aos ambientes
de aprendizado. Há espaços que se revelam importantes na formação de
profissionais que lidam com a escrita. no capítulo 4 apresento algumas
observações de campo realizadas, assim como as reflexões que surgiram
com a realização de dois workshops rápidos e uma disciplina de graduação
no curso de Design na Universidade presbiteriana Mackenzie, em são
paulo.

[ 112 ]
Um outro Este capítulo foca nos gestos da escri-
lado do ta a partir de observações nos ambientes
aprendizado de aprendizado universitários. na primeira
parte, relato o que foi observado na pesqui-
[ capítulo 4 ] sa de campo realizada na disciplina Design
de Tipos no curso de design da faU-Usp.
a seguir, menciono as minhas experiências,
como docente, conduzindo workshops e uma disciplina no curso de de-
sign da Universidade presbiteriana Mackenzie, em são paulo.
Os workshops foram realizados gratuitamente, em módulos de 3
horas. O objetivo era observar os gestos da escrita na prática discente.
Queria saber como seria o aprendizado dos alunos pela repetição, sua
resposta a diferentes materiais e escalas; especialmente, interessava-me
saber como eles devolveriam o conhecimento (aprendido e apreendido)
em trabalhos pessoais que mostrassem a sua singularidade.
Já a disciplina Oficina Optativa de Tipografia – Desenho de letra,
com duração de um semestre, fazia parte da grade curricular implantada
no segundo semestre de 2014. Como fui designado docente responsável,
o conteúdo programático da disciplina se aproveitou da pesquisa teórica,
da observação de campo e dos workshops realizados para esta tese. foi
uma oportunidade para observar, num prazo maior, como se dariam as
relações dos alunos com as diferentes manifestações da escrita e seus
materiais e processos. Tal como nos workshops, o modo como cada um
manifestava sua singularidade através dos trabalhos era um ponto im-
portante a ser observado. Todo o material gerado nos workshops e na
disciplina foi recolhido para avaliação e para a pesquisa desta tese.

4.1 aprendizado em campo


parte da pesquisa que resultou nesta tese foi feita em campo, em am-
bientes de aprendizado. fora os workshops já comentados, eventos como
o Diatipo e o Tipocracia 10 anos (evento comemorativo) foram im-
portantes para conhecer melhor os participantes e os profissionais das
áreas de tipografia, letreiramento e caligrafia. Estudantes, profissionais
e professores frequentam esse tipo de evento em busca de atualização,
formação e contato, formando uma comunidade em expansão. O Diati-
po consolidou-se como um evento anual em são paulo, sendo eventual-
mente realizado em outras cidades do Brasil, como salvador, fortaleza
e Brasília.

[ 113 ]
Dentro do ensino formal das universidades, a tipografia é a que mais
está presente nas grades curriculares. ao menos em são paulo, no perío-
do em que a pesquisa que embasou esta tese foi realizada, a Universidade
anhembi-Morumbi, o Centro Universitário senac e a faculdade de ar-
quitetura e Urbanismo da Universidade de são paulo (faU-Usp) conta-
vam com disciplinas específicas de design de tipos.
no primeiro semestre de 2010, acompanhei a disciplina ministrada
pela profa. Dra. priscila lena farias no curso de graduação de Design na
faU-Usp, aUp 2303 Design de Tipos. por ser optativa, essa disciplina
atrai alunos com interesse em desenvolver uma fonte digital. Entre eles,
havia tanto pessoas que se interessavam em trabalhar com fontes quanto
pessoas que pensavam na disciplina como uma oportunidade de conhe-
cer mais o campo. Havia no grupo também um estudante de História
e dois estudantes de arquitetura, cujos trabalhos finais de graduação
consistiam no desenvolvimento de uma fonte, ambos orientados pela
professora responsável pela disciplina. Um deles, paulo Chagas, traba-
lhava com design na Editora Cosacnaïfy e era o monitor da disciplina,
auxiliando nas aulas de laboratório. Já laura lotufo trabalhava em um
estúdio de design gráfico durante o dia e tinha optado por cursar a dis-
ciplina de forma a complementar sua formação1.
as aulas, no período noturno das terças-feiras, dividiam-se entre a
sala de aula e o laboratório de computação gráfica. além dos atendimen-
tos individuais, posteriormente, em estágio mais avançado, os caracteres
já trabalhados eram impressos e pendurados na parede para crítica e
apreciação em sala de aula.
O conteúdo programático reunia os principais passos para a cons-
trução de uma fonte. foi proposto, como exercício inicial, o desenvolvi-
mento intensivo de uma fonte, ao longo de três semanas, para que todos
se inteirassem de etapas importantes do processo, como edição de carac-
teres, espaçamento e kerning.
passada essa primeira etapa, houve o desenvolvimento do projeto
da disciplina, a partir de propostas individuais livres. abarcando pelo

1. Em são paulo, vários designers gráficos atuantes são formados em arqui-


tetura e Urbanismo pela faU-Usp. Disciplinas de design foram incluídas
em 1962, mas, por ser um curso de arquitetura, dependendo do período,
houve mais ou menos disciplinas ligadas a projetos de produto e progra-
mação visual na grade curricular. paulo Chagas e laura lotufo fazem parte
desse grupo, que optou por trabalhar com design, e não com arquitetura.

[ 114 ]
figura 4.1
Imagens de alguns projetos

da disciplina Design de

Tipos/FAU-USP/2010.

Projetos de João Parenti,

Emídio Martins Pedro e

Fernanda Ozilaki (jun. 2010).

[ 115 ]
menos nove semanas, as propostas eram variadas: desde fontes mais de-
corativas até as fontes display e de texto. a cada semana, as aulas cen-
travam-se em um ponto do processo, como o desenvolvimento de carac-
teres, sua transferência para o software editor de fontes fontlab, a criação
de caracteres compostos (ligaturas), espaçamento e kerning, geração e
instalação de fontes2.
Essas etapas demonstram a complexidade e o tempo que estão en-
volvidos no processo de fazer fontes. não é algo rápido; exige compro-
metimento do corpo e um olhar analítico, que seja capaz de gerar, a par-
tir da proposta e dos desenhos iniciais, um conjunto de letras que possa
ser combinado de diversas maneiras e que, ainda assim, mantenha coesos
sua identidade e seus atributos formais.
Chama a atenção a variedade de projetos, o que talvez se deva à di-
versidade de pessoas. Cada uma delas traz consigo um corpo – inteiro,
afetivo e racional, além de um conjunto de habilidades cognitivas e mo-
toras, desenvolvidas e por desenvolver, com uma história pessoal única.
Quando elas se põem a pensar e a traçar os rascunhos de uma eventual
fonte, cada uma emerge com uma proposta diferente.
as etapas desenvolvidas na disciplina também propõem uma refle-
xão a respeito dos gestos. se eles são um intervalo entre a intenção e a
intenção materializada, pode-se dizer que os gestos que fazem parte do
design de tipos envolvem o corpo em várias etapas: nos primeiros rascu-
nhos no papel; nos momentos decisivos em que a fonte vai adquirindo
sua identidade, em que caracteres são aprimorados ou excluídos; quando
os originais são escaneados e levados para o software de edição e há novas
decisões, que visam prever as mais diversas combinações entre as letras
e diacríticos; na fase de refinamento e ajuste fino, que darão mais coesão
à identidade da fonte.
nesse intervalo de tempo-espaço abrangente não há apenas os ges-
tos do momento em que o esboço é feito ou os gestos de quando os
caracteres são trabalhados. ao contrário, eles propõem gestos que vão
assumindo diferentes papéis,que partem de um mesmo corpo: são gestos
em processo, pois estão em construção. Dialogam com os gestos que já fo-
ram e aqueles que serão, pois encontram-se entre um ponto de partida
(intenção) e um ponto final (nesse caso, o desenvolvimento digital de
uma fonte, com caracteres, diacríticos e numerais).

2. Dados do cronograma disponibilizado no início do semestre.

[ 116 ]
figura 4.2
Paulo Chagas e Laura Lotufo

em apresentação de seu

trabalho de conclusão de curso

na disciplina de Design de

Tipos, em 2010.

figura 4.3
Aspectos da família Nassau,

de Paulo Chagas (2010). No

sentido horário, a partir da

do canto superior esquerdo:

os três estilos apresentados;

variações do A em caixa-baixa

até a versão final; rascunho

feito à mão; proporção entre

os caracteres em caixa-baixa,

caixa-alta e versalate; e as

variações de ângulo entre as

letras.

figura 4.4

Estudos de Paulo Chagas em

cima de um teste de impressão.

[ 117 ]
nos trabalhos apresentados durante a avaliação final, pelos então
estudantes paulo Chagas e laura lotufo, percebe-se que, por serem pro-
jetos de final de curso e terem duração de um ano, apresentam maior
complexidade. são fontes de texto que envolvem questões de leitura-
bilidade (facilidade de leitura da fonte em textos de grande extensão)
e legibilidade (facilidade de reconhecimento individual do caractere)
em corpos menores (em geral, de 10 pt a 12 pt3). Mais tarde, ambas as
famílias (isidora e nassau) foram aplicadas a projetos editoriais4. laura
lotufo partiu de estudos do que é considerado o primeiro livro feito
no Brasil, impresso pelo português antonio isidro da fonseca, em sua
gráfica no Rio de Janeiro, em 1747, e da fonte aí utilizada5. O trabalho
incluiu pesquisa bibliográfica, observação e levantamento dos carac-
teres existentes no impresso, adaptação dos caracteres para que fun-
cionassem como fonte digital, além dos estudos de espaçamento e do
kerning6. É interessante notar que a escolha de uma família tipográfica
de texto (batizada de ‘isidora’) por lotufo ecoa em seu trabalho em um
estúdio de design gráfico, que lida com design editorial.
Já paulo Chagas (2010) projetou uma família tipográfica de texto para
aplicações editoriais7. para tanto, fez uma pesquisa envolvendo algumas
fontes utilizadas e reconhecidas no mercado editorial e elegeu alguns pa-
râmetros para um ‘bom design’ a partir daí: com serifa, traço modulado,
com baixo e médio contrastes e eixo variável. segundo ele:

Alguns detalhes no design de certas letras chamaram


atenção e evidenciaram algumas características que
poderiam levar a alguns estudos para um novo desenho de
fonte: contraformas mais abertas (maior branco interno

3. as fontes são medidas em pontos (pt).


4. processo que continuou após a defesa dos projetos de paulo Chagas, no pri-
meiro semestre de 2010, e laura lotufo, no segundo semestre do mesmo ano.
5. lotufo utilizou a metodologia utilizada por Cristóbal Henestrosa, designer
mexicano que fez uma família tipográfica, Espinosa, baseada no resgate a
partir de impressos de antonio de Espinosa no século XVi.
6. O processo é mais complexo que o descrito aqui (ver <www.fau.usp.br/dis-
ciplinas/tfg/tfg_online/tr/102/a0.html>. acesso em: dez. 2014.
7. Chagas apresentou as versões regular, itálica e bold. Veja detalhes do pro-
jeto em <www.fau.usp.br/disciplinas/tfg/tfg_online/tr/101/a07.html>. aces-
so em: dez. 2014.

[ 118 ]
figura 4.5
De cima para baixo,

levantamento das variações

de letras encontradas na fonte

de pesquisa da fonte Isidora.

Em seguida, os caracteres

principais; a versão final de

Isidora e desenhos feitos à

mão. A mudança dos Ds: o

impresso, a vetorização a

partir do impresso; tentativa

de correção do bojo irregular.

O último é o D final, que

corrige a inclinação do bojo,

mas ainda mantém a unidade

da família. Imagens de Laura

Lotufo (2010).

[ 119 ]
em cada letra) fazendo com que a letra pareça maior; a
horizontalidade reforçada pelas serifas um pouco mais
largas; ascendentes e descendentes mais curtas, bem como
menores caixas-altas, para se relacionarem melhor com as
caixas-baixas [...] e um contraste mais alto [...]
(CHAGAS, 2010).

Chagas (2000) narra um percurso interessante, contando como as


curvas dos caracteres se afastavam da haste em uma tentativa de au-
mentar o espaço branco interno das letras. no entanto, após testes de
impressão de boa definição (1200 dpi8), em corpos entre 8 pt e 12 pt, viu
que a leitura tornava-se cansativa (como é mostrado na fig. 4.3, nos
as) e as curvas voltavam a se ligar às hastes.
O processo de desenvolvimento da família tipográfica, em ambos
os casos, apresenta percursos no desenho dos tipos, dúvidas, impasses
e decisões. Tudo isso é algo que acontece pelo/no corpo: a reflexão, o
olhar atento à estrutura visual, as correções (à mão ou no computador).
É interessante notar que, além de serem gestos de processo, o corpo
muda a cada um deles. É o espaço onde encontram-se as possibilida-
des, que partiram de uma intenção e querem chegar a uma forma final.
no corpo, acumulam-se os conhecimentos e as dúvidas advindos des-
se processo, e é interessante que também no corpo repousam tanto o
passado – o vínculo com as ideias iniciais – quanto o futuro, isto é, a
projeção das possibilidades de correção ou de materialização segundo
alguma ideia. são gestos de sobreposição, de embate, de amalgamação
(de estados corporais) e de repouso (quando a decisão é tomada).
O acompanhamento na faU-Usp e os workshops feitos com andréa
Branco e Ken Barber, anteriormente mencionados, contribuíram para
o conhecimento dos processos de caligrafia, letreiramento e design de
tipos. foram experiências de aprendizado; no entanto, havia interesse
em acompanhar e ver mais de perto, com o corpo discente, o modo
como acontecem o aprendizado e sua percepção. nesse sentido, comen-
tarei as experiências feitas por mim, como docente, na Universidade
presbiteriana Mackenzie.

8. Dpi refere-se à qualidade de dispositivos digitais de saída (como impresso-


ras) e entrada (como scanners).

[ 120 ]
4.2 workshops
Em dezembro de 2013, realizei dois workshops com estudantes do cur-
so de Design, na Universidade presbiteriana Mackenzie, onde leciono.
Havia feito um em outubro do mesmo ano, em um evento que a univer-
sidade chama de Mackenzie Day e que consiste em um dia de divulga-
ção da universidade para interessados em conhecer sua estrutura física e
seus cursos. nesse evento, são promovidas diversas palestras e workshops
nas unidades da universidade. Ofereci um workshop de criação de letras,
em três turnos, com o objetivo de fazer que as pessoas começassem a ver
as letras e suas características como transmissoras de uma mensagem.
isso acontecia por meio da observação de uma referência tipográfica e
de sua customização, explorando os atributos formais com lápis e papel
manteiga. a organização desse workshop serviu de experiência para aque-
les que serão descritos9, com alunos da universidade.
para que esses workshops pudessem ser mais bem aproveitados, li-
mitei o número de vagas (seis), divulgando-os para poucos alunos, e,
assim que essas vagas foram preenchidas, encerrei a divulgação. Os
workshops aconteceram nos dias 2 e 10 de dezembro e tiveram duração
de 3 horas (das 18h30 às 21h30). Os alunos estavam no quarto, quinto e
sexto semestres, e já haviam cursado as disciplinas de Tipografia10, pro-
jeto i – identidade Visual, projeto ii – Design Editorial, entre outras,

9. pelo fato de envolver participantes com pouco ou nenhum conhecimento


básico de tipografia, o workshop foi bem introdutório. por ter sido realizado
com pessoas sem vínculo universitário, achei melhor não tirar fotos, nem
pedir autorização para eventual registro da fala ou trabalho feito.
10. a disciplina de Tipografia foi oferecida de 2009 a 2014, no terceiro se-
mestre da habilitação em Design Gráfico, na estrutura curricular vigente
nesse período. no segundo semestre de 2014 houve uma grande mudança
nessa estrutura e o conteúdo da disciplina foi parcialmente incorporado
em projeto ii, para turmas do segundo semestre. a disciplina de Tipografia
era ministrada pela profa. Zuleica schincariol, e o conteúdo programático
envolvia a apresentação da tipografia e seus conceitos básicos, prosseguia
com um aprofundamento sobre os tipos e seus atributos formais e, por fim,
a aplicação dos tipos no design gráfico. algo que vários alunos comenta-
vam era a necessidade de um módulo 2 para essa disciplina, que trabalhas-
se com a criação e o desenvolvimento de letras. na estrutura curricular
implantada no segundo semestre de 2014, que unifica as habilitações de
Design de produto e Design Gráfico, foram acrescidos oficinas e projetos
optativos, sendo que uma delas é a Oficina de Tipografia – criação de le-
tras, discutida mais a frente.

[ 121 ]
ou seja, eram alunos que já haviam passado da metade do curso e ti-
nham mais repertório de design gráfico em termos de prática projetual.
as idades variavam entre 19 e 25 anos.
Meu objetivo com os workshops era investigar os gestos na escrita
com os alunos, por meio do contato com uma parte prática do universo
gráfico das letras. aproveitei a experiência dos workshops de que havia
participado, do acompanhamento da disciplina de Design de Tipos/faU
-Usp e do que já havia pesquisado a respeito do corpo e do aprendizado.
Repetição da caligrafia, experimentação em escala e materiais, expressão
pessoal a partir da proposta foram alguns dos pontos chaves do workshop.
Eles tinham a seguinte estrutura:
• breve introdução da pesquisa do doutorado;
• considerações sobre as diferenças entre caligrafia, letreiramento e
design de tipos;
• um resumo geral da história da escrita após o século XV: os tipos
móveis, as consequências para a caligrafia nos séculos seguintes; a
influência do bico de pena; o crescente afastamento do tipos caligrá-
ficos, buscando formas mais autônomas; a revolução industrial e sua
influência na forma das letras; a litogravura no fim do século XiX e
algumas características da tipografia moderna e pós-moderna11.
a parte prática foi baseada em palavras-chaves, nesta sequência:
aprender, apreender, explorar. a ideia foi começar a trabalhar com a caligra-
fia para, depois, a partir desses resultados, fazer lettering/letreiramento,
modificando tais formas.
Em ‘aprender’, o objetivo era conhecer a estrutura por meio da ca-
ligrafia, utilizando a pena quadrada. Os participantes aprenderam sobre
o ductus, ângulo de inclinação, pauta caligráfica. Usei como materiais as
letras e o ductus, da apostila de andréa Branco. Como era um workshop de
três horas, limitei-me à escrita das palavras barco e proa, pois, com suas
letras, poderiam ser geradas várias palavras, além de elas terem uma as-
cendente e uma descendente, o que evidencia a relação com o corpo da
letra e a pauta caligráfica. a letra utilizada não tinha serifa, o que pensei
facilitar o processo. foram dadas as seguintes instruções, ressaltando o
aspecto mais estrutural:

11. foi um breve resumo, pois os alunos já traziam conhecimentos da história


da Tipografia, na disciplina de Tipografia. nesse sentido, reforcei as rela-
ções com o letreiramento e a caligrafia.

[ 122 ]
figura 4.6
Base dada para os

alunos copiarem. Foram

escaneadas as letras

presentes na Apostila

de Andréa Branco

e adaptadas com as

palavras barco e proa.

Atividade [Aprender]
- Escrever as letras, segundo a ordem das peças;
- preocupar-se com a estrutura; depois com o espaçamento;
- repetir inúmeras vezes! (MIYASHIRO, 2013).

‘apreender’ estimulava a repetição das letras, a fim de corporificar a


estrutura da caligrafia. nesse sentido, havia uma variedade de palavras:

Atividade [Apreender]
- Com a mesma estrutura, variar a combinação das mesmas
letras, formando/inventando outras palavras, como plac,
arco, coar, roca, croa, roca, bobo, boba, paçoca, arpo, bar...
(MIYASHIRO, 2013).

É na escrita dessas palavras que, junto a cada letra, pelo seu ductus,
o corpo cria coreografias completas a cada palavra escrita: as categorias
labanianas de ‘peso’, ‘Tempo’ e ‘fluxo’ marcam coordenadas, influencian-
do o movimento do sistema mão-braço; a visão atua como orientadora.
na força (‘peso’) descobre-se a intensidade certa; é no deslizar da pena
sobre o papel, em um ‘Tempo’ nem muito lento, nem muito rápido, que
se deve sentir e apropriar a escrita; é na compreensão do ‘fluxo’ livre da
construção de suas peças e da formação das palavras que o corpo reforça
o aprendizado, corporificando o conhecimento caligráfico.
nessa etapa, eles utilizaram a pena quadrada com tinta de caligra-
fia japonesa sumi, mas pedi que experimentassem também com a caneta
paralell pilot, que funciona com cartuchos de tinta independentes. a
paralell oferece a possibilidade de um fluxo mais contínuo na escrita
das letras, uma vez que não exige carregamento de tinta a cada peça ou

[ 123 ]
figura 4.7
Alunos no workshop, na

etapa ‘Aprender’. In-Park

(à esquerda) segura a

Paralell e Natália, a pena.

figura 4.8
Danilo na etapa

‘Apreender.

figura 4.9
Bárbara, em repetições

mais frequentes das

letras para aprimorá-las.

[ 124 ]
sequência de letras12. isso também permite que a mão esquerda ajude a
dar mais firmeza no papel ou, simplesmente, a direcionar mais o olhar,
propondo um enquadramento. Já com o uso da pena, uma das mãos pode
manter a tinta mais próxima da mão que escreve13.
O acompanhamento dos alunos foi feito ao longo do workshop14 (ver
o vídeo 03 no CD anexo). na fase ‘aprender’ (fig. 4.7) havia dificuldade
em manejar a pena no ângulo correto. Em ‘apreender’ (fig. 4.8), o fato
de haver mais palavras adicionou variedade e, dependendo da palavra,
descontração, especialmente com onomatopeias, como ploc, plac.
na fase ‘Explorar’, os alunos deveriam experimentar diferentes pos-
sibilidades utilizando a pena ou a paralell, ou seja, explorar as suas af-
fordances. Distribuí fotocópias de várias referências de letreiramento e
fontes, com serifas variadas, expandidas e condensadas, e com variação
de altura x.

Atividade [Explorar]
- Escolher três palavras e procurar, pela observação dos
exemplos dados, possibilidades de modificar a forma pela
caligrafia;
- Adicionar diferentes tipos de serifa, expandir, condensar,
aumentar/diminuir a altura X são algumas das possibilidades
(MIYASHIRO, 2013).

E na sequência, a fase final, ‘Lettering’ (fig. 4.10)

Atividade [Lettering]
- Escolher três palavras já trabalhadas para o redesenho com
o papel manteiga. Novamente, utilize as referências para criar
uma identidade/conceito nessas palavras;
A expansão em formas irregulares agora será permitida;
Escolha um e finalize, procurando corrigir imperfeições e
melhorando o desenho (MIYASHIRO, 2013).

12. ao serem questionados, os alunos responderam que preferiam usar a para-


lell por sua praticidade.
13. alguns calígrafos recomendam que a mão esquerda segure um pincel chato
carregado de tinta para facilitar a prática.
14 Os registros fotográfico e em vídeo dos workshops e dos trabalhos feitos
pelos alunos foi feito por mim.

[ 125 ]
[ 126 ]
figura. 4.10

[nesta e na página

anterior]

Alunos na fase do

Lettering, em que foi feita

uma escolha a partir da

caligrafia.

[ 127 ]
as variações feitas pelos alunos propuseram diferentes direções.
Há trabalhos com referências à caligrafia praticada, e outros que se afas-
tam dela, utilizando a linha de contorno do desenho para retrabalhar de
forma mais radical. a observação de referências já existentes alimentou
a criação de alguns dos trabalhos, com a adição de floreios ou com atri-
butos formais distintos daqueles derivados da caligrafia (fig.4.11 a 4.14).
ao final do workshop, dei início a um bate-papo com os alunos para
que eles expressassem sua percepção a respeito do que tinham feito e do
trabalho dos colegas. Também pedi que mostrassem seus resultados –
aquilo que considerassem mais interessante em seu processo. Os comen-
tários variaram entre a experiência da caligrafia e a do letreiramento. a
caligrafia ficou reforçada como um aprendizado da ‘forma correta’, de
traçar pelo ductus – propondo uma experiência prática, que reforçou as
relações entre o instrumento, a angulação, o ductus e a pauta caligráfica.

Eu já tinha feito uma oficina de caligrafia num N [Design,


evento para estudantes de Design] que eu tinha ido, e como
tinha muita gente na sala, o tempo era curto, não deu pra
concentrar tanto e pegar os detalhezinhos de cada letra, aqui
[...] foi mais proveitoso [Natália].

Antes eu não sabia como fazer e agora vou treinar para


melhorar [...] Eu aprendi o desenho das letras, porque antes eu
fazia como eu escrevia, e não é assim. Tem o jeito certo, a ordem
certa [Bárbara].

Também aprendi com a parte teórica, tem muita coisa que achei
que era de uma vez só, e eram duas. Eu nunca fiz nada [nenhum
curso], eu olhava na internet e tentava fazer, gostei muito mais
do embasamento teórico [Lucas].

Eu achei legal essa parte da estrutura da letra, que tem todo um


passo a passo, começar por um lado... a questão do ângulo. Acho
que foi bem prático, nesse sentido [Danilo] (WORKSHOPS, 2013).

in-park reforçou a necessidade de a tipografia ‘ficar menos na cabe-


ça’, no sentido de que não poderia ser algo apenas teórico, sem a produ-
ção de algo prático. Também foi dito a respeito do processo:

[ 128 ]
figura. 4.11

Alguns do resultados

apresentados na fase

final do workshop.

[ 129 ]
figura 4.12
Estudos de letreiramento

de Natália.

figura 4.13
Estudos de caligrafia e

letreiramento de Valéria.

figura 4.14
Estudos de

letreiramento de Lucas.

[ 130 ]
figura 4.15
Acompanhamento de

alunos no segundo

workshop.

[ 131 ]
Eu acho que deu para ter uma ideia do passo a passo, né. Eu
mesmo me perguntava o significado do lettering, não sabia o
que era isso. Então primeiro você faz o desenho e depois você
deixa ele mais caprichado, você faz refinamentos, põe papel
manteiga em cima, eu acho que isso foi legal para ter uma ideia
do processo [Valéria] (IBIDEM).

O segundo workshop (fig. 4.15) ocorreu uma semana depois. Como


havia seis pessoas confirmadas, não divulguei mais, pois havia o risco de
haver mais participantes do que eu poderia atender. Compareceram três
pessoas; duas outras tiveram compromissos e avisaram no mesmo dia
que não poderiam ir; uma terceira não apareceu. lucas e Bárbara haviam
participado do primeiro workshop. Júlia, aluna do quarto semestre, foi pela
primeira vez15.
O workshop seguiu a mesma estrutura do primeiro. Uma parte teórica
introdutória, igual, seguida da parte prática com caligrafia e letreiramen-
to. na sequência de ‘aprender’ e ‘apreender’16, acrescentei ‘Escalonar’,
com algumas variações, nos instrumentos e no tamanho da folha.
Começamos com os mesmos exercícios da outra vez (escrever barco
e proa, em seguida fazer variações com as letras dessas palavras). Dessa
vez, por conta do número de participantes, emprestei as canetas paralell,
o que ajudou os alunos a fazerem mais vezes cada palavra e letra. Tanto
lucas quanto Bárbara disseram ser ‘mais prática’, pois não exigia que
se carregasse a tinta. O fato de haver menos alunos me deu mais tempo
para atendê-los individualmente, o que foi positivo. Como o primeiro
workshop durou três horas, o que não é muito tempo, não me parece pos-
sível afirmar que os alunos lucas e Bárbara tinham grande ‘vantagem’
por já terem praticado as mesmas letras. Mas a bagagem da primeira
experiência certamente apareceu no desenvolvimento do projeto de le-
treiramento.
após a sessão inicial de caligrafia, comecei a pedir que variassem o
instrumento e a escala. pedi também que experimentassem com a cane-
ta marcador, que tem ponta em ângulo mas cuja largura é próxima da

15. a aluna tinha feito um workshop rápido (com duas horas de duração) com
Cláudio Gil em outubro de 2013
16. Como na primeira vez, havia penas quadradas e 3 canetas paralell pilot.
Optei por distribuir a paralell pilot, para que houvesse mais tempo no de-
senvolvimento do letreiramento.

[ 132 ]
figura 4.16
Imagens da fase do

escalonamento com

madeira balsa e do

lettering.

[ 133 ]
[ 134 ]
figura 4.17
Imagens do processo

desenvolvido no

workshop.

[nesta e na página

anterior]

[ 135 ]
paralell (2.4 e 3.8 mm). nenhum dos alunos gostou do marcador, como
me disseram posteriormente, mas a madeira balsa foi uma surpresa: eu a
havia escolhido pela facilidade de cortar várias larguras de pontas, e os
três alunos falaram positivamente da experiência.
É interessante notar que, à medida que o tamanho aumenta, o siste-
ma mão-braço é direcionado mais pelo braço e pelo antebraço, ao con-
trário de quando a pena é menor e exige maior trabalho de coordenação
fina da estrutura da mão e dos dedos. as propriedades físicas do material
também ajudam: a madeira balsa é leve e seu toque é macio. no tamanho
de 100 mm, era preciso fixar o papel, exigindo o uso da mão esquerda, o
que atrapalhava um pouco o fluxo do movimento.
na fase do letreiramento, os alunos escolheram as caligrafias feitas
com a ponta de madeira balsa de 17.5 mm.
ao final do workshop, pedi aos alunos que dessem sua impressão a
respeito da experiêcia e dos trabalhos realizados. O tema ‘aprendizado’
manifestou-se na fala deles, quando mencionaram a repetição e o pro-
cesso processo criativo de cada um no letreiramento. lucas ressaltou que
achava certo começar pela base, a caligrafia:

Toda vez que aprendi alguma coisa foi muito assim... [como]
no caratê, a gente treina muito, muito, o básico, para depois
fazer o resto. Eu acho que essa metodologia é a mais certa.
Firmar a raiz da planta para depois fazer o tronco. [Lucas]
(WORKSHOPS, 2013).

Bárbara e Júlia mencionaram estrutura e movimento:

Achei legal o começo porque é uma forma de reconhecimento:


a gente conhece a estrutura, como é que faz a forma, as peças,
e daí depois a gente vai adaptando nossos traços numa folha
maior... no rebuscamento, que seria mais o lettering. [Bárbara]
(WORKSHOPS, 2013).

Achei interessante além da questão da base... a


questão do movimento. Que nem... a gente foi mudando
de material, mudando de tamanho... por mais que
a estrutura fosse a mesma, as frases [as palavras],
tinha que movimentar muito mais o braço, tinha que

[ 136 ]
se adaptar com isso. E daí quando a gente passou para
o lettering, pelo menos eu senti que eu consegui levar
um pouco dessa movimentação do braço para fazer o
lettering, dessas curvas e tal...
[sobre a madeira balsa] achei mais gostoso, mais
divertido. E tem também um pouco da textura também.
[Júlia] (WORKSHOPS, 2013).

a mudança de instrumento e o uso de escalas maiores parecem ter


suscitado a consciência do movimento do próprio corpo. Tal reflexão
assinala uma apropriação da linguagem do corpo e de como isso pode
modificar o fazer. perguntei a eles como era o desenho dos participan-
tes e os três disseram que eram em escala menor e com mais detalhes,
ou seja, desenhos em que a ação da mão e dos dedos era fundamental.
Já com a madeira balsa maior era necessária uma ação mais efetiva do
antebraço e do braço para sustentar e movimentar a mão. Talvez pelo
fato de o raio de ação se tornar maior, ou pela liberdade em explorar e
descobrir as affordances, o manejo com a madeira balsa tenha se reve-
lado prazeroso.
Dos resultados apresentados, Bárbara [ploc] foi quem fez o traba-
lho que mais se aproxima da caligrafia. Ela aproveitou o momento do
letreiramento para corrigir o espaçamento do original e fez estudos de
como poderiam ser os terminais das letras; acrescentou os floreios – ela
afirmou gostar de floreios, tendo utilizado-os no workshop passado.
O trabalho de lucas [cor] foi resultado de algumas experimentações
diversas. Como em parte do workshop o aluno teve que se ausentar da
sala para resolver problemas particulares, talvez isso tenha atrapalhado
o processo do letreiramento. percebe-se identidade nos terminais do C
e R, e há menção em misturar atributos formais distintos nem um mes-
mo conjunto. pergunto a ele se acha que o trabalho seria diferente se
tivesse sido feito em escala menor, e ele responde que provavelmente
sim, pelo fato de ter mais prática (em fazer desenhos em escala menor).
Júlia [arco] foi quem mais se afastou da referência caligráfica. Em-
bora tenha usado o papel manteiga para copiar a estrutura das letras,
posteriormente fez modificações na modulação (variação da linha).
Com a ideia de uma letra invadir o espaço da outra, o trabalho tem
identidade em seus atributos formais e movimento – algo que ela mes-
ma disse ter incorporado a partir da caligrafia feita em tamanho maior.

[ 137 ]
figura 4.17
Resultados apresentados

no segundo workshop:

ploc (Bárbara), cor (Lucas)

e arco (Júlia).

isso pode ser visto como uma aproximação com o elemento material
água, segundo a teoria da imaginação de Bachelard. a água, que con-
duzia a caligrafia, se misturou à terra, tentando reproduzir aquela pri-
meira gestualidade.
apesar de haver detalhes a serem refinados nos trabalhos (maior
identidade em alguns caracteres, contrastes a serem mais bem desen-
volvidos), eles representam uma apropriação do que foi passado em
menos de três horas. percebe-se que o envolvimento – algo fundamen-
tal para o aprendizado – foi um aspecto presente nos três participantes,
do começo até o final do workshop.
Os resultados de ambos os workshops ensejaram considerações a res-
peito de uma eventual disciplina de criação de letras, da necessidade
de fazer algo prático, que se aprendesse pela experiência manual, e que
envolvesse a experimentação de materiais e suportes. Essa disciplina
foi implementada no segundo semestre de 2014, no curso de Design da
Universidade presbiteriana Mackenzie, e é dela, da experiência e dos
resultados, que falarei na próxima seção.

[ 138 ]
4.3 Oficina de Criação de Letras
Esta oficina foi oferecida como uma disciplina optativa para alunos
do terceiro semestre do curso, no segundo semestre de 2014. Embora no
projeto pedagógico ela seja optativa para alunos do terceiro ao sexto
semestre, nesse semestre letivo, por conta de equivalências de uma grade
antiga para a nova, a disciplina foi optativa17 somente para alunos do
terceiro semestre ou em situação especial18.
não houve registro fotográfico ou em vídeo no curso da disciplina,
por uma questão ética. no caso dos workshops, eram atividade extracurri-
culares, gratuitas e o material era todo cedido por mim; os alunos sabiam
que a produção do workshop poderia ser utilizada nesta tese e assinaram
um termo de consentimento livre-esclarecido em que evidenciavam isso.
Já na disciplina, que os alunos pagam para cursar, me pareceu impositi-
vo e não ético pedir qualquer autorização de registro logo no início das
aulas.
na ementa da disciplina constava “Estudo de diferentes formas de
expressão e técnicas de configuração das letras e seus espaçamentos.
Experimentação de técnicas de caligrafia, letreiramento, estêncil. in-
trodução ao processo de design de tipos: da configuração do conceito
à vetorização” (MaTRiZ, 2014). as aulas tinham, em geral, uma parte
expositiva e outra prática, e, às vezes, dividiam-se entre o laboratório
de computação gráfica e a sala de aula, dependendo da atividade. a
disciplina durou 17 semanas, e houve aulas em 14 delas, assim, havia
necessidade de impor um ritmo mais intenso logo no início. alguns
alunos desistiram ou passaram para outra disciplina optativa, restando
cerca de 20 alunos na lista final.
para o conteúdo programático, aproveitei a experiência da pesquisa
que embasou esta tese, especialmente a parte realizada em campo, para
propor as atividades e os trabalhos a serem entregues. a profa. Zuleica
schincariol sugeriu o trabalho com estêncil, o que se revelou importante
para pensar em questões como a identidade do alfabeto, o espaçamento,

17. Os alunos podiam escolher entre a oficina de criação de letras e uma ofici-
na de cartazes.
18. Como o aluno vindo de lisboa, pedro Vaz, que fazia intercâmbio no mo-
mento; a aluna nicolle Turbiani, que veio transferida de outra faculdade,
matriculada no quinto semestre, mas cumprindo a disciplina como equi-
valência; e Thiago Han, aluno do segundo semestre, que optou por fazer a
disciplina para cobrir uma ‘janela’ em sua grade.

[ 139 ]
figura 4.18
Resultado de exercício

introdutório.

a combinação de letras para a formação de palavras, entre outras, o que


reúne alguns princípios para o design de tipos.
ao final do semestre, em uma conversa a respeito da produção feita
ao longo da disciplina, expliquei que gostaria de usar parte dos trabalhos
desenvolvidos nesta tese, para ilustrar o processo da oficina e minha vi-
são como docente. pedi permissão e houve um aceite da parte de todos. a
seguir, apresentarei a disciplina e os trabalhos propostos para então fazer
considerações a respeito dos resultados apresentados de forma geral.
Como exercício introdutório, propus algo inspirado pelo exercício de

[ 140 ]
Ken Barber, mencionado no capítulo 03. a partir de referências tipográ-
ficas (alfabetos em caixa-alta e em caixa-baixa, com fontes como Univers
e Helvetica), os alunos deveriam escrever seus nomes ou apelidos e, por
meio do estudo de alguns tipos e letreiramentos, propor modificações,
copiando e desenhando no papel manteiga.
foi um primeiro contato com as letras, feito em uma única aula.
Esse exercício propunha o que seria trabalhado ao longo do semestre: a
criação de letras e seus atributos formais. Também apresentava a cons-
trução como modo de criar as letras. nos exemplos reproduzidos aqui,
percebem-se não apenas algumas tentativas de criar composições com as
letras (variando em caixa-alta e caixa-baixa), mas também de impor algo
mais pessoal às letras, como o arredondamento dos terminais e a exten-
são de alguns deles (Vivian), os floreios (Jaqueline) e as serifas, o outline e
os terminais levemente arredondados (Raphael) (fig.4.18).
nas primeiras semanas, houve prática de caligrafia na sala de aula,
em que acompanhei a escrita dos alunos. foram feitas duas mãos: uma
mais básica, sem serifa (baseada na dada por andréa Branco), e outra, a
mão fundamental, feita por Edward Johnston. Os alunos foram encora-
jados a praticar em casa.
além das aulas de caligrafia, no início, fizemos um exercício proposto
pela profa. Zuleica schincariol na antiga disciplina de Tipografia19, no qual
uma tabela de 3 × 3 quadrados deve destacar 9 dos principais atributos for-
mais de uma fonte, ressaltando pequenos detalhes, como uma serifa, uma
linha que apresenta grande contraste etc. O uso do computador permitiu
rapidamente a ampliação de detalhes das fontes, como uma 'ampliação' do
olho, que seleciona algo de uma paisagem geral e a detalha com nitidez. É
um exercício de aprendizado que pode contribuir para os gestos da escrita,
uma vez que amplia o repertório visual e sensibiliza para detalhes que pode-
riam passar despercebidos.
O segundo trabalho foi criar um letreiramento a partir da caligrafia.
Os alunos deveriam escolher uma palavra e escrevê-la diversas vezes (fig.
4.19). Como havia sido feito nos workshops, a caligrafia com a pena foi
seguida do uso de diferentes tamanhos de madeira balsa, bem como da
experimentação de outros instrumentos, condensação, expansão etc. O
trabalho foi iniciado em sala de aula para acompanhamento e, depois, os
alunos tiveram mais duas semanas para sua finalização em casa.

19. Disciplina da estrutura curricular anterior, como foi dito anteriormente.

[ 141 ]
figura. 4.19
Algumas páginas de

(Karina, Tainá, Beet Na,

de cima para baixo).

[ 142 ]
Devido à prática da caligrafia já há algumas semanas, os resultados em
geral foram bastante satisfatórios, mostrando comprometimento. segun-
do o depoimento dos alunos, a caligrafia teve lugar de destaque. Muitos
afirmaram que ela foi parte especial da disciplina e que gostaram de ter
caligrafado – o que também reverbera com o que os alunos do primeiro
workshop mencionaram: a necessidade de algo prático quando o assunto é
o universo das letras no design gráfico.
Otávio, um dos alunos, ressaltou que não esperava que a oficina fosse
algo prático: ”achei que a gente fosse só ver sobre o assunto [...]. achei le-
gal você ensinar a usar a madeira balsa, os processos de construir a letra...”
(OfiCina, 2014). “Entender a caligrafia como um princípio da tipografia,
essa coisa do treinar... achei que isso foi bem legal, bem produtivo” (Ofi-
Cina, 2014), disse João. pergunto à turma se eles sentiram que a caligrafia
mudou enquanto faziam e escuto um coro dizendo um forte “sim!”.
Uma das alunas, Thaís, disse que achou interessante saber que as
letras deviam seguir determinada inclinação (30º, por exemplo). Ela
havia descoberto que se fizesse a caligrafia de forma lenta, pensando
muito em sua construção, a letra não saía tão bem: “na hora em que
você pega o ritmo, você vai rápido e sai mais perfeito que se você fizer
devagar” (OfiCina, 2014). É interessante tal colocação, pois ela leva a
pensar no fluxo da caligrafia, o movimento da mão ao fazer o ductus.
significa uma corporificação da ordem de fazer a letra, em que cada um
deve achar seu próprio fluxo, aquele em que a letra sai visualmente sa-
tisfatória, com a angulação correta, com as peças bem feitas e propor-
cionais. a cada caligrafia feita, o corpo passa a ser outro, com o reforço
da coordenação visuomotora e os circuitos que lembram as qualidades
do 'Esforço', como descritas no capítulo anterior, que devem ser impos-
tas nesse gesto. por outro lado, dois alunos ressaltaram a necessidade
de aprender como fazer outras mãos caligráficas, além das trabalhadas
durante o semestre. “a gente poderia ter visto mais aquela caligrafia,
do vídeo que você passou por e-mail20 [Cooperplate] [...]. porque na hora
que eu ia fazer, faltava a técnica para fazer... porque você não sabe a
forma de usar a caneta, porque às vezes você está traçando ela prende,
espirra a tinta”, diz Otávio. Vivian concorda, rindo: “não dá, não dá
para fazer!...”. (OfiCina, 2014,).

20. são referências que passei por e-mail, entre elas um vídeo que mostra como
fazer a mão Cooperplate.

[ 143 ]
Quanto a trabalhar com uma estrutura feita a partir da caligrafia
– em vez de criar em cima de algo livre, sem referência –, nicolle me
responde que a experiência valeu a pena:

Como estava no começo, acho que se fosse mais livre, eu não


ia aprender tudo que eu aprendi [...] porque se não você trava
naquilo que você quer fazer. A base é você fazer o padrão, se
você faz o padrão você fica livre para criar em cima depois o
que você quiser (OfiCina, 2014).

se a base pode servir de ponto de partida para explorações é porque


a repetição a construiu, por meio da intimidade. E talvez seja ela que di-
recione alguns dos caminhos a serem trilhados posteriormente.
a apropriação da caligrafia para se transformar em letreiramento também
mostra escolhas pessoais que começam pela própria palavra utilizada, como
preto, mulher, livre. Os três alunos que usaram essas palavras seguiram, nos ou-
tros trabalhos, vieses de raça, gênero e questões sociais. as variações em cima
da caligrafia também mostram algo já observado anteriormente: os gestos da
escrita são gestos em processo. nesse caso, o caráter processual manifesta-se
na continuidade que o trabalho requer, ou seja, na continuidade de algo que
passou da caligrafia para o letreiramento na busca de soluções e a cada mo-
mento do desenvolvimento do projeto. O corpo, habituado com a caligrafia,
tendo incorporado os movimentos da palavra, se lança a explorar possibilida-
des distintas, como se pode perceber nas imagens ao lado (fig. 4.20).
É interessante compreender que o gesto que escreve o último
girassol (fig.4.20), escolhido para a arte-final, faz parte de um
processo que envolve cada girassol caligrafado, o repertório da aluna,
o atendimento feito em sala de aula, a habilidade dela com o desenho etc.
O terceiro trabalho foi feito em grupo (quatro semanas). a proposta
era fazer um alfabeto em estêncil, cuja aplicação deveria estar ligada a
uma causa social. Minha sugestão foi que escolhessem uma causa social
que utilizasse o estêncil desenvolvido, realizando uma pesquisa, e come-
çassem a fazer os roughs (rascunhos, desenhos iniciais). falei também da
possibilidade de usar fontes com licença open-source21, que permitissem
ser retrabalhadas, como base para as letras no estêncil.

21. Uma licença ‘aberta’, que permite o uso livre, como a do sistema operacio-
nal linux.

[ 144 ]
figura 4.20
Algumas páginas de

caligrafia e estudos de

letreiramento feitos no

segundo trabalho (autoria:

Luiza, Pedro, Débora,

de cima para baixo).

[ 145 ]
Quando perguntei o que tinham achado desse trabalho, os alunos
responderam que foi uma proposta interessante. Ressaltaram que, pela
temática social, o fato de ser em grupo reforçava a discussão, além da
distribuição do trabalho. Um dos grupos, por exemplo, queria trabalhar
com a legalização do consumo da maconha. nos atendimentos, chegou-
se à conclusão de que a proposta mais interessante seria provocar
discussões com as diferentes palavras relacionadas ao status da maconha:
regulamentação, descriminalização e legalização. O processo se deu de forma
colaborativa a partir do esboço de um aluno (João paulo), que exigiu a
lapidação de um alfabeto que era mais fantasia (e remetia ao letreiramento
psicodélico) a um que transmitisse a mensagem de forma mais direta e
ainda assim tivesse uma identidade interessante (fig. 4.21).
a criação das letras, em vários grupos, implicou o redesenho das
letras na etapa do recorte a laser, pois, devido às limitações de software,
alguns tiveram que rever o desenho feito. É interessante que esse projeto
tenha envolvido diferentes etapas (analógicas e digitais) para alcançar a
materialização do estêncil, propondo diferentes gestos a cada uma.
O quarto e último trabalho era um projeto livre (três a quatro se-
manas), cujo enfoque principal deveria ser a criação de letras. pedi uma
apresentação digital inicial em que mostrassem o tema, projetos simila-
res e um caminho metodológico para o trabalho. a partir dela, foi feito
um atendimento individual e, nas outras semanas, os alunos desenvol-
veram os trabalhos.
Os resultados, como um todo, ressaltam a diversidade dos alunos e
seus gestos. Eles podem ser divididos especialmente em três categorias:
desenho de alfabetos (fig.4.22), letreiramento (fig.4.23) e desenhos liga-
dos à identidade visual (fig.4.24).
na conversa final, perguntei se preferiam desenhar à mão ou no
computador, a maioria respondeu que ‘à mão’ era melhor. Dos que res-
ponderam ‘no computador’, cabe mencionar que usam mesas digitaliza-
doras, o que propõe uma experiência mais próxima do desenho à mão.
a opção pelo desenho analógico parece refletir-se também no conjun-
to dos trabalhos como um todo: alguns dos trabalhos apresentados têm
qualidade superior em sua versão feita à mão e perderam a espontanei-
dade dos gestos que o geraram quando foram digitalizados e finalizados.
Uma questão aparece aqui e deve ser melhor investigada posterior-
mente: a transposição do gesto analógico para o gesto que utiliza mídias

[ 146 ]
figura 4.21
Exemplos de estêncil.

[ João Paulo, Thaís e Flávia ]

[Tainá, Karina, Maíla]

[Pedro]

[ 147 ]
digitais. Mais do que uma questão de instrumentalização22, parece que
deve haver o desenvolvimento de um olhar mais completo e o reconhe-
cimento de que a visão na tela (produzida por cor luz direta, projetada
em um monitor sobre uma mesa) pode ter resultados diferentes na visão
em um suporte analógico, como a impressão de um papel (que reflete
a cor pigmento do impresso). são poucos os alunos que imprimem, ao
longo do processo de digitalização, cópias de seu trabalho para checa-
gem – em geral, só o fazem na etapa final. isso permitiria uma etapa a
mais de refinamento nos vetores, para que ficassem mais harmônicos em
seu conjunto, com curvas e linhas bem vetorizadas. Um exemplo em que
isso fica mais evidente é o das provas impressas pregadas nas paredes,
na disciplina Design de Tipos na faU-Usp: elas provaram ser frutíferas,
considerando os comentários da professora responsável e dos colegas.
para um próximo semestre, uma possibilidade é ampliar o prazo de de-
senvolvimento dos trabalhos, atrelando a atendimentos com cópias im-
pressas, a fim de que os alunos tomem consciência da diferença entre os
processos analógicos e os digitais.
De modo geral, percebem-se alguns problemas de espaçamento
e consistência na identidade e nos atributos formais nos trabalhos
apresentados. no entanto, considerando que houve pouco tempo
para a produção e os atendimentos23, eles demonstram uma apropria-
ção pessoal do universo das letras dentro do design gráfico. Muitos
dos alunos mostraram, durante o processo, duas coisas fundamentais
para o aprendizado: o interesse, como já observado nos workshops,
que leva ao comprometimento, e as tentativas de acerto. isso se mostrou na
apresentação de estudos de mãos caligráficas, não ensinadas durante
a disciplina (Otávio, Tainá, Jaqueline); na insistência em buscar no
gestual caligráfico um símbolo de identidade (nicolle); na abstração
do processo caligráfico para a geração de um logotipo (João); e na
elaboração de trabalhos que misturassem ilustração e letras, por meio
do letreiramento.

22. a maioria dos alunos teve, no semestre anterior, uma disciplina de com-
putação gráfica inteiramente voltada para a vetorização no software Adobe
Illustrator.
23. Em novembro houve feriado e uma premiação no Museu da Casa Brasileira
(MCB), à qual os alunos compareceram. Devido a problemas no equipa-
mento, alguns grupos entregaram o trabalho do estêncil em meados desse
mês, o que atrapalhou também o desenvolvimento do último trabalho

[ 148 ]
figura 4.22
Trabalhos finais:

criação de alfabetos.

[Raphael]

[Bruno]

figura 4.23
Trabalhos finais:

letreiramento.

[Luiza, Débora]

[Karina

[ 149 ]
figura 4.22
Trabalhos finais:

relacionados à

identidade visual.

[Jaqueline]

[João Pedro]

[Tainá]

[na outra página]

[Otávio]

[Nicolle]

[ 150 ]
[ 151 ]
O fato dos trabalhos oferecerem propostas diferentes, utilizando ca-
ligrafia, letreiramento, estêncil, tipografia, suportes analógicos e digitais,
faz com que o corpo de cada um dos alunos aprenda a 'dar vazão' aos
próprios devaneios, recordando a teoria da imaginação de Bachelard. na
materialização das intenções desses gestos, cada abordagem pede um
corpo que seja sensível aos devaneios que são suscitados – e que esteja
disposto a aprender, como se vê no retorno positivo com os exercícios de
caligrafia e nos atendimentos dos trabalhos.
Chama a atenção o fato de alguns alunos já apresentarem, em seus
trabalhos, um modo de expressão do ser. penso na Karina, que aprovei-
tou os trabalhos da oficina para reafirmar sua identidade: no primeiro
trabalho, escolheu a palavra preto para refazer; no do estêncil escolheu
uma mensagem que afirmava que todos, independentemente de etnia,
são iguais; e no último fez um letreiramento para a expressão black music.
penso no Otávio, aluno que fazia sketches com letras e mostrou interesse
e evolução consideráveis, tanto na caligrafia quanto na finalização di-
gital dos trabalhos. penso na luiza, que procurou expressar o feminino
em seus trabalhos, não poupando uma busca constante em fazer melhor.
Esses são apenas alguns exemplos, em meio a tantos outros, pois poderia
falar da nicolle, do Bruno, dos dois Joãos...
Os gestos, nesse sentido, se fazem a partir do que cada um dos alu-
nos é. sua coordenação motora, sua afetividade, sua leitura de mundo,
entre tantos outros aspectos. Eles apontam para a vivência e a expressão
do ser no mundo, o tema do Capítulo 5.

[ 152 ]
Gestos e mundo
[ capítulo 5 ]
O filósofo Giorgio agamben1,
no texto “notas sobre o gesto” (2008), pro-
põe que ele seja pensado como medialidade, isto é, mais do que o fim em si
é o meio – e o ser que se coloca nesse intervalo – que importa. para chegar
a essa proposição, agamben começa declarando que, no fim do século XiX,
“a burguesia ocidental já tinha perdido seus gestos” (aGaMBEn, 2008).
É uma burguesia que perdeu seu rumo, seu sentido2 3. ao mesmo tempo
que isso acontece, surge o cinema, e é por ele que a burguesia busca rea-
propriar-se daquilo que perdeu e registrar a sua perda. É o cinema como
tentativa de recuperação dos gestos, por meio de suas imagens, formadas
pelos fotogramas.
não por acaso, agamben também cita o trabalho de aby Warburg
(1899-1929)4, que reuniu em seu Atlas Mnemosyne imagens diversas a par-
tir de recortes e fotografias, agrupadas por tema. nesse agrupamento
de imagens, pode-se encontrar, segundo o filósofo, uma virtualidade do
movimento que se aproxima do cinema. interessa ao autor a potência
que as imagens permitem, e, para tanto, ele evoca o que Deleuze chama
de images-mouvement, ou imagens movimento. nos fragmentos que fazem a
imagem em movimento, há uma polaridade: de um lado, eles anulam o

1. É italiano, formado em Direito em 1. publicou diversos livros sobre filoso-


fia, tendo lecionado em diversas instituições. atualmente, leciona no insti-
tuto Universitário de arquitetura de Veneza.
2. a palestra proferida pela filósofa luisa Buarque de Holanda (2013), feita
numa mesa-redonda do projeto 100 gestos, no Rio de Janeiro, contribuiu
para as reflexões a seguir. a palestra surgiu de um convite da coreógrafa
Dani lins, que, reconhecendo a dificuldade do texto, pediu auxílio à filó-
sofa para destrinchá-lo. Disponível em: < www.youtube.com/watch?v=Vh-
miold4iD0>. acesso em: nov. 201.
3. luisa Buarque de Holanda (2013) menciona uma perda de sentido dentro
do século XiX, uma crise de valores na qual a Revolução industrial tem pa-
pel importante e o homem perde a referência do todo, da comunidade, de
um ‘projeto’ coletivo e, portanto, perde os seus gestos.
4. não só esse trabalho, mas, por conta da invenção da fotografia, vários são
os experimentos que buscam o registro do cotidiano e da vida privada no
século XiX. a fragmentação proposta pela fotografia e cinema também
inspira algumas pesquisas que tentam entender o caminhar e o andar por
meio da ideia de recomposição de fragmentos (HOlanDa, 2013).

[ 153 ]
Figura 5.1

Trabalho de Aby

Warburg, Atlas

Mnemosyne, Painel

45 (“Superlativos

da linguagem dos

gestos”) [1927-29]

(MNEMOSYNE, 2014).

gesto; de outro, conservam sua dynamis. nesse sentido, o autor diz que
há uma potência de ação (movimento) nessas imagens e, porque valoriza
esses instantes-potência, “o cinema reconduz as imagens para a pátria do
gesto” (aGaMBEn, 2008). O filósofo diz que o cinema, por ser centrado
no gesto e não na imagem, pertence essencialmente à ordem da ética e
da política, e não apenas à da estética (aGaMBEn, 2008).
Com essa reflexão, que parte do cinema e relaciona sua potência ao
gesto, agamben falará um pouco do gesto como medialidade, citando
Varrão5. O filósofo antigo inscreve o gesto na esfera da ação, mas denota
algumas diferenças de sentido. pode-se fazer algo e não agir – o poeta,
por exemplo, faz o drama, mas não age [agere] [recitar uma parte]. Já o ator
age o drama, embora não o faça. Um age e não faz, o outro faz, mas não
age. Um terceiro sentido complementa o pensamento de Varrão, aquele
utilizado pelo magistrado investido de poder supremo, na expressão res
gerere [cumprir algo, no sentido de apreendê-la em si, assumir-lhe a in-
teira responsabilidade]. O magistrado, nesse caso, nem age, nem faz, mas
gerit, ou seja, suporta, é responsável por alguma coisa (aGaMBEn, 2008).

5. Marco Terêncio Varrão (península itálica, 116 a.C.-27 a.C.), filósofo romano.

[ 154 ]
segundo agamben (2008), os gestos não estariam limitados nem
ao fazer, nem ao agir. Eles não seriam um meio para alcançar um fim,
nem um fim em si mesmo, sem meios. Estariam mais relacionados ao
gerit – indicando um apoio, um suporte, ressaltando os meios sem um
fim, ou seja, o que importa são esses instantes que fazem o meio, e
não necessariamente o fim, a finalidade. isso porque, assim como nos
fotogramas do cinema, em cada um dos quais há potência, existe, na
medialidade do gesto, o homem: “O gesto é a exibição de uma mediali-
dade, o tornar visível um meio como tal. Este faz aparecer o ser-num-
meio do homem e, desse modo, abre uma dimensão ética” (aGaMBEn,
2008). nesse sentido, para agamben, os gestos, mais do que a descrição
de uma ação, referem-se sobretudo ao ser que é na medialidade. “O
gesto é, neste sentido, a comunicação de uma comunicabilidade. Este
não tem propriamente nada a dizer, porque aquilo que mostra é o ser-
na-linguagem do homem como pura medialidade” (aGaMBEn, 2008).
Os gestos não são apenas uma ação – eles estão em um intervalo maior,
que está ligado ao ‘ser-num-meio’, ou seja, à vivência e às decisões
desse homem no meio. O caráter ético dos gestos, nesse sentido, se
desdobra em cada uma das ações do corpo, bem como em cada um dos
instantes desse corpo, criando relações com o que foi e o que será –
assim como os fotogramas de um filme. no entanto, agamben ressalta
que os gestos também se atrelam à dimensão política6: “a política é a
esfera dos puros meios, isto é, da absoluta e integral gestualidade dos
homens” (aGaMBEn, 2008), ou seja, os gestos incluem uma dimensão
ética (pessoal) e política (coletiva). a essência dos gestos consiste, para
o filósofo, em aceitar sua medialidade, valorizando o ser que aí é e está.
Como pensar esse ser-num-meio quando ele lida ou realiza algo?
parece possível dialogar com Martin Heidegger (2007), a partir dessa per-
gunta, quando ele medita a respeito da essência da técnica. no contexto
de um mundo de inovações tecnológicas, que se mostraram cada vez
mais aceleradas, sobretudo no século XX, Heidegger propõe que se reflita
sobre a técnica, não por meio de sua instrumentalização7, mas a partir
de sua essência.

6. a ética se insere na esfera individual, enquanto a política se insere na es-


fera coletiva.
7. Ou seja, não o faz partir do que consideraríamos um aparato tecnológico,
como armas, máquinas agrícolas etc.

[ 155 ]
Como ponto de partida, Heidegger afirma:

A essência de algo vale, segundo antiga doutrina, pelo que


algo é. Questionamos a técnica quando questionamos o que
ela é. Todos conhecem os dois enunciados que respondem à
nossa questão. Um diz: técnica é um meio para fins. O outro
diz: técnica é um fazer do homem. As duas determinações da
técnica estão correlacionadas. Pois estabelecer fins e para
isso arranjar e empregar os meios constitui um fazer humano.
O aprontamento e o emprego de instrumentos, aparelhos e
máquinas, o que é propria-mente8 aprontado e empregado
por elas e as necessidades e os fins a que servem, tudo isso
pertence ao ser da técnica. O todo destas instalações é a
técnica. Ela mesma é uma instalação; expressa em latim, um
instrumentum (HEIDEGGER, 2007).

a técnica revela-se um fazer do homem. O meio, para o filósofo, é


“algo pelo qual algo é efetuado e, assim, alcançado” (HEiDEGGER, 2007).
na técnica, tanto o meio quanto seu fim estão relacionados à causa. são
quatro as causas que envolvem a técnica: 1. Causa materialis: o material (a
prata, por exemplo); 2. Causa formalis: a forma, a figura que toma o ma-
terial (uma taça); 3. Causa finalis: o fim (o sacríficio para o qual a taça de
prata será requerida); 4. Causa efficiens (o forjador da prata que fará a taça)
(ibidem).
É interessante que, ao meditar sobre a técnica, estejam envolvidos,
por meio das causas, tanto o homem quanto os procedimentos e os ins-
trumentais9. para Heidegger, junto às causas atuam modos de ocasio-
nar10, que fazem surgir algo na pre-sença11:

8. Heidegger utiliza, no alemão, grafias que singularizam o significado do seu


pensamento. assim, na tradução para o português, os tradutores, em geral,
seguem essa lógica, como acontece neste capítulo com os termos ‘propria-
mente’, ‘pre-sença’, ‘desa-briga’, ‘apa-recer’.
9. Em geral, haveria uma distinção entre técnica (modos) e tecnologia
(meios), mas Heidegger ultrapassa essa diferenciação, sobrepondo um con-
ceito unificador, fenomenológico, que tem a ver com a sua visão de ser.
10. Ocasionar refere-se ao modo como se deixa as coisas vir à tona, aparecer.
11. Pre-sença é uma das traduções em português do termo Dasein. É também cha-
mado de ‘ser-aí’ e está relacionado à existência, ao homem e sua singularidade.

[ 156 ]
O produzir leva do ocultamento para o descobrimento. O trazer
à frente somente se dá na medida em que algo oculto chega
ao desocultamento. Este surgir repousa e vibra naquilo que
denominamos o desabrigar [...].
O que a essência da técnica tem a ver com o desabrigar?
Resposta: tudo. Pois no desabrigar se fundamenta todo
produzir. Este, porém, reúne em si os quatro modos de
ocasionar – a causalidade – e os perpassa dominando. A seu
âmbito pertencem fim e meio, pertence o instrumental. Este
vale como o traço fundamental da técnica. Questionemos
passo a passo o que a técnica representada como meio é em
sua autenticidade e então chegaremos ao desabrigar. Nele
repousa a possibilidade de todo aprontar que produz algo.
A técnica não é, portanto, meramente um meio. É um modo
de desabrigar. Se atentarmos para isso, abrir-se-á para nós
um âmbito totalmente diferente para a essência da técnica.
Trata-se do âmbito do desabrigamento, isto é, da verdade
(HEIDEGGER, 2007).

Heidegger (2007) ressalta duas características da técnica que reme-


tem à origem do grego techné: a primeira é que ela se refere tanto ao fazer
e poder manual quanto às artes superiores e belas-artes (“é algo poético”
[HEiDEGGER, 2007]). a outra é que o termo technikón (que designa aquilo
que pertence à techné) tem o mesmo significado que epistemè – ambos sig-
nificam ‘conhecer de modo amplo’.

Significam ter um bom conhecimento de algo, ter uma boa


compreensão de algo. O conhecer dá explicação e, enquanto
tal, é um desabrigar [...] Ela desa-briga o que não se produz
sozinho e ainda não está à frente e que, por isso, pode
apa-recer e ser notado, ora dessa, ora daquela maneira
(HEIDEGGER, 2007).

nesse sentido, a essência da técnica consiste no homem (pre-sen-


ça), que, por meio do conhecimento, põe-se a desabrigar, a desocultar
aquilo que deve ser produzido. percebe-se que a essência da técnica
pode ser transposta para diversos ofícios, e a instrumentalização e o
instrumental são consequências desse processo do desabrigar.

[ 157 ]
Mas é na técnica moderna – aquela que se origina no século XVii e
é, de certa forma, aplicação prática da ciência moderna – que Heidegger
propõe uma reflexão em que o ser encontra-se em uma posição mais vul-
nerável, que pode levá-lo à perda de seu ser. Embora a técnica moderna
também tenha como essência o desabrigar, essa essência leva à armação
[Ge-stell]. segundo José Erivaldo da ponte prado:

[...] na armação, assistimos ao extremo perigo do percurso


do mistério do ser humano, escondido entre a abertura para
e o fechamento em certos modos de ser ou em certas épocas
da história do mundo: essa é a sua questão, esse é o seu
problema que ela, a armação, põe a humanidade histórica. O
império da técnica (do pensamento tecnológico) sugere que
agora há mais chances de se pensar sua essência e, portanto,
o ser humano, porque tornando cada vez mais inútil, no
limite não restará senão render-nos à piedade do pensamento
(PRADO, 2011, p. 123).

Heidegger alerta para o perigo de a técnica moderna concentrar-


se apenas na subsistência, no instrumental, desviando e anulando seu
ser. isso porque a natureza, na técnica moderna, aparece ao homem
como algo a ser quantificado, calculado, dominado. Cabe ao homem
evitar colocar-se inteiramente no que se pode quantificar, calcular,
dominar e questionar(-se) a técnica moderna para encontrar outros
modos de ser.
a questão da técnica (tanto a antiga quanto a moderna), a partir de
Heidegger, coloca-se como algo relacionado a como o homem se põe
diante do mundo e, assim, da técnica. se a essência da técnica (antiga)
sugere, pelas quatro causas, uma aproximação tanto do homem quanto
do que é descoberto, é porque os gestos encontram-se em um intervalo
no qual a forma, a matéria, o significado da forma e quem a faz estão em
interação, de maneira que cada uma dessas causas provocará e influen-
ciará as demais.
ao mesmo tempo, questionar(-se) a técnica moderna pressupõe uma
consciência e uma atitude ética em todo o processo da técnica. De certa
forma, enquanto a técnica chama a atenção para as relações de intimidade
que levam ao conhecimento de algo, a técnica moderna propõe refletir o
ser, e o mundo em que se vive, diante desse conhecimento.

[ 158 ]
Tanto agamben quanto Heidegger põem em evidência o ser que se
coloca no mundo. nos gestos da escrita, esse ser manifesta-se de diversas
maneiras, mas em uma delas em especial: é quando devolve o conheci-
mento adquirido na forma do desenho.
O arquiteto Vilanova artigas (2004), em aula inaugural na faU/
Usp, em 1967, retoma o conceito original da palavra desenho no Renasci-
mento italiano para, a partir daí, falar de arte e técnica. nesse período,
o homem, diante do mundo que se expandia e propunha conhecimen-
to, examinava a natureza ao seu redor e elaborava planos para colo-
cá-la a seu favor – e fazia isso por meio do desenho. O arquiteto cita
leonardo da Vinci como um homem, tanto engenheiro quanto artista,
que se contrapõe ao dualismo, hoje presente nas relações entre arte e
técnica12. O desenho é mais que um simples traço gráfico:

No Renascimento o desenho ganha cidadania. E se de um


lado é risco, traçado, mediação para expressão de um plano
a realizar, linguagem de uma técnica construtiva, de outro
lado é desígnio, intenção, propósito, projeto humano no
sentido de proposta do espírito. Um espírito que cria objetos
novos e os introduz na vida real.
O “disegno” do Renascimento, donde se originou a palavra
para todas as outras línguas ligadas ao latim, como era
de se esperar, tem os dois conteúdos entrelaçados. Um
significado e uma semântica, dinâmicos, que agitam a
palavra pelo conflito que ela carrega consigo ao ser a
expressão de uma linguagem para a técnica e de uma
linguagem para a arte (ARTIGAS, 2004, p. 112).

no Renascimento, o desenho buscava transformar a realidade por


meio de projetos ou os projetos eram refletidos pelo/no desenho. artigas
afirma que, em português, há registros da palavra desenho utilizados com
os sentidos de ‘desígnio’ e ‘intenção’, como aquele atribuído a D. João iii
no século XVi: “para que haja forças bastantes no mar com que impedir
os desenhos do inimigo” (aRTiGas, 2004, p.112).
Embora muitas vezes a palavra desenho tenha um sentido limitado
à representação gráfica da linha, flávio Motta destaca a relação do de-

12. Técnica não no sentido heideggeriano, mas no sentido de método e ofício.

[ 159 ]
senho com a palavra desígnio – a capacidade de projetar e, portanto, de
transformar o mundo:

Na medida em que uma sociedade realiza suas condições


humanísticas de viver, então o desenho se manifesta mais
preciso e dinâmico em seu significado.

Vale dizer que através do desenho podemos identificar o projeto


social. E com ele encontraremos a linguagem adequada para
conduzir a emancipação humana (MOTTA, 1970).

O desenho tem o poder de transcender a realidade, assim como é


entendido na arquitetura:

O desenho é uma forma objetiva de transcendência da situação


imediata, que em arquitetura significa projeto. O arquiteto cria
um espaço não existente, transcende-se para aquele espaço-
tempo imaginário de forma a poder concretizá-lo em projeto
gráfico, para que seja construído. Aqui, o desenho tem caráter
de simulação (GOUVEIA, 2008, p. 8).

Diego Rayck (2009), ao analisar o desenho nas artes visuais e ar-


quitetura, afirma que ele expande seu conceito e sua apresentação nos
dias de hoje.

A partir destas reflexões podemos pensar que o desenho se


define, além de uma prática gráfica, como um pensamento
investigativo, especulativo, que transita entre as
necessidades e intenções do homem em relação ao mundo.
Considerando as práticas artísticas recentes, podemos
compreender melhor porque o desenho atualmente é mais
compreendido como um sistema de relações, de ideias e
métodos do que apenas o resultado gráfico de expressão,
de externalização destas instâncias, não se limitando
à condição de um meio preparatório ou documental das
obras artísticas, mas integrando-as enquanto elemento
conceitual que permeia estas obras, que as desenvolve e
constitui.

[ 160 ]
O desenho se manifesta não apenas no plano
bidimensional, nem apenas em experimentos espaciais
lineares, mas também em toda a realização na qual ele
participa como pensamento de forma efetiva, expandindo
uma definição desgastada de desenho condicionada por
hierarquizações e categorizações artísticas, técnicas e
científicas profundamente problematizadas em nosso
contexto contemporâneo (RAYCK, 2009).

O desenho – que vem se mostrando como desígnio, projeto, trans-


cendência, pensamento – é potência, no sentido da possibilidade de vir a
ser. O vir a ser, justamente, é energizado/potencializado pelo “ser-entre-
meio”, de agamben e “pre-sença”, de Heidegger, que possui singularida-
des: cada ser tem a possibilidade de um desenho único, porque é resulta-
do de uma vivência particular. Como ressalta anna paula silva Gouveia,
a vivência amplia as possibilidades de ação no mundo:

Assim, a questão da expansividade está ligada à capacidade do


indivíduo ver o mundo. Este ver está intimamente relacionado com
a vivência do indivíduo. Logo, toda visão de mundo carrega em si
uma relação do indivíduo com o meio, que é única e singular, o que
implica na singularidade de todo projeto e de todo desenho.
O projeto de arquitetura [e também o da escrita] é também
uma escolha frente às possibilidades, o que também implica
em renúncia. Quanto maior for a capacidade do indivíduo em
perceber e compreender sua vivência no mundo, maior será sua
liberdade de escolha entre as alternativas. O desenho, como forma
de pensamento e expressão da vivência do indivíduo auxilia seu
desenvolvimento perceptivo e, assim sendo, amplia a liberdade de
escolha (GOUVEIA, 1998, p. 8).

na busca por uma reflexão dos gestos da escrita que ressaltassem a


visão de mundo que se constrói pela vivência e se traduz em desenho/
projeto, escolhi entrevistar três pessoas de gerações diferentes. Duas delas
considero artífices da escrita; uma delas ainda é um artífice em formação.
Com essas entrevistas, espero complementar as reflexões iniciadas a res-
peito dos gestos da escrita como intervalo de espaço-tempo, cujas frontei-
ras são a intenção e a intenção materializada, mediadas pelo corpo.

[ 161 ]
antes, porém, uma observação. a visão de agamben parece propor
um espaço-tempo que se estende na vida da pessoa, formada, por sua
vez, de pequenos intervalos, nos quais se manifesta o ser no meio. Já a
de Heidegger, embora também fale do ser-no-mundo, abre perspectivas,
quando medita a respeito da técnica, para refletir um intervalo específi-
co – quando alguém faz alguma coisa. É interessante notar que ambos os
intervalos são importantes, complementando-se e formando-se um ao
outro, reciprocamente, como se pode perceber a seguir.

5.1 Liberato dos Reis Brito Júnior


formado em Design Gráfico na Universidade presbiteriana Macken-
zie, liberato dos Reis Brito Júnior, 28 anos, tem um percurso peculiar em
meio a tantos jovens que se formaram nessa universidade. Ex-pixador,
cartazista e designer – é interessante ver o quanto esses vários modos de
ser encontram-se em um artífice da escrita ainda em formação.

Desde criança, com 6 anos de idade, já aprendera antes das outras


crianças a escrever corretamente no caderno de caligrafia, me lem-
bro bem como era, tinha uma linha logo abaixo da linha de base
que delimitava até aonde se poderia ir com o traço que ultrapassa-
va o permitido. De tanto praticar os exercícios, me dei conta que eu
queria atingir o perfeccionismo. No primário, era responsável em
fazer as capas dos trabalhos, pois escrevia com letras cursivas.
Eu tinha facilidade em reproduzir os tipos de letra que via e admi-
rava, reproduzia nas capas dos cadernos as letras das pixações13
e graffitis que via nos muros no caminho para casa.
Na adolescência tive um contato maior com a pixação, por influ-
ência local, onde a maioria dos jovens de periferia já teve esse
contato. Já adulto, após ser detido pixando patrimônio público,
interrompi o contato com a pixação. Três anos depois decidi entrar
para a faculdade, onde tive mais contatos com a caligrafia e a
tipografia, na mesma época comecei a trabalhar como cartazista
de supermercado, onde adquiri uma ótima experiência prática
(BRITO, 2014, p. 2).

13. Pixação, grafado com “x”, é uma forma de diferenciar da grafia correta, com
“ch”. Enquanto pichação remete ao ato de gravar ou riscar um muro com uma
frase ou palavra, por exemplo, os pixadores “marcam” o muro, com suas le-
tras e símbolos, de caráter mais anguloso e estilizado (ver lassala, 2011).

[ 162 ]
figura 5.2
Alguns trabalhos

de Liberato

como cartazista

(BRITO, 2014).

[ 163 ]
Há, na fala de liberato, um reconhecimento do mundo da escrita na
sua vida, que, de maneira ampla, se apresenta sob as mais diversas for-
mas (o caderno de caligrafia de quando era criança, o desenho de capas
na vida estudantil, a reprodução de graffitis) até que decide frequentar
a faculdade de design. É uma consciência que se fez pela intimidade, na
prática de transpor as letras do alfabeto romano para as diversas circuns-
tâncias de sua vida. Como vendedor da marca de roupa Ellus, liberato
conta um caso interessante:

Eu trabalhava em duas áreas, era vendedor e estoquista. Mas


estoquista, não era para mexer no estoque. Era porque tinha
que ser organizado as peças por referência. E eram muitas
calças jeans! A gente organizava, e escrevia uma referência.
Bom, eu tinha a letra mais bonita, padrão, parecia que era tudo
impresso, tudo igual [rs] Então fazia só isso. Lembro até hoje:
uma plaquinha, uns 25x10cm.
Aí a supervisora ia lá e ficava me elogiando... Mas aumento [de
salário] que era bom, nada! [rs] (LIBERATO, 2013).

O trabalho de cartazista, segundo me conta, veio porque ele aprovei-


tou uma oportunidade. Vendo um anúncio no supermercado, candida-
tou-se à vaga. Embora não tivesse a experiência exigida, liberato insistiu
com seu empregador que poderia fazer bem as letras, pois sentia-se
seguro. fez o teste e foi contratado. Vale dizer que essa segurança é resul-
tado da construção de sua relação com a escrita desde criança até adulto.
Como cartazista, e já cursando Design Gráfico, liberato pôde apro-
veitar a experiência de aprendizado vivida na faculdade e aplicá-la a seu
trabalho:

Esses cartazes que já vêm impressos14... eu lembro que tinha


um que era assim: todo amarelo, tinha um campo vertical
aqui [à esquerda do cartaz], vermelho, escrito ‘oferta’, era
todo empilhado [verticalmente] em caixa baixa. Nossa, dava
vertigem só de olhar aquilo.
Aí eu sugeri para a Palombo Tecidos [a marca responsável]...

14. são cartazes com algumas informações já impressas, como os splashes (ofer-
tae imperdível), por exemplo. Quando esses cartazes estão em falta, é normal
os cartazistas fazerem todo o layout, incluindo os splashes.
[ 164 ]
figura 5.3

Liberato Brito simulando o ‘1’

da Helvetica.

figura 5.4
Alguns dos instrumentos

de Liberato para o

trabalho de cartazista

(REIS, 2014.

[ 165 ]
aí expliquei que não pode em caixa baixa, empilhado [...]
então, tomava todo um espaço vertical, tirei até uma foto,
um com a informação feita, nesse cartaz [do espaço vertical]
e outro, com a informação, [num modelo] que eu gostava...
e falei para eles fazerem diferente... e eles pararam de fazer
esse cartaz [rs]. Eles disseram: pô, legal, obrigado por essa
informação [rs] (BRITO, 2013).

seu olhar também amadurece, fazendo-se crítico com relação a al-


guns trabalhos que vê ao redor.

Observando alguns trabalhos de cartazistas, mesmo em pes-


soas que têm mais tempo e experiência, você pode perceber
alguns erros de tentativa de dar volume na letra, tentativa de
criar uma sombra, luminosidade... isso eu percebo bastante.
Coisa que, a gente que faz design, tem um treinamento a mais...
sombra e luz é uma coisa que eu domino, principalmente para a
letra, dar volume... (BRITO, 2014).

pergunto de onde ele acha que vem isso:

Da época que comecei a mexer com bomb15. Com bomb, você


mexe muito com sombra e luz, com a forma do preenchimento
da letra (BRITO, 2014)

Como já visto, nos dizeres de Heidegger, a essência da técnica ofere-


ce um modo de desocultamento, em que as causas colaboram para que se
desenvolva uma relação entre o homem e o que ele faz e produz. no caso
de liberato, enquanto cartazista, houve um aprendizado entre ele e os
materiais, que pode ser percebido quando ele demonstra com segurança
determinado traço e também quando descreve alguns tipos de papéis e
denota preferências, relacionando-os com a facilidade para escrever com
dois pincéis atômicos, que costumam ser usados. Esse aprendizado deu-
se tanto de forma autodidata, no uso cotidiano – “Eu trabalhava no su-
permercado sozinho. aprendia, de curioso, mexendo” (ibidem) – quanto
por meio do ensino informal, por um colega:

15. Grafites que trabalham exclusivamente com letras.

[ 166 ]
figura 5.5
Imagens do processo

de TCC de Liberato

(BRITO, 2014).

[ 167 ]
Ele [o colega] apareceu lá, porque ele trabalhava em outra loja,
da mesma rede [...]. Ele sempre passava lá, conversava, dava
uns toques [...].
Ele me ensinou até a parte teórica. Falou também de todos os
cartazistas que ele já conheceu, que antigamente era diferente,
que as ferramentas eram diferentes.... que não era nem assim
[mostra o pincel atômico recarregável], nem o kit [cartazista16].
Era praticamente tudo artesanal (ibidem).

O aprendizado também continua em experimentações que o próprio


liberato faz:

Eu costumo simular fontes [nos cartazes]. Tipo, testar uma Hel-


vetica, uma Futura17... uma fonte que eu já esteja acostumado
[...]. Eu não formo palavras: eu procuro uma que eu acho fácil,
que eu posso reproduzir, e uma que eu acho muito difícil. Por-
que é assim: com o pincel atômico, quando você vai fazer, chega
uma hora em que você faz a curva e você vai perder, né, aquele
traço ali. Então como eu vou fazer, com o pincel atômico? Então
tem coisas que são difíceis18. Tem coisas que eu preciso acertar
(BRITO, 2013).

Depois de atuar como cartazista, liberato passou a trabalhar em


uma agência de publicidade, onde ficou responsável por cuidar da
identidade visual. nessa agência, ele pôde desenvolver vários logos e
outro modo de ser. isso porque liberato acredita na geometria como
norteadora do processo. Citando a admiração pelo trabalho e pelo pen-
samento do designer brasileiro alexandre Wollner, um dos pioneiros
do Brasil nessa área, ele me mostra alguns exemplos de propostas de
logotipo: não se vê nenhuma influência vernacular ali.

16. Kit cartazista é o conjunto de ferramentas vendido ao cartazista freelancer.


17. fontes conhecidas no design gráfico.
18. liberato refere-se a simular desenhos que não são baseados em caligrafia,
mas sim na construção pela linha. nesse sentido, ele precisa descobrir um
modo de construir por meio do pincel atômico (que tem ponta chata).
Embora isso saia do repertório conhecido do cartazista, tal construção não
é desconhecida. algumas letras comuns no cartazismo, segundo liberato
(2013), exigem traço duplo para deixar as hastes mais largas, por exemplo.

[ 168 ]
Mas é exatamente na diversidade da escrita que ele está interessado,
e isso o instiga a buscar conhecimento. Quando pergunto se não acha
muito diferente o universo da pixação, daquele dos cartazes e do racio-
nalismo presente nas identidades visuais, ele responde:

Sim, é diferente. Mas eu sou uma pessoa muito curiosa. Na


tipografia... eu quero saber tudo a respeito da tipografia... se eu
aprendi essa parte vernacular, a parte da pixação quando era
adolescente, e eu posso mexer com essa parte geométrica, eu
quero entender melhor [...]
Eu estou estudando muito a forma das letras, a nomenclatura.
Eu quero falar direito: “Isto é a espora do G”, “Isto é o bojo”...
Acho bacana isso (BRITO, 2014).

Um último aspecto que vem da entrevista com o designer é a relação


entre o analógico e o digital. liberato tem experiência tanto com fazer
letras manuais quanto com os softwares de design gráfico. Quando per-
gunto qual seria o melhor modo de fazer, se direto no computador ou à
mão, ele responde:

Acho que um projeto, seja lá qual for, não dá pra fazer direto no
computador [...].
Eu vi um documentário do Alexandre Wollner, que disse isso,
mas na verdade eu sempre concordei com isso. Tudo que eu
faço, um desenho, uma forma de letra, eu costumo rabiscar.[...].
Porque quando você risca no papel, uma ideia que você quer
fazer, você pode fazer vários. Em menos de um minuto, você
pode por várias ideias ali, do que no computador. Por exemplo,
vai tentar fazer uma esfera, mais ou menos assim, com o
quadrado. Para fazer isso, você já rabiscou, seu raciocínio já
está acompanhando a letra. Você já tem aquele pique.
Principalmente... para letra, se você quer fazer uma fonte, e
você não vai para o papel, como você vai ter uma noção, se
uma está maior que a outra... se for fazer no computador,
vai demorar, sei lá, 5 minutos. 5 minutos, para mim, é uma
eternidade! Acho que essa ideia do manual é fundamental!
Eu não me vejo fazendo um projeto direto no computador!
(BRITO, 2014).

[ 169 ]
Chama a atenção na entrevista com liberato o fato de que ele é uma
pessoa que faz – um fazer como o que Heidegger menciona quando fala
da mão: ele tem uma consciência que vem da prática, do fazer. ao mes-
mo tempo, o mundo da escrita ao seu redor também lhe propõe refle-
xão e ação. Como trabalho de conclusão do curso, liberato desenvolveu
uma fonte digital, que partiu de uma inspiração vernacular e resultou
em uma fonte display: a Quinta. Em alguns acompanhamentos que fiz
com ele, percebi a seriedade com que ele se portou diante desse proje-
to, já demonstrando características do ser artífice. Conversávamos sobre
identidade, espaçamento e possibilidades; e ele mostrava uma evolução
crescente na forma de pensar e desenvolver a fonte.

5.2 gustavo lassala


Gustavo lassala, 37 anos, é formado em programação Visual pela
Universidade são Judas Tadeu, em são paulo. além de designer gráfico,
é professor na Universidade presbiteriana Mackenzie (UpM) e doutor
em arquitetura e Urbanismo na mesma instituição. É designer de tipos
e ilustrador, além de ter interesse pela fotografia e pela cultura de rua –
seu livro Pichação não é pixação (2011) é obra de referência na área. por meio
da sua fundição digital19, a BRtype, comercializa fontes digitais para di-
versos distribuidores estrangeiros, como o site Myfonts.
Conversei com o Gustavo na UpM, no intervalo entre suas aulas nos
cursos de graduação. além de já conhecer parte de seu trabalho e de ter
assistido a algumas de suas palestras20, eu havia feito uma pesquisa no
website Myfonts e em seu currículo lattes, que mostra sua formação e
produção (acadêmica e profissional).
Uma das primeiras perguntas que faço é como se interessou pela área
de design e, consequentemente, pela tipografia. Tendo iniciado seus es-
tudos em 1995, o designer me conta que escolheu o curso a partir de um
manual de carreira, e não conhecia ninguém que exercesse a profissão.
Enquanto cursava, a decisão mostrou-se acertada.O interesse pela tipo-
grafia foi surgindo ao longo dos anos como uma “conjunção de fatores”
(lassala, 2012). Veio do interesse em trabalhar com fontes digitais, de

19. fundição digital é a empresa responsável pela distribuição de fontes.


20. no Diatipo 2009, Gustavo fez uma palestra sobre pixação e o processo de
construção da sua fonte adrenalina; na edição de 2010, fez outra sobre a
expressão gráfica urbana. na UpM realiza, com alguma frequência, pales-
tras sobre tipografia e pixação.

[ 170 ]
uma curiosidade pelo letreiramento21, da participação em foruns de dis-
cussão na internet sobre design e tipografia, por volta de 1999. Cabe dizer
que, no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, formava-se no Brasil,
lentamente, uma cena tipográfica mais consistente, com a publicação de
livros de tipografia, como o de Cláudio Rocha (publicado em 2002) e de
mostras como o Tipografia Brasilis22, em são paulo. posteriormente, Gustavo
fez cursos de caligrafia com andréa Branco: “aí eu fui estudando caligrafia,
pegando gosto, aí não parei mais” (lassala, 2012).
Esse “pegar gosto” levou à criação de sua fundição digital, a BRtype,
e à busca de lançar no mercado pelo menos duas fontes, desde 200623,
totalizando cerca de 16 fontes24. É uma produção extensa; parte dela pode
ser vista a seguir (fig. 5.6) e demonstra sua variedade.
O que se percebe é que sua produção envolve especialmente fontes
Display (que apresentam identidade mais decorativa, experimental ou
não convencional) e fontes Dingbat (que apresentam desenhos, pictogra-
fias, símbolos etc.). fontes para texto que priorizem a leitura de maiores
quantidades de texto, por exemplo, não o estimulam (lassala, 2012).
“agora, para desenvolver uma fonte Display mais experimental, as pos-
sibilidades são inúmeras, daí me encanta mais. porque eu acho que fonte
para texto, para título, as que tem no mercado são muito boas” (lassa-
la, 2012).
O designer toca em um aspecto fundamental do processo de co-
nhecimento que envolve os gestos da escrita e que já foi comentado: a
motivação. Como ele mesmo diz: “Eu trabalho por estímulo, pelo que
estou com tesão no momento” (lassala, 2012). E de onde vem essa mo-
tivação? na entrevista, fica evidente que vem de um olhar apurado, que
se desdobra em vários modos de ser. nas ruas, andando por são paulo, ele
se interessa (ou é atraído) pela paisagem urbana e sua expressão gráfica;

21. Durante a graduação, o designer pensou em trabalhar como letrista ao ver


alguns anúncios, mas na época já estava estagiando.
22. Realizado na faap, entre os anos 2000 e 2002, foi uma das primeiras expo-
sições que buscaram refletir sobre a recente produção tipográfica no Brasil.
Teve organização e curadoria de Cecília Consolo e luciano Cardinalli.
23. Entre 2012 e 2014, devido ao doutorado e ao fato de ter se tornado pai, o
lançamento de fontes não cumpriu essa meta.
24. Considerando as presentes em seu currículo lattes e em um lançamento
mais recente, que não consta desse currículo no período de escrita deste
capítulo.

[ 171 ]
como professor, propõe trabalhos experimentais aos alunos; como api-
cultor, envolve-se no trabalho de criação das abelhas e extração do mel;
como residente em um sítio, no interior de são paulo, cuida da horta e
de vários trabalhos manuais; como pai e marido, tem seus deveres para
com a família; como pesquisador, envolve-se na construção do conheci-
mento em nível acadêmico, trazendo leituras que transformam seu olhar
e discurso.
O designer tem consciência de onde vêm as fontes e sua inspiração:

O Bruno Munari fala um pouco disso: é como se a coisa tivesse


pronta, ali. Na verdade, eu não invento a fonte: eu acho ela em
algum lugar, me aproprio disso. Talvez haja uma questão nesse
sentido. Ela está ali: eu descubro ela em algum momento e
começo a lapidar (LASSALA, 2012).

Essa descoberta desdobra-se em fontes que ele começa e termina – em


seu tempo livre – e em outras fontes que ainda se encontram em estado
embrionário ou intermediário. Cada fonte tem uma história. surgem fon-
tes inspiradas na infância de sua sobrinha (Jalo), na coleção de fotografias
de folhas (arbusto), na experimentação com um pincel chato (Brocha), na
identificação de letras presentes na pixação (adrenalina). as coisas se vol-
tam para o designer, e é possível lembrar da imaginação material de que
fala Bachelard – “a matéria atiça”, por isso mesmo, inspira e conduz a um
processo de apropriação da realidade, transformando-a em fonte25.
na época desta entrevista, Gustavo desenvolvia uma fonte basea-
da na letra manuscrita de uma pessoa em situação de rua, que morava
na Rua Maria antônia, em são paulo. O nome dado à fonte foi Deriva
(fig.5.7) – e refere-se à Teoria da Deriva26, que o designer estava estudan-
do para a pesquisa do doutorado. O morador, diz ele, estava “à deriva”.
segundo o designer, outra fonte, a Montada, a que vende mais li-
cenças de uso27, veio de uma tentativa de preservação de tipos móveis
de madeira, de famílias de tipos distintas, que estavam com cupim, in-

25 Ver o vídeo 04 no CD anexo.


26. ligada à arquitetura e Urbanismo, essa teoria procurar investigar as re-
lações entre as pessoas (dentro de sua realidade psíquica e emocional) e o
meio urbano.
26. Quando se compra uma fonte, considerada um software, na verdade se ad-
quire seu uso sob determinadas condições.

[ 172 ]
figura 5.6
Algumas das fontes de Gustavo

Lassala comercializadas pelo

website Myfonts (2014).

figura 5.7

Ilustração com uso da fonte

Deriva, de Gustavo Lassala

(2014).

[ 173 ]
figura 5.8
A fonte Montada, de

Gustavo Lassala, com

exemplos de seu conjunto

(LASSALA, 2014).

[ 174 ]
completos ou em mau estado de conservação e eram parte do acervo da
Escola do senai Theobaldo De nigris. Gustavo usava nanquim sobre eles
para guardar sua forma por meio da impressão. a ideia de uma fonte
veio só depois. Então, primeiro ele se preocupou em reunir um conjunto
de minúsculas e maiúsculas, depois completou o conjunto de caracteres
com o processo de desevolvimento tipográfico, que incluiu espaçamento
e kerning (espaçamento específico de pares de caracteres que necessitam
de um ajuste específico, como i e O).
Os gestos no design de tipos de lassala, de forma geral, envolvem
meios distintos para fazer, como lápis, caneta, máquinas fotográficas, sof-
twares de vetor etc. no caso da Montada, uma vez registrada a impressão
pelo nanquim, como se fosse um carimbo28, os originais foram escanea-
dos e levados para o software de edição de imagens photoshop, para tra-
tamento digital (limpeza e pequenos ajustes). só mais tarde é que foram
levados para o software fontlab, que é um editor de fontes. Mas esse é um
trabalho que exige cuidado, escolhas e adaptação, uma vez editados no
computador:

O processo de desenvolvimento de uma fonte digital não tem


como ser resolvido somente no papel [...]. Ele é sempre o caractere
isolado e o contato dele com os outros caracteres. Muitas vezes
quando você posiciona um caracter do lado do outro, às vezes
[isso] exige mudanças no desenho e o espaço entre eles também
exige mudanças e se tiver OTF29, vão ter outras mudanças. Você
sempre vai mexendo e adaptando, é um processo de escolhas.
Às vezes o processo de espaçamento ou kerning, você acaba
fazendo por programação, às vezes eu vou dar uma mexida
numa letra só para facilitar a etapa de programação. Então,
eu perco no design para ganhar na produção. Ou vice-versa.
Isso acaba sendo fascinante: você faz tudo, do começo ao fim.
(LASSALA, 2012).

28. segundo lassala (2012), isso lembra o exercício de carimbo dado em algu-
mas aulas na UpM.
29. OTf (Open Type features) são características especiais do formato de fonte
OpenType. Ele permite, por exemplo, que dois caracteres, quando digitados
na sequência, assumam a forma de uma ligatura (desenho específico para o
par), assim como o uso de caracteres alternativos, entre outros.

[ 175 ]
É interessante que o fato de se envolver no processo inteiro propõe
um corpo que se adapta/responde às diferentes situações que lhe são apre-
sentadas, tal como na interação que ocorre na essência da técnica heideg-
geriana. Os gestos, nesse caso, mostram grande diversidade, pois incluem
desde as mãos que imprimem os carimbos ou fotografam, que manipulam
os softwares diversos, que trazem a impressão das provas para pendurá-las
na parede. isso, em sintonia com o olhar, que articula o que se vê/faz em
função do objetivo final, é o que gera a fonte digital. aqui, no entanto, vem
à tona um detalhe importante: mesmo o olhar é gesto, pois é movimento
do corpo com intenção, faz parte do intervalo do gesto. lembrando o que
foi dito a respeito da visão central e da capacidade de ampliar (deforman-
do) o que se vê, dando à área escolhida mais nitidez e detalhe, percebe-se
que a seleção (a escolha) acontece já aí, quando se foca em algo.
O modo de ser do designer também influencia o nome de suas fon-
tes. procurando nomes mais exclusivos, que valorizem uma identidade
brasileira (sua fundição chama-se BRtype) e eventualmente possibilitem
algum trocadilho, Gustavo mostra seu lado irreverente: surgem nomes
como Boqueta, Brocha, Tremida, pimpa, flozô.
O fato de ter consciência de seus gestos e de que o mundo se abre ao
seu olhar faz com que ele liste, ao longo da entrevista, algumas das (pos-
síveis) próximas fontes: uma baseada em pipas, pois ele gosta delas; outra
inspirada no desenvolvimento do filho; e uma calcada na observação de pi-
xações específicas que margeiam parte da Vila prudente, bairro onde mora
sua mãe. Essa consciência é fruto de alguém que se põe no mundo, e devol-
ve, em gestos, a vivência e a leitura do mundo.

5.3 Rubens Matuck


Rubens Matuck é formado em arquitetura e Urbanismo pela facul-
dade de arquitetura e Urbanismo da Universidade de são paulo (faU
-Usp) (1977), artista plástico, escritor, professor, ilustrador e calígrafo.
nós nos encontramos duas vezes em 2010, em seu atelier no sumaré,
em são paulo, por intermédio da profa. Dra. luise Weiss. sua produção
estende-se a livros, manuscritos, artigos, logotipos, objetos de madeira,
lâminas (de diversas mídias), entre outros. O atelier é uma casa onde ele
guarda, além de parte de sua obra, centenas de livros (muitos deles liga-
dos à história da escrita) e ferramentas de todos os tipos.
na conversa com ele, ficam evidentes seu conhecimento e seu espí-
rito crítico diante do mundo, que se mostra na crítica à universidade, ao

[ 176 ]
uso da tipografia como instrumento de dominação ideológica e à histó-
ria da escrita, que desconsidera a contribuição de povos não brancos e
não europeus. acima de tudo, sobressai em sua fala a paixão pela escrita.
Essa paixão traduz-se em reflexões e trabalhos pessoais, que come-
çam a partir de seu percurso na faU-Usp. Da época de seu TCC nessa
faculdade até hoje, Matuck elabora o que chama de tese (não no sentido
convencional, como uma tese de doutorado), que vai se apresentando
por cadernos30, nos quais escreve à mão comentários e ilustra com tipos
diferentes de escrita caligrafada, reúne recortes de jornal e revista, im-
pressos, catálogos, fotografias31.
O caderno que começou na faU-Usp, em 1977, é todo escrito à mão,
por decisão sua: “a primeira coisa que eu resolvi é que o estudo seria
tudo em manuscrito” (MaTUCK, 2010), pois o manuscrito, segundo o ar-
tista, “tem a ideia da própria opinião pessoal” (ibidem). nele, percebe-se
que a tese envolve a história da escrita não apenas no Ocidente, mas no
mundo todo – e isso parece ser o início de algo que impregna o próprio
espírito e trabalho de Matuck:

O que me supreendeu muito é que isso [a história da tipografia


ocidental] é uma história muito pequenininha, é que a história
da escrita é maravilhosa... são milhões de pessoas de outras
culturas que vieram fazendo isso: assim que eu encaro o meu
trabalho (MATUCK, 2010).

a primeira imagem desse caderno é uma reprodução em negativo da-


queles registros encontrados na pré-história, como mostrado no Capítulo
1 desta tese. segundo Oscar d’ambrosio (MaTUCK, 2008):

As questões levantadas eram tão complexas que


ele apresentou ao seu orientador um caderno-

30. “Cadernos” no sentido amplo, que inclui também uma pasta com muitos
logotipos desenvolvidos por ele, além de manuscritos que deram origem a
livros infantis.
31. pude olhar três desses cadernos enquanto conversava com o artista, dos
quais apresento alguns frames ao longo do texto. imagens adicionais do li-
vro Duas partes: a imagem escrita, escrito por Matuck e lançado em 2008, ‘bem
como referências a um ensaio de Oscar D’ambrósio presentes na obra,
também são utilizadas nesta seção.

[ 177 ]
figura 5.9
À esquerda, primeira

página da tese de Rubens

Matuck. Embaixo,

caligrafia feita na tese,

com exemplos de escritas

diversas.

[na outra págia]

Figura 5.10 Imagens da

tese de Rubens Matuck


capturadas a partir da

filmagem da entrevista. Há

uma variedade de estilos,

ferramentas, materiais.

A tese também inclui

impressos e presentes.

[ 178 ]
[ 179 ]
livro em branco, com apenas uma página escrita,
na qual mostrava como o homem, com o artifício
aparentemente banal de colocar a mão sobre a pedra
e soprar a terra, deixava impressa uma imagem que
refletia seu estado cultural [...]. A discussão era a de
como uma imagem trabalhada, que tinha sentido em
certo momento, tornou-se o símbolo de uma jornada: a
da escrita.
O orientador não entendeu aquilo e deixou de lado
a pesquisa, sem perceber que a grande pergunta que
ali estava era: qual é a diferença entre a expressão
daquela mão e uma imagem e uma letra?

a tese segue com diversos exemplos dentro da história da escri-


ta, com reproduções feitas pelo próprio artista e anotações a respeito
das imagens, que versam sobre a história. assim, ideogramas chineses
convivem com letras do alfabeto cuneiforme, fenício, romano, incluin-
do uma representação de uma letra modular baseada em tipos digitais
dos primeiros computadores pessoais. a mistura da história da escrita
com o trabalho desenvolvido pelo artista também se dá quando apare-
cem elementos de sua vida profissional e artística, como, por exemplo,
caligrafias que foram desenvolvidas para empresas ou pessoas, além de
trabalhos pessoais.
O sentido do rinsho, o modo de treinamento, a corporificação e a
expressão dos clássicos da caligrafia japonesa, parece dialogar com o
artista32. se, por um lado, na pesquisa histórica Matuck abre-se ao co-
nhecimento, absorvendo-o pelo texto (que lê, registra e reflete) e pelas
imagens que desenha ou caligrafa, por outro, nos trabalhos pessoais,
ele devolve esse conhecimento de forma nova, transformada – uma
interpretação artística sua. Duas histórias, uma pessoal e outra mais
universal, se amalgamam nessas páginas.
assim é que aparecem, caligrafias suas que são feitas a partir de diver-
sos autores. O diálogo com a literatura, algo comum na caligrafia contem-
porânea, aparece em vários momentos, como neste trecho de Álvaro de
Campos (heterônimo de fernando pessoa):

32. Matuck tem uma relação profunda com o Oriente, especialmente com a
China, onde já esteve algumas vezes.

[ 180 ]
[...] Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem
lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa. [...] (CAMPOS, 2014).

Desse poema, Matuck interpreta caligraficamente os primeiros versos,


conforme se vê na fig.5.11. É na própria tese que Matuck (2010) comenta:

Quando um mestre da litetura da língua portuguesa reveste as


letras com tal sabedoria, elegância e poesia, fica interessante
criar imagens plásticas que são cúmplices deste jogo sedutor da
poesia e literatura. Além do mais, ler mestres portugueses e brasi-
leiros ou africanos falando e “escrevendo” na língua portuguesa
é uma experiência especial e [não legível]. Como pensei no caso
de Fernando Pessoa, é um grande prazer ler Guimarães Rosa.

Em certo trecho da tese, páginas dobradas se abrem e revelam um


poema de Emily Dickson (MaTUCK, 2010):

The Poets light but Lamps


Themselves — go out —
The Wicks they stimulate
If vital Light
Inhere as do the Suns —
Each Age a Lens
Disseminating their
Circumference

na tradução de José lira (2006):

O Poeta acende Lâmpadas -


Ele próprio apaga-se -
Os Pavios que inflama -
Se têm Essência

[ 181 ]
figura 5.11
Detalhe de caligrafia

baseada em poesia de

Álvaro de Campos.

O suporte da caligrafia é

feito pela junção de dois

papéis diferentes.

figura 5.12

Interpretação caligráfica

a partir de João

Guimarães Rosa.

[ 182 ]
Como os Astros agregam-se
Uma Lente em cada Época
Disseminando a sua
Circunferência -

À esquerda das páginas centrais desse bifólio (neste caso, um papel


de aquarela dobrado ao meio) (fig. 5.13), Matuck expõe o poema comple-
to, caligrafado, com a circunferência presente no texto; à direita, rein-
terpreta-o por meio das nuances da aquarela. Há dois modos de fazer
escrita nessa peça: o primeiro vem da caligrafia como modo direto de
escrita; já o segundo é construído pela contraforma das pinceladas de
aquarela, que, sobreposta de diversas cores, trabalha com transparências
e opacidades. neles há diferenças sobretudo no tempo de se fazer, pois o
segundo modo exige maior período de elaboração. na intimidade da téc-
nica, o desocultamento faz-se de forma dupla, inspirada pelo contraste:
de página (par e ímpar), cor (preto e colorido) e modo de fazer (direto e
construído). percebe-se que a fluidez da aquarela (o que lembra a fluidez
da água de Bachelard) dita os movimentos do pincel na caligrafia, en-
quanto a aquarela das letras talvez sugira águas tranquilas de um riacho
e seu reflexo em um dia ensolarado.

figura 5.14

Reprodução, a partir de

decalque, da caligrafia de

Wang Hsi Chi (DRISCOL e

TODA, 2007)

a tese é espaço para ele colocar também algumas dúvidas. Diante de


obras de Wang Hsi Chi, considerado um dos maiores calígrafos da histó-
ria da caligrafia chinesa (DRisCOl e TODa, 2007), Matuck (2010) registra:
“sempre me pergunto porque este calígrafo Wang Hsi Chi é tão prezado.
Entre tantas caligrafias que vi, nunca escolheria. no entanto, na China
ele é uma unanimidade”.

[ 183 ]
figura 5.13
Imagens (cortes)

do poema de Emily

Dickson interpretado

por meio da caligrafia

de Rubens Matuck.

[ 184 ]
ideogramas como montanha e força se misturam com caligrafias
envolvendo o alfabeto romano, com o mesmo estilo: a pincel, com tin-
ta sumi e na vertical. a caligrafia de Wang Hsi Chi é, de fato, bastante
reverenciada no Oriente, sobretudo no estilo kaisho, que é considerado
o estilo ‘blocado’. O kaisho se distancia de outros dois estilos, cursivo e
semi-cursivo, gyôsho e sôsho, que permitem um movimento mais fluido
do braço. Talvez por isso Matuck se identifique menos com a caligrafia
de Wang Hsi Chi: a do mestre chinês exige extremo rigor e precisão;
já a sua, é variada em estilos, suportes e meios de produção, diversifi-
cando-se em vários estilos de caligrafia e letreiramento, primando pela
liberdade expressiva na escrita. Quando pergunto, ao ver muitos tra-
balhos feitos com pincel, se seu meio é o pincel, ele responde: “Eu uso
tudo: lápis de cor, pena, pincel” (MaTUCK, 2010).
Durante a entrevista, percebo que a sensibilidade do artista apa-
rece em outros gestos que não os da escrita. Enquanto folheava a tese,
Matuck, ao ver que uma das colagens havia desgrudado, pega um tubo
de cola branca e prende-a novamente, delicadamente. são segundos si-
lenciosos que mostram o cuidado que ele tem com as coisas. Depois de
me oferecer um chá chinês, ele me pergunta se quero abiu, uma fruta
que não conheço. pergunto se parece uma nêspera; ele responde, com
um leve sorriso, “é como abiu”. Em seguida, complementa: “Cada fru-
ta tem uma linguagem, tem sua personalidade” (MaTUCK, 2010). Essa
simplicidade aparece quando lhe pergunto a respeito do trabalho das
‘caixinhas’, dentro das quais Matuck guarda letras que ele mesmo faz,
de madeira, em peças: “Eu sempre fiz caixa. Eu não sei explicar racio-
nalmente. Desde criança, tenho caixa. não sei se você reparou [aqui],
tudo tem caixa... a caixa é para conter a ideia” (MaTUCK, 2010).
Diante da diversidade de escritas em sua tese, Matuck (2010) en-
contra uma boa definição para ela, comparando-a a um diário. “É um
diário, que eu vou descobrindo, marcando. a tese, a lógica dela, é meu
diário. Meu caminho de descoberta e de pensamento.” Mas também é
um registro dos seus gestos: intenções, interesses, pesquisas, modos de
materializar a escrita, escritas que são materializadas, ferramentas. na
entrevista, uma de suas frases ressoa com Heidegger, pois alia reflexão
a trabalho manual: “Uma questão que eu adoro na letra é fazer na mão.
É com ela que eu aprendo tudo” (MaTUCK, 2010).

[ 185 ]
figura 5.15
Variedade de modos de fazer

letras, presente na tese de

Matuck (2010).

[ 186 ]
figura 5.16

Ítaca (dois cortes) na

interpretação gráfica de

Rubens Matuck, presente

em sua tese.

[ 187 ]
5.4 ítacas
pode-se destacar alguns pontos a partir do que foi apresentado
até aqui. as vivências de liberato Brito Reis Jr. vão se acumulando e
sobrepondo em seu corpo e em sua história, instigando-o a perseguir
mais. O fato de lidar (ou ter lidado) com coisas distintas, como pixação,
bomb, letreiramento e, recentemente, design de tipos, sugere isso – é
antes uma vontade de perseguir seus interesses. Talvez Marian Bantjes,
citada na introdução, reconhecesse em liberato uma pessoa que ‘segue
seu coração’.
Já Gustavo lassala vem desenvolvendo um olhar que é sustentado
por seu modo de ser no mundo, devido a seus interesses variados – de
abelhas a pixação –, unificando nas fontes que desenvolve as coisas que
‘acha’ e unindo seus interesses em fotografia, desenho e ilustração.
O aprendizado, marca do artífice, aparece em cada uma das páginas
da tese de Rubens Matuck, apresentando-se de diversas formas, seja por
fontes externas (jornais, livros etc.), seja por meio de seu trabalho. assim
como a tese registra um conjunto de gestos, pode-se vê-la como uma re-
presentação da medialidade de que fala agamben, sendo fruto de como
esse ser-num-meio se expõe perante o mundo (Matuck escreve a ‘sua’
história da escrita) e lida com a essência da técnica (por meio de seus
trabalhos e das escolhas feitas diante deles).
nos três, o fazer parece mais importante que o feito: percebe-se que
eles nunca se contentam com o que têm, estão sempre buscando mais,
um trabalho segue o outro – o que importa, antes, é o processo. Talvez
isso se aproxime do poema de Constantine p. Cavafy (1983-1933), Ítaca,
que faz referências ao herói Ulisses. nele o que importa não é o retorno
a Ítaca, mas sim o processo vivido na viagem, o entre, o estar-no-meio
dela, em que são tomadas as decisões, e a vida é plena de potência de ser.
Como o poeta recomenda na parte final da poesia:

Tem todo o tempo Ítaca na mente.


Estás predestinado a ali chegar
Mas não apresses a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada
e fundares na ilha velho enfim,
rico de quanto ganhaste no caminho,
sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
Uma bela viagem deu-te Ítaca.

[ 188 ]
Sem ela não te ponhas a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.
Ítaca não te iludiu, se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência,
E agora sabes o que significam Ítacas
(KAVÁFIS, 2006, p.146-7).

Os entrevistados parecem conscientes de que seus gestos se fazem


em processo, reconhecendo percursos e opções, cada qual a sua maneira,
dirigindo a suas Ítacas pessoais. Em suas viagens, cartazistas se misturam
a designers, apicultores a pixadores, artistas a estudiosos: o olhar perante
o mundo convida a uma atitude a cada instante, e isso se desdobra tanto
na vida como na técnica, por meio de seus gestos e das marcas que eles
deixam no mundo material.

[ 189 ]
[ 190 ]
A profundidade
dos gestos
da escrita
[considerações finais]

Esta tese começou como uma pesquisa a respeito dos processos criati-
vos. levou algum tempo (dois anos) até que eu tivesse consciência de que
aquilo que me instigava não era tanto o processo criativo, mas sim seu
gesto. assim, a pesquisa lentamente se encaminhou para os "movimen-
tos do corpo que expressam uma intenção", para usar a descrição dada
por Vilém flusser (2014). no entanto, ainda se detinha em aspectos mais
instrumentais do gesto e deixava pouco espaço para uma reflexão sobre
sua essência. O passo a ela aconteceu meses depois do exame de quali-
ficação, com a reflexão a respeito do que os membros da banca haviam
proposto1 e pela interpretação pessoal – e pelas escolhas – a partir do que
fora indicado. no percurso da tese como um todo, também me assumi
como um sujeito ativo: como praticante de caligrafia japonesa vi que era
possível utilizar essa experiência na pesquisa, aproximando conceitos do
Oriente no Ocidente; como designer, o incômodo com a objetividade no
design gráfico, que deixa pouco espaço à subjetividade dos seus criadores,
incentivou a busca por alternativas; o docente buscou na prática discente
a realidade dos gestos da escrita; o pesquisador se empenhou em ler textos,
que muitas vezes se revelavam-se obscuros, e pediam insistência.
para investigar os gestos da escrita, objetivo principal desta tese, foi necessá-
rio olhar o que se revelava a minha frente, numa contemplação ativa, tal qual o
sentido etimológico da palavra teoria, do grego théôria (que significa visão
ou contemplação [COMTE-spOnVillE, 2003, p.594]), sugere. leituras a partir
da fenomenologia propuseram um outro paradigma para os gestos, distinto da
visão positivista e cartesiana, no qual sujeito e objeto, sujeito e mundo, se com-
plementam e não existem isolados; a complexidade ofereceu a visão de sistema,
uma estrutura cujas partes estão em relação entre si e com o todo. assim, o gesto
foi definido como um intervalo de tempo-espaço, no qual o corpo é protago-
nista e cujas fronteiras são a intenção e a intenção materializada. por causa do

1 Contribuições valiosas, com sugestões de leitura e críticas, vieram da prof.


Dra. Daniela Hans Kutschat e da prof. Dra. luise Weiss.

[ 191 ]
protagonismo do corpo, foram considerados alguns norteadores da pesquisa
que aprofundassem a interação/relação do corpo com elementos presen-
tes no gesto – a escrita, a imaginação, a cognição, o aprendizado e os
modos e meios de ser e fazer –, descritas brevemente a seguir.
Uma pesquisa sobre a origem do alfabeto romano, a matéria-prima
principal dos gestos estudados, mostrou que a escrita tem um dinamismo
que vem por meio dos gestos. são eles que a criam e a transformam, den-
tro de vários contextos, como no uso cotidiano (para o registro de coisas
cotidianas) e religioso (como em livros litúrgicos, como o Livro de Kells),
e pelo uso de ferramentas e suportes, que variaram ao longo do tempo,
com suas propriedades peculiares. Vê-se também que a escrita, historica-
mente, faz parte de um processo histórico que envolveu diversos povos,
com empréstimos, apropriações e adaptações dos sinais gráficos até que
o alfabeto romano se constituísse tal como o conhecemos hoje, com sua
separação em caixa alta e baixa, e suas formas arquetípicas.
na materialização da escrita, os gestos precisam da faculdade da ima-
ginação. Gaston Bachelard mencionou a existência de dois tipos de ima-
ginação necessários à criação: a formal e a material. a primeira é apoiada
na razão e no que já é conhecido; a segunda é aquela que se inspira nos
quatro elementos naturais (terra, água, fogo e ar) para apoiar a criação.
É uma imaginação ativa, que acontece por meio do devaneio, um sonho
desperto, que suporta os gestos de formas variadas: podemos pensar no
devaneio de trabalhos individuais de um profissional, mas também na-
quele que sustenta a imaginação material de um período, como quando,
depois da invenção dos tipos, buscou-se descobrir a especificidade dos
mesmos no Renascimento.
O profissional que será responsável por descobrir e desenvolver es-
sas singularidades, é o artífice, que se caracteriza pela excelência em seu
ofício, bem como pelo diálogo entre o pensar e o fazer – que valoriza
o uso da imaginação formal e material. Mas como o artífice da escrita
aprende? percebeu-se, nesta tese, que seu corpo é moldado pelo apren-
dizado constante. Ele utiliza as capacidades cognitivas do homem para
aprimorar seu conhecimento, alia à prática uma atitude reflexiva. neste
sentido, a cognição pode ser pensada como um motor do gesto, pois ela
permite que o conhecimento seja adquirido, em vários níveis. a cognição
também permite sensibilidades e percepções distintas, que se comple-
mentarão no fazer a escrita. O homem explora as ferramentas e supor-
tes, pelo toque e pelo modo de segurá-los, descobrindo suas affordances,

[ 192 ]
aprendendo o que pode fazer com elas e como utilizá-las na materiali-
zação dos gestos da escrita. intimamente ligada às affordances está a per-
cepção háptica, que permite o manuseio das ferramentas, assim como os
controles espacial e motor, que incluem a força necessária para o uso das
ferramentas e a destreza para lidar com elas. nesse caso, quanto maior a
intimidade do artífice com esses elementos, mais ele conseguirá prever o
comportamento e as possibilidades de ação no suporte. Quando andréa
Branco faz a demostração da pena de lata, ela sabe como manejá-la a fim
de conseguir extrair as linhas características dessa ferramenta. seu corpo
aciona os sistemas mão-braço e visual, e a memória de práticas anterio-
res – o corpo deve responder ao que a imaginação suscita pelo devaneio.
Quando Ken Barber traça um letreiramento, em sua demonstração, sua
gestualidade, rápida e precisa, é reflexo de um corpo que já traçou e de-
senhou inúmeras vezes. ao mesmo tempo, é interessante que resida na
repetição a possibilidade da diferença – que vem de uma liberdade que
só é possível por meio da corporificação e da apropriação da escrita. a
aproximação dos gestos da escrita com o sistema laban, por meio do ‘Es-
forço’, propôs pensar qualitativamente os modos de como o corpo lida
com a escrita. se a cognição pode ser o motor do gesto, esse motor pode
ter variações na intensidade da força, na velocidade, na relação com o
espaço e o seu fluxo – isso poderá ser aprofundado em pesquisas futuras.
Por ser docente num curso de Design, busquei investigar como
acontece o aprendizado que será devolvido nos gestos da escrita em am-
bientes universitários. a presença de um tutor/professor mostrou-se im-
portante para promover o aprendizado e suscitar no aluno uma posição
crítica em relação a seu trabalho e ao de seus colegas, assim como a profa.
Dra. priscila farias fez nas aulas da faU-Usp. nas minhas experiências
com os workshops e a disciplina realizados na Universidade presbiteriana
Mackenzie, evidenciou-se a necessidade do aprendizado da escrita na
prática, complementando a teoria. Exercícios de fundamentos da prá-
tica (como no caso da caligrafia) e projetos que permitissem a expressão
das singularidades de cada um mostraram-se importantes e complemen-
tares. pelo depoimento dos alunos, viu-se que a caligrafia foi importante.
isso porque eles perceberam que, a cada letra feita no papel, uma letra
é apreendida em seu corpo: na intensidade da pegada, no fluxo do mo-
vimento do braço, no situar-se dentro de um espaço – eles vivenciaram
uma melhora significativa, pois o conhecimento foi se corporificando. Esse
conhecimento poderá ser devolvido na forma de outros trabalhos, como

[ 193 ]
acontece com artífices da escrita. Em um período no qual o cotidiano é
mediado por plataformas e aparelhos digitais, revelou-se surpreendente
a preferência da maioria pelo desenho analógico, sugerindo a valorização
do trabalho manual.Talvez uma das causas que justifique essa preferência
seja o aprendizado – e a satisfação – que vem desse tipo de trabalho, que
alia o pensar e o fazer.
Martin Heidegger, ao discutir a técnica, dedicou-se a refletir sobre
quando o ser ‘que é’ se propõe a fazer algo, mostrando que a essência da
técnica envolve tanto o homem quanto os procedimentos e os instru-
mentais. assim, no caso desta pesquisa, ligam-se ao ser que faz a escrita,
os modos e os meios de fazer, bem como o mundo em que ele habita. O
filósofo alertou para o perigo de se concentrar somente na instrumen-
talização da técnica, que conduz ao esquecimento do ser. isso seria um
desvio na vocação dos artífices da escrita, que não mais se colocariam
em seu ofício. O contato com designers de diferentes gerações e histórias
pessoais – liberato, Gustavo e Rubens – levou a uma reflexão de como
eles veem o mundo e interagem com ele, devolvendo isso na forma de
gestos, cada qual a sua maneira, especialmente por meio do desenho.
Entendido aqui como projeto, é um desenho que é resultado de sua pró-
pria vivência e escolha diante do mundo. percebeu-se que no desenho
se manifestam vários corpos: o corpo de um pixador, que vira cartazista
e, depois, designer; o corpo do designer, que ‘acha’ tipos a partir de sua
vivência; o corpo do artista-designer, que se expressa sob os mais diver-
sos meios. Todos eles salientam a riqueza da escrita e a expressão de
singularidades.
a noção intervalar do gesto foi reforçada pela leitura do texto “no-
tas sobre o gesto”, do filósofo Giorgio agamben, que fala da medialida-
de do gesto e de como ela, por apresentar a potência do ser enquanto
acontece, é mais importante que o fim desse gesto. assim como os foto-
gramas de um filme se relacionam um ao outro, ocorre o mesmo com os
gestos da escrita. O caráter processual não se manifesta apenas quando
os gestos estão inseridos no desenvolvimento de projetos em diversas
etapas, como se viu no acompanhamento da aula de design de tipos e na
disciplina ministrada. Cada novo gesto se relaciona com os gestos que já
foram e com os que serão. pode haver uma diversidade deles: do desenho,
da caligrafia, dos rabiscos, dos letreiramentos, da tipografia, dos projetos
fracasssados, dos projetos bem-sucedidos etc. Em cada um deles, o corpo
apresenta um modo de ser, projeções de si que se atualizam em cada uma

[ 194 ]
dessas manifestações: o corpo se transforma em outro. Mas, como num
paradoxo, é ainda o mesmo corpo, do mesmo ser. isso parece dialogar
com Michel foucault, quando diz:

Meu corpo, de fato, está sempre em outro lugar. Está ligado a


todos os outros lugares do mundo, e, para dizer a verdade, está
num outro lugar que é o além do mundo. É em referência ao
corpo que as coisas estão dispostas, é em relação ao corpo que
existe uma esquerda e uma direita, um atrás e um na frente,
um próximo e um distante. O corpo está no centro do mundo,
ali onde os caminhos e os espaços se cruzam, o corpo não está
em nenhuma parte: o coração do mundo é esse pequeno núcleo
utópico a partir do qual sonho, falo, me expresso, imagino,
percebo as coisas em seu lugar e também as nego pelo poder
indefinido das utopias que imagino. O meu corpo é como a
Cidade de Deus, não tem lugar, mas é de lá que se irradiam
todos os lugares possíveis, reais ou utópicos (FOUCAULT,
2010).

irradiar pela escrita os corpos de cada um que escreve parece ser a


chave para a produção de algo original e honesto. Esse irradiar é colo-
car-se nas letras, é construir a escrita pelos gestos de uma forma com-
pleta. Como se viu nesta tese, no entanto, esses gestos não são apenas
gestualidade, eles devem ser vistos em sua profundidade. Há uma frase
de paul Valéry (1961), bastante referenciada, mas nem sempre citada em
seu contexto: “O mais profundo no homem é a pele”. Ela está inserida
em um diálogo entre um médico (“dr.”) e um paciente (“eu”), ficcionado
no livro L’idée fixe.

Doutor (Dr). [...] sobre a superfície, é verdade que você disse ou


escreveu: O que há de mais profundo no homem, é a pele?
Eu. É verdade.
Dr. O que você entende por isso?
Eu. É simplicíssimo.. um dia, estava encafifado com as
palavras profundo e profundidade...
Dr. Que acabamos de usar com a maior tranquilidade... Escute:
eu constato que você manifesta uma sensibilidade exagerada
com relação às palavras. [...]

[ 195 ]
Eu. Então?... Me lembrei de procurar nos seus livros de
medicina o assunto do desenvolvimento do embrião. Um belo
dia, se faz [...] um sulco no envelope externo...
Dr. A ectoderme. Ela se forma...
Eu. Sim!... Toda nossa infelicidade vem de lá. Notocorda!
[Chorda dorsalis]! E aí tutano, cérebro, tudo que é necessário
para sentir, padecer, pensar... é profundo! Tudo vem de lá.
Dr. E então?
Eu. Bem, é a invenção da pele!... [...] Eu não duvido. É por isso
que completei minha fórmula: o que há de mais profundo no
homem é a pele [...] (VALERY, 1961, p. 48-51).

profundidade, profundo, pele. Valéry (1961) parece querer dizer que


há na superfície algo além do visível; sob a pele se encontra tudo o que
permite sentir, padecer, pensar, ou seja, de certa forma, é o próprio ser
que aí se encontra: a pele e o ser se unem, abandonando dicotomias
externo-interno, superfície-profundidade, dentro-fora. na leitura des-
ta tese, aquilo que se mostra visível na escrita revela o que há de mais
profundo nela mesma: o próprio ser que a escreveu, por meio dos seus
gestos – expressando várias realidades, como a sua história e tempo so-
cial, a subjetividade, a imaginação, a estrutura músculo-esquelética, os
desejos, as limitações, as capacidades cognitivas e as potencialidades. são
os gestos da escrita – gestos que o homem faz e gestos que fazem o ho-
mem – que, por meio de letras e palavras, ressaltam suas singularidades
e a diferença no mundo em que ele atua.

[ 196 ]
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Entrevistas e Depoimentos
BRiTO Jr., liberato dos Reis. liberato dos Reis Brito Jr.: depoimento.
Entrevistador: Rafael Tadashi Miyashiro. são paulo: 11/03/2013, formato
digital. 70’.
lassala, Gustavo. Gustavo lassala: depoimento. Entrevistador: Rafael
Tadashi Miyashiro. são paulo: 26/11/2012, formato digital. 48’.
lEVY, Dora. Dora levy: depoimento. Entrevistador: Rafael Tadashi
Miyashiro. são paulo: 24/05/2012, formato digital. 70’.
MaTUCK, Rubens. Rubens Matuck: depoimento. Entrevistador: Rafael
Tadashi Miyashiro. são paulo: 19/05/2010, formato digital. 55’.
OfiCina de criação de letras: conversa. participantes: lucas Matuda, Bárbara,
ana Júlia anastácio, Danilo, in-sun park, Valéria, natália. são paulo, nov.
2014. Conversa com os participantes da oficina. Cor, 39’, formato digital.
WORKsHOps de desenho de letras: depoimentos. Entrevistador: Rafael
Tadashi Miyashiro. participantes: João pedro Donnangelo Cordeiro, Otávio
augusto Ramos, Tainá azevedo, Thaís andelmi Godoy, Vivian de Oliveira
silva, nicolle inacia da Rocha Turbiani, entre outros. são paulo: dezembro,
2013. Cor, 61’, formato digital.

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