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O que podemos reflectir com a "História


de um Caracol que Descobriu a
Importância da Lentidão"

Sandra Dias
TORVC | Informal Writer | Lifelong Learner
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26 de maio de 2021
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Revisitar Luis Sepúlveda é uma imersão num mundo de palavras que vão além
do somatório de letras. Cada frase é plena de mensagens que conduzem, com
subtileza, à reflexão sobre a natureza humana, do mundo das expectativas e da
diáspora para as compreender e (em alguns momentos) cumprir.

O livro História de um Caracol que Descobriu a Importância da Lentidão surge da


pergunta pueril de uma criança que, tão simplesmente, queria ver respondida a
questão “muito difícil de responder – porque é tão lento o caracol?”. No início
da leitura, talvez inundada pelas mesmas dúvidas do escritor, questionei-me
também se seria assim tão fácil de responder, nomeadamente quando evoco
um mundo onde a lentidão – real ou simbólica – parece tão estranha e difícil de
aceitar, como se a única tradução de realização, de sucesso no processo e no
resultado, fosse ancorada numa velocidade supersónica. Também fui lenta a ler,
reflectir e escrever este breve artigo. Assimilei a mensagem e deixei-me
conduzir por uma lentidão deliberada e surpreendentemente agradável.

Lê-se, nas primeiras linhas deste livro, que “num prado próximo da tua casa ou
da minha vivia uma colónia de caracóis, convencidos que estavam no melhor
lugar possível”. Na sua vivência, a percepção da realidade envolvente traduzia o
que viam e como a sentiam, numa identidade individual uníssona, em que
“entre si chamavam-se simplesmente caracol, e isto às vezes criava algumas
confusões que eram ultrapassadas com lenta parcimónia”. A identidade
colectiva de aceitação – “a vida é assim e não há nada a fazer” – poderia parecer
apaziguadora para todos, mas “entre eles havia um caracol que, apesar de
aceitar uma vida lenta, muito lenta e entre sussurros, desejava conhecer os
motivos dessa lentidão”. Mas o questionamento não se limita à lentidão...
estende-se à identidade numa dimensão mais profunda, pois “também não
possuía um nome (tal como os restantes caracóis) e isso causava-lhe uma
grande preocupação”. Este questionamento não colheu o mesmo interesse na
comunidade, levando a uma jornada de descoberta individual do caracol que se
viria a tornar, de forma inesperada, uma viagem de salvação da comunidade de
caracóis. Algumas coisas que “acontecem por acaso” podem revelar-se,
inesperadamente, de valor acrescentado, antevendo que algumas viagens
empreendidas a nível individual podem configurar-se com impacto nos que nos
rodeiam – “tinhas razão. Aprendeste muito na tua viagem e terás de nos guiar
no êxodo.”

O que podemos reflectir com a leitura deste livro:

 Seremos nós, humanos, conhecidos pela prática da influência do


costume, dos hábitos enraizados, da rotina? | “Alguém me disse, não
lembro quem, que os humanos dedicam as suas vidas a repetir coisas,
movimentos e comportamentos a que eles chamam costumes – afirmou
um caracol velho.”
 Estaremos nós, humanos, preparados para aceitar e lidar com todo o tipo
de perguntas sem, à partida, categorizar de forma normativa quem as
faz? | “A tartaruga [...] contou-lhe que durante a sua permanência entre
os seres humanos tinha aprendido muitas coisas [...] que quando um
humano fazia perguntas incómodas do género ‘é preciso ir tão depressa’
ou ‘a sério que precisamos de tudo isso para sermos felizes’ era
apelidado de rebelde.”
 A auto-imagem e a autoconsciência são um domínio de maravilhosa
contradição, balizada pelo que percepcionamos e pelo que aceitamos. Se
a dada altura é importante sabermos quem somos, até que ponto esse
conhecimento nos define numa condição eterna de aceitarmos que
seremos assim até ao final da jornada, fechando a possibilidade da
transformação? | “Sabiam que eram lentos e silenciosos, muito lentos e
silenciosos, e sabiam também que essa lentidão e esse silêncio os
tornavam vulneráveis, muito mais vulneráveis do que os outros animais
capazes de se moverem com mais rapidez [...] para que a lentidão e o
silêncio não os assustassem, preferiam nem falar disso e aceitavam ser
como eram com uma lenta e silenciosa resignação.”
 As memórias do vivido podem, a dado momento, tornar-se uma pesada
herança na vivência do presente e na projecção do futuro, numa forma
de crenças limitadoras que cerceiam a nossa capacidade de ler o mundo
e agir. | “Eu conseguia voar e já não o faço [...] Todas essas árvores eram a
minha casa, voava de ramo em ramo, e a lembrança dessas árvores que
já não existem pesa-me tanto que deixei de poder voar.”
 Nem sempre a curiosidade pelo novo e pela descoberta é partilhada
pelas pessoas que nos rodeiam, que optam por se amparar no
argumento de que sempre foi assim e, como tal, assim ficará,
entronizados no poder do “costume”. | “Mas os argumentos do caracol
que desejava conhecer os motivos da lentidão não despertavam grande
interesse nos outros caracóis. Entre eles murmuravam que as coisas
estavam bem assim [...] e que não precisavam de mais nada para serem
felizes.”
 Sermos identificados como “diferentes” nem sempre nos torna populares
e pode tornar-se um dístico que, em algum momento, pode promover a
exclusão da companhia dos nossos pares. | “Vamos lá ver – respondeu-
lhe uma tarde um dos caracóis mais velhos, já bastante cansado das
perguntas dele [...] Já chega de perguntas insensatas e, se insistires,
expulsamos-te daqui.”
 Pensar "diferente" da norma colectiva é, nalguns momentos, um acto de
coragem e de perseverança, e a afirmação pessoal um processo
libertador. | “Pois vou-me embora e só regressarei quando souber
porque somos tão lentos e quando tiver um nome.”
 As respostas de quem está fora do nosso contexto – e tem a percepção
da realidade de outra forma – nem sempre são as mais óbvias e podem
causar-nos estranheza. | “– Quero saber porque sou tão lento – segredou
o caracol. – És lento por carregas um grande peso – revelou-lhe o
Mocho.”
 A voz interior, que às vezes desmotiva e coloca dúvidas, também pode
ser uma voz que apazigua a alma, cabendo-nos a sua gestão. | “Pensava
ele que talvez tivesse cometido um erro ao abandonar o grupo e a
segurança do calicanto, mas, ao mesmo tempo, alguma coisa, uma voz
que não era a sua, repetia-lhe que a lentidão devia ter algum motivo e
que ter um nome [...] devia ser formidável.”
 A ironia mordaz dos que desconhecem a realidade individual e o
menosprezo inerente serão uma forma de controlo social? | “– Ao que
parece não chegaste muito longe – sussurrou o um caracol velho. – Vens
com fome ou com mais perguntas? – ironizou outro.”
 Existem contextos em que aparentemente só as evidências permitem
validar a informação, ainda que esta seja benéfica para todos. | “Isto é
intolerável. És um rebelde e exijo-te que demonstres o que dizes; caso
contrário, cala-te e vai-te embora para sempre – ameaçou-o o mais velho
de todos caracóis.”
 O exercício da liderança traz responsabilidade e, não raras vezes, o medo
de que as acções possam gerar riscos para todos; por isso, digo muitas
vezes que ser líder é, acima de tudo, ter mais responsabilidade em
detrimento de ter mais poder. | “Nesse momento pensou que teria
preferido que não fizessem porque, nesse caso, só seria responsável pelo
seu próprio destino. Os caracóis confiavam nele e isso causou-lhe muito
medo [...].”
 A coragem pressupõe a aceitação do medo num processo individual de
gestão das emoções. | “[...] nessa altura lembrou-se de Memória, quando
ela lhe contara que um verdadeiro rebelde sente medo, mas supera-o, e
lentamente, muito lentamente, continuou a avançar sobre a erva.”
 Existem sempre, e com alguma bem-aventurança, diria eu, os que
estendem o seu propósito de vida além do convencional e que inspiram
pela sua forma genuína e humilde de estar. | “– Cumpriste a tua palavra.
Trouxeste-nos até ao País do Dente de Leão – disse um caracol
entusiasmado. – Não – começou Rebelde a dizer num murmúrio – Eu não
vos trouxe. Mas nesta viagem que começou quando quis ter um nome
descobri muitas coisas. Descobri a importância da lentidão e, agora, que
o País do Dente de Leão, à força de tanto o desejarmos, estava dentro de
nós próprios [...].”

Com destaque assinalável entre todas as reflexões que este livro pode
desocultar, sobressai a legitimidade do questionamento, o direito a percorrer os
caminhos insondáveis e nunca antes percorridos na busca interior das respostas,
a ousadia de aceitar o medo como parte do processo, a generosidade da
partilha. Na nossa velocidade, no nosso ritmo, na plena vivência do direito à
nossa identidade.

E tal como Rebelde, o caracol que descobriu o seu nome e o motivo da sua
lentidão, vamos precisar de muita resiliência, pois muitas serão as vozes que, em
sussurro, dirão que a nossa busca é sem sentido.

Lisboa, 26 de Maio de 2020

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