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Edward H. Strobel
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MIL UMA NOIT


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CONTOS ARABES

NOVA EDIÇÃO , ILLUSTRADA COM 131 GRAVURAS

E REVISTA CUIDADOSAMENTE
SOBRE OS MELHORES TEXTOS

TOMO TERCEIRO

LIVRARIA INTERNACIONAL
DE
ERNESTO CHARDRON , EDITOR
Porto e Braga

1881
7
AS

MIL E UMA NOITES

CONTOS ARABES
PORTO: 1881 TYPOGRAPHIA DE A. J. DA SILVA TEIXEIRA
62, Cancella Velha, 62
AS

MIL E UMA NOITES

CONTOS ARABES

NOVA EDIÇÃO, ILLUSTRADA COM 131 GRAVURAS

E REVISTA CUIDADOSAMENTE

SOBRE OS MELHORES TEXTOS

TOMO TERCEIRO

LIVRARIA INTERNACIONAL
DE
ERNESTO CHARDRON , EDITOR
Porto e Braga

1881
2.5
27246.2

1
2127-/
SET 24 1914

Library of
Edward H. Strobel
CONTOS ARABES

HISTORIA

DE NOUREDDIN E DA BELLA PERSIANA

Foi largo tempo a cidade de Balsora a capital de um


estado tributario dos califas . O sultão que o governava
10 tempo do califa Haroun Alraschid, chamava-se Zinebi,
é tanto um como o outro eram primos , filhos de dous
rmãos . Não julgára a proposito Zinebi confiar a adminis-
tração de seus estados a um só visir ; escolhera dous :
Khacan e Saouy.
Khacan era affavel, cortez e liberal, e gostava de
servir os que dependiam d'elle , sem prejudicar a justi-
ça , que lhe cumpria administrar. Tambem não havia nin-
guem na côrte de Balsora nem na cidade que o não res-
peitasse e não publicasse os louvores que elle merecia.
Saouy era de um caracter inteiramente opposto : es-
lava sempre melancolico recebia com mau modo toda a
gente, sem distincção de classe ou de condição . Com is-
lo, bem longe de fazer bom uso das suas grandes rique-
6 AS MIL E UMA NOITES

zas, era tão avarento que até recusava a si proprio as


cousas necessarias. Ninguem podia supportal-o e nunca
se ouvia dizer d'elle senão mal. O que o tornava mais
odioso era a grande aversão que tinha a Khacan, e que
tomando a mal todo o bem que fazia este digno minis-
tro, não cessava de fazer-lhe más ausencias para com o
rei.
Um dia, depois do conselho, descançava o sultão e
conversava com estes visires e outros membros do con-
selho. Cahiu a conversação sobre as mulheres escravas
que se compram, e que são tratadas entre nós quasi co-
mo as mulheres que matrimoniamos legitimamente . Al-
guns pretendiam que era bastante que uma escrava que
se comprava fosse bella e bem feita, para suavisar o
cansaço fastidioso que naturalmente nos causam as mu-
lheres a que nos ligamos ou por affecto ou por interes-
se de familia, que não são sempre dotadas de grande
belleza nem das outras perfeições do corpo .
Sustentavam os outros, e d'este parecer era Khacan ,
que a belleza e todas as boas qualidades do corpo não
eram as unicas cousas que se deviam procurar n'uma
escrava, porém que importava que fossem acompanha-
das de muita capacidade , de prudencia, de modestia, de
agrado, e, se possivel fosse , de muitos bellos conheci-
mentos . A razão que allegavam, é, diziam elles, que
não ha cousa que mais convenha ás pessoas que tem
grandes negocios para administrar, do que depois de ter
passado todo o dia n'uma occupação penosa, achar, re-
colhendo-se a casa, uma companheira, cuja conversação
seja igualmente util, agradavel e divertida . Finalmente ,
acrescentavam elles, não é differençar-se dos animaes
ter uma escrava para ver e contentar uma paixão que
nos é commum com elles.
Seguiu o sultão o partido dos ultimos e deu-o a co-
nhecer, ordenando a Khacan que lhe comprasse uma es-
crava que fosse perfeita em belleza, que tivesse todas
as prendas que acabavam de proferir, e sobretudo que
fosse muito instruida.
Saouy, cioso da honra que o sultão fazia a Khacan
e que fora de parecer contrario : « Senhor, replicou elle,
CONTOS ARABES 7

será mui difficultoso achar uma escrava tão completa co-


no requer vossa magestade. Se se achar, o que me cus-
ta a crer, custar-lhe-ha barata, se não lhe passar de dez
nil peças d'ouro. - Saouy, replicou o sultão , achaes na
apparencia que é mui avultada a quantia ; sel- o-ha tal-
vez para vós, porém para mim não o é » . Ao mesmo tem-
po ordenou ao seu thesoureiro-mór, que estava presente,
que mandasse as dez mil peças d'ouro a casa de Khacan.
Apenas Khacan chegou a sua casa mandou chamar
todos os corretores que se encarregavam da venda das
mulheres e das raparigas escravas , e lhes recommendou
que logo que achassem uma escrava tal como lh'a pin-
tava, que lhe dessem aviso. Os corretores , tanto para
servir o visir Khacan como para seu interesse particular,
the prometteram fazer todas as diligencias para descobri-
rem uma como desejava. Não se passava um dia sem
que lhe trouxessem alguma, porém achava sempre n'el-
as algum defeito .
Um dia, pela manhã cedo, quando Khacan ia ao pa-
lacio do rei, apresentou-se um corretor a toda a pressa
no instante de montar a cavallo, e lhe annunciou que um
mercador da Persia, chegado no dia antecedente muito
tarde , tinha uma escrava para vender, de uma belleza
completa, superior a todas as que podia ter visto . « Quan-
to ao seu espirito e aos seus conhecimentos, acrescentou
elle, o mercador affirma que ella não cede aos maiores
sabios do mundo ».
Khacan, alegre com esta noticia , que lhe dava espe-
ranças de ter occasião de contentar o sultão , lhe disse
que trouxessem a escrava quando voltasse do palacio, e
continuou o seu caminho .
Não deixou o corretor de se achar em casa do visir
á hora aprazada ; achou Khacan a escrava, bella e ainda
muito mais do que esperava, de sorte que desde então
lhe deu o nome de bella persiana. Como tivesse muita
capacidade e fosse muito sábia, conheceu logo, pela con-
versação que com ella teve, que debalde procuraria ou-
tra que a excedesse em alguma das prendas que o rei
exigia. Perguntou ao corretor o preço que pretendia o
mercador da Persia.
8 AS MIL E UMA NOITES

«
< Senhor, respondeu o corretor , é um homem que
tem uma só palavra : protesta que não póde dal-a por
menos de dez mil peças d'ouro . Jurou-me que sem con-
tar os seus cuidados, seus trabalhos e o tempo que ha
que a está creando, fez quasi a mesma despeza com el-
la, tanto em mestres para os exercicios do corpo e para
instruil-a e formar-lhe o espirito, como em vestuario e
sustento. Como a julgou digna de um sultão, logo depois
de a comprar na sua primeira infancia, não poupou cou-
sa alguma do que pudesse contribuir a eleval -a a esta
alta dignidade. Ella toca toda a casta de instrumentos ,
canta, dança, escreve melhor que os mais habeis n'esta
arte, e faz versos ; não ha livros, finalmente, que não te-
nha lido . Não se ouviu dizer que em tempo algum sou-
besse uma escrava tantas cousas como esta » .
O visir Khacan, que conhecia o merecimento da bel-
la persiana muito melhor que o corretor, que d'ella só
fallava pelo que dissera o mercador , não quiz demorar
a compra para outro dia . Mandou chamar o mercador
por um de seus officiaes, aonde indicou o corretor que
se acharia.
Chegado que foi o mercador da Persia : « Não é para
mim que quero comprar a vossa escrava, disse-lhe o vi-
sir Khacan, é para o sultão ; porém é preciso vender-
lh'a por um preço mais commodo . - Senhor, respondeu
o mercador , teria grande honra em dal-a de presente a
sua magestade, se fosse dado a um mercador como eu
fazer semelhantes presentes. Eu não peço precisamente
senão o dinheiro que desembolsei para educal-a e pôl -a
no estado em que se encontra. O que posso dizer é que
sua magestade fará uma compra de que ficará muito sa-
tisfeito ».
Não quiz o visir Khacan regatear ; mandou dar a dita
quantia ao mercador, e este antes de retirar-se : Senhor,
disse ao visir, visto que a escrava está destinada para o
sultão, consentireis que tenha a honra de dizer-vos que
está em extremo cançada da dilatada jornada que lhe fiz
fazer para trazel -a aqui. Ainda que seja uma belleza sem
igual, tornar-se-ha todavia ainda mais bella se a conser-
vardes en vossa casa sómente uns quinze dias e cuideis
CONTOS ARABES 9

em mandal-a tratar bem. Passado este tempo, quando a


apresentardes ao sultão , dar-vos-ha isto honra, far-lhe-
heis um grande serviço e d'isso me dareis algum dia os
agradecimentos . Bem estaes vendo que o sol lhe quei-
mou um pouco o rosto ; porém indo duas ou tres vezes
ao banho e mandando vestil-a do modo que melhor vos
parecer, mudará tanto, que a achareis muito mais bella » .
Tomou Khacan o conselho do mercador e resolveu
seguil-o. Deu à bella persiana um quarto á parte, perto
do de sua mulher, a quem pediu que a deixasse comer
1 com ella e que a tratasse como uma senhora que perten-
cia ao sultão . Pediu-lhe tambem que lhe mandasse fazer
alguns vestidos, os mais magnificos que fosse possivel e
] que lhe dissessem melhor. Antes de deixar a bella per-
siana : «A vossa felicidade , disse -lhe elle , não pode ser
maior que a que acabo de procurar-vos. Julgai vós mes-
ma : para o rei é que vos comprei ; espero que ficará
muito mais satisfeito de possuir-vos , do que eu o estou
): de ter-me desempenhado da commissão que me dera :
assim devo avisar- vos que tenho um filho, que não é fal-
to de capacidade, porém joven, brincalhão e ousado , e
ra que deveis retirar-vos bem d'elle quando se chegar a
i. vós » . Agradeceu-lhe a bella persiana a advertencia ; e ,
depois de ter-lhe protestado que d'ella se aproveitaria,
elle se retirou .
a Noureddin (assim se chamava o filho do visir Khacan)
1 entrava livremente no quarto de sua mãi , com quem cos-
8 tumava comer. Era bem apessoado, joven , agradavel e ou-
sado ; e como fosse muito espirituoso e se expressasse
com facilidade , tinha o dom particular de persuadir. Viu
a bella persiana ; e logo na primeira entrevista, ainda
que lhe constasse que seu pai a comprára para o sultão,
como lhe declarára, não se violentou todavia na minima
cousa para impedir-se de amal-a . Deixou-se levar dos
encantos que o arrebataram, e a conversação que com el-
la teve lhe fez tomar a resolução de servir-se de todos
os meios possiveis para roubal- a ao sultão .
Pela sua parte achou a bella persiana amabilissimo
a Noureddin . <
« Fez-me o visir uma grande honra, disse el-
la comsigo, de comprar-me para o sultão de Balsora : tar
10 AS MIL E UMA NOITES

me-hia por muito feliz, ainda que sómente fosse destina-


da para seu filho >» .
Foi Noureddin exactissimo em aproveitar-se da van-
tagem que tinha de vêr uma belleza que tanto amava,
de entreter-se, de rir e de brincar com ella. Nunca a lar-
gava sem sua mãi o obrigar . « Meu filho, dizia-lhe , não
é decente a um mancebo como vós ficar sempre no quar-
to das senhoras. Ide, recolhei-vos e applicai -vos a tornar-
vos digno de succeder um dia na dignidade de vosso
pai »>.
Como houvesse largo tempo que a bella persiana não
tinha ido ao banho em razão da dilatada viagem que aca-
bava de fazer, passados cinco ou seis dias depois de com-
prada, teve a mulher do visir Khacan o cuidado de man-
dar aquentar expressamente para ella o que o visir tinha
em sua casa. Mandou -a lá acompanhada de algumas de
suas escravas, ás quaes recommendou que a servissem
do mesmo modo como se fosse ella mesma em pessoa ,
e ao sahir do banho que lhe dessem um vestido mui ri-
co, que lhe tinha já mandado fazer. Tomou n'isto tanto
cuidado, que queria fazer d'isso um serviço ao grão -vi-
sir seu marido e dar-lhe a conhecer quanto se interessa-
va em tudo o que pudesse agradar-lhe .
Á sahida do banho, a bella persiana , mil vezes mais
bella do que tinha parecido a Khacan quando a comprá-
ra, veio mostrar- se à mulher d'este visir, que lhe cus-
tou a reconhecel -a.
Beijou-lhe a bella persiana a mão com graça e disse-
lhe : « Senhora, não sei como me achareis com o vesti-
do que tivestes o trabalho de mandar-me fazer : vossas
criadas , que me certificam que me vai tão bem que já
não me conhecem , são provavelmente lisonjeiras ; a vós
é que me reporto . Se todavia ellas dissessem a verdade,
seria a vós, senhora, a quem deveria toda a obrigação
da vantagem que me dá . - Filha, replicou a mulher do
visir com muita alegria, não deveis tomar por uma lison-
ja o que minhas criadas vos disseram : n'isso sou melhor
conhecedora do que ellas, e sem fallar do vosso vestido ,
que vos diz maravilhosamente bem, trazeis do banho uma
belleza tão superior á que tinheis d'antes, que quasi não
CONTOS ARABES
11
vos conheço . Se eu soubesse que o banho estava ainda
bom , iria tomar n'elle a minha parte. Estou já n'uma
idade que requer de hoje em diante que faça muitas ve-
zes uso d'elle . -Senhora , replicou a bella persiana , na-
da tenho que responder ás attenções que tendes para com-
migo, sem as ter merecido. Quanto ao banho está admi-
ravel ; e , se tendes intento de lá ir, não deveis perder
tempo . Podem vossas criadas dizer-vos o mesmo que eu
vos digo » .
A mulher do visir considerou que havia alguns dias
que não fora ao banho , e quiz aproveitar-se da oc-
casião . Deu-o a entender às suas criadas, que bem de-
pressa apromptaram todas as cousas necessarias. Reti-
rou-se a bella persiana ao seu quarto , e a mulher do vi-
sir , antes de ir ao banho, encarregou duas pequenas
de ficar com ella , com ordem de não deixar entrar Nou-
reddin , caso viesse.
Em quanto a mulher do visir Khacan estava no ba-
nho e a bella persiana estava sósinha, chegou Noured-
din ; e, como não achou sua mãi no quarto , foi ter ao
da bella persiana , onde encontrou duas pequenas escra-
vas na ante- camara . Perguntou - lhes onde estava sua mãi ,
ao que ellas responderam que estava no banho . « E a
bella persiana ? replicou Noureddin ; está tambem n'el-
le ? Já está de volta, replicaram as escravas , e está
no seu quarto ; mas temos ordem da senhora vossa mãi
de não vos deixar entrar >> .
O quarto da bella persiana era só fechado por um
reposteiro. Chegou -se Noureddin para entrar , e ambas
as escravas o quizeram embaraçar . Pegou n'ellas pelo
braço , deitou-as fóra da ante- camara e fechou -lhes a por-
ta. Correram ao banho dando grandes gritos , e choran-
do annunciaram a sua senhora que Noureddin entrára
no quarto da bella persiana contra a vontade d'ellas, e
que as deitára fóra .
A nova de tão grande atrevimento causou á boa se-
nhora uma mortificação das mais sensiveis . Interrompeu
seu banho e vestiu-se a toda a pressa . Porém antes que
acabasse e que chegasse ao quarto da bella persiana, ti-
nha d'elle sahido Noureddin , fnoido
&
12 AS MIL E UMA NOITES

Ficou em extremo pasmada a bella persiana de vêr


entrar a esposa do visir toda em choros, e como uma
mulher que estava fóra de si . « Senhora , disse-lhe ella ,
ousaria eu perguntar-vos d'onde procede estardes tão
afflicta ? Que desgraça vos aconteceu no banho para vos
obrigar a sahir tão cedo ? O quê ! clamou a mulher do
visir ; fazeis-me essa pergunta com o espirito socegado ,
depois de ter meu filho Noureddin entrado no vosso quar-
to e ter estado só comvosco ? Podia acontecer-nos des-
graça maior a elle e a mim? -Socegai, senhora, repli-
cou a bella persiana ; que desgraça póde haver para vós
e para Noureddin, no que elle fez ? -Como ! respondeu
a mulher do visir ; meu marido não vos disse que vos
comprára para o sultão ? E não vos tinha avisado que
não désseis entrada nem ouvidos a Noureddin ? - D'isso
não me esqueci, senhora , replicou ainda a bella persia-
na ; porém veio Noureddin dizer-me que o visir seu pai
mudára de parecer, e que em vez de reservar-me para
o sultão, como tinha resolvido, lhe fizera presente
da minha pessoa . Eu dei-lhe credito , senhora ; e, escra-
va como sou, acostumada ás leis da escravidão desde a
minha mais tenra mocidade, bem julgaes que não podia
nem devia oppôr-me à sua vontade. Direi mais , que o
fiz com tanto menos repugnancia, quanto concebi uma
forte inclinação para com elle , em razão da liberdade
que temos tido de vêr-nos . Perco sem pezar a esperança
de pertencer ao sultão, e reputar-me-hei felicissima pas-
sando toda a minha vida com Noureddin ».
Ouvido este discurso da bella persiana : « Oxalá , dis-
se a mulher do visir, que o que me dizeis fosse verda-
de ! alegrar-me-hia muito . Porém persuadi-vos que Nou-
reddin é um embusteiro ; enganou-vos, e não é possivel
que seu pai lhe fizesse o presente que vos disse . Quão
desgraçado é e quão desgraçada eu sou ! E quanto mais
desgraçado é seu pai pelas funestas consequencias que
deve recear, e que nós devemos recear com elle ! Não
serão meus choros nem meus rogos capazes de abran-
dal- o nem de alcançar o seu perdão . Seu pai o sacri-
ficará ao seu justo resentimento logo que for sabedor da
violencia que vos fez » . Proferidas estas palavras, chorou
CONTOS ARABES 13

amargamente ; e suas escravas, que não receavam menos


que ella pela vida de Noureddin , seguiram o seu exem-
plo.
Passados alguns instantes chegou o visir Khacan e fi-
cou em extremo pasmado vendo sua mulher e as escra-
vas em choros , e mui triste a bella persiana . Per-
guntou a razão, e sua mulher e as escravas augmenta-
ram seus gritos e suas lagrimas em vez de responder-
lhe. Assustou-o ainda mais o seu silencio ; e dirigindo-
se a sua mulher : « Quero absolutamente, disse-lhe, que
me declareis que motivo tendes para chorar, e que me
confesseis a verdade » .
A desconsolada senhora não pôde escusar-se de sa-
tisfazer seu marido : « Dai-me a vossa palavra, senhor,
que não tomareis a mal o que vou dizer-vos ; asseguro-
vos já que não tenho culpa alguma » . Sem esperar a sua
resposta : « Em quanto estava no banho com minhas cria-
das, proseguiu ella, veio vosso filho e aproveitou - se
d'este desgraçado tempo para persuadir a bella persiana
de que não querieis já dal-a ao rei e que d'ella lhe ti-
nheis feito presente Não vos digo o que lhe fez depois
de tamanha falsidade , deixo-vol-o julgar a vós mesmo.
Este o motivo da minha afflicção pelo que vos diz respei-
to e pelo que diz respeito a elle, a favor de quem não
tenho a confiança de implorar a vossa clemencia » .
Não é possivel expressar a mortificação do visir
Khacan quando ouviu a narração da insolencia de seu
filho Noureddin. « Oh ! clamou elle, batendo horrivelmen-
te no peito, mordendo as mãos e arrancando a barba ;
assim é, desgraçado filho , filho indigno de vêr a luz do
dia, que arrojas a teu pai no precipicio, do mais alto da
sua felicidade ; que o perdes e que te perdes a ti mesmo
com elle ! Não se contentará o sultão com o teu sangue,
nem com o meu, para vingar-se d'esta offensa que ata-
ca a sua propria pessoa ».
Quiz sua mulher procurar consolal- o : « Não vos affli-
jaes, disse-lhe ella, eu arranjarei facilmente as dez mil
peças d'ouro , vendendo uma parte das minhas joias ; com
ellas comprareis outra escrava que será mais bella e mais
digna do sultão . --- O quê ! parece-vos, replicou o visir ,
14 AS MIL E UMA NOITES

que seja capaz de affligir-me tanto pela perda de dez


mil peças d'ouro ? Não se trata d'essa perda nem da per-
da de todos os meus bens, á qual seria tambem pouco
sensivel . Trata-se da de minha honra, que é para mim
mais preciosa que todos os bens do mundo . Parece-
me todavia, senhor, replicou a senhora , que o que pó-
de reparar-se com dinheiro não é de tamanha conse-
quencia. O quê ! replicou o visir ; não sabeis que Saouy
é meu inimigo capital ? Logo que souber d'este caso ,
irá ter com o sultão para desacreditar- me. « Vossa ma-
gestade, dir-lhe- ha, não falla senão da affeição e do zelo
de Khacan pelo seu serviço ; acaba todavia de manifes-
tar quão pouco digno é de tão grande consideração . Re-
cebeu dez mil peças d'ouro para comprar-lhe uma es-
crava. Na verdade desempenhou bem uma commissão tão
honrosa, e jamais pessoa alguma viu tão bella escrava ;
porém em vez de trazel- a a vossa magestade , julgou
mais a proposito fazer d'ella um presente a seu filho :
« Filho , disse - lhe , tomai esta escrava, é para vós ; é
mais bem empregada em vós que no sultão » . Seu filho ,
continuará elle com a sua malicia ordinaria, aceitou-a e
diverte-se todos os dias com ella . O caso passou-se co-
mo tenho a honra de asseveral- o a vossa magestade, e
vossa magestade póde informar- se d'elle ». Não vêdes ,
acrescentou o visir, que á vista de um tal discurso po-
dem os officiaes do sultão vir forçar a minha casa a to-
da a pressa e levar a escrava ? A isto acrescento todas
as outras desgraças inevitaveis que se seguirão . - Se-
nhor, respondeu a esposa a este discurso do visir seu
marido ; confesso que a maldade de Saouy é das maio-
res, e que é capaz de dar á cousa a interpretação mali-
gna que acabaes de dizer, se tivesse d'ella algum conhe-
cimento ; mas póde elle ou qualquer pessoa saber o que
se passa no interior de vossa casa ? Ainda que se suspei-
tasse, e que o sultão vos fallasse d'isso, não podeis dizer
que depois de ter examinado a escrava não a achastes tão
digna de sua magestade como vos parecera logo ? que o
mercador vos enganou ? que na realidade é uma belleza
incomparavel mas que lhe falta muito para ser como vol-a
tinham gabado ? Crêr-vos-ha o sultão sob palavra , e terá
CONTOS ARABES 15

Saouy a confusão de ser tão mal succedido no seu perni-


cioso intento, como das outras vezes, que debalde empre-
hendeu arruinar-vos . Socegai pois ; e se quereis acredi-
tar-me mandai chamar os corretores, declarai-lhes que
não estaes contente com a bella persiana, e encarregai- os
de procurar-vos outra escrava .
Como pareceu razoavel ao visir Khacan este conse-
lho, socegou alguma cousa o espirito e tomou o partido
de seguil- o ; porém nada diminuiu a sua colera contra
seu filho Noureddin .
Não appareceu Noureddin em todo o dia nem se atre-
veu a procurar asylo em casa de algum dos mancebos
de sua idade, que frequentava ordinariamente, receando
que seu pai o mandasse buscar . Foi para fóra da cidade
e refugiou-se n'uma quinta aonde nunca tinha ido, e on-
de não era conhecido . Não voltou senão muito tarde,
quando sabia com certeza que seu pai estava já recolhi-
do, e fez-se abrir a porta pelos criados de sua mãi , que
o introduziram sem ruido . Sahiu no dia seguinte antes
que seu pai se levantasse, e foi constrangido a tomar as
mesmas precauções um mez inteiro, com um desgosto
mui sensivel . Com effeito, as criadas não o animavam ;
declaravam-lhe francamente que o visir seu pai persis-
tia na mesma cólera, e protestavam- lhe que o mataria
se apparecesse na sua presença .
A mulher d'este ministro sabia por via de seus cria-
dos que Noureddin voltava todos os dias a casa ; porém
não ousava rogar a seu marido que lhe perdoasse . Resol-
veu-se finalmente : « Senhor, não ousei até agora tomar a
liberdade de fallar-vos de vosso filho . Supplico - vos que me
permittaes que vos pergunte o que pretendeis fazer d'el-
le. Um filho não pode ser mais culpado para com um
pai do que Noureddin para comvosco . Privou-vos da gran-
de honra e da satisfação de apresentar ao rei uma escra-
va tão completa como a bella persiana, eu o confesso ;
mas por fim, qual é a vossa intenção ? quereis perdel-o
absolutamente ? em vez de um mal de que não deveis já
lembrar-vos, succeder-vos-hia outro muito maior, que
não vos passa talvez pela imaginação . Não receaes que
o mundo, que é malicioso , averiguando
16 AS MIL E UMA NOITES

tá vosso filho ausente, não dê na verdadeira causa que


quereis guardar tão occulta ? Se isso acontecesse, terieis
justamente cahido na desgraça que tendes tão grande
interesse em evitar.- Senhora, replicou o visir, o que
dizeis é mui razoavel, porém não posso resolver-me a
perdoar a Noureddin sem lhe dar o castigo que merece .
Será sufficientemente castigado , replicou a senhora,
quando tiverdes feito o que me vem á lembrança. Entra
aqui todas as noites vosso filho, depois de vos terdes re-
colhido, dorme, e sahe antes que vos levanteis . Esperai -o
esta noite até à sua chegada, e fingi querel-o matar ; vi-
rei em seu soccorro ; e declarando-lhe que lhe concedeis
a vida a rogos meus, o obrigareis a receber a bella per-
siana com a condição que quizerdes. Ama-a, e consta-me
que a bella persiana não desgosta d'elle ».
Quiz de boa vontade Khacan seguir este conselho :
assim, antes que se désse entrada a Noureddin, quando
chegou á hora costumada, metteu-se atraz da porta; e ,
apenas lh'a abriram , lançou-se a elle e o pôz debaixo dos
pés . Voltou Noureddin a cabeça e reconheceu seu pai
com o punhal na mão, prestes a tirar-lhe a vida.
N'este instante sobreveio a mãi de Noureddin, e se-
gurando o visir pelo braço : « Que é isso, senhor ? cla-
mou ella . — Deixai- me , replicou o visir, matar este filho
indigno ! - Ah , senhor ! respondeu a mãi, matai -me an-
tes a mim ; nunca consentirei que ensanguenteis as vos-
sas mãos no vosso proprio sangue ! » Aproveitou - se Nou-
reddin d'este instante : « Meu pai , clamou elle com as
lagrimas nos olhos , imploro a vossa clemencia e miseri-
cordia ; concedei -me o perdão que vos peço em nome
d'aquelle de quem o esperaes, quando apparecermos to-
dos perante elle » .
Deixou-se Khacan arrancar da mão o punhal ; e , ape-
nas largou Noureddin , logo este se lhe lançou aos pés
e lh'os beijou, para mostrar o quanto se arrependia de
o ter offendido . « Noureddin, disse-lhe , dai os agradeci-
mentos a vossa mãi, eu vos perdôo por seu respeito .
Quero tambem dar- vos a bella persiana, porém com a
condição de que me promettereis com juramento de a não
tomar como escrava, mas sim como vossa mulher ; que-
CONTOS ARABES 17

ro dizer, que não a vendereis e que nunca a repudiareis .


Como é cordata e tem capacidade e sabe comportar-se
muito melhor que vós, estou persuadido que reprimirá
esses arrebatamentos da mocidade, que são capazes de
perder-vos » .
Não ousava Noureddin esperar de ser tratado com
tanta indulgencia ; agradeceu a seu pai com todo o re-
conhecimento imaginavel, e com todas as véras do cora-
ção lhe fez o juramento que desejava. Ficaram satisfei-
tos um do outro, a bella persiana e elle , e ficou o visir
mui satisfeito da sua boa união.
Não esperava o visir Khacan que o sultão lhe fallasse
da commissão de que o encarregára ; tinha.grande cui-
dado de entretel-o a miude com isto e de dar-lhe a co-
nhecer as difficuldades que achava em desempenhar se
d'ella á satisfação de sua magestade : soube finalmente
leval- o com tanta destreza que insensivelmente não se
lembrou mais d'ella . Chegou todavia aos ouvidos de
Saouy alguma cousa do que se passára ; porém Khacan
estava tão seguro no valimento do sultão, que não ou-
sou aventurar - se a fallar n'isso .
Havia já mais d'um anno que este negocio tão deli-
cado se passára, mais felizmente do que esperava este
ministro ao principio , quando foi ao banho e um nego-
cio urgente o obrigou a sahir d'elle ainda quente ; o ar,
que era um pouco frio , o regelou e lhe causou um de-
Buxo no peito com febre violenta, que o constrangeram
a ficar de cama . Peorou a molestia ; e, como percebeu
que não estava longe do ultimo instante da sua vida, di-
rigiu esta falla a Noureddin , que não o desamparava :
Filho, disse-lhe, não sei se fiz o bom uso que devia fa-
zer das grandes riquezas que Deus me deu ; bem vêdes
que de nada me servem para me livrar da morte . A uni-
ca cousa que vos peço, morrendo, é que vos lembreis da
promessa que me fizestes ácerca da bella persiana. Mor-
ro contente com a confiança de que não vos esquecereis
d'ella » .
Foram estas palavras as ultimas que proferiu o visir
Khacan. Expirou passados poucos instantes e deixou um
luto indizivel. na sua casa, na côrte e na cidade . O sul-
TOMO III .
18 AS MIL E UMA NOITES

tão sentiu a sua morte como a d'um ministro sabio , ze-


loso e fiel , e toda a cidade o chorou como seu protector
e bemfeitor. Nunca se viram exequias mais honrosas em
Balsora . Os visires , os emires e geralmente todos os
grandes da côrte levaram á competencia o seu feretro
ao hombros, uns após outros, até ao lugar da sua se-
pultura ; e os mais ricos , assim como os mais pobres da
cidade, o acompanharam em chôros .
Deu Noureddin todas as demonstrações da grande af-
flicção que devia causar-lhe a perda que acabava de ex-
perimentar, e ficou largo tempo sem vér pessoa alguma.
Um dia, finalmente, permittiu que deixassem entrar um
de seus amigos intimos . Procurou este amigo consolal - o ,
e como o viu disposto a dar-lhe ouvidos, disse -lhe que
depois de ter prestado á memoria de seu pai todas as
honras que lhe devia, e satisfeito plenamente a tudo o
que requeria a decencia, era tempo que apparecesse no
mundo, que visse seus amigos, e que se conservasse na
classe que seu nascimento e seu merito lhe tinham ad-
quirido. « Peccariamos , acrescentou elle, contra as leis da
natureza, e tambem contra as civis, se quando nossos
paes morrem não lhes prestassemos os deveres que a
ternura exige de nós, e olhar-nos-hiam como insensi-
veis porém logo que os temos preenchido e que não
podem arguir- nos de modo algum , somos obrigados a
comportar-nos como d'antes, e a viver no mundo do mo-
do que n'elle se vive . Enxugai pois vossas lagrimas , e
revesti-vos d'esse ar jovial, que sempre inspirou alegria
em toda a parte onde vos achastes » .
O conselho d'este amigo era bastante razoavel ; e teria
Noureddin evitado todas as desgraças que lhe acontece-
ram , se o tivesse seguido com toda a regularidade que
requeria. Deixou -se persuadir sem trabalho ; banqueteou
até o seu amigo ; mas quando este quiz despedir- se rogou-
The Noureddin que voltasse no dia seguinte e que trou-
xesse comsigo tres ou quatro de seus amigos communs.
Formou insensivelmente uma sociedade de dez rapazes
quasi da sua idade, e passava o tempo com elles em
banquetes e divertimentos continuos . Não se passava dia
que os não despedisse com algum presente .
CONTOS ARABES 19

Algumas vezes, para agradar mais a seus amigos,


mandava Noureddin chamar a bella persiana ; ella tinha
a complacencia de obedecer-lhe, mas não approvava es-
ta profusão excessiva . Expunha-lhe o seu parecer com
liberdade : ༥ Não duvido, dizia-lhe, que o visir vosso pai
vos deixasse grandes riquezas, porém por maiores que
possam ser não leveis a mal que uma escrava vos repre-
sente que bem depressa vereis o fim d'ellas , se conti-
nuaes a levar esta vida . Podemos algumas vezes rega-
lar nossos amigos e divertirmo-nos com elles , mas não
diariamente , pois é adiantar- se pelo grande caminho da
miseria. Por honra vossa obrarieis muito melhor em se-
guir as pisadas do defunto vosso pai , e pôr-vos em es-
tado de chegar aos cargos que tanta gloria lhe adquiri-
ram » .
Ouviu Noureddin a bella persiana rindo-se : « Minha
bella, replicou elle, deixemos ahi esse discurso e falle-
mos só em regosijar-nos . O defunto meu pai conservou-
me sempre n'um grande constrangimento : alegro -me de
gozar da liberdade, pela qual tanto suspirei antes da
sua morte. Terei sempre tempo de limitar-me à vida re-
gular de que me fallaes ; um homem da minha idade.
deve aproveitar o tempo ocioso para desfrutar os praze-
res da mocidade » .
O que contribuiu ainda muito a desordenar os nego-
cios de Noureddin , foi o não querer ouvir fallar de ajus-
tar contas com o seu mordomo . Não lhe dava ouvidos
quando se apresentava com o seu livro de contas : <<« Vai-
te, vai-te , dizia- lhe, fio-me em ti : tem só cuidado que
me apresentem sempre boa mesa . - Sois o dono da ca-
sa, senhor, replicava o mordomo : permittir-me - heis toda-
via que vos faça lembrar do proverbio, que diz : Quem
gasta mais do que tem, mostra que siso não tem ; e por
fim acha-se reduzido á mendicidade sem o saber. Não
Vos contentaes da despeza prodigiosa da vossa mesa,
daes ainda com mão liberal . Não podem vossos thesou-
ros supprir a isto, ainda que fossem tão avultados co-
-
mo montanhas . Vai-te, repetia-lhe Noureddin, não pre-
ciso de lições ; continúa a dar-me de comer e não te dê
cuidado o resto >» .
20 AS MIL E UMA NOITES

Os amigos de Noureddin eram todavia muito exactos


em frequentar a sua mesa, e não perdiam occasião de
aproveitar-se da sua facilidade . Adulavam-o , louvavam - o ,
e realçavam até a menor de suas acções as mais indif-
ferentes. Sobretudo não se esqueciam de exaltar tudo o
que lhe pertencia, e com isto davam-se bem. « Senhor,
dizia-lhe um, passei ha alguns dias pela fazenda que
possuis em tal sitio , não ha cousa mais magnifica nem
mais mobilada do que a casa ; é um paraiso de delicias
o jardim que a acompanha. - Alegro-me muito que vos
agrade, replicava Noureddin , tragam uma penna, tinta
e papel , não quero mais ouvir fallar d'ella , pertence-
vos, eu vol-a dou » . Outros, apenas lhe tinham gabado
alguma das casas, banhos e lugares publicos para alojar
os estrangeiros , logo lhes fazia uma doação d'elles . A
bella persiana lhe representava o prejuizo que se fazia
a si mesmo, mas elle em vez de ouvil-a continuava a
prodigalisar o que lhe restava na primeira occasião .
Finalmente, não fez Noureddin outra cousa um anno
inteiro senão ter boa mesa, passar bem o tempo e diver-
tir-se, prodigalisando e dissipando os grandes cabedaes
que seus predecessores e o bom visir seu pai tinham
adquirido, ou conservado com muitos cuidados e traba-
lhos . Tinha acabado um anno quando bateram um dia á
porta da sala onde estava á mesa . Tinha mandado sahir
os escravos e havia-se fechado n'ella com seus amigos,
para gozar de maior liberdade .
Quiz um dos amigos de Noureddin levantar- se , po-
rém este levantou-se primeiro e foi elle mesmo abrir .
Era o mordomo ; e Noureddin , para ouvir o que elle
queria, adiantou-se um pouco fóra da sala e puxou a
porta sobre si sem fechal-a inteiramente .
O amigo que quiz levantar-se e que avistára o mor-
domo, curioso de saber o que tinha que dizer a Noured-
din, foi pôr-se entre o reposteiro e a porta, e ouviu que
o mordomo lhe dirigiu este discurso : « Senhor, disse a
seu amo, peço -vos mil perdões se venho interromper-
vos no meio de vossos divertimentos. O que tenho que
communicar-vos é, ao que me parece, de tamanha im-
Dortancia, que cuidei não dever dispensar-me de tomar
CONTOS ARABES 21

esta liberdade . Venho de acabar as minhas ultimas con-


tas, e acho o que previra ha muito tempo e do que vos
dei parte muitas vezes ; quero dizer, senhor , que não te-
nho já um ceitil de todas as quantias que me déstes pa-
ra fazer as vossas despezas . Os outros fundos que me
assignastes estão tambem esgotados e tanto vossos ren-
deiros como os que vos deviam rendas me mostraram
tão claramente que tinheis feito doação a outros do que
vos pertencia, que não posso já exigir cousa alguma
d'elles em vosso nome . Aqui tendes as minhas contas ;
examinai-as ; e se desejaes que continue a servir- vos ,
assignai-me outros fundos ; senão , permitti-me que me
retire . Ficou de tal modo pasmado Noureddin ouvindo
isto, que não achou palavras com que responder.
O amigo, que se puzera á escuta e tudo ouvira, vol-
tou logo e deu parte aos outros amigos do que acabava
de ouvir. « De vós depende, disse- lhes acabando, apro-
veitar-nos d'este aviso : quanto a mim declaro-vos que
hoje é o ultimo dia que me vereis em casa de Noured-
din. Se isso é assim, replicaram , não temos já que fa-
zer em sua casa : não nos tornará tambem a ver » .
N'este instante voltou Noureddin ; e, por mais alegre
que se mostrasse para divertir os seus convidados, não
pôde todavia dissimular tanto que não percebessem a
verdade do que acabavam de ouvir . Tinha-se apenas as-
sentado, quando um de seus amigos se levantou : < « Se-
nhor, disse-lhe , sinto muito não poder fazer-vos compa-
nhia mais tempo ; rogo-vos que me permittaes que me
vá. -
— Obriga-vos algum negocio a deixar- nos tão ce-
do ? replicou Noureddin . -Senhor, respondeu elle, mi-
nha mulher alliviou-se hoje ; não ignoraes que a presen-
ça d'um marido é sempre necessaria em semelhante oc-
casião » . Fez uma grande cortezia e partiu . Um instante
depois retirou-se outro , allegando outro pretexto : os ou-
tros fizeram o mesmo um após outro , até que não ficou
um unico dos dez amigos que até então tinham feito
tão boa companhia a Noureddin .
Nada suspeitou Noureddin da resolução que tomaram
seus amigos de não o ver mais. Foi ter ao quarto da
bella persiana, entreteve-se somente com ella da declara-
22 AS MIL E UMA NOITES

ção que lhe fizera seu mordomo, com grandes demons-


trações d'um verdadeiro arrependimento da desordem
em que estavam seus negocios .
<< Senhor, disse-lhe a bella persiana , permitti-me que
vos diga que não quizestes senão seguir a vossa propria
inclinação : estaes agora vendo o que vos aconteceu.
Não me enganava quando vos predizia o triste fim que
vos esperava. O que me afflige é não verdes vós ainda
quanto isso tem de funesto . Quando queria declarar - vos
o meu pensamento, « regosijemo - nos, dizeis-me, e apro-
veitemo -nos do bom tempo que a fortuna nos offerece
em quanto nos é favoravel , talvez não esteja sempre de
tão bom humor » ; porém tinha eu razão em responder-
vos que nós mesmos eramos os artifices da nossa boa
fortuna por via d'um bom procedimento . Não quizestes
dar- me ouvidos e fui constrangida a deixar- vos obrar con-
tra a minha vontade. Confesso, replicou Noureddin, que
não tenho desculpa de não ter seguido os conselhos tão
prudentes que me daveis com vossa sabedoria admiravel ;
porém se gastei todo o meu cabedal, vós não consideraes
que foi com uma roda de amigos que conheço ha muito
tempo : são honrados e cheios de reconhecimento , estou
certo que não me abandonarão . -Senhor, replicou a bel-
la persiana, se não tendes outro recurso senão o reco-
nhecimento de vossos amigos , parece - me que a vossa es-
perança está mal fundada e d'isso dar-me-heis novas com
-
o tempo. Linda persiana, respondeu a isto Noureddin,
tenho melhor opinião que vós do soccorro que me darão .
Quero ir vel-os a todos ámanhã, antes que tomem o tra-
balho de vir segundo o seu costume, e vêr-me-heis vol-
tar com uma boa somma de dinheiro, com que me te-
rão soccorrido todos juntamente . Mudarei de vida como
resolvi, e farei valer esse dinheiro com algum negocio » .
Não faltou Noureddin no dia seguinte em casa de seus
dez amigos , que moravam na mesma rua ; bateu á pri-
meira porta que se lhe apresentou , onde morava um
dos mais ricos . Veio uma escrava, e antes de abrir per-
guntou quem era . « Dizei a vosso senhor, respondeu el-
le , que é Noureddin, filho do defunto visir Khacan . A
escrava abriu, introduziu o n'uma sala e entrou no quar-
CONTOS ARABES 23

to onde estava seu senhor, a quem ella annunciou que


Noureddin vinha vêl -o : « Vai, dize-lhe que não estou em
casa ; e todas as vezes que vier dize-lhe o mesmo » .
Voltou a escrava e respondeu a Noureddin que lhe pare-
cera que seu senhor estivesse em casa, mas que se en-
ganára.
Sahiu Noureddin confuso : « Perfido , malvado homem !
clamou elle ; protestava-me hontem que não tinha me-
lhor amigo que elle , e hoje trata-me tão indignamente ! »
Foi bater á porta d'outro amigo e este lhe mandou di-
zer a mesma cousa que o primeiro . Teve a mesma res-
posta em casa do terceiro e assim até ao decimo, ainda
que estivessem todos em casa .
N'essa occasião é que Noureddin cahiu devéras em
si e reconheceu a falta irreparavel de ter-se fiado tão
facilmente na assiduidade d'estes falsos amigos em pro-
curarem a sua companhia, e nas suas protestações de
amizade todo o tempo que estivera em estado de dar-
lhes banquetes sumptuosos e de beneficial- os com mão
larga. « É bem verdade, disse comsigo e com as lagri-
mas nos olhos , que um homem feliz , assim como eu
era, é semelhante a uma arvore carregada de fruta ;
em quanto ha fruta na arvore não cessam de estar å
roda d'ella para colhel -a ; logo que não ha mais fruta
afastam -se d'ella e a deixam só » . Constrangeu-se em
quanto esteve fóra de sua casa ; porém apenas entrou,
entregou-se inteiramente à sua afflicção , e foi dar de-
monstrações d'ella á bella persiana .
Logo que a bella persiana viu apparecer o afflicto
Noureddin, suspeitou que não achára nos seus amigos o
soccorro que d'elles esperava. « Então , senhor, disse-lhe,
estaes agora convencido da verdade do que vos predis-
se ? Minha querida, clamou elle, é mais que verdade
O que me predissestes . Nenhum quiz reconhecer-me ,
vér-me , fallar-me ; nunca cuidei que houvesse de ser
tratado tão cruelmente por pessoas que tantas obriga-
ções me devem , e pelas quaes me arruinei ! Estou de-
sesperado ; e receio commetter alguma acção indigna
de mim, no estado deploravel e na desesperação em que
me encontro, se não me ajudaes com vossos sabios con-
24 AS MIL E UMA NOITES

selhos . Senhor, replicou a bella persiana , não vejo


outro remedio á vossa desgraça senão vender vossos es-
cravos e vossos trastes, e subsistir do producto d'elles
até que o céo vos descubra algum outro caminho para
vos tirar da miseria >» .
Pareceu o remedio em extremo duro a Noureddin ;
todavia que poderia fazer na necessidade em que se acha-
va ? Vendeu em primeiro lugar os seus escravos , que
The faziam uma despeza muito além da que estava em
estado de supportar. Viveu algum tempo do dinheiro que
n'elles fez , e quando veio a faltar-lhe mandou levar seus
trastes á praça publica, onde se venderam por muito me-
nos do seu justo valor, ainda que houvesse alguns pre-
ciosos, que tinham custado sommas immensas . Isto o fez
subsistir bastante tempo, mas por fim faltou este soccor-
ro , e não lhe ficava já com que fazer mais dinheiro :
participou o excesso da sua afflicção á bella persiana .
Não esperava Noureddin a resposta que lhe deu es-
ta judiciosa mulher : « Senhor, disse -lhe, sou vossa es-
crava, e sabeis que o defunto visir vosso pai me com-
prou por dez mil peças de ouro . Bem sei que não valho
agora esse preço ; comtudo estou tambem persuadida
que posso ser ainda vendida por uma somma que não
será muito inferior. Créde -me , levai -me ao mercado e
vendei-me ; com o dinheiro que vos derem, que será
bastante, ireis ser mercador em alguma cidade onde
não sereis conhecido, e com isso tereis achado o meio
de viver, senão n'uma grande opulencia, ao menos d'um
modo que possa tornar-vos feliz e contente . - Oh !
amavel e bella persiana ! clamou Noureddin ; é possi-
vel que pudesseis conceber esse pensamento ? Dei - vos
tão poucas demonstrações do meu amor, que cuideis
sou capaz d'essa baixeza ? E ainda que fosse capaz d'es-
sa acção indigna, poderia eu fazel- o sem ser um perju-
ro , visto o juramento que fiz a meu defunto pai , de
nunca vos vender ? Mais estimaria morrer do que que-
branta!-o e apartar-me de vós, a quem amo mais que a
mim mesmo . Fazendo -me uma proposta tão desarrazoa-
vel, daes- me a conhecer que me não amaes tanto como
eu vos amo.Senhor, replicou a bella persiana, estou
CONTOS ARABES 25

convencida que me amaes tanto como dizeis ; e Deus


sabe se a paixão que por vós tenho é inferior á vossa,
e quanta repugnancia tive em fazer-vos a proposta que
tanto vos escandalisa . Para destruir a razão que me
allegaes, basta-me lembrar-vos que a necessidade não
tem lei. Amo-vos tanto que não é possivel que me te-
nhaes mais amor ; e posso certificar- vos que nunca ces-
sarei de amar-vos do mesmo modo , a qualquer senhor
que possa pertencer ; até não terei maior gosto no
mundo do que reunir-me comvosco logo que vossos ne-
gocios vos permittam tornar- me a comprar, como o es-
pero. Esta é, eu o confesso, uma necessidade muito cruel
para vos e para mim; mas tudo bem ponderado , não ve-
jo outro meio de tirar-nos da miseria a vós e a mim » .
Noureddin, que conhecia muito bem a verdade do
que a bella persiana acabava de representar-lhe, e que
não tinha outro recurso para evitar uma pobreza igno-
miniosa , foi constrangido a tomar o partido que ella lhe
propuzera . Assim levou-a ao mercado onde se vendiam
as mulheres escravas , com tal pezar que não se póde
expressar ; dirigiu- se a um corretor chamado Hagi Has-
san : « Hagi Hassan , disse-lhe , eis -aqui uma escrava que
quero vender ; vê o preço que quererão dar por ella ».
Fez Hagi Hassan entrar Noureddin e a bella persia-
na n'um quarto , e tirado que teve á bella persiana o
véo que lhe cobria o rosto : « Senhor, disse Hagi Hassan
a Noureddin com admiração, esta não é a escrava que o
defunto visir, vosso pai, comprou por dez mil peças de
ouro ? » Asseverou -lhe Noureddin que era ella mesma ; e
Hagi Hassan fazendo-lhe esperar que d'ella tiraria uma
avultada somma , lhe prometteu empregar toda a sua ar-
te para fazel-a comprar pelo mais alto preço que lhe
fosse possivel .
Hagi Hasan e Noureddin sahiram do quarto , e Hagi
Hassan fechou n'elle a bella persiana . Foi depois pro-
curar os mercadores, mas estavam todos occupados a
comprar escravas gregas, francezas , africanas, tartaras e
outras, e foi obrigado a esperar que acabassem de fazer
as suas compras . Tendo acabado e estando quasi todos
juntos : « Meus senhores, disse- lhes, com uma alegria que
26 AS MIL E UMA NOITES

se descobria no seu rosto e nos seus gestos ; tudo o que


é redondo não é avellã , tudo o que é comprido não é
figo , tudo o que é encarnado não é carne , e todos os
os ovos não são frescos . Quero dizer que vistes e com-
prastes escravas na vossa vida, porém nunca vistes uma
que possa comparar- se com a que vos annuncio. É a pe-
rola das escravas : vinde e segui-me, eu vol -a vou mos-
trar. Quero que me digaes por que preço devo apre-
goal- a logo » .
Seguiram os mercadores a Hagi Hassan , e Higi Has-
san lhes abriu a porta do quarto onde estava a bella per-
siana. Viram -a com pasmo, e convieram todos que não
podia apregoar-se por menos de quatro mil peças d'ouro .
Sahiu com elles depois de ter fechado a porta, e apre-
goou em alta voz sem afastar-se : Por quatro mil peças
d'ouro a escrava persiana !
Os mercadores não tinham ainda fallado e consulta-
vam entre si acerca do que deviam lançar n'ella , quan-
do o visir Saouy appareceu . Como avistasse a Noureddin
na praça « Provavelmente, disse comsigo , Noureddin
vende ainda mais trastes (pois constava-lhe que já ti-
nha vendido alguns) e veio comprar uma escrava » . Che-
gou-se , e Hagi Hassan apregoou uma segunda vez : Por
quatro mil peças d'ouro a escrava persiana !
Fez este alto preço julgar a Saouy que a escrava de-
via ser de uma belleza muito particular, e teve logo
um forte desejo de vêl-a . Guiou seu cavallo em direitura
a Hagi Hassan , que estava cercado dos mercadores :
« Abre a porta, disse-lhe , e deixa - me vêr a escrava » .
Não era costume deixar vêr uma escrava a um particu-
lar, quando os mercadores a tinham visto e a apreçavam .
Os mercadores, porém , não tiveram a ousadia de valer-
se do seu direito contra a authoridade de um visir, e Ha-
gi Hassan não pôde dispensar-se de abrir a porta e fazer
signal á bella persiana que se chegasse, para que Saouy
pudesse vêl-a sem descer do seu cavallo .
Ficou Saouy em extremo admirado quando viu uma
escrava de belleza tão extraordinaria . Havia já tido ne-
gocios com o corretor e seu nome não lhe era desco-
nhecido : « Hagi Hassan , disse-lhe , não é por quatro mil
CONTOS ARABES 27

peças d'ouro que a apregoas ? —Sim, senhor, respondeu


elle ; os mercadores que estaes vendo convieram ha um
instante que a apregoasse por esse preço . Espero que
dêem maior lanço . - Darei a dita somma, replicou Saouy,
se ninguem offerece mais » . Encarou logo os mercadores
com tal semblante , que bem denotava que não preten-
dia que lançassem mais . Era tão temido de todos que
ninguem se atreveu a abrir a bocca, nem sequer para
se queixar do que emprehendia contra o seu direito.
Tendo o visir Saouy esperado algum tempo e vendo
que nenhum dos mercadores lançava mais : « Então , que
esperaes ? disse a Hagi Hassan ; vai ter com o vendedor
e conclue a compra com elle pelas quatro mil peças de
ouro, ou informa- te do que pretende fazer » . Não sabia
ainda que a escrava pertencia a Noureddin .
Hagi Hassan, que tinha já fechado a porta do quarto,
foi conferenciar com Noureddin . « Senhor, disse - lhe , sin-
to annunciar-vos uma má nova ; vende-se a vossa escra-
va por um modico preço . - Porque razão ? replicou Nou-
-
reddin . Senhor, respondeu Hagi Hassan, esteve a cousa
no principio em bons termos. Logo que os mercadores
viram a vossa escrava, encarregaram -me sem mais cere-
monia de apregoal-a por quatro mil peças d'ouro . Apre-
goei-a por este preço e logo veio o visir Saouy ; e a sua
presença tapou a bocca aos mercadores, que via dispos-
tos a fazel-a subir ao mesmo preço que custou ao defun-
to visir vosso pai . Saouy não quer passar das quatro mil
peças d'ouro, e com grande pezar venho dar-vos parte
de uma venda tão desarrazoavel . A escrava é vossa , po-
rém nunca vos aconselharia a dal-a por esse preço . Vós
o conheceis, senhor, e todo o mundo o conhece . Além de
valer muito mais a escrava, é assás malvado para imagi-
nar algum meio de não vos pagar a dita somma. — Hagi
Hassan, replicou Noureddin, agradeço - te o conselho não
receies que eu consinta que seja a minha escrava ven-
dida ao inimigo de minha casa . Tenho grande precisão
de dinheiro, mas mais estimaria morrer na ultima miseria
do que permitir que lhe seja entregue . Pergunto -te uma
unica cousa : como sabes os usos e rodeios, dize-me só-
mente o que devo fazer para impedil-o . - Senhor , respon-
28 AS MIL E UMA NOITES

deu Hagi Hassan , não ha cousa mais facil. Fingi que vos
enfadastes contra a vossa escrava e que jurastes que a le-
varieis ao mercado ; porém que não tinheis intenção de
vendel-a, e que o que fizestes foi só para desempenhar-
vos do vosso juramento . Isto satisfará todo o mundo, e
Saouy nada terá que dizer . Vinde , pois ; e no instante de
a apresentar a Saouy, como se fosse por vosso consen-
timento e que fosse terminada a venda, pegai n'ella , dan-
do-lhe algumas pancadas, e levai-a para vossa casa.
- Agradeço -te , disse-lhe Noureddin ; verás que seguirei
o teu conselho >> .
Voltou Hagi Hassan ao quarto , abriu -o e entrou ; e,
depois de ter avisado a bella persiana em poucas palavras
que se não assustasse do que ia acontecer, pegou n'ella
pelo braço e a levou ao visir Saouy, que estava diante
da porta : « Senhor, disse-lhe, apresentando-lh'a , eis-aqui
a escrava, pertence -vos, tomai conta d'ella ».
Não tinha Hagi Hassan acabado de proferir estas pa-
lavras, quando Noureddin pegou na bella persiana . Pu-
xou-a para si, e dando -lhe uma bofetada : « Vinde , inso-
lente, disse-lhe em alta voz para que todos ouvissem , e
voltai para minha casa . O vosso mau genio me obrigou
a fazer o juramento de trazer-vos ao mercado, mas não
de vender-vos . Ainda preciso de vós, e terei tempo de
chegar a este extremo quando não tiver outro remedio > ».
Ficou o visir Saouy em extremo escandalisado d'esta
acção de Noureddin . « Miseravel pródigo ! exclamou elle ;
queres persuadir-me que te fica alguma cousa que ven-
der além da tua escrava ? » Dirigiu o seu cavallo no mes-
mo instante direito a elle, para arrancar-lhe a bella per-
siana. Noureddin , em extremo escandalisado da affronta
que lhe fazia o visir, largou a bella persiana e lhe disse
que o esperasse ; e lançando-se à rédea do cavallo o fez
recuar tres ou quatro passos : « Malvado barbaças ! disse
então ao visir, arrancar-te-hia a vida n'este instante se
não attendesse á consideração devida a toda a gente que
aqui está >>.
Como o visir Saouy não era amado de ninguem e
pelo contrario era aborrecido de todo o mundo , não ha-
via um só, de todos os que estavam presentes , que
CONTOS ARABES 29

não gostasse que Noureddin o tivesse um pouco humi-


lhado. Deram-lhe até a entender, pelos signaes que lhe
fizeram, que podia vingar-se como quizesse, que ninguem
se intrometteria na sua contenda.
Quiz Saouy fazer um esforço para obrigar Noureddin
a largar a rédea do seu cavallo ; mas Noureddin , que era
um mancebo forte e possante , animado da benevolencia
dos assistentes, derribou - o do cavallo, deu -lhe mil pan-
cadas e lhe bateu com a cabeça contra as pedras . Dez
escravos, que acompanhavam a Saouy, quizeram puxar
pelos alfanges e lançar-se a Noureddin ; porém os mer-
cadores metteram-se entre elles e os impediram . « Que
pretendeis fazer ? lhes disseram ; não sabeis que se um
é visir, o outro é filho de visir ? Deixai - os terminar a sua
pendencia entre si ; talvez façam as pazes um d'estes
dias ; e se tivesseis matado a Noureddin , parece-vos que
Vosso amo, tão poderoso como é, pudesse livrar- vos da
justiça? Cançou-se finalmente Noureddin de dar no visir
Saouy ; deixou-o , pegou na bella persiana e voltou para
sua casa entre as aclamações do povo , que o louvava da
acção que acabava de fazer.
Saouy, moido com pancadas, se levantou, ajudado de
seus escravos, com muito trabalho , e teve a maior mor-
tificação de vêr- se todo enlameado e ensanguentado . En-
costou-se aos hombros de dous escravos, e n'este estado
foi direito ao palacio, á vista de todo o mundo, com
uma confusão tanto maior quanto ninguem tinha dó d'el-
le. Chegado que foi debaixo das janellas do quarto do
rei, pôz-se a gritar e a implorar justiça de um modo
compassivo . Mandou- o chamar o rei, e logo que appa-
receu perguntou-lhe quem o maltratára e puzera no es-
tado em que se achava . « Senhor , clamou Saouy, basta
estar no valimento de vossa magestade, e ter alguma
parte nos seus sagrados conselhos , para ser tratado do
modo indigno com que vê que acabam de tratar-me.
-Deixemos essas cousas , replicou o sultão , contai-me
só como se passou isso e quem é o aggressor ; bem sabe-
rei fazel-o arrepender se não tiver razão . - Senhor, disse
então Saouy contando a cousa a seu favor , tinha ido ao
mercado das mulheres escravas para comprar uma cozi-
30 AS MIL E UMA NOITES

nheira de que precisava : cheguei lá e achei que apre-


goavam uma escrava por quatro mil peças d'ouro . Man-
dei trazer a escrava ; é a mais bella que se tem visto
e que se possa vêr : apenas a examinei com uma satis-
fação extrema, logo perguntei a quem pertencia e sou-
be que Noureddin , filho do defunto visir Khacan, queria
vendel-a . Vossa magestade lembra-se de ter mandado dar
dez mil peças d'ouro a esse visir, ha dous ou tres an-
nos, e de o ter encarregado de comprar-lhe uma escra-
va por essa somma. Tinha-a empregado na compra d'es-
ta ; mas em vez de trazel-a a vossa magestade , não o
julgou digno d'ella, e deu-a de presente a seu filho . Des-
de a morte do pai , o filho bebeu, comeu e gastou quan-
to possuia, e não lhe ficou senão esta escrava, que re-
solvera por fim vender, e que na realidade vendiam em
seu nome . Mandei-a vir ; e , sem lhe fallar da prevarica-
ção, ou antes da perfidia de seu pai para com vossa ma-
gestade « Noureddin , lhe disse com a maior cortezia do
mundo, os mercadores, como me consta, puzeram a vos-
sa escrava a quatro mil peças de ouro ; creio que pi-
cando se uns aos outros a fariam subir a mais alto
preço ; aconselho- vos a que m'a deis por quatro mil pe-
ças de ouro, e vou compral - a para d'ella fazer um pre-
sente ao sultão nosso senhor e amo, a quem fallarei van-
tajosamente da vossa pessoa . Valerá isto muito mais do
que poderiam dar-vos os mercadores » . Em vez de res-
ponder com cortezia , o insolente me encarou com ar de
ameaça : « Malvado velho ! disse-me elle, mais estimaria
dar gratuitamente a minha escrava a um judeu , do que
vender-t'a. - Porém, Noureddin, repliquei sem agastar-
me, ainda que para isso tivesse um grande motivo , não
consideraes, quando assim fallaes, que injuriaes o sul-
tão, que fez vosso pai o que era, assim como me fez a
mim o que sou?» Esta advertencia, que devia abrandal- o ,
o escandalisou ainda mais . Lançou -se logo a mim como
furioso, sem attender à minha idade e ainda menos á
minha dignidade, derribou -me do cavallo, maltratou-me
quanto quiz e me pôz no estado em que vossa mages-
tade me vê. Supplico -lhe que considere que pelos seus
interesses soffro uma affronta tão manifesta » . Proferidas
CONTOS ARABES
31
estas palavras , baixou a cabeça , e voltou -se para deixar
correr as lagrimas em abundancia .
O sultão , enganado e enfadado contra Noureddin , á
vista d'este dircurso cheio de artificio , deixou ver no seu
'
rosto signaes de grande cólera . Voltou-se para o seu ca-
pitão das guardas que estava ao seu lado : « Tomai qua-
renta homens da minha guarda , disse-lhe , e depois de
ter posto a saque a casa de Noureddin e de ter dado as
ordens para arrasal- a, trazei- m'o com a sua escrava » .
Não estava ainda o capitão das guardas fóra do quar-
to, quando um official da camara que ouviu dar esta or-
dem tinha já tomado a dianteira. Chamava- se Sangiar,
e fôra em outro tempo escravo do visir Khacan , que o
introduzira na casa do sultão , onde foi subindo gradual-
mente .
Sangiar, cheio de reconhecimento para com o seu
antigo amo e de zelo para com Noureddin , que vira nas-
cer, e que conhecia desde muito tempo o odio de Saouy
contra a casa de Khacan , não pôde ouvir a ordem sem
estremecer. « A acção de Noureddin , disse comsigo , não
póde ser tão negra como Saouy a cantou ; preveniu o
sultão contra elle, e manda o sultão justiçar a Noured-
din sem dar-lhe tempo de se justificar » . Correu com
tanta pressa que chegou a tempo d'avisal- o do que aca-
bava de passar - se no palacio , e dar-lhe lugar de fugir
com a bella persiana . Bateu á porta de tal modo que
obrigou a Noureddin, que já não tinha criado havia
muito , a vir abrir elle mesmo a porta sem perda de
tempo . « Meu rico senhor , disse- lhe Sangiar, não ha já
segurança para vós em Balsora ; parti, e fugi sem per-
der tempo. -A razão d'isso ? replicou Noureddin , que pó-
de haver que me obrigue a partir tão apressadamente ?
-Parti , digo- vos , replicou Sangiar, e levai comvosco a
Vossa escrava . Em duas palavras , acaba Saouy de contar
ao sultão, do modo que quiz, o que se passou entre vós
e elle, e o capitão das guardas vem com quarenta sol-
dados prender- vos a vós e a ella . Aceitai estas quaren-
ta peças d'ouro para vos ajudar a procurar asylo ; mais
vos daria se tivesse . Desculpai-me se não me demoro
mais ; a meu pezar deixo- vos para bem vosso e meu ,
32 AS MIL E UMA NOITES

pelo interesse que tenho em que o capitão das guardas


não me veja » . Sangiar deu só a Noureddin o tempo de
agradecer-lhe e retirou-se.
Foi Noureddin dar parte à bella persiana da necessi-
dade em que estavam um e outro de ausentar -se logo :
ella tomou seu véo e sahiram de casa ; tiveram a felici-
dade não só de sahir da cidade sem que ninguem tal
percebesse, mas tambem de chegar à embocadura do
Euphrates, que não ficava distante e de embarcar-se n'um
navio prompto a fazer- se á véla .
Com effeito, ao tempo que chegaram, o capitão es-
tava sobre a tolda no meio dos passageiros : « < Filhos ,
lhes perguntava elle, estaes todos aqui ? alguem tem ain-
da que fazer, ou esqueceu alguma cousa na cidade ? »
A isto respondeu cada um que estavam alli todos e que
podia largar quando quizesse . Embarcado que foi Nou-
reddin, perguntou aonde ia o navio, e alegrou- se muito
sabendo que ia a Bagdad . Mandou o capitão levantar an-
cora, fez -se á véla e afastou-se o navio de Balsora com
vento mui favoravel.
Eis-aqui o que se passou em Balsora em quanto Nou-
reddin escapava á cólera do rei com a bella persiana.
Chegou o capitão das guardas a casa de Noureddin
e bateu á porta. Como viu que ninguem abria, mandou
arrombal-a e entraram de tropel os seus soldados . Bus-
caram por todos os cantos e recantos, e não acharam
nem a Noureddin nem a sua escrava . Mandou o capitão
das guardas indagar e perguntou elle mesmo aos visi-
nhos se os tinham visto. Ainda que os tivessem visto,
como todos amavam a Noureddin , não houve nem um
sequer que dissesse cousa que o pudesse prejudicar. Em
quanto saqueavam e arrasavam a casa, foi levar esta
nova ao rei. « Que os procurem em qualquer parte que
possam estar, disse o rei ; quero que m'os tragam aqui ! >»
Foi o capitão das guardas fazer novas diligencias, e
o rei mandou o visir Saouy para sua casa com honra :
<< Ide-vos, disse -lhe , e não vos de cuidado o castigo de
Noureddin ; vingar-vos-hei da sua insolencia >».
Para pôr tudo em obra, mandou ainda o rei espalhar
por toda a cidade, pelos pregoeiros publicos, que daria
CONTOS ARABES 33

mil peças d'ouro ao que lhe trouxesse a Noureddin e


a sua escrava, e que faria castigar severamente o que
os tivesse escondido . Porém, por mais cuidado que to-
masse e por mais diligencias que mandasse fazer, não
The foi possivel ter nova alguma d'elles ; e o visir Saouy
teve só a consolação de ver que o rei tinha tomado o
seu partido.
Noureddin e a bella persiana adiantavam- se todavia,
e faziam a sua derrota com toda a felicidade possivel .
Aportaram finalmente a Bagdad ; e , logo que o capitão,
satisfeito de ter acabado a sua viagem, avistou a cidade :
« Filhos, clamou elle fallando aos passageiros ; alegrai-
vos, eis-ahi essa grande e maravilhosa cidade, onde
ha um concurso geral e perpetuo de todos os lugares do
mundo. N'ella achareis uma multidão de povo immenso ;
e não tereis alli o frio insupporta vel do inverno, nem
os calores excessivos do verão . N'ella gozareis uma pri-
mavera que dura com as flôres e com as frutas delicio-
sas do outono » .
Ancorado que foi o navio um pouco mais abaixo da
cidade , os passageiros desembarcaram e foram cada um
aonde deviam alojar-se . Deu Noureddin cinco peças d'ou-
ro pela sua passagem, e desembarcou tambem com a
bella persiana. Todavia nunca tinha vindo a Bagdad e
não sabia onde alojar- se . Andaram bastante tempo ao
longo dos jardins que bordam as margens do Tigre ,
e costearam um que estava cercado de uma bella e lon-
ga muralha . Chegando ao cabo tomaram por uma rua
comprida e bem calçada, onde avistaram a porta do jar-
dim, com um bello chafariz ao pé .
A porta, que era muito rica, estava fechada, mas ha-
via um vestibulo aberto onde estava um sophá de cada
lado . « Eis-aqui um lugar já commodo, disse Noureddin
á bella persiana ; anoitece , e comemos antes de desem-
barcar sou de parecer que passemos aqui a noite e
ámanhã pela manhã teremos tempo de procurar aloja-
mento : que vos parece ? Vós sabeis, senhor, respon-
deu a bella persiana, que quero unicamente o que qui-
zerdes ; não passemos além, se assim o desejaes » . Be-
beram no chafariz e subiram a um dos sophás, no qual
TOMO III. 3
AS MIL E UMA NOITES
34
se entretiveram algum tempo . D'elles se apossou final-
mente o somno , e adormeceram ao murmurio agradavel

rten
Peua
da ag . cia o jardim ao califa , e havia no meio um
grande pavilhão , que se chamava o pavilhão das pin-
turas ; porque o seu principal ornamento eram pinturas
á persiana , da mão de diversos pintores , que o califa
mandára vir expressamente . Oitenta janellas , com um
lustre em cada uma , davam luz ao grande e soberbo sa-
lão, que formava este pavilhão ; e os oitenta lustres não
se accendiam senão quando o califa vinha alli passar o
serão , e quando o tempo estava tão sereno que não ha-
via um sopro de vento . Faziam então uma illuminação ,
que se via de muito longe no campo , d'esse lado e de

uma grande parte da cidade .


Não havia senão um guarda n'este jardim , e era um
velho official chamado Scheich Ibrahim , que occupava
este posto , que o califa lhe dera em recompensa . Tinha-
lhe recommendado muito o califa que não deixasse en、
trar n'elle toda a gente , e principalmente que não con-
sentisse que se assentasse ou se demorasse alguem nos
dous sophás que estavam á porta da parte de fóra , para
que se conservassem sempre aceados , e igualmente tinha
ordem para castigar os que n'elle achasse .
Um negocio obrigára o guarda a sahir, e não es-
tava ainda de volta . Voltou finalmente e chegou ainda
com dia claro , e logo percebeu que duas pessoas dor-
miam sobre um dos sophás , ambos com a cabeça cober-
ta para livrar- se dos mosquitos . « É boa historia ! disse
Scheich Ibrahim comsigo ; eis-aqui gente que contravem
á prohibição do califa ; eu vou ensinar-lhes o respeito
que se lhe deve ». Abriu a porta sem fazer barulho , e
passado um instante veio com um pau na mão e o bra-
ço arregaçado . Estava disposto a dar com toda a sua
força em ambos, mas parou . « Scheich Ibrahim , disse
comsigo , tu vaes dar n'esta gente e não consideras que
são talvez estrangeiros que não sabiam aonde ir pou-
sar e que ignoram as ordens do califa . Convém saber
primeiro que gente é esta » . Levantou com grande cau-
tela o pano que lhes cobria a cabeça e ficou em extre-
CONTOS ARABES 35

mo admirado de vér um mancebo tão bem feito de cor-


po e uma mulher tão bella . Acordou a Noureddin , pu-
xando-lhe pelos pés .
Levantou Noureddin a cabeça e viu de repente a
seus pés um velho com barbas compridas e brancas ; le-
vantou-se, escorregando sobre o joelho, e tomou - lhe a
mão que beijou : « Bom pai , disse -lhe, que Deus vos
guarde ; quereis alguma cousa ? - Filho , replicou Scheich
Ibrahim , quem sois ? d'onde vindes ? -Somos estrangei-
ros que acabamos de chegar , replicou Noureddin, e de-
sejavamos passar aqui a noite . -Passarieis mal n'es-
te sitio, replicou Scheich Ibrahim ; vinde commigo , en-
trai , passareis aqui a noite com mais commodo e a vis-
ta do jardim , que é bellissima, vos divertirá, em quan-
to não anoitece inteiramente . - E pertence - vos , este jar-
dim ? replicou-lhe Noureddin . - Por certo que sim, é
meu, replicou Scheich Ibrahim sorrindo-se ; é uma he-
rança que tive de meu pai entrai , não desgostareis de
vél-o » .
Levantou-se Noureddin, manifestando a Scheich Ibra-
him o quanto ficava agradecido à sua cortezia , e entrou
no jardim com a bella persiana . Fechou Scheich Ibrahim
a porta, e caminhando adiante levou -os a um sitio d'on-
de viram, n'um relance d'olhos, quasi toda a disposição ,
grandeza e belleza do jardim .
Tinha Noureddin analysado bellissimos jardins em
Balsora, porém não os tinha visto ainda comparaveis a
este. Tendo examinado tudo e passado por algumas ruas,
voltou-se para o guarda que o acompanhava e pergun-
tou-lhe como se chamava. Apenas lhe respondeu que se
chamava Scheich Ibrahim : « Scheich Ibrahim, disse-lhe,
deve-se confessar que é este um jardim maravilhoso ;
Deus vos conserve n'elle largos annos . Não podemos
agradecer-vos sufficientemente o favor que nos fizestes
deixando-nos ver um lugar tão digno de ser admirado .
Convém que de algum modo vos démos demonstrações
do nosso reconhecimento. Aqui tendes, aceitai estas duas
peças d'ouro, e rogo-vos que mandeis buscar alguma
cousa para comermos juntos » .
Á vista das duas peças d'ouro , Scheich Ibrahim , que
*
36 AS MIL E UMA NOITES

gostava muito d'este metal, sorriu-se, pegou n'ellas, e


deixando Noureddin e a bella persiana para ir dar or-
dem á commissão que se lhe dera, pois estava sósinho :
« Esta é uma boa gente, disse comsigo muito alegre ;
eu mesmo me teria causado um grande prejuizo, se hou-
vesse tido a imprudencia de maltratal-os e expulsal- os.
Regalal - os-hei como principes com a decima parte
d'este dinheiro, e o resto ficará em paga do meu tra-
balho ».
Em quanto Scheich Ibrahim foi comprar com que
cear, tanto para elle como para seus hospedes , Noureddin
e a bella persiana passearam pelo jardim e chegaram ao
pavilhão das pinturas, que estava no meio. Pararam ad-
mirando a sua fabrica admiravel, a sua grandeza e altu-
ra ; e tendo dado volta em roda, olhando para todas as
partes, subiram á porta do salão por uma grande escada
de marmore branco, mas acharam-na fechada .
Noureddin e a bella persiana acabavam de descer
a escada quando chegou Scheich Ibrahim carregado de
comestiveis . << Scheich Ibrahim , disse-lhe Noureddin com
pasmo , não nos dissestes que este jardim vos pertencia ?
-Disse, replicou Scheich Ibrahim, e digo-o ainda ; por-
que me fazeis essa pergunta ? -E este soberbo pavilhão,
replicou Noureddin, pertence-vos tambem? » Scheich
Ibrahim não esperava esta segunda pergunta, e ficou
um pouco perplexo . « Se digo que não me pertence ,
disse comsigo, perguntar-me-hão logo como posso ser o
dono do jardim, e não o ser do pavilhão » . Como quiz
fingir que o jardim era seu , fingiu tambem que era
seu o pavilhão . « Filho , replicou elle , o pavilhão per-
tence ao jardim ; tanto um como o outro me pertencem .
-Visto ser assim , replicou então Noureddin , e consentir-
des que sejamos vossos hospedes esta noite, fazei- nos o
favor de nos deixar vêr o interior : a julgar pelo exte-
rior, deve ser d'uma magnificencia extraordinaria » .
Não convinha a Scheich Ibrahim recusar a Noured-
din o que elle requeria, vistas as offertas que já lhe ti-
nha feito . Considerou tambem que o califa não o man-
dára avisar, como costumava, e que assim não viria es-
ta noite, que podia tambem dar de cear n'elle aos seus
!
CONTOS ARABES 37

hospedes, e comer elle mesmo com elles. Poz os man-


timentos que trouxera no primeiro degrau da escada , e
foi buscar a chave ao quarto onde morava. Voltou com
a luz e abriu a porta.
Noureddin e a bella persiana entraram no salão e o
acharam tão magnifico , que não podiam cançar - se de
admirar a belleza e riqueza d'elle. Com effeito , sem
fallar das pinturas, eram ricos os sophás ; e além dos
lustres que pendiam do centro das janellas, havia ainda
entre cada uma d'ellas um braço de prata com a sua
vela de cera. Noureddin não pôde vér estes objectos
sem se lembrar da magnificencia em que vivêra , e sem
suspirar.
Scheich Ibrahim trouxe todavia os mantimentos, ser-
viu a céa sobre um sophá, e estando tudo prompto, Nou-
reddin, a bella persiana e elle assentaram -se e comêram
juntos . Tendo acabado e lavado as mãos abriu Noured-
din uma janella e chamou a bella persiana. Chegai, dis-
se-lhe, e admirai commigo a bella vista e a belleza do
jardim ao luar ; não ha cousa mais encantadora » . Che-
gou-se, e gozaram juntos d'este espectaculo em quanto
Scheich Ibrahim retirava a mesa.
Tendo Scheich Ibrahim acabado e vindo ter com
seus hospedes, perguntou -lhe Noureddin se não tinha al-
guma bebida com que os quizesse mimosear. Que bebi-
da desejaes ? replicou Scheich Ibrahim ; sorvete ? tenho-o
mui exquisito ; porém bem sabeis , meu filho, que não
se toma o sorvete depois da céa. -Bem sei, replicou
Noureddin ; não é sorvete que vos pedimos, é outra be-
bida ; causa-me admiração não me entenderdes . Então
é vinho de que quereis fallar ? replicou Scheich Ibrahim.
-Adivinhastes, disse-lhe Noureddin ; se o tendes, tra-
zei-nos por favor uma garrafa. Vós bem sabeis que se
bebe depois da cea para passar o tempo até ao deitar.
-Deus me guarde de ter vinho em minha casa , clamou
Scheich Ibrahim, e até de chegar- me a um lugar onde
o houvesse. Um homem, como eu , que fez a peregrina-
ção de Meca quatro vezes , renunciou ao vinho para toda
a sua vida.Dar-nos-hieis todavia um grande gosto se
nos procurasseis uma garrafa , replicou Noureddin ; e se
38 AS MIL E UMA NOITES

isto não vos desgosta, vou ensinar-vos um meio de a


obter sem que entreis na taberna e sem que toqueis no
que ella contiver. — Prompto para o que quizerdes , re-
plicou Scheich Ibrahim ; dizei -me só o que convém que
- Vimos um jumento preso á entrada do vosso jar-
faça .
dim , disse então Noureddin ; pertence-vos certamente, e
deveis servir-vos d'elle quando precisardes . Aceitai mais
duas peças d'ouro : levai o jumento com seus apparelhos
á primeira taberna, mas sem chegar-vos a ella ; dai al-
guma cousa ao primeiro que passar e pedi-lhe que che-
gue á taberna com o jumento, que compre duas bilhas
de vinho, que se porão nas cangalhas, e que vos tra-
ga o jumento depois de ter pago o vinho com o di-
nheiro que lhe tiverdes dado. Não fareis senão tocar o
jumento adiante de vós até aqui , e nós mesmos ire-
mos buscar as bilhas. D'este modo nada fareis que pos-
sa causar- vos a menor repugnancia » .
As outras duas peças d'ouro que Scheich Ibrahim
acabava de receber, fizeram um poderoso effeito no seu
espirito . « Oh filho ! clamou elle, tendo Noureddin aca-
bado de fallar ; quão bem o entendeis ! sem vós nunca
me teria lembrado d'este meio para vos procurar vinho
sem escrupulo » . Largou-os para ir desempenhar a com-
missão combinada . Apenas esteve de volta, logo Noured-
din desceu, tirou as bilhas das cangalhas e levou-as ao
salão.
Scheich Ibrahim tornou a levar o jumento ao lugar
onde elle estava ; e quando voltou : « Scheich Ibrahim ,
lhe disse Noureddin, não podemos assás agradecer- vos
o trabalho que quizestes ter ; falta-nos porém mais algu-
-
ma cousa. O que é ? replicou Scheich Ibrahim . Que
posso fazer ainda para servir- vos ? - Não temos taças ,
replicou Noureddin, e desejariamos algumas frutas, se
as tivesseis . - Basta abrir a bocca, replicou Scheich
Ibrahim, nada vos faltará de tudo o que podeis dese-
jar.
Desceu Scheich Ibrahim e em pouco tempo lhes pôz
uma mesa coberta de bellas porcelanas, cheias de mui-
tas especies de frutas, com taças d'ouro e de prata onde
escolher ; e, tendo-lhe perguntado se precisavam de
CONTOS ARABES 39

mais alguma cousa , retirou-se, sem querer ficar, ainda


que lh'o rogassem com muita instancia .
Noureddin e a bella persiana pozeram-se á mesa e
principiaram cada um a provar o vinho , que acharam
excellente . « Então, minha rica ! disse Noureddin á bel-
la persiana, não somos nós os mais venturosos do mun-
do, tendo-nos o acaso conduzido a um lugar tão agrada-
vel e delicioso ? Regosijemo-nos e refaçamo-nos da má
comida da viagem . -Póde a minha felicidade ser maior,
tendo- vos a vós d'um lado e a esta taça do outro ? » Be-
beram muitas vezes , entretendo-se agradavelmente e en-
toando cada um a sua canção.
Como tivessem boa voz, tanto um como o outro, par-
ticularmente a bella persiana, o seu canto attrahiu a
Scheich Ibrahim, que os ouviu bastante tempo da varan-
da, com grande gosto, sem ser visto. Deixou -se finalmen-
te vêr, deitando a cabeça pela porta : « Eia, senhor ! dis-
se a Noureddin que lhe parecia já embriagado ; alegro-
me de vos vêr n'essa alegria ! — Olá, Scheich Ibrahim !
clamou Noureddin , voltando -se para elle ; quão honrado
sois, e quanto vos devemos ! Não ousaremos rogar-vos
que proveis o vinho ; porém não deixeis de entrar. Vin-
de, chegai-vos , e fazei-nos ao menos a honra da vos-
sa companhia. - Continuai , continuai, replicou Scheich
Ibrahim, contento- me em ouvir as vossas bellas canti-
gas ». Proferindo estas palavras desappareceu .
Percebeu a bella persiana que Scheich Ibrahim pará-
ra na varanda , e avisou a Noureddin . « Senhor, acres-
centou ella, estaes vendo que tem aversão ao vinho ;
não desesperaria todavia de lh'o fazer beber se quizes-
seis obrar como vos direi . Como é ? perguntou Nou-
reddin ; basta abrirdes a bocca, farei o que desejardes .
-Obrigai-o sómente a entrar e a ficar comnosco , disse
ella ; passado algum tempo enchei as taças e apresentai-
lhe uma ; se não aceitar, bebei : e , depois , fingi que
dormis ; eu farei o resto ».
Percebeu Noureddin a intenção da bella persiana ;
chamou a Scheich Ibrahim , que appareceu de novo á
porta. «Scheich Ibrahim, disse -lhe, somos vossos hospe-
des e agasalhastes-nos do modo mais agradavel ; recusar-
40 AS MIL E UMA NOITES

nos-heis o favor que vos pedimos, que nos honreis com


a vossa companhia ? Não vos pedimos que bebaes , mas
só que nos deis o gosto de vér-vos » .
Deixou-se persuadir Scheich Ibrahim ; entrou e as-
sentou-se na borda do sophá que estava mais chegado
á porta. « Não estaes bem ahi, e não podemos ter a
honra de vos vêr, disse então Noureddin. Chegai- vos e
assentai-vos perto da senhora ; ella o estimará . - Farei
pois o que quereis, disse Scheich Ibrahim ; e , sorrindo -se
do gosto que ia ter, de estar perto de uma senhora tão
formosa, assentou- se a alguma distancia da bella persia-
na. Pediu-lhe Noureddin que cantasse uma cantiga em
louvor da honra que Scheich Ibrahim lhes fazia, e cantou
uma que o deixou arrebatado.
Tendo a bella persiana acabado de cantar, deitou
Noureddin vinho n'uma taça, e a apresentou a Scheich
Ibrahim . «
< Scheich Ibrahim, disse-lhe, rogo-vos que be-
baes à nossa saude, bebei . - Senhor, replicou, dando
alguns passos para traz , como se tivesse horror de vêr
sómente o vinho ; supplico-vos que me desculpeis : já
-
vos disse que renunciei ao vinho ha muito tempo. — Vis-
to que não quereis absolutamente beber á nossa saude,
disse Noureddin, consentireis então que beba á vossa » .
Em quanto Noureddin bebia, a bella persiana partiu
metade d'uma maçã , e offerecendo- a a Scheich Ibrahim :
« Não quizestes beber, disse-lhe ella, porém não creio
que tenhaes repugnancia em provar esta maçã, que é ex-
cellente ». Scheich Ibrahim não pôde recusal- a vindo de
tão bella mão ; aceitou-a com uma inclinação de cabeça
e a levou á bocca. Disse-lhe ella algumas graças a este
respeito, e Noureddin entretanto se estendeu sobre o so-
phá e fingiu dormir. Chegou- se logo a bella persiana a
Scheich Ibrahim , e fallando-lhe em voz baixa « Eil- o alli,
lhe disse ella ; é o seu costume todas as vezes que nos
divertimos juntos . Apenas bebe duas vezes , adormece
e me deixa sósinha ; porém creio que quereis fazer-me
companhia em quanto dormir > ».
Pegou a bella persiana n'uma taça, encheu-a de vi-
nho, e apresentando-a a Scheich Ibrahim : « Tomai, dis-
se-lhe, bebei á minha saude ; eu beberei tambem á vos-
CONTOS ARABES 41

sa ». Pûz Scheich Ibrahim grandes difficuldades e pediu-


lhe com instancia que o dispensasse ; porém apertou
tanto com elle, que vencido pelos seus encantos e pelas
suas instancias , pegou na taça e bebeu sem deixar uma
gota » .
Gostava o bom velho de beber o seu copinho ; po-
rém tinha pejo de fazel-o á vista das pessoas que não
conhecia. Costumava ir á taberna ás escondidas , como
muitos outros, e não tinha tomado as precauções que
Noureddin lhe ensinára para ir comprar o vinho. Fôra
buscal- o sem ceremonia a casa d'um taberneiro , onde
era muito conhecido : a noite lhe servira de capa e pou-
pára o dinheiro que devêra dar a quem encarregasse
de fazer o recado, como lhe dissera Noureddin .
Em quanto Scheich Ibrahim acabava de comer meta-
de da maçã, depois de ter bebido, a bella persiana lhe
encheu outra taça, que aceitou com menos difficuldade ;
á terceira não fez nenhuma. Bebia finalmente a quarta,
quando Noureddin cessou de fingir que dormia. Levan-
tou-se com decencia, e encarando- o, dando grandes ri-
sadas : « Ah ! ah ! ah ! Scheich Ibrahim , disse-lhe ; apanhei-
vos ! tinheis -me dito que renunciastes ao vinho e não dei-
xaes de bebel -o ? »
Scheich Ibrahim não esperava de ser apanhado as-
sim, e a vermelhidão subiu -lhe um pouco ao rosto. Is-
to não o impediu todavia de continuar a beber ; e tendo
acabado : « < Senhor, disse elle rindo-se, se ha peccado no
que diz, não deve cahir sobre mim, mas sim sobre a se-
nhora. Como não devia eu render-me a tantas graças ! »
A bella persiana, que se entendia com Noureddin , to-
mou o partido de Scheich Ibrahim e disse-lhe : <« Deixai- o
fallar e não vos constranjaes : continuai a beber e ale-
grai - vos » . Passados alguns instantes Noureddin bebeu e
offereceu de beber á bella persiana . Como Scheich Ibra-
him viu que Noureddin não lhe deitava vinho na taça,
pegou n'uma e apresentou - lh'a : « E eu ? disse elle ; jul-
gaes que não beba tão bem como vós ? > »
Ouvidas que foram estas palavras de Schech Ibrahim ,
Noureddin e a bella persiana deram uma grande risada ;
Noureddin deitou-lhe vinho, e continuaram a regosijar-se,
42 AS MIL E UMA NOITES

a rir e a beber até perto da meia noite. Quasi a essa


hora reparou a bella persiana que a mesa não estava
alumiada senão com uma vela : « Scheich Ibrahim , disse
ella ao bom guarda, déstes-nos sómente uma vela e aqui
estão bellas tochas . Rogo-vos que nos façaes o gosto de
accendel-as, para que vejamos mais claro ».
Scheich Ibrahim usou da liberdade que dá o vinho,
quando a cabeça está esquentada , e para não interrom-
per um discurso com que entretinha a Noureddin : < « Ac-
cendei-as vós mesma, isso convém melhor a uma joven
senhora como vós : mas accendei sómente cinco ou seis,
que para isto bastarão » . A bella persiana levantou-se,
foi buscar uma tocha que veio accender á vela que es-
tava na mesa, e accendeu oitenta tochas, sem fazer caso
do que lhe dissera Scheich Ibrahim .
Passado algum tempo , em quanto Scheich Ibrahim en-
tretinha a bella persiana sobre outro assumpto, Noured-
din lhe pediu tambem que accendesse alguns lustres. Sem
tomar sentido que todas as tochas estavam accesas :
<< Deveis, replicou Scheich Ibrahim , ser muito preguiçoso,
para me pedirdes que faça isso ; accendei-os vós , mas
tres , apenas » . Em vez de accender sómente aquelle nu-
mero, accendeu-os todos e abriu as oitenta janellas , no
que Scheich Ibrahim , occupado a conversar com a bella
persiana, não fez reparo .
Não se tinha ainda recolhido então o califa Haroun
Alraschid . Estava n'um salão do seu palacio, que chega-
va até ao Tigre , e que dava sobre o jardim e sobre o
pavilhão das pinturas . Abriu casualmente uma janella
d'esse lado, e ficou em extremo pasmado ao ver o pa-
vilhão todo illuminado, e ficou tanto mais surprehendi-
do, quanto em razão do grande clarão cuidou logo á pri-
meira vista que o fogo estava na cidade . O grão -visir
Giafar estava ainda com elle, e só esperava o instante
em que o califa se recolhesse para voltar para sua casa.
O califa o chamou mui enfadado : « Visir descuidado,
clamou elle , vem cá , chega-te; olha para o pavilhão das
pinturas e dize-me porque está alumiado a esta hora,
quando lá não estou ? >»
Ouvindo esta nova, entrou a tremer de susto o grão-
CONTOS ARABES 43

! visir, receando que assim fosse. Chegou- se , e tremeu


ainda mais quando viu que o que lhe dissera o califa era
verdade . Precisava -se todavia d'um pretexto para soce-
gal- o . « Commendador dos crentes, disse-lhe, ácerca d'is-
so não posso dizer outra cousa a vossa magestade , senão
que ha quatro ou cinco dias que Scheich Ibrahim veio
ter commigo, e manifestou-me que tinha intento de fazer
uma assembléa dos ministros da sua mesquita , para uma
ceremonia que estimava muito fazer no feliz reinado de
Vossa magestade . Perguntei-lhe o que desejava que fi-
zesse para o seu serviço n'esta occasião ; supplicou- me
que alcançasse de vossa magestade a licença de fazer a
assembléa da ceremonia no pavilhão . Despedi -o dizendo-
lhe que o podia fazer, e que não me esqueceria de fal-
lar d'isso a vossa magestade ; peço-lhe perdão do meu
esquecimento . Escolheu certamente Scheich Ibrahim, pro-
seguiu elle, este dia para a ceremonia , e regalando os
ministros da sua mesquita , quiz sem duvida dar -lhes of
gosto d'aquella illuminação . Giafar, replicou o califa
n'um tom que denotava estar um pouco desenfadado ,
visto o que acabas de dizer-me, commetteste tres faltas
que não são perdoaveis . A primeira , ter dado a Scheich
Ibrahim a licença de fazer a ceremonia no meu pavilhão :
um simples guarda não é official assás consideravel pa-
ra merecer tanta honra. A segunda, não me ter fallado
n'isso . E a terceira , não ter penetrado a verdadeira in-
tenção d'esse bom homem. Com effeito, estou persuadi-
do que não teve outra senão a de vêr se alcançaria uma
gratificação para ajudal- o a fazer esse gasto . Não te lem-
braste d'isso, e acho-lhe alguma razão de vingar-se de
a não ter alcançado , fazendo maior a despeza da illumi-
nação ».
O grão-visir Giafar, alegre de vêr que o califa toma-
va a cousa n'este tom, aceitou gostoso a reprehensão
das faltas que acabava de lançar-lhe em rosto, e confes-
sou francamente que obrára mal em não dar algumas
peças d'ouro a Scheich Ibrahim . « Visto ser assim, acres-
centou o califa sorrindo-se , é justo que sejas castigado
d'essas faltas ; porém será leve o castigo, e reduz -se a
passares o resto da noite como eu com essa boa gente,
44 AS MIL E UMA NOITES

que tenho gosto de ir vêr . Em quanto vou enfiar um


vestido de paisano, vai disfarçar-te tambem com Mesrour,
e vinde ambos commigo ». Quiz o visir Giafar represen-
tar-lhe que era tarde, e que a companhia se teria reco-
lhido antes que lá chegasse ; porém replicou que que-
ria absolutamente lá ir. Como nada fosse do que lhe dis-
sera o visir, não gostou este d'esta resolução ; porém
importava obedecer e não replicar.
Sahiu, pois, o califa do seu palacio disfarçado em
paisano, com o grão -visir Giafar e Mesrour, chefe dos
eunucos, e caminhou pelas ruas de Bagdad até ao jar-
dim . Estava a porta aberta pelo descuido de Scheich
Ibrahim, que se esquecera de fechal-a voltando de com-
prar o vinho. Agastou-se o califa : « Giafar, disse ao grão-
visir, que significa isto, estar a porta aberta a esta ho-
ra ? Será possivel que Scheich Ibrahim deixe assim a
porta aberta de noite ? Estimo mais crêr que o cuidado
da festa lhe fez commetter esta falta ».
Entrou o califa no jardim ; chegado que foi ao pavi-
lhão, como não quizesse subir ao salão antes de saber o
que n'elle se passava, consultou com o grão- visir se não
devia subir ás arvores que estavam mais perto d'elle
para averiguar isso . Porém olhando para a porta do sa-
lão, percebeu o grão-visir que estava meio aberta , e
d'isso o avisou . Scheich Ibrahim a deixára d'essa fórma
quando se deixára persuadir que entrasse e que fizesse
companhia a Noureddin e à bella persiana.
Deixou- se o califa do seu primeiro intento e subiu á
porta do salão sem fazer bulha ; a porta estava meio
aberta , de maneira que podia vêr os que estavam den-
tro sem ser visto . Ficou em extremo admirado quando
avistou uma senhora de belleza sem igual , e um man-
cebo dos mais gentis com Scheich Ibrahim, assentado á
mesa com elles. Scheich Ibrahim tinha a taça na mão :
« Bella senhora, dizia elle à bella persiana , um bom be-
bedor nunca deve beber sem primeiro cantar a sua mo-
dinha . Fazei-me a honra de ouvir-me ; eis-aqui uma das
mais galantes ».
Cantou Scheich Ibrahim ; e admirou-se tanto mais o
califa quanto ignorára até então que bebesse vinho, e
CONTOS ARABES 45

o tivera em conta de um homem cordato e pausado , co-


mo lhe parecera sempre . Afastou -se da porta com a mes-
ma cautela com que se chegára a ella, e veio ter com
o grão-visir Giafar que estava na escada, alguns degraus
abaixo da varanda : « Sóbe, disse -lhe, e vê se os que
estão alli dentro são ministros da mesquita, como qui-
zestes persuadir-me ».
Visto o tom com que o califa pronunciou estas pala-
vras, conheceu muito bem o grão-visir que a cousa não
lhe era favoravel. Subiu, e olhando pela abertura da
porta , tremeu de susto quando viu as mesmas tres pes-
soas na situação e no estado em que estavam . Voltou ao
califa todo confundido e não soube que dizer-lhe. « Que
desordem ! disse-lhe o califa ; que haja homens que te-
nham a ousadia de vir divertir- se ao meu jardim e no
meu pavilhão ! que Scheich Ibrahim lhes de entrada, que
os consinta e se divirta com elles ! Não creio todavia
que se possa vêr um mancebo e uma joven senhora tão
bem apessoados e tão dignos um do outro. Antes de ma-
nifestar o meu resentimento quero certificar-me mais, e
saber quem possam ser e por que razão se acham aqui » >.
Voltou á porta para observal-os ainda, e o visir, que o
seguiu, ficou atraz d'elle em quanto tinha os olhos fitos
n'elles. Ouviram tanto um como o outro que Scheich
Ibrahim dizia á bella persiana : « Minha amavel senhora,
ha alguma cousa que possaes desejar para que a nossa
alegria d'esta noite seja mais completa ? - Parece-me,
replicou a bella persiana, que nos divertiriamos mais se
fivesseis um instrumento que se pudesse tocar, e que
quizesseis trazer-m'o . - Senhora, replicou Scheich Ibra-
him, sabeis tocar cythara ? - Trazei-a, disse a bella per-
siana, eu tocarei para que vejaes » .
Sem ir longe do seu lugar, tirou Scheich Ibrahim
uma cythara d'um armario e apresentou-a á bella per-
siana, que principiou a afinal-a. O califa todavia voltou-
se para o grão- visir Giafar : « Giafar, disse-lhe, a joven
senhora vai tocar cythara : se tocar bem perdoar- lhe-hei
como ao mancebo ; quanto a ti não deixarei de te man-
dar enforcar. Commendador dos crentes , replicou o
grão-visir , se tal é a vossa intenção, peço então a Deus
46 AS MIL E UMA NOITES

que toque mal . — Porque ? replicou o califa . - Mais pes-


soas seremos, respondeu o grão-visir, mais lugar teremos
de consolar-nos de morrer em bella e boa companhia » .
O califa, que gostava de bons ditos, pôz-se a rir d'esta
agudeza, e voltando-se para a abertura da porta appli-
cou o ouvido para ouvir tocar.
A bella persiana preludiava já de modo que deu logo
a entender ao califa que tocava como mestre . Principiou
depois a cantar uma aria e acompanhou a sua voz, que
era admiravel, com a cythara, e o executou com tanta
arte e perfeição que o califa ficou enlevado .
Apenas a bella persiana acabou de cantar, logo o ca-
lifa desceu da escada, e o visir Giafar seguiu-o . Estando
em baixo : << Nunca na minha vida , disse ao visir, ouvi
uma voz mais bella , nem tocar melhor cythara . Isaac,
que me parecia o melhor tocador que houvesse no mun-
do, não é comparavel com ella . Estou tão satisfeito que
quero entrar para ouvil-a tocar diante de mim ; trata- se
de ver o modo como o farei. -- Commendador dos cren-
tes, replicou o grão -visir, se entraes e Scheich Ibrahim
vos reconhece , morrerá de susto . - Isso é tambem o
que me penalisa , replicou o califa ; e teria pezar de ser
a causa da sua morte, depois de haver tanto tempo que
me serve . Vem-me um pensamento á idéa, que poderá
ter um bom effeito ; deixa-te estar aqui com Mesrour, e
esperai por mim na primeira rua do jardim ».
Tinha a proximidade do Tigre dado lugar ao califa
de desviar d'elle bastante porção de agua para cima de
uma grande abobada bem terraplenada , para formar alli
uma bella piscina, onde vinha recolher-se o melhor pei-
xe que havia no Tigre. Bem o sabiam os pescadores , e
teriam desejado muito a liberdade de pescar n'ella , po-
rém tinha o califa prohibido expressamente a Scheich
Ibrahim que consentisse que ninguem se chegasse a el-
la. Não obstante, esta mesma noite, um pescador que
passava diante da porta do jardim , depois que o califa
entrára n'elle e que a deixára aberta assim como a achá-
ra, tinha-se aproveitado da occasião , e internado no jar-
dim até á lagûa.
Tinha este pescador armado as suas redes , e estava
CONTOS ARABES 47

para puxal-as no instante em que o califa que, visto o


descuido de Scheich Ibrahim, suspeitára o que tinha
acontecido, e queria aproveitar- se d'esta conjunctura
para o seu intento, veio ao mesmo lugar . Não obstante
o seu disfarce , o pescador o reconheceu e se lançou lo-
go a seus pés pedindo-lhe perdão, e desculpando - se com
a sua pobreza. « Levanta-te e não receies nada, replicou
o califa ; recolhe sómente as tuas redes e que eu veja o
peixe que n'ellas ha ».
Socegado o pescador, executou promptamente o que
desejava o califa, e trouxe cinco ou seis bellos peixes ;
escolheu o califa os dous maiores, que mandou atar jun-
tos pela cabeça com um renovo de arbusto . Disse depois
ao pescador : « Dá-me o teu vestido e toma o meu ».
Fez-se a troca em poucos instantes ; e , logo que o califa
se achou vestido de pescador dos pés até á cabeça :
« Péga nas tuas rédes, disse ao pescador, e vai tratar da
tua vida » .
Depois de partir o pescador, muito contente da sua
fortuna, pegou o califa nos peixes ambos com a mão, e
foi ter com o grão-visir Giafar e com Mesrour. Parou
diante do grão- visir e o grão-visir não o reconheceu :
« Que quereis ? disse-lhe ; vai-te , segue o teu caminho » .
Pôz-se logo o califa a rir, e o grão-visir o reconheceu.
<< Commendador dos crentes, exclamou elle, é possivel
que seja vossa magestade ? não vos reconhecia , e peço-
vos mil perdões da minha incivilidade . Podeis agora en-
trar no salão, sem recear que Scheich Ibrahim vos reco-
nheça. - Ficai aqui ainda, disse-lhe a elle e a Mesrour,
em quanto vou fazer o meu papel » .
Subiu o califa ao salão e bateu á porta . Noureddin ,
que o ouviu primeiro, avisou Scheich Ibrahim , e Scheich
Ibrahim perguntou quem era. Abriu o califa a porta ; e
dando sómente um passo pelo salão dentro para mos-
trar-se : « Scheich Ibrahim, respondeu elle , eu sou o
pescador Kerim : como percebi que regalaveis vossos
amigos e pesquei dous bellos peixes n'este instante, ve-
nho perguntar-vos se precisaes d'elles ».
Noureddin e a bella persiana alegraram- se de ouvir
fallar de peixe. « Scheich Ibrahim, disse logo a bella per-
48 AS MIL E UMA NOITES

siana, peço -vos que o mandeis entrar para vermos o seu


peixe ». Scheich Ibrahim não estava já em estado de
perguntar ao pretendido pescador, como, nem por onde
viera ; cuidou sómente em agradar á bella persiana .
Voltou pois a cabeça para o lado da porta com muito
trabalho, tanto tinha bebido , e disse gracejando ao cali-
fa, a quem tomava por um pescador : « Chega-te, bom
ladrão de noite, chega-te, para que te vejamos » .
Chegou-se o califa, contrafazendo perfeitamente todos
os gestos de um pescador , e apresentou os peixes :
<< Eis-ahi excellente peixe, disse a bella persiana ; de
boa vontade comeria d'elle se fosse cozido e bem pre-
parado . - Tem a senhora razão, replicou Scheich Ibra-
him ; que queres que façamos do teu peixe, se não está
preparado ? Vai , prepara-o tu mesmo e traze-nol-o ; acha-
rás tudo o que for preciso na minha cozinha » .
Veio segunda vez o califa ter com o grão-visir :

< Giafar, disse-lhe , fui muito bem recebido , porém pe-
dem que o peixe seja preparado . Eu vou cozinhal-o ,
replicou o grão - visir ; será isso feito n'um instante .
Desejo com tanta ancia, replicou o califa, conseguir o
meu intento, que eu mesmo o farei. Visto que faço tão
bem de pescador, posso tambem fazer de cozinheiro : na
minha mocidade tambem fiz ás vezes de preparador de
comida e não me desempenhava mal ». Dizendo estas
palavras tinha tomado o caminho da casa de Scheich
Ibrahim, e o grão-visir e Mesrour o seguiam .
Lançaram mão da obra todos tres ; e, ainda que a
cozinha de Scheich Ibrahim não fosse grande , como nada
faltasse do que careciam, bem depressa cozinharam o
prato de peixe . Levou-o o califa, e servindo -o pôz tam-
bem um limão diante de cada um, para que se servis-
sem d'elles , se quizessem . Comeram com boa vontade ,
Noureddin e a bella persiana particularmente, e ficou o
califa em pé diante d'elles .
Tendo acabado , Noureddin encarou o califa : « Pesca-
dor, disse-lhe, não se pode comer melhor peixe , e tu
nos déste o maior gosto do mundo » . Metteu ao mesmo
tempo a mão no seio, e sacou a sua bolsa em que ha-
via trinta peças d'ouro, o resto das quarenta que San-
CONTOS ARABES 49

giar, official do rei de Balsora, lhe déra antes da sua


partida. << Toma, disse-lhe ; mais te daria se mais tives-
se. Ter-te-hia tirado da pobreza se te tivesse conhecido
antes que gastasse o meu patrimonio : não deixes de
aceital- o de tão bom coração como se o presente fosse
muito mais consideravel » .
Aceitou o califa a bolsa ; e agradecendo a Noureddin ,
como conheceu que era ouro que estava dentro : < « Se-
nhor, disse-lhe, não posso assás agradecer-vos a vossa
liberalidade ; é felicidade ter que tratar com gente hon-
rada como vós, porém antes de me retirar tenho um fa-
vor que pedir-vos e que vos supplico que me concedaes.
Eis-aqui uma cythara, que me dá a entender que a se-
nhora sabe tocar este instrumento . Se pudesseis al-
cançar d'ella que me fizesse a graça de tocar alguma
cousa, ir- me-hia mais satisfeito ainda ; é instrumento
-
de que sou muito apaixonado . — Bella persiana , disse
logo Noureddin dirigindo-se a ella, peço-vos este favor,
espero que não m'o recusareis » . Pegou ella na cythara,
e tendo-a afinado em poucos instantes, tocou e cantou
uma aria que enlevou o califa. Acabando, continuou a
tocar sem cantar ; e o fez com tanto agrado que ficou o
califa satisfeito .
Logo que acabou de tocar a bella persiana : « Oh !
exclamou o califa ; que voz ! que mão ! e que tocar !
nunca em tempo algum se cantou melhor ! jámais se to-
cou melhor cythara ! nunca se viu nem ouviu cousa
igual !»
Noureddin, que costumava dar qualquer cousa que
The pertencesse aos que lh'a gabassem : « Pescador, re-
plicou elle, bem vejo que és conhecedor ; visto que tan-
to te agrada, é tua, e d'ella te faço presente » . Levan-
tou-se ao mesmo tempo, tomou o seu vestido, que lar-
gára, e quiz partir e deixar o califa, que não conhecia
senão por um pescador, na posse da bella persiana.
Pasmada em extremo a bella persiana da liberalida-
de de Noureddin, o deteve. « Senhor, disse-lhe, encaran-
do-o ternamente ; aonde pretendeis pois ir ? tornai ao
vosso lugar, e tende a bondade de ouvir o que vou to-
car e cantar » . Fez o que ella desejava ; e tocando então
TOMO III. 4
50 AS MIL E UMA NOITES

cythara, e encarando-o com as lagrimas nos olhos , can-


tou versos que fez de repente, e lhe arguiu com vehe-
mencia o pouco amor que lhe tinha, visto que a deixa-
va tão facilmente a Kerim, e com tanta dureza. Queria
dizer, sem explicar-se mais, a um pescador tal como
Kerim , que ella nem elle conheciam pelo califa. Acaban-
do, pousou a cythara ao seu lado, e levou o lenço ao
rosto para occultar as lagrimas, que não podia repri-
mir.
Noureddin não respondeu palavra a estas queixas, e
manifestou pelo seu silencio que não se arrependia da
doação que fizera. Porém o califa , pasmado do que aca-
bava de ouvir, disse -lhe : « Senhor, pelo que vejo, esta
senhora tão bella, tão rara, tão admiravel, que me dés-
tes com tanta generosidade, é vossa escrava e vós sois
-
seu senhor ? É verdade , Kerim , replicou Noureddin ; e
ficarias muito mais pasmado do que pareces, se te con-
tasse todas as desgraças que a seu respeito me aconte-
ceram. Oh ! peço-vos por favor, senhor, replicou ,
desempenhando sempre muito bem o papel de pescador,
que me relateis a vossa historia ! >»
Noureddin, que acabava de fazer-lhe outras cousas de
maior consequencia, ainda que não o considerasse senão
como pescador, quiz ainda ter esta complacencia . Con-
tou -lhe toda a sua historia, principiando pela compra
que o visir seu pai fizera da bella persiana para o sul-
tão de Balsora, e nada omittiu do que fizera e de tudo
o que lhe acontecera até à sua chegada a Bagdad com
ella, e até ao instante em que lhe fallava .
Tendo Noureddin acabado : « E agora, aonde ides ?
-
perguntou-lhe o califa . - Aonde vou ? respondeu elle ;
aonde Deus me levar. Se quereis seguir o meu conse-
lho, replicou o califa, não ireis mais longe ; pelo con-
trario, deveis voltar a Balsora. Vou dar-vos uma carta
que entregareis ao sultão da minha parte : vereis que
vos receberá muito bem apenas a tiver lido, e que nin-
guem vos dirá palavra . - Kerim, replicou Noureddin , o
que me dizes é bem singular ; nunca se disse que um
pescador como tu tivesse correspondencia com um sul-
tão . Não deve isso admirar-vos, replicou o califa ; fi-
CONTOS ARABES 51

zemos nossos estudos juntamente debaixo da direcção


dos mesmos mestres, e fomos sempre muito amigos. É
verdade que a fortuna não nos foi igualmente favoravel ;
ella o fez sultão, e a mim pescador ; mas esta desigual-
dade não diminuiu a nossa amizade. Contento - me da
consideração que tem em não recusar-me cousa alguma
de tudo o que lhe peço para o serviço dos meus ami-
gos ; deixai-me obrar e vereis o feliz successo » .
Consentiu Noureddin no que quiz o califa ; e como
houvesse no salão tudo que era preciso para escrever ,
escreveu esta carta o califa ao sultão de Balsora ; no al-
to da carta, quasi na extremidade do papel, acrescentou
esta formula em muito pequeno caracter : Em nome de
Deus misericordiosissimo, para significar que queria ser
obedecido absolutamente .

CARTA DO CALIFA HAROUN ALRASCHID AO SULTÃO


DE BALSORA

« Haroun Alraschid, filho de Mahdi, envia esta carta


a Mohammed Zinebi, seu primo . Logo que Noureddin ,
filho do visir Khacan, portador d'esta carta, t'a tiver en-
tregado e a tenhas lido , logo no mesmo instante despo-
ja-te do manto real, põe-lh'o nos hombros, e manda as-
sental-o no teu lugar ; n'isso não haja falta. Adeus ».

O califa dobrou e fechou a carta ; c , sem declarar a


Noureddin o que continha : « Eil-a aqui, disse-lhe , ide
embarcar-vos sem mais demora em um navio que parti-
rá logo ; dormireis quando fordes embarcado ». Aceitou
Noureddin a carta, e partiu com o pouco dinheiro que
tinha comsigo, quando Sangiar lhe déra a sua bolsa ; e
a bella persiana, inconsolavel pela sua ausencia, se fi-
cou de parte sobre o sophá, e desfez-se em choros .
Apenas sahira Noureddin do salão , Scheich Ibrahim,
que guardára silencio em quanto se passára tudo isto,
encarou o califa, que tomava sempre pelo pescador Ke-
rim : «Ouve, Kerim , disse-lhe , tu vieste trazer- nos aqui
dous peixes que valem muito bem vinte moedas de co-
bre, pelo menos, e por isso deram- te uma bolsa e uma
52 AS MIL E UMA NOITES

escrava : parece-te que tudo isto será para ti ? Declaro-te


que quero tomar parte na escrava . Quanto á bolsa, mos-
tra-me o que ha dentro ; se fôr prata, tomarás uma pe-
ça para ti ; se fôr ouro eu tomarei tudo, e dar-te-hei al-
gumas peças de cobre que tenho na minha bolsa » >.
Para entender bem o que se segue, disse aqui Sche-
herazada interrompendo-se, é preciso notar que antes de
trazer ao salão o prato de peixe preparado, tinha o ca-
lifa encarregado o grão -visir Giafar de correr a toda a
pressa ao palacio, trazer-lhe quatro criados graves com
um vestido, e de se pôrem á espera no outro lado do
pavilhão, até que batesse as palmas n'uma das janellas .
Tinha o grão-visir desempenhado esta ordem, e elle, e
Mesrour, com os quatro criados graves, esperavam pelo
signal no lugar determinado.
Torno ao meu discurso, acrescentou a sultana . O ca-
lifa, fazendo sempre o papel de pescador, respondeu ou-
sadamente a Scheich Ibrahim : « Scheich Ibrahim , ignoro
o que ha na bolsa : prata, ou ouro, repartirei comvosco
de muito boa vontade ; quanto à escrava quero -a para
mim só . Se não quereis estar pelas condições que vos
proponho, nada tereis » .
Levado da cólera, Scheich Ibrahim , á vista d'esta in-
solencia, pegou n'uma das porcelanas que estavam sobre
a mesa e a atirou á cabeça do califa . Pouco custou ao
califa evitar o projectil lançado por um homem tomado
do vinho ; foi dar contra o muro, onde se quebrou em
muitos pedaços . Scheich Ibrahim, mais agastado que d'an-
tes, depois de ter errado o seu alvo, péga na vela que
estava sobre a mesa, levanta-se cambaleando, e desce
por uma escada occulta para ir buscar um pau .
Aproveitou-se o califa d'esse tempo, e bateu as pal-
mas n'uma das janellas. O grão -visir, Mesrour e os qua-
tro criados graves lhe tiraram bem depressa o vestido
de pescador e lhe vestiram o que lhe trouxeram. Não ti-
nham ainda acabado, e estavam occupados á roda do ca-
lifa, que estava assentado no throno que havia no salão ,
quando Scheich Ibrahim, animado pelo interesse , entrou
com o pau na mão, com que esperava regalar o preten-
dido pescador. Em vez de encontral-o viu o seu vestido
CONTOS ARABES 53
333

no meio do salão , e o califa assentado no seu throno,


com o grão-visir e Mesrour a seu lado . Parou , vendo
este espectaculo, e ficou em duvida se estava acordado
ou se dormia . Riu -se o califa do seu pasmo : «< Scheich
Ibrahim , disse-lhe, que queres ? que procuras ? >>
Scheich Ibrahim , que não podia já duvidar que fos-
se o califa, lançou-se logo a seus pés, com o rosto e a
longa barba por terra : « Commendador dos crentes , cla-
mou elle , vosso vil escravo vos offendeu, implora a vos-
sa clemencia e vos pede mil perdões » . Como os criados
graves acabassem de vestil-o n'este instante , disse -lhe
descendo do seu throno : « Levanta-te, eu te perdûo » .
Dirigiu-se depois o califa á bella persiana que tinha
suspendido a sua afflicção logo que percebeu que o jar-
dim e o pavilhão pertenciam a este principe e não a
Scheich Ibrahim, como o fingira, e que era elle mesmo
disfarçado em pescador . « Bella persiana, disse-lhe, le-
vantai-vos e segui- me . Deveis conhecer quem sou depois
do que acabaes de vér, e que não sou capaz de aprovei-
tar-me do presente que Noureddin me fez da vossa pes-
soa, com uma generosidade de que não ha exemplo .
Mandei-o a Balsora para alli ser sultão ; e lá vos manda-
rei tambem para ser sultana, logo que lhe tiver remet-
tido os despachos necessarios para o seu estabelecimen-
to. Entretanto vou dar- vos um quarto no meu palacio ,
onde sereis tratada conforme o vosso merecimento » >.
Este discurso socegou e consolou a bella persiana,
e indemnisou-a plenamente da sua afflicção com a ale-
gria de saber que Noureddin , que ella amava apaixona-
damente, acabava de ser elevado a uma tão alta digni-
dade . Executou o califa o que acabava de dizer-lhe re-
commendou-a a Zobeida , sua mulher, depois de ter-lhe
dado parte da consideração que tivera com Noureddin .
A volta de Noureddin a Balsora foi mais feliz e mais
antecipada alguns dias do que era de desejar para a sua
felicidade . Não viu parente, nem amigo quando chegou :
foi direito ao palacio do sultão e o sultão dava audien-
cia. Abriu lugar por entre a multidão, segurando a car-
ta com a mão erguida ; deixaram-n'o passar e a apresen-
tou. Recebeu-a o sultão, abriu-a, e mudou de côr len-
54 AS MIL E UMA NOITES

do-a. Beijou-a por tres vezes, e ia a executar a ordem


.
do califa, quando se lembrou de mostral -a ao visir
Saouy, inimigo irreconciliavel de Noureddin.
Saouy, que reconhecera, Noureddin e que desejava
saber com grande desassocego a que intento viera, não
ficou menos pasmado que o sultão da ordem que a car-
ta continha . Como não estivesse n'isso menos interessa-
do, imaginou n'um instante o meio d'illudil-a. Fingiu
que a não tinha lido bem ; e , para lêl-a segunda vez ,
voltou-se um pouco, como para procurar melhor clari-
dade. Então, sem que ninguem o percebesse, nem dés-
se por tal, arrancou com destreza a formula que estava
no alto da carta, que significava que o califa queria
ser obedecido absolutamente, levou-a á bocca e a engu-
liu.
Depois de tão grande maldade, voltou- se Saouy para
o rei , entregou-lhe a carta, e fallando em voz baixa :
<
« Então, senhor, lhe perguntou ; qual é a intenção de
vossa magestade ? De fazer o que o califa me ordena,
respondeu o sultão . Não façaes tal, senhor, replicou o
malvado visir ; esta é a letra do califa, porém a formula
não está aqui ». O sultão bem a tinha visto ; mas na per-
turbação em que estava, imaginou que se tinha engana-
do, pois não a via já .
« Senhor, continuou o visir, não se deve duvidar
que o califa concedesse esta carta a Noureddin, vistas
as queixas que lhe foi fazer contra vossa magestade e
contra mim, para livrar-se d'elle . Além d'isso deve -se
considerar que não mandou um expresso com a patente,
sem o que não tem validade . Não se depõe um sultão,
como vossa magestade, sem essa formalidade ; poderia
muito bem vir outro, sem ser Noureddin , com uma carta
falsa ... Isto nunca se praticou ! Senhor, póde vossa ma-
gestade descançar sob minha palavra, e sobre mim tomo
todo o mal que succeder » .
Deixou-se persuadir o sultão Zinebi, e abandonou
Noureddin á discrição do visir Saouy, que o levou para
casa á mão armada . Apenas chegou, mandou-lhe dar
bastonadas até ficar como morto, e n'este estado man-
dou leval-o á cadĉa , ordenando que o mettessem no
CONTOS ARABES 55

calabouço mais escuro, com ordem ao carcereiro de não


lhe dar senão pão e agua.
Tornado que foi a si Noureddin e vendo-se n'este ca-
labouço, deu gritos lamentosos, chorando a sua misera-
vel sorte : « Ah, pescador ! clamou elle, quanto me en-
ganaste e quão credulo fui ! Poderia esperar um destino
tão cruel, visto o beneficio que te fiz ? Deus te abençôe
todavia ; não posso crêr, que tua intenção fosse má, e
terei paciencia até findarem meus males » .
Ficou Noureddin dez dias n'este estado, e o visir
Saouy não se esqueceu que o mandára lá metter. Deter-
minado a fazer-lhe perder a vida ignominiosamente, não
ousava emprehendel-o por sua propria authoridade . Para
ser bem succedido no seu pernicioso intento, carregou
muitos de seus escravos com ricos presentes e foi com
elles apresentar- se ao sultão : « Senhor, disse-lhe com
uma negra perfidia ; eis-aqui o que o novo sultão sup-
plica a vossa magestade que vos digneis aceitar na sua
exaltação á corôa ».
Percebeu o sultão o que Saouy queria dar-lhe a en-
tender: « O quê ! replicou ; ainda vive esse desgraçado ?
Eu cuidava que o terias mandado matar. Senhor, re-
plicou Saouy, a mim não me pertence mandar tirar a
vida a ninguem, mas sim a vossa magestade. Vai , re-
plicou o rei, manda-lhe cortar o pescoço ; para isso eu te
dou licença. ― Senhor, disse então Saouy, agradeço infi-
nito a vossa magestade a justiça que me faz . Porém co-
mo Noureddin me fez tão publicamente a affronta que
não ignora, peço-lhe como graça especial que consinta
que a execução se faça defronte do palacio e que os pre-
goeiros vão annuncial-o por todos os bairros da cidade,
para que ninguem ignore que a offensa que me fez se-
rá plenamente reparada . Concedeu -lhe o sultão o que pe-
dia ; e os pregoeiros, fazendo a sua obrigação , diffundi-
ram uma tristeza geral por toda a cidade. A lembrança
muito recente das virtudes do pai, fez com que não se
soube senão com indignação que iam matar o filho igno-
miniosamente , por solicitação e pela maldade do visir
Saouy.
Foi Saouy á prisão em pessoa, acompanhado d'uns
56 AS MIL E UMA NOITES

vinte escravos, ministros da sua crueldade. Trouxeram-


lhe a Noureddin e o fez montar n'um cavallo ridiculo
sem sella. Logo que Noureddin se viu nas mãos do seu
« Tu triumphas, disse-lhe, e abusas do teu po-
inimigo : <
der; tenho confiança na verdade d'estas palavras d'um
de nossos livros : Vós julgaes injustamente, e em pouco
tempo sereis vós mesmos julgados » .
O visir Saouy, que triumphava verdadeiramente : « <0
qué, insolente ! replicou elle ; tu ousas ainda insultar-
me ? Vai , eu t'o perdôo, succeda o que succeder, com-
tanto que te veja cortar o pescoço á vista de todo o Bal-
sora. Tu deves tambem saber o que diz outro de nossos
livros Que importa morrer no dia seguinte ao da mor-
te do seu inimigo ? »
Este ministro, implacavel no seu odio e na sua ini-
mizade, cercado de seus escravos armados, mandou con-
duzir a Noureddin adiante d'elle e tomou o caminho do
palacio . Esteve o povo a ponto de lançar-se sobre elle , e
o teria apedrejado se alguem tivesse principiado a dar o
exemplo. Tendo-o levado até á praça do palacio , defron-
te do quarto do sultão , deixou -o nas mãos do carrasco
e foi ter com elle, que estava já no seu gabinete , pres-
tes a alegrar a sua vista no sanguinolento espectaculo
que se preparava.
A guarda do sultão e os escravos do visir Saouy, que
formavam um grande circulo a Noureddin, tiveram mui-
to trabalho para conter o povo , que fazia todos os esfor-
ços possiveis, porém inutilmente, para salval-o . Chegou-
se a elle o algoz : « Senhor, disse-lhe, eu vos supplico
que me perdoeis a vossa morte ; não sou senão um es-
cravo, e não posso dispensar-me de cumprir a minha
obrigação ; a não precisardes de alguma cousa , ponde-
vos em postura conveniente ; não tardará o sultão a or-
denar-me que dê o golpe. - N'este momento tão cruel ,
alguma pessoa caritativa, disse o desconsolado Noured-
din, voltando a cabeça para a direita e para a esquerda,
não quererá fazer-me a graça de trazer-me agua pa-
ra matar a sêde que padeço » ? No mesmo instante trou-
xeram agua n'um vaso, que de mão em mão lhe fizeram
passar. O visir Saouy, que percebeu esta demora, gritou
CONTOS ARABES 57

ao algoz da janella do gabinete do sultão, onde estava :


Porque esperas ? fere ! » Proferidas que foram estas pa-
lavras barbaras e cheias de deshumanidade, resoou toda
a praça de fortes imprecações contra elle ; e o sultão,
cioso da sua authoridade, não approvou esta ousadia na
sua presença, como deu a entender, gritando que espe-
rassem. Teve para isso outra razão ; é que n'esse ins-
tante estendeu a vista por uma rua que estava diante
d'elle e terminava na praça, e avistou no meio d'ella um
grupo de cavalleiros que corriam á rédea solta . « Visir,
disse logo a Saouy, que é aquillo ? Vai já saber o que é » .
Saouy, que suspeitou o que podia ser, apertou com o sul-
tão para dar signal ao algoz . « Não, replicou elle , quero
primeiro saber quem são aquelles cavalleiros » . Era o
grão-visir Giafar com a sua comitiva, que vinha de Bag-
dad, em pessoa, da parte do califa.
Para saber o motivo da chegada d'este ministro a
Balsora, notaremos que depois da partida de Noureddin
com a carta do califa , o califa não se lembrou , no dia
seguinte, nem tambem passados alguns dias, de mandar
um expresso com a patente de que tinha fallado á bella
persiana. Estava no palacio interior, que era o das mu-
lheres ; e, passando por diante d'um quarto, ouviu uma
bellissima voz : parou ; e assim que percebeu algumas
palavras que denotavam tristeza por causa de uma au-
sencia, logo perguntou a um official dos eunucos , que o
seguia, quem era a mulher que morava no quarto ; e o
official respondeu que era a escrava do joven senhor que
mandára a Balsora para ser sultão em lugar de Moham-
med Zinebi .
« Ah, pobre Noureddin, filho de Khacan ! clamou lo-
go o califa ; não me lembrei de ti ! Depressa , acrescen-
tou elle, vão já chamar Giafar ! » Chegou este ministro :
« Giafar, disse- lhe o califa, não me lembrei de mandar a
patente para fazer reconhecer a Noureddin sultão de Bal-
sora. Não ha tempo a perder para fazel - a expedir ; toma
gente e cavallos de posta e vai a Balsora com a brevi-
dade possivel. Se Noureddin não vive já e o teem man-
dado matar, manda enforcar o visir Saouy; se não mor-
reu, traze-m'o com esse sultão e com esse visir » .
58 AS MIL E UMA NOITES

O grão-visir Giafar gastou o tempo que era preciso


para montar a cavallo, e partiu logo com grande nume-
ro de officiaes de sua casa . Chegou a Balsora do modo e
no tempo que observamos . Apenas entrou na praça, logo
toda a gente se afastou para dar-lhe lugar, gritando :
< Perdão para Noureddin ! » e entrou no palacio com o
<
«
mesmo sequito até à escada, onde se apeou . O sultão de
Balsora, que reconhecera o primeiro ministro do califa,
foi ao seu encontro e o recebeu á entrada do seu quar-
to. Perguntou logo o grão-visir se Noureddin vivia ain-
da, e se vivesse que o mandassem vir. Respondeu o rei
que vivia, e ordenou que o trouxessem ; como appare-
ceu logo, porém atado e manietado, mandou-o desatar e
pôr em liberdade, e ordenou que segurassem o visir
Saouy, e que o atassem e manietassem com as mesmas
cordas.
O grão-visir Giafar dormiu só uma noite no palacio ;
partiu no dia seguinte ; e, conforme a ordem que tinha,
levou comsigo a Saouy, o sultão de Balsora e Noured-
din. Chegado que foi a Bagdad, apresentou-os ao califa,
e depois de lhe ter dado relação de sua viagem e parti-
cularmente do estado em que achára a Noureddin , e do
tratamento que lhe fizeram pelo conselho, e malevolen-
cia de Saouy, propoz o califa a Noureddin que cortasse
elle mesmo a cabeça ao visir Saouy. « Commendador
dos crentes , replicou Noureddin, por mais mal que me
tenha feito esse malvado homem, e procurado fazer a
meu defunto pai, ter-me-hia pelo mais infame de todos
os homens, se banhasse as minhas mãos no seu sangue » .
Elogiou muito o califa a sua generosidade, e mandou fa-
zer esta execução pela mão do algoz » .
Quiz o califa mandar de novo Noureddin a Balsora
para alli reinar ; porém Noureddin lhe supplicou que o
dispensasse d'isso : « Commendador dos crentes , replicou
elle, aborrecer-me-ha tanto de hoje em diante a cidade
de Balsora, visto o que n'ella me aconteceu, que ouso
supplicar a vossa magestade que me permitta observar
o juramento que fiz - de nunca na minha vida tornar lá.
Poria toda a minha gloria em servil-o junto à sua pes-
soa, se tivesse a bondade de conceder-me essa graça » .
CONTOS ARABES 59

Guardou-o o califa no numero dos seus cortezãos os mais


validos , entregou-lhe a bella persiana e lhe fez tamanhos
beneficios que viveram juntos até à morte com toda a fe-
licidade que podiam desejar.
Quanto ao sultão de Balsora, contentou-se o califa em
lhe dar a conhecer o quanto devia ser circumspecto na
escolha que fazia dos visires, e o despediu para os seus
estados.

HISTORIA

DE BEDER, PRINCIPE DA PERSIA, E DE GIAUHARE ,


PRINCEZA DO REINO DE SAMANDAL

A Persia é uma parte da terra de tamanha extensão,


que não sem razão tomaram os seus antigos reis o so-
berbo titulo de reis dos reis. Quantas provincias são,
sem fallar de todos os outros reinos que tinham con-
quistado, tantos reis havia : não só lhes pagavam estes
reis avultados tributos, mas eram-lhe tambem tão sujei-
tos, como o são os governadores aos reis de todos os
outros reinos.
Um d'estes reis, que principiára o seu reinado com
felizes e grandes conquistas, reinava havia largos annos,
com grande felicidade e socego, por isso era o mais sa-
tisfeito de todos os monarchas. Por uma unica parte se
considerava desditoso : consistia em ser mui adiantado
em annos, e em não haver uma de todas as suas mu-
lheres, que lhe désse um principe para lhe succeder de-
pois de sua morte . Tinha sem embargo mais de cem, to-
das alojadas magnifica e separadamente, com escravas
para servil-as, e eunucos para guardal-as . Apesar de to-
dos estes cuidados em contental-as e em prevenir os
seus desejos, nenhuma satisfazia a sua espectação . Tra-
ziam-lh'as algumas vezes dos paizes mais remotos e não
se contentava em pagal-as sem ajustar preço, honrava
ainda os mercadores, beneficiava-os, e abençoava-os na
esperança que finalmente teria um filho de alguma. Não
havia tambem boas obras que não fizesse nam
60 AS MIL E UMA NOITES

o céo . Fazia esmolas immensas aos pobres, grandes da-


divas aos mais devotos da sua religião , e novas funda-
ções religiosas em seu favor, para alcançar pelas suas ora-
ções o que desejava com tanta ancia.
Um dia, que conforme o costume praticado todos os
dias pelos reis seus predecessores, quando estavam de
residencia na sua capital, dava assembléa a seus corte-
zãos, onde se achavam todos os estrangeiros distinctos
que estavam na sua côrte onde se entretinham, não de
novas que diziam respeito ao estado, mas sim das scien-
cias, de historia, de litteratura , de poesia e de qualquer
outra cousa capaz de recrear o espirito agradavelmente ;
um dia, digo, veio um eunuco annunciar-lhe que um
mercador, que chegava de um paiz remoto , com uma
escrava que lhe trazia, pedia licença para lh'a mostrar.
<
«
< Que o façam entrar e assentar em tal lugar, disse o
rei ; fallar-lhe-hei, concluida que seja a assembléa » . In-
troduziram o mercador e o collocaram n'um lugar d'on-
de podia ver o rei á sua vontade, e ouvil-o fallar fami-
liarmente com os que estavam mais perto da sua pes-
soa.
Comportava-se assim o rei com todos os estrangeiros
que tinham de fallar-lhe , e o fazia expressamente para
que se acostumassem a vêl-o, e vendo-o fallar a uns e
a outros com familiaridade e com bondade, tomassem a
confiança de lhe fallar do mesmo modo , sem deixar -se
perturbar do esplendor e da grandeza que o cercavam, ca-
pazes de tolher a palavra aos que não estivessem habitua-
dos a isso . Praticava-o tambem para com os embaixado-
res : comia logo com elles ; e, em quanto durava a co-
mida, informava-se da sua saude , da sua viagem e das
particularidades do seu paiz . Isto lhes dava confiança pa-
ra com a sua pessoa, e depois dava-lhes audiencia.
Acabada que foi a assembléa retiraram-se todos , e só
ficou o mercador, o qual se prostrou diante do throno do
rei, com o rosto por terra, e lhe desejou o cumprimen-
to de todos os seus desejos. Levantado que foi, pergun-
tou-lhe o rei se era verdade que tinha trazido uma es-
crava como lhe disseram, e se era bella .
CONTOS ARABES 61

gestade as tem bellissimas, desde o tempo que lh'as pro-


curam em todos os lugares do mundo com tanto cuida-
do ; porém posso certificar, sem recear gabar demasia-
do a minha fazenda , que não viu ainda uma que possa
entrar em concorrencia com ella , se se considera a sua
belleza, seu bello talhe, seus agrados e todas as perfei-
ções de que é dotada. Onde está ? replicou o rei ; tra-
ze-m'a. Senhor, deixei-a entregue a um official dos vos-
sos eunucos ; póde vossa magestade mandal-a vir ».
Trouxeram a escrava ; e , logo que o rei a viu , ficou
enlevado ao consideral-a só pelo seu talhe esbelto . En-
trou logo n'um gabinete , aonde o mercador o seguiu
com alguns eunucos . Trazia a escrava um véo de setim
vermelho com listras d'ouro, que lhe cobria o rosto. O
mercador lh'o tirou , e viu o rei da Persia uma senhora,
que excedia em belleza todas as que tinha então , e quan-
tas tinha tido . D'ella ficou apaixonadamente namorado
no mesmo instante, e perguntou ao mercador por quan-
to a queria vender.
«Senhor, respondeu o mercador, dei mil peças d'ouro
ao que m'a vendeu, e parece-me que gastei outro tanto
nos tres annos de viagem para chegar á vossa côrte . Deus
me livre de estabelecer preço para tão grande monarcha !
Supplico a vossa magestade que a aceite de presente , se é
do seu agrado . — Agradeço-te , replicou o rei ; não é es-
se o meu costume de obrar para com os mercadores ,
que vem de tão longe com a mira de me dar gosto :
mando-te dar dez mil peças d'ouro ; ficarás contente ?-
Senhor, replicou o mercador, ter-me-hia considerado fe-
licissimo se vossa magestade a quizesse aceitar gratuita-
mente, mas não ousarei recusar tão grande liberalidade .
Não deixarei de publical-a no meu paiz e por todas as
partes por onde passar » . Contou - se-lhe a dita somma ; e ,
antes que se retirasse, mandou o rei revestil- o na sua
presença de um vestido de brocado d'ouro.
Deu alojamento á bella escrava no quarto mais sum-
ptuoso depois do seu, e lhe destinou algumas matronas
e outras mulheres escravas para servil -a, com ordem de
a levarem ao banho, de vestil-a com o mais magnifico
vestido que pudessem achar, e de mandar vir os mais bal
62 AS MIL E UMA NOITES

los collares de perolas, e os diamantes mais finos , e ou-


tras pedras ricas para que escolhesse ella mesma o que
melhor lhe conviesse .
As matronas, que não tinham outro desejo senão

agradar ao rei, ficaram arrebatadas de admiração ao vér


a belleza da escrava. Como d'isso entendessem muito
bem : «Senhor, disseram ellas, se vossa magestade tem
a paciencia de dar-nos sómente tres dias, obrigamo-nos
a mostrar-lh'a então muito mais bella do que é agora,
de modo que a não reconhecerá » . Teve o rei um gran-
de pezar em privar-se tanto tempo do gosto de possuil-a
CONTOS ARABES 63

inteiramente : « Sim , quero, replicou elle ; mas sob con-


dição que cumprireis a vossa promessa » .
A capital do rei da Persia estava assentada n'uma ilha
e o seu palacio, que era soberbissimo, era construi-
do á borda do mar. Como o seu quarto dava sobre este
elemento, o da bella escrava, que não estava distante do
seu, dava tambem para o mar ; e era tanto mais agrada-
vel a vista quanto o mar chegava quasi ás muralhas .
Passados os. tres dias, a bella escrava, enfeitada e
adornada magnificamente, estava sósinha no quarto , as-
sentada n'um sophá e encostada a uma das janellas que
olhava para o mar, quando o rei, avisado que podia vél-a,
entrou. A escrava, que ouviu andar no seu quarto de
modo muito diverso das mulheres que a serviram até
então, voltou logo a cabeça para ver quem era. Reco-
nheceu o rei ; porém sem dar a menor demonstração de
surpreza, até sem se levantar para cortejal-o e para re-
cebel-o, como se lhe fosse uma pessoa a mais indiffe-
rente, conservou-se à janella como d'antes.
Ficou o rei da Persia em extremo pasmado, vendo
que uma escrava tão bella e tão bem constituida de cor-
po, soubesse tão pouco o que era o trato do mundo . Attri-
buiu este defeito á má educação que lhe deram , e ao
pouco cuidado que tiveram de ensinar-lhe os principios
da educação . Chegou-se para ella até á janella, onde, não
obstante o modo e a frialdade com que acabava de rece-
bel- o, se deixou vêr, admirar e tambem acariciar, e abra-
çar quanto elle quiz .
N'estes carinhos e abraços, parou este monarcha pa-
ra contemplal-a, ou antes para devoral-a com os olhos :
<<Minha bella, minha rica, minha roubadora ! clamava
elle ; dizei -me d'onde vindes ? d'onde sois , e quem são o
feliz pai e a feliz mãi que deram ao mundo uma obra
prima da natureza como vós ? quanto vos amo, e quan-
to vos amarei ! Jámais senti por mulher alguma o que
sinto por vós ; vi todavia muitas , e vejo ainda um gran-
de numero todos os dias ; mas nunca vi tantos encantos
juntos, que me enlevam a mim mesmo, para entregar-
me todo a vós . Meu coração , acrescentava elle , nada me
respondeis? nem sequer me daes a conhecer que vos
64 AS MIL E UMA NOITES

tenho extremado amor ? Nem sequer me encaraes para


dar aos meus olhos o gosto de se encontrarem com os
vossos, e de convencer-vos que não se pode amar mais
do que vos amo ? Porque guardaes esse silencio que me
congela ? D'onde procede essa seriedade, ou antes essa
grande tristeza que me afflige ? Lembraes-vos de vosso
paiz, de vossos parentes, de vossos amigos ? O quê ! um
rei da Persia que vos ama, que vos adora, não é capaz
de consolar-vos e servir-vos de tudo n'este mundo ? »
>
Por mais protestos de amor que o rei da Persia fizes-
se á escrava, e por mais que pudesse dizer para obri-
gal-a a abrir a bocca e a fallar , deixou - se estar a escra-
va n'uma frialdade pasmosa, os olhos sempre baixos, sem
os erguer para encaral-o, e sem proferir palavra.
O rei da Persia, alegre por ter feito uma acquisição
que tanto o satisfazia, não apertou mais com ella, na es-
perança de que o bom tratamento, que lhe daria, a faria
mudar. Bateu as palmas e logo entraram algumas mulhe-
res, a quem recommendou que mandassem servir a cêa.
Servida que foi : «Meu coração, disse á escrava, chegai-
vos, e vinde cear commigo ». Levantou-se do lugar em
que estava, e assentada que foi defronte do rei , o rei a
serviu antes que principiasse a comer, e a serviu do
mesmo modo em cada prato durante o banquete . A escra-
va comeu como elle , porém com os olhos sempre bai-
xos, e sem responder uma unica palavra, todas as ve-
zes que lhe perguntava se os guizados estavam a seu
gosto .
Para mudar de conversa perguntou-lhe o rei como se
chamava, se estava contente com o seu vestido , com as
pedrarias de que estava adornada, o que pensava do seu
quarto e da armação , e se a vista do mar a divertia.
Porém surda a todas estas perguntas , guardou o mesmo
silencio, do qual não sabia já o rei que pensar. Imagi-
nou que fosse talvez muda ; « porém , dizia comsigo mes-
mo, seria possivel que Deus formasse uma creatura tão
bella, tão perfeita e tão completa , e que tivesse um tão
grande defeito ? Seria grande fatalidade : ainda sendo as-
sim , não poderia deixar de amal-a como a amo » .
CONTOS ARABES 65

n'um canto, em quanto a escrava as lavava n'outro .


Perguntou ás mulheres que lhe apresentavam a bacia e
a toalha, se lhes tinha fallado. Uma d'essas mulheres lhe
respondeu : « Senhor, não a temos visto nem ouvido fal-
lar, assim como acaba vossa magestade de vêl- o . Nós a
temos servido no banho , penteado, toucado , vestido no
seu quarto, e jamais abriu a bocca para dizer- nos : isto
está bom ; estou satisfeita ». Nós lhe perguntavamos :
« Senhora, precisaes de alguma cousa ? desejaes alguma
cousa ? Pedi, mandai-nos . Não sabemos se é desprezo,
afflicção, estupidez , ou se é muda ; não pudémos arran-
car-lhe uma unica palavra ; é quanto podemos dizer a vos-
sa magestade ».
Ficou o rei da Persia mais pasmado do que d'antes
ácerca do que acabava de ouvir . Como entendeu que po-
dia a escrava ter algum motivo de afflicção, quiz ensaiar
o alegral -a . Para isto constituiu uma assembléa com as
senhoras do seu palacio . Vieram todas ; as que sabiam to-
car instrumentos, tocaram ; as outras cantaram , dança-
ram ou fizeram uma e outra cousa juntamente, e joga-
ram finalmente varios jogos , que divertiram o rei . Só a
escrava não tomou parte alguma n'estes divertimentos :
deixou-se estar no seu lugar, sempre com os olhos bai-
Xos, e com tal socego , que não causou menos admiração
a todas as senhoras do que ao rei . Recolheram - se depois
cada uma ao seu quarto, e o rei, que ficou só, dormiu
com a bella escrava.
No dia seguinte levantou -se o rei da Persia mais sa-
tisfeito do que jamais o fôra de todas as mulheres que
vira na sua vida, e mais apaixonado da bella escrava do
que no dia antecedente. Bem o manifestou com effeito
resolveu entregar-se unicamente a ella, e executou a sua
resolução. Logo no mesmo dia despediu todas as outras
suas mulheres com os ricos vestidos , as pedrarias e as
alfaias que tinham de seu uso, e cada uma com uma
avultada somma de dinheiro , livres para casarem com
quem bem lhes parecesse, e guardou só as matronas e
outras mulheres idosas, necessarias para estar com a
bella escrava . Não lhe deu ella a consolação de dizer-lhe
uma unica palavra no decurso de um anno inteiro : não
VOL. III.
66 AS MIL E UMA NOITES

deixou elle todavia de fazer-lhe frequentes visitas , com


todas as complacencias imaginaveis, e de dar- lhe as maio-
res demonstrações d'uma violentissima paixão.
Estava o anno findo ; e o rei , assentado um dia ao
lado da sua bella, lhe protestava que o seu amor, em
vez de diminuir, augmentava todos os dias com mais
força. « Minha rainha, dizia-lhe, não posso adivinhar o
que pensaes a este respeito : não ha todavia cousa que
mais verdadeira seja , e juro - vos que nada mais desejo
desde que tenho a felicidade de possuir-vos . Considero
o meu reino, tão grande como é, como cousa nenhuma,
quando vos vejo ; e posso dizer-vos mil vezes que vos
amo. Não quero que as minhas palavras vos obriguem
a crêr isto ; mas não o podeis duvidar, visto o sacri-
ficio que fiz á vossa belleza , de grande numero de mu-
lheres que tinha no meu palacio . Podeis lembrar- vos
d'isso ; ha já um anno que as despedi todas, e estou tão
pouco arrependido no instante em que vos fallo , como
no instante em que cessei de as vêr, e jamais me arre-
penderei . Nada faltaria á minha satisfação, ao meu con-
tentamento e á minha alegria , se me dissesseis sómente
uma palavra, para mostrar- me que me deveis alguma
obrigação a este respeito . Porém como podereis dizer-
m'o, se sois muda ? Ai de mim ! receio demasiado que
assim seja ! E que meio ha para o não recear, depois de
um anno inteiro que vos rogo mil vezes cada dia que
me falleis, e que guardaes um silencio tão desagradavel
para mim ? Se não é possivel que consiga de vós esta
consolação , ao menos faço votos ao céo que me deis um
filho para succeder-me depois da minha morte . Sinto-me
envelhecer todos os dias, e desde já teria precisão de
ter um, para ajudar-me a supportar o peso da minha co-
rôa. Torno ao grande desejo que tenho de ouvir- vos fal-
lar : sinto alguma cousa em mim que me diz que não
sois muda : oh ! pelo amor de Deus, senhora, deixai-vos
d'essa longa obstinação ! dizei -me sómente uma palavra ,
e depois pouco me importará morrer ! »
Dito isto, a bella escrava que, conforme o seu cos-
tume, tinha ouvido o rei sempre com os olhos baixos e
que não lhe déra sómente lugar de crêr que era muda,
CONTOS ARABES 67

mas que nunca em sua vida rira, pôz -se a sorrir . Perce-
beu isso o rei da Persia com tal pasmo , que lhe fez soltar
uma exclamação de alegria ; e como lhe pareceu que quiz
fallar, esperou este instante com tanta attenção e impa-
ciencia, que não se pode expressar .
Rompeu finalmente a bella escrava um tão longo si-
lencio, e começou : « Senhor, disse ella , tenho tantas cou-
sas que dizer a vossa magestade, que não sei por onde
principiar. Creio todavia ser do meu dever agradecer- lhe
logo todas as graças e honras que me concedeu , e pe-
dir ao céo que o faça prosperar, que desvie as más in-
tenções de seus inimigos , e não permitta que morra de-
pois de me ter ouvido fallar, mas lhe dê uma longa vi-
da. Depois d'isto, senhor, não posso dar- vos maior satis-
fação, do que annunciando-vos que estou gravida ; dese-
jo comvosco que seja d'um filho. O que devo dizer-lhe,
senhor, acrescentou ella , é que sem a minha gravidez
(supplico a vossa magestade que leve a bem a minha
sinceridade) estava resolvida a nunca vos amar, assim
como a guardar um silencio perpetuo, e que agora vos
amo quanto devo » .
O rei da Persia, arrebatado de alegria por ter ouvi-
do fallar a bella escrava e annunciar-lhe uma nova que
o interessava muito, abraçou- a ternamente : <« Luz res-
plandecente de meus olhos, disse-lhe, não podia ter
maior alegia do que a que me daes . Fallastes -me, e an-
nunciastes- me a vossa gravidez ; eu mesmo não sou se-
nhor de mim, visto os dous motivos de regosijo que me
déstes ».
No arrebatamento de alegria em que estava o rei da
Persia, não disse mais palavra á bella escrava . Deixou - a,
mas de um modo que dava a entender que voltaria lo-
go. Como quizesse que o motivo da sua alegria se fizes-
se publico, annunciou-o a seus officiaes e mandou cha-
mar o seu grão- visir . Logo que chegou encarregou- o de
distribuir cem mil peças d'ouro pelos ministros da sua
religião, que faziam votos de pobreza, pelos hospitaes e
pelos pobres, em acção de graças a Deus, e foi a sua
vontade executada pelas ordens d'este ministro .
Dada esta ordem veio o rei da Persia ter com a hal
68 AS MIL E UMA NOITES

la escrava : « Senhora, disse-lhe, desculpai-me se vos


deixei tão arrebatadamente ; para isso vós mesma me
déstes a occasião : porém espero que consentireis que
deixe para outra vez o entreter-vos d'isso : desejo saber
de vós cousas de mais circumstancia . Dizei-me, alma mi-
nha, que razão tão forte tivestes de vêr-me, de ouvir-
me fallar, de comer e de dormir commigo todos os dias
durante um anno inteiro, e de ter tido essa constancia
invariavel, não digo de não abrir a bocca para fallar-me ,
mas tambem de não dar a entender que percebieis muito
bem tudo o que vos dizia ? Isso excede a minha intelli-
gencia ; e não entendo como pudestes constranger- vos
até esse ponto ; deve a causa ser muito extraordinaria ! »
Para satisfazer a curiosidade do rei da Persia : <
« Se-
nhor, replicou a bella creatura ; ser escrava, estar longe
do meu paiz, ter perdido a esperança de nunca mais lá
tornar, ter o coração magoado de vêr-me separada para
sempre de minha mãi , de meu irmão , de meus paren-
tes e de minhas amizades, não são motivos estes assás
fortes para ter guardado o silencio que vossa magestade
acha tão estranho ? O amor da patria não é menos natu-
ral que o amor da familia ; e os grilhões da absoluta es-
cravidão são bastante pesados para que qualquer bem
organisado membro da sociedade humana não trema da
sua violencia. Póde muito bem o corpo sujeitar-se à au-
thoridade de um senhor que tem a força e o poder na
mão, porém a vontade não póde domar-se ; pertence sem-
pre a si mesma : d'isso viu vossa magestade um exem-
plo na minha pessoa . Muito é que não tenha imitado
uma infinidade de desgraçados e desgraçadas , a quem o
amor da liberdade reduziu á triste resolução de procurar
a morte de mil modos, por uma liberdade que não se lhes
póde tirar. - Senhora, replicou o rei da Persia, estou
persuadido do que me dizeis ; comtudo pareceu -me até
agora que uma pessoa, bella, bem feita, de bom senso
e de boa capacidade como vós, senhora , escrava em ra-
zão do seu mau destino, devia considerar- se feliz em ter
-
um rei por senhor . Senhor, replicou ella, por mais
escrava que seja uma creatura, como acabo de dizer a
vossa magestade, não póde ninguem sujeitar a sua von-
CONTOS ARABES 69

tade ; como falla todavia de uma escrava capaz de agra-


dar a um monarcha, e de fazer-se amar d'elle ; se a es-
crava é d'um estado inferior, que não haja proporção al-
guma, quero crer que possa estimar-se venturosa na sua
desgraça. Que ventura, todavia ? Não deixará de consi-
derar-se como uma escrava arrancada dos braços de seu
pai, de sua mãi e talvez d'um amante, que não deixará
de adorar toda a sua vida . Porém se a mesma escrava
não cede em cousa alguma ao rei que a adquiriu, julgue
Vossa magestade do rigor da sua sorte, da sua miseria,
da sua afflicção , e da sua dôr, e veja a que extremos
póde chegar ! >>
Pasmado d'este discurso o rei da Persia : « O qué, se-
nhora ! » replicou elle ; será possivel, assim como m'o
daes a entender, que sejaes de sangue real ? Informai-
me a esse respeito, e não augmenteis mais a minha im-
paciencia. Declarai-me quem são o feliz pai e a feliz
mãi de tão grande prodigio de belleza ; quem são vos-
sos irmãos, vossas irmãs , vossos parentes, e principal-
mente como vos chamaes. - Senhor , disse então a bella
escrava, meu nome é Gulnare do Mar : meu pai, que
morreu, era um dos mais poderosos reis maritimos e,
morrendo, deixou seu reino a um irmão que tenho , cha-
mado Saleh, e á rainha minha mãi . É tambem princeza ,
a rainha minha mãi , filha d'outro rei do mar, poderosis-
simo tambem. Viviamos socegadamente no nosso reino,
e n'uma profunda paz, quando um inimigo, invejoso da
nossa felicidade, entrou nos nossos estados com um po-
deroso exercito, penetrou até à nossa capital , apossou-
se d'ella e deu-nos sómente o tempo de fugirmos para
um lugar impenetravel e inaccessivel, com alguns offi-
ciaes fieis, que não nos abandonaram.
N'esse retiro não se esqueceu meu irmão de cuidar
nos meios de expulsar o injusto possuidor de nossos es-
tados ; e, n'este intervallo, fallou -me um dia em particu-
lar: «Irmã, disse -me, os acontecimentos das mais leves
empresas são sempre mui incertos : posso ter mau suc-
cesso na que medito para entrar nos nossos estados ; e
teria menos pezar da minha desgraça do que da que po-
deria acontecer-vos. Para prevenil-a, e preservar-vos d'el-
70 AS MIL E UMA NOITES

la, desejaria muito vêr-vos primeiro casada . Porém no


mau estado em que se acham os negocios, não vejo que
possaes pretender alguns dos nossos principes do mar.
Desejaria que pudesseis resolver-vos a abraçar o meu
parecer - que caseis com um principe da terra . Estou
prompto a empregar n'isso todos os meus cuidados : á
vista da belleza 'com que a natureza vos dotou, estou
certo que não ha nenhum, por mais poderoso que seja,
que não se regosije de fazer- vos participante da sua
corôa ».
« Este discurso de meu irmão escandalisou -me mui-
to contra elle : « Mano , disse- lhe , pela parte de meu pai
e de minha mãi procedo , como vós , de reis e rainhas
do mar, sem alliança alguma com os reis e rainhas da
terra. Não pretendo contrahir algum enlace que me fique
mal, e d'isso fiz juramento logo que tive sufficiente co-
nhecimento para discernir a nobreza e antiguidade da
nossa casa : o estado a que estamos reduzidos não me
obrigará a mudar de resolução ; e, se deveis perecer na
execução da vossa empresa, estou resolvida a perecer
comvosco, em vez de seguir um conselho que não es-
perava da vossa parte » .
<< Teimando meu irmão n'este casamento, que não me
convinha, a meu parecer, quiz representar-me que havia
reis da terra que não cediam aos do mar. Isto me agas-
tou e arrabatou tanto contra elle , que lhe disse algu-
mas cousas que o fizeram retorquir com palavras que
muito me escandalisaram . Deixou-me tão pouco satisfei-
ta de mim mesma como eu o estava d'elle . Na desespe-
ração em que me achava, arrojei-me , emergindo , do
fundo do mar, e fui aportar á ilha da Lua.
« Não obstante o grande descontentamento que me
obrigára a ir- me lançar na ilha, não deixei de viver alli
assás satisfeita, e recolhia-me a sitios afastados , onde es-
tava commodamente. As minhas precauções, todavia, não
impediram que um homem de alguma distincção, acom-
panhado de criados , me surprehendesse estando a dor-
mir, e me levasse para sua casa . Deu-me grandes de-
monstrações de amor, e de nada se esqueceu para per-
suadir-me de corresponder a ellas . Quando viu que não
CONTOS ARABES 71

conseguia cousa alguma pela brandura, cuidou que teria


melhor successo usando da força, mas fil-o de tal ma-
neira arrepender da sua insolencia, que resolveu vender-
me ; vendeu-me ao mercador que me vendeu a vossa ma-
gestade . Era um homem cordato , agradavel e humano ;
e, na dilatada viagem que com elle fiz , deu-me sempre
motivos de o louvar.
<< Pelo que diz respeito a vossa magestade, continuou
a princeza Gulnare, se não tivesse para commigo todas
as attenções de que lhe estou obrigada, se não me dés-
se tantas demonstrações de amor, com toda a sincerida-
de de que não posso duvidar ; se, sem hesitar, não des-
pedisse todas as suas mulheres , não lhe minto dizendo-
lhe que não teria ficado na sua companhia . Ter-me-hia
lançado ao mar por esta janella, onde se chegou a mim
a primeira vez que me viu n'este quarto, e iria ter com
meu irmão, minha mãi e meus parentes. Teria tambem
perseverado n'esta determinação, e a teria executado, se
passado certo tempo tivesse perdido a esperança de gra-
videz . Guardar-me-hia muito de fazel-o no estado em que
me acho ; com effeito, por mais que pudesse dizer a mi-
nha mãi e a meu irmão, jámais quereriam crêr que ti-
vesse sido escrava de um rei como vossa magestade , e
nunca me perdoariam a falta que teria commettido con-
tra a minha honra, por meu proprio consentimento . Visto
isto, senhor, seja um principe ou uma princeza que dê á
luz do dia, será um penhor que me obrigará a nunca
apartar-me de vossa magestade : espero tambem que não
me considerará mais como uma escrava, mas sim como
uma princeza, que não é indigna da sua alliança » .
D'este modo acabou a princeza Gulnare de dar-lhe a
conhecer e de relatar a sua historia ao rei da Persia :
<<Minha encantadora, minha adoravel princeza ! clamou
então este monarcha ; que maravilhas acabo de ouvir !
que ampla materia para a minha curiosidade, fazer- vos
perguntas sobre cousas tão inauditas ! Porém devo pri-
meiro agradecer- vos muito a vossa bondade e paciencia
em experimentar a sinceridade e constancia do meu amor.
Não me parecia poder-vos amar mais do que vos ama-
va ; desde que sei, todavia , que sois uma tão grande
72 AS MIL E UMA NOITES

princeza, amo-vos mil vezes mais . Que digo ! Princeza ?


Não ! não sois já princeza, sois minha rainha e rainha da
Persia, assim como eu sou rei d'ella , e não tardará este
titulo a saber-se em todo o meu reino. Ámanhã mesmo,
senhora, resoará a minha capital com regosijos nunca
vistos, que darão a conhecer que sois rainha e minha
esposa legitima. Ha muito tempo que isto estaria feito ,
se mais cedo me tivesseis desenganado do meu erro ,
visto que desde o instante em que vos vi tive a mesma
resolução que tenho hoje, de amar- vos sempre , e de
nunca amar senão a vós . Esperando que eu mesmo me
satisfaça plenamente e que vos restitua tudo o que vos
é devido, supplico -vos , senhora, que me informeis mais
particularmente d'esses estados e d'esses povos do mar,
que me são desconhecidos . Bem tinha ouvido fallar de
homens marinhos ; porém tive sempre o que me diziam
a esse respeito por contos e fabulas . Não ha todavia cousa
mais verdadeira, á vista do que me dizeis ; e tenho uma
prova bem certa na vossa pessoa , vós que de lá vindes ,
e que de boa vontade quizestes ser minha esposa, e isto
por uma vantagem de que outro habitante da terra não
póde gabar- se senão eu . Ha uma cousa que me custa a
crêr, e a qual vos supplico que me expliqueis : é que
não posso entender como podeis viver, ou mover-vos na
agua, sem vos afogardes . Entre nós ha só certas pessoas
que teem a arte de ficar algum tempo debaixo d'agua ;
n'ella pereceriam todavia se não se retirassem passado cer-
to tempo, cada um segundo a sua destreza e as suas for-
ças. - Senhor, respondeu a rainha Gulnare, satisfarei a
Vossa magestade com muito gosto . Andamos no fundo
do mar do mesmo modo que se anda sobre a terra, e
respiramos na agua como se respira no ar. Assim, em
vez de suffocar-nos como vos suffoca, ella contribue para
a nossa vida . O que é ainda mais digno de notar-se , é
não molhar nossos vestidos, e quando subimos á terra
sahimos d'ella sem ter precisão de enxugal-os. Nossa lin-
gua commum é a mesma em que a Escriptura, esculpi-
da no sello do grande propheta Salomão, filho de David,
está concebida.
<< Não devo esquecer que a agua não nos impe-
CONTOS ARABES 73

de tambem de vêr no mar : temos n'elle os olhos


abertos sem padecer incommodo algum . Como os temos
excellentes, não deixamos, não obstante a profundeza do
mar, de vêr n'elle tão claro como se vê sobre a terra .
Assim succede tambem com a noite ; a lua nos alumia,
os planetas e as estrellas não nos são occultos . Já fallei
de nossos reinos : como o mar é muito mais espaçoso
que a terra, ha-os tambem em maior numero e muito
maiores. Estão divididos em provincias , e em cada pro-
vincia ha grandes cidades mui povoadas. Ha finalmente
infinitas nações, usos e costumes diversos, como sobre a
terra.
« Os palacios dos reis e dos principes são sober-
bos e magnificos ; ha-os de marmore de diversas cores,
de crystal de rocha , que é abundante no mar, de nacar
de perola, de coral e de outros materiaes mais preciosos .
O ouro, a prata e todas as especies de pedrarias acham-
se alli em maior abundancia que sobre a terra.
« Não fallo das perolas ; de qualquer tamanho que se-
jam sobre a terra, não se faz caso d'isso nos nossos pai-
zes ; só as mulheres plebêas se enfeitam com ellas .
<<Como temos no nosso paiz uma agilidade maravilho-
sa e incrivel em transportar-nos aonde queremos com bre-
vidade indizivel, não precisamos nem de carros nem de
cavalgaduras . Sem embargo não ha rei que não tenha suas
estrebarias e cavallos marinhos ; mas servem-se sómente
d'elles nos divertimentos, nas festas e nos regosijos pu-
blicos . Uns depois de os terem exercitado, divertem -se
em montal- os e em mostrar a sua habilidade nas carrei-
ras . Outros os atrellam a carros de nacar de perola , ador-
nados de mil conchas de toda a especie de côres as mais
delicadas . São estes carros descobertos, com um throno
onde os reis estão assentados , quando se deixam vêr a
seus vassallos . São destros em guial- os elles mesmos, e
não precisam de cocheiros . Passo em silencio uma infi-
nidade de particularidades mui curiosas ácerca dos pai-
zes marinhos, acrescentou a rainha, que dariam grande
gosto a vossa magestade ; mas permittirá de boa vonta-
de que deixe isso para occasião mais commoda, para fal-
lar-lhe de outra cousa, que é presentemente de maior im-
74 AS MIL E UMA NOITES

portancia. O que tenho que dizer-lhe , senhor, é que os


partos das mulheres do mar são differentes dos partos
das mulheres da terra ; e tenho motivos de recear que
as parteiras me assistam muito mal . Como vossa mages-
tade não tem n'isso menos interesse do que eu , acho a
proposito, para segurança do meu parto, mandar vir
a rainha minha mãi, com as primas que tenho , e ao
mesmo tempo o rei meu irmão , com quem estimaria
muito reconciliar- me . Alegrar-se-hão de tornar a vêr-me
logo que lhes contar a minha historia, e que souberem
que sou a esposa do poderoso rei da Persia. Supplico a
vossa magestade que me conceda esta graça ; terão tam-
bem muito gosto em tributar-lhe os seus obsequios, e
posso assegurar - lhe que ficará satisfeito de vêl- os. - Se-
nhora, replicou o rei da Persia, podeis fazer o que qui-
zerdes, e o que for de vosso agrado ; terei o cuidado de
recebel - os com todas as honras que merecem ; mas de-
sejaria saber por que via lhes fareis saber o que d'elles
desejaes, e quando poderão chegar, para que de ordem
aos preparativos para a sua recepção , e para que eu
mesmo vá ao seu encontro. - Senhor, replicou a rainha
Gulnare, não ha precisão d'essas ceremonias ; estarão
aqui n'um instante , e verá vossa magestade de que mo-
do chegarão. Basta entrar n'este pequeno gabinete e
olhar pela grade » .
Entrado que foi o rei da Persia no gabinete , mandou
buscar a rainha Gulnare um perfumador por uma de suas
criadas, que mandou sahir, dizendo-lhe que fechasse a
porta. Achando-se sósinha, pegou n'um pedaço de pau
de aloés que estava n'uma boceta, metteu-o no perfuma-
dor, e logo que viu apparecer fumo pronunciou palavras
desconhecidas ao rei da Persia, que observava com gran-
de attenção tudo o que ella fazia , e não tinha ainda aca-
bado quando a agua do mar se turvou . O gabinete em
que se achava o rei estava disposto de maneira, que per-
cebeu isso por entre a grade, olhando para o lado das
janellas que davam sobre o mar.
Abriu-se finalmente o mar a alguma distancia, e d'el-
le surgiu logo um mancebo bem feito, de bello talhe e
de bigodes verdes. Uma senhora idosa, com ar magesto-
CONTOS ARABES 75

30, surgiu do mesmo modo logo após elle, com cinco jo-
vens senhoras, que não cediam em cousa alguma á bel-
leza da rainha Gulnare .
Apresentou-se logo a rainha Gulnare a uma das ja-
nellas, e reconheceu o rei seu irmão, a rainha sua mãi

ILLE
MARV

e as suas parentas , que tambem a reconheceram. Che-


garam-se todos como trazidos na superficie da agua sem
andar ; e, estando já na margem, arrojaram- se ligeira-
mente um após outro á janella onde apparecera a rainha
Gulnare, e d'onde ella se retirára para lhes dar lugar . O
rei Saleh e a rainha sua mãi a abraçaram com muita ter-
nura, e com as lagrimas nos olhos .
76 AS MIL E UMA NOITES

Tendo- os a rainha Gulnare recebido com toda a hon-


ra possivel, e havendo-lhes dado lugar no sophá, a rai-
nha sua mãi foi a primeira que fallou : « Minha filha,
disse-lhe, alegro-me muito de tornar a vêr-vos depois de
tão larga ausencia , e estou certa que vosso irmão e vos-
sas parentas não se alegram menos que eu . A vossa au-
sencia, sem a ter participado a pessoa alguma, nos se-
pultou n'uma afflicção indizivel , e não poderiamos dizer-
vos quantas lagrimas temos derramado . Não sabemos ou-
tro motivo que vos possa ter obrigado a tomar um par-
tido tão extraordinario, senão o que vosso irmão nos re-
feriu da conversação que comvosco teve. O conselho que
então vos deu parecera-lhe vantajoso, assim como a nós.
Não era preciso assustar-vos tanto, se não vos agradava ;
e permittir-me-heis que vos diga que tomastes a cousa
ás avessas do que devieis . Porém deixemos isto , que não
faria senão renovar motivos de afflicção e de queixas,
que deveis esquecer comnosco, e noticiai-nos tudo o que
vos aconteceu desde o tempo em que não nos vimos , e
o estado em que vos achaes presentemente : sobretudo
dizei-nos se estaes contente » .
Lançou-se logo a rainha Gulnare aos pés da rainha
sua mãi, e , depois de lhe ter beijado a mão , levantou-
se: «Senhora, replicou ella, commetti uma grande falta,
eu o confesso , e sómente á vossa bondade sou devedora
do perdão que quereis conceder-me . O que tenho que di-
zer-vos, para obedecer-vos , dar-vos-ha a conhecer que
debalde temos ás vezes repugnancia em certas cousas.
Por mim mesma experimentei que a cousa a que a mi-
nha vontade era mais opposta , é justamente aquella aon-
de me levou a meu pezar o meu destino » . Contou-lhe
tudo o que lhe acontecera, desde que a desesperação a
induzira a surgir do fundo do mar, para vir para a ter-
ra. Tendo acabado, declarou que finalmente fora ven-
dida ao rei da Persia em cujo palacio estava. « Mana,
disse o rei seu irmão , não tendes razão de haver atura-
do tantas indignidades, e não podeis queixar- vos senão
de vós mesma. Tinheis um meio de livrar- vos d'elles , e
admiro-me da vossa paciencia em ficar tanto tempo no
captiveiro : levantai-vos, e voltai comnosco para o reino
CONTOS ARABES
77
que reconquistei sobre o orgulhoso inimigo que d'elle
se tinha apossado ».
O rei da Persia , que ouviu estas palavras do gabi-
nete onde estava , ficou em extremo assustado . « Oh !
disse comsigo ; estou perdido , e minha morte é certa,
se a minha rainha , se a minha Gulnare segue um con-
selho tão pernicioso . Não posso viver sem ella, e que-
rem privar-me d'ella ! » A rainha Gulnare não o deixou
muito tempo no receio em que estava .
<< Mano, replicou ella sorrindo , o que acabo de ouvir
me dá melhor que nunca a entender quanto a amizade
que me tendes é sincera . Não pude supportar o conse-
lho que me daveis de casar com um principe da terra ;
hoje pouco falta que não me agaste contra vós pelo que
me daes - de faltar á palavra que dei ao mais poderoso
e ao mais celebre de todos os principes . Não fallo do
empenho d'uma escrava para com um senhor ; ser-nos-
hia facil restituir-lhe as dez mil peças d'ouro que lhe
custei . Fallo do de uma mulher para com seu marido , e
de uma mulher que não pode queixar-se de motivo de
descontentamento da sua parte . É um monarcha religio-
so, cordato e moderado, que me deu as maiores demons-
trações de amor. Não podia dar-me uma maior , do que
despedir , logo nos primeiros dias que lhe pertenci , o
grande numero de mulheres que tinha, para não ficar
senão commigo . Sou sua mulher , e acaba de declarar-
me rainha da Persia, para ter parte nos seus conselhos.
Acrescento ainda que estou gravida , e que se tenho a fe-
licidade , com o favor do céo , de dar -lhe um filho , será
outro bem que me affeiçoará a elle mais inseparavelmen-
te. Assim, meu irmão, proseguiu a rainha Gulnare, bem
longe de seguir o vosso conselho, todas estas conside-
rações, como estaes vendo, não só me obrigam o amar
o rei da Persia, tanto quanto elle me ama , mas tambem
a ficar e a passar a minha vida com elle , mais por reco-
nhecimento que por dever . Espero que nem minha mãi,
nem vós com minhas ricas primas , desapprovareis a mi-
nha resolução , nem tambem a alliança que contrahi, sem
a ter procurado, a qual honra igualmente aos monarchas
do mar e da terra . Desculpai -me se vos dei o trabalho de
78 AS MIL E UMA NOITES

'vir aqui do mais profundo das ondas para dar-vos parte


d'ella, e ter o gosto de vêr-vos depois de tão larga se-
paração. — Minha boa mana, replicou o rei Saleh , a pro-
posta que vos fiz de voltar comnosco, em vista da rela-
ção de vossas aventuras, que não pude ouvir sem affli-
gir-me, foi unicamente para mostrar-vos quanto vos
amamos todos, quanto vos honro em particular, e que
nada nos é mais agradavel do que tudo o que pode con-
tribuir para a vossa felicidade . Por estes mesmos moti-
vos não posso, em particular, deixar de approvar uma
resolução tão razoavel e tão digna de vós , depois do
que acabaes de dizer-nos da pessoa do rei da Persia, vos-
so esposo, e das grandes obrigações que lhe deveis . Pe-
lo que diz respeito á rainha vossa mãi, e minha, estou
persuadido que não é de outro parecer » .
Confirmou esta princeza o que acabava de dizer seu
filho : « Filha, replicou ella, dirigindo-se à rainha Gulna-
re, alegro-me de vêr-vos satisfeita, e nada tenho que
acrescentar ao que o rei vosso irmão acaba de manifes-
tar-vos . Eu seria a primeira a culpar-vos se não tives-
seis todo o reconhecimento que deveis a um monarcha
que vos ama com tanta paixão , e que tanto vos benefi-
ciou ».
Tanto se affligira o rei da Persia, que estava no ga-
binete, com o receio de perder a rainha Gulnare, quan-
ta alegria teve de ver que estava resolvida a não dei-
xal-o . Como não podia já duvidar do seu amor , vista uma
declaração tão authentica, ficou-a amando mil vezes mais
e estava determinado a provar- lhe o seu reconhecimento
em todas as occasiões que lhe fosse possivel . Em quan-
to o rei da Persia se entretinha assim com gosto incri-
vel, tinha a rainha Gulnare chamado, e ordenado a uns
escravos, que entraram logo, que servissem a merenda.
Servida que foi, convidou a rainha sua mãi , o rei seu
irmão e suas parentas a chegar-se, e a comer . Porém ti-
veram todos o mesmo pensamento, que sem ter pedido
licença se achavam no palacio de um poderoso rei , que
nunca os vira, e que não os conhecia, e que seria uma
grande incivilidade comer á sua mesa sem elle . Subiu-
lhes a vermelhidão ao rosto ; e , na emoção em que es-
CONTOS ARABES 79

tavam, lançaram chammas pelas ventas e pela bocca ,


com os olhos inflammados .
Teve o rei da Persia um susto indizivel vendo este
espectaculo pelo qual não esperava, e cuja causa ignora-
va. A rainha Gulnare, que suspeitou o que isto fosse, e
que percebėra a intenção de seus parentes, levantou-se
do seu lugar, dizendo que voltaria logo . Foi ter ao ga-
binete, onde socegou o rei com a sua presença : « Se-
nhor, disse-lhe, não duvido que vossa magestade esteja
mui satisfeito do testemunho que acabo de dar das gran-
des obrigações que lhe devo. De mim sómente dependeu
entregar-me aos seus desejos , e voltar com elles aos nos-
sos estados ; porém não sou capaz de uma ingratidão,
que eu seria a primeira a condemnar. « Oh minha rai-
nha ! exclamou o rei da Persia ; não falleis das obriga-
ções que me deveis ; nada me deveis. Pelo contrario eu
vol- as devo tão grandes, que nunca poderei reconhecer-
vol-as bastante. Não me teria capacitado que me amas-
seis tanto como vejo que me amaes : acabaes do m'o dar
a conhecer do modo mais authentico . Ah ! senhor, re-
plicou a rainha Gulnare, podia eu fazer menos do que
acabo de fazer ? Não faço ainda bastante á vista de tan-
tas honras que recebi, á vista de tantos beneficios que
me fizestes, á vista de tantas demonstrações de amor,
ás quaes não é possivel que seja insensivel.- Porém,
senhor, acrescentou a rainha Gulnare , deixemos essas
cousas ; quero certificar-vos da sincera amizade que vos
professam a rainha minha mãi e o rei meu irmão . De-
sejo anciosamente vér-vos e certificar-vos d'ella . Estive
quasi a ponto de desavir-me com elles, querendo dar-
lhes a merenda antes de lhes procurar esta honra. Sup-
plico pois a vossa magestade que tenha a bondade de
entrar, e que os honre com a sua presença . - Senhora,
replicou o rei da Persia, terei summo gosto em saudar
parentes que vos são tão chegados ; porém as chammas
que vi sahir dos seus narizes e boccas me assustam.
Senhor, replicou a rainha rindo - se , não significam senão
a sua repugnancia em comer do que é de vossa mages-
tade no seu palacio, sem os honrar com a sua presença
e sem comer com elles >>.
80 AS MIL E UMA NOITES

Socegado o rei da Persia com estas palavras, levan-


tou-se e entrou no quarto com a rainha Gulnare ; a rai-
nha Gulnare o apresentou á rainha sua mãi, ao rei seu
irmão e ás suas parentas, que se prostraram logo com
a face no chão . Correu logo o rei da Persia a elles , obri-
gou-os a levantar-se, e abraçou -os um após outro . As-
sentados que foram todos, o rei Saleh foi quem fallou :
«
<< Senhor, disse ao rei da Persia , não podemos manifes-
tar bem a nossa alegria a vossa magestade , por ter a
rainha Gulnare, minha irmã, tido na sua desgraça a feli-
cidade de achar-se debaixo da protecção d'um monarcha
tão poderoso . Podemos assegurar -lhe que não é indigna
da alta dignidade a que tão honrosamente a elevou . Ti-
vemos-lhe sempre tanta amizade e tanta ternura, que não
pudémos resolver-nos a concedel -a a algum dos podero-
sos principes do mar, que nol-a pediram em casamento
antes de ter a idade propria . O céo vol-a reservou , se-
nhor; e não podemos melhor agradecer-lhe o favor que
lhe fez, do que pedindo-lhe que conceda a vossa mages-
tade a graça de viver largos annos com ella, com todo
o genero de prosperidades e satisfações . Devia certa-
mente, replicou o rei da Persia, ter-m'a reservado o céo,
como estaes observando . Com effeito, a paixão ardente
que lhe tenho me dá a conhecer que nunca tinha ama-
do cousa alguma antes de a ter visto . Não posso agra-
decer, como desejava, á rainha sua mãi , nem a vós ,
principe, nem a toda a vossa parentela, a generosidade
com que consentis n'uma alliança que me é tão glorio-
sa ». Proferidas estas palavras, convidou -os a pôr- se á
mesa, e assentou-se tambem a ella a rainha Gulnare .
Acabada que foi a merenda, entreteve - se o rei da Persia
com elles até alta noite ; e, sendo horas de retirar-se,
acompanhou-os elle mesmo aos quartos que lhe mandá-
ra preparar.
Regalou o rei da Persia os seus illustres hospedes
com festas continuas, nas quaes nada esqueceu de tudo
o que podia patentear a sua grandeza e magnificencia ;
e insensivelmente os induziu a ficar na côrte até ao par-
to da rainha. Vendo ella que chegava o tempo , deu or-
dem para que nada lhe faltasse de todas as cousas de
CONTOS ARABES
81
que podia precisar n'esta conjunctura. Deu finalmente
á luz um filho, com grande alegria da rainha sua mãi ,
que lhe assistiu no seu parto , e que foi apresental- o
ao rei , logo que o envolveram nas primeiras mantilhas ,
que eram magnificentes.
Aceitou o rei da Persia este mimo com tal alegria,
que é mais facil de imaginar do que de expressar . Co-
mo o rosto do novo principe fosse cheio e resplandecente
de belleza, não lhe pareceu poder dar -lhe um nome mais
conveniente que o de Beder. Em acção de graças ao céo
mandou repartir grandes esmolas pelos pobres , mandou
soltar os presos, deu a liberdade a todos os seus escra-
vos de ambos os sexos, e mandou distribuir sommas
avultadas aos ministros e aos devotos da sua religião .
Fez tambem grandes liberalidades á sua côrte e ao po-
vo, e apregoaram - se por sua ordem em toda a cidade
regosijos publicos, que duraram alguns dias .
Um dia em que o rei da Persia, a rainha Gulnare , a
rainha sua mãi , o rei Saleh seu irmão e as princezas
suas parentas conversavam juntos no quarto da rainha ,
entrou a ama com o pequeno principe Beder nos braços .
Levantou-se logo o rei Saleh do seu lugar , correu ao pe-
queno principe , e , depois de ter pegado n'elle , bei-
jou-o e afagou-o com grandes demonstrações de ternu-
ra . Deu algumas voltas pelo quarto , brincando , seguran-
do -o no ar com as mãos, e de repente , no arrebata-
mento da sua alegria, arrojou-se por uma janella que es-
tava aberta e se mergulhou no mar com o principe .
O rei da Persia, que não esperava por este especta-
culo, deu gritos espantosos, na crença de que não tor-
naria a ver o principe, seu querido filho . Pouco faltou
que não désse o ultimo arranco da vida no meio da sua
afflicção , da sua dôr e dos seus choros . « Senhor , disse-
lhe a rainha Gulnare com semblante e tom resoluto pa-
ra socegal-o ; nada receie vossa magestade. O pequeno
principe é meu filho assim como é vosso , e não o amo
menos do que vós o amaes : estaes todavia vendo que
não me assusto com isto, nem devo assustar- me. Com
effeito não corre risco algum, e bem depressa vereis ap-
parecer o rei seu tio, que o trará são e salvo. Ainda
TOMO III.
82 AS MIL E UMA NOITES

que nascesse do vosso sangue, pela parte todavia que


me pertence, não deixa de ter a mesma vantagem que
nós, de poder viver igualmente no mar e na terra » .
A rainha sua mãi e as princezas suas parentas lhe con-
firmaram a mesma cousa, mas as suas palavras não po-
deram socegal-o : não foi possivel tornar a si em quan-
to o principe não appareceu á sua vista.
Turvou-se finalmente o mar, e não tardou a appare-
cer o rei Saleh, que d'elle surgiu com o pequeno prin-
cipe nos braços , e que , sustendo- se no ar, entrou pela
mesma janella por onde sahira. Alegrou-se e admirou-se
muito o rei de tornar a ver o principe Beder tão soce-
gado como d'antes . Perguntou-lhe o rei Saleh : <« Senhor,
não teve vossa magestade um grande susto quando me
viu mergulhar no mar com o principe meu sobrinho ?—
Ah, principe ! replicou o rei da Persia , não posso expres-
sar-vol- o ; desde esse instante cuidei que estava perdi-
do, e restituistes-me a vida trazendo-m'o . - Senhor, re-
plicou o rei Saleh, bem me pareceu ; comtudo não havia
o menor motivo de receio. Antes de mergulhar tinha
pronunciado sobre elle as palavras mysteriosas que es-
tão esculpidas no sello do grande rei Salomão , filho de
David. Praticamos a mesma cousa para com todos os fi-
lhos que nascem nas regiões do fundo do mar, e em
virtude d'estas palavras recebem o mesmo privilegio que
temos a mais sobre os homens que habitam na terra.
Pelo que vossa magestade acaba de vêr, póde julgar da
vantagem que o principe Beder adquiriu pelo seu nasci-
mento da parte da rainha Gulnare, minha irmã. Em
quanto viver e quantas vezes quizer, ser-lhe-ha livre
mergulhar no mar e correr os vastos imperios que elle
encerra no seu seio » >.
Proferidas estas palavras , o rei Saleh, que já tinha
entregue o pequeno principe Beder á ama, abriu uma
caixa que fora buscar ao seu palacio , no pouco tempo
que desapparecera, e que trouxera cheia de trezentos
diamantes do tamanho de ovos de pomba, de igual nu-
mero de rubins, d'uma grandeza extraordinaria, d'esme-
raldas e de trinta cordões de perolas. « Senhor, disse ao
rei da Persia, dando-lhe de presente esta caixa : quando
CONTOS ARABES 83

fomos chamados pela rainha minha irmã , ignoravamos


em que lugar da terra ella estava, e que tivesse a hon-
ra de ser esposa de tão grande monarcha, o que foi cau-
sa de chegarmos com as mãos vazias. Como não pudé-
mos dar sufficientes demonstrações de reconhecimento a
Vossa magestade, supplicamos agora o favor de receber

esta tenue prova da nossa gratidão pelos favores singu-


lares que foi servido fazer-lhe, pelos quaes vos não fica-
mos menos agradecidos do que ella ».
Não se pode expressar qual foi o pasmo do rei da
Persia quando viu tantas riquezas encerradas em tão pe-
queno espaço. « O quê, principe ! clamou elle ; chamaes
uma tenue prova do vosso reconhecimento, quando não
me deveis cousa alguma, um presente de preço inesti-
84 AS MIL E UMA NOITES

mavel ? Declaro-vos ainda uma vez que de nada me sois


devedor, nem a rainha vossa mãi, nem vós ; considero-
me felicissimo com o consentimento que déstes á allian-
ça que contrahi comvosco. Senhora, disse à rainha
Gulnare, voltando-se para ella, o rei vosso irmão con-
funde-me ; pedir-lhe- hia que levasse a bem que recusasse
o seu presente, se não receasse offendel-o : rogai-lhe que
permitta me dispense de aceital- o . -Senhor, replicou o
rei Saleh, não me admiro que vossa magestade ache o
presente extraordinario : sei que não estão acostumados
na terra a vér pedrarias d'esta qualidade, e em tão gran-
de numero juntamente . Porém se vossa magestade não
ignorasse que sei onde estão as minas d'onde as tiram ,
e que está à minha disposição fazer d'ellas um thesouro
mais rico de que todos os thesouros da terra, admirar-
se-hia de termos a ousadia de fazer-lhe um presente de
tão pouca monta . Por isso vos supplicamos que não
olheis para elle por esse lado, mas sim pelo da sincera
amizade , que nos obriga a vol- o offerecer, e de não nos
dar o desgosto de o não aceitar » . Uns modos tão cor-
tezes obrigaram o rei da Persia a aceital-o , e lhe deu
grandes agradecimentos, assim como á rainha sua mãi .
Passados alguns dias manifestou o rei Saleh ao rei da
Persia, que a rainha sua mãi, as princezas suas paren-
tas e elle , teriam o maior gosto em passar toda a sua
vida na sua côrte, porém que como havia largo tempo
que estavam ausentes do seu reino e a sua presença se
tornava alli necessaria, rogaram-lhe que levasse a bem
que se despedissem d'elle e da rainha Gulnare . O rei da
Persia lhes significou que sentia muito não poder fazer-
lhes o mesmo obsequio, isto é, uma visita aos seus es-
tados. « Porém como estou persuadido , acrescentou elle ,
que não vos esquecereis da rainha Gulnare e que a vi
reis ver de quando em quando, espero que terei a hon-
ra de tornar-vos a ver mais d'uma vez ».
Houve muitas lagrimas de parte a parte na sua des-
pedida. Foi o rei Saleh o primeiro a apartar-se ; porém
à rainha sua mãi e as princezas foram obrigadas , para
seguil-o, a arrancar-se, para assim dizer, dos braços da
rainha Gulnare, que não podia resolver- se a deixal -as
CONTOS ARABES 85

partir. Tendo desapparecido todos , não pôde o rei da


Persia deixar de dizer á rainha Gulnare : « Senhora, te-
ria considerado como um homem que quizesse abusar da
minha credulidade, o que tivesse emprehendido contar-
me por verdadeiras as maravilhas que presenciei desde
o instante em que vossa illustre familia honrou o meu
palacio com a sua presença ; porém não posso desmentir
os meus olhos : lembrar- me-hei d'ella toda a minha vi-
da, e não cessarei de abençoar o céo por vos ter dirigi-
do a mim, de preferencia a qualquer outro principe ».
Foi o pequeno principe Beder creado e educado no
palacio, debaixo da direcção do rei e da rainha da Per-
sia, que o viram crescer e augmentar em belleza , com
grande satisfação. Deu-lhes ainda satisfação muito maior,
á proporção que crescia em idade, com a sua jovialida-
de contínua, com seus modos agradaveis em tudo o que
fazia, e com as demonstrações da rectidão e da viveza
do seu espirito em tudo o que dizia ; e esta satisfação
era tão sensivel que o rei Saleh seu tio , a rainha sua avó
e as princezas suas primas , vinham de quando em quan-
do tomar parte n'ella . Não tiveram trabalho algum em
ensinar-lhe a ler e a escrever, e ensinaram-lhe com a
mesma facilidade todas as sciencias que convinham a um
principe da sua ordem .
Tendo o principe da Persia completado os quinze an-
nos, desempenhava- se já de todos os seus exercicios com
mais destreza e graça que seus mestres . Com isto era
tão cordato e prudente , que causava admiração . O rei
da Persia, que reconhecera n'elle quasi desde o seu nas-
cimento essas virtudes tão necessarias a um monarcha,
que o vira corroborar-se n'ellas até então, e além d'isso
ia sentindo todos os dias as grandes enfermidades da ve-
lhice, não quiz esperar que sua morte lhe désse lugar
de pôl-o de posse do reino. Foi - lhe facil fazer com que
o seu conselho consentisse no que desejava a este res-
peito, e os povos souberam a sua resolução com muita
alegria, visto que o principe Beder era digno de os re-
ger. Com effeito, como havia largo tempo que apparecia
em publico , tiveram todo o tempo de observar que não
tinha esse ar desdenhoso, orgulhoso e desagradavel , tão
AS MIL E UMA NOITES
86
familiar em muitos outros que olham para tudo o que
lhes é inferior com altivez e desprezo insupportavel . Sa-
biam , pelo contrario , que olhava para todos com tal
bondade que os convidava a chegar - se a elle ; que ouvia
favoravelmente os que tinham que fallar -lhe ; que lhes
respondia com a benevolencia que lhe era peculiar , e
que não recusava cousa alguma a ninguem , sendo justo

o que lhe pedi ssem .


Determinou -se o dia da ceremonia ; e n'esse dia , no
meio do seu conselho que era mais numeroso que de cos-
tume, o rei da Persia , que se assentára logo no seu thro-
no, desceu , tirou a sua corôa da cabeça e a pôz sobre a
do principe Beder ; e, depois de o ter ajudado a subir
ao seu lugar , beijou -lhe a mão , para mostrar que lhe
entregava toda a sua authoridade e todo o seu poder ,
depois do que collocou -se abaixo d'elle, na ordem dos vi-
sires e dos emires .
Vieram logo os visires , os emires e todos os princi-
paes officiaes lançar-se aos pés do novo rei , e prestaram-
lhe o juramento de fidelidade , cada um pela sua ordem .
Fez depois o grão -visir o relatorio de alguns negocios
importantes , sobre os quaes elle fallou com tal sabedo-
ria, que fez a admiração de todo o conselho . Depûz de-
pois alguns governadores accusados de má administra-
ção, e nomeou outros com discernimento tão justo e ra-
zoavel que grangeou as acclamações de todos , tanto mais
honrosas , quanto a lisonja não tinha parte alguma n'el-
las . Sahiu depois do conselho , e acompanhado do rei seu
pai foi ao quarto da rainha Gulnare . Logo que a rainha
o viu com a corôa na cabeça , correu a ellé e o abraçou
com muita ternura , desejando -lhe um reinado de longa
duração . No primeiro anno do seu reinado o rei Beder
desempenhou -se de todas as funcções reaes com grande
zelo . Sobretudo applicou-se muito a instruir - se no esta-
do dos negocios e em tudo o que pudesse contribuir á
felicidade de seus vassallos . No seguinte anno, depois de
ter confiado a administração dos negocios ao seu conse-
lho com o beneplacito do antigo rei seu pai , sahiu da
capital , com o pretexto de tomar o divertimento da ca-
ça ; mas era para visitar todas as provincias do reino ,
CONTOS ARABES 87

com o fim de cortar n'ellas os abusos, de estabelecer a


boa ordem e a disciplina por toda a parte, e de tirar aos
principes seus visinhos mal intencionados a vontade de
emprehender cousa alguma contra a segurança e o soce-
go dos seus estados, deixando-se vêr nas fronteiras .
Foi preciso um anno inteiro a este joven rei para
executar um intento tão digno d'elle . Não havia muito
tempo que estava de volta, quando o rei seu pai adoe-
ceu tão perigosamente que elle mesmo conheceu logo
que não tornaria a levantar-se . Esperou o ultimo instan-
te da sua vida com grande socego, e o unico cuidado
que teve foi recommendar aos ministros e aos senhores
da corte do rei seu filho que persistissem na fidelidade
que lhe juraram, e não houve nenhum que não reno-
vasse o juramento de tão boa vontade como da primei-
ra vez . Morreu finalmente com grande pezar do rei Beder
e da rainha Gulnare, que fizeram conduzir seu corpo a
um mausoléo com pompa proporcionada á sua dignidade .
Acabadas que foram as exequias não se oppûz o
rei Beder a seguir o costume persa - chorar os mortos
um mez inteiro - e de não vêr pessoa alguma em todo
esse tempo. Teria chorado seu pai toda a sua vida, se
tivesse attendido ao excesso da sua dôr, e se fosse per-
mittido a um grande rei entregar-se a ella. N'este in-
tervallo a rainha , mãi da rainha Gulnare, e o rei Saleh
com as princezas suas parentas, chegaram e tomaram
grande parte na sua dôr.
Passado que foi o mez não pôde o rei dispensar - se
de dar entrada ao seu grão-visir e a todos os grandes
da sua côrte, que lhe supplicaram largasse o vestido de
luto, se mostrasse a seus vassallos e se encarregasse
novamente do cuidado dos negocios como d'antes . Mos-
trou logo tão grande repugnancia em ouvil os, que foi
o grão-visir obrigado a fallar e a dizer-lhe : « Senhor,
não ha precisão de representar a vossa magestade que
não é dado senão a mulheres ficar n'um luto perpetuo ,
nem duvidamos que não seja sua intenção seguir o seu
exemplo. Nem as nossas, nem as vossas lagrimas se-
riam capazes de restituir a vida a vosso pai o defunto rei,
ainda que não cessassemos de chorar toda a nossa vida.
88 AS MIL E UMA NOITES

Pagou, como todos os homens, o tributo indispensavel


da morte. Não podemos todavia dizer absolutamente que
esteja morto, attendendo a que o estamos vendo na vos-
sa sagrada pessoa . Não duvidou elle mesmo, morrendo,
reviver em vós ; a vossa magestade pertence provar que
não se enganou » .
Não pôde o rei Beder resistir a instancias tão urgen-
tes ; desde logo largou o vestido de luto ; e , depois de
ter tomado o vestuario e os ornamentos reaes, principiou
a dar providencias ás necessidades do seu reino e dos
seus vassallos, com a mesma attenção que antes da mor-
te do rei seu pai . Desempenhou isto com approvação uni-
versal ; e , como fosse exacto em manter a observancia
dos decretos de seus predecessores, os povos não perce-
beram que tinham mudado de rei.
O rei Saleh, que estava de volta aos seus estados do
mar com a rainha sua mãi e as princezas , logo que vira
que o rei Beder tinha tomado conta do governo, voltou
só passado um anno, e o rei Beder e a rainha Gulnare
gostaram muito de tornal-o a vêr. Uma tarde, ao sahir
da mesa, depois de a haverem levantado e terem-os
deixado sósinhos, entretiveram-se ácerca de varias cou-
sas .
Insensivelmente veio o rei Saleh a fallar dos louvo-
res do rei seu sobrinho, e manifestou á rainha sua ir-
mã o quanto estava satisfeito da sabedoria com que go-
vernava, que lhe grangeára tão grande reputação , não
só para com os reis seus visinhos, mas tambem nos rei-
nos mais remotos . O rei Beder, que não podia ouvir fal-
lar da sua pessoa tão vantajosamente e não queria tam-
bem por decencia impôr silencio ao rei seu tio, virou-se
para o outro lado e fingiu dormir, encostando a cabeça
em um travesseiro que estava detraz d'elle .
Dos louvores que só diziam respeito ao procedimento
maravilhoso e á capacidade superior em todas as cousas
do rei Beder, passou o rei Saleh ás do corpo, e fallou
d'ellas como d'um prodigio que não tinha igual sobre a
terra, nem em todos os reinos debaixo das aguas do mar.
« Minha boa mana, clamou elle de repente, tal como é, e
tal como o estaes vendo, admiro-me que não cuidasseis
CONTOS ARABES
89
ainda em o casar. Se todavia não me engano , tem já os
seus vinte annos, e n'essa idade não é dado a um principe
como elle, estar sem mulher . Quero cuidar n'isso , já que
vós não o fazeis , e dar-lhe por esposa uma princeza dos
nossos reinos, que seja digna d'elle . - Meu irmão , repli-
cou a rainha Gulnare, fazeis - me lembrar d'uma cousa
que , a fallar a verdade, não me veio até agora á ima-
ginação . Como não mostrou ainda ter inclinação alguma
ao casamento , não me tinha lembrado d'isso, e estimo
bem que vos lembrasseis de fallar-me . Como approvo
muito o dar- lhe uma das nossas princezas , rogo- vos que
me nomeeis alguma , porém tão bella e tão completa que
seja o rei meu filho forçado quasi a adoral-a . - Sei d'uma,
replicou o rei Saleh, fallando baixo ; mas antes de dizer-
vos quem é rogo- vos que vejaes se o rei meu sobrinho
dorme dir- vos-hei por que convém tomar esta precau-
ção ». Voltou-se a rainha Gulnare, e como viu a Beder
na postura conveniente , pareceu-lhe que dormia a som-
no solto. O rei Beder, todavia, bem longe de dormir , at-
tentou em não deixar escapar cousa alguma do que
o rei seu tio tinha que dizer com tanto segredo . « Não
ha necessidade de constranger-vos , disse a rainha ao
rei seu irmão, podeis fallar livremente sem recear ser
ouvido . Não convém , replicou o rei Saleh, que o rei
meu sobrinho tenha tão cedo conhecimento do que vou
dizer-vos . O amor, como sabeis , communica-se ás vezes
pelos ouvidos e não é necessario que elle ame d'este mo-
do aquella que tenho que vos nomear. Com effeito , vejo
grandes difficuldades para vencer , não da parte da prin-
ceza, como espero, mas da parte do rei seu pai . Basta
nomear-vos a princeza Giauhare e o rei de Samandal.
Que dizeis , mano ? replicou a rainha Gulnare. Não está
ainda casada a princeza Giauhare ? Lembro-me de a ter
visto pouco tempo antes que me separasse de vós : tinha
cousa de dezoito mezes , e era então d'uma belleza ex-
traordinaria . Deve ser hoje a maior maravilha do mun-
do, se a sua belleza augmentou progressivamente desde
esse tempo. A pouca idade que tem a maior que o rei
meu filho , não deve impedir- nos de fazer esforços para
procurar- lhe um partido tão vantajoso : não se trata se-
90 AS MIL E UMA NOITES

não de saber as difficuldades que n'isso encontraes, e


de vencel- as . Mana, replicou o rei Saleh, o rei de Sa-
mandal tem uma vaidade tão insupportavel , que se con-
sidera superior a todos os outros reis ; e ha poucas es--
peranças de poder tratar com elle esta alliança . Eu irei
todavia em pessoa pedir-lhe a princeza sua filha ; e se
nol-a recusar dirigir-nos -hemos a outra parte, onde se-
remos ouvidos mais favoravelmente . É por isso, como
estaes vendo, acrescentou elle, que importa que o rei
meu sobrinho não saiba cousa alguma do nosso intento ,
sem estarmos certos do consentimento do rei de Saman-
dal, receando que o amor da princeza Giauhare se apos-
se do seu coração e não possamos conseguir alcançar-
lh'a ». Entretiveram se ainda algum tempo sobre o mes-
mo assumpto , e antes de separar-se assentaram que o
rei Saleh voltaria incessantemente ao seu reino e iria
pedir a princeza Giauhare a Samandal para o rei da
Persia.
A rainha Gulnare e o rei Saleh, que estavam persua-
didos que o rei Beder dormia verdadeiramente , acorda-
ram-o quando quizeram recolher-se, e o rei Beder soube
muito bem fingir que acordava, como se tivesse dormi-
do . É todavia verdade que não perdêra uma só palavra
da sua conversação, e que a pintura que fizeram da prin-
ceza Giauhare abrazára seu coração d'uma paixão que
The era desconhecida. Formou tão vantajosa idéa da sua
belleza que o desejo de possuil-a lhe fez passar toda a
noite em desassocegos, que não lhe deixaram pregar
olho um só instante.
No dia seguinte quiz o rei Saleh despedir-se da rai-
nha Gulnare e do rei seu sobrinho . O joven rei da Per-
sia, que muito bem sabia que o rei seu tio não queria
partir tão cedo senão para ir trabalhar na sua felicidade,
não deixou de mudar de côr ao ouvir que se retirava:
era já tão forte a paixão , que não o deixava esperar,
sem ver o objecto que a causava, tão largo tempo como
julgava que seria preciso para tratar do seu casamento.
Tomou a resolução de pedir-lhe que o levasse comsigo ;
porém como não queria que sua mãi soubesse cousa al-
guma d'isso, para ter occasião de fallar-lhe em particu-
CONTOS ARABES 9116

lar obrigou-o a ficar ainda n'esse dia, para irem ambos


a uma partida de caça no dia seguinte, resolvido a apro-
veitar-se d'esta occasião para declarar-lhe a sua inten-
ção.
Fez-se a partida de caça e achou-se sósinho algumas
vezes o rei Beder com seu tio , mas não teve a ousadia
de abrir a bocca para lhe dizer uma unica palavra do
que projectára. No maior excesso da caça, tendo-se o rei
Saleh apartado d'elle e não ficando com elle nenhum dos
seus officiaes nem da sua gente, apeou-se perto de um
rio ; e depois de prender o seu cavallo a uma arvore que
dava uma bellissima sombra ao longo do rio com mui-
tas outras que o bordavam, deitou-se meio encostado so-
bre a herva, e deu livre curso ás suas lagrimas, que cor-
reram em abundancia, acompanhadas de suspiros e so-
luços. Ficou largo tempo n'este estado, engolfado nos
seus pensamentos, sem dar uma unica palavra.
O rei Saleh, todavia, que não via o rei seu sobri-
nho, esteve com grande cuidado para saber onde se acha-
va, e não encontrava ninguem que lhe désse novas d'el-
le. Apartou-se dos outros caçadores, e indo em busca
d'elle avistou-o de longe. Havia observado no dia prece-
dente, e ainda mais claramente no mesmo dia, que não
tinha a sua jovialidade costumada, que estava pensati-
vo, contra o seu costume, e que não era prompto em
responder ás perguntas que se lhe faziam ; ou , se res-
pondía, não era a proposito. Não tivera, todavia, a mi-
nima suspeita da causa d'esta mudança . Logo que o viu
no estado em que estava, persuadiu-se que ouvira a con-
versação que teve com a rainha Gulnare, e que estava
apaixonado. Apeou-se bastante longe d'elle , e depois de
prender o seu cavallo a uma arvore deu uma grande
volta e chegou-se, sem fazer burulho , tão perto d'elle, que
The ouviu pronunciar estas palavras :
<<Amavel princeza do reino de Samandal ! clamava
elle ; não me fizeram sem duvida senão uma fraca pin-
tura da vossa incomparavel belleza. Considero-vos ainda
mais bella, de preferencia a todas as princezas do mun-
do, do que é o sol de preferencia á lua e a todos os ou-
tros astros . Correria desde este instante a offerecer- vos
92 AS MIL E UMA NOITES

o meu coração, se soubesse onde encontrar-vos : perten-


ce-vos, e jamais princeza, que não sejaes vós mesma, o
possuirá » .
Não quiz o rei Saleh esperar mais ; chegou- se, e dei-
xando -se vêr ao rei Beder : « Pelo que vejo , meu amado
sobrinho, disse-lhe, ouvistes o que a rainha vossa mãi
e eu diziamos antes de hontem da princeza Giauhare .
Não era essa a nossa intenção, e pareceu-nos que esta-
veis dormindo . Meu querido tio , replicou o rei Beder,
não perdi uma unica palavra, e experimentei o effeito
que previstes e que não pudestes evitar. Tinha- vos de-
morado expressamente, no intento de fallar-vos do meu
amor antes da vossa partida ; porém o pejo de fazer-vos
uma confissão da minha fraqueza, se é fraqueza amar
uma princeza tão digna de ser amada, me tapou a boc-
ca. Supplico -vos pois, pela amizade que professaes a um
principe que tem a honra de ser vosso parente tão che-
gado, que tenhaes compaixão de mim e não espereis,
para procurar-me a vista da divina Giauhare, que te-
nhaes alcançado o consentimento do rei seu pai para o
nosso casamento, se não estimaes antes que morra de
amor por ella sem a vêr ».
Estas palavras do rei da Persia embaraçaram muito
o rei Saleh ; representou-lhe quão difficil era dar-lhe a
satisfação que desejava, que não podia fazel-o sem o le-
var comsigo ; e como a sua presença fosse necessaria no
seu reino havia muito que recear se se ausentasse,
supplicou-lhe que moderasse a sua paixão até que ti-
vesse posto as cousas em estado de poder satisfazel -o ,
certificando que ia empregar toda a diligencia possivel e
que em poucos dias viria satisfazel-o . Não deu ouvidos
o rei da Persia a estas razões : « Tio cruel, replicou elle ,
bem vejo que me não amaes tanto quanto me parecia, e
que antes estimaes que eu morra, do que fazer-me o pri-
meiro favor que vos peço na minha vida ! -Estou prom-
pto a mostrar a vossa magestade, replicou o rei Saleh,
que não ha cousa que não queira fazer para servir-vos,
mas não posso levar-vos commigo sem fallardes primei-
ro á rainha vossa mãi ; que diria de vós e de mim ? Es-
tou prompto se ella consente n'isso, e eu lh'o pedirei,
CONTOS ARABES 93

assim como vós . - Não ignoraes , replicou o rei da Per-


sia, que a rainha minha mãi nunca quererá que a dei-
e, e essa desculpa me dá melhor a conhecer a dureza
que tendes para commigo. Se me amaes quanto quereis
que eu creia, deveis voltar ao vosso reino n'este instan-
te e levar-me comvosco » .
Obrigado o rei Saleh a ceder á vontade do rei da
Persia, tirou um annel que trazia no dedo , em que esta-
vam esculpidos os mesmos nomes mysteriosos de Deus,
como sobre o sello de Salomão, os quaes tinham feito
tantos prodigios pela sua virtude, e offerecendo-lh'o :
Aceitai este annel, disse elle, mettei o no vosso dedo e
não temaes nem as aguas do mar nem o seu fundo » . Pe-
gou o rei da Persia no annel, e tendo- o mettido no dedo :
« Fazei como eu » , disse -lhe o rei Saleh ; ao mesmo tem-
po elevaram - se ao ar ligeiramente, avançando para o
mar, que não estava distante, e mergulharam .
Não tardou muito o rei marinho a chegar ao seu pa-
lacio com o rei da Persia , seu sobrinho, que conduziu
logo ao quarto da rainha , a quem o apresentou . O rei
da Persia beijou a mão da rainha sua avó, e a rainha o
abraçou com grande demonstração de alegria . « Eu não
peço novas da vossa saude , disse -lhe ella ; vejo que pas-
saes bem, pelo que muito me alegro . Porém rogo- vos
que me deis novas da rainha Gulnare vossa mãi , e mi-
nha filha ». Muito se absteve o rei da Persia de dizer- lhe
que partira sem despedir- se d'ella ; certificou -lhe , pelo
contrario, que a deixára de perfeita saude, e que o en-
carregára de dar- lhe muitas lembranças da sua parte .
Apresentou-lhe depois a rainha as princezas ; e em quan-
to lhe deu lugar de entreter-se com ellas, entrou ella
n'um gabinete com o rei Saleh , que lhe deu parte do
amor do rei da Persia para com a princeza Giauhare , só
pela narração de sua belleza, e contra a sua intenção ;
que o trouxera por não poder desembaraçar-se d'elle , e
ia cuidar dos meios de lh'a alcançar em casamento.
Ainda que o rei Saleh, a fallar propriamente, fosse
innocente na paixão do rei da Persia, não foi muito do
agrado da rainha o ter fallado da princeza Giauhare na
presença d'elle com tão pouca precaução. « Não é per-
9/4 AS MIL E UMA NOITES

doavel a vossa imprudencia, disse-lhe ella ; esperaes que


o rei de Samandal, cujo caracter vos é tão conhecido, te-
nha mais consideração para comvosco, do que para tan-
tos outros reis, aos quaes recusou sua filha com despre-
zo manifesto ? Quereis que vos despeça da mesma fór-
ma ? -Senhora, replicou o rei Saleh, já vos disse que foi

contra minha intenção que o rei meu sobrinho ouviu o


que contei da belleza da princeza Giauhare á rainha mi-
nha irmã. Está feito o erro, e devemo-nos lembrar que
a ama apaixonadamente, e que morrerá de afflicção e de
pezar, se de qualquer modo que seja não lh'a alcança-
mos. Não devo esquecer me de cousa alguma , visto que
sou eu, posto que innocentemente, que fiz o mal, e fa-
rei quanto de mim depender para remedial-o . Espero ,
CONTOS ARABES
95
senhora, que approvareis a minha resolução de ir ter
com o mesmo rei de Samandal , levando commigo um ri-
co presente de pedrarias , e pedir- lhe a princeza sua fi-
lha para o rei da Persia vosso neto. Tenho confiança que
não se recusará a isso , e que levará a bem contrahir al-
liança com um dos mais poderosos reis da terra . Seria
para desejar, replicou a rainha, que não nos achassemos
na necessidade de pedir uma cousa , a qual não estamos
certos de alcançar como desejariamos ; porém visto que
se trata do socego e da satisfação do rei meu neto , dou
o meu consentimento : sobretudo , como conheceis o ca-
racter do rei de Samandal , rogo- vos que tenhaes o cui-
dado de lhe fallar com todo o recato que lhe é devido ,
e de um modo tão cortez , que se não de por offendido
da vossa proposta >».
Foi a mesma rainha quem apromptou o presente,
composto de diamantes, rubins , esmeraldas e fios de pe-
rolas, e os pôz n'uma caixinha muito rica e propria para
este fim . No dia seguinte o rei Saleh se despediu d'ella
e do rei da Persia , e partiu acompanhado de alguns dos
seus officiaes e criados, gente escolhida , e em pouco nu-
mero. Não tardou muito a chegar ao reino, á capital e
ao palacio do rei de Samandal , o qual não differiu dar-
The audiencia, logo que soube da sua chegada . Levan-
tou-se do seu throno quando o viu apparecer : e o rei
Saleh, que de boa vontade quiz esquecer -se por alguns
momentos do que era, prostrou-se aos seus pés , dese-
jando- lhe bom successo em tudo quanto pudesse inten-
tar. Abaixou-se o rei de Samandal para levantal-o ; e ,
depois de obrigal-o a tomar lugar junto a si , fez-lhe os
seus comprimentos e perguntou -lhe se pretendia alguma
cousa em que o pudesse servir .
« Senhor , respondeu o rei Saleh , quando não tivesse
outro motivo senão o de tributar os meus respeitos a um
principe dos mais poderosos do universo , e tão distincto
pela sua sabedoria e pelo seu valor , não poderia eu ma-
nifestar assás a vossa magestade o quanto o venero . Se
pudesse penetrar até ao fundo do meu coração , conhe-
ceria a grande veneração que lhe tem , e o desejo que
tenho de lhe dar demonstrações da minha affeição » . Pro-
96 AS MIL E UMA NOITES

ferindo estas palavras, pegou na caixinha das mãos de


um de seus criados, abriu-a, e offerecendo-lh'a, suppli-
cou-lhe que tivesse a bondade de aceital-a . « Principe ,
replicou o rei de Samandal , não me fazeis um presente
d'esta consideração sem ter alguma pretensão proporcio-
nada para requerer-me . Se é alguma cousa que dependa
do meu poder, terei muito gosto em conceder-vol-a . Fal-
lai, e dizei-me livremente em que posso servir-vos . --É
verdade, senhor, respondeu o rei Saleh, que tenho uma
graça que pedir a vossa magestade, e guardar-me-hia
muito de lh'a pedir se não estivesse em seu poder o con-
ceder-m'a. Tanto depende de vossa magestade, que de-
balde a pediria a qualquer outro . Peço-lh'a pois com to-
das as instancias possiveis , e supplico-lhe que m'a não
recuse. - Se isso assim é, replicou o rei de Samandal,
não tendes mais que fallar, e vereis de que modo sei
servir quando posso . -Senhor, disse lhe então o rei Sa-
leh, vista a confiança que vossa magestade quer que to-
me sobre a sua vontade, não dissimularei mais tempo
que venho interceder a honra da vossa alliança pelo
casamento da princeza Giauhare sua filha, e de fortificar
com isto a boa intelligencia que une ambos os reinos ha
tanto tempo »>.
Ouvido isto deu o rei de Samandal grandes risadas,
deixando-se cahir de costas sobre a almofada em que es-
tava encostado, e de um modo injurioso ao rei Saleh.
<
«< Rei Saleh ! disse-lhe com ar de desprezo ; cuidei que
fosseis um principe de bom senso, sabio e cordato, e as
vossas palavras , pelo contrario, me dão a conhecer o
quanto estou enganado. Dizei-me, onde estava vosso jui-
zo quando formastes uma chimera tão grande , como a
de que acabaes de fallar-me ? Pudestes conceber sómen-
te o pensamento de aspirar ao enlace com uma princeza,
filha de um rei tão grande, e tão poderoso como eu sou ?
Devieis primeiro considerar melhor a grande distancia
que ha de vós a mim, e não vir perder n'um instante a
estima que fazia da vossa pessoa >> .
Ficou em extremo escandalisado o rei Saleh de uma
resposta tão injuriosa , e custou-lhe muito a conter o seu
resentimento : « Que Deus, senhor, replicou elle com to-
CONTOS ARABES 97

da a moderação possivel, recompense vossa magestade


como merece : permittir-me-ha que tenha a honra de di-
zer-lhe que não peço a princeza sua filha em casamento
para mim . Ainda que isso fosse, bem longe de vossa ma-
gestade ou a mesma princeza dever offender-se d'isso, cre-
ria eu fazer muita honra tanto a uma como a outro . Mui-
to bem sabe vossa magestade que sou um dos reis do
mar como vós ; que os reis meus predecessores não ce-
dem em cousa alguma pela sua antiguidade a nenhuma
das outras familias reaes ; e que o reino que d'elles her-
dei não é menos florescente, nem menos poderoso hoje,
do que o era no seu tempo. Se não me tivesse interrom-
pido, teria logo comprehendido que a graça que lhe pe-
ço não me diz respeito a mim, mas sim ao joven prin-
cipe da Persia, meu sobrinho , cujo poder e grandeza ,
assim como as suas prendas pessoaes, não devem ser-
The desconhecidas . Todo o mundo sabe que a princeza
Giauhare é a formosura mais completa que existe debai-
xo dos céos , porém não é menos verdade que o joven
rei da Persia é o principe mais bello e mais completo
tanto da terra como do mar ; e n'isso não estão dividi-
dos os pareceres . Assim como a graça que peço não pó-
de redundar senão em grande gloria para vossa mages-
tade e para a princeza Giauhare, não deve duvidar que
o consentimento que der a uma alliança tão proporcio-
nada, não seja seguido de uma approvação universal . A
princeza é digna do rei da Persia, e o rei da Persia não
é menos digno d'ella . Não ha principe no mundo que
lh'a possa disputar » .
O rei de Samandal não teria deixado fallar o rei Sa-
leh tanto tempo , se o arrebatamento que lhe occasionou.
The tivesse deixado a liberdade de impedil- o . Esteve ain-
da bastante tempo sem dizer palavra depois de ter ces-
sado, tanto estava fóra de si mesmo . Rompeu finalmente .
em injurias atrozes , e indignas de um grande rei : « Cão !
clamou elle ; ousas proferir o nome de minha filha na
minha presença ! Cuidas que o filho de tua irmã Gulna-
re possa entrar em comparação com minha filha ? Quem
és tu ? quem era teu pai ? quem é tua irmã e quem é
teu sobrinho ? não era seu pai um cão e filho de cão
TOMO III . 7
AS MIL E UMA NOITES
98
como tu ? que prendam o insolente e que lhe cortem o

Os ooff
pescoç ! »iciaes, em pequeno numero, que estavam á ro-
da do rei Samandal , se dispuzeram logo para obedecer ;
porém como o rei Saleh estivesse na maior força da sua
idade , ligeiro e robusto , escapou antes que puxassem
pelo alfange , e ganhou a porta do palacio , onde achou
mil homens dos seus parentes e da sua casa , bem ar-
mados e bem equipados , que acabavam de chegar . Ti-
nha a rainha sua mãi feito reflexão na pouca gente que
levára comsigo , e como presentisse a má recepção que
o rei de Samandal podia fazer-lhe, os mandára e lhes
rogára que fossem a toda a pressa . Aquelles dos seus
parentes que se acharam á frente , estimaram muito te-
rem chegado tão a proposito , quando o viram vir com a
sua gente que o seguia em grande desordem , e vendo
que o perseguiam : « Senhor ! clamaram elles logo ; de
que se trata ? Eis -nos -aqui promptos a vingar-vos, basta

ar » .
só mandtou
Con -lhes o rei Saleh o caso em poucas palavras ,
poz - se à frente d'um corpo numeroso em quanto os mais
ficaram á porta, da qual se apossaram , e retrocedeu .
Como os poucos officiaes e guardas que o perseguiram
se tinham dispersado , entrou no quarto do rei de Saman-
dal, que foi logo abandonado dos outros, e preso ao
mesmo tempo . O rei Saleh deixou gente sufficiente com
elle para vigiar a sua pessoa, e foi de quarto em quar-
to, procurando o da princeza Giauhare . Porém ao primei-
ro tumulto , tinha-se esta princeza arrojado á superficie
do mar, com as mulheres que com ella se acharam, e
se refugiára n'uma ilha deserta .
Como estas cousas se passassem no palacio do rei de
Samandal , alguns da comitiva do rei Saleh , que fugi-
ram logo no principio do successo , causaram um gran-
de susto á rainha sua mãi, annunciando -lhe o perigo
em que o deixaram . O joven rei Beder , que estava pre-
sente à sua chegada , ficou tanto mais assustado quan-
to se considerou como a primeira causa de todo o mal
que d'isso podia seguir -se . Não se sentiu com bastante
animo para apparecer na presença da rainha sua avó,
CONTOS ARABES 99

visto o perigo em que se achava o rei Saleh por seu


respeito. No instante em que a viu occupada a dar as or-
dens que julgou necessarias n'esta conjunctura, emergiu
do fundo do mar ; e como não soubesse que caminho
houvesse de tomar para voltar ao reino da Persia , refu-
giou-se na mesma ilha onde se refugiára a princeza
Gianhare .
Como este principe estivesse fóra de si, foi assentar-
se ao pé de uma grande arvore, que estava cercada de
muitas outras : ao tempo que tornava a si ouviu fallar ;
pôz- se logo a escutar ; mas como estivesse um pouco
afastado para poder comprehender o que se dizia, levan-
tou-se e chegando- se, sem fazer barulho , para a parte
d'onde vinha o som das palavras, avistou por entre as fo-
lhas uma belleza que o arrebatou . « Sem duvida, disse
comsigo, parando e analysando-a com admiração, é a
princeza Giauhare, que o susto obrigou talvez a fugir do
palacio do rei seu pai ; se não é, não merece me-
nos que ella que a ame de todo o meu coração » . E,
sem perder tempo, deixou- se vêr ; e chegando- se à prin
ceza com profundo respeito : « Senhora, disse- lhe, não
sei como agradecer ao céo o favor que me faz hoje de
offerecer a meus olhos a belleza mais completa . Não po-
dia acontecer-me maior felicidade que a occasião de of-
ferecer - vos os meus humildes serviços . Supplico- vos, se-
nhora, que os aceiteis : uma pessoa como vós não se
acha n'esta solidão sem precisão de soccorro . ― É ver-
dade, senhor, replicou a princeza Giauhare com semblan-
te contristado, que é mui extraordinario em uma senho-
ra da minha ordem, achar-se no estado em que estou.
Eu sou princeza, filha do rei Samandal, e chamo-me,
Giauhare. Estava socegadamente no seu palacio, no meu
quarto , quando de repente ouvi um ruido espantoso .
Vieram logo annunciar-me que o rei Saleh , não sei por-
que motivo, forçára o palacio e se apoderára do rei meu
pai, depois de ter matado todos os da sua guarda, que
the fizeram resistencia. Só tive tempo de escapar, e bus-
car aqui um asylo contra a sua violencia » .
Pelas palavras da princeza ficou o rei Beder um pou-
co confuso de ter abandonado a rainha sua avó tão arre-
AS MIL E UMA NOITES
100

batadamente , sem esperar a explicação da nova que lhe


trouxeram . Porém alegrou -se de ter - se o rei seu tio apo-
derado da pessoa do rei Samandal : não duvidou , com ef-
feito, que o rei Samandal lhe concedesse a princeza para
alcançar a sua liberdade . <« Adoravel princeza , replicou el-
le, é mais que justa a vossa afflicção ; mas é facil fazel-a
cessar, como tambem o captiveiro do rei vosso pai. N'is-
so concordareis quando souberdes que me chamo Beder,
que sou rei da Persia e que o rei Saleh é meu tio . Pos-
so com certeza asseverar- vos que não tem intento al-
gum de apossar - se dos estados do rei vosso pai . Não
tem outro fim senão o de alcançar que eu tenha a honra
e a felicidade de ser seu genro, recebendo -vos por espo-
sa. Já vos tinha dado o meu coração só com a simples
descripção da vossa belleza e dos vossos encantos . Longe
de arrepender -me , supplico -vos que o aceiteis e que vos
convençaes que nunca se abrazará senão por vós . Ouso
esperar que não o recusareis , e que considerareis que
um rei que sahiu dos seus estados unicamente para vir-
vol -o offerecer , merece algum reconhecimento . Consenti
pois, bella princeza , que tenha a honra de apresentar-
vos a meu tio. Apenas o rei vosso pai tiver dado o seu
consentimento para o nosso enlace, ficará senhor dos
seus estados como d'antes .
A declaração do rei Beder não produziu o effeito que
d'ella esperára . Apenas o avistou a princeza, vendo a
sua boa physionomia , o seu porte e a graça com que se
lhe apresentára, tomára-o por uma pessoa que não lhe
desagradaria. Porém desde que por elle mesmo soube
que era a causa do mau tratamento que acabavam de
dar ao rei seu pai, da afflicção que isto lhe causava, do
susto que tivera quanto à sua propria pessoa e da ne-
cessidade em que se vira de fugir, ficou olhando para
elle como para um inimigo , com quem não devia ter
communicação alguma . Além d'isso, por mais disposição
que tivesse para consentir no casamento que elle dese-
java, como julgou que uma das razões que o rei seu pai
podia ter de rejeitar esta alliança , era ter o rei Beder
nascido d'um rei da terra, estava resolvida a sujeitar- se
inteiramente à sua vontade n'este assumpto . Não quiz
CONTOS ARABES 101

todavia manifestar cousa alguma do seu resentimento :


lembrou-se sómente d'um meio de livrar-se com destre-
za das mãos do rei Beder ; e fingindo vêl-o com gosto :
« Senhor, replicou ella com toda a cortezia possivel , sois

pois filho da rainha Gulnare, tão celebre pela sua singu-


lar belleza ? Muito me alegro com isso, e estimo vêr na
Vossa pessoa um principe tão digno d'ella . Não tem ra-
zão o rei meu pai de oppôr-se tanto a unir- nos . Vendo-
vos, não duvidará de fazer a nossa felicidade » . Dizen-
do estas palavras offereceu-lhe a mão em signal de ami-
zade.
102 AS MIL E UMA NOITES

Pareceu ao rei Beder estar no maior grau da sua fe-


licidade estendeu a mão, e tomando a da princeza abai-
xou-se para beijal-a com respeito . A princeza não lhe deu
tempo para isto : Temerario, disse-lhe rejeitando- o e cus-
pindo-lhe na cara por falta d'agua, deixa essa fórma de
homem e toma a de um passaro branco com o bico e
pés vermelhos. Pronunciadas estas palavras foi o rei Be-
der mudado em passaro com tanto desgosto como pas-
mo. « Pegai n'elle , disse logo a uma das suas mulheres,
e levai-o á ilha secca » . Esta ilha era um rochedo hor-
roroso, onde não havia uma gota d'agua.
Pegou a mulher no passaro , e executando a ordem
da princeza Giauhare, teve compaixão do destino do rei
Beder. « Seria peccado, disse comsigo, que um principe ,
tão digno de viver, morresse de fome e de sêde . A prin-
ceza, que tanta bondade tem, se arrependerá talvez de
uma ordem tão cruel, quando lhe passar a sua colera ;
vale mais que o leve para um lugar onde possa morrer
naturalmente » . Levou - o para uma ilha bem povoada e o
deixou n'uma campina agradavel, coberta de todas as
especies de arvores fructiferas e regada de muitos rios .
Tornemos ao rei Saleh . Depois de ter elle mesmo
buscado a princeza Giaufare e a ter mandado procurar
por todo o palacio sem encontral -a, mandou encerrar o
rei Samandal no seu proprio palacio, bem guardado , e
tendo dado as ordens necessarias para o governo do rei-
no na sua ausencia, veio dar conta á rainha sua mãi da
acção que acabava de obrar. Chegando, perguntou onde
estava o rei seu sobrinho , e soube com grande pasmo e
pezar que desapparecera . « Vieram noticiar-nos, disse-
lhe a rainha, o grande perigo em que estaveis no pala-
cio do rei Samandal , e em quanto eu dava as ordens pa-
ra mandar-vos outros soccorros ou para vingar-vos , des-
appareceu . Sem duvida assustou - se sabendo que estaveis
em perigo, e não lhe pareceu estar seguro comnosco » .
Esta nova affligiu em extremo o rei Saleh , que se
arrependeu então da demasiada facilidade que tivera em
condescender com os desejos do rei Beder, sem primei-
ro dar parte á rainha Gulnare . Mandou em busca d'elle
por todos os lados, porém por mais diligencia que pu-
CONTOS ARABES 103

desse fazer não lhe trouxeram nova alguma d'elle : e em


vez da alegria que já imaginava ter, por ter concorrido
para um casamento que considerava obra sua, o desgos-
to que teve com este incidente, pelo qual não esperava,
causou-lhe grande afflicção . Esperando que soubesse no-
vas suas, boas ou más, deixou o seu reino debaixo da
administração da rainha sua mãi e foi governar o do rei
Samandal, que continuou a guardar com muita vigilan-
cia, ainda que com todas as attenções devidas á sua je ·
rarchia.
No mesmo dia em que o rei Saleh partira para vol-
tar ao reino de Samandal, a rainha Gulnare, mãi do rei
Beder, chegou a casa da rainha sua mãi . Não se admi-
rou esta princeza de não ter visto voltar o rei seu filho
no mesmo dia da sua partida. Tinha imaginado que o ar-
dor da caça, assim como lhe tinha acontecido algumas
vezes, o levára mais longe do que se tinha proposto.
Mas quando viu que não estava de volta no dia seguinte
nem no outro, assustou-se muito, como é facil de jul-
gar pela ternura que lhe tinha . Foi muito maior este
susto quando soube dos officiaes que o acompanha-
ram, e que foram obrigados a voltar depois de o terem
procurado largo tempo a elle e ao rei Saleh seu tio , sem
os ter encontrado, que devia ter-lhe succedido algum ca-
so sinistro, ou estarem juntos em algum lugar que não
podiam adivinhar : que na verdade tinham achado os
seus cavallos , mas quanto às suas pessoas não tinham
tido nova alguma, por mais diligencia que fizessem para
saber o que fora feito d'elles . Vista esta informação to-
mou o partido de dissimular e de occultar a sua afflicção ,
e tornou-lhes a recommendar que fizessem novas diligen-
cias. N'este intervallo tomou a sua resolução ; e , sem o
descobrir a ninguem, e depois de ter declarado ás suas
criadas que queria estar sósinha, se lançára ao fundo do
mar para saber se era certa a suspeita que tinha, de
que o rei Saleh podia ter levado comsigo o rei da Per-
sia.
Teria sido esta grande rainha recebida pela rainha
sua mãi com grande gosto, se logo que a avistou não
suspeitasse o motivo que a trouxera . « Filha, disse - lhe ,
104 AS MIL E UMA NOITES

não é para vér - me que vindes aqui , eu bem o sei . Vin-


des pedir novas do rei vosso filho, e as que tenho que
dar-vos não são capazes senão de augmentar a vossa af-
flicção, como tambem a minha. Tive uma grande alegria
de vêl -o chegar com o rei seu tio ; todavia logo que me
constou que partira sem vol-o participar, tomei parte no
desgosto que terieis ». Fez- lhe depois a relação do ardor
com que o mesmo rei Saleh föra pedir a princeza Giau-
hare, e do que acontecera até desapparecer o rei Beder .
<< Mandei gente em busca d'elle , acrescentou ella ; e o rei
meu filho , que acaba de partir segunda vez para ir go-
vernar o reino de Samandal , fez tambem as suas dili-
gencias pela sua parte ; tudo porém foi infructuoso até
agora , mas devemos esperar que o tornaremos a vêr
quando menos se esperar » .
Não ficou logo satisfeita com esta esperança a des-
consolada Gulnare : ella considerou o rei seu filho como
perdido e chorou amargamente, culpando o rei seu ir-
mão. A rainha sua mãi lhe fez observar a necessidade
que havia de fazer esforços para não succumbir á sua
afflicção. « É verdade, disse-lhe ella, que o rei vosso ir-
mão não devia fallar- vos d'este casamento com tão pou-
ca cautela, nem jamais consentir em levar o rei meu ne-
to, sem primeiro avisar-vos. Porém como não ha certe-
za alguma de que perecesse , não deveis descuidar-vos de
cousa alguma para lhe conservar o seu reino . Não per-
caes pois tempo, voltai para a vossa capital : a vossa
presença é alli necessaria, e não vos será difficultoso
conservar todas as cousas no estado pacifico em que es-
tão, mandando publicar que o rei da Persia quiz vir-nos
fazer uma visita » .
Precisava d'uma razão tão forte como esta, para obri-
gar a rainha Gulnare a voltar : despediu -se da rainha
sua mãi e chegou ao palacio da capital da Persia antes
que percebessem que se tinha ausentado. Despediu logo
gente para chamar os officiaes que mandára em busca
do rei seu filho , e annunciar-lhes que sabia onde estava
e que não tardariam a vel- o . Fez tambem correr o mes-
mo boato por toda a cidade , e governou tudo de com-
mum accordo com o primeiro ministro e cons
CONTOS ARABES 105

o mesmo socego como se o rei Beder estivesse pre-


sente.
Em quanto ao rei Beder, que a criada da princeza
Giaure levára e deixára na ilha, como temos dito, ficou es-
te monarcha mui pasmado quando se viu sósinho e trans-
formado em passaro. Considerou-se tanto mais desgraça-
do n'este estado quanto não sabia onde estava, nem em
que parte do mundo era situado o reino da Persia . Ain-
da quando soubesse e conhecesse sufficientemente a for-
ça das suas azas para aventurar- se a atravessar tantos
mares e ir lá ter, que ganharia , a não ser achar- se no
mesmo estado e na mesma difficuldade em que estava
de ser conhecido , não como rei da Persia, mas nem se-
quer como homem ? Viu-se constrangido a ficar onde es-
tava, a comer da mesma comida como os passaros da
sua especie, e a passar a noite sobre uma arvore .
Passados alguns dias, um camponez mui destro em
apanhar aves á réde, chegou ao lugar onde elle estava,
e alegrou-se muito quando avistou aquelle passaro d'uma
especie que lhe era desconhecida , ainda que houvesse
largos annos que caçasse . Empregou toda a sua destre-
za e tomou tão bem as suas medidas, que o apanhou :
satisfeito de tão boa presa, que , conforme a estimação
que d'ella fez , devia valer-lhe mais do que muitos pas-
saros juntos dos outros que apanhava commummente, em
razão da raridade, metteu-o n'uma gaiola e o levou á ci-
dade . Apenas chegou ao mercado, aproximou-se d'elle um
homem e lhe perguntou quanto queria pelo passaro .
Em vez de responder a esta pergunta, perguntou
tambem o camponez ao homem o que pretendia fazer
d'elle, depois de o ter comprado. « Bom homem, replicou
o cidadão, que queres que faça d'elle, senão que o man-
de assar para o comer ? -Sendo assim, replicou o campo-
nez, parecer- vos-hia tel-o comprado bem se me tivesseis
dado por elle a mais pequena moeda de prata . Reputo - o
em muito mais , e não seria para vós ainda que me dés-
seis uma moeda d'ouro . Sou já velho , e desde que me co-
nheço não vi ainda nenhum semelhante a este. D'elle
you fazer um presente ao rei ; conhecerá melhor o va-
lor d'elle do que vós ».
106 AS MIL E UMA NOITES

Em vez de demorar-se no mercado, foi o camponez


ao palacio , onde parou defronte do quarto do rei . Esta-
va este perto de uma janella, d'onde via tudo o que se
passava na praça . Como avistasse o bello passaro , man-
dou um official dos eunucos com ordem de lh'o comprar.
Foi o official ter com o camponez e lhe perguntou quanto
queria por elle . « Se é para sua magestade, replicou o
camponez, supplico -vos que tenhaes a bondade de lhe di-
zer que lhe faço presente d'elle , e rogo -vos que lh'o le-
veis ». Levou o official o passaro ao rei , e achou-o este
tão formoso que encarregou o official de levar dez moe-
das d'ouro ao camponez , que se retirou contentissimo ;
depois do que metteu o passaro n'uma gaiola magnifica ,
e lhe deu alpiste e agua em vasos preciosos.
O rei , que estava prestes a montar a cavallo e que
não tivera tempo de vêr bem o passaro , mandou trazel - o
á sua presença logo que esteve de volta. Trouxe o official
a gaiola ; e , para examinal- o melhor, o rei em pessoa a
abriu, e tomou o passaro na mão. Contemplando - o com
grande admiração perguntou ao official se o vira comer.

< Senhor, replicou o official, vossa magestade pódo vêr
que o vaso da comida está ainda cheio, e não vi que
tocasse n'elle » . Disse o rei que era preciso dar-lhe ali-
mento de diversas especies , para que escolhesse o que
mais lhe conviesse.
Como tivessem já posto a mesa, serviram-na ao tem-
po que o rei deu esta ordem ; servidos que foram os
pratos, bateu as azas o passaro , escapou da mão do rei
e voou para a mesa , onde entrou a espicaçar no pão e
nas viandas, ora n'um , ora n'outro prato : ficou o rei tão
admirado, que mandou pelo official dos- eunucos avisar
a rainha para vir vêr esta maravilha . Contou o official o
caso á rainha em poucas palavras, e esta veio logo ; mas
apenas viu o passaro cobriu o rosto com o seu véo e
quiz retirar-se . O rei , pasmado d'esta acção, tanto mais
quanto não havia senão eunucos no quarto e mulheres
que a seguiram, perguntou-lhe a razão que tinha para
obrar assim.
<< Senhor, respondeu a rainha , não se admirará vos-
sa magestade quando souber que este passaro não é o
CONTOS ARABES 107

que lhe parece, mas um homem como vós . - Senhora ,


replicou o rei mais admirado que d'antes, quereis zom-
bar de mim, sem duvida ; não me persuadireis que um
passaro seja homem . -Senhor , Deus me livre de mo-

far de vossa magestade . Não ha cousa mais verdadeira


que o que tenho a honra de dizer-lhe, e asseguro - lhe
que é o rei da Persia , que se chama Beder , filho da ce-
lebre Gulnare , princeza d'um dos maiores reinos do mar,
sobrinho de Saleh , rei d'esse reino , e neto da rainha
Farasche , mãi de Gulnare , e de Saleh ; e a princeza
Giauhare , filha do rei de Samandal , foi quem o transfor-
108 AS MIL E UMA NOITES

mou assim » . Para que o rei não pudesse duvidar d'isso


contou-lhe como, e por que a princeza Giauhare se tinha
assim vingado do mau tratamento que o rei Saleh dera
ao rei de Samandal seu pai .
Acreditou facilmente o rei tudo o que a rainha lhe
contou d'esta historia , porque sabia que era uma magica
das mais consummadas que jámais houve no mundo ; e
como ella nada ignorasse de tudo o que n'elle se passas-
se, era logo informado por sua via dos maus intentos dos
reis seus visinhos contra elle, e os prevenia . Compade-
ceu-se do rei da Persia, e pediu á rainha com instancia .
que quebrasse o encanto que o fazia estar debaixo d'a-
quella fórma.
Consentiu n'isso a rainha com muito gosto : < « Se-
nhor, disse ella ao rei, que vossa magestade tenha o
trabalho de entrar no seu gabinete com passaro, e dei-
xar-lhe -hei ver em poucos instantes um rei digno da con-
sideração que tem para com elle » . O passaro , que ces-
sára de comer para dar attenção á conversação do rei e
da rainha, não deu ao rei o trabalho de pegar n'elle ; foi
o primeiro a passar para o gabinete, e após elle entrou
logo a rainha com um vaso cheio de agua na mão . Pro-
nunciou sobre o vaso palavras desconhecidas do rei, até
que principiou a agua a ferver ; tomou logo agua n'uma
das mãos , e lançando-a sobre o passaro : Em virtude
das palavras santas e mysteriosas que acabo de pronun-
ciar, disse ella, e em nome do Creador do céo e da ter-
ra, que resuscita os mortos e conserva o universo no
seu estado, deixa essa fórma de passaro e torna a to-
mar a que recebeste do teu Creador.
Tinha apenas a rainha proferido estas palavras, quan-
do em vez do passaro viu o rei apparecer um joven
principe de bella estatura , cujo ar e boa feição lhe agra-
daram . Prostrou-se logo o rei Beder e deu graças a Deus
pelo que acabava de fazer-lhe . Pegou na mão do rei le-
vantando-se, e a beijou, para mostrar-lhe o seu reconhe-
cimento, e em seguida abraçou-o o rei com muita alegria,
e manifestou-lhe a grande satisfação que tinha de o vêr.
Quiz tambem agradecer á rainha, mas tinha-se já retira-
do para o seu quarto . Mandou-o o rei pôr á mesa com-
CONTOS ARABES 109

sigo, e depois de ter comido rogou -lhe que lhe contasse


como a princeza Giauhare tivera a deshumanidade de
transformar em passaro um principe tão amavel como
elle ; o rei da Persia o satisfez logo . Tendo acabado, o
rei, indignado do procedimento da princeza, não pôde
deixar de culpal-a . « Era louvavel na princeza de Saman-
dal, replicou elle, não ser insensivel ao tratamento que
deram ao rei seu pai ; mas que levasse a vingança a ta-
manho excesso contra um principe que não devia ser
accusado, d'isso nunca se justificará para com pessoa al-
guma. Dizei-me em que posso ser-vos mais util ». -- Se-
nhor, replicou o rei Beder, a obrigação que devo a vos-
sa magestade é tão grande, que deveria ficar toda a mi-
nha vida na sua companhia, para dar- lhe provas do meu
reconhecimento . Todavia, visto que não põe limites à sua
generosidade , supplico-lhe que tenha a bondade de con-
ceder-me um dos seus navios para levar-me á Persia, on-
de receio que a minha ausencia , que é já demasiado lon-
ga, não tenha causado desordem, e que a rainha minha
mãi, a quem occultei a minha partida, não morresse de
desgosto, na incerteza em que deve ter estado da minha
vida ou da minha morte » .
Concedeu-lhe o rei o que pedia com o maior gosto
possivel ; sem demora deu ordem para se equipar um
navio, o mais forte e o mais veleiro que tivesse na sua
numerosa frota . Não tardou muito que não se achasse
provido o navio de todos os seus apparelhos, de solda-
dos, de provisões e de munições necessarias ; e logo
que o vento foi favoravel embarcou-se n'elle o rei Beder,
depois de ter-se despedido do rei, e ter-lhe agradecido
todos os beneficios que lhe devia.
Fez- se o navio á vela com vento em pôpa , que o fez
adiantar consideravelmente na sua derrota dez dias se-
guidos : foi alguma cousa contrario no undecimo dia ; e
foi finalmente tão violento que causou uma tempestade
furiosa. Não só se desviou o navio da sua derrota , mas até
foi agitado com tanta violencia que os seus mastros se
quebraram, e levado do vento deu em secco e se despe-
daçou .
Foi logo ao fundo a maior parte da tripolação ; dos
110 AS MIL E UMA NOITES

que ficaram , uns se fiaram na força de seus braços pa-


ra se salvarem a nado, e os outros se agarraram a algum
pedaço de madeira . Foi Beder dos ultimos ; e levado ora
pelas correntes e ora pelas ondas, n'uma grande incerte-
za do seu destino, percebeu finalmente que estava perto
de terra, e pouco longe d'uma cidade de grande appa-
rencia. Aproveitou-se das poucas forças que lhe ficavam
para abordar a ella e chegou finalmente tão perto da ri-
beira, onde o mar estava socegado, que tocou no fundo .
Largou logo o pedaço de madeira, que lhe fôra de tão
grande soccorro . Todavia, adiantando-se na agua para
chegar á praia, ficou admirado de vêr acudir de todas
as partes cavallos, camêlos, machos , burros, bois, vac-
cas, touros e outros animaes que bordaram a praia e se
puzeram em estado de impedir-lhe que puzesse pé em
terra . Teve os maiores trabalhos do mundo para vencer a
sua obstinação e abrir passagem . Tendo- o conseguido ,
procurou o abrigo de alguns rochedos, até ter recobrado
algumas forças , e ter enxugado o seu vestido ao sol .
Querendo este principe adiantar-se para entrar na ci-
dade , teve ainda a mesma difficuldade com os mesmos
animaes, como se quizessem desvial -o do seu intento , e
dar-lhe a entender que corria perigo .
Entrou o rei Beder na cidade e viu muitas ruas bel-
las e espaçosas , mas ficou muito admirado de não en-
contrar pessoa alguma . Esta grande solidão lhe fez con-
siderar que não era sem motivo que tantos animaes fize-
ram quanto podiam para obrigal-o a desviar-se d'ella.
Adiantando -se todavia , observou algumas lojas abertas , que
The deram a conhecer que a cidade não era tão despo-
voada como imaginára. Chegou-se a uma d'essas lojas
onde havia frutas expostas á venda de um modo mui
aceado, e saudou um velho que n'ella estava assentado .
O velho, que estava occupado a fazer qualquer cou-
sa, ergueu a cabeça ; e como viu um mancebo que de-
notava consideração, perguntou - lhe, com ar que demons-
trava alguma surpreza , d'onde vinha e que acaso o con-
duzira. O rei Beder o satisfez em poucas palavras, e o
velho lhe perguntou ainda se encontrára alguem no ca-
minho. « Sois o primeiro que vi, replicou o rei , e não
CONTOS ARABES 111

posso perceber como uma cidade tão bella e de tanta ap-


parencia esteja deserta . -Entrai ; não vos demoreis á
porta, replicou o velho , succeder-vos -hia talvez algum
mal. Satisfarei a vossa curiosidade com vagar, e dir-vos-
hei a razão por que convém que tomeis esta precaução » .
Não foi preciso dizel-o duas vezes ao rei Beder : en-
trou e assentou-se ao pé do velho. Mas como este per-
cebėra, pela narração da sua desgraça, que o principe.
precisava de alimento, offereceu - lhe logo com que reco-
brar forças ; e ainda que o rei Beder lhe tivesse rogado
que lhe explicasse por que tomára a precaução de fa-
zel-o entrar, não quiz todavia dizer-lhe cousa alguma
sem ter acabado de comer, porque receava que as cou-
sas desagradaveis que tinha que contar- lhe o impedissem
de comer socegadamente . Com effeito, quando viu que
já não comia : « Deveis agradecer a Deus, disse-lhe, por
ter chegado até minha casa sem accidente algum.-
Por que motivo ? replicou o rei Beder, espantado e as-
sustado . Deveis saber, replicou o velho, que esta ci-
dade se chama a Cidade dos Encantos, e que é governa-
da não por um rei , mas por uma rainha ; e esta rainha ,
que é a mais bella pessoa do seu sexo de que se tenha
jamais ouvido fallar, é tambem magica, porém a mais
perigosa que se possa conhecer. D'isso ficareis conven-
cido quando souberdes que todos esses cavallos, esses
machos e os outros animaes que vistes, são homens co-
mo vós e como eu , que ella tem assim transformado pe-
la sua arte diabolica. Tem homens subornados que de-
teem, e que por vontade ou por força levam perante el-
la todos os mancebos bem feitos como vós, que entram
na cidade . Ella os recebe com um acolhimento dos mais
lisonjeiros ; acaricia-os , regala-os , hospeda- os magnifica-
mente, e dá-lhes tanta facilidade em persuadir- se que os
idolátra, que nada lhe custa o conseguil-o ; todavia não
os deixa gozar largo tempo da sua pretendida felicidade :
não ha nenhum que não transforme em animal ou pas-
saro, ao cabo de quarenta dias , conforme julga a propo-
sito . Fallastes -me de todos esses animaes que se apre-
sentaram para impedir-vos que chegasseis a terra e en-
trasseis na cidade ; é porque não podiam dar-vos a co-
112 AS MIL E UMA NOITES

nhecer de outro modo o perigo a que vos expunheis , e


faziam o que estava em seu poder para desviar- vos d'el-
les ».
Estas palavras affligiram mui sensivelmente o joven
rei da Persia . « Ai de mim ! clamou elle ; a que extremo
estou reduzido pelo meu mau destino ! Apenas estou li-
vre de um encanto, vejo-me exposto a outro ainda mais
terrivel ! » Isto lhe deu lugar a contar a sua historia ao
velho ; de fallar- lhe do seu nascimento, da sua qualida-
de, da sua paixão para com a princeza de Samandal e
da crueldade que tivera de transformal -o em passaro, no
instante que acabava de vêl- a e de fazer-lhe a declara-
ção do seu amor .
Tendo este principe acabado pela felicidade que tive-
ra de achar uma rainha que rompêra este encanto e pe-
las provas do medo que tinha de recahir n'uma maior
desgraça, o velho quiz socegal- o : « Ainda que o que vos
disse da rainha magica e da sua maldade, replicou - lhe,
seja verdade , isso não deve todavia causar-vos o gran-
de desassocego em que vos vejo . Sou amado de toda a
cidade ; até não sou desconhecido da rainha, e posso di-
zer que tem muita consideração para commigo . Assim ,
é grande felicidade para vós que a vossa boa fortuna
vos tenha dirigido a mim e não a outrem . Estaes com to-
da a segurança em minha casa, onde vos aconselho que
fiqueis, se assim fôr do vosso agrado ; comtanto que
não vos afasteis d'ella, eu vos asseguro que não vos
succederá nada que possa dar-vos motivo de queixar-vos
de mim. Sendo assim, não ha precisão de constranger-
vos em qualquer cousa que seja » .
O rei Beder agradeceu ao velho a hospitalidade e a
protecção que lhe dava de tão boa vontade. Assentou-se
á entrada da loja, e apenas appareceu , logo a sua mo-
cidade e a boa physionomia attrahiram os olhos de todos
os passageiros . Muitos pararam e deram os parabens ao
velho por ter adquirido um escravo tão bem feito . E d'is-
so pareciam tanto mais admirados quanto não podiam
perceber como tão bello mancebo escapára ás diligen-
cias da rainha. «Não acrediteis que seja um escravo, lhes
dizia o velho ; sabeis que não sou rico, nem de qualida-
CONTOS ARABES 113

de para os ter d'esta estimação . É meu sobrinho, filho


d'um irmão que tinha, que morreu ; e como não tenho
filhos mandei-o vir para me fazer companhia » . Alegra-
ram-se com elle da satisfação que devia ter pela sua che-
gada ; mas ao mesmo tempo não poderam deixar de ma-
nifestar-lhe o receio que tinham de que a rainha lh'o
mandasse tirar. « Vós a conheceis, diziam-lhe , e não de-
veis ignorar o perigo a que vos expuzestes , á vista de to-
dos os exemplos que d'isso tendes. Que desgosto seria o
vosso se ella lhe désse o mesmo tratamento que deu a
tantos outros que sabemos ! -Fico-vos muito obrigado,
continuava o velho, da boa amizade que me tendes e da
parte que tomaes no que me diz respeito, e d'isso vos
agradeço com todo o reconhecimento que me é possivel .
Comtudo guardar-me-hei muito de pensar que quizesse
a rainha causar-me o mais leve desgosto , á vista de to-
das as bondades que não cessa de ter para commigo.
No caso que venha a saber alguma cousa e que me fal-
le, espero que d'elle não se lembrará, quando lhe tiver
declarado que é meu sobrinho » .
Alegrava-se o velho ouvindo os louvores que teciam
ao joven rei da Persia ; n'isso se interessava como se
verdadeiramente fosse seu proprio filho, e tomou-lhe tal
amizade que augmentou á proporção que a demora em
sua casa lhe deu occasião de conhecel- o melhor. Havia
quasi um mez que viviam juntos , e o rei Beder estava
um dia assentado á entrada da loja , segundo o seu costu-
me, quando a rainha Labe- assim se chamava a magica
-passou diante da casa do velho com grande pompa.
Apenas o rei Beder avistou os guardas que marchavam
diante d'ella, logo se levantou , entrou na loja, e pergun-
tou ao velho seu hospede o que isto significava. « É a rai-
nha que vai passar, replicou elle, porém ficai e não re-
ceeis cousa alguma » .
Os guardas da rainha Labe, com uniforme côr de por-
pura, a cavallo e vestidos ricamente, passaram em quatro
fileiras com os alfanges levantados, em numero de mil,
e não houve um official que não saudasse o velho , pas-
sando diante da sua loja . Vinham seguidos de igual nu-
mero de eunucos, vestidos de brocado e mais bem mon-
TOMO III. 8
114 AS MIL E UMA NOITES

tados, cujos officiaes lhe fizeram a mesma honra. Após


elles, outro numero igual de jovens donzellas, quasi to-
das igualmente bellas, ricamente vestidas e adornadas
com pedrarias, vinham a pé com passo grave, com uma

lança na mão ; e a rainha Labe apparecia no meio d'el-


las montada n'um cavallo todo brilhante de! diaman-
tes, com uma sella d'ouro, e uma gualdrapa de pre-
ço inestimavel. As jovens donzellas cortajaram tambem
o velho á proporção que passavam ; e a rainha, enleva-
da na boa physionomia do rei Beder, parou diante da lo-
CONTOS ARABES
115
ja. « Abdallah , disse-lhe ― assim se chamava - dizei - me :
pertence-vos este escravo tão bem feito e tão agradavel ?
Ha muito tempo que fizestes esta acquisição ? > »
Antes de responder à rainha prostrou-se Abdallah por
terra, e levantando- se : « Senhora, disse- lhe , é meu sobri-
nho , filho d'um irmão que tinha, que morreu não ha
muito. Como não tenho filhos considero-o como filho meu,
e mandei -o vir para minha consolação, e para recolher
depois da minha morte o pequeno cabedal que deixarei > ».
A rainha Labe , que não tinha ainda visto pessoa al-
guma comparavel ao rei Beder, e que acabava de conce-
ber uma forte paixão por elle , ouvido este discurso cui-
dou em obrar de sorte que o velho lh'o cedesse . < « Bom
pai, replicou ella, não quereis generosamente fazer-me
a fineza de dar- m'o de presente ? rogo-vos que não m'o
recuseis juro pelo fogo e pela luz que o farei tão gran-
de e tão poderoso, que jamais particular algum no mun-
do haverá tido tão alta fortuna . Ainda que tenha o in-
tento de fazer mal a todo o genero humano , será o uni-
co a quem não o farei . Espero que me concedereis o que
vos peço, mais em razão da amizade que sei que me
tendes , do que em razão da estimação que faço , e sem-
pre fiz , da vossa pessoa . - Senhora, replicou o bom Ab-
dallah , fico infinitamente obrigado a vossa magestade por
todas as bondades que tem para commigo, e pela honra
que quer fazer a meu sobrinho . Elle, porém, não é di-
gno da amizade de tão grande rainha ; supplico a vossa
magestade que se esqueça d'elle . Abdallah, replicou a
rainha , acreditava que me estimaveis mais e nunca me
capacitei que me desseis uma demonstração tão eviden-
te do pouco caso que fazeis dos meus pedidos . Porém ,
juro ainda uma vez pelo fogo e pela luz , e até pelo que
ha de mais sagrado na minha religião , que não passa-
rei adiante sem ter vencido a vossa teima . Percebo mui-
to bem o que vos causa desgosto , porém prometto- vos
que não tereis o mais leve motivo de arrepender- vos de
ter -me feito um serviço tão importante » .
Teve o velho Abdallah um desprazer indizivel , pelo
que dizia respeito a elle e ao rei Beder, de se vêr na
necessidade de ceder á vontade da rainha : < « Senhora,
116 AS MIL E UMA NOITES

replicou elle , não quero que vossa magestade tenha oc-


casião de fazer tão mau conceito do respeito que lhe te-
nho, nem do meu zelo em contribuir para tudo o que
póde dar-lhe gosto . Confio inteiramente na sua palavra
e não duvido que m'a guarde . Supplico- lhe sómente que
faça demorar tão grande honra a meu sobrinho, até ao
primeiro dia em que tornar a passar aqui . —Será então
ámanhã » , replicou a rainha ; e dizendo estas palavras
abaixou a cabeça, para mostrar- lhe a obrigação que lhe
devia, e tomou o caminho do seu palacio.
Tendo a rainha Labe acabado de passar com toda a
pompa que a acompanhava : « Filho, disse o bom Abdal-
lah ao rei Beder, ao qual se tinha acostumado a dar es-
te nome, para o não dar a conhecer, fallando d'elle em
publico ; não pude, como vós mesmo vistes, recusar á
rainha o que me pediu com a instancia de que fostes
testemunha, para não lhe dar motivos de recorrer a al-
guma violencia publica ou particular, empregando a sua
arte magica, e de dar-vos, tanto por despeito contra vós
como contra mim , um tratamento mais cruel e mais as-
signalado do que a todos os de quem pôde dispor até
agora, como já vos contei . Tenho razões para crêr que
ella vos tratará bem, como m'o prometteu , pela consi-
deração muito particular que tem para commigo . Vós
mesmo a pudestes observar pela de toda a sua côrte , e
pelas honras que me fizeram . Maldita seja ella do céo
se me enganar ! porém não me enganaria impunemente,
e muito bem saberia vingar-me ».
Estas seguranças, que pareciam muito incertas , não
fizeram grande effeito no espirito do rei Beder. « A vis-
ta do que me contastes das maldades d'esta rainha, re-
plicou elle, não vos dissimulo quanto temo ir com ella.
Desprezaria talvez tudo o que pudestes dizer-me d'ella
e deixar-me-hia offuscar pelo esplendor da grandeza que
a cérca, se não soubesse já por experiencia o que é es-
tar á discrição d'uma magica. O estado em que me achei
pelo encanto da princeza Giauhare , e do qual parece que
não fiquei livre senão para entrar quasi ao mesmo tem-
po n'outro, m'a fez olhar com horror » . As suas lagri-
mas não o deixaram dizer mais, e deram a conhecer
CONTOS ARABES 117

com quanta repugnancia se via na necessidade fatal de ser


entregue à rainha Labe.
« Filho, replicou o velho Abdallah, não vos afflijaes :
confesso, porém, que não se pode ter grande confiança
nas promessas e até nos juramentos d'uma creatura tão
perniciosa. Quero tambem que saibaes que com todo o
seu poder nada póde sobre mim. Ella não o ignora, e é
por isso que de preferencia a qualquer outra cousa , tem
tantas attenções para commigo . Bem saberei impedil-a
de fazer-vos o menor mal, quando fosse bastante perfi-
da para ousar emprehender fazer-vol-o . Podeis fiar- vos
de mim ; e comtanto que sigaes exactamente os conse-
lhos que vos darei antes que vos entregue a ella, asse-
guro-vos que não terá mais poder sobre vós do que so-
bre mim ».
Não deixou a rainha magica de passar no dia seguin-
te por diante da loja do velho Abdallah, com a mesma
pompa do dia antecedente, e o velho a esperava com
grande respeito . « Bom pai, disse -lhe ella parando, de-
veis julgar da impaciencia em que estou por ter vosso
sobrinho na minha companhia, pela minha pontualidade
em vir lembrar-vos que desempenheis a vossa promes-
sa. Sei que sois homem de palavra, e não posso crêr
que mudasseis de parecer ».
Abdallah, que se prostrára logo que vira aproximar-
se a rainha, levantou-se quando ella cessou de fallar ; e
como não quizesse que ninguem ouvisse o que tinha que
dizer-lhe, chegou-se com respeito a ella, fallando - lhe em
voz baixa : « Poderosa rainha, disse elle , estou persuadido
que vossa magestade não tomou a mal a difficuldade que
puz hontem em confiar -lhe meu sobrinho : deve ter per-
cebido o motivo que para isso tive. De boa vontade
quero entregar-lh'o hoje, mas supplico-lhe que tenha a
bondade de esquecer todos os segredos d'essa sciencia
maravilhosa que possue em supremo grau . Considero
meu sobrinho como meu proprio filho, e vossa magesta-
de me faria desesperar, se obrasse com elle de modo
differente do que teve a bondade de prometter-me . -- Eu
vol- o prometto ainda , replicou a rainha, e repito -vos,
pelo mesmo juramento que fiz, que vós e elle tereis
118 AS MIL E UMA NOITES

todo o motivo de ficardes satisfeitos commigo . Bem ve-


jo que não me conheceis ainda bastante, acrescentou ella ;
até agora não me vistes senão com a cara coberta ; po-
rém como acho vosso sobrinho digno da minha amiza-
de, quero provar- vos que não sou indigna da sua » .
Proferindo estas palavras deixou vêr ao rei Beder, que
se chegára com Abdallah, uma belleza incomparavel .
Todavia mostrou-se o rei Beder pouco sensivel a ella :
« Na verdade não basta ser bella, disse comsigo, impor-
ta que as acções sejam tão regulares como a belleza é
completa »
>.
Ao tempo que o rei Beder fazia estas reflexões e tinha
os olhos na rainha Labe, voltou-se o velho Abdallah pa-
ra elle, e tomando-o pela mão, apresentou -lh'o : « Eil-o
aqui , senhora, disse -lhe : peço a vossa magestade ainda
uma vez que se lembre que é meu sobrinho, e lhe per-
mitta que venha vér- me algumas vezes » . Prometteu-lh'o
a rainha, e para prova do seu reconhecimento mandou-
lhe dar um sacco de mil peças d'ouro que mandára tra-
zer. Recusou-se a recebel-o , porém ella quiz absoluta-
mente que o aceitasse, e não lhe foi possivel dispensar-
se d'isso . Tinham por ordem sua trazido um cavallo
tão ricamente ajaezado como o seu para o rei da Persia.
Apresentaram -lh'o ; e em quanto mettia o pé no estribo :
<« Esquecia-me, disse a rainha a Abdallah, de perguntar-
vos como se chama vosso sobrinho » . Como lhe tivesse
respondido que se chamava Beder (Lua cheia) : « Engana-
ram-se, replicou ella, deviam antes chamar- lhe Schems
(Sol) ».
Montando o rei Beder a cavallo , quiz collocar-se atraz
da rainha, mas ella o mandou adiantar-se para a sua
esquerda, e quiz que marchasse a seu lado. Olhou de-
pois para Abdallah ; e , depois de lhe ter feito uma in-
clinação de cabeça, continuou a sua marcha.
Em vez de observar no semblante do povo uma certa
satisfação acompanhada de respeito, á vista da sua so-
berana, pelo contrario percebeu o rei Beder que olhavam
para ella com desprezo , e que muitos faziam mil impre-
cações contra ella . «A magica , diziam alguns , achou
uma nova victima em que exercitar a sua maldade : não
CONTOS ARABES 119

livrará o céo o mundo da sua tyrannia ? -Misero estran-


geiro ! clamavam outros, estás enganado se cuidas que
a tua felicidade durará largo tempo : é para dares qué-
da mais violenta que te elevam tão alto » . Estes mur-
murios lhe deram a conhecer que o velho Abdallah lhe
descrevera a rainha Labe tal qual era na realidade. Com-
tudo como não estava já na sua mão livrar-se do peri-
go em que estava, entregou-se à Providencia, e ao que
quizesse o céo decidir da sua sorte .
Chegou a rainha magica ao seu palacio , e tendo-se
apeado encostou-se ao braço do rei Beder, e entrou com
elle acompanhada das suas criadas e dos officiaes dos
seus eunucos . Ella mesma lhe mostrou todos os quartos
onde não havia senão ouro maciço, pedrarias e trastes
de magnificencia singular. Tendo-o levado ao seu gabi-
nete, chegou-se com elle a uma varanda, d'onde lhe fez
observar um jardim de belleza encantadora. O rei Beder
louvava tudo o que via com muita discrição, de modo
todavia que ella não pudesse duvidar de que fosse so-
brinho do velho Abdallah . Entretiveram-se de algumas
cousas indifferentes, até que vieram avisar a rainha que
a céa estava prompta.
A rainha e o rei Beder se levantaram e foram-se pôr
á mesa. A mesa era d'ouro maciço , e os pratos do mes-
mo metal . Comeram e pouco beberam até á sobremesa ;
porém fez então a rainha encher a sua taça de excellen-
te vinho, e depois de ter bebido á saude do rei Beder,
fél-a encher sem a largar, e lh'a apresentou . O rei Beder
a aceitou com muito respeito, e com uma pequena in-
clinação de cabeça mostrou-lhe que beberia reciproca-
mente á sua saude .
Ao mesmo tempo entraram dez criadas da rainha La-
be com instrumentos com os quaes fizeram um agrada-
vel concerto com suas vozes, e no entretanto continua-
ram a beber até alta noite . A força de beber escande-
ceram-se tanto um e outro, que insensivelmente o rei
Beder se esqueceu que a rainha era magica, e somente
a considerou como a mais bella mulher do mundo . Logo
que a rainha percebeu que o tinha levado ao ponto que
desejava, fez signal aos eunucos e ás suas criadas que se
120 AS MIL E UMA NOITES

retirassem . Obedeceram, e o rei Beder e ella dormiram


juntos .
No dia seguinte a rainha e o rei Beder foram ao ba-
nho logo que se levantaram ; e , ao sahir d'elle , as mu-
lheres que serviram o rei lhe apresentaram roupa bran-
ca e um vestido dos mais ricos . A rainha, que tambem
tomára outro vestido mais luxuoso que o do dia antece-
dente, veio buscal - o e foram juntos ao seu quarto : ser-
viram -lhes um bom banquete , depois do que passaram o
dia agradavelmente passeando pelo jardim e divertin-
do-se.
A rainha Labe tratou o rei Beder d'este modo pelo
decurso de quarenta dias , como costumava obrar com
todos os seus amantes . Na noite do quadragesimo, como
estivessem deitados e ella julgasse que o rei Beder dor-
mia, levantou-se sem fazer barulho ; mas o rei Beder que
estava acordado e percebeu que ella tinha algum inten-
to, fingiu que dormia e foi attento ás suas acções . Le-
vantada ella , abriu uma caixinha d'onde tirou uma bo-
ceta cheia de pós amarellos . Tomou d'estes pós e fez
um rastilho pelo meio do quarto. Mudou -se logo este
rastilho n'um rio de agua clarissima, com grande pasmo
do rei Beder. Estremeceu de susto e constrangeu-se
mais, fingindo sempre que dormia, para não dar a co-
nhecer á magica que estava acordado.
A rainha Labe tirou agua do rio n'um vaso, e dei-
tou parte d'ella em uma pia em que havia farinha, com
que fez uma pasta, que amassou muito tempo . Metteu
finalmente n'ella certas drogas que tinha em diversas
bocetas, e com ellas fez um bolo que metteu n'uma tor-
teira coberta . Como primeiro que tudo accendesse um
grande fogo, tirou algumas brazas, pôz a torteira em ci-
ma, e em quanto o bolo se cozia repôz os vasos e as
bocetas de que se servira no seu lugar, e com certas
palavras que pronunciou , o rio, que corria pelo meio do
quarto, desappareceu . Cozido o bolo tirou-o do lume e
levou-o para o gabinete depois do que tornou a deitar-
se com o rei Beder, que soube dissimular tão bem, que
ella não teve a mais leve suspeita de que tivesse visto
alguma cousa de tudo o que acabava de fazer.
CONTOS ARABES 121

O rei Beder, a quem os prazeres e divertimentos fi-


zeram esquecer o bom velho Abdallah, seu hospede , lem-
brou-se d'elle e pareceu-lhe que precisava do seu conse-
lho, á vista do que vira fazer á rainha Labe durante a
noite. Tendo-se levantando manifestou á rainha o desejo
que tinha de o ir vêr, e supplicou-lhe que tivesse a bon-
dade de lh'o permittir . « O quê, meu rico Beder ! repli-
cou a rainha ; já vos enfastiaes, não digo de morar n'um
palacio tão soberbo e onde deveis achar tanto prazer,
mas da companhia de uma rainha, que vos ama tão
apaixonadamente e que d'isso vos dá tantas provas ? —
Grande rainha, replicou o rei Beder , como poderia eu en-
fastiar-me de tantas graças e tantos favores que vossa
magestade tem a bondade de conceder-me ? Bem longe
d'isso, senhora, peço esta licença mais para dar conta a
meu tio das obrigações infinitas que devo a vossa ma-
gestade , do que para mostrar- lhe que não me esqueço
d'elle . Não nego todavia que é em parte por esta razão,
como sei que me ama com ternura e ha quarenta dias que
não me viu, não quero dar-lhe motivo para pensar que
não lhe correspondo, ficando mais tempo sem vél -o. —
Ide, replicou a rainha, consinto ; porém não tardareis
muito a voltar ; lembrai-vos que não posso viver longe
da vossa companhia » . Mandou dar-lhe um cavallo rica-
mente ajazeado e partiu.
Alegrou-se muito o velho Abdallah vendo o rei Beder ;
sem attender á sua qualidade, abraçou-o ternamente, e
o rei Beder o abraçou do mesmo modo, para que nin-
guem duvidasse que não fosse seu sobrinho. Assentados
que foram : <« Então ? perguntou Abdallah ao rei ; como
vos achastes, e como vos achaes ainda com essa infiel,
com essa magica ? - Até agora, replicou o rei Beder,
posso dizer que teve para commigo todas as attenções
imaginaveis, e que teve toda a consideração e todo o
desvelo possivel, para melhor me persuadir que me ama
perfeitamente. Porém observei uma cousa esta noite que
me dá justo motivo de suspeitar, que tudo o que fez é
dissimulação . Ao tempo que ella cuidava que eu dormia
profundamente, percebi que se afastou de mim com
muita precaução e que se levantou . Esta precaução fez
122 AS MIL E UMA NOITES

com que eu, em vez de adormecer, me applicasse todo


a observal-a, fingindo todavia que dormia sempre » . Con-
tinuando, contou-lhe como e com que circumstancias lhe
vira fazer o bolo ; e acabando : « Até então , acrescentou
elle, confesso que vos tinha quasi esquecido , com todos
os avisos que me tinheis dado das suas maldades . Po-
rém fazendo-me esta acção recear que não guardasse a
palavra que vos deu, nem seus juramentos tão solem-
nes, lembrei-me logo de vós , e considero-me feliz por
ter-me ella permittido vir vêr-vos com mais facilidade do
que esperava. - Não vos enganastes, replicou o velho
Abdallah com um sorriso que denotava então que não
cuidára elle mesmo que ella devesse obrar de outro mo-
do ; nada pôde obrigar essa perfida a emendar - se . Mas
não receeis cousa alguma ; sei o meio de fazer com que
o mal que quer fazer-vos recáia sobre ella. Foram bem
fundadas as vossas suspeitas , e não podieis fazer melhor
do que recorrer a mim. Como ella não conserva os seus
amantes mais de quarenta dias, e em vez de despedil- os
decentemente faz d'elles outros tantos animaes de que
povôa os seus bosques, suas tapadas e o campo, tomei
desde hontem as medidas para impedir que não vos dé
o mesmo tratamento. Ha muito tempo que a terra soffre
este monstro ; deve ser tratada como merece » .
Ditas estas palavras, metteu Abdallah dous bolos nas
mãos do rei Beder, e lhe disse que os guardasse para
fazer d'elles o uso que ia ouvir. « Vós me dissestes que
a magica fez um bolo esta noite : é para fazer-vos co-
mer d'elle, não o duvideis ; todavia guardai-vos de o pro-
var. Não deixeis, ainda assim, de o aceitar quando ella
vol-o offerecer, e em vez de mettel- o na bocca fazei por
comer, em lugar d'elle, um dos dous que acabo de dar-
vos, mas sem que ella o perceba . Logo que estiver ca-
pacitada de terdes engulido o seu, não deixará de em-
prehender a vossa transformação em animal . Ella não o
conseguirá, e entrará a gracejar , como se não o quizes-
se fazer senão para rir, e causar-vos algum medo , ao
tempo que terá d'isso um pezar mortal na alma, e ima-
ginará ter faltado com alguma cousa para a composição
do seu bolo. Quanto ao outro far-lhe-heis presente d'el-
CONTOS ARABES 123

le, e apertareis com ella para que coma tambem . Ella


comerá, ainda que não seja senão para mostrar- vos que
não desconfia de vós , visto o motivo que vos deu de
desconfiar d'ella. Tendo ella comido tomai uma pouca de
I agua na palma da mão, e deitando- lh'a na cara , dizei-
lhe : Deixa essa fórma e toma a de tal ou tal animal
que quizerdes, e vinde ter commigo com o animal ; dir-
vos-hei então o que haveis de fazer » .
O rei Beder deu demonstrações ao velho Abdallah,
nos termos mais expressivos , do quanto lhe era devedor
pelo cuidado que tomava de impedir que uma magica
tão perigosa tivesse o poder de exercer a sua maldade
contra elle ; e , depois de ter-se ainda entretido algum
tempo com elle, deixou -o e voltou ao palacio . Chegan-
do, soube que a magica o esperava no jardim com gran-
de impaciencia. Lá foi ter ; e a rainha Labe, apenas o
avistou, correu a elle a toda a pressa. « Meu rico Beder ,
disse- lhe, bem se diz que nada dá melhor a conhecer a
força e o excesso do amor do que a ausencia do objecto
amado. Não tive descanço algum desde que vos perdi de
vista, e parece-me que ha annos que não vos vi ; se tar-
-
dasseis mais um pouco iria eu mesma buscar-vos . — Se-
nhora, replicou o rei Beder, posso assegurar a vossa ma-
gestade que não tive menos impaciencia em vir procu-
rar a vossa companhia ; mas não pude recusar alguns
instantes de conversação a um tio que me estima, e que
não me tinha visto havia já tanto tempo. Queria deter-
me, porém determinei-me, apesar da sua ternura, a vir
aonde o amor me chamava ; e da merenda que me tinha
preparado contentei-me com um bolo que vos trouxe » .
O rei Beder, que mettera um dos bolos n'um lenço mui-
to aceado, desatou -o e offerecendo -lh'o : « Eil-o- aqui, se-
nhora, acrescentou elle : supplico-vos que me façaes a
a mercê de o aceitar.Com muito gosto, replicou a rai-
nha tomando-o, e d'elle comerei por amor de vós e do
vosso tio, meu bom amigo ; mas primeiro quero que por
amor de mim comaes tambem do que fiz durante a vos-
sa ausencia. Bella rainha, disse-lhe o rei Beder, rece-
bendo-o com respeito ; umas mãos como as de vossa ma-
gestade nada podem fazer que não seja excellente, e dá-
124 AS MIL E UMA NOITES

me n'isto uma honra que não posso agradecer como me-


rece » .
O rei Beder substituiu com destreza pelo bolo da rai-
nha o outro que o velho Abdallah lhe dera, e partiu um
pedaço que levou á bocca. « Rainha, clamoù elle comen-
do-o, nunca saboreei cousa mais exquisita » . Como esti-
vessem perto d'uma fonte de repuxo, a magica, que viu
que elle engulira o pedaço e que ia comer outro , tirou
agua da pia na palma da mão, e deitando-lh'a na cara :
Desgraçado, disse-lhe ; larga essa figura de homem e
toma a de cavallo cego e côxo .
Não fizeram estas palavras effeito algum, e ficou a
magica em extremo pasmada de vêr o rei Beder no mes-
mo estado , e dar sómente uma demonstração de grande
susto. Córou vendo isto ; e como viu que não consegui-
ra o seu intento : « Querido Beder, disse -lhe , não é nada,
socegai , não quiz fazer-vos mal ; era só para ver o que
dirieis . Bem devieis julgar que seria a mais miseravel e
a mais execranda de todas as mulheres se commettesse
uma acção tão feia, não digo sómente pelos juramentos
que fiz, mas tambem pelas demonstrações de amor que
vos dei . Poderosa rainha , replicou o rei Beder, por
mais persuadido que esteja que vossa magestade o fez
sómente para divertir-se, não pude todavia deixar de as-
sustar-me como não sentiria ao menos alguma agitação,
ouvindo palavras capazes de fazer uma mudança tão es-
tranha ? Porém , senhora , deixemo-nos agora d'isso ; e,
visto que comi do vosso bolo, fazei-me a honra de co-
mer do meu > ».
A rainha Labe, que não podia justificar-se melhor do
que dando esta demonstração de confiança ao rei da Per-
sia, partiu um pedaço do bolo e o comeu. Apenas o en-
guliu pareceu toda perturbada e ficou como immovel. O
rei Beder não perdeu tempo ; tomou agua da mesma pia,
e lançando-lh'a no rosto : Abominavel magica ! clamou
elle ; deixa essa figura e muda-te em egoa !
Foi no mesmo instante a rainha Labe transformada
n'uma bellissima egoa ; e foi tal a sua confusão de vêr-
se assim transformada, que derramou lagrimas em abun-
dancia. Inclinou a cabeça para os pés do rei Beder, como
CONTOS ARABES
125
para excital -o á compaixão ; mas ainda que quizesse dei-
xar-se enternecer , não estava em seu poder reparar o
mal que lhe fizera . Levou a egoa á cavalhariça do pala-
cio, onde a entregou a um criado para a sellar e enfrear ;
todavia de todos os freios que o criado apresentou á egoa,
nenhum servia . Mandou sellar e enfrear dous cavallos ,
um para si e outro para o criado , e fez -se acompanhar
por este até casa do velho Abdallah com a egoa pela
mão.
Abdallah, que avistou de longe o rei Beder e a egoa ,
não duvidou que este fizesse o que lhe tinha recommen-
dado . « Maldita magica ! disse logo com alegria ; castigou-
te finalmente o céo como merecias ! » Apeou- se o rei Be-
der chegando, e entrou na loja de Abdallah , que o abra-
çou, agradecendo-lhe todos os serviços que fizera . Con-
tou- lhe de que modo se passára tudo, e disse-lhe que
não achara freio proprio para a egoa . Abdallah , que ti-
nha um para qualquer cavallo que fosse, enfreou elle
mesmo a egoa ; e, tendo o rei Beder despedido o criado
com ambos os cavallos : « Senhor, disse - lhe, não tendes
precisão de demorar- vos mais n'esta cidade ; montai na
egoa , e voltai ao vosso reino. A unica cousa que tenho
que recommendar- vos, é que no caso que vendaes ou
deis a alguem a egoa, tomeis muito sentido de não lhe
deixar o freio » . Prometteu - lhe o rei Beder que se lem-
braria d'isso, e tendo-se despedido , partiu .
Apenas o rei da Persia se achou fóra da cidade , não
coube em si de alegria por vêr- se livre de tão grande
perigo, e ter á sua disposição a magica , de quem tive-
ra tantos motivos de receio . Tres dias depois da sua par-
tida chegou a uma grande cidade . Como estivesse no ar-
rabalde, encontrou-se com um velho de alguma conside-
ração, que ia a pé a uma casa de campo que alli tinha .
« Senhor, disse-lhe o velho parando, ousarei perguntar-
vos de que lado vindes ? » Parou tambem para satisfa-
zel-o; e, como o velho lhe fizesse varias perguntas, so-
breveio uma velha que parou tambem , e pôz-se a cho-
rar olhando para a egoa e dando grandes suspiros.
Os dous interromperam a conversação para olhar pa-
126 AS MIL E UMA NOITES

ra a velha, e o rei Beder lhe perguntou que motivo ti-


nha de chorar : « Senhor, replicou ella, é parecer-se a
vossa egoa tão perfeitamente com uma que tinha meu
filho, e que ainda choro por amor d'elle, que creria ser
a mesma se não estivesse morta. Peço-vos por favor que
m'a vendaes ; pagar-vol-a-hei pelo que valer, e com isso
dever -vos-hei uma grandissima obrigação . —Boa mãi,
replicou o rei Beder, sinto não poder conceder-vos o que
me pedis ; a minha egoa não é para vender. — Oh se-
nhor ! insistiu a velha, não me recuseis isso, eu vol-o
peço em nome de Deus . Morreriamos de desgosto, meu
filho e eu , se não me concedesseis essa graça . Boa mãi ,
replicou o rei Beder, conceder-vol-a-hia de muito boa
vontade, se estivesse resolvido a desfazer-me d'ella. Po-
rém ainda que me determinasse a isso, não creio que
quizesseis dar-me mil peças d'ouro por ella, pois n'esse
caso não a estimaria menos . -- Porque as não daria ? re-
plicou a velha. Dai sómente o vosso consentimento, que
eu vol-as contarei'» .
O rei Beder, que via que a velha estava vestida com
alguma pobreza, não pôde persuadir- se que estivesse em
estado de dar tão avultada somma. Para experimentar se
ella cumpriria o ajuste : « Dai - me o dinheiro , disse -lhe,
a egoa é vossa » . Sacou logo a velha uma bolsa que ti-
nha á roda da cintura ; e apresentando-lh'a : « Tende o
trabalho de descer, disse-lhe ella, contemos se o que
aqui trago é bastante ; a não ser, depressa apromptarei
o resto, pois a minha casa não é longe d'aqui » .
Ficou em extremo admirado o rei Beder quando viu
a bolsa : « Boa mãi, replicou elle , não estaes vendo que
o que vos disse foi unicamente para rir ? repito -vos que
a minha egoa não é para vender >» .
O velho, que fora testemunha de toda esta conver-
sação, pegou então na palavra : < « Meu filho, disse ao rei
Beder, deveis saber uma cousa, que bem vejo que igno-
raes ; e é que não se permitte de modo algum mentir
n'esta cidade, sob pena de morte. Assim não podeis dis-
pensar-vos de aceitar o dinheiro d'esta boa velha, e de
entregar-lhe a vossa egoa, visto que vos dá a somma
CONTOS ARABES 127

que pedistes. Convém -vos mais arranjar a cousa sem ba-


rulho do que expôr- vos á desgraça que poderia aconte-
cer-vos » .
O rei Beder, muito afflicto por ter-se mettido n'este mau
negocio com tanta inadvertencia, apeou- se com grande.
pezar. Foi diligente a velha em desenfrear a egoa, em
tomar na palma da mão agua d'um canal que corria pe-
lo meio da rua, e em lançal-a na egoa , dizendo estas
palavras : Minha filha, deixai essa fórma estranha e to-
mai a vossa . Fez -se a mudança n'um instante ; e o rei
Beder, que desmaiou logo que viu apparecer a rainha
Labe diante de si, teria cahido por terra se o velho o
não tivesse segurado .
A velha, que era mãi da rainha Labe e que lhe ensi-
nára todos os segredos da magica , apenas abraçou sua
filha para provar-lhe a sua alegria, logo n'um instante
fez apparecer um genio horrendo, de figura e grandeza
gigantesca. Pegou logo o genio no rei Beder aos hom-
bros, abraçou a velha e a rainha magica, e levou-os em
poucos instantes ao palacio da rainha Labe, na Cidade
dos Encantos.
Furiosa a rainha magica, deu grandes reprehensões
ao rei Beder, chegada que foi ao seu palacio : « Ingrato !
disse-lhe ella ; assim é que teu indigno tio e tu me dés-
tes demonstrações de reconhecimento, visto tudo o que
fiz a vosso respeito ? far- vos-hei sentir a ambos o que
mereceis ». Não lhe disse mais palavra ; porém tomando
agua e lançando-lh'a no rosto : Deixa essa figura, disse
ella, e toma a de um vil mocho. Foram suas palavras
seguidas do effeito , e ordenou logo a uma das suas cria-
das que fechassem o mocho n'uma gaiola e não lhe dés-
se de comer nem de beber .
A mulher levou a gaiola ; e , sem attender á ordem
da rainha Labe, metteu n'ella de comer e agua ; e como
fosse amiga do velho Abdallah mandou avisal -o occulta-
mente para que désse ordem a impedil-o e cuidasse na
sua propria conservação, de que modo a rainha acaba-
va de tratar a seu sobrinho , e do seu intento em fazel - os
perecer um e outro.
Bem viu Abdallah que não havia que esperar da rai-
128 AS MIL E UMA NOITES

nha Labe. Assobiou immediatamente de certo modo e lo-


go appareceu diante d'elle um grande genio com quatro
azas, que lhe perguntou por que motivo o chamára .
« Relampago, disse- lhe -assim se chamava este genio-
trata-se de conservar a vida ao rei Beder, filho da rai-
nha Gulnare . Vai ao palacio da magica e leva no mesmo
instante á capital da Persia a mulher cheia de compaixão
a quem ella deu a gaiola a guardar, para que informe a
rainha Gulnare do perigo em que se acha o rei seu filho
e da precisão que tem do seu soccorro ; toma sentido que
a não assustes com a tua presença, é recommenda-Îhe
muito da minha parte o que deve fazer » >.
Desappareceu o Relampago e passou n'um instante
ao palacio da magica . Informou a mulher e levou-a pe-
los ares á capital da Persia, onde a pousou n'um terra-
ço que correspondia ao quarto da rainha Gulnare ; des-
ceu a mulher pela escada que a elle ia dar, e achou a
rainha Gulnare e a rainha Farache, sua mãi, que conver-
savam no triste assumpto da sua afflicção commum . Fez-
lhes uma profunda reverencia, e pela narração que lhes
expûz conheceram a necessidade que o rei Beder tinha
de ser soccorrido promptamente .
Com esta nova a rainha Gulnare alegrou -se muito ,
do que deu provas levantando-se do seu lugar e abra-
çando a officiosa mulher, para mostrar-lhe quanto lhe fi-
cava obrigada pelo serviço que acabava de fazer- lhe .
Ella sahiu logo , e ordenou que mandassem tocar as trom-
betas, os timbales e os tambores do palacio, para annun-
ciar a toda a cidade que o rei da Persia chegaria logo .
Voltou, e achou o rei Saleh seu irmão, que a rainha Fa-
rache tinha já mandado chamar, por meio de certa fumi-
gação . « Mano, disse -lhe, o rei vosso sobrinho, meu que-
rido filho, está na cidade dos Encantos, em poder da rai-
nha Labe . A vós e a mim toca-nos ir livral-o ; não ha
tempo que perder » .
O rei Saleh ajuntou um poderoso exercito de tropas
dos seus estados e sahiu com ellas do fundo do mar.
Chamou tambem em seu soccorro os genios seus allia-
dos, que appareceram com outro exercito mais numeroso
que o seu . Reunidos ambos os exercitos pûz-se à frente
CONTOS ARABES 129

com a rainha Farache, a rainha Gulnare e as princezas ,


que quizeram tomar parte na acção . Elevaram-se pelos
ares e cahiram bem depressa sobre o palacio e Cidade
dos Encantos, onde a rainha magica, sua mãi e todos
os adoradores do fogo foram destruidos n'um abrir e
fechar de olhos .
Tinha a rainha Gulnare trazido na sua comitiva a mu-
lher da rainha Labe, que viera annunciar-lhe a nova do
encantamento e da prisão do rei seu filho , e tinha- lhe
recommendado que não tivesse outro cuidado na peleja,
senão o de tomar a gaiola e de lh'a trazer. Foi esta or-
dem executada como desejava ; abriu ella mesma a gaio-
la, tirou para fóra o mocho, e deitando-lhe agua que
mandou trazer : « Meu rico. filho, disse ella, deixai essa
figura estranha e tomai a de homem, que é a vossa.
No mesmo instante a rainha Gulnare não viu já o
feio mocho, mas sim o rei Beder seu filho ; abraçou -o
logo com grande excesso de alegria : suppriram as suas
lagrimas de modo muito expressivo o que ella não esta-
va em estado de exprimir com suas palavras , visto o
seu arrebatamento. Não podia resolver-se a largal-o, e
foi preciso que a rainha Farache lh'o arrancasse por sua
vez . Depois abraçaram-no do mesmo modo o rei seu tio
e as princezas suas parentas .
O primeiro cuidado da rainha Gulnare foi mandar
chamar o velho Abdallah, a quem era devedora da
recuperação do rei da Persia. Chegado que foi perante
ella : « A obrigação que vos devo , disse-lhe ella, é tama-
nha, que não ha cousa que eu não esteja prompta a fa-
zer para vos dar provas do meu reconhecimento : indi-
cai-me em que o possa fazer ; sereis satisfeito . - Gran-
de rainha, replicou elle, se a senhora que vos enviei
quer consentir de boa vontade no matrimonio que lhe of-
fereço, e o rei da Persia quizer tambem consentir-me na
sua côrte, consagro de boa vontade o resto de meus dias
ao seu serviço » . A rainha Gulnare voltou-se logo para
a senhora que estava presente ; e como a senhora désse
a conhecer com toda a honestidade que não tinha repu-
gnancia n'este casamento , fez-lhes dar as mãos e o rei
da Persia e ella tomaram a si o cuidado da sua fortuna.
TOMO III. 9
130 AS MIL E UMA NOITES

Este casamento deu occasião ao rei da Persia de di-


rigir a falla á rainha sua mãi : « Senhora, disse sorrin-
do-se, alegro-me muito pelo casamento que acabaes de
fazer ; ainda ha outro do qual deverieis lembrar- vos » .
A rainha Gulnare não percebeu logo a que casamento se
referia o rei da Persia ; mas reflectindo um instante :
<< Tenho percebido : é do vosso que quereis fallar , repli-
cou ella ; consinto de muito boa vontade » . Ella encarou
logo a gente marinha do rei seu irmão e os genios que
estavam presentes : « Ide já, disse ella, e visitai todos os
palacios do mar e da terra, e vinde dar-nos aviso quan-
do encontrardes a princeza mais bella e mais digna do
rei meu filho . Senhora, replicou o rei Beder, é inutil
tanto trabalho. Vós não ignoraes, sem duvida, que dei
o meu coração á princeza de Samandal, só com a sim-
ples descripção da sua belleza : e não me arrependo do
presente que lhe fiz . Realmente não póde haver nem
sobre a terra nem no fundo do mar uma princeza que
possa comparar- se-lhe . É verdade que à declaração que
lhe fiz tratou-me de tal modo que pudéra apagar a
chamma de qualquer outro amante menos abrazado que
eu no seu amor ; ella porém não podia tratar-me menos
rigorosamente á vista da prisão do rei seu pai, cuja
causa, ainda que innocente, não deixava de ser eu mes-
mo. Talvez que o rei de Samandal tenha mudado de pa-
recer e ella não tenha já repugnancia em amar-me, em
dar-me a sua fé, logo que seu pai consinta n'isso.- Filho ,
replicou a rainha Gulnare, se ha unicamente a princeza
Giauhare no mundo capaz de fazer a vossa felicidade,
não é minha intenção oppôr-me à vossa união , se é pos-
sivel que se faça . Que o rei vosso tio mande chamar o
rei de Samandal ; depressa saberemos se continúa a ser
tão pouco tratavel como o foi » .
Por mais estreitamente que fosse vigiado o rei de
Samandal por ordem do rei Saleh, fôra todavia sempre
tratado com muita attenção, e tinha -se familiarisado com
os officiaes que o guardavam. Mandou o rei Saleh trazer
um fogareiro com brazas , e n'elle deitou uma certa com-
posição, pronunciando palavras mysteriosas . Apenas prin-
cipiou a fumarada a levantar- se, estremeceu o palacio, e
CONTOS ARABES 131

viu-se bem depressa apparecer o rei de Samandal com


os officiaes do rei Saleh, que o acompanhavam . Lançou-
se logo o rei da Persia a seus pés : « Senhor, disse elle,

EW. NV
2M DE L

não é já o rei Saleh que pede a vossa magestade a hon-


ra da sua alliança para o rei da Persia ; é o rei da Per-
sia em pessoa que lhe supplica a concessão d'essa graça.
Não posso persuadir-me que queira ser a causa da mor-
132 AS MIL E UMA NOITES

te d'um rei que não poderá viver senão com a amavel


princeza Giauhare » .
O rei de Samandal não consentiu mais tempo que o
rei da Persia ficasse prostrado a seus pés. Abraçou-o, e
obrigando-o a levantar- se : « Senhor , replicou elle , sen-
tiria muito ter contribuido para a morte d'um monarcha
tão digno de viver. Se é verdade que uma vida tão pre-
ciosa não póde conservar-se sem a posse de minha filha,
vivei , senhor, é vossa ! Ella foi sempre muito obediente
á minha vontade, e não creio que se opponha a ella » .
Proferidas estas palavras ordenou a um dos officiaes que
trazia comsigo, por consentimento do rei Saleh, que fos-
se procurar a princeza Giauhare e que a trouxesse.
A princeza Giauhare ficou sempre onde a encontrára
o rei da Persia . Achou-a no mesmo sitio o official , e bem
depressa o viram voltar com ella e suas criadas . O rei
de Samandal abraçou a princeza : « Filha, disse-lhe, dei-
vos um esposo : é o rei da Persia que presente está, o
monarcha mais completo do universo : a preferencia que
vos deu sobre todas as outras princezas, nos obriga, a
vós e a mim, a dar-lhe provas do nosso reconhecimen-
to. - Senhor, replicou a princeza Giauhare, vossa ma-
gestade bem sabe que nunca faltei ao respeito que de-
via a tudo o que exigiu da minha obediencia . Estou ain-
da prompta a obedecer ; e espero que o rei da Persia se
dignará esquecer-se do mau tratamento que lhe dei ; pa-
rece- me elle bastante justo para não o imputar senão á
necessidade da minha obrigação » .
Celebraram-se as nupcias no palacio da Cidade dos
Encantos , com solemnidade esplendorosa . Todos os aman-
tes da rainha magica, que tinham recobrado a sua pri-
mitiva fórma no instante em que ella cessára de viver,
vieram assistir a ellas e dar agradecimentos ao rei da
Persia, á rainha Gulnare e ao rei Saleh . Eram todos
filhos de reis ou principes , ou d'uma ordem muito dis-
tincta.
O rei Saleh, finalmente, acompanhou o rei de Saman-
dal ao seu reino e lhe deu a posse dos seus estados . Sa-
tisfeito em extremo o rei da Persia, partiu e voltou para
a capital d'este reino com a rainha Giauhare, a rainha
CONTOS ARABES 133

Gulnare e a rainha Farache, e as princezas li ficaram até


o rei Saleh ir buscal-as e leval-as ao seu reino debaixo
das ondas do mar.

HISTORIA

DE GANEM, FILHO DE ABOU AIBOU, O ESCRAVO DE AMOR

Senhor, disse Scheherazada ao sultão das Indias, ba-


via antigamente em Damasco um mercador, que pela sua
industria e pelo seu trabalho ajuntára grandes cabedaes,
de que vivia com muita honra . Abou Aibou - era este o
seu nome- - tinha um filho e uma filha. Foi no principio
chamado Ganem, e depois deu- se-lhe o sobrenome de
Escravo de amor. Era muito bem feito ; e o seu espiri-
to, naturalmente excellente, fôra cultivado por bons mes-
tres que seu pai cuidára em dar-lhe. E foi sua filha cha-
mada Força dos corações porque era dotada de belleza tão
perfeita, que todos os que a viam não podiam deixar de
amal-a.
Morreu Abou Aibou . Deixou riquezas immensas . Cem
cargas de brocados e outros estofos de séda que se acha-
ram no seu armazem, eram sómente a minima parte .
Estavam as cargas todas feitas, e sobre cada fardo lia-
se em letras maiusculas : Para Bagdad.
N'este tempo Mohammed , filho de Solimão , denomi-
nado Zinebi, reinava na cidade de Damasco, capital da
Suria. O seu parente Haroun Alraschid , que residia em
Bagdad, dera-lhe este reino a titulo de tributario .
Pouco tempo depois da morte de Abou Aibou , conver-
sava Ganem com sua mãi nos negocios de sua casa ; e
quanto ás cargas de fazendas que estavam no armazem ,
perguntou o que significava o letreiro que se lia sobre
cada fardo . «< Filho, respondeu-lhe sua mãi, viajava vosso
pai ora por uma provincia, ora por outra, e costumava,
antes de partir, escrever sobre cada fardo o nome da ci-
dade aonde se propunha ir. Tinha disposto todas as cou-
sas para fazer a viagem de Bagdad, e estava prompto a
partir quando a morte... » Não teve força para acabar
134 AS MIL E UMA NOITES

uma lembrança tão viva da perda de seu marido não lhe


permittiu dizer mais , e lhe fez derramar uma torrente de
lagrimas.
Não pôde Ganem vêr sua mãi enternecida sem elle
mesmo se enternecer tambem . Ficaram alguns instantes
sem fallar : elle, porém, tornou finalmente a si ; e, quan-
do viu sua mãi em estado de ouvil-o , tomou a palavra :
<
« Visto que meu pai , disse elle, destinou estas fazendas
para Bagdad e não está já em estado de executar o seu
intento, vou dispôr-me a fazer essa viagem . Creio que
convém apressar a minha partida, receando que se dam-
nifiquem as fazendas, ou percamos occasião de vendel- as
vantajosamente » .
A viuva de Abou Aibou , que amava ternamente a seu
filho, assustou-se muito com esta resolução : « Filho, res-
pondeu-lhe, não posso deixar de louvar -vos querendo
imitar vosso pai ; mas lembrai- vos que sois ainda muito
novo, sem experiencia, e de nenhum modo acostumado
ás fadigas das viagens. Além d'isso quereis abandonar-
me e acrescentar uma nova afflicção á que já padeço ?
É-nos mais conveniente vender estas fazendas aos mer-
cadores de Damasco e contentar-nos com um lucro razoa-
vel , do que expôr-vos a perecer » .
Por mais que ella desapprovasse a resolução de Ga-
nem com boas razões , este não as podia approvar. O de-
sejo de viajar e aperfeiçoar o seu espirito com inteiro
conhecimento das cousas do mundo, instigava-o a par-
tir, e partiu, apesar das advertencias, dos rogos e dos
choros de sua mãi . Foi ao mercado dos escravos , com-
prou-os robustos , alugou cem camêlos , e tendo - se pro-
vido de todas as cousas necessarias metteu - se a caminho
com cinco ou seis mercadores de Damasco, que iam a
Bagdad commerciar.
Estes mercadores , acompanhados de todos os seus es-
cravos e de muitos outros viajantes, compunham uma ca-
ravana tão consideravel que não tinham receio algum dos
beduinos, isto é, dos arabes que não teem outra occupa-
ção senão a de correr os campos, atacar e roubar as cara-
vanas, quando não são bastante numerosas para repellir
os seus insultos . Só tiveram que supportar as fadigas ordi-
CONTOS ARABES 135

narias de uma longa jornada, do que se esqueceram facil-


mente á vista da cidade de Bagdad, onde chegaram fe-
lizmente .
Foram apear-se no Khan mais magnifico e mais fre-
quentado da cidade ; porém Ganem, que queria ser alojado
commodamente e em particular, não tomou n'elle quarto.
Contentou-se em deixar as suas fazendas n'um armazem
para estarem com segurança . Alugou na visinhança uma
bellissima casa ricamente mobilada, onde havia um jar-
dim mui agradavel pela quantidade de repuxos d'agua e
de arvoredos que alli se viam.
Alguns dias depois de se ter estabelecido n'esta casa
e de ter-se inteiramente restabelecido da fadiga da viagem
vestiu-se mui aceadamente e foi ter ao lugar publico on-
de se ajuntavam os mercadores para vender ou comprar
fazendas. Seguia-o um escravo que trazia uma trouxa de
muitas peças de estofos e de panos finos.
Os mercadores receberam a Ganem com muita cor-
tezia ; e o seu chefe, ou syndico , a quem logo se dirigiu ,
viu e comprou a trouxa toda pelo preço assentado no le-
treiro que estava preso a cada peça de estofo . Continuou
Ganem este negocio com tanta felicidade, que vendia to-
das as fazendas que mandava trazer todos os dias .
Só lhe ficava um fardo que mandára tirar do arma-
zem e trazer para sua casa, quando um dia foi á praça.
Achou as lojas todas fechadas. Pareceu-lhe isto extraor-
dinario ; perguntou a causa e disseram- lhe que um dos
primeiros mercadores , que não era desconhecido , mor-
réra, e que todos os mercadores , segundo o costume, ti-
nham ido ao seu enterro .
Perguntou Ganem pela mesquita onde se devia fazer
a oração ou d'onde o corpo devia ser levado ao lugar
da sepultura, e informado d'isto mandou para casa o seu
fardo com a trouxa de fazenda e tomou o caminho da
mesquita. Chegou ao tempo em que a oração , feita n'uma
sala forrada de setim preto, não estava ainda acabada.
Levaram o corpo, que a parentela, acompanhada dos
mercadores e de Ganem, seguiu até ao lugar da se-
pultura, que era fóra da cidade e muito distante ; era
um edificio de pedra em fórma de zimborio, destinado
136 AS MIL E UMA NOITES

a receber os corpos de toda a familia do defunto . E como


fosse mui pequeno, tinham armado barracas em roda,
para que toda a gente estivesse abrigada durante a ce-
remonia. Abriu-se a cova e metteram n'ella o corpo tor-
nando-a depois a fechar. Assentaram-se depois o Iman e
os outros ministros da mesquita em roda n'umas almofa-
das debaixo da principal barraca, e rezaram o resto das
orações . Fizeram tambem a leitura dos capitulos do Al-
corão, prescriptos para o enterro dos mortos, e os paren-
tes e os mercadores, á imitação d'aquelles ministros, as-
sentaram - se em roda por detraz d'elles .
Era quasi noite quando tudo se acabou. Ganem , que
não esperava que a ceremonia durasse tanto tempo,
principiava a inquietar- se, e`a sua inquietação cresceu
de ponto quando viu que se servia um banquete em me-
moria do defunto, conforme o uso de Bagdad . Disseram-
The tambem que as barracas não foram só armadas por
causa do ardor do sol , mas tambem para evitar o relen-
to, porque não voltariam para a cidade senão no dia se-
guinte . Isto assustou Ganem. « Sou estrangeiro , disse
comsigo, e passo por um mercador rico ; podem os la-
drões aproveitar-se da minha ausencia e ir saquear a mi-
nha casa. Póde tambem tentar os meus escravos uma tão
bella occasião ; não teem mais que fugir com todo o ou-
ro que recebi das minhas fazendas ». Summamente occu-
pado com estes pensamentos, comeu alguns bocados á
pressa e deixou a companhia sem ser percebido .
Apřessou o passo para fazer mais caminho ; mas co-
mo acontece algumas vezes que quanto mais se apressa
uma pessoa menos adianta, tomou um caminho por ou-
tro e perdeu-se na escuridão, de modo que era quasi
noite quando chegou á porta da cidade. Para cumulo de
desgraça achou-a fechada ; este contratempo causou-lhe
novo desgosto, e foi obrigado a tomar o partido de pro-
curar um sitio para passar o resto da noite e esperar
que abrissem a porta . Entrou n'um cemiterio vastissimo,
que se estendia desde a cidade até ao lugar d'onde vi-
nha ; adiantou - se até umas muralhas muito altas que cer-
cavam um pequeno campo que era o cemiterio particu-
lar d'uma familia, e onde havia uma palmeira. Havia
CONTOS ARABES 137

ainda uma infinidade d'outros cemiterios particulares , cu-


jas portas não se fechavam todas a horas certas . Assim Ga-
nem , achando aberto aquelle em que havia uma palmei-
ra, entrou n'elle e fechou a porta comsigo ; deitou -se
sobre a herva, e fez quanto pôde por adormecer, porém
o desassocego em que estava de se vêr fóra de sua ca-
sa lh'o impedia. Levantou-se ; e, depois de ter passado e
repassado algumas vezes diante da porta, tornando a pas-
sar abriu-se sem saber porque ; no mesmo instante avis-
tou ao longe uma luz que parecia encaminhar- se para el-
le. Á vista d'ella assustou-se, cerrou a porta que não se
fechava senão com um ferrolho, e subiu á pressa ao al-
to da palmeira que com o medo que tinha lhe pareceu
o mais seguro asylo que pudesse encontrar.
Tendo subido, distinguiu e viu ao clarão da luz , que
o assustára, entrarem no cemiterio tres homens , que
reconheceu como escravos pelo vestuario . Um d'elles ia
adiante com um facho, e os outros o seguiam carrega-
dos com um bahú do comprimento de cinco para seis
pés, que traziam aos hombros ; puzeram-o no chão, e
disse então um dos tres escravos aos seus camaradas :
<< Irmãos, se vos parece, deixemos aqui o bahú e tomemos
o caminho da cidade . Não, não, respondeu outro ; não
é assim que se devem executar as ordens que nossa ama
nos deu. Poderiamos arrepender-nos de não as ter exe-
cutado . Enterremos o bahú, visto que assim nol- o orde-
naram » . Os outros dous escravos conformaram- se com
este parecer ; principiaram a cavar a terra com instru-
mentos que para isto traziam ; e , tendo feito uma co-
va funda, metteram n'ella o bahu e o cobriram com a
terra que tiraram . Feito isto sahiram do cemiterio e vol-
taram para suas casas .
Ganem , que do alto da palmeira ouvira as palavras
que os escravos pronunciaram , não sabia que pensar
d'esta aventura : julgou que devia haver fechada n'este
bahu alguma cousa preciosa, e que a pessoa a quem
pertencia tinha suas razões para o mandar esconder n'es-
te cemiterio . Determinou-se a averiguar isto ; desceu da
palmeira : a partida dos escravos tinha-lhe tirado o sus-
to que tivera. Poz -se a trabalhar na cova, e em pouco tem-
138 AS MIL E UMA NOITES

po viu o bahú descoberto, mas fechado com um forte ca-


deado . Sentiu muito este obstaculo, que o impedia de sa-
tisfazer a sua curiosidade . Não perdeu todavia o animo ; e
no entretanto, principiando a raiar o dia, descobriu no ce-
miterio algumas pedras grandes. Escolheu uma com que
forçou o cadeado . Cheio então de impaciencia abriu o ba-
hú. Em vez de achar n'elle dinheiro, como imaginára,
ficou Ganem espantado por vêr uma joven senhora de bel-
leza sem igual. Pela côr do seu rosto fresco e vermelho ,

e mais ainda pela respiração branda e regulada que ti-


nha, reconheceu que estava cheia de vida ; mas não po-
dia perceber como, se somente estivesse adormecida,
não acordára com o barulho que fizera, forçando o ca-
deado . Ella tinha um vestido muito rico, braceletes e brin-
cos de diamantes e um collar de perolas tão finas, que-
se capacitou logo ser uma senhora das principaes da côr-
te. Á vista de tão bello objecto, não só a compaixão e a
CONTOS ARABES 139

inclinação natural para soccorrer as pessoas que estão em


perigo, mas ainda alguma cousa mais forte que Ganem
não podia então imaginar, o moveram a dar a esta joven
belleza todo o soccorro que d'elle dependia.
Primeiro que tudo fechou a porta do cemiterio que
os escravos deixaram aberta, e voltou depois para to-
mar a senhora nos braços . Pegou n'ella do bahu e dei-
tou-a sobre a terra que tirára da cova . Apenas a senho-
ra se achou exposta ao ar, espirrou, e com um pequeno
esforço que fez para voltar a cabeça, lançou pela bocca
um licôr de que parecia ter o estomago cheio. E entre-
abrindo e esfregando os olhos, clamou com voz , da qual
Ganem, que ella não viu , ficou encantado : « Flor de jar-
dim ! Ramo de coral ! Cana de assucar ! Luz do dia ! Es-
trella da manhã ! Delicias do tempo ! Fallai , onde estaes ? >»
Eram os nomes das escravas que costumavam servil-a .
Chamou-as e admirou -se muito de ninguem lhe respon-
der. Abriu finalmente os olhos ; e, vendo-se n'um cemi-
terio, ficou muito assustada. « O quê ! clamou ella em
voz mais alta que d'antes ; resuscitam os mortos ? esta-
mos no dia de juizo ? que estranha mudança da noite
para a manhã ! »
Não quiz Ganem deixar a senhora mais tempo n'es-
te desassocego. Chegou-se logo a ella com todo o res-
peito possivel e do modo mais cortez : « Senhora, disse-
lhe, não posso expressar-vos a alegria que sinto de ter-
me achado aqui para servir- vos como vos servi , e de po-
der offerecer- vos todos os soccorros necessarios no esta-
do em que vos achaes » .
Para socegar a senhora disse-lhe em primeiro lugar
quem era e por que acaso se achava n'este cemiterio .
Contou-lhe depois a chegada dos tres escravos e de que
modo tinham enterrado o bahú : a senhora, que cobri-
ra o rosto com o seu véo logo que Ganem se apresentá-
ra, foi muito sensivel á obrigação que lhe devia. < « Dou
graças a Deus, disse - lhe , por ter-me deparado um ho-
mem honrado como vós para livrar-me da morte . Porém ,
visto que principiastes esta obra tão caritativa, peço-vos
que a não deixeis imperfeita. Ide á cidade procurar um
arrieiro que venha com um macho buscar- me, e levar-
AS MIL E UMA NOITES
140
me para vossa casa n'este mesmo bahú ; pois se fosse
comvosco a pé, sendo o meu vestido diverso dos das
senhoras da cidade , poderia alguem reparar n'elle e se-
guir -me, o que me importa muito prevenir . Quando es-
tiver em vossa casa sabereis quem sou , pela narração
que vos farei da minha historia ; todavia persuadi - vos

desde jás que não servistes umaa ingrata ».


Ante de deixar a senhor , tirou o joven mercador
o bahú da cova ; encheu -a de terra , tornou a pôr a se-
nhora no bahú e n'elle a fechou de tal sorte , que não
parecia que o cadeado tivesse sido forçado . Porém re-
ceando que ella suffocasse não fechou bem o bahú e
deixou -lhe entrar o ar. Sahindo do cemiterio cerrou a
porta sobre si, e como a da cidade estivesse aberta , de-
pressa achou o que procurava . Voltou ao cemiterio on-
de ajudou o arrieiro a carregar o bahú , e para tirar-lhe
toda a suspeita disse -lhe que tinha chegado de noite com
outro arrieiro, que com a pressa de voltar tinha deixado .

húne
o baGa no mieteri
m , cequ o. e
desd a sua chegada a Bagdad se oc-
cupára unicamente do seu negocio , ainda não tinha
experimentado o poder do amor . Sentiu então as suas
primeiras fréchadas . Não pudéra ver a joven senhora
sem compadecer -se d'ella ; e o desassocego em que se
sentia , seguindo de longe o arrieiro , e o receio de
que acontecesse no caminho algum accidente que lhe
fizesse perder a sua conquista , lhe ensinaram a pene-
trar os seus sentimentos . Foi extrema a sua alegria
quando , tendo felizmente chegado a sua casa , viu des-
carregar o bahu. Despediu o arrieiro , e tendo mandado
fechar por um dos seus escravos a porta de sua casa,
abriu o bahú , ajudou a senhora a sahir d'elle , deu -lhe
a mão e levou -a para o seu quarto , compadecendo - se
pelo que devia ter soffrido em tão estreita prisão . « Se
padeci , disse -lhe , estou bem indemnisada pelo que fizes-
tes por meu respeito e pelo gosto que tenho de vér-me

qura
O gu
em se . Ganem , ricamente mobilado, attrahiu
toa »de
arnç
menos as attenções da senhora que o bello talhe e a
hoa physionomia do seu libertador , cuja cortezia e mo-
CONTOS ARABES 141

dos lisonjeiros lhe inspiraram vivo reconhecimento . As-


sentou-se n'um sophá , e para dar a conhecer ao merca-
dor o quanto ella era sensivel ao serviço que d'elle re-
cebera, tirou o véo . Ganem, pela sua parte, conheceu
todo o favor que uma senhora tão amavel lhe fazia , de
mostrar-se-lhe com o rosto descoberto, ou antes co-
nheceu que tinha já por ella uma paixão violenta . Por
maior que fosse a obrigação que lhe devesse, pareceu-
lhe estar demasiadamente recompensado por favor tão
precioso.
Penetrou a senhora os sentimentos de Ganem, e
não se assustou, porque parecia muito attencioso. Como
julgou que ella precisava comer e não queria encar-
regar pessoa alguma do cuidado de banquetear uma
hospeda tão encantadora , sahiu acompanhado d'um es-
cravo e foi a uma casa de pasto encommendar uma re-
feição ; da casa de pasto passou á loja d'uma vendedei-
ra de frutas, onde escolheu as mais bellas e as melho-
res : fez tambem provisão de excellente vinho, e do
mesmo pão que se comia no palacio do califa.
De volta a casa armou com sua propria mão uma
pyramide com as frutas que comprára ; e servindo- as
elle mesmo á senhora n'um prato de porcelana finissi-
ma: < « Senhora, disse-lhe ; esperando um banquete mais
solido e mais digno de vós , escolhei e tomai algumas
d'estas frutas » . Quiz ficar em pé ; porém ella lhe dis-
se que não tocaria em cousa alguma sem elle se assen-
tar, e sem comer com ella. Obedeceu ; e , depois de te-
rem comido alguns bocados, Ganem , observando que o
véo da senhora, que ella puzera ao seu lado sobre o
sophá, tinha a orla bordada com letras d'ouro, pediu-
The licença de o vêr. Pegou logo a senhora no véo e
lh'o apresentou , perguntando-lhe se sabia lêr. < « Senho-
ra, respondeu com ar modesto, não faria bem os seus
negocios um mercador que não soubesse ao menos lér
e escrever. Pois então, replicou ella, lêde as palavras
que estão escriptas n'este véo ; é tambem para mim
uma occasião de contar-vos a minha historia ».
Tomou Ganem o véo e leu estas palavras : Eu vos
pertenço, e vós me pertenceis, ó descendente do tio
142 AS MIL E UMA NOITES

do Propheta ! Este descendente do tio do propheta era


o califa Haroun Alraschid , que reinava então , e que des-
cendia de Abbas, tio de Mafoma .
Tendo Ganem comprehendido o sentido d'estas pa-
lavras < « Senhora, clamou afflicto, acabo de dar-vos a
vida, e eis-aqui umas palavras que me dão a morte !
Não percebo todo o mysterio, mas conheço perfeitamente
que sou o mais desgraçado dos homens. Perdoai-me,
senhora, a liberdade que tomo de vol -o dizer. Não pude
vér-vos sem dar-vos o coração . Vós mesma não ignoraes
que não esteve em meu poder recusar-vol-o, e isto póde
desculpar a minha temeridade . Propunha-me a mover o
vosso com meus respeitos, meus cuidados, minhas com-
placencias, minhas sujeições e minha constancia, e mal
concebi este intento lisonjeiro acho-me destituido de to-
das as minhas esperanças ! Não creio poder resistir
por muito tempo a tão grande desgraça. Mas succeda o
que succeder, terei a consolação de morrer escravo
vosso . Acabai, senhora, acabai de dar-me uma inteira
explicação do meu triste destino ! >>
Não pôde pronunciar estas palavras sem derramar
algumas lagrimas . Enterneceu-se a senhora ; e , bem lon-
ge de queixar-se da declaração que acabava de ouvir,
sentiu uma alegria occulta, pois seu coração principia-
va a deixar- se sensibilisar. Dissimulou todavia, e como
se não tivesse dado attenção ao discurso de Ganem :
<< Ter- me-hia guardado, respondeu - lhe ella, de mostrar-
vos o meu véo , se crêsse que houvesse de causar-vos
tanto desgosto ; não vejo que o que tenho que dizer-
vos deva tornar tão deploravel a vossa sorte como vos
parece . Sabereis pois , proseguiu ella, para contar-vos
a minha historia , que me chamo Tormenta, nome que
me deram no instante do meu nascimento, porque jul-
garam que meus olhos causariam algum dia muitos ma-
les. Não deveis ignoral- o , visto que não ha pessoa al-
guma em Bagdad que não saiba que o califa Haroun
Alraschid, meu e vosso soberano senhor, tem uma vali-
da que se chama assim.
« Levaram-me ao seu palacio desde a minha mais
tenra idade, e fui creada com todo o cuidado que cos-
CONTOS ARABES 143

tumam ter com as pessoas do meu sexo , destinadas a


ficar alli . Fiz progressos em tudo o que quizeram ensi-
nar-me, e isto, junto a alguns signaes de belleza , me
grangeou a amizade do califa , que me deu um quarto
particular contiguo ao seu . Não se contentou este prin-
cipe com esta distincção : nomeou vinte mulheres para
servir-me, com igual numero de eunucos, e desde esse
tempo fez-me presentes tão consideraveis que me vi
mais rica que nenhuma rainha. Á vista d'isto bem
julgaes que Zobeida, esposa e parenta do califa , não
pôde vér a minha felicidade sem ciumes . Ainda que Ha-
roun tinha para com ella todas as attenções imagina-
veis, ella procurou todas as occasiões possiveis de per-
der-me.
<< Até agora livrei -me dos seus laços, mas finalmen-
te succumbi ao ultimo esforço do seu ciume, e sem
vós estaria a esta hora na espectação de uma morte
inevitavel. Não duvido que subornasse alguma das mi-
nhas escravas, e que deitasse hontem de tarde, na li-
monada que me deu, uma droga que causasse tamanho
adormecimento. Tenho tanto maior fundamento para fa-
zer este juizo, quanto tenho naturalmente o somno
muito leve e acordo ao mais pequeno barulho.
<« Zobeida, para executar o seu mau intento , apro-
veitou-se da ausencia do califa, que ha poucos dias foi
pôr-se à frente das suas tropas afim de castigar a ousa-
dia de alguns reis visinhos, que se alliaram para fazer-
The guerra. Sem esta conjunctura, a minha rival, furio-
sa como é, não teria ousado attentar contra a minha
vida. Não sei o que fará para occultar ao califa o co-
nhecimento d'esta acção ; mas estaes vendo que tenho
grande interesse em guardar o segredo . D'elle depende
a minha vida ; não estaria segura em vossa casa, em
quanto o califa estivesse ausente de Bagdad . Vós mes-
mo sois interessado em occultar a minha aventura ; pois
se Zobeida viesse a saber a obrigação que vos devo,
castigar-vos-hia por me haverdes salvado.
« Quando o califa voltar terei menos medidas de
precaução que tomar. Acharei meios de informal-o de
tudo o que se passou , e estou persuadida que terá mais
144 AS MIL E UMA NOITES

empenho do que eu mesma em reconhecer um serviço


que me restitua ao seu amor » .
Em seguida fallou Ganem : « Senhora, disse-lhe , dou-
vos mil agradecimentos por me haverdes proporciona-
do a explicação que tomei a liberdade de pedir-vos, e
supplico-vos que acrediteis que estaes aqui em segu-
rança. Os sentimentos que me inspirastes afiançam- vos
a minha discrição. Quanto aos meus escravos , confesso
que devemos desconfiar d'elles . Poderiam faltar á fide-
lidade que me devem, se soubessem por que acaso e
em que lugar tive a felicidade de encontrar-vos . Mas is-
so é impossivel de se adivinhar . Ousarei tambem assegu-
rar-vos que não terão a menor curiosidade de informar-
se d'isso. É tão natural na nossa idade procurar escra-
vas formosas , que não se admirarão de modo algum de
vér-vos aqui, julgando que sois uma escrava e que vos
comprei. Crerão ainda que tive minhas razões para tra-
zer-vos para minha casa do modo que observaram :
quanto a isso socegai, e persuadi- vos que sereis servida
com todo o respeito que é devido á valida de monarcha
tão grande como o nosso. Todavia qualquer que seja a
grandeza que o cérca , permitti -me que vos declare, se-
nhora, que nada será capaz de fazer-me revogar a da-
diva que vos fiz do meu coração . Sei muito bem que
nunca esquecerei que o que pertence ao senhor é pro-
hibido ao escravo ; mas amava-vos antes de me infor-
mardes que pertencieis ao califa ; não depende de mim
vencer uma paixão que, ainda que em principio, tem
toda a força d'um amor corroborado por uma perfeita
correspondencia. Desejo que vosso augusto e felicissimo
amante vos vingue da malignidade de Zobeida , chaman-
do-vos outra vez. E restituida que sejaes aos seus dese-
jos, lembrai-vos do desafortunado Ganem, que não vos
ama menos que o califa . Tão poderoso como é esse
principe , se não sois sensivel senão á ternura, lisonjeio-
me que elle não poderá riscar-me da vossa lembrança .
Não póde amar-vos com mais ardor do que eu vos
amo, e não cessarei de arder por vós em qualquer lu-
gar do mundo onde vá expirar, depois de vos ter per-
dido ».
CONTOS ARABES 145

Percebeu Tormenta que Ganem estava penetrado da


mais viva afflicção ; enterneceu -se ; mas vendo o embara-
ço em que ia lançar-se , continuando a conversação sobre
esta materia, que podia insensivelmente leval-a a dar in-
dicios da inclinação que lhe tinha : « Bem vejo, disse-lhe
ella, que essas palavras vos causam muita pena, deixe-
mol-as e fallemos da obrigação infinita que vos devo . Não
posso expressar- vos a minha alegria, quando cuido que
sem vosso soccorro estaria privada da vida » .
Felizmente para ambos, bateram á porta n'este instan-
te. Levantou-se Ganem para ir vêr o que poderia ser, e
achou que era um dos escravos que vinha annunciar- lhe
a chegada do banquete que traziam da casa de pasto.
Ganem que, por maior cautela, não queria que os escra-
vos entrassem no quarto de Tormenta, foi receber o que
vinha da casa de pasto, e o serviu ellé mesmo á sua bel-
la hospeda, que no fundo da sua alma se alegrava dos
desvelos que elle tinha para com ella.
Depois da comida levantou Ganem a mesa do mesmo
modo que a puzera ; e, tendo entregue tudo á porta do
quarto nas mãos de seus escravos : « Senhora, disse a
Tormenta, desejareis talvez descançar agora. Deixo-vos
só, e depois de terdes tomado algum descanço vêr-me-
heis prompto a receber as vossas ordens » . Proferidas es-
tas palavras sahiu e foi comprar duas escravas, e com-
prou tambem roupa fina e tudo o que era preciso para
compor um toucador digno da valida do califa. Levou
para sua casa ambas as escravas, e apresentando- as a
Tormenta : « Senhora, disse-lhe, uma pessoa como vós
precisa ao menos de duas mulheres que a sirvam ; é bem
que vos de estas ».
Admirou Tormenta a attenção de Ganem : « Senhor,
disse ella, bem vejo que não sois homem que deixe as
cousas por acabar. Augmentaes com vossos modos a obri-
gação que vos devo ; mas espero que não morrerei in-
grata e que o céo me porá bem depressa em estado de
reconhecer todas as vossas acções generosas » .
Recolhidas as escravas a um quarto proximo para on-
de as mandou o joven mercador, assentou-se no sophá em
que estava Tor menta, a certa distancia d'ella, para mos-
TOMO III. 10
AS MIL E UMA NOITE S
146
trar-lhe mais respeito . Tornou á conversação sobre a sua
paixão e disse cousas mui ternas ácerca dos obstaculos
invenciveis que lhe tiravam toda a esperança . < « Nem ou-
so esperar , dizia elle , excitar com a minha ternura a sen-
sibilidade de um coração como o vosso , destinado ao mais
poderoso principe do mundo . Ai de mim ! na minha des-
graça seria para mim uma consolação se pudesse lison-
jear- me de que não vistes com indifferença o excesso do
meu amor ! Senhor ... respondeu -lhe Tormenta . -
Senhora , inte- rrompeu Ganem ouvindo esta palavra se-
nhor ; é a segunda vez que me fazeis a honra de tratar-
me por senhor ; a presença das mulheres escravas me
impediu a primeira vez de dizer -vos o que pensava ácer-
ca d'isso . Em nome de Deus , senhora , não me deis esse
titulo de honra , não me convém . Tratai - me como vosso
-
escravo . Eu o sou , e jámais cessarei de o ser . - Não ,
não , inte rr om pe u Torm en ta a z
por su ve ; gu ar da r -me-hei
mu it o de tra tar as si m um ho me m a qu em de vo a vida .
Seria uma ingrata se dissesse ou fizesse alguma cousa
que não vos conviesse . Deixai -me pois seguir os movi-
mentos do meu reconhecimento , e não exijaes em pre-
mio de vossos beneficios que obre descortezmente com-
vosco . Nunca farei tal . Sou muito sensivel á vossa cor-
tezia para abusar d'ella , e confessar- vos -hei que não ólho
com indifferença para todos os cuidados que tomaes . Sa-
beis as razões que me obrime gam ao silencio » .
Enlevou-se de contenta nto Ganem com esta decla-
ração . Chorou de alegria ; e, não podendo achar termos
consentaneos para agradecer a Tormenta , contentou -se em
dizer -lhe que se ella sabia o que devia ao califa , elle não
ignorava, pela sua parte , que o que pertence ao senhor

Coib
é proh idoper
mo crav
eseu
aoceb o
que. ia anoitecendo , levantou -se para
ir buscar luz . Trouxe -a elle mesmo , e juntamente com
que fazer a merenda , conforme o uso commum da cida-
de de Bagdad , onde , depois de ter jantado bem ao meio
dia, passam o serão a comer algumas frutas e a beber
vinho , conversando agradavelmente até á hora de reco-

-se .entaram-se ambos á mesa . Principiaram fazendo


lherAss
CONTOS ARABES 147

recusas muito cortezes ácerca das frutas que offereciam


um ao outro. Insensivelmente a excellencia do vinho os
incitou a beber . E, apenas beberam duas ou tres vezes ,
logo se deram palavra de não beberem mais sem pri-
meiro cantarem qualquer aria. Cantava Ganem versos
que compunha de repente, e que expressavam a força da
sua paixão ; e Tormenta, animada pelo seu exemplo,
compunha e cantava tambem cantigas que tinham algu-
ma relação com a sua aventura , é nas quaes havia sem-
pre alguma cousa que Ganem podia explicar a seu favor.
Quanto ao mais , foi a fidelidade que devia ao califa
exactamente guardada. Durou a merenda largo tempo .
Era já alta noite e não cuidav am ainda de separar-se.
Recolheu-se Ganem todavia a outro quarto e deixou Tor-
menta n'aquelle em que estava, onde as escravas que
comprára entraram para servil- a.
Viveram juntos d'este modo por alguns dias . O jo-
ven mercador não sahia senão a negocios d'alta impor-
tancia , e isto no tempo em que a senhora descançava ;
pois não podia resolver-se a perder um unico dos ins-
tantes que lhe era permittido passar com ella. Occupa-
va- se sómente da sua querida Tormenta , que, pela sua
parte, levada por sua inclinação, confessou que não lhe
tinha menos amor do que elle a ella. Comtudo , por mais
apaixonados que fossem um pelo outro, a consideração
do califa pôde contel-os nos limites que d'elles exigia, o
que tornava mais vehemente a sua paixão .
Em quanto Tormenta , arrancada, por assim dizer,
das mãos da morte, passava tão agradavelmente o tem-
po em casa de Ganem, não estava Zobeida socegada no
palacio de Haroun Alraschid .
Apenas os tres escravos, ministros da sua vingança,
levaram o bahú sem consciencia do que havia dentro e
sem a menor curiosidade de o saber, como homens acos-
tumados a executarem cegamente as suas ordens , logo
se apossou d'ella uma cruel inquietação . Mil importunas
reflexões vieram perturbar o seu descanço. Não pôde go-
zar um instante da suavidade do somno. Passou a noite
a sonhar nos meios de occultar o seu crime . « Meu es-
poso, dizia ella , ama a Tormenta mais do que nunca
*
148 AS MIL E UMA NOITES

amou nenhuma de suas validas . Que lhe responderei


quando me perguntar novas d'ella ? » Vieram- lhe ȧ lem-
brança varios estratagemas, mas não se satisfez com ne-
nhum d'elles . Achava sempre difficuldades e não sabia
como determinar-se. Tinha comsigo uma velha que a
creára desde a mais tenra infancia. Mandou-a chamar lo-
go ao raiar do dia ; e depois de ter-lhe feito confidencia
do seu segredo : « Minha boa mãi , disse-lhe , sempre me
ajudastes com vossos conselhos ; se alguma vez precisei
d'elles é n'esta occasião, em que se trata de dar socego
ao meu espirito, agitado por uma inquietação mortal, e
de propôr-me um meio de satisfazer o califa . - Minha
rica ama e senhora , respondeu a velha, muito melhor te-
ria sido não vos terdes mettido no embaraço em que
estaes ; mas como não ha remedio não se deve tratar
mais d'isso . Vamos a cuidar d'enganar o commendador
dos crentes , e sou de parecer que mandeis cortar a to-
da a pressa um pedaço de madeira em fórma de cada-
ver. Nós o embrulharemos em panos velhos, e depois de
o ter fechado n'um esquife fal -o-hemos enterrar em al-
gum lugar do palacio ; depois , sem perda de tempo ,
mandareis construir um mausoléo de marmore á manei-
ra de zimborio no lugar da sepultura, e armar uma eça
que mandareis cobrir com um pano preto, e acompanhar
de grandes castiçaes e grossas tochas em volta. Ainda
ha outra cousa, proseguiu a velha, que convém não es-
quecer será preciso tomar luto e mandal-o tomar ás
vossas mulheres, como tambem ás de Tormenta, aos vos-
sos eunucos , e finalmente a todos os officiaes do palacio .
Quando o califa voltar e vir todo o seu palacio de luto , e
a vós mesma, não deixará de perguntar o motivo. Te-
reis então lugar de o exaltardes, dizendo que em consi-
deração a elle mandastes fazer as exequias a Tormenta,
á qual uma morte repentina arrebatou d'esta vida . Dir-
lhe - heis que mandastes construir um mausoléo, e que fi-
nalmente fizestes à sua valida todas as honras que elle
mesmo lhe teria feito se presente fosse. Como a sua pai-
xão para com ella foi extrema, irá sem duvida verter la-
grimas sobre a sua sepultura. Talvez tambem, acrescen-
tou a velha, não creia que esteja morta na realidade ;
CONTOS ARABES 149

poderá suspeitar de a terdes expulso do palacio por ciu-


me, e olhar todo esse luto como um artificio para en-
ganal-o e impedil-o de mandal-a procurar. É de orêr que
mande desenterrar e abrir o esquife, e é certo que se
persuadirá da sua morte logo que vir a figura de um
morto sepultado. Agradecer- vos - ha muito tudo o que
tiverdes feito, e dar-vos-ha demonstrações de reconheci-
mento. Respeito ao pedaço de madeira, eu me encarrego
de mandal-o cortar por um carpinteiro da cidade, que
não saberá o uso que d'elle se quer fazer. Quanto a vós,
senhora, ordenai á mulher de Tormenta, que lhe deu hon-
tem a limonada, que annuncie às suas companheiras,
que foi achar sua senhora morta na cama ; e para que
não cuidem senão em choral- a e não entrem no seu
quarto, que acrescente que vos deu parte e que já dés-
tes ordem a Mesrour que a mandasse amortalhar e en-
terrar >> .
Tendo a velha acabado de fallar, foi Zobeida buscar
um bello diamante, metteu-lh'o no dedo, e abraçando-a :
<< Oh minha boa mãi ! disse-lhe cheia de alegria ; quan-
tas obrigações vos devo ! Nunca me teria lembrado d'um
expediente tão engenhoso . Não póde deixar de ter bom
successo ; e sinto que principio a recobrar o meu soce-
go . Confio pois em vós quanto ao pedaço de madeira ;
vou dar ordem ao resto ».
O pedaço de madeira foi preparado com toda a dili-
gencia e levado depois pela velha ao quarto de Tormen-
ta onde ella o amortalhou como a um defunto e o met-
teu n'um esquife, depois do que , Mesrour, que tambem
cahira no logro, mandou levar o esquife e o simulacro do
corpo de Tormenta, que enterraram com as ceremonias
do estylo no sitio que Zobeida assignalára, e entre cho-
ros que derramavam as mulheres da valida , das quaes
aquella que déra a limonada animava as outras com seus
gritos e lamentações .
Logo no mesmo dia mandou Zobeida chamar o archi-
tecto do palacio do califa, e com as ordens que lhe deu
foi o mausoléo acabado com muita brevidade . Uma prin-
ceza tão poderosa como a esposa d'um principe que man-
dava do levante ao poente, é sempre obedecida a ponto
150 AS MIL E UMA NOITES

dado na execução das suas vontades . Tomou tambem lo-


go luto com toda a sua côrte, o que foi causa da morte
de Tormenta fazer-se publica em toda a cidade .
Foi Ganem dos ultimos a sabel-a ; pois, como já
disse, sahia raras vezes . Soube-a todavia um dia : « Se-
nhora, disse à bella valida do califa, todos vos crêem
morta em Bagdad, e creio que Zobeida está muito per-
suadida d'isso . Abençôo o céo por ser a causa e a feliz
testemunha de estardes com vida. E quizesse Deus que
aproveitando-vos d'este falso boato quizesseis unir a
vossa sorte à minha, e ir commigo longe d'aqui reinar
no meu coração ! porém aonde me leva um arrebata-
mento tão agradavel ? Esqueço-me que nascestes para
fazer a felicidade do mais poderoso principe da terra, e
que só Haroun Alraschid é digno de vós. Ainda que fos-
seis capaz de m'o sacrificar, ainda que quizesseis se-
guir-me, deveria eu consentir n'isso ? Não ; devo lem-
brar-me continuamente que o que pertence ao senhor é
prohibido ao escravo » .
A amavel Tormenta, ainda que sensivel aos ternos
movimentos que elle manifestava , fazia por não corres-
ponder-lhe : « Senhor, disse-lhe, não podemos impedir a
Zobeida de triumphar. Pouco me admiro do artificio de
que se serve para encobrir o seu crime ; porém deixe-
mol -a andar : persuado -me que este triumpho não tar-
dará a ser seguido de cuidados e afflicções . Voltará o
califa e acharemos meio de informal -o occultamente de
tudo o que se passou. Sem embargo tomemos mais pre-
cauções que nunca para que não possa constar-lhe que
vivo. Já vos disse as consequencias d'isso » .
Ao cabo de tres mezes voltou o califa para Bagdad,
glorioso e vencedor de todos os seus inimigos . Impa-
ciente por ver Tormenta e por tributar-lhe os seus no-
vos louros, entra no seu palacio . Admira-se de vêr os
officiaes que n'elle deixára todos vestidos de preto . Es-
tremeceu sem saber porque. E o seu pasmo augmentou
quando, chegando ao quarto de Zobeida, viu esta prin-
ceza que vinha ao seu encontro de luto, assim como to-
das as mulheres da sua comitiva. Perguntou- lhe o moti-
vo d'este luto com muita agitação . « Commendador dos
CONTOS ARABES
151

crentes, respondeu Zobeida, tomei-o por Tormenta, vos-


sa escrava, que morreu tão repentinamente, que não
foi possivel dar-lhe remedio algum ». Ella queria prose-
guir, porém o califa não lhe deu tempo. Fez n'elle tal
impressão esta nova, que deu um grande grito. Des-
maiou depois nos braços de Giafar seu visir, que o
acompanhava . Sem embargo tornou a si bem depressa ,
e com voz que denotava a sua extrema afflicção , per-
guntou onde fôra a sua querida Tormenta enterrada.
Senhor , disse-lhe Zobeida, eu mesma cuidei das suas
exequias, e nada poupei para fazel-as com toda a pom-
pa. Mandei construir um mausoléo de marmore no lugar
da sua sepultura. Eu vou conduzir- vos lá, se o dese-
jaes ».
Não quiz o califa que Zobeida tivesse este trabalho ,
e contentou-se em fazer-se acompanhar por Mesrour. Lá
foi no mesmo estado em que se achava . Quando viu a
eça coberta com um pano preto, as tochas accêsas em
roda e a magnificencia do mausoléo, admirou -se de ter
Zobeida feito as exequias da sua rival com tanta pom-
pa. E como fosse naturalmente desconfiado , suspeitou da
generosidade de sua mulher e imaginou que podia a sua
amiga não estar morta ; que Zobeida, aproveitando - se da
sua longa ausencia, a expulsára talvez do palacio , com
ordem aos que ella encarregára de a conduzirem, de le-
val-a tão longe que jamais se ouvisse fallar d'ella. Não
teve outra suspeita ; pois não cria que Zobeida fosse tão
má que tivesse mandado tirar a vida á sua valida.
Para certificar-se da verdade ordenou este principe
que se tirasse fóra a eça e abrissem a cova, e o esquife
na sua presença ; mas logo que viu o pano que cobria
o pedaço de madeira, não ousou passar a mais. Este re-
ligioso califa temeu offender a religião, permittindo que
se tocasse no corpo da defunta, e a este escrupuloso
receio cedeu o amor e a curiosidade . Não duvidou já da
morte de Tormenta. Mandou fechar o esquife, encher a
cova e repôr a eça no estado em que estava d'antes .
Crendo-se o califa obrigado a dar algumas demons-
trações de sentimento no tumulo da sua valida, mandou
chamar os ministros da religião, os do palacio e os dou-
152 AS MIL E UMA NOITES

tores do Alcorão, e em quanto estavam occupados a


ajuntal-os, ficou no mausoléo, onde regou com suas la-
grimas a terra que cobria a fórma da sua amante. Che-
gados que foram os ministros, pôz-se á cabeceira da
eça e elles se collocaram em roda e rezaram longas ora-
ções, depois do que leram os doutores do Alcorão al-
guns capitulos.
Fez- se a mesma ceremonia todos os dias pelo decur-
so d'um mez , pela manhã e depois de jantar, e sempre
na presença do califa , do grão- visir Giafar e dos princi-
paes officiaes da côrte, que todos estavam de luto, assim
como o califa, que em todo esse tempo não cessou de
honrar com suas lagrimas a memoria de Tormenta, e não
quiz tratar de negocios alguns .
No ultimo dia do mez , as orações e a leitura do Alco-
rão duraram desde a manhã até ao raiar do dia seguin-
te ; e finalmente estando tudo acabado retirou- se cada
qual para sua casa. Haroun Alraschid, cançado de tão
longa vigilia, foi descançar no seu quarto e adormeceu
n'um sophá, tendo comsigo duas senhoras do seu palacio ,
uma assentada á cabeceira e a outra aos pés do seu leito ,
as quaes se occupavam durante o seu somno em bordar,
e guardavam profundo silencio.
A que estava á cabeceira, e que se chamava Alva
do dia, vendo o califa adormecido, disse em voz baixa
á outra senhora : « Estrella da manhã - pois assim se
chamava - ha muitas novidades. O commendador dos
crentes, nosso querido senhor e amo, alegrar - se -ha mui-
to quando acordar e souber o que tenho que dizer-lhe .
Tormenta não morreu. Está de perfeita saude . - Meu
Deus ! clamou logo Estrella da manhã , toda arrebatada
de alegria ; será possivel que a bella, a agradavel, a in-
comparavel Tormenta esteja ainda n'este mundo ? » Es-
trella da manhã pronunciou estas palavras com tanta
força e em voz tão alta, que o califa acordou . Pergun-
tou porque tinham interrompido o seu somno . - Senhor,
replicou Estrella da manhã, perdoai-me esta indiscrição ;
não pude saber socegadamente que ainda vive Tormen-
ta. Senti um arrebatamento que não pude conter. - En-
tão que é feito d'ella , disse o califa, se é verdade que
CONTOS ARABES 153

não seja morta ? - Commendador dos crentes, res-


pondeu Alva do dia , recebi esta tarde de um homem
desconhecido um escripto sem assignatura, mas da pro-
pria mão de Tormenta, que me dá a saber a sua triste
aventura e me ordena que vos informe d'ella. Esperava,
para desempenhar-me d'esta commissão, que tivesseis
descançado algumas horas, julgando que devieis precisar
de descanço, visto a fadiga e ... - Dai-me , dai-me esse
escripto, interrompeu com precipitação o califa ; não
obrastes bem em não m'o entregar logo » . Alva do dia
apresentou-lhe logo o escripto e elle abriu-o com muita
impaciencia : n'elle fazia Tormenta uma relação circums-
tanciada de tudo o que se passára, mas estendia- se de-
masiado sobre os cuidados que d'ella tinha Ganem . O
califa, naturalmente cioso, em vez de se agastar com a
deshumanidade de Zobeida , não foi sensivel senão á in-
fidelidade que imaginou que Tormenta lhe fizera. « O
qué ! disse elle depois de ter lido o escripto, ha quatro
mezes que a perfida está com um joven mercador, cu-
jas attenções para com ella tem o desafôro de gabar-
me ! Ha trinta dias que estou de volta a Bagdad e só
hoje se lembra de dar-me novas suas ! Ingrata ! em
quanto passo os dias a choral-a, ella os passa a trahir-
me. Vamos, vinguemo-nos d'esta infiel e do mancebo
atrevido que me ultraja » . Proferidas estas palavras le-
vantou-se este principe e entrou n'uma grande sala on-
de costumava deixar-se vêr e dar audiencia aos senho-
res da sua côrte . Abriu-se a primeira porta, e logo os
cortezãos , que esperavam este instante, entraram . Ap-
pareceu o visir Giafar, e prostrou-se perante o throno,
onde o califa estava assentado . Levantou-se depois , e fi-
cou em pé perante seu amo, que lhe disse, em tom de
quem queria ser obedecido promptamente : < « Giafar, a
tua presença é necessaria para a execução de uma or-
dem importante de que vou encarregar-te. Leva comtigo
quatrocentos homens da minha guarda , e informa-te pri-
meiramente onde mora um mercador de Damasco , cha-
mado Ganem, filho de Abou Aibou. Quando o souberes,
vai a sua casa e manda arrasal- a até aos alicerces ; mas
assegura-te primeiro da pessoa de Ganem, e traze-m'o
154 AS MIL E UMA NOITES

aqui com Tormenta , minha escrava, que com elle mora


ha quatro mezes . Quero castigal- a e dar um exemplo
no temerario que teve a insolencia de faltar- me ao res-
peito ».
O grão-visir, depois de ter recebido esta ordem , fez
uma profunda reverencia ao califa, pondo a mão na ca-
beça para denotar que queria antes perdel-a do que não
obedecer-lhe, e sahiu . A primeira cousa que fez foi man-
dar perguntar ao syndico dos mercadores de estofos es-
trangeiros, e de panos finos, novas de Ganem, com or-
dem sobretudo de informar-se da rua e da casa onde
morava. O official , a quem encarregou esta ordem , re-
feriu-lhe logo que havia alguns mezes que raras vezes
apparecia, e que ignorava o que pudesse detel-o em sua
casa, se n'ella estivesse. O mesmo official informou tam-
bem a Giafar do sitio onde morava Ganem, e até do no-
me da viuva que lhe alugára a sua casa.
Com estes avisos, nos quaes podia fiar-se este minis-
tro, sem perder tempo, pôz-se a caminho com os solda-
dos que o califa lhe ordenára de levar comsigo ; foi a
casa do juiz da policia a quem obrigou a acompanhal - o ;
e, seguido de grande numero de pedreiros e carpintei-
ros que levavam as ferramentas necessarias para arrasar
uma casa, chegou diante da de Ganem . Como fosse se-
parada das outras, dispôz os soldados em roda para que
o mercador não pudesse fugir.
Acabavam então de jantar Tormenta e Ganem. Esta-
va a senhora assentada perto de uma janella que dava
sobre a rua. Ouve barulho, olha pela grade, e vendo o
grão-visir que se chegava com toda a sua gente, julgou
que a diligencia era tanto para ella como para Ganem .
Deu-lhe isto a entender que fora o seu escripto recebi-
do, mas não esperava por semelhante resposta , e confia-
.va em que o califa tomaria a cousa de outro modo . Não
sabia desde que tempo estava de volta este principe ; e,
ainda que lhe conhecesse alguma propensão para o ciu-
me, nada temeu por esse lado. Todavia a vista do grão-
visir e dos soldados a fez tremer, não por ella, na ver-
dade , mas por Ganem . Não duvidava que se justificasse ,
comtanto que o califa quizesse ouvil-a. Quanto a Ganem
CONTOS ARABES 155

que amava menos por reconhecimento do que por incli-


nação , ella previa que o seu rival agastado quereria
vél-o , e poderia condemnal- o em razão da sua mocida-
de e da sua boa physionomia . Assustada com este pen-
samento voltou-se para o joven mercador : « Ah , Ganem !
disse-lhe ; estamos perdidos ! por nós é que se faz esta
diligencia » . Olhou logo pela grade e ficou toda assusta-
da quando viu os guardas do califa com o alfange des-
embainhado , e o grão-visir com o juiz da policia á fren-
te . Á vista d'isto ficou immovel e não teve força para
pronunciar uma unica palavra . « Ganem, replicou a va-
lida, não ha tempo que perder . Se me amaes, enfiai a
toda a pressa o vestido de qualquer dos vossos escra-
vos, e esfregai o rosto e os braços com pós de sapatos .
Ponde depois algum d'estes pratos á cabeça ; poderão
tomar-vos pelo criado da casa de pasto , e deixar- vos -hão
passar . Se vos perguntarem onde está o dono da casa,
-
respondei francamente que está aqui . - - Ah , senhora ! dis-
se Ganem , menos assustado por si que por Tormenta ;
não vos lembraes senão de mim ! E então que será de
vós? -Não vos dé isso cuidado, replicou ella ; a mim
toca cuidar d'isso : quanto ao que deixaes n'esta casa,
eu tomarei conta de tudo, e espero que algum dia ser-
vos-ha restituido , quando abrandar a colera do califa ;
mas evitai a sua violencia . As ordens que dá nos seus
primeiros movimentos são sempre funestas». A afflicção
do joven mercador era tal, que não sabia como determi-
nar-se; e ter-se - hia sem duvida deixado apanhar pelos
soldados do califa, se Tormenta não apertasse com elle
para disfarçar-se . Cedeu ás suas instancias : tomou o ves-
tido d'um escravo , mascarrou -se de preto, e ao tempo
que batiam á porta abraçaram-se ternamente . Estavam
ambos tão penetrados de afflicção que lhes foi impossi-
vel dizer uma unica palavra. Taes foram as suas despe-
didas. Sahiu finalmente Ganem com alguns pratos á ca-
beça . Tomaram -o com effeito por um criado da casa de
pasto, e não o detiveram . Pelo contrario, o grão-visir,
que foi com quem se encontrou primeiro, se desviou
para o deixar passar, bem longe de imaginar que fosse
quem procurava. Os que estavam após do grão - visir lhe
156 AS MIL E UMA NOITES

deram passagem do mesmo modo e favoreceram assim a


fuga. Correu a toda a pressa a uma das portas da cida-
de e desappareceu .
Em quanto escapava ás diligencias do grão-visir Gia-
far, entrou este ministro no quarto onde estava Tormen-
ta assentada n'um sophá e onde havia uma grande quan-
tidade de bahús cheios do fato de Ganem e do dinheiro
que recebéra do producto de suas fazendas .

Logo que Tormenta viu entrar o grão-visir, prostrou-


se com a face contra o chão ; e, ficando n'este estado
como disposta a receber a morte : « Senhor, disse ella,
estou prompta a sujeitar-me à sentença que o commen-
dador dos crentes pronunciou contra mim ; só vos resta
- Senhora, respondeu-lhe Giafar, prostrando-se
lêr-m'a.
tambem até ella se levantar ; não permitta Deus que al-
guem se atreva a pôr sobre vós profana mão . Não é mi-
nha intenção causar-vos o menor desgosto . Não tenho
CONTOS ARABES 157

outra ordem senão supplicar- vos que venhaes commigo


ao palacio, acompanhada do mercador que mora n'esta
casa. Senhor, replicou a valida levantando - se, vamos ,
estou prompta a seguir-vos . Quanto ao joven mercador
a quem devo a vida, não está em casa. Ha quasi um
mez que partiu para Damasco onde os seus negocios o
chamavam, e até à sua volta recommendou -me que guar-
dasse estes bahús que estaes vendo . Rogo- vos que os
mandeis levar ao palacio e ordeneis que os ponham em
lugar de segurança, para que eu guarde a promessa que
The fiz de ter com elles todo o cuidado possivel . - Se-
reis obedecida, senhora », replicou Giafar . E mandou lo-
go chamar mariolas.
Ordenou - lhes que levassem os bahús e que os entre-
gassem a Mesrour.
Tendo os mariolas partido fallou ao ouvido do juiz da
policia ; encarregou- lhe o cuidado de mandar arrasar a
casa, e procurar primeiro n'ella por todos os cantos a
Ganem, que suspeitava estar escondido, apesar do que
lhe disse Tormenta. Sahiu depois e levou comsigo esta
senhora, seguida das duas escravas que a serviam . Quan-
to aos escravos de Ganem não se fez reparo n'elles . Met-
teram -se por entre a multidão e não se sabe o que foi
feito d'elles .
Apenas sahira Giafar da casa, logo os pedreiros e
carpinteiros principiaram a arrasal-a ; e desempenharam
tão bem a sua obrigação que em menos de uma hora
não ficou d'ella vestigio algum . Mas o juiz da policia ,
não podendo achar a Ganem por mais diligencias que
fizesse, mandou dar parte ao grão-visir, antes que este
ministro chegasse ao palacio . « Então ? disse- lhe Haroun
Alraschid vendo-o entrar no seu gabinete ; executastes
as minhas ordens ? - Sim, senhor, respondeu Giafar ; a
casa onde morava Ganem está inteiramente arrasada, e
trago-vos Tormenta, a valida. Está á porta do vosso ga-
binete . Eu vou mandal-a entrar se m'o ordenaes . Quan-
to ao joven mercador não pudemos achal-o, apesar de o
termos procurado por todos os cantos da casa . Tormen-
ta assegura que partira para Damasco haverá um mez » .
Jámais arrebatamento igualou o que o califa manifes-
158 AS MIL E UMA NOITES

tou quando soube que Ganem lhe escapára . Quanto á


sua valida, pensando que lhe faltára á fidelidade , não
quiz nem vél-a nem fallar-lhe. « Mesrour, disse ao che-
fe dos eunucos que estava presente, toma a ingrata, a
perfida Tormenta, e vai encerral-a na torre escura » . Es-
ta torre estava no recinto do palacio e servia ordinaria-
mente de prisão ás validas que davam algum motivo de
queixa ao califa.
Mesrour, costumado a executar sem réplica as ordens
de seu amo por mais violentas que fossem , obedeceu com
pezar a esta. Manifestou a sua afflicção a Tormenta, que
tanto mais se affligiu quanto esperava que o califa não
recusaria fallar- lhe . Foi-lhe forçoso ceder ao seu triste
destino e seguir a Mesrour, que a levou á torre escura,
onde a deixou .
Escandalisado todavia o califa, despediu o seu grão-
visir, e não dando ouvidos senão à sua paixão escreveu
de sua propria mão a carta que se segue ao rei de Su-
ria, seu primo e seu tributario, que residia em Damasco .

CARTA DO CALIFA HAROUN ALRASCHID A MOHAMMED ZINEBI,


REI DE SURIA

<< Primo : esta carta é para noticiar-vos que um mer-


cador de Damasco, chamado Ganem, filho de Abou Aibou,
seduziu a mais amavel das minhas escravas, chamada
Tormenta, e que fugiu . A minha intenção é que, recebi-
da que seja a minha carta, mandeis procurar e prender
a Ganem. Logo que estiver em vosso poder mandal-o-
heis carregar de ferros, e durante tres dias consecuti-
vos mandar-lhe-heis dar cincoenta açoutes . Que seja de-
pois levado por todos os bairros da cidade com pregão
que diga : «Eis-aqui o mais leve dos castigos que o com-
mendador dos crentes manda dar ao que offende o seu
senhor, e seduz uma das suas escravas » . Depois d'isto
mandar-m'o-heis com boa guarda. Não basta isto . Que-
ro que saqueeis a sua casa ; e, depois de a ter manda-
do arrasar, ordenai que se levem os materiaes d'ella pa-
ra fóra da cidade. Além d'isto, se tem pai, mãi , irmãs,
mulheres, filhos e outros parentes , mandai despil-os , e
CONTOS ARABES 159

dai- os em espectaculo tres dias seguidos a toda cidade ,


com prohibição , sob pena da vida , de dar-lhes asylo .
Espero que não haverá demora alguma na execução do
que vos recommendo. - Haroun Alraschid ».

O califa, depois de ter escripto esta carta, entregou-a


a um correio, ordenando-lhe que fizesse toda a diligen-
cia e que levasse comsigo pombos, para ser mais depres-
sa informado do que tivesse feito Mohammed Zinebi .
Tem os pombos de Bagdad esta particularidade : que,
para qualquer lugar remoto que os levem, voltam a Ba-
gdad logo que os largam, principalmente quando tem
pombinhos . Atam-lhes debaixo da aza um escripto enro-
lado, e por este meio recebe-se com muita brevidade no-
vas dos lugares d'onde as querem saber.
O correio do califa andou de dia e de noite para sa-
tisfazer a impaciencia de seu amo ; e , chegando a Da-
masco, foi direito ao palacio do rei Zinebi, que se assen-
tou no seu throno para receber a carta do califa. Apre-
sentando-a o correio , recebeu-a Mohammed ; e reconhe-
cendo a letra levantou-se com respeito, beijou a carta
e a pôz sobre a cabeça, para mostrar que estava prom-
pto a executar com sujeição as ordens que pudesse con-
ter. Abriu-a ; apenas a leu desceu do seu throno , e mon-
tou sem demora a cavallo com os principaes officiaes de
sua casa. Mandou tambem avisar o juiz da policia que
veio ter com elle, e seguido de todos os soldados da sua
guarda foi a casa de Ganem.
Desde que este joven mercador partira de Damasco ,
sua mãi não recebera d'elle carta alguma . Comtudo os
outros mercadores com quem emprehendera a viagem de
Bagdad estavam de volta . Disseram- lhe todos que dei-
xaram seu filho com perfeita saude, mas como não vol-
tava e se descuidava de dar novas suas, não foi preciso
mais para persuadir esta boa mãi que estava morto.
Tanto d'isto se persuadiu que tomou luto. Chorou a Ga-
nem como se o tivesse visto morrer e lhe tivesse fecha-
do os olhos . Mãi alguma mostrou tanta afflicção ; e, lon-
ge de procurar consolação , recreava-se em alimentar a
sua afflicção . Mandou construir um zimborio no meio do
100 AS MIL E UMA NOITES

pateo de sua casa , debaixo do qual pôz uma figura que


representava seu filho, e que ella mesma cobriu com um
pano preto . Passava os dias e as noites a chorar debai-
xo d'este zimborio, como se o corpo de seu filho estives-
se alli enterrado ; e a bella Força dos corações, sua filha,
fazia-lhe companhia e misturava suas lagrimas com as
d'ella.
Havia já algum tempo que se occupavam assim em
se affligir, quando veio o rei Mohammad Zinebi bater á
porta ; uma escrava da casa, tendo-lh'a aberto, entrou
arrebatadamente, perguntando onde estava Ganem, filho
de Abou Aibou.
Ainda que a escrava nunca tivesse visto o rei Zinebi ,
julgou todavia , pela sua comitiva , que devia ser um dos
principaes officiaes de Damasco . « Senhor, respondeu-lhe ,
esse Ganem que procuraes morreu . A minha senhora ,
sua mãi, está no tumulo que estaes vendo , onde chora
actualmente a sua perda » . O rei, sem attender ao que
dizia a escrava, mandou pelos seus guardas procurar Ga-
nem . Chegou -se depois ao tumulo onde viu a mãi e a
filha assentadas n'uma simples esteira perto da figura
que representava a Ganem, e seus rostos lhe pareceram
banhados em lagrimas . Estas pobres mulheres cobriram-
se com os seus véos logo que avistaram um homem á
porta do zimborio. Mas a mãi , que reconheceu o rei de
Damasco, levantou-se e correu a prostrar-se a seus pés .
« Minha boa senhora, disse-lhe este principe , procurava
vosso filho Ganem ; está em casa ? Ah, senhor ! cla-
mou ella ; ha muito tempo que morreu . Quizesse Deus
que o tivesse sepultado com minhas proprias mãos , e
que tivesse a consolação de ter seus ossos n'este tumu-
lo ! Ah, filho, filho querido ... ! » Quiz continuar, mas
foi tão viva a sua dôr que lhe faltaram as forças .
Enterneceu-se Zinebi . Era um principe bondoso e
compassivo dos trabalhos dos desgraçados. « Se Ganem
é só culpado, dizia comsigo, porque castigar a mãi e a
irmã que são innocentes ? Ah, cruel Haroun Alraschid !
a que desgosto me reduzes, fazendo-me ministro da tua
vingança, obrigando-me a perseguir pessoas que não te
offenderam ! »
CONTOS ARABES 161

Os guardas que o rei encarregára de procurar a Ga-


nem vieram dizer-lhe que tinham dado uma busca inu-
til. D'isso ficou mui persuadido . Os choros d'estas duas
mulheres não lhe permittiam duvidar d'isso . Estava de-
sesperado de vêr-se na necessidade de executar as or-
dens do califa ; mas por mais compaixão que tivesse não
ousava resolver-se a ir contra a vontade d'elle . « Minha
boa senhora, disse à mãi de Ganem, sahi d'este tumulo ;
vós e vossa filha não estareis ahi com segurança » . El-
las sahiram ; e ao mesmo tempo, para livral-as de algum
insulto, despiu seu manto, que tinha grande roda, e as
cobriu a ambas, recommendando-lhes que não se afas-
tassem d'elle . Depois ordenou que deixassem entrar a
gentalha para principiar a pilhagem , que se fez com ex-
trema cubiça e com gritos, de que ficaram a mãi e a ir-
mã de Ganem tanto mais assustadas quanto ignoravam
a causa. Levaram os mais preciosos trastes , bahús cheios
de riquezas, tapetes da Persia e das Indias, almofadas
guarnecidas de estofos d'ouro e prata, e porcelanas ; fi-
nalmente levaram tudo , não deixaram na casa senão os
muros, e foi um espectaculo bem triste para estas des-
graçadas senhoras vêr roubar todos os seus cabedaes , sem
saberem por que as tratavam tão cruelmente .
Mohammed, saqueada que foi a casa, deu ordem ao
juiz da policia que a mandasse arrasar com o tumulo ;
e, em quanto trabalhavam n'isso , levou para o seu pa-
lacio Força dos corações e sua mãi . Alli foi onde au-
gmentou a sua afflicção , declarando-lhes qual era a vonta-
de do califa. « Quer, disse-lhes, que vos ponha núas á
vista do povo tres dias consecutivos. Com extrema re-
pugnancia mando executar esta ordem cruel e cheia de
ignominia » . Pronunciou o rei estas palavras com taes
gestos, que davam a conhecer que estava na realidade
penetrado de afflicção e dôr . Ainda que o receio de ser
desthronado o impedisse de seguir os movimentos da
sua commiseração, não deixou de abrandar de algum
modo o rigor das ordens de Haroun Alraschid, mandan-
do fazer para a mãi de Ganem e para Força dos cora-
ções grossas camisas, sem mangas, de um tecido grosso
de crina de cavallo .
VOL. III.
162 AS MIL E UMA NOITES

No dia seguinte as duas victimas da cólera do califa


foram despidas e revestidas das camisas de crina. Tira-
ram -lhes tambem os seus toucados, de sorte que os seus
cabellos soltos fluctuavam nos seus hombros . Força
dos corações tinha-os da mais bella côr loura que vér-
se póde, e arrastavam pelo chão . N'este estado se expu-
zeram á vista do povo . O juiz da policia, seguido da
sua gente, as acompanhava, e passearam-as por toda a
cidade . Iam precedidas d'um pregoeiro, que de quando
em quando gritava em alta voz : Tal é o castigo dos que
attrahiram sobre si a indignação do commendador dos
crentes ! Em quanto andavam assim pelas ruas de Da-
masco, com os braços e pés nús, cobertas de tão estra-
nho vestuario e procurando occultar a sua confusão de-
baixo dos cabellos com que cobriam o rosto, desfazia-se
todo o povo em lagrimas.
As senhoras, principalmente, olhando-as como inno-
centes pelas grades das janellas e sensiveis sobretudo
á mocidade e belleza de Força dos corações, faziam ou-
vir seus gritos espantosos, á proporção que passavam
debaixo de suas janellas . Os meninos, assustados tambem
com estes gritos e com o espectaculo que os causava,
misturavam seus choros a este luto geral, e acrescenta-
vam novo horror. Finalmente ainda que os inimigos do
estado estivessem na cidade de Damasco e puzessem tu-
do a fogo e a sangue, não seria maior a consternação .
Era quasi noite quando acabou esta horrenda scena .
Levaram a mãi e a filha ao palacio do rei Mohammed.
Como não estivessem habituadas a andar descalças , acha-
ram -se tão cançadas chegando , que ficaram largo tempo
desmaiadas . A rainha de Damasco, mui sensivel á sua
desgraça, apesar da prohibição que o califa fizera de soc-
correl- as, mandou-lhes algumas de suas mulheres com
toda a especie de refrescos e vinho para recobrarem
forças.
As mulheres da rainha as acharam ainda desmaiadas
e quasi impossibilitadas de aproveitar-se do soccorro que
lhes traziam . Todavia, à força de cuidados, tornaram a
si. A mãi de Ganem lhes agradeceu logo os seus bons
serviços. « Minha boa senhora, disse-lhe uma das mulhe-
CONTOS ARABES 163

res da rainha, sentimos muito vossos trabalhos, e a rai-


nha de Suria, nossa ama, nos deu grande gosto quando
nos encarregou de soccorrer-vos . Podemos assegurar - vos
que esta princeza é mui sensivel ás vossas desgraças ,
como tambem o rei seu esposo » . A mãi de Ganem ro-
gou ás mulheres que dessem á princeza mil agradeci-
mentos da sua parte e da de Força dos corações ; e di-
rigindo-se depois á que lhe fallára : « Sephora, disse-lhe,
o rei não nos disse por que o commendador dos crentes
nos faz padecer tantas affrontas . Informai-nos, pelo amor
de Deus , dos crimes que commettemos . - Minha boa se-
nhora, respondeu a mulher da rainha , a origem da vos-
sa desgraça procede de vosso filho Ganem. Não morreu .
Accusam-o de ter roubado a bella Tormenta, a mais que-
rida das validas do califa ; e como escapou com prompta
fuga á colera d'este principe, cahiu o castigo sobre vós .
Todo o mundo desapprova o resentimento do califa ; mas
todo o mundo o teme , e estaes vendo que o rei Zinebi
não ousa contravir às suas ordens, receando desagradar-
The. Assim tudo o que podemos fazer é compadecer- nos
de vós e exhortar- vos a ter paciencia . Conheço meu
filho, replicou a mãi de Ganem, criei-o com grande des-
velo e no respeito devido ao commendador dos crentes.
Não commetteu o crime que lhe imputam, e fico pela
sua innocencia. Cesso pois de murmurar e de queixar-
me, visto que por causa d'elle padeço , e sei que não mor-
reu. Ah, Ganem ! acrescentou ella arrebatada d'um mo-
vimento misturado de ternura e d'alegria ; Ganem, meu
rico filho é possivel que vivas ainda ? Não choro já os
meus cabedaes ; e a qualquer excesso que possam che-
gar as ordens do califa, perdôo-lhe todo o rigor, com-
tanto que o céo conservasse meu filho . Só minha filha
me afflige. Só seus males causam toda a minha pena.
Parece-me todavia que é muito boa irmã para seguir o
meu exemplo » .
Proferidas estas palavras, Força dos corações, que
parecera insensivel até agora, voltou-se para sua mãi ,
e lançando-se nos seus braços : « Sim, minha rica mãi ,
disse-lhe ; seguirei sempre o vosso exemplo, por maior
AS MIL E UMA NOITES
161
que seja o extremo a que possa levar-vos o vosso amor
para com meu irmão .
A mãi e a filha, confundindo assim os seus suspiros
e as suas lagrimas , ficaram bastante tempo abraçadas
com muita ternura . Todavia , as mulheres da rainha , a
quem este espectaculo enternecia muito, nada esquece-
ram para induzir a mãi de Ganem a tomar algum ali-
mento . Comeu um bocado para satisfazel -as , e Força dos
corações fez outro tanto .
Como a ordem do califa prescrevia que os parentes
de Ganem appareceriam tres dias a fio á vista do publi-
co no estado em que se disse , Força dos corações e sua
mãi serviram de espectaculo no dia seguinte pela segun-
da vez, desde manhã até á tarde, mas n'esse dia e no
seguinte as cousas não se passaram do mesmo modo ;
as ruas, que no primeiro dia foram juncadas de gente ,
ficaram desertas . Todos os mercadores, indignados do
tratamento que se fazia á viuva e á filha de Abou Aibou ,
fecharam as suas lojas e se encerraram nas suas casas.
As senhoras , em vez de olhar pelas grades das janellas ,
retiraram -se para o interior de suas casas. Não se achou
alma viva nas praças publicas por onde fizeram passar
estas duas desgraçadas . Parecia que todos os habitantes
de Damasco tinham abandonado a cidade.
No quarto dia, o rei Mohammed Zinebi , que queria
executar fielmente as ordens do califa , ainda que não as
approvasse , mandou pregoeiros por todos os bairros da
cidade publicar uma prohibição rigorosa a todo o cida-
dão de Damasco , ou estrangeiro , de qualquer condição
que fosse , sob pena de vida e de ser exposto aos cães
para lhes servir de pasto depois da sua morte, de dar
asylo á mãi e á irmã de Ganem , nem um bocado de pão,
nem uma gota d'agoa, n'uma palavra, de prestar-lhes a
menor assistencia e de ter communicação alguma com

ellasTen
. do os pregoeiros executado o que lhes ordenára
o rei, mandou este principe que puzessem fóra do pala-
cio a mãi e a filha , e que lhes deixassem a liberdade
d'ir aonde quizessem . Apenas a viram apparecer, logo
CONTOS ARABES 165

todos se afastaram d'ellas, tanta impressão fizera nos es-


piritos a prohibição que acabava de publicar- se . Ellas
bem perceberam que fugiam d'ellas ; mas como igno-
rassem a causa, ficaram mui pasmadas . E cresceu ainda
mais o seu pasmo quando, entrando n'uma rua onde por
entre muitas pessoas reconheceram alguns dos seus me-
lhores amigos, viram-os desapparecer com tanta precipi-
tação como os outros . « O quê ! disse então a mai de
Ganem ; estamos empestadas ? O tratamento injusto e bar-
baro que nos dão deve tornar- nos odiosas aos nossos con-
cidadãos ? Vamos, filha, proseguiu ella, partamos de Da-
masco com a maior brevidade ; não nos demoremos mais
n'uma cidade onde causamos horror aos nossos proprios
amigos ».
Fallando assim correram a uma das extremidades da
cidade e recolheram-se n'uma casinhola para n'ella per-
noitar. Alli, alguns musulmanos , levados do espirito de
caridade e compaixão, vieram ter com ellas á noitinha .
Trouxeram-lhes provisões ; mas não ousaram demorar-
se para consolal-as, receando serem descobertos e casti-
gados como desobedientes ás ordens do califa.
Tinha todavia o rei Zinebi largado o pombo para in-
formar Haroun Alraschid da sua exactidão . Mandava - lhe
dizer tudo o que se passára, e pedia-lhe para lhe man-
dar dizer o que resolvia respectivamente á mãi e irmã
de Ganem . Recebeu logo pela mesma via a resposta do
califa, que lhe disse que as desterrasse para sempre de
Damasco . Mandou logo o rei de Suria officiaes de justiça
á casinhola com ordem de pegar na mãi e na filha , le-
val-as a distancia de tres dias de jornada de Damasco e
de as deixar alli, prohibindo -lhes de voltarem á cidade .
Os officiaes de Zinebi desempenharam a sua commis-
são ; todavia menos exactos que seu amo em executar
pontualmente as ordens de Haroun Alraschid, deram por
compaixão a Força dos corações e a sua mãi algumas moe-
das miudas para comprarem com que viver, e a cada
uma um sacco , que lhes puzeram ao pescoço , para guar-
darem as suas provisões .
N'esta deploravel situação chegaram á primeira aldea .
Ajuntaram -se as camponezas á roda d'ellas ; e , como á
166 AS MIL E UMA NOITES

vista do seu disfarce não deixavam de observar que eram


pessoas de alguma consideração , perguntaram -lhes o que
as obrigava a viajar assim em trajo que não parecia ser
o seu trajo natural. Em vez de responderem á pergunta
que lhes faziam, puzeram-se a chorar, o que serviu para
augmentar a curiosidade das camponezas e de inspirar-
lhes compaixão . A mãi de Ganem lhes contou o que el-
la e sua filha padeceram. Enterneceram-se as campone-
zas e cuidaram em consolal-as. Favoreceram-nas quanto
lh'o permitiu a sua pobreza. Fizeram -lhes largar as suas
camisas de crina de cavallo, que as molestava muito, pa-
ra tomarem outras que lhes deram.
D'esta aldea, depois de terem agradecido muito a es-
tas componezas caritativas , Força dos corações e sua mãi
caminharam para as partes de Alepo, a pequenas jorna-
das. Costumavam pernoitar á roda das mesquitas ou nas
mesmas mesquitas, onde se deitavam sobre esteiras, quan-
do o lagedo estava coberto d'ellas, d'outro modo dor-
miam sobre o mesmo lagedo ; ou pelo contrario iam alo-
jar-se nos lugares publicos destinados a servir de retiro
aos viajantes. Quanto á comida não lhes faltava. Encon-
travam muitas vezes d'esses lugares onde se fazem dis-
tribuições de pão e arroz cozido a todos os viajantes que
o pedem .
Chegaram finalmente a Alepo , mas não quizeram de-
morar-se ; e , continuando o seu caminho para o Euphra-
tes, passaram este rio e entraram na Mesopotamia, que
atravessaram até Moussoul. D'alli , por mais trabalhos
que tivessem já padecido, foram ter a Bagdad . Era o lu-
gar aonde desejavam ir, na esperança de n'elle encontrar
a Ganem, ainda que não devessem capacitar-se que es-
tivesse n'uma cidade onde o califa fazia a sua residencia ;
porém tinham suas esperanças , porque desejavam que
assim succedesse : a sua ternura para com elle, apesar
de todas as suas desgraças, augmentava em vez de di-
minuir. Era o assumpto ordinario das suas conversações .
Perguntavam novas d'elle a todos os que encontravam.
Mas deixemos aqui Força dos corações e sua mãi e
voltemos a fallar de Tormenta.
Estava sempre fechada mui estreitamente na torre es-
CONTOS ARABES 167

cura, desde o dia que lhes fora tão funesto a Ganem e


a ella. Todavia, por mais desagradavel que lhe fosse a
prisão, affligia-se muito menos com a sua desgraça do
que com a de Ganem, cuja sorte incerta lhe causava um
desassocego mortal. Não se passava quasi instante que
não se compadecesse d'elle .
Uma noite que o califa passeava só no recinto de seu
palacio, o que fazia ás vezes, pois era o principe mais
curioso do mundo, e algumas vezes nos seus passeios
nocturnos sabia cousas que se passavam no palacio , e que
de outro modo nunca viriam ao seu conhecimento : uma
noite , pois , passeando , passou perto da torre escura ; e ,
como lhe pareceu ouvir fallar, parou ; chegou- se à por-
ta para melhor escutar, e apanhou distinctamente estas
palavras que Tormenta, sempre entregue à lembrança
de Ganem, pronunciava em voz alta : « Ó Ganem, des-
afortunado Ganem , onde estás presentemente ? A que lu-
gar te levou o teu deploravel destino ? Ai de mim , que
causei a tua desgraça ! Porque me não deixaste perecer
miseravelmente, em vez de me prestar um soccorro tão
generoso? Que triste fructo recolheste de teus desvelos
e de teus respeitos ! 0 commendador dos crentes , que
deveria recompensar-te, persegue-te em premio de me
teres sempre respeitado como uma pessoa reservada pa-
ra elle ; perdes todos os teus cabedaes , e vês-te obriga-
do a buscar a tua salvação na fuga. Ah califa, barbaro
califa ! que direis em defeza vossa quando apparecerdes
com Ganem perante o tribunal do juiz supremo e os an-
jos derem provas da verdade na vossa presença ? Todo o
poder que hoje tendes e sob o qual treme toda a terra,
não vos livrará de ser condemnado e castigado da vossa
injusta violencia ». N'estas palavras cessou Tormenta de
fallar, pois seus suspiros e suas lagrimas lhe impediram
continuar.
Bastou isto para obrigar o califa a entrar em si . Bem
viu que o que acabava de ouvir era verdade, que a sua
valida era innocente, e que déra ordens contra Ganem e
sua familia com demasiada precipitação. Para indagar
uma cousa em que a equidade de que se jactava pare-
cia mui interessada, voltou logo ao seu quarto, e chega-
168 AS MIL E UMA NOITES

do que foi encarregou a Mesrour d'ir á torre escura e


trazer-lhe Tormenta.
Com esta ordem julgou o chefe dos eunucos que o
califa queria perdoar á sua valida e reintegral-a ; alegrou-
se muito com isto , pois amava Tormenta e tomára mui-
ta parte na sua desgraça . Corre logo á torre : « Senhora,
disse á valida com um tom que manifestava a sua ale-
gria, tende a bondade de seguir-me . Espero que não vol-
tareis a esta vil torre tenebrosa . Quer o commendador
dos crentes conversar comvosco e d'isso concebo um fe-
liz presagio » .
Seguiu Tormenta a Mesrour, que a acompanhou , e in-
troduziu no gabinete do califa. Prostrou-se logo perante
este principe e ficou n'esta postura com o rosto banhado
em lagrimas . < « Tormenta, disse- lhe o califa , sem orde-
nar que se levantasse, parece -me que me accusas de vio-
lencia e de injustiça . Quem é pois aquelle que, apesar
das attenções e da consideração que teve para commigo,
se acha n'uma situação miseravel ? Falla, tu sabes qual
é a minha bondade natural, e que gosto de fazer justiça ».
Por estas palavras percebeu a valida que o califa a
ouvira fallar ; e , aproveitando- se de tão bella occasião
para justificar o seu querido Ganem : « Commendador dos
crentes, respondeu ella, se me escapou alguma palavra
que não seja agradavel a vossa magestade, supplico- lhe
com muita humildade que me perdoe . Porém aquelle,
cuja innocencia e miseria quereis conhecer, é Ganem, o
desgraçado filho de Abou Aibou, mercador de Damasco.
Elle é quem me salvou a vida e me deu asylo em sua
casa . Confessar-vos-hei que logo que me viu formou tal-
vez o pensamento de entregar-se todo a mim ; assim o
julguei, visto o empenho com que me fez todos os ser-
viços de que tinha necessidade no estado em que me acha-
va ; mas logo que lhe constou que tinha a honra de per-
tencer-vos « Ah, senhora ! disse-me ; o que pertence ao
senhor é prohibido ao escravo . Desde esse instante
devo essa justiça à sua virtude ; o seu comportamento
não desmentiu as suas palavras. Sabeis todavia , com-
mendador dos crentes, com que rigor o tratastes , e por
isso respondereis perante o tribunal de Deus » .
CONTOS ARABES 169

Não desagradou ao califa a liberdade com que lhe


fallava Tormenta : « Porém , replicou elle, posso fiar-me
nas seguranças que me dás da discrição e modestia de
-
Ganem ? Sim, replicou ella , podeis fiar-vos . Não que-
reria por quanto ha no mundo encobrir-vos a verdade .
E para provar-vos que sou sincera, importa que vos faça
uma confissão, que talvez vos desagrade ; todavia de an-
temão peço perdão a vossa magestade . —Falla , filha, dis-
se então Haroun Alraschid , tudo te perdoo , comtanto que
não me occultes cousa alguma . -Então, replicou Tor-
menta, sabei que a attenção respeitosa de Ganem , com
todos os bons serviços que me fez , me induziram a es-
timal- o ; fiz ainda mais conheceis a tyrannia do amor ;
senti nascer no meu coração ternos sentimentos . Perce-
beu isto ; mas longe de procurar aproveitar- se da minha
fraqueza , e apesar de todo o fogo em que se sentia abra-
zar, conservou-se sempre constante no seu dever, e tu-
do o que a sua paixão podia arrancar-lhe eram estes ter-
mos, que já disse a vossa magestade : o que pertence ao
senhor é prohibido ao escravo » .
Teria talvez esta declaração ingenua estimulado qual-
quer outro que não fosse o califa, mas foi o que acabou
de abrandar este principe . Ordenou -lhe que se levantas-
se, e mandando-a assentar comsigo : « Conta-me, disse-
lhe, a tua historia desde o principio até ao fim » . Ella
então desempenhou -se d'isso com muita destreza e capa-
cidade . Passou ligeiramente pelo que dizia respeito a
Zobeida . Estendeu-se mais sobre as obrigações que de-
via a Ganem, sobre a despeza que fizera por causa d'el-
la, e sobretudo gabou muito a discrição d'elle , queren-
do com isto dar a conhecer ao califa que se achára na
necessidade de ficar occulta em casa de Ganem para
enganar Zobeida . E acabou finalmente pela fuga do jo-
ven mercador, á qual , sem disfarce , ella disse ao califa
que o obrigára para escapar á sua cólera.
Cessando ella de fallar disse-lhe este principe : « Creio
tudo o que me contastes ; mas porque tardastes tanto
em dar-me novas vossas ? Era preciso um mez depois
da minha chegada para informar- me onde estaveis ? -
Commendador dos crentes, respondeu Tormenta , sahia
170 AS MIL E UMA NOITES

Ganem tão raras vezes de sua casa , que não deveis ad-
mirar-vos, que não fossemos dos primeiros a saber a
vossa chegada. Além d'isso, Ganem, que se encarregára
de mandar entregar o escripto que escrevi a Alva do
dia, esteve muito tempo sem poder achar a hora favora-
vel de entregal-o em mão propria. — Basta, Tormenta, re-
plicou o califa ; reconheço o meu engano e quereria re-
paral -o, beneficiando esse joven mercador de Damasco .
Vê pois o que posso fazer em seu beneficio : pede -me o
que quizeres , eu t'o concederei » . Proferidas estas pala-
vras lançou-se a valida aos pés do califa com a face no
chão ; e levantando - se : « Commendador dos crentes, dis-
se ella, depois de ter agradecido a vossa magestade os
favores que quereis fazer a Ganem, supplico-vos com
muita humildade que mandeis publicar nos vossos es-
tados que perdoaes ao filho de Abou Aibou , e que póde
vir procurar-vos . -Farei ainda mais, replicou este prin-
cipe, por ter-te conservado a vida ; para reconhecer a
consideração que teve para commigo, para indemnisal-o
da perda de seus bens, e finalmente para reparar a inju-
ria que fiz a sua familia, dou-t'o por esposo » . Não po-
dia Tormenta achar expressões bastantes para agradecer
ao califa a sua generosidade. Recolheu-se depois ao quar-
to que occupava antes da sua cruel aventura. Havia ain-
da n'elle a mesma armação ; mas o que mais lhe agra-
dou foi vêr os bahús e fardos de Ganem, que Mesrour
teve o cuidado de mandar recolher n'elle .
No dia seguinte Haroun Alraschid deu ordem ao grão-
visir para mandar publicar por todas as cidades dos seus
estados, que perdoava a Ganem, filho de Abou Aibou ;
mas de nada serviu esta publicação, pois passou-se um
tempo consideravel sem que se ouvisse fallar d'este jo-
ven mercador. Cuidou Tormenta que sem duvida não
pudera sobreviver á afflicção de a ter perdido : apossou-
se d'ella uma horrivel inquietação ; e, como a esperança
é a ultima cousa que larga os amantes, supplicou ao
califa que lhe permittisse fazer ella mesma a diligencia
para descobrir Ganem ; o que, sendo-lhe concedido , pe-
gou n'uma bolsa de mil peças d'ouro que tirou do seu
cofre, e sahiu um dia pela manhã do palacio montada
CONTOS ARABES 171

n'uma mula das cavalhariças do califa, riquissimamente


ajaezada. Acompanhavam-a dous eunucos pretos , que ti-
nham de cada lado a mão sobre a garupa da mula.
Foi de mesquita em mesquita fazer generosas dadi-
vas aos devotos da religião musulmana, implorando o
soccorro de suas orações para o complemento d'um ne-
gocio importante , do qual dependia, dizia-lhes , o socego
de duas pessoas . Empregou todo o dia e as mil peças
d'ouro a fazer esmolas nas mesquitas , e antes de anoite-
tecer voltou ao palacio.
No dia seguinte pegou n'outra bolsa da mesma quan-
tia, e com o mesmo trem foi procurar o syndico das
joias. Parou diante da porta, e sem apear-se mandou-o
chamar por um dos eunucos pretos . O syndico , que era
um homem caritativo e empregava mais dos dous ter-
ços da sua renda em alliviar os pobres estrangeiros , ou
fossem doentes ou tivessem seus negocios em mau es-
tado, não fez esperar a Tormenta, que reconheceu , pelo
seu trajo, por uma senhora do palacio . « Dirijo-me a vós ,
disse-lhe, mettendo-lhe a sua bolsa nas mãos , como a
um homem, cuja piedade se gaba na cidade . Rogo-vos
o favor de distribuir estas peças d'ouro pelos pobres
estrangeiros que favoreceis com esmolas, pois não igno-
ro que vos empregaes em soccorrer os estrangeiros que
recorrem á vossa caridade . Até sei que vos antecipaes
ás suas necessidades, e que nada ha que vos agrade
tanto como achar occasião de suavisar a sua miseria.
-Senhora, respondeu-lhe o syndico, executarei com gos-
to o que me ordenaes ; porém se desejaes exercitar pro-
priamente a vossa caridade e quereis ter o trabalho de
vir até minha casa, lá vereis duas mulheres dignas da
Vossa compaixão . Encontrei-as hontem quando chegavam
á cidade. Estavam n'um estado lastimoso ; e tanto mais
me compadeci d'ellas quanto me pareceu serem pessoas
de distincção. Por entre os farrapos que as cobriam, ape-
sar da impressão que o ardor do sol fez nos seus ros-
tos, distingui um ar nobre que tem ordinariamente os
pobres a quem soccorro. Levei-as ambas para minha ca-
sa, e as recommendei a minha mulher, que fez logo o
mesmo juizo que eu fiz. Mandou-lhes apromptar boas ca-
172 AS MIL E UMA NOITES

mas pelas suas escravas, em quanto ella mesma se oc-


cupava a lavar- lhes o rosto e a fazer-lhes mudar de rou-
pa. Não sabemos ainda quem ellas são, porque quere-
' mos deixar-lhes tomar algum descanço , antes de can-
çal-as com as nossas perguntas » .
Tormenta, sem saber porque, sentiu alguma curiosi-
dade em vêl-as . Dispoz-se o syndico a leval-a a sua ca-
sa ; porém ella não quiz que elle tivesse esse trabalho e
fez-se acompanhar por um escravo que elle lhe deu . Che-
gada que foi á porta, apeou-se e seguiu o escravo do
syndico, que tomára a dianteira para ir avisar a sua ama,
que estava no quarto de Força dos corações e de sua
mãi ; pois d'ellas era que o syndico acabava de fallar a
Tormenta.
Informada a mulher do syndico pelo seu escravo que
uma senhora do palacio estava em sua casa, quiz sahir
do quarto onde estava para ir recebel- a ; mas Tormen-
ta, que seguia de perto o escravo, não lhe deu tempo
para isso e entrou . Prostrou-se a mulher do syndico pe-
rante ella, para mostrar o respeito que tinha a tudo o
que pertencia ao califa . Tormenta a levantou e lhe dis-
se : «Minha boa senhora , rogo-vos que me deixeis fal-
lar ás duas estrangeiras que chegaram hontem de tarde
a Bagdad.
-Senhor respon
a, deu a mulher do syndico , es-
tão deitadas n'estes dous leitos que estaes vendo » . Che-
gou-se logo a valida ao da mãi, e examinando- a com
attenção : « Boa mulher, disse - lhe, venho offerecer- me
para soccorrer-vos. Tenho credito n'esta cidade, e pode-
rei prestar-vos para alguma cousa . -Senhora , respon-
deu a mai de Ganem, pelos offerecimentos officiosos que
me fazeis, vejo que o céo não nos abandonou ainda » .
Proferidas estas palavras, poz-se a chorar tão amarga-
mente, que Tormenta e a mulher do syndico não pude-
ram tambem suster as lagrimas.
A valida do califa, depois de ter enxugado as suas,
disse á mãi de Ganem : « Informai- nos de vossas desgra-
ças e contai-nos a vosa historia ; não poderieis fazer es-
sa narração a pessoas mais dispostas que nós a procurar
todos os meios possiveis de consolar- vos . - Senhora, re-
plicou a triste viuva de Abou Aibou , uma valida do com-
CONTOS ARABES 173

mendador dos crentes, uma senhora chamada Tormenta,


causou toda a nossa desgraça » . Ouvido isto perturbou-
se a valida ; mas, dissimulando a sua perturbação e agi-
tação, deixou fallar a mãi de Ganem, que proseguiu d'es-
ta maneira : « Sou viuva de Abou Aibou , mercador de
Damasco ; tinha um filho chamado Ganem, que tendo
vindo commerciar a Bagdad, foi accusado de ter rouba-
do Tormenta. O califa mandou-o procurar por toda a par-
te para lhe dar a morte ; mas não podendo achal - o , es-
creveu ao rei de Damasco que mandasse saquear e ar-
rasar a nossa casa, e que nos expozesse , minha filha e
eu, tres dias consecutivos, núas, á vista do povo, e de-
pois nos desterrasse de Suria para sempre. Porém , por
maior que fosse a indignidade com que nos tratassem ,
consolar-me-hia se meu filho vivesse ainda e se pudesse
encontral- o. Que gosto seria para sua irmã e para mim
tornal - o a vêr ! Esqueceriamos , abraçando-o , a perda de
nossos bens e todos os males que padecemos por elle.
Ai de mim ! estou convencida que é sómente causa in-
nocente, e que não é mais culpado para com o califa ,
que sua irmã e eu . - Não : sem duvida , interrompeu
Tormenta n'esta passagem, não é mais criminoso que vós .
Posso certificar-vos a sua innocencia , visto que essa mes-
ma Tormenta de quem tendes tantas razões de queixa,
sou eu, que pela fatalidade dos astros causei todas as
vossas desgraças . A mim é que deveis imputar a perda
de vosso filho, se não está já n'este mundo ; porém se
fiz a vossa infelicidade , posso tambem allivial-a . Já jus-
tifiquei a Ganem no espirito do califa. Mandou este prin-
cipe publicar por todos os seus estados que perdoava ao
filho de Abou Aibou , e crêde que vos fará tanto bem
quanto mal vos fez . Vós todos não sois já seus inimi-
gos. Espera a Ganem para recompensal- o do serviço que
me fez , unindo nossas fortunas . Dá-me a elle por espo-
sa. Assim olhai-me como vossa filha, e permitti que vos
consagre uma eterna amizade » . Dizendo isto , abraçou-
se á mãi de Ganem, que não pôde responder a estas pa-
lavras, que tanta admiração lhe causaram. Esteve Tor-
menta bastante tempo abraçada a ella, e só a largou pa-
174 AS MIL E UMA NOITES

ra ir ao leito abraçar Força dos corações , que , levantan-


do-se para recebel-a, lhe estendeu os braços .
Depois de ter a bella valida do califa dado à mãi e
á filha todas as demonstrações de ternura que podiam
esperar da esposa de Ganem, disse-lhes : « Cessai de affli-
gir-vos . As riquezas que Ganem tinha n'esta cidade, não
estão perdidas ; acham-se no palacio do califa, no meu
quarto. Bem sei que todas as riquezas do mundo não po-
deriam consolar-vos sem Ganem . Este o juizo que faço
de sua mãi e de sua irmã , se devo julgar d'ellas por
mim mesma. Não tem o sangue menos força que o amor
nos grandes corações ; mas porque desesperaremos de
tornal-o a ver ? Nós o acharemos ; a fortuna de vos ter
deparado me faz tambem conceber a esperança de o en-
contrar. Talvez que hoje seja o ultimo dia de vossos tra-
balhos, e o principio de uma felicidade maior que a que
gozaveis em Damasco, no tempo em que alli estaveis,
na posse e companhia de Ganem ».
Tornava Tormenta a fallar quando chegou o syndi-
co : « Senhora, disse-lhe, acabo de vér um objecto digno
de compaixão . É um mancebo que um cameleiro levava
ao hospital de Bagdad. Estava atado com cordas sobre
um camêlo, porque não tinha forças para segurar-se . Ti-
nham-o já desatado e iam leval o ao hospital , quando
passei por alli . Cheguei -me ao mancebo, examinei -o com
attenção e pareceu -me que o seu semblante não me era
inteiramente desconhecido . Fiz-lhe perguntas sobre a sua
familia e o seu paiz, porém a resposta que me deu fo-
ram choros e suspiros . Compadeci-me d'elle ; e, conhe-
cendo, pelo habito que tenho de vêr doentes, que esta-
va na mais urgente necessidade de tratamento, não quiz
que o levassem ao hospital, pois sei muito bem de que
modo se tratam alli os doentes, e conheço a incapacida-
de dos medicos . Mandei trazel-o para minha casa pelos
meus escravos, que lhe dão, por minha ordem, da mi-
nha propria roupa, e o servem como me serviriam a
mim >» .
Tormenta ouvindo estas palavras do syndico estreme-
ceu e sentiu uma commoção que ella mesma não podia
CONTOS ARABES 175

explicar : <
« Levai-me, disse ella ao syndico, ao quarto
d'esse doente . Desejo vêl-o » . Levou-a lá o syndico ; e,
em quanto lá ia, a mai de Ganem disse a Força dos co-
rações : « Ah , minha filha ! por mais miseravel que seja
esse estrangeiro doente, vosso irmão, se está ainda com
vida, não está talvez n'um estado mais feliz ! »
Entrando a valida do califa no quarto onde estava o
doente, chegou-se ao leito em que os escravos do syn-
dico o tinham já deitado. Viu um mancebo que tinha os
olhos fechados, o rosto pallido , desfigurado e todo ba-
nhado em lagrimas. Examina-o com attenção . O coração
palpita-lhe. Parece-lhe reconhecer Ganem, mas desconfia
logo do que os seus olhos lhe referem. Se acha alguma
cousa de Ganem no objecto que considera, parece- lhe por
outra parte tão differente , que não ousa imaginar que é
elle mesmo que se offerece à sua vista . Não podendo to-
davia resistir ao desejo de certificar-se : « Ganem, disse-
lhe com voz tremula, sois vós o proprio Ganem que ve-
jo ? » Proferidas estas palavras, parou para dar tempo ao
mancebo de responder ; porém percebendo que parecia
insensivel a isto : «Ganem, replicou ella, não é a ti que
fallo. A imaginação de Tormenta, cheia da tua imagem,
deu a este estrangeiro uma enganosa semelhança » . Ao
nome de Tormenta, Ganem— pois era com effeito o mes-
mo - abriu os olhos e voltou a cabeça para a pessoa
que lhe dirigia a palavra ; e reconhecendo a valida do
califa : « Ah, senhora, sois vós ? por que milagre ... » Não
pôde acabar. Foi tão vivamente arrebatado de alegria,
que desmaiou. Tormenta e o syndico se apressaram em
soccorrel- o ; mas logo que observaram que principiava
a tornar a si do seu desmaio , o syndico pediu á senho-
ra que se retirasse, receando que a sua vista não avi-
vasse o mal de Ganem.
Tendo o mancebo tornado a si, olhou para todos os
lados , e não vendo o que buscava : « Bella Tormenta ,
replicou elle, que é feito de vós ? apparecestes na reali-
dade a meus olhos , ou é unicamente uma illusão ? —
Não, senhor, disse-lhe o syndico, não é uma illusão . Fui
eu que mandei sahir essa senhora ; mas tornal-a-heis a
vêr logo que estiverdes em estado de poder estar na sua
176 AS MIL E UMA NOITES

presença. Agora precisaes de descançar. Mudaram vossos


negocios de figura, visto que sois, ao que me parece, a
quem o commendador dos crentes mandou publicar em
Bagdad que perdoava o passado . Baste-vos, na hora em
que estamos, saber isto. A senhora, que acaba de fallar-
vos, vos informará mais amplamente . Cuidai sómente em
restabelecer a vossa saude. Quanto a mim vou contribuir
para isto quanto me for possivel ». Acabando de proferir
estas palavras , deixou descançar a Ganem, e mandou
apromptar-lhe todos os remedios que julgou necessarios
para recuperar as suas forças, esgotadas pela dieta e pela
fadiga.
N'este intervallo estava Tormenta no quarto de For-
ça dos corações e de sua mãi , onde se passou quasi a
mesma scena ; pois quando a mãi de Ganem soube que
este estrangeiro doente, que o syndico acabava de man-
dar conduzir a sua casa , era o proprio Ganem, teve d'is-
so tanta alegria que desmaiou tambem. E quando pelos
cuidados de Tormenta e da mulher do syndico tornou a
si, quiz levantar-se para ir vêr seu filho ; mas o syndi-
co, que chegou n'este intervallo, a impediu, representan-
do-lhe que Ganem estava tão fraco e tão extenuado , que
não se podia, sem perigo de vida, excitar n'elle os movi-
mentos que deve causar a vista inopinada de uma mãi
e de uma irmã dignas de amor. Não precisou o syndico
de longos discursos para persuadir a mai de Ganem . Lo-
go que lhe disseram que não podia estar com seu filho
sem expôr os seus dias , não fez mais instancias para ir
ter com elle. Tomando então Tormenta a palavra : <« Aben-
çoemos o céo, disse ella, por ter -nos reunido todos n'um
mesmo lugar. Volto ao palacio a informar o califa de to-
das estas aventuras , e ámanhã pela manhã virei ter com-
vosco ». Depois de ter fallado d'este modo, abraçou a
mãi e a filha e sahiu. Chegou ao palacio e mandou pe-
dir por Mesrour uma audiencia particular ao califa . Al-
cançou-a no mesmo instante. Foi introduzida no gabine-
te d'este principe . Estava só. Lançou -se ella a seus pés
com a face contra o chão, segundo o costume, disse -lhe
elle que se levantasse, e tendo-a mandado assentar per-
guntou-lhe se sabia novas de Ganem. « Commendador
CONTOS ARABES 177

dos crentes, disse-lhe, fiz tantas diligencias que o encon-


trei com sua mãi e irmã ». Teve o califa a curiosidade
de saber como pudéra achal-os em tão pouco tempo. Sa-
tisfez a sua curiosidade, e fallou -lhe tão lisonjeiramente
da mãi de Ganem e de Força dos corações, que desejou
vél-as juntamente com o joven mercador.
Se Haroun Alraschid era violento e se nos seus ar-
rebatamentos mandava algumas vezes praticar acções
crueis , por outra parte era justo e o mais generoso prin-
cipe do mundo, logo que lhe passava a sua cólera e lhe
davam a conhecer a sua injustiça . Assim , não podendo
duvidar que tivesse injustamente perseguido a Ganem e
sua familia, e tendo-os maltratado publicamente , resol-
veu dar-lhes uma satisfação publica . « Alegro-me , disse
a Tormenta , pelo successo de tuas diligencias ; tenho d'is-
so uma extrema alegria . Cumprirei a promessa que te
fiz. Casarás com Ganem, e desde já te declaro que não és
minha escrava e estás livre . Vai ter com esse joven
mercador ; e, logo que a sua saude fôr restabelecida , tu
m'o trarás com sua mãi e sua irmã » .
No dia seguinte , ao amanhecer, não se esqueceu Tor-
menta de ir ter com o syndico, impaciente sobre o es-
tado da saude de Ganem , e de noticiar á mãi e á filha
as boas novas que tinha que annunciar-lhes . A primeira
pessoa que encontrou foi o syndico, que lhe disse que
Ganem tinha passado muito bem a noite ; que o seu mal
procedia só de melancolia , e que cessando a causa de-
pressa estaria restabelecido.
Com effeito achou-se muito melhor o filho de Abou
Aibou . O descanço e os bons remedios que tomára , e ,
mais que tudo isto, a nova situação do seu espirito ti-
nham produzido tão bom effeito, que o syndico julgou
que podia sem perigo vêr sua mãi , sua irmã e sua aman-
te, comtanto que o dispuzessem a recebel-as, porque era
para recear que sabendo que sua mãi e irmã estavam
em Bagdad, a sua vista lhe causasse demasiado sobresalto
e alegria. Assentou -se que Tormenta entraria primeiro só
no quarto de Ganem, e que acenaria ás duas outras se-
nhoras quando fosse tempo.
Regulado tudo assim, foi Tormenta annunciada pelo
TOMO III. 12
AS MIL E UMA NOITES
178 o
syndic ao doente, que gostou tanto de tornal -a a ver
que pouco faltou que tornasse a desmaiar . « Então , Ga-
nem ! disse-lhe , chegando -se ao leito , encontraes a vos-
s
sa Tormenta que imaginavei ter perdido para sempre .
u
-Ah ! inte rr om pe com precipitação ; por que milagre
vindes offerecer -vos a meus olhos ? Deu -vos sem duvida
ouvidos esse principe ; dissipastes as suas suspeitas e
restituiu-vos a sua ternura . -Sim , meu querido Ganem ,
-
replicou Tormenta, justifiquei-me para com o commenda
dor dos crentes , que para reparar o mal que vos fez pa-
decer , dá-me por vossa esposa » . Causaram estas pala-
vras a Ganem tão viva alegria, que a não pôde logo
expressar senão por esse terno silencio , tão conheci-
do dos amantes . Mas rompendo -o finalmente : « Ah, bel-
la Tormenta , clamou elle ; posso dar credito ao que me
dizeis ? Crerei que com effeito o califa vos cede ao filho
de Abou Aibou ? -Não ha cousa mais verdadeira , replicou L
a se nh or a . O pr in ci pe e s
qu vo ma nd ou pr oc ur ar pa ra
vos tirar a vida e que no seu furor fez padecer mil in-
nte
dignidades a vossa mãi , deseja vêr - vos presenteme
sa r
para recompen - vos do respeito que lhe tivestes , e de-
veis esperar que beneficiará toda a vossa familia » .
Perguntou Ganem de que modo o califa tratára sua
mãi e sua irmã , o que Tormenta lhe contou . Não pôde
ouvir esta narração sem chorar, apesar de ter a nova do
casamento com a sua amante socegado o seu espirito .
Mas quando Tormenta lhe disse que estavam actualmen-
te em Bagdad e na mesma casa onde elle se achava , pa-
receu ter tamanha impaciencia em vél -as, que a valida
não tardou a satisfazel -o. Ella as chamou . Estavam á
porta , onde esperavam sómente este instante . Entraram ,
chegaram -se a Ganem, e abraçando -o cada uma por sua
vez beijaram -o repetidas vezes . Quantas lagrimas se der-
ramaram n'estes abraços ! Tinha Ganem o rosto banha-
do n'ellas , assim como sua mãi e sua irmã . Derrama-
va tambem Tormenta lagrimas em abundancia. O mes-
mo syndico e sua mulher, aos quaes este espectaculo
enternecia, não podiam suster seus choros nem cançar-
se de admirar os meios occultos da Providencia , que
CONTOS ARABES
179
ajuntava em sua casa quatro pessoas que a fortuna se-
parára tão cruelmente.
Depois de terem todos enxugado as suas lagri-
mas, derramou Ganem novo pranto, fazendo a narra-
ção de tudo o que padecêra desde o dia em que dei-
xára Tormenta até ao instante em que o syndico o
mandára trazer para sua casa . Noticiou- lhes que ten-
do -se refugiado n'uma pequena aldea , adoecêra alli,
e que alguns aldeãos caritativos trataram d'elle ; mas
que, não melhorando , um cameleiro, se encarregára de
trazel-o ao hospital de Bagdad . Contou tambem Tormen-
ta todos os horrores da sua prisão , como o califa depois
de a ter ouvido fallar na torre a mandára vir ao seu ga-
binete, e como se justificára. Finalmente , sendo infor-
mados das cousas que lhes succederam, Tormenta disse :
« Abençoemos o céo que nos reuniu a todos e lembre-
mo- nos sómente da felicidade que nos espera . Restabe-
lecida que seja a saude de Ganem, será preciso appare-
cer na presença do califa com sua mãi e sua irmã ; mas
como não estão em estado de se lhe apresentarem ,
eu vou dar ordem a isso . Peço -vos que me espereis um
instante » .

Ditas estas palavras sahiu, foi ao palacio e voltou


em pouco tempo a casa do syndico com uma bolsa, na
qual havia ainda mil peças d'ouro . Ella a deu ao syndi-
co, rogando-lhe que comprasse vestidos para Força dos
corações e para sua mãi . O syndico , que era homem de
bom gosto, escolheu-os muitos bellos e os mandou fazer
com a diligencia possivel. Acharam-se promptos ao cabo
de tres dias ; e Ganem, sentindo-se assás forte para sa-
hir, dispôz-se a isso. Mas no dia que aprazára para ir
saudar o califa , como se dispuzesse para isso com Força
dos corações e sua mãi , viram chegar a casa do syndico
o grão- visir Giafar.
Vinha este ministro a cavallo com uma grande comi-
tiva de officiaes . « Senhor , disse elle a Ganem entrando,
venho aqui da parte do commendador dos crentes, meu
e vosso amo ; a ordem que tenho é muito differente
d'aquella, cuja lembrança não quero renovar- vos . Devo
180 AS MIL E UMA NOITES

acompanhar-vos e apresentar-vos ao califa, que deseja


vér-vos ». Não respondeu Ganem ao comprimento do grão-
visir senão com uma profundissima inclinação de cabeça ,
e montou n'um cavallo das cavalhariças do califa, que
lhe apresentaram . Fizeram montar a mãi e a filha n'umas
mulas do palacio, e em quanto Tormenta as guiava por
um caminho desviado , levou Giafar a Ganem por outro
e o indroduziu na sala da audiencia . Estava o califa as-
sentado no seu throno e cercado dos emires, dos visires ,
dos chefes , dos officiaes do palacio e dos outros cortezãos
arabes, persas, egypcios, africanos e surios do seu domi-
nio, sem fallar dos estrangeiros.
Tendo o grão-visir levado ao pé do throno a Ganem ,
fez este joven mercador a sua reverencia, prostrando -se
com a face em terra ; e levantando-se depois fez um bel-
lo comprimento em versos, que ainda que compostos im-
provisamente , não deixaram de ter a approvação de toda
a côrte. Feito o comprimento, mandou-o chegar o califa,
e lhe disse : « Muito me alegro de vêr-te, e de saber de
ti mesmo onde achaste a minha valida e tudo o que fi-
zeste por ella » . Obedeceu Ganem ; e pareceu tão since-
ro que o califa, convencido da sua sinceridade, mandou-
lhe dar um vestido muito rico, segundo o costume ob-
servado com aquelles a quem se dá audencia, dizendo-
The depois : «< Ganem, quero que fiques na minha côrte .
-Commendador dos crentes, respondeu o joven merca-
dor, o escravo não tem outra vontade senão a de seu
amo, de quem dependem sua vida e sua fortuna » . Ficou
o califa satisfeito da resposta de Ganem, e lhe deu uma
tença consideravel. Desceu depois este principe do thro-
no, e fazendo- se acompanhar somente de Ganem e do
grão-visir, entrou no seu quarto.
Como lhe parecesse que Tormenta, juntamente com
a mãi e a filha de Abou Aibou , estariam em palacio,
ordenou que as conduzissem . Prostraram-se a seus pés.
Mandou-as levantar, e achou Força dos corações tão bel-
la, que depois de a ter examinado com attenção : < « Tenho
tanto pezar, disse -lhe , de ter tratado tão indignamente
os vossos encantos, que lhes devo uma reparação que
exceda a offensa que lhes fiz . Caso comvosco ; e d'este
CONTOS ARABES
181
modo castigarei a Zobeida, que virá a ser a causa pri-
maria da vossa felicidade, como ella o é das vossas des-
graças passadas . Não basta isto, acrescentou elle vol-
tando-se para a mãi de Ganem : senhora, sois ainda mui-
to moça, e creio que não desprezareis a alliança do meu
grão- visir. Dou- vos a Giafar ; e a vós , Tormenta , a Ga-
nem . Que se vá chamar um cadi e testemunhas , e que
os contractos sejam lavrados e assignados immediata-
mente » . Quiz Ganem representar ao califa que sua irmã
teria por muita honra ser sómente admittida no numero
das suas validas, porém elle insistiu em desposal-a.
Achou esta historia tão extraordinaria , que ordenou
a um famoso historiador que a escrevesse com todas as
circumstancias . Foi depois depositada no seu archivo,
d'onde muitas copias, tiradas d'este original, a fizeram
publica.
Depois de ter Scheherazada acabado a historia de Ga-
nem , filho de Abou Aibou, manifestou o sultão das In-
dias que gostára d'ella . « Senhor, disse a sultana, visto
que esta historia vos divertiu , supplico humildemente a
vossa magestade que tenha a bondade de dar attenção á
do principe Zeyn Alasnam e do rei dos genios ; não fica-
reis menos satisfeito com ella » . Consentiu Schahriar ; mas
como o dia principiasse a raiar, deixaram-a para a noite
seguinte.

HISTORIA

DO PRINCIPE ZEYN ALASNAM E DO REI DOS GENIOS

Possuia um rei de Balsora grandes riquezas . Era


amado de seus vassallos , mas não tinha filhos, o que o
affligia muito . Todavia empenhou com dadivas conside-
raveis todos os santos personagens de seus estados , a
pedir ao céo que lhe désse um filho , e não foram bal-
dadas as suas orações : em breve se achou a rainha gra-
vida, e deu á luz com muita felicidade um principe, a
quem deram o nome de Zeyn Alasnam, isto é , o orna-
mento das estatuas.
182 AS MIL E UMA NOITES

Mandou o rei chamar todos os astrologos do seu rei-


no, e lhes ordenou que tirassem o horoscopo do recem-
nascido . Descobriram com suas observações que viveria
largo tempo, que seria valoroso, porém que precisaria
de coragem para resistir ás desgraças que o ameaçavam .
Não se assustou o rei com esta predicção . « Meu filho,
disse elle, não tem de que queixar-se, visto que ha- de
ser valoroso. Importa que os principes experimentem
desgraças ; a adversidade purifica a sua virtude. Sabem
depois reinar melhor ».
Recompensou os astrologos e os despediu. Mandou
educar a Zeyn com todo o desvelo imaginavel. Deu- lhe
mestres logo que o viu em idade de aproveitar-se das
suas instrucções. Finalmente, propunha-se fazer d'elle
um principe completo, quando de repente adoeceu este
bom rei d'uma molestia, que seus medicos não puderam
curar . Vendo-se no leito da dôr, chamou a seu filho e
lhe recommendou , entre outras cousas, que se compor-
tasse de modo que seu povo o amasse e o não temes-
se ; que não désse ouvidos aos aduladores, e que fos-
se tão vagaroso em recompensar como em castigar, por-
que acontecia algumas vezes que os poderosos , seduzi-
dos por falsas apparencias, beneficiavam em demasia os
maus e opprimiam a innocencia.
Tendo morrido o rei, tomou o principe Zeyn luto,
que levou sete dias a fio. Ao oitavo subiu ao throno, ti-
rou do thesouro real o sello de seu pai para pôr o seu,
e principiou a tomar gosto em reinar. O prazer de vér
todos os seus cortezãos ajoelharem diante d'elle e appli-
carem-se ao unico estudo de darem-lhe provas da sua obe-
diencia e do seu zelo , agradou -lhe demasiado . Não atten-
deu senão ao que lhe deviam seus vassallos, sem lem-
brar-se do que elle lhes devia . Pouco lhe importou go-
vernal - os bem. Engolfou-se em toda a casta de devassi-
dões com jovens voluptuosos a quem conferiu os primei-
ros cargos do estado, e não observava regra alguma .
Como fosse naturalmente prodigo, largou inteiramente o
freio às suas liberalidades, e insensivelmente suas mu-
lheres e seus validos esgotaram os seus thesouros .
Vivia ainda a rainha sua mãi, uma princeza cordata
CONTOS ARABES 183

e prudente. Tinha ensaiado algumas vezes inutilmente


conter a corrente das prodigalidades e das devassidões
do rei seu filho , representando-lhe que se não mudasse
com toda a brevidade de procedimento, não só gastaria
as suas riquezas, mas perderia tambem o amor de seus
povos e causaria desordens que poderiam ter consequen-
cias desagradaveis. Pouco faltou que não acontecesse o
que ella predisse : principiaram os povos a murmurar ;
e suas murmurações seriam infallivelmente a causa de
um descontentamento geral, se a rainha não tivesse tido
a habilidade de prevenil-o ; mas esta princeza , informa-
da da má disposição das cousas, avisou o rei, que se
deixou finalmente persuadir. Confiou o ministerio a an-
ciãos sisudos e sabios , que souberam muito bem conter
os seus vassallos no dever.
Vendo todavia Zeyn dissipadas as suas riquezas to-
das, arrependeu-se de não ter feito d'ellas melhor uso.
Cahiu n'uma melancolia mortal e nada podia consolal- o .
Uma noite viu em sonho um venerando velho , que se
chegou a elle e lhe disse com ar risonho : Zeyn, sabe
que não ha tristeza que não seja seguida de alegria, que
não ha desgraça que não traga comsigo alguma felici-
dade. Se queres ver o fim da tua afflicção, levanta-te.
Parte para o Egypto e vai ao Cairo ; ld te espera uma
grande fortuna.
Acordando, ficou o principe abalado d'este sonho.
Fallou d'elle mui sériamente á rainha sua mãi , que se
riu muito. « < Quererieis, meu filho, disse-lhe ella, ir ao
Egypto fiado n'esse bello sonho ? - - Porque não, senho-
ra? respondeu Zeyn ; parece-vos que todos os sonhos se-
jam chimericos ? Não, não , ha alguns que são mysterio-
sos. Contaram-me os meus mestres mil historias, que não
me deixam duvidar d'isso . Além de que , ainda que não
estivesse persuadido d'isso, não poderia deixar de atten-
der ao meu sonho . O velho, que me appareceu, tinha
alguma cousa de sobrenatural . Não é um d'esses homens
que a velhice torna respeitaveis ; não sei que ar divino
se deixava entrevér na sua pessoa. Era finalmente tal
qual nos representam o nosso grande propheta ; e se
quereis que vos descubra o meu pensamento, creio que,
181 AS MIL E UMA NOITES

sensivel aos meus trabalhos, quer allivial-os . Fio- me na


confiança que me inspirou . Estou cheio das suas promes-
sas e resolvi seguir a sua voz » . Quiz a rainha desenga-
nal- o a este respeito, mas não pôde conseguil-o . Deixou-
lhe o principe o governo do reino, sahiu uma noite do
palacio mui occultamente, e tomou o caminho do Cairo
sem querer ser acompanhado de pessoa alguma.

Depois de muito cançado, e tendo padecido bastante,


chegou a essa famosa cidade, á qual poucas se igualam
no mundo, ou seja pela grandeza ou pela belleza. Foi
apear-se á porta d'uma mesquita, onde se deitou . Tendo
adormecido, viu o mesmo velho , que lhe disse : Filho
meu, estou satisfeito por teres dado credito das minhas
palavras. Vieste aqui sem que a dilatada viagem e as
difficuldades dos caminhos te desanimassem ; mas sabe
CONTOS ARABES 185

que não te fiz emprehender tão longa jornada senão


para experimentar- te. Vejo que tens coragem e constan-
cia; mereces que te faça o mais rico e o mais feliz de
todos os principes da terra : volta para Balsora, acha-

011

rás no teu palacio riquezas immensas. Jamais alguem


possuiu tantas como n'elle se acham .
Não se satisfez com este sonho o principe. « Ai de
mim ! disse comsigo , depois de ter acordado ; que enga-
no era o meu ! este velho, que me parecia ser o nosso
grande propheta, não é senão pura obra da minha phan-
186 AS MIL E UMA NOITES

tasia agitada. Tinha d'elle a imaginação tão cheia, que


não é para admirar que sonhasse segunda vez com elle .
Voltemos para Balsora. Que faria aqui mais tempo ? Te-
nho a felicidade de não ter dito a ninguem, senão a mi-
nha mãi, o motivo da minha viagem. Viria a ser a fa-
bula de meus povos se o soubessem » . Tornou pois para
o seu reino, e chegado que foi perguntou-lhe a rainha
se voltava satisfeito. Contou-lhe tudo o que se passára ;
e pareceu tão humilhado de ter sido crédulo , que esta .
princeza , em vez de augmentar a sua mágoa com repre-
hensões ou mófas, o consolou. « Deixai de affligir-vos,
filho, disse-lhe ; se Deus vos destina riquezas , adquiril -as-
heis sem trabalho . Socegai, tudo o que tenho que re-
commendar-vos é que sejaes virtuoso . Renunciai ás deli-
cias da dança , da musica e do vinho côr de purpura .
Fugi de todos esses prazeres. Pouco faltou que não vos
tivessem já perdido . Applicai-vos a proporcionar a felici-
dade a vossos vassallos ; fazendo a sua felicidade , fareis
a vossa > ».
Protestou o principe Zeyn que d'ahi em diante segui-
ria todos os conselhos de sua mãi , e os dos sabios visi-
res que ella escolhera para ajudal-o a suster o peso do
governo. Mas logo na primeira noite que voltou ao seu
palacio viu em sonhos pela terceira vez o velho , que lhe
disse : Corajoso Zeyn, chegou finalmente o tempo da tua
prosperidade. Amanhã pela manhã, logo que te levan-
tares, péga n'uma enxada e vai cavar no gabinete do
defunto rei. N'elle achards um grande thesouro.
Tendo acordado o principe , levantou-se. Correu ao
quarto da rainha e lhe contou com muito fogo o novo
sonho que acabava de ter. « Na verdade, filho , disse a
rainha sorrindo-se, eis-ahi um velho bem obstinado . Não
está satisfeito de ter-vos enganado duas vezes ; estaes
ainda disposto a fiar-vos novamente n'elle ? - Não, se-
nhora, respondeu Zeyn , não creio de modo algum no que
me disse ; mas quero por gosto visitar o gabinete de
meu pai . - Bem me parecia ! clamou a rainha dando ri-
sadas ; ide, filho, satisfazei-vos . O que me consola é não
-
ser a cousa tão penosa como a viagem do Egypto . — Pois
então, senhora, replicou o rei, devo confessar - vos que
CONTOS ARABES 187

este terceiro sonho augmentou a minha confiança . Final-


mente examinemos todas as palavras do velho . Orde-
nou-me primeiro que fosse ao Egypto ; alli me disse que
não me fizera imaginar a viagem senão para experimen-
tar-me. < « Volta para Balsora, disse-me depois ; lá é que
deves achar thesouros » . Esta noite assignalou-me preci-
samente o lugar onde estão. Estes tres sonhos , ao que
me parece, são consequentes e nada teem de equivoco,
nenhuma circumstancia que seja contradictoria . Apesar
de tudo isto podem ser chimericos ; todavia mais estimo
fazer uma diligencia baldada, do que arguir-me a mim
mesmo toda a minha vida, de ter talvez desprezado
grandes riquezas por causa da minha incredulidade ».
Proferidas estas palavras sahiu do quarto da rainha,
pediu uma enxada e entrou só no gabinete do defunto
rei ; pôz -se a cavar, e levantou mais da metade do la-
drilho sem perceber a menor apparencia de thesouro.
Largou a obra para descançar um instante, dizendo com-
sigo : « Parece-me que minha mãi tinha razão em mofar
de mim ». Comtudo tomou animo e continuou o seu tra-
balho. Não teve motivo para arrepender-se ; descobriu
de repente uma pedra branca que levantou e debaixo
achou uma porta na qual estava escondido um cadeado
de aço. Quebrou-o ás enxadadas, e abriu a porta que co-
bria uma escada de marmore branco. Accendeu logo uma
tocha e desceu por uma escada a um quarto revestido de
porcelana da China, e cujos forros eram de crystal . Po-
rém applicou-se particularmente a examinar quatro es-
trados , sobre cada um dos quaes havia dez urnas de
porphyro. Imaginou que estavam cheias de vinho . < « Bom,
disse elle, este vinho deve ser muito velho. Não duvido
que seja excellente ». Chegou-se a uma d'estas urnas , ti-
rou a tampa e viu com tanto pasmo como alegria que
estava cheia de peças d'ouro . Visitou as quarenta urnas
uma após outra, e achou-as cheias de sequins. Tomou
uma mão cheia d'elles, que levou á rainha .
Ficou esta princeza mais pasmada do que podemos
imaginar, quando ouviu a relação que o rei lhe fez de
tudo o que vira . « Filho meu , clamou ella, tomai muito
sentido em não gastar loucamente todos esses bens , co-
188 AS MIL E UMA NOITES

mo já fizestes com os do thesouro real. Que vossos ini-


migos não tenham tamanho motivo de se alegrar.
Não, senhora, respondeu Zeyn ; viverei de hoje em dian-
te d'um modo que não vos dará senão gosto > ».
Pediu a rainha a seu filho que a levasse a esse ad-
miravel subterraneo que o defunto rei seu marido man-
dára fazer tanto ás escondidas, que nunca ouvira fallar
d'elle. Levou-a Zeyn ao gabinete, ajudou-a a descer a es-
cada de marmore , e a fez entrar no quarto onde esta-
vam as urnas. Rebuscou ella tudo com curiosidade, e viu
a um canto uma pequena urna da mesma materia que
as outras. Não a tinha ainda examinado o principe . Pe-
gou n'ella, e tendo-a aberto achou dentro uma chave
d'ouro. « Filho, disse então a rainha, esta chave fecha
sem duvida algum novo thesouro . Busquemos por toda
a parte. Vejamos se não descobriremos a que uso é des-
tinada » .
Examinaram o quarto com summa attenção e acha-
ram finalmente uma fechadura no meio d'uma parede.
Julgaram que serviria n'ella a chave que tinham . Fez
logo o rei o ensaio . Abriu-se de repente uma porta e
lhes deixou ver outro quarto, no meio do qual havia no-
ve pedestaes d'ouro maciço, dos quaes oito sustentavam
cada qual uma estatua feita d'um só diamante, e es-
tas estatuas brilhavam tanto que o quarto estava alu-
miado.
< Ó céos ! clamou Zeyn todo pasmado ; aonde pôde
«
meu pai achar tão bellas cousas ?» Admirou -o ainda mais
o nono pedestal, pois havia em cima uma peça de setim
branco na qual estavam escriptas estas palavras : Meu
rico filho, estas oito estatuas me deram muito trabalho
a adquirir; mas por maior que seja a sua belleza, sa-
be que ha uma nona no mundo que as excede. Mais
vale ella só que mil como as que estaes vendo . Se dese-
jas possuil-a vai á cidade do Cairo no Egypto . Lá está
um de meus antigos escravos, chamado Mobarec ; não
terds trabalho algum em descobril-o . A primeira pessoa
que encontrares te ensinará a sua casa. Vai ter com
elle e dize lhe tudo o que te aconteceu . Conhecer-te-ha
por meu filho, e levar-te-ha ao lugar onde está essa ma-
CONTOS ARABES 189

ravilhosa estatua, que adquirirds mesmo d custa da


propria vida.
Depois de ter o principe lido estas palavras, disse á
rainha : <« Não quero deixar de possuir esta nona estatua.
Deve ser uma peça muito rara , visto que estas todas jun-
tas não a valem . Vou partir para o Grão-Cairo . Espero ,
senhora, que não vos opporeis à minha resolução . -
Não , filho, respondeu a rainha , não me opponho . Estaes
sem duvida debaixo da protecção do nosso grande pro-
pheta. Não permittirá que pereçaes n'essa viagem . Parti
quando quizerdes . Vossos visires e eu governaremos bem
o estado na vossa ausencia » . Mandou o principe aprom-
ptar o seu trem, porém não quiz levar comsigo senão
um pequeno numero de escravos .
Não lhe aconteceu mal algum na jornada . Foi ter ao
Cairo, onde pediu novas de Mobarec. Disseram -lhe que
era um dos mais ricos homens da cidade , que se tratava
como um grande senhor , e que a sua casa estava aber-
ta particularmente aos estrangeiros . Lá se encaminhou
Zeyn. Bateu á porta. Abriu-lh'a um escravo, que lhe dis-
se : «Que quereis e quem sois ? - Sou estrangeiro , res-
pondeu o principe. Ouvi fallar da generosidade do se-
nhor Mobarec, e venho alojar-me em sua casa ». Rogou
o escravo a Zeyn que esperasse um instante, e foi dizer
isto a seu amo, que lhe ordenou que mandasse entrar o
estrangeiro. Voltou o escravo á porta e disse ao princi-
pe : « Sede bem vindo » .
Entrou então Zeyn , atravessou um grande pateo e
passou a uma sala magnificamente adornada, onde Mo-
barec o esperava, o recebeu com muita cortezia e lhe
agradeceu a honra que lhe fazia de querer tomar aloja-
mento em sua casa . O principe , depois de ter correspon-
dido a este comprimento, disse a Mobarec : « Eu sou filho
do defunto rei de Balsora, e chamo-me Zeyn Alasnam . —
Esse rei, disse Mobarec, foi n'outro tempo meu amo ;
mas, senhor, não lhe conheci filho algum . Que idade
tendes ? - Tenho vinte annos, respondeu o principe .
-
Quantos ha que deixastes a côrte de meu pai ? Ha qua-
si vinte e dous, disse Mobarec . Porém como me persua-
direis que sois seu filho ? -Meu pai, replicou Zeyn, ti-
190 AS MIL E UMA NOITES

nha no seu gabinete um subterraneo , no qual achei qua-


-
renta urnas de porphyro todas cheias d'ouro . E que
mais ha ainda ? replicou Mobarec. - Ha, disse o princi-
pe, nove pedestaes d'ouro maciço ; sobre oito ha oito es-
tatuas de diamantes, e sobre o nono uma peça de se-
tim branco, na qual escreveu meu pai o que devo fa-
zer para adquirir uma nova estatua mais preciosa que
as outras juntas . Vós sabeis o lugar onde está essa es-
tatua, porque está escripto no setim que lá me leva-
reis >>.
Apenas proferiu estas palavras , Mobarec se lançou a
seus pés, e beijando-lhe uma das mãos repetidas vezes :
« Dou graças a Deus, clamou elle, de vos ter mandado
<
vir aqui . Conheço-vos pelo filho do rei de Balsora. Se
quereis ir ao lugar onde está a estatua maravilhosa,
acompanhar-vos-hei lá ; mas deveis primeiro descançar
aqui alguns dias. Dou hoje um banquete aos grandes do
Cairo. Estavamos á mesa quando me vieram dar parte
da vossa chegada. Desdenhareis, senhor, vir-vos diver-
tir comnosco ? -Não, respondeu Zeyn ; estimarei muito
participar do vosso banquete » . Levou-o logo Mobarec de-
baixo d'um zimborio onde estava a companhia. Mandou-o
assentar á mesa, e principiou a servil-o de joelhos . Fica-
ram admirados os grandes do Cairo, e diziam em voz
baixa uns aos outros : « Oh ! quem será este estrangeiro
a quem Mobarec serve com tanto respeito ? >>
Depois de terem comido tomou Mobarec a palavra :
« Grandes do Cairo, não vos cause admiração o ter-me
visto servir d'esta sorte este joven estrangeiro . Sabei
que é o filho do rei de Balsora meu amo. Comprou-me
seu pai com seu proprio dinheiro . Morreu sem ter-me
dado liberdade . Assim sou ainda escravo, e por conse-
guinte todos os meus bens pertencem de direito a este
joven principe, seu unico herdeiro » . Interrompeu-o Zeyn
n'este lugar: « Mobarec, disse-lhe, declaro perante todos
estes senhores, que estaes livre desde este instante, e
que diminuo de meus haveres a vossa pessoa com tudo
o que possuis. Além d'isso, vêde o que desejaes que vos
dé ». Ouvido isto beijou Mobarec o chão e deu grandes
agradecimentos ao principe. Trouxeram depois vinho. Be-
CONTOS ARABES 191

beram todo o dia ; e pela tarde foram os presentes dis-


tribuidos aos convidados que se retiraram .
No dia seguinte disse Zeyn a Mobarec : « Já descancei
bastante. Não vim ao Cairo para passar o tempo em di-
vertimentos ; desejo possuir a nona estatua. E tempo de
partir para ir buscal-a.- Senhor, respondeu Mobarec ,
estou prompto a ceder á vossa vontade ; mas ignoraes
todos os perigos que é preciso correr para alcançal-a .
Por maior que seja o perigo, replicou o principe , resol-
vi arrostal-o. Perecerei ou conseguil-a-hei . Tudo o que
acontece é Deus que o faz acontecer. Acompanhai-me só-
mente, e que seja igual à minha a vossa constancia » .
Vendo-o Mobarec determinado a partir, chamou seus
criados e lhes ordenou que apromptassem as equipagens.
Logo depois fizeram o principe e elle a ablução e oração
do preceito, chamada Farz, o que feito puzeram-se a ca-
minho. Observaram na sua jornada uma infinidade de
cousas raras e maravilhosas. Andaram muitos dias , e
chegando depois a um sitio delicioso apearam- se. Disse
então Mobarec a todos os criados que os seguiam : « Dei-
xai-vos ficar aqui e guardai cuidadosamente as equipa-
gens até à nossa volta ». Disse depois a Zeyn : «Vamos,
senhor, e adiantemo-nos sós . Estamos perto do lugar ter-
rivel onde se guarda a nona estatua . Logo precisareis da
vossa coragem » .
Chegaram á borda d'um grande lago. Assentou-se
Mobarec na ribeira e disse ao principe : « É preciso pas-
sar este rio . Como poderemos passal-o ? respondeu
Zeyn ; não temos batel . - Vereis apparecer um n'um ins-
tante, replicou Mobarec. O batel encantado do rei dos
genios virá tomar-nos ; mas não vos esqueçaes do que
vou dizer-vos. Deve-se guardar profundo silencio . Não
digaes palavra ao remador. Por mais singular que vos
pareça a sua figura, por mais extraordinario que seja o
que possaes observar, não digaes cousa alguma ; pois
declaro-vos que se pronunciaes uma unica palavra quan-
do formos embarcados, submergir-se-ha o barco . - Sa-
berei muito bem calar-me , disse o principe . Basta pres-
crever-me o que devo fazer, e executal-o -hei com toda a
exactidão » .
192 AS MIL E UMA NOITES

Fallando assim , avistou logo no lago um batel feito


de madeira de sandalo vermelho . Tinha um mastro de
ambar fino com uma bandeirinha de setim azul . Não ha-
via n'elle senão um bateleiro, cuja cabeça se assemelha-
va á d'um elephante, e tinha o corpo da fórma do de um
tigre. Chegando-se o batel ao principe e a Mobarec, pe-
gou n'elles o bateleiro com a tromba um após outro, e
os pôz no seu batel . Passou-os depois para o outro lado
n'um instante . Pegou segunda vez n'elles com a tromba,
pôl-os na praia , e desappareceu com o barco.
<< Podemos agora fallar, disse Mobarec . A ilha onde
estamos é a do rei dos genios . Não ha outra semelhante
no mundo . Olhai para todas as partes, principe. Ha vi-
venda mais agradavel ? É sem duvida uma verdadeira
imagem d'esse lugar encantador , que Deus destina aos
fieis observadores da nossa lei . Vêde os campos esmalta-
dos de flôres e de todas as hervas odoriferas . Admirai
estas bellas arvores, cujas frutas deliciosas fazem dobrar
os ramos até ao chão . Gozai do prazer que devem cau-
sar estes cantos harmoniosos , que formam nos ares mil
passaros de especies desconhecidas nos outros paizes ».
Não podia Zeyn cançar-se de considerar a belleza das
cousas que o cercavam, e observava outras novas å pro-
porção que se internava na ilha.
Chegaram finalmente diante d'um palacio de finas es-
meraldas, cercado de um largo fosso, sobre cujas bordas
havia arvores tão altas , que cobriam com sua sombra
todo o palacio. Defronte da porta, que era d'ouro maci-
ço, havia uma ponte feita d'uma só concha de peixe,
ainda que tivesse pelo menos seis toezas de comprido e
tres de largo. Via-se à entrada da ponte uma legião de
genios de altura desmedida, que defendiam a entrada do
castello com grossas maças d'aço da China .
«Não passemos mais adiante, disse Mobarec, desan-
car-nos-hiam, estes genios ; e se queremos impedil-os
que se cheguem a nós, é preciso fazer uma ceremonia
magica ». Ao mesmo tempo tirou de uma bolsa, que tra-
zia debaixo do seu vestido, quatro tiras de tafetá ama-
rello . Com uma cingiu a cintura e pûz outra sobre as
costas. Deu as duas outras ao principe que d'ellas fez o
CONTOS ARABES 193

mesmo uso, depois do que estendeu Mobarec no chão


duas grandes toalhas, em cujas bordas espalhou algumas
pedrarias com almiscar e ambar . Assentou-se depois so-
bre uma d'estas toalhas, e assentou-se Zeyn sobre a ou-
tra. Fallou então Mobarec n'estes termos ao principe :
« Senhor, vou presentemente conjurar o rei dos genios,
que habita o palacio que estamos vendo. Oxalá venha ter
comnosco sem cólera . Confesso-vos que estou inquieto
ácerca da recepção que nos fará . Se a nossa chegada á
sua ilha lhe desagrada, apparecerá debaixo da figura
d'um monstro horrendo ; mas se approva o vosso inten-
to, mostrar-se-ha debaixo da fórma d'um homem de boa
figura. Logo que se nos apresentar, será preciso levan-
tar-vos e saudal-o sem sahir de cima da vossa toalha ,
porque perecerieis infallivelmente se sahisseis d'ella . Dir-
The-heis : « Soberano senhor dos genios : meu pai , que
era vosso criado, foi levado pelo anjo da morte. Possa
vossa magestade proteger-me como protegeu sempre a
meu pai ». E se o rei dos genios, acrescentou Mobarec,
vos perguntar que graça quereis que vos conceda, res-
ponder-lhe-heis : « Senhor, é a nona estatua que vos
supplico com toda a humildade que me deis » >.
Mobarec, depois de ter instruido assim o principe
Zeyn, principiou a fazer conjurações . Fusilou de repente
um relampago, que foi seguido de um trovão ; cobriu- se
toda a ilha de espessas trevas ; levantou -se um vento fu-
rioso ; ouviu-se depois um grito espantoso ; abalou-se a
terra, e sentiu-se um terremoto semelhante ao que As-
rafyel deve causar no dia de juizo .
Sentiu Zeyn alguma commoção, e principiava a tirar
d'este estrondo muito maus auspicios, quando Mobarec,
que sabia melhor que elle o que devia pensar, pûz-se a
sorrir e lhe disse : « Socegai, meu principe, tudo vai
bem ». Com effeito, no mesmo instante o rei dos genios
se deixou vêr debaixo da fórma de um bello homem.
Não deixava todavia de ter no seu semblante alguma
cousa de feroz .
Apenas o viu o principe Zeyn, logo lhe fez o compri-
mento que Mobarec lhe dictára. Sorriu-se o rei dos ge-
nios e respondeu : «Filho meu, amava sinceramente teu
TOMO III. 13
194 AS MIL E UMA NOITES

pai ; e todas as vezes que vinha tributar-me os seus res-


peitos, fazia-lhe presente d'uma estatua , que levava com-
sigo. Não te tenho menos amizade a ti. Obriguei teu pai,
alguns dias antes de morrer, a escrever o que lêste so-
bre a peça de setim branco. Prometti-lhe tomar-te de-
baixo da minha protecção , e de dar-te a nona estatua ,
que excede em belleza as que possues. Conservei a mi-
nha palavra. Eu sou quem tu viste em sonho debaixo da
figura d'um velho . Mandei descobrir-te o subterraneo,
onde estão as urnas e as estatuas. Tenho muita parte
em tudo o que te aconteceu , ou , para melhor dizer , sou
a causa de tudo isso . Sei o que te obrigou a vir aqui.
Conseguirás o que desejas. Ainda que não tivesse pro-
mettido a teu pai que t'a daria, concedo-t'a de boa von-
tade ; mas deves primeiro jurar-me, por tudo o que tor-
na inviolavel um juramento, que voltarás a esta ilha e
me trarás uma donzella que tenha só quinze annos e
nunca conhecesse homem algum, nem deseje conhecel -o.
Importa além d'isso que a sua belleza seja perfeita, e
que tu sejas tão senhor de ti que não tenhas o minimo
desejo de possuil-a , trazendo -m'a ».
Fez Zeyn o tremendo juramento que exigiam d'el-
le. « Senhor, disse depois , suppondo que serei tão ventu-
roso que encontre uma donzella como desejaes, como po-
derei saber que a tenho achado ? -Confesso, respondeu
o rei dos genios sorrindo , que n'isso poderias enganar-te,
quanto á physionomia . Não é dado esse conhecimento aos
filhos de Adão . Assim não é minha intenção reportar- me
a ti. Dar-te-hei um espelho, que será mais seguro que
todas as tuas conjecturas . Logo que vires uma donzella
de quinze annos perfeitamente bella, basta olhar para o
teu espelho e n'elle verás a imagem d'essa donzella. O
vidro do espelho conservar-se-ha puro e limpo , se a don-
zella é casta ; e se, pelo contrario, o vidro se mancha,
será isso um signal evidente de que não terá sido sem-
pre bem procedida, ou ao menos que terá desejado ces-
sar de o ser. Não te esqueça o juramento que me fizes-
te. Guarda-o como homem honrado ; senão, tirar-te-hei a
vida ». O principe Zeyn Alasnam protestou novamente
que guardaria exactamente a sua palavra.
CONTOS ARABES 195

Deu-lhe então o rei dos genios um espelho, dizendo :


<< Filho, pódes voltar quando quizeres . Eis-aqui o espelho
de que te deves servir ». Zeyn e Mobarec despediram - se
do rei dos genios e puzeram- se a caminho para o lago.
O bateleiro com cabeça de elephante chegou- se a elles
com o seu barco e os tornou a passar do mesmo modo
que os levára. Foram reunir- se ás pessoas da sua comi-
tiva, com as quaes voltaram para o Cairo. Descançou o
principe Alasnam alguns dias em casa de Mobarec, e de-
pois disse-lhe : « Partamos para Bagdad . Vamos procurar
uma donzella para o rei dos genios . - Oh ! não estamos
no Grão- Cairo ? respondeu Mobarec ; não acharemos n'el-
le bellas donzellas ? -Tendes razão, replicou o principe ;
mas como faremos para descobrir os lugares onde estão ?
-Não vos dé isso cuidado , senhor, replicou Mobarec : co-
nheço uma velha muito habilidosa . Encarregal-a- hei d'es-
sa commissão. Desempenhal -a-ha muito bem ».
Com effeito teve a velha a habilidade de mostrar ao
principe um grande numero de bellissimas donzellas de
quinze annos ; mas quando, depois de as ter examinado ,
ia consultar o seu espelho, a fatal pedra de toque da sua
virtude, manchava-se sempre o vidro . Todas as donzellas
da côrte e da cidade que se achavam nos seus quinze
annos, foram examinadas uma por uma, e jámais o vi-
dro se conservou puro e limpo .
Vendo que não podiam achar donzellas castas no
Cairo, foram a Bagdad . Alugaram um palacio magnifico
n'um dos melhores bairros da cidade. Principiaram a le-
var boa vida. Tinham mesa franca, e depois de toda a
gente ter jantado no palacio, levavam os sobejos aos der-
viches, que com isto passavam commodamente .
N'esse tempo havia no bairro um Iman chamado Bou-
bekir Muezin . Era homem vaidoso, soberbo e invejoso .
Aborrecia os homens ricos só porque era pobre . A sua
miseria o exasperava contra a prosperidade do seu pro-
ximo. Ouviu fallar de Zeyn Alasnam e da abundan-
cia que reinava em sua casa . Bastou isto para ter aver-
são a este principe. Levou a cousa a tal excesso, que um
dia, na sua mesquita, disse ao povo, depois da oração
da tarde: << Meus irmãos, ouvi dizer que veio morar no
AS MIL E UMA NOITES
196
nosso bairro um estrangeiro que gasta todos os dias som-
mas immensas ! Quem sabe ! é talvez este desconhecido
algum malvado , que roubou no seu paiz cabedaes im-
mensos , e vem a esta grande cidade gastal -os e diver-
tir-se ! Tomemos sentido n'isto , meus irmãos ; se o cali-
fa sabe que ha um homem d'esta qualidade no nosso
bairro , é de recear que nos castigue por não o termos
avisado . Quanto a mim , declaro - vos que d'isso lavo as
mãos , e que se acontecer algum mal não serei eu o cul-
pado ». O povo , que se deixa facilmente persuadir , cla-
mou em voz unanime a Boubekir : « Isso vos pertence ,
doutor ; fazei constar isso ao conselho » . Então satisfeito
o Iman recolheu -se a sua casa, e pûz -se a compôr um me-
morial , resolvido a apresental -o no dia seguinte ao califa .
Porém Mobarec, que assistira á oração e que ouvira ,
como os outros , o discurso do doutor, metteu quinhen-
tos sequins d'ouro n'um lenço , fez um embrulho de al-
guns estofos de séda , e foi ter a casa de Boubekir . Per-
guntou-lhe o doutor de um modo arrebatado o que de-
sejava. « Doutor , respondeu -lhe Mobarec com palavras
brandas e pondo -lhe nas mãos o ouro e os estofos ; eu
sou vosso visinho e criado : venho da parte do principe
Zeyn, que mora n'este bairro . Ouviu fallar do vosso me-
recimento e encarregou -me de dizer- vos que desejava tra-
var conhecimento comvosco . Entretanto , rogo -vos que
aceiteis este pequeno presente ». Ficou Boubekir trans-
portado de alegria , e respondeu a Mobarec : « Pelo amor
de Deus, desculpai -me para com o principe , estou extre-
mamente envergonhado de o não ter ainda visitado ; mas
repararei o meu erro , e ámanhã mesmo irei cumprir o

meuCodevm er »eit
eff . o , no dia seguinte , depois da oração da
ma nh ã , disse ao povo : « Sabei , meus irmãos , que não ha
ninguem que não tenha os seus inimigos . A inveja acom-
mette principalmente os que não tem grandes cabedaes .
O estrangeiro de quem vos fallava hontem de tarde , não
é mau homem , como alguns mal intencionados quizeram
persuadir-me. É um joven principe , dotado de mil virtu-
des. Livremo -nos de dar d'elle alguma má informação ao

a
CONTOS ARABES 197

Tendo Boubekir com estas palavras apagado da lem-


brança do povo a opinião que déra de Zeyn na tarde pre-
cedente, voltou para sua casa . Enfiou seus vestidos de
ceremonia e foi visitar o joven principe, que o recebeu
muito agradavelmente . Feitos os comprimentos do costu-
me disse Boubekir ao principe : « Senhor, estaes determi-
nado a demorar-vos largo tempo em Bagdad ? - Demorar-
me-hei , respondeu-lhe- Zeyn, até ter achado uma donzel-
la de quinze annos, que seja perfeitamente bella e tão
casta , que nunca tenha conhecido homem algum , nem
desejado conhecel- o . -Buscaes uma cousa muito rara,
replicou o Iman ; e recearia muito ficar baldada a vossa
diligencia, se não soubesse onde ha uma donzella d'es-
se caracter. Seu pai foi n'outro tempo visir ; porém dei-
xou a côrte e mora ha muito tempo n'uma casa desvia-
da, onde se applica inteiramente à educação de sua filha.
Vou , senhor, sendo de vosso agrado , pedir-lh'a para vós ;
parece-me que levará a bem ter um genro tão illustre.
-Não vamos tão depressa, replicou o principe. Não ca-
sarei com essa donzella sem primeiro saber se me con-
vém. Quanto à sua belleza posso fiar-me de vós ; mas
quanto à sua virtude, quaes são as seguranças que po-
deis dar-me d'ella ? - E que seguranças quereis ? disse
Boubekir. - Importa que lhe veja o rosto, respondeu
Zeyn ; não quero ver mais para resolver-me . - Sois pois
grande conhecedor de physionomias ? replicou o Iman sor-
rindo- se . Pois então vinde commigo a casa de seu pai ;
pedir-lhe-hei que vol- a deixe vêr um instante na sua
presença ».
Acompanhou Muezin o principe a casa do visir, que in-
formado que foi do nascimento e da intenção de Zeyn
mandou chamar sua filha e ordenou que tirasse o véo.
Jámais belleza tão perfeita se apresentára aos olhos do
joven rei de Balsora . Ficou pasmado. Logo que pôde ex-
perimentar se esta donzella era tão casta como bella,
puxou pelo seu espelho e conservou-se o vidro puro e
limpo.
Quando viu que tinha finalmente achado uma pessoa
tal como desejava, rogou ao visir que lh'a concedesse.
Mandou-se logo chamar o cadi , que veio. Fez-se o con
198 AS MIL E UMA NOITES

tracto e a oração do casamento. Acabada a ceremonia ,


levou Zeyn o visir a sua casa, onde o banqueteou magni-
ficamente e lhe fez presentes avultados . Mandou depois
uma infinidade de joias à noiva por Mobarec, que lh'a
trouxe a casa, onde se celebraram as nupcias com toda
a pompa que convinha á dignidade de Zeyn. Tendo -se
toda a gente recolhido, disse Mobarec a seu amo : « Va-
mos, senhor, não nos demoremos mais tempo em Bag-
dad. Tomemos o caminho do Cairo. Não vos esqueça a
promessa que fizestes ao rei dos genios . -Partamos,
respondeu o principe, importa cumpril-a com fidelidade .
Confessar-vos-hei todavia, meu querido Mobarec, que se
obedeço ao rei dos genios, não é sem violencia . A pes-
soa com quem acabo de casar é encantadora, e tenho
minhas tentações de leval-a a Balsora para collocal -a
no throno. Ah ! senhor, replicou Mobarec ; livrai-vos
de ceder á vossa paixão . Vencei vossas inclinações ; e,
por mais que vos possa custar, guardai vossa palavra ao
rei dos genios. - Pois então, Mobarec, disse o principe ,
cuidai em occultar-me essa amavel donzella. Que nunca
em tempo algum appareça a meus olhos. Talvez já a
tenha visto mais do que devia ».
Mandou Mobarec fazer os preparativos para a parti-
da. Voltaram ao Cairo , e d'alli tomaram o caminho da
ilha do rei dos genios . Chegados que foram, a donzella
que fizera a viagem em liteira e que não vira o princi-
pe desde o dia das nupcias, disse a Mobarec : < « Em que
paiz estamos ? Chegaremos em breve aos estados do prin-
cipe meu esposo ? -Senhora, respondeu Mobarec, é tem-
po de desenganar-vos . O principe não vos deu a sua mão
senão para tirar- vos do poder de vosso pai . Não é para
fazer-vos soberana de Balsora que casou comvosco . É
para entregar-vos ao rei dos genios , que lhe pediu uma
donzella do vosso caracter ». Proferidas estas palavras ,
pôz-se a chorar amargamente, o que enterneceu o prin-
cipe e Mobarec. « Compadecei-vos de mim, dizia-lhes.
Sou uma estrangeira . A Deus dareis conta da traição
que me fizestes >> .
Foram suas lagrimas e queixas baldadas. Apresenta-
ram-a ao rei dos genios, que depois de a ter examinado
CONTOS ARABES 199

com attenção, disse a Zeyn : « Principe, estou satisfeito


comvosco. A donzella que me trouxestes é bella e casta ; '
e o esforço que fizestes para guardar-me a vossa pala-
vra agrada-me. Voltai para vossos estados . E quando en-
trardes no quarto subterraneo onde estão as oito esta-
tuas, lá achareis a nona que vos prometti . Vou mandal -a
transportar pelos meus genios » . Agradeceu Zeyn ao rei,
e tomou o caminho do Cairo com Mobarec. Todavia não
deixava de lembrar-se algumas vezes da donzella com
quem casára ; e lançando -se em rosto o engano que lhe
fizera, considerava-se como a causa e o instrumento da
sua desgraça. « Ai de mim ! dizia comsigo ; arrebatei- a
ás ternuras de seu pai para sacrifical-a a um genio . Ó
belleza sem par, merecieis melhor sorte ! >>
Occupado com estes pensamentos o principe Zeyn
chegou finalmente a Balsora, onde seus vassallos , arre-
batados de alegria de tornar a vél-o, ordenaram regosi-
jos publicos . Foi logo dar conta da sua viagem á rainha
sua mãi, que se alegrou muito sabendo que alcançára a
nona estatua. << « Vamos, filho, disse ella, vamos vêl- a,
pois está certamente no subterraneo , visto que o rei
dos genios vos disse que lá a achareis » . O joven rei e
sua mãi, ambos cheios de impaciencia de vêr esta esta-
tua maravilhosa, desceram ao subterraneo e entraram no
quarto das estatuas ; porém qual foi seu pasmo, quan-
do, em vez de uma estatua de diamantes , viram sobre o
nono pedestal uma donzella perfeitamente bella, que o
principe reconheceu pela que levára á ilha dos genios !
« Principe, disse- lhe a joven donzella, causa-vos muita
admiração o vêr-me aqui. Esperaveis achar alguma cou-
sa mais preciosa do que eu , e parece-me que n'este ins-
tante estaes arrependido de ter-vos dado tanto trabalho.
Esperaveis outra recompensa. Não , senhora, respon-
deu Zeyn ; só Deus sabe que mais de uma vez me lem-
brei de faltar á palavra que tinha dado ao rei dos ge-
nios para guardar- vos commigo. Por maior valor que
possa ter uma estatua de diamantes, não vale o gosto
de possuir-vos ; amo-vos mais que quantos diamantes e
riquezas possa haver no mundo »>.
Ao tempo em que acabava de fallar ouviu-se um tro-
200 AS MIL E UMA NOITES

vão que fez tremer o subterraneo. Assustou-se a mãi


de Zeyn : porém o rei dos genios , que appareceu logo,
dissipou o seu susto . « Senhora, disse -lhe, protejo e amo
a vosso filho. Quiz saber se na sua idade seria capaz de

www

W CM
A

domar as suas paixões . Bem sei que os encantos d'essa


joven creatura o abalaram, e que não observou exacta-
mente a promessa que me fizera de não desejar a sua
posse ; mas conheço muito bem a fragilidade da nature-
za humana para offender-me d'isso, e estou satisfeito da
sua discrição. Eis-ahi a nona estatua que lhe destinava.
CONTOS ARABES 201

É mais rara e mais preciosa que as outras . Vivei, Zeyn,


proseguiu elle dirigindo a falla ao principe, vivei feliz
com essa joven senhora ; é vossa esposa. E se quereis
que vos guarde uma fé pura e constante, amai-a sem-
pre, porém amai-a unicamente . Não lhe deis competido-
ra, e afianço a sua fidelidade » . Ditas estas palavras des-
appareceu o rei dos genios ; e enlevado na joven senho-
ra, consummou Zeyn o seu matrimonio logo no mesmo
dia, e a fez proclamar rainha de Balsora ; ambos estes es-
posos, sempre fieis, sempre amantes, viveram juntos an-
nos dilatados.
Apenas acabou a sultana das Indias a historia do prin-
cipe Zeyn, pediu logo licença para principiar outra ; o
que, tendo-lhe Schahriar concedido para a noite seguin-
te, porque não tardaria o dia a alvorecer, fez esta prin-
ceza a narração d'ella n'estes termos :

HISTORIA DE CODADAD

E DE SEUS IRMÃOS

Os que escreveram a historia do rei de Dyarbekir,


referem que na cidade de Harran reinava antigamente
um rei magnifico e poderoso . Não amava menos seus
vassallos do que era amado d'elles . Era dotado de mil
virtudes, e não lhe faltava , para ser perfeitamente feliz ,
senão um herdeiro. Ainda que tivesse no seu palacio as
mais bellas mulheres do mundo, não podia ter filhos . Pe-
dia-os incessantemente ao céo ; e uma noite, em quanto
gozava da suave sensação do somno, um homem de boa
feição, ou, para melhor dizer, um propheta lhe appare-
ceu e lhe disse : « As tuas orações foram escutadas ; con-
seguiste finalmente o que desejas : levanta-te , logo que
acordares, põe-te em oração e faze duas genuflexões ;
depois vai aos jardins do teu palacio, chama pelo teu
jardineiro e ordena-lhe que te traga uma roma ; come
d'ella quantos grãos quizeres e serão cumpridos os teus
votos » .
Quando o rei acordou, lembrando-se d'este sonho,
202 AS MIL E UMA NOITES

deu graças ao céo . Levantou -se, pôz -se em oração, fez


duas geneflexões e foi depois aos jardins, onde tomou
cincoenta grãos de romã, que contou um após outro, e
comeu. Tinha cincoenta mulheres que participavam do
seu leito. Acharam -se todas gravidas ; houve porém uma,
Pirouzé, cuja gravidez não appareceu . Concebeu alguma
aversão a esta senhora, e queria mandal-a matar. « A
sua esterilidade, dizia elle , é um signal certo de que o
céo não acha a Pirouzé digna de ser mãi de um princi-
pe. Deve-se purgar o mundo d'um objecto odioso ao Se-
nhor ». Formava esta cruel resolução ; mas desviou -o
d'isso o seu visir, representando-lhe que todas as mu-
lheres não eram do mesmo temperamento, e que não era
impossivel que Pirouzé estivesse tambem gravida ainda
que a sua gravidez não se declarasse ainda . « < Então , re-
plicou o rei, que viva, mas que deixe a minha corte,
pois não a posso encarar. — Que vossa magestade , repli-
cou o visir, a mande para casa do principe Samer, vos-
so primo ». Approvou o rei este parecer. Mandou Pirouzé
á Samaria com uma carta na qual ordenava a seu primo
que a tratasse bem ; e se estivesse gravida que lhe désse
aviso do seu parto.
Chegada que foi Pirouzé áquelle paiz percebeu que
estava pejada, e finalmente deu á luz um principe mais
bello que o dia. O principe de Samaria escreveu logo ao
rei de Harran participando-lhe o feliz nascimento d'este
filho e felicitando-o . Alegrou-se muito o rei, e deu uma
resposta ao principe Samer concebida n'estes termos :
Primo, todas as outras mulheres minhas deram tam-
bem á luz cada uma um principe, de sorte que temos
aqui um grande numero de filhos ; rogo-vos que crieis
o de Pirouzé, que lhe deis o nome de Codadad, e en-
viar-m'o-heis quando vol-o ordenar.
Nada poupou o principe de Samaria para a educação
de seu sobrinho. Mandou-lhe ensinar a arte de cavalgar
e atirar o arco e todas as outras cousas que convém
aos filhos de reis , de modo que Codadad aos dezoito an-
nos podia passar por um prodigio. Este joven principe,
sentindo em si um valor digno do seu nascimento, disse
um dia a sua mãi : « Senhora, principio a enfastiar-me
CONTOS ARABES 203

em Samaria. Sinto que amo a gloria. Permitti-me que vá


buscar occasião de adquiril - a nos perigos da guerra. O
rei de Harran meu pai tem inimigos . Querem alguns
principes seus visinhos perturbar o seu socego . Porque
não me chama em seu soccorro ? Porque me deixa na
infancia tanto tempo ? Não deveria eu já estar na sua
côrte ? Em quanto meus irmãos todos tem a felicidade de
combater a seu lado, devo eu passar aqui a minha vida
na ociosidade ? -Filho, respondeu -lhe Pirouzé , não te-
nho menos impaciencia que vós de ver vosso nome fa-
moso. Desejaria que vos distinguisseis já contra os ini-
migos do rei vosso pai, mas devemos esperar que elle
vos chame . - Não, senhora, replicou Codadad ; morro de
impaciencia por ver o rei, e tenho tentações de ir-lhe
offerecer os meus serviços como mancebo desconhecido .
Aceital- os-ha sem duvida , e não me darei a conhecer se-
não depois de ter obrado mil acções gloriosas. Quero me-
recer a sua estima antes que me reconheça » . Approvou
Pirouzé esta generosa resolução ; e receando que o prin-
cipe Samer se oppozesse a ella, Codadad, sem communi-
car-lh'a, sahiu um dia de Samaria , fingindo ir á caça.
Ia montado n'um cavallo que tinha o freio e ferradu-
ras d'ouro, uma sella com um teliz de setim azul , todo
semeado de perolas . Trazia um alfanje, cujo punho era
de um só diamante, e a bainha de pau de sandalo todo
guarnecido de esmeraldas e rubins. Levava aos hombros
a sua aljava e o seu arco ; e com este trem, que realça-
va maravilhosamente a sua boa figura, chegou á cidade
de Harran. Achou depressa o meio de fazer-se apresen-
tar ao rei, que enlevado da sua belleza, do seu talhe
vantajoso ou talvez levado da força do sangue, lhe fez
um acolhimento favoravel e lhe perguntou seu nome e
sua qualidade . « Senhor, respondeu Codadad, sou filho
d'um emir do Cairo. O desejo de viajar me fez deixar a
minha patria. E como soube, passando por vossos esta-
dos, que estaveis em guerra com vossos visinhos, vim
á vossa côrte para offerecer meu braço a vossa mages-
tade ». O rei acariciou-o muito e o empregou nas suas
tropas.
Não tardou muito este joven principe a assignalar - se
204 AS MIL E UMA NOITES

pelo seu valor. Grangeou a estima dos officiaes, excitou


a admiração dos soldados, e como a sua capacidade não
fosse inferior ao seu valor, ganhou tambem a benevo-
lencia do rei, chegando a ser seu valido. Todos os dias
os ministros e os outros cortezãos não faltavam a ir vi-

www

sitar a Codadad ; e procuravam com tanto empenho a


sua amizade, que se descuidavam da dos outros filhos
do rei. Não puderam estes jovens principes vêr isto sem
entristecer-se ; e culpando o estrangeiro, conceberam to-
dos contra elle um odio extremo. Todavia, amando-o o
rei cada vez mais, não cessava de dar-lhe demonstrações
do seu affecto. Queria tel-o sempre comsigo. Admirava
seus discursos cheios de espirito e sabedoria , e para ma-
CONTOS ARABES 205

nifestar até que ponto o tinha por sabio e prudente , con-


fiou-lhe a direcção dos outros principes, ainda que fossem
da sua mesma idade , de modo que Codadad era o aio de
seus irmãos.
Isto exasperou ainda mais o seu odio. « Como ! dis-
seram elles ; não se contenta o rei d'amar um estrangei-
ro mais que a nós, quer ainda que seja nosso aio e que
nada obtenhamos sem sua licença ! Não devemos aturar
isto. Importa-nos dar cabo d'este estrangeiro . — Não é
preciso, dizia um, senão ir procural - o todos juntos e de-
sancar-lhe o corpo ás bordoadas . -Não, não , dizia ou-
tro, guardemo-nos de o fazermos nós mesmos. A sua
morte nos tornaria odiosos ao rei , que para castigar- nos
declarar-nos-hia a todos indignos de reinar. Percamos o
estrangeiro com subtilezas . Peçamos-lhe licença d'ir á
caça ; e, quando estivermos longe do palacio, tomaremos
o caminho d'alguma cidade, aonde iremos passar algum
tempo . A nossa ausencia dará cuidado ao rei, que não
nos vendo voltar, impacientar-se -ha e fará talvez pere-
cer o estrangeiro . Expulsal-o -ha ao menos da sua côrte ,
por nos ter permittido sahir do palacio >> .
Applaudiram todos os principes este artificio. Foram
ter com Codadad e rogaram-lhe permittisse que se fossem
divertir á caça, promettendo-lhe de voltar no mesmo dia.
Cahiu no laço o filho de Pirouzé e concedeu a licença
que seus irmãos lhe pediam. Partiram e não voltaram .
Havia já tres dias que estavam ausentes, quando o rei
disse a Codadad : « Onde estão os principes ? ha já muito
tempo que não os vi . - Senhor, respondeu elle , depois
de ter feito uma profunda reverencia ; foram á caça ha
tres dias. Tinham-me promettido que voltariam logo » .
Deu isto cuidado ao rei e augmentou o seu desassocego
quando viu que no dia seguinte os principes ainda não
appareciam . Não pôde conter a sua cólera : « < Impruden-
te estrangeiro ! disse a Codadad ; não devias deixar partir
meus filhos sem acompanhal-os . Assim é que desempe-
nhas o emprego que te dei ? Vai buscal-os já e tra-
ze-m'os, senão é certa a tua ruina » .
Estas palavras assustaram em extremo o desgraçado
filho de Pirouzé . Pegou nas suas armas e montou apres-
206 AS MIL E UMA NOITES

sadamente a cavallo . Sahe da cidade ; e, como um pas-


tor que perdeu o seu rebanho, procura por todas as par-
tes os seus irmãos pelo campo, informa-se em todas as
aldeas se não os viram, e não tendo d'elles nova algu-
ma entrega-se à maior afflicção. « Ah, meus irmãos ! cla-
mou elle ; que será feito de vós ? serieis présa de nos-
sos inimigos ? Não teria eu vindo á côrte de Harran se-
não para causar ao rei um desgosto tão sensivel ? » Es-
tava inconsolavel por ter permittido aos principes ir á
caça, e não tel-os acompanhado.
Passados alguns dias empregados em procurar debal-
de os principes, chegou a uma planicie de extensão pro-
digiosa ; havia no meio um palacio construido de mar-
more preto ; chega- se a elle e vê a uma janella uma se-
nhora perfeitamente bella, porém sem outro enfeite que
a belleza ; pois tinha os cabellos soltos , rasgados os ves-
tidos, e divisavam-se no seu rosto todos os signaes de
grande afflicção. Logo que avistou Codadad e julgou que
podia ouvil-a, dirigiu-lhe estas palavras : «Mancebo , afas-
ta-te d'este palacio funesto, aliás vér-te-has logo em po-
der do monstro que o habita. Um negro, que não se ce-
va senão em sangue humano, faz aqui a sua residencia .
Prende todos os que a sua má fortuna faz passar por es-
ta planicie, e fecha-os em escuros calabouços d'onde não
os tira senão para devoral-os. Senhora, respondeu - lhe
Codadad , dizei-me quem sois e não vos dê cuidado o res-
to . - Sou filha de gente nobre do Cairo, replicou a
senhora ; passava hontem perto d'este castello para ir a
Bagdad ; encontrei o negro que matou todos os meus
criados e me trouxe para aqui . Desejaria não ter que te-
mer senão a morte ; porém, por maior desgraça, quer
este monstro violentar-me, e se amanhã não me rendo sem
esforço à sua brutalidade , devo esperar pelos mais crueis
tormentos . Ainda uma vez, foge, não tardará o negro a
voltar. Sahiu para ir no alcance de alguns viajantes que
avistou ao longe na planicie . Não tens tempo que per-
der , e não sei se poderás escapar-lhe » .
Proferidas que foram estas palavras appareceu o ne-
gro. Era homem de grandeza desproporcionada e de sem-
blante horrendo. Montava um possante cavallo da Tarta-
CONTOS ARABES 207

ria, e trazia uma cimitarra tão larga e pesada, que só


elle podia servir-se d'ella. Vendo- o o principe, ficou pas-
mado da sua estatura monstruosa. Dirigiu-se ao céo para
pedir-lhe que o favorecesse ; puxou então pelo alfange
e esperou a pé firme o negro, que desprezando tão fra-
co inimigo lhe intimou que se rendesse sem combate ;
mas Codadad mostrou pela sua firmeza que queria defen-
der a sua vida , pois se chegou a elle e o feriu forte-
mente no joelho . Sentindo-se o negro ferido deu um gri-
to tão espantoso, que resoou por toda a planicie. Enfu-
rece-se, escuma de raiva, levanta-se nos estribos e quer
ferir a Codadad com a sua tremenda cimitarra . Foi o
golpe, dado com tanta força, que teria partido pelo meio
o joven principe se não tivesse a destreza de evital- o ,
obrigando o seu cavallo a fazer um movimento . A cimi-
tarra zuniu no ar com a força do golpe . Então , antes
que o negro tivesse tempo de dar segundo golpe, des-
carregou-lhe Codadad um no braço direito com tanta for-
ça, que lh'o cortou . A terrivel cimitarra cahiu com a mão
que a segurava ; e o negro, cedendo logo á violencia do
golpe, perdeu os estribos e fez echoar na terra o ruido da
sua queda. Ao mesmo tempo apeou- se o principe, lan-
cou-se ao seu inimigo e lhe cortou a cabeça . N'este ins-
tante a senhora, cujos olhos foram testemunhas d'este
combate e que dirigia ainda ao céo votos ardentes pelo
heroe que ella admirava, deu um grito de alegria e dis-
se a Codadad : « Principe (pois a custosa victoria que aca-
baes de alcançar me persuade, tanto como vosso ar no-
bre, que não deveis ser de condição commum) , acabai
a vossa obra : o negro tem as chaves d'este castello . To-
mai-as e vinde soltar-me da prisão » . Buscou o principe
nas algibeiras do miseravel que estava estendido no chão,
e n'ellas achou muitas chaves .
Abriu a primeira porta e entrou n'um grande pateo,
onde encontrou a senhora que vinha ao seu encontro ;
quiz ella lançar-se a seus pés para mostrar-lhe melhor
o seu reconhecimento, mas impediu-a. Louvou o seu va-
lor e o elevou acima de todos os heroes do mundo. Res-
pondeu elle aos comprimentos ; e como lhe pareceu ain-
da mais amavel de perto que de longe, não sei se sentia
208 AS MIL E UMA NOITES

alegria por vêr-se livre do horroroso perigo em que es-


tivera, do que elle por ter feito este importante serviço
a uma senhora tão bella.
Foram suas palavras interrompidas com gritos e ge-
midos . « Que ouço ? clamou Codadad . D'onde partem es-
tas vozes lamentaveis, que atordoam nossos ouvidos ?
Senhor, disse ella mostrando-lhe com o dedo uma porta
baixa que estava no pateo ; véem d'aquelle lugar. Ha alli
não sei quantos desgraçados que a sua má estrella fez
cahir nas mãos do negro. Estão todos presos com cadeas ,
e cada dia tirava este monstro um para comel-o . - Au-
gmenta o meu contentamento, replicou o joven principe ,
saber que a minha victoria salva a vida a estes desafor-
tunados. Vinde, senhora, vinde commigo participar do
gosto de dar-lhes a sua liberdade . Podeis julgar vós
mesma da satisfação que vamos causar-lhes ». Ditas es-
tas palavras, chegaram-se á porta do calabouço . Á pro-
porção que se aproximavam, ouviam mais distinctamen-
te os lamentos dos presos, que causavam grande dûr a
Codadad. Impaciente por dar fim aos seus trabalhos , met-
te apressadamente uma das chaves na fechadura . Não
acertou logo com a que servia : mette outra ; e com o
ruido que faz , todos estes infelizes, persuadidos que é o
negro que vem, conforme o seu costume, trazer-lhes de
comer e ao mesmo tempo agarrar um de seus compa-
nheiros, deram ainda maiores gritos e gemidos . Ouviam-
se vozes lamentaveis que pareciam sahir do centro da
terra .
Comtudo, este principe abriu a porta e achou uma
escada mui ingreme, por onde desceu a uma vasta e
profunda casa subterranea que recebia uma fraca luz por
um respiradouro, e onde havia mais de cem pessoas pre-
sas a estacas com as mãos atadas. « Infelizes viajantes !
disse-lhes ; miseraveis victimas que não esperaes senão
o instante d'uma morte cruel, dai graças ao céo, que vos
solta hoje com a ajuda do meu braço. Matei o horrivel
negro que devia devorar-vos , e venho quebrar vossas
cadéas ». Apenas ouviram os presos estas palavras, logo
levantaram todos juntos clamores de pasmo e de alegria.
Codadad e a senhora principiaram a desatal-os, e á pro-
CONTOS ARABES 209

porção que os desatavam, os que se viam soltos de suas


cadeas ajudavam a desatar os outros , de modo que em
pouco tempo foram todos soltos.
Puzeram -se então de joelhos ; e, depois de terem
agradecido a Codadad o que acabava de fazer em bene-
ficio d'elles todos, sahiram da casa subterranea ; e, estan-
do no pateo, ficou em extremo pasmado o principe de
vêr, por entre estes presos, os seus irmãos que procu-
rava e que não esperava achar. « Ah ! principes, clamou
elle vendo- os ; não me engano eu ? Sois na realidade vós
que estou vendo ? Posso lisonjear-me que poderei resti-
tuir-vos ao rei vosso pai, que está inconsolavel de vos
ter perdido ? Porém não terá que chorar nenhum ? Estaes
todos com vida ? Ai de mim ! a morte d'um só basta pa-
ra perturbar a alegria que tenho de vos ter salvado ! »
Deram-se a conhecer os quarenta e nove principes a
Codadad, que os abraçou um após outro, e noticiou-lhes
o desassocego que a sua ausencia causava ao rei. Deram
ao seu libertador todos os louvores que merecia, assim
como os mais presos, que não podiam achar termos pro-
prios, segundo o seu desejo, para manifestar-lhe todo o
reconhecimento que lhe deviam. Fez depois Codadad com
elles a visita do castello, onde havia riquezas immensas ,
panos finos , brocados d'ouro, tapetes da Persia, setins
da China e uma infinidade de outras fazendas que o ne-
gro roubára ás caravanas que acommettera, e cuja maior
parte pertencia aos presos que Codadad acabava de
soltar. Cada um reconheceu o que era seu e o reclamou .
Mandou o principe que tomassem conta de seus fardos ou
trouxas, e repartiu entre elles o resto das fazendas . Dis-
se-lhes depois : « Como fareis para levar vossos estofos ?
Estamos aqui n'um deserto, e não ha modo de achar ca-
vallos. - Senhor, respondeu um dos presos, o negro nos
roubou nossos camêlos juntamente com as nossas fazen-
das ; talvez estejam nas estrebarias d'este castello . - Is-
so não é impossivel, replicou Codadad ; importa averi-
guar isso » . Ao mesmo tempo foram ás estrebarias , onde
não só acharam os camêlos dos mercadores mas tambem
os cavallos dos filhos do rei de Harran, o que causou
alegria a todos . Havia nas estrebarias alguns escravos
TOMO III.
AS MIL E UMA NOITES
21
pr 0et os e
, qu ve nd o todos os presos soltos , e á vista d'is-
to ju lg an do qu o negro fora morto , assustaram- se, e
e
fugiram por atalhos que lhe eram conhecidos . Não se
es de
tratou de alcançal - os. Satisfeitos todos os mercador
ter achado os seus camêlos e as suas fazendas com a
sua liberdade , dispuzeram-se a partir ; porém antes da
ntes ao seu liberta-
sua partida deram novos agradecime

Depois de terem partido , dirigindo Codadad a falla á


dor.
senhora , disse -lhe : « A que lugar , senhora , desejaes ir?
Aonde vos levavam vossos pés quando fostes apanhada
pelo negro ? Pretendo acompanhar-vos até ao lugar que
escolhestes para vosso retiro e creio que estes principes
estão na mesma resolução » . Os filhos do rei de Harran
protestaram á senhora que não a deixariam sem primei-

inal lant es
ro en Preg
«tr ci-pe sssse
a ,aodi e -lh elre
us e pa , so.u de um paiz muito re-
to
mo , e al ém d' is so seri abusar da vossa generosidade
a
obrigar-vos a fazer uma jornada semelhante ; confessar-
vos -hei que me ausentei para sempre da minha patria .
Já vos disse ha pouco que era natural do Cairo ; mas
vistas as obrigações que vos devo , acrescentou ella
olhando para Codadad , não teria desculpa alguma se vos
encobrisse a verdade . Sou filha de um rei . Apoderou -se
um usurpador do throno de meu pai depois de ter -lhe
tirado a vida , e para conservar a minha fui obrigada a
recorrer á fuga » . Feita esta confissão , Codadad e seus
irmãos pediram á princeza contasse a sua historia , pro-
testando -lhe que tomavam toda a parte possivel nas suas
desgraças , e que estavam dispostos a não poupar cousa
alguma para tornal - a mais feliz . Depois de lhes ter agra-
decido os novos offerecimentos que lhes faziam , não pô-
de dispensar -se de satisfazer a sua curiosidade . Princi-

piou assim a narração das suas aventuras :


CONTOS ARABES 211

HISTORIA

DA PRINCEZA DE DERYABAR

<< Havia n'uma ilha uma grande cidade chamada De-


riabar. Foi largo tempo governada por um rei poderoso,
magnifico e virtuoso . Não tinha filhos este principe , é
nada mais lhe faltava para a sua felicidade, Dirigia con-
tinuamente votos ao céo, mas o céo não os escutou intei-
ramente, pois a rainha sua mulher, depois de uma longa
espera, não deu á luz senão uma filha.
« Sou esta desgraçada princeza. Teve meu pai mais
pena do que alegria pelo meu nascimento, mas sujeitou-
se á vontade de Deus . Mandou-me crear com todo o cui-
dado imaginavel , resolvido, visto que não tinha filhos ,
a ensinar-me a arte de reinar e a deixar-me occupar o
seu lugar depois da sua morte.
« Um dia, que se divertia na caça, avistou um ju-
mento bravio. Foi no seu alcance, apartou -se do resto
da gente, e o seu ardor o levou tão longe, que sem
lembrar-se de que se desviava caminhou até anoitecer .
Apeou-se então e assentou-se à entrada d'um bosque em
que observára que o jumento tinha entrado . Apenas anoi-
teceu viu por entre as arvores uma luz , que lhe fez
julgar que não estava longe de alguma aldea. Alegrou-
se com a esperança de lá ir passar a noite e de achar
alguem por quem pudesse mandar dar parte á gente de
sua comitiva do sitio onde se achava. Levantou- se e en-
caminhou-se para a luz que lhe servia de farol para
guiar-se.
« Não tardou a conhecer que se enganára ; esta luz
não era outra cousa senão fogo n'uma cabana . Chega-
se a ella, e vê com pasmo um homem preto, de corpo
agigantado, ou, para melhor dizer, um gigante espantoso
que estava assentado n'um sophá . Tinha o monstro dian-
te de si um grande cantaro de vinho , e assava sobre
carvão um boi que acabava de esfolar. Ora levava o can-
taro á bocca, ora retalhava o boi e comia pedaços d'el-
212 AS MIL E UMA NOITES

le . Porém o que attrahiu a attenção do rei meu pai , foi


uma bellissima mulher que viu na cabana. Parecia se-
pultada n'uma profunda tristeza ; tinha as mãos atadas,
e via-se a seus pés um menino de dous ou tres annos,
que, como se já sentisse as desgraças de sua mãi , cho-
rava sem cessar e fazia resoar o ar com seus gritos .
<< Meu pai, sensivel a este objecto lastimoso, teve
logo tentação de entrar na cabana e acommetter o gi-
gante ; mas reflectindo que seria mui desigual este comba-
te, parou e resolveu , visto que suas forças não eram
sufficientes, desfazer-se d'elle por algum estratagema .
« O gigante, depois de ter vasado o cantaro e comi-
do mais de metade do boi , voltou -se para a senhora e
The disse : «Bella princeza , porque me obrigaes com a vos-
sa teima a tratar-vos com rigor ? está na vossa mão ser
feliz ; basta-vos tomar a resolução de amar-me e ser- me
fiel, e terei para comvosco os modos mais affaveis . — Ó
satyro horrendo ! respondeu a senhora ; não esperes que
o tempo diminua a aversão que te tenho : serás sempre
um monstro aos meus olhos ! » Seguiram-se a estas pa-
lavras tantas injurias , que o gigante se escandalisou :
«< Basta ! clamou elle em tom furioso ; o meu amor des-
<
prezado se converte em raiva ; o teu odio excita final-
mente o meu ; conheço que elle triumpha dos meus de-
sejos, e que ambiciono a tua morte com mais ancia do que
desejei a tua posse » . Ditas estas palavras péga na des-
graçada mulher pelos cabellos, suspende-a no ar com
uma mão, e com outra, levantando o alfange , dispõe - se
a cortar-lhe a cabeça , quando o rei meu pai despede uma
frecha e fere no estomago o gigante que cambaleia, e
cahe logo sem vida.
<
«
< Entrou meu pai na cabana ; desatou as mãos da
mulher, perguntou-lhe quem era e por que aventura se
achava alli. « Senhor, respondeu-lhe, ha na ribeira do
mar algumas familias sarracenas, que tem por chefe um
principe que é meu marido. Este gigante, que matastes ,
era um dos seus principaes officiaes ; concebeu este mi-
seravel por mim uma paixão violenta, que cuidou mui-
to em occultar até que pôde achar occasião favoravel de
executar o intento que formára de roubar-me. Mais ve-
CONTOS ARABES 213
zes favorece a fortuna as empresas injustas do que as
boas resoluções. Um dia o gigante apanhou - me com o
meu filhinho n'um sitio desviado ; roubou- nos ambos ; e,
para baldar todas as diligencias que meu marido fizesse ,
afastou- se do paiz que habitam os sarracenos e nos trou-
xe a este bosque, onde me guarda ha alguns dias.
« Por mais deploravel que seja todavia o meu desti-
no, não deixo de sentir occulta consolação , quando me
lembro que este gigante, por mais brutal e apaixonado
que fosse, nunca empregou a violencia para alcançar o
que sempre recusei aos seus rogos . Não digo que não
me ameaçasse cem vezes d'usar da violencia se não pu-
désse de outro modo vencer a minha resistencia ; e con-
fesso- vos que ha pouco, quando excitei a sua cólera com
as minhas palavras , receei menos pela vida do que pela
honra.
« Eis-aqui, senhor, continuou a mulher do principe
<
dos sarracenos, eis- aqui a minha historia ; e não duvido
que me acheis bastante digna de compaixão , para vos
arrependerdes de ter-me tão generosamente soccorrido.
« Sim, senhora, disse-lhe meu pai, enterneceram-me as
Vossas desgraças ; sinto-as muito ; mas se estiver na
minha mão ha-de vossa sorte melhorar. Ámanhã, logo
que o dia tiver espalhado as sombras da noite, sahire-
mos d'este bosque ; buscaremos o caminho da grande ci-
dade de Deryabar, cujo soberano sou ; e se fôr do vosso
agrado alojar- vos-heis no meu palacio até que o princi-
pe vosso esposo vos venha buscar » .
« A senhora sarracena aceitou a proposta, e acompa-
nhou no dia seguinte o rei meu pai, que achou á sahi-
da do bosque todos os seus officiaes que passaram a
noite a procural-o, e que estavam com grande cuidado
n'elle. Alegraram-se tanto de encontral-o como se admi-
raram de vêl-o com uma senhora cuja belleza os arre-
batou ; contou-lhes de que modo a encontrára e o perigo
que correra, chegando á cabana, onde sem duvida teria
perdido a vida se o visse. Um dos officiaes levou a se-
nhora na garupa, e outro levou o seu filhinho.
«Chegaram d'este modo ao palacio do rei meu pai ,
que deu hospedagem á bella sarracena, e mandou edu-
214 AS MIL E UMA NOITES

car o seu filho com muito desvelo . Não foi a senhora in-
sensivel ás bondades do rei : teve para elle todo o re-
conhecimento que podia desejar ; pareceu no principio
assás inquieta de não a vir buscar seu marido, mas pou-
co a pouco foi diminuindo a sua inquietação ; as compla-
cencias que meu pai tinha para com ella suavisaram a
sua impaciencia, e creio finalmente que ficaria menos
agradecida á fortuna de restituil-a a seus parentes do que
de a ter afastado d'elles .
« O filho d'esta senhora foi crescendo ; era muito bem
feito ; e , como tivesse bom senso, achou meio de agra-
dar ao rei meu pai, que se affeiçoou a elle. Perceberam
isso todos os cortezãos, e julgaram que este mancebo
poderia casar commigo : n'este pensamento, e conside-
rando-o já como herdeiro da corôa, affeiçoaram - se a el-
le, e cada um se esforçava por ganhar a sua confiança .
Penetrou elle o motivo do seu affecto ; applaudiu-se a
si mesmo ; e esquecendo-se da distancia que havia en-
tre as nossas condições , orgulhou-se com a esperança
de que com effeito meu pai o amava sufficientemente
para preferir a sua alliança á de todos os principes do
mundo. Ainda se atreveu a mais : tardando o rei a satis-
fazer o seu desejo , isto é, a offerecer- lhe a minha mão,
teve a ousadia de lh'a pedir. Por maior castigo que me-
recesse o seu atrevimento, contentou-se meu pai em lhe
dizer que tinha outras vistas a meu respeito, e não lhe
mostrou desagrado algum ; escandalisou -se o mancebo
com esta recusa . Sentiu-se tanto este orgulhoso do des-
prezo com que se tratava a sua pretensão , como se ti-
vesse pedido uma filha de gente plebêa, ou fosse de
nascimento igual ao meu ; não parou aqui : resolveu
vingar-se do rei ; e por uma ingratidão que tem poucos
exemplos, conspirou contra elle, apunhalou-o e fez-se
proclamar rei de Deryabar por um grande numero de
descontentes, dos quaes soube tirar proveito . Foi o seu
primeiro cuidado, depois de ter matado meu pai, vir elle
mesmo ao meu quarto á frente de uma parte dos conju-
rados . Era seu intento tirar-me a vida ou obrigar-me
pela força a casar com elle, mas tive tempo de escapar-
lhe ; em quanto estava occupado a degolar meu pai , o
CONTOS ARABES 215

grão-visir, que fôra sempre fiel a seu amo, veio arran-


car-me do palacio e me poz em segurança na casa de
um de seus amigos onde me teve, até que um navio,
occultamente apparelhado pelos seus cuidados , estivesse
em estado de fazer-se á véla. Sahi então da ilha acom-
panhada sómente d'uma aia e d'este generoso minis-
tro, que mais estimou seguir a filha de seu amo e asso-
ciar-se às suas desgraças, do que obedecer ao tyranno.
<< Propunha-se o grão- visir levar-me ás côrtes dos reis
visinhos , implorar em meu favor a sua compaixão , e ex-
cital- os a vingar a morte de meu pai ; o céo, porém, não
approvou uma resolução que nos parecia tão razoavel.
Depois de alguns dias de navegação levantou-se uma tem-
pestade tão furiosa, que apesar da pericia dos nossos ma-
rinheiros, o navio, levado da violencia dos ventos e das
vagas, despedaçou -se contra um rochedo. Não me demo-
rarei em fazer- vos a descrição do nosso naufragio : pin-
tar-vos-hia mal de que modo a minha aia , o grão - visir e
todos os que me acompanhavam , foram submergidos nos
abysmos. O susto que tive não me permittiu observar o
horror da nossa sorte ; e ou fosse levada por alguns des-
troços do navio para a costa, ou o céo , que me guarda-
va para outras desgraças , fizesse um milagre para sal-
var-me, tendo recuperado as minhas forças, achei-me na
praia.
«< Ás vezes as desgraças tornam-nos injustos ; em vez
de agradecer a Deus a graça particular que d'elle rece-
bia, não levantei os olhos ao céo senão para arguil-o de
me ter salvado . Longe de chorar o visir e a minha aia,
invejava o seu destino ; e pouco e pouco a minha razão ,
cedendo ás horrorosas imagens que a perturbavam , tomei
a resolução de me arrojar ao mar. Estava prestes a lan-
çar-me a elle quando ouvi atraz de mim um grande rui-
do de homens e cavallos . Virei a cabeça , e vi muitos ca-
valleiros armados , entre os quaes havia um montado
n'um cavallo arabe ; tinha este vestido bordado de prata
com cinta de pedrarias , e uma corôa d'ouro na cabeça .
Ainda que não julgasse , pelo seu vestido , que fosse o
chefe dos outros, deveria ter percebido isso pelo ar de
grandeza que mostrava em toda a sua pessoa. Era um
216 AS MIL E UMA NOITES

mancebo perfeitamente bem feito , e mais bello do que


o dia : pasmado de encontrar n'este sitio uma joven se-
nhora sósinha , destacou alguns de seus officiaes para vir
perguntar-me quem era ; não lhe respondi senão com
choros. Como estivesse a praia coberta dos destroços
do nosso navio, julgaram que algum navio acabava de
dar á costa, e que eu era sem duvida uma pessoa es-
capada do naufragio ; esta conjectura, e a grande afflic-
ção que se via no meu rosto, aguçaram a curiosidade
dos officiaes, que principiaram a fazer-me mil perguntas ,
assegurando-me que o seu rei era um principe genero-
so, e que acharia na sua côrte algum allivio.
<<Impaciente o rei por saber quem eu era, enfadou-
se de esperar a volta dos officiaes ; chegou-se a mim ;
olhou-me com muita attenção ; e , como eu não cessas-
se de chorar e de affligir-me sem poder responder ás
interrogações que me faziam, prohibiu-lhes que me disses-
sem mais cousa alguma ; e dirigindo-se a mim : << Senho-
ra, disse-me, rogo-vos que modereis o excesso da vossa
afflicção . Se o céo vos faz experimentar o seu rigor, de-
veis por isso entregar- vos á desesperação ? Tende , rogo-
vos, mais constancia ; a desfortuna que vos persegue é
inconstante ; póde vossa sorte mudar ; até posso assegu-
rar- vos que, se vossas desgraças podem ser alliviadas,
sêl -o -hão nos meus estados . Offerece-vos o meu palacio :
habitareis junto com a rainha minha mãi, que cuidará
com seus bons tratamentos de suavisar vossos trabalhos .
Não sei ainda quem sois, mas sinto que me interesso já
por vós » .
<
« Agradeci a este joven rei os seus favores ; aceitei
os offerecimentos officiosos que me fazia ; e, para mos-
trar-lhe que não era indigna d'elles, descobri- lhe a mi-
nha condição. Pintei-lhe a ousadia do joven sarraceno,
e bastou-me contar simplesmente as minhas desgraças pa-
ra mover a sua compaixão, e a de todos os seus offi-
ciaes que me davam attenção. O principe, depois de
eu ter cessado de fallar, continuou o seu discurso e me
assegurou de novo que tomava muita parte na minha
desgraça ; levou-me depois ao seu palacio, onde me apre-
sentou à rainha sua mãi. Foi preciso principiar nova-
CONTOS ARABES 217

mente a narração das minhas aventuras e renovar as la-


grimas ; mostrou-se a rainha mui sensivel ás minhas af-
flicções, e concebeu para commigo uma ternura extrema.
O rei seu filho namorou-se de mim e offereceu- me logo
a sua corûa e a sua mão. Estava ainda tão occupada
das minhas desgraças , que o principe , amavel como era,
não fez em mim a impressão que poderia ter feito n'ou-
tro tempo . Todavia, penetrada de reconhecimento , não
recusei fazer a sua felicidade ; fez-se o nosso casamento
com toda a pompa imaginavel.
<< Em quanto todos se occupavam a celebrar as bodas
do seu soberano, um principe visinho e inimigo veio
uma noite fazer um desembarque na ilha com grande nu-
mero de combatentes : era este tremendo inimigo o rei
Zanguebar : surprehendeu toda a gente e fez em postas
todos os vassallos do principe meu marido. Pouco faltou
que não nos apanhasse a ambos, pois estava já no pala-
cio com uma parte de sua gente ; achámos meio de es-
capar- nos e de chegar á borda do mar, onde nos mette-
mos n'um barco de pescadores , que tivemos a felicidade
de encontrar. Navegámos á vontade dos ventos dous dias ,
sem saber o que nos aconteceria ; ao terceiro avistamos
um navio que vinha para nós a todo o pano. Alegrȧmo-
nos porque era navio mercante que poderia receber-nos ;
porém ficamos pasmados em extremo, quando, chegando-
se a nós, dez ou doze homens armados appareceram na
tolda. Deram a abordagem ; cinco ou seis se metteram
n'um barco, agarraram- nos a ambos, ataram o principe
meu marido e nos levaram a bordo do seu navio, onde
logo me tiraram o véo. A minha mocidade e as minhas
feições os enlevaram ; todos os piratas manifestaram que
estavam encantados com a minha vista ; em vez de tira-
rem sortes pretende cada qual a preferencia . Exasperam-
se, véem ás mãos e combatem como furiosos . Fica n'um
instante coberta de mortos a tolda ; finalmente mataram-
se todos á excepção de um só , que, vendo-se possuidor
da minha pessoa , me disse : « Vou levar-vos ao Cairo
para entregar-vos a um de meus amigos, a quem pro-
metti uma bella escrava. Mas, acrescentou elle, olhando
para o rei meu esposo ; quem é este homem ? que pa-
218 AS MIL E UMA NOITES

rentesco tem comvosco ? é o do sangue ou o do amor ?


Senhor, respondi-lhe eu, é meu marido. - Sendo assim ,
replicou o corsario, é forçoso que me desfaça d'elle por
compaixão : padeceria muito vendo-vos nos braços do
meu amigo ». Ditas estas palavras , péga no desditoso
principe que estava atado, e o arrojou ao mar, apesar
de todos os esforços que pude fazer para impedil- o .
« Ao vêr esta cruel acção dei gritos espantosos, e ter-
me-hia indubitavelmente precipitado nas ondas, se o pi-
rata não me segurasse . Bem viu que não tinha outra
vontade , razão por que me prendeu com cordas ao mas-
tro grande . Depois, fazendo-se á véla, navegou para ter-
ra, onde foi desembarcar : desatou-me, levou-me a uma
pequena cidade onde comprou camêlos, barracas e escra-
vos, e tomou depois o caminho do Cairo, com o inten-
to, dizia sempre, de ir apresentar-me ao seu amigo, e
de cumprir a sua palavra.
« Havia já alguns dias que estavamos de jornada ,
quando passando hontem por esta planicie avistámos o
negro que habitava este castello . Pareceu-nos de longe
uma torre ; e estando perto de nós, mal podiamos capa-
citar-nos que fosse um homem : puxou pela sua enorme
cimitarra e intimou ao pirata que se rendesse prisionei-
ro com todos os seus escravos , e a senhora que levava.
Era valente o corsario ; e, ajudado de todos os seus es-
cravos, que prometteram ser-lhe fieis, atacou o negro.
Durou a peleja bastante tempo, mas cedeu finalmente o
pirata aos golpes do seu inimigo, assim como todos os
seus escravos, que estimaram mais morrer do que aban-
donal-o. Concluido isto conduziu-me o negro a este cas-
tello , onde trouxe o corpo do pirata, que cɔmeu á cêa :
no fim d'este horrendo banquete disse-me, vendo que não
cessava de chorar : « Joven senhora, dispõe-te a satisfa-
zer os meus desejos em vez de affligir-te assim ; cede
de boa vontade á necessidade : dou -te até ámanhã para
fazer as tuas reflexões ; espero vêr-te inteiramente con-
solada de tuas desgraças, e alegre de seres reservada
para o meu leito » . Proferidas estas palavras levou-me
para um quarto e deitou-se no seu, depois de ter elle
mesmo fechado todas as portas do castello . Abriu-as es-
CONTOS ARABES 219

ta manhã e tornou-as a fechar logo para ir apanhar al-


guns viajantes que viu ao longe ; porém devem ter- lhe
escapado, visto que voltava só e sem despojos quando o
acommetestes >> .
Apenas acabou a princeza de contar as suas aventu-
ras, logo Codadad lhe manifestou que sentia muito as
suas desgraças : « Porém, senhora, acrescentou elle , de
vós dependerá sómente viver de hoje em diante com so-
cego. Os filhos do rei de Harran vos offerecem um asylo
na corte de seu pai ; aceitai-o de boa vontade , sereis ama-
da d'elle e respeitada de todos ; se fazeis algum caso do
vosso libertador, consenti que vos offereça e que vos dé
a minha mão perante todos os principes . Que sejam teste-
munhas da nossa união » . Consentiu a princeza, e logo
no mesmo dia fez-se este casamento no castello , onde
acharam todas as especies de provisões : as cozinhas es-
tavam cheias de viandas de que o negro costumava
sustentar-se quando estava farto de carne humana . Ha-
via tambem frutas , todas excellentes, e para maior re-
galo, uma porção grande de licôres e de vinhos exqui-
sitos.
Assentaram-se todos á mesa ; e , depois de terem
comido e bebido bem, levaram todo o restante das pro-
visões e sahiram do castello no intento de voltarem á
côrte do rei de Harran . Caminharam muitos dias , acam-
pando nos sitios mais agradaveis que podiam achar ; e
estavam já a uma jornada de Harran quando , tendo pa-
rado e acabando de beber o vinho, como gente que não
se lhe dava já de poupal-o , Codadad fallou n'estes termos :
<< Principes, disse elle , é encobrir-vos demasiado tempo
quem sou; estaes vendo a vosso irmão Codadad : devo
a vida, assim como vós, ao rei de Harran : o principe
de Samaria creou-me, e a princeza Pirouzé é minha mãi .
Senbora, acrescentou elle dirigindo-se á princeza de Derya-
bar, peço-vos perdão se vos fiz tambem um mysterio do
meu nascimento . Talvez que descobrindo - vol -o mais cedo,
tivesse prevenido algumas reflexões desagradaveis , que
um casamento que vos pareceu desigual, pôde obrigar-
vos a fazer. - Não, senhor, respondeu-lhe a princeza, os
sentimentos que logo me inspirastes, fortificaram - se ca-
220 AS MIL E UMA NOITES

da vez mais ; e para fazer a minha felicidade não preci-


saveis da origem que me manifestaes » .
Os principes felicitaram a Codadad acerca do seu nas-
cimento, e manifestaram-lhe muita alegria ; mas no fun-
do do seu coração, em vez de ficarem satisfeitos, o odio
para com seu irmão subiu de ponto . Ajuntaram- se à noite

e retiraram-se para um sitio desviado, em quanto Coda-


dad e a princeza sua mulher descançavam na sua bar-
raca. Estes ingratos, estes invejosos irmãos, esquecen-
do-se de que sem o valoroso filho de Pirouzé seriam todos
présa do negro, resolveram entre si assassinal-o . <« Não
temos outro partido que tomar, disse um d'estes malva-
dos ; logo que meu pai souber que este estrangeiro , que
CONTOS ARABES 221

tanto ama, é seu filho, e que teve bastante força para


derribar elle só um gigante que nós todos juntos não
pudémos vencer , afagal-o-ha muito, dar-lhe-ha mil lou-
vores, e declaral-o-ha seu herdeiro em desprezo dos ou-
tros filhos , que serão obrigados a prostrar-se perante seu
irmão e a obedecer-lhe ». A estas palavras acrescentou
outras que fizeram tanta impressão em todos estes es-
piritos ciosos, que foram repentinamente ter com Coda-
dad adormecido. Crivaram-o ás punhaladas ; e , deixan-
do-o sem sentidos nos braços da princeza, partiram para
a cidade de Harran, aonde chegaram no dia seguinte .
Causou muita alegria ao rei seu pai a sua chegada, pois
desesperava de os tornar a vêr : perguntou-lhes a causa
de se terem demorado tanto, mas guardaram - se de lh'a
dizer ; não fizeram menção alguma do negro nem de
Codadad, e disseram sómente que não podendo resistir
á curiosidade de vêr o paiz , se tinham demorado em al-
gumas cidades visinhas.
Coberto todavia Codadad de sangue e pouco diffe-
rente de um cadaver, estava na sua barraca com a prin-
ceza sua mulher, que parecia quasi tão digna de com-
paixão como elle . Atroava o ar com seus gritos lamen-
taveis ; arrancava os cabellos, e banhando com suas la-
grimas o corpo de seu marido : « Ah , Codadad ! clamava
ella a todo o instante ; meu rico Codadad ! tu és quem
vejo prestes a ir habitar a morada dos mortos ? quaes
são as crueies mãos que te reduziram ao estado em que
estás ? Capacitar-me-hei que são teus proprios irmãos
que te assassinaram tão desapiedadamente ? teus irmãos,
a quem teu valor salvou ? Não , são certamente demo-
nios que, debaixo de apparencias tão bellas, vieram ar-
rancar-te a vida . Ah, barbaros ! quem quer que sejaes,
pudestes pagar com tão negra ingratidão o serviço que
vos fez ? Porém porque culpar teus irmãos n'esta des-
graça? a mim só devo imputar a tua morte : quizeste
unir o teu ao meu destino e todo o infortunio que me
acompanha, desde que sahi do palacio de meu pai , se
derramou sobre ti . O céos , que me condemnastes a le-
var uma vida errante e cheia de desgraças ! se não que-
reis que tenha maridos , porque consentis que os ache ?
222 AS MIL E UMA NOITES

Já me arrancastes dous no tempo que principiava a


affeiçoar-me a elles ».
Com semelhantes palavras expressava a deploravel
princeza de Deryabar a sua afflicção, encarando o desdi-
toso Codadad, que não podia ouvil-a. Não estava todavia
morto ; e reparando sua mulher que elle respirava ain-
da, correu a uma grande aldêa, que avistou na planicie,
a procurar um cirurgião : inculcaram-lhe um, que partiu
logo com ella ; mas chegados que foram á barraca não
acharam Codadad , o que lhes fez julgar que alguma fera
o tinha levado para devoral-o . Tornou a princeza a prin-
cipiar as suas queixas do modo mais lamentoso que se
póde imaginar ; enterneceu-se o cirurgião ; e , não que-
rendo abandonal-a no estado horroroso em que a via,
propôz -lhe voltar á aldea, e lhe offereceu a sua casa e
os seus serviços.
Deixou-se levar : o cirurgião a conduziu a sua casa ;
e, sem saber ainda quem fosse, a tratou com toda a con-
sideração e respeito imaginavel . Procurava com suas pa-
lavras consolal-a, mas por mais diligencia que fizesse ,
não fazia senão avivar a sua dôr em vez de allivial-a.
<«< Senhora, disse-lhe um dia, noticiai-me todas as vossas
desgraças ; dizei-me de que paiz e de que condição sois .
Talvez vos dé bons conselhos quando souber todas as
circumstancias de vossa desgraça . Não fazeis senão affli-
gir-vos sem lembrar- vos que se póde achar remedio aos
males mais desesperados » .
Fallou o cirurgião com tanta eloquencia que persua-
diu a princeza : contou-lhe ella todas as suas aventuras,
e tendo acabado a narração d'ellas, continuou o cirur-
gião a fallar : « Senhora, disse elle, visto que as cousas
estão n'este estado, permitti-me representar-vos que não
deveis entregar- vos á vossa afflicção , deveis antes ar-
mar-vos de constancia , e fazer o que o nome e o dever
de uma esposa exigem de vós . Deveis vingar vosso ma-
rido ; eu vou, se quereis , servir- vos de escudeiro : va-
mos á côrte do rei de Harran . Este principe é bom e jus-
to : basta-vos pintar-lhe com vivas côres o tratamento
que o principe Codadad recebeu de seus irmãos, e estou
persuadido que vos fará justiça . - Cedo a essas razões ,
CONTOS ARABES 223

respondeu a princeza ; sim , devo emprehender a vingan-


ça de Codadad ; e visto que sois tão generoso que que-
reis acompanhar-me, estou prompta a partir » . Tão de-
pressa tomou esta resolução como o cirurgião mandou
aprestar dous camélos sobre os quaes a princeza e elle
se puzeram a caminho, e foram á cidade de Harran.
Foram apear-se ao primeiro caravançará que encon-
traram ; pediram ao estalajadeiro novas da côrte : « <A
côrte , disse-lhes , está n'um grande desassocego. Tinha
o rei um filho que viveu largo tempo com elle como
desconhecido, e não se sabe o que é feito d'elle . Uma
mulher do rei , chamada Pirouzé , é sua mãi ; mandou
fazer mil diligencias, que foram todas baldadas . Sentem
todos a perda d'este principe, pois tinha muito mereci-
mento . Tem o rei outros quarenta e nove filhos , todos
de mães differentes ; mas não tem um que seja capaz de
consolar o rei da morte de Codadad ; digo da morte,
porque não é possivel que viva ainda, visto que não ó
puderam achar, apesar de todas as diligencias que se fi-
zeram » .
Pela informação do estalajadeiro julgou o cirurgião
que a princeza de Deryabar devia apresentar-se a Pirou-
zé ; porém isto tinha seu perigo e requeria muita caute-
la. Era de recear que se os filhos do rei de Harran sou-
bessem da chegada e do intento de sua cunhada, a fizes-
sem desapparecer, antes que pudesse fallar á mãi de
Codadad. Fez o cirurgião todas estas reflexões e repre-
sentou-se o risco que elle mesmo corria ; razão por que
querendo portar-se com prudencia n'esta conjunctura,
pediu á princeza que ficasse no caravançará, em quanto
elle ia ao palacio reconhecer os caminhos por onde po-
deria encaminhal-a com segurança, para poder fallar a
Pirouzé .
Partiu pois para a cidade e caminhava para o pala-
cio como um homem attrahido da curiosidade de vêr a
côrte, quando avistou uma senhora n'uma mula ricamen-
te ajaezada : acompanhavam - a muitas donzellas tambem
montadas em mulas, e um grande numero de guardas e
de escravos pretos. Todo o povo se ordenava em fileira
para vêl-a passar, e a saudava prostrando-se por terra.
221 AS MIL E UMA NOITES

Saudou-a o cirurgião do mesmo modo, e perguntou de-


pois a um calender, que estava perto d'elle, se aquella
senhora era a mulher do rei. « Sim , irmão, disse -lhe o
calender ; é uma de suas mulheres, a mais condecorada
e a mais querida do povo, porque é mãi do principe
Codadad, de quem tereis ouvido fallar » .
Não quiz o cirurgião saber mais : seguiu a Pirouzé
até uma mesquita, onde entrou para distribuir esmolas,
e assistir ás preces publicas, que o rei ordenára para
pedir a Deus a volta de Codadad. O povo, que se inte-
ressava muito por este principe, corria de tropel a unir
os seus aos votos dos sacerdotes , de sorte que a mes-
quita estava cheia de gente : o cirurgião abriu caminho
por entre os apertões e chegou até ás guardas de Pirou-
zé. Assistiu a todas as orações ; e, quando sahiu a prin-
ceza, chegou-se a um dos seus escravos e lhe disse ao
ouvido : « Tenho um segredo importante que revelar á
princeza Pirouzé ; não poderia eu, pela vossa interven-
ção, ser introduzido no seu quarto ? Se esse segredo ,
respondeu o escravo, diz respeito ao principe Codadad,
prometto-vos que hoje mesmo tereis d'ella a audiencia
que desejaes ; mas se esse segredo não lhe diz respeito ,
é inutil procurar apresentar-vos á princeza, pois ella
occupa-se unicamente de seu filho, e não quer ouvir fal-
lar d'outra cousa. - D'esse querido filho é que quero
fallar-lhe, replicou o cirurgião . —Sendo assim, disse o
escravo, segui-nos até ao palacio e fallar-lhe-heis em se-
guida ».
Com effeito , chegada que foi Pirouzé ao seu quarto,
disse-lhe o escravo que um homem desconhecido tinha
alguma cousa de importancia que communicar-lhe e que
dizia respeito a Codadad . Proferidas estas palavras ma-
nifestou Pirouzé uma grande impaciencia em ver o des-
conhecido . O escravo o fez logo entrar no gabinete da
princeza, que mandou retirar todas as mulheres, á ex-
cepção de duas , a quem não occultava cousa alguma.
Apenas avistou o cirurgião, logo lhe perguntou precipi-
tadamente que novas de Codadad tinha que annunciar-
lhe. «< Senhora, respondeu-lhe o cirurgião , depois de ter-
se prostrado com a face no chão : tenho uma larga his-
CONTOS ARABES 225

toria que contar-vos , e cousas sem duvida que vos cau-


sarão admiração » . Fez -lhe então uma narração circums-
tanciada de tudo o que se passára entre Codadad e seus
irmãos, o que ella ouviu com a maior attenção ; mas
quando chegou a fallar do assassinato, esta terna mãi,
como se se sentisse ferida dos mesmos golpes que seu
filho, cahiu desmaiada n'um sophá. Soccorreram-a prom-
ptamente as duas mulheres, fizeram-a tornar a si e con-
tinuou o cirurgião a sua narração . Tendo acabado , disse-
lhe esta princeza : «Ide ter com a princeza de Deryabar
e annunciai-lhe de minha parte que o rei a reconhecerá
immediatamente por sua nóra : quanto a vós, crêde que
serão bem recompensados os vossos serviços » .
Depois de ter sahido o cirurgião, ficou Pirouzé as-
sentada no sophá, no abatimento que imaginar-se póde ;
e enternecendo - se com a lembrança de Codadad : « Filho
meu, dizia ella, eis -me para sempre privada da tua vis-
ta! Quando te deixei partir de Samaria para vir a esta
côrte e recebi as tuas ultimas despedidas, não cuidava
que te esperasse longe de mim uma morte tão funesta !
Mil vezes desditoso Codadad ! porque te ausentaste de
mim ? não terias, na verdade, grangeado tanta gloria,
mas estarias ainda com vida, é não custarias ainda tan-
tas lagrimas a tua mãi ». Dizendo estas palavras chora-
va amargamente, e as duas confidentes, sensiveis à sua
dôr, misturavam as suas com as lagrimas d'ella .
Em quanto se affligiam todas, como á porfia, entrou
o rei no gabinete , e vendo-as n'este estado perguntou a
Pirouzé se tivera tristes novas de Codadad. « Ah, senhor !
disse -lhe ; está tudo acabado ! perdeu meu filho a vida !
e para maior afflicção não posso dar-lhe as honras da se-
pultura, pois, segundo todas as apparencias, as feras o
devoraram ! » Contou ao mesmo tempo tudo o que lhe
dissera o cirurgião , e não se esqueceu de alargar-se so-
bre o modo cruel por que Codadad fôra assassinado pe-
los seus irmãos.
Não deu o rei tempo a Pirouzé de concluir a sua
narração ; sentiu-se arder em colera ; e , cedendo ao seu
arrebatamento : « Senhora, disse á princeza, os perfidos
que são a causa de derramardes lagrimas e que dão a
TOMO III. 15
AS MIL E UMA NOITES
226
seu pai pena mortal , vão receber justo castigo » . Fallan-
do assim, este principe , pintado o furor nos olhos , corre
á sala da audiencia onde estavam todos os seus corte-
zãos , e os do povo que tinham algum pedido que fazer-
lhe. Ficam todos pasmados de vêl-o apparecer com ar
furioso ; julgam que está enfadado contra o povo ; pa-
recem opprimidos de tristeza e susto ; sobe ao throno , e

mandando chegar o seu grão -visir : « Hassan, disse-lhe,


tenho uma ordem que te dar ; vai sem perda de tempo
tomar mil soldados da minha guarda, e prende todos os
principes meus filhos ; fecha-os na torre destinada a ser-
vir de prisão aos assassinos, e que seja tudo isso feito
n'um instante ». Ouvindo esta ordem extraordinaria, to-
dos os que presentes estavam estremeceram , e o grão-
visir, sem responder palavra, pôz a mão sobre a cabeça
para mostrar que estava prompto a obedecer, e sahiu
CONTOS ARABES 227

da sala para ir executar uma ordem que tanto espanto


The causava. O rei despediu as pessoas que vinham pe-
dir-lhe audiencia, e declarou que pelo decurso d'um mez
não queria ouvir fallar de negocio algum. Estava ainda
na sala quando voltou o visir : « Então, visir ? disse-lhe
este principe ; estão já na torre todos os meus filhos ?
-Sim, senhor, respondeu o ministro, fostes obedecido .
- Não basta isso, replicou o rei, tenho ainda outra or-
dem que te dar ». Dizendo isto sahiu da sala da audien-
cia, voltou ao quarto de Pirouzé com o visir que o se-
guia, e perguntou a esta princeza onde estava alojada a
viuva de Codadad : as criadas de Pirouzé lh'o disseram ,
pois o cirurgião não se esquecera d'isso na sua narra-
ção. Voltando - se então o rei para o seu ministro : <« Vai,
disse-lhe, a esse caravançará , e traze uma joven princeza
que lá está alojada ; mas trata-a com o respeito devido a
uma pessoa da sua ordem » .
Não tardou muito o visir a executar o que lhe fôra
ordenado . Montou a cavallo com todos os emires e os ou-
tros cortezãos , e foi ter ao caravançará onde estava a
princeza de Deryabar, a quem expôz a sua ordem , e lhe
offereceu da parte do rei uma bella mula branca, que tinha
sella e rédeas d'ouro semeadas de rubins e d'esmeral-
das. Montou n'ella , e no meio de todos estes senhores
tomou o caminho do palacio. Acompanhava-a tambem o
cirurgião montado n'um bello cavallo tartaro que lhe
mandára dar o visir. Estava toda a gente ás janellas ou
nas ruas para vêr passar tão magnifica cavalgada ; e co-
mo se espalhasse o boato de que esta princeza, que con-
duziam á côrte com tanta pompa, era a esposa de Co-
dadad, não houve senão acclamações . Resoaram no ar
mil gritos de alegria que se mudariam sem duvida em
gemidos, se se soubesse a fatal aventura do joven prin-
cipe , tanto era amado de todos.
Éncontrou a princeza de Derybar o rei, que a espe-
rava á porta do palacio para recebel- a ; deu-lhe a mão
e a acompanhou ao quarto de Pirouzé, onde se passou
uma scena angustiosa . Sentiu a viuva de Codadad reno-
var a sua afflicção á vista do pai e da mãi de seu mari-
do, assim como o pai e a mãi não puderam vêr a espo-
AS MIL E UMA NOITES
228
sa de seu filho sem commoção . Foi assaltada de tão viva
dôr, que não teve forças para fallar. Não estava Pirouzé
n'um estado menos deploravel ; parecia sensivel aos seus
desgostos , e o rei, movido d'estes ternos affectos , entre-
gou -se à sua propria fraqueza . Estas tres pessoas , con-
fundindo seus suspiros e seus prantos , guardaram algum

GWINY CM DEL

tempo silencio : por fim, a princeza de Deryabar , tornan-


do a si do seu abatimento , contou a aventura do castel-
lo e a desgraça de Codadad , e pediu depois justiça para
a traição dos principes . « Sim , senhora , disse o rei, pe-
recerão esses ingratos ; mas deve-se primeiro publicar a
morte de Codadad , para o supplicio de seus irmãos não
revoltar os meus vassallos . Além d'isso, ainda que não
possuamos o corpo de meu filho, não deixemos de fa-
zer-lhe as ultimas honras ». Ditas estas palavras dirigiu-
CONTOS ARABES 229
se ao seu visir e ordenou-lhe que mandasse construir um
zimborio de marmore branco na bella planicie , no cen-
tro da qual está assentada a cidade de Harran ; e no en-
tretanto deu no seu palacio um bellissimo quarto á prin-
ceza de Deryabar , que reconheceu por sua nora .
Mandou Hassan trabalhar com tanta diligencia e em-
pregou tantos obreiros, que em poucos dias foi o zimbo-
rio concluido. Debaixo d'elle armaram um tumulo sobre
o qual havia uma figura que representava a Codadad.
Acabada a obra ordenou o rei que se fizessem preces , e
determinou um dia para as exequias de seu filho .
Chegado este dia, todos os habitantes da cidade se
derramaram pela planicie, para ver a ceremonia , que
se fez d'este modo : o rei, acompanhado do visir e dos
principaes senhores da sua côrte , dirigiu-se ao zimborio ;
chegado que foi, entrou e assentou -se com elles sobre
tapetes de setim preto com flôres d'ouro ; depois um tro-
ço de guardas a cavallo com a cabeça baixa e os olhos
meio fechados se chegou ao zimborio , voltearam-no duas
vezes guardando profundo silencio , mas á terceira para-
ram diante da porta e disseram todos, um após outro,
estas palavras em alta voz : Ó principe, filho do rei ! se
pudessemos dar algum allivio ao teu mal com o gume
das nossas cimitarras, nós te fariamos ver a luz ; po-
rém o Rei dos reis ordenou , e o anjo da morte obede-
ceu .
Ditas estas palavras retiraram -se para dar lugar a
cem velhos com barbas brancas, montados em mulas
pretas.
Eram solitarios que no decurso de sua vida se guar-
daram escondidos em grutas, e jamais appareciam aos
olhos do mundo senão para assistir ás exequias do rei
de Harran e dos principes de sua casa . Estes veneraveis
personagens traziam sobre as cabeças um grande livro
que seguravam com uma mão ; andaram tres vezes em ro-
da do zimborio sem dizer palavra ; parando depois á por-
ta, um d'elles pronunciou estas palavras : O principe,
que poderemos fazer em teu beneficio ? Se pela oração
ou pela sciencia pudessemos restituir- te a vida, arrasta-
riamos as nossas barbas brancas a teus pés, e rezaria-
230 AS MIL E UMA NOITES

mos orações ; porém o Rei do universo te arrebatou pa-


ra sempre .
Depois de assim fallarem, estes velhos se afastaram
do zimborio, e logo cincoenta jovens donzellas, muito
formosas, se chegaram a elle : vinham montadas cada
uma n'um pequeno cavallo branco : estavam sem véos ,
e traziam condeças d'ouro cheias de todas as castas de
pedras preciosas ; andaram tambem tres vezes em roda
do zimborio, e parando no mesmo lugar que os outros ,
a mais nova pronunciou estas palavras : Ó principe, n'ou-
tro tempo tão bello ; que soccorro pódes esperar de nós ?
Se pudessemos reanimar-te com nossos attractivos, seria-
mos as tuas escravas ; porém tu não és já sensivel á
belleza, e não precisas de nós.
Tendo-se retirado as jovens donzellas , o rei e seus
cortezãos se levantaram , e deram tambem as tres voltas
do costume, depois do que o rei disse : Ó querido filho
meu, luz de meus olhos, perdi-te pois para sempre!
Acompanhou estas palavras com suspiros e regou o
tumulo com suas lagrimas . Seguindo seu exemplo os cor-
tezãos choraram tambem : fechou-se depois a porta do
zimborio e voltou toda a gente á cidade . No dia seguinte
houve preces publicas nas mesquitas, e duraram oito dias
a fio ; ao nono, resolveu o rei mandar cortar a cabeça
aos principes seus filhos. Indignado todo o mundo do tra-
to que deram a Codadad , parecia esperar com impacien-
cia o seu supplicio. Principiaram a armar cadafalsos , mas
foram obrigados a deixar a execução para outro tempo ,
porque de repente souberam que os principes visinhos,
que tinham já feito guerra ao rei de Harran, vinham
avançando com tropas mais numerosas que da primeira
vez, e que não estavam muito longe da cidade . Havia
já tempo que sabia que se preparavam a fazer a guerra,
porém não tinham causado susto os seus preparativos.
Espalhou esta nova uma consternação geral e deu occasião
de lamentar-se de novo a perda de Codadad , porque este
principe se distinguira na guerra precedente contra estes
mesmos inimigos. «Ah ! diziam elles , se vivesse ainda
o brioso Godadad, pouco se nos daria que viessem estes
CONTOS ARABES 231

vez de entregar-se ao susto, levanta gente a toda a pres-


ša, fórma um exercito consideravel, e muito corajoso
para esperar dentro de seus muros que seus inimigos o
venham atacar, sahe e marcha ao seu encontro : infor-
mados os inimigos pelos espias que o rei de Harran avan-
çava para combatel-os, pararam n'uma planicie e ordena-
ram o seu exercito em batalha .
Apenas os avistou o rei , logo ordenou e dispôz as
suas tropas para o combate : manda dar signal para ba-
talha e ataca com vigor extremo ; resistem-lhe do mes-
mo modo ; derrama-se d'uma e d'outra parte muito san-
gue , e fica largo tempo duvidosa a victoria. Porém ia
finalmente declarar- se a favor dos inimigos do rei de
Harran, quando viram apparecer na planicie um grande
corpo de cavalleiros que se aproximava dos combatentes
em boa ordem. A vista d'estes novos soldados assustou
ambos os partidos, que não sabiam o que haviam de
pensar, mas não ficaram muito tempo na incerteza. Vie-
ram estes cavalleiros atacar pelo flanco os inimigos do
rei de Harran, e deram sobre elles com tanta furia que
os puzeram logo em desordem , e bem depressa em der-
rota : não se contentaram com isto ; foram vigorosamen-
te no seu alcance, e poucos lhes escaparam .
O rei de Harran, que observára com muita attenção
tudo o que se psssára, tinha -se admirado da ousadia
d'estes cavalleiros, cujo soccorro inopinado acabava de
determinar a victoria em seu favor. Agradára- se princi-
palmente do seu chefe , que vira combater com summo
valor : desejava saber o nome d'este generoso heroe.
Impaciente por vêl -o e agradecer-lhe , procura encon-
tral-o ; percebe que elle se vem chegando para prevenil- o ;
chegam-se ambos estes principes , e o rei de Harran re-
conhecendo a Codadad n'este bravo guerreiro que aca-
bava de soccorrel- o, ou , para melhor dizer, de derribar
os seus inimigos , ficou immovel de pasmo e de alegria.
<< Senhor, disse- lhe Codadad , tendes motivos, sem duvi-
da, para estar pasmado , vendo apparecer de repente ,
diante de vossa magestade, um homem que cuidaveis
ser talvez já morto. Morto seria, se o céo não me con-
servasse para servir-vos ainda contra vossos inimigos.
232 AS MIL E UMA NOITES

-Ah, filho meu ! clamou o rei ; é possivel que me se-


jaes restituido ? Ah ! desesperava já de vos tornar a vêr ! »
Dizendo isto abriu os braços ao joven principe e se abra-
çaram com muita ternura. «Tudo sei, filho , replicou o
rei depois de o ter abraçado muito tempo . Sei que pre-
mio vos deram vossos irmãos pelo serviço que lhes fi-
zestes, livrando-os do poder do negro ; porém ámanhã
sereis vingado. Comtudo vamos ao palacio ; vossa mãi ,
que por causa vossa derramou tantas lagrimas , espera-
me para regosijar-se commigo da derrota dos nossos
inimigos ; que alegria não lhe causaremos, annunciando-
lhe que a minha victoria é obra vossa ! -Senhor, disse
Codadad, permitti-me perguntar-vos como pudestes sa-
ber a aventura do castello ? algum de meus irmãos , le-
vado dos seus remorsos, tervol-a-hia confessado ? Não,
respondeu o rei , a princeza Deryabar foi quem nos in-
formou de todas essas cousas, pois veio ter ao meu pa-
lacio , unicamente para pedir-me justiça do crime de vos-
sos irmãos » . Alegrou - se em extremo Codadad sabendo
que a princeza sua mulher estava na côrte. « Vamos ,
senhor, clamou elle com arrebatamento, vamos ver mi-
nha mãi que nos espera , Estou ardendo de impaciencia
por enxugar as suas lagrimas, assim como as da prince-
za de Deryabar » .
O rei tomou logo o caminho da cidade com o seu
exercito que despediu ; entrou victorioso no seu palacio,
no meio das acclamações do povo que o seguia de tro-
pel, pedindo ao céo que prolongasse a sua vida e exal-
tando o nome de Codadad . Ambos os principes acharam
Pirouzé e sua nora que esperavam o rei para felicital- o ;
porém não se podem expressar todos os arrebatamentos
de alegria de que foram agitadas , quando viram o joven
principe que o acompanhava . Foram abraços misturados
de lagrimas bem diversas das que já tinham derramado
por elle . Depois de se terem entregado a todos os movi-
mentos que o sangue e o amor lhes inspirava , pergunta-
ram ao filho de Pirouzé por que milagre estava ainda
vivo .
Respondeu que um camponez montado n'uma mula ,
tendo entrado casualmente na barraca onde estava des-
CONTOS ARABES 233

maiado, vendo -o só e ferido , o atára sobre a mula e o


levára para sua casa, e que lhe applicára ás feridas cer-
tas hervas trituradas, que o restabeleceram em pouco
tempo . « Vendo-me são, acrescentou elle, agradeci ao
camponez e dei-lhe todos os diamantes que tinha apro-
ximei-me depois da cidade de Harran ; mas sabendo no
caminho que alguns principes visinhos tinham ajuntado
tropas e iam atacar os vassallos do rei, dei-me a conhe-

cer nas aldeas, e excitei o zelo dos seus povos a tomar


a sua defeza. Armei um grande numero de mancebos, e
pondo-me à frente d'elles cheguei ao tempo em que es-
tavam ás mãos ambos os exercitos >> .
Tendo acabado de fallar disse o rei : « Démos graças
a Deus por ter conservado a Codadad, mas é preciso
que os traidores, que o quizeram matar, pereçam hoje.
-Senhor, replicou o generoso filho de Pirouzé, ingra-
tos e maus como são, lembrai-vos que são formados do
vosso sangue . São meus irmãos, perdôo-lhes o seu cri-
me, e rogo-vos que lhe perdoeis tambem ». Estes nobres
sentimentos arrancaram lagrimas ao rei, que mandou con-
234 AS MIL E UMA NOITES

vocar o povo e declarou Codadad seu herdeiro ; orde-


nou depois que trouxessem os principes presos, que to-
dos estavam carregados de ferros ; tirou -lhes o filho de
Pirouzé as suas cadeas, e os abraçou todos uns após
outros , de tão bom coração como fizera no pateo do cas-
tello do negro . Ficou o povo muito agradado da boa-in-
dole de Codadad, e deu-lhe mil applausos ; depois premia-
ram muito bem o cirurgião em reconhecimento dos ser-
viços que fizera á princeza de Deryabar .
A sultana Scheherazada acabava de contar a historia
de Ganem com tanta graça, que o sultão das Indias, seu
esposo, não pôde deixar de manifestar-lhe que a ouvira
com muito gosto. « Senhor, disse-lhe a sultana, não du-
vido que tivesse vossa magestade muita satisfação de
ter visto o califa Haroun Alraschid mudar de sentimen-
tos a favor de Ganem, de sua mãi e de sua irmã Força
dos corações ; creio que foi sensivel ás desgraças d'uns
e aos maus tratamentos feitos aos outros ; porém estou
persuadida que se vossa magestade quizesse ouvir a his-
toria do DORMENTE ACORDADO, em vez de todos esses
movimentos de indignação e de compaixão que a de Ga-
nem deve ter excitado no seu coração, esta, pelo contra-
rio , não lhe inspiraria senão alegria e gosto » .
Com o só titulo da historia, o sultão, que d'ella es-
perava aventuras inteiramente novas e divertidas, bem
teria querido ouvir a narração d'ellas logo no mesmo
dia, mas era tempo que se levantasse ; por isso esperou
o dia seguinte para ouvir a sultana Scheherazada, a quem
esta historia serviu de lhe prolongar a vida ainda algu-
mas noites e alguns dias. Assim na noite seguinte , de-
pois de Dinazarda a ter acordado, principiou a contar-
lh'a d'este modo :

HISTORIA DE ABOU HASSAN

O DORMENTE ACORDADO

No reinado do califa Haroun Alraschid havia em Bag-


dad um mercador mui abastado, cuja mulher era já ve-
CONTOS ARABES 235

lha. Tinham um filho unico chamado Abou Hassan , com


quasi trinta annos de idade , que fôra creado sem prati-
ca nenhuma das cousas do mundo.
Morreu o mercador, e Abou Hassan, que se viu o
unico herdeiro, tomou posse das grandes riquezas que
seu pai ajuntára no decurso de sua vida com muita par-
cimonia e com grande applicação ao seu negocio . O fi-
lho, que tinha vistas e inclinações diversas das de seu
pai , usou d'ellas diversamente . Como seu pai não lhe
déra dinheiro na sua mocidade senão o que bastava pre-
cisamente para os seus gastos, e sempre tivera inveja
aos mancebos de sua idade que não careciam d'elle , e
que tomavam todos os divertimentos a que a mocidade
se entrega mui facilmente, resolveu campar tambem , fa-
zendo despezas proporcionadas ás grandes riquezas com
que a fortuna acabava de favorecel-o . Para este effeito
dividiu o seu cabedal em duas partes ; uma foi empregada
em comprar terras no campo e casas na cidade , com que
arranjou uma renda sufficiente para viver a seu com-
modo, com promessa de não tocar no producto , mas
sim de ajuntal- o à proporção que o arrecadasse. A outra
metade, que consistia n'uma somma consideravel em di-
nheiro de contado, foi destinada a reparar todo o tempo
que parecia ter perdido debaixo do duro constrangimen-
to em que seu pai o contivera até á sua morte ; mas
com proposito firme de observar uma lei indispensavel,
que consistia em não gastar mais d'esta somma , no des-
mancho de vida que se propuzera .
Com esta resolução teve Abou Hassan em poucos
dias uma sociedade de mancebos quasi da sua idade e
condição, e não se lembrou de outra cousa senão de fa-
zer-lhes passar o tempo agradavelmente . Para este ef-
feito não se contentava em regalal- os bem, dia e noite ,
e de dar-lhes banquetes esplendidos, em que appare-
ciam com abundancia as viandas mais delicadas e os vi-
nhos mais exquisitos ; a isto acrescentou ainda a musi-
ca, chamando as melhores vozes de ambos os sexos . A
joven sociedade, pela sua parte, com o copo na mão,
misturava ás vezes as suas com as canções dos musicos,
e todos juntos pareciam accordar-se com todos os instru-
236 AS MIL E UMA NOITES

mentos de musica que os acompanhavam . Terminavam


ordinariamente estas festas por bailes, onde os melhores
bailarinos de ambos sexos da cidade de Bagdad eram cha-
mados . Todos estes divertimentos renovados cada dia com
prazeres novos , obrigaram Abou Hassan a fazer despe-
zas tão prodigiosas , que não pôde continuar tão grande
profusão por mais de um anno . A avultada somma que
destinára a esta prodigalidade, e o anno, acabaram jun-
tamente. Apenas deixou de ter mesa franca, logo desap-
pareceram os seus amigos ; nem sequer os encontrava
em qualquer lugar que fosse. Com effeito, fugiam d'el-
le logo que o avistavam ; e se por acaso se fazia encon-
tradiço com algum , e que o quizesse deter, desculpava-
se com diversos pretextos .
Foi Abou Hassan mais sensivel ao estranho procedi-
mento de seus amigos que o abandonavam com tanta
indignação e ingratidão , vistas todas as demonstrações
de amizade que lhe deram e o affecto inviolavel que lhe
juraram , do que a todo o dinheiro que com elles gastára
tão loucamente. Triste, pensativo, com a cabeça baixa
e com semblante carregado, em que se via pintada a
tristeza , entrou no quarto de sua mãi e assentou -se na
cabeceira do sophá, bastante afastado d'ella .
« Que vos aconteceu, filho ? perguntou-lhe sua mãi ,
vendo-o n'este estado. Porque estaes tão mudado, tão
abatido e tão differente do que ereis ? Ainda que tivesseis
perdido tudo o que possuis n'este mundo, não parece-
rieis mais triste . Sei a despeza horrorosa que fizestes , e
desde que vos entregastes a ella, quero capacitar- me que
não vos fica já muito dinheiro . Ereis senhor de vosso
capital ; e se não me oppuz ao vosso comportamento
desordenado, é porque sabia a prudente cautela que ti-
vestes de conservar metade do vosso cabedal . Á vista
d'isso não vejo o que póde ter- vos sepultado n'essa pro-
funda melancolia » .
Desfez- se em lagrimas Abou Hassan , ouvindo estas
palavras ; e no meio de seus choros e suspiros : « < Oh
minha mãi, clamou elle ; conheço finalmente , por uma
experiencia dolorosa, o quanto é insupportavel a pobre-
za. Sim, conheço muito bem, que, assim como o pôr do
CONTOS ARABES 237

sol nos priva do esplendor d'esse astro, do mesmo modo


a pobreza nos tira toda a alegria. Ella faz esquecer intei-
ramente todos os louvores que nos davam, e todo o bem
que de nós diziam antes de cahir n'ella ; ella nos reduz
a não andar sem tomar medidas para não sermos nota-
dos, e a passar as noites derramando lagrimas de sangue .
N'uma palavra, o que é pobre não é já considerado ,
até dos seus mesmos parentes e amigos , senão como
um estranho. Vós sabeis, minha mãi , proseguiu elle , de
que modo me comportei com meus amigos ha um anno .
Tratei-os com o maior regalo que pude imaginar, até es-
gotar o meu cabedal : e hoje , que não tenho já com que
continuar a tratal-os assim, conheço que me abandonam
todos . Quando digo que não tenho já com que continuar
a tratal- os assim, quero fallar do dinheiro que tinha de-
terminado empregar no uso que d'elle fiz . Quanto ao
meu rendimento, dou graças a Deus por ter-me inspira-
do reserval- o , debaixo da condição e juramento que fiz,
de não lhe tocar para o gastar tão loucamente. Guarda-
rei este juramento, e sei o bom uso que farei do que
tão felizmente me resta . Mas primeiro quero experimen-
tar até que ponto meus amigos, se merecem que lhes dé
este nome, levam a sua ingratidão. Quero vél -os todos
uns após outros ; e, depois de ter-lhes representado os
esforços que fiz por amor d'elles, incital- os -hei a juntar
entre si uma somma que sirva de algum modo para ti-
rar- me do mau estado a que me reduzi para dar-lhes
gosto. Porém não quero fazer estas diligencias, como
já vos disse, senão para ver se acho n'elles algum sen-
timento de reconhecimento . - Filho, replicou a mãi de
Abou Hassan, não pretendo dissuadir-vos de executar
o vosso intento ; todavia posso dizer-vos d'antemão que
é mal fundada a vossa esperança. Parece-me , por mais
que possaes fazer, que é inutil esse ensaio : não achareis
soccorro senão no que reservastes. Bem vejo que não
conheceis ainda esses amigos, a quem dão vulgarmente
esse nome entre a gente da vossa ordem, mas não tarda-
reis a conhecel- os. Queira Deus que seja do modo que
desejo, isto é, para vosso bem. - Minha mãi , replicou
Abou Hassan, estou bem persuadido da verdade do que
AS MIL E UMA NOITES
238
me dizeis ; ficarei mais certo d'um facto que diz respei-
to a mim só , depois de ter-me certificado por mim mes-
mo da sua baixeza e insensibilidade » .
Partiu no mesmo instante Abou Hassan , e tomou tão
bem as suas medidas que achou a todos os amigos em
suas casas . Representou -lhes a grande necessidade em
que se achava , e pediu -lhes que abrissem a sua bolsa
para soccorrel -o. Chegou a prometter -lhes que se obri-
gava a restituir a cada um em particular as sommas que
The tivesse emprestado , restabelecidos que fossem os
seus negocios , sem todavia dar-lhes a conhecer que fora
em grande parte por seu respeito que tanto se arruiná-
ra, para estimular mais a sua generosidade . Não se es-
queceu de lisonjeal -os tambem com a esperança de prin-
cipiar novamente algum dia a banqueteal -os, do mesmo

modo que já fizera.


Nenhum dos amigos se commoveu com as vivas cô-
res de que se serviu o afflicto Abou Hassan para procu-
rar persuadil - os. Teve o desgosto de ver que alguns lhe
disseram abertamente que não o conheciam , e nem se
lembravam de o ter visto . Voltou para sua casa com o
coração penetrado de dôr e indignação . « Ah , minha boa
mãi ! clamou elle entrando no seu quarto ; bem m'o dis-
sestes ! em vez de amigos não achei senão perfidos , in-
gratos e malvados , indignos da minha amizade . Estou in-
teiramente desenganado , e prometto de nunca em tem-
po algum tornar a vêl-os » .
Foi Abou Hassan constante na resolução de cumprir
a sua palavra . Para este effeito tomou as precauções
convenientes para evitar as occasiões de encontral - os. E
para não cahir mais no mesmo inconveniente , prometteu ,
com juramento , de nunca na sua vida convidar para a
sua mesa habitante algum de Bagdad . Depois foi buscar
o dinheiro das suas rendas ao lugar onde o puzera de
reserva , para substituil -o ao que acabava de gastar. Re-
solveu não tirar para sua despeza diaria senão uma som-
ma regulada e sufficiente , para dar de cear com abun-
dancia a uma unica pessoa em sua companhia . Fez ain-
da juramento de que esta pessoa não seria de Bagdad ,
mas um estrangeiro que tivesse chegado no mesmo dia,
CONTOS ARABES 239

e que o despediria na manhã seguinte , depois de lhe dar


de cear uma noite sómente.
Conforme este projecto, tinha Abou Hassan cuidado ,
cada manhã, de fazer a provisão necessaria para isto , e
pela tarde ia assentar-se à entrada da ponte de Bagdad ;
logo que via um estrangeiro, de qualquer estado ou con-
dição que fosse , chegava-se a elle com cortezia , e o con-
vidava a fazer-lhe a honra de ir cear, e repousar em sua
casa aquella noite ; e , depois de o ter informado da lei
que se impuzera a si mesmo e da condição que puzera
à sua cortezia, levava-o para sua casa.
O banquete com que Abou Hassan regalava o seu hos-
pede não era sumptuoso, mas havia com que satisfazer-
se abundantemente. O bom vinho principalmente não fal-
tava . Fazia durar o banquete até alta noite ; e em vez
de entreter o seu hospede com negocios do estado , de
familia ou commercio, como acontece muitas vezes , affe-
ctava pelo contrario não fallar senão de cousas indiffe-
rentes, agradaveis e divertidas . Era naturalmente agra-
davel e de bom humor e em qualquer materia que fos-
se, dava uma exposição ao seu discurso , capaz de inspi-
rar alegria aos mais melancolicos .
Despedia o seu hospede no dia seguinte pela manhã :
« A qualquer parte onde possaes ir, dizia-lhe Abou Has-
san, Deus vos preserve de todo o motivo de desgosto.
Quando hontem vos convidei a vir cear commigo, infor-
mei-vos da lei que me impuz a mim mesmo ; assim não
tomeis a mal que vos diga que não beberemos mais jun-
tos, e que tambem não nos veremos mais, nem em mi-
nha casa, nem em outra alguma parte ; tenho minhas
razões para assim obrar : Deus vos guarde » .
Era Abou Hassan exacto na observancia d'esta regra ;
não olhava mais para os estrangeiros que recebera uma
vez em sua casa , e não lhes fallava mais . Quando os en-
contrava nas ruas, nas praças ou nas assembléas publi-
cas, fingia que os não via ; desviava-se para evitar que
viessem ter com elle ; finalmente não tinha mais com-
municação alguma com elles. Havia já muito tempo que
assim se governava, quando um pouco antes do pôr do
sol, como estivesse sentado, segundo o seu costume, á
240 AS MIL E UMA NOITES

entrada da ponte, appareceu o califa Haroun Alraschid ,


mas disfarçado de modo que não podia reconhecel- o .
Ainda que este monarcha tivesse ministros, officiaes
e magistrados de grande exactidão em cumprir bem os
seus deveres, queria todavia tomar elle mesmo conhe-

cimento de todas as cousas. Com esta resolução, como


já temos dito, ia algumas vezes disfarçado de diversos
modos pela cidade de Bagdad . Nem dos arrabaldes se
descuidava ; e a este respeito tinha- se habituado a ir ca-
da primeiro dia do mez ás estradas reaes por onde lá se
ia, ora por um, ora por outro lado . N'este dia, primeiro
do mez, appareceu disfarçado em mercador de Moussoul,
que vinha desembarcar no outro lado da ponte, e segui-
do d'um escravo alto e robusto.
CONTOS ARABES 241

Como tivesse o califa no seu disfarce um ar grave e


respeitavel, Abou Hassan, que o tomava por um merca-
dor de Moussoul, levantou -se do lugar em que estava
assentado ; e depois de o ter cortejado com ar gracioso
e ter-lhe beijado a mão : « Senhor, disse-lhe , felicito - vos
pela vossa feliz chegada ; supplico- vos que me façaes a
honra de vir cear commigo, e de passar esta noite na
minha casa, para poderdes descançar da fadiga de vossa
jornada » . E para obrigal-o mais a não lhe recusar a gra-
ça que lhe pedia , explicou -lhe em poucas palavras o cos-
tume em que se puzera de receber em sua casa cada dia ,
em quanto lhe fosse possivel, e por uma noite sómente ,
o primeiro estrangeiro que se lhe apresentasse .
Achou o califa tão singular a extravagancia do gosto
de Abou Hassan, que caprichou conhecel-o a fundo. Sem
sahir do caracter de mercador, manifestou-lhe que não
podia melhor corresponder a um offerecimento tão cor-
tez, pelo qual não esperava á sua chegada a Bagdad, se-
não aceitando o offerecimento officioso que acabava de
fazer-lhe ; que não tinha mais do que ensinar- lhe o ca-
minho, e que estava disposto a seguil - o .
Abou Hassan, que não sabia que o hospede que o
acaso lhe trazia, era d'uma ordem tão superior, portou-
se com o califa como com um seu igual. Levou-o para
sua casa e o mandou entrar n'um quarto armado com to-
do o aceio, onde o fez assentar no sophá, lugar o mais
honorifico. Estava a cêa prompta e posta a mesa. A mãi
de Abou Hassan, que sabia muito bem de cozinha, ser-
viu tres pratos : um no meio, guarnecido d'um bom capão
e de quatro bellos frangos , e os outros ao lado, que con-
sistiam , um n'um grande pato bem gordo e outro em
pombos . Nada mais havia ; porém estas viandas eram
bem escolhidas, e d'um gosto delicioso .
Assentou-se Abou Hassan á mesa defronte do seu hos-
pede , e o califa e elle principiaram a comer com bom
appetite, servindo- se cada um do que mais gostava, sem
fallar e sem beber, conforme o costume do paiz. Tendo
acabado de comer, o escravo do califa lhes apresentou
agua para se lavarem, e a mãi de Abou Hassan tirou a
mesa e serviu o pospasto, que consistia em diversas es-
TOMO III . 16
242 AS MIL E UMA NOITES

pecies de frutas da estação , como uvas, pecegos , maçãs ,


peras e varias massas de amendoas seccas. Anoitecendo,
accenderam vélas , depois do que Abou Hassan mandou
pôr as garrafas e as taças a seu lado, e recommendou
a sua mãi que désse de cear ao escravo do califa.
Tendo-se o disfarçado mercador de Moussoul, isto é,
o califa, e Abou Hassan posto novamente á mesa, Abou
Hassan, antes de tocar na fruta , pegou n'uma taça, en-
cheu-a e bebeu, e segurando-a na mão : « Senhor , disse
ao califa, que era, como lhe parecia, um mercador de
Moussoul ; sabeis, como eu, que o gallo nunca bebe sem
chamar as gallinhas para vir beber com elle : convido-
vos pois a seguir o meu exemplo . Não sei o que pen-
saes a este respeito : quanto a mim parece-me que um
homem que aborrece o vinho e que quer passar por con-
tinente, não o é. Deixemos de parte essa casta de gente
com o seu humor sombrio e melancolico, e procuremos
a alegria ; ella está na taça, e a taça a communica aos
que a despejam ».
Em quanto Abou Hassan bebia : « Isto me agrada, dis-
se o califa, pegando na taça que lhe era destinada ; e
eis-aqui o que se chama um homem honrado : gosto de
vêr-vos com esse humor e com essa alegria: espero be-
ber outro tanto » .
Apenas bebeu Hassan , encheu a taça que o califa Ilhe
apresentava : < « Provai, senhor, disse elle, achal- o -heis
bom . D'isso estou muito persuadido, replicou o ca-
lifa com ar risonho ; não é possivel que um homem
como vós não saiba fazer a escolha das melhores cou-
sas » .
Em quanto o califa bebia : « Basta encarar-vos , repli-
cou Abou Hassan, para conhecer á primeira vista que
sois d'estes homens que conhecem o mundo e que sabem
viver. Se a minha casa, acrescentou em versos arabes,
fosse capaz de sentimento e fosse sensivel ao motivo de
alegria que tem de possuir-vos , ella o manifestaria alta-
mente, e prostrando-se perante vós , clamaria : « Que gos-
to ! que felicidade vêr-me honrado com a presença de
pessoa tão civil e tão prazenteira, que não desdenha de
cear commigo ! Finalmente, senhor, estou no maior au-
CONTOS ARABES 243

ge da minha alegria por ter encontrado hoje um homem


do vosso merecimento >> .
Estes bons ditos de Abou Hassan divertiam muito o
califa, que era naturalmente jovial e que gostava de ex-
cital- o a beber, pedindo elle mesmo repetidas vezes vi-
nho para conhecel -o melhor na sua conversação , pela
alegria que lhe inspiraria o liquido. Para entrar em con-
versação perguntou- lhe como se chamava, em que se oc-
cupava e de que modo passava a vida . « Senhor, respon-
deu elle, meu nome é Abou Hassan . Perdi meu pai, que
era mercador, não, na verdade , dos mais ricos, mas dos
que viviam com mais commodo em Bagdad. Morrendo,
deixou-me uma herança mais que sufficiente para viver
sem ambição conforme o meu estado . Como o seu com-
portamento a meu respeito fosse muito severo e até á
sua morte tivesse passado a melhor parte da minha mo-
cidade n'um grande constrangimento , quiz recuperar o
bom tempo que me parecia ter perdido.
a N'isso, todavia, proseguiu Abou Hassan, governa-
va-me de outro modo que não fazem commum mente to-
dos os mancebos . Entregam-se à devassidão sem consi-
deração , e entregam-se a ella até que reduzidos á ulti-
ma pobreza, façam, contra sua vontade, penitencia for-
çada o restante de sua vida . Para não cahir n'esta des-
graça reparti todos os meus haveres em duas porções,
uma em bens de raiz e outra em dinheiro de contado.
Destinei o dinheiro de contado para as despezas que me-
ditava, e tomei uma firme resolução de não tocar nas
minhas rendas. Formei uma sociedade de gente do meu
conhecimento e quasi de minha idade , e com o dinheiro
de contado, que gastava ás mãos cheias, regalava- os es-
plendidamente cada dia, de maneira que nada faltava aos
nossos divertimentos, Porém a duração não foi longa.
Nada mais achei no fundo da minha caixa acabado que
foi o anno, e ao mesmo tempo todos os meus amigos des-
appareceram. Vi - os um após outro ; representei -lhes o
estado infeliz em que me achava, mas nenhum me offe-
receu com que me alliviar. Renunciei pois a sua amiza-
de; e limitando-me a não gastar senão o meu rendimen-
to, reduzi-me a não ter mais companhia senão o pri-
244 AS MIL E UMA NOITES

meiro estrangeiro que encontrasse cada dia á sua chega-


da a Bagdad , com esta condição, de não o banquetear
senão esse dia. Informei-vos do resto, e agradeço á mi-
nha boa fortuna o ter-me deparado um estrangeiro de
tanto merecimento >>.
O califa, mui satisfeito d'esta explicação, disse a Abou
Hassan : «Não posso assás louvar-vos do bom partido que
tomastes, de ter obrado com tanta prudencia, engolfan-
do-vos n'uma vida desordenada, e de vos terdes com-
portado de um modo que não é commum á mocidade :
quero-vos ainda mais por ter desempenhado a vossa pro-
messa com tanta exactidão . Era o passo bem escorrega-
dio, e não posso deixar d'admirar como, depois de ter
visto o fim do vosso dinheiro de contado, tivestes bastan-
te moderação para não dissipar o vosso rendimento e
tambem o vosso capital . Para dizer-vos o que penso n'es-
te particular, parece-me que sois libertino a quem acon-
teceu semelhante cousa e a quem jámais acontecerá tal-
vez. Finalmente, confesso-vos que invejo a vossa felicida-
de. Sois o mais venturoso mortal da terra, gabaes-vos de
estar cada dia na companhia de um homem honrado com
quem podeis entreter-vos tão agradavelmente, e a quem
daes motivo de publicar por toda a parte o bom acolhi-
mento que lhe fazeis . Mas nem vós nem eu nos lembra-
mos de que estamos fallando sem beber ; bebei , e en-
chei depois a minha taça » . Continuaram o califa e Abou
Hassan a beber e a conversar em cousas agradaveis .
Era já alta noite ; e fingindo o califa que estava mui-
to cançado da jornada que fizera , disse a Abou Hassan
que precisava de descançar . « Não quero da minha par-
te, acrescentou elle , que deixeis de descançar por mi-
nha causa. Antes de apartar-nos (talvez sáia ámanhã de
vossa casa antes que acordeis) tenho o gosto de mani-
festar-vos o quanto estou penhorado pelo vosso trata-
mento officioso, pela vossa boa mesa e hospitalidade que
tão benevolamente exercitastes para commigo . A unica
cousa que me causa desgosto é não saber como provar-
vos o meu reconhecimento. Supplico-vos que me indi-
queis o meio de o fazer, e vereis que não sou ingrato.
Não pode dar -se que um homem como vós não tenha
CONTOS ARABES 245

algum negocio, alguma precisão, e não deseje finalmen-


te alguma cousa que lhe agrade . Abri o vosso coração e
fallai - me francamente : mercador, como sou , não deixo
de ter algum prestimo.
A estes offerecimentos do califa , que Abou Hassan to-
mava sempre por um mercador : « Honrado homem , re-
plicou este , estou muito persuadido que não é por com-
primento que fazeis offertas tão generosas . Porém , á fé
de um homem de bem, posso assegurar- vos que não te-
nho nem desgostos , nem negocios, nem desejos , e que
nada peço a ninguem . Não tenho ambição alguma, como
já vos disse, e estou contentissimo com a minha sorte.
Assim , não me resta senão agradecer-vos, não só os
vossos offerecimentos , mas tambem a complacencia que
tivestes de fazer-me tamanha honra , como a de vir cear
e dormir em minha casa. Dir-vos -hei todavia, proseguiu
Abou Hassan, que uma unica cousa me desgosta, sem
que chegue a perturbar o meu descanço . Sabereis que a
cidade de Bagdad está dividida em bairros, e que em
cada bairro ha uma mesquita com um Iman para fazer
a oração ás horas costumadas, á frente da gente do bair-
ro que n'ella se ajunta . O Iman é um velho de semblan-
te austero e perfeito hypocrita, se jámais houve hypo-
critas no mundo . Para conselheiros admittiu outros qua-
tro barbaros , meus visinhos, homens da sua qualidade,
com pouca differença , que se juntam em sua casa regu-
larmente cada dia. E no seu conciliabulo não ha maledi-
cencia , calumnia e maldade que não pratiquem contra
mim é contra todo o bairro, para perturbar o socego e
fazer reinar a dissenção . Fazem tremer uns e ameaçam
outros . Querem finalmente intrometter-se nos negocios
alheios, e que cada um se governe conforme o seu ca-
pricho, elles, que não sabem governar -se a si ! A fallar
verdade causa-me afflicção vêr que se mettem em cou-
sas que em nada dizem respeito ao seu Alcorão, e que
não deixam viver o mundo em paz . - Então, replicou o
califa, quererieis provavelmente um meio de fazer parar
essa desordem ? - Adivinhastes, replicou Abou Hassan ;
e a unica cousa que pediria a Deus para isso, era po-
der ser califa , commendador dos crentes, Haroun Al-
246 AS MIL E UMA NOITES

raschid, nosso soberano senhor e amo, só por um dia.


-Que farieis se isso acontecesse ? perguntou o califa. -
Faria uma cousa que serviria de grande exemplo , res-
pondeu Abou Hassan, e que daria gosto a todos os ho-
mens de bem . Mandaria dar cem bastonadas nas plantas
dos pés a cada um dos quatro velhos, e quatrocentas ao

Iman, para ensinar-lhes que não devem perturbar e mo-


lestar assim os seus visinhos >> .
Achou o califa o pensamento de Abou Hassan mui
gracioso ; e, como nascesse para as aventuras extraordi-
narias, fez-lhe isto lembrar de se divertir singularmente
com elle. « Tanto mais me agrada o vosso desejo, disse
o califa, quanto vejo que parte d'um coração recto e de
um homem que não póde consentir que a malicia dos
CONTOS ARABES 247

malvados fique impune . Teria grande gosto de ver o ef


feito da vossa lembrança, e não é talvez tão impossivel
que isso aconteça, como podereis imaginar. Estou per-
suadido que o califa se despojaria de boa vontade do seu
poder por vinte e quatro horas , se fosse informado da
vossa boa intenção e do bom uso que d'elle farieis . Ain-
da que mercador estrangeiro, não deixo todavia de ter
algum credito para contribuir para isso em alguma cou-
-
sa. Bem vejo, replicou Abou Hassan, que zombaes da
minha louca imaginação , e d'ella zombaria tambem o
califa se tivesse conhecimento de semelhante extravagan
cia. O que poderia isso talvez produzir, é que manda-
ria informar-se do procedimento do Iman e dos seus con-
selheiros, e os mandaria castigar. - Não zombo comvos-
co, replicou o califa ; Deus me guarde de ter um pensa-
mento tão desarrazoavel para uma pessoa como vós , que
tão bem me recebestes, desconhecido como sou, e asse-
guro-vos que o califa não zombaria tambem de vós . Po-
rém deixemos essas cousas ; é quasi meia noite e é tempo
de recolher-nos. ― Deixemos pois a nossa conversação,
disse Abou Hassan ; não quero pôr obstaculo ao vosso
descanco. Mas como fica ainda vinho na garrafa, é pre-
ciso despejal-a e depois iremos deitar-nos . A unica cou-
sa que vos recommendo é que , sahindo ámanhã pela
manhã, no caso que não esteja acordado, não deixeis a
porta aberta ». O califa lhe prometteu executar isto fiel-
mente.
Em quanto Abou Hassan fallava , pegou o califa na
garrafa e nas duas taças . Serviu-se primeiro, dando a
conhecer a Abou Hassan que era para dar-lhe os agrade-
cimentos. Depois de ter bebido deitou subtilmente na ta-
ça de Abou Hassan uma pitada de certo pó que trazia
comsigo, e vasou em cima o resto da garrafa . Apresen-
tando-a a Abou Hassan : « Tivestes o trabalho, disse elle,
de dar- me de beber toda a tarde ; rogo - vos que aceiteis
esta taça da minha mão, e que bebaes á minha saude ».
Pegou Abou Hassan na taça ; e , para mostrar melhor
ao seu hospede com quanto gosto recebia a honra que
The fazia, bebeu-a quasi d'um trago. Mas apenas pôz a
taça na mesa, fez o pó o seu effeito. Deu-lhe uma som-
AS MIL E UMA NOITES
218
nolencia tão profunda , que a cabeça lhe cahiu quasi so-
bre os joelhos , de um modo tão repentino , que o califa
não pôde deixar de rir . O escravo , por quem se fizera
acompanhar, estava de volta depois de ter ceado , e ha-
via já algum tempo que estava alli prompto a receber as
suas ordens . « Péga n'este homem ás costas , disse -lhe o
califa ; mas toma bem sentido no lugar onde está esta
casa , para trazel -o quando t'o ordenar ».
O califa , seguido do escravo que carregava com Abou
Hassan , sahiu da casa , porém sem fechar a porta, como
Abou Hassan lhe pedira, e fêl -o de proposito . Chegado
que foi ao seu palacio , entrou por uma porta secreta e
fez-se acompanhar pelo escravo até ao seu quarto, onde
todos os officiaes da sua camara o esperavam . < « Despi es-
te homem , disse -lhes, e deitai -o no meu leito ; dir- vos - hei

depois as minhas intenções >> .


Despiram os officiaes a Abou Hassan , vestiram -lhe
o vestido de noite do califa , e o deitaram conforme a
ordem que lhes déra . Ninguem estava ainda deitado no
palacio . Mandou o califa chamar todos os officiaes e todas
as senhoras ; e quando estavam todos na sua presença :
<«<Quero, disse -lhes, que todos os que costumam achar - se
presentes quando me levanto , não faltem a estar aqui
com este homem que está deitado no meu leito , e que
cada um o sirva , quando acordar , do mesmo modo que
costumam servir-me a mim mesmo . Quero tambem que
tenham para com elle as mesmas attenções como para
com a minha propria pessoa , e que seja obedecido em
tudo o que mandar . Nada se recusará de tudo o que pe-
dir , e ninguem se lhe opporá em qualquer cousa que
possa dizer ou desejar . Em todas as occasiões que se tra-
tar de lhe fallar ou de responder-lhe , não haverá falta
em tratal -o por commendador dos crentes . N'uma pala-
vra, peço tambem que não se lembrem mais da minha
pessoa , todo o tempo que estiverem com elle, como se
elle fosse na verdade o que eu sou , isto é , o califa e o
commendador dos crentes . Sobretudo tomem muito sen-
tido em não equivocar -se na menor circumstancia » .
Os officiaes e as senhoras , que perceberam logo que
o califa queria divertir-se, não responderam senão com
CONTOS ARABES 249

uma profunda inclinação ; e desde então cada um pela


sua parte se preparou a contribuir com todo o seu poder
em tudo o que fosse da sua competencia, a desempenhar
bem o seu papel .
Entrando no seu palacio, tinha o califa mandado cha-
mar o grão-visir Giafar, pelo primeiro official que encon-
trára, e este primeiro ministro acabava de chegar . Dis-
se-lhe o califa : « Giafar, mandei-te chamar para avisar-
te que te não assustes quando amanhã vires entrar na
minha audiencia o homem que ahi vês deitado no meu
leito, e assentado no meu throno com o meu vestido de
ceremonia. Chega-te a elle com as mesmas attenções e
o mesmo respeito que costumas ter commigo, tratando-o
tambem por commendador dos crentes. Ouve e executa
pontualmente o que te ordenar, como se eu o ordenasse.
Não se esquecerá de fazer liberalidades e de encarregar-
te da distribuição ; faze tudo o que te ordenar a este res-
peito, ainda que se esgotassem todos os cofres dos meus
erarios. Lembra- te de avisar tambem os meus emires ,
os meus alcaides e todos os outros officiaes que estão
fóra do meu palacio, que façam ámanhã na audiencia pu-
blica as mesmas honras que à minha pessoa , e de dissimu-
larem tão bem, que não se perceba a mais leve cousa que
possa pertubar o divertimento que quero ter. Vai , reti-
ra-te, nada mais tenho que ordenar-te, e dá-me a satis-
fação que te peço ».
Retirado que foi o grão-visir passou o califa a outro
quarto e deitando-se, deu a Mesrour, chefe dos eunucos ,
as ordens que devia executar pela sua parte, para que
tudo succedesse do modo que o entendia, para satisfazer
o desejo de Abou Hassan, vêr como usaria do poder e
da authoridade do califa, no pouco tempo que desejára.
Sobretudo ordenou-lhe que não faltasse em acordal -o á
hora costumada e antes que acordassem Abou Hassan,
porque queria estar presente.
Não se esqueceu Mesrour de acordar o califa no tem-
po que lhe prescrevera . Entrado que foi o califa no quar-
to onde Abou Hassan dormia, pôz-se n'um pequeno ga-
binete elevado, d'onde podia ver por uma grade tudo o
que se passava sem ser visto . Todos os officiaes todas
250 AS MIL E UMA NOITES

as senhoras que deviam achar-se presentes , quando se


levantasse Abou Hassan , entraram ao mesmo tempo, e se
postaram cada um no seu lugar costumado, segundo a
sua ordem e n'um grande silencio, como se fosse o pro-
prio califa que se levantasse, e promptos a desempenhar-
se das funcções a que estavam destinados .
Como principiasse já a raiar o dia e fosse tempo de
levantar-se para fazer a oração antes do nascer do sol ,
o official que estava mais perto da cabeceira da cama
chegou ao nariz de Abou Hassan uma pequena esponja
molhada em vinagre.
Espirrou logo Abou Hassan voltando a cabeça sem
abrir os olhos e com um pequeno esforço lançou alguma
pituita, que promptamente recolheram n'uma pequena ba-
cia d'ouro para impedir que cahisse sobre o tapete e o
sujasse . Este o effeito ordinario dos pós que o califa lhe
fizera tomar ; e conforme a sua dóse cessa em mais ou
menos tempo a somnolencia.
Tornando a encostar a cabeça no travesseiro abriu
Abou Hassan os olhos e tanto quanto lh'o permittia a pou-
ca luz do dia que já apontava, viu-se no meio de um
grande quarto magnifico e soberbamente armado, com
um tecto todo apainelado de figuras, pintadas á arabes-
ca, adornado de grandes vasos d'ouro maciço, de repos-
teiros e de um tapete de ouro e sêda, cercado de jovens
senhoras, que pela maior parte tinham diversas especies
de instrumentos de musica, promptas a tocar, todas de
belleza encantadora, de eunucos pretos , todos ricamen-
te vestidos e em pé, com grande modestia. Fitando os
olhos na cobertura do leito, viu que era de brocado de
ouro com o chão vermelho, recamada de perolas e dia-
mantes, e perto da cama viu um vestido do mesmo es-
tofo e do mesmo lavor, e ao lado d'elle , sobre uma al-
mofada, um barrete do califa.
Á vista d'objectos tão brilhantes, Abou Hassan ficou
pasmado e confuso em extremo . Olhava para todos como
se estivesse sonhando ; sonho tão verdadeiro a seu res-
peito, que desejava que não fosse sonho . « Está bem, di-
zia comsigo, eis -me-aqui feito califa ; porém, acrescenta-
va um pouco depois arrependendo- se, não devo enganar-
CONTOS ARABES 251

me, é um sonho, effeito do desejo sobre que conversej


ha pouco com o meu hospede»; e tornava a fechar os
olhos como para dormir.
Ao mesmo tempo chegou -se um eunuco : « Commen-
dador dos crentes, disse-lhe com o devido respeito ; que
vossa magestade não adormeça ; é tempo que se levante
para fazer oração ; principia a raiar o dia » .
Ditas estas palavras, que causaram grande admiração
a Abou Hassan : « Estou acordado ou durmo ? dizia ainda
comsigo . Durmo, continuava sempre com os olhos fecha-
dos ; d'isso não devo duvidar » .
Passado um instante : « Commendador dos crentes , con-
tinuou o eunuco, que viu que não respondia e que não
dava signal algum de querer levantar-se ; vossa mages-
tade não se agastará que lhe repita que é tempo que se
levante, a menos que não queira deixar passar a hora de
fazer a sua oração da manhã : não tardará o sol a le-
vantar-se, e não costuma faltar a ella. Enganava-me ,
disse logo Abou Hassan , não durmo , estou acordado . Os
que dormem não ouvem, e eu ouço que me fallam » . Abriu
ainda os olhos ; e , como fosse já dia claro, observou dis-
tinctamente o que vira confusamente . Assentou- se na ca-
ma com ar risonho, como um homem cheio de alegria
por se vêr n'um estado tão superior á sua condição ; e o
califa, que o observava sem ser visto, conheceu o seu
pensamento com summo prazer .
Prostraram-se então as jovens senhoras do palacio com
a face no chão na presença de Abou Hassan ; e as que ti-
nham os instrumentos de musica lhe deram os bons dias
com um concerto de flautas, oboés, tiorbas e outros ins-
trumentos harmoniosos, que o arrebatou, de modo que
não sabia onde estava, e não se conhecia a si mesmo.
Tornou todavia á sua primeira idéa , e duvidava ainda se
tudo o que via e ouvia era sonho ou realidade . Poz as
mãos diante dos olhos , e abaixando a cabeça : « Que si-
gnifica tudo isto ? dizia comsigo ; de quem é este pala-
cio ? que significam estes eunucos , estes officiaes tão
bem feitos de corpo e tão bem vestidos ? estas senhoras
tão bellas e estas cantoras que me encantam ? É possivel
que não possa distinguir se estou sonhando ou se estou
252 AS MIL E UMA NOITES

em meu juizo ? » Tira finalmente as mãos de diante dos


olhos, abre-os, e erguendo a cabeça viu que o sol lan-
çava já os seus primeiros raios pelas janellas do quarto
em que estava.
N'este instante, Mesrour, chefe dos eunucos, entrou,
prostrou-se profundamente ante Abou Hassan, e disse-lhe
levantando-se : « Commendador dos crentes, vossa ma-
gestade me permittirá representar-lhe que não costuma
levantar-se tão tarde, e que deixou passar o tempo de
fazer a sua oração . A não ter passado uma má noite e
a não estar indisposto, não lhe fica já senão o tempo
de subir ao throno para presidir ao conselho e mostrar-
se, como de costume. Os generaes de seus exercitos, os
governadores de suas provincias e os outros officiaes-
móres da sua côrte, não esperam senão o instante em
que a porta da sala do conselho lhes seja aberta » .
Com o discurso de Mesrour ficou Abou Hassan bem
persuadido de que não dormia , e que o estado em que
se achava não era um sonho. Não se achou menos em-
baraçado que confuso na incerteza do partido que toma-
ria. Finalmente fitou os olhos em Mesrour, e com tom
severo : « A quem fallaes ? perguntou-lhe ; e quem é o
que chamaes commendador dos crentes , vós, a quem não
conheço ? Tomaes -me sem duvida por outrem » >.
Qualquer outro, que não fosse Mesrour, ter-se - hia
perturbado com a pergunta de Abou Hassan ; mas infor-
mado pelo califa, desempenhou maravilhosamente o seu
papel . « Meu respeitavel senhor e amo , clamou elle , vos-
sa magestade falla-me assim hoje para experimentar-me.
Não é vossa magestade o commendador dos crentes, o
monarcha do mundo, do Oriente ao Occidente , e o viga-
rio cá na terra do propheta enviado de Deus, senhor
d'este mundo terrestre e do celeste ? Mesrour, vosso mi-
sero escravo , não se esqueceu d'isso, ha tantos annos
que tem a honra e a felicidade de tributar os seus res-
peitos e os seus serviços a vossa magestade. Ter-se-hia
pelo mais desgraçado dos homens se tivesse perdido a
vossa confiança ; supplica-vos pois mui humildemente que
tenhaes a bondade de socegal - o : estima mais crêr que um
.sonho trabalhoso perturbou o vosso descanço esta noite » .
CONTOS ARABES 253

Deu Abou Hassan tamanhas risadas ouvindo estas pa-


lavras de Mesrour, que se deixou cahir de costas sobre
o travesseiro da cama, com grande alegria do califa ,
que teria tambem rido do mesmo modo se não receasse
pôr termo logo no seu principio á divertida scena que
resolvêra dar se a si mesmo.
Abou Hassan, tendo rido bastante tempo da sua pos-
tura, tornou a assentar-se ; e dirigindo a falla a um pe-
queno eunuco, preto como Mesrour : « Ouve, disse-lhe ,
dize-me quem sou. - Senhor, respondeu o pequeno eu-
nuco com ar modesto, vossa magestade é o commenda-
dor dos crentes, e o vigario na terra do senhor d'ambos
os mundos . Tu és um pequeno mentiroso, cara da côr
de pêz ! » replicou Abou Hassan.
Chama depois Abou Hassan uma das senhoras que
estava mais chegada a elle que as outras : « Chegai - vos ,
bella senhora, disse elle offerecendo - lhe a mão ; pegai ,
mordei- me a ponta do dedo a ver se durmo ou se estou
acordado >> .
A senhora, que sabia que o califa via tudo o que se
passava no quarto, gostou de ter occasião de mostrar o
que era capaz de fazer, quando se tratava de divertil-o .
Chegou-se pois a Abou Hassan com a seriedade possi-
vel, e apertando levemente entre os dentes a ponta do
dedo que lhe estendêra , fez-lhe sentir alguma dôr.
Puxando para si a mão apressadamente : « Não durmo,
disse logo Abou Hassan ; não durmo, por certo. Por que
milagre estou pois feito califa n'uma noite ? eis-aqui a
cousa mais maravilhosa e mais extraordinaria ! » Diri-
gindo-se depois á mesma senhora : « Não me occulteis a
verdade , disse elle, eu vol- o peço pela protecção de
Deus, em quem tendes confiança, assim como eu : será
verdade que sou o commendador dos crentes ? - É tão
verdade, respondeu a senhora , que vossa magestade é
o commendador dos crentes, que temos motivos , todos
quantos somos vossos escravos , de admirar-nos que
queira persuadir-nos que não o é. - Sois uma mentiro-
sa, replicou Abou Hassan, bem sei o que sou » .
Percebendo o chefe dos eunucos que Abou Hassan
queria levantar- se, offereceu-lhe a mão e o ajudou a
254 AS MIL E UMA NOITES

pôr-se fóra da cama . Estando em pé, resoou em todo o


quarto a saudação que todos os officiaes e todas as se-
nhoras lhe fizeram ao mesmo tempo, com uma acclama-
ção n'estes termos : « Commendador dos crentes, que
Deus dé um dia feliz a vossa magestade . - Oh céo, que

maravilha esta ! clamou então Abou Hassan ; hontem de


tarde era Abou Hassan, e hoje pela manhã sou o com-
mendador dos crentes ! nada entendo d'uma mudança tão
repentina e tão maravilhosa ». Os officiaes, destinados a
este ministerio, o vestiram apressadamente ; e tendo aca-
bado, como os outros officiaes, os eunucos e as senhoras
se tivessem disposto em duas fileiras até à porta por on-
de devia entrar na sala do conselho, Mesrour caminhava
CONTOS ARABES 255

adiante e Abou Hassan o seguia. Correu-se o reposteiro


e abriu um porteiro a porta. Entrou Mesrour na sala do
conselho e caminhou ainda adiante d'elle até junto do
throno, onde parou para ajudal-o a subir, segurando -o de
um lado pelo braço , em quanto outro official , que o se-
guia, o ajudava tambem do mesmo modo a subir.
Assentou-se Abou Hassan entre as acclamações dos
officiaes, que lhe desejaram todo o genero de felicidade
e prosperidade ; e voltando- se para a direita e para a es-
querda, viu os officiaes das guardas dispostos em bella
ordem e em boa continencia.
O califa, todavia, que sahira do gabinete onde estava
escondido, no instante em que Abou Hassan entrára na
sala do conselho, passou a outro gabinete que tinha tam-
bem vista para a mesma sala, d'onde podia vêr e ouvir
tudo o que se passava no conselho, quando o seu grão-
visir presidia em seu lugar e alguma indisposição o im-
pedia de presidir em pessoa. O que lhe agradou logo foi
vêr que Abou Hassan o representava no seu throno qua-
si com tanta gravidade como elle mesmo.
Tendo Abou Hassan tomado assento, o visir Giafar,
que acabava de chegar, se prostrou ante elle ao pé do
throno, levantou-se, e dirigindo- se á sua pessoa : « Com-
mendador dos crentes, disse elle, que Deus conceda a
Vossa magestade os seus favores n'esta vida, o receba
no seu paraiso na outra, e precipite os seus inimigos
nas chammas do inferno » .
Abou Hassan, visto o que lhe acontecera desde que
acordára e o que acabava de ouvir da bocca do grão-vi-
sir, não duvidou que fosse califa, como desejára de o
ser. Assim, sem examinar como ou por que aventura
uma mudança de fortuna tão pouco esperada se fizera ,
tomou logo o partido de exercer o soberano poder. Por-
tanto perguntou ao grão- visir, encarando- o com gravi-
dade, se tinha alguma cousa que dizer -lhe .
« Commendador dos crentes, replicou o grão-visir, os
emires, os visires e os mais cfficiaes que tem assento
no conselho de vossa magestade , estão à porta e só es-
peram o instante de vossa magestade lhes dar licença
de entrar, e de vir tributar-lhe os obsequios do costu-
256 AS MIL E UMA NOITES

me». Disse logo Abou Hassan que os mandasse entrar ;


e o grão-visir voltando-se , e dirigindo-se ao chefe dos
officiaes, que só esperava pela ordem: « Chefe dos offi-
ciaes, disse elle , o commendador dos crentes ordena
que façaes a vossa obrigação » .
Abriu-se a porta, e ao mesmo tempo os visires, os
emires e os principaes officiaes da côrte, todos com ves-
tidos de ceremonia, entraram n'uma bella ordem , che-
garam-se ao pé do throno e tributaram os seus respei-
tos a Abou Hassan, cada um pela sua ordem, com o joe-
lho em terra, e a testa sobre o tapete, como á propria
pessoa do califa, e o saudaram , dando-lhe o titulo de
commendador dos crentes, segundo a instrucção que lhes
déra o grão-visir ; e foram cada um para o seu lugar á
proporção que se desempenhavam d'este dever.
Acabada que foi a ceremonia e dispostos todos no seu
lugar, houve um grande silencio .
Então o grão-visir , sempre em pé ante o throno, prin-
cipiou a fazer o seu relatorio de alguns negocios, segun-
do a ordem dos papeis que segurava na mão . Os nego-
cios , na verdade, eram de pouca consequencia . Abou Has-
san todavia não deixou de causar admiração ao califa.
Com effeito não se perturbou , nem pareceu embaraçado
sobre algum. Julgou-os todos com rectidão, conforme lhe
inspirava o bom senso, quer se tratasse de conceder, ou
recusar o que se pedia.
Antes que o grão- visir acabasse o seu relatorio, avis-
tou Abou Hassan o juiz da policia, que conhecia de vis-
ta, assentado no seu lugar : «Esperai um pouco , disse ao
grão-visir, interrompendo- o ; tenho uma ordem urgente
que dar ao juiz da policia » .
O juiz da policia, que tinha os olhos fitos em Abou
Hassan, e que percebeu que Abou Hassan o encarava par-
ticularmente , ouvindo-se nomear levantou -se logo do seu
lugar e chegou-se gravemente ao throno, ao pé do qual
se prostrou com a face por terra. « Juiz da policia, dis-
se-lhe Abou Hassan depois de ter-se levantado , ide já, e
sem perder tempo, a tal bairro e a uma rua que lhe in-
dicou ; ha n'essa rua uma mesquita, na qual achareis o
Iman e quatro velhos de barba branca : apossai-vos d'el-
CONTOS ARABES 257

les e mandai dar a cada um cem chicotadas , e quatro-


centas ao Iman. Depois d'isto fal- os-heis montar a caval-
lo todos cinco, cada um n'um camêlo, vestidos de farra-
pos , e o rosto virado para a cauda do camêlo . N'esse es-
tado mandal-os-heis passear por todos os bairros da cida-
de , precedidos d'um pregoeiro que dirá em alta voz :
Eis-aqui o castigo dos que se entremetlem nos negocios
que não lhes dizem respeito, e que se occupam em per-
turbar o socego das familias de seus visinhos, e em fa-
zer-lhes todo o mal possivel ! É ainda minha intenção
que os obrigueis a mudar de bairro, com prohibição de
nunca tornar a pôr o pé n'aquelle d'onde foram expul-
sos. Em quanto o vosso tenente lhes fizer dar o passeio
que acabo de dizer-vos , vireis dar-me conta da execu-
ção de minhas ordens » >.
Poz o juiz da policia a mão na cabeça para mostrar
que ia executar a ordem que acabava de receber, sob
pena de perdel-a se faltasse. Prostrou -se segunda vez
ante o throno , e , depois de ter-se levantado, sahiu .
Esta ordem , dada com tanta resolução, deu ao califa
um gosto tanto mais sensivel, quanto conheceu que Abou
Hassan não perdia o tempo de aproveitar-se da occasião
para castigar o Iman e os velhos do seu bairro, visto que
a primeira cousa em que pensára , vendo-se califa, fôra
mandal-os castigar.
O grão-visir todavia continuou a fazer o seu relatorio ,
e estava a ponto de acabal-o, quando o juiz da policia, já
de volta, se apresentou para dar conta da sua commissão .
Chegou-se ao throno, e feita a ceremonia ordinaria de
prostrar-se: « < Commendador dos crentes, disse a Abou Has-
san, achei o Iman e os quatro velhos na mesquita que
Vossa magestade me indicou ; e para prova que execu-
tei fielmente a ordem que recebi de vossa magestade ,
eis-aqui o processo verbal assignado por testemunhas dos
principaes do bairro » . Ao mesmo tempo tirou um papel
do seio e apresentou-o ao pretendido califa.
Pegou Abou Hassan no processo verbal, leu-o todo,
até os nomes das testemunhas que conhecia, e tendo aca-
bado : « Está bem, disse ao juiz da policia sorrindo-se ,
estou satisfeito, e fizestes-me a vontade ; ide assentar- vos
TOMO III . ་.
258 AS MIL E UMA NOITES

no vosso lugar . Uns hypocritas , disse comsigo com ar de


satisfação , que se lembravam de criticar as minhas acções
e que tomavam a mal que recebesse e regalasse uns ho-
mens de bem em minha casa , bem mereciam este casti-
go ». O califa, que o observava, adivinhou o seu pensa-
mento e sentiu em si mesmo uma alegria indizivel por
tão bella expedição .
Dirigiu- se depois Abou Hassan ao grão -visir : « Orde-
nai de minha parte ao thesoureiro-mór, disse-lhe, que
vos dé uma bolsa de mil moedas d'ouro e ide leval-a á
mãi d'um certo Abou Hassan, chamado o libertino . É ho-
mem conhecido em todo o bairro por este nome : não ha
ninguem que não vos mostre a sua casa. Parti e vol-
tai logo » .
Pôz o grão-visir Giafar a mão na cabeça para mos-
trar que ia obedecer, e depois de ter-se prostrado dian-
te do throno, sahiu , e foi a casa do thesoureiro-mór , que
lhe deu a bolsa. Mandou pegar n'ella por um dos escra-
vos que o seguiam, e foi leval-a á mãi de Abou Hassan.
Achou-a, e disse- lhe que o califa lhe mandava este pre-
sente, sem mais explicação. Recebeu-o com tanta admi-
ração quanto não imaginava o que podia ter obrigado o
califa a fazer-lhe tão grande liberalidade, ignorando o que
se passava no palacio .
Na ausencia do grão-visir, o juiz da policia fez o re-
latorio d'alguns negocios que diziam respeito ao seu mi-
nisterio, e este relatorio durou até à volta do visir. Ten-
do entrado na sala do conselho e assegurado a Abou
Hassan que cumprira com a ordem que lhe déra, o chefe
dos eunucos, isto é, Mesrour, que tinha entrado no in-
terior do palacio depois de ter acompanhado Abou Hassan
até ao throno, voltou e acenou aos visires , emires e a
todos os officiaes, que o conselho estava acabado e que
cada um podia retirar-se , o que fizeram depois de ter-se
despedido com uma profunda reverencia ao pé do thro-
no, na mesma ordem por que entraram . Não ficaram com
Abou Hassan senão os officiaes da guarda do califa e o
grão-visir.
Não se demorou mais tempo Abou Hassan no thro-
no do califa ; desceu do mesmo modo que subira, isto é ,
CONTOS ARABES 259

ajudado por Mesrour e por outro official dos eunucos, que


o seguraram pelos braços, e o acompanharam até ao
quarto d'onde sahira . Entrou n'elle precedido do grão-
vizir Giafar. Mas apenas deu alguns passos declarou ter
alguma precisão urgente . Abriram-lhe logo um gabinete
riquissimo, lageado de marmore, ao contrario dos outros
quartos do palacio , que eram cobertos de ricos tapetes .
Apresentaram -lhe umas babouches de brocado d'ouro, que
costumava calçar antes de entrar alli . Pegou n'ellas, e co-
mo não soubesse o uso que d'aquillo se fazia, metteu-as
n'uma das mangas, que eram muito largas.
Como acontece muitas vezes rirmo-nos de bagatelas
e não de alguma cousa de consequencia, pouco faltou que
o grão-visir , Mesrour e todos os officiaes do palacio, que
estavam perto d'elle , não dessem uma gargalhada , tal
era a vontade que lhes deu de rir ; mas contiveram-se,
e foi finalmente o grão- visir obrigado a explicar-lhe que
devia calçal-as para entrar no gabinete das commodi-
dades.
Em quanto Abou Hassan estava no gabinete , foi o
grão- visir ter com o califa, que já se tinha postado n'ou-
tro lugar para continuar a observar Abou Hassan sem
ser visto, e lhe contou o que acabava de acontecer, di-
vertindo -se ainda com isto o califa.
Sahiu Abou Hassan do gabinete ; e Mesrour, cami-
nhando adiante para mostrar-lhe o caminho, o levou ao
quarto interior , onde a sua mesa estava posta . A porta,
que dava communicação com ella , abriu-se , e muitos eu-
nucos correram a avisar as cantadeiras que o falso cali-
fa chegava. Principiaram ellas logo um concerto de vo-
zes e instrumentos que agradou tanto a Abou Hassan,
que se achou arrebatado de alegria e gosto, e não sabia
absolutamente o que devia pensar do que via e do que
ouvia . « Se é um sonho , dizia comsigo, o sonho é de
longa duração ; mas não é sonho, continuava, eu bem
me sinto, discorro, vejo, ando e ouço . Seja o que fôr,
confio em Deus ácerca do que é. Não posso crêr toda-
via que deixe de ser o commendador dos crentes ; não
ha senão um commendador dos crentes que possa estar
no esplendor em que eu estou . As honras e os respeitos
AS MIL E UMA NOITES
260
que me tributaram e me tributam , as ordens que dei e
que foram executadas , são provas sufficientes » .
Finalmente capacitou -se Abou Hassan que era o cali-
fa e o commendador dos crentes , e d'isso ficou inteira-
mente convencido quando se viu n'um salão mui magni-
fico e dos mais espaçosos . O ouro , misturado com as cô-
res mais vivas , brilhava n'elle por todas as partes . Sete
companhias de cantadeiras , todas bellas , cercavam este
salão ; e sete lustres d'ouro , com sete braços , estavam
pendentes de diversas partes do tecto , onde o ouro e o
azul , engenhosamente misturados , faziam um effeito ma-
ravilhoso . No meio havia uma mesa coberta com sete
grandes pratos d'ouro maciço , que embalsamavam o sa-
lão com o cheiro das especiarias e com o ambar com que
as viandas eram temperadas . Sete jovens senhoras em
pé, de belleza encantadora , vestidas com trajos de diffe-
rentes estofos , os mais ricos e os mais brilhantes em cô-
res, rodeavam esta mesa . Traziam cada uma na mão um
leque , de que deviam servir-se, para arejar a Abou Has-
san em quanto estivesse á mesa . do
Se jamais mortal ficou enleva , foi Abou Hassan
quando entrou n'este magnifico salão . A cada passo que
dava, não podia deixar de parar para contemplar com va-
gar todas as maravilhas que se apresentavam á sua vis-
ta. Voltava -se a todo o instante para um e outro lado, com
prazer mui sensivel do califa , que o observava com mui-
ta attenção . Finalmente , chegou - se até ao meio e assen-
tou-se á mesa . Logo as sete bellas senhoras, que esta-
vam em roda , agitaram o ar todas juntas com seus le-
ques , para refrescar o novo califa . Encarou-as uma após
outra, e depois de ter admirado a graça com que ellas
se desempenhavam da sua obrigação , disse -lhes com um
sorriso gracioso , que lhe parecia que uma só bastava pa-
ra arejal o quanto fosse preciso , e quiz que as outras
seis se assentassem á mesa com elle , tres á sua direita
e à sua esquerda as outras , para fazer-lhe companhia.
Era redonda a mesa , e Abou Hassan as mandou assentar
em roda , para que de qualquer lado que lançasse a vis-
ta, não pudesse vêr senão objectos agradaveis e todos
CONTOS ARABES 261

As seis senhoras obedeceram e assentaram-se à me-


sa, mas Abou Hassan perdebeu logo que não comiam pe-
lo respeito que lhe tinham, o que lhe deu occasião de
servil-as elle mesmo, convidando- as e obrigando-as a co-
mer, em termos mui officiosos . Perguntou-lhes depois

கத

como se chamavam, e cada uma satisfez a sua curiosida-


de . Seus nomes eram : Pescoço de alabastro, Bocca de
coral, Face da lua, Esplendor do sol, Prazer dos olhos,
Delicias do coração. Fez tambem a mesma pergunta á
setima, que segurava o leque, e ella lhe respondeu que
se chamava Cana de assucar. As finezas que disse a
cada uma sobre os seus nomes, provaram que tinha
262 AS MIL E UMA NOITES

muita capacidade ; e não se póde crêr o quanto isto ser-


viu para augmentar a amizade que o califa, que de na-
da do que dissera sobre esta materia se esquecera, ti-
nha já concebido para com elle .
Quando as senhoras viram que Abou Hassan não co-
« 0 commendador dos crentes, disse uma dirigindo
mia : <
a palavra aos eunucos que estavam presentes para ser-
vir, quer passar ao salão da sobremesa ; tragam agua
para lavar-se » . Levantaram-se todas da mesa ao mesmo
tempo, e uma tomou das mãos dos eunucos uma bacia
de ouro, outra um jarro do mesmo metal e a terceira
uma toalha, e apresentaram-se com o joelho no chão an-
te Abou Hassan, que estava ainda assentado , e serviram-
no para se lavar, depois do que levantou -se e logo cor-
reu um eunuco o reposteiro, e abriu a porta d'outro sa-
lão para onde devia passar.
Mesrour, que não largára Abou Hassan, foi adiante
d'elle e o introduziu n'um salão de tamanho igual áquel-
le d'onde sahira, porém ornado de diversas pinturas dos
melhores mestres, e diversamente adornado de vasos de
diversos metaes , de tapetes e de outros trastes precio-
sos . Havia n'este salão sete companhias de cantadeiras ,
que não eram as que estavam no primeiro salão , e es-
tas sete companhias, ou , para melhor dizer, estes sete
córos de musica principiaram um novo concerto logo que
Abou Hassan appareceu . Estava o salão ornado de outros
sete grandes lustres, e a mesa no meio se achava co-
berta de sete grandes vasos de ouro , cheios de todas as
castas de frutas da estação , as mais bellas, as mais es-
colhidas e as mais exquisitas, e em roda outras sete jo-
vens senhoras, cada uma com um leque na mão, que
excediam as primeiras em belleza .
Estes novos objectos causaram a Abou Hassan mais
admiração que d'antes, e fizeram que parando désse si-
gnaes mais sensiveis do seu pasmo . Chegou-se finalmen-
te á mesa ; e tendo-se assentado e contemplado as sete
senhoras com seu vagar, uma após outra , com tal emba-
raço que denotava que não sabia a qual devia dar a pre-
ferencia, ordenou-lhes que largassem cada uma o seu
leque, que se assentassem á mesa e comessem com elle ,
CONTOS ARABES 263

dizendo que o calor não o incommodava bastante para


ter precisão de seu ministerio . Tendo-se as senhoras as-
sentado à direita e à esquerda de Abou Hassan, quiz ,
primeiro que tudo, saber como se chamavam, e soube
que tinham cada uma um nome differente dos das sete
senhoras do primeiro salão , e que estes nomes significa-
vam tambem alguma perfeição da alma, ou do espirito ,
que as distinguia uma das outras. Isto lhe agradou sum-
mamente, o que deu a conhecer pelas palavras que dis-
se ainda n'esta occasião , offerecendo-lhes a uma após
outra frutas de cada vaso . « Comei isto por amor de mim,
disse a Cadea dos corações , que estava á sua direita, offe-
recendo-lhe um figo, e tornai mais supportaveis as ca-
deas com que me senti preso desde o instante em que
vos vi ». E apresentando um bago de uva a Tormenta
da alma : « Aceitai este bago de uva, disse elle , com a
condição que fareis logo cessar os tormentos que padeço
por amor de vós e das outras senhoras » . E por este mo-
do Abou Hassan fazia que o califa , que se applicava
a observar todas as suas acções e a ouvir todas as suas
palavras, estimava cada vez mais ter achado n'elle um
homem que o divertia tão agradavelmente , e que lhe ti-
nha dado lugar de imaginar o meio de conhecel- o mais
a fundo.
Tendo Abou Hassan comido de todas as frutas que
estavam nos vasos, levantou -se, e logo Mesrour, que não
o deixava, tornou a caminhar adiante d'elle , e o introdu-
ziu n'um terceiro salão , ornado, mobilado e guarnecido
com tanta magnificencia como os dous primeiros .
N'elle achou Abou Hassan outros sete córos de mu-
sica e outras sete senhoras á roda d'uma coberta de se-
te vasos d'ouro, cheios de liquidos dôces de diversas cô-
res e de diversas qualidades . Depois de ter lançado os
olhos para todas as partes com nova admiração , chegou-
se á mesa, ao som harmonioso dos sete córos de musi-
ca, que cessou logo que se assentou . As sete senhoras
assentaram-se tambem a seus lados por sua ordem ; e
como não podia fazer-lhes a mesma honra de servil- as ,
que fizera ás outras, rogou-lhes que escolhessem ellas
mesmas os doces que mais do seu gosto fossem. Infor-
264 AS MIL E UMA NOITES

mou-se tambem de seus nomes, que não lhe agradaram


menos que os nomes das outras senhoras, pela sua di-
versidade, e que lhe deram novo assumpto de entreter-
se com ellas e de dizer-lhes finezas que lhes agradaram
tanto como ao califa, que nada perdia de tudo o que elle
dizia.
Era já quasi noite quando Abou Hassan foi levado ao
quarto salão . Estava guarnecido como os outros , de ma-
gnificos e preciosos trastes. Havia tambem sete grandes
lustres d'ouro com velas accesas, e todo o salão estava
alumiado com uma quantidade prodigiosa de luzes que
faziam um effeito maravilhoso . Cousa igual não se tinha
visto nos outros tres , porque não havia precisão . Abou
Hassan achou ainda n'este ultimo salão , como achára nos
outros tres, sete novos córos de cantadeiras que canta-
vam todas juntas de um modo mais alegre que nos ou-
tros salões, e que pareciam inspirar maior alegria. Viu
tambem n'elle outras sete senhoras que estavam em pé
á roda de uma mesa tambem coberta de sete vasos d'ou-
ro, cheios de bolos de massas folheadas, de todas as cas-
tas de dôces , e de outras cousas proprias para excitar a
beber. Porém o que n'elle descobriu Abou Hassan , que
não vira nos outros salões , era um aparador com sete
grandes frascos de prata, cheios de um vinho dos mais
exquisitos, e sete copos de crystal de rocha de um bel-
lissimo lavor, ao lado de cada frasco.
Até alli , isto é, nos tres primeiros salões , não tinha
Abou Hassan bebido senão agua, conforme o costume
que se observa em Bagdad, tanto entre o povo e nas or-
dens superiores , como na côrte do califa, onde commum-
mente não se bebe vinho senão de tarde. Todos os que
obram de outro modo são tidos como libertinos , e não
se atrevem a apparecer em publico. É tanto mais louva-
vel este costume, quanto precisam de todo o seu bom
senso durante o dia para tratar de seus negocios ; e as-
sim como não se bebe vinho senão de tarde , não se en-
contram bebados de dia, que causem desordens pelas ruas
d'esta cidade.
Entrou pois Abou Hassan n'este quarto salão e che-
gou-se à mesa . Tendo-se assentado, ficou bastante tem-
CONTOS ARABES 265

po como em extasi , admirando as sete senhoras que es-


tavam á roda d'elle , e as achou mais bellas que as que
vira nos outros salões . Desejou saber os nomes de ca-
da uma em particular. Porém como o grande estrondo
da musica e principalmente dos tambores, com que to-
cavam em cada côro, impedia que o ouvissem, bateu
com as mãos para fazel-a cessar , e ficou logo tudo em
silencio.
Pegando então na mão da senhora que estava mais
perto d'elle à sua direita, mandou-a assentar, e depois
de ter-lhe offerecido parte d'um bolo folheado , pergun-
tou-lhe como se chamava : «Commendador dos crentes,
respondeu a senhora, meu nome é Ramilhete de perolas.
-Não podiam dar-vos nome mais a proposito , replicou
Abou Hassan, nem que melhor désse a conhecer o que
valeis sem arguir todavia o que vol -o deu , acho que os
vossos bellos dentes são superiores ás mais bellas pero-
las, acrescentou elle ; visto ser esse o vosso nome, fazei-
me o favor de pegar n'um copo e de dar-me de beber
pela vossa mão » .
Foi logo a senhora ao aparador e voltou com um co-
po cheio de vinho, que apresentou a Abou Hassan com
muita graça. Aceitou-o com gosto, e encarando- a apai-
xonadamente : « Ramilhete de perolas , disse-lhe , bebo á
vossa saude ; rogo-vos que bebaes tambem a minha » .
Correu ella logo ao aparador e voltou com o copo na
mão, porém antes de beber cantou uma canção, que
não o arrebatou menos pela novidade do que pelos en-
cantos d'uma voz que lhe causou ainda mais admiração .
Abou Hassan, depois de ter bebido, escolheu o que
lhe agradou nos vasos, e offereceu á outra senhora , a
quem mandou assentar a seu lado. Perguntou- lhe tambem
pelo seu nome. Respondeu que se chamava Estrella da
manhã. « Vossos bellos olhos, replicou elle, tem mais
esplendor e luz que a estrella cujo nome tendes. Ide, e
trazei-me vinho para beber ». O mesmo praticou com
a terceira senhora que se chamava Luz do dia, e assim
até á setima, que todas lhe deram de beber, com satis-
fação extrema do califa.
Tendo Abou Hassan acabado de beber tantas vezes
266 AS MIL E UMA NOITES

quantas senhoras havia, Ramilhete de perolas, a primei-


ra a quem se dirigira, foi ao aparador , pegou n'um có-
po que encheu de vinho, depois de ter deitado n'elle
uma pitada dos pós de que se servira o califa no dia pre-
cedente, e veio apresentar-lh'o : « Commendador dos
crentes, disse -lhe, supplico a vossa magestade , pelo in-
teresse que tenho na conservação da sua saude, que tome
este copo de vinho e que me faça a fineza, antes de be-
bel-o , de ouvir uma cantiga que creio não lhe desagra-
dará. Hoje mesmo a compuz e ainda a não cantei a pes-
soa alguma.Com gosto vos concedo essa graça, disse-
The Abou Hassan, pegando do copo que lhe apresentava,
e ordeno-vos, como commendador dos crentes , que m'a
canteis , tão persuadido estou que uma bella pessoa, co-
mo vós, não póde compôr senão cantigas mui agrada-
veis e cheias de espirito » . Pegou a senhora n'uma cy-
thara e cantou a cantiga, accordando a sua voz ao som
d'este instrumento , com tanta exactidão, graça e exprès-
são, que arrebatou a Abou Hassan desde o principio até ao
fim . Achou-a tão bella que lh'a mandou repetir segunda
vez, e não ficou menos enlevado que da primeira.
Tendo a senhora acabado, Abou Hassan, que queria
louval- a como merecia, bebeu primeiro o copo de vinho
d'um trago só. Voltando depois a cabeça para o lado da
senhora como para fallar-lhe, impediram-lh'o os pós que
fizeram o seu effeito tão repentinamente, que não fez
mais do que abrir a bocca . Fecharam- se logo seus olhos ;
deixando cahir a cabeça sobre a mesa , como um homem
cheio de somno, adormeceu tão profundamente como fize-
ra no dia precedente, quasi á mesma hora , quando o califa
The fez tomar iguaes pós, e no mesmo instante uma das
senhoras que estava perto d'elle, segurou-lhe o copo que
deixou cahir da mão . O califa, que procurára este diver-
timento com mais satisfação do que esperava, e que fo-
ra espectador d'esta scena, assim como de todas as ou-
tras que Abou Hassan lhe déra, sahiu do lugar onde es-
tava e appareceu no salão mui alegre de ser tão bem .
succedido no que imaginára. Ordenou em primeiro lugar
que despissem a Abou Hassan o vestido de califa que
The tinham vestido pela manhã, e que lhe vestissem o
CONTOS ARABES 267

que trazia havia vinte e quatro horas, quando o escravo


que o acompanhava o trouxera ao seu palacio . Mandou
depois chamar o escravo ; e , tendo- se apresentado : «< Pé-
ga n'este homem, disse-lhe, leva-o para sua casa e põe-o
sobre o seu sophá sem fazer barulho ; retirando -te , dei-
xa tambem a porta aberta » .
Pegou o escravo em Abou Hassan e sahiu pela por-
ta secreta do palacio ; deixou -o em sua casa como lhe
ordenára o califa, e voltou á pressa a dar-lhe conta do
que fizera . « Abou Hassan, disse então o califa , desejára
ser califa um dia sómente para castigar o Iman da mes-
quita do seu bairro e os quatro scheikes, ou velhos,
cujo comportamento não lhe agradava ; procurei-lhe o
meio de vingar-se, e deve estar satisfeito » .
Abou Hassan, que o escravo deixára no seu sophá ,
dormiu até ao dia seguinte muito tarde , e não acordou
senão quando os pós , que deitaram no ultimo copo de
vinho que bebêra, fizeram todo o seu effeito . Então , abrin-
do os olhos, ficou pasmado de se vêr em sua casa : « Ra-
milhete de perolas, Estrella da mãnha , Alva do dia, Boc-
ca de coral, Face da lua, clamou elle, chamando as se-
nhoras do palacio que lhes fizeram companhia , cada uma
pelo seu nome ; aonde estaes ? Vinde , chegai-vos ».
Gritava Abou Hassan com todas as suas forças . Sua
mãi, que o ouviu da sua alcova, correu ; e entrando no
seu quarto : « Que tendes, filho ? perguntou-lhe ; que vos
aconteceu ? »
A estas palavras Abou Hassan levantou a cabeça e
olhando para sua mãi com orgulho e desprezo : <« Boa
mulher, perguntou-lhe tambem ; a quem é que tu chamas
teu filho ? -Sois vós mesmo , respondeu a mãi com mui-
ta brandura ; não sois Abou Hassan , meu filho ? Seria a
cousa mais singular do mundo ter-vos esquecido d'isso

em tão pouco tempo. Eu, teu filho ! Velha execranda ,
replicou Abou Hassan, não sabes o que dizes, e és uma
mentirosa . Não sou o Abou Hassan que tu dizes , sou o
commendador dos crentes. Calai - vos , filho, replicou a
mai ; não sois prudente . Tomar-vos -hiam por um louco
se vos ouvissem. -Tu , tu mesma és uma velha louca ,
replicou Abou Hassan ; não sou louco , como dizes : repi-
268 AS MIL E UMA NOITES

to-te que sou o commendador dos crentes, e o vigario


cá na terra do Senhor de ambos os mundos . - Ah, filho
meu ! clamou a mai ; é possivel que vos ouça proferir pa-
lavras que denotam tão grande alienação de espirito ? Que
genio maligno vos domina para fazer-vos fallar assim ?
Que a benção do céo seja comvosco, e que vos livre da

malignidade de Satanaz . Vós sois meu filho Abou Hassan,


e eu sou vossa mãi ». Depois de ter- lhe dado todos os
signaes que pôde imaginar para fazel-o cahir em si e
mostrar-lhe que se enganava : « Não vêdes, continuou
ella, que este quarto onde estaes é o vosso e não o quar-
to d'um palacio, digno de um commendador dos cren-
tes, e que não o largastes desde que estaes no mundo ,
morando inseparavelmente commigo ? Reflecti bem no
que vos digo, e não vos figureis cousas que não são , e
CONTOS ARABES 269

que não podem ser : ainda uma vez , filho , pensai n'isso
sériamente >> .
Ouviu socegadamente Abou Hassan estas admoesta-
ções de sua mãi ; e com os olhos baixos e a mão na barba
como um homem que entra em si para examinar a ver-
dade de tudo o que vê e de tudo o que ouve : < « Creio
que tendes razão , disse a sua mãi passados alguns ins-
tantes , acordando como d'um profundo somno, sem toda-
via mudar de postura ; parece-me, disse elle, que sou
Abou Hassan, que vós sois minha mãi, e que estou no
meu quarto. Ainda uma vez, acrescentou elle , fitando os
olhos em si proprio, e em tudo o que se apresentava
à sua vista, eu sou Abou Hassan, d'isso não duvido já,
e não percebo como se me metteu este sonho na ca-
beça ».
Com toda a boa fé capacitou-se a mãi que estava seu
filho curado da inquietação que agitava o seu espirito
e que attribuia a um sonho. Dispunha-se a rir com elle
e a fazer-lhe perguntas sobre este sonho, quando de re-
pente se assentou, e olhando para ella de esguelha : <« Ve-
lha feiticeira, velha magica, disse elle, não sabes o que
dizes : eu não sou teu filho, e tu não és minha mãi . Tu
te enganas a ti mesma, e queres persuadir-me d'isso . Eu
digo-te que sou o commendador dos crentes e não me
persuadirás do contrario. Filho, encommendai -vos a
Deus e deixai - vos d'isso, receando que vos aconteça al-
guma desgraça ; fallemos antes de outra cousa, e deixai-
me contar-vos o que succedeu hontem no nosso bairro
ao Iman da nossa mesquita, e a quatro scheikes nossos
visinhos . Mandou o juiz da policia prendel- os , e depois
de ter-lhes mandado dar na sua presença a cada um não
sei quantas bastonadas, mandou espalhar por um pre-
goeiro que era o castigo dos que se entremettiam nos ne-
gocios que não lhes diziam respeito, e que se occupa-
vam em causar desavenças nas familias de seus visinhos ;
depois mandou-os passear por todos os bairros da cidade
com o mesmo pregão, e prohibiu-lhes de tornar a pôr o
pé no nosso bairro » .
A mãi de Abou Hassan, que não podia imaginar que
seu filho tivesse tido alguma parte na aventura que el-
270 AS MIL E UMA NOITES

la lhe contava , tinha expressamente mudado de conver-


sação e considerava a narração d'este negocio como um
meio capaz de desvanecer a persuasão phantastica em
que o via de ser o commendador dos crentes.
Porém aconteceu muito diversamente ; esta narração,
longe de apagar a idéa que tinha sempre de ser o com-
mendador dos crentes, não serviu senão de lh'a impri-
mir ainda mais profundamente na sua imaginação, pois
com effeito não era phantastica, mas real .
Assim , logo que Abou Hassan ouviu esta narração :
« Não sou já teu filho, nem Abou Hassan , sou certamente
o commendador dos crentes ; d'isso não posso duvidar
á vista do que acabas de contar-me . Sabe que foi por
ordem minha que o Iman e os quatro scheikes foram
castigados do modo que disseste. Sou pois na realidade o
commendador dos crentes, eu t'o affirmo ; e deixa -te de
dizer-me que é um sonho . Não durmo , e estava tão acor-
dado como estou n'este instante em que te fallo . Tu me
dás gosto em confirmar-me o que o juiz da policia, a
quem dera esta ordem, me referiu, isto é, que a minha
ordem foi executada promptamente ; e com isso alegro-me
tanto mais quanto esse Iman e esses quatro scheikes são
uns verdadeiros hypocritas. Bem desejaria saber quem
me trouxe a este lugar. Seja Deus louvado de tudo ; o
que é certo é eu ser certissimamente commendador dos
crentes e todas as tuas razões não me persuadirão do
contrario.
A mãi, que não podia adivinhar nem imaginar tambem
por que seu filho sustentava tão fortemente e com tanta
segurança que era o commendador dos crentes , não duvi-
dou já que tivesse perdido o juizo, ouvindo-lhe dizer
cousas a que se não podia dar o menor credito , ainda que
tivessem seu fundamento para Abou Hassan . N'este pen-
samento : « < Filho , disse- lhe, rogo a Deus que se compa-
deça de vós . Deixai -vos de fallar tão loucamente. Dirigi-
vos a Deus ; pedi -lhe que vos perdôe e vos faça a graça
de fallar como homem razoavel. Que se diria de vós se
vos ouvissem fallar assim ? Não sabeis que as paredes tem
ouvidos ? >>
Tão bellas advertencias, bem longe de socegarem o
CONTOS ARABES 271

espirito de Abou Hassan , não serviram senão de agastal -o


ainda mais . Enfadou-se contra sua mãi com mais violen-
cia. <« Velha, disse-lhe , já te avisei que te calasses ; e se tu
continúas mais levantar-me-hei e tratar-te-hei de modo que
te lembrarás o resto de tua vida. Eu sou o califa, o com-
mendador dos crentes , e deves crêl-o quando t'o digo » .
Então a boa senhora, que viu que Abou Hassan va-
riava cada vez mais, em vez de entrar no seu bom sen-
so, entregou-se aos choros e ás lagrimas, e batendo no
rosto e no peito, dava brados que denotavam o seu pas-
mo e a sua grande afflicção de vêr a seu filho n'uma tão
terrivel alienação de espirito.
Abou Hassan, em vez de aplacar-se e deixar - se en-
ternecer com as lagrimas de sua mãi, pelo contrario es-
queceu-se do seu dever até ao ponto de perder para com
ella o respeito que a natureza lhe inspirava . Levantou-
se arrebatadamente, pegou n'um pau, e chegando-se a
ella com a mão levantada como um furioso : « Maldita
velha , disse-lhe com tom de assustar qualquer outra que
não fosse uma mãi cheia de ternura para com elle ; di-
ze-me já quem sou ! -Filho, respondeu a mãi, encaran-
do-o com ternura, muito longe de assustar- se ; não creio
que estejaes desamparado de Deus até ao ponto de não
conhecerdes quem vos deu o ser e desconhecer-vos a vós
mesmo . Não duvido dizer-vos que sois meu filho Abou
Hassan, e que não tendes absolutamente razão alguma de
arrogar-vos um titulo que não pertence senão ao califa
Haroun Alraschid, vosso e meu soberano senhor, ao tem-
po que esse monarcha nos beneficia, a vós e a mim , com
o presente que me mandou hontem . Com effeito , impor-
ta que saibaes que o grão - visir Giafar teve o trabalho
de vir hontem ter commigo, e que mettendo-me nas
mãos uma bolsa de mil peças d'ouro, disse-me que ro-
gasse a Deus pelo commendador dos crentes, que me fa-
zia este presente. E esta liberalidade é mais para vós do
que para mim, que poucos dias de vida me restam > ».
Ouvidas estas palavras não pôde conter-se mais Abou
Hassan. As circumstancias da liberalidade do califa, que
sua mãi acabava de contar-lhe , lhe provavam que não se
enganava e mais que nunca lhe persuadiam que era o ca-
272 AS MIL E UMA NOITES

lifa, visto que o visir não trouxera a bolsa senão por sua
ordem. «Então, velha feiticeira, clamou elle ; convencer-
te-has quando te disser que fui eu quem te mandei essas
mil peças d'ouro pelo meu grão -visir Giafar, que não fez
senão executar a ordem que lhe déra como commenda-
dor dos crentes ? Todavia, em vez de crêr-me, não pro-
curas senão fazer-me perder o juizo com as tuas contra-
dicções, sustentando com tenacidade que sou teu filho.
Mas não deixarei muito tempo impune a tua malicia » .
Proferidas estas palavras , no excesso do seu phrenesi, te-
ve a deshumanidade de maltratal-a desapiedadamente com
o pau que tinha na mão .
A pobre mãi, que não pensou que seu filho passaria
tão rapidamente das ameaças ás acções, pôz-se a gri-
tar com quantas forças tinha ; e até que chegaram os vi-
sinhos para soccorrel- a, não cessou Abou Hassan de a
castigar, perguntando - lhe a cada pancada : « Sou eu o
commendador dos crentes ? » Ao que a mãi respondia
sempre: « Sois meu filho >».
O furor de Abou Hassan principiava um pouco a
afrouxar quando os visinhos entraram no seu quarto. O
primeiro que se apresentou metteu -se logo entre sua mãi
e elle ; e depois de ter-lhe arrancado o pau da mão :
« Que fazeis, Abou Hassan ? disse-lhe ; perdestes o temor
de Deus e a razão ? Jámais filho bem nascido como VÓS
se atreveu a levantar a mão contra sua mãi . E não ten-
des vergonha de maltratar assim a vossa, que tão ter-
namente vos ama ? »
Abou Hassan, ainda todo enfurecido, encarou o que
lhe fallava sem responder palavra, fitando ao mesmo
tempo seus olhos espantados em cada um dos outros
visinhos que o acompanhavam : « Quem é esse Abou
Hassan de quem me fallaes ? perguntou-lhes. Sou eu a
quem daes esse nome ? »
Desconcertou um pouco os visinhos esta pergunta :
< Como! replicou o que acabava de fallar-lhe ; não recɔ-
<
«
nheceis pois esta senhora, que aqui está, pela que vos
creou e com quem vos vimos sempre morar, n'uma pa-
- Sois uns atrevidos, replicou
lavra, por vossa mãi ?
Abou Hassan, e não a conheço, nem a vós tambem ; e
CONTOS ARABES 273

não quero conhecel -a . Não sou Abou Hassan, sou o com-


mendador dos crentes ; e se o ignoraes far-vol-o-hei sa-
ber á vossa custa » .
A estas palavras de Abou Hassan não duvidaram mais
os visinhos da alienação do seu juizo. E para impedir
que não passasse a excessos semelhantes aos que aca-
bava de commetter contra sua mãi, apossaram-se d'elle ,
apesar de sua resistencia, e o ataram de modo que lhe
tiraram o uso dos braços, das mãos e dos pés . N'este
estado , e sem apparencia de poder fazer mal, não julga-
ram todavia a proposito deixal-o só com sua mãi . Desta-
caram-se dous da companhia e foram á pressa ao hos-
pital dos doudos avisar o carcereiro do que se passava.
Veio logo com os visinhos, acompanhado de muitos dos
seus guardas, carregados de cadeas, de algemas e de um
chicote.
Á sua chegada, Abou Hassan, que certamente não
esperava por um apparato tão horrendo, fez grandes es-
forços para desenvencilhar-se ; mas o carcereiro, que pe-
gára no chicote, o aquietou bem depressa com duas ou
tres chicotadas, que lhe descarregou nos hombros . Foi
este tratamento tão sensivel a Abou Hassan , que se con-
teve, e o carcereiro e os seus guardas fizeram d'elle o
que quizeram . Carregaram-o de cadeas e algemaram-o
de mãos e pés, e tendo acabado tiraram-o para fóra de
casa e o levaram ao hospital dos doudos .
Apenas Abou Hassan chegou á rua, achou-se cercado
de uma grande multidão de povo . Um lhe dava um mur-
ro, outro uma bofetada e outros o carregavam de inju-
rias, tratando-o de louco, de insensato e de extrava-
gante.
«Á vista d'estes maus tratamentos , não ha, dizia el-
le , grandeza e força senão em Deus altissimo e podero-
sissimo. Querem que seja louco, ainda que esteja em meu
juizo perfeito ; padeço esta injuria e todas estas indigni-
dades pelo amor de Deus » .
Foi Abou Hassan levado d'este modo ao hospital dos
doudos . N'elle o alojaram e o metteram n'uma gaiola de
ferro ; e, antes de fechal-o n'ella, o carcereiro, acostu-
mado a isto, o mimoseou sem compaixão com cincoenta
TOMO III. 18
274 AS MIL E UMA NOITES

chicotadas nos hombros e nas costas, e continuou mais


de tres semanas a dar-lhe a mesma dóse todos os dias,
repetindo-lhe estas mesmas palavras cada vez : < «Torna
ao teu juizo, e dize se és ainda o commendador dos
crentes . — Não preciso do teu conselho, respondia Abou
Hassan ; não sou doudo ; mas se houvesse de endoude-.

cer, nada seria mais capaz de precipitar-me em tamanha


desgraça como as pancadas com que me maltratas ».
Vinha todavia à mãi de Abou Hassan vêr seu filho
regularmente, e não podia conter as lagrimas vendo min-
goar de dia em dia a sua saude e forças, e ouvindo -o
queixar-se das dûres que padecia. Com effeito tinha os
hombros e as costas pisadas para encontrar algum soce-
go. Mudou mais de uma vez pelle no tempo que este-
ve detido n'esta espantosa morada. Queria sua mãi fal-
CONTOS ARABES 275

lar-lhe para consolal-o e para examinar se estava na


mesma situação de espirito ácerca da sua pretendida di-
gnidade de califa e de commendador dos crentes , po-
rém todas as vezes que abria a bocca para perguntar-lhe
alguma cousa a este respeito, repellia-a com tanta furia,
que se via constrangida a deixal-o e a ir-se embora, in-
consolavel de vêl -o em tão grande teima.
As idéas fortes e sensiveis que Abou Hassan conser-
vára no seu espirito, de ter-se visto revestido da digni-
dade de califa, de ter feito na realidade as funcções d'el-
le, de ter usado da sua authoridade, de ter sido obede-
cido e tratado verdadeiramente como califa, e que o per-
suadiram , quando se levantou , que na verdade o era, e
o fizeram persistir tanto tempo n'este erro , principiaram
insensivelmente a apagar-se no seu espirito.
« Se fosse califa e commendador dos crentes, dizia
comsigo algumas vezes, porque me teria achado em mi-
nha casa acordado e vestido com o meu fato ordinario ?
Porque não me teria visto cercado do chefe dos eunu-
cos, dos proprios eunucos e de tão grande multidão de
bellas senhoras ? Porque o grão-visir Giafar, que vi a
meus pés, tantos emires, tantos governadores de provin-
cias e tantos outros officiaes que vi fazerem-me roda,
me teriam abandonado ? Ha muito tempo, sem duvida,
que me teriam livrado do miseravel estado em que me
acho se tivesse alguma authoridade sobre elles . Tudo
isto foi um sonho e não devo pôr difficuldade em crêl-o .
Ordenei, é verdade , ao juiz da policia que castigasse o
Iman e os quatro velhos do seu conselho ; ordenei ao
grão-visir Giafar que levasse mil peças d'ouro a minha
mãi, e foram as minhas ordens executadas. Dá-me isto
que cuidar, e nada entendo de tudo isto . Mas quantas
cousas ha que não entendo e que nunca entenderei ?
Entrego -me pois nas mãos de Deus, que sabe e conhe-
ce tudo >» .
Estava ainda Abou Hassan occupado d'estes pensa-
mentos, quando chegou sua mãi . Ella o viu tão extenua-
do que derramou lagrimas com mais abundancia do que
nunca. No meio de seus soluços saudou-o como de cos-
tume , e Abou Hassan lhe correspondeu . Teve d'isso um
*
276 AS MIL E UMA NOITES

bom agouro : « Então , filho , disse-lhe, enxugando as la-


grimas, como estaes ? Recobrastes já o vosso juizo ? Re-
nunciastes ás vossas phantasias e aos discursos que o
demonio vos suggerira ? — Mãi , respondeu Abou Hassan
com muito socego e d'um modo que pintava o pezar
que resentia dos excessos que contra ella commettera ;
reconheço o meu desvario ; rogo-vos que me perdoeis o
crime execrando que abomino, e de que sou culpado
para comvosco. O mesmo pedido faço a nossos visinhos,
em razão do desgosto que lhes dei . Fui enganado por
um sonho, porém tão extraordinario e semelhante á ver-
dade, que posso affirmar que outro qualquer, a quem ti-
vesse acontecido , não teria sido menos abalado, e teria
talvez obrado maiores estravagancias que as que vistes
fazer . Estou ainda tão fortemente perturbado, que me
custa a persuadir-me que o que me aconteceu seja um
sonho, tanta semelhança tem com o que se passa entre
os que não dormem. Seja o que fôr, eu o tenho, e que-
ro ter constantemente por sonho . Estou convencido que
não sou esse phantasma de califa e de commendador dos
crentes, mas sim Abou Hassan, vosso filho ; a vós , a
quem sempre honrei até esse dia fatal e cuja lembran-
ça me enche de confusão, digo- vos que vos honro, e
que vos honrarei toda a minha vida ».
A estas palavras tão sensatas , as lagrimas de dôr, de
compaixão e de afflicção que a mãi de Abou Hassan der-
ramava desde tanto tempo, se mudaram em lagrimas de
alegria, de consolação e de amor para com seu querido
filho que recuperava : « Filho, clamou ella arrebatada de
prazer ; não me sinto menos enlevada de contentamento
e de satisfação, ouvindo-vos fallar tão razoavelmente ,
visto o que se passou, do que se acabasse de dar-vos á
luz pela segunda vez . Importa que vos declare o meu
pensamento quanto á vossa aventura, e que vos faça ob-
servar uma cousa, na qual não tomastes talvez sentido .
O estrangeiro que trouxestes uma tarde para cear com-
Vosco, retirou- se sem fechar porta do vosso quarto,
como lhe tinheis recommendado, e creio que isso deu
occasião ao demonio de entrar n'elle, e de lançar- vos no
abysmo da horrorosa illusão em que estaes . Assim, filho ,
CONTOS ARABES 277

deveis agradecer a Deus de vos ter livrado d'elle , e ro-


gar- lhe que vos preserve de cahir mais nos laços do es-
pirito maligno. - Achastes a origem do meu mal, res-
pondeu Abou Hassan, e foi precisamente n'essa noite que
tive esse sonho que me desconcertou o cerebro . Tinha
todavia avisado o mercador expressamente que fechasse
a porta sobre si, e agora conheço que não o fez . Estou
pois persuadido comvosco que o demonio achou a porta
aberta, que entrou, e que me metteu todas estas phan-
tasias na cabeça . Não se sabe por certo em Moussoul
d'onde vinha este mercador ; estamos convencidos em
Bagdad que o demonio vem causar todos estes sonhos
desagradaveis que nos molestam de noite, quando se dei-
xam abertos os quartos onde se dorme, e certamente
não foi outra cousa . Em nome de Deus , minha mãi, vis-
to que pela graça d'elle estou perfeitamente desilludido
da perturbação em que estava, supplico-vos que me fa-
çaes sahir quanto antes d'este inferno e me livreis da
mão do carrasco , que abreviará os meus dias infallivel-
mente, se n'elle me demoro mais ».
A mãi de Abou Hassan, perfeitamente consolada e
enternecida de vêr que elle estava inteiramente são da
louca imaginação de ser califa , foi logo ter com o car-
cereiro que o tinha levado e que tratára d'elle até en-
tão ; e apenas lhe assegurou que estava perfeitamente
restabelecido , veio, examinou-o, e o pôz em liberdade
na sua presença.
Abou Hassan voltou para sua casa, e n'ella ficou al-
guns dias, para restabelecer a sua saude com melhores
alimentos que aquelles com que se sustentava no hos-
pital dos doudos . Porém tendo quasi recuperado as suas
forças e não se resentindo já dos incommodos que pade-
céra pelos maus tratamentos que lhe deram na prisão,
principiou a enfadar-se de passar as tardes sem compa-
nhia, razão por que não tardou a tomar o mesmo modo
de vida que d'antes , isto é , a principiar a fazer todos os
dias uma provisão sufficiente para banquetear um novo
hospede cada tarde.
O dia em que renovou o costume d'ir, quasi ao pôr
do sol, á entrada da ponte de Bagdad , para deter o pri-
278 AS MIL E UMA NOITES

meiro estrangeiro que se apresentasse e rogar-lhe a hon-


ra de vir cear com elle, era o primeiro dia do mez, e
o mesmo, como já dissemos, em que o califa se divertia
a sahir disfarçado fóra de alguma das portas por onde
se chegava a esta cidade, para observar elle mesmo se
se passava alguma cousa contra a policia, do modo que
a estabelecera, e regulára desde o principio do seu rei-
nado.
Não havia muito tempo que Abou Hassan tinha che-
gado e se havia sentado n'um banco, encostado ao pa-
rapeito, quando lançando a vista para a outra parte da
ponte, viu o califa que se chegava a elle , disfarçado em
mercador de Moussoul , como a primeira vez, e acompa-
nhado do mesmo escravo . Persuadido que todo o mal
que padecêra não procedia senão de ter deixado o cali-
fa, que conhecia unicamente por um mercador de Mous-
soul, a porta aberta sahindo do seu quarto, estremeceu
vendo-o : « Que Deus queira preservar-me, disse comsi-
go ; eis-ahi, se não me engano, o magico que me en-
cantou ». Voltou logo a cabeça para o lado do canal do
rio, encostando- se ao parapeito para não vêl-o até ter
passado.
O califa, que queria fazer durar mais tempo o pra-
zer que Abou Hassan lhe tinha proporcionado, tivera
grande cuidado de mandar informar-se de tudo o que
dissera e fizera no dia seguinte, quando acordou, depois
de mandal-o levar a sua casa, e de tudo que lhe acon-
tecéra. Teve um novo gosto de tudo o que d'elle soube ,
e até do mau tratamento que se lhe deu no hospital dos
doudos . Mas como este monarcha fosse generoso e cheio
de justiça, e reconhecêra em Abou Hassan um espirito
proprio para divertil-o mais tempo , e além d'isto lhe pa-
recéra que depois de ter renunciado a sua pretendida
dignidade de califa, tornaria ao seu modo antigo de vi
da, julgou a proposito, no intento de se chegar á sua
pessoa, disfarçar-se no primeiro do mez em mercador de
Moussoul como d'antes, para melhor executar o que ti-
nha resolvido a seu respeito . Avistou pois Abou Hassan
quasi ao mesmo tempo que foi visto d'elle, e pelo seu
gesto percebeu logo quanto estava descontente, e que o
CONTOS ARABES 279

seu intento era evital -o . Isto foi causa de costear o pa-


rapeito em que estava Abou Hassan. Tendo- se chegado a
elle , inclinou a cabeça e o encarou. « Sois vós, meu ir-
mão, Abou Hassan ? disse- lhe ; bons dias permitti que
vos dé um abraço . E eu, respondeu arrebatadamente
Abou Hassan, sem olhar para o falso mercador de Mous-
soul, não vos dou os bons dias ; não preciso nem da
Vossa saudação nem dos vossos abraços ; segui o vosso
--
caminho. O quê ! replicou o califa ; não me reconhe-
ceis ? Não vos lembraes da tarde que passamos juntos ,
ha um mez, em vossa casa, onde me fizestes a honra
de banquetear-me com tanta generosidade ? - Não , re-
plicou Abou Hassan no mesmo tom que d'antes ; não vos
conheço, e não sei de que me fallaes ; ide-vos , disse- lhe
segunda vez, e segui o vosso caminho » .
Não se escandalisou o califa da desattenção de Abou
Hassan. Bem sabia que uma das leis que Abou Hassan
se impuzera a si mesmo, era de não ter mais trato com
o estrangeiro que tivesse regalado . Abou Hassan lh'o ti-
nha declarado, mas queria fingir que o ignorava. « Não
posso crêr, replicou elle, que não me reconheçaes ; ha
pouco tempo que nos vimos, e não é possivel ter- vos
esquecido tão facilmente. Deve ter-vos acontecido algu-
ma desgraça que vos cause essa aversão que me tendes.
Deveis todavia lembrar- vos que vos dei demonstrações
do meu reconhecimento com os meus bons desejos, e
que tambem a respeito de certo negocio que vos dava
cuidado, vos fiz offerecimento do meu credito, que não
é de desprezar . Ignoro, respondea Abou Hassan , qual
póde ser o vosso credito, e não tenho o menor desejo
de experimental - o ; porém bem sei que os vossos dese-
jos não fizeram outra cousa senão endoudecer-me. Em
nome de Deus, repito- vos ainda uma vez , segui o vosso
caminho, e não me molesteis mais. ― Ah, irmão ! repli-
cou o califa abraçando-o ; não pretendo apartar-me de
vós d'este modo . Visto que a minha boa fortuna quiz
que vos encontrasse uma segunda vez, deveis exercitar
tambem segunda vez a mesma hospitalidade que prati-
castes para commigo ha um mez , e permitti-me de ter
a honra de beber ainda comvosco ».
280 AS MIL E UMA NOITES

D'isto protestou Abou Hassan que bem saberia guar-


dar-se . < « Tenho bastante poder sobre mim, acrescentou
elle, para livrar-me d'um homem que traz a desgraça
comsigo. Sabeis o proverbio que diz : « Pegai no vosso
tambor e desalojai » . Applicai - o ao vosso caso : devo eu
repetir-vol-o tantas vezes ? Deus vos guarde ; causastes-
me bastante mal, não quero expôr-me mais. - Meu bom
amigo Abou Hassan, replicou o califa abraçando -o ainda
uma vez, trataes-me com dureza que não esperava . Sup-
plico- vos que me não digaes palavras tão escandalosas,
e que acrediteis na minha amizade . Tende pois a com-
placencia de contar-me o que vos aconteceu, a mim, que
não vos desejei senão bem, que vol- o desejo ainda, e
que quereria achar occasião de beneficiar-vos, para re-
parar o mal que dizeis vos causei, se na verdade sou
culpado ». Cedeu Abou Hassan ás instancias do califa ; e
depois de o mandar assentar a seu lado : « A vossa in-
credulidade e importunação, disse-lhe, apuraram a minha
paciencia. O que vou contar-vos dar- vos-ha a conhecer
se de vós me queixo sem razão » .
Assentou-se o califa ao lado de Abou Hassan, que
The contou todas as aventuras que lhe aconteceram des-
de que despertára no palacio até acordar no seu quarto ,
e contou-lh'as todas como um verdadeiro sonho que
succedera, com uma infinidade de circumstancias que o
califa sabia tão bem como elle, e que renovaram o gos-
to que com ellas tivera. Exagerou-lhe depois a impres-
são que este sonho lhe deixára no espirito, de ser cali-
fa e commendador dos crentes, « impressão, acrescentou
elle , que me induziu a fazer extravagancias tão grandes ,
que os meus visinhos se viram obrigados a atar-me co-
mo um furioso e a levar-me ao hospital dos doudos , on-
de fui tratado de tal modo que se póde chamar cruel,
barbaro e deshumano ; porém o que vos causará maior
admiração e o que sem duvida não sabeis , é que todas
estas cousas me aconteceram por culpa vossa . Bem lem-
brado estareis da recommendação que vos fiz, de fechar
a porta do meu quarto, sahindo depois de cear . Não o
fizestes , pelo contrario deixastel- a aberta e entrou o de-
monio e me encheu a cabeça d'este sonho, que, agrada-
CONTOS ARABES 281

vel como me pareceu, me causou todavia todos os ma-


les de que me queixo . Sois pois causa, pelo vosso des-
cuido (que vos torna responsavel do meu crime), de eu
ter commettido uma acção horrenda e abominavel, le-
vantando não só as mãos contra minha mãi, mas faltan-
do pouco para lhe dar a alma a Deus a meus pés , com-
mettendo um matricidio ; e isto por um motivo que me
envergonha todas as vezes que n'elle penso, visto que
era porque me chamava seu filho, como com effeito sou,
e não queria reconhecer-me pelo commendador dos cren-
tes, tal qual me parecia ser, e que lhe sustentava effe-
ctivamente que o era. Sois ainda causa do escandalo que
dei a meus visinhos , quando , correndo aos gritos de mi-
nha pobre mãi , me apanharam encarniçado a querel-a
matar, o que não teria acontecido se tivesseis o cuidado
de fechar a porta do meu quarto, retirando-vos , como
vol-o recommendára . Não teriam entrado em minha ca-
sa sem licença, e, o que me causa maior pena, não te-
riam sido testemunhas da minha loucura. Não me teria
visto obrigado a maltratal - os, defendendo-me contra el-
les, e não me teriam maltratado e atado, como fizeram,
para levar-me, e mandar-me encerrar no hospital dos
doudos, onde posso assegurar-vos que todos os dias, em
quanto estive detido n'aquelle inferno, não deixaram de
dar-me chicotadas >> .
Contava Abou Hassan ao califa os seus motivos de
queixa com muito calor e vehemencia . Sabia melhor que
elle o califa tudo o que se passára ; e alegrava-se ainda
comsigo mesmo de ter tido tão bom exito no que ima-
ginára para sepultal-o no desvario em que o via ainda ;
mas não pôde ouvir esta narração , feita com tanta sin-
geleza, sem dar uma grande risada .
Abou Hassan, que tinha a sua narração por digna de
compaixão e que pensava que todos deviam ser tão sen-
siveis a ella como elle, escandalisou-se muito da risada
do falso mercador de Moussoul. « Estaes mofando de
mim ! disse-lhe ; ousaes rir assim na minha presença, ou
parece-vos que zombo de vós quando vos fallo seriamen-
te ? Quereis provas reaes do que vos digo ? reparai bem ;
vêde, e dir- me-heis à vista d'isto se zombo ». Dizendo
282 AS MIL E UMA NOITES

estas palavras abaixou-se, e descobrindo os hombros e


o seio deixou vêr ao califa as cicatrizes e as pisaduras
que lhe causaram as chicotadas que recebėra.
Não pôde vêl-as o califa sem horror. Teve compai-
xão do pobre Abou Hassan , e muito pezar de ter sido a
zombaria levada a tal ponto . Cahiu logo em si, e abra-
çando Abou Hassan com todas as veras do coração : « Le-
vantai-vos, meu bom irmão, disse- lhe muito serio ; vin-
de , e vamos a vossa casa ; quero ainda ter o gosto de
alegrar-me esta tarde comvosco ; ámanhã, se Deus qui-
zer, vereis que tudo irá do melhor modo possivel » .
Abou Hassan, apesar da sua resolução e contra o ju-
ramento que fizera de não receber em sua casa o mes-
mo estrangeiro segunda vez , não pôde resistir ás cari-
cias do califa , que tomava sempre por um mercador de
Moussoul. « Consinto, disse ao falso mercador ; mas ,
acrescentou elle, com uma condição, que promettereis
observar com juramento. Consiste em fazer-me o favor
de fechar a porta do meu quarto sahindo da minha ca-
sa, para que o demonio não venha desordenar-me o ce-
rebro, como fez a primeira vez ». Tudo prometteu o fal-
so mercador. Levantaram-se ambos, e tomaram o cami-
nho da cidade . O califa , para animar mais a Abou Has-
san : <
« Tende confiança em mim , disse-lhe , não vos fal-
tarei á palavra, eu vol- o prometto como homem de bem.
Á vista d'isto não deveis hesitar em confiar-vos d'uma
pessoa como eu, que vos deseja toda a sorte de bens e
-
de prosperidades, e cujos effeitos vereis . Não vos per-
gunto por isso, respondeu Abou Hassan, parando de re-
pente ; cedo de boa vontade ás vossas importunações ,
porém dispenso os vossos desejos . Todo o mal que me
aconteceu até agora não procedeu , com a porta aberta ,
senão dos que já me desejastes . - Então , replicou o ca-
lifa, rindo comsigo mesmo da imaginação sempre escan-
decida de Abou Hassan, visto que assim o quereis, se-
reis obedecido e prometto-vos de nunca desejar - vos cou-
sa alguma. -- Fazeis-me favor fallando-me assim, disse-
lhe Abou Hassan, e não vos peço outra cousa. Ficarei
muito satisfeito, com tanto que desempenheis a vossa
palavra. Perdoo-vos o resto » .
CONTOS ARABES 283

Abou Hassan e o califa, seguido do seu escravo, en-


tretendo-se assim, chegaram insensivelmente a casa.
Principiava o dia a escurecer quando lá chegaram . Cha-
mou logo sua mãi e mandou vir luz . Rogou ao califa
que se assentasse no sophá, e elle se assentou a seu lado.
Em breve tempo pôz-se a cêa na mesa, que chegaram
para perto d'elles . Comeram sem ceremonia . Tendo aca-
bado, a mai de Abou Hassan veio levantal- a, e pôz a
fruta e o vinho com as taças ao lado de seu filho . Reti-
rou-se depois e não appareceu mais.
Principiou Abou Hassan a beber e depois offereceu
ao califa. Beberam cada um cinco ou seis vezes , entre-
tendo-se de cousas indifferentes. Quando o califa viu que
Abou Hassan principiava a inebriar-se, entrou a fallar-
The d'amores e perguntou-lhe se nunca amára.
<< Irmão, respondeu familiarmente Abou Hassan , que
cuidava fallar ao seu hospede como a um seu igual ;
nunca considerei o amor ou o matrimonio senão como
uma escravidão, á qual tive sempre repugnancia a su-
jeitar-me, e até agora confessar-vos-hei que não gostei
senão da boa mesa, e principalmente do bom vinho ;
n'uma palavra, divertir-me e entreter-me agradavelmente
com os meus amigos . Não vos asseguro todavia que fos-
se indifferente ao casamento, nem incapaz de affeiçoar-
me a elle, se pudesse encontrar uma mulher da belleza
e do bom humor da que vi em sonhos n'aquella noite fa-
tal em que vos recebi a primeira vez , e que por desgraça
minha deixastes a porta de meu quarto aberta, uma mu-
lher bonita, repito, que quizesse passar as tardes a be-
ber commigo, que soubesse cantar, tocar instrumentos e
entreter-me agradavelmente, que não cuidasse finalmen-
te senão em agradar- me e divertir-me: creio, pelo con-
trario , que mudaria toda a minha indifferença n'um per-
feito affecto a uma tal pessoa , e que viveria felicissimo
com ella. Mas onde acharei uma mulher como acabo de
vol- a descrever, senão em casa do commendador dos
crentes, em casa do grão-visir Giafar ou em casa dos
grandes da côrte a quem o ouro e a prata não faltam
para prover-se d'ellas ? Desejo pois mais affeiçoar-me á
garrafa ; é um gosto de pouco custo » . Dizendo estas pa-
284 AS MIL E UMA NOITES

lavras pegou na taça, deitou -lhe vinho e bebeu : <« Pe-


gai tambem na vossa, disse ao califa, e continuemos a
gozar de prazer tão delicioso ».
Depois de terem bebido : « É forte fatalidade, replicou
o califa, que um homem tão prendado como vós leve
uma vida tão solitaria e tão retirada ! - Não tenho pena
alguma, replicou Abou Hassan, em preferir esta vida so-
cegada á companhia d'uma mulher que não seria talvez
de belleza que me agradasse, e que além d'isso me cau-
saria mil desgostos pelas suas imperfeições e pelo seu
mau genio >> .
Conversaram largo tempo sobre esta materia. E o
califa, que viu a Abou Hassan no estado. em que dese-
java : « Deixai isso por minha conta, disse-lhe ; visto que
tendes o bom gosto dos homens honrados, quero dar-vos
a que vos convém, e nada vos custará » . Pegou no mes-
mo instante na garrafa e na taça de Abou Hassan na
qual deitou com subtileza uma pitada de pós de que já
se tinha servido, encheu-lh'a e apresentando-lh'a : « To-
mai, continuou elle, e bebei primeiro á saude da bella
senhora que deve fazer a felicidade de vossa vida » .
Pegou Abou Hassan na taça rindo , e meneando a ca-
beça : « Valha o que valer, disse elle, visto que o que-
reis ; não saberia fazer-vos uma indelicadeza nem des-
gostar um hospede do vosso merecimento , por uma cou-
sa de tão pouca monta : vou pois beber á saude d'essa
bella senhora que me prometteis, ainda que não tenha
confiança alguma no vosso dito ».
Apenas bebeu, logo uma profunda somnolencia se
apossou de seus sentidos como das outras vezes , e pôde
ainda o califa dispûr d'elle à sua vontade . Disse então ao
escravo, que comsigo trouxera, que pegasse em Abou
Hassan, e que o levasse ao palacio. Levou -o o escravo ;
e o califa que não tinha intenção de tornar a mandar
Abou Hassan para sua casa como da primeira vez , fechou
a porta do quarto quando sahiu.
Partiu o escravo com a sua carga ; e , tendo chegado
o califa ao palacio, mandou deitar Abou Hassan sobre
um sophá no quarto salão, d'onde o fizera transportar
para sua casa amodorrado e adormecido, havia um mez.
CONTOS ARABES 285

Antes de o deixar dormir ordenou que lhe vestissem o


mesmo fato de que fôra revestido por sua ordem para
fazer o papel de califa, o que se fez na sua presença.
Ordenou depois a cada um que se fosse deitar , e ao che-
fe, e aos outros officiaes dos eunucos, aos officiaes da
camara, ás cantadeiras e ás mesmas senhoras que se
acharam n'este salão, quando bebeu o ultimo copo de
vinho que lhe causára a somnolencia, que apparecessem
sem falta no dia seguinte ao raiar do dia, quando se le-
vantasse, e recommendou a cada um que fizesse bem o
seu papel.
Foi o califa deitar- se , depois de ter mandado dizer a
Mesrour que viesse acordal-o antes que entrassem no
mesmo gabinete onde se tinha já escondido.
Não se esqueceu Mesrour de acordar o califa precisa-
mente á hora que lhe indicára. Fez -se vestir á pressa, e
sahiu para ir ao salão onde Abou Hassan dormia ainda.
Achou os officiaes dos eunucos, os da camara, as senho-
ras e as cantadeiras á porta, que esperavam a sua che-
gada. Disse-lhes em poucas palavras qual era a sua in-
tenção, entrou depois e foi para o gabinete fechado com
gelosias. Mesrour, todos os outros officiaes, as senhoras
e as cantadeiras entraram após elle e se puzeram á ro-
da do sophá no qual estava Abou Hassan deitado , de
modo que não impediam o califa de vêr e de observar
todas as suas acções.
Dispostas as cousas ao tempo que os pós do califa
acabavam de fazer o seu effeito, acordou Abou Hassan
sem abrir os olhos, e lançou alguma pituita, que se re-
colheu n'uma pequena bacia d'ouro, como da primeira
vez . N'este instante os sete córos de cantadeiras ajunta-
ram suas vozes ao som dos oboés, das flautas e dos ou-
tros instrumentos .
Foi extremo o pasmo de Abou Hassan quando ouviu
uma musica tão harmoniosa . Abriu os olhos e pasmou
ainda mais quando viu as senhoras e os officiaes que lhe
faziam roda e que julgou reconhecer. O salão em que se
achava pareceu-lhe o mesmo que o que vira no seu pri-
meiro sonho. N'elle observava a mesma armação e os
mesmos ornamentos.
AS UMA MIL E NOITES
286
Cessou o concerto para dar lugar ao califa de prestar
attenção ao seu novo hospede e a tudo o que poderia di-
zer no seu pasmo . As senhoras , Mesrour e todos os offi-
ciaes da camara , guardando profundo silencio , ficaram
cada qual no seu lugar com grande respeito . «Ai de
mim ! clamou Abou Hassan mordendo os dedos , e tão
alto que o califa o ouviu com alegria : eis-me recahido

BO

no sonho e na mesma illusão que tive ha um mez ; te-


nho ainda que temer uma vez as chicotadas , o hospital
e a gaiola de ferro . Deus todo poderoso , acrescentou el-
le, entrego-me nas mãos da vossa divina providencia . O
malvado homem que agasalhei em minha casa hontem de
tarde é a causa d'esta illusão e dos trabalhos que pode-
rei padecer. Este traidor e perfido tinha -me promettido
com juramento que fecharia a porta do meu quarto sa-
bindo de minha casa , mas não o fez e n'ella entrou o
CONTOS ARABES
287
diabo, que me desconcerta o cerebro com este maldito
sonho de commendador dos crentes, e com tantos outros
phantasmas com que me fascina os olhos. Que Deus te
confunda , Satanaz , e sejas esmagado debaixo de uma
montanha de pedras ! >»
Proferidas estas ultimas palavras, fechando Abou
Hassan os olhos, na sua perturbação não deu attenção
a cousa alguma . Passado um instante abriu- os , e lan-
cando-os para uma e outra parte sobre todos os objectos
que se apresentavam á sua vista : « Grande Deus, cla-
mou ainda uma vez com menos pasmo e sorrindo-se ;
entrego- me nas mãos de vossa providencia , preservai- me
da tentação de Satanaz ». Tornando depois a fechar os
olhos : « Vou dormir até que Satanaz me deixe, e volte
por onde veio , ainda que devesse esperar até á meia
noite ».
Não lhe deram tempo de adormecer, como acabava
de resolver . Força dos corações , uma das senhoras que
vira pela primeira vez, chegou -se a elle e assentando-se
na cabeceira do sofá : « Commendador dos crentes , disse-
lhe com todo o respeito, supplico a vossa magestade
que me perdûe se tomo a confiança de avisal -o para não
adormecer, mas sim de fazer esforços para acordar e
levantar-se porque o dia principia a apparecer . « Reti-
ra-te, Satanaz ! » disse Abou Hassan ouvindo esta voz. E
encarando depois Força dos corações : « Sou eu , disse-
lhe, a quem chamaes commendador dos crentes ? Por
certo me tomaes por outrem .
- magestade ,
replicou Força dos corações , a qu a vo
- É em doss
ua esse titu lo ,
que lhe pertence, como ao soberano de quantos musul-
manos ha no mundo, do qual sou com muita humildade
escrava, e a quem tenho a honra de fallar. Quer vossa
magestade divertir-se sem duvida , acrescentou ella, fin-
gindo ter-se esquecido d'isso , a menos que não seja um
resto de algum sonho importuno . Mas se quer abrir os
olhos, as nuvens que podem perturbar- lhe a imaginação
dissipar-se-hão e verá que está no seu palacio cercado
de seus officiaes e de quantas somos suas escravas ,
promptas a obedecer-lhe. Quanto ao mais, não deve vos-
sa magestade admirar-se de vêr-se n'este salão e não
AS MIL E UMA NOITES
288
na sua cama . Adormeceu hontem tão repentinamente ,
que não quizemos acordal -o para leval -o ao seu quarto ,
e nos contentamos de deital -o commodamente n'este so-

ções disse tantas cousas a Abou Has-


phá Fo” . rça dos cora
san, que lhe pareceram verdadeiras ; por fim sentou -se.
Abriu os olhos e a reconheceu , assim como a Ramilhete
de perolas e ás outras senhoras que já tinha visto . En-
tão chegaram-se todas juntas , e Força dos corações diri-
gindo -lhe a palavra : « Commendador dos crentes e viga-
rio do propheta n'este mundo , disse ella , não desappro-
vará que o avisemos que é tempo que se levante ; eis-
ahi o dia que vem rompendo . - Sois enfadonhas e im-
portunas , replicou Abou Hassan esfregando os olhos : eu
não sou o commendador dos crentes , sou Abou Hassan ,
e não me persuadireis o contrario . - Nós não conhece-
mos Abou Hassan , de quem nos falla vossa magestade ,
replicou Força dos corações , nem queremos conhecel - o ;
conhecemos a vossa magestade pelo commendador dos
crentes , e nunca nos persuadirá que não o seja ».
Lançava Abou Hassan os olhos para todos os lados
e estava como enlevado de vêr-se no mesmo salão em
que já se tinha achado ; porém attribuia tudo isto a um
sonho semelhante ao que tivera , e cujas consequencias
funestas receava . « Deus se compadeça de mim ! clamou
elle , levantando as mãos e os olhos como um homem
que não sabe onde está ; entrego - me nas suas mãos . Á
vista do que vejo não posso duvidar que o diabo , que
entrou no meu quarto , perturbe a minha imaginação
com todas estas visões » . O califa , que o via, e que aca-
bava de ouvir todas estas exclamações , teve tal vonta-
de de rir, que lhe custou muito a conter-se para não dar

grande s s
-seada
Tinharis tod. avia Abou Hassan deitado , e tornou a
fechar os olhos . « Commendador dos crentes , disse -lhe
logo Força dos corações , visto que vossa magestade não
se levanta depois de o termos avisado que é já dia cla-
ro, conforme a nossa obrigação , e que é necessario que
trate dos negocios do imperio , cujo governo lhe está
nos deu em seme-
CONTOS ARABES 289

lhante caso». Ao mesmo tempo pegou n'elle por um


braço e chamou as outras senhoras que a ajudaram a fa-
zel - o sahir da cama, e o levaram , por assim dizer, para
o meio do salão , onde o assentaram com toda a decen-
cia. Deram -se depois as mãos e dançaram e saltaram á
roda d'elle ao som de todos os instrumentos que faziam
resoar aos seus ouvidos.
Achou-se Abou Hassan n'uma perplexidade indizivel
de espirito : « Serei eu verdadeiramente califa e com-
mendador dos crentes ? » dizia comsigo . Finalmente , na
incerteza em que estava, queria dizer alguma cousa ,
mas o grande estrondo de todos os instrumentos não o
deixavam ouvir . Fez aceno a Ramilhete de perolas e a
Estrella da manhã , que dançavam em roda d'elle , que
queria fallar. Fizeram logo cessar a dança e os instru-
mentos, e chegaram-se a elle : «Não mintaes , disse -lhes
com muita ingenuidade , e dizei-me na verdade quem eu
sou. Commendador dos crentes, respondeu Estrella
da manhã, vossa magestade quer surprehender-nos fazen-
do-nos essa pergunta, como se não soubesse que é o
commendador dos crentes, e o vigario cá na terra do
propheta de Deus , senhor d'este e do outro mundo , d'es-
te em que estamos, e do outro que está para vir , de-
pois da nossa morte. A não ser assim, seria preciso que
um sonho extraordinario o fizesse esquecer do que é.
Todavia, se vossa magestade quer dar-me licença, eu
The lembrarei o que fez hontem todo o dia ». Contou -lhe
pois a sua entrada no conselho, o castigo do Iman e dos
quatro velhos pelo juiz da policia , o presente d'uma
bolsa de peças d'ouro mandada pelo seu visir á mãi de
um certo Abou Hassan , o que fez no interior do seu pa-
lacio, e o que se passou nos tres banquetes que lhe
serviram nos tres salões . « Foi n'este ultimo salão que
Vossa magestade, continuou ella dirigindo-se a elle , de-
pois de ter-nos mandado assentar á mesa ao seu lado ,
nos fez a honra de ouvir as nossas canções e receber
vinho de nossas mãos, até ao momento em que vossa
magestade adormeceu do modo que Força dos corações
acaba de contar . Desde esse tempo vossa magestade,
contra seu costume, dormiu tão profundamente até ago-
TOMO III . 19
290 AS MIL E UMA NOITES

ra, que é já dia. Ramilhete de perolas, todas as outras


escravas e todos os officiaes que aqui estão, assevera-
ram a mesma cousa . Visto ser isso assim, ponha -se vos-
sa magestade em estado de fazer a sua oração, pois é
tempo. - Bom, bom, replicou Abou Hassan, meneando
a cabeça ; muito me contarieis se quizesse dar- vos ouvi-
dos. E eu, continuou elle, digo-vos que sois todas umas
loucas, e que perdestes o juizo . É todavia grande perda,
pois sois umas lindas creaturas . Sabei que desde que
não vos vi , fui a minha casa, que maltratei muito mi-
nha mãi , que me levaram ao hospital dos doudos onde
fiquei contra minha vontade mais de tres semanas , du-
rante as quaes não se esqueceu o carcereiro de mimo-
sear-me cada dia com cincoenta chicotadas ; e quererieis
que tudo isto não fosse senão um sonho ? Estaes zom-
bando . Commendador dos crentes, replicou Estrella da
manhã, estamos promptas, quantas somos, a jurar que
tudo o que nos disse é um sonho . Não sahiu d'este sa-
lão desde hontem, e não cessou de dormir toda a noite
até agora ».
A confiança com que esta senhora certificava a Abou
Hassan que tudo o que lhe dizia era verdade, e que não
sahira do salão desde que n'elle entrára, o pôz ainda
uma vez em estado de não saber o que era e o que
via. Ficou algum tempo abysmado nos seus pensamentos .
« Céos ! dizia comsigo ; sou eu Abou Hassan ? Sou eu
commendador dos crentes ? Deus todo poderoso , aclarai
o meu entendimento ; fazei -me conhecer a verdade , para
que saiba o que devo crêr ». Descobriu depois os seus
hombros, ainda todos pisados das pancadas que recebê-
ra, e mostrando- os ás senhoras : « Véde , disse-lhes, e
julgai se semelhantes contusões podem fazer-se sonhan-
do ou dormindo . A meu respeito posso assegurar-vos
que foram reaes ; e a dûr que d'ellas sinto ainda é para
mim uma prova de que não posso duvidar . Se todavia
me aconteceu dormindo, é a cousa mais extraordinaria
e mais pasmosa que vêr se possa » .
Na incerteza em que estava Abou Hassan do seu es-
tado, chamou um dos officiaes do califa que estava per-
to d'elle : «< Chegai-vos, disse elle, e mordei-me a ponta
CONTOS ARABES 291

da orelha para que julgue se durmo ou estou acordado ».


Chegou-se o official, pegou -lhe na ponta da orelha com
os dentes , e a apertou com tanta força que Abou Hassan
deu um grito .
A este grito todos os instrumentos de musica tocaram
ao mesmo tempo ; e as senhoras e os officiaes se puze-
ram a dançar, a cantar e a saltar á roda de Abou Has-
san com tanto estrondo, que entrou n'uma especie de
enthusiasmo que lhes fez fazer mil loucuras . Pôz- se a
cantar como os outros , rasgou o bello vestido de califa,
deitou ao chão o barrete que trazia na cabeça , e em ca-
misa e ceroulas levantou-se arrebatadamente e metteu-
se entre duas senhoras a quem deu a mão , e pôz-se a
dançar e a saltar com tanta acção, movimento, contor-
sões graciosas e divertidas que o califa não pôde conter-
se no gabinete onde estava. A graciosidade repentina de
Abou Hassan o fez rir com tanta força que se deixou
cahir de costas . Ficou bastante tempo sem poder conter-
se e pouco faltou que não se achasse incommodado. Le-
vantou-se finalmente e abriu a gelosia . Então , chegando
a cabeça e rindo sempre : « Abou Hassan, Abou Has-
san ! clamou elle ; queres pois fazer-me morrer á força
de rir-me ? >>
Á voz do califa calaram-se todos e cessou o estrondo .
Parou Abou Hassan como os outros, e voltou a cabeça
para o lado d'onde vinha a voz . Reconheceu o califa , e
ao mesmo tempo o mercador de Moussoul. Nem por isso
se desconcertou ; pelo contrario percebeu n'este instante
que estava bem acordado, e que tudo o que lhe acon-
tecéra era muito real e não um sonho . Ah ! clamou el-
le encarando o califa com segurança ; estás ahi , merca-
dor de Moussoul ? O quê ! queixaes -vos que vos faço
morrer, a vós, que sois causa dos maus tratamentos
que fiz a minha mãi e dos que recebi tantos dias no hos-
pital dos doudos, a vós que tanto maltratastes o Iman
da mesquita do meu bairro e os quatro scheikes meus
visinhos ! pois não sou eu , d'isso lavo as minhas mãos ;
vós é que me causastes tantos trabalhos de espirito e
tantos desgostos . Finalmente , não sois vós o aggressor e
não sou eu o offendido ? -Tens razão, Abou Hassan , res-
292 AS MIL E UMA NOITES

pondeu o califa, continuando a rir ; porém para consolar-


te e para indemnisar- te de todos os teus trabalhos , estou
disposto, e tomo a Deus por testemunha, a fazer a re-
paração que quizeres impôr-me ».
Proferidas estas palavras sahiu o califa do gabinete
e entrou no salão . Mandou trazer um dos seus melhores
fatos e ordenou ás senhoras que executassem as func-
ções officiaes da camara em Abou Hassan . Depois de o
terem vestido : « Tu és meu irmão , disse-lhe o califa abra-
cando -o ; pede-me o que for de teu agrado , conceder-

t'o-hei . - Commendador dos crentes, replicou Abou Has-
san, supplico a vossa magestade que me faça a mercê
de contar-me o que fez para desconcertar-me assim a
cabeça . Isso importa-me mais agora que qualquer outra
cousa, para restabelecer inteiramente o meu espirito ao
socego costumado » .
Quiz o califa dar esta satisfação a Abou Hassan : « Tu
deves saber em primeiro lugar, disse-lhe, que me dis-
farço algumas vezes, e particularmente de noite, para
conhecer por mim mesmo se tudo está em boa ordem
na cidade de Bagdad . E como gosto de saber tambem o
que se passa nos arrabaldes, escolhi um dia, o primeiro
de cada mez, para dar uma grande volta por fóra da ci-
dade, ora por um, ora por outro lado , e volto sempre
pela ponte . Acabava de dar esta volta na tarde em que
me convidaste a cear comtigo . Na nossa conversação tu
me declaraste que a unica cousa que desejavas, era ser ca-
lifa e commendador dos crentes sómente vinte e quatro
horas, para ensinar o Iman da mesquita do teu bairro
e os quatro scheikes seus conselheiros . Pareceu -me o
teu desejo mui proprio para dar-me uma occasião de di-
vertimento, e com esta mira imaginei logo o meio de
procurar-te a satisfação que desejavas. Trazia commigo
alguns pós que fazem dormir logo que se tomam e não
se acorda senão passado certo tempo. Sem tu perceberes
deitei - os na ultima taça que te apresentei e bebeste . No
mesmo instante adormeceste e mandei-te levar ao meu
palacio pelo meu escravo, depois de ter deixado a porta
de teu quarto aberta, sahindo . Não é necessario dizer-te
o que te aconteceu no meu palacio quando acordaste, e
CONTOS ARABES 293

durante todo o dia até à noite , em que depois de teres


sido bem regalado por ordem minha, uma das minhas
escravas que te servia , deitou mais pós na ultima taça
que te apresentou e bebeste . Cahiste logo em modorra,
e mandei-te levar a casa pelo escravo que te trouxera,
com ordem de deixar a porta de teu quarto aberta, sa-
hindo . Tu mesmo me contaste tudo o que te aconteceu
no dia seguinte e nos outros . Não imaginei que deves-
ses padecer tanto como padeceste n'essa occasião . Porém
como já te dei a minha palavra , farei tudo para consolar-
te, e dar-te motivo de esquecer todos os teus males.
Vé pois o que posso fazer para te dar gosto, e pede - me
afoutamente o que desejas . —Commendador dos crentes ,
replicou Abou Hassan, por maiores que fossem os traba-
lhos que padeci , ficam apagados da minha lembrança,
desde o instante em que me convenci que foram obra
do meu soberano senhor e amo . Quanto á generosidade ,
cujos effeitos vossa magestade quer fazer-me experimen-
tar com tanta bondade, não duvido de modo algum da
sua palavra irrevogavel . Mas como o interesse nunca me
dominou, visto que me dá essa liberdade, a graça que
ouso pedir-lhe é dar-me bastante accesso para com a
sua pessoa, para ter a felicidade de ser toda a minha
vida o admirador da sua grandeza » .
Esta ultima demonstração de desinteresse de Abou
Hassan acabou de merecer-lhe a total estimação do cali-
fa. « Agradeço-te a tua pretensão , disse-lhe o califa ; eu
t'a concedo com a entrada franca no meu palacio a toda
a hora, e em qualquer lugar em que me ache » . Ao
mesmo tempo assignou-lhe um alojamento no palacio ;
quanto aos seus salarios disse-lhe que não queria que
tivesse que fazer com seus thesoureiros mas sim com a
sua propria pessoa , e mandou- lhe logo dar pelo seu the-
soureiro particular uma bolsa de mil peças d'ouro . Agra-
deceu muito Abou Hassan ao califa, que o deixou para ir
ao conselho, conforme o seu costume.
Tomou Abou Hassan este tempo para ir com a bre-
vidade possivel informar sua mãi de tudo o que se pas-
sára e noticiar-lhe a sua boa fortuna . Deu-lhe a conhe-
cer que tudo que lhe acontecera não era um sonho, que
AS MIL E UMA NOITES
294
fora califa , que na realidade fizera as suas funções um
dia inteiro , e recebêra verdadeiramente as honras d'elle ;
que não devia duvidar do que lhe dizia , visto que tive-
ra a confirmação da propria bocca do califa.
A nova da historia de Abou Hassan não tardou mui-
to a espalhar-se por toda a cidade de Bagdad ; divulgou-
se tambem pelas provincias visinhas e d'alli ás mais re-
motas, com as circumstancias singulares e divertidas de

o ad a.
que Afonorava om
acpo pa
si çãnh de Ab on Hassan o tornava em extremo
assi du o a faz er a côr te ao califa . Como fosse naturalmen-
te de bom humor e fizesse nascer a alegria em toda a
parte onde se achasse , pelos seus bons ditos e pelas suas
graciosidades , não podia o califa quasi passar sem elle ,
e não fazia partida alguma de divertimento sem cha-
mal -o ; levava -o tambem algumas vezes ao alojamento
de Zobeida sua esposa , a quem contára a sua historia ,
que a divertira muito . Não desagradava a Zobeida ; mas
ella observou que todas as vezes que elle acompanhava
o califa, tinha sempre os olhos fitos n'uma de suas es-
cravas , chamada Nouzhatoul -Aouadat , razão por que re-
solveu dar parte d'isto ao califa : « Commendador dos
crentes , disse um dia a princeza ao califa , não obser-
vaes , talvez como eu, que todas as vezes que Abou Has-
san aqui vem , não cessa de fitar os olhos em Nouzhatoul-
Aouadat , e que ella nunca deixa de córar . Não duvidaes
certamente que isto seja um signal certo de que ella não
desgosta d'elle . Razão por que , se o desejaes , casal -os-
Senhora, replicou o califa ,
hemos um com ro outro .
fazeis -me lemb ra um cous que deveria ter já feito .
a a
Sei o gosto de Abou Hassan ácerca do seu casamento ,
por confissão d'elle mesmo ; e tinha -lhe promettido uma
mulher, da qual teria motivo de ficar contente . Estimo
bem que me fallasseis n'esse assumpto , e não sei como
isso me escapou da lembrança . Mas melhor era que
Abou Hassan seguisse a sua inclinação , com a escolha
que elle mesmo fez . Além d'isso , visto que Nouzhatoul-
Aouadat não desgosta d'elle , não devemos hesitar sobre
esse casamento . Eil- os-ahi um e outro , e não teem mais
que declarar se consentem no casamento » .
CONTOS ARABES 295

Lançou-se Abou Hassan aos pés do califa e de Zobei-


da, para mostrar-lhes o quanto era sensivel aos favores
que lhe faziam : « Não posso , disse elle levantando - se ,
aceitar uma esposa de melhores mãos ; porém não ouso
esperar que Nouzhatoul -Aouadat queira dar-me a sua de
tão bom coração , como eu estou disposto a dar-lhe a
minha ». Acabando estas palavras encarou a escrava da
princeza, que bastante demonstrou pelo seu silencio res-
peitoso e pela vermelhidão que lhe subiu ao rosto , que
estava disposta a seguir a vondade do califa e de Zobei-
da, sua ama.
Fez -se o casamento e celebraram-se as bodas no pa-
lacio com grandes regosijos , que duraram alguns dias .
Deu Zobeida ricos presentes á sua escrava para agradar
ao califa ; e o califa, da sua parte, em consideração a Zo-
beida, usou do mesmo modo para com Abou Hassan.
Foi a noiva levada ao alojamento que o califa assi-
gnára a Abou Hassan, seu marido, que a esperava com
impaciencia. Recebeu-a ao som de todos os instrumentos
de musica e das cantadeiras do palacio , que faziam re-
percutir no ar os accordes de suas vozes e de seus ins-
trumentos.
Passaram-se alguns dias em festas e regosijos como
é costume haver n'estas occasiões, findos os quaes dei-
xaram os noivos gozar em paz os seus amores . Estavam
Abou Hassan e sua esposa enlevados um no outro . Vi .
viam n'uma união tão perfeita, que exceptuando o tem-
po que empregavam em cortejar, um o califa e outra a
princeza Zobeida, estavam sempre juntos e não se apar-
tavam. É verdade que Nouzhatoul-Aouadat possuia todas
as qualidades de uma senhora capaz de inspirar amor e
affecto a Abou Hassan, visto que era conforme os dese-
jos que dera a conhecer, quando se explicára com o ca-
lifa, isto é, em estado de fazer-lhe companhia á mesa .
Com estas disposições não podiam deixar de passar o
seu tempo juntos agradavelmente. Assim estava sempre
posta a sua mesa, e coberta a cada comida das viandas
mais delicadas e saborosas, que um cozinheiro tinha cui-
dado de lhes apromptar e trazer. Estava o aparador sem-
pre carregado de vinhos exquisitos e dispostos de modo
296 AS MIL E UMA NOITES

que estavam á mão de ambos , quando sentados á mesa.


Alli se divertiam agradavelmente conversando frente a
frente e entretinham-se com mil graciosidades que lhes
faziam dar risadas maiores ou menores, á proporção que
achavam alguma cousa que dizer, que fosse mais ou me-
nos capaz de alegral-os . A cêa, particularmente , era con-
sagrada á alegria. Não lhes serviam senão frutas excel-
lentes, bolos e massas de amendoas ; e a cada copo de
vinho que bebiam excitavam - se um ao outro com algu-
mas novas cantigas, que muitas vezes improvisavam a
proposito sobre o assumpto de que conversavam. Estas
cantigas eram algumas vezes acompanhadas de cythara ou
de algum outro instrumento, que um e outro sabiam to-
car.
Abou Hassan e Nouzhatoul-Aouadat passaram assim
bastante tempo, tendo sempre boa mesa e divertindo- se
bem. Nunca lhes deu cuidado a despeza da bocca ; e o
cozinheiro, que tinham escolhido para isto, havia adianta-
do o dinheiro . Era justo que recebesse algum pagamen-
to ; por esta razão apresentou -lhes a conta do que adian-
tára. Achou-se muito exagerada a somma . Acrescentaram
a esta o gasto já feito em vestidos de noivado dos mais
ricos estofos, tanto para um como para o outro, e em
joias de grandissimo preço para a noiva, e achou-se a
conta tão elevada que perceberam, porém tarde, que de
todo o dinheiro que receberam dos beneficios do califa e
da princeza Zobeida, em attenção ao seu casamento , não
lhes restava precisamente senão o que era preciso para
satisfazer a dita somma. Isto lhes fez formar grandes re-
flexões sobre o passado, que não remediava o mal pre-
sente. Foi Abou Hassan de parecer que se pagasse ao co-
zinheiro, e n'isso consentiu sua mulher. Mandaram cha-
mal-o e pagaram-lhe tudo o que lhe deviam, sem demons-
tração alguma do embaraço em que se achariam logo
de pois de ter feito este pagamento.
Retirou-se o cozinheiro satisfeito de ser pago em bel-
las moedas d'ouro bem conservadas ; não se viam ou-
tras no palacio do califa . Não ficaram mui contentes Abou
Hassan e Nouzhatoul-Aouadat, vendo vazia a sua bolsa.
Guardaram profundo silencio com os olhos baixos , e mui
CONTOS ARABES 297

embaraçados do estado a que se viam reduzidos logo no


primeiro anno do seu casamento.
Bem se lembrava Abou Hassan que o califa , receben-
do-o no seu palacio , lhe promettera de não lhe faltar
cousa alguma. Porém quando considerava que gastá-
ra em tão pouco tempo as dádivas da sua mão libe-
ral, além de não ter genio de pedir, não queria expôr-
se tambem á vergonha de declarar ao califa o mau uso
que fizera d'ellas , e a precisão em que se achava de re-
ceber novas dádivas . Além d'isso tinha deixado o seu
patrimonio a sua mãi , logo que o califa o quizera junto
á sua pessoa ; estava muito longe de recorrer á bolsa de
sua mãi , a quem teria dado a conhecer, com o seu pro-
cedimento, que tinha incorrido na mesma desordem em
que cahira depois da morte de seu pai .
Da sua parte Nouzhatoul -Aouadat, que considerava as
liberalidades de Zobeida , e a liberdade que lhe dera, ca-
sando-a, como uma recompensa mais que sufficiente de
seus serviços e do seu affecto , não lhe parecia ter direi-
to a pedir-lhe mais alguma cousa.
Rompeu finalmente Abou Hassan o silencio, e olhan-
do para Nouzhatoul-Aouadat com semblante sincero : «<Bem
vejo, disse-lhe, que estaes no mesmo embaraço que eu ,
e que procuraes o partido que devemos tomar n'uma tão
lastimosa conjunctura como esta, em que o dinheiro nos
falta de repente, sem o ter previsto . Não sei qual possa
ser o vosso parecer : quanto a mim, succeda o que suc-
ceder, opino que não diminuamos nossa despeza ordina-
ria em cousa alguma, e creio que da vossa parte não
vos opporeis a isto. O ponto é achar meio de supprir
a ella, sem passar pela baixeza de pedir, nem eu ao ca-
lifa, nem vós a Zobeida, e creio tel-o achado ; mas para
isto devemos ajudar-nos um ao outro » .
Estas palavras de Abou Hassan agradaram muito a
Nouzhatoul-Aouadat , e lhe deram alguma esperança .
« Não estava menos occupada que vós d'esse pensamen-
to, disse-lhe ella ; e se não me explicava é porque não
achava remedio algum. Confesso-vos que a declaração
que acabaes de fazer-me , me dá o maior gosto do mun-
do. Porém, visto que achaes o meio que dizeis , e que o
AS MIL E UMA NOITES
298
meu soccorro vos é necessario para n'elle ser bem suc-
cedido , basta dizer -me o que devo fazer, e vereis que
n'isso me empregarei com todo o desvelo . -- Sempre es-
perei , replicou Abou Hassan , que não me abandonarieis
n'este negocio , que vos pertence tanto como a mim .
Eis-aqui pois o meio que imaginei para obrar de sorte
que não nos falte o dinheiro na precisão que d'elle te-
mos , ao menos por algum tempo . Consiste n'um peque-
no engano que nós faremos , eu ao califa e vós a Zobei-
da, e que , estou certo , os divertirá e não nos será in-
fructuoso . Vou dizer -vos qual é o engano de que fallo :
Morrermos ambos ! interrom-
é morrermos ambos . -
l
peu Nouzhatou -Aouadat . Morrei vós , se o desejaes ;
quanto a mim não estou enfastiada de viver, e não pre-
tendo , ainda que não seja de vosso agrado , morrer tão
cedo . Se não tendes outro meio que propôr -me senão es-
se, podeis executal -o vós mesmo , pois asseguro - vos que
não me entremetterei n'elle . -Sois mulher, replicou
Abou Hassan , quero dizer, d'uma viveza e d'uma prom-
ptidão extraordinaria ; mal me daes tempo de explicar-
me. Ouvi -me pois um instante com paciencia , e á vista
d'isso vereis que querereis morrer da mesma morte de
que eu mesmo pretendo morrer . Bem julgaes que não
fallo d'uma morte verdadeira , mas sim d'uma morte fin-
gida . Ah ! n'isso consinto , interrompeu ainda Nouzha-
- adat
toul -Aou ; logo que não se trata senão d'uma mor-
te ficticia , estou com vosco . Podeis contar commigo ; sereis
testemunha do zelo com que vos igualarei em morrer
d'esse modo . Pois a fallar -vos francamente , tinha uma
repugnancia invencivel em morrer tão cedo , como d'an-
tes o entendia . - Então sereis satisfeita , continuou Abou
Hassan ; eis-aqui como o entendo para ser bem succedi-
do no que me proponho : vou fingir-me morto . Tomareis
um lençol , e amortalhar -me-heis , como se na realidade
o estivesse . Pôr-me -heis no meio do quarto como é cos-
tume, com o turbante sobre a cara e os pés virados pa-
ra Meca, inteiramente prompto a ser levado ao lugar da
sepultura . Estando assim tudo disposto , dareis os gritos
e derramareis as lagrimas que costumam derramar-se
em semelhantes occasiões , rasgando vossos vestidos e
CONTOS ARABES 299

arrancando-vos os cabellos, ou ao menos fingindo que


vol-os arrancaes, e ireis no mesmo instante chorando, e
com os cabellos soltos, apresentar-vos a Zobeida . Quere-
rá a princeza saber o motivo das vossas lagrimas ; e,
logo que a tiverdes informado pelas vossas palavras mis-
turadas com soluços, não deixará de condoer- se de vós

e de vos dar alguma somma de dinheiro para ajudar a


fazer as despezas dos funeraes, far- vos ha presente d'uma
peça de brocado para cobrir-me, para fazer o meu enter-
ro mais pomposo e para fazerdes um vestido em lugar
do que ella verá rasgado. Logo que voltardes com esse
dinheiro e essa peça de brocado, levantar-me-hei do
meio do quarto e deitar-vos-heis no meu lugar. Fingir-
vos-heis morta ; e , depois de vos ter amortalhado, irei
tambem ter com o califa e farei o mesmo papel que re-
presentastes com Zobeida. E ouso esperar que o califa
300 AS MIL E UMA NOITES

não será menos liberal a meu respeito , do que Zobeida


o foi comvosco » .
Tendo Abou Hassan acabado de explicar o seu pen-
samento ácerca do que projectára : « Creio que o engano
será muito divertido, replicou logo Nouzhatoul-Aouadat,
e deve dar magnifico resultado . Trata-se agora de exe-
cutal-o bem : quanto a mim podeis deixar-me obrar ;
desempenharei o meu papel tão bem como espero que
desempenhareis o vosso, e com todo o zelo e applica-
ção, pois percebo, como vós , a grande vantagem que
d'isso nos ha - de resultar. Não percamos tempo . Em
quanto eu pegar n'um lençol, ponde-vos em camisa e
em ceroulas ; sei amortalhar tão bem como qualquer,
pois que quando estava servindo a Zobeida e alguma es-
craya morria, ficava sempre a meu cargo o amorta-
lhal-a ».
Não tardou Abon Hassan a fazer o que lhe dissera
Nouzhatoul-Aouadat. Estendeu-se de costas sobre o len-
çol que fora posto sobre o tapete no meio do quarto ,
cruzou os braços e deixou-se amortalhar de modo que
parecia que não restava senão mettel-o n'um esquife e
leval- o para ser enterrado. Voltou -lhe sua mulher os pés
para Meca, cobriu -lhe o rosto com uma cassa finissima
e pûz o seu turbante em cima, de modo que tinha a res-
piração livre . Despenteou-se depois ; e, com as lagrimas
nos olhos, soltos os cabellos , fingindo arrancal-os e dan-
do grandes gritos, batia nas faces e no peito com todos
os outros signaes d'uma dôr aguda . D'este modo sahiu
e atravessou um pateo mui espaçoso, para ir ter ao
quarto da princeza Zobeida.
Nouzhatoul-Aouadat dava gritos tão grandes que Zo-
beida os ouviu do seu quarto. Ordenou ás suas escra-
vas, que estavam a essa hora com ella, que fossem vêr
d'onde podiam vir aquellas lamentações e gritos que es-
tava ouvindo . Correram apressadamente ás gelosias, e
voltaram a avisar Zobeida que era Nouzhatoul-Aouadat,
que vinha chegando toda banhada em lagrimas . A prin-
ceza, impaciente por saber o que podia ter-lhe aconte-
cido, levantou-se logo e foi ao encontro d'ella á porta
da ante- camara .
CONTOS ARABES 301

Nouzhatoul-Aouadat representou alli o seu papel com


toda a perfeição . Logo que avistou Zobeida, que segu-
rava o reposteiro da ante-camara e que a esperava, deu
ainda maiores gritos chegando-se a ella, arrancou os ca-
bellos ás mãos cheias, bateu nas faces e no peito ainda
com mais força, e lançou-se a seus pés banhando- os
com suas lagrimas .
Pasmada Zobeida de vêr a sua escrava n'uma afflic-
ção tão extraordinaria, perguntou-lhe o que tinha e que
desgraça lhe acontecera.
Em vez de responder, a falsa afflicta continuou os
seus soluços algum tempo, fingindo violentar-se para
contél-os . «< Ai de mim, minha muito honrada senhora e
ama ! clamou ella finalmente com palavras interrompidas
com soluços ; que infelicidade maior e mais funesta po-
dia acontecer-me, que a que me obriga a vir-me lançar
aos pés de vossa magestade, na desgraça extrema a que
me vejo reduzida ! que Deus prolongue os vossos dias
em perfeita saude, minha mui respeitavel princeza, e
vos dê dilatados e venturosos annos ! Abou Hassan, o
pobre Abou Hassan que honrastes com vossas bondades
e que vós e o commendador dos crentes me déstes por
esposo, não vive já ! »
Acabando do proferir estas ultimas palavras, Nouz-
hatoul Aouadat augmentou as suas lagrimas e soluços ,
e lançou-se de novo aos pés da princeza . Ficou Zobeida
em extremo pasmada com esta nova . « <<Morreu Abou
Hassan ! clamou ella ; esse homem tão cheio de saude,
tão agradavel, tão divertido ! na verdade não esperava
saber tão cedo a morte d'um homem como esse, que
dava esperanças d'uma dilatadissima vida, e que tão di-
gno era d'ella » . Não pôde deixar de patentear a sua
afflicção com suas lagrimas. As suas escravas , que a
acompanhavam e que muitas vezes participaram das
graciosidades de Abou Hassan quando era admittido nas
palestras familiares de Zobeida e do califa, manifestaram
tambem com seus choros o pezar que tinham pela sua
perda, e a parte que n'ella tomavam.
Zobeida, suas escravas e Nouzhatoul-Aouadat ficaram
tempo consideravel com o lenço diante dos olhos a cho-
302 AS MIL E UMA NOITES

rar e a dar suspiros por esta pretendida morte . Final-


mente rompeu a princeza Zobeida o silencio : <«< Mulher
perversa ! clamou ella, dirigindo -se à falsa viuva ; tu és
talvez a causa da sua morte . Tu lhe terás dado tantos
motivos de desgosto com o teu mau genio, que por fim
terás conseguido leval-o á sepultura !>>
Nouzhatoul-Aouadat manifestou sentir muito a repre-
hensão que lhe dava Zobeida : « Ah , senhora ! clamou
ella ; não penso ter jámais dado a vossa magestade , to-
do o tempo que tive a fortuna de ser sua escrava, o
mais leve motivo de fazer conceito tão desvantajoso do
meu comportamento para com um esposo que tanto
amava e estimava. Ter-me-hia pela mais desgraçada de
todas as mulheres se d'isso estivesseis persuadida . Esti-
mei a Abou Hassan como uma mulher deve estimar um
marido que ama apaixonadamente, e posso confessar,
sem vaidade , que tive toda a ternura que merecia que
tivesse para com elle, em razão de todas as complacen-
cias que tinha para commigo . Estou persuadida que me
justificaria inteiramente a este respeito no espirito de
vossa magestade , se elle ainda vivesse. Porém, senhora,
acrescentou ella continuando a chorar, era chegada a
sua hora, e esta a unica causa da sua morte » .
Com effeito, tinha sempre Zobeida observado na sua
escrava a mesma igualdade de humor, uma brandura
que jamais se desmentia, uma grande docilidade , um
zelo em tudo o que fazia para o seu serviço , que deno-
tava que trabalhava mais por inclinação do que por obri-
gação . Assim não duvidou crêr o que lhe dizia , e orde-
nou á sua thesoureira que lhe désse cem peças d'ouro
e uma peça de brocado .
Voltou logo a thesoureira com a bolsa e a peça de
brocado que entregou, por ordem de Zobeida, a Nouzha-
toul -Aouadat.
Aceitando este bello presente, lançou-se aos pés da
princeza e lh'o agradeceu com o devido respeito, e com
grande satisfação na alma por ter sido bem succedida.
« Vai, disse-lhe Zobeida , faze servir a peça de brocado
em cobrir a tumba de teu marido, e emprega o dinhei-
ro em fazer-lhe exequias honrosas e dignas d'elle . Isso
CONTOS ARABES 303

feito, modera os excessos da tua afflicção ; terei cuidado


de ti >
».
Apenas se ausentou Nouzhatoul-Aouadat da presença
de Zobeida, enxugou as suas lagrimas com grande ale-

gria e voltou com toda a pressa dar a conta a Abou Has-


san do bom successo do seu papel.
Quando entrou deu Nouzhatoul- Aouadat uma grande
risada, achando Abou Hassan no mesmo estado em que o
deixára, isto é, amortalhado no meio do quarto. « Levan-
tai-vos, disse-lhe ella rindo -se sempre, e vinde vêr o fru-
cto do engano que fiz a Zobeida . Não morreremos de
fome ».
301 AS MIL E UMA NOITES

Levantou-se apressadamente Abou Hassan, e alegrou-


se muito com sua mulher, vendo a bolsa e a peça de
brocado.
Tão satisfeita estava Nouzhatoul-Aouadat de ter tido
tão bom successo no engano que acabava de fazer á prin-
ceza, que não podia conter a sua alegria. « Não basta,
disse ella a seu marido, rindo-se ; quero tambem fingir-
me morta, e vêr se tereis bastante habilidade para apa-
nhar outro tanto ao califa, como eu saquei a Zobeida. -
Eis-ahi o genio das mulheres ! replicou Abou Hassan ; com
muita razão se diz que teem sempre a vaidade de crêr
que fazem mais que os homens, ainda que as mais das
vezes nada façam bem feito senão pelo conselho d'elles !
Teria muito que vêr se não fizesse ao menos tanto como
vós com o califa, eu , que sou o inventor da burla ! Po-
rém não percamos tempo em palavras inuteis ; fingi- vos
morta como eu, e vereis se não terei o mesmo succes-
So » .
Amortalhou Abou Hassan sua mulher, collocou-a no
mesmo lugar em que elle esteve, voltou-lhe os pés pa-
ra Meca e sahiu do seu quarto com o turbante mal pos-
to, como um homem que está n'uma grande afflicção .
N'este estado foi ter com o califa , que estava então n'um
conselho particular com o grão -visir Giafar e outros vi-
sires em quem tinha maior confiança . Apresentou-se á
porta ; e o porteiro, que sabia que elle tinha entrada li-
vre, o deixou passar. Entrou, segurando com uma mão
o lenço diante dos olhos para occultar as lagrimas fingi-
das que deixava correr em abundancia , e dando com a
outra no peito, com exclamações que expressavam o ex-
cesso da sua afflicção.
O califa, que costumava vêr Abou Hassan com sem-
blante sempre alegre, admirou-se muito de vêl-o appare-
cer na sua presença em tão triste estado . Interrompeu a
attenção que dava ao negocio de que tratava no seu con-
selho , para perguntar-lhe a causa da sua afflicção .
«Commendador dos crentes, respondeu Abou Hassan
com soluços e suspiros repetidos, não podia acontecer-me
maior desgraça . Que Deus deixe viver a vossa magesta-
de no throno que tão gloriosamente occupa : Nouzhatoul-
CONTOS ARABES 305

Aouadat, que me déra em casamento pela sua bonda-


de, para passar o resto de meus dias com ella ... Ai de
mim ! »
A esta exclamação , Abou Hassan fingiu ter o coração
tão magoado, que não proferiu mais palavra, e desfez-
se em lagrimas.
O califa, que percebeu que Abou Hassan acabava de
annunciar-lhe a morte de sua mulher, mostrou-se em
extremo sensivel : « Deus se compadeça d'ella , disse o
califa com ar que denotava o pezar que tinha ; era uma
boa escrava ; merecia viver mais largo tempo » . Então
as lagrimas lhe correram em fio pelas faces, e foi obri-
gado a pegar no seu lenço para enxugal-as .
Teve o califa o mesmo pensamento que Zobeida , e
imaginou que elle era talvez a causa da sua morte .
Desgraçado ! disse-lhe com tom de indignado ; talvez
fizesses morrer tua mulher com maus tratamentos ! De-
vias ao menos ter mais alguma consideração com Zobei-
da, minha esposa, que a amava mais que ás outras es-
cravas, e que quiz privar-se d'ella para dar-t'a. Eis-ahi
uma bella demonstração do teu reconhecimento ! -Com-
mendador dos crentes, respondeu Abou Hassan, fingindo
chorar mais amargamente que d'antes, póde vossa mages-
tade ter um só instante o pensamento de que Abon Has-
san, a quem favoreceu e beneficiou , e a quem fez honras
a que nunca ousou aspirar, pudesse ser capaz de tama-
nha ingratidão ? Amava a Nouzhatoul- Aouadat, minha es-
posa, tanto por todas essas razões , como por outras mui-
tas prendas que tinha e que eram causa para eu lhe con-
servar sempre todo o affecto, toda a ternura e todo o
amor que merecia . Porém, senhor, acrescentou elle , ella
devia morrer, e Deus não quiz deixar-me gozar mais tem-
po a minha felicidade » .
Finalmente soube Abou Hassan dissimular tão perfei-
tamente a sua afflicção com todas as demonstrações de
verdadeira mágoa, que o califa, que além d'isso não ou-
vira dizer que não vivia em boa harmonia com sua mu-
lher, deu credito a tudo o que lhe disse , e não duvidou
mais da sinceridade de suas palavras . Estava presente o
thesoureiro do palacio e o califa lhe ordenou que fosse
TOMO III. 20
306 AS MIL E UMA NOITES

ao thesouro e désse a Abou Hassan uma bolsa de cem


peças de ouro, com uma bella peça de brocado . Lançou-
se logo Abou Hassan aos pés do califa para manifestar-
lhe o seu reconhecimento e agradecer -lhe o seu presen-
te . « Segue o thesoureiro , disse- lhe o califa ; a peça de
brocado é para cobrir a defunta , e o dinheiro para fa-
zer-lhe exequias dignas d'ella . Espero que lhe darás esta
ultima demonstração do teu amor ».
Não respondeu Abou Hassan a estas palavras do ca-
lifa, senão com uma profunda inclinação , retirando -se.
Seguiu o thesoureiro , e logo que a bolsa e a peça de
brocado lhe foram entregues , voltou para sua casa con-
tentissimo e satisfeito por ter achado tão prompta e fa-
cilmente com que supprir a necessidade em que se achá-
ra e que lhe causára tanto desassocego .
Nouzhatoul -Aouadat, cançada de ter estado tanto tem-
po em tão grande constrangimento , não esperou que
Abou Hassan lhe dissesse que deixasse a triste posição
em que estava. Logo que ouviu abrir a porta, correu a
elle : « Então ! disse-lhe ; foi o califa tão facil em deixar-
se enganar como Zobeida ? -Vêdes , respondeu Abou
Hassan gracejando , e mostrando -lhe a bolsa e a peça de
brocado, que sei tão bem fingir-me afflicto pela morte
d'uma mulher que está com saude , como vós sabeis cho-
rar pela de um marido que está cheio de vida » .
Bem parecia todavia a Abou Hassan que não deixa-
ria este duplicado engano de ter suas consequencias , ra-
zão por que preveniu sua mulher quanto pôde ácerca de
tudo o que poderia acontecer, para obrarem de concerto .
«< Quanto mais conseguirmos, acrescentava elle , causar ao
<
califa e a Zobeida alguma especie de embaraço , mais gos-
to terão no fim; e manifestar-nos-hão talvez a sua sa-
tisfação com alguma nova demonstração da sua liberali-
dade ». Esta ultima consideração foi a que os animou
mais a fingir quanto pudessem.
Posto que houvesse ainda muitas cousas que regu-
lar no conselho, o califa, todavia, com impaciencia de ir
ter com a princeza Zobeida para dar-lhe os pezames da
morte de sua escrava, levantou -se pouco tempo depois
da partida de Abou Hassan e deixou o conselho para o
CONTOS ARABES 307

dia seguinte. O grão-visir e os outros visires despediram-


se e retiraram-se.
Depois de terem partido , o califa disse a Mesrour,
chefe dos eunucos do seu palacio, que quasi era insepara-
vel da sua pessoa , e que além d'isso entrava em todos
os seus conselhos : « Segue-me, e vem tomar parte , co-
mo eu, na afflicção da princeza, pela morte de Nouzha-
toul-Aouadat, sua escrava » .
Foram juntos ao quarto de Zobeida : estando o cali-
fa á porta, correu um pouco o reposteiro, viu a prince-
za assentada n'um sophá muito afflicta, e os olhos ainda
banhados em lagrimas .
Entrou o califa, e chegando - se a Zobeida : « Senhora ,
disse-lhe, não é necessario dizer-vos quanta parte tomo
na vossa afflicção , visto que não ignoraes que sou tão
sensivel ao que vos penalisa , como a tudo o que vos dá
gosto ; porém somos todos mortaes e devemos entregar
a Deus a vida que nos deu , quando nol - a requer . Nouzha-
toul-Aouadat, vossa escrava fiel , tinha na verdade pren-
das que mereceram a vossa estimação, e approvo mui-
to que lh'a manifesteis depois da sua morte. Considerai
todavia que as vossas lagrimas não lhe dão vida , e po-
dem , pelo contrario, ser causa da vossa morte » .
Se a princeza se enlevou dos ternos sentimentos do
califa, ficou além d'isso mui pasmada de saber a morte
de Nouzhatoul-Aouadat, pela qual não esperava . Ficou
tão espantada com isto que esteve algum tempo sem po-
der responder ; augmentava-se o seu pasmo, ouvindo
uma nova tão opposta á que acabava de saber. « Com-
mendador dos crentes, disse ella com ar que patentea-
va o seu pasmo, sou mui sensivel a todos os ternos
sentimentos que mostraes para commigo ; mas dai -me li-
cença de dizer-vos que nada entendo do que me dizeis
da morte da minha escrava ; ella está de perfeita saude :
Deus vos conserve a vós e a mim , senhor ; se me vêdes
afflicta é pela morte de Abou Hassan, seu marido , vosso
valido , a quem tanto estimava não só pela consideração
que tinheis para com elle, como porque tivestes a bon-
dade de m'o dar a conhecer, e algumas vezes me diver-
tiu bastante. Porém, senhor, a insensibilidade em que
*
308 AS MIL E UMA NOITES

vos vejo pela sua morte e o esquecimento que mostraes


ter d'elle em tão pouco tempo, vistas as demonstrações
que me déstes a mim mesmo do gosto que tinheis de o
ter junto de vós , me admiram e me espantam. E essa
insensibilidade se torna ainda mais reparavel pela troca
que quereis fazer, annunciando-me a morte de minha es-
crava pela d'elle ».
O califa, que cuidava estar perfeitamente informado
da morte da escrava, pôz -se a rir e a encolher os hombros
ouvindo fallar assim a Zobeida . « Mesrour, disse, vol-
tando -se para elle e dirigindo-lhe a falla ; que dizes ás
palavras da princeza ? Não é verdade que as senhoras
teem algumas vezes esquecimentos imperdoaveis ? feliz-
mente tu viste e ouviste tão bem como eu » . E voltan-
do-se para Zobeida : « Senhora, disse-lhe, não derrameis
mais lagrimas pela morte de Abou Hassan, que está de
perfeita saude. Chorai antes a morte de vossa querida
escrava ; ha um instante sómente que veio seu marido
ao meu quarto chorando, e em tal afflicção que me cau-
sou pena, annunciar-me a morte de sua mulher . Mandei-
lhe dar uma bolsa de cem peças d'ouro e uma peça de
brocado, para ajuda dos funeraes da defunta . Mesrour,
que aqui está , foi testemunha de tudo isto , e dir-vos - ha
a mesma cousa » >.
Isto pareceu á princeza pouco serio ; capacitou-se
que o califa queria enganal-a. «Commendador dos cren-
tes, replicou ella, ainda que tenhaes o costume de zom-
bar, dir-vos-hei que não é esta a occasião de fazel- o . O
que vos digo é muito serio . Não se trata já da morte da
minha escrava, mas sim da de Abou Hassan, seu marido ,
que deverieis sentir como eu.- E eu, senhora, replicou o
califa tomando um ar serio, digo-vos sem zombaria que
vos enganaes. Foi Nouzhatoul-Aouadat que morreu ; Abou
Hassan está vivo e cheio de saude ».
Despeitou-se Zobeida com a resposta secca do califa :
« Commendador dos crentes, replicou alguma cousa arre-
batada, Deus vos preserve de ficar mais tempo n'esse
erro, far-me-hieis crêr que o vosso espirito não está no
seu lugar. Permitti -me repetir-vos ainda que Abou Has-
san foi quem morreu , e que Nouzhatoul-Aouadat, mi-
CONTOS ARABES 309

nha escrava, viuva do defunto , está cheia de vida . Não


ha mais d'uma hora que sahiu d'aqui . Veio toda des-
consolada, e n'um estado capaz de arrancar-me lagrimas ,
ainda que não me tivesse declarado , no meio de mil so-
luços, o justo motivo da sua afflicção . Todas as minhas
criadas e escravas choraram commigo, e podem dar- vos
provas certas . Dir-vos-hão tambem que lhe fiz presente
d'uma bolsa de cem peças d'ouro e d'uma peça de bro-
cado . E a afflicção que observastes no meu semblante ,
entrando, procedia tanto da morte de seu marido , como
da desconsolação em que acabava de vél-a . Estava dis-
posta a mandar-vos dar os pezames no instante em que
entrastes >>.
A estas palavras de Zobeida : « Eis-ahi , senhora , uma
obstinação bem estranha ! clamou o califa, dando gran-
des risadas ; e eu vos digo , continuou elle, tornando a
tomar o seu ar serio, que Nouzhatoul-Aouadat foi quem
morreu . - Não , senhor, torno-vos a dizer, replicou Zo-
beida no mesmo instante e tambem seriamente ; foi Abou
Hassan : não me capacitareis do que não é » .
Subiu a colera ao rosto do califa ; assentou-se no so-
phá bastante afastado da princeza, e dirigindo-se a Mes-
rour : « Vai vêr já , disse -lhe , qual d'elles morreu, e vem
dizer-m'o immediatamente . Ainda que esteja muito certo
que foi Nouzhatoul-Aouadat, mais estimo todavia tomar
este expediente do que teimar mais sobre uma cousa que
sei perfeitamente » .
Não tinha ainda o califa acabado, e já Mesrour tinha
partido . << Vereis, continuou elle dirigindo a palavra a
Zobeida, qual de nós é que tem razão . - Quanto a mim ,
replicou Zobeida, sei que a razão está da minha parte ;
e vós mesmo vereis que Abou Hassan foi quem morreu,
como já disse . - E eu , replicou o califa, estou tão certo
que é Nouzhatoul-Aouadat, que estou prompto a apostar
contra vós o que quizerdes em como ella já não vive , e
que Abou Hassan está com saude. - Não cuideis tapar-me
a bocca com isso, replicou Zobeida ; aceito a aposta. Es-
tou tão persuadida da morte de Abou Hassan, que apos-
to, sem receio de perder o que posso ter de mais pre-
cioso, contra o que quizerdes, por modico que seja o seu
310 AS MIL E UMA NOITES

valor . Não ignoraes o que tenho à minha disposição ,


nem o que mais amo, segundo a minha inclinação . Bas-
ta-vos escolher e propôr, estarei por tudo . - Visto ser as-
sim, disse então o califa, aposto pois o meu jardim de
delicias contra o vosso palacio de pinturas : um vale
certamente o outro . - Não se trata de saber, replicou Zo-
beida, se o vosso jardim vale mais que o meu palacio.
Trata-se que escolhestes o que vos agradou do que me
pertence, para equivalente do que apostaes pela vossa
parte estou por tudo e a aposta está feita . Não serei a
primeira a desdizer-me : tomo a Deus por testemunha ».
Fez o califa o mesmo juramento, e n'isso ficaram esperan-
do a volta de Mesrour .
Em quanto o califa e Zobeida contestavam com tan-
to calor sobre a morte de Abou Hassan ou de Nouzhatoul-
Aouadat, Abou Hassan, que previra a sua desavença so-
bre este assumpto, estava attento a tudo o que pudesse
acontecer. Logo que avistou a Mesrour pela grade da ja-
nella onde estava assentado entretendo -se com sua mu-
lher, e que observára que vinha direito a sua casa, per-
cebeu logo com que intento fôra mandado . Disse a sua
mulher que se fingisse morta e que não perdesse tempo .
Com effeito o tempo apertava, e tudo o que Abou
Hassan pôde fazer antes da chegada de Mesrour, foi amor-
talhar sua mulher e estender sobre ella a peça de bro-
cado que o califa lhe mandára dar. Abriu depois a porta
do seu quarto, e com o semblante triste e abatido , segu-
rando o seu lenço diante dos olhos, assentou- se à cabe-
ceira da pretendida defunta .
Apenas acabou, logo Mesrour se achou no quarto. O
espectaculo funebre causou- lhe uma alegria interna em
razão da ordem que lhe dera o califa. Logo que Abou
Hassan o avistou, correu a elle e beijando-lhe a mão com
o devido respeito : «Senhor , disse suspirando e gemen-
do, vós me vêdes na maior afflicção que podia jámais
acontecer-me pela morte de Nouzhatoul-Aouadat, minha
amada esposa, que honraveis com vossos favores » .
Ouvindo este discurso enterneceu-se Mesrour, e não
lhe foi possivel recusar lagrimas á memoria da defunta.
Levantou um pouco a peça de brocado da parte da cabe-
CONTOS ARABES 311

ça para ver-lhe o rosto que estava descoberto, e deixan-


do-a cahir depois de têl- o visto : « Não ha outro Deus se-
não Deus, disse , dando um profundo suspiro ; devemos
sujeitar-nos todos á sua vontade, e toda a creatura deve
voltar-se para elle . Nouzhatoul-Aouadat, minha boa irmã,
acrescentou elle, suspirando, foi teu destino de mui pou-
ca duração : Deus tenha misericordia de ti » . Voltou-se
depois para Abou Hassan, que se desfazia em lagrimas :
« Não é sem razão , disse-lhe , que se conta que as mu-
lheres tem algumas vezes uns esquecimentos de espirito
que não se podem perdoar . Zobeida, minha boa ama, es-
tá n'este caso . Quiz sustentar contra o califa que vós ti-
nheis morrido e não vossa mulher, e por mais que o ca-
lifa lhe dissesse em contrario para persuadil-a, asseguran-
do-lhe a cousa seriamente , nunca pôde conseguil -o . To-
mou-me por testemunha para dar-lhe provas d'esta verda-
de e confirmar-lh'a, visto que , como sabeis, estava presen-
te quando viestes dar-lhe a triste nova, mas de nada ser-
viu tudo isso. Chegaram a tal obstinação um com outro ,
que não teriam terminado se o califa , para convencer
Zobeida, não se lembrasse de mandar-me a vossa casa
para saber a verdade . Porém receio de não ser bem suc-
cedido ; pois quaesquer que sejam os meios de que se
use hoje com as mulheres para fazer-lhes entender as
cousas, teimam com obstinação invencivel, quando uma
vez estão prevenidas de parecer contrario . —Que Deus
conserve o commendador dos crentes na posse e no bom
uso do seu raro juizo , replicou Abou Hassan , sempre
com lagrimas nos olhos, e com palavras interrompidas
com soluços ; vós estaes vendo o que é , e que não en-
ganei a sua magestade . E quizesse Deus, clamou elle para
melhor dissimular, que não houvesse tido occasião de ir
annunciar- lhe nova tão triste e tão desagradavel ! Ai de
mim ! acrescentou elle, não posso assás expressar a perda
irreparavel que tive hoje ! É isso verdade, replicou Mes-
rour ; e posso assegurar-vos que tomo muita parte na
vossa afflicção : emfim deveis consolar-vos e não vos en-
tregar assim á vossa dôr . Deixo -vos, contra minha von-
tade, para ir dar a resposta ao califa ; mas peço-vos por
favor, proseguiu elle, que não mandeis levar o corpo á
312 AS MIL E UMA NOITES

sepultura sem eu voltar, pois quero assistir ao seu en-


terro e acompanhal-o com minhas orações »> .
Tinha já sahido Mesrour para ir dar conta da sua men-
sagem, quando Abou Hassan, que o acompanhou até á
porta, lhe representou que não merecia a honra que lhe
queria fazer . Receando que Mesrour retrocedesse para di-
zer-lhe alguma outra cousa, seguiu-o com a vista algum
tempo ; quando o viu bastante afastado entrou em sua ca-
sa e desembaraçando a Nouzhatoul-Aouadat da sua morta-
< Eis aqui, dizia-lhe , uma nova scena representa-
lha : «
da ; mas parece-me que não será a ultima ; não quere-
rá certamente a princeza Zobeida estar pela relação de
Mesrour, pelo contrario mofará d'ella ; tem fortissimas
razões para não lhe dar credito, e assim devemos espe-
rar por algum novo acontecimento » . Em quanto fallou
assim Abou Hassan , teve Nouzhatoul- Aouadat tempo de
vestir-se, e foram ambos assentar-se no sophȧ perto da
grade da janella, para poder descobrir o que se passasse.
Chegou todavia Mesrour ao quarto de Zobeida ; entrou
no seu gabinete rindo e dando palmadas, como um ho-
mem que tinha alguma cousa agradavel que annun-
ciar.
Estava naturalmente impaciente o califa : quiz ser logo
informado d'este negocio ; além d'isso estava despeitado
em virtude da aposta com Zobeida, razão por que logo
que viu apparecer a Mesrour : « Mau escravo ! clamou el-
le ; não é tempo de rir : não dizes palavra ? falla franca-
mente ! qual morreu , o marido ou a mulher ? -Com-
mendador dos crentes, respondeu Mesrour com ar serio ;
Nouzhatoul - Aouadat foi quem morreu , e Abou Hassan es-
tá tão afflicto como appareceu diante de vossa magesta-
de ».
Sem dar tempo a Mesrour de proseguir, interrom-
peu-o o califa : «
< Boa nova ! clamou elle dando uma gran-
de risada ; ha um instante só que Zobeida tua ama pos-
suia o palacio das pinturas, e agora pertence-me a mim.
Tinhamos feito aposta d'elle contra o meu jardim das de-
licias , depois de tu partires ; assim não pódes dar-me
maior gosto ; terei cuidado de recompensar-te. Mas dei-
xemos isso ; dize-me ponto por ponto o que viste. -
CONTOS ARABES 313

Commendador dos crentes, proseguiu Mesrour, chegando


a casa de Abou Hassan , entrei no seu quarto que estava
aberto : achei- o muito afflicto e chorando a morte de Nouz-
hatoul-Aouadat, sua mulher. Estava assentado perto da
defunta, que estava amortalhada no meio do quarto, com
os pés virados para Meca e coberta com a peça de bro-
cado que vossa magestade deu ha pouco a Abou Hassan.
Depois de lhe ter manifestado a parte que tomava na sua
afflicção , cheguei-me ; e descobrindo-a pela parte da ca-
beça, reconheci a Nouzhatoul- Aouadat . Exhortei quanto
pude a Abou Hassan que se consolasse, e retirando-me
declarei- lhe que queria achar-me no enterro de sua mu-
lher, e que lhe rogava que não mandasse enterrar o cor-
po sem eu vir. Eis-aqui tudo o que posso dizer a vossa
magestade em execução da ordem que me deu » .
Tendo Mesrour acabado a sua relação : « Não te pedi
mais , disse-lhe o califa, rindo de todo o seu coração ; e
estou contentissimo com a tua exactidão » . E dirigindo-
se á princeza Zobeida : « Então, senhora ? disse-lhe o ca-
lifa ; tendes ainda alguma cousa que dizer contra uma
verdade tão palpavel ? Estaes capacitada que Nouzhatoul-
Aouadat esteja viva e que Abou Hassan esteja morto ?
não confessaes que perdestes a aposta? » >
De nenhum modo assentou Zobeida que tivesse Mes-
rour relatado a verdade : « Como, senhor ! replicou ella ;
imaginaes que me capacito do que diz este escravo ? é
um impertinente que não sabe o que diz : não sou nem
cega nem insensata ; vi com meus proprios olhos a Nouz-
hatoul-Aouadat na maior afflicção . Eu mesma fallei com
ella, e bem ouvi o que me disse da morte de seu mari-
do. - Senhora, replicou Mesrour, juro- vos pela vossa vi-
da e pela vida do commendador dos crentes, cousas no
mundo que são para mim as mais apreciaveis , que Nouz-
hatoul-Aouadat está morta e que Abou Hassan está vivo .
-Mentes, escravo vil e desprezivel ! replicou-lhe Zobei-
da toda raivosa ; e quero confundir-te já ». Chamou logo
as suas mulheres, batendo as palmas : entraram no mes-
mo instante em grande numero : « Vinde cá , disse- lhes a
princeza ; confessai-me a verdade : quem foi a pessoa que
veio fallar-me, pouco antes que o commendador dos
314 AS MIL E UMA NOITES

crentes chegasse aqui ? » As mulheres responderam to-


das que era a afflicta Nouzhatoul- Aouadat. « E vós , acres-
centou ella dirigindo-se à sua thesoureira ; que vos orde-
nei que lhe désseis , retirando -se ? - Senhora, respondeu
a thesoureira, dei a Nouzhatoul-Aouadat, por ordem de
vossa magestade, uma bolsa com cem peças de ouro e
uma peça de brocado, que levou comsigo . Então, mi-
seravel, escravo indigno ! disse Zobeida a Mesrour com
grande indignação ; que respondes a tudo o que acabas
de ouvir ? A quem te parece agora que deva dar cre-
dito : a ti , à minha thesoureira, ás minhas outras mulhe-
res, ou a mim mesma ? » Não faltavam a Mesrour razões
que oppôr ao discurso da princeza ; mas como receasse
escandalisal -a ainda mais, tomou o partido de calar-se ,
muito convencido, todavia, por todas as provas que tinha,
que Nouzhatoul-Aouadat estava morta, e não Abou Has-
san.
Em quanto durou esta contestação entre Mesrour e
Zobeida, o califa, que vira as provas em que se funda-
vam ambas as partes e sempre persuadido do contrario
do que dizia a princeza, ria de todo o seu coração, ven-
do que Zobeida estava agastada contra Mesrour . « < Senho-
ra, para repetil-o ainda uma vez, disse a Zobeida, não
sei quem disse que as mulheres tinham ás vezes esque-
cimentos de espirito ; mas consentireis que vos diga que
mostraes que nada se podia aventar que mais verdadei-
ro fosse. N'este instante chega Mesrour de casa de Abou
Hassan, relata -vos que viu com seus proprios olhos a
Nouzhatoul - Aouadat morta no meio do quarto , e vivo
Abou Hassan, assentado ao lado da defunta ; e não obs-
tante o seu testemunho, que não se póde razoavelmen-
te recusar, não quereis dar-lhe credito : é o que não pos-
so entender » >.
Zobeida, sem querer dar attenção ao que o califa lhe
representava : «< Commendador dos crentes, replicou ella,
perdoai-me, se vos tenho por suspeito : bem vejo que es-
taes de intelligencia com Mesrour para desgostar-me, e
para apurar a minha paciencia. E como vejo que o rela-
torio que Mesrour vos fez é concertado comvosco, rogo-
vos que me deixeis a liberdade tambem de mandar algu-
CONTOS ARABES
315
ma pessoa de minha parte a casa de Abou Hassan , para
saber se me engano » .
N'isso consentiu o califa , e a princeza encarregou á
sua ama de leite esta importante commissão . Era uma
mulher muito idosa, que ficára com Zobeida desde a sua
infancia. <
« Ama, disse-lhe, ouve ; vai a casa de Abou Has-
san, ou , para melhor dizer, a casa de Nouzhatoul- Aoua-
dat, visto que Abou Hassan morreu ; sabes da minha con-
tenda com o commendador dos crentes e com Mesrour ;
não ha precisão de dizer-te mais : averigua tudo ; se me
trazes uma boa nova dar-te-hei um bom presente : vai
depressa e volta já ».
Partiu a ama com grande satisfação do califa , que se
alegrava de vêr Zobeida n'este embaraço ; mas Mesrour,
em extremo desgostoso de vêr a princeza tão agastada
contra elle , buscava todos os meios de abrandal- a e de
obrar de modo que o califa e Zobeida ficassem igualmen-
te satisfeitos com elle . Razão por que se alegrou logo
que viu que Zobeida tomava o partido de mandar a sua
ama a casa de Abou Hassan , porque estava persuadido
que o relatorio que lhe faria não deixaria de achar-se
conforme ao seu , e serviria de justifical-o e congraçal-o
com ella .
Abou Hassan, todavia, que estava sempre vigiando
pela grade da janella, avistou a ama de muito longe :
percebeu logo que era uma mensagem da parte de Zo-
beida. Chamou sua mulher ; e, sem hesitar um instante
sobre o partido que tinham que tomar : « Eis-ahi , lhe dis-
se, a ama da princeza que vem informar-se da verdade :
toca a fingir-me morto pela minha vez » .
Estava tudo prompto . Nouzhatoul- Aouadat amortalhou
Abou Hassan apressadamente , estendeu em cima d'elle a
peça de brocado que Zobeida lhe déra e pôz -lhe o tur-
bante sobre a cara : a ama , com a pressa que tinha de
desempenhar-se da sua missão , viera a passo agitado .
Entrando no quarto avistou a Nouzhatoul- Aouadat assen-
tada á cabeceira de Abou Hassan , toda desgrenhada , cho-
rando, batendo nas faces e nos peitos, e dando grandes
gritos .
Chegou-se á falsa viuva : « Minha querida Nouzhatoul-
AS MIL E UMA NOITES
316
Aouadat , disse -lhe em tom muito triste , não venho aqui
perturbar a vossa afflicção , nem impedir - vos de derramar
lagrimas por um marido que vos amava tão ternamen-
te. Ah, boa mãi ! interrompeu piedosamente a falsa
viuva ; estaes vendo qual é a desgraça que me opprime ;
chóro a perda do meu querido Abou Hassan , que Zobei-
da, minha rica ama e o commendador dos crentes me
deram por marido . Abou Hassan , meu querido esposo !
clamava ella ainda ; que vos fiz eu para apartar- vos de
mim tão cedo ? Não segui eu sempre as vossas vontades
de preferencia ás minhas ? Ai de mim ! que será da po-
bre Nouzhatoul -Aouadao t ? >>
Estava em extrem pasmada a ama de vêr o contra-
rio do que o chefe dos eunucos relatára ao califa : « Aquel-
le cara preta de Mesrour, exclamou ella erguendo as
mãos , bem merecia que Deus o confundisse por ter ex-
citado tão grande contestação entre minha boa ama e o
commendador dos crentes, com uma mentira tamanha
como a que lhe armou . « Importa , filha , disse ella, di-
rigindo -se a Nouzhatoul -Aouadat , que vos conte a mal-
dade e o embuste d'esse vil Mesrour , que sustentou á
nossa boa ama , com descaramento indizivel , que esta-
veis morta , e que Abou Hassan estava vivo . - Ai de
mim , minha boa mãi ! clamou então Nouzhatoul -Aouadat ;
quizesse Deus que tivesse fallado verdade ! não estaria
na afflicção em que me estaes vendo , e não choraria um
esposo que tanto me prezava ! » Proferidas estas ultimas
palavras desfez -se em lagrimas , e manifestou maior des-
consolação com seus choros e gritos repetidos .
A ama, enternecida com as lagrimas de Nouzhatoul-
Aouadat, assentou -se a seu lado e chegou -se insensivel-
mente á cabeceira de Abou Hassan : levantou um pouco
o seu turbante e descobriu -lhe o rosto para reconhe-
cel - o : « Ah , pobre Abou Hassan ! disse ella , tornando a
cobril-o ; rogo a Deus que tenha misericordia de vós.
Adeus , filha , disse a Nouzhatoul - Aouadat : se pudesse fa-
zer-vos companhia mais tempo , fal -o -hia de boa vonta-
de : porém não posso demorar-me mais : a minha obri-
gação aperta commigo para ir immediatamente livrar
nossa boa mãi do grande desassocego em que a collo-
CONTOS ARABES 317

cou Mesrour com a sua imprudente mentira, asseguran-


do-lhe, até com juramento, que estaveis morta >> .
Apenas a ama de Zobeida fechou a porta sahindo ,
Nouzhatoul-Aouadat, que bem julgava que não voltaria ,
tanta era a pressa que tinha de ir ter com a princeza ,
enxugou as suas lagrimas, desembaraçou logo a Abou
Hassan da sua mortalha , e foram ambos assentar- se no
sophá perto da grade, esperando socegadamente o fim
d'este engano, sempre promptos a livrar-se, por qualquer
lado que quizessem apanhal-os.
A ama de Zobeida todavia, apesar da sua grande ve-
lhice, tinha apressado o passo na volta ainda mais que
na vinda. O gosto de levar á princeza a boa nova e
mais ainda a esperança de boa recompensa, a fizeram
chegar em pouco tempo : entrou no gabinete da prince-
za quasi sem alento , e dando-lhe conta da sua commis-
são contou sinceramente a Zobeida tudo o que acabava
de vêr.
Ouviu Zobeida o relatorio da ama com todo o pra-
zer possivel ; e, logo que acabou, disse a sua ama n'um
tom que manifestava a sua victoria : « Conta isso mesmo
ao commendador dos crentes , que nos considera como
desprovidas de bom senso, e que com isso quereria per-
suadir-nos que não temos temor a Deus . Dize -o a esse
malvado preto , que tem a insolencia de sustentar-me
uma cousa que não é, e que sei melhor do que elle ! »
Mesrour, que esperava que a viagem da ama e o re-
latorio que faria lhe seriam favoraveis , ficou desgostoso
de ter sido tão mal succedido . Além d'isso estava viva-
mente despeitado da cólera em que Zobeida estava con-
tra elle, por um facto que lhe parecia saber com mais
certeza que outro qualquer ; razão por que gostou de ter
occasião de explicar- se livremente com a ama e não com
a princeza, á qual não ousava responder, receando per-
der-lhe o respeito : « Velha sem dentes, disse á ama sem
attenção alguma, és uma mentirosa : não é nada do que
dizes : eu vi com meus proprios olhos a Nouzhatoul-

Aouadat estendida morta no meio do seu quarto . És
um mentiroso ! replicou a ama em tom insultador. Tens
o descaramento de sustentar uma falsidade contra mim,
318 AS MIL E UMA NOITES

que acabo de sahir de casa de Abou Hassan, que o vi


estendido morto, e que deixei sua mulher cheia de vi-
da. - Não sou embusteiro ! replicou Mesrour ; tu é que
procuras induzir-nos em erro . - Que grande atrevimen-
to ! replicou a ama ; ousar desmentir-me assim na presen-
ça de suas magestades, a mim, que vi com meus pro-
prios olhos a verdade do que tenho a honra de lhes as-
segurar! - Ama, replicou ainda Mesrour, farias melhor
se não fallasses, não estás certamente em ti ».
Não pôde Zobeida tolerar esta falta de respeito em
Mesrour, que, sem attenção alguma, tratava sua ama in-
juriosamente na sua presença . Assim, sem dar tempo a
sua ama de responder a esta injuria atroz : « Commen-
dador dos crentes, disse ao califa, peço- vos justiça con-
tra esta insolencia que tanto diz respeito a vós como a
mim » . Não pôde dizer mais, suffocada com as suas la-
grimas .
O califa, que ouvira toda esta contestação, achou-a
muito difficultosa de resolver ; por mais que reflectisse
não sabia que pensar de todas estas contrariedades . A
princeza pela sua parte, assim como Mesrour, a ama e
as escravas que estavam alli presentes, não sabiam o
que crêr d'esta aventura, e guardavam silencio . Final-
mente foi o califa o primeiro que fallou : « Senhora, dis-
se elle dirigindo-se a Zobeida ; bem vejo que somos to-
dos mentirosos : eu, Mesrour e a ama : ao menos não
me parece que um seja mais crivel do que o outro ; as-
sim levantemo-nos e vamos nós mesmos reconhecer de
que parte está a verdade : não vejo outro meio de re-
solver as nossas duvidas e de socegar os nossos espi-
ritos ».
Dizendo estas palavras, levantou- se o califa seguido
da princeza ; e Mesrour, caminhando adiante para abrir
o reposteiro : « Commendador dos crentes, disse elle ,
alegro-me muito que vossa magestade tomasse esse par-
tido ; e alegrar-me-hei ainda mais quando provar á ama
que está fóra de si , visto que essa expressão teve
a desgraça de desagradar á minha boa senhora e ama,
mas que o relatorio que ella lhe fez não é verdadei-
ro ».
CONTOS ARABES 319

Não ficou a ama sem replicar : « Cala-te, cara preta !


disse ella ; aqui não ha ninguem senão tu que não
esteja em si ».
Zobeida, que estava extraordinariamente agastada
contra Mesrour, não pôde supportar que tornasse a con-
tender com sua ama. Tomou ainda o seu partido : « Mal-
dito escravo ! disse-lhe ; por mais que possas explicar,
sustento que minha ama disse a verdade ; quanto a ti,
tenho-te em conta de mentiroso . Senhora, replicou
Mesrour, se a ama sabe com tanta certeza que Nouzha-
toul-Aouadat está com vida e que Abou Hassan morreu,
que aposte alguma cousa contra mim ; por certo que ella
não ha-de estar por isso >
».
Foi a ama prompta a responder : «Estou por isso,
disse -lhe ; pégo-te na palavra ; vejamos se ousarás des-
dizer-te » .
Não se desdisse Mesrour da sua palavra ; apostaram ,
a ama e elle , na presença do califa e da princeza, a uma
peça de brocado d'ouro , á escolha d'um e d'outro .
O quarto d'onde o califa e Zobeida sahiram , ainda
que bastante afastado, estava, não obstante, defronte do
alojamento de Abou Hassan e de Nouzhatoul - Aouadat.
Abou Hassan , que os viu vir precedidos de Mesrour, e
seguidos da ama e da multidão de mulheres de Zobeida,
avisou logo sua mulher, dizendo-lhe que iriam ter a
honra da sua visita. Nouzhatoul-Aouadat olhou tambem
pela grade e viu a mesma cousa . Ainda que seu marido
a tivesse avisado d'antemão que isto poderia acontecer,
ficou todavia assustada : « Que faremos ? clamou ella ;
estamos perdidos ! Perdidos, não : não receeis cousa
alguma, replicou Abou Hassan a sangue frio ; esqueces-
tes-vos já do que combinámos ? finjamo-nos mortos, vós
e eu, como já fizemos separadamente e como temos
ajustado, e vereis que tudo terá bom exito . Como véem
devagar, estaremos amortalhados antes que cheguem á
porta » .
Com effeito, Abou Hassan e sua mulher tomaram o
partido de amortalhar-se do melhor modo possivel, e
n'este estado, depois de se terem collocado no meio do
quarto, um perto do outro, cobertos cada um com sua
320 AS MIL E UMA NOITES

peça de brocado, esperaram em paz a bella companhia


que vinha visital-os .
Chegaram finalmente : abriu Mesrour a porta e en-
traram o califa e Zobeida no quarto, acompanhados de
toda a sua gente . Ficaram assustados e como immoveis
á vista do espectaculo funebre que se apresentava a seus
olhos : ninguem sabia o que havia de pensar ácerca de
tal acontecimento : rompeu finalmente Zobeida o silen-
cio : « Ai de mim ! disse ao califa ; morreram ambos :
tanto fizestes, continuou ella, encarando o califa e Mes-
rour, á força de teimar que a minha rica escrava mor-
rera, que com effeito morreu, e sem duvida por causa
da afflicção de ter perdido seu marido . — Dizei antes,
senhora, respondeu o califa prevenido do contrario , que
Nouzhatoul- Aouadat morreu primeiro , e que o pobre Abou
Hassan é quem não pôde resistir á sua afflicção , vendo
morrer sua mulher, vossa querida escrava ; assim de-
veis convir que perdestes a aposta, e que o vosso pala-
cio das pinturas me pertence. E eu , replicou Zobeida ,
animada pela contradicção do califa, sustento que per-
destes a aposta, e que o vosso jardim de delicias me
pertence. Morreu Abou Hassan primeiro, visto que a mi-
nha ama vos disse, como a mim , que vira sua mulher
viva, que chorava seu marido morto » .
Esta contestação do califa e de Zobeida foi seguida
de outra ; Mesrour e a ama estavam no mesmo caso ; ti-
nham apostado , e pretendia cada um ter ganho . Accendia-
se violentamente a disputa , e o chefe dos eunucos com
a ama estavam promptos a injuriar-se grosseiramente .
Finalmente, o califa , reflectindo sobre tudo o que se
passára, convinha tacitamente que Zobeida não tinha
menos razão que elle em sustentar que ganhára ; visto
o desgosto em que estava de não poder averiguar a
verdade d'esta aventura, chegou-se ao pé dos dous cor-
pos mortos, e assentou-se da parte da cabeceira, procu-
rando elle mesmo algum expediente que pudesse dar-
lhe a victoria sobre Zobeida . « Sim, clamou elle passado
um instante ; juro pelo santo nome de Deus, que darei
mil peças d'ouro ao que me disser qual dos dous mor-
reu primeiro » .
CONTOS ARABES 321

Mal acabou o califa de proferir estas ultimas pala-


vras, ouviu uma voz debaixo da peça de brocado, que
cobria Abou Hassan, que lhe gritou : « Commendador dos
crentes, fui eu que morri primeiro ; dai-me as mil peças
d'ouro » . E ao mesmo tempo viu Abou Hassan desem-
baraçar-se da peça de brocado que o cobria, e pros-
trar-se a seus pés . Fez o mesmo sua mulher, lançan-
do-se aos pés de Zobeida, cobrindo-se com a peça de
brocado por decencia, mas deu Zobeida um grande gri-
to, que augmentou o susto de todos os que estavam alli
presentes . A princeza, tornada finalmente a si do medo
que tivera, achou-se n'uma alegria indizivel por ver a

sua escrava resuscitada quasi no instante em que estava
inconsolavel de têl-a visto morta . « Ah, como és má !
clamou ella ; tu és causa de eu ter padecido muito, e
tudo por amor de ti : eu te perdôo todavia de bom co-
ração, visto que é verdade que não estás morta » .
O califa pela sua parte não tomou a cousa tanto a
peito ; longe de assustar-se, ouvindo a voz de Abou Has-
san, riu-se, pelo contrario, com grande excesso, ven-
do-os a ambos desembaraçar-se das suas mortalhas e ou-
vindo a Abou Hassan pedir mui seriamente as mil peças
d'ouro que promettêra ao que lhe dissesse qual d'elles
morrera primeiro . « O quê, Abou Hassan ! disse-lhe o ca-
lifa, dando ainda gargalhadas de riso ; conspirastes- vos
pois para fazer-me morrer á força de rir ? E d'onde veio
o pensamento de surprehender-nos assim a Zobeida e a
mim, que certamente não desconfiavamos de cousa al-
guma ? Commendador dos crentes, respondeu Abou
Hassan, vou confessal-o sem dissimulação : bem sabe
vossa magestade que fui sempre inclinado a ter boa me-
sa. A mulher que me deu não afrouxou em mim esta
paixão ; pelo contrario, achei n'ella inclinações todas fa-
voraveis a augmental-a. Com taes disposições julgará fa-
cilmente vossa magestade que ainda que possuissemos
um thesouro tamanho como o mar, como todos os de
Vossa magestade, teriamos bem depressa achado o meio
de ver o fim d'elle ; isso mesmo foi o que nos aconteceu .
Desde que estamos juntos nada temos poupado para re-
galar-nos bem, á conta das davidas e liberalidades que
TOMO III . 21
322 AS MIL E UMA NOITES

nos fez vossa magestade ; csta manhã, depois de ter pa-


go ao nosso cozinheiro e outras dividas, não nos resta-
va cousa alguma do dinheiro que tinhamos. Então as re-
flexões sobre o passado e as resoluções de obrar melhor
para o futuro, vieram sem numero occupar nosso espi-
rito e nossos pensamentos : fizemos mil projectos, que
depois abandonámos. Finalmente a vergonha de vér-nos
reduzidos a tão triste estado e de não ousar declaral- o a
vossa magestade , nos fez imaginar este meio de supprir
ás nossas precisões, divertindo-vos com este pequeno en-
gano, que rogamos a vossa magestade nos perdûe ».
Ficaram o califa e Zobeida mui contentes da since-
ridade de Abou Hassan ; não pareceram enfadados de tu-
do o que se passára ; pelo contrario Zobeida , que tomou
sempre a cousa mui seriamente, não pôde deixar de rir-
se tambem lembrando-se de tudo o que Abou Hassan
imaginára para ser bem succedido na sua empresa . Qua-
si não tinha o califa cessado de rir, tão singular lhe pa-
recia esta lembrança : « Segui-me um e outro, disse a
Abou Hassan e a sua mulher, levantando-se ; quero man-
dar-vos dar as mil peças d'ouro que vos prometti , pe-
la alegria que tenho de não terdes morrido. - Commen-
dador dos crentes, replicou Zobeida , mandai dar essas
mil peças d'ouro a Abou Hassan ; a elle só é que as
deveis : quanto a sua mulher tomo-a á minha conta ».
Ao mesmo tempo ordenou á sua thesoureira , que a
acompanhava, que désse tambem mil peças d'ouro a
Nouzhatoul-Aouadat, para mostrar-lhe da sua parte a ale-
gria que tinha tambem de ella se achar ainda com vida.
Por este meio Abou Hassan e Nouzhatoul-Aouadat,
sua querida mulher, conservaram largo tempo o valimen-
to do cailfa Haroun Alraschid e de Zobeida , sua esposa,
e adquiriram com as suas liberalidades com que supprir
abundantemente ás suas necessidades para o resto de
seus dias .
A sultana Scheherazada, acabando a historia de Abou
Hassan, tinha promettido ao sultão Schahriar de contar-
lhe outra no seguinte dia, a qual não o divertiria me-
nos. Dinazarda, sua irmã, não se esqueceu de lembrar-
lhe, antes de amanhecer, de cumprir a sua palavra, e
CONTOS ARABES 323

que o sultão lhe manifestára que estava prompto a ou-


vil-a. Scheherazada, sem demora, contou-lhe a historia
que se segue :

HISTORIA DE ALADDIN

OU A LAMPADA MARAVILHOSA

Senhor, na capital de um reino da China , abundan-


tissimo e de vasta extensão, cujo nome não me vem
agora á lembrança, havia um alfaiate chamado Mustafá,
sem outra distincção senão a que a sua profissão lhe da-
va. Mustafá, o alfaiate , era pobrissimo, e o seu trabalho
lhe dava apenas com que pudessem subsistir elle, sua
mulher, e um filho que Deus lhes dera.
O filho, que se chamava Aladdin, tinha sido educado
com muito descuido , o que lhe fizera contrahir inclina-
ções viciosas : era mau , teimoso, desobediente a seu pai
e a sua mãi. Logo que se viu alguma cousa crescido ,
não puderam seus paes contel- o em casa : sahia logo pe-
la manhã e passava os dias a jogar nas ruas e praças
publicas com rapazes vadios, que tinham menos idade
que elle.
Logo que esteve em idade de aprender um officio ,
seu pai, que não estava em estado de mandar- lhe ensi-
nar outro senão o seu, tomou -o para a sua loja e prin-
cipiou a mostrar-lhe de que modo devia manejar a agu-
lha, porém nem com brandura nem com o receio do cas-
tigo foi possivel ao pai fixar o espirito leviano de seu fi-
lho. Não pôde constrangel-o a conter-se e a ser assiduo
e applicado ao trabalho, como desejava : logo que Mus-
tafá voltava as costas, escapava-se Aladdin e não volta-
va esse dia . Castigava-o o pai, mas era incorrigivel ; e
com grande pezar seu foi Mustafa obrigado a abando-
nal-o á sua vida licenciosa . Causou-lhe isto grande des-
gosto ; e a pena de não poder obrigar o filho a entrar
no seu dever, lhe originou uma doença tão pertinaz que
d'ella morreu ao cabo de alguns mezes .
*
324 AS MIL E UMA NOITES

A mai de Aladdin , que viu que seu filho não toma-


va o caminho de aprender o officio de seu pai, fechou a
loja e vendeu todos os utensilios de seu officio para aju-
dal-a a subsistir , a ella e a seu filho, com o pouco que
poderia ganhar a fiar algodão.
Aladdin , a quem já não continha o temor de um pai
e que tão pouco caso fazia de sua mãi, que até tinha o
atrevimento de ameaçal -a á menor reprehensão que lhe

dava, entregou-se então a uma total libertinagem . Fre-


quentava cada vez mais os mancebos da sua idade e não
cessava de jogar com elles com mais paixão que d'an-
tes. Continuou n'este modo de vida até à idade de quin-
ze annos , sem abrir-se com pessoa alguma e sem refle-
ctir no que poderia ser algum dia. Estava n'esta situa-
ção, quando um dia, que jogava no meio de uma praça
com uns vadios, segundo o seu costume, um estrangei-
ro, que passava por esta praça, pôz-se a olhar para elle.
Era este estrangeiro um insigne magico, que os au-
thores que escreveram esta historia nos dão a conhecer
CONTOS ARABES 325

pelo nome de magico africano ; assim o chamaremos,


porque na verdade era natural da Africa e tinha chega-
do havia dous dias .
Ou o magico africano que entendia de physionomias,
tivesse observado no rosto de Aladdin tudo o que fosse
absolutamente necessario para a execução do que moti-
vára a sua viagem, ou por qualquer outro motivo, in-
formou-se com presteza de sua familia, do que fazia, e
da sua inclinação . Informado de tudo o que desejava,
chegou-se ao joven , puxando -o de parte , a alguns pas-
sos de seus camaradas : « Filho, perguntou-lhe, não se
chamava vosso pai Mustafá o alfaiate ? - Sim , senhor,
respondeu Aladdin, porém ha já tempo que morreu >» .
A estas palavras o magico africano se lançou ao pesco-
ço de Aladdin, abraçou-o e beijou-o repetidas vezes, com
as lagrimas nos olhos, acompanhadas de suspiros . Alad-
din, que observou as suas lagrimas, perguntou-lhe que
motivo tinha de chorar : « Ah, filho ! clamou o magico
africano ; como poderia não chorar ? sou vosso tio , e vos-
so pai era meu bom irmão. Ha alguns annos que ando
viajando, e no instante em que chego aqui , com a espe-
rança de vêl-o , e de alegral-o com a minha chegada ,
daes-me por nova que morreu ! asseguro-vos que é af-
flicção bem sensivel para mim, vêr- me privado da con-
solação que esperava . Mas o que allivia um pouco a mi-
nha afflicção, é a lembrança , que tenho, de reconhecer
as suas feições no vosso rosto , e vêr que não me enga-
nei dirigindo-me a vós ». Perguntou a Aladdin, pondo a
mão no bolsa, onde morava sua mãi ; satisfez logo Alad-
din a sua pergunta, e o magico africano lhe deu ao mes-
mo tempo algum dinheiro , dizendo-lhe : « Filho , ide ter
com vossa mãi ; dai-lhe muitas lembranças minhas ; e
dizei-lhe que amanhã irei vêl-a , se o tempo m'o permit-
tir, para ter a consolação de vér o lugar onde meu bom
irmão viveu tanto tempo, e onde acabou seus dias » .
Logo que o magico africano largou o sobrinho, que
acabava de inventar, correu Aladdin a sua mãi, mui-
to satisfeito com o dinheiro que seu tio acabava de dar-
lhe. « Mãi, disse -lhe chegando, rogo-vos que me digaes
-
se tenho um tio: - Não, filho, respondeu-lhe a mãi ,
326 AS MIL E UMA NOITES

não tendes tio do lado de vosso pai defunto, nem do


meu. Acabo todavia, replicou Aladdin , de vér um ho-
mem que se diz meu tio do lado paterno, visto que
era irmão de meu pai, pelo que me assegurou ; até se
pôz a chorar e a abraçar-me, quando lhe disse que meu
pai morrera. E para prova de que digo a verdade , acres-
centou elle mostrando-lhe o dinheiro que recebéra, eis-
aqui o que me deu : recommendou- me tambem que vos
désse lembranças suas, e que amanhã , se o tempo lhe
der lugar, virá vêr-vos, para examinar ao mesmo tem-
po a casa onde viveu meu pai e onde morreu . - Filho,
replicou a măi , é verdade que vosso pai tinha um irmão ,
mas ha muito tempo que morreu, e nunca lhe ouvi di-
zer que tivesse outro ». Nada mais disseram ácerca do
magico africano .
No dia seguinte o magico africano se chegou segun-
da vez a Aladdin , que estava a jogar n'um lugar da ci-
dade com outros mancebos ; abraçou-o, como fizera no
dia precedente, e mettendo -lhe duas peças de ouro na
mão, disse-lhe : « Filho, levai isto a vossa mãi , e dizei-
lhe que irei vél-a esta tarde, e que compre com que
cear, para comermos juntos ; mas primeiro que tudo en-
sinai - me a casa ». Ensinou-lh'a, e o magico africano o
deixou ir.
Levou Aladdin as duas peças d'ouro a sua mãi ; e,
apenas lhe disse qual era a intenção de seu tio , .sahiu
para ir empregal-as, e voltou com boas provisões ; e
como fosse desprovida de uma boa parte da baixella de
que precisava, foi pedil-a emprestada a seus visinhos.
Gastou todo o dia a preparar a cêa, e sobre a tarde, es-
tando tudo prompto, disse a Aladdin : « Filho , não sabe
talvez vosso tio dar com a nossa casa, ide ao seu encon-
tro e trazei-o, se o virdes » .
Ainda que Aladdin tivesse ensinado a casa ao magi-
co africano, estava todavia prompto a sahir, quando ba-
teram á porta. Abriu Aladdin, e reconheceu o magico
africano, que entrou carregado de garrafas de vinho, e
de varias castas de frutas que trazia para a céa.
Depois de ter o magico africano entregue o que tra-
zia a Aladdin , saudou sua mãi, e rogou-lhe que lhe mos-
CONTOS ARABES 327

trasse o lugar onde seu irmão Mustafá costumava assen-


tar-se no sophá. Mostrou-lh'o, e logo se prostrou e bei-
jou este lugar repetidas vezes com as lagrimas nos olhos,
clamando : « Meu pobre irmão , quão desgraçado sou por
não ter chegado a tempo para abraçar- vos ainda uma
vez antes da vossa morte ! » Por mais que a mãi de
Aladdin lh'o pedisse, nunca quiz assentar-se no mesmo
lugar : « Não, disse elle, guardar-me-hei d'isso, porém
consenti que me ponha aqui defronte, para que, se me
vejo privado da satisfação de vél - o em pessoa , como pai
de uma familia que tanto me interessa, possa ao menos
vél-o aqui como se presente fosse » . A mãi de Aladdin
não apertou mais com elle, e deixou-lhe a liberdade de
tomar o lugar que quizesse.
Assentado o magico africano no lugar que quiz es-
colher, principiou a entreter-se com a mãi de Aladdin :
« Minha boa irmã , dizia -lhe , não vos admireis de não
me ter visto no decurso do tempo que fostes casada com
meu irmão Mustafá , de feliz recordação . Faz hoje qua-
renta annos que sahi d'este paiz , que é o meu, assim
como o do defunto meu irmão : desde esse tempo , de-
pois de ter viajado pelas Indias, Persia , Arabia , Syria e
Egypto, e ter-me demorado nas bellas cidades d'esses
paizes, passei á Africa, onde me demorei ainda mais . Por
fim, como é natural ao homem por mais afastado que
esteja do paiz do seu nascimento, nunca perder a lem-
brança d'elle, e dos com quem foi creado, tive um de-
sejo tamanho de tornar a ver o meu e de vir abraçar
meu rico irmão, em quanto me sentia ainda com bas-
tantes forças e animo para emprehender tão dilatada via-
gem, que não me demorei a fazer preparativos e a pôr-
me a caminho . Nada vos digo do tempo que n'ella gas-
tei, de todos os obstaculos que encontrei, e de todas as
fadigas que padeci para chegar até aqui. Dir-vos - hei só-
mente que nada me agoniou e affligiu tanto nas minhas
viagens todas, como quando soube a morte de um ir-
mão que sempre amei, e que amava com affecto verda-
deiramente fraternal . Observei algumas das suas feições
no rosto de meu sobrinho, vosso filho, e é isto o que m'o
fez distinguir, de preferencia a todos os outros mancebos
328 AS MIL E UMA NOITES

com quem estava . Ter-vos-ha dito de que modo recebi a


triste nova de ter morrido meu irmão ; porém devemos
louvar a Deus por todas as cousas : consolo-me por tél-o
encontrado n'um filho que d'elle conserva as feições » .
O magico africano, que percebeu que a mai de Alad-
din se enternecia com a lembrança de seu marido, re-
novando a sua afflicção, mudou de conversação ; e , vol-

tando-se para Aladdin , perguntou -lhe como se chamava.


<< Chamo-me Aladdin , disse-lhe. - Então, Aladdin , repli-
cou o magico, em que vos occupaes ? Sabeis algum of-
ficio ? »
>
A esta pergunta baixou Aladdin os olhos e ficou per-
turbado ; mas sua mãi, continuando a fallar : « Aladdin,
disse ella, é um preguiçoso : fez seu pai quanto pôde
em quanto vivia para ensinar-lhe o seu officio, e não
pôde conseguil-o ; não obstante tudo o que eu lhe dis-
se e o que lhe repito cada dia, não faz outra cousa que
CONTOS ARABES 329

não seja vadiar e passar o tempo a jogar com os rapa-


zes, como vistes, sem considerar que não é já criança :
e se d'isso não o envergonhaes, e não se aproveita, de-
sespero que jamais possa ser alguma cousa. Sabe que
seu pai não deixou cabedal algum, e vê elle mesmo ,
que fiando algodão todo o dia, custa-me muito a ganhar
para o pão. Quanto a mim estou resolvida a fechar-lhe a

porta um d'estes dias, e mandal-o procurar a sua vida


em outra parte » .
Depois de ter a mãi de Aladdin proferido estas pala-
vras, desfazendo-se em lagrimas, o magico africano dis-
se a Aladdin : « Isso não está bom, meu sobrinho , deveis
cuidar em ajudar-vos a vós mesmo e ganhar a vossa
vida. Ha varios officios em que escolher. Vêde se ha al-
gum para o qual tenhaes mais inclinação ; talvez que o
de vosso pai vos desagrade, e que preferisseis outro :
não dissimuleis os vossos sentimentos, eu não procuro
330 AS MIL E UMA NOITES

senão ajudar-vos » . Como visse que Aladdin não respon-


dia cousa alguma : «Se tendes repugnancia para apren-
der um officio, continuou elle , e quereis ser negociante,
pôr-vos -hei uma loja sortida de ricos estofos e de panos
finos ; pôr-vos-hei em estado de vendel -os, e do dinhei-
ro que n'elles fizerdes comprareis outras fazendas , e
d'esse modo vivereis com honra . Dizei-me francamente o
que pensaes a este respeito ; achar-me-heis sempre prom-
pto a cumprir a minha promessa » .
Lisonjeou muito este offerecimento a Aladdin, a quem
o trabalho braçal desagradava muito, e bastante conhe-
cimento tinha para ver que as lojas d'estas qualidades
de fazendas eram aceadas e frequentadas, e que os mer-
cadores andavam bem vestidos e eram bem vistos . Ma-
nifestou ao magico africano , a quem tomava por seu tio,
que se inclinava mais a este genero de vida, que a qual-
quer outro, e que lhe ficaria obrigado toda a sua vida
pelo beneficio que queria fazer-lhe . « Visto que essa pro-
fissão vos agrada, replicou o magico africano, levar-vos-
hei amanhã commigo e vos mandarei fazer vestidos
aceados e ricos, conformes ao estado de um dos maio-
res mercadores d'esta cidade, e depois d'ámanhã cuida-
rei em pôr-vos uma loja como entendo » .
A mãi de Aladdin, que não crêra até então que o
magico africano fosse irmão de seu marido, não duvidou
mais d'isso, visto o beneficio que promettia fazer a seu
filho . Agradeceu-lhe as suas boas intenções ; e, depois
de ter exhortado Aladdin a tornar-se digno de todas as
vantagens que seu tio lhe fazia esperar, serviu a cêa.
A conversação versou sobre o mesmo assumpto em quan-
to durou o banquete , até que o magico, que percebeu
ser já alta noite, se despediu da mãi e do filho e se re-
tirou .
No dia seguinte , pela manhã, o magico africano não
se esqueceu de tornar a casa da viuva de Mustafa , o al-
faiate, como promettera : levou Aladdin comsigo a casa
de um dos principaes mercadores, que sómente vendia
vestidos já feitos de todas as qualidades de bellos pa-
nos, para diversas idades e condições. Fél-o mostrar al-
guns que ajustassem bem ao corpo de Aladdin, e depois
CONTOS ARABES 331

de ter posto de parte todos os que lhe agradavam mais


e rejeitado os outros que não eram da belleza que que-
ria, disse a Aladdin : « Sobrinho, escolhei entre todos es-
tes vestidos o que mais vos agradar » . Satisfeito Alad-
din das generosidades do seu novo tio, escolheu um , o
magico o comprou com tudo o que o devia acompa-
nhar, e pagou sem regatear.
Vendo-se assim Aladdin vestido magnificamente dos
pés até à cabeça , deu a seu tio todos os agradecimen-
tos imaginaveis e prometteu-lhe de novo o magico não
abandonal-o e guardal-o sempre comsigo . Com effeito
levou-o aos lugares mais frequentados da cidade , parti-
cularmente áquelles onde estavam as lojas dos ricos mer-
cadores. E quando chegou á rua onde estavam as lojas
dos mais ricos estofos e dos panos finos , disse a Alad-
din : «Como não tardareis a ser mercador como estes
que estaes vendo, convém frequental-os e conhecel - os » .
Mostrou- lhe tambem as melhores e maiores mesquitas , e
o levou aos Khans onde se alojavam os mercadores es-
trangeiros, e a todos os lugares do palacio do sultão, on-
de era licito entrar. Finalmente, depois de terem corri-
do juntos todos os bellos bairros da cidade, chegaram ao
Khan onde o magico tomára um quarto . Achavam - se
n'elle alguns mercadores, com os quaes principiára a
tomar conhecimento desde a sua chegada, e que ajun-
tára expressamente para regalal-os bem, e dar-lhes ao
mesmo tempo a conhecer o seu pretendido sobrinho.
Não acabou o banquete senão muito tarde : quiz Alad-
din despedir-se de seu tio para voltar para casa, mas o
magico africano não quiz deixal-o ir só , e levou-o elle
mesmo a casa de sua mãi. Vendo ella a seu filho tão
bem vestido, enlevou-se de alegria ; e não cessava de
dar mil bençãos ao magico, que fizera tão grande gasto
com seu filho. « Generoso parente ! disse-lhe ; não sei co-
mo agradecer-vos a vossa liberalidade ; sei que meu fi-
lho não merece o bem que lhe fazeis, e que d'elle seria
indigno se não fosse agradecido e se se descuidasse de
corresponder á boa intenção que tendes de montar-lhe
um estabelecimento tão distincto. Pela minha parte,
acrescentou ella, agradeço- vos ainda de todo o meu co-
332 AS MIL E UMA NOITES

ração, e desejo -vos uma vida bastante dilatada, para ser


testemunha do reconhecimento de meu filho, que não
póde provar- vol- o melhor do que seguindo os vossos
bons conselhos . - Aladdin, replicou o magico africano,
é bom rapaz, dá-me bastante attenção e creio que d'el-
le faremos alguma cousa boa. Tenho pezar de uma cou-
sa: é de não poder executar ámanhã o que lhe promet-
ti. É sexta-feira, estarão fechadas as lojas e não haverá
meio de cuidar em alugar uma e sortil -a, em quanto os
mercadores não cuidarem senão em divertir-se. Assim
deixaremos esse negocio para sabbado ; virei ámanhã
buscal-o, e o levarei a passear aos jardins, onde a gen-
te distincta costuma achar - se . Não viu talvez ainda ne-
nhum dos divertimentos que alli ha . Até agora não fre-
quentou senão mancebos ; importa que veja homens ».
O magico africano despediu-se finalmente da mãi e do
filho, e retirou -se . Aladdin, todavia, que estava já em
extremo alegre por vêr-se tão bem vestido, teve o gos-
to antecipado do passeio pelos jardins dos arredores da
cidade. Com effeito nunca tinha sahido fóra das portas,
e nunca tinha visto os arredores, que eram de grande
belleza e mui agradaveis.
Levantou-se Aladdin e vestiu-se no dia seguinte mui-
to cedo, para estar prompto a partir quando viesse seu
tio buscal-o : depois de ter esperado bastante tempo, ao
que lhe parecia, a impaciencia lhe fez abrir a porta e
pôr-se à entrada, para ver se o descobria. Apenas o
avistou, logo deu parte a sua mãi , e despedindo -se d'el-
la fechou a porta e foi ter com elle .
Fez o magico africano muitos carinhos a Aladdin,
quando o viu : « Vamos, meu rico filho , disse- lhe com
ar risonho, quero mostrar-vos hoje bellas cousas » . Le-
vou-o por uma porta que conduzia a umas grandes e
bellas casas, ou, para melhor dizer, a uns palacios ma-
gnificos, que tinham cada um bellissimos jardins , cujas
entradas eram livres . A cada palacio que encontravam
perguntava a Aladdin se o achava bello ; e Aladdin, pre-
venindo-o, quando se apresentava outro : « Tio, dizia el-
le, eis-aqui um mais bello que os que acabamos de ver » .
Todavia internavam-se cada vez mais no campo ; e o as-
CONTOS ARABES 333

tuto magico, que desejava ir mais longe para executar


o projecto que tinha na mente, aproveitou-se da occasião
de entrar n'um d'esses jardins. Assentou-se perto de um
grande tanque que recebia uma bellissima agua por uma
carranca de leão de bronze, e fingiu estar cançado, pa-
ra deixar descançar Aladdin : « Sobrinho, deveis estar
cançado tanto como eu ; descancemos aqui para tomar
forças, teremos depois mais alento para continuar o nos-
so passeio >>.
Tendo-se assentado , tirou o magico africano de um
pano, atado à sua cintura, bolos e varias qualidades de
frutas, de que fizera provisão, e o estendeu na borda do
tanque. Repartiu um bolo entre si e Aladdin ; e , quanto
ás frutas, deixou-lhe a liberdade de escolher as que fos-
sem mais do seu gosto. Durante este pequeno banquete ,
entreteve seu pretendido sobrinho com varios preceitos
que tendiam a exhortal-o a desaffeiçoar-se da frequencia
dos mancebos , e a chegar-se de preferencia aos homens
cordatos e prudentes, a dar-lhes attenção e a aproveitar-se
das suas conversações. « Bem depressa, dizia-lhe, sereis
homem como elles, e podeis acostumar-vos muito cedo
a dizer cousas boas, segundo o seu exemplo ». Tendo
acabado este pequeno banquete, levantaram-se e prose-
guiram o seu caminho, atravessando jardins que não es-
tavam separados uns dos outros senão por pequenos fos-
sos que serviam de marcos , porém que não impediam a
communicação ; a boa fé fazia que os cidadãos d'esta
capital não usassem d'outra precaução para impedir a in-
vasão commum . Insensivelmente o magico africano le-
vou Aladdin bastante longe além dos jardins , e lhe fez
atravessar campos que o conduziram até proximo das
montanhas.
Aladdin, que na sua vida nunca fizera tanto caminho,
sentiu-se cançado de tão dilatado passeio : « Tio, disse
ao magico africano, onde vamos ? temos deixado os jar-
dins muito longe atraz de nós , e não vejo já senão mon-
tanhas. Se vamos mais adiante, não sei se terei bastan-
te força para voltar á cidade. -Tende animo, sobrinho,
disse-lhe o falso tio ; quero mostrar-vos outro jardim que
é superior a todos os que acabaes de vêr ; não está longe
334 AS MIL E UMA NOITES

d'aqui , e quando lá chegarmos dir-me-heis vós mesmo


se não vos arrependerieis de não o ter visto, depois de
ter chegado tão perto d'elle ». Deixou-se Aladdin persua-
dir, e o magico o levou ainda muito longe, entretendo-o

com diversas historias divertidas, para fazer-lhe o ca-


minho menos fastidioso e mais supportavel a fadiga.
Acharam-se entre duas montanhas de altura medio-
cre e quasi iguaes, separadas por um valle de mui pouca
largura ; era este o lugar notavel onde quizera o magico
trazer Aladdin para a execução de um grande projecto,
CONTOS ARABES 335

que o obrigára a vir da extremidade da africa até á China.


«Não vamos mais longe, disse a Aladdin ; quero mostrar-
vos aqui cousas extraordinarias e desconhecidas a todos
os mortaes ; depois de as ter visto agradecer- me-heis
por ter sido testemunha de tantas maravilhas, que nin-
guem no mundo tem visto senão vós. Em quanto vou
ferir lume, ajuntai de todos esses ramos, que estaes
vendo, os que estiverem mais seccos, para accender o
lume.
Havia tão grande quantidade d'estes ramos seccos ,
que bem depressa fez Aladdin um montão mais que suf-
ficiente, em quanto o magico feria lume : lançou-lhe o
fogo, e no instante em que o tojo se abrazava, o magi-
co africano deitou n'elle algum perfume, que trazia pre-
parado. Levantou-se um fumo muito espesso que se es-
palhou para uma e outra parte , pronunciando palavras
magicas, das quaes nada percebeu Aladdin .
No mesmo instante tremeu alguma cousa a terra e
abriu-se n'esta paragem perante o magico e Aladdin, e
deixou vêr a descoberto uma pedra de quasi pé e meio
em quadrado e um pé de profundidade, posta horison-
talmente, com uma argola de bronze no meio para le-
vantal-a. Assustado Aladdin de tudo o que se passava á
sua vista, ficou espavorido e quiz fugir . Mas era neces-
sario a este mysterio , e o magico o deteve, e enfadou-se
muito com elle , dando-lhe um bofetão com tanta força
que o lançou por terra, e que por pouco lhe não metteu
pela bocca dentro os dentes dianteiros, como se viu pelo
sangue que d'ella sahiu . Todo tremulo o pobre Aladdin
e com as lagrimas nos olhos : « Tio, clamou elle choran-
do, que fiz eu para merecer que assim me maltrateis ?
-Tenho razões para fazel- o, respondeu-lhe o magico . Eu
sou vosso tio, que vos serve agora de pai, e vós não
deveis replicar-me : porém, filho, acrescentou elle abran-
dando -se, não receeis cousa alguma ; não requeiro de vós
senão que me obedeçaes exactamente, se quereis apro-
veitar-vos e tornar-vos digno das grandes vantagens que
quero fazer- vos » . Estas bellas promessas do magico so-
cegaram um pouco o medo e o resentimento de Alad-
din ; e , quando o magico o viu inteiramente restabele-
336 AS MIL E UMA NOITES

cido no seu socego : « Vós vistes, continuou elle , o que


fiz pela virtude do meu perfume e das palavras que pro-
nunciei . Sabei pois agora que debaixo d'esta pedra, que
estaes vendo, ha um thesouro escondido, que vos está
destinado, e que deve fazer-vos um dia mais rico que
os maiores monarchas do mundo . É isto tão verdade,
que não ha no mundo pessoa alguma senão vós a quem
seja dado tocar esta pedra, e levantal-a para entrar : a
mim mesmo não é dado tocar n'ella e pôr o pé no the-
souro, quando fôr aberto . Para isto importa que execu-
teis ponto por ponto o que vos disser, sem falta : a cousa
é de grande consequencia , tanto para vós como para
mim > ».
Aladdin, sempre pasmado do que via e de tudo o
acabava de ouvir dizer ao magico d'este thesouro que
devia fazer a sua felicidade para sempre, esqueceu-se
de tudo o que se passára : « Então , tio , disse ao magico,
levantando-se ; de que se trata ? ordenai, estou prompto
a obedecer. Alegro-me, filho , disse-lhe o magico afri-
cano abraçando- o , que tenhaes tomado esse partido ; vinde,
chegai-vos, pegai n'esta argola e levantai a pedra . -- Po-
rém , tio, replicou Aladdin, não tenho bastante força para
levantal-a, é preciso que me ajudeis . Não, replicou o
magico africano, não precisaes da minha ajuda, e nada
fariamos , vós e eu, se vos ajudasse ; importa que vós
só a levanteis . Pronunciai sómente o nome de vosso pai
e de vosso avô, segurando a argola, e levantai-a ; vereis
que a levantareis sem esforço ». Fez Aladdin como o ma-
gico lhe dissera : levantou a pedra com facilidade e
pôl-a de parte.
Depois de ter levantado a pedra viu uma cova de tres
para quatro pés de profundidade, com uma portinha e
degraus para descer mais abaixo : « Filho, disse então o
magico africano a Aladdin, observai exactamente tudo o
que vou dizer-vos : descei a essa cova : estando ao pé
da escada que estaes vendo, achareis uma porta aberta,
que vos conduzirá a um grande lugar abobadado e divi-
dido em tres grandes salas , uma após outra. Em cada
uma vereis á direita e à esquerda quatro vasos de bron-
ze como tinas, cheios de ouro, e prata ; mas tomai bem
CONTOS ARABES
33
sentido de não lhes tocar . Antes de entrar na primeira7
sala ar regaçai o vosso vestido e segurai-o bem á cintu-
ra; passai depois á segunda sem parar, e d'ahi á tercei-
ra sem parar tambem . Sobretudo guardai-vos muito de
chegar-vos ás paredes , e de tocar- lhes com o vestido ;
se tocasseis, morrieis logo . Por isso é que vos disse

que o segureis bem á cintura. No fundo da terceira sala


ha uma porta que vos dará entrada para um jardim , dis-
posto com bellas arvores, todas carregadas de frutas : ca-
minhai em direitura e atravessai esse jardim por um can-
tinho que vos levará a uma escada de cincoenta degraus ,
para subir a um terrado ; quando estiverdes no terrado
vereis diante de vós um nicho , e no nicho uma lampada
accesa ; pegai na lampada, apagai -a, e depois de ter dei-
tado fóra a torcida e vasado o licôr, mettei -a no vosso
seio e trazei-m'a; não receeis sujar o vestido ; o licôr
não é azeite , e ficará a lampada secca , não havendo já
TOMO III.
22
AS MIL E UMA NOITES
338
licôr n'ella. Se appetecerdes frutas do jardim , podeis
apanhar quantas quizerdes ; isso não vos é prohibido ».
Proferidas estas palavras sacou o magico africano um
annel que trazia no dedo e o metteu n'um dos dedos de
Aladdin , dizendo -lhe que era um preservativo contra tudo
o que pudesse acontecer -lhe de mal, observando bem
tudo o que acabava de prescrever - lhe. « Ide , filho , dis-
se-lhe depois de dar -lhe esta instrucção ; descei ousada-
mente , vamos ser ricos um e outro para toda a nossa

». tou ligeiramente Aladdin á cova e desceu todos os


vidaSal
degraus : achou as tres salas , cuja descripção lhe fizera
o magico africano : atravessou - as com tanta cautela que
receava morrer se deixasse de observar cuidadosamente
o que lhe fora prescripto . Atravessou o jardim sem pa-
rar, subiu ao terrado , pegou na lampada accesa no ni-
cho , lançou fóra a torcida e o licôr , e vendo - a sem hu-
midade , como lhe dissera o magico , metteu -a no seio :
desceu do terrado , e parou no jardim a analysar as fru-
tas que somente vira passando . As arvores d'este jardim
estavam todas carregadas de frutas extraordinarias : cada
arvore as tinha de diversa côr ; havia-as brancas , luzi-
dias e transparentes como o crystal , vermelhas , umas
mais carregadas outras menos , verdes , azues , rôxas ,
amarellas e de muitas outras cores . As brancas eram pe-
rolas ; as luzidias e transparentes , diamantes ; as verme-
lhas mais carregadas , rubins ; as outras , menos carrega-
das, rubins palhetes ; as verdes , esmeraldas ; as azues ,
turquezas ; as rôxas , amethystas ; as amarellas , saphyras ;
e assim as outras . E estas frutas eram todas de uma gran-
deza e perfeição como não se vira ainda no mundo cou-
sa igual . Aladdin , que não conhecia nem o seu mereci-
mento nem o seu valor , não fez caso d'estas frutas que
não eram do seu gosto , como o teriam sido figos , uvas
e outras frutas excellentes , que são communs na China .
Tambem não estava ainda em idade de conhecer o pre-
ço d'ellas ; pareceu -lhe que todas estas frutas não eram
senão vidro córado e não valiam muito . A diversidade
todavia de tão bellas côres , a belleza e grandeza extraor-
dinaria de cada fruta lhe fez desejar apanhar algumas de
CONTOS ARABES 339

todas as qualidades. Com effeito colheu muitas de cada


côr , e d'ellas encheu as suas algibeiras e duas bolsas no-
vas que o magico lhe comprára com o vestido que lhe
dera de presente, para que tudo o que trouxesse fosse
novo ; e como as duas bolsas não pudessem entrar nas
algibeiras que estavam já cheias, atou -as á cintura, uma
de cada lado , metteu tambem algumas frutas nas dobras
do cinto, que era de um estofo de séda, largo e de mui-
tas voltas, e as dispoz de sorte que não pudessem cahir ;
não se esqueceu tambem de metter algumas no seio, en-
tre o vestido e a camisa, á roda do corpo.
Carregado d'este modo Aladdin com tantas riquezas
sem o saber, tomou apressadamente o caminho das tres
salas, para não fazer esperar demasiado tempo o magico
africano ; e , depois de as ter atravessado com a mesma
cautela que d'antes, subiu por onde descêra, e apresen-
tou-se à entrada da cova, onde o magico africano o es-
perava com impaciencia. Logo que Aladdin o avistou :
< Tio, disse-lhe, rogo-vos que me deis a mão para ajudar-

me a subir » . O magico africano lhe disse : «< Filho , dai-
me a lampada primeiro, poderia embaraçar-vos . - Per-
doai-me, tio, replicou Aladdin, não me embaraça, dar-
vol-a-hei logo que tiver subido » . O magico africano tei-
mou em querer que Aladdin lhe entregasse a lampada,
antes de tiral -o da cova , e Aladdin, que tinha embara-
çado esta lampada com todas as frutas de que se carre-
gára por todos os lados, recusou absolutamente dal- a
sem estar fóra da cova . Então o magico africano , agasta-
do da resistencia do mancebo, entrou n'uma furia espan-
tosa deitou um pouco do seu perfume no fogo que ti-
vera cuidado de conservar, e apenas pronunciou duas pa-
lavras mágicas , logo a pedra que servia para fechar a
entrada da cova, tornou a pôr- se por si mesmo no seu
lugar, com a terra por cima, no mesmo estado em que
estava á chegada do magico africano e de Aladdin .
É certo que o magico africano não era irmão de Mus-
tafá, o alfaiate, como se gabára, nem conseguintemente
tio de Aladdin . Era verdadeiramente natural da Africa ; e
como a Africa é um paiz onde os homens são mais da-
dos á magia do que em qualquer outra parte, tinha- se
340 AS MIL E UMA NOITES

applicado a ella desde a sua mocidade , e depois de qua-


si quarenta annos de encantamentos , de operações de
geomancia, de fumigações e de leitura de livros de ma-
gica, conseguira finalmente descobrir que havia no mun-
do uma lampada maravilhosa, cuja posse o faria mais

poderoso que nenhum monarcha do universo , se pudes-


se ser possuidor d'ella . Por uma ultima operação de geo-
mancia, conheceu que esta lampada estava n'um lugar
subterraneo no centro da China, no lugar e com todas
as circumstancias que acabamos de vêr. Muito persuadi-
do da verdade d'este descobrimento, partira da extremi-
dade da Africa, como dissemos , e depois de uma via-
CONTOS ARABES 341

gem longa e penosa , chegára á cidade que estava tão


visinha do thesouro ; mas ainda que a lampada se achas-
se na verdade na paragem de que tinha conhecimento,
não lhe era permittido todavia o roubal-a elle mesmo,
nem entrar em pessoa no lugar subterraneo onde ella
estava. Era preciso que outrem lá descesse, a fosse to-
mar e lh'a entregasse nas mãos, razão por que se dirigira
a Aladdin, que lhe parecera um mancebo proprio para fa-
zer-lhe o serviço que d'elle esperava, muito determina-
do , logo que tivesse a lampada nas mãos , a fazer a ul-
tima fumigação que dissemos, e a pronunciar as duas
palavras magicas que deviam fazer o effeito que vimos,
e sacrificar o pobre Aladdin á sua avareza e maldade ,
para não haver testemunha . O bofetão dado a Aladdin
e a authoridade que tomára sobre elle, não tinham por
fim senão acostumal- o a temel-o e a obedecer-lhe exacta-
mente, para que quando lhe pedisse esta famosa lam-
pada magica , lh'a désse logo ; mas aconteceu-lhe tudo
pelo contrario do que premeditára . Finalmente , não usou
da sua maldade com tanta precipitação, para perder o
pobre Aladdin, senão porque receou que se contestasse
mais tempo com elle , viesse alguem ouvil-os e se divul-
gasse o que queria guardar muito occulto .
Quando viu o magico africano as suas grandes e bel-
las esperanças baldadas para sempre, não teve outro par-
tido que tomar senão o de voltar para a Africa , o que
fez logo no mesmo dia . Tomou o seu caminho por ata-
lhos para não entrar na cidade d'onde sahira com Alad-
din ; tinha, com effeito , receio de ser observado por mui-
tos que podiam tel -o visto passear com este mancebo, e
voltar sem elle .
Segundo todas as apparencias, não se devia já ouvir
fallar de Aladdin ; mas esse mesmo que entendera perder
para sempre, não se lembrára que lhe mettera no dedo
um annel, que podia servir para salval-o . Com effeito
foi este annel que salvou a Aladdin, que ignorava a vir-
tude d'elle ; e é para admirar que esta perda, junta com
a da lampada, não tivesse sepultado este magico na ul-
tima desesperação . Todavia os magicos estão tão habi-
tuados ás desgraças e aos acontecimentos contrarios aos
342 AS MIL E UMA NOITES

seus desejos, que não cessam, em quanto vivem, de sa-


ciar-se de fumo, de chimeras e de visões .
Aladdin, que não esperava pela maldade de seu falso
tio , vistos os carinhos e o beneficio que lhe fizera, ficou
muito pasmado, como é mais facil imaginar do que ex-
pressar com palavras, quando se viu enterrado vivo : cha-
mou mil vezes seu tio, gritando que estava prompto a
dar-lhe a sua lampada, mas debalde gritava e não havia
meio de ser ouvido ; assim ficou nas trevas e na escuri-
dão . Finalmente, depois de ter dado algum descanço ás
suas lagrimas , desceu á escada da cova para ir procu-
rar a luz no jardim , onde tinha já estado ; mas a pare-
de, que se abrira por encantamento, tinha-se fechado e
unido por outro encantamento ; apalpa diante de si, á
direita e à esquerda , repetidas vezes , e não acha a por-
ta ; grita e chora cada vez mais, e assenta- se nos degraus
da cova, sem esperança de tornar a ver a luz , e com a
triste certeza, pelo contrario , de passar das trevas, em
que estava, para as de uma morte proxima.
Ficou Aladdin dous dias n'este estado sem comer nem
beber ; ao terceiro, finalmente , olhando a morte como
inevitavel, ergueu as mãos, e com resignação inteira á
vontade de Deus, clamou : Não ha força e poder senão
em Deus, poderoso e grande. N'esta acção de mãos jun-
tas, esfregou, sem pensar em tal, o annel que o magico
africano lhe mettera no dedo , e cuja virtude não conhe-
cia ainda. Logo um genio de figura enorme e de um as-
pecto espantoso, surgiu diante d'elle como de debaixo
da terra, até tocar com a cabeça na abobada, e disse a
Aladdin estas palavras : Que queres ? eis-me-aqui prestes
a obedecer-te, como teu escravo, e escravo de todos que
possuem esse annel.
Em qualquer outro tempo e em qualquer outra oc-
casião, Aladdin , que não estava acostumado a semelhan-
tes visões, ter- se-hia assustado e perdido a falla á vista
de figura tão extraordinaria. Porém occupado unicamen-
te do perigo presente em que se achava, respondeu sem
hesitar : « Quem quer que sejas, faze-me sahir d'este lu-
gar, se tens poder para isso ». Apenas pronunciou es-
tas palavras, logo a terra se abriu e se achou fóra da
CONTOS ARABES 343

cova, e no lugar justamente onde o magico o deixára.


Não se estranhará que Aladdin , que ficára tanto tem-
po nas trevas mais espessas, pudesse logo supportar a
grande claridade do dia ; a ella acostumou seus olhos pou-
co a pouco, e olhando á roda de si ficou muito admirado
de não vêr abertura na terra. Não pôde perceber de que
modo se achava tão repentinamente fóra das suas entra-
nhas . Depois, voltando para a cidade, avistou-a no meio
dos jardins que a rodeavam, e reconhecendo o caminho
por onde o magico africano o trouxera, tornou a to-
mal-o , dando graças a Deus de tornar-se a vér outra
vez no mundo, depois de ter desesperado de jámais tor-
nar a elle. Chegou á cidade, e arrastou-se para sua ca-
sa com muito trabalho . Entrando em casa de sua mãi ,
a alegria de tornal-a a vér , junta á fraqueza em que es-
tava de não ter comido havia tres dias, lhe causaram um
desmaio que durou algum tempo . Sua mãi que o tinha
já chorado como perdido ou como morto, vendo-o n'es-
te estado empregou-se toda a fazel-o tornar a si . Tornou
finalmente a si do seu desmaio , e as primeiras palavras
que pronunciou foram estas : « Minha rica mãi, primeiro
que tudo, rogo-vos que me deis de comer ; ha tres dias
que não me entrou nada na bocca » . Trouxe sua mãi o
que tinha em casa, e pondo-o diante d'elle : « Filho , dis-
se-lhe , não vos apresseis, isso é perigoso ; comei pouco
a pouco e ao vosso commodo, e poupai-vos no mau es-
tado em que estaes ; nem quero que me falleis ; tereis
bastante tempo para contar-me o que vos aconteceu quan-
do vos achardes inteiramente restabelecido . Estou con-
solada de tornar-vos a ver, vista a afflicção em que me
achei desde sexta-feira, e todos os desgostos que tive pa-
ra saber o que era feito de vós , logo que vi que era
noite, e que não tinheis voltado para casa » .
Seguiu Aladdin o conselho de sua mãi ; comeu soce-
gadamente e pouco a pouco, e bebeu á proporção . Ten-
do acabado : « Minha rica mãi, disse elle, teria grandes
queixas que fazer-vos por ter-me entregado com tanta
facilidade á discrição de um homem que tinha intento
de perder-me, e que está a esta hora em que vos fallo
tão persuadido da minha morte, que não duvida de que
344 AS MIL E UMA NOITES

já não estou vivo ; porém capacitastes-vos que era meu


tio, assim como eu . Oh ! podiamos nós ter outro pensa-
mento de um homem que me acariciava e me beneficia-
va, e que me fazia outras muitas promessas vantajosas ?

Sabei, minha rica mãi, que é um traidor, um malvado ,


um perfido : não me fez tanto bem e tantas promessas ,
senão para conseguir o fim que se tinha proposto, de per-
der-me, como disse, sem vós nem eu podermos adivinhar
a razão d'isso. Da minha parte posso assegurar que não
The dei motivo algum que merecesse algum mau trata-
CONTOS ARABES 345

mento . Percebel- o-heis vós mesma pela narração fiel que


logo ouvireis de tudo o que se passou desde que me se-
parei de vós , até á execução do seu pernicioso intento ».
Principiou Aladdin a contar a sua mãi tudo o que
The acontecera com o magico, desde a sexta-feira em que
viera buscal-o para leval-o comsigo a ver os palacios e
os jardins que estavam fóra da cidade ; o que lhe acon-
teceu no caminho até ao sitio das duas montanhas, on-
de se devia operar o grande prodigio do magico ; como
com um perfume lançado no fogo e algumas palavras
magicas, se abrira a terra n'um instante e deixára vêr a
entrada de uma cova que conduzia a um thesouro incom-
mensuravel . Não esqueceu o bofetão que lhe dera o ma-
gico, e de que modo, depois de abrandar- se alguma cou-
sa, o conduzira com grandes promessas, e mettendo- lhe
seu annel no dedo , a descer á cova. Não omittiu circums-
tancia alguma de tudo o que vira, passando, e repas-
sando pelas tres salas no jardim, e sobre o terrado, on-
de tomára a lampada maravilhosa , que mostrou a sua
mãi , tirando-a do seio, assim como as frutas transparen-
tes e de diversas côres que apanhára no jardim antes
de voltar, ás quaes ajuntou duas bolsas cheias , que deu
a sua mãi , e de que ella fez pouco caso. Estas frutas
eram todavia pedras preciosas, cujo resplendor, brilhan-
te como o sol, reflectido em virtude de uma lampada
que aclarava o quarto, devia fazer julgar do seu grande
preço ; mas a mãi de Aladdin não tinha d'isso mais co-
nhecimento que seu filho . Fôra creada n'uma condi-
ção mediocre , e seu marido não teve sufficientes cabe-
daes para dar-lhe d'essas pedras . Além d'isso nunca as
vira a nenhumas de suas parentas nem de suas visi-
nhas , e assim não é para admirar se ella não as esti-
mou senão como cousas de pouco valor, e boas só para
alegrar a vista pela variedade de suas côres, o que fez
que Aladdin as puzesse por detraz de uma das almofadas
do sophá, no qual esteve assentado . Acabou a narração de
sua aventura dizendo-lhe que, como estivesse de volta
e se apresentasse à entrada da cova, prompto a sahir
d'ella, por causa da difficuldade que fizera ao magico de
dar-lhe a lampada que lhe pedia, a entrada da cova se
346 AS MIL E UMA NOITES

fechára em um instante por virtude do perfume que o


magico lançára no fogo , que não deixára apagar, e das
palavras que pronunciára. Porém não pôde dizer mais
sem verter lagrimas, representando -lhe o desgraçado es-
tado em que se achára, quando se vira enterrado vivo
na fatal cova até ao instante em que d'ella sahira, e que,
por assim dizer, voltára ao mundo pelo contacto do seu
annel, cuja virtude não conhecia ainda. Tendo acabado es-
ta narração : « Não é necessario dizer-vos mais, disse a
sua mãi, sabeis o resto . Eis-aqui finalmente qual foi a mi-
nha aventura, e qual é o perigo que corri desde que não
me vistes >>.
Teve a mãi de Aladdin a paciencia de ouvir esta re-
lação maravilhosa e extraordinaria, e ao mesmo tempo
tão triste para uma mãi que amava ternamente a seu
filho , apesar dos seus defeitos, sem interrompel-o : nas
passagens todavia mais patheticas, e que mais davam a
conhecer a perfidia do magico africano, não pôde deixar
de patentear o quanto o aborrecia com as demonstrações
de sua indignação . Mas apenas acabou Aladdin , logo se
desatou em injurias contra este embusteiro : chamou- lhe
traidor, perfido, barbaro , assassino , enganador, magico
e destruidor do genero humano : « Sim , filho , acrescen-
tou ella, é um magico, e os magicos são pestes publicas,
teem pacto com os demonios pelos seus encantos e suas
feitiçarias. Abençoado seja Deus, que não quiz que a sua
maldade insigne tivesse inteiro effeito contra vós ! deveis
agradecer-lhe muito a graça que vos fez ; a morte era
inevitavel se não vos tivesseis lembrado d'elle, e não ti-
vesseis implorado o seu soccorro » . Disse ainda muitas
cousas, abominando sempre a traição que o magico fize-
ra a seu filho ; porém fallando, percebeu que Aladdin ,
que não dormia havia tres dias, precisava de descanço .
Mandou-o deitar, e passado pouco tempo deitou -se tam-
bem .
Aladdin, que de modo nenhum pudera descançar no
lugar subterraneo onde fôra sepultado com o intento de
n'elle perder a vida, dormiu toda a noite a somno solto,
e não acordou no dia seguinte senão muito tarde . Le-
vantou-se, e a primeira cousa que disse a sua mãi foi
CONTOS ARABES 317

que precisava de comer, e que não podia dar-lhe maior


gosto do que trazer-lhe o almoço. « Ai de mim, filho !
nem um bocado de pão tenho para dar-vos ; comestes
hontem à tarde a pouca provisão que havia em casa ;
mas esperai um pouco ; não tardarei a trazer- vos alguma
cousa. Tenho um pouco de algodão que fiei ; vou ven-
dél-o para comprar-vos pão, e alguma cousa para jan-
tar.Minha rica mãi, replicou Aladdin, guardai o vosso
fiado d'algodão para outra occasião , e dai-me a lampada
que trouxe hontem ; irei vendel-a, e o dinheiro que me
derem por ella servirá para ter com que almoçar e jan-
tar, e talvez com que cear » .
A mãi de Aladdin tomou a lampada d'onde a puze-
< Eil-a-aqui, disse a seu filho , porém está muito su-
ra : «
ja : por pouco que se limpe, creio que valerá alguma
cousa mais » . Serviu-se de agua e de uma pouca de area
fina para limpal- a, mas apenas principiou a esfregar es-
ta lampada, logo n'um instante, á vista de seu filho , um
genio medonho e agigantado se levantou , e appareceu
diante d'ella e lhe disse com voz de trovão : Que queres ?
eis-me aqui prompto a obedecer-te como teu escravo e
de todos os que tem a lampada na mão, eu, com to-
dos os outros escravos da lampada.
Não estava ainda a mãi de Aladdin em estado de res-
ponder ; não pudera a sua vista supportar a figura hor-
renda e espantosa do genio ; e fora o seu susto tão gran-
de logo ás primeiras palavras que pronunciára, que ca-
hira desmaiada.
Aladdin, que tivera já uma apparição quasi semelhan-
te na cova, sem perder tempo nem o juizo, pegou apres-
sadamente na lampada, e supprindo a falta de sua mãi ,
respondeu por ella em tom resoluto : « Tenho fome, dis-
se ao genio, trazei -me de comer » . Desappareceu o genio,
e passado um instante voltou carregado com uma gran-
de bacia de prata que trazia á cabeça , com doze pratos
cobertos do mesmo metal, cheios de excellentes guiza-
dos, com seis grandes pães alvos como neve sobre os
pratos , duas garrafas de vinho exquisito, e duas taças
de prata na mão ; pôz tudo sobre o sophá e desappare-
ceu no mesmo instante.
348 AS UMA MIL E NOITES

Fez-se isto em tão pouco tempo, que a mãi de Alad-


din não tinha ainda tornado a si do seu desmaio, quan-
do o genio desappareceu segunda vez . Aladdin, que ti-
nha já princípiado a deitar-lhe agua na cara sem effei-

to, tornava a principiar para fazel- a tornar a si ; mas ou


fosse por que os espiritos, que se tinham dissipado, se
tivessem finalmente reunido , ou que o cheiro dos gui-
zados que o genio acabava de trazer tivesse contribuido
alguma cousa para isso , tornou no mesmo instante a si.
CONTOS ARABES 349

« Minha rica mãi , disse -lhe Aladdin , isso não é nada, le-
vantai-vos e vinde comer ; eis-aqui alimento em abun-
dancia com que podemos satisfazer a grande precisão
que temos de comer. Não deixemos esfriar tão bons
guizados >> .
Ficou a mãi de Aladdin em extremo admirada quando
viu a grande bacia, os doze pratos , os seis pães, as duas
garrafas e as duas taças, e que sentiu o cheiro delicioso
que exhalavam todos estes pratos : « Meu querido filho,
perguntou a Aladdin , d'onde nos vem esta abundancia, e
a quem somos nós devedores de tão grande liberalidade ?
Teria o sultão conhecimento da nossa pobreza e ter-se-
ha compadecido de nós ? - Minha rica mãi, replicou Alad-
din, assentemo-nos á mesa e comamos, tendes tanta pre-
cisão de comer como eu ; dir-vol-o-hei depois de almo-
çar » . Puzeram -se á mesa e comeram de boa vontade ;
e a mãi e o filho jámais se tinham achado n'uma mesa
tão abundante .
Em quanto durou o banquete, não podia a mãi de
Aladdin cançar-se de olhar e admirar a bacia e os pra-
tos, ainda que não soubesse mui distinctamente se eram
de prata ou outra materia , tão pouco acostumada estava
a vêl-os iguaes ; e a fallar com propriedade, sem fazer
caso do seu valor, que lhe era desconhecido, não havia
senão a novidade que lhe causava admiração , e seu fi-
lho Aladdin não tinha mais conhecimento que ella .
Aladdin e sua mãi, que não cuidavam ter senão um
simples almoço , acharam-se ainda á mesa á hora do jan-
tar ; guizados tão excellentes lhes abriram o appetite ; e
em quanto estavam quentes cuidaram que não fariam
mal reunindo n'uma as duas comidas , isto é , almoçar e
jantar ao mesmo tempo. Acabado o banquete sobejou-
lhes não só com que cear, mas tambem com que fazer
sufficientemente duas comidas abundantes no dia se-
guinte.
Tendo a mãi de Aladdin levantado a mesa e posto de
parte as viandas em que não tinham tocado, veio assen-
tar-se no sophá ao lado de seu filho : « Aladdin , disse-
lhe, espero que satisfaçaes a impaciencia em que estou
de ouvir a relação que me promettestes » . Contou- lhe
350 AS MIL E UMA NOITES

Aladdin exactamente tudo o que passára entre o genio


e elle durante o seu desmaio, até que tornou a si .
A mãi de Aladdin estava pasmada do discurso de seu
filho e da apparição do genio : « Porém , filho , replicou
ella, que quereis dizer com esses genios ? Nunca , desde
que estou no mundo, ouvi dizer que ninguem do meu
conhecimento os visse . Porque se dirigiu a mim e não a
vós, a quem já appareceu na cova do thesouro ? - Mãi,
replicou Aladdin, o genio que vos appareceu não é o mes-
mo que me appareceu : parecem-se de algum modo pela
sua grandeza de gigante, mas são inteiramente diversos
nas feições e no vestuario . Por isso pertencem a diversos
senhores ; se lembrada estaes, o que vi declarou-se ser
escravo do annel que tenho no dedo e o que acabaes
de vêr confessou ser escravo da lampada que seguraes
na mão . Mas não creio que o tenhaes ouvido ; parece-
me com effeito que desmaiastes logo que principiou a
fallar. O quê ! clamou ainda a mãi de Aladdin ; foi pois
a vossa lampada a causa d'esse maldito genio se dirigir
a mim e não a vós ? Ah ! filho , levai-a da minha presen-
ça e ponde-a aonde quizerdes ; eu não quero tocar-lhe
mais. Antes consinto que seja quebrada ou vendida, do
que correr o risco de morrer de susto, tocando n'ella :
se quereis crêr-me, largareis tambem o annel ; não se
deve ter pacto com os genios ; são demonios , e disse-o
o nosso propheta. Mãi, com vossa licença, replicou Alad-
din, Deus me livre de vender, como estava resolvido a
fazel-o , uma lampada que de hoje em diante nos é util
a vós e a mim. Não estaes vendo o que acaba de dar-nos ?
deve continuar a dar-nos de comer e a sustentar-nos.
Deveis julgar, como eu, que não era sem razão que meu
falso e malvado tio fizera tanta diligencia, e emprehen-
dera tão longa e penosa viagem, visto que desejava
conseguir a posse d'esta lampada maravilhosa, que pre-
ferira a todo o ouro e prata que sabia que havia nas
salas, e que eu mesmo vi, como me avisára. Muito bem
conhecia o merecimento e o valor d'esta lampada, para
não querer outra cousa d'um thesouro tão rico : visto
que o acaso nos fez descobrir a sua virtude, façamos
d'ella um uso que nos seja proveitoso, mas de modo que
CONTOS ARABES 351

seja sem estrondo, e que não possa atrahir a inveja e o


ciume de nossos visinhos . Quero afastal-a da vossa pre-
sença e pôl-a n'um lugar onde a acharei quando for pre-
ciso, visto que os genios vos assustam tanto : quanto ao
annel não posso tambem resolver-me a deital-o fóra . Sem
este annel jámais terieis tornado a vêr-me ; e se vivesse
n'esta hora em que estamos , não seria talvez senão por
poucos instantes . Permittir-me-heis pois guardal - o e tra-
zel - o sempre no dedo com muita estimação : quem sabe
se não me acontecerá algum outro perigo que não pos-
samos prevêr nem vós , nem eu, e do qual poderá li-
vrar-me ? » Como parecesse assás justo o discurso de
Aladdin , não teve sua mãi que replicar-lhe : « Filho, po-
deis fazer o que vos parecer ; quanto a mim não quere-
ria ter que tratar com genios. Declaro-vos que d'isso la-
vo as mãos , e que não vos fallarei mais a este res-
peito >> .
No dia immediato , depois da cĉa , nada sobejou da boa
provisão que o genio trouxera ; no seguinte dia Aladdin ,
que não queria esperar que a fome o apertasse, pegou
n'um dos pratos de prata debaixo do vestido , e sahiu
pela manhã para ir vendel-o . Dirigiu-se a um judeu que
encontrou no caminho ; chamou - o de parte , e mostran-
do-lhe o prato perguntou-lhe se o queria comprar.
O judeu, astuto e destro , péga no prato, examina- o,
e apenas conheceu que era de boa prata, perguntou a
Aladdin quanto queria por elle . Aladdin, que não conhe-
cia o valor d'elle, que nunca negociára com esta fazen-
da, contentou-se em dizer-lhe que elle bem sabia o que
podia valer o prato, e que confiava na sua boa fé . Achou-
se o judeu embaraçado com a ingenuidade de Aladdin .
Na incerteza em que estava de saber se Aladdin conhe-
cia a materia e o valor d'ella, sacou da sua bolsa uma
peça d'ouro que não era senão a septuagesima parte
do valor do prato, e lh'a offereceu . Aceitou Aladdin a
peça e apenas a teve na mão logo se retirou tão apres-
sadamente , que o judeu, não contente do ganho exorbi-
tante que fazia com esta compra , teve grande pezar de
não ter penetrado que Aladdin ignorava o preço do que
lhe vendia, e que pudera ter-lhe dado muito menos . Es-
352 AS MIL E UMA NOITES

teve a ponto de correr atraz do mancebo para ver se po-


dia alcançar alguma diminuição na venda, porém Alad-
din corria, e estava já tão longe, que lhe teria custado
muito alcançal - o .
Aladdin, voltando para casa de sua mãi , parou na
loja d'um padeiro , onde fez provisão de pão para sua
mãi e para si, pagando com parte da peça d'ouro , que
o padeiro lhe trocou : chegando, deu o resto a sua mãi,
que foi á praça comprar as outras provisões necessarias
para passarem ambos alguns dias.
Continuaram a viver assim ; isto é, Aladdin vendeu
todos os pratos ao judeu, um após outro até ao duodeci-
mo, do mesmo modo que fizera com o primeiro, á me-
dida que ia o dinheiro faltando em casa. O judeu , que
pelo primeiro dera uma peça d'ouro, não ousou offe-
cer-lhe menos pelos outros , receando perder tão bom
freguez ; pagou- os todos pelo mesmo preço . Gasto o di-
nheiro do ultimo , recorreu Aladdin á bacia, que pesava
dez vezes mais que cada prato . Quiz leval-à ao merca-
dor, mas o seu grande peso o impediu : foi pois obriga-
do a ir chamar o judeu, que trouxe a casa de sua mãi ;
e o judeu , depois de ter examinado o peso da bacia , lhe
contou logo dez peças d'ouro, com as quaes se conten-
tou Aladdin .
Em quanto duraram as dez peças d'ouro, foram em-
pregadas na despeza diaria da casa . Aladdin, todavia ,
acostumado a uma vida ociosa, abstivera-se de jogar com
os mancebos da sua idade , desde a sua aventura com o
magico africano ; passava os dias a passear ou a entre-
ter-se com pessoas com quem tomára conhecimento ; al-
gumas vezes parava nas lojas dos principaes mercado-
res onde ouvia as conversações de homens distinctos que
n'ellas paravam ou que n'ellas se achavam para conver-
sar e passar o tempo ; e estas conversações pouco a pou-
co lhe deram alguma tintura do conhecimento do mundo.
Depois de ter gasto as dez peças d'ouro , teve Alad-
din idéa de vender a lampada : pegou n'ella, procu-
rou o mesmo lugar que sua mãi tocára, e como o re-
conhecesse pela impressão que a area deixára n'elle ,
esfregou-a como ella fizera, e logo o mesmo genio que
CONTOS ARABES 353

se deixára vêr antes, se apresentou diante d'elle ; mas


como Aladdin esfregára mais ligeiramente que sua mãi
a lampada, fallou- lhe tambem com tom mais brando :
Que queres ? disse- lhe nos mesmos termos que d'antes ;
eis-me aqui prompto a obedecer-te como teu escravo, e
de todos os que tem a lampada na mão, eu, e os ou-
tros escravos da lampada como eu. Disse-lhe Aladdin :
«Tenho fome, traze-me de comer ». Desappareceu o ge-
nio, e passado pouco tempo voltou carregado d'um ser-
viço de mesa, igual ao que trouxera a primeira vez ;
elle o pôz sobre o sophá, e logo desappareceu .
A mãi de Aladdin, avisada do intento de seu filho ,
fôra de proposito aviar algum negocio para não se achar
em casa ao tempo da apparição do genio ; veio pouco
tempo depois , viu a mesa e o aparador bem guarneci-
dos, e ficou quasi tão pasmada do effeito prodigioso da
lampada como da primeira vez . Puzeram-se Aladdin e
sua mãi á mesa ; depois do banquete sobejou - lhes ainda
com que passar abundantemente os dous dias seguintes .
Logo que Aladdin viu que não havia em casa nem
pão, nem outras provisões, nem dinheiro para prover-
se, pegou n'um prato de prata e foi procurar o judeu ,
que conhecia, para vender lh'o : indo, passou diante da
loja d'um ourives, respeitavel pela sua velhice, homem
honrado e de grande probidade. O ourives , que o viu, o
chamou e o fez entrar : « Filho, disse -lhe , já vos vi pas-
sar algumas vezes carregado como ides agora, e ir ter
com um tal judeu , e passar pouco tempo depois sem
nada ; imagino que lhe vendeis o que levaes , mas igno-
raes talvez que esse judeu é um enganador, e ainda
mais enganador que os outros judeus ; ninguem, dos que
o conhecem , quer tratar com elle. Além d'isso o que vos
digo é unicamente para servir- vos ; se quereis mostrar-
me o que trazeis agora, e se é para vender, dar- vos - hei
fielmente o seu justo valor, se me convier ; senão diri-
gir-vos-hei a outros mercadores que não vos enganarão » .
A esperança de vender melhor o prato, fez que Aladdin .
o mostrasse ao ourives . O velho , que conheceu logo que
o prato era de prata fina , lhe perguntou se tinha ven-
dido alguns iguaes ao judeu , e por quanto lh'os pagára .
TOMO III . 23
354 AS MIL E UMA NOITES

Aladdin confessou-lhe sinceramente que lhe vendera do-


ze e não recebera do judeu senão uma peça d'ouro por
cada um. « Que ladrão ! clamou o ourives ; filho , acres-
centou elle, o passado, passado, não deveis lembrar-vos
mais d'isso ; porém mostrando -vos o que vale o vosso
prato, que é da melhor prata de que nos servimos nas
nossas lojas, conhecereis quanto vos enganou o judeu » .
Pegou o ourives na balança, pesou o prato, e depois
de ter explicado a Aladdin o que era um marco de pra-
ta, quanto valia e suas subdivisões , fez -lhe observar que,
segundo o peso do prato, valia setenta e duas peças
d'ouro, que lhe contou no mesmo instante . «< Eis -aqui ,
disse elle , o justo valor do vosso prato. Se duvidaes
podeis dirigir-vos a qualquer dos nossos ourives ; se vos
disser que vale mais, prometto pagar-vos o dobro ; não
ganhamos senão o feitio da prata que compramos, e isto
fazem os judeus mais honrados » .
Agradeceu muito Aladdin ao ourives o bom conse-
lho que lhe acabava de dar, e do qual tirava já tão
grande vantagem : depois não se dirigiu a mais ninguem
senão a elle para vender os outros pratos , assim como
a bacia, cujo justo valor lhe foi sempre pago á propor-
ção do seu peso . Ainda que Aladdin e sua mãi tivessem
uma mina inesgotavel de prata na sua lampada, para
ter quanto quizessem logo que viesse a faltar-lhes, con-
tinuaram todavia a viver sempre com a mesma frugali-
dade que d'antes, á excepção de Aladdin que punha de
parte alguma cousa para passar com decencia, e com as
commodidades necessarias no seu pequeno tratamento .
Sua mãi, pela sua parte, tirava a despeza do seu ves-
tuario, do que lhe rendia o algodão que fiava . Com um
passadio tão sóbrio é facil julgar quanto tempo o di-
nheiro dos doze pratos e da bacia, pelo preço que Alad-
din os tinha vendido ao ourives, lhes devia de durar.
D'este modo viveram alguns annos, com o soccorro do
bom uso que Aladdin fazia da lampada de quando em
. quando.
N'este intervallo Aladdin , que não faltava em achar-
se com muita assiduidade á conversação das pessoas de
distincção, nas lojas dos maiores mercadores de panos,
CONTOS ARABES 355

d'ouro e de prata, de estofos de séda, de panos os mais


finos e de pedras preciosas, e que se entremettia algu-
mas vezes nas suas conversações , acabou de formar-se
e acostumou-se insensivelmente ás maneiras todas da

gente bem educada. Foi particularmente em casa dos


mercadores lapidarios que ficou desenganado do pensa-
mento que tinha, que as frutas transparentes que colhe-
ra no jardim aonde fora buscar a lampada, não eram se-
não vidro corado, e que soube que eram pedras de gran-
de valor. Pela continuação de vêr vender e comprar de
todas estas castas de pedrarias nas suas lojas, aprendeu
356 AS MIL E UMA NOITES

a conhecel-as e a avalial -as : e como não as visse seme-


lhantes ás suas nem em belleza nem em tamanho, per-
cebeu que em vez de pedaços de vidro que tomára por
ninharias, possuia um thesouro inestimavel.
Teve a prudencia de não fallar d'ellas a ninguem,
nem a sua mãi ; e não ha duvida que o seu silencio lhe
valeu a alta fortuna a que o veremos depois elevado.
Um dia, passeando n'um bairro da cidade, ouviu
Aladdin publicar em alta voz uma ordem do sultão para
se fecharem as lojas e as portas das casas, e de metter-
se cada um em sua casa até passar a princeza Badroul-
boudour, filha do sultão , para ir ao banho e voltar.
Este pregão publico deu a Aladdin a curiosidade de
vêr a princeza descoberta, mas não podia vêl- a senão
mettendo-se em alguma casa de gente conhecida , e por
uma grade, o que não lhe agradava, porque a princeza,
segundo o costume, devia levar um véo, indo ao banho.
Para satisfazer-se lembrou-se d'um meio no qual foi bem
succedido foi pôr-se atraz da porta do banho, que es-
tava disposta de maneira que não podia deixar de a ver
chegar face a face.
Não esperou muito tempo Aladdin ; appareceu a prin-
ceza, e viu-a passar sem ser visto : ia acompanhada d'um
grande numero de mulheres e de eunucos que vinham
a seus lados e em seu sequito . Chegada que foi a tres
ou quatro passos da porta do banho , tirou o véo que
The cobria o rosto e que a incommodava muito , e assim
deu lugar a Aladdin de vêl-a muito a seu commodo,
visto que ella vinha em direitura a elle .
Até agora não tinha Aladdin visto outras mulheres
com o rosto descoberto senão sua mãi , que era já avan-
çada em annos, e que nunca tivera feições bastante bel-
las para fazer-lhe julgar que as outras mulheres fossem
mais formosas : bem podia ter ouvido que as havia de
belleza extraordinaria , mas algumas palavras que se em-
pregam para realçar o merecimento d'uma belleza, nun-
ca fazem a impressão que faz a propria belleza .
Tendo Aladdin visto a princeza Badroulboudour, mu-
dou da opinião em que estava, que todas as mulheres
deviam parecer-se pouco mais ou menos com sua mãi :
CONTOS ARABES 357

acharam-se bem differentes os seus sentimentos ; e seu


coração não pôde recusar as suas inclinações todas ao
objecto que acabava de enleval-o . Com effeito a prince-
za era a formosura mais completa do mundo : tinha os
olhos grandes á flôr do rosto : um olhar meigo e modes-
to, o nariz com justa proporção e sem defeito, a bocca
pequena, os labios vermelhos , encantadores pela sua
agradavel symetria ; n'uma palavra, todas as feições de
seu rosto eram d'uma regularidade completa . Não se
póde pois estranhar se Aladdin ficou enlevado, e quasi
fóra de si á vista de tantas maravilhas juntas que lhe
eram desconhecidas : além de todas estas perfeições ti-
nha a princeza um bello talhe, um porte e ar magestoso,
que só do vêl-a lhe grangeava o respeito que lhe era
devido.
Tendo a princeza entrado no banho, ficou Aladdin
algum tempo suspenso e como em extasi , delineando e
imprimindo profundamente na sua lembrança a idéa de
um objecto que o enlevava e penetrava até ao fundo do
coração ; entrou finalmente em si , e considerando que a
princeza passára e que debalde guardaria o seu posto
para vêl-a de novo a sahida do banho, visto que devia
voltar-lhe as costas e trazer o véo, tomou a resolução
de deixal- o e de retirar-se.
Aladdin, entrando em sua casa, não pôde occultar
tão bem a sua perturbação e desassocego, que sua mãi
não desse por isso ; admirou-se de vêl-o tão triste e
pensativo, contra o seu costume ; perguntou-lhe se lhe
tinha acontecido alguma cousa ou se estava indisposto ,
mas Aladdin não lhe deu resposta alguma, e assentou-se
negligentemente sobre o sophá, onde ficou na mesma si-
tuação, sempre occupado a trazer á lembrança a imagem
encantadora da princeza Badroulboudour. Sua mãi , que
preparava a cêa, não apertou mais com elle . Estando
prompta serviu-a ao pé d'elle sobre o sophá e pôz-se à
mesa ; e, como percebesse que seu filho não dava a is-
so attenção alguma, avisou-o que comesse, e com mui-
to custo mudou de situação . Comeu muito menos que de
costume, com os olhos sempre baixos e guardando um
silencio tão profundo, que não foi possivel a sua mãi ob-
358 AS MIL E UMA NOITES

ter uma unica resposta ás perguntas que lhe fez , pa-


ra poder saber o motivo de mudança tão extraordina-
ria.
Depois de cêa quiz tornar a perguntar-lhe o motivo
de tão grande melancolia ; porém nada pôde saber, e
elle tomou o partido de ir - se deitar e não dar a sua mãi
a menor satisfação a este respeito.
Sem examinar como Aladdin, enlevado da belleza e
dos encantos da princeza Badroulboudour, passou a noi-
te, notaremos sómente que no dia seguinte, como esti-
vesse assentado no sophá defronte de sua mãi que fiava
algodão, conforme o seu costume, fallou-lhe n'estes ter-
mos : « Minha boa mãi, disse elle, rompo o silencio que
guardei desde hontem, quando voltei do passeio pela
cidade ; penalisou-vos, bem percebi isso . Não estava
doente, como me pareceu que o crêstes, e não o es-
tou ainda . Porém posso dizer-vos que o que sentia, e o
que não cesso ainda de sentir, é alguma cousa peor que
uma molestia. Não sei bem que mal é este, mas não
duvido que o que logo ouvireis vol-o dé a conhecer.
Não se soube n'este bairro, continuou Aladdin, e assim
não pudestes sabel -o , que hontem a princeza Badroul-
boudour, filha do sultão, foi ao banho da tarde. Soube
esta nova passeando pela cidade . Publicou-se uma or-
dem de fechar as lojas e de recolher-se cada um a sua
casa, para fazer a esta princeza a honra que lhe é de-
vida, e deixar-lhe o caminho livre nas ruas por onde
devia passar. Como não estivesse longe do banho, a cu-
riosidade de vêl -a com a cara descoberta, me fez vir ao
pensamento ir collocar-me atraz da porta do banho, fa-
zendo reflexão que podia acontecer que tirasse o seu
véo, quando estivesse prompta a entrar. Sabeis a dispo-
sição da porta , e podeis julgar que devia vêl-a a meu
commodo, se o que imaginára acontecesse. Com effeito,
ao entrar tirou o seu véo, e tive a felicidade de vêr
essa amavel princeza com a maior satisfação do mundo .
Eis-aqui, minha querida mãi , o grande motivo do estado
em que me vistes hontem quando entrei, e o motivo
de silencio que guardei até agora . Amo a princeza com
tanto amor, cuja violencia é tal que não poderia expres-
CONTOS ARABES 359

sar-vol-a ; e como a minha paixão viva e ardente au-


gmenta a todo o instante, conheço que não pode ser sa-
tisfeita senão pela posse da amavel princeza Badroul-
boudour, o que me obrigou a tomar a resolução de man-
dal-a pedir em casamento ao sultão » .
A mai de Aladdin tinha dado ouvidos ao discurso de
seu filho com bastante attenção até ás ultimas palavras ;
mas quando ouviu que o seu intento era mandar pedir
a princeza Badroulboudour em casamento, não pôde dei-
xar de interrompel-o, dando uma grande risada . Quiz
Aladdin proseguir, porém interrompendo-o outra vez :
<< Ah, filho meu ! disse-lhe ; em que cuidaes ? deveis ter
perdido o juizo, fallando d'esse modo . - Minha rica mãi,
replicou Aladdin, posso assegurar-vos que não perdi o
juizo . Previ as reprehensões de loucura e de extrava-
gancia que me fazeis, e as que poderieis fazer-me ;
porém tudo isto não me impedirá de dizer-vos ainda
uma vez que a minha resolução está tomada, de man-
dar pedir ao sultão a princeza Badroulboudour em casa-
-
mento . Na verdade, replicou a mãi mui seriamente,
não poderia deixar de dizer- vos que perdestes o juizo ;
e, ainda que quizesseis executar essa resolução , não ve-
jo por quem ousarieis mandal-a pedir ao sultão . - Por
vós mesma ! replicou logo o filho sem hesitar . — Por
mim! clamou a mãi com ar de admiração e pasmo ; e
ao sultão ? Ah ! guardar-me-hei de empenhar-me em se-
melhante empresa . E quem sois , filho, continuou ella,
para ter a ousadia de pretender a filha de vosso sultão ?
Esquecestes-vos que sois filho d'um dos mais infimos al-
faiates da sua capital , e d'uma mãi, cujos antepassados
não foram de nascimento mais distincto ? Sabeis que os
sultões não se dignam dar as suas filhas em casamento,
nem sequer aos filhos de sultões , que não tem a espe-
rança de reinar um dia como elles ? - Minha rica mãi,
replicou Aladdin ; já vos disse que previ tudo o que aca-
baes de dizer-me, e digo a mesma cousa de tudo o que
poderieis acrescentar a isso . Nem vossos discursos, nem
vossas advertencias me farão mudar de parecer. Já vos
disse que mandaria pedir a princeza Badroulboudour em
casamento pela vossa intervenção ; é um favor que vos
360 AS MIL E UMA NOITES

peço com todo o respeito que vos devo, e supplico- vos


que não m'o recuseis, a menos que estimeis mais vêr-
me morrer do que dar-me a vida uma segunda vez » .
Achou-se a mãi de Aladdin embaraçada quando viu
a teima com que Aladdin persistia n'um intento tão
afastado do bom senso. « Filho , disse ainda, sou vossa
mãi, e como boa mãi que vos deu á luz , nada ha ra-
zoavel, nem conveniente ao meu e ao vosso estado que
não estivesse prompta a fazer por amor vosso. Se se
tratasse de fallar de casamento para vós com a filha de
algum dos nossos visinhos, de condição igual ou quasi
igual á vossa, de nada me esqueceria, e empregar-me-
hia de boa vontade no que estivesse em meu poder ;
ainda para conseguil-o , seria preciso que tivesseis al-
gum cabedal ou alguma renda, ou que soubesseis um
officio. Quando uns pobres, como nós, querem casar, a
primeira cousa em que devem cuidar é ter com que
passar. Porém sem fazer reflexão na baixeza do vosso
nascimento, no pouco merecimento e cabedal que ten-
des, tomaes vosso vôo até ao mais alto grau da fortu-
na, e vossas pretensões aspiram a querer pedir em ca-
samento a filha de vosso soberano, que com uma pala-
vra póde precipitar-vos e esmagar-vos : deixo de parte
o que vos diz respeito ; a vós importa reflectir no
que deveis , por pouco juizo que tenhaes. Torno ao que
me importa : como pôde vir-vos á lembrança um pensa-
mento tão extraordinario como o de querer que vá fa-
zer a proposta ao sultão , de dar-vos a princeza sua filha
em casamento ? Suppondo que tenho, não digo o atrevi-
mento , mas o descaramento de ir apresentar- me diante
de sua magestade, para fazer-lhe uma proposta tão ex-
travagante, a quem me dirigirei para introduzir-me ?
Parece- vos que o primeiro a quem fallasse d'isso não
me trataria de louca, e não me despediria indignamen-
te como merecia ? Suppondo ainda que não haja difficul-
dade em apresentar-me na audiencia do sultão ; sei que
não a ha quando se apresentam para pedir-lhe justiça,
e que a administra de boa vontade a seus vassallos,
quando lh'a requerem ; sei tambem que quando se lhe
apresentam para pedir-lhe alguma graça, concede- a com
CONTOS ARABES 361

gosto, quando vê que a mereceram, e que são dignos


d'ella ; porém estaes vós n'esse caso e parece-vos ter
merecido a graça que quereis que peça para vós ? Sois
digno d'ella ? Que fizestes pelo vosso principe , ou pela
vossa patria, e em que vos distinguistes ? Se nada
fizestes para merecer uma tão grande graça , e além
d'isso não sois digno d'ella, com que cara poderia eu
pedil -a ? Como poderia sómente abrir a bocca para pro-
pôl-a ao sultão ? A sua presença toda magestosa e o es-
plendor de sua côrte, me tapariam logo a bocca, a mim,
que tremia diante do defunto meu marido, vosso pai,
quando tinha que pedir-lhe alguma cousa, por pequena
que fosse. Ha outra razão, filho, na qual não pensaes ,
e é que não se apresenta ninguem perante os nossos
sultões sem um presente na mão, quando tem alguma
graça que pedir-lhes . Tem ao menos os presentes esta
vantagem que se recusam a graça pelas razões que
podem ter, ouvem ao menos a petição , e o que a faz ,
sem repugnancia alguma. Porém que presente tendes
para dar ? e ainda que tivesseis alguma cousa que fosse
digna da menor attenção de tão grande monarcha, que
proporção haveria entre o vosso presente e a pretensão
que quereis d'elle ? Entrai em vós mesmo , e lembrai-
vos que aspiraes a uma cousa que vos é impossivel
conseguir »> .
Ouviu Aladdin mui socegadamente tudo o que sua
mãi pôde dizer-lhe, para poder desvial-o do seu inten-
to ; e, depois de ter reflectido sobre todos os pontos
da sua advertencia, fallou-lhe n'estes termos : << Confes-
so, minha mãi , que é grande temeridade em mim ousar
levar minhas pretensões tão longe, e é uma grande in-
consideração ter exigido de vós com tanto empenho que
fosseis fazer a proposta do meu casamento ao sultão,
sem tomar primeiro os meios proprios para alcançar
uma audiencia e um acolhimento favoravel : quanto a
isso peço - vos perdão . Porém na violencia da paixão
que me domina, não vos admireis se não considerei
logo tudo o que póde servir a dar- me o descanço que
procuro. Amo a princeza Badroulboudour muito mais do
que podeis imaginar, ou , para melhor dizer, adoro a, e
362 AS MIL E UMA NOITES

persevero sempre no intento de casar com ella. É cou-


sa em que assentei e estou inteiramente resolvido . Fico-
vos obrigado pela declaração que acabaes de fazer-me.
Considero-a como a primeira diligencia que deve procu-
rar-me o feliz successo que espero . Dizeis-me que não
é costume apresentar-se diante do sultão sem um pre-
sente, e que nada tenho que seja digno d'elle . Quanto
ao presente concordo comvosco, e confesso - vos que não
me lembrei d'isso . Porém quanto ao que me dizeis que
nada tenho que possa ser-lhe apresentado, crêdes, mi-
nha rica mãi, que o que trouxe no dia em que evitei
uma morte inevitavel do modo que sabeis , não seja ca-
paz de servir de presente agradavel ao sultão ? Fallo do
que trouxe nas duas bolsas e no cinto, e que tomamos,
vós e eu, por vidros córados : mas agora desenganei-
me e dou-vos por noticia, minha rica mãi , que são pe-
drarias de valor inestimavel, que convém só a grandes
monarchas . Conheci o valor d'ellas frequentando as lo-
jas dos mercadores lapidarios , e podeis crêr-me , sob a
minha palavra. Todas as que vi nas lojas dos mercado-
res não são comparaveis ás que possuimos, nem em ta-
manho nem em belleza ; e todavia avaliam-as em pre-
ços excessivos . Na verdade ignoramos, vós e eu, o va-
lor das nossas : porém seja o que fôr, pelo que posso
julgar d'ellas com a pouca experiencia que tenho , estou
persuadido que o presente não pode ser senão mui
agradavel ao sultão . Tendes um vaso de porcelana assás
grande, e de uma fórma mui propria para contel - as :
trazei-o, e vejamos o effeito que farão dispostas n'elle,
segundo as suas diversas côres >> .
Trouxe a mãi de Aladdin o vaso, e Aladdin tirou as
pedras das duas bolsas e as collocou no dito vaso . O
effeito que fizeram á claridade do dia pela variedade de
suas côres, pelo seu resplendor e brilho, foi tal que a
mãi e o filho ficaram quasi offuscados , pois não as ti-
nham visto senão á luz d'uma lampada. É verdade que
Aladdin as tinha visto cada uma sobre suas arvores
como frutas que deviam fazer um espectaculo maravi-
lhoso ; mas como fosse ainda novato, não olhára para
aquellas pedras senão como avellorios proprios para
CONTOS ARABES 363

brincar, e não se carregára d'ellas senão com esta mira,


e sem outro conhecimento .
Depois de ter admirado a belleza do presente, con-
tinuou Aladdin a fallar : «Minha querida mãi, disse el-
le, não vos escusareis já de ir apresentar-vos ao sultão
com o pretexto de não ter um presente para fazer-lhe.

Eis-aqui um que me parece fará com que sejaes rece-


bida com o acolhimento mais favoravel » .
Ainda que a mai de Aladdin , não obstante a belleza
e resplendor do presente, não julgasse que elle fosse
de um valor tão grande como seu filho dizia, pareceu-
The todavia que podia ser bem aceito, e bem conhecia
que nada tinha que replicar-lhe a este respeito. Mas tor-
nava sempre á mercê que Aladdin queria que pedisse
ao sultão, em virtude d'este presente ; isto dava -lhe um
364 AS MIL E UMA NOITES

grande cuidado : < « Filho, dizia -lhe, não me custa a ca-


pacitar-me que o presente fará o seu effeito, e que o
sultão quererá attender-me de boa vontade ; porém quan-
do fôr preciso que me desempenhe do requerimento que
quereis que lhe faça, bem conheço que não terei força
para isso, e que ficarei muda. Assim, não só terei per-
dido os meus passos, mas o presente tambem , que no
vosso entender é de uma riqueza extraordinaria, e vol-
tarei confusa a annunciar-vos que ficastes frustrado na
vossa esperança. Já vol- o disse , e deveis crêr que isto
acontecerá assim . Mas, acrescentou ella, quero violen-
tar-me para sujeitar-me à vossa vontade, e ter bastante
força para ousar pedir o que desejaes ; acontecerá cer-
tissimamente, ou que o sultão zombará de mim, e me
despedirá como uma louca , ou com razão se escandalisa-
rá e seremos, vós e eu, infallivelmente as victimas da
sua justa cólera » .
Apresentou ainda a mãi de Aladdin a seu filho algu-
mas outras razões para poder resolvel-o a mudar de pa-
recer, mas os encantos da princeza Badroulbouldour fize-
ram uma impressão mui forte no seu coração, para dis-
suadil-o do seu intento. Persistiu Aladdin em exigir de sua
mãi que executasse o que tinha resolvido ; e tanto pela
ternura que tinha para com elle como pelo receio de
que não se entregasse a algum extremo funesto, venceu
a sua repugnancia e condescendeu com a vontade de
seu filho .
Como fosse já mui tarde, e o tempo d'ir ao palacio,
para apresentar- se ao sultão n'esse dia, fosse passado,
ficou a cousa para o dia seguinte. A mãi e o filho não
se entretiveram d'outra cousa o resto do dia ; e teve
Aladdin grande cuidado em inspirar a sua mãi tudo o
que lhe veio ao pensamento, para confirmal-a no par-
tido que tomára finalmente d'ir apresentar-se ao sultão.
Apesar de todas as razões do filho, não podia a mãi
persuadir-se que pudesse jamais ter bom successo n'es-
te negocio, e na verdade deve - se confessar que tinha
grande motivo de duvidar. « Filho , disse a Aladdin , se o
sultão me recebe tão favoravelmente como desejo , se
dá ouvidos socegadamente à proposta que quereis que
CONTOS ARABES 365

the faça , e se depois d'esse bom acolhimento se lembar


de perguntar-me onde estão vossos cabedaes, vossas ri-
quezas e vossos estados, pois d'isso se informará sobre-
tudo primeiro que de vossa pessoa, se me faz , digo,
essa pergunta, que quereis que lhe responda ? - Minha
querida mãi, respondeu Aladdin, não nos inquietemos
d'antemão com uma cousa que talvez não aconteça. Ve-
jamos primeiramente o acolhimento que vos faz o sul-
tão e a resposta que vos dá . Se acontece que queira
ser informado de tudo o que acabaes de dizer- me, ve-
rei então a resposta que hei -de dar-lhe ; tenho confian-
ça que a lampada, por cujo meio subsistimos ha alguns
annos, não me faltará em caso de precisão » .
Nada teve que replicar a mãi de Aladdin ao que seu
filho acabava de dizer-lhe . Reflexionou que a lampada ,
de que fallava , bem podia servir para maiores maravi
lhas do que para procurar-lhes simplesmente com que
viver. Isto a satisfez , e levantou ao mesmo tempo todas
as difficuldades que poderiam ainda desvial-a do serviço
que promettera de fazer a seu filho para com o sultão .
Aladdin, que penetrou o pensamento de sua mãi, lhe
disse : « Ao menos , mãi, lembrai-vos de guardar segre-
do ; d'elle depende todo o bom successo que devemos
esperar, vós e eu, d'este negocio ». Aladdin e sua mãi
se separaram para descançar. Porém o amor violento e
os grandes projectos de uma fortuna immensa em que
estava esperançado o filho, lhe impediram passar a noi-
te tão socegadamente como desejára. Levantou-se de ma-
drugada e foi acordar sua mãi . Apertou com ella para
vestir-se com a maior brevidade possivel, para ir ter á
porta do palacio do sultão e para entrar n'elle ao abrir-
se, ao mesmo tempo que o grão -visir, os visires subal-
ternos e todos os grandes officiaes do estado entrassem
para a sessão do Divan, onde o sultão assistia sempre
em pessoa.
Fez a mai de Aladdin quanto quiz seu filho . Pegou
no vaso de porcelana em que estava o presente de pe-
drarias, embrulhou - o em dous panos, um finissimo e
aceadissimo e outro menos fino, que atou pelos quatro
cantos para leval-o com mais commodo. Partiu finalmen-
366 AS MIL E UMA NOITES

te com grande satisfação de Aladdin, e tomou o cami-


nho do palacio do sultão . O grão-visir, acompanhado
dos outros visires e dos senhores da côrte mais qualifi-
cados , tinha já entrado quando chegou á porta . A mul-
tidão dos que tinham negocios no Divan era grande .
Abriu-se, e ella foi com elles até lá . Era um bello salão ,
fundo e espaçoso , cuja entrada era grande e magnifica :
parou, e postou- se de modo que tinha defronte o sultão,
o grão-visir e os senhores que tinham assento no conse-
lho , á direita e á esquerda. Chamaram as partes umas
após outras, segundo a ordem dos requerimentos que ti-
nham apresentado, e suas causas foram relatadas , plei-
teadas e julgadas até á hora costumada da sessão do
Divan. Levantou-se então o sultão , despediu o conselho
e entrou no seu quarto, para onde foi acompanhado do
grão-visir : os outros visires e os ministros do conselho
se retiraram. Todos os que n'elle se acharam para nego-
cios particulares fizeram o mesmo : uns contentes de ter
ganho as suas demandas, outros descontentes de as ter
perdido, e outros finalmente com a esperança de ser
julgados n'outra sessão .
A mãi de Aladdin , que vira o sultão levantar- se e
retirar-se, julgou que não tornaria a apparecer n'aquelle
dia, vendo sahir toda a gente ; assim resolveu- se a vol-
tar para sua casa . Aladdin, que a viu entrar com o pre-
sente destinado ao sultão , não soube o que havia de
pensar do successo da commissão : no receio em que es-
tava que tivesse alguma cousa sinistra que annunciar-lhe ,
não tinha animo de abrir a bocca para perguntar -lhe que
novas lhe trazia . A boa mãi, que nunca puzera o pé no
palacio do sultão e que não tinha o mais leve conheci-
mento do que n'elle se praticava commummente, tirou
seu filho do embaraço em que estava, dizendo-lhe com
grande simplicidade : « Filho, vi o sultão, e estou bem
persuadida que tambem me viu. Estava postada diante
d'elle , e ninguem o impedia de vêr-me ; porém estava
tão occupado por todos os que lhe fallavam á direita e
á esquerda, que me fazia compaixão ver o trabalho e a
paciencia que tinha para ouvil-os . Durou isto tanto tem-
po que finalmente creio que se enfastiou , pois levantou-
CONTOS ARABES 367

se sem que o esperassem, e retirou -se arrebatadamente,


sem querer ouvir outros muitos requerentes, dispostos
em fileira para fallar- lhe por sua vez ; deu-me todavia
isto um grande gosto. Com effeito principiava a perder
a paciencia, e estava em extremo cançada de ficar em
pé tanto tempo ; mas não se perdeu nada ; não deixarei
de tornar lá ámanhã ; não estará talvez o sultão tão oc-
cupado >» .
Por mais namorado que estivesse Aladdin, teve de
contentar-se com esta desculpa e armar-se de paciencia :
teve ao menos a satisfação de ver que sua mãi fizera a
diligencia mais difficultosa, que consistia em não pertur-
bar-se á vista do sultão , e esperar que seguindo o exem-
plo dos que tinham fallado na sua presença, não hesi-
taria tambem em desempenhar-se da commissão de que
estava encarregada , quando se offerecesse o instante fa-
voravel de fallar-lhe .
No dia seguinte , tão cedo como no precedente, tor-
nou a mai de Aladdin ao palacio do sultão com o pre-
sente de pedrarias, porém foi baldada a sua viagem :
achou fechada a porta do Divan, e soube que não havia
conselho senão de dous em dous dias, e assim era
preciso que voltasse no dia seguinte . Foi levar esta no-
va a seu filho, que foi obrigado a revestir-se de pacien-
cia ; lá tornou outras seis vezes, postando-se sempre
diante do sultão, porém com tão pouco successo como
da primeira vez ; talvez que lá tivesse tornado outras
cem vezes tambem debalde , se o sultão , que a via sem-
pre defronte de si em cada sessão , não fizesse reparo
n'ella. É isto tão provavel , que sómente os que tinham
requerimentos que apresentar- lhe, se chegavam ao sul-
tão, cada um pelo seu turno, para advogar a sua causa,
e a mai de Aladdin não estava n'este caso.
N'esse dia, finalmente , acabado que foi o conselho ,
quando o sultão entrou no seu quarto , disse ao seu grão-
visir : « Ha já algum tempo que observo uma certa mu-
lher que vem regularmente todos os dias de conselho,
e que traz alguma cousa embrulhada n'um pano : fica
em pé desde o principio da audiencia até ao fim, e vem
collocar - se sempre defronte de mim ; sabeis o que pede ? >>
368 AS MIL E UMA NOITES

O grão-visir, que sabia tanto como o sultão, não quiz


todavia deixar de responder alguma cousa : « Senhor, re-
plicou elle, vossa magestade não ignora que as mulhe-
res formam ás vezes queixas sobre assumptos de ninha-
rias . Esta, ao que parece, vem queixar-se a vossa ma-
gestade de lhe terem vendido alguma má farinha, ou de
a terem prejudicado em alguma outra cousa de pouca
consequencia » . Não se satisfez com esta resposta o sul-
tão : « No primeiro dia de conselho , replicou elle, se es-
ta mulher voltar, não vos esqueçaes de mandal -a cha-
mar, para que a ouça ». Respondeu-lhe o grão- visir bei-
jando a mão e levando-a á cabeça, para mostrar que es-
tava prompto a perdel-a, se faltasse a isto .
Estava já tão habituada a mãi de Aladdin a appare-
cer no conselho diante do sultão, que contava por cou-
sa nenhuma o seu trabalho, comtanto que désse a co-
nhecer a seu filho que não se esquecia de cousa alguma
de tudo o que dependesse d'ella para comprazer-lhe.
Voltou pois ao palacio no dia do conselho, e postou-se
á entrada do Divan, defronte do sultão , como de cos-
tume.
Não tinha ainda o grão-visir relatado negocio al-
gum, quando o sultão avistou a mãi de Aladdin , e com-
padecido da larga paciencia de que fôra testemunha :
<< Primeiro que tudo, para que não vos esqueçaes , disse
ao grão -visir, eis alli a mulher de quem vos fallei ulti-
mamente ; mandai- a vir, principiemos por ouvil-a e por
expedir o negocio que a traz aqui » . Mostrou logo o grão-
visir a mulher ao chefe dos porteiros , que estava em pé,
prompto a receber as ordens, e lhe ordenou que fosse
buscal-a e lh'a apresentasse.
O chefe dos porteiros chegou-se à mãi de Aladdin, e
pelo aceno que lhe fez ella o seguiu até ao pé do thro-
no do sultão, onde a deixou para ir postar-se no seu lu-
gar perto do grão-visir.
A mãi de Aladdin , instruida pelo exemplo de tantos
outros que vira aproximar-se do sultão, prostrou- se com
a cara sobre o tapete que cobria os degraus do throno,
e ficou n'este estado até que o sultão lhe ordenou que
se levantasse, Levantou-se então : « Boa mulher , disse-
CONTOS ARABES 369

lhe o sultão , ha muito tempo que vos vejo vir ao meu


Divan e ficar á entrada desde o principio até ao fim ;
que negocio vos traz aqui ? >
»
Prostrou-se a mãi de Aladdin segunda vez, depois de

ter ouvido estas palavras ; e tendo-se levantado : << Mo-


«
narcha superior aos monarchas do mundo , disse ella , an-
tes de expôr a vossa magestade o motivo extraordinario
e quasi incrivel que me faz apparecer perante o seu
throno sublime, supplico-lhe que me perdôe a ousadia ,
TOMO III, 24
370 AS MIL E UMA NOITES

para não dizer imprudencia, na petição que venho fazer-


The. É tão extraordinaria, que tremo, e tenho pejo de
propôl-a ao meu sultão » . Para dar-lhe liberdade inteira
de explicar- se, ordenou o sultão que sahissem todos do
Divan e que o deixassem só com o seu grão -visir, e dis-
se-lhe então que podia fallar e explicar-se sem receio .
A mãi de Aladdin não se contentou com a bondade
do sultão, que acabava de poupar-lhe o desgosto que
poderia ter, fallando diante de tanta gente, quiz ainda evi-
tar a indignação que tinha que recear da proposta que
devia fazer-lhe, e pela qual não esperava : « Senhor, dis-
se-lhe continuando a fallar, ouso ainda supplicar a vossa
magestade, no caso que ache o requerimento que tenho
que fazer-lhe desagradavel, ou injurioso em qualquer cou-
sa, por minima que seja, que me prometta primeiro o
seu perdão, e me conceda a graça d'elle . xxxxx Seja o que
for, eu vos perdôo desde já , e não vos acontecerá mal
algum ; fallai francamente »>.
Tendo a mai de Aladdin tomado todas estas precau-

ções, como mulher que receava a cólera do sultão , so-
bre uma proposta tão delicada como a que tinha para
fazer-lhe, contou-lhe fielmente em que occasião Aladdin
vira a princeza Badroulboudour, o amor violento que es-
ta visão fatal lhe inspirára, a declaração que d'elle fize-
ra, tudo o que ella lhe representára para dissudil- o de
uma paixão «< não menos injuriosa a vossa magestade ,
disse ao sultão, do que á princeza vossa filha ; porém,
continuou ella, meu filho, longe de aproveitar os meus
conselhos e reconhecer a sua ousadia, obstinou-se a per-
severar n'ella até ao ponto de ameaçar-me de algum
acto de desespero se recusasse vir pedir a princeza em
casamento a vossa magestade ; e não me resolvi senão
depois de ter-me violentado muito, è vêr-me constrangi-
da a ter esta complacencia para com elle , do que sup-
plico ainda uma vez a vossa magestade que me conceda
perdão, não só a mim, mas tambem a Aladdin, meu filho ,
por ter tido o pensamento temerario de aspirar a tão al-
ta alliança »>».
Ouviu o sultão todo este discurso com muita brandu-
ra e bondade , sem dar signal algum de cólera ou de in-
CONTOS ARABES 371

dignação , e até sem tomar o requerimento em zomba-


ria ; mas antes de responder, perguntou-lhe o que era
que trazia embrulhado n'um pano . Pegou logo no vaso
de porcelana que puzera ao pé do throno antes de pros-
trar-se , descobriu- o e o apresentou ao sultão .
Não se poderia expressar a admiração e o pasmo do
sultão quando viu juntas n'este vaso tantas pedrarias tão
preciosas , tão perfeitas, tão brilhantes e de tal tamanho
que não tinha ainda visto outras iguaes . Ficou algum
tempo tão admirado , que se conservou immovel . Tor-
nando finalmente a si, recebeu o presente das mãos da
mãi de Aladdin, clamando com arrebatamento de ale-
gria : « Ah! que belleza , que riqueza ! » Depois de ter
admirado e pegado em quasi todas as pedras uma após
outra, avaliando cada uma pela qualidade que as distin-
guia, voltou-se para o seu grão - visir, e mostrando -lhe o
vaso : « Vê, disse elle , e concorda que não se póde vêr
no mundo cousa mais rica e mais perfeita » . Ficou o vi-
sir enlevado . «Então ? continuou o sultão ; que te parece
um tal presente ? Não é digno da princeza minha filha ,
e não posso dal-a por este preço ao que m'a manda pe-
dir ? »
Causaram estas palavras ao grão- visir uma estranha
agitação. Havia já algum tempo que o sultão lhe dera a
entender que a sua intenção era dar a princeza sua filha
em casamento a um filho que tinha . Receou, e não sem
fundamento, que o sultão , allucinado de um presente tão
rico e tão extraordinario, mudasse de parecer. Chegou- se
ao sultão, e fallando-lhe ao ouvido : « Senhor, disse elle ,
não se pode desconvir que o presente não seja digno da
princeza'; porém supplico a vossa magestade que me con-
ceda tres mezes antes de resolver-se . Espero que antes
d'esse tempo meu filho , sobre quem vossa magestade
teve a bondade de communicar-me que tinha vistas , te-
rá com que fazer- lhe um de maior valor que o de Alad-
din, que vossa magestade não conhece » . O sultão, ainda
que muito persuadido de que não era possivel que o seu
grão-visir pudesse achar para seu filho com que fazer um
presente de tão grande valor á princeza sua filha, não
deixou todavia de attendel-o e de conceder-lhe essa gra-
372 AS MIL E UMA NOITES

ça. Assim, voltando-se para a mãi de Aladdin, disse-lhe :


<< Ide, boa mulher, voltai para vossa casa e dizei a vos-
so filho que aceito gostoso a proposta que me fizestes da
sua parte ; porém que não posso casar a princeza minha
filha, sem fazer-lhe primeiro um enxoval, que não esta-
rá prompto senão d'aqui a tres mezes : voltai pois para
esse tempo.
Voltou a mai de Aladdin para sua casa com uma ale-
gria tanto maior, quanto a respeito do seu estado consi-
derára logo o accesso para com o sultão como impossi-
vel, e além d'isso alcançára uma resposta tão favoravel
em vez d'uma repulsa que a cobriria de confusão . Fize-
ram duas cousas julgar a Aladdin , quando viu entrar sua
mãi, que lhe trazia uma boa nova : uma, que voltava
mais cedo do que costumava ; e outra , que tinha a cara
alegre e descoberta . « Então, minha rica mãi ? disse- lhe ;
devo esperar ? devo morrer de desesperação ? » Tendo
largado o seu véo, assentado no sophá com elle : «Filho,
disse, para não ter- vos muito tempo na incerteza , prin-
cipiarei por dizer-vos, que bem longe de cuidar em mor-
rer, tendes motivo para estar contente. Proseguindo, con-
tou- lhe de que modo tivera audiencia antes de todos, o
que era causa de voltar tão cedo ; as precauções que to-
mára para fazer ao sultão, sem que se offendesse , a pro-
posta do casamento da princeza Badroulboudour com el-
le, e a resposta favoravel que o sultão lhe dera de sua
propria bocca. Acrescentou que, a julgar pelas demons-
trações que o sultão dera, o presente, de preferencia a
tudo, fizera um poderoso effeito no seu espirito para re-
solvel-o á resposta favoravel que trazia . « Tanto menos
esperava por ella , tornou a dizer, quanto o grão- visir lhe
fallára ao ouvido antes que m'a désse, e que receava que
o desviasse da boa vontade que podia ter para comvos-
CO ».
Considerou-se Aladdin o mais feliz dos mortaes, sa-
bendo esta noticia . Agradeceu a sua mãi todos os traba-
lhos que tivera na diligencia d'este negocio, cujo feliz
successo era tão importante para seu socego. E ainda que
na impaciencia em que estava de gozar do objecto da sua
paixão, tres mezes lhe parecessem um seculo, resolveu-
CONTOS ARABES
373
se todavia a esperar com paciencia , fiado na palavra do
sultão, que tinha como irrevogavel. Em quanto contava
não só as horas, os dias e as semanas, mas tambem os mi-
nutos, esperando que o termo se passasse, tinham -se qua-
si passado dous mezes, quando sua mãi, querendo uma

tarde accender a lampada, percebeu que não havia mais


azeite em casa . Sahiu para ir compral-o, e viu que na
cidade todos estavam em regosijo . Com effeito, as lojas ,
em vez de estarem fechadas, estavam abertas : adorna-
vam as com folhagens , preparavam n'ellas illuminações ,
e cada qual se esmerava a fazel-as com mais pompa e
magnificencia , para melhor manifestar seu zelo . Todos ,
finalmente, davam demonstrações de alegria e de rego-
374 AS MIL E UMA NOITES

sijo. As ruas estavam obstruidas por officiaes com vesti-


dos de ceremonia, montados em cavallos ricamente ajae-
zados, e rodeados de um grande numero de criados de
pé, que iam e vinham . Perguntou ao mercador, em cu-
ja loja comprava o azeite , o que significava tudo aquillo .
« D'onde vindes, minha boa senhora ? disse lhe, não sa-
beis que o filho do grão-visir casa esta tarde com a prin-
ceza Badroulboudour, filha do sultão ? Ella não tardará
muito a sahir do banho, e os officiaes que estaes vendo
se ajuntam para acompanhal-a até ao palacio , onde se
deve fazer a ceremonia >> .
Não quiz a mai de Aladdin saber mais . Voltou com
tanta pressa, que entrou em sua casa quasi sem alento .
Achou seu filho , que estava longe de esperar pela triste
nova que lhe trazia . « Filho , clamou , está tudo perdido
para vós. Confiaveis na bella promessa do sultão ; de na-
da serve » . Aladdin, assustado com estas palavras : « Mi-
nha rica mai , replicou , por que razão não cumpriria a
sua promessa para commigo ? como vos consta isso ?
Esta tarde, replicou a mãi , o filho do grão -visir casa com
a princeza Badroulboudour no palacio » . Contou -lhe de
que modo acabava de sabel - o , com tantas circumstan-
cias que não pôde deixar de o acreditar.
Com esta nova ficou immovel Aladdin , como se fos-
se ferido de um raio . Outro qualquer, que não fosse elle ,
teria succumbido ; porém um ciume occulto o impediu de
ficar muito tempo n'este estado . No mesmo instante lem-
brou- se da lampada que lhe fôra até então tão proveito-
sa, e sem arrebatamento algum em vãs palavras contra
o sultão, contra o grão-visir ou contra o filho d'este mi-
nistro, disse sómente : « Minha rica mãi , o filho do grão-
visir não será talvez esta noite tão feliz como espera.
Em quanto vou ao meu quarto por um instante, prepa-
rai-nos a céa » .

FIM DO TOMO TERCEIRO


INDICE

Historia de Noureddin e da bella persiana ... PAG.


Historia de Beder, principe da Persia , e de Giauhare, 5
មិន

princeza do reino de Samandal……….


Historia de Ganem, filho de Abou Aibou, o escravo de 59
amor...
Historia do principe Zeyn Alasnam e do rei dos ge- 133
nios .......
Historia de Codadad e de seus irmãos .. 181
Historia da princeza de Deryabar ... 201
Historia de Abou Hassan , o dormente acordado .. 211
Historia de Aladdin ou a lampada maravilhosa .. 234
323
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CONTOS ARABES

CONTINUAÇÃO DA HISTORIA DE ALADDIN, OU A


LAMPADA MARAVILHOSA

A mãi de Aladdin bem percebeu que seu filho que-


ria fazer uso da lampada para impedir, se possivel fos-
se, que o casamento do filho do grão- visir chegasse ao
ponto de consummar-se, e não se enganava . Com effei-
to, quando Aladdin foi ao seu quarto, pegou na lampada
maravilhosa que lá tinha levado, tirando-a da vista de
sua mãi, depois que a apparição do genio lhe causára
um tão grande medo . Pegou, digo, na lampada, e a es-
fregou na mesma parte que as outras vezes . Appareceu
logo o genio perante elle : Que queres ? disse a Aladdin ;
eis-me aqui prompto a obedecer-te como teu escravo, e
de todos os que teem a lampada na mão, eu e os outros
escravos da lampada . « Ouve, disse-lhe Aladdin , tu me
trouxeste até agora com que sustentar-me, quando pre-
cisei . Trata- se agora d'um negocio de importancia mui
diversa. Mandei pedir em casamento ao sultão a prince-
6 AS MIL E UMA NOITES

za Badroulboudour, sua filha. Prometteu-m'a, e deu-me


um termo de tres mezes. Em vez de cumprir a sua pro-
messa, esta tarde, antes de expirar o termo, casa-a com

o filho do grão-visir : acabo de sabel-o, e a cousa é cer-


ta. O que te peço, é que, logo que o noivo, e a noiva
se tiverem deitado, os arrebates, e os tragas aqui a am-
bos no seu leito . - Meu amo, replicou o genio, vou
obedecer-te; tens outra cousa que ordenar-me ? - Nada
CONTOS ARABES 7

mais, presentemente », replicou Aladdin. Desappareceu


ao mesmo tempo o genio.
Voltou Aladdin do seu quarto ; ceou com sua mãi ,
com o mesmo socego que d'antes. Depois da cea entre-
teve-se com ella algum tempo ácerca do casamento da
princeza, como d'uma cousa que não o embaraçava já .
Voltou para o seu quarto, e deixou sua mãi em liberda-
de de deitar-se. Elle não quiz deitar-se ; esperou a volta
do genio, e a execução da ordem que lhe déra .
N'este intervallo, tudo se preparára com muita ma-
gnificencia no palacio do sultão para a celebração das
nupcias da princeza , e passou- se o tempo em ceremonias
e regosijos até alta noite. Acabado tudo, o filho do grão-
visir, pelo aceno que lhe fez o chefe dos eunucos , reti-
rou-se, e este official o introduziu em casa da princeza
sua esposa e o conduziu até ao quarto em que estava
armado o leito nupcial. Deitou-se primeiro. Passado pou-
co tempo, a sultana, acompanhada de suas mulheres e
das da princeza sua filha, trouxe a noiva. Fazia grandes
resistencias, conforme o costume das noivas. A sultana
a ajudou a despir-se, metteu - a na cama quasi por for-
ça, e depois de a ter abraçado, desejando -lhe que passas-
se bem a noite, retirou-se com todas as mulheres , e a
ultima que sahiu fechou a porta do quarto.
Fechada a porta do quarto, o genio, como escravo
fiel da lampada, e exacto a executar as ordens dos que
a tem na mão, sem dar tempo ao esposo de fazer o
menor carinho á sua esposa, arrebata o leito com o es-
poso e a esposa, com grande pasmo de ambos, e n'um
instante o leva ao quarto de Aladdin, onde o colloca .
Aladdin, que esperava este instante com impacien-
cia, não consentiu que o filho do grão -visir ficasse dei-
tado com a princeza . « Péga n'este noivo , disse ao genio ,
fecha-o no retrete e volta amanhã , depois de raiar o dia» .
Arrebatou logo o genio o filho do grão-visir fóra da ca-
ma, em camisa, e o levou ao lugar que Aladdin lhe in-
dicára, onde o deixou , depois de ter-lhe dado um sopro,
que elle sentiu desde a cabeça até aos pés , e que o im-
pediu de bulir do seu lugar.
Por maior que fosse a paixão de Aladdin para com a
8 AS MIL E UMA NOITES

princeza Badroulboudour, não lhe fallou todavia largo


tempo, quando se viu só com ella. « Não receeis cousa
alguma, adoravel princeza, disse -lhe com ar todo apai-
xonado, estaes aqui segura, e por mais violento que se-
ja o amor que sinto pela vossa belleza , pelos vossos en-
cantos, nunca me fará sahir dos limites do profundo res-
peito que vos devo . Se me vi forçado a chegar a este
extremo, não foi com a mira de offender-vos, mas para
impedir, que um rival injusto vos possuisse, contra pa-
lavra dada pelo sultão vosso pai a meu favor ».
A princeza, que nada sabia d'estas particularidades,
deu mui pouca attenção a tudo o que Aladdin lhe pôde
dizer. Não estava de modo algum em estado de respon-
der-lhe. O susto, e o pasmo em que estava, d'uma aven-
tura tão extraordinaria, e tão pouco esperada, a deixa-
ram em tal estado, que Aladdin não pôde obter d'ella
palavra. Não parou ainda Aladdin ; tomou o partido de
despir-se, e deitou-se no lugar do filho do grão-visir,
com as costas viradas para a princeza, depois de ter ti-
do a precaução de pôr um alfange entre a princeza e el-
le, para mostrar que merecia ser castigado com elle se
a violentasse na sua honra.
Aladdin, contente de ter assim privado o seu rival
da felicidade de que se lisonjeára de gozar esta noite,
dormiu com bastante socego . Não succedeu assim á prin-
ceza Badroulboudour ; nunca na sua vida lhe acontecera
passar uma noite tão lastimosa e tão desagradavel como
esta ; e se se quizer reflectir no lugar e no estado em que
o genio deixára o filho do grão-visir, julgar- se-ha que
este novo esposo a passou de um modo muito mais des-
agradavel.
No dia seguinte não teve Aladdin precisão de esfre-
gar a lampada para chamar o genio. Voltou á hora apra-
zada, e ao tempo que acabava de vestir-se : Aqui estou,
disse a Aladdin , que tens que ordenar-me ? —Vai bus-
car, disse-lhe Aladdin , o filho do grão-visir aonde o dei-
xaste, e leva-o aonde o tomaste no palacio do sultão » .
Foi o genio buscar o filho do grão-visir , e Aladdin pegou
no seu alfange, quando appareceu de novo o genio. Pôz
o novo esposo ao lado da princeza, e n'um instante le-
CONTOS ARABES 9

vou o leito nupcial ao mesmo quarto do palacio do sul-


tão, d'onde o trouxera .
Importa observar, que n'isto tudo não foi o genio
visto nem da princeza, nem do filho do grão-visir, teria
sido a sua figura horrenda capaz de fazel- os morrer de
susto. Nada ouviram do que diziam Aladdin e elle : só
se perceberam do abalo do leito, e do seu arrebatamen-
to d'um para outro lugar, e bastava isto para causar-lhes
o susto que é facil imaginar.
Acabava o genio de pôr o leito nupcial no seu lugar,
quando o sultão, curioso de saber como a princeza sua
filha passára a primeira noite de suas nupcias , entrou
no quarto para dar-lhe os bons dias . O filho do grão-vi-
sir, traspassado do frio que padecera toda a noite e não
tendo ainda tempo de aquentar -se, tão depressa ouviu que
se abria a porta, logo se levantou , e passou para um ga-
binete, onde se despira na vespera á noite .
Chegou-se o sultão ao leito da princeza, beijou-a en-
tre os olhos, conforme o costume, dando-lhe os bons
dias, e perguntou-lhe, sorrindo- se, como se achava da
noite passada ; porém erguendo a cabeça, e examinando-a
com mais attenção, ficou em extremo admirado de vêl-a
mui melancolica, e não lhe dando a conhecer, nem pe-
la vermelhidão que deveria subir-lhe á cara, nem por ou-
tro indicio algum, o que podia satisfazer a sua curiosida-
de . Lançou-lhe sómente uma vista de olhos das mais
tristes , d'um modo que denotava uma grande afflicção
ou um grande descontentamento. Disse-lhe então algu-
mas palavras ; mas como visse que ella não respondia
cousa alguma, imaginou que se portava assim por pejo ,
e retirou -se. Não deixou todavia de suspeitar que havia
alguma cousa extraordinaria no seu silencio, o que o
obrigou a ir logo ao quarto da sultana, a quem fez a re-
lação do estado em que achára a princeza, e da rece-
pção que lhe fizera . « Senhor, disse-lhe a sultana , isto
não deve causar admiração a vossa magestade : não ha
noiva alguma que não tenha a mesma discrição no dia
que se segue ás suas nupcias ; não succederá assim d'a-
qui a dous ou tres dias, então receberá o sultão seu pai
10 AS MIL E UMA NOITES

como deve . Eu vou vêl-a, acrescentou, e engano-me


muito se me faz o mesmo acolhimento » .
Tendo-se vestido foi ter ao quarto da princeza, que
não estava ainda levantada : chegou-se ao seu leito e deu-
lhe os bons dias, abraçando-a ; porém foi ainda maior
o seu pasmo, não só de não responder-lhe cousa alguma,
mas tambem de perceber, examinando -a , que estava
mui abatida, o que lhe fez julgar que lhe tinha aconte-
cido alguma cousa que não percebia . « Filha , disse-lhe a
sultana, d'onde procede que correspondeis tão mal aos
carinhos que vos faço ? Com vossa mãi é que deveis fa-
zer todas essas ceremonias ? E duvidaes que não seja sa-
bedora do que póde acontecer em circumstancia seme-
lhante á em que vos achaes ? Quero crêr que não tendes
esse pensamento ; deve pois ter- vos acontecido alguma
outra cousa ; confessai -m'o francamente , e não me deixeis
mais tempo n'um desassocego que me dá cuidado » .
Rompeu finalmente a princeza Badroulboudour o si-
lencio, dando um grande suspiro : « Ah, senhora e hon-
radissima mãi ! clamou ella ; perdoai-me se faltei ao res-
peito que vos devo . Tenho o espirito tão occupado das
cousas extraordinarias que me aconteceram esta noite ,
que não tornei ainda a mim do meu pasmo nem dos
meus sustos, e não posso quasi reconhecer-me a mim
mesmo ». Contou-lhe então , com as mais vivas côres , de
que modo, um instante depois que ella e seu esposo se
tinham deitado, fôra o leito arrebatado e levado n'um
instante para um quarto pouco aceado e escuro, onde se
vira sósinha, e separada de seu esposo, sem saber o que
era feito d'elle, e onde vira um mancebo, que depois
de ter-lhe dito algumas palavras, que o susto lhe impe-
dira de ouvir, se deitára com ella no lugar do seu espo-
so, depois de ter posto o seu alfange entre um e outro ;
e que pela manhã lhe fôra o seu esposo restituido , e tra-
zido ao seu lugar o leito em muito pouco tempo . « < Aca-
bava tudo isto de concluir-se, acrescentou ella , quando
o sultão meu pai entrou no meu quarto : estava tão oppri-
mida da tristeza, que não tive força para responder-lhe
uma unica palavra ; assim não duvido que esteja indi-
CONTOS ARABES 11

gnado do modo com que recebi a honra que me fez ;


mas espero que me perdoará quando souber a minha tris-
te aventura, e o estado lastimoso em que me acho ain-
da n'este instante » .
Ouviu a sultana com muito socego tudo o que a prince-
za acabava de contar-lhe, porém não quiz dar-lhe credito :
<< Filha, disse-lhe, fizestes bem não fallando d'isso ao sul-
tão vosso pai . Tomai bem sentido de não dizer nada a
ninguem ; tomar-vos-hiam por uma louca se vos ouvis-
sem fallar. - Senhora, replicou a princeza, posso asse-
gurar-vos que vos fallo com todo o meu bom senso ; pó-
de meu esposo informar-vos d'isso, dir-vos-ha a mesma
cousa. Informar-me-hei , replicou a sultana, porém ain-
da que me dissesse o mesmo que me dizeis , não ficaria
mais persuadida d'isso ; levantai-vos todavia e tirai es-
sa imaginação do espirito ; seria cousa singular que per-
turbasseis com semelhante visão as festas ordenadas para
as vossas nupcias, e que devem continuar-se alguns dias
n'este palacio, e em todo o reino. Não ouvis os concer-
tos de trombetas, de clarins, de timbales e de tambores ?
tudo isto deve inspirar-vos alegria e prazer, e fazer-vos
esquecer de todas as phantasias de que acabaes de fal-
lar-me » . Ao mesmo tempo a sultana chamou as mulhe-
res da princeza e depois de a ter feito levantar e deixa-
do no seu toucador, foi ter ao quarto do sultão ; disse-
lhe que na verdade tivera sua filha algumas phantasias ,
mas que isto não era nada . Mandou chamar o filho do vi-
sir para d'elle saber alguma cousa do que a princeza lhe
dissera ; porém o filho do visir, que se jactava infinita-
mente da alliança do sultão , tomára o partido de dissi-
mular. « Meu querido genro, disse- lhe a sultana, dizei-
me, estaes tambem na mesma teima que vossa esposa ?
-Senhora, replicou o filho do visir, ousaria eu pergun-
tar-vos por que motivo me fazeis essa pergunta ? -Bas-
ta isto, replicou a sultana, sois mais prudente do que ella.
Continuaram os regosijos todo o dia no palacio, e a
sultana, que não largou a princeza, nada esqueceu para
fazer-lhe tomar parte nos divertimentos que lhe davam
com diversos generos de espectaculos ; mas estava de
tal sorte tomada das idéas do que lhe acontecêra de noi-
121

AS
MIL
E
UMA

NOITES
te, que era facil vêr que estava inteiramente occupada
d'isto . O filho do grão- visir não estava menos molesta-
do da má noite que passára ; porém a sua ambição o fez
dissimular ; e ao vel-o, ninguem duvidou que não fosse
um esposo ditosissimo.
Aladdin , que estava bem informado do que se passa-
va no palacio , não duvidou que os novos casados deves-
sem ainda dormir juntos, apesar da funesta aventura que
lhes acontecera na noite antecedente . Não queria Aladdin
dar-lhes descanço ; assim, estando já a noite um pouco
adiantada, recorreu á lampada . Appareceu logo o genio,
e fez a Aladdin o mesmo comprimento que das outras
vezes, offerecendo-lhe seu serviço . « O filho do grão-vi-
sir e a princeza Badroulboudour, disse-lhe Aladdin , de-
vem ainda dormir juntos esta noite ; vai, e logo que se
deitarem, traze-me o leito aqui , como hontem ».
Serviu o genio a Aladdin com tanta fidelidade e exa-
ctidão como no dia precedente . O filho do grão-visir pas-
sou a noite tão traspassado de frio, e tão desagradavel-
mente como a antecedente, e teve a princeza o mesmo
desgosto de ter Aladdin por companheiro na cama, com
o alfange posto entre elle e ella . O genio, seguindo
as ordens de Aladdin, voltou no dia seguinte, repûz o es-
poso ao lado da esposa, levou a cama com os novos ca-
sados, e a pôz no mesmo quarto do palacio onde a to-
mára.
O sultão , á vista da recepção que lhe fizera a prin-
ceza Badrouĺboudour no dia precedente, impaciente de
saber como teria passado a segunda noite, e se lhe fa-
ria um acolhimento igual ao que lhe fizera já , foi ter ao
seu quarto pela manhã muito cedo, para certificar - se d'is-
so. O filho do grão - visir , mais vergonhoso e mais des-
gostoso do mau successo d'esta ultima noite que da pri-
meira, apenas ouviu chegar o sultão, logo se levantou
precipitadamente, e foi metter-se no gabinete visinho .
Chegou-se o sultão ao leito da princeza , dando-lhe
os bons dias ; e, depois de ter-lhe feito os mesmos cari-
nhos que no dia precedente : « Então , filha ! disse-lhe ;
estaes hoje de tão mau humor como hontem ? Dir-me-heis
como passastes a noite ? » Guardou a princeza o mesmo si-
333
CONTOS ARABES 13

lencio ; e o sultão percebeu que tinha o espirito muito


menos socegado, e que estava mais abatida que a pri-
meira vez. Capacitou-se que lhe tinha acontecido algu-
ma cousa extraordinaria ; escandalisado então do myste-
rio que d'isso lhe fazia : « Filha, disse-lhe enfadado , e com
o alfange na mão, ou me dizeis o que me occultaes, ou
vou cortar-vos a cabeça sem demora » .
A princeza, mais assustada do tom e da ameaça do
sultão offendido do que da vista do alfange nú, rompeu
finalmente o silencio : « Meu querido pai e sultão, clamou
ella com as lagrimas nos olhos , peço perdão a vossa ma-
gestade se o offendi ; espero da sua bondade e clemen-
cia, que fará succeder a compaixão á cólera, quando lhe
tiver feito a narração do triste e lastimoso estado em
que me achei toda esta noite e a noite passada » .
Á vista d'este preambulo , que socegou e enterneceu
um pouco o sultão, contou -lhe fielmente tudo o que lhe
acontecêra n'estas duas noites desagradaveis , porém de
um modo tão pathetico que elle ficou muito sentido em
razão do amor e da ternura que lhe tinha . Acabou com
estas palavras : « Se vossa magestade tem a menor duvi-
da sobre a narração que acabo de fazer-lhe , póde infor-
mar-se do esposo que me deu ; bem persuadida estou
que dará á verdade o mesmo testemunho que eu lhe
do u ».
Tomou deveras o sultão parte na pena extrema que
devia uma aventura tão extraordinaria ter causado á prin-
ceza : <« Filha, disse- lhe , fizestes mal não vos ter explica-
do commigo hontem mesmo ácerca de um negocio tão es-
tranho como o que acabaes de noticiar-me, no qual me
interesso tanto como vós . Não vos casei com intenção
de fazer a vossa infelicidade, mas antes com a mira de
tornar-vos feliz e contente , e de fazer-vos gozar de toda
a felicidade que mereceis, e que podieis esperar com um
esposo que me pareceu convir-vos . Riscai da vossa lem-
brança as idéas funestas de tudo o que acabaes de con-
tar-me : vou dar ordem para que não vos aconteça mais
passar noites tão desagradaveis, e tão pouco supporta-
veis como as que passastes » .
Apenas entrou o sultão no seu quarto, logo mandou
14 AS MIL E UMA NOITES

chamar o seu grão -visir : « Visir, disse-lhe, vistes vosso


filho e não vos disse nada ? » Como o grão-visir lhe respon-
desse que não o vira, o sultão lhe fez a narração de tu-
do o que a princeza Badroulboudour acabava de contar-
lhe . Acabando : « Não duvido , acrescentou elle , que mi-
nha filha me dissesse a verdade ; desejaria todavia ter a
confirmação d'isso da bocca de vosso filho : ide, e per-
guntai-lhe o que ha a este respeito >>.
Não se demorou o grão-visir em ir ter com seu filho :
deu-lhe parte do que o sultão acabava de communicar-lhe,
e ordenou-lhe que não encobrisse a verdade e lhe disses-
se se tudo isto tinha acontecido. « Não vol-a encobrirei,
meu pai, respondeu-lhe o filho ; tudo o que a princeza disse
ao sultão é verdade, mas não pôde dizer-lhe os maus tra-
tamentos que me foram feitos a mim em particular . Eil-os
aqui : desde o meu casamento passei duas noites as
mais crueis que se possa imaginar, e não tenho expres-
sões para descrever-vos exactamente, e com todas as cir-
cumstancias , os males que padeci . Não vos fallo do sus-
to que tive, sentindo- me arrebatar quatro vezes no meu
leito, sem vêr quem o arrebatava e o transportava de um
para outro lugar, e sem poder imaginar como pôde isto
succeder. Julgareis vós mesmo do estado lastimoso em
que me achei, quando vos disser que passei duas noites
em pé, e nú em camisa n'uma especie de retrete estreito,
sem ter a liberdade de mover-me do lugar onde fui pos-
to, e sem poder fazer movimento algum, ainda que não
apparecesse diante de mim nenhum obstaculo que pudes-
se na apparencia impedir-me. Depois d'isto, não ha preci-
são de estender-me mais para relatar-vos circumstanciada-
mente os meus trabalhos ; não vos occultarei que isto
não me impediu de ter para com a princeza minha espo
sa todos os sentimentos de amor e de reconhecimento ;
mas confesso-vos de boa fé que da honra, e do resplen-
dor que reflecte sobre mim, por ter casado com a filha do
meu soberano, estimaria mais morrer do que viver
mais largo tempo n'uma tão alta alliança, se é preciso
supportar tratamentos tão desagradaveis como os que
já padeci . Não duvido que a princeza esteja nos mes-
mos sentimentos que eu ; e ella convirá facilmente que
CONTOS ARABES
15
a nossa separação não é menos necessaria para o seu,
do que para o meu descanço : assim, pai, supplico- vos
pela mesma ternura que vos induziu a procurar - me tão
grande honra , que alcanceis o consentimento do sultão
para que seja o nosso casamento declarado nullo » .
Por maior que fosse a ambição do grão-visir de vêr
seu filho genro do sultão , a firme resolução todavia em
que o via de separar-se da princeza , fez que não julgas-
se a proposito propôr -lhe ter paciencia , ao menos alguns
dias, para ensaiar se este obstaculo não acabaria de op-
pôr-se . Deixou -o , e veio dar resposta ao sultão , a quem
confessou de boa fé que a cousa era mais que verdade,
visto o que acabava de saber de seu filho . Sem esperar
que o sultão lhe fallasse de annullar o casamento , ao
que bem via que estava inteiramente disposto, suppli-
cou-lhe permittisse que seu filho se retirasse do palacio
e que voltasse para sua casa, tomando por pretexto que
não era justo que a princeza ficasse exposta um instante
mais a uma perseguição tão terrivel por amor de seu
filho.
Não achou o grão- visir difficuldade alguma de alcan-
çar o que pedia : desde este instante o sultão , que já ti-
nha resolvido o caso, deu suas ordens para fazer cessar
os regosijos no seu palacio e na cidade , e até em toda
a extensão do seu reino, para onde mandou expedir or-
dens contrarias ás primeiras ; e em muito pouco tempo
todas as demonstrações de alegria e de regosijos publi-
cos cessaram em toda a cidade e no reino.
Esta mudança repentina e tão pouco esperada , deu
occasião a muitos pensamentos diversos ; pergunta-
vam-se uns aos outros d'onde podia proceder este con-
tratempo, e não diziam outra cousa senão que viram o
grão -visir sahir do palacio, e retirar-se para sua casa
acompanhado de seu filho, tanto um como o outro com
o semblante mui triste . Só Aladdin sabia o segredo , e
se alegrava comsigo mesmo do feliz successo que o uso
da lampada lhe procurava . Assim, como soubesse com
certeza que o seu rival se ausentára do palacio e que o
seu casamento com a princeza estava absolutamente an-
nullado, não precisou de esfregar mais a lampada e de
16 AS MIL E UMA NOITES

chamar o genio para impedir que não se consummas-


se. O que ha de mais singular, é que nem o sultão,
nem o grão-visir, que se tinham esquecido de Aladdin e
da sua pretensão, tiveram o menor pensamento, de que
pudesse ter parte no encantamento que acabava de cau-
sar a dissolução do casamento da princeza . Aladdin to-
davia deixou correr os tres mezes que o sultão assigna-
lára para o casamento da princeza Badroulboudour com
elle : tinha contado todos os dias com grande cuidado ;
e passados que foram, logo no dia seguinte não faltou
em mandar sua mãi ao palacio para fazer lembrar ao
sultão a sua palavra.
Foi a mai de Aladdin ao palacio como seu filho dis-
sera, e apresentou-se à entrada do Divan, no mesmo
lugar que d'antes. Apenas o sultão a avistou, logo a
reconheceu, e se lembrou ao mesmo tempo da preten-
são que lhe requerera e do tempo que lhe déra. Fazia-
lhe então o grão -visir o relatorio de um negocio : « Vi-
sir, disse o sultão interrompendo-o , vejo a mulher que
nos fez o bello presente ha mezes ; mandai -a vir, conti-
nuareis vosso relatorio depois de a ter ouvido . O grão-
visir, lançando os olhos para a parte da entrada do Di-
van, avistou logo a mãi de Aladdin ; chamou o chefe
dos porteiros, e mostrando-lh'a, deu-lhe ordem de man-
dal-a chegar.
Chegou-se a mãi de Aladdin até ao pé do throno,
onde se prostrou, conforme o costume . Tendo-se levan-
tado, perguntou-lhe o sultão o que desejava. « Senhor,
respondeu-lhe, apresento-me ainda ante o throno de vos-
sa magestade, para representar-lhe em nome de Aladdin,
meu filho, que os tres mezes de espera já se passaram,
ácerca da resposta que prometteu dar-me do requeri-
mento que tive a honra de fazer-lhe, e venho supplicar
queira lembrar-se d'elle ».
O sultão, tomando uma dilação de tres mezes para
responder á pretensão d'esta boa mulher a primeira vez
que a vira, cuidou que não ouviria mais fallar de um
casamento, que considerava como pouco conveniente á
princeza sua filha , reflectindo só na baixeza e pobreza
da mãi de Aladdin, que apparecia ante elle com um ves-
CONTOS ARABES 17

tido commum. A intimação, todavia, que acabava de fa-


zer-lhe, de cumprir a sua palavra, lhe pareceu embara-
çosa ; não julgou a proposito responder logo : consultou
o seu visir, e lhe manifestou a repugnancia que tinha
em concluir o casamento da princeza com um desconhe-
cido , cuja fortuna suppunha ser inferior a mediocre.
Não hesitou o grão-visir em explicar-se com o sul-
tão ácerca do que pensava : « Senhor, disse-lhe , pare-
ce-me que ha um meio infallivel de illudir um casamen-
to tão desproporcionado, sem que Aladdin , ainda que
fosse conhecido de vossa magestade, possa queixar-se ;
é pôr a princeza em tão alto preço, que suas riquezas,
por maiores que sejam, não sejam sufficientes. Será
este o meio de fazel- o desistir de pretensão tão temera-
ria, na qual sem duvida não fez madura reflexão antes
de se empenhar n'ella » .
Approvou o sultão o conselho do grão-visir ; voltou-
se para a mãi de Aladdin, e passados alguns instantes
de reflexão : «< Boa mulher, disse -lhe, os sultões devem
cumprir a sua palavra ; estou prompto a cumprir a mi-
nha, e fazer a felicidade de vosso filho com o casamen-
to da princeza minha filha ; porém como não posso ca-
sal-a sem saber a vantagem que ella achará no contra-
cto, direis a vosso filho que cumprirei a minha palavra
logo que me tiver mandado quarenta grandes bacias
d'ouro maciço, cheias de joias semelhantes ás que já
me apresentastes da sua parte, trazidas por igual nu-
mero de escravos pretos , que serão conduzidos por ou-
tros quarenta escravos brancos, moços, bem feitos e de
bom talhe , e todos vestidos com grande magnificencia ;
estas as condições com que quero dar-lhe a princeza
minha filha. Ide-vos , boa mulher, esperarei a sua res-
posta » .
Prostrou-se de novo a mãi de Aladdin ante o throno
do sultão e retirou-se . No caminho ria-se da louca ima-
ginação de seu filho : « Na verdade , dizia ella , aonde
achará tantas bacias de ouro e tão grande quantidade
d'esses vidros córados para enchel-as ? Tornará ao sub-
terraneo, cuja entrada está fechada, para colhêl- os nas
arvores ? e todos esses escravos taes como o sultão os
TOMO IV. 2
18 AS MIL E UMA NOITES

requer, onde os irá buscar ? eil-o-ahi bem desenganado


da sua pretensão ; e parece-me que não ficará muito
gostoso da minha embaixada » . Chegada a casa, cheio o
espirito de todos estes pensamentos , que lhe faziam
crer que Aladdin não tinha já que esperar : « Filho, dis-
se-lhe, aconselho-vos a não pensar mais no casamento
da princeza Badroulboudour. O sultão , na verdade, re-
cebeu-me com muita bondade, e creio que estava bem
intencionado para comvosco ; mas o grão- visir, se não
me engano, o fez mudar de parecer ; e podeis presu-
mil-o como eu, á vista do que vou relatar-vos . Depois
de ter representado a sua magestade , que já se tinham
passado os tres mezes, e que lhe rogava da vossa par-
te se lembrasse da sua promessa, observei que não me
deu a resposta que vou dizer-vos, senão depois de ter
fallado em voz baixa algum tempo com o grão-visir.
Fez a mãi de Aladdin uma relação exactissima de tudo
o que o sultão lhe dissera , e das condições com que
consentiria no casamento da princeza sua filha com el-
le. E acabando : « Filho, disse-lhe, o sultão espera a vossa
resposta ; porém aqui ninguem nos ouve, continuou sor-
rindo-se, creio que esperará largo tempo . -- Não tanto
tempo como vos parece , minha rica mãi, replicou Alad-
din ; e o sultão está enganado, se cuida, com suas pre-
tensões exorbitantes , impossibilitar-me de pensar na
princeza Badroulboudour. Esperava por outras difficulda-
des insuperaveis, ou que puzesse a minha incomparavel
princeza a preço muito mais alto ; porém agora fico sa-
tisfeito, e o que me pede é mui pouca cousa em com-
paração do que poderia dar-lhe para conseguir a posse
d'ella. Em quanto vou cuidar em satisfazel-o, ide bus-
car-nos de jantar e deixai o mais por minha conta ».
Apenas sahiu a mãi de Aladdin para ir buscar as pro-
visões , pegou Aladdin na lampada e esfregou-a ; ao mes-
mo tempo apresentou-se-lhe o mesmo genio, e nos mes-
mos termos que temos já referido, perguntou-lhe o que
tinha que communicar-lhe , manifestando-lhe que estava
prompto a servil-o . Disse-lhe Aladdin : « O sultão me dá
a princeza sua filha em casamento, mas pede-me primei-
ro quarenta grandes bacias d'ouro maciço, cheias das
CONTOS ARABES 19

frutas do jardim , onde tomei a lampada de que tu és es-


cravo. Exige tambem de mim que essas quarenta bacias
sejam levadas por outros tantos escravos pretos , prece-
didos de quarenta escravos brancos, moços, bem feitos,

de bello talhe e vestidos ricamente : vai-te, e traze-me


esse presente com toda a brevidade, para que o mande
ao sultão, antes que acabe a sessão do Divan ». Disse-
lhe o genio que a sua ordem seria executada immediata-
mente, e desappareceu.
Passado muito pouco tempo tornou o genio a appa-
20 AS MIL E UMA NOITES

recer, acompanhado dos quarenta escravos pretos, cada


um carregado de uma bacia d'ouro maciço , do peso de
vinte marcos, sobre a cabeça, cheias de perolas, de dia-
mantes, de rubins e de esmeraldas mais bem escolhidas,
tanto pela belleza como pelo tamanho, que as que já ti-
nham sido apresentadas ao sultão ; vinha cada bacia co-
berta de um pano de prata com flôres d'ouro. Todos estes
escravos, tanto pretos como brancos, com os pratos d'ou-
ro, occupavam quasi toda a casa, que era assás pequena,
com um pequeno pateo na parte dianteira, e um peque-
no jardim na parte posterior. Perguntou o genio a Alad-
din se estava contente, e se tinha ainda alguma outra
ordem que dar-lhe . Disse-lhe Aladdin que não lhe pedia
mais cousa alguma, e desappareceu logo .
Voltou a mãi de Aladdin da praça, e entrando em
casa ficou pasmada de vêr tanta gente e tanta riqueza .
Largando as provisões que trazia, quiz tirar o véo que
The cobria o rosto, mas Aladdin a impediu : « Minha rica
mãi , disse elle , não ha tempo que perder ; antes que o
sultão acabe o Divan, importa que volteis ao palacio e
que leveis já o presente e o dote da princeza Badroul-
boudour, que me pediu , para que julgue, pela minha di-
ligencia e exactidão, do zelo ardente e sincero, que te-
nho de alcançar a honra de entrar na sua alliança ».
Sem esperar a resposta de sua mãi , abriu Aladdin a
porta da rua e mandou desfilar successivamente todos
aquelles escravos, fazendo sempre marchar um escravo
branco seguido de um escravo preto, carregado de uma
bacia d'ouro sobre a cabeça, e assim até ao ultimo ; e
depois de ter sahido sua mãi , seguindo o ultimo escra-
vo, fechou a porta e ficou socegadamente no seu quar-
to, com a esperança que o sultão, á vista d'este presen-
te, tal qual o pedira, quereria de boa vontade recebel-o
finalmente por seu genro .
O primeiro escravo branco que sahira da casa de
Aladdin, fizera parar todos os que passavam e que o vi-
ram ; e antes que os oitenta escravos, entremeados de
brancos e de pretos, tivessem acabado de sahir, achou-
se a rua cheia de uma grande multidão de povo, que
concorria de todas as partes para ver um espectaculo tão
CONTOS ARABES 21

magnifico e tão extraordinario . O vestido de cada escra-


vo era tão rico em estofo e em pedrarias, que os me-
lhores conhecedores não crêram enganar-se avaliando
cada vestido em mais de um milhão . O grande aceio, o
ornato bem entendido, a graça, o bello ar, o talhe uni-
forme e vantajoso de cada escravo , a sua marcha grave
em distancia igual uns dos outros , com o brilho das pe-
drarias de uma grandeza excessiva, engastadas á roda
de suas cintas d'ouro maciço, n'uma bella symetria, e
as plumas tambem de pedrarias sobre os seus barretes ,
que eram de um gosto particular, causaram a toda a
multidão tão grande admiração , que não podiam can-
çar-se de vêr e de acompanhar com os olhos tudo isto
o mais longe que lhes foi possivel. As ruas estavam tão
cheias de povo, que cada um estava constrangido a ficar
no lugar em que se achava.
Como fosse preciso passar por algumas ruas para
chegar ao palacio, isto fez que uma boa parte da cida-
de, pessoas de todos os estados e condições, fossem tes-
temunhas de uma pompa tão luzida . O primeiro dos oi-
tenta escravos chegou á porta do primeiro pateo do pa-
lacio ; e os porteiros, que se puzeram em fileira logo que
perceberam que esta fila maravilhosa se chegava, o
tomaram por um rei , tão rica e magnificamente vinha
vestido : chegaram-se para beijar-lhe a aba do vestido ,
mas o escravo, informado pelo genio, os deteve , e lhes
disse com gravidade : « Somos escravos, apparecerá nos-
so amo, quando for tempo » .
O primeiro escravo, seguido de todos os outros, che-
gou ao segundo pateo, que era espaçosissimo , e onde
estara a tropa e os criados da casa do sultão, emquan-
to durava a sessão do Divan . Os officiaes , á frente de
cada corpo, eram d'uma grande magnificencia, porém fi-
caram deslumbrados com a presença dos oitenta escravos ,
portadores do presente de Aladdin , e que d'elles faziam
elles mesmo parte . Nada porém tão bello nem tão bri-
lhante em toda a casa do sultão, e toda a gala dos se-
nhores de sua côrte que o rodeavam , nada era em com-
paração do que se apresentava então à vista.
Como fosse o sultão avisado da chegada d'estes es-
22 AS MIL E UMA NOITES

cravos , tinha dado as suas ordens para dar-lhes entrada .


Assim, logo que se apresentaram, acharam a entrada do
Divan desembaraçada , e entraram em bella ordem, uma
parte à direita e outra á esquerda . Depois de terem en-
trado e formado um grande meio circulo ante o throno
do sultão , os escravos pretos puzeram cada um a bacia
que traziam sobre o estrado . Prostraram-se todos juntos,
batendo com a testa no tapete . Ao mesmo tempo fize-
ram a mesma cousa os escravos brancos . Levantaram -se
todos, e os pretos, levantando -se tambem, descobriram
as bacias que estavam diante d'elles, e ficaram todos
em pé com as mãos cruzadas sobre o peito, com grande
modestia.
A mãi de Aladdin, que todavia se chegára ao pé do
throno, disse ao sultão , depois de ter-se prostrado : <
« Se-
nhor, Aladdin, meu filho, não ignora que este presente
que manda a vossa magestade seja muito inferior ao que
merece a princeza Badroulboudour ; espera todavia que
Vossa magestade o terá por agradavel, e consentirá em
dar-lhe por esposa a princeza, com tanta confiança, quan-
to procurou conformar-se à condição que quiz impôr-
lhe ».
Não estava o sultão em estado de attender aos com-
primentos da mãi de Aladdin. A primeira vista d'olhos
lançada sobre as quarenta bacias d'ouro , cheias das joias
mais brilhantes e mais preciosas , que jamais se viram no
mundo, e sobre os oitenta escravos, que pareciam ou-
tros tantos reis, tanto pelo seu bello ar como pela rique-
za e magnificencia estupenda dos seus vestidos, o arre-
batára de tal modo, que não podia tornar a si da sua
admiração. Em vez de responder aos comprimentos da
mãi de Aladdin, dirigiu-se ao grão -visir, que não com-
prehendia d'onde podia proceder tão grande profusão de
riquezas : <«< Então, visir, disse publicamente, que vos
parece do pretendente, qualquer que possa ser, que me
manda um presente tão rico e tão extraordinario, e que
nem vós nem eu conhecemos ? Parece-vos indigno de
ser esposo da princeza Badroulboudour, minha filha ?» >
Por maior que fosse o ciume e a afflicção que teve
o grão-visir de vêr que um desconhecido seria o genro
CONTOS ARABES 23

do sultão, de preferencia a seu filho , não se atreveu to-


davia a dissimular o seu parecer. Era visivel que o pre-
sente de Aladdin era mais que sufficiente para merecer
que fosse admittido a tão alta alliança . Respondeu pois
ao sultão , e seguindo o mesmo parecer : « Senhor, disse
elle, bem longe de ter o pensamento que o que faz a
Vossa magestade um presente tão digno d'elle, seja in-
digno da honra que quer fazer-lhe , ousaria dizer que
mais mereceria, se não estivesse persuadido que não ha
thesouro no mundo assás rico para pôr na balança com
a princeza, filha de vossa magestade ». Os senhores da
côrte, que estavam na sessão do conselho , manifestaram
com seus applausos que os seus pareceres não eram di-
versos dos do grão-visir.
Não procurou mais delongas o sultão, nem cuidou
em informar-se se Aladdin possuia as outras prendas
convenientes ao que podia aspirar a ser seu genro. Á vis-
ta de tantas riquezas e magnificencia e da diligencia com
que Aladdin acabava de satisfazer ao que exigira , sem ter
formado a mais leve difficuldade sobre condições tão
exorbitantes como as que lhe impuzera , o persuadiram
facilmente que não lhe faltava nada de tudo o que podia
tornal - o completo, e tal qual o desejava. Assim, para
despedir a mãi de Aladdin com a satisfação que po-
dia desejar, disse-lhe : « Boa mulher, ide dizer a vosso
filho que o espero para recebel -o com os braços abertos,
e que quanto mais depressa vier receber de minha mão
a dávida que lhe faço da princeza minha filha, maior
gosto me dará » .
Apenas se retirou a mãi de Aladdin , com a alegria
que podia ter uma mulher da sua condição , vendo seu
filho chegado a tanta elevação, contra a sua esperan-
ça, logo o sultão deu por concluida a audiencia d'este
dia. Levantando-se do seu throno, ordenou que os eunu-
cos empregados no serviço da princeza, viessem pegar
nas bacias para leval-as ao quarto de sua ama, onde foi
ter para examinal-as com ella, e foi logo executada esta
ordem pelos cuidados do chefe dos eunucos .
Não foram esquecidos os oitenta escravos brancos e
pretos ; mandaram- os entrar no interior do palacio e pas-
24 AS MIL E UMA NOITES

sado algum tempo o sultão, que acabava de fallar de sua


magnificencia á princeza Badroulboudour, ordenou que
os mandassem vir diante do quarto , para que os visse
pelas grades, e que conhecesse que, bem longe de ter
exagerado cousa alguma na relação que acabava de fa-
zer-lhe, lhe dissera muito menos do que era na reali-
dade .
Chegou todavia a sua casa a mãi de Aladdin com
semblante que denotava d'antemão a boa nova que tra-
zia a seu filho : « Filho , disse-lhe, tendes todo o motivo
de ficar contente ; chegastes ao complemento de vossos
desejos contra a minha esperança . Para não vos deixar
muito tempo suspenso , o sultão, com applauso de toda
a sua côrte , declarou que sois digno de possuir a prin-
ceza Badroulboudour : espera-vos para vos dar um abra-
ço, e para concluir o vosso casamento ; deveis cuidar nos
preparativos para essa entrevista, para que corresponda
á alta opinião que concebeu da vossa pessoa ; porém á
vista das maravilhas que sabeis fazer, estou persuadida
que nada faltará . Não devo esquecer-me de dizer- vos
mais, que o sultão vos espera com impaciencia ; assim
não percaes tempo em ir ter com elle » .
Aladdin, alegre com esta nova e todo cheio do ob-
jecto que o encantára, poucas palavras disse a sua mãi ,
e recolheu - se ao seu quarto : alli , depois de ter pegado
na lampada que lhe servira até então em todas as suas
precisões e em tudo o que desejára, apenas a esfregou,
logo o genio continuou a mostrar a sua obediencia, ap-
parecendo logo sem fazer-se esperar. « Genio, disse-lhe
Aladdin, chamei -te porque quero sem demora tomar um
banho ; e depois de o ter tomado quero que me tenhas
prompto um vestido o mais rico e o mais magnifico que
jámais monarcha tenha trazido » . Apenas acabou de fal-
lar, logo o genio, fazendo- o invisivel como elle, pegou
n'elle e o levou a uma tina riquissima. Sem vêr quem o
servia, foi despido n'um salão espaçoso e de grande
aceio do salão o fizeram entrar no banho , que era de
calor moderado e alli foi esfregado e lavado com algu-
mas qualidades de aguas de cheiro. Depois de o ter fei-
to passar por todos os graus de calor, conforme as diver-
CONTOS ARABES 25

sas casas do banho, sahiu d'elle, porém mui differente


do que era quando n'elle entrou : a sua tez se achou
fresca e rosada, e muito mais ligeiro e mais bem dis-
posto o seu corpo. Entrou no salão e não achou já o

vestido que alli deixára : tivera o genio o cuidado de pôr


em seu lugar o que lhe pedira. Ficou mui pasmado Alad-
din vendo a magnificencia do vestido que lhe substitui-
ram : vestiu-se com a ajuda do genio, admirando cada pe-
ça á proporção que n'ella pegava, tão superiores eram
todas a tudo o que pudera imaginar. Depois de ter aca-
26 AS MIL E UMA NOITES

bado, o genio o trouxe para sua casa no mesmo quarto


onde o tomára ; perguntou-lhe então se tinha mais algu-
ma cousa que ordenar-lhe : « Sim, respondeu Aladdin , es-
pero de ti que me tragas com toda a brevidade um ca-
vallo, que exceda em belleza e bondade o cavallo mais
estimado que haja na cavalhariça do sultão, cujo teliz,
sella, freio, n'uma palavra, os jaezes valham mais de
um milhão . Peço tambem que me mandes vir ao mesmo
tempo vinte escravos , vestidos tão rica e elegantemente
como os que levaram o presente, para irem aos meus
lados e no meu sequito , e outros vinte semelhantes para
irem adiante de mim em duas fileiras . Manda vir tam-
bem para minha mãi seis escravas para servil-a, cada
uma vestida tão ricamente como as escravas da princeza
Badroulboudour , e carregadas cada uma de um vestido
completo, tão magnifico e tão pomposo, como para a sul-
tana. Preciso de dez mil peças d'ouro em dez bolsas :
eis-aqui, acrescentou elle, o que tinha que ordenar- te ;
vai e despacha-te » .
Tendo Aladdin acabado de dar as suas ordens ao ge-
nio, desappareceu este e não tardou a apparecer com o
cavallo, com os quarenta escravos , seis dos quaes traziam
cada um uma bolsa de mil peças d'ouro, e com seis es-
cravas que traziam cada uma á cabeça um vestido dif-
ferente para a mãi de Aladdin, coberto com um pano de
prata, e tudo apresentou o genio a Aladdin.
Das dez bolsas , Aladdin não pegou senão em quatro,
que deu a sua mãi, dizendo -lhe que era para servir-se
d'ellas nas suas precisões . Deixou as outras seis nas mãos
dos escravos que as traziam, com ordem de guardal -as
e de distribuil-as ao povo, ás mãos cheias, passando pelas
ruas, na marcha que deviam fazer para ir ao palacio do
sultão. Ordenou tambem que marchassem adiante d'elle
com os outros , tres á direita e tres á esquerda . Apresen-
tou finalmente a sua mãi as escravas dizendo -lhe que
eram suas e que podia servir-se d'ellas como sua ama,
e que os vestidos que traziam eram para seu uso.
Tendo Aladdin disposto todas as suas cousas, disse
ao genio, despedindo- o, que o chamaria quando precisas.
se do seu serviço, e o genio desappareceu logo ; então
CONTOS ARABES 27

não cuidou mais Aladdin n'outra cousa senão em corres-


ponder com toda a brevidade ao desejo que o sultão ma-
nifestára de vel-o . Mandou ao palacio um dos quarenta
escravos, não direi o mais lindo, eram-o todos igualmen-
te, com ordem de dirigir-se ao chefe dos porteiros , e de
perguntar quando poderia ter a honra de ir lançar-se
aos pés do sultão . Não tardou o escravo a desempenhar-
se da sua mensagem . A resposta que trouxe foi que o
sultão o esperava com impaciencia.
Não se demorou Aladdin a montar a cavallo e a pôr-
se em marcha na ordem que dissemos . Ainda que nun-
ca tivesse montado a cavallo, appareceu todavia pela pri-
meira vez com tanta graça, que o cavalleiro mais expe-
rimentado não o teria tomado por um noviço ; as ruas
por onde passou encheram-se quasi n'um momento de
uma innumeravel multidão de povo , que fazia resoar o
ar com acclamações, com gritos de alegria, de admi-
ração e de bençãos , particularmente quando os seis es-
cravos que tinham as bolsas faziam voar punhados de
peças de ouro para a direita e para a esquerda . Estas
acclamações, todavia, não procediam da parte dos que
se empurravam e se abaixavam para apanhar as peças,
mas sim dos que não podiam deixar de dar publicamen-
te á liberalidade de Aladdin os louvores que merecia.
Não só os que se lembravam de o ter visto brincar pe-
las ruas em idade já avançada, como um vadio, não o
reconheciam já, mas até os que não o tinham visto havia
muito tempo, não podiam recordar- se d'elle , tão mu-
dadas tinha as feições. Procedia isto de ter a lampa-
da a propriedade de communicar gradualmente aos que
a possuiam, as perfeições convenientes ao estado a que
chegavam pelo bom uso que d'ella faziam . Davam então
muito mais attenção á pessoa de Aladdin, do que á pom-
pa que o acompanhava, a qual a maior parte tinham já
observado no mesmo dia da marcha dos escravos, que
levaram ou acompanharam o presente. Foi todavia o
cavallo admirado pelos conhecedores, que souberam dis-
tinguir a belleza d'elle , sem deixar-se offuscar nem pe-
la riqueza, nem pelo resplendor dos diamantes e das
outras pedrarias com que estava coberto. Como se es-
28 AS MIL E UMA NOITES

palhára o boato de que o sultão lhe dava a princeza


Badroulboudour em casamento, ninguem, sem fazer re-
paro no seu nascimento, invejou a sua fortuna nem a
sua elevação , tão digno pareceu d'ella.
Chegou Aladdin ao palacio , onde tudo estava dis-
posto para recebel-o ; chegando á segunda porta quiz
apear-se para se conformar ao uso observado pelo grão-
visir, pelos generaes do exercito e pelos governadores
das provincias de primeira ordem ; mas o chefe dos por-
teiros, por ordem do sultão, o impediu e o acompanhou
até perto da sala do conselho , ou da audiencia , onde o
ajudou a apear-se, ainda que Aladdin se oppuzesse a
isto fortemente, e não quizesse consentir ; porém não o
pôde impedir. Estavam todavia os porteiros em duas filei-
ras á entrada da sala : o seu chefe collocou Aladdin á sua
direita e depois de o ter feito passar pelo meio, o con-
duziu até à porta do palacio do sultão .
O sultão, quando avistou a Aladdin , não ficou menos
admirado de vêl-o vestido mais rica e mais magnifica-
mente do que elle mesmo nos dias mais solemnes, do
que pasmado contra o que esperava da sua boa feição,
do seu bello talhe e de um certo ar de grandeza, mui
diverso do estado de baixeza em que sua mãi apparece-
ra diante d'elle . O seu pasmo e a sua admiração , toda-
via, não o impediram de levantar-se e de descer dous
ou tres degraus do seu throno apressadamente, para im-
pedir a Aladdin que se lançasse a seus pés, e para abraçal -o
com todas as demonstrações de amizade. Feita esta cor-
tezia quiz ainda Aladdin lançar-se aos pés do sultão ,
porém este o deteve e o obrigou a subir e a assentar-se
entre o visir e elle .
Fallou então Aladdin : « Senhor, disse elle, recebo
submisso as honras que vossa magestade me faz, porém
permittir-me-ha que lhe diga que não me esqueci que
nasci seu escravo, que conheço a grandeza do seu poder
e que não ignoro quanto inferior é o meu nascimento ao
esplendor e magnificencia da suprema dignidade a que
se acha elevado. Se ha alguma razão, continuou elle ,
pela qual possa ter merecido um acolhimento tão favo-
ravel, confesso que não o devo senão á ousadia que me
CONTOS ARABES 29

deu um puro acaso, de levantar meus olhos, meus pen-


samentos e meus desejos até á divina princeza que faz
o objecto de meus desejos . Peço perdão a vossa mages-
tade da minha temeridade ; mas não posso dissimular
que morreria de desgosto se perdesse a esperança de
ver o complemento d'elles. - Filho, respondeu o sultão
abraçando- o segunda vez ; far-me-hieis injuria se duvi-
dasseis um só instante da sinceridade da minha palavra :
importa-me muito de hoje em diante a vossa vida para
não vol- a conservar, apresentando-vos o remedio que
está á minha disposição . Prefiro o gosto de vêr-vos e de
ouvir-vos, a todos os meus thesouros, juntos com os
VOSSOS » .
. Proferidas estas palavras fez o sultão um signal e
ouviu-se logo repercutir no ar o som das trombetas , dos
oboés e dos timbales , e ao mesmo tempo conduziu o sultão
a Aladdin para um magnifico salão , onde serviram um so-
berbo festim. Comeu o sultão só com Aladdin . O grão -visir
e os senhores da côrte , cada um segundo a sua dignidade
e sua ordem , os acompanharam durante o banquete : o
sultão, que tinha sempre os olhos fitos em Aladdin - tan-
to gosto tinha de vêl-o - fez versar a conversa sobre al-
guns assumptos differentes. Na conversação que tiveram
juntos durante o banquete , e sobre qualquer materia
a que a submettesse, fallou com tanto conhecimento e
sabedoria, que acabou de confirmar o sultão na boa opi-
nião que logo concebera d'elle .
Acabado o banquete mandou o sultão chamar o pri-
meiro juiz da sua capital e lhe ordenou que lavrasse e
puzesse em limpo sem perda de tempo a escriptura de
casamento da princeza Badroulboudour, sua filha, com
Aladdin . N'este intervallo entreteve-se o sultão com
Aladdin de muitas cousas indifferentes, na presença do
grão-visir e dos senhores da sua côrte, que admiraram
a solidez do seu espirito, a grande facilidade que tinha
de fallar e de expressar-se, e os pensamentos agudos e
delicados de que aformoseava o seu discurso .
Tendo o juiz acabado de lavrar a escriptura com to-
das as formalidades, perguntou o sultão a Aladdin se
queria ficar no palacio para concluir as ceremonias do
30 AS MIL E UMA NOITES

casamento no mesmo dia : < « Senhor, respondeu Aladdin,


por mais impaciencia que tenha de gozar plenamente
das bondades de vossa magestade, supplico-lhe que me
permitta que as demore até que tenha mandado cons-
truir um palacio para n'elle receber a princeza, confor-
me o seu merecimento e a sua dignidade . Para este ef-
feito rogo-lhe que me conceda um lugar conveniente no
seu, para que possa mais facilmente cortejal-a . De na-
da me esquecerei para obrar de sorte que fique acabado
com toda a brevidade possivel . - Filho, disse-lhe o sul-
tão , tomai todo o terreno que julgardes a proposito : 0
espaço é muito grande diante do meu palacio, e já tinha
cuidado de enchel -o . Porém lembrai-vos que estou com
grande impaciencia de vêr-vos unido com minha filḥa,
e não posso esperar muito tempo ; quero sem demora
gozar completamente da minha alegria ». Proferidas es-
tas palavras, abraçou ainda a Aladdin, que se despediu
do sultão com a mesma cortezia, como se tivesse sido
educado e tivesse sempre vivido na côrte .
Montou Aladdin a cavallo e voltou para sua casa na
mesma ordem em que viera, pelo meio da mesma mul-
tidão e das acclamações do povo , que lhe desejava todo
o genero de felicidades e prosperidades. Entrado que foi,
recolheu-se ao seu quarto, pegou na lampada e cha-
mou o genio, como costumava . Não se fez esperar o
genio , appareceu e offereceu -lhe seus serviços : « Ge-
nio, disse-lhe Aladdin, tenho todo o motivo de louvar-
me da tua exactidão em executar pontualmente tudo o
que exigi de ti até agora, pelo poder d'esta lampada,
tua ama. Pretende-se hoje, que por amor d'ella faças ap-
parecer, se possivel é , ainda mais zelo e diligencia que
das outras vezes. Peço -te, pois, que com a maior brevi-
dade possivel me mandes edificar defronte do palacio do
sultão, a distancia proporcionada, um palacio digno de
receber n'elle a princeza Badrouĺboudour, minha espo-
sa. Deixo á tua liberdade a escolha dos materiaes , isto
é, do porfido, do jaspe, da agatha e do marmore o mais
fino e o mais variado em côres , e o resto do edificio ;
porém espero que no mais alto d'esse palacio mandes
construir um grande salão com um zimborio de quatro
CONTOS ARABES 31

faces iguaes, cujos assentos não sejam d'outra materia


senão d'ouro e de prata maciça, dispostos alternativamen-
te, com vinte e quatro janellas , seis em cada face, e que

as sacadas de cada janella, á excepção de uma só que


quero que deixem imperfeita, sejam adornadas com ar-
te e symetria, de diamantes, de rubins e de esmeraldas ,
de modo que não se tenha visto cousa igual no mundo .
36
32 AS MIL E UMA NOITES

Quero tambem que esse palacio seja acompanhado de


um ante-pateo, de um pateo e de um jardim ; mas so-
bretudo, que haja n'um lugar, que me dirás, um thesou-
ro de moedas d'ouro e prata. Quero tambem que haja
n'esse palacio cozinhas, officinas, armarios bem guarne-
cidos de moveis preciosos para todas as estações, e pro-
porcionados á magnificencia do palacio ; cavalhariças bem
sortidas dos melhores cavallos , com seus escudeiros e
moços, sem esquecer um trem de caça . Deve tambem
haver cozinheiros e chefes de cozinha, e as escravas ne-
cessarias para o serviço da princeza : deves entender
qual é a minha intenção ; vai , e volta depois de tudo
feito ».
Estava já o sol posto quando Aladdin acabou de en-
carregar ao genio a construcção do palacio que tinha
imaginado . No dia seguinte , ao raiar da aurora, Aladdin ,
a quem o amor da princeza não permittia dormir soce-
gadamente, mal se tinha levantado, logo o genio se lhe
apresentou: « Senhor, disse elle , está o vosso palacio
acabado ; vinde vêr se vos agrada » . Apenas manifestou
Aladdin que queria vêl-o , logo o genio o levou lá n'um
instante. Achou-o tão superior á sua espectativa, que
não podia assás admiral- o : mostrou-lhe o genio tudo, e
por toda a parte não achou senão riquezas , aceio e ma-
gnificencia, com officiaes e escravos, todos vestidos con-
forme a sua ordem e os serviços a que estavam desti-
nados . Não se esqueceu, como uma das cousas princi-
paes, de mostrar-lhe o thesouro, cuja porta abriu o the-
soureiro, e n'elle viu Aladdin montões de bolsas de dif-
ferentes grandezas , segundo as sommas que continham ,
arrimados até à abobada, e dispostos em tal ordem que
agradava á vista . Sahindo, o genio o certificou da fide-
lidade do thesoureiro : levou-o depois ás cavalhariças e
alli lhe mostrou os mais bellos cavallos do mundo, e os
moços cuidadosamente occupados em pensal -os . Fêl -o de-
pois passar por uns armazens cheios de tudo o que era
necessario, tanto para ornato dos cavallos como para o
seu sustento .
Tendo Aladdin examinado todo o palacio , tanto os
altos como os baixos, e particularmente o salão com
CONTOS ARABES 333

vinte e quatro janellas , e achando n'elle riquezas e ma-


gnificencia, com toda a casta de commodos, tudo supe-
rior ao que esperava, disse ao genio : « Genio, ninguem
póde estar mais contente do que eu , e não teria razão
de me queixar. Resta uma unica cousa de que não te
fallei , por ter-me esquecido d'ella ; é estender desde a
porta do palacio do sultão, até à porta do quarto desti-
nado para a princeza n'este palacio, um tapete do mais
bello velludo , para caminhar sobre elle, vindo do pala-
cio do sultão . - Voltarei d'aqui a um instante » , disse o
genio. E como tivesse desapparecido, pouco tempo de-
pois ficou Aladdin pasmado de vêr o que tinha deseja-
do, executado sem saber como isto se fizera. Tornou o
genio a apparecer, e levou Aladdin para sua casa a tem-
po que se abria a porta do palacio do sultão .
Os porteiros do palacio, que acabavam de abrir a
porta e que tiveram sempre a vista desimpedida para a
parte onde estava então o de Aladdin , admiraram -se
muito de vêr um tapete de velludo que se estendia por
este lado até à porta do sultão . Não distinguiram bem
no principio o que era ; mas foi cada vez maior a sua
admiração quando avistaram distinctamente o soberbo
palacio de Aladdin . A nova de uma maravilha tão es-
trondosa divulgou - se por todo o palacio em muito pou-
co tempo . O grão-visir, que chegára quasi ao abrir a
porta do palacio, não se admirára menos d'esta novida-
de do que os outros . Foi o primeiro que deu parte d'is-
so ao sultão ; porém quiz persuadir-lhe que isto succe-
dia por encantamento. « Visir, replicou o sultão, porque
quereis que seja um encantamento ? Sabeis tambem como
eu que é o palacio que Aladdin mandou construir com a
licença que para isto lhe dei na vossa presença, para
alojar a princeza minha filha. Á vista das amostras de
suas riquezas , que temos visto, podemos estranhar que
mandasse construir este palacio em tão pouco tempo ?
Quiz surprehender-nos e mostrar-nos que com dinheiro
de contado podem os homens fazer d'estes milagres de
um para outro dia . Confessai commigo que o encanta-
mento de que acabaes de fallar-me procede do vosso
TOMO IV . 3
34 AS MIL E UMA NOITES

ciume ». A hora de entrada no conselho lhe impediu


continuasse este discurso por mais tempo.
Restituido Aladdin a sua casa e tendo despedido o
genio , achou que sua mãi estava levantada e que prin-
cipiava a enfeitar-se com um dos vestidos que lhe man-
dára vir. Quasi ao mesmo tempo que o sultão acabava
de sahir do conselho , dispôz Aladdin a sua mãi para ir
ao palacio com as mesmas escravas que lhe tinham vin-
do pelo ministerio do genio . Rogou -lhe , se visse o sul-
tão, que lhe dissesse que vinha para ter a honra de
acompanhar a princeza pela tarde, quando se achasse
em estado de passar para o seu palacio . Partiu ; porém
ainda que ella e as suas escravas , que a seguiam , esti-
vessem vestidas como sultanas, a multidão todavia não
foi tão grande para vêl - as passar, por trazerem véo e
manto conveniente, que cobria a riqueza e a magnifi-
cencia de seus vestidos. Quanto a Aladdin montou a ca-
vallo ; e depois de ter sahido da casa paterna para
nunca mais là tornar, sem ter esquecido a lampada ma-
ravilhosa, cujo soccorro lhe fora tão vantajoso para che-
gar ao mais alto grau da sua felicidade, foi publicamen-
te ao palacio com a mesma pompa com que fôra apre-
sentar-se ao sultão no dia precedente .
Logo que os porteiros do palacio do sultão avista-
ram a mãi de Aladdin, deram parte ao sultão . Foi logo
dada ordem ás companhias de trombetas, de timbales,
de pifanos e de oboés, que estavam já postadas em di-
versos lugares dos terrados do palacio, e n'um instan-
te resoou no ar o concerto dos instrumentos, que
annunciava o regosijo a toda a cidade . Os mercadores
principiaram a enfeitar as suas lojas com bellas tapeça-
rias, alcatifas e folhagens, e a preparar illuminações
para a noite : os obreiros largaram o seu trabalho, e o
povo correu apressadamente á praça principal, que se
achava então entre o palacio do sultão e o de Aladdin.
Este ultimo attrahiu logo a sua admiração, não tanto em
razão de estarem acostumados a ver o do sultão , como
porque o do sultão não podia entrar em comparação
com o de Aladdin. Mas o motivo do seu maior pasmo
CONTOS ARABES 35

foi não poder entender por que maravilha inaudita viam


um palacio tão magnifico n'um lugar onde no dia ante-
cedente não havia nem materiaes nem alicerces prom-
ptos .
Foi a mãi de Aladdin recebida no palacio com hon-
ra, e introduzida no quarto da princeza Badroulbondour
pelos chefes dos eunucos . Logo que a princeza a avis-
tou, foi abraçal-a e a mandou assentar no seu sophá ; e
em quanto as suas mulheres acabavam de vestil - a e de
enfeital-a com as mais preciosas joias, que Aladdin lhe
dera de presente, mandou regalal-a com uma merenda
magnifica. O sultão , que vinha para estar com a prin-
ceza sua filha todo o tempo que pudesse, antes que se
apartasse d'elle para ir ao palacio de Aladdin , lhe fez
tambem grandes obsequios. Tinha a mãi de Aladdin fal-
lado algumas vezes ao sultão em publico, mas elle não
a tinha ainda visto sem véo como estava . Ainda que es-
tivesse n'uma idade um pouco avançada, observavam - se
ainda n'ella feições que davam a entender que fóra do
numero das bellas e lindas senhoras na sua mocidade .
O sultão, que a vira sempre vestida mui simplesmente ,
para não dizer pobremente, estava admirado de vêl-a
tão rica e tão magnificamente vestida como a princeza
sua filha ; isto o obrigou fazer esta reflexão - que Aladdin
era igualmente prudente, sabio e entendido em todas as
cousas .
Logo que anoiteceu despediu-se a princeza do sultão
seu pai foram as despedidas ternas, e derramaram - se
lagrimas de parte a parte ; abraçaram-se varias vezes
sem dar palavra, e sahiu finalmente a princeza do seu
quarto, e pôz -se a caminho com a mãi de Aladdin á sua
esquerda, seguida de cem escravas, vestidas com magni-
ficencia extraordinaria. Todas as companhias de musicos,
que não tinham cessado de tocar desde a chegada da
mãi de Aladdin, se tinham reunido, e principiavam a
marcha eram acompanhadas de cem chaouses e de igual
numero de eunucos pretos em duas fileiras, com seus
officiaes á frente . Quatrocentos pagens do sultão em
dous corpos, que marchavam aos lados, levando cada
um uma tocha na mão, davam um clarão que , junto ás
36 AS MIL E UMA NOITES

illuminações tanto do palacio do sultão como do de


Aladdin, suppria maravilhosamente a falta do dia.
N'esta ordem marchou a princeza pelo tapete esten-
dido desde o palacio do sultão até ao palacio de Alad-
din, e á proporção que se aproximava, os instrumentos
que vinham na frente da marcha, aproximando-se e mis-
turando-se com os que se faziam ouvir do alto dos ter-
rados do palacio de Aladdin , formaram um concerto,
que extraordinario e confuso como parecia, não deixava
de augmentar a alegria, não só na praça cheia de povo,
porém até dentro dos palacios ambos, por toda a cidade
e ainda mais longe.
Chegou finalmente a princeza ao novo palacio , e cor-
reu Aladdin com toda a alegria imaginavel á entrada do
quarto, que lhe estava destinado para recebel-a. Teve a
mãi d'Aladdin o cuidado de fazer distinguir seu filho á
princeza no meio dos officiaes que o rodeavam ; e a prin-
ceza, avistando- o , o achou tão bem feito que ficou en-
levada d'elle : « Adoravel princeza, disse-lhe Aladdin
chegando - se a ella e saudando-a com muito respeito, se
tivesse a desgraça de vos ter desagradado pela temeri-
dade que tive de aspirar á posse de tão amavel prince-
za, filha do sultão , ouso dizer-vos que deverieis culpar
os vossos bellos olhos e vossos encantos, e não a mim .
Principe, a quem agora posso tratar assim, obede-
ço á vontade do sultão meu pai , e basta-me ter-vos
visto para dizer-vos que lhe obedeço sem repugnan-
cia » .
Enlevado Aladdin de resposta tão agradavel e de
tanta satisfação para elle, não deixou mais tempo a prin-
ceza em pé, visto o caminho que acabava de fazer, ao
que não estava acostumada ; pegou-lhe na mão , que bei-
jou com grande demonstração de alegria , e conduziu-a
a um grande salão, alumiado de uma infinidade de vé-
las , onde , pelos cuidados do genio, achou -se a mesa
posta e tudo prompto para um grande banquete . Os
pratos eram d'ouro maciço e cheios das viandas mais
delicadas . Os vasos, as bandejas e os copos de que o
aparador estava muito bem guarnecido, eram tambem de
ouro e de lavor exquisito . Os outros ornamentos do sa-
CONTOS ARABES 37

lão correspondiam perfeitamente a esta grande riqueza .


Enlevada a princeza em tantas riquezas, juntas no mes-
mo lugar, disse a Aladdin : « Principe, parecia -me que
não havia no mundo cousa mais bella que o palacio do
sultão meu pai , mas ao ver este salão, vejo que me en-
-
ganei . Princeza, respondeu Aladdin, rogando-lhe que
se assentasse á mesa no lugar que lhe estava destina-
do , recebo isso como uma grande fineza ; eu sei o que
devo crêr » .
A princeza Badroulboudour, Aladdin e a mai de
Aladdin, se puzeram á mesa e logo um côro de instru-
mentos harmoniosos, tocados e acompanhados de bellis-
simas vozes de mulheres, todas de grande belleza, prin-
cipiou um concerto que durou sem interrupção até ao
fim do banquete . Ficou muito enlevada a princeza , pois
não tinha visto cousa igual no palacio do sultão seu
pai . Porém não sabia que estas cantadeiras ou musicas,
eram fadas escolhidas pelo genio , escravo da lampada .
Acabada a céa, e tirada a toda a pressa a mesa,
uma companhia de dançarinos e de dançarinas succede-
ram ás cantadeiras . Dançaram varios passos, conforme o
costume do paiz, e acabaram por um dançarino e uma
dançarina, que dançaram sós com uma ligeireza extraor-
dinaria, e mostraram, cada um pela sua vez, toda a gra-
ça e habilidade que possuiam . Era perto de meia noite
quando , conforme o costume d'esse tempo, Aladdin se
levantou e offereceu a mão á princeza Badroulboudour
para dançarem juntos, e concluir assim as ceremonias
nupciaes . Dançaram com tanta graça, que causaram
admiração a toda a companhia. Acabando, não largou
Aladdin a mão da princeza, e foram juntos para o quar-
to onde estava o leito nupcial preparado. As mulheres
da princeza a despiram e a metteram na cama, e os
officiaes de Aladdin lhe fizeram outro tanto, e cada qual
se retirou . Assim findaram as ceremonias e os regosijos
das nupcias de Aladdin, e da princeza Badroulboudour .
No dia seguinte, quando Aladdin acordou, apresenta-
ram-se os criados da camara para vestil -o . Enfiaram -lhe
um vestido differente do do dia das nupcias, porém tão
rico e tão magnifico como o primeiro. Mandou depois
NOITES
UMA
MIL
AS
338

E
vir um dos cavallos destinados para a sua pessoa ; mon-
tou e foi ter ao palacio do sultão , no meio de uma nu-
merosa multidão de escravos que marchavam adiante, a
seus lados e em seu sequito. O sultão o recebeu com as
mesmas honras que da primeira vez ; abraçou- o, e de-
pois de mandal-o assentar a seu lado no seu throno, or-
denou que servissem o almoço . « Senhor, respondeu - lhe
Aladdin, supplico a vossa magestade que me dispense
hoje d'essa honra. Venho regar-lhe
Sta a de ir jantar ao pa-
nte

S
lacio da princeza , com grão-visir
; e, ecos osenhores
o cami-
1 sultão estaomgraça

EI

IS
da sua côrte » . Co- com

DR
Th

RE
gosto. Levanto"
nho não fosse né. Assim sahiu com
Aladdin á sua & á sua esquerda e os
senhores em seu edido pelos chaouses e pe-
los principaes offici sua casa.
Mais se chegava ultão ao palacio de Aladdin, mais
se admirava da sua belleza. Muito mais se admirou quan-
do entrou : pasmava a cada peça que via. Porém chega-
dos que foram ao salão de vinte e quatro janellas, onde
Aladdin o convidára a subir, tendo visto os ornamentos
e principalmente as sacadas, adornadas com diamantes,
rubins, esmeraldas e pedras todas perfeitas no seu tama-
nho proporcionado, e tendo-lhe Aladdin feito observar
que a riqueza era igual no exterior, ficou de tal modo
enlevado que se immobilisou . Depois de ter estado al-
gum tempo n'este estado : «< Visir, disse a este ministro,
que estava ao seu lado , é possivel que haja no meu
reino e tão perto do meu palacio, outro tão soberbo, e
que o ignorasse até agora? - Vossa magestade, repli-
cou o grão-visir, póde lembrar-se que antes d'hontem
concedeu a Aladdin, que acabava de reconhecer por seu
genro, a licença de edificar um palacio defronte do seu ;
no mesmo dia ao pôr do sol não havia ainda palacio
n'este sitio, e hontem fui o primeiro que tive a honra
de annunciar-lhe que estava feito e concluido. - Lembro-
me, replicou o sultão , porém nunca imaginaria que fos-
se este palacio uma das maravilhas do mundo . Onde se
acham em todo o universo palacios construidos com pi-
lares de ouro e prata maciça, em vez de pilares de pe-
CONTOS ARABES 39

dra ou de marmore, cujas janellas tenham sacadas co-


bertas de diamantes, de rubins e de esmeraldas ? Jámais
no mundo se fez menção de semelhante cousa >>.
Quiz o sultão vêr e admirar a belleza das vinte e
quatro janellas. Contando-as, não achou senão vinte e
tres que fossem da mesma riqueza, e ficou pasmado de
terem deixado imperfeita a vigesima-quarta. « Visir, dis-
se elle (pois o grão-visir entendia que não se devia
apartar d'elle) , admiro-me que um salão d'esta magni-
ficencia ficasse imperfeito n'esta parte. Senhor, repli-
cou o grão-visir, provavelmente Aladdin foi apressado,
e não teve tempo de se fazer esta janella igual ás ou-
tras, porém pode-se crêr que tem as pedrarias necessa-
rias, e que logo mandará acabal -a ».
Alladdin, que largára o sultão para dar algumas or-
dens , veio n'este intervallo ter com elle : « Filho, disse-
lhe o sultão, eis- aqui o salão mais digno de ser admira-
do . Uma unica cousa me causa estranheza ; é vêr que
ficasse imperfeita esta janella. Foi por esquecimento,
acrescentou elle , por descuido, ou porque os obreiros
não tiveram tempo de acabar tão bello pedaço de archi-
tectura ? -Senhor, respondeu Aladdin , não foi por nenhu-
ma d'essas razões que ficou no estado em que vossa ma-
gestade a vê. Foi isto feito de proposito, e por minha
ordem é que os obreiros não a acabaram ; queria que
Vossa magestade tivesse a gloria de mandar acabar es-
te salão, e o palacio ao mesmo tempo : supplico-lhe quei-
ra aceitar com gratidão a minha boa intenção, para que
possa lembrar-me do favor e da graça que de vossa ma-
gestade terei recebido . Se o fizestes com essa inten-
ção, replicou o sultão , agradeço-vos muito ; vou n'este
mesmo instante dar as ordens para isso » . Com effeito ,
ordenou que mandassem vir os mercadores lapidarios
mais bem sortidos em pedrarias, e os ourives mais ha-
beis da sua capital .
Desceu todavia o sultão , e Aladdin o acompanhou a
outro salão, onde regalára a princeza Badroulboudour no
dia das nupcias. Passado um instante chegou a prince-
za, que recebeu o sultão seu pai com ar que lhe deu a
conhecer com gosto o quanto estava contente do seu ca-
40 AS MIL E UMA NOITES

samento. Acharam- se duas mesas servidas com viandas


as mais deliciosas, tudo com a princeza sua filha, Alad-
din e o grão-visir. Foram todos os senhores da côrte re-
galados na segunda, que era muito comprida . Achou o
sultão os guizados de bom gosto, e confessou que nun-
ca coméra cousa mais excellente . O mesmo disse do vi-
nho, que era com effeito deliciosissimo. O que mais ad-
rou foram quatro grandes aparadores, guarnecidos e car-
regados copiosamente de frascos , bandejas e taças d'ou-
ro maciço, tudo enriquecido de pedrarias . Ficou tambem
enlevado dos córos de musica que estavam dispostos no
salão , em quanto os concertos de trombetas, acompanha-
dos de timbales e tambores, resoavam fóra a uma dis-
tancia proporcionada para gozar inteiramente d'ella.
Ao tempo que o sultão acabava de levantar- se da
mesa, deram-lhe parte que os mercadores lapidarios e os
ourives que foram chamados por sua ordem, tinham che-
gado. Subiu ao salão de vinte e quatro janellas, e es-
tando lá mostrou aos lapidarios e aos ourives, que o se-
guiram , a janella que estava imperfeita : « Mandei-vos
chamar, disse-lhes , para que acabasseis esta janella, e
The desseis a mesma perfeição que tem as outras . Exa-
minai-as, e não percaes tempo em fazer-me esta igual
em tudo ás outras »> .
Os lapidarios e ourives examinaram as outras vinte
e tres sacadas com grande attenção ; e tendo consultado
juntos e convindo no que podia contribuir cada um pela
sua parte, tornaram a apresentar-se ao sultão, e o ouri-
ves do palacio, que foi quem fallou , lhe disse : « Senhor,
estamos promptos a empregar todos os nossos cuidados
e industria para obedecer a vossa magestade ; mas entre
todos os da nossa profissão não temos pedrarias tão pre-
ciosas, nem sufficiente numero para acabar tão grande
obra. Tenho eu, disse o sultão, e mais do que se pre-
cisa vinde ao meu palacio, mostrar-vol-as-hei e esco-
lhereis >>..
Estando o sultão de volta ao seu palacio, mandou
vir todas as suas pedrarias, e os lapidarios tomaram uma
grande quantidade , particularmente das que eram do pre-
sente de Aladdin . Empregaram-se sem que parecesse
CONTOS ARABES
41
que tivessem adiantado muito . Vieram buscar outras re-
petidas vezes , e n'um mez não tinham acabado metade
da obra . Empregaram-se todas as do sultão , com as que
o grão-visir lhe emprestou das suas, e tudo o que pude-
ram fazer foi acabar metade da janella .
Aladdin, que conheceu que o sultão se esforçava de-
balde para concluir a janella igual ás outras e jamais a
acabaria , mandou chamar os ourives e lhes disse não só
que cessassem o trabalho, mas até desmanchassem tu-
do o que tinham feito e que levassem ao sultão todas as
suas pedrarias , com as que pedira emprestadas ao grão-
visir.
A obra em que os lapidarios e ourives gastaram mais
de seis semanas , foi destruida em poucas horas . Retira-
ram -se e deixaram Aladdin só no salão . Puxou pela lam-
pada que comsigo trazia e esfregou-a. Appareceu logo o
genio . « Genio, disse -lhe Aladdin, tinha- te dado ordem
de deixar uma das vinte e quatro janellas d'este salão
imperfeita, e tu a executaste ; agora mandei -te chamar pa-
ra dizer -te que desejo que a acabes e que fique igual ás
outras » . Desappareceu o genio e Aladdin desceu . Passa-
do pouco tempo, como tornasse a subir, achou-a no es-
tado em que a desejava, e igual ás outras .
Os lapidarios e ourives todavia chegaram ao palacio
e foram introduzidos e apresentados ao sultão no seu
quarto . O lapidario principal , apresentando -lhe as pedra-
rias que lhe traziam , disse ao sultão em nome de todos :
<< Senhor , vossa magestade sabe quanto tempo ha que
empregamos a nossa industria para acabar a obra de que
nos encarregou . Estava já muito adiantada quando Alad-
din nos obrigou não só a cessar , mas tambem a desfa-
zer tudo o que tinhamos feito , e a trazer-lhe as suas pe-
drarias e as do grão- visir » . Perguntou - lhe o sultão se
Aladdin não lhes tinha dito a razão ; e como lhe disses-
sem que não se explicára a este respeito, deu logo or-
dem que lhe trouxessem um cavallo. Trazem-lh'o, mon-
ta, e parte sem mais comitiva que a sua gente, que o
acompanhou a pé. Chega ao palacio de Aladdin e foi apear-
se á entrada da escada que conduzia ao salão das vin-
te e quatro janellas . Sóbe sem mandar dar parte a Alad-
42 AS MIL E UMA NOITES

din ; mas este achou- se alli muito a proposito , e só teve


o tempo de receber o sultão á porta.
O sultão, sem dar a Aladdin o tempo de queixar-se
de não o ter sua magestade mandado avisar, e de o ter
exposto a faltar ao seu dever, lhe disse : « Filho , venho
eu mesmo perguntar-vos que razão tendes de querer dei-
xar imperfeito um salão tão magnifico e tão singular co-
mo o de vosso palacio >> .
Dissimulou Aladdin a verdadeira razão , que era não
ser o sultão bastante rico em pedrarias para fazer uma
despeza tão grande. Mas para dar-lhe a conhecer quanto
o palacio, tal qual era , excedia não só o seu mas tam-
bem qualquer outro do mundo, visto que não pudera
acabal -o na minima de suas partes, respondeu-lhe : Se-
nhor, é verdade que vossa magestade viu este salão im-
perfeito, mas supplico-lhe que veja se presentemente fal-
ta alguma cousa » .
Foi o sultão direito á janella que vira imperfeita, e
tendo observado que era igual as outras, pareceu-lhe
ter-se enganado. Examinou não só as duas janellas que
estavam aos lados mas observou-as todas umas após ou-
tras ; e convencido que a sacada, na qual'se empregára
tanto tempo, e que custára tantos dias de trabalho, aca-
bava de aperfeiçoar- se n'esse pouco tempo, abraçou Alad-
din e o beijou na testa entre os dous olhos : «Filho, dis-
se-lhe todo pasmado, que homem sois vós que fazeis
cousas tão maravilhosas ? Não ha no mundo homem se-
melhante a vós, e quanto mais vos conheço , mais admi-
ravel vos acho » .
Ouviu Aladdin os louvores do sultão com muita mo-
destia e respondeu-lhe n'estes termos : « Senhor, é gran-
de gloria para mim merecer a benevolencia e a appro-
vação de vossa magestade ; o que posso assegurar-lhe é
que não me esquecerei de cousa alguma para merecer uma
e outra cada vez mais ».
Voltou o sultão para o seu palacio do mesmo modo
que viera, sem permittir a Aladdin que o acompanhasse.
Chegando, achou o grão-visir que o esperava. O sultão,
ainda todo pasmado da maravilha de que acabava de ser
testemunha, lhe fez a narração d'ella em termos que não
CONTOS ARABES
43
deixaram duvidar a este ministro, que a cousa não fosse
como o sultão a contava, porém que confirmaram o vi-
sir na crença em que já estava : que o palacio de Aladdin
era effeito de um encantamento , ácerca do qual se expli-
cára com o sultão quasi no tempo que este palacio aca-
bava de apparecer. Quiz repetir - lhe a mesma cousa : « Vi-
sir, disse- lhe o sultão interrompendo -o, já me dissestes
a mesma cousa ; mas bem vejo que não vos esquecestes
ainda do casameuto de minha filha com vosso filho » .
Bem viu o grão-visir que o sultão estava prevenido.
Não quiz entrar em contestação com elle, e o deixou na
sua opinião . Todos os dias, levantado que fosse o sultão ,
não deixava de ir a um gabinete d'onde se descobria to-
do o palacio de Aladdin, e lá ia ainda algumas vezes no
decurso do dia para contemplal-o e admiral-o .
Aladdin, todavia , não se fechava no seu palacio . Ti-
nha o cuidado de apparecer na cidade mais de uma vez
em cada semana, ou fosse fazer a sua oração, ora n'u-
ma mesquita, ora n'outra, ou de quando em quando fos-
se visitar o grão - visir, que affectava de fazer-lhe a côrte
em dias determinados , ou fizesse a honra aos principaes
senhores, que regalava algumas vezes no seu palacio.
Cada vez que sahia mandava espalhar por dous dos seus
escravos, que marchavam á roda do seu cavallo, peças
d'ouro ás mãos cheias, pelas ruas e pelas praças por on-
de passava e onde o povo concorria sempre em grande
multidão .
Além d'isso nenhum pobre se apresentava á porta de
seu palacio que não voltasse satisfeito da liberalidade
que n'elle se fazia por mandado seu .
Como Aladdin repartisse o seu tempo de modo que
não havia semana nenhuma que não fosse á caça ao me-
nos uma vez, algumas vezes nos arredores da cidade, ou-
tras vezes mais longe, praticava a mesma liberalidade pe-
los caminhos e aldeas. Esta inclinação generosa fez dar- lhe
pelo povo todo mil bençãos, e era costume não jurar se-
não pela sua cabeça . Finalmente sem fazer-se suspeito
ao sultão , a quem fazia regularmente a côrte, póde di-
zer-se que Aladdin grangeára com seus modos affaveis e
liberaes toda a affeição do povo, e que , geralmente fal-
44 AS MIL E UMA NOITES

lando, era mais amado que o proprio sultão . Unia a todas


estas bellas prendas um valor e zelo pelo bem do estado ,
que não se poderia assás louvar . D'isso deu demonstra-
ções na occasião de uma rebellião nos confins do reino .
Apenas lhe constou que o sultão levantava um exercito
para dissipal-a, logo lhe supplicou o commando . Alcan-
çou-o facilmente . Logo que se achou á frente do exerci-
to, fel-o marchar contra os rebellados e portou-se n'esta
expedição com tanta diligencia, que o sultão soube mais
depressa que os rebeldes tinham sido derrotados , casti-
gados ou dispersos, do que a sua chegada ao exercito .
Esta acção , que fez celebre o seu nome em toda a
extensão do reino , não fez mudança alguma no seu co-
ração . Voltou victorioso, porém tão modesto e tão affa-
vel como sempre fôra.
Havia já alguns annos que Aladdin se portava como
acabamos de dizer, quando o magico, que lhe dera sem
reflectir o meio de elevar-se a tão alta fortuna, se lem-
brou d'elle na Africa para onde voltára. Ainda que até
então se persuadisse que Aladdin tinha morrido misera-
velmente no subterraneo onde o deixára, veio-lhe toda-
via á lembrança saber precisamente qual fora o seu
fim. Como fosse grande geomante, tirou d'um armario
um quadrado em fórma de boceta coberta, de que se ser-
via para fazer as suas observações de geomancia . Assen-
tou-se no sophá, pôz o quadrado diante de si, descobriu-o
e depois de ter preparado e igualado a area com inten-
ção de saber se Aladdin morrera no subterraneo, deita
os pontos d'elle, tira as figuras e fórma o horoscopo .
Examinando o horoscopo para fazer o seu juizo , em vez
de achar que Aladdin tivesse morrido no subterraneo,
descobriu que d'elle sahira e que vivia sobre a terra
com grande esplendor, poderosamente abastado, marido
d'uma princeza, honrado e respeitado .
Apenas soube o magico africano, pelas regras da sua
arte diabolica, que Aladdin estava n'esta grande eleva-
ção, logo a vermelhidão lhe subiu á cara. Raivoso , dis-
se comsigo : « Este miseravel filho do alfaiate descobriu
o segredo e a virtude da lampada : pareceu-me na ver-
dade certa a sua morte, e eil-o que goza do fructo de
CONTOS ARABES
45
meus trabalhos e vigilias . Impedirei que goze largo tem-
po d'elle , ou perecerei ». Não esteve muito tempo a de-
liberar ácerca do partido que devia tomar. No dia seguin-
te pela manhã montou n'um cavallo e pôz -se a caminho.
De cidade em cidade e de provincia em provincia , sem
demorar-se senão quanto era preciso para não cançar

demasiado o seu cavallo , chegou á China, e em breve á


capital do sultão, com cuja filha tinha Aladdin casado.
Apeou-se n'um Khan , onde alugou um quarto . Demorou-
se n'elle o resto do dia e a noite seguinte , para refazer-
se da fadiga da viagem .
No dia seguinte, antes de tudo, quiz o magico afri-
cano saber o que se dizia de Aladdin . Passeando pela ci-
dade entrou no lugar mais famoso e mais frequentado
46 AS MIL E UMA NOITES

das pessoas de grande distincção , onde costumam ajun-


tar-se para beber uma certa bebida quente, que conhe-
cia desde a sua primeira viagem. Apenas se assentou,
logo lhe apresentaram uma taça d'esta bebida. Pegando
n'ella, como désse ouvidos á direita e á esquerda, per-
cebeu que se entretinham do palacio de Aladdin. Tendo
acabado, chegou-se a um dos que conversavam, e pro-
curando a occasião , perguntou -lhe em particular que cou-
sa era esse palacio de que se fallava tão vantajosamen-
te. « D'onde vindes ? disse-lhe aquelle a quem se dirigi-
ra. Deveis ter chegado ha muito pouco tempo, se não vis-
tes, ou, para melhor dizer, se não ouvistes ainda fallar
do palacio do principe Aladdin (não chamavam já de ou-
tro modo a Aladdin , desde que casára com a princeza
Badroulboudour) . Não vos digo, continuou este homem,
que é uma das maravilhas do mundo, mas sim a unica
maravilha do mundo : nada se viu jamais tão grande , tão
rico e tão magnifico. Deveis vir de muito longe, visto
que não ouvistes ainda fallar d'elle. Com effeito deve-
se fallar d'elle em todo o mundo , desde que está cons-
truido . Vêde -o , e julgareis se vos fallei d'elle contra a
verdade . Perdoai a minha ignorancia, replicou o ma-
gico africano, cheguei sómente hontem ; e venho na ver-
dade de tão longe, quero dizer, da extremidade da Afri-
ca, que a fama não tinha chegado até lá , quando par-
ti. E como em razão do negocio urgente que me traz
não tive outra mira na minha viagem senão chegar
com a maior brevidade possivel, sem demorar-me e sem
travar conhecimento algum, não sei senão o que acabaes
de contar-me. Porém não deixarei de ir vêl-o ; a impa-
ciencia que tenho é tal, que estou prompto a satisfazer a
minha curiosidade desde já, se quereis fazer-me a graça
de ensinar-me o caminho » .
Aquelle a quem o magico africano se dirigira, gostou
muito de ensinar-lhe o caminho por onde havia de pas-
sar para ver o palacio de Aladdin, e o magico africano
se levantou e partiu no mesmo instante. Chegando e exa-
minando o palacio de perto e de todos os lados, pareceu-
lhe que Aladdin se servira da lampada para mandal-o
construir. Sem attender á falta de meios de Aladdin , fi-
CONTOS ARABES 47

lho d'um simples alfaiate, bem sabia que ninguem podia


fazer semelhantes maravilhas senão os genios , escravos
da lampada, cuja acquisição lhe escapára. Offendido em
extremo da felicidade e da grandeza de Aladdin , que qua-
si não fazia differença da do sultão, voltou ao Khan,
onde alugára um quarto .
Tratava-se de saber onde estava a lampada : se Alad-
din a trazia comsigo, ou em que lugar a conservava, e
isto é o que era preciso que descobrisse o magico por
uma operação de geomancia. Chegando ao alojamento
pegou no quadrado e na arêa que trazia comsigo em to-
das as suas viagens . Acabada a operação conheceu que
a lampada estava no palacio de Aladdin, e alegrou- se
tanto d'este descobrimento, que mal se conhecia a si
proprio. « Eu a alcançarei, essa lampada, disse elle, e de-
safio a Alandin impedir-me de lh'a tirar, e de fazêl-o des-
cer até á baixeza d'onde tomou tão alto vôo » .
A desgraça de Aladdin quiz que tivesse então ido a
uma partida de caça por oito dias, e havia só tres que
partira ; e eis-aqui de que modo o magico africano foi
d'isso informado : tendo feito a operação que acabava de
causar-lhe tanta alegria , foi vêr o porteiro do Khan com
o pretexto de conversar com elle , e disse -lhe que aca-
bava de ver o palacio de Aladdin ; e depois de lhe ter
exagerado tudo o que n'elle observára de mais maravi-
lhoso, e tudo o que lhe causára maior admiração, e que
admirava geralmente a todo o mundo : « A minha curio-
sidade se estende mais longe, acrescentou elle, e não fi-
carei satisfeito sem ter visto o dono a quem pertence um
edificio tão maravilhoso . Não vos será difficil vêl-o ,
replicou o porteiro ; não se passa dia que não dê occa-
sião a isso quando está na cidade ; mas ha tres dias que
partiu para uma grande caçada, que deve durar oito » .
Não quiz saber mais o magico africano ; despediu-se
do porteiro, e recolhendo-se : « É occasião de pôr mãos
á obra, disse comsigo, não devo deixal-a escapar » . Foi
á loja d'um fabricante e vendedor de lampadas : «< Se-
nhor, disse elle, preciso d'uma duzia de lampadas de
cobre ; podeis apromptar-m'as ? » Disse -lhe o vendedor
que lhe faltavam algumas , mas se quizesse esperar até
48 AS MIL E UMA NOITES

ao dia seguinte, que lh'as daria todas á hora que quizes-


se. Quiz o magico esperar ; recommendou-lhe que fossem
aceadas e bem polidas ; depois de ter-lhe promettido que
The pagaria bem, recolheu-se ao seu Khan.
No dia seguinte foi a duzia de lampadas entregue ao
magico africano, que as pagou pelo preço que lhe pediu
o vendedor, sem diminuir cousa alguma. Metteu-as n'um
cesto de que se provéra expressamente, e com o cesto no
braço foi andando para a parte do palacio de Aladdin ,
e tendo-se aproximado d'elle , poz-se a gritar : Quem
quer trocar lampadas velhas por novas ? A proporção
que se aproximava, e em distancia que os rapazes, que
brincavam na praça, o ouviram , correram e ajuntaram-
se á roda d'elle , dando-lhe grandes apupadas, e o toma-
ram por um louco . Até os passageiros se riam da sua
tolice , pois tal lhe parecia : « Deve ter perdido, diziam
elles, o juizo, para offerecer lampadas novas por ve-
lhas ».
Não fez caso o magico africano nem das apupadas
dos rapazes nem de tudo o que pudessem dizer d'elle ; e
para dar gasto á sua fazenda , continuou a gritar : Quem
quer trocar lampadas velhas por novas? Repetiu tan-
tas vezes a mesma cousa, indo e vindo pela praça, dian-
te e em roda do palacio, que a princeza Badroulboudour,
que estava então no salão das vinte e quatro janellas,
ouviu a voz d'um homem ; porém como não podia dis-
tinguir o que dizia, por causa das apupadas dos rapazes
que o seguiam, e cujo numero augmentava de instante
a instante, mandou uma de suas escravas, em quem
mais se confiava, para ver o que era este barulho .
Não tardou muito a voltar a escrava, que entrou no
salão dando grandes gargalhadas . Ria de tão boa vonta-
de , que a princeza não podia deixar de rir, encarando-a :
<
« Então , louca ! diz a princeza ; queres dizer-me por que
razão estás assim rindo ? -Princeza, respondeu a escrava
rindo sempre ; quem poderia deixar de rir, vendo um
louco com um cesto no braço, cheio de bellas lampadas
novas, que não procura vendel-as, mas trocal-as por ou-
tras velhas ? São os rapazinhos que o cercam de tão per-
CONTOS ARABES 49

to que mal póde andar , e que fazem toda a bulha que se


ouve, fazendo zombaria d'elle » .
Ouvindo isto, outra escrava, dirigindo -lhe a palavra :
« A proposito de lampadas velhas, disse ella, não sei se
a princeza reparou que ha uma sobre a cornija ; aquelle
a quem pertence não desgostará de achar uma nova em
vez d'esta velha . Se a princeza quer, póde ter o gosto
de experimentar se elle é tão doudo que dê uma lampa-
da nova em troca d'uma velha, sem pedir tornas d'el-
la ».
A lampada de que fallava a escrava, era a lampada
maravilhosa de que Aladdin se servira para elevar-se ao
grau de grandeza a que chegára ; e elle mesmo a puze-
ra sobre a cornija, antes de ir á caça, receando perdel-a,
e tomára a mesma precaução todas as outras vezes que
fôra á caça ; porém nem as escravas, nem os eunucos,
nem a princeza tinham reparado n'ella até então, na sua
ausencia ; á excepção do tempo da caça, trazia-a sempre
comsigo. Dir-se- ha que a precaução de Aladdin era boa,
mas ao menos que devera fechar a lampada. É verdade
isso ; porém em todos os tempos houve d'estes descui-
dos , ha-os ainda hoje, e não deixará de havel- os .
A princeza Badroulboudour, que ignorava que a lam-
pada fosse tão maravilhosa como era, e que Aladdin,
sem fallar d'ella mesma, tivesse um interesse tão gran-
de como tinha em que não bulissem n'ella , e fosse con-
servada, entrou a gracejar e ordenou a um eunuco que
pegasse n'ella e fosse fazer a troca . Obedeceu o eunuco ;
desceu do salão , e apenas sahiu do palacio , logo avistou
o magico africano ; chamou - o , e estando perto d'elle mos-
trou-lhe a lampada : « Dai-me, disse elle, uma lampada
nova por esta >» .
Bem viu o magico africano que não podia ser outra
senão a lampada que procurava ; não podia haver outras
no palacio de Aladdin , onde a baixella era de ouro ou pra-
ta ; pegou n'ella apressadamente da mão do eunuco, e
depois de a ter mettido no seio apresentou -lhe o cesto e
lhe disse que escolhesse a que lhe agradasse . Escolheu
o eunuco ; e, depois de ter largado o magico , levou a
TOMO IV. 4
50 AS MIL E UMA NOITES

lampada nova á princeza Badroulboudour ; apenas foi fei-


ta a troca, logo os rapazes fizeram echoar na praça maio-
res gargalhadas de riso do que d'antes, zombando, ao
que lhes parecia, da tolice do magico.
Deixou-os o magico africano rir e gritar quanto qui-
zeram ; sem demorar-se mais tempo nos arredores do pa-
lacio de Aladdin , afastou-se d'elle insensivelmente, sem
barulho ; isto é, sem gritar, e sem fallar mais em trocar
lampadas novas por velhas ; não queria outras senão a
que levava ; por fim o seu silencio fez que os rapazinhos
se apartassem d'elle e o deixassem ir.
Sahindo da praça , que havia entre os dous palacios,
metteu-se pelas ruas menos frequentadas ; e como não ti-
vesse já precisão das outras lampadas nem do cesto , lar-
gou o cesto e as lampadas no meio d'uma rua, onde viu
que não havia ninguem. Então , logo que se metteu n'ou-
tra rua, apressou o passo até que chegasse a uma das
portas da cidade . Continuando seu caminho pelo arrabal-
de, que era mui extenso , fez algumas provisões antes de
sahir d'elle . Estando já no campo , desviou-se da estrada
para um lugar não frequentado de gente, onde se deixou
estar até ao instante que julgou a proposito, para aca-
bar de executar o plano que o trouxera . Não fez caso do
cavallo que deixára no Khan , onde alugára um quarto ;
pareceu-lhe ficar. bem indemnisado com o thesouro que
acabava de adquirir.
Passou o magico africano o resto do dia n'este sitio
até que escurecesse inteiramente . Tirou então a lampa-
da do seio e esfregou-a. Appareceu-lhe logo o genio :
Que queres? perguntou-lhe ; eis- me aqui prompto a obe-
decer-te como teu escravo, e de todos os que tem a
lampada na mão, eu, e os outros seus escravos .
Eu te ordeno , replicou o magico africano, que n'esta
mesma hora arrebates o palacio que tu ou os outros es-
cravos da lampada construiram n'esta cidade , tal qual
está, com tudo o que n'elle ha vivo, e que o arrebates
commigo ao mesmo tempo para tal lugar da Africa » .
O genio, sem responder-lhe, com a ajuda de outros ge-
nios, escravos da lampada como elle, o transportaram
em muito pouco tempo , elle e o seu palacio e quanto
CONTOS ARABES 51

n'elle havia, ao proprio lugar da Africa que lhe fôra in-


dicado.
Deixaremos o magico africano e o palacio com a prin-
ceza Badroulboudour na Africa, para fallar do susto e
pasmo do sultão .
Levantando-se o sultão, não deixou , segundo o seu
costume, de ir ter ao gabinete aberto , para ter o gosto
de contemplar e admirar o palacio de Aladdin . Lançou
a vista para o lado onde costumava vêr este palacio , e
viu sómente uma praça vazia , tal como era antes que
tivessem n'ella construido o dito palacio ; pareceu-lhe
que se enganava e esfregou os olhos, mas nada mais
viu que a primeira vez, ainda que estivesse o tempo
sereno, limpo o céo, e que a aurora que tinha princi-
piado a apparecer tornasse mui distinctos todos os obje-
ctos. Olhou para a direita e não viu tambem nada mais .
Foi tão grande seu pasmo, que ficou largo tempo no
mesmo lugar, virados os olhos para a parte onde esti-
vera o palacio, e onde não o via já, procurando o que
não podia comprehender, isto é, saber como podia suc-
ceder que um palacio tão grande e tão apparatoso como
o de Aladdin, que vira quasi todos os dias desde que fô-
ra construido com sua licença , e recentemente no dia
antecedente, tivesse desapparecido de modo que não ap-
parecia d'elle o minimo vestigio . « Não me engano, di-
zia comsigo ; estava no lugar que estou vendo : se ti-
vesse desabado ou se a terra o tragasse, vêr- se-hia al-
gum signal, de qualquer modo que isto acontecesse >> ;
e ainda que convencido que o palacio não estava alli,
não deixou todavia de esperar ainda algum tempo para
vér se com effeito não se enganava . Retirou-se final-
mente ; e depois de tornar de novo a observar antes de
afastar-se, voltou ao seu quarto, ordenou que chamas-
sem o grão-visir a toda a pressa, e assentou-se todavia,
com o espirito agitado de pensamentos tão diversos, que
não sabia que partido tomasse.
Não fez o grão-visir esperar o sultão ; veio com tanta
precipitação, que nem elle nem os seus repararam , ao
passar, que o palacio de Aladdin não estava já no seu
*
52 AS MIL E UMA NOITES

lugar . Os mesmos porteiros, abrindo a porta do palacio,


não repararam n'isso.
Chegando-se ao sultão : « Senhor, disse-lhe o grão-
visir, a pressa com que vossa magestade me mandou
chamar, me faz julgar que algum caso extraordinario
aconteceu, visto que não ignora que hoje é dia de con-
selho, e que eu não devia faltar a vir fazer a minha
obrigação d'aqui a poucos instantes . O que aconteceu
é na verdade extraordinario, como dizes ; e tu convirás
n'isso . Dize-me onde está o palacio de Aladdin ? — O pa-
lacio de Aladdin , senhor, respondeu o grão -visir com
admiração , acabo de passar diante d'elle ; pareceu- me
que estava no seu lugar ; um edificio tão solido como
aquelle não muda de lugar tão facilmente . Vai inda-
gar isso do gabinete , respondeu o sultão, e vem dizer-
me se o viste » .
Foi o grão -visir ao gabinete aberto e aconteceu- lhe a
mesma cousa que ao sultão . Tendo-se certificado bem
que o palacio de Aladdin não estava já onde estivera , e
que d'elle não apparecia o menor vestigio, tornou a
apresentar-se ao sultão . « Então, viste o palacio de Alad-
din ? perguntou-lhe o sultão . Senhor, respondeu o grão-
visir, póde vossa magestade lembrar-se que tive a hon-
ra de dizer-lhe que esse palacio , que era o objecto da
sua admiração com as suas riquezas immensas , era obra
d'um magico , porém não quiz vossa magestade dar at-
tenção a isso ... >>
O sultão, que não podia desconvir do que o grão-
visir lhe representava, encolerisou-se muito, pois não
podia desculpar a sua credulidade . « Aonde está, disse
elle, esse embusteiro, esse malvado, que lhe mando cor-
tar a cabeça ? -Senhor, replicou o grão - visir, ha alguns
dias que veio despedir-se de vossa magestade ; é preci-
so mandar-lhe perguntar onde está o seu palacio ; não o
deve ignorar. Seria tratal-o com muita indulgencia,
replicou o sultão ; vai dar ordem a trinta dos meus ca-
valleiros que m'o tragam carregado de ferros » . Foi o
grão-visir dar as ordens do sultão , e deu as instrucções
ao seu cabo, de que modo deviam portar-se para que
CONTOS ARABES
53
não lhes escapasse . Partiram , e encontraram Aladdin a
cinco ou seis leguas da cidade , que voltava caçando .
Disse-lhe o official , chegando -se a elle, que o sultão , im-
paciente de vêl -o , os mandára para lh'o manifestar, e
voltar com elle , acompanhando -o .
Não teve Aladdin a menor suspeita do verdadeiro
motivo que trouxera este destacamento da guarda do
sultão : continuou a voltar caçando ; mas quando estava
a uma legua da cidade , este destacamento o cercou , e
o cabo, dirigindo - lhe a falla, lhe disse : « Principe Alad-
din, com grande pezar é que vos declaramos a ordem
que temos do sultão de prender- vos , e de levar - vos á
sua presença como criminoso do estado ; nós vos suppli-
camos que não tomeis a mal que façamos a nossa obri-
gação , e que nos perdoeis » .
Foi esta declaração um motivo de grande susto e
pasmo para Aladdin , que se sentia innocente ; perguntou
ao cabo se sabia de que crime o accusavam , ao que res-
pondeu que nem elle nem os seus sabiam .
Como visse Aladdin que os seus eram inferiores ao
destacamento e que se afastavam , apeou -se : < « Eis- me
aqui, disse elle , executai a ordem que tendes . Posso to-
davia dizer que não me sinto culpado de crime algum,
nem para com o sultão, nem para com o estado » .
saram -lhe logo ao pescoço uma cadea grossa e compriPas da-,
com que o ataram tambem pelo meio do corpo , de mo-
do que não lhe deixaram as mãos soltas . Tendo - se o ca-
bo posto á frente da sua tropa, pegou um cavalleiro na
extremidade da cadea ; e, marchando após o official, le-
vou Aladdin, que foi obrigado a seguilo a pé, e n'este
estado foi conduzido á cidade.
Tendo os cavalleiros entrado no arrabalde , os pri-
meiros que viram que levavam Aladdin como criminoso
do estado, não duvidaram que fosse para cortar - lhe a
cabeça . Como fosse geralmente amado, uns pegaram no
alfange e n'outras armas, e os que não as tinham arma-
ram-se de pedras e seguiram os cavalleiros. Alguns que
estavam na retaguarda, fizeram - lhes frente , fingindo que-
rel-os dispersar ; porém logo engrossaram em tão grande
numero, que os cavalleiros tomaram o partido de dissi-
54 AS MIL E UMA NOITES

mular, tendo-se por mui afortunados poderem chegar até


ao palacio do sultão sem que lhes tirassem á força Alad-
din : para conseguil-o, á proporção que as ruas eram
mais ou menos largas, tiveram grande cuidado em oc-
cupar toda a extensão do terreno, ora estendendo - se , ora
apertando- se d'este modo chegaram á praça do palacio ,

onde se puzeram todos em linha, fazendo rosto ȧ genta-


lha armada, até que o seu cabo e o cavalleiro que se-
gurava Aladdin tivessem entrado a porta, para impedir
que não entrasse.
Foi Aladdin levado á presença do sultão, que o espe-
CONTOS ARABES 55
333

rava n'uma varanda, acompanhado do grão-visir, e logo


que o viu ordenou ao carrasco, que tivera ordem de
achar-se alli, que lhe cortasse a cabeça , sem querer ou-
vil-o, nem saber d'elle explicação alguma.
Tendo-se o carrasco apossado de Aladdin , tirou-lhe a
cadéa que trazia ao pescoço e á roda do corpo , e depois
de ter estendido no chão um couro tinto de sangue de
uma infinidade de criminosos que tinha executado, man-
dou-o pôr de joelhos e lhe vendou os olhos ; puxou en-
tão pelo alfange, dispondo-se a dar o golpe , e fazendo- o
reluzir no ar por tres vezes , esperou que o sultão lhe
acenasse que cortasse a cabeça de Aladdin .
N'esse instante percebeu o grão- visir que a gentalha,
que forçára os cavalleiros e que enchera a praça, aca-
bava de escalar os muros em algumas partes, e princi-
piava a demolil-os para abrir brecha. Antes que o sultão
acenasse, disse-lhe : « Senhor, supplico a vossa mages-
tade que pense maduramente no que vai fazer : vai cor-
rer risco de vêr o seu palacio forçado ; e se essa des-
graça succedesse, poderia o acontecimento ser funesto.
- Forçado o meu palacio ! replicou o sultão ; quem póde
ter esse atrevimento ? - Senhor, replicou o grão -visir,
lance vossa magestade os olhos sobre os muros do seu
palacio e sobre a praça, e conhecerá a verdade do que
The digo ».
Foi tão grande o susto do sultão , quando viu um tu-
multo tão vivo e animado, que no mesmo instante or-
denou ao carrasco que embainhasse o seu alfange e ti-
rasse a venda dos olhos a Aladdin e que o deixasse sol-
to e livre . Deu tambem ordem aos chaouses que gritas-
sem que o sultão lhe fazia aquella graça , e que cada
um houvesse de retirar- se.
Então todos os que tinham já subido ao alto dos mu-
ros do palacio, testemunhas do que acabava de passar-
se, abandonaram a sua resolução. Desceram em poucos
instantes, e cheios de alegria por ter salvado a vida a
um homem que amavam verdadeiramente, deram esta
nova a todos os que estavam á roda d'elles ; espalhou-se
logo por toda a parte a gentalha que estava na praça do
palacio, e os gritos dos chaouses que annunciavam a
56 AS MIL E UMA NOITES

mesma cousa do alto das varandas onde tinham subido,


acabaram de fazel-a publica. A justiça que o sultão aca-
bava de fazer a Aladdin, perdoando-lhe, desarmou a gen-
talha, fez cessar o tumulto, e insensivelmente cada qual
se retirou para sua casa.
Quando Aladdin se viu solto, levantou a cabeça para
a parte do balcão ; e como avistasse o sultão : « Senhor,
disse elle, levantando a voz d'um modo pathetico, sup-
plico a vossa magestade que ajunte uma nova graça á
que acaba de fazer-me : é ter a bondade de declarar qual
é o meu crime. « Qual é o teu crime, perfido ? respon-
deu o sultão ; não o sabes ? sóbe cá cima, continuou el-
le, e eu t'o darei a conhecer »
>.
Subiu Aladdin ; e , depois de ter-se apresentado : « Se-
gue-me », disse-lhe o sultão, andando adiante sem olhar
para elle. Levou-o ao gabinete aberto, e chegando á
porta : « Entra, disse-lhe o sultão , deves saber onde es-
tava o teu palacio ; olha para todas as partes e dize-me
o que é feito d'elle ».
Aladdin olha e nada vê : descobriu todo o terreno
que o seu palacio occupava, mas como não podia adi-
vinhar como pudesse desapparecer, este acontecimento
extraordinario e pasmoso o deixou em tal confusão, que
The impediu de poder responder uma unica palavra ao
sultão .
Impaciente o sultão : ¸ « Dize -me , pois , repetiu a Alad-
pin, onde está o teu palacio e onde está minha filha ? >>
Rompeu então Aladdin o silencio : « Senhor, disse elle ,
bem vejo e confesso que o palacio que mandei construir
não está já no lugar onde estava : vejo que desappare-
ceu, e não posso dizer tambem a vossa magestade onde
póde estar ; mas posso assegurar-lhe que não tenho par-

te alguma n'este acontecimento. Não se me dá do que
é feito do teu palacio , replicou o sultão ; estimo mil ve-
zes mais a minha filha ; quero que me dês conta d'ella,
senão mandar-te-hei cortar a cabeça e nenhuma consi-
-
deração me impedirá de assim o fazer. Senhor, repli-
cou Aladdin, supplico a vossa magestade que me conce-
da quarenta dias para fazer as minhas diligencias ; e se
n'este intervallo não consigo nada, dou -lhe a minha pa-
CONTOS ARABES 57

lavra que trarei a minha cabeça ao pé do seu throno,


para que disponha d'ella á sua vontade . Concedo-te os
quarenta dias que me pedes, disse-lhe o sultão : porém
não imagines abusar da graça que te faço, querendo es-
capar ao meu resentimento : em qualquer lugar da terra
que possas estar, bem saberei achar-te ».
Retirou-se Aladdin da presença do sultão com gran-
de humildade, e n'um estado que fazia pena : atravessou
alguns pateos do palacio com a cabeça baixa, sem ousar
levantar os olhos na confusão em que estava : e os prin-
cipaes officiaes da sua côrte, que lhe deviam mil atten-
ções, ainda que amigos, em vez de chegar-se a elle pa-
ra consolal- o, ou para offerecer-lhe um asylo em sua ca-
sa, lhe voltaram as costas para não o vêr, e para que
elle não pudesse reconhecel -os . Porém ainda que se ti-
vessem chegado a elle para dizer-lhe alguma cousa que
pudesse consolal-o, ou para fazer-lhe offerecimentos de
serviço, não teriam já reconhecido Aladdin, o qual se
. não reconhecia a si proprio , e não estava já em .
si Bem
o deu a conhecer quando se achou fóra do palacio, pois
sem reflectir no que fazia, perguntava de porta em por-
ta e a todos os que encontrava, se não tinham visto o
seu palacio, ou se não podiam dar-lhe novas d'elle .
Estas perguntas fizeram crér a toda a gente que
Aladdin perdêra o juizo : alguns riram-se , porém os mais
cordatos, e particularmente os que tiveram alguma ami-
zade, ou trato com elle, compadeceram-se na verdade
d'elle . Demorou-se tres dias na cidade, indo ora para
uma parte, ora para outra, e comendo sómente o que
The offereciam por caridade, e sem tomar resolução al-
guma.
Finalmente, como não podia já , no estado lastimoso
em que se via, ficar n'uma cidade onde fizera tão bella
figura, sahiu d'ella e tomou o caminho do campo . Des-
viou-se das principaes estradas ; e, depois de ter atra-
vessado alguns campos n'uma incerteza horrenda, che-
gou finalmente á entrada da noite à margem d'um rio ,
e alli teve um pensamento de desesperação : « Aonde
irei buscar o meu palacio ? » disse comsigo . Em que pro-
vincia, em que paiz , em que parte do mundo o acharei,
58 AS MIL E UMA NOITES

e a minha rica princeza tambem, que o sultão me pede ?


Nunca o conseguirei ; melhor é que me livre de tantas
fadigas que não serviriam de cousa alguma, e de tantos
desgostos que me opprimem » . Estava a ponto de dei-
tar-se ao rio, conforme a resolução que acabava de to-
mar, mas pareceu-lhe, como bom musulmano, fiel á sua
religião , que não devia fazel-o sem fazer primeiro a sua
oração. Querendo preparar-se para isto, chegou-se á bor-
da da agua para lavar as mãos e a cara, conforme o
costume do paiz ; porém como esta paragem fosse um
pouco ingreme e banhada pela agua, escorregou , e te-
ria cahido ao rio se não se segurasse a uma pequena
rocha, elevada da terra cousa de dous pés . Por fortuna
sua trazia ainda o annel que o magico africano lhe met-
tera no dedo , antes que descesse ao subterraneo para ir
buscar a preciosa lampada que acabavam de roubar-lhe.
Roçou este annel com bastante força contra a rocha, se-
gurando-se ; no mesmo instante o genio, que lhe appa-
recera no subterraneo onde ò magico africano o fechá-
ra, lhe tornou a apparecer : Que queres ? disse-lhe o ge-
nio ; eis-me aqui prompto a obedecer-te como teu escra-
vo, e de todos os que tem o annel no dedo, eu, e os ou-
tros escravos do annel.
Aladdin, agradavelmente surprezo por apparição tão
pouco esperada na desesperação em que estava, respon-
deu : « Genio, salva-me a vida segunda vez , ensinando-
me onde esta o palacio que mandei construir, ou fazen-
do que seja arrebatado immediatamente para onde esta-
va. O que me pedes, replicou o genio, não é da mi-
nha competencia ; sou sómente escravo do annel ; diri-
-
ge-te ao escravo da lampada . Se é assim, replicou
Aladdin, eu te ordeno, pelo poder do annel , que me
transportes ao lugar onde está o meu palacio , e que me
ponhas debaixo das janellas da princeza Badroulbou-
dour ». Apenas acabou de fallar, logo o genio pegou
n'elle e o transportou para a Africa, no meio d'um gran-
de prado onde estava o palacio, pouco desviado d'uma
grande cidade , e o pôz precisamente debaixo das janellas
do quarto da princeza, onde o deixou . Fez tudo isto
n'um instante .
CONTOS ARABES 59

Não obstante a escuridão da noite, muito bem co-


nheceu Aladdin o seu palacio e o quarto da princeza
Badroulboudour , mas como fosse já alta a noite e tudo
estava socegado no palacio, afastou-se um pouco mais e
assentou-se ao pé d'uma arvore . Alli , cheio de esperan-

B.L
CW VA.
SM.

ça, fazendo reflexão na sua felicidade , que devia a um


puro acaso, achou-se n'uma situação muito mais agra-
davel do que quando fôra preso, e levado diante do sul-
tão, livre do perigo presente de perder a vida . Entrete--
ve -se algum tempo com estes pensamentos agradaveis ;
porém como houvesse cinco ou seis dias que não dor-
mia , não pôde deixar de descançar e dormir, e com
effeito adormeceu ao pé da arvore onde estava.
60 AS MIL E UMA NOITES

No dia seguinte, logo que a aurora principiou a ap-


parecer, foi Aladdin agradavelmente acordado, não só
pelo canto dos passaros que passaram a noite sobre a
arvore, a cuja sombra estava deitado, mas tambem so-
bre as arvores frondosas do jardim do seu palacio. Lan-
çou logo os olhos sobre este admiravel edificio , e sentiu
então uma alegria indizivel de vêr-se a ponto de em
breve apossar-se do seu palacio, e ao mesmo tempo de
possuir ainda uma vez a sua querida princeza Badroul-
boudour. Levantou-se e aproximou - se do quarto da prin-
ceza. Passou algum tempo debaixo de suas janellas , es-
perando que amanhecesse mais e que pudesse avistal- o .
Em quanto esperava, discorria comsigo d'onde podia ter
procedido a causa da sua desgraça ; e , depois de cogitar
muito, ficou certo que toda a sua desgraça procedia de
ter perdido de vista a sua lampada. Culpou -se a si mes-
mo do descuido e do pouco cuidado que tivera de des-
apossar-se d'ella um só instante. O que mais o embara-
çava é que não podia imaginar quem era o invejoso da
sua felicidade . Tel - o-hia logo comprehendido se soubesse
que elle e o seu palacio se achavam então na Africa ;
porém o genio, escravo do annel, não lh'o tinha dito , e
elle não se informára d'isso . O nome só de Africa lhe
teria lembrado o magico, seu inimigo declarado .
Levantava-se a princeza Badroulboudour mais cedo
do que costumava, desde o seu arrebatamento e trans-
porte para Africa pelo artificio do magico africano, cuja
vista até então fora constrangida a supportar uma vez
cada dia, porque era dono do palacio ; mas ella dera-lhe
sempre tão pouca attenção, que não ousára ainda alojar-
se n'elle. Tendo- se vestido, uma de suas escravas, olhan-
do por uma grade, avistou Aladdin . Correu logo a avisar
sua ama. A princeza , que não podia crêr esta nova,
veio apressadamente apresentar-se à janella, e avistou
Aladdin . Abriu-a logo . Com a bulha que fez a princeza
abrindo-a, levantou Aladdin a cabeça , e a cortejou com
ar que expressava o excesso de sua alegria . « Para não
perder tempo, disse-lhe a princeza, foram abrir-vos a
porta occulta ; entrai , e subi » ; e fechou a janella .
A porta occulta estava por baixo do quarto da prin-
CONTOS ARABES 61

ceza. Achou-a aberta , e Aladdin subiu ao quarto da prin-


ceza . Não é possivel expressar a alegria que tiveram
ambos estes esposos de tornar-se a vêr depois de se cre-
rem separados para sempre. Abraçaram-se e deram-se
todas as demonstrações de amor e de ternura que se
póde imaginar, depois de separação tão triste e tão pou-
co esperada como a sua. Depois d'estes abraços , banha-
dos em lagrimas de alegria, assentaram-se, e Aladdin
fallou primeiro : « Princeza, disse elle , antes de fallar- vos
d'outra cousa, supplico-vos em nome de Deus, tanto pe-
lo vosso proprio interesse e pelo do sultão vosso respei-
tavel pai, como pelo meu em particular, que me digaes
o que é feito d'uma lampada velha que deixei sobre a
cornija do salão de vinte e quatro janellas, antes de par-
tir para a caça . - Ah, querido esposo ! respondeu a prin-
ceza ; bem me pareceu que procedia d'essa lampada a
nossa desgraça reciproca, e o que me penalisa é ser eu
mesma a causa . - Princeza , replicou Aladdin , não dei-
teis sobre vós as culpas ; eu sou o culpado , e devia ter
mais cuidado em conserval-a ; cuidemos só em reparar
esta perda, e para isso tende a bondade de contar-me
como isso se passou e em que mãos cahiu » .
Contou então a princeza Badroulboudour a Aladdin o
que se passára na troca da lampada velha pela nova, e
como na noite seguinte, depois de perceber-se do trans-
porte do palacio, se achára pela manhã no paiz desco-
nhecido onde lhe fallava, e que era a Africa ; particula-
ridade que soubera da mesma bocca do traidor que a fi-
zera transportar pela sua arte magica.
<<Princeza, disse Aladdin interrompendo-a, déstes- me
a conhecer o traidor, dizendo -me que estou em Africa
comvosco. É o mais perfido de todos os homens . Porém
não é este o tempo nem o lugar de fazer-vos uma pin-
tura mais ampla das suas maldades . Rogo-vos sómente
que me digaes o que fez da lampada e onde a pôz . -
Elle a traz no seu seio , guardada com muita estimação,
replicou a princeza ; e posso assegurar que a tirou e
desembrulhou na minha presença , para com ella fazer
ostentação . - Minha rica princeza, disse então Aladdin,
não tomeis a mal cançar-vos com tantas perguntas, que
62 AS MIL E UMA NOITES

são igualmente importantes para vós e para mim . Para


tornar ao que mais particularmente me interessa, contai-
me como vos daes com o tratamento de um homem tão
mau e tão perfido. —Desde que estou n'este lugar, re-
plicou a princeza, não me appareceu senão uma vez ca-
da dia ; e estou muito persuadida que a pouca satisfação
que acha nas suas visitas, faz que não me importune
mais vezes. Todas as palavras que me dirige não tendem
senão a quebrar a fé que vos dei e a tomal-o por espo-
so, querendo dar-me a entender que não devo esperar
de jámais tornar-vos a vêr ; que não viveis já, e que
o sultão meu pai vos fez cortar a cabeça. Acrescenta,
para justificar-se, que sois um ingrato , que lhe sois de-
vedor da vossa fortuna, e mil outras cousas que deixo
de dizer. E como não recebe de mim em resposta senão
queixas dolorosas e lagrimas , vê-se constrangido a reti-
rar-se tão pouco satisfeito como quando chega. Não du-
vido, todavia, que a sua intenção seja deixar passar as
minhas mais vivas afflicções, na esperança de que muda-
rei de parecer. Porém, querido esposo, a vossa presença
já dissipou os meus desassocegos . -Princeza , interrom-
peu Aladdin , confio que não é debalde, visto que estão
dissipados, e que creio ter achado o meio de livrar- vos
do vosso inimigo e do meu . Mas para isso é necessario
que vá á cidade . Estarei de volta ao meio dia, e então
communicar-vos - hei qual é meu intento, e o que será
preciso que façaes para contribuir a fazer-lhe ter bom
resultado . Mas para que sejaes avisada , não vos assus-
teis de vêr-me voltar com outro vestido , e dai ordem
que não me façam esperar á porta occulta quando ba-
ter ». Prometteu-lhe a princeza que o esperariam á por-
ta, e que seriam promptos em abrir-lh'a .
Descendo Aladdin do quarto da princeza, e tendo sa-
hido pela mesma porta , olhou para uma e outra par-
te, e avistou um camponez que tomava o caminho do
campo.
Como o camponez caminhasse para além do palacio
e fosse um pouco longe, apertou Aladdin o passo, e ten-
do-o alcançado , propoz-lhe mudar de vestido ; tanto fez,
que n'isso consentiu o componez . Fez-se a troca ao pé
CONTOS ARABES
63
d'um espinheiro , e , separando -se, tomou Aladdin o ca-
minho da cidade . Tendo entrado n'ella , tomou a rua que
ia dar á porta ; e desviando -se das ruas mais frequenta-
das , chegou ao lugar onde cada corporação de mercado-
res e de artistas tinham a sua rua particular. Entrou na
dos droguistas, e dirigindo -se á loja maior e mais bem
sortida, perguntou ao mercador se tinha uns certos pós
que lhe nomeou .
O mercador, que imaginou que Aladdin era pobre, ao
vêl -o com o seu vestido, e que não tinha bastante di-
nheiro para pagal-os , disse-lhe que tinha , mas que eram
caros . Penetrou Aladdin o pensamento do mercador , pu-
xou pela sua bolsa , e deixando vêr peças d'ouro , pediu
meia oitava d'elles. Pesou-a o mercador, embrulhou -a,
e entregando-a a Aladdin, pediu-lhe uma peça d'ouro .
Metteu - lh'a Aladdin na mão, e sem deter -se na cidade
senão o tempo preciso para comer alguma cousa, voltou
ao palacio. Não esperou à porta occulta ; foi- lhe logo
aberta, e subiu ao quarto da princeza Badroulboudour :
<< Princeza, disse-lhe, a aversão que tendes ao vosso rou-
bador, como m'o manifestastes, fará talvez que tenhaes
alguma difficuldade em seguir o conselho que tenho que
dar -vos . Porém permitti-me dizer-vos que importa que
dissimuleis e que vos façaes violencia , se quereis livrar-
vos da sua perseguição , e dar ao sultão , vosso pai e meu
senhor , a satisfação de tornar - vos a vêr . Se quereis , pois,
seguir o meu conselho, continuou Aladdin , principiareis
desde já a vestir - vos com um de vossos mais bellos ves-
tidos ; e, quando o magico africano vier , não ponhaes
difficuldade em recebel -o com todo o bom acolhimento
possivel, sem affectação e sem constrangimento , com ca-
ra risonha, de modo todavia que se ha ainda algum resto
de afflicção possa perceber que se dissipará com o tempo.
Na conversação dai-lhe a conhecer que fazeis esforços pa-
ra esquecer-vos de mim ; e, para que se persuada cada
vez mais da vossa sinceridade , convidai -o a cear comvos-
co, e dai - lhe a entender que gostareis muito de provar do
melhor vinho do seu paiz ; não deixará de o ir buscar .
Então, esperando que volte , deitai n'um dos copos iguaes
áquelle em que costumaes beber, os pós que aqui vos dei-
64 AS MIL E UMA NOITES

xo e pondo-o de parte, avisai a escrava, que vos dá de


beber que vol-o traga cheio de vinho, quando lhes fizer-
des aceno, no que convireis com ella, e que tome bem
sentido em não se enganar. Quando o magico estiver á
mesa, depois de ter comido e bebido tantas vezes quan-
tas julgardes a proposito, mandai trazer o copo em que
estiveram os pós , e trocai vosso copo com o seu ; achará
o favor tão grande, que não o recusará . Beberá sem dei-
xar cousa alguma no copo ; e apenas o tiver bebido, logo
o vereis cahir de costas . Se tendes repugnancia em beber
pelo seu copo, fingi que bebeis , podeis fazel-o sem
constrangimento ; o effeito dos pós será tão prom-
pto , que não terá o tempo de observar se bebeis ou
não ».
Tendo Aladdin acabado : «Confesso-vos, disse-lhe a
princeza, que me faço grande violencia consentindo em
fazer ao magico as antecipações que bem vejo que é
necessario que faça. Porém que resolução não se póde
tomar contra um cruel inimigo ? Eu farei pois o que me
aconselhaes, visto que d'isso não dependem menos o
meu descanço do que o vosso » . Tomadas estas medidas
com a princeza, despediu- se Aladdin d'ella , e foi passar
o resto do dia nos arredores do palacio, esperando que
a noite viesse para aproximar- se da porta occulta.
A princeza Badroulboudour, inconsolavel não só por
vêr-se separada de Aladdin, seu querido esposo , que
amára logo e que continuava a amar ainda, mais por in-
clinação que por obrigação, mas tambem do sultão seu
pai, que ella estimava e de quem era ternamente amada,
tivera sempre um grande descuido de sua pessoa desde
o instante d'esta dolorosa separação . Tinha-se tambem ,
por assim dizer, esquecido do aceio que tanto convém
ás pessoas do seu sexo, particularmente depois de se lhe
ter o magico africano apresentado a primeira vez, e ter
sabido pelas suas escravas, que o reconheceram, que le-
vára a lampada em troca da nova, e que por este en-
gano insigne, tornára-se aborrecido d'ella . Porém a oc-
casião de tirar vingança d'isso como merecia, e mais de-
pressa do que ousára esperal-o, resolveu-a a satisfazer
Aladdin. Assim, logo que se retirou, foram ao seu touca-
CONTOS ARABES 65

dor ; fez-se pentear pelas suas escravas, do modo que lhe


dizia melhor , e tomou um vestido conveniente ao seu in-
tento . A cinta com que se cingiu não era senão ouro e
diamantes engastados , os maiores e os mais sortidos , e
ella acompanhou a cinta de um collar de perolas : as
seis de cada lado eram da mesma proporção da do meio,
que era a maior e a mais preciosa , que as maiores rai-
nhas ter-se-hiam por felizes possuindo um collar com-
pleto da grossura das mais pequenas do da princeza. Os
braceletes , cobertos de diamantes e de rubins, corres-
pondiam maravilhosamente á riqueza da cinta e do col-
lar.
Estando a princeza Badroulboudour inteiramente ves-
tida, consultou o espelho, tomou o parecer de suas escra-
vas sobre todo o seu enfeite, e depois de ter visto que
não lhe faltava nenhum dos encantos que pudesse lison-
jear a louca paixão do magico africano, assentou-se
n'um sophá, esperando que chegasse.
Não faltou o magico á hora costumada . Logo que a
princeza o viu entrar no salão das vinte e quatro janel-
las, onde ella o esperava, levantou-se com todo o seu
apparato de belleza e encantos e indicou -lhe com a mão
o lugar honorifico onde ella esperava que se sentasse
para tomar lugar ao mesmo tempo que elle, civilidade
distincta que não lhe tinha ainda feito.
O magico africano, mais offuscado do resplendor dos
bellos olhos da princeza que do brilho das pedrarias
de que estava enfeitada, ficou muito admirado . O ar ma-
gestoso e gracioso com que ella o recebia, tão opposto
ás repulsas com que o tinha feito até então , o deixou
confuso. Quiz logo sentar-se na borda do sophá ; porém
como visse que a princeza não queria sentar-se sem el-
le se ter sentado onde ella desejava, obedeceu .
Tendo -se o magico africano assentado, a princeza ,
para tiral-o do embaraço em que o via, dirigiu-lhe a fal-
la, olhando para elle de modo que lhe fez crêr que não
The era já odioso , como ella mostrára ser-lhe d'antes, e
disse-lhe : « Admirar-vos -heis sem duvida de vêr-me hoje
muito differente do que me vistes até agora : mas não vos
admirareis quando vos disser que sou d'um temperamen-
TOMO IV . 5
66 AS MIL E UMA NOITES

to tão opposto á tristeza, á melancolia, aos desgostos e


aos desassocegos, que procuro afastal-os com a maior
brevidade possivel, logo que acho que o motivo d'elles
passou. Fiz reflexão ácerca do que me representastes do
destino de Aladdin ; e visto o caracter que conheço no
sultão meu pai, estou persuadida, como vós, que não

póde evitar o effeito terrivel da sua cólera . Assim, ain-


da que teimasse em choral-o toda a minha vida, bem ve-
jo que as minhas lagrimas não o fariam reviver. Razão
por que depois de ter cumprido para com elle, até à se-
pultura, os deveres que o meu amor exigia que lhe ren-
desse, pareceu-me que devia procurar todos os meios de
consolar-me . Eis-aqui os motivos da mudança que estaes
vendo em mim . Para principiar pois a afastar todo o
motivo de tristeza, resolvida a desterral-a inteiramente ,
e persuadida que quereis de boa vontade fazer- me com-
CONTOS ARABES 67

panhia, ordenei que nos preparassem a cêa . Porém co-


mo não tenho senão vinho da China e me acho na Afri-
ca, tive um forte desejo de provar do que ella produz ,
e entendo, se o ha , que me dareis do melhor » .
O magico africano, que considerára como uma cousa
impossivel a felicidade de conseguir tão prompta e tão fa-
cilmente os favores da princeza Badroulboudour, decla-
rou-lhe que não achava termos assás fortes para provar-
lhe o quanto era sensivel ás suas bondades ; e com ef-
feito, para acabar mais cedo uma conversação que lhe
custaria a deixar se se tivesse empenhado mais n'ella,
pôz-se a tratar do vinho da Africa, de que ella acabava
de fallar-lhe, e lhe disse que entre as vantagens de que
podia a Africa gloriar-se, a de dar excellente vinho era
uma dos principaes, particularmente na parte onde ella
se achava ; que tinha um tonel de sete annos, que esta-
va ainda inteiro , e que sem avalial- o em muito , podia
affirmar que excedia em bondade os vinhos mais excel-
lentes do mundo. «Se a minha princeza , acrescentou
elle, quer dar-me licença , irei buscar duas garrafas d'el-
le e voltarei já. - Sentiria dar-vos esse trabalho , disse-
lhe a princeza ; seria melhor que lá mandasseis alguem .
-É necessario que eu mesmo vá, replicou o magico
africano ; ninguem , senão eu , sabe onde está a chave
do armazem, e ninguem, senão eu, sabe tambem o se-
gredo de abril -o . Se isso é assim, disse a princeza , ide
e voltai com brevidade ».
O magico africano, cheio da esperança da sua pre-
tendida felicidade, não correu a buscar o seu vinho de
sete annos, voou e voltou apressadamente . A princeza,
que não duvidára que se apressasse, deitára os pós que
Aladdin lhe trouxera, n'um copo que puzera de parte, e
acabava de mandar servir. Puzeram - se á mesa defronte
um do outro, de modo que o magico tinha as costas
voltadas para o aparador. Offerecendo-lhe do que havia
de melhor, a princeza lhe disse : « Se quereis, dar-vos-
hei o gosto dos instrumentos e das vozes ; porém como
estamos sómente nós ambos, parece-me que a conversa-
ção nos dará mais gosto ». Teve o magico esta escolha
da princeza por um novo favor.
*
68 AS MIL E UMA NOITES

Depois de terem comido, a princeza pediu de beber .


Bebeu á saude do magico ; e tendo bebido : « Tinheis ra-
zão, disse ella, em fazer o elogio de vosso vinho , já-
mais o bebi tão delicioso . Linda princeza, respondeu
elle segurando na mão o copo que acabava de apresen-
tar-lhe ; o meu vinho adquire uma nova bondade com a
approvação que lhe daes. Bebei à minha saude, replicou
a princeza, vereis que tambem conheço o que são bons
vinhos ». Bebeu á saude da princeza . E entregando-lhe o
copo : «< Princeza, disse elle , considero-me feliz por ter
reservado este tonel para tão boa occasião ; confesso
eu mesmo que nunca na minha vida o bebi tão excel-
lente » .
Tendo continuado a comer e a beber, a princeza, que
acabára de encantar o magico africano com as suas fi-
nezas e seus modos affaveis, fez finalmente aceno á mu-
lher , que lhe dava de beber, dizendo ao mesmo tempo
que lhe trouxessem o seu copo de vinho, que enches-
sem tambem o do magico africano e que lh'o apresen-
tassem. Tendo cada um seu copo na mão : « Não sei ,
disse ella ao magico africano, o que costumam praticar
no vosso paiz os que se amam muito, se bebem juntos
como nós fazemos . Na China o amante e a amante se
offerecem reciprocamente os copos, e d'este modo be-
bem á saude um do outro » . Ao mesmo tempo apresen-
tou-lhe o copo que tinha, estendendo a outra mão para
receber o seu . Apressou-se o magico africano em fazer a
troca, como a prova mais certa da total conquista do co-
ração da princeza, o que completou a sua felicidade . An-
tes que bebesse : « < Princeza, disse elle com o copo na
mão ; falta muito aos nossos africanos para saberem cul-
tivar o amor com todas as suas graças, como os chins ;
e instruindo me no que ignorava, aprendo tambem até
que ponto devo ser sensivel á graça que recebo . Nunca
me esquecerei , amavel princeza, de ter recuperado, be-
bendo do vosso copo, uma vida cuja esperança me teria
feito perder a vossa crueldade, se tivesse continuado » .
A princeza Badroulboudour, que se enfastiava muito
do discurso do magico africano : « Bebamos, disse ella
interrompendo-o , continuareis depois o que quereis di-
CONTOS ARABES 69

zer-me ». No mesmo instante levou á bocca o copo que


só tocou com os beiços, em quanto o magico africa-
no se apressou a beber o seu sem deixar uma pinga .
Acabando de deital-o abaixo, como inclinasse um pouco
a cabeça para traz para mostrar a pressa que tinha de
beber, ficou algum tempo n'este estado até que a prin-
ceza, que tinha sempre a beira do copo nos labios , viu
que se lhe toldavam os olhos e que cahia de costas sem
sentidos.
Não foi preciso á princeza ordenar que abrissem ás
escondidas a porta a Aladdin . As suas escravas, que
eram sabedoras do segredo, se tinham postado de espa-
ço em espaço , desde o salão até à entrada da escada,
de maneira que apenas cahiu de costas o magico africa-
no, logo lhe foi aberta a porta quasi no mesmo ins-
tante.
Subiu Aladdin e entrou no salão . Logo que viu o ma-
gico africano estendido sobre o sophá, deteve a princeza
Badroulboudour que se levantára, e que se chegava para
manifestar-lhe a sua alegria abraçando-o : « < Princeza,
disse elle , não é ainda tempo ; tende a bondade de reco-
lher-vos ao vosso quarto , e fazei que me deixem só em
quanto vou trabalhar para fazer -vos transportar á China
com a mesma brevidade com que vos afastastes d'ella » .
Com effeito, tendo a princeza entrado no salão com
as suas escravas e seus eunucos , fechou Aladdin a por-
ta ; chegado que foi ao cadaver do magico africano, que
ficára sem vida, desabotoou a sua véstia e d'ella tirou
a lampada embrulhada do modo que lhe dissera a prin-
ceza. Desembrulhou-a e esfregou-a. Appareceu logo o
genio como de costume. « Genio , disse-lhe Aladdin, cha-
mei-te para ordenar-te da parte da lampada, tua senhora
e ama que estás vendo, que faças que este palacio seja
levado immediatamente á China, ao mesmo lugar d'on-
de fôra trazido aqui » . O genio, depois de ter mostrado
com um aceno de cabeça que ia obedecer, desappare-
ceu. Com effeito foi transportado, e não se sentiram se-
não dous movimentos muito ligeiros : um quando foi ar-
rebatado do lugar em que estava na Africa, e o outro
quando foi posto na China, defronte do palacio do sul-
70 AS MIL E UMA NOITES

tão ; o que se fez n'um intervallo de muito pouca du-


ração.
Desceu Aladdin ao quarto da princeza, e abraçan-
do-a : « Princeza, disse elle , posso assegurar-vos que a
vossa e a minha alegria serão ámanhã pela manhã com-
pletas » . Como não tivesse a princeza acabado de cear
e Aladdin precisasse de comer, mandou a princeza tra-
zer do salão das vinte e quatro janellas os guizados que
n'elle ficaram , e nos quaes não se tinha quasi tocado . A
princeza e Aladdin comeram juntos e beberam do bom
vinho velho do magico africano , depois do que, sem fal-
lar da sua conversação, que não podia ser senão satis-
fatoria, recolheram-se ao seu quarto .
Desde o arrebatamento do palacio de Aladdin e da
princeza Badroulboudour, o sultão, pai d'esta princeza,
não podia consolar- se de a ter perdido, como imaginá-
ra . Não dormia nem de dia nem de noite, e em vez de
evitar tudo o que pudesse conserval-o na sua afflicção ,
era pelo contrario o que buscava com mais ancia. As-
sim, em vez de não ir, como d'antes , ao gabinete do
palacio para satisfazer- se com o deleite d'aquella vista, da
qual não podia saciar- se , ia muitas vezes ao dia renovar
as suas lagrimas, e sepultar-se cada vez mais nas suas
profundas afflicções, com a idéa de não vêr já o que
tanto lhe agradára, e de ter perdido o que mais preza-
va no mundo . Já apontava a aurora quando o sultão foi
ao dito gabinete, na mesma manhã em que o palacio
acabava de ser assentado no seu lugar . Entrando n'el-
le, estava recolhido comsigo e tão penetrado da sua
afflicção , que lançou os olhos de um modo triste para a
parte onde não esperava vêr cousa alguma, e não avis-
tou o palacio . Porém como visse que este vão estava
cheio, imaginou que era o effeito de um nevoeiro . Olhou
com mais applicação, e conheceu que era o palacio de
Aladdin . Então o contentamento e a alegria do coração
succederam-se aos desgostos e á tristeza. Volta ao seu
quarto, apressando o passo, e ordena que lhe sellem e
que lhe tragam um cavallo. Trazem-lh'o , monta, parte,
e parece-lhe que não chegaria ao palacio de Aladdin com
a brevidade que desejava .
CONTOS ARABES 71

Aladdin, que previra o que podia acontecer, levantá-


ra-se ao romper do dia ; e tendo tomado um dos vesti-
dos mais magnificos do seu guarda-roupa, subiu ao sa-
lão das vinte e quatro janellas, d'onde descobriu que o
sultão se vinha chegando. Desceu , e chegou a tempo
para recebel -o á entrada da escada principal, e para aju-
dal-o a apear-se. « Aladdin , disse- lhe o sultão , não pos-
so fallar-vos sem ter visto e abraçado minha filha » .
Acompanhou Aladdin o sultão ao quarto da princeza
Badroulboudour . E a princeza, a quem Aladdin , levan-
tando -se, avisára que se lembrasse que não estava já na
Africa, mas sim na China e na capital do sultão seu pai,
visinha do seu palacio, acabava de vestir-se . Abraçou a
repetidas vezes o sultão, com o rosto banhado em lagri-
mas de alegria, e a princeza da sua parte lhe deu todas
as demonstrações do gosto extremo que tinha de tor-
nal-o a vêr .
Esteve o sultão algum tempo sem poder abrir a boc-
ca para fallar, tão enternecido estava de ter achado a
sua querida filha, depois de a ter chorado sinceramente
como perdida ; e a princeza pela sua parte estava toda
banhada em lagrimas de alegria que tinha de receber o
sultão seu pai.
Fallou finalmente o sultão : « Filha, disse elle , quero
crer que a alegria que tendes de tornar-me a vêr é que
faz que me pareceis tão pouco mudada como se não vos
tivesse acontecido cousa alguma desagradavel . Estou
todavia persuadido que padecestes muito. Ninguem é
transportado n'um palacio todo inteiro como fostes, sem
grandes sustos e terriveis agonias . Quero que me con-
teis tudo o que se passou, e que não me occulteis cou-
sa alguma » >.
Gostou muito a princeza de dar ao sultão seu pai a
satisfação que pedia. « Senhor, disse a princeza, se pa-
reço tão pouco mudada, supplico a vossa magestade
que considere que principiei a respirar desde hontem ao
raiar do dia, com a presença de Aladdin , meu querido
esposo, e meu libertador, que tinha considerado e cho-
rado como perdido para mim, e que a felicidade que
acabo de ter de abraçal-o, restituiu -me ao mesmo estado
72 AS MIL E UMA NOITES

que d'antes. Todo o desgosto, a fallar propriamente, foi


sómente de vêr-me separada de vossa magestade e do
meu querido esposo, não só em razão da inclinação que
tenho a meu marido, mas tambem pelo desassocego em
que estava acerca dos tristes effeitos da cólera de vos-
sa magestade, á qual não duvidava que não devesse
ficar exposto, innocente como era . Padeci menos pela
insolencia do meu roubador, que me fallava uma lin-
guagem que não me agradava . Impedi -o de continuar,
pelo ascendente que soube tomar sobre elle . Além d'is-
so, estava tão pouco constrangida como estou presente-
mente . Pelo que diz respeito ao facto do meu arrebata-
mento, não teve n'elle Aladdin parte alguma ; eu mes-
ma sou a causa d'elle, porém innocentissima ».
Para persuadir ao sultão que dizia a verdade , fez-
lhe a relação do disfarce do magico africano em merca-
dor de lampadas novas para trocar por outras velhas,
do divertimento que tivera fazendo a troca da lampada
de Aladdin, cujo segredo e importancia ignorava , do ar-
rebatamento do palacio e de sua pessoa depois d'esta
troca, e do transporte d'elle e d'ella para Africa com o
magico africano, que fôra reconhecido por duas das suas
escravas, e pelo eunuco que fizera a troca da lampada,
quando teve o desafôro de vir apresentar- se-lhe a pri-
meira vez depois do successo da sua atrevida empresa,
e de fazer lhe a proposta de casar com elle ; finalmente,
da perseguição que padecêra até à chegada de Aladdin ;
das medidas que tomaram juntamente para tirar-lhe a
lampada que trazia comsigo ; como foram bem succedi-
dos, ella particularmente tomando a resolução de dissi-
mular com elle , e finalmente de convidal-o a cear com
ella, até ao copo de vinho misturado, que lhe apresen-
tára. « Quanto ao mais, acrescentou ella , deixo a Alad-
din o dar-vos conta de tudo » .
Poucas cousas teve Aladdin que dizer ao sultão :
« Quando , disse elle , me abriram a porta occulta , quan-
do subi ao salão das vinte e quatro janellas e quando
vi o traidor estendido morto sobre o sophá pela violen-
cia dos pós , como não convinha que a princeza ficasse
alli mais tempo, roguei- lhe que descesse ao seu quarto
CONTOS ARABES 73

com suas escravas e seus eunucos . Fiquei só ; e , depois


de ter sacado a lampada do seio do magico, servi-me
do mesmo segredo de que se servira para arrebatar
este palacio roubando a princeza . Fiz de sorte que o
palacio se achasse no seu lugar, e tive a felicidade de
trazer a princeza a vossa magestade, como m'o ordená-
ra. Não engano a vossa magestade ; e se quer ter o
trabalho de subir ao salão, verá o magico castigado ,
como merecia » .
Para certificar-se inteiramente da verdade, levantou-
se o sultão e subiu ; e quando viu o magico africano
morto, com o rosto já livido pela violencia do veneno ,
abraçou Aladdin com muita ternura , dizendo-lhe : « Filho ,
não tomeis a mal o procedimento que tive para com-
vosco ; o amor paternal me obrigava a isso , e mereço
que me perdoeis o excesso a que me deixei levar.- Se-
nhor, replicou Aladdin, não tenho o menor motivo de
queixa contra o proceder de vossa magestade ; não fez
senão o que devia fazer . Este magico, este infame, este
ultimo dos homens é a causa unica de minha desgraça .
Quando vossa magestade tiver tempo opportuno, far-lhe-
hei a narração de outra maldade que me fez , não me-
nos vil que esta, da qual fui preservado por uma graça
especial de Deus. -Tomarei esse tempo expressamente,
replicou o sultão , e não tardará muito . Porém tratemos
de regosijar-nos , e mandai tirar d'aqui este objecto
odioso » .
Mandou Aladdin levar o cadaver do magico africano ,
com ordem de expôl-o no campo para servir de pasto
aos animaes e aos passaros. O sultão , todavia, depois
de ter mandado que os tambores, os timbales, as trom-
betas e os outros instrumentos annunciassem o regosijo
publico, fez proclamar uma festa de dez dias, para so-
lemnisar a volta da princeza Badroulboudour e de Alad-
din com o seu palacio .
D'este modo é que Aladdin escapou pela segunda
vez do perigo quasi inevitavel de perder a vida ; porém
não foi o ultimo : correu um terceiro , cujas circumstan-
cias vamos relatar .
Tinha o magico africano um irmão mais moço , que
74 AS MIL E UMA NOITES

não era menos habil que elle na arte magica ; póde -se
dizer que o excedia em maldade e artificios perniciosos .
Como não moravam sempre juntos ou na mesma ci-
dade , e algumas vezes um se achava ao levante , em
quanto o outro estava ao poente, cada um pelo seu

lado , não faltavam cada anno a informar-se pela geo-.


mancia, da parte do mundo onde estavam, em que es-
tado se achavam , e se não precisavam de soccorro um
e outro.
Algum tempo depois que o magico africano foi mal
succedido na sua empresa contra a felicidade de Alad-
CONTOS ARABES 75

din, seu irmão mais moço, que tivera novas suas havia
um anno, e que não estava em Africa, mas n'um paiz
muito afastado, quiz saber em que lugar da terra esta-
va, como passava e o que n'elle fazia. Para qualquer
lugar que fosse , levava sempre comsigo o seu quadra-
do geomantico, assim como seu irmão. Péga no quadra-
do, dispõe a area, deita os pontos, tira d'elles as figuras,
e finalmente fórma o horoscopo . Correndo cada casa,
acha que seu irmão não estava já n'este mundo ; n'ou-
tra casa, que fora envenenado e que morrera repentina-
mente ; n'outra, que isto acontecêra na China ; n'outra ,
que fora n'uma capital da China , sita em tal lugar ; e ,
finalmente, que aquelle por quem fôra envenenado, era
homem de baixo nascimento, que casára com uma prin-
ceza, filha de um sultão .
Quando o magico soube qual fôra o triste destino de
seu irmão, não perdeu o tempo em pezares , que não
lhe teriam restituido a vida. Toma logo a resolução de
vingar a sua morte, monta a cavallo e mette -se a cami-
nho para a China. Atravessa planicies, rios, montanhas
e desertos ; e , depois de uma longa jornada, sem parar
em lugar algum, com fadigas incriveis, chegou final-
mente á China, e pouco tempo depois á capital que a
geomancia lhe indicára. Estando certo que não se enga-
nára e que não tomára um reino por outro , pára n'esta
capital e n'ella toma alojamento.
No dia seguinte ao da sua chegada sahe o magico ;
e, passeando pela cidade, não tanto para observar as
bellezas d'ella, que lhe eram mui indifferentes, como
na intenção de principiar a tomar medidas para a exe-
cução do seu intento pernicioso, introduziu-se nos luga-
res mais frequentados e ouviu o que se dizia . N'um lu-
gar onde se passava o tempo a jogar varios jogos e
onde em quanto uns jogavam outros conversavam , uns
ácerca das novidades e dos negocios do tempo , outros
ácerca de seus proprios negocios, ouviu que se entreti-
nham e que contavam maravilhas da virtude e da pie-
dade d'uma mulher retirada do mundo, chamada Fati-
ma, e de seus milagres tambem . Como lhe parecesse
que esta mulher podia ser-lhe util em alguma cousa no
76 AS MIL E UMA NOITES

que meditava, chamou á parte um dos da companhia, e


rogou- lhe que lhe dissesse mais particularmente quem
era a santa mulher e que milagres fazia .
« O que disse- lhe este homem ; não vistes ainda
esta mulher nem ouvistes fallar d'ella ? Faz a admiração
de toda a cidade com seus jejuns, com suas austerida-
des e com o bom exemplo que dá . Á excepção da se-
gunda e da sexta-feira não sahe da sua pequena ermi-
da, e nos dias que se deixa vêr pela cidade faz esmolas
infinitas ; não ha ninguem, accommettido de dûres de
cabeça, que não receba a cura pela imposição de suas
mãos » .
Não quiz o magico saber mais sobre este assumpto ;
perguntou só ao mesmo homem em que bairro da ci-
dade estava a ermida d'esta santa mulher. Ensinou -lh'a
este homem ; com isto, depois de ter concebido e resol-
vido o intento abominavel de que logo fallaremos, para
o saber com mais certeza observou todos os seus passos
o primeiro dia que ella sahiu , depois de ter feito esta
indagação , sem perdel- a de vista até à tarde, em que a
viu entrar na sua ermida . Tendo observado bem o lu-
gar, recolheu-se n'um dos lugares que dissemos , onde
se bebia uma certa bebida quente, e onde se podia pas-
sar a noite conforme a vontade de cada um, particular-
mente no tempo dos grandes calores, pois então n'este
paiz querem antes dormir sobre uma esteira do que na
cama.
O magico, depois de ter satisfeito o dono da casa ,
pagando-lhe a pouca despeza que fizera, sahiu pela
meia noite e foi em direitura á ermida de Fatima, a
santa mulher, nome por que era conhecida em toda a
cidade. Não lhe custou muito a abrir a porta, que esta-
va só fechada com um ferrolho ; tornou -a a fechar, sem
fazer bulha, depois de ter entrado, e avistou Fatima ao
clarão da lua, deitada ao relento, e que dormia sobre
um sophá guarnecido d'uma esteira velha, e encostada
contra a sua cella . Chegou-se a ella ; e depois de puxar
por um punhal que trazia , acordou - a.
Abrindo os olhos, assustou-se muito a pobre Fatima
de vêr um homem prompto a apunhalal-a, encostando-
CONTOS ARABES 77

lhe o punhal contra o peito, prestes a cravar-lh'o : « < Se


gritas , disse elle, ou se fazes a menor bulha, mato-te ;
porém levanta-te, e faze o que te disser » .
Fatima, que estava deitada vestida, ergueu-se tre-
mendo de susto . « Não temas , disse-lhe o magico, peço
sómente o teu vestido, dá-m'o, e toma o meu » . Fize-
ram a troca dos vestidos ; e vestido o magico com o de
Fatima, disse-lhe : « Pinta-me o rosto como o teu , de
modo que me pareça comtigo, e que a côr não se apa-
gue ». Como visse que tremia ainda, para socegal-a, e
para que fizesse o que desejava com mais segurança,
disse-lhe : « Não temas, digo -te ainda uma vez ; juro -te
pelo nome de Deus, que te deixo a vida » . Fatima o
fez entrar na sua cella, accendeu a sua lampada ; e to-
mando de um certo licôr n'um vaso com um pincel, es-
fregou -lhe a cara com elle , e lhe assegurou que a côr
não mudaria, e que tinha o rosto da mesma côr que
ella, sem differença : pôz-lhe depois seu proprio toucado
sobre a cabeça , como um véo, e ensinou-lhe como elle
devia esconder o rosto, andando pela cidade . Finalmen-
te, depois de ter-lhe deitado ao pescoço um grande ro-
sario, que chegava quasi aos joelhos , pôz -lhe na mão o
mesmo bastão que costumava levar, e apresentando-lhe
um espelho : « Olhai , disse ella , vereis que vos pareceis
muito bem commigo. Achou-se o magico como desejava ,
porém não guardou á boa Fatima o juramento que lhe
fizera tão solemnemente : afogou-a ; e, quando viu que
tinha dado o ultimo suspiro, arrastou o seu cadaver pe-
los pés até á cisterna da ermida, e lançou-a n'ella .
O magico, disfarçado na figura de Fatima , a santa
mulher, passou o resto da noite na ermida, depois de
ter-se manchado com um assassinio tão horrendo. No
dia seguinte, pela uma ou duas horas da manhã, ainda
que n'um dia em que a santa mulher não costumava sa-
hir, não deixou de fazel-o , muito persuadido que não
o questionariam a este respeito, e no caso que o fizes-
sem, prompto a responder. Como uma das primeiras
Cousas que fizera quando chegou , fôra ir reconhecer o
palacio de Aladdin e alli projectára fazer o seu papel, to-
mou o seu caminho para esta parte .
78 AS MIL E UMA NOITES

Logo que avistaram a santa mulher, como todo o


povo se persuadia ser ella mesma, foi logo o magico
cercado de uma grande affluencia de gente. Uns se re-
commendavam ás suas orações, outros lhe beijavam a
mão, outros mais circumspectos não lhe beijavam senão
a aba do vestido, e outros , ou fosse que tivessem dôres
de cabeça, ou que sua intenção fosse sómente preca-
vel-as, se inclinavam diante d'ella, para que lhes impu-
zesse as mãos , o que fazia , balbuciando algumas pala-
vras em fórma de orações, e imitava tão bem a santa
mulher, que toda a gente o tomava por ella. Depois de
ter parado algumas vezes para satisfazer esta casta de
gente, que não recebia nem bem, nem mal d'esta im-
posição de mãos , chegou finalmente á praça do palacio
de Aladdin, onde como a affluencia fosse maior, foram
tambem maiores os apertões para chegar-se a elle . Os
mais fortes, e os mais zelosos abriam caminho , e com
isto suscitaram-se desavenças, cuja bulha se ouviu no
salão das vinte e quatro janellas, onde estava a princeza
Badroulboudour.
Perguntou a princeza o que era aquella bulha, e
como não souberam dizer-lhe cousa alguma , ordenou
que fossem vér, e que viessem dar- lhe parte . Sem sahir
do salão, uma de suas escravas olhou por uma janella,
e veio dizer-lhe que a bulha procedia da multidão de
gente que cercava a santa mulher, para fazer- se curar
das dores de cabeça pela imposição de suas mãos .
A princeza que havia já tempo ouvira fallar bem da
santa mulher , mas que não a tinha ainda visto, teve a
curiosidade de querer vêl-a, e de entreter-se com ella.
Como désse a entender alguma cousa d'isso , o chefe
dos eunucos , que estava presente, lhe disse que se o
desejava, era facil mandal-a vir, e que bastava orde-
nal- o . N'isso consentiu a princeza, e logo expediu qua-
tro eunucos com ordem de trazer a pretendida santa
mulher. Logo que os eunucos sahiram da porta do pala-
cio de Aladdin, e que a gente viu que se dirigiam para
a parte onde estava o magico disfarçado, dispersou- se a
multidão, e quando se viu desembaraçado , e que se
chegavam a elle, andou uma parte do caminho com
CONTOS ARABES 79

muita alegria, pois via que o seu embuste tomava um


bom caminho . Um dos eunucos , que lhe dirigiu a falla,
disse-lhe : « Santa mulher, a princeza quer vêr- vos, vinde
comnosco . - Faz-me muita honra a princeza, replicou a
fingida Fatima , estou prompto a obedecer-lhe »; e ao
mesmo tempo seguiu os eunucos que tinham já tomado
o caminho do palacio.
Quando o magico , que com a capa de santidade oc-
cultava um coração diabolico, foi introduzido no salão
das vinte e quatro janellas, e avistou a princeza , prelu-
diou uma oração que continha uma larga enumeração
de votos , e de desejos pela sua prosperidade , e pelo
complemento de tudo o que pudesse desejar. Ostentou
depois toda a sua rhetorica de embusteiro, e de hypocri-
ta para insinuar- se no espirito da princeza, com a capa
de uma grande piedade, e tanto mais facil lhe foi ser
bem succedido quanto ella era naturalmente boa, estava
persuadida que todo o mundo era bom como ella, e
particularmente os que faziam profissão de servir a Deus
no retiro.
Tendo a falsa Fatima acabado a sua longa falla : « Mi-
nha boa mãi, disse-lhe a princeza, agradeço - vos as vos-
sas boas orações, tendo n'ellas grande confiança, e es-
pero que Deus as exaltará ; chegai -vos , e assentai- vos
perto de mim ». Assentou-se a falsa Fatima com modes-
tia affectada ; e continuando então a fallar-lhe : « Minha
boa mãi , disse-lhe a princeza, peço-vos uma cousa que
é preciso conceder-me ; pelo amor de Deus, não m'a re-
cuseis ; quero que vos deixeis ficar na minha compa-
nhia, para entreter-me com a narração da vossa vida, e
para saber de vós , e pelos vossos bons exemplos , como
devo servir a Deus.— Princeza , disse então a fingida
Fatima, supplico- vos que não exijaes de mim uma cou-
sa, na qual não posso consentir, sem desviar-me, e dis-
trahir-me de minhas orações, e de meus exercicios de
devoção. - Não deve isso causar-vos a menor pena, re-
plicou a princeza ; tenho muitos quartos desoccupados,
escolhereis o que melhor vos convier, e n'elle fareis to-
dos os vossos exercicios com a mesma liberdade , como
na vossa ermida » .
80 AS MIL E UMA NOITES

O magico que não tinha outro intento senão intro-


duzir-se no palacio de Aladdin, onde lhe seria muito mais
facil executar a maldade que meditava, assistindo n'elle
debaixo dos auspicios, e da protecção da princeza, do
que se fosse obrigado a ir, e vir da ermida ao palacio
e do palacio á ermida, não fez maiores instancias, para
escusar-se de aceitar o offerecimento officioso da prince-
za. «< Princeza , disse elle, por mais resolução que uma
mulher pobre, miseravel como sou, tomasse de renun - ´
ciar ao mundo , ás suas pompas, e ás suas grandezas ,
não ouso ter o atrevimento de resistir á vontade, e á
ordem de uma princeza tão piedosa, e tão caritativa » .
Com esta resposta do magico, a princeza levantando-
se, lhe disse : <« Levantai-vos , e vinde commigo, quero
mostrar-vos os quartos desoccupados que tenho, para
que escolhaes ». Seguiu a princeza Badroulboudour a
todos os quartos que lhe mostrou, que eram aceadissi-
mos, e muito bem armados, escolheu o que lhe pareceu
mais inferior, dizendo por hypocrisia , que era sufficiente
para ella, e que não o escolhia senão por comprazer á
princeza.
Quiz a princeza reconduzir o perfido ao salão das
vinte e quatro janellas, para fazel-o jantar com ella ;
mas como para comer, fosse preciso que descobrisse o
rosto, que trouxe sempre coberto com o véo até então ,
e receasse que a princeza reconhecesse que não era Fa-
tima a santa mulher, como lhe parecia, rogou-lhe com
tanta instancia que a dispensasse d'isso , representando-
lhe que não comia senão pão, e algumas frutas seccas,
e que lhe permittisse comer alguma cousa no quarto, o
que lhe concedeu . «Minha boa mãi, disse-lhe ella, sois
livre, obrai como se estivesseis na vossa ermida ; vou
ordenar que vos tragam de comer ; porém lembrai- vos
que vos espero logo que tiverdes comido alguma cousa» .
Jantou a princeza , e não faltou a falsa Fatima a vir
ter com ella, logo que soube por um eunuco, a quem
pedira que a avisasse , que se levantára da mesa. « Mi-
nha boa mãi , disse-lhe a princeza, alegro-me muito
com possuir uma santa mulher como vós , que dará hon-
ra a este palacio . A proposito d'este palacio , que vos
CONTOS ARABES 81

parece ? Maз antes que vos mostre peça por peça, di-
zei-me em primeiro lugar o que pensaes d'este salão » .
A esta pergunta, a falsa Fatima, que para melhor
fazer o seu papel, affectára até então ter a cabeça bai-
xa sem a voltar para olhar para uma ou para outra
parte , ergueu-a finalmente, e correu o salão com os
olhos de uma para outra extremidade ; e depois de o ter
bem observado : « Princeza , disse ella, este salão é na
verdade admiravel, e de grande belleza . Tanto quanto
póde julgar uma solitaria, que não entende o que ha de
bello no mundo, parece-me que falta n'elle alguma cou-
sa. Que cousa, minha boa mãi ? replicou a princeza
Badroulboudour. Dizei-m'o , pelo amor de Deus. Quanto
a mim, pareceu-me, e ouvi dizel-o assim, que não fal-
tava nada ; se n'elle falta alguma cousa, eu saberei pro-
cural-a. T « Princeza, replicou a falsa Fatima com grande
dissimulação, perdoai-me a liberdade que tomo ; o meu
parecer, se póde ser de alguma importancia, seria, que
se no alto, ou no meio d'este zimborio, houvesse um
ovo de rochedo suspenso, não haveria outro salão igual
nas quatro partes do mundo , e seria o vosso palacio a
maravilha do universo . Boa mãi , perguntou a prince-
za, que passaro é esse chamado rochedo e onde poderia
achar- se um ovo d'esses ? — Princeza, respondeu a falsa
Fatima, é passaro de grandeza prodigiosa, que habita
no mais alto do monte Caucaso, e o architecto de vos-
so palacio póde alcançar- vos um ».
Depois de ter agradecido á falsa Fatima o seu bom
parecer, ao que lhe parecia, a princeza Badroulboudour
continuou a entreter- se com ella sobre outros assumptos,
mas não se esqueceu do ovo de rochedo, do qual espe-
rava fallar a Aladdin logo que voltasse da caça. Havia
seis dias que partira, e o magico , que não o ignorava ,
quiz aproveitar-se da sua ausencia. Voltou no mesmo
dia pela tarde, quando a falsa Fatima acabava de des-
pedir-se da princeza , e se recolhia ao seu quarto .
Chegando, subiu ao quarto da princeza, que tinha en-
trado n'elle havia um instante ; saudou -a, e abraçou-a ;
mas pareceu-lhe que o recebia com alguma indifferença .
« Princeza, disse elle, não acho em vós a mesma alegria
TOMO IV . 6
82 AS MIL E UMA NOITES

que costumo achar. Aconteceu alguma cousa na minha


ausencia, que vos desagradasse , ou causasse algum des-
gosto, ou descontentamento ? Em nome de Deus , não
m'o occulteis ; tudo farei para satisfazer-vos , se está na
minha possibilidade . - É pouca cousa, replicou a prin-
ceza, e dá-se -me tão pouco d'isso, que não imaginei
que reflectisse no meu rosto para fazer-vos reparar
n'esta alteração . Porém, visto que contra a minha es-
pectativa achaes em mim alguma mudança, não dis-
simularei a causa d'ella, que é de mui pouca consequen-
cia. Parece -me a mim, assim como a vós, continuou a
princeza Badroulboudour, que o nosso palacio era o mais
soberbo, o mais magnifico, e o mais completo que havia
no mundo. Dir-vos-hei todavia o que me veio ao pensa-
mento depois de ter examinado bem o salão das vinte e
quatro janellas. Não achaes commigo que não haveria
nada mais que desejar, se um ovo de rochedo fosse sus-
pendido no alto, ou no meio do zimborio ? - Princeza ,
replicou Aladdin, basta que acheis que n'elle falta um ovo
de rochedo para eu achar n'elle o mesmo defeito . Vereis
pela diligencia que vou fazer para a reparação , que não
ha cousa alguma que não faça por vosso respeito >> .
No mesmo instante largou Aladdin a princeza Ba-
droulboudour : subiu ao salão das vinte e quatro janel-
las, e alli, depois de tirar do seio a lampada que trazia
sempre comsigo, para qualquer lugar que fosse , desde
o perigo que correra, por se ter descuidado de tomar
esta precaução, esfregou-a . Appareceu-lhe logo o genio :
<< Genio, disse-lhe Aladdin, falta a este zimborio um ovo
de rochedo suspenso no alto ; eu te peço em nome da
lampada que tenho, que faças de sorte que seja este de-
feito reparado ».
Apenas Aladdin acabou de proferir estas palavras,
deu logo o genio um grito tão estrondoso , e tão espan-
toso, que o palacio estremeceu, e Aladdin não pôde se-
gurar-se em pé. « O quê, miseravel ! disse-lhe o genio
com voz de fazer tremer o homem mais resoluto, não
te basta que meus companheiros e eu fizessemos tudo a
teu respeito, para pedir-me ainda com uma ingratidão
sem igual, que te traga meu amo, e que o suspenda no
CONTOS ARABES 83

meio da abobada d'este zimborio ? Esse attentado mere-


cia que fosseis reduzidos a cinzas, tu , tua mulher, e o
teu palacio . Porém tens a fortuna de não ser author
d'elle , e de não vir directamente da tua parte a preten-
são . Sabe quem é o verdadeiro author d'elle : é o irmão
do magico africano, teu inimigo , que exterminaste como
merecia. Está no teu palacio, disfarçado em Fatima, a
santa mulher, a quem assassinou ; e elle é que suggeriu
a tua mulher que fizesse a petição perniciosa que me
fizeste . O seu intento é matar-te ; deves tomar sentido ».
E desappareceu .
Não perdeu Aladdin nenhuma das ultimas palavras do
genio ; tinha ouvido fallar de Fatima, a santa mulher, e
não ignorava de que modo ella curava as dûres de ca-
beça, como se dizia . Voltou ao quarto da princeza, e
sem fallar do que acabava de acontecer-lhe assentou- se,
dizendo que uma grande dôr de cabeça o assaltára
de repente, e encostou a mão à testa. Ordenou logo a
princeza que fossem chamar a santa mulher, e em quan-
to foram, contou a Aladdin por que modo ella se achava
no palacio, onde lhe dera um quarto.
Chegou a falsa Fatima, e depois de entrar : « Vinde ,
minha boa mãi , disse-lhe Aladdin , alegro-me muito de
vér-vos, e de achar-vos aqui para felicidade minha. Es-
tou atormentado com uma terrivel dôr de cabeça, que
me accommetteu n'este instante . Peço o vosso soccorro
pela confiança que tenho nas vossas boas orações, e es-
pero que não me recusareis a graça que fazeis a tantos
afflictos d'este mal ». Acabando de proferir estas pala-
vras, levantou -se abaixando a cabeça, e a falsa Fatima
chegou-se mais perto, mettendo a mão a um punhal , que
trazia á cinta debaixo do vestido . Aladdin, que a obser-
vava, a agarrou pela mão antes que puxasse pelo pu-
nhal, e atravessando-lhe o peito com o seu, a lançou
morta no chão. « Meu rico esposo , que fizeste ? clamou
a princeza assustada ; mataste a santa mulher ! - Não,
princeza, respondeu Aladdin sem perturbar-se, não ma-
tei Fatima, mas sim um malvado que ia assassinar-me
se não o tivesse prevenido . É este mau homem que es-
taes vendo, acrescentou elle, tirando-lhe o véo , que ma-
*
844 AS MIL E UMA NOITES

tou a Fatima da qual crestes compadecer-vos , accusan-


do me da sua morte, e que se disfarçára com os seus
vestidos para apunhalar-me . E para que o conheçaes me-
lhor, era irmão do magico africano, vosso roubador » .
Aladdin lhe contou depois por que via soubera estas par-
ticularidades, depois do que mandou levar o cadaver.
D'esta sorte é que se livrou da perseguição dos dous
irmãos magicos . Passados poucos annos morreu o sultão
n'uma grande velhice . Como não deixou filhos varões, a
princeza Badroulboudour, como legitima herdeira lhe suc-
cedeu, e communicou o poder supremo a Aladdin . Rei-
naram juntos largos annos e deixaram uma illustre pos-
teridade .
« Senhor, disse a sultana Scheherazada, acabando a
historia das aventuras acontecidas por meio da lampada
maravilhosa ; vossa magestade sem duvida terá observa-
do, na pessoa do magico africano, um homem entregue
á paixão desmedida de possuir thesouros por caminhos
reprehensiveis, dos quaes não gozou por se tornar indi-
gno d'elles . Em Aladdin, vé pelo contrario um homem,
que de baixo nascicimento se eleva á realeza , servindo- se
dos mesmos thesouros que se offerecem, sem buscal- os ,
senão á proporção que d'elles precisa para conseguir o
fim que se propôz . No sultão, terá aprendido quanto se
perde, ou ao menos se arrisca , faltando a uma prompta ,
exacta, e prudente administração da justiça, mas tambem
quão perigosa possa vir a ser qualquer arrebatada pre-
cipitação, que impede os mais bem intencionados juizes
a ponderar certas regras de equidade antes de effectuar
o castigo, por bem merecido que fosse, e que não ha ac-
cusação tão plausivel , que suspendesse os arbitros da
vida, e da morte, de ouvir o accusado. Finalmente terá
tido horror aos attentados dos dous malvados magicos ;
um d'elles sacrifica a sua vida para possuir thesouros, e
o outro a sua vida e a sua religião á vingança de um
malvado como elle , e que como elle recebe tambem o
castigo da sua maldade ».
O sultão das Indias manifestou á sultana Schehera-
zada, sua esposa, que estava muito satisfeito dos prodi-
gios que acabava de ouvir da lampada maravihosa, e
CONTOS ARABES 85

que os contos que lhe narrava cada noite lhe agradavam


muito. Com effeito, eram divertidos e quasi sempre sa-
sonados de uma boa moral . Bem via que a sultana os fa-
zia succeder engenhosamente uns aos outros, e não des-
gostava que lhe désse occasião por este meio de suspen-
der, a seu respeito, a execução do juramento que fizera
tão solemnemente de não ter uma mulher senão uma
noite, e de mandal-a matar no dia seguinte . Não tinha
já quasi outro pensamento senão vêr se conseguiria fa-
zer-lhe esgotar a fonte dos contos .
N'esta intenção , depois de ter ouvido o fim da his-
toria de Aladdin e de Badroulboudour, mui diversa do
que se lhe contára até então, logo que despertou , avisou
a Dinazarda, e a acordou , perguntando á sultana que
acabava tambem de acordar , se tinha chegado ao fim de
seus contos.
<< Ao fim dos meus contos, senhor ! respondeu a sul-
tana, sentindo-se da pergunta . Muito longe estou d'isso ;
o numero d'elles é tão grande , que não me seria possi-
vel a mim mesmo dizel-o precisamente a vossa mages-
tade . O que receio, senhor, é que vossa magestade se
desgoste e se cance de ouvir-me, antes que me falte
com que entretel - o sobre esta materia. - Riscai esse re-
ceio da imaginação , replicou o sultão, e vejamos o que
tendes de novo que contar-me » .
A sultana Scheherazada, animada com estas palavras
do sultão das Indias, principiou a contar-lhe uma nova
historia n'estes termos : « Senhor, disse ella , entretive
muitas vezes a vossa magestade com algumas aventuras
acontecidas ao famoso califa Haroun Alraschid . Aconte-
ceram-lhe grande numero de outras, das quaes a que
vou contar-vos não é menos digna da vossa curiosida-
de ».

AVENTURAS DE HAROUN ALRASCHID

Algumas vezes, como vossa magestade não ignora ,


e como póde têl-o experimentado, estamos em arrebata-
mentos de alegria tão extraordinaria , que communica-
86 AS MIL E UMA NOITES

mos logo esta paixão aos que se chegam a nós , ou par-


ticipamos facilmente da sua. Algumas vezes estamos tam-
bem n'uma melancolia tão profunda, que somos insup-
portaveis a nós mesmo, e que bem longe de poder di-
zer a causa d'ella, se nol-a perguntassem, não poderia-
mos achal-a nós mesmos se a procurassemos .
Estava um dia o califa n'este estado , quando Giafar,
seu grão-visir, fiel e amado, veio apresentar-se-lhe. Este
ministro o achou só, o que lhe acontecia raras vezes, e
como percebesse ao chegar-se a elle que estava sepulta-
do n'um humor sombrio, e que nem levantava os olhos
para vêl-o, parou , esperando que se dignasse lançal-os
sobre elle.
Levantou finalmente o califa os olhos, e olhou para
Giafar, mas desviou-os logo, ficando na mesma postura,
tão immovel como d'antes .
Como o grão-visir não observasse cousa alguma des-
agradavel nos olhos do califa , que o encarou pessoalmen-
te, foi o primeiro a fallar-lhe : « Commendador dos cren-
tes, disse elle, vossa magestade me permittirá que lhe
pergunte d'onde póde proceder a melancolia que mos-
tra ter, e da qual sempre me pareceu que era tão pou-
co susceptivel . É verdade, visir, respondeu o califa
mudando de situação, que d'ella sou pouco susceptivel,
e sem ti não me teria percebido d'aquella em que me
achas, e na qual não quero ficar mais . Se não ha nada
de novo que te obrigasse a vir , tu me darás o gosto de
inventar alguma cousa para me fazer dissipar a melan-
colia . - Commendador dos crentes, replicou o grão- visir
Giafar, o meu dever só me obriga a vir aqui, e tomo a
liberdade de fazer lembrar a vossa magestade que elle
mesmo se impôz a obrigação de informar-se em pessoa
da policia que quer se observe na sua capital , e nos ar-
redores. Hoje é o dia que tem determinado para se dar
a esse trabalho ; e esta é a occasião mais propria que se
offerece para dissipar as nuvens que offuscam a sua ale-
gria costumada. Tinha-me esquecido , replicou o califa,
e tu me fazes lembrar muito a proposito ; vai pois mu-
dar de vestido , em quanto da minha parte farei a mesma .
cousa.
CONTOS ARABES 87

Tomou cada qual um vestido de mercador estran-


geiro, e com este disfarce sahiram sós por uma por-
ta secreta do jardim do palacio , que dava sobre o cam-
po . Deram quasi volta á cidade pelos arredores até
ás margens do Euphrates, n'uma distancia assás longe
da porta da cidade que havia d'este lado, sem ter ob-
servado cousa alguma contra a boa ordem . Atravessaram
este rio no primeiro batel que se apresentou, e depois
de ter acabado de dar a volta da outra parte da cidade
opposta á que acabavam de deixar, tornaram a tomar o
caminho da ponte que fazia a communicação d'ella .
Passaram esta ponte, em cuja extremidade encontra-
ram um cego avançado em annos que pedia esmola .
Desviou-se o califa, e metteu-lhe na mão uma moeda de
ouro.
No mesmo instante o cego lhe pegou na mão e o
deteve : «< Caridosa pessoa, disse elle, quem quer que se-
jaes , que Deus inspirou para dar-me esmola, não me re-
cusareis a graça que vos peço de me dar um bofetão,
mereci-o, e um maior castigo tambem » . Proferidas estas
palavras, largou a mão do califa para deixar-lhe a liber-
dade de dar-lhe um bofetão, mas receando que passasse
adiante sem dar-lh'o , agarrou -se ao seu vestido.
O califa pasmado da petição e da acção do cego :
« Bom homem, disse elle, não posso conceder-te o que
me pedes ; guardar-me-hei muito de manchar o mereci-
mento da minha esmola com o mau trato que pretendes
que te faça ». Proferidas estas palavras fez um esforço
para desembaraçar-se do cego.
O cego, que suspeitára a repugnancia do seu bemfei-
tor, pela experiencia que já tinha desde muito tempo ,
fez maior esforço para segural -o : « Senhor, replicou el-
le, perdoai a minha ousadia e a minha importunação ;
dai - me, pelo amor de Deus, um bofetão, ou aceitai a es-
mola que me déstes ; não posso aceital -a senão com es-
ta condição, sem contravir a um juramento solemne, que
fiz perante Deus ; e se soubesseis a razão, concordarieis
commigo, que a pena é muito leve » .
O califa, que não queria demorar-se mais tempo, ce-
deu á importunação do cego , e deu-lhe um bofetão as-
88 AS MIL E UMA NOITES

sás leve. Largou-o logo o cego, agradecendo-lhe, e aben-


çoando-o ; continuou o califa o seu caminho com o grão-
visir, mas a alguns passos d'alli, disse áquelle : « É
preciso que o motivo que induziu este cego a portar-se
assim com todos os que lhe dão esmola, seja um moti-
vo grave . Tomára saber qual foi esse motivo : assim
volta, e dize-lhe quem sou ; que não deixe de achar-se
amanhã no palacio, á hora da oração da tarde, e que que-
ro fallar-lhe >> .
Retrocedeu o grão- visir, deu a sua esmola ao cego ,
e depois de ter-lhe dado um bofetão, deu-lhe a ordem, e
veio ter com o califa.
Entraram na cidade, e passando por uma praça , acha-
ram n'ella um grande numero de espectadores que esta-
vam observando um mancebo ricamente vestido , monta-
do n'uma egoa que corria á rédea solta á roda da pra-
ça , e a maltratava cruelmente, fatigando-a e esporean-
do a sem descanço algum, de modo que estava toda em
escuma e em sangue .
O califa, pasmado da deshumanidade do mancebo , pa-
rou para perguntar se alguem sabia que motivo tinha
para maltratar assim a sua egoa, e soube que o ignora-
vam, mas que havia já tempo que todos os dias, e á mes-
ma hora, lhe dava este penoso exercicio .
Continuaram a marchar, e o califa disse ao grão- vi-
sir que observasse bem tudo, e que não faltasse a tra-
zer-lhe no dia seguinte este mancebo á mesma hora que
o cego.
Antes que o califa chegasse ao palacio , n'uma rua por
onde havia tempo que não passára, observou um edificio
novamente construido, que lhe pareceu ser o palacio de
algum grande da sua côrte . Perguntou ao grão -visir se
sabia a quem pertencia ; o grão - visir respondeu que o
ignorava, mas que ia informar-se d'isso .
Com effeito perguntou a um visinho que lhe disse
que esta casa pertencia a Cogia Hassan, denominado
Alhabbal, em razão da profissão de cordoeiro que lhe vi
ra elle mesmo exercer n'uma grande pobreza, e que sem
saber por que parte a fortuna o favorecéra, tinha ad-
quirido tão grandes cabedaes, que sustentava mui honro-
CONTOS ARABES 89

sa e esplendidamente a despeza que fizera mandando-a


construir.
Foi o grão -visir ter com o califa , e deu-lhe conta do
que acabava de saber : « Quero ver esse Cogia Hassan
Alhabbal, disse-lhe o califa ; vai dizer-lhe que se ache
tambem amanhã no meu palacio á mesma hora que os
outros dous » . Não faltou o grão-visir a executar as or-
dens do califa.
No dia seguinte , depois da oração da tarde , entrou o
califa no seu quarto, e o grão-visir introduziu logo os
tres personagens de que temos fallado, e os apresentou
ao califa . Prostraram-se todos tres perante o throno do
sultão, e tendo-se levantado, perguntou o califa ao cego
como se chamava . « Chamo-me Baba Abdalla » > , respon-
-
deu o cego. Baba-Abdalla, replicou o califa, o teu mo-
do de pedir esmola me pareceu hontem tão estranho, que
se não me contivesse por certas considerações , guardar-
me-hia de ter a complacencia que tive para comtigo.
Ter-te-hia impedido desde então de dar mais ao publico
o escandalo que lhe dás. Mandei-te pois vir aqui, para
saber de ti qual é o motivo que te induziu a fazer um
juramento tão indiscreto como o teu , e pelo que me dis-
seres, julgarei se obraste bem, e se devo permittir-te
que continues n'um modo de obrar que me parece de
pessimo exemplo. Dize-me pois , sem occultar- me cousa
alguma, d'onde te veio esse pensamento extravagante ;
não me occultes cousa alguma , pois quero absolutamen-
te saber a verdade d'isso » .
Baba-Abdalla, intimado com esta reprehensão, pros-
trou-se segunda vez perante o throno do califa ; e depois
de ter-se levantado : « Commendador dos crentes , disse
logo, peço humildemente perdão a vossa magestade da
ousadia com que exigi e o forcei a fazer uma cousa, que
na verdade parece extravagante . Reconheço o meu cri-
me ; porém como não conhecesse então a vossa mages-
tade, imploro a sua clemencia, e espero que attenderá á
minha ignorancia. Quanto a vossa magestade taxar o
que faço d'extravagancia, confesso que na verdade o
é, e a minha acção deve parecer tal aos olhos dos ho-
mens, mas quanto a Deus, é uma penitencia inui modica
90 AS MIL E UMA NOITES

d'um peccado enorme que commetti , e que não expiaria


ainda que todos os mortaes, uns após outros, me enches-
sem a cara de bofetões . D'isso será vossa magestade o
juiz, quando pela narração da minha historia, que vou
contar-lhe, obedecendo ás suas ordens, lhe tiver dado a
conhecer qual é esta culpa enorme » .

HISTORIA DO CEGO BABA- ABDALLA

Commendador dos crentes , continuou Baba-Abdalla,


nasci em Bagdad, com algum cabedal, que tinha herdado
de meu pai, e de minha mãi , que ambos morreram pou-
cos dias depois um do outro . Ainda que estivesse em ten-
ra idade , não me portei todavia como mancebo que o
gastasse em pouco tempo com despezas inuteis , e na de-
vassidão . Pelo contrario, de nada me esqueci para au-
gmental-o com minha industria , com minhas applicações ,
e com os trabalhos a que me dava ; finalmente chegaram
as minhas riquezas a ponto de possuir oitenta camélos,
que alugava aos mercadores de caravanas, que me ren-
diam grossas sommas, de cada viagem que fazia a diversas
partes da extensão do imperio de vossa magestade , aon-
de os acompanhava. No meio d'esta felicidade , e com um
forte desejo de enriquecer ainda mais, um dia, como vol-
tasse de Balsora sem carga com os meus camêlos, que lá
conduzira carregados de fazendas de embarque para as
Indias, e como os fizesse pastar n'uma paragem mui
afastada de povoado, e onde o bom pasto me fizera de-
morar, um derviche a pé, que ia a Balsora, chegou - se
a mim e assentou-se a meu lado para descançar . Pergun-
tei-lhe d'onde vinha, e aonde ia : fez -me as mesmas per-
guntas ; e tendo satisfeito a nossa curiosidade de parte a
parte, tendo-nos convidado um ao outro, puzemo -nos a
comer juntos.
Em quanto comiamos, depois de ter-nos entretido de
muitas cousas indifferentes, disse-me o derviche que n'um
lugar pouco afastado d'aquelle em que estavamos, sabia
de um thesouro cheio de riquezas, que ainda que os meus
CONTOS ARABES 91

oitenta camélos fossem carregados d'ouro e das pedra-


rias que d'elle se pudessem tirar, quasi que não se co-
nheceria a falta .
Esta boa nova me admirou, e me enlevou ao mesmo
tempo ; a alegria que tive, fazia que já não me conhecia.
Não me parecia o derviche capaz de enganar-me , assim
lancei-me nos seus braços , dizendo-lhe : « Bom derviche,
bem vejo que pouco se vos dá dos bens do mundo ; e
assim de que pode servir- vos o conhecimento d'este the-
souro ? Sois só, e d'elle não podeis levar senão muito
pouca cousa ; ensinai-me onde está, com elle carregarei
os meus oitenta camêlos, e far- vos-hei presente d'um ,
em reconhecimento do bem, e do gosto que me tiverdes
feito » .
Pouca cousa offerecia, é verdade, porém era muito ,
ao que me parecia , visto o excesso de avareza que se
apoderára de repente do meu coração , desde que me fi-
zera esta confidencia ; e olhava as setenta e nove cargas,
que me deviam ficar, como quasi cousa nenhuma, em
comparação d'aquella de que me privaria, dando-lh'a .
O derviche que viu a minha estranha paixão para as
riquezas, não se escandalisou todavia do offerecimento
desarrazoavel que acabava de fazer-lhe : « Irmão , disse-
me sem perturbar-se, bem vêdes que o que me offere-
ceis , não é proporcionado ao beneficio que de mim pre-
tendeis . Podia dispensar-me de fallar-vos do thesouro,
e guardar o meu segredo, mas , o que de boa vontade
quiz dizer-vos a este respeito, póde dar-vos a conhecer
a boa intenção que tinha, e que tenho ainda de ser -vos
prestadio , e de dar- vos occasião que vos lembreis de mim
para sempre, fazendo a vossa, e a minha fortuna . Tenho
pois outra proposta mais justa e razoavel a fazer-vos ,
vós sois quem deve saber se vos convém. Estaes dizen-
do, continuou o derviche, que tendes oitenta camêlos ,
estou prompto a levar-vos aonde está o thesouro , nós os
carregaremos , vós e eu, com tanto ouro e pedrarias,
quantas puderem levar, com a condição , que quando
os tivermos carregados, ceder-me-heis metade com sua
carga, e guardareis para vós a outra metade ; depois
do que separar-nos-hemos, e os levaremos aonde bem
92 AS MIL E UMA NOITES

nos parecer, vós da vossa, e eu da minha parte. Vós


estaes vendo que a repartição nada tem que não seja
justo, e que se me daes quarenta camêlos, tereis tam-
bem por minha via com que comprar um milheiro
d'elles ».
Não podia contestar que a condição que o derviche
me fazia, não fosse justissima, sem fazer todavia caso
das grandes riquezas que me caberiam aceitando-a, con-
siderava como uma grande perda o ceder metade dos
meus camêlos, particularmente quando considerava que
o derviche não seria menos rico que eu . Finalmente, pa-
gava já com ingratidão um beneficio puramente gratuito,
que não tinha ainda recebido do derviche ; mas não ha-
via que vacillar, era preciso aceitar a condição, ou re-
solver-me a arrepender-me toda a minha vida, de ter,
por culpa minha, perdido a occasião de fazer uma for-
tuna extraordinaria.
No mesmo instante ajuntei os meus camêlos e partimos
juntos . Depois de termos andado algum tempo , chegȧ-
mos a um valle assás espaçoso, mas cuja entrada era
mui estreita . Não poderam os meus camélos passar se-
não um a um ; porém como o terreno se alargasse , acha-
ram meio de caminharem todos juntos sem embaraçar-
se. As duas montanhas, que formavam este valle , termi-
nando n'um meio circulo na extremidade, eram tão altas,
tão escarpadas e tão impraticaveis, que não havia que
recear que mortal algum nos pudésse jamais descobrir .
Chegados a estas duas montanhas : « Não vamos mais
longe, disse-me o derviche, mandai parar vossos ca-
mélos, e deital-os de barriga, no espaço que estaes vendo ,
para não termos trabalho em carregal- os ; feito isto pro-
cederei á abertura do thesouro >» .
Fiz o que o derviche me dissera e fui logo ter com
elle . Achei-o com uma pederneira na mão, e ajuntava
raminhos seccos para accender lume . Estando acceso, lan-
çou n'elle perfume, pronunciando algumas palavras,
cujo sentido não percebi , e levantou-se logo pelos ares
uma grande fumarada. Dividiu esta fumarada, e no mes-
mo instante, ainda que o rochedo que havia entre as
duas montanhas, e que se elevava mui alto em linha
CONTOS ARABES 93

perpendicular, pareceu não ter apparencia alguma de


abertura, fez-se todavia uma como uma especie de porta
de dous batentes, construida no mesmo rochedo, e da
mesma materia, com artificio admiravel.

Esta abertura expôz a nossos olhos , n'uma grande


concavidade feita n'este rochedo , um palacio magnifico,
executado antes pelo trabalho dos genios que pelo dos
homens, pois não parecia que homens pudessem lem-
brar-se de uma empresa tão atrevida e tão maravilhosa.
Porém, commendador dos crentes , agora é que faço
esta observação a vossa magestade, pois não a fiz en-
tão. Nem sequer admirei as riquezas infinitas que via
94 AS MIL E UMA NOITES

por todos os lados , e sem demorar-me a observar a eco-


nomia que guardaram na arrumação de tantos thesouros,
qual aguia que cahe sobre a presa , lancei-me sobre o pri-
meiro montão de moedas d'ouro que se apresentou a
meus olhos , e principiei a deital-as n'um dos saccos que
trazia já expressamente, quanto julguei poder levar. Os
saccos eram grandes, e tel-os-hia de boa vontade enchido
todos, mas era preciso proporcional- os ás forças de meus
camêlos.
Fez o derviche o mesmo que eu fazia, porém perce-
bi que apanhava de preferencia as pedrarias, e como
me fizesse comprehender a razão d'isso, segui o seu
exemplo, e levamos muito mais de todas as qualidades
de pedras preciosas do que d'ouro amoedado. Acabamos
finalmente de encher todos os nossos saccos , e carregá-
mos os camelos . Não restava já senão fechar o thesou-
ro e ir-nos embora.
Antes de partir, entrou o derviche no thesouro ; e ,
como houvesse n'elle grandes vasos de todos os feitios,
e outras materias preciosas, observei que foi buscar den-
tro d'um d'esses vasos uma pequena boceta de certa
madeira que eu não conhecia, que a metteu no seio,
depois de ter-me mostrado que não havia n'ella senão
uma especie de pomada.
Fez o derviche a mesma ceremonia para fechar o
thesouro, que fizera para abril- o, e depois de ter pro-
nunciado certas palavras, fechou-se a porta do thesouro,
e o rochedo nos pareceu tão inteiro como d'antes .
Repartimos então os nossos camêlos , que fizemos
marchar com as cargas . Puz-me à frente dos quarenta
que reservei para mim, e o derviche à frente dos outros
que lhe cedi.
Desfilámos por onde entrámos no valle , e marchámos
juntos até à estrada real, onde deviamos separar- nos, o
derviche para continuar a sua jornada para Balsora, e eu
para voltar a Bagdad. Para agradecer-lhe um tão grande
beneficio, empreguei os termos mais energicos , e os que
pudessem provar-lhe mais o meu reconhecimento , de
ter-me preferido a outro qualquer mortal para fazer-me
participante de tantas riquezas. Abraçámo-nos com mui-
CONTOS ARABES 95

ta alegria, e depois de ter-nos despedido, apartámo-nos


cada um para o seu lado .
Tinha apenas dado alguns passos para alcançar os
meus camélos, quando o demonio da ingratidão e da
inveja se apoderou de meu coração ; lastimava a perda
dos meus quarenta camêlos, e ainda mais as riquezas
que levavam. « Não precisa o derviche de todas estas ri-
quezas, dizia commigo, é o senhor do thesouro, e terá
quantas quizer » : assim , entreguei -me á mais negra ingra-
tidão, e determinei repentinamente roubar-lhe os camê-
los com as suas cargas .
Para executar o meu plano, principiei por mandar
parar os meus camêlos . Depois corri no alcance do der-
viche, a quem eu chamava com toda a minha força, pa-
ra dar-lhe a entender que tinha ainda alguma cousa a
dizer-lhe, e acenei -lhe que mandasse tambem parar os
seus, e que me esperasse . Ouviu a minha voz e parou .
Depois de o ter alcançado : « Irmão, disse- lhe, ape-
nas vos larguei , lembrou-me uma cousa, na qual não
pensára d'antes, e nem talvez vós mesmo. Sois um bom
derviche, acostumado a viver com todo o socego, livre
do cuidado das cousas do mundo, e sem outros embara-
ços que o de servir a Deus . Não sabeis talvez em que
trabalho vos mettestes encarregando- vos d'um tão gran-
de numero de camêlos . Se quizesseis crêr-me, não leva-
rieis senão trinta, e creio que tereis ainda muita diffi-
culdade em conduzil- os . Podeis fiar-vos em mim, d'isso
tenho a experiencia. —- Creio que tendes razão, replicou
o derviche, que não se via em estado de poder dispu-
tar-me cousa alguma ; e confesso , acrescentou elle , que
n'isso não fizera reflexão . Principiava já a estar inquieto
ácerca do que me representaes . Escolhei pois os dez que
quizerdes, levai-os, e ide com Deus » . Puz de parte dez,
e depois de os ter separado, encaminhei - os para irem
ajuntar-se com os meus. Não cuidava achar no derviche
uma tão grande facilidade a deixar-se persuadir ; isto au-
gmentou a minha cubiça, e imaginei que não teria maior
difficuldade em alcançar outros dez . Com effeito, em vez
de agradecer-lhe o rico presente que acabava de fazer-
me : « Irmão, disse-lhe ainda , pela parte que tomo no
96 AS MIL E UMA NOITES

vosso descanco, não posso resolver-me a apartar -me de


vós sem rogar-vos ainda uma vez que considereis o
quanto trinta camêlos carregados são difficeis de condu-
zir, a um homem como vós particularmente, que não
estaes acostumado a este trabalho . Achar-vos-hieis mui-
to melhor se me fizesseis um favor igual ao que acabaes
de fazer-me . O que vos digo, como estaes vendo , não
é tanto por amor de mim, e por minha conveniencia,
como para dar-vos maior gosto. Alliviai-vos pois de mais
outros dez camélos, a favor d'um homem como eu, a
quem não custa mais ter cuidado em cem do que em
um só » .
Fez o meu discurso o effeito que desejava, e cedeu-
me o derviche sem resistencia alguma os dez camélos
que lhe pedia, de modo que ficou sómente com vinte ;
e vi-me dono de sessenta cargas, cujo valor excedia as
riquezas de muitos soberanos. A vista d'isto pareceu-me
que devia ficar contente.
Mas, commendador dos crentes, semelhante a um
hydropico que quanto mais bebe, mais sêde tem, senti-
me mais inflammado que d'antes no desejo de possuir
os outros vinte que restavam ainda ao derviche .
Renovei as minhas solicitações, os meus rogos e as
minhas importunações, para persuadir o derviche que
me concedesse ainda dez dos vinte : concedeu-m'os de
boa vontade : e quanto aos outros dez que lhe restavam,
abracei-o, beijei - o e fiz -lhe tantos carinhos, pedindo que
não m'os recusasse, e preenchesse com isto a obrigação
que lhe deveria eternamente, que me alegrou inteira-
mente annunciando-me que n'isso consentiria . <« Fazei
d'elles um bom uso, irmão, acrescentou elle, e lembrai-
vos que Deus póde tirar-nos as riquezas assim como
nol-as dá, se não as empregamos em soccorrer os po-
bres, que se compraz em deixar na indigencia expressa-
mente para dar lugar aos ricos de merecerem por suas
esmolas, uma maior recompensa no outro mundo.
Era tão grande a minha cegueira, que não estava
em estado de aproveitar-me d'um conselho tão saudavel .
Não me satisfez tornar a possuir os meus oitenta camê-
los, e em saber que estavam carregados d'um thesouro
CONTOS ARABES 97

inestimavel que devia fazer-me o mais afortunado dos


homens. Veio-me à lembrança, que a pequena boceta
de pomada, em que pegára o derviche, e que me mos-
trára, podia ser alguma cousa mais preciosa que todas
as riquezas de que lhe era devedor. « O lugar onde o der-
viche a tomou , dizia commigo , e o cuidado que teve de
lançar mão d'ella, me faz crêr que encerra alguma cou-
sa mysteriosa ». Isto me determinou a querer possuil-a.
Acabava de abraçal - o, despedindo-me d'elle. « A propo-
sito, disse-lhe, tornando-me a chegar a elle, que quereis
fazer d'esta pequena boceta de pomada ? Parece- me tão
pouca cousa, que não vale a pena leval-a ; rogo-vos que
m'a deis de presente, porque um derviche como vós, que
renunciou ás vaidades do mundo, não precisa de po-
mada ».
Oxalá que me tivesse recusado esta boceta ! Porém
ainda que o quizesse fazer, não me conhecia já, era
mais forte que elle, e muito determinado a tirar-lh'a á
força, afim de que para minha inteira satisfação não se
dissesse que levára alguma cousa do thesouro, por maior
que fosse a obrigação que lhe devia .
Longe de m'a recusar, o derviche a tirou logo do
seu seio, e apresentou-m'a de muita boa vontade : « Aqui
a tendes, irmão, disse-me, aceitai -a ; que isto não seja
motivo para não ficardes contente ; se posso fazer mais
alguma cousa para servir-vos, basta dizer-m'o, estou
prompto a satisfazer-vos » .
Tendo a boceta nas mãos , abri-a : e examinando a
pomada : « Visto que estaes prompto para servir-me em
tudo, disse-lhe, rogo-vos que me digaes qual é o uso
particular d'esta pomada. O uso d'ella é pasmoso e
maravilhoso, replicou o derviche . Se applicaes uma pou-
ca d'esta pomada á roda do olho esquerdo e sobre a
palpebra, fará apparecer diante de vós todos os thesou-
ros que estão occultos no seio da terra, mas se a appli-
caes ao olho direito, tornar-vos-ha cego » .
Queria eu mesmo fazer experiencia d'um effeito tão
admiravel. « Pegai na boceta, disse ao derviche, apre-
sentando-lh'a, e applicai-me vós mesmo d'essa pomada
ao olho esquerdo. Entendeis isto melhor que eu ; estou
TOMO IV.
AS MIL E UMA NOITES
98
impaciente por fazer a experiencia d'uma cousa que me
parece incrivel » .
Quiz de boa vontade o derviche ter este trabalho ;
fez -me fechar o olho esquerdo , e applicou -me a poma-

da. Tendo acabado, abri o olho, e experimentei que me


dissera a verdade . Vi com effeito um numero infinito de
thesouros cheios de riquezas tão prodigiosas, e tão di-
versas, que não me seria possivel fazer a enumeração
d'elles com exactidão . Mas como fosse obrigado a ter o
olho direito fechado com a mão, o que isso me moles-
CONTOS ARABES 99

tava, roguei ao derviche que me applicasse tambem


d'esta pomada á roda d'este olho .
<< Estou prompto a fazel - o, disse- me o derviche, po-
rém deveis lembrar-vos, acrescentou elle, que vos avi-
sei que se a applicaes sobre o olho direito, cegareis lo-
go. Tal é a virtude d'esta pomada ; deveis conformar-
vos com ella » .
Longe de persuadir-me que o derviche me dizia a
verdade, pelo contrario imaginei que havia ainda algum
novo mysterio que queria encobrir-me. « Irmão, conti-
nuei sorrindo, bem vejo que quereis enganar-me ; não
é natural que essa pomada faça dous effeitos tão oppos-
-
tos um ao outro . —A cousa é todavia como vos digo,
replicou o derviche, tomando o nome de Deus por teste-
munha, e deveis crêr-me sob a minha palavra, pois não
sei encobrir a verdade » .
Não quiz fiar-me na palavra do derviche, que me fal-
lava como homem honrado ; o desejo insuperavel de con-
templar a meu commodo todos os thesouros da terra, e
talvez de gozar d'elles todas as vezes que quizesse ter
este gosto, fez que eu não quizesse seguir as suas adver-
tencias nem persuadir- me de uma cousa, que todavia era
mais que verdade , como o experimentei logo depois por
desgraça minha .
E
Na prevenção em que estava, imaginei que se es-
ta pomada tinha a virtude de fazer-me vêr todos os
thesouros da terra, applicando-a sobre o olho esquerdo ,
teria talvez a virtude de pôl- os á minha disposição , ap-
plicando-a sobre o direito. N'este pensamento apertei
com o derviche para applicar-m'a elle mesmo à roda do
olho direito, porém recusou constantemente fazel- o :
« Depois de ter-vos feito um tão grande beneficio , irmão ,
disse-me, não posso resolver-me a fazer-vos um tão
grande mal ; considerai bem vós mesmo que desgraça é
a de ser privado da vista, e não me reduzaes á triste ne-
cessidade de comprazer-vos n'uma cousa que tereis de
arrepender-vos toda a vossa vida » .
Fez o derviche toda a resistencia possivel, mas co-
mo visse que estava em estado de forçal-o a isto : « <Vis-
to que o quereis absolutamente , disse-me , vou conten-
*
100 AS MIL E UMA NOITES

tar-vos » . Pegou n'uma pouca d'esta pomada fatal e ap-


plicou-m'a então sobre o olho direito, que guardava fe-
chado ; mas, ai de mim ! quando o abri, não vi senão
trevas espessas, e fiquei cego d'ambos os olhos, como es-
taes vendo .
« Ah, desgraçado derviche ! clamei no mesmo instan-
te ; o que me predissestes é mais que verdade . Fatal cu-
riosidade ! acrescentei eu , cubiça insaciavel das riquezas,
em que abysmo de desgraças me precipitastes ! Bem co-
nheço agora que sou o author d'ellas, mas vós, querido
irmão, clamei ainda, dirigindo -me ao derviche, que sois
tão caritativo e tão benefico, por entre tantos segredos
maravilhosos que conheceis, não tendes algum para res-
tituir-me a vista ? -Desgraçado, respondeu-me então o
derviche, não me foi possivel evitar- te esta desgraça ;
porém tu não tens senão o que mereces, e a cegueira
do coração é que te attrahiu a do corpo . É verdade que
tenho segredos ; tu pudeste sabel-o no pouco tempo
que estive comtigo , mas não tenho nenhum para resti-
tuir-te a vista . Dirige-te a Deus, se crês que ha um ; só
elle t'a póde restituir; tinha-te dado riquezas que não
merecias ; tirou-t'as, e vai dal- as por minhas mãos a
homens que não serão ingratos como tu ».
Mais não me disse o derviche, e não tinha que re-
plicar-lhe ; deixou-me só , cheio de confusão e sepultado
n'um excesso de afflicção que não póde expressar-se, e
depois de ter ajuntado os meus oitenta camélos , levou-os
e continuou a sua jornada até Balsora .
Roguei-lhe que não me abandonasse n'este estado
lamentavel, e que ao menos me conduzisse até á pri-
meira caravana, mas não deu ouvidos aos meus rogos,
nem a meus gritos . Assim, privado da vista e de tudo o
que possuia no mundo, teria morrido de afflicção e de
fome, se no dia seguinte uma caravana , que voltava de
Balsora, não me quizesse receber caritativamente , e le-
var-me a Bagdad .
D'um estado que me igualava a principes, se não
em forças e em poder, ao menos em riquezas e em ma-
gnificencia, vi-me reduzido á mendicidade , sem recurso
algum . Foi pois forçoso resolver-me a pedir esmola, o
CONTOS ARABES
101
que fiz até agora ; porém para expiar o meu crime para
com Deus, impuz-me ao mesmo tempo a pena de um bo-
fetão da parte de cada pessoa que tivesse compaixão da
minha miseria.
« Eis-aqui finalmente , commend a dor dos crentes, o
<
motivo do que pareceu hontem tão estranho a vossa
magestade , e do que deve ter- me feito incorrer na sua
indignação ; peço-lhe perdão ainda uma vez , como seu
escravo, sujeitando- me a receber o castigo que mereci .
E se se digna pronunciar sobre a penitencia que me im-
puz , estou persuadido que a achará mui leve e mui in-
ferior ao meu crime » .
Tendo o cego concluido a sua historia, disse - lhe o
califa : « Baba-Abdalla , é grande o teu peccado, mas seja
Deus louvado por conhecer es a enormidade d'elle , e pe-
la penitencia publica que fizeste até agora. Basta , de-
ves de hoje em diante continual -a em particular , não
cessando de pedir perdão a Deus em todas as orações
que estás obrigado a fazer cada dia em razão de tua re-
ligião ; e para que não sejas desviado pela precisão de
mendigar , faço-te uma esmola , que continuará toda a tua
vida, de quatro drachmas de prata por dia , do meu bol-
so, que o meu grão- visir te mandará dar ; assim não
te vás ainda e espera que tenha executado a minha or-
dem » .
Proferidas estas palavras prostrou-se Baba-Abdalla
ante o throno do califa , e levantando-se deu-lhe os agra-
decimentos, desejando- ĺhe toda a casta de felicidades e
de prosperidades .
O califa Haroun Alraschid , contente da historia de
Baba- Abdalla e do derviche , dirigiu- se ao mancebo que
vira maltratar a sua egoa e pe rguntou-lhe pelo seu no-
me, como fizera ao cego ; o ma ncebo disse - lhe que se
chamava Sidi Nouman .

<< Sidi Nouman, disse-lhe então o califa , eu vi aman-


sar cavallos toda a minha vida , e algumas vezes eu
mesmo os amansei , mas nunca vi pical -os de um modo
tão barbaro como picavas hontem a tua egoa na praça ,
com grande escandalo dos espectadores , que murmura-
vam altamente ; não fiquei menos escandalisado que el-
102 AS MIL E UMA NOITES

les e pouco faltou que me désse a conhecer, contra mi-


nha vontade, para remediar essa transgressão . O teu ar
todavia não me indica que sejas um homem barbaro,
cruel ; quero crêr que não obras assim sem motivo, vis-
to que sei que não é a primeira vez , e que ha já muito
tempo que cada dia dás este mau tratamento á tua egoa ;
quero saber qual é a causa d'isto, e mandei - te chamar
para que m'o digas ; sobretudo , dize- me a cousa como
é na realidade , e não me occultes nada » .
Percebeu Sidi Nouman muito bem o que o califa exi-
gia d'elle ; esta narração lhe causava desgosto ; mudou
de côr algumas vezes, e deixou vêr, contra sua von-
tade , quão grande era o embaraço em que se achava.
Foi todavia preciso resolver- se a declarar o motivo d'el-
le ; assim, antes de fallar, prostrou-se ante o throno do
califa, e depois de levantar-se ia a principiar para sa-
tisfazer o califa, mas ficou como suspenso, menos as-
sustado da magestade do califa, perante quem estava ,
do que da natureza da narração que tinha de fazer-
lhe.
Por maior que fosse a impaciencia natural de ser o
califa obedecido nas suas vontades, não manifestou to-
davia dissabor algum do silencio de Sidi Nouman ; bem
viu que de necessidade se acharia embaraçado pela sua
presença, ou que estaria intimidado do tom com que lhe
fallára, ou finalmente que no que tinha a dizer-lhe hou-
vesse talvez cousas que queria occultar.
« Sidi Nouman, disse-lhe o califa para animal- o , re-
cobra o teu sangue frio, e persuade-te que não é a mim
que contas o que te pergunto, mas a algum amigo que
t'o pede. Se ha alguma cousa n'essa narração que te pe-
nalise , e que te pareça que poderia offender-me, per-
dôo-te desde já ; socega pois inteiramente ; falla-me fran-
camente, e não me dissimules cousa alguma , como se
fallasses com o melhor de teus amigos » .
Sidi Nouman, animado com as ultimas palavras do
califa, dirigiu-lhe finalmente a palavra : « Commendador
dos crentes, disse elle, por maior que seja o embaraço
em que deve achar-se qualquer mortal na presença da
magestade e do throno, sinto- me todavia com bastan-
CONTOS ARABES 103

te força para crêr que este embaraço respeitoso não me


tolherá a falla, até ao ponto de faltar á obediencia que
vos devo, dando-vos satisfação, ainda sobre qualquer ou-
tra cousa que não seja o que exige de mim presente-
mente . Não me atrevo a dizer que sou o mais perfeito
dos homens ; não sou bastante mau para ter commettido ,
ou ainda mais para ter tido a vontade de commetter cou-
sa alguma contra as leis, que possa dar-me occasião de
temer a severidade d'ellas . Por boa que seja a minha in-
tenção, reconheço que não fui isento de peccar por igno-
rancia ; aconteceu-me isso ; n'este caso não digo que te-
nha confiança no perdão que vossa magestade quiz con-
ceder-me, sem me ter ouvido . Sujeito-me pelo contrario
á sua justiça e a ser castigado, se o mereci ; confesso
que o modo com que trato a minha egoa ha algum tem-
po, como vossa magestade foi testemunha, é estranho ,
cruel, e de pessimo exemplo, mas espero que achará o
motivo bem fundado, e que julgará que sou mais digno
de compaixão que de castigo ; porém não devo deixal - o
na incerteza mais tempo, com um preambulo fastidioso .
Eis-aqui o que me aconteceu » .

HISTORIA DE SIDI NOUMAN

Commendador dos crentes, continuou Sidi Nouman ,


não fallo a vossa magestade do meu nascimento ; não
tem bastante esplendor para merecer da sua parte atten-
ção alguma . Quanto aos bens da fortuna, os meus ante-
passados , pela sua economia, me deixaram quanto podia
desejar para viver como homem honrado, sem ambição ,
e sem ser pesado a ninguem .
Com estas vantagens, a unica cousa que podia dese-
jar para completar a minha felicidade , era achar uma
mulher amavel ; mas não quiz Deus conceder-m'a. Pelo
contrario deu-me uma que desde o dia que se seguiu ás
nossas nupcias, principiou a apurar a minha paciencia
de um modo que não póde explicar-se senão aos que ti-
verem estado expostos a uma semelhante prova. Como
é costume fazer os nossos casamentos sem vêr, e sem
104 AS MIL E UMA NOITES

conhecer aquellas com quem devemos casar, vossa ma-


gestade não ignora que um marido não tem motivo de
queixar-se, quando acha que a mulher que lhe cahiu por
sorte não é muito feia, que não é contrafeita, e que os
bons costumes, o bom senso e o bom procedimento des-
culpam alguma leve imperfeição do corpo, que pode-
ria ter.
A primeira vez que vi minha mulher com a cara
descoberta, depois de m'a terem trazido a minha casa,
com as ceremonias costumadas, alegrei-me de vêr que
não me tinham enganado na descripção que me fizeram
de sua belleza ; achei-a á minha satisfação, e agradou-
me.
No dia seguinte ás nossas nupcias, serviram-nos um
jantar de alguns guizados ; fui onde estava a mesa
posta, e como não visse minha mulher, mandei-a cha-
mar ; depois de ter-me feito esperar bastante tempo , che-
gou. Dissimulei a minha impaciencia e puzemo-nos á
mesa ; principiei pelo arroz , que tirei com uma colher,
como é costume.
A minha mulher, pelo contrario, em vez de servir-se
de colher, como fazem todos, tirou de um estojo que
trazia na algibeira, uma especie de esgaravatador dos ou-
vidos, com o qual principiou a tomar o arroz , e a leval-o
á bocca grão a grão , pois não podia conter mais.
Pasmado d'este modo de comer: « Amina, disse- lhe,
pois era este o seu nome, aprendestes na vossa familia
a comer o arroz d'esse modo ? comeis assim porque
sois uma fraca comedora , ou porque quereis contar os
grãos, para não comer mais uma vez que a outra ? Se
obraes assim para poupar, e para ensinar-me a não ser
prodigo, não tendes que recear por essa parte, e posso
assegurar- vos que nunca nos arruinaremos, procedendo
d'essa sorte . Temos, graças a Deus, com que viver com-
modamente, sem privar - nos do necessario . Não vos cons-
tranjaes, senhora, e comei como eu cômo » . O ar affavel
com que lhe fazia estas advertencias parecia merecer
alguma resposta officiosa , mas sem dizer uma unica pa-
lavra, continuou sempre a comer do mesmo modo, e
para desgostar-me mais , não comeu mais arroz senão de
CONTOS ARABES 105

longe em longe ; e em vez de comer outros guizados,


contentou-se com levar á bocca de quando em quando
um pouco de pão migado, pouco mais ou menos , o que
poderia comer um pardal .
Escandalisou -me a sua teima ; imaginei , todavia, para
não lhe desagradar e para desculpal - a, que não estava
acostumada a comer com homens, ainda menos com ; um
marido, em cuja presença lhe tinham talvez ensinado,
que devia ter uma circumspecção que levava muito lon-
ge por simplicidade . Cuidei tambem que podia ter almo-
çado , ou se não almoçára, que fazia tenção de comer
sósinha, e em liberdade ; estas considerações foram par-
te para não lhe dizer mais cousa alguma que pudesse
escandalisal-a, ou dar-lhe algum signal de descontenta-
mento. Depois de ter jantado, retirei-me com o mesmo
ar, como se não tivese dado motivo de descontentamento
pelos seus modos extraordinarios , e deixei-a sósinha.
Á cea foi a mesma cousa ; no dia seguinte , e todas
as vezes que comiamos juntos, portava-se do mesmo mo-
do . Bem via que não era possivel que uma mulher pu-
desse viver com o pouco sustento que tomava, e que
havia n'isso algum mysterio que não conhecia ; fez-me is-
to tomar o partido de dissimular . Fingi que não reparava
nas suas acções , na esperança que com o tempo se acos-
tumaria a viver commigo como desejava, mas era balda-
da a minha esperança , e não tardei muito a convencer-
me d'isso.
Uma noite que parecia a Amina estar eu bem ador-
mecido, levantou - se devagarinho , e observei que se
vestia com grandes precauções para não fazer bulha, com
receio de acordar-me ; não podia perceber porque razão
se desaccommodava a taes horas, e a curiosidade de sa-
ber o que queria fazer, me fez fingi um profundo som-
no . Acabou de vestir-se, e passado um instante, sahiu
do quarto sem fazer a menor bulha. Apenas sahiu , le-
vantei-me logo, deitando o meu vestido sobre os hom-
bros ; tive tempo de vêr por uma janella que dava para
o pateo, que ella abriu a porta da rua , e sahiu.
Corri logo á porta, que deixou meio aberta, e com o
favor do clarão da lua , segui-a até que a vi entrar n'um
106 AS MIL E UMA NOITES

cemiterio que ficava perto da nossa casa ; fui então an-


dando até ao cabo de um muro que terminava no cemi-
terio ; e depois de ter-me acautelado para não ser visto ,
vi Amina com uma goule . Vossa magestade não ignora
que as goules, de ambos os sexos , são demonios errantes
pelos campos. Habitam ordinariamente nos edificios arrui-
nados, d'onde se arrojam de surpreza sobre os passagei-
ros que matam, e cuja carne comem . Na falta de passa-
geiros, vão de noite aos cemiterios saciar -se com os mor-
tos que desenterram .
Fiquei em extremo assustado quando vi minha mu-
lher com esta goule : desenterraram um morto que fô-
ra enterrado no mesmo dia ; e a goule cortou pedaços
de carne por differentes vezes, que comeram juntas,
assentadas na borda da cova. Entretinham-se mui soce-
• gadamente, fazendo um banquete tão cruel e tão deshu-
mano, mas eu estava muito apartado, e não me foi pos-
sivel ouvir cousa alguma da sua conversação, que devia
ser tão estranha como o seu banquete, cuja lembrança
me faz ainda estremecer.
Tendo acabado este horrivel banquete, lançaram o
resto do cadaver na cova, que tornaram a encher com a
mesma terra que tiraram ; deixei-as acabar, e fui a to-
da a pressa para nossa casa. Entrando , deixei a porta da
rua meio aberta como a achára ; e, depois de ter entra-
do no meu quarto, tornei-me a deitar, e fingi dormir.
Pouco tempo depois entrou Amina, sem fazer bulha ; des-
piu-se e tornou-se a deitar do mesmo modo, alegre , co-
mo imaginei, de ter sido tão bem succedida, sem que eu
tivesse percebido cousa alguma.
Cheio o espirito de uma acção tão barbara e tão abo-
minavel como a que acabava de presenciar, com a repu-
gnancia que tinha de vêr-me deitado ao lado da que
a commettera, estive muito tempo sem poder adormecer.
Dormi todavia, mas com o somno tão leve, que a pri-
meira voz que se ouviu para chamar á oração publica da
madrugada, me acordou ; vesti-me e fui á mesquita.
Depois da oração sahi fóra da cidade , e passei a ma-
nhã passeando pelos jardins, e cuidando no partido que
tomaria para obrigar minha mulher a mudar de modo
CONTOS ARABES
107
de vida ; des app rovei todas as vias de violencia que me
vieram á lembrança , e resolvi não empregar senão as
da brandura , para retiral-a da desgraçada inclinação que
tinha. Com estes pensamentos cheguei insensivelmen-
te até minha casa, onde entrei justamente á hora do
jantar.
Logo que Amina me viu , mandou servir o jantar e
puzemo -nos á mesa ; como vi que persistia sempre em co-
mer o arroz grão a grão : « Amina, disse-lhe com toda a
moderação possivel , sabeis quanto estranhei no dia que
se seguiu ás nossas nupcias , quando vi que não comieis
senão arroz em tão pouca porção , e de um modo que
qualquer outro marido , que não fosse eu , se teria escan-
dalisado ; sabeis tambem que me contentei com dar - vos
a conhecer a pena que isso me causava, rogando - vos que
comesseis tambem de outras viandas que vistes na me-
sa, e que houvera cuidado de preparar de diversos mo-
dos , para vêr qual era vosso gosto. Desde esse tempo ,
vistes a nossa mesa sempre servida do mesmo modo ,
mudando todavia alguns dos guizados , para não comer
sempre das mesmas cousas . Foram todavia inuteis as mi-
nhas advertencias , e até hoje não cessastes de usar do
mesmo modo , e de causar -me o mesmo desgosto ; guar-
dei silencio, porque não quiz constranger-vos e sentiria
que o que vos digo agora vos causasse o menor dissa-
bor: mas, Amina, dizei-me : as viandas que nos servem
á mesa não são melhores que a carne de morto ? » .
Apenas pronunciei estas ultimas palavras , logo Ami-
na , que percebeu muito bem que a observára de noite,
entrou a enfurecer-se de tal modo que excede a imagi-
nação ; accendeu-se o seu rosto, os olhos lhe sahiram
das orbitas e escumou de raiva .
Este estado horroroso em que a via , me encheu de
espanto : fiquei como immovel, e sem poder defender- me
da horrivel maldade que meditava contra mim , e da
qual ficará logo vossa magestade pasmado . No excesso
da sua cólera , pegou n'um vaso de agua que achou
á mão , metteu n'ella os dedos, balbuciando por entre
os dentes algumas palavras que não percebi e deitando-
mé d'esta agua na cara, disse- me com tom furioso : « Des-
108 AS MIL E UMA NOITES

graçado, recebe o castigo da tua curiosidade, e torna-te


em cão >».
Apenas Amina, que eu não conhecia ainda por ma-
gica, vomitou estas palavras diabolicas , de repente me

vi mudado em cão . O pasmo e o susto que tive por uma


mudança tão repentina e tão pouco esperada, me impe-
diram que cuidasse logo em fugir, o que lhe deu tem-
po de pegar n'um pau para maltratar- me. Com effeito,
deu-me tantas pancadas, que não sei como não fiquei al-
li morto ; cuidei escapar da sua raiva, fugindo para o pa-
teo, mas correu atraz de mim com a mesma furia, e ape-
CONTOS ARABES 109

sar da agilidade com que corria de uma para outra par-


te para evital-as, não fui bastante destro para livrar-me
d'ellas, e foi preciso levar outras muitas. Cançada final-
mente de dar-me e de correr atraz de mim, e desespe-
rada de não me ter matado, como desejava, imaginou um
novo meio de fazel-o ; abriu alguma cousa a porta da rua,
para esmagar-me quando quizesse passar para escapar-
lhe. Cão como era, tive suspeitas do seu pernicioso in-
tento, e como o perigo presente dá algumas vezes idéa
para conservar a vida, tomei tambem as minhas medi-
das ; observando os seus movimentos enganei a sua vigi-
lancia, e passei assás rapidamente para salvar a vida e
illudir a sua maldade, e pude escapar, só com a ponta do
rabo um pouco esfolada.
A dôr que senti não deixou de fazer-me gritar, e la-
drar correndo pela rua , o que fez sahir contra mim al-
guns cães, que me deram dentadas . Para escapar-lhes ,
metti-me na loja d'um vendedor de cabeças, de linguas
e de pés de carneiros cozidos , onde me salvei.
Tomou logo o meu hospede o meu partido com mui-
ta compaixão, enxotando os cães que corriam para al-
cançar-me, e que queriam entrar em sua casa. Quanto a
mim, foi meu primeiro cuidado metter-me n'um canto,
onde fugi da sua vista ; não achei todavia em sua casa
o asylo e a protecção que esperava . Era um d'esses su-
persticiosos em ultimo grau, que com pretexto que os
cães são immundos, não acham bastante agua, nem sa-
bão para lavar seus vestidos, quando casualmente um
cão os tocou, passando perto d'elles . Depois de se terem
retirado os cães, que me deram caça , fez quanto pôde
para deitar-me fóra no mesmo dia, mas eu estava escon-
dido , e fóra do seu alcance . Assim passei a noite na lo-
ja contra a sua vontade, e precisava d'este descanço para
refazer-me dos maus tratos que Amina me dera .
Para não enfastiar a vossa magestade com circums-
tancias de pouca consequencia, não me demorarei em
particularisar-lhe as tristes reflexões, que fiz então so-
bre a minha metamorphose ; far-lhe-hei sómente obser-
var que no dia seguinte, tendo o meu hospede sahido an-
tes de amanhecer para comprar as provisões , voltou car-
110 AS MIL E UMA NOITES

regado de cabeças , de linguas e de pés de carneiros , e


que depois de abrir a sua loja, e em quanto expunha a
sua fazenda á venda, sahi do meu cantinho, e fugia,
quando vi alguns cães da visinhança, que vieram ao
cheiro d'estas viandas, á roda da loja do meu hospede ,
esperando que lhes deitasse alguma cousa ; metti-me en-
tre elles em postura de supplicante .
O meu hospede, pelo que me pareceu, considerando
que não tinha comido , desde que me refugiára em sua
casa, conheceu-me, e deitou-me bocados maiores, e mais
vezes que aos outros cães. Tendo acabado estas liberali-
dades, quiz entrar de novo na sua loja, olhando para el-
le, e fazendo-lhe festa com o rabo de um modo que po-
dia dar-lhe a conhecer que supplicava que me fizesse
ainda este favor. Porém foi inflexivel e oppôz- se ao meu
intento, com um pau na mão, e com ar tão desapieda-
do , que fui constrangido a afastar-me .
Via-me pois na necessidade de me ir embora, e pa-
rei diante da loja de um padeiro, que muito pelo con-
trario do vendedor de cabeças de carneiro, que a melan-
colia devorava, me pareceu um homem alegre , e de bom
humor, e que na realidade o era . Almoçava então , e
ainda que não lhe tivesse dado indicio algum de ter pre-
cisão de comer, não deixou todavia de deitar-me um bo-
cado de pão . Antes de lançar-me a elle com ancia, como
fazem os outros cães, olhei para elle dando-lhe mostras
do meu reconhecimento com a cabeça e com o rabo .
Agradeceu-me muito esta especie de civilidade, e sor-
riu-se.
Não precisava de comer ; todavia para dar-lhe gosto,
peguei no pedaço de pão, e comi -o promptamente para
dar-lhe a conhecer que o fazia por brio . Observou tudo
isto, e quiz consentir-me perto da sua loja. Deixei- me
estar assentado, e voltado para a rua, para mostrar-
lhe que por ora não lhe pedia outra cousa senão a sua
protecção .
Concedeu-m'a, e até me fez carinhos que me deram
a ousadia de introduzir-me em sua casa. Introduzi-me de
um modo que lhe dava a entender que não era senão
com a sua licença. Não o tomou a mal . Pelo contrario,
CONTOS ARABES 111

mostrou-me um lugar onde podia estar sem ser- lhe in-


commodativo, e puz-me de posse do lugar, que conser-
vei todo o tempo que fiquei em sua casa . Fui n'ella
sempre bem tratado, e não almoçava, jantava e ceava
sem dar-me o meu quinhão. Pela minha parte tinha-lhe
toda a affeição, e toda a fidelidade que pudesse exigir
do meu reconhecimento.
Tinha os olhos sempre fitos n'elle , e não dava um
passo em casa que não o seguisse . O mesmo fazia quan-
do o tempo lhe permittia dar alguma volta pela cidade
para seus negocios . Era n'isso tanto mais exacto quanto
percebi que a minha tenção the agradava, e que algu-
mas vezes, quando tinha intenção de sahir , sem dar-me
occasião de perceber a sua intenção , chamava-me pelo
nome de Ruivo, que me tinha posto.
Ouvindo este nome , sahia logo do meu lugar para a
rua, saltava, perneava, e dava corridas diante da porta .
Não cessava todos estes brinquedos , senão quando elle
estava já fóra de casa , e então acompanhava-o muito
exactamente, seguindo-o, ou correndo adiante , e olhan-
do para elle de quando em quando para mostrar-lhe a
minha alegria.
Havia já tempo que estava n'esta casa, quando veio
um dia uma mulher comprar pão . Pagando- o ao meu
hospede, deu-lhe uma peça de prata falsa com outras
boas. O padeiro que percebeu que a peça era falsa , a
restituiu á mulher, pedindo-lhe outra.
Não quiz a mulher aceital- a, e pretendeu que era
boa. Sustentou o meu hospede o contrario, e na contes-
tação : « A peça, disse elle à mulher, é tão visivelmente
falsa, que estou certo que o meu cão , que é um animal
irracional, não se enganaria com ella. Vem cá, Ruivo,
disse logo chamando-me » . Á sua voz saltei ligeiramen-
te sobre o mostrador, e deitando o padeiro diante de mim
as peças de prata : « Vê, acrescentou elle , não ha aqui
uma peça falsa ?» Olho para todas estas peças, e pondo
a mão sobre a falsa, apartei-a das outras, olhando para
meu amo, como para lh'a mostrar.
O padeiro, que não se reportára ao meu juizo se-
não por ceremonia e para divertir-se, ficou em extremo
112 AS MIL E UMA NOITES

admirado de ver que tinha tão facilmente dado com ella


sem hesitar. A mulher, convencida da falsidade da sua
peça, não teve que dizer, e foi obrigada a dar outra boa
por ella. Depois de ir-se, chamou meu amo os seus vi-
sinhos, e lhes exagerou muito a minha capacidade, con-
tando-lhes o que se passára. Quizeram os visinhos fazer
a experiencia, e de todas as peças que me mostraram ,
misturadas com outras de boa liga, não houve uma sobre
a qual não puzesse a mão, e que não apartasse das boas .
A mulher da sua parte não se esqueceu de contar a
todas as pessoas do seu conhecimento , que encontrou no
seu caminho, o que acabava de acontecer-lhe . O boato
de minha habilidade em conhecer a moeda falsa se di-
vulgou em pouco tempo, não só pela visinhança , mas
tambem por todo o bairro, e insensivelmente por toda a
cidade .
Não me faltava que fazer todo o dia . Era preciso con-
tentar todos os que vinham comprar pão a casa de meu
amo, e mostrar -lhes o que sabia fazer. Era um engodo
para todos , e vinham dos bairros mais distantes da ci-
dade para experimentar a minha habilidade. Deu minha
fama a meu amo tantos freguezes, que mal podia avial- os .
Durou isto bastante tempo e meu amo não pôde deixar
de confessar a seus visinhos e amigos, que eu lhe valia
um thesouro .
A minha fraca industria não deixou de attrahir-lhe
invejosos. Armaram laços para roubar-me, e viu-se obri-
gado a pôr-me a bom recado. Um dia uma mulher, engo-
dada d'esta novidade, veio comprar pão como os outros .
O meu lugar ordinario era então sobre o mostrador ; n'el-
le deitou seis peças de prata diante de mim, entre as
quaes havia uma falsa . Apartei -as das outras, e pondo
a mão sobre a falsa, fitei os olhos n'ella como para per-
guntar-lhe se não era esta. « Sim, disse-me a mulher,
encarando-me tambem, essa é falsa , não te enganas-
te ». Continuou bastante tempo a encarar-me e a con-
siderar-me com admiração, em quanto a encarava tam-
bem. Pegou no pão que viera comprar, e quando quiz
retirar-se acenou-me que a seguisse, ás escondidas do
padeiro.
CONTOS ARABES 113

Estava sempre attento aos meios de livrar-me d'uma


metamorphose tão estranha como a minha. Tinha obser-
vado o affecto com que esta mulher me examinára. Ima-
ginei que tinha talvez conhecido alguma cousa do meu
infortunio , e do miseravel estado a que estava reduzido ,
e não me enganava . Deixei-a todavia ir, e contentava-me
com acompanhal-a com a vista. Depois de ter andado
dous ou tres passos voltou-se, e vendo que estava sem-
pre olhando-a, e que não me bulia do meu lugar, fez -me
ainda aceno para a seguir.
Depois de ter andado algum caminho, chegou a sua
casa. Abriu a porta, e depois de ter entrado, segurando
a porta aberta : « Entra, entra, disse-me ella, não te ar-
rependerás de ter-me seguido » . Tendo eu entrado e ella
fechado a porta, levou-me ao seu quarto, onde vi uma
joven senhora de grande belleza, que bordava . Era a
filha da caritativa mulher que me trouxera comsigo,
habil e experimentada na arte magica, como logo reco-
nheci .
<< Filha, disse-lhe a mãi, trago-vos o cão famoso do
padeiro, que sabe tão bem distinguir a moeda falsa da
boa. Sabeis que vos disse o meu pensamento desde o
primeiro boato que correu d'elle, manifestando- vos que
podia muito bem ser um homem transformado em cão
por alguma maldade. Lembrei-me hoje de ir comprar
pão a casa d'esse padeiro. Fui testemunha da verdade
que d'elle se publicou, e tive a habilidade de fazer-me
seguir por este cão tão raro , que fazia a admiração de
Bagdad. Que vos parece , filha ? enganei-me na minha
conjectura ? - Não vos enganastes, minha mãi , respondeu
a filha ; eu vou mostrar-vol-o » .
Levantou-se a joven senhora, que pegou n'um vaso
cheio de agua, em que metteu a mão ; e deitando d'es-
ta agua sobre mim, disse : Se tu nasceste cão, deixa-te
estar cão; porém se nasceste homem, toma novamente
a fórma de homem pela virtude d'esta agua. Rompeu-
se logo o encantamento ; perdi a figura de cão, e vi- me
homem como d'antes.
Sensivel á grandeza de tamanho beneficio, lancei-me
aos pés da joven senhora ; e depois de beijar-lhe a aba
TOMO IV . 8
114 AS MIL E UMA NOITES

do vestido : « Minha rica libertadora , disse-lhe , sinto tão


vivamente o excesso de vossa bondade, que é sem igual,
para com um estranho, tal como eu sou, que vos suppli-
co que me inculqueis vós mesma o que posso fazer pa-
ra agradecer-vos dignamente ; ou antes disponde de mim
como de um escravo que vos pertence a justo titulo ; não

sou já senhor de mim, pertenço-vos. E para que conhe-


çaes o que adquiristes, contar-vos-hei a minha historia
em poucas palavras » .
Então, depois de ter-lhe declarado quem era, fiz-lhe
a narração do meu casamento com Amina, da minha
complacencia, e paciencia em supportar o seu genio, de
seus modos extraordinarios, e da indignidade com que
CONTOS ARABES
115
me tratára por uma maldade incrivel . E acabei agrade-
cendo á mãi a fe licidade in ex pl icavel que acabava de
procurar-me.
<< Sidi Nouman , disse-me a filha, não fallemos da obri
gação que dizeis dever-me . O pensamento de ter servido
um homem honrado , como vós , é bastante para o meu

reconhecimento. Fallemos de Amina, vossa mulher ; co-


nheci-a antes de casar comvosco, e como soubesse que
era magica , ella não ignorava tambem que eu ti-
nha algum conhecimento da mesma arte, visto que ti-
nhamos tomado lições da mesma mestra . Encontravamo-
nos algumas vezes no banho . Porém como os nossos
genios não se davam bem, tinha grande cuidado de evi-
116 AS MIL E UMA NOITES

tar toda a occasião de ter trato algum com ella, o que


me foi tanto menos difficil conseguir, quanto pela mesma
razão ella evitava da sua parte travar amizade commi-
go : não me admiro pois da sua maldade . Para tornar ao
que vos diz respeito , o que acabo de fazer em vosso be-
neficio não basta ; quero acabar o que principiei. Com
effeito não basta ter rompido o encantamento, pelo qual
ella vos excluiu tão maliciosamente da sociedade dos ho-
mens, deveis castigal-a como merece , chegando a vossa
casa, para recuperar a authoridade que vos pertence, e
para este effeito quero dar-vos o meio . Entretei-vos com
minha mãi, eu não tardarei a voltar » .
Entrou a minha libertadora n'um gabinete, e em
quanto n'elle se demorou tive tempo de tornar a mani-
festar á mãi o quanto lhe era obrigado, assim como a
sua filha. « A minha filha, disse-me ella, como o estaes
vendo , não é menos experimentada na arte magica do
que Amina, mas faz d'ella um tão bom uso que ficareis
pasmado sabendo todo o bem que fez , e que faz quasi
todos os dias por meio do conhecimento que d'ella tem.
Razão por que a deixei e a deixo obrar ainda agora. Não
lh'o permittiria, se percebesse que d'ella abusava na mi-
nima cousa » .
Tinha a mai principiado a contar-me algumas das
maravilhas que presenciava, quando sua filha entrou
com uma garrafinha na mão : « Sidi Nouman, disse-
me ella, os meus livros que acabo de consultar, me
dizem que Amina não está em vossa casa a esta hora,
mas que deve voltar a ella immediatamente. Dizem-me
tambem que a dissimulada finge diante de vossos cria-
dos estar em grande desassocego pela vossa ausencia, e
ella lhes fez crêr que jantando comvosco, vos lembras-
tes de um negocio que vos obrigára a sahir sem demora ;
que sahindo tinheis deixado a porta aberta, e que um
cão entrára, e viera até á sala onde ella acabava de jan-
tar, e que o botára fóra dando-lhe com um pau . Voltai
pois para vossa casa, sem perder tempo , com esta gar-
rafinha que entrego nas vossas mãos . Logo que vos abri-
rem a porta, entrai , e esperai no vosso quarto que
Amina entre;
os fará esperar muito tempo . Lo-
CONTOS ARABES 117

go que ella tiver entrado, descei ao pateo, e apre-


sentai-vos diante d'ella face a face ; com o susto que ti-
ver de tornar- vos a ver contra a sua espectativa , ella
voltará as costas para fugir . Então lançai-lhe agua d'es-
ta garrafa que tereis prompta ; e , deitando -lh'a, pro-
nunciai ousadamente estas palavras : Recebe o castigo da
tua maldade. Mais não digo, vereis o effeito » . Depois
d'estas palavras da minha bemfeitora, que nunca es-
queci, como não houvesse cousa que ainda me demo-
rasse, despedi-me d'ella e de sua mãi, com todas as de-
monstrações do mais profundo reconhecimento, e com
uma protestação sincera que me lembraria eternamente
da obrigação que lhes devia, e voltei para minha casa . *
Passaram as cousas como a joven magica m'o pre-
dissera ; não tardou Amina muito tempo a entrar. Como
ella se vinha chegando apresentei-me diante d'ella, com
a agua na mão, prompto a deitar-lh'a. Deu um grande
grito, e voltando-se para sahir pela porta, deitei-lhe a
agua, pronunciando as palavras que a joven magica me
ensinára, e foi logo mudada em egoa, e é a que vossa
magestade viu hontem.
No mesmo instante, e na surpreza em que estava,
agarrei- a pela crina, e apesar da sua resistencia levei- a
para a minha estrebaria. Puz-lhe um cabresto, e depois
de prendel-a arguindo-lhe o seu crime e a sua maldade,
castiguei-a ás vergalhadas tanto tempo que o cansaço
me obrigou finalmente a cessar , mas resolvi dar-lhe ca-
da dia um castigo igual. Commendador dos crentes , acres-
centou Sidi Nouman acabando a sua historia, ouso espe-
rar que vossa magestade não desapprovará o meu com-
portamento e que achará que uma mulher tão má , tão
perniciosa, é tratada com mais indulgencia do que me-
rece.
Quando o califa viu que Sidi Nouman não tinha já
que dizer: « A tua historia é singular, disse-lhe o sul-
tão, e a maldade de tua mulher não se póde acreditar.
Por isso não condemno o castigo que lhe déstes até ago-
ra ; mas quero que considères quão grande é o sup-
plicio de se vêr reduzida á classe das bestas, e desejo
que te contentes com deixal-a fazer penitencia n'esse es-
118 AS MIL E UMA NOITES

tado . Até te ordenaria que te dirigisses á joven magica


que assim a transformou, para fazer cessar o encan-
tamento , se a teima e a dureza incorrigivel dos magi-
cos e das magicas , que abusam da sua arte, não pre-
parasse da sua parte contra ti um effeito da sua vingança
mais cruel que o primeiro » >.
O califa, naturalmente piedoso e cheio de compaixão
para com os que padecem, ainda que assim o não me-
reçam, depois de ter declarado a sua vontade a Sidi Nou-
man, dirigiu-se ao terceiro, que o grão-visir Giafar man-
dára vir : <« Cogia Hassan, disse- lhe ; passando hontem
diante do teu palacio, pareceu-me tão magnifico, que tive
a curiosidade de saber a quem pertencia ; soube que tu
o mandaste construir, depois de ter exercitado um offi-
cio que te dava apenas com que viver. Dizem-me tam-
bem que és sempre o mesmo, que fazes bom uso das
riquezas que Deus te deu, e que teus visinhos dizem mil
bens de ti . Tudo isto me dá gosto, acrescentou o califa,
e estou mui persuadido que as vias, pelas quaes quiz a
Providencia gratificar-te com os seus dons, devem ser
extraordinarias . Tenho curiosidade em sabel-as de ti mes-
mo, e para dar-me essa satisfação é que te mandei cha-
mar. Falla-me pois com sinceridade , para que me rego-
sije, tomando parte na tua felicidade, com mais reconhe-
cimento . E para que a minha curiosidade não te seja
suspeita, e não cuides que n'isso tenho outro interes-
se, que não seja o que acabo de dizer-te , declaro-te
que, longe de ter n'ella pretensão alguma, dou-te a mi-
nha protecção para d'ella gozar com toda a segurança » .
Com estas promessas do califa, Cogia Hassan se pros-
trou perante o seu throno, tocou com a fronte no tapete
com que estava coberto, e depois de ter-se levantado :
<< Commendador dos crentes, disse elle, qualquer outro
que não fosse eu, que não sentisse a sua consciencia tão
pura, e tão limpa como eu, poderia perturbar- se , rece-
bendo a ordem de vir apparecer diante do throno de
vossa magestade ; mas como nunca tive para com ella
senão sentimentos de respeito e de veneração, e como
nada commetti contra a obediencia que lhe devo , nem
contra as leis que pudesse attrahir-me a sua indignação ,
CONTOS ARABES 119

a unica cousa que me desgostou, foi o receio só que tive


de me perturbar na sua presença . Todavia, confiado na
bondade com que é fama publica, que vossa magestade
recebe, e ouve o menor de seus vassallos, soceguei, e
não duvidei que vossa magestade me désse o animo e
a confiança de procurar-lhe a satisfação que poderia exi-
gir de mim. É, commendador dos crentes, o que vossa
magestade acaba de fazer-me experimentar, concedendo-
me a sua poderosa protecção, sem saber se a mereço .
Espero todavia que será do meu parecer quando, para sa-
tisfazer ao seu mandado, narrar minhas aventuras » .
Feito este pequeno comprimento para conciliar a be-
névolencia e a attenção do califa , e depois de ter, durante
alguns instantes , trazido á sua lembrança o que tinha
que dizer, Cogia Hassan continuou a fallar n'estes termos :

f HISTORIA DE COGIA HASSAN

Commendador dos crentes, disse elle , para melhor


dar a entender a vossa magestade por que vias alcancei
a grande felicidade de que gozo, devo, primeiro que
tudo, principiar por fallar-lhe de dous amigos intimos ,
cidadãos d'esta mesma cidade de Bagdad , que ainda vi-
vem, e que podem dar provas da verdade, aos quaes
sou devedor d'ella depois de Deus , o primeiro author de
todo o bem, e de toda a felicidade .
Chamam-se estes dous amigos , um Saadi, e Saad o
outro. Saadi, que é extremamente rico, foi sempre de
parecer que um homem não pode ser feliz n'este mundo,
senão tendo bens, e grandes riquezas, para viver isento
da dependencia de quem quer que seja .
Saad é de parecer diverso , diz que importa verdadei-
ramente ter riquezas, por quanto são necessarias á vida,
mas sustenta que a virtude deve fazer a felicidade dos
homens, sem outro afinco aos bens mundanos senão
pelas precisões que póde haver d'elles, e para fazer libe-
ralidade á proporção d'elles . Saad é d'este numero e vive
felicissimo e contentissimo no estado em que se acha ;
ainda que Saadi , por assim dizer, seja muito mais rico
120 AS MIL E UMA NOITES

que elle, a sua amizade todavia é mui sincera, e o mais


rico não se estima mais que o outro ; nunca tiveram con-
testação senão sobre um unico ponto ; em todas as ou-
tras cousas foi sempre mui uniforme a sua união.
Um dia na sua conversação , quasi sobre a mesma
materia, como soube d'elles mesmos, pretendia Saadi que
os pobres não eram pobres senão porque nasceram na
pobreza, ou que nascidos com riquezas, as perderam , ou
por alguma das fatalidades imprevistas que não são ex-
traordinarias. « A minha opinião, dizia elle, é que estes
pobres não são pobres , senão porque não podem chegar
a ajuntar uma somma de dinheiro assás avantajada para
tirar-se da miseria, empregando a sua industria em fa-
zel -a valer ; e o meu parecer é, que se conseguissem fa-
zer um uso conveniente d'esta somma, não só enrique-
ceriam, mas viriam a ser opulentissimos com o andar
do tempo ».
Não conveio Saad na proposta de Saadi : « 0 meio
que propondes , replicou elle, para fazer que um pobre
seja rico, não me parece tão certo como a vós. O que
pensaes é mui equivoco , e poderia apoiar o meu pa-
recer contra o vosso, em muitas boas razões que nos
levariam muito longe. Creio ao menos com tanta proba-
bilidade, que um pobre póde enriquecer por qualquer
outro meio que não seja uma somma de dinheiro ; fazem
alguns ás vezes casualmente uma fortuna maior, e mais
estrondosa, do que com uma somma de dinheiro, tal co-
mo pretendeis por mais que se poupe, e economise pa-
ra fazel-a multiplicar por uma agencia bem regulada. -
Saad, replicou Saadi , bem vejo que nada ganhei comvos-
co, persistindo em sustentar a minha opinião contra a vos-
sa ; quero fazer a experiencia para convencer-vos , dan-
do por exemplo, como dadiva, uma somma tal como a
imagino, a um d'esses artifices, pobres de paes a filhos, e
que morrem quasi tão miseraveis como quando nasce-
ram. Se não sou bem succedido , veremos se tereis me-
lhor successo do modo que o entendeis > ».
Alguns dias depois d'esta contestação , aconteceu que
ambos os amigos passassem pelo bairro onde eu traba-
lhava no meu officio de cordoeiro, que aprendera com
CONTOS ARABES 121

meu pai, e que elle mesmo aprendera com meu avô, e


este ultimo com nossos antepassados . Ao vêr a minha casa
e o meu vestuario, julgaram facilmente da minha pobreza .
Saad, que se lembrou do empenho de Saadi, lhe dis-
se : « Se não vos esquecestes da proposta que me fizes-
tes, eis-aqui um homem, acrescentou elle inculcando-me,
que ha largo tempo vejo fazendo o officio de cordoei-
ro, e sempre no mesmo estado de pobreza . É um ho-
mem digno da vossa liberalidade, e muito proprio para
- Tanto
fazer a experiencia de que fallaveis ha já dias .
me lembro, replicou Saadi , que trago commigo com que
fazer a experiencia que dizeis , e não esperava senão a
occasião de achar-nos juntos, e de vós serdes testemu-
nha ; cheguemo-nos a elle, informemo-nos se na ver-
dade vive em pobreza » .
Chegaram-se a mim ambos os amigos, e como eu vis-
se que queriam fallar-me, larguei o meu trabalho ; fize-
ram-me um e outro o comprimento ordinario de - seja
a paz comvosco -e Saadi fallando commigo, me pergun-
tou como me chamava.
Repeti-lhes o mesmo comprimento ; e para responder
á pergunta de Saadi : « Senhor, disse-lhe, meu nome é
Hassan, e em razão da minha profissão sou commum-
mente conhecido pelo nome de lassan Alhabbal.— Hassan ,
replicou Saadi, como não ha officio que não sustente aquel-
le que o exerce, creio que o vosso vos dá com que passar
commodamente, e até me admiro que desde o tempo que
o exercitaes , não tenhaes posto de parte alguma cousa, e
que não tenhaes comprado uma boa provisão de canha-
mo para fazer mais obra , quer trabalhando vós mesmo,
quer fazendo trabalhar jornaleiros, que terieis tomado
para ajudar-vos, e para pôr-vos insensivelmente mais ao
vosso commodo. - Senhor, repliquei-lhe, cessareis de
admirar-vos que não forre cousa alguma, e que não to-
me o caminho que dizeis para enriquecer, quando sou-
berdes que com todo o trabalho que posso fazer des-
de a manhã até à noite , custa-me a ganhar com que sus-
tentar-me, a mim, e á minha familia , com pão e legu-
mes. Tenho minha mulher e cinco filhos , e nenhum d'el-
les em idade de ajudar-me em cousa alguma ; é preciso
122 AS MIL E UMA NOITES

sustental-os , e vestil-os ; e n'uma familia, por pequena


que seja, ha sempre muitas cousas necessarias, sem as
quaes não se pode passar ; ainda que o canhamo não se-
ja caro, precisa-se todavia de dinheiro para compral-o, e
é o primeiro que ponho de parte da venda de minhas
obras ; a não ser assim não me seria possivel supprir á
despeza de minha casa. Julgai, senhor, acrescentei, se é
possivel que forre alguma cousa para passar com mais
commodo, eu e a minha familia ; basta-nos que sejamos
contentes do pouco que Deus nos dá, e que nos tire o
conhecimento e o desejo do que nos falta ; mas não acha-
mos que nos falte cousa alguma quando temos para vi-
ver o que costumamos ter, e não nos vemos na necessi-
dade de pedir a ninguem » .
Tendo contado tudo isto miudamente a Saadi : < « Has-
san, disse-me elle, tomai esta bolsa ; n'ella achareis du-
zentas moedas d'ouro bem contadas. Rogo a Deus que as
abençôe, e que vos faça a graça de fazer d'ellas o bom
uso que desejo, e crêde que o meu amigo Saad , que pre-
sente está, e eu, teremos grande gosto quando souber-
mos que vos terão servido para fazer-vos mais feliz do
que sois presentemente » .
Commendador dos crentes, tendo recebido a bolsa, e
mettendo -a logo no seio, arrebatei-me em tamanha ale-
gria, e fiquei tão sensivel ao reconhecimento, que se me
tolheu a falla, e não me foi possivel dar outra demons-
tração ao meu bemfeitor, senão estender a mão para pe-
gar na aba do seu vestido , e beijal -o . Porém puxou-a pa-
ra si afastando-se, e continuaram o seu caminho, elle, e
seu amigo.
Continuando o meu trabalho , depois de se ausenta-
rem, o primeiro pensamento que me veio à lembrança
foi considerar onde poderia a bolsa estar segura . Não ti-
nha na minha pequena e pobre casa nem bahú, nem ar-
mario que se fechasse, nem lugar algum em que pudes-
se estar seguro de que não seria descoberta se n'elle a
escondesse.
N'esta perplexidade , como eu costumava, como a gen-
te pobre de minha classe, esconder o pouco dinheiro que
tinha nas dobras do meu turbante, larguei o meu traba-
CONTOS ARABES 123

lho e entrei na minha casa com o pretexto de concer-


tal-o. Tomei tão bem as minhas cautelas, que, sem se
perceberem minha mulher e filhos, tirei dez peças da
bolsa, que puz de parte , para as despezas mais urgen-
tes, e metti o resto nas dobras do meu turbante.
A principal despeza que fiz no mesmo dia, foi com-
prar uma boa provisão de canhamo. Depois, como hou-
vesse já tempo que não tinha a minha familia comido
carne, fui ao açougue, e comprei d'ella para a céa. Vol .
tando para casa, trazia a carne na mão , quando um mi-
lhafre esfaimado, sem eu poder defender-me , cahiu em
cima d'ella, e m'a teria arrancado da mão se não a se-
gurasse bem. Porém, ai de mim ! melhor teria sido pa-
ra mim largar-lh'a para não perder a minha bolsa !
Quanta mais resistencia achava em mim, mais teimava
em querel-a. Arrastava-a para uma e outra parte, em
quanto se sustinha no ar sem largal- a, mas aconteceu
desgraçadamente que com os esforços que fazia, cahiu
no chão o meu turbante .
Largou logo o milhafre a carne, e agarrou o meu
turbante antes que eu tivesse tempo de levantal-o, e o
levou pelos ares . Dei gritos tão agudos, que os homens ,
mulheres, e rapazes da visinhança ficaram assustados , e
uniram aos seus os meus gritos para ver se faziam lar-
gal-o ao milhafre .
Consegue-se ás vezes por este meio forçar esta cas-
ta de passaros vorazes a largar o que arrebatam. Porém
os gritos não espantaram o milhafre ; levou o meu tur-
bante tão longe que todos o perdemos de vista antes que
o largasse. Assim , fôra inutil ter o cuidado, e a fadiga
de correr atraz d'elle para recuperal - o .
Voltei para minha casa mui triste com a perda do
turbante e do meu dinheiro . Foi todavia forçoso com-
prar outro , que fez uma nova diminuição ás dez moe-
das d'ouro que tinha tirado da bolsa . Tinha já gastado
algumas para comprar canhamo, e o que me restava
não bastava para dar-me lugar de corresponder ás bel-
las esperanças que tinha concebido .
O que me fez maior pena foi a pouca satisfação que
teria o meu bemfeitor de ter tão mal empregado a sua
124 AS MIL E UMA NOITES

liberalidade , quando soubesse a desgraça que me acon-


tecera, a qual consideraria talvez como incrivel, e por
conseguinte como uma vã desculpa.
Em quanto duraram as poucas moedas que me resta-
vam, passamos melhor a minha pequena familia e eu ;
porém recahi logo no mesmo estado, e na mesma im-
possibilidade de tirar-me da miseria como d'antes . Não
murmurei todavia . « Deus, dizia eu , quiz experimentar-
me dando-me cabedal quando menos o esperava . Tirou-
m'o quasi ao mesmo tempo, porque o quiz assim e por-
que lhe pertencia. Seja louvado, como o louvava até en-
tão , pelos beneficios com que me favoreceu ; sujeito-me
á sua vontade » .
Estava com estes pensamentos, em quanto minha mu-
lher, a quem não pudéra deixar de participar a perda
que tivera, e o modo como me acontecêra, estava in-
Consolavel. Tive o descuido, na perturbação em que es-
tava, de dizer a meus visinhos, que perdendo o meu tur-
bante perdia a minha bolsa de cento e noventa moedas
d'ouro . Mas como a minha pobreza era conhecida e co-
mo não podiam comprehender que eu tivesse ganho uma
tão grossa somma com o meu trabalho , não fizeram se-
não rir , e os rapazes ainda mais que elles .
Havia quasi seis mezes que o milhafre me causára a
desgraça que acabo de contar a vossa magestade , quan-
do os dous amigos passaram mais longe do bairro onde
eu morava. Fez a visinhança com que Saad se lembras-
se de mim. Disse Saadi : « Não estamos longe da rua on-
de mora Hassan Alhabbal, passemos por lá, e vejamos
se as duzentas moedas d'ouro que lhe déstes, contri-
buiram em alguma cousa para pôl-o a caminho de fa-
zer ao menos uma fortuna melhor que a em que o vi-
-
mos. Consinto, replicou Saad ; ha alguns dias, acres-
centou elle, que pensava n'elle, tendo um grande gosto
da satisfação que eu teria, sendo vós mesmo testemunha
da prova da minha proposta. Vereis logo n'elle uma
grande mudança , e espero que nos custará a reconhe-
cel-o ».
Tinham-se já desviado do seu caminho os dous ami-
gos, e entravam na rua ao mesmo tempo que Saadi fal-
CONTOS ARABES
125
lava ainda. Saad, que foi o primeiro que me avistou de
longe, disse a seu amigo : « Parece-me que ganhaes a
victoria muito cedo . Vejo Hassan Alhabbal , mas não me
parece haver mudança alguma na sua pessoa . Está tão
mal vestido como quando lhe fallámos juntos . A diffe-
rença que lhe vejo é estar o seu turbante um pouco mais
aceado vêde vós mesmo se me engano » .
Chegando-se, Saadi, que me avistára tambem , bem
viu que Saad tinha razão , e não sabia em que fundar a
pouca mudança que via na minha pessoa . Ficou tão pas-
mado , que não foi elle que me fallou quando se chega-
ram a mim. Saad , depois de ter- me feito o comprimen-
to ordinario : <« Então , Hassan , disse-me , não vos pergun-
tamos como vão os vossos pequenos negocios desde que
não nos vimos : vão sem duvida em augmento ; as du-
zentas moedas d'ouro devem ter contribuido a ajudar-
vos. -Senhores , repliquei eu , dirigindo-me a ambos, te-
nho um grande pezar de ter que noticiar- vos que os vos-
sos desejos, vossos votos e vossas esperanças , assim
como as minhas , não tiveram o successo que devieis es-
perar, e que eu mesmo esperava . Tereis alguma difficul-
dade em dar credito á aventura extraordinaria que me
aconteceu. Certifico - vos todavia, como homém honrado ,
e deveis crêr-me , que nada ha mais verdadeiro que o
que vou contar-vos » . Contei-lhes a minha aventura com
as mesmas circumstancias que acabo de ter a honra de
expôr a vossa magestade. Não deu credito algum ao meu
< Hassan , disse elle, zombaes de mim, e que-
discurso : «
reis enganar-me ; o que me dizeis é cousa incrivel . Os
milhafres não querem turbantes, não procuram senão
contentar a sua voracidade . Fizestes como costumam fa-
zer todos os do vosso officio. Se tem algum ganho ex-
traordinario ou conseguem alguma boa fortuna, que não
esperavam, largam o trabalho, divertem- se , levam boa
vida em quanto dura o dinheiro , e depois de ter gasto
tudo, acham-se de novo na mesma necessidade e nas
mesmas precisões que d'antes . Não continuaes na vossa
miseria senão porque o mereceis , e vós mesmo vos tor-
naes indigno do bem que vos fazem. - Senhor , repliquei
eu, supporto todas essas reprehensões , e estou disposto
126 AS MIL E UMA NOITES

a supportar ainda outras muito mais atrozes que pode-


rieis dar-me, mas supporto-as com tanta mais paciencia,
quanto creio não ter merecido nenhuma. O caso é tão pu-
blico no bairro, que não ha ninguem que não vos infor-
me d'elle. Informai- vos vós mesmo e achareis que não

vos engano. Confesso que não ouvira dizer que os mi-


lhafres tivessem levado turbantes, porém aconteceu-me
o caso, assim como uma infinidade de outros que nunca
aconteceram, e que todavia acontecem todos os dias ».
Tomou Saad o meu partido, e contou a Saadi outras
muitas historias de milhafres, não menos maravilhosas ,
que pela maior parte não lhes eram desconhecidas, e
CONTOS ARABES 127

por fim tirou a sua bolsa do seio. Contou-me duzentas


moedas d'ouro na mão, que fui mettendo a proposito no
meu seio por não ter bolsa.
Tendo Saadi acabado de contar-me esta quantia :
<< Hassan, disse-me, quero fazer- vos ainda presente d'es-
tas duzentas moedas d'ouro, mas tomai sentido em pôl-as
n'um lugar tão seguro, que não vos aconteça perdel- as
tão desgraçadamente como perdestes as outras, e por-
tai-vos de modo que vos procurem a vantagem , que as
primeiras deveriam ter-vos procurado », Manifestei-lhe
que a obrigação que lhe devia por esta segunda graça,
era tanto maior, quanto não a merecia, visto o que me
tinha acontecido, e que não me esqueceria de cousa al-
guma para aproveitar-me do seu bom conselho . Queria
proseguir, porém não me deu tempo para mais. Largou-
me, e continuou o passeio com seu amigo.
Não tornei a pegar no trabalho depois da sua parti-
da ; fui para minha casa, onde minha mulher e meus
filhos não se achavam então. Puz de parte dez peças
d'ouro das duzentas, e metti as outras cento e no-
venta n'um pano que atei . Tratei de esconder o pano
n'um lugar seguro . Depois de ter reflectido bem n'isso,
lembrei-me de pôl-o no fundo de um grande vaso de
barro cheio de semeas, que estava n'um canto, onde
imaginei que nem minha mulher, nem meus filhos o
iriam buscar. Passado pouco tempo chegou minha mulher ;
e como não me restasse já senão mui pouco canhamo ,
sem fallar-lhe dos dous amigos, disse-lhe que ia com-
prar uma porção .
Não podendo a sultana Scheherazada no dia prece-
dente acabar a historia de Cogia Hassan Alhabbal, pe-
la qual conhecia que o sultão das Indias, seu esposo, to-
mava um singular gosto, não deixou , logo que foi acor-
dada por sua irmã Dinazarda, de continual-a n'estes ter-
mos :

CONTINUAÇÃO DA HISTORIA DE COGIA HASSAN

Commendador dos crentes, acabaes de ouvir como


Saadi me fez de novo presente de outras duzentas moe-
128 AS MIL E UMA NOITES

das d'ouro, para procurar restabelecer a minha pequena


fortuna. Já vos disse que sem tornar a pegar no meu
trabalho, fui para minha casa, tomei dez peças d'ouro,
e tendo posto o resto embrulhado n'um pano, no fundo
d'um grande vaso cheio de semeas, ás escondidas de
minha mulher, e de meus filhos, disse-lhe que ia com-
prar canhamo.
Sahi, mas em quanto ia fazer esta compra, um ven-
dedor de certa greda, de que se servem as mulheres no
banho, passou pela rua, e ouviram-o apregoar.
Minha mulher, que não tinha já d'esta greda, chama
o vendedor, e como não tivesse dinheiro, pergunta-lhe
se queria dar-lhe alguma em troca de suas semeas.
Mostrar-lhe a mulher o vaso, ajusta-se a troca, e con-
clue-se o negocio. Ella recebe a greda, e o vendedor le-
va o vaso com as semeas .
Voltei carregado de canhamo, quanto podia trazer,
seguido de cinco mariolas, carregados como eu da mes-
ma fazenda, com que enchi um sotão que havia na minha
casa. Paguei o frete aos mariolas, e depois de terem par-
tido, descancei alguns instantes para refazer-me da minha
fadiga ; lancei então os olhos para o canto onde deixára
o vaso de semeas, e não o vi já.
Não posso expressar a vossa magestade qual foi o
meu pasmo, nem o effeito que se produziu em mim n'es-
se instante. Perguntei a minha mulher com precipitação
o que era feito d'elle ; e contou-me o negocio que com
elle fizera, como uma cousa em que cuidava ter ganhado
muito.
« Ah, mulher desafortunada ! clamei eu ; ignoraes o
mal que nos fizestes, a mim, a vós mesmo e a vossos
filhos, fazendo uma troca que nos perde sem recurso.
Pareceu-vos não vender senão semeas, e com essas se-
meas enriquecestes o vosso vendedor de greda com cento
e noventa moedas d'ouro, que Saadi, acompanhado de
seu amigo, acabava de dar-me de presente pela segunda
vez ».
Pouco faltou que minha mulher não desesperasse
quando soube a grande falta que commettera por igno-
cabel-
CONTOS ARABES 129

los, e rasgando o vestido que trazia : « Quão desgraçada


sou ! clamou ella ; sou digna de viver á vista d'uma tão
cruel inadvertencia ? Aonde procurarei esse vendedor de
greda ? não o conheço : não passou pela nossa rua senão
esta unica vez , e talvez nunca o tornarei a vér. Ah, meu
rico marido ! acrescentou ella , obrastes com pouco accor-
do em serdes tão reservado para commigo em um ne-
gocio d'esta importancia ! não teria isto acontecido se
me tivesseis participado o vosso segredo » . Não acaba-
ria se referisse a vossa magestade tudo o que a afflic-
ção lhe fez então dizer. Não ignora o quanto as mulhe-
res são eloquentes n'estas occasiões .
< Minha rica mulher, disse -lhe , socegai ; não reparaes
<
«
que chamaes a visinhança com vossos gritos e choros ?
Não ha precisão que sejam informados de nossas desgra-
ças. Bem longe de tomar parte no nosso infortunio ou
de dar-nos alguma consolação, divertir-se-hiam zomban-
do da vossa, e da minha simplicidade. O melhor par-
tido que devemos tomar é dissimular esta perda, sup-
portal-a com paciencia, de modo que não haja apparen-
cia d'ella , e sujeitar-nos á vontade de Deus . Abençoe-
mol-o, pelo contrario, por ter-nos dado duzentas moedas
d'ouro, por não nos ter tirado senão cento e noventa,
e por nos ter deixado dez pela sua liberalidade , das quaes
o emprego que acabo de fazer , não deixa de nos dar al-
gum allivio ».
Por melhores que fossem as minhas razões, custou
muito a minha mulher approval -as logo . Mas o tempo,
que abranda os maiores males e que parecem os menos
supportaveis, fez que finalmente ella se rendesse .
«Vivemos pobremente, dizia-lhe eu, é verdade, mas
que tem os ricos que nós não tenhamos ? Não respira-
mos o mesmo ar ? Não gozamos da mesma luz e do mes-
mo calor do sol ? Algumas commodidades que tem mais
que nós, poderiam fazer-nos invejar a sua felicidade, se
não morressem como nós morremos . Considerado bem
tudo , fortalecidos do temor de Deus, que devemos ter so-
bre todas as cousas, a vantagem que tem sobre nós é
tão pouco consideravel, que não devemos fazer grande
caso d'ella >» .
TOMO IV. 9
130 AS MIL E UMA NOITES

Não enfastiarei a vossa magestade mais largo tempo


com minhas reflexões moraes . Consolámo-nos, minha mu-
lher e eu, e continuei a trabalhar, com o espirito tão
livre como se não tivesse tido duas perdas tão desagra-
daveis em tão pouco tempo.
A unica cousa que me dava cuidado, e isto aconte-
cia algumas vezes, era quando me perguntava a mim
mesmo, como poderia apresentar-me na presença de Saa-
di, quando viesse pedir-me conta do emprego das suas
duzentas moedas d'ouro, e do adiantamento da minha
fortuna por meio da sua liberalidade , e n'isso não via
outro remedio senão resolver-me á confusão que teria,
ainda que d'esta segunda vez , assim como da primeira,
não tivesse contribuido em cousa alguma para esta des-
graça.
Demoraram-se os dous amigos mais tempo a vir sa-
ber novas de minha sorte do que da primeira vez. D'is-
so fallava Saad algumas vezes a Saadi, mas tinha sempre
Saadi demorado a visita. « Quanto mais tardarmos, dizia
elle, mais rico acharemos Hassan , e maior será a satis-
fação que terei ».
Não tinha Saad a mesma opinião do effeito da liberali-
dade de seu amigo . «Parece-vos pois, continuava elle, que
terá sido o vosso presente mais bem empregado por Has-
san d'esta vez do que da primeira ? Não vos aconselho
a que vos alegreis muito com isso , receando que o vosso
desgosto não seja mais sensivel, se achasseis que o
contrario tivesse acontecido . Porém, repetia Saadi, não
acontece todos os dias que um milhafre leve um turban-
te. Teve Hassan essa desgraça uma vez ; térá tomado as
suas precauções para que lhe não succeda segunda.
D'isso não duvido, replicou Saad ; mas, acrescentou el-
le, qualquer outro accidente que não podemos imaginar,
nem vós nem eu , poderá ter acontecido. Repito - vol-o
ainda uma vez , moderai a vossa alegria , e não vos in-
clineis mais a prevenir-vos sobre a felicidade de Hassan,
do que sobre a sua desgraça. Para dizer -vos o que pen-
so a esse respeito, e o que pensei sempre, posto que se-
jaes de differente parecer, tenho um presentimento que
não sereis bem succedido , e que eu o serei melhor do
CONTOS ARABES 131

que vós em provar que um homem póde enriquecer me-


lhor de qualquer outro modo do que com dinheiro » .
Um dia, finalmente, que se achava Saad em casa de
Saadi, depois de uma longa contestação que tiveram :
« Isto é de mais, disse Saadi, quero certificar-me hoje
mesmo da verdade : é a hora do passeio, não a deixe-
mos passar, e vamos saber qual de nós terá perdido a
aposta >> .
Partiram ambos os amigos, e vi -os vir de longe ; fi-
quei inteiramente passado, e estive a ponto de largar a
minha obra e de ir esconder-me, para não apparecer na
sua presença. Applicado ao meu trabalho, fingi não os
ter visto, e não levantei os olhos para encaral - os , se-
não quando estavam perto de mim, depois de me terem
saudado, e quando não podia dispensar-me de fallar-lhes.
Abaixei logo os olhos, e contando-lhes a ultima desgraça
com todas as suas circumstancias, dei-lhes a conhecer
por que me achavam tão pobre como da primeira vez que
me viram .
Tendo acabado : « Podeis dizer-me , acrescentei eu,
que devia esconder as cento e noventa moedas de ouro
n'outra parte que não fosse n'um vaso de semeas , que
devia no mesmo dia ser levado de minha casa. Porém
havia já annos que esse vaso estava alli, que servia para
esse uso, e que todas as vezes que minha mulher ven-
dia as semeas, á proporção que estava cheio, tinha o
vaso sempre ficado . Podia eu adivinhar que n'esse mes-
mo dia, na minha ausencia , um vendedor de greda pas-
saria por alli, que minha mulher se acharia sem di-
nheiro, e que faria com elle a troca que fez ? Poderieis
dizer-me que devia avisar minha mulher ; porém nun-
ca creria que homens tão cordatos, como me parece
que sois, tivessem dado esse conselho. Quanto a não
tel-as escondido n'outra parte, que certeza podia eu ter
que lá estivessem em maior segurança ? Senhor, disse
eu, dirigindo-me a Saadi, não quiz Deus que a vossa libe-
ralidade servisse para enriquecer-me por alguma das ra-
zões impenetraveis que não devemos indagar demasia-
do. Quer que seja pobre, e não rico ; não deixo de de-
132 AS MIL E UMA NOITES

ver-vos a mesma obrigação como se tivesse tido o seu


effeito completo, conforme vossos desejos » .
Calei-me, e Saadi , que então fallou , me disse : « Has-
san, ainda que quizesseis persuadir-me que tudo o que
acabaes de contar-nos é verdade , como pretendeis fazer-
nol-o crêr, e que não seria para occultar vossas devassi-
dões ou vossa má economia, como poderia succeder,
guardar-me-hia muito todavia de passar além, e de tei-
mar em fazer uma experiencia capaz de arruinar-me.
Não choro as quatrocentas peças d'ouro, das quaes me
privei, para procurar tirar-vos da pobreza ; eu o fiz com
a mira em Deus, sem esperar outra recompensa da vos-
sa parte senão o gosto de vos ter beneficiado . Se algu
ma cousa fosse capaz de fazer-me arrepender, seria ter-
me dirigido a vós de preferencia a outrem , que talvez
se teria melhor aproveitado ». E voltando- se para o seu
amigo : « Saad, continuou elle , podeis conhecer, pelo que
acabo de dizer, que não vos cedo inteiramente o campo
de batalha. É - vos todavia dado fazer a experiencia do
que pretendeis contra mim, desde tão largo tempo . Pro-
vai-me que haja outros meios que não seja o dinheiro,
capaz de fazer a fortuna de um homem pobre, do modo
que o entendo , e que vós o entendeis, e não busqueis
outra pessoa senão o mesmo Hassan . Por mais que pos-
saes dar-lhe , não posso persuadir-me que enriqueça
mais do que não pôde fazer com quatrocentas peças de
ouro ».
Tinha Saad um pedaço de chumbo na mão , que mos-
trava a Saadi : « Vistes-me, replicou elle, apanhar a
meus pés este pedaço de chumbo ; vou dal-o a Hassan
e vereis quanto lhe valerá » .
Deu Saadi uma gargalhada , mofando de Saad : « Um
pedaço de chumbo ! clamou elle ; que póde render
a Hassan senão um real, e que fará com um real ! ? »
Saad, dando-me o pedaço de chumbo, me disse : « Deixa
rir Saadi, e não deixes de aceital-o ; dar-nos-heis um dia
novas da felicidade que vos terá alcançado » >.
Pareceu-me que Saad não fallava seriamente , e que o
que fazia era sómente para divertir-se . Não deixei de
CONTOS ARABES
133
aceitar o pedaço de chumbo , agradecendo-lhe , e para
contental-o metti-o no cinto, como para mostrar o apre-
ço que d'elle fazia . Ambos os amigos me deixaram para
continuar o seu passeio, e eu continuei o meu trabalho.
Á noite, como me despisse para deitar-me , e tirando
o meu cinto, o pedaço de chumbo que Saad me déra,
do qual não me lembrava já , cahiu no chão ; levantei - o ,
e o puz no primeiro lugar que achei .
Na mesma noite aconteceu que um pescador meu vi-
sinho, concertando as suas rêdes, achou que lhe faltava
um pedaço de chumbo ; não tinha outro para suppril-o,
e não era hora propria de mandal -o comprar ; estavam
fechadas as lojas . Era preciso todavia, se quizesse ter
com que passar o dia seguinte, elle e sua familia , que
fosse á pesca duas horas antes de amanhecer . Participa
a sua mulher o seu cuidado, e a manda pedir pela visi-
nhança um pedaço para supprir o que lhe faltava.
Obedece a mulher a seu marido ; vai de porta em
porta por ambos os lados da rua e nada acha. Vem dar
esta resposta a seu marido , que lhe pergunta, nomean-
do-lhe alguns de seus visinhos , se tinha batido á sua
porta, e ella respondeu que sim : « E a casa de Hassan
Alhabbal, acrescentou elle, aposto que não foste ? - É
verdade, replicou a mulher, não fui lá por ser mui-
to longe; e ainda que tomasse esse trabalho, parece-vos
que o teria achado ? - Quando não se precisa de cou-
sa alguma , é justamente a sua casa que lá vaes, eu
o sei por experiencia . Mas não importa, replicou o pes-
cador ; és uma preguiçosa, quero que vás lá. Foste
cem vezes a sua casa sem achar o que buscavas ; n'el-
le acharás talvez hoje o chumbo que me é preciso : ain-
da uma vez, quero que vás lá ».
Sahiu a mulher , murmurando e rosnando , e veio ba-
ter á minha porta. Havia já algum tempo que dormia ;
acordei, perguntando o que queriam. « Hassan Alhabbal,
disse a mulher, levantando a voz ; meu marido precisa
de um pouco de chumbo
para concertar as suas redes.
Se por acaso tendes algum , rogo- vos que lh'o mandeis ».
A lembrança do pedaço de chumbo que Saad me dé-
ra, era ainda tão recente , sobretudo depois do que me
134 AS MIL E UMA NOITES

acontecera despindo-me, que não podia tel-o esquecido.


Respondi á visinha que tinha, que esperasse um pouco,
e que minha mulher ia dar-lhe um pedaço.
Minha mulher, que tambem acordára com a bulha,
levanta-se, acha ás apalpadellas o chumbo no lugar que
lhe indicára, abre a porta e dá-o á visinha .
Enlevada a mulher do pescador de não ter vindo de-
balde : <
« Visinha , disse ella a minha mulher, o favor que
nos fazeis, a meu marido e a mim, é tão grande que
vos prometto todo o peixe que meu marido apanhar no
primeiro lanço de suas rêdes ; e certifico-vos que não te
rá n'isso a menor duvida » .
Contente o pescador de ter achado, contra a sua es-
perança, o chumbo que lhe faltava , approvou a promes-
sa que sua mulher nos fizera. « Agradeço-vos muito , dis-
se elle, de terdes obrado n'isso conforme a minha in-
tenção » . Acabou de concertar as suas rêdes , e foi á pes-
ca duas horas antes de amanhecer, conforme o seu cos-
tume . Não apanhou senão um unico peixe no primeiro
lanço de suas rêdes , porém de mais de um covado de
comprimento e grossura em proporção . Houve depois ou
tros lanços que foram todos felizes, mas com esta dif-
ferença, que de todo o peixe que apanhou , não houve
um que fosse comparavel ao primeiro .
Tendo o pescador acabado a sua pesca, e voltando
para sua casa, o primeiro cuidado que teve foi lembrar
se de mim, e fiquei summamente pasmado, estando eu
a trabalhar, de vêl-o apresentar-se diante de mim , car-
regado com o dito peixe. « Visinho, disse-me elle, mi-
nha mulher vos prometteu esta noite o peixe que apa-
nhasse no primeiro lanço de minhas rêdes, em reconhe-
cimento do favor que nos fizestes ; approvei a sua pro-
messa. Não quiz Deus dar-me senão este, rogo-vos que
o aceiteis ; se me tivesse dado cheias as minhas rêdes,
ter-vol-os-hia trazido do mesmo modo todos . Aceitai-0,
rogo-vos, como se fosse mimo mais consideravel.- Visi-
nho, repliquei eu, o pedaço de chumbo que vos mandei
é tão pouca cousa, que não merecia que o avaliasseis em
tão alto preço . Devem os visinhos soccorrer-se uns aos
outros nas suas pequenas necessidades ; não fiz a vosso
CONTOS ARABES 135

respeito senão o que de vós podia esperar em semelhan-


te occasião. Assim recusaria aceitar o vosso presente, se
não estivesse persuadido que m'o fazeis de bom coração ;
até creria offender-vos se não o aceitasse. Aceito-o , pois,
visto que assim o quereis, e agradeço-vos » .

Pararam aqui os nossos comprimentos, e levei o pei-


xe a minha mulher. « Tomai, disse-lhe, este peixe , que
o pescador nosso visinho acaba de trazer-me em reco-
nhecimento do pedaço de chumbo que nos mandou pe-
dir a noite passada. É, parece-me, tudo o que podemos
esperar d'este presente que Saad me fez hontem, pro-
mettendo-me que faria a minha felicidade » . Foi n'essa
136 AS MIL E UMA NOITES

occasião que lhe fallei da volta dos dous amigos, e do


que se passára entre mim e elles.
Ficou minha mulher admirada, vendo um peixe ta-
manho e tão grosso : « Que quereis , disse ella, que fa-
çamos d'elle ? A nossa grelha é só propria para assar
peixes pequenos, e não temos vaso assás grande para
cozel-o . -Isso vos diz respeito, disse-lhe, preparai-o co-
mo quizerdes ; assado ou cozido, contentar-me- hei com
elle » ; e dizendo estas palavras, tornei ao meu trabalho.
Preparado o peixe, tirou minha mulher com as en-
tranhas um grande diamante que tomou por vidro, de-
pois de tel-o alimpado. Ouvira fallar de diamantes, e se
tinha visto ou pegado em algum, não tinha bastante
conhecimento d'elles para poder conhecel-os . Deu-o ao
mais pequeno de nossos filhos, para brincar com os seus
irmãos e suas irmãs , que queriam todos pegar- lhe, e
vêl-o cada um por sua vez, passando-o de um para ou-
tro, para admirar a belleza e 9 brilho d'elle.
A noite, tendo-se accendido a lampada, os nossos fi-
lhos, que continuavam a brincar, passando o diamante
de mão em mão, perceberam que luzia á proporção que
minha mulher lhes tirava a claridade da lampada, an-
dando de uma para outra parte para acabar de preparar
a cea, e isto era razão para que todos o quizessem. Po-
rém os pequenos choravam quando os maiores não o
deixavam nas suas mãos tanto tempo quanto queriam,
e estes eram constrangidos a tornar-lh'o a dar para aquie-
tal- os.
Como pouca cousa basta para divertir os meninos, e
causar entre elles disputas, e como isto lhes acontece
ordinariamente, nem minha mulher nem eu demos at-
tenção ao que fazia o assumpto da bulha e da gritaria
com que nos atordoavam. Cessaram finalmente quando
os mais crescidos se puzeram á mesa para cear comnos-
co, e que minha mulher deu aos mais pequenos o seu
quinhão.
Depois da cêa, os meus filhos se ajuntaram nova-
mente, e principiaram a mesma bulha que d'antes. Quiz
então saber a causa da sua disputa ; chamei o mais ve-
lho, e perguntei-lhe que motivo tinham para fazer tanta
CONTOS ARABES 137

bulha. Disse-me : « Pai, é um pedaço de vidro que dá


luz quando estamos ás escuras » . Mandei trazel-o e fiz
a experiencia.
Pareceu-me isto extraordinario, e perguntei a mi-
nha mulher que cousa era este pedaço de vidro : « Eu
não sei, disse ella, é um pedaço de vidro que tirei do
ventre do peixe quando peguei n'elle » .
Assim como ella, não imaginei que fosse outra cou-
sa senão vidro. Levei todavia a experiencia mais lon-
ge ; disse a minha mulher que escondesse a lampada na
chaminé ; ella o fez , e vi que o pretendido pedaço de
vidro dava uma claridade tão grande , que podiamos pas-
sar sem lampada para deitar-nos . Mandei-a apagar, e
puz o pedaço de vidro sobre a borda da chaminé para
alumiar-nos . «< Eis-aqui, disse eu , outra vantagem que o
pedaço de chumbo, que o amigo de Saadi me deu, nos
procura, poupando-nos de comprar azeite ».
Quando meus filhos viram que mandára apagar a
lampada e que o pedaço de vidro a suppria, deram gri-
tos de admiração tão altos , e com tanto estrondo , que
resoaram muito longe na visinhança.
Augmentamos a bulha, minha mulher e eu, á for-
ça de gritar para os fazer calar, e não pudémos conse-
guil-o inteiramente senão depois de se deitarem e ador-
mecerem, tendo-se entretido tempo consideravel , ao seu
modo, com a luz maravilhosa do pedaço de vidro .
Deitámo -nos depois d'elles, minha mulher e eu , e
no dia seguinte, ao raiar do dia, sem lembrar-me mais
do pedaço de vidro, fui trabalhar como de costume.
Não se deve estranhar que isto acontecesse a um ho-
mem como eu, que estava costumado a vêr vidro, e que
nunca na minha vida vira diamantes ; e se tinha visto al-
guns, não me tinha applicado a conhecer o valor d'el-
les.
Farei observar a vossa magestade n'este lugar, que
entre a minha casa e a de meu visinho, a mais chegada,
não havia senão uma parede de tabique muito ligeira,
por divisão . Esta casa pertencia a um judeu muito rico,
ourives de profissão ; e o quarto onde elle e sua mu-
lher dormiam, estava contiguo á dita parede. Estavam
AS MIL E UMA NOITES
138
já deitados e adormecidos quando meus filhos fizeram
a maior bulha ; isto os acordou , e ficaram largo tempo

semNotorndiara a ad mecer. lher


orte
seguin a mu do judeu, tanto da parte
de seu mari do como em seu proprio nome , veio quei-
xar-se à minha , da interrupção do seu somno. « Mi-
nha boa Rachel -assim é que se chamava a mulher
do judeu , disse-lhe minha mulher , sinto muito o que
aconteceu , e peço -vos me desculpeis . Sabeis o que são
rapazes ; um nada os faz rir, um nada os faz chorar .
Entrai , e mostrar -vos -hei o que dá causa ás vossas quei-

a er pegou no diamante ,
xas >>En. trou a judia , e minh mulh
vi st o e
qu fi na lm en te er um di ante de grande singu-
a am
-
laridade . Estava ainda sobre a chaminé , e apresentando
lh'o : < « Vêde , disse ella, é um pedaço de vidro , a causa
de toda a bulha que ouvistes hontem á noite ». Em
quanto a judia , que tinha conhecimento de todas as es-
pecies de pedras , examinava este diamante com admira-
ção , contou -lhe como o achára na barriga do peixe , e

tudo o qu e se passára a este respeito .


Tendo minha mulher acabado , a judia , que sabia
que não era vidro : « Aishach , disse ella, entregando -lhe
o diamante ; creio como vos que é vidro , mas como é
mais bello que o vidro commum e como tenho um pe-
daço de vidro quasi semelhante , com que me enfeito ás
vezes , e que o acompanharia bem, comprar -vol-o-hia se

quizMe usis five


esse os ,er -m'
lhnd queo »ou
. viram fallar em vender o seu
brinco , interromperam a conversação , clamando em altas
vozes contra a venda , e rogando a sua mãi que lhes
guardasse o vidro , o que foi constrangida a prometter-

lhesApaju
ra a , uiob
diaq alga
etri da a retirar-se , sahiu ; e antes de
-os.
largar minha mulher , que a acompanhára até á porta,
rogou-lhe , fallando em voz baixa , se tinha intento de
vender o pedaço de vidro , que não o mostrasse a nin-
guem sem primeiro dar -lhe parte a ella .
Tinha o judeu ido á sua loja pela manhã cedo no
Lí foi tar com elle a judia, e annun-
CONTOS ARABES 139

ciou-lhe o descobrimento que fizera ; deu-lhe conta da


grandeza, do peso pouco mais ou menos, da bella agua ,
e do brilho do diamante, e principalmente da sua singu-
laridade, que era dar luz de noite, por informação de
minha mulher, tanto mais crivel quanto era sincera.
Expediu o judeu sua mulher com ordem de tratar
com a minha, de offerecer-lhe logo pouca cousa, quan-
to julgasse a proposito, de augmentar á proporção da
difficuldade que achasse, e finalmente de concluir a com-
pra por qualquer preço que fosse.
A judia, conforme a ordem de seu marido , fallou a

minha mulher em particular, sem esperar que estivesse


determinada a vender o diamante, e perguntou-lhe se
queria vinte moedas d'ouro pelo pedaço de vidro como
julgava ser ; minha mulher achou a somma considera-
vel. Não quiz todavia responder nem sim nem não ,
e disse só á judia que não podia ajustar sem primei-
ro fallar-me.
N'este intervallo tinha largado o meu trabalho e
entrava em minha casa para jantar, quando minha mu-
lher me perguntou se consentia em vender por vinte
moedas d'ouro o pedaço de vidro que achára na barriga
do peixe .
« Não», respondi logo : fiz reflexão na segurança
com que Saad me promettera, dando-me o pedaço de
140 AS MIL E UMA NOITES

chumbo, que elle faria a minha fortuna, e cuidou a ju-


dia que não respondia cousa alguma porque desprezava
a somma que ella offerecera. « Visinho, disse-me então,
dar-vos-hei cincoenta, estaes contente ? >>
Como visse que de vinte moedas de ouro passava
a judia tão apressadamente a cincoenta, segurei- me e
disse-lhe que estava bem longe do preço por que preten-
dia vendél-o . <<
« Visinho, replicou ella, dou-vos cem moe-
das de ouro ; é muito, é muito, e não sei se meu marido
approvará a compra ». Visto este novo augmento , disse-
lhe que pretendia por elle cem mil peças de ouro ; que
bem via que o diamante valia mais, mas que para
servil-os, a ella e a seu marido , como visinhos, limita-
va-me a esta somma que queria absolutamente por elle ;
e se o recusassem por este preço , outros ourives me da-
riam mais ,
Confirmou-me a judia na minha resolução , pela pres-
sa que mostrou em concluir o mercado , offerecendo-me
repetidas vezes até cincoenta mil peças de ouro, que eu
sempre recusei . « Não posso , disse ella, offerecer mais
sem o consentimento de meu marido ; virá esta tarde ; o
favor que vos peço é esperar que vos falle e veja o
diamante ».
Pela tarde, chegando o judeu a sua casa, soube de
· sua mulher que não concluira cousa alguma com a mi-
nha nem commigo, o offerecimento que me fizera de
cincoenta mil moedas de ouro, e o favor que me pe-
dira.
Observei o judeu quando larguei o meu trabalho e
me retirava para minha casa : « Visinho Hassan, disse
chegando-se a mim, rogo-vos que me mostreis o dia-
mante que vossa mulher mostrou à minha » . Mandei-o
entrar e mostrei-lh'o.
Como fosse já muito escuro e não estivesse ainda ac-
cesa a lampada, conheceu logo, pela luz que o diamante
dava e pelo seu grande brilho na palma da minha mão ,
que com elle estava alumiada, que sua mulher lhe déra
uma informação fiel. Pegou n'elle, e depois de o ter
examinado bastante tempo, e não cessando de admiral-o :
< Então, visinho, disse elle, minha mulher, pelo que me
«
CONTOS ARABES 141

disse, offereceu-vos cincoenta mil moedas de ouro ; para


que sejaes contente offereço-vos mais vinte mil. - Visi-
nho, repliquei eu , póde vossa mulher dizer-vos que o
avaliei em cem mil ; ou m'as dareis , ou guardarei o dia-
mante ; não ha meio termo ». Regateou largo tempo na
esperança que lh'o daria por menos alguma cousa, mas
nada pôde conseguir ; e o receio que teve que eu o
mostrasse a outros ourives, como o teria feito, fez que
não me largou sem concluir o negocio pelo preço que
pretendia. Disse-me que não tinha as cem mil moedas
de ouro em sua casa, mas que no dia seguinte me
daria toda a somma , e trouxe-me no mesmo dia dous
saccos, cada um com mil, para signal de estar a compra
ajustada.
No dia seguinte não sei se o judeu pediu emprestado
aos seus amigos ; ou se fez sociedade com outros ouri-
ves ; fosse o que fosse, completou-me a somma de cem
mil moedas de ouro, que me trouxe no tempo determi-
nado, e entreguei-lhe o diamante .
Feita assim a venda do diamante, e infinitamente ri-
co além de minhas esperanças, agradeci a Deus a sua
bondade, e liberalidade, e teria ido lançar-me aos pés
de Saad, para manifestar-lhe o meu reconhecimento, se
soubesse onde morava. O mesmo teria praticado para
com Saadi a quem devia a mesma obrigação da minha
felicidade, ainda que não fosse bem succedido na boa
intenção que tinha para commigo .
Cuidei logo no bom uso que devia fazer d'uma som-
ma tão avultada . Minha mulher , já com o espirito cheio
da vaidade commum ao seu sexo , me propoz logo que
comprasse ricos vestidos para ella e para seus filhos ,
uma boa casa, e que a mobilasse ricamente. « Mulher ,
disse-lhe eu, não devemos principiar com essas despe-
zas . Fiai-vos em mim ; o que pedis virá com o tempo.
Ainda que o dinheiro seja só feito para se gastar, importa
todavia proceder com elle de modo que produza um certo
fundo ; n'isso cuido , e ámanhã mesmo principiarei a es-
tabelecel -o ».
No dia seguinte empreguei todo o dia em ir a casa de
alguns do meu officio, que não estavam em melhor es-
142 AS MIL E UMA NOITES

tado do que eu estive até então, e dando- lhes dinheiro


adiantado, empenhei-os a trabalhar por minha conta em
differentes qualidades de obras de cordoaria , cada um se-
gundo a sua habilidade e possibilidade, com promessa
de não os fazer esperar, e de ser exacto em pagar-lhe bem
o seu trabalho, á proporção que me trouxessem obra
feita. No dia seguinte acabei de empenhar do mesmo
modo os outros cordoeiros d'esta classe, a trabalhar por
minha, conta, e desde esse tempo, quantos ha em Ba-
gdad continuam este trabalho, muito satisfeitos da mi-
nha exactidão em cumprir a palavra que lhes dei.
Com esse grande numero devia produzir obras á pro-
porção ; aluguei armazens em diversas paragens, e em
cada um estabeleci um caixeiro, tanto para recebel-as
como para a venda em grosso e por miudo ; e bem de-
pressa, com esta economia, fiz um ganho e uma renda
consideravel.
Depois , para reunir n'um só lugar tantos armazens
dispersos , comprei uma grande casa que occupava um
grande terreno, mas que estava arruinada. Mandei-a des-
truir inteiramente , e no mesmo chão mandei edificar a
que vossa magestade viu hontem. Mas por mais appa-
rencia que tenha, consiste sómente em armazens que
me são necessarios , e quartos sufficientes para mim e
para a minha familia.
Havia já tempo que tinha deixado a minha antiga
e pequena casa para vir estabelecer-me n'esta nova,
quando Saadi e Saad, que não pensaram em mim até
então , se lembraram por fim. Convieram n'um dia de
passeio, e passando pela rua onde me viram, ficaram em
extremo pasmados de não me vêr n'ella occupado na
minha pequena tarefa de cordoaria, como me tinham
visto. Perguntaram o que era feito de mim, se estava
morto ou vivo. Augmentou-se o seu pasmo quando sou-
beram que aquelle por quem perguntavam era já um
grande mercador, e que o não chamavam simplesmen-
te Hassan, mas sim Cogia Hassan Alhabbal , isto é, o
mercador Hassan, o cordoeiro , e que mandára edificar
n'uma rua, que lhes nomearam, uma casa que tinha a
!
CONTOS ARABES 143

Ambos os amigos vieram procurar-me n'esta rua; e


no caminho, como Saadi não podesse imaginar que o pe-
daço de chumbo que Saad me dera, fosse a causa d'uma
tão alta fortuna : «Tenho uma alegria completa, disse
Saad, de ter feito a fortuna de Hassan Alhabbal ; mas não
posso approvar que me dissesse duas mentiras, para ex-
torquiar-me quatrocentas peças d'ouro em vez de duzen-
tas. Pois attribuir a sua fortuna ao pedaço de chumbo que
lhe déstes, é o que não posso, nem ninguem lh'a attri-
buirá.- É esse o vosso pensamento, replicou Saad, porém
não é o meu, e não vejo por que queireis fazer a Cogia
Hassan a injustiça de tel-o por um mentiroso . Permittir-
me-heis que creia que nos disse a verdade, e que o pe-
daço de chumbo que lhe dei é a causa unica da sua fe-
licidade. D'isso nos informará logo Cogia Hassan » .
Ambos os amigos chegaram á rua onde está a mi-
nha casa, fazendo semelhantes conjecturas . Perguntaram
onde ella era, mostraram-lh'a, e examinando a frontaria ,
custou-lhes à crêr que fosse ella . Bateram á porta , e
meu porteiro a abriu.
Saadi, que receava commetter uma incivilidade , se
tomasse a casa de algum senhor de distincção pela que
procurava, disse ao porteiro : «Disseram - nos que esta
casa era a de Cogia Hassan Alhabbal ; dizei-nos se não nos
enganaram . Não, senhor, não vos enganaram, respon-
deu o porteiro, abrindo a porta principal ; é a que pro-
curaes ; entrai, elle está na sala, e achareis entre seus
escravos alguem que lhe irá annunciar a vossa vinda » .
Deram-me parte de estarem alli os dous amigos, e
reconheci-os logo que os vi apparecer. Levantei- me do
meu lugar, corri a elles, quiz pegar-lhes na aba do ves-
tido para beijal-a , não o consentiram, e foi preciso que me
deixasse, contra a minha vontade, abraçar. Convidei-os
a assentarem-se n'um grande sophá, mostrando-lhes ao
mesmo tempo um mais pequeno para quatro pessoas,
que dava sobre o meu jardim. Roguei-lhes que se assen-
tassem, e queriam que eu tomasse o primeiro lugar .
« Senhores, disse-lhes, não me esqueci que sou o pobre
Hassan Alhabbal ; e ainda que fosse outro personagem
differente do que sou , e que não vos devesse as obriga-
144 AS MIL E UMA NOITES

ções que vos devo , sei o que vos é devido ; supplico- vos
que não me cubraes mais largo tempo de confusão » . To-
maram o assento que lhes era devido, e tomei o meu
defronte d'elles.
Principiando então Saadi a fallar, e dirigindo- me a
falla : « Cogia Hassan, disse elle, não posso expressar
quanta alegria tenho de vêr-vos quasi no estado que de-
sejava quando vos fiz presente, sem lançar- vol-o em ros-
to , das duzentas peças d'ouro , tanto da primeira como da
segunda vez, e estou persuadido que as quatrocentas pe-
ças d'ouro fizeram em vós a mudança maravilhosa de
vossa fortuna, que com gosto vejo . Uma unica cousa me
penalisa, é que não comprehendo a razão que tivestes
para encobrir-me a verdade duas vezes , allegando perdas
acontecidas por contratempos, que me pareceram, e que
me parecem ainda incriveis . Não se diria que quando nos
vimos a ultima vez, tinheis adiantado tão pouco os vos-
sos pequenos negocios, tanto com as duzentas primei-
ras peças d'ouro , como com as duzentas ultimas, que ti-
vestes pejo de confessal-o . Quero crêl-o assim e espe-
ro que me confirmareis na minha opinião »> .
Ouviu Saad este discurso de Saddi com grande impa-
ciencia, para não dizer indignação , e o manifestou com
os olhos baixos, meneando a cabeça . Deixou-o fallar to-
davia até acabar, sem abrir a bocca. Tendo acabado :
<< Saadi, replicou elle, perdoai, se antes que Cogia Hassan
vos responda, eu me antecipe a elle, para dizer-vos que
admiro a vossa prevenção, contra a sua sinceridade, e
que persistaes em não querer dar credito ás seguranças
que vos dava d'antes. Já vos disse, e vol -o repito , que
eu lhe dei logo credito com a simples narração dos
dous accidentes que lhe aconteceram ; e por mais que
possaes dizer, estou persuadido que são verdadeiros.
Mas deixemol-o fallar ; seremos em breve informados por
elle mesmo de qual de nós ambos lhe faz justiça » .
Ouvindo as palavras dos dous amigos, principiei a
fallar, e dirigindo-lhes a falla igualmente : « Senhores,
disse-lhes, condemnar-me-hia a um silencio perpetuo
ácerca da explicação que me pedis , se não estivesse certo
que a disputa que tendes a meu respeito, não é capaz
CONTOS ARABES 145

de romper a amizade que une os vossos corações . Vou


pois explicar-me, visto que o exigis de mim . Porém ,
primeiro que tudo, protesto-vos que com a mesma sin-
ceridade com que o faço, vos expuz d'antes o que me
acontecera » . Então contei-lhes o caso , ponto por ponto,
como vossa magestade o ouviu , sem esquecer a menor
circumstancia. As minhas protestações não fizeram im-
pressão alguma no espirito de Saadi para cural-o da sua
prevenção . Tendo cessado de fallar : « Cogia Hassan, re-
plicou elle, a aventura do peixe, e do diamante achado
no seu ventre, me parece tão pouco crivel como o rou-
bo do vosso turbante por um milhafre , e a troca do va-
so por greda. Seja o que fôr, não estou menos conven-
cido que não sois já pobre, porém rico ; como era mi-
nha intenção que o fosseis por minha via , d'isso me ale-
gro mui sinceramente ».
Como fosse já tarde levantaram-se para se despedirem .
Levantei-me tambem, e detendo- os : « Senhores, disse-
lhes, levai a bem que vos peça um favor, que vos sup-
plico que não recuseis . É consentir que tenha a honra
de dar-vos uma cêa frugal , e depois a cada um uma ca-
ma, para levar-vos ámanhã , por agua, a uma pequena
casa de campo que comprei, para lá ir tomar os ares de
quando em quando , d'onde vos trarei por terra no mes-
mo dia, cada um montado n'um cavallo da minha estre-
baria. Se Saad não tem negocios que aviar, disse Saadi,
consinto de boa vontade. - Não os tenho , replicou Saad,
quando se trata de gozar na vossa companhia. Devemos
pois, continuou elle , mandar aviso á vossa , e á minha
casa, para que não esperem » . Mandei-lhes chamar um
escravo, e em quanto o encarregaram d'esta commissão ,
tive tempo de dar ordem para a cêa .
Esperando a hora da cea , mostrei a minha casa, e tu-
do o que a compunha aos meus bemfeitores, que a acha-
ram bem distribuida pelo que diz respeito ao meu esta-
do. Chamo-os meus bemfeitores, um e outro, sem dis-
tincção, porque sem Saadi, não me teria Saad dado o
pedaço de chumbo, e sem Saad, não se teria Saadi di-
rigido a mim para dar-me as quatrocentas moedas de
ouro, ao que refiro a origem da minha felicidade. Re-
TOMO IV. 10
146 AS MIL E UMA NOITES

conduzi-os para a sala, onde me fizeram algumas per-


guntas sobre particularidades do meu commercio, e res-
pondi-lhes de modo que pareceram contentes com o meu
procedimento.
Vieram fielmente dar-me parte que estava a cea ser-
vida. Como se tivesse posto a mesa n'outra sala, levei-os
lá . Admiraram a illuminação com que estava adornada,
o aceio do lugar, o aparador e os guizados , que acha-
ram do seu gosto . Dei-lhes tambem o divertimento de
um concerto de vozes e de instrumentos, durante o ban-
quete, e depois de levantar a mesa, o de uma compa-
nhia de dançarinos e dançarinas, e outros mais , procu-
rando dar-lhes a conhecer, do melhor modo possivel, o
quanto estava penetrado de reconhecimento a seu res-
peito .
No dia seguinte, como ajustasse com Saadi e Saad
partir ao raiar do dia para gozar da fresquidão , fomos
ter á borda do rio antes que se levantasse o sol . Embar-
cámos n'um batel muito aceado e guarnecido de tape-
tes, que nos tinham prompto, e com a ajuda de seis
bons remadores e da corrente da agua, em hora e meia
de tempo aportámos á minha casa de campo.
Pondo pé em terra, pararam os dous amigos, menos
para considerar a belleza exterior, do que para admirar
a situação vantajosa das bellas vistas, nem muito li-
mitadas, nem muito extensas, que a tornavam agrada-
vel por todos os lados . Mostrei-lhes todos os quartos, fiz-
lhes observar os ornamentos e os commodos, o que foi
motivo para que a achassem bella e muito agradavel .
Entrámos depois no jardim, onde o que mais lhes
agradou, foi um bosque de laranjeiras e de limoeiros
de todas as especies, carregados de frutas e de flores,
que embalsamavam o ar, dispostos em alamedas em dis-
tancia igual, e regados por um regato perpetuo de arvo-
re em arvore, de agua viva tirada do rio. A sombra, a
fresquidão no maior calor do sol, o suave murmurio da
agua, o canto harmonioso de uma infinidade de passa-
ros, e muitos e outros divertimentos lhes causaram admi-
tação , de modo que paravam quasi a cada passo, ora
para provar-me a obrigação que me deviam de os ter
CONTOS ARABES 147

trazido a um lugar tão delicioso, ora para felicitar- me


da acquisição que fizera, e para fazer-me outros compri-
1 mentos officiosos .
Levei-os até ao cabo d'este bosque, que é muito

comprido e muito largo, onde lhes fiz observar um ar-


voredo de grandes arvores que termina o meu jardim.
Levei-os até um gabinete aberto por todos os lados, po-
rém á sombra de palmeiras, que não embaraçavam de
gozar da bella vista , e convidei-os a entrar n'elle, e a
descançar sobre um sophá guarnecido com tapetes e al-
mofadas.
148 AS MIL E UMA NOITES

Dous de meus filhos, que achámos em casa , e que


para lá tinha mandado, havia já algum tempo , com
seu mestre, para tomar o ar, nos tinham largado para
entrar no bosque ; como procurassem ninhos de passaros ,
descobriram um por entre os ramos de uma grande ar-
vore. Trataram logo de subir a ella, mas como não ti-
vessem nem a força nem a habilidade para o emprehen-
der , mostraram-o a um escravo , que lhes tinha dado , o
qual não os largava , e disseram-lhe que lhes fosse bus-
car o ninho .
Subiu o escravo á arvore , e chegado que foi ao ni-
nho, ficou muito pasmado vendo que estava construido
n'um turbante . Péga no ninho , tal qual era, desce da ar-
vore, e faz observar o turbante a meus filhos ; mas co-
mo não duvidou que fosse uma cousa que eu gostaria
de vêr, deu-lh'o a entender, e o deu ao mais velho para
m'o trazer.
Vi-os vir de longe com a alegria commum aos rapa-
zes que acharam um ninho, e apresentando-m'o : «Meu
pai, disse-me o mais velho, vêde este ninho n'um tur-
bante ! >>
Não se admiraram menos Saadi e Saad do que eu
da novidade ; porém admirei-me muito mais do que el-
les, reconhecendo que o turbante era o que o milhafre me
roubára . No meu pasmo, depois de o ter examinado bem
e voltado por todos os lados, perguntei aos dous ami-
gos : «Senhores, tendes assás boa memoria para lembrar-
vos que este é o turbante que trazia no dia em que me fi-
zestes a honra de chegar-vos a mim a primeira vez ? —
Não me parece , respondeu Saad, que Saadi reparasse
n'isso, nem eu tambem, mas não poderiamos nem elle,
nem eu duvidar, se as cento e noventa peças de ouro
se acham n'elle. - Senhor, repliquei eu, não duvideis que
seja o mesmo turbante ; além de reconhecel-o muito bem,
percebo tambem pelo peso que não é outro ; e percebe-
reis tambem vós mesmo se vos derdes ao trabalho de
pegar n'elle ». Apresentei-lh'o depois de ter tirado os pas-
saros, que dei a meus filhos ; pegou n'elle com suas mãos
e o apresentou a Saadi para julgar do peso que poderia
CONTOS ARABES 149

« Quero crer que é o vosso turbante, disse-me Saadi ;


mais convencido ficarei quando vir as cento e noventa
moedas de ouro em boas especies . - Ao menos , senhor,
acrescentei eu, depois de pegar novamente no turbante,
observai bem, antes que n'elle toque, que não é só de
hoje que se acha sobre a arvore, e que o estado em que
o védes, e o ninho que está tão aceadamente fabricado,
sem que mão de homem tocasse n'elle, são signaes cer-
tos que n'ella se achava desde o dia que o milhafre m'o
roubára, e que o deixou cahir, ou pousou sobre esta ar-
vore, cujos ramos impediram que não cahisse em terra.
E não tomeis a mal que vos faça esta observação ; tenho
o maior interesse em tirar -vos toda a suspeita de fraude
da minha parte >>.
Ajudou-me Saad no meu intento . « Saadi, replicou
elle , isto vos respeita, e não a mim, que estou muito
persuadido que Cogia Hassan nos fallou verdade ».
Em quanto Saad fallava, tirei o pano que dava al-
gumas voltas em roda do barrete que fazia parte do tur-
bante, e d'elle tirei a bolsa, que Saadi reconheceu ser
a mesma que me dera. Vasei-a sobre o tapete á vista
d'elles , e disse-lhes : « Senhores, eis-aqui as peças de
ouro, contai-as vós mesmos e vêde se está ahi a conta » >.
Saadi as dispûz por dezenas até ao numero de cento e
noventa ; e Saadi então , que não podia negar uma ver-
dade tão manifesta, principiou a fallar, e dirigindo - se a
mim : « Cogia Hassan, disse elle, convenho que estas cen-
to e noventa moedas de ouro não puderam servir para
enriquecer-vos, mas as cento e noventa outras que es-
condestes n'um vaso de semeas, como quereis persuadir-
m'o, puderam contribuir para isso . - Senhor, repliquei,
disse-vos a verdade, tanto a respeito d'esta ultima , co-
mo da primeira somma. Não quererieis que me retractasse
para dizer-vos uma mentira.-Cogia Hassan , disse-me
Saad, deixai Saadi na sua opinião ; consinto de boa von-
tade que creia que lhe sois devedor de metade da vos-
sa boa fortuna por meio da ultima somma, com tanto
que confesse que contribui para a outra metade por meio
do pedaço de chumbo que vos dei , e que não duvide do
precioso diamante achado no ventre do peixe . - Saad , re-
150 AS MHL E UMA NOITES

plicou Saadi, creio o que quereis comtanto que me dei-


xeis a liberdade de crêr que não se ajunta dinheiro se-
não com dinheiro. ― O quê ! replicou Saad ; se o acaso
quizesse que achasse um diamante de cincoenta mil pe-
ças de ouro, e que por elle me dessem a dita quantia,
teria adquirido essa somma com dinheiro ?>>
Parou aqui a contestação ; levantámo-nos, e entrando
em casa, como fosse o jantar servido, nos puzemos á
mesa. Depois do jantar deixei aos meus hospedes a liber-
dade de passarem o grande calor do dia a descançar, em
quanto fui dar as minhas ordens ao despenseiro, e ao
jardineiro . Voltei , e entretivemo-nos em cousas indiffe-
rentes até ter passado o maior calor, e então voltamos
ao jardim, onde ficámos á fresca quasi até ao pôr do
sol . Então os dous amigos e eu montámos a cavallo , e
seguidos de um escravo, chegámos a Bagdad quasi ás
duas horas da noite por um bello luar.
Não sei por que descuido da minha gente acontecera
que faltasse cevada em minha casa para os cavallos . Es-
tavam as lojas fechadas, e ficavam muito longe para ir
fazer provisão d'ella tão tarde . Procurando na visinhança,
um de meus escravos achou um vaso de semeas n'uma
loja, comprou as semeas, trouxe- as com o vaso , com a
condição de levar e restituir o vaso no dia seguinte . Va-
sou as semeas na pia, e estendendo-as para que os ca-
vallos tivessem cada um o seu quinhão, sentiu debaixo
da mão um pano atado que era pesado. Trouxe- me o pano
sem tocar n'elle e no estado em que o achára, e m'o
apresentou dizendo-me que era talvez o pano de que me
ouvira fallar muitas vezes, contando a minha historia aos
meus amigos .
Cheio de alegria, disse a meus bemfeitores : « Senho-
res, Deus não quer que vos aparteis de mim, sem ficar-
des plenamente convencidos da verdade, a qual não ces-
sei de assegurar-vos . Eis-aqui , continuei eu , dirigindo- me
a Saadi, as outras cento e noventa peças de ouro que re-
cebi de vossa mão ; reconheço -as pelo pano que estaes
vendo » . Desatei o pano e contei a somma á sua vista.
Mandei tambem trazer o vaso, reconheci-o, e mandei-o a
minha mulher, para perguntar-lhe se o conhecia, com
CONTOS ARABES 151

ordem de não se lhe dizer cousa alguma do que acabava


de acontecer. Conheceu-o logo, e mandou-me dizer que
era o mesmo vaso que trocára , cheio de semeas, por
greda.
Cedeu Saadi de boa fé, e desenganado da sua incre-
dulidade, disse a Saadi : «Estou convencido, e reconheço
comvosco que o dinheiro não é sempre um meio seguro
para ajuntar dinheiro, e enriquecer-se » .
Tendo Saadi acabado : « Senhor , disse-lhe , não ousa-
ria propôr-vos a entrega das trezentas e oito peças que
Deus quiz fazer apparecer para desenganar-vos da opi-
nião em que estaveis da minha má fé . Estou persuadido
que não me fizestes presente d'ellas com a intenção de
vol-as restituir. Da minha parte não pretendo aproveitar-
me d'ellas, tão satisfeito estou do que Deus me deu por ou-
tra parte, mas espero que approvareis que as distribua
amanhã pelos pobres, para que Deus nos dé d'ellas a re-
compensa, a vós e a mim.
Os dous amigos dormiram ainda em minha casa esta
noite , e no dia seguinte, depois de me abraçarem, vol-
taram cada um para sua casa, muito satisfeitos do bom
acolhimento que lhes fizera, e por terem conhecido que
não abusava da felicidade, da qual lhes era devedor de-
pois de Deus. Não faltei a ir agradecer-lhes a sua casa,
a cada um em particular , e desde este tempo tenho por
grande honra a faculdade que me deram de cultivar a
sua amizade, e de continuar a vél-os .
O califa Haroun Alraschid dava a Cogia Hassan uma
attenção tão grande, que não percebeu o fim da sua his-
toria senão pelo seu silencio. Disse-lhe : « Cogia Hassan ,
havia muito tempo que não tinha ouvido cousa que me
désse tanto gosto, como os meios todos maravilhosos pe-
los quaes quiz Deus fazer-te feliz n'este mundo. E' obri-
gação tua continuar a dar-lhe graças pelo bom uso que
fazes dos seus beneficios. Estimo muito que saibas que o
diamante que fez a tua fortuna está no meu thesouro,
e pela minha parte estou muito satisfeito sabendo por que
meio entrou n'elle . Porém, porque pode dar- se que fique
ainda alguma duvida no espirito de Saadi sobre a sin-
gularidade d'esse diamante, que considero como a cousa
152 AS MIL E UMA NOITES

mais preciosa e mais digna de ser admirada, de tudo o


que possuo, quero que m'o tragas com Saad juntamente ,
para que o guarda do meu thesouro lh'o mostre ; e por
pouco incredulo que seja ainda , que reconheça que o di-
nheiro não é sempre um meio seguro para um pobre
adquirir grandes riquezas em pouco tempo , e sem muito
trabalho. Quero tambem que contes a tua historia ao
guarda do meu thesouro, para que a faça pôr por escri-
pto, e que n'elle seja conservada com o diamante » .
Acabando de proferir estas palavras, como tivesse o
califa manifestado com uma inclinação de cabeça a Co-
gia Hassan, a Sidi Nouman e a Baba Abdallah, que es-
tava satisfeito, despediram-se prostrando -se ante o seu
throno, depois do que retiraram-se .
Quiz a sultana Scheherazada principiar outro conto ,
mas o sultão das Indias, que percebeu que a aurora
principiava a apontar, differiu a audiencia para o dia se-
guinte.

HISTORIA DE ALI BABA

E DE QUARENTA LADRÕES EXTERMINADOS


POR UMA ESCRAVA

A sultana Scheherazada , acordada pela vigilancia de


Dinazarda, sua irmã, contou ao sultão das Indias , seu
esposo, a historia que quizera principiar a contar na
vespera :
Poderosissimo sultão , disse ella, n'uma cidade da Per-
sia, nos confins dos estados de vossa magestade, havia
dous irmãos, que se chamavam um Cassim, e Ali Baba
o outro. Como seu pai lhes deixára pouco cabedal , e como
elles o repartiram igualmente, parece que devia ser igual
a sua fortuna ; dispoz todavia o acaso mui diversamente.
Cassim casou com uma mulher, que pouco tempo de-
pois do seu casamento, ficou herdeira de uma loja bem
sortida, de um armazem cheio de boas fazendas e de
bens de raiz, que lhe deram de repente o seu commodo,
e o fizeram um dos mercadores mais ricos da cidade.
CONTOS ARABES 153

Ali Baba, pelo contrario, que casára com uma mulher


tão pobre como elle, estava alojado muito pobremente,
e não tinha outra industria para ganhar a sua vida, e com
que sustentar-se elle e seus filhos, senão ir cortar ma-
deira n'um bosque visinho e vendel-a na cidade, car-
regada sobre tres burros, que eram todo o seu cabe-
dal.
Estava um dia Ali Baba no bosque, e acabava de cor-
tar bastante lenha para fazer a carga dos seus burros ,
quando viu uma grande nuvem de poeira que se elevava
pelos ares, e que vinha em direitura para onde elle es-
tava ; olha com attenção, e distingue um grupo nume-
roso de gente a cavallo, que vinha a galope .
Ainda que não se fallasse de ladrões no paiz , Ali
Baba todavia teve o pensamento de que aquelles cavalleiros
podiam ser ladrões ; sem considerar o que seria de seus
burros, cuidou em salvar a sua pessoa . Subiu a uma gran-
de arvore, cujos ramos , a pouca altura, se apartavam, po-
rém tão espessos , que não estavam separados uns dos ou-
tros senão por um pequeno espaço . Postou-se no meio
com tanta segurança , que podia vêr sem ser visto ; a ar-
vore se elevava ao pé de um rochedo, isolado de todos os
lados, muito mais alto que a arvore , e escarpado de modo
que não podiam subir ao cume por parte alguma.
Os cavalleiros, grandes , poderosos, todos bem mon-
tados, e bem armados , chegaram perto do rochedo onde
se apeáram, e Ali Baba, que contou quarenta, julgando
pela sua figura e pelo seu estado, não duvidou que fos-
sem ladrões . Não se enganava ; com effeito eram ladrões
que, sem fazerem damno algum nos arredores, iam pra-
ticar muito longe os seus roubos, e tinham alli o seu
ponto de reunião ; e o que lhes viu fazer o confirmou
n'esta idéa.
Desenfreou cada cavalleiro o seu cavallo, prendeu - o
e lhe atou ao pescoço um sacco cheio de cevada, que
trouxera na garupa , e tomaram conta cada um da sua
mala ; a maior parte das malas pareceram tão pesadas a
Ali Baba, que julgou estarem cheias de ouro e de prata
amoedada.
O mais apparatoso , carregado com a sua mala como
154 AS MIL E UMA NOITES

os outros, que Ali Baba tomou pelo capitão dos ladrões,


chegou-se ao rochedo muito perto da grande arvore, onde
se tinha refugiado, e depois de abrir caminho por entre
alguns arbustos, pronunciou estas palavras tão distincta-
mente : Sesamo, abre-te, que Ali Baba as ouviu . Ape-
nas as pronunciou o capitão dos ladrões, logo se abriu
uma porta, e depois de ter feito passar toda a sua gente
adiante d'elle , e tendo entrado todos , entrou tambem e fe-
chou-se a porta .
Demoraram -se bastante tempo os ladrões dentro do ro-
chedo , e Ali Baba que receou que algum d'elles , ou que to-
dos sahissem , se não largasse seu posto para se salvar, foi
constrangido a ficar sobre a arvore , e a esperar com pa-
ciencia. Teve todavia tentações de descer para apossar-se
de dous cavallos , montar n'um, e levar outro pela redea,
e a correr para a cidade, enxotando os seus tres burros
adiante d'elle ; porém a incerteza do successo fez com que
tomasse o partido mais seguro .
Tornou-se finalmente a abrir a porta, sahiram os qua-
renta ladrões , e posto que o capitão fosse o ultimo a en-
trar, sahiu primeiro ; depois de os ter visto desfilar diante
de si, Ali Baba ouviu que mandou fechar a porta, pro-
nunciando estas palavras : Sesamo, torna-te a fechar.
Foi cada um vér o seu cavallo, enfreou-o, carregou-o
com a sua mala e montou n'elle . Vendo finalmente o ca-
pitão que estavam todos promptos a partir, pôz-se á frente,
e tomou com elles o mesmo caminho por onde vieram .
Não desceu logo Ali Baba da arvore ; disse comsigo :
« Podem ter-se esquecido d'alguma cousa que os obrigue
a voltar, e achar-me-hia bem enganado se isto aconte-
cesse». Acompanhou-os com os olhos até têl-os perdido de
vista, e não desceu senão passado bastante tempo , para
maior segurança . Como se lembrasse das palavras com
que o capitão dos ladrões fizera abrir e fechar a porta,
teve a curiosidade de ensaiar se pronunciando -as fariam
o mesmo effeito. Passou por entre os arbustos e avis-
tou a porta que occultavam. Apresentou-se diante d'ella
e disse : Sesamo, abre-te, e no mesmo instante abriu - se a
porta.
Ali Baba esperava vér um lugar de trevas e de es-
CONTOS ARABES
155
curidão, porém ficou pasmado vendo um bem claro, vas-
to e espaçoso sitio cavado em abobada mui alta, que re-
cebia a luz do alto do rochedo por uma abertura . Viu mui-
tas provisões de bocca, fardos de ricas fazendas em pi-
lha, estofos de séda e de brocado, tapetes de grande
valor, e principalmente moedas d'ouro e de prata amon-
toadas e em saccos , ou grandes bolsas de couro, umas
sobre outras ; e ao ver todas essas cousas, pareceu - lhe

que havia não largos annos, mas sim seculos, que esta
gruta servia de retiro a ladrões, que tinham succedido
uns aos outros .
Resolveu logo Ali Baba ácerca do partido que devia
tomar ; entrou na gruta, e tendo entrado ; fechou -se a
porta ; isto não o assustou, sabia o segredo de abril -a.
Não se occupou com a prata, mas com o ouro amoedado ,
156 AS MIL E UMA NOITES

e particularmente com o que estava em saccos . Tirou re-


petidas vezes quanto podia levar, e quanto bastava para
fazer a carga de seus tres burros . Ajuntou os burros
que estavam dispersos , e tendo- os feito chegar ao roche-
do, arrumou lenha por cima , de modo que não se po-
diam vêr os saccos. Tendo acabado, apresentou -se dian-
te da porta ; e apenas pronunciou estas palavras : Sesa-
mo, torna-te a fechar, logo se fechou. Depois d'isso
tornou Ali Baba a tomar o caminho da cidade, e che-
gando a sua casa, fez entrar os burros n'um pequeno
pateo, e fechou a porta com grande cuidado . Descar-
regou a pouca lenha que cobria os saccos e levou- os pa-
ra casa, onde os pousou e arrumou diante de sua mu-
lher, que estava assentada n'um sophá.
Apalpou sua mulher os saccos, e como percebesse
que estavam cheios de dinheiro, suspeitou que seu mari-
do os tinha roubado ; de sorte que depois de ter acaba-
do de trazel-os todos, não pôde deixar de dizer-lhe : «<Ali
Baba, serieis assás desgraçado para ... » Ali Baba a in-
terrompeu : « Socega, mulher, disse elle , não vos assus-
teis, não sou ladrão, só se furtar aos ladrões é ser la-
drão. Deixareis de ter má opinião de mim quando vos ti-
ver contando a minha boa fortuna ». Vasou os saccos
que fizeram um grande montão d'ouro, o qual assombrou
sua mulher, e tendo acabado , fez- lhe a narração da
sua aventura desde o principio até ao fim, recommen-
dando-lhe sobre tudo que guardasse segredo .
A mulher, tornada a si do seu assombro, se alegrou
com seu marido da felicidade que lhes acontecera, e
quiz contar peça por peça todo o ouro que estava dian-
te d'ella. « Mulher, disse Ali Baba, não sois prudente ;
que pretendeis fazer ? quando terieis acabado de con-
tal-o ? vou abrir uma cova e enterral - o dentro ; porém não
temos tempo a perder . - É bom, replicou a mulher, que
saibamos pouco mais ou menos a quantidade que ha. Vou
buscar uma pequena medida na visinhança, e medil-o- hei
em quanto abrirdes a cova. -Mulher, replicou Ali Baba,
o que quereis fazer não pręsta para nada , abster- vos-
hieis d'isso se quizesseis crêr-me . Fazei todavia o que
quizerdes, porém lembrai- vos guardar segredo.
CONTOS ÁRABES
157
Para satisfação sua, a mulher de Ali Baba sahe, e vai
a casa de Cassim seu cunhado, que não morava longe ,
e estando ausente dirige -se a sua mulher , a quem pede
que lhe empreste uma medida por alguns instantes . Per-
gunta- lhe a cunhada se a queria grande ou pequena, e
a mulher de Ali Baba lhe pediu uma pequena . < « Esperai
um instante , vou buscar-vol-à ».
Vai a cunhada buscar a medida, acha-a, mas como
conhecesse a pobreza de Ali Baba , curiosa de saber que
especie de grão queria sua mulher medir, lembrou- se de
applicar subtilmente sebo por baixo da medida , e com ef-
feito applicou-o . Voltou, e apresentou-a á mulher de Ali
Baba , desculpando - se de a ter feito esperar em razão da
difficuldade que houvera em achal-a .
Voltou a mulher de Ali Baba para sua casa ; põe a
medida sobre o montão d'ouro, enche-a, e vasa- a a al-
guma distancia do sophá, continuando assim até ter aca-
bado ; ficou contente do grande numero de medidas que
achou , do que deu parte a seu marido, que acabava de
abrir a cova .
Em quanto Ali Baba enterrou o ouro , sua mulher , pa-
ra mostrar a sua exactidão a sua cunhada, lhe levou a
medida, mas sem tomar sentido que uma moeda d'ou-
ro estava pegada por baixo . « Cunhada , disse ella, entre-
gando-a, vós vêdes que não guardei muito tempo a vos-
sa medida ; fico- vos muito agradecida ; eil-aqui » .
A mulher de Ali Baba, apenas voltou as costas, logo
a mulher de Cassim examinou a medida por baixo , e fi-
extraordinaria
cou mente pasmada de n'ella vêr uma pe-
ça d'ouro pegada . Apoderou -se a inveja do seu coração
no mesmo instante . « O quê ! disse ella ; Ali Baba tem ou-
ro ás medidas ! e aonde apanhou o miseravel este ou-
ro ? » Cassim, seu marido, não estava em casa, como
temos dito ; estava na sua loja, d'onde não devia voltar
senão ao anoitecer . Todo o tempo que se fez esperar,
foi um seculo para ella , na grande impaciencia em que
estava de dar-lhe uma noticia, da qual não devia admirar-
se menos do que ella .
Chegado que foi Cassim a sua casa : « Cassim, disse-
lhe sua mulher, parece-vos que sois rico, enganaes - vos ;
158 AS MIL E UMA NOITES

Ali Baba é-o muito mais que vós ; não conta o seu ouro
como vós, mede-o » . Pediu a explicação d'este enigma,
e ella lh'o explicou , informando-o do meio de que se va-
lêra para fazer este descobrimento, e mostrou- lhe a moe-
da que achára pegada por baixo da medida ; moeda tão
antiga, que o nome do principe n'ella aberto, lhe era
desconhecido.
Longe de ser sensivel á felicidade que podia ter
acontecido a seu irmão, para tirar-se da miseria, conce-
beu Cassim uma inveja mortal. Passou quasi a noite sem
dormir. Foi no dia seguinte a casa d'elle , antes do nascer
do sol . Não o tratou por irmão ; tinha-se esquecido d'es-
se nome desde que casára com a viuva rica. « Ali Baba,
disse, chegando -se a elle ; sois bem circumspecto nos
vossos negocios ; fingis ser pobre, miseravel, mendigo , e
tendes ouro ás medidas . Irmão , replicou Ali Baba, não
-
sei de que quereis fallar-me, explicai - vos . Não finjaes
ignorar», replicou Cassim ; e mostrando-lhe a moeda d'ou-
ro que sua mulher lhe mettêra nas mãos : « Quantas moe-
das tendes , acrescentou elle, semelhante a esta, que mi-
nha mulher achou pegada por baixo da medida , que a vos-
sa lhe pediu emprestada hontem ?» >
A estas palavras Ali Baba conheceu que Cassim e
sua mulher (por teima de sua propria mulher) sabiam
já o que tinha tanto interesse em occultar, porém o er-
ro estava já feito ; não podia reparar- se . Sem dar a seu
irmão a menor demonstração de pasmo, confessou - lhe
a cousa, e contou-lhe por que acaso descobrira o re-
tiro dos ladrões , e em que sitio ; e offereceu-lhe , se qui-
zesse guardar segredo, dar-lhe parte do thesouro .
« Assim o pretendo, replicou Cassim, em tom orgu-
lhoso ; mas, acrescentou elle , quero saber tambem onde
está precisamente esse thesouro, os indicios, os signaes,
e como poderia eu mesmo entrar n'elle , se quizesse ; se-
não vou denunciar-vos á justiça . Se o recusaes , não só
não tereis mais nada que esperar d'elle , mas perdereis o
que roubastes, uma vez que terei a minha parte por vos
ter denunciado » .
Ali Baba, mais pela sua boa indole do que por medo
das ameaças insolentes d'um irmão barbaro, informou-o
CONTOS ARABES
159
completamente do que desejava
, e tambem das palavras
de que devia servir-se , tanto para entrar na gruta co-
mo para sahir d'ella.
Mais não pediu Cassim a Ali Baba ; deixou -o , resolvi-
do a prevenil -o : e cheio de esperança de apoderar-se do
thesouro, elle só , parte no dia seguinte ao raiar da au-
rora, com dez machos carregados de grandes bahús, que
se propôz encher, reservando -se para levar maior nume-
ro n'uma segunda viagem , á proporção das cargas que
achasse na gruta. Toma o caminho que Ali Baba lhe en-
sinára ; chega perto do rochedo e reconhece os signaes,
e a arvore, sobre a qual se escondera Ali Baba. Busca
á porta, acha-a ; e para fazel-a abrir, pronunciou as
palavras Sesamo, abre-te . Abre-se a porta , entra, e
torna-se a fechar . Examinando a gruta, admirou-se em
éxtremo , vendo muito mais riquezas do que entendera
haveria pela narração de Ali Baba , e a sua admiração
augmentou á proporção que examinou cada cousa em
particular. Avarento, e amador de riquezas como era, te-
ria passado o dia saciar os olhos com a vista de tanto
ouro, se não se lembrasse que viera para roubal - o, e para
carregar com elle os seus dez machos ; péga n'um nu-
mero de saccos quantos pôde levar, e indo á porta para
fazel-a abrir, cheio o espirito de outras idéas diversas
do que mais lhe importava , succede que lhe esquece a
palavra necessaria ; em vez de Sesamo, disse : Ceva-
da, abre-te - e admirou -se muito de vêr que a porta ,
longe de abrir-se, ficou fechada. Nomeia outros muitos
nomes de grãos , que não eram o de que precisava, e
não se abre a porta .
Não esperava Cassim este acontecimento . Com o gran-
de per igo em que se vê, fica perplexo , e quantos mais
esforços faz para recordar-se da palavra Sesamo , mais
confunde a sua lembrança , e d'ella fica absolutamente ex-
cluido como se nunca ouvisse fallar d'ella . Lança ao chão
os saccos com que estava carregado, passeia a passos
agigantados pela gruta, ora para um, ora para outro la-
do ; e todas as riquezas , de que se via cercado, não o
interessam já . Deixemos Cassim chorando a sua sorte ;
não merece compaixão .
160 AS MIL E UMA NOITES

Vieram os ladrões á sua gruta pelo meio dia, e es-


tando a pouca distancia e vendo os machos de Cassim
á roda do rochedo carregados de bahús, assustados d'es-
ta novidade, avançaram á rédea solta, e fizeram fugir os
dez machos que Cassim se descuidára de prender, e que
pastavam livremente, de modo que se dispersaram aqui
e acolá pelo matto , tão longe que os perderam logo de
vista.
Não deram os ladrões um passo para apanhar os ma-
chos ; mais lhes importava achar aquelle a quem per-
tenciam . Em quanto alguns dão a volta ao rochedo para
procural -o , o capitão com os outros, apeia- se e vai direi-
to á porta com o alfange na mão ; pronuncía as palavras
e abre-se a porta .
Cassim, que ouvira a bulha dos cavallos do meio da
gruta, não duvidou da chegada dos ladrões nem da sua
ruina proxima. Determinado ao menos a fazer um esfor-
ço para escapar das suas mãos, e salvar-se , resolveu ar-
rojar-se fóra, logo que se abrisse a porta . Apenas a viu
aberta, depois de ter ouvido pronunciar a palavra Sesa-
mo, da qual não se lembrára, logo se arrojou , sahindo
tão arrebatadamente , que derribou o capitão por ter-
ra. Porém não escapou aos outros ladrões, que tinham
tambem o alfange na mão, e que lhe tiraram logo a
vida.
Feita esta execução , o primeiro cuidado dos ladrões
foi entrar na gruta ; acharam perto da porta os saccos
que Cassim principiára a tirar para leval -os e carregal-os
nos seus machos e os tornaram a pôr no seu lugar, sem
darem pela falta dos que Ali Baba levára d'antes ; fazendo
conselho, e deliberando juntos sobre este acontecimento,
bem conheceram como Cassim não pudera sahir da gru-
ta ; porém que pudesse n'ella entrar, é o que não po-
diam comprehender. Assentaram que podia ter descido
pelo alto da gruta, mas a abertura por onde a claridade
vinha, era tão elevada, e o cume do rochedo era tão inac-
cessivel pela parte de fóra, e nada lhes indicava que o
tivesse feito, que concordaram não poderem vir no co-
nhecimento d'isso . Que entrasse pela porta, é o que não
podiam crêr, a menos que tivesse o segredo de fazel-a
CONTOS ARABES 161

abrir, mas tinham por certeza que elles eram os unicos


que o tivessem , no que se enganavam , ignorando que
tinham sido espreitados por Ali Baba, que o sabia.
De qualquer modo que tivesse o caso acontecido ,
como soubessem que suas riquezas communs estavam

em segurança, resolveram fazer quatro quartos do cada-


ver de Cassim, e pôl-os perto da porta da gruta da par-
te interior, dous de um lado, e dous do outro , para ame-
drontar qualquer que tivesse a ousadia de fazer uma se-
melhante empresa, e determinaram não voltar á gruta
senão passado algum tempo, depois de exhalar-se o fe-
tido do cadaver. Tomada esta resolução, executaram-a ; e
não tendo já cousa que os detivesse, deixaram o lugar
do seu retiro bem fechado, montaram a cavallo, e foram
TOMO IV. 11
162 AS MIL E UMA NOITES

postar-se nas estradas frequentadas pelas caravanas, para


acommettel-as , e exercitar os seus roubos costumados.
A mulher de Cassim ficou todavia n'um grande de-
sassocego quando viu que era noite fechada, e que o
seu marido não tinha ainda voltado . Foi a casa de Ali
Baba toda assustada, e lhe disse : « < Cunhado, não igno-
raes, como creio, que Cassim vosso irmão foi ao bosque,
e por que motivo. Ainda não voltou, e já vai adian-
tada a noite ; receio que lhe tenha acontecido alguma
desgraça » .
Teve Ali Baba suspeitas da viagem de seu irmão,
visto o discurso que lhe ouvira ; e por isso se abstivera
de ir ao bosque n'esse dia, para não causar-lhe descon-
fiança ; sem dar-lhe reprehensão alguma de que ella pu-
desse escandalisar- se nem seu marido, se estivesse com
vida, disse-lhe que não devia ainda assustar- se, e que
naturalmente Cassim julgára a proposito não entrar na
cidade senão depois de ser já alta noite ».
Assim pareceu á mulher de Cassim, tanto mais facil-
mente, quanto imaginou que seu marido fizesse a cousa
occultamente . Tornou para sua casa, e esperou com pa-
ciencia até á meia noite ; porém depois augmentaram os
seus sustos, com uma afflicção tanto mais sensivel quanto
não podia desabafal-a, nem allivial-a com gritos, cuja cau-
sa bem viu que devia esconder-se à visinhança . Então,
como o seu erro fosse irreparavel, arrependeu -se da lou-
ca curiosidade que tivera, por uma inveja condemnavel,
de querer saber os negocios de seu cunhado e de sua
cunhada. Passou a noite a chorar, e logo ao raiar do dia
correu a casa d'elles e lhes annunciou o motivo que a
trazia, mais com as suas lagrimas do que com as suas pa-
lavras .
Ali Baba não esperou que sua cunhada lhe rogasse
o trabalho de ir vêr o que era feito de Cassim. Partiu
logo com seus tres burros , depois de ter-lhe recommen-
dado que moderasse a sua afflicção , e foi ao bosque.
Aproximando-se do rochedo, e depois de não ter visto
em todo o caminho nem seu irmão nem os dez machos ,
ficou pasmado do sangue espalhado que viu perto da
porta, e d'isso tirou mau agouro. Apresentou-se diante
CONTOS ARABES 163

da porta, pronunciou as palavras e abriu- se, e ficou as-


sombrado do triste espectaculo de seu irmão feito em
quatro quartos . Não hesitou ácerca do partido que de-
via tomar para dar sepultura a seu irmão , esquecendo-
se da pouca amizade fraternal que tivera para com elle.

Achou na gruta com que fazer dous embrulhos dos qua-


tro quartos, com os quaes fez a carga de um de seus
burros, com lenha por cima para escondel- os . Carregou
os outros burros com saccos cheios de ouro e lenha por
cima como da primeira vez, sem perder tempo, e ten-
do acabado e ordenado á porta que se fechasse, tomou o
caminho da cidade, tendo a precaução de parar na sahida
do bosque, bastante tempo para não entrar senão de
noite. Chegado que foi a sua casa, não fez entrar no
*
164 AS MIL E UMA NOITES

seu pateo senão os dous burros carregados d'ouro ; e de-


pois de ter deixado a sua mulher o cuidado de descarre-
gal-os e de lhe ter dado parte em poucas palavras do
que acontecera a Cassim, levou o outro burro a casa da
sua conhada.
Bateu Ali Baba á porta, que Morgiana lhe abriu . Es-
ta Morgiana era uma escrava esperta, entendida e fe-
cunda em invenções para fazer succeder bem as cousas
mais difficultosas, e Ali Baba a conheceu por tal . Entrado
que foi no pateo, descarregou o burro da lenha e dos
dous embrulhos ; e fallando a Morgiana em particular :
« Morgiana, disse elle, a primeira cousa que te peço é
um segredo inviolavel ; tu vaes vêr quanto nos é neces-
sario tanto a tua ama como a mim ; eis-aqui o corpo
de teu amo n'estes dous embrulhos . Trata de fazel-o
enterrar, como se tivesse morrido de morte natural .
Apresenta-me á tua ama, e dá attenção ao que lhe di-
rei » .
Morgiana avisou a sua ama, e Ali Baba, que a seguia,
entrou . « Então , cunhado ? perguntou a cunhada a Ali Ba-
ba, com grande impaciencia ; que novas trazeis de meu
marido ? Não diviso no vosso rosto cousa que deva conso-
lar-me . Cunhada , respondeu Ali Baba, não posso dizer-
vos cousa alguma sem primeiro prometterdes que me ou-
vireis desde o principio até ao fim, sem abrir a bocca.
Não vos importa menos que a mim, no que aconteceu,
guardar um grande segredo para vosso bem e para vos-
so descanço. - Ah ! clamou a cunhada, sem levantar a
voz . Esse preambulo me faz conhecer que meu marido
morreu; mas ao mesmo tempo conheço a necessidade do
segredo que me pedis . Importa muito que tenha animo :
dizei, eu vos ouço » .
Ali Baba contou a sua cunhada todo o successo de
sua viagem, até à sua chegada com o corpo de Cassim.
<«< Cunhada, acrescentou elle, eis-aqui um motivo de afflic-
ção para vós, tanto maior, quanto menos o esperaveis .
Ainda que o mal seja sem remedio, se alguma cousa to-
davia é capaz de consolar-vos , offereço-vos que ajunteis
o pouco cabedal que Deus me deu ao vosso, casando com-
vosco, e assegurando-vos que minha mulher não terá
CONTOS ARABES 165

ciumes d'isso, e que vivereis bem uma com a outra . Se


a proposta vos agrada, deveis cuidar em portar-vos de
modo que pareça que meu irmão morreu de morte na-
tural ; e quanto a esse cuidado, parece-me que podeis
descançar em Morgiana, e para isso contribuirei da mi-
nha parte quanto me fôr possivel » .
Que melhor partido podia tomar a viuva de Cassim ,
do que o que Ali Baba lhe propunha, ella , que com os
cabedaes que lhe ficavam pela morte de seu proprio ma-
rido, achava outro mais rico que elle , e que, com o des-
cobrimento do thesouro que fizera, podia sel- o ainda
mais ? Não recusou o partido ; considerou-o , pelo contra-
rio, como um motivo razoavel de consolação, enxugan-
do as suas lagrimas, que tinha principiado a derramar
com abundancia, e suffocando os gritos agudos, communs
ás mulheres que perdem os maridos. Manifestou suffi-
cientemente a Ali Baba que aceitava o seu offerecimento .
Deixou Ali Baba a viuva de Cassim n'esta disposição ,
e depois de ter recommendado a Morgiana que desempe-
nhasse bem o seu papel, voltou para sua casa com o
burro.
Não se esqueceu Morgiana ; sahiu ao mesmo tempo
que Ali Baba, foi a casa de um boticario que havia na vi-
sinhança, e pediu uma especie de pastilhas mui sauda-
veis nas doenças mais perigosas. O boticario deu- lh'as
pelo dinheiro que apresentára, perguntando quem esta-
va doente em casa de seu amo. « Ah ! disse ella, dando
um grande suspiro ; é meu bom amo. Não conhecem a
sua doença ; não falla nem póde comer » . Ditas estas
palavras leva as pastilhas, das quaes na verdade não
estava já Cassim em estado de fazer uso .
No dia seguinte a mesma Morgiana torna ao mesmo
boticario e pede, com as lagrimas nos olhos , uma es-
sencia que só se costumava dar aos doentes na ultima
extremidade, e ficavam desvanecidas todas as esperan-
ças de vida, se esta não os fizesse reviver. « Ai de mim !
disse ella, com grande afflicção, recebendo-a das mãos do
boticario'; receio muito que este remedio não faça mais
effeito que as pastilhas . Ah ! perco um bom amo ! >»
Por outra parte, como vissem todo o dia a Ali Baba
166 AS MIL E UMA NOITES

e sua mulher com ar triste, ir e vir repetidas vezes a


casa de Cassim , não se admiraram á bocca da noite de
ouvir os gritos lamentaveis da mulher de Cassim, e prin-
cipalmente de Morgiana, que annunciavam que Cassim
estava morto.
No dia seguinte pela manhã cedo, Morgiana, que sa-
bia que havia na praça um bom homem, já avançado em
annos, sapateiro, que era o primeiro que abria todos os
dias a sua loja muito antes dos outros, sahe e vai ter
com elle. Chegando -se a elle, e dando-lhe os bons dias,
metteu-lhe uma moeda d'ouro na mão.
Baba Moustafá, conhecido de todos com este nome,
era naturalmente alegre, e tinha sempre algum dito pa-
ra fazer rir, olhou para a moeda, em razão de não ser
ainda bem dia, e vendo que era ouro : « Boas alviçaras,
disse elle, de que se trata ? eis-me aqui prompto a ser-
vir-vos em tudo o que quizerdes. -Baba Moustafá, dis-
se-lhe Morgiana, tomai o que é necessario para coser, e
vinde commigo a toda a pressa, mas com a condição que
vos taparei os olhos quando chegarmos a tal paragem ».
Ditas estas palavras, pôz Baba Moustafá alguma diffi-
culdade. «< Oh, oh ! replicou elle, quereis pois obrigar-
me a fazer alguma cousa contra a minha consciencia, ou
contra a minha honra ? » Mettendo-lhe outra moeda d'ou-
ro na mão : « Deus me guarde, replicou Morgiana, que
exija alguma cousa de vós que não possaes fazer com
toda a honra. Vinde sómente , e não receeis cousa al-
guma » .
Deixou-se levar Baba Moustafá. Morgiana, depois de
The ter tapado os olhos com um lenço na paragem que
indicára, o levou a casa do defunto seu amo, e não lhe
tirou o lenço senão no quarto onde depositára o corpo,
cada quarto para sua parte. Depois de lhe ter tirado o
lenço : « Baba Moustafá, disse ella , é para vos fazer co-
ser as peças que aqui estão, que vos trouxe . Não percaes
tempo ; e, quando acabardes, dar-vos-hei outra moeda
d'ouro ».
Tendo Baba Moustafá acabado , Morgiana lhe tornou
a tapar os olhos no mesmo quarto ; e depois de dar-lhe
a terceira moeda d'ouro que lhe promettera , e de recom-
CONTOS ARABES 167

mendar-lhe segredo, conduziu-o até ao sitio onde lhe ta-


pára os olhos ; e alli, depois de tirar-lhe o lenço , dei-
xou-o voltar para sua casa, acompanhando-o com a vis-
ta até não o vêr já , para tirar-lhe a curiosidade de vol-
tar para traz para observal-a.
Tinha Morgiana mandado aquentar agua para lavar
o corpo de Cassim . Ali Baba , que chegou quando ella
entrava, lavou-o, perfumou-o com incenso, e amorta-
lhou-o com as ceremonias costumadas. Trouxe tambem
o carpinteiro o caixão , que Ali Baba tivera o cuidado de
encommendar.
Para que o carpinteiro não pudesse perceber cousa
alguma, recebeu Morgiana o caixão á porta, e depois de
o ter pago e despedido, ajudou a Ali Baba a pôr den-
tro o corpo, e tendo Ali Baba pregado bem as tábuas de
cima, foi á mesquita dar parte que tudo estava prompto
para o enterro . Os da mesquita, destinados para lavar
os corpos dos mortos, se offereceram para desempenhar-
se de sua obrigação , mas ella lhes disse que isso esta-
va já feito .
Apenas tinha Morgiana entrado, ao mesmo tempo o
Iman, e outros ministros da mesquita chegaram . Quatro
dos visinhos pegaram no caixão aos hombros, e seguin-
do o Iman, que rezava orações , o levaram ao cemiterio.
Morgiana em choros , como escrava do defunto , ia atraz
com a cabeça descoberta, dando gritos lastimosos, baten-
do no peito e arrancando os cabellos ; e Ali Baba ia-a se-
guindo, acompanhado dos visinhos, que se destacavam
alternativamente de quando em quando para revezar, e
alliviar os outros visinhos , que levavam o caixão , até
chegar ao cemiterio.
Pelo que diz respeito á mulher de Cassim, ficou em
sua casa, chorando e lamentando-se com as mulheres
da visinhança , que conforme o costume concorreram du-
rante a ceremonia do enterro, e unindo as suas lamen-
tações ás d'ellas, encheram todo o bairro de tristeza.
Assim, a morte funesta de Cassim ficou occulta e dis-
simulada entre Ali Baba, sua mulher, a viuva de Cassim
e Morgiana, com tanta precaução, que pessoa alguma da
168 AS MIL E UMA NOITES

cidade, longe de ter conhecimento d'ella, não teve a me-


nor suspeita.
Tres, ou quatro dias depois do enterro de Cassim,
Ali Baba transportou os poucos trastes que tinha, com o
dinheiro que roubára do thesouro dos ladrões , que não
levou senão de noite a casa da viuva de seu irmão, pa-
ra n'ella morar, o que deu a conhecer o seu novo casa-
mento com sua cunhada. E como estes casamentos não
são extraordinarios na nossa religião, ninguem o es-
tranhou .
Quanto á loja de Cassim, tinha Ali Baba um filho,
que havia já algum tempo tinha acabado o tempo de
aprendiz em casa de outro grande mercador, o qual de-
ra sempre provas do seu bom procedimento ; deu-lh'a com
promessa, se continuasse a conduzir-se prudentemente,
de não tardar muito a casal-o vantajosamente, segundo
o seu estado.
Deixemos Ali Baba gozar dos principios da sua for-
tuna, e fallemos dos quarenta ladrões . Voltaram para o
seu retiro do bosque, no tempo que tinham ajustado .
Porém ficaram mui pasmados de não achar o corpo de
Cassim ; e muito mais ainda quando perceberam a dimi-
nuição dos seus saccos d'ouro. « Estamos descobertos e
perdidos , disse o capitão , se não tomamos sentido n'is-
to, e se não procuramos promptamente dar-lhe reme-
dio, insensivelmente vamos perder tantas riquezas, que
os nossos antepassados e nós temos ajuntado com tan-
tos trabalhos e fadigas. Tudo o que podemos julgar do
damno que nos fizeram, é que o ladrão , que apanhámos,
sabia o segredo de abrir a porta e que chegámos feliz-
mente no instante em que estava para sahir. Porém não
era só, outro deve sabel- o como elle. O seu corpo leva-
do, e o nosso thesouro diminuido, são provas sufficien-
tes ; e como não ha apparencia que mais de duas pessoas
tenham tido este segredo, depois de ter feito perecer um,
devemos tambem fazer perecer o outro. Que vos pare-
ce, bravos camaradas ? não sois do mesmo parecer que
eu ?»
>
A proposta do capitão dos ladrões pareceu tão ra-
CONTOS ARABES 169

zoavel aos seus companheiros, que todos a approvaram,


e concordaram que deviam abandonar outra qualquer em-
presa, para se applicarem unicamente a esta, e não de-
sistir d'ella senão depois de ter tido o successo desejado .
<< Não esperava menos do vosso valor e da vossa in-
trepidez, replicou o capitão. Mas primeiro que tudo, é
preciso que algum dos nossos, ousado, habil e empre-
hendedor, vá á cidade , sem armas e em trajo de viajan-
te e de estrangeiro , e que se valha de toda a sua in-
dustria para descobrir se não se falla da morte estra-
nha do que assassinámos como merecia, quem era, e em
que casa morava. É o que nos importa saber já para
não termos motivo de arrepender-nos, descobrindo- nos
nós mesmos n'um paiz onde não somos conhecidos des-
de tanto tempo, e onde temos tanto interesse em conti-
nuar a não o ser. Mas para animar aquelle de vós que
se offerecer para encarregar-se d'esta commissão , e im-
pedil-o de se enganar, vindo fazer-nos um falso rela-
torio em vez d'um verdadeiro , que fosse capaz de causar
a nossa ruina, pergunto-vos se não julgaes a proposito
que n'esse caso se sujeite á pena de morte » .
Sem esperar que os outros dessem os seus votos,
disse um dos ladrões : « Sujeito-me a ella, e tenho a ou-
sadia de expôr a minha vida, encarregando-me da com-
missão . Se não for bem succedido, lembrar- vos-hei ao
menos que não será por falta de boa vontade, nem de
valor, para o bem commum da nossa sociedade » .
Este ladrão, depois de ter recebido grandes elogios
do capitão e dos seus camaradas, disfarçou-se de modo
que ninguem podia tomal-o pelo que era . Apartando- se
do grupo, partiu de noite e tomou tão bem as suas me-
didas, que entrou na cidade a tempo que só principiava
a raiar o dia. Chegou á praça , onde não viu senão uma
unica loja aberta, e era a de Baba Moustafá.
Estava Baba Moustafa assentado na sua tripeça, com
a sovela na mão, já prompto a trabalhar . Foi o ladrão
ter com elle, dando-lhe os bons dias, e como reparasse
na sua avançada idade : « Bom homem, disse elle, princi-
piaes a trabalhar muito cedo, não é possivel que vejaes
bem, adiantado em annos como sois, e ainda que fosse
170 AS MIL E UMA NOITES

já dia claro, duvido que tivesseis boa vista para coser.


-Quem quer que sejaes, replicou Baba Moustafá , de-
veis não conhecer-me. Velho como sou não deixo de
ter muito boa vista ; e não o duvidareis quando sou-
berdes que não ha muito tempo que cosi um morto,
n'um lugar onde pouca claridade havia mais do que ha
agora.
Alegrou-se em extremo o ladrão de ter-se chegado a
um homem, que logo, como não duvidou, lhe dava no-
vas do que o trouxera á cidade, sem lh'as pedir. « Um
morto ! replicou elle, com pasmo ; e para o fazer fallar !
Para que coser um morto ? acrescentou elle ; quereis cer-
tamente dizer que cosestes o lençol em que foi amortalha-
-
do. Não, não, replicou Baba Moustafa ; sei o que que-
ro dizer; quererieis obrigar-me a fallar, mas não sabereis
nada mais » .
Não precisava o ladrão de uma explicação mais am-
pla, para ficar persuadido que descobrira o que viera in-
dagar. Pegou n'uma moeda de ouro, e mettendo-a na
mão de Baba Moustafa, disse-lhe : « Não quero de modo
algum saber o vosso segredo, ainda que posso assegu-
rar-vos que não o divulgaria, se m'o tivesseis confiado.
A unica cousa que vos peço, é que me façaes o favor
de ensinar-me, ou de vir mostrar-me a casa onde coses-
tes esse morto. - - Ainda que tivesse vontade de fazer- vos
o favor que me pedis, replicou Baba Moustafa, com a
moeda de ouro prestes a restituil -a, asseguro- vos que
não poderia fazel- o, e deveis crêr-me sob minha pala-
vra. Eis-qui a razão : levaram-me até certa paragem on-
de me taparam os olhos, e d'alli conduziram-me até á
dita casa, d'onde, depois de ter feito o que devia fazer,
tornaram -me a levar do mesmo modo até ao mesmo lu-
gar. Estaes vendo a impossibilidade que tenho de poder
servir-vos. - Ao menos , replicou o ladrão , deveis lem-
brar-vos pouco mais ou menos do caminho que andas-
tes com os olhos tapados ; vinde commigo, tapar- vos-hei
os olhos n'esse lugar, e andaremos juntos pelo caminho,
e pelos mesmos atalhos que podereis trazer á lembran-
ça de ter caminhado, e como todo o trabalho merece re-
compensa, eis-aqui outra moeda de ouro ; vinde, fazei-
CONTOS ARABES 171

me o favor que vos peço. » E dizendo estas palavras, met-


teu-lhe outra moeda na mão.
As duas peças de ouro tentaram a Baba Moustafá ;
olhou para ellas algum tempo sem dizer palavra, con-
sultando comsigo para saber o que devia fazer. Tirou

finalmente a sua bolsa do seio, e mettendo-as dentro :


« Não posso assegurar- vos, disse ao ladrão, que me lem-
bre precisamente do caminho que me fizeram andar. Mas
visto que assim o quereis, vamos, farei o que pudér pa-
ra lembrar-me >> .
Levantou-se Baba Moustafá com grande satisfação do
ladrão, e sem fechar a sua loja, levou o ladrão comsigo
172 AS MIL E UMA NOITES

até ao lugar onde Morgiana lhe tapára os olhos . Chega-


dos que foram : « Foi aqui , disse Baba Moustafá, que me
taparam os olhos e estava virado como vêdes » . O la-
drão, que tinha o lenço prompto, tapou-lh'os, e caminhou
ao lado d'elle, parte conduzindo-o; e parte deixando-se
conduzir por elle, até que parou.
<< Agora parece-me, disse Baba Moustafá, que não
passei mais longe » ; e achou- se na realidade diante da
casa de Cassim, onde Ali Baba morava então . Antes de
tirar-lhe o lenço de diante dos olhos, fez o ladrão a toda
a pressa um signal na porta com gesso que trazia com-
sigo, e depois de lh'o ter tirado , perguntou se sabia a
quem pertencia a casa. Respondeu-lhe Baba Moustafá que
não era do bairro, e assim que não podia informal-o .
Como visse o ladrão que não podia saber mais cou-
sa alguma de Baba Moustafá, agradeceu-lhe o trabalho
que lhe dera, e depois de o ter largado e deixado voltar
á sua loja, tomou o caminho do bosque, persuadido que
seria bem recebido .
Pouco tempo depois de se apartarem o ladrão e Ba-
ba Moustafá, sahiu Morgiana de casa de Ali Baba para
aviar algum negocio, e, voltando, reparou no signal que
o ladrão fizera ; parou para observal-o : « Que significa
este signal ? disse ella comsigo ; quereria alguem fazer
mal a meu amo, ou fizeram este signal para se diver-
tir ? Qualquer que seja a intenção com que o pudessem
fazer, acrescentou ella, é bom acautelar-se contra tudo o
que pudér acontecer ». Péga tambem em gesso, e como
as duas ou tres portas para cima e para baixo fossem
iguaes, ella as marcou no mesmo lugar, e entrou em
casa sem fallar do que acabava de fazer, nem a seu amo,
nem a sua ama.
O ladrão, todavia, que continuava o seu caminho , che-
gou ao bosque, e reuniu-se à sua gente muito cedo. Che-
gando, fez o relatorio do successo da sua viagem, exa-
gerando a felicidade que tivera de ter logo achado um
homem, pelo qual soubera o facto de que fora informar-
se, do qual outro qualquer a não ser elle não teria po-
dido informal-o. Foi ouvido com grande satisfação, e o
capitão principiando a fallar, depois de louvar-lhe a sua
CONTOS ARABES 173

diligencia : <« Camaradas, disse elle , fallando a todos , não


temos tempo a perder ; partamos bem armados, sem pa-
recer que o estamos, e depois de termos caminhado pela
cidade separadamente, uns após outros, para não causar
suspeita, seja o lugar da reunião na grande praça, uns
de um lado, outros do outro , em quanto eu irei reconhe-
cer a casa com o nosso camarada, que nos trouxe uma
tão boa nova, para eu poder julgar do partido que me-
lhor nos convier » .
Foi o discurso do capitão dos ladrões applaudido , e
apromptaram-se bem depressa para partir. Desfilaram
dous a dous e tres a tres, e caminhando a uma distan-
cia razoavel uns dos outros , entraram na cidade sem dar
suspeita alguma. O capitão e o que viera pela manhã
foram os ultimos que entraram n'ella . Este guiou o capi-
tão á rua onde marcára a casa de Ali Baba, e estando
diante de uma das portas que fôra marcada por Morgiana,
fez-lh'a observar, dizendo-lhe que era aquella. Porém con-
tinuando o seu caminho sem parar, para não se tornarem
suspeitos, como o capitão tivesse observado que a porta
que se seguia estava marcada com o mesmo signal e
no mesmo lugar fez observal - o ao seu guia, e pergun-
tou-lhe se era esta, ou a primeira. Ficou confuso o guia
e não soube que responder, ainda menos depois de ter
visto com o capitão que as quatro, ou cinco portas que
se seguiam, tinham tambem o mesmo signal. Assegurou
ao capitão, com juramento, que não marcára senão uma.
< Não sei, acrescentou elle, quem pôde ter marcado as
<
«
outras com tanta semelhança ; mas n'esta confusão con-
fesso que não posso distinguir qual é a que marquei ».
O capitão, que viu o seu plano sem effeito, foi ter á
praça principal, onde mandou dizer á sua gente , pelo
primeiro que encontrou, que tinham perdido o seu tra-
balho , e feito uma viagem inutil, e que não tinham ou-
tro partido que tomar senão metter-se a caminho para o
seu retiro commum. Deu o exemplo, e todos o seguiram
na mesma ordem em que vieram .
Junta que foi a quadrilha no bosque, explicou-lhe o
capitão a razão por que a mandára voltar . Foi logo o guia
declarado digno de morte unanimemente , e elle mesmo
174 AS MIL E UMA NOITES

se condemnou, reconhecendo que devera tomar mais pre-


cauções , e apresentou o pescoço com constancia ao que
se offereceu para cortar-lhe a cabeça .
Como se tratasse, para a conservação da malta, de
não deixar sem vingança a injuria que lhe fôra feita , ou-
tro ladrão, que se lisonjeou de ter melhor successo que
o que acabava de ser castigado, se apresentou e pediu
por favor o ser preferido. Dá- se -lhe licença, parte, cor-
rompe Baba Moustafá, como o primeiro o corrompéra ; e
Baba Moustafá, com os olhos tapados, lhe dá a conhecer
a casa de Ali Baba. Marcou -a de vermelho n'um lugar
menos apparente , parecendo-lhe que era um meio seguro
para distinguil-a das que estavam marcadas de branco.
Porém passado pouco tempo sahiu Morgiana de casa
como no dia precedente, e , quando voltou, o signal ver-
melho não escapou aos seus olhos perspicazes . Fez o
mesmo arrazoado que fizera da primeira vez , e não se
esqueceu de fazer o mesmo signal vermelho ás outras
portas visinhas, e no mesmo lugar.
O ladrão, voltando para a sua gente no bosque, não
deixou de fazer valer a precaução que tomára , e como
infallivel, dizia elle, para não confundir a casa de Ali
Baba com as outras.
O capitão e o seu grupo crêem, como elle , que a cousa
deve ter bom successo . Foram á cidade na mesma or-
dem, e com os mesmos cuidados que d'antes, armados
tambem do mesmo modo, promptos a dar o golpe que
meditavam. O capitão e o ladrão , chegando , vão à rua
de Ali Baba, mas acham a mesma difficuldade que da
primeira vez. Agasta-se o capitão, e o ladrão fica n'uma
confusão tão grande, como o que o precedêra com a
mesma commissão.
Assim foi o capitão constrangido a retirar-se ainda
este dia com a sua gente, tão pouco satisfeito como no
dia antecedente. O ladrão, como author do engano, pa-
deceu igualmente o castigo a que se sujeitára volunta-
riamente.
O capitão, que viu a sua tropa com dous homens bra-
vos de menos, receou vêl-a diminuir mais, se conti-
nuasse a fiar-se dos outros, para ser verdadeiramente
CONTOS ARABES 175

informada da casa de Ali Baba . O exemplo d'elles lhe deu


a conhecer, que não eram proprios todos senão para gol-
pes de mão, e de nenhum modo para obrar de cabeça
nas occasiões . Encarrega-se da diligencia elle mesmo ;
veio á cidade, e com a ajuda de Baba Moustafa , que lhe fez
o mesmo serviço que fizera aos escolhidos da sua gente,
não perdeu tempo a fazer signal algum para conhecer a
casa de Ali Baba, mas examinou-a tão bem, não só con-
siderando-a com attenção , mas tambem passando , e re-
passando repetidas vezes por diante, que não era possi-
vel que se enganasse n'ella .
O capitão dos ladrões , satisfeito da sua viagem e in-
formado do que desejava, voltou ao bosque ; chegado que
foi á gruta, onde toda a tropa o esperava : « Camaradas,
disse elle , nada finalmente póde já impedir-nos de tomar
uma plena vingança do damno que nos foi feito . Conheço
com toda a certeza a casa do culpado sobre quem deve
cahir, e no caminho cuidei nos meios de lh'a fazer sen-
tir tão destramente, que ninguem poderá ter conheci-
mento do lugar do nosso retiro, nem do nosso thesouro,
pois é o fim que devemos ter na nossa empresa, de ou-
tro modo em vez de ser-nos util, ser-nos-hia funesta .
Para conseguir este fim, continuou o capitão, eis - aqui o
que imaginei. Depois de vol-o ter exposto, se algum sou-
ber algum expediente melhor , poderá communical- o » .
Então explicou-lhes de que modo pretendia obrar ; e como
todos lhe deram a sua approvação , encarregou- os, repar-
tindo-os pelas aldeas dos arredores e pela cidade tam-
bem, de comprar dezenove machos , e trinta e oito odres
grandes para azeite , um cheio, e vazios os outros .
Em dous ou tres dias ajuntaram os ladrões tudo isto.
Como os odres vazios fossem um pouco estreitos na bocca
para a execução do seu projecto, o capitão os mandou
alargar um pouco, e depois de fazer entrar um da sua
gente em cada um com as armas que julgára necessa-
rias , deixando aberto o que mandara descoser, para dei-
xar-lhes a respiração livre, fechou-os de modo que pare-
ciam cheios de azeite ; e para melhor disfarçal-os , esfre-
gou-os por fóra com o mesmo oleo .
As cousas assim dispostas , carregados que foram os
176 AS MIL E UMA NOITES

machos com os trinta e sete ladrões, sem incluir o ca-


pitão , cada um escondido n'um dos odres e com o odre
que estava cheio de azeite, o capitão , como guia, tomou
o caminho da cidade , quando determinára, e chegou á
bocca da noite, quasi uma hora depois do pôr do sol,
como o tinha ideado . Entrou n'ella e foi direito a casa de
Ali Baba, com o intuito de bater á porta e de pedir pousa-
da alli durante a noite com seus machos, com o benepla-
cito do dono. Não teve trabalho de bater ; achou Ali Baba
á porta, que tomava o fresco depois da cêa. Mandou pa-
rar os seus machos, e dirigindo -se a Ali Baba : « Senhor,
disse elle, trago o azeite que estaes vendo, de muito
longe, para vendel-o amanhã no mercado, e á hora que
é não sei aonde irei pousar ; se isto não vos incommo-
da, fazei-me o favor de agasalhar-me em vossa casa para
n'ella passar a noite ; dever-vos-hei uma grande obriga-
ção ».
Ainda que Ali Baba tivesse visto no bosque o que lhe
fallava, e ouvido tambem a sua voz, como poderia reco-
nhecel-o pelo capitão dos quarenta ladrões , disfarçado
como estava em mercador de azeite ? « Sêde bem vindo,
disse-lhe, entrai » . E dizendo estas palavras, abriu lugar
para o deixar entrar com seus machos, como fez .
Ao mesmo tempo chamou Ali Baba uma escrava que
tinha, e lhe ordenou , quando os machos fossem descar-
regados , que os recolhesse não só na estrebaria, mas
tambem que lhes désse feno e cevada. Teve tambem a
curiosidade de entrar na cozinha, e de ordenar a Mor-
giana que apromptasse com toda a pressa a cea para o
hospede que acabava de chegar, e que lhe preparasse
uma cama n'um quarto.
Mais fez Ali Baba ; para fazer ao seu hospede todo o
acolhimento possivel, quando viu que o capitão dos la-
drões tinha descarregado seus machos, que os machos
foram levados á estrebaria como se tinha ordenado , e que
elle procurava um lugar para passar a noite ao sereno,
foi buscal-o para fazel-o entrar na sala onde recebia as
sentiria que dormisse no
CONTOS ARABES 177

de, para ter occasião de executar o que meditava com


mais liberdade, não cedeu aos offerecimentos officiosos
de Ali Baba, senão depois de fortes instancias .
Ali Baba, não contente de fazer companhia ao que
queria tirar-lhe a vida, até que Morgiana lhe servisse a
cêa, continuou a entretel-o com muitas cousas que lhe
parecia poderiam dar-lhe gosto, e não o largou senão
depois de ter acabado o banquete com que o regalára.
<< Deixo-vos na vossa liberdade, disse-lhe, podeis pedir to-
das as cousas que vos forem necessarias ; tudo o que ha
em minha casa está ás vossas ordens >> .
Levantou-se o capitão dos ladrões ao mesmo tempo
que Ali Baba, e o acompanhou até á porta; e em quanto
Ali Baba foi á cozinha para fallar a Morgiana, entrou elle
no pateo, com o pretexto de ir á estrebaria vêr se fal-
tava alguma cousa aos seus machos .
Ali Baba, depois de ter recommendado de novo a
Morgiana que tivesse grande cuidado com o seu hospede ,
e que não lhe deixasse faltar cousa alguma : « Morgiana,
acrescentou elle, eu te aviso que amanhã vou ao banho
antes de amanhecer : toma cuidado que a minha roupa
do banho esteja prompta ; não te esqueças de dal-a a
Abdalla (este era o nome do seu escravo) , e faze-me um
bom caldo para tomal- o à minha volta ». Depois de dar-
lhe estas ordens, retirou-se para se deitar.
O capitão dos ladrões todavia, á sahida da estreba-
ria, foi dar á sua gente ordem do que deviam fazer.
Principiando pelo primeiro odre até ao ultimo, disse a
cada um «Quando lançar pedrinhas do quarto onde me
alojam, sahi logo abrindo o odre com a faca que trazeis ;
virei ter no mesmo instante » . A faca de que fallava era
ponteaguda, e afiada para este uso.
Voltou depois costas, e como se apresentasse á porta
da cozinha, pegou Morgiana n'uma luz e o conduziu ao
quarto que lhe tinha preparado, onde o deixou depois de
ter-lhe perguntado se precisava de alguma outra cousa .
Para não dar suspeita, apagou a luz pouco tempo depois ,
e deitou-se vestido , prestes a levantar-se depois de ter
passado o seu primeiro somno.
Não se esqueceu Morgiana das ordens de Ali Baba :
TOMO IV . 12
178 AS MIL E UMA NOITES

aprompta a sua roupa do banho ; encarrega Abdalla d'el-


la, que não se tinha ainda deitado , põe a panellinha ao
lume para o caldo, e apaga-se a luz . Não havia mais
azeite em casa, e faltavam tambem as velas. Que se ha-
via de fazer ? Precisava todavia de claridade para poder
escumar a panellinha ; manifesta o seu embaraço a Ab-
dalla. « Eis-te bem embaraçada, disse-lhe Abdalla, vai
buscar azeite a um dos odres que estão no pateo » .
Agradeceu Morgiana a Abdalla a sua lembrança, e
em quanto elle vai deitar- se perto do quarto de Ali Baba,
para acompanhal-o ao banho, péga ella na almotolia do
azeite, e vai ao pateo. Como se chegasse ao primeiro
odre que encontrou, o ladrão , que estava escondido den-
tro, disse-lhe fallando em voz baixa : «É tempo ? >>
Ainda que o ladrão fallasse baixo , ficou todavia Mor-
giana tanto mais assustada da voz, quanto o capitão dos
ladrões, tendo descarregado os seus machos, abrira não
só este odre, mas tambem os outros todos para dar ar
á sua gente, que, apesar d'isso, não estavam a seu com-
modo, ainda que não estivessem privados da facilidade
de respirar .
Outra qualquer escrava que não fosse Morgiana, as-
sustada como ficou , achando um homem n'um odre, em
vez do azeite que procurava, teria feito uma algazarra
capaz de causar grandes desgraças . Porém Morgiana ti-
nha mais capacidade que as suas semelhantes ; percebeu
n'um instante a importancia de guardar segredo, o pe-
rigo presente em que se achavam Ali Baba e sua fami-
lia, e em que ella mesma se achava , e a necessidade de
dar prompto remedio a isto sem fazer bulha ; e com sua
capacidade, imaginou logo os meios d'evital-o . Tomou
pois animo no mesmo instante, e sem mostrar susto al-
gum, fazendo as vezes do capitão dos ladrões , respondeu
á pergunta, dizendo : « Ainda não, mas não tardará » .
Chegou-se ao odre que se seguia, é foi-lhe feita a mesma
pergunta, e continuou assim até chegar ao ultimo que
estava cheio de azeite ; e á mesma pergunta deu a mes-
ma resposta .
Com isto conheceu Morgiana que seu amo Ali Baba,
que cuidára não dar pousada em sua casa senão a um
CONTOS ARABES 179

mercador de azeite, tinha dado entrada a trinta e oito


ladrões, incluso n'elles o falso mercador seu capitão . En-
cheu com toda a diligencia a sua almotolia de azeite , que
tirou do ultimo odre ; voltou á cozinha, onde depois de

pôr azeite na lampada, e tel -a accendido, péga n'uma


grande panella, e torna ao pateo, onde a enche com azei-
te do odre . Torna a trazel-a, põe- a ao lume com bas-
tante lenha, para que mais depressa fervesse o azeite e
mais depressa executar o que deve contribuir para a sal-
vação commum da casa, que não requer demora . Ferve
finalmente o azeite, péga na panella, e vai deitar em ca-
180 AS MIL E UMA NOITES

da odre bastante azeite a ferver desde o primeiro até ao


ultimo para os abafar, e tirar-lhes a vida, como com ef-
feito o fez.
Executada sem bulha esta acção digna do animo de
Morgiana, como ella projectára, torna á cozinha com a
panella vazia, e fecha a porta. Apaga o grande lume que
accendera, e não deixa senão o que é preciso para aca-
bar de fazer ferver a panella do caldo de Ali Baba. As-
sopra á lampada e deixa-se estar n'um grande silencio,
resolvida a não deitar-se sem ter observado o que acon-
teceria, por uma janella da cozinha que dava para o pa-
teo , tanto quanto o podia permitir a escuridão da noite.
Não havia ainda um quarto de hora que Morgiana
esperava, quando o capitão dos ladrões acordou . Levan-
ta-se, olha pela janella que abre, e como não vê luz
alguma, e tudo em grande socego e um profundo silen-
cio na casa, dá o signal, deitando pedrinhas, que pela
maior parte cahiram sobre os odres, como d'isso não du-
vidou pelo som que lhe chegou aos ouvidos . Põe o ou-
vido á escuta, e não ouve nem percebe cousa que lhe
dé a conhecer que a sua gente se põe em movimento.
Causa-lhe isto algum desassocego ; deita pedrinhas se-
gunda e terceira vez . Cahem sobre os odres, e todavia
nenhum dos ladrões dá o mais leve signal de vida; e
d'isso não pode saber a causa. Desce ao pateo todo as-
sustado, sem fazer bulha alguma ; chega-se do mesmo
modo ao primeiro odre, e quando quer perguntar ao la-
drão, que crê estar com vida, se dorme, sente um chei-
ro a azeite quente, e a cousa queimada que exhala o
odre, por onde conheceu que a sua empresa contra Ali
Baba para tirar-lhe a vida, para saquear a sua casa, e
para levar, se pudesse, o ouro que roubára, estava bal-
dada. Passa ao odre que se seguia, e a todos os outros ,
um após outro, e acha que toda a sua gente tinha pe-
recido do mesmo modo ; e pela diminuição do azeite
no odre que trouxera cheio, conheceu o modo de que
se serviram para prival-o do soccorro que d'elles es-
perava. Desesperado por não ser bem succedido na sua
empresa, sahiu pela porta do jardim de Ali Baba, que da-
va para o pateo, e de jardim em jardim, saltando os mu-
CONTOS ARABES 181

ros, pôz-se a salvo . Não ouvindo já Morgiana bulha al-


guma, e não vendo voltar o capitão dos ladrões , depois
de ter esperado algum tempo, não duvidou do partido
que tomára, preferindo não procurar escapar pela porta
da casa, que estava fechada com duas fechaduras . Satis-
feita, e cheia de grande alegria por ter sido tão bem suc-
cedida na salvação de toda a casa , deitou-se finalmente,
e adormeceu.
Ali Baba sahiu todavia antes de amanhecer e foi ter
ao banho, acompanhado de seu escravo, sem nada saber
do acontecimento espantoso que succedera em sua casa
em quanto dormia, por cujo motivo não julgára Morgia-
na a proposito acordal-o , com tanta mais razão , quanto
não tinha tempo a perder na occasião do perigo, e era
inutil perturbar o seu descanço, depois de o ter desviado .
Voltando do banho e entrando em sua casa já depois
de apontar o sol, ficou Ali Baba tão admirado de vêr ain-
da os odres de azeite no seu lugar , e de não ter ido o
mercador ao mercado com seus machos, que perguntou
a razão d'isso a Morgiana, que lhe viera abrir a porta e
que deixára todas as cousas no estado em que as via,
para dar-lhe o espectaculo d'ellas e explicar-lhe mais
sensivelmente o que fizera para a sua conservação .
« Meu bom amo, disse Morgiana, respondendo a Ali
Baba, Deus vos conserve a vós , e a toda a vossa casa.
Sabereis melhor o que desejaes saber, quando virdes o que
tenho que mostrar-vos ; tende o trabalho de vir com-
migo » .
Ali Baba seguiu Morgiana ; depois de fechar a porta,
levou-o ao primeiro odre : « Olhai para dentro do odre,
disse-lhe, e vêde se n'elle ha azeite » . Olhou Ali Baba, e
como percebeu que era um homem que estava dentro do
odre, recuou todo assustado, dando um grande grito .
« Não receeis cousa alguma , disse-lhe Morgiana , o homem
que estaes vendo não vos fará mal . Fez mal , mas não
está já em estado de fazel-o , nem a vós, nem a ninguem ;
está morto. Morgiana, clamou Ali Baba, que significa
o que acabas de mostrar-me ? Explica-m'o . - Explicar-
vol- o-hei, disse Morgiana, mas moderai o vosso pasmo,
e não desperteis a curiosidade dos vici
182 AS MIL E UMA NOITES

cimento de uma cousa que vos importa muito ter occul-


ta . Vinde vêr primeiro todos os outros odres » .
Examinou Ali Baba todos os outros odres um por um,
desde o primeiro até ao ultimo, em que havia azeite, que
reparou estar notavelmente diminuido , e tendo acabado
ficou como immovel, ora lançando os olhos sobre os
odres, ora encarando Morgiana sem dizer palavra, tão
grande era o pasmo em que estava. Por fim, como tives-
se recuperado a falla : «E o mercador ? perguntou ; que
é feito d'elle ? « O mercador, respondeu Morgiana, é tan-
to mercador, como eu sou mercadora. Dir-vos -hei tam-
bem quem é e o que é feito d'elle . Mas sabereis toda
a historia mais commodamente no vosso quarto, pois é
tempo, para bem de vossa saude, de tomar um caldo
depois de sahir do banho » .
Em quanto Ali Baba foi ao seu quarto , foi Morgiana
á cozinha buscar o caldo ; trouxe-lh'o, e antes de tomal-o
disse-lhe Ali Baba : « Principia já a satisfazer a impacien-
cia em que estou , e conta-me uma historia tão estranha
com todas as suas circumstancias » .
Morgiana, para obedecer a Ali Baba, lhe disse : «< Hon-
tem á noite, depois de recolher-vos para deitar-vos ,
apromptei a vossa roupa do banho, como me ordenastes
e a entreguei a Abdalla . Puz depois a panella ao lume
para o caldo, e estando para escumal-a, a lampada por
falta de azeite se apagou de repente e não havia uma got-
ta na almotolia. Procurei algum coto de vela, e não achei
nenhum. Abdalla, que me viu embaraçada, me fez lem-
brar dos odres cheios de azeite que estavam no pateo,
como d'isso não duvidava, nem eu tambem, e como vós
mesmo crêstes. Peguei na almotolia, e corri ao odre mais
proximo . Porém, como estivesse perto do odre, sahiu
d'elle uma voz que me perguntou : «É tempo ? » Não me
assustei , mas percebendo logo a malicia do falso merca-
dor, respondi sem titubear : <« Ainda não , mas não tarda-
rá ». Passei ao odre que se seguia, e outra voz me fez a
mesma pergunta, á qual respondi do mesmo modo. Fuil
aos outros odres todos, uns após outros ; a tal pergunta,
tal resposta ; e não achei azeite senão no ultimo, no qual
enchi a almotolia. Tendo considerado que havia trinta
CONTOS ARABES 183

e sete ladrões no meio do vosso pateo, que não espera-


vam senão o signal ou a ordem do seu chefe, que tomas-
tes por um mercador, e a quem fizestes tão bom agasa-
lho para pôr toda a casa em confusão, não perdi tempo .
Voltei com a almotolia, accendi a lampada, e depois de
ter pegado na maior panella da cozinha, fui enchel-a de
azeite . Metti-a ao lume, e estando a ferver, fui deitar
azeite em cada odre em que estavam os ladrões, quanto
bastou para impedil-os todos que executassem o perni-
cioso intento que os trouxera aqui . Terminado d'este mo-
do, como o meditára, voltei á cozinha , apaguei a lampa-
da, e antes que me deitasse, puz-me a examinar socega-
damente pela janella o partido que tomaria o falso mer-
cador de azeite. Passado algum tempo ouvi que para si-
gnal deitou da sua janella pedrinhas, que cahiram sobre
os odres. Deitou pedrinhas segunda e terceira vez , e co-
mo não percebeu, ou não ouviu movimento algum, des-
ceu, e vi-o ir de odre em odre, até ao ultimo, depois do
que a escuridão da noite fez com que o perdesse de vis-
ta . Observei ainda algum tempo, e como visse que não
voltava, não duvidei que tivesse fugido pelo jardim , des-
esperado de ter sido tão mal succedido . Persuadida pois
que a casa estava em segurança, deitei-me. Eis -aqui a his-
toria que me pedistes . Estou convencida que é a conse-
quencia d'uma observação que fiz ha cinco ou seis dias,
da qual não me pareceu dever-vos informar ; e é que
voltando uma vez da cidade pela manhã cedo, percebi
que a porta da rua estava marcada de branco , e no dia
seguinte de vermelho , depois da marca branca , e que ca-
da vez, sem saber para que intento podia ser isto, tinha
marcado do mesmo modo, e no mesmo lugar duas , ou
tres portas dos nossos visinhos, á direita e á esquerda .
Se comparardes isto com o que acaba de acontecer, ve-
reis que tudo foi maquinado pelos ladrões do bosque ,
cuja malta não sei porque tem dous de menos . Seja o que
fôr, eil-a aqui reduzida a tres . Isto prova que tinham ju-
rado a vossa ruina, e que vos importa muito ser mais
acautelado, em quanto existir algum ladrão no mundo.
Quanto a mim de nada me esquecerei para vigiar a
vossa conservação, como é obrigação minha » .
184 AS MIL E UMA NOITES

Tendo Morgiana acabado, sensivel Ali Baba á grande


obrigação que lhe devia, lhe disse : « Não morrerei sem
recompensar-te como mereces . Devo-te a vida e para
principiar a dar-te uma prova do meu reconhecimento ,
desde já dou-te a liberdade, em quanto te não beneficio
com generosidade . Estou persuadido , como tu , que os
quarenta ladrões me armaram este laço . Serviu-se Deus do
teu meio para livrar-me ; espero que continuará a pre-
servar-me da sua maldade, e que acabando de desvial-a
da minha cabeça, livrará o mundo da sua perseguição
e da sua maldita raça. O que temos que fazer é enter-
rar immediatamente os corpos d'esta peste do genero
humano, com tanto segredo que ninguem possa suspei-
tar cousa alguma do seu destino ; n'isso vou trabalhar
com Abdalla »>.
O jardim de Ali Baba era muito comprido e tinha
grandes arvores ao fundo. Sem demorar-se, foi abrir de-
baixo d'essas arvores com o seu escravo uma cova com-
prida e larga, á proporção dos corpos que tinham que
enterrar n'ella . O terreno era facil de cavar, e não gas- 1
taram muito tempo para acabal-a. Tiraram os corpos para
fóra dos odres , e puzeram de parte as armas que os la-
drões traziam. Levaram estes corpos ao fundo do jardim,
e os lançaram na cova ; depois de cobril-os com a terra
que d'ella tiraram, espalharam o resto pelos arredores,
de modo que o terreno pareceu igual como d'antes .
Mandou Ali Baba esconder cuidadosamente os odres de
azeite e as armas ; e quanto aos machos que não lhe
serviam para nada, mandou-os ao mercado por diversas
vezes , onde os fez vender pelo seu escravo .
Em quanto Ali Baba tomava todas estas medidas para
não dar a conhecer ao publico por que meio enriquecera
tanto em tão pouco tempo, voltára o capitão dos quarenta
ladrões ao bosque com um desgosto indizivel e na agita-
ção , ou, para melhor dizer, na confusão em que estava
por causa d'um successo tão desgraçado , e tão contrario
ao que esperava, entrára na gruta sem ter podido resol-
ver-se no caminho, ácerca do que devia fazer ou não fa-
zer a Ali Baba .
A solidão em que se achou n'esta sombria morada,
CONTOS ARABES 185

The pareceu horrorosa . « Homens valentes, clamou elle,


companheiros de minhas vigilias, de minhas correrias e
de meus trabalhos, aonde estaes ? Que posso fazer sem
vós ? Tinha-vos eu ajuntado e escolhido para vêr- vos pe-
recer juntos por um destino tão fatal e tão indigno da
Vossa coragem ? Chorar-vos -hia menos se morresseis com
o alfange na mão, como homens esforçados . Quando
ajuntarei outro grupo de gente afouta como vós ? E
ainda que o quizesse, poderia emprehendel-o , e não ex-
pôr tanto ouro, tanta prata, tantas riquezas ao saque do
que já se enriqueceu com uma parte d'ella ? Não posso
e não devo lembrar-me d'isso , sem primeiro tirar-lhe a
vida. O que não pude fazer com um soccorro tão pode-
roso, fal-o-hei eu só ; e quando tiver dado as providencias
para que este thesouro não fique mais exposto ao roubo,
obrarei de modo que não fique, nem sem successores,
nem sem donos depois da minha morte ; que se conserve
e se augmente para o futuro ». Tomada esta resolução ,
não tardou muito que não achasse os meios de execu-
tal-a, e então cheio de esperança e socegado o espirito,
adormeceu e passou a noite com bastante socego.
No dia seguinte o capitão dos ladrões acordando ao
apontar do dia, como determinára, tomou um vestido
mui aceado, em conformidade com o projecto que me-
ditára, e veio á cidade, onde tomou um alojamento n'um
Khan ; e como esperava que o que se passára em casa
de Ali Baba podia ter dado que fallar, perguntou ao por-
teiro, como por conversar, se havia alguma cousa de
novo na cidade ; sobre o que fallou o porteiro de outra
cousa diversa do que lhe importava saber. Á vista d'is-
to julgou que a razão por que Ali Baba guardava um
tão grande segredo, procedia de não querer que o co-
nhecimento que tinha do thesouro e do meio de entrar
n'elle, se divulgasse , e de não ignorar que era em razão
d'este motivo, que lhe queriam tirar a vida. Isto o ani-
mou mais a não descuidar-se de cousa alguma para des-
fazer-se d'elle pela mesma via do segredo.
Comprou o capitão dos ladrões um cavallo, de que
se serviu para transportar ao seu alojamento algumas
qualidades de ricos estofos e de panos finos , fazendo
186 AS MIL E UMA NOITES

muitas viagens ao bosque com as precauções necessarias


para occultar o sitio onde os ia buscar. Para dar sahida
a estas fazendas, tendo ajuntado a porção que julgára ne-
cessaria, procurou uma loja. Achou uma, e depois de a
ter alugado ao proprietario, sortiu - a, e estabeleceu-se
n'ella . A loja que se achou defronte da sua, era a que
pertencia a Cassim, e em que estava o filho de Ali Baba,
não havia muito tempo.
O capitão dos ladrões, que tinha tomado o nome de
Cogia Houssan, como chegado de novo, não deixou de
fazer as suas finezas aos mercadores seus visinhos, con-
forme o costume . Porém, como o filho de Ali Baba fos-
se mancebo bem apessoado, e não falto de capacidade,
e tivesse mais vezes occasião de fallar-lhe , e de entre-
ter-se com elle do que com os outros, travou bem de-
pressa amizade com elle. Cuidou em cultival- o com mais
empenho e assiduidade, quando tres ou quatro dias de-
pois do seu estabelecimento , reconheceu Ali Baba, que
veio ver seu filho, e se demorou para entreter-se com
elle, como costumava fazel-o algumas vezes ; quando
soube do filho, depois de Ali Baba ter-se despedido , que
era seu pai, visitou-o mais a miudo, acariciou -o , fez-lhe
uns pequenos presentes, regalou-o tambem, e deu-lhe
algumas vezes de jantar.
Não quiz o filho de Ali Baba dever tantas obrigações
a Cogia Houssan sem pagar-lhe na mesma moeda . Mas
estava alojado mui estreitamente, e não tinha a mesma
commodidade que elle para regalal - o , como desejava.
Fallou do seu intento a Ali Baba seu pai, fazendo-lhe
observar que não seria decente deixar passar mais tempo
sem reconhecer as attenções officiosas de Cogia Houssan.
Ali Baba se encarregou do banquete com gosto.
<< Filho, disse elle, ámanhã é sexta-feira ; como é dia em
que os mercadores ricos, como Cogia Houssan e como vós,
fecham as suas lojas, ajustai com elle um passeio depois
de jantar, e voltando fazei de modo que passeis ambos
por minha casa, e que entreis n'ella. Melhor será fazer
assim do que convidal-o com todas as formalidades. Eu
vou ordenar a Morgiana que faça a cêa , e a tenha prom-
pta ».
CONTOS ARABES
187
Na sexta-feira o filho de Ali Baba, e Cogia Houssan
se acharam depois de jantar no ponto de reunião, que
tinham ajustado, e deram o seu passeio . Voltando, como
o filho de Ali Baba fizesse passar a Cogia Houssan pela
rua onde morava seu pai, chegados que foram diante da
casa, deteve-o, e batendo á porta : « É aqui, disse-lhe, a
casa de meu pai , o qual, á vista da narração que lhe
fiz da amizade com que me honraes, me encarregou de
procurar-lhe a honra do vosso conhecimento . Rogo-vos
que ajunteis este favor a todos os outros que vos devo » .
Ainda que Cogia Houssan tivesse conseguido o fim a
que se propuzera, que era ter entrada em casa de Ali
Baba, e tirar-lhe a vida, sem arriscar a sua , e sem fa-
zer bulha, não deixou todavia de escusar-se e de fingir
que se despedia do filho . Porém , como o escravo de Ali
Baba acabasse de abrir, o filho lhe deu civilmente a mão
e entrando primeiro o segurou, e o forçou de algum
modo a entrar contra sua vontade .
Ali Baba recebeu a Cogia Houssan com toda a fran-
queza, e com o bom acolhimento que podia desejar.
Agradeceu -lhe as attenções que tivera para com seu
filho : « A obrigação que vos deve, e que eu mesmo vos
devo tambem , acrescentou elle, é tanto maior quanto é
um mancebo que não tem ainda a pratica do mundo, a
quem vos dignaes contribuir para formal - o » .
Cogia Houssan respondeu do mesmo modo a Ali Baba,
asseverando-lhe que se seu filho não tinha ainda ad-
quirido a experiencia de certos velhos , tinha um bom
senso que lhe valia a experiencia de uma infinidade de
outros.
Depois de um entretenimento de pouca duração so-
bre outros assumptos indifferentes, quiz Cogia Houssan
despedir-se . Ali Baba o deteve : « Senhor , disse elle ,
aonde quereis ir ? Rogo-vos que me façaes a honra de
cear commigo. O banquete que quero dar-vos é muito
inferior ao que mereceis , mas tal qual é , espero que o
aceitareis graciosamente, de tão boa vontade, como é mi-
nha intenção de vol -o dar . - Senhor Ali Baba, replicou
Cogia Houssan, estou muito persuadido do vosso bom co-
ração, e se vos peço por favor que não tomeis a mal
188 AS MIL E UMA NOITES

que me retire sem aceitar o offerecimento officioso que


me fazeis , supplico -vos que acrediteis que não o faço
nem por desprezo, nem por descortezia, mas porque te-
nho para isso uma razão que approvarieis, se vos fos-

se conhecida . E que razão póde ser essa, senhor ?
replicou Ali Baba ; póde-se perguntar ? - Posso dizer-
vol-a, replicou Cogia Houssan ; consiste em que não
cômo nem carne, nem guisado em que haja sal ; julgai
vós mesmo como poderia comer á vossa mesa. - Se não
tendes senão essa razão , insistiu Ali Baba, não deveis
privar-me da honra de ficardes comnosco a cear, a me-
nos que resolvaes de outro modo. Em primeiro lu-
gar, não ha sal no pão que se come em minha casa, e
quanto á carne, e aos guisados, prometto- vos que não os
haverá no que vos for servido, e vou dar para isto as
minhas ordens ; assim fazei-me o favor de ficar, volto no
mesmo instante ».
Foi Ali Baba á cozinha e ordenou a Morgiana que não
deitasse sal na carne que havia de servir, e que prepa
rasse promptamente dous ou tres guisados dos que lhe
recommendára, e nos quaes não houvesse sal.
Morgiana, que estava prestes a servir, não pôde dei-
xar de manifestar o seu descontentamento ácerca d'esta
nova ordem, e de explicar-se com Ali Baba : « Quem é
pois, disse ella , esse homem que não come sal ? A vossa
cêa não será boa, se a servir mais tarde . - Não te agas-
tes, Morgiana, replicou Ali Baba ; é homem honrado, fa-
ze o que te digo » .
Obedeceu Morgiana, mas contra a sua vontade, e te-
ve a curiosidade de conhecer o homem que não comia
sal . Tendo ella acabado e Abdalla posto a mesa, ajudou-o
a levar os pratos . Fitando os olhos em Cogia Houssan,
reconheceu-o logo pelo capitão dos ladrões, apesar do seu
disfarce, e examinando-o com attenção, percebeu que tra-
zia um punhal escondido debaixo do vestido. « Não me
admiro já, disse ella comsigo, que o malvado não quei-
ra comer sal com meu amo ; é o seu maior inimigo, quer
assassinal - o, mas eu o impedirei ».
Tendo Morgiana acabado de servir, ou de mandar
"
Pen a poca , em quan-
CONTOS ARABES
189
to ceavam , e fez os preparativos necessarios para a exe-
cução de uma acção das mais atrevidas ; e acabava jus-
tamente quando Abdalla veio avisal-a que era tempo de
servir a fruta. Levou ella a fruta, e tendo levantado Ab-
dalla o que estava sobre a mesa , ella a serviu . Armou
depois perto de Ali Baba uma pequena mesa, sobre a
qual poz o vinho com tres taças, e sahindo levou Abdal-
la comsigo como para irem cear juntos , e dar a Ali Ba-
ba, segundo o costume, a liberdade de entreter-se e de
alegrar-se agradavelmente com o seu hospede , e fa-
zel-o beber bem.
Então , o falso Cogia Houssan , ou , para melhor dizer,
o capitão dos quarenta ladrões, cuidou que a occasião
favoravel para tirar a vida a Ali Baba, era chegada . « Vou ,
disse elle, fazer embebedar o pai e o filho : o filho, a
quem não quero tirar a vida, não me impedirá de cra-
var o punhal no coração do pai, e fugirei pelo jardim ,
como já fiz , em quanto a cozinheira, e o escravo não
terão ainda acabado de cear , ou estarão adormecidos na
cozinha » .
Em vez de cear, Morgiana que conhecera a intenção
do falso Cogia Houssan, não lhe deu tempo para execu-
tar a sua maldade. Vestiu -se em trajo mui aceado de
dançarina , tomou um toucado conveniente, e cingiu -se
com uma cinta de prata dourada á qual atou um pu-
nhal , cuja bainha era do mesmo metal que o punhal , e
cobriu rosto com uma bellissima mascara. Estando as-
sim disfarçada, disse a Abdalla : « Péga no teu tamboril
e vamos dar ao hospede do nosso amo, e amigo de seu
filho , o divertimento que lhe damos algumas vezes á
noite ».

Péga Abdalla no tamboril, principia a tocar, cami-


nhando adiante de Morgiana e entra na sala. Entrando
Morgiana após elle, faz uma profunda reverencia com ar
deliberado, e proprio a fazer-se observar, pedindo licen-
ça para mostrar o que sabia fazer .
Como visse Abdalla que Ali Baba queria fallar , ces-
sou de tocar o tamboril . « Entra , Morgiana , entra, disse
Ali Baba , julgará Cogia Houssan da tua capacidade, e dir-
nos-ha o que d'ella pensa. Ao menos, senhor, diss
190 AS MIL E UMA NOITES

Cogia Houssan, voltando-se para elle, não penseis que


me metta em despezas para dar-vos este divertimento;
acho-o em minha casa, e vêde que são meu escravo, e
minha cozinheira e despenseira ao mesmo tempo , que
m'o dão . Espero que não vos desagradará ».
Não esperava Cogia Houssan que Ali Baba devesse

ajuntar este divertimento á céa que dava. Fez-lhe isto


recear que não pudesse aproveitar- se da occasião que lhe
parecia ter achado. No caso que isso acontecesse, conso-
lou-se com a esperança de tornal-a a achar, continuando
a cultivar a amizade do pai e do filho. Assim, ainda que
tivesse estimado mais que Ali Baba não lh'o quizesse
dar, fingiu todavia dever-lhe esta obrigação , e teve a
CONTOS ARABES 191

complacencia de manifestar-lhe que o que lhe dava gos-


to, não podia deixar de dar-lh'o tambem a elle.
Vendo Abdalla que Ali Baba e Cogia Houssan cessa-
ram de fallar, tornou a tocar o seu tamboril e o acom-
panhou com a sua voz para dançar, e Morgiana que não
cedia a nenhum dançarino e dançarina de profissão , dan-
cou de modo que se faria admirar por qualquer outra
companhia, ainda sem ser aquella a quem dava este es-
pectaculo, ao qual não havia talvez senão o falso Cogia
Houssan que désse pouca attenção .
Depois de ter dançado algumas danças com o mesmo
agrado, e com a mesma força, puxou finalmente pelo pu-
nhal ; e segurando - o na mão dançou uma, na qual exce-
deu pelas diversas figuras, pelos movimentos ligeiros,
pelos saltos pasmosos , e pelos esforços maravilhosos
com que os acompanhou, ora apresentando o punhal
para diante, como para ferir, ora fingindo ferir-se ella
mesma no peito .
Estando finalmente cançada, arrancou o tamboril das
mãos de Abdalla com a mão esquerda , e segurando o
punha com a direita, foi apresentar o tamboril a Ali
Baba, á imitação dos dançarinos , e dançarinas de profis-
são, que costumavam usar assim para solicitar a libera-
lidade de seus espectadores .
Deitou Ali Baba uma moeda de ouro no tamboril de
Morgiana ; dirigiu- se depois Morgiana ao filho de Ali Ba-
ba, que seguiu o exemplo de seu pai . Cogia Houssan,
que viu que vinha tambem chegando-se para elle, tinha
já tirado a bolsa do seio para fazer-lhe o seu presente e
n'ella mettia a mão no instante em que Morgiana, com
um valor digno da sua constancia e da sua resolução ,
The cravou o punhal no meio do coração, e não o tirou
senão depois de ter-lhe tirado a vida.
Ali Baba e seu filho, assustados d'esta acção , deram
um grande grito . « Ah, desgraçada ! clamou Ali Baba ; que
fizeste ? Queres perder-nos a mim e à minha familia ? -
Não é para perder-vos, respondeu Morgiana ; eu o fiz
para a vossa conservação . Então abrindo o vestido de
Cogia Houssan, e mostrando a Ali Baba o punhal de que
estava armado : « Vêde, disse ella, com que cruel inimi-
192 AS MIL E UMA NOITES

go estaveis mettido, e examinai-lhe bem a cara, n'ella


reconhecereis o falso mercador de azeite, e o capitão dos
quarenta ladrões . Não consideraes tambem que não quiz
comer sal comvosco ? Quereis mais provas para persua-
dir-vos do seu intento pernicioso ? Antes que o visse,
desconfiei logo d'elle, desde o instante em que me dés-
tes a conhecer que tinheis um tal hospede . Vi -o , e vós
estaes vendo que a minha suspeita não era mal funda-
da ».
Ali Baba, que conheceu a nova obrigação que devia a
Morgiana de ter-lhe conservado a vida segunda vez, a
abraçou : « Morgiana, disse elle , dei-te a liberdade e pro-
metti-te então que o meu reconhecimento não pararia ahi,
e que não tardaria a recompensar-te com a maior gene-
rosidade. Chegou esse tempo, e desde já és minha nora ».
E dirigindo-se a seu filho : « Filho, acrescentou Ali Baba,
pareceis-me assás bom filho para não estranhar que vos
dé Morgiana por esposa, sem consultar-vos. Não lhe de-
veis menos obrigação do que eu . Vós vêdes que Cogia
Houssan não procurára a vossa amizade senão com a in-
tenção de ser mais bem succedido em arrancar-me a vi
da pela sua traição , e se o conseguisse , deveis crer que
vos teria tambem sacrificado à sua vingança . Considerai,
além d'isso, que casaudo com Morgiana, casaes com o
esteio de minha familia em quanto eu viver, e o arrimo
da vossa, até ao fim de vossos dias »
>.
O filho, bem longe de manifestar descontentamento
algum, mostrou que consentia n'este casamento, não só
porque não queria desobedecer a seu pai, mas porque
se sentia naturalmente inclinado a casar com ella . Cui-
dou-se depois em casa de Ali Baba de enterrar o corpo
do capitão no mesmo sitio dos trinta e sete ladrões, e
fez-se isto tanto ás escondidas, que não se soube senão
depois de largos annos , quando ninguem se achava já
interessado na publicação d'esta historia memoravel.
Passados poucos dias, Ali Baba celebrou as nupcias
de seu filho e de Morgiana, com grande solemnidade e
festim sumptuoso, acompanhado de danças, de especta-
culos, e dos divertimentos do costume, e teve a satisfa-
ção de vêr que os seus amigos e visinhos que convidá-
CONTOS ARABES 193

ra, sem terem conhecimento dos verdadeiros motivos do


casamento, mas que todavia não ignoravam as bellas e
as boas prendas de Morgiana , o louvaram altamente da
sua generosidade e do seu bom coração.
Depois do casamento, Ali Baba, que se abstivera de
voltar á gruta dos ladrões desde que d'ella roubára e
trouxera o corpo de seu irmão Cassim sobre um de seus
tres burros , e o ouro com que os carregára, com o re-
ceio de n'ella os encontrar, ou de ser apanhado , se abs-
teve ainda depois da morte dos trinta e oito ladrões, in-
cluindo n'este numero o capitão , porque suppoz que os
dous outros , cujo destino não conhecia, estavam ainda
vivos.
Ao cabo de um anno, como visse que não se fizera
diligencia alguma para inquietal- o , teve a curiosidade de
lá fazer uma viagem, tomando as precauções necessa-
rias para a sua segurança. Montou a cavallo, e chegado
que foi perto da gruta, teve por bom agouro não perce-
ber vestigio algum de homens nem de cavallos . Apeou-
se, prendeu o seu cavallo e apresentando-se diante da
porta , pronunciou estas palavras : Sesamo, abre-te, das
quaes não se tinha esquecido . Abriu se a porta , en-
trou, e o estado em que achou todas as cousas na gru-
ta, lhe fez julgar que ninguem entrára n'ella, desde o
tempo em que o falso Cogia Houssan viera pôr loja na
cidade, e portanto que a malta dos quarenta ladrões es-
tava inteiramente dispersa, e exterminada desde esse tem-
po e não duvidava já que fosse o unico no mundo que
tivesse o segredo de fazer abrir a gruta, e que o thesou-
ro que encerrava estivesse à sua disposição . Tinha leva-
do uma mala, encheu-a de tanto ouro quanto pôde levar
o seu cavallo, e voltou á cidade .
Desde esse tempo , Ali Baba, seu filho , que levou á
gruta, e a quem ensinou o segredo para entrar n'ella, e
depois da sua posteridade, á qual fizeram passar o mes-
mo segredo, aproveitando-se da sua fortuna com mode-
ração, viveram com grande esplendor e honrados como
as primeiras dignidades da cidade .
Depois de ter acabado de contar esta historia ao sul-
tão Schahriar, Scheherazada, que viu que não era ainda
TOMO IV . 13
194 AS MIL E UMA NOITES

dia, principiou a fazer-lhe a narração da que vamos ou-


vir.

HISTORIA

D'ALI COGIA , MERCADOR DE BAGDAD

No reinado do califa Haroun Alraschid, disse a sul-


tana, havia em Bagdad um mercador, chamado Ali Co-
gia, que não era dos mais ricos, nem tambem da ultima
classe, o qual morava na casa paterna, sem mulher e
sem filhos . Quando , senhor de suas acções, vivia conten-
te do que ganhava no seu commercio, teve tres dias a
fio um sonho, em que lhe appareceu um velho veneran-
do, com semblante carregado, que lhe lançava em ros-
to não se ter ainda desempenhado da peregrinação de
Méca.
Este sonho desassocegou Ali Cogia e o deixou em
grande embaraço . Como bom musulmano , não ignorava
a obrigação que tinha de fazer esta peregrinação, mas
como estivesse encarregado de uma casa, de uma mo-
bilia, e de uma loja, crêra sempre que eram motivos as-
sás poderosos para dispensar-se d'ella, procurando sup-
prir a isso com esmolas, e com outras boas obras . Po-
rém , depois do sonho, a sua consciencia o apertava tão
fortemente, e o receio de que lhe acontecesse alguma
desgraça, o fez resolver a não retardal-a mais .
Para pôr-se em estado de satisfazer a ella no anno
corrente , principiou Ali Cogia pela venda da sua mobi-
lia, vendeu depois a sua loja, e a maior parte das fa-
zendas que a sortiam, reservando as que podiam ter
boa sahida em Meca ; e quanto á casa, achou um inqui-
lino, a quem fez escriptura de arrendamento. Disposto
assim tudo, achou-se prompto para partir quando a ca-
ravana de Bagdad para Meca, se punha a caminho. A
unica cousa que lhe restava fazer, era por em seguran-
ça uma somma de mil moedas d'ouro, que o embaraça-
ria na peregrinação, depois de ter apartado o dinheiro
CONTOS ARABES 195

que julgou a proposito levar comsigo para o seu gasto e


para outras precisões.
Escolheu Ali Cogia um vaso de uma capacidade con-
veniente ; metteu n'elle as mil moedas de ouro e acabou
de enchel- o com azeitonas . Depois de tapar bem o vaso,
leva- o a casa de um mercador seu amigo. Disse-lhe :
« Irmão, não ignoraes que dentro em poucos dias par-
<
to, como peregrino de Meca , com a caravana . Peço-vos
por favor que vos encarregueis de um vaso de azeitonas
que aqui trago , e que m'o guardeis até à minha volta ».
Disse-lhe o mercador officiosamente : « Eis-aqui a chave
do meu armazem, levai vós mesmo o vosso vaso , e pon-
de-o onde quizerdes ; prometto- vos que o achareis no
mesmo lugar.
Chegado que foi o dia da partida da caravana de Bag-
dad, Ali Cogia, com um camêlo carregado das fazendas
que escolhera e que lhe serviu de cavalgadura na jor-
nada, se aggregou a ella e chegou felizmente a Meca.
Visitou com todos os mais peregrinos o templo tão cele-
bre tão frequentado cada anno por todas as nações
musulmanas, que concorriam de todos os lugares da ter-
ra, onde estavam estabelecidas, observando religiosissi-
mamente as ceremonias que lhes são prescriptas . Des-
empenhado que foi dos deveres da sua peregrinação, ex-
pôz as fazendas que trouxera para vendel-as, ou para
trocal-as.
Dous mercadores que passavam, e que viram as fa-
zendas de Ali Cogia, as acharam tão bellas que pararam
para examinal-as, ainda que não precisassem d'ellas . Sa-
tisfeita a sua curiosidade , disse um ao outro retirando-
se : << Se este mercador soubesse o lucro que teria no
Cairo com estas fazendas, leval- as- hia lá de preferencia,
e não as venderia aqui , onde são mui baratas ».
Ouviu Ali Cogia estas palavras, e como ouvisse mil
vezes fallar do Egypto, resolveu logo aproveitar- se da oc-
casião, e fazer a viagem. Assim , depois de ter entrouxa-
do e enfardado as suas fazendas, em vez de voltar a
Bagdad, tomou o caminho do Egypto, mettendo -se com
a caravana do Cairo . Chegado que foi ao Cairo , não teve
motivo de arrepender- se do partido que tomára ; foi tão
196 AS MIL E UMA NOITES

bem succedido na sua empresa, que em poucos dias


acabou de vender todas as suas fazendas com vantagem
muito maior do que esperava. Comprou outras com o in-
tento de ir a Damasco , e esperava a occasião de uma
caravana que devia partir ao cabo de seis semanas ; não
se contentou com vêr tudo o que era digno da sua cu-

riosidade no Cairo, foi tambem admirar as pyramides, e


subiu ao Nilo até certa distancia, e viu as cidades mais
celebres, assentadas n'uma, e n'outra margem .
Na viagem de Damasco, como o caminho da carava-
na fosse passar por Jerusalem, o nosso mercador de Bag-
dad aproveitou -se da occasião de visitar o templo, tido
por todos.os musulmanos como o mais santo depois do
de Meca, o qual dá a esta cidade o titulo de nobre
santidade.
Viu Ali Cogia que a cidade de Damasco era um lu-
CONTOS ARABES 197

gar tão delicioso pela abundancia de suas aguas , pelos


seus prados, e pelos seus jardins encantados, que tudo o
que lêra das suas delicias nas nossas historias lhe pare-
ceu muito inferior á verdade, e n'ella se demorou bastan-
te tempo. Como todavia não se esquecesse que era de
Bagdad, partiu finalmente, e chegou a Alepo, onde se de-
morou tambem algum tempo ; d'alli, depois de ter passa-
do o Euphrates, tomou o caminho de Moussoul , com o
intento de atalhar a sua volta, descendo o Tigre .
Porém, chegado Ali Cogia a Moussoul, alguns mer-
cadores da Persia, com quem viera de Alepo e com quem
contrahira uma grande amizade, tinham tomado tanto
ascendente sobre o seu espirito , em razão dos seus mo-
dos cortezes, e da sua conversação agradavel , que não
lhes custou muito persuadir-lhe que não largasse a sua
companhia até Schiraz , d'onde lhe seria facil voltar para
Bagdad, com um lucro consideravel . Levaram - o pelas ci-
dades de Sultania, de Rei, de Coam , de Casdhan, de Is-
pshan, e d'alli a Schiraz, d'onde teve ainda a complacen-
cia de acompanhal -os ás Indias e de voltar a Schiraz
com elles.
Assim, contando a demora que fizera em cada cida-
de, havia quasi sete annos que Ali Cogia partira de Bag-
dad, quando finalmente resolveu tomar o caminho d'el-
la ; e até então o amigo a quem confiára o vaso de azei-
tonas antes da sua partida para lh'o guardar, não se lem-
brára d'elle , nem do vaso . Quando estava em caminho
com uma caravana partida de Schiraz , uma tarde que
este mercador seu amigo ceava com sua familia , vieram
a fallar de azeitonas , e sua mulher mostrou ter algum
desejo de comel- as , dizendo que havia muito tempo que
não tinham entrado em casa .
«A proposito de azeitonas, disse o marido , fazeis- me
lembrar que Ali Cogia me deixou um vaso d'ellas indo
a Meca, ha sete annos , e que elle o pôz no meu arma-
zem para lh'o guardar até à volta. Mas aonde estará Ali
Cogia, depois de tanto tempo que partiu ? É verdade que
na volta da caravana, alguem me disse que tinha pas-
sado ao Egypto . Deve ter morrido, visto que não voltou
ha tantos annos , podemos de hoje em diante comer as
198 AS MIL E UMA NOITES

azeitonas se são boas. Déem-me um prato e luz ; irei


buscar algumas e as provaremos . - Marido, replicou a
mulher, guardai- vos em nome de Deus de commetter
uma acção tão baixa ; sabeis que não ha cousa mais sa-
grada que um deposito . Ha sete annos, dizeis, que foi
Ali Cogia a Meca e que não voltou , mas disseram-vos
que fora ao Egypto ; e do Egypto quem sabe se não foi
mais longe? Basta que não tenhaes novas da sua morte,
póde chegar ámanhã, ou depois de ámanhã . Que infamia
não seria para vós, e para a vossa familia se voltasse e
que não lhe desseis o seu vaso no mesmo estado , e tal
qual vol -o confiou ? Declaro-vos que não tenho desejo
algum d'essas azeitonas , e que não comerei d'ellas . Se
fallei de azeitonas, foi só para conversar. Além disso,
capacitaes - vos que depois de ter passado tanto tempo,
sejam ainda boas ? Devem estar podres , e arruinadas . E
se Ali Cogia voltar, como um presentimento m'o diz, e
perceber que n'ellas tocastes, que conceito fará da vos-
sa amizade e da vossa fidelidade ? Deixai-vos d'isso, eu
vol-o peço por favor especial » .
Não fez a mulher um tão largo discurso a seu mari-
do senão porque lia a obstinação no seu rosto. Com ef-
feito não deu ouvidos a tão bons conselhos, levantou-se
e foi ao seu armazem com a luz e um prato . « Então
lembrai -vos ao menos, disse-lhe sua mulher, de que não
tomo parte no que idés fazer, para que não vos descul-
peis commigo, se vos acontecer que vos arrependaes
d'isso ».
Fez-se ainda o mercador surdo, e persistiu na sua re-
solução . Estando no armazem, péga no vaso, destapa-o
e vê as azeitonas inteiramente podres. Para averiguar
se as de baixo estavam tão arruinadas como as de cima,
deitou-as n'um prato e sacudindo o vaso cahiram algu-
mas moedas de ouro, tinindo .
Á vista d'estas moedas , o mercador, naturalmente
ávido e attento, olha para o vaso e vê que deitára qua-
si todas as azeitonas no prato, e que o resto era tudo
ouro em bellas moedas. Torna a pôr no vaso as azeito-
nas, cobre-o e volta.
«Mulher, disse entrando, tinheis razão, estão podres
CONTOS ARABES
199
as azeitonas e tornei a tapar o vaso, de modo que Ali
Cogia não perceberá que toquei n'elle, se algum dia vol-
tar. Terieis feito melhor acreditando-me, replicou a
mulher, e não tocando n'elle . Queira Deus que d'isso
, não resulte algum mal » .

Foi o mercador tão pouco sensivel a estas ultimas


palavras de sua mulher, como á advertencia que lhe fi-
zera. Passou a noite quasi inteira a cuidar no meio de
apropriar- se do ouro de Ali Cogia, e fazer de maneira
que lhe ficasse , no caso que elle voltasse, e que lhe pe-
disse o vaso. Ao raiar da aurora do dia seguinte vai com
200 AS MIL E UMA NOITES

vaso de Ali Cogia, péga no ouro, põe - o em segurança,


e depois de ter enchido o vaso com as azeitonas que aca-
bava de comprar, torna a cobril-o com a mesma tampa,
e a pôl-o no mesmo lugar onde Ali Cogia o puzera.
Passado quasi um mez depois de ter o mercador com-
mettido uma acção tão vil, e que lhe devia custar caro,
chegou Ali Cogia a Bagdad. Como tivesse alugado a sua
casa antes de partir, apeou-se n'um Khan, onde tomou
um alojamento, esperando participar a sua chegada ao
seu inquilino, e que o inquilino arrendasse n'outra par-
te uma casa .
No dia seguinte foi Ali Cogia ter com o mercador
seu amigo, que o recebeu abraçando-o e manifestando-
lhe a alegria que tinha da sua chegada depois d'uma
ausencia de tantos annos , que dizia elle, principiára a
fazer-lhe perder a esperança de jámais tornal-o a vêr.
Feitos os comprimentos d'uma e outra parte, costu-
mados em semelhantes encontros , rogou Ali Cogia ao
mercador que tivesse a bondade de entregar- lhe o vaso
de azeitonas que confiára á sua guarda, e que lhe des-
culpasse a liberdade que tomára de lh'o ter dado a guar-
dar.
« Ali Cogia, meu rico amigo, replicou o mercador,
<<
não tendes razão de dar-me desculpas , não me achei de
modo algum embaraçado com o vaso , e em semelhante
occasião, teria usado comvosco do mesmo modo que
usastes commigo . Eis-aqui a chave do meu armazem,
ide buscal-o , achal-o-heis no mesmo lugar em que o pu-
zestes >>.
Foi Ali Cogia ao armazem do mercador ; trouxe o
seu vaso, e depois de entregar-lhe a chave e ter-lhe da-
do os agradecimentos pelo favor que lhe fizera, volta ao
Khan onde estava alojado. Descobre o vaso, e mettendo
n'elle a mão até á altura em que as mil peças d'ouro
que n'elle escondera deviam achar-se, fica em extremo
admirado de não as encontrar. Pareceu -lhe que se enga-
nava, e para tirar-se promptamente do desassocego em
que estava, pega n'uma parte dos pratos e outros vasos
da sua cozinha de viagem, e deita tudo o que estava no
vaso de azeitonas, sem n'elle achar uma unica moeda de
CONTOS ARABES 201

ouro. De pasmo ficou immovel, e levantando as mãos e


os olhos ao céo : «É possivel, clamou elle, que um ho-
mem que tinha pelo meu melhor amigo, me fizesse uma
infidelidade tão manifesta ! >>>
Ali Cogia, sensivelmente magoado de ter tido uma
perda tão consideravel, volta a casa do mercador : << Meu
amigo, disse -lhe, não vos admireis de eu voltar a vossa
casa. Confesso que reconheci o vaso de azeitonas que
fui buscar ao vosso armazem pelo que lá puzera com
azeitonas, tinha n'elle mettido mil moedas d'ouro, que
não acho ; talvez precisastes d'ellas para o vosso com-
mercio. Se assim é, estão ás vossas ordens, rogo-vos
sómente que me tireis do desassocego em que estou, e
passeis d'ellas um recibo, depois do que dar-m'as-heis
quando poderdes » .
O mercador, que esperava que Ali Cogia viesse fa-
zer-lhe este comprimento, tinha pensado tambem no que
devia responder-lhe . « Ali Cogia, meu amigo, disse elle ,
quando me trouxestes o vosso vaso de azeitonas, toquei
eu n'elle ? Não vos dei a chave do meu armazem ? Não o
levastes vós mesmo ? E não o achastes no mesmo lugar
em que o puzestes , no mesmo estado e coberto do mes-
mo modo ? Se n'elle mettestes ouro, deveis têl - o achado .
Disseste-me que havia n'elle azeitonas, eu o cri . Eis-aqui
tudo o que sei ; crêr-me-heis, se quizerdes, eu não lhe
».
toquei >
Serviu-se Ali Cogia de todas as vias de brandura pa-
ra fazer de modo que o mercador se condemnasse a si
proprio. « Eu prefiro, disse elle, a paz a tudo, e teria
grande desgosto de chegar a extremos que não vos acre-
ditariam no mundo, e dos quaes não me serviria senão
com grande pezar meu. Lembrai-vos que os mercadores
como nós devem deixar de parte todo o interesse para
conservar o seu bom credito. Ainda uma vez , desespe-
rar-me-hias se vossa obstinação me obrigasse a servir-
me das vias da justiça , eu , que sempre estimei mais per-
der alguma cousa do meu direito do que recorrer a ella.
-- Ali Cogia, replicou o mercador, convindes que puzes-
tes em minha casa um vaso de azeitonas em deposito ;
vós o viestes buscar, vós o levastes e agora vindes pe-
202 AS MIL E UMA NOITES

dir-me mil moedas d'ouro. Dissestes-me que estavam no


vaso ? Eu até ignoro se n'elle havia azeitonas, não m'as
mostrastes . Admiro-me que não me peçaes perolas ou
diamantes de preferencia a ouro . Crede-me, retirai-vos
e não façaes ajuntar o povo diante da minha loja ».
Tinham já parado alguns diante da loja, e estas ul-
timas palavras do mercador, pronunciadas com tom d'um
homem que sahia fóra dos limites da moderação, fizeram
com que não só parasse maior numero, mas com que os
mercadores visinhos sahissem de suas lojas, e viessem
tomar conhecimento da disputa que havia entre elle e
Ali Cogia e procurar compôl-os . Tendo-lhes exposto Ali
Cogia o motivo, os principaes perguntaram ao mercador
o que tinha que responder.
Confessou o mercador que guardára o vaso de Ali
Cogia no seu armazem, mas negou que n'elle tivesse to-
cado, e deu juramento que não sabia que houvesse n'el-
le azeitonas, senão porque Ali Cogia lh'o dissera, e que
os tomava a todos por testemunhas da affronta e do in-
sulto que vinha fazer-lhe a sua casa.
<< Vós mesmo sois quem attrahis sobre vós a affron-
ta, disse então Ali Cogia, pegando no mercador pelo bra-
ço, mas visto que vos portaes com tanta maldade , inti-
mo-vos a comparecer perante a justiça de Deus . Veja-
mos se tereis o descaramento de dizer a mesma cousa
perante o cadi » .
A vista d'esta citação, á qual todo o bom musulma-
no deve obedecer, a menos que se não rebelle contra a
religião, não teve o mercador o atrevimento de fazer
resistencia : <«
< Vamos , disse elle , é o que peço , veremos
qual de nós tem razão » .
Ali Cogia levou o mercador perante o tribunal do ca-
di, onde o accusou de ter-lhe roubado um deposito de
mil moedas d'ouro, expondo o facto do modo que aca-
bamos de vêr. Perguntou-lhe o cadi se tinha testemu-
nhas . Respondeu que não tomára esta precaução , porque
se capacitára que aquelle a quem confiava o seu depo-
sito era seu amigo, e que até então o conhecera por
homem honrado .
Não disse o mercador outra cousa em sua defeza,
CONTOS ARABES 203

senão o que tinha já dito a Ali Cogia, e na presença de


seus visinhos ; e acabou, dizendo que estava prompto a
affirmar por juramento, não só que era falso ter elle ti-
rado as mil moedas d'ouro como o accusavam , mas que
não tinha conhecimento algum d'ellas. Exigiu d'elle o
cadi o juramento, depois do que o absolveu.
Ali Cogia, em extremo afflicto de vêr-se condemna-
do a uma perda tão consideravel, protestou contra o
juizo , declarando ao cadi que appellaria da sua senten-
ça para o califa Haroun Alraschid, que lhe faria justiça .
Não se admirou o cadi do protesto, considerou como
effeito do resentimento commum a todos os que perdem
as suas demandas, e pareceu-lhe ter feito o seu dever
absolvendo um accusado contra quem não lhe apresen-
taram testemunhas .
Em quanto o mercador voltava para sua casa trium-
phando de Ali Cogia, com a alegria de ter adquirido mil
moedas d'ouro com tão pouco custo, foi Ali Cogia fazer
um requerimento , e logo no dia seguinte , depois de ter
procurado a occasião do califa voltar da mesquita, de-
pois da oração do meio dia, metteu-se n'uma rua no ca-
minho e quando elle passava, levantou o braço segu-
rando o requerimento na mão , e um official encarregado
d'esta funcção , que caminhava diante do califa , e que se
tirou do seu lugar, veio pegar n'elle para lh'o entregar.
Como Ali Cogia soubesse que o costume do califa
Haroun Alraschid, entrando no seu palacio, era lêr elle
mesmo os requerimentos que lhe apresentavam d'este
modo, seguiu a marcha, entrou no palacio, e esperou
que o official que pegára no requerimento sahisse do
quarto do califa . Sahindo o official lhe disse que o califa
léra o seu requerimento, e lhe aprazára a hora em que
lhe daria audiencia no dia seguinte, e depois de ter-se
informado d'elle , da casa onde morava o mercador, man-
dou avisal-o para lá ir tambem no dia seguinte á mes-
ma hora.
Na tarde do mesmo dia, o califa com o grão-visir
Giafar e Mesrour, chefe dos eunucos, um e outro disfar-
çados como elle , foi dar a sua volta pela cidade , como
já fiz observar a vossa magestade .
204 AS MIL E UMA NOITES

Passando por uma rua , o califa ouviu alguma bulha ;


apressou o passo e chegou a uma porta que dava entra-
da para um pateo, onde, olhando por uma abertura, viu
dez ou doze rapazes, que não estavam ainda recolhidos,
e que jogavam ao luar.
O califa, curioso de saber o jogo com que os rapazes
se entretinham, assentou-se n'um banco de pedra que se
achava ao lado da porta ; e como continuasse a olhar,
ouviu que um dos rapazes, o mais vivo, e o mais es-
perto de todos, disse aos outros : «Joguemos o jogo do
cadi. Eu farei de cadi, tu farás de mercador ladrão, e tu
de Ali Cogia »>.
A estas palavras do rapaz , o califa lembrou-se do re-
querimento que lhe fôra apresentado no mesmo dia, e
isto lhe fez dar mais attenção, para vêr qual seria o suc-
cesso do juizo.
Como a causa de Ali Cogia e do mercador fosse no-
va, e como fizesse grande bulha na cidade de Bagdad,
até entre os rapazes, estes aceitaram a proposição com
alegria, e convieram no papel que cada um devia fazer.
Nenhum disputou o lugar, ao que se offerecera a repre-
sentar o papel de cadi . Tendo um tomado assento, com
o semblante e a gravidade d'um cadi ; outro , como offi-
cial competente do tribunal, lhe apresentou dous, que
denominou um Ali Cogia , e o outro o mercador, contra
quem Ali Cogia se queixava.
Então o fingido cadi fallou e perguntando com gra-
vidade ao fingido Ali Cogia : « Ali Cogia, disse elle , que
pretendeis do mercador que aqui está ? »
O fingido Ali Cogia, depois de fazer uma profunda re-
verencia, informou o fingido cadi do facto, ponto por pon-
to ; e concluiu, supplicando-lhe que fosse servido inter-
pôr a authoridade do seu juizo, para impedir que elle
não tivesse uma perda tão consideravel.
O fingido cadi , depois de ter ouvido o fingido Ali
Cogia, voltou-se para o fingido mercador e lhe pergun-
tou porque não restituia a Ali Cogia a somma que lhe
pedia.
O fingido mercador deu as mesmas razões que o ver-
dadeiro allegára perante o cadi de Bagdad e requereu
CONTOS ARABES 205

tambem affirmar com juramento, que o que dizia era


verdade .
« Não vamos tão depressa, replicou o fingido cadi ;
antes de prestardes o vosso juramento, quero ver o vaso
de azeitonas. Ali Cogia, acrescentou elle , fallando ao fin-
gido mercador d'este nome, trouxestes o vaso ? » Como
respondesse que o não trouxera : « Ide buscal-o, replicou
elle, trazei-m'o » .
O fingido Ali Cogia desapparece por um instante e
voltando finge pôr um vaso diante do fingido cadi , di-
zendo que era o mesmo vaso que puzera em casa do ac-
cusado, e que lá tornára a ir buscar. Para não omittir
cousa alguma da formalidade, o fingido cadi perguntou
ao fingido mercador, se o reconhecia tambem pelo mes-
mo vaso, e como o fingido mercador manifestasse pelo
seu silencio que não podia negal - o, ordenou que o des-
tapassem. O fingido Ali Cogia dissimulou tirar a tampa e
o fingido cadi, dissimulou olhar para dentro do vaso : <« Eis
aqui umas bellas azeitonas , disse elle , quero proval-as » .
Fingiu pegar n'uma, e proval-a, e acrescentou : << « São
excellentes. Mas, continuou o fingido cadi , parece - me que
azeitonas guardadas sete annos , não deveriam ser tão
boas . Venham mercadores de azeitonas , e vejam o que
d'ellas dizem ». Apresentaram-lhe dous rapazes, fazendo
de mercadores de azeitonas . Perguntou-lhes o fingido
cadi : « Sois mercadores de azeitonas ? » Como respondes-
sem que esta era a sua profissão : « Dizei-me , replicou
elle, sabeis quanto tempo as azeitonas preparadas por
homens que sabem do officio, podem conservar- se boas
para comer? -Senhor, responderam os fingidos mercado .
res, por mais cuidado que haja em guardal - as, não pres-
tam já para nada no terceiro anno ; não servem senão
para deitar fóra. Se assim é, replicou o fingido cadi,
examinai o vaso que aqui está, e dizei -me quanto tempo
ha que n'elle metteram as azeitonas que contém ? »
Os fingidos mercadores dissimularam examinar as
azeitonas e proval-as, e declararam ao cadi que eram no-
vas, e boas. « Enganaes-vos , replicou o fingido cadi ; eis-
aqui Ali Cogia que diz que as metteu no vaso ha sete an-
nos . Senhor, replicaram os fingidos mercadores , cha-
206 AS MIL E UMA NOITES

mados como louvados , o que podemos assegurar, é que


as azeitonas são d'este anno, e sustentamos que de to-
dos os mercadores de Bagdad, não ha um unico que não
faça o mesmo depoimento que nós ».
O fingido mercador, accusado pelo fingido Ali Cogia,
quiz abrir a bocca contra o depoimento dos mercadores
louvados, mas o fingido cadi não deu tempo para isso.
« Cala-te, disse elle , és um ladrão ; enforquem-o » . As-
sim os rapazes déram fim ao seu jogo, com grande ale-
gria, batendo com as mãos, e lançando-se sobre o fingi-
do réo, como para leval-o á forca.
Não se pode expressar quanto o califa Haroun Alras-
chid admirou a sabedoria, e o espirito do rapaz que aca-
bava de dar sentença tão judiciosa, ácerca do negocio
que devia ser pleiteado ante elle no dia seguinte . Ces-
sando de olhar e levantando-se , perguntou ao seu grão-
visir, que fôra tambem attento ao que acabava de se pas-
sar, se ouvira a sentença que o rapaz acabava de dar e
o que d'ella pensava . « Commendador dos crentes, res-
pondeu o grão- visir Giafar, ninguem póde estar mais
admirado do que eu de uma tão grande sabedoria, n'uma
idade tão tenra . - Porém , replicou o califa, sabes que
tenho de julgar ámanhã o mesmo negocio , pois o ver-
dadeiro Ali Cogia me apresentou o requerimento hoje ? -
Agora o sei de vossa magestade, respondeu o grão-visir.
-Parece-te, tornou a replicar o califa, que possa dar ou-
tra sentença differente da que acabamos de ouvir?-Se o
negocio é o mesmo, replicou o grão-visir, não me pa-
rece que vossa magestade possa n'elle proceder de outro
modo, nem pronunciar diversamente . - Observa pois
bem esta casa, disse-lhe o califa, e traze-me ȧmanhã o
rapaz, para que julgue o mesmo negocio à minha vista.
Ordena tambem ao cadi, que absolveu o mercador ladrão,
que se ache tambem presente para que aprenda a sua
obrigação com um rapaz e se emende. Quero tambem
que tenhas o cuidado de mandar avisar Ali Cogia para
que traga o seu vaso de azeitonas, e que dous mercado-
res de azeitonas se achem na minha audiencia » . Deu-lhe
o califa esta ordem, continuando o seu passeio, que aca-
CONTOS ARABES 207

bou sem encontrar outra cousa que merecesse a sua at-


tenção.
No dia seguinte o grão-visir Giafar foi á casa, onde
o califa fôra testemunha do jogo dos rapazes , e pediu
para fallar ao dono d'ella ; na ausencia do amo, que sa-

hira, veio a ama fallar-lhe . Perguntou-lhe se tinha filhos.


Respondeu que tinha tres, e mandou-os vir á presença
d'elle. « Filhos , perguntou -lhes o grão-visir, qual de vós
fazia de cadi hontem de tarde quando brincaveis juntos ?>>
O mais alto, que era o mais velho, respondeu que era
208 AS MIL E UMA NOITES

elle mesmo, e como ignorasse porque lhe fazia esta per-


gunta, mudou de côr. « Filho , disse -lhe o grão-visir, vinde
commigo, quer o commendador dos crentes vér- vos ».
Assustou-se muito a mãi, quando viu que o grão-
visir queria levar seu filho . Perguntou -lhe : « Senhor, é
para roubar meu filho, que o commendador dos crentes
o pede ? » Socegou-a o grão-visir, promettendo-lhe que
seu filho estaria de volta em menos d'uma hora, e que
saberia á sua volta o motivo por que fora chamado, de
que ella ficaria contente . « Se assim é, senhor, replicou
a mãi, permitti-me que primeiro lhe faça tomar um ves-
tido mais aceado , e que o torne mais digno de appare-
cer perante o commendador dos crentes ». E mandou-lh'o
vestir sem perda de tempo.
O grão-visir levou o rapaz e o apresentou ao califa,
á hora que déra a Ali Cogia, e ao mercador para ou-
vil-os.
O califa, que viu o rapaz um pouco assustado e que
queria dispôl-o para o que d'elle esperava : « Vinde, fi-
lho, disse elle, chegai- vos ; sois quem julgava hontem a
causa de Ali Cogia e do mercador que lhe furtou o seu
ouro ? Eu vos vi e ouvi ; estou mui satisfeito do vosso
juizo » . Não se perturbou o rapaz ; respondeu modesta-
mente que era elle mesmo. « Filho, replicou o califa,
quero mostrar-vos hoje o verdadeiro Ali Cogia, e o ver-
dadeiro mercador ; vinde assentar-vos a meu lado » .
Deu então o califa a mão ao rapaz, subiu e assentou-
se no seu throno ; e tendo-o mandado assentar a seu
lado, perguntou onde estavam as partes. Mandaram -as
chegar, e nomearam-lh'as, em quanto se prostravam , e
batiam com a testa no tapete que cobria o throno . Ten-
do-se levantado , disse-lhes o califa : « Defendei cada um
a vossa causa ; o rapaz que aqui está vos ouvirá, e fará
justiça ; e se faltar a ella em alguma cousa, eu aqui es-
tou para fazel-a » .
Ali Cogia e o mercador fallaram um após outro , e
quando o mercador pediu para prestar o mesmo jura-
mento que déra no seu primeiro depoimento, disse o ra-
paz que não era ainda tempo, e que primeiro se devia
ver o vaso de azeitonas .
CONTOS ARABES
209
A estas palavras Ali Cogia apresentou o vaso , pôl-o
aos pés do califa, e o descobriu . O califa olhou para as
azeitonas, e pegou n'uma, que provou. Deu - se o vaso a
examinar aos mercadores louvados que foram chama-
dos, e o seu relatorio foi que as azeitonas eram boas , e
d'aquelle anno . O rapaz lhes disse que Ali Cogia assegu-
rava que foram n'elle mettidas havia sete annos : ao que
deram a mesma resposta que os rapazes, fingidos merca-
dores louvados , como temos visto.
Aqui , ainda que o mercador accusado bem visse que
os dous mercadores louvados acabavam de pronunciar a
sua condemnação , não deixou todavia de querer allegar
alguma cousa para justificar- se , mas guardou -se o rapaz
de mandal- o enforcar, voltou-se para o califa : <«< Com-
mendador dos crentes , disse elle , isto não é um jogo , a
vossa magestade pertence o condemnar á morte seria-
mente, e não a mim, que o fiz hontem sómente para rir
e brincar >>.
O califa , bem informado da má fé do mercador, o
deixou aos ministros da justiça para o mandarem enfor-
car , o que foi executado, depois de ter declarado onde
escondera as mil moedas de ouro, que foram restituidas
a Ali Cogia. Este monarcha , finalmente, cheio de justiça
e de equidade , depois de ter avisado o cadi, que dera a
primeira sentença , o qual estava presente , para apren-
der com um rapaz a ser mais exacto nas suas funcções ,
abraçou o rapaz, e o despediu com uma bolsa de cem
moedas de ouro, que lhe mandou dar, para prova da sua
liberalidade .

HISTORIA DO CAVALLO ENCANTADO

Continuando Scheherazada a contar ao sultão das In-


dias as suas historias tão agradaveis, e das quaes elle
gostava tanto, entreteve-o com a do cavallo encantado .
Senhor , disse ella , como vossa magestade não ignora,
o Nevrouz, isto é , o dia novo, que é o primeiro do anno,
e da primavera , assim chamado por excellencia , é uma
f so
210 AS MIL E UMA NOITES

Persia, desde os primeiros tempos da idolatria, que a


religião do nosso propheta, pura como é, e que temos
pela verdadeira, introduziu-se n'ella ; não pôde até aos
nossos dias conseguir abolir, ainda que se possa dizer
que é toda pagã, e que as ceremonias que n'ella se obser-
vam são supersticiosas . Sem fallar das grandes cidades,
não ha cidade pequena, nem villa, nem aldêa , nem lu-
garejo , onde não se celebre com regosijos extraordina-
rios.
Porém os regosijos que se fazem na côrte excedem
muito os outros pela variedade dos espectaculos pasmo-
sos e novos, que os estrangeiros engodados pelas recom-
pensas, e pela liberalidade dos reis, para com os que ex-
cedem nas suas invenções, e a sua industria ; de modo
que se não vê cousa alguma nas outras partes do mun-
do que se possa comparar a esta magnificencia.
N'uma d'essas festas, depois de terem os mais habi-
lidosos e os mais engenhosos do paiz, com os estrangei-
ros que concorreram a Schiraz , onde estava então a cûr-
te, dado ao rei, e a toda a sua côrte o divertimento de
todos os seus espectaculos , e depois do rei lhes ter fei-
to as suas dadivas, a cada um, conforme o seu mereci-
mento, e o que mostrára de mais extraordinario, de mais
maravilhoso, e que mais agradasse, distribuidas com tal
igualdade , que nem havia um sequer que não se julgas-
se dignamente recompensado, quando se preparava para
retirar-se, e despedir a grande assembléa, appareceu um
indio ao pé do seu throno, trazendo um cavallo sellado,
enfreado, e ricamente ajaezado, representado com tanta
arte, que ao vél-o tel- o -hiam tomado logo por um ver-
dadeiro cavallo.
Prostrou-se o indio perante o throno, e depois de le-
vantado, mostrando o cavallo ao rei : « Senhor, disse el-
le, ainda que seja o ultimo que me apresente na presen-
ça de vossa magestade para concorrer com os outros,
posso assegurar-lhe todavia que n'este dia de festa, não
viu cousa tão maravilhosa, nem tão estupenda como o ca-
vallo sobre o qual lhe rogo que lance os olhos . -Não vejo
n'esse cavallo, disse-lhe o rei, outra cousa senão a arte
e a industria do artifice em dar-lhe a semelhança que lhe
CONTOS ARABES 211

foi possivel com o natural, mas outro qualquer artifice


poderia fazer outro semelhante, que o excederia em per-
feição . Senhor , replicou o indio, tambem não é pela sua
construcção, nem pelo que parece exteriormente , que te-
nho intento de fazer com que vossa magestade conside-
re o meu cavallo, como maravilha . É pelo uso que d'el-
le sei fazer, e que qualquer homem como eu póde fazer
d'elle, pelo segredo que posso communicar-lhe . Quando
monto este cavallo, em qualquer lugar da terra, por mais
distante que possa ser, que queira transportar-me pela
região do ar, posso executal-o em muito pouco tempo.
Em poucas palavras, senhor, eis-aqui a maravilha do
meu cavallo ; maravilha de que ninguem jamais ouviu
fallar e cuja experiencia me offereço a mostrar a vossa
magestade, se assim o quizer » .
O rei da Persia, que era curioso de tudo o que pas-
sava por maravilhoso, e que, depois de tantas cousas
d'esta natureza que vira, e que procurára e desejára vér
não tinha visto cousa que chegasse a isto, nem ouvido
dizer que se tivesse visto cousa alguma semelhante , dis-
se ao indio que não havia senão a experiencia que aca-
bava de propôr-lhe, que pudesse convencel-o da preemi-
nencia do seu cavallo, e que estava prompto para vêr a
experiencia do que d'elle dizia » .
Metteu logo o indio o pé no estribo , lançou-se sobre
o cavallo com grande ligeireza ; e pondo o pé no outro
estribo, e segurado bem na sella, perguntou ao rei da
Persia aonde queria mandal-o .
A tres leguas de Schiraz, havia uma alta montanha ,
que se descobria toda da grande praça onde estava o rei
da Persia diante do seu palacio, cheia de todo o povo
que concorrera. « Vês tu aquella montanha ? disse o rei ,
mostrando-a ao indio , lá desejo que vás ; a distancia não
é longa, mas basta para fazer julgar da diligencia que
fizeres para lá ir e voltar. E porque não é possivel acom-
panhar-te com os olhos até lá, ' para signal certo de que lá
terás ido, espero que me tragas uma palma d'uma pal-
meira que ha na falda da montanha » .
Apenas o rei da Persia acabou de declarar a sua von-
tade pelas suas palavras , o indio não fez senão virar
*
212 AS MIL E UMA NOITES

uma cavilha que alteava um pouco sobre o pescoço do


cavallo da parte da sella . No mesmo instante levantou-
se o cavallo do chão, e arrebatou o cavalleiro pelos ares

como um relampago, tão alto , que em poucos instantes


os que tinham olhos mais agudos o perderam de vista,
e fez-se isto com grande admiração do rei e de seus
cortezãos , e com grandes acclamações de todos os espe-
ctadores presentes .
CONTOS ARABES 213

Não havia quasi um quarto de hora que o indio par-


tira, quando o avistaram pelos ares, que voltava com a
palma na mão . Viram o finalmente acima da praça, on-
de deu varias voltas, com acclamações de alegria do po-
vo que o applaudia, até que veio pousar-se perante o
throno do rei, no mesmo lugar d'onde partira, sem sacu-
didura do cavallo que pudesse incommodal-o . Apeou-se,
prostrou-se, e pôz a palma aos pés do rei.
O rei da Persia , que foi testemunha, com tanta ad-
miração como pasmo, do espectaculo inaudito que o in-
dio acabava de dar-lhe, concebeu ao mesmo tempo um
forte desejo de possuir o cavallo. E como se persuadisse
que não acharia difficuldade alguma em tratar com o in-
dio, por maior que fosse a quantia que lhe pedisse por
elle, resolvido a dar-lh'a, considerava o já como a peça
mais preciosa que tivesse no seu thesouro, com a qual
esperava enriquecel-o . « A julgar de teu cavallo pela sua
apparencia exterior , disse ao indio, não entendia que
devesse ser tão considerado como acabas de mostrar- me
que o merece. Devo- te a obrigação de ter-me desenga-
nado, e para provar-te quanto o estimo, estou prompto a
compral-o, se o queres vender.- Senhor, replicou o indio,
não duvidei, que vossa magestade, que passa entre to-
dos os reis que tem reinado até hoje sobre a terra, pe-
lo que sabe julgar melhor de todas as cousas , e esti-
mal-as segundo o seu justo valor , faria ao meu cavallo
a justiça que lhe faz, logo que lhe désse a conhecer
quanto era digno da sua attenção . Tinha previsto que
não se contentaria em admiral- o e louval-o , mas que
desejaria logo possuil-o, como acaba de m'o manifestar.
Da minha parte, senhor, ainda que conheça o preço d'el-
le, quanto póde conhecer- se, e que a sua posse me dé
direito a ser o meu nome immortal no mundo, não lhe
tenho todavia tanto affecto, que não queira privar- me
d'elle para satisfazer a nobre paixão de vossa magestade.
Mas fazendo -lhe esta declaração, tenho outra a fazer- lhe,
sobre a condição, sem a qual não posso resolver-me a
deixal-o passar para outras mãos, o que não levará tal-
vez a bem . Permittir-me- ha pois vossa magestade , conti-
nuou o indio, que lhe diga que não comprei este cavallo.
214 AS MIL E UMA NOITES

Não o consegui do inventor e do artifice , senão dando-lhe


em casamento minha filha unica, que me pediu , e ao mes-
mo tempo exigiu de mim que não o venderia, e se hou-
vesse de dar-lhe outro possuidor, só seria por outra tro-
ca, a qual me fosse muito vantajosa » .
Queria o indio proseguir, mas á palavra de troca, o
rei da Persia o interropeu : « Estou resolvido, replicou
elle , a conceder- te qualquer troca que me pedires . Sabes
que meu reino é grande, e que está cheio de grandes
cidades, poderosas, ricas e povoadas. Deixo á tua esco-
lha a que quizeres escolher, em pleno poder e sobera-
nia, pelo resto de teus dias ».
Pareceu esta troca verdadeiramente real a toda a
côrte da Persia, mas era muito inferior á que o indio
resolvera propôr. Desejava outra cousa muito mais ele-
vada. Respondendo ao rei : « Senhor , fico muito obriga-
do a vossa magestade pelo offerecimento que me faz,
e não posso assás agradecer a sua generosidade . Sup-
plico -lhe todavia que não se offenda se tenho a ousadia
de manifestar-lhe, que não posso deixar o meu cavallo,
senão recebendo de sua mão a princeza sua filha por es-
posa. Estou resolvido a não perder a propriedade d'elle
senão debaixo d'esta condição » .
Os cortezãos, que cercavam o rei da Persia , não pu-
deram deixar de dar grandes risadas ouvindo a proposta
extravagante do indio. Mas o principe Firouz Schah, filho
primogenito do rei, e herdeiro presumptivo do reino,
não o ouviu senão com indignação . Pensou o rei mui di-
versamente e cuidou que podia sacrificar a princeza da
Persia ao indio para satisfazer a sua curiosidade . Vacil-
lou todavia para saber se devia tomar este partido.
O principe Firouz Schah, que viu que o rei seu pai
hesitava sobre a resposta que devia dar ao indio, re-
ceava que lhe concedesse o que pedira, cousa que teria
como igualmente injuriosa á dignidade real, á princeza
sua irmã, e á sua propria pessoa . Fallou pois , e preve-
nindo-o : « Senhor, disse elle , perdôe-me vossa magesta-
de, se ouso perguntar-lhe se é possivel que vacille um
instante sobre a recusa que deve fazer á pretensão in-
solente de um villão, e de um charlatão infame , e que
CONTOS ARABES 215

lhe de motivo de lisonjear-se um instante de entrar na


alliança d'um dos mais poderosos monarchas da terra ;
supplico -lhe que considere o que deve não só a si mes-
mo, mas tambem ao seu sangue, e á alta nobreza de seus
antepassados . - Filho, replicou o rei da Persia , agrade-
ço-vos a vossa advertencia, assim como o zelo que ten-
des para conservar o esplendor de vosso nascimento no
mesmo estado que o recebestes, mas não consideraes
bastante a excellencia d'este cavallo, nem que o indio
que me propõe este meio para possuil- o, póde, se o recu-
so, ir fazer a mesma proposição a outra parte, onde não
se fará caso do pundonor , e que ficaria desesperado se
outro monarcha pudesse gabar-se de ter-me excedido em
generosidade , e de ter-me privado da gloria de possuir
o cavallo, que estimo como a cousa mais singular, e
mais digna de admiração que haja no mundo . Não quero
dizer todavia que consinto em conceder-lhe o que me
pede ; talvez não considere elle bem na sua pretensão
exorbitante, e que, deixando de parte a princeza minha
filha, farei alguma outra convenção com elle , ficará sa-
tisfeito . Porém, antes que torne á ultima discussão do
ajuste, estimo que examineis o cavallo , e que vós mes-
mo façaes o ensaio , para dizer-me o vosso parecer. Creio
que consentirás n'isto » .
Como é natural lisonjearmo-nos no que desejamos,
o indio que cuidou entrever no discurso que acabava de
ouvir, que o rei da Persia não estava absolutamente op-
posto a recebel- o na sua alliança, aceitando o cavallo
por este preço, e que o principe em vez de ser- lhe con-
trario, como acabava de demonstral - o , poderia ser-lhe
favoravel, longe de oppôr-se ao desejo do rei, mostrou-se
alegre, e para prova de que consentia com gosto, pre-
veniu o principe, chegando -se ao cavallo, prestes a aju-
dal-o a montar, e avisal-o depois do que era preciso pa-
ra governal-o bem.
O principe Firouz Schah, com destreza maravilhosa,
montou o cavallo sem a ajuda do indio, e apenas metteu
o pé n'um e n'outro estribo, sem esperar aviso algum
do indio, deu volta á cavilha que lhe vira voltar pouco
tempo antes, quando o montára . No instante que a vol-
216 AS MIL E UMA NOITES

tou, o cavallo o arrebatou com a rapidez d'uma frecha ati-


rada pelo mais forte e mais déstro fecheiro ; e assim em
poucos instantes, o rei e toda a côrte e toda a numero-
sa assembléa o perderam de vista.
Nem o cavallo, nem o principe Firouz Schah appare-
ciam já no ar, e o rei fazia esforços inutilmente para
avistal-o, quando o indio, assustado do que acabava de
acontecer, se prostrou diante do throno, obrigando o rei
a lançar os olhos sobre elle, e a dar ouvidos á falla que
lhe fez n'estes termos : « Senhor , disse elle , vossa ma-
gestade viu que o principe não me permittiu, em razão
da sua presteza de dar-lhe a instrucção necessaria para
governar o meu cavallo . Pelo que me viu fazer, quiz
mostrar que não tinha precisão do meu aviso para par-
tir e elevar-se ao ar. Mas ignora o aviso que tinha que
dar-lhe para fazer retroceder o cavallo, e para o fazer
voltar ao lugar d'onde partira. Assim, senhor, a graça
que peço a vossa magestade, é não ficar responsavel do
que poderá acontecer á sua pessoa . É muito razoavel pa-
ra imputar-me a desgraça que póde succeder ».
O discurso do indio affligiu bastante o rei da Persia,
que conheceu que o perigo em que estava o principe
seu filho, era inevitavel, se fosse verdade, como dizia o
indio, que houvesse um segredo para fazer voltar o ca-
vallo, diverso d'aquelle que o fazia partir e elevar ao ar.
Perguntou- lhe agastado por que não o chamára no ins-
tante em que o viu partir.
<< Senhor, respondeu o indio, foi vossa magestade
testemunha da rapidez com que o cavallo e o principe
foram arrebatados ; o susto que tive , e que tenho ainda,
me tolheu logo a falla, e quando me achei em estado de
servir-me d'ella, estava já tão longe , que não teria ouvi-
do a minha voz ; e ainda que a tivesse ouvido, não te-
ria podido governar o cavallo para o fazer voltar, visto
que ignorava o segredo, porque não teve a paciencia de
primeiro sabel-o de mim. Porém, senhor, acrescentou el-
le, ha motivo todavia para esperar que o principe, no em-
baraço em que se achará, encontre a outra cavilha, e que
voltando-a, cessará logo o cavallo de elevar-se, e baixa-
rá á terra, onde poderá pousar -se em algum lugar con-
CONTOS ARABES
217
veniente que julgará a proposito , governando-o com a
rédea ».
Não obstante o arrazoamento do indio, que tinha to-
da a apparencia possivel, o rei da Persia , assustado do
perigo evidente em que estava o principe seu filho :
« Supponho , replicou elle, cousa todavia muito incerta,
<
que o principe meu filho encontre a outra cavilha , e que
d'ella faça o uso que dizes ; o cavallo em vez de descer
até à terra, não póde cahir sobre rochedos , ou precipi-
tar-se com elle no fundo do mar ? -Senhor, replicou o
indio, posso livrar a vossa magestade d'este receio , asse-
gurando- lhe que o cavallo passa os mares sem nunca ca-
hir n'elles , e que leva sempre o cavalleiro aonde tem in-
tenção de ir. E póde vossa magestade estar certo de que
por pouco que o principe se perceba da outra cavilha
que disse, o cavallo não o levará senão aonde quizer ir,
e não é crivel que vá a outra parte, senão a um lugar.
onde possa achar soccorro e dar-se a conhecer » .
A estas palavras do indio : « Seja o que fôr , replicou
o rei da Persia, como não posso fiar- me na segurança que
me dás, a tua cabeça me responderá pela vida de meu
filho, se em tres mezes não o vejo voltar são e salvo,
ou que não saiba com certeza que esteja vivo. Ordenou
que se assegurassem da sua pessoa, e que o encerras-
sem em uma prisão estreita ; depois d'isto retirou- se ao
seu palacio, em extremo afflicto por causa da festa de
Nevrouz , tão solemne em toda a Persia , ter terminado
d'um modo tão triste para elle e para a sua côrte.
O principe Firouz Schah , foi todavia arrebatado ao ar
com a rapidez que dissemos, e em menos d'uma hora
viu -se tão alto, que não distinguia já nada cá na terra ,
onde as montanhas e os valles lhe pareciam confundidos
com as planicies . Então cuidou em voltar ao lugar d'on-
de partira . Para o conseguir , imaginou que voltando a
mesma cavilha ás avessas, e puxando pela rédea ao mes-
mo tempo , teria bom successo, mas foi extremo o seu
pasmo, quando viu que o cavallo o elevava sempre com
a mesma rapidez . Voltou-a, e tornou a voltar muitas ve-
zes , debalde ; reconheceu então a grande falta que com-
mettér não toma
218 AS MIL E UMA NOITES

cessarias para bem governar o cavallo, antes de o mon-


tar. Conheceu logo a grandeza do perigo em que estava,
mas este conhecimento não lhe fez perder o juizo ; pôz-
se a pensar com todo o bom senso de que era capaz, e
examinando a cabeça e o pescoço do cavallo com atten-
ção, viu outra cavilha mais pequena, e menos apparente
que a primeira, ao lado da orelha direita do cavallo . Deu
volta á cavilha, e no mesmo instante viu que descia, por
uma linha semelhante áquella por onde subira, porém
com menos rapidez.
Havia meia hora que as trevas da noite cobriam a
terra no lugar onde o principe Firouz Schah se achava
perpendicularmente, quando deu volta á cavilha . Porém,
como o cavallo continuasse a descer, pôz-se o sol tam-
bem para elle em pouco tempo, até que se achou intei-
ramente nas trevas da noite. Assim, longe de escolher
um lugar onde ir apear a seu commodo, foi constran-
gido a soltar a rédea sobre o pescoço do cavallo, espe-
rando com paciencia que acabasse de descer, não sem in-
quietação a respeito da paragem onde cahiria, sem saber
se seria n'um lugar habitado , n'um deserto, n'um rio,
ou no mar.
Parou finalmente o cavallo, e pousou em terra, sen-
do já meia noite . Apeou-se o principe Firouz Schah, mas
com grande fraqueza, que procedia de não ter comido
cousa alguma todo o dia, pois nada comêra antes de sa-
hir do palacio com o rei seu pai , para assistir aos es-
pectaculos da festa . A primeira cousa que fez na escu-
ridão da noite, foi reconhecer o lugar onde estava, e
achou-se na varanda d'um palacio magnifico, coroada
d'uma balaustrada de marmore á altura de encosto. Exa-
minando a varanda, achou a escada por onde se subia
do palacio a ella , cuja porta não estava fechada , mas
sim meio aberta.
Qualquer outro que não fosse o principe Firouz Schah
não se teria talvez arriscado a descer, visto a grande es-
curidão que havia então na escada , além da difficulda-
de que se apresentava de não saber se acharia amigos
ou inimigos ; consideração que não foi capaz de impe- 1
dil-o . « Não venho para fazer mal a ninguem, disse
CONTOS ARABES 219

comsigo, e certamente os que me virem primeiro e que


não me vejam com armas na mão, terão a humanidade
de ouvir-me antes que me accommettam ». Abriu mais
a porta sem fazer bulha, e desceu tambem com grande
precaução, para não dar algum passo em falso, cuja bu-
lha pudesse acordar alguem. Foi bem succedido, e no
patamar da escada, achou a porta aberta de uma grande
sala, onde havia luz.
Parou á porta o principe Firouz Schach, e escutan-
do , não ouviu outro ruido, senão o dos que dormiam
a somno solto . Adiantou-se um pouco para dentro da sa-
la ; e ao clarão d'uma lanterna, viu que os que dormiam
eram eunucos pretos, cada um com o alfange nú ao seu
lado, e isto lhe deu a entender que era a guarda do
quarto d'uma rainha, ou d'uma princeza, e com effeito
era o d'uma princeza.
O quarto em que dormia a princeza, era contiguo a
esta sala, e a porta que estava aberta o dava a conhecer
pela grande claridade com que estava alumiada, que se
deixava ver por entre um reposteiro d'um estofo de sé-
da muito transparente .
Chegou-se o principe Firouz Schah ao reposteiro , pé
ante pé, sem acordar os eunucos . Correu-o , e entrando,
sem se demorar a considerar a magnificencia do quarto,
que era toda real, circumstancia que pouco lhe importa-
va no estado em que se achava , não deu attenção senão
ao que mais lhe importava. Viu muitas camas, uma so-
bre o sophá, e as outras no chão . As criadas da prince-
za estavam deitadas n'estas, para fazer-lhe companhia, e
assistir-lhe nas suas precisões, e a princeza na primeira .
Á vista d'esta distincção, não se enganou o principe
Firouz Schah na escolha que tinha que fazer, para diri-
gir- se á princeza . Chegou-se ao seu leito sem acordal-a,
nem nenhuma de suas mulheres . Estando assás perto viu
uma belleza tão extraordinaria e tão pasmosa, que ficou
enlevado e abrazado em amor logo á primeira vista.
<< Céo ! clamou comsigo, trouxe-me o meu destino a este
lugar para fazer-me perder a minha liberdade , que con-
servei até agora ? Não devo eu esperar uma escravidão
certa, logo que abrir os olhos, se elles, como devo
220 AS MIL E UMA NOITES

esperar, acabassem de dar o lustre e a perfeição a


um ajuntamento de attractivos e de encantos tão mara-
vilhosos ? É forçoso resolver-me, visto que não posso re-
cuar sem ser homicida de mim mesmo, e que a neces-
sidade assim o ordena ».
Feitas estas reflexões , a respeito do estado em que
se achava, e da belleza da princeza, o principe Firouz
Schah se poz de joelhos , e tomando a extremidade da
manga pendente, da camisa da princeza, d'onde sahia um
braço branco como neve, e o mais perfeito possivel , pu-
xou-a muito ligeiramente.
A princeza abriu os olhos , e com o sobresalto que
teve de ver na sua presença um homem bem feito, bem
vestido , e de boa figura , ficou confusa , sem dar todavia
signal algum de susto ou de espanto.
O principe aproveitou-se d'este instante favoravel,
inclinou a cabeça quasi até ao chão, e erguendo -se :
<< Respeitavel princeza , disse elle, por uma aventura a
mais extraordinaria, e a mais maravilhosa que imaginar-
se possa, estaes vendo aos vossos pés um principe sup-
plicante, filho do rei da Persia, que se achava hontem
pela manhã em companhia do rei seu pai, no meio dos
regosijos d'uma festa solemne, e que se acha n'esta hora
em que estamos, n'um paiz desconhecido, onde está em
perigo de perecer, se não tendes a bondade e a generosi-
dade de ajudal - o com o vosso soccorro e a vossa protec-
ção. Imploro essa protecção, adoravel princeza, com a
confiança que não m'a recusareis . Ouso lisonjear-me
d'ella, com tanto maior fundamento , quanto não é pos-
sivel que a deshumanidade se encontre com tanta belle-
za, com tantos encantos, e com tanta magestade >>.
A princeza, a quem o principe Firouz Schah se diri-
gira tão felizmente, era a princeza de Bengala, filha pri-
mogenita do rei do reino d'este nome, que lhe mandára
construir este palacio, pouco distante da capital, onde
ella vinha algumas vezes tomar o divertimento do cam-
po. Depois de o ter ouvido com toda a bondade que po-
dia desejar, respondeu -lhe com a mesma bondade : «< Prin-
cipe , disse ella, socegai, não estaes n'um paiz barbaro ;
a hospitalidade, a humanidade, e a cortezia não reinam
CONTOS ARABES 221

menos no reino de Bengala, que no reino da Persia. Não


sou eu que vos concedo a protecção , que me pedis,
achal-a-heis não só no meu palacio, mas tambem em to-
do o reino ; podeis crêr-me e fiar- vos na minha pala-
vra » .
Queria o principe da Persia agradecer á princeza de
Bengala o seu generoso acolhimento e a graça que aca-
bava de conceder-lhe tão officiosamente, e tinha já incli-
nado a cabeça para dar-lhe o agradecimento, mas ella
não lhe deu o tempo de fallar : « Por maior que seja o
desejo, acrescentou ella, que tenho de saber de vós
mesmo por que maravilha gastastes tão pouco tempo em
vir da capital da Persia, e por que encantos pudestes pe-
netrar no meu palacio para apresentar-vos na minha pre-
sença tão occultamente, que enganastes a vigilancia da
minha guarda ; como todavia não é possivel que não
preciseis de alimento , e considerando-vos como hospede
que é bem vindo, estimo mais deixar a minha curiosida-
de para ámanhã, e vou dar ordem ás minhas criadas que
vos alojem n'um de meus quartos , que vos regalem bem
e que vos deixem descançar até achar-vos em estado de
satisfazer a minha curiosidade, e eu de ouvir- vos ».
As criadas da princeza, que acordaram logo ás pri-
meiras palavras que o principe Firouz Schah dirigira á
princeza sua ama, com tanto pasmo de vêl-o á cabecei-
ra do leito da princeza , quanto não perceberam como
elle pôde chegar até alli sem as acordar, nem a ellas ,
nem aos eunucos ; estas mulheres apenas conheceram a
intenção da princeza, vestiram -se logo a toda a pressa,
e se acharam prestes a executar as suas ordens, apenas
lh'as deu . Pegaram cada uma nas tochas que em grande
numero alumiavam o quarto da princeza, e despedido
o principe, retirando-se mui respeitosamente , caminha-
ram adiante d'elle , e o levaram para um bellissimo
quarto, onde umas lhe apromptaram uma cama, em
quanto outras foram á cozinha, e á cópa.
Ainda que fóra d'horas, estas ultimas mulheres da
princeza de Bengala, não fizeram esperar muito o prin-
cipe Firouz Schah . Trouxeram muitos guizados em gran-
de abundancia. Escolheu o que lhe agradou , e tendo co-
999
444 AS MIL E UMA NOITES

mido sufficientemente, segundo a necessidade que tinha,


levantaram a mesa , e o deixaram deitar- se na sua liber-
dade, depois de ter-lhe mostrado alguns armarios , em
que acharia todas as cousas que pudessem ser-lhe neces-
sarias.
A princeza de Bengala, enlevada dos encantos, do es-
pirito, da urbanidade e de todas as outras bellas pren-
das do principe da Persia, o que tudo lhe abalou os sen-
tidos na breve conversação que acabava de ter com elle,
não tinha podido ainda adormecer, quando entraram as
suas mulheres no quarto para deitar-se . Perguntou-lhes
se tinham tido cuidado com elle ; se o deixaram conten-
te ; se não lhe faltava cousa alguma, e sobre tudo , o
que pensavam d'este principe .
As criadas da princeza, depois de satisfazel-a sobre
os primeiros artigos, responderam sobre o ultimo : « Nós
não sabemos o que vós mesma pensaes ; quanto a nós,
considerar- vos-hiamos por mui feliz, se o rei vosso pai
vos désse por esposo um principe tão amavel . Não ha
principe algum na côrte de Bengala que possa compa-
rar-se-lhe , e não nos consta tambem que os haja em to-
dos os estados visinhos, que sejam dignos de vós » .
Este discurso lisonjeiro não desagradou á princeza
de Bengala, mas como ella não quizesse dizer o seu sen-
timento, impoz-lhes silencio : « Sois umas falladoras, dis-
se ella, tornai a deitar-vos, e deixai-me dormir >
».
No dia seguinte a primeira cousa que fez a princeza
quando se levantou, foi pôr-se ao seu tocador. Até en-
tão não tinha ainda tomado tanto trabalho como tomou
n'este dia para toucar- se e enfeitar-se, consultando o
seu espelho. Jámais as suas criadas precisaram de tanta
paciencia para fazer e desfazer algumas vezes a mesma
cousa, para satisfazel-a.
<< Não desagradei ao principe da Persia em trajo ca-
seiro, bem percebi , dizia comsigo ; verá outra cousa
muito diversa quando me vir ataviada » . Adornou a ca-
beça de diamantes, os maiores e mais brilhantes, com
um collar, braceletes, e uma cinta de pedras preciosas
iguaes, tudo de preço inestimavel ; o vestido que tomou
era d'um estofo o mais rico das Indias, que só se fabri-
CONTOS ARABES 223

cava para o uso particular dos reis, dos principes e das


princezas, e d'uma côr que acabava de realçal-o com to-
das as suas vantagens . Depois de ter ainda consultado o
seu espelho repetidas vezes e perguntado ás suas cria-
das uma após outra, se lhe faltava alguma cousa, man-
dou saber se o principe da Persia estava acordado, e no
caso que o estivesse e vestido, como não duvidasse que
elle quizesse vir apresentar-se-lhe, ordenou que o avisas-
sem que ella viria, e que tinha as suas razões para as-
sim obrar.
O principe da Persia, que se desforrára pela manhã
da falta de dormir, por que passára na vespera, tinha-se
refeito perfeitamente da sua trabalhosa viagem, e acaba-
va de vestir-se, quando uma criada da princeza chegou
a dar-lhe os bons dias da parte d'ella.
O principe , sem dar á criada da princeza tempo de
dar-lhe parte do que tinha que dizer-lhe, lhe perguntou
se a princeza estava em estado de poder receber a sua
visita. Mas tendo-se desempenhado a criada da ordem
que tinha : « A princeza, disse elle , póde fazer o que fôr
do seu agrado , não estou em sua casa senão para exe-
cutar as suas ordens >> .
Apenas soube a princeza de Bengala que o principe
da Persia a esperava, veio no mesmo instante ter com
elle. Feitos os comprimentos reciprocos da parte do prin-
cipe, ácerca de ter acordado a princeza na maior força
do seu somno, do que lhe pediu mil perdões, e da par-
te da princeza, que lhe perguntou como tinha passado a
noite e em que estado se achava ; assentou- se a prince-
za no sophá, e o principe tambem a alguma distancia ,
por altenção .
Fallando-lhe pois a princeza : « Principe , disse ella ,
pudéra ter-vos recebido no quarto em que me achastes
deitada esta noite . Mas como o chefe dos eunucos tem a
liberdade de entrar n'elle, e como não entra aqui sem
minha licença, na impaciencia em que estou de saber
de vós mesmo a aventura maravilhosa que me deu a
dita de vêr-vos , melhor estimei vir encontrar-vos aqui ,
como a um lugar onde nem vós, nem eu seremos inter-
224 AS MIL E UMA NOITES

rompidos . Fazei -me pois o favor de dar-me a satisfação


que vos peço » .
Para agradar á princeza de Bengala , o principe Fi-
rouz Schah principiou o seu discurso pela festa solemne
e annual do Nevrouz, em todo o reino da Persia, com a
narração de todos os espectaculos dignos da sua curiosi-
dade , que foram o divertimento da côrte da Persia, e
quasi geralmente da cidade de Schiraz . Fallou depois do
cavallo encantado, cuja descripção, com a narração das
maravilhas, que o indio montado n'elle, patenteára dian-
te de uma assembléa tão celebre, convenceu a princeza
de que nada no mundo podia imaginar-se mais estupen-
do n'este genero. « Princeza, continuou o principe da Per-
sia, bem julgaes que o rei meu pai, que não poupa des-
peza alguma para augmentar os seus thesouros com as
cousas mais raras e mais curiosas, que podem chegar ao
seu conhecimento, devia desejar com a maior ancia al-
cançar um cavallo d'esta natureza, como com effeito
desejou, e não hesitou em perguntar ao indio em quan-
to o avaliava. Foi a resposta do indio das mais extrava-
gantes. Disse que não tinha comprado o cavallo , mas
que o adquirira em troca d'uma filha unica que tinha, e
que não podia privar-se d'elle senão debaixo de outra
condição semelhante ; não podia ceder-lh'o senão casan-
do-se, com seu consentimento, com a princeza minha ir-
mã. O grande numero de cortezãos que cercava o thro-
no do rei meu pai , que ouviram a extravagancia d'esta
proposta, mofaram d'ella intimamente ; e eu em particu-
lar concebi uma indignação tão grande, que não me foi
possivel dissimulal-a, tanto mais que percebi que o rei
meu pai vacillava ácerca do que devia responder. Com
effeito, pareceu-me vêr o instante em que ia conceder-lhe
o que pedia, se não lhe tivesse representado com energia
a injuria que ia fazer á sua gloria. A minha advertencia
todavia não foi capaz de fazer-lhe abandonar inteiramen-
te o intento de sacrificar a princeza minha irmã a um
homem tão desprezivel. Imaginou que poderia abraçar o
seu parecer, se uma vez pudésse comprehender como
elle , pelo que elle imaginava, quão estimavel era este
CONTOS ARABES 225

cavallo pela sua singularidade . Com esta mira, queria


que eu o examinasse , que o montasse, e que eu mesmo
o ensaiasse . Para comprazer ao rei meu pai , montei o
cavallo, e logo que me vi montado, como tivesse visto
o indio pôr a mão n'uma cavilha , e dar-lhe volta para
se fazer arrebatar com o cavallo (sem mais instrucção)
fiz o mesmo, e logo fui arrebatado pelos ares com rapi-
dez muito maior , que a d'uma frecha despedida pelo
mais robusto e mais experimentado frecheiro . Em pouco
tempo achei-me tão distante da terra , que não distinguia
já objecto algum, e parecia-me que me chegava tão per-
to da abobada do céo, que receava n'ella ir quebrar a
cabeça. Com o movimento rapido com que era levado ,
fiquei largo tempo como perturbado e incapaz de dar at-
tenção ao perigo presente, a que me via exposto de mui-
tos modos . Quiz dar volta ás avessas á cavilha que ti-
nha virado no principio , mas não experimentei o effeito
que desejava. Continuou o cavallo a arrebatar-me para o
céo, e a afastar-me da terra cada vez mais . Descobri fi-
nalmente uma cavilha : dei- lhe volta, e o cavallo em vez
de adiantar-se mais, principiou a baixar á terra, e como
me achasse logo nas trevas da noite , e não fosse possi-
vel governar o cavallo para pôr-me n'um lugar onde não
corresse perigo nenhum, não fiz movimento algum com
a rédea, e entreguei -me à vontade de Deus, ácerca do
que poderia acontecer-me. Pousou finalmente o cavallo,
apeei-me, e examinando o lugar, achei-me na varanda
d'este palacio . Vi a porta da escada, que estava meio
aberta, desci sem bulha, e dei com os olhos n'uma por-
ta aberta e dentro vi luz . Metti a cabeça, e como visse
eunucos adormecidos , e uma grande claridade por entre
o reposteiro, a necessidade urgente em que estava, não
obstante o perigo inevitavel que me ameaçava, se os eu-
nucos acordassem, inspirou-me a ousadia, para não dizer
a temeridade, de me ir chegando devagarinho , e de
abrir a porta. Não ha precisão, princeza, acrescentou o
principe, de dizer-vos o mais , vós o sabeis . Não me res-
ta senão agradecer-vos a vossa bondade e a vossa gene-
rosidade, e supplicar- vos que me indiqueis por que modo
posso provar-vos o meu reconhecimento por um tão
TOMO IV . 15
226 AS MIL E UMA NOITES

grande beneficio, de modo que fiqueis satisfeita. Como


pelo direito das gentes sou já vosso escravo e não posso
por isso offerecer- vos a minha pessoa, não me resta mais
que o meu coração . Que digo, princeza ? já não é meu ,
roubaste-m'c com os vossos encantos, e d'um modo, que
bem longe de pedir-vos a restituição d'elle, eu vol-o dei-
xo. Assim, permitti-me que vos declare que não vos co-
nheço menos por possuidora do meu coração, que das
minhas vontades ».
Foram estas ultimas palavras do principe Firouz
Schah pronunciadas em tom e ar que não deixaram du-
vidar a princeza de Bengala um unico instante do effei-
to que esperára dos seus attractivos . Não se escandali-
sou com a declaração do principe da Persia, como muito
precipitada. A vermelhidão que lhe subiu ao rosto, não
serviu senão para tornal-a mais bella e mais amavel aos
olhos do principe.
Tendo o principe Firouz Schah acabado de fallar :
<< Principe, disse a princeza de Bengala, se me dés-
tes o mais sensivel dos gostos contando-me as cousas es-
tupendas e maravilhosas que acabo de ouvir, por outra
parte não pude vêr-vos sem susto na mais alta região
do ar, e ainda que tivesse a vantagem de vêr-vos dian-
te de mim são e salvo , não cessei todavia de recear,
que no instante que me noticiastes que o cavallo do in-
dio viera pousar - se tão felizmente na varanda do meu pa-
lacio, podia a mesma cousa acontecer em mil outros si-
tios, mas alegro-me por o acaso ter-me dado a preferen-
cia, e a occasião de vos dar a conhecer que podia o
mesmo acaso dirigir- vos a outra parte, mas não aonde
podesseis ser acolhido mais agradavelmente e com mais
gosto. Assim, principe, ter-me-hia por mui sensivelmen-
te offendida, se quizesse crer que o pensamento que me
manifestastes de ser meu escravo, fosse sério, e que não
o attribuisse á vossa urbanidade, mais do que a um sen-
timento sincero ; o acolhimento que vos fiz hontem, de-
ve dar-vos a conhecer sufficientemente que não estaes
menos livre, que no centro da côrte da Persia. Quanto
ao vosso coração, acrescentou a princeza de Bengala com
tom que na verdade não indicava uma recusa, como es-
CONTOS ARABES 227

tou bem persuadida que não esperastes até agora para


dispûr d'elle, e que não deveis ter feito escolha senão
d'uma princeza que o mereça, sentiria muito dar-vos oc-
casião de fazer-lhe uma infidelidade » .
Quiz o principe Firouz Schah protestar á princeza de
Bengala, que partira da Persia senhor do seu coração ,
mas no instante que ia principiar a fallar, uma das cria-
das da princeza, que para isto tinha ordem, veio avisal- a
de que o jantar estava na mesa.
Esta interrupção livrou o principe e a princeza de
uma explicação que os teria embaraçado igualmente , e
da qual não tinham precisão. A princeza de Bengala fi-
cou plenamente convencida da sinceridade do principe
da Persia ; e quanto ao principe , ainda que a princeza
não se tivesse explicado, julgou todavia por estas pala-
vras, e pelo modo favoravel com que fora ouvido , que
tinha motivo de estar satisfeito da sua felicidade .
Como a criada da princeza tivesse o reposteiro cor-
rido, a princeza de Bengala levantando-se, disse ao prin-
cipe da Persia, que tambem se levantou , que ella não
costumava jantar tão cedo , mas que , como não duvidava
que lhe tivesse dado uma má cêa, déra ordem que ser-
vissem o jantar mais cedo que de costume ; e dizen-
do estas palavras, o conduziu para um salão magnifico,
onde estava a mesa posta, e carregada d'uma grande
abundancia de excellentes guizados . Puzeram - se á mesa,
e tendo-se assentado, as escravas da princeza, em gran-
de numero, bellas e ricamente vestidas, principiaram um
concerto agradavel, de instrumentos e de vozes, que du-
rou até ao fim do banquete .
Como o concerto fosse dos mais suaves , de modo que
não impedia o principe e a princeza de se entreterem ,
passaram uma grande parte do banquete, a princeza a
servir o principe e a convidal-o a comer, e o principe
da sua parte a servir a princeza do que lhe parecia me-
lhor, para agradar-lhe com modos e palavras que lhe
grangeavam novas attenções e novos comprimentos da
parte da princeza. E n'este trato reciproco de civilidades
e de attenções um para o outro, fez o amor mais pro-
AS MIL E UMA NOITES
228
gressos de uma e outra parte, do que n'uma entrevista

premeditada.pe
O princi e a princeza levantaram -se finalmente da
mesa ; a princeza levou o principe da Persia para um
gabinete espaçoso e magnifico , pela sua construcção e
pelo ouro e azul que o aformoseavam , com symetria , e
ricamente mobilado . Assentaram -se no sophá , que tinha
uma vista muito agradavel para o jardim do palacio , que
foi admirado pelo principe Firouz Schah , pela variedade
das flores , dos arbustos e das arvores , todas diversas das
da Persia , ás quaes não cediam em belleza ; tomando oc-
casião de entrar em conversação com a princeza sobre
esta materia . « Princeza , disse elle , pareceu -me que não
havia no mundo senão a Persia onde houvesse palacios
soberbos e jardins admiraveis , dignos da magestade dos
reis ; bem vejo porém que por toda a parte onde ha
grandes reis, sabem mandar construir para si moradas
convenientes á sua grandeza e ao seu poder ; e se ha
differença no modo de construir e nas dependencias , as-
semelham-se na grandeza e na magnificencia . - Princi-
pe, replicou a princeza de Bengala , como não tenho idéa
alguma dos palacios da Persia , não posso ajuizar ácerca
da comparação que d'elle fazeis com o meu, para dizer-
vos o meu parecer . Mas por mais sincero que possaes
ser, custa-me a persuadir -me que seja justo . Permittir-
me-heis que creia que a complacencia tenha n'ella mui-
ta parte. Não quero todavia desprezar o meu palacio na
vossa presença ; tendes muito bons olhos e muito bom
gosto para não julgardes bem, mas asseguro -vos que o
acho muito mediocre quando o ponho em parallelo com
o do rei meu pai, que o excede infinitamente em gran-
deza , em belleza e em riquezas . Dir-me-heis vós mesmo
o que pensaes a este respeito , depois de o terdes exa-
minado . Visto que o acaso vos trouxe até á capital d'es-
te reino, não duvido que desejeis vêl-o, e comprimen-
tar o rei meu pai , para que elle faça as honras devidas
a um principe da vossa ordem e do vosso merecimen-
to ».
Fazendo lembrar ao principe da Persia a curiosidade
CONTOS ARABES 229

de ver o palacio de Bengala e de visitar o rei seu pai,


imaginava a princeza, que vendo seu pai um principe tão
bello, tão sabio e tão completo em todo o genero de bel-
las prendas, poderia talvez resolver-se a propôr-lhe uma
alliança, offerecendo-a por esposa ; e com isto, como es-
tivesse muito persuadida que não era indifferente ao prin-
cipe, e que o principe não recusaria entrar n'esta allian-
ça, esperava conseguir os fins dos seus desejos, guardan-
do a decencia conveniente a uma princeza, que queria
parecer estar sujeita ás vontades do rei seu pai . O prin-
cipe da Persia não respondeu sobre este artigo, confor-
me ella pensára .
<«< Princeza, replicou o principe, a narração que aca-
baes de fazer-me da preferencia que daes ao palacio do
rei de Bengala sobre o vosso, basta para eu não ter dif-
ficuldade em crêr que é sincera . Quanto á proposta que
me fazeis de tributar os meus respeitos ao rei vosso pai,
teria não só um grande gosto, mas tambem uma grande
honra em desempenhar-me d'esse imperioso dever. Mas ,
princeza, acrescentou elle, sêde vós mesma juiz do ca-
so, aconselhar-me-heis a que me apresente na presen-
ça da magestade d'um tão grande monarcha, como um
aventureiro, sem comitiva, e sem um trem conveniente
á minha ordem ? - Principe, replicou a princeza , não vos
dé isso cuidado ; basta querer, não vos faltará o dinhei-
ro para ter o trem que quizerdes ; eu vos darei tudo o
que precisardes . Temos aqui negociantes da vossa nação
em grande numero, podeis escolher quantos julgardes
a proposito para vos prepararem uma casa que vos fará
honra > ».
Conheceu o principe da Persia a intenção da princeza
de Bengala, e a demonstração sensivel que lhe dava do
seu amor, por este lado, augmentou a paixão que elle
The tinha, mas por mais forte que fosse, não lhe fez es-
quecer a sua obrigação. Replicou sem vacillar : <«< Prin-
ceza, disse elle, aceitaria de boa vontade o offereci-
mento officioso que me fazeis, do qual não posso assás
provar-vos o meu reconhecimento, se o desassocego em
que o rei meu pai deve estar pela minha ausencia, não
me impedisse absolutamente de aceital-o . Seria indigno
230 AS MIL E UMA NOITES

das bondades e da ternura que teve sempre para com-


migo, se não me recolhesse com toda a brevidade e não
fosse ter com elle para socegal-o. Eu o conheço , e em
quanto tenho a felicidade de gozar da conversação d'uma
princeza tão amavel , estou persuadido que está sepulta-
do em mortaes afflicções, e que perdeu a esperança de
tornar-me a vér. Espero que me fareis a justiça de acre-
ditar, que não posso sem ingratidão, e até sem crime,
dispensar-me de ir restituil-o á vida, cuja perda poderia
uma tardança mui prolongada causar-lhe . Dito isto, prin-
ceza, continuou o principe da Persia, se me julgasseis
digno de aspirar á felicidade de ser vosso esposo, como
o rei meu pai me manifestou sempre que não queria
constranger-me na escolha d'uma esposa, não teria diffi-
culdade alguma em alcançar d'elle a licença de voltar,
não como aventureiro, mas como principe, para pedir
da sua parte ao rei de Bengala, a honra de contrahir al-
liança com elle pelo nosso casamento. Estou persuadido
que se prestará a isso de boa vontade, logo que o tiver
informado da generosidade com que me acolhestes na
minha desgraça ».
Do modo que o principe da Persia acabava de expli-
car-se , a princeza de Bengala era muito razoavel para in-
sistir em persuadir-lhe que se apresentasse ao rei de Ben-
gala, e que exigisse d'elle o fazer cousa alguma contra
o seu dever, e sua honra, mas ficou assustada da prom-
pta partida que meditava, pelo que lhe pareceu , e ella
receou, se se despedisse d'ella tão breve, que bem lon-
ge de guardar a promessa que lhe fazia, não se esque-
cesse d'ella logo que deixasse de a vêr ; para desvial-o
d'isso, disse-lhe : « Principe, fazendo-vos a proposta de
contribuir a pôr-vos em estado de vêr o rei meu pai,
não foi minha intenção oppôr-me a uma escusa tão legi-
tima como a que me daes, e que não prevêra. Far-me-
hia eu mesma cumplice da falta que commetterieis, se
tal pensasse, mas não posso approvar que queiraes par-
tir tão promptamente como pareceis querer fazel- o . Con-
cedei ao menos a meus rogos a graça que vos peço , de
dar-vos o tempo de descançar da vossa viagem ; e visto
que a minha felicidade quiz que chegasseis ao reino de
CONTOS ARABES 231

Bengala, e não ao meio d'um deserto, ou ao cume d'al-


guma montanha tão escarpada que não vos fosse possi-
vel descer d'ella, peço-vos que n'elle vos demoreis o
tempo sufficiente para levar novas um pouco circumstan-
ciadas d'elle á côrte da Persia »
>.
Este discurso da princeza de Bengala tinha por fim
fazer com que o principe Firouz Schah , deixando -se es-
tar com ella bastante tempo , se apaixonasse insensivel-
mente cada vez mais dos seus encantos ; na esperança
de que por este meio, o ardente desejo que n'elle via
de voltar á Persia, se afrouxasse, e que então poderia
determinar-se a apparecer em publico e apresentar-se ao
rei de Bengala. O , principe da Persia não pôde cortez-
mente recusar-lhe a graça que lhe pedia, vista a rece-
pção e o acolhimento favoravel que d'ella recebera. Teve
a complacencia de condescender e a princeza cuidou só-
mente em tornar-lhe agradavel a sua demora, dando- lhe
todos os divertimentos que pôde imaginar.
No decurso de alguns dias não houve senão festas,
bailes, concertos, festins ou merendas magnificas , pas-
seios pelo jardim, e caçadas na tapada do palacio, onde
havia um grande numero de animaes, como veados, cor-
ças e outros semelhantes, naturaes do reino de Bengala ,
cuja caçada não perigosa podia convir á princeza.
No fim d'estas caçadas, o principe e a princeza ajun-
tavam-se em algum bello lugar da tapada, onde lhes es-
tendiam um grande tapete com almofadas , para que es-
tivessem assentados mais commodamente. Alli , tomando
alento, e refazendo - se do exercicio violento que acaba-
vam de ter, entretinham-se sobre diversos assumptos . A
princeza Bengala tinha sempre grande cuidado em fazer
cahir a conversação sobre a grandeza, o poder, as ri-
quezas, o governo da Persia, para que do discurso do
principe Firouz Schah pudesse tambem ter occasião de
fallar-lhe do reino de Bengala e das suas vantagens , e
com isto fazer com que elle se resolvesse a demorar-se
mais . Porém aconteceu o contrario do que se propu-
zera.
Com effeito, o principe da Persia sem nada exagerar,
The fez uma descrição tão vantajosa da grandeza do rei-
232 AS MIL E UMA NOITES

no da Persia, da magnificencia e da opulencia que n'elle


havia, de suas forças militares, de seu commercio por
terra e por mar, até aos paizes mais remotos, que pela
maior parte elle não conhecia, e da multidão de suas
grandes cidades , quasi todas tão povoadas como a que
escolhera para sua residencia, onde tinha palacios todos
mobilados, promptos a recebel-o, conforme as diversas
estações do anno ; de modo que estava á sua escolha go-
zar uma primavera perpetua ; e assim , antes que acabas-
se, teve a princeza o reino de Bengala como muito infe-
rior ao da Persia por muitas razões . Até aconteceu que
quando acabou o seu discurso, e que lhe rogou que o
entretesse tambem pela sua vez das vantagens do reino
de Bengala, ella não pôde resolver- se a isto senão depois
de muitas instancias da parte do principe.
Deu pois a princeza de Bengala esta satisfação ao
principe Firouz Schah, mas diminuindo algumas vanta-
gens, pelas quaes constava que o reino de Bengala era
superior ao reino da Persia, ella lhe deu tão bem a co-
nhecer a disposição em que estava de acompanhal-o,
que elle julgou que ella poderia consentir n'isso á primei-
ra proposta que lhe fizesse . Porém pareceu-lhe que não
seria conveniente fazer- lh'a senão quando tivesse tido a
complacencia de estar com ella bastante tempo para dar-
lhe a conhecer a sua sem razão, no caso que ella qui-
zesse retel-o mais tempo e impedil - o de satisfazer ao de-
ver indispensavel de ir ver o rei seu pai.
No decurso de dous mezes inteiros, entregou-se in-
teiramente o principe Firouz Schah ás vontades da prin-
ceza de Bengala, apparecendo em todos os divertimentos
que ella pôde imaginar, e quiz dar-lhe, como se não de-
vesse fazer outra cousa senão passar a vida com ella
d'este modo . Passado este termo declarou-lhe seriamente
que havia já demasiado tempo que faltava ao seu dever ;
e pediu-lhe finalmente a liberdade de desempenhal-o,
repetindo-lhe a promessa que tinha já feito de voltar im-
mediatamente, com um trem digno d'ella e d'elle , para
pedil-a em casamento, com todas as formalidades, ao
rei de Bengala .
<< Princeza, acrescentou o principe, talvez vos sejam
CONTOS ARABES 233

suspeitas as minhas palavras ; e á vista da licença que


vos peço, já me puzestes no numero d'esses falsos aman-
tes, que se esquecem do objecto do seu amor, logo que
d'elle se acham ausentes, mas para prova da paixão não
fingida e não dissimulada, com a qual estou persuadido
que a vida não me póde ser agradavel senão com uma
princeza tão amavel como sois e que me ama ; como d'is-
so não quero duvidar, atrever-me-hia a pedir - vos o fa-
vor de vos levar commigo, se não temesse que tomas-
seis a minha pretensão por uma offensa ».
Como o principe Firouz Schah percebesse que a prin-
ceza, proferidas estas ultimas palavras , mudasse de côr, e
que sem signal algum de enfado hesitava sobre o parti-
do que devia tomar : « Princeza, continuou elle, quanto
ao consentimento do rei meu pai e ao acolhimento com
que vos receberá na sua alliança, podeis contar com el-
le. Quanto ao rei de Bengala, vistas as demonstrações de
ternura, de amizade e de consideração que sempre teve,
e que conserva ainda para comvosco, seria preciso que
fosse muito differente do que m'o pintastes, isto é , ini-
migo do vosso descanço e da vossa felicidade , se não
recebesse com benevolencia a embaixada que o rei meu
pai lhe mandaria para alcançar d'elle a approvação do
nosso casamento » .
Nada respondeu a princeza de Bengala a este discur-
so do principe da Persia, mas o seu silencio, e os seus
olhos fitos no chão lhe deram a conhecer, melhor que
nenhuma outra declaração, que não tinha repugnancia
nenhuma em acompanhal -o á Persia e que n'isso consen-
tia. A unica difficuldade que pareceu achar foi que o
principe da Persia não seria assás experimentado para
governar o cavallo, e que ella receava achar-se com el-
le no mesmo embaraço como quando o ensaiára. Porém
o principe Firouz Schah a dissuadiu tão bem d'este re-
ceio, persuadindo-lhe que podia fiar-se n'elle, e que vis-
to o que lhe acontecêra, podia desafiar o indio a gover-
nal-o com mais destreza que elle, que ella não cuidou
mais senão em tomar com elle as medidas para partir
tão occultamente, que ninguem do seu palacio pudesse
ter a mais leve suspeita da sua resolução .
234 AS MIL E UMA NOITES

Assim o fez : logo no dia seguinte pela manhã , um


pouco antes de despontar o dia, estando ainda o seu pa-
lacio todo sepultado n'um profundo somno, como tivesse
ido á varanda com o principe, voltou este o cavallo para
a parte da Persia, n'um lugar onde a princeza pudesse
assentar-se na garupa facilmente . Montou elle primeiro,
e assentada a princeza atraz d'elle, a seu commodo , ten-
do-o abraçado com a mão para maior segurança e ten-
do-o avisado de que podia partir, deu volta á mesma ca-
vilha, como fizera na capital da Persia e o cavallo os ar-
rebatou pelo ar.
Fez o cavallo a viagem com a sua presteza costu-
mada, e o principe Firouz Schah o governou de modo
que em duas horas e meia avistou a capital da Per-
sia. Não foi apear-se na praça real d'onde partira, nem
no palacio do sultão, mas sim n'um palacio de recreio ,
pouco distante da cidade. Levou a princeza ao mais bel-
lo quarto , onde lhe disse que , para lhe fazerem as hon-
ras que lhe eram devidas, ia avisar o sultão seu pai da
sua chegada e que o veria immediatamente , que no en-
tanto dava ordem ao porteiro do palacio , que estava pre-
sente, para que não lhe faltasse cousa alguma do que
pudesse precisar.
Depois de ter deixado a princeza no quarto, ordenou
o principe Firouz Schah ao porteiro que mandasse sellar
um cavallo, montou n'elle, e depois de ter despedido o
porteiro para ir servir a princeza, com ordem de dar-
The de almoçar do que lhe pudesse ser servido com mais
promptidão, partiu . Na estrada e nas ruas da cidade por
onde passou para chegar ao palacio , foi acolhido por en-
tre as acclamações do povo, que mudou a sua tristeza
em alegria, depois de ter desesperado de nunca mais o
tornar a vér desde que desapparecêra. Dava o sultão seu
pai audiencia quando se apresentou perante elle no meio
do seu conselho, onde todos andavam de luto, como o
sultão, desde o dia que o cavallo o arrebatára. Recebeu-o
abraçando - o com lagrimas de alegria e de ternura, e
perguntou-lhe apressadamente o que era feito do cavallo
do indio .
Deu esta pergunta ao principe occasião de contar ao
CONTOS ARABES 235

sultão seu pai o embaraço e o perigo em que se achára ,


do cavallo o ter arrebatado pelos ares, do modo como
se livrára, e como chegára depois ao palacio da prince-
za de Bengala, o bom acolhimento que lhe fizera, o mo-
tivo que o obrigára a fazer com ella uma mais dilatada
residencia do que devia, e a complacencia que tivera
de não desgostal-a, até alcançar d'ella finalmente que
viesse á Persia com elle, depois de ter-lhe promettido
casar com ella .
< Senhor, acrescentou o principe acabando , depois de
«
ter-lhe promettido que não me recusarieis o vosso consen-
timento, trouxe-a commigo sobre o cavallo do indio ; ella
espera n'um dos palacios de recreio de vossa magestade,
onde a deixei, que eu vá annunciar-lhe que não lhe fiz a
promessa debalde ».
Proferidas estas palavras, prostrou-se o principe pe-
rante o sultão seu pai para alcançar d'elle o seu con-
sentimento, mas o sultão o impediu ; deteve-o , e abra-
çando- o segunda vez : « Filho , disse elle, não só consin-
to no vosso casamento com a princeza de Bengala, mas
até quero ir em pessoa ao seu encontro, agradecer-lhe a
obrigação que lhe devo ; quanto ao que me diz respeito,
quero trazel-a ao meu palacio , e celebrar hoje as suas
nupcias ».
Assim o sultão , depois de ter dado as ordens para a
entrada da princeza de Bengala , ordenou que cessasse o
luto, e que os regosijos principiassem com o concerto
dos timbales, das trombetas e dos tambores, e com os
outros instrumentos guerreiros ; ordenou que fossem sol-
tar o indio da prisão , e que lh'o trouxessem .
Trouxeram-lhe o indio e tendo -me apresentado : «Apos-
sei-me da tua pessoa , disse- lhe o sultão, para que a tua
vida, que todavia não teria sido uma victima sufficiente
da minha cólera, nem da minha afflicção , me afiançasse
a do principe meu filho . Dá graças a Deus de ter elle
apparecido. Vai, pega no teu cavallo, e não appareças
mais na minha presença » .
Estando o indio fóra da presença do sultão da Persia,
como soubesse dos que vieram soltal - o da prisão, que o
236 AS MIL E UMA NOITES

principe Firouz Schah voltára com a princeza, que com


elle trouxera no cavallo encantado, o lugar onde se apeá-
ra, e que o sultão se dispunha a ir buscal-a, e trazêl-a
para o seu palacio, não tardou a pôr-se a caminho para
ganhar a dianteira a elle e ao principe da Persia, e foi
ter ao palacio de recreio, e dirigindo- se ao porteiro, dis-
se que vinha da parte do sultão e do principe da Persia
para tomar a princeza de Bengala na garupa do cavallo ,
e leval-a pelos ares ao sultão, que a esperava, dizia el-
le, na praça do seu palacio, para recebel-a e dar este es-
pectaculo à sua côrte e á cidade de Schiraz .
Era o indio conhecido do porteiro, que sabia que o
sultão o mandára prender e não teve o porteiro difficul-
dade em dar credito ao que dizia , pois o via solto . Apre-
sentou-se á princeza de Bengala, e apenas soube a prin-
ceza que vinha particularmente da parte do principe da
Persia, logo consentiu no que desejava o principe, pois
estava persuadida d'isso mesmo.
Satisfeito o indio da facilidade com que acabava de
ser bem succedida a sua maldade, montou a cavallo, to-
mou a princeza na garupa com a ajuda do porteiro, deu
volta á cavilha e logo o cavallo os arrebatou a elle, e á
princeza pelos ares .
No mesmo instante o sultão da Persia, acompanhado
da sua côrte , sahiu do seu palacio para ir ao de recreio,
e o principe da Persia acabava de tomar a dianteira para
dispôr a princeza de Bengala a recebel-o ; o indio de
proposito passou por cima da cidade com a sua presa
para insultar o sultão e o principe, e para vingar- se do
tratamento injusto que lhe fora feito.
Tendo o sultão da Persia avistado o roubador, que
não desconheceu, parou com pasmo tanto mais sensivel
e mais triste, que não era possivel fazel -o arrepender da
affronta insigne que lhe fazia com tamanho estrondo.
Carregou-o de mil imprecações com os seus cortezãos,
e com todos os que foram testemunhas d'uma insolencia
tão manifesta, e d'uma maldade sem igual.
O indio, pouco sensivel a estas maledicencias, que lhe
chegaram aos ouvidos , continuou o seu caminho em quan-
CONTOS ARABES 237

to o sultão da Persia entrou no palacio, summamente es-


candalisado por receber uma injuria tão atroz , e por se
ver na impossibilidade de castigar o author d'ella .
Mas que afflicção não foi a do principe Firouz Schah,
quando viu que á sua propria vista, sem poder impe-
dil-o, o indio lhe roubava a princeza de Bengala a quem
amava com tanta paixão , que não podia já viver sem el-
la ! Á vista d'este desgosto, pelo qual não esperava, ficou
como immovel. E antes que tivesse deliberado se des-
abafaria em injurias contra o indio ou se lamentaria a
sorte deploravel da princeza , e se lhe pediria perdão da
pouca precaução que tomára da sua guarda, ella que se
The entregára d'um modo que denotava tão bem o quan-
to d'ella era amado ; o cavallo que os levava a um e a
outro com rapidez incrivel, os tinha já desviado da vista.
d'elle . Que partido tomar ? Tornar ao palacio do sultão
seu pai a encerrar-se no seu quarto , para sepultar-se na
afflicção, sem tratar de apanhar o roubador, para livrar
a princeza do seu poder e castigal-o como merecia? A
sua generosidade , o seu amor e o seu valor não lh'o
consentem . Continúa o seu caminho até ao palacio de re-
creio.
Á chegada do principe , o porteiro, que se percebéra
da sua credulidade, e que se deixára enganar pelo indio,
apresenta-se-lhe com as lagrimas nos olhos, lança-se a
seus pés, accusa- se a si proprio do crime que crê ter
commettido, e se condemna á morte, que espera da mão
d'elle.
< Levanta-te, disse o principe , a ti não imputo o ra-
«
pto da minha princeza, imputo - o sómente a mim mesmo
e á minha simplicidade . Sem perder tempo , vai buscar-
me um habito de derviche, e toma muito sentido em não
dizer que é para mim ».
Pouco distante do palacio de recreio , havia um con-
vento de derviches, cujo scheilk ou superior era amigo
do porteiro. Foi o porteiro ter com elle, e fazendo-lhe
uma falsa confidencia da desgraça d'um official de con-
sideração na côrte, a quem devia grandes obrigações e
desejava favorecel -o para dar-lhe occasião de escapar á
238 AS MIL E UMA NOITES

xe o habito completo de derviche ao principe Firouz


Schah. Vestiu-o o principe, depois de ter despido o seu.
Disfarçado d'este modo, e para gastos e precisões de via-
gem que ia emprehender, provido d'uma boceta de pe-
rolas e de diamantes, que trouxera para dar de mimo á
princeza de Bengala, sahiu do palacio de recreio ao anoi-
tecer, incerto a respeito do caminho que devia tomar,
mas resolvido a não voltar sem ter achado a sua prin-
ceza e sem trazel-a, metteu -se a caminho.
Tornemos ao indio : governou o cavallo encantado, de
modo que no mesmo dia chegou cêdo a um bosque per-
to da capital do reino de Kaschmir. Como precisasse de
comer e julgasse que a princeza de Bengala podia ter a
mesma precisão , apeou-se n'este bosque, n'um sitio on-
de deixou a princeza sobre a relva, perto d'um rio d'agua
mui fresca e clara.
Na ausencia do indio, a princeza de Bengala, que se
via em poder d'um indigno roubador, cuja violencia te-
mia, lembrou-se de fugir e procurar um asylo, mas co-
mo tivesse comido muito pouco pela manhã, á sua che-
gada ao palacio de recreio, achou-se n'uma fraqueza tão
grande, quando quiz executar a sua resolução, que foi
constrangida a abandonal-a e a ficar sem recurso algum,
senão no seu animo, com uma firme determinação de
padecer a morte, mas não faltar á fidelidade que devia
ao principe da Persia. Assim, não esperou que o indio a
convidasse segunda vez para comer. Comeu e tomou bas-
tante força para responder com animo aos discursos in-
solentes que elle principiou a fazer-lhe no fim do ban-
quete. Depois de muitas ameaças, como visse que o in-
dio se preparava a fazer-lhe violencia, levantou-se para
resistir-lhe, dando grandes gritos . A estes gritos acudi-
ram um bando de cavalleiros, que os cercaram a ella e
ao indio .
Era o sultão do reino de Kaschmir, o qual voltando da
caça com sua comitiva, passava por este lugar, feliz-
mente para a princeza de Bengala, e que acudira á bu-
lha que ouvira. Dirigiu-se ao indio, e lhe perguntou
quem era e o que pretendia da senhora que via. Respon-
deu o indio com impudencia, que era sua mulher, e que
CONTOS ARABES
239
a ninguem pertencia tomar conhecimento da desavença
que com ella tinha .
A princeza, que não conhecia nem a qualidade , nem
a dignidade do que se lhe apresentava tão a proposito
para livral-a, desmentiu o indio . « Senhor , quem quer
que sejaes, replicou ella , que o céo manda em meu soc-
corro, compadecei- vos d'uma princeza e não deis credi-
to a um embusteiro ; guarde- me Deus de ser a mulher
d'um indio tão vil e tão desprezivel . É um magico abo-
minavel , que me roubou hoje ao principe da Persia a
quem estava destinada por esposa ; e que me trouxe aqui
sobre o cavallo encantado que estaes vendo » .
Não teve a princeza de Bengala precisão d'um mais
longo discurso para persuadir o sultão de Kaschmir que
dizia a verdade. A sua belleza, o seu ar de princeza e
as suas lagrimas fallavam a seu favor ; quiz proseguir ,
mas em vez de ouvil-a, o sultão de Kaschmir , justamen-
te indignado da insolencia do indio o mandou logo cer-
car, e ordenou que lhe cortassem a cabeça . Foi esta or-
dem executada com tanta felicidade , quanto o indio, que
commettera este rapto á sahida da sua prisão , não tinha
arma alguma para se defender.
A princeza de Bengala, livre da perseguição do indio ,
cahiu n'outra que não lhe foi menos penosa . O sultão ,
depois de mandar-lhe dar um cavallo, a trouxe para o
seu palacio, onde a alojou no quarto mais magnifico , de-
pois do seu , deu -lhe um grande numero de escravas pa-
ra estar com ella e para servil - a, com eunucos para sua
guarda . Conduziu-a elle mesmo a este quarto , onde sem
dar-lhe tempo a agradecer- lhe a grande obrigação que
The devia, do modo que tinha meditado : « Princeza, dis-
se elle, creio que precisaes de descanço, deixo-vos des-
cançar á vossa vontade ; ámanhã estareis mais em esta-
do de entreter-me com as circumstancias da estranha
aventura que vos aconteceu » . Acabando estas palavras,
retirou - se .

A princeza de Bengala estava em extremo alegre por


se vêr em tão pouco tempo livre da perseguição d'um
homem que não podia vêr senão com horror , e pensou
240 AS MIL E UMA NOITES

que o sultão de Kaschmir seria assás generoso para


mandal-a ao principe da Persia, depois de informal-o do
modo que lhe pertencia, e de lhe supplicar este favor.
Porém estava bem longe de vêr o complemento da es-
perança que concebera.
Com effeito, tinha o rei de Kaschmir resolvido casar
com ella no dia seguinte, e para este fim tinha manda-
do publicar as festas ao raiar do dia ao som dos timba-
les, dos tambores , das trombetas e de outros instrumen-
tos proprios a inspirar alegria, que resoavam não só no
palacio, mas tambem dentro da cidade. Ao estrondo d'es-
tes concertos tumultuosos acordou a princeza de Benga-
la, e attribuiu a causa d'elles a outro motivo muito di-
verso. Mas, quando o sultão de Kaschmir, que ordenára
que o avisassem quando ella estivesse em estado de re-
ceber a sua pessoa, veio visital -a, e depois de ter-se in-
formado da sua saude , lhe deu a entender que o estron-
do dos instrumentos que ouvia era para fazer mais so-
lemnes as suas bôdas, achou-se ella n'uma consternação
tão grande, que cahiu desmaiada.
As criadas da princeza, que estavam presentes , acu-
diram em seu soccorro, e o mesmo sultão trabalhou pa-
ra fazel-a tornar a si, mas ficou muito tempo n'este es-
tado antes que recuperasse os sentidos. Finalmente tor-
nou a si e então em vez de faltar á fé que tinha pro-
mettido ao principe Firouz Schah, consentindo nas nupcias
determinadas pelo sultão de Kaschmir sem consultal-a,
tomou o partido de fingir que acabava de perder o juizo
no desmaio. Desde então principiou a dizer extravagancias
na presença do sultão ; levantou-se como para arrojar-
se sobre elle , de modo que o sultão ficou muito pasma-
do, e muito afflicto d'este contratempo lastimoso. Como
visse que ella não recuperava o seu juizo, deixou-a com
as suas criadas , ás quaes recommendou que não a aban-
donassem, e que cuidassem bem de sua pessoa . No de-
curso do dia teve o cuidado de mandar algumas vezes
informar-se do estado em que se achava, e cada vez
lhe traziam por nova, ou que estava no mesmo estado,
ou que o mal augmentava em vez de diminuir. Pareceu
CONTOS ARABES 241

o mal mais violento pela tarde que de dia, e d'esta sor-


te o sultão de Kaschmir não foi esta noite tão feliz co-
mo esperava .
A princeza de Bengala não continuou só no dia se-
guinte os seus discursos extravagantes e outros indicios
d'uma grande alienação de espirito, mas do mesmo mo-
do nos dias seguintes , até que o sultão de Kaschmir foi
constrangido a fazer uma junta dos medicos da sua côr-
te, a fallar-lhes d'esta doença , e a pedir-lhes remedios
para cural-a.
Os medicos , depois de consultarem entre si , respon-
deram concordes, que havia muitas qualidades e muitos
graus d'esta doença, uma das quaes, segundo as suas
naturezas, podiam curar-se e as outras eram incuraveis,
e que não podiam julgar de que natureza era a da prin-
ceza de Bengala , sem a verem . Ordenou o sultão aos eu-
nucos que os introduzissem no quarto da princeza, um
após outro, cada um pela sua ordem.
A princeza, que esperava por este acontecimento e que
receou que se deixasse chegar medicos á sua pessoa, e
viessem tomar-lhe o pulso, poderia o menos experi-
mentado conhecer que ella estava de boa saude e que
a sua doença não era senão um fingimento , á propor-
ção que apparecia algum , entrava n'uns arrebatamentos
de aversão tão grandes, prompta a arranhar-lhes a ca-
ra se se chegassem ao pé d'ella, que nenhum teve a ou-
sadia de fazel- o .
Alguns dos que pretendiam ser mais habeis que os
outros, e que se jactavam de julgar das doenças vendo
sómente os doentes, lhe receitaram certas bebidas que
não punha difficuldade em tomar, porque bem sabia que
estava na sua mão estar doente todo o tempo que qui-
zesse e julgasse a proposito , e que aquellas bebidas não
podiam fazer-lhe mal algum.
Vendo o sultão de Kaschmir que os medicos da sua
côrte não operaram cousa alguma para a cura da prin-
ceza, chamou os da sua capital, cujo saber, habilidade e
experiencia não tiveram melhor successo. Mandou depois
chamar os medicos das outras cidades do seu reino , par-
ticularmente os de maior fama na pratica da sua profissão .
TOMO IV . 16
242 AS MIL E UMA NOITES

Não lhes fez a princeza melhor acolhimento que aos pri-


meiros, e tudo o que receitaram não fez effeito algum.
Expediu finalmente aos estados, aos reinos e ás côrtes
dos principes seus visinhos, expressos, com descripções
da molestia em fórma, para serem distribuidas pelos
medicos mais famosos, com promessas de pagar bem a
viagem dos que quizessem vir á capital de Kaschmir, e
d'uma recompensa magnifica ao que curasse a doente.
Alguns d'estes medicos emprehenderam a viagem ,
mas nenhum pôde gabar-se de ter sido mais feliz que os
da sua côrte e do seu reino, nem restabelecer- lhe o jui-
zo no seu antigo estado ; cousa que não dependia, nem
d'elles , nem da sua arte, mas sim da vontade da prin-
ceza.
N'este intervallo o principe Firouz Schah , disfarçado
em derviche, tinha corrido algumas provincias e as prin-
cipaes cidades d'ellas, tanto mais desassocegado , quan-
to sem fallar das fadigas do caminho, ignorava se seguia
um outro opposto ao que devêra ter tomado para achar
novas do que procurava.
Attento ás noticias que corriam em cada lugar por on-
de passava, chegou finalmente a uma grande cidade das
Indias, onde se fallava muito d'uma princeza de Benga-
la, que enlouquecera no mesmo dia que o sultão de Kas-
chmir aprazára para a celebração das nupcias com ella.
Ao nome de princeza de Bengala, suppondo que era a
que motivava a sua viagem, com tanta verosimilhança,
que sem saber se haveria na corte de Bengala outra
princeza senão a sua, fiado no boato commum que cor-
ria, tomou o caminho do reino e da capital de Kaschmir.
Chegando a esta capital, foi pousar n'um Khan, onde
soube logo no mesmo dia a historia da princeza de Ben-
gala e o desgraçado fim do indio, tal como o merecia,
que a trouxera no cavallo encantado ; circumstancia que
lhe deu a conhecer, que não podia enganar-se, que a
princeza era a que elle vinha buscar, e finalmente a des-
peza inutil que o sultão fizera com medicos , que não
CONTOS ARABES 243

dia seguinte ; com este vestido, e pela longa barba que


deixára crescer na viagem, deu-se a conhecer por me-
dico, andando pelas ruas da cidade . Na impaciencia em
que estava de vêr a sua princeza , não tardou a ir ao pa-
lacio do sultão, onde pediu para fallar com um official ;
dirigiram-o ao chefe dos porteiros, a quem fez observar
pue poderiam talvez considerar n'elle , como uma teme-
ridade, que como medico viesse apresentar-se para ten-
tar a cura da princeza, visto que tantos outros antes d'el-
le não puderam conseguil- a, mas que esperava com a
virtude de alguns especificos que conhecia, e cuja ex-
periencia tinha, operar a cura que elles não pude-
ram fazer. O chefe dos porteiros lhe disse que seria
bem acolhido, que o sultão o veria com gosto e que se
conseguisse dar- lhe a satisfação de vêr a princeza res-
tabelecida, podia contar com uma recompensa conve-
niente á liberalidade do sultão , seu senhor e amo . <« Es-
perai , acrescentou elle, virei ter comvosco ».
Havia já tempo que não se apresentava medico al-
gum , e o sultão de Kaschmir, com grande pezar, tinha
quasi perdido a esperança de tornar a vêr a princeza de
Bengala no estado de saude em que a vira, e ao mesmo
tempo o de dar- lhe provas , casando com ella , do exces-
so do seu amor. Foi isto causa de elle ordenar ao chefe
dos porteiros que lhe trouxesse com toda a brevidade o
medico que acabava de annunciar- lhe.
Vestido e disfarçado em medico , foi o principe da
Persia apresentado ao sultão de Kaschmir, que sem per-
der tempo em discursos superfluos , depois de ter-lhe
participado que a princeza de Bengala não podia sup-
portar a presença d'um medico sem ter convulsões que
faziam augmentar o seu mal, o fez conduzir a um gabi-
nete , d'onde podia vêl-a por uma grade sem ser visto.
Entrou o principe Firouz Schah, e encarou a sua
amavel princeza assentada negligentemente, que canta-
va com as lagrimas nos olhos uma canção na qual la-
mentava a sua desditosa sorte, que a privava, talvez pa-
ra sempre, do objecto que tão ternamente amava.
O principe, enternecido da triste situação em que via
a sua querida princeza, não precisou d'outros indicios.
244 AS MIL E UMA NOITES

para perceber que a sua doença era fingida , e que pelo


amor que lhe tinha se achava n'um tão triste constran-
gimento . Sahiu do gabinete , e depois de ter relatado ao
sultão que acabava de descobrir de que natureza era a
doença da princeza e que não era incuravel, lhe disse
que para conseguir a sua cura, era preciso que lhe fal-
lasse em particular e face a face ; e quanto aos arreba-
tamentos, ou convulsões que tinha á vista dos medicos,
esperava que o receberia, e ouviria favoravelmente.
Mandou o sultão abrir a porta do quarto da prince-
za, e o principe Firouz Schah entrou . Logo que a prin-
ceza o viu apparecer, como o tomasse por um medico,
cujo trajo trazia, levantou-se como enfurecida, ameaçan-
do -o e carregando - o de injurias . Isto não o impediu de
chegar-se a ella ; e aproximando -se bastante para ser
d'ella ouvido , como queria que ella só o ouvisse, disse-
lhe em voz baixa , e com ar respeitoso para dar- se a co-
nhecer : <« Princeza , não sou medico, reconhecei o prin-
cipe da Persia que vem dar-vos a liberdade » .
Pela voz e pelas feições do rosto que reconheceu ao
mesmo tempo, não obstante a longa barba que o prin-
cipe deixára crescer, socegou a princeza de Bengala, que
n'um instante fez apparecer no seu rosto certa alegria, que
o que mais se deseja e o que menos se espera, é capaz
de causar quando sobrevem. O pasmo agradavel em que
ella se achou, lhe tolheu a falla por algum tempo, e deu
occasião a que o principe Firouz Schah lhe contasse a
desesperação em que se achára no instante que vira o
indio roubal-a e arrebatal-a á sua vista ; a resolução que
tomára desde então de deixar tudo para procural-a em
qualquer parte da terra que pudesse estar, e de não ces-
sar sem a ter achado e arrancado das mãos do perfido ;
e finalmente por que felicidade, depois d'uma viagem fas-
tidiosa e penosa, tinha a satisfação de achal-a no palacio
do sultão de Kaschmir. Tendo acabado de fallar com as
menos palavras que lhe foi possivel, rogou á princeza
que o informasse do que lhe acontecera no seu arreba-
tamento, até ao instante em que tinha a felicidade de
fallar-lhe , dando-lhe a entender que importava que ti-
vesse este conhecimento, para tomar as medidas proprias
CONTOS ARABES 245

a não deixal-a mais largo tempo debaixo da tyrannia do


sultão de Kaschmir.
Não tinha a princeza de Bengala um largo discurso
que fazer ao principe da Persia , visto que bastava con-
tar-lhe de que modo o sultão de Kaschmir, voltando da
caça, a livrára da violencia do indio, mas que fôra cruel-
mente tratada no dia seguinte pela declaração, que elle
viera fazer-lhe , da resolução precipitada que tomára de
casar com ella no mesmo dia, sem ter tido para com el-
la a menor attenção em alcançar o seu consentimento ;
procedimento violento e tyrannico, que lhe causára um
desmaio, depois do que não tivera outro partido a se-
guir, senão o que tomou, como o melhor para conser-
var-se para o principe , a quem dera o seu coração e
sua fé, ou antes morrer do que entregar -se a um sultão
a quem não amava, e ao qual não podia amar.
O principe da Persia, à quem à princeza não tinha
na realidade outra cousa que dizer, perguntou se sabia
o que fora feito do cavallo encantado, depois da morte
do indio. « Ignoro, respondeu ella, a ordem que pode ter
dado o sultão a este respeito, mas visto o que d'elle lhe
disse, é de crêr que não se descuidasse d'elle ».
Como o principe Firouz Schah não duvidasse que o
sultão de Kaschmir fizesse guardar cuidadosamente o ca-
vallo, communicou á princeza o intento que tinha de ser-
vir-se d'elle para leval-a á Persia ; depois de assentar
com ella nos meios que deviam tomar para terem bom
exito, e não encontrarem impedimento na execução , e
particularmente que em vez de se achar em trajo casei-
ro como estava então, se vestisse no dia seguinte para
receber o sultão com decencia, quando lh'o apresentasse ,
sem obrigal a todavia a fallar-lhe.
Alegrou- se em extremo o sultão de Kaschmir, quan-
do o principe da Persia lhe deu parte do que operára
logo na primeira visita, para o adiantamento da cura da
princeza de Bengala. No dia seguinte considerou-o como
o primeiro medico do mundo , quando a princeza o rece-
beu d'um modo que lhe persuadiu , que na verdade a
sua cura estava muito adiantada, como lh'o fizera espe-
rar.
246 AS MIL E UMA NOITES

Vendo -a n'este estado, contentou-se com manifestar-


lhe o quanto se alegrava de vêl-a em disposição de re-
cuperar com brevidade a sua saude perfeita ; e depois de
a ter exhortado a concorrer com um medico tão habil,
para acabar o que tinha tão bem principiado, dando- lhe
toda a sua confiança , retirou-se sem d'ella esperar pala-
vra alguma.
O principe da Persia que acompanhára o sultão de
Kaschmir, sahiu com elle do quarto da princeza, e acom-
panhando-o, perguntou -lhe , se sem faltar ao respeito que
The era devido, podia interrogal-o por que aventura uma
princeza de Bengala se achava só no reino de Kaschmir,
tão distante do seu paiz, fingindo que o ignorava e que
a princeza não lhe tivesse dito cousa alguma a este res-
peito ; mas elle o fez para induzil-o a fallar do cavallo
encantado, e saber da sua bocca o que era feito d'elle .
O sultão de Kaschmir, que não podia penetrar por que
motivo o principe da Persia lhe fazia esta pergunta, não
The fez d'isso mysterio ; disse- lhe quasi o mesmo que el-
le soubera da princeza de Bengala, e quanto ao cavallo
encantado, que o mandára depositar no seu thesouro co-
mo uma grande raridade, ainda que ignorasse como po-
diam servir-se d'elle.
<< Senhor, replicou o fingido medico, o conhecimento
que vossa magestade acaba de dar-me, me subministra o
meio de acabar a cura da princeza . Como ella andou no
cavallo e como esse cavallo encantado contrahiu algu-
ma cousa do encantamento, que não póde dissipar- se se-
não com certos perfumes que conheço, se vossa mages-
tade quer ter esse gosto, e dar um espectaculo dos mais
maravilhosos á sua côrte e ao povo da sua capital, man-
de ámanhã trazer o cavallo ao meio da praça, diante do
palacio, e confie em mim quanto ao resto ; prometto
mostrar a vossa magestade, e a toda a assembléa, em
poucos instantes, a princeza de Bengala tão sã de espi-
rito e de corpo, como nunca na sua vida ; e para que is-
to se faça com todo o esplendor que ella merece, con-
vém que a princeza esteja vestida com a maior magnifi-
cencia que possivel fôr, e com as mais preciosas joias
que vossa magestade possa ter » .
CONTOS ARABES 247

Teria o sultão de Kaschmir feito cousas mais difficul-


tosas que as que o principe da Persia lhe propunha, pa-
ra conseguir o gozo dos seus desejos , que lhe parecia
estar muito proximo.
Foi no dia seguinte o cavallo encantado tirado do the-
souro por sua ordem, e posto ao raiar do dia na grande
praça do palacio, e espalhou-se logo o boato por toda a
cidade, que era um preparativo para alguma cousa ex-
traordinaria que devia acontecer, e de todos os bairros
concorria para alli uma multidão de gente . Foram alli
dispostas as guardas do sultão , para impedir a desordem
e para deixar um grande espaço vazio á roda do ca-
vallo.
Appareceu o sultão de Kaschmir, e depois de se ter
assentado n'um tablado, cercado dos principaes senhores
e officiaes da sua côrte, a princeza de Bengala acompa-
nhada de todas as criadas que o sultão lhe destinára,
chegou-se ao cavallo encantado, e as suas criadas a aju-
daram a montar n'elle . Segura na sella, com os pés nos
estribos e a rédea na mão, mandou o fingido medico
pôr á roda do cavallo alguns grandes brazeiros cheios de
brazas, que mandára trazer, e dando volta , em cada um
lançou perfume, composto de muitas especies de cheiros
os mais exquisitos . Depois, recolhido em si mesmo , os
olhos baixos e as mãos sobre o peito, deu tres voltas á
roda do cavallo , fingindo pronunciar certas palavras, e no
instante em que os brazeiros exhalavam juntamente uma
fumarada densa d'um cheiro suavissimo e que a prince-
za estava d'ella cercada, de modo que custava a vêl-a,
tanto a ella como ao cavallo, lançou se ligeiramente na
garupa atraz da princeza, levou a mão á cavilha da par-
tida, á qual deu volta, e quando o cavallo os arrebatava
pelos ares a elle e á princeza , pronunciou estas pala-
vras em voz tão alta e tão distinctamente , que o sultão
as ouviu Sultão de Kaschmir, quando quizeres casar
com princezas que imploraram a tua protecção, acos-
tuma-te primeiro a alcançar o seu consentimento.
D'este modo é que o principe da Persia recuperou e
livrou a princeza de Bengala, e a levou no mesmo dia,
em poucas horas á capital da Persia, onde foi apear-
248 AS MIL E UMA NOITES

se, não no palacio de recreio , mas sim no meio do palacio,


diante do quarto do rei seu pai. O rei da Persia não de-
morou a solemnidade do seu casamento com a princeza
de Bengala, senão o tempo que foi preciso para os pre-
parativos , para fazer a ceremonia mais pomposa, e que
denotasse melhor a parte que n'ella tomava.
Tendo-se completado o numero dos dias aprazados
para os regosijos, o primeiro cuidado que teve o rei da
Persia, foi nomear e mandar uma embaixada celebre ao
rei de Bengala, para dar-lhe conta de tudo o que se pas-
sava, e para pedir-lhe a approvação, e a ratificação da
alliança que acabava de contrahir com elle por este ca-
samento. Bem informado de tudo , o rei de Bengala teve
por grande honra o gosto de a conceder.

HISTORIA

DO PRINCIPE AHMED E DA FADA PARI-BANOU

Concluida a historia do cavallo encantado, principiou


a do principe Ahmed, e da Fada Pari - Banou , n'estes ter-
mos :
Senhor, um sultão, um dos predecessores de vossa
magestade , que occupava em paz o throno das Indias ha-
via já annos , tinha na sua velhice a satisfação de vêr
que tres principes seus filhos, dignos imitadores das suas
virtudes, com uma princeza sua sobrinha, faziam o or-
namento da sua côrte. O mais velho dos principes se
chamava Houssan , Ali o segundo , Ahmed o mais novo,
e Nourounnihar a princeza sua sobrinha .
A princeza Nourounnihar era filha d'um principe, ir-
mão mais moço do sultão , a quem este dera em par-
tilha umas terras de grande rendimento, mas que mor-
rera poucos annos depois de ter casado, deixando-a em
muito tenra idade . O sultão, em attenção a ter o principe
seu irmão sempre correspondido perfeitamente á amizade
fraternal que havia entre elles, com grande affecto à sua
pessoa, se encarregára da educação de sua filha, e a
mandára vir para o seu palacio, para ser educada com
CONTOS ARABES 249

os tres principes . Com uma belleza singular e com todas


as perfeiçães do corpo , que podiam tornal -a completa, ti-
nha tambem esta princeza muita capacidade, e a sua vir,
tude, sem nota, a distinguia entre todas as princezas de
seu tempo.
O sultão, tio da princeza, que determinára casal-a
logo que tivesse idade para isso , e fazer alliança com
algum principe . visinho, dando-lh'a por esposa , d'isso
cuidava seriamente, quando percebeu que os seus tres fi-
lhor a amavam apaixonadamente . Teve d'isso um gran-
de desgosto, e este desgosto não procedia tanto de im-
pedir a paixão d'elles que contrahisse a alliança que
meditára, como da difficuldade em alcançar d'elles que
se compuzessem entre si ; e que os dous mais novos con-
sentissem ao menos em cedel-a a seu irmão mais velho .
Fallou a cada um em particular ; e , depois de lhes ter
representado a impossibilidade que havia de ser uma só
princeza a esposa dos tres, e as desordens que poderiam
causar se persistissem na sua paixão , de nada se esqueceu
para persuadir-lhes, ou de estarem pela declaração que
a princeza faria a favor d'um dos tres, ou de desistirem
das suas pretensões, e cuidarem em outras nupcias , e para
isto lhe deixava a liberdade da escolha , e permittia que
ella casasse com um principe estrangeiro . Porém , como
achasse n'elles uma obstinação insuperavel, mandou-os
vir todos tres á sua presença e lhes fallou assim : « Fi-
lhos, disse elle , visto que para vosso bem, e para vosso
descanço, não pude conseguir persuadir-vos de não as-
pirardes mais a casar com a princeza minha sobrinha, e
vossa prima ; como não quero usar da minha authorida-
de, dando- a a um de preferencia aos outros, parece-me
que achei um meio proprio para contentar-vos , e para
conservar a união que deve haver entre vós, se quereis
ouvir-me, e se executaes o que vou dizer-vos . Acho pois
conveniente que vades viajar cada um separadamente,
por paizes diversos, de modo que não possaes encon-
trar- vos ; e como sabeis que sou curioso, particularmente
de tudo o que póde passar como raro e singular, pro-
metto a princeza minha sobrinha em casamento ao que
me trouxer a mais extraordinaria e a mais ci
250 AS MIL E UMA NOITES

ridade ; assim, como o acaso fará que julgareis vós mes-


mos da singularidade das cousas que trouxerdes , pela
comparação que d'ellas fizerdes , não acharei difficulda-
de em fazer - vos justiça, dando a preferencia ao que a
tiver merecido . Para os gastos da viagem e para a com-
pra da raridade , cuja acquisição tereis que fazer, dou-vos
a cada um a mesma somma, conveniente ao vosso nas-
cimento, sem todavia empregal-a em despezas de comi-
tiva e de trem, que dando - vos a conhecer pelo que sois,
vos privaria da liberdade de que precisaes, não só para
desempenhar-vos bem do fim a que deveis propôr- vos,
mas ainda para melhor observardes as cousas que mere-
cerem a vossa attenção , e finalmente para tirar maior
vantagem da vossa viagem » .
Como foram sempre os tres principes muito obedien-
tes ás vontades do sultão seu pai, e como cada um pela
sua parte imaginava que a fortuna lhe seria favoravel,
e lhe subministraria o meio de conseguir a posse de
Nourounnihar , disseram-lhe que estavam promptos a obe-
decer. Sem demorar-se, mandou-lhes dar o sultão a som-
ma que acabava de prometter-lhes, e logo no mesmo
dia deram as ordens para os preparativos da sua via-
gem ; despediram -se do sultão , para estarem promptos a
partir no dia seguinte pela manhã cedo . Sahiram pela
mesma porta da cidade, bem montados e bem equipa-
dos, vestidos como mercadores, cada um com um official
de confiança, disfarçado em escravo, e foram parar jun-
tos a um sitio, onde o caminho se dividia em tres, re-
solvidos a seguir a sua viagem cada um para seu lado . De
tarde regalando -se com uma merenda que mandaram pre-
parar, combinaram que a sua viagem seria d'um anno, e
convieram que se reuniriam no mesmo.sitio, com a con-
dição de que o primeiro que chegasse esperaria os ou-
tros dous, e os dous o terceiro, para que , como se tinham
despedido do sultão seu pai todos tres juntos, se lhe
apresentassem do mesmo modo quando chegassem . No
dia seguinte, ao apontar da aurora, depois de se terem
abraçado e desejado uma viagem feliz, montaram a ca-
vallo, e cada um tomou um dos tres caminhos .
mais velho dos tres irmãos,
CONTOS ARABES 251

que ouvira dizer maravilhas da grandeza, das forças ,


das riquezas e do esplendor do reino de Bisnagar, to-
mou o seu caminho para a parte do mar das Indias, e
depois d'uma jornada de quasi tres mezes, unindo -se a
diversas caravanas, ora por desertos e por montanhas

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estereis, e ora por paizes povoadissimos , muito bem cul-


tivados e os mais ferteis que houvesse em parte alguma
da terra, chegou a Bisnagar, cidade que dá o nome a
todo o reino, e é a capital d'elle e a residencia ordina-
ria dos seus reis . Alojou -se n'um Khan, destinado para os
252 AS MIL E UMA NOITES

mercadores estrangeiros, e como soubesse que havia qua-


tro bairros principaes, onde os mercadores de todas as
castas de fazendas tinham as suas lojas, no meio dos
quaes estava situado o castello, ou, para melhor dizer, o
palacio dos reis , o qual occupava um terreno vastissimo,
como no centro da cidade , que tinha tres recintos e duas
leguas em circumferencia, logo no dia seguinte foi ter
a um d'estes bairros .
O principe Houssan não pôde vêr sem admiração o
bairro onde se encontrou : era vasto, cortado e atravessado
por muitas ruas, todas abobadadas contra o ardor do sol,
e todavia com bastante claridade . As lojas eram da mes-
ma grandeza e da mesma symetria, e as dos mercado-
res das mesmas qualidades de fazenda , não estavam dis-
persas, mas juntas na mesma rua, e o mesmo succedia
com as lojas dos artistas.
A multidão das lojas, cheias das mesmas qualidades"
de fazenda, como panos os mais finos , de diversos lugares
das Indias, panos pintados com as cores mais vivas , que
representavam ao natural personagens, paizagens, arvo-
res, flôres ; estofos de séda, e de brocado, tanto da Per-
sia, como da China, e de outros paizes ; porcelanas do
Japão e da China ; tapetes de todas as grandezas ; tudo
isto lhe causou uma admiração tão extraordinaria, que
não sabia se devia fiar-se nos seus proprios olhos . Po-
rém chegando ás lojas dos ourives e dos lapidarios
(pois ambas estas profissões eram exercidas pelos mes-
mos mercadores) ficou como arrebatado á vista da quan-
tidade prodigiosa de excellentes obras d'ouro e prata, e
como offuscado pelo brilho das perolas, dos diamantes,
dos rubins, das esmeraldas, das saphiras, e de outras
pedras preciosas , que alli estavam expostas á venda, e em
confusão. Se se admirou de vér tantas riquezas reu-
nidas n'um lugar só, admirou-se ainda mais quando
julgou da riqueza do reino em geral, considerando , que
á excepção dos bramanes , e dos ministros dos idolos,
que faziam profissão d'uma vida retirada da vaidade do
mundo, não havia em toda a sua extensão , nem indio,
nem india, que não tivesse collares, braceletes e orna-
mentos nos pés e pernas, de perolas , ou de pedrarias,
CONTOS ARABES 253

que tanto mais sobresahiam , quanto todos eram de uma


côr tão preta, que realçava perfeitamente o brilho d'el-
las.
Outra particularidade que foi admirada pelo princi-
pe Houssan, foi grande numero de vendedores de rosas
que atulhavam as ruas em razão da sua multidão . Per-
cebeu que os indios deviam ser apaixonadissimos d'esta
flôr, visto que não havia um sequer que não trouxesse
um ramilhete na mão ou na cabeça em forma de gri-
nalda, nem mercador que não tivesse alguns vasos d'el-
las na sua loja ; de modo que o bairro, grande como era,
estava todo embalsamado d'ellas .
Finalmente, o principe Houssan, depois de ter corrido
o bairro de rua em rua, com a idéa cheia de tantas ri-
quezas que se apresentavam a seus olhos, teve precisão
de descançar. Communicou-o a um mercador, o qual mui
-cortezmente o convidou a entrar, e a assentar-se na sua
loja, o que elle aceitou . Não havia muito tempo que es-
tava assentado na loja, quando viu passar um pregoei-
ro com um tapete no braço , de cousa de seis pés qua-
drados, que o apregoava a trinta bolsas ; chamou o pre-
goeiro e pediu para ver o tapete, que lhe pareceu d'um
preço exorbitante, não só pela sua pequenez , mas tam-
bem pela sua qualidade . Tendo examinado bem o tapete,
disse ao pregoeiro que não entendia como um tapete tão
pequeno, e de tão pouca apparencia, estava avaliado em
tão alto preço .
O pregoeiro, que tomava o principe Houssan por um
mercador, lhe disse em resposta : « Senhor, se vos pare-
ce excessivo este preço , muito maior será o vosso pasmo
quando souberdes que tenho ordem de fazel-o subir até
quarenta bolsas, e de não o largar senão ao que der es-
ta somma. — Deve pois, replicou o principe Houssan, ser
precioso por alguma qualidade que não conheço . - Adi-
vinhastes, senhor, replicou o pregoeiro, e n'isso convi-
reis quando souberdes que assentando -se n'este tapete al-
guma pessoa, é immediatamente arrebatada com o tape-
te aonde deseja ir, e lá se acha quasi n'um instante , sem
que a estorve obstaculo algum » >.
Fez o pregoeiro com este discurso que o principe das
254 AS MIL E UMA NOITES

Indias , considerando que o motivo principal da sua via-


gem era levar ao sultão seu pai alguma raridade singu-
lar , da qual não se tivesse ouvido fallar, julgasse que não
podia adquirir outra que devesse satisfazer mais o sul-
tão. «Se o tapete, disse ao pregoeiro, tivesse a virtude
que tu lhe dás, não só não o acharia muito caro pelas
quarenta bolsas que pedes, mas talvez me resolvesse a
compral-o por esse preço , e além d'isso far-te-hia um pre-
sente que poderia contentar- te . - Senhor , replicou o pre-
goeiro, eu disse- vos a verdade, e ser-me- hia facil con-
vencer- vos, logo que o tivesseis ajustado por quarenta
bolsas , debaixo da condição que faria a experiencia na
vossa presença ; mas como não tendes aqui as quarenta
bolsas, e seria preciso para recebel - as que vos acompa-
nhasse ao Khan, onde deveis estar alojado, como estran-
geiro, com a licença do dono da loja , entraremos dentro,
estenderei o tapete , e quando n'elle estivermos assenta-
dos, vós e eu, e quando tiverdes formado o desejo de
ser transportado commigo ao quarto que tomastes no
Khan, se a elle não formos logo transportados, não se
dará por feita a compra , e não ficareis obrigado a cou-
sa alguma. Quanto ao presente, como pertence ao ven-
dedor recompensar-me do meu trabalho, recebel-o - hei
como um favor que de boa vontade quizestes fazer-me,
cuja obrigação vos deverei » .
Fiado na boa fé do pregoeiro , o principe aceitou o
partido . Concluiu o ajuste com a condição proposta, de-
pois do que entrou no fundo da loja do mercador, de-
pois de ter alcançado a licença d'elle . Estendeu o pre-
goeiro o tapete , assentaram-se ambos , e logo o principe
formou o desejo de ser transportado ao seu quarto no
Khan, e lá se achou com o pregoeiro na mesma situação.
Como não tivesse precisão d'outra certidão da virtude do
tapete, deu ao pregoeiro a somma das quarenta bolsas
em ouro, e mais um presente de vinte moedas d'ouro,
com que gratificou o pregoeiro .
Assim, veio o principe Houssan a possuir o tapete
com summa alegria de ter adquirido à sua chegada a
Bisnagar uma peça tão rara , que devia, como não duvi-
dava, valer-lhe a posse de Nourounnihar. Com effeito,
CONTOS ARABES 255

tinha como cousa impossivel que os principes, seus ir-


mãos mais novos, trouxessem da sua viagem alguma cou-
sa que se pudesse comparar com o que encontrára tão
felizmente . Sem demorar-se mais tempo em Bisnagar ,
podia, assentando -se no tapete, ir ter no mesmo dia ȧ pa-
ragem aprazada, mas seria obrigado a esperal-os muito
tempo. Isto fez com que, curioso de vêr o rei de Bisna-
gar e a sua côrte, e de tomar conhecimento das forças,
das leis, dos costumes, da religião e do estado de todo
o reino, resolvesse empregar alguns mezes em satisfazer
a sua curiosidade .
O costume do rei de Bisnagar era admittir á sua pre-
sença, uma vez cada semana, os mercadores estrangeiros.
Com este titulo foi que o principe Houssan , que não que-
ria passar pelo que era, o viu algumas vezes ; e como
este principe , que além de ser muito bem apessoado, ti-
nha muita capacidade, e como fosse em extremo cortez ,
distinguia-se por isso dos mercadores, com os quaes ap-
parecia na presença do rei ; a elle , de preferencia aos
mercadores, é que dirigia a palavra para informar- se da
pessoa do sultão das Indias, das forças, das riquezas e
do governo do seu imperio .
Nos outros dias o principe se empregava a ver o que
havia de mais notavel na cidade e nos arredores . Entre
outras cousas dignas de serem admiradas , viu um tem-
plo de idolos, cuja estructura era especial, por ser toda
de bronze ; tinha dez covados em quadro no seu assento ,
e quinze em altura, e o que fazia a sua maior belleza, era
um idolo d'ouro maciço, da altura d'um homem , cujos
olhos eram dous rubins, collocados com tanta arte, que
parecia, aos que olhavam para elle, que tinha os olhos
fitos n'elles, de qualquer lado que olhassem. Viu outro
que não era menos digno de admiração . Estava n'uma al-
dea onde havia uma planicie , a qual não era senão um
jardim delicioso, semeado de rosas, e d'outras flôres agra-
daveis á vista ; e todo este espaço era cercado por um
pequeno muro, para impedir que os animaes entrassem
n'elle. No meio da planicie levantava-se um terrado da
altura d'um homem, revestido com pedras, juntas com
tanta arte e industria, que parecia uma só pedra. O
256 AS MIL E UMA NOITES

templo, que acabava em zimborio, estava assentado no


meio do terrado , da altura de cincoenta covados , o que
fazia com que o descobrissem de algumas leguas em ro-
da. O comprimento era de trinta, e de vinte a largura,
e o marmore vermelho com que era construido, era em
extremo polido . A abobada do zimborio estava adornada
com tres ordens de pinturas muito vivas, e de bom gos-
to, e o templo todo estava geralmente cheio de tantas
outras pinturas, de figuras de baixo -relevo e de idolos,
que não havia lugar algum onde não as houvesse de ci-
ma até baixo .
De tarde e de manhã faziam-se ceremonias supersti-
ciosas n'este templo, ás quaes se seguiam jogos, concer-
tos, danças, cantos e festins. Os ministros do templo e os
habitantes do lugar não vivem senão das offertas que os
romeiros em grande numero trazem dos paizes mais re-
motos do reino, para cumprir as suas promessas .
Foi ainda o principe Houssan espectador d'uma festa
solemne, que se celebra todos os annos na côrte de Bis-
nagar, á qual os governadores das provincias, os com-
mandantes das praças fortificadas , os governadores e jui-
zes das cidades, e os bramanes mais celebres pela sua
doutrina, são obrigados a concorrer, e ha alguns de tão
longe, que não gastam menos de quatro mezes na via-
gem. A assembléa, composta d'uma multidão innumera-
vel de indios, faz-se n'uma planicie de vasta extensão,
que offerece um espectaculo maravilhoso á vista. No
centro d'esta planicie havia uma praça de grande com-
primento e largura, fechada d'um lado por um edificio
soberbo, em forma de andaime de nove andares, sus-
tido por quarenta columnas, e destinado para o rei, para
a sua côrte, e para os estrangeiros a quem honrava com
a sua audiencia, uma vez na semana. O interior estava
ornado e mobilado magnificamente, e no exterior com
pinturas de paizagens, onde se viam todas as especies
de animaes, de passaros , de insectos e até de moscas
e mosquitos, tudo ao natural, e outros andaimes, da al-
tura pelo menos de quatro ou cinco andares, e pintados
quasi todos do mesmo modo, formavam os outros tres
lados. Estes andaimes tinham a particularidade de se vol-
CONTOS ARABES 257

tar e mudar de face, e de decoração de hora em hora.


De cada lado da praça , a pouca distancia uns dos ou-
tros , estavam ordenados em fileira mil elephantes, com
jaezes de grande sumptuosidade, carregados cada um
com uma torre quadrada de madeira dourada, com toca-
dores de instrumentos ou farçantes em cada torre . A
tromba d'estes elephantes , as orelhas e o resto do corpo
estavam pintados de varias côres , que representavam fi-
guras grotescas .
Em todo este espectaculo, que fez admirar ao prin-
cipe Houssan a industria, a habilidade e o genio inven-
tor dos indios, sobresahia um elephante, o mais pos-
sante e o maior, com os quatro pés postos sobre a
extremidade d'um madeiro pregado perpendicularmente ,
e elevado da terra cousa de dous pés, que se movia, ba-
tendo o compasso com a tromba ao som dos instrumentos.
Não admirou menos outro elephante, não menos possan-
te, no cabo d'uma trave posta de través sobre uma es-
taca, na altura de dez pés , com uma pedra d'um tama-
nho prodigioso, atada e suspensa no outro cabo , que
The servia de contrapeso, por cujo meio ora para cima,
ora para baixo, na presença do rei e da sua côrte, mos-
trava pelos movimentos do seu corpo e da sua tromba,
o compasso dos instrumentos, do mesmo modo que o
outro elephante . Os indios , depois de ter atado a pedra
de contrapeso, tinham puxado o outro cabo até ao chão ,
á força, e n'elle fizeram subir o elephante .
Pudera o principe Houssan fazer mais longa residen-
cia na côrte e no reino de Bisnagar ; uma infinidade d'ou-
tras maravilhas poderiam divertil- o agradavelmente, até
ao ultimo dia do anno, combinado entre elle e seus
irmãos para se ajuntarem . Mas completamente satisfeito
do que vira, como estivesse continuamente occupado
com o objecto do seu amor, e como depois da acqusição
que fizera, a belleza e os encantos da princeza Nouroun-
nihar augmentavam de dia em dia a violencia da sua
paixão, pareceu-lhe que teria o espirito mais socegado ,
e que estaria mais proxima a sua dita , quando se apro-
ximasse d'ella . Depois de ter pago ao porteiro do Khan
o aluguer do quarto que occupava, e ter-lhe dito a hora
TOMO IV . 17
258 AS MIL E UMA NOITES

em que poderia vir buscar a chave, que deixaria na


porta , sem ter-lhe dado a conhecer de que modo parti-
ria, entrou n'elle, fechando a porta sobre si, e deixando
n'ella a chave . Estendeu o tapete, e assentou-se n'elle
com o official que comsigo trouxera . Depois de ter de-
sejado seriamente ser transportado á paragem, onde os
principes seus irmãos deviam ir ter com elle, percebeu
logo que lá tinha chegado . Parou ahi, e dando-se a co-
nhecer por um mercador, esperou-os .
O principe Ali , segundo irmão do principe Houssan,
que projectára viajar pela Persia, para conformar-se com
a vontade do sultão das Indias, tomou o caminho da Per-
sia com uma caravana, á qual se ajuntára no terceiro
dia, depois de ter-se separado dos dous principes seus ir-
mãos . Depois de ter andado perto de quatro mezes , che-
gou finalmente a Schiraz , que era então a capital do
reino da Persia . Como travasse conhecimento e socieda-
de na jornada com um pequeno numero de mercadores,
dando-se somente a conhecer por um mercador lapidario,
tomou alojamento com elles no mesmo Khan .
No dia seguinte, em quanto os mercadores abriam
os seus fardos de fazendas, o principe Ali, que só via-
java para seu divertimento, e que não se encarregára
senão das cousas necessarias para o fazer commodamen-
te, depois de ter mudado de vestido , fez -se conduzir ao
bairro onde se vendiam as pedrarias, as obras d'ouro
e prata, brocados, estofos de séda, panos finos , e as
outras fazendas raras e preciosas . Este lugar, espaçoso
e construido solidamente, era abobadado, e a abobada
estava sustida por grossos pilares, á roda dos quaes es-
tavam as lojas, dispostas do mesmo modo que ao longo
das paredes, tanto por dentro, como por fóra, e era
commummente conhecido em Schiraz pelo nome de Be-
zestein. Correu logo o principe Ali o Bezestein por to-
dos os lados, e julgou com admiração das riquezas que
alli estavam encerradas, pela quantidade prodigiosa das
fazendas as mais preciosas que viu expostas á venda.
Por entre todos os pregoeiros que iam e vinham , carre-
gados de diversas amostras de fazendas , apregoando-as,
não se admirou pouco de vêr um que segurava na mão
CONTOS ARABES
259
um canudo de marfim , tendo quasi um pé de compri-
do , e pouco mais d'uma pollegada de grossura , que
apregoava por trinta bolsas . Imaginou logo que o pre-
goeiro não estava em seu juizo perfeito . Para averiguar,
chegou-se á loja d'um mercador : « Senhor, disse ao
mercador, mostrando- lhe o pregoeiro, fazei-me o favor
de dizer-me se me engano ; este homem que apregoa
um pequeno canudo de marfim por trinta bolsas , está
em seu juizo ? -Senhor, respondeu o mercador, a não
tél - o perdido desde hontem , posso assegurar-vos que é
o mais cordato de todos os nossos pregoeiros, e o mais
procurado , como em quem todos tem mais confiança,
quando se trata da venda de alguma cousa de grande
valor ; e quanto ao canudo que apregoa por trinta bol-
sas, deve -as valer , e ainda mais , por alguma causa que
não sabemos . Em breve tornará a passar ; chamal- o-
hemos, e d'isso vos informareis vós mesmo ; assentai-
vos todavia no meu sophá e descançai » .
Não recusou o principe Ali o offerecimento officioso
do mercador , e passado pouco tempo depois de ter-se
assentado , tornou a passar o pregoeiro ; como o merca-
dor o chamasse pelo seu nome , chegou -se . Então , mos-
trando-lhe o principe Ali , disse lhe : « Respondei a este
senhor , que pergunta se estaes em
juizo , por apregoardes por trinta bolsas Vos canper
umso udofeide
to
marfim, que parece de tão pouco valor . Admirar - me -hia
d'isso eu mesmo, se não soubesse que sois um homem
cordato » . Dirigindo -se o pregoeiro ao principe Ali , lhe
disse : «Senhor , não sois o unico que me trata de lou-
co, quanto ao canudo , mas julgareis vós mesmo se eu
o sou quando vos tiver informado da propriedade d'el-
le ; espero que então dareis o vosso lanço, assim como
aquelles a quem já o mostrei, os quaes faziam tão mau
conceito de mim como vós . Em primeiro lugar observai
que este canudo está guarnecido d'um vidro em cada
extremidade, e considerai que olhando por um d'elles,
qualquer cousa que se possa desejar vêr , vê-se logo .
Estou prompto a dar-vos o que pedis , replicou o princi-
pe Ali, se me derdes a conhecer a verdade do que di-
zeis ». Como tivesse o canudo na mão
AS MIL E UMA NOITES
260
observado ambos os vidros : « Mostrai-me, continuou el-
le , por onde se deve olhar, para que possa fazer o meu
juizo » . O pregoeiro mostrou-lh'o . O principe olhou , e
desejando ver o sultão das Indias seu pai , o viu com
perfeita saude , assentado no seu throno , no meio do seu

༩ ༣ང་

conselho ; como depois do sultão não tinha no mundo


cousa que mais estimasse que a princeza Nourounnihar,
desejou vêl-a, e a viu assentada ao seu toucador, cerca-
da das suas criadas, risonha , e de humor alegre .
Não precisou o principe Ali d'outra prova, para per-
suadir-se que este canudo era a cousa mais preciosa
que havia, não só na cidade de Schiraz , mas ainda em
CONTOS ARABES 261

todo o universo ; e pareceu-lhe que se se descuidasse de


compral- o , jamais encontraria uma raridade igual na
sua viagem, nem em Schiraz , ainda que se demorasse
dez annos, nem n'outra parte. Disse ao pregoeiro : « Eu
desdigo-me do conceito desarrazoavel que fiz do vosso
pouco bom senso, mas creio que ficareis inteiramente sa-
tisfeito com a reparação , que estou prompto a dar-vos ,
comprando o canudo. Como sentiria que outro que não
fosse eu o possuisse , dizei -me o justo preço que quer
por elle o vendedor, sem dar-vos o trabalho de apre-
goal- o mais, e de cançar-vos a ir e vir ; bastar - vos -ha
vir commigo, eu vos darei a somma que elle pretende » .
Assegurou-lhe o pregoeiro, debaixo de juramento, que ti-
nha ordem de não o dar por menos de quarenta bolsas,
e que se d'isso duvidasse, estava prompto a conduzil- o
ao mesmo vendedor. O principe indio deu credito á sua
palavra ; levou-o comsigo, e chegados que foram ao
Khan, onde estava alojado, deu-lhe as quarenta bolsas,
em bella moeda de ouro, e assim ficou possuidor do
canudo de marfim .
Tendo o principe Ali feito esta acquisição, foi tanto
maior a alegria que teve, quanto os principes seus ir-
mãos, como estava persuadido, não teriam achado cousa
tão rara, nem tão digna de admiração, e que assim a
princeza Nourounnihar seria a recompensa das fadigas
da sua viagem. Não cuidou n'outra cousa senão em to-
mar conhecimento da côrte da Persia, sem dar- se a co-
nhecer, e em ver o que havia de mais curioso em Schi-
raz e nos arredores, esperando que a caravana, com que
viera das Indias, voltasse para lá . Tinha acabado de sa-
tisfazer a sua curiosidade, quando a caravana se achou
prestes a partir. Não faltou o principe a juntar-se a el-
la, e metteu-se a caminho . Nenhum incidente perturbou ,
nem interrompeu a marcha ; e sem outro incommodo
mais que a extensão ordinaria das jornadas, e a fadiga
da viagem, chegou felizmente ao lugar aprazado , onde
o principe Houssan tinha já chegado . O principe Ali o.
encontrou e ficou com elle esperando o principe Ahmed .
Tinha o principe Ahmed tomado o caminho de Sa-
marcanda, e como desde o dia seguinte á sua chegada
262 AS MIL E UMA NOITES

imitasse ambos os principes seus irmãos, e fosse ter ao


Bezestein, apenas entrára n'elle, logo se lhe apresentou
um pregoeiro com uma maçã artificial na mão, que
apregoava por trinta e cinco bolsas ; fez parar o pre-
goeiro, dizendo-lhe : « Mostrai-me essa maçã, e informai-
me da virtude, ou da propriedade tão extraordinaria,
que póde ter, para ser apregoada por tão alto preço » .
Pondo-lh'a na mão para que a examinasse : < « Senhor,
disse-lhe o pregoeiro , esta maçã, a não examinal -a se-
não pelo exterior, é na verdade pouca cousa, mas se
se consideram as propriedades, as virtudes e o uso
admiravel que d'ella se pode fazer para o proveito dos
homens, dir-se -ha que não tem preço, e é certo que
quem a comprar, possuirá um thesouro. Com effeito ,
não ha doente accommettido de molestia alguma mortal ,
qualquer que seja, como febre continua, febre vermelha,
pleuriz, peste e outras molestias d'esta natureza, ainda
que esteja já moribundo , que ella não cure, e ao qual
não faça logo recobrar a saude , tão perfeita como se
nunca na sua vida tivesse estado doente. Isto se opé-
ra pelo meio mais facil, visto que consiste principal-
mente em fazel-a cheirar á pessoa. Se é verdade o
que dizeis, replicou o principe Ahmed, eis-ahi uma
maçã d'uma virtude maravilhosa, e póde dizer- se que
não tem preço ; mas em que se poderia fundar um ho-
mem honrado, como eu, que tivesse vontade de com-
pral-a, para persuadir-se que não ha engano, nem exa-
geração no elogio que d'ella fazeis ? -Senhor, replicou
o pregoeiro, o que eu digo é sabido, e tem-se verifi-
cado em toda a cidade de Samarcanda ; e sem ir mais
longe, perguntai a todos os mercadores que estão alli
juntos, e vereis o que vos dizem ; achareis alguns que
não estariam com vida hoje, como vol-o declararão el-
les mesmos, se não se tivessem servido d'este excel
lente remedio . Para melhor dar-vos a conhecer, dir-vos-
hei que esta maçã é o fructo do estudo e das vigilias
de um philosopho muito celebre d'esta cidade , que se
applicou toda a sua vida ao conhecimento da virtude
das plantas e dos mineraes, e que conseguiu finalmente
fazer a composição que estaes vendo, com a qual fez
CONTOS ARABES 263

n'esta cidade curas tão maravilhosas , que nunca a sua


memoria será n'ella esquecida . Uma morte tão repenti-
na, que não lhe deu tempo de usar elle mesmo do seu
remedio soberano , o levou d'esta vida ha pouco tempo ,
e a sua viuva, que deixou com muito pouco cabedal, é
carregada de grande numero de filhos em tenra idade ,
resolveu-se finalmente a pôl -a á venda, para poder vi-
ver mais a seu commodo, ella e a sua familia » .
Em quanto o pregoeiro informava o principe Ahmed
das virtudes da maçã artificial, pararam algumas pes-
soas, e o cercaram , a maior parte das quaes confirma-
ram todo o bem que d'ella dizia ; e como um d'elles de-
clarasse que tinha um amigo doente , tão perigosamente
que não esperavam já vél-o restabelecido , e como era a
occasião presente favoravel para mostrar a experiencia
d'ella , fallou o principe Ahmed, e disse ao pregoeiro
que daria por ella quarenta bolsas , se ella curasse o
doente, fazendo-lh'a cheirar.
O pregoeiro, que tinha ordem de vendel-a por este
preço : « Senhor, disse ao principe Ahmed, vamos fazer
essa experiencia ; a maçã é vossa, e digo-o com tanta
confiança, porque com certeza não fará menos effei-
to do que todas as mais vezes que foi empregada para
salvar da morte tantos doentes , de cuja vida se desespe-
rava ».
Succedeu como dizia o pregoeiro, e o principe , depois
de lhe ter dado as quarenta bolsas, recebeu a maçã ar-
tificial, e esperou com impaciencia a partida da primeira
caravana para voltar ás Indias . Empregou este tempo a
observar em Samarcanda e nos arredores tudo o que era
digno da sua curiosidade, e principalmente o valle do
Soyde, assim chamado do rio do mesmo nome , que o
rega, e que os arabes reconhecem por um dos quatro
paraisos do universo , pela belleza de seus campos e de
seus jardins , cheios de palacios, pela sua fertilidade em
todas as especies de frutas , e delicias que alli se gozam
na bella estação do estio .
Finalmente não perdeu o principe Ahmed occasião da
primeira caravana que tomou o caminho das Indias ; par-
tin ão bstante os incomm
264 AS MIL E UMA NOITES

ga viagem, chegou com perfeita saude ao sitio onde o es-


peravam os principes Houssan e Ali .
O principe Ali , chegando algum tempo antes do prin-
cipe Ahmed, perguntou ao principe Houssan, que viera
primeiro, quanto tempo havia que tinha chegado. Como
soubesse d'elle que havia perto de tres mezes : « Deveis
pois, replicou elle , não ter ido muito longe. - Nada vos
direi presentemente, replicou o principe Houssan, do lu-
gar aonde fui, mas posso assegurar-vos que gastei mais
de tres mezes para chegar lá. -Se isso assim é, repli-
cou o principe Ali , deveis ter-vos lá demorado muito
pouco tempo . - Irmão , disse- lhe o principe Houssan, es-
taes enganado ; a demora que alli tive foi de quatro pa-
ra cinco mezes, e não dependeu senão de mim o demo-
rar-me mais tempo . -A não terdes voltado voando, tor-
nou a replicar o principe, não percebo como pode haver
tres mezes que estaes de volta, como quereis persuadir-
m'o. Disse-vos a verdade, acrescentou o principe Hous-
san, e é um enigma cuja explicação não vos darei senão
á chegada do principe Ahmed, nosso irmão, declarando
ao mesmo tempo qual é a raridade que alcancei na mi-
nha viagem. Quanto a vós não sei o que trazeis, deve
ser cousa bem pouca . Com effeito , não vejo que vossas
cargas estejam augmentadas . « E vós , principe, replicou
o principe Ali , á excepção d'um tapete de pouca impor-
tancia, que guarnece o vosso sophá , e cuja acquisição de-
veis ter feito, parece que poderia responder-vos tambem
zombando. Mas como parece que quereis fazer um mys-
terio da raridade que trouxestes, tomareis a bem que
use do mesmo modo a respeito da que adquiri » .
O principe Houssan replicou : « Tenho a raridade que
trouxe por tão superior a qualquer outra, que não poria
difficuldade de vol- a mostrar e de fazer-vos convir n'is-
so, declarando-vos qual é a sua virtude, sem recear que
a que trazeis, como supponho, possa ser-lhe preferida.
Porém convém esperar que chegue o principe Ahmed,
nosso irmão. Então poderemos dar-nos parabens com mais
attenção e cortezia uns aos outros, da boa fortuna que
tivemos >>.
Não quiz o principe Ali continuar a contestar com o
CONTOS ARABES
265
principe Houssan sobre a preferencia que dava á rarida-
de que trouxera . Contentou -se em ficar na persuasão que
se o canudo que tinha para mostrar- lhe não devesse ter
a preferencia, pelo menos não era possivel que fosse in-
ferior , e conveio com elle em esperar para apresental -o,
logo que chegasse o principe Ahmed .
Tendo se reunido o principe Ahmed com os principes
seus irmãos, tendo-se abraçado com muita ternura e da-
do os parabens da felicidade que tinham de tornar-se a
ver no mesmo lugar onde se tinham separado , o prin-
cipe Houssan, como primogenito , foi o primeiro que rom-
peu o silencio, dizendo : « Irmãos , teremos tempo de so-
bejo para entreter- nos das particularidades da nossa via-
gem ; fallemos do que mais nos importa saber ; e como
tenho por certo que vos lembrastes , como eu , do princi-
pal motivo que nos obrigou a ella, não occultemos o que
trazemos , mostrando- nol -o, façamo'-nos justiça de ante-
mão e vejamos a quem o sultão nosso pai poderá dar a
preferencia . Para dar exemplo , continuou o principe Hous-
san, dir - vos-hei que a raridade que trouxe da viagem que
fiz ao reino de Bisnagar , é o tapete em que estou assen-
tado ; é ordinario e não promette muito , como estaes ven-
do , mas quando vos tiver declarado qual é a sua virtu-
de, admirar-vos - heis tanto mais, quanto nunca ouvistes
cousa igual, e n'isso convireis ; com effeito, tal como pa-
rece , se alguem está n'elle assentado, assim como nós,
e que deseje ser transportado a qualquer lugar, por mais
remoto que possa ser, acha-se n'esse lugar quasi no mes-
mo instante . Fiz a experiencia antes de dar as quarenta
bolsas que me custou, sem as chorar ; depois de satisfa-
zer inteiramente a minha curiosidade na côrte e no reino
de Bisnagar, e querendo voltar , não me servi d'outra
cavalgadura senão d'este tapete maravilhoso para trans-
portar-nos aqui, eu e o meu criado ; elle póde dizer- vos
quanto tempo gastei para esse fim . Mostrar- vos - hei a ex-
periencia tanto a um como a outro , quando quizerdes .
Espero que me informeis se o que trazeis póde compa-
rar- se ao meu tapete » .
Acabou o principe Houssan n'esta passagem de exal-
tar a excellencia do seu tanet
266 AS MIL E UMA NOITES

piando a fallar, dirigiu-lhe a palavra n'estes termos : <


« Ir-
mão, deve -se confessar que o vosso tapete é uma das
cousas mais maravilhosas que imaginar-se possa , se tem,
do que não quero duvidar, a propriedade que acabaes de
dizer-nos . Porém confessareis que pode haver outras cou-
sas, não digo mais, mas ao menos tão maravilhosas n'ou-
tro genero ; e para convencer-vos d'isso , continuou elle,
o canudo de marfim que aqui está, assim como o vosso
tapete , não parecem raridades que mereçam grande at-
tenção . Não paguei todavia por elle menos do que vós
pelo vosso tapete, e não estou menos satisfeito da minha
compra do que vós da vossa . Visto que sois razoavel,
convireis que não fui enganado quando souberdes e ti-
verdes experimentado que olhando por uma das extremi-
dades se vê qualquer objecto que se deseja vêr . Não
quero que vos fieis na minha palavra, acrescentou o prin-
cipe Ali ; eis-aqui o canudo ; vêde se vos engano ».
Pegou o principe Houssan no canudo de marfim ; e
como tivesse chegado o olho á extremidade que o prin-
cipe Ali lhe indicára, apresentando -lh'o, com a intenção de
ver a princeza Nourounnihar e de saber como ella pas-
sava, o principe Ahmed , que tinha os olhos fitos n'el-
le , admirou-se em extremo por vêl- o de repente mu-
dar de semblante, de um modo que indicava uma sur-
preza extraordinaria, acompanhada d'uma grande afflicção .
O principe Houssan não lhe deu tempo de lhe perguntar
o motivo d'isto : « Principes, clamou elle, debalde empre-
hendemos , vós e eu , uma viagem tão penosa, na espe-
rança de sermos recompensados com a posse da bella
Nourounnihar ; d'aqui a poucos instantes não estará já
com vida esta amavel princeza ; acabo de vêl -a no seu
leito, cercada das suas criadas e dos seus eunucos, que
estão chorando e que parecem não esperar outra cousa
senão vêl - a dar o ultimo suspiro . Ahi a tendes, vêde-a
vós mesmo n'este lamentavel estado, e ajuntai as vossas
ás minhas lagrimas ».
Recebeu o principe Ali o canudo de marfim da mão
do principe Houssan ; olhou , e depois de ter visto o mes-
mo objecto, com desgosto muito sensivel, apresentou-o
ao principe Ahmed para que visse tambem um especta-
CONTOS ARABES 267

culo tão triste e tão doloroso, que devia interessal- os a


todos igualmente .
Tendo o principe Ahmed recebido o canudo de mar-
fim das mãos do principe Ali, olhou, e vendo a princeza
Nourounnihar tão proxima ao fim de seus dias, principiou
a fallar, e dirigindo-se aos dous principes, disse elle : « A
princeza Nourounnihar, que é igualmente o objecto de
nossos votos, está com effeito n'um estado muito pro-
ximo da morte, mas pelo que me parece, comtanto que
não percamos tempo, ha ainda esperança de preserval- a
d'esse momento fatal » .
Então o principe Ahmed tirou do seio a maçã artifi-
cial que adquirira, e mostrando- a aos principes seus ir-
mãos, lhes disse : « A maçã que estaes vendo não me cus-
tou menos que o tapete e o canudo de marfim , que trou-
xestes cada um da vossa viagem. A occasião que se offe-
rece de patentear-vos a virtude maravilhosa d'ella , faz
com que não chore as quarenta bolsas que por ella dei .
Para não vos deixar na incerteza, tem a virtude de fa-
zer recobrar a saude a qualquer doente , ainda que este-
ja na agonia : a experiencia que d'ella fiz me impede .
Posso mostrar-vos o effeito a vós mesmos na pessoa da
princeza Nourounnihar, se fizermos o que devemos pa-
ra soccorrel-a . - Se assim é, replicou o principe Hous-
san, não podemos fazer maior diligencia do que trans-
portarmo-nos no mesmo instante ao quarto da princeza,
pela virtude do meu tapete . Não percamos tempo ; che-
gai- vos e assentai-vos como eu ; é assás grande para
cabermos todos tres sem molestar-nos, mas primeiro que
tudo , demos ordem, cada um a seu criado, de partir jun-
tos immediatamente, e de ir ter comnosco ao palacio » .
Dada esta ordem, o principe Ali e o principe Ahmed
se assentaram no tapete com o principe Houssan, e co-
mo tivessem todos tres o mesmo interesse, formaram
o mesmo desejo de ser transportados ao quarto da prin-
ceza Nourounnihar. Foi o seu desejo executado, e foram
transportados tão apressadamente, que não se apercebe-
ram de ter chegado ao lugar onde desejavam ir, e de
modo nenhum de terem partido do que acabavam de
deixar.
268 AS MIL E UMA NOITES

A presença dos tres principes , tão inesperada , assus-


tou as mulheres e os eunucos da princeza , que não en-
tendiam por que encanto tres homens se achavam no
meio d'ellas . Não os conheceram logo, e os eunucos es-

tavam promptos a lançar-se sobre elles , como se fossem


homens que tivessem penetrado n'um lugar, cuja entra-
da não lhes fosse permittida, mas desenganaram - se bem
depressa do seu erro, reconhecendo -os pelo que eram.
Apenas se viu o principe Ahmed no quarto de Nou-
rounnihar, e avistou esta princeza moribunda, logo se
CONTOS ARABES 269

levantou do tapete, o que fizeram tambem os outros


dous principes, chegou-se ao leito , e deu-lhe a chei-
rar a sua maçã maravilhosa. Passados alguns instan-
tes a princeza abriu os olhos, voltou a cabeça para um
e outro lado, olhando para as pessoas que a cercavam ,
e assentou-se na cama, pedindo que a vestissem, com o
mesmo desembaraço, e o mesmo conhecimento como se
acabasse de acordar depois d'um profundo somno . As
suas criadas a informaram logo, d'um modo que paten-
teava a sua alegria, que aos tres principes seus primos,
e particularmente ao principe Ahmed, devia a obrigação
do restabelecimento tão repentino da sua saude . E logo,
manifestando a alegria que tinha de vêl -os, deu-lhes
os agradecimentos a todos juntos, e ao principe Ahmed
em particular. Como dissesse que queria vestir-se, con-
tentaram -se os principes com manifestar-lhe quão gran-
de era o gosto que tinham de terem chegado a tempo
para cada um contribuir em alguma cousa para livral-a
do perigo evidente em que a viram, e os votos ardentes
que faziam pela longa duração da sua vida, depois do
que se retiraram .
Em quanto a princeza se vestia, sahindo os principes
do seu quarto, foram lançar-se aos pés do sultão seu
pai, e tributar-lhe os seus respeitos ; e apparecendo na
sua presença, acharam que fora prevenido pelo principal
eunuco da princeza, que o informára da sua chegada
imprevista, e de que modo a princeza acabava de resta-
belecer-se perfeitamente por intervenção d'elles . O sultão
os recebeu e os abraçou com tanta alegria, que ao mesmo
tempo que os via de volta, sabia que a princeza sua so-
brinha, que elle amava como se fosse sua propria fi-
lha, depois de ser abandonada pelos medicos, acabava de
recobrar a saude d'um modo em extremo maravilhoso .
Depois dos comprimentos de parte a parte, que se costu-
mam fazer em semelhantes occasiões, os principes lhe
apresentaram cada um a raridade que traziam . O princi-
pe Houssan, o tapete que tivera cuidado de recolher, sa-
hindo do quarto da princeza ; o principe Ali , o canudo
de marfim ; e o principe Ahmed, a maçã artificial ; e de-
pois de cada um fazer o elogio d'ella, entregando - lh'a
270 AS MIL E UMA NOITES

nas mãos, pela sua vez , supplicaram-lhe que dissesse a


qual dava a preferencia, e assim que declarasse a qual
dos tres dava a princeza Nourounnihar por esposa, con-
forme a sua promessa .
O sultão das Indias , depois de ter ouvido tudo o que
os principes quizeram representar-lhe em abono do que
tinham trazido, sem interrompel-os, e bem informado do
que acabava de passar-se na cura da princeza Nouroun-
nihar, guardou silencio algum tempo, como se pensasse
no que tinha que responder- lhes . Rompeu-o finalmente,
e lhes fez esta falla judiciosa : « Filhos, disse elle, no-
mearia qualquer de vós, com grande gosto, se o pudesse
fazer com justiça, mas considerai vós mesmos se o posso
fazer. Vós, principe Ahmed , é verdade que a princeza mi-
nha sobrinha é devedora da sua cura á vossa maçã arti-
ficial ; mas, dizei -me : ter-lh'a-hieis applicado, se primei-
ro não vos tivesse dado o canudo de marfim do principe
Ali a occasião de conhecer o perigo em que ella estava,
e se o tapete do principe Houssan não vos servisse para
vir soccorrel-a promptamente ? Vós, principe Ali , o vos-
so canudo de marfim serviu para vos dar a conhecer e
aos principes vossos irmãos, que estaveis a ponto de
perder a princeza vossa prima, e n'isso deve-se confes-
sar que vos deve uma grandissima obrigação . Deveis
tambem convir que este conhecimento teria sido inutil,
para o bem que lhe fez , sem a maçã artificial e sem o
tapete . E vós, finalmente, principe Houssan, seria a prin-
ceza uma ingrata, se não vos désse provas do seu reco-
nhecimento, em consideração do vosso tapete , que se
achou ser tão necessario para procurar-lhe o restabeleci-
mento da sua saude. Considerai porém que não teria
prestimo algum para este effeito, se não tivesseis tido
conhecimento da doença por meio do canudo de marfim
do principe Ali , e se o principe Ahmed não se tivesse
servido da sua maçã artificial para cural-a . Assim , como
nem o tapete, nem o canudo de marfim, nem a maçã ar-
tificial dão a menor preferencia a um mais que a outro,
mas pelo contrario uma perfeita igualdade a cada um, e
como não posso conceder a princeza Nourounnihar senão
a um só, vós mesmos estaes vendo que o unico fructo
CONTOS ARABES 271

que colhestes da vossa viagem, foi a gloria de ter con-


tribuido igualmente para restabelecer-lhe a saude . Se is-
to é verdade, vós védes tambem que devo recorrer a
outro meio para determinar- me com certeza na escolha
que devo fazer entre vós . Como ha ainda tempo até á
noite, quero-o fazer já hoje . Ide, pois, tomai cada um de
vós um arco e uma frecha, e ide fóra da cidade , á grande
planicie dos exercicios de cavallo : vou preparar-me pa-
ra lá ir, e declaro que darei a princeza Nourounnihar por
esposa ao que tiver atirado mais longe . Quanto ao mais,
não me esqueço que devo agradecer- vos em geral, e a
cada um em particular, como faço , o presente que me
trouxestes. Tenho muitas raridades no meu gabinete mas
nada ha que chegue á singularidade do tapete , do canu-
do de marfim e da maçã artificial , com que vou augmen-
tal- o e enriquecel-o . São tres peças que vão ter n'elle
o primeiro lugar e que conservarei preciosamente , não
por simples curiosidade, mas para fazer d'ellas, nas oc-
casiões , o uso vantajoso que d'ellas se pode fazer » .
Nada tiveram que responder os tres principes á de-
cisão que o sultão acabava de pronunciar. Sahindo da
sua presença, deram a cada qual um arco e uma fre-
cha, que entregaram a um de seus officiaes, que se
tinham ajuntado logo que souberam a nova de sua che-
gada, e foram ter á planicie dos exercicios da cavalo ,
seguidos d'uma multidão innumeravel de povo .
Não se fez esperar o sultão ; chegado que foi o prin-
cipe Houssan, como mais velho, pegou no seu arco e na
sua frecha, e atirou primeiro ; o principe Ali atirou de-
pois, e viu - se cahir a sua frecha mais longe que a do
principe Houssan ; atirou por ultimo o principe Ahmed,
mas perdeu -se a frecha de vista, e ninguem a viu ca-
hir ; correram , buscaram, mas por mais diligencia que
fizessem, e que fizesse o principe Ahmed em pessoa,
não foi possivel achar a frecha, nem perto, nem longe.
Ainda que se soubesse que foi elle quem atirára mais
longe, e portanto quem merecêra que a princeza Nou-
rounnihar lhe fosse concedida , como todavia fosse neces-
sario que se achasse a frecha, para fazer a cousa eviden-
te e certa, por mais instancias que fizesse ao sultão,
272 AS MIL E UMA NOITES

não deixou este de julgar a favor do principe Ali . Assim


deu as ordens para os preparativos da solemnidade das
bôdas , e passados poucos dias, celebaram-se com gran-
de magnificencia.
O principe Houssan não honrou a festa com a sua
presença. Como a sua paixão para com a princeza Nou-
rounnihar fosse muito sincera e vivissima, não se sen-
tiu com bastante força para soffrer com paciencia o des-
gosto de vêl-a passar aos braços do principe Ali, o qual,
dizia elle, não a merecia, nem a amava tanto como el-
le. Teve pelo contrario um dissabor tão sensivel, que
deixou a côrte e renunciou ao direito que tinha de suc-
cessão á coroa para ir tomar o habito de derviche, e
pôr-se debaixo da disciplina d'um scheik famosissimo,
o qual estava em grande reputação de viver uma vida
exemplar, e que tinha estabelecido a sua casa e a de
seus discipulos, que eram em grande numero, n'uma
agradavel solidão .
O principe Ahmed, pelo mesmo motivo que o princi-
pe Houssan, não assistiu tambem ás nupcias do principe
Ali e da princeza Nourounnihar, mas não renunciou ao
mundo como elle. Como não podia perceber de que mo-
do a frecha que atirára se tornára por assim dizer invi-
sivel, escondeu-se da sua gente , resolvido a buscal-a de
modo que não tivesse que lançar-se em rosto o seu des-
cuido ; foi ao lugar onde as dos principes Houssan e Ali
foram apanhadas . D'alli , andando em direitura, e olhando
á direita e á esquerda, foi tão longe, sem achar o que
buscava, que julgou que o trabalho que tomava era inu-
til. Levado todavia contra a sua vontade , não deixou de
proseguir o seu caminho até uns rochedos muito eleva-
dos , onde teria sido obrigado a desviar-se se por ventura
quizesse passar além, porque estes rochedos, em extremo
escarpados, estão situados n'um lugar esteril , a quatro
leguas de distancia d'onde partira.
Aproximando-se d'esses rochedos , o principe Ahmed
avista uma frecha, apanha-a, examina-a, e fica em ex-
tremo pasmado de ver que era a mesma que atirára.
nem mortal al-
CONTOS ARABES 273

longe » . Como a achasse por terra, e não cravada pela


ponta, julgou que tinha dado contra o rochedo, e que fô-
ra repercutida pela resistencia. « Ha algum mysterio , dis-
se ainda, n'uma cousa tão extraordinaria, e esse myste-
rio não pode ser senão vantajoso para mim . A fortuna,
depois de me affligir, privando-me da posse d'um bem,
que devia, como esperava, fazer a felicidade da minha
vida, me guarda talvez outro para minha consolação » .
Pensando n'isto, como a face d'estes rochedos sobre-
sahisse em pontas , e se afundasse em muitas partes, en-
trou o principe n'uma d'estas cavernas ; e como lanças-
se os olhos por todos os cantos, apresentou-se-lhe uma
porta sem apparencia de fechadura . Receou que estives-
e fechada, mas empurrando-a abriu-se para dentro, e
viu uma descida suave em ladeira, sem desgraus , por
onde desceu com a frecha na mão . Pareceu-lhe que ia en-
trar n'um lugar de trevas, mas logo outra luz muito di-
versa, succedeu á que deixava . Entrou n'uma praça es-
paçosa, a cincoenta ou sessenta passos , pouco mais ou
menos, avistou um palacio magnifico, cuja estructura ad-
miravel não teve tempo de fixar e examinar ; ao mes-
mo tempo uma senhora, com semblante e porte mages-
toso, e de uma belleza , á qual a riqueza dos estofos com
que estava vestida, e as pedrarias com que estava orna-
da, não acrescentavam vantagem alguma, adiantou-se até
ao vestibulo, acompanhada de muitas mulheres.
Apenas o principe Ahmed avistou a senhora, apres-
sou o passo para ir tributar-lhe os seus respeitos ; e a
senhora pela sua parte, que o viu vir, se antecipou com
estas palavras , levantando a voz : « Principe Ahmed , dis-
se ella, chegai e sêde bem vindo ».
Não foi pequeno o pasmo do principe quando ouviu
chamarem-o pelo seu nome n'um paiz do qual nunca ou-
vira fallar, ainda que este estivesse tão visinho da capi-
tal do sultão seu pai ; não percebia como pudesse ser co-
nhecido d'uma senhora que elle desconhecia . Chegou-se
finalmente á senhora, lançando -se a seus pés ; e levantan-
do-se « Senhora, disse elle, à minha chegada a um lu-
gar onde tinha que recear que a minha curiosidade não
me fizesse internar imprudentemente, dou-vos mil gra-
TOMO IV . 18
274 AS MIL E UMA NOITES

ças pela segurança que me daes de ser bem vindo, mas,


senhora, sem commetter uma descortezia, ousaria per-
guntar-vos por que aventura acontece, como m'o noti-
ciaes, que não vos seja eu desconhecido, a vós, que es-
taes tão perto da nossa visinhança, sem ter eu tido co-
nhecimento d'isso senão hoje ? — Principe , disse-lhe a se-
nhora, entremos no salão ; n'elle satisfarei a vossa per-
gunta, mais commodamente para vós e para mim ».
Proferidas estas palavras, a senhora, para mostrar o
caminho ao principe Ahmed, o conduziu ao salão, cuja
estructura maravilhosa , o ouro e o azul que aformosea-
vam a abobada em fórma de zimborio, e a riqueza ines-
timavel dos moveis, lhe pareceram uma novidade tão
grande, que d'ella manifestou a sua admiração , claman-
do que nunca vira cousa semelhante, e que não cuidava
que pudesse vêr cousa alguma que chegasse a isso. « As-
seguro-vos todavia, replicou a senhora, que esta é a pe-
ça mais inferior do meu palacio, e n'isto convireis quan-
do vos tiver mostrado todos os quartos ». Ella subiu, e
sentou-se em um sophá, tendo-se o principe assentado
ao seu lado , por lh'o pedir : « Principe, disse ella, admi-
raes-vos, pelo que dizeis, de eu vos conhecer sem vós
me conhecerdes ; acabará a vossa admiração quando
souberdes quem eu sou . Não ignoraes sem duvida uma
cousa, que a vossa religião vos ensina , que consiste em
ser o mundo habitado tanto por genios, como por ho-
mens. Sou filha d'um d'esses genios , dos mais poderosos e
dos mais distinctos d'entre elles, e o meu nome é Pari-
Banou assim deveis cessar de admirar-vos que eu vos
conheça a vós , ao sultão vosso pai, aos principes vossos
irmãos , e á princeza Nourounnihar. Estou tambem infor-
mada do vosso amor e da vossa viagem, cujas circums-
tancias todas poderia dizer-vos, visto que sou eu quem
mandou vender em Samarcanda a maçã artificial que lá
comprastes, em Bisnagar o tapete que o principe Hous-
san lá achou, e em Schiraz o canudo de marfim que o
principe Ali de lá trouxe. Deve isto bastar para dar-vos
a conhecer que nada ignoro do que vos diz respeito . A
unica cousa que acrescento, é que me parecestes digno
d'uma sorte mais feliz do que a de possuir a princeza
CONTOS ARABES
275
Nourounnihar, e para vos fazer conseguir isso, como me
achasse presente quando atirastes a frecha , que vejo que
seguraes na mão, e que previ, que nem sequer passaria
além da do principe Houssan, peguei n'ella no ar e dei-
lhe o movimento necessario para vir dar nos rochedos ,
em cuja visinhança acabaes de achal-a. Só de vós depen-
derá aproveitar-vos da occasião que se vos offerece de
ser mais feliz >» .
Como a fada Pari-Banou pronunciasse estas ultimas
palavras com tom diverso, olhando para o principe Ah-
med com ar de ternura, e baixando os olhos por modes-
tia , com uma vermelhidão que lhe subia ao rosto , per-
cebeu facilmente o principe de que felicidade queria fal-
lar . Ponderando logo que a princeza Nourounnihar não
podia já pertencer- lhe a elle, e que a fada Pari- Banou a
excedia infinitamente em belleza , em attractivos , em
agrados, assim como por um espirito transcendente e ri-
quezas immensas, o que podia conjecturar pela magnifi-
cencia do palacio onde se achava , abençoou a hora em
que lhe viera ao pensamento buscar segunda vez a fre-
cha que atirára, e cedendo á inclinação que o arrastava
para o novo objecto que o inflammava : « Senhora , re-
plicou elle, ainda que não tivesse toda a minha vida se-
não a felicidade de ser vosso escravo , e admirador de
tantos encantos que me arrebatam, ter- me-hia pelo mais
feliz de todos os mortaes. Perdoai -me a ousadia que me
inspira de pedir- vos esta graça, e não recuseis admittir
na vossa côrte um principe que todo se dedica a vós .
Principe, replicou a fada , como ha muito tempo que sou
senhora das minhas vontades, com o consentimento de
meus parentes, não é como escravo que quero admittir-
vos na minha côrte, mas sim como senhor da minha
pessoa e de tudo o que me pertence , e póde pertencer-
vos juntamente commigo, dando- me a vossa fé, e que-
rendo de boa vontade receber-me por esposa . Espero que
não tomareis a mal que vos faça de antemão este offere-
cimento. Já vos disse que sou senhora das minhas von-
tades; acrescentarei que as fadas não procedem como as
senhoras para com os homens, as quaes não costumam
ser as primeiras a fazer taes doclow
276 AS MIL E UMA NOITES

grande deshonra obrar assim . Quanto a nós, fazemol-as,


e assentamos que nos devem por isso grande obriga-
ção » .
Nada respondeu o principe ao que acabava de dizer a
fada, mas sensivelmente reconhecido chegou-se a ella para
beijar-lhe a aba do vestido. Não lhe deu ella tempo para
isso, apresentou -lhe a mão, que elle beijou, segurando e
apertando a d'elle : « Principe Ahmed, disse ella, não me
daes a vossa fé como vos dou a minha ? — Então , se-
nhora, replicou o principe arrebatado de alegria, que cou-
sa poderia fazer melhor, e que me désse maior gosto ?
Sim , minha sultana, minha rainha, eu vol-a dou com to-
do o coração. Se assim é , replicou a fada, sois meu es-
poso e eu sou a vossa esposa ; entre nós não se contra-
hem os casamentos com outras ceremonias ; são mais fir-
mes e mais indissoluveis do que entre os homens , não
obstante as formalidades com que os fazem. Agora, pro-
seguiu ella, em quanto se prepara o festim das nossas
nupcias para esta tarde, como certamente não comestes
nada hoje, vou trazer-vos com que fazer uma ligeira re-
feição , depois do que mostrar-vos-hei os quartos do meu
palacio ; e julgareis se não é verdade, como vol- o disse,
que este salão é a peça mais inferior d'elle » .
Algumas das criadas da fada, que entraram no sa-
lão com ella, e que perceberam qual era a sua intenção,
sahiram e passado pouco tempo trouxeram alguns guiza-
dos e vinho excellente .
Tendo o principe Ahmed comido e bebido quanto quiz,
a fada Pari-Banou o levou de quarto em quarto, onde elle
viu os diamantes, os rubins, as esmeraldas, e todas as
qualidades de pedras finas , dispostas com as perolas,
agathas, jaspe, porfido, e todas as especies dos marmo-
res mais preciosos, sem fallar das armações que eram
d'uma riqueza inestimavel, tudo empregado com uma
profusão tão pasmosa, que bem longe de ter visto algu-
ma cousa que chegasse a isso, confessou que não podia
haver cousa igual no mundo. « Principe, disse- lhe a fa-
da , se tanto admiraes o meu palacio, que na verdade
tem grandes bellezas, que dirieis dos palacios dos chefes
de nossos genios, que são sem comparação mais bellos,
CONTOS ARABES 277

mais espaçosos , e mais magnificos ? Poderia tambem fa-


zer-vos admirar a belleza do meu jardim, mas será para
outra vez : vem anoitecendo, e é tempo de pôr-vos á
mesa ».
A sala onde a fada fez entrar o principe Ahmed, e
onde a mesa estava posta, era a ultima peça do palacio,
que havia para mostrar ao principe ; não era inferior a
nenhuma de todas as que acabava de vêr. Ao entrar
admirou a illuminação d'uma infinidade de velas , per-
fumadas com ambar, cuja multidão, longe de causar
confusão, estava n'uma symetria bem entendida, que
dava gosto de vêr. Admirou tambem um grande apara-
dor carregado de baixella de ouro, que a arte tornava
mais preciosa que a materia, e alguns córos de senho-
ras, todas d'uma belleza encantadora , e ricamente vesti-
das, que principiaram um concerto de vozes, e de ins-
trumentos os mais harmoniosos que jamais tivesse ou-
vido . Puzeram-se á mesa, e teve Pari - Banou um grande
cuidado em servir ao principe Ahmed os guisados mais
delicados, que ella lhe nomeava á proporção, convidan-
do-o a provar, e como o principe nunca ouvira fallar
d'elles , e os achava exquisitos , fazia d'elles o elogio,
clamando que o banquete que lhe dava era superior a
todos os que se fazem entre os homens . Disse do mesmo
modo quanto á excellencia do vinho que lhe foi servi-
do, do qual não principiaram a beber senão á sobre-
mesa, que consistia só em fructas, bolos, e outras cou-
sas proprias para fazel-o achar melhor.
Finalmente, depois da sobremesa, a fada Pari-Banou e
o principe Ahmed, se afastaram da mesa, que foi no
mesmo instante tirada, e assentaram- se no sophá , a seu
commodo, encostados n'umas almofadas de estofo de sê-
da riquissimo. Entraram logo na sala um grande nume-
ro de genios e de fadas , e principiaram um baile dos
mais maravilhosos, que continuaram até se levantarem
a fada e o principe Ahmed . Então os genios e as fadas ,
continuando a dançar, sahiram da sala, e foram adiante
dos novos casados, até à porta do quarto onde estava o
leito nupcial armado. Chegando á entrada puzeram-se
278 AS MIL E UMA NOITES

em fileira para os deixar entrar, depois do que retira-


ram-se, e os deixaram deitar na sua liberdade.
A festa das bûdas continuou-se no dia seguinte, ou
para melhor dizer , os dias que se seguiram á celebração
d'ellas foram uma festa continua, que a fada Pari-Banou,
a quem isto era facil, soube variar com novos guisados
nos festins, com novos concertos , com novas danças,
com novos espectaculos, e com novos divertimentos, to-
dos tão extraordinarios , que o principe Ahmed não os
poderia imaginar em toda a sua vida, vivendo com os
homens, ainda que existisse mil annos.
A intenção da fada não foi sómente dar ao principe
demonstrações cordiaes da sinceridade do seu amor, e
do excesso da sua paixão, por tantos modos ; quiz tambem
com isto dar-lhe a conhecer que, como não tinha já na-
da que pretender na côrte do sultão seu pai, e como em
lugar algum do mundo, sem fallar da sua belleza , nem
dos encantos que a acompanhavam , acharia cousa com-
paravel á felicidade de que gozava em companhia d'ella,
se lhe affeiçoasse inteiramente, e nunca se apartasse
d'ella . Foi perfeitamente succedida no que se propuzera ;
o amor do principe Ahmed não afrouxou pela posse, au-
gmentou a tal ponto, que não estava já no seu poder
cessar de amal- a, quando ella pudesse resolver-se a não
amal-o mais.
Passados seis mezes o principe Ahmed , que sempre
amára e honrára o sultão seu pai, concebeu um grande
desejo de saber novas d'elle, e como não pudesse satis-
fazel- o senão ausentando-se para as ir saber elle mesmo ,
fallou a este respeito a Pari -Banou n'uma conversa, e lhe
pediu que tivesse a bondade de permittir-lh'o . Este dis-
curso assustou a fada ; receou que fosse um pretexto
para deixal -a ; ella lhe disse : « Em que cousa posso eu
ter- vos dado descontentamento, para obrigar-vos a pe-
dir-me essa licença ? Será possivel que vos esqueçaes que
me déstes a vossa fé, e não me amasseis já, a mim, que
vos amo com tanta paixão ? D'isso deveis estar bem per-
suadido pelas demonstrações que não cesso de dar-vos a
este respeito . Minha rainha, replicou o principe Ahmed,
CONTOS ARABES 279

muito convencido estou do vosso amor, e tornar-me-hia


indigno d'elle, se não vos manifestasse o meu reconhe-
cimento por um amor reciproco . Se estaes escandalisada
do pedido que fiz , supplico-vos que me perdoeis ; não
ha satisfação que não esteja disposto a dar-vos . Eu não
o fiz para desagradar-vos, fil-o unicamente por um mo-
tivo de respeito para com o sultão meu pai, e porque
desejaria livral-o da afflicção em que deve têl-o sepulta-
do uma tão dilatada ausencia, afflicção tanto maior, como
tenho motivo de presumil-o , quanto certamente não cré
que eu esteja ainda com vida . Mas visto que não é do
vosso agrado, que eu vá dar-lhe esta consolação , quero
o que quereis ; e não ha cousa no mundo que não este-
ja prompto a fazer para comprazer-vos » .
O principe Ahmed , que não dissimulava, e que a
amava devéras, tão perfeitamente como acabava de as-
segurar- lhe com estas palavras, deixou de insistir mais
ácerca da licença que lhe pedira , e a fada lhe manifes-
tou o quanto ficára satisfeita da sua submissão . Como
todavia não pudesse esquecer-se absolutamente do in-
tento que formára, affectou entretel-a de quando em
quando com as bellas prendas do sultão das Indias , e
principalmente com as demonstrações de ternura, que
The devia em particular, com a esperança de que no fim
ella se deixaria abrandar.
Como o principe Ahmed o julgára, era verdade que
o sultão das Indias, no meio dos regosijos para o casa-
mento do principe Ali, e da princeza Nourounnihar, se
affligira sensivelmente pela ausencia dos outros princi-
pes seus filhos ; não tardou muito a ser informado do
partido que havia tomado o principe Houssan de deixar
o mundo, e do lugar que escolhera para n'elle fazer seu
retiro. Como bom pai , que faz consistir uma parte da
sua felicidade em ver os filhos que sahiram do seu amor,
principalmente quando se tornam dignos da sua ternura,
teria estimado mais que tivessem ficado na côrte, junto á
sua pessoa. Como todavia não podia desapprovar a esco-
lha que fizera no estado de perfeição, ao qual se dedicá-
ra, supportou a sua ausencia com paciencia ; fez todas
as diligencias possiveis para saber novas do principe
280 AS MIL E UMA NOITES

Ahmed ; despachou correios para todas as provincias dos


seus estados, com ordem aos governadores de detel-o, e
de obrigal-o a voltar para a côrte, mas os cuidados que
tomou não tiveram o successo que esperára, e os seus
desassocegos em vez de diminuirem, não fizeram senão
augmentar ; ácerca d'isso explicava-se algumas vezes com
o seu grão-visir : « Visir, dizia elle, tu sabes que Ahmed
é dos principes meus filhos, aquelle a quem sempre amei
com mais ternura, e tu não ignoras as diligencias que
fiz para conseguir descobril-o, sem poder alcançar novas
d'elle . É tão viva a afflicção que sinto, que por fim não
poderei resistir, se não tens compaixão de mim. Por pou-
cas attenções que tenhas para a minha conservação , ro-
go-te que me ajudes com o teu soccorro, e com os teus
conselhos >> .
O grão-visir, não menos affeiçoado á pessoa do sul-
tão, que zeloso de desempenhar-se bem da administra-
ção dos negocios do estado, cuidando nos meios de alli-
vial-o, se lembrou d'uma magica de quem diziam mara-
vilhas ; disse-lhe para mandal-a chamar, e consultal-a.
N'isso consentiu o sultão, e tendo-a mandado buscar, o
grão-visir lh'a apresentou .
O sultão disse á magica : « A afflicção em que estou
desde o casamento do principe Ali, meu filho, e da prin-
ceza Nourounnihar, minha sobrinha, pela ausencia do
principe Ahmed , é tão conhecida e tão publica, que tu
não a ignoras sem duvida. Pela tua arte e habilidades,
não poderias dizer-me o que é feito d'elle ? Se vive ain-
da ? Aonde está ? Que faz ? Devo esperar de tornal-o à
vér? »
A magica, para satisfazer ao que o sultão lhe pedia,
respondeu : « Senhor, por maior habilidade que possa ter
na minha profissão , não é possivel todavia satisfazer re-
pentinamente á pergunta que vossa magestade me faz,
mas se quer dar- me tempo até amanhã, dar-lhe-hei a
resposta ». Concedendo-lhe o sultão esta demora, a des-
pediu com promessa de recompensal-a bem se a respos-
ta se achasse conforme com o seu desejo .
Voltou a magica no dia seguinte, e o grão- visir a
apresentou ao sultão pela segunda vez. Ella disse ao
CONTOS ARABES 281

sultão : « Senhor, por mais diligencia que fizesse, servin-


do-me das regras da minha arte para obedecer a vossa
magestade ácerca do que deseja saber, não pude achar

LAKATE

outra cousa senão que o principe Ahmed não morreu ;


isso é mais que verdade, póde estar certo ; quanto ao lu-
gar onde póde estar, é o que não pude descobrir » .
Foi o sultão das Indias obrigado a contentar- se com
esta resposta, que o deixou quasi no mesmo desassocego
que d'antes, quanto à sorte do principe seu filho .
282 AS MIL E UMA NOITES

Tornando ao principe Ahmed : entreteve a fada Pari-


Banou tantas vezes do sultão seu pai , sem nunca fallar
do desejo que tinha de vêl-o, que esta affectação lhe fez
perceber qual era o intento d'elle . Assim, como perce-
besse a sua descripção e o receio que tinha de desagra-
dar-lhe, vista a recusa que ella lhe déra, inferiu primei-
ramente que o amor que elle lhe tinha, cujas demons-
trações não cessava de dar-lhe em todas as occasiões,
era sincero ; depois , julgando ella mesma da injustiça que
havia em violentar um filho ácerca da sua ternura para
com um pai, querendo forçal-o a renunciar á inclinação
natural que o levava a este fim , resolveu conceder-lhe o
que ella bem via que desejava sempre com muito ardor.
A fada disse-lhe um dia : « Principe, a licença que
me pedistes de ir ver o sultão vosso pai, me causára um
justo receio de que fosse um pretexto para dar-me um
indicio da vossa inconstancia, e para abandonar- me, e
não tive outro motivo senão este para recusar-vol-a. Po-
rém hoje, inteiramente convencida, tanto pelas vossas
acções, como pelas vossas palavras , posso descançar na
vossa constancia , e na firmeza do vosso amor ; assim
mudo de parecer e concedo -vos esta licença , debaixo da
condição todavia, que me promettereis primeiro, com ju-
ramento, que a vossa ausencia não será de longa dura
ção, e que não tardareis a voltar . Esta condição não de-
ve causar-vos pena alguma, como se a exigisse de vós
por desconfiança . Não o faço senão porque sei que não
vos dará desgosto algum, vista a convicção em que es-
tou, como acabo de vol-o manifestar, da sinceridade do
VOSSO amor ».
Quiz o principe Ahmed lançar-se aos pés da fada pa-
ra melhor provar-lhe o quanto era sensivel ao reconhe-
cimento, mas ella o impediu . « Minha sultana , disse el-
le, conheço quão grande é a graça que me fazeis , mas
faltam-me palavras para agradecer-vos tão dignamente
como desejaria. Suppri, senhora, a minha impossibilida-
de, mas por mais que possaes dizer a este respeito , ficai
certa que ainda não dizeis tudo que sinto. Tendes razão
de crer que o juramento que de mim exigis, não me cau-
saria desgosto . Dou- vol-o tão voluntariamente, porque não
CONTOS ARABES 283

me é possivel d'hoje em diante viver ausente de vós . Vou


pois partir, e a diligencia que farei para voltar, vos da-
rá a conhecer que a fiz, não com o receio de tornar-me
perjuro, se faltasse à minha palavra, mas porque terei
seguido a minha inclinação, que é viver comvosco toda
a minha vida inseparavelmente, e se de vós me ausen-
tar alguma vez com o vosso beneplacito, evitarei o des-
gosto que poderia causar-me o estar ausente de vós mui-
to tempo ».
Ficou Pari-Banou tanto mais enlevada d'estes senti-
mentos do principe Ahmed, que lhe tiraram da idéa as
suspeitas que formára contra elle, receando que o de-
sejo de querer ir ver o sultão das Indias , fosse um pre-
texto para renunciar á fé que lhe promettera. « Principe,
disse-lhe, parti quando quizerdes , mas não tomeis a mal
que primeiro vos de alguns conselhos sobre o modo co-
mo convém que vos porteis na vossa viagem. Primeira-
mente, não creio que seja conveniente que falleis do
nosso casamento ao sultão vosso pai , nem da minha con-
dição , nem tambem do lugar onde vos estabelecestes , e
onde residis desde que vos apartastes d'elle. Rogai-lhe
que se contente com saber que sois feliz , que nada mais
desejaes, e que o unico motivo que vos levou lá , é fa-
zer cessar os desassocegos que podia ter acerca do vos-
so destino » . Finalmente, para acompanhal- o , deu - lhe vin-
te cavalleiros bem montados , e bem equipados . Estando
tudo prompto, despediu-se o principe Ahmed da fada,
abraçando-a e renovando a promessa de voltar imme-
diatamente. Trouxeram -lhe o cavallo que ella mandára
apparelhar ; além de estar ricamente ajaezado, era tam-
bem mais bello, e de maior preço que nenhum dos que
havia nas cavalhariças do sultão das Indias . Montou -o
com muita graça, com grande satisfação da fada, e de-
pois de despedir-se finalmente d'ella , partiu .
Como o caminho que conduzia á capital das Indias ,
não fosse comprido, gastou pouco tempo o principe Ah-
med para chegar lá . Apenas entrou, o povo, alegre de
tornal-o a ver, o recebeu com acclamações , e a maior
parte se destacou, e o acompanhou até ao palacio do sul-
tão . O sultão o recebeu e abraçou com summa alegria,
284 AS MIL E UMA NOITES

queixando- se do modo por que procedera para com a sua


ternura paternal , e da afflicção que lhe causou uma tão
longa ausencia : « E esta ausencia, acrescentou elle, foi
para mim tanto mais dolorosa , quanto depois de ter a sor-
te decidido em vossa desvantagem a favor do principe Ali
vosso irmão, tinha motivos para recear que vos tivesseis
-
arrojado a fazer alguma acção de desesperação . — Senhor,
replicou o principe Ahmed , deixo considerar a vossa ma-
gestade, se, depois de ter perdido a Nourounnihar , que
fora o unico objecto de meus desejos , podia resolver-me
a ser testemunha da felicidade do principe Ali . Se tivesse
sido capaz d'uma indignidade d'esta natureza, que se te-
ria dito do meu amor na côrte , na cidade e que teria di-
to d'elle vossa magestade? O amor é uma paixão que não
se abandona quando se quer, ella domina-nos , senhorea-
nos, e não dá tempo de um verdadeiro amante fazer uso
da sua razão . Vossa magestade sabe que atirando a minha
frecha aconteceu-me uma cousa tão extraordinaria, co-
mo nunca aconteceu a ninguem ; isto é, que n'uma pla-
nicie tão desimpedida como a dos exercicios de caval-
los, não foi possivel achar a frecha que eu atirára ; isto
foi causa de eu perder uma demanda, cuja justiça
não era menos devida ao meu amor, do que o era aos
principes meus irmãos . Vencido pelo capricho da sorte,
não perdi tempo com queixas inuteis. Para aquietar o
meu espirito inquieto por esta aventura que não enten-
dia, apartei-me dos meus sem que o percebessem , e fui
ter ao mesmo lugar, só , para buscar a minha frecha.
Busquei-a por uma e outra parte, á direita e à esquerda
no lugar onde sabia que as do principe Houssan, e do
principe Ali foram achadas, e onde me parecia que a mi-
nha devia ter cahido, mas o trabalho que tive foi inutil.
Não descancei ; continuei a minha diligencia, internan-
do-me no terreno, quasi em linha recta, onde imaginava
que podia ter cahido . Tinha já andado mais d'uma legua,
lançando sempre os olhos para uma e outra parte, e até
desviando-me de quando em quando para ir reconhecer
a minima cousa que me désse idéa d'uma frecha.
Quando reflecti que não era possivel que a minha vies-
se tão longe, parei e perguntei a mim mesmo se tinha
CONTOS ARABES 285

perdido o juizo , e se estava destituido do bom senso, a


ponto de lisonjear-me de ter força para atirar uma fre-
cha a tanta distancia como nunca tiveram os nossos he-
roes mais antigos, e mais nomeados pela sua força.
Fiz esta reflexão e estava prompto a deixar a minha
empresa, mas quando quiz executar a minha resolução,
senti-me levado, como contra a minha vontade ; depois
de ter andado quatro leguas, até onde termina a planicie
em uns rochedos, avistei uma frecha ; corri, apanhei -a,
e reconheci que era a que atirára, mas que não fôra
achada no lugar, nem no tempo que era preciso. Assim,
bem longe de pensar que vossa magestade me tivesse
feito uma injustiça , julgando a favor do principe Ali , in-
terpretei o que me acontecêra muito diversamente , e
não duvidei que n'isso houvesse um mysterio em vanta-
gem minha, sobre o qual não devia esquecer cousa al-
guma para saber a explicação d'elle, e tive esta explica-
ção sem afastar-me muito do lugar ; porém ha outro
mysterio sobre o qual supplico a vossa magestade que
não tome a mal que guarde silencio, e que se contente
com saber da minha bocca, que sou feliz , e vivo con-
tente da minha felicidade. No meio d'esta felicidade , co-
mo a unica cousa que a perturbava, era o desassocego
em que eu não duvidava que vossa magestade estaria a
respeito do que podia ser de mim desde que desappareci,
e que me ausentei da côrte ; cuidei que era da minha
obrigação vir socegar vossa magestade , e não quiz fal-
tar a isso . Este é o unico motivo que me traz . A unica
graça que peço a vossa magestade, é que me permitta
vir de quando em quando tributar-lhe os meus respeitos,
e saber novas do estado de sua saude . - Filho , respon-
deu o sultão das Indias, não posso recusar-vos o que me
pedis. Estimaria todavia muito mais que pudesseis resol-
ver-vos a estar commigo ; dizei-me ao menos aonde po-
derei ir buscar novas vossas, todas as vezes que não
possaes vós mesmo dar-m'as ou quando me fôr necessa-
ria a vossa presença . Senhor, replicou o principe Ah-
med, o que vossa magestade me pede, é parte do mys-
terio de que lhe fallei . Supplico-lhe que consinta que
guarde tambem silencio sobre esse ponto ; cumprirei tão
286 AS MIL E UMA NOITES

frequentemente com os meus deveres, que temo mais


ser importuno, do que dar-lhe occasião de accusar-me
de negligencia, quando for necessaria a minha presen-
ça » .
O sultão das Indias não apertou mais com o principe
Ahmed sobre este ponto, disse-lhe : « Filho, nada quero
saber do vosso segredo, deixo-vos uma inteira liberdade
para dizer-vos que não podeis dar-me um maior gosto
que o que me daes vindo restituir-me, com a vossa pre-
sença, a alegria da qual não fui susceptivel desde tão
largo tempo, e que sereis bem acolhido todas as vezes
que possaes vir, sem prejuizo das vossas occupações, ou
de vossos divertimentos » .
Não se demorou mais de tres dias o principe Ahmed
na côrte do sultão seu pai ; partiu no quarto pela ma-
nhã cedo ; a fada Pari-Banou o tornou a ver com tanta
maior alegria, quanto não esperava que voltasse tão ce-
do ; e o ser elle diligente foi causa para ella se condem-
nar de ter suspeitado ser elle capaz de faltar á fidelida-
de que lhe devia, e que lhe promettéra tão solemnemen-
te . Não usou de dissimulação com o principe, confessou-
The francamente a sua fraqueza e pediu-lhe perdão . Foi
então a união dos dous amantes tão perfeita, que o que
queria um, queria tambem o outro.
Passado um mez depois da volta do principe Ahmed,
como a fada Pari-Banou tivesse observado que desde es-
se tempo este principe , que não faltára a fazer-lhe a
narração de sua viagem e a fallar-lhe do entretimento
que tivera com o sultão seu pai , no qual lhe pedira li-
cença para ir vél-o de quando em quando ; como este
principe lhe não fallára mais do sultão, como se não es-
tivesse n'este mundo, em vez de lhe fallar tantas vezes
d'elle como d'antes, julgou que não lhe fallava d'elle em
razão da consideração que tinha para com ella . E por is-
so ella lhe fallou nos seguintes termos : « Principe, di-
zei-me, deixastes o sultão vosso pai no esquecimento;
não vos lembraes da promessa que lhe fizestes, de ir
vêl-o de quando em quando ? Quanto a mim, não me es-
queci do que me dissestes quando voltastes, e d'isso vos
faço lembrar, para que não tardeis mais tempo em cum
CONTOS ARABES 287

prir com a vossa promessa pela primeira vez . - Senho-


ra, replicou o principe Ahmed no mesmo tom jovial da
fada, como não me sinto culpado do esquecimento de
que me fallaes, estimo mais supportar a reprehensão que
me daes, sem a ter merecido, que expôr-me a uma re-
cusa, mostrando-me empenhado em alcançar uma cousa
que pudéra dar-vos algum desgosto concedendo-m'a. —
Principe, disse-lhe a fada, não quero que tenhaes mais
semelhantes attenções para commigo ; e para que não
aconteça mais semelhante cousa, visto que ha um mez
que não vistes o sultão das Indias vosso pai , parece-me
que não deve haver nas visitas que tereis que fazer-lhe,
intervallo que exceda a um mez . Principiai pois desde
åmanhã e continuai assim de mez em mez, sem que se-
ja preciso fallar-me n'isso, ou esperar que eu vos falle ,
n'isso consinto de muito boa vontade ».
Partiu o principe Ahmed no dia seguinte com a mes-
ma comitiva, porém mais á ligeira, e elle mesmo mon-
tado, equipado e vestido, com menos magnificencia que
da primeira vez ; foi recebido pelo sultão com a mesma
alegria e a mesma satisfação . Continuou alguns mezes a
visital-o sempre com um trem mais rico, e mais estron-
doso .
Por fim alguns visires , validos do sultão, que julga-
ram da grandeza e do poder do principe Ahmed , pela
magnificencia com que se apresentava, abusaram da li-
berdade que o sultão lhes dava de fallar-lhes , para lhe
mostrarem desconfianças contra elle . Representaram -lhe
que era bom que soubesse onde o principe seu filho fa-
zia o seu retiro, d'onde tomava com que fazer uma tão
grande despeza, elle , a quem não assignára, nem terras,
nem renda estabelecida, que parecia vir á côrte sómen-
te para affrontal-o, affectando mostrar que não precisava
das suas liberalidades para viver como principe, e que
finalmente era de recear que fizesse levantar os povos
para tentar desthronal-o .
O sultão das Indias, que estava bem longe de imagi-
nar que o principe Ahmed fosse capaz de formar um pro-
jecto tão pernicioso, como o que pretendiam os validos
persuadir-lhe, disse-lhes : «< Estaes zombando, meu filho
288 AS MIL E UMA NOITES

ama-me ; e tanto mais confio na sua ternura, e fidelida-


de, quanto não me lembro de ter-lhe dado o menor mo-
tivo de estar descontente commigo » .
A estas ultimas palavras, teve um dos validos occa-
sião de dizer-lhe : « Senhor, ainda que vosso magestade,
segundo a opinião geral dos mais cordatos , não pudesse
tomar um melhor partido que o que tomou para concor-
dar os tres principes, quanto ao casamento da princeza
Nourounnihar, quem sabe se o principe Ahmed se sujei-
tou a decisão da sorte com a mesma resignação que o
principe Houssan ? Não pode ter imaginado que elle só
a merecia, e que vossa magestade, em vez de conceder-
lh'a de preferencia a seus irmãos mais velhos , lhe fez
uma injustiça deixando o negocio à decisão da sorte ?
Póde vossa magestade dizer que o principe Ahmed não
deu indicio algum de descontentamento, que os nossos
sustos são mal fundados, que nos assustámos muito fa-
cilmente, e que não temos razão de suggerir-lhe suspeitas
d'esta natureza contra um principe do seu sangue , que
talvez não tem fundamento algum , mas, senhor, prose-
guiu o valido, talvez que sejam tambem estas suspeitas
bem fundadas. Vossa magestade não ignora que n'um ne-
gocio tão delicado e tão importante, devemos tomar o
partido mais seguro ; considere que a dissimulação da
parte do principe póde divertil-o e enganal -o, e que o
perigo é tanto mais para recear, quanto não parece que
o principe Ahmed esteja mui distante da sua capital. Com
effeito se a isto deu a mesma attenção que nós , póde
observar que todas as vezes que chega, elle e a sua
gente, véem frescos os seus vestidos, e tanto os telizes
de seus cavallos, como os ornamentos, tem o mesmo
esplendor como se acabassem de sahir da mão do artifice.
Os seus cavallos não parecem estar mais cançados do
que se viessem d'um passeio . Estes indicios da visinhan-
ça do principe Ahmed são tão evidentes, que nos pare-
cia faltar ao nosso dever, se acerca d'isso não lhe fizes-
semos a nossa humilde representação, a fim de que pa-
ra a sua propria conservação e para bem de seus estados,
dé a isto a attenção que julgar a proposito » .
Tendo o valido acabado este longo discurso, o sultão,
CONTOS ARABES 289

dando fim á conversa, disse : « Seja o que fôr, não creio


que meu filho seja tão mau como quereis persuadir-m'o ;
não deixo todavia de agradecer-vos os vossos conselhos,
acreditando que m'os daes com boa intenção ».
Assim fallou o sultão das Indias aos seus validos ,
sem lhes dar a conhecer que os seus discursos fizessem
impressão no seu espirito . Não deixou todavia de assus-
tar-se, e resolveu fazer observar o procedimento do
principe Ahmed, sem d'isso dar conhecimento ao seu
grão-visir ; mandou chamar a magica, que foi introdu-
zida por uma porta secreta do palacio, e levada ao
seu gabinete . Disse-lhe : « Fostes verdadeira, quando
me assegurastes que meu filho estava com vida, e fi-
co-te obrigado ; importa que me faças outro serviço .
Desde que achei e que vem à minha côrte de mez a
mez, não pude conseguir d'elle que me dissesse o lugar
onde se estabeleceu , e não quiz molestal-o para obter
o segredo contra a sua vontade . Parece-me que és assás
habil para fazer com que seja satisfeita a minha curio-
sidade, sem que nem elle, nem pessoa alguma da minha
côrte saibam cousa alguma a este respeito. Tu sabes que
está agora aqui e como costuma partir sem despedir-se
de mim, nem de ninguem da minha côrte, não percas
tempo, segue-o e observa bem o caminho que elle toma,
e logo que saibas onde se recolhe traze-me a resposta » .
Sahindo do palacio do sultão, como a magica soubes-
se em que lugar o principe Ahmed achára a sua frecha,
logo no mesmo instante lá foi ter, e escondeu- se ao pé
do rochedo, de modo que não pudesse ser vista.
No dia seguinte partiu o principe Ahmed sem se ter
despedido, nem do sultão, nem de nenhum cortezão ,
conforme o seu costume . Viu -o vir a magica e o acom-
panhou com os olhos, até que o perdeu de vista a elle
e á sua comitiva .
Como os rochedos formassem uma barreira insupe-
ravel aos mortaes, quer estivessem a pé, ou a caval-
lo, tão escarpados eram, julgou a magica de duas cou-
sas uma, ou que o principe se recolhia n'uma caverna,
ou em algum lugar subterraneo , onde moravam genios
e fadas. Tendo julgado que o principe e a sua gente de-
TOMO IV . 19
290 AS MIL E UMA NOITES

viam ter desapparecido e entrado na caverna, ou no


subterraneo que imaginára, sahiu do lugar onde se es-
condéra e foi em direitura ao pé do sitio retirado onde
os vira entrar ; entrou n'elle, e adiantando- se até onde
terminava por algumas voltas, olhou para todos os lados,
andando sempre . Não obstante a sua diligencia, não des
cobriu abertura alguma de caverna, nem a porta de fer-
ro, que não escapára aos olhos do principe Ahmed ; a ra-
zão é que esta porta era apparente só para os homens,
e particularmente para certos homens cuja presença, pu-
desse ser agradavel á fada Pari-Banou , e de nenhum
modo para as mulheres.
A magica que viu que o trabalho a que se dava era
inutil, foi obrigada a contentar-se com o descobrimento
que acabava de fazer. Veio dar conta ao sultão, e aca-
bando de fazer-lhe a relação das suas diligencias, acres-
centou : «Senhor, como vossa magestade póde entendel-o,
á vista do que acabo de ter a honra de participar-lhe,
não me será difficil dar-lhe toda a satisfação que póde
desejar, ácerca do procedimento do principe Ahmed . Não
The direi agora o que penso a este respeito, estimo mais
dar-lh'o a conhecer d'um modo que não possa duvidar.
Para conseguil-o, não lhe peço senão tempo e paciencia,
com a licença de deixar-me obrar, sem informar-se dos
meios de que intento servir-me ».
Approvou o sultão as medidas que a magica tomava.
Disse-lhe : <
« Dou-te plena liberdade, vai e faze como jul-
gares a proposito, esperarei com paciencia o effeito das
tuas promessas, e para animal-a, deu -lhe de presente um
diamante de grande valor, dizendo que o aceitasse espe-
rando que a recompensaria plenamente, quando acabas-
se de fazer -lhe o serviço importante, que esperava da
sua liberalidade.
Como o principe Ahmed , desde que alcançára da fada
Pari-Banou licença de ir fazer a sua visita ao sultão das
Indias, não deixára de ser regular em cumprir com a sua
promessa uma vez cada mez ; a magica, que não o ig-
norava, esperou que o mez que corria acabasse. Um, ou
dous dias antes que findasse, não se esqueceu de ir ao
pé dos rochedos , no lugar onde perdêra de vista o prin-
CONTOS ARABES 291

cipe e a sua gente, e alli esperou , com intenção de exe-


cutar o projecto que imaginára.
No dia seguinte sahiu o principe Ahmed como de cos-
tume, pela porta de ferro, com a mesma comitiva que
costumava acompanhal-o , e chegou -se perto da magica,
a qual não conhecia pelo que ella era ; como visse que
estava deitada com a cabeça encostada ao rochedo e que
se queixava como uma pessoa que padecia muito , teve
compaixão , desviou-se para chegar-se a ella, perguntan-
do-lhe qual era o seu mal, e o que podia fazer para alli-
vial-a.
A magica, artificiosa, sem levantar a cabeça , olhando
para o principe com certo ar que lhe augmentava a com-
paixão de que estava já commovido, respondeu com pa-
lavras cortadas, como se tivesse uma grande difficuldade
em respirar : que partira de sua casa para ir á cidade,
e que no caminho fôra assaltada d'uma febre tão violen-
ta, que as forças por fim lhe faltaram , e que fôra cons-
trangida a parar e a ficar no estado em que a via, n'um
lugar afastado da povoação, e assim sem esperança de
ser soccorrida.
« Boa mulher, replicou o principe Ahmed , não estaes
tão longe do soccorro que precisaes, como vos parece ;
estou prompto a fazer-vol- o experimentar , e a levar-vos
muito perto d'aqui, a um lugar onde terão para com-
vosco, não só todo o cuidado possivel, mas onde achareis
tambem uma prompta cura ; para isso, basta levantar-
vos, e consentir que algum da minha comitiva vos tome
na garupa ».
Proferidas estas palavras do principe Alimed , a magi-
ca, que fingia estar doente, para saber onde elle morava,
o que fazia e qual era o seu modo de vida , não recusou
o beneficio que lhe offerecia de tão boa vontade , e para
mostrar que aceitava o offerecimento , mais pela sua ac-
ção que pelas palavras, fingindo que a violencia da sua
pretendida doença a impossibilitava, fez esforços para le-
vantar- se. Ao mesmo tempo, dous cavalleiros do princi-
pe apearam-se, ajudaram-a a levantar-se e a puzeram
na garupa, por detraz de um cavalleiro . Em quanto tor-
navam a montar a cavallo, o principe, que retrocedeu ,
292 AS MIL E UMA NOITES

pôz-se à frente, e chegou bem depressa á porta de fer-


ro, que foi aberta por um dos cavalleiros que se adian-
tára ; entrou , e chegando ao pateo do palacio da fada,

sem apear-se, destacou um de seus cavalleiros para avi-


sal-a que queria fallar- lhe .
Veio a fada Pari-Banou com muita pressa, pois não
sabia o motivo que pudéra obrigar o principe Ahmed a
voltar tão cedo. Sem lhe dar tempo a perguntar-lhe o
motivo : «Princeza , disse-lhe o principe mostrando -lhe a
CONTOS ARABES 293

magica, que dous de seus cavalleiros acabavam de pôr


no chão, e que seguravam pelos braços , rogo-vos que
tenhaes para com esta mulher a mesma compaixão que
eu tenho. Achei - a no estado em que a estaes vendo , e
prometti-lhe a assistencia de que necessita. Eu vol - a re-
commendo, persuadido de que não a abandonareis , tanto
pela vossa propria inclinação , como em consideração dos
meus rogos » .
A fada Pari- Banou , que tivera os olhos fitos na pre-
tendida doente em quanto o principe Ahmed lhe fallava,
ordenou a duas das suas criadas, que a seguiram , que
pegassem n'ella das mãos dos dous cavalleiros , que a
levassem para um quarto do palacio, e que tivessem
para com ella o mesmo cuidado que teriam para com a
sua propria pessoa .
Em quanto as duas mulheres executavam a ordem
que acabavam de receber, chegou-se Pari-Banou ao prin-
cipe Ahmed, e abaixando a voz : « Principe , disse ella ,
louvo a vossa compaixão, digna de vós e do vosso nasci-
mento, e tenho grande gosto em corresponder á vossa
boa intenção . Permittir-me-heis porém que diga que re-
ceio muito que esta boa intenção não seja mal recom-
pensada. Não me parece que esta mulher esteja tão doente
como quer parecel-o, e bem enganada estou se ella não
está cogitando expressamente para dar- vos grandes mor-
tificações. Mas que isto não vos afflija ; e por mais que
possam maquinar contra vós, persuadi-vos que vos li-
vrarei de todos os laços que possam armar-vos ; ide e
prosegui a vossa viagem » .
Este discurso da fada não assustou o principe Ahmed :
<< Minha princeza, replicou elle , como não me lembro de
ter feito mal a pessoa alguma, e como não tenho inten-
ção de fazel-o, não creio tambem que ninguem tenha o
pensamento de fazer-me mal algum . Seja o que fôr, não
cessarei de fazer bem todas as vezes que se me offere-
cer occasião » . Acabando, despediu-se da fada, tomou
novamente o seu caminho, que interrompera por causa
da magica, e em pouco tempo chegou com a sua comi-
tiva á côrte do sultão das Indias, que o recebeu quasi
do mesmo modo que d'antes, constrangendo-se quanto
294 AS MIL E UMA NOITES

lhe foi possivel para não mostrar cousa alguma da per-


turbação causada pelas suspeitas que as palavras dos
seus validos lhe inspiraram .
Todavia as duas mulheres que a fada Pari-Banou en-
carregára das suas ordens, tinham levado a magica para
um belissimo quarto. Mandaram-a logo assentar n'um
sophá, onde, em quanto estava encostada n'uma almofa-
da de brocado com chão de ouro, prepararam diante
d'ella um leito, cujos colchões de setim estavam reca-
mados d'um bordado de sêda, os lençoes d'um pano dos
mais finos, e a coberta d'um pano de ouro . Depois de a
terem ajudado a deitar- se (pois a magica continuava a
fingir que o accesso de febre , de que estava assaltada, a
atormentava de modo que não podia ser senhora de si) ,
uma das duas mulheres sahiu e voltou passado pouco
tempo com um vaso de porcelana dos mais finos na mão,
cheio d'um licôr. Ella o apresentou á magica em quanto
a outra mulher a ajudava a assentar-se na cama : «To-
mai este licôr, disse ella, é agua da fonte dos leões , re-
medio soberano para qualquer febre . D'elle vereis o ef-
feito em menos d'uma hora » .
A magica, para melhor fingir, fez-se rogar muito tem-
po, como se tivesse uma repugnancia invencivel em to-
mar esta bebida. Pegou finalmente no vaso e enguliu o
licôr sacudindo a cabeça, como se o tivesse feito com
grande violencia. Tendo-se deitado de novo, cobriram-a
as duas mulheres . « Descançai , disse-lhe a que trouxera
a bebida, e dormi, se puderdes. Nós vos deixamos e es-
peramos achar-vos perfeitamente restabelecida quando
voltarmos d'aqui a cousa d'uma hora » .
A magica, que não viera para fingir-se doente muito
tempo, mas unicamente para espreitar onde era o retiro
do principe Ahmed , e o que podia tel-o obrigado a re-
nunciar á côrte do sultão seu pai, do que ella estava já
informada sufficientemente, teria de boa vontade decla-
rado logo que a bebida tinha produzido effeito , tanta
vontade tinha de voltar e de informar o sultão do bom
successo da commissão que lhe encarregára. Porém co-
mo não lhe disseram que a bebida faria logo effeito , foi
CONTOS ARABES 295

preciso, a seu pezar, que esperasse a volta das duas mu-


lheres.
As duas mulheres vieram quando lhe disseram , e
acharam a magica levantada, vestida, sobre o sophá ;
vendo-as entrar : « Oh ! admiravel bebida ! clamou ella ;
fez o seu effeito mais cedo do que me dissestes, e espe-
rava-vos com impaciencia ha já tempo para pedir- vos
que me levasseis à vossa caridosa ama, para lhe agra-
decer a sua bondade, da qual me lembrarei eternamen-
te, pois como me acho restabelecida quasi por milagre,
não quero perder tempo em continuar a minha viagem >> .
As duas mulheres, fadas como a sua ama, depois de
terem mostrado á magica a parte que ellas tomavam na
alegria que tinha pelo seu prompto restabelecimento , ca-
minharam adiante d'ella para mostrar-lhe o caminho , e a
levaram, depois de atravessar alguns quartos, todos mais
soberbos que aquelle d'onde sahia, ao salão mais ma-
gnifico, e mais ricamente mobilado de todo o palacio .
Estava Pari-Banou no salão , assentada n'um throno
d'ouro maciço, enriquecido de diamantes, de rubins, e
de perolas, d'uma grandeza extraordinaria ; e rodeada
d'um grande numero de fadas, todas d'uma belleza en-
cantadora e vestidas riquissimamente . Á vista de tanto
esplendor e magestade , não ficou sómente offuscada a
magica, ficou tambem tão pasmada que, depois de pros-
trar-se ante o throno, não lhe foi possivel abrir a bocca
para agradecer á fada, como era sua intenção . Poupou-
The Pari-Banou o trabalho : « Boa mulher , disse ella, mui-
to me alegro que se me offerecesse occasião de servir-
vos e de vér-vos em estado de continuar a vossa jorna-
da. Não quero demorar-vos, mas primeiro , se vos não
desgostaes , vereis o meu palacio ; ide com as minhas cria-
das, ellas vos acompanharão, e vol- o mostrarão » .
A magica, sempre pasmada, prostrou - se segunda vez
com a fronte sobre o tapete que cobria a parte inferior
do throno, e despedindo-se sem ter força, nem ousadia
de proferir uma unica palavra, deixou - se levar pelas fa-
das que a acompanhavam. Viu com pasmo e com excla-
mações contínuas, os mesmos quartos , peça por peça, as
296 AS MIL E UMA NOITES

mesmas riquezas, a mesma magnificencia que a fada Pa-


ri-Banou fizera observar ao principe Ahmed, a primeira
vez que se lhe apresentára, como já vimos. O que lhe
causou maior admiração foi que depois de ter visto tudo
o que havia no palacio, as duas fadas lhe disseram, que
o que acabava de admirar, era sómente uma amostra da
grandeza e poder da sua ama, e que na extensão de seus
estados, tinha outros palacios, cujo numero não podiam
dizer, todos d'uma architectura e d'um modelo differente,
não menos soberbos e magnificos . Entretendo-a com mui-
tas outras particularidades, conduziram-a até á porta de
ferro, por onde o principe Ahmed a trouxera, abriram-a,
e lhe disseram que lhe desejavam uma viagem feliz. A
magica retirou-se, depois de ter-se despedido d'ellas e
ter-lhes agradecido o trabalho que tiveram.
Tendo dado alguns passos, voltou-se a magica para
observar a porta e para reconhecel-a, mas debalde a pro-
curou ; era invisivel para ella, assim como para qualquer
outra mulher, como o temos observado. Assim , apesar
d'esta circumstancia, foi ter com o sultão, muito contente
comsigo mesma, e com ter-se tão bem desempenhado do
modo que projectára, da commissão que lhe fora encar-
regada. Chegada que foi á capital, foi por ruas desvia-
das fazer-se introduzir pela mesma porta falsa do pala-
cio . Avisado da sua chegada, o sultão a mandou chamar ;
como a visse apparecer com semblante carregado, julgou
que não fora bem succedida, e lhe disse : «Ao vér-te
julgo que foi inutil a tua viagem, e que não trazes a in-
formação que esperava da tua diligencia . - Senhor, repli-
cou a magica, permitta-me vossa magestade que lhe diga
que ao vêr-me não deve julgar se me portei bem na
execução da ordem com que me honrou, mas sim sobre
a relação sincera do que fiz , e de tudo o que me acon-
teceu, não esquecendo cousa alguma para tornar-me di-
gna da sua approvação. O que notou de sombrio no meu
rosto, procede d'outra causa differente da de não ser
bem succedida, no que espero que vossa magestade acha.
rá que tem motivo de estar satisfeito. Não lhe digo que
causa é essa ; a narração que tenho a fazer-lhe, se tiver
a paciencia de ouvir-me, lh'a dará a conhecer ».
CONTOS ARABES 297

Contou então a magica ao sultão das Indias de que


modo, fingindo-se doente, obrára para que o principe
Ahmed, movido pela compaixão, a mandasse levar a um
lugar subterraneo, a apresentasse e recommendasse elle
mesmo a uma fada, d'uma belleza á qual não se podia
comparar mulher alguma no universo, rogando- lhe que
tivesse a bondade de contribuir com os seus cuidados
para restituir-me a saude. Mostrou-lhe depois com que
complacencia dera logo a fada ordem a duas das fadas,
que a acompanhavam , que se encarregassem d'ella e que
não a abandonassem sem se achar completamente boa, o
que lhe dera a conhecer que uma tão grande condescen-
dencia não podia proceder senão da parte d'uma esposa
para com seu esposo . Não deixou a magica de lhe exa-
gerar o pasmo em que se achára á vista da frontaria
do palacio da fada, á qual não lhe parecia que houvesse
cousa igual no mundo, em quanto as duas fadas a leva-
vam segurando -a pelos braços, como a um doente, tal
como fingia ser, que não podia segurar-se, nem andar
sem o soccorro d'ellas . Fez-lhe uma relação circumstan-
ciada do cuidado d'ellas em allivial-a, do quarto onde a
levaram , da bebida que lhe fizeram tomar, do prompto
restabelecimento que se conseguira , da magestade da fa-
da assentada n'um throno todo resplandecente de pedra-
rias, cujo valor excedia todas as riquezas do reino das
Indias , e finalmente das outras riquezas immensas , e que
excediam todo o calculo, tanto em geral como em parti-
cular, que estavam encerradas na vasta capacidade do
palacio.
Acabou aqui a magica a narração do successo da sua
commissão , e continuando o seu discurso : <« Senhor, pro-
seguiu ella, que pensa vossa magestade das riquezas
inauditas da fada? Dirá talvez que se admira d'ellas e
que se alegra da alta fortuna do principe Ahmed seu fi-
lho, que d'ellas goza em commum com a fada . Quanto
a mim, senhor, supplico a vossa magestade que me per-
dôe se tomo a confiança de dizer-lhe que penso diversa-
mente e que fico assustada, quando considero na des-
graça que pode acontecer-lhe ; é isto o que faz o motivo
do desassocego em que estou , que não pude dissimular
298 AS MIL E UMA NOITES

tão bem que vossa magestade não o percebesse. Quero


crêr que o principe Ahmed, em razão da sua boa indole,
não é capaz por si mesmo de emprehender cousa algu-
ma contra vossa magestade. Porém quem póde assegu-
rar que a fada com seus attractivos, com seus cari-
nhos e com o ascendente que tem já sobre seu esposo,
não lhe inspirará o pernicioso intento de desapossal -o e
de apoderar-se da coroa do reino das Indias ? A vossa
magestade cabe examinar isto com toda a attenção que
merece um negocio de tão grande importancia » .
Por mais persuadido que estivesse o sultão das In-
dias do bom caracter do principe Ahmed, não deixou
de sobresaltar-se com o discurso da magica. Disse-lhe,
despedindo-a : <« Agradeço -te o trabalho que tivestes e o
teu aviso ; conheço tanto a importancia d'elle , que me
parece não poder deliberar ácerca d'elle sem reunir o
conselho ».
Quando vieram annunciar ao sultão a chegada da ma-
gica, entretinha-se elle com os mesmos validos que lhe
tinham já inspirado, contra o principe Ahmed , as suspei-
tas que dissemos . Ordenou á magica que o seguisse e
veio ter de novo com seus validos . Deu -lhes parte do
que acabava de saber, e depois de ter-lhes communica-
do tambem os motivos que havia para recear que a fa-
da fizesse mudar o espirito do principe , perguntou - lhes
de que meios lhes parecia que podiam servir-se para
prevenir um tão grande mal .
Um dos validos , fallando por todos, respondeu : « Pa-
ra evitar esse mal, senhor, visto que vossa magestade
conhece o que poderia ser author d'elle, que está no
meio de sua côrte, e visto que está no seu poder o fa-
zel-o, não deveria vossa magestade hesitar em mandal-o
prender e, não direi mandar-lhe tira a vida, daria is-
so muito que fallar, mas ao menos mandal -o fechar
n'uma estreita prisão durante o resto de seus dias » . Os
outros validos applaudiram este parecer.
A magica, que achou o conselho em extremo violen-
fallar, e tendo - lh'a con-
da zelo
CONTOS ARABES 299

os conselheiros lhe proponham mandar prender o prin-


cipe Ahmed, mas não tomarão a mal que lhes faça con-
siderar que prendendo esse principe, seria tambem pre-
ciso mandar prender ao mesmo tempo os que o acom-
panham ; ora como os que o acompanham são genios ,
julgam que seja facil surprehendel-os e assegurar-se das
suas pessoas ? Não desappareceriam, pela propriedade que
teem de serem invisiveis ? não iriam no mesmo instante
informar a fada do insulto que fizessem a seu esposo ?
e deixaria a fada o insulto sem vingança ? Porém, se por
qualquer outro meio menos estrondoso, póde livrar-se o
sultão dos maus intentos que terá o principe Ahmed, sem
que sua magestade pareça interessar-se n'isso e sem que
ninguem possa suspeitar que haja alguma má intenção
da sua parte ; não seria mais a proposito que se puzesse
em pratica? Se sua magestade tivesse alguma confiança
no meu conselho, como os genios e as fadas podem obrar
cousas que são impossiveis aos homens, empenharia o
principe Ahmed em procurar-lhe certas vantagens , pela
intervenção da sua fada, com o pretexto de tirar d'ellas
uma grande utilidade. Por exemplo, todas as vezes que
Vossa magestade quer pôr-se em campo, está obrigado a
fazer uma despeza prodigiosa , não só em bandeiras e em
barracas para vossa magestade e para o seu exercito,
mas tambem em camêlos , em machos e outras bestas de
carga, só para acarretar todo este trem . Não poderia em-
penhal-o, pelo grande credito que deve ter com a fada,
em alcançar-lhe um pavilhão que possa caber n'uma
mão, debaixo do qual todavia todo o vosso exercito possa
ficar abrigado? Mais não digo a vossa magestade . Se o
principe trouxer o pavilhão , ha tantas perguntas d'esta
natureza que poderia fazer-lhe, que por fim será forçoso
que ceda ás difficuldades, ou á impossibilidade da exe-
cução, por mais fertil em meios e invenções que possa
ser a fada que vol-o roubou com seus encantos . Assim ,
a vergonha fará com que não ousará apparecer mais, e
será obrigado a passar os seus dias com a fada , exclui-
do do commercio do mundo ; d'aqui acontecerá que vos-
sa magestade não terá já nada a recear das suas diligen-
cias, e que não poderão lançar-lhe em rosto uma acção
300 AS MIL E UMA NOITES

tão odiosa, como a da effusão do sangue d'um filho, ou


de sepultal-o n'um carcere perpetuo » .
Tendo a magica acabado de fallar, perguntou o sul-
tão aos seus validos se tinham alguma cousa melhor que
propôr- lhe ; como visse que guardavam silencio, determi-
nou seguir o conselho da magica, como o que lhe pare-
cia mais razoavel, e que além d'isso era conforme á bran-
dura que seguia sempre no seu modo de governar.
No dia seguinte, como o principe Ahmed se apresen-
tasse ao sultão seu pai, que se entretinha com seus va-
lidos, e como se assentasse ao lado da sua pessoa, a sua
presença não impediu que a conversação, que versava
sobre cousas indifferentes, continuasse ainda algum tem-
po . Fallou depois o sultão , e dirigindo a palavra ao prin-
cipe Ahmed : < « Filho, disse elle, quando viestes tirar-me
da profunda tristeza em que me sepultára a vossa lon-
ga ausencia, fizestes-me mysterio do lugar que escolhes-
tes para vosso retiro ; satisfeito por tornar-vos a vér, e
por saber que estaveis contente com a vossa sorte, não
quiz penetrar o vosso segredo, logo que percebi que não
o desejaveis . Não sei que razão tivestes para obrar as-
sim com um pai, que sempre , como o faz hoje, vos
teria manifestado a parte que tomava na vossa feli-
cidade . Sei que ventura é essa , d'ella me alegro com-
Vosco e approvo o partido que tomastes de dar a mão
a uma fada tão digna de ser amada, tão rica e tão po-
derosa, como o soube de boa parte. Portanto, poderoso
como sou, não me teria sido possivel procurar-vos um
casamento igual . Na alta dignidade a que estaes elevado ,
a qual poderia ser invejada por qualquer outro que não
fosse um pai como eu, não sómente vos peço que con-
tinueis a viver commigo em boa intelligencia, como fi-
zestes sempre até agora, mas que empregueis tambem
todo o credito que possaes ter com a vossa fada para al-
cançar-me a sua assistencia nas precisões que eu tenha ;
e desde hoje consentireis de boa vontade que faça o en-
saio do que vos digo . Não ignoraes as despezas excessi-
vas, sem fallar nos incommodos que os meus generaes, os
meus officiaes subalternos e eu mesmo passo quando me
ponho em campo em tempo de guerra, para me prover
CONTOS ARABES 301

de pavilhões e de barracas, de camêlos , e de outras bes-


tas de carga para o transporte. Se daes bastante attenção
ao gosto que me darieis, estou persuadido que não te-
reis trabalho em fazer com que ella vos conceda um pa-
vilhão que caiba n'uma mão e debaixo do qual todo o
meu exercito possa abrigar-se, principalmente quando lhe
tiverdes dado a conhecer que é para mim. A difficuldade
do que peço não será motivo para vol- o recusar ; todo o
mundo sabe o poder que teem as fadas para fazer as
cousas mais extraordinarias ».
Não esperava o principe Ahmed que o sultão seu
pai exigisse d'elle semelhante cousa, que lhe pareceu
logo difficultosissima, para não dizer impossivel ; com
effeito, ainda que não ignorasse absolutamente quanto
o poder dos genios e das fadas era grande, duvidou to-
davia que se estendesse a poder-lhe dar um pavilhão
tal como o pedia. Além d'isso , até então não tinha pe-
dido a Pari-Banou cousa que se assemelhasse a isto ;
contentava-se com as demonstrações continuas que ella
The dava da sua paixão , e nada esquecia de tudo o que
pudesse persuadir- lhe que correspondia ao seu affecto
de todo o coração, sem mais interesse que o de con-
servar-se na sua companhia ; assim, achou-se muito em-
baraçado quanto à resposta que devia dar. « < Senhor ,
replicou elle, se fiz mysterio a vossa magestade do que
me aconteceu e do partido que tomei depois de ter
achado a minha frecha, foi porque não me pareceu que
The importasse ser informado d'isso ; ignoro como lhe
foi revelado este mysterio, não posso todavia occul-
tar-lhe que a relação que lhe fizeram é verdadeira.
Sou esposo da fada de quem lhe fallaram ; amo-a, e
persuado - me que ella me ama tambem, mas ácerca do
poder que tenho para com ella, como vossa magestade
cré, nada posso dizer . A razão é que não só o não ex-
perimentei, nem nunca tive tal pensamento , e desejaria
muito que vossa magestade quizesse dispensar-me de
emprehendel-o, e deixar-me gozar da felicidade de amar
e de ser amado sem interesse algum. Porém o que
pede um pai é um mandamento para um filho que , co-
mo eu, olha como um dever obedecer-lhe em todas as
302 AS MIL E UMA NOITES

cousas. Ainda que a meu pezar e com tal repugnancia


que não posso expressar, não deixarei de pedir a mi-
nha esposa o que vossa magestade deseja que lhe peça,
mas não lhe prometto que o alcançarei ; e se deixar de
ter a honra de vir tributar-lhe os meus respeitos , será
um signal de o não ter conseguido e de antemão lhe
peço a graça de perdoar-me, e de considerar que ella
mesma me terá reduzido a essa extremidade ».
O sultão das Indias replicou ao principe Ahmed :
<< Filho, teria grande pezar se o que vos peço pudesse
dar-vos motivo para causar-me o desgosto de não vos
tornar mais a vér ; bem vejo que não conheceis o poder
d'um marido sobre sua mulher. Vossa esposa mos-
traria que vos ama sómente com mui fraca paixão, se
com o poder que tem como fada, vos recusasse uma
cousa de tão pouca importancia, como a que vos rogo
lhe peçaes da minha parte ; deixai a vossa timidez , que
não procede senão de vós crêrdes que não sois amado
como vós amaes . Ide , pedi sómente, e vereis que a fada
vos ama muito mais do que vos parece ; lembrai- vos de
que muitos por falta de pedirem, se privam de grandes
vantagens. Lembrai-vos tambem que assim como não
The recusarieis o que vos pedisse , porque a amaes , ella
não vos recusará tambem o que lhe pedirdes, porque vos
ama ».
O sultão das Indias não persuadiu o principe Ahmed
com o seu discurso ; o principe Ahmed teria estimado
mais que lhe pedisse qualquer outra cousa do que ex-
pôl-o a desagradar á sua querida Pari -Banou ; e em razão
do desgosto que teve, partiu da côrte dous dias mais
cedo do que costumava. Chegado que foi, a fada, que
até então o vira sempre apresentar-se-lhe com semblan-
te alegre, lhe perguntou a causa da mudança que n'elle
observava. Como ella visse que em vez de responder,
lhe perguntava novas da sua saude, com tal modo que
dava a entender que evitava satisfazel -a : « Responderei
á vossa pergunta, disse ella, quando tiverdes respondido
á minha ». Desculpou-se muito tempo o principe, protes-
tando-lhe que não era nada , porém quanto mais se des-
culpava, mais ella apertava com elle : «Não posso, dis-
CONTOS ARABES 303

se ella, vêr-vos no estado em que estaes sem me decla-


rardes o que vos causa desgosto, para que dissipe a
causa d'elle , qualquer que possa ser . Seria preciso que
fosse muito extraordinaria, se estivesse fóra do meu al-
cance, a não ser a morte do sultão vosso pai . N'esse
caso, com o que eu procuraria contribuir para isso pela
minha parte, dar-vos-hia o tempo a consolação » .
Não pôde o principe Ahmed resistir mais tempo ás
vivas instancias da fada ; disse- lhe : « Senhora , Deus di-
late a vida do sultão meu pai e o abençôe até ao fim de
seus dias. Ficou cheio de vida e com perfeita saude ;
assim não é isso o que causa o desgosto que notastes
em mim ; o mesmo sultão é que é a causa d'elle, e tanto
mais afflicto estou , quanto me põe na triste necessidade
de ser-vos importuno. Em primeiro lugar, senhora, sa-
beis o cuidado que tomei - observar a vossa prevenção,
occultando a felicidade que tive de vêr-vos, de amar-
vos, de merecer a vossa amizade e vosso amor, e de
receber vossa fé, dando-vos a minha mão ; não sei to-
davia de que maneira o sultão foi informado d'isso ».
A fada Pari -Banou interrompeu o principe Ahmed
n'esta passagem : « Eu, replicou ella, eu o sei ; lembrai-
vos do que vos disse da mulher que vos persuadiu que
estava doente e da qual tivestes compaixão ; ella é que
contou ao sultão vosso pai o que lhe occultastes . Eu
disse-vos que ella estava tão doente como vós e eu ;
ella mostrou a verdade d'isso . Com effeito, tendo- lhe as
duas mulheres a quem a tinha recommendado, dado a
beber da agua soberana para todas as especies de fe-
bres, da qual todavia não precisava, fingiu que esta
agua a curára e fez-se levar ao meu quarto para des-
pedir-se de mim, com o fim de ir immediatamente con-
tar o successo da sua empresa. Estava tão apressada ,
que teria partido sem vêr o meu palacio, se ordenan-
do ás minhas duas criadas que a conduzissem, não lhe
tivesse dado a entender que valia a pena ser visto.
Mas, proseguiu, vejamos como o sultão vosso pai vos
pûz na necessidade de ser-me importuno, o que to-
davia não acontecerá, podeis estar persuadido d'isso .
-Senhora, proseguiu o principe Ahmed , pudestes obser-
304 AS MIL E UMA NOITES

var que até agora, certo que me amaveis, não vos pedi
favor algum. Depois da posse d'uma esposa tão ama-
vel, que mais poderia eu desejar ? Não ignoro toda-
via qual é o vosso poder, mas tinha resolvido evitar ex-
perimental-o. Considerai pois, senhora, que não sou eu,
mas o sultão meu pai, que vos pede indiscretamente, se-
gundo me parece, um pavilhão que o abrigue dos effei-
tos do tempo, quando esteja em campanha, elle , toda a
sua côrte e todo o seu exercito , e que caiba n'uma mão ;
ainda uma vez, não sou eu , é o sultão meu pai quem
vos pede esta graça. - Principe, replicou a fada sorrin-
do-se, sinto que tão pouca cousa vos causasse o embara-
ço e o tormento de espirito que mostraes ter. Bem vejo
que duas cousas contribuiram para isso, uma é a lei
que vós vos impuzestes em contentar- vos com amar e
ser amado, e em abster-vos da liberdade de pedir-
me a mais leve cousa para ensaiar o meu poder . A ou-
tra, de que não duvido por mais que possaes dizer, é
que vós imaginastes que o que exigiu o sultão vosso
pai que me pedisseis , era superior a esse poder. Quan-
to á primeira, louvo -vos e amar- vos-hia ainda mais , se
fosse possivel. Quanto à segunda não terei trabalho al-
gum em dar-vos a conhecer que o que o sultão me
pede é uma bagatella, e quando se offerecer occasião,
posso fazer cousas muito mais difficultosas . Tende pois o
espirito socegado , e persuadi -vos que bem longe de im-
portunar-me, terei sempre grande gosto em conceder-
vos tudo o que puderdes desejar que faça a vosso res-
peito >> .
Acabando, pediu a fada que lhe chamassem a sua
thesoureira. Veio a thesoureira : « Nourgihan, disse a fa-
da este era o nome da thesoureira — traze- me o maior
pavilhão que haja no meu thesouro » . Voltou Nourgihan
passado pouco tempo, trazendo um pavilhão, que não
só cabia na mão, mas que a mão podia esconder fechan-
do-a, e o apresentou á fada sua ama, que pegou n'elle,
e o pôz nas mãos do principe Ahmed para que o exami-
nasse.
.
Tendo o principe Ahmed visto o que a fada Pari-Ba-
nou chamava um pavilhão , o maior pavilhão, dizia ella,
CONTOS ARABES 305

que houvesse no seu thesouro, cuidou que queria mofar


d'elle, e os indicios do seu pasmo appareceram no seu
rosto. Pari -Banou, que percebeu isso , deu uma grande ri-
sada : « 0 quê, principe ! clamou ella ; parece - vos pois
que quero mofar de vós ? Vereis logo que não estou mo-
fando. Nourgihan, disse à sua thesoureira, pegando no
pavilhão das mãos do principe Ahmed e entregando- lh'o ;
vai, arma- o ; que o principe julgue se o sultão seu pai o
achará mais pequeno que o que lhe pediu » .
Sahiu do palacio a thesoureira , e d'elle se afastou
assás longe, para fazer de modo que quando o tivesse
armado, a extremidade tocasse n'um lado do palacio.
Tendo acabado, o principe Ahmed o achou não mais pe-
queno , mas tão grande, que dous exercitos , tão nume-
rosos como o do sultão das Indias, podiam n'elle estar
abrigados . < « Então, minha princeza, disse a Pari-Banou ,
peço - vos mil perdões da minha incredulidade . Pelo que
vejo não creio que haja cousa alguma de tudo o que
quizerdes emprehender, que não possaes fazer. - Vós
estaes vendo , disse -lhe a fada , que o pavilhão é maior
do que se precisa . Porém, notareis uma cousa, é que tem
a propriedade de se alargar ou encolher á proporção
do que deve estar n'elle abrigado , sem ter precisão de
pôr-lhe a mão » .
Desarmou a thesoureira o pavilhão, reduziu-o ao seu
primeiro estado, trouxe-o e o entregou nas mãos do prin-
cipe . Pegou n'elle o principe Ahmed, e no dia seguinte ,
sem mais tardar, montou a cavallo, e acompanhado da
sua comitiva ordinaria, foi apresental-o ao sultão seu
pai .
O sultão, que imaginava que um pavilhão tal como o
pedira, era fóra de toda a possibilidade, ficou muito ad-
mirado da diligencia do principe seu filho. Aceitou o pa-
vilhão, e depois de ter admirado a pequenez d'elle , ficou
em tal espanto, que lhe custou tornar a si ; mandou-o ar-
mar na grande planicie de que já fallámos, reconhecendo
que mais dous exercitos tão grandes como o seu , podiam
n'elle estar abrigados muito commodamente : como con-
siderasse esta circumstancia como uma superfluidade, que
podia ser incommoda na pratica e no uso, não se esque-
TOMO IV . 20
306 AS MIL E UMA NOITES

ceu o principe Ahmed de avisal- o que esta grandeza se


acharia sempre proporcionada á do seu exercito.
Na apparencia, o sultão das Indias manifestou ao prin-
pe a obrigação que lhe devia por um presente tão ma-
gnifico, rogando- lhe que agradecesse bem á fada Pari-Ba-
nou da sua parte ; e para mais provar- lhe o caso que
d'elle fazia, ordenou que o guardassem cuidadosamente
no seu thesouro. Porém concebeu um ciume mais exces-
sivo que o que os seus validos e a magica lhe tinham
inspirado , considerando que com o favor da fada, o prin-
cipe seu filho podia executar cousas que eram infinita-
mente superiores ao seu proprio poder, não obstante a
sua grandeza e suas riquezas . Assim, mais animado que
d'antes a não se esquecer de nada para obrar de sorte
que o principe perecesse, consultou a magica, e ella o
aconselhou que empenhasse o principe em trazer-lhe agua
da fonte dos leões .
Á tarde, como o sultão désse a assembléa costumada
aos seus cortezãos, e como o principe Ahmed se achas-
se n'ella, fallou -lhe n'estes termos : « Filho , disse elle,
já vos manifestei quanto vos estou obrigado pelo presen-
te do pavilhão que me alcançastes, que considero a pe-
ça mais preciosa do meu thesouro ; é preciso que a meu
respeito façaes outra cousa que não me será menos agra-
davel . Sei que a fada vossa esposa se serve d'uma certa
agua da fonte dos leões, que sára todas as qualidades de
febres as mais perigosas . Como estou persuadido que a
minha saude vos é grata, não duvido tambem que quei-
raes pedir-lhe um vaso d'ella, e trazer-m'o, como um
remedio soberano, de que posso precisar a cada instan-
te. Fazei - me pois este importante serviço, e com isto da-
reis exemplo da ternura d'um bom filho para com um
bom pai ».
O principe Ahmed , que cuidára que o sultão seu pai
se contentaria com ter à sua disposição um pavilhão tão
singular e tão util como o que acabava de trazer-lhe, e
que não lhe pediria novo favor, capaz de indizpol-o
com a fada Pari-Banou, ficou como pasmado d'esta nova
pretensão que d'elle exigia , não obstante a segurança
que lhe dera em conceder-lhe tudo o que dependia do

CONTOS ARABES 307

seu poder. Passados alguns instantes de silencio : «< Se-


nhor, disse elle, supplico a vossa magestade, que tenha
por certo que não ha cousa alguma que não esteja dis-
posto a fazer ou a emprehender para poder alcançar tudo
o que seja capaz de prolongar os seus dias, mas dese-
jaria que fosse sem a intervenção de minha esposa. Esta
a razão por que não ouso prometter trazer- lhe d'essa
agua. Tudo o que posso fazer é assegurar- lhe que lh'a
pedirei, mas com a mesma violencia da minha parte co-
mo quando lhe pedi o pavilhão » .
No dia seguinte o principe Ahmed , estando de volta
e na companhia da fada Pari-Banou, lhe fez a narração
sincera e fiel do que fizera, e do que se passára na côr-
te do sultão seu pai quando lhe apresentou o pavilhão,
que recebêra com grande demonstração de reconheci-
mento para com ella, e não faltou a dar-lhe parte da
nova pretensão de que estava encarregado da sua parte ;
e acabando, acrescentou : « Minha princeza , não vos ex-
ponho isto senão como uma simples narração do que se
passou entre mim e o sultão meu pai ; quanto ao mais,
podeis satisfazer ao que deseja, ou recusal-o , sem eu to-
mar n'isso interesse algum ; não quero senão o que qui-
zerdes . Não , não, replicou a fada Pari-Banou , estimo
muito que o sultão das Indias saiba que não me sois indif-
ferente. Quero contental- o ; e sejam quaes forem os con-
selhos que a magica lhe possa dar , pois bem vejo que
só a ella dá ouvidos, achar-se- ha enganado. Ha malicia
no que pede, e percebel-o -heis pela narração que ides.
ouvir. A fonte dos leões está no meio do pateo d'um
grande castello, cuja entrada é guardada por quatro leões
dos mais possantes ; dous dormem alternadamente, em
quanto que os outros dous vigiam, mas não vos espan-
te isso, dar-vos - hei meio de passar por meio d'elles sem
perigo algum » .
Occupava-se então a fada Pari-Banou a coser, e como
tivesse perto d'ella alguns novellos de fio, pegou n'um
e apresentando-o ao principe Ahmed : « Em primeiro lu-
gar, disse ella, pegai n'este novello , dir-vos - hei logo o
uso que d'elle haveis de fazer ; em segundo lugar, man-
dai apparelhar dous cavallos, um em que montareis e
308 AS MIL E UMA NOITES

outro que levareis pela rédea, carregado com um carnei-


ro cortado em quatro quartos, que importa matar hoje
mesmo . Em terceiro lugar prover-vos-heis d'um vaso,
que vos mandarei dar, para tirar a agua. Ide lá amanhã

pela manhã cedo , montai a cavallo, segurando o outro


pela rédea, e depois de ter sahido pela porta de ferro,
deitareis diante de vós o novello de fio ; rolará o novel-
lo, e não cessará de rolar até à porta do castello . Se-
gui-o até lá , e parado que seja , como a porta estará aber-
ta, vereis os quatro leões, dos quaes os dous que vigiarão,
CONTOS ARABES 309

hão-de acordar com o seu rugido os outros dous que es-


tarão a dormir . Não vos assusteis ; lançai a cada qual
um quarto do carneiro, sem vos apeardes . Depois, sem
perder tempo , picai o vosso cavallo, e n'uma carreira li-
geira correi apressadamente á fonte, enchei o vosso va-
so, sem tambem vos apeardes, e voltai com a mesma li-
geireza ; os leões, ainda entretidos a comer, vos deixarão
a sahida livre >> .
O principe Ahmed partiu no dia seguinte á hora que
lhe dissera a fada Pari-Banou e executou ponto por pon-
to o que ella lhe prescrevêra. Chegou á porta do castel-
lo, distribuiu os quartos de carneiro pelos quatro leões,
e ' depois de ter passado pelo meio d'elles com intre-
pidez, penetrou até à fonte e tirou agua ; cheio o va-
so, voltou e sahiu do castello são e salvo como entrára .
Estando já um pouco afastado, voltando-se avistou dous
dos leões que vinham correndo para elle ; sem assustar-
se puxou pelo seu alfange e pôz-se em defeza . Porém
como visse que um se desviára a alguma distancia, dan-
do- lhe a entender com a cabeça e com o rabo que não
vinha para fazer-lhe mal , mas para andar adiante d'elle ,
e que o outro ficava atraz para seguil-o , embainhou o
seu alfange, e assim proseguiu o seu caminho até á ca-
pital das Indias, onde entrou acompanhado pelos dous
leões , que não o largaram senão á porta do palacio do
sultão ; deixaram-o entrar, depois do que tornaram a to-
mar o mesmo caminho por onde vieram, não sem gran-
dissimo susto da parte dos que os viram, os quaes se es-
condiam e fugiam, uns para um, outros para outro lado ,
para evitar encontral-os.
Alguns officiaes que se apresentaram para ajudar o
principe Ahmed a apear-se, o acompanharam até ao quar-
to do sultão , onde se entretinha com seus validos . Che-
gou-se ao throno, depositou o vaso aos pés do sultão e
beijou o rico tapete que cobria o estrado, e levantando-
se: «Senhor, disse elle, eis-aqui a agua saudavel que
Vossa magestade desejou pôr na classe das cousas pre-
ciosas e curiosas, que enriquecem e ornam o seu the-
souro. Desejo-lhe uma saude sempre tão perfeita que
nunca precise fazer uso d'ella » .
310 AS MIL E UMA NOITES

Tendo o principe acabado o seu comprimento , man-


dou-o o sultão assentar á sua direita : « < Filho , disse
elle , devo-vos uma grande obrigação pelo vosso pre-
sente , tão grande como o perigo a que vos expuzes-
tes por amor de mim . (D'elle fôra informado pela magi-
ca, que tinha conhecimento da fonte dos leões e do pe-
rigo a que se expunham os que lá queriam ir buscar
agua) . Tende a bondade, continuou elle, de contar-me
com que destreza , ou , para melhor dizer, com que força
incrivel vos livrastes do dito perigo . - Senhor, replicou
o principe Ahmed, não tomo parte alguma no compri-
mento de vossa magestade ; é inteiramente devido á fada
minha esposa, e não me attribuo outra gloria senão a de
ter seguido os seus bons conselhos ». Deu -lhe então a
conhecer quaes foram esses bons conselhos , pela narra-
ção da viagem que fizera , e de que modo se portára. O
sultão, depois de tel-o ouvido com grandes demonstrações
de alegria, mas no seu interior com o mesmo ciume, :
que augmentou em vez de diminuir, se levantou e se re-
colheu só ao interior do seu palacio , onde lhe trouxeram
a magica que mandára chamar.
A magica, á sua chegada, poupou ao sultão o traba-
lho de fallar-lhe da do principe 'Ahmed e do successo
da sua viagem. Tinha sido logo informada pelo boato que
se espalhou , e tinha-se já preparado ácerca do meio in-
fallivel, segundo lhe parecia, para o que pretendia . Com-
municou este meio ao sultão, e no dia seguinte , na as-
sembléa dos cortezãos , o sultão o declarou n'estes ter-
mos ao principe que se achava presente : < « Filho, disse
elle , não tenho já senão uma supplica a fazer-vos ; fei-
ta ella nada mais tenho que exigir da vossa obediencia,
nem do vosso poder para com a fada vossa esposa. Con-
siste em trazer-me um homem que não tenha mais que
pé e meio de altura, com a barba do comprimento de
trinta pés, que traga aos hombros uma barra de ferro
do peso de quinhentos arrateis, da qual se sirva como
d'um bastão, e que saiba fallar » .
O principe Ahmed, que não imaginava que houvesse
no mundo ninguem constituido como o sultão seu pai
o requeria, quiz desculpar-se, mas o sultão persistiu na
CONTOS ARABES 311

supplica, repetindo-lhe que a fada podia fazer cousas


ainda mais incriveis.
No dia seguinte, como tivesse o principe voltado ao
reino subterraneo de Pari-Banou, á qual communicou a
nova supplica do sultão seu pai , que considerava, dizia
elle, como uma cousa que lhe parecia ainda menos pos-
sivel, do que lhe pareceram logo as duas primeiras :
« Quanto a mim, acrescentou elle , não posso imaginar
que em todo o universo haja, ou que possa haver d'essa
especie de homens . Quer sem duvida experimentar se te-
rei a simplicidade de fazer a diligencia para descobrir-
lh'o, ou se o ha, deve o seu intento ser o de perder-me .
Com effeito , como póde pretender que me assegure d'um
homem tão pequeno, que seja armado do modo que en-
tende ? de que armas poderia eu servir-me para obri-
gal - o a sujeitar-se ás minhas vontades ? Se o ha, espe-
ro que me lembreis um meio para tirar me d'este lance
-
com honra. Meu principe, replicou a fada, não vos
assusteis ; havia algum risco a correr para levar da agua
da fonte dos leões ao sultão vosso pai ; não ha nenhum
para achar o homem que pede . Esse homem é meu ir-
mão Schaibar, o qual , bem longe de se assemelhar a mim,
ainda que sejamos filhos do mesmo pai, é d'um caracter
tão violento , que não pode impedil-o de dar signaes
crueis do seu resentimento , por pouco que lhe desagra-
dem ou o offendam . Exceptuando isso, é o melhor homem
do mundo e está sempre prompto a servir em tudo o
que se póde desejar. E justamente do feitio que o sul-
tão vosso pai descreveu, e não tem outras armas senão
a barra de ferro de quinhentos arrateis , sem a qual nun-
ca anda, e que lhe serve para fazer-se respeitar. Vou
mandal-o chamar e julgareis se digo a verdade ; mas
preparai-vos para vos não assustardes com a sua figura
extraordinaria , quando o virdes apparecer . - Minha rai-
nha, replicou o principe Ahmed , dizeis que Schaibar é
vosso irmão ? Por mais feio e contrafeito que possa ser,
bem longe de assustar-me vendo o , basta isso para m'o
fazer amar, honrar e considerar como meu parente mais
chegado »> .
Mandou trazer a fada para debaixo do vestibulo
312 AS MIL E UMA NOITES

perfumador d'ouro, cheio de brazas , e uma boceta do


mesmo metal. Tirou da boceta o perfume que n'ella esta-
va guardado, e como o tivesse deitado no perfumador,
levantou-se uma densa fumarada.

Passados alguns instantes depois d'esta ceremonia,


disse a fada ao principe Ahmed : « Meu principe, eis-aqui
meu irmão que chega ; vêdel- o ?» O principe olhou e
avistou Schaibar, que era só da altura de pé e meio, e
que vinha gravemente com a barra de ferro de quinhen-
tos arrateis aos hombros e a barba do comprimento de
CONTOS ARABES 313

trinta pés, os bigodes espessos, á proporção , e levanta-


dos até ás orelhas, que lhe cobriam quasi todo o rosto,
os olhos de porco, encovados nas orbitas, a cabeça era
d'um tamanho enorme, e coberta com um barrete pon-
teagudo, e finalmente era carcunda por diante e por de-
traz.
Se o principe Ahmed não estivesse prevenido que
Schaibar era irmão de Pari-Banou , não poderia vêl - o sem
grande susto, mas socegado com este conhecimento , es-
perou-o a pé firme com a fada, e o recebeu sem indicio
algum de fraqueza.
Schaibar, que á proporção que se aproximava , olha-
va o principe Ahmed com semblante que devera gelar-
lhe o sangue, perguntou a Pari- Banou chegando-se a ella,
quem era aquelle homem. « Irmão , respondeu ella, é meu
esposo, seu nome é Ahmed e é filho do sultão das In-
dias . A razão por que não vos convidei para o meu ca-
samento, foi que não quiz desviar- vos da expedição em
que estaveis empenhado, d'onde soube, com muito gosto,
que voltastes victorioso ; em consideração a elle é que
tomei a liberdade de chamar-vos ».
Proferidas estas palavras, Schaibar, olhando para o
principe Ahmed com olhos benignos, que em nada di-
minuiam todavia o seu orgulho, nem o seu semblante fe-
roz : « < Irmã, disse elle, ha alguma cousa em que possa
servil-o ? Basta fallar. Como seja vosso esposo estou
prompto a dar-lhe gosto em tudo o que desejar. - 0
sultão seu pai, replicou Pari-Banou , tem a curiosidade de
vér-vos ; rogo-vos que permittaes que o meu esposo seja
o vosso conductor. - Póde partir já, replicou Schaibar ,
estou prompto a seguil-o . -Irmão , replicou Pari - Banou,
é muito tarde para emprehender essa viagem hoje, as-
sim tereis a bondade de esperar até amanhã. Comtudo ,
como é conveniente que sejaes informado do que se pas-
sou entre o sultão das Indias e o principe Ahmed , desde
o nosso casamento, contar-vos - hei tudo isso esta tarde » .
No dia seguinte, Schaibar, informado já do que con-
vinha que não ignorasse , partiu cedo, acompanhado do
principe Ahmed, que devia apresental- o ao sultão . Che-
garam á capital , e como Schaibar apparecesse á porta,
314 AS MIL E UMA NOITES

todos os que avistaram, cheios de susto á vista de um


objecto tão medonho, se esconderam, uns nas lojas ou
nas casas, cujas portas fecharam, e outros, tomando a
fuga, communicavam o susto aos que encontravam, os
quaes retrocediam sem olhar para traz . Assim, á propor-
ção que Schaibar e o principe Ahmed avançavam com
todo o vagar, acharam desertas as ruas e praças publicas
até ao palacio . Ali e os porteiros, em vez de pôr-se em
estado de impedir ao menos que Schaibar entrasse , fugi-
ram cada um para seu lado e deixaram livre a entrada
da porta. O principe e Schaibar chegaram sem obstacu-
lo até á sala do conselho , onde o sultão, assentado no
seu throno, dava audiencia ; como os porteiros tivessem
abandonado os seus postos, logo que viram apparecer
Schaibar, entraram sem impedimento .
Schaibar, com a cabeça levantada chegou-se ao throno
orgulhosamente, e sem esperar que o principe Ahmed o
apresentasse fallou ao sultão das Indias n'estes termos :
« Tu me chamaste, disse elle , eis -me aqui ; que queres
de mim ?>>
O sultão, em vez de responder , tinha coberto o rosto
com as mãos , para não vêr um objecto tão horrendo ;
Schaibar, indignado d'este acolhimento descortez e inju-
rioso, depois de ter-lhe dado o trabalho de vir, levantou
a sua barra de ferro , e dizendo-lhe : « Falla ! » , descarre-
gou-lh'a sobre a cabeça e o matou : já estava o mal fei-
to quando o principe Ahmed pensou pedir por elle . Tudo
o que pôde fazer foi impedir que não matasse tambem
o grão-visir, que não estava longe da direita do sultão ,
representando -lhe que tinha muito que agradecer-lhe pe-
los bons conselhos que dera ao sultão seu pai. « São en-
tão estes, disse Schaibar, os que lhe deram maus conse-
lhos ? » Pronunciando estas palavras, matou os outros vi-
sires que estavam á direita, e à esquerda, todos validos
e aduladores do sultão , e inimigos do principe Ahmed.
Foram tantos os mortos quantos os golpes, e não esca-
param senão aquelles cujo espanto e susto não foi tal
que os tornasse immoveis e os impedisse de procurar
salvar a vida por meio da fuga.
Acabada esta terrivel execução, sahiu Schaibar da sa-
CONTOS ARABES 315

la do conselho , e no meio da côrte, com a barra de fer- ·


ro aos hombros, encarando o grão- visir que acompanha-
va o principe Ahmed, a quem devia a vida : « Eu sei,
disse elle , que ha aqui uma certa magica mais inimiga
do principe meu cunhado, que os indignos validos que
acabo de castigar ; quero que m'a tragam. Mandou o
grão-visir buscal-a ; trouxeram-a e Schaibar matando-a
com a sua barra de ferro : « Aprende, disse elle , a dar
conselhos perniciosos e a fingir -te doente » . A magica fi-
cou estendida morta .
<
«
< Não basta isto, acrescentou Schaibar, vou tambem.
castigar de morte toda a cidade, se no mesmo instante
não reconhecer o principe Ahmed, meu cunhado , por seu
sultão e por sultão das Indias » . Logo, os que estavam pre-
sentes, e que ouviram esta sentença , fizeram resoar pelo
ar gritando em alta voz : « Viva o sultão Ahmed ! » Em
poucos instantes resoou por toda a cidade a mesma ac-
clamação e proclamação ao mesmo tempo . Mandou-o
Schaibar vestir com o fato de sultão das Indias , sentou - o
no throno, e depois de ter- lhe feito tributar homenagem
e prestar o juramento de fidelidade que lhe era devido ,
foi buscar sua irmã Pari- Banou , trouxe-a com grande
pompa, e a fez tambem reconhecer como sultana das In-
dias .
Quanto ao principe Ali e á princeza Nourounnihar,
como não tivessem tomado parte alguma na conspiração
contra o principe Ahmed, que acabava de ser castigada,
e da qual não tiveram conhecimento , o principe Ahmed
lhes assignou para seu patrimonio o rendimento d'uma
provincia muito consideravel com a sua capital, onde fo-
ram passar o resto de seus dias . Expediu tambem um
official ao principe Houssan, seu irmão mais velho, para
annunciar-lhe a mudança que acabava de acontecer, e
para offerecer-lhe a escolher, em todo o reino, a pro-
vincia que mais lhe agradasse para d'ella gozar como
propriedade . Mas o principe Houssan achava-se tão feliz
na sua solidão, que encarregou o official de agradecer
muito ao sultão , seu irmão mais novo, a attenção que ti-
vera com elle, protestando-lhe a sua obediencia, e infor-
mando- o de que a unica graça que lhe pedia, era a de
316 AS MIL E UMA NOITES

permittir que elle continuasse a viver no retiro que es-


colhera.

HISTORIA

DAS DUAS IRMÃS, CIOSAS DE SUA IRMÃ MAIS NOVA

A sultana Scheherazada , continuando a entreter, na


irresolução , o sultão das Indias , pela narração de seus
contos, isto é, na incerteza se a mandaria matar ou se
a deixaria viver, contou-lhe uma nova historia n'estes
termos :
Senhor, disse ella , havia um principe da Persia cha-
mado Khosrouschah, o qual principiando a ter conheci-
mento do mundo , gostava das aventuras nocturnas ; dis-
farçava-se algumas vezes acompanhado d'um de seus of-
ficiaes de confiança, disfarçado como elle, e correndo os
bairros da cidade, aconteceram-lhe algumas particularida-
des, com as quaes não tentarei entreter hoje vossa mages-
tade. Espero porém que ouvirá com gosto a que lhe acon-
teceu na sua primeira sahida, que fez passados poucos
dias depois que subiu ao throno, em lugar do sultão seu
pai , o qual , morrendo muito avançado em annos, o dei-
xára herdeiro do reino da Persia.
Depois das ceremonias costumadas por occasião da
sua exaltação ao throno, e depois das exequias do sultão
seu pai, o novo sultão Khosrouschah, tanto por inclina-
ção como por obrigação, para tomar conhecimento do
que se passava, sahiu do seu palacio quasi pelas duas
horas da noite , acompanhado do seu grão- visir, disfarça-
do como elle . Como se achasse n'um bairro onde não
morava senão povo miudo, passando por uma rua ouviu
que se fallava em voz alta ; chegou-se á casa d'onde vi-
nha o susurro, e olhando por uma fenda da porta , viu
luz e tres irmãs assentadas n'um sophá, conversando de-
pois da cêa. Pelas palavras da mais velha percebeu logo
que os desejos eram o assumpto da sua conversa. « Visto
que estamos tratando de desejos , disse ella, o meu seria
ter o padeiro do sultão por marido, comeria a fartar d'esse
CONTOS ARABES 317

pão tão delicado, que chamam por excellencia pão do


sultão ; vejamos se o vosso gosto é tão bom como o
meu. — E eu, replicou a irmã segunda, o meu desejo será
ser a mulher do chefe da cozinha do sultão, comeria ex-
cellentes guisados e , como estou muito persuadida que
o pão do sultão é commum no palacio , não me faltaria ;

vós estaes vendo, minha irmã, acrescentou ella dirigin-


do-se à sua irmã mais velha, que o meu gosto vale bem
O vosso »
>.
A irmã mais nova, que era em extremo bella e que
era muito mais agradavel e mais espirituosa que suas ir-
318 AS MIL E UMA NOITES

mãs mais velhas, fallou tambem pela sua vez : « Quanto a


mim, minhas irmãs, disse ella, não limito os meus de-
sejos a tão pouca cousa , tomo um vôo mais alto ; e visto
que se trata de desejar, eu queria ser esposa do sultão.
Dar-lhe-hia um principe cujos cabellos seriam de ouro
d'um lado, e do outro de prata ; quando chorasse, as la-
grimas que lhe corressem dos olhos seriam perolas , e
todas as vezes que se sorrisse , os seus labios vermelhos
pareceriam um botão de rosa quando abre ».
Os desejos das tres irmãs, e particularmente o da
mais nova, pareceram tão singulares ao sultão Khosrous-
chah, que resolveu satisfazel-as , e sem nada communi-
car d'esta resolução ao seu grão -visir, encarregou de ob-
servar bem a casa para ir buscal-as no dia seguinte, e
lh'as levar todas tres ao palacio .
O grão-visir, executando a ordem do sultão no dia se-
guinte, deu sómente ás tres irmãs tempo de se vestirem
apressadamente para apparecerem na sua presença, sem
lhes dizer outra cousa senão que sua magestade queria
vêl-as . Levou-as ao palacio ; e tendo-as apresentado ao
sultão, este perguntou -lhes : « Dizei-me, lembraes- vos dos
desejos que tinheis hontem à noite, quando estaveis de
tão bom humor ? Não dissimuleis, quero sabel-o ».
A estas palavras do sultão, as tres irmãs, que não
esperavam por isto, acharam-se em grande confusão . Bai-
xaram os olhos, e a vermelhidão que lhes subiu á cara
deu-lhes tal graça, que acabou de captivar o coração do
sultão . Como a honestidade e o receio de ter offendido
o sultão com a sua conversa lhes fazia guardar silencio,
o sultão, que percebeu isto, lhes disse para socegal-as :
«< Não receeis cousa alguma ; não vos mandei vir para
<
penalisar-vos, e como vejo que a pergunta que vos fiz
não vos dá a conhecer a minha intenção , e como sei
tambem qual é o desejo de cada uma, quero fazer ces-
sar o vosso receio . Vós , que desejaveis ter-me por esposo,
sereis hoje satisfeita ; e a vós, continuou elle dirigindo-se
á primeira e á segunda irmã, faço tambem os vossos ca-
samentos, uma com o meu padeiro, e a outra com o
chefe da minha cozinha ».
Tendo o sultão declarado a sua vontade , dando a
CONTOS ARABES 319

mais nova o exemplo a suas irmãs , lançou-se aos pés do


sultão para dar-lhe provas do seu reconhecimento : < <« Se-
nhor, disse ella, o meu desejo, visto que vossa mages-
tade o sabe, foi sómente para entreter-nos e divertir-nos ;
não sou digna da honra que me faz, e peço -lhe perdão
da minha ousadia » . Quizeram as duas irmãs mais velhas
desculpar-se tambem, mas o sultão interrompendo -as :
« Não, não , disse elle , assim será, cumprir-se-ha o de-
sejo de cada uma » .
Foram as bodas celebradas no mesmo dia, do modo
que o sultão Khosrouschah o resolvera, mas com muita
differença. As da irmã mais nova foram acompanhadas
da pompa e de todas as demonstrações de regosijo que
convinham á união conjugal d'um sultão e de uma sul-
tana da Persia, quando as das outras irmãs não foram
celebradas senão com o esplendor que se podia esperar
da qualidade de seus esposos, isto é, do primeiro pa-
deiro e do chefe da cozinha do sultão .
Sentiram vivamente ambas as irmãs a desigualdade
que havia entre os seus casamentos e o de sua irmã
mais nova. Por isso , longe de ficarem satisfeitas com a
felicidade que tiveram, cada uma conforme o seu desejo ,
ainda que muito além das suas esperanças , entregaram-
se a um excesso de ciume , que não só perturbou a sua
alegria, mas causou grandes desgraças, humilhações e
desgostos á sultana, sua irmã mais nova. Não tiveram
tempo de communicar-se uma á outra o que logo pen-
saram da preferencia que o sultão lhe dera em desabono
d'ellas, segundo pretendiam ; tiveram só tempo de pre-
parar-se para a celebração do casamento . Mas logo que
puderam encontrar-se , passados alguns dias, n'um banho
publico, onde tinham ajustado fallar : « Então , minha rica
irmã, disse a mais velha á outra, que vos parece nossa
mana ? julgail-a talhada para ser sultana ? - Confesso-
vos, disse a outra irmã, que nada entendo ; não per-
cebo que attractivos achou n'ella o sultão , para cegar-se
até aquelle ponto . Podia um ar de mocidade, que tem
mais do que nós, ser motivo para o sultão não lançar
os olhos para vós? Vós sereis digna de ser sua esposa , e
devia fazer-vos a justiça de preferir-vos a ella. - Minha
320 AS MIL E UMA NOITES

querida irmã, replicou a mais velha, não teria que dizer


se o sultão vos tivesse escolhido ; mas que escolhesse
uma desleixada, é o que mais me desconsola ; vingar-me-
hei se puder, e n'isso tendes tanto interesse como eu.
Por isso é que vos rogo que vos unaes a mim, para que
obremos de accordo n'uma causa commum como esta, que
nos interessa igualmente, e que me communiqueis os
meios que vos parecerem proprios para dar-lhe desgosto,
promettendo-vos dar parte dos que me suggerir a von-
tade que tambem tenho de dar-lh'os » .
Feito este conluio pernicioso, visitavam -se ambas as
irmãs a miude, e de todas as vezes não se entretiuham
senão dos meios que poderiam tomar para impedir e ar-
ruinar a felicidade da sultana sua irmã. Propuzeram-se
varios , mas deliberando sobre a execução , acharam n'el-
les difficuldades tão grandes , que não se atereveram a
aventurar-se a servir-se d'elles . Todavia, de quando em
quando, iam juntas fazer-lhe visitas , e com dissimulação
digna de reprehensão, davam -lhe todas as demonstra-
ções de amizade que podiam imaginar, para persuadir-
lhe que a estimavam, e que se alegravam de verem
uma irmã elevada a tão alta dignidade . Pela sua parte
acolhia- as sempre a sultana com todas as demonstrações
de estima e de consideração , que podiam esperar d'uma
irmã que não estava enfatuada de sua dignidade e que
não cessava de amal - as com a mesma cordialidade que
d'antes .
Passados alguns mezes depois do seu casamento,
achou-se a sultana gravida ; alegrou-se em extremo o
sultão com isto, e a sua alegria, depois de communicar-
se no palacio e na côrte, se divulgou ainda por todos os
bairros da capital da Persia. Vieram as irmãs dar-lhe os
parabens, e desde então, prevenindo-a ácerca da parteira
de que teria precisão para assistir -lhe no seu parto, pe-
diram-lhe que não escolhesse senão a ellas . Disse-lhes a
sultana d'um modo officioso : « Minhas ricas irmãs, muito
o estimaria, como podeis crêr, se a escolha dependesse
absolutamente de mim, todavia agradeço- vos infinita-
mente a vossa boa vontade ; não posso deixar de sujei-
tar-me ao que o sultão ordenar. Não deixeis todavia de
CONTOS ARABES
321
fazer cada uma a diligencia para que os vossos maridos
empreguem os seus amigos para pedir esta graça ao
sultão, e se o sultão me fallar n'isso, persuadi - vos que
não só lhe manifestarei o gosto que me dará , mas até
lhe agradecerei a escolha que fizer de vós » .
Ambos os maridos , cada um pela sua parte, solici-
taram dos cortezãos seus protectores , e lhes supplicaram
que lhes fizessem o favor de empregar os seus esforços,
alcançando para suas mulheres a honra a que ellas as-
piravam. Estes protectores obraram tão poderosa e effi-
cazmente, que o sultão lhes prometteu cuidar d'isso.
Fez- lhes o sultão a sua promessa , e n'uma conversação
com a sultana, disse - lhe que lhe parecia que as suas ir-
mãs seriam mais proprias para soccorrel -a no seu parto
do que outra qualquer parteira estranha , mas que não
queria nomeal-as, sem ter primeiro o seu consentimento.
A sultana, sensivel á condescendencia, cuja demonstra-
ção tão officiosa lhe dava o sultão , disse-lhe : <«< Senhor,
estava disposta a fazer só o que vossa magestade me
ordenasse, mas visto que teve a bondade de lançar os
olhos para minhas irmãs, agradeço - lhe a consideração que
tem para com ellas em attenção a mim, e não dissimula-
rei que com mais gosto as receberei do que a uma par-
teira estranha » .
Nomeou pois o sultão Khosrouschah as duas irmãs
da sultana para lhe servirem de parteira, e logo uma e
outra foram ao palacio com grande alegria de ter acha-
do occasião tal qual podiam desejal -a para executar a
maldade detestavel que meditaram contra a sultana sua
irmã .
Chegou o tempo do parto e a sultana deu á luz fe-
lizmente um principe bello como o dia. Nem a sua belle-
za, nem a sua delicadeza foram capazes de mover nem
de enternecer o coração de suas desapiedadas irmãs.
Envolveram- o n'uma mantilha com bastante descuido ,
metteram-o n'um cesto que largaram á corrente da agua
do canal que passava ao pé do quarto da sultana e subs-
tituiram-o por um cãosinho morto, publicando que sua
irmã o dera á luz. Foi esta nova desagradavel annuncia-
da ao sultão ; d'ella concebeu uma indignacão.
322 AS MIL E UMA NOITES

deria ser funesta á sultana, se o seu grão-visir não lhe


tivesse dito que sua magestade não podia, sem injus-
tiça, consideral- a responsavel das extravagancias da na-
tureza .
O cesto em que haviam mettido o principe recem-nas-
cido, foi levado na corrente até fóra do recinto d'um
muro, que terminava a vista do quarto da sultana, d'on-
de continuava, atravessando o jardim do palacio. Casual-
mente o intendente dos jardins do sultão, um dos of-
ficiaes principaes e dos mais considerados no reino, pas-
seando pelo jardim ao longo do canal , como descobrisse
o cesto que fluctuava, chamou um jardineiro que não
estava longe . « Vai a toda a pressa, disse elle , mostran-
do-lh'o, e traze-me aquelle cesto ; quero ver o que está
dentro » . Parte o jardineiro, e da borda do canal puxa o
cesto para si com a enxada que trazia na mão, tira-o
para fóra e lh'o leva.
O intendente dos jardins ficou em extremo pasmado
ao vêr uma criança mettida n'um cesto, e uma criança,
que, apesar de acabar de nascer, como era facil exami
nar, não deixava de ter feições d'uma grande belleza. Ha-
via muito tempo que o intendente dos jardins era casado,
mas por mais que desejasse ter filhos , não tinham ain-
da sido exaltados os seus votos até então . Interrompeu
o seu passeio , e trouxe comsigo o jardineiro carregado
com o cesto e com a criança ; chegado que foi a sua
casa, que tinha entrada pelo jardim do palacio, dirigiu-
se ao quarto de sua esposa. « Mulher, disse elle, não ti-
nhamos filhos, eis - aqui um que Deus nos manda. Recom-
mendo-vol-o ; mandai-lhe buscar uma ama a toda a pres-
sa e cuidai d'elle como se fosse nosso filho ; reconheço -o
por tal desde já » . Pegou a mulher na criança com ale-
gria, e ficou em extremo satisfeita por se encarregar
d'ella. O intendente dos jardins não quiz averiguar d'on-
de podia vir a criança : « Bem vejo, dizia comsigo , que
veio do lado do quarto da sultana, mas não me pertence
examinar o que n'elle se passa, nem causar perturbação
n'um lugar onde a paz é tão necessaria » .
No seguinte anno deu á luz a sultana outro principe.
As deshumanas irmãs não tiveram mais compaixão d'es-
CONTOS ARABES 323

te que do outro ; deitaram-o tambem n'um cesto ao ca-


nal, e fizeram crêr que a sultana dera á luz um gato .
Felizmente para o recem-nascido, achava- se o intendente
dos jardins ao pé do canal, mandou -o recolher e levar a
sua mulher, encarregando- a de ter o mesmo cuidado com
este como com o primeiro , o que fez, tanto pela sua

propria inclinação, como para conformar-se com a boa


intenção de seu marido.
Ficou o sultão da Persia mais indignado d'este parto
contra a sultana que do primeiro , e teria manifestado o
seu resentimento, se as representações do grão-visir não
fossem ainda assás persuasivas para abrandal-o .
A sultana deu á luz finalmente uma princeza : teve
324 AS MIL E UMA NOITES

a innocente a mesma sorte que os principes seus irmãos .


Ambas as irmãs, que haviam resolvido não pôr termo
ás suas empresas detestaveis sem verem a sultana sua
irmā rejeitada, expulsa e humilhada, a trataram do mes-
mo modo, lançando -a ao canal . Foi a princeza soccorrida
e arrancada a uma morte certa pela compaixão e cari-
dade do intendente dos jardins, como os dous principes
seus irmãos, com quem foi criada e educada.
A esta deshumanidade as irmãs acrescentaram a men-
tira e o embuste como d'antes . Mostraram um pedaço de
pau, asseverando falsamente que era uma mola que a
sultana dera á luz.
Não pôde conter- se o sultão Khosrouschah quando
soube d'este novo parto extraordinario . « O quê ! disse
elle ; esta mulher indigna do meu leito, encheria o meu
palacio de monstros, se a deixasse viver mais . Não , não
acontecerá isso, acrescentou elle ; é uma malvada, de
que é preciso livrar o mundo » . Pronunciou esta sentença
de morte e ordenou ao seu grão -visir que a mandasse
executar.
O grão-visir e os cortezãos , que estavam presentes,
lançaram -se aos pés do sultão para supplicar - lhe que
revogasse a sentença . Foi o grão - visir o que fallou :
« Senhor, disse elle, permitta- me vossa magestade que
lhe représente que as leis que condemnam á morte,
foram somente estabelecidas para castigar os crimes. Os
tres partos da sultana, tão pouco esperados, não são cri-
mes. Em que pode dizer-se que contribuiu para isso ? A
uma infinidade d'outras mulheres, succede todos os dias
o mesmo que lhe succedeu a ella ; são dignas de com-
paixão, mas não merecem ser castigadas . Póde vossa
magestade abster-se de vêl-a e deixal-a viver. O desgos-
to em que passará o resto de seus dias, á vista da per-
da da sua companhia, será para ella um supplicio bas-
tante grande .
Cahiu em si o sultão da Persia, e como visse a in-
justiça que havia em condemnar a sultana á morte, por
uns abortos. que fossem verdadeiros , como o cria :
con
CONTOS ARABES 325

jar a morte mais d'uma vez cada dia. Que lhe armem
uma barraquinha de madeira á porta da principal mes-
quita, com uma fresta sempre aberta ; que a fechem n'el-
la com um vestido dos mais grosseiros , e que cada mu-
sulmano que fôr á mesquita fazer a sua oração, ao pas-
sar lhe cuspa na cara ; se algum faltar a esta obrigação,
quero que seja exposto ao mesmo castigo ; e para que
seja obedecido, a vós , visir, ordeno que para lá mandeis
guardas ».
O tom com que o sultão pronunciou esta ultima sen-
tença, tapou a bocca ao grão-visir. Foi a barraquinha
construida e acabada, e a sultana, na verdade digna de
compaixão, foi n'ella encerrada como o sultão ordenára,
e exposta ignominiosamente ás risadas, e ao desprezo de
todo o povo ; tratamento todavia que não merecera e
que supportou com uma constancia que lhe grangeou a
admiração e ao mesmo tempo a compaixão de todos os
que julgavam das cousas mais ajuizadamente que o vulgo.
Foram os dous principes e a princeza criados e edu-
cados pelo intendente dos jardins e sua mulher, com a
ternura de pai e de mãi ; esta ternura augmentava á pro-
porção que elles iam crescendo , pelos signaes de gran-
deza que se observavam tanto na princeza como nos
principes, e principalmente pela grande belleza da prin-
ceza, que se desenvolvia de dia em dia, pela sua docili-
dade, pelas suas boas inclinações bem diversas das dos
filhos da gente ordinaria, e por um certo ar que não po-
dia convir senão a principes , e a princezas . Para distin-
guir os dous principes segundo a ordem do seu nasci-
mento, deram ao primeiro o nome de Bahman e de Per-
viz ao segundo, nomes que tiveram uns antigos reis da
Persia. Á princeza deram o de Parizada, nome que tive-
ram tambem algumas rainhas e princezas .
Estando os principes em idade competente , deu-lhes
o intendente dos jardins um mestre para lhes ensinar a
lêr e a escrever . A princeza , que assistia ás lições que
davam aos seus irmãos, mostrou ter tanta vontade de
aprender a ler e a escrever, ainda que mais joven que
elles, que o intendente dos jardins, enlevado com esta
inclinação, lhe deu o mesmo mestre. Cheia de emulação
326 AS MIL E UMA NOITES

pela sua viveza e pelo seu espirito agudo, chegou em


pouco tempo a estar tão adiantada como os principes
seus irmãos .
Desde esse tempo os irmãos e a irmã tiveram os mes-
mos mestres nas bellas-artes, na geographia, na poesia,
na historia e nas sciencias, até nas sciencias occultas , e
como n'ellas não achassem cousa difficil , fizeram um pro-
gresso tão maravilhoso que causou admiração aos mestres
e não tardaram a confessar sem rebuço que iriam mais
longe do que elles, por pouco que estudassem. Nas ho-
ras de recreio, a princeza aprendeu tambem musica, can-
to , e a tocar alguns instrumentos. Quando os principes
aprenderam a montar a cavallo, não quiz que tivessem
esta vantagem sobre ella ; fez seus exercicios com elles,
de modo que sabia montar a cavallo , guial-o , disparar a
frecha, lançar o dardo com a mesma habilidade e destre-
za, e algumas vezes lhes ganhava a dianteira nas suas
corridas.
O intendente dos jardins, que se regosijava em ex-
tremo de vêr os seus alumnos tão completos em todas
as perfeições do corpo e do espirito, e que tinham cor-
respondido ás despezas que fizera para a sua educação,
muito além do que esperava, fez outra mais considera-
vel , em attenção a elles . Até então , satisfeito do aloja-
mento que tinha no recinto do jardim do palacio , passá-
ra sem casa de campo . Comprou uma a pouca distancia
da cidade , que tinha grandes terras de lavoura, prados
e bosques ; e como a casa não lhe parecesse assás bella
nem commoda, mandou-a destruir e nada poupou para
reedifical-a de modo que fosse a mais magnifica dos ar-
redores ; lá ia todos os dias para apressar com a sua pre-
sença o grande numero de obreiros que n'ella emprega-
va, e logo que houve um quarto acabado, capaz de re-
cebel- o, lá foi alguns dias a fio, quando as suas funções
e a obrigação de seu cargo lh'o permittiam. Com a sua
assiduidade, finalmente, acabou-se a casa, e em quanto
a mobilavam com a mesma diligencia, com trastes os
mais ricos e que correspondiam á magnificencia do edi-
ficio, mandou trabalhar no jardim, segundo a planta que
elle mesmo traçára, e á maneira que era commum na
CONTOS ARABES 327

Persia entre os grandes senhores . Ajuntou-lhe uma tapa-


da de vasta extensão que mandou cercar de bons muros
e encher de todas as especies de animaes silvestres, pa-
ra que os principes e a princeza alli tivessem o diverti-
mento da caça, quando quizessem .
Acabada inteiramente a casa de campo e em estado
de ser habitada, foi o intendente dos jardins lançar- se
aos pés do sultão, e depois de lhe ter representado quan-
to tempo havia que estava no serviço e as enfermidades
da velhice em que se achava, supplicou- lhe que o demit-
tisse do seu cargo e que lhe permittisse que se retirasse .
Concedeu-lhe o sultão esta graça com muito gosto, vis-
to que estava satisfeitissimo com os seus longos serviços,
tanto no reinado do sultão seu pai, como depois que el-
le mesmo subira ao throno, e concedendo- lh'a perguntou-
lhe o que podia fazer para recompensal-o . « Senhor, res-
pondeu o intendente dos jardins , estou cheio de benefi-
cios de vossa magestade e dos do sultão seu pai , de fe-
liz memoria, a tal ponto que não tenho já que desejar
senão morrer na honra da vossa estima e valimento >> .
Despediu-se do sultão Khosrouschah, depois do que foi
para a casa de campo , que acabava de construir, com os
dous principes Bahman e Perviz, e a princeza Parizada .
Quanto a sua mulher, havia já alguns annos que mor-
rera. Elle apenas viveu cinco ou seis mezes com el-
les, quando foi assaltado de uma morte tão repentina
que não lhe deu tempo para dizer uma palavra da ver-
dade do nascimento dos principes, cousa todavia que ti-
nha resolvido fazer, como necessaria para obrigal- os a
continuar a viver como tinham vivido até então , segun-
do o seu estado e sua condição, conforme à educação
que lhes dera e á inclinação que lhes conhecia.
Os principes Bahman e Perviz , e a princeza Pariza-
da, que não conheciam outro pai senão o intendente dos
jardins, choraram-o como tal e lhe fizeram todas as hon-
ras funebres que o amor e o reconhecimento filial exi-
giam d'elles. Contentes dos grandes cabedaes que lhes
deixára, continuaram a morar e a viver juntos na mes-
ma união em que tinham vivido até então, sem ambi-
ção de se introduzirem na côrte, com a mira nos primei.
328 AS MIL E UMA NOITES

ros cargos e dignidades, que com facilidade alcançariam.


Um dia em que os principes andavam á caça e que
a princeza Parizada ficára em casa, uma devota musul-
mana, mui avançada em annos, se apresentou á porta,

pedindo-lhe licença para entrar e fazer a sua oração, que


era hora propria para isso ; foram pedir licença á prin-
ceza, e ordenou que a fizessem entrar e que a levassem
ao oratorio que o intendente dos jardins do sultão ti-
não haver
CONTOS ARABES 329

devota acabasse a sua oração, lhe mostrassem a casa e


o jardim, e que depois lh'a apresentassem.
Entrou a devota musulmana, fez a sua oração no ora-
torio que lhe mostraram, e tendo acabado , duas criadas
da princeza que esperavam que sahisse, a convidaram
para ver a casa e o jardim. Como lhes désse a entender
que estava prompta a seguil -as, levaram -a de quarto em
quarto, e em cada um considerou todas as cousas como
mulher que entendia de trastes e armação, e sabia ava-
liar a bella disposição de cada quarto . Fizeram- a entrar
tambem no jardim , cujo desenho achou tão novo e tão
bem entendido, que o admirou , dizendo que era preciso
que quem o mandára traçar fosse um excellente profes-
sor da sua arte . Foi finalmente levada á presença da prin-
ceza, que a esperava n'um grande salão, o qual excedia
em belleza, em aceio e em riquezas , tudo o que admi-
rára nos quartos .
Logo que a princeza viu entrar a devota : « Minha boa
mãi, disse-lhe, chegai-vos e vinde assentar-vos junto a
mim ; estou enlevada da felicidade que esta occasião me
offerece, aproveitando alguns instantes do bom exemplo
e da boa conversa d'uma pessoa, como vós, que tomou
o bom caminho, dando-se toda a Deus, e que todo o
mundo deveria imitar, se fosse cordato ».
A devota, em vez de se sentar no sophá, quiz assen-
tar-se no chão, mas a princeza não lh'o consentiu ; le-
vantou-se do seu lugar, e adiantando- se pegou n'ella pela
mão, e a obrigou a vir assentar-se junto a ella no pri-
meiro lugar. Foi a devota muito sensivel a esta atten-
ção : « Senhora, disse ella, não me é dado ser tratada
com tantas honras ; obedeço - vos somente porque o or-
denaes e porque sois a dona da casa » . Antes de princi-
piarem a conversar, uma das criadas da princeza serviu-
lhes uma pequena mesa baixa, marchetada de nacar, de
perolas e de ebano com um vaso de porcelana em cima,
guarnecida de bolos, de alguns outros vasos de frutas
da. estação e de dôces seccos e vinhos .
Pegou a princeza n'um d'esses bolos, e offerecendo - o
á devota : « Minha boa mãi, disse ella, tomai , comei e
escolhei d'estas frutas que vos agradar .
330 AS MIL E UMA NOITES

comer, visto o caminho que fizestes para chegar aqui. —


Senhora, replicou a devota, não estou acostumada a co-
mer cousas tão delicadas , e se as como, é para não re-
cusar o que Deus me manda por uma mão liberal como
a vossa » .
Em quanto a devota comia, a princeza, que comeu
tambem alguma cousa, lhe fez algumas perguntas so-
bre os exercicios de devoção que praticava, sobre o
modo como vivia , ás quaes respondeu com muita mo-
destia . A princeza por fim perguntou -lhe o que lhe pa-
recia a sua casa , que estava vendo, se a achava a
seu gosto.
<< Senhora, respondeu a devota , era preciso ter mui-
to mau gosto para achar n'ella algum defeito . É bella,
alegre, está mobilatla magnificamente, muito bem repar-
tida e os ornamentos estão n'ella dispostos do melhor
modo possivel . Quanto à situação, está n'um terreno
agradavel e não se póde imaginar um jardim que mais
agrade á vista do que este . Se me permittis todavia
que não dissimule cousa alguma, tomo a liberdade de
vos dizer, senhora, que esta casa seria incomparavel,
se não lhe faltassem tres cousas. Minha boa senhora ,
replicou a princeza Parizada, quaes são essas tres cou-
sas ? Dizei-m'o ; eu vol- o peço em nome de Deus, nada
pouparei para possuil-as, se fôr possivel . Senhora, re-
plicou a devota, a primeira d'estas tres cousas é o pas-
saro que falla ; chama-se Burbulhezar e tem a proprie-
dade de attrahir dos arredores todos os passaros que
cantam, que o véem acompanhar. A segunda é a arvo-
re que canta, cujas folhas são tantas boccas, que fazem
um concerto harmonioso de vozes diversas, e que nunca
cessa. A terceira cousa finalmente é a agua amarella,
cûr d'ouro, da qual uma unica gotta que se deite n'um
tanque, preparado para esse fim em qualquer lugar d'um
jardim, principia a crescer d'um modo que o enche logo
e se levanta no meio à maneira de pavêa, que nunca
cessa de se elevar, curvando- se para o tanque, sem que
o trasborde. - - Ah, minha boa mãi ! clamou a princeza ;
quantas obrigações vos devo pelo conhecimento que me
daes d'essas cousas ! São maravilhosas e não tinha ou-
CONTOS ARABES 331

vido dizer que houvesse no mundo cousa tão curiosa e


tão admiravel . Porém, como me persuado que não igno-
raes o lugar onde se acham, espero que me fareis a
graça de ensinar-m'o ».
Para dar satisfação á princeza, a boa devota lhe
disse : « Senhora, tornar-me-hia indigna da hospitalidade
que acabaes de me dar com tanta bondade, se recusas-
se satisfazer a vossa curiosidade sobre o que desejaes
saber. Tenho pois a honra de dizer -vos que as tres cou-
sas de que acabo de fallar-vos se acham n'um mesmo
lugar, nos confins d'este reino , para a parte das Indias .
O caminho para lá ir, passa por diante de vossa casa ;
áquelle que lá mandardes da vossa parte, basta-lhe que
siga o dito caminho vinte dias, o no vigesimo dia que
pergunte onde está o passaro que falla, a arvore que
canta e a agua amarella ; o primeiro a quem se dirigir,
lh'o ensinará ». Proferidas estas palavras, levantou-se, e
depois de se ter despedido, retirou- se.
A princeza Parizada tinha o espirito tão preoccupa-
do com lembrar-se dos signaes e das informações que a
devota musulmana acabava de dar-lhe do passaro que
fallava, da arvore que cantava e da agua amarella, que
não percebeu que a devota partisse senão quando quiz
fazer- lhe algumas perguntas para tomar mais informa-
ções . Parecia-lhe , com effeito, que o que acabava de ou-
vir da sua bocca, não era sufficiente para expôr- se a
emprehender uma viagem inutil . Não quiz todavia man-
dal- a chamar ; mas fez diligencia para lembrar-se de
tudo o que ouvira, não se esquecendo de cousa algu-
ma. Quando lhe pareceu que nada lhe escapára, sen-
tiu-se alegre pensando na satisfação que teria, se pu-
desse conseguir a posse de cousas tão maravilhosas ;
porém a difficuldade que achava e o receio de as não
conseguir, a sepultava n'um grande desgosto e desasso-
cego .
Estava a princeza Parizada engolfada n'estes pensa-
mentos quando chegaram da caça os principes seus ir-
mãos ; entraram no salão e em vez de achal-a com sem-
blante risonho e com o espirito alegre, conforme o seu
costume, ficaram admirados de vêl-a recolhida em si e
332 AS MIL E UMA NOITES

como afflicta, sem levantar a cabeça, para mostrar ao


menos que via os irmãos.
O principe Bahman rompeu o silencio : « Mana, dis-
se elle, onde estão a alegria e a jovialidade que vos
eram inseparaveis ? estaes incommodada ? aconteceu-vos
alguma desgraça ? deram-vos algum motivo de desgosto?
Patenteai-nol-o para que n'elle tomemos a parte que de-
vemos, e para que remediemos isso ou vos vinguemos,
se alguem teve a temeridade de offender uma pessoa
como vós, á qual é devido todo o respeito ».
Ficou a princeza Parizada algum tempo sem respon-
der cousa alguma e na mesma situação ; levantou final-
mente os olhos, fitando-os nos principes seus irmãos , e
os abaixou quasi ao mesmo tempo, depois de ter-lhes
dito que não era nada.
« Mana, replicou o principe Bahman , vós dissimu-
<
laes a verdade, deve ser alguma cousa grave. Não é
possivel que no pouco tempo que estivemos afastados
da vossa companhia, tivesse lugar, sem algum motivo,
uma mudança tão grande e tão pouco esperada como a
que observamos em vós. Não tomareis a mal que não
concordemos com uma resposta que não nos satisfaz.
Não nos occulteis pois o que tendes ; só se quereis per-
suadir-nos de que renunciaes á amizade e á união firme
e constante que subsistiram entre nós até hoje , desde
a mais tenra idade »>.
A princeza, que estava bem longe de romper com
os principes seus irmãos, não quiz deixal-os com esse
pensamento. « Quando vos disse, replicou ella, que
nada me causava desgosto, disse o pelo que toca a vós
e não a mim, que lhe dóu alguma importancia ; e já
que apertaes commigo pelo direito da nossa amizade e
união, que me são tão gratas, vou dizer- vos o que é.
Vós crêstes, e eu tambem, continuou ella, que esta casa,
que o defunto nosso pai nos mandou fazer, era comple-
ta em tudo, e que não faltava n'ella cousa alguma. Hoje
todavia soube que n'ella faltam tres cousas, que lhe da-
riam a preferencia sobre todas as casas de campo que
ha no mundo. Estas tres cousas são : o passaro que fal-
la, a arvore que canta e a agua amarella » . Depois de
CONTOS ARABES 333

ter-lhes explicado em que consistia a excellencia d'essas


cousas, acrescentou : « < Foi uma devota musulmana que
me fez esta observação e que me ensinou o lugar onde
ellas estão e o caminho por onde se póde lá ir. Pare-
cer-vos-ha talvez que são cousas de pouca importancia
para fazer com que a nossa casa seja completa, e que
passe por um bellissimo palacio. Pensareis o que qui-
zerdes, mas não posso deixar de manifestar- vos que
quanto a mim estou persuadida que essas tres cousas
são necessarias na casa, e que não ficarei satisfeita
sem vél-as n'ella collocadas. Assim, quer tomeis ou não
parte n'isso, rogo-vos que me ajudeis com os vossos con-
selhos, e digaes quem poderia eu mandar a essa con-
quista. — Mana, replicou o principe Bahman , nada póde
interessar-vos que não nos interesse igualmente . Basta o
vosso empenho na posse das cousas de que nos fallaes,
para empenhar - nos a ter o mesmo interesse que vós ;
mas, além do que vos diz respeito , estamos resolvidos a
isto de nosso motu proprio e para nossa satisfação par-
ticular, pois bem persuadido estou que meu irmão é do
mesmo parecer que eu ; devemos, portanto, tudo empre-
hender para alcançar essa conquista como vós lhe cha-
maes ; a importancia e a singularidade de que se trata,
bem merecem esse nome . Eu encarrego-me d'esse ser-
viço ; dizei- me sómente o caminho que devo seguir e o
lugar ; não demorarei a partida senão até amanhã. -
Irmão, replicou o principe Perviz, não convém que vos
ausenteis de casa tanto tempo , vós que sois o chefe e
o esteio d'ella, peço a minha irmã que se una commigo
para obrigar- vos a mudar de resolução, e consentir que
eu faça a viagem ; desempenhar-me-hei tão bem como
vós, e assim regular-se-hão melhor as cousas . Irmão,
replicou o principe Bahman , bem persuadido estou da
vossa boa vontade, e que vos desempenharieis da via-
gem tão bem como eu, mas é cousa determinada, quero
fazel -a e fal-a-hei . Ficareis com vossa irmã, que não é
preciso que vol- a recommende » . Passou o resto do dia
a dispôr-se para a viagem e a informar-se bem, por via
da princeza, dos signaes que a devota lhe dera, para não
se afastar do caminho.
334 AS MIL E UMA NOITES

No día seguinte, ao romper da aurora, o principe Bah-


man montou a cavallo ; o principe Perviz e a princeza
Parizada, que quizeram vél-o partir, o abraçaram e lhe
desejaram uma viagem feliz. Porém n'estas despedidas
lembrou-se a princeza d'uma cousa que não lhe viera ao
pensamento : « A proposito, irmão, disse ella, não pen-
sava nos perigos a que está exposta a gente nas viagens ;
apeai-vos, eu vol -o peço, e deixai-vos da viagem; antes
quero privar-me da vista e da posse do passaro que fal-
la, da arvore que canta e da agua amarella, que correr
o risco de perder-vos para sempre. - Mana, replicou o
principe Bahman sorrindo -se do susto repentino da prin-
ceza, a resolução está tomada, e ainda que assim não
fosse, eu a tomaria agora ; levareis a bem que a execu-
te ; os accidentes de que fallaes não acontecem senão
aos desgraçados . É verdade que posso ser do numero,
mas posso ser dos felizes, que são em muito maior nu-
mero que os infelizes. Como todavia os acontecimentos
são incertos e como posso ser mal succedido na minha
empresa, tudo o que posso fazer é deixar-vos um punhal
que aqui tenho » .
Então o principe Bahman tirou um punhal e apresen-
tou-o á princeza : « Tomai, disse elle, e dai -vos de quan-
do em quando ao trabalho de tirar o punhal da bainha ;
em quanto o virdes limpo como o estaes vendo , será si-
gnal de que estarei vivo, mas se virdes que escorre san-
gue, crêde que não estarei já com vida e acompanhai a
minha morte com as vossas orações » >.
Não pôde a princeza Parizada alcançar outra cousa
do principe Bahman ; despediu-se elle de sua irmã e
do principe Perviz, pela derradeira vez, e partiu, bem
montado e equipado . Poz-se a caminho , e sem desviar-
se nem para a direita, nem para a esquerda, continuou
atravessando a Persia . Ao vigesimo dia da sua jornada,
viu á borda do caminho um velho medonho, o qual es-
tava assentado à sombra d'uma arvore, a alguma distan-
cia d'uma choça, que lhe servia de guarida contra as in-
temperies.
As sobrancelhas , brancas como neve, chegavam-lhe á
ponta do nariz, e a barba e os cabellos, da mesma côr, ca-
CONTOS ARABES 335

hiam -lhe até aos pés. Tinha as unhas das mãos e dos
pés d'um comprimento excessivo ; trazia uma especie de
chapéo chato e muito largo, que lhe cobria a cabeça em

fórma de guarda-sol, e por vestuario uma esteira, em que


estava envolvido .
Este velho era um derviche, que se retirára do mun-
do havia muitos annos e se descuidára de si para dar-se
a Deus unicamente.
O principe Bahman, que desde pela manhã estivera
336 AS MIL E UMA NOITES

attento a lobrigar se encontraria alguem que o pudesse


informar aonde tinha tenção de ir, chegando ao pé do der-
viche parou e apeou -se para observar o que a devota
expuzera á princeza Parizada . Segurando o seu cavallo
pela rédea, chegou - se ao derviche e saudando- o : <« Bom
pai , disse elle , Deus prolongue os vossos dias e vos con-
ceda o complemento de vossos desejos ».
Respondeu o derviche á saudação do principe , mas
tão pouco intelligivelmente, que nem uma palavra per-
cebeu . Como o principe Bahman visse que o impedimen-
to procedia de cobrirem os bigodes a bocca do derviche,
e como não quizesse passar adiante sem tomar d'elle a
instrucção de que precisava, pegou n'umas tesouras que
comsigo trazia e, depois de ter atado o seu cavallo a uma
arvore, disse-lhe : « Bom derviche, tenho que fallar com-
vosco, mas os vossos bigodes impedem que vos ouça ;
permittir-me-heis , e eu vol- o rogo, que me deis licença
de vol-os cortar, assim como as vossas sobrancelhas, que
vos desfiguram e que vos fazem assemelhar mais a um
urso que a um homem ».
O derviche não se oppoz á resolução do principe, e
deixou-o fazer o que quiz ; como o principe, depois de
ter acabado, visse que o derviche tinha o rosto corado,
e que parecia ter muito menos idade do que na realida-
de tinha, disse-lhe : « Bom derviche, se tivesses um es-
pelho, mostrar-vos -hia como estaes remoçado ; sois pre-
sentemente um homem, e ainda ha pouco ninguem podia
distinguir o que ereis » .
Os carinhos do principe Bahman lhe attrahiram da
parte do derviche um sorriso com um comprimento. «< Se-
nhor, disse elle, quem quer que sejaes, fico-vos infinita-
mente obrigado pelo beneficio que acabaes de fazer-me ;
estou prompto a provar-vos o meu reconhecimento em
tudo o que possa depender de mim . Não vos apeastes
sem que alguma precisão vos obrigasse a isso ; dizei-me
o que é, farei por contentar-vos , se me for possivel. —
Bom derviche, replicou o principe Bahman, venho de lon-
ge e procuro o passaro que falla, a arvore que canta e
a agua amarella ; sei que estas tres cousas estão por
aqui n'estes arredores, mas ignoro o lugar onde estão
CONTOS ARABES 337

precisamente. Se o sabeis, rogo-vos que me ensineis o


caminho, para que não tome um por outro , e não perca
o fructo da longa viagem que emprehendi » .
O principe, á proporção que fazia este discurso , ob-
servou que o derviche mudava de côr , que baixava os
olhos e que se revestia d'um ar serio, a ponto de, em
vez de responder, guardar silencio. Isto o obrigou a con-
tinuar a fallar : «Bom pai, proseguiu elle, penso que me
ouvistes. Dizei-me se sabeis o que vos pergunto, ou, se
o não sabeis , para que não perca tempo e vá colher in-
formações a outra parte » .
O derviche rompeu finalmente o seu silencio : <« Se-
nhor, disse elle ao principe Bahman , o caminho que que-
reis saber é-me conhecido, mas a amizade que concebo
para comvosco desde que vos vi e que se tornou mais
forte pelo serviço que me fizestes, me conserva ainda na
irresolução, sobre se devo conceder- vos a satisfação que
me pedis. - Que motivo póde impedir-vos, replicou o
principe, e que difficuldades achaes em dar-m'a? - Dir-
vol-o-hei, replicou o derviche : vem a ser que o perigo
a que vos expondes, é maior do que podeis crêl -o . Ou-
tros muitos senhores que tinham tanta ousadia e valor
como vós o podeis ter, passaram por aqui e me fizeram
a mesma pergunta que vós . Depois de não me ter esque-
cido de cousa alguma para desvial -os de passarem além,
não quizeram crêr-me ; ensinei-lhes o caminho contra a
minha vontade, cedendo ás suas instancias, e posso as-
segurar-vos que foram todos mal succedidos, e que não
vi voltar nem um, sequer . Por pouco que estimeis a vi-
da e que queiraes seguir o meu conselho, não deveis ir
mais longe, e voltareis para vossa casa » .
Persistiu o principe Bahman na sua resolução : « Que-
ro crêr, disse ao derviche, que o vosso conselho é sin-
cero, e fico-vos obrigado pela prova de amizade que me
daes ; mas por maior que seja o perigo de que me fal-
laes, nada é capaz de fazer-me mudar de resolução ; to-
do aquelle que me atacar, tenho boas armas ; e não se-
rá mais valente nem mais corajoso que eu . - E se os
que vos atacarem, lhe disse o derviche , não se deixarem
vér, como vos defendereis contra homens que são invi-
TOMO IV. 22
338 AS MIL E UMA NOITES

siveis ? - Não importa, replicou o principe ; por mais


que possaes dizer, não me persuadireis de obrar cousa
alguma contra o meu dever. Visto que sabeis o caminho
por que vos pergunto , rogo-vos ainda uma vez que m'o
ensineis e que não me recuseis esta graça » .
Vendo o derviche que nada podia alcançar do princi-
pe Bahman, e que estava firme na resolução de conti-
nuar a sua viagem, não obstante os bons avisos que lhe
dava, metteu a mão n'um sacco que tinha a seu lado e
d'elle tirou uma bola que lhe apresentou . < « Visto que
não posso conseguir de vós, disse elle , que me deis ou-
vidos, e que vos aproveiteis dos meus conselhos , aceitai
esta bola, e estando a cavallo, deitai- a adiante de vós e
segui-a até á falda d'uma montanha , onde ella parará ;
estando parada, apear- vos - heis e deixareis o vosso ca-
vallo, que ficará no mesmo lugar, esperando que volteis.
Continuando a andar vereis à direita e á esquerda uma
grande quantidade de enormes pedras negras, e ouvireis
uma confusão de vozes de todos os lados , que vos di-
rão mil injurias para desanimar-vos e para embaraçar-
vos de subir até ao cume ; não vos assusteis , e sobretu-
do não volteis a cabeça para olhar para traz ; serieis
n'um instante mudado n'uma pedra preta, semelhante ás
que vereis , as quaes são outros tantos mancebos como
vós, que não foram bem succedidos na sua empresa, co-
mo vol-o disse. Se evitardes o grande perigo, que não vos
descrevo senão ligeiramente para que d'elle façaes bas-
tante reflexão , achareis uma gaiola e na gaiola o passa-
ro que buscaes . Como falla, perguntar- lhe- heis onde está
a arvore que canta e a agua amarella . Ensinar- vos-ha.
Não tenho mais que dizer-vos ; eis-aqui o que tendes que
evitar ; mas se quizesseis crêr -me, seguirieis o conselho
que vos dei, e não vos exporieis a perder a vida . Ainda
uma vez em quanto vos resta tempo para pensar n'is-
so, considerai que esta perda irreparavel está annexa a
uma condição, á qual não se póde contravir, ainda que
seja por inadvertencia, como podeis entendel -o.- Quan-
to ao conselho que acabaes de repetir-me, e o qual não
deixo de vos agradecer, replicou o principe Bahman, de-
pois de ter recebido a bola , não posso seguil- o, mas pro-
CONTOS ARABES
339
curarei ap ro veitar - me do aviso que me déstes de não
olhar para traz subindo , e espero que logo me vereis
voltar e agradecer- vos mais , carregado com o que pro-

curo ». Proferidas estas palavras , ás quaes o derviche não


respondeu outra cousa, senão que o veria á volta com
gosto, e que desejava que isso acontecesse, o principe
montou a cavallo, despediu-se do derviche com uma pro-
funda inclinação de cabeça , e lançou a bola adiante de si
340 AS MIL E UMA NOITES

A bola rolou e continuou a rolar quasi com a mes-


ma velocidade que o principe Bahman lhe communicára
lançando-a, o que fez com que fosse obrigado a regular
a carreira do seu cavallo pela velocidade da bola, para
seguil-a, a fim de não a perder de vista ; achando-se na
falda da montanha que o derviche dissera , onde ella pa-
rou, apeou-se então , e o cavallo não se moveu do seu
lugar. Depois de ter reconhecido a montanha e ter visto
as pedras negras , principiou a subir, e apenas deu qua-
tro passos , logo as vozes de que lhe fallára o derviche,
ouviram-se sem que visse pessoa alguma ; umas diziam :
<< Aonde vai este estouvado? aonde vai ? que quer elle ?
não o deixeis passar !» Outras : « Apanhai-o, matai-o ! »
Outras gritavam com voz de trovão : « Ladrão ! Assassi-
no ! Matador ! » Outras, pelo contrario, gritavam com tom
mofador : « Não , não lhe façaes mal , é bello rapaz, na
verdade para elle é que se guarda a gaiola e o passa-
ro ».
Não obstante estas vozes importunas, subiu o princi-
pe Bahman algum tempo com constancia e firmeza, ani-
mando-se a si proprio, mas as vozes multiplicaram-se
com uma algazarra tão grande e tão perto d'elle , que
se encheu de susto. Os pés e as pernas principiaram a
tremer- lhe, vacillou , e como logo percebesse que as for-
ças principiavam a faltar-lhe, esqueceu-se do aviso do
derviche ; voltou -se para fugir descendo, e no mesmo
instante foi mudado em uma pedra preta , assim como o
seu cavallo ; metamorphose que acontecêra a muitos an-
tes d'elle, por ter ensaiado a mesma empresa.
Depois da partida do principe Bahman para a sua
viagem, a princeza Parizada, que atára á cinta o punhal
com a bainha que elle deixára para ser informada se
estava morto ou vivo, nunca faltára a desembainhal- o pa-
ra consultal- o , e isto repetidas vezes ao dia. Assim teve
a consolação de saber que estava com perfeita saude, e
de entreter-se algumas vezes d'elle com o principe Perviz,
que sempre lhe pedia novas d'elle .
No dia fatal, finalmente, em que o principe Bahman
acabava de ser transformado em pedra, como o principe
e a princeza se entretivessem d'elle á tarde, conforme o
CONTOS ARABES 341

seu costume : <


« Mana, disse o principe Perviz , tirai o pu-
nhal, e saibamos novas de Bahman ». Tirou-o a princeza
e olhando viram correr sangue da extremidade . A prin-
ceza, cheia de horror e de desgosto, largou o punhal .
Ah, meu rico irmão ! clamou ella ; perdi-vos pois e per-
di-vos por minha culpa ! Nunca mais vos tornarei a vér !
Quão desditosa sou ! Por que razão fallei do passaro que
falla, da arvore que canta e da agua amarella ? ou, pa-
ra melhor dizer, que me importava saber se a devo-
ta achava esta casa bella ou feia, completa ou não ?
Quizera Deus que nunca se tivesse lembrado de vir aqui !
Hypocrita, enganadora , acrescentou ella ; devias agrade-
cer-me assim a recepção que te fiz ? Porque me fallas-
te d'um passaro, d'uma arvore e d'uma agua que ima-
ginarios como são, pois d'isso estou persuadida pelo des-
graçado fim d'um irmão tão querido , não deixam de
perturbar-me ainda o espirito por causa do teu encanta-
mento ?»
Não se affligiu menos o principe Perviz, com a morte
do principe Bahman, que a princeza Parizada ; mas sem
perder tempo a choral-o inutilmente , como percebesse
pela afficção da princeza sua irmã, que desejava sempre
apaixonadamente alcançar o passaro que fallava, a arvo-
re que cantava e a agua amarella, interrompendo - a : « Ma-
na, disse elle, em vão chorariamos nosso irmão Bahman ;
os nossos lamentos e nossa afflicção não lhe restituirão
a vida ; é a vontade de Deus, devemos sujeitar- nos a el-
la e adoral - o nos seus decretos , sem querer penetral- os .
Porque quereis duvidar presentemente das palavras da
devota musulmana depois de as ter tido tão firmemente
por certas e por verdadeiras ? Parece-vos que vos teria
fallado d'essas tres cousas se não existissem, e que as
tivesse inventado expressamente para enganar-vos, a vós ,
que bem longe de ter-lhe dado motivo para isso, a re-
cebeste tão bem e a agasalhaste com tanta bondade ?
Capacitemo-nos antes que a morte de nosso irmão pro-
cede de descuido d'elle ou de algum accidente que nós
não podemos imaginar. Assim, mana, que a sua morte
não nos embarace de continuar a fazermos a nossa dili-
gencia ; tinha-me offerecido para fazer a viagem em seu
342 AS MIL E UMA NOITES

lugar, estou na mesma disposição ; e como o seu exemplo


não me faz mudar de parecer, ámanhã a emprehende-
rei ».
Fez a princeza quanto pôde para dissuadir o princi-
pe Perviz, dizendo -lhe que a não expuzesse ao perigo de
perder dous irmãos em vez d'um ; foi porém constante,
não dando attenção ás advertencias que ella lhe fez . Antes
que partisse, para que pudesse ser informada do succes-
so da viagem que ia emprehender, como o fôra da do
principe Bahman, por meio do punhal que lhe deixára,
deu-lhe tambem umas contas de perolas de cem grãos
para o mesmo uso, e apresentando - lh'as : « Rezai estas
contas por minha tenção na minha ausencia ; rezando-as,
se acontecer que não as possaes mover nem fazel-as cor-
rer umas após outras, como se estivessem grudadas, será
um indicio que terei tido a mesma sorte que nosso ir-
mão . Esperemos que isto não acontecerá e que terei a
felicidade de tornar-vos a ver, com a satisfação que es-
peramos, vós e eu ».
Partiu o principe Perviz e ao vigesimo dia da sua
viagem encontrou o mesmo derviche na paragem onde
o achára o principe Bahman . Chegou-se a elle, e depois
de o ter saudado, rogou -lhe , se o soubesse, que lhe en-
sinasse o lugar onde estava o passaro que fallava, a ar-
vore que cantava e a agua amarella . Pôz -lhe o dervi-
che as mesmas difficuldades e as mesmas advertencias
que fizera ao principe Bahman, até dizer-lhe que havia
muito pouco que um joven cavalleiro, que muito se as-
semelhava a elle , lhe fizera a mesma pergunta ; que ven-
cido pelas suas urgentes instancias e pela sua importu-
ração lh'o ensinára, dando-lhe com que se guiar e re-
commendnado-lhe o que devia observar para ser bem suc-
cedido, mas que não o vira voltar ; á vista d'isto não
havia que duvidar que tivesse tido a mesma sorte que
os que o tinham precedido.
« Bom derviche, disse o principe Perviz , sei quem é
esse de quem fallaes ; era meu irmão mais velho, e es-
tou informado com certeza que morreu ; de que morte,
é o que ignoro. - Posso dizer- vol- o, replicou o dervi-
che, foi transformado em pedra negra como os de que
CONTOS ARABES 343

acabo de fallar ; e deveis esperar a mesma transforma-


ção se não observardes mais exactamente que elle os
bons conselhos que lhe tinha dado, no caso que persis-
taes em não querer renunciar á vossa resolução, ao que
vos exhorto ainda uma vez. -Derviche, insistiu o princi-
pe Perviz , não posso assás agradecer-vos a parte que
tomaes na conservação da minha vida, desconhecido
de vós como sou, e sem ter feito cousa alguma para
merecer a vossa benevolencia, mas tenho a dizer-vos,
que antes de tomar a minha resolução, reflecti bem n'el-
la, e que não posso abandonal- a : assim, supplico- vos que
me façaes o mesmo favor que fizestes a meu irmão. Se-
rei talvez mais bem succedido que elle em seguir as
-
mesmas instrucções que de vós espero. Visto que não
posso, disse o derviche, persuadir- vos de desistir do que
resolvestes, se a minha idade muito avançada não m'o
impedisse e pudesse segurar-me em pé, levantar- me-hia
para dar-vos a bola que aqui tenho, a qual deve ser-
vir-vos de guia »> .
Sem dar ao derviche o trabalho de continuar a fallar,
apeou-se Perviz , e como se chegasse ao derviche , que
acabava de tirar a bola do seu sacco, no qual havia gran-
de numero de outras, deu-lh'a e lhe disse o uso que d'el-
la devia fazer, como o dissera ao principe Bahman, e
depois de o ter avisado de que não se assustasse das
vozes que ouviria, sem vêr pessoa alguma, por mais
ameaçadoras que fossem, e que não deixasse de subir até
ter avistado a gaiola e o passaro , despediu -o .
Agradeceu o principe ao derviche, e tendo montado a
cavallo, lançou a bola adiante, picou o cavallo ao mesmo
tempo e seguiu - a . Chegou finalmente á falda da monta-
nha, e vendo a bola parar, apeou -se . Antes que désse o
primeiro passo para subir, deixou -se estar um instante
no mesmo lugar, trazendo á lembrança as instrucções
que o derviche lhe dera . Animou -se e subiu , resolvido
a chegar até ao cume da montanha , e tinha dado cinco
ou seis passos quando ouviu atraz de si uma voz , que
The pareceu mui proxima, como d'um homem que o cha-
mava e insultava, gritando : « Espera, temerario, que te
castigue do teu atrevimento >> .
344 AS MIL E UMA NOITES

Vendo o principe Perviz este ultraje, esqueceu- se de


todas as instruções do derviche, puxou pelo seu alfange
e voltou-se para se vingar, mas apenas teve tempo de

vêr que ninguem o seguia, e logo foi mudado em pedra


negra, elle e o seu cavallo.
Desde que partira o principe Perviz , nunca deixára
a princeza Parizada de trazer comsigo as contas que re-
cebėra de sua mão no dia que partira, e quando não ti-
nha outra cousa que fazer, punha-se a rezar, fazendo
passar as contas pelos dedos, umas após outras. Nem de
CONTOS ARABES 345

noite as tinha largado em todo esse tempo ; todos os dias


ao deitar-se passava-as á roda do pescoço e pela manhã
ao levantar-se pegava n'ellas para experimentar se as con-
tas passavam sempre bem. No dia e no instante em que
o principe Perviz teve o mesmo destino que o principe
Bahman, de ser mudado em pedra negra, segurava as
contas, segundo o seu costume, e rezava por ellas ; de re-
pente sentiu que as contas não obedeciam já ao movi-
mento que lhes dava e capacitou- se que era o signal
certo da morte do principe seu irmão . Como tivesse já
tomando a sua resolução ácerca do partido que deveria
tomar no caso que isto acontecesse, não perdeu tempo
dando demonstrações exteriores da sua afflicção . Esfor-
cou-se por concentral-a toda em si mesma, e logo no dia
seguinte , depois de se disfarçar em homem, armada e
equipada, e ter participado à sua genta que voltaria em
poucos dias, montou a cavallo e partiu, tomando o mes-
mo caminho qua tomaram ambos os principes seus ir-
mãos .
A princeza Parizada, que estava costumada a montar
a cavallo quando se divertia na caça, aturou a fadiga da
viagem melhor do que poderiam outras senhoras fazel -o .
Como gastasse os mesmos dias que os principes seus ir-
mãos, encontrou tambem o derviche no vigesimo . Estan-
do perto d'elle , apeou-se e segurando o seu cavallo pe-
la redea, foi assentar-se ao lado d'elle ; depois de o ter
saudado , disse-lhe : «Bom derviche, permittir-me- heis que
descance alguns instantes aqui ao vosso lado, e far-me-
heis o favor de me dizer, se não ouvistes contar que
ha n'estes arredores um sitio onde se acha o passaro que
falla, a arvore que canta e a agua amarella » .
O derviche respondeu : « Senhora , visto que vossa
voz me dá a conhecer qual é o vosso sexo, não obstante
o vosso disfarce em trajo de homem , e que d'este modo
é que devo tratar-vos, agradeço- vos o vosso comprimen-
ta, e recebo com muito gosto a honra que me fazeis . Te-
nho noticia do lugar onde se acham as cousas de que
me fallaes, mas para que fim me fazeis essa pergunta ?
-Bom derviche, replicou a princeza Parizada , d'essas
tres cousas me fizeram uma descripção tão vantajosa,
346 AS MIL E UMA NOITES

-
que ardo em desejos de possuil-as . Senhora, replicou
o derviche, disseram- vos a verdade ; essas tres cousas
são ainda mais maravilhosas e mais singulares do que
vol-as pintaram, mas encobriram-vos as difficuldades que
ha a vencer para poder alcançal - as. Não vos terieis em-
penhado n'uma empresa tão trabalhosa e tão perigosa,
se vos tivessem informado bem d'ella . Crede - me , não pas-
seis mais adiante, retrocedei e não espereis que queira
contribuir para a vossa ruina. -- Bom derviche , replicou
a princeza, venho de longe e sentiria muito voltar para
minha casa sem ter executado o meu plano . Fallaes -me
das difficuldades e do perigo de perder a vida, mas não
me declaraes quaes sejam essas difficuldades e em que
consistem esses perigos ; é o que desejaria saber para
consultar commigo, e vêr se podia ter ou não confiança
na minha resolução, na minha coragem e nas minhas
forças ».
Repetiu então o derviche á princeza Parizada a mes-
ma falla que fizera aos principe Bahman e Perviz, exa-
gerando-lhe as difficuldades de subir até ao cume da
montanha, onde estava o passaro na sua gaiola, do qual
era difficil apossar -se , depois do que daria o passaro no-
ticia da arvore e da agua amarella ; a bulha e a algazar-
ra das vozes ameaçadoras e horrendas que se ouviam de
todos os lados , sem vér ninguem, e finalmente a quan-
tidade de pedras negras, objecto que só era capaz de
causar espanto a ella e a qualquer outro, quando sou-
besse que essas pedras eram outros tantos cavalleiros va-
lentes, que foram tambem convertidos n'ellas, por não
terem observado a principal condição para serem bem
succedidos n'esta empresa, e que consistia em não vol-
tar-se para olhar para traz, sem primeiro ter-se apossado
da gaiola .
Tendo o derviche acabado de fallar : « Pelas vossas
palavras, replicou a princeza, vejo que a grande difficul-
dade para ter bom exito n'este negocio é, em primeiro
lugar, subir até á gaiola, sem assustar -se da algazarra das
yozes que se ouvem sem vér ninguem ; e , em segundo
D ultima condi-
CONTOS ARABES 347

bem. Quanto á primeira, confesso que essas vozes , taes


como m'as representaes, são capazes de espantar os mais
ousados. Porém, como em todas as empresas de grande
importancia e perigosas , não é prohibido usar de astucia,
pergunto-vos se n'esta se poderia fazer uso de algum
ardil, o que é para mim de grande importancia . - - E de
que ardil quererieis usar ? perguntou o derviche . — Pa-
rece-me, respondeu a princeza, que tapando os ouvidos
com algodão, por mais fortes e espantosas que sejam
as vozes, fariam muito menos impressão aos ouvidos ,
como fariam tambem menos effeito na minha imaginação ;
teria por tanto o meu espirito a liberdade de não se per-
turbar a ponto de perder o uso da razão . - Senhora, re-
plicou o derviche, de todos os que até agora se dirigiram
a mim para informar-se do caminho que quereis saber,
não sei se algum se serviu do ardil de que me fallaes.
O que sei é que nenhum m'o disse , e que todos pere-
ceram . Se persistis na vossa resolução , podeis fazer a
experiencia ; queira Deus que sejaes bem succedida , mas
não vos aconselharia a expôr-vos. Bom derviche, re-
plicou a princeza, nada me impede de persistir na mi-
nha resolução ; diz - me o coração que com a ajuda d'es-
te ardil serei bem succedida, e estou resolvida a valer-
me d'elle . Assim não me resta já senão que vós me in-
formeis do caminho que devo tomar , é a graça que vos
rogo que não me recuseis ». Exhortou-a o derviche pela
ultima vez a reflectir bem no que ia fazer, e como vis-
se que era constante na sua resolução, tirou uma bola,
e apresentando-lh'a : « Pegai n'esta bola, disse elle , mon-
tai a cavallo , e depois de a terdes lançado adiante de
vós, segui-a por todos os giros que lhe vereis fazer, ro-
lando até à montanha onde está o que procuraes , e on-
de ella parará ; logo que ella pare , parai tambem , apeai-
vos e subi ; ide, sabeis o resto, não vos esqueçaes de
vos aproveitardes d'elle ».
A princeza Parizada, depois de ter dado os agradeci-
mentos ao derviche e ter-se despedido d'elle, montou a
cavallo, lançou a bola e a seguiu pelo caminho que ella
tomou, rolando ; continuou a bola a rolar até que parou
finalmente ao pé da montanha .
348 AS MIL E UMA NOITES

Apeou-se a princeza ; tapou os ouvidos com algodão,


e depois de ter considerado bem o caminho que tinhala
fazer para chegar ao cume da montanha, principiou a

subir a passo igual, com intrepidez . Ouviu as vozes , e


percebeu logo que o algodão lhe era d'um grande soc-
corro. Quanto mais se adiantava, mais fortes eram as vo-
zes, e mais se multiplicavam, mas não a tal ponto que
fizessem n'ella uma impressão capaz de perturbal -a . Ou-
viu muitas injurias e ditos ultrajantes em relação ao seu
CONTOS ARABES 349

sexo, injurias que desprezou e de que se riu. « Não me


offendo de vossas injurias nem de vossos ditos , dizia com-
sigo mesma ; dizei ainda mais, zombo d'isso, e não me
impedireis de continuar o meu caminho ». Subiu final-
mente tão alto , que principiou a avistar a gaiola e o pas-
saro, que conluiado com as vozes , procurava intimidal-a,
gritando com voz estrondosa , não obstante a pequenez de
seu corpo : <« Louca, retira-te ; não te aproximes mais ! » A
princeza, mais animada com isto, apressou o passo quan-
do se viu tão perto do fim de sua carreira ; ganhou o
alto da montanha onde o terreno era igual ; correu direi-
ta á gaiola, e pôz-lhe a mão em cima, dizendo ao pas-
saro : « Es meu, bem a teu pezar ; não me escaparás » .
Em quanto Parizada tirava o algodão que lhe tapava
os ouvidos : <<« Bella senhora, disse-lhe o passaro, não me
queiraes mal por ter-me ajuntado aos que faziam seus
esforços pela conservação da minha liberdade . Ainda que
fechado n'uma gaiola , não deixava de estar contente com
minha sorte, mas destinado a ser escravo, estimo mais
ter-vos por ama a vós, que me adquiristes mais corajo-
samente do que qualquer outra pessoa o faria ; desde já
juro-vos uma fidelidade inviolavel, com uma total obe-
diencia aos vossos mandatos ; sei quem sois, e dir-
vos-hei que não vos conheceis pelo que sois ; virá um
dia em que vos farei um serviço, pelo qual espero que
me ficareis em alguma obrigação . Para principiar a dar-
vos provas da minha sinceridade, dai-me a entender o
que desejaes ; estou prompto a obedecer-vos » >.
A princeza, cheia de alegria, tanto mais inexplicavel
quanto a conquista que acabava de fazer lhe custára a
morte de dous irmãos tão queridos , e a ella mesma tan-
ta fadiga e um perigo cuja grandeza conhecia , depois de
ter sahido d'elle melhor do que esperava antes que n'el-
le se mettesse, não obstante o que o derviche lhe repre-
« Passaro, era minha intenção participar- te que
sentára : <
desejo algumas cousas que são para mim de muita impor-
tancia ; alegro-me muito que me tenhas prevenido do of-
ferecimento da tua boa vontade . Em primeiro lugar, sou-
be que ha aqui uma agua amarella, cuja propriedade é
maravilhosa ; peço-te que me ensines onde ella está » .
350 AS MIL E UMA NOITES

Ensinou-lhe o passaro o lugar, que não era muito dis-


tante ; lá foi e encheu d'ella um pequeno frasco de pra-
ta que comsigo trouxera. Voltou ao passaro, dizendo - lhe :
« Não basta isto, procuro tambem a arvore que canta,
dize-me onde está . - Voltai -vos e vereis um bosque
onde achareis essa arvore » . Não estava longe o bosque ;
foi lá a princeza, e por entre muitas arvores, o concerto
harmonioso que ouviu lhe deu a conhecer a que busca-
va, mas era muito grande e muito alta. Voltou e disse
ao passaro : « < Achei a arvore que canta, mas não posso
arrancal-a, nem leval - a . - Não ha precisão de a arrancar,
replicou o passaro, basta pegar n'um raminho, e trazel-o
comvosco para plantal- o no vosso jardim, pegará logo
que estiver na terra, e em pouco tempo o vereis cres-
cer, e fazer-se uma arvore tão bella como a que acabaes
de vêr ».
Estando a princeza Parizada de posse das tres cousas
pelas quaes lhe fizera a devota musulmana conceber um
tão ardente desejo , disse ainda ao passaro : « Tudo o que
acabas de fazer-me não é sufficiente ; tu és causa da
morte de meus irmãos, que devem estar por entre as
pedras negras que vi ao subir ; pretendo leval - os com-
migo ».
Parecia que o passaro queria dispensar- se de satis-
fazer a princeza quanto a este pedido ; com effeito , poz
alguma difficuldade. « Lembra-te que acabas de dizer- me
que és meu escravo, que o és na realidade , e que a tua
vida está à minha disposição . Não posso, replicou o
passaro, contrariar essa verdade ; ainda que o que me pe-
dis seja de maior difficuldade que as outras cousas, não
deixarei de satisfazer-vos. Lançai os olhos aqui em roda,
acrescentou elle , e vêde se não descobris uma bilha.
« Vejo », disse a princeza . « Pegai n'ella, continuou elle,
e descendo a montanha, deitai uma pouca da agua que
tem dentro, sobre cada pedra preta ; será esse o meio
de achardes os vossos irmãos ».
A princeza Parizada pegou na bilha e levando com-
sigo a gaiola com o passaro , o frasco e o raminho,
á proporção que descia, deitava agua da bilha sobre
cada pedra negra que encontrava, transformando cada
CONTOS ARABES 351

uma em homem ; e como não omittisse nenhuma, todos


os cavallos, tanto dos principes seus irmãos, como dos
outros cavalleiros, apparecéram . Assim, reconheceu os
principes Bahman e Perviz , que a reconheceram tambem,

e que vieram abraçal-a . Abraçando-os tambem e mani-


festando-lhes a sua admiração : « Meus queridos irmãos,
disse ella, que fazeis aqui ? » Como responderam que aca-
bavam de dormir : « Sim, replicou ella , mas se não fos-
se eu, ainda duraria o vosso somno, e teria talvez du-
rado até ao dia do juizo ; não vos lembra que viestes
352 AS MIL E UMA NOITES

buscar o passaro que falla , a arvore que canta e a agua


amarella ? E não vistes, ao chegar, as pedras negras dis-
persas por este sitio ? Olhai, e vêde se ha ainda alguma.
Os cavalleiros que vêdes eram essas pedras, do mesmo
modo que os vossos cavallos que vos esperam, como po-
deis ver. Se desejaes saber como esta maravilha se ope-
rou, continuou ella, mostrando-lhes a bilha de que já
não precisava, e que tinha largado ao pé da montanha,
foi pela virtude da agua de que estava cheia essa bilha
e que deitei sobre cada pedra. Como depois de ter feito
meu escravo o passaro que falla, que aqui está n'esta
gaiola, e achando por sua via a arvore que canta, da
qual trago um raminho, e a agua amarella, da qual es-
tá cheio este frasco , não queria voltar sem levar- vos com-
migo ; obriguei-o pelo poder que tenho sobre elle a dar-
me o meio para esse effeito, e ensinou-me onde estava
esta bilha, e o uso que d'ella devia fazer » .
Por estas palavras conheceram os principes Bahman
e Perviz a obrigação que deviam á princeza sua irmã ;
e os cavalleiros que se ajuntaram á roda d'elles, e que
ouviram as mesmas palavras, os imitaram , manifestando-
lhe que bem longe de ter-lhe inveja, quanto á conquis-
ta que acabava de fazer e á qual tinham aspirado, não
podiam dar-lhe melhores provas do seu reconhecimento
pela vida que acabava de restituir- lhes, do que decla-
rando -se seus escravos, promptos a fazer tudo o que lhes
ordenasse. << Senhores, replicou a princeza, se déstes at-
tenção ao que eu disse, pudestes observar que não tive
outra vista no que fiz, senão rehaver meus irmãos ; as-
sim, se d'isso vos resultou o beneficio que dizeis, não me
deveis obrigação alguma. Não aceito dos vossos com-
primentos senão o modo cortez como usaes commigo, e
agradeço-vol-o como devo . Além disso, considero-vos
como homens tão livres como ereis antes da vossa des-
graça, e alegro-me comvosco da felicidade que tivestes
a meu respeito . Porém não nos demoremos mais n'um
lugar onde não ha já cousa que deva deter-nos por mais
tempo ; montemos a cavallo e voltemos cada um ao seu
paiz » .
Foi a princeza Parizada a primeira a dar o exemplo ,
CONTOS ARABES 353

indo buscar o seu cavallo, que achou onde o deixára .


Antes que montasse a cavallo, o principe Bahman, que
queria allivial-a , lhe pediu a gaiola para a levar . « Irmão ,
replicou a princeza , o passaro é meu escravo, quero eu
mesma leval-o ; mas se quereis encarregar-vos do ramo
da arvore que canta, eil-o aqui. Segurai todavia a
gaiola para dar-m'a quando estiver a cavallo» . Montada a
cavallo, e tendo recebido das mãos do principe Bahman a
gaiola : « E vós, irmão Perviz, disse ella, voltando-se
para o lado onde elle estava , tomai o frasco da agua
amarella, que entrego á vossa guarda, se isso não vos in-
commoda ». O principe Perviz encarregou-se d'elle com
muito gosto .
Tendo os principes e todos os cavalleiros montado a
cavallo, esperava a princeza Parizada que algum d'elles
se postasse à frente, e principiasse a marcha ; quizeram
os principes dar a honra aos cavalleiros , e elles pela sua
parte queriam dál- a á princeza . Como esta visse que ne-
nhum dos cavalleiros queria ter essa honra, e que lh'a
queriam dar a ella, dirigiu a falla a todos, dizendo-lhes :
« Cavalleiros, espero que marcheis . - Senhora, replicou
em nome de todos um dos que estavam mais perto d'el-
la ; ainda que ignorassemos a honra que é devida ao vos-
so sexo, não haveria honra que não estivessemos prom-
ptos a fazer-vos, visto o que acabaes de praticar em be-
neficio nosso , não obstante a vossa modestia. Nós vos
supplicamos que não nos priveis mais tempo da graça
de seguir-vos.Senhores, disse então a princeza, não
mereço a honra que me fazeis , e não a aceito senão por-
que assim o desejaes » . Ao mesmo tempo abriu a mar-
cha, e ambos os principes e os cavalleiros a seguiram
sem distincção.
Quizeram vér o derviche ao passar, agradecer- lhe o
seu bom acolhimento e os seus bons conselhos, que
acharam ser sinceros, mas tinha morrido, e não se pôde
saber se foi de velhice, ou porque não era já necessa-
rio para ensinar o caminho que conduzia á conquista das
tres cousas, das quaes acabava de triumphar a princeza
Parizada .
Continuaram a sua jornada ; mas o numero dos desen-
TOMO IV. 23
354 AS MIL E UMA NOITES

cantados principiou a diminuir. Com effeito os cavallei-


ros que tinham vindo de diversos paizes, depois de ter
cada um em particular reiterado á princeza a obrigação
que lhe deviam , despediram-se d'ella e dos principes
seus irmãos, á proporção que encontravam o caminho
por onde vieram . A princeza e os principes continuaram
o seu até chegarem a sua casa.
Foi logo a princeza pôr a gaiola no jardim de que
fallámos , e como o sultão estivesse do lado do jardim,
apenas o passaro principiou a cantar, logo os rouxinoes,
as chamarizes, as cotovias, as tutinegras, os pintasilgos
e uma infinidade d'outros passaros do paiz , vieram acom-
panhal- o no seu canto. Quanto ao raminho mandou- o
plantar na sua presença n'um dos canteiros do jardim,
pouco distante da casa ; pegou, e em pouco tempo tor-
nou-se n'uma grande arvore, cujas folhas deram logo a
mesma harmonia e o mesmo concerto que a arvore d'on-
de fôra colhido . Quanto ao frasco d'agua amarella, man-
dou fazer no meio do jardim um grande tanque de bel-
lo marmore, e depois de acabado deitou n'elle toda a
agua amarella que estava no frasco . A agua principiou
logo a crescer, e chegada que foi quasi até ás bordas do
tanque, levantou- se no meio uma infinidade de repu-
xos de agua, até à altura de vinte pés .
A noticia d'estas maravilhas divulgou -se pela visinhan-
ça e, como a porta da casa e a do jardim, estavam aber-
tas para todos, veio logo admiral-as uma grande affluen-
cia de gente dos arredores.
Passados alguns dias, os principes Bahman e Perviz ,
refeitos já da fadiga da sua viagem, tornaram ao seu
modo de viver, e, como a caça fosse o seu divertimento
diario, montaram a cavallo e foram pela primeira vez ,
depois da sua chegada, não à sua tapada, mas a duas
ou tres leguas de sua casa. Como caçassem, sobreveio
o sultão da Persia caçando no mesmo sitio que escolhe-
ram. Logo que perceberam , por um grande numero de
cavalleiros que viram apparecer em muitas paragens,
**apendacia 3 chegas. tomaram o partido de parar,
CONTOS ARABES 355

n'um lugar tão estreito, que não podiam desviar-se nem


retroceder sem serem vistos . Na sua surpreza só tiveram
tempo de apear- se e prostrar-se diante do sultão , beijando
a terra, sem levantar a cabeça para o não encarar. Mas o
sultão, que viu que estavam bem montados e trajados tão
aceadamente como se fossem da sua côrte, teve a curiosi-
dade de querer vêr-lhes a cara ; parou e ordenou- lhes
que se levantassem.
Levantaram-se os principes e ficaram em pé diante
do sultão, com ar livre e desembaraçado, acompanhado
todavia d'uma cortezia modesta e respeitosa . O sultão
os olhou algum tempo da cabeça até aos pés , sem fal-
lar, e depois de ter admirado o seu bello garbo e a sua
boa feição, perguntou-lhes quem eram e onde moravam .
Foi o principe Bahman o que fallou : « Senhor, disse
elle, somos filhos do intendente dos jardins de vossa
magestade, que morreu ultimamente, e moramos n'uma
casa que elle mandou edificar pouco tempo antes de
morrer, esperando que tivessemos a idade propria para
servir a vossa magestade, e para pedir-lhe que nos
empregasse, quando tivesse occasião . - Pelo que vejo,
replicou o sultão, gostaes da caça ? - Senhor, replicou
o principe Bahman, é o exercicio em que mais nos di-
vertimos, do que nenhum dos vassallos de vossa ma-
gestade, que se destina a servir nos seus exercitos , se
descuida, conformando-se ao antigo costume d'este rei-
no » . O sultão , satisfeito com uma resposta tão acerta-
da lhes disse : « Visto ser assim, gostarei de vêr- vos
caçar ; vinde , e escolhei a caça que quizerdes » .
Montaram os principes a cavallo e acompanharam o
sultão . Tinham andado pouco quando viram apparecer
algumas feras. Escolheu o principe Bahman um leão , e
um urso o principe Perviz . Partiram ambos ao mesmo
tempo, com uma intrepidez que causou admiração ao
sultão . Alcançaram a sua presa quasi ao mesmo tempo e
arrojaram os seus dardos com tanta destreza, que tras-
passadas as feras as fizeram cahir mortas. Sem parar,
foi o principe Bahman no alcance d'outro urso, e d'outro
leão o principe Perviz, e em poucos instantes feriram -os,
deixando- os por terra sem vida . Queriam continuar, mas
::
356 AS MIL E UMA NOITES

o sultão não consentiu ; mandou-os chamar, e chegando,


vieram postar-se ao pé d'elle : « Se vos deixasse , disse
elle, destruirieis bem depressa toda a minha caça . Toda-
via não é tanto a minha caça que quero poupar, como
as vossas pessoas , cuja vida me será d'hoje em diante
muito presada, persuadido de que o vosso valor me será
algum dia mais util do que acaba de ser-me agora agra-
davel ». O sultão Khosrouschah sentiu finalmente uma
inclinação tão forte para ambos os principes , que os
convidou a seguil-o logo. « Senhor, replicou o principe
Bahman, vossa magestade nos faz uma honra que não
merecemos, e nós lhe supplicamos que queira dispen-
sar-nos d'ella » .
O sultão, que não percebia a razão que os principes
podiam ter para não aceitarem a prova de consideração
que lhes manifestava, perguntou-lhes qual era o motivo
d'isso , e apertou com elles para sabel-o . « Senhor, dis-
se o principe Bahman, temos uma irmã mais nova que
nós, com quem vivemos em tão boa união, que não em-
prehendemos, nem fazemos cousa alguma sem primeiro
tomar o seu parecer ; assim como ella nada faz sem ter-
nos pedido o nosso.- Louvo muito a vossa união frater-
nal, replicou o sultão : consultai pois a vossa irmã, áma-
nhã, vindo caçar commigo, dar- me-heis a resposta » .
Os principes voltaram para sua casa , mas não se
lembraram, nem da aventura que lhes acontecera de
encontrar o sultão e de ter tido a honra de caçar com
elle, nem sequer de fallar á princeza da que lhes fizera
querendo-os levar comsigo . No dia seguinte , como fos-
sem ter com o sultão ao sitio da caça : « Então ? pergun-
tou-lhes o sultão ; fallastes a vossa irmã ? Consentiu no
gosto que espero ter de vêr- vos mais particularmente ? »
Ölharam os principes um para o outro, e a vermelhidão
lhes subiu ao rosto : « Senhor , respondeu o principe
Bahman, supplicamos a vossa magestade que nos des-
culpe ; nem eu nem meu irmão nos lembrámos . — Lem-
brai-vos pois hoje , replicou o sultão , e ámanhã não vos
esqueçaes de dar-me a resposta >» .
Esqueceram- se segunda vez os principes, sem que o
sultão se escandalisasse da sua negligencia . Pelo contra-
CONTOS ARABES 357

rio, tirou tres bolinhas d'ouro que trazia n'uma bolsa,


mettendo-as no seio do principe Bahman . « Estas boli-
nhas, disse elle sorrindo-se, impedirão que vos esque-
çaes terceira vez do que desejo que façaes a meu res-
peito ; a bulha que farão ao deitar- vos, cahindo da vossa
cinta, vos fará lembrar, no caso de não vos ter lembra-
do antes >> .
Aconteceu a cousa como a previra o sultão . Sem as
tres bolinhas d'ouro , ter- se -hiam ainda os principes es-
quecido de fallar á princeza Parizada, sua irmã . Cahiram
do seio do principe Bahman ao tirar elle a sua cinta
para metter-se na cama . Foi logo ter com o principe
Perviz, e foram juntos ao quarto da princeza , que não
estava ainda deitada ; pediram -lhe perdão de vir impor-
tunal-a a uma hora impropria, e expuzeram-lhe o moti-
va, com todas as circumstancias do seu encontro com o
sultão.
Assustou-se com esta noticia a princeza Parizada :
<< O vosso encontro com o sultão , disse ella , é para vós
feliz e honroso, e para o futuro póde sêl-o ainda mais,
mas é desagradavel e muito triste para mim. Em consi-
deração a mim , bem o vejo, é que resististes ao que
desejava o sultão ; agradeço - vos infinitamente ; n'isso co-
nheço que a vossa amizade corresponde à minha . Antes
quizestes, por assim dizer, commetter uma incivilidade
para com o sultão , dando - lhe uma recusa honesta, ao
que vos pareceu, do que prejudicar a união fraterna
que nós jurámos . Mas parece-vos que seja facil recusar
absolutamente ao sultão o que deseja com tanta ancia ,
como parece ? O que desejam os sultões , são vontades,
ás quaes é perigoso resistir. Assim, quando , seguindo a
minha inclinação, vos dissuadisse de ter para com elle a
complacencia que de vós exige o sultão , não faria se-
não expôr-vos ao seu resentimento , e tornar- me desgra-
çada comvosco . Vós vêdes qual é o meu parecer ; toda-
via, antes de concluir cousa alguma, consultemos o pas-
saro que falla, e vejamos o que nos aconselha . Elle pe-
netra e antevê o futuro, e prometteu -nos o seu soccor-
ro em quaesquer embaraços em que nos achassemos » .
A princeza Parizada mandou buscar a gaiola, e de-
358 AS MIL E UMA NOITES

pois de ter fallado ao passaro do que se tratava , na


presença dos principes , perguntou-lhe o que era conve-
niente que fizessem n'esta conjunctura . O passaro res-
pondeu : « Devem os principes vossos irmãos correspon-

ww
w

der á vontade do sultão, e deve cada um pela sua


vez convidal-o a vir vêr a vossa casa. — Porém, pas-
saro, replicou a princeza, amamo-nos, meus irmãos e
eu , com uma amizade sem igual ; não padecerá esta
amizade com esta nova ? Nada, replicou o passaro,
fortalecer- se-ha cada vez mais . — D'essa sorte, repli-
CONTOS ARABES 359

cou a princeza, vêr-me-ha o sultão » . Disse-lhe o pas-


saro que era necessario que a visse e que tudo iria para
melhor.
No dia seguinte os principes Bahman e Perviz tor-
naram á caça, e o sultão , do mais longe que se pôde
fazer ouvir, lhes perguntou se se lembraram de fallar a
sua irmã . Chegou-se o principe Bahman e lhe disse :
«< Senhor, vossa magestade póde dispôr de nós ; estamos
promptos a obedecer-lhe ; não só não tivemos trabalho
em alcançar o consentimento de nossa irmã, mas ainda
tomou a mal o termos tido estas condescendencias para
com ella, n'uma cousa que era de nossa obrigação - fa-
zer o que pedia vossa magestade . Porém, senhor, se pec-
cámos, em attenção a ella, esperamos que vossa mages-
tade nos perdoará. - Não vos dé isso cuidado, replicou
o sultão, bem longe de tomar a mal o que fizestes, ap-
provo-o tão fortemente, que espero que tereis para com
a minha pessoa a mesma complacencia e a mesma af-
feição , por pouco que a nossa amizade esteja por ora ar-
raigada ». Os principes , confundidos do excesso de bon-
dade do sultão, responderam sómente com uma profun-
da inclinação, para mostrar-lhe o grande respeito com
que o recebiam.
O sultão, contra o seu costume, não caçou muito
tempo n'esse dia . Como julgasse que os principes não
tinham menos capacidade do que valor e valentia, a im-
paciencia de entreter-se com mais liberdade fez com que
se retirasse mais cedo . Quiz que fossem a seu lado na
marcha, honra, que sem fallar dos principaes cortezãos
que o acompanhavam , causou ciume até ao grão- visir,
que teve o desgosto de os vêr marchar adiante d'elle.
Tendo o sultão entrado na sua capital, o povo, que
se apinhava nas ruas, não tinha os olhos fitos senão nos
dous principes Bahman e Perviz , examinando quem po-
diam ser, se eram estrangeiros ou do reino . <« Seja o que
fôr, dizia a maior parte, quizesse Deus que o sultão nos
tivesse dado dous principes tão bem feitos e de tão boa
feição ; poderia têl-os quasi da mesma idade, se os par-
tos da sultana, que padece a pena d'elles ha tanto tem-
po, tivessem sido felizes » .
360 AS MIL E UMA NOITES

A primeira cousa que fez o sultão quando chegou ao


seu palacio, foi conduzir os principes aos quartos, cuja
belleza, riquezas, trastes, ornamentos e symetria louva-
ram sem affectação , e como homens que d'isso enten-
diam . Serviram finalmente um banquete magnifico, e o
sultão os mandou assentar á mesa comsigo ; quizeram
escusar-se, mas obedeceram logo que o sultão lhes disse
que tal era a sua vontade .
O sultão, que tinha muita capacidade , fizera grandes
progressos nas sciencias e particularmente na historia ;
tinha previsto que por modestia e respeito não tomariam
os principes a liberdade de principiar a conversação . Pa-
ra lhes dar occasião de fallar, deu principio a ella, pro-
pondo assumptos durante todo o banquete ; mas sobre
qualquer materia que lhes fallasse, satisfizeram com tan-
to conhecimento, espirito, juizo e discernimento, que o
sultão ficou admirado . <
« Ainda que fossem meus filhos,
dizia comsigo, e ainda que , com a capacidade que tem
lhes tivesse dado a educação, não saberiam mais nem
seriam mais habeis nem mais instruidos » . Teve final-
mente um grande gosto com a sua conversação ; ten-
do-se demorado depois á mesa mais do que o costume,
passou ao seu gabinete, onde se entreteve com elles ainda
muito tempo . O sultão finalmente lhes disse : « Nunca
imaginei que houvesse no campo jovens cavalleiros,
meus vassallos, tão bem educados, tão espirituosos e tão
capazes ; nunca na minha vida tive conversação que me
agradasse tanto como a vossa ; mas basta, é tempo de
dar-vos descanço ao espirito com algum divertimento da
minha côrte ; e como nenhum é mais capaz de dissipar
a tristeza e melancolia do que a musica, ouvireis um
concerto de vozes e de instrumentos, que vos não será
desagradavel >> .
Como o sultão tivesse acabado de fallar, os musicos,
a quem se tinha dado ordem, entraram e corresponde-
ram bem ao conceito que todos faziam da sua habilidade .
Depois do concerto vieram comicos excellentes e deram
fim ao divertimento dançarinos e dançarinas .
Os principes, que viram que o fim do dia se aproxi-
mava, prostraram-se aos pés do sultão e lhe pediram licen
CONTOS ARABES 361

ça para se recolherem, depois de ter-lhe agradecido a


sua generosidade e a honra com que os tratára ; o sul-
tão , despedindo -os, lhes disse : « Deixo-vos ir, e lembrai-
vos que não vos trouxe ao meu palacio senão para en-
sinar- vos o caminho para virdes a elle de vosso motu
proprio ; sereis sempre bem vistos e bem aceites , e
quantas mais vezes vierdes , mais gosto me dareis » .
O principe Bahman, antes de se afastar da presença
do sultão, disse- lhe : « Senhor , ousamos tomar a liberda-
de de supplicar a vossa magestade que nos concedesse a
graça, a nós e a nossa irmã , de passar por nossa casa,
de n'ella descançar alguns instantes, a primeira vez
que o divertimento da caça o levar a esses arredores .
Não é digna da vossa presença ; mas algumas vezes os
monarchas não tem por desprezo abrigar - se n'uma chou-
pana. - Uma casa de cavalheiros como vós , replicou o
sultão , não pode ser senão bella e digna . Vel-a- hei com
grande gosto e com maior prazer ainda por serdes vós e
e vossa irmã quem me hospedaes ; não me demorarei
em ter essa satisfação senão até amanhã. Achar- me-hei
muito cedo no mesmo sitio, onde não me esqueci que
vos encontrei a primeira vez ; achai-vos lá, servir-me-
heis de guia ».
Os principes Bahman e Perviz voltaram para sua
casa no mesmo dia, e chegados que foram, depois de
ter contado á princeza o acolhimento honroso que o sul-
tão lhes fizera , annunciaram-lhe que não se esqueceram
de convidal -o para fazer-lhes honra de vêr a sua casa
de passagem, e que o sultão lhes determinára o dia, que
era no seguinte.
« Se assim é, disse a princeza, devemos desde já
cuidar em preparar um banquete digno de sua magesta-
de, e para isso convém que consultemos o passaro que
falla ; ensinar-nos-ha talvez algum guisado que será mais
do gosto de sua magestade do que outros » . Como os
principes estivessem pelo que ella julgasse a proposito ,
consultou o passaro em particular, depois de se terem re-
tirado : « Passaro, disse ella, o sultão nos dará a honra
de vir ver a nossa casa, e devemos regalal-o ; ensina-
nos como poderemos desempenhar-nos n'este lance , de
362 AS MIL E UMA NOITES

modo que fique satisfeito . - Minha boa ama, replicou o


passaro, tendes excellentes cozinheiros ; que façam o que
melhor souberem, e sobretudo que lhe preparem um
prato de pepinos com recheio de perolas, que manda-
reis servir diante do sultão, de preferencia a qualquer
outro guisado, logo no principio . - Pepinos com um re-
cheio de perolas ! clamou a princeza Parizada com pas-
mo ; passaro, estás louco, é um guisado inaudito . Po-
derá o sultão admiral-o como uma grande magnificencia,
mas quando se está á mesa é para comer, e não para ad-
mirar perolas. Além de que, ainda quando para o recheio
empregasse quantas perolas tenho, não bastariam . - Mi-
nha rica ama, replicou o passaro, fazei o que digo, e não
vos de cuidado o que ha-de acontecer, que será só bem.
Quanto ás perolas, ide amanhã cedo ao pé da primeira
arvore da vossa tapada, á mão direita, e alli mandai ca-
var ; achareis mais perolas do que as que precisaes » .
Na mesma tarde a princeza Parizada mandou avisar
um jardineiro, e no dia seguinte ao romper da aurora o
levou comsigo á arvore que o passaro lhe ensinára, e
The ordenou que cavasse ao pé d'ella. Como tivesse ca-
vado até certa profundidade , sentiu resistencia ; desco-
briu um cofresinho d'ouro, de quasi um pé quadrado,
que mostrou á princeza . « Para isso é que te trouxe , dis-
se ella, continúa, e toma sentido em não o quebrar com
a enxada » .
O jardineiro tirou finalmente o cofresinho e o entre-
gou á princeza . Como o cofresinho estivesse só fechado
com uns ganchos mui aceados, a princeza o abriu, ven-
do que estava cheio de perolas, todas d'um tamanho me-
diocre, mas iguaes e proprias para o uso que se devia
fazer d'ellas. Contentissima com ter achado este peque-
no thesouro, depois de ter tornado a fechar o cofresinho,
metteu-o debaixo do braço e tomou o caminho de casa,
em quanto o jardineiro punha no mesmo estado que
d'antes a terra ao pé da arvore .
Os principes Bahman e Perviz , que viram cada um
do seu quarto a princeza sua irmã no jardim, mais cedo
do que era costume, vestiram-se, ajuntaram -se e foram
ter com ella ; encontraram-a no meio do jardim, e como
CONTOS ARABES 363

vissem de longe que trazia alguma cousa debaixo do bra-


ço, aproximando -se viram que era um cofresinho d'ouro ;
ficaram com isto admirados . « Minha boa irmã , disse-lhe
o principe Bahman chegando-se a ella, nada trazieis quan-
do vos vimos acompanhada do jardineiro, e vemos-
vos agora voltar carregada com um cofresinho d'ouro. É
algum thesouro que achou o jardineiro , e que veio an-
nunciar- vos ? - Meus irmãos, replicou a princeza, é exa-
ctamente o contrario ; fui eu quem levou o jardineiro
aonde estava o cofresinho, que lhe mostrei o lugar, e
que o fiz desenterrar . Mais admirados ficareis quando vir-
des o que elle contém » .
Abriu a princeza o cofresinho, e os principes, que fi-
caram maravilhados quando viram que estava cheio de
perolas, pouco consideraveis pelo seu tamanho , se se exa-
minasse cada uma em particular, mas d'um grandissimo
preço em razão da sua perfeição e da sua quantidade, lhe
perguntaram por que ventura tivera conhecimento d'es-
se thesouro. « Meus bons irmãos, respondeu ella, a não
ser que vos chame a outra parte um negocio mais ur-
gente , vinde conmigo, dir-vol-o- hei.- Que negocio mais
urgente poderiamos nós ter, disse Bahman, do que ser
informados d'este, que tanto nos interessa ? Não tinhamos
outro senão vir ao vosso encontro » .
Então a princeza Parizada, no meio dos dous princi-
pes, dirigindo- se para sua casa, lhes fez a narração da
consulta que fizera ao passaro e do meio que lhe dera
para alcançar as perolas, ensinando-lhe e indicando o lu-
gar onde ella acabava de achar o cofresinho . Os prin-
cipes e a princeza discorreram algum tempo para desco-
brirem a razão por que queria o passaro que preparas-
sem semelhante guisado para o sultão . Depois de terem
discorrido muito tempo sobre esta materia, concluiram
que d'isso nada entendiam , mas que todavia era preciso
executar pontualmente o conselho.
Entrando em casa, mandou a princeza chamar o chefe
da cozinha, que veio ter com ella ao seu quarto . Depois
de ter-lhe encommendado o banquete para regalar o sul-
tão do modo que ella o entendia : « Além de tudo o que
acabo de dizer, acrescentou ella, é preciso que me fa-
364 AS MIL E UMA NOITES

ças um guisado expressamente para o sultão ; e assim ,


que ninguem ponha, senão tu, mão n'elle . Este guisado
é um prato de pepinos recheados , cujo recheio farás com
as perolas que aqui estão » . Ao mesmo tempo abriu o
cofresinho, mostrando -lhe as perolas .
O chefe da cozinha, que nunca ouvira fallar de se-
melhante recheio, deu dous passos para traz, com certo
ar que assás denotava a sua idéa . Penetrou a princeza este
pensamento : « Bem vejo , disse ella, que me tens por
louca, encommendando te um guisado do qual nunca
ouviste fallar, e o qual póde dizer-se com certeza que
nunca foi feito. É verdade isso ; assim como tu, tambem
eu o sei ; mas não sou louca , e com todo o meu bom 0
senso é que te ordeno que o faças. Vai, inventa, faze o
melhor que te fôr possivel, e leva o cofresinho ; tu m'o
trarás com as perolas que crescerem, se forem mais do
que é preciso » . Não teve o chefe da cozinha que repli-
car ; pegou no cofresinho e o levou . No mesmo dia deu
a princeza Parizada as suas ordens para que tudo fosse
limpo, aceado e bem disposto, tanto na casa como no
jardim, para receber dignamente o sultão . No dia seguinte
os principes estavam no sitio da caça, quando o sultão
da Persia lá chegou . Principiou o sultão a caçar, até que
o ardor do sol, que se aproximava, o obrigou a dar a
caçada por finda . Então, em quanto o principe Bahman
ficou com o sultão para acompanhal-o, poz-se o principe
Perviz á frente da marcha para mostrar o caminho, e
estando á vista da casa, picou o cavallo para ir avisar a T
princeza Parizada que o sultão chegava. Alguns criados N
da princeza, que se postaram nas avenidas por ordem.
sua, lhe tinham já dado parte da chegada do sultão, e
o principe a achou a esperal-o e prompta a recebel-o .
Chegou o sultão ; e tendo entrado no pateo e apean-
do-se diante do vestibulo , apresentou-se a princeza Pa-
rizada, lançou-se a seus pés, e os principes Bahman e
Perviz, que estavam presentes, avisaram o sultão de que
esta era sua irmã, e supplicaram-lhe que aceitasse os
respeitos que ella tributava a sua magestade .
Abaixou-se o sultão para ajudar a princeza a levan-
tar-se, e depois de a ter olhado e admirado algum tempo
CONTOS ARABES 365

o esplendor da sua belleza , que o offuscava, a sua graça


gentil, o seu garbo airoso e um não sei quê, que não
se parecia em cousa alguma com a rusticidade do cam-
po que habitava : « Os irmãos, disse elle, são dignos da
irmã, e a irmã é digna dos irmãos ; e a julgar do inte-
rior, não me admiro já que os irmãos nada queiram fa-
zer sem o consentimento da irmã ; mas espero conhecel-a
melhor n'esta parte do que me parece á primeira vista,
quando tiver visto a casa .
Então fallou a princeza : « Senhor, disse ella, esta é
unicamente uma casa de campo, propria de gente como
nós, que vivemos retirados do tumulto das grandes cida-
des ; nada tem que possa comparar-se ás casas da cida-
de, ainda menos aos palacios magnificos que só perten-
cem aos grandes sultões. Não estou inteiramente pelo
vosso parecer, disse mui affectuosamente o sultão ; o que
d'ella vejo faz que vos tenha um pouco por suspeita.
Guardo para mais tarde dar o meu parecer quando m'a
tiverdes mostrado ; passai pois adiante, e ensinai- me o
caminho >> .
A princeza, deixando o salão de parte, levou o sultão
de quarto em quarto ; e o sultão , depois de ter exami-
nado com attenção peça por peça, e tel- as admirado pelas
suas diversidades : « Minha senhora , disse á princeza Pa-
rizada, chamaes a esta uma casa de campo ? As mais
bellas, e as maiores cidades ficariam bem depressa de-
sertas, se todas as casas de campo se assemelhassem á
vossa . Não me admiro já que vos deis tão bem n'ella , e
que desprezeis a cidade . Mostrai -me tambem o jardim,
estou certo que corresponde á casa » .
Abriu a princeza uma porta que dava para o jardim ;
e o que o sultão viu logo de relance foi o repuxo de
agua amarella, côr d'ouro . Pasmado de vêr um especta-
culo tão novo para elle, e depois de o ter examinado al-
gum tempo com admiração : « D'onde vem esta agua ma-
ravilhosa, disse elle, que é tão agradavel á vista ? Onde
está a nascente d'ella ? Por que arte fizeram um repuxo
tão extraordinario, ao qual não creio que haja cousa
igual no mundo ? Quero ver esta maravilha de perto » .
Dizendo estas palavras , continuou a andar. A princeza o
366 AS MIL E UMA NOITES

conduziu , levando-o ao sitio onde a arvore harmoniosa


estava plantada .
Aproximando-se d'ella, o sultão, que ouviu um con- 1
certo mui diverso dos que jámais ouvira, parou, buscan-
do com a vista onde estavam os musicos ; e como não
visse nenhum, nem perto, nem longe, e como todavia
ouvisse assás distinctamente o concerto que o enlevava :
<< Senhora, disse elle, dirigindo-se á princeza Parizada,
onde estão os musicos que ouço ? Estão debaixo da terra
ou são invisiveis ? Com vozes tão excellentes e tão en-
cantadoras , nada arriscariam em deixar-se vêr, pelo con-
trario dariam muito gosto. - Senhor, respondeu a prin-
ceza sorrindo-se, não são musicos que formam o con-
certo que ouvis, é a arvore, que vossa magestade vé
diante de si, que canta, e se quer ter o trabalho de adian-
tar-se mais quatro passos, d'isso não duvidará , ouvindo
mais distinctamente as vozes » .
Adiantou-se mais o sultão, e agradou-se tanto da
suave harmonia do concerto, que não se cançava de ou-
vil-o. Por fim lembrou-se de vêr de perto a agua ama-
rella ; assim, rompendo o silencio : « Minha bella, per-
guntou á princeza, rogo-vos que me digaes por que acaso
se acha no vosso jardim esta arvore admiravel. É pre-
sente que vos fizeram ou mandastel-a vir de algum paiz
remoto ? Deve ter vindo de bem longe ; a não ser assim,
curioso das raridades da natureza, como sou , teria ou-
vido fallar d'ella. Que nome lhe daes ? -Senhor, res-
pondeu a princeza, essa arvore não tem outro nome se-
não o de arvore que canta, e não se dá no paiz ; leva-
ria muito tempo a contar por que aventura se acha aqui .
É uma historia que tem relação com a agua amarella e
com o passaro que falla, que nos veio ao mesmo tempo,
e que vossa magestade poderá vêr, depois ter visto a
agua amarella de tão perto como deseja. Se lhe agrada,
terei a honra de contar-lh'a , quando tiver descançado, e
se tiver refeito da fadiga da caça . - Minha bella, replicou
o sultão, não sinto a fadiga que dizeis, tão bem re-
compensado estou pelas cousas maravilhosas que me mos-
traes ; dizei antes que não me lembro da que vos dou ;
CONTOS ARABES 367

acabemos pois, e vejamos a agua amarella ; desejo com


muita anciedade vêr e admirar o passaro que falla ».
Chegando o sultão ao repuxo da agua amarella,
teve bastante tempo os olhos fitos n'ella, que não cessa-

va de fazer um effeito maravilhoso, levantando-se ao ar,


e tornando a cahir no tanque. « Segundo a vossa opi-
nião, minha bella , disse elle , fallando sempre com a
princeza, esta agua não tem nascente e não vem de lu-
368 AS MIL E UMA NOITES

gar algum d'estes arredores, por um cano fabricado de-


baixo da terra ; ao menos percebo que é estrangeira,
assim como a arvore que canta. - Senhor, replicou a prin-
ceza, é como vossa magestade diz, e a prova de que
a agua não vem d'outra parte, é ser o tanque d'uma só
peça, e assim não póde vir pelos lados nem por baixo ;
o que deve tornar esta agua mais maravilhosa aos olhos
de vossa magestade, é não ter eu deitado senão um
frasco d'ella no tanque, e ter crescido como está vendo ,
por uma propriedade que lhe é particular » . Afastando-
se finalmente do tanque o sultão : « Basta, disse elle,
pela primeira vez, pois espero voltar a miude ; levai- me
a ver o passaro que falla ». Aproximando-se do salão, avis-
tou o sultão sobre as arvores um numero prodigioso de
passaros, que enchiam o ar, cada um com seu canto, e
com a sua plumagem . Perguntou por que estavam alli
juntos, e não sobre as outras arvores do jardim , onde
não os vira nem ouvira. « Senhor, respondeu a princeza,
é porque vem todos dos arredores para acompanhar o
canto do passaro que falla . Póde vossa magestade vêl-o
na gaiola que está posta sobre uma das janellas do sa-
lão, onde vai entrar, e se a isso der attenção, perceberá
que tem o canto superior ao de todos os outros passa-
ros, até ao do rouxinol, que pouca comparação tem com
o d'elle ».
Entrou o sultão no salão, e como continuasse o passaro
a cantar : « Escravo, disse a princeza levantando a voz,
aqui está o sultão, comprimentai-o » . O passaro deixou
no mesmo instante de cantar e cessaram tambem todos
os outros : « Que o sultão , disse elle , seja bem vindo,
que Deus lhe de muitas prosperidades e prolongue o nu-
mero de seus annos » . Como fosse o banquete servido
sobre o sophá perto da janella onde estava o passaro,
pondo -se á mesa o sultão : « Passaro , disse elle, agrade-
ço-te o teu comprimento, e alegro-me de vêr em ti o
sultão e o rei dos passaros » .
O sultão, que viu diante de si o prato de pepinos ,
que lhe pareciam recheados como de costume, começou
a partir, e foi extremo o seu pasmo vendo-os recheados
de perolas. « Que novidade ! disse elle ; que intento é es-
CONTOS ARABES 369

te ? Um recheio de perolas ! As perolas não se comem » .


Olhava já para ambos os principes e para a princeza, pa-
ra perguntar-lhes o que isso significava ; mas o passa-
ro o interrompeu : « Senhor, disse elle, póde vossa ma-
gestade admirar-se tanto d'um recheio de perolas , que
está vendo com seus proprios olhos , depois de se ter per-
suadido tão facilmente que a sultana sua esposa dera á
luz um cão, um gato e um pedaço de pau ? D’isso
me capacitei, replicou o sultão, porque as parteiras m'o
asseguraram . Essas parteiras, senhor, tornou o passa-
ro, eram irmãs da sultana, mas irmãs ciosas da felicida-
de com que a honrastes de preferencia a ellas ; e para
satisfazer a sua raiva , abusaram da credulidade de vos-
sa magestade . Ellas confessarão o seu crime se as in-
terrogardes . Ambos os irmãos e sua irmã, que estaes
vendo , são os vossos filhos , que expuzeram, mas que fo-
ram recolhidos pelo intendente de vossos jardins, crea-
dos e educados pelos seus cuidados » .
Estas palavras do passaro esclareceram o entendi-
mento do sultão n'um instante : « Passaro, clamou elle ,
não tenho difficuldade em dar credito á verdade que
me descobres, e que me annuncias . A inclinação que já
lhes tinha, e a ternura que sentia por elles, me indu-
ziam a crêr com certeza que eram do meu sangue . Vinde
pois, meus filhos, vinde, minha filha, que eu vos abrace ,
e que vos de as primeiras demonstrações do meu amor
e da minha ternura de pai » . Levantou-se , e depois de ter
abraçado os principes e a princeza, um após outro, mis-
turando as suas com as lagrimas d'elles : « Não basta
isto , meus filhos , disse elle , deveis tambem abraçar- vos
uns aos outros, não como filhos do intendente de meus
jardins, a quem deverei a eterna obrigação de vos ter
conservado a vida, mas como meus filhos, oriundos do
sangue dos reis da Persia, cuja gloria espero que sus-
tentareis ».
Depois de se terem abraçado mutuamente os princi-
pes e a princeza com uma satisfação sempre nova, como
desejava o sultão , puzeram- se á mesa e apressaram- se a
comer. Tendo acabado : « Meus filhos , disse elle, reco-
370 AS MIL E UMA NOITES

nhecei vosso pai na minha pessoa ; ámanhã trazer-vos-hei


a sultana vossa mai ; preparai-vos para recebel -a » .
Montou o sultão a cavallo, e voltou à sua capital a
toda a pressa. A primeira cousa que fez, depois de
apear-se, entrando no seu palacio, foi ordenar ao grão-vi-
sir que mandasse , sem perda de tempo, instaurar o pro-
cesso das duas irmãs. Foram expulsas de seus aposen-
tos , interrogadas separadamente, foi-lhes applicada tortu-
ra e condemnadas a serem esquartejadas . Tudo isto foi
executado em menos d'uma hora.
O sultão Khosrouschah todavia, acompanhado de to-
dos os senhores da sua côrte, que se acharam presentes,
foi a pé até á porta da grande mesquita , e depois de el-
le mesmo tirar a sultana da estreita prisão onde penava
e padecia havia tantos annos : « Senhora, disse elle, abra-
çando-a com as lagrimas nos olhos, venho pedir- vos
perdão da injutiça que vos fiz, e dar-vos a satisfação
que vos devo . Já a principiei, dando o devido castigo ás
que me enganaram com um embuste abominavel, e es-
pero que a tereis completa quando vos apresentar os
vossos e os meus filhos . Vinde , e occupai o lugar que
vos pertence, com todas as honras que vos são devi-
das ».
Fez-se esta reparação diante d'uma multidão de povo
innumeravel , que concorreu de tropel de todas as partes
á primeira nova do que se passava, a qual se divulgou
por toda a cidade em poucos instantes.
No dia seguinte, ao romper da aurora , o sultão e a
sultana, que mudára o vestido de humilhação e de afflic-
ção, que trazia no dia antecedente, n'um vestido magni-
fico, tal como lhe convinha, acompanhados de toda a
sua côrte, que para isto tivera ordem, foram a casa dos
dous principes e da princeza . Chegaram , e depois de se
apearem, apresentou o sultão à sultana os principes
Bahman e Perviz e a princeza Parizada, dizendo - lhe :
<
«< Senhora, eis- aqui os dous principes vossos filhos e a
princeza vossa filha ; abraçai- os com a mesma ternura com
que eu os abracei , são dignos de mim e de vós » . Der-
ramaram-se lagrimas em abundancia n'estes abraços tão
CONTOS ARABES 371

ternos, e particularmente da parte da sultana, pela con-


solação e alegria de abraçar dous principes seus filhos, e
uma princeza sua filha, que tantas lagrimas lhe tinham
causado, tão tristes e por tanto tempo,

ABL

Os principes e a princeza mandaram arranjar um


banquete magnifico para o sultão, para a sultana, e pa-
ra toda a sua côrte. Puzeram- se à mesa, e acabado o
banquete, levou o sultão a sultana ao jardim, onde lhe
fez observar a arvore harmoniosa e o bello effeito da
372 AS MIL E UMA NOITES

agua amarella . Quanto ao passaro , ella o vira na sua


gaiola, e o sultão lhe tinha feito o elogio d'elle no dis-
curso pronunciado no banquete.
Não havendo já cousa que obrigasse o sultão a de-
morar- se mais, montou a cavallo ; o principe Bahman o
acompanhou à direita , e á esquerda o principe Perviz ;
a sultana, com a princeza á sua esquerda , marchou após
o sultão . N'esta ordem, precedidos e seguidos dos offi-
ciaes da côrte, cada um segundo a sua ordem, tomaram
o caminho da capital . Como d'ella se aproximassem, apre-
sentou-se o povo aos bandos, mui longe, fóra das portas,
que viera ao encontro, e tanto tinham os olhos fitos na
sultana, tomando parte na sua alegria depois d'um tão di-
latado padecimento , como nos dous principes e na prin-
ceza, que acompanhavam com acclamações. Era tambem
attrahida a sua attenção pelo passaro na gaiola, que tra-
zia a princeza Parizada diante d'ella, cujo canto , que ad-
miraram , chamava todos os outros passaros que o se-
guiam, pousando sobre as arvores no campo , e sobre
os telhados das casas nas ruas da cidade .
Foram finalmente os principes Bahman e Perviz
acompanhados ao palacio com esta pompa, e à noite il-
luminou-se a cidade e fizeram-se grandes regosijos , tan-
to no palacio, como por toda a cidade , que continuaram
por alguns dias .

Não podia o sultão das Indias deixar de admirar a


memoria prodigiosa da sultana sua esposa, que lhe dava
todas as noites novos divertimentos com tantas historias
diversas.
Tinham-se já passado mil e uma noites n'estes inno-
centes passatempos, que haviam contribuido muito para
diminuir as prevenções desagradaveis do sultão contra a
fidelidade das mulheres ; estava o seu espirito mais bran-
do ; achava-se convencido do merito e da grande capa-
cidade de Scheherazada . Lembrava-se do valor com que
se expuzera voluntariamente a ser sua esposa, sem re-
CONTOS ARABES 373

cear a morte, á qual sabia que estava destinada no dia


seguinte, como as outras que a precederam .
Estas considerações e as outras bellas prendas que
n'ella conhecia, o induziram finalmente a conceder-lhe a
vida. « Bem vejo, disse-lhe, amavel Scheherazada , que
sois inesgotavel nos vossos pequenos contos ; ha bastan-
te tempo que com elles me divertis : abrandastes a mi-
nha cólera, e de boa vontade renuncio, em abono vos-
so, á lei cruel que me impuzera ; tendes toda a protec-
ção minha, e quero que sejaes considerada como a li-
bertadora de todas as senhoras, que deviam ser immo-
ladas ao meu justo resentimento »> .
Lançou- se a princeza a seus pés e abraçou- lh'os ter-
namente, dando -lhe todas as demonstrações do mais vi-
vo e do mais perfeito reconhecimento .
O grão-visir foi o primeiro que soube esta agradavel
nova da propria bocca do sultão . Espalhou -se logo pela
cidade e pelas provincias, o que attrahiu ao sultão e á
amavel Scheherazada, sua esposa, mil louvores e mil
bençãos de todos os povos do imperio das Indias .

FIM DO TOMO QUARTO E ULTIMO


INDICE

PAበ .

Historia de Aladdin, ou a lampada maravilhosa (conti-


nuação)
Aventuras de Haroun Alraschid . 85
Historia do cego Baba-Abdalla.. 90
Historia de Sidi Nouman .... 403
Historia de Cogia Hassan ... 119
Historia de Ali Baba e de quarenta ladrões extermina-
dos por uma escrava ..... 152
Historia d'Ali Cogia, mercador de Bagdad .. 194
Historia do cavallo encantado ..... 209
Historia do principe Ahmed e da fada Pari -Banou …… .. 248
Historia das duas irmãs, ciosas de sua irmã mais nova. 316
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