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Sementes Vermelhas 08 de Março de 2024 Folheto Intermitente

Do Brejo de Areia.
28/02/2023

Dossie Mulheres Por: Tays Melo & Aderaldo Luciano

AS MULHERES INCRÍVEIS DE AREIA


O Jornal Sementes Vermelhas não poderia deixar de abrir março refletindo sobre a presença das mulheres
areienses e toda sua contribuição para construção da cidade. Enfatizamos também toda sua luta e sacrifícios para
resistir à violência, desemprego, desigualdade, ao abandono, à solidão, à misoginia e ao machismo estrutural.
Areia, uma sociedade de costumes conservadores, ainda não atinou para o que de fato de que depende da força de
suas mulheres e que esta cidade sequer existiria sem elas. Não porque procriaram e criam filhos machos ilustres
apenas, mas porque elas próprias são ilustres, pensam modelos, cultivam o alimento, protegem filhos, maridos,
vizinhos, abrigam viajantes, ergueram igrejas mais do que com orações, lixaram caibros e queimaram tijolos em
caieiras para erguerem suas moradas, ao mesmo tempo que amamentavam, lecionavam, cantavam e lutavam por
direitos. Nunca houve tempo para ser a si mesma, uma mulher, para ser humana, para cuidar de si.
Por isso, Sementes Vermelhas hoje quer lembrar alguns dos muitos nomes importantes para a condução desta
cidade. Você não verá aqui, mulheres que se destacam por serem esposa, filha ou amante de um homem seja ele
do povo, da elite ou autoridade pública. Aqui você conhecerá mulheres que são valiosas por serem exatamente o
que são: mulheres. Trabalhadoras e excepcionais na escrita, na educação, na culinária, na poesia, no
empreendedorismo, elas são grandes mulheres. Aliás, todas as mulheres deveriam ser reconhecidas apenas por
serem mulheres.
A maioria dos textos escritos para homenagear e celebrar a vida de muitas mulheres areienses são de autoria de
Aderaldo Luciano, poeta e escritor, homem em desconstrução e reflexão sobre o machismo e que agora compõe
a esquipe de reportagens e artigos do Sementes Vermelhas.
Aproveite a edição preparada com carinho por quem tem percorrido o olhar sobre o fazer das mulheres incríveis
de Areia. ■
Sementes Vermelhas Areia, 08 de Março de 2024 2

Os machos estão vestidos de violência. Machismo Estrutural: É sempre “coisa


pequena”.
A cidade de Areia tem uma longa tradição de
violência contra as mulheres. O primeiro desses Ele reduz os esforços ainda que sejam nitidamente
casos, aquele que entrou para a história da cidade, imensos. Se não vierem do braço masculino, não
ficou conhecido como “o crime de Carlota”, no séc. valerá sequer a inércia de um homem.
XIX. Horácio de Almeida, em Brejo de Areia, nos As suas palavras podem ser amargas, sutis ou
apresenta uma mulher sertaneja, chegada na cidade, chocantes, mas ele será sempre coisa pequena. Nós é
com ardis sedutores, bela e maliciosa, que seduz o que sempre o interpretamos mal, porque somos
Major Quinca, capitão-mor daquelas terras passadas. sensíveis demais, incapazes de compreender.
Acusada de ter enfeitiçado o major, levou-o a mandar E mesmo nós, as que mais padecemos da lâmina de
matar um desafeto. Carlota nem matou, nem mandou sua espada, lidamos com ele com vários "vou deixar
matar, nem arquitetou tal crime, mas foi condenada. passar".
Duas vezes condenadas: em vida e pela pena de Não importa o tamanho da ferida que nos abra, ou se
vários historiadores. a ferida for uma mulher inteira, a gente procura
No carnaval passado, os bloquinhos se esgueiraram justificativas. A gente vai perdoando as "sutilezas" à
pelas ladeiras areenses. Mulheres, do povo ou da banho de cinzas, enquanto observamos a combustão
aristocracia, sofreram atentados contra a vida, contra pelas bordas do papel. E quando menos notamos, não
a honra, contra o corpo, contra sua existência. acendemos mais em brasa. Porque quando o
Mulheres foram agredidas. Sofreram violência machismo não nos mata fisicamente, encerra a chama
simbólica. Caíram sob violência psicológica. Foram de nosso espírito.
arrastadas pelos cabelos. Foram solapadas em seus Ele vem de familiares, de amigos, de desconhecidos,
direitos. Foram caladas. Sequestradas. Violentadas de gente que é contra o machismo, e é sempre dito
sexualmente. E sequer souberam desses maus tratos. como coisa pequena.
Mulheres são levadas a acreditar que merecem Mas se não for a gente que se apequena para que
apanhar. caiba no mesmo espaço da nossa existência a dor da
Passou o carnaval. Esqueceremos os casos cruéis de inferiorização - esta sim, imensa - somos taxadas de
agressão contra as mulheres porque se naturalizou o vitimistas, loucas, machonas, encrenqueiras, mal
crime. Chegará, daqui a pouco, o tempo da política e amadas, estressadas... O ideal seria aceitarmos
veremos candidatos a prefeito e a vereador agressores caladas. Afinal, aquilo que foi dito foi besteira. A
de suas companheiras, que as roubaram, que as gente é que leva tudo a sério demais, que milita o
difamaram, que tentaram matá-las. Veremos de tudo: tempo inteiro, que se descontrola fácil e se ofende
machos escrotos buscando inchar seus partidos com coisas pequenas.
políticos com mulheres que eles mesmos No final, por sempre tratarmos o machismo como
desrespeitam, boicotam e agridem. Mas se tratamos os nossos homens - um menino, um garoto,
apresentarão como bichinhos fofos, enquanto não fez por mal, não foi intencional, é um crianção,
escondem, debaixo do tapete da sala, o lixo de sua um brincalhão - é que cada vez mais são as mulheres
misoginia. que se diminuem. Contraditoriamente, elas parecem
O machismo, que herdamos e que nos ronda não caberem em espaço algum.
diariamente, dentro e fora de nós, é responsável pelas É COISA PEQUENA. O machismo é estrutural e é
tragédias familiares e sociais mais chocantes. Na coisa pequena. Está nos detalhes: é o arranhão na
próxima campanha política, nossos olhos deverão margem da pintura emoldurada. Ele vem em doses
estar atentos. Machos que manipularam suas esposas, homeopáticas, no café de um real. É uma formiga de
que surraram suas esposas, que violentaram suas açúcar, nadando no refresco, uma ponta de espinho
esposas, que roubaram os bens de suas esposas, que no calcanhar, uma farpinha de madeira por baixo da
enganaram suas esposas, que atormentaram suas unha, o dedo mindinho após bater no pé do sofá.
esposas, sairão candidatos. Esses machos deverão ser O machismo é mesmo coisa pequena. Mas como bem
denunciados, presos e condenados. É nosso dever me ensinou a minha mãe, "Veneno, para matar, não
apontá-los. precisa que lhe comam um quilo".

Aderaldo Luciano Tays Melo.


Sementes Vermelhas Areia, 08 de Março de 2024 3

Soraya Acácia
Nossos olhos se abriram para o mundo na pequena cidade de
Areia, Paraíba do Norte. É pequena a cidade. É imenso seu
arco-íris. Alguns de nós nascemos com o nariz de peixe. As
mães sábias foram moldando nossos narizes com leves
massagens de dedos molhados no querosene do bico da
lamparina. Com esses narizes moldados sentimos os
primeiros odores culinários. Do coentro e da cebolinha aos
mingaus de milho e às rapaduras forjadas a partir do mel
fervente. Na adolescência, o odor do refresco de coco feito
por Zé Nunes, no Beco da Facada.

A lanchonete São José, de Zé Nunes, foi o nosso caminho da


roça. O suco de coco, artesanal e geladíssimo, com pequenos
cristais de gelo, no copo de vidro alto e robusto, tornou-se em
ritual de degustação e abrandamento das nervuras e capilares:
espalhava o sangue, aguçava a mente, forjava sinapses,
afagava as papilas, matava a sede, nos levava à viagem,
onírica e estrutural, rumo à libertação do corpo físico e à
comunhão com todos os ancestrais. Além da experiência
individual do arrebatamento, havia a experiência
comunitária, na interlocução com o próprio Zé Nunes e com
os parceiros de
Há muito tempo aquele sabor, fora acalmado em nossa
viagem.

memória afetiva. Na casa de Dona Anita, último bastião da


“Você é
resistência contra o cimento bruto e a cerâmica morta, onde
o jardim é de parreiras, hibiscos, mamoeiros, manjericões,
amor e carinho, alguns cabeças de penas e uma cadela que poderosa.
late, viva e sonora, fui apresentado ao sorvete Zé Nunes,
diligentemente preparado por Soraya Henrique, engenheira
dos sonhos, entidade fulcral dos sabores imaginários. Olhe-se no
Soraya, filha de Amaury e Angelina, casada com Sandro,
mãe e senhora dos links do sabor, pensou em uma cama de
geleia de morango e pitaya, onde repousa delicadamente um
sorvete de coco tão intenso, denso e telúrico, único, lúdico e
espelho e
sedutor, que nos remete àquela experiência antiga e presente
na lanchonete de Zé Nunes, nome pelo qual Soraya batizou
sua dádiva. Areia deveria colocar Soraya num andor, sair em reconheça a
procissão louvando sua arte, sua existência, e lhe oferecendo

sua força.”
milhões pelo seu sorvete.

Quem Somos?
Trabalhadores, floresta, rio, terra, campo, cidade...
Sementes Vermelhas é um projeto independente e intermitente sem fins lucrativos, com o intuito de registrar Areia, o Brejo e
tudo relacionado à cultura popular, diversidade, lutas e resistências.
Compartilhamos e refletimos temas de interesse do povo e ao povo relacionado, dando visibilidade às suas maneiras de ser, fazer
e resistir
Escreva seu texto e nos envie para publicarmos. E-mail: sementesvermelhas@gmail.com
Sementes Vermelhas Areia, 08 de Março de 2024. 4
Lara Lourenço
Num dia de chuva, na Rua do Bode, pudemos observar gotículas, chuva
finíssima, formando uma espécie de cabeleira translúcida, uma peruca
orgânica, envolvendo a copa de uma mangueira jovem, no fundo do quintal.
Quando o sol retornou leve, o sol da manhã no brejo é sempre leve, seus raios
atravessaram com tanta delicadeza aquela aura, criando um véu colorido,
psicodélico, uma touca prismática, Pensamos que era o véu de Nossa
Senhora. Aquilo era poesia.
Dona Mocinha, iniciada nas assinaturas da terra, disse que, apesar da beleza
e da aparência de manto sagrado, aquilo era um fenômeno da Natureza. E
que a poesia estaria adormecida na maneira como poderíamos descrever
aquela cena, usando nosso pouco vocabulário, num jogo de aproximações
entre palavras e sons. Alguns e algumas tentam escrever sobre o mundo todos
os dias. Vivem em busca da poesia. Às vezes alguém a encontra, ou é
encontrado ou encontrada. É o caso de Lara Lourenço, jovem, assinalada por
essa aura.

Lara Lourenço é um templo sem portas, sem bancos de assento, com paredes de imensos vitrais, pé direito
adentrando as nuvens, pássaros canoros de todas as cores em longos balés pelos ares solares. A poesia flagrou seus
movimentos no ventre de Adriana. Essa mãe percebeu, assim como Dona Mocinha, que havia algo mais naquela
garotinha. Havia um olhar tateando o mundo, procurando os detalhes, atraída pelas cores. Lara parecia um sensor
detectando o invisível, transformando o visível em fusível transmissor do intangível. Ofertou-lhe um livro. Depois
outro. A leitura.
A cidade de Areia é cruel com seus poetas. Com suas poetas. Com a própria poesia. Olhando para Lara, devemos
protegê-la, resguardá-la. O afeto e o abraço, a couraça e a caneta, o verso e a espada são apetrechos poderosos nessa
tarefa. Quando vemos Lara Lourenço declamando, lendo seus poemas, interpretando seu repertório, pequenina,
olhos diamantados, somos abastecidos de esperança e asas. Voamos para além das mangueiras, sobre os templos,
dentro das nuvens, rumo ao sol. Estrada de flores, caminhos abertos, braços afáveis para Lara, coração onde mora
a poesia.

Gracinha Oliveira Por trás de uma


grande mulher
A casa de número 102 da Rua São José foi o lar, mínimo e precisado, de uma
mulher sonhadora. O sonho talvez tenha sido a salvação daquela mulher. Ela sempre existe ela
projetava um futuro mais leve para seu filho mais novo. Nada foi leve, nada mesma.
foi fácil, nada foi estrada pavimentada. Um dia, desses dias decisivos, seu
filho partiu para São Paulo. Foi ver se realmente aconteceria alguma coisa
em seu coração quando cruzasse a Ipiranga e a São João, na esquina do Bar
Brahma, a 50 metros da Praça da República.
A Pousada Diamante da Serra, no seio da Jussara, pertinho da Praça do
Trabalho, em Areia, se ergue como um mirante luminoso, em tom azul, cujos
fundos, minarete de observação, dão para a imensidão das terras ao norte da
cidade. O vento faz cócegas em nosso rosto. A vista acaricia nossas retinas,
de tão bela. Quem olha para aquela Pousada se pergunta, curioso, quem teria
tido a ousadia de subir às nuvens um empreendimento tão robusto e
desafiador. Estaria aquela pousada instalada e alicerçada sobre o sonho?
Gracinha Oliveira partira, como aquele jovem da rua do Bode, para São
Paulo, a Terra da Promissão. Por lá viveu anos. Por lá meteu-se ao trabalho
estressante nas cadeiras falsamente confortáveis de um banco. Por lá, andou
na Paulista. Testemunhou a turma engravatada. Provou da gastronomia.
Olhou a culinária. Percebeu e decifrou a sintaxe do acolhimento. Sentada à
mesa do almoço, desenhou a disposição da comida. Talvez tenha saído no
final do expediente da sexta-feira para o happy hour costumeiro da
metrópole. Dentro de si, o epigrama familiar: a Luta, o Desafio. ►
Sementes Vermelhas Areia, 08 de Março de 2024. 5
Gracinha voltou para Areia. Rabiscou suas memórias paulistanas. Adaptou-as à realidade do brejo. Estudou as
dificuldades e os abismos. Fez um trato com o céu profundo. Bateu longos papos consigo mesma. Ouviu os
contrapontos do seu companheiro. Abraçou as orientações da família. Sentiu o coração de papai e mamãe.
Banhou-se no amor de suas filhas. E, numa manhã de vento leve, iniciou a construção da Pousada Diamante da
Serra, o nosso lugar em Areia. Coragem e destemor, diz a chamada desse texto. Determinação e disciplina,
acrescentem-se. Os contratempos são tantos. O compromisso é maior. ■

Dona Terezinha
Areia também é território de mulheres fortes. Na ponta de rua, como
é chamada a periferia e seus arredores, mulheres valentes criaram
seus filhos e filhas, seus netos e netas, seus agregados e agregadas,
amigos e parentes. A vida, em um tempo não muito longe, nem
estranho, era a vida em comunidade. As mães teciam uma rede de
apoio e solidariedade tão bem nutrida que cada uma sabia das
carências das outras, dos intermináveis problemas de uma vida de
necessidades.
Crescemos, nas pontas de rua, como todas as crianças dali cresciam:
abrigados e cuidados por dezenas de mães solidárias. Dona
Terezinha morava na ladeira do bode. Ela e Seu Tião eram
moradores mais antigos e referência de sensibilidade e gentileza.
Abriam as portas de sua casa para todas as crianças. Nos tratavam
como tratavam seus filhos. Repartiam sua comida conosco, no trato
de nos preparar para a vida.
Há alguns dias, Dona Terezinha iniciou sua passagem para o plano
celestial. Levou consigo as alegrias de uma vida dedicada ao
próximo. Guardou consigo todas as dores que uma mãe pode
esconder dentro do seu coração. Alguns de seus amores foram
arrancados de si sem pena nem permissão. Seus olhos choraram de
dor, sua alma, firme e serena, avançou sobre os vales sombrios.
Dona Terezinha sustentou as intempéries. Dona Terezinha não
abandonou o posto. Dona Terezinha fortaleceu seu abraço.
Muitos dos que fomos abraçados por ela, estamos vivos por conta
de sua percepção. Ela sabia que, no mais longe tempo de nossa

“Quando uma
infância, nós estávamos com fome. E nos acolheu com comida
repartida do prato de seus filhos. Comemos no mesmo prato até.
Lambemos os dedos. Sobrevivemos, homens e mulheres donos de
mulher negra se nosso presente. Nos alegramos por termos recebido o abraço mais
apertado, o afago mais longo, a palavra mais fértil, o olhar mais
movimenta, toda a amável. Junto com seus filhos e filhas e netos e netas, agradecemos
tão profícuo coração. Dona Terezinha é daquelas que não precisam
estrutura da pedir licença para entrar no céu. Tem parte com a Divindade.

sociedade se “Precisamos ser criadas


movimenta.” para liberdade. O mundo é
Angela Davis grande demais para não
sermos quem a gente é.
Elza Soares
Sementes Vermelhas Areia, 08 de Março de 2024. 6

Bel
Areia é movediça, é um polvo nos puxando com suas ventosas ativas.
Areia é um menino buchudo e maluvido nos obrigando a sair correndo
pelas ladeiras. Areia é mesmo essa terra mal-educada, eleita em
córregos de cortisol. Mal-educada, vírgula. Porque...

Ali mesmo na Rua da Gameleira, do lado direito de quem desce,


vizinho do terreno onde morou dona Chiquinha Maurício, de onde
vislumbrávamos um frondoso pé de fruta-pão em seu quintal,
instalou-se, há 30 anos, a escola, o colégio, Risco e Rabisco. Pelo
nome nós deduzimos que Bel, legítima herdeira e continuadora de Seu
Dedé e Dona Inês, tenha pensado numa escola para crianças, para
alfabetização. Em 30 anos o risco transformou-se em pé direito e o
rabisco em letra vermelha alongando-se por várias vidas.

Em 1992, Bel, da família Soares, vinda da base, de debaixo,


representante da classe trabalhadora, de uma família numerosa na
qual a riqueza era o afeto, o abraço, o sonho e o sorriso farto, acendeu
a flutuante luz da educação, numa cidade balançada pela ventania
diária, uma cidade em que as noites são mais extensas que o dia, em
que a luz necessita de estabilidade para manter-se alerta e guiar os
transeuntes.

Louvamos a persistência e o poder de uma escola. É para clamar aos


dirigentes locais, esses mesmos que se vestem de fiscais e paladinos,
que atentem para a tenacidade das mulheres sonhadoras. Que
observem a construção em espiral, subindo aos céus, daquelas que
sonham e transbordam. Lembro bem dos incontáveis dias nos quais
Seu Dedé e Dona Inês nos serviam um prato de comida para sustentar
“Sou quem eu sou. Sou
nossa ilusão. Nós não sabíamos que Bel, ‘minina’ franzina daquele mulher, sou forte e
tempo, ergueria esse mastro robusto e duradouro.
decidida. E isso
“Ame-se sem medo e ninguém ninguém pode tirar de
vai te parar.” mim.”

Quem Somos?
Trabalhadores, floresta, rio, terra, campo, cidade...
Sementes Vermelhas é um projeto independente e intermitente sem fins lucrativos, com o intuito de registrar Areia, o Brejo e
tudo relacionado à cultura popular, diversidade, lutas e resistências.
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fazer e resistir
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Ana Luciano e Castro
Ana Luciano e Castro é uma poeta areense. Esse gentílico “areense”, assim
grafado para se referir a quem nasceu na pequerrucha, mas birrenta, cidade de
Areia, no brejo paraibano, tem causado algum estupor nos puristas locais. No
entanto não será dessa vez, ainda, que deixaremos de utilizá-lo. Continuando: Ana
Luciano e Castro é uma poeta areense, aliás esse termo “poeta”, e não “poetisa”,
também tem causado prurido em algumas reentrâncias alocadas entre outros
castiços puídos do local. Mas...
Retomamos a sentença sobre Ana Luciano e Castro. A poeta estreou em 2019 no
cordel paraibano. Foi uma estreia significativa porque no concurso de cordel
“Jackson do Pandeiro: 100 anos do Rei do Ritmo”, patrocinado pela Universidade
Estadual da Paraíba. As feras cordelianas se inscreveram com força no certame.
Dos dez selecionados para publicar suas obras pela editora da UEPB, duas
mulheres estiveram inclusas: Anne Karolynne, em terceiro lugar, e Ana Luciano
e Castro, em sétimo lugar.
Por ser estreante, a sua presença entre os selecionados causou curiosidade e algum
desconforto. O seu poema O Pandeiro Criador e Jackson, Nosso Senhor é uma
alegoria quanto à criação do mundo, protagonizada por um deus Pandeiro, e o
trato entre uma de suas criaturas, Jackson, que provou do fruto proibido, o caju,
alcançando a grande revelação dos ritmos universais, desenvolvendo, a partir
dessa iluminação o domínio do couro e das platinelas.
Não demorou muito para alguém, descobrindo, no dia da premiação, que Ana
Luciano e Castro é filha de um poeta, cujo nome me obrigo a não revelar, duvidar
da legitimidade de sua autoria. Como se, por ser mulher, Ana não possuísse os
atributos e as manhas da poesia. Esse mundo dos machos é estranho. A poeta, do
alto de sua formação e ousadia, já alegrava a todos com seus poemas declamados
nas redes sociais e nas festas de família. Ana Luciano e Castro é areense como
nós.

Dona Graça
O Beco da Facada é uma rua que fica no coração do centro histórico de Areia. Ele se
inicia na sapataria de Edvar e segue em direção à Praça Doutor Cunha Lima, no rumo
do Mercado Municipal. O nome dessa rua é Coelho Lisboa, mas o apelido ainda perdura,
por conta das antigas brigas que por ali aconteciam nos tempos idos, quando a feira se
estendia por lá. No estabelecimento mais central do logradouro está a lanchonete Pais e
Filhos, local de parada obrigatória de todos nós que queremos um lanche rápido.
Lá, na cozinha minúscula, mas ativa como uma caldeira, está Dona Graça, alquimista e
cozinheira, experimentando sabores e acepipes. De suas panelas adestradas pululam
tapiocas, alegres e saltitantes, ávidas por uma mordida, faceiras e saborosas, místicas e
despudoradas, sustentando a tradição. Na outra boca do fogão mágico, portal de uma
Nárnia culinária, um cuscuz desperta, quentinho e macio, pedindo urgente um lençol de
manteiga cremosa que o envolva, amantes que são. O café, capitão da antiga cavalaria
do Major Quinca, aquele que amou Carlota, é gostoso e épico.
Dona Graça mora na Rua do Bode. Sobe a ladeira todos os dias. Entra pela Rua do
Teatro, passa em frente ao centro administrativo, olha para aquele prédio onde a
máquina pública está instalada, não pensa muita coisa, a não ser em sua clientela que a
aguarda impaciente. Antes de dobrar para a lanchonete, olha para a balaustrada do
Quebra, para a Rua do Mercado, e segue para seu ofício: fazer o melhor, todos os dias.
Dona Graça nos oferece sua própria vida em troca de nossos sorrisos de satisfação.►
Sementes Vermelhas Areia, 08 de Março de 2024. 8

Quem passar por lá beberá um dos sabores de seus refrescos e


sucos: hoje cajá, amanhã caju, depois coco, outro dia acerola,
goiaba talvez. Sentados ou sentadas à mesa do fundo, lembrarão “Você é poderosa. Olhe-se
de Zé Nunes, o antigo dono, e se perderão nas conversas gostosas
com outros frequentadores. Quantos prefeitos e prefeitas já no espelho e reconheça a
entraram ali e agradeceram a Dona Graça pela sua insistência em
nos servir¿ Talvez nenhum, carrancudos que são, acostumados ao
sua força.”
paparico. Agradecemos a Dona Graça que, sob suas dores, nos
oferece afagos na Vida. Mulher que cuida de nós.■

Mulheres de Areia
Em abril de 1964 o exército dera um golpe na democracia e assumira a loucura
que desembocou em 21 anos de repressão ao pensamento livre e à arte liberta.
Duas gerações cresceram com esse povo fardado dizendo o que podia ser feito
ou dito ou pensado. Pais e mães viveram esse tempo dizendo para nos
equilibrarmos na vida, termos cuidado com a língua e com as falsas amizades.
Nossas mães foram e serão as primeiras e últimas heroína.
Mas houve e há outras em Areia. A primeira foi Carlota.
Aquela sertaneja que chega em Areia e, bela e forte, chama a Dona
atenção dos machos brejeiros, todos frouxos dentro das
calças. No livro Brejo de Areia, de Horácio de Almeida, Ezilda
Carlota é descrita como uma oportunista, autora intelectual da Milanez
morte do marido no sertão e do Padre Chacon, em Areia. Foi Barreto.
condenada por um tribunal de machos, cheios de hormônios
políticos.

Uma outra, com quem convivemos na Rua da Gameleira e


com quem aprendemos a reclusão, foi Dona Ezilda Milanez
Barreto. Mesmo não tendo nascido em Areia, mas foi na
cidade onde resolveu se assentar e produzir seus romances,
além de ser professora e diretora do grupo escolar Álvaro
Machado, bem como estar à frente de trabalhos vigorosos de
assistência social, liderando o que ficou conhecido como
Organização das Voluntárias. Dona Ezilda foi sempre
preterida nos eventos culturais em favor dos machos do
passado, embora tenha escrito 4 (quatro) romances belos.

Mais uma delas, vivíssima entre nós, mas da mesma forma


esquecida pelos pelotões da infantaria cultural areense é
Vânia Perazzo. Primeira mulher areense a se consolidar como
cineasta, documentarista e professora de cinema. Lembramos
dela dirigindo um de seus documentários em Areia. Durante
as gravações de um de seus filmes em Areia, todos viam
quando ela passeava pelas ruas carregando a tiracolo um
sujeito com uma câmera nos ombros. Vania é o cinema
areense.
Vânia
Perazzo

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