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Do Brejo de Areia.
28/02/2023
Soraya Acácia
Nossos olhos se abriram para o mundo na pequena cidade de
Areia, Paraíba do Norte. É pequena a cidade. É imenso seu
arco-íris. Alguns de nós nascemos com o nariz de peixe. As
mães sábias foram moldando nossos narizes com leves
massagens de dedos molhados no querosene do bico da
lamparina. Com esses narizes moldados sentimos os
primeiros odores culinários. Do coentro e da cebolinha aos
mingaus de milho e às rapaduras forjadas a partir do mel
fervente. Na adolescência, o odor do refresco de coco feito
por Zé Nunes, no Beco da Facada.
sua força.”
milhões pelo seu sorvete.
Quem Somos?
Trabalhadores, floresta, rio, terra, campo, cidade...
Sementes Vermelhas é um projeto independente e intermitente sem fins lucrativos, com o intuito de registrar Areia, o Brejo e
tudo relacionado à cultura popular, diversidade, lutas e resistências.
Compartilhamos e refletimos temas de interesse do povo e ao povo relacionado, dando visibilidade às suas maneiras de ser, fazer
e resistir
Escreva seu texto e nos envie para publicarmos. E-mail: sementesvermelhas@gmail.com
Sementes Vermelhas Areia, 08 de Março de 2024. 4
Lara Lourenço
Num dia de chuva, na Rua do Bode, pudemos observar gotículas, chuva
finíssima, formando uma espécie de cabeleira translúcida, uma peruca
orgânica, envolvendo a copa de uma mangueira jovem, no fundo do quintal.
Quando o sol retornou leve, o sol da manhã no brejo é sempre leve, seus raios
atravessaram com tanta delicadeza aquela aura, criando um véu colorido,
psicodélico, uma touca prismática, Pensamos que era o véu de Nossa
Senhora. Aquilo era poesia.
Dona Mocinha, iniciada nas assinaturas da terra, disse que, apesar da beleza
e da aparência de manto sagrado, aquilo era um fenômeno da Natureza. E
que a poesia estaria adormecida na maneira como poderíamos descrever
aquela cena, usando nosso pouco vocabulário, num jogo de aproximações
entre palavras e sons. Alguns e algumas tentam escrever sobre o mundo todos
os dias. Vivem em busca da poesia. Às vezes alguém a encontra, ou é
encontrado ou encontrada. É o caso de Lara Lourenço, jovem, assinalada por
essa aura.
Lara Lourenço é um templo sem portas, sem bancos de assento, com paredes de imensos vitrais, pé direito
adentrando as nuvens, pássaros canoros de todas as cores em longos balés pelos ares solares. A poesia flagrou seus
movimentos no ventre de Adriana. Essa mãe percebeu, assim como Dona Mocinha, que havia algo mais naquela
garotinha. Havia um olhar tateando o mundo, procurando os detalhes, atraída pelas cores. Lara parecia um sensor
detectando o invisível, transformando o visível em fusível transmissor do intangível. Ofertou-lhe um livro. Depois
outro. A leitura.
A cidade de Areia é cruel com seus poetas. Com suas poetas. Com a própria poesia. Olhando para Lara, devemos
protegê-la, resguardá-la. O afeto e o abraço, a couraça e a caneta, o verso e a espada são apetrechos poderosos nessa
tarefa. Quando vemos Lara Lourenço declamando, lendo seus poemas, interpretando seu repertório, pequenina,
olhos diamantados, somos abastecidos de esperança e asas. Voamos para além das mangueiras, sobre os templos,
dentro das nuvens, rumo ao sol. Estrada de flores, caminhos abertos, braços afáveis para Lara, coração onde mora
a poesia.
Dona Terezinha
Areia também é território de mulheres fortes. Na ponta de rua, como
é chamada a periferia e seus arredores, mulheres valentes criaram
seus filhos e filhas, seus netos e netas, seus agregados e agregadas,
amigos e parentes. A vida, em um tempo não muito longe, nem
estranho, era a vida em comunidade. As mães teciam uma rede de
apoio e solidariedade tão bem nutrida que cada uma sabia das
carências das outras, dos intermináveis problemas de uma vida de
necessidades.
Crescemos, nas pontas de rua, como todas as crianças dali cresciam:
abrigados e cuidados por dezenas de mães solidárias. Dona
Terezinha morava na ladeira do bode. Ela e Seu Tião eram
moradores mais antigos e referência de sensibilidade e gentileza.
Abriam as portas de sua casa para todas as crianças. Nos tratavam
como tratavam seus filhos. Repartiam sua comida conosco, no trato
de nos preparar para a vida.
Há alguns dias, Dona Terezinha iniciou sua passagem para o plano
celestial. Levou consigo as alegrias de uma vida dedicada ao
próximo. Guardou consigo todas as dores que uma mãe pode
esconder dentro do seu coração. Alguns de seus amores foram
arrancados de si sem pena nem permissão. Seus olhos choraram de
dor, sua alma, firme e serena, avançou sobre os vales sombrios.
Dona Terezinha sustentou as intempéries. Dona Terezinha não
abandonou o posto. Dona Terezinha fortaleceu seu abraço.
Muitos dos que fomos abraçados por ela, estamos vivos por conta
de sua percepção. Ela sabia que, no mais longe tempo de nossa
“Quando uma
infância, nós estávamos com fome. E nos acolheu com comida
repartida do prato de seus filhos. Comemos no mesmo prato até.
Lambemos os dedos. Sobrevivemos, homens e mulheres donos de
mulher negra se nosso presente. Nos alegramos por termos recebido o abraço mais
apertado, o afago mais longo, a palavra mais fértil, o olhar mais
movimenta, toda a amável. Junto com seus filhos e filhas e netos e netas, agradecemos
tão profícuo coração. Dona Terezinha é daquelas que não precisam
estrutura da pedir licença para entrar no céu. Tem parte com a Divindade.
Bel
Areia é movediça, é um polvo nos puxando com suas ventosas ativas.
Areia é um menino buchudo e maluvido nos obrigando a sair correndo
pelas ladeiras. Areia é mesmo essa terra mal-educada, eleita em
córregos de cortisol. Mal-educada, vírgula. Porque...
Quem Somos?
Trabalhadores, floresta, rio, terra, campo, cidade...
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fazer e resistir
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Sementes Vermelhas Areia, 08 de Março de 2024. 7
Ana Luciano e Castro
Ana Luciano e Castro é uma poeta areense. Esse gentílico “areense”, assim
grafado para se referir a quem nasceu na pequerrucha, mas birrenta, cidade de
Areia, no brejo paraibano, tem causado algum estupor nos puristas locais. No
entanto não será dessa vez, ainda, que deixaremos de utilizá-lo. Continuando: Ana
Luciano e Castro é uma poeta areense, aliás esse termo “poeta”, e não “poetisa”,
também tem causado prurido em algumas reentrâncias alocadas entre outros
castiços puídos do local. Mas...
Retomamos a sentença sobre Ana Luciano e Castro. A poeta estreou em 2019 no
cordel paraibano. Foi uma estreia significativa porque no concurso de cordel
“Jackson do Pandeiro: 100 anos do Rei do Ritmo”, patrocinado pela Universidade
Estadual da Paraíba. As feras cordelianas se inscreveram com força no certame.
Dos dez selecionados para publicar suas obras pela editora da UEPB, duas
mulheres estiveram inclusas: Anne Karolynne, em terceiro lugar, e Ana Luciano
e Castro, em sétimo lugar.
Por ser estreante, a sua presença entre os selecionados causou curiosidade e algum
desconforto. O seu poema O Pandeiro Criador e Jackson, Nosso Senhor é uma
alegoria quanto à criação do mundo, protagonizada por um deus Pandeiro, e o
trato entre uma de suas criaturas, Jackson, que provou do fruto proibido, o caju,
alcançando a grande revelação dos ritmos universais, desenvolvendo, a partir
dessa iluminação o domínio do couro e das platinelas.
Não demorou muito para alguém, descobrindo, no dia da premiação, que Ana
Luciano e Castro é filha de um poeta, cujo nome me obrigo a não revelar, duvidar
da legitimidade de sua autoria. Como se, por ser mulher, Ana não possuísse os
atributos e as manhas da poesia. Esse mundo dos machos é estranho. A poeta, do
alto de sua formação e ousadia, já alegrava a todos com seus poemas declamados
nas redes sociais e nas festas de família. Ana Luciano e Castro é areense como
nós.
Dona Graça
O Beco da Facada é uma rua que fica no coração do centro histórico de Areia. Ele se
inicia na sapataria de Edvar e segue em direção à Praça Doutor Cunha Lima, no rumo
do Mercado Municipal. O nome dessa rua é Coelho Lisboa, mas o apelido ainda perdura,
por conta das antigas brigas que por ali aconteciam nos tempos idos, quando a feira se
estendia por lá. No estabelecimento mais central do logradouro está a lanchonete Pais e
Filhos, local de parada obrigatória de todos nós que queremos um lanche rápido.
Lá, na cozinha minúscula, mas ativa como uma caldeira, está Dona Graça, alquimista e
cozinheira, experimentando sabores e acepipes. De suas panelas adestradas pululam
tapiocas, alegres e saltitantes, ávidas por uma mordida, faceiras e saborosas, místicas e
despudoradas, sustentando a tradição. Na outra boca do fogão mágico, portal de uma
Nárnia culinária, um cuscuz desperta, quentinho e macio, pedindo urgente um lençol de
manteiga cremosa que o envolva, amantes que são. O café, capitão da antiga cavalaria
do Major Quinca, aquele que amou Carlota, é gostoso e épico.
Dona Graça mora na Rua do Bode. Sobe a ladeira todos os dias. Entra pela Rua do
Teatro, passa em frente ao centro administrativo, olha para aquele prédio onde a
máquina pública está instalada, não pensa muita coisa, a não ser em sua clientela que a
aguarda impaciente. Antes de dobrar para a lanchonete, olha para a balaustrada do
Quebra, para a Rua do Mercado, e segue para seu ofício: fazer o melhor, todos os dias.
Dona Graça nos oferece sua própria vida em troca de nossos sorrisos de satisfação.►
Sementes Vermelhas Areia, 08 de Março de 2024. 8
Mulheres de Areia
Em abril de 1964 o exército dera um golpe na democracia e assumira a loucura
que desembocou em 21 anos de repressão ao pensamento livre e à arte liberta.
Duas gerações cresceram com esse povo fardado dizendo o que podia ser feito
ou dito ou pensado. Pais e mães viveram esse tempo dizendo para nos
equilibrarmos na vida, termos cuidado com a língua e com as falsas amizades.
Nossas mães foram e serão as primeiras e últimas heroína.
Mas houve e há outras em Areia. A primeira foi Carlota.
Aquela sertaneja que chega em Areia e, bela e forte, chama a Dona
atenção dos machos brejeiros, todos frouxos dentro das
calças. No livro Brejo de Areia, de Horácio de Almeida, Ezilda
Carlota é descrita como uma oportunista, autora intelectual da Milanez
morte do marido no sertão e do Padre Chacon, em Areia. Foi Barreto.
condenada por um tribunal de machos, cheios de hormônios
políticos.