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Cesarino, L. Ascensão Populismo Digital No Brasil
Cesarino, L. Ascensão Populismo Digital No Brasil
ARTIGO
Como vencer
uma eleição sem
sair de casa:
a ascensão do
populismo digital
no Brasil
Letícia Cesarino
Professora no Departamento de Antropologia
e no Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social (PPGAS) da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail:
leticia.cesarino@gmail.com
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N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 COMO VENCER UMA ELEIÇÃO SEM SAIR DE CASA: LETÍCIA
PÁGINAS 91 A 120 A ASCENSÃO DO POPULISMO DIGITAL NO BRASIL CESARINO
Palavras-chave Resumo
antropologia digital Desde ao menos a eleição de Trump e o refe-
populismo rendo sobre o Brexit, o tema do populismo vol-
Ernesto Laclau tou à tona com grande força ao debate público
bolsonarismo e acadêmico. Este artigo busca avançar a dis-
pós-verdade cussão com base na experiência eleitoral brasi-
leira de 2018, onde, em contraste com os even-
tos de 2016, interveio de modo significativo o
aplicativo WhatsApp. Baseado em dez meses
de pesquisa online em redes sociais bolsona-
ristas, o presente estudo avança o conceito de
populismo digital para pensar as particularida-
des e efeitos da digitalização contemporânea
do mecanismo populista clássico descrito por
Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, articulando-o
com noções da cibernética, teorias de sistemas
e teoria antropológica.
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How to win an
election from home:
on the rise of digital
populism in Brazil
Keywords Abstract
digital anthropology At least since Trump’s election and the Brexit
populism referendum, populism has become a hot topic
Ernesto Laclau in public and academic debates. This arti-
Bolsonarism cle seeks to contribute to these debates based
post-truth on Brazil’s 2018 presidential elections, where
WhatsApp played an unprecedented role. Based
on ten months of online research on pro-Bol-
sonaro social media, this study advances the
notion of digital populism in order to tease out
the particularities and effects of the digitaliza-
tion of this classic mode of constructing po-
litical hegemony. To this end, it incorporates
insights from cybernetics, systems theory and
anthropological theory to Ernesto Laclau and
Chantal Mouffe’s theory of populism.
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256 pessoas, número máximo permitido pelo de construir esse canal exclusivo. Essa estraté-
aplicativo) também disponíveis publicamente gia teve como efeito a produção de uma reali-
através de links, em geral no Facebook ou dade à parte cuja relação com o entorno (i.e.,
Twitter. Nestes, qualquer usuário podia postar, o resto da web) era mediada por uma série de
e embora a maior parte das interações consis- gatekeepers digitais: sobretudo influenciadores
tisse em compartilhamentos, havia ocasional- e coletivos, mas também mediadores não-hu-
mente diálogo entre os membros. Esses grupos, manos como algoritmos, bots ou criptografia
junto com o WhatsApp pessoal da minha inter- (Recuero, Zago & Soares, 2017).
locutora, formaram o conjunto da minha pai- Poder-se-ia objetar que toda bolha digital é
sagem etnográfica nesse aplicativo. Após o re- um mecanismo desse tipo, e isto é verdadeiro.
sultado da eleição, essas redes se reorganizaram Todavia, minha experiência de pesquisa con-
significativamente. Todos os grupos dos quais corre para a tese de Santos et al. (2019), tam-
eu participava no final da campanha eventual- bém apoiada por outras observações qualitati-
mente se desfizeram. Porém, novos foram cria- vas como as de Nemer (2018), de que, diferente
dos e permanecem bastante ativos. Como tam- de bolhas que são geradas através dos algorit-
bém observou Nemer (2019), os novos grupos mos e padrões de uso quotidianos das mídias
parecem abrigar aquelas franjas mais “radicais” sociais, há, no caso em tela, uma assimetria e
de seguidores do presidente. Isso não significa, direcionalidade que, no desenrolar da rede, se
contudo, que outros usuários não continuem combinam e se retroalimentam com os usos
recebendo parte do conteúdo que circula nos e ações espontâneos por parte das pessoas co-
grandes grupos através de contatos pessoais em muns. Essa direcionalidade pode ser observada
seu WhatsApp – com efeito, essa tem sido a ex- de modo mais claro no plano meta-comunica-
periência da minha interlocutora privilegiada tivo ou sistêmico: por um lado, na montagem
desde então. de um aparato midiático digital que corresse
O universo desta pesquisa se ancorou, por- em paralelo às formas tradicionais de produção
tanto, no WhatsApp como ponta capilar de uma e disseminação da informação e conhecimento
ecologia das mídias mais ampla que vem sendo autorizados (como o jornalismo profissional,
mapeada e analisada por diversos pesquisado- especialistas acadêmicos e outros formadores
res a partir de inserções teórico-metodológicas de opinião como artistas); e por outro, nos pa-
diferentes, e desde antes das eleições de 2018 drões discursivos recorrentes no conteúdo di-
(Malini, Ciarelli & Medeiros, 2017; Ortellado & gital que circulava nesse aparato. Buscarei, no
Ribeiro, 2018; Santos et al., 2019; Nemer, 2019). que segue, evidenciar este último ponto, suge-
Como outros (Recuero, Zago & Soares, 2017; rindo que a estruturação do conteúdo da cam-
Gerbaudo, 2018), creio que seja vital apontar as panha tanto oficial quanto não-oficial do can-
mudanças que esse ecossistema vem introdu- didato vitorioso em 2018 derivou, em alguma
zindo na esfera pública, pois sua estrutura vai medida, de algum tipo de “ciência do popu-
de encontro ao sentido liberal, habermasiano lismo” (Cesarino, 2019a).
do termo, por ser pouco pública, pouco dialó-
gica, e isolar parte do público do contato com o
contraditório e a diferença. Tanto na memética 3. Teoria e prática do
da campanha quanto em declarações do então populismo
candidato (por exemplo, conclamando seus se-
guidores a desligar a tevê e se informar apenas
por meio de suas lives), era explícita a intenção Inicialmente, a coleta de conteúdo se deu
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articular essas demandas em uma “cadeia de “povo” é produzida pelo líder e seu aparato mi-
equivalência” longa e inclusiva o suficiente diático (Cesarino, 2006). O mesmo vale para as
para subsumir a heterogeneidade inicial numa identidades definíveis a partir do espectro po-
identidade política comum, que ele chama de lítico esquerda-direita, que, no caso brasileiro,
“povo” (que, no caso em tela, consistiu em uma vem sendo significativamente rearranjado no
maioria eleitoral). No processo de extensão da contexto antagonístico que levou à ruptura po-
cadeia para os múltiplos grupos e indivíduos pulista recente (Malini, Ciarelli & Medeiros,
que compõem a sociedade, particularidades e 2017; Solano, 2018).
diferenças entre eles são seletivamente excluí-
das em favor da mobilização de símbolos e pa-
lavras de ordem capazes de ligar todos ao líder.
Essa equivalência é construída através da
mobilização de significantes vazios ou flutuan-
tes,3 frequentemente envolvendo noções vagas
de nação, ordem, segurança e mudança. Daí o
caráter impreciso, redundante, simplificador,
emotivo, “vazio” – em uma palavra, performa-
tivo (Cesarino, 2006) – do discurso populista:
só assim é possível produzir equivalência entre
uma ampla gama de particularidades. As res-
sonâncias desse tipo de discurso político com
a linguagem da memética e outras dinâmicas
próprias das redes sociais já foram notadas – [Figura 1] Reorganização do espectro
por exemplo, a hashtag como significante vazio político, a partir da qual um candidato que
que articula “multidões” insatisfeitas online, e passou quase trinta anos no baixo clero
o “espírito transgressor” que faria das mídias do Congresso Nacional logra se colocar
digitais avenidas privilegiadas para “represen- como alguém vindo de fora do sistema
tar os não-representados” excluídos da grande (por Luiz Philipe Orleans e Bragança, eleito
mídia e do sistema político (Gerbaudo, 2018, deputado federal pelo PSL em 2018).
p. 748). Há, todavia, diversos outros pontos –
mais do que de afinidades, de co-constituição
estrutural (Cesarino, no prelo b) – entre a dinâ- Além do eixo paradigmático ligando líder e
mica das redes sociais e a mecânica populista. povo, a extensão discursiva5 das cadeias de equi-
Um deles diz respeito ao modo como, para valência opera através de um eixo sintagmático
Laclau e Mouffe, as identidades políticas, indi- que produz uma fronteira entre o que cha-
viduais ou coletivas, não preexistem às relações mei do sistema líder-povo (Cesarino, no prelo
que as constituem ou à sua nomeação enquanto b) e uma exterioridade constitutiva (Laclau,
tal4 – o que vai ao encontro de discussões sobre 2005) que opera como uma alteridade ameaça-
o modo como subjetividades são formadas atra- dora: nos termos de Schmitt, um inimigo. Para
vés de perfis em mídias sociais (Malini, 2016). Laclau, no populismo, o antagonismo amigo-i-
No caso do populismo, essa performatividade nimigo se sobrepõe a outra divisão, entre elite
torna-se explícita a ponto de ser possível tra- e povo, a partir da qual o líder alega representar
çar, com relativa precisão, as táticas discursivas os “de baixo” contra algum tipo de elite privile-
através das quais a identidade comum com o giada, auto-interessada, hipócrita e/ou corrupta.
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[Figura 2]
Co-produção
emergente da
identidade de
direita a partir da
oposição à identidade
de esquerda em
grupos públicos Embora o próprio Outro aspecto essencial ao populismo, e mi-
de WhatsApp Laclau não destaque nimizado pela teoria política liberal, diz res-
(pós-eleição). este ponto, é impor- peito ao papel central dos afetos e paixões no
tante que a figura do comportamento e formação das identidades
inimigo funcione também enquanto um pe- políticas. Há todo um complexo argumento
rigo permanente à integridade do grupo e/ou psicanalítico embasando este eixo da teoria de
da sua liderança. Essa virtualidade onipresente Laclau (2005), baseado em Freud e Lacan, que
funciona como uma pressão externa que per- não cabe recuperar aqui.6 Para nossos propó-
mite manter a coesão do sistema líder-povo, sitos, é suficiente notar que o líder populista
ainda que falte organicidade à sua base interna. constrói o povo principalmente através de ape-
Essa função é frequentemente desempenhada los emotivos, estéticos, morais, que podem ser
por rumores ou denúncias de risco à vida do tanto positivos (esperança, desejo de ordem, de
líder e/ou de seus aliados, por parte de algum justiça ou de mudança) quanto negativos (ódio
inimigo externo ou, às vezes, interno (infiltra- ao inimigo, ressentimento, revanchismo, de-
dos, traidores); ou por alegações de persegui- cepção). É aqui que o carisma pessoal do líder
ção, acompanhadas de narrativas conspirató- assume importância, normalmente acompa-
rias. A carta-testamento de Getúlio Vargas e a nhado de algum tipo de culto à personalidade.
referência de Jânio Quadros a “forças terríveis” No populismo digital, agências não-humanas,
são exemplos paradigmáticos desse elemento como “algoritmos emocionais”, passam a de-
na história brasileira. Na minha experiência de sempenhar parte importante dessa função mo-
pesquisa, conteúdos desse tipo, que desempe- bilizadora, ou de produção de equivalência,
nhavam uma função principalmente mobili- por meio de afetos (Malini, Ciarelli & Medeiros,
zadora, estiveram entre os mais circulados no 2017).
WhatsApp durante a campanha eleitoral. É por isso que julgamentos políticos den-
tro do mecanismo populista parecem simples
e reducionistas, pois baseados em emoções,
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julgamentos morais e estéticos e numa esco- mais conhecida mídia desse tipo seja a Voz do
lha binária entre amigo e inimigo. Mas é jus- Brasil, canal radiofônico obrigatório ligando di-
tamente essa simplicidade que permite o alar- retamente (e unidirecionalmente) líder e povo,
gamento inigualável da mobilização do tipo estabelecido durante o processo de rotinização
populista, pois ela não tem como condição de do populismo de Getúlio Vargas. Neste ponto,
possibilidade nenhum tipo de educação po- é possível perguntar em que medida o caráter
lítica no sentido específico: as pessoas fazem digital das mídias mobilizadas pelas lideran-
seus julgamentos através dos mesmos parâme- ças populistas contemporâneas introduz uma
tros utilizados em situações da vida quotidiana. ruptura com a tradição populista pregressa.
Daí também a crescente confusão de fronteiras, Algumas dessas possíveis inovações serão des-
a ser destacada na seção conclusiva, entre a po- tacadas a seguir, através de conceitos da ciber-
lítica e outras esferas sociais. nética e teorias de sistemas.
Finalmente, cabe notar que tanto a ruptura
populista quanto a sua posterior rotinização
enquanto governo têm como pré-condição a 4. Populismo digital e a
mobilização e o controle bem-sucedido de cer- perspectiva cibernética
tas mídias por parte do líder, através das quais
ele busca assegurar acesso direto, exclusivo e
contínuo aos seus seguidores. O líder popu- Além de evidenciar como o conteúdo da
lista constrói o povo através de mediações di- campanha Bolsonaro nas redes se estrutu-
versas, que, no passado, envolviam principal- rou com base em padrões discursivos descri-
mente mídias analógicas como jornais, rádio tos pela teoria do populismo, o presente es-
e televisão, bem como contágio através de mí- tudo busca aproximar a seguinte questão: o que
dias informais como rumores ou em situações ocorre com a mecânica e efeitos do populismo
de efervescência coletiva (multidões). Talvez a quando ele passa a operar cada vez mais por
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[Figura 5] Diferentes
versões cut-and-
paste do significante
flutuante “kit gay”
circuladas em redes
bolsonaristas durante
a campanha eleitoral.
binário amigo-ini-
migo delimitador da
fronteira entre o sis-
tema e seu entorno.
Aquele que foi sele-
cionado pelo líder
como seu antagonista
participou do sistema,
al., 2018; Nemer, 2018; dos Santos et al., 2019) portanto, enquanto exterioridade constitutiva
sugerem, a campanha digital de Bolsonaro ope- (nos termos de Laclau) ou enquanto ambiente
rou através de uma estrutura segmentar análoga ou entorno (nos termos de Luhmann). Nas
à descrita pelo antropólogo britânico Edward eleições de 2018, essa posição estrutural se an-
Evans-Pritchard (2013): ao mesmo tempo que corou na figura imediata de um dos candida-
visava efeitos de microdirecionamento a per- tos – Fernando Haddad – mas também flutuou
fis de eleitores específicos, era capaz de man- amplamente enquanto Lula, PT, Jean Willys,
ter uma unidade virtual no “topo”. A imagem comunismo, militância, resistência, globalismo,
do candidato, ao mesmo tempo unitária e frag- velha política... numa série paradigmática (no
mentada – nos termos lévi-straussianos de sentido de Saussure) virtualmente inesgotável.
Kalil et al. (2018), caleidoscópica –, circulou
no WhatsApp através de uma topologia, estra-
tegicamente construída, de “redes policêntri-
cas segmentadas e integradas” do tipo “hidra”
(Santos et al., 2019). Esse padrão caleidoscópico
e segmentar, que se vale de affordances (Gibson,
1986) digitais próprias do WhatsApp e da eco-
logia de mídias mais ampla em que o aplicativo
se insere, introduz, a meu ver, uma inovação
importante com relação ao populismo analó-
gico (Cesarino, 2019b).
Já no eixo da diferença, elementos externos [Figura 6] Significante vazio do inimigo
ao sistema líder-povo (como fatos noticiados flutua a partir de uma divisão binária inicial:
pela imprensa, análises feitas por especialis- bandido, vagabundo versus cidadão de bem.
tas ou contestações levantadas pela oposição) Memética exorta o usuário a escolher um
só eram interiorizados enquanto informação lado e a definir o voto com base em imagens.
significativa mediante sua redução ao código
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Mas embora o adversário só penetre no sis- rítmico evidente no aparato mobilizador do po-
tema líder-povo mediante sua redução ao có- pulismo digital, notadamente o firehosing diário
digo binário amigo-inimigo, no período elei- de conteúdos compartilhados via WhatsApp.8
toral ele operou como uma exterioridade ativa, Além disso, o ritmo da mobilização era impri-
pois suas reações ao mecanismo populista ten- mido pelo próprio conteúdo. Eram bastante
deram a retroalimentá-lo, estabilizando um frequentes, por exemplo, áudios supostamente
padrão relacional similar ao que Bateson cha- gravados por alguém relevante, mas que se pas-
mou de cismogênese simétrica (Bateson, 1972; savam por alguém relevante (um procurador
Karczeski, 2018). Ou seja, as reações do inimigo da república, um funcionário de embaixada,
às ações da liderança populista, e vice-versa, um empregado de alguma empresa da grande
geraram uma escalada progressiva da divisão mídia) trazendo “fatos” exclusivos ou narrati-
entre os dois polos que foi instrumental para vas alarmistas. Textões ou vídeos alertavam as
promover o candidato do PSL de deputado ale- pessoas para algum tipo de ameaça ou com-
górico e inexpressivo a novo salvador da pátria plô em andamento, fosse por parte do Partido
(Malini, Ciarelli & Medeiros, 2017). O aspecto dos Trabalhadores (PT), do Tribunal Superior
simétrico do antagonismo amigo-inimigo foi Eleitoral (TSE), ou mesmo de entidades “ter-
central neste processo, pois parte da eficácia do roristas” internacionais como o Hezbollah e as
mecanismo populista adveio da canibalização e Farc.
inversão (Laclau, 2005) de enunciados e ações Outro ponto de convergência com as teo-
do oponente. Esse aspecto foi estruturante de rias de sistemas diz respeito à questão da efi-
boa parte da memética da campanha Bolsonaro, cácia, ou da verdade, como efeito performativo
e era ocasionalmente explicitado enquanto a posteriori às relações. Muitos são os desdobra-
“jogar o feitiço contra o feiticeiro” ou “dançar mentos possíveis desse ponto, em especial no
conforme a sua música”. que tange à co-produção contemporânea entre
mídias digitais, neoliberalismo, pós-verdade e
neopopulismos (Mirowski, 2019; Cesarino, no
prelo b); porém, eles estão além do escopo da
presente análise. Aqui, basta notar que, como
nos sistemas, a eficácia é intrínseca à própria
definição do populismo: ou o líder é eficaz na
construção do “povo”, ou não é uma liderança
populista no sentido próprio do termo. Assim,
ainda que alguns dos padrões e táticas aqui
analisados possam ser encontrados nas campa-
nhas digitais de outros candidatos em 2018 e
mesmo antes, a eficácia – que, neste contexto,
[Figura 7] Espelhamento estético e inversão era eleitoral – esteve inequivocamente do lado
esquerda-direita. Canibalização da palavra de do candidato do PSL.
ordem feminista “lute como uma garota”. Finalmente, chegamos ao que vejo como o
principal elemento diferencial da eficácia do
A perspectiva de sistemas permite, ainda, populismo em sua modalidade digital: sua to-
lançar luz sobre outro ponto que se mos- pologia fractal. Se na sua versão analógica a
trou central no caso em tela: a temporalidade eficácia do populismo dependia pesadamente
da mobilização populista.7 Havia um aspecto do carisma pessoal do líder, em especial sua
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receptor dados de antemão: elas são o sistema uma relação não-mediada com a liderança. Isso
líder-povo. Tanto líder quanto povo se co-cons- é observado na expectativa, demonstrada por
tituem recursivamente em e através desse apa- muitos usuários ativos nessas redes, de que se
rato digital: um tipo de mediação que produz o está apenas a um tweet, um post, um comparti-
efeito paradoxal de uma ausência de mediação lhamento do smartphone do líder ou de alguém
(Mazzarella, 2019); uma topologia assimétrica do seu entorno (como os filhos ou algum mi-
que se quer horizontal (Marres, 2018); um dire- nistro). O próprio presidente alimenta regular-
cionamento discursivo que prolifera enquanto mente essa expectativa, ao postar no Twitter ou
espontaneidade (Santos et al., 2019). Facebook que tomou uma decisão oficial de-
pois de ouvir pedidos de algum de seus apoia-
dores em suas redes.
Vai se disseminando, por este meio, uma ilu-
são de que intermediários como instituições
e especialistas são desnecessários, ou mesmo
prejudiciais, ao processo democrático (Cesarino,
2019b; Cesarino, no prelo b) – que passaria a
se resumir, como o presidente eleito colocou
em sua cerimônia de diplomação, a uma re-
lação “direta” entre líder e povo. O polo insti-
tucionalista do espectro democrático descrito
por Mouffe (2000) é assim esvaziado em favor
do polo populista, a ponto de a democracia ser
equacionada simplesmente à vontade do povo,
incorporada no líder e que deve ser implemen-
tada contra tudo e todos, inclusive contra o sis-
tema institucional de pesos e contrapesos.
Por fim, cabe notar a conexão estreita entre para reinstituir a ordem em novas bases, se-
o que se convencionou chamar de pós-verdade guiu uma progressão bem nítida. Ela é evidente
e o populismo digital – algo que discuto mais inclusive na estética dos movimentos de rua:
detalhadamente em outro lugar (Cesarino, no começando com os protestos difusos reivindi-
prelo a; Cesarino, no prelo b; Waisbord, 2018). cando “demandas sociais” de 2013 (Malini, 2016,
Desde o início da campanha eleitoral, o meca- p. 28), que foram gradualmente ganhando uma
nismo populista bolsonarista buscou limitar o estrutura antagonística mais clara através dos
acesso do “povo” a uma esfera pública de caráter movimentos anticorrupção e pró-impeachment
mais aberto e pluralista, bem como a estruturas em 2015 e 2016 (Recuero, Zago & Soares, 2017;
tradicionais de produção de conhecimento au- Malini, Ciarelli & Medeiros, 2017; Solano, 2018),
torizado. Foram muitos e variados os conteú- alcançando a sua forma final com a unificação
dos direcionados à deslegitimação da imprensa pela liderança populista em 2018 (Ortellado &
profissional e de especialistas. Numa das no- Ribeiro, 2018; Kalil et al., 2018).
táveis inversões de que falou Laclau (2005), as A “realidade” da crise que propicia a irrupção
mídias sociais, e em especial o WhatsApp, se bem sucedida do líder carismático está sujeita
tornaram o domínio da verdade e da liberdade às mesmas mediações em jogo na mecânica
de expressão, enquanto a esfera pública pas- populista. Certos tipos de conteúdo que costu-
sou a ser condenada como o lócus de fakes e mavam “vazar” nos grupos de WhatsApp pró-
manipulações. Nesse contexto, torna-se cada -Bolsonaro tanto antes quanto depois da elei-
vez mais difícil diferenciar mídia centralizada ção deixam entrever que a própria percepção
e oficial de mídia informal e descentralizada; de crise que ensejou a ruptura populista tam-
discernir verdades de rumores; fatos de conspi- bém vem sendo, em alguma medida, perfor-
rações. Acredito que esta seja uma das bases da mada digitalmente. Destacam-se, aqui, conteú-
eficácia da campanha de Bolsonaro, que ope- dos “caseiros” ou repassados de outras mídias
rou aquilo que Jean e John Comaroff (2004) tematizando o caos na segurança pública e um
chamaram de “dialética da produção e redução” esgarçamento radical da ordem moral: fotos
da desordem: bolhas digitais que, por um lado, de policiais, bandidos ou inocentes mortos, ví-
produziam entropia (desordem informacional) deos explícitos de violência e ofensas sendo co-
para, por outro, oferecer um discurso agrega- metidas (espancamentos, assaltos, vandalismo,
dor do tipo populista que prometesse imprimir tortura, estupros) e narrativas apócrifas sobre
ordem à desordem. crimes noticiados na imprensa ou nas pró-
prias mídias sociais, sobre justiça sendo feita
ou não.10 Outra linha que chama atenção diz
5. Des/ordem e populismo respeito a conteúdo pornográfico: fotos e ví-
deos de nudes ou sexo explícito, links para sites
de pornografia ou prostituição online, às vezes
O caso brasileiro é, em muitos sentidos, compartilhados por celulares registrados no es-
quase um exemplo de livro-texto da teoria de trangeiro. Um terceiro tipo relativamente fre-
Laclau e Mouffe. Nos últimos anos, o processo quente refere-se a fraudes: usuários oferecendo
de transformação de uma multidão insatisfeita a venda desde dinheiro e cartões de crédito fal-
heterogênea, que se formou espontaneamente sos até carteiras de motorista, diplomas escola-
em reação a uma sensação difusa de crise e de- res e outros documentos fraudados. É comum
sordem, no “povo” que formaria a base eleitoral que as próprias regras dos grupos tragam in-
da liderança que alegava vir de fora do sistema terdições a esse tipo de conteúdo – outro forte
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enquanto a liderança emergente da versão bra- 2019b). Estas últimas foram, pelo contrário,
sileira da alt right americana passou a ser vista amplamente mobilizadas pelo mecanismo po-
como representando o povo, os de baixo (atra- pulista para operar como o inimigo, ameaça ou
vés de símbolos recorrentes na memética como elite corrupta: a “ditadura gayzista”, as “femi-
o relógio Casio e a caneta Bic). Essa mesma ca- nazis”, o MST “terrorista”, o movimento negro
deia de equivalência foi progressivamente se que se vitimiza e divide a sociedade. O que
estendendo, por exemplo, para o globalismo eram minorias oprimidas passaram a ser vis-
enquanto plano de dominação mundial e des- tas com fonte de opressão e de cerceamento
truição da soberania dos estados-nação por de liberdades, ou como segmentos indevida-
uma suposta “elite global” liderada por George mente privilegiados – através de significan-
Soros. tes vazios frequentes na memética como o da
Figura 12. Líder é como o “povo”: “bolsa” (-travesti, -prostituta, -presidiário) ou,
humilde e sem preconceitos. O inimigo quando a mira estava voltada para artistas, a
(a “esquerda”) é elite hipócrita. “Lei Rouanet”. Construiu-se, em oposição a essa
concepção do inimigo, uma cadeia de equiva-
lência articulada através de identidades vagas
Outra inversão bem-sucedida partiu do anti- como indivíduos, cristãos, trabalhadores ou
-politicamente correto, que já vinha ganhando “patriotas”, colocados como preteridos ou opri-
tração no mundo online (Gerbaudo, 2018) con- midos pela militância pelo direito à diferença.
trariando, e ao mesmo tempo espelhando, a O modo como o eleitorado feminino foi mo-
militância feminista, LGBTIQ e outras pautas bilizado pela campanha Bolsonaro na reta final
identitárias. A campanha Bolsonaro construiu do primeiro turno foi particularmente instru-
parte da sua base eleitoral mobilizando indi- tivo da maneira como o mecanismo populista
víduos e grupos subalternos que não se reco- operacionalizou a sobreposição, descrita por
nheciam através da gramática das políticas de Douglas (2002), entre classificações simbóli-
reconhecimento (Kalil et al., 2018; Cesarino, cas baseadas em noções de pureza e impureza
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gramática foi extensivamente utilizada para Outro ponto diz respeito à inversão que se in-
endereçar outros domínios, como na série de corpora na própria figura da liderança carismá-
memes abaixo: tico-populista – associada por Tania Luhrmann
(2016), em uma análise da eleição de Trump, à
questão também douglasiana do tabu. Embora
o carisma pessoal de Jair Bolsonaro destoe de
lideranças populistas históricas que depen-
diam pesadamente de seus dotes e personali-
dades individuais, como Perón ou mesmo Lula
(Cesarino, 2006), ele logrou projetar para a sua
base a imagem de um homem simples e ho-
nesto. O que a oposição via como despreparo e
truculência, longe de serem entendidos como
defeitos por seus eleitores, também passaram
a ser lidos nessa chave, como evidências de al-
guém do povo que é igual a eles. Em outras
palavras, o que eram vícios no contexto pré-
-populista (falta de formação acadêmica, ex-
Figura 16. Ordem / periência de gestão, conhecimento especiali-
desordem; limpeza / zado, trato e linguagem formal, participação
bagunça; linearidade em debates qualificados) tornaram-se virtudes,
/ confusão; segurança e vice-versa. Ou, na versão teológica dessa in-
/ perigo; verde e versão presenteada por seu apoiador, o pastor
amarelo / vermelho evangélico Silas Malafaia, no primeiro ato pú-
e preto; 17 / 13. blico de Bolsonaro após o resultado eleitoral
(um culto na Assembleia de Deus Vitória em
Cristo): “Deus não escolhe os capacitados; ca-
pacita os escolhidos”.
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Por fim, o carisma pessoal de Jair Bolsonaro parece ser central para compreender o apelo
também foi propagado por meio de uma versão e sucesso da nova direita não apenas no Brasil,
neoliberal de culto à personalidade, encapsu- mas globalmente. Isso aponta para uma ten-
lada na alcunha de “mito”. No mundo online, a dência emergente fundamental, e provavel-
imagem do candidato (e de Sergio Moro) figu- mente duradoura: a redefinição do que se en-
rava em vídeos e memes, ou em versões cartu- tende por política na era digital.
nísticas, misturada a de figuras heroicas como
super-heróis ou soldados. Durante a campanha,
Jair Bolsonaro tornou-se, num sentido muito 6. Considerações
concreto, uma marca, se transfigurando espe- conclusivas: redefinindo a
cialmente em camisetas vendidas em camelôs,
lojas e websites. política na era digital
Depois da eleição, essa tendência se desdo-
braria numa verdadeira indústria de empreen-
dedores digitais de toda sorte. Para muitos dos No campo da antropologia digital, uma pro-
militantes pró-Bolsonaro que tentam fazer di- blemática frequente diz respeito à confusão de
nheiro com canais do YouTube (que explodi- fronteiras que tem acompanhado a digitaliza-
ram nos grupos de WhatsApp após a eleição) ção crescente da vida em todas as suas face-
e múltiplas outras formas de monetização de tas, desde as mais públicas até as mais íntimas
cliques, palestras, livros e master classes, ati- (Horst & Miller, 2012). Com efeito, concluo su-
vismo político e empreendedorismo se mis- gerindo que, na campanha de 2018, houve uma
turam. Longe de ser incidental, esse aspecto diluição ainda mais acentuada das fronteiras
entre a esfera político-eleitoral e outros domí-
nios da vida, como o culto às celebridades, pa-
rentesco, religião, indústria do entretenimento
(música, filmes, séries), esportes (futebol, lutas,
clubes de tiro) e, em especial, a linguagem e as
dinâmicas identitárias e de sociabilidade pró-
prias das redes sociais. É frequente ouvir de
eleitores de Jair Bolsonaro que eles não se in-
teressavam por política até ele se candidatar à
presidência – mas isso porque sua estratégia
de campanha digital transformou radicalmente
o que se entendia por política até então. O ca-
risma digital e a simplicidade discursiva tanto
da memética quanto do discurso populista, que
foram a marca da sua campanha, fizeram com
que qualquer um se sentisse à vontade e en-
corajado a participar da política nesses novos
termos. O que era até então considerado a nor-
matividade político-eleitoral foi ou relegado ao
Figura 17. Do meme para o domínio do inimigo (a “velha política”) ou des-
offline: empreendedorismo digital contado como irrelevante ou obsoleto (debates
e a “marca” Bolsonaro. enfadonhos com outros candidatos, planos de
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crescente da polí-
tica tem levado o ci-
dadão comum a se
sentir cada vez mais
qualificado para dar
uma opinião autori-
zada sobre os fatos –
o que converge com
a ascensão de epis-
temologias “popula-
res” em contextos de
pós-verdade e crise
do sistema de peritos
Figura 19. Os “marqueteiros do Jair” durante a campanha (Cesarino, no prelo
eleitoral se transformam, após a posse, na “base parlamentar” do a; Cesarino, no prelo
presidente, representada por símbolos da seleção de futebol. b).11
Finalmente, vale
destacar que um dos
podia ocasionalmente se converter em violên- golpes de mestre da campanha Bolsonaro foi
cia verbal ou mesmo física. A atitude de violên- incorporar como seu símbolo maior a camisa
cia sublimada em jocosidade típica do ethos fu- canarinho, já apropriada para a direita pelo an-
tebolístico consolidou-se em alguns dos slogans tipetismo dos anos anteriores. Desde o início, a
populares da campanha do PSL, como “é bom campanha do PSL contrapôs o verde-e-amarelo
jair se acostumando” e “chora que dói menos”. ao vermelho do PT, do MST, do comunismo,
Após o resultado eleitoral, não foram poucas como se o que ele representasse não fosse parte
as menções na mídia a analogias entre as come- legítima da nação brasileira: “nossa bandeira
morações da vitória de Bolsonaro com uma vi- nunca será vermelha”. “Esquerdistas” eram re-
tória final da seleção (inclusive, devido à coin- petidamente exortados a deixar a nação, para
cidência das cores, alguns dos fakes que mais Cuba ou para a Venezuela. Isso ficou claro es-
circularam traziam fotos de agremiações de rua pecialmente no segundo turno, quando a cam-
durante a copa como se fossem manifestações panha Haddad substituiu o vermelho por uma
a favor do candidato). Proliferaram acusações simbologia verde, amarela e azul – o que foi
de que os perdedores estariam “torcendo con- alvo de intensa ridicularização no WhatsApp
tra” o novo governo, negando assim à oposição por parte dos eleitores de Bolsonaro, que já
seu papel legítimo em um regime democrá- se consideravam donos da simbologia nacio-
tico. Após a eleição, o ritmo de mobilização in- nal. Como vimos aqui, a simbologia das cores
tensa nas redes sociais, inclusive no WhatsApp, e outros elementos estéticos estão longe de ser
a princípio se arrefeceu (Santos et al., 2019; apenas cosméticos, visto que a mobilização do
Nemer, 2019). Porém, houve uma reorganiza- tipo populista opera em larga medida através
ção no sentido de manter redes de “informação” de significantes vazios, no plano subconsciente
sobre o novo governo, como ocorre ao longo dos afetos. Dentro de um quadro cismogênico
do ano com as mídias permanentes que infor- avançado como foi o caso da campanha de 2018,
mam e debatem os campeonatos e a situação a simples visão de uma blusa amarela ou ver-
dos clubes. Como no futebol, a digitalização melha era capaz de evocar raiva ou indignação,
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como camisas de times adversários antes ou da Cambridge Analytica, Steve Bannon, e pos-
depois de um clássico muito disputado. sivelmente também por técnicas de marketing
Diante da radicalidade da ruptura populista digital e táticas militares de guerra híbrida que
observada nas eleições brasileiras de 2018, é ecoam muitos dos padrões metacomunicativos
preciso concluir apontando duas recursivida- identificados acima (Kalil et al., 2018; Leiner &
des importantes implicadas na digitalização Dominici, 2019).
crescente da política. Em primeiro lugar, há, Em segundo lugar, como outros também têm
na campanha digital de Bolsonaro e em ou- notado, é preciso reconhecer a profundidade
tras como a de Trump, uma recursividade evi- dos efeitos da digitalização da política aponta-
dente entre teoria e prática do populismo. Em dos aqui. A arquitetura digital das mídias so-
outras palavras, a notável regularidade e con- ciais, conforme ela se configurou nos termos
sistência dos padrões discursivos do tipo po- dos modelos de negócios das grandes empre-
pulista observados no universo de conteúdo sas do setor (Marres, 2018; Santos et al, 2019),
digital analisado indicam, mais do que a capa- opera por meio de ciclos cibernéticos cada vez
cidade da teoria de “explicar” a empiria, que mais capilares que incidem de modo profundo
é a prática político-eleitoral que vem sendo sobre as subjetividades, afetos e visões de
moldada por algum tipo de “ciência do popu- mundo dos usuários (Mirowski, 2019; Marres,
lismo” (Cesarino, 2019a). Se ela passa especifi- 2018; Gerbaudo, 2018; Malini, 2016). Neste sen-
tido, o fato de o mecanismo populista conti-
nuar operando mesmo após a campanha pode
produzir efeitos duradouros sobre as sensibili-
dades políticas dos cidadãos, e por conseguinte,
sobre os próprios alicerces do estado democrá-
tico de direito tal qual o conhecemos – que,
como notou Mouffe (2000), depende de um de-
licado equilíbrio e sistema de pesos e contrape-
sos entre os polos opostos da institucionalidade
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PÁGINAS 91 A 120 A ASCENSÃO DO POPULISMO DIGITAL NO BRASIL CESARINO
Recebido em 23/06/2019
Aceito em 18/12/2019