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FICHA TÉCNICA

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© 2022
Todos os direitos relativos à chancela Manuscrito
encontram-se reservados para a Editorial Presença, S.A.
Estrada das Palmeiras, 59
Queluz de Baixo
2730-132 Barcarena

Título original: Como Se Fosse a Primeira Vez


Autor: Raul Minh’alma
Copyright © Raul Minh’alma, 2022
Copyright © Editorial Presença, S.A., Lisboa, 2022
Revisão: Paula Caetano
Caetano / Editorial Presença
Ilustrações do autor
Fotografia do autor © Gabriel Conchinhas
Imagem da capa: Shutterstock
Capa: Catarina Sequeira Gaeiras
Gaeiras / Editorial Presença
Composição, impressão e acabamento:
Multitipo — Artes Gráficas, Lda.

ISBN 978-989-9087-53-8
Depósito legal n.o 507 210/22
210

1.a edição, Lisboa, dezembro


dezembro, 2022
À minha filha Alma,
que nasceu 33 horas depois
de eu terminar este livro.
Antes

Aurora colocou a última de três malas na bagageira do carro e


fez­‑se à estrada em direção à casa da avó Madalena. Era nessa casa,
situada numa vila turística junto ao mar, que costumava pas-
sar as férias de verão, mas desta vez não era propriamente por
esse motivo que ia lá. Também nessa vila vivia a sua tia Eunice
que, ao contrário da mãe de Aurora, não se mudara para a capi-
tal. Ali montara o negócio com que sempre sonhara, um restau-
rante vegan e um alojamento local. Aurora tinha vinte e um anos
e termi­nara cerca de um mês antes a sua licenciatura em Design de
Moda. Avizinhavam­‑se, portanto, novos e grandes desafios, e que
lhe ocupavam os pensamentos durante a maior parte do tempo.
Um desses desafios era a realização de um sonho particularmente
ambicioso para alguém da sua idade, a abertura do seu ateliê e
o lançamento da sua carreira como estilista. Um sonho desde sem-
pre alimentado e apoiado pela avó. Para a ajudar na sua concre-
tização, Madalena acordou com a filha, mãe de Aurora, a quem a
casa p­ ertencia por herança, que a mesma passaria para o nome da
neta. A filha estava emigrada há vários anos e não tinha intenções

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de fazer nada com aquela habitação, enquanto Eunice recebera dos
pais um outro edifício nas redondezas, onde acabara por construir
o seu restaurante. Assim, quando Aurora entendesse, poderia ven-
der a casa e ter as condições financeiras necessárias para realizar
o seu sonho. Um sonho que a avó a obrigara a prometer que iria
cumprir, mas também um sonho que ela já não iria ver cumprido.
A avó Madalena falecera cinco meses antes. Foi com a intenção de
começar a tratar da venda da casa que Aurora se dirigiu da capital
até àquela vila costeira, numa viagem que demorou pouco mais de
duas horas. Era a primeira vez que regressava à vila desde o funeral
da avó e a saudade parecia crescer à medida que se aproximava.
Tratando­‑se de uma zona turística e sendo pleno verão, Aurora
já antecipava que as ruas e ruelas, muitas delas de sentido único,
e onde por vezes até era preciso recolher os retrovisores para con-
seguir passar, estariam bastante movimentadas. O cenário que
encontrou foi, no entanto, ainda mais caótico do que imaginara,
com pessoas e carros a entupirem as estradas, que só subiam ou
desciam, e a interditá­‑las durante vários minutos. Foi, por isso,
penosa aquela parte da viagem com alguns sustos e algumas buzi-
nadelas. Finalmente, vislumbrou a casa da avó, esguia e espremida
entre as muitas outras que formavam uma parede contínua ao
longo de toda a rua. As construções daquela vila soalheira eram
maioritariamente caiadas de branco, com contornos e detalhes em
azul ou amarelo e as varandas só não estariam repletas de plantas
se não houvesse ninguém que as regasse. Uma varanda sem plan-
tas era sinal de que a casa estava desabitada e isso tornava­‑a um
alvo apetecível para os larápios. Era por isso que a tia Eunice tinha
o cuidado de regar as plantas que enfeitavam a varanda da avó
Madalena. Aurora estacionou o carro no beco de acesso exclusivo
à casa e desligou o motor. Inspirou fundo algumas vezes e olhou
em volta. Aquele lugar era estranho sem a avó. Foi à sua mala,
pegou nas chaves da casa e, ao sair do carro, foi surpreendida por
uma voz bem conhecida.
— Oh, meu amor, que saudades! Dá cá um abraço à titia. Reju‑
bilou Eunice, aproximando­‑se de Aurora com os braços abertos.

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Eunice completara recentemente cinquenta anos e não tinha
filhos biológicos. A vida não o proporcionara, dizia ela. Tinha, no
entanto, dois filhos do coração que a visitavam com regularidade,
os filhos do companheiro com quem vivia há quinze anos e que
geria com ela o restaurante e o alojamento. Eunice usava quase
sempre vestidos compridos e floridos, e era fácil perceber quando
andava por perto, porque o ruído que fazia com os inúmeros colares
e pulseiras que trazia sempre consigo era bem audível. Era também
uma mulher muito ligada à espiritualidade, e Aurora desconfiava
que ela sabia sempre mais do que aquilo que dizia. O seu cabelo
castanho, volumoso e encaracolado, contrastava com o da sobrinha,
de que era praticamente loiro e liso, mas os olhos eram os mesmos,
cor de avelã. O estilo de roupa também era muito diferente. Aurora
era mais arrojada nas suas opções estilísticas. Trazia quase sempre
alguma cor vibrante e era fã de roupas justas que lhe realçavam
as linhas elegantes do corpo. A sobrinha era um bocado mais alta
do que a tia e por isso, enquanto Eunice agarrava Aurora quase pela
cintura, esta abraçava a sua tia favorita pelo pescoço.
— Estás cada vez mais bonita e elegante, rapariga. Prosseguiu
Eunice. O que é que andas a comer?
— Brócolos e tofu. Respondeu, com um ar brincalhão.
— Deve ser, deve. Quem não te conhecer que te compre. Sabes
o que é? Genética boa. Bem podes agradecer a este lado da família.
Aurora sorriu e segurou as mãos da tia.
— Não estava à espera de te encontrar aqui à hora de jantar.
— E não devias. O meu Orlando já deve ter-me rogado uma
praga por não estar no restaurante. Sabes que estes dias são um
caos. Temos lá uns jovens a ajudar­‑nos, mas mesmo assim é
muito trabalho. Hoje começa a Festa dos Finados, por isso há uma
enchente de clientes ainda maior. Estou aqui porque vim arejar
a casa antes de chegares. Já está fechada há algum tempo.
— Hoje começa a Festa dos Finados?
— Claro, filha. Última semana de agosto. Não te lembras?
Aurora desviou o rosto e arregalou os olhos ao recordar­
‑se. A Festa dos Finados era uma celebração da vida depois da

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morte, que acontecia todos os anos por aquela altura. Tratava­‑se de
uma festa típica da vila em memória dos que já haviam partido e que
atraía à localidade muitos visitantes e turistas. Estava, no entanto,
longe de ser um evento triste. Muito pelo contrário. Naqueles dias,
a morte era encarada com mais leveza e naturalidade, e por isso
muitas pessoas procuravam as festividades como um processo de
cura e superação. Outras, apenas por diversão. Até porque, para
todos os efeitos, se tratava de uma festa, e emoção e animação era
coisa que não podia faltar em cada esquina. Aurora conhecia bem
aquela tradição, uma vez que participara nela durante vários anos,
quando passava ali o verão, mas, por alguma razão, não se aperce-
bera de que começariam naquele preciso dia.
— Pois é, nem tinha pensado nisso. Murmurou Aurora. Agora
percebo o porquê de ter demorado quase uma hora a percorrer
umas centenas de metros para chegar aqui.
— Eu até pensava que era por causa da festa que vinhas tratar
da venda da casa precisamente estes dias.
— Não, não foi. Foi mesmo uma coincidência.
— Coincidência? Devolveu Eunice, contraindo os lábios, como
se a sobrinha acabasse de dar alguma calinada.
— Já sei, já sei! Nada acontece por acaso, mas percebeste o que
eu quis dizer. Não me lembrava, a sério.
— É porque tinha mesmo de ser.
— Talvez...
Aurora olhou para a casa e Eunice observou­‑a atentamente.
— Como é que está esse coraçãozinho?
— Em relação a quê?
— Em relação à avó Madalena.
— Apertado. Vazio. E o teu?
— Cheio de saudade e gratidão.
— Gostava de ver as coisas assim. Não sei como consegues.
Devolveu Aurora, encostando­‑se ao carro.
— O que vou fazer? Chorar e lamentar­‑me na esperança de que
o Universo tenha pena de mim e me devolva a minha mãe?
— Acho que ainda estou na fase de tentar convencê­‑Lo.

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— O luto tem várias fases e cada uma leva o seu tempo. Não
te preocupes com isso. Vai fazer­‑te bem estares aqui estes dias
durante a festa. Olha, mais uma razão para acreditar que não foi
coincidência teres vindo logo nesta altura. Se calhar, foi ela que
semeou essa ideia na tua cabecinha sem te aperceberes.
— Achas mesmo que sim?
— O que eu acho é que não sabemos nada e isto que vemos
e sentimos é só a pontinha de um imenso icebergue.
— Eu quero acreditar que sim.
— Então, acredita, filha. Pagas o mesmo. Eunice sorriu­‑lhe e
piscou­‑lhe o olho. Queres ajuda com as tuas coisas? Acho que ainda
tenho tempo antes de o meu Orlando me ligar, furioso.
— Aceito a ajuda.
A tia agarrou em duas das malas que estavam na bagageira
e entrou na casa. Aurora seguiu atrás, carregando outra. Subiram
uma escadaria de pedra, visivelmente gasta pelos mais de cem
anos de uso, e entraram num dos dois quartos da casa, e que ficava
virado para a rua movimentada. Assim que Eunice pousou as
malas no chão de madeira, dirigiu­‑se às portadas que davam para
a varanda e abriu­‑as para arejar também aquela divisão. A disposi-
ção do quarto era a mesma desde que tinha memória. Uma cama,
duas mesas de cabeceira, uma cómoda e um armário de duas portas
com um espelho em cada uma. O mobiliário era antiquado e fora
todo pintado de branco quando ela ainda era criança. À exceção
do guarda­‑roupa que era pintado de azul. Um pedido que Aurora
fizera ao seu avô, que falecera nove anos antes, e que este quisera
satisfazer. Era, ainda hoje, o seu móvel favorito.
— O que achas disto? Comentou Aurora. Eunice olhou­‑a com ar
de quem não percebera a pergunta e Aurora esclareceu. Da venda
desta casa para ir atrás de um sonho...
A tia olhou em redor antes de lhe responder.
— Em primeiro lugar, não tenho de achar nada, Aurora. Esta
foi, em tempos, a casa onde vivi. Este foi, em tempos, o quarto
onde dormi. Eu e a tua mãe. Mas nada disto me pertence há muito
tempo. Além disso, sabes que não sou apegada às coisas. A nossa

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casa é a nossa família. Os nossos amigos. As nossas pessoas. Isto
são só quatro paredes e uma vista bonita, mas de que vale uma vista
bonita, se não estiver aqui ninguém para a apreciar?
Aurora fitou­‑a demoradamente.
— Acho que estou a ser egoísta. É só isso.
— Às vezes, precisamos de o ser. Principalmente quando se trata
da nossa felicidade. Uma escolha implica sempre uma perda. Só tens
de ter a certeza de que a escolha compensa a perda. Um telemóvel
começou a tocar no andar de baixo. Já deves ­imaginar quem é que
está a telefonar­‑me, não é? Tenho de ir, meu amor. Eunice deu­‑lhe
um beijo no rosto. Já sabes, qualquer refeição que queiras fazer
aparece no restaurante. E o meu telemóvel está sempre disponível.
Outra coisa, deixei no frigorífico uma quiche de alho-francês
e espinafres que deve estar deliciosa. Ai de ti que não a comas.
Dirigiu­‑se para a porta do quarto, mas percebeu que ainda tinha
mais coisas para dizer. Ah! Sabes o que é que acontece na primeira
noite da Festa dos Finados, não sabes?
— O que é que acontece?
— Hoje é a Noite das Lanternas.
— Ah! Isso. Sim, eu sei.
— E também sabes o que devias fazer, certo?
Aurora assentiu com a cabeça e a tia sorriu antes de se ir embora.
De seguida, dirigiu­‑se para a varanda e demorou­‑se a olhar para
a rua movimentada, sem sequer imaginar que os dias que a espe­
ravam seriam dos mais importantes da sua vida.

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Antes

Aurora aproveitou as horas seguintes para tirar as coisas que


trazia na mala e arrumá­‑las no armário e gavetas. Não sabia quanto
tempo iria demorar o processo da venda da casa, mas viera prepa-
rada para ficar vários dias. O primeiro passo seria tratar do recheio.
Isso implicaria passar tudo a pente fino, para perceber o que queria
guardar para si, deitar fora, doar ou vender, mas não tinha inten-
ções de o começar a fazer já. Antes, precisava de se instalar e de se
ambientar de novo àquele espaço. Em cada passo que dava ali den-
tro, em cada divisão que visitava, e em cada ruído que fazia, tinha
uma memória da avó. Era como se tudo fosse uma lembrança de
que ela já partira. Sabia que seria doloroso ficar naquela casa, mas
não faria sentido ser de outra forma. Precisava daquele reencontro,
por mais difícil que fosse. Precisava de a sentir de novo perto, de
fazer as pazes com a sua ausência e espremer um pouco mais aquela
dor. Afinal, a avó fora como uma mãe para ela, desde que os pais
haviam decidido emigrar, oito anos antes. No andar de baixo, em
frente à janela que dava para a rua, estava a máquina de costura de
Madalena. Uma máquina Singer, preta, com detalhes em dourado.

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Talvez todas as avós tivessem uma máquina assim, mas aquela seria
sempre para Aurora a mais especial de todas. Não só porque era a
da sua avó, mas também porque fora ali que aprendera a costurar.
Fora ali que, no fundo, nascera o seu verdadeiro fascínio pela roupa
e pela moda. Por isso, prometera à avó que se um dia abrisse o seu
ateliê ou a sua loja, aquela máquina ficaria em exposição nalgum
desses lugares. Aurora demorou­‑se a olhar para o objeto, perdida
nas boas memórias que começaram a girar na sua cabeça como
um filme e quando deu conta, os olhos estavam cheios de água.
Apetecia­‑lhe sentar­‑se em frente àquela máquina e pô­‑la a traba-
lhar, mas percebeu que não tinha coragem suficiente. Estava certa
de que iria desfazer­‑se em lágrimas assim que ouvisse o ruído das
agulhas. Limpou os olhos com os polegares e dirigiu­‑se à cozinha.
Não sentia fome, mas estava curiosa por provar aquela quiche que
a tia preparara. Abriu o frigorífico, tirou uma fatia e levou­‑a à boca.
Eunice tinha razão, estava deliciosa. Cortou outra fatia e foi nesse
momento que começou a ouvir música na rua. Espreitou pela janela
e vislumbrou um grupo de pessoas que tocavam gaitas de foles e
pandeiretas algures no meio da multidão. Talvez fossem horas de
também ela ir para a festa. Até porque queria aproveitar um pouco
antes da meia­‑noite, altura em que começariam a ser lançadas as
lanternas do céu, que se resumiam a um balão de papel com uma
acendalha. Uma tradição que marcava oficialmente a abertura
da Festa dos Finados. Aurora vestiu um casaco fino de ganga por
cima do seu top e saiu à rua, acabando imersa na multidão que se
dirigia principalmente para a zona baixa da vila, que ficava mais
próxima do mar. Era também para lá que se deslocava o grupo
musical, todo ele vestido com coletes feitos de retalhos, típicos
daquela terra. Viam­‑se, aliás, muitas pessoas com eles vestidos,
na sua maioria habitantes da vila. Porta sim, porta não, estavam
instaladas tendas onde se vendiam souvenirs. Contudo, como era
uma semana especial, os comerciantes aproveitavam para vender
artigos associados àquela festividade, como era o caso das flores.
Principalmente, rosas brancas, crisântemos e margaridas. O artigo
mais procurado naquela noite eram, no entanto, as lanternas do céu.

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Foi precisamente uma dessas lanternas que Aurora decidiu com-
prar, antes de se deixar levar de novo pela multidão até à Baixa.
Naquela zona, havia uma praça gigantesca de onde se tinha uma
vista privilegiada para a baía, formada pela curvatura da encosta
onde se erguia a vila. Alguns metros abaixo daquela praça, e aces-
sível por uma escadaria de pedra, estendia­‑se um pequeno areal,
e sobre as águas cristalinas, era habitual verem­‑se inúmeros
barcos pequenos de pescadores. Naquela noite, eles também ali
estavam, a repousar de mais um dia de trabalho, mas nessa noite
alguns deles teriam uma função diferente, pois era comum serem
alugados por pessoas que gostariam de lançar as suas lanternas
a partir das águas. Segundo a tradição, quem tivesse algum luto
para fazer teria de lançar uma lanterna ao céu, mas ela não ­poderia
ser acesa pela própria pessoa. Tinha de ser uma outra pessoa a
acendê­‑la com uma vela que, por sua vez, acendera numa fogueira
que estaria a arder no centro da praça durante toda a semana da
Festa dos Finados. Normalmente eram pessoas que não tinham
nenhum luto a fazer nesse ano, mas não era uma regra. Por fim,
essa lanterna seria libertada, levando assim aos céus a luz de que
as almas precisavam. Faltavam poucos minutos para a meia­‑noite
quando Aurora decidiu começar a preparar a sua lanterna. Assim
que estivesse pronta, alguém deveria chegar perto de si com uma
vela para a acender. No alto, ouviu­‑se o sino da torre do relógio
a badalar a meia­‑noite e, pouco depois, uma senhora, carregando
uma vela e um sorriso, encaminhou-se para ela. Aurora retribuiu
o sorriso ao perceber que fora escolhida. Contudo, a meio do per-
curso, alguém chamou pela senhora e ela acabou por mudar de
direção, desaparecendo da sua vista. Surgiu então outra figura
por detrás dela. Era um rapaz, também com uma vela na mão,
e que procurava evitar, com a outra mão, que a chama se apagasse.
A luz da vela iluminava­‑lhe o rosto e os olhares deles cruzaram­
‑se. Ele fez­‑lhe sinal como quem perguntava se ela queria que ele se
aproximasse e como ela não se opôs, o rapaz assim o fez.
— Posso saber quem partiu? Perguntou, com uma voz grave
e suave. O olhar parecia um tanto misterioso.

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Aurora notou que demorou um segundo a mais do que era
suposto a responder­‑lhe. Talvez isso tenha denunciado que algo
nele a atraíra. O que era inexplicável, já que ele não se encai-
xava propriamente­ nos seus padrões de beleza. Mas se não
fora a beleza que a cativara à primeira vista, o que teria sido?
Questionou­‑se.
— A minha avó. Respondeu­‑lhe por fim. A minha avó Madalena.
E tu? Algum luto para fazer?
— O fim de um relacionamento será que conta?
— Não deixa de ser um luto.
Alguém ao passar por trás do rapaz esbarrou nele e fê­‑lo desequi­
librar­‑se momentaneamente, obrigando­‑o a esforçar­‑se por manter
aquela chama acesa. Uma missão que foi bem­‑sucedida.
— É suposto acender a lanterna agora, certo?
— Nunca fizeste isto? Ele negou com a cabeça. Sim, é só acen-
der. Ah! Se puderes ajudar­‑me a segurar nela, enquanto o ar no
interior vai aquecendo, agradecia.
Naquele momento, uma lanterna ao lado deles incendiou­‑se
e ardeu em poucos segundos.
— Para não acontecer nada deste género. Finalizou ela.
O rapaz inspirou fundo e, com a ponta dos dedos, ajudou Aurora
a segurar na lanterna, enquanto pegava fogo à acendalha. Fazia­‑o
com uma expressão atenta e cuidadosa, e Aurora aproveitou para
o observar por cima da lanterna. Porque é que se sentia tão curiosa
em relação a ele? Voltou a questionar­‑se. Notava­‑se que era um
rapaz atlético, um palmo mais alto do que ela e que não deveria ser
muito mais velho. O cabelo era escuro, usava barba cerrada e estava
vestido de forma simples. Uma t­‑shirt preta, calças de ganga
e ténis. A dada altura, começou a desconfiar que talvez o conhe-
cesse. Uma teoria que rapidamente começou a ganhar força e ela
não tardou a tentar prová­‑la.
— Já nos conhecemos? Perguntou Aurora.
O rapaz esboçou um sorriso quase impercetível.
— Porquê a pergunta? Parece­‑te que sim?
— Por acaso, parece. A ti, não?

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— Não sei, mas duvido de que não me lembrasse do teu rosto
se algum dia o tivesse visto.
— Tenho um rosto assim tão peculiar?
— Não, eu é que tenho boa memória.
O rapaz espreitou por baixo da lanterna, para perceber se estava
tudo em ordem com a queima da acendalha e Aurora aproveitou
para se recompor da boa resposta que acabava de receber.
— Como é que te chamas? Perguntou o rapaz, quando voltou
a erguer a cabeça. Numa das mãos ainda segurava a vela acesa.
— Aurora, da família Matias.
— Eu sou o Lourenço... Da família Damas.
— Lourenço, Lourenço, Lourenço. Murmurou ela, enquanto o
fitava na esperança de que o nome lhe dissesse alguma coisa, mas
não chegou a nenhuma conclusão. Não, não estou a ver. Se calhar,
é mesmo daqui da vila. Devo ter­‑te visto algures por aqui numa das
vezes em que vim cá passar férias.
— Não me parece. Eu não conhecia este lugar até há um mês.
— Hummm... De onde és?
— Da capital.
— Pronto. Mistério resolvido. Só pode ser daí que eu te conheço.
Eu também sou da capital. Zona este, certo?
— Zona oeste.
— Mas deves ir muito para aqueles lados.
— Por acaso, não.
— És famoso? Ele negou com a cabeça. Então, talvez te conheça
das redes sociais. Deve ser isso.
— Só uso o Twitter e não tenho lá a minha cara.
— OK, não nos conhecemos de lado nenhum e eu estou só a fazer
confusão. Mistério resolvido na mesma.
— Bom, agora já nos conhecemos.
— Mais ou menos. Continuo sem saber nada sobre ti.
— Já conheces o meu rosto, sabes o meu nome, de onde sou
e até que acabei um relacionamento recentemente. Não me parece
pouco. Precisas de saber mais?
Aurora demorou­‑se a olhar para ele antes de lhe responder.

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— Para acender uma lanterna... não.
— Então, está tudo bem, se é só isso que vamos fazer.
Ele voltou a lançar­‑lhe um olhar indecifrável que, por um lado,
era atraente porque lhe dava um ar misterioso, mas por outro,
a deixava à deriva. E essa não era, com certeza, uma das suas sen-
sações favoritas. Não conseguia perceber se ele estava a brincar
ou a manter a distância, mas procurou não dar muita importância
e voltou a concentrar­‑se na lanterna e no seu significado.
— Acho que já está a começar a puxar. Comentou ele. É este
o momento certo para a soltarmos?
— Ainda não, Lourenço. Disse uma voz por trás deles.
Aurora virou­‑se e deu de caras com a sua tia Eunice. A situação
tornou-se ainda mais complicada de entender. Afinal, de onde é que
a tia conhecia o rapaz que lhe despertara tanta curiosidade?

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Antes

— Vocês conhecem­‑se? Perguntou Aurora.


— Eu pergunto o mesmo. Disse Eunice.
— Também eu. Acrescentou Lourenço.
— É a minha tia. Explicou Aurora. E vocês...
— O Lourenço está a trabalhar no restaurante. Prosseguiu
Eunice. Disse­‑te que tinha lá uns jovens a ajudar­‑nos nesta época
de maior afluência. O Lourenço é um deles. Não sabia era que vocês
se conheciam também. Que curioso.
— Conhecemo­‑nos agora mesmo. Contou Lourenço. Vim acen-
der esta lanterna. Não fazia ideia de que a Aurora era sobrinha da
dona Eunice. Foi uma coincidência engraçada.
— Uma coincidência muito engraçada. Comentou Eunice, lan‑
çando um sorriso indiscreto à sobrinha. Mas ainda bem que não
lançaram a lanterna. Para todos os efeitos, eu também ainda tenho
um luto para fazer. Podemos partilhá­‑la?
Aurora esboçou um sorriso e as duas, sabendo o que tinham
a fazer, fecharam os olhos e concentraram­‑se na figura de ­Mada­-
lena. Durante esse tempo, Aurora recordou os bons momentos que

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vivera com a avó, alguns conselhos que ela lhe deixara, desejou­
‑lhe paz, luz e descanso e, por fim, pediu­‑lhe aconchego. O acon-
chego que ela sempre lhe dera nos dias menos bons. O aconchego
que ela sentia que precisava para aceitar, compreender e superar
aquela perda tão significativa. De seguida, abriu os olhos, fitou
a tia e soltaram as mãos, deixando a lanterna subir. Na sua
companhia, v­ oavam centenas de outras, iluminando cada vez
mais o céu e a paisagem. Pouco depois, começaram também
a erguer-se dos inúmeros barcos parados sobre as águas na
baía, dando uma dimensão ainda mais impactante ao momento.
Uma imagem maravilhosa que Aurora se lembrava de ter desde
pequenina, mas que agora carregava um significado especial.
Agora, estava a vivê­‑la verdadeiramente e começava a perceber
a emoção que as pessoas sentiam quando as via a largarem as lan-
ternas. Também com ela não foi diferente e, quando a sua ia bem
lá no alto, virou­‑se para a tia, igualmente com os olhos marejados,
e deu­‑lhe um abraço demorado. No fim, Eunice limpou­‑lhe as lágri-
mas e olhou­‑a nos olhos.
— Prepara­‑te porque isto vai acontecer muitas vezes nos pró­
ximos dias. Disse­‑lhe a tia. Mas não te inibas de chorar.
— Sabes que choro por tudo e por nada, tia. Não será difícil.
— E isso é bom, meu amor. Não é à toa que dizem que chorar
lava a alma. Por isso, deita cá para fora. É bem pior guardar as
lágrimas para ti e fazer de conta que está tudo bem. Acredita.
— Já o fizeste, foi?
— Sim. Quando ainda não sabia o que sei hoje. Já guardei muitas
lágrimas para mim por achar que eram sinónimo de fraqueza.
— E percebeste que não são.
— Percebi. Na verdade, percebi que chorar é a prova de que
somos fortes. Porque chorar é, muitas vezes, a confissão de que esta­-
mos mal, de que estamos a sofrer, de que atingimos algum limite.
E só os fortes têm a coragem de admitir que estão tristes.
— Sim, faz sentido. Respondeu Aurora, depois de refletir.
— Além de que traz vários benefícios. Parece que, quando cho-
ramos, libertamos umas hormonas quaisquer que ajudam o nosso

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corpo a ficar tranquilo e relaxado, mas sobre isso não percebo
muito, que eu era um pouco baldas na escola. Para lamento da dona
Madalena, pois claro. Desculpa, mamã. Disse Eunice em direção
ao céu, arrancando um sorriso da sobrinha.
As duas demoraram­‑se a apreciar os inúmeros pontos de luz que
iam ficando cada vez mais pequenos até se extinguirem na escuri-
dão. À volta deles, as pessoas continuavam a abraçar­‑se, emocio-
nadas, mas viam­‑se também sorrisos. Sorrisos de quem estava um
pouco mais em paz depois de cumprida aquela tradição. Durante
aquele momento, não houve música, mas não tardou muito a que
se fizessem ouvir de novo as gaitas e as pandeiretas algures nas ruas
que desembocavam na praça. Foi então que Aurora se lembrou de
Lourenço e olhou para trás, mas não o viu.
— Será que já se foi embora? Murmurou ela.
Eunice olhou em redor.
— Não estou a vê­‑lo, mas não creio que se tenha ido já embora.
Querias continuar a falar com ele, não é?
— Apenas esperava que se despedisse. Só isso.
— Caso queiras reencontrá­‑lo nos próximos dias, não é difícil.
Ele está a viver no nosso alojamento local.
— O que é que tens a dizer sobre ele?
— Parece­‑me um bom partido para ti.
— Não é nada disso que estou a falar, tia. E ele nem sequer faz
o meu género. O que é que tens a dizer sobre o Lourenço enquanto
pessoa, como é que ele é e como é que chegou até ti?
— Ah, OK. Bom, nós pusemos um anúncio para contratar
­pessoal para nos ajudar no restaurante e alojamento nesta altura
do ano e ele foi um dos que respondeu. Fizemos uma entrevista e
decidimos contratá­‑lo. No final do verão, vai­‑se embora. Enquanto
pessoa, só tenho coisas boas a dizer. É um rapaz simpático, inteli-
gente, trabalhador, tudo de que precisamos lá no negócio. Aurora
assentiu com a cabeça. Mas porquê essa curiosidade?
— Por nenhuma razão em especial.
Eunice não insistiu, mas não ficou convencida.
— Se quiseres vê­‑lo ainda hoje, talvez eu saiba onde está.

23
— E porque é que eu havia de querer vê­‑lo ainda hoje?
— Ninguém melhor do que ele para saciar essa curiosidade.
— Estou bem assim, tia.
— Ele fez amizade com o filho de uma amiga minha que tem um
café naquela rua. Apontou com a cabeça. O Lourenço não conhece
mais ninguém aqui, por isso acredito que esteja lá.
— E o que é suposto fazer com essa informação?
— Ires lá buscar uma limonada para mim. Pode ser? Aurora
semicerrou os olhos, desconfiada. Vai que eu estou com sede.
Enquanto vais, eu aproveito para trocar uma palavrinha com uns
amigos que estão ali daquele lado. Ah! Não te esqueças do gelo.
Eunice afastou­‑se sem dizer mais nada e Aurora ficou sozi-
nha. Não tinha razões para não satisfazer o pedido da tia, ainda
que percebesse que fora feito com segundas intenções. Decidiu
ir ao café que ela indicara. Depois de um ou outro encontrão,
lá chegou ao destino. Durante as festividades, o café tinha um
balcão na rua, junto à entrada, e foi aí que Aurora pediu uma
limonada com gelo. Olhou em redor e nem sinal da figura que
procurava. Tudo indicava que a tia se enganara no seu palpite,
até que algum tempo depois Lourenço surgiu do interior do café,
com um copo de cerveja na mão. Os seus olhares cruzaram­‑se e ele
aproximou­‑se dela.
— Parece que voltámos a encontrar­‑nos. Comentou Lourenço.
— Pois, parece que sim, mas desta vez não foi bem um acaso.
Eu já calculava que estivesses aqui.
— Como é que sabias?
— A minha tia disse­‑me.
— E vieste à minha procura?
— Não, vim mesmo buscar uma limonada para ela.
Lourenço engoliu em seco com aquela resposta e aproveitou
para dar um trago na cerveja, para disfarçar.
— Desculpa ter-me ido embora há bocado sem dizer nada.
— Tudo bem, mas confesso que não percebi a razão.
— Já tinha feito a minha parte e tratava­‑se de um momento
vosso. Achei que devia dar­‑vos privacidade.

24
— Eu percebo. Talvez tivesse feito o mesmo, se estivesse no teu
lugar. Fez uma pausa. A minha tia falou­‑me de ti.
— Sim? E foi por iniciativa própria ou porque lhe perguntaste?
— Isso é relevante?
— Não, é só por curiosidade.
— Então, acho que podes viver com ela.
Aurora era uma pessoa frontal, uma característica que Lourenço
apreciava, até porque ele próprio a reconhecia em si. Ao aperceber­
‑se dessa semelhança, escapou­‑lhe um sorriso, mas rapidamente
o recolheu.
— Espero que, pelo menos, tenha dito coisas boas sobre mim.
— Podes ficar descansado em relação a isso.
— Aqui está a sua limonada. Disse o rapaz do balcão.
Aurora pegou na bebida e virou­‑se para Lourenço.
— Uma das coisas que ela me disse sobre ti foi que não deves
conhecer muita gente por aqui. Estás sozinho?
— Digamos que sim. Não sou pessoa de muitas amizades.
— Então, e... Vais ficar por esta zona o resto da noite?
— Tens algum plano melhor?
— Não propriamente. O meu único plano é regressar à praça
para entregar esta bebida à minha tia.
— Posso fazer­‑te companhia, se quiseres.
Aurora encolheu os ombros e inclinou a cabeça, num gesto
que dava a entender que aceitava a proposta. Os dois mergu-
lharam na multidão, esforçando­‑se por proteger as respetivas
bebidas, e não demoraram a chegar ao local onde deveria estar
Eunice. ­Rapidamente, Aurora entendeu que ela já não estava
por ali.
— A dona Eunice mudou de ideias ou a limonada nunca chegou
a ser para ela? Perguntou Lourenço, com ar de caso.
— Esta limonada era para ela, juro! Só que foi falar com umas
pessoas amigas e deve ter­‑se esquecido de mim.
— E queres ir à procura dela?
Estava visto que a tia Eunice não queria assim tanto uma
­limonada e que o seu plano fora sempre aquele.

25
— Não, não vale a pena. Disse Aurora, por fim. Já deve estar
longe daqui. Não tem mal. Bebo eu a limonada.
Os dois olharam um para outro e depois em redor.
— Bom, parece que sobramos só nós e mais uns milhares de
desconhecidos. E agora? Qual é o plano? Indagou Lourenço.
— Não sei, talvez terminar estas bebidas enquanto desfrutamos
desta vista, que é a segunda mais bonita que eu conheço.
Aurora estava ao lado dele a olhar para o horizonte e ele fitou­‑a
pelo canto do olho.
— Qual é a primeira?
— É a vista de lá para cá.
— A partir do mar? De barco? É isso que queres dizer?
— Sim, a vista da vila a partir do mar é lindíssima.
— Mesmo à noite?
— À noite também deve ser, mas nunca tive essa experiência.
— E porque não tê­‑la hoje?
Aurora arregalou os olhos.
— Hoje? Neste momento?
— Sim. Parece­‑me um bom plano. O que é preciso fazer?
— Teríamos de pedir a um dos pescadores que estão a alugar
os barcos que nos levasse até ao centro da baía.
— Então, vamos. Agora, também fiquei curioso por conhecer
essa vista.

26
Antes

Lourenço começou a dirigir­‑se para a escadaria que descia


até ao areal, dando depois acesso ao ancoradouro, e Aurora pre­
cisou de ­acelerar o passo para o alcançar. Antes disso, ainda
olhou à sua volta para confirmar se a tia não estaria efetivamente
por ali.
— És sempre assim? Perguntou ela, descendo as escadas.
— Assim como? Impulsivo?
— É um bom termo para definir o que acabou de acontecer.
— Diria antes que sou determinado.
— Determinado a decidir coisas em cima da hora.
— É uma técnica para evitar indecisões.
— E a técnica é não pensar muito?
— Claro. As pessoas só são indecisas porque têm muito tempo
para pensar. Então, evito fazê­‑lo.
Aurora preparava­‑se para contestar aquela ideia, mas depois
pensou melhor e compreendeu que até fazia sentido. Termi­nada
a escadaria, meteram por um passadiço que ligava ao ancora-
douro onde estavam atracados alguns pequenos barcos de pesca

27
e turismo. Andavam várias pessoas naquela zona, umas acabadas
de regressar a terra, vindas das embarcações, e outras que se pre-
paravam para, certamente, fazer o mesmo que eles. Foi Lourenço
quem se dirigiu a um dos homens que estavam a alugar o respetivo
barco e acertou com ele o que era necessário para poderem fazer
o passeio noturno. O homem entrou na pequena embarcação e eles
seguiram­‑no. O barco tinha uns cinco metros de comprimento e na
parte de trás havia uma pequena cabina ao centro, para onde se
dirigiu o skipper que iria pilotá-lo. O convés estava devidamente
preparado, uma vez que tinha ao meio um banco almofadado com
um encosto, para que os turistas pudessem desfrutar em pleno do
passeio. Foi para esse banco que os dois se dirigiram. Assim que se
instalaram, o homem ligou o motor e arrancou a baixa velocidade
rumo ao centro da baía. Em volta deles, inúmeros barcos e barqui-
nhos flutuavam sobre as águas. Alguns com luzes festivas, outros
com música, uns com muitas e outros com poucas pessoas a bordo,
mas com certeza todos a apreciarem a imagem deslumbrante
da vila a partir das águas calmas da baía. Foi essa imagem que
­Lourenço e Aurora puderam ver quando o piloto do barco deu a
volta e desligou o motor, sendo o silêncio apenas quebrado pelo
ruído vindo das outras embarcações paradas em redor. No hori-
zonte, uma pequena vila, cheia de encanto e tradição, erguia­
‑se sobre a encosta. As ruas, de tão iluminadas que estavam,
assemelhavam­‑se a rios de lava que serpenteavam por entre as
casas em direção ao mar. Naquela noite, lembravam­‑se os que já
haviam partido, mas celebrava­‑se essencialmente a vida. A vida
antes e depois do fim. E era vida que aquele lugar emanava, ­através
da sua luz vibrante e colorida.
— Agora percebo porque dizes que esta é a vista mais bonita que
conheces. Murmurou Lourenço.
Aurora fitou­‑o e reparou nos olhos dele que cintilavam com
o reflexo das luzes ao longe, dando­‑lhe um ar encantador.
— Pelos vistos, de noite é ainda mais bonita.
Seguiu­‑se um silêncio, enquanto ambos desfrutavam da paisa-
gem e o skipper comia qualquer coisa dentro da cabina. O homem

28
raramente falava ou saía do seu lugar. Não fosse um ou outro ruído
e parecia que não estava ali mais ninguém.
— É por causa desta festa que estás cá? Questionou Lourenço,
sem tirar os olhos do horizonte.
— Na verdade, nem me lembrava de que ela começava hoje. Não,
não foi por causa da festa. Foi por uma razão mais complicada.
— Uma razão que se possa saber?
Aurora baixou a cabeça e ajeitou­‑se no banco. Por um instante,
questionou­‑se se deveria abrir­‑se com ele, tendo em conta que o
conhecia há nem duas horas. No entanto, a confiança e o à­‑vontade
que sentia fizeram­‑na avançar.
— Foi por causa da casa que herdei da minha avó. Começou
por dizer. Ela sempre me fez prometer­‑lhe que iria lutar pelo meu
sonho de ser estilista. De abrir o meu ateliê, a minha loja, de ter
a minha própria marca, enfim. Para me ajudar, pôs a casa dela em
meu nome. Uma casa que fica precisamente aqui na vila. E pediu­
‑me que, quando terminasse os estudos, a vendesse e investisse
esse dinheiro na minha carreira. Eu nunca lhe disse, mas a verdade
é que era incapaz de o fazer, pelo menos enquanto ela fosse viva.
Mas agora... Fez uma pausa e engoliu em seco. Agora, ela foi­‑se
embora, eu terminei os estudos e os meus pais estão no estrangeiro.
Tudo isto faz com que o meu foco, neste momento, seja a minha
carreira. E é por isso que estou aqui, para tratar da venda da casa
e começar a realizar os planos que tenho há muito tempo. Esta
parece ser a altura certa para fazer o que a minha avó sempre me
pediu, mas ao mesmo tempo sinto que não deveria fazê­‑lo. Enfim,
é com este dilema que estou a debater­‑me. Além do luto da minha
avó, claro.
— Estou a ver que as coisas estão agitadas por esses lados. Acho
que é a altura de te dizer algo que te conforte.
— Só se achares que faz sentido.
— Então, digo que vais encontrar as respostas que procuras.
— Como é que sabes isso?
— Porque é o que acontece comigo.
— Isso não significa que aconteça o mesmo comigo.

29
— Não, mas nós somos parecidos, por isso acho que sim.
— Somos? Questionou Aurora, mais curiosa do que nunca.
Somos parecidos em quê, já agora?
— Na determinação, por exemplo. Na frontalidade, também.
Já percebi que não tens problemas em dizer-me o que tiveres de
dizer e eu também sou assim. Parece­‑me que te preocupas mais
com a sinceridade do que com a simpatia e eu gosto disso. Assim,
sei sempre com o que posso contar. Seja bom ou mau.
— Pois, mas essa postura já me trouxe alguns dissabores.
— A consciência tranquila compensa sempre, no final.
Ela deteve-se a olhar para Lourenço, um tanto impressionada
com as coisas que ele de vez em quando dizia. Fê­‑lo de uma forma
tão descarada que era impossível ele não ter reparado.
— O que foi? Disse algo errado?
— Não, muito pelo contrário. Disseste algo bastante acertado.
Aliás, tens dito umas coisas bastante sensatas.
— E não estavas à espera?
— Se calhar, não.
— Não tenho cara de quem diz coisas sensatas, é isso?
— Apenas estou mais habituada a ouvir ideias dessas vindas
de pessoas mais velhas. Mas não precisas de ficar convencido.
— Também acho que não tenho cara disso. Tenho?
Lourenço encarou­‑a com o seu olhar firme, mas indecifrável.
Como, de resto, era habitual nele.
— Eu diria que não, mas por via das dúvidas...
— Eras muito próxima da tua avó, não eras? Perguntou ele,
aproveitando para recuperar aquele tema.
— Era como uma mãe para mim.
— Porque é que dizes isso?
— Primeiro, sempre fui muito ligada a ela e ela a mim. Penso
que o facto de ser a única neta dela ajudou, mas acima de tudo a
minha avó sempre fez por estar presente, ainda que nos primeiros
anos ela vivesse aqui e eu na capital.
— Não viveu sempre aqui?
— Não. Cerca de um ano depois de o meu avô morrer, os meus

30
pais decidiram emigrar. Eu estava a meio do ano letivo, tinha os
meus amigos e, confesso, não me apetecia muito ir viver para o
Canadá. A minha avó, viúva, vivia aqui sozinha, então a solução que
se encontrou foi ela ir viver para a nossa casa, na capital, para tomar
conta de mim. Pelo menos até ao fim do ano letivo. Os meus pais
estavam convencidos de que no final do ano eu me mudaria para o
Canadá com eles e esta solução seria apenas temporária. A verdade
é que eu e a minha avó adaptámo­‑nos tão bem que deixou de fazer
sentido essa mudança. A solução temporária tornou­‑se definitiva
e eu cresci com a minha avó desde então. Por isso digo que era
como uma mãe para mim. Faz­‑me muita falta.
— Os teus pais vêm visitar­‑te com frequência?
— No verão e no Natal. Quando não conseguem, vou lá eu.
Mas já não vou tanto como quando era mais nova.
— Isso quer dizer que agora vives sozinha na capital, é isso?
Ela assentiu com a cabeça, sem tirar os olhos das luzes lá ao
fundo. Nunca pensaste em mudar­‑te para cá?
— Eu sou uma menina da cidade, admito. Este lugar é um sonho,
mas não é o melhor para apostar nos meus sonhos. A cidade grande
continua a ser o cenário ideal. E tu? A minha tia disse­‑me que te
vais embora no final do verão.
— É verdade. A minha estadia por aqui também é temporária.
Volto a casa no final do verão, para acabar o meu mestrado.
— O que estás a estudar?
— Gestão. A intenção é ajudar na oficina do meu pai, mas não
pretendo passar muito tempo no escritório. Temos uma oficina
de carros clássicos e o negócio não para de crescer. Compomos e
recuperamos carros antigos. E essa é que é a minha grande paixão.
— Mas espera lá, se o teu pai tem uma oficina e se tu gostas
assim tanto desses carros, não era suposto estares lá a trabalhar
este verão, em vez de estares aqui?
— Sim, era. Na verdade, os meus últimos verões foram sempre
passados na oficina, mas este ano decidi vir para aqui.
— E porque é que decidiste fazê­‑lo?
— Isso é relevante?

31
— Não sei, por enquanto é só curiosidade.
— Então, por enquanto, acho que podes viver com ela. Atirou
Lourenço, em jeito de provocação.
— Estás a vingar­‑te, é? Ia jurar que dei uma resposta muito
parecida com essa há pouco.
— Como disse, nós até somos parecidos. É perfeitamente normal
de vez em quando dizermos coisas parecidas.
— Ai sim? Queres mesmo ir por aí? Ele olhou para ela e não
disse nada, mas foi bem visível um laivo desafiador no seu rosto.
Muito bem, vamos jogar esse jogo, então.
Aurora começou a olhar à sua volta, como se procurasse alguma
coisa e depois levantou­‑se e dirigiu­‑se para a cabina onde estava
o skipper. A partir do banco, Lourenço observava­‑a, intrigado,
a falar com o homem. Pouco depois, ela regressou para junto dele.
— Já que dizes que somos parecidos ao ponto de até dizermos
coisas parecidas, vamos ver se também fazemos coisas parecidas.
Disse ela, sentando­‑se de seguida.
— O que vais fazer?

32
Antes

Aurora debruçou­‑se e começou a descalçar­‑se. Enquanto o fazia,


Lourenço olhava para ela e para o homem do barco, que agora
estava do lado de fora da cabina a remexer numas boias.
— Podes explicar­‑me o que estás a fazer? Insistiu Lourenço.
— Sabes essa ideia de não pensar muito para evitar indecisões?
Eu gostei dela e decidi pô­‑la de novo em prática para fazer algo que
sempre quis fazer, mas que nunca aconteceu. Nadar à noite.
Lourenço piscou os olhos, um tanto atordoado.
— Estás a falar a sério? Aqui e agora? O que é que o senhor do
barco te disse sobre isso?
— Disse que não é a atividade mais segura do mundo, mas que
à partida não haverá problemas desde que não nos afastemos
do barco. E então? O que achas?
Enquanto falava, Aurora continuou a despir­‑se sob o olhar
­surpreso de Lourenço que, no entanto, esboçava um sorriso. A tem-
peratura estava amena, apesar da brisa que se fazia sentir, e a água
parecia calma e apetecível para um bom banho noturno.
— O que tenho a dizer é que não estava à espera.

33
— Mas também vens, ou...
— Se disse que somos parecidos é porque somos. Disse ­Lourenço,
antes de também ele começar a descalçar­‑se.
Foi, então, a vez dela de parar para o observar enquanto tirava
os ténis. Estava a gostar do friozinho na barriga que ele lhe provo­
cava, mas embora lhe soubesse bem, não deixava de ser uma
sensação inexplicável para si. Nunca sentira nada parecido em tão
pouco tempo, mas a atração era inegável. Aurora distraiu­‑se de tal
maneira com os seus pensamentos que só despertou deles quando
ouviu o som de Lourenço a mergulhar.
— Isto é assim? Nem esperas por mim? Perguntou ela.
— Decidi vir à frente para confirmar se a água estava boa para
mergulhares. Deverias agradecer­‑me.
— E a que conclusão chegaste?
— De que só tu é que podes saber isso.
Aurora revirou os olhos e tratou de tirar o top que ainda
tinha vestido e os calções de linho, ficando em roupa interior.
De seguida, pôs a mão no nariz e atirou­‑ se à água, soltando
um guincho.
— Está melhor do que imaginava. Confirmou ela, assim que
regressou à superfície e passou as mãos no rosto.
— Como é que nunca fizeste uma coisa destas, se é um desejo
antigo teu? Não deve ter sido por falta de oportunidades.
— Não faltaram oportunidades, mas se calhar faltaram momen­
tos certos e pessoas certas para o fazer.
— Isso quer dizer que sou a pessoa certa?
— Talvez. Pelo menos, és uma pessoa que tem a dose de loucura
necessária para alinhar nesta ideia.
— O segredo é sempre o mesmo, não pensar muito.
— E rezar para que não corra mal.
— O que pode correr mal? Ficarmos cercados por tubarões?
O senhor do barco lembrar­‑se de que tem comida ao lume, ir­‑se
embora e esquecer­‑se de nós aqui?
— Ai! Para! Exclamou ela, atirando­‑lhe água com a mão. Não
digas essas coisas em voz alta. Não vá o senhor lembrar­‑se.

34
Lourenço soltou uma gargalhada e Aurora tomou consciência de
que era a primeira vez que o via a rir­‑se de verdade.
— Não te ris muito, pois não?
Ele fitou­‑a por um bocado, enquanto movimentava as pernas
e os braços para se manter à superfície.
— Porque é que dizes isso?
— Não sei, acho que é a primeira vez que te vejo a rir.
— É normal, não sou muito expansivo, principalmente quando
não estou à vontade com alguém.
— Mas ficas mais bonito quando te ris.
— Fico? Então, preciso de ter cuidado.
— Cuidado, porquê?
— Se me rio muito, ainda te apaixonas por mim.
Agora foi a vez de Aurora soltar uma gargalhada, embora
­car­regada de uma certa dose de ironia.
— Não te preocupes, não fazes bem o meu género.
— E qual é o teu género?
— Não vou dizer.
— Podes dizer à vontade, o meu ego não vai ficar ferido.
— Eu acredito, mas não vou dizer na mesma.
— OK, tudo bem, não insisto.
Lourenço não parecia minimamente incomodado com o que ela
lhe dissera e com o que não chegara a dizer­‑lhe. Deitou­‑se para trás
e começou a boiar, olhando para o céu.
— A vista daqui também é muito bonita. Acrescentou ele.
Aurora inclinou­‑se igualmente para trás e fez o mesmo. Ficaram
assim durante um bocado, em silêncio, a ver as estrelas mistu­radas
com algumas lanternas que ainda iam levantando voo. A dada
altura, as mãos deles roçaram uma na outra, mas fizeram de conta
que o toque lhes fora indiferente.
— Qual era o mal? Perguntou ela, subitamente.
— Não percebi.
— Qual era o mal de me apaixonar? Lourenço olhou para ela e
parou de boiar, voltando à posição vertical. Aurora fez o mesmo
e prosseguiu. Disseste que precisavas de ter cuidado, caso contrário
eu ainda me apaixonava. Qual era o mal de isso acontecer?

35
— Não era mal nenhum, mas não quero meter­‑me em ­traba­lhos.
Dispenso paixões neste momento. Sejam minhas por alguém ou de
alguém por mim. Estou bem como estou.
— É por causa daquele relacionamento que terminou?
— Essencialmente.
— Terminou mal?
— Há algum que termine bem?
— Há mitos urbanos que dizem que sim, mas a mim nunca
me aconteceu. Foi uma decisão unilateral? Lourenço ficou muito
pensativo e ela percebeu que talvez fosse melhor deixar aquele
assunto para outra altura. Bom, o que interessa é que não precisas
de te preocupar. Além de não fazeres o meu género, nem sequer
estás disponível, por isso está tudo encaminhado para podermos
ser amigos. Apenas amigos. Vai dar­‑me jeito ter uma amizade por
aqui com alguém que não esteja sempre a tentar converter­‑me
ao veganismo. Estou a dizer isto, mas nem sei se tu...
— Eu trabalho para a tua tia e posso comer o que quiser
no restau­rante, que tem comida deliciosa, mas confesso que,
de vez em quando, vou às escondidas a uma hamburgueria
que há perto da capela. Portanto, não, não vou tentar converter­‑te
ao veganismo.
— Uma hamburgueria? Perto da capela? Eu adoro hambúr­
gueres, como é que não conheço esse sítio?
— Não sei. Deve ser um espaço recente. O que sei é que a comida
é muito boa. Podemos ir lá um dia destes, se quiseres.
Aurora fitou­‑o por um instante.
— Estás a convidar­‑me para jantar?
— Não, estou só a lembrar que existe essa disponibilidade
da minha parte, caso haja essa intenção da tua.
— Bem defendido, mas era mais bonito com um convite.
— Então, e porque é que não fazes tu o convite?
— E porque é que não fazes tu?
— A sério que temos de fazer um pedra, papel ou tesoura?
— Esse jogo é muito à base da sorte. Eu dou mais valor ao
mérito. E que tal... Olhou ao seu redor. Já sei! E que tal darmos

36
uma volta ao barco a nadar? Quem perder tem de fazer o convite
e, como é óbvio, pagar o jantar. A meta é aquela linha no casco.
— Aurora, eu tenho vinte e dois anos, não tenho onze.
— Isso quer dizer o quê? Que já não tens idade para desafios?
— Quer dizer que gosto ainda menos de perder. Atirou ele, antes
de se lançar em braçadas frenéticas à volta do barco.
Aurora foi atrás dele, mas meia-volta depois continuava sem
conseguir ultrapassá­‑lo. Àquele ritmo estava mais do que visto
que seria ela a pagar o jantar. Precisava de um plano B. Foi
então que se lembrou de que não tinha de o ultrapassar, bastava
alcançar­‑lhe os pés. Assim que conseguiu fazê­‑lo, agarrou­‑se a ele
e impediu­‑o de avançar, acabando os dois embrulhados na água.
Vencida a diferença que os separava, continuaram a nadar pratica-
mente lado a lado até que Aurora tocou na linha do casco, anun-
ciada como a meta, uma fração de segundo antes de Lourenço.
— Assim não vale, fizeste batota. Disse ele, ofegante.
Aurora soltou uma gargalhada vitoriosa.
— Tu é que não quiseste saber quais eram as regras do meu
desafio. Fez uma pausa para recuperar o fôlego. Agora, o que
importa é que eu ganhei e que tu me deves um jantar.
— Então, e aquela história sobre o mérito?
— Eu tive mérito. O mérito de arranjar um bom plano B.
— Está bem, pronto, ganhaste, mas vou querer a desforra.
— Quando quiseres. Disse, com um ar radiante.
Os dois estavam muito próximos e, subitamente, calaram­‑se e
entreolharam­‑se. Por instinto, os olhos deles concentraram­‑se na
boca um do outro e os seus corpos estremeceram. A atração era evi-
dente e irreversível, mas acabou interrompida por um grito vindo
de longe. Parecia que alguém, algures num outro barco, tivera
a mesma ideia de se lançar ao mar.
— Estou esgotada, talvez seja melhor regressarmos. Sugeriu
Aurora, afastando­‑se ligeiramente de Lourenço.
— Sim, é melhor irmo­‑nos embora.
Os dois voltaram a subir para o barco, vestiram­‑se com o corpo
molhado e deram indicações ao homem para os levar para terra.

37
Tendo em conta o estado das roupas, a festa havia terminado para
eles e eram horas de regressarem às suas casas. Lourenço ofereceu­
‑se para acompanhar Aurora, até porque ficava a caminho do aloja-
mento de Eunice, onde ele dormiria, e ela aceitou. As ruas estavam
agora muito menos movimentadas, por isso o caminho de volta foi
feito mais rapidamente.
— Estou entregue. Disse Aurora, assim que chegaram à entrada
da casa da avó. Obrigada por me teres acompanhado.
— Digamos que foi uma caminhada... refrescante.
— Pois, parece que sim.
Os dois sorriram e ficaram ali, em silêncio, como dois adoles­
centes envergonhados a darem os primeiros passos no amor.
— Ainda não me fizeste o convite. Prosseguiu Aurora.
— O convite?
— Para o jantar. Quem perdesse o desafio teria de convidar
o outro para jantar, mas ainda não o fizeste.
— A... a... OK. Balbuciou, atrapalhado. Que assim seja. Queres
jantar comigo?
Aurora fez uma expressão como se aquilo fosse uma novidade.
— Sim, quero, mas quando é que seria?
— Pode ser, sei lá... Amanhã?
Ela assentiu e os dois voltaram a trocar sorrisos, sabendo que
tudo o que mais queriam era que o tempo que os separava desse
jantar passasse o mais depressa possível.

38
Agora

Aurora estava na casa de banho, diante do espelho, a aplicar


cuidadosamente o seu eyeliner quando ouviu um ruído caracterís-
tico vindo da cozinha. Sabia que Lourenço estaria por lá a preparar
o pequeno­‑almoço, mas aquele barulho chamou­‑lhe a atenção.
Terminou de fazer o eyeliner num dos olhos e, não resistindo
à curiosidade, deixou o outro para depois e foi até à cozinha.
Lourenço estava ao fogão, de t­‑shirt de manga cava preta, a pre­
parar o pequeno­‑almoço favorito de Aurora, ovos mexidos e bacon.
— Oh, meu Deus! É para mim? Perguntou, entusiasmada.
— Conheces mais alguém que consiga comer isto de manhã?
— Ooooh... Obrigada, meu amor! Aurora abraçou­‑o pelas ­costas
e deu­‑lhe um beijo intenso na parte de trás do pescoço. Há tanto
tempo que não como isto. Foste um querido.
— Lembrei­‑me de te fazer uma surpresa. Enquanto mexia os
ovos na frigideira, Lourenço olhou para ela de relance. Falta qual-
quer coisa nesse rosto ou é impressão minha?
— É uma nova tendência. Não estou bonita assim?
Aurora pôs a cabeça à frente dele para ele a ver melhor.

39
— Tu és bonita de qualquer maneira.
— Uau! Estás muito romântico hoje. Tenho de aproveitar.
Se calhar, nem vou para o ateliê, vou antes trabalhar contigo para
a oficina só para me fazeres mais elogios desses ao longo do dia.
— Por mim, tudo bem. Estamos a precisar de pessoal.
— Vá, vou terminar de me maquilhar e já venho provar essa
iguaria. Estou cheia de fome. Aurora afastou­‑se, mas antes de
aban­donar a cozinha ainda acrescentou. Não te esqueças de que
o meu carro está a arranjar, tens de me levar ao ateliê.
Aurora foi para a casa de banho acabar de se arranjar e, enquanto
o fazia, Lourenço terminou de preparar os ovos e o bacon. Quando
regressou à cozinha, já estava tudo pronto e a mesa bem composta,
sendo que ele optara por comer fruta e pão com manteiga de amen-
doim. O seu pequeno­‑almoço habitual. Aurora sentou­‑se e começou
a comer, interrompendo a refeição pouco depois.
— Fizeste mais quantidade desta vez. Comentou ela.
— Por acaso, não. Fiz dois ovos e duas fatias de bacon. Não é
essa a fórmula mágica? Ela assentiu. Mas porquê?
— Acho que já estou cheia. Ou estou com pouco apetite.
— Disseste que estavas com muita fome ainda há bocado.
— Pois, não sei, mas não consigo comer mais. Desculpa.
— Mas sentes­‑te bem, certo?
— Sim, acho que sim. O apetite é que deve ter ficado na casa de
banho. Mas não te preocupes, estava delicioso na mesma.
Aurora fez­‑lhe companhia enquanto ele comia e depois tratou
de arrumar a mesa, enquanto Lourenço foi vestir uma camisa
preta por cima da t­‑shirt de manga cava. Desceram até à garagem
do ­prédio e entraram no carro dele, um Chevrolet Camaro Z28 de
1969, que Lourenço conduzia desde os seus vinte anos. Foi nele
que os dois seguiram viagem até ao ateliê onde Aurora trabalhava.
— Às sete, estou aqui para vir buscar­‑te. Disse ele, assim que
parou em frente à entrada. Tens a certeza de que estás bem?
— Sim, estou. Obrigada por seres tão querido comigo.
Aurora abandonou o carro, mas antes despediu­‑se do namorado
de um jeito peculiar. Como, aliás, eles haviam combinado que

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sempre fariam. Agarrou na mão dele, envolvendo­‑lhe o polegar,
e vice­‑versa, beijou­‑lhe as costas da mão, ele beijou as costas da
mão dela e de seguida deram um beijo na boca.
— Mostra­‑lhes como é que se faz! Gritou Lourenço, de dentro
do carro, quando ela se preparava para entrar no edifício.
Aurora ainda foi a tempo de lhe mandar um beijo antes de ele
arrancar. Já no interior do edifício, que ficava bem no centro da
capital, subiu dois lanços de escadas e entrou no ateliê. Cumpri­
mentou a senhora da receção e serpenteou entre as mesas do
open space, onde já estavam outras colegas designers a trabalhar,
e dirigiu­‑se para a sua secretária, que ficava junto a uma parede
de vidro com vista para a rua. O ateliê tinha um pé­‑direito alto,
um estilo industrial e muitos acabamentos em preto. Uma cor que
encaixava na perfeição com o castanho das madeiras e o verde das
inúmeras plantas espalhadas pelo espaço. Aquela ­poderia muito
bem ser a decoração de um ateliê seu, mas essa ideia ainda não era
mais do que um conjunto de rabiscos que teimavam em não lhe
sair da imaginação. Assim que chegou à sua secretária e tirou
as coisas da mala, Carla, uma designer que trabalhava ali
há alguns meses e com quem Aurora tinha certa proximidade,
acercou­‑se dela.
— Deves ser mesmo feliz. Disse Carla, com um ar sonhador
e um tanto inocente que, de resto, lhe era característico.
— Porque é que dizes isso?
— Porque acho que tens um relacionamento muito bom. Já me
tinha apercebido disso há algum tempo, mas vi­‑te a chegar hoje
e reparei na forma como tu e ele se despediram. Parecem sempre
muito apaixonados. Qual é o segredo?
Aurora encolheu os ombros, sem saber muito bem o que lhe
dizer. Aquela abordagem apanhara­‑a completamente desprevenida.
— O segredo? Não sei se há algum segredo, mas se há deve ser,
sei lá, a nossa cumplicidade, talvez. Somos muito amigos um do
outro e, acima de tudo, somos muito sinceros um com o outro.
— Mas como é que mantêm a chama acesa? Segundo percebi,
já devem namorar há alguns anos.

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