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Sergio Cotta
Università La Sapienza di Roma
37
Sergio Cotta**
REFERÊNCIA
COTTA, Sergio. Para um reexame das noções de jusnaturalismo e direito natural. Revista da Faculdade de Direito da
UFRGS, Porto Alegre, n. 36, p. 36-54, ago. 2017.
RESUMO ABSTRACT
Em meio à confusão moderna e contemporânea sobre o que In the midst of the modern and contemporary confusion
é o direito, os vocábulos bimilenares “direito natural” e about what is law, the bimillenial words “natural law” and
“jusnaturalismo” oferecem uma definição clara deste “jusnaturalism” offer a clear definition of this object,
objeto, que, contudo, é fortemente repudiada desde o which, however, has been vigorously repudiated since the
século XIX. Apesar disso, a relação entre direito e natureza 19th century. In spite of that, the relationship between law
permanece presente em diversos autores de matrizes and nature remains current in several authors from
filosóficas diversas. Na atualidade, o direito natural é different philosophical backgrounds. Nowadays natural
reproposto na temática dos direitos humanos, de modo que law is proposed again within the subject of human rights,
está longe de ser uma ideia superada. Assim, reexamina-se so it is far from being an outdated idea. Thus, the author of
criticamente os temas do direito natural e do this article reexamines critically the topics of natural law
jusnaturalismo, defendendo como critério de identificação and jusnaturalism, arguing as the identification criterion
do seu núcleo comum a estrutura epistemológica do of its common nucleus the jusnaturalism epistemological
jusnaturalismo – isto é, do saber teórico que estuda o direito structure – that is to say, the theoretical knowledge on
natural –, apoiada nos elementos da problematicidade e de natural law –, based upon the elements of problematicity
um fundamento originário e condicionante do ser do direito and of an original and determining foundation of the being
enquanto estrutura da vida prática: o eu-sintético- of law in the quality of practical life structure: the
relacional. relational-synthetic-I.
PALAVRAS-CHAVE KEYWORDS
Direito natural. Jusnaturalismo. Eu-sintético-relacional. Natural law. Jusnaturalism. Relational-synthetic-I.
*
Capítulo de COTTA, Sergio. Diritto, persona, mondo umano. Torino: Giappichelli, 1989, pc. 157-183. Tradução de
Frederico Bonaldo (professor de Ética na Faculdade de Filosofia da Universidade Católica de Santos; professor assistente
de Metodologia e Lógica Jurídica na Faculdade de Direito da PUC-SP; Doutorando em Direito na PUC-SP; Doutorando
em Filosofia na UNIFESP; Mestre em Direito pela UERJ).
**
O Prof. Sergio Cotta (1920-2007) foi um jurista e filósofo italiano. Ocupou a cátedra de Filosofia do Direito na Università
La Sapienza di Roma de 1966 a 1990.
1
HEIDEGGER, Martin. Kant e il problema della metafisica. Trad. M. E. Reina. Bari: Laterza, 1981, p. 181.
ou uma regra sobre o uso da força (Kelsen, repudiada do século XIX em diante. Desde então,
Olivecrona)? É um ordenamento, quer social difundiu-se a convicção de que “direito natural” e
(Santi Romano), quer formal (Kelsen), estendido “jusnaturalismo” não têm nenhum significado
até mesmo ao âmbito internacional ou uma real, e por isso nenhuma capacidade de interpretar
constelação de ordenamentos fechados, a experiência jurídica concreta e de esclarecer o
autárquicos e autônomos, de unidade apenas conceito do direito. Teriam uma legitimidade
lexical (Ross)? Alargando-se o olhar, ele é visto apenas histórica (e, por isso, historiográfica) no
como os imperativos expressos na história, ora do âmbito da metafísica ontológica clássica, cosmo-
Espírito, ora da cultura, ou como a superestrutura antropológica e, mais em geral, na filosofia da
das relações de produção. E eu ainda poderia objetividade. Mas para além desse âmbito
continuar. histórico cultural já não teriam qualquer validade
Assim, no dizer de Kant, a definição do teorética, uma vez que as mencionadas filosofias
direito mostra-se como o caput mortuum dos teriam sido definitivamente superadas pela
juristas (mas também dos filósofos). Com efeito, moderna filosofia da subjetividade e do
numa disparidade tão heterogênea de teses e de historicismo2. Dito brevemente: o direito – e, por
teorias, parece perder-se todo ponto firme de isso, tanto a ciência jurídica como a jusfilosofia –
referência (que não seja o extrínseco da sanção não teria nada a ver com a natureza.
punitiva) capaz de orientar em direção a uma Seria uma empreitada demasiado longa e
aceitável, se não incontrovertível, definição do complexa delinear neste breve escrito um quadro
direito em si. Não será talvez que isto ocorra por adequado das várias correntes culturais
causa do ponto de vista empírico-fenomênico (filosóficas e não filosóficas) que, ao entrecruzar-
comum a essas teorias hoje imperantes? se, levaram ao eclipse da relação entre direito e
Um ponto de referência firme, porém, é-nos natureza. Assim, limito-me a poucas alusões
oferecido por duas expressões famosas na história muito concisas, de cujo caráter aproximativo sou
do pensamento. Refiro-me a “direito (ou lei) plenamente consciente.
natural” – rica de um uso constante, mais que Da Escola histórica do direito ao
bimilenar, na cultura ocidental – e a positivismo jurídico, nas suas várias orientações,
“jusnaturalismo”, termo com o qual se designa, o direito perde a universalidade que lhe foi
em tempos mais modernos, a igualmente extensa reconhecida pelo jusnaturalismo clássico e
teorização daquele direito. Em ambas as concretiza-se no ordenamento normativo de um
expressões, o conceito e a realidade existencial do povo ou de um Estado. Hegel, por um lado,
direito relacionam-se diretamente à natureza e confere significado filosófico a esta concepção;
encontram nela a sua referência de fundo. A por outro lado, no plano da antropologia
mensagem das duas expressões é límpida, ao filosófica, Hegel identifica – com Kant e para
menos na sua (aparente) simplicidade: o direito é além de Kant – a natureza do homem com uma
compreendido a partir da sua relação com a liberdade indeterminada, que o eleva acima da
natureza. determinística natureza zoológica3. Por parte do
No entanto, é de conhecimento geral que a positivismo jurídico, o direito torna-se um mero
supramencionada relação foi drasticamente instrumento da organização social em que o
2
Veja-se, por todos, PIOVANI, Pietro. Giusnaturalismo ed o homem não é por natureza aquilo que deve ser. O animal
etica moderna. Bari: Laterza, 1961. é por natureza aquilo que deve ser” (HEGEL, Georg, W. F.
3
Basta esta passagem: “O homem não é por natureza Lezioni sulla storia della filosofia. Trad. E. Codignola e C.
[zoológica!] aquilo em que vive e habita o espírito de Deus; Sanna. Firenze: La Nuova Italia, 1947, I, 135).
Para um reexame das noções de jusnaturalismo e direito natural
jurídico, H. Kantorowicz (não por acaso um dos como é interpretada pelo homem comum. Neste
maiores teóricos do “direito livre”) reconheceu o plano, não é aventurada a hipótese de que o direito
valor das teorias jusnaturalistas para uma natural seja entendido como o direito (no seu
definição adequada do fenômeno jurídico10. Por duplo aspecto de regra objetiva e reivindicação
fim, recordem-se ao menos duas obras recentes subjetiva) reconhecido espontaneamente como
que, na cultura anglo-saxônica atual – obrigatório e não como imposto de fato por uma
amplamente orientada para o positivismo e para a autoridade investida de poder. Se a pesquisa
filosofia analítica –, sustentaram vigorosamente supramencionada confirmasse esta hipótese,
as razões da existência de direitos precedentes ao poder-se-ia extrair dela uma conclusão muito
estabelecimento normativo e, de modo ainda mais interessante para a reflexão teorética.
explícito, dos direitos naturais. Refiro-me, no Mas essa pesquisa ainda não foi realizada, a
primeiro caso, a Taking Rights Seriously, de não ser em fragmentos esparsos e, aliás,
Ronald Dworkin, e, no segundo caso, a Natural obscurecidos pela radical oposição entre natureza
Law and Natural Rights, de John Finnis. e cultura, geralmente aceita pela antropologia
Seja qual for o valor documental das cultural. Portanto, para saber o que se entende ou
indicações dadas até aqui de modo sumário11, fato se deve entender por direito natural é preciso
é que a questão do direito natural é hoje dirigir-se à teoria que o tematizou e
reproposta de modo peremptório pelo tema conceitualizou: ao jusnaturalismo.
teórico e prático dos direitos humanos. Sejam No entanto, aqui já surge uma grave
estes reconhecidos pelo direito positivo, como dificuldade. Não existe um único jusnaturalismo,
proclama a Constituição italiana (art. 2) ou mas muitos e nem sempre conciliáveis entre si.
instituídos pelo legislador, é difícil negar o seu Portanto, se os jusnaturalistas não estão de acordo
caráter transcultural e (tendencialmente) acerca do que é e do que prescreve o direito
universal, isto é, a sua referência ao homem, natural, parece lícito concluir que ele é uma ilusão
independentemente das diversas especificações emotiva (e consolativa) do homem comum, uma
culturais e normativas que se lhe conferem. espécie de fantasma que os doutos se afanam em
Por todas estas razões, mostra ser um erro, construir como um ente real. Ou então é – para
pelo menos de perspectiva, considerar o tema do usar a linguagem marxista – a superestrutura
direito natural – e, com ele, o do jusnaturalismo – ideológica que mascara a estrutura material de
como definitivamente superado. Impõe-se, pelo certas relações de produção, a qual, de nenhum
contrário, a necessidade de reexaminá-lo modo, é jurídica em si mesma. No máximo, pode-
criticamente. É o que me proponho a fazer agora. se atribuir ao direito natural a qualidade de um
ideal do direito, mas não de um direito real. Estas
2. Mas então, o que podemos entender por são as objeções mais comumente dirigidas ao
“direito natural”? Se dispuséssemos de uma atenta direito natural. Seja ele ou não um fantasma, uma
pesquisa de antropologia cultural que abarcasse o superestrutura mais ou menos interessada ou um
âmbito temporal e espacial em que esta expressão ideal jamais totalmente realizável, o fato é que a
tem sido usada, talvez pudéssemos chegar a uma indiscutível diversidade das suas determinações
conclusão válida, ao menos em relação ao modo estabelecidas pelos vários jusnaturalismos parece
10 11
Cf. KANTOROWICZ, Hermann. La definizione del Para a Itália, veja-se a bela análise de MARINI, Giulano.
diritto. Trad. Enrico di Robilant. Torino: G. Giappicchelli, Il giusnaturalismo nella cultura filosofica italiana del
1962, p. 54-55. Novecento (1976), agora em Storicità del diritto e dignità
dell’uomo. Napoli: Morano, 1987.
Para um reexame das noções de jusnaturalismo e direito natural
tornar pouco crível a capacidade substancial da conteúdos atribuídos ao direito natural, pois, com
teorização jusnaturalista de deixar claro o que é o frequência, são demasiado diversos entre si e por
direito natural e, mais em geral, o direito. A este vezes opostos, como no caso já lembrado da
respeito, basta recordar a repetida crítica dirigida escravidão. 3) Não considero satisfatório o
aos jusnaturalismos de, no passado, terem critério da forma social conforme ao direito
considerado a escravidão como de direito natural, natural; há um jusnaturalismo coletivista, um
a qual, hoje, é (quase) universalmente individualista, um comunitário. A concepção da
reconhecida como desumana. propriedade talvez seja o divisor de águas mais
Pode-se replicar, com efeito, que se nítido entre eles. 4) Não considero satisfatório o
encontram diferenças e pontos inconciliáveis critério da função do direito natural: há um
também no campo da filosofia em geral, sem que jusnaturalismo coletivista, um individualista, um
por isto se chegue a repudiá-la, a não ser por parte comunitário. A depender da concepção da ordem
de um ceticismo vulgar. Mas não é conveniente conforme a natureza, tem-se um jusnaturalismo
desembaraçar-se tão facilmente da objeção. A conservador e um revolucionário, e, em chave
meu ver, é indispensável constatar mais especificamente política, um que privilegia
preliminarmente se há uma característica comum a autoridade e outro que privilegia a liberdade. 5)
que confere uma unidade de fundo aos vários Por fim, tampouco considero satisfatório o
jusnaturalismos, independentemente das suas critério da orientação filosófica: há um
diferenças, e que, portanto, constitui o núcleo da jusnaturalismo racionalista e um vitalista.
teorização jusnaturalista. Sobre esse núcleo – se é A meu ver, o critério válido é o da estrutura
que existe –, enfoca-se uma correta discussão epistemológica do jusnaturalismo, que não
sobre a legitimidade dessa teorização e, por isso, desconhece a variedade das suas doutrinas
sobre a sua capacidade de definir o direito natural, históricas, mas as enquadra como um modo
independentemente do fato histórico, ainda que específico de proceder da teorização jurídica.
relevante, do seu “eterno retorno”, como foi dito Essa estrutura é conotada por dois elementos que
por H. Rommen, com uma fórmula afortunada12. me parecem presentes de forma mais ou menos
Mas então qual é o critério para identificar explícita em qualquer jusnaturalismo.
o núcleo comum? Forneço rapidamente o campo O primeiro elemento é o da
de soluções que considero insatisfatórias, por se problematicidade, e não o da dogmaticidade,
basearem em aspectos parciais ou controversos. como muitas vezes se afirma. Com efeito, o
1) Não considero satisfatório o critério – embora jusnaturalismo é problematização do dado
constante – referência à natureza. Trata-se da meramente factual e fenomênico do ser do direito.
natureza em sentido naturalista de Ulpiano (quod Não por acaso, nas suas origens dentro da
omnia animalia docuit), pulsional de Foucault ou cultura ocidental, ele surge na Grécia
da natureza própria do homem? Ademais, entre a problematizando a ingênua e primitiva atribuição
natureza humana segundo S. Tomás e a natureza da naturalidade apenas ao ordenamento jurídico
humana segundo Hobbes ou Spencer há vigente da própria comunidade particular, isto é,
diferenças profundas, que levam a determinações às próprias regras ancestrais de costume. Assim,
normativas amplamente estendidas. 2) Não o jusnaturalismo (ocidental) surge da
considero satisfatório o critério substancial dos problematização do sentido imediato e
12
Cf. ROMMEN Heinrich. L’eterno ritorno del diritto
naturale. Trad. Giovanni Ambrosetti. Roma: Studium,
1965.
Para um reexame das noções de jusnaturalismo e direito natural
particularista da naturalidade do direito. Isto não sentido, exclui que seja uma doutrina puramente
é paradoxal, uma vez que é um dado histórico assertória, que traz consigo o risco de cair no
seguro que se reproduzirá por ocasião da ideologismo. De outro ponto de vista, diferencia-
descoberta da América, quando a reflexão o da ciência jurídica descritiva e sistematizadora
jusnaturalista, em especial a espanhola, chegará a dos dados fenomênicos, sem por isto opor-se a ela
criticar a identificação do direito natural com o ou negá-la, uma vez que se situa num nível
direito da tradição europeia. Ademais, a cognoscitivo mais profundo.
problematização operada pelo jusnaturalismo O discurso desenvolvido até aqui mostrou a
continua a ser exercitada ao longo dos séculos por unidade e a legitimidade epistemológicas do
meio da tarefa de racionalização – e de jusnaturalismo como filosofia, mas não visava –
consequente análise crítica – do direito (tanto do nem podia – corroborar os seus resultados. Para
seu conceito como das suas normas) tal como se este fim é necessária uma ulterior exploração
apresenta no seu ser fenomênico. dentro do jusnaturalismo, para que se veja se ele,
O segundo elemento caracterizador, dentro do quadro epistemológico traçado, oferece
coerente com o primeiro – aliás, consequente a ele um específico procedimento ou modelo de
–, é a busca de um fundamento originário e investigação válido para a compreensão
condicionante do ser do direito entendido como substancial do direito. Considero que sim. A meu
estrutura da vida prática. De fato, se a redução do ver, o típico procedimento explicativo e
direito ao seu ser fenomênico suscita problemas argumentativo do jusnaturalismo articula-se
para a sua plena compreensão, então essa essencialmente em três tempos.
compreensão não pode reduzir-se à descrição O primeiro tempo é constituído pela
sobre como o direito se apresenta no plano detecção e aceitação do atributo geral e
empírico-factual, nas suas várias articulações: genericamente reconhecido (inclusive pela
leis, contratos, sentenças, penas, instituições etc. ciência jurídica) ao direito empírico: a
O jusnaturalismo não é descritivo – mas não por obrigatoriedade objetiva das suas regras. Outras
isto é imediatamente valorativo – do direito regras mostram-se como possuidoras de uma
vigente; o seu intuito primário é explicativo. Ou obrigatoriedade apenas subjetiva: as de amizade,
seja, enfrenta problematicamente a pergunta “por por exemplo, mas também as morais, pelo menos
quê?” existe o direito-fenômeno, presente em segundo uma orientação muitíssimo discutível,
todas as culturas e em todos os tempos. Assim, ainda que muito difundida na cultura
esse seu ser fenomênico é transcultural e contemporânea.
transtemporal, e por isso não é plenamente O segundo tempo tem início com a
explicável sem a constatação de um fundamento problematização dessa reconhecida
não meramente contingente e particular, mas obrigatoriedade objetiva: por que o direito é
ínsito à condição humana. Independentemente obrigatório? A esta pergunta dá-se a seguinte
dos resultados, é uma busca comum a resposta: a obrigatoriedade do direito depende da
jusnaturalismos tão diversos entre si como, por sua justiça. A concisa afirmação de S. Agostinho
exemplo, os de S. Tomás e de Hobbes. pode ser considerada sintetizadora dessa
A estrutura epistemológica problemático- plurissecular posição jusnaturalista: o dever
fundamentadora do jusnaturalismo esclarece a sua (officium) de obedecer à lei depende do “non esse
natureza (de reflexão) filosófica e, em certo lex quae iusta non fuerit” 13 . Todavia, a justiça
13
AGOSTINHO HIPPONENSIS. De libero arbitrio, I, 5,
11. Trad.: “Não é lei aquela que não for justa”.
Para um reexame das noções de jusnaturalismo e direito natural
também pode ser pensada de modo objetivo ou corre o risco de repropor a costumeira conclusão
subjetivo, como ocorre em alguns jusnaturalismos cética acerca do poder heurístico do
– ambíguos, aliás –, como o de Hobbes, para jusnaturalismo. Qual natureza e,
quem a justiça extrai a sua determinação da consequentemente, qual direito natural? Se a
vontade subjetiva legiferante do soberano. natureza dá origem – e por isto confere justiça –
O terceiro tempo esclarece o ponto: é justo, tanto à ordem do poder como ao poder da ordem,
e por isto obrigatório, o direito conforme a então o direito natural reduz-se realmente a um
natureza, fundamentado na natureza, o direito Proteu inapreensível.
natural. Este último não é eliminado de todo nem
sequer no ambíguo jusnaturalismo de Hobbes, 3. Deixo de lado por enquanto a questão da
não obstante o seu voluntarismo, que antecipa o natureza e detenho-me na questão da
juspositivismo contemporâneo. De fato, no obrigatoriedade do direito. Como eu já disse, os
pensamento de Hobbes, o natural direito do juristas (teóricos e práticos) reconhecem-na como
indivíduo à sobrevivência permanece até mesmo característica essencial do direito, embora difiram
na vigência do direito positivo estabelecido pela ao identificar a sua origem. Pois bem, se se
autoridade; além disso, a lei natural é lei suprema reconhece alguma verdade à mensagem
das relações interestatais. Mais do que nunca, o semântica do uso linguístico (e o jurista não
direito natural estava ausente no jusnaturalismo precisa recorrer à autoridade de Heidegger para
sui generis de Cálicles – para quem, segundo reconhecê-lo), deve-se então concluir que há uma
Platão, a natureza estabelece a supremacia do diferença radical entre “obrigar” e “impor” ou,
mais forte – ou, mais modernamente, no anômalo mais ainda, “constringir”. Leibniz, aliás, insistiu
jusnaturalismo de Nietzsche, inspirador do várias vezes sobre este ponto. Com efeito, a
hodierno jusnaturalismo libertino. Com efeito, se palavra “obrigação” indica um dever fazer (ativo
a justiça é o produto da vontade de poder, como ou abstido), e por isso a assunção consciente desse
Nietzsche afirma explicitamente14, essa vontade é dever; a imposição, por sua vez, indica um não
para ele natural; aliás, é a característica da poder não fazer aquilo que é imposto, e por isso a
Natureza mesma, no seu perene movimento de submissão por causa de impotência. A mensagem
criação-destruição. semântica das duas palavras reflete dois modos
O segundo tempo do procedimento existenciais em nada coincidentes, mas, antes pelo
explicativo jusnaturalista caracteriza-o com contrário, opostos.
relação às teorias antigas e modernas, que Porém a obrigatoriedade da norma jurídica
fundamentam ou argumentam a obrigatoriedade não está implícita em nenhuma das características
do direito na sua utilidade, mais ou menos exteriores com as quais ela se apresenta e que lhe
maximizada; pense-se em Bentham e nos seus são reconhecidas por juristas e filósofos. Não está
seguidores atuais. O terceiro tempo, por sua vez, implicada nas características formais – tais como
diferencia-o das teorias que sustentam que a derivação da vontade do legislador ou de uma
obrigatoriedade das normas ou do ordenamento norma fundamental, pertença a um ordenamento
depende da sua eficácia psicológica ou coativa. e forma prescritivo-sancionadora – e menos ainda
Todavia, a necessária alusão aos jusnaturalismos nos materiais – tais como pressão psicológica, uso
ambíguos ou anômalos – aqui limitados aos casos efetivo da força sancionadora ou punitiva. Não
exemplares de Cálicles, Hobbes e Nietzsche – por acaso, desde quando se olhou para a norma
14
Cf. NIETZSCHE, Friedrich. Die Unschuld des Werdens,
II, p. 262, na edição Kroener.
Para um reexame das noções de jusnaturalismo e direito natural
jurídica somente sob estes aspectos exteriores, ela realidade, a utilidade e a prudência, se são
foi qualificada como heterônoma, e, por motivos muito influenciadores para induzir à
consequência lógica, como impositiva. Portanto, obediência, não são necessariamente provas
não é obrigatória, ou seja, é uma norma (em suficientes do reconhecimento da obrigatoriedade
sentido genérico) cujo destinatário tem a da prescrição; tanto é assim que elas influenciam
possibilidade – aliás a liceidade (não hesito em também o comportamento de quem, por
dizê-lo) – de eludi-la tão logo a sua impotência impotência ou temor, se submete à imposição
cesse. Isto vale também no caso em que o direito criminosa ou ilícita. Não por acaso, uma sagaz
é considerado não já como pura e simples força doutrina teológico-moral, para fazer frente ao
impositiva, mas como “regra sobre o uso da arbítrio do poder político, introduziu – junto à
força”15. categoria das leis possuidoras de força
Nessa perspectiva, porém, a norma jurídica obrigatória, porque justas – a categoria das leges
não se distingue de modo algum da prescrição de mere poenales válidas quanto à forma, mas não
uma associação criminosa, tal como uma longa quanto à substância, às quais é oportuno obedecer,
tradição, de S. Agostinho a Leibniz, fez notar mas não obrigatório. Poder-se-á discutir a
criticamente. Todavia, não são poucos – até aplicação prática que se tem feito desta última
mesmo entre os estudiosos – que as consideram categoria, mas não a sua correição teorética, que
indistinguíveis apenas no plano meramente se refere à distinção entre obrigação e imposição.
factual. Basta recordar aqui a opinião de Kelsen, Certamente, há uma fundamentação da
que, na última edição da Teoria pura do direito16 obrigatoriedade do direito que não apela para os
confia a distinção ao instável critério da eficácia seus aspectos formais e materiais, mas para a sua
impositiva do poder, que, de per si, é sempre dimensão espiritual ou, mais genericamente,
mutável e, por isto, incompatível não só com a cultural, de maneira que o resguarda da crítica
certeza do direito, mas também com a estabilidade sobre a sua indistinguibilidade em relação à
de um ordenamento jurídico. Nem a sua póstuma ordem criminosa. É a fundamentação historicista,
Teoria geral das normas, em que a questão não é já não mais própria apenas de uma determinada
mais tratada especificamente, traz uma mudança filosofia, mas difundida também na cultura
de posição; com efeito, se “a norma é o sentido de comum e compartilhada, pro suo modo, por uma
um querer, de um ato de vontade […] dirigido ao grande parte da antropologia cultural hodierna. A
comportamento alheio”17, esta definição aplica-se obrigatoriedade dependeria da conformidade das
perfeitamente à prescrição do criminoso. Mas esta normas aos valores, mas a valores históricos,
conclusão é impugnada pela experiência comum resguardados da subjetividade da sua criação ou
e sensata: é precisamente em face da imposição assunção por causa da sua correspondência com o
que o indivíduo reivindica o próprio direito! “sentido da história”. O direito conforme o
Não leva a um resultado mais satisfatório a sentido da história seria, portanto, obrigatório. A
recondução da obrigatoriedade da norma jurídica tese é sugestiva e deve o seu êxito à influência das
à sua utilidade ou a um oportuno exercício da filosofias modernas da história, entendida quer
prudência, no sentido de que a prudência induz a como progresso, quer como subversão da práxis.
reconhecer a obrigatoriedade da norma. Na
15
É a tese a que adere Norberto BOBBIO em “Diritto e 16
Cf. KELSEN, Hans. La dottrina pura del diritto. Trad.
forza”, em Studi per una teoria generale del diritto. Torino: Mario G. Losano. Torino: Einaudi, 1960, p. 57-61.
17
G. Giappichelli, 1970, p. 119-138. Idem. Teorie generale delle norme. Trad. Mirella Torre.
Torino: Einaudi, 1985, p. 4.
Para um reexame das noções de jusnaturalismo e direito natural
18
Sob pena de impugnação ou de nulidade no ordenamento nell’esistenza: Linee di ontofenomenologia giuridica.
jurídico italiano: art. 360 do CPC; art. 385 e 475 do CPP. Milano: Giuffrè, 1985, cap. 7.
19 21
Veja-se a propósito SCARPELLI, Ugo. Gli orizzonti Sobre isto veja-se CARCATERRA, Gaetano. La forza
della giustificazione. Rivista di Filosofia, 1985, p. 1-50. costitutiva delle norme. Roma: Bulzoni, 1979.
20
Cf. COTTA, Sergio. Giustificazione e obbligatorietà
delle norme. Milano: Giuffrè, 1981 e IDEM. Il diritto
Para um reexame das noções de jusnaturalismo e direito natural
de ser numa proposição deôntica ou de dever ser Indubitavelmente, isso não impede que se
– melhor: de dever fazer. Mas, na vivência possa negar valor ao Estado em geral ou a um
concreta da experiência pessoal, todo dever é Estado determinado, e, assim, negar valor às leis
assumido pelo eu com referência mais ou menos estatais em geral ou em particular. Mas esses
lúcida à realidade de necessidades cuja satisfação juízos de valor pressupõem o ser do ente sobre o
é considerada essencial para a realização de si qual são pronunciados, de maneira que não
mesmo, para a superação da própria indigência invalidam a correição da justificação proposta
individual. Esta realidade constitui o elemento acima. É o ser – e o subsistir – do ente simbólico-
alético sobre o qual se fundamenta o sentido existencial Estado que implica que se observem
subjetivo do dever na sua força obrigatória. Uma as suas leis.
reflexão mais aprofundada mostra que indigência Digamos então em geral: o direito como
e necessidade de superá-la são características categoria (e, por isso, nas suas normas) extrai a
ontológicas do homem, e que revelam a justificação da própria obrigatoriedade – ou
relacionalidade coexistencial deste22. Portanto, é deonticidade objetiva – da constatação alética da
a relacionalidade coexistencial constituinte da sua necessidade para o ser da forma coexistencial
verdade do ser-homem sobre a qual se a que se refere. Essa justificação – que tem como
fundamentam os deveres objetivos (isto é, válidos premissa um juízo alético de existência, do qual
para todo indivíduo humano), para além do seu extrai o necessário dever correspondente – é de
sentido puramente subjetivo. todo independente do juízo de valor acerca da
Isto posto, delineio com um primeiro forma coexistencial em questão. O juízo
exemplo o procedimento mediante o qual axiológico não é o pressuposto da verdade
considero possível e correta a justificação da constatada nem o fundamento último da
obrigatoriedade das normas em termos de obrigatoriedade da norma, e muito menos
verdade. Dê-se hipoteticamente a norma “todos os descende da existência desta, como Kelsen
cidadãos devem observar as leis do Estado”; não sustenta24. O juízo de valor é o elo intermediário
há dúvida de que o Estado, entendido como – normalmente implícito – que, no raciocínio
comunidade política, é uma das mais difundidas justificativo, liga o juízo alético de existência à
formas coexistenciais. Assim sendo, a norma norma.
supramencionada será justificada se, e somente A minha exposição esquemática do
se, for necessária para o ser da forma procedimento de justificação da obrigatoriedade
coexistencial “Estado”. No Críton, Sócrates do direito encontra respaldo numa importante tese
demonstrou-o com um raciocínio verídico, de Husserl. Ela permite que eu apresente um
confirmando-o com o seu comportamento: se os modelo de justificação plenamente consoante
cidadãos não observam as leis do Estado, este não com o antigo raciocínio socrático e de
subsiste23. No lugar do Estado, surgiria a anarquia possibilidade de desenvolvimento ainda mais
– numa guerra civil, não se sabe qual lado é o ampla. Nas suas Investigações lógicas, Husserl
Estado, não em sentido meramente formal, mas escreve que as normas “devem ter um conteúdo
substancial – ou, no limite, a inexistência de teorético cindível do conceito de estabelecimento
pátrias.
22
Cf. COTTA. Il diritto nell’esistenza, op. cit., cap. 3. 24
Cf. KELSEN. Teorie generale delle norme, op. cit., p.
23
PLATÃO. Críton, 50b e 53a. Na realidade, Sócrates faz 335: “Um juízo de valor é sensato desde que e apenas
uso principalmente de uma justificação de tipo axiológico, quando está relacionado com uma determinada norma. Se é
fundamentada no valor superior da pátria; mas isso não tira válida a norma […] o juízo de valor […] é verdadeiro”.
autonomia lógica à justificação alética a que me referi.
Para um reexame das noções de jusnaturalismo e direito natural
[de dever ser]”25. E precisa que a norma “Um A seja este o cidadão de Sócrates, o soldado de
deve ser B” equivale à (“baseia-se em”, diria eu) Husserl ou aquele que pertença a qualquer
proposição teorética “Somente um A que é B é um modalidade existencial. Uma fórmula de todo
bom A”. Para ilustrar a sua tese, Husserl aduz o correspondente – mas mais articulada – permite
seguinte exemplo: “‘Um guerreiro deve ser pôr em evidência a concatenação entre juízo de
corajoso’ significa […] que somente um guerreiro existência, juízo de valor e prescrição normativa.
‘corajoso’ é um bom guerreiro”26. Há uma evasão Proponho a seguinte fórmula: “Se o
ou pelo menos uma ambiguidade no discurso comportamento C é necessário (contrário) ao ser
husserliano 27 , que decorre de ele ter usado da modalidade existencial E, então tem (não tem)
expressões axiológicas como “bom A”, “bom o valor V relativamente a E, de modo que deve ser
guerreiro” e “corajoso”. prescrito (proibido) pela norma N”. O valor de E
Mas, a meu ver, a supramencionada evasão não é prejulgado, mas precisa ser justificado,
é superável se reformulamos o seu exemplo do senão se cai no puro subjetivismo dos valores.
seguinte modo: “O soldado deve (tem a obrigação
de) combater, senão não é um soldado”. O ser da 4. Recorde-se agora o que eu disse
modalidade existencial “soldado” ou potencial anteriormente a propósito da articulação típica do
combatente (juízo alético de existência) discurso jusnaturalista. Este estabelece a
fundamenta a norma “o soldado deve combater” obrigatoriedade das normas com base na sua
– obviamente em tempo e lugar determinados, justiça e determina esta última com base na sua
senão essa modalidade existencial se dissolveria. conformidade com a natureza. Pois bem, o
Ter-se-á, por sua vez, um bom soldado (juízo de modelo de justificação que propus (respaldado
valor) se este for hábil no uso das armas, corajoso, por Sócrates e por Husserl!) não fez senão
disposto a não se render etc. Mas esse juízo esclarecer o procedimento mediante o qual se
axiológico pressupõe a existência da figura do pode demonstrar – com um discurso racional que
“soldado”; com efeito, não teria sentido liga o dever com a verdade existencial a que
pronunciá-lo referindo-se a um civil. Para ser aquele se refere – a dependência da
soldado no sentido existencial da palavra basta ser obrigatoriedade da justiça. Mas pode demonstrar
aquele que é, ou seja, que está à disposição para que a obrigatoriedade da justiça depende da
combater, ainda que sinta medo durante o natureza? Considero que sim, uma vez que não é
combate e não seja um bom soldado. Mesmo neste incorreto denominar “natureza” a estrutura
caso, a justificação da norma em questão nada diz constitutiva de um ente existencial, graças à qual
ou prejulga acerca do valor a atribuir-se ao ser do este último é conotado em relação ao nada do seu
soldado. A objeção de consciência ao serviço ser. Essa natureza – como tenho procurado
militar é prova disso. mostrar – é o fundamento do comportamento
Reformulo, portanto, a asserção geral de justo e da norma justa, e por isto obrigatória, sob
Husserl (válida também para a posição de pena da negação ou da dissolução do ente em
Sócrates) do seguinte modo: “A deve ser B se, e questão. Nesta perspectiva, é lícito falar de direito
somente se, B é necessário ao ser de A”. Em natural em geral.
outros termos: o comportamento devido de B tem O procedimento justificativo que se ilustrou
o seu fundamento na verdade existencial de A, consiste num discurso racional, mas não
25 27
Cf. HUSSERL, Edmund. Ricerche logiche. Vol. I. A ela aponta a crítica de Kelsen (cf. Teoria generale delle
Milano: Mondadori, 1968, p. 54 e 57. norme, op. cit., p. 334-336), mas com demasiada pressa.
26
Para as duas últimas citações, vide ibidem, p. 58 e 57.
Para um reexame das noções de jusnaturalismo e direito natural
racionalista, no sentido de uma dedução de um pode deixar de ser o objetivo exigido pela
princípio ou de um valor apriorísticos. Pelo compreensão integral da obrigatoriedade própria
contrário, tem o seu ponto de referência do direito em geral. Basta recordar um delicado
indispensável no ser de um ente existencial, do problema posto no plano empírico. Que
qual, mediante a análise fenomenológica, se obrigatoriedade têm as normas e até mesmo todo
consegue identificar a estrutura ontológica o ordenamento jurídico de um Estado, ainda que
peculiar, isto é, o ser do ente mesmo. Daí se segue justificados em relação ao ser deste último, se
que o direito natural não é ou não é pensado como entram em conflito com o ordenamento jurídico
um direito ideal ou puramente teórico, nem um ou com as normas da comunidade internacional
direito naturalista assimilável às chamadas leis da que também tenham sido justificados em relação
natureza. Pelo contrário, é o direito justificado ao ser da comunidade internacional? Aqui, como
(doutrinariamente e/ou concretamente) na sua é claro, não se trata de constatar qual dos dois
obrigatoriedade, para a sua correspondência com ordenamentos consegue fazer-se respeitar; esta é
a natureza ou estrutura do ente a que se refere. uma (desconsoladora) quaestio facti, e não iuris,
Neste preciso sentido, considero que se pode falar que não resolve em absoluto o problema jurídico
de direito natural vigente, como Capograssi já (e moral!) teorético.
fizera28. Em linha de princípio, considero possível
Neste ponto, impõe-se uma precisão chegar à determinação de um direito natural em
importante. Os exemplos que aduzi até agora nada abstrato ou ideal, e tampouco deduzido de
permitem pôr em evidência aquilo que chamo valores a priori, mas que corresponda ao núcleo
direito natural particular, por ser relativo a um central de uma ontologia fundamental e não
âmbito ou forma existencial particular, não somente regional. Recorro mais uma vez a
apenas por causa da sua consistência empírica, exemplos, que, contudo, se encaixam
mas mais profundamente por causa da sua perfeitamente nas duas fórmulas gerais de
específica estrutura ontológica. Neste sentido, justificação que propus acima. Considere-se por
pode ser útil a distinção (só em parte rastreáveis hipótese a seguinte norma: “Deve-se respeitar
nas Ideen de Husserl) entre ontologias regionais e quem é inocente”, cuja implicação, em termos de
ontologia universal. Particular é a forma proibição, é: “Não se deve causar ofensa ou dano
existencial “Estado” e ainda mais a que se pode ao inocente”. Pois bem, parece-me evidente que
definir como status militar; portanto, são se esse respeito vem a faltar totalmente, a
particulares os seus direitos naturais (isto é, coexistência dissolve-se; se falta em parte, a
justificados), assim como é particular o direito coexistência é precária. Mas a coexistência é
natural da família, extraível da sua análise aquilo que caracteriza a condição humana 30 , de
ontofenomenológica29. Portanto, não são formas modo que, por isto, é o contexto existencial
exaustivas de toda a existência, como nos mostra supremo, além do qual não há outro. Portanto, a
a experiência, talvez antes mesmo da teorização. norma em questão é obrigatória de modo
Mas a constante aspiração primária do universal e absoluto por causa da sua referência
jusnaturalismo é determinar, sobretudo, um ao contexto existencial supremo, revelador da
direito natural universal e absoluto. E este não relacionalidade ontológica do homem.
28
Sobre este ponto e sobre as articulações do direito natural demasiada frequência qualificando-a de modo simplista
vigente, veja-se o meu Giustificazione e obbligatorietà delle como uma “sociedade intermediária”; antes, é medida em
norme, op. cit., p. 132-134. relação à universal “família” humana.
29
Mas, atente-se, a particularidade da família e do seu 30
Cf. COTTA. Il diritto nell’esistenza, op. cit., cap. 3 e
direito não é medida em relação ao Estado, como se faz com passim.
Para um reexame das noções de jusnaturalismo e direito natural
ofensa são, indubitavelmente, atos possíveis de transcendentalidade do ego afirmada por Husserl
liberdade, mas numa reciprocidade que os torna com as precisões que indicarei mais adiante.
destrutivos de si mesmos e da liberdade. Na verdade, se se esquece ou se nega o ego
Com os exemplos que foram dados, vai-se condicionante, o mundo humano desvanece na
esclarecendo qual é o fundamento ontológico do incompreensibilidade, precipita no caos do
direito natural: o eu-sintético-relacional. O eu é a conflito naturalista, e o ser não é mais ser-nós
fonte da liberdade por causa da sua tensão bipolar (homens), como é revelado pelo duplo sentido
entre finito e infinito, ou particularidade e ambiental e pessoal da habitual tradução italiana
universalidade 33 ; mas, ao mesmo tempo, é o de Dasein. Portanto, é legítimo reconhecer ao ser-
limite da liberdade, pois se esta dissolve a sua sintético-relacional do homem o valor supremo,
unidade sintética, o eu cessa de ser, e com ele a no sentido originário, que constitui o seu
liberdade. fundamento e, por isto, o critério universal do
Neste ponto, abrindo o olhar para além do juízo sobre os possíveis humanos, uma vez que,
direito, alcanço por meio do meu caminho parafraseando Leibniz, é o critério que permite
ontofenomenológico a posição onto-axiológica de determinar a “realidade possível” em relação à
Campanale, ou da imanência do valor no ser 34. “essência” do homem 36. Em suma, o homem é
Na minha perspectiva, o eu-sintético- “digno” não por ser livre, mas por ser a origem
relacional determina a estrutura constitutiva do ontológica do compreender, pensar, agir.
ser-homem. Pois bem, considero aplicável a esse Neste ponto, impõem-se duas precisões
ser, mutatis mutandis, a definição dada por Kant ulteriores que determinam melhor a relatividade
ao “bem supremo” ou, como ele precisa, (secundum quid) da originária condição
“originário” – palavra que tomo no sentido incondicionada e, por isto, da transcendentalidade
daquilo que dá origem, início –, pois é “a que considero próprias do ego. Em primeiro lugar,
condição que é – ela mesma – incondicionada, o eu não é condição originária incondicionada
isto é, não está subordinada a nenhuma outra (simpliciter) do ser do mundo nem de si mesmo
condição” 35 . Eu disse mutatis mutandis: com (também não o é o indivíduo empírico!);
efeito, o eu-sintético-relacional é condição tampouco é condição originária incondicionada
incondicionada não simpliciter, mas secundum da própria estrutura de ser: o eu não é causa sui,
quid, isto é, relativamente ao mundo humano do de modo que não pressupõe uma condição
compreender, pensar, agir. O eu-sintético- incondicionada simpliciter, que constitui a sua
relacional é a condição da história, da liberdade, Origem e, por isto, o seu bem “perfeito”, para usar
da cultura, da sociedade, mas não é condicionado a outra e distintiva qualificação kantiana do bem
37
por elas, pois é a sua origem; condicionados por .
elas são os indivíduos existentes empíricos. Em Disto se segue que a capacidade do ego de
sentido ontológico – e não somente lógico- compreender, pensar e agir nunca é integral e
gnosiológico –, eu faria minha a terminativa, assim como a equação entre o seu ser
e o bem não esgota este último. Na verdade, a
33
Aplico à estrutura ontológica do homem a dualidade de 1963 e IDEM. Fondamento e problemi della metafisica:
polos que caracteriza o método bergsoniano de explicação essere e verità. Bari: Adriatica, 1968.
35
dos fenômenos. A propósito, elucidativo MATHIEU, KANT, Emmanuele. Critica della ragion pratica. Trad. F.
Vittorio. Bergson: il profondo e la sua espressione. Napoli: Capra. Bari: Laterza, 1955, p. 137 (partes I e II, cap. 2).
36
Guida, 1971, especialmente o cap. 1. Cf. LEIBNIZ, G. W. De rerum originatione radicali. In:
34
Cf. CAMPANALE, Domenico. Per una fondazione onto- IDEM. Saggi filosofici e lettere. Bari: Laterza, 1963, p. 79,
assiologica del diritto. Milano: Angeli, 1986, mas, mesmo organizado por Vittorio Mathieu.
37
antes, IDEM. Scienza, ontologia e valore. Bari: Adriatica, KANT. Critica della ragion pratica, op. cit., p. 137
Para um reexame das noções de jusnaturalismo e direito natural
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38
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