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Kant
David Bell

Dificilmente haverá uma área da filosofia para a qual ImmanuelKant (1724-1804)


não tenha dado sólidas e profundas contribuições,incluindo metafísica,teoria do
conhecimento, epistemologia, lógica filosófica, fundamentos de matemática,ética, estética,
filosofia da ciência e filosofia política. Existem, contudo, dois centros do pensamentofilosófico
de Kant que compreendem a fundação de todo o referente.Por um lado, há a_metafísica"crítica"
ou "transcendental",apresentada em sua Crítica da razão pura (publicada pela primeiravez em
1781)e, por outro, há a teoria ética que ele publicou em diversasobras após 1784. Naquela,
ele desenvolveu uma teoria do conhecimento e de seu lugar na natureza,destinadaa superar
as limitações inerentes ao pensamento de seus predecessoresracionalistase empiristas.
Em suas obras de ética, Kant formulou uma convincente concepçãode como a lei moral, a
autonomia, a racionalidade, a liberdade, o dever e a virtude se relacionam na vida moral.
Este capítulo se concentra nessas duas áreas nuclearesdo pensamentode Kant.

l. Vida guinte, ele estudou, entre outras discipli-


nas, matemática, teologia, fisica e filosofia.
ImmanuelKant nasceu em Kônigsberg, Em 1755,Kant alcançou as qualifica-
florescenteporto prussiano no mar Bál- ções necessárias para se tornar Privatdo-
'co. Ele foi para a escola local, ao que pa- zent (um professor particular) na Universi-
eceum lugar insalubre, onde a atmosfera dade. ComoPrivatdozent,ele não tinha di-
ligiosa pietista era reforçada pela "pe- reito a salário, mas recebia uma pequena
nte e obscura disciplina dos fanáticos", soma de cada um de seus alunos. Para so-
as onde, no entanto, ele conseguiu suple- breviver, Kant era forçado a lecionar cerca
entar seus limitados recursos com vitó- de 36 horas por semana, sobre assuntos
obtidasnas cartas e no bilhar. Aos 16 bem diversos como lógica, metafisica, geo-
os,iniciou seus estudos na Universidade grafia, ética, fisica,pedagogia, aritmética,
Kónigsberg.No decorrer da década se- geometria,trigonometria,teologia natural,
astronomia, meteorologia e antropologia; e uma veneração sempre
nov
em 1764, ele recusou o posto de professor crescentes, à medida que a as e sempre
de poesia que lhe haviam oferecido. A des- atenta e a elas se aplica: oreflexão
céu
a elas
peito de sua "monstruosa sobrecarga aca- acima de mim e a lei moral estrelado
Como insinua esta última
emmir
démica", Kant não era de modo algum um
recluso. Um contemporâneo lembrou que duas grandes questões que a sentençaas
tica de Kant aborda filosofia
Kant "gastava quase todas as horas de al- são, em primeiro
moço e noites fora de sua casa, em ativida- a natureza de nossa compreensão lugar,
verso e, em segundo dounis
des sociais, muitas vezes tomando parte lugar, a natureza
em jogos de cartas, voltando para casa só nossa vida moral. Essas questões de
sãoos
por volta da meia-noite". Durante esse pe- tópicos, respectivamente, das duas
mas seções. próxi-
riodo "pré-crítico", Kant publicou diversas
obras menores sobre uma variedade de te-
mas. (Embora importantes para uma plena
compreensão do pensamento de Kant, es- 2. A metafísica da experiência
ses escritos pré-críticos [Kant, 1968] não
serão examinados no presente capítulo.) Como podemos compreender o univ
Kant tomou-se professorde lógica e so e as coisas que ele contém? Comoissoé
metafisica em Kõnigsberg em 1770,mas foi até mesmo possível? Já que se trata deum
somente onze anos após, com 57 anos de problema enorme e tremendamentecom-
idade, que ele produziu a primeira da série plexo, podemos dividi-lo em partes maisfá-
de incomparáveis, grandes e vastamente in- ceis de manejar. E possívelperguntar:
de
fluentes obras que deviam formar sua cha- que maneira efetivamente compreendemos
mada filosofia crítica: a primeira edição da o mundo e as coisas que ele contém?Eco-
Crítica da razãopura foi publicada em 1781. mo uma primeira resposta, bem superficial,
A ela se seguiram, com rapidez notável, os poderíamos dizer algo assim. Por um lado,
Prolegómenos (publicados em 1783), os Fun- nossa compreensão do mundose exprime
damentos da metafisica dos costumes (pu- amplamente em termos de objetos —objetos
blicada em 1786),a segunda edição, subs- que possuem propriedades, participamde
tancialmente revista, da Crítica da razão eventos, ocupam espaço, persistematravés
pura (em 1787),a Crítica da razão prática do tempo, interagem causalmente entresi,
(em 1788) e a Crítica do juízo (en 1790). são substanciais e obedecem às leis da lógi-
Dois meses antes de seu octogésimo ca, da aritmética, da geometria e da fisica.
pror
aniversário, Kant morreu em Kónigsberg. Podemos dizer que são os aspectosdo
la-
Seu funeral foi acompanhado por milhares blema_relacionados ao Qéjeto. Por outro
baseia
de pessoas, e ficou claro que ele era univer- do, nossa compreensão do mundo se
salmente reverenciadotanto por sua hu- em
em nossas observações e percepções,e
manidade e integridade moral como por juízos
nossos conceitos, pensamentos,
seu génio filosófico. Em seu túmulo inscre- estes,por
inferências.Podemos chamar a
veu-se, apropriadamente, uma frase extraí- relacio-
contraste, de aspectos do roblema
da do trecho com que ele concluíra a Críti-
nadosao_sujeito.
ca da razão prática: "Duas coisas preen- ao objetopo-
Os aspectos relacionados série
chem nosso coração com uma admiração numa
dem ser mais bem explicitados
de questões METAFÍSICAS
(capítulo 2). Por aceitável do problema metafisico, fenóme-
exemplo: o que é um OBJETO(p. 574)? O nos relacionados ao objeto e relacionados
(p. 97)? O que é um even-
que é PROPRIEDADE ao sujeito devem ser considerados mutua-
EESPAÇO
to? O que são TEMPO (p. 328-329)? mente dependentes e, em última instância,
0 que é CAUSALIDADE (capítulo 9)? Como inseparáveis. Em outros termos, não pode
são possíveis a lógica, a matemática ou existir nenhuma teoria coerente de uma
as ciências naturais? De modo correspon- quejá não seja teoria da outra. Em especial,
dente, os aspectos relacionados ao sujei- asseverava Kant, não_sepode fornecer ne-
to produzem várias questões que perten- nhuma teoria coerente de propriedades,
cem, de modo geral, à EPISTEMOLOGIA(capí- objetos,eventos relaçõescausaisvsubstân-
DAMENTE(capítulo 5):
tulo 1) e à FILOSOFIA cia, tempo ou não
o que é perceber algo? O que é um con- seja uma descrição de_nossas.vercepções,
ceito? O que é um JUÍZO
(p. 666)? Como os conceitos_ejuízos(subjetivos) concernen=—
conceitosse relacionam com os juízos? tes a tais coisas. Em última análise, a natu-
Como os conceitos se relacionam com as reza da realidade que co ecemos é inse-
experiências perceptivas? Como estas se ent e a conhe-
relacionam com as sensações? As ques- ge±desse modo que Kant formulou tal
tões mencionadas neste parágrafo estão
entre as mais importantes que Kant abor- Críticada razão pura:
da na Crítica da razão pura, às quais ele Até agora se supôs que todo o nosso co-
fornece respostas específicas e amiúde nhecimento tinha de se regular pelos obje-
provocativas. tos; porém, todas as tentativas de mediante
Existe, contudo? um problema filosó- conceitos estabelecer algo a priori sobre
eles, através do que ampliaria o nosso co-
fico bem global que não pode, intrinseca-
omo rela- nhecimento, fracassaram sob esta pressu-
m nte posição. Por isso tente-se ver uma vez se
cion não progredimosmelhor nas tarefas da
ao metafisica admitindo que os objetos têm
são que se regular pelo nosso conhecimento
relacionad ao objeto-podemse_aystar (Crítica da razão pura, B xvi).
Por exem-
com asrelacionadasaosujeito. a Kant denominou a essa mudança d
plo: ssos concei se referem erspectiva metafisica sua "revolução co-
nossas
_mponenteyda-xealidade? Como
co ernicana". A teoria resultante é uma forma
sutfetivasno
-es e e eriências e idealismo transcendental.
Pequegnodo-nossosoen- O idealismo de Kant é motivado por
yerso-material? diversas considerações, uma das quais é a
seguinte: existem certos princípios e juízos

são do universo. EntreRsses


faz desse pro-
de Kant
A filosofia crítica sua preocupação juízos-se incluemy por_exemplo, as verda-
geral
blema metafisicofilosofia, como um todo, aesda_aritmética, as verdadesda geometria,
tal
mais básica; e sua insistên- oorincípio de que todo evento possui uma
sobretudo, por
caracteriza-se, solução causa, ojuízode que os_objetosnão deixam
que, em qualquer
cia em afirmar
590 David Bell

A revolução copernicana

Copérnico, um astrónomo do século WI, ressaltou que o aparente movimento do sol e dos
astros
so parecia
se no Leste, cruzar o céu e pôr-se no Oeste era que ele realmente estava se movendo em torno levantar-
de uma
estacionária. Copérnico mostrou que resultaria precisamente na mesma aparência se, em
vez disso,
rmco SUbstituiu a
teoria
que considerava real o movimento aparente do sol por uma teoria segundo a qual o mo ingenua
vimento
do sol é um produto do movimento real do observador: é porque estamos girando que aparente
o sol parece
o céu. A chamada revolução copernicana de Kant é análoga a essa. Supunha-se que cruzar
parecia haver
espácio-temporais que existem independentemente de nós porque há de fato tais coisa objetos
s. Kant
esse realismo ingénuo por uma teoria segundo a qual a natureza e a independência substituiu
aparentesdo
objetivo são um produto de nossas percepções, de nossos conceitos e juízos; em mundo
última análise,
é porque

simplesmente de existire de modo similar, xiência do mundo. Pelo


contrário, o
cimento sintético a conhe-
riori soé
tirpura e simplesmente,de nenhum lugar ele ossívelse
e do nada.Segundo Kant, essas asserções tamos ao dar sentido a que ado-
apresentamumcerto_número nossa
desaracte- Em outros termos, a
revolução copemicana
em filosofia é necessária
porque,sem
(1) São necessariamente verdadeiras e não podemos tomar
inteligível a possibili-
não podem ser justificadas ou falsea- dade do conhecimento
das por apelo a fatos contingentes ou sintéticoa priori
—e na ausência dessa possibilidade,
experiência perceptiva (ou seja, são acre-
a ditava Kant, a própria
priori). possibilidadedeal-
(2) Não são verdades meramente gum conhecimento ou
ló icas, compreensãoseria
ou verdades pordefimçao ininteligível.
ou seja, são
sintéticas). Em conformidade com essa
(3) São essenciais a nossa perspecti-
compreensão va idealista, a Crítica da razão
da realidade. pura analisa
tanto os elementos relacionados ao
objeto
Kant chamou ao conhecimento como os elementos relacionadosaosu-
que jeito do conhecimento,
temos das verdades desse tipo com o fim demos-
de "conhe- trar que todos os elementos-wprioñ.de-
cimento sintético a pfiorü, e s
idealis- yem,-em-última-instângiaser-explicdos
mo &notivado or uma
combina ão_de
duas crenças; (1) a de que, J) Orrecursoànossa_constituiçào-gssencial
sem conheci-
mento sintético a riori nenhum
conhe-
cimento,nucompreensão, ou experiência sariamente-u-l----------i2--S----gg-g.LL!
pensamos —,e não podem ser explicados
e (2) a de que por apelo
o ao modo como o mundoé inde-
não-é pendentemente de qualquer acessoque
p o.prnps_receber possamos ter a ele. Não éporque a realia-
"de fora", como resultado de nossa expe- 011
de, em si e por si, é espacial,temporal
Kant
591

Conhecimento sintético a
priori
"Analítico" é abreviação de "analiticamente verdadeiro",
e um juízo é analítico
uma conseqüência dos se sua verdade é unicamente
conceitos que ele contém. Assim,
por exemplo,asverdades da lógica são analíticas
e também as verdades conceituais como 0 fato de que
todos os celibatários são solteiros
ou de que vermelho
é uma cor. "Sintético" significasimplesmente "não-analíticot 0
termo "a posterior' é
forma abreviada de
"adquirido oposteriorl", e algo é conhecido aposteriorise
o conhecimento é adquirido
com base na experiên-
cia sensível, ou seja, se pode em principio ser falseado pela
experiência.0 termo "a prior/' significa
"não a
posteriori".Assim, conhecimento sintético apriorié
conhecimento que é necessariamente verdadeiro,
que não
pode ser falseado pela experiência, mas que não é verdadeiro
de modo trivial, lógico ou analítico.

causal que nós a experimentamos enquan- dade, segundo Kant, é em grande parte
to tal. Em vez disso, a explicação segue na passiva: sensações e intuições são coisas
que sofremos ou que nos acontecemÃ) en-
tura essencial de nossas mentes que nossa tendimento e a razão, no entanto, são es-
eriência é, precisamente, de uma reali- sencialmenteativas: conceitos são coisas
dade espacial, temporal e caus . Kant o põe que usamos e, é claro, o pensamento e o
de modo claro: "das coisas conhecemos a raciocínio são coisas que fazemos.
prinnsoo-que_nosmesmos colocamos ne- Kant é inflexível a respeito de duas as-
Ias" (1929, B xviii). serções. A primeira é que a sensibilidade e
A estrutura global da filosofia crítica de o entendimento são bastante distintos. Eles
Kant —e, como veremos, a organização têm suas próprias operações, seus próprios
da própria Crítica da razão pura —depende princípios e funções. A segunda é que, em
da distinção que ele faz entre três faculda- todo conhecimento a nosso alcance, tanto
des fundamentais, irredutíveis da mente. a sensibilidade como o entendimento —tan-
Em primeiro lugar, temos a capacidade de to as intuições como os conceitos devem
receber ou registrar componentes sensí- estar envolvidos.
veis como sensações, impressões, dados r»eitacategoricamente a idéia de que po-
dos sentidos, percepções etc. O termo de demoster qualquereonhecimento-que se-
Kant para esses componentes sensíveis é ja exclusivamentesensível,oupuramente
"intuições", e ele chama a capacidadede conceitual, pois-"pensamentos sem conteú-
registrá-las de "sensibilidade". Em segundo
do são vazios, intuições sem conceitos são
çegas" (1929, B 75).
lugar, temos capacidades de um tipo es-
A organização da Crítica da razão pu-
sencialmente intelectual, que envolvem o
Kant ra é complexa e pode, com efeito, ser des-
poder de conceber, pensar e julgar.
deno- norteante. A distinção entre sensibilidade,
atribui tais habilidades ao que ele entendimento e razão pode ajudar a tor-
faculdade res-
mina "entendimento", uma ná-la inteligível. A figura 22.1 (que não
de usar con-
ponsável por nossa habilidade é exaustiva) representa algumas das mais
capazes efetuar
ceitos. Em terceiro, somos
conclusõesváli- importantes divisões na estrutura do texto
inferências lógicas, tirar de Kant.
A sensibili-
das —ou seja, de raciocinar.
David

A CRÍTICADA RAZÃO PURA

ESTÉTICA LÓGICA
TRANSCENDENTAL TRANSCENDENTAL

Tempo Espaço

ANALÍTICA DIALÉTICA
TRANSCENDENTAL TRANSCENDENTAL

Analítica Analítica
dos conceitos dos princípios

Dedução Dedução
metafisica transcendental

Esquematismo Princípios

Conceitos de Inferências dialéticas


razão pura da razão pura

Paralogismos Ideal da
Antinomias
da razão pura da razão pura razão pura

Figura 22.1 Principais divisões da Crítica da razão pura de Kant.


kant 593

As observações que se seguem podem seria possível. Entre as categorias se incluem


auxiliara desvendar o labirinto. Aprincipal conceitos a priori tão_básicoscomo os que
divisãoda Crítica da razão pura na Estética normalmente expressamos com as pala7
Transcendental e na Lógica Transcendental vras todos, um, não, é, talvez, existe e cau-
correspondeàsdistinções deKantentre sen- sa. (Kant intitula essascategoriasrespecti-
sibilidade.de um lado, e e tendimento e vamente de
razão, de outro. A Estética Transcendental Realidade, Possibilidade Existência e Cau-
recebe esse gyega_ais- salidade.) Na Dialética Transcendental, por
thesis,Aue significa percepção ou sensa_- outro lado, Kant enfrenta os problemas fi-
ção=Torque trata dos elementos a priori losóficos associados a nossa capacidade
que devemser encontrados na experiência de usar —e, o que é mais importante,a
sensível, perceptiva (assim, essa parte do nossa tendência de abusar de ou usar erro-
texto não tem nada a ver com "estéticcno neamente —nossas capacidades de racio-
hoje)élY1 cínio. (Kantchama de "dialético" um raciocí-
dos principais objetivos de Kant nessa par- nio quando ele é não-válido ou falacioso.)
te da Crítica é demonstrar que o espaço e O off eral da Dialética Transcenden-
tal é mostrar que a razão pura, quando se-
parada de qualquer dado proveniente da
ta
intuições possuem for- riência, não pode nos proporcionar nenhu-
ma espécie de conhecimento genuínósta,
os objetos empíricos no mundo externo m essência é a "crítica" de Kantdarazã
são espácio-temporais. Ele não crê na coe- ura. Na Dialética Transcendental, a seção
rência da tentativa de explicar (1) nos ter- Intitulada Dos P ogismos da Razão Pura
mos de (2). A Lógica Transcendental —de procura mostrar que toda tentativa de de-
logos,a palavra grega para proposição ou duzir fatos sobre o espírito ou sobre o Eu
significado—é assim denominada por- em bases puramente racionais e de forma
que trata dos elementos a priori presentes
em nosso aparelho conceitual, intelectual riência sensível está condenada ao-fracas-
(de modo que essa seção se relaciona ape- -80. (Um paralogismo é uma espécie de ar-
nas parcial e indiretamente com a "lógi- gumento não-válido.) Nas Antinomias da
ca" tal como a entendemos hoje). No inte- Razão Pura, Kant tenta demonstrar a im-
rior da Lógica Transcendental, a Analítica possibilidadede conhecimento puramente
Transcendental diz respeito fundamental- conceitual, independente dos sentidos, do
mente à natureza de nosso entendimento, mundo material. (Uma antinomia é um pa-
ou seja, às características necessárias sobre radoxo ou contradição.)lkno Ideal da Ra-
squais se apóia, em última zão Pura ele tenta provar que a razão pura,
a nossa capacidade dejulgar e aplicar con- or si só, não pode produzir um conheci-
seitos. Kant efende aí, entre outras coisas, mento de Deus
qu ese-não-possuissemoscaplicássemos O núcleo da metafísica de Kant está
certosconceitos básicos, a priori, primiti- contido na Analítica Transcendental; pois
vos aos é ali que ele apresenta sua análise não só de
como o espírito precisa trabalhar para
que
David Bell
594

Uma investigação transcendental


nitidamente de outros dois
termo "transcendental' distingue-se
Tal como o emprega Kant. o
Algo é imanente em relação a certas fronteiras ou limitesse
saber,Eimanenteee "transcendente. limites.
está além dessas fronteiras ou Algo é "transcendental*
dentrodeles.Algo é "transcendente"se
nem fora desses limites, mas diz respeito, antes, à natureza essencialdos
enfim, se não se situa nem dentro
de estabelecer os limites essenciais, a priori do conhecimento
próprios limites. Kant tinha a preocupação
sobre o que é transcendente, isto é, tudo o que, por defini_
humano. Ora, nada pode fornecer informação
ção, se situe limites do conhecimento.A ciência e o senso comum nos forneceminformação
cognoscível. No entanto, é necessária uma
sobre o que se situa dentro dos limites do
algum conhecimento dos próprioslimi-
não-cientifica, peculiarmente metafisica para podermos adquirir
tes do cognoscível.Kant chama essa investigação de "transcendental: "Denominotranscendentaltodo
conhecimentoque em geral se ocupa não tanto com objetos, mas com o nosso modo de conhecero
na medida em que estedeve ser possível_apriori Um_sistema de tais conceitos_denominar-se-iafilosofia
transcendentar (1929, B 25).

o entendimento ou o conhecimento sejam zes de unificar e interpretar essa multiplici-


possíveis, mas também de como deve ser o dade de intuições. Ou seja, precisamostera
mundo para poder ser conhecido ou com- habilidade de nos orientar em meioà diver-
preendido. O restante desta seção é dedi- sidade de nossa experiência sensívelem
cado a uma exame da exposição de Kant constante mudança. E fazemos issocons-
na Analítica Transcendental. fruindo esses estados sensíveis comoexpe-
Nossos sentidos nos propiciam uma riências de objetos do mundo externo.
multiplicidade de sensações ou, na termi- Kant toma.poraxiomático que "a liga-
nologia de Kant, uma multiplicidade de in- ção (coniunctio) de um múltiploemgeral
tuições. Essas intuições são extensas no jamais pode nos advir dos sentidos"e con;
tempo, e algumas delas possuem proprie- clui que "toda ligação —quer possamosser
dades espaciais, mas sua natureza intrínse- conscientes dela quer não... é um ato do en-
ca não lhes garante permanência, estabili- ten Imento" quevacrescenwele."design-
dade, determinação, objetividade ou arti- remos com o nome geral desíntese"(1929,
culação conceitual. Uma multiplicidade de B 130). Em suma, para poder tornarinteli-
intuições era o que HUME(capítulo 21) tinha gível a diversidade das sensaçõesquesen-
em mente ao descrever a consciência como timos, precisamos ser capazes decombinar
els
dotada de conteúdos sensíveis "que se su- ou unir essas sensações, de modoque
dos
cedem uns aos outros com uma rapidez in- passem a representar para nós aspectos
for-
concebível, e estão em perpétuo fluxo e objetos no mundo. Por exemplo,posso
tá-
movimento". Agora, para que nossa cons- mar um múltiplo com certas sensações
forma,core
ciência seja, digamos, uma consciência de teis particulares, sensações de
cheiroe Sl-
um mundo inteligível, previsível,contendo movimento, sensações de som,
mesmotodo,
objetos determinados, estáveis que persis- milares, como partes de um
formas diversasde
tem através de suas mudanças e interagem considerando-as como
único e mesmoobjeto
causalmente entre si, precisamos ser capa- consciência de um
Kant

minha motocicleta, por exemplo. Con- Na Dedução Metafísica, Kant tenta


siderar uma variedade de intuições sensí- identificar apenas os conceitos que são ca-
veis díspares como partes do mesmo todo, tegorias. (Há doze delas: Unidade, Plurali-
em virtude de constituírem diferentes ex- dade, Totalidade, Realidade, Negação, Li-
periéncias da mesma coisa, não é outra mitação, Substância, Causalidade, Comu-
coisa senão sintetizar essas intuições. Uni- nidade, Possibilidade, Existência e Necessi-
ficar os estados sensoriais de um indiví- dade.) Na seção intitulada Dedução Trans-
duo é compreendê-los como representa- cendental das Categorias, Kant apresenta
ções de objetos e propriedades do mundo um conjunto complexo de argumentos des-
externo. Assim, na ausência de tais ativi- tinado a provar a tese de que, na ausência
dades sintetizantes, afirma Kant, não po- de síntese em conformidade com regras a
deriamos ter conhecimento de um mundo priori (as categorias), não seria possível ne-
externo, e com efeito nenhuma experiên- nhuma experiência inteligível.
cia faria sentido para nós. Uma importante cadeia de associações
A síntese não ode, é claro, serum pro- que percorre a Dialética Transcendental po-
cesso meramente aleatório ou arbitrário, de ser descrita, de maneira resumida, como
mas deve se dar em conformidade com re- se segue. Existe uma condição inescapável
Sras. Além disso, as regras mais fundamen- que deve ser satisfeita por toda pluralidade
de estados e conteúdos mentais para que
tais que regem a síntese não podem ser
eles pertençam a uma consciência única,
aprendidas ou adquiridas com base na ex-
unificada —por exemplo, para que sejam
periência, pois são precisamente as regras
todos meus estados e conteúdos de consciên-
quejá devem estar presentes para haver um
cia. A condição necessária, segundo Kant, é
conhecimento ou experiência coerente. que a consciência ou mente em questão de-
Dessemodo, Kant conclui que as regras ve possuir autoconsciência:não devo ter
básicas regendo a síntese são regras a prio- apenas a capacidade de estar num estado
ri —e as mais fundamentais delas são as mental arbitrário, S, devo ser capaz também
regras a prioñ que permitem que certo nú- de saber que estou nesse estado. E isso re-
mero de diferentes estados sensíveis se re- quer, por sua vez, que eu tenha a habilidade
firam ao mesmo objeto. Ora, segundo Kant, de atribuir o estado S a mim mesmo; ao ser
os conceitos não são nada mais que regras capaz de proferir ojuízo: "Estou consciente
de S'. Kant escreve: "O eu penso" [ou "eu es-
gras mais básicas,u-priori. As categorias, tou consciente"] tem de poder acompanhar
conjuntamente, especificam-avregras às todas as minhas representações" (1929 B
quais o entendimento humanoÃieve con- 131);"as múltiplas representações... não se-
minhas se não
formar-se para que possamos considerar riam todas representações
todas a uma autoconsciência"
nossos versos estados sensíveis como re- pertencessem
(1929, B 132).Em outros termos, a unidade
presentaçõesde_objetos domundo. Na ter-
da consciência requer autoconsciência, a
minologia de Kant, as categorias, tomadas
qual, por sua vez, requer a habilidade do
em conJunto, compreendem "conceitos de indivíduo de atribuir seus estados mentais
ca-
objetos em geral". Kant escreve que as
comocondições a si próprio. 8pvrincípioquerege a unida-
tegorias"são antecedentes
de da consciência_Kan mirwunidade
unicamentesob.asquais algo...é pensado _transcendental da percepção
125).
como objeto em geral" (1929, B
David Bell
596

da apercepção
A unidade transcendental
algum tipo nem é, particularmente, o nome de algo
não representa um objeto ou entidade de
Este termo disso, é o nome do princípio formal responsávelpela
ego, um self, uma alma ou uma mente. Em vez
como um que envolva autoconsciência; e a unidade
consciência. "Apercepção" é toda forma de consciência
unidade da a priori para a possibilidade de experiência inteligível.
"transcendental" porque é uma condição
da apercepção é consciência deve satisfazer para
da apercepção é uma condição que a corn_
Assim, a unidade transcendental a condição de que seja uma forma de autos
coerente, integrado ou seja,
preenderuma unidade ou todo 'eu penso' acompanhar todasas
modo a condição: "Deve ser possível para o
consciência. Kant expressa deste
dessa condição, afirma, a autoconsciência seria impossível, casoemque
minhas representações".Na ausência
impossível, caso em que nenhuma experiência inteligível seria possível.
a unidade da consciência seria

Na parte final da Dedução Transcen- mesmo a unidade da consciênciaseriam


dental, Kant examina de modo mais deta- impossíveis se não possuíssemos e aplicás-
lhado as condições necessárias para ser semos as categorias a priori de modoque
possível a atribuição das diferentes expe- nos fornecessem experiência de um mundo
riências ao próprio sujeito: o que exata- externo, objetivo. Em outros termos,como
mente devo ser capaz de fazer para ser au- diz o próprio Kant, "a consciência deminha
toconsciente? P. F. Strawson escreve: "De- existência é simultaneamente umacons-
ve-se admitir que a resposta de Kant possui ciência imediata da existência de outras
certa sublimidade. O que se requer para coisas fora de mim" (1929 B 276).
que uma série de experiências pertença a
uma única consciência é que elas possuam
precisamente a conexão regida por regras,
que também se exige para que elas consti- 3. Autonomia e lei moral
tuam coletivamente a experiência de um
único mundo objetivo" (Strawson, 1966, As principais contribuições deKanti
pp. 92-3). Em outros termos, a unidade de ÉTICA(capítulo 6) estão contidas em duas
minha consciência exige que eu sintetize obras: Afundamentação da metafisica dos
minhas diferentes experiênciassensíveis costumes ( 1785) e a segunda Crítica,intitu-
em conformidade com as regras contidas lada Crítica da razão prática (1956(17881).
nas categorias. Mas sintetizar desse modo A primeira dessas obras é sem dúvida al-
minhas várias experiências é justamente guma uma das mais profundase influen-
ter a experiência de um único mundo obje- tes de filosofia moral jamais escritas*
tivo —um mundo formado por objetos es- retumbante início da primeira seçãotemo
táveis, materiais, que possuem proprieda- as famosas palavras: "Nestemundo, ed
des, persistem ao longo do tempo e intera- mesmo fora dele, nada é possível p
gem causalmente entre si. que se possa considerar bom semlimitaç
Com base nesse argumento, Kant sente a não ser uma só coisa: uma boavonta
Ob

que tem razões para concluir que o conhe- E, como diz o próprio Kant, "o único

cimento, a experiência inteligível e até tivo" do livro é "investigar e estabeleci

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