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Prefácio 9
Bibliografia 227
Prefácio
1
«Ó Kant, quem te salva dos Kantianos?»
Tendo em conta a imensa literatura sobre Kant, produzida ao longo dos mais de
dois séculos que já nos separam da morte do filósofo, será possível que ainda
haja tópicos que não tenham sido explorados – ou que, pelo menos, muito
pouco o tenham sido – pelas sucessivas gerações de hermeneutas que se têm
ocupado da obra e pensamento kantianos? E, se tal fosse o caso, não será que o
pôr em evidência tais tópicos poderia revelar dimensões, que, sendo havidas em
conta, obrigariam a reformular as vulgatas interpretativas que têm sido sucessi-
vamente propostas como constituindo a essência filosófica do Kantismo?
Os ensaios reunidos neste livro têm em comum o tratarem de assuntos rela-
tivamente pouco estudados da obra de Kant, pelo menos na perspectiva em que o
são aqui. Tal é o caso do pensamento cosmológico do jovem Kant, aqui conside-
rado não apenas como representando uma incursão aventureira do jovem filósofo
em matéria cosmológica, ainda à procura de si póprio e a tentar experimentar as
suas capacidades especulativas, seguindo os pressupostos da cosmologia newto-
niana, mas visto já como obra de um pensador autónomo, munido de pressupos-
tos e de problemas próprios e até de algumas intuições ousadas que determinarão
o desenvolvimento posterior da sua filosofia. É o caso, ainda, da ideia kantiana de
uma «Técnica da Natureza» e do seu valor heurístico para a pesquisa empírica da
natureza e da respectiva função sistemática para se entender a unidade da Crítica
do Juízo na sua proposta de juntar, sob o mesmo princípio transcendental, tanto a
apreciação dos produtos da arte humana como dos da «arte da natureza». É o
caso, por fim, da reapreciação da concepção kantiana do juízo ficcional, aqui
abordada pela evocação da obra A Filosofia do Como Se (Die Philosophie des Als
Ob), de Hans Vaihinger, na qual o Kantismo é interpretado como uma espécie de
ficcionalismo transcendental. Dois dos ensaios, em especial, o primeiro e o quarto,
dão uma ideia do modo como o filósofo trabalha duas das ciências do seu tempo,
paradigmática qualquer delas no seu género e estatuto, como o são a Físico-Cos-
mologia e a Biologia: a primeira, já constituída e em plena maturidade; a outra
ainda em processo de constituição. O contributo específico do filósofo não con-
1
«O Kant, wer rettet dich vor den Kantianern?», Hans Reichenbach, Brief an Arnold
Berliner, 22. April. 1921 (HR 015-49-26, Archive for Scientific Philosophy, Hillman
Library, University Pittsburgh).
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Em Portugal, foi Fernando Gil quem, em vários dos seus ensaios, mesmo
não a nomeando enquanto tal, praticou uma leitura predominantemente episté-
mico-heurística da filosofia kantiana, pondo em destaque a análise dos pressu-
postos e dos processos de investigação, a função atribuída aos exemplos, a teoria
transcendental da prova e, em geral, sublinhando o papel da imaginação e do
seu princípio de afinidade no agenciamento do trabalho da razão, pela atenção
dada ao Apêndice à Dialéctica Transcendental da Crítica da Razão Pura e aos
3
Veja-se sobretudo a sua obra Aspetti epistemologici della finalità in Kant, Firenze, 1972.
Outros estudos vão citados no cap. 2, nota 26.
4
Veja-se: Estetica ed epistemologia. Riflessioni sulla «Critica del Giudizio», Roma, 1976.
5
U. Eco, Kant e l’ornitorinco, Bompiani, Milano, 1997. Ver adiante, p. 69, nota 26. Tam-
bém na recente interpretação da Crítica do Juízo como «lógica do irracional», proposta
por Marco Sgarbi: La logica dell’irrazionale. Studio sul significato e sui problemi della Kritik
der Urteilskraft, Mimesis, Milano, 2010.
6
Jean-François Lyotard, Leçons sur l’Analytique du Sublime, Galilée, Paris, 1991, pp.41-
48 e passim : «la réflexion est aussi le laboratoire (subjectif) de toutes les objectivités.
Sous son aspect heuristique, la réflexion semble donc être le nerf de la pensée critique
en tant que telle.» (p.41).
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princípios da economia da razão aí enunciados. Alguns desses ensaios tiveram
8
por tema tópicos kantianos. Mas, mesmo quando não era o caso, Kant era um
assíduo e muito especial convidado nas sempre muito sugestivas reflexões gilia-
nas, mesmo se o pensador português não deixava de preferir ao programa kan-
tiano, que denomina de uma inteligibilidade objectal, o programa leibniziano de
uma inteligibilidade operatória, hipoteticista e mais declaradamente heurística,
9
ou mesmo o programa morfológico de Goethe. Sem poder proceder aqui a uma
7
Mimésis e Negação, INCM, Lisboa, 1984, passim; Modos da evidência, INCM, Lisboa, 1998,
pp.108-120, 325; Acentos, INCM, Lisboa, 2005, passim.
8
Refiro alguns: «Um caso de inovação conceptual. A formação da teoria kantiana do espaço»
(1746-1768)», in: Cultura, História e Filosofia, INIC/CHCUNL, Lisboa, vol, II, 1983, pp.1-
-23; «Kant e a controvérsia», Provas, INCM, Lisboa, 1986, pp.157-170; «De la typique
de la raison pratique ao schématisme de la communauté», Archives de Philosophie 64,
2001, pp.57-70; «Exemplo e pedra-de-toque em Kant», Análise, 15 (1990), pp.3-36;
«Inteligibilidade estrutural, inteligibilidade expressiva», in: Leonel Ribeiro dos Santos et
alii (coord.), Kant: Posteridade e Actualidade, CFUL, Lisboa, 2006, pp.77-84). Estes ensaios
seriam depois absorvidos, por vezes reelaborados, nos vários livros de Fernando Gil
publicados pela INCM.
9
No seu livro Modos da Evidência (INCM, Lisboa, 1998, pp.119 ss), Fernando Gil contra-
põe a «inteligibilidade operatória» de Leibniz à «inteligibilidade objectal» de Kant, nestes
termos: «…as categorias kantianas contribuem literalmente para constituir a experiência
[…], têm uma vocação objectivista, no sentido em que se dão como tarefa fornecer os
conceitos susceptíveis de subsumir – fundando-os – os elementos da experiência crítica…
Leibniz não procura uma inteligência imediata dos objectos […]. Leibniz prefere procurar
a inteligibilidade directa das operações de compreensão. […] Leibniz é … o filósofo dos
princípios e das hipóteses, que ele não distingue dos sistemas. […] Os princípios cha-
mados arquitectónicos… são a peça mestra da filosofia do conhecimento de Leibniz.
Eles situam-se entre o transcendental (são condições de possibilidade de organização da
experiência) e o empírico. Sem fazer o objecto de uma «dedução», impõem-se contudo
com uma pregnância que a sua força explicativa justifica e reforça. São ao mesmo tempo
factores de inteligibilidade e regras heurísticas capazes de inspirar um conhecimento
efectivo dos objectos… Se Kant é o filósofo do fundamento, dos elementos e do método
transcendental, Leibniz é o dos princípios, das hipóteses, das heurísticas.» Veja-se, nou-
tro lugar, a insistência nesta oposição paradigmática entre as duas concepções da activi-
dade filosófica, a leibnizana, como actividade hipotética, e a kantiana, como «busca de
um fundamento absoluto» (Mediações, INCM, Lisboa, 2001, pp.303 ss). Num seu ensaio,
intitulado «Inteligibilidade estrutural, inteligibilidade expressiva», em que aborda e dis-
cute expressamente o programa kantiano exposto na Crítica da Faculdade de Julgar, Fer-
nando Gil aponta a Kant a limitação de ter «pura e simplesmente ignorado tanto a inte-
ligibilidade estrutural como a inteligibilidade expressiva», e de ter deixado fora da sua
atenção a importância da causa formal, dando em contrapartida demasiada importância
à causa final e à finalidade. Nesse ensaio, contrapõe o programa da teleologia kantiana
ao programa «afinitário» estrutural-expressionista de Leibniz e ao morfológico de Goe-
the, sugerindo que Kant teria podido aproveitar melhor a lição de Leibniz. Escreve Gil:
«É minha hipótese que uma inteligibilidade estrutural-expressiva pouparia a Kant emba-
raços que derivam da finalidade, nomeadamente dever recorrer, pesadamente e sem
excepção a esta última sempre que o «mecânico» se revela insatisfatório. Há finalidade a
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Cadernos de História e Filosofia da Ciência, n. 5, 1983, pp.73-89.
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«Dies Geschäft ist bis jetzt noch wenig auseinandergesetzt worden, so sehr es auch
eine tiefere Untersuchung verdient.» Kritik der Urteilskraft, Ak V, 352.
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«Der höchste Akt der Vernunft... ein ästhetischer Akt ist. [...] Die Philosophie des
Geistes ist eine ästhetische Philosophie.» Das Älteste Systemmprogramm des Deutschen
Idealismus, in: Friedrich Hölderlin, Sämtliche Werke und Briefe, Hanser, München, Bd. I,
p. 918. O fragmentário manuscrito do documento foi redigido pela mão de Hegel, mas o
manifesto é atribuído igualmente a Schelling e a Hölderlin, na época estudantes de Teo-
logia e colegas na Stiftung de Tübingen.
15
«Das Poëm des Verstandes ist Philosophie – […] Einheit des Verstandes und der Einbil-
dungskraft.» Novalis, Schriften, WBG, Darmstadt, 1981, Bd. 2: Das philosophische Werk I,
531.
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Veja-se a reavaliação do programa da semântica transcendental feita por Joãosinho
Beckenkamp (“Conceito e significado: Sobre a leitura semântica da filosofia transcen-
dental de Kant”) in: Róbson Ramos dos Reis e Andréa Faggion (orgs.), Um Filósofo e a
Multiplicidade de Dizeres, Homenagem aos 70 anos de vida e 40 de Brasil de Zeljko Loparic,
CLE, Unicamp, Campinas, 2010, pp.179-190. Note-se que há pelo menos um outro
programa de interpretação “semântica” da filosofia de Kant, que se inspira, porém, na
filosofia analítica da linguagem, o de Wolfram Hogrebe, Kant und das Problem einer
Transzendentalen Semantik, Freiburg/München, 1974. Veja-se: J. A. Coffa, The Semantic
Tradition from Kant to Carnap, Cambridge U. P., Cambridge, 1993.
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Kritik der reinen Vernunft, B 862-865; Ak III, 540-541.
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«Hobbes e as metáforas do Estado», publicado em Dinâmica do Pensar. Homenagem a
Oswaldo Market, Departamento de Filosofia da FLUL, Lisboa, 1991, pp.217-242, e reto-
mado no meu livro O espírito da letra. Ensaios de hermenêutica da Modernidade, INCM,
Lisboa, 2007, pp.207-243. A sua primeira redacção é, porém, de 1977, tendo sido depois
apresentado num colóquio sobre «Analogia e Dialéctica», realizado na Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa, em Abril de 1986.
19
Veja-se, como expressivo exemplo, a obra recente de Claus Zittel, Theatrum philosophicum.
Descartes und die Rolle ästhetischer Formen in der Wissenschaft, Akademie Verlag, Berlin, 2009.
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Prof. Zeljko Loparic. As versões aqui propostas foram revistas e, por razões de
economia editorial, sofreram alterações relativamente às anteriormente publica-
das. Com excepção do terceiro ensaio, sobre a ideia de «Técnica da Natureza»,
na economia do qual a prova textual é muito relevante, as citações e as notas
foram abreviadas, tendo-se procedido à eliminação da maioria das transcrições
dos textos originais citados.
20
Róbson Ramos dos Reis e Andréa Faggion (orgs.), Um Filósofo e a Multiplicidade de Dizeres,
CLE, Campinas, 2010, pp.229-254.
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solícito apoio dado a essa edição pelo Prof. Doutor Pedro Calafate, Director do
Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa. A um e a outro aqui deixo expresso
o meu agradecimento. Mas sendo todo o volume constituído por ensaios que
resultaram de comunicações ou conferências proferidas em eventos kantianos
no Brasil e elaborados mesmo alguns deles no período em que estive como
Investigador Visitante, entre Abril e Setembro de 2008, na Faculdade de Filo-
sofia e Ciências da UNESP (Campus de Marília), justo é que vá dedicado aos
colegas e amigos kantianos brasileiros – ao Aylton Barbieri Durão, ao Ubirajara
Rancan de Azevedo Marques, ao Zeljko Loparic, ao saudoso Valerio Rohden, ao
Ricardo Ribeiro Terra, à Vera Cristina de Andrade Bueno, à Andréa Faggion, ao
Christian Hamm, ao Olavo Calábria Pimenta, ao Robinson dos Santos – os quais
me têm proporcionado a oportunidade de encontrar um auditório cada vez mais
vasto de interessados nos meus ensaios de interpretação da filosofia kantiana e
de assim ter podido usufruir também eu do extraordinário impulso e desenvolvi-
mento que os estudos kantianos vêm conhecendo no Brasil nos últimos anos.
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1
Analogia e conjectura no pensamento
cosmológico do jovem Kant
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«Es ist erlaubt, es ist anständig, sich mit dergleichen Vorstellungen zu belustigen.» Immanuel
Kant, Allgemeine Naturgeschichte und Theorie des Himmels, Ak I, 367.
2
Uma primeira versão abreviada deste capítulo, sob o título «Princípio de analogia e
conjectura no Kant pré-crítico», foi apresentada no X Colóquio Kant da UNICAMP –
«Problemas Semânticos na Filosofia de Kant» –, realizado no Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, de 19 a 21 de Maio de 2008.
Uma versão de alguns tópicos do mesmo, sob o título «Pressupostos epistémicos, meta-
físicos e teológicos da cosmologia do jovem Kant», foi apresentada no Simpósio Interna-
cional Philosophes savants / Savants philosophes, realizado na Universidade de Évora a 28
de Abril de 2009. Numa versão próxima da que aqui é proposta, ele foi publicado na
revista electrónica da Sociedade Kant Brasileira, Secção de Campinas: Kant e-Prints. Cam-
pinas, Série 2, v.4, n.1, pp.131-163, jan.-jun., 2009.
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A obra de 1755, quando apreciada por ela mesma, costuma sê-lo sobretudo
pela sua contribuição para a visão moderna do cosmos. Destaca-se então a
intenção do seu autor de construir uma visão sistemática do universo segundo
leis mecânicas e de acordo com os princípios de Newton. Se bem que uma tal
interpretação respeite a letra do propósito enunciado no título da obra, também
é verdade que lê-la como se ela se movimentasse apenas na sombra da influência
de Newton, como mera aplicação dos princípios cosmológicos deste autor, dis-
torce não só o seu espírito como até o alcance do seu conteúdo, mesmo se
entendida como proposta cosmológico-cosmogónica, pois em muitos aspectos
ela se afasta expressamente de Newton e vai muito além das perspectivas por
este avançadas, inspirando-se em muitos outros filósofos modernos e até anti-
gos. Quando lida na perspectiva da evolução e formação do pensamento kan-
tiano, da mesma forma esta obra juvenil tem servido ou para documentar a ins-
crição do primeiro pensamento de Kant na esteira dos temas e pressupostos da
cosmologia e filosofia natural newtoniana ou para reconhecer a importância que
as preocupações cosmológicas desempenham na filosofia kantiana desde os escri-
3
tos de juventude às reflexões do Opus postumum. Todas estas linhas de leitura
têm sem dúvida a sua pertinência. Não esgotam, porém, o conteúdo duma obra
que pode e deve considerar-se como sendo efectivamente a primeira grande
síntese original do pensamento kantiano, moldada por certo em matéria cos-
mológica, na qual, porém, o filósofo deixa enunciados temas e problemas não só
de natureza cosmológica, mas também de índole teológica, antropológica e
epistemológica, cujos desenvolvimentos, modulações e orquestração se deixarão
ouvir nos grandes escritos da década de 80 e nomeadamente na terceira Crítica.
A obra tem por isso um iniludível carácter seminal.
Neste ensaio vou concentrar-me não tanto na descrição das hipóteses ou
propostas cosmológico-cosmogónicas de Kant acerca da constituição sistemática
do universo e da respectiva formação (a partir de um estado caótico originário
até aos hipersistemas de sistemas de estrelas que são as galáxias, de uma das
quais – a Via Láctea – o sistema solar, do qual faz parte a Terra, é apenas um
minúsculo arquipélago) quanto no levantamento dos pressupostos epistémicos
que lhes presidem. A referência àquelas hipóteses será feita apenas na medida
em que for necessário para melhor entender as perspectivas epistémicas a partir
das quais o jovem filósofo enuncia as suas conjecturas.
3
Veja-se: W. H. Werkmeister, Kant. The Architectonic and Development of His Philosophy,
La Salle/London, 1980, pp.9-11, 160, 188. Como noutro lugar extensamente mostrei, as
representações cosmológicas configuram a própria noção kantiana de sistema, a metafó-
rica kantiana, a representação do sistema federal e cosmopolita dos Estados. Veja-se o
meu livro Metáforas da Razão ou economia poética do pensar kantiano, cap. V: «Poética do
Cosmos – Poética da Razão. Analogias cosmológicas na filosofia de Kant», pp.447-505.
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2. Analogia e conjectura
no pensamento moderno anterior a Kant
Para justificar a proposta do tema e, por assim dizer, para limpar o terreno em
que ele se implanta, consinta-se-me que faça um breve apontamento a propósito
de uma bem conhecida interpretação da Modernidade que aparentemente retira-
ria àquele toda a pertinência. De facto, alguns conhecidos hermeneutas defende-
ram a tese segundo a qual o pensamento moderno se caracterizaria precisamente
pelo abandono e rejeição da analogia, entenda-se esta na forma clássica e medie-
val da analogia entis ou na forma renascentista como crença na universal cor-
respondência e ubíqua semelhança dos seres e elementos do mundo físico, humano
e espiritual, do microcosmos e do macrocosmo, correspondência e semelhança
sustentadas por uma ontologia vitalista e mágica ou regidas pela lei da sympa-
thia/antipathia rerum.
Michel Foucault foi quem mais extremou essa leitura. Na sua obra Les mots
et les choses (1966), ele escreve: «A partir do século XVII a semelhança – e com
ela a analogia – é repelida para os confins do saber, para a zona das suas frontei-
4
ras mais reduzidas e mais humildes.» Essas zonas humildes são aquelas que,
desqualificadas pelo pensar da ordem e da medida, não podem pretender já a um
estatuto de cientificidade: a poesia, a retórica, a religião. Isso significaria que a
analogia teria perdido o seu interesse no âmbito da epistéme da Modernidade, a
qual teria alcançado a sua auto-evidência no programa cartesiano da matese
como ciência geral da ordem e da medida.
Num ensaio publicado em 1990, tive ocasião de refutar a interpretação de
5
Foucault no que a Descartes se refere. Aí concluía, contra Foucault e também
contra Jean-Luc Marion, que a analogia continua efectivamente a desempenhar
um papel fundamental não só no pensamento cartesiano como também no pen-
samento moderno, mas que, ao mesmo tempo, se altera a sua natureza e função,
aspecto este que aqueles intérpretes não viram. Ela deixa de ser sustentada por
uma ontologia hierárquica e de participação do ser ou pela ideia renascentista de
uma simpatia universal dos elementos e dos seres, passando a ser entendida
como um procedimento próprio do espírito humano na sua actividade de se
assenhorear do mundo pelo conhecimento. Decai o sentido do uso predomi-
4
Les mots et les choses, Paris, 1966 (trad. port.: Portugália, Lisboa, s.d., p.78). Esta tese
foi sustentada por vários intérpretes franceses do cartesianismo (L. Brunschvicg, É. Gil-
son, H. Gouhier), sendo de destacar Jean-Luc Marion, Sur la théologie blanche de Des-
cartes. Analogie, création des vérités éternelles et fondement, Paris, 1981 (pp. 14, 428-429,
432-439, 453-454).
5
«Descartes e a concepção moderna da analogia», in: Revista da Faculdade de Letras
(Universidade de Lisboa), retomado in: Leonel Ribeiro dos Santos, Retórica da evidência
ou Descartes segundo a ordem das imagens, Quarteto, Coimbra, 2001, pp.105-112.
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Desse modo, uma filosofia da «douta ignorância», que parecia negar o poder de
conhecimento à mente humana, abre-lhe, pelo contrário, um espaço ilimitado de
criação na demanda sem termo das conjecturas mais verdadeiras acerca de tudo
o que é possível saber de algum modo, embora com a consciência de que a pre-
9
cisão absoluta é inatingível.
No contexto do pensamento moderno anterior a Kant não é uniforme a
atitude dos pensadores em relação a este tópico da conjunção entre a analogia e
o pensamento conjecturante. Se há pensadores que recorrem de bom grado às
analogias e conjecturas, combinando-as mesmo com os métodos da nova ciência
físico-matemática e se propõem, como Kepler, «percorrer os labirintos dos mis-
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térios da natureza seguindo o fio condutor da analogia» (no seu caso, sobre-
tudo o fio condutor das analogias musicais e geométricas), outros há que defen-
dem como legítimo apenas o conhecimento que se pode extrair por indução a
partir da observação dos fenómenos, ou que pode ser confirmado por experiên-
11
cias, rejeitando não só as conjecturas e suposições como até as hipóteses.
Descartes, o filósofo do método e da matese como ciência geral da ordem e
da medida, pode ainda assim ser considerado como um genuíno representante
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Descartes, Principes de la Philosophie, ed.Adam-Tannery, IX, 123.
15
Isaac Newton, Philosophiae Naturalis Principia Mathematica, in: Opera quae exstant omnia,
ed. S. Horsley, London, 1782 (reimpr.: Fromann, Stuttgart-Bad Cannstatt, 1964), III, pp.
173-174.
16
A menos que se interprete o empreendimento de Newton já naquele surpreendente sen-
tido em que o fará Kant, muito mais tarde, em algumas das páginas do Opus postumum
(Ak XXII, 512-513 e 521-523), nas quais reavalia o significado da principal obra de
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Newton para a filosofia, apontando até a impropriedade do seu título (pois, segundo
escreve, propriamente falando, não há «princípios matemáticos da filosofia»). Aí escreve
Kant (pp.521-523): «Constitui verdadeiramente um fenómeno notável no campo da
ciência que tenha havido um momento em que o seu progresso parecia terminado, em
que o navio estava ancorado, e em que nada mais havia a fazer em relação à filosofia
num dos seus ramos. As três analogias de Kepler tinham calculado satisfatoriamente,
mas apenas empiricamente, os fenómenos das revoluções dos planetas e tinham-nos
descrito matematicamente sem suspeitar todavia das forças motrizes com as suas leis que
poderiam ser as causas disso. […] Huyghens pôde nomear as forças centrípetas e cen-
trífugas e, todavia, a teoria de Newton não estava encontrada. Faltava-lhe a atracção.
Então aparece Newton e, procedendo como filósofo, introduz no Universo uma força
motriz […] chamada atracção gravitacional, como atracção cósmica universal de todos
os corpos através do espaço vazio, bem como os movimentos devidos às forças centrais;
a este princípio dinâmico acrescentou um outro, precisamente o duma repulsão que
preenche o espaço, e isso a priori segundo princípios.» Numa outra passagem (Ak XXII,
512-513), o velho filósofo é ainda mais explícito na interpretação que faz do significado
da «revolução newtoniana» (dela fala, com efeito, como tratando-se de um «acto de
violência»!) para a filosofia da natureza: «[…] as três analogias de Kepler conduziram ao
acto de violência de Newton de invocar a atracção gravitacional para a física, mediante
uma hipótese ousada [kühne] mas inevitável; mediante isto, a matemática foi armada, em
proveito da ciência da natureza, dum poder, o de prescrever a priori à natureza leis que
ela, sem este órgão, não teria absolutamente podido usar para a filosofia. […] Foi
mediante a filosofia, pois, e não mediante a matemática, que Newton fez a conquista
mais importante.» Estou consciente do debate não concluído em torno do sentido e
alcance da supracitada declaração de Newton acerca das hipóteses. Propriamente
falando, ela refere-se apenas à questão da causa das propriedades da gravidade, que o
filósofo inglês confessa não ter podido ainda deduzir dos fenómenos (rationem vero
Gravitatis proprietatum ex Phaenomenis nondum potui deducere, et hypotheses non fingo.
Quicquid enim ex phaenomenis non deducitur, hypothesis vocanda est). Mas extrair desta
passagem uma declaração de alcance geral, como expressão do método filosófico-cientí-
fico newtoniano pode ser desmentido pela própria prática científica de Newton, na qual
(mesmo se abundam nos Principia e na Óptica declarações do género «For Hypotheses
are not to be regarded in Experimental Philosophy», Opticks, Opera quae exstant omnia,
IV, London, 1782, pp. 5, 263), muitas vezes são formuladas hipóteses, ou pelo menos se
parte de pressupostos que de modo nenhum são extraídos directamente dos fenómenos,
como é o caso das «Regulae philosophandi» propostas nos Principia, entre as quais se
conta precisamente a da «analogia da natureza» (isto é, o pressuposto da uniformidade
ou homogeneidade da natureza) e a da economia da natureza – lex parsimoniae – ditas
em formulações que também encontramos dispersas pela Óptica, como estas: «a natu-
reza é constante e conforme a si mesma» (natura est consimilis sui); «a natureza é muito
conforme a si mesma e muito simples»; «a natureza é muito simples e não se serve do
luxo de causas supérfluas das coisas». Opticks, ib., IV, pp. 242, 258, 262; Óptica, trad.
port., Abril Cultural, pp. 166, 191, 201, 204.
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Ak I, 221. Veja-se o ensaio de Jean Seidengart, «Genèse et structure de la cosmologie
kantienne précritique», que serve de Introdução à edição da tradução francesa da obra
de Kant, Histoire générale de la nature et théorie du ciel, Vrin, Paris, 1984, pp.7-59.
20
Ak I, 228.
21
Descartes, Le Monde, chap. vi-vii, AT XI, 34-36.
22
Ak I, 229-230. Não nos espante esta hybris demiúrgica dos filósofos-cosmólogos. Com
efeito, já o platónico Marsílio Ficino, falando a propósito da «máquina do mundo» fabri-
cada por Arquimedes, escrevia que aquele que é capaz de compreender a ordem do firma-
mento, os seus movimentos e as medidas que os regem, é como se fosse ele mesmo o seu
autor e seria capaz de efectivamente o fazer, se para isso dispusesse dos instrumentos e da
matéria: «Cum igitur homo caelorum ordinem unde moveantur, quo progrediantur et
quibus mensuris, quidve pariant, viderit, quis neget eum esse ingenio, ut ita loquar, pene
eodem quo et auctor ille caelorum, ac posse quodammodo caelos facere, si instrumenta
nactus fuerit materiamque caelestem, postquam facit eos nunc, licet ex alia materia, tamen
persimiles ordine?» Theologia Platonica de Immortalitate Animorum, lib. XIII, cap. III (ed.
Belles Lettres, Paris, Tome II, 1964, p.227).
23
Ak I, 234-235. Newton, por seu turno, na Óptica, visando sem dúvida a cosmologia de
Descartes exposta no Le Monde, considera como sendo “não filosófico” pretender que o
mundo teve origem no caos, tendo antes sido composto e estabelecido na ordem “in the
first creation by the counsel of an intelligent Agent. And if he did so, it is unphilosophi-
cal to seek for any other origin of the world, or to pretend that it might arise out of a
chaos by the mere laws of Nature.” Optics, Opera quae exstant omnia, IV, p.261.
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Ak I, 236.
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Ak I, 235.
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An Original Theory and new Hypothesis of the Universe, London, 1750. A revista onde Kant
pôde ler uma breve recensão da obra era a Freien Urtheilen und Nachrichten zum Aufnehmen
der Wissenschaften und Historie überhaupt (Hamburg, 1751, n.os I,II,III). Kant, ao mesmo
tempo que confessava a sua dívida em relação ao cosmólogo inglês, declarava não saber
até que ponto a sua própria hipótese se identificava ou divergia da que lhe serviu de
inspiração, por não ter acesso directamente à obra daquele.
30
Kant usa e cita um resumo, publicado nas Acta Eruditorum de 1745, da obra Discours
sur les différentes figures des astres, avec une exposition des systèmes de MM. Descartes et
Newton, Paris 1732 e 1742.
35
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
finalmente, da ideia proposta por James Bradley sobre o movimento das estrelas
31
fixas, fenómeno documentado pelas observações comparadas de astrónomos de
diferentes épocas suficientemente distantes entre si, como era o caso de Tycho
Brahe e Flammsteed. Kant cita ainda, no Prefácio, uma História Geral do Uni-
verso de dois autores ingleses (Campbell e Swinton), que conhece na tradução
alemã (Allgemeine Welthistorie, die in England durch eine Gesellschaft von Gelehr-
ten angefertiget worden, 1744), de onde transcreve uma passagem referente a
Descartes, a qual nos revela que associava expressamente o seu empreendimento
ao do autor do Le Monde, «que se atrevera a explicar a formação dos corpos
32
mundanos a partir de meras leis mecânicas». Há ainda outros autores, citados
33
mais ou menos de passagem, como é o caso de Buffon e de William Derham,
autor de uma Astroteologia, na qual se aventava a ideia fantasiosa segundo a qual
as nebulosas seriam como buracos no firmamento através dos quais se acedia ao
34
céu de fogo. Da combinação destas sugestões retira Kant indicações de uma
ideia à qual ele crê poder dar uma maior verosimilhança e um mais coerente
desenvolvimento. Em suma, o inventário revela que o jovem filósofo se inspira
em fontes ecléticas e trabalha com materiais heteróclitos. De tudo isso só pode
resultar um discurso que em muitos dos seus pontos se apresenta como fundado
em «suposições apenas verosímeis» (auf wahrscheinliche Vermutungen) ou em
«conjecturas» (Muthmassungen), embora, ao mesmo tempo, o seu autor, guiando-
-se pelo fio condutor das analogias físicas e pela lei de continuidade, cuide de
manter a pertinência das suas propostas, evitando perder-se nas «arbitrárias
invenções» (willkührliche Erdichtungen) da fantasia.
Para cúmulo, as considerações e teorias cosmológicas propostas na obra
estão entretecidas com citações de vários poetas metafísicos da época (o suíço
Albrecht von Haller, professor em Göttingen e também ele cosmólogo, e os
ingleses Joseph Addison e Alexander Pope, autor do Essay on Man). A presença
citada deste último é tal que um comentador da obra de Kant chega a dizer que
35
ela é uma espécie de glosa em prosa dos versos de Pope , enquanto outros
31
«A Letter to the Right Honourable Georg Earl of Macclesfield concerning an apparent
Motion observed in some of the fixed Stars», publicada nas Philosophical Transactions
(1748), que Kant leu na tradução alemã publicada no Hamburgisches Magazin desse mesmo
ano.
32
Ak I, 228.
33
Histoire naturelle générale et particulière, Paris, 1749, lida na tradução alemã: Allgemeine
Historie der Natur nach ihren besonderen Theilen, Hamburg /Leipzig, 1750.
34
Astrotheology or a Demonstration of the Being and Attributes of God from a Survey of the
Heavens, London, 1715 (que Kant leu na trad. alemã de Fabricius, publicada em Ham-
burgo, em 1728, sob o título: Astrotheologie, oder Himmlische Vergnügen in Gott).
35
Arthur O. Lovejoy, The Great Chain of Being. A Study of the History of an Idea, Cambridge,
Mas., 1961, pp. 190-194, 367.
36
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
comentadores sugerem que ela deve ser lida não tanto como uma obra de cos-
mologia científica, mas mais como um verdadeiro e grandioso poema cosmogó-
nico.
Mas o que a obra juvenil de Kant testemunha exemplarmente é toda a ins-
trumentação da heurística kantiana em acção, organizada sobretudo em torno
do princípio de analogia. Por certo, só mais tarde Kant irá explicitar esses pres-
supostos da sua heurística filosófica, mas esta obra é porventura a melhor
amostra do modo como ele próprio a praticava com toda a agilidade e fecundi-
36
dade. O impulso racional para alcançar uma visão sistemática do universo
nutre-se do pressuposto da unidade ou homogeneidade da natureza e do princí-
pio de continuidade, de pregnância (da procura do máximo de inteligibilidade)
e de plenitude (dito sob a forma da «fecundidade do sistema») que o levam a
estender a teoria até aos seus máximos limites, não se contentando com explicar
uma parte apenas do universo, mas esforçando-se por projectar uma luz sobre o
todo, seguindo «o fio condutor da analogia» (Leitfaden der Analogie), sempre
invocado e assumido na sua função supletiva de demonstrações apodícticas ou
geométricas, que o jovem filósofo sabe não serem possíveis em todos os aspectos
do objecto em questão.
Em vários momentos da obra, Kant pronuncia-se expressamente sobre o
valor epistémico das diferentes partes e teses da obra, sobre a impossibilidade de
nelas assegurar o rigor das demonstrações geométricas, mas também sobre a
legitimidade do recurso a analogias para sustentar muitas das ideias propostas.
No final do longo Prefácio, lê-se esta declaração geral, que merece ser citada em
toda a sua extensão:
Seja-me permitido dar uma breve explicação a respeito da validade e do
pretenso valor [wegen der Gültigkeit und des angeblichen Werthes] das afir-
mações que aparecerão na teoria que proponho e pelas quais desejo ser
examinado por juízes justos. Julga-se com justiça o autor de acordo com o
selo que ele imprime na sua mercadoria; e por isso espero que nas diferen-
tes partes deste tratado não se exija nenhuma responsabilidade mais rigo-
rosa das minhas opiniões que não esteja na proporção do valor que eu pró-
prio lhes atribuo. Em geral, nunca um tratado deste género pode alcançar a
máxima precisão geométrica e a infalibilidade matemática. Se o sistema está
36
Veja-se o meu ensaio: «L’apport de Kant au programme de l’ars inveniendi des Modernes»,
apresentado no Congresso Ítalo-Luso-Brasileiro de Verona-Pádua (22-25 de Janeiro de
2008), «Kant and Philosophical Tradition-Kant Today», em: Kant e-Prints. Campinas,
série 2, v.3, n. 2, pp.297-323, jul.-dez., 2008. Em versão portuguesa ampliada, sob o
título «Kant e a ideia de uma heurística transcendental», in: Razão e Liberdade. Homena-
gem a Manuel José do Carmo Ferreira, CFUL, Lisboa, 2009, pp.1097-1111. Neste volume,
capítulo 2.
37
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
38
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
por auxílio a analogia, a qual nos deve guiar sempre naqueles casos em que
o entendimento carece do fio das demonstrações infalíveis [wenn man die
Analogie zu Hülfe nimmt, welche uns allemal in solchen Fällen leiten muss, wo
38
dem Verstande der Faden der untrüglichen Beweise mangelt].
Para além destas declarações gerais, também a propósito de muitas das suas
teses particulares Kant adverte para o seu estatuto de meras conjecturas, as quais
são propostas ao juízo do leitor para que as examine e lhes dê livre aprovação ou
as rejeite e até para que se torne ele próprio inventor de melhores soluções. A
explicação proposta para a luz zodiacal termina com esta declaração:
A presente explicação não tem mais dignidade do que aquela que cabe às
conjecturas e nenhuma pretensão a não ser a um livre assentimento; o juízo
do leitor pode inclinar-se para aquela solução que lhe pareça ser a mais
39
digna de aceitação.
E não falta mesmo neste ensaio o toque de auto-ironia do seu autor, mediante
o qual se retira à obra o carácter de grave seriedade e se a considera como se ela
fosse um mero exercício lúdico. É uma estratégia retórica, que se lhe tornará carac-
40
terística e que, de resto, fora usada por muitos dos grandes filósofos. E assim, evo-
cando uma conhecida fábula de Christian Gellert (Hans Nord), escreve Kant:
Se convido o leitor bem disposto a examinar as minhas opiniões, temo com
razão – já que as hipóteses deste tipo não são vulgarmente muito melhor
consideradas do que os sonhos filosóficos – que seja para ele um amargo
prazer decidir-se por uma investigação cuidadosa acerca de histórias da
natureza puramente imaginadas e seguir pacientemente o autor através de
todos os meandros pelos quais ele evita as dificuldades com que se defronta,
para finalmente talvez se rir da sua própria credulidade, tal como os espec-
41
tadores do charlatão londrino.
Se em muitos casos «a observação torna a conjectura praticamente indubi-
42
tável» [Die Beobachtung macht diese Muthmassung beinahe ungezweifelt], tam-
bém é verdade que a indemonstrabilidade actual de uma dada conjectura não
constitui por si critério suficiente para que a recusemos como carente de perti-
nência, pois o que hoje não é observável ou demonstrável pode vir a sê-lo no
38
Ak I, 315.
39
Ak I, 306.
40
Sobre a «ironia kantiana», veja-se o meu livro Metáforas da Razão ou economia poética do
pensar kantiano, pp.556-560.
41
Ak I, 234. Christian Fürchtegott Gellert (1715-1769) foi um influente poeta da Aufklärung
conhecido sobretudo pelas suas fábulas.
42
Ak I, 307.
39
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
43
Ak I, 278.
44
«Es steht hier ein weites Feld zu Entdeckungen offen, wozu die Beobachtung den Schlüs-
sel geben muss.[...] Wenn man die Theile der Natur nach Absichten und einem entdeckten
Entwurfe betrachtet, so eröffnen sich gewisse Eigenschaften, die sonst übersehen werden
und verborgen bleiben, wenn sich die Beobachtung ohne Anleitung auf alle Gegenstände
zerstreut.» Ak I, 255. Esta passagem revela a clara consciência que o jovem Kant tem da
função heurística do princípio teleológico, aliás explicitamente formulado.
40
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
45
«Wenn das System auf Analogien und Übereinstimmungen, nach den Regeln der Glaub-
würdigkeit und einer richtigen Denkungsart, gegründet ist: so hat es allen Forderungen
seines Objekts genuggetan.” Ak I, 235.
46
Ak I, 255.
47
Ak I, 335. Na mesma linha, após ter dado uma explicação da formação de todo o universo
tomando como amostra a formação do anel de Saturno, desenvolve uma comparação entre a
densidade relativa da matéria solar e da matéria dos planetas, declara: «Concluo este capítulo
acrescentando uma analogia [Analogie] que por si só pode elevar a presente teoria da forma-
ção mecânica dos corpos celestes para além da verosimilhança da hipótese a uma certeza
formal [über die Wahrscheinlichkeit der Hypothese zu einer förmlichen Gewissheit erheben
kann.]» E Kant prossegue, perguntando: «Se as consequências não artificiosas e necessárias
de uma doutrina encontram confirmações tão felizes nas relações efectivas da natureza, será
que devemos crer que é o simples acaso que produz esta concordância entre a teoria e a
observação?» Ak I, 277.
48
Ak I, 304.
41
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
Mais do que uma vez expressamente Kant remete para o futuro a desco-
berta das provas ou confirmações experimentais que hão-de dar razão da justeza
das suas intuições. E algumas destas foram de facto confirmadas ainda em vida
do filósofo, como foi o caso da descoberta de um novo planeta para além de
Saturno (o planeta Urano, em 1781), para já não falar da confirmação da sua
hipótese da formação do sistema solar e da Via Láctea, primeiro por parte de
Lambert (Cosmologische Briefe, 1761) e depois por parte do matemático-cosmó-
logo Simon Laplace (Système du Monde, 1796), ambos, segundo se crê, sem
49
terem tido prévio conhecimento da obra kantiana e da teoria nela exposta.
O recurso à conjectura revela e requer um espírito de aventura que está ao
serviço de um processo de acesso ao desconhecido, apresentado como uma
promissora viagem de descobrimento que não defraudará as expectativas dos
que nela venham a envolver-se. Não é por acaso que a obra é proposta como
uma arriscada empresa de viagem pelos oceanos cósmicos, pensada por analogia
com a viagem de descoberta do Novo Mundo por Cristóvão Colombo. Lê-se no
Prefácio: «Empreendi uma perigosa viagem com base numa frágil suposição e
avisto já ao longe os promontórios de novas terras. Aqueles que tiverem a cora-
gem de prosseguir a pesquisa hão-de caminhar sobre elas e terão o prazer de as
50
designar eles próprios com os seus nomes.» Se, na versão publicada, a alusão
ao navegador-descobridor aparece cifrada, esbatida e vaga, já no esboço do Pre-
fácio, encontrado entre os papéis do espólio do filósofo, ela surge explícita e
convicta: «Como Colombo, eu empreendi uma perigosa viagem com base numa
51
frágil suposição e descobri uma nova terra.»
Nesta aventura, onde a ousadia tem a sua boa parte – amiúde se fala da
«audácia» ou «ousadia do empreendimento» (die Kühnheit dieses Unterneh-
49
De facto, a obra de Kant, como alguém escreveu, teve o destino de um «nado-morto», pois,
devido à falência do seu editor, ela não teve adequada divulgação. Depois que, em 1761, nas
Cosmologische Briefe, J.-H. Lambert apresentou uma teoria muito semelhante à que ele pró-
prio propusera 6 anos antes, o filósofo sente a necessidade de, num ensaio de 1763, dar um
resumo da tese central da sua obra de 1755, aproveitando a ocasião para se referir à tese de
Lambert, lendo-a não como um plágio e sim como uma confirmação da sua própria, adu-
zindo inclusivamente a razão para o desconhecimento que a envolveu. Der einzige mögliche
Beweisgrund, Ak II, 68-69. Apesar das semelhanças, há contudo diferenças importantes entre
as hipóteses cosmológicas de Kant e de Lambert. Veja-se, a propósito, Hans Blumenberg, Die
Genesis der kopernikanischen Welt, Suhrkamp, Frankfurt a. M., 1981, Bd.3, 670. Também se
crê que Laplace não conhecia a obra de Kant, e nem mesmo a hipótese nela exposta, o que já
é bastante menos verosímil e difícil de admitir, embora a tese do cosmólogo francês tenha
um alcance muito mais limitado do que a do filósofo alemão.
50
Ak I, 221.
51
Vorredeentwurf z. Allg. Nat. u. Theorie des Himmels, Ak XXIII, 11. Veja-se o meu ensaio:
«Os Descobrimentos e a retórica da razão moderna» [1998/2000], in: Leonel Ribeiro dos
Santos, O espírito da letra. Ensaios de Hermenêutica da Modernidade, INCM, Lisboa, 2007,
pp.155 ss.
42
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
52
mens) –, Kant está bem ciente do risco que corre de romper o frágil equilíbrio
que garante às suas analogias e conjecturas a pertinência e a credibilidade racio-
nal e de vir a perder-se nos delírios da fantasia. Ao longo da sua obra ele crê ter
evitado isso mantendo-se fiel a dois critérios: ao fio condutor do princípio de
continuidade, que o impede de dar saltos no vazio, e ao «fio condutor das rela-
ções físicas», que lhe garante sempre alguma fundada verosimilhança. Isso o
leva a escrever, já na Terceira Parte da obra:
Seguimos as conjecturas até agora apresentadas rigorosamente ao fio das
relações físicas, o que nos permitiu manter-nos no caminho de uma credi-
bilidade racional. Mas se quisermos permitir-nos um desvio desta linha
para o campo da fantasia, quem nos mostrará os limites onde termina a
53
fundada verosimilhança e começam as arbitrárias invenções?
Seguidamente podemos ver como esses critérios se combinam para legiti-
mar as considerações propostas na última secção da obra.
43
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
XVIII entre filósofos, poetas e naturalistas, circulando como uma «frase sagrada»
56
carregada de pregnância semântica. Mas, segundo o mesmo Lovejoy, é na obra
juvenil de Kant que esse tópico recebe a «mais entusiástica elaboração». Será
ainda com essa mesma imagem que, mais tarde, o autor da Crítica do Juízo vai
expôr a sua concepção teleológica da natureza – segundo a qual, cada ser,
incluindo o próprio homem enquanto também é um ser da natureza, é como um
«membro na cadeia dos fins da natureza», cadeia onde cada qual é simultanea-
mente fim e meio relativamente aos outros.
Mas qual o lugar – físico, espiritual e moral – do homem nessa «cadeia»?
É a esta questão que pretende responder a III Parte do ensaio de cosmogo-
nia de 1755. E para tornar mais verosímeis as suas conjecturas (Muthmassungen)
a esse respeito, Kant propõe-se ainda nisso seguir o «fio condutor das relações
físicas» (Leitfaden der physischen Verhältnisse), o que o leva às seguintes pressu-
posições: 1ª) que a constituição física e elementar dos planetas deve com toda a
verosimilhança depender da respectiva distância relativamente ao seu centro de
calor; e, por conseguinte, quanto mais afastados do Sol, tanto mais subtil deverá
ser a sua constituição elementar e material, pois menos precisam da acção
directa do Sol; 2ª) que deve existir uma relação ou proporção entre a «constitui-
ção da matéria» (Beschaffenheit der Materie) dos planetas e a «capacidade espi-
ritual» (geistige Fähigkeit) e «constituição moral» (moralische Beschaffenheit) dos
57
respectivos habitantes que neles possa haver.
De acordo com estes dois pressupostos, os habitantes espiritual e material-
mente mais perfeitos no sistema solar deveriam ser os de Júpiter e de Saturno, se
os houve, houver ou vier a haver, coisa que Kant não podia saber, mas que
admitia como possível, não só no presente, mas no passado ou no futuro. Mas o
que importa é usar o princípio analógico para compreender o que se passa com
o habitante deste planeta intermédio que é a Terra. Ora, segundo Kant, dada a
sua constituição elementar e a sua condição espiritual e moral, a natureza
humana só poderia ocupar no sistema solar um planeta como a Terra. Pois a
natureza humana ocupa na escada dos seres como que o degrau mais médio,
encontrando-se no meio entre os dois extremos limites da perfeição de cujas
extremidades se encontra igualmente muito afastada. Corresponde-lhe, por isso,
como lugar de habitação, um planeta que é, juntamente com Marte «o membro
mais médio do sistema planetário» (die mittelsten Glieder des planetischen Systems),
e quanto à condição moral, em conformidade ainda com a analogia, ela situa-se
56
Lovejoy, The Great Chain of Being, pp.183 ss.
57
Um maior desenvolvimento deste tópico pode ver-se no meu ensaio «A antropocosmologia
do jovem Kant», in: Leonel Ribeiro dos Santos, Ubirajara R. de Azevedo Marques, Gregorio
Piaia, Marco Sgarbi, Riccardo Pozzo (coord.), Was ist der Mensch?/ Que é o Homem? – Antro-
pologia, Estética e Teleologia em Kant, CFUL, Lisboa, 2010, pp.219-230.
44
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
45
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
62
Bemerkungen zu Beobachtungen, Ak XX,41. Como já o dizia Cassirer (ob.cit., p. 65):
«Kant investiga a ‘natureza’ para nela encontrar o ‘homem’». Kant, como vimos, não
atribuía por certo a esta parte da sua obra a mesma verosimilhança que atribuía às ante-
riores, mas disso não se pode concluir que não lhe reconhecia qualquer valor. Não se
entende por isso a atitude daqueles que, na tradução que da obra oferecem, prescindem
totalmente da sua terceira parte, como é o caso de W. Hastie, editor e tradutor da obra,
publicada sob o título: Kant’s Cosmogony as in his Essay on the Retardation of the Rotation
of the Earth and his Natural History and Theory of the Heavens, Glasgow, 1900 (reim-
pressa, igualmente truncada, pela Thoemes Press, Bristol, 1993).
63
Opus postumum, Ak XXI, 27, 36-37.
46
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
racionais. A ideia de que o cosmos pudesse ser habitado por outros seres racio-
nais e que, por conseguinte, o homem não fosse o único ser dotado de razão,
estava muito disseminada entre os pensadores renascentistas e modernos. Nico-
lau de Cusa abordara-a já na II Parte da sua obra Da douta ignorância, onde
expõe a sua cosmologia. Sucessivamente, grandes cosmólogos e filósofos da
natureza, como Bruno (Do infinito…, 1583), Campanella (Apologia pro Galileo,
1622), Descartes (Correspondance avec Burman), Christian Huyghens (Cosmo-
theoros sive de terris coelestibus earumque ornatu conjecturae, 1698), aduziriam
razões de plausibilidade ou mesmo de conveniência para uma tal hipótese e toda
uma vasta galeria de escritores, como Pierre Borel (Discours nouveau prouvant la
pluralité des mondes, que les astres sont des terres habités et la terre une étoile,
1657), Robert Burton (The Anatomy of Melancholy, 1638), François Bernier,
John Wilkins, Cyrano de Bergerac, Fontenelle, entre muitos outros, populariza-
64
ram a ideia. No tempo de Kant tal convicção estava de tal modo disseminada,
mesmo entre os pensadores da «Aufklärung», que Hans Blumenberg vai ao
ponto de dizer que ela tinha «o estatuto de um postulado prático» (den Rang
65
eines praktischen Postulats).
As razões e fundamentos apresentados para sustentar tal conjectura são
muito diversos naqueles autores. Mas o mais recorrente entre os filósofos é pre-
cisamente a invocação do princípio de plenitude, de pregnância e de continui-
dade, associados ao princípio de homogeneidade de todas as regiões do uni-
verso, segundo o qual os mesmos princípios valem em todo o espaço cósmico.
Desse modo, nenhum planeta tem direito a reclamar vantagens em relação aos
outros. Num universo, agora pensado como ilimitado ou mesmo como infinito,
que sentido faria pretender afirmar que só a Terra, um insignificante planeta,
fosse habitado, e que, em contrapartida, todos os inumeráveis planetas de outros
inumeráveis sóis não o fossem ou não pudessem vir a sê-lo? No seu Cosmotheo-
ros sive de terris coelestibus earumque ornatu conjecturae (publicação póstuma:
1698), Christian Huyghens recenseia, discute e rejeita muitas das ideias ante-
riormente apresentadas pelos filósofos para dar credibilidade a essa conjectura.
E a principal razão que ele próprio apresenta é que, se os outros planetas não
fossem habitados ou habitáveis, a Terra teria sobre eles uma vantagem que não
corresponderia à sua importância e que, além disso, para que o universo pudesse
ser apreciado em toda a sua beleza, seriam necessários espectadores racionais
nos outros planetas. Huyghens vê isso como uma consequência do princípio,
64
Veja-se: Steven J. Dick, Plurality of the Worlds: The Origin of the Extraterrestrial Life
Debate from Democritus to Kant, Cambridge University Press, Cambridge, 1982; J.
Crowe, The Extraterrestrial Life Debate 1750-1900. The Idea of a Plurality of Worlds from
Kant to Lowel, Cambridge University Press, Cambridge, 1986.
65
Die Genesis der kopernikanischen Welt, Suhrkamp, Frankfurt a.M., 1981, p.789.
47
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
admitido, segundo ele, pelos principais filósofos da sua época, segundo o qual a
66
natureza do universo é idêntica em toda a parte. É sabido o quanto esta ideia –
da habitabilidade de outros planetas por seres presumivelmente tão ou mais
racionais quanto o homem – contribuiu para a desconstrução das formas do
67
antropocentrismo teológico e filosófico na primeira Modernidade. No que a
Kant diz respeito, não se pense que tal ideia só aparece neste escrito de juven-
tude. Ela insinua-se ainda na própria formulação dos princípios da moral kan-
tiana do período crítico, pensados para seres racionais em geral e não apenas
68
para homens. Sob a estranha ideia kantiana do «reino dos fins» o que se diz é
essa possibilidade de o homem pela sua auto-legislação moral se colocar na
ampla comunidade dos seres racionais onde quer que eles existam. E, na tardia
Antropologia segundo um ponto de vista pragmático (1798), o filósofo admite
ainda que «pode muito bem acontecer que existam seres racionais em algum
69
outro planeta.»
48
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
70
Que esta dimensão estética não é algo acidental, mas sim um ingrediente essencial de
todo o conhecimento, mesmo do científico – não, por certo, enquanto conhecimento
objectivo (referente às qualidades do objecto), mas enquanto conhecimento que é tam-
bém uma vivência de um sujeito –, pode ver-se pelo tratamento explícito que o assunto
virá a merecer no contexto da Crítica do Juízo (Einleitung, VI; § 62; Ak V, 186-187;
365). Na Primeira Introdução que escreveu para esta obra, Kant vai ao ponto de sugerir
que, se há alguém que é capaz de experimentar o prazer que resulta da admiração
49
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
50
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
73
Ak I, 306.
51
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
universal, não pode senão encher de satisfação contínua [nicht anders als
mit immerwährender Zufriedenheit erfüllen] esta criatura racional que se
encontra unida a esta fonte originária de toda a perfeição. Vista a partir
deste ponto central, a natureza mostrará por todos os lados completa segu-
rança e conveniência. As cenas cambiantes da natureza não têm poder para
perturbar o repouso da felicidade [den Ruhestand der Glückseligkeit] de um
74
espírito que se tenha elevado a uma tal altura.
Em suma: o jovem pensador que, no Prefácio da obra, não escondera a sua
faceta de confiante aventureiro e que ao longo da mesma se revelou tão ousado
de conjecturas com as quais queria dar ideia da constitutição sistemática e da
formação mecânica do universo, termina a sua aventurosa viagem num senti-
mento de prazer inefável, numa admiração e contemplação silenciosa do cos-
mos, que se balbucia nestas palavras finais da obra:
Quando se tem o espírito repleto destas considerações e das que as prece-
deram, a vista de um céu estrelado numa noite serena proporciona uma
espécie de prazer que só as almas nobres sentem [eine Art des Vergnügens,
welches nur edle Seelen empfinden]. No silêncio geral da natureza e no
repouso dos sentidos, o poder oculto de conhecimento do espírito imortal
fala uma linguagem sem nome e dá conceitos ainda não desenvolvidos, que
75
podemos certamente sentir, mas que não se deixam descrever.
E assim, o que se anunciara como uma promissora aventura científica ter-
mina numa iniludível experiência estética da natureza e do cosmos, que exibe
todos os ingredientes fenomenológicos de uma vivência do sublime, tal como
estes virão a ser descritos muito mais tarde pelo filósofo na sua terceira Crítica,
pois, segundo nesta obra escreve, «é no caos e na mais selvagem e desregrada
desordem e destruição, quando só a grandeza e o poder se deixam ver, que
76
somos estimulados para as ideias do sublime.»
6. Os pressupostos epistémicos
e metafísicos da cosmoteologia
Deveriamos, por fim, perguntar em que pressupostos Kant baseia a sua tão
grande confiança no «fio condutor da analogia». Embora eles não sejam men-
cionados de uma forma explícita, deixam-se contudo ler com suficiente nitidez
na espessura dos enunciados. Poderíamos identificar aí, por certo, pressupostos
74
Ak I, 319-322.
75
Ak I, 367.
76
Kritik der Urteilskraft, § 23, Ak V, 246; Veja-se também: §§ 26-29; Ak V, 251-265.
52
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
77
Leibniz formulava-o do seguinte modo: «La nature est toujours la même dans le fond des
choses quoyqu’elle se serve d’une grande varieté dans les manières». Leibniz, A Sophie Char-
lotte (1703 ?), apud Ph. Beeley, «Gleichförmigkeit und Analogie bei Leibniz oder ‘Die
leichteste Philosophie der Welt’», in: Q. Racionero / C. Roldán (eds.), G. W. Leibniz.
Analogía y Expresión, Madrid, 1994, 547-551.
78
Tal princípio era de aceitação tão corrente entre os filósofos e cientistas da natureza da
época que o autor do verbete «Analogie» para a Encyclopédie podia escrever: «On fait en
Physique des raisonnements très-solides par analogie. Ce sont ceux qui sont fondés sur
l’uniformité connue, qu’on observe dans les opérations de la nature.» Encyclopédie ou
Dictionnaire raisonné des Sciences, des Arts et des Métiers, Tome I, Paris, 1751, p.399.
53
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
79
Ak I, 277-278.
54
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
80
Veja-se o segundo ensaio deste volume.
81
Ak I, 363.
55
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
[die Verwandtschaft ihnen von der Gemeinschaft des Ursprungs eigen ist], à qual
82
devem todas juntamente as suas determinações essenciais.
Atingimos aqui, na verdade, o mais fundo pressuposto que dá razão das
analogias da obra cosmológico-cosmogónica do jovem Kant. E já não se trata de
um mero pressuposto epistémico, mas sim de um verdadeiro pressuposto meta-
físico-teológico. As convenientes ordenações (geschickte Anordnungen) que des-
cobrimos na natureza e que apontam para um fim pertinente (welche auf einen
würdigen Zweck abzielen) provam que elas têm a sua origem num sábio enten-
dimento (einem weisen Verstand zum Urheber haben mussen). Mas essa finalidade
está incorporada, como se se tratasse de uma «arte oculta» (geheime Kunst), nas
forças da natureza, as quais, mesmo se deixadas entregues a si mesmas, não dei-
83
xarão de, a partir do caos, produzir uma perfeita constituição do mundo. O que
destas forças resulta não é, pois, efeito de um cego acaso ou de uma necessidade
irracional, mas expressão da suprema sabedoria, da qual originariamente decor-
rem todas as propriedades do universo e todas as concordâncias que nele se
encontram. E assim o jovem filósofo pode extrair duas conclusões, que consi-
dera igualmente correctas e que convergem no mesmo sentido:
A primeira é que, se na constituição do mundo brilham a ordem e a beleza,
então existe um Deus. Só que a outra não é menos bem fundada, a saber,
aquela que diz que, se essa ordem pôde ter decorrido das leis universais da
natureza, então toda a natureza é necessariamente um efeito da suprema
84
sabedoria.
E assim pensa o jovem filósofo satisfazer tanto o livre espírito de um natu-
ralista seguidor de Epicuro que tudo atribuísse à natureza, como o espírito
devoto de um homem religioso que tudo atribuísse ao supremo autor da natu-
reza. Os capítulos VII e VIII da Segunda Parte da obra desenvolvem já com
grande ousadia e desenvoltura toda uma cosmoteologia, animada pelo propósito
de conciliar de uma forma original as perspectivas da religião e as da ciência da
natureza, sem ter de sacrificar uma à outra.
Em suma: lendo a obra de 1755, pudémos acompanhar o amplo e cons-
ciente recurso à analogia por parte de Kant como fundamento para a formulação
82
Ak I, 364.
83
Ak I, 229. Aqui temos, sem dúvida, a primeira aparição de um tema que se tornará
central na economia da Crítica do Juízo, o de uma «Técnica da Natureza» (Technik der
Natur), ou seja, a consideração da natureza como se fosse guiada nas suas produções por
um interno desígnio, enfim, como se ela se produzisse artisticamente e fosse análoga da
arte (Natur als Kunst). Erste Einleitung in die Kritik der Urteilskraft, vii, Ak XX, 219-221;
Kritik der Urteilskraft, § 23, Ak V, 246. Veja-se o terceiro capítulo deste volume.
84
Ak I, 346.
56
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
85
Para uma reconstituição da doutrina kantiana da analogia, veja-se: Sueo Takeda, Kant
und das Problem der Analogie. Eine Forschung nach dem Logos der Kantischen Philosophie,
Martinus Nijhoff, Den Haag, 1969; François Marty, La naissance de la Métaphysique chez
Kant. Une étude sur la notion kantienne d’analogie, Paris, 1980; Idem, «L’analogie chez
Kant. Une notion critique», Les Études Philosophiques, 1989, 455-474 ; Annemarie Pieper,
«Kant und die Methode der Analogie», in: G. Schönrich / Y. Kato (Hrsg.), Kant in der
Diskussion der Moderne, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1996; Arthur Melnick, Kant’s
Analogies of Experience, Chicago University Press, Chicago/London, 1973; Bernard Lake-
brink, «Der kantische Begriff einer tranzendentalen Analogie», Philosophisches Jahrbuch,
68 (1960); Michel Guérin, «Kant et l’ontologie analogique. Recherches sur le concept
kantien d’analogie», Revue de métaphysique et de morale, 1974, pp.540 ss.
86
Der einzige mögliche Beweisgrund, Ak II, 140.
87
«Ich merke im Vorübergehen an, dass da grosse Gegenverhältniss, das unter den Din-
gen der Welt in Ansehung des häufigen Anlasses, den sie zu Ähnlichkeiten, Analogien,
Parallelen und, wie man sie sonst nennen will, geben, nicht so ganz flüchtig verdient
übersehen zu werden. [...] Liegt hierin noch für den Philosophen ein, wie mir dünkt,
wichtiger Gegenstand des Nachdenkens verborgen, wie solche Übereinkünft sehr vers-
57
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
Esta passagem bem pode ser posta em paralelo com uma outra que se lê no
§59 da Crítica do Juízo, onde, falando da operação envolvida no esquematismo
simbólico, na qual o juízo reflexionante procede «por meio de alguma analogia»
– (vermittelst einer Analogie, nach einer Analogie) –, Kant declara: «Esta operação
foi até ao presente ainda pouco analisada, por muito que ela também mereça
88
uma investigação mais aprofundada.»
58
2
Ideia de uma Heurística Transcendental,
ou o contributo de Kant para a
ars inveniendi dos Modernos
59
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
res modernos. Tal projecto respondia ao crescente interesse da época pela novi-
dade e ao pathos da descoberta, à exigência e demanda do progresso contínuo
dos conhecimentos e também à convicção cada vez mais generalizada da supe-
2
rioridade dos Modernos sobre os Antigos.
Francis Bacon foi o primeiro filósofo a formulá-lo expressamente, conce-
bendo-o como parte de uma lógica nova, alternativa à lógica aristotélica e esco-
lástica. Estas eram acusadas de servir apenas para demonstrar o que já se sabe,
sendo porém completamente inúteis para descobrir ou inventar novos conheci-
mentos. As ideias do filósofo inglês sobre este tópico foram decisivas também
para a transformação do sentido tradicional da palavra invenção (inventio), que
até então estava associada sobretudo ao uso no contexto da Retórica dos Antigos
e dos Humanistas, e à qual ele conferiu e fixou o significado moderno. É assim
que o escreve:
A invenção dos argumentos não é, propriamente falando, uma invenção.
Inventar é descobrir coisas desconhecidas, e não receber ou recordar as já
3
anteriormente conhecidas.
O filósofo inglês conhecia por certo as peculiares dificuldades da nova
lógica da invenção que se propunha fundar e cuja urgência e grande utilidade
enfatizava. Com efeito, ao contrário do que acontece com a lógica tradicional da
Escola, as regras da nova lógica não consentem que as determinemos a priori e
de uma vez por todas, sendo necessário extraí-las da própria experiência e do
4
processo das invenções e das descobertas. E embora ele próprio muito tivesse
contribuído para delinear os contornos da nova lógica, sabia estar longe de ter
dado dela a forma acabada, deixando-a como tarefa para os vindouros. E é assim
que, ao longo dos séculos XVII e XVIII, é possível acompanhar em sucessivas
novas formulações o programa baconiano de constituição de uma ars inveniendi,
2
Sobre esta consciência de época, vejam-se os meus ensaios: «Os Descobrimentos e a retórica
da razão moderna» e «Dos Antigos aos Modernos. Concepção da História e consciência de
época nos pensadores dos séculos XV a XVII», in: Leonel Ribeiro dos Santos, O espírito da
letra. Ensaios de hermenêutica da Modernidade, INCM, Lisboa, 2007, respectivamente, pp.129-
-167 e 93-128.
3
«Inventio argumentorum inventio proprie non est. Invenire enim est ignota detegere, non
ante cognita recipere aut revocare.» Francis Bacon, De dignitate et augmentis scientiarum, in:
The Works of Francis Bacon [W], ed. Spedding/Ellis/Heath, London, 1858, I, 633.
4
«Futilem enim esse constat et angusti cujusdam animi, qui existimet artem de scientiis
inveniendis perfectam jam a principio excogitari et proponi posse; eandemque postea in
opere poni et exerceri debere. At certo sciant homines, Artes inveniendi solidas et veras
adolescere et incrementa sumere cum ipsis inventis; adeo ut cum quis primum ad perscruta-
tionem scientiae alicujus accesserit, possit habere Praecepta Inventivae nonnula utilia; post-
quam autem ampliores in ipsa progressus fecerit, possit etiam et debeat nova Inventionis
Praecepta excogitare, quae ad ulteriora eum foelicius deducant.» Ibidem, W I, 636.
60
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
61
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
9
Leibniz, De Synthesi et Analysi universali seu Arte inveniendi et judicandi (Die
Philosophischen Schriften [PS], ed. Gerhardt, Olms, Hildesheim, 7, 292-298); Specimen
inventorum de admirandis naturae Generalis arcanis (PS, 7, 309-318); Tentamen Anagogi-
cum dans la recherche des causes (PS, 7, 270-279); Discours touchant la méthode de la
certitude et de l’art d’inventer pour finir les disputes et pour faire en peu de temps des grands
progrès (PS, 7, 174-183).
10
PS, 7, 183.
11
Leibniz, Nouveaux Essais sur l’Entendement Humain, PS, 5, 436.
62
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
63
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
16
«Nemo facile dubitat, dari certas regulas, quibus dirigitur intellectus in veritate inve-
nienda, et actuis ministeriales facultatum inferiorum atque intermediarum determinan-
tur, sive artem inveniendi a priori, sive a posteriori spectemus. Regulas hasce nemo
adhuc distincte explicavit et demonstrabit, quemadmodum regulae de usu intellectus in
veritate cognoscenda in Logica traduntur. Ac ideo ars inveniendi in forma artis nondum
redacta est.» Christian Wolff, Philosophia Moralis sive Ethica, Pars Prima, Halle, 1750,
§323, p.499.
17
«Qui ad artem inveniendi adspirat, acumen et ingenium perficere tenetur… Quod si
ars inveniendi in formam artis fuisset redacta, tum demum clarissime pateret, quinam et
quantus sit tam acuminis, quam ingenii usus in inveniendo.» Ibidem, § 336, p. 528.
Veja-se: Cornelis-Anthonie Van Peursen, «Ars inveniendi in Rahmen der Metaphysik
Christian Wolffs. Die Rolle der ars inveniendi», in: W. Schneiders (Hrsg.), Christian
Wolff, Meiner, Hamburg, 1986, pp.66-88.
18
Veja-se, nomeadamente, Hermann Samuel Reimarus, Vernunftlehre (1ª ed. 1756; 3ª ed.
1766), reimpr. Carl Hanser Verlag, München, 1979 (1ª ed. §§ 175-191; 3ª ed. §§ 259-
-297). O programa leibniziano da ars inveniendi, mas no sentido da ars characteristica
combinatoria, será desenvolvido por Joachim Georg Darjes, autor de uma Introductio in
artem inveniendi (Jena,1742), de quem Kant possuía dois escritos na sua biblioteca -
Erste Gründe der philosophischen Sitten-Lehre (Jena, 1755) e Discours über sein Natur- und
Völcker-Recht (Jena, 1762-63) e que é referido explicitamente 5 vezes no conjunto do
corpus kantiano. Ver Gualtiero Lorini, «Kant e Darjes fra logica e ars inveniendi», in:
Luigi Cataldi Madonna, Paola Rumore (Hrsg.), Kant und die Aufklärung, Georg Olms
Verlag, Hildesheim/Zürich/New York, 2011, pp.277-287.
64
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
19
Uma das partes da nova ciência Estética é a Heurística (A. G. Baumgarten, Theoretische
Ästhetik. Die grundlegenden Abschnitte aus der «Aesthetica» (1750/58), §§ 13 e segs., ed.
H. R. Schweitzer, Meiner, Hamburg, 1988). Veja-se também, na Metaphysica §349, a
«Heurística», entendida como uma parte da «ciência dos signos» – a «característica» ou
«semiótica», como arte de inventar signos primitivos ou derivados.
20
«Man kennt gemeiniglich nur eine einzige Art von Einbildungskraft, welche sinnlicher
Bilder vereinigt, um neue Bilder hervorzubringen [...]. Aber es giebt auch eine Einbil-
dungskraft für den Philosophen, oder wenigstens für den Erfinder der Philosophie. Um
65
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
Veremos de seguida que o filósofo crítico não está muito longe de pensar
como este «filósofo popular». Mas, por certo, o desenvolvimento da ideia
moderna da ars inveniendi é demasiado complexo e variado para consentir a
sumária apresentação aqui exposta em breves páginas. O seu estudo exigiria
uma atenção particular aos diferentes protagonistas e também aos vários aspec-
21
tos do tema, aqui só apontados. Sem poder cumprir de momento tão vasta
tarefa, que bastem estas poucas referências, feitas com o mero propósito de
contextualizar e esclarecer o que me parece ser o aspecto mais significativo do
contributo de Kant para esse programa.
zu einer neuen Wahrheit zu kommen, wenn sie nicht eine unmittelbare Folge einer
schon bekannten ist, ist es unmöglich, die Art von deutlich gedachten Schlüssen zu
brauchen, durch welche man diese Wahrheit, wenn sie erfunden ist, beweist. Wie will
man den Weg zu einem Ziele abzeichnen, welches man noch nicht kennt? [...] Hier
muss der schnelle Flug des Genies erst das unbekannte Land ausspähen, erst die fremde
Gegend durchschaut haben, ehe der langsam fortschreitende Verstand seinen Weg
antreten kann. Diese Seele muss das Vermögen haben, die ganze Reihe mit einem Blick
und einer Art von unmittelbarem Anschauen zu übersehen. Ideen, die entwickelt eine
ganze Wissenschaft ausmachen, müssen sich zusammendrängen, ein Ganzes ausma-
chen, und sich gleichsam in ein Bild vereinigen. So wie es eine gewisse Ahndung giebt,
durch die man künftige Begebenheiten voraussieht, ohne sich alle die Ursachen erklären
zu können, aus denen man sie folgert: so giebt es eine gewisse Kunst glücklich zu
rathen, durch die man weit hinaus liegende Ideen und entfernte Folgerungen der Wahr-
heiten voraussieht, ohne sich aller der Schlüsse bewusst zu seyn, durch die man auf sie
gekommen ist. [...] Es giebt ferner in der Philosophie, im Erklären und in Beweisen,
eben so wohl einen gewissen Geschmack, als in den Künsten und in den Werken des
schönen Geistes [...] Dieser Geschmack nun wird von dem Witze [...] den die Lateiner
Sagacität nennen, hervorgebracht.» Christian Garve, Versuch über die Prüfung der Fähig-
keiten (1769), retomado apud Alexander von Bormann (Hrsg.), Vom Laienurteil zum
Kunstgefühl. Texte zur deutschen Geschmacksdebatte im 18. Jahrhundert, Max Niemeyer,
Tübingen, 1974, pp.86-90.
21
Infelizmente, ainda não dispomos de nenhum estudo de conjunto expressamente dedi-
cado a este programa da Modernidade, e até os estudos a respeito do tema num ou outro
filósofo são muito raros, sendo ele abordado sobretudo no contexto dos estudos sobre a
Lógica dos Modernos. Todavia, mesmo uma obra clássica como é a Logik der Neuzeit (2
Bde., Stuttgart-Bad Cannstatt, 1970) de Wilhelm Risse não dá qualquer atenção ao tema;
a expressão ars inveniendi ocorre aí uma só vez e numa citação de um texto de Leibniz.
Encontram-se, em contrapartida, algumas indicações pertinentes a respeito do tema nas
seguintes obras: Alfred Baeumler, Das Irrationalitätsproblem in der Ästhetik und Logik des
18. Jahrhunderts bis zur Kritik der Urteilskraft (1923), reimpr. WBG, Darmstadt, 1975
(sobretudo o cap. sobre a «Logik der Erfindung», pp.170-187, e o cap. sobre «Einbil-
dungskraft, Witz, Genie», pp.141-166); Otto F. Best, Der Witz als Erkenntnisskraft und
Formprinzip, WBG, Darmstadt, 1989; W. Walther u. L. Borinski (Hrsg.), Logik im Zeitalter
der Aufklärung. Studien zur «Vernunflehre» von Hermann Samuel Reimarus, Göttingen,
1980.
66
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
67
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
24
As referências, directas ou indirectas, a Bacon nos escritos de Kant são numerosas.
Kant considerava o filósofo inglês como «o primeiro e maior investigador da natureza
dos tempos modernos … que trilhou com as suas investigações o caminho da experiên-
cia e chamou a atenção para a importância e a imprescindibilidade da observação e das
tentativas para a descoberta da verdade (der erste und grösste Naturforscher der neuern
Zeit… [d]er betrat bei seinen Untersuchungen den Weg der Erfahrung, und machte auf die
Wichtigkeit und Unentbehrlichkeit der Beobachtung und Versuche zu Entdeckung der Wahr-
heit aufmerksam.)» Immanuel Kant, Logik, Einl. IV, Ak IX, 32.
68
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
25
Logik, Einl, Ak IX, 74-75. Na Crítica da Razão Pura (A 167) encontra-se uma alusão
explícita à prolepsis de Epicuro, a propósito das «antecipações da percepção» (Antizipa-
tionen der Wahrnehmung).
26
Foram sobretudo alguns intérpretes italianos da filosofia kantiana que puseram em
destaque este aspecto: Vittorio Mathieu, La filosofia trascendentale e l’Opus postumum» di
69
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
Kant, Torino, 1958; Guido Morpurgo-Tagliabue, «La finalità in Kant e le scienze empiri-
che della natura», Rivista critica di storia della filosofia, XIII, 1958, 305-318; Silvestro Mar-
cucci, Aspetti epistemologici della finalità in Kant, Firenze, 1972; Id., «Kant e la scienza
moderna», Studi italo-tedeschi, Merano, 2004, 35-56; Id., «Kant e l’imaginazione conosci-
tiva nella Critica del Giudizio», Studi kantiani, III, 1990, 24-27; Id., «La dimenzione scien-
tifica ed epistemologica del giudizio teleologico in Kant», AAVV., Giudizio e interpretzione
in Kant, Genova, 1992, 24-28; Id., «La dimenzione scientifica ed epistemologica dell’idea
di finalità in Kant», AAVV., Kant e la finalità della natura, Padova, 1990, 64-65; Emilio
Garroni, Estetica ed epistemologia. Riflessioni sulla «Critica del Giudizio», Roma, 1976;
Umberto Eco, Kant e l’ornitorinco, Milano, 1997; Claudio La Rocca, «Giudizi provvisori.
Sulla logica euristica del processo conoscitivo in Kant», in: Materiali per un lessico della
raggione, ETS, Pisa, 2011, pp.265-310. Veja-se também: Harald Karja, Heuristische Ele-
mente der “Kritik der teleologischen Urteilskraft”, Heidelberg (Diss.), 1975; Zeljko Loparic,
«Heurística kantiana», Cadernos de História e Filosofia da Ciência, nº 5, 1983, 73-89. Como
escrevemos no Prefácio, entre os portugueses, foi sobretudo Fernando Gil que desenvol-
veu uma interpretação predominantemente epistémico-heurística da filosofia kantiana.
Veja-se a sua obra Mimésis e Negação, INCM, Lisboa, 1984, pp.310-344.
27
Veja-se: KrV B 691, Ak III, 439: «... [diese Principien der systematischen Einheit] ...
als synthetische Sätze a priori obiective, aber unbestimmte Gültigkeit haben und zur
Regel möglicher Erfahrung dienen, auch wirklich in Bearbeitung derselben als heuris-
tische Grundsätze mit ganzen Glücke gebraucht werden...»; KrV B 7999, Ak III 503:
«Die Vernunftbegriffe... sind bloss problematisch gedacht, um in Beziehung auf sie (als
heuristische Fictionen) regulative Principien des systematischen Vernunftgebrauchs im
Felde der Erfahrung zu gründen.»; KU § 78, Ak V, 411: «das Prinzip der Zwecke an den
Producten der Natur... wenn es gleich die Entstehungsart derselben uns eben nicht
begreiflicher macht, doch ein heuristisches Princip ist, den besonderen Gesetzen der
Natur nachzuforschen.»; Erste Einleitung in die Kritik der Urteilskraft (ed. Lehmann,
Hamburg, 1977): «unser Begriff von einer Technik der Natur, als ein heuristisches Prinzip
in Beurteilung derselben.» (negritos nossos).
70
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
e das belas artes. Por esta preocupação com a heurística científica e filosófica a
filosofia kantiana encontra-se profundamente ligada a uma tarefa essencial do
programa que os filósofos modernos trabalharam sob a ideia geral da ars inve-
niendi. Kant é mesmo o último dos Modernos a ocupar-se ainda a fundo com
esse programa, talvez sem expressamente o ter empreendido, e eu creio poder
dizer que nisso ele não é somente um herdeiro das contribuições dos seus ante-
cessores, mas que levou mais longe do que qualquer deles a meditação filosófica
a respeito daquilo que verdadeiramente nesse programa estava implicado.
Desde os seus primeiros escritos, Kant revela uma notável consciência dos pres-
supostos que presidem ao seu trabalho filosófico. Assim, vêmo-lo, no seu pri-
meiro ensaio (1747), confessar expressamente a sua dívida para com a «lei de
continuidade», que atribui a Leibniz, como tendo sido o fio condutor que lhe
permitiu orientar-se no labirinto que é a questão das forças vivas e que o condu-
ziu a identificar as lacunas da própria posição leibniziana e a encontrar uma
28
solução média entre a tese de Leibniz e a dos cartesianos. Vimo-lo depois, no
seu ensaio de Cosmologia (Allgemeine Naturgeschichte und Theorie des Himmels,
1755), fazer um uso intensivo do «fio condutor da analogia» para elaborar con-
jecturas ousadas mas verosímeis que lhe permitem aventurar-se no desconhe-
cido e propor um sistema coerente do universo, pressupondo a uniformidade e a
homogeneidade seja da natureza, seja das leis que a governam, em toda a exten-
29
são do espaço cósmico e em toda a série temporal das suas transformações.
Num ensaio do ano 1763, vêmo-lo já não apenas a reclamar o uso da analogia
como fundamento das suas conjecturas – «a analogia é aqui um muito grande
fundamento para presumir» (Die Analogie ist hier ein sehr grosser Grund zu ver-
30
muthen) –, mas também a fazer uma declaração de princípio acerca da
31
importância de uma reflexão aprofundada a propósito desse tema.
A prometida reflexão aprofundada não a encontraremos de modo explícito
em toda a obra kantiana, mas ela cumpre-se indirectamente e em sucessivas
retomas, de um modo elíptico e frequentemente mesmo disfarçada. E um dos
primeiros momentos em que tal reflexão se disfarça encontra-se no último pará-
grafo da Dissertação de 1770. Este parágrafo, que é a conclusão da obra, cumpre
28
Gedanken, Ak I, 181.
29
Veja-se, no primeiro capítulo deste volume, pp.43 ss.
30
Der einzige mögliche Beweisgrund, Ak II,140.
31
Ibidem, Ak II, 132-133. Veja-se o passo citado no final do capítulo anterior.
71
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
32
«sollicite cavendum esse, ne principia sensitivae cognitionis domestica terminos suos
migrent ac intellectualia afficiant» (§ 24). Para a versão portuguesa desta obra de Kant,
remeto para a minha própria tradução: Immanuel Kant, Dissertação de 1770, tradução,
apresentação e notas de L. Ribeiro dos Santos, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lis-
boa, 2004 (2ª edição). Para o texto citado, p. 74; para os subsequentes, pp.83-84.
72
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
dos do objecto, quando apenas nos são recomendados por conveniência com
o uso livre e amplo do entendimento, em virtude da singular natureza do
mesmo. E assim, tal como aqueles que acima enumerámos, estes fundam-se
em razões subjectivas, não certamente nas leis do conhecimento sensitivo,
mas nas do próprio conhecimento intelectual, ou seja, nas condições
mediante as quais lhe parece fácil e rápido usar da sua perspicácia. Seja-me
permitido, como conclusão, dizer alguma coisa acerca destes princípios, os
quais, tanto quanto sei, não foram ainda claramente expostos em parte
nenhuma. Chamo princípios de conveniência àquelas regras do julgar às
quais de bom grado nos submetemos e aderimos como se fossem axiomas,
apenas pela razão de que, se nos desviássemos delas, o nosso entendimento
33
não poderia emitir quase nenhum juízo acerca de um objecto dado.
E quais são então esses princípios (também chamados ‘postulados’, ‘regras
do julgar’, ‘cânones’)?
Kant menciona os três seguintes:
O PRIMEIRO – escreve o filósofo – é aquele mediante o qual admitimos
que tudo no universo acontece segundo a ordem da natureza; princípio que é
unanimemente professado por Epicuro, que não lhe admite qualquer restrição, e
por todos os filósofos, que lhe admitem raríssimas excepções e só em caso de
extrema necessidade. Mas pensamos dessa maneira, não porque estejamos de
posse de um conhecimento assim tão grande dos eventos do mundo segundo as
leis comuns da natureza, ou porque nos seja manifesta quer a impossibilidade
quer a mínima possibilidade hipotética das coisas sobrenaturais, mas porque, se
nos desviássemos da ordem da natureza, não haveria absolutamente nenhum
uso do entendimento, e a temerária invocação das coisas sobrenaturais é o tra-
vesseiro do entendimento preguiçoso. Pela mesma razão, afastámos cuidadosa-
mente da exposição dos fenómenos os milagres comparativos, nomeadamente a
influência dos espíritos, pois, sendo-nos desconhecida a sua natureza, o enten-
dimento seria desse modo desviado, com grande prejuízo seu, da luz da expe-
riência (apenas mediante a qual obtém para si próprio a abundância das leis do
julgar), para as sombras das espécies e das causas de nós desconhecidas. O
SEGUNDO é aquela predilecção pela unidade, própria de um espírito filosófico,
de onde derivou este cânone vulgar: os princípios não devem ser multiplicados sem
uma imperiosa necessidade; aprovamo-lo, não porque reconheçamos, seja pela
razão seja pela experiência, que existe uma unidade causal no mundo, mas por-
que a procuramos pelo impulso do entendimento, ao qual lhe parece avançar na
explicação dos fenómenos tanto quanto lhe for concedido o descer de um
mesmo princípio para as numerosíssimas consequências. O TERCEIRO deste
33
Ak II,418. Tradução portuguesa citada, pp.83-84.
73
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
74
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
34
KrV B 671, Ak III, 427.
75
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
76
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
pode com razão dizer que este parágrafo constitui o núcleo seminal daquilo a
que acima chamei a Heurística Transcendental kantiana, um núcleo que se tor-
nará mais explícito em dois momentos decisivos de desenvolvimento da filosofia
kantiana. Mas as novas formulações que o tema sofre e o seu diverso enquadra-
mento não apagam a sua importância, mas antes a reforçam, revelando todo o
seu significado e alcance filosófico.
levará mais tarde Kant, na Crítica do Juízo (1790) à descoberta de um princípio trans-
cendental para a faculdade de julgar (Urteilskraft) e a deslocar a anterior distinção entre
conceitos ou princípios constitutivos do entendimento e princípios reguladores da razão,
para a faculdade de julgar, à qual serão cometidas duas funções essencialmente distintas:
a determinante (de intencionalidade objectiva) e a reflexionante (de intencionalidade
subjectiva). É a faculdade de julgar, mediante o seu princípio transcendental próprio da
teleologia ou teleoformidade da natureza (Zweckmässigkeit der Natur), que subsumirá
estas regras ou máximas e outras do seu género, supostas por todo o uso da razão, tanto
teórico como prático. Cf. KU, Einl. V (Ak V, 182). Assim se vê, também, como a Disser-
tação contém já in nuce uma problemática que será decisiva para a génese aporética da
Crítica do Juízo.» (na 2ª ed. de 2004, pp.104-105).
36
KrV B 262-263; Ak III, 183-184. Veja-se: Arthur Melnick, Kant’s Analogies of Expe-
rience, Chicago U.P., Chicago / London, 1973.
77
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
37
KrV B 165-166; Ak III, 127. A mesma ideia encontra-se exposta na Primeira Introdução
à Crítica do Juízo, onde se lê: «Nós não podemos determinar a priori como e de quantas
maneiras as coisas são possíveis mediante as suas causas; para isso são necessárias as leis
da experiência (Nun aber können wir, wie und auf wie mancherley Art Dinge durch ihre
Ursachen möglich sind, a priori nicht bestimmen, hierzu sind Erfahrungsgesetze nothwen-
dig.)». Ak XX, 232. Esse problema da passagem (Übergang) do plano transcendental ao
plano empírico é mesmo, como veremos, o problema fundamental (ou, pelo menos, um
dos problemas fundamentais) que Kant pensa poder por fim resolver com a sua terceira
Crítica.
38
KrV B 508, III, 332-333.
78
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
79
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
39
KrV B 692-693; Ak III, 439-440.
40
KrV B 685-686; Ak III, 435-436.
80
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
41
KrV A 544. Veja-se: Baltasar Gracián, Arte de ingenio, Tratado de Agudeza (1642; na ed.
de 1648 toma o título: Agudeza y arte de ingenio); Matteo Pellegrini, Delle acutezze (1639),
81
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
Para designar estes princípios Kant serve-se de expressões tais como ‘prin-
cípios’, ‘leis’, ‘regras’, ‘máximas’ e caracteriza-os como tendo uma função lógica
mas apenas subjectiva, a título hipotético e regulativo. Mas insiste sobretudo na
sua condição verdadeiramente transcendental: não se pode pensar que eles são
extraídos da experiência da natureza, porque esta experiência os supõe para que
se torne ela mesma possível. Prosseguindo a sua exposição, Kant retorna à
mesma constatação que havia já formulado na Dissertação, a saber que «nós
encontramos esta pressuposição transcendental – da unidade sistemática –
escondida também de uma maneira espantosa nos princípios dos filósofos, ainda
que eles nem sempre o tenham reconhecido ou não a tenham confessado a si
42
mesmos.» E cita algumas fórmulas que traduzem essa pressuposição, tais
como: entia praeter necessitatem non esse multiplicanda – expressão do princípio
de economia; entium varietates non temere esse minuendas, expressão do princípio
de especificação; Non datur vacuum formarum / specierum – Datur continuum
formarum / specierum, expressões do princípio de afinidade ou de continuidade,
da lex continui in natura. A propósito desta última lei, que atribui a Leibniz e na
qual se funda a ideia de uma escada contínua das criaturas, desenvolvida por
Bonnet, Kant diz que ela
não faz mais do que obedecer ao princípio de afinidade que assenta no inte-
resse da razão; pois não poderíamos extraí-la, a título de afirmação objectiva,
da observação e da penetração das disposições da natureza.[...] Pelo contrá-
rio, o método que consiste em procurar a ordem na natureza segundo um tal
princípio, e a máxima que quer que se olhe esta ordem como fundada numa
natureza em geral, sem todavia determinar onde e até onde ela reina, este
método é certamente um excelente e legítimo princípio regulativo da razão, o
qual, enquanto tal, vai sem dúvida demasiado longe para que a experiência
ou a observação possam ser-lhe adequadas, mas que, sem nada determinar,
43
lhes traça no entanto a via da unidade sistemática.
I fonti dell’ingegno ridotti ad arte (1650); Emanuele Tesauro, Il cannochiale aristotelico, o sia,
Idéa dell’arguta ed ingegniosa elocutione, 1654). Dá-se já a apropriação destas categorias da
poética barroca, num contexto epistemológico, em Descartes: Regulae ad directionem inge-
nii (X-XI), Œuvres, A-T, X, 400-405: «Oportet ingenii aciem... convertere... & simul duas
praecipuas ingenij facultates excolere, perspicacitatem scilicet, res singulas distinctè
intuendo, & sagacitatem, unam ex alijs artificiose deducendo... Ut ingenium fiat sagax...».
Veja-se ainda: Alexander Baumgarten, Metaphysica § 572: «Habitus identitates rerum
observandi est INGENIUM [Witz]». – Metaphysica § 573: «Habitus diversitates rerum
observandi ACUMEN [Scharfsinnigkeit] est. Acutum ingenium est PERSPICATIA [eine
artige oder feine Einsicht].»
42
KrV B 679; Ak III, 432.
43
KrV B 696; Ak III, 441-442.
82
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
83
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
válida e necessária» (die systematische Einheit der Natur durchaus als objectiv gül-
tig und nothwendig voraussetzen müssen – B 680). Escreve Kant (B 691):
O que é digno de nota nestes princípios, e também unicamente o que nos
ocupa, é que parecem ser transcendentais e, embora contenham apenas
simples ideias para a observância do uso empírico da razão, ideias que este
uso aliás só pode seguir assimptoticamente, ou seja, aproximadamente, sem
nunca as atingir, possuem todavia, como princípios sintéticos a priori, vali-
dade objectiva, mas indeterminada, e servem de regra para a experiência
possível, sendo mesmo realmente utilizados com êxito como princípios
48
heurísticos na elaboração da experiência.
Estas passagens mostram que Kant parece hesitar a propósito do estatuto
destes princípios: eles são por certo transcendentais, subjectivos, regulativos,
mas é como se eles correspondessem também à natureza mesma das coisas e
como se eles tivessem um valor objectivo, ainda que indeterminado. A hesitação
do filósofo dá testemunho da importância fundamental desses princípios, como
condições que são do funcionamento da razão, cuja imanente teleologia expri-
mem. Segundo as próprias palavras de Kant (B 678-679):
Não se concebe como poderia ter lugar um princípio lógico da unidade
racional das regras, se não se supusesse um princípio transcendental,
mediante o qual tal unidade sistemática, enquanto inerente aos próprios
objectos, é admitida a priori como necessária. Pois, com que direito pode a
razão exigir que, no uso lógico, se trate como unidade simplesmente oculta
a diversidade das forças que a natureza nos dá a conhecer e se derivem
estas, tanto quanto se pode, de qualquer força fundamental, se lhe fosse
lícito admitir que seria igualmente possível que todas as forças fossem hete-
rogéneas e a unidade sistemática da sua derivação não fosse conforme com
a natureza? Porque, nesse caso, procederia ao invés do seu destino, dando a
si própria por alvo uma ideia totalmente contrária à constituição da natu-
reza. Também não se pode dizer que tenha previamente extraído da cons-
tituição contingente da natureza esta unidade, mediante princípios racio-
nais. Porque a lei da razão que nos leva a procurá-la é necessária, pois sem
ela não teríamos razão, sem razão não haveria uso coerente do entendi-
mento e, à falta deste uso, não haveria critério suficiente da verdade empí-
rica e teríamos, portanto, que pressupor, em relação a esta última, a uni-
49
dade sistemática da natureza como objectivamente válida e necessária.
48
Ak III, 439.
49
Ak III, 431-432.
84
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
50
Ak III, 432.
85
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
51
I. Kant, Erste Einleitung in die Kritik der Urteilskraft, IV, ed. De G. Lehmann, Felix
Meiner, Hamburg, 1977, pp.16-17. Veja-se também a carta de Kant a J. S. Beck, de 18 de
Agosto de 1793 (Ak XI, 441), onde fala da ideia principal da Primeira Introdução que
escrevera para a Crítica do Juízo e que diz ter abandonado devido à sua prolixidade: «O
essencial daquele Prefácio [sic] refere-se à peculiar e estranha pressuposição da nossa
razão: que a natureza torna possível na multiplicidade dos seus produtos uma acomoda-
ção aos limites da nossa faculdade de julgar, mediante a simplicidade e notável unidade
das suas leis e a exposição da infinita diferenciliadade das suas espécies (species), segundo
uma certa lei de continuidade, que torna possível a ligação das mesmas sob poucos con-
ceitos genéricos [Gattungsbegriffe], como se o tivesse querido intencionalmente e como
fim para a nossa faculdade de compreensão, não porque conheçamos esta teleoformidade
como sendo em si necessária, mas porque dela somos necessitados e assim também a
assumimos a priori e somos legitimados a usar, tanto quanto o conseguimos fazer.»
86
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
52
Erste Einleitung, ibidem.
53
Ibidem.
87
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
88
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
VI, Kant afirma que a realização de uma intenção está associada a um senti-
mento de prazer e, ao dizer isso, tem vista expressamente a intenção do enten-
dimento que pretende que a natureza, não apenas em geral, mas também em
toda a variedade e heterogeneidade das suas leis empíricas, lhe seja conforme,
sem que ele mesmo possa no entanto determinar ou prescrever tal conformi-
dade. Se este acordo fosse estabelecido a priori pelo entendimento, não haveria
mesmo lugar para nenhum prazer, pois então o acordo decorreria necessaria-
mente de leis universais. Mas a situação é totalmente diversa quando, no campo
empírico, de um modo absolutamente contingente e por assim dizer inesperado,
se chega a descobrir que duas ou mais leis empíricas e heterogéneas da natureza
se deixam compreender sob um mesmo princípio comum superior que se
encontra e que não estava dado previamente. Então, diz Kant,
esta descoberta é o fundamento de um prazer muito digno de nota e fre-
quentemente até de um espanto admirativo, de um espanto que não cessa
mesmo que o seu objecto seja já suficientemente conhecido.
Sem dúvida, o hábito tornou-nos costumeiro e banal este acordo e é por
isso que já não experimentamos nisso nenhum prazer digno de nota. Mas,
segundo o filósofo,
um tal prazer existiu a seu tempo e somente porque a experiência mais
comum não seria possível sem ele é que a pouco e pouco ele se confundiu
com o mero conhecimento e deixou de ser especialmente advertido.
E prossegue dizendo que
é necessário pois qualquer coisa que, no juízo acerca da natureza, torne o
nosso entendimento atento à finalidade desta, é preciso uma investigação
que consista em hierarquizar as leis heterogéneas sob leis mais elevadas, se
possível, ainda que sempre empíricas, para que, em caso de sucesso, sinta-
mos prazer neste acordo da natureza com o nosso poder de conhecer –
acordo que nós consideramos como simplesmente contingente. Pelo con-
trário, seria para nós uma representação muito desgostosa da natureza se
nos fosse dito à partida que, na mais pequena investigação que fosse para
além da experiência mais comum, confrontar-nos-íamos com uma tal hete-
rogeneidade das suas leis que esta tornaria impossível para o nosso enten-
dimento a reunião das suas leis particulares sob leis universais empíricas; a
razão disso está em que isso contraria o princípio da especificação subjec-
tiva e final da natureza nos seus géneros e a intenção da nossa faculdade de
55
julgar reflexionante.
55
Kritik der Urteilskraft, Einleitung V; Ak V, 187-188.
89
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
56
Raramente se tem dado atenção a este aspecto da dimensão estética da epistemologia
kantiana e, em geral, da íntima solidariedade entre estética e conhecimento. Veja-se a
este respeito algumas indicações na obra de Rebecca Kukla (ed.), Aesthetics and Cogni-
tion in Kant’s Critical Philosophy, Cambridge University Press, Cambridge/New York/
Melbourne/São Paulo, 2006.
57
KU §§ 71.80; Ak V, 388,420.
90
3
«Técnica da Natureza».
Reflexões em torno de um tópico kantiano
1
«... denn wer kann der Natur ihr Geheimniss gänzlich ablocken?». Immanuel Kant,
Kritik der Urteilskraft, § 17; Ak V, 233.
2
Kritik der Urteilskraft, Einleitung viii, Ak V, 192-293: «es sei, dass díeses <Darstellung
(exhibitio) – dem Begriff eine korrespondierende Anschauung zur Seite zu stellen> durch
unsere eigene Einbildungskraft geschehe, wie in der Kunst, wenn wir einen vorherge-
91
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
fassten Begriff von einem Gegenstande, der für uns Zweck ist, realisieren, oder durch die
Natur, in der Technik derselben (wie bei organisierten Körpern), wenn wir ihr unseren
Begriff vom Zweck zur Beurteilung ihres Produkts unterlegen; in welchem Falle nicht
bloss Zweckmässigkeit der Natur in der Form des Dinges, sondern dieses ihr Produkt als
Naturzweck vorgesttellt wird.» Apesar de ser esta a única ocorrência da expressão no
texto da Introdução definitiva, é muito significativa a analogia nela pressuposta entre
Imaginação e Natureza, quanto ao modo respectivo de produzirem os seus produtos, a
correspondência entre a Einbildungskraft (o princípio criador do espírito na Arte) e a Bil-
dungskraft ou o Bildungstrieb (o princípio internamente criativo dos corpos organizados da
Natureza). As obras de Kant, salvo indicação em contrário, são citadas pela Akademie-
Ausgabe (Ak) dos Kants gesammelte Schriften, reeditados pela Walter de Gruyter, Berlin.
3
«Einleitung…, die ich aber bloss wegen ihrer für den Text unproportionirten
Weitläuftigkeit verwarf, die mir aber noch Manches zur vollständigeren Einsicht des
Begriffs einer Zweckmässigkeit der Natur beytragendes zu enthalten scheint.» Ak XI, 396.
Kant envia o texto a Beck a 18 de Agosto de 93 (Ak XI, 441). Beck fará dele um resumo no
2º volume do seu Erläuternder Auszug aus den kritischen Schriften des Herrn Pr. Kant, Riga,
1794, pp.541-590. A versão integral do texto foi publicada pela primeira vez por Otto
Buek em 1914, no âmbito da ed. Cassirer das Immanuel Kants Werke (Bruno Cassirer,
Berlin), Bd. V, 177-231. Na Akademie-Ausgabe, o texto, ao cuidado de G. Lehmann, inte-
gra o vol. XX, 193-251. Cito o texto da Erste Einleitung pela ed. que o mesmo Lehmann
publicou na Felix Meiner (Hamburg, 1927, 1970,1977), identificado como EE, L.
92
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
4
reconhecida nessa função. Sendo que, de resto, a ideia de «Técnica da Natureza»
5
é equivalentemente dita pelos conceitos de «teleoformidade da natureza» ou de
«teleologia da natureza», os quais talvez se apresentassem ao próprio autor, na
reelaboração que à última hora empreendeu da Introdução, como suficientes e até
6
como mais explícitos para dar conta do intuito e do conteúdo da sua obra.
Ainda assim, como acima ficou dito, o tópico aparece – sob as fórmulas Tech-
nik der Natur, Technik in der Natur e Technizism der Natur – em vários momentos no
corpo mesmo da obra, seja na Primeira seja na Segunda Parte, em desenvolvimentos
que evocam, replicam ou explicitam os do abandonado texto da Primeira Introdu-
ção. E, embora a expressão «Técnica da Natureza», como disse, seja de facto e para
todos os efeitos equivalente ao da «teleoformidade da natureza» e por esta subsu-
mido, aquela evoca todavia contextos semânticos e temático-especulativos e faz soar
harmónicos que a última deixa surdos ou inexpressos. Explicitar alguns desses
contextos e acordar alguns desses harmónicos é o propósito deste ensaio, propósito
7
que, todavia, aqui só parcialmente será cumprido.
Entre os raros intérpretes que advertiram e apontaram a importância do
tema, deve mencionar-se, antes de mais, o grande investigador e profundo
conhecedor do corpus textual kantiano que foi Gerhard Lehmann. Num curto
8
apontamento que ao tema dedicou – e que é, de resto, também um dos poucos
4
Erste Einleitung in die Kritik der Urteilskraft, ii (ed. de G. Lehmann, Felix Meiner, Ham-
burg, 1977, pp.11-12): «unser Begriff von einer Technik der Natur, als ein heuristisches
Prinzip in Beurteilung derselben...» A avaliar também pela carta de Kant a Beck (18.Aug.
1793; Ak XI,441). No texto da terceira Crítica a ideia da «técnica da natureza» como
«um princípio heurístico» é explicitada no § 78 (Ak V, 411).
5
«ein Prinzip der Technik der Natur, mithin der Begriff einer Zweckmässigkeit, die man
an ihr a priori voraussetzen muss.» EE, xii, L 57.
6
EE, ii, L 9-10.
7
O presente texto corresponde, no essencial, a uma comunicação apresentada no III Coló-
quio Kant de Marília (São Paulo, Brasil), centrado na problemática da Crítica do Juízo Teleo-
lógico e realizado entre 7 e 12 de Setembro de 2008. Reservamos para um posterior ensaio a
análise do papel que o conceito de «Técnica da Natureza» desempenha nos debates da
Segunda Parte da Crítica do Juízo em torno do idealismo ou realismo da teleoformidade da
natureza, da antinomia entre a visão mecanicista e a visão teleológica da natureza e da pos-
sibilidade de reunir, precisamente mediante esse conceito, o princípio do mecanismo da
matéria com o princípio teleológico, com proveito para a filosofia mas também, e antes de
mais, para a própria investigação da natureza. O texto agora publicado segue de perto o que
foi publicado na revista da Sociedade Kant Brasileira Studia Kantiana (n. 9, 2009), a cujos
responsáveis agradeço a graciosa autorização concedida para esta utilização.
8
Gerhard Lehmann, «Die Technik der Natur», in: Idem, Beiträge zur Geschichte und
Interpretation der Philosophie Kants, W. de Gruyter, Berlin, 1969, 289-294. O mesmo
Lehmann, editor da Erste Einleitung in die Kritik der Urteilskraft (Felix Meiner, Ham-
burg, 1927, 1970, 1977), na «Einleitung» que escreve para a 2ª ed. desta peça, destaca a
recorrência do tópico e a sua importância para se compreender a relação da obra de
93
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
ensaios explícitos que o mesmo tem merecido –, destaca a sua importância para
se avaliar não só a intenção e alcance da terceira Crítica como também a relação
desta obra com as reflexões mais tardias do filósofo, publicadas pelos editores
sob o título de Opus postumum, e foi ao ponto de dizer que «Kant na realidade
tinha em vista nada menos do que uma filosofia da técnica, uma crítica da razão
técnica» e que, embora o filósofo não tenha executado essa ideia da mesma
forma que o fez com a crítica da razão teorética e da razão prática, «só ela torna
9
plenamente visível a conexão dos pensamentos fundamentais do criticismo».
Mais recentemente, o tema foi abordado em dois ensaios, um de Fiona
10 11
Hughes , o outro de Ulrike Santozki. Neste último, privilegia-se a génese do
tópico e seus antecedentes na história filosófica, pondo-se nomeadamente em
destaque a origem do conceito no estoicismo latino e na tradição galénico-hipo-
crática. De facto, Cícero não só usa a expressão “ars naturae”, como desenvolve
12
sob várias formas a ideia segundo a qual «omnis natura artificiosa est». E, na
mesma linha, Séneca fala da arte natural das abelhas na construção dos seus
habitáculos e das aranhas na fiação das suas teias, fazendo notar a regularidade e
constância da arte da natureza, que nos animais se confunde com o instinto sem
aprendizagem, em confronto com a contingência, irregularidade e imperfeição
das artes humanas: «Nascitur ars ista, non discitur... Incertum est et inaequabile
94
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
13
quicquid ars tradit; ex aequo venit quod natura distribuit». No confronto entre a
arte e a natureza, quanto ao respectivo modo de produzir, a prevalência vai ine-
quivocamente para a segunda. Para além da matriz estóica romana, a autora
aduz também a matriz grega do tópico e da expressão téchne phýseos, recorrente
nos escritos de Galeno para dizer a força auto-regeneradora da natureza, a vis
medicatrix naturae. E aponta alguns autores do século XVIII, cujos escritos eram
certamente conhecidos por Kant, e nos quais se dá a assimilação quer da matriz
estóica, ciceroniana e senequiana, nomeadamente nos Dialogues concerning natu-
ral religion de David Hume, quer da matriz galénico-hipocrática, nomeadamente
14
em Hermann Samuel Reimarus. Apesar da pertinência do estudo de Santozki, o
inventário das origens da noção kantiana da «Técnica da Natureza» está longe
de poder considerar-se completo, carecendo da identificação de outras matrizes
e mediações. Só a título de exemplo, a ideia renascentista da magia naturalis (de
um Giovanni Pico della Mirandola, de um Marsilio Ficino ou de um Paracelso),
de matriz neoplatónica, diz a mesma coisa e teria que ser também considerada
15
nessa inventariação.
13
Epistolae morales ad Lucilium, 121,23.
14
Allgemeine Betrachtungen über die Triebe der Thiere, hauptsächlich über die Kunst-Triebe:
zum Erkenntniss des Zusammenhanges der Welt, des Schöpfers und unser selbst, Hamburg,
1760, 5, 204-207, 211. Passagens não faltam, nos escritos de Kant, para documentar esta
matriz estóica da sua concepção de Natureza, sobretudo quando este conceito é invo-
cado no contexto da meditação sobre a filosofia da história e da política e da peculiar
teleologia ou racionalidade que lhes preside. É em tais contextos que ocorrem expres-
sões do género: «a grande artista natureza, também chamada Providência» – die grosse
Künstlerin Natur, auch Vorsehung genannt (Zum ewigen Frieden, Ak VIII, 360 ss), a «natura
daedala rerum», a «Mãe-Natureza» (Mutter-Natur), a «sabedoria da natureza» (Weisheit
der Natur), o «cuidado da natureza» (Vorsorge der Natur), a «voz ou o chamamento da
natureza» (Stimme, Ruf der Natur) (Ib., 361, 363) e, em geral, a personificação da Natu-
reza, não como objecto ou conjunto de objectos de conhecimento, mas como algo que
tem um plano, uma vontade, uma intenção (Idee, Ak VIII, 18, 19, 27, 28, 30 passim).
Veja-se o desenvolvimento deste tema no meu livro Metáforas da Razão ou economia
poética do pensar kantiano, JNICT/F.C.Gulbenkian, Lisboa, 1994, pp.421 ss.
15
A noção de «natureza plástica» (plastic nature) dos neoplatónicos ingleses Henry More
e Ralph Cudworth traduz a mesma ideia, e o próprio Kant dá como sinónimos o «plas-
tisch», o «technisch» e o «künstlich» (EE L 60). Transcrevo, a propósito, e como mais
um exemplo a ter em conta para a história do conceito de arte da natureza, um passo do
diálogo metafísico de Giordano Bruno (De la causa, principio e uno, II), que oferece um
inventário das maneiras como alguns filósofos antigos nomearam o princípio eficiente
que explica a produção dos seres naturais. Assim escreve o Nolano: «L’intelletto univer-
sale è l’intima, piú reale e propria facultà e parte potenziale de l’anima del mondo.
Questo è uno medesimo, che empie il tutto, illumina l’universo e indirizza la natura a
produre le sue specie como si conviene; e cossí ha rispetto alla produzione di cose natu-
rali, come il nostro intelletto alla congrua produzione di specie razionali. Questo è
chiamato da’ pitagorici motore ed esagitator de l’universo, come esplicò il Poeta, che disse:
totamque infusa per artus
95
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
Mens agitat molem, et toto se corpore miscet. (Virgilio, Aen. VI, 726-7)
Questo è nomato da’ platonici fabro del mondo.[...] É detto da’ maghi fecondissimo de
semi, o pur seminatore; perché lui è quello que impregna la materia di tutte forme e,
secondo la raggione e condizion de quelle, al vienne a figurare, formare, intessere con
tanti ordini mirabili, li quali non possono attribuirsi al caso, né ad altro principio che
non sa distinguere e ordinare. [...] Plotino lo dice padre e progenitore, perché questo
distribuisce gli semi nel campo della natura, ed è il prossimo dispensator de le forme. Da
noi si chiama artefice interno, perché forma la materia e la figura da dentro, come da
dentro del seme o radice manda ed esplica il stipe; da dentro il stipe caccia i rami; da
dentro i rami le formate brance; da dentro queste ispiega le gemme; da dentro forma,
figura, intesse, come di nervi, le frondi, gli fiori, gli frutti; e da dentro, a certi tempi,
richiamma gli sui umori da le frondi e frutti alle brance, da le brance agli rami, dagli
rami al stipe, dal stipe alla radice... <etc.>». De la causa, principio e uno, ed. a cura di
Augusto Guzzo, Mursia, Milano, 1985, pp.93-97.
16
Kants Kunsttheorie und die Einheit der Kritik der Urteilskraft, North-Holland Publishing
Co., Amsterdam/London, 1972. Assim escreve (p. 33): «Ich bin der Ansicht, dass man
diesen Begriff “Technik der Natur” der gesammten Interpretation der Kritik der Urteilskraft
zugrunde legen muss.»; (p.34): «...das von Kant behandelte Thema <der K.d.U.> ... wie
immer wieder betont werden muss – eine transzendental-kritische Untersuchung nach
der Berechtigung der Aufassung der Natur als zweckmässig, als einer Technik bzw. als
Kunst [ist].»; (p.116): «…das eigentliche Thema der Kritik der Urteilskraft die Deutung
der produktiven Kraft der Natur als τέχνη, als Kunst, ist – also die Technik der Natur.»
E de forma ainda mais vincada na p.120: «Nun endet die Erste Fassung <Erste Einlei-
tung in die K.d.U.> mit einer Feststellung, auf die ich mich zuvor schon berufen habe,
um meinen Ausgangspunkt und meine Hauptthese zu begründen und zu verteidigen,
dass nämlich das eigentliche Thema der Kritik der Urteilskraft eine transzendental-kritische
Betrachtung über die Technik der Natur ist, und dass man allein unter diesem Aspekt
die Einheit und den Zusammenhang der Kritik der Urteilskraft wo nicht anerkennen so
doch zumindest begreifen kann.»
96
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
17
arte, e a arte é bela se parece como natureza» , realçando a sua grande fecundi-
dade, e verte-a na sua própria linguagem, limitando-a embora ao contexto pro-
priamente estético, nestes termos:
Kant propõe na sua Crítica do Juízo uma sentença que é de uma invulgar
fecundidade e que, segundo penso, só a partir da minha teoria pode obter o
seu esclarecimento. Esta sentença faz da técnica um requisito essencial do
belo natural e da liberdade uma condição essencial do belo artístico. Mas
como o belo artístico por si mesmo já envolve a ideia da técnica e o belo
natural a ideia de liberdade, Kant reconhece que a beleza não é outra coisa
18
senão a natureza na técnica, a liberdade na conformidade à arte.
Por seu turno, Goethe confessava ter descoberto na Crítica do Juízo uma
profunda afinidade entre as suas próprias intuições de esteta e de naturalista e a
ideia fundamental que, segundo ele, presidiria àquela obra de Kant, na qual os
produtos da arte e os da natureza são considerados do mesmo modo e o juízo
estético e o teleológico se iluminam mutuamente, revelando o íntimo e essencial
parentesco entre a arte poética e a ciência natural, regidas uma e outra por uma
19
lei de íntima espontaneidade. Numa carta a Zelter, de 29 de Janeiro de 1830, o
mesmo Goethe escrevia:
Constitui um mérito sem limite do nosso velho Kant o ter ele, na sua Crí-
tica do Juízo, colocado lado a lado arte e natureza e reconhecido a ambas o
20
direito de agir sem um fim determinado por grandes princípios.
No presente ensaio, limitaremos as nossas considerações acerca do tema da
«Técnica da Natureza» às indicações fornecidas pela terceira Crítica e pelos
17
«Die Natur war schön, wenn sie zugleich als Kunst aussah; und die Kunst kann nur
schön genannt werden, wenn wir uns bewusst sind, sie sei Kunst, und sie uns doch als
Natur aussieht». Ak V, 306.
18
«Kant stellt in seiner Kritik der Urteilskraft, pag. 177, einen Satz auf, der von ungemei-
ner Fruchtbarkeit ist und der, wie ich denke, erst aus meiner Theorie seine Erklärung
erhalten kann. Natur, sagt er, ist schön, wenn sie aussieht wie Kunst; Kunst ist schön,
wenn sie ausssieht wie Natur. Dieser Satz macht also die Technik zu einem wesentlichen
Requisit des Naturschönen und die Freiheit zur wesentlichen Bedingung des Kunstschönen.
Da aber das Kunstschöne schon an sich selbst die Idee der Technik, das Naturschöne die
Idee der Freiheit mit einschliesst, so gesteht also Kant selbst ein, dass Schönheit nichts
anders als Natur in der Technik, Freiheit in der Kunstmässigkeit sei.» Kallias-Briefe (23.
Februar 1793), in: Sämtliche Werke, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, Darmstadt, 1989,
Bd. V,417.
19
Einwirkung der neueren Philosophie (1817), Zur Morphologie, I, 2, 1820, Werke, Hamb.
Ausg., Bd.13, 26.
20
«Es ist ein grenzenloses Verdienst unseres alten Kant, ... dass er in seiner Kritik der
Urteilskraft Kunst und Natur nebeneinanderstellt und beiden das Recht zugesteht: aus
grossen Prinzipien zwecklos zu handeln.» citado apud Lehmann, art. cit.
97
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
21
Para uma reflexão filosófica actual sobre a peculiar ontologia dos artefactos técnicos,
veja-se: Peter Kroes and Anthonie Meijers (eds.), The Dual Nature of Technical Artefacts,
Special Issue of Studies in History and Philosophy of Science, 37 (2006). Antes de Kant,
encontra-se em Christian Wolff a ideia de uma possível «filosofia das artes» (philosophia
artium), também chamada «technica» ou «technologia», inscrita já no organigrama
completo dos saberes filosóficos: «Possibilis quoque est philosophia artium etsi hactenus
neglecta. Eam technicam aut technologiam appellare posses». Philosophia rationalis sive
Logica, Francofurti/Lipsiae, 1728 (Discursus Praeliminaris de Philosophia in genere, § 71).
O termo technica ocorre no título de duas obras de Robert Fludd, a saber no 2º e 3º
volumes da sua Utriusque cosmi historia (Oppeneheim/Francfurt, 1618: De naturae símia
seu technica macrocosmi historia; De technica microcosmi historia (1620).
22
Ver abaixo, notas 49 e 50.
98
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
23
É possível sem dúvida encontrar antecipações do tema em escritos kantianos mais
antigos, sendo dos mais explícitos o ensaio de cosmogonia de 1755, onde se fala não só
das «Kunstwerke der Natur», mas também de uma «geheime Kunst» que Deus terá
introduzido na Natureza, graças à qual esta produz, a partir do caos, num processo de
criação nunca terminada, todas as belas e harmoniosas ordens do sistema de sistemas
cósmico. Mas está fora do intuito dessa obra juvenil dar conta das manifestações do
mundo natural orgânico, mesmo nas suas formas mais elementares. Veja-se o próximo
capítulo deste volume.
99
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
24
«Auf solche Weise gehören alle Vorschriften der Geschicklichkeit zur Technik und
mithin zur theoretischen Kenntnis der Natur, als Folgerungen derselben.». EE i, L 7.
25
Na Introdução definitiva, parágrafo I, conclui-se, na mesma linha: «Alle technisch-
praktischen Regeln (d. i. die der Kunst und Geschicklichkeit überhaupt, oder auch der
Klügheit als einer Geschicklichkeit, auf Menschen und ihren Willen Einfluss zu haben),
sofern ihre Prinzipien auf Begriffen beruhen, müssen nur als Korollarien zur theoretis-
chen Philosophie gezählt werden. Denn sie betreffen nur die Möglichkeit der Dinge
nach Naturbegriffen, wozu nicht allein die Mittel, die in der Natur dazu anzutreffen
sind, sondern selbst der Wille (als Begehrungs-, mithin als Naturvermögen) gehört,
sofern er durch Triebfedern der Natur jenen Regeln gemäss bestimmt werden kann. [...]
weil sie insgesammt nur Regeln der Geschicklichkeit, die mithin nur technisch-prak-
tisch sind, enthalten, um eine Wirkung hervorzubringen, die nach Naturbegriffen der
Ursachen und Wirkungen möglich ist, welche, da sie zur theoretischen Philosophie
gehören, jenen Vorschriften als blossen Korollarien aus derselben (der Naturwissenschaft)
unterworfen sind und also keine Stelle in einer besonderen Philosophie, die praktische
genannt, verlangen können.» (Ak V 173) Na forma adjectiva – não era a primeira vez
que Kant utilizava o termo. Fizera-o na Fundamentação da Metafísica dos Costumes para
caracterizar os «imperativos da habilidade» (Imperative der Geschicklichkeit) e assim os
distinguir dos imperativos morais: aqueles são «technisch (zur Kunst gehörig)» (Ak IV,
100
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
escritos da década de 90, como também e com grande frequência ainda nas tardias
26
reflexões do Opus postumum.
Mas, a partir da leitura do texto da Introdução definitiva à Crítica do Juízo,
não se percebe qual a razão que terá levado Kant a fazer a referida clarificação
terminológica. Em contrapartida, isso é bem claro no 1º parágrafo da EE. Logo a
seguir à distinção proposta e à conclusão de que «todos os preceitos da habili-
dade pertencem à técnica», Kant prossegue com uma declaração que nos coloca
no cerne do nosso tema e também no núcleo dos problemas da sua terceira Crí-
tica, nestes termos:
Mas nós futuramente utilizaremos também o termo técnica, quando por
vezes os objectos da natureza somente podem ser julgados assim como se a
sua possibilidade se fundasse na arte, em cujos casos os juízos nem são teo-
réticos nem práticos (no significado há pouco avançado), pois eles não
determinam nada quanto à constituição do objecto, nem quanto ao modo de
o produzir, mas mediante eles a própria natureza é julgada embora apenas
segundo a analogia com uma arte e isso na relação subjectiva ao nosso
poder de conhecer, e não numa relação objectiva aos objectos. Aqui, a bem
dizer, não são os próprios juízos que designamos como sendo técnicos, mas
é de facto a faculdade de julgar, sobre cujas leis os juízos se fundam, bem
como a natureza na sua conformidade com esta faculdade: esta técnica, na
medida em que ela não contém nenhuma proposição objectivamente
determinante, não constitui uma parte da filosofia doutrinal, mas somente
27
uma parte da crítica do nosso poder de conhecer.
416). Todavia, numa nota ao 1º parágrafo da EE, o zeloso Kant corrige-se de um erro
que na verdade não havia cometido: «Hier ist der Ort, einen Fehler zu verbessern, den
ich in der Grundl. zur Met. der Sitten beging. Denn nachdem ich von dem Imperativen
der Geschicklichkeit gesagt hatte, dass sie nur bedingterweise und zwar unter der
Bedingung bloss möglicher, d.i. problematischer Zwecke geböten, so nannte ich derglei-
chen praktische Vorschriften problematische Imperativen, in welchem Ausdruck freilich
ein Widerspruch liegt. Ich hätte sie technisch, d. i. Imperativen der Kunst nennen sol-
len.» EE, L 7-8.
26
Zum ewigen Frieden, Ak VIII, 377; Rechtslehre, Ak VI, 217-218; Tugendlehre, Ak VI,
387; Opus postumum, Ak XXI,11,12,13,15,16,21,31,43,44,47,51,95,556; Ak XXII, 49, 52,
60, 122, 489. A expressão «Technik der Natur» aparece pelo menos uma vez no Opus
postumum (Ak XXI, 199).
27
«Wir werden uns aber künftig des Ausdrucks der Technik auch bedienen, wo
Gegenstände der Natur bisweilen bloss nur so beurteilt werden, als ob ihre Möglichkeit
sich auf Kunst gründe, in welchen Fällen die Urteile weder theoretisch, noch praktisch
(in der zuletzt angeführten Bedeutung) sind, indem sie nichts von der Beschaffenheit
des Objekts, noch der Art, es hervorzubringen, bestimmen, sondern wodurch die Natur
selbst, aber bloss nach der Analogie mit einer Kunst, und zwar in subjektiver Beziehung
auf unser Erkenntnisvermögen, nicht in objektiver auf die Gegenstände, beurteilt wird.
101
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
Hier werden wir nun die Urteile selbst zwar nicht technisch, aber doch die Urteilskraft,
auf deren Gesetze sie sich gründen, und ihr gemäss auch die Natur, technisch nennen,
welche Technik, da sie keine objektiv bestimmende Sätze enthält, auch keinen Teil der
doktrinalen Philosophie, sondern nur der Kritik unserer Erkenntnisvermögen ausmacht.»
EE i, L 8.
102
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
103
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
28
«Der ursprünglich aus der Urteilskraft entspringende und ihr eigentümliche Begriff ist
also der von der Natur als Kunst, mit andern Worten der Technik der Natur in Ansehung
ihr besonderen Gesetze, welcher Begriff keine Theorie begründet und, ebenso wenig wie
die Logik, Erkenntnis der Objekte und ihrer Beschaffenheit enthält, sondern nur zum
Fortgange nach Erfahrungsgesetzen, dadurch die Nachforschung der Natur möglich wird,
ein Prinzip gibt.» EE, L 11-12.
104
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
105
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
30
«Die reflektierende Urteilskraft verfährt also mit gegeben Erscheinungen, um sie unter
empirische Begriffe von bestimmten Naturdingen zu bringen, nicht schematisch, sondern
technisch, nicht gleichsam bloss mechanisch, wie ein Instrument, unter der Leitung des
Verstandes und der Sinne, sondern künstlich, nach dem allgemeinen, aber zugleich
unbestimmten Prinzip einer zweckmässigen Anordnung der Natur in einem System,
gleicham zugunsten unserer Urteilskraft....um... nach ihrem Bedürfnis, dennoch aber
zugleich einstimmig mit Naturgesetzen überhaupt, reflektieren zu können. EE, L 20.
31
«Das eigentümliche Prinzip der Urteilskraft ist also: die Natur spezifiziert ihre allgemeine
Gesetze zu empirischen, gemäss der Form eines logischen Systems zum Behuf der Urteilskraft.»
Ibidem.
106
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
32
«So wie nun eine solche Klassifikation keine gemeine Erfahrungserkenntnis, sondern
eine künstliche ist, so wird die Natur, sofern sie so gedacht wird, dass sie sich nach
einem solchen Prinzip spezifiziere, auch als Kunst angesehen, und die Urteilskraft führt
also notwendig a priori ein Prinzip der Technik der Natur bei sich, welche von der
Nomothetik derselben, nach transzendentalen Verstandesgesetzen, darin unterschieden ist,
dass diese ihr Prinzip als Gesetz, jene aber nur als notwendige Voraussetzung geltend
machen kann.» EE, L 22.
33
Veja-se a nota ao parágrafo v da EE, L 22. No § 80 Kant explicita esse pressuposto falando
daquela «analogia das formas, que, apesar de toda a diversidade que estas apresentam, pare-
cem, todavia, ser produzidas conformemente a um modelo originário comum, o que forta-
lece a presunção de um parentesco real que existiria entre elas na respectiva produção por
parte de uma mãe primitiva comum, através da aproximação gradual de uma espécie animal
às outras…» (Diese Analogie der Formen, sofern sie bei aller Verschiedenheit einem
gemeinschaftlichen Urbilde gemäss erzeugt zu sein scheinen, verstärkt die Vermutung einer
wirklichen Verwandtschaft derselben in der Erzeugung von einer gemeinschaftlichen
Urmutter, durch die stufenartige Annäherung einer Tiergattung zur andern...).
34
«Zeigte uns nun die Natur nicht mehr als diese logische Zweckmässigkeit, so würden wir
zwar schon Ursache haben, sie hierüber zu bewundern, indem wir nach den allgemeinen
107
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
108
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
Blumen, oder dem inneren Bau der Gewächse und Tiere, technisch d. i. zugleich als Kunst.
Der Unterschied dieser beiderlei Arten, die Naturwesen zu beurteilen, wird bloss durch die
reflektierende Urteilskraft gemacht, die es ganz wohl kann und vielleicht auch muss ges-
chehen lassen, was die bestimmende (unter Prinzipien der Vernunft) ihr, in Ansehung der
Möglichkeit der Objekte selbst, nicht einräumte und vielleicht alles auf mechanische
Erklärungsart zurückgeführt wissen möchte; denn es kann gar wohl nebeneinander beste-
hen, dass die Erklärung einer Erscheinung, die ein Geschäft der Vernunft nach objektiven
Prinzipien ist, mechanisch; die Regel der Beurteilung aber desselben Gegenstandes, nach
subjektiven Prinzipien der Reflexion über denselben, technisch sei.» EE, L 24.
36
«Die Kausalität nun der Natur, in Ansehung der Form ihrer Produkte als Zwecke,
würde ich die Technik der Natur nennen. Sie wird der Mechanik derselben entgegenge-
setzt, welche in ihrer Kausalität durch die Verbindung des Mannigfaltigen onhe einen
der Art ihrer Vereinigung zum Grunde liegenden Begriff besteht...» EE vii, L 26. Não
basta o considerar o objecto como sendo usado em função de um fim (finalidade transi-
tiva), mas é preciso que o objecto apenas em relação a um fim seja ele mesmo possível
(finalidade imanente ou intransitiva).
109
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
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IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
42
KU § 78; Ak V, 410-415.
43
«Denn ob, was subjektiv-zweckmässig ist, es auch objektiv sei, dazu wird eine mehrfen-
teils weitläufige Untersuchung, nicht allein der praktischen Philosophie, sondern auch der
Technik, es sei der Natur oder der Kunst, erfordert, d.i. um Vollkommenheit an einem
Dinge zu finden, dazu wird Vernunft, um Annehmlichkeit, wird blosser Sinn, um Schö-
nheit an ihm anzutreffen, nichts als die blosse Reflexion (ohne allen Begriff) über eine
gegebene Vorstellung erfordert.» EE viii, L 36.
44
«Denn überhaupt ist die Technik der Natur, sie mag nun bloss formal oder real sein,
nur ein Verhältnis der Dinge zu unserer Urteilskraft, in welcher allein die Idee einer
Zweckmässigkeit der Natur anzutreffen sein kann, und die, bloss in Beziehung auf jene,
der Natur beigelegt wird.» EE vii, L 28.
111
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
112
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
47
«Die ästhetische Beurteilung der Naturformen konnte, ohne einen Begriff vom Gegens-
tande zum Grunde zu legen, in der blossen empirischen Auffassung der Anschauung
gewisse vorkommende Gegenstände der Natur zweckmässig finden, nämlich bloss in
Beziehung auf die subjektiven Bedingungen der Urteilskraft. Die ästhetische Beurteilung
erforderte also keinen Begriff vom Objekte und brachte auch keinen hervor: daher sie
diese auch nicht für Naturzwecke, in einem objektiven Urteile, sondern nur als zweckmäs-
sig für die Vorstellungskraft, in subjektiver Beziehung, erklärte, welche Zweckmässigkeit
der Formen man die figürliche und die Technik der Natur in Ansehung ihrer auch ebenso
(technica speciosa) benennen kann. - Das teleologische Urteil dagegen setzt einen Begriff
vom Objekte voraus und urteilt über die Möglichkeit desselben nach einem Gesetze der
Verknüpfung der Ursachen und Wirkungen. Diese Technik der Natur könnte man daher
plastisch nennen, wenn man dieses Wort nicht schon in allegmeinerer Bedeutung, nämlich
für Naturschönheit sowohl als Naturabsichten, in Schwang gebracht hätte, daher sie, wenn
man will, die organische Technik derselben heissen mag, welcher Ausdruck denn auch den
Begriff der Zweckmässigkeit nicht bloss für die Vorstellungsart, sondern für die Möglichkeit
der Dinge selbst bezeichnet.» EE ix, L 41.
113
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
48
«Der Begriff der Zwecke und der Zweckmässigkeit ist zwar ein Begriff der Vernunft,
insofern man ihr den Grund der Möglichkeit eines Objekts beilegt. Allein Zweckmässig-
114
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
keit der Natur, oder auch der Begriff von Dingen als Naturzwecken, setzt die Vernunft
als Ursache mit solchen Dingen in Verhältnis, darin wir sie durch keine Erfahrung als
Grund ihrer Möglichkeit kennen. Denn nur an Produkten der Kunst können wir uns der
Kausalität der Vernunft von Objekten, die darum zweckmässig oder Zwecke heissen,
bewusst werden, und in Ansehung ihrer die Vernunft technisch zu nennen, ist der
Erfahrung von der Kausalität unseres eigenen Vermögen angemessen. Allein die Natur,
gleich einer Vernunft sich als technisch vorzustellen (und so der Natur Zweckmässig-
keit, und sogar Zwecke beizulegen), ist ein besonderer Begriff, den wir in der Erfahrung
nicht antreffen können und den nur die Urteilskraft in ihrer Reflexion über Gegenstände
legt, um nach seiner Anweisung Erfahrung nach besondern Gesetzen, nämlich denen
der Möglichkeit eines Systems, anzustellen. – Man kann nämlich alle Zweckmässigkeit
der Natur entweder als natürlich (forma finalis naturae spontanea), oder als absichtlich
(intentionalis) betrachten. Die blosse Erfahrung berechtigt nur zur der erstern Vorstel-
lungsart; die zweite ist eine hypothetische Erklärungsart, die über jenen Begriff der
Dinge als Naturzwecke hinzukömmt. Der erstere Begriff von Dingen, als Naturzwecken,
gehört ursprünglich der reflektierenden (obgleich nicht ästhetisch, sondern logisch reflek-
tierenden), der zweite der bestimmenden Urteilskraft zu.» EE ix, L 42-43.
115
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
116
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
49
«Noch ist anzumerken: dass es die Technik in der Natur und nicht die der Kausalität der
Vorstellungskräfte des Menschen, welche man Kunst nennt (in der eigentlichen Bedeutung
des Worts) nennt, sei, in Ansehung deren hier die Zweckmässigkeit als ein regulativer Begriff
der Urteilskraft nachgeforscht wird und nicht das Prinzip der Kunstschönheit oder einer
Kunstvollkommenheit nachgesucht werde, ob man gleich die Natur, wenn man sie als tech-
nisch (oder plastisch) betrachtet, wegen einer Analogie, nach welcher ihre Kausalität mit der
der Kunst vorgestellt werden muss, in ihrem Verfahren technisch, d.i. gleichsam künstlich
nennen darf. Denn es ist um das Prinzip der bloss reflektierenden, nicht der bestimmenden
Urteilskraft (dergleichen allen menschlichen Kunstwerken zum Grunde liegt), zu tun, bei
der also die Zweckmässigkeit als unabsichtlich betrachtet werden soll, und die also nur der
Natur zukommen kann. Die Beurteilung der Kunstschönheit wird nachher als blosse Folge-
rung aus denselbigen Prinzipien, welche dem Urteile über Naturschönheit zum Grunde
liegen, betrachtet werden müssen.» EE xii, L 60-61.
50
«Die selbständige Naturschönheit entdeckt uns eine Technik der Natur, welche sie als
System nach Gesetzen, deren Prinzip wir in unserem ganzen Verstandesvermögen nicht
117
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
antreffen, vorstellig macht, nämlich dem einer Zweckmässigkeit, respektiv auf den
Gebrauch der Urteilskraft in Ansehung der Erscheinungen, so dass diese nicht bloss als
zur Natur in ihrem zwecklosen Mechanism, sondern auch als zur Analogie mit der
Kunst gehörig, beurteilt werden müssen. Sie erweitert also wirklich zwar nicht unsere
Erkenntnis der Naturobjekte, aber doch unseren Begriff von der Natur, nämlich als blos-
sen Mechanism, zu dem Begriff von eben derselben als Kunst; welches zu tiefen Unter-
suchungen über die Möglichkeit einer solchen Form einladet.» Ak V, 246. Ibidem, Ak V,
245: «... die Naturschönheit (die selbständige) eine Zweckmässigkeit in ihrer Form,
wodurch der Gegenstand für unsere Urteilskraft gleichsam vorherbestimmt zu sein
scheint, bei sich führt und so an sich einem Gegenstand des Wohlgefallens ausmacht.»
51
Ak V, 482.
118
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
dizer intelectual pela beleza da natureza. Isso significa que não só o pro-
duto da natureza lhe apraz pela sua forma, mas também que a existência
dele lhe apraz, sem que qualquer atractivo sensível tome parte neste prazer
52
ou que a isso se associe um objectivo qualquer.
No mínimo, o que estas passagens indicam é a pregnância da experiência
estética da natureza e a sua íntima solidariedade ou parentesco (Verwandtschaft),
seja com o sentimento moral, seja com a apreciação teleológica da natureza e até
53
com a mais genuína experiência religiosa.
119
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
55
KU § 43; Ak V, 303.
120
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
121
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
122
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
qual uma razão e uma produção racional e intencional estão na génese da natu-
reza. Contra os atomistas, que apelavam para a natureza como algo absoluto e
auto-suficiente, Platão mostra que se a natureza é algo por si subsistente é-o
apenas porque é obra de uma arte divina arquetípica, desenhada e executada
58
pela razão do supremo geómetra, arquitecto ou demiurgo.
O pensamento mecanicista dos Modernos inverteu o entendimento tradi-
59
cional aristotélico da relação entre natureza e arte, reduzindo aquela a esta.
Podemos encontrar essa inversão exposta de uma forma paradigmática num dos
últimos parágrafos da IV Parte dos Princípios da Filosofia de Descartes. Aí se lê:
Qualquer um poderá perguntar como é que eu cheguei a saber quais são as
figuras, grandezas e movimentos das pequenas partes de cada corpo, muitas
das quais determinei tal como se as tivesse visto, ainda que seja certo que
não pude apercebê-las pela ajuda dos sentidos, uma vez que confesso que
são insensíveis. Para tanto foi-me de grande auxílio o exemplo de vários
corpos compostos pelo artifício dos homens: pois eu não reconheço nenhuma
diferença entre as máquinas que os artesãos fazem e os diversos corpos que
a natureza por si só compõe, a não ser esta: que os efeitos das máquinas
não dependem de mais nada a não ser da disposição de certos tubos, ou
molas, ou outros instrumentos, que, devendo ter alguma proporção com as
mãos daqueles que os fazem, são sempre tão grandes que as suas figuras e
movimentos se podem ver, ao passo que os tubos ou molas que causam os
efeitos dos corpos naturais são ordinariamente demasiado pequenos para
poderem ser percebidos pelos nossos sentidos. E é certo que todas as regras
das mecânicas pertencem à física, de modo que todas as coisas que são arti-
ficiais são por isso naturais. Porque, por exemplo, quando um relógio
marca as horas por meio das engrenagens de que é feito isso não é menos
60
natural quanto é para uma árvore produzir frutos.
Nesta passagem estão supostas três decisivas reduções simplificadoras: a
redução da natureza à arte e da arte à máquina (o relógio), a redução da física à
58
«Direi que as obras ditas da natureza são a obra de uma arte divina, e as que os
homens compõem com elas, obras de uma arte humana.» Sofista 265 e3; também: Leis,
888-890; Timeu, passim. Para este tema da relação arte/natureza no pensamento antigo e
em toda a história do pensamento, veja-se a excelente obra de Pierre Hadot, Le voile
d’Isis – Essai sur l’histoire de l’idée de nature, Gallimard, Paris, 2004 (ed. brasileira : O véu
de Ísis – Ensaio sobre a história da idéia de natureza, Edições Loyola, São Paulo, 2006).
59
Veja-se: P. McLaughlin, «Mechanical philosophy and artefact explanation», in: Stud.
Hist. Phil. Sc., 37 (2006), 97-101; Idem, «Die Welt als Maschine. Zur Genese des neu-
zeitlichen Naturbegriffs», in: A. Grote (Ed.), Macrocosmos in Microcosmos. Die Welt in
der Stube. Zur Geschichte des Sammelns, Leske & Budrich, Opladen, 1994, pp.439-451.
60
A-T, IX, -2, 321-322.
123
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
61
Leibniz, Die philosophischen Schriften, ed. Gerhardt, Olms, Hildesheim/New York, 1978,
vol. 6, p. 618. A mesma ideia havia sido já exposta no Système nouveau de la nature
(1695), Die philosophischen Schriften, vol. 4, p. 482. Sobre este tópico, veja-se Michel
Fichant, «Leibniz e as máquinas da natureza», Dois Pontos, Revista de Filosofia das Uni-
versidades Federais de Curitiba (PR) e de São Carlos (SP), 2, Outubro de 2005, 27-51.
Em várias passagens do Opus postumum, Kant aproxima-se desta formulação leibniziana,
como que invertendo o paradigma: passa a ser o paradigma do organismo a explicar
mais satisfatoriamente a própria máquina.
124
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
62
no seu mais famoso poema filosófico que «All nature is but Art». Era este um
tópico comum da agenda filosófica da sua época e Kant mais não fez do que
tomá-lo a sério e levar mais longe a reflexão a seu respeito. Já no ensaio de cos-
mogonia do ano 1755 a ideia está bem explícita, quando o jovem filósofo fala
das «obras de arte da natureza» (Kunstwerke der Natur) produzidas apenas pelas
leis universais da mecânica, ou quando sugere que «Deus pode ter introduzido
nas forças da natureza uma arte secreta que a leva a formar-se por si mesma a
63
partir do caos até atingir uma perfeita constituição cósmica». Mas a invocação
do tópico pelos filósofos setecentistas tanto poderia ser lida no sentido reducio-
nista dos mecanicistas seiscentistas como no sentido mais pregnante do pressu-
posto estóico de uma arte íntima da natureza, mediante a qual esta leva a cabo a
criação multiplicada e diferenciada de todos os possíveis seres, na infinita dura-
ção do tempo cósmico. Em Kant dá-se a permuta entre estas duas linhas de
interpretação do tópico. E o parágrafo 65 da Crítica do Juízo pode bem ler-se
como uma resposta a Descartes, como a desconstrução do texto citado dos Prin-
cípios que enuncia o pressuposto dentro do qual se movimenta todo o pensa-
mento mecanicista dos Modernos e a analogia por estes estabelecida entre natu-
reza e arte, sob o modo da redução unilateral e simples daquela a esta. Kant
escolhe justamente a imagem do relógio, que constituíra para os pensadores do
século XVII e da primeira metade do século XVIII o paradigma por excelência da
racionalidade, para mostrar o seu défice de racionalidade, quando comparado
com o paradigma do organismo e do ser vivo natural. Esse parágrafo pode ler-se
como o atestado de óbito da hegemonia racional do mecanicismo e da sua
metáfora emblemática e ao mesmo tempo como a certidão de nascimento da
64
metafórica do organismo e como a sua legitimação especulativa. O autor da
terceira Crítica retoma, com nova linguagem, e aprofunda, em diferente enqua-
62
An Essay on Man, I, x.
63
«Wenn es gleich wahr ist, wird man sagen, dass Gott in die Kräfte der Natur eine
geheime Kunst gelegt hat, sich aus dem Chaos von selber zu einer vollkommenen Welt-
verfassung auszubilden.» Allgemeine Naturgeschichte und Theorie des Himmels, Ak I, 229.
Não andam longe desta ideia juvenil os desenvolvimentos de alguns parágrafos da
Segunda Parte da terceira Crítica, respeitantes à noção de «técnica da natureza» e à
compatibilização do princípio do mecanicismo e do da teleoformidade na explicação e
compreensão da natureza. Veja-se, nomeadamente, o § 78 (Ak V, 410-415).
64
É claro que Kant não inaugura o uso da metafórica orgânica em filosofia. Desde a mais
antiga história filosófica houve pensadores que usaram metáforas biológicas ou orgâni-
cas. Mas Kant consciencializa esse uso e legitima-o, numa época em que ele começava a
ser intenso, não só na filosofia como também nas ciências. Veja-se, a este propósito, o
meu livro Metáforas da Razão ou economia poética do pensar kantiano, JNICT/ F. C. Gul-
benkian, Lisboa, 1994, Segunda Parte, cap. IV: «’Epigénese’ e ‘autoconservação da razão’.
A metafórica do organismo e suas metamorfoses», pp.403-446; e a obra de Judith Sch-
langer, Les métaphores de l’organisme, Vrin, Paris, 1971.
125
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
65
«In einer Uhr ist ein Theil das Werkzeug der Bewegung der andern, aber nicht ein Rad
die wirkende Ursache der Hervorbringung des andern; ein Theil ist zwar um das andern
willen, aber nicht durch denselben da. Daher ist auch die hervorbringende Ursache der-
selben und ihrer Form nicht in der Natur (dieser Materie), sondern ausser ihr in einem
Wesen, welches nach Ideen eines durch seine Causalität möglichen Ganzen wirken
kann, enthalten. Daher bringt auch nicht ein Rad in der Uhr das andere, noch weniger
eine Uhr andere Huren hervor, so dass sie andere Materie dazu benutzte (sie organi-
sirte); daher ersetzt sie auch nicht von selbst die ihr entwandten Theile, oder vergütet
ihren Mangel in der ersten Bildung durch den Beitritt der übrigen, oder bessert sich etwa
selbst aus, wenn sie in Unordnung gerathen ist: welches alles wir dagegen von der orga-
nisirten Natur erwarten können.» Ak V, 374.
66
Ibidem.
126
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
127
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
ção daquela ideia, claudica por fim e revela-se inadequada para dela falar, pois,
em última instância, também a própria arte humana terá de ser explicada por
essa misteriosa arte da natureza cujo íntimo segredo não nos é revelado.
Em Kant não há, por conseguinte, propriamente falando, nem uma simpli-
ficadora redução da natureza à arte, nem a redução por mimese da arte à natu-
reza, mas antes a recíproca explicação de uma pela outra, a recíproca tradução
de uma na outra, de que resulta a potenciação semântica de ambas. O que o filó-
sofo fez foi combinar os elementos de uma e de outra para propor uma nova
compreensão seja da arte humana seja da natureza, adunando a concepção pla-
tónica de um desígnio racional finalizado, pressuposto originariamente no artista
criador, com a concepção aristotélica de uma finalidade imanente e espontânea
da natureza, explicando à vez uma pela outra: a natureza pela arte (isto é, a
natureza como arte), e a arte pela natureza (isto é, a arte como natureza). Ao
fazer isso, mediante o conceito de «Técnica da Natureza», Kant consegue supe-
rar não só a mera concepção mecânica da natureza, como também ultrapassar a
vulgar concepção da arte humana ou técnica propriamente dita, entendida como
violência exercida sobre a natureza e como subjugação desta aos fins impostos
69
pela razão e vontade humanas. Que essa outra arte ou técnica não violentadora,
que procura interpretar e seguir o modo de produção espontaneamente con-
forme a fins (zweckmässig) da natureza, se revele sobremaneira nas «artes-
-livres» (freie Künste) ou nas «belas-artes» (schöne Künste), consideradas na sua
máxima expressão precisamente também como sendo manifestações da natureza
etwas Erhabneres gesagt, oder ein Gedanke erhabener ausgedrückt worden, als in jener
Aufsschrift über dem Tempel der Isis (der Mutter Natur): ‘Ich bin alles, was da ist, was
da war, und was da sein wird, und meinen Schleier hat kein Sterblicher aufgedeckt.’».
69
Kritik der reinen Vernunft B 654, Ak III, 417. Na base da prova fisico-teológica da
existência de Deus está a analogia da produção livre da natureza com a da arte humana.
Não deixa de ser significativo que nesse passo Kant entenda a arte humana como uma
violência ou imposição dos fins humanos aos fins da natureza, por conseguinte, como
contraposta à espontaneidade da natureza. Mas, no mesmo passo, deixa sugerida a ideia
de que há uma arte arquetípica da natureza que não só daria conta de todas as artes
como até da própria razão. Cito: «A partir da analogia entre algumas produções da natu-
reza e aquilo que a arte humana produz quando faz violência à natureza e a obriga a
curvar-se aos nossos fins em vez de proceder segundo os seus [wenn sie der Natur Gewalt
thut und sie nöthigt, nicht nach ihren Zwecken zu verfahren, sondern sich in die unsrigen zu
schmieden] (da semelhança dessas produções com casas, navios, relógios), a razão con-
clui que a natureza deve ter precisamente por princípio uma causalidade do mesmo
género, a saber, uma inteligência e uma vontade, fazendo derivar ainda de uma outra
arte, embora de uma arte sobre-humana, a possibilidade interna da natureza livremente
operante [wenn sie die innere Möglichkeit der freiwirkenden Natur noch von einer anderen,
obgleich übermenschlichen Kunst ableitet] (que primeiramente torna possível toda a arte e
talvez mesmo a razão [die alle Kunst und vielleicht selbst sogar die Vernunft möglich
macht]).»
128
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
através do artista ou do génio que as realiza, é algo que dá ensejo a que também
a natureza possa ser apreciada como artista, ou como possuindo uma peculiar
arte, para nós oculta, mas ainda assim poderosa e surpreendente, mediante a
qual opera espontaneamente e todavia como se fosse guiada por uma peculiar
finalidade imanente, assim produzindo a ilimitada variedade dos seres e das
formas que se oferecem à nossa contemplação, quer essa sua íntima arte lhe seja
mesmo própria ou seja devida a algum supremo artista, que, de um modo para
nós incompreensível, nela e através dela opera. Era por isso que o autor da Crí-
tica do Juízo podia dizer que a ideia de uma «Técnica da Natureza», se não
amplia em nada o conhecimento humano acerca dos objectos da natureza, alarga
sim consideravelmente o próprio conceito de natureza muito para além da
estreiteza da visão mecanicista do mesmo, convidando para mais profundas con-
siderações, que promovem até, e antes de tudo o mais, o estudo e a investigação
científica da natureza.
129
4
Formação e significado epistémico-filosófico
do pensamento biológico de Kant
1
«Weil die Naturgeschichte nicht mein Studium, sondern nur mein Spiel ist, und meine
vornehmste Absicht, die ich mit derselben habe darauf gerichtet ist, die Kenntnis der
Menschheit auch vermittelst ihrer zu berichtigen und zu erweitern.» I. Kant, Brief vom
1. April 1778 an J. G. J. Breitkopf, Kant’s Briefwechsel, Bd. I, Kant’s gesammelte Schriften,
Akademie Ausgabe, Berlin, 1902, Bd. X, 230; reimpr.: Walter de Gruyter, Berlin, 1969.
Agradeço ao Professor Ubirajara Rancan de Azevedo Marques as pertinentes observações
e sugestões que me permitiram aperfeiçoar a versão original deste ensaio.
131
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
2
próprio pensamento de Kant na sua peculiar organicidade. Tentarei mostrar que
da aplicação de Kant a esses tópicos resulta não só a iluminação desse campo de
fenómenos com as perspectivas fecundas da filosofia crítica e a abertura a uma
nova filosofia da natureza, como se decide também profundamente a forma inte-
rior do próprio filosofar kantiano, a transformação da concepção da filosofia e a
determinação da feição desta. Esse domínio de fenómenos começava a despertar
na época um interesse completamente novo e o debate de perspectivas teóricas a
seu respeito viria a ser extremamente animado ao longo de todo o século XVIII,
com novas descobertas, sobretudo no domínio da embriologia, que alterariam
profundamente uma ciência menor, de estatuto epistémico débil, chamada His-
tória Natural, a qual, partindo do interesse posto sobretudo na descrição, na
classificação taxionómica e na sistematização dos seres da natureza baseada na
comparação das respectivas características exteriores, passaria progressivamente
a atender preferencialmente ao fenómeno da geração dos seres orgânicos, vendo-
-se na necessidade de, para o explicar, ultrapassar os pressupostos do mecani-
cismo filosófico e científico, que se revelavam incapazes de dar razão da peculiar
estrutura e lógica que rege aqueles seres que a natureza tão profusamente ofe-
rece nos seus reinos vegetal e animal, seres que na época eram chamados «seres
organizados», «corpos organizados», ou também «organismos».
Kant contribuiu decisivamente para a constituição dessa nova ciência dos
seres vivos, não por ter aduzido elementos ou dados empíricos novos, mas por
ter investigado, com mais radicalidade e determinação do que qualquer outro
naturalista ou filósofo do seu século o fizeram, os pressupostos epistémicos dessa
nova ciência e apurado alguns dos seus conceitos fundamentais (ser organizado,
organismo, finalidade ou conformidade a fins da natureza – Zweckmässigkeit der
Natur, a própria ideia de natureza como um sistema de fins). Do ponto de vista
da história das ideias científicas e filosóficas, o desenvolvimento – quase se
poderia antes dizer, o nascimento – da Biologia constitui um acontecimento-
processo dos mais marcantes da segunda metade do século XVIII e de princípios
do século XIX, significativo não só pelas conquistas no plano observacional e
experimental, mas também no plano especulativo, pelo esclarecimento dos pres-
supostos metodológicos e do estatuto epistémico da disciplina, nomeadamente
pela postulação de um princípio de inteligibilidade teleológica para dar razão
desses seres orgânicos que só podem ser pensados como se fossem fins que a
2
Para uma apreciação global do pensamento biológico de Kant, veja-se : Peter Baumanns,
Das Problem der organischen Zweckmässigkeit, Bonn : Bouvier, 1965 ; R. Löw, Philosophie
des Lebendigen. Der Begriff des Organischen bei Kant, sein Grund und seine Aktualität,
Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1980; P. MacLaughlin, Kant’s Critique of Teleology in biologi-
cal Explanation. Antinomy and Teleology, Lewiston: Edwin Mellen Press, 1990; Philippe
Huneman, Métaphysique et Biologie. Kant et la constitution du concept d’organisme, Paris :
Éditions Kimé, 2008.
132
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
3
O termo «Biologia» começa a ser usado esporadicamente na segunda metade do século.
A primeira ocorrência que se conhece, aparentemente isolada, regista-se numa obra do
wolffiano Michael Christoph Hanov, Philosophia naturalis sive Physica dogmatica: Geolo-
gia, Biologia, Physiologia generalis et Dendrologia, vol. III (Halle, 1766). Seguem-se, a
partir do fim desse século e do início do seguinte, várias ocorrências: em 1797, por Th.
G. A. Roose; em 1800, por C. F. Burdach (Propädeutik zum Studium der gesammten Heil-
kunst, como englobando a Morfologia, a Fisiologia e a Psicologia); em 1801, por J. B.
Lamarck; em 1802, por Gotthelf Reinhold Treviranus, como título da sua obra Biologie.
Oder Philosophie der lebenden Natur (Göttingen: Röwer, 6 vols., 1802-22) e já com o decla-
rado propósito de abarcar «as diferentes formas e fenómenos da vida, as condições e leis
da sua existência, bem como as causas que a determinam» (vol. I, p. 4); em 1805, por L.
Oken. Veja-se: G. Schmidt, Über die Herkunft der Ausdrücke Morphologie und Biologie,
Halle, 1935; G. Leps, «Begriff der Biologie -180 Jahr alt», in: Biologie in der Schule, 26,
1977, Heft 6, 1). Outros termos usados na época eram: «Zoologie generale», «zoono-
mie», «organology». «Zoologie» e «Zoonomie» são usados também por Kant no Opus
postumum (XXII, 398). Tenha-se, de resto, em conta o radicalismo, que não é apenas
exagero retórico, de Michel Foucault, na sua obra Les mots et les choses (Paris: Galli-
mard, 1966; trad. port.: As palavras e as coisas, Lisboa: Portugália, s.d., pp. 172, 216-
-218), quando escreve: «Pretende-se fazer a história da biologia do século XVIII, mas não
se tem em conta que a biologia não existe e que a configuração do saber que nos é fami-
liar há mais de cento e cinquenta anos não pode valer para um período anterior. E, além
disso, se a biologia era desconhecida, havia para tal uma razão muito simples: é que a
própria vida era inexistente. Existiam apenas seres vivos, que apareciam através do
133
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
doutrinas a respeito daquilo que hoje se designa por essas expressões eram, na
época, englobadas numa disciplina cientificamente frágil chamada «História Natu-
ral» (Histoire naturelle, Naturgeschichte) – ainda incipientemente experimental, sem
princípios reconhecidamente próprios, sucedâneo da Física, com aderências metafí-
sicas, teológicas, estéticas, cuja origem remota – não só quanto à designação, mas
também quanto ao objecto e até quanto à metodologia essencialmente descritiva e
tendencialmente enciclopédica – era a Naturalis Historia, de Plínio, o Velho; ou
então essas questões eram tratadas em obras com títulos do género «Economia da
Natureza», «Política da Natureza», ou «Sistema da Natureza» (títulos de obras de
Lineu), sendo o último o mais frequente. Tais designações têm claras ressonâncias
modernas e indicam que se pretende arrumar, classificar e administrar a múltipla e
vária natureza subordinando-a a princípios taxionómicos de uma racionalidade hie-
rárquica (segundo classes, ordens, variedades e tipos), da mesma forma que se
4
organiza e administra a sociedade humana.
Os “biólogos” do século XVIII eram naturalistas, como Lineu, Buffon,
Maupertuis, Albrecht von Haller, Caspar Friedrich Wolff, Charles Bonnet, Johann
Friedrich Blumenbach, entre muitos outros. Mas a natureza visada por estes
naturalistas era muito diferente daquela pela qual se haviam interessado e de
que se haviam ocupado os cosmólogos e físico-matemáticos seiscentistas, como
Galileu, Descartes, Christian Huyghens, ou mesmo Newton, reduzida, do ponto
de vista metafísico, à extensão e, do ponto de vista físico, às leis do movimento e
do choque dos elementos, embora houvesse transferências teóricas de um domí-
nio de fenómenos para outro – da matéria inorgânica para o mundo dos seres
5
vivos, da Física e da Cosmologia para a História Natural . Os filósofos da natu-
prisma do saber constituído pela história natural. […] É por isso, decerto, que a história
natural, na época clássica, não pode constituir-se como biologia. Até aos fins do século
XVIII, com efeito, a vida não existe. Apenas existem seres vivos. […]. O naturalista é o
homem do visível estruturado e da denominação característica. Não da vida.» Estas
palavras valerão talvez, se relativizadas, para a primeira metade do século, mas não ser-
vem já para caracterizar a segunda metade. Muito menos servem para Kant.
4
Sobre o estatuto epistémico da História Natural e sua transformação nos séculos XVIII
e XIX, veja-se: Wolf Lepenies, Das Ende der Naturgeschichte. Wandel kultureller Selbst-
verständlichkeiten in den Wissenschaften des 18. und 19. Jahrhunderts (Frankfurt a. M.:
Suhrkamp, 1978); e também K. E. Rothschuh, Physiologie. Der Wandel ihrer Konzepte,
Probleme und Methoden vom 16. bis 19. Jahrhundert (München: Karl Alber, 1968); F.
Duchesneau, La physiologie des Lumières. Empirisme, modèles et théories (La Haye : M.
Nijhoff, 1982).
5
Nomeadamente, a tentativa de Albrecht von Haller e de Maupertuis para explicar a
geração dos organismos mediante uma força atractiva, análoga daquela com que Newton
explicara a dinâmica dos corpos no seu sistema do mundo (Maupertuis, Vénus Physique,
1749, Oeuvres II, pp.88-89). Também Blumenbach (veja-se, por exemplo, no seu Hand-
buch der Naturgeschichte, ed. de 1791, pp.13-14; na 5ª ed. de 1797, p. 18) estabelece uma
analogia entre o seu Bildungstrieb, mediante o qual explica a formação dos seres orgâni-
134
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
reza seiscentistas haviam-se ocupado dos grandes corpos astrais, das relações
físicas das suas massas e dos seus movimentos, que tentaram reduzir com
sucesso a leis geométricas e mecânicas, ao passo que os naturalistas setecentistas
se ocupavam de seres tão ínfimos que só poderiam ser observados graças ao
extraordinário aperfeiçoamento técnico do microscópio entretanto levado a cabo
por Leeuwenhoek. Eles não apontavam as suas lunetas para as manchas do Sol
ou para as luas de Júpiter, como o fizera Galileu, mas para o minúsculo pólipo
(hidra de água doce) que revelava a surpreendente particularidade de se replicar
em tantos novos indivíduos completos quantas as secções a que fosse subme-
tido; ou para os ínfimos vermes dos charcos que, cortados ao meio, se regenera-
vam, ou para a pulga de água celibatária, que, sozinha, se reproduzia de forma
generosa (por partenogénese), ou para tentar seguir o desenvolvimento do
embrião de pinto num ovo de galinha. Estas eram agora, apesar de minúsculas,
as mais importantes entidades da natureza que constituíam o objecto de apaixo-
nados debates. O que despertava a especial curiosidade e o interesse destes natu-
ralistas era o fenómeno da geração, o modo de desenvolvimento ou crescimento
e de reprodução desses seres naturais orgânicos ou vivos (sejam eles do reino
vegetal ou animal), fenómenos que não eram satisfatoriamente explicados pelo
reducionismo materialista e mecanicista de matriz atomista ou cartesiana.
Quando, no título deste ensaio, uso a expressão «pensamento biológico»
não estou a pensar que se trata da «Biologia» de Kant, no sentido que se pudesse
dar actualmente a tal expressão. «Pensamento biológico» tem um âmbito muito
mais amplo do que o da ciência biológica ou da Biologia mesmo actualmente
têm. Cobre um vasto campo de reflexões sobre os pressupostos e o estatuto
epistemológico da abordagem do fenómeno da vida e dos seres orgânicos e
muitas conexões sistemáticas que na ciência biológica contemporânea já não
têm nenhuma (ou não têm especial) relevância, mas que no pensamento de Kant
são essenciais, embora, por certo, também problemáticas e que ainda hoje
podem dar muito que pensar. São exemplos disso: a relação suposta entre a
apreciação da natureza viva e a contemplação estética da natureza – entre
Teleologia e Estética – e a analogia reversível entre natureza e arte ou entre arte
e natureza, que leva o autor da terceira Crítica a juntá-las sob um mesmo princí-
pio transcendental e uma mesma faculdade do espírito; a conexão também e a
acoplagem entre a teleologia da natureza, revelada sobretudo nos organismos
135
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
vivos, e a teleologia moral exigida pela razão prática do homem; enfim, a pres-
suposição da dependência do mundo orgânico e vivo relativamente a uma causa
imaterial e, por conseguinte, a abertura à ideia, ainda que problemática, de uma
causalidade supra-sensível, que nos é por certo desconhecida, mas que, ainda
assim, tem de ser pressuposta, qualquer que ela seja e qualquer que seja o modo
do seu operar: ou seja, a pressuposição de uma conexão entre a teleologia que
rege a natureza nos seus seres organizados e a teologia física, e entre estas e a
teleologia e teologia moral.
O meu título fala também de «formação», de «formação do pensamento
biológico de Kant». Entende-se geralmente por tal um processo que tem etapas
e, tratando-se de uma filosofia ou de um sistema filosófico, sugere-se com isso o
desenvolvimento de ideias seminais até atingirem a sua maturidade e se expo-
rem em toda a sua dimensão, eventualmente, até em forma de um sistema. Tra-
tar-se-ia, então, de saber como surge e se desenvolve o pensamento biológico de
Kant. O que significa o mesmo que perguntar pela biologia do pensamento kan-
tiano.
De facto, a respeito de nenhum outro tema kantiano cabe melhor do que
neste a aplicação do modo como o próprio Kant pensava e expunha o desenvol-
vimento de uma ideia filosófica ou até da ideia de toda uma filosofia. Ele fazia-o
com a linguagem da biologia do seu tempo, com a linguagem da sua própria
concepção do fenómeno biológico e orgânico. É mesmo uma das primeiras for-
mulações publicadas da concepção kantiana de organismo a que ocorre no
penúltimo capítulo da Crítica da Razão Pura. A fenomenologia e a peculiar
lógica do desenvolvimento das ideias filosóficas que aí é traçada parece ser tirada
da experiência própria do filósofo, do modo como nele se desenvolviam as suas
próprias ideias filosóficas. Com efeito, mais do que uma vez ele dirá que a expe-
riência do que é a vida ou do que é um ser orgânico a temos directamente em
nós próprios, na percepção do nosso próprio organismo, seja nas suas funções
vegetativas, animais ou espirituais. Assim, também um sistema filosófico tem
um processo de desenvolvimento semelhante ao de um organismo vivo, a partir
de dentro, e não por acrescentos do exterior – per intus susceptionem, não per
appositionem –, um desenvolvimento que a princípio parece caótico ou é rapsó-
dico e avulso, mas depois, a pouco e pouco, se vai organizando «tecnicamente»
por tópicos e, por fim, se revela em forma arquitectónica, a que preside uma
ideia, a qual, porém, só no fim se revela, mas, uma vez tornada consciente, é
reconhecida como tendo sido aquilo que realmente dirigiu todo o processo,
embora o tenha feito por assim dizer disfarçada sob a forma de esquemas ou
esboços sempre provisórios, que foram como que os seus germes ou embriões de
sistema em processo de desenvolvimento. Kant escreve isto numa notável página
onde, por via indirecta, revela o seu pensamento biológico à época da redacção e
publicação da primeira edição da Crítica da Razão Pura, ao mesmo tempo que
136
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
137
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
mesmo não era nem fisiologista, nem embriologista. Mesmo as suas ideias sobre
as raças humanas, assunto pelo qual especialmente se interessa desde meados da
década de 70, baseiam-se não na observação própria e directa, mas em informa-
ção colhida na literatura de viagens da época. Como adiante veremos, para o seu
crítico Georg Forster, isso constituía razão bastante para lançar o descrédito a
respeito do fundamento, da qualidade e da pertinência das suas conjecturas
sobre um tão controverso tema. Mas, como espero mostrar, essa crítica não
colhe completamente, pois o interesse de Kant por tais matérias não é de natu-
reza propriamente descritiva e nem sequer científica (segundo o cânone da His-
tória Natural da época), decorrendo antes de preocupações de natureza inequi-
vocamente filosófica, a saber:
1) De questões de congruência racional e sistemática (redutibilidade dos
princípios e leis particulares da natureza à maior simplificação e unidade possí-
veis); mas também a sistematicidade da natureza (e não apenas a dum sistema
formal das categorias do entendimento – como fundamento da Física, nem a
dum sistema nominal e escolar, à maneira de Lineu, por classificação hierár-
quica dos seres naturais segundo semelhanças exteriores, mas a dum sistema
real, por reconhecimento do parentesco de geração e derivação dos seres da
natureza a partir de troncos comuns) – eis uma questão presente ao longo de
todo o percurso especulativo de Kant, mas que ganha particular evidência no
Apêndice à Dialéctica Transcendental, nos ensaios sobre as raças humanas, nas
Introduções à Crítica do Juízo e nesta mesma obra e que é ainda recorrente no
Opus postumum.
2) Da possibilidade ou não de explicar a estrutura e geração dos seres natu-
rais orgânicos pelas leis gerais do mero mecanicismo universal que rege toda a
matéria cósmica; e, se tal não for possível, identificar e justificar o princípio
transcendental que pode dar razão desses seres que a natureza tão profusa e
variadamente oferece à nossa experiência; tal princípio, «descoberto» talvez nos
últimos meses de 87, mas na verdade já postulado e praticado desde muito
antes, a que Kant chamará o «princípio teleológico», é o pressuposto transcen-
dental da Zweckmässigkeit der Natur, atribuído à faculdade de julgar reflexio-
nante (reflektierende Urteilskraft), de que se ocupa a Segunda Parte da terceira
Crítica e que subsumirá também a experiência estética, tenha esta por objecto a
bela natureza ou a bela-arte. E, tendo de admitir duas legalidades – uma mecâ-
nica, para a natureza em geral, e outra finalística, para a natureza dos seres
orgânicos, como então compatibilizar, conciliar, ou hierarquizar a explicação
mecanicista e a explicação teleológica num superior sistema de princípios?
3) De questões de ordem epistémico-transcendental a respeito do estatuto
da explicação finalista e da pertinência do uso de princípios teleológicos na
apreciação da natureza. Como é que pode ser aplicado à natureza esse princípio
de uma finalidade – estranho ao sistema das categorias do entendimento para a
138
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
7
Veja-se a carta de Kant a Breitkopf, de 1 de Abril de 1778, citada em epígrafe a este
ensaio.
139
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
8
Tudo isso já foi convenientemente explicado por Erich Adickes, no Prefácio a Kant als
Naturforscher (Walter de Gruyter, Berlin, 1924, Bd. I, p.VI).
9
Só posso estar de pleno acordo com Timothy Lenoir, quando ele sublinha «the role of
Immanuel Kant in helping to shape the theoretical foundations of the life sciences be-
tween 1790 and the late 1840s» e mostra documentadamente «that the new physiology
which emerged during this period was indebted to Kant for many of its central methodo-
logical insights.» Timothy Lenoir, «Kant, Blumenbach, and Vital Materialism in German
Biology», Isis, 71 (1980), 77. Veja-se também, do mesmo Timothy Lenoir, The Strategy
of Life. Teleology and Mechanics in Nineteenth-Century German Biology, University of
Chicago Press, Chicago and London (1982), 1989, sobretudo o cap. I.
140
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
10
seja por fim encontrada , ainda assim o fenómeno da vida e a peculiar constitui-
ção dos seres organizados e a própria natureza enquanto considerada como um
sistema de seres organizados que só podem ser pensados por nós como sendo
seus fins, tudo isso – na sua singularidade, na sua irredutibilidade ao simples
inorgânico ou à simples matéria e até na sua lógica peculiar, na medida em que
de algum modo ela por nós é pensável – tudo isso, digo, fica extraordinaria-
mente iluminado graças ao esforço especulativo do filósofo de Königsberg.
10
Träume, Ak II, 327. Kant reconhece amiúde «que a questão é para ele mesmo muito obs-
cura e verosimilmente assim permanecerá» (mir selbst sehr dunkel ist und wahrscheinlicher
Weise auch wohl so bleiben wird), e considera o tópico «imperscrutável» (unerforschlich).
11
Descartes, Principia Philosophiae, IV, §203, Œuvres, ed. Ch. Adam-P. Tannery, reimpr.:
Vrin, Paris, 1996, vol. VIII, p.326.
12
Descartes, L’Homme, ed. cit., vol. XI, pp. 120, 128, 202; La Description du Corps
Humain, Ibidem, pp.252 ss; 284-286. Sobre a ‘biologia’ cartesiana, veja-se: J. Roger, Les
sciences de la vie dans la pensée française du XVIIIe siècle. La génération des animaux de
141
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
Descartes à l’Encyclopédie, Armand Colin, Paris, 1963 (2ª edição completada de 1971);
Annie Bitbol-Hespériès, Le principe de vie chez Descartes, Vrin, Paris, 1990.
13
Bernard Le Bouvier de Fontenelle, Lettres diverses de M. Le Chevalier d’Herr (1683),
reeditado sob o título de Lettres Galantes, in: Œuvres, vol. I, Paris, 1766, cit. apud Shirley
A. Roe, Matter, Life and Generation. 18th Century Embryology and the Haller-Wolff Debate,
Cambridge University Press, Cambridge (1981), reimpr. 2002, p.1.
14
Nicholas Malebranche terá sido o primeiro a formular aquela que ficaria conhecida
como a teoria do emboîtement (encaixamento). Tentando superar as dificuldades do car-
tesianismo quanto à explicação do fenómeno biológico, e baseando-se em observações e
experiências recentes, feitas com o auxílio do microscópio entretanto aperfeiçoado, ele
propõe que todos os organismos terão sido talvez formados por Deus no acto da pri-
meira criação e encaixados uns nos outros, de tal maneira que, no tempo aprazado, os
minúsculos embriões pré-formados se podem expandir e desenvolver, por meios mecâni-
cos, até se transformarem num organismo completamente desenvolvido. Assim escreve:
«Nous devons donc penser […] que tous les corps des hommes & des animaux, qui naî-
tront jusqu’à la consommation des siécles, ont peut-être été produits dés la création du
monde ; je veux dire, que les femelles des premiers animaux ont peut-être été créées, avec
tous ceux de même espece qu’ils ont engendrez, & qui devoient s’engendrer dans la suite
des tems.» De la recherche de la vérité (1674), I, vi. § 1 (Vrin, Paris, 1962), p.83.
15
Introduzindo a noção de «plastic nature». Veja-se: Ralph Cudworth, The True Intellec-
tual System of the Universe, Thoemmes Press, Bristol, 1995 (reprint da ed. de 1845, com
uma nova Introdução por G. A. J. Rogers), vol. I, pp.218 ss.
16
O problema da vida e dos seres organizados é frequentemente abordado por Leibniz, o
qual, embora demarcando-se do cartesianismo, tenta conciliar o mecanismo com o princípio
de vida, que atribui a Deus, garantido por uma preformação contínua e por um originário
arranjo pré-estabelecido. Um dos textos mais explícitos é Consideration sur les Principes de
Vie, et sur les Natures Plastiques, in: Leibniz, Die philosophischen Schriften (ed. Gerhardt,
Olms, Hildesheim, 1978), vol. 6, 539-555. Veja-se: Jacques Roger, «Leibniz et les sciences de
la vie», Studia Leibnitiana Supplementa, 2 (1968), 209-219 ; Justin E. H. Smith, Divine Machi-
nes. Leibniz and the Sciences of Life, Princeton University Press, Princeton, 2011.
142
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
17
George Louis Leclerc, Comte de Buffon, Histoire naturelle, générale et particulière, avec
la Description du Cabinet du Roy, vol. II, Imprimerie Royale, Paris, 1749, Tome Second,
chap. II: «De la Reproduction en général».
18
P.-L. Moreau de Maupertuis, Vénus Physique (1745) e Système de la Nature (1751),
Œuvres, Tome II (reimpr. da ed. de Lyon 1768: Olms, Hildesheim, 1965).
19
Caspar Friedrich Wolff, Theoria generationis, Hendel, Halle, 1759 (reimpr.: Olms, Hil-
desheim, 1966).
20
Veja-se: Timothy Lenoir, «Kant, Blumenbach, and Vital Materialism in German Biology»,
Isis, 71 (1980), 77-108 (especialmente, pp.96-108).
21
Veja-se: P.L.M. de Maupertuis, Systême de la Nature, X, in: Œuvres,Tome II, p.144.
22
Kant chega a considerar também a teoria da epigénese como uma teoria da preformação;
mas, enquanto a teoria propriamente preformacionista (ou da «evolução», ou «pré-estabi-
143
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
23
Por seu turno, os defensores da teoria da epigénese sustentavam que os
primeiros organismos haviam sido por certo criados por Deus, mas que este, ao
criá-los, os dotou da capacidade não de desenvolverem outros seres neles conti-
dos em ponto minúsculo, mas de verdadeiramente virem a gerar por si mesmos
seres iguais a si próprios, segundo leis naturais, sem necessidade, portanto, de
envolver Deus sempre de novo em cada geração. Aqui pode falar-se de verdadei-
ras novas gerações, as quais vão incorporando os resultados das gerações ante-
riores. Os epigenesistas tendem a atribuir a responsabilidade na geração tanto à
fêmea como ao macho e concedem um importante papel ao meio físico (nomea-
damente, ao clima) em que os seres são gerados. No fundo, o sistema da prefor-
mação (apesar de também ser designado na época como teoria ou sistema da
evolução ou do desenvolvimento) é na verdade tendencialmente conservacionista,
pois pressupõe que os caracteres essenciais de uma espécie são constantes,
havendo apenas variedade relativa nos indivíduos, mas nunca um desvio tal que
represente uma alteração dos traços específicos essenciais da espécie. A teoria da
epigénese, por sua vez, é realmente evolucionista (no sentido que se dá actual-
mente – depois de Darwin – a esta palavra), pois consente a variação e a diferen-
ciação, e não apenas a que está contida nos germes, mas também a adveniente
das circunstâncias e condições em que o organismo se desenvolve e às quais se
adapta, desenvolvendo-se, segundo os casos, uma ou outra das disposições ori-
ginárias, e admite que esse adquirido novo é incorporado nas gerações futuras.
As formulações destas teorias eram frequentemente vagas, tanto de um lado
como de outro, não só nas designações e explicitações semânticas como também
nas razões apresentadas para as sustentar. Por exemplo, na determinação da
força natural responsável pela geração, crescimento e reprodução dos organis-
mos todos os epigenesistas estavam de acordo em que tinha de haver alguma
força especial diferente das simples forças mecânicas. A questão, porém, residia
em saber qual era essa força especial. Buffon invocava uma espécie de «molde
24
interior» e uma «força penetrante» que activaria e organizaria os elementos.
Maupertuis começou por invocar uma espécie de força atractiva semelhante à
144
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
25
Veja-se: Vénus Physique e Systême de la Nature, Œuvres, II, respectivamente, pp.88-89 e
146-147.
26
C. F.Wolff, Theoria Generationis, I, §§ 1-4; II, § 168. O fundo leibniziano de Caspar
Wolff é referido nomeadamente por Shirley A. Roe, ob. cit., pp. 147, 181-182, n.10.
145
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
146
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
29
Allgemeine Naturgeschichte, Ak I, 230.
147
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
148
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
30
Beweisgrund, Ak II, 114.
31
Ibidem, 114-115. Kant tem em vista o cap. II do Tomo II da Histoire naturelle de Buffon
(na tradução alemã: Allgemeine Historie der Natur, 1752) e o cap. XIV do Systême de la
Nature de Maupertuis. Não nos parece, porém, que tenha em vista também a Theoria
generationis de Caspar Wolff, como sugere Adickes (ob. cit., II, p.428) e como o refere
reiteradamente F. Duchesneau, no seu ensaio «Épigenèse de la raison pure et analogies
biologiques» (in: Kant actuel. Hommage à Pierre Laberge, Bellarmin, Montréal / Vrin,
Paris, 2000, 233-256), chegando a dizer que «c’est d’abord à la Theoria generationis de
C.F.Wolff qu’il faut référer la prise de position initiale de Kant en faveur de l’épigenèse»
(p.255) e ainda «Il parait vraisemblable que jusqu’à ce que Kant ait découvert la théorie
du Bildungstrieb de ce dernier [Blumenbach], sans doute dans la période allant de la
première à la seconde édition de la Critique de la raison pure, une conception comme
149
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
Bem pesadas as coisas, o filósofo conclui que, tanto numa explicação como
na outra, em nada se diminui a parte do sobrenatural no processo, estando a
diferença entre as duas teorias não na admissão ou não de uma operação directa
de Deus, mas unicamente no momento em que se faz ocorrer essa intervenção.
Não estando em causa dispensar ou não Deus desse processo, o que importa,
pois, é considerar que
Ou, em cada acasalamento, se atribui directamente a produção do fruto a
uma acção divina, ou se concede a um primeiro arranjo [Anordnung] divino
das plantas e dos animais uma aptidão [Tauglichkeit] não apenas para
desenvolver indivíduos semelhantes a eles mesmos segundo uma lei natu-
32
ral, mas também para verdadeiramente os gerar.
No final, Kant revela a sua posição filosófica de princípio – à qual se man-
terá fiel ao longo da sua vida – que é a de atribuir à natureza o mais possível,
limitando tanto quanto possível a intervenção do sobrenatural e sobretudo o
recurso ao milagre, pois a invocação destes estratagemas destroem a confiança
em qualquer ordem da natureza e, por conseguinte, inviabilizam qualquer ciên-
cia da mesma. O seu objectivo é, segundo diz, «mostrar que se deve conceder às
coisas naturais um poder de produzir os seus efeitos em virtude de leis univer-
33
sais, muito mais do que comummente se faz.»
No quadro das teorias em confronto na época, as soluções a que Kant alude
correspondem, como se disse, à da preformação e à da epigénese. Os dois auto-
res expressamente mencionados – Buffon e Maupertuis – contam-se entre os
defensores da segunda. E Kant, embora parecendo manifestar propensão para
aceitar essa teoria, não se identifica todavia com o modo como os dois natura-
listas entendem resolver o problema dos seres orgânicos, sobretudo o que se
refere à geração dos seres vivos. Mas da citada passagem podemos concluir dois
pontos importantes: 1º) que o filósofo considera que o mero mecanicismo não é
suficiente para dar razão dos seres vivos, de que decorre a sua convicção da irre-
dutibilidade do orgânico ao meramente mecânico, convicção a que se manterá
fiel até ao Opus postumum; 2º) que, afastada a hipótese de uma auto-suficiência
das leis mecânicas gerais e necessárias da natureza para explicar os fenómenos
150
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
na natureza viva, há que recorrer a uma intervenção especial para o efeito, que
só pode ser divina; mas esta não tem de significar uma intervenção repetida por
ocasião de cada nova geração, como defendiam os preformacionistas, podendo
ser muito melhor entendida se a considerarmos como uma disposição especial –
diferente das leis do movimento geral da matéria – posta originariamente na
natureza dos animais e das plantas e mediante a qual eles próprios se reprodu-
zem.
Numa obra de 1766, Sonhos de um visionário esclarecidos pelos sonhos de um
metafísico (Träume eines Geistersehers), no contexto de uma reflexão sobre a
alma (Seele) humana, Kant constata a «misteriosa comunidade» que ela tem
com o corpo – designando este como uma «máquina animal» (thierische Mas-
chine) ou uma «máquina artística» (künstliche Maschine) e afirmando a sua
independência em relação à natureza material, negando que a matéria tenha
capacidade por si só para, a partir do caos dos elementos, gerar uma tal
«máquina animal». Ao mesmo tempo que declara a sua propensão para admitir
a existência de naturezas imateriais no mundo e para colocar a alma nessa classe
de seres, confessa a obscuridade que envolve a compreensão do «ser sensível nos
animais» (das empfindende Wesen in den Thieren). E, na continuação, enuncia um
tópico que não mais deixará de o preocupar: a de saber o que é a vida (Leben).
Cito:
O que no mundo contém um princípio de vida parece ser de natureza ima-
terial. Pois toda a vida se funda num poder íntimo de se determinar
segundo o arbítrio [alles Leben beruht auf dem inneren Vermögen, sich selbst
nach Willkür zu bestimmen]. Em contrapartida, a característica essencial da
matéria consiste no preenchimento do espaço mediante uma força necessá-
ria que é limitada por uma reacção externa; pelo que tudo aquilo que é
material é exteriormente dependente [abhängend] e coagido [gezwungen],
mas aquelas naturezas que são elas mesmas activas [selbst thätig] e agem
pelas suas forças internas têm de possuir o fundamento da vida, em suma
aqueles naturezas que têm o poder de se determinar e modificar pelo pró-
prio arbítrio, dificilmente podem ser de natureza material [kurz diejenige,
deren eigene Willkür sich von selber zu bestimmen und zu verändern vermögen
34
ist, schwerlich materieller Natur sein können].
O texto é importante a vários títulos: a vida surge nele como um tópico
explícito de reflexão e é associada a um princípio imaterial; afirma-se, por con-
seguinte, a irredutibilidade da vida à simples matéria; associa-se a vida à espon-
taneidade e actividade do espírito, que é capaz de se auto-determinar por um
princípio interno. Que Kant se mantém fiel a esta demarcação entre a matéria e a
34
Träume, Ak II, 327.
151
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
35
Metaph. Anfangsgr.der Naturwissenschaft, Ak IV, 544. Sobre o conceito de vida em Kant,
veja-se também o ensaio de 1796, «Verkündigung des nahen Abschlusses eines Tractats
zum ewigen Frieden in der Philosophie», Ak Ak VIII, 413ss.
152
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
153
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
38
Adickes, ob. cit., II, pp.406 ss.
39
Fala, por exemplo, da «bewunderswürdige Fürsorge der Natur» (Ak II, 434), da «Zweckmäs-
sigkeit der Organisation der Rassen», «von der Natur sehr weislich getroffene Anstalt»
(Ak VIII, 102 ss), etc.
154
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
Desse ensaio, que tem natural relação com os dois anteriores, falarei mais
adiante. De momento, gostaria de fazer um pequeno apontamento sobre a rela-
ção entre Kant e Blumenbach. Tal relação constitui porventura um dos casos
mais felizes que a história das ideias regista de espontâneo e fecundo encontro
entre as perspectivas de um filósofo, que interroga as condições a priori e a legi-
timidade transcendental dos princípios e conceitos envolvidos num especial
domínio de conhecimentos humanos, e o naturalista e investigador de campo,
que procura uma explicação satisfatória para os fenómenos que se lhe deparam,
socorrendo-se não só da observação mas também de experimentos criteriosa-
mente orientados.
155
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
onde remete para o Handbuch der Naturgeschichte (na ed. de 1779, Prefácio § 7) e
para a noção de Bildungstrieb proposta pelo célebre naturalista, nestes termos:
Este homem perspicaz atribui também o impulso de formação [Bildungs-
trieb], através do qual ele trouxe tanta luz à ciência da geração, não à maté-
42
ria inorgânica, mas tão só aos membros dos seres organizados.
Kant, por certo, não tira de Blumenbach a teoria da epigénese para explicar
43
a peculiar natureza dos corpos orgânicos. Quando o sábio de Göttingen come-
rialism in German Biology», Isis, 71 (1980), pp.77-108; Idem, The Strategy of Life. Tele-
ology and Mechanics in Nineteenth-Century German Biology, Chicago University Press, Chi-
cago/London (1982), reimpr. 1989. Cito, desta última obra, uma passagem que resume o
significado do feliz encontro entre os dois pensadores: «A major contribution toward cal-
ling attention to the basic idea underlying the theory of the Bildungstrieb and the possibi-
lity it held for a general theory of animal organization was made by Immanuel Kant. Kant
was quick to seize upon the Bildungstrieb as exemplifying exactly what he intended by a
regulative principle in theory construction. Elsewhere I have attempted to document in
detail the relationship between these two men and the extent to which Blumenbach incor-
porated Kant’s work into the mature formulation of his ideas. The importance of Kant’s
work did not consist in proposing hypotheses or a system of organic nature for which
Blumenbach attempted to provide empirical support. It cannot be argued that Blumenbach
fashioned himself a follower of Kant. Rather the work of the two men was mutually sup-
portive of the same program, the program that I am calling teleomechanism. Although not
deficiently in original ideas about how to improve biology, [...], Kant’s main contribution
to Blumenbach’s work was in making explicit the quite extraordinary assumptions behind
the model of the Bildungstrieb. [...] Kant explained clearly and forcefully why this was not
an ad hoc stratagem; how biological explanations could be both teleological and mechani-
cal without being occult.» (ib., pp.23-24).
42
Über den Gebrauch teleologischer Principien in der Philosophie, Ak VIII, 180.
43
Blumenbach começa a publicar as suas ideias na segunda metade da década de 70. A
sua primeira obra, De generis humani varietate nativa (1776), viria a ter reedições em 81
e 95. Nela defende o monogenismo e uma teoria das raças (ou variedades) que tem ine-
quívocas semelhanças com a de Kant, mas também algumas diferenças. Nas sucessivas
reedições dessa obra, cita já o ensaio de Kant de 75 (publicado em 77). Muito popular
foi o seu Handbuch der Naturgeschichte (1779), que conheceria inúmeras reedições e
reformulações pelas décadas seguintes, nas quais cita os ensaios e obras de Kant e acolhe
ou comenta as posições kantianas sobre as questões de História Natural. A sua obra Über
den Bildungstrieb teve a primeira edição no mesmo ano em que foi publicada a Crítica da
Razão Pura (1781) e teria igualmente sucessivas reedições aperfeiçoadas (1789,1791).
Na 2ª ed. de 1789 de Über den Bildungstrieb, refere e comenta as teorias acerca da geração,
reduzindo-as a duas: a da evolução e a da epigénese. Segundo diz, a teoria da evolução (=
preformação) recusa toda a geração no mundo e crê que em todos os homens e animais
e plantas que já viveram ou ainda viverão, os respectivos germes foram criados na pri-
meira criação de tal modo que agora uma geração após a outra apenas precisa de os
desenvolver. Em contrapartida, segundo a teoria da epigénese, a matéria geradora dos
pais, a princípio rude, uma vez atingida a maturidade da sua destinação com o tempo e
nas exigíveis circunstâncias, formará continuamente novos seres. E isso deve-se a um
156
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
impulso especial – a que chama Bildungstrieb (nisus formativus) – que é distinto das
restantes forças vitais dos corpos orgânicos (contractibilidade, irritabilidade, sensibili-
dade), bem como das forças físicas gerais dos corpos. É esse impulso que assegura a
geração, a alimentação, o crescimento e a reprodução dos seres orgânicos.
44
Refl. 4275 (Ak XVII,492, datada de 70-71); Refl. 4446 (de datação incerta - 69-72?),
4851 e 4859 (76-78), 5637 (80-83?), entre outras.
45
Veja-se Eugenio Moya, «Apriorismo, epigénesis y evolución en el trascendentalismo kan-
tiano», Revista de Filosofía 30 (2005), 61-88, p.66: «No hay duda de que las investigaciones y
reflexiones <de Kant> sobre lo biológico […] aportaron elementos decisivos para configurar
la perspectiva trascendental. […] Kant siempre pensó que los problemas epistémicos podían
ser vistos como una extensión de los problemas que se plantean los embriólogos al pregun-
tarse por la morfogénesis y funcionamiento de los organismos vivos.»
157
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
Este não é, porém, o único passo da primeira Crítica onde Kant revela as suas
teses em matéria biológica. Fá-lo, por certo indirectamente, já na primeira edição,
no penúltimo capítulo da obra, ao expor, com o paradigma do ser orgânico, o seu
entendimento do sistema da razão, a ideia de filosofia e o modo do seu desenvol-
vimento e até a ideia de história da filosofia. Já acima me referi a esse notável
texto. É claramente uma concepção epigenética da razão – do sistema da razão, da
ciência da razão ou da filosofia – o que aí encontramos, num subtil entrelaça-
mento da metafórica arquitectónica com a metafórica orgânica. Cito.
Ninguém tenta estabelecer uma ciência sem ter uma ideia por fundamento.
Simplesmente, na elaboração dessa ciência, o esquema e mesmo a defini-
ção, que inicialmente se dá dessa ciência, raramente correspondem à sua
ideia, pois esta reside na razão, como um gérmen, no qual todas as partes
estão ainda muito escondidas, muito envolvidas e dificilmente reconhecí-
veis à observação microscópica. […] Os sistemas parecem ter sido criados,
como os vermes, por uma generatio aequivoca, a partir da simples confluên-
cia de conceitos reunidos, ao princípio truncados e, com o tempo, comple-
tados; contudo possuíam todos o seu esquema, como um gérmen primitivo,
na razão que simplesmente se desenvolve; por isso, não só cada um deles
está em si articulado segundo uma ideia, mas além disso encontram-se
todos harmoniosamente unidos entre si, como membros de um todo, num
sistema de conhecimento humano e permitem uma arquitectónica de todo
o saber humano.
Esse todo, diz-se noutro parágrafo do mesmo capítulo,
é articulado (articulatio) e não amontoado (coacervatio); pode por certo
crescer internamente (per intus susceptionem), mas não exteriormente (per
appositionem), como um corpo animal, cujo crescimento não acrescenta
nenhum membro, mas, sem alterar a proporção, torna cada um deles mais
46
forte e mais apropriado para os seus fins.
46
KrV, B 861-863, Ak III, 539-540. Esta passagem poderia ler-se como exprimindo uma
concepção preformacionista do desenvolvimento dos organismos, no caso, do organismo
da razão. E outro tanto se diria dum passo da KrV A 65/66 (Ak IV, 57; mantido em B 90-
-91), onde se lê: «Nós por conseguinte seguiremos os puros conceitos até aos seus pri-
meiros germes e disposições no entendimento humano, no qual eles permanecem prepa-
rados até que por fim por ocasião da experiência são desenvolvidos.» (Wir werden also
die reine Begriffe bis zur ihren ersten Keimen und Anlagen im menschliche Verstande verfol-
gen, in denen sie vorbereitet liegen, bis sie endlich bei Gelegenheit der Erfahrung entwic-
kelt…. werden). Ou ainda de um passo de Prolegómenos (Ak IV, 368), onde se diz da
Metafísica que «o seu germe tem de estar antes completamente pré-formado na Crítica»
(ihr Keim in der Kritik vorher präformirt sein muss). Penso, todavia, que estas passagens
devem antes ser lidas já como expressão de uma concepção de desenvolvimento epige-
nético da razão, naquele mesmo sentido em que falará Kant, no citado passo da 2ª edição
158
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
159
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
160
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
enquanto Kant o faz tomando por critério apenas a cor da pele, Blumenbach fá-lo tendo em
conta também aspectos de ordem morfológica (as características cranianas, por exemplo),
aproximando-se nisso das teses de Sömmerring.
54
Georg Forster, «Noch etwas über die Menschenrassen», in: Forsters Werke in zwei
Bänden, ed. de Gerhard Steiner, Berlin/Weimar, 1997. Cito o ensaio de Forster pela res-
161
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
– e, por conseguinte, na fragilidade das teses que o filósofo expusera sobre o tema,
55
nomeadamente no ensaio publicado em 1785 no Berlinische Monatschrift –, como
também põe em causa a legitimidade do filósofo para propor novas teses sobre
tópicos de História Natural, apoiado que está em deficiente informação empírica e
subvertendo como o faz os conceitos e métodos confirmados dessa disciplina.
Trata-se de um debate entre o empírico e o téorico, entre o que se crê fiel observa-
dor da natureza e o filósofo dos princípios. Um debate que, no fundo, versa sobre
os pressupostos epistémicos e metodológicos da História Natural, estando de um
lado o defensor da História Natural tradicional, à maneira de Lineu, entendida
como Naturbeschreibung, e do outro o proponente de uma nova forma de História
Natural, entendida como Naturgeschichte, no sentido que Kant dá a esta designa-
ção.
Forster começa por apontar a pouca fiabilidade das bases observacionais e
experimentais das conjecturas do filósofo e acusa este de preencher com espe-
culação a míngua de observação ou a falta de qualidade da experiência a respeito
do tema de que trata nos seus ensaios. A isso contrapõe Forster a atitude do
«espectador imparcial» que «se limita a relatar de modo exacto e fidedigno aquilo
que percepcionou, sem cismar longamente sobre a especulação que favorece a sua
percepção, e para isto «nada precisa de saber acerca de quezílias filosóficas, mas
56
apenas de seguir o uso linguístico comummente aceite». Censura e recusa,
nomeadamente, a noção de raça proposta por Kant, não vendo nela pertinência
alguma e não compreendendo porque não se mantém o filósofo no vocabulário
comum da História Natural – varietas – fixado por Lineu. Também não reconhece
pertinência na classificação das raças proposta por Kant, a respeito da qual dirá
que «a ordem da natureza não segue as nossas classificações e, a partir do
57
momento em que lhas queremos impor, incorre-se em contra-sensos.»
Outra distinção que Forster não entende é a que Kant propõe entre Natur-
beschreibung e Naturgeschichte. Tal distinção, verdadeiramente capital para se
entender a posição epistémica em que Kant se coloca para abordar os temas da
História Natural, fora já proposta no ensaio de 1775, volta a sê-lo no de 1785 e
também no de 1788. Já em 75 Kant dizia que a Naturgeschichte ensinar-nos-ia a
transformação que a Terra e as criaturas terrestres (vegetais e animais) sofreram
através de sucessivas migrações naturais e as derivações da forma originária da
primeira espécie que disso resultaram, o que permitiria reduzir uma grande
162
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
163
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
164
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
63
Ibidem, pp.373-374.
165
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
64
Ibidem, pp.374-375.
166
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
65
KU, Ak V, 179; 195-197.
66
Este empréstimo da noção «prática» e «objectiva» de fim e de finalidade da Razão à
finalidade «técnica» e «subjectiva» da Faculdade de Julgar, sob o modo da analogia, é
expressamente desenvolvida no parágrafo IX da Primeira Introdução à Crítica do Juízo
(Erste Einleitung in die Kritik der Urteilskraft, ed. G. Lehmann, Felix Meiner, Hamburg,
1977, pp.42-43).
67
Noutro lugar, ocupei-me largamente da extensão e importância da metafórica bioló-
gica e orgânica na filosofia de Kant, bem como das interpretações de que tem sido
objecto. Veja-se o meu livro: Metáforas da Razão ou economia poética do pensar kantiano,
pp.403-446. Veja-se ainda: François Duchesneau, «Épigenèse de la raison pure et analo-
gies biologiques», in : Kant actuel. Hommage à Pierre Laberge, Bellarmin, Montréal / Vrin,
Paris, 2000, 233-256 ; H. W. Ingensiep, «Die biologischen Analogien und die erkennt-
nistheoretischen Alternativen in Kants Kritik der reinen Vernunft B § 27», Kant-Studien,
85 (1994), 381-393.
167
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
68
da Metabiologia». As passagens do citado capítulo da «Arquitectónica da Razão
Pura» são eloquentes. Não se trata de comparações avulsas, mas sim de uma ana-
logia contínua – toda uma alegoria orgânica da razão, mediante a qual se faz ver a
sua estrutura, a sua geração e desenvolvimento e a lógica que a dirige, uma lógica
teleológica. É verdadeiramente uma concepção não apenas orgânica da razão, mas
69
orgânica no sentido da doutrina da epigénese. A ideia, que começa por ser o
desenvolvimento de um germe e que só se vai tornando clara para si própria no
decurso e sobretudo no fim do seu processo de maturação e de desenvolvimento;
a importância do tempo e da elaboração que vai do estado caótico inicial ao estado
arquitectónico final a que preside uma ideia do todo, passando provisoriamente
pela arrumação técnica parcial segundo conceitos (chaotisch ou rhapsodistisch,
technisch, architektonisch); a concepção do todo e do sistema (da Filosofia, da
Razão) que cresce, não por acrescentos exteriores mas a partir de dentro, tal como
70
num organismo vivo.
Mas os temas tradicionais da História Natural ocorrem na obra também
sob um outro tópico: sob o modo do problema metodológico-epistémico da
unidade e do sistema (real) da natureza (systema naturae) de géneros, espécies e
variedades, ou da continuidade da natureza (scala naturae; Kette der Natur) nas
suas formas e seres. Tal é o assunto principal abordado por Kant no Apêndice à
Dialéctica Transcendental e que daí transita às Introduções à terceira Crítica e a
muitos parágrafos da Segunda Parte desta obra onde receberá novos desenvol-
vimentos.
Com efeito, na Crítica do Juízo (Kritik der Urteilskraft, 1790) encontram-se
todos os temas que anteriormente identificámos submetidos não só a uma maior
explicitação como também a uma mais densa orquestração. A complexa e pro-
blemática arquitectura da obra, à primeira vista pouco convincente (pense-se na
crítica de Schopenhauer), apesar da simetria das suas duas partes e de todas as
explicitações do seu autor para justificar a subordinação delas a um mesmo
princípio transcendental de Zweckmässigkeit – (entendido embora em sentidos
muito diversos: ora como meramente formal e subjectivo, quando referido à
apreciação estética das formas belas da natureza; ora como objectivo e formal,
quando se refere às entidades geométricas; porém, como material e objectivo,
68
Adolf Meyer-Abich, «Kant und das Biologische Denken», Acta Biotheoretica, VI (1942),
185-211, loc.cit., 205. Há quem chegue ao ponto de propor uma «naturalização» da razão e
do transcendentalism kantiano. Veja-se: Eugenio Moya, Naturalizar a Kant? Criticismo y
modularidad de la mente, Editorial Biblioteca Nueva, Madrid, 2003.
69
Veja-se acima a nota 46.
70
Veja-se, na mesma linha, este passo do Prefácio à 2ª edição da Crítica (B XXXVII-XXX-
VIII; Ak III, 22): «Natur einer reinen speculativen Vernunft… die einen wahren Glieder-
bau enthält, worin alles Organ ist, nämlich Alles um Eines willen und ein jedes Einzelne
um aller willen.»
168
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
quando referido aos seres organizados da natureza, que só podem ser pensados
como se fossem fins da natureza, isto é, como se a natureza na sua produção
tivesse neles em vista um fim) – dá prova de que o autor quer equacionar nela
demasiadas variáveis e responder a muitos problemas ao mesmo tempo, proble-
mas que percebe estarem entre si intimamente ligados, mas cuja efectiva ligação
não consegue sempre expor com toda a clareza ou só o faz sob o modo da ana-
logia e da invocação do como se (als ob), ou mediante subtis e artificiosas distin-
ções (por ex., entre os vários sentidos de Zweckmässigkeit).
Sendo embora a Crítica do Juízo a obra onde Kant se ocupa mais intensa e
directamente das questões biológicas – dos seres orgânicos – e de muitas das
questões que faziam parte da agenda da História Natural no século XVIII, também
nela não é enquanto naturalista ou enquanto biólogo que o faz. Fá-lo sim do inte-
rior do seu sistema – também aqui em processo de crescimento por dentro –,
como resposta a exigências deste, para estabelecer pontes, para resolver a interna
coerência do programa da filosofia crítica transcendental, para expor a harmonia
das faculdades fundamentais do espírito e dos respectivos princípios. O mundo
orgânico legitima a postulação de um princípio supra-sensível como causa da
natureza – para além do mecanicismo – e abre horizontes ao mundo prático-
-moral, cuja finalidade imperativa tem de realizar-se no mundo natural. Se neste
há também o vislumbre de uma causalidade final e não apenas o de uma causalidade
meramente mecânica, então a possibilidade da acoplagem e da «passagem» (Über-
gang) entre a liberdade e a natureza fica em aberto e pode acontecer sem violência.
Mas há também a questão dos princípios. Reconhecida a necessidade e a
legitimidade do princípio teleológico, há que repensar o sistema da razão agora
sob a forma do sistema das faculdades do espírito, cada qual com o seu princípio
transcendental. A solução da Crítica do Juízo é diferente das adoptadas anterior-
mente. Antes, esse princípio era considerado como um recurso, como supletivo
(a título de princípio regulador, de valor meramente subjectivo), sempre subor-
dinado ao superior império da explicação mecanicista pela causalidade eficiente
garantida pela legislação formal do entendimento para a natureza em geral. Na
Crítica do Juízo, Kant, mantendo embora a tese da natureza subjectiva e refle-
xionante do princípio de teleoformidade da natureza, tem contudo que reconhe-
cer que, pelo menos no que respeita à compreensão dos seres orgânicos (sua
estrutura, seu desenvolvimento e sobretudo sua geração e reprodução), esse
princípio tem de ser pressuposto também como indicando uma teleoformidade
real e objectiva, por mais que não saibamos como explicá-la e a quem atribuí-la,
se à própria natureza (através da sua arte ou técnica peculiar), se a algum ser
que nela ou através dela age, quer lhe seja exterior ou interior, e por qualquer
modo que o seja.
Agora, Kant, ao mesmo tempo que insiste na necessidade de união (Verei-
nigung: § 78) e de associação (Beigesellung: § 81) dos dois princípios, na investi-
169
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
170
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
que por fim essa analogia claudica, sobretudo quando se pretende apreciar, não já
apenas as belas formas da natureza mas os próprios produtos orgânicos da mesma
natureza. E assim, na continuação do mesmo § 65, Kant escreve:
Dizemos muito pouco a respeito da natureza e do seu poder nos produtos
organizados quando chamamos a este poder um analogon da arte [Analogon
der Kunst]; pois, neste caso, representamos o artista (um ser racional) como
exterior a ela. Ela organiza-se antes a si mesma e em cada espécie dos seus
produtos organizados seguindo por certo em toda a espécie um só e mesmo
modelo, e todavia fá-lo também com os desvios apropriados requeridos pela
conservação de si mesma de acordo com as circunstâncias. Aproximar-nos-
-íamos talvez mais desta qualidade insondável [dieser unerforschlichen Eigens-
chaft] se a designássemos como um analogon da vida [Analogon des Lebens];
mas, neste caso, ou se dota a matéria enquanto simples matéria de uma pro-
priedade (hilozoísmo) que estaria em contradição com a sua essência, ou se
lhe associa um princípio estranho que estaria em comunidade com ela (uma
alma): neste último caso, se um tal produto deve ser um produto da natu-
reza, ou a matéria organizada se acha já pressuposta como instrumento desta
alma, o que não a torna compreensível, ou então temos de fazer da alma a
73
artista desta construção e assim subtrair o produto à natureza (corporal).
Por conseguinte, embora recenseando-as como saídas possíveis para a
explicação do fenómeno da vida na natureza, o filósofo nem se rende à hipótese
do materialismo vitalista ou hilozoísmo, que atribuísse vida à matéria, nem
aceita a ideia de uma Alma do Mundo, pressuposta pelas concepções panvitalis-
tas e pampsiquistas, que implicasse a identificação de Deus com o princípio que
anima o Mundo, da mesma forma que uma alma anima o corpo de um animal.
Kant mantém até às suas últimas reflexões um irredutível dualismo – entre
matéria e vida (esta sempre associada a um princípio imaterial ou mesmo espi-
ritual) e aponta para um teísmo, tão discreto e minimalista quanto possível, mas
ainda assim pressupondo sempre um supremo artista inteligente, distinto da
matéria e da própria natureza, que originariamente terá dado à natureza material
a capacidade de se organizar por si mesma a partir do caos dos elementos
segundo leis gerais, e lhe deu também, a um outro nível de incomensurável
maior complexidade, a capacidade de produzir ela mesma seres organizados
como se fossem fins que ela mesma se propõe, garantindo o filósofo desse modo,
74
como diz, «o investimento mais limitado possível de sobrenatural» , mantendo-
-se fiel a um seu antigo propósito metodológico. Podemos perceber que esta
solução é a que melhor se coaduna com os pressupostos da sua filosofia prática,
73
Ibidem, 374-375.
74
Ibidem, 424.
171
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
75
Metaph. Anfangsgründe, Ak IV, 544.
76
Ak V, 375.
172
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
77
Kritik der Urteilskraft § 75, Ak V, 400.
78
Veja-se, neste volume, o capítulo 3, sobre a ideia de uma “Técnica da Natureza”.
79
Ak V, 316.
173
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
80
Kritik der Urteilskraft § 67, Ak V, 380.
81
Heinz Heimsoeth, «Kants Philosophie des Organischen in den letzten Systementwurfen.
Untersuchungen aus Anlass der vollendeten Herausgabe des Opus postumum», Blätter für
deutsche Philosophie, 14 (1940/41), p.83.
82
Ibidem, pp.100-101.
174
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
175
5
As ficções da Razão. Hans Vaihinger
ou o Kantismo como ficcionalismo
1
Na sua obra Die Philosophie des Als Ob , Hans Vaihinger (1852-1933) propõe
uma interpretação da filosofia de Kant concebendo-a como teoria geral das fic-
ções do espírito, como uma espécie de ficcionalismo transcendental, que desco-
bre sobretudo sob a insistência da expressão als ob (como se) que é recorrente
nos escritos kantianos. A minha intenção é revisitar a obra de Vaihinger e rea-
preciar a ideia central que a inspira, tentando isolar esta da metafísica vitalista e
voluntarista e da gnoseologia pragmatista que a envolve, para mostrar a sua vir-
tualidade para uma reavaliação do carácter heurístico do pensamento kantiano,
e isso relendo não apenas os textos kantianos que o Professor de Halle leu, mas
também alguns outros que ele não leu e talvez nem mesmo chegou a poder ler
ou dos quais já não tirou proveito para a sua tese. Ao fazer isto, tento apresentar
o ficcionalismo kantiano no quadro de uma poética transcendental do espírito,
tal como ela se pode encontrar esboçada na terceira Crítica.
177
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
não alinha em nenhuma das duas principais escolas neokantianas que se perfila-
ram na época, a de Marburgo e a de Baden, embora não tenha sido alheio a
nenhuma delas e até expressamente tivesse reconhecido que alguns dos pensa-
dores de uma e de outra deram contributos pontuais que iam ao encontro da sua
própria “Filosofia do como se”. É o caso de Paul Natorp, de Ernst Cassirer, de
Bruno Bauch, de Wilhelm Windelband e de Heinrich Rickert. É o caso também
de Hermann Cohen. Mas o seu nome não costuma figurar nas histórias do neo-
kantismo e os próprios neokantianos não o consideravam como sendo um deles
e só excepcionalmente algum deu atenção à sua peculiar proposta filosófica. Na
verdade, se Vaihinger era capaz de abarcar na sua ampla “filosofia do como se”
até os resultados de alguns dos neokantianos, já estes só poderiam considerar
como estranha e suspeita uma filosofia de feição ecléctica que se apresentava
2
como uma nova forma de cepticismo, de agnosticismo ou de relativismo, onde
o Kantismo era despotenciado do seu significado especulativo forte e reduzido à
dimensão de um fenomenismo céptico, ou de uma teoria geral, não da verdade
científica e metafísica, mas das ficções humanas. O próprio estilo de Die Philoso-
phie des Als Ob é muito diferente do que é cultivado pelos neokantianos nas suas
obras. Vaihinger documenta a sua obra com os textos dos filósofos e cientistas
para ver como neles funciona, está em jogo ou suposta a consideração do “como
se” e é a partir daí que teoriza. Os escritos dos neokantianos, por seu turno,
caracterizam-se em geral pela austeridade especulativa e caem não raro num
árido formalismo. Por outro lado, a “filosofia do como se” passava ao lado
daqueles aspectos que os novos kantianos, no seu esforço por levar a cabo a
reconstrução sistemática da filosofia de Kant, estavam a redescobrir na sua lei-
tura sobretudo da Crítica da Razão Pura: uma teoria das condições transcen-
dentais da experiência, uma doutrina do método transcendental, enfim, uma
lógica geral do pensamento puro. Não admira, pois, que Paul Natorp, no
balanço que propõe da escola kantiana de Marburgo, numa conferência profe-
3
rida na sede da Kant-Gesellschaft, em Halle, a 27 de Abril de 1912 , onde rejeita
2
Vaihinger ver-se-á arrolado entre outros «relativistas» da sua época (entre os quais Oswald
Spengler e Albert Einstein), na obra do italiano Adriano Thilger, Relativisti contemporanei.
Vaihinger-Einstein-Rougier-Spengler. L’idealismo attuale – relativismo e rivoluzione, Roma,
Libreria di Scienze e Lettere, 1923 (4ª ed.), pp.21-35. À acusação de relativismo e de cepti-
cismo que impendia sobre a sua proposta, responde Vaihinger no seu ensaio «Wie die Philo-
sophie des Als Ob entstand». Este ensaio foi recentemente publicado em Anexo à tradução
portuguesa de Johannes Kretschmer de A Filosofia do Como Se, pp.671-708 (sobretudo
pp.699-701). Em Anexo à sua tradução da obra de Vaihinger, Kretschmer publica também a
tradução de uma carta de Albert Einstein ao autor de A Filosofia do Como Se, datada de 3 de
Maio de 1919. Nesta carta lê-se: «O seu livro [Die Philosophie des Als Ob] proporciona-me
muitos motivos de alegria; e penso assimilá-lo aos poucos. Nele encontro uma maneira de
considerar as coisas que está muito próxima da minha. Também Poincaré está próximo do
senhor.» (Ed. de Johannes Kretschmer, pp.709-710).
3
A conferência seria depois publicada na revista Kant-Studien, 17 (1912), pp.193-221.
178
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
4
Veja-se, como exemplo, Hans-Ludwig Ollig, «Religionsphilosophie der Sudwestdeuts-
chen Schule», in: Materialien zur Neukantianismus-Diskussion, WBG, Darmstadt, 1987,
p.433. Em contrapartida, Christian Köhnke, na sua obra Entstehung und Aufstieg des
Neukantianismus. Die deutsche Universitätsphilosophie zwischen Idealismus und Positivis-
mus, Suhrkamp, Frankfurt a.M., 1986, evoca recorrentemente «der Neukantianer Vaihin-
ger», destacando o seu papel e lugar na história filosófica alemã entre o final do século XIX e
o começo do século XX. Também Jacob Schmutz («Épistemologie de la fiction: Thomas
Hobbes et Hans Vaihinger», Les Études Philosophiques, Oct. 2006, pp.517-535), considera
Vaihinger como um «neokantiano», no amplo sentido em que também neste ensaio o
tomamos por tal.
5
Jahrbücher der Philosophie, 1 (1913), pp.1-59.
6
Ernst Cassirer, «Erkenntnistheorie nebst den Grenzfragen der Logik», Jahrbücher der
Philosophie 1 (Berlin 1913), pp.40-45.
179
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
como teoria da verdade: tal teoria é uma verdade ou uma ficção? Mas aponta
também as limitações da interpretação vaihingeriana da filosofia de Kant,
nomeadamente, num ponto estratégico, mostrando como ela trabalha com uma
noção de «ficção» que é simultaneamente demasiado ampla e demasiado redu-
tora, mas que sobretudo é incapaz de dar conta da diversidade de expressões
com que o filósofo crítico nomeara as representações do espírito e a respectiva
intencionalidade semântica, distinguindo intuições, esquemas, símbolos, cate-
gorias, ideias, postulados, ideias estéticas, princípios constitutivos, princípios
regulativos. Aparentemente insensível a toda essa variedade, Vaihinger como
que põe tudo no mesmo plano, nivela tudo no mesmo «círculo da ficcionali-
dade» (Kreize der Fiktizität).
A obra de Vaihinger e a tese central que ela propunha veio a ter uma grande
difusão mesmo no período da Primeira Grande Guerra Mundial, do que dão tes-
temunho as quatro edições que teve até 1920. Deu azo a fecundos desenvolvi-
mentos e aplicações aos mais variados domínios do pensamento, desde as ciências
à filosofia, e quase se tornou um tópico de moda. Mas suscitou também fortes
reacções e críticas. Desta antitética recepção – de entusiasmo por uns e de recusa
por outros – dá conta o próprio Vaihinger, nos «Prefácios» às sucessivas reedições
7
da sua obra. Enquanto interpretação da filosofia de Kant, ela viria a ser refutada
severamente, já na terceira década do século XX, por um outro kantiano, o qual
todavia também não se identificava com a exegese da filosofia crítica praticada
pelos neokantianos. Referimo-nos a Erich Adickes. Primeiro, na sua obra sobre o
8
Opus postumum e depois, sistematicamente, na obra Kant und die Als-Ob Philoso-
7
A obra de Vaihinger teve 10 edições entre 1911 e 1927: 1911, 1913, 1918, 1919 (esta
com Prefácio de R. Schmidt), duas em 1920, duas em 1922 e duas em 1927 (estas com
Prefácio de Vaihinger). Houve também duas edições reduzidas (ditas «populares») em
1922 e 1923, ao cuidado de R. Schmidt. Uma reimpressão da 9ª e 10ª edições de 1927
foi feita pela editora Scientia, Aalen, 1986. A obra viria a ser traduzida para o inglês e
editada pelo filósofo de Cambridge C. K. Ogden (The Philosophy of ‘As If’. A System of the
theoretical, pratical and religious fictions of Mankind, Harcourt, Brace & Company, New
York and London, 1925), o qual esteve também na origem da redescoberta da teoria das
ficções de Jeremy Bentham, um verdadeiro antecessor de Vaihinger, que este todavia não
cita, provavelmente apenas porque não conhecia de facto os estudos do filósofo inglês.
Uma tradução italiana da obra por Franco Voltaggio, baseada na edição popular de 1923,
foi editada em 1967: La filosofia del como se. Sistema delle finzioni scientifiche, etico-prati-
che e religose del genere umano, Astrolabio-Ubaldini, Roma. Existe uma tradução romena
de Liviu Cotrau – H. Vaihinger, Filosofia lui Ca si Cum, Ed. Nemira, Bucareste, 2001.
Recentemente, foi publicada uma tradução francesa, feita a partir da edição popular de
1923: La philosophie du comme si. Système des fictions théoriques, pratiques et religieuses de
l’humanité, sur la base d’un positivisme idéaliste. Avec un Annexe sur Kant et Nietzsche.
Cahier spécial 8 de Philosophia Scientiae. Préface et traduction de Christophe Bouriau,
Kimé, Paris, 2008.
8
Kants «Opus postumum» dargestellt und beurtheilt, Berlin, 1920.
180
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
9
phie , esse discípulo de Friedrich Paulsen procede a uma violenta crítica da inter-
pretação da “filosofia do como se”, considerando-a como absolutamente insus-
tentável e como assente numa completa incompreensão e violentação do Kant
real, contrapondo ele ao Kant ficcionalista de Vaihinger e de seus discípulos e ao
Kant teórico do conhecimento dos neokantianos um outro Kant dominado pelas
questões metafísicas. Tal como o fizera Cassirer, embora com pressupostos e pro-
pósitos diversos, também Adickes contesta a noção vaihingeriana de ficção, que
considera não ser capaz de conter a intencionalidade do que nos escritos de Kant
se diz pela expressão Als Ob. Segundo Adickes, uma investigação semântica con-
textualizada, que tivesse por objecto essa expressão e outros termos kantianos que
Vaihinger subsume na sua noção muito geral de ficção, tornaria patente toda a
fragilidade da sua pretensão de invocar Kant e a sua obra como a melhor testemu-
nha do seu ficcionalismo sistemático e bastaria para recomendar a completa
recusa de uma tal interpretação da filosofia kantiana e dos seus tópicos maiores (a
coisa em si, as ideias, os postulados) como sendo meras ficções.
O singular perfil do percurso filosófico de Vaihinger pode explicar-se pela
confluência de matrizes heterogéneas que estão na sua génese. Encontramos aí,
antes de mais e como decisiva, a inspiração de Friedrich Albert Lange, o qual
motivaria também outros neokantianos, sobretudo os da escola de Marburgo.
Mas ao positivismo e agnosticismo metafísico do celebrado autor da Geschichte
des Materialismus associam-se outras correntes de pensamento activas na época,
designadamente, o voluntarismo e o pessimismo schopenhauerianos, o biolo-
gismo darwiniano, o pragmatismo peirciano. Tudo isso junto resulta num estra-
nho sistema que o autor designa pelo não menos estranho nome de “positivismo
idealista” ou de “idealismo positivista”.
Ainda assim Vaihinger foi um dos primeiros a reconhecer o significado do
movimento de “regresso a Kant” logo nos seus começos. Num ensaio publicado
em 1876, sobre a história da filosofia alemã no século XIX, já apresenta Lange
como “o ponto mais alto dos chamados neokantianos” (Spitze der sogenannten
Neukantianer), os quais, segundo diz, «devem procurar-se tanto entre os filósofos
de profissão como entre os investigadores da natureza» (die sowohl unter den
10
Philosophen von Profession, als besonders unter den Naturforschern zu suchen sind).
Noutro passo desse ensaio, o mesmo Lange é apresentado como “chefe dos jovens
11
kantianos” (Haupt der Jungkantianer). E, uma dezena de páginas adiante, declara
9
Fr. Frommanns Verlag, Stuttgart, 1927. Infelizmente, devido à sua velhice e cegueira,
Vaihinger já não tinha condições para defender o seu ponto de vista contra as impiedo-
sas críticas de Adickes.
10
Hans Vaihinger, Hartmann, Dühring und Lange. Zur Geschichte der deutschen Philoso-
phie im XIX Jahrhundert. Ein kritische Essay, Iserlohn, 1876, p.8.
11
Ibidem, p, 205. Num ensaio mais tardio de auto-interpretação, Vaihinger declara-se um
«discípulo de Lange» e vê sair deste duas linhas de neokantismo – o de Cohen, que se
181
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
propõe aprofundar a doutrina kantiana de forma cada vez mais fiel e rigorosa no sentido
do idealismo transcendental, e o seu próprio, que põe em conexão o neokantismo de
Lange com o empirismo e o positivismo: «Vom Neukantianismus eines F. A. Lange aus
konnten zwei verschiedene Wege eingeschlagen werden. Entweder konnte der Kantische
Standpunkt auf Grund genaueren Eindringens in die Kantische Lehre schärfer und treuer
herausgearbeitet werden, dies geschah durch Cohen. Oder man konnte den Neukantianismus
Langes mit dem Empirismus und Positivismus in Verbindung bringen. Dies ist durch
meine Philosophie des Als Ob geschehen, die aber ebenfalls auf ein gründlicheres Eindringen
in die Kantische Als-Ob-Lehre führt.» Hans Vaihinger, «Wie die Philosophie des Als Ob
entstand», in: Raymund Schmidt (Hrsg.), Die Deutsche Philosophie der Gegenwart in Selbstdars-
tellungen, Bd. II, Felix Meiner, Leipzig, 1921, p.197.
12
Não há unanimidade quanto à atribuição a Liebmann do papel de desencadeador do movi-
mento do Neokantismo. Outros atribuem-no a Hermann Lotze, e há quem invoque uma
Lição Inaugural proferida por Eduard Zeller na Universidade de Heidelberga em 1862.Veja-
-se: Siegfried Marck, «Am Ausgang des jüngeren Neukantianismus. Ein Gedenkblatt für
Richard Hönigswald und Jonas Cohn», Archiv für Philosophie 3 (1949), pp.144-164; A. Phi-
lonenko, L’École de Marbourg. Cohen – Natorp – Cassirer, Vrin, Paris, 1989, p.9.
182
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
em dois volumes, publicados com dez anos de distância um do outro, não vai
13
todavia além da Estética Transcendental. Devem-se-lhe ainda outros ensaios
kantianos, dos quais destaco: um de 1883 sobre a refutação kantiana do idea-
lismo («Kants Widerlegung des Idealismus»); num outro, de 1902, faz uma
aproximação entre Kant e Platão enquanto pensadores metafísicos, acabando
por reconhecer em ambos também uma certa analogia na capacidade que reve-
lam para criar pertinentes mitos ou metáforas para exporem as respectivas filo-
sofias e termina sugerindo que Kant, tal como de resto Platão, além de ser um
14
«metafísico» é também um «metafórico» ; um terceiro ensaio aborda a dedução
transcendental das categorias («Die transzendentale Deduktion der Katego-
rien»). Mas deve-se a Vaihinger sobretudo a criação de duas instituições que
irão ser decisivas por todo o século seguinte e até ao dia de hoje para o desen-
volvimento sustentado dos estudos kantianos. São elas a revista Kant-Studien,
por ele fundada em 1895 e publicada a partir de 1897, e a «Kant-Gesellschaft»,
fundada em 1904, no centenário da morte do filósofo. Estas duas instituições
kantianas, juntamente com o empreendimento desencadeado por Wilhelm Dil-
they, pela mesma época, de publicação de todos os escritos kantianos, mesmo os
do espólio, garantiriam as condições materiais e institucionais para a difusão da
obra e do pensamento de Kant ao longo de todo o século XX. Em 1906, Vaihin-
ger, acometido de cegueira, vê-se obrigado a abandonar a sua cátedra na Univer-
sidade de Halle. Publica, em 1911, a obra que o tornaria famoso – A Filosofia do
Como Se (Die Philosophie des Als Ob) –, da qual me ocuparei de seguida. Em
1919, cria com Raymund Schmidt os Annalen der Philosophie, um órgão de
divulgação de estudos multidisciplinares sobre a temática do als ob e, dois anos
depois, publica, em obra editada por Schmidt, um importante ensaio auto-inter-
15
pretativo sobre a génese da “filosofia do como se”. Morre em 1933.
Não é, porém, tanto pelo seu contributo para a «Kantphilologie» através do
seu trabalho de minuciosa exegese da Crítica da Razão Pura, nem pela criação da
revista Kant-Studien ou pela fundação da «Kant-Gesellschaft» que Vaihinger tem
um lugar muito próprio na história do movimento de regresso a Kant e pode ser
considerado como um verdadeiro neokantiano, e mesmo como um dos primei-
13
Hans Vaihinger, Kommentar zu Kants «Kritik der reinen Vernunft», Stuttgart / Berlin /
Leipzig, 1881-1892.
14
Hans Vaihinger, «Kant – ein Metaphysiker?», Kant-Studien 7 (1902), 117: «Dem Schlag-
wort, ‘Kant ein Metaphysiker’ kann man das gleichwertige gegenüberstellen: ‘Kant ein
Metaphoriker’». Este ensaio retoma em forma abreviada um outro publicado sob o
mesmo título dois anos antes na obra colectiva: Philosophische Abhandlungen. Christoph
Sigwart zu seinem 70. Geburtstag von einere Reihe von Fachgenossen gewidmet, Tübingen,
1900, pp.133-158.
15
Raymund Schmidt (Hg.), Die deutsche Philosophie der Gegenwart in Selbstdarstellungen,
v. 2, F. Meiner, Leipzig, 1921.
183
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
ros, dando à expressão o sentido amplo mas preciso que ele próprio lhe atribuía.
No longo Prefácio que acompanha a edição de Die Philosophie des Als Ob, é-nos
revelado pelo autor (que aí se apresenta na qualidade de mero editor) que a obra
fora redigida como dissertação académica cerca de 35 anos antes, entre os anos
16
1875 e 1878, e que nela se propusera ele captar não apenas um ponto nodal do
Kantismo, mas o verdadeiro Kant, “o Kant pleno e completo” (der volle und
ganze Kant), “o sentido próprio e final da filosofia kantiana” (der eigentliche und
letzte Sinn der Kantischen Philosophie), sentido este que estaria, segundo ele,
naquele modo de pensar que se diz pela expressão “como se” – a «Als-Ob-
Betrachtung». Para conseguir isso, diz Vaihinger, há que ter não só inteligência
como também coragem (nicht blos Verstand, sondern auch Mut) para se libertar
17
do Kant escolar e tradicional, que é, segundo ele, um Kant muito incompleto.
O seu minucioso trabalho exegético sobre a primeira Crítica, levado a cabo
segundo um método a que chama «analítico-histórico», completa-se assim com
o esforço de interpretação «sintético-construtiva» do sentido de todo o pro-
grama filosófico kantiano como sendo gerido pela consciência do poder ficcional
do espírito humano naquilo que ao espírito mais importa: as representações
filosóficas e científicas, as representações éticas, estéticas e religiosas.
Trata-se, portanto, de um programa de regresso ao genuíno Kant. Mas esse
regresso é um regresso que, colhendo a inspiração e apreendendo o espírito da
filosofia kantiana, pretende libertá-la da roupagem do “desvitalizado raciona-
lismo dogmático” com que o próprio filósofo crítico terá desenvolvido e ao
18
mesmo tempo obscurecido as suas descobertas. Vaihinger insiste na ideia de
que Kant, embora tenha descoberto como ninguém antes dele o fizera a natureza
ficcional das epresentações filosóficas e tenha amplamente mostrado o seu uso,
não teve, contudo, clara consciência do alcance da sua descoberta e até a com-
16
Só uma parte dessa investigação foi apresentada então como tese de habilitação, na
Universidade de Estrasburgo, sob o título: Logische Untersuchungen. 1. Teil: Die Lehre
von der wissenschaftlichen Fiktion (1877).
17
«Der traditionelle Kant, der Kant der historischen Lehrbücher, mit einem Wort: der
Schul-Kant ist eben nicht der volle und ganze Kant. Um Kant ganz und voll zu verste-
hen, resp. verstehen zu wollen, dazu gehört eben nicht blos Verstand, sondern auch
Mut.» Die Philosophie des Als Ob, p. XIV. Para uma apreciação geral da interpretação
vaihingeriana de Kant, quanto ao modo e ao conteúdo, veja-se o ensaio de Walter Del-
-Negro, «Hans Vaihingers philosophisches Werk mit besonderer Berücksichtigung seiner
Kantforschung», Kant-Studien, 1934, pp.316-327. Veja-se também: S. Willrodt, Semifik-
tionen und Vollfiktionen in Vaihingers Philosophie des Als Ob, Leipzig, 1934.
18
«Man hatte auf diesem Wege weitergehen sollen: so hatte man das Kantische Resultat
sich rein bewahrt: freilich hatte dieser grosse Philosoph selbst seine ruhmreichen Ent-
deckungen mit den Rettungsversuchen abgelebter rationalistischer Dogmatik befleckt
und so selbst dazu beigetragen, dass seine richtigen Resultate begraben und vergessen
wurden.» Die Philosophie des Als Ob, p.43.
184
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
19
«Kant hat wohl die Idee gehabt, dass alle Formen des Begriffes und der Anschauung rein
subjektiv, d.h. fiktiv seien, allein bis zu der energischen Betonnung and Forderung der histo-
risch-genetischen Ableitung dieser höheren Begriffswelt aus elementaren Empfindungswelt durch
Anpassung und Konkurrenz ist er nicht fortgeschritten. Wie viel uns Kant also zu tun übrig
gelassen hat, kann einigermassen aus diesem Vergleiche [mit Darwin] hervorgehen. Kant hat
gerade die Hauptfrage: durch welchen Mechanismus des Denkens denn wir mittelst dieser
subjektiven Vorgange und Vernichtungen doch instande sind, die objektive Welt theoretisch
und praktisch zu berechnen - nicht genugend beantwortet.» Ibidem, p. 183.
20
Sobre o conceito vaihingeriano de verdade, veja-se: Hans von Noorden, «Der Wahrheits-
begriff in Vaihingers Philosophie des Als Ob», Zeitschrift zur philosophische Forschung,
1953, pp.99-113. Sobre este tópico, não perderam a sua pertinência as páginas dedicadas
por Cassirer a Vaihinger no ensaio acima citado.
185
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
21
F. A. Lange, Geschichte des Materialismus und Kritik seiner Bedeutung in der Gegenwart,
2 vols., Iserlohn, 1866; 2ª edição modificada, Leipzig, 1873-1875.
22
Die Philosophie des Als Ob, p.771.
23
Na verdade, um contemporâneo de Kant já aventara essa ideia, mediante a qual pen-
sava poder aproximar e reconciliar a filosofia de Kant com a de Leibniz. Trata-se de
Salomon Maimon, no seu ensaio de 1793, Über die Progressen der Philosophie, onde a
dado passo se lê: «Eu já fiz notar que Leibniz fez uso com vantagem do método mate-
mático das ficções na filosofia. É aqui o lugar onde eu quero explicar-me melhor acerca
disso, com o que não só lanço uma luz acerca deste método, mas também, para desgosto
de muitos kantianos, espero reconciliar Leibniz com a Crítica da razão pura.» (Ich habe
schon bemerkt, dass sich Leibniz mit Vortheil der mathematischen Methode der Fiktionen
in der Philosophie bedient habe. Hier ist der Ort wo ich mich hierüber naher erklären
will, wodurch ich nicht nur ein Licht über diese Methode zu verbreiten, sondern auch
(manchen Kantianer zur Ärgerniss) Leibnizen mit der Kritik der reinen Vernunft auszusohnen
hoffe.» (reimpr. Aetas Kantiana, Bruxelles, p.29). De facto encontra-se em Leibniz um
frequente recurso não só ao que o filósofo da harmonia chamava as «fictions utiles» (por
exemplo, a ideia de quantidades infinitesimais: Die philosophischen Schriften, ed.
Gerhardt, Olms, Hildesheim, vol. 6, p.629), mas até mesmo à expressão «comme si», de
que apresentamos apenas um exemplo entre muitos outros possíveis: «Ce système [de
l’harmonie préétablie] fait que les corps agissent comme si (par impossible) il n’y avoit
point d’Âmes, et que les Âmes agissent comme s’il n’y avoit point de corps, et que tous
les deux agissent comme si l’un influoit sur l’autre.» Ibidem, vol. 6, p.621.
186
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
Urteil). Mas, para além disso, considera toda a filosofia de Kant como a mais
ampla e expressiva amostra do universal uso filosófico da “consideração como
se” (Als-Ob-Betrachtung) e a mais eloquente confirmação da sua importância. Na
Terceira Parte da sua obra, o autor empreende ao longo de mais de centena e
meia de páginas um quase exaustivo levantamento do recurso de Kant a esse
«artifício» (Kunstgriff) do pensamento, esquadrinhando todos os escritos kan-
tianos, desde o período pré-crítico ao Opus postumum, incluindo mesmo os
escritos menores. Vaihinger insiste, porém, na tese de que, apesar de toda a
importância do tema na filosofia kantiana, esse tema não foi absolutamente claro
para o próprio Kant, nem este o assumiu ou formulou com plena convicção:
«Foi Kant quem fez a primeira e propriamente frutífera aplicação da ficção em
24
filosofia, mas em parte também ele o fez sem clareza metódica.» Ele apenas
entreviu e entreabriu um caminho sem ter plena consciência do que fazia e sem
o ter formulado de modo definitivo. Por isso o seu esforço deve ser prosseguido,
aprofundado, esclarecido.
Na verdade, apesar de todo o seu cuidado em aparelhar e trabalhar a lin-
guagem que usa na sua filosofia, Kant não tem um vocabulário fixo e os termos
que usa vão sendo criados ou estabelecidos no seu sentido à medida que o pró-
prio pensamento neles e através deles se vai exercendo. Todavia, o vocabulário
kantiano para o domínio das representações, em particular, daquelas que se
movem no horizonte próximo da “ilusão”, é bastante rico e resulta da sua pró-
pria investigação filosófica. Tendo um dia suspeitado que em certos dos seus
juízos o entendimento era vítima de uma ilusão (ich eine illusion des Verstandes
25
vermuthete) , Kant aplicou-se a identificar onde residia essa ilusão e de onde
provinha ela. Esse trabalho, que, na verdade, constitui o núcleo em torno do
qual gravita toda a sua filosofia transcendental, terá começado no ano 1769,
associado à tomada de consciência das antinomias com que a razão se debate nas
26
suas proposições acerca dos supremos objectos metafísicos , e culmina na Crí-
tica da Razão Pura, na Dialéctica Transcendental, apresentada como a “lógica da
aparência” (Logik des Scheins). O objectivo nela visado é clarificar a “ilusão ou
aparência transcendental” que ocorre em certos raciocínios da razão, de modo a
evitar que essa ilusão se torne uma ilusão transcendente e realmente engana-
dora. Pode dizer-se que o que Kant pretende com esse seu programa filosófico é
levar a razão a tomar consciência das suas ideias como sendo ilusões e criações
suas e a aprender a viver com elas enquanto tais, pois lhe são naturais e até
24
«Die eigentlich erste fruchtbare Anwendung der Fiktion in der Philosophie machte
Kant, allein teilweise auch er ohne methodische Klarheit.» Die Philosophie des Als Ob,
p.264; veja-se também pp. 269 e 272.
25
Reflexionen, Ak XVIII, 69.
26
Carta a Garve de 21 de Setembro de 1798, Briefwechsel, Ak XII,225.
187
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
necessárias para o seu trabalho, sem que todavia caia no erro de as tomar por
27
realidades ou por ideias que correspondam a objectos e realidades. Desta
estratégia kantiana faz parte a demarcação estrita entre o “país da verdade”
(Land der Wahrheit), que é o território do entendimento, cujos conceitos são
aplicáveis aos fenómenos e ao mundo da experiência, e o “nebuloso mar sem
margens da metafísica e da razão” – um lugar que é “propriamente a sede da
ilusão” (dem eigentlichen Sitze des Scheins) – acerca do qual a razão apenas colhe
28
aparências ilusórias. Como se lê no início da Dialéctica Transcendental, aquilo
de que o filósofo se ocupa não é de denunciar e evitar as ilusões ou falsas apa-
rências dos sentidos – as ilusões empíricas (empirische Schein) ou ópticas –, e
nem sequer a aparência ou “ilusão lógica” (logische Schein) ou os sofismas
resultantes da falta de atenção às regras lógicas do raciocínio. A primeira cor-
rige-se pela própria percepção e a segunda pela atenção à observância das regras
lógicas e, uma vez descobertas, tanto uma como a outra não mais subsistem nem
perturbam a razão como fonte de enganos ou de erros. Não é isso, porém, o que
se passa com uma espécie muito particular de ilusão, que tem a sua origem na
própria razão e a que Kant chama a aparência ou “ilusão trancendental” (trans-
zendentale Schein). Esta é inevitável e, mesmo depois de descoberta a sua causa e
origem, subsiste e pode continuar a ser fonte de enganos. A Dialéctica Trans-
cendental tem por objecto descobrir a causa dessas ilusões ou aparências, de
modo a precaver a razão contra o engano que elas provocam. Se elas se relacio-
nassem com princípios cujo uso pudesse ser testado pela experiência, a própria
experiência constituiria a pedra-de-toque da sua correcção ou do seu desvario.
Mas precisamente elas arrastam a razão para uma aplicação das categorias com-
pletamente para além da experiência e, por isso, ficamos sem um critério para a
sua legitimação, sendo que, desse modo, nos enganam com a miragem de uma
extensão do conhecimento do entendimento puro ao domínio do supra-sensí-
29
vel.
Para tratar deste problema central do seu programa filosófico Kant não faz,
em geral, uso do termo “ficção” (Fiction), termo que colhe, como vimos, a prefe-
rência de Vaihinger. Nos escritos publicados em vida de Kant, este termo apa-
27
KrV B354, Ak III, 237.
28
KrV B 295, Ak III, 202. Sobre o tema, veja-se: Felix Duque Pajuelo, «L’illusione e la
strategia della ragione», Il Cannocchiale (Napoli), 1986, nº1/2, pp.97-112; Michelle
Grier, Kant’s Doctrine of Transcendental Illusion, Cambridge University Press, Cambridge,
2002; Liliane Weissberg, «Catarcticon und der schöne Schein. Kants ‘Träume eines
Geistersehers, erläutert durch Träume der Metaphysik’», Poetica (München), 18 (1986),
pp.96-116; Claude Piché, «Les fictions de la raison», Philosophiques (Québec) 13 (1986),
pp.291-303; Bernd Dörflinger / Günter Kruck (Hg.), Über den Nutzen von Illusionen. Die
regulativen Ideen in Kants theoretischer Philosophie, Olms, Hildesheim, 2011.
29
KrV B 352, Ak III, 235.
188
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
rece apenas duas vezes, uma no singular, outra no plural. No Opus postumum,
aparece duas vezes no singular – para designar a “ficção” (Fiction) que é o con-
ceito de um corpo orgânico, e tem um sentido fraco, pois designa um conceito
30
que é “meramente uma ficção” (blos eine Fiction). Mas, ainda assim, apesar de
raríssimo, o termo é usado uma vez no plural e de forma qualificada, na Crítica
da Razão Pura, para designar precisamente os conceitos racionais ou ideias da
razão. Isso ocorre na terceira secção do primeiro capítulo da Doutrina Trans-
cendental do Método, intitulado “Da disciplina da razão pura no que se refere às
hipóteses”, onde Kant escreve:
Os conceitos da razão são meras ideias e não têm, evidentemente, objecto
algum em qualquer experiência, mas não designam por isso objectos
inventados e ao mesmo tempo tomados como possíveis. São pensados de
modo meramente problemático, para em relação a eles (como ficções heu-
rísticas) fundar princípios reguladores do uso sistemático do entendimento
no campo da experiência. Se sairmos deste campo, são meros entes de
razão, cuja possibilidade não é demonstrável e que não podem também,
mediante uma hipótese, ser postos como fundamento da explicação de
31
fenómenos reais.
Esta passagem e, de resto, todo o capítulo de onde ela é extraída, convoca
uma parte muito significativa do vocabulário e da instrumentação que Kant
costuma usar para tratar destes assuntos: meras ideias, objectos inventados (ou
imaginados), pensar de modo problemático, ficção heurística, princípios regula-
dores, meros seres de razão (Gedankendinge), hipóteses.
Mais abundantes do que o termo “ficção”, de proveniência latina, são na
escrita kantiana as expressões da família dos verbos «dichten» e «erdichten» (fic-
cionar, poetar, inventar). «Dichten» aparece 18 vezes nas obras publicadas por
Kant; «Dichtkunst» aparece 20, sendo 11 na Crítica do Juízo; «Dichtung» aparece
8 vezes e «Dichtungen» ocorre 5 vezes; recorrentes são também «Dichtungskraft»
e «Dichtungsvermögen». O uso destas expressões dá-se sobretudo no contexto da
abordagem da poesia. No contexto estético, por conseguinte, e como dizendo
respeito a uma faculdade específica – a imaginação (Einbildungskraft). Como se lê
30
Opus postumum, Ak XXI, 210, Ak XXII, 311.
31
«Die Vernunftbegriffe sind, wie gesagt, blosse Ideen und haben freilich keinen Gegens-
tand in irgend einer Erfahrung, aber bezeichnen darum doch nicht gedichtete und
zugleich dabei für möglich angenommene Gegenstände. Sie sind bloss problematisch
gedact, um in Beziehung auf sie (als heuristische Fiktionen) regulative Principien des
sytematische Verstandesgebrauchs im Felde der Erfahrung zu gründen. Geht man davon
ab, so sind es blosse Gedankendinge, deren Möglichkeit nicht erweislich ist, und die
daher auch nicht der Erklärung wirklicher Erscheinungen durch eine Hypothese zum
Grunde gelegt warden können.» KrV, Ak III, 503.
189
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
32
«Dichten überhaupt ist das Vermögen der Einbildungskraft, es sey zu Diensten der
Vernunft oder der Neigung, schöpferisch machen.» Reflexion 805, Ak XV, 351.
33
KrV, Ak III, 502-509.
34
Opus postumum, Ak XXI, 101: «Transcendentale Philosophie … ist die intus sussception
eines Systems der ideen (Dichtungen der reinen Vernunft) durch welche das Subject sich
selbst nach einem Princip zum Object des Denkens macht und synthetische Einheit a priori
durch Begriffe begründet.» Ibidem, 102: «… das System der ideen (Dichtungen) der reinen
Vernunft» – «Transc. Phil. ist... ein System von absoluter Einheit welches synthetische
Erkenntnis a priori aus Begriffen enthält d. i. das ganze System der ideen Dichtungen (gleich
als gegebener Gegenstande) der reinen Philosophie die zwar Problematisch vorgestellt aber
doch nothwendig, müssen gedacht werden...»
35
Opus postumum, Ak XXI, 103.
36
Na sua tradução de uma antologia de peças do Opus postumum (PUF, Paris, 1986),
François Marty traduz a expressão «Dichtungen der Vernunft» por «productions de la
raison» (p. 239, linhas 32-33).
37
“Das Poëm des Verstandes ist Philosophie - Es ist der höchste Schwung, den der Vers-
tand sich über sich selbst giebt.” Novalis, Schriften, WBG, Darmstadt, 1981, Bd.2, Das
190
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
philosophische Werk I, 531. Assim, quando Nietzsche escreve, num dos fragmentos da
sua primeira fase, que «a filosofia é uma forma de poesia… é a poesia para além dos
limites da experiência» (Die Philosophie ist eine Form der Dichtkunst… ist die Dicht-
kunst ausser den Grenzen der Erfahrung), é como se estivesse a comentar o fragmento
de Novalis e a afirmação de Kant segundo a qual as ideias são “Dichtungen der Ver-
nunft”. F. Nietzsche, Nachgelassene Fragmente, Sammtliche Werke, ed. Colli-Montinari,
W. de Gruyter, Berlin, Bd. VII, p.439.
191
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
38
KrV B 700, Ak III, 444.
39
KrV B710, AkIII, 449.
192
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
193
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
42
Grundlegung, Ak IV, 439.
43
Die Philosophie des Als Ob, p.652.
194
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
44
als Philosoph, 1902). Como ele próprio confessa, no Prefácio a Die Philosophie
des Als Ob, a sua descoberta do Nietzsche filósofo não foi precoce: «Quando, no
final dos anos 90, eu li Nietzsche, relativamente ao qual até aí me mantivera
distante, [...] reconheci com alegre admiração uma profunda afinidade entre a
sua e a minha compreensão da vida e do mundo, a qual em parte se explica pelas
45
mesmas fontes: Schopenhauer e F. A. Lange.» Mas agora uma terceira fonte
comum se explicita: a mediação kantiana e o tema do “als ob”. O que, segundo
Vahinger, sobretudo liga Nietzsche a Kant é o tema das ficções – a doutrina das
representações conscientemente falsas e todavia necessárias, aquilo a que
Nietzsche chamará a “vontade de ilusão” (ou de aparência) e que contraporá à
“vontade de verdade” que dominou todo o pensamento ocidental, na ciência e
na filosofia. No seu Apêndice sobre Nietzsche, Vaihinger propõe-se mostrar
como a ideia de ficção trabalha toda a filosofia de Nietzsche, da mesma forma
que antes mostrara que a doutrina do “als ob” trabalha em profundidade e
extensão toda a obra de Kant. O que resulta desta leitura de Nietzsche é a rei-
vindicação deste para a história do neokantismo, pela via aberta por Lange e
trilhada também pelo próprio Vaihinger. Com o seu estilo peculiar, Nietzsche é
um kantiano que se ignora e que também os contemporâneos ignoraram, porque
se deixaram ludibriar com as críticas pontuais mas por vezes ferozes que o cria-
dor de Zaratustra dirigiu contra Kant e a sua filosofia. No fundo, porém, segundo
Vaihinger, a doutrina nietzscheana da ilusão é inspirada por Lange e pela inter-
pretação que este fizera de Kant. Documenta essa mediação com uma carta de
Novembro de 1866 a Hermann Muschacke, na qual Nietzsche faz esta declara-
ção: «A mais significativa obra filosófica que saiu no último decénio é sem
dúvida a História do Materialismo de Lange, acerca da qual eu poderia escrever
44
Hans Vaihinger, Nietzsche als Philosoph, Halle, 1902 (nova edição com anotações de
Gerhard Bleick, Porta Westfalica, Books on Demand, Norderstedt, 2002). A obra conhe-
ceria três edições até 1904. Todavia, nas duas primeiras edições, não há qualquer refe-
rência à relação de Nietzsche com Kant, embora a haja sim a respeito de Schopenhauer e
de Darwin. Porém, a terceira edição de 1904 traz um «Apêndice», no qual o autor dedica
um parágrafo de meia dúzia de linhas para dizer que Nietzsche não foi só um antiplató-
nico, mas também um «antikantiano» e mesmo «um dos mais acutilantes e também
mais injustos adversários de Kant»: «Nietzsche ist aber nicht bloss Antiplatoniker, er ist
auch Antikantianer, und einer der schärfsten und wohl auch ungerechteste Gegner Kants.»
(ed. Bleick, 2002, p. 46). O tópico kantiano aí destacado como sendo aquele contra o
qual se dirigem os principais ataques de Nietzsche é o da «coisa-em-si»: «Kant hat die
Objekte der alten Metaphysik aus erkennbarem Seienden in unerkennbare “Dinge an
sich” verwandelt. Aber auch diese Lehre ist gegen Nietzsches Sinn, und Nietzsches Sinn
ist gegen sie. Diese Lehre ist ihm nur verkappte Metaphysik, und so kämpft er gegen sie,
wie auch fast gegen alle anderen Positionen Kants. In Platon und Kant, wie überhaupt in
den Metaphysikern sieht Nietzsche Vertreter der Idee des Unbedingten, des Absoluten,
und gerade gegen diese Ideen richtet er die Pfeile seines Spottes.» (ed. Bleick, 2002, p.46).
45
Ibidem, Prefácio, X.
195
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
46
«Das bedeutendste philosophische Werk, was in den letzten Jahrzehten erschienen ist,
ist unzweifelhaft Lange, Geschichte des Materialismus, über das ich eine bogelange Lobrede
schreiben konnte. Kant, Schopenhauer und dies Buch von Lange - mehr brauche ich
nicht.». Nietzsche, Sämmtliche Briefe, Walter de Gruyter, Berlin, 1986, Bd.2, 184.
47
«Nietzsche hat tatsächlich sehr viel von Kant, freilich nicht von dem Kant, wie er in
den Schulbüchern steht (…), sondern vom Geiste Kants, des echten Kant, der den
Schein bis in seine tiefsten Wurzeln durchschaut, aber auch die Nützlichkeit und Not-
wendigkeit des durchschauten Scheins mit Bewusstsein erkennt und anerkennt.» Die
Philosophie des Als Ob, p.772.
48
«Von diesem Standpunkt aus ist der Schein nicht mehr wie bisher von den Philosophen
zu beklagen und zu bekämpfen, sondern der Schein ist, soweit er als nützlich und wertvoll,
196
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
Nietzsche teria inevitavelmente chegado ao caminho que havia sido tomado pelo
Kant que ele tão mal interpretou e que fora também percorrido por F. A. Lange,
49
de quem recebeu forte influência na juventude. Tal a convicção de Vaihinger.
A aproximação de Nietzsche a Kant é, sem dúvida, sugestiva e fecunda,
tanto para a hermenêutica da filosofia kantiana como da nietzscheana e para
uma reavaliação da relação desta com aquela. Mas precisaria de ser trabalhada de
modo a perceber-se melhor o teor desse diálogo incompreendido entre os dois
filósofos e o modo como o programa nietzscheano responde, por continuidade,
antítese ou aprofundamento, ao programa de Kant. O que no fundo une os dois
pensadores é a valorização que ambos atribuem à ficção poética e, graças a isso,
o reconhecimento da importância da poética da ficção como sendo o trabalho
fundamental da actividade criadora do espírito.
sowie als ästhetisch einwandsfrei sich herausstellt, zu wollen und zu rechtfertigen.» Ibidem,
p.788.
49
Ibidem, p.790.
197
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
198
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
ficciona, mas não se deixa enganar com as suas ficções. Ocorre aí algo análogo
àquilo que acontece nas criações da poesia, como de resto o reconhece Kant na
sua Crítica do Juízo: «Ela – a poesia – joga com a aparência que ela produz à von-
tade, sem contudo enganar através disso, pois ela explica a sua ocupação mesma
como mero jogo, o qual ao mesmo tempo pode ser usado pelo entendimento e
53
para a ocupação deste de forma teleoforme.» Tal como mais tarde o poeta portu-
guês Fernando Pessoa, que se reconhecia um «poeta impulsionado pela filosofia»,
dirá que «o poeta é um fingidor», assim também Kant, o filósofo bem consciente
dos processos criativos ou poéticos do espírito humano, poderia dizer que o filó-
sofo é um fingidor e que as suas ficções ou invenções (Dichtungen) são precisa-
mente as ideias da razão, as quais não são capazes de iludir ou enganar um filó-
sofo crítico e têm mesmo uma função importante na economia da razão humana.
Cite-se uma passagem do discurso kantiano, no qual o filósofo joga com a ambi-
guidade dos termos latinos «lusus», «ludus», «ludere», de onde provêm também
«illusio», «ludibrium», «ludificari»:
Há certas imagens das coisas com as quais a mente joga sem por elas ser
enganada, e o artista não propõe aos incautos o erro, mas a verdade envol-
vida com a veste da aparência, a qual não ofusca o seu hábito interior, mas
exibe-a aos olhos decorada, não defrauda com adorno e enganos os ingé-
nuos e crédulos, mas, usando as luminosas belezas sensíveis, põe em cena a
árida e seca imagem da verdade pintada com cores sensíveis... A imagem
que engana, uma vez descoberta a sua vacuidade e ludíbrio, desaparece;
mas aquela que ilude, dado que não é senão a verdade fenoménica, mesmo
quando é realmente descoberta, não deixa de permanecer e ao mesmo
tempo mantém num agradável movimento o ânimo fazendo-o como que
flutuar nos confins entre o erro e a verdade e estimula-o admiravelmente
pois ele está consciente da sua sagacidade contra as seduções da aparência.
54
A imagem que engana desagrada, a que ilude agrada ainda mais e deleita.
53
Kritik der Urteilskraft § 53, Ak V, 326-32: «Sie spielt mit dem Schein, den sie nach
Belieben bewirkt, ohne doch dadurch zu betrügen, den sie erklärt ihre Beschäftigung
selbst für blosses Spiel, welches gleichwohl vom Verstande und zu dessen Geschäfte
zweckmässig gebraucht werden kann.» Veja-se: Valerio Rohden. «Aparências estéticas
não enganam – Sobre a relação entre juízo de gosto e conhecimento em Kant», in: R.
Duarte (org.), Belo, Sublime e Kant, Editora da UFMG, Belo Horizonte, 1998, pp.54-86.
54
«Sunt autem quaedam rerum species quibus mens ludit non ab ipsis ludificatur. Per
quas artifex non incautis propinat errorem sed veritatem veste apparentiae indutam quae
interiorem ipsius habitum non obfuscat sed decoratam oculis subiicit, quae non fuco et
praestigiis frustratur imperitos et credulos sed sensuum luminibus adhibitis ieiunam et
exsuccam veritatis speciem coloribus sensuum perfusam in scenam peducit. [...] Species
quae fallit perspecta ipsius vanitate et ludibrio evanescit sed illudens cum non sit nisi
veritas phaenomenon perspecta reipsa nihilo minus durat et simul animum in erroris ac
199
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
veritatis confiniis quasi fluctuantem suaviter movet sagacitatisque suae contra apparen-
tiae seductiones conscium mire demulcet. Species quae fallit displicet quae illudit placet
admodum et delectat.» Kant, Entwurf zu einer Opponenten-Rede, Ak XV, 2, 906-907.
55
Este discurso foi pela primeira vez publicado por Arthur Warda, no Altpreussische
Monatschrift 47 (1910), 662-670 e, pouco depois, Bernhard Adolf Schmidt ofereceu a
respectiva tradução alemã («Eine bisher unbekannte lateinische Rede Kants über Sin-
nestäuschung und poetische Fiktion») em Kant-Studien XVI (1911), 5-21. O discurso de
arguição de Kant e a dissertação de Kreutzfeld foram publicados no vol. XV (tomo 2,
pp.903-935) dos Kants gesammelte Schriften da Akademie-Ausgabe. Existe tradução ita-
liana das duas peças, acompanhada de um estudo interpretativo por M. T. Catena: I.
Kant – J. G. Kreutzfeld, Inganno e illusione. Un confronto accademico, Ed. Guida, Napoli,
1998, pp.41-62. Uma mais recente tradução italiana anotada do discurso kantiano é
proposta por Oscar Meo em Apêndice à sua obra: Kantiana minora vel rariora, Il Melan-
golo, Genova, 2000, pp.113-132. Uma tradução inglesa do discurso de Kant por T.
Meerbote - I. Kant, Concerning Sensory Illusion and Poetic Fiction – integra o volume
Kant’s Latin Writings. Translations, Commentaries, and Notes, ed. por L. W. Beck em
colaboração com M. J. Gregor, R. Meerbote, J. A. Reuscher, Peter Lang, New York, 1992,
pp.161-183.
56
Ibidem, Ak XV.2, 904.
57
É conhecido o processo instaurado por Platão aos artistas e aos poetas, na República
(599a-602e, passim). Mas a posição platónica pode não suportar uma leitura tão sim-
plista, sobretudo se atendermos a uma passagem de Leis (817 a-c) onde os filósofos é
que são propostos como sendo os genuínos poetas que inventam e põem em cena a
autêntica tragédia, aquela que imita a vida mais verdadeira, mais bela e excelente.
200
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
201
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
respeito da natureza, seja a propósito das suas formas belas ou dos seus produtos
organizados, devemos considerar a natureza como se ela fosse arte ou mesmo
61
artista. É a própria estrutura do juízo estético que é da ordem do «como se». E é
mediante esse jogo ficcional que se resolvem as principais antinomias identificadas
por Kant na sua terceira Crítica: entre a pretensão de validade universal e objectiva
do juízo estético e o seu carácter de sentimento meramente privado; entre o idea-
lismo e o realismo da finalidade acerca da beleza da natureza; entre a consideração
mecânica e a apreciação teleológica da natureza como um sistema organizado de
fins. A faculdade de julgar estética joga na ambiguidade, mas é uma ambiguidade
consciente dos seus pressupostos e dos seus limites. E o seu jogo, laborando embora
com ficções, não é contudo um jogo no vazio: é um jogo criador, não, por certo, dos
objectos, mas das suas representações, representações elas mesmas pertinentes e
com sentido, ainda que nenhum objecto em concreto lhes corresponda adequada-
mente.
O ficcionalismo entende-se melhor se não pretender dar-se por uma metafí-
sica ou uma gnoseologia, mas se reconhecer como sua matriz de origem uma
62
genuína inspiração estética. E o próprio Vaihinger parece ter chegado muito
mais tarde a reconhecer isso mesmo. No ensaio auto-interpretativo, acima citado,
ao esclarecer a expressão «idealismo positivista» com que designava o seu pro-
grama filosófico e que fora geralmente mal interpretada, ele escreve:
’Idealismo’ significa neste contexto originariamente o mesmo que F. A. Lange
chamou ‘o ponto de vista do ideal’: a livre instituição de valores absolutos
ideais que estão para além da realidade empírica com a consciência de que pre-
cisamente estes valores são apenas construções da nossa activa fantasia, mas,
contudo, por outro lado, constituem uma parte essencial da nossa vida íntima
e exterior. ‘Idealismo’, pois, neste contexto, não deve ser entendido nem num
sentido metafísico nem num sentido gnoseológico, mas num sentido ético ao
qual se associa o estético. […] Sobre o que é empiricamente dado, estabelece-
mos nós, mediante a livre criação, o não dado, o irreal, que vivenciamos como
se fosse real, ainda que saibamos que não é real: o mundo como se, o mundo
dos valores ideais éticos e estéticos, isto é, aquele mundo somente por causa do
qual vale a pena interessarmo-nos pelo admirável complexo de sensações e de
63
movimentos a que chamamos a vida ou o mundo.
61
Kritik der Urteilskraft § 45, Ak V, 306.
62
Embora Vaihinger não deixe fora de consideração as ficções poéticas, na sua versão
original, a doutrina vaihingeriana do als ob e da ficção tem uma inspiração pragmática e
utilitária – «prática», segundo a linguagem do próprio –, e não o sentido originaria-
mente estético e reflexionante que lhes atribui Kant.
63
«‘Idealismus‘ bedeutet in diesem Zusammenhange prinzipiell dasselbe, was F. A.
Lange‚ ‚Standpunkt des Ideals‘ genannt hatte: die freie Setzung ideeller, d. h. über die
202
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
203
6
Metáforas da Razão e razão
das metáforas na filosofia de Kant
1. Iconófilos e iconoclastas
Jorge Luís Borges, que semeou pelos seus escritos tantas e tão luminosas refle-
xões a respeito do significado poético e especulativo da metáfora, abria e con-
cluía uma das suas belas e breves prosas com estas palavras: «Talvez a história
1
universal não seja mais do que a história de umas quantas metáforas».
Quero crer que se isto vale para a História Universal, com muito mais razão
ainda poderá valer para a História da Filosofia. É inspirado pelo mote do escritor
argentino que tentarei esboçar neste ensaio um capítulo desta história, seguindo
não a costumeira ordem dos problemas e respectivas soluções, das razões e
argumentos, dos conceitos e ideias, mas antes o fio condutor das imagens que
estruturam e entretecem a obra de um filósofo, que, à primeira vista, parece ser
de todos o mais refractário ao êxito de um tal empreendimento, pois é muito
comum pensar-se que precisamente ele protagoniza da forma mais radical o
programa de uma filosofia transcendental da razão pura que pretenderia ver-se
livre de todos os elementos empíricos e sensíveis.
A filosofia tem efectivamente um antiquíssimo e nunca definitivamente
resolvido conflito com as imagens e, tal como na história das religiões e da teo-
logia, assim também na História da Filosofia se poderiam alinhar alguns dos
mais importantes filósofos em duas tendências ou mesmo em dois partidos, o
dos iconoclastas e o dos iconófilos. Os primeiros – entre os quais, por certo, se
contariam Platão, Descartes, Hobbes, Berkeley, segundo alguns, até o próprio
Kant e, sem dúvida, Fichte e muitos mais – pregam contra o uso de imagens e
metáforas na filosofia ou recomendam a abstinência delas, seja porque rendidos
1
«La esfera de Pascal», in: Nueva Antologia Personal, Bruguera, Barcelona, 1980, p.197.
205
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
206
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
dos maiores. De tal modo assim é que nos acode ao espírito a reflexão que se
encontra condensada num fragmento atribuído a Demócrito, o qual põe os sen-
tidos a replicar à pretensiosa razão, que os despreza e desqualifica, nestes ter-
mos: «Pobre razão, que tanto te esforças por nos rebaixar, mas só podes fazê-lo
6
com os meios que nós mesmos colocamos ao teu dispor!»
A reflexão que aqui proponho é feita também tendo em conta a importância
que no pensamento contemporâneo vem sendo progressivamente reconhecida à
metáfora não só na filosofia, em geral, mas igualmente nos textos filosóficos.
Mencionarei apenas três obras que, desde perspectivas diferentes, puseram este
tópico no centro dos debates filosóficos recentes sobre a condição linguística,
metafórica e até literária da filosofia e do pensamento: Paradigmen zu einer
Metaphorologie (Bonn, 1960) de Hans Blumenberg; La Mythologie Blanche. La
métaphore dans le texte philosophique (Poétique 5, 1971, 1-52; retomado em Marges
de la Philosophie, Paris, 1972) de Jacques Derrida; e La métaphore vive (Paris,
7
1975) de Paul Ricoeur. A prova mais recente deste interesse e igualmente do
reconhecimento da importância do tópico é o Wörterbuch der philosophischen
Metaphern, volume editado por Ralf Konersmann e publicado pela Wissenschaf-
tliche Buchgesellschaft de Darmstadt (Julho de 2007, do qual já saiu uma 2ª
edição em 2008 e uma 3ª em 2010). Mas, se um tal reconhecimento já existe – e
não apenas o da vaga importância filosófica da metáfora como tema de uma
filosofia da linguagem, mas também o da importância efectiva que tem a metá-
fora na estruturação semântica das obras e na linguagem dos filósofos e até na
8
dos cientistas –, também é verdade que, de um tal reconhecimento, até agora
não beneficiou muito a hermenêutica que se pratica das obras ou sistemas filo-
sóficos, sendo ainda raros os ensaios sobre a metafórica dos pensadores e sobre
o modo como ela se entretece na estrutura das suas obras e do seu pensamento,
não como um estorvo, mas oferecendo-se antes como um fecundo campo de
possibilidades heurísticas e hermenêuticas.
Em alguns dos meus estudos tenho ensaiado uma interpretação da obra ou
de aspectos da obra e do pensamento de alguns filósofos modernos (de Descar-
tes e Hobbes, mas sobretudo de Kant), partindo da linguagem na qual nos é
6
H. Diels, Die Fragmente der Vorsokratiker, 125 (ed. W. Kranz, Berlin, 1952, Bd.II, 168).
7
Estas obras, porém, eram mais filosofias da metáfora e não se ocupavam de reconhecer ou
de estudar o funcionamento da metáfora nos textos das grandes obras filosóficas. Só Blu-
menberg dedicará especial atenção também a este aspecto em várias das suas obras e ensaios.
8
Do já consensual reconhecimento da importância do tópico também no discurso das
ciências fala bem o Congresso a ele dedicado – Tropen und Metaphern im wissenschaftli-
chen Diskurs im Bereich der Geisteswissenschaften im 18. Jahrhunderts (Bergamo, 8-9 de
Outubro de 2009) – numa iniciativa conjunta de três Sociedades Científicas Europeias,
as Sociedades Francesa, Italiana e Alemã de Estudos do Século XVIII. Veja-se também:
Richard Boyd/Thomas S. Kuhn, La metafora nella scienza, Milano, 1983.
207
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
208
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
Ao reflectir agora sobre este assunto, estou numa situação muito mais confortá-
vel do que estava há cerca de três décadas, quando me ocorreu a ideia de uma
investigação sobre a metafórica kantiana, pois, nesta revisitação do tema, posso
contar já com o conforto proporcionado por alguns outros estudos que nos
últimos anos vieram confirmar aquilo que naquela época estava muito longe de
ser considerado sequer como um tópico pertinente para uma dissertação acadé-
mica. De facto, o reconhecimento da importância da linguagem metafórica na
filosofia de Kant foi praticamente inexistente ao longo do século XIX e, com
muito raras execpções, continuaria a sê-lo até ao último quarto do século XX. Os
primeiros leitores de Kant não foram sensíveis a este aspecto, mas foram antes
atingidos pelo efeito de atordoamento (Betaubung) provocado pela linguagem
kantiana da Crítica da Razão Pura, de que falava um dos primeiros recenseadores
da obra (Christian Garve), ou então foram incomodados pelo artificioso, estra-
nho, aparentemente arbitrário e perverso uso de termos tradicionais da metafí-
sica, desviados que eram do seu sentido corrente na linguagem dos filósofos, o
que logo criou a necessidade de publicar dicionários de filosofia kantiana. Her-
der, que havia sido aluno de Kant no início dos anos 60, na sua impiedosa
Metakritik zur Kritik der reinen Vernunft (publicada em 1799) em cuja Segunda
Parte (que trata da relação entre Vernunft und Sprache) se propõe precisamente
acusar o seu antigo mestre de desprezar a condição linguística da razão, quando
adverte a presença do metafórico nas páginas da Crítica, por exemplo, na ima-
gem do tribunal da razão, é para denunciar a impropriedade e falta de pertinên-
cia do uso dessa metáfora.
Foi Hans Vaihinger, num ensaio publicado na revista Kant-Studien do ano
de 1902, que propôs que se considerasse Kant não somente como um pensador
11
«metafísico» mas também como um pensador «metafórico». O ensaio comen-
11
«Dem Schlagwort, ‘Kant ein Metaphysiker’ kann man das gleichwertige gegenüberstel-
len: ‘Kant ein Metaphoriker’». H. Vaihinger, «Kant ein Metaphysiker?», Kant-Studien 7
(1902), 117. Na verdade, este ensaio constitui uma versão condensada (in Form eines
Auszugs) do ensaio com o mesmo título publicado em 1900 num Festschrift dedicado a
Sigwart (v. Bibliografia). A mais conhecida obra de Vaihinger, Die Philosophie des Als Ob,
só será publicada em 1911. Na sua publicação, vem seguida de um Anexo que constitui
209
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
tava uma recente obra de Friedrich Paulsen sobre Platão, na qual se sugeria a
comparação entre este filósofo grego e Kant enquanto metafísicos. Vaihinger
defende que a analogia entre os dois filósofos se deve estender também ao modo
como ambos expõem as respectivas filosofias: se o Platão metafísico utiliza mitos,
alegorias e imagens para expressar as suas ideias, também Kant expõe os princi-
pais tópicos da sua metafísica por meio de metáforas, ou sob o modo do «como
se» (als ob). O Professor de Halle, que já tinha dado provas de ser um minucioso
exegeta da Crítica da Razão Pura, fazia-se assim eco da perspectiva que o jovem
Nietszche havia exposto no seu ensaio de 1793 (publicado embora postuma-
mente em 1903), o qual se pode considerar como o verdadeiro «Discurso do
Método» da metafísica estética nietzscheana, sob o título Sobre a verdade e a
mentira num sentido extra-moral, onde, a certa altura, pergunta: «Que é, então, a
verdade?» –, ao que logo responde:
É um exército em movimento de metáforas, metonímias, antropomorfis-
mos, em suma, de relações humanas que foram realçadas, extrapoladas e
adornadas poética e retoricamente e que, após um prolongado uso, um
povo considera firmes, canónicas e vinculantes; as verdades são ilusões que
foram esquecidas como tais; metáforas que se tornaram gastas e perderam a
sua força sensível, moedas de que se apagou a efígie nelas cunhada e que já
12
não são mais consideradas como moedas, mas apenas como metal.
É neste mesmo ambiente que, por ocasião do primeiro centenário da morte
de Kant, Wilhelm Uhl, num dos primeiros e ainda hoje raros estudos acerca do
estilo do filósofo, ao mesmo tempo que constata o desinteresse geral dos críticos
e intérpretes por esse aspecto, escreve a dado passo: «O capítulo ‘Metáforas e
13
Imagens’ em Kant não foi ainda escrito.»
um importante (e talvez o primeiro sobre o tópico) ensaio sobre a relação entre Nietzs-
che e Kant, onde considera o autor de Also sprach Zarathustra como um genuíno kan-
tiano, o qual, por intermédio de Friedrich Lange (autor da Geschichte des Materialismus)
terá tido acesso ao significado da obra kantiana e que acolheu no seu pensamento, sem
ter tido plena consciência da sua dívida, precisamente aquele aspecto da filosofia kan-
tiana que se diz sob a fórmula do como se (als ob) e que o terá inspirado para a sua filo-
sofia da ficção e «vontade de ilusão». O mesmo Vaihinger havia publicado no ano de
1902 a obra que assinala a sua descoberta de Nietzsche como filósofo (Nietzsche als Phi-
losoph). Veja-se o meu ensaio «Hans Vaihinger: o Kantismo como um Ficcionalismo?»,
in: Leonel Ribeiro dos Santos et alli (org.), Kant: Posteridade e Actualidade, CFUL, Lisboa,
2006, pp.515-536. Veja-se, neste volume, o capítulo 5.
12
F. Nietzsche, Über Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinn, Sämtliche Werke, ed.
Colli-Montinari, W. de Gruyter, Berlin, Bd.I, 880-881.
13
«Das Kapitel ‘Metaphern und Bilder’ bei Kant ist noch nicht geschrieben.» W. Uhl,
«Wortschatz und Sprachgebrauch bei Kant», Zur Erinnerung an Immanuel Kant, Halle
a.S., 1904, 172.
210
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
211
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
plano teórico, ao dizer que a relação entre o conceptual e o intuitivo é uma rela-
ção «de todo a todo». As metáforas não são meros instrumentos passivos do
pensamento, por este usados de forma arbitrária e ocasional. Elas têm a sua
autonomia própria, são regidas pela mesma economia que rege a produção do
pensamento do filósofo e por isso lhe são conformes (zweckmässig).
O ensaio de Eucken, sem pretender fazer uma exposição completa da
metafórica kantiana, destaca alguns dos mais significativos núcleos metafóricos
que se replicam nos escritos de Kant e indica um bom número de pistas meto-
dológicas que ainda hoje merecem a atenção de quem pretenda levar por diante
a investigação por ele iniciada. Mas, apesar de toda a sua pertinência, as suges-
tões de Eucken, Uhl e Vaihinger não tiveram qualquer efeito nas interpretações
subsequentes da filosofia kantiana até ao final dos anos 60 do século XX, altura
em que alguns intérpretes timidamente começam a redescobrir e a assinalar o
interesse do tópico.
Não obstante, há que dizer que, muito antes que os citados intérpretes se
tivessem dado conta do interesse da metáfora na obra de Kant, foi o próprio filó-
sofo crítico que deixou notada nos seus escritos a relevância que poderia ter
uma investigação aprofundada sobre a condição metafórica da linguagem da
filosofia. Fá-lo de modo explícito em mais do que um lugar, sendo o mais óbvio
de todos um passo do parágrafo 59 da Crítica do Juízo, no contexto da aclaração
da noção de símbolo e da distinção entre esquema e símbolo, considerados
como hipotiposes ou modos de sensibilização (Versinnlichung) dos conceitos ou
ideias, fazendo-lhes corresponder uma intuição, seja de um modo directo ou
indirecto. Escreve Kant:
Todas as intuições que se submetem a conceitos a priori ou são esquemas
ou símbolos; os primeiros contêm exibições [Darstellungen] directas do
conceito; os segundos, exibições indirectas. Os primeiros fazem-no demons-
trativamente; os segundos por meio de uma analogia (para a qual também
se utilizam intuições empíricas) na qual o juízo joga um duplo papel: em
primeiro lugar aplica o conceito ao objecto de uma intuição sensível e,
então, em segundo lugar, aplica a regra da reflexão sobre aquela intuição a
um objecto totalmente diferente, do qual o primeiro objecto é apenas o
15
símbolo.
Em seguida, o filósofo ilustra esse procedimento do juízo reflexionante
com um exemplo concreto:
Deste modo, um Estado monárquico, quando se rege por leis internas do
povo, representa-se como um corpo animado, mas quando o rege uma
15
Kritik der Urteilskraft § 59, Ak V, 352.
212
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
16
Ibidem.
213
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17
Was heisst: sich im Denken orientieren?, Ak VIII, 133.
214
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
215
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
teoria, uma vez constituída, não dispensa as metáforas com que se construiu,
como se fossem andaimes, necessários porventura para a sua construção, mas
inúteis e dispensáveis uma vez concluída. Pelo contrário, elas são da sua essên-
cia e continuam a pertencer à sua peculiar constituição e significado especulati-
vos, sempre que estes tenham que ser explicitados. Caracterizei esta modalidade
de recíproca pertinência, correspondência e interacção que suponho existir
entre metáfora e teoria, dizendo que se trata de uma relação de mútua corres-
pondência ou de homologia, e não de sobredeterminação de uma pela outra,
como se, primeiramente, o filósofo tivesse construído a sua teoria e só depois
procurasse a linguagem adequada para a expor. Com isso, quis sublinhar, em
primeiro lugar, que um mesmo é o princípio que rege tanto a criação ou inven-
ção das metáforas como a produção do pensamento de um filósofo. E, em
segundo lugar, que há unidade entre o conteúdo e a forma, tomando aqui por
conteúdo o pensamento ou teoria e, por forma, a expressão linguístico-literária
propriamente dita. O como se transmite faz parte integrante do que é transmi-
tido. Quando apropriada, uma metáfora não só dá a ver na sua economia intui-
tiva toda a exposição do ponto de vista de um filósofo, como permite penetrar
na própria textura e conteúdo dos seus argumentos. A metáfora revela-se impreg-
nada do pensamento que ela mesma exprime. E por sua vez o pensamento leva
consigo a marca indelével da metáfora que o exibe. Existe entre pensamento e
metáfora aquela relação de espontânea consonância e mútua conformidade ou
conveniência que, na linguagem de Kant, é designada pelas expressões Zusam-
menstimmung e Zweckmässigkeit. Pensamento e metáfora de tal modo se fundem
que, por fim, não é possível decidir onde termina um e começa a outra. Se trata-
mos de seguir o pensamento, enfrentamo-nos com a metáfora que nos entra pelos
olhos em cada página; mas se seguimos o fio condutor da metáfora, ele leva-nos
sem violência ao mais íntimo do pensamento.
Num dos seus ensaios do ano de 1795, escrito no rescaldo da sua polémica
com Fichte, uma polémica que tivera por motivo e objecto precisamente a lingua-
gem da filosofia, Friedrich Schiller exprimiu com grande acerto aquilo que estou a
tentar dizer. Contra Fichte, o filósofo da educação estética do homem declara que,
se se pretende obter uma rigorosa convicção a partir de princípios, não basta expor
a verdade somente segundo o conteúdo, mas a prova da verdade deve encontrar-se
também na forma mesma da sua exposição. Segundo Schiller, na exposição das
ideias deve dar-se a acção recíproca (Wechselwirkung) e não a alternância (Abwech-
selung) entre imagem e conceito, e a exposição deve ser ao mesmo tempo livre,
espontânea e sensível, o que ele explicita nos seguintes termos:
Livre será a exposição se o entendimento, determinando por certo a cone-
xão das ideias, o faz com uma conformidade à lei tão oculta, que a imagina-
ção parece trabalhar aí de um modo completamente arbitrário... Sensível
216
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
19
F. Schiller, Über die notwendigen Grenzen beim Gebrauch schöner Formen, in: Sämtliche
Werke, Hanser Verlag, München, 2004, Bd.V, 674-675. Na verdade, esta liberdade e
aparente não intencionalidade, no jogo harmónico e livre da sensibilidade e do entendi-
mento nas artes do discurso, era já um requisito apontado por Kant (KU § 51, Ak V,
321). Sobre o referido conflito entre Schiller e Fichte, veja-se o meu ensaio: «O espírito
da letra. Sobre o conflito entre Schiller e Fichte a propósito da linguagem da Filosofia e
da natureza do estético», agora in: O espírito da letra. Ensaios de Hermenêutica da Moder-
nidade, INCM, Lisboa, 2007, pp.273-310
217
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
20
KrV B294, Ak III, 202.
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IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
metafísicas e do supra-sensível, quer isso seja feito com o intuito de alargar por
esse modo as suas legítimas possessões ou para confirmar os seus insuperáveis
limites.
Por sua vez, a metafórica arquitectónica exprime na filosofia de Kant ora a
intenção de fundamentação, ora a teoria da construção da razão, ora o modo de
ser do edifício ou sistema da razão na sua íntima estrutura e articulação dinâ-
mica. Mas diz também a dimensão existencial do conforto de quem habita a casa
da razão em paz e tranquilidade asseguradas pela civilidade do contrato originá-
rio que funda a possibilidade da humanidade. É esta a metáfora por excelência
do sistema e da cientificidade. Mas a noção kantiana de sistema resulta do cru-
zamento de pelo menos três campos metafóricos, que reciprocamente se saturam
e se convertem entre si – o arquitectónico, o orgânico e o cosmológico –, mas
não precisamente o geométrico ou lógico-dedutivo.
Já a metafórica do organismo permite dar razão de dois aspectos aparente-
mente antagónicos: a sistematicidade e a historicidade da razão, a estrutura e a
metamorfose ou teleologia da razão. A importância desta metafórica já fora assi-
nalada de passagem por vários intérpretes (H. Heimsoeth, G. Lehmann, A. Phi-
lonenko) e com diferente acentuação. A sua pregnância é de tal ordem que há
mesmo algum intérprete que chega a sugerir que não se trata apenas de uma
metáfora, mas que Kant teria realmente uma concepção biológica da razão. De
facto, a filosofia kantiana pode ler-se, inclusivamete ao nível da sua linguagem,
como a consagração de uma representação orgânico-biológica da razão e como o
certificado de óbito, por despotenciação semântica, da concepção mecânica da
racionalidade e da sua imagem emblemática, o relógio. Veja-se, a este propósito,
a interessantíssima desconstrução semântica desta imagem emblemática do
mecanicismo, levada a cabo no § 65 da Crítica do Juízo. Na história da filosofia
moderna, a filosofia de Kant assinala de facto a transição de uma representação
mecânica da ordem e da racionalidade para uma representação orgânica ou viva,
segundo a qual a razão se desenvolve desde dentro, como se de um organismo se
tratasse. Uma tal concepção encontra-se explicitada já no penúltimo capítulo da
primeira Crítica, onde, sob o título da «arquitectónica da razão pura», o filósofo
esclarece a sua ideia de ciência, de sistema, de filosofia. Por conseguinte, muito
antes que Kant, na sua terceira Crítica, viesse a legitimar a racionalidade do orgâ-
nico mediante o princípio transcendental da faculdade de julgar reflexionante, que
dá razão da teleologia ou conformidade a fins da natureza (Zweckmässigkeit der
Natur). Escreve Kant, no referido capítulo da obra de 1781:
Regidos pela razão, os nossos conhecimentos não podem constituir uma
rapsódia, mas devem formar um sistema... Por sistema entendo a unidade
dos diversos conhecimentos sob uma ideia. Esta é o conceito racional da
forma de um todo. Enquanto que mediante tal conceito se determina a
219
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21
KrV B 861.
22
KrV B 860-863.
220
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25
supra-sensível, tal é, porventura, a mensagem mais funda da filosofia kantiana.
No que respeita ao supra-sensível a filosofia kantiana move-se numa ambiência
crepuscular e de modo nenhum garante a evidência solar de uma visão ou reve-
lação intelectuais, mas apenas o seu reflexo indirecto na lei moral da razão prá-
26 27
tica. Não obstante isto, como já antes acontecera com Lambert, a óptica ofe-
rece a Kant sugestivas analogias para a sua empresa filosófica. Destaco algumas:
as imagens do «ponto de vista» e do «horizonte», que enquadram o peculiar
perspectivismo kantiano, as imagens do teatro e do espectáculo ou do jogo (jogo
do cosmos, da natureza, da história, da razão, da imaginação), o destacado papel
do espectador consciente de o ser, seja este o filósofo crítico que contempla,
aprecia e julga a luta dos metafísicos na arena da razão pura, seja o cidadão inte-
ressado em que a história humana revele algum sentido nos seus singulares
acontecimentos, quando os contempla de longe, por assim dizer desinteressa-
damente, e sem que seja ele mesmo actor, mas que interpreta como um sinal de
que o imperativo da razão prática revela algo da sua eficácia no mundo.
Mas, sem dúvida, é a metafórica jurídico-política que se revela a mais preg-
nante de todas e o seu verdadeiro alcance torna-se patente quando nos damos
conta de que toda a filosofia kantiana está inscrita no ambiente de uma com-
plexa alegoria da razão entendida como uma república. Isso é já perfeitamente
28
visível na própria Crítica da Razão Pura. O capítulo da Segunda Parte da obra –
25
Aspecto este que viria a ser confirmado, para Kant, também por Gabriele Tomasi (La
voce e lo sguardo. Metafore e funzioni della coscienza nella dottrina kantiana della virtù, ETS,
Pisa, 1999) e para todo o campo literário alemão contemporâneo de Kant, por Peter Utz,
Das Auge und das Ohr im Text. Literarische Sinneswahrnehmung in der Goethezeit, Fink,
München, 1990. Aplica-se aqui em toda a pertinência uma observação de Walter Benja-
min, que escrevia: «No interior de grandes espaços de tempo histórico altera-se junta-
mente com o modo de existência completo dos colectivos humanos também o modo e a
maneira da sua percepção sensorial. O modo e a maneira em que a percepção sensível
humana se organiza, o medium no qual ela acontece, é não apenas natural mas é também
historicamente condicionado.» (Innerhalb grosser geschichtlicher Zeiträume verändert
sich mit der gesamten Daseinsweise der menschlichen Kollektiva auch die Art und Weise
ihrer Sinneswahrnehmung. Die Art und Weise, in der die menschliche Sinneswahrnehmung
sich organisiert – das Medium, in dem sie erfolgt – ist nicht nur natürlich sondern auch
geschichtlich bedingt.). Walter Benjamin, Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen
Reproduzierbarkeit, Schriften I/2, 478 (apud Utz, ob.cit., 9).
26
Von einem neuerdings erhobenen vornehmen Ton in der Philosophie, Ak VIII, 398 ss.
27
J. H. Lambert dizia que a Metafísica requeria uma «Óptica transcendental» para refutar
o egoísmo e o idealismo (Über dier Methode die Metaphysik, Theologie und Moral richtiger
zu beweisen, ed. K. Boop, Berlin, 1918, reimpr. Vaduz, 1978, p. 20). Veja-se: M. J. do
Carmo Ferreira, «Lambert e Kant: o projecto de uma óptica transcendental», in: Idem,
Correspondência Lambert/Kant, Editorial Presença, Lisboa, 1988, pp.27-37.
28
Este aspecto foi posto em realce por F. Kaulbach nos seus vários estudos sobre Kant e
por Maximiliano Hernández Marcos, na sua dissertação La Critica de la razón pura como
222
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
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LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
humana de uma forma civilizada e que, além disso, é a única constituição polí-
tica que é compatível com a sua condição de seres humanos racionais, aquela,
por fim, na qual a liberdade é necessária condição de possibilidade não apenas
da dignidade humana, mas também do próprio exercício filosófico da razão.
Desta feita, a obra kantiana, até mesmo no modo de se construir e de se expor,
exibe a essencial, íntima e profunda solidariedade entre o são regime da razão e
o são regime dos assuntos humanos, entre a Filosofia e a Política.
Uma característica da metafórica kantiana é a sua grande plasticidade. Uma
mesma imagem adapta-se a diferentes domínios e funções. As metáforas são
como módulos plásticos do pensamento, graças aos quais ele se auto-inventa, se
estrutura e, por fim, se expõe. E um mesmo módulo pode ser recorrente na filo-
sofia teorética, na filosofia prática, na filosofia estética, na filosofia da religião e
da política. E, o que é digno de nota, isso ocorre espontaneamente, sem que em
nenhum momento tenhamos a impressão de que se trata de repetição mecânica
ou previsível de um esquema rígido ou do cumprimento de um plano previa-
mente fixado. As metáforas realizam e exprimem a organicidade e teleoformi-
dade da obra do filósofo. São a expressão do seu Bildungstrieb, entendido este
naquele preciso sentido que o mesmo Kant e também o naturalista seu contem-
porâneo Johann Friedrich Blumenbach lhe davam, no âmbito da respectiva teo-
ria da epigénese.
As metáforas kantianas são como outras tantas maneiras diferentes de dizer o
mesmo. Uma única constelação metafórica dá-nos oportunidade para percorrer a
totalidade da obra kantiana nos seus diferentes aspectos e temas. As metáforas são
como diferentes linguagens de que o filósofo se serve para comunicar a sua pecu-
liar experiência filosófica. Kant poderia dizer como o filósofo da «douta ignorân-
cia» que, se não é possível expressar a verdade adequadamente, então é útil e até
30
necessário multiplicar os modos de dizê-la. De facto, para Kant, as metáforas são
expressão da ideia da filosofia perfeita que nunca é possível captar e expressar de
todo adequadamente. Como o expõe o filósofo no penúltimo capítulo da sua pri-
meira Crítica sobre a arquitectónica da razão pura, a metáfora é como um
esquema ou, mais propriamente – como o explicitará depois o § 59 da Crítica do
Juízo –, é como um símbolo da ideia. Mas esses esquemas ou símbolos têm a sua
30
Nicolau de Cusa, Idiota, De Mente [1450], Opera omnia, Hamburgi, 1983, vol. V, 112:
«Nam quod dicendum est, convenienter exprimi nequit. Hinc multiplicatio sermonum
perutilis est.» Ideia semelhante encontramos em Ortega y Gasset, para quem «el len-
guaje no cubre nunca con exactitud la idea; por tanto.... toda expresión es metáfora...
Pues si lo que decimos no coincide exactamente con lo que pensamos, ha de entenderse
que meramente lo sugiere. Y ese decir que es sugerir es la metáfora.» Sobre la razón
histórica [1940], Madrid, 1983, pp.38-39. Mas, em contra-partida, também se pode
dizer, que só podemos pensar e entender o que (e na medida em que) conseguimos dizer
ou exprimir, e este é, assim me parece, o que pensa Kant a este propósito.
224
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL
matriz de origem e os seus germes na própria razão, nas leis de analogia que
31
regem o trabalho criador e inventivo da imaginação. É essa comum pertença
originária entre ideia e metáfora que faz com que as metáforas kantianas não ape-
nas se harmonizem umas com as outras criando uma rede semântica altamente
saturada, mas que também se possam traduzir umas nas outras. Assim se pode
constatar o entrelaçamento e a reciproca tradução das metáforas arquitectónica,
política e orgânica, ou o entrelaçamento da metáfora geográfico-espacial com a
político-jurídica, da cosmológica com a orgânica e a política, etc. O cosmos deixa-
-se pensar e descrever como se fosse um organismo; e assim, da mesma forma, é
como um organismo que se propõe a república dos cidadãos livres e iguais; o
Estado cosmopolita, por sua vez, é representado como se fosse o sistema dos sis-
temas das estrelas, e o sistema das estrelas como se fosse um Estado cosmopolita;
de modo similar, como vimos, a arquitectónica pode ser descrita numa linguagem
biológica, segundo a lógica própria de um organismo vivo, que cresce, se desen-
volve e se explicita desde dentro – per intus susceptionem.
32
Há pensadores cujas metáforas são tiradas dos elementos ou da natureza ;
mas em Kant a metafórica dos elementos naturais é muito escassa. O «solo», o
«mar», o «deserto», ou o «ar» indicam nele não tanto os próprios elementos
quanto o modo como são ocupados ou habitados pelo homem. As analogias
kantianas provêm sobretudo de domínios elaborados pelo trabalho e indústria
humanos: das ciências, que os modernos haviam redescoberto e a que deram
grande desenvolvimento (Astronomia, Cosmologia, Física, Óptica); ou de ciên-
cias que na época lutavam ainda pelo reconhecimento do seu estatuto de cienti-
ficidade (Geografia, Química, Biologia); de feitos ou empreendimentos nos quais
a época moderna se reconhecia, como é o caso das viagens marítimas de desco-
brimento do desconhecido; ou da experiência política: a determinação das fron-
teiras e circunscrição de jurisdição estatais, a instituição universal do direito, a
luta pela dominação, apropriação e legitimação da posse da terra. Mas, ao
mesmo tempo, trata-se de campos para os quais pendia o interesse pessoal e a
curiosidade científica de Kant. Em muitos desses campos (Cosmologia, Geogra-
fia, Biologia) não era o filósofo um mero utilizador de conhecimentos alheios,
mas ele próprio tinha feito avançar essas ciências com a sua decisiva contribui-
ção. A metafórica kantiana é, por isso, uma via não desprezável para se entender
também mais intimamente a personalidade e a obra de Kant.
31
KU § 49.
32
Gaston Bachelard deu-nos uma luminosa e compreensiva recensão dessa poética do
espírito, conduzida pela «imaginação material» e estruturada em torno das imagens do
«fogo», da «terra», da «água», do «ar», elementos que o não são já da objectividade cien-
tífica, mas que continuam a determinar poderosamente a nossa percepção, imaginação e
representação da realidade e do mundo, e não só a dos poetas, mas também a dos filósofos
e até a dos cientistas.
225
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
33
Ideia exposta já por Mersenne (e antes em Francis Bacon, na fórmula: «homo tantum
scit quantum potest»; e depois por Vico, na forma do «verum ipsum factum»), que Kant
exprime reiteradamente sob diferentes versões: «a razão vê apenas aquilo que ela produz
com os seus esboços» (Die Vernunft nur das einsieht, was sie selbst nach ihrem Entwurfe
hervorbringt., KrV B XIII, Ak III, 10); «Nós compreendemos apenas aquilo que nós pró-
prios podemos fazer» (Wir begreifen nur, was wir selbst machen können, Ak XVI, 345);
«só vemos completamente na medida em que nós próprios compreeendemos e estamos
em posição de propor mediante conceitos» (nur soviel sieht man vollständig ein, als man
nach Begriffen selbst machen und zu Stande bringen kann, KU, Ak V, 384).
226
Bibliografia
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dos Kants gesammelte Schriften, publicados, a partir de 1902, sucessivamente,
pela Preussische Akademie der Wissenschaften (vol. 1-22), pela Deutsche Aka-
demie der Wissenschaften (vol. 23) e pela Akademie der Wissenschften zu Göt-
tingen (vol. 24-29), e actualmente reeditados pela Editora Walter de Gruyter,
Berlin/New York. Todas as traduções apresentadas são da responsabilidade do
autor deste volume.
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LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS
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O catálogo Esfera do Caos, com as colecções
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