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Esta obra foi publicada com o apoio do

Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa


através do Projecto Estratégico PEst-OE/FIL/UI0310/2011
(Frontispício 1)
Título
Ideia de uma Heurística Transcendental:
Ensaios de Meta-Epistemologia Kantiana
Autor
Leonel Ribeiro dos Santos
Direitos reservados
© Esfera do Caos Editores e Autor
Design da capa
DesignGlow
Impressão e Acabamento
CEM Artes Gráficas
Depósito Legal
XXXX
ISBN
978-989-680-075-8

1ª Edição: Novembro de 2012

ESFERA DO CAOS EDITORES


Campo Grande
Apartado 52199
1721-501 Lisboa
esfera.do.caos@netvisao.pt
www.esferadocaos.pt
(Frontispício 2)
Índice

Prefácio 9

1 Analogia e conjectura no pensamento


cosmológico do jovem Kant 23

1. A configuração cosmológica do pensamento kantiano 23


2. Analogia e conjectura
no pensamento moderno anterior a Kant 25

3. Kant e a cosmologia renascentista e protomoderna 31


4. «Seguindo o fio condutor da analogia» 43
5. Dimensão heurística e estética
do pensamento analógico e conjecturante 48
6. Os pressupostos epistémicos
e metafísicos da cosmoteologia 52

2 Ideia de uma Heurística Transcendental, ou o contributo


de Kant para a ars inveniendi dos Modernos 59
1. Ars inveniendi: um programa filosófico dos Modernos 59

2. O contributo de Kant para a ars inveniendi dos Modernos 67


3. Génese e desenvolvimento da ideia
de uma Heurística Transcendental 71

4. Os princípios transcendentais da economia da razão:


homogeneidade, variedade, afinidade 77
5. As «máximas da faculdade de julgar» e a ideia
de uma «Técnica da Natureza» ou de «teleoformidade
da natureza» como «princípio heurístico» da faculdade
de julgar reflexionante 85
3 «Técnica da Natureza».
Reflexões em torno de um tópico kantiano 91
1. Kant, pensador da técnica 91

2. Génese e topografia do tema no texto da EE 99


3. Pressupostos e alcance especulativo
da ideia de «Técnica da Natureza» 119

4 Formação e significado epistémico-filosófico


do pensamento biológico de Kant 131
1. Da máquina ao organismo: Kant e a mudança
de paradigma no pensamento do século XVIII 131
2. A luta pela Vida na História Natural setecentista:
Preformacionistas e Epigenesistas 141

3. Momentos e aspectos da ocupação


de Kant com o problema biológico 146

5 As ficções da Razão. Hans Vaihinger


ou o Kantismo como ficcionalismo 177
1. Hans Vaihinger, um neokantiano? 177
2. A parte de Kant na “filosofia do como se” 186
3. Nietzsche, um kantiano sem o saber 194
4. Da ficção poética à poética da ficção 197

6 Metáforas da Razão e razão


das metáforas na filosofia de Kant 205
1. Iconófilos e iconoclastas 205
2. Incontornabilidade, relevância e pertinência da metáfora 209
3. A mútua correspondência entre metáfora e pensamento 215
4. Campos metafóricos e ambientes semânticos 217

Bibliografia 227
Prefácio

1
«Ó Kant, quem te salva dos Kantianos?»

Tendo em conta a imensa literatura sobre Kant, produzida ao longo dos mais de
dois séculos que já nos separam da morte do filósofo, será possível que ainda
haja tópicos que não tenham sido explorados – ou que, pelo menos, muito
pouco o tenham sido – pelas sucessivas gerações de hermeneutas que se têm
ocupado da obra e pensamento kantianos? E, se tal fosse o caso, não será que o
pôr em evidência tais tópicos poderia revelar dimensões, que, sendo havidas em
conta, obrigariam a reformular as vulgatas interpretativas que têm sido sucessi-
vamente propostas como constituindo a essência filosófica do Kantismo?
Os ensaios reunidos neste livro têm em comum o tratarem de assuntos rela-
tivamente pouco estudados da obra de Kant, pelo menos na perspectiva em que o
são aqui. Tal é o caso do pensamento cosmológico do jovem Kant, aqui conside-
rado não apenas como representando uma incursão aventureira do jovem filósofo
em matéria cosmológica, ainda à procura de si póprio e a tentar experimentar as
suas capacidades especulativas, seguindo os pressupostos da cosmologia newto-
niana, mas visto já como obra de um pensador autónomo, munido de pressupos-
tos e de problemas próprios e até de algumas intuições ousadas que determinarão
o desenvolvimento posterior da sua filosofia. É o caso, ainda, da ideia kantiana de
uma «Técnica da Natureza» e do seu valor heurístico para a pesquisa empírica da
natureza e da respectiva função sistemática para se entender a unidade da Crítica
do Juízo na sua proposta de juntar, sob o mesmo princípio transcendental, tanto a
apreciação dos produtos da arte humana como dos da «arte da natureza». É o
caso, por fim, da reapreciação da concepção kantiana do juízo ficcional, aqui
abordada pela evocação da obra A Filosofia do Como Se (Die Philosophie des Als
Ob), de Hans Vaihinger, na qual o Kantismo é interpretado como uma espécie de
ficcionalismo transcendental. Dois dos ensaios, em especial, o primeiro e o quarto,
dão uma ideia do modo como o filósofo trabalha duas das ciências do seu tempo,
paradigmática qualquer delas no seu género e estatuto, como o são a Físico-Cos-
mologia e a Biologia: a primeira, já constituída e em plena maturidade; a outra
ainda em processo de constituição. O contributo específico do filósofo não con-
1
«O Kant, wer rettet dich vor den Kantianern?», Hans Reichenbach, Brief an Arnold
Berliner, 22. April. 1921 (HR 015-49-26, Archive for Scientific Philosophy, Hillman
Library, University Pittsburgh).

9
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

siste em aduzir factos, observações ou experimentos, mas em enunciar princípios,


explicitar pressupostos, criar conceitos estratégicos: ele opera transformações
categoriais. O trabalho de Kant nessas ciências é verdadeiramente exemplar, na
medida em que revela como foi possível, graças à intervenção da filosofia, desen-
volver ainda, não só filosófica como também cientificamente, uma ciência que se
tinha já por plenamente consolidada e estabelecida, como era a Cosmologia, e
como, por outro lado, foi possível estimular, com a indagação filosófica, uma área
do saber (a História Natural, a Biologia) que lutava ainda penosamente pela deli-
mitação do seu objecto e pela clarificação do seu peculiar estatuto epistémico.
Mas, ao mesmo tempo – e isso não é menos importante –, podemos reconhecer
como a ocupação de Kant com esses assuntos carrega para o interior da sua pró-
pria filosofia não só os problemas dessas ciências como também a respectiva
forma, modelando de modo decisivo a linguagem e os campos semânticos daquela.
Enfim, o sexto ensaio constitui uma síntese reavaliativa da proposta de interpreta-
ção da filosofia kantiana que encetei há mais de três décadas e que expus na
minha dissertação de Doutoramento, apresentada à Universidade de Lisboa em
2
1989, republicada em 1994 e há muito esgotada. Essa proposta liga-se intima-
mente com a ideia central deste volume, pois a metafórica kantiana tem uma emi-
nente função heurística.
Em todos estes ensaios é trazido à evidência um fio condutor do pensa-
mento kantiano que o revela como uma Heurística Transcendental, isto é, não
apenas como um pensamento preocupado em descrever a constituição da
maquinaria transcendental das faculdades do conhecimento humano nos seus
respectivos elementos, mas empenhado em mostrar como funciona essa maqui-
naria no conhecimento efectivo da natureza, pondo-se em destaque não só o
Kant gnoseólogo ou teórico do conhecimento, mas também o Kant epistemó-
logo, ocupado mesmo com tópicos de meta-epistemologia, indagando e inventa-
riando os pressupostos da investigação, da invenção e da descoberta científicas,
a que reconheceu irrecusável pertinência e que foi nomeando na sua função ora
como princípios regulativos, como princípios arquitectónicos, ou como máxi-
mas de economia imanente da própria razão. Tal o tema de que se ocupa expres-
samente o segundo capítulo deste livro, onde se propõe o desenvolvimento de
uma ideia que – estando verdadeiramente em acção já desde os primeiros ensaios
kantianos, como se mostra no primeiro capítulo deste volume –, se anuncia pela
primeira vez expressamente como um problema filosófico no último parágrafo
da Dissertação de 1770 e será depois objecto de sucessivas retomações em elabo-
rações e enquadramentos sistemáticos diversos, seja na Crítica da Razão Pura,
seja na Crítica do Juízo.
2
Metáforas da Razão ou economia poética do pensar kantiano, Fundação Calouste Gulbenkian/
JNICT, Lisboa, 1994 (em edição académica: FLUL, Lisboa, 1989).

10
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

Embora, como foi dito, este aspecto do pensamento kantiano – o de uma


Heurística Transcendental – não tenha sido ainda objecto de um explícito estudo
aprofundado que o pusesse em toda a evidência e destacasse a sua importância,
alguns intérpretes houve que se aperceberam dele com maior ou menor intensi-
dade e que devo aqui referir. É o caso, nomeadamente, de alguns hermeneutas
italianos da terceira Crítica, que foram particularmente sensíveis aos aspectos
epistemológicos da noção kantiana de teleoformidade da natureza (Zweckmäs-
sigkeit der Natur) e ao papel atribuído por Kant ao juízo teleológico na investiga-
ção empírica da natureza e, da mesma forma, às relações entre epistemologia,
3
teleologia e estética: destaca-se, no primeiro caso, Silvestro Marcucci, no segundo,
4
Emilio Garroni e, embora não se considere propriamente como um académico
kantiano, Umberto Eco, no seu muito peculiar estilo, proporcionou um dos
ensaios que melhor põem em toda a evidência a fecunda e pertinente dimensão
heurística do programa filosófico kantiano em aplicação num caso concreto
5
imaginário: refiro--me ao seu engenhoso «Kant e o ornitorrinco». Também
Jean-François Lyotard, nas suas Lições sobre a Analítica do Sublime, destaca
amiúde o papel heurístico do princípio de reflexão, presente em toda a filosofia
6
crítica, mas trazido expressamente a primeiro plano na Crítica do Juízo. Mas há
dois intérpretes de Kant que tive a sorte de conhecer pessoalmente e de com eles
partilhar mais de uma vez as minhas próprias ideias e cuja interpretação da filo-
sofia kantiana se pode considerar também como marcadamente heurística. São
eles, Fernando Gil e Zeljko Loparic.

Em Portugal, foi Fernando Gil quem, em vários dos seus ensaios, mesmo
não a nomeando enquanto tal, praticou uma leitura predominantemente episté-
mico-heurística da filosofia kantiana, pondo em destaque a análise dos pressu-
postos e dos processos de investigação, a função atribuída aos exemplos, a teoria
transcendental da prova e, em geral, sublinhando o papel da imaginação e do
seu princípio de afinidade no agenciamento do trabalho da razão, pela atenção
dada ao Apêndice à Dialéctica Transcendental da Crítica da Razão Pura e aos

3
Veja-se sobretudo a sua obra Aspetti epistemologici della finalità in Kant, Firenze, 1972.
Outros estudos vão citados no cap. 2, nota 26.
4
Veja-se: Estetica ed epistemologia. Riflessioni sulla «Critica del Giudizio», Roma, 1976.
5
U. Eco, Kant e l’ornitorinco, Bompiani, Milano, 1997. Ver adiante, p. 69, nota 26. Tam-
bém na recente interpretação da Crítica do Juízo como «lógica do irracional», proposta
por Marco Sgarbi: La logica dell’irrazionale. Studio sul significato e sui problemi della Kritik
der Urteilskraft, Mimesis, Milano, 2010.
6
Jean-François Lyotard, Leçons sur l’Analytique du Sublime, Galilée, Paris, 1991, pp.41-
48 e passim : «la réflexion est aussi le laboratoire (subjectif) de toutes les objectivités.
Sous son aspect heuristique, la réflexion semble donc être le nerf de la pensée critique
en tant que telle.» (p.41).

11
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

7
princípios da economia da razão aí enunciados. Alguns desses ensaios tiveram
8
por tema tópicos kantianos. Mas, mesmo quando não era o caso, Kant era um
assíduo e muito especial convidado nas sempre muito sugestivas reflexões gilia-
nas, mesmo se o pensador português não deixava de preferir ao programa kan-
tiano, que denomina de uma inteligibilidade objectal, o programa leibniziano de
uma inteligibilidade operatória, hipoteticista e mais declaradamente heurística,
9
ou mesmo o programa morfológico de Goethe. Sem poder proceder aqui a uma
7
Mimésis e Negação, INCM, Lisboa, 1984, passim; Modos da evidência, INCM, Lisboa, 1998,
pp.108-120, 325; Acentos, INCM, Lisboa, 2005, passim.
8
Refiro alguns: «Um caso de inovação conceptual. A formação da teoria kantiana do espaço»
(1746-1768)», in: Cultura, História e Filosofia, INIC/CHCUNL, Lisboa, vol, II, 1983, pp.1-
-23; «Kant e a controvérsia», Provas, INCM, Lisboa, 1986, pp.157-170; «De la typique
de la raison pratique ao schématisme de la communauté», Archives de Philosophie 64,
2001, pp.57-70; «Exemplo e pedra-de-toque em Kant», Análise, 15 (1990), pp.3-36;
«Inteligibilidade estrutural, inteligibilidade expressiva», in: Leonel Ribeiro dos Santos et
alii (coord.), Kant: Posteridade e Actualidade, CFUL, Lisboa, 2006, pp.77-84). Estes ensaios
seriam depois absorvidos, por vezes reelaborados, nos vários livros de Fernando Gil
publicados pela INCM.
9
No seu livro Modos da Evidência (INCM, Lisboa, 1998, pp.119 ss), Fernando Gil contra-
põe a «inteligibilidade operatória» de Leibniz à «inteligibilidade objectal» de Kant, nestes
termos: «…as categorias kantianas contribuem literalmente para constituir a experiência
[…], têm uma vocação objectivista, no sentido em que se dão como tarefa fornecer os
conceitos susceptíveis de subsumir – fundando-os – os elementos da experiência crítica…
Leibniz não procura uma inteligência imediata dos objectos […]. Leibniz prefere procurar
a inteligibilidade directa das operações de compreensão. […] Leibniz é … o filósofo dos
princípios e das hipóteses, que ele não distingue dos sistemas. […] Os princípios cha-
mados arquitectónicos… são a peça mestra da filosofia do conhecimento de Leibniz.
Eles situam-se entre o transcendental (são condições de possibilidade de organização da
experiência) e o empírico. Sem fazer o objecto de uma «dedução», impõem-se contudo
com uma pregnância que a sua força explicativa justifica e reforça. São ao mesmo tempo
factores de inteligibilidade e regras heurísticas capazes de inspirar um conhecimento
efectivo dos objectos… Se Kant é o filósofo do fundamento, dos elementos e do método
transcendental, Leibniz é o dos princípios, das hipóteses, das heurísticas.» Veja-se, nou-
tro lugar, a insistência nesta oposição paradigmática entre as duas concepções da activi-
dade filosófica, a leibnizana, como actividade hipotética, e a kantiana, como «busca de
um fundamento absoluto» (Mediações, INCM, Lisboa, 2001, pp.303 ss). Num seu ensaio,
intitulado «Inteligibilidade estrutural, inteligibilidade expressiva», em que aborda e dis-
cute expressamente o programa kantiano exposto na Crítica da Faculdade de Julgar, Fer-
nando Gil aponta a Kant a limitação de ter «pura e simplesmente ignorado tanto a inte-
ligibilidade estrutural como a inteligibilidade expressiva», e de ter deixado fora da sua
atenção a importância da causa formal, dando em contrapartida demasiada importância
à causa final e à finalidade. Nesse ensaio, contrapõe o programa da teleologia kantiana
ao programa «afinitário» estrutural-expressionista de Leibniz e ao morfológico de Goe-
the, sugerindo que Kant teria podido aproveitar melhor a lição de Leibniz. Escreve Gil:
«É minha hipótese que uma inteligibilidade estrutural-expressiva pouparia a Kant emba-
raços que derivam da finalidade, nomeadamente dever recorrer, pesadamente e sem
excepção a esta última sempre que o «mecânico» se revela insatisfatório. Há finalidade a

12
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

discussão explícita da leitura giliana de Kant, parece-me contudo poder dizer


que os ensaios que proponho neste volume lhe são uma indirecta resposta e,
simultaneamente, a prova de que, no fundo, em muitos aspectos do seu pensa-
mento, Kant está muito mais próximo de Leibniz do que o pensava Fernando
Gil, não havendo por isso necessidade de, como o chegou a sugerir o distinto
filósofo português, «pedir a Kant que não seja Kant murmurando-lhe ao ouvido
10
que seria melhor que tivesse sido Leibniz.»

Zeljko Loparic é, que eu saiba, o único que ao tema dedicou um ensaio


explícito e precisamente com o título «Heurística kantiana», o qual se inscreve
no contexto da sua interpretação da filosofia de Kant como sendo gerida por um
programa que veio a designar por «Semântica Transcendental». Deve ser feita
aqui uma particular menção desta original interpretação da filosofia kantiana
proposta pelo distinto Professor da Universidade Estadual de Campinas. Conheci
o Professor Loparic pessoalmente num Colóquio da Associação Portuguesa de
Fenomenologia, realizado na Universidade de Coimbra, em Março de 2005, e
nada tinha lido dele até essa data, embora já tivesse dele conhecimento através
de um colega e amigo comum por quem igualmente sabia que uma sua discípula
havia trabalhado, sob a sua orientação, o meu livro Metáforas da Razão ou eco-
nomia poética do pensar kantiano, como base para a sua dissertação de Mestrado
11
apresentada na Unicamp. Tive, depois, desde Maio de 2006, a possibilidade de
o encontrar em vários colóquios kantianos, realizados na sua própria Universi-
dade para os quais fui convidado, ou noutras universidades brasileiras, e mesmo
fora do Brasil: em Verona e Pádua, em Janeiro de 2008, e em Lisboa, em Setem-
bro de 2009. Várias vezes, trocando reflexões, chegámos à conclusão de que as
nossas perspectivas sobre a filosofia de Kant têm qualquer coisa de afim e apon-

mais na Crítica da Faculdade de Julgar. Kant dispunha de elementos – leibnizianos – para


que o sentido que desponta nas ‘coisas da natureza’ não o devesse obrigar a pressupor
maciçamente uma teleologia em última instância condenada a desembocar no supra-
sensível. A analogia e as suas leis (CFJ § 49) remetem para a expressão e não fatalmente
para a finalidade.» (Acentos, pp.157-158). Noutro passo do mesmo ensaio, Gil reconhece
que há na terceira Crítica de Kant elementos que apontam no sentido da morfologia
goethiana, e destaca o carácter antecipador da idea de uma matriz originária (Urmutter)
de todas as formas, exposta na «página admirável» que é o § 80 da CFJ, os quais todavia
teriam ficado reféns duma visão demasiado impregnada pelo pressuposto da finalidade:
«O programa morfológico ressoa … nas articulações nucleares da Crítica da Faculdade de
Julgar… Observe-se de passagem que alguns exemplos preferidos de Kant são também
os de Goethe… as ‘belas formas’… pelas quais se exprime a ‘linguagem cifrada da natu-
reza’. A morfologia é consonante com a ideia de sistema.» (Acentos, p.159).
10
Acentos, p.158.
11
Suze de Oliveira Piza, As imagens de Kant: sensificação de conceitos e ideias. Acerca do
esquematismo, simbolização e metáfora na filosofia kantiana, Departamento de Filosofia,
Unicamp, Campinas, 2003.

13
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

tam no mesmo sentido, embora o Professor Loparic parta de uma perspectiva de


base essencialmente epistemológica, inspirada no neopositivismo de Carnap e de
Mach, enquanto eu parto da exploração de uma ideia que na minha dissertação
de doutoramento designei por «poética transcendental» ou «economia poética
da razão», dando ao termo «poética» aquele sentido que a palavra tinha em
Aristóteles, ou seja, o de uma explicitação dos pressupostos e estratégias da
construção, da feitura ou elaboração e da exposição dessa peculiar espécie de
metanarrativa que é o discurso racional da filosofia, cuja confecção e estrutura-
ção, porém, não é satisfatoriamente explicada pelas meras leis da lógica ou pelas
seguras regras de um método formal, nem pelos procedimentos e protocolos de
um programa de investigação.
Ao interpretar a filosofia crítica de Kant como um programa de Semântica
Transcendental, o Professor Loparic tem em vista, sobretudo e em primeiro
lugar, a releitura epistemológica da Analítica da primeira Crítica de Kant, reco-
nhecendo nesta parte da obra kantiana o núcleo do programa da filosofia trans-
cendental, lendo-a como uma semântica a priori para formular e resolver todos
os problemas que ocorram na filosofia e também para equacionar a solubilidade
dos problemas das ciências empíricas, ao mesmo tempo que mostra como o uso
dialéctico da razão nas questões da metafísica resulta de uma semântica errónea,
porque afectada de realismo metafísico, de que decorre a insolubilidade dos
problemas filosóficos. É neste contexto que se inscreve a sua ideia de uma «Heu-
12
rística kantiana», que mais directamente expôs num ensaio publicado em 1983 ,
no qual de resto expõe a ideia central que presidira à sua tese de doutoramento,
defendida em 1982 na Universidade de Lovaina, sob o título Scientific Problem-
-Solving in Kant and Mach, cuja primeira parte – Kant’s Theory of Problem-Solving
– viria a ser reescrita, traduzida ao português e publicada sob o título A Semân-
tica Transcendental de Kant (CLE, Campinas, 2000, 3ª ed. 2005).

Pela minha parte, empreendi desde muito cedo a leitura e interpretação do


pensamento kantiano partindo sobretudo dos problemas da terceira Crítica e,
em particular, dos que se revelam nas Introduções a esta obra, do princípio de
«teleoformidade da natureza» (Zweckmässigkeit der Natur), ou de «Técnica da
Natureza» (Technik der Natur), da analogia entre a natureza e a arte, das relações
entre Estética e Teleologia, ou entre o juízo estético e o juízo teleológico, tópicos
de que me ocupei intensa e longamente, desde o ano de 1976, com o propósito
de escrever uma dissertação de doutoramento que tinha por objecto os proble-
mas centrais e a unidade arquitectónica dessa obra, as noções de teleoformidade,
de organismo e de sistema, um projecto que viria a abandonar no Verão de
1983, inflectindo então para uma investigação acerca da intrincada rede e

12
Cadernos de História e Filosofia da Ciência, n. 5, 1983, pp.73-89.

14
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

estrutura de metáforas e de analogias que sustentam e definem os contextos


semânticos da obra kantiana. Mas foi a familiaridade com os problemas da ter-
ceira Crítica (em particular, com os seus §§ 49 e 59, respectivamente, sobre a
ideia estética e sobre o símbolo) que me levou a dar cada vez mais atenção aos
processos poéticos (de construção) e retóricos (de exposição) da filosofia em
geral e da própria obra e filosofia kantiana, do que resultaria a dissertação
Metáforas da Razão ou economia poética do pensar kantiano, redigida entre Setem-
bro de 1983 e Agosto de 1989 e neste mesmo ano apresentada como dissertação
de doutoramento na Universidade de Lisboa. Nesta investigação eu não fiz mais
do que tomar como tarefa aquela passagem que se lê no § 59 da Crítica do Juízo,
onde Kant, referindo-se ao esquematismo simbólico, em que se traduz a opera-
ção do juízo reflexionante na qual este procede por meio de analogias, diz que
«esta operação foi até ao presente ainda pouco analisada, por muito que ela
13
mereça uma investigação mais aprofundada» , mas ele próprio não chega toda-
via a cumprir essa tarefa. Desde muito cedo presidiu às minhas investigações
aquela tese, formulada por três jovens idealistas, leitores da Crítica do Juízo de
Kant e das Cartas sobre a educação estética do homem de Schiller, os quais, num
comum manifesto filosófico do ano 1796, declaravam que «o supremo acto da
14
razão é um acto estético» e que «a filosofia do espírito é uma filosofia estética»,
ou também aquela afirmação de Novalis, segundo a qual «a filosofia é o poema
15
do entendimento». Foram estes leitores de Kant do final da última década do
século XVIII que desde o início me inspiraram, e não os programas do neopositi-
vismo de Carnap ou de Mach, dos quais privilegiadamente parte o Professor
Loparic para a sua abordagem semântica do programa filosófico da filosofia crí-
tica, desenvolvendo assim uma via original de leitura do Kantismo de cuja
fecundidade são inequívoca demonstração não só os seus vários e sempre esti-
mulantes ensaios sobre a filosofia de Kant, como também o número e a quali-
dade dos trabalhos de muitos jovens kantianos brasileiros, cuja pesquisa tem
sido estimulada e orientada por esse reconhecido e consagrado Mestre. Embora
eu reconheça e muito aprecie o valor, a originalidade e a fecundidade desse pro-

13
«Dies Geschäft ist bis jetzt noch wenig auseinandergesetzt worden, so sehr es auch
eine tiefere Untersuchung verdient.» Kritik der Urteilskraft, Ak V, 352.
14
«Der höchste Akt der Vernunft... ein ästhetischer Akt ist. [...] Die Philosophie des
Geistes ist eine ästhetische Philosophie.» Das Älteste Systemmprogramm des Deutschen
Idealismus, in: Friedrich Hölderlin, Sämtliche Werke und Briefe, Hanser, München, Bd. I,
p. 918. O fragmentário manuscrito do documento foi redigido pela mão de Hegel, mas o
manifesto é atribuído igualmente a Schelling e a Hölderlin, na época estudantes de Teo-
logia e colegas na Stiftung de Tübingen.
15
«Das Poëm des Verstandes ist Philosophie – […] Einheit des Verstandes und der Einbil-
dungskraft.» Novalis, Schriften, WBG, Darmstadt, 1981, Bd. 2: Das philosophische Werk I,
531.

15
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

grama interpretativo, não é, porém, com ele que me identifico pessoalmente.


Todavia, é minha convicção que, da mesma forma que, partindo da ideia de uma
poiese da razão e orientado por uma concepção preferentemente estético-retó-
rica da racionalidade filosófica, eu fui levado a redimensionar, como aqui o faço,
também os aspectos da meta-epistemologia kantiana, assim creio que um pro-
grama de «Semântica Transcendental», desenvolvido até ao fim e com o respeito
pela natural especificidade dos objectos da sua análise e do corpus textual extenso
e vário em que ficou registado o pensamento kantiano, há-de ter de enfrentar,
por fim, temas, objectos e domínios que não estava previsto que caíssem no
estrito programa neopositivista de uma teoria do conhecimento que pudesse
considerar-se com direito a uma estrita solução ou certificação científica, e nem
sequer são directamente visados no programa, desenvolvido por Kant na pri-
meira Crítica, de uma lógica transcendental entendida como semântica a priori e
ao serviço de uma teoria de resolução de problemas científicos da Física ou da
Geometria, mas relevam de outros aspectos da filosofia kantiana, que, todavia,
igualmente reivindicam o direito, se não a ter uma pretensão de verdade com
estatuto de objectividade, pelo menos a ter um sentido ainda racional, mas de
uma racionalidade mais abrangente, como são a ética, a estética, a filosofia da
religião, a filosofia da história, a filosofia política e do direito e, em suma, a pró-
pria teleologia e até a metafísica. Efectivamente, esse trabalho tem vindo a ser
feito, mais recentemente, não só pelo próprio Professor Loparic, como por
alguns dos seus mais talentosos discípulos, explicitando a fecundidade da pers-
pectiva semântica noutros campos da filosofia kantiana aparentemente a ela
refractários, mas, ao mesmo tempo, assim ampliando a própria noção e con-
16
cepção originais de Semântica Transcendental.
O ponto onde os nossos tentames de interpretação da filosofia kantiana se
encontram é o da «sensificação» (Versinnlichung) dos conceitos e das ideias.
Como dar um conteúdo ou referente sensível – e, com isso, um significado (Sinn
/ Bedeutung) – aos conceitos ou às ideias? Problema a que Kant responde com
diferentes estratégias: o esquematismo (por aplicação instrumental ou determi-
nação), o simbolismo (mediante um procedimento analógico ou um esquema-
tismo de segundo grau) e a ideia estética, mediante o jogo criador e livre, mas

16
Veja-se a reavaliação do programa da semântica transcendental feita por Joãosinho
Beckenkamp (“Conceito e significado: Sobre a leitura semântica da filosofia transcen-
dental de Kant”) in: Róbson Ramos dos Reis e Andréa Faggion (orgs.), Um Filósofo e a
Multiplicidade de Dizeres, Homenagem aos 70 anos de vida e 40 de Brasil de Zeljko Loparic,
CLE, Unicamp, Campinas, 2010, pp.179-190. Note-se que há pelo menos um outro
programa de interpretação “semântica” da filosofia de Kant, que se inspira, porém, na
filosofia analítica da linguagem, o de Wolfram Hogrebe, Kant und das Problem einer
Transzendentalen Semantik, Freiburg/München, 1974. Veja-se: J. A. Coffa, The Semantic
Tradition from Kant to Carnap, Cambridge U. P., Cambridge, 1993.

16
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

pertinente e com sentido, da imaginação. Em todos esses casos, porém, Kant


pressupõe um trabalho peculiar e qualificado da imaginação, enquanto poder de
produzir, de descobrir ou de inventar afinidades entre representações, seja na
relação com o entendimento (encontrando imagens para os conceitos) ou com a
razão (inventando símbolos ou ideias estéticas para as ideias racionais), mas que
supõe igualmente a intervenção do juízo reflexionante para apreciar o teor de
pertinência da afinidade – da analogia – produzida ou inventada. Se, no esque-
matismo, o que se obtém é um esquema produzido pela imaginação para o ser-
viço do entendimento, que permite a aplicação (Anwendung) do conceito à
intuição, já no símbolo e na ideia estética, o que se obtém é apenas uma exposi-
ção ou exibição (Darstellung) da ideia numa representação sensível criada pela
imaginação no seu jogo livre, mas segundo leis de analogia, a qual revela alguma
afinidade ou conveniência com a ideia, mas nem com isso limita a ideia nem por
esta ou por algum conceito é ela mesma limitada, ficando tão livre a ideia
quanto a imagem, a qual, por isso, sempre continuará a «dar muito que pensar».
O Prof. Loparic parece partir de uma concepção do entendimento (ou
faculdade de julgar) como tendencialmente determinante. Eu parto preferente-
mente da faculdade de julgar reflexionante. Será apenas uma questão de ênfase,
de acentuação de aspectos, ou uma real diferença matricial de inspiração? Em
qualquer caso, o resultado é diferente, e aqui a ordem dos factores altera o pro-
duto. A luz que se recebe não é a mesma se se lê a terceira Crítica apenas a partir
da primeira, ou se se lê a primeira Crítica também a partir da terceira, e vice-
-versa, rebatendo uma sobre a outra. E é isso o que me parece exigir uma visão
verdadeiramente teleológica do acto filosófico e dos sistemas filosóficos, tal
como é concebida e exposta pelo próprio Kant, com a linguagem do desenvol-
vimento de um organismo vivo, nomeadamente, no capítulo da «Arquitectónica
da Razão Pura», nas últimas páginas da Crítica da Razão Pura: só a partir do
desenvolvimento do todo, as partes recebem também a sua significação e a sua
conformação; só da ideia que finalmente se revela ao pensamento, o germe que a
tornou possível e por onde ela começa se deixa revelar também na sua verda-
17
deira natureza e feição. Seja como for, na filosofia de Kant, qualquer que seja o
ponto por onde comecemos a ocupar-nos dela, se lhe formos fiéis e seguirmos o
exigente apelo ao pensamento que ela nos dirige, somos com o tempo conduzi-
dos a todos os seus lugares mais relevantes e até aos mais recônditos.

Mas a afinidade entre as investigações do Prof. Zeljko Loparic e as minhas


próprias manifesta-se ainda num outro ponto, que também tem que ver com a
inspiração metodológica e temática do presente livro. Paralelamente à interpre-
tação de Kant, que constitui o núcleo central de nossas investigações, um e

17
Kritik der reinen Vernunft, B 862-865; Ak III, 540-541.

17
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

outro desenvolvemos, com total independência e mútuo desconhecimento,


interpretações da filosofia cartesiana que igualmente revelam algumas conso-
nâncias, quanto mais não seja pela comum recusa da leitura estruturalista de
Martial Guéroult de um «Descartes selon l’ordre des raisons». No seu livro Des-
cartes heurístico, obra que tive o prazer de conhecer e ler em final de Maio de
2006, por ocasião de um Colóquio Kantiano organizado pela Secção de Campi-
nas da Sociedade Kant Brasileira, no qual participei por convite do próprio Pro-
fessor Loparic, o distinto filósofo da Unicamp contrapõe ao conhecido intérprete
estruturalista francês do cartesianismo um «Descartes segundo a ordem dos
problemas», enquanto eu, num estudo que foi originariamente produzido em
Maio de 1990 para as minhas provas complementares de doutoramento e depois
publicado sob a forma de vários ensaios autónomos ao longo da década de 90,
antes de vir a ser editado em volume, sob o título Retórica da evidência ou Des-
cartes segundo a ordem das imagens (Editorial Quarteto, Coimbra, 2001), propus
um «Descartes segundo a ordem das imagens», destacando, não só em contraste
com a leitura guéroultiana mas também contra outras leituras de Descartes,
nomeadamente a foucaultiana, o amplo recurso à analogia por parte do filósofo
do cogito, destacando os aspectos poético-construtivos, heurísticos e retóricos da
obra cartesiana, aquilo a que chamei a «retórica da evidência» e a «poética da
invenção científica», dadas sob o modo da ficção e da fábula, pondo em desta-
que os pressupostos de tal procedimento inventivo, em especial o recurso às
imagens, que rege tanto a prática científica como a meditação filosófica e metafí-
sica do filósofo francês. No fundo, ensaiando a propósito de Descartes a mesma
estratégia interpretativa que já praticara a propósito de Kant, na dissertação de
doutoramento, e também a propósito de Hobbes, num primicial estudo sobre as
18
«metáforas do Estado».
Também neste caso, partindo embora de pressupostos diversos e visando
programas filosóficos muito diferentes na sua inspiração e também nos seus
resultados, as nossas interpretações de Descartes acabam por encontrar-se na
recuperação de muitos aspectos da obra e pensamento do filósofo francês que
ainda não haviam sido postos em evidência, mas que cada vez mais se vêm
impondo também ao reconhecimento de outros intérpretes recentes da filosofia
19
cartesiana.

18
«Hobbes e as metáforas do Estado», publicado em Dinâmica do Pensar. Homenagem a
Oswaldo Market, Departamento de Filosofia da FLUL, Lisboa, 1991, pp.217-242, e reto-
mado no meu livro O espírito da letra. Ensaios de hermenêutica da Modernidade, INCM,
Lisboa, 2007, pp.207-243. A sua primeira redacção é, porém, de 1977, tendo sido depois
apresentado num colóquio sobre «Analogia e Dialéctica», realizado na Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa, em Abril de 1986.
19
Veja-se, como expressivo exemplo, a obra recente de Claus Zittel, Theatrum philosophicum.
Descartes und die Rolle ästhetischer Formen in der Wissenschaft, Akademie Verlag, Berlin, 2009.

18
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

Em suma: sem prejuízo da recíproca convergência de nossas perspectivas


em muitos aspectos, o sentido que neste livro dou à expressão «Heurística
Transcendental» é diferente daquele que o Prof. Loparic dá à sua noção de
«Heurística», quando a aplica seja ao programa filosófico cartesiano, seja à filo-
sofia de Kant, entendendo com isso, neste último caso, o cerne do seu original
programa de uma «Semântica Transcendental». Quando eu uso aquela expres-
são, refiro-a, antes de mais, ao sentido abrangente que ela tinha no contexto do
programa da ars inveniendi dos Modernos, não ao sentido que ela possa ter, ou
veio a ter, nos programas da epistemologia de inspiração neopositivista do
século XX.

Seja uma breve nota sobre as circunstâncias de produção e de publicação


dos ensaios reunidos neste volume. Quase todos eles foram apresentados, em
versões próximas das que aqui são publicadas, em eventos sobre a filosofia kan-
tiana realizados no Brasil: o primeiro, «Analogia e conjectura no pensamento
cosmológico do jovem Kant», num Colóquio Kantiano em Campinas (Maio de
2008); o quinto – «As ficções da razão: Hans Vaihinger e o Kantismo como fic-
cionalismo» – e o terceiro – «‘Técnica da Natureza’. Reflexões em torno de um
tópico kantiano», em Colóquios Kantianos de Marília (respectivamente em 2006
e 2008). Alguns deles foram publicados em revistas filosóficas ou em colectâ-
neas editadas no Brasil: o primeiro, na revista electrónica Kant e-prints (2008) da
Sociedade Kant Brasileira – Secção de Campinas; o segundo foi apresentado,
numa versão francesa, no I Colóquio Kant trinacional (Itália, Brasil e Portugal),
realizado em Verona e Pádua de 22 a 26 de Janeiro de 2008, e publicado nessa
versão também na revista electrónica Kant e-Prints (2009). Aqui oferece-se uma
versão portuguesa, posteriormente publicada no volume Razão e Liberdade.
Homenagem a Manuel José do Carmo Ferreira (CFUL, Lisboa, 2009, vol.II, pp.
1079-1111). É dele que toma o título todo este livro, título que corresponde ao
da sua primeira e sumária apresentação, num seminário sobre «Método e Méto-
dos em Filosofia», promovido pela Revista Filosófica de Coimbra, realizado na
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (Abril de 2006). O terceiro
ensaio foi publicado em Studia Kantiana, revista da Sociedade Kant Brasileira (9,
2009); o quarto foi publicado no volume Kant e a Biologia, organizado por Ubi-
rajara Rancan de Azevedo Marques (Editora Barcarolla, São Paulo, 2012); o
quinto foi publicado em Portugal no volume Kant: Posteridade e Actualidade
(CFUL, Lisboa, 2007) e, numa versão simultaneamente condensada em alguns
pontos e mais desenvolvida noutros, também no volume Kant e o Kantismo.
Heranças Interpretativas, organizado por Clélia Aparecida Martins e Ubirajara
Rancan de Azevedo Marques (Editora Brasiliense, São Paulo, 2009); o sexto foi
apresentado como conferência no Congresso da Sociedade Kant Brasileira (em
Porto Alegre, Maio de 2008) e depois publicado num volume de homenagem ao

19
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

20
Prof. Zeljko Loparic. As versões aqui propostas foram revistas e, por razões de
economia editorial, sofreram alterações relativamente às anteriormente publica-
das. Com excepção do terceiro ensaio, sobre a ideia de «Técnica da Natureza»,
na economia do qual a prova textual é muito relevante, as citações e as notas
foram abreviadas, tendo-se procedido à eliminação da maioria das transcrições
dos textos originais citados.

Deixo aqui expresso o meu agradecimento aos organizadores e editores das


obras ou das revistas onde foram publicadas as versões originais destes ensaios
pela graciosa autorização que concederam para a respectiva republicação neste
volume.

Os três primeiros ensaios encadeiam-se naturalmente. O primeiro mostra a


aplicação em acto dos pressupostos heurísticos que gerem a construção do sis-
tema de analogias que sustenta as conjecturas cosmológicas do jovem filósofo; o
segundo explana a génese e o desenvolvimento da ideia mesma de uma Heurís-
tica Transcendental no âmbito do programa filosófico kantiano, em três momen-
tos decisivos da explicitação deste: na Dissertação de 1770, na Crítica da Razão
Pura e na Crítica do Juízo; o terceiro explicita um dos tópicos centrais daquele
programa e desta última obra: a ideia de uma «Técnica da Natureza», que cons-
titui o núcleo problemático da terceira Crítica e o ponto de ligação arquitectó-
nica das suas duas partes – a Estética e a Teleologia – permitindo compreender a
arte como sendo natureza e a natureza como sendo arte ou como se procedesse
ela mesma como artista. O quarto, como foi dito, avalia o decisivo contributo de
Kant para a transformação da História Natural setecentista e para a génese e
constituição da Biologia moderna, tanto pela discussão dos seus tópicos maiores
como sobretudo pela elucidação dos seus pressupostos epistémicos. O quinto
aborda um tópico nuclear do juízo analógico e conjecturante, o juízo ficcional,
que se exprime linguisticamente pela expressão como se, tópico recorrente nos
escritos kantianos, que foi pela primeira vez realçado pelo minucioso exegeta-
-comentador da Crítica da Razão Pura e grande impulsionador dos estudos kan-
tianos que foi Hans Vaihinger, cuja proposta hermenêutica, desenvolvida na
obra Die Philosophie des Als Ob (1911), aqui se reaprecia, destacando precisa-
mente o significado heurístico das ficções da razão, das suas ideias e dos seus
princípios transcendentais.

A publicação deste livro deve-se ao pessoal empenho do Doutor Francisco


Abreu, que o acolheu no plano de edições da Esfera do Caos, e bem assim ao

20
Róbson Ramos dos Reis e Andréa Faggion (orgs.), Um Filósofo e a Multiplicidade de Dizeres,
CLE, Campinas, 2010, pp.229-254.

20
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

solícito apoio dado a essa edição pelo Prof. Doutor Pedro Calafate, Director do
Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa. A um e a outro aqui deixo expresso
o meu agradecimento. Mas sendo todo o volume constituído por ensaios que
resultaram de comunicações ou conferências proferidas em eventos kantianos
no Brasil e elaborados mesmo alguns deles no período em que estive como
Investigador Visitante, entre Abril e Setembro de 2008, na Faculdade de Filo-
sofia e Ciências da UNESP (Campus de Marília), justo é que vá dedicado aos
colegas e amigos kantianos brasileiros – ao Aylton Barbieri Durão, ao Ubirajara
Rancan de Azevedo Marques, ao Zeljko Loparic, ao saudoso Valerio Rohden, ao
Ricardo Ribeiro Terra, à Vera Cristina de Andrade Bueno, à Andréa Faggion, ao
Christian Hamm, ao Olavo Calábria Pimenta, ao Robinson dos Santos – os quais
me têm proporcionado a oportunidade de encontrar um auditório cada vez mais
vasto de interessados nos meus ensaios de interpretação da filosofia kantiana e
de assim ter podido usufruir também eu do extraordinário impulso e desenvolvi-
mento que os estudos kantianos vêm conhecendo no Brasil nos últimos anos.

Retomando as questões formuladas no início deste Prefácio, penso poder


esperar que a consideração dos tópicos abordados neste volume possa constituir
um contributo para uma outra melhor compreensão do pensamento kantiano,
mesmo naqueles domínios onde as certezas parecem estar desde há muito mais
solidamente estabelecidas.

Lisboa, Páscoa de 2011 e 2012

21
1
Analogia e conjectura no pensamento
cosmológico do jovem Kant

É permitido e fica bem deleitarmo-nos com tais repre-


1
sentações.

1. A configuração cosmológica do pensamento kantiano

Frequentemente considerados como meras etapas de passagem na formação do


pensamento kantiano da maturidade e, por isso, muito subalternizados quanto
ao seu valor e significado filosófico próprio, os chamados escritos pré-críticos de
Kant, quando lidos por eles mesmos, deixam-nos no entanto perceber como
desde muito cedo estão em acção certos pressupostos e procedimentos estratégi-
cos do jovem filósofo sem os quais é impossível compreender o processo de
construção da complexa arquitectónica das suas obras dos anos 80 e 90.
Ao propor, neste capítulo, uma leitura da obra História universal da Natu-
reza e Teoria do Céu (Allgemeine Naturgeschichte und Theorie des Himmels, 1755)2,
pretendo dar relevo a alguns desses pressupostos e estratégias mobilizados pelo
jovem filósofo e mostrar como eles podem dar acesso ao modo kantiano de pen-
sar e de fazer filosofia. Designadamente, tentarei mostrar como funciona nessa
obra o princípio de analogia ao serviço das fecundas conjecturas que levaram o
seu autor a inovadoras e gratificantes perspectivas no campo da cosmologia.

1
«Es ist erlaubt, es ist anständig, sich mit dergleichen Vorstellungen zu belustigen.» Immanuel
Kant, Allgemeine Naturgeschichte und Theorie des Himmels, Ak I, 367.
2
Uma primeira versão abreviada deste capítulo, sob o título «Princípio de analogia e
conjectura no Kant pré-crítico», foi apresentada no X Colóquio Kant da UNICAMP –
«Problemas Semânticos na Filosofia de Kant» –, realizado no Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, de 19 a 21 de Maio de 2008.
Uma versão de alguns tópicos do mesmo, sob o título «Pressupostos epistémicos, meta-
físicos e teológicos da cosmologia do jovem Kant», foi apresentada no Simpósio Interna-
cional Philosophes savants / Savants philosophes, realizado na Universidade de Évora a 28
de Abril de 2009. Numa versão próxima da que aqui é proposta, ele foi publicado na
revista electrónica da Sociedade Kant Brasileira, Secção de Campinas: Kant e-Prints. Cam-
pinas, Série 2, v.4, n.1, pp.131-163, jan.-jun., 2009.

23
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

A obra de 1755, quando apreciada por ela mesma, costuma sê-lo sobretudo
pela sua contribuição para a visão moderna do cosmos. Destaca-se então a
intenção do seu autor de construir uma visão sistemática do universo segundo
leis mecânicas e de acordo com os princípios de Newton. Se bem que uma tal
interpretação respeite a letra do propósito enunciado no título da obra, também
é verdade que lê-la como se ela se movimentasse apenas na sombra da influência
de Newton, como mera aplicação dos princípios cosmológicos deste autor, dis-
torce não só o seu espírito como até o alcance do seu conteúdo, mesmo se
entendida como proposta cosmológico-cosmogónica, pois em muitos aspectos
ela se afasta expressamente de Newton e vai muito além das perspectivas por
este avançadas, inspirando-se em muitos outros filósofos modernos e até anti-
gos. Quando lida na perspectiva da evolução e formação do pensamento kan-
tiano, da mesma forma esta obra juvenil tem servido ou para documentar a ins-
crição do primeiro pensamento de Kant na esteira dos temas e pressupostos da
cosmologia e filosofia natural newtoniana ou para reconhecer a importância que
as preocupações cosmológicas desempenham na filosofia kantiana desde os escri-
3
tos de juventude às reflexões do Opus postumum. Todas estas linhas de leitura
têm sem dúvida a sua pertinência. Não esgotam, porém, o conteúdo duma obra
que pode e deve considerar-se como sendo efectivamente a primeira grande
síntese original do pensamento kantiano, moldada por certo em matéria cos-
mológica, na qual, porém, o filósofo deixa enunciados temas e problemas não só
de natureza cosmológica, mas também de índole teológica, antropológica e
epistemológica, cujos desenvolvimentos, modulações e orquestração se deixarão
ouvir nos grandes escritos da década de 80 e nomeadamente na terceira Crítica.
A obra tem por isso um iniludível carácter seminal.
Neste ensaio vou concentrar-me não tanto na descrição das hipóteses ou
propostas cosmológico-cosmogónicas de Kant acerca da constituição sistemática
do universo e da respectiva formação (a partir de um estado caótico originário
até aos hipersistemas de sistemas de estrelas que são as galáxias, de uma das
quais – a Via Láctea – o sistema solar, do qual faz parte a Terra, é apenas um
minúsculo arquipélago) quanto no levantamento dos pressupostos epistémicos
que lhes presidem. A referência àquelas hipóteses será feita apenas na medida
em que for necessário para melhor entender as perspectivas epistémicas a partir
das quais o jovem filósofo enuncia as suas conjecturas.

3
Veja-se: W. H. Werkmeister, Kant. The Architectonic and Development of His Philosophy,
La Salle/London, 1980, pp.9-11, 160, 188. Como noutro lugar extensamente mostrei, as
representações cosmológicas configuram a própria noção kantiana de sistema, a metafó-
rica kantiana, a representação do sistema federal e cosmopolita dos Estados. Veja-se o
meu livro Metáforas da Razão ou economia poética do pensar kantiano, cap. V: «Poética do
Cosmos – Poética da Razão. Analogias cosmológicas na filosofia de Kant», pp.447-505.

24
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

2. Analogia e conjectura
no pensamento moderno anterior a Kant

Para justificar a proposta do tema e, por assim dizer, para limpar o terreno em
que ele se implanta, consinta-se-me que faça um breve apontamento a propósito
de uma bem conhecida interpretação da Modernidade que aparentemente retira-
ria àquele toda a pertinência. De facto, alguns conhecidos hermeneutas defende-
ram a tese segundo a qual o pensamento moderno se caracterizaria precisamente
pelo abandono e rejeição da analogia, entenda-se esta na forma clássica e medie-
val da analogia entis ou na forma renascentista como crença na universal cor-
respondência e ubíqua semelhança dos seres e elementos do mundo físico, humano
e espiritual, do microcosmos e do macrocosmo, correspondência e semelhança
sustentadas por uma ontologia vitalista e mágica ou regidas pela lei da sympa-
thia/antipathia rerum.
Michel Foucault foi quem mais extremou essa leitura. Na sua obra Les mots
et les choses (1966), ele escreve: «A partir do século XVII a semelhança – e com
ela a analogia – é repelida para os confins do saber, para a zona das suas frontei-
4
ras mais reduzidas e mais humildes.» Essas zonas humildes são aquelas que,
desqualificadas pelo pensar da ordem e da medida, não podem pretender já a um
estatuto de cientificidade: a poesia, a retórica, a religião. Isso significaria que a
analogia teria perdido o seu interesse no âmbito da epistéme da Modernidade, a
qual teria alcançado a sua auto-evidência no programa cartesiano da matese
como ciência geral da ordem e da medida.
Num ensaio publicado em 1990, tive ocasião de refutar a interpretação de
5
Foucault no que a Descartes se refere. Aí concluía, contra Foucault e também
contra Jean-Luc Marion, que a analogia continua efectivamente a desempenhar
um papel fundamental não só no pensamento cartesiano como também no pen-
samento moderno, mas que, ao mesmo tempo, se altera a sua natureza e função,
aspecto este que aqueles intérpretes não viram. Ela deixa de ser sustentada por
uma ontologia hierárquica e de participação do ser ou pela ideia renascentista de
uma simpatia universal dos elementos e dos seres, passando a ser entendida
como um procedimento próprio do espírito humano na sua actividade de se
assenhorear do mundo pelo conhecimento. Decai o sentido do uso predomi-

4
Les mots et les choses, Paris, 1966 (trad. port.: Portugália, Lisboa, s.d., p.78). Esta tese
foi sustentada por vários intérpretes franceses do cartesianismo (L. Brunschvicg, É. Gil-
son, H. Gouhier), sendo de destacar Jean-Luc Marion, Sur la théologie blanche de Des-
cartes. Analogie, création des vérités éternelles et fondement, Paris, 1981 (pp. 14, 428-429,
432-439, 453-454).
5
«Descartes e a concepção moderna da analogia», in: Revista da Faculdade de Letras
(Universidade de Lisboa), retomado in: Leonel Ribeiro dos Santos, Retórica da evidência
ou Descartes segundo a ordem das imagens, Quarteto, Coimbra, 2001, pp.105-112.

25
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

nantemente metafísico e teológico da analogia e recupera-se e desenvolve-se o


seu significado epistemológico ou heurístico. A analogia não é agora invocada
tanto para legitimar o discurso humano acerca de Deus, ou para estabelecer a
relação entre o finito e o infinito, entre as criaturas e o criador (continuará a sê-
-lo, sem dúvida, também nesse domínio, até mesmo em Kant), quanto para esta-
belecer proporções entre as próprias coisas finitas e mundanas. Como o dizia no
início do século XVI, o filósofo-teólogo e humanista francês Charles de Bouvel-
6
les, «as analogias são melhor adaptadas às ciências humanas do que à teologia».
Elas revelam-se assim como um instrumento essencial e imprescindível daquela
concepção de ciência entendida como criação conjecturante da mente humana,
que foi exposta, pela primeira vez e com toda a convicção, por Nicolau de Cusa.
A referência a este pensador do Renascimento impõe-se, porque precisamente na
sua obra a analogia e a conjectura se revelam já como expressamente implicadas
uma na outra. Na sua obra Da douta ignorância (De docta ignorantia), ele des-
creve o conhecimento acessível ao homem como sendo uma investigação com-
parativa, que usa o meio da proporção e que só pode julgar o que é incerto e
desconhecido por comparação com um pressuposto certo e já conhecido ou pelo
7
menos mais certo e melhor conhecido. Mas ele é igualmente o autor de uma
outra obra bastante menos conhecida, intitulada Acerca das conjecturas (De
coniecturis). Publicadas no mesmo ano (1440), as duas obras são complementa-
res uma da outra. Se, na primeira, o filósofo chegara à convicção da impossibili-
dade de a razão humana apreender a verdade precisa e a quididade mesma das
coisas e, sobretudo, de chegar a entender aquele máximo absoluto que é Deus
ou aquele outro máximo contraído que é o Universo, na segunda ele propõe a
invenção de conjecturas – a apreensão da identidade na alteridade mediante
comparações – como sendo o género de conhecimento que se adequa à mente
humana. Segundo o filósofo do Mosela, a forma conjectural do mundo provém
da mente humana tal como a realidade do mundo provém da mente divina; ou,
dito de outro modo, da mesma maneira que a mente divina produz o mundo
8
real assim a mente humana produz as conjecturas racionais da sua ciência.
6
Charles de Bovelles [Carolus Bovillus], Conclusiones theologicae, Paris, 1515, Lib. I,
cap. 19, apud Pierre Quillet, «L’analogie et l’art des opposés selon Charles de Bouvelles»,
in : A. Lichnerowicz et alii (dir.), Analogie et connaissance, Paris, 1980, T. I, p.55.
7
Nicolau de Cusa, De docta ignorantia, Lib.I, cap. I (Opera, Paris, 1514, reimpr.: Frankfurt a.
M., 1962): «Omnes autem investigantes in comparatione praesuppositi certi, proportio-
nabiliter incertum iudicant. Comparativa igitur est omnis inquisitio, medio proportionis
utens.» Sobre o conceito de analogia em Nicolau Cusa, veja-se : Giovanni Santinello, «Rifles-
sioni sul concetto di analogia nel pensiero moderno», in: Metafore dell’invisibile. Ricerche
sull’analogia, Brescia, 1984, 34-58; Werner Schulze, Zahl, Proportion, Analogie. Eine Untersu-
chung zur Metaphysik und Wissenschaftshaltung des Nikolaus von Kues, Münster, 1978.
8
«Coniecturas a mente nostra, uti realis mundus a divina infinita ratione, prodire opor-
tet. Dum enim humana mens, alta dei similitudo, fecunditatem creatricis naturae, ut

26
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

Desse modo, uma filosofia da «douta ignorância», que parecia negar o poder de
conhecimento à mente humana, abre-lhe, pelo contrário, um espaço ilimitado de
criação na demanda sem termo das conjecturas mais verdadeiras acerca de tudo
o que é possível saber de algum modo, embora com a consciência de que a pre-
9
cisão absoluta é inatingível.
No contexto do pensamento moderno anterior a Kant não é uniforme a
atitude dos pensadores em relação a este tópico da conjunção entre a analogia e
o pensamento conjecturante. Se há pensadores que recorrem de bom grado às
analogias e conjecturas, combinando-as mesmo com os métodos da nova ciência
físico-matemática e se propõem, como Kepler, «percorrer os labirintos dos mis-
10
térios da natureza seguindo o fio condutor da analogia» (no seu caso, sobre-
tudo o fio condutor das analogias musicais e geométricas), outros há que defen-
dem como legítimo apenas o conhecimento que se pode extrair por indução a
partir da observação dos fenómenos, ou que pode ser confirmado por experiên-
11
cias, rejeitando não só as conjecturas e suposições como até as hipóteses.
Descartes, o filósofo do método e da matese como ciência geral da ordem e
da medida, pode ainda assim ser considerado como um genuíno representante

potest, participat, ex se ipsa, ut imagine omnipotentis formae, in realium entium simili-


tudine rationalia exserit. Coniecturalis itaque mundi humana mens forma exsistit ut
realis divina.» Nicolau de Cusa, De coniecturis I, cap. I, in: Opera omnia (Felix Meiner,
Hamburg), III, 1972, 7.
9
«Venantur sic elementa veriore coniectura, licet praecisio sit semper innatingibilis.» Nico-
lau de Cusa, De staticis experimentis, in: Opera omnia (Felix Meiner, Hamburg), V, 230,
223.
10
«Analogiae filo ducente, labyrinthos mysteriorum naturae permeare». Harmonice Mundi,
1619, lib.V, cap. X, Gesammelte Werke, Bd VI, München, 1940, 366. Veja-se: D. P. Wal-
ker, «Les theories musicales de Kepler et l’analogie», in: A. Lichnerowicz et alii (dir.),
Ibidem, pp.65-73.
11
O consabido exemplo desta atitude é Newton, do qual se falará mais adiante. No seu
Tratado dos Sistemas [Traité des systèmes, où l’on démêle les inconvenients et les avantages,
Oeuvres, II, Den Haag, 1749], cap. XII («Das Hipóteses»), Condillac dá conta desta
divergência entre os filósofos da época, dizendo: «Os filósofos estão muito divididos no
que concerne ao uso das hipóteses. Alguns, prevenidos pelo sucesso que elas têm em
astronomia, ou, talvez, deslumbrados pela audácia de algumas hipóteses da física, enca-
ram-nas como verdadeiros princípios; outros, considerando o abuso que delas se faz,
desejariam bani-las das ciências. […] Na investigação da verdade, os princípios abstratos
são viciosos; ou, pelo menos, inúteis […] Ao contrário, as hipóteses ou suposições, por-
que empregamos indiferentemente esses termos, são, na investigação da verdade, não
somente meios ou conjeturas, mas podem ser, ainda, princípios, isto é, verdades primei-
ras que explicam outras. Elas são meios ou conjeturas, porque a observação […] começa
sempre por um tateio; mas elas são princípios ou verdades primeiras, quando tenham
sido confirmadas por novas observações que não dêm mais lugar a dúvida.» (trad. de
Luiz Roberto Manzoni, in: Condillac, Helvétius, Degerando, Textos escolhidos, col. «Os
Pensadores», Abril Cultural, São Paulo, 1984, p. 26).

27
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

do primeiro tipo, enquanto Newton pode considerar-se como o representante do


segundo. Precisamente em Descartes, ao contrário do que sustentou Foucault,
esse recurso à analogia e à conjectura, além de frequente, é consciente, como se
pode ver por este passo de uma carta a Morin (12 de Setembro de 1638), o qual
revela ainda a consciência da novidade que o filósofo tem da sua concepção heu-
rística da analogia relativamente ao entendimento tradicional da mesma:
É verdade que as comparações que costumam usar-se na filosofia da Escola,
ao explicarem as coisas intelectuais pelas corporais, as substâncias pelos
acidentes, ou pelo menos uma qualidade por uma outra de outra espécie,
instruem pouquíssimo; mas porque naquelas de que me sirvo não comparo
senão movimentos a outros movimentos, ou figuras a figuras, etc., isto é,
coisas que devido à sua pequenez não podem cair sob os nossos sentidos a
outras que caem, e que de resto não diferem delas mais do que um círculo
grande difere de um círculo pequeno, eu pretendo que elas são o meio mais
próprio que o espírito humano pode ter para explicar a verdade das ques-
tões físicas; ao ponto que, quando se afirma algo respeitante à natureza que
não pode ser explicado por nenhuma tal comparação, eu penso saber por
12
demonstração que ela é falsa.
O filósofo francês aplicou essa estratégia de uma forma quase extrema ao
expor a sua cosmologia sob a forma da ficção (nos Principia Philosophiae) e da
13
fábula (no Le Monde). E nisso mais não fez do que replicar o que fizera Platão
no Timeu. E a semelhança não respeita apenas ao tema das obras, mas igual-
mente ao estatuto epistemológico do discurso racional nelas proposto. A que se
deve a necessidade de recorrer à conjectura, à ficção, à fábula ou ao mito quando
se trata de cosmologia ou de cosmogonia?
Platão enfrentara expressamente esta questão em vários passos do Timeu
(29 c-d;48 a-d; 55d). Vendo-se na impossibilidade de proferir um discurso ver-
dadeiro acerca do Mundo, ele confere à personagem pitagórica que dá o nome
ao diálogo, a tarefa de construir um grande mito explicativo da génese, estrutura
e variedade do cosmos, consciente de que se trata apenas de uma «história vero-
símil», a qual tem todavia a vantagem de ser mais verosímil do que qualquer
outra que possa apresentar-se, seja pela sua íntima coerência, seja pelo que per-
mite dar a ver acerca do seu objecto. Da mesma forma, em Descartes, a ficção ou
12
Descartes, Correspondance, ed. Ch. Adam-G. Milhaud, Paris, 1936, III, pp.66-68.
13
Veja-se o meu ensaio «Veritas in fabula. Descartes e a poética da invenção científica»,
in: Leonel Ribeiro dos Santos, Adelino Cardoso e Pedro M. S. Alves (eds.), Descartes,
Leibniz e a Modernidade, Actas do Colóquio Internacional [Lisboa, Novembro de 1996],
Departamento de Filosofia da Universidade de Lisboa/ Edições Colibri, 1998. Retomado in:
Leonel Ribeiro dos Santos, Retórica da Evidência ou Descartes segundo a ordem das imagens,
pp.135-189.

28
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

fábula do mundo é o recurso disponível ao pensamento num assunto onde as


certezas absolutas são impossíveis. A razão ou se condena aí ao perpétuo silên-
cio ou constrói uma explicação plausível e verosímil, que, não podendo apre-
sentar o rigor absoluto da geometria e não podendo mesmo ser comprovada em
todos os seus aspectos por experiências, se funda em princípios racionais sufi-
cientemente seguros e até se encontra em conformidade com muitas experiên-
cias já conhecidas ou pode mesmo levar a novas experiências. Mesmo nos Prin-
cipia Philosophiae, onde expõe as suas ideias sobre cosmologia, Descartes não
pretende para estas mais do que o estatuto de meras hipóteses, suposições ou
conjecturas. Assim expressamente o declara no § 44 da III Parte da obra:
Eu, todavia, quero que se considere as suposições que aqui exponho apenas
como hipóteses. Com efeito, para que não pareçamos demasiado arrogantes
se, ao filosofar acerca de coisas tão importantes, afirmamos que inventamos
a verdade a seu respeito, preferi deixar isto no meio-termo e propor tudo
aquilo que vou escrever como hipótese. A qual, ainda que a consideremos
falsa, julgo que valeu bem a pena, se tudo aquilo que dela se deduz concor-
dar com os experimentos e assim recolhemos dela tanto de utilidade para a
14
vida como de conhecimento da verdade.
É comum pensar-se que é esta estratégia cartesiana que é explicitamente
visada naquela contundente e bem conhecida declaração de Newton, segundo a
qual, na filosofia natural, só há lugar para proposições que sejam inferidas dos
fenómenos por um procedimento indutivo e que, por conseguinte, as hipóteses
15
não têm nela lugar. Mas se projectarmos retrospectivamente, neste debate
epistemológico dos Modernos, aquilo que será dito pelo autor da Crítica da
Razão Pura, no Prefácio à 2ª edição desta obra, a verdadeira revolução episte-
mológica que dá nascimento à ciência moderna consiste, antes de mais, em rei-
vindicar para o sujeito a possibilidade de libertar-se dos fenómenos tal como eles
são dados na percepção e, em consequência, a liberdade de forjar hipóteses. E,
sendo assim, o ousado «Fingamus itaque!», com que Descartes abre o § 2 da IV
Parte dos seus Principia Philosophiae, traduziria muito melhor a aventura de des-
cobertas e de invenções da ciência moderna do que o cauteloso «hypotheses non
fingo» que se lê no «Scolion Generale» aos Philosophiae Naturalis Principia
16
Mathematica de Newton.

14
Descartes, Principes de la Philosophie, ed.Adam-Tannery, IX, 123.
15
Isaac Newton, Philosophiae Naturalis Principia Mathematica, in: Opera quae exstant omnia,
ed. S. Horsley, London, 1782 (reimpr.: Fromann, Stuttgart-Bad Cannstatt, 1964), III, pp.
173-174.
16
A menos que se interprete o empreendimento de Newton já naquele surpreendente sen-
tido em que o fará Kant, muito mais tarde, em algumas das páginas do Opus postumum
(Ak XXII, 512-513 e 521-523), nas quais reavalia o significado da principal obra de

29
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

Se me demorei um pouco neste preâmbulo e sobretudo na referência a Des-


cartes foi porque estou convencido de que, quanto à estratégia metodológica e
aos pressupostos epistémicos, é sobretudo com o autor do Le Monde que o
jovem autor da obra Allgemeine Naturgeschichte und Theorie des Himmels se

Newton para a filosofia, apontando até a impropriedade do seu título (pois, segundo
escreve, propriamente falando, não há «princípios matemáticos da filosofia»). Aí escreve
Kant (pp.521-523): «Constitui verdadeiramente um fenómeno notável no campo da
ciência que tenha havido um momento em que o seu progresso parecia terminado, em
que o navio estava ancorado, e em que nada mais havia a fazer em relação à filosofia
num dos seus ramos. As três analogias de Kepler tinham calculado satisfatoriamente,
mas apenas empiricamente, os fenómenos das revoluções dos planetas e tinham-nos
descrito matematicamente sem suspeitar todavia das forças motrizes com as suas leis que
poderiam ser as causas disso. […] Huyghens pôde nomear as forças centrípetas e cen-
trífugas e, todavia, a teoria de Newton não estava encontrada. Faltava-lhe a atracção.
Então aparece Newton e, procedendo como filósofo, introduz no Universo uma força
motriz […] chamada atracção gravitacional, como atracção cósmica universal de todos
os corpos através do espaço vazio, bem como os movimentos devidos às forças centrais;
a este princípio dinâmico acrescentou um outro, precisamente o duma repulsão que
preenche o espaço, e isso a priori segundo princípios.» Numa outra passagem (Ak XXII,
512-513), o velho filósofo é ainda mais explícito na interpretação que faz do significado
da «revolução newtoniana» (dela fala, com efeito, como tratando-se de um «acto de
violência»!) para a filosofia da natureza: «[…] as três analogias de Kepler conduziram ao
acto de violência de Newton de invocar a atracção gravitacional para a física, mediante
uma hipótese ousada [kühne] mas inevitável; mediante isto, a matemática foi armada, em
proveito da ciência da natureza, dum poder, o de prescrever a priori à natureza leis que
ela, sem este órgão, não teria absolutamente podido usar para a filosofia. […] Foi
mediante a filosofia, pois, e não mediante a matemática, que Newton fez a conquista
mais importante.» Estou consciente do debate não concluído em torno do sentido e
alcance da supracitada declaração de Newton acerca das hipóteses. Propriamente
falando, ela refere-se apenas à questão da causa das propriedades da gravidade, que o
filósofo inglês confessa não ter podido ainda deduzir dos fenómenos (rationem vero
Gravitatis proprietatum ex Phaenomenis nondum potui deducere, et hypotheses non fingo.
Quicquid enim ex phaenomenis non deducitur, hypothesis vocanda est). Mas extrair desta
passagem uma declaração de alcance geral, como expressão do método filosófico-cientí-
fico newtoniano pode ser desmentido pela própria prática científica de Newton, na qual
(mesmo se abundam nos Principia e na Óptica declarações do género «For Hypotheses
are not to be regarded in Experimental Philosophy», Opticks, Opera quae exstant omnia,
IV, London, 1782, pp. 5, 263), muitas vezes são formuladas hipóteses, ou pelo menos se
parte de pressupostos que de modo nenhum são extraídos directamente dos fenómenos,
como é o caso das «Regulae philosophandi» propostas nos Principia, entre as quais se
conta precisamente a da «analogia da natureza» (isto é, o pressuposto da uniformidade
ou homogeneidade da natureza) e a da economia da natureza – lex parsimoniae – ditas
em formulações que também encontramos dispersas pela Óptica, como estas: «a natu-
reza é constante e conforme a si mesma» (natura est consimilis sui); «a natureza é muito
conforme a si mesma e muito simples»; «a natureza é muito simples e não se serve do
luxo de causas supérfluas das coisas». Opticks, ib., IV, pp. 242, 258, 262; Óptica, trad.
port., Abril Cultural, pp. 166, 191, 201, 204.

30
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

identifica, apesar de expressamente pretender oferecer uma explicação da ori-


gem e da estrutura mecânica do Universo «segundo os princípios newtonia-
17
nos».

3. Kant e a cosmologia renascentista e protomoderna

Para a construção do seu pensamento cosmológico juvenil, Kant mobiliza tudo o


que de essencial fora adquirido pela ciência cosmológica renascentista e proto-
moderna; ou seja, o resultado da cosmologia pós-copernicana, alcançado com os
contributos dos físico-matemáticos, como Kepler, Galileu, Christian Huyghens,
Newton, mas alimentado também com as perspectivas dos cosmo-metafísicos,
como Giordano Bruno, Descartes, Leibniz e Christian Wolff, para nomear ape-
nas alguns dos mais importantes protagonistas desse complexo processo. Nesse
adquirido contam-se como principais ingredientes: 1) o heliocentrismo de
Copérnico completado com as leis keplerianas das órbitas planetárias e justifi-
cado por razões físicas com a teoria newtoniana da gravitação; 2) a unificação e
homogeneização do espaço físico e cósmico e a respectiva matematização e
17
Já Cassirer notou isso, aproximando Kant, quanto aos pressupostos metodológicos que
presidem à sua obra juvenil, mais de Descartes do que de Newton. Segundo Cassirer,
Descartes formula a tese de que só podemos compreender o universo na sua estrutura
real na medida em que o tenhamos visto nascer, fazendo-o surgir diante dos olhos do
espírito. Isso implica que a hipótese e a especulação mesma não só podem mas devem
transcender o conteúdo da realidade dada, sempre e quando se submetam, apesar disso,
ao controlo desse conteúdo. Apesar da alta estima em que Kant tinha o método newto-
niano das investigações empíricas, ele está longe de o aplicar e reconhecer como exclu-
sivo (Kants Leben und Lehre, WBG, Darmstadt, 1975; trad. esp.: Kant. Vida y doctrina,
FCE, México, 1978, 64-65). Não falarei aqui, por razão de brevidade, de muitos outros
pensadores que defendem um estatuto reconhecidamente conjecturante da cosmologia,
garantido pelo pressuposto da analogia. Entre todos, o destaque iria, sem dúvida, para
Leibniz. Num passo dos Nouveaux Essais sur l’Entendement Humain, obra que todavia
Kant só poderia vir a conhecer em meados dos anos 60 – nas edições Dutens (1765) ou
na edição Raspe (1768) –, o autor da Monadologia comenta as «conjecturas» propostas
por Christian Huyghens no seu Cosmotheoros (publ. póstuma:1698), nos seguintes ter-
mos: «Sur la maniere d’operer de la pluspart des ouvrages de la nature, et de toutes ces
choses nous ne pouvons avoir que des conjectures, ou l’Analogie est la grande regle de la
probabilité. Car ne pouvant point estre attestées, elles ne peuvent paroistre probables
qu’en tant qu’elles conviennent plus ou moins avec les verités etablies.[...] La regle de
l’analogie nous fait regarder comme probable, qu’il y a une pareille gradation dans les
choses qui sont au dessus de nous et hors de la sphere de nos observations, et cette es-
pece de probabilité est le grand fondement des hypotheses raisonnables. C’est sur cette
Analogie que Mr. Hugens juge dans son Cosmotheoros, que l’estat des autres planetes
principales est assés approchant du nostre, excepté ce que la differente distance du Soleil
doit causer de difference.» Die philosophischen Schriften, ed. Gerhardt, Olms, Hilde-
sheim, Band V, 453-454.

31
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

geometrização; 3) o abandono das explicações vitalistas e mágicas do cosmos e a


aplicação de um paradigma mecânico ao funcionamento do sistema do mundo;
4) a passagem de um mundo fechado e finito para um universo considerado
como ilimitado ou mesmo como infinito.
O contributo decisivo de Kant para a cosmologia moderna vai incidir em
dois aspectos essenciais, que poderíamos designar como o propriamente cosmo-
lógico, relativo à concepção da estrutura do universo, e o cosmogónico, relativo
à génese ou processo de formação do universo. Quanto ao primeiro, o jovem
filósofo propõe-se nada menos do que apresentar uma visão da constituição sis-
temática do universo no seu todo, ampliando às dimensões de todo o infinito
universo aquilo que na proposta de Newton era ainda apenas uma explicação
local ou regional, limitada ao sistema solar. O sistema solar serve-lhe de módulo
fundamental, que ele vê replicado em todas as outras «estrelas fixas», as quais
são tomadas como outros tantos sóis que presumivelmente têm também os seus
planetas, e todos esses sóis, por sua vez, considera-os ainda organizados em
super-sistemas ou hiper-sistemas de sistemas que são as galáxias ou nebulosas, e
estas ainda, por fim, no mega-sistema ou giga-sistema de todos os hiper-sistemas
de sistemas que é o próprio universo no seu todo. O módulo é o mesmo,
variando apenas a escala e a complexidade. No próprio sistema solar esse mesmo
módulo pode verificar-se numa escala ainda mais reduzida nos micro-sistemas
constituídos por alguns dos planetas com os respectivos satélites, como é o caso
da Terra, de Júpiter e de Saturno). Todo o universo é assim concebido como
uma imensa e gigantesca engrenagem em movimento, na qual tudo se liga e que
deve ter também algures o seu mega-centro de atracção, da mesma forma que o
sistema solar tem o seu ponto central de atracção em torno do qual se organiza.
Bastam para sustentar esta complexa economia do sistema cósmico as duas for-
ças fundamentais identificadas por Newton, a atracção e a repulsão, as quais se
equilibram em tensão dinâmica. Assim escreve Kant:
Se todos os mundos e ordens de mundos têm a mesma espécie de origem,
se a atracção é ilimitada e universal e a repulsão dos elementos é igual-
mente continuamente activa, se, perante o infinito, o grande e o pequeno
são de ambos os lados igualmente pequenos, não será que todos os edifícios
do mundo deverão ter igualmente recebido uma constituição relacionada e
uma ligação sistemática entre si, da mesma forma que os corpos celestes do
nosso mundo solar a receberam em mais pequena escala, tal como Saturno,
Júpiter e a Terra, que são por si mesmos sistemas particulares e, todavia,
18
estão ligados entre si como membros num sistema ainda maior?
Kant, porém, não se limita a propor uma nova e audaciosa visão da arqui-
tectura ou estrutura global do universo, mas apresenta igualmente uma ousada
18
Immanuel Kant, Allgemeine Naturgeschichte und Theorie des Himmels, Ak I, 307.

32
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

hipótese cosmogónica da formação e evolução de todo o cosmos, «derivando a


própria formação dos corpos mundanos e a origem dos seus movimentos a par-
tir do primeiro estado da natureza mediante leis mecânicas» (die Bildung der
Weltkörper selber und den Ursprung ihrer Bewegungen aus dem ersten Zustande der
19
Natur durch mechanischen Gesetze herzuleiten). A inspiração aqui já não é New-
ton, mas o Descartes autor do Le Monde, expressamente evocado no Prefácio da
obra, como «aquele filósofo que se esforçou por explicar a formação do mundo,
num certo momento, a partir da matéria desordenada mediante a simples conti-
nuação de um movimento dado de início, e isso reduzido a algumas poucas e
20
fáceis leis gerais do movimento.» Tal como o filósofo francês, Kant pensa que,
entregue a essas leis, «a natureza sozinha é capaz de livrar-se da confusão do
21
caos». E o impulso demiúrgico do autor da «fábula do mundo» é ainda mais
forte no jovem Kant, que repete, com visível complacência ao longo do Prefácio
da obra, este desafio: «Dai-me apenas matéria; eu quero a partir dela construir
para vós um mundo» [Gebt mir nur Materie, ich will euch eine Welt daraus
22
bauen]. Um desafio que, na verdade, soa como se estivesse vertido nestoutra
23
fórmula: «Dai-me o caos, que eu mostrar-vos-ei como dele nasce a ordem».
Mas se o impulso demiúrgico se inspira em Descartes, os princípios ou leis que
regem a formação mecânica do cosmos são tomados de Newton, embora este
filósofo inglês estivesse interessado em explicar a estrutura e não propriamente a
génese do sistema cósmico. Como se glosasse o autor do Le Monde, corrigindo-o

19
Ak I, 221. Veja-se o ensaio de Jean Seidengart, «Genèse et structure de la cosmologie
kantienne précritique», que serve de Introdução à edição da tradução francesa da obra
de Kant, Histoire générale de la nature et théorie du ciel, Vrin, Paris, 1984, pp.7-59.
20
Ak I, 228.
21
Descartes, Le Monde, chap. vi-vii, AT XI, 34-36.
22
Ak I, 229-230. Não nos espante esta hybris demiúrgica dos filósofos-cosmólogos. Com
efeito, já o platónico Marsílio Ficino, falando a propósito da «máquina do mundo» fabri-
cada por Arquimedes, escrevia que aquele que é capaz de compreender a ordem do firma-
mento, os seus movimentos e as medidas que os regem, é como se fosse ele mesmo o seu
autor e seria capaz de efectivamente o fazer, se para isso dispusesse dos instrumentos e da
matéria: «Cum igitur homo caelorum ordinem unde moveantur, quo progrediantur et
quibus mensuris, quidve pariant, viderit, quis neget eum esse ingenio, ut ita loquar, pene
eodem quo et auctor ille caelorum, ac posse quodammodo caelos facere, si instrumenta
nactus fuerit materiamque caelestem, postquam facit eos nunc, licet ex alia materia, tamen
persimiles ordine?» Theologia Platonica de Immortalitate Animorum, lib. XIII, cap. III (ed.
Belles Lettres, Paris, Tome II, 1964, p.227).
23
Ak I, 234-235. Newton, por seu turno, na Óptica, visando sem dúvida a cosmologia de
Descartes exposta no Le Monde, considera como sendo “não filosófico” pretender que o
mundo teve origem no caos, tendo antes sido composto e estabelecido na ordem “in the
first creation by the counsel of an intelligent Agent. And if he did so, it is unphilosophi-
cal to seek for any other origin of the world, or to pretend that it might arise out of a
chaos by the mere laws of Nature.” Optics, Opera quae exstant omnia, IV, p.261.

33
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

com as aportações do sistema newtoniano quanto à determinação das leis que


sustentam a dinâmica do cosmos, escreve Kant:
Considero a matéria de todo o mundo numa dispersão universal e faço dela
um perfeito caos. Vejo o material originário formar-se segundo as leis confir-
madas da atracção e modificar o seu movimento mediante a repulsão. Saboreio
o prazer de, sem recorrer a invenções arbitrárias, ver gerar-se, pela acção das
confirmadas leis do movimento, um todo perfeitamente ordenado, que parece
tão semelhante àquele sistema do mundo que temos diante dos olhos, que eu
24
não posso impedir-me de o considerar como sendo o mesmo.
Acresce que a formação do cosmos é um processo inacabado, ou melhor, é
um processo que continua a preencher o espaço infinito pelo tempo infinito. A
criação não foi obra de um instante, mas é contínua, e «enquanto a natureza
embeleza a eternidade com cenas variáveis, Deus permanece ocupado numa
contínua criação [unaufhörlichen Schöpfung] a preparar o material [Zeug] para a
25
formação de mundos ainda maiores.» Toda a ordem cósmica é precária e instável,
pois a cada momento, para além das pequenas ilhas de mundos ou sistemas de
mundos que já sairam do caos, algures, nos inabarcáveis domínios do infinito
espaço cósmico, há mundos a nascer do caos mediante a luta dos elementos por
acção das forças cósmicas, enquanto outros se dissolvem e são devolvidos ao
caos tornando-se a matéria para a criação de mundos futuros. É esta visão,
simultaneamente exaltante e trágica, que o filósofo nos propõe, tentando con-
vencer-nos de que
Não devemos lamentar o desaparecimento de um edifício do mundo como
uma verdadeira perda da natureza. Esta faz prova da sua riqueza numa
espécie de esbanjamento, pois enquanto algumas partes pagam o tributo à
caducidade, ela mantém-se intacta graças a incontáveis novas gerações em
toda a extensão da sua perfeição.[...] Num outro lugar, esta perda é de novo
compensada com superabundância. O próprio homem, que parece ser a
obra-prima da criação, não está excluído desta lei. A natureza demonstra
precisamente que ela é tão rica e inesgotável na produção da mais excelente
entre as criaturas como da mais insignificante e que mesmo o seu desapare-
26
cimento é um matiz necessário na variedade dos seus sóis.
Depois desta sumaríssima apresentação das ideias rectoras da obra, vejamos
um pouco mais demoradamente como Kant entende o estatuto epistémico da cos-
24
Ak I, 225-226.
25
Ak I, 318. Veja-se o ensaio de Pierre Kerszberg, «La création en mouvement. Essai sur
le sens philosophique d’une interrogation cosmologique fondamentale dans la Théorie du
Ciel», Posfácio à tradução francesa da obra de Kant, ed. cit., pp.205-259.
26
Ibidem.

34
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

mologia e cosmogonia que propõe. Constitui mesmo um dos aspectos característi-


cos desta obra não só a explícita e reiterada reflexão do filósofo a respeito da condi-
ção e valor epistémicos da mesma como também o cuidado de partilhar essa
reflexão abertamente com o leitor. Colocando-se numa linha inaugurada por Platão
no Timeu e retomada por Descartes no Le Monde, Kant sabe que propõe um discurso
sui generis, que se situa a meio caminho entre a ciência e a ficção verosímil, cons-
truído por certo com base em alguns princípios que a ciência da época considerava
bem estabelecidos, mas nutrindo-se sobretudo do amplo recurso a ousadas conjec-
turas e hipóteses que só podem invocar razões de analogia. Por outro lado, sabe que
as teses que propõe não têm todas o mesmo peso e sustentação e é com honesta
franqueza que avisa disso os seus leitores. Mas é também explícito ao afirmar que «o
estrito rigor geométrico não tem cabimento neste género de considerações» (sie
nicht nach der grössten geometrischen Strenge, die ohnedem bei dieser Art der Betrach-
27
tungen nicht statt hat), ou que «nunca um tratado deste género pode alcançar a
máxima precisão geométrica e a infalibilidade da matemática» (überhaupt kann die
grösste geometrische Schärfe und mathematische Unfehlbarkeit niemals von einer
28
Abhandlung dieser Art verlangt werden). Mesmo assim o jovem filósofo está con-
victo de garantir para o conjunto das suas ideias um grau de razoável credibilidade.
Se atendermos aos materiais com que Kant constrói o seu ensaio, o inventá-
rio revela, em primeiro lugar, princípios aceites e estabelecidos na ciência físico-
-matemática moderna, tal como haviam sido certificados pela cosmologia newto-
niana, a saber a teoria da gravitação e as forças de atracção e repulsão. Vêm a
seguir sugestões várias provenientes da literatura cosmológica da época, e que
são acolhidas e transformadas para formar uma nova visão da estrutura e génese
do cosmos. É o caso da ideia de Thomas Wright of Durham, que Kant conhecia
apenas através de uma breve recensão lida numa revista de Hamburgo, acerca
das estrelas fixas como constituindo não um formigueiro de estrelas dispersas,
mas um sistema análogo ao nosso sistema solar distribuído sobre um plano
29
comum. É o caso também da ideia de Pierre Louis Moreau de Maupertuis
30
acerca da natureza das nebulosas como sendo enxames elípticos de estrelas. E,

27
Ak I, 236.
28
Ak I, 235.
29
An Original Theory and new Hypothesis of the Universe, London, 1750. A revista onde Kant
pôde ler uma breve recensão da obra era a Freien Urtheilen und Nachrichten zum Aufnehmen
der Wissenschaften und Historie überhaupt (Hamburg, 1751, n.os I,II,III). Kant, ao mesmo
tempo que confessava a sua dívida em relação ao cosmólogo inglês, declarava não saber
até que ponto a sua própria hipótese se identificava ou divergia da que lhe serviu de
inspiração, por não ter acesso directamente à obra daquele.
30
Kant usa e cita um resumo, publicado nas Acta Eruditorum de 1745, da obra Discours
sur les différentes figures des astres, avec une exposition des systèmes de MM. Descartes et
Newton, Paris 1732 e 1742.

35
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

finalmente, da ideia proposta por James Bradley sobre o movimento das estrelas
31
fixas, fenómeno documentado pelas observações comparadas de astrónomos de
diferentes épocas suficientemente distantes entre si, como era o caso de Tycho
Brahe e Flammsteed. Kant cita ainda, no Prefácio, uma História Geral do Uni-
verso de dois autores ingleses (Campbell e Swinton), que conhece na tradução
alemã (Allgemeine Welthistorie, die in England durch eine Gesellschaft von Gelehr-
ten angefertiget worden, 1744), de onde transcreve uma passagem referente a
Descartes, a qual nos revela que associava expressamente o seu empreendimento
ao do autor do Le Monde, «que se atrevera a explicar a formação dos corpos
32
mundanos a partir de meras leis mecânicas». Há ainda outros autores, citados
33
mais ou menos de passagem, como é o caso de Buffon e de William Derham,
autor de uma Astroteologia, na qual se aventava a ideia fantasiosa segundo a qual
as nebulosas seriam como buracos no firmamento através dos quais se acedia ao
34
céu de fogo. Da combinação destas sugestões retira Kant indicações de uma
ideia à qual ele crê poder dar uma maior verosimilhança e um mais coerente
desenvolvimento. Em suma, o inventário revela que o jovem filósofo se inspira
em fontes ecléticas e trabalha com materiais heteróclitos. De tudo isso só pode
resultar um discurso que em muitos dos seus pontos se apresenta como fundado
em «suposições apenas verosímeis» (auf wahrscheinliche Vermutungen) ou em
«conjecturas» (Muthmassungen), embora, ao mesmo tempo, o seu autor, guiando-
-se pelo fio condutor das analogias físicas e pela lei de continuidade, cuide de
manter a pertinência das suas propostas, evitando perder-se nas «arbitrárias
invenções» (willkührliche Erdichtungen) da fantasia.
Para cúmulo, as considerações e teorias cosmológicas propostas na obra
estão entretecidas com citações de vários poetas metafísicos da época (o suíço
Albrecht von Haller, professor em Göttingen e também ele cosmólogo, e os
ingleses Joseph Addison e Alexander Pope, autor do Essay on Man). A presença
citada deste último é tal que um comentador da obra de Kant chega a dizer que
35
ela é uma espécie de glosa em prosa dos versos de Pope , enquanto outros

31
«A Letter to the Right Honourable Georg Earl of Macclesfield concerning an apparent
Motion observed in some of the fixed Stars», publicada nas Philosophical Transactions
(1748), que Kant leu na tradução alemã publicada no Hamburgisches Magazin desse mesmo
ano.
32
Ak I, 228.
33
Histoire naturelle générale et particulière, Paris, 1749, lida na tradução alemã: Allgemeine
Historie der Natur nach ihren besonderen Theilen, Hamburg /Leipzig, 1750.
34
Astrotheology or a Demonstration of the Being and Attributes of God from a Survey of the
Heavens, London, 1715 (que Kant leu na trad. alemã de Fabricius, publicada em Ham-
burgo, em 1728, sob o título: Astrotheologie, oder Himmlische Vergnügen in Gott).
35
Arthur O. Lovejoy, The Great Chain of Being. A Study of the History of an Idea, Cambridge,
Mas., 1961, pp. 190-194, 367.

36
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

comentadores sugerem que ela deve ser lida não tanto como uma obra de cos-
mologia científica, mas mais como um verdadeiro e grandioso poema cosmogó-
nico.
Mas o que a obra juvenil de Kant testemunha exemplarmente é toda a ins-
trumentação da heurística kantiana em acção, organizada sobretudo em torno
do princípio de analogia. Por certo, só mais tarde Kant irá explicitar esses pres-
supostos da sua heurística filosófica, mas esta obra é porventura a melhor
amostra do modo como ele próprio a praticava com toda a agilidade e fecundi-
36
dade. O impulso racional para alcançar uma visão sistemática do universo
nutre-se do pressuposto da unidade ou homogeneidade da natureza e do princí-
pio de continuidade, de pregnância (da procura do máximo de inteligibilidade)
e de plenitude (dito sob a forma da «fecundidade do sistema») que o levam a
estender a teoria até aos seus máximos limites, não se contentando com explicar
uma parte apenas do universo, mas esforçando-se por projectar uma luz sobre o
todo, seguindo «o fio condutor da analogia» (Leitfaden der Analogie), sempre
invocado e assumido na sua função supletiva de demonstrações apodícticas ou
geométricas, que o jovem filósofo sabe não serem possíveis em todos os aspectos
do objecto em questão.
Em vários momentos da obra, Kant pronuncia-se expressamente sobre o
valor epistémico das diferentes partes e teses da obra, sobre a impossibilidade de
nelas assegurar o rigor das demonstrações geométricas, mas também sobre a
legitimidade do recurso a analogias para sustentar muitas das ideias propostas.
No final do longo Prefácio, lê-se esta declaração geral, que merece ser citada em
toda a sua extensão:
Seja-me permitido dar uma breve explicação a respeito da validade e do
pretenso valor [wegen der Gültigkeit und des angeblichen Werthes] das afir-
mações que aparecerão na teoria que proponho e pelas quais desejo ser
examinado por juízes justos. Julga-se com justiça o autor de acordo com o
selo que ele imprime na sua mercadoria; e por isso espero que nas diferen-
tes partes deste tratado não se exija nenhuma responsabilidade mais rigo-
rosa das minhas opiniões que não esteja na proporção do valor que eu pró-
prio lhes atribuo. Em geral, nunca um tratado deste género pode alcançar a
máxima precisão geométrica e a infalibilidade matemática. Se o sistema está

36
Veja-se o meu ensaio: «L’apport de Kant au programme de l’ars inveniendi des Modernes»,
apresentado no Congresso Ítalo-Luso-Brasileiro de Verona-Pádua (22-25 de Janeiro de
2008), «Kant and Philosophical Tradition-Kant Today», em: Kant e-Prints. Campinas,
série 2, v.3, n. 2, pp.297-323, jul.-dez., 2008. Em versão portuguesa ampliada, sob o
título «Kant e a ideia de uma heurística transcendental», in: Razão e Liberdade. Homena-
gem a Manuel José do Carmo Ferreira, CFUL, Lisboa, 2009, pp.1097-1111. Neste volume,
capítulo 2.

37
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

fundado sobre analogias e concordâncias segundo as regras da credibilidade


e dum correcto modo de pensar, então ele satisfaz todas as exigências do
seu objecto [Wenn das System auf Analogien und Übereinstimmungen nach
den Regeln der Glaubwürdigkeit und einer richtigen Denkungsart gegründet ist:
so hat es allen Forderungen seines Objects genug gethan]. Penso ter alcançado
este grau de competência em algumas peças deste tratado, como na teoria
do sistema das estrelas fixas, na hipótese da natureza das estrelas nebulosas,
no esboço geral do modo de geração mecânica do edifício do mundo, na
teoria dos anéis de Saturno e em algumas outras. Convicção algo menor
poderá ser garantida por algumas partes especiais da exposição, como por
exemplo a determinação das relações de excentricidade, a comparação das
massas dos planetas, os diversos desvios dos cometas, e algumas outras. Se,
por conseguinte, no sétimo capítulo, atraído pela fecundidade do sistema e
pelo agrado do maior e mais admirável objecto que se pode pensar,
seguindo continuamente o fio condutor da analogia e de uma credibilidade
racional, mas por certo com alguma audácia, desenvolvo tanto quanto pos-
sível as consequências do edifício doutrinal [zwar stets an dem Leitfaden der
Analogie und einer vernünftigen Glaubwürdigkeit, doch mit einiger Kühnheit
die Folgen des Lehrgebäudes so weit als möglich fortsetze], se exponho à ima-
ginação o infinito da criação inteira, a formação de novos mundos e a
morte dos antigos, o espaço sem limites do caos, espero merecer suficiente
indulgência para não ser julgado com o máximo rigor geométrico, o qual
de resto não tem lugar neste género de considerações, e isso tendo em
conta o estimulante agrado do objecto e o prazer que se tem de ver as con-
cordâncias de uma teoria na sua máxima extensão. É precisamente esta
justa apreciação que eu peço no que respeita à terceira parte. Ainda assim,
nela se encontrará sempre algo mais do que o meramente arbitrário,
37
embora sempre algo menos do que o indubitável.
Na mesma linha vai a seguinte passagem do referido capítulo VII da
Segunda Parte:
Eu não estou assim tão rendido às consequências que a minha teoria ofe-
rece que não deva reconhecer que a conjectura da sucessiva expansão da
criação através do espaço infinito […] não pode rejeitar completamente a
objecção de indemonstrabilidade. Todavia, espero daqueles que estão em
condições de apreciar os graus de verosimilhança que não julguem apres-
sadamente um tal mapa da infinitude como sendo uma quimera, mesmo se
ele contém um assunto que por certo está destinado a permanecer eterna-
mente oculto para o entendimento humano, principalmente se se tomar
37
Ak I, 235-236.

38
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

por auxílio a analogia, a qual nos deve guiar sempre naqueles casos em que
o entendimento carece do fio das demonstrações infalíveis [wenn man die
Analogie zu Hülfe nimmt, welche uns allemal in solchen Fällen leiten muss, wo
38
dem Verstande der Faden der untrüglichen Beweise mangelt].
Para além destas declarações gerais, também a propósito de muitas das suas
teses particulares Kant adverte para o seu estatuto de meras conjecturas, as quais
são propostas ao juízo do leitor para que as examine e lhes dê livre aprovação ou
as rejeite e até para que se torne ele próprio inventor de melhores soluções. A
explicação proposta para a luz zodiacal termina com esta declaração:
A presente explicação não tem mais dignidade do que aquela que cabe às
conjecturas e nenhuma pretensão a não ser a um livre assentimento; o juízo
do leitor pode inclinar-se para aquela solução que lhe pareça ser a mais
39
digna de aceitação.
E não falta mesmo neste ensaio o toque de auto-ironia do seu autor, mediante
o qual se retira à obra o carácter de grave seriedade e se a considera como se ela
fosse um mero exercício lúdico. É uma estratégia retórica, que se lhe tornará carac-
40
terística e que, de resto, fora usada por muitos dos grandes filósofos. E assim, evo-
cando uma conhecida fábula de Christian Gellert (Hans Nord), escreve Kant:
Se convido o leitor bem disposto a examinar as minhas opiniões, temo com
razão – já que as hipóteses deste tipo não são vulgarmente muito melhor
consideradas do que os sonhos filosóficos – que seja para ele um amargo
prazer decidir-se por uma investigação cuidadosa acerca de histórias da
natureza puramente imaginadas e seguir pacientemente o autor através de
todos os meandros pelos quais ele evita as dificuldades com que se defronta,
para finalmente talvez se rir da sua própria credulidade, tal como os espec-
41
tadores do charlatão londrino.
Se em muitos casos «a observação torna a conjectura praticamente indubi-
42
tável» [Die Beobachtung macht diese Muthmassung beinahe ungezweifelt], tam-
bém é verdade que a indemonstrabilidade actual de uma dada conjectura não
constitui por si critério suficiente para que a recusemos como carente de perti-
nência, pois o que hoje não é observável ou demonstrável pode vir a sê-lo no

38
Ak I, 315.
39
Ak I, 306.
40
Sobre a «ironia kantiana», veja-se o meu livro Metáforas da Razão ou economia poética do
pensar kantiano, pp.556-560.
41
Ak I, 234. Christian Fürchtegott Gellert (1715-1769) foi um influente poeta da Aufklärung
conhecido sobretudo pelas suas fábulas.
42
Ak I, 307.

39
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

futuro. E isso por duas principais razões. Em primeiro lugar, se atendermos às


dificuldades de observabilidade e ao aperfeiçoamento possível e desejável dos
instrumentos de observação (telescópios) que ampliam e corrigem as nossas
percepções dos objectos do espaço cósmico; e assim, se algo, como é o caso do
parentesco entre os cometas e os planetas quanto às respectivas órbitas, «não é
tão visível ao olho como desde há muito o é ao entendimento, isso se deve à
insuficiência ou a dificuldade da observação» [nur an dem Mangel der Beobach-
43
tung, oder auch an der Schwierigkeit derselben]. Em segundo lugar, se atender-
mos à própria história ou evolução do cosmos em processo de formação contí-
nua, o qual não é na sua forma actual aquilo que já foi ou aquilo que ainda virá
ou poderá vir a ser. Não entende bem a estrutura do cosmos aquele que não
chegar a reconhecer que ela é o resultado sempre instável e transitório de uma
história de convulsões cósmicas, a qual ainda se encontra em processo.
Com frequência Kant faz notar como a partir da teoria e das conjecturas
que propõe se abre um vasto campo para novas descobertas e apela mesmo a que
sejam feitas novas observações para as confirmar ou pôr à prova, à medida que
instrumentos ópticos mais aperfeiçoados o permitam. As conjecturas legitimam-
-se não só pelo que já fazem ver mas também pela sua fecundidade para desco-
bertas futuras. Elas não fecham o processo do conhecimento, mas antes o man-
têm em aberto, delineando pistas para novas investigações. Escreve o filósofo:
Abre-se aqui um amplo campo para descobertas, para o que a observação
tem de fornecer a chave. […] Se contemplamos as partes da natureza
segundo fins e segundo um esboço descoberto, tornam-se visíveis certas
propriedades que de outro modo não seriam vistas e permaneceriam ocul-
44
tas, se a observação sem orientação se dispersasse por todos os objectos.
A conjectura, como vimos, nem sempre pode fundar-se sobre observações
já feitas ou ser confirmada por elas. Em muitos casos, ela antecipa as observa-
ções a fazer, abrindo um campo de pesquisa no âmbito do qual novas observa-
ções tornadas possíveis pela conjectura vêm corroborar esta. Mas mesmo que tal
não aconteça e que a conjectura de partida tenha que ser por fim abandonada,
há sempre algum ganho neste processo e é melhor avançar com alguma conjec-
tura do que não ter nenhuma. Há, todavia, ainda uma outra prova da pertinência
da analogia conjecturante, que é a sua capacidade de fazer ver como todo um

43
Ak I, 278.
44
«Es steht hier ein weites Feld zu Entdeckungen offen, wozu die Beobachtung den Schlüs-
sel geben muss.[...] Wenn man die Theile der Natur nach Absichten und einem entdeckten
Entwurfe betrachtet, so eröffnen sich gewisse Eigenschaften, die sonst übersehen werden
und verborgen bleiben, wenn sich die Beobachtung ohne Anleitung auf alle Gegenstände
zerstreut.» Ak I, 255. Esta passagem revela a clara consciência que o jovem Kant tem da
função heurística do princípio teleológico, aliás explicitamente formulado.

40
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

conjunto de soluções se compagina de um modo, por assim dizer, espontâneo,


para iluminar um determinado campo de problemas, deixando ver simultanea-
mente tanto a beleza do objecto contemplado quanto a beleza da teoria que o
compreende. Esta razão de pertinência da analogia conjecturante, que resulta
tanto da sua fecundidade heurística como da sua capacidade sistemática, ou seja,
da sua congruência e da capacidade de preencher o vazio ou de ampliar o campo
de abrangência da teoria, exprime-se reiteradamente ao longo da obra. Num
passo já citado do Prefácio, escreve Kant que «se o sistema está fundado sobre
analogias e concordâncias segundo as regras da credibilidade e dum correcto
45
modo de pensar, então ele satisfaz todas as exigências do seu objecto.» Comen-
tando a sua explicação dos sistemas das chamadas estrelas fixas, como consti-
tuindo outras tantas galáxias semelhantes àquela em que se integra o nosso sis-
tema solar, declara que, se «tudo concorda perfeitamente e se as conjecturas, nas
quais a analogia e a observação concordam plenamente, reciprocamente se sus-
tentam, então elas possuem a mesma dignidade que têm as provas formais, e isso
nos legitima a considerar confirmada a certeza daqueles sistemas [wenn Muth-
massungen, in denen Analogie und Beobachtung vollkommen übereistimmen, einan-
der zu unterstützen, eben dieselbe Würdigkeit haben als förmliche Beweise, so wird
46
man die Gewissheit dieser Systemen vor ausgemacht halten müssen.]» E, falando
dos movimentos orbitais dos planetas do sistema solar, considera que «as analo-
gias na concordância destes movimentos indicam tão claramente a realidade da
47
origem mecânica dos mesmos, que não se pode pôr nisso qualquer dúvida.»
Lembra, por fim, «o verdadeiro prazer que nasce da percepção do encadeamento
regular, quando as analogias físicas se sustentam umas às outras para a designa-
ção das verdades físicas [dem wahren Vergnügen … welches aus der Wahrnehmung
des regelmässigen Zusammenhanges entspringt, wenn physische Analogien einander
48
zur Bezeichnung physischer Wahrheiten unterstützen.]»

45
«Wenn das System auf Analogien und Übereinstimmungen, nach den Regeln der Glaub-
würdigkeit und einer richtigen Denkungsart, gegründet ist: so hat es allen Forderungen
seines Objekts genuggetan.” Ak I, 235.
46
Ak I, 255.
47
Ak I, 335. Na mesma linha, após ter dado uma explicação da formação de todo o universo
tomando como amostra a formação do anel de Saturno, desenvolve uma comparação entre a
densidade relativa da matéria solar e da matéria dos planetas, declara: «Concluo este capítulo
acrescentando uma analogia [Analogie] que por si só pode elevar a presente teoria da forma-
ção mecânica dos corpos celestes para além da verosimilhança da hipótese a uma certeza
formal [über die Wahrscheinlichkeit der Hypothese zu einer förmlichen Gewissheit erheben
kann.]» E Kant prossegue, perguntando: «Se as consequências não artificiosas e necessárias
de uma doutrina encontram confirmações tão felizes nas relações efectivas da natureza, será
que devemos crer que é o simples acaso que produz esta concordância entre a teoria e a
observação?» Ak I, 277.
48
Ak I, 304.

41
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

Mais do que uma vez expressamente Kant remete para o futuro a desco-
berta das provas ou confirmações experimentais que hão-de dar razão da justeza
das suas intuições. E algumas destas foram de facto confirmadas ainda em vida
do filósofo, como foi o caso da descoberta de um novo planeta para além de
Saturno (o planeta Urano, em 1781), para já não falar da confirmação da sua
hipótese da formação do sistema solar e da Via Láctea, primeiro por parte de
Lambert (Cosmologische Briefe, 1761) e depois por parte do matemático-cosmó-
logo Simon Laplace (Système du Monde, 1796), ambos, segundo se crê, sem
49
terem tido prévio conhecimento da obra kantiana e da teoria nela exposta.
O recurso à conjectura revela e requer um espírito de aventura que está ao
serviço de um processo de acesso ao desconhecido, apresentado como uma
promissora viagem de descobrimento que não defraudará as expectativas dos
que nela venham a envolver-se. Não é por acaso que a obra é proposta como
uma arriscada empresa de viagem pelos oceanos cósmicos, pensada por analogia
com a viagem de descoberta do Novo Mundo por Cristóvão Colombo. Lê-se no
Prefácio: «Empreendi uma perigosa viagem com base numa frágil suposição e
avisto já ao longe os promontórios de novas terras. Aqueles que tiverem a cora-
gem de prosseguir a pesquisa hão-de caminhar sobre elas e terão o prazer de as
50
designar eles próprios com os seus nomes.» Se, na versão publicada, a alusão
ao navegador-descobridor aparece cifrada, esbatida e vaga, já no esboço do Pre-
fácio, encontrado entre os papéis do espólio do filósofo, ela surge explícita e
convicta: «Como Colombo, eu empreendi uma perigosa viagem com base numa
51
frágil suposição e descobri uma nova terra.»
Nesta aventura, onde a ousadia tem a sua boa parte – amiúde se fala da
«audácia» ou «ousadia do empreendimento» (die Kühnheit dieses Unterneh-
49
De facto, a obra de Kant, como alguém escreveu, teve o destino de um «nado-morto», pois,
devido à falência do seu editor, ela não teve adequada divulgação. Depois que, em 1761, nas
Cosmologische Briefe, J.-H. Lambert apresentou uma teoria muito semelhante à que ele pró-
prio propusera 6 anos antes, o filósofo sente a necessidade de, num ensaio de 1763, dar um
resumo da tese central da sua obra de 1755, aproveitando a ocasião para se referir à tese de
Lambert, lendo-a não como um plágio e sim como uma confirmação da sua própria, adu-
zindo inclusivamente a razão para o desconhecimento que a envolveu. Der einzige mögliche
Beweisgrund, Ak II, 68-69. Apesar das semelhanças, há contudo diferenças importantes entre
as hipóteses cosmológicas de Kant e de Lambert. Veja-se, a propósito, Hans Blumenberg, Die
Genesis der kopernikanischen Welt, Suhrkamp, Frankfurt a. M., 1981, Bd.3, 670. Também se
crê que Laplace não conhecia a obra de Kant, e nem mesmo a hipótese nela exposta, o que já
é bastante menos verosímil e difícil de admitir, embora a tese do cosmólogo francês tenha
um alcance muito mais limitado do que a do filósofo alemão.
50
Ak I, 221.
51
Vorredeentwurf z. Allg. Nat. u. Theorie des Himmels, Ak XXIII, 11. Veja-se o meu ensaio:
«Os Descobrimentos e a retórica da razão moderna» [1998/2000], in: Leonel Ribeiro dos
Santos, O espírito da letra. Ensaios de Hermenêutica da Modernidade, INCM, Lisboa, 2007,
pp.155 ss.

42
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

52
mens) –, Kant está bem ciente do risco que corre de romper o frágil equilíbrio
que garante às suas analogias e conjecturas a pertinência e a credibilidade racio-
nal e de vir a perder-se nos delírios da fantasia. Ao longo da sua obra ele crê ter
evitado isso mantendo-se fiel a dois critérios: ao fio condutor do princípio de
continuidade, que o impede de dar saltos no vazio, e ao «fio condutor das rela-
ções físicas», que lhe garante sempre alguma fundada verosimilhança. Isso o
leva a escrever, já na Terceira Parte da obra:
Seguimos as conjecturas até agora apresentadas rigorosamente ao fio das
relações físicas, o que nos permitiu manter-nos no caminho de uma credi-
bilidade racional. Mas se quisermos permitir-nos um desvio desta linha
para o campo da fantasia, quem nos mostrará os limites onde termina a
53
fundada verosimilhança e começam as arbitrárias invenções?
Seguidamente podemos ver como esses critérios se combinam para legiti-
mar as considerações propostas na última secção da obra.

4. «Seguindo o fio condutor da analogia»

É servindo-se ainda do pressuposto da analogia que Kant vai elaborar, na Ter-


ceira Parte da obra, o que se pode chamar uma antropocosmologia, na qual é
possível advertir já indicações no sentido do que será a futura antropologia
moral kantiana. Recorrendo ao princípio ou pressuposto da «cadeia dos seres»,
ideia que na verdade decorre do «princípio de continuidade», que ele já invo-
cara no final do seu ensaio de 1747, atribuindo-o a Leibniz, Kant glosa um
famoso tópico de um verso de An Essay on Man de Alexander Pope, «Great
Chain of Being», que cita na tradução de Brocke – «Welche eine Kette, die von
Gott den Anfang nimmt…» – e que verte nesta forma: «Tudo se liga em todo o
perímetro da natureza numa ininterrupta sucessão de graus, mediante a harmo-
54
nia eterna, que põe todos os membros em relação uns com os outros.»
Essa imagem ou ideia da «cadeia do ser» ou da scala naturae teve a sua
55
primeira significativa exposição na escola aristotélica e constitui na verdade um
pressuposto fecundo adoptado, por vezes de modo não assumido, por muitos
filósofos ao longo da história da filosofia. No longo estudo que à história dessa
ideia dedicou, Arthur Lovejoy destaca a grande aceitação que ela teve no século
52
Ak I, 234,235, 236.
53
Ak I, 365.
54
«So hängt denn alles in dem ganzen Umfange der Natur in einer ununterbrochenen
Gradfolge zusammen durch die ewige Harmonie, die alle Glieder auf einander beziehend
macht.» Ak I, 365.
55
Veja-se: Aristóteles, Historia Animalium VIII, 1.

43
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

XVIII entre filósofos, poetas e naturalistas, circulando como uma «frase sagrada»
56
carregada de pregnância semântica. Mas, segundo o mesmo Lovejoy, é na obra
juvenil de Kant que esse tópico recebe a «mais entusiástica elaboração». Será
ainda com essa mesma imagem que, mais tarde, o autor da Crítica do Juízo vai
expôr a sua concepção teleológica da natureza – segundo a qual, cada ser,
incluindo o próprio homem enquanto também é um ser da natureza, é como um
«membro na cadeia dos fins da natureza», cadeia onde cada qual é simultanea-
mente fim e meio relativamente aos outros.
Mas qual o lugar – físico, espiritual e moral – do homem nessa «cadeia»?
É a esta questão que pretende responder a III Parte do ensaio de cosmogo-
nia de 1755. E para tornar mais verosímeis as suas conjecturas (Muthmassungen)
a esse respeito, Kant propõe-se ainda nisso seguir o «fio condutor das relações
físicas» (Leitfaden der physischen Verhältnisse), o que o leva às seguintes pressu-
posições: 1ª) que a constituição física e elementar dos planetas deve com toda a
verosimilhança depender da respectiva distância relativamente ao seu centro de
calor; e, por conseguinte, quanto mais afastados do Sol, tanto mais subtil deverá
ser a sua constituição elementar e material, pois menos precisam da acção
directa do Sol; 2ª) que deve existir uma relação ou proporção entre a «constitui-
ção da matéria» (Beschaffenheit der Materie) dos planetas e a «capacidade espi-
ritual» (geistige Fähigkeit) e «constituição moral» (moralische Beschaffenheit) dos
57
respectivos habitantes que neles possa haver.
De acordo com estes dois pressupostos, os habitantes espiritual e material-
mente mais perfeitos no sistema solar deveriam ser os de Júpiter e de Saturno, se
os houve, houver ou vier a haver, coisa que Kant não podia saber, mas que
admitia como possível, não só no presente, mas no passado ou no futuro. Mas o
que importa é usar o princípio analógico para compreender o que se passa com
o habitante deste planeta intermédio que é a Terra. Ora, segundo Kant, dada a
sua constituição elementar e a sua condição espiritual e moral, a natureza
humana só poderia ocupar no sistema solar um planeta como a Terra. Pois a
natureza humana ocupa na escada dos seres como que o degrau mais médio,
encontrando-se no meio entre os dois extremos limites da perfeição de cujas
extremidades se encontra igualmente muito afastada. Corresponde-lhe, por isso,
como lugar de habitação, um planeta que é, juntamente com Marte «o membro
mais médio do sistema planetário» (die mittelsten Glieder des planetischen Systems),
e quanto à condição moral, em conformidade ainda com a analogia, ela situa-se

56
Lovejoy, The Great Chain of Being, pp.183 ss.
57
Um maior desenvolvimento deste tópico pode ver-se no meu ensaio «A antropocosmologia
do jovem Kant», in: Leonel Ribeiro dos Santos, Ubirajara R. de Azevedo Marques, Gregorio
Piaia, Marco Sgarbi, Riccardo Pozzo (coord.), Was ist der Mensch?/ Que é o Homem? – Antro-
pologia, Estética e Teleologia em Kant, CFUL, Lisboa, 2010, pp.219-230.

44
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

igualmente «entre dois pontos extremos» (zwischen den zwei Endpunkten), ou


seja, entre a virtude e o vício, «numa certa posição média entre a sabedoria e a
sem-razão» (ein gewisser Mittelstand zwischen der Weisheit und Unvernunft).
Explorando esta analogia, o filósofo afirma que o homem «encontra-se na peri-
gosa via média, onde a tentação dos estímulos sensíveis pode ter um forte poder
contra a soberania do espírito, mas não consegue desmentir aquela faculdade
mediante a qual ele está em condição de lhe oferecer resistência […] onde, por
conseguinte, está o perigoso ponto intermédio entre a fraqueza e o poder, pois
as mesmas vantagens que o elevam acima das classes mais baixas colocam-no
numa altura a partir da qual ele de novo pode cair infinitamente mais fundo
58
abaixo destas.»
Nestas considerações, que evocam as de alguns filósofos do Renascimento,
59
como Nicolau de Cusa, Giovanni Pico della Mirandola ou Marsílio Ficino , que
se inspiravam por igual nas fontes herméticas do Asclepius e do Pimander e nas
fontes cristãs e neoplatónicas, Kant está ainda a glosar os versos de Pope, que
descrevem a condição do homem como a de um «istmo», colocado num estado
intermédio entre o mundo inteligível e o mundo sensível, suspenso na dúvida
para agir ou não agir, para preferir o seu espírito ou o seu corpo.
Cabe perguntar que valor atribuía o jovem filósofo a estas suas considera-
ções ou conjecturas. Traduzirão elas uma autêntica convicção, ou são apenas um
exercício lúdico da sua fantasia exuberante? Logo no Prefácio da obra, Kant
advertira o seu leitor para o facto de que não atribui a essa parte da obra o
mesmo grau de certeza que atribui às partes anteriores. Mais do que uma vez ele
se questiona a respeito do estatuto epistémico e da legitimidade destas supostas
correspondências entre o mundo físico e o mundo moral. E embora esteja bem
consciente de que se trata nisso apenas de analogias mediante as quais a alma
humana tenta alcançar um pouco de luz a respeito de tão obscuros conheci-
mentos, de modo algum as considera como «ficções arbitrárias» (willkürliche
Erdichtungen). São, segundo expressamente diz, conjecturas que reivindicam
uma «verosimilhança fundamentada» (gegründete Wahrscheinlichkeit). Afirma
mesmo que «elas possuem um grau de credibilidade que não está muito longe
60
de uma certeza completa». E vai ao ponto de declarar que elas «quase exigem
uma total convicção [einen Anspruch auf eine völlige Überzeugung machen
61
sollte]». O que tais conjecturas, porém, nos colocam diante dos olhos é a indes-
58
Ak I, 366.
59
Veja-se o meu ensaio «O humano, o inumano e o sobre-humano no pensamento antro-
pológico do Renascimento», in: Leonel Ribeiro dos Santos, O espírito da letra. Ensaios de
Hermenêutica da Modernidade, pp.59-80.
60
Ak I, 359.
61
Ibidem.

45
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

mentível preocupação moral e antropológica que subjaz já ao ensaio cosmogó-


nico de 1755. Não se trata, pois, simplesmente de oferecer nele uma visão da
génese do cosmos e da sua organização sistemática segundo a economia das leis
newtonianas da atracção e repulsão, as quais, agindo mecanicamente, garanti-
riam a extracção contínua da ordem a partir do caos. Já neste ensaio, o filósofo
procura, em última instância, responder à máxima questão que se pode colocar
o homem, qual é a de saber «como ocupar convenientemente o seu lugar na
62
criação e entender correctamente o que tem de ser para ser um homem».
Em suma: conduzida pelo fio da analogia físico-cosmológica, começa aqui a
desenhar-se, com seus contornos já bem definidos, a antropologia moral kan-
tiana, apresentando o ser humano como um istmo, suspenso entre dois mundos
– entre o inteligível e o sensível, entre o espiritual e o material, entre a razão e as
paixões ou inclinações, entre a atracção para a virtude ou a tendência para o
vício – tendo por tarefa reconciliá-los em si mesmo mediante o esforço e a luta
permanentes neste palco terreno onde se desenrola a sua existência. Para além
do que possa valer para a compreensão do desenvolvimento futuro da antropo-
logia moral kantiana, a conjectura proposta é ainda significativa pelo diálogo
que permite estabelecer entre o pensamento do jovem Kant e o pensamento
antropológico da primeira Modernidade: a ideia do homem «istmo» remete para
a ideia do homem copula entre dois mundos, o superior e o inferior, o espiritual
e o material, que fora muito desenvolvida pelos pensadores do Renascimento.
Ele tanto pode degradar a sua condição divina como sublimar e divinizar a sua
condição terrestre e mundana e assim sublimar o próprio mundo. É a sua uma
função essencialmente mediadora. Ele constitui o termo médio entre Deus e o
Mundo, como obsessivamente o repetirá ainda o filósofo, já no ocaso da sua
vida, ao longo de toda a primeira centena de páginas que recolhem as suas der-
63
radeiras reflexões e que foram editadas sob o título de Opus postumum.
Mas a referida conjectura revela ainda outras particularidades. Nomeada-
mente, ela sugere ou deixa em aberto a possibilidade de o homem não ser o
único ser racional do universo, devendo antes considerar-se, com toda a verosi-
milhança, como sendo apenas um degrau, e mesmo o mais baixo, dos seres

62
Bemerkungen zu Beobachtungen, Ak XX,41. Como já o dizia Cassirer (ob.cit., p. 65):
«Kant investiga a ‘natureza’ para nela encontrar o ‘homem’». Kant, como vimos, não
atribuía por certo a esta parte da sua obra a mesma verosimilhança que atribuía às ante-
riores, mas disso não se pode concluir que não lhe reconhecia qualquer valor. Não se
entende por isso a atitude daqueles que, na tradução que da obra oferecem, prescindem
totalmente da sua terceira parte, como é o caso de W. Hastie, editor e tradutor da obra,
publicada sob o título: Kant’s Cosmogony as in his Essay on the Retardation of the Rotation
of the Earth and his Natural History and Theory of the Heavens, Glasgow, 1900 (reim-
pressa, igualmente truncada, pela Thoemes Press, Bristol, 1993).
63
Opus postumum, Ak XXI, 27, 36-37.

46
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

racionais. A ideia de que o cosmos pudesse ser habitado por outros seres racio-
nais e que, por conseguinte, o homem não fosse o único ser dotado de razão,
estava muito disseminada entre os pensadores renascentistas e modernos. Nico-
lau de Cusa abordara-a já na II Parte da sua obra Da douta ignorância, onde
expõe a sua cosmologia. Sucessivamente, grandes cosmólogos e filósofos da
natureza, como Bruno (Do infinito…, 1583), Campanella (Apologia pro Galileo,
1622), Descartes (Correspondance avec Burman), Christian Huyghens (Cosmo-
theoros sive de terris coelestibus earumque ornatu conjecturae, 1698), aduziriam
razões de plausibilidade ou mesmo de conveniência para uma tal hipótese e toda
uma vasta galeria de escritores, como Pierre Borel (Discours nouveau prouvant la
pluralité des mondes, que les astres sont des terres habités et la terre une étoile,
1657), Robert Burton (The Anatomy of Melancholy, 1638), François Bernier,
John Wilkins, Cyrano de Bergerac, Fontenelle, entre muitos outros, populariza-
64
ram a ideia. No tempo de Kant tal convicção estava de tal modo disseminada,
mesmo entre os pensadores da «Aufklärung», que Hans Blumenberg vai ao
ponto de dizer que ela tinha «o estatuto de um postulado prático» (den Rang
65
eines praktischen Postulats).
As razões e fundamentos apresentados para sustentar tal conjectura são
muito diversos naqueles autores. Mas o mais recorrente entre os filósofos é pre-
cisamente a invocação do princípio de plenitude, de pregnância e de continui-
dade, associados ao princípio de homogeneidade de todas as regiões do uni-
verso, segundo o qual os mesmos princípios valem em todo o espaço cósmico.
Desse modo, nenhum planeta tem direito a reclamar vantagens em relação aos
outros. Num universo, agora pensado como ilimitado ou mesmo como infinito,
que sentido faria pretender afirmar que só a Terra, um insignificante planeta,
fosse habitado, e que, em contrapartida, todos os inumeráveis planetas de outros
inumeráveis sóis não o fossem ou não pudessem vir a sê-lo? No seu Cosmotheo-
ros sive de terris coelestibus earumque ornatu conjecturae (publicação póstuma:
1698), Christian Huyghens recenseia, discute e rejeita muitas das ideias ante-
riormente apresentadas pelos filósofos para dar credibilidade a essa conjectura.
E a principal razão que ele próprio apresenta é que, se os outros planetas não
fossem habitados ou habitáveis, a Terra teria sobre eles uma vantagem que não
corresponderia à sua importância e que, além disso, para que o universo pudesse
ser apreciado em toda a sua beleza, seriam necessários espectadores racionais
nos outros planetas. Huyghens vê isso como uma consequência do princípio,

64
Veja-se: Steven J. Dick, Plurality of the Worlds: The Origin of the Extraterrestrial Life
Debate from Democritus to Kant, Cambridge University Press, Cambridge, 1982; J.
Crowe, The Extraterrestrial Life Debate 1750-1900. The Idea of a Plurality of Worlds from
Kant to Lowel, Cambridge University Press, Cambridge, 1986.
65
Die Genesis der kopernikanischen Welt, Suhrkamp, Frankfurt a.M., 1981, p.789.

47
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

admitido, segundo ele, pelos principais filósofos da sua época, segundo o qual a
66
natureza do universo é idêntica em toda a parte. É sabido o quanto esta ideia –
da habitabilidade de outros planetas por seres presumivelmente tão ou mais
racionais quanto o homem – contribuiu para a desconstrução das formas do
67
antropocentrismo teológico e filosófico na primeira Modernidade. No que a
Kant diz respeito, não se pense que tal ideia só aparece neste escrito de juven-
tude. Ela insinua-se ainda na própria formulação dos princípios da moral kan-
tiana do período crítico, pensados para seres racionais em geral e não apenas
68
para homens. Sob a estranha ideia kantiana do «reino dos fins» o que se diz é
essa possibilidade de o homem pela sua auto-legislação moral se colocar na
ampla comunidade dos seres racionais onde quer que eles existam. E, na tardia
Antropologia segundo um ponto de vista pragmático (1798), o filósofo admite
ainda que «pode muito bem acontecer que existam seres racionais em algum
69
outro planeta.»

5. Dimensão heurística e estética


do pensamento analógico e conjecturante

Se quiséssemos agora responder à questão de quais as funções que desempe-


nham a analogia e o pensamento conjecturante na juvenil obra de Kant que
vimos analisando, poderíamos apontar três como sendo as principais:
Em primeiro lugar, eles desempenham uma efectiva função de conheci-
mento. Trata-se, porém, de um conhecimento em processo de invenção ou de
descoberta, não de um conhecimento constituído e garantido. A sua função é,
pois, essencialmente heurística. O filósofo assume o risco da aventura em que se
envolve e tem consciência da ousadia e até do atrevimento da empresa a que se
entrega. Ele sabe que as suas conjecturas, forjadas seguindo o fio condutor da
analogia, só podem assegurar um conhecimento de probabilidade, mas, por
outro lado, também sabe que a probabilidade tem graus e que uma conjectura,
que tenha começado por ser meramente provável, verosímil ou plausível, pode
ao limite vir a tornar-se uma plena certeza, se for suportada por outras verdades
66
Christian Huyghens, The Celestial Worlds Discover’d [Cosmotheoros], Frank Cass &
Co. Ltd, Oxon, 1968 (reprod. facs. da 1ª ed. inglesa de 1698), pp.36 ss.
67
Veja-se: Paolo Rossi, La scienza e la filosofia dei moderni. Aspetti della rivoluzione
scientifica, Bollati Boringhieri, Torino, 1989.
68
Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, Ak IV, 408.
69
Anthropologie, Ak VII, 332. Veja-se: Viriato Soromenho-Marques, «Kant e a comunidade
dos seres racionais. Quatro notas críticas», in: Leonel Ribeiro dos Santos et alli (org.),
Kant: Posteridade e Actualidade, CFUL, Lisboa, 2006, pp.291-301; e também o meu ensaio
«A antropocosmologia do jovem Kant», já referido.

48
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

ou conjecturas e se vier a ser confirmada por novas observações, novos fenóme-


nos ou novos experimentos. Como o jovem filósofo expressamente o reconhece,
as conjecturas fundadas na analogia são, por certo, o substituto de um conheci-
mento perfeito, que o homem todavia não tem nem nunca terá, pelo menos a
respeito de certas matérias, como são precisamente as cosmológicas em muitos
dos seus aspectos. Tais conjecturas testemunham por certo as fragilidades e as
lacunas do conhecimento humano, mas também, ao mesmo tempo, a ilimitada
capacidade humana de as suprir ou preencher com susbtitutos de inteligibili-
dade, e constituem mesmo a única via possível para fazer efectivos avanços na
humana ciência.
Em segundo lugar, graças ao procedimento da analogia, é possível preen-
cher o vazio de racionalidade que existiria se só pudéssemos contar com verda-
des absolutamente certas e evidentes. É a pulsão de pregnância e de completude,
regida pelo princípio de continuidade e de homogeneidade da natureza, que leva
a supor que esta é em toda a parte igual a si mesma (natura est consimilis sui),
regida pelas mesmas leis e princípios, constituída pelos mesmos elementos,
variando apenas nas respectivas combinações e transformações, das quais é
impossível eliminar todos os factores de contingência. Tal como a natureza, tam-
bém a razão tem horror ao vazio. Por isso, a analogia, ao constituir-se como base
de conjecturas, cumpre uma função de sistematização em processo, proporcio-
nando-se como um princípio de fecundidade e de geração de novas conjecturas
que abrem para uma visão congruente não apenas de uma parte do universo mas
do todo. Já acima vimos como Kant é profundamente movido pelo impulso
«sistemático», pela preocupação de mostrar como se gera e subsiste a constitui-
ção sistemática de todo o universo, considerada tanto do ponto de vista da sua
estrutura como no da sua génese.
Em terceiro lugar, a analogia conjecturante revela uma iniludível dimensão
estética, proporcionando ao filósofo genuínas experiências de prazer intelectual.
Prazer não só na contemplação do objecto da teoria em toda a sua máxima ampli-
tude, mas também na auto-apreciação da teoria mesma, pelo que ela dá a ver e
sobretudo pelo que ela faz descobrir de luz onde antes só havia escuridão. Esta
dimensão estética não é apenas implícita, mas declara-se recorrentemente ao longo
70
da obra. No parágrafo final do Prefácio, as duas dimensões – a do prazer no
objecto da teoria e a do prazer na própria teoria – estão claramente associadas:

70
Que esta dimensão estética não é algo acidental, mas sim um ingrediente essencial de
todo o conhecimento, mesmo do científico – não, por certo, enquanto conhecimento
objectivo (referente às qualidades do objecto), mas enquanto conhecimento que é tam-
bém uma vivência de um sujeito –, pode ver-se pelo tratamento explícito que o assunto
virá a merecer no contexto da Crítica do Juízo (Einleitung, VI; § 62; Ak V, 186-187;
365). Na Primeira Introdução que escreveu para esta obra, Kant vai ao ponto de sugerir
que, se há alguém que é capaz de experimentar o prazer que resulta da admiração

49
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

Se, no sétimo capítulo, seduzido [angelocket] pela fecundidade do sistema


[Fruchtbarkeit des Systems] e pelo agrado [Annehmlichkeit] do maior e mais
admirável objecto que se pode pensar, seguindo continuamente o fio con-
dutor da analogia [Leitfaden der Analogie] e de uma credibilidade razoável
[vernünftigen Glaubwürdigkeit], mas por certo com alguma audácia [Künheit],
eu desenvolvo tanto quanto possível as consequências do edifício doutrinal,
se exponho à imaginação [Einbildungskraft] o infinito da criação inteira, a
formação de novos mundos e a morte dos antigos, o espaço sem limites do
caos, espero merecer suficiente indulgência para não ser julgado com o
máximo rigor geométrico, o qual de resto não tem lugar neste género de
considerações, e isso tendo em conta o estimulante agrado [reizenden
Annehmlichkeit] do objecto e o prazer [Vergnügen] que se tem de ver as
concordâncias [Übereinstimmungen] de uma teoria na sua máxima exten-
71
são.
No referido capítulo sétimo da Segunda Parte, o tom é ainda mais efusivo e
revela todo o pathos que anima a aventura intelectual do jovem filósofo:
É um prazer não pequeno [es ist ein nicht geringes Vergnügen] divagar com a
própria imaginação no espaço do caos, para além dos limites da criação
completada, e ver a natureza ainda meio rude, na proximidade da esfera do
mundo formado, perder-se a pouco e pouco, em todo o espaço informe,
através de todos os graus e matizes [Schattierungen] da imperfeição. Mas
poderia alguém dizer: não será uma ousadia censurável aventar uma hipó-
tese e apregoá-la como um assunto para deleite [Ergötzung] do entendi-
mento, a qual talvez seja apenas algo arbitrário, se considerarmos que a
natureza apenas está formada numa parte infinitamente pequena e que
infinitos espaços lutam ainda com o caos para expor [darzustellen], na
sucessão dos tempos futuros, exércitos completos de mundos e de ordens
72
de mundos em toda a conveniente ordem e beleza?
Cite-se ainda um outro passo, logo do início do mesmo capítulo, onde se
lê:
Mediante a sua incomensurável grandeza e a sua infinita variedade [Man-
nigfaltigkeit] e beleza [Schönheit], que nele brilham por todos os lados, o

(Bewunderung) da natureza e que nunca cessa, esse é o filósofo transcendental (dieser


Bewunderung würde schwerlich jemand anders als etwa ein Transzendentalphilosoph fähig
sein). Erste Einleitung in die Kritik der Urteilskraft, Ak XX, 216. Veja-se, neste volume, as
últimas páginas do cap. 2.
71
Ak I, 235-236.
72
Ak I, 315.

50
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

edifício cósmico mergulha-nos num espanto silencioso [setzt… in ein stilles


Erstaunen]. Mas se a representação de toda esta perfeição [Vollkommenheit]
comove a imaginação [die Einbildungskraft rührt], por outro lado, o enten-
dimento é tomado por uma espécie de encantamento [Entzückung], quando
contempla como tanta magnificência [Pracht] e tanta grandeza [Grösse]
73
decorrem com uma ordem eterna e regular de uma única regra universal.
Na verdade, porém, o sentimento estético que a contemplação do cosmos
proporciona não cabe tanto na fenomenologia de uma experiência do belo
quanto na de uma experiência do sublime. Aquilo para que o filósofo verdadei-
ramente nos convida é para a contemplação de uma colossal cosmotragédia, em
que os mundos são vistos a morrer e a nascer num processo incessante e, nesse
processo, também o mundo habitado pelos homens é dissolvido e submerso no
caos, dando matéria para a criação de novos mundos futuros. Mas nem mesmo a
magnitude da tragédia cósmica – na qual o espectador se vê ele mesmo subme-
tido à comum e universal lei de destruição e recriação – consegue peturbar a
felicidade do filósofo que a contempla e que nisso vê uma inequívoca prova de
que a sua destinação última não se confina ao mundo terreno e sensível, mas se
abre à comunidade com o próprio Criador do universo. O espectador que se
elevou a uma tal altura pode então dizer:
Deixemos que o nosso olhar se acostume a estas terríveis destruições como
sendo os caminhos habituais da Providência e consideremo-las até com
uma espécie de satisfação [mit einer Art vom Wohlgefallen]. … Se seguirmos
através de toda a infinidade dos tempos e dos espaços esta fénix da natu-
reza que apenas se consome para renascer rejuvenescida das próprias cin-
zas, se virmos como, na mesma região em que ela entra em decadência e
envelhece, a natureza é inesgotável em novas manifestações e como, no
outro limite da criação, no espaço da matéria bruta ainda não formada, ela
avança com passos constantes na expansão do plano da revelação divina,
para encher com os seus prodígios tanto a eternidade como todos os espa-
ços: então o espírito que reflecte sobre tudo isso mergulha numa profunda
admiração [so versenkt sich der Geist, der alles dieses überdenkt, in ein tiefes
Erstaunen]. [...] Com que espécie de temor reverencial [Ehrfurcht] a alma
não deve considerar o seu próprio ser, quando ela deve ainda sobreviver a
todas essas transformações […] Como é feliz quando, sob o tumulto dos
elementos e dos escombros da natureza, ela se vê situada sempre a uma
altura a partir da qual pode ver passar, por assim dizer a seus pés, as
devastações devidas à fragilidade das coisas do mundo. […] A natureza
inteira, que para o prazer da divindade possui uma relação harmoniosa

73
Ak I, 306.

51
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

universal, não pode senão encher de satisfação contínua [nicht anders als
mit immerwährender Zufriedenheit erfüllen] esta criatura racional que se
encontra unida a esta fonte originária de toda a perfeição. Vista a partir
deste ponto central, a natureza mostrará por todos os lados completa segu-
rança e conveniência. As cenas cambiantes da natureza não têm poder para
perturbar o repouso da felicidade [den Ruhestand der Glückseligkeit] de um
74
espírito que se tenha elevado a uma tal altura.
Em suma: o jovem pensador que, no Prefácio da obra, não escondera a sua
faceta de confiante aventureiro e que ao longo da mesma se revelou tão ousado
de conjecturas com as quais queria dar ideia da constitutição sistemática e da
formação mecânica do universo, termina a sua aventurosa viagem num senti-
mento de prazer inefável, numa admiração e contemplação silenciosa do cos-
mos, que se balbucia nestas palavras finais da obra:
Quando se tem o espírito repleto destas considerações e das que as prece-
deram, a vista de um céu estrelado numa noite serena proporciona uma
espécie de prazer que só as almas nobres sentem [eine Art des Vergnügens,
welches nur edle Seelen empfinden]. No silêncio geral da natureza e no
repouso dos sentidos, o poder oculto de conhecimento do espírito imortal
fala uma linguagem sem nome e dá conceitos ainda não desenvolvidos, que
75
podemos certamente sentir, mas que não se deixam descrever.
E assim, o que se anunciara como uma promissora aventura científica ter-
mina numa iniludível experiência estética da natureza e do cosmos, que exibe
todos os ingredientes fenomenológicos de uma vivência do sublime, tal como
estes virão a ser descritos muito mais tarde pelo filósofo na sua terceira Crítica,
pois, segundo nesta obra escreve, «é no caos e na mais selvagem e desregrada
desordem e destruição, quando só a grandeza e o poder se deixam ver, que
76
somos estimulados para as ideias do sublime.»

6. Os pressupostos epistémicos
e metafísicos da cosmoteologia

Deveriamos, por fim, perguntar em que pressupostos Kant baseia a sua tão
grande confiança no «fio condutor da analogia». Embora eles não sejam men-
cionados de uma forma explícita, deixam-se contudo ler com suficiente nitidez
na espessura dos enunciados. Poderíamos identificar aí, por certo, pressupostos

74
Ak I, 319-322.
75
Ak I, 367.
76
Kritik der Urteilskraft, § 23, Ak V, 246; Veja-se também: §§ 26-29; Ak V, 251-265.

52
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

metafísicos e até teológicos, mas sobretudo pressupostos epistémico-metodoló-


gicos. Entre estes últimos, encontram-se alguns que também podemos encontrar
de forma explícita em Leibniz (aqueles a que chamava «princípios arquitectóni-
cos») e, de forma mais ou menos explícita ou apenas ímplicita, em muitos
outros pensadores modernos, nomeadamente, em Descartes, em Huyghens e até
em Newton. São eles:
1º) o pressuposto da homogeneidade ou uniformidade da natureza, tam-
bém chamado na época precisamente o princípio da «analogia da natureza» e
77
por vezes expresso na máxima natura est consimilis sui. Ele dobra-se com o
pressuposto da homogeneidade da razão: os mesmos princípios ou as mesmas
78
leis valem para toda a natureza.
2º) o pressuposto da unidade ou sistematicidade da natureza e do cosmos,
de acordo com o qual tudo se liga em toda a extensão da natureza, bastando
encontrar o módulo arquitectónico que garante essa interligação. A juvenil obra
de Kant exprime de uma forma superlativa o impulso para a sistematização e
para o sistema. Mas trata-se de um sistema em processo, no qual estão em per-
manente tensão as forças de estruturação e as de génese, as de estabilidade e as
de desestruturação criadora. A preocupação com o «sistemático que liga os
grandes membros da criação na grande extensão da infinidade» é mesmo uma
das propostas mais significativas desta obra juvenil de Kant no campo da ciência
cosmológica da Modernidade. Mas, para além disso, a imaginação cosmológica e
a matriz do sistema cosmológico exposta na obra de 1755 afirmar-se-á como
uma das mais fecundas de quantas conferem pregnância semântica à ideia kan-
tiana de sistema, trate-se do sistema federal e cosmopolita dos Estados ou do
sistema da razão e do espírito e das suas faculdades e respectivas legislações
transcendentais.
3º) o pressuposto da continuidade da natureza ou da lex continui in natura,
com frequência invocado em formulação negativa – natura non facit saltus; non
datur vacuum formarum/specierum –, o qual, na época, era traduzido na preg-
nante imagem da «grande cadeia do ser», segundo a qual tudo se liga em toda a
extensão da natureza e do universo. No fundo, é este o pressuposto que mais

77
Leibniz formulava-o do seguinte modo: «La nature est toujours la même dans le fond des
choses quoyqu’elle se serve d’une grande varieté dans les manières». Leibniz, A Sophie Char-
lotte (1703 ?), apud Ph. Beeley, «Gleichförmigkeit und Analogie bei Leibniz oder ‘Die
leichteste Philosophie der Welt’», in: Q. Racionero / C. Roldán (eds.), G. W. Leibniz.
Analogía y Expresión, Madrid, 1994, 547-551.
78
Tal princípio era de aceitação tão corrente entre os filósofos e cientistas da natureza da
época que o autor do verbete «Analogie» para a Encyclopédie podia escrever: «On fait en
Physique des raisonnements très-solides par analogie. Ce sont ceux qui sont fondés sur
l’uniformité connue, qu’on observe dans les opérations de la nature.» Encyclopédie ou
Dictionnaire raisonné des Sciences, des Arts et des Métiers, Tome I, Paris, 1751, p.399.

53
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

imediatamente sustenta o próprio procedimento analógico, legitimando as pas-


sagens ou transposições, sempre graduais, de um campo a outro, do próximo ao
mais distante, do visível ao invisível, do mais simples ao mais complexo, do
conhecido ao desconhecido. Darei apenas um exemplo. Falando dos cometas e
das suas órbitas excêntricas, Kant considera estas ainda redutíveis à mesma regra
que rege todas as órbitas dos corpos celestes, desde que se tenha em conta que
«a natureza age aqui, como em toda a parte, mediante insensíveis desvios e, na
medida em que percorre todos os níveis de transformações, ela liga as proprie-
dades mais afastadas às mais próximas mediante uma cadeia de membros inter-
médios. […] Esta determinação conduz, por uma escada constante, passando
79
por todos os graus possíveis de excentricidade, dos planetas até aos cometas.»
4º) o pressuposto da simplicidade e economia da natureza e das suas leis,
também conhecido como a lex parsimoniae: se poucas leis e muito simples podem
explicar a totalidade dos fenómenos, não há que invocar outras. Foi assim que,
para desenhar todo o «mapa da infinidade» do universo, bastaram a Kant as leis
newtonianas da atracção e da repulsão, mas por certo agilizadas, ampliadas e
potenciadas por algumas conjecturas ou suposições.
5º) o pressuposto de pregnância ou satisfação, o qual se deixa traduzir
noutros tópicos recorrentes ao longo da obra, tais como: «ordem», «mútua
conformidade», «conveniência», «concordância», «acordo», «harmonia», «beleza».
Assim, será preferível a explicação – seja ela teoria, hipótese ou conjectura – que
dê cabalmente razão de toda a grandeza e beleza do universo, ou que a faça ver
de algum modo que seja, e que satisfaça também o impulso de compreensão ou
de explicação que move a teleologia imanente da razão humana.
Estes pressupostos não são senão aqueles que se encontram condensados
nas «sentenças dos filósofos de todos os tempos» ou nas «máximas da sabedoria
metafísica», a que Kant dará pela primeira vez explícita atenção no § 30 da Dis-
sertação de 1770, retomando-os depois em nova elaboração e já num enquadra-
mento orgânico e sistemático no Apêndice à Dialéctica Transcendental da Crí-
tica da Razão Pura, considerando-os aí já explicitamente como pressupostos
transcendentais da economia da razão, sob os nomes do princípio de unidade ou
homogeneidade, do princípio de especificação ou diversidade e do princípio de
continuidade ou afinidade. Acaba por reconhecê-los, nas Introduções à Crítica
do Juízo, como «máximas da faculdade de julgar reflexionante», mediante as
quais se expõe o próprio princípio transcendental da «Zweckmässigkeit der
Natur», isto é, o pressuposto transcendental de que a natureza, em toda a multi-
plicidade e diversidade das suas leis empíricas e formas particulares e contin-
gentes, consente em corresponder, como que espontânea e graciosamente, à
necessidade de intelecção e de compreensão do entendimento humano, reve-

79
Ak I, 277-278.

54
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

lando-se-lhe como um sistema, não apenas de causas e efeitos, mas também de


80
fins.
Haveria assim, apesar da distância temporal de três décadas e meia, uma
ligação profunda entre a obra de 1755 e a de 1790, na qual o filósofo pretende
legitimar a apreciação e representação da natureza como um vasto sistema de
fins ao qual se subordina a própria visão mecanicista. Na verdade, embora a obra
juvenil se proponha apresentar uma explicação da origem mecânica do universo
segundo os princípios newtonianos e pretenda mostrar que tais princípios (as
forças atractivas e as forças repulsivas) bastam para que a natureza por si mesma
produza todos os seus efeitos e se estruture em ordens cada vez mais complexas
a partir da matéria elementar caótica original, há nela todavia muito fortes indi-
cações e explícitas passagens que apontam no sentido de que as causas e leis
mecânicas em acção no cosmos obedecem a um superior desígnio inteligente, o
qual só pode ser atribuído ao seu sábio criador. Numa dessas passagens, per-
gunta-se: «A mecânica de todos os movimentos naturais não deverá tender
essencialmente a não ter outras consequências senão aquelas que concordam
81
com o projecto da razão suprema em toda a extensão das relações?»
Na resposta que o jovem filósofo logo aduz para esta questão podemos
reconhecer o mais fundo princípio metafísico-teológico que dá razão de todos os
pressupostos antes enunciados e do próprio recurso à analogia: a razão das afi-
nidades que descobrimos entre os seres da natureza reside na sua comum ori-
gem, no facto de todos eles, no campo das verdades eternas ou na mente do ser
que os criou, formarem um sistema no qual cada um se relaciona com todos os
outros, sendo que a respectiva disposição na ilimitada extensão do espaço e na
ordem sucessiva do tempo apenas explicita e desenvolve essa concatenação ori-
ginária. Escreve Kant:
Quanto mais se conhece de perto a natureza, tanto melhor se verá que as
qualidades gerais das coisas não são estranhas nem separadas umas das
outras. Convencer-nos-emos suficientemente de que elas têm afinidades
essenciais, mediante as quais se dispõem por si mesmas a apoiar-se umas às
outras para estabelecer as organizações mais perfeitas, para produzir a acção
recíproca dos elementos com vista à beleza do mundo material, mas também,
ao mesmo tempo, para o benefício do mundo dos espíritos; e, duma maneira
geral, convencer-nos-emos de que as naturezas singulares das coisas formam
já entre si, por assim dizer, no campo das verdades eternas, como que um
sistema no qual cada uma se relaciona com todas as outras. Aperceber-nos-
-emos depressa de que esta afinidade lhes vem da sua comunidade de origem

80
Veja-se o segundo ensaio deste volume.
81
Ak I, 363.

55
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

[die Verwandtschaft ihnen von der Gemeinschaft des Ursprungs eigen ist], à qual
82
devem todas juntamente as suas determinações essenciais.
Atingimos aqui, na verdade, o mais fundo pressuposto que dá razão das
analogias da obra cosmológico-cosmogónica do jovem Kant. E já não se trata de
um mero pressuposto epistémico, mas sim de um verdadeiro pressuposto meta-
físico-teológico. As convenientes ordenações (geschickte Anordnungen) que des-
cobrimos na natureza e que apontam para um fim pertinente (welche auf einen
würdigen Zweck abzielen) provam que elas têm a sua origem num sábio enten-
dimento (einem weisen Verstand zum Urheber haben mussen). Mas essa finalidade
está incorporada, como se se tratasse de uma «arte oculta» (geheime Kunst), nas
forças da natureza, as quais, mesmo se deixadas entregues a si mesmas, não dei-
83
xarão de, a partir do caos, produzir uma perfeita constituição do mundo. O que
destas forças resulta não é, pois, efeito de um cego acaso ou de uma necessidade
irracional, mas expressão da suprema sabedoria, da qual originariamente decor-
rem todas as propriedades do universo e todas as concordâncias que nele se
encontram. E assim o jovem filósofo pode extrair duas conclusões, que consi-
dera igualmente correctas e que convergem no mesmo sentido:
A primeira é que, se na constituição do mundo brilham a ordem e a beleza,
então existe um Deus. Só que a outra não é menos bem fundada, a saber,
aquela que diz que, se essa ordem pôde ter decorrido das leis universais da
natureza, então toda a natureza é necessariamente um efeito da suprema
84
sabedoria.
E assim pensa o jovem filósofo satisfazer tanto o livre espírito de um natu-
ralista seguidor de Epicuro que tudo atribuísse à natureza, como o espírito
devoto de um homem religioso que tudo atribuísse ao supremo autor da natu-
reza. Os capítulos VII e VIII da Segunda Parte da obra desenvolvem já com
grande ousadia e desenvoltura toda uma cosmoteologia, animada pelo propósito
de conciliar de uma forma original as perspectivas da religião e as da ciência da
natureza, sem ter de sacrificar uma à outra.
Em suma: lendo a obra de 1755, pudémos acompanhar o amplo e cons-
ciente recurso à analogia por parte de Kant como fundamento para a formulação

82
Ak I, 364.
83
Ak I, 229. Aqui temos, sem dúvida, a primeira aparição de um tema que se tornará
central na economia da Crítica do Juízo, o de uma «Técnica da Natureza» (Technik der
Natur), ou seja, a consideração da natureza como se fosse guiada nas suas produções por
um interno desígnio, enfim, como se ela se produzisse artisticamente e fosse análoga da
arte (Natur als Kunst). Erste Einleitung in die Kritik der Urteilskraft, vii, Ak XX, 219-221;
Kritik der Urteilskraft, § 23, Ak V, 246. Veja-se o terceiro capítulo deste volume.
84
Ak I, 346.

56
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

das suas conjecturas cosmológicas e cosmogónicas. Não encontramos aí, por


certo, uma doutrina explícita da analogia, como tão pouco a encontraremos
completamente sistematizada, mesmo nos desenvolvimentos posteriores do pen-
samento kantiano, embora, por várias vezes, o filósofo se veja na necessidade de
clarificar um pouco a natureza desse procedimento, o sentido em que faz uso
dele e até a respectiva legitimidade. Não faltam, todavia, dispersos embora pelas
várias obras do filósofo, os elementos suficientes para reconstituir uma tal dou-
85
trina. Num ensaio de 1763, que se pode considerar como assinalando uma
nova orientação do seu pensamento, determinada já pelo sentido prioritário da
pesquisa metafísica, e onde oferece, como Apêndice a uma das secções, uma
síntese do ensaio de Cosmogonia de 1755, ao mesmo tempo que invoca a analo-
gia como fundamento para as suas suposições – (die Analogie ist hier ein sehr
86
grosser Grund zu vermuthen) –, Kant faz uma explícita declaração a respeito da
importância filosófica que reconhece ao tópico, nestes termos:
Eu noto de passagem que a grande correspondência mútua que reina entre
as coisas do universo, dando-nos uma frequente ocasião para descobrir
semelhanças, analogias, paralelos – ou como se queira chamar-lhes – não
merece ser vista por alto e de forma tão passageira. […] Reside aí, segundo
penso, ainda escondido um importante assunto para a reflexão do filósofo,
a de saber como é possível um acordo de coisas tão diferentes num certo
fundamento comum de uniformidade tão grande e tão vasta e ao mesmo
tempo tão estrita. Estas analogias são também meios auxiliares muito
necessários do nosso conhecimento e a própria matemática fornece exem-
87
plos disso.

85
Para uma reconstituição da doutrina kantiana da analogia, veja-se: Sueo Takeda, Kant
und das Problem der Analogie. Eine Forschung nach dem Logos der Kantischen Philosophie,
Martinus Nijhoff, Den Haag, 1969; François Marty, La naissance de la Métaphysique chez
Kant. Une étude sur la notion kantienne d’analogie, Paris, 1980; Idem, «L’analogie chez
Kant. Une notion critique», Les Études Philosophiques, 1989, 455-474 ; Annemarie Pieper,
«Kant und die Methode der Analogie», in: G. Schönrich / Y. Kato (Hrsg.), Kant in der
Diskussion der Moderne, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1996; Arthur Melnick, Kant’s
Analogies of Experience, Chicago University Press, Chicago/London, 1973; Bernard Lake-
brink, «Der kantische Begriff einer tranzendentalen Analogie», Philosophisches Jahrbuch,
68 (1960); Michel Guérin, «Kant et l’ontologie analogique. Recherches sur le concept
kantien d’analogie», Revue de métaphysique et de morale, 1974, pp.540 ss.
86
Der einzige mögliche Beweisgrund, Ak II, 140.
87
«Ich merke im Vorübergehen an, dass da grosse Gegenverhältniss, das unter den Din-
gen der Welt in Ansehung des häufigen Anlasses, den sie zu Ähnlichkeiten, Analogien,
Parallelen und, wie man sie sonst nennen will, geben, nicht so ganz flüchtig verdient
übersehen zu werden. [...] Liegt hierin noch für den Philosophen ein, wie mir dünkt,
wichtiger Gegenstand des Nachdenkens verborgen, wie solche Übereinkünft sehr vers-

57
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

Esta passagem bem pode ser posta em paralelo com uma outra que se lê no
§59 da Crítica do Juízo, onde, falando da operação envolvida no esquematismo
simbólico, na qual o juízo reflexionante procede «por meio de alguma analogia»
– (vermittelst einer Analogie, nach einer Analogie) –, Kant declara: «Esta operação
foi até ao presente ainda pouco analisada, por muito que ela também mereça
88
uma investigação mais aprofundada.»

chiedener Dinge in einem gewissen gemeinschaftlichen Grunde der Gleichförmigkeit so


gross und weitläufig und doch zugleich so genau sein könne. Diese Analogien sind auch
sehr nöthige Hülfsmittel unserer Erkenntniss, die Mathematik selber liefert deren einige.»
Ibidem, Ak II, 132-133.
88
«Dies Geschäft ist bis jetzt noch wenig auseinandergesetzt worden, so sehr es auch
eine tiefere Untersuchung verdient.» Kritik der Urteilskraft, Ak V, 352.

58
2
Ideia de uma Heurística Transcendental,
ou o contributo de Kant para a
ars inveniendi dos Modernos

Pois acontece que o autor e muitas vezes até os seus


seguidores mais tardios se enganam acerca de uma ideia
1
que não conseguiram tornar clara para si mesmos…

O meu propósito, neste capítulo, é mostrar como a filosofia kantiana contribuiu


de forma decisiva para a realização do programa filosófico, enunciado pela pri-
meira vez expressamente por Francis Bacon e retomado sucessivamente por
alguns dos mais destacados pensadores modernos, de elaboração de uma ars
inveniendi, ou seja, de constituição de uma lógica da descoberta do desconhecido
e da invenção do novo, nas ciências, na filosofia e nas artes. Após uma referência
sucinta às mais relevantes formulações que esse programa mereceu da parte dos
filósofos dos séculos XVII e XVIII, identifico alguns lugares das obras de Kant
onde ele encontra ainda eco e até explícito desenvolvimento. Em seguida, ainda
em correlação com esse mesmo tópico e programa, proponho uma interpretação
de alguns outros passos das principais obras do filósofo crítico (do § 30 da Dis-
sertação de 1770 Acerca da forma e dos princípios do mundo sensível e do mundo
inteligível, do Apêndice à Dialéctica Transcendental da Crítica da Razão Pura e
de alguns parágrafos das Introduções à Crítica do Juízo), na verdade pouco aten-
didos pela hermenêutica do Kantismo, nos quais todavia se deixa ler bem a ine-
quívoca e recorrente preocupação de Kant com o que se poderia designar como
uma Heurística Transcendental.

1. Ars inveniendi: um programa filosófico dos Modernos

O projecto de elaboração de uma ars inveniendi, que estabelecesse as regras do


método para descobrir o desconhecido ou para inventar o novo, tanto no domí-
nio das ciências como no domínio das artes, foi um dos mais caros aos pensado-
1
«Denn da wird sich finden, dass der Urheber und oft noch seine spätesten Nachfolger
um eine Idee herumirren, die sie sich selbst nicht haben deutlich machen…». Kritik der
reinen Vernunft B 862; Ak III, 540.

59
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

res modernos. Tal projecto respondia ao crescente interesse da época pela novi-
dade e ao pathos da descoberta, à exigência e demanda do progresso contínuo
dos conhecimentos e também à convicção cada vez mais generalizada da supe-
2
rioridade dos Modernos sobre os Antigos.
Francis Bacon foi o primeiro filósofo a formulá-lo expressamente, conce-
bendo-o como parte de uma lógica nova, alternativa à lógica aristotélica e esco-
lástica. Estas eram acusadas de servir apenas para demonstrar o que já se sabe,
sendo porém completamente inúteis para descobrir ou inventar novos conheci-
mentos. As ideias do filósofo inglês sobre este tópico foram decisivas também
para a transformação do sentido tradicional da palavra invenção (inventio), que
até então estava associada sobretudo ao uso no contexto da Retórica dos Antigos
e dos Humanistas, e à qual ele conferiu e fixou o significado moderno. É assim
que o escreve:
A invenção dos argumentos não é, propriamente falando, uma invenção.
Inventar é descobrir coisas desconhecidas, e não receber ou recordar as já
3
anteriormente conhecidas.
O filósofo inglês conhecia por certo as peculiares dificuldades da nova
lógica da invenção que se propunha fundar e cuja urgência e grande utilidade
enfatizava. Com efeito, ao contrário do que acontece com a lógica tradicional da
Escola, as regras da nova lógica não consentem que as determinemos a priori e
de uma vez por todas, sendo necessário extraí-las da própria experiência e do
4
processo das invenções e das descobertas. E embora ele próprio muito tivesse
contribuído para delinear os contornos da nova lógica, sabia estar longe de ter
dado dela a forma acabada, deixando-a como tarefa para os vindouros. E é assim
que, ao longo dos séculos XVII e XVIII, é possível acompanhar em sucessivas
novas formulações o programa baconiano de constituição de uma ars inveniendi,

2
Sobre esta consciência de época, vejam-se os meus ensaios: «Os Descobrimentos e a retórica
da razão moderna» e «Dos Antigos aos Modernos. Concepção da História e consciência de
época nos pensadores dos séculos XV a XVII», in: Leonel Ribeiro dos Santos, O espírito da
letra. Ensaios de hermenêutica da Modernidade, INCM, Lisboa, 2007, respectivamente, pp.129-
-167 e 93-128.
3
«Inventio argumentorum inventio proprie non est. Invenire enim est ignota detegere, non
ante cognita recipere aut revocare.» Francis Bacon, De dignitate et augmentis scientiarum, in:
The Works of Francis Bacon [W], ed. Spedding/Ellis/Heath, London, 1858, I, 633.
4
«Futilem enim esse constat et angusti cujusdam animi, qui existimet artem de scientiis
inveniendis perfectam jam a principio excogitari et proponi posse; eandemque postea in
opere poni et exerceri debere. At certo sciant homines, Artes inveniendi solidas et veras
adolescere et incrementa sumere cum ipsis inventis; adeo ut cum quis primum ad perscruta-
tionem scientiae alicujus accesserit, possit habere Praecepta Inventivae nonnula utilia; post-
quam autem ampliores in ipsa progressus fecerit, possit etiam et debeat nova Inventionis
Praecepta excogitare, quae ad ulteriora eum foelicius deducant.» Ibidem, W I, 636.

60
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

podendo mesmo dizer-se que este programa teve a capacidade de mobilizar


alguns dos mais importantes filósofos modernos.
Seja, em primeiro lugar, Descartes, o autor das Regulae ad directionem inge-
nii (1628), obra inacabada, que se apresenta, todavia, como um método para
«inventar a verdade». Mas para Descartes o modelo deste método é a mathesis
universalis ou a análise dos antigos geómetras, na qual o filósofo francês pensa
ter encontrado um meio para descobrir e desenvolver todos os conhecimentos
certos e evidentes que a razão por si só pode extrair de seu próprio fundo. Na
«Resposta às Segundas Objecções» às Meditationes de Prima Philosophia encon-
tra-se esta declaração do filósofo:
A análise mostra a verdadeira via pela qual uma coisa foi metodicamente
inventada e faz ver como os efeitos dependem das causas; de tal modo que
se o leitor a quiser seguir e olhar cuidadosamente para tudo o que ela con-
tém, ele não entenderá menos perfeitamente a coisa assim demonstrada e
5
não a tornará menos sua do que se a tivesse ele mesmo inventado.
Mas, para além da redescoberta análise dos antigos geómetras, Descartes
serviu-se de muitas outras estratégias para a invenção e a descoberta de novos
conhecimentos, sobretudo na sua Física, a tal ponto que os seus críticos seis-
centistas e setecentistas o acusaram de ter proposto não uma verdadeira física
6
mas sim um «engenhoso romance», um «romance da natureza».
O programa da ars inveniendi será retomado no fim do século XVII, sobre-
7
tudo nos tratados de Lógica de alguns pensadores alemães, como Tschirnhaus e
8
Thomasius . Mas é com Leibniz que ele recebe um novo impulso e obtém o reco-
nhecimento de toda a sua importância filosófica. O filósofo da harmonia trata o
tema em sucessivas retomadas, mas quase sempre no contexto da explicitação do
que ele chama os «princípios arquitectónicos» ou «princípios de conveniência»,
cuja legitimidade defende com convicção e persistência frente àqueles que
5
«Analysis veram viam ostendit per quam res methodice et tanquam a priori inventa est,
adeo ut, si lector illam sequi vellit atque ad omnia satis attendere, rem non minus per-
fecte intelliget suamque reddet, quam si ipsemet illam invenisset.» Descartes, Secundae
Responsiones, in: Oeuvres, ed. Adam-Tannery, VII, 155 [IX,121].
6
Blaise Pascal, Pensées (ed. Lafuma nº 887), Oeuvres Complètes, Seuil, Paris, 1963, p.615;
Voltaire, Lettres Philosophiques, Bordas, Paris, 1988, pp. 72, 75. Veja-se também o meu
ensaio: «Veritas in fabula. Descartes e a poética da invenção científica», in: Leonel Ribeiro
dos Santos, Retórica da evidência ou Descartes segundo a ordem das imagens, Coimbra,
2001, pp.133-189.
7
E. W. von Tschirnhaus, Medicina mentis sive artis inveniendi praecepta generalia (1687),
ed. nova, Leipzig, 1695.
8
Christian Thomasius, Einleitung zu der Vernunftlehre. Worinnen... der Weg gezeigt wird,
ohne die Syllogistica das wahre, wahrscheinliche und falsche von einander zu unterscheiden,
un neue Wahrheiten zu erfinden, Halle, 1699.

61
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

somente reconheciam valor científico aos princípios geométricos e mecânicos da


nova ciência da natureza. Leibniz teve mesmo a intenção de escrever uma «ciência
9
ou uma arte geral para inventar», da qual chegou a redigir vários esboços. Através
destes pode reconhecer-se que ele tinha uma visão ecléctica dessa universal ars
inveniendi, para a qual aproveitava elementos tirados da ars combinatoria, da ars
characteristica universalis e da ars analytica generalis. Tal como Bacon, também
Leibniz reconhecia a importância da experiência inventiva e da reflexão sobre essa
experiência, ao ponto de confessar:
Uma longa experiência de reflexões acerca de toda a espécie de matérias,
acompanhada de um sucesso considerável nas invenções e nas descobertas,
fez-me conhecer que há segredos na arte de pensar, da mesma forma que os
10
há nas outras artes.
Ou ainda que
a arte de descobrir as causas dos fenómenos, ou as hipóteses verdadeiras, é
como a arte de decifrar, onde frequentemente uma engenhosa conjectura
11
abrevia muito o caminho.
O autor do Tentamen Anagogicum defende a ideia segundo a qual os princí-
pios mecânicos e geométricos da ciência da natureza estão subordinados aos
princípios arquitectónicos da ordem e da perfeição e que precisamente aquele
princípio que os filósofos da natureza mais frequentemente invocavam, a saber o
de que «a natureza segue sempre as vias mais determinadas e mais simples»
(conhecido como a lex parsimoniae), não é um princípio geométrico ou mecâ-
nico, mas sim um princípio arquitectónico. Segundo Leibniz, um dos mais impor-
tantes entre estes princípios arquitectónicos é a «lei da continuidade», da qual
reivindica ter sido o primeiro a fazer uso e a reconhecer a função e fecundidade
heurísticas. Assim o escreve:
Uma das mais consideráveis [determinações arquitectónicas] que eu creio
ter sido o primeiro a introduzir na Física é a Lei da continuidade. [...]
Contudo, ela serve não apenas para aferição, mas é além disso um muito
fecundo princípio de invenção, como eu tenho intenção de mostrar um dia.

9
Leibniz, De Synthesi et Analysi universali seu Arte inveniendi et judicandi (Die
Philosophischen Schriften [PS], ed. Gerhardt, Olms, Hildesheim, 7, 292-298); Specimen
inventorum de admirandis naturae Generalis arcanis (PS, 7, 309-318); Tentamen Anagogi-
cum dans la recherche des causes (PS, 7, 270-279); Discours touchant la méthode de la
certitude et de l’art d’inventer pour finir les disputes et pour faire en peu de temps des grands
progrès (PS, 7, 174-183).
10
PS, 7, 183.
11
Leibniz, Nouveaux Essais sur l’Entendement Humain, PS, 5, 436.

62
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

Mas eu encontrei ainda outras Leis da natureza muito belas e muito


amplas, e todavia muito diferentes daquelas que costumamos usar e sempre
12
dependentes dos princípios arquitectónicos.
Encontramos, com efeito, nos escritos de Leibniz muitas provas de que ele
percebeu profundamente os segredos da arte de inventar e reconheceu os pres-
supostos que dirigem a economia da razão, nomeadamente aquele a que chama
«princípio de uniformidade», segundo o qual se supõe que «a natureza é sempre
a mesma no fundo das coisas, ainda que se sirva de uma grande variedade nas
maneiras», princípio que decorre da lei de continuidade e que é também o fun-
13
damento do princípio de analogia. Foi sem dúvida a experiência pessoal desta
economia da razão que o levou a recomendar aos filósofos e aos investigadores
da natureza um exercício de ginástica intelectual que parece ser contraditório:
É preciso acostumar-se às distinções, ou seja, sendo dadas duas ou várias
coisas muito semelhantes, encontrar todas as suas diferenças. É preciso
acostumar-se às analogias, ou seja, sendo dadas duas ou várias coisas muito
14
diferentes, encontrar as respectivas semelhanças.
Mais adiante, teremos ocasião de poder reconhecer não apenas o eco mas
também a grande fecundidade destas ideias leibnizianas, as quais serão retoma-
das e sistematicamente desenvolvidas por Kant, sobretudo no Apêndice à Dia-
léctica Transcendental da Crítica da Razão Pura. Todavia, apesar dos esforços de
Leibniz com vista à elaboração de uma Ars inveniendi generalis, o seu discípulo
Christian Wolff podia com razão escrever, no Discurso Preliminar à sua Lógica
(1728), que nenhum filósofo tinha ainda publicado obra que merecesse verda-
15
deiramente um tal título. O próprio Wolff retoma a seu cargo esta mesma
12
Tentamen Anagogicum, PS, 7, 270.
13
Esboço de uma carta dirigida provavelmente à Princesa Sofia Carlota (1703?), texto e
apresentação por Philip Beeley, «Gleichförmigkeit und Analogie bei Leibniz oder ‘Die
leichteste’ Philosophie der Welt», in: Q. Racionero y C. Roldán (comps.), G. W. Leibniz.
Analogía y Expresión, Editorial Complutense, Madrid, 1994, p. 550.
14
PS, 7, 85.
15
«Dantur etiam regulae, quibus intellectis dirigitur in veritate latente investiganda.
Exemplo est Algebra et omnis ars analytica Mathematicorum, qui veritates latentes feli-
citer in apricum producunt et scientiam in dies augent. Pars illa philosophiae, quae
regulas istas dirigendi intellectum in veritate latente explicat, Ars inveniendi dicitur.
Definitur adeo Ars inveniendi per scientiam veritatem latentem investigandi, Vulgo
Logica cum arte inveniendi confunditur, quae etsi in eadem non contemnendum habeat
usum, haud quaquam tamen eandem absolvit. Peculiaribus ea opus habet artificiis, quae
aliunde quam a Logica pendent. Monui jam Ontologiam maximi in ea usus esse: enim-
vero si ad philosophiae partem praesupponenda sunt. Hactenus nemo publice dedit,
quod titulum Artis inveniendi tueri possit.» Christian Wolff, Philosophia rationalis sive
Logica, Francofurti/Lipsiae, 1728, pp.34-35.

63
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

tarefa, inscreve-a como uma parte da sua concepção geral da filosofia, e em


várias ocasiões anuncia o projecto de a escrever. E, contudo, ainda que tenha
deixado dispersas pelas suas obras indicações muito interessantes com vista a
esse objectivo, também ele não conseguiu concretizar tal ideia. Significativo é,
todavia, o facto de que este filósofo racionalista, que estava convencido de que
«existem regras que dirigem o entendimento na investigação da verdade escon-
dida», tenha igualmente reconhecido que «a arte de inventar tem necessidade do
16
concurso das faculdades inferiores e intermediárias» , nomeadamente do acu-
17
men e do ingenium. A perspicácia e o génio vêem-se assim formalmente
reconhecidas como sendo as faculdades especialmente comprometidas no pro-
cesso de descoberta e de invenção, e isso não apenas no domínio da poesia e das
artes, mas também no domínio dos conhecimentos e da própria filosofia.
No seguimento de Wolff, outros filósofos retomaram o programa da ars
inveniendi, tentando uma determinação mais precisa das faculdades inventivas e
das respectivas funções: o acumen ou agudeza, a perspicatia, o ingenium, o Witz
18
ou o Genie, a Scharfsinnigkeit, a Sagazität, a imaginação ou Einbildungskraft. Ao
mesmo tempo, estes pensadores revelam-se cada vez mais atentos ao processo
mesmo, ou seja à fenomenologia da descoberta e da invenção, e – tal como já
suspeitara Leibniz – acabam por reconhecer que existem profundas analogias
entre o processo da invenção no domínio das artes e das belas artes e no domí-

16
«Nemo facile dubitat, dari certas regulas, quibus dirigitur intellectus in veritate inve-
nienda, et actuis ministeriales facultatum inferiorum atque intermediarum determinan-
tur, sive artem inveniendi a priori, sive a posteriori spectemus. Regulas hasce nemo
adhuc distincte explicavit et demonstrabit, quemadmodum regulae de usu intellectus in
veritate cognoscenda in Logica traduntur. Ac ideo ars inveniendi in forma artis nondum
redacta est.» Christian Wolff, Philosophia Moralis sive Ethica, Pars Prima, Halle, 1750,
§323, p.499.
17
«Qui ad artem inveniendi adspirat, acumen et ingenium perficere tenetur… Quod si
ars inveniendi in formam artis fuisset redacta, tum demum clarissime pateret, quinam et
quantus sit tam acuminis, quam ingenii usus in inveniendo.» Ibidem, § 336, p. 528.
Veja-se: Cornelis-Anthonie Van Peursen, «Ars inveniendi in Rahmen der Metaphysik
Christian Wolffs. Die Rolle der ars inveniendi», in: W. Schneiders (Hrsg.), Christian
Wolff, Meiner, Hamburg, 1986, pp.66-88.
18
Veja-se, nomeadamente, Hermann Samuel Reimarus, Vernunftlehre (1ª ed. 1756; 3ª ed.
1766), reimpr. Carl Hanser Verlag, München, 1979 (1ª ed. §§ 175-191; 3ª ed. §§ 259-
-297). O programa leibniziano da ars inveniendi, mas no sentido da ars characteristica
combinatoria, será desenvolvido por Joachim Georg Darjes, autor de uma Introductio in
artem inveniendi (Jena,1742), de quem Kant possuía dois escritos na sua biblioteca -
Erste Gründe der philosophischen Sitten-Lehre (Jena, 1755) e Discours über sein Natur- und
Völcker-Recht (Jena, 1762-63) e que é referido explicitamente 5 vezes no conjunto do
corpus kantiano. Ver Gualtiero Lorini, «Kant e Darjes fra logica e ars inveniendi», in:
Luigi Cataldi Madonna, Paola Rumore (Hrsg.), Kant und die Aufklärung, Georg Olms
Verlag, Hildesheim/Zürich/New York, 2011, pp.277-287.

64
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

nio da ciência e da própria filosofia. Com efeito, se as faculdades envolvidas


num e noutro caso são as mesmas, vê-se facilmente que o parentesco é muito
estreito entre a Estética e a Heurística, o que se tornará explícito na obra de Ale-
19
xander Baumgarten e, de uma forma ainda mais inequívoca e mesmo notável, o
parentesco entre a invenção estética e a heurística filosófica e científica é expli-
citado por Christian Garve, segundo o qual há uma imaginação, um génio e um
gosto característicos dos filósofos ou inventores em filosofia, da mesma forma
que os há para os inventores nas belas artes e até nas ciências, sendo uma
mesma a fenomenologia da invenção nesses vários domínios, apenas se diferen-
ciando pelos objectos ou matérias em que se aplica. Escreve o Popularphilosoph:
Geralmente conhece-se apenas uma espécie de imaginação, aquela que
reúne imagens para produzir novas imagens. […] Mas há também uma
imaginação para os filósofos, ou pelo menos para os inventores na filosofia.
Para chegar a uma nova verdade, quando ela não é uma consequência
directa de uma já conhecida, é impossível usar o procedimento dos raciocí-
nios claramente pensados, mediante os quais se prova esta verdade, quando
ela tem de ser encontrada. Como se quer abrir o caminho para um objec-
tivo que ainda não se conhece? [...] Aqui, o rápido voo do génio tem de
primeiramente sondar e sobrevoar o território estranho, antes que o enten-
dimento possa fazer o seu caminho progressivo. Esta alma deve possuir o
poder de ver toda a série num só olhar e numa espécie de intuição ime-
diata. As ideias, que, desenvolvidas, constituem toda uma ciência, devem
ser amalgamadas num todo e reunir-se como que numa imagem. Tal como
há uma espécie de pressentimento, mediante o qual se prevêm aconteci-
mentos futuros, sem se poder explicar todas as causas de que eles decor-
rem, assim existe uma certa arte de adivinhar com felicidade mediante a
qual se prevêm ideias distantes e consequências longínquas de verdades,
sem estarmos conscientes de todos os raciocínios mediante os quais a elas
se chega. […] Além disso, há na filosofia, no explicar e no demonstrar,
igualmente um certo gosto, tal como nas artes e nas obras do belo espírito.
Este gosto é produzido pelo espírito inventivo [Witz], a que os latinos chamam
20
sagacidade.

19
Uma das partes da nova ciência Estética é a Heurística (A. G. Baumgarten, Theoretische
Ästhetik. Die grundlegenden Abschnitte aus der «Aesthetica» (1750/58), §§ 13 e segs., ed.
H. R. Schweitzer, Meiner, Hamburg, 1988). Veja-se também, na Metaphysica §349, a
«Heurística», entendida como uma parte da «ciência dos signos» – a «característica» ou
«semiótica», como arte de inventar signos primitivos ou derivados.
20
«Man kennt gemeiniglich nur eine einzige Art von Einbildungskraft, welche sinnlicher
Bilder vereinigt, um neue Bilder hervorzubringen [...]. Aber es giebt auch eine Einbil-
dungskraft für den Philosophen, oder wenigstens für den Erfinder der Philosophie. Um

65
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

Veremos de seguida que o filósofo crítico não está muito longe de pensar
como este «filósofo popular». Mas, por certo, o desenvolvimento da ideia
moderna da ars inveniendi é demasiado complexo e variado para consentir a
sumária apresentação aqui exposta em breves páginas. O seu estudo exigiria
uma atenção particular aos diferentes protagonistas e também aos vários aspec-
21
tos do tema, aqui só apontados. Sem poder cumprir de momento tão vasta
tarefa, que bastem estas poucas referências, feitas com o mero propósito de
contextualizar e esclarecer o que me parece ser o aspecto mais significativo do
contributo de Kant para esse programa.

zu einer neuen Wahrheit zu kommen, wenn sie nicht eine unmittelbare Folge einer
schon bekannten ist, ist es unmöglich, die Art von deutlich gedachten Schlüssen zu
brauchen, durch welche man diese Wahrheit, wenn sie erfunden ist, beweist. Wie will
man den Weg zu einem Ziele abzeichnen, welches man noch nicht kennt? [...] Hier
muss der schnelle Flug des Genies erst das unbekannte Land ausspähen, erst die fremde
Gegend durchschaut haben, ehe der langsam fortschreitende Verstand seinen Weg
antreten kann. Diese Seele muss das Vermögen haben, die ganze Reihe mit einem Blick
und einer Art von unmittelbarem Anschauen zu übersehen. Ideen, die entwickelt eine
ganze Wissenschaft ausmachen, müssen sich zusammendrängen, ein Ganzes ausma-
chen, und sich gleichsam in ein Bild vereinigen. So wie es eine gewisse Ahndung giebt,
durch die man künftige Begebenheiten voraussieht, ohne sich alle die Ursachen erklären
zu können, aus denen man sie folgert: so giebt es eine gewisse Kunst glücklich zu
rathen, durch die man weit hinaus liegende Ideen und entfernte Folgerungen der Wahr-
heiten voraussieht, ohne sich aller der Schlüsse bewusst zu seyn, durch die man auf sie
gekommen ist. [...] Es giebt ferner in der Philosophie, im Erklären und in Beweisen,
eben so wohl einen gewissen Geschmack, als in den Künsten und in den Werken des
schönen Geistes [...] Dieser Geschmack nun wird von dem Witze [...] den die Lateiner
Sagacität nennen, hervorgebracht.» Christian Garve, Versuch über die Prüfung der Fähig-
keiten (1769), retomado apud Alexander von Bormann (Hrsg.), Vom Laienurteil zum
Kunstgefühl. Texte zur deutschen Geschmacksdebatte im 18. Jahrhundert, Max Niemeyer,
Tübingen, 1974, pp.86-90.
21
Infelizmente, ainda não dispomos de nenhum estudo de conjunto expressamente dedi-
cado a este programa da Modernidade, e até os estudos a respeito do tema num ou outro
filósofo são muito raros, sendo ele abordado sobretudo no contexto dos estudos sobre a
Lógica dos Modernos. Todavia, mesmo uma obra clássica como é a Logik der Neuzeit (2
Bde., Stuttgart-Bad Cannstatt, 1970) de Wilhelm Risse não dá qualquer atenção ao tema;
a expressão ars inveniendi ocorre aí uma só vez e numa citação de um texto de Leibniz.
Encontram-se, em contrapartida, algumas indicações pertinentes a respeito do tema nas
seguintes obras: Alfred Baeumler, Das Irrationalitätsproblem in der Ästhetik und Logik des
18. Jahrhunderts bis zur Kritik der Urteilskraft (1923), reimpr. WBG, Darmstadt, 1975
(sobretudo o cap. sobre a «Logik der Erfindung», pp.170-187, e o cap. sobre «Einbil-
dungskraft, Witz, Genie», pp.141-166); Otto F. Best, Der Witz als Erkenntnisskraft und
Formprinzip, WBG, Darmstadt, 1989; W. Walther u. L. Borinski (Hrsg.), Logik im Zeitalter
der Aufklärung. Studien zur «Vernunflehre» von Hermann Samuel Reimarus, Göttingen,
1980.

66
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

2. O contributo de Kant para


a ars inveniendi dos Modernos

Podemos efectivamente seguir o rasto da ideia moderna da ars inveniendi nos


escritos de Kant, e desde logo nos seus Cursos universitários. Assim, na Antro-
pologia (§§ 55-58), onde analisa as faculdades do conhecimento ou os dons do
espírito especialmente envolvidos no processo da investigação (Nachforschung),
da descoberta (Entdeckung) e da invenção (Erfindung) – a saber e segundo Kant,
o Witz, a sagacidade, o génio –, o autor evoca o trabalho pioneiro que havia sido
feito nesse domínio por Francis Bacon, nestes termos:
Descobrir alguma coisa (que está oculta em nós mesmos ou algures) neces-
sita em muitos casos de um talento particular; é preciso conhecer a maneira
como se deve procurar: ter recebido da natureza o dom de julgar previa-
mente (judicii praevii) onde se encontra a verdade, a fim de seguir as coisas
pelos vestígios e utilizar os mais simples motivos de parentesco que per-
mitem descobrir ou inventar o que se procura. A lógica das Escolas nada
ensina a este respeito. Mas Bacon de Verulam deu no seu Organon um
exemplo brilhante da maneira como mediante experimentos se pode desco-
brir a natureza escondida das coisas. Mas mesmo este exemplo não basta
para nos ensinar, segundo regras determinadas, a maneira de conduzir com
sucesso uma investigação: pois temos de pressupor sempre um ponto de
partida (começar por uma hipótese); e isto segundo princípios, seguindo
certos indícios e tudo depende da maneira como os deciframos. Mas arris-
car às cegas a sorte que nos faz tropeçar numa pedra, descobrir um mineral
e trazer à luz um filão, isso é um mau princípio para a investigação. Toda-
via há pessoas que, com uma espécie de varinha mágica entre as mãos, pos-
suem o talento de encontrar a pista dos tesouros do conhecimento, sem
qualquer aprendizagem; elas não podem ensiná-lo aos outros, mas somente
22
mostrar-lhes como o fizeram, pois é um dom da natureza.
Os referidos parágrafos da Antropologia são interessantes sob vários pontos
de vista. Em primeiro lugar, pela distinção proposta (§57) entre os diferentes
termos que servem para descrever a invenção, nomeadamente, a distinção entre
o descobrir (entdecken) e o inventar (erfinden), termos frequentemente utilizados
como se fossem sinónimos pelos autores que deles falam. Kant faz notar que a
língua alemã é rica em termos que, sendo muito próximos, revelam contudo
subtis discriminações semânticas: é o caso de entdecken, erfinden, ersinnen,
23
erdichten. Vê-se, por outro lado, que Kant combina a ideia de Bacon – segundo
22
Immanuel Kant, Anthropologie, § 56, Ak VII, 223-224.
23
Ibidem, Ak VII, 247.

67
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

a qual é preciso observar atentamente e dar atenção aos menores indícios e


aprender as regras da descoberta e da invenção a partir da própria experiência
24
das descobertas e invenções – com a convicção de Leibniz e de Wolff, segundo
a qual existem regras e pressupostos que presidem ao trabalho inventivo e que
devemos envolver-nos na investigação, não ao acaso e às cegas, mas munidos de
hipóteses e devemos mesmo arriscar julgar previamente e fazer antecipações. Ao
mesmo tempo, Kant indica a razão pela qual os seus antecessores não haviam
conseguido escrever com sucesso uma ars inveniendi. A fenomenologia da
invenção e da descoberta mostra que há qualquer coisa nelas que não é absolu-
tamente determinável, algo contingente que não é programável nem ensinável, o
que o filósofo atribui a um «dom da natureza» (Naturgabe), chame-se isso o
Witz, a sagacidade ou o génio, os quais são mobilizados pelo trabalho criador da
imaginação (§57). Vê-se assim a que ponto Kant desenvolveu a reflexão dos
filósofos do seu século a propósito das faculdades da invenção, em essencial
sintonia com a posição de Garve, acima referida. Mas para avaliarmos toda a
dimensão do contributo de Kant para esta reflexão deveríamos ter em conta tam-
bém os parágrafos da Primeira Parte da Crítica do Juízo onde se fala da imagina-
ção e do génio (sobretudo os §§ 46-50).
Também no Curso de Lógica Kant se ocupa de diversos tópicos que nos
manuais de Lógica dos Modernos andavam associados à ideia de uma «lógica da
invenção» e encontramos aí desenvolvimentos muito interessantes a respeito,
por exemplo, da hipótese, da indução e da analogia. Cito apenas um, a respeito
da necessidade dos «juízos prévios» e das «antecipações» quando nos envolve-
mos na aventura de descoberta ou de invenção, um tema que também fora tra-
tado no Novum Organum de Bacon e que reenvia para a prolepsis de Epicuro.
Escreve Kant:
Os juízos prévios são muito necessários e mesmo indispensáveis para o uso
do entendimento na meditação e na investigação. Eles servem para dirigir o
entendimento nas suas investigações fornecendo-lhe para esse fim os meios
diversos. Se meditamos sobre um objecto, é sempre necessário que pronun-
ciemos juízos prévios e que percebamos antecipadamente de alguma maneira
onde pode encontrar-se o conhecimento que nos deverá ser dado pela pró-

24
As referências, directas ou indirectas, a Bacon nos escritos de Kant são numerosas.
Kant considerava o filósofo inglês como «o primeiro e maior investigador da natureza
dos tempos modernos … que trilhou com as suas investigações o caminho da experiên-
cia e chamou a atenção para a importância e a imprescindibilidade da observação e das
tentativas para a descoberta da verdade (der erste und grösste Naturforscher der neuern
Zeit… [d]er betrat bei seinen Untersuchungen den Weg der Erfahrung, und machte auf die
Wichtigkeit und Unentbehrlichkeit der Beobachtung und Versuche zu Entdeckung der Wahr-
heit aufmerksam.)» Immanuel Kant, Logik, Einl. IV, Ak IX, 32.

68
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

pria meditação. E quando nos entregamos às invenções e às descobertas


devemos sempre fazer um plano prévio, se não queremos avançar ao acaso.
Como juízos prévios, podemos pensar em máximas para a investigação de
uma coisa. Podemos chamar-lhes também antecipações, uma vez que se
antecipa o juízo a propósito de uma coisa, antes que se possa determiná-la.
Tais juízos são de uma grande utilidade e é mesmo possível enunciar as
25
regras segundo as quais devemos fazer juízos prévios acerca de um objecto.
Se as citadas páginas da Antropologia e da Lógica constituem por si já uma
prova suficiente da participação de Kant no programa da ars inveniendi dos
Modernos, elas não esgotam todavia a meditação do filósofo crítico a respeito
dos problemas que um tal programa colocava. Nas páginas que seguem, pre-
tendo mostrar que há um outro aspecto da reflexão de Kant que responde a este
mesmo programa, mas a um outro nível, e que a questão filosófica fundamental
posta pela ars inveniendi acompanha o desenvolvimento da própria ideia da filo-
sofia transcendental. Que eu o saiba, este outro aspecto não mereceu ainda a
atenção dos intérpretes da filosofia kantiana. Mas eu creio que se conseguirmos
mostrar a sua pertinência e importância, ele poderá lançar uma nova luz sobre o
significado da filosofia crítica. De facto, a filosofia transcendental é frequente-
mente associada a uma empresa de legitimação da ciência moderna já consti-
tuída e estabelecida, como uma consagração da forma que ela alcançara no sis-
tema newtoniano. É como se, de uma vez por todas, Kant tivesse realizado o
recenseamento de todos os princípios do uso puro do entendimento nas ciências
(Matemática e Física) e, neste sentido, o seu trabalho enquanto filósofo, mais do
que verdadeiramente revolucionário, teria sido essencialmente conservador e
legitimador. Raros são os estudos que dão a entrever na empresa kantiana
alguma coisa mais para além da função de sistematização categorial ou da expli-
cação do funcionamento da maquinaria transcendental que torna possível o
conhecimento humano e que é certamente uma sua condição necessária, mas
não suficiente. Os intérpretes que vão mais longe e que vêem no programa da
filosofia transcendental uma resposta também aos problemas colocados pela
acção investigadora da razão são sobretudo alguns leitores da Crítica do Juízo
que descobriram nos parágrafos da Introdução e da Segunda Parte da obra pers-
pectivas interessantes relativamente a uma epistemologia da investigação e da
descoberta científicas, da mesma forma que na Primeira Parte da obra se encon-
26
tram luminosas páginas a respeito da poética da invenção e da criação estéticas.

25
Logik, Einl, Ak IX, 74-75. Na Crítica da Razão Pura (A 167) encontra-se uma alusão
explícita à prolepsis de Epicuro, a propósito das «antecipações da percepção» (Antizipa-
tionen der Wahrnehmung).
26
Foram sobretudo alguns intérpretes italianos da filosofia kantiana que puseram em
destaque este aspecto: Vittorio Mathieu, La filosofia trascendentale e l’Opus postumum» di

69
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

Na continuação, proponho-me mostrar como a meditação de Kant a res-


peito daquilo a que chamo a «Heurística Transcendental», estando verdadeira-
mente presente nas páginas da Crítica da Razão Pura, anunciava-se todavia já na
Dissertação De mundi sensibilis atque intelligibilis forma ac principiis (1770) e
atinge o seu enquadramento final na terceira Crítica. É certo que nunca se
encontra a expressão «Heurística Transcendental» nos escritos de Kant. Toda-
via, o filósofo serve-se de expressões que apontam nesse sentido, tais como
«princípios heurísticos» ou «ficções heurísticas», usadas para qualificar seja os
princípios transcendentais da razão e o princípio transcendental da «teleoformi-
dade da natureza» (Zweckmässigkeit der Natur), seja a ideia de uma «Técnica da
Natureza» (Technik der Natur), seja em geral a função especulativamente rele-
27
vante das ideias da razão. Pela expressão «Heurística Transcendental» entendo,
pois, o esforço de Kant para evidenciar os pressupostos do trabalho do espírito
(quer ele se chame entendimento, razão, imaginação, juízo ou génio) no pro-
cesso de investigação, de invenção e de descoberta de novos conhecimentos e
concepções, seja no domínio da ciência e da filosofia, seja no domínio das artes

Kant, Torino, 1958; Guido Morpurgo-Tagliabue, «La finalità in Kant e le scienze empiri-
che della natura», Rivista critica di storia della filosofia, XIII, 1958, 305-318; Silvestro Mar-
cucci, Aspetti epistemologici della finalità in Kant, Firenze, 1972; Id., «Kant e la scienza
moderna», Studi italo-tedeschi, Merano, 2004, 35-56; Id., «Kant e l’imaginazione conosci-
tiva nella Critica del Giudizio», Studi kantiani, III, 1990, 24-27; Id., «La dimenzione scien-
tifica ed epistemologica del giudizio teleologico in Kant», AAVV., Giudizio e interpretzione
in Kant, Genova, 1992, 24-28; Id., «La dimenzione scientifica ed epistemologica dell’idea
di finalità in Kant», AAVV., Kant e la finalità della natura, Padova, 1990, 64-65; Emilio
Garroni, Estetica ed epistemologia. Riflessioni sulla «Critica del Giudizio», Roma, 1976;
Umberto Eco, Kant e l’ornitorinco, Milano, 1997; Claudio La Rocca, «Giudizi provvisori.
Sulla logica euristica del processo conoscitivo in Kant», in: Materiali per un lessico della
raggione, ETS, Pisa, 2011, pp.265-310. Veja-se também: Harald Karja, Heuristische Ele-
mente der “Kritik der teleologischen Urteilskraft”, Heidelberg (Diss.), 1975; Zeljko Loparic,
«Heurística kantiana», Cadernos de História e Filosofia da Ciência, nº 5, 1983, 73-89. Como
escrevemos no Prefácio, entre os portugueses, foi sobretudo Fernando Gil que desenvol-
veu uma interpretação predominantemente epistémico-heurística da filosofia kantiana.
Veja-se a sua obra Mimésis e Negação, INCM, Lisboa, 1984, pp.310-344.
27
Veja-se: KrV B 691, Ak III, 439: «... [diese Principien der systematischen Einheit] ...
als synthetische Sätze a priori obiective, aber unbestimmte Gültigkeit haben und zur
Regel möglicher Erfahrung dienen, auch wirklich in Bearbeitung derselben als heuris-
tische Grundsätze mit ganzen Glücke gebraucht werden...»; KrV B 7999, Ak III 503:
«Die Vernunftbegriffe... sind bloss problematisch gedacht, um in Beziehung auf sie (als
heuristische Fictionen) regulative Principien des systematischen Vernunftgebrauchs im
Felde der Erfahrung zu gründen.»; KU § 78, Ak V, 411: «das Prinzip der Zwecke an den
Producten der Natur... wenn es gleich die Entstehungsart derselben uns eben nicht
begreiflicher macht, doch ein heuristisches Princip ist, den besonderen Gesetzen der
Natur nachzuforschen.»; Erste Einleitung in die Kritik der Urteilskraft (ed. Lehmann,
Hamburg, 1977): «unser Begriff von einer Technik der Natur, als ein heuristisches Prinzip
in Beurteilung derselben.» (negritos nossos).

70
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

e das belas artes. Por esta preocupação com a heurística científica e filosófica a
filosofia kantiana encontra-se profundamente ligada a uma tarefa essencial do
programa que os filósofos modernos trabalharam sob a ideia geral da ars inve-
niendi. Kant é mesmo o último dos Modernos a ocupar-se ainda a fundo com
esse programa, talvez sem expressamente o ter empreendido, e eu creio poder
dizer que nisso ele não é somente um herdeiro das contribuições dos seus ante-
cessores, mas que levou mais longe do que qualquer deles a meditação filosófica
a respeito daquilo que verdadeiramente nesse programa estava implicado.

3. Génese e desenvolvimento da ideia


de uma Heurística Transcendental

Desde os seus primeiros escritos, Kant revela uma notável consciência dos pres-
supostos que presidem ao seu trabalho filosófico. Assim, vêmo-lo, no seu pri-
meiro ensaio (1747), confessar expressamente a sua dívida para com a «lei de
continuidade», que atribui a Leibniz, como tendo sido o fio condutor que lhe
permitiu orientar-se no labirinto que é a questão das forças vivas e que o condu-
ziu a identificar as lacunas da própria posição leibniziana e a encontrar uma
28
solução média entre a tese de Leibniz e a dos cartesianos. Vimo-lo depois, no
seu ensaio de Cosmologia (Allgemeine Naturgeschichte und Theorie des Himmels,
1755), fazer um uso intensivo do «fio condutor da analogia» para elaborar con-
jecturas ousadas mas verosímeis que lhe permitem aventurar-se no desconhe-
cido e propor um sistema coerente do universo, pressupondo a uniformidade e a
homogeneidade seja da natureza, seja das leis que a governam, em toda a exten-
29
são do espaço cósmico e em toda a série temporal das suas transformações.
Num ensaio do ano 1763, vêmo-lo já não apenas a reclamar o uso da analogia
como fundamento das suas conjecturas – «a analogia é aqui um muito grande
fundamento para presumir» (Die Analogie ist hier ein sehr grosser Grund zu ver-
30
muthen) –, mas também a fazer uma declaração de princípio acerca da
31
importância de uma reflexão aprofundada a propósito desse tema.
A prometida reflexão aprofundada não a encontraremos de modo explícito
em toda a obra kantiana, mas ela cumpre-se indirectamente e em sucessivas
retomas, de um modo elíptico e frequentemente mesmo disfarçada. E um dos
primeiros momentos em que tal reflexão se disfarça encontra-se no último pará-
grafo da Dissertação de 1770. Este parágrafo, que é a conclusão da obra, cumpre

28
Gedanken, Ak I, 181.
29
Veja-se, no primeiro capítulo deste volume, pp.43 ss.
30
Der einzige mögliche Beweisgrund, Ak II,140.
31
Ibidem, Ak II, 132-133. Veja-se o passo citado no final do capítulo anterior.

71
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

também a função de um apêndice – hic coronidis loco mentionem aliquam iniicere


–, na medida em que ele abre para uma questão nova que não mais deixará de
trabalhar o pensamento do filósofo. É talvez o seu carácter conclusivo e apendi-
cial que explica a pouca atenção que este parágrafo e a questão que ele enuncia
têm merecido da parte dos intérpretes. Nos parágrafos anteriores da V secção da
Dissertação, que leva o título «Do método relativo aos conhecimentos sensitivos
e intelectuais em metafísica», Kant tinha denunciado um procedimento fraudu-
lento do entendimento, mediante o qual este realiza uma transferência, para o
mundo intelectual, dos conceitos ou princípios que são válidos apenas para o
mundo sensível. Este procedimento de transação fraudulenta ou de mistura dos
inteligíveis e dos sensíveis é, segundo Kant, a fonte das ilusões e obscuridades
que assaltam o entendimento quando ele pretende pronunciar juízos no que
concerne as realidades intelectuais. O filósofo identifica estes axiomas subreptí-
cios, que considera muito difundidos na metafísica, e enuncia um princípio
geral para os prevenir, a saber, que «é preciso tomar muito cuidado para que os
princípios próprios do conhecimento sensível não saiam dos seus limites pró-
32
prios e não vão manchar os inteligíveis». E, uma vez que os princípios válidos
para o mundo sensível (as intuições do espaço e do tempo) são, segundo a Dis-
sertação, condições subjectivas, a subrepção ou fraude traduz-se também nisto, a
saber, que se toma como pertencendo à natureza dos objectos do mundo inteli-
gível o que não passa de uma condição própria do sujeito; isto é, toma-se como
sendo objectivo o que é apenas subjectivo.
O último parágrafo da secção identifica, todavia, um certo número de prin-
cípios com uma natureza muito especial, que parecem ter uma grande afinidade
com aqueles que tinham sido rejeitados como subreptícios, mas, a bem dizer,
são de tal modo diferentes deles que são mesmo reconhecidos pelo filósofo
como sendo necessários e até legítimos devido à sua fecundidade em vista do
trabalho do entendimento no conhecimento da natureza, sem os quais, de resto,
o entendimento não pode mesmo pensar e prosseguir o seu trabalho. Dado o seu
carácter seminal, o parágrafo merece bem uma transcrição mais extensa. Escreve
Kant:
Associam-se aos princípios subreptícios, com grande parentesco, alguns
outros que, na verdade, não comunicam ao conceito intelectual dado
nenhuma mácula de conhecimento sensitivo, mas, em todo o caso, o enten-
dimento é de tal maneira levado por eles que os toma por argumentos tira-

32
«sollicite cavendum esse, ne principia sensitivae cognitionis domestica terminos suos
migrent ac intellectualia afficiant» (§ 24). Para a versão portuguesa desta obra de Kant,
remeto para a minha própria tradução: Immanuel Kant, Dissertação de 1770, tradução,
apresentação e notas de L. Ribeiro dos Santos, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lis-
boa, 2004 (2ª edição). Para o texto citado, p. 74; para os subsequentes, pp.83-84.

72
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

dos do objecto, quando apenas nos são recomendados por conveniência com
o uso livre e amplo do entendimento, em virtude da singular natureza do
mesmo. E assim, tal como aqueles que acima enumerámos, estes fundam-se
em razões subjectivas, não certamente nas leis do conhecimento sensitivo,
mas nas do próprio conhecimento intelectual, ou seja, nas condições
mediante as quais lhe parece fácil e rápido usar da sua perspicácia. Seja-me
permitido, como conclusão, dizer alguma coisa acerca destes princípios, os
quais, tanto quanto sei, não foram ainda claramente expostos em parte
nenhuma. Chamo princípios de conveniência àquelas regras do julgar às
quais de bom grado nos submetemos e aderimos como se fossem axiomas,
apenas pela razão de que, se nos desviássemos delas, o nosso entendimento
33
não poderia emitir quase nenhum juízo acerca de um objecto dado.
E quais são então esses princípios (também chamados ‘postulados’, ‘regras
do julgar’, ‘cânones’)?
Kant menciona os três seguintes:
O PRIMEIRO – escreve o filósofo – é aquele mediante o qual admitimos
que tudo no universo acontece segundo a ordem da natureza; princípio que é
unanimemente professado por Epicuro, que não lhe admite qualquer restrição, e
por todos os filósofos, que lhe admitem raríssimas excepções e só em caso de
extrema necessidade. Mas pensamos dessa maneira, não porque estejamos de
posse de um conhecimento assim tão grande dos eventos do mundo segundo as
leis comuns da natureza, ou porque nos seja manifesta quer a impossibilidade
quer a mínima possibilidade hipotética das coisas sobrenaturais, mas porque, se
nos desviássemos da ordem da natureza, não haveria absolutamente nenhum
uso do entendimento, e a temerária invocação das coisas sobrenaturais é o tra-
vesseiro do entendimento preguiçoso. Pela mesma razão, afastámos cuidadosa-
mente da exposição dos fenómenos os milagres comparativos, nomeadamente a
influência dos espíritos, pois, sendo-nos desconhecida a sua natureza, o enten-
dimento seria desse modo desviado, com grande prejuízo seu, da luz da expe-
riência (apenas mediante a qual obtém para si próprio a abundância das leis do
julgar), para as sombras das espécies e das causas de nós desconhecidas. O
SEGUNDO é aquela predilecção pela unidade, própria de um espírito filosófico,
de onde derivou este cânone vulgar: os princípios não devem ser multiplicados sem
uma imperiosa necessidade; aprovamo-lo, não porque reconheçamos, seja pela
razão seja pela experiência, que existe uma unidade causal no mundo, mas por-
que a procuramos pelo impulso do entendimento, ao qual lhe parece avançar na
explicação dos fenómenos tanto quanto lhe for concedido o descer de um
mesmo princípio para as numerosíssimas consequências. O TERCEIRO deste

33
Ak II,418. Tradução portuguesa citada, pp.83-84.

73
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

género de princípios é o seguinte: da matéria absolutamente nada nasce, ou se


perde, e todas as vicissitudes do mundo dizem respeito apenas à forma; este
postulado, recomendado pelo entendimento comum, encontra-se divulgado em
todas as escolas dos filósofos, não porque seja tido por averiguado ou por
demonstrado mediante argumentos a priori, mas porque, se se admitisse que a
própria matéria é fluente e transitória, não restaria absolutamente nada estável e
perdurável que daí em diante servisse para a explicação dos fenómenos segundo
leis universais e perpétuas e, por conseguinte, para o uso mais amplo do enten-
dimento.
Estes três princípios – que poderíamos chamar o princípio de ordem ou de
homogeneidade da natureza, o princípio de unidade ou de economia da natu-
reza e o princípio de permanência da matéria – são pressuposições de tal modo
naturais de toda actividade intelectual dos filósofos e dos investigadores da
natureza que é muito raro que se tenha consciência explícita deles. E qual é a
tese de Kant a seu respeito? Ela pode resumir-se em três pontos, a saber:
• que eles não são conhecimentos objectivos, mas sim pressuposições sub-
jectivas da actividade intelectual, sem as quais o entendimento, a dizer a ver-
dade, não pode sequer dar um passo no conhecimento efectivo da natureza;
• que eles não são extraídos da experiência ou dum conhecimento prévio e
não constituem nenhum verdadeiro conhecimento da natureza das coisas, mas
são apenas como que uma expectativa ou mesmo uma exigência que conduz o
entendimento quando ele se envolve na investigação da natureza;
• que eles guiam o entendimento, não na investigação acerca das coisas do
mundo inteligível, mas no seu trabalho de investigação no domínio da natureza.
Significativo é o facto de que Kant assinale, de passagem, a sua originali-
dade de ter sido o primeiro a dar-se conta da importância destes princípios e a
perceber a sua singular natureza e função: «tanto quanto sei, destes princípios
ainda não foi dada uma exposição clara» (horum principiorum, quantum equidem
scio, nondum alibi distincte expositorum). Esta nota encontrá-la-emos também no
Apêndice à Dialéctica Transcendental da Crítica da Razão Pura e na Introdução à
Crítica do Juízo. Mas, ao mesmo tempo, esta consciência da sua originalidade e
da primazia é retida pelo reconhecimento de que tais princípios se disfarçam (ou
antes se expõem) sob a forma de algumas fórmulas bem conhecidas da sabedoria
metafísica e foram na verdade pressupostos e usados por todos os grandes filó-
sofos desde a Antiguidade, mesmo que estes o não confessem, ou que não tenham
tido disso consciência.
Vejamos alguns aspectos mais de perto. Considere-se em primeiro lugar as
expressões que Kant utiliza para caracterizar estes princípios: «principia conve-
nientiae», «regulae iudicandi». Se a primeira fórmula nos reenvia para o vocabu-
lário de Leibniz, a outra aponta já para aquela que virá a ser a versão final kan-

74
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

tiana do tema, a atribuição destes princípios a uma função específica, não do


entendimento ou da razão, mas do juízo. Mesmo no Apêndice à Dialéctica
Transcendental, onde estes princípios serão atribuídos à razão, Kant dirá que a
pertinência ou falta de pertinência da sua aplicação depende da faculdade de
julgar: «todos os vícios de subrepção devem sempre ser atribuídos a um defeito
do juízo, nunca ao entendimento ou à razão» (alle Fehler der Subreption sind
jederzeit einen Mangel der Urtheilskraft, niemals aber dem Verstande oder der Ver-
34
nunft zuzuschreiben).
Particularmente significativo é o reconhecimento explícito do carácter
subjectivo de tais princípios: «eles fundam-se em razões subjectivas» (nittuntur
rationibus subjectivis), não nas do conhecimento sensitivo (as únicas que a esse
título haviam sido reconhecidas nas secções segunda e terceira da Dissertação),
mas nas do entendimento (intellectus), faculdade que na Dissertação subsume
todas as faculdades superiores do espírito e que é aí sobretudo caracterizada
negativamente como separada da sensibilidade. Kant parece, pois, pensar num
novo tipo de subjectividade, e não é destituído de importância o facto de que ele
tenha descoberto estes princípios antes de ter identificado o sistema das catego-
rias do entendimento.
Ao mesmo tempo, o filósofo afirma o carácter indispensável destes princípios
para o trabalho do entendimento, a título de «regulae iudicandi», para que ele
possa «fazer uso fácil e pronto da sua perspicácia» (facile et promptum perspicacia
sua utendi). Kant diz mesmo que estes princípios são postos por um «impulso do
entendimento» (impulsus intellectus), expressão mediante a qual se anuncia o que
na primeira Crítica será dito como «interesse especulativo» da razão no que con-
cerne ao mais amplo uso do entendimento no campo da natureza.
Kant afirma, já neste último parágrafo da sua Dissertação, não apenas a
necessidade e utilidade desses princípios, mas também a sua legitimidade. Não
se encontra por certo ainda neste parágrafo a distinção entre princípios «cons-
titutivos» e princípios «regulativos» ou entre «uso constitutivo» e «uso regula-
tivo» desses princípios, mas esta distinção futura da Crítica anuncia-se já na
discriminação entre o «uso objectivo» e o «uso subjectivo» desses princípios.
Menos ainda se trata, na Dissertação, da distinção entre princípios «determi-
nantes» e princípios «reflexionantes»; mas, porque eles são chamados «regras
do juízo» com uma intencionalidade subjectiva e em vista do uso do entendi-
mento para a investigação no campo da natureza, é-nos permitido pensar que
estes «princípios de conveniência» ou «regras do julgar» correspondem a uma
primeira versão daquelas «máximas da faculdade de julgar» que o autor da ter-
ceira Crítica atribuirá à faculdade de julgar reflexionante e ao seu princípio
transcendental da «teleoformidade da natureza» (Zweckmässigkeit der Natur).

34
KrV B 671, Ak III, 427.

75
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

Como vimos, Kant reconhece que os filósofos de todas as épocas pressupuse-


ram e fizeram uso desses princípios, mas sem os terem identificado enquanto tais
e sem fazerem deles uma exposição sistemática ou lhes darem um fundamento e
menos ainda uma legitimação. No Apêndice à Dialéctica Transcendental, Kant
escreve, a propósito do princípio de unidade: «Este pressuposto transcendental,
encontramo-lo escondido de uma maneira admirável nos princípios dos filósofos,
ainda que eles não o tenham sempre reconhecido ou não o tenham confessado». E
nas Introduções à Crítica do Juízo lê-se, no mesmo sentido, que estes princípios,
que se dizem sob as máximas ou sentenças da sabedoria metafísica, «intervêm
muito frequentemente no curso desta ciência [a metafísica], mas somente de
modo disperso». Kant tem, por conseguinte, o direito de pensar ter sido o pri-
meiro a reconhecer toda a importância destes princípios, a mostrar a sua sistema-
ticidade e sobretudo a proporcionar-lhes a legitimação transcendental.
Os princípios enunciados na Dissertação são três. Nas retomas do tema no
Apêndice à Dialéctica Transcendental e nas Introduções à Crítica do Juízo há
alguma variação nas designações e sobretudo no modo de apresentar a respec-
tiva articulação sistemática e a sua legitimação na economia imanente da razão.
Na Dissertação eles são atribuídos ao entendimento; no Apêndice à Dialéctica
Transcendental são-no à razão e subsumidos em três pressupostos transcenden-
tais – o da unidade ou homogeneidade, o da variedade ou da especificação, e o
da afinidade ou de continuidade; nas Introduções à Crítica do Juízo são reduzidos
ao único princípio transcendental da teleoformidade da natureza (Zweckmässigkeit
der Natur) da faculdade de julgar reflexionante. Todavia, apesar das diferenças
na nomenclatura e no enquadramento sistemático, não resta nenhuma dúvida de
que se trata da mesma questão e dos mesmos princípios identificados por Kant
35
pela primeira vez no último parágrafo da Dissertação de 1770. É por isso que se
35
Devo declarar que foi ao traduzir este último parágrafo da Dissertação de 1770 no iní-
cio dos anos 80 (primeira edição: INCM, Lisboa, 1985) que adverti pela primeira vez o
tema (e percebi o respectivo fio condutor) que acabaria por dar o título a este capítulo e
a este livro e que deixei registado na nota 125 àquele parágrafo, que aqui transcrevo: «É
de notar a expressa consciência da novidade manifestada por Kant na enunciação deste
tema. Embora tal não corresponda inteiramente à verdade – pois, de uma maneira ou de
outra, vários pensadores modernos anteriores a ele haviam tomado consciência da
importância desses princípios, sobretudo Leibniz, mas também o próprio Newton (Cf.
Philosophiae Naturalis Principia Mathematica, t. III, pars I; Regulae philosophandi, ed.
Genebra, 1742, pp.2-5). Todavia, esta nota conclusiva permite entreabrir uma janela por
onde a luz não mais deixará de se insinuar ao filósofo. Estas regulae iudicandi, fundadas
em razões subjectivas (ou seja, na mera necessidade do entendimento ou da razão e para
uso próprio destes) constituem, na verdade, o embrião da futura distinção que a Crítica
elaborará entre o uso constitutivo dos conceitos do entendimento relativamente aos
objectos e o uso regulador das ideias da razão relativamente a ela própria (Cf. K.r.V.,
todo o Apêndice à Dialéctica Transcendental). Mais ainda, estas regulae iudicandi são um
primero esboço do reconhecimento da autonomia e do relevo da função judicativa, que

76
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

pode com razão dizer que este parágrafo constitui o núcleo seminal daquilo a
que acima chamei a Heurística Transcendental kantiana, um núcleo que se tor-
nará mais explícito em dois momentos decisivos de desenvolvimento da filosofia
kantiana. Mas as novas formulações que o tema sofre e o seu diverso enquadra-
mento não apagam a sua importância, mas antes a reforçam, revelando todo o
seu significado e alcance filosófico.

4. Os princípios transcendentais da economia da razão:


homogeneidade, variedade, afinidade

Passo a esboçar, em algumas linhas, o desenvolvimento que o tema enunciado


no último parágrafo da Dissertação vai ter na primeira e terceira Críticas.
Há na Crítica da Razão Pura muitas secções que se poderiam relacionar com
a ideia de uma Heurística Transcendental. Em primeiro lugar, a doutrina do
esquematismo e toda a secção compreendida sob o título «Representação siste-
mática de todos os princípios do entendimento puro», onde se trata dos «axiomas
da intuição», das «antecipações da percepção», das «analogias da experiência» e
dos «postulados do pensamento empírico em geral». Sob estes quatro tópicos, o
filósofo explicita os princípios transcendentais de toda a esquematização em geral.
O que é particularmente claro a propósito das analogias da experiência. Segundo
Kant, estas analogias exprimem um pressuposto de unidade da natureza, sem o
qual não haveria unidade da experiência e determinação dos objectos na expe-
36
riência. É também neste contexto que Kant explicita um pouco e pela primeira
vez a sua noção de analogia e propõe a fecunda distinção entre princípios consti-
tutivos e princípios regulativos, sendo as analogias da experiência elas mesmas,
segundo o filósofo, princípios regulativos do uso empírico do entendimento.
Em diversos momentos da Crítica, é expressamente admitido por Kant que
o sistema das leis do entendimento não basta para alcançar um conhecimento

levará mais tarde Kant, na Crítica do Juízo (1790) à descoberta de um princípio trans-
cendental para a faculdade de julgar (Urteilskraft) e a deslocar a anterior distinção entre
conceitos ou princípios constitutivos do entendimento e princípios reguladores da razão,
para a faculdade de julgar, à qual serão cometidas duas funções essencialmente distintas:
a determinante (de intencionalidade objectiva) e a reflexionante (de intencionalidade
subjectiva). É a faculdade de julgar, mediante o seu princípio transcendental próprio da
teleologia ou teleoformidade da natureza (Zweckmässigkeit der Natur), que subsumirá
estas regras ou máximas e outras do seu género, supostas por todo o uso da razão, tanto
teórico como prático. Cf. KU, Einl. V (Ak V, 182). Assim se vê, também, como a Disser-
tação contém já in nuce uma problemática que será decisiva para a génese aporética da
Crítica do Juízo.» (na 2ª ed. de 2004, pp.104-105).
36
KrV B 262-263; Ak III, 183-184. Veja-se: Arthur Melnick, Kant’s Analogies of Expe-
rience, Chicago U.P., Chicago / London, 1973.

77
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

efectivo no campo da experiência in concreto. Sabe-se que o esquematismo visa


resolver este problema da aplicação ou da passagem da estrutura categorial dos
conceitos puros do entendimento ao campo empírico das intuições da sensibili-
dade: mediante a produção de um esquema, a imaginação realiza a correspon-
dência entre os conceitos e as intuições. Mas a correspondência entre o sistema
transcendental das categorias – que constitui a natureza em geral formaliter
spectata – e o campo empírico da natureza materialiter spectata permanece inde-
terminada. O filósofo confessa-o mais do que uma vez. Já na Analítica encontra-
mos esta nota:
Todos os fenómenos da natureza, quanto à sua ligação, estão sob a alçada
das categorias, as quais dependem da natureza (considerada simplesmente
como natureza em geral) porque constituem o fundamento originário da
sua necessária conformidade à lei (como natura formaliter spectata). Mas a
capacidade do entendimento puro de prescrever leis a priori aos fenóme-
nos, mediante simples categorias, não chega para prescrever mais leis do
que aquelas em que assenta a natureza em geral, considerada como con-
formidade dos fenómenos às leis no espaço e no tempo. Leis particulares,
porque se referem a fenómenos empiricamente determinados, não podem
derivar-se integralmente das categorias, embora no seu conjunto lhes este-
jam todas sujeitas. Para conhecer estas últimas leis em geral, é preciso o
37
contributo da experiência.
E, na Dialéctica, lê-se, no mesmo sentido:
Na ciência da natureza [Naturkunde] há uma infinidade de conjecturas
[Unendlichkeit von Vermuthungen] a propósito das quais não se poderá
nunca alcançar certeza, porque os fenómenos da natureza são objectos
[Gegenstände] que nos são dados independentemente dos nossos conceitos
e cuja chave, por conseguinte, não está em nós e no nosso pensamento
puro, mas fora de nós, de tal modo que em muitos casos não podemos
38
encontrá-la e por isso não podemos esperar nenhuma segura solução.

37
KrV B 165-166; Ak III, 127. A mesma ideia encontra-se exposta na Primeira Introdução
à Crítica do Juízo, onde se lê: «Nós não podemos determinar a priori como e de quantas
maneiras as coisas são possíveis mediante as suas causas; para isso são necessárias as leis
da experiência (Nun aber können wir, wie und auf wie mancherley Art Dinge durch ihre
Ursachen möglich sind, a priori nicht bestimmen, hierzu sind Erfahrungsgesetze nothwen-
dig.)». Ak XX, 232. Esse problema da passagem (Übergang) do plano transcendental ao
plano empírico é mesmo, como veremos, o problema fundamental (ou, pelo menos, um
dos problemas fundamentais) que Kant pensa poder por fim resolver com a sua terceira
Crítica.
38
KrV B 508, III, 332-333.

78
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

O entendimento com o seu sistema de conceitos puros, mediante os quais


constitui uma natureza em geral formaliter spectata, permanece como que imo-
bilizado, sendo incapaz de aplicar esse sistema à natureza materialier spectata,
isto é, à natureza tal como ela é dada na intuição em toda a sua variedade e inde-
terminação. O concurso da experiência é certamente necessário. Mas é preciso,
além disso, algo mais para garantir o acordo entre o sistema geral das leis ou
conceitos puros do entendimento e as leis avulsas empiricamente encontradas
ou a encontrar. Ora, não é no entendimento que Kant encontra os princípios
que poderão resolver este problema resultante da não correspondência directa
entre o plano dos conceitos puros e o campo empírico da natureza. Encontra-os
na razão, fazendo um uso hipotético das ideias dessa faculdade, as quais consi-
dera como sendo princípios regulativos para o uso do entendimento na expe-
riência. Assim, as ideias da razão, que não consentiam um uso constitutivo dos
objectos metafísicos, revelam-se todavia muito úteis para a epistemologia das
ciências empíricas da natureza, na condição de que se tomem apenas enquanto
princípios subjectivos para o uso regulativo do trabalho do entendimento no
campo da experiência. É no Apêndice à Dialéctica Transcendental que Kant
propõe este suplemento epistemológico à gnoseologia que havia proposto na
Analítica. É pois a razão que vai introduzir movimento e dinamismo no trabalho
efectivo do entendimento, mas na condição de que se mantenha no campo da
natureza, da experiência, do mundo sensível.
Na Dialéctica, Kant admite um uso das ideias (nomeadamente da ideia cos-
mológica) a título de princípios reguladores da razão para permitir o uso mais
alargado possível do entendimento na experiência. E no Apêndice à Dialéctica
propõe mesmo uma espécie de esquematismo das ideias da razão, por analogia
com o esquematismo dos conceitos, nestes termos:
O entendimento constitui um objecto para a razão, do mesmo modo que a
sensibilidade para o entendimento. Tornar sistemática a unidade de todos
os actos empíricos possíveis do entendimento é a tarefa da razão, assim
como a do entendimento é ligar por conceitos o diverso dos fenómenos e
submetê-lo a leis empíricas. Porém, tal como os actos do entendimento,
sem os esquemas da sensibilidade, são indeterminados, de igual modo a
unidade da razão é indeterminada em si mesma, com respeito às condições,
relativamente às quais o entendimento deverá ligar sistematicamente os
seus conceitos e quanto ao grau até onde deverá fazê-lo. No entanto,
embora se não possa encontrar na intuição nenhum esquema para a uni-
dade sistemática completa de todos os conceitos do entendimento, pode e
deve encontrar-se um análogo desse esquema, que é a ideia do máximo da
divisão e da ligação do conhecimento do entendimento num único princí-
pio. [...] A ideia da razão é pois o análogo de um esquema da sensibilidade,

79
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

mas com esta diferença: a aplicação dos conceitos do entendimento ao


esquema da razão não é um conhecimento do próprio objecto (como a
aplicação das categorias aos seus esquemas sensíveis), mas tão-só uma regra
39
ou um princípio da unidade sistemática de todo o uso do entendimento.
Na primeira secção do Apêndice à Dialéctica Transcendental, Kant coloca já
explicitamente o problema que se tornará central nas Introduções à Crítica do
Juízo, a saber: como pensar o particular que nos é dado, quando não possuímos
um conceito geral prévio para o subsumir? Não tendo ainda feito a descoberta da
competência específica da faculdade de julgar reflexionante nesta tarefa, Kant, na
sua primeira Crítica, pensa ter encontrado a solução para este problema mediante
um uso peculiar que atribui à razão através das suas ideias e princípios. É a isso
que chama o uso hipotético, problemático e regulativo dos princípios da razão,
que responde à exigência de unidade sistemática dos conhecimentos do entendi-
mento. Ali onde o entendimento não basta sozinho para alcançar as regras, a razão
vem-lhe em auxílio por meio das suas ideias, e ao mesmo tempo dá à diversidade
das regras do entendimento o acordo sob um princípio e com isso garante uma
ligação das mesmas tão extensa quanto possível. No seu funcionamento efectivo,
este pressuposto transcendental de unidade sistemática explicita-se em três prin-
cípios que regem a economia caseira ou administração (Hausverwaltung) imanente
da razão, a saber: o princípio de homogeneidade, o princípio de especificação ou
variedade e o princípio de afinidade ou continuidade. Sem dúvida, Kant propõe
nas páginas deste Apêndice uma nova versão do tema enunciado no último pará-
grafo da sua Dissertação. Eis como ele vê a relação entre os três princípios, que
atribui agora à razão:
A razão prepara, pois, o campo para o entendimento 1. mercê de um prin-
cípio de homogeneidade do diverso sob géneros superiores; 2. por um
princípio da variedade do homogéneo sob espécies inferiores; e, para com-
pletar a unidade sistemática, acrescenta ainda 3. uma lei de afinidade de
todos os conceitos, lei que ordena uma transição contínua de cada espécie
para cada uma das outras por um acréscimo gradual da diversidade. Pode-
mos chamar-lhes os princípios de homogeneidade, da especificação e da con-
tinuidade das formas. O último resulta da reunião dos dois primeiros, após
se ter completado na ideia o encadeamento sistemático, tanto pela elevação
a géneros superiores como pela descida a espécies inferiores; pois, sendo
assim, todas as diversidades são aparentadas entre si, porque todas em
conjunto provêm de um único género supremo através de todos os graus
40
de determinação que se estende cada vez mais.

39
KrV B 692-693; Ak III, 439-440.
40
KrV B 685-686; Ak III, 435-436.

80
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

Kant vê estes princípios como derivando de um interesse especulativo da


razão que visa garantir a maior perfeição possível do conhecimento e, para subli-
nhar o seu carácter subjectivo, chama-os «máximas da razão especulativa». Por
outro lado, Kant vê estes princípios como estando numa articulação sistemática e
como sendo expressão de uma antinomia de interesses da razão, uma antinomia
que na realidade responde a um único interesse superior da própria razão com
vista à unidade mais rica e mais completa dos conhecimentos. A antinomia entre o
princípio de homogeneidade (que visa o máximo de unidade) e o princípio de
especificação (que visa o máximo de variedade) é resolvida numa síntese pelo
princípio de afinidade, que mantém em equilíbrio e em tensão produtiva os outros
dois princípios, os quais, enquanto máximas que dirigem a investigação, se con-
trolam e se limitam reciprocamente e assim se evita cair seja numa unidade muito
geral mas completamente vazia de conteúdo, seja na dispersão e heterogeneidade
total dos conhecimentos empíricos. O filósofo faz notar que esta divergência de
métodos e de interesses especulativos é protagonizada pelos diferentes talentos
filosóficos e científicos. Em alguns pensadores, mais empíricos, predomina o inte-
resse da diversidade, como se eles fossem regidos nos seus empreendimentos pelo
princípio de especificação. Esses levam então as suas investigações sempre mais
longe, com vista a encontrar a máxima diferença e a maior variedade entre as
coisas. Noutros, mais especulativos, predomina o interesse pela unidade e, seguindo
o princípio de homogeneidade, eles procuram encontrar por toda a parte analo-
gias, mesmo entre coisas muito diferentes umas das outras. Uma sábia administra-
ção da razão na investigação científica exige que se deixem exprimir livremente
estes dois partidos que tomam a seu cuidado a boa causa da razão. Se uns procu-
ram garantir para ela o máximo de conteúdo e de determinação, os outros procu-
ram o máximo de generalidade e de extensão dos princípios. Encontra-se assim a
versão kantiana daquela dupla máxima de Leibniz, que acima encontrámos,
segundo a qual é preciso praticar as analogias, ao mesmo tempo que é necessário
exercitar-se a fazer distinções. É, de resto, muito significativo que Kant relacione
expressamente esta diversidade dos temperamentos filosóficos não apenas a um
interesse da razão que se exprime de modo antitético, mas também à predominân-
cia neles de uma ou outra das faculdades do espírito, que os seus antecessores
(Wolff, Baumgarten, Reimarus), reconhecendo a pertinência das categorias da
poética barroca, tinham já identificado como estando propriamente e directa-
mente comprometidas seja na invenção ou descoberta intelectual, seja na inven-
ção estética, a saber: o ingenium ou o Witz – que aproxima as coisas umas das
outras descobrindo ou estabelecendo entre elas analogias, congruências, propor-
ções, parentesco, identidade – e a agudeza (o acumen, a Scharfsinnigkeit) ou a
41
perspicácia, que percebe as distinções, a diversidade e a variedade entre as coisas.

41
KrV A 544. Veja-se: Baltasar Gracián, Arte de ingenio, Tratado de Agudeza (1642; na ed.
de 1648 toma o título: Agudeza y arte de ingenio); Matteo Pellegrini, Delle acutezze (1639),

81
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

Para designar estes princípios Kant serve-se de expressões tais como ‘prin-
cípios’, ‘leis’, ‘regras’, ‘máximas’ e caracteriza-os como tendo uma função lógica
mas apenas subjectiva, a título hipotético e regulativo. Mas insiste sobretudo na
sua condição verdadeiramente transcendental: não se pode pensar que eles são
extraídos da experiência da natureza, porque esta experiência os supõe para que
se torne ela mesma possível. Prosseguindo a sua exposição, Kant retorna à
mesma constatação que havia já formulado na Dissertação, a saber que «nós
encontramos esta pressuposição transcendental – da unidade sistemática –
escondida também de uma maneira espantosa nos princípios dos filósofos, ainda
que eles nem sempre o tenham reconhecido ou não a tenham confessado a si
42
mesmos.» E cita algumas fórmulas que traduzem essa pressuposição, tais
como: entia praeter necessitatem non esse multiplicanda – expressão do princípio
de economia; entium varietates non temere esse minuendas, expressão do princípio
de especificação; Non datur vacuum formarum / specierum – Datur continuum
formarum / specierum, expressões do princípio de afinidade ou de continuidade,
da lex continui in natura. A propósito desta última lei, que atribui a Leibniz e na
qual se funda a ideia de uma escada contínua das criaturas, desenvolvida por
Bonnet, Kant diz que ela
não faz mais do que obedecer ao princípio de afinidade que assenta no inte-
resse da razão; pois não poderíamos extraí-la, a título de afirmação objectiva,
da observação e da penetração das disposições da natureza.[...] Pelo contrá-
rio, o método que consiste em procurar a ordem na natureza segundo um tal
princípio, e a máxima que quer que se olhe esta ordem como fundada numa
natureza em geral, sem todavia determinar onde e até onde ela reina, este
método é certamente um excelente e legítimo princípio regulativo da razão, o
qual, enquanto tal, vai sem dúvida demasiado longe para que a experiência
ou a observação possam ser-lhe adequadas, mas que, sem nada determinar,
43
lhes traça no entanto a via da unidade sistemática.

I fonti dell’ingegno ridotti ad arte (1650); Emanuele Tesauro, Il cannochiale aristotelico, o sia,
Idéa dell’arguta ed ingegniosa elocutione, 1654). Dá-se já a apropriação destas categorias da
poética barroca, num contexto epistemológico, em Descartes: Regulae ad directionem inge-
nii (X-XI), Œuvres, A-T, X, 400-405: «Oportet ingenii aciem... convertere... & simul duas
praecipuas ingenij facultates excolere, perspicacitatem scilicet, res singulas distinctè
intuendo, & sagacitatem, unam ex alijs artificiose deducendo... Ut ingenium fiat sagax...».
Veja-se ainda: Alexander Baumgarten, Metaphysica § 572: «Habitus identitates rerum
observandi est INGENIUM [Witz]». – Metaphysica § 573: «Habitus diversitates rerum
observandi ACUMEN [Scharfsinnigkeit] est. Acutum ingenium est PERSPICATIA [eine
artige oder feine Einsicht].»
42
KrV B 679; Ak III, 432.
43
KrV B 696; Ak III, 441-442.

82
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

O que é verdadeiramente novo, no Apêndice à Dialéctica Transcendental,


relativamente ao último parágrafo da Dissertação, é pois a ideia da articulação
sistemática dos princípios, a concepção dialéctica do seu uso e do seu funcio-
namento e o reconhecimento explícito da sua condição transcendental: eles pos-
suem um alcance de universalidade e de aprioridade que os torna análogos dos
conceitos puros do entendimento e que nenhum conceito empírico pode alguma
vez assegurar. Assim, lê-se em B 682:
O princípio lógico dos géneros – a saber, o princípio de unidade ou de
homogeneidade – supõe por conseguinte um princípio transcendental, para
poder ser aplicado à natureza... Seguindo este princípio, no diverso de uma
experiência possível, a homogeneidade é necessariamente pressuposta... pois,
sem esta homogeneidade, não haveria mais conceitos empíricos e, por con-
44
seguinte, nem sequer experiência possível.
O mesmo se passa com o segundo princípio (B 685):
Esta lei da especificação também não pode pedir-se à experiência, pois esta
45
não pode proporcionar perspectivas assim tão vastas.
E ainda com o terceiro princípio, o de continuidade ou de afinidade (B 688):
Esta lei lógica do continuum specierum (formarum logicarum) pressupõe uma
lei transcendental (lex continui in natura) sem a qual o uso do entendimento
por esta prescrição induziria em erro, tomando porventura um caminho
completamente oposto ao da natureza. Esta lei, pois, tem de assentar em
fundamentos transcendentais puros e não empíricos; porque, neste último
caso, chegaria depois dos sistemas, quando, em verdade, foi ela que previa-
46
mente produziu o que há de sistemático no conhecimento da natureza.
Todavia, ao mesmo tempo, o filósofo sublinha, repetidamente, que não se
trata nisso de meros princípios económicos – ou utensílios metodológicos – da
razão, mas de «uma lei interna da natureza» (nicht bloss ein ökonomischer Grund-
47
satz der Vernunft, sondern inneres Gesetz der Natur) ; que tais princípios têm
verdadeiramente uma certa pretensão de objectividade; isto é, que eles não res-
pondem apenas a um interesse especulativo da razão para seu uso imanente,
mas que se fazem igualmente recomendar como se fossem também «conformes à
própria natureza» (der Natur selbst angemessen - B 681). Em suma: «que temos
de pressupor a unidade sistemática da natureza como sendo objectivamente
44
Ak III, 433.
45
Ak III, 435.
46
Ak III, 439.
47
KrV B 678; Ak III, 431; B 681; Ak III,433.

83
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

válida e necessária» (die systematische Einheit der Natur durchaus als objectiv gül-
tig und nothwendig voraussetzen müssen – B 680). Escreve Kant (B 691):
O que é digno de nota nestes princípios, e também unicamente o que nos
ocupa, é que parecem ser transcendentais e, embora contenham apenas
simples ideias para a observância do uso empírico da razão, ideias que este
uso aliás só pode seguir assimptoticamente, ou seja, aproximadamente, sem
nunca as atingir, possuem todavia, como princípios sintéticos a priori, vali-
dade objectiva, mas indeterminada, e servem de regra para a experiência
possível, sendo mesmo realmente utilizados com êxito como princípios
48
heurísticos na elaboração da experiência.
Estas passagens mostram que Kant parece hesitar a propósito do estatuto
destes princípios: eles são por certo transcendentais, subjectivos, regulativos,
mas é como se eles correspondessem também à natureza mesma das coisas e
como se eles tivessem um valor objectivo, ainda que indeterminado. A hesitação
do filósofo dá testemunho da importância fundamental desses princípios, como
condições que são do funcionamento da razão, cuja imanente teleologia expri-
mem. Segundo as próprias palavras de Kant (B 678-679):
Não se concebe como poderia ter lugar um princípio lógico da unidade
racional das regras, se não se supusesse um princípio transcendental,
mediante o qual tal unidade sistemática, enquanto inerente aos próprios
objectos, é admitida a priori como necessária. Pois, com que direito pode a
razão exigir que, no uso lógico, se trate como unidade simplesmente oculta
a diversidade das forças que a natureza nos dá a conhecer e se derivem
estas, tanto quanto se pode, de qualquer força fundamental, se lhe fosse
lícito admitir que seria igualmente possível que todas as forças fossem hete-
rogéneas e a unidade sistemática da sua derivação não fosse conforme com
a natureza? Porque, nesse caso, procederia ao invés do seu destino, dando a
si própria por alvo uma ideia totalmente contrária à constituição da natu-
reza. Também não se pode dizer que tenha previamente extraído da cons-
tituição contingente da natureza esta unidade, mediante princípios racio-
nais. Porque a lei da razão que nos leva a procurá-la é necessária, pois sem
ela não teríamos razão, sem razão não haveria uso coerente do entendi-
mento e, à falta deste uso, não haveria critério suficiente da verdade empí-
rica e teríamos, portanto, que pressupor, em relação a esta última, a uni-
49
dade sistemática da natureza como objectivamente válida e necessária.

48
Ak III, 439.
49
Ak III, 431-432.

84
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

A mesma ideia sob uma outra formulação, a propósito da harmonia que


parece existir entre os pressupostos transcendentais da razão e a natureza
mesma das coisas (B 680):
Que se encontre também na natureza tal harmonia, é o que os filósofos
pressupõem na conhecida regra da Escola, segundo a qual se não devem
multiplicar os princípios sem necessidade (entia praeter necessitatem non
esse multiplicanda). Com isso se afirma que a própria natureza das coisas
oferece a matéria à unidade racional e a diversidade, em aparência infinita,
não deverá impedir-nos de supor por detrás dela a unidade das proprieda-
des fundamentais de onde se pode apenas derivar a multiplicidade, mediante
50
determinação sempre maior.
E o filósofo ilustra a sua exposição com exemplos tirados das ciências da
natureza que conhecia bem, tais como a Química, a Mineralogia, a Astronomia.

5. As «máximas da faculdade de julgar» e a ideia de


uma «Técnica da Natureza» ou de «teleoformidade da
natureza» como «princípio heurístico» da faculdade de
julgar reflexionante

O Apêndice à Dialéctica Transcendental constitui, sem dúvida, o desenvolvi-


mento mais explícito e mais extenso do problema enunciado pela primeira vez
no último parágrafo da Dissertação. Todavia, agora o tema integra-se no plano
geral da Crítica. O sistema das categorias do entendimento, se é necessário e
suficiente para explicar o conhecimento da natureza em geral, não é suficiente
para dar dinamismo ao trabalho do entendimento e para o guiar quando ele
empreende o conhecimento efectivo e empiricamente determinado da natureza
em toda a sua variedade e heterogeneidade. Por isso, o Apêndice, ao mesmo
tempo que integra a reflexão sobre as ideias da razão, agora pensadas como se
fossem princípios transcendentais para o uso do entendimento no conhecimento
empiricamente determinado da natureza, dá também testemunho de uma lacuna
no plano da filosofia transcendental, lacuna que se torna visível sobretudo
quando se tem em consideração o problema da investigação empírica da natu-
reza, o problema da coerência entre os conceitos empíricos encontrados de
modo avulso, em suma, o problema do sentido de um qualquer particular que
não seja o caso de um conceito geral dado ou conhecido de antemão. Esse parti-
cular é o novo e o inesperado, que exige ser reconhecido na sua pertinência e
legitimidade e para o qual não há uma legalidade já dada.

50
Ak III, 432.

85
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

Mas o Apêndice à Dialéctica Transcendental não é ainda a última palavra de


Kant a respeito deste assunto. O problema exposto na sua primeira secção con-
tinua a trabalhar no espírito de Kant e a exigir uma solução ainda mais orgânica
e não meramente apendicial. Pode mesmo dizer-se que é este problema que
levará o filósofo a descobrir um novo princípio transcendental e uma função
totalmente nova para a faculdade de julgar. Com efeito, na primeira versão da
Introdução à Crítica do Juízo, sob o título «Da experiência como um sistema
para o juízo», Kant enuncia o problema que conduz a sua nova Crítica. Os ter-
mos são muito próximos dos que havia usado no Apêndice. A primeira Crítica,
confessa agora o seu autor, tinha mostrado que toda a natureza, enquanto con-
junto de todos os objectos da experiência em geral, constitui um sistema de leis
transcendentais que o entendimento dá a priori. Mas disso não decorre que a
natureza, considerada segundo a variedade e multiplicidade das suas leis empíri-
cas, seja também um sistema compreensível pela faculdade de conhecer humana.
O entendimento, na sua legislação transcendental da natureza, não toma em
consideração a não ser as condições de possibilidade de uma experiência em
geral segundo a sua forma, abstraindo da diversidade e heterogeneidade das leis
empíricas possíveis. Ora, poderia muito bem acontecer que a extrema diver-
sidade e heterogeneidade das leis empíricas fossem tão grandes que não se
pudesse sequer esperar ter a sorte de as poder ligar num sistema ou num pro-
cesso sempre aberto de sistematização. E, todavia, é uma exigência não apenas
da razão, mas também do entendimento para o seu trabalho, que um tal sistema
e uma tal unidade sejam pelo menos pressupostas. Kant escreve:
É, pois, uma pressuposição transcendental subjectivamente necessária o
considerar que esta inquietante disparidade sem limites das leis empíricas e
esta heterogeneidade das formas naturais não são apropriadas à natureza,
mas que esta, através da afinidade das leis particulares sob leis mais gerais,
possui as qualidades requeridas para constituir uma experiência enquanto
51
sistema empírico.

51
I. Kant, Erste Einleitung in die Kritik der Urteilskraft, IV, ed. De G. Lehmann, Felix
Meiner, Hamburg, 1977, pp.16-17. Veja-se também a carta de Kant a J. S. Beck, de 18 de
Agosto de 1793 (Ak XI, 441), onde fala da ideia principal da Primeira Introdução que
escrevera para a Crítica do Juízo e que diz ter abandonado devido à sua prolixidade: «O
essencial daquele Prefácio [sic] refere-se à peculiar e estranha pressuposição da nossa
razão: que a natureza torna possível na multiplicidade dos seus produtos uma acomoda-
ção aos limites da nossa faculdade de julgar, mediante a simplicidade e notável unidade
das suas leis e a exposição da infinita diferenciliadade das suas espécies (species), segundo
uma certa lei de continuidade, que torna possível a ligação das mesmas sob poucos con-
ceitos genéricos [Gattungsbegriffe], como se o tivesse querido intencionalmente e como
fim para a nossa faculdade de compreensão, não porque conheçamos esta teleoformidade
como sendo em si necessária, mas porque dela somos necessitados e assim também a
assumimos a priori e somos legitimados a usar, tanto quanto o conseguimos fazer.»

86
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

Todavia, se o problema parece ser o mesmo do Apêndice à Dialéctica


Transcendental e se os próprios termos da sua equação são também pratica-
mente idênticos, a solução proposta vai ser diferente. Porque agora Kant atribui
esta pressuposição transcendental a uma nova faculdade (ou a uma nova função
de uma faculdade que ele ainda não havia descoberto e reconhecido em todo o
seu significado na economia dos poderes do espírito). Esta faculdade é o juízo
reflexionante (reflektierende Urteilskraft). Por outro lado, ele descobre agora
também o princípio transcendental próprio dessa nova faculdade – a teleoformi-
dade da natureza (Zweckmässigkeit der Natur) – e subsume os princípios de uni-
dade sistemática, de especificação e de afinidade sob este novo princípio, o qual,
segundo declara, se exprime nas sentenças dos filósofos de todos os tempos a
propósito da economia da natureza, às quais chama agora «máximas da facul-
dade de julgar»; a saber: que «a natureza toma a via mais curta», que «ela nada
faz em vão», que «ela não procede por saltos na diversidade das formas», que
«ela é rica em espécies, mas ao mesmo tempo económica em géneros», e outras
do mesmo teor. A propósito destas sentenças, que correspondem, quase nos
mesmos termos e sobretudo no mesmo sentido, às da Dissertação e às do Apên-
dice à Dialéctica Transcendental, Kant diz que elas «não são mais do que o
modo mesmo como a faculdade de julgar tem de se manifestar transcendental-
mente dando a si mesma um princípio para estabelecer a experiência como um
sistema e, por conseguinte, para satisfazer a sua própria necessidade» (sind
nichts anders als eben dieselbe transzendentale Äusserung der Urteilskraft, sich für
die Erfahrung als System und daher zu ihrem eigenen Bedarf ein Prinzip festzuset-
52
zen). E prossegue, reclamando para a nova faculdade o que anteriormente tinha
atribuído seja ao entendimento (no acima comentado texto da Dissertação), seja
à razão (no Apêndice à Dialéctica Transcendental da Crítica da Razão Pura). Mas
agora vai ao ponto de dizer que
nem o entendimento nem a razão podem fundar a priori uma tal lei da
natureza; pois, que a natureza, nas suas leis simplesmente formais (pelo
que ela é objecto da experiência em geral) se reja segundo o nosso enten-
dimento, isso percebe-se facilmente, mas no que respeita às leis particula-
res, à sua diversidade e sua heterogeneidade, ela está livre relativamente a
todas as limitações do nosso poder de conhecer na sua dimensão legisla-
dora, e o que funda este princípio é uma simples pressuposição da facul-
dade de julgar, tendo em vista o seu próprio uso para, em cada caso, elevar-
-se do particular empírico a um plano igualmente empírico, mas mais geral,
53
e isso tendo em vista proceder à unificação das leis empíricas.

52
Erste Einleitung, ibidem.
53
Ibidem.

87
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

E o filósofo nota, como de resto já o fizera a propósito dos três princípios,


no Apêndice à Dialéctica Transcendental, que se trata dum verdadeiro princípio
transcendental, cuja origem não podemos atribuir à experiência, na medida em
que, somente supondo-o, é que é possível organizar sistematicamente as expe-
riências. Mas, ao mesmo tempo, Kant deixa de insistir na pretensão de objectivi-
dade do novo princípio de teleoformidade da natureza, antes parecendo reforçar
o seu carácter originariamente subjectivo, mas de um novo tipo de subjectivi-
dade, a reflexionante, que até agora não havia sido sequer por ele nomeada
enquanto tal.
O que é que há, pois, de verdadeiramente novo na terceira Crítica a propósito
da questão que nos vem ocupando? Em primeiro lugar, a «descoberta» pelo filó-
sofo de uma nova faculdade – o juízo reflexionante – e do seu princípio transcen-
dental – a teleoformidade da natureza. É a esta faculdade e ao seu princípio que
são agora atribuídos aqueles «princípios de conveniência» ou as «regras do jul-
gar», que havíamos encontrado na Dissertação, e os «princípios transcendentais»
ou «máximas da razão», que havíamos encontrado no Apêndice à Dialéctica
Transcendental. Mas o novo princípio da nova faculdade subsume as «sentenças
da sabedoria metafísica», reconhecidas como «máximas da faculdade de julgar».
Há, por certo, pequenas diferenças na lista destas sentenças ou máximas, na sua
ordem e na sua formulação, mas vê-se bem que, apesar disso, elas se correspon-
dem em geral e que respondem ao mesmo problema e que o filósofo em nenhum
caso tem a intenção ou a pretensão de as mencionar todas.
Um outro aspecto que é verdadeiramente novo é o reconhecimento explí-
cito da dimensão estética – isto é, da experiência de um verdadeiro prazer na
investigação científica, o que atesta uma essencial afinidade entre a Heurística (a
Teleologia) e a Estética. Que a natureza mesma das coisas em toda a sua varie-
dade ofereça uma matéria que responde ao interesse de unidade do entendi-
mento ou da razão, é qualquer coisa que se dá como contingente e que nem o
entendimento nem a razão podiam determiná-lo por si mesmos. O acordo entre
o entendimento e a natureza empírica revela-se, pois, como um gracioso aconte-
cimento de descoberta ou de invenção que tem grandes analogias com a expe-
riência estética e que dá sempre ocasião a um verdadeiro prazer intelectual,
aquele prazer que terão experimentado Pitágoras ou Kepler por ocasião das res-
pectivas descobertas. Esta dimensão estética da pesquisa científica é sublinhada
54
sobretudo na versão definitiva da Introdução à terceira Crítica. No parágrafo
54
Também na Primeira Introdução se encontra disso testemunho, nomeadamente, naquele
passo onde Kant, falando da teleoformidade lógica da natureza, isto é, da aptidão reve-
lada pelas leis empíricas da natureza para serem subsumidas, como que espontanea-
mente, sob leis cada vez mais gerais num sistema de leis empíricas, de géneros e espé-
cies, declara haver já nisso razão suficiente para o filósofo transcendental ser tomado
pelo sentimento de admiração, pois nada disso ele poderia esperar alcançar a partir das
meras leis universais do entendimento. Erste Einleitung, ed. Lehmann, p.23.

88
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

VI, Kant afirma que a realização de uma intenção está associada a um senti-
mento de prazer e, ao dizer isso, tem vista expressamente a intenção do enten-
dimento que pretende que a natureza, não apenas em geral, mas também em
toda a variedade e heterogeneidade das suas leis empíricas, lhe seja conforme,
sem que ele mesmo possa no entanto determinar ou prescrever tal conformi-
dade. Se este acordo fosse estabelecido a priori pelo entendimento, não haveria
mesmo lugar para nenhum prazer, pois então o acordo decorreria necessaria-
mente de leis universais. Mas a situação é totalmente diversa quando, no campo
empírico, de um modo absolutamente contingente e por assim dizer inesperado,
se chega a descobrir que duas ou mais leis empíricas e heterogéneas da natureza
se deixam compreender sob um mesmo princípio comum superior que se
encontra e que não estava dado previamente. Então, diz Kant,
esta descoberta é o fundamento de um prazer muito digno de nota e fre-
quentemente até de um espanto admirativo, de um espanto que não cessa
mesmo que o seu objecto seja já suficientemente conhecido.
Sem dúvida, o hábito tornou-nos costumeiro e banal este acordo e é por
isso que já não experimentamos nisso nenhum prazer digno de nota. Mas,
segundo o filósofo,
um tal prazer existiu a seu tempo e somente porque a experiência mais
comum não seria possível sem ele é que a pouco e pouco ele se confundiu
com o mero conhecimento e deixou de ser especialmente advertido.
E prossegue dizendo que
é necessário pois qualquer coisa que, no juízo acerca da natureza, torne o
nosso entendimento atento à finalidade desta, é preciso uma investigação
que consista em hierarquizar as leis heterogéneas sob leis mais elevadas, se
possível, ainda que sempre empíricas, para que, em caso de sucesso, sinta-
mos prazer neste acordo da natureza com o nosso poder de conhecer –
acordo que nós consideramos como simplesmente contingente. Pelo con-
trário, seria para nós uma representação muito desgostosa da natureza se
nos fosse dito à partida que, na mais pequena investigação que fosse para
além da experiência mais comum, confrontar-nos-íamos com uma tal hete-
rogeneidade das suas leis que esta tornaria impossível para o nosso enten-
dimento a reunião das suas leis particulares sob leis universais empíricas; a
razão disso está em que isso contraria o princípio da especificação subjec-
tiva e final da natureza nos seus géneros e a intenção da nossa faculdade de
55
julgar reflexionante.

55
Kritik der Urteilskraft, Einleitung V; Ak V, 187-188.

89
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

Foi talvez esta percepção ou esta feliz descoberta da dimensão estética da


investigação científica o que conduziu o filósofo a tratar sob a jurisdição de uma
mesma faculdade – a faculdade de julgar reflexionante – e do seu princípio
transcendental – o da teleoformidade da natureza –, as questões relativas ao
juízo estético do belo da natureza e as relativas ao juízo teleológico acerca da
natureza, a unir sob a Crítica do Juízo e o seu princípio transcendental a Estética
56
e a Teleologia. Sem dúvida, uma solução ousada e muito fecunda, que, como é
sabido, mereceu a aprovação entusiasta de Goethe e a total incompreensão de
Schopenhauer.
Em conclusão, creio, pois, poder dizer que, seguindo o fio dos princípios
heurísticos, encontra-se uma linha de continuidade que vai da Dissertação à Crí-
tica do Juízo, passando pela Crítica da Razão Pura. A obra seminal de 1770 não
está apenas na génese da primeira Crítica, mas constitui também um momento
decisivo da génese aporética da terceira Crítica. O problema levantado no seu
último parágrafo não cessa de trabalhar cada vez mais o pensamento do filósofo,
conduzindo-o não apenas a dar-lhe esclarecimentos importantes, mas também a
descobrir toda uma nova dimensão da subjectividade, que nem a Dissertação
nem a primeira Crítica tinham ainda designado pelo seu nome próprio, e que só
na terceira Crítica recebe o seu verdadeiro nome: a subjectividade reflexionante.
Porventura sem expressamente o querer e mesmo sem o saber plenamente,
Kant deu com isso um contributo muito considerável para o programa da ars
inveniendi dos Modernos. Ele foi não apenas o último dos Modernos a trabalhar
este programa, mas também aquele que mais profundamente o enfrentou. E
sendo embora herdeiro de tudo quanto os seus antecessores, desde Bacon, haviam
alcançado neste domínio, o filósofo crítico desenvolve sobretudo as intuições
leibnizianas acerca desse tópico, revelando a natureza e a legitimidade transcen-
dental daquilo a que o filósofo de Hannover chamava os «princípios arquitec-
tónicos» e que o próprio Kant coloca também na conta de uma espécie de «enten-
dimento arquitectónico» (architecktonischer Verstand), o qual, na verdade, não é
57
outra coisa senão a própria faculdade de julgar reflexionante. Da mesma maneira
que o fez na sua Resposta a Eberhard, Kant poderia dizer, também a este respeito,
que a filosofia crítica, seguindo embora o seu próprio caminho e por certo sem o
pretender, poderia muito bem ser lida como uma verdadeira apologia de Leibniz.

56
Raramente se tem dado atenção a este aspecto da dimensão estética da epistemologia
kantiana e, em geral, da íntima solidariedade entre estética e conhecimento. Veja-se a
este respeito algumas indicações na obra de Rebecca Kukla (ed.), Aesthetics and Cogni-
tion in Kant’s Critical Philosophy, Cambridge University Press, Cambridge/New York/
Melbourne/São Paulo, 2006.
57
KU §§ 71.80; Ak V, 388,420.

90
3
«Técnica da Natureza».
Reflexões em torno de um tópico kantiano

… pois quem pode sacar à natureza completamente o


1
seu segredo?

1. Kant, pensador da técnica

É Kant um pensador da técnica? A pergunta, que sugere o título de uma já lon-


gínqua obra de Kostas Axelos a respeito de Karl Marx (Marx penseur de la tech-
nique, Paris, 1961), pode parecer despropositada mesmo para os que estão
habituados a lidar com a res kantiana. De facto, embora a expressão «Técnica da
Natureza» (Technik der Natur) seja recorrente em vários parágrafos tanto da
Primeira como da Segunda Parte da Crítica do Juízo e insistente sobretudo na
primeira versão da Introdução escrita para esta obra, este tópico, que estabelece
ou sugere a estranha associação entre dois conceitos ou princípios muito dife-
rentes ou mesmo antagónicos – a natureza e a arte, a phýsis e a téchnê –, tem
merecido muito pouca atenção dos comentadores e intérpretes, sendo muito
poucos os ensaios expressamente dedicados à sua explicitação e até mesmo a
menção dele em obras e estudos sobre aquela obra de Kant. Chega a ter-se a
sensação de que ele é evitado, talvez porque se perceba que se trata de um tema
carregado de ambiguidades, cujo tratamento só pode ser incómodo e ao fim de
contas pouco frutuoso.
Como explicação plausível para a pouca atenção concedida ao tópico pode-
ria aduzir-se o facto de que, embora ele apareça obsessivamente na versão da
Primeira Introdução escrita para a Crítica do Juízo, cujo texto completo, aliás, só
muito tardiamente foi conhecido e publicado (1914), em contrapartida, na
Introdução definitiva, ele quase se apaga, aparecendo apenas uma vez e de forma
elíptica para apresentar as duas partes da obra.2 Este quase desaparecimento do

1
«... denn wer kann der Natur ihr Geheimniss gänzlich ablocken?». Immanuel Kant,
Kritik der Urteilskraft, § 17; Ak V, 233.
2
Kritik der Urteilskraft, Einleitung viii, Ak V, 192-293: «es sei, dass díeses <Darstellung
(exhibitio) – dem Begriff eine korrespondierende Anschauung zur Seite zu stellen> durch
unsere eigene Einbildungskraft geschehe, wie in der Kunst, wenn wir einen vorherge-

91
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

tópico no texto da Introdução efectiva da Crítica do Juízo, que poderia ler-se


como uma relativização da sua importância, tem certamente que ver, antes de
mais, com o intuito de evitar aquela «desproporcionada prolixidade» que Kant
aduzirá, na carta a Beck de 4 de Dezembro de 1792, como tendo sido a razão
3
para o abandono da primeira versão da mesma , prolixidade de que o tópico é,
aliás, um dos principias responsáveis, dada a sua insistente recorrência, até nos
títulos dessa peça, desde o primeiro ao último parágrafo; mas resulta por certo
também da mudança de perspectiva do autor quanto à leitura que ele próprio
fazia do propósito global da sua obra e da importância que atribuía aos diversos
problemas de que ela tratava. Se, na Segunda Introdução, prevalece uma leitura
da obra que parece privilegiar o juízo estético em relação ao juízo teleológico e
que tem como propósito maior revelar a capacidade daquele para permitir a
«passagem» (Übergang) e a «mediação» (Vermittlung) entre o conceito de natu-
reza e o conceito de liberdade e assim garantir a acoplagem da teleologia natural
com a teleologia moral, na Primeira Introdução, parece prevalecer a preocupação
com o «sistema da experiência», com o «sistema da natureza na infinita multi-
plicidade e heterogeneidade das suas formas e das suas leis empíricas», com o
sistema até das faculdades e poderes do espírito e dos respectivos princípios
transcendentais (o conceito de «Sistema» é aí, tal como o de «Técnica da Natu-
reza», também obsessivo); por conseguinte, sobressai nesta a dimensão episte-
mológica e heurística do princípio da «teleoformidade da natureza» (Zweckmäs-
sigkeit der Natur) e da própria ideia de «Técnica da Natureza», expressamente

fassten Begriff von einem Gegenstande, der für uns Zweck ist, realisieren, oder durch die
Natur, in der Technik derselben (wie bei organisierten Körpern), wenn wir ihr unseren
Begriff vom Zweck zur Beurteilung ihres Produkts unterlegen; in welchem Falle nicht
bloss Zweckmässigkeit der Natur in der Form des Dinges, sondern dieses ihr Produkt als
Naturzweck vorgesttellt wird.» Apesar de ser esta a única ocorrência da expressão no
texto da Introdução definitiva, é muito significativa a analogia nela pressuposta entre
Imaginação e Natureza, quanto ao modo respectivo de produzirem os seus produtos, a
correspondência entre a Einbildungskraft (o princípio criador do espírito na Arte) e a Bil-
dungskraft ou o Bildungstrieb (o princípio internamente criativo dos corpos organizados da
Natureza). As obras de Kant, salvo indicação em contrário, são citadas pela Akademie-
Ausgabe (Ak) dos Kants gesammelte Schriften, reeditados pela Walter de Gruyter, Berlin.
3
«Einleitung…, die ich aber bloss wegen ihrer für den Text unproportionirten
Weitläuftigkeit verwarf, die mir aber noch Manches zur vollständigeren Einsicht des
Begriffs einer Zweckmässigkeit der Natur beytragendes zu enthalten scheint.» Ak XI, 396.
Kant envia o texto a Beck a 18 de Agosto de 93 (Ak XI, 441). Beck fará dele um resumo no
2º volume do seu Erläuternder Auszug aus den kritischen Schriften des Herrn Pr. Kant, Riga,
1794, pp.541-590. A versão integral do texto foi publicada pela primeira vez por Otto
Buek em 1914, no âmbito da ed. Cassirer das Immanuel Kants Werke (Bruno Cassirer,
Berlin), Bd. V, 177-231. Na Akademie-Ausgabe, o texto, ao cuidado de G. Lehmann, inte-
gra o vol. XX, 193-251. Cito o texto da Erste Einleitung pela ed. que o mesmo Lehmann
publicou na Felix Meiner (Hamburg, 1927, 1970,1977), identificado como EE, L.

92
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

4
reconhecida nessa função. Sendo que, de resto, a ideia de «Técnica da Natureza»
5
é equivalentemente dita pelos conceitos de «teleoformidade da natureza» ou de
«teleologia da natureza», os quais talvez se apresentassem ao próprio autor, na
reelaboração que à última hora empreendeu da Introdução, como suficientes e até
6
como mais explícitos para dar conta do intuito e do conteúdo da sua obra.
Ainda assim, como acima ficou dito, o tópico aparece – sob as fórmulas Tech-
nik der Natur, Technik in der Natur e Technizism der Natur – em vários momentos no
corpo mesmo da obra, seja na Primeira seja na Segunda Parte, em desenvolvimentos
que evocam, replicam ou explicitam os do abandonado texto da Primeira Introdu-
ção. E, embora a expressão «Técnica da Natureza», como disse, seja de facto e para
todos os efeitos equivalente ao da «teleoformidade da natureza» e por esta subsu-
mido, aquela evoca todavia contextos semânticos e temático-especulativos e faz soar
harmónicos que a última deixa surdos ou inexpressos. Explicitar alguns desses
contextos e acordar alguns desses harmónicos é o propósito deste ensaio, propósito
7
que, todavia, aqui só parcialmente será cumprido.
Entre os raros intérpretes que advertiram e apontaram a importância do
tema, deve mencionar-se, antes de mais, o grande investigador e profundo
conhecedor do corpus textual kantiano que foi Gerhard Lehmann. Num curto
8
apontamento que ao tema dedicou – e que é, de resto, também um dos poucos

4
Erste Einleitung in die Kritik der Urteilskraft, ii (ed. de G. Lehmann, Felix Meiner, Ham-
burg, 1977, pp.11-12): «unser Begriff von einer Technik der Natur, als ein heuristisches
Prinzip in Beurteilung derselben...» A avaliar também pela carta de Kant a Beck (18.Aug.
1793; Ak XI,441). No texto da terceira Crítica a ideia da «técnica da natureza» como
«um princípio heurístico» é explicitada no § 78 (Ak V, 411).
5
«ein Prinzip der Technik der Natur, mithin der Begriff einer Zweckmässigkeit, die man
an ihr a priori voraussetzen muss.» EE, xii, L 57.
6
EE, ii, L 9-10.
7
O presente texto corresponde, no essencial, a uma comunicação apresentada no III Coló-
quio Kant de Marília (São Paulo, Brasil), centrado na problemática da Crítica do Juízo Teleo-
lógico e realizado entre 7 e 12 de Setembro de 2008. Reservamos para um posterior ensaio a
análise do papel que o conceito de «Técnica da Natureza» desempenha nos debates da
Segunda Parte da Crítica do Juízo em torno do idealismo ou realismo da teleoformidade da
natureza, da antinomia entre a visão mecanicista e a visão teleológica da natureza e da pos-
sibilidade de reunir, precisamente mediante esse conceito, o princípio do mecanismo da
matéria com o princípio teleológico, com proveito para a filosofia mas também, e antes de
mais, para a própria investigação da natureza. O texto agora publicado segue de perto o que
foi publicado na revista da Sociedade Kant Brasileira Studia Kantiana (n. 9, 2009), a cujos
responsáveis agradeço a graciosa autorização concedida para esta utilização.
8
Gerhard Lehmann, «Die Technik der Natur», in: Idem, Beiträge zur Geschichte und
Interpretation der Philosophie Kants, W. de Gruyter, Berlin, 1969, 289-294. O mesmo
Lehmann, editor da Erste Einleitung in die Kritik der Urteilskraft (Felix Meiner, Ham-
burg, 1927, 1970, 1977), na «Einleitung» que escreve para a 2ª ed. desta peça, destaca a
recorrência do tópico e a sua importância para se compreender a relação da obra de

93
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

ensaios explícitos que o mesmo tem merecido –, destaca a sua importância para
se avaliar não só a intenção e alcance da terceira Crítica como também a relação
desta obra com as reflexões mais tardias do filósofo, publicadas pelos editores
sob o título de Opus postumum, e foi ao ponto de dizer que «Kant na realidade
tinha em vista nada menos do que uma filosofia da técnica, uma crítica da razão
técnica» e que, embora o filósofo não tenha executado essa ideia da mesma
forma que o fez com a crítica da razão teorética e da razão prática, «só ela torna
9
plenamente visível a conexão dos pensamentos fundamentais do criticismo».
Mais recentemente, o tema foi abordado em dois ensaios, um de Fiona
10 11
Hughes , o outro de Ulrike Santozki. Neste último, privilegia-se a génese do
tópico e seus antecedentes na história filosófica, pondo-se nomeadamente em
destaque a origem do conceito no estoicismo latino e na tradição galénico-hipo-
crática. De facto, Cícero não só usa a expressão “ars naturae”, como desenvolve
12
sob várias formas a ideia segundo a qual «omnis natura artificiosa est». E, na
mesma linha, Séneca fala da arte natural das abelhas na construção dos seus
habitáculos e das aranhas na fiação das suas teias, fazendo notar a regularidade e
constância da arte da natureza, que nos animais se confunde com o instinto sem
aprendizagem, em confronto com a contingência, irregularidade e imperfeição
das artes humanas: «Nascitur ars ista, non discitur... Incertum est et inaequabile

1790 com as reflexões kantianas do Opus postumum sobre o «organismo» e a «organis-


che Technik» (pp.xviii e xxi). Também Helga Mertens, no seu Kommentar zur Ersten
Einleitung in Kants Kritik der Urteilskraft (München, 1975), analisa o tópico sobretudo a
propósito do comentário do VII capítulo da «Primeira Introdução», intitulado «Von der
Technik der Urteilskraft als dem Grunde der Idee einer Technik der Natur» (pp.115-
-124). Mas, ao contrário de Lehmann, que sublinha os aspectos de fecundidade do tema
para se compreender a coerência da filosofia transcendental, Mertens aponta sobretudo
as dificuldades, obscuridades e problematicidade que o envolvem.
9
«Kant in der Tat nicht geringeres vor Augen hatte als eine Philosophie der Technik, eine
Kritik der technischen Vernunft». Ibidem, p.294. E noutro lugar: «Es zeigt sich […] im
Hintergrunde beider Werke, der Kritik der Urteilskraft und des Nachlasswerkes, die Idee
einer Kritik der technischen Vernunft, die Kant nicht in gleicher Weise ausgeführt hat wie
die Kritik der theoretischen und der praktischen Vernunft, die aber den Zusammenhang
der Grundgedanken des Kritizismus erst voll sichtbar macht.» Ibidem, p.289.
10
Fiona Hughes, «The ‘Technic of Nature’. What is Involved in Judgment?», in: Herman
Parret (ed.), Kants Ästhetik, Kant’s Aesthetics, L’Esthétique de Kant, W. de Gruyter, Berlin,
1998, 176-191.
11
Ulrike Santozki, «Kants ‘Technik der Natur’ in der Kritik der Urteilskraft. Eine Studie
zur Herkunft und Bedeutung einer Wortverbindung», Archiv für Begriffsgeschichte, 47
(2005), 89-121; Idem, Die Bedeutung antiker Theorien für die Genese und Systematik von
Kants Philosophie, Kantstudien-Ergänzungshefte, Walter de Gruyter, Berlin, 2006 (devo
o conhecimento do ensaio e da obra de U. Santozki a informação amiga do Prof. Dr.
Heiner Klemme, a quem agradeço).
12
De natura deorum, II, 16, 34, 45, 57, 58, 83.

94
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

13
quicquid ars tradit; ex aequo venit quod natura distribuit». No confronto entre a
arte e a natureza, quanto ao respectivo modo de produzir, a prevalência vai ine-
quivocamente para a segunda. Para além da matriz estóica romana, a autora
aduz também a matriz grega do tópico e da expressão téchne phýseos, recorrente
nos escritos de Galeno para dizer a força auto-regeneradora da natureza, a vis
medicatrix naturae. E aponta alguns autores do século XVIII, cujos escritos eram
certamente conhecidos por Kant, e nos quais se dá a assimilação quer da matriz
estóica, ciceroniana e senequiana, nomeadamente nos Dialogues concerning natu-
ral religion de David Hume, quer da matriz galénico-hipocrática, nomeadamente
14
em Hermann Samuel Reimarus. Apesar da pertinência do estudo de Santozki, o
inventário das origens da noção kantiana da «Técnica da Natureza» está longe
de poder considerar-se completo, carecendo da identificação de outras matrizes
e mediações. Só a título de exemplo, a ideia renascentista da magia naturalis (de
um Giovanni Pico della Mirandola, de um Marsilio Ficino ou de um Paracelso),
de matriz neoplatónica, diz a mesma coisa e teria que ser também considerada
15
nessa inventariação.

13
Epistolae morales ad Lucilium, 121,23.
14
Allgemeine Betrachtungen über die Triebe der Thiere, hauptsächlich über die Kunst-Triebe:
zum Erkenntniss des Zusammenhanges der Welt, des Schöpfers und unser selbst, Hamburg,
1760, 5, 204-207, 211. Passagens não faltam, nos escritos de Kant, para documentar esta
matriz estóica da sua concepção de Natureza, sobretudo quando este conceito é invo-
cado no contexto da meditação sobre a filosofia da história e da política e da peculiar
teleologia ou racionalidade que lhes preside. É em tais contextos que ocorrem expres-
sões do género: «a grande artista natureza, também chamada Providência» – die grosse
Künstlerin Natur, auch Vorsehung genannt (Zum ewigen Frieden, Ak VIII, 360 ss), a «natura
daedala rerum», a «Mãe-Natureza» (Mutter-Natur), a «sabedoria da natureza» (Weisheit
der Natur), o «cuidado da natureza» (Vorsorge der Natur), a «voz ou o chamamento da
natureza» (Stimme, Ruf der Natur) (Ib., 361, 363) e, em geral, a personificação da Natu-
reza, não como objecto ou conjunto de objectos de conhecimento, mas como algo que
tem um plano, uma vontade, uma intenção (Idee, Ak VIII, 18, 19, 27, 28, 30 passim).
Veja-se o desenvolvimento deste tema no meu livro Metáforas da Razão ou economia
poética do pensar kantiano, JNICT/F.C.Gulbenkian, Lisboa, 1994, pp.421 ss.
15
A noção de «natureza plástica» (plastic nature) dos neoplatónicos ingleses Henry More
e Ralph Cudworth traduz a mesma ideia, e o próprio Kant dá como sinónimos o «plas-
tisch», o «technisch» e o «künstlich» (EE L 60). Transcrevo, a propósito, e como mais
um exemplo a ter em conta para a história do conceito de arte da natureza, um passo do
diálogo metafísico de Giordano Bruno (De la causa, principio e uno, II), que oferece um
inventário das maneiras como alguns filósofos antigos nomearam o princípio eficiente
que explica a produção dos seres naturais. Assim escreve o Nolano: «L’intelletto univer-
sale è l’intima, piú reale e propria facultà e parte potenziale de l’anima del mondo.
Questo è uno medesimo, che empie il tutto, illumina l’universo e indirizza la natura a
produre le sue specie como si conviene; e cossí ha rispetto alla produzione di cose natu-
rali, come il nostro intelletto alla congrua produzione di specie razionali. Questo è
chiamato da’ pitagorici motore ed esagitator de l’universo, come esplicò il Poeta, che disse:
totamque infusa per artus

95
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

Se atendermos à vasta literatura sobre a Crítica do Juízo, logo verificamos


que também aí o tema tem passado quase sempre despercebido. Deve no entanto
resgatar-se do quase completo esquecimento uma interpretação daquela obra
kantiana, que, tanto quanto sei, foi a única que até ao presente pôs em destaque
a importância decisiva do tema para se compreender a sua complexa unidade e
coerência. Trata-se da obra de Karel Kuypers, na qual o autor uma e outra vez
declara a sua convicção de que «o conceito de Técnica da Natureza deve ser
posto como base da interpretação de toda a Crítica do Juízo, que o tema próprio
desta obra kantiana é a interpretação da força produtiva da natureza enquanto
téchne ou arte, e que só lendo a obra como uma meditação crítico-transcendental
acerca da Técnica da Natureza se pode, se não reconhecer, pelo menos captar a
16
sua unidade e interna coerência».
Entre os contemporâneos de Kant, leitores da Crítica do Juízo, houve duas
figuras notáveis que foram sensíveis à importância do tema: Schiller e Goethe. O
primeiro, nas suas Kallias-Briefe, comenta largamente a sentença kantiana do § 45
da «Crítica do juízo estético», onde se diz que «a natureza é bela, se parece como

Mens agitat molem, et toto se corpore miscet. (Virgilio, Aen. VI, 726-7)
Questo è nomato da’ platonici fabro del mondo.[...] É detto da’ maghi fecondissimo de
semi, o pur seminatore; perché lui è quello que impregna la materia di tutte forme e,
secondo la raggione e condizion de quelle, al vienne a figurare, formare, intessere con
tanti ordini mirabili, li quali non possono attribuirsi al caso, né ad altro principio che
non sa distinguere e ordinare. [...] Plotino lo dice padre e progenitore, perché questo
distribuisce gli semi nel campo della natura, ed è il prossimo dispensator de le forme. Da
noi si chiama artefice interno, perché forma la materia e la figura da dentro, come da
dentro del seme o radice manda ed esplica il stipe; da dentro il stipe caccia i rami; da
dentro i rami le formate brance; da dentro queste ispiega le gemme; da dentro forma,
figura, intesse, come di nervi, le frondi, gli fiori, gli frutti; e da dentro, a certi tempi,
richiamma gli sui umori da le frondi e frutti alle brance, da le brance agli rami, dagli
rami al stipe, dal stipe alla radice... <etc.>». De la causa, principio e uno, ed. a cura di
Augusto Guzzo, Mursia, Milano, 1985, pp.93-97.
16
Kants Kunsttheorie und die Einheit der Kritik der Urteilskraft, North-Holland Publishing
Co., Amsterdam/London, 1972. Assim escreve (p. 33): «Ich bin der Ansicht, dass man
diesen Begriff “Technik der Natur” der gesammten Interpretation der Kritik der Urteilskraft
zugrunde legen muss.»; (p.34): «...das von Kant behandelte Thema <der K.d.U.> ... wie
immer wieder betont werden muss – eine transzendental-kritische Untersuchung nach
der Berechtigung der Aufassung der Natur als zweckmässig, als einer Technik bzw. als
Kunst [ist].»; (p.116): «…das eigentliche Thema der Kritik der Urteilskraft die Deutung
der produktiven Kraft der Natur als τέχνη, als Kunst, ist – also die Technik der Natur.»
E de forma ainda mais vincada na p.120: «Nun endet die Erste Fassung <Erste Einlei-
tung in die K.d.U.> mit einer Feststellung, auf die ich mich zuvor schon berufen habe,
um meinen Ausgangspunkt und meine Hauptthese zu begründen und zu verteidigen,
dass nämlich das eigentliche Thema der Kritik der Urteilskraft eine transzendental-kritische
Betrachtung über die Technik der Natur ist, und dass man allein unter diesem Aspekt
die Einheit und den Zusammenhang der Kritik der Urteilskraft wo nicht anerkennen so
doch zumindest begreifen kann.»

96
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

17
arte, e a arte é bela se parece como natureza» , realçando a sua grande fecundi-
dade, e verte-a na sua própria linguagem, limitando-a embora ao contexto pro-
priamente estético, nestes termos:
Kant propõe na sua Crítica do Juízo uma sentença que é de uma invulgar
fecundidade e que, segundo penso, só a partir da minha teoria pode obter o
seu esclarecimento. Esta sentença faz da técnica um requisito essencial do
belo natural e da liberdade uma condição essencial do belo artístico. Mas
como o belo artístico por si mesmo já envolve a ideia da técnica e o belo
natural a ideia de liberdade, Kant reconhece que a beleza não é outra coisa
18
senão a natureza na técnica, a liberdade na conformidade à arte.
Por seu turno, Goethe confessava ter descoberto na Crítica do Juízo uma
profunda afinidade entre as suas próprias intuições de esteta e de naturalista e a
ideia fundamental que, segundo ele, presidiria àquela obra de Kant, na qual os
produtos da arte e os da natureza são considerados do mesmo modo e o juízo
estético e o teleológico se iluminam mutuamente, revelando o íntimo e essencial
parentesco entre a arte poética e a ciência natural, regidas uma e outra por uma
19
lei de íntima espontaneidade. Numa carta a Zelter, de 29 de Janeiro de 1830, o
mesmo Goethe escrevia:
Constitui um mérito sem limite do nosso velho Kant o ter ele, na sua Crí-
tica do Juízo, colocado lado a lado arte e natureza e reconhecido a ambas o
20
direito de agir sem um fim determinado por grandes princípios.
No presente ensaio, limitaremos as nossas considerações acerca do tema da
«Técnica da Natureza» às indicações fornecidas pela terceira Crítica e pelos
17
«Die Natur war schön, wenn sie zugleich als Kunst aussah; und die Kunst kann nur
schön genannt werden, wenn wir uns bewusst sind, sie sei Kunst, und sie uns doch als
Natur aussieht». Ak V, 306.
18
«Kant stellt in seiner Kritik der Urteilskraft, pag. 177, einen Satz auf, der von ungemei-
ner Fruchtbarkeit ist und der, wie ich denke, erst aus meiner Theorie seine Erklärung
erhalten kann. Natur, sagt er, ist schön, wenn sie aussieht wie Kunst; Kunst ist schön,
wenn sie ausssieht wie Natur. Dieser Satz macht also die Technik zu einem wesentlichen
Requisit des Naturschönen und die Freiheit zur wesentlichen Bedingung des Kunstschönen.
Da aber das Kunstschöne schon an sich selbst die Idee der Technik, das Naturschöne die
Idee der Freiheit mit einschliesst, so gesteht also Kant selbst ein, dass Schönheit nichts
anders als Natur in der Technik, Freiheit in der Kunstmässigkeit sei.» Kallias-Briefe (23.
Februar 1793), in: Sämtliche Werke, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, Darmstadt, 1989,
Bd. V,417.
19
Einwirkung der neueren Philosophie (1817), Zur Morphologie, I, 2, 1820, Werke, Hamb.
Ausg., Bd.13, 26.
20
«Es ist ein grenzenloses Verdienst unseres alten Kant, ... dass er in seiner Kritik der
Urteilskraft Kunst und Natur nebeneinanderstellt und beiden das Recht zugesteht: aus
grossen Prinzipien zwecklos zu handeln.» citado apud Lehmann, art. cit.

97
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

escritos com ela relacionados (sobretudo a Primeira Introdução), tentando expli-


citar o sentido kantiano da expressão e da singular recuperação filosófica da
ideia que ela traduz, e bem assim reconhecer a sua importância na economia da
obra para se chegar a compreender a lógica e a poética peculiares tanto da auto-
-produção da natureza como também da peculiar lógica da arte e dos artefactos
humanos, a relação entre a íntima força formativa da natureza, a que Kant chama
o Bildungstrieb ou a bildende Kraft, e a força criativa do espírito, que é a Einbil-
21
dungskraft. Sobressairá por contraste o singular uso que Kant propõe da
tradicional expressão «técnica» ou «arte» e a peculiar inovação semântica por
ele condensada na expressão oxímora «Técnica da Natureza», o que acontece
precisamente num momento histórico em que a noção de «técnica» começava já
a designar prevalentemente o contrário do que o filósofo pretendia pôr em des-
taque com essa expressão, dando-se antes como o modo de dizer a mera execu-
ção instrumental de uma produção simplesmente mecânica da natureza, ao
passo que, como veremos, Kant expressamente contrapõe a sua ideia de uma
«Técnica da Natureza» à concepção do simples «mecanismo da natureza»
(Mechanism der Natur), atribuindo desse modo à natureza, embora numa inten-
ção e para um uso meramente subjectivos, algo como uma íntima causalidade que
operasse segundo fins auto-propostos.
A reflexão que aqui propomos tem, pois, um carácter meramente introdu-
tório ao tema e poderá ser entendida como constituindo um comentário elíptico
de dois textos kantianos. O primeiro é uma passagem do § 23 da Primeira Parte
22
da Crítica do Juízo. O segundo, uma passagem da parte final do último pará-
grafo da Primeira Introdução à Crítica do Juízo. Na verdade, os dois textos reme-
tem um para o outro e constituem como que a súmula do entendimento kan-
tiano do tópico, dando conta da sua peculiar problematicidade e também da sua
fecundidade heurística e especulativa. Mas antes de avançarmos para a expli-
citação dos dois excertos, importa ver como o tópico «Técnica da Natureza»
surge e se explana no texto da Primeira Introdução à Crítica do Juízo, pois esse

21
Para uma reflexão filosófica actual sobre a peculiar ontologia dos artefactos técnicos,
veja-se: Peter Kroes and Anthonie Meijers (eds.), The Dual Nature of Technical Artefacts,
Special Issue of Studies in History and Philosophy of Science, 37 (2006). Antes de Kant,
encontra-se em Christian Wolff a ideia de uma possível «filosofia das artes» (philosophia
artium), também chamada «technica» ou «technologia», inscrita já no organigrama
completo dos saberes filosóficos: «Possibilis quoque est philosophia artium etsi hactenus
neglecta. Eam technicam aut technologiam appellare posses». Philosophia rationalis sive
Logica, Francofurti/Lipsiae, 1728 (Discursus Praeliminaris de Philosophia in genere, § 71).
O termo technica ocorre no título de duas obras de Robert Fludd, a saber no 2º e 3º
volumes da sua Utriusque cosmi historia (Oppeneheim/Francfurt, 1618: De naturae símia
seu technica macrocosmi historia; De technica microcosmi historia (1620).
22
Ver abaixo, notas 49 e 50.

98
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

documento é não só o seu mais explícito lugar de nascimento como também


23
aquele onde mais sobre ele se diz.

2. Génese e topografia do tema no texto da EE

Se fosse considerada como uma peça autónoma, a Primeira Introdução à Crítica do


Juízo (doravante, EE) poderia muito bem levar por título: «Ensaio sobre a Técnica
da Natureza». De facto, a expressão «Técnica da Natureza» estende-se profusa-
mente por todo o texto dessa peça, ocorrendo mesmo várias vezes nos títulos dos
seus parágrafos, em íntima correlação com o também insistente tópico do «sis-
tema». A intenção sistemática – a necessidade de sistema – prevalece por toda a
peça e explicita-se em vários domínios, que se cruzam, se inter-relacionam ou
parcialmente se sobrepõem, mas não se identificam pura e simplesmente: assim o
«sistema da filosofia», o «sistema da experiência», o «sistema das faculdades
superiores do conhecimento», o «sistema das faculdades do ânimo» (System der
Gemütskräfte), o «sistema da crítica da razão» e, enfim, o «sistema da natureza na
multiplicidade e heterogeneidade das suas formas e leis simplesmente empíricas».
A ideia de sistema, a exigência sistemática e o impulso de sistematização
não constituem todavia a novidade do opúsculo. Eles sobreabundam já na Crí-
tica da Razão Pura. O que sim a esse respeito é novo é que a necessidade de sis-
tema se atribui agora não já à razão, enquanto tal, mas a uma recém-descoberta
função específica da faculdade de julgar (Urteilskraft), a faculdade de julgar
reflexionante (reflektierende Urteilskraft), a qual nisso procede segundo um
princípio próprio, também ele só agora expressa e formalmente reconhecido
enquanto tal e designado como o princípio da «teleoformidade da natureza»
(Zweckmässigkeit der Natur), muito significativamente também dito (no 2º pará-
grafo da EE e antes de qualquer outra formulação) como o princípio da «Técnica
da Natureza», um princípio transcendental sem valor para determinar algo
quanto à natureza dos objectos enquanto tais, mas que serve apenas para a refle-
xão do sujeito sobre certos objectos que lhe são dados e para cuja apreciação de
nada lhe valem os princípios fornecidos pelo entendimento para a natureza em
geral.

23
É possível sem dúvida encontrar antecipações do tema em escritos kantianos mais
antigos, sendo dos mais explícitos o ensaio de cosmogonia de 1755, onde se fala não só
das «Kunstwerke der Natur», mas também de uma «geheime Kunst» que Deus terá
introduzido na Natureza, graças à qual esta produz, a partir do caos, num processo de
criação nunca terminada, todas as belas e harmoniosas ordens do sistema de sistemas
cósmico. Mas está fora do intuito dessa obra juvenil dar conta das manifestações do
mundo natural orgânico, mesmo nas suas formas mais elementares. Veja-se o próximo
capítulo deste volume.

99
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

No primeiro parágrafo da EE, Kant revela-se insatisfeito com a concepção


do sistema da filosofia a que ele próprio fora conduzido pela investigação
empreendida na primeira e na segunda Críticas, como sendo constituído por
duas partes – a teorética e a prática, referida a primeira à filosofia da natureza e a
segunda à filosofia da liberdade. E, sob o pretexto de superar a ambiguidade
duma linguagem habitual, que toma como sendo «proposições práticas» não
apenas aquelas que se referem à moralidade e que decorrem da ideia de liber-
dade – (isto é, as que enunciam imediatamente a possibilidade de um objecto
mediante o nosso arbítrio ou que apresentam directamente como necessária a
determinação de uma acção unicamente pela representação da sua forma, sem
consideração dos meios que exige a realização do objecto assim imposto) – mas
também aquelas proposições que designam meramente a execução de um
conhecimento teórico de uma qualquer ciência, Kant propõe que se use para
estas últimas a designação de «proposições técnicas», pois, segundo diz, «elas
pertencem à arte [Kunst] de executar o que se pretende que venha a ser». Desse
modo, conclui Kant, «todos os preceitos da habilidade pertencem à técnica e,
por conseguinte, ao conhecimento teórico da natureza como consequência do
24
mesmo.»
Esta clarificação terminológica é acompanhada, de forma muito mais concisa,
pela redacção do primeiro parágrafo da Introdução definitiva, sendo aí vertida na
proposta de distinção entre os princípios moralmente-práticos [moralisch-prak-
tisch] (os que decorrem do conceito de liberdade) e os princípios técnicamente-
práticos [technisch-praktisch] (os que decorrem do conceito de natureza como
25
corolários da ciência teórica) , uma distinção que Kant passará a usar não só nos

24
«Auf solche Weise gehören alle Vorschriften der Geschicklichkeit zur Technik und
mithin zur theoretischen Kenntnis der Natur, als Folgerungen derselben.». EE i, L 7.
25
Na Introdução definitiva, parágrafo I, conclui-se, na mesma linha: «Alle technisch-
praktischen Regeln (d. i. die der Kunst und Geschicklichkeit überhaupt, oder auch der
Klügheit als einer Geschicklichkeit, auf Menschen und ihren Willen Einfluss zu haben),
sofern ihre Prinzipien auf Begriffen beruhen, müssen nur als Korollarien zur theoretis-
chen Philosophie gezählt werden. Denn sie betreffen nur die Möglichkeit der Dinge
nach Naturbegriffen, wozu nicht allein die Mittel, die in der Natur dazu anzutreffen
sind, sondern selbst der Wille (als Begehrungs-, mithin als Naturvermögen) gehört,
sofern er durch Triebfedern der Natur jenen Regeln gemäss bestimmt werden kann. [...]
weil sie insgesammt nur Regeln der Geschicklichkeit, die mithin nur technisch-prak-
tisch sind, enthalten, um eine Wirkung hervorzubringen, die nach Naturbegriffen der
Ursachen und Wirkungen möglich ist, welche, da sie zur theoretischen Philosophie
gehören, jenen Vorschriften als blossen Korollarien aus derselben (der Naturwissenschaft)
unterworfen sind und also keine Stelle in einer besonderen Philosophie, die praktische
genannt, verlangen können.» (Ak V 173) Na forma adjectiva – não era a primeira vez
que Kant utilizava o termo. Fizera-o na Fundamentação da Metafísica dos Costumes para
caracterizar os «imperativos da habilidade» (Imperative der Geschicklichkeit) e assim os
distinguir dos imperativos morais: aqueles são «technisch (zur Kunst gehörig)» (Ak IV,

100
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

escritos da década de 90, como também e com grande frequência ainda nas tardias
26
reflexões do Opus postumum.
Mas, a partir da leitura do texto da Introdução definitiva à Crítica do Juízo,
não se percebe qual a razão que terá levado Kant a fazer a referida clarificação
terminológica. Em contrapartida, isso é bem claro no 1º parágrafo da EE. Logo a
seguir à distinção proposta e à conclusão de que «todos os preceitos da habili-
dade pertencem à técnica», Kant prossegue com uma declaração que nos coloca
no cerne do nosso tema e também no núcleo dos problemas da sua terceira Crí-
tica, nestes termos:
Mas nós futuramente utilizaremos também o termo técnica, quando por
vezes os objectos da natureza somente podem ser julgados assim como se a
sua possibilidade se fundasse na arte, em cujos casos os juízos nem são teo-
réticos nem práticos (no significado há pouco avançado), pois eles não
determinam nada quanto à constituição do objecto, nem quanto ao modo de
o produzir, mas mediante eles a própria natureza é julgada embora apenas
segundo a analogia com uma arte e isso na relação subjectiva ao nosso
poder de conhecer, e não numa relação objectiva aos objectos. Aqui, a bem
dizer, não são os próprios juízos que designamos como sendo técnicos, mas
é de facto a faculdade de julgar, sobre cujas leis os juízos se fundam, bem
como a natureza na sua conformidade com esta faculdade: esta técnica, na
medida em que ela não contém nenhuma proposição objectivamente
determinante, não constitui uma parte da filosofia doutrinal, mas somente
27
uma parte da crítica do nosso poder de conhecer.

416). Todavia, numa nota ao 1º parágrafo da EE, o zeloso Kant corrige-se de um erro
que na verdade não havia cometido: «Hier ist der Ort, einen Fehler zu verbessern, den
ich in der Grundl. zur Met. der Sitten beging. Denn nachdem ich von dem Imperativen
der Geschicklichkeit gesagt hatte, dass sie nur bedingterweise und zwar unter der
Bedingung bloss möglicher, d.i. problematischer Zwecke geböten, so nannte ich derglei-
chen praktische Vorschriften problematische Imperativen, in welchem Ausdruck freilich
ein Widerspruch liegt. Ich hätte sie technisch, d. i. Imperativen der Kunst nennen sol-
len.» EE, L 7-8.
26
Zum ewigen Frieden, Ak VIII, 377; Rechtslehre, Ak VI, 217-218; Tugendlehre, Ak VI,
387; Opus postumum, Ak XXI,11,12,13,15,16,21,31,43,44,47,51,95,556; Ak XXII, 49, 52,
60, 122, 489. A expressão «Technik der Natur» aparece pelo menos uma vez no Opus
postumum (Ak XXI, 199).
27
«Wir werden uns aber künftig des Ausdrucks der Technik auch bedienen, wo
Gegenstände der Natur bisweilen bloss nur so beurteilt werden, als ob ihre Möglichkeit
sich auf Kunst gründe, in welchen Fällen die Urteile weder theoretisch, noch praktisch
(in der zuletzt angeführten Bedeutung) sind, indem sie nichts von der Beschaffenheit
des Objekts, noch der Art, es hervorzubringen, bestimmen, sondern wodurch die Natur
selbst, aber bloss nach der Analogie mit einer Kunst, und zwar in subjektiver Beziehung
auf unser Erkenntnisvermögen, nicht in objektiver auf die Gegenstände, beurteilt wird.

101
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

Esta conclusão do primeiro parágrafo da Primeira Introdução revela a cons-


ciência que Kant tinha da inovação terminológica e semântica que estava envol-
vida na sua atribuição à natureza da expressão «técnica». Na verdade, trata-se,
como veremos, e apesar dos antecedentes que se lhe possam inventariar, de uma
subversão semântica dos sentidos tradicionais tanto do termo «técnica» como
do termo «natureza», ao primeiro dos quais se associava uma forma de produ-
ção «artificial» e «intencional», enquanto ao segundo se associava uma forma de
produção «natural» e «espontânea». Essa inovação ou subversão é expressa-
mente reconhecida como sendo realizada graças a um procedimento analógico –
por analogia com a arte humana, sob o modo do como se (als ob) –, procedi-
mento este de que é responsável a própria faculdade de julgar reflexionante, a
qual nisso trabalha em espontânea articulação com a imaginação, como logo se
explicará em alguns parágrafos (sobretudo nos §§ 49 e 59) da Primeira Parte da
terceira Crítica. Ao mesmo tempo, já desde o primeiro parágrafo da Primeira
Introdução, se torna claro que Kant liberta a sua nova noção de «técnica» ou de
«arte» da esfera da ciência (do conhecimento teorético do entendimento) e da
esfera da razão prática objectivamente finalizada, para a colocar no plano da
mera reflexividade do sujeito, sob a tutela da faculdade de julgar agora reconhe-
cida numa nova função, dita reflexionante, enquanto tal distinta da função pro-
priamente teorética ou lógica, agora designada como determinante. Remetida
assim para o plano da reflexividade subjectiva, a nova ideia de «Técnica da
Natureza» não correrá o risco de se tornar numa tecnologia da natureza,
enquanto programa de instrumentalização e dominação em que, a coberto de
um suposto conhecimento científico ou metafísico da natureza, esta seria posta
ao serviço de fins pre-determinados pela razão ou supostamente descobertos ou
determinados pelo entendimento como sendo os fins objectivos da própria natu-
reza, mas mantém-se no plano da mera apreciação (Beurteilung) e da simples
reflexão subjectivas, graças ao que a própria natureza passa a ser considerada
como se ela própria (e não já apenas a razão) também fosse regida por uma
ordem própria de fins, uma condição que todavia lhe é atribuída apenas pela
reflexão do sujeito que a contempla ou aprecia.
Pela conclusão do primeiro parágrafo da Primeira Introdução vê-se que a
prévia distinção entre proposições teóricas, práticas e técnicas foi feita no intuito
de preparar a introdução do novo conceito – o de um «juízo técnico», ou antes,
o de uma «técnica da faculdade de julgar» ou de uma «Técnica da Natureza» –,
que não é já um corolário da ciência da natureza ou uma mera regra de execução

Hier werden wir nun die Urteile selbst zwar nicht technisch, aber doch die Urteilskraft,
auf deren Gesetze sie sich gründen, und ihr gemäss auch die Natur, technisch nennen,
welche Technik, da sie keine objektiv bestimmende Sätze enthält, auch keinen Teil der
doktrinalen Philosophie, sondern nur der Kritik unserer Erkenntnisvermögen ausmacht.»
EE i, L 8.

102
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

da produção de um objecto, mas, embora transposto por analogia a partir do


procedimento da arte humana – (so beurteilt …als ob ihre Möglichkeit sich auf
Kunst gründe / bloss nach der Analogie mit einer Kunst) –, passa a ser usado num
sentido meramente subjectivo pela faculdade de julgar reflexionante para apre-
ciar certos objectos da natureza (nomeadamente, aqueles que consideramos
belos ou os seres organizados), sem que isso vise ou implique o conhecimento
objectivo de tais objectos. Com isso, Kant não garante por certo uma nova parte
para o sistema doutrinal da filosofia, mas ganha sim uma nova competência e
uma nova parte ou secção para o sistema da crítica da razão, enriquecido agora
com um novo tipo de juízos, para além dos teoréticos e dos práticos: estes novos
juízos passam a ser chamados juízos «técnicos» (technisch), «artísticos» (küns-
tlich) ou «estéticos» (ästhetisch) (EE xi). E assim como no sistema das faculda-
des, entre o entendimento e a razão se reconhece agora uma nova faculdade – a
faculdade de julgar – com o seu princípio próprio da Zweckmässigkeit ou da
Technik der Natur, de igual forma entre a Natureza e a Liberdade se inscreve um
plano intermédio, que é o das produções humanas genericamente designado por
Arte (Kunst), caracterizado pela mera intencionalidade subjectiva, o qual garante
a «passagem» (Übergang) e a «mediação» (Vermittlung) entre as duas partes do
sistema doutrinal e que, não constituindo uma nova parte desse sistema, «serve
apenas para conectar» (nur zum Verknüpfen dient) entre si a Natureza e a Liber-
dade, ou seja a parte teorética e a parte prática da filosofia. Assim se exprime a
íntima correlação entre o novo conceito de «técnica» ou de «arte» e a intencio-
nalidade sistemática que preside às duas Introduções da obra e que maxima-
mente se exibe nos quadros sinópticos propostos nos últimos parágrafos das
mesmas.
No texto citado do primeiro parágrafo da Primeira Introdução, Kant prefere,
porém, não chamar propriamente «técnicos» os juízos, mas sim a faculdade que
os emite: é a faculdade de julgar que, propriamente falando, é técnica ou pro-
cede tecnicamente e, como no § vii da mesma Introdução mais longamente se
explicará, é a «técnica da faculdade de julgar» (Technik der Urteilskraft) (isto é,
o modo «técnico», «artístico» ou «estético» de proceder da faculdade de julgar)
que funda a ideia de uma «Técnica da Natureza». É isso que é dito logo no título
desse parágrafo: «Da técnica da faculdade de julgar como o fundamento da ideia
de uma Técnica da Natureza» (Von der Technik der Urteilskraft als dem Grunde
der Idee einer Technik der Natur).
O que seja esse modo de proceder técnico da faculdade de julgar mais
adiante se explicitará no mesmo parágrafo. Baste para já dizer que é um modo de
produzir ou de fazer intencional, o qual pressupõe ou estabelece um fim que é
colocado como fundamento da possibilidade mesma daquilo que, em seguida, é
executado ou produzido. Enquanto modo de proceder finalizado, ele só pode ser
atribuído a um ser dotado de razão e, uma vez que o único ser dotado de razão

103
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

que se conhece é o homem, esse é o tipo de procedimento que se reconhece


como presidindo às realizações humanas, a que, numa acepção ampla, chama-
mos artísticas, enquanto são subsumidas pela noção geral de arte, na medida em
que esta expressão designa aquele modo de proceder que precisamente se dis-
tingue do modo de proceder mecanicamente determinado ou sem finalidade que
se atribui à natureza.
Logo no § ii da EE, a relação entre a nova faculdade e o novo conceito de
Técnica da Natureza não pode ser mais explícita, pois este último é dito como
sendo nada menos do que o princípio próprio e originário daquela faculdade.
Nas palavras do filósofo:
O conceito que procede originariamente da faculdade de julgar e que lhe é
próprio é, por conseguinte, o da natureza como arte, por outras palavras, o
da Técnica da Natureza em atenção às suas leis particulares, cujo conceito
não funda nenhuma teoria e, tal como a lógica, não contém conhecimento
do objecto e da sua constituição, mas fornece um princípio apenas para
avançar segundo as leis da experiência, mediante o qual a investigação da
28
natureza se torna possível.
Ou seja, a primeira função que é explicitamente reconhecida ao novo con-
ceito de «Técnica da Natureza», enquanto princípio próprio da faculdade de
julgar, é o de tornar possível um conceito da natureza em toda a multiplicidade
e heterogeneidade das suas formas como constituindo um sistema de leis empí-
ricas. Uma função de sistematização em processo, portanto. No imenso campo
deixado completamente indeterminado pela legislação do entendimento para a
natureza em geral, tal só é possível na medida em que a faculdade de julgar,
«apenas em seu próprio favor» (nur ihr selbst zugunsten), presume e pressupõe
uma teleoformidade formal da natureza (formale Zweckmässigkeit der Natur) que
lhe serve de fio condutor para a investigação que a leva a procurar sempre leis
mais universais para as leis que se descobrem nas experiências particulares, ou a
subsumir, sucessivamente e por afinidades reconhecidas nas respectivas formas,
os indivíduos em classes, as classes em géneros e estes por sua vez em espécies,
como formando tudo um único sistema, apesar de toda a variedade e heteroge-
neidade de formas e de seres, alcançando-se assim, por fim, uma representação
da natureza não apenas como algo produzido mecanicamente (segundo a legis-
lação do entendimento), mas também como se o fosse finalizadamente, como se

28
«Der ursprünglich aus der Urteilskraft entspringende und ihr eigentümliche Begriff ist
also der von der Natur als Kunst, mit andern Worten der Technik der Natur in Ansehung
ihr besonderen Gesetze, welcher Begriff keine Theorie begründet und, ebenso wenig wie
die Logik, Erkenntnis der Objekte und ihrer Beschaffenheit enthält, sondern nur zum
Fortgange nach Erfahrungsgesetzen, dadurch die Nachforschung der Natur möglich wird,
ein Prinzip gibt.» EE, L 11-12.

104
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

lhe presidisse um princípio interno de produção e de administração, uma téc-


nica ou uma arte peculiares.
E assim conclui Kant o § ii da EE explicitando a natureza e a função do seu
novo conceito:
A representação da natureza como arte é uma simples ideia, que serve apenas
para a nossa investigação da mesma, por conseguinte, apenas como princípio
para o sujeito, para ele introduzir no agregado das leis empíricas enquanto
tais, na medida do possível, uma conexão como num sistema, na medida em
29
que atribuímos à natureza uma relação com esta nossa necessidade.
Em suma, princípio meramente subjectivo de sistematização da natureza, o
conceito de «Técnica da Natureza» é também «um princípio heurístico na apre-
ciação da mesma natureza» (unser Begriff von einer Technik der Natur, als ein
heuristisches Prinzip in Beurteilung derselben), ideia que será explicitada no § 78
da Segunda Parte da Crítica do Juízo.
O § v da EE propõe importantes distinções, esclarecimentos e explicitações,
nomeadamente: 1) entre o procedimento «técnico» (technisch) ou «artístico»
(künstlich) e o procedimento «mecânico» (mechanisch) ou «esquemático» (schema-
tisch) da Urteilskraft; 2) entre a dimensão lógico-formal do conceito de «Técnica da
Natureza» (enquanto princípio de especificação da natureza em géneros e espé-
cies) e a dimensão real do mesmo conceito (enquanto indica a possibilidade
mesma de certos seres como fins da natureza); 3) entre a «nomotética da natu-
reza» (Nomothetik der Natur), estabelecida pela legislação do entendimento
(Verstand) e a «Técnica da Natureza» (Technik der Natur), pressuposta pela
faculdade de julgar (Urteilskraft). Escreve Kant:
A faculdade de julgar reflexionante procede pois com respeito a fenómenos
dados para os colocar sob conceitos empíricos de coisas naturais determi-
nadas, não esquematicamente, mas tecnicamente, não por assim dizer de
maneira simplesmente mecânica, como um instrumento, sob a direcção do
entendimento e dos sentidos, mas ao modo da arte, conformando-se ao
princípio universal, mas ao mesmo tempo indeterminado, de um arranjo
finalizado da natureza num sistema, de alguma maneira em benefício da
nossa faculdade de julgar, na apropriação das suas leis particulares (a res-
peito das quais o entendimento nada diz) à possibilidade da experiência
como constituindo um sistema, suposição sem a qual nós não poderíamos
esperar orientar-nos no labirinto das leis particulares possíveis em toda a
29
«Die Vorstellung der Natur als Kunst ist eine blosse Idee, die unserer Nachforschung
derselben, mithin bloss dem Subjekte, als solcher, wo möglich einen Zusammenhang,
als einem System, zu bringen, indem wir der Natur eine Beziehung auf dieses unser
Bedürfnis beilegen.» EE, L 12.

105
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

sua diversidade. A faculdade de julgar dá-se pois a si mesma a priori a Téc-


nica da Natureza como princípio da sua reflexão, sem todavia poder expli-
car esta técnica nem determiná-la mais precisamente, ou sem dispor para
isso de um fundamento objectivo de determinação dos conceitos universais
da natureza que derivasse do conhecimento das coisas mesmas, mas pelo
contrário ela dá-se este princípio unicamente para poder reflectir segundo
as suas próprias leis subjectivas, de acordo com a sua necessidade, e todavia
30
ao mesmo tempo em concordância com as leis da natureza em geral.
A primeira função que, na EE, Kant atribui à ideia de «Técnica da Natu-
reza» é, pois, a função lógico-sistemática e, associada a esta, a função heurística.
Ou seja: a de permitir a representação da natureza na diversidade das suas leis
empíricas para constituir um sistema lógico para a faculdade de julgar e a de, na
pressuposição de um tal sistema, progredir no conhecimento empírico de uma
natureza que se oferece em toda a sua multiplicidade e heterogeneidade de for-
mas e de seres. O princípio da faculdade de julgar pode então ser formulado
também como um princípio de especificação, deste modo: «a natureza especifica
as suas leis universais em leis empíricas, de acordo com a forma de um sistema
31
lógico, tendo em vista a faculdade de julgar». Kant explica:
A faculdade de julgar reflexionante não poderia empreender a tarefa de
classificar a natureza inteira segundo a sua diversidade empírica se não
pressupusesse que a natureza especifica ela mesma as suas leis transcen-
dentais de acordo com um qualquer princípio. E este princípio não pode
ser outro senão o da acomodação ao poder que possui a faculdade de julgar
ela mesma de encontrar na incomensurabilidade das coisas, segundo leis
empíricas possíveis, uma afinidade entre elas que seja suficiente para que
possamos inscrevê-las sob conceitos empíricos (classes), inscrever em
seguida estes sob leis mais gerais (géneros superiores) e chegar assim por
fim a um sistema empírico da natureza. Ora, do mesmo modo que uma tal
classificação não é um conhecimento de experiência comum, mas constitui
um conhecimento que é da ordem da arte, assim a natureza, na medida em

30
«Die reflektierende Urteilskraft verfährt also mit gegeben Erscheinungen, um sie unter
empirische Begriffe von bestimmten Naturdingen zu bringen, nicht schematisch, sondern
technisch, nicht gleichsam bloss mechanisch, wie ein Instrument, unter der Leitung des
Verstandes und der Sinne, sondern künstlich, nach dem allgemeinen, aber zugleich
unbestimmten Prinzip einer zweckmässigen Anordnung der Natur in einem System,
gleicham zugunsten unserer Urteilskraft....um... nach ihrem Bedürfnis, dennoch aber
zugleich einstimmig mit Naturgesetzen überhaupt, reflektieren zu können. EE, L 20.
31
«Das eigentümliche Prinzip der Urteilskraft ist also: die Natur spezifiziert ihre allgemeine
Gesetze zu empirischen, gemäss der Form eines logischen Systems zum Behuf der Urteilskraft.»
Ibidem.

106
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

que a pensamos como especificando-se de acordo com um tal princípio, é


também ela considerada como arte, e a faculdade de julgar mobiliza, pois,
consigo a priori um princípio da Técnica da Natureza, que é diferente da
nomotética desta natureza segundo as leis transcendentais do entendimento,
nisto, a saber, que esta última pode fazer valer o seu princípio como lei, ao
passo que a técnica não pode fazer valer o seu a não ser como uma suposi-
32
ção necessária.
Foi certamente um tal pressuposto ou princípio da facudade de julgar refle-
xionante que presidiu ao imenso trabalho de classificação e de sistematização
levado a cabo por Lineu, o qual, no seu Systema Naturae, empreendera captar e
expor aquela maravilhosa e surpreendente «economia da natureza» (oeconomia
naturae) que se esbanja pela infinita variedade e multiplicidade de seres dos seus
três reinos, empreendimento esse que Kant expressamente evoca neste mesmo
33
contexto.
Kant faz questão de apontar que nessa capacidade, por assim dizer,
espontânea e graciosa, que a natureza, considerada em toda a extrema diversi-
dade das suas formas e seres, revela, ao deixar-se compreender pela faculdade de
julgar reflexionante como se constituísse por si mesma um sistema lógico de leis
empíricas – ou, dito de outro modo, como se lhe presidisse uma peculiar eco-
nomia técnica ou uma arte íntima que a dirigisse na sua especificação e variação
– se expõe já uma dimensão que é inequivocamente de ordem estética, isto é,
que produz no sujeito um sentimento de admiração (Bewunderung) tão especifi-
camente filosófico, que se há alguém capaz de o sentir esse é, diz Kant, precisa-
34
mente o filósofo transcendental. Essa íntima correlação entre a dimensão esté-

32
«So wie nun eine solche Klassifikation keine gemeine Erfahrungserkenntnis, sondern
eine künstliche ist, so wird die Natur, sofern sie so gedacht wird, dass sie sich nach
einem solchen Prinzip spezifiziere, auch als Kunst angesehen, und die Urteilskraft führt
also notwendig a priori ein Prinzip der Technik der Natur bei sich, welche von der
Nomothetik derselben, nach transzendentalen Verstandesgesetzen, darin unterschieden ist,
dass diese ihr Prinzip als Gesetz, jene aber nur als notwendige Voraussetzung geltend
machen kann.» EE, L 22.
33
Veja-se a nota ao parágrafo v da EE, L 22. No § 80 Kant explicita esse pressuposto falando
daquela «analogia das formas, que, apesar de toda a diversidade que estas apresentam, pare-
cem, todavia, ser produzidas conformemente a um modelo originário comum, o que forta-
lece a presunção de um parentesco real que existiria entre elas na respectiva produção por
parte de uma mãe primitiva comum, através da aproximação gradual de uma espécie animal
às outras…» (Diese Analogie der Formen, sofern sie bei aller Verschiedenheit einem
gemeinschaftlichen Urbilde gemäss erzeugt zu sein scheinen, verstärkt die Vermutung einer
wirklichen Verwandtschaft derselben in der Erzeugung von einer gemeinschaftlichen
Urmutter, durch die stufenartige Annäherung einer Tiergattung zur andern...).
34
«Zeigte uns nun die Natur nicht mehr als diese logische Zweckmässigkeit, so würden wir
zwar schon Ursache haben, sie hierüber zu bewundern, indem wir nach den allgemeinen

107
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

tica da apreciação teleológica da natureza e a dimensão teleológica da estética da


natureza será objecto de demorada explicitação no § vi da Introdução e no § 67
da Segunda Parte da Crítica e constitui na verdade um dos pressupostos funda-
mentais que suportam a arquitectura dessa obra e deram razão ao seu autor para
subsumir sob o mesmo princípio transcendental e a mesma faculdade a aprecia-
ção estética da natureza e a apreciação teleológica da mesma natureza, relacio-
nando assim também a faculdade de julgar com o sentimento estético de prazer
e desprazer.
Por conseguinte, para além da «nomotética da natureza», estabelecida pela
legislação universal do entendimento, abre-se para a faculdade de julgar uma «Téc-
nica da Natureza», uma legalidade teleoforme (zweckmässig) apreendida em sur-
presa nas inesgotáveis particularidades da natureza. Mas tratar-se-á de duas
naturezas diferentes, ou antes de dois modos diferentes de julgar e apreciar a mesma
natureza? Num caso, enquanto objecto do entendimento, ela seria vista como regida
por uma causalidade meramente mecânica, do que só pode resultar uma imagem da
mesma como um agregado; no outro, enquanto apreciada pela faculdade de julgar e
seu respectivo princípio transcendental, ela revelar-se-ia como se fosse regida por
uma causalidade finalizada, graças ao que podemos apreendê-la como um sistema, o
que vem como que graciosamente ao encontro da necessidade subjectiva de a com-
preendermos. A resposta de Kant surge no § vi, onde se lê:
Em relação aos seus produtos considerados enquanto agregados, a natureza
procede mecanicamente, como mera natureza; mas em relação aos mesmos
enquanto sistemas, por ex. nas formações dos cristais, em todas as formas das
flores, ou na estrutura interna das plantas e dos animais, ela procede tecnica-
mente, isto é, <ela procede> ao mesmo tempo como arte. A distinção destas
duas maneiras de apreciar os seres da natureza só é feito mediante a facul-
dade de julgar reflexionante, a qual pode perfeitamente, e talvez também deva
necessariamente, admitir o que a faculdade de julgar determinante … não lhe
concederia, no que respeita à possibilidade dos objectos mesmos, e que
eventualmente ela até poderia conhecer integralmente relacionando-o com o
tipo de explicação mecânica; pois é totalmente compatível que a explicação
de um fenómeno, que é uma tarefa da razão segundo princípios objectivos,
seja mecânica, mas que a regra da apreciação do mesmo objecto, segundo
35
princípios subjectivos da reflexão sobre o mesmo objecto, seja técnica.

Verstandesgesetzen keinen Grund davon anzugeben wissen; allein dieser Bewunderung


würde schwerlich jemand anders als etwa ein Transzendentalphilosoph fähig sein, und selbst
dieser würde doch keinen bestimmten Fall nennen können, wo sich diese Zweckmässigkeit
in concreto bewiese, sondern sie nur im Allgemeinen denken müssen.» EE, L 23.
35
«Die Natur verfährt in Ansehung ihrer Produkte als Aggregat mechanisch, als blosse
Natur; aber in Ansehung derselben als Systeme, z.B. Kristallbildungen, allerlei Gestalt der

108
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

Trata-se, por conseguinte, de reconhecer na natureza dois tipos diferentes


de causalidade, o que só pode ser feito, diz Kant, pela faculdade de julgar refle-
xionante: assim, para além da causalidade eficiente, garantida pela aplicação das
categorias do entendimento, a faculdade de julgar postula para a natureza tam-
bém uma causalidade final, embora apenas para o seu próprio uso subjectivo,
somente mediante a qual consegue dar razão de certas formas e de toda a multi-
plicidade e variedade indeterminada de seres da natureza e das leis empíricas em
que estes se deixam arrumar. Ora é precisamente essa causalidade da natureza
segundo fins o que Kant pretende dizer mediante a expressão «Técnica da Natu-
reza», como algo que se distingue da – e até se opõe à – simples mecânica da
natureza. Assim se lê no parágrafo vii da EE, central para o nosso tema, aquele
que leva por título «Da técnica da faculdade de julgar como fundamento da ideia
de uma Técnica da Natureza»:
A causalidade da natureza, do ponto de vista da forma dos seus produtos
como fins, chamá-la-ei de preferência a Técnica da Natureza. Ela opõe-se à
mecânica da natureza, que consiste na sua causalidade pela ligação do
diverso sem que intervenha um conceito fundando o tipo de unificação que
36
ela realiza.
Um pouco mais adiante Kant coloca a questão de saber como se pode per-
ceber (wahrnehmen) a «Técnica da Natureza» nos produtos desta, uma vez que o
conceito de finalidade não é um conceito constitutivo da experiência nem uma
categoria do entendimento e, por conseguinte, uma determinação a priori de um
fenómeno que pertença a um conceito empírico do objecto. Na verdade, a «Téc-
nica da Natureza» é apenas a projecção na natureza de um procedimento que a
faculdade de julgar realiza em si própria e para si própria: é isto o que se pode

Blumen, oder dem inneren Bau der Gewächse und Tiere, technisch d. i. zugleich als Kunst.
Der Unterschied dieser beiderlei Arten, die Naturwesen zu beurteilen, wird bloss durch die
reflektierende Urteilskraft gemacht, die es ganz wohl kann und vielleicht auch muss ges-
chehen lassen, was die bestimmende (unter Prinzipien der Vernunft) ihr, in Ansehung der
Möglichkeit der Objekte selbst, nicht einräumte und vielleicht alles auf mechanische
Erklärungsart zurückgeführt wissen möchte; denn es kann gar wohl nebeneinander beste-
hen, dass die Erklärung einer Erscheinung, die ein Geschäft der Vernunft nach objektiven
Prinzipien ist, mechanisch; die Regel der Beurteilung aber desselben Gegenstandes, nach
subjektiven Prinzipien der Reflexion über denselben, technisch sei.» EE, L 24.
36
«Die Kausalität nun der Natur, in Ansehung der Form ihrer Produkte als Zwecke,
würde ich die Technik der Natur nennen. Sie wird der Mechanik derselben entgegenge-
setzt, welche in ihrer Kausalität durch die Verbindung des Mannigfaltigen onhe einen
der Art ihrer Vereinigung zum Grunde liegenden Begriff besteht...» EE vii, L 26. Não
basta o considerar o objecto como sendo usado em função de um fim (finalidade transi-
tiva), mas é preciso que o objecto apenas em relação a um fim seja ele mesmo possível
(finalidade imanente ou intransitiva).

109
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

chamar a génese transcendental do conceito (o mesmo é dizer a génese trans-


cendental do conceito ou princípio de teleoformidade da natureza, expressão
esta que é equivalente daquela outra). O parágrafo vii da EE começa com esta
declaração:
A faculdade de julgar torna antes de mais possível e mesmo necessário,
para além da necessidade mecânica da natureza pensar nesta também uma
teleoformidade, pois sem uma tal pressuposição não seria possível garantir
a unidade sistemática da contínua classificação das formas particulares da
37
natureza segundo leis empíricas.
E mais adiante:
É na nossa faculdade de julgar que nós percebemos a teleoformidade, na
medida em que ela meramente reflecte sobre um objecto dado, quer seja
sobre a intuição empírica do mesmo, para a remeter a um qualquer con-
ceito (seja ele qual for), quer seja sobre o próprio conceito da experiência,
38
para reconduzir as leis que ele contém a princípios comuns.
E o filósofo conclui:
Por conseguinte, é a faculdade de julgar que propriamente falando é técnica;
a natureza só é representada como técnica na medida em que ela concorda
39
com esse procedimento e o torna necessário.
Só não somos surpreendidos pela conclusão, que aliás se anunciava já no
título desse parágrafo da EE, porque somos levados a pensar no noús poiétikos –
40
o intelecto activo e criativo – de Aristóteles , parente sem dúvida do noús artista
de Anaxágoras, do demiurgo platónico e também do «intelecto arquitectónico»
(architecktonischer Verstand) de que falará Kant num dos parágrafos da Crítica
41
do Juízo e que nos remete para a ideia de «um supremo arquitecto», que ou
37
«Die Urteilskraft macht es allererst möglich, ja notwendig, ausser der mechanischen
Naturnotwendigkeit sich an ihr auch eine Zweckmässigkeit zu denken, ohne deren
Voraussetzung die systematische Einheit in der durchgängigen Klassifikation besonderer
Formen nach empirischen Gesetzen nicht möglich sein würde.» EE vii, L 25.
38
«In unserer Urteilskraft nehmen wir die Zweckmässigkeit wahr, sofern sie über ein
gegebenes Objekt bloss reflektiert, es sei über die empirische Anschauung desselben, um
sie auf irgendeine Begriff (unbestimmt welchen) zu bringen, oder über den Erfahrungs-
begriff selbst, um die Gesetze, die er enthält, auf gemeinschaftliche Prinzipien zu brin-
gen.» EE vii, L 26.
39
«Also ist die Urteilskraft eigentlich technisch; die Natur wird nur als technisch vorges-
tellt, sofern sie zu jenem Verfahren derselben zusammenstimmt und es notwendig
macht.» Ibidem.
40
Aristóteles, De Anima, III, 5, 10-20.
41
KU § 71, Ak V, 388.

110
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

criou ele mesmo as formas da natureza, ou as predeterminou a formarem-se


42
continuamente no seu curso segundo um mesmo padrão.
Propõe-se em seguida a distinção entre dois tipos de «Técnica da Natu-
reza»: a subjectiva-formal e a objectiva-real; também ditos, no parágrafo viii,
como a subjectiv-zweckmässig e a objektiv-zweckmässig, ou seja, a das coisas
enquanto consideradas como Naturformen, ou a das coisas enquanto considera-
das como produtos finalizados da natureza – como Naturzwecke. Importante é a
observação que ocorre no parágrafo viii, na qual se atribui vantagem experien-
cial à primeira daquelas formas – a saber, à forma propriamente estética da
«Técnica da Natureza» –, o que será confirmado por várias outras passagens não
43
só da EE como da própria Crítica.
Está assim encontrada a razão da divisão da Crítica do Juízo, que mais
amplamente se explica no parágrafo ix: a primeira forma de «Técnica da Natu-
reza» corresponde à que se surpreende na apreciação das formas belas da natu-
reza apreciadas num juízo de reflexão estético que tem por objecto a mera forma
das coisas apreendidas numa intuição ou representação, sem qualquer conceito
do objecto representado; a segunda corresponde à apreciação da teleoformidade
da natureza num juízo teleológico, o qual, sendo embora em si mesmo um juízo
de conhecimento, é todavia subjectivamente reflexionante e não objectivamente
determinante. Em qualquer dos casos, porém, o que está em causa é apenas
«uma relação das coisas à nossa faculdade de julgar, onde somente se pode
encontrar a ideia de uma teleoformidade da natureza, a qual, meramente em
44
relação àquela faculdade é atribuída à natureza».
O parágrafo ix explicita a distinção das duas formas de «Técnica da Natu-
reza» já antes aduzidas: a formal e a real. Mas apresenta explicitações que fazem
dele uma feliz súmula do que na Segunda Parte da terceira Crítica será desen-
volvido dispersamente ao longo de muitos parágrafos. Assim, escreve Kant:
Entendo por uma Técnica da Natureza formal a teleoformidade da mesma
na intuição; mas por uma Técnica da Natureza real entendo a teleoformi-
dade segundo conceitos. A primeira fornece à faculdade de julgar figuras

42
KU § 78; Ak V, 410-415.
43
«Denn ob, was subjektiv-zweckmässig ist, es auch objektiv sei, dazu wird eine mehrfen-
teils weitläufige Untersuchung, nicht allein der praktischen Philosophie, sondern auch der
Technik, es sei der Natur oder der Kunst, erfordert, d.i. um Vollkommenheit an einem
Dinge zu finden, dazu wird Vernunft, um Annehmlichkeit, wird blosser Sinn, um Schö-
nheit an ihm anzutreffen, nichts als die blosse Reflexion (ohne allen Begriff) über eine
gegebene Vorstellung erfordert.» EE viii, L 36.
44
«Denn überhaupt ist die Technik der Natur, sie mag nun bloss formal oder real sein,
nur ein Verhältnis der Dinge zu unserer Urteilskraft, in welcher allein die Idee einer
Zweckmässigkeit der Natur anzutreffen sein kann, und die, bloss in Beziehung auf jene,
der Natur beigelegt wird.» EE vii, L 28.

111
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

teleoformes, isto é, formas em cuja representação a imaginação e o enten-


dimento respectivamente entre si concordam por si mesmos para a possibi-
lidade de um conceito. A segunda significa o conceito da coisa como fim da
natureza, isto é como uma coisa tal que a sua íntima possibilidade pressu-
põe um fim, por conseguinte, um conceito que como condição é posto
45
como fundamento da causalidade da sua produção.
E prossegue a explicitação:
Formas teleoformes da intuição pode a faculdade de julgar a priori ela
mesma fornecê-las e construí-las, nomeadamente se ela as inventa para a
apreensão de tal modo que elas se adequem à apresentação de um conceito.
Mas fins, isto é representações que sejam elas mesmas consideradas como
condições da causalidade dos seus objectos (enquanto efeitos), devem
necessariamente, em geral, ser dadas a partir de algum lado, antes que a
faculdade de julgar se ocupe das condições do diverso requeridas para con-
cordarem com ela, e se deve haver fins naturais é necessário que certas coi-
sas da natureza possam ser consideradas como se elas fossem produtos de
uma causa cuja causalidade pudesse ser determinada unicamente por
intermédio de uma representação do objecto. Ora, nós não podemos deter-
minar a priori como e de que maneiras diferentes as coisas são possíveis atra-
46
vés das suas causas, sendo necessárias para isto as leis da experiência.
E mais abaixo:
O juízo estético de apreciação das formas naturais, sem colocar como fun-
damento um conceito do objecto, podia descobrir como teleoformes certos
45
«Ich verstand unter einer formalen Technik der Natur die Zweckmässigkeit derselben in
der Anschauung: unter der realen aber verstehe ich die Zweckmässigkeit nach Begriffen. Die
erste gibt für die Urteilskraft zweckmässige Gestalten d.i. Formen, an deren Vorstellung
Einbildungskraft und Verstand wechselseitig miteinander zur Möglichkeit eines Begriffs von
selbst zusammenstimmen. Die zweite bedeutet den Begriff der Dinge als Naturzwecke, d.i.
als solche, deren innere Möglichkeit eine Zweck voraussetzt, mithin einen Begriff, der der
Kausalität ihrer Erzeugung als Bedingung zum Grunde liegt.» EE ix, L 39.
46
«Zweckmässige Formen der Anschauung kann die Urteilskraft a priori selbst angeben
und konstruieren, wenn sie solche nämlich für die Auffassung so erfindet, als sie sich
nur Darstellung eines Begriffs schicken. Aber Zwecke, d.i. Vorstellungen, die selbst als
Bedingungen der Kausalität ihrer Gegenstände (als Wirkungen) angesehen werden,
müssen überhaupt irgendwoher gegeben werden, ehe die Urteilskraft sich mit den
Bedingungen des Mannigfaltigen beschäftigt, dazu zusmmenzustimmen, und sollen es
Naturzwecke sein, so müssen gewisse Naturdinge so betrachtet werden können, als ob
sie Produkte einer Ursache seien, deren Kausalität nur durch eine Vorstellung des
Objekts bestimmt werden könnte. Nun aber können wir, wie und auf wie mancherlei
Art Dinge durch ihre Ursachen möglich sind, a priori nicht bestimmen, hierzu sind
Erfahrungsgesetze notwendig.» EE ix, L 39-40.

112
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

objectos que aparecem na natureza, em benefício da simples apreensão


empírica da intuição, ou, dito de outro modo, na simples relação às condi-
ções subjectivas da faculdade de julgar. O juízo estético não requer pois
nenhum conceito do objecto, da mesma forma que também não produz
nenhum. Por conseguinte, ele não define essas formas como fins naturais
num juízo objectivo, mas unicamente como teleoformes para a faculdade
representativa de um ponto de vista subjectivo – uma teleoformidade das
formas que podemos chamar figurada, da mesma forma que podemos cha-
mar figurada a Técnica da Natureza a seu respeito (technica speciosa). – O
juízo teleológico, pelo contrário, supõe um conceito do objecto e julga
acerca da possibilidade deste segundo uma lei da ligação da causa e dos
efeitos. Por conseguinte, poderíamos chamar plástica a esta Técnica da
Natureza, se não fosse o caso de estar já em voga esta expressão num signi-
ficado mais geral, utilizando-a tanto para a beleza natural como para as
intenções da natureza: podemos pois chamá-la, se se preferir, a técnica
orgânica da natureza – expressão que designa também o conceito da teleo-
formidade, não simplesmente quanto ao modo de representação, mas tam-
47
bém quanto à possibilidade das coisas mesmas.
Mais adiante, Kant esclarece o sentido em que é legítimo pressupor esta
última forma da «Técnica da Natureza», a qual parece atribuir uma intencionali-
dade à natureza na sua produção, nomeadamente na dos seres organizados. Insiste
uma e outra vez que somente num sentido subjectivo e reflexionante tal atribuição
é legítima. O conceito de uma causalidade finalizada na natureza – que atribui
uma intenção à natureza – não é um conceito nem do entendimento nem da
razão, mas um conceito próprio da faculdade de julgar reflexionante. Assinala a
diferença que existe entre esta nova forma de finalidade (Zweckmässigkeit) «téc-

47
«Die ästhetische Beurteilung der Naturformen konnte, ohne einen Begriff vom Gegens-
tande zum Grunde zu legen, in der blossen empirischen Auffassung der Anschauung
gewisse vorkommende Gegenstände der Natur zweckmässig finden, nämlich bloss in
Beziehung auf die subjektiven Bedingungen der Urteilskraft. Die ästhetische Beurteilung
erforderte also keinen Begriff vom Objekte und brachte auch keinen hervor: daher sie
diese auch nicht für Naturzwecke, in einem objektiven Urteile, sondern nur als zweckmäs-
sig für die Vorstellungskraft, in subjektiver Beziehung, erklärte, welche Zweckmässigkeit
der Formen man die figürliche und die Technik der Natur in Ansehung ihrer auch ebenso
(technica speciosa) benennen kann. - Das teleologische Urteil dagegen setzt einen Begriff
vom Objekte voraus und urteilt über die Möglichkeit desselben nach einem Gesetze der
Verknüpfung der Ursachen und Wirkungen. Diese Technik der Natur könnte man daher
plastisch nennen, wenn man dieses Wort nicht schon in allegmeinerer Bedeutung, nämlich
für Naturschönheit sowohl als Naturabsichten, in Schwang gebracht hätte, daher sie, wenn
man will, die organische Technik derselben heissen mag, welcher Ausdruck denn auch den
Begriff der Zweckmässigkeit nicht bloss für die Vorstellungsart, sondern für die Möglichkeit
der Dinge selbst bezeichnet.» EE ix, L 41.

113
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

nica» atribuída à natureza e a finalidade «prática» própria da razão. Esta última é


uma «finalidade que ao mesmo tempo é lei» (Zweckmässigkeit die zugleich Gesetz
ist: § xi). Reconhece, todavia, que, propriamente falando, algo como um conceito
de fim e de finalidade tem uma relação directa com a razão e a ideia de uma finali-
dade que a faculdade de julgar pressupõe para a natureza mantém, embora num
registo subjectivo e meramente reflexionante, uma analogia com aquele tipo de
finalidade que a razão, enquanto faculdade de estabelecer fins, revela no domínio
das realizações humanas finalizadas, a que chamamos produtos da arte. Dê-se a
palavra ao filósofo:
O conceito dos fins e da finalidade é certamente um conceito da razão, na
medida em que lhe atribuímos o fundamento da possibilidade de um objecto.
Simplesmente, a finalidade da natureza, ou mesmo o conceito de coisas que
sejam consideradas como fins naturais, coloca a razão, enquanto causa,
numa relação com coisas nas quais nós não a conhecemos mediante
nenhuma experiência como fundamento da sua possibilidade. Pois somente
a propósito dos produtos da arte podemos tomar consciência da causalidade
da razão a respeito de objectos que, por isso mesmo, são designados como
finalizados ou como fins e é em relação a estes objectos que dizer da razão
que ela é técnica se acha conforme com a experiência da causalidade do
nosso próprio poder. Mas representar-se a natureza como técnica, à maneira
de uma razão (e assim atribuir à natureza a finalidade e até mesmo fins) é
um conceito particular que não podemos encontrar na experiência e que é
posto apenas pela faculdade de julgar, na sua reflexão sobre os objectos,
para organizar segundo as suas prescrições a experiência segundo as leis
particulares, a saber as da possibilidade de um sistema. – Podemos então
considerar toda a finalidade da natureza, seja como natural (forma finalis
naturae spontanea), seja como intencional (intentionalis). A simples expe-
riência não justifica senão o primeiro modo de representação; o segundo é
um modo hipotético de explicação, que se acrescenta a este conceito das
coisas como fins da natureza. O primeiro conceito das coisas como fins da
natureza releva originariamente da faculdade de julgar reflexionante (ainda
que não da esteticamente reflexionante, mas da teleologicamente reflexio-
nante), o segundo releva da faculdade de julgar determinante. Para o pri-
meiro, requer-se certamente também a razão, mas unicamente em vista
duma experiência que deve ser organizada segundo princípios (por conse-
guinte, a razão no seu uso imanente), ao passo que o segundo requer uma
razão que se perde naquilo que ultrapassa a experiência (por conseguinte,
48
uma razão no seu uso transcendente).

48
«Der Begriff der Zwecke und der Zweckmässigkeit ist zwar ein Begriff der Vernunft,
insofern man ihr den Grund der Möglichkeit eines Objekts beilegt. Allein Zweckmässig-

114
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

Seguidamente, Kant mostra como a boa pressuposição (a que é feita para


uso imanente da razão) dos fins da natureza, em vez de prejudicar, pode antes
ser muito útil para a investigação da natureza até segundo os princípios mecâni-
cos da mesma, sendo possível conciliar a «Técnica da Natureza» ou o princípio
da teleologia, pressupostos pela faculdade de julgar reflexionante com a mecâ-
nica da mesma ou os princípios do mecanicismo, segundo a legislação do enten-
dimento.
Como se vê pela recensão até agora feita de alguns parágrafos da EE, o con-
ceito de «Técnica da Natureza» revela-se particularmente elucidativo seja quanto
ao tema mesmo da terceira Crítica seja quanto à unidade e coerência estrutural da
mais complexa das grandes obras kantianas. Nos parágrafos seguintes da EE o
tema continua a ser dominante e objecto de novas formulações, sendo explicita-
mente nomeado até no título de alguns dos parágrafos. Por razão de economia não
me alongarei na análise desses parágrafos, mas apenas me deterei numa impor-
tante observação que se encontra no último deles, a qual nos deixa ver qual a
experiência que terá dado a Kant a ideia da «Técnica da Natureza».
Nos parágrafos que anteriormente analisámos da EE pudemos acompanhar
a génese ou processo de construção e explicitação do conceito. Foi-nos indicada
a sua génese transcendental na faculdade de julgar. Falta indicar a sua génese
fenomenológica, ou seja, dizer o que lhe deu ocasião ou o que o fez surgir numa
experiência: a propósito de quê – fenómeno, vivência ou experiência – a facul-
dade de julgar teve oportunidade ou mesmo a necessidade de descobrir em si
esse procedimento técnico, artístico ou estético, que logo aplica à natureza como
se ele fosse também o modo de proceder desta?
A resposta encontra-se sobretudo em dois textos. O primeiro é do último §
(xii) da EE. O segundo, do § 23 da Primeira Parte da obra. Chegámos assim aos

keit der Natur, oder auch der Begriff von Dingen als Naturzwecken, setzt die Vernunft
als Ursache mit solchen Dingen in Verhältnis, darin wir sie durch keine Erfahrung als
Grund ihrer Möglichkeit kennen. Denn nur an Produkten der Kunst können wir uns der
Kausalität der Vernunft von Objekten, die darum zweckmässig oder Zwecke heissen,
bewusst werden, und in Ansehung ihrer die Vernunft technisch zu nennen, ist der
Erfahrung von der Kausalität unseres eigenen Vermögen angemessen. Allein die Natur,
gleich einer Vernunft sich als technisch vorzustellen (und so der Natur Zweckmässig-
keit, und sogar Zwecke beizulegen), ist ein besonderer Begriff, den wir in der Erfahrung
nicht antreffen können und den nur die Urteilskraft in ihrer Reflexion über Gegenstände
legt, um nach seiner Anweisung Erfahrung nach besondern Gesetzen, nämlich denen
der Möglichkeit eines Systems, anzustellen. – Man kann nämlich alle Zweckmässigkeit
der Natur entweder als natürlich (forma finalis naturae spontanea), oder als absichtlich
(intentionalis) betrachten. Die blosse Erfahrung berechtigt nur zur der erstern Vorstel-
lungsart; die zweite ist eine hypothetische Erklärungsart, die über jenen Begriff der
Dinge als Naturzwecke hinzukömmt. Der erstere Begriff von Dingen, als Naturzwecken,
gehört ursprünglich der reflektierenden (obgleich nicht ästhetisch, sondern logisch reflek-
tierenden), der zweite der bestimmenden Urteilskraft zu.» EE ix, L 42-43.

115
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

dois textos a respeito dos quais acima prometemos um comentário em forma


elíptica.
Como vimos, a invocação ou a introdução do conceito de «Técnica da Natu-
reza» – como, de resto, o de teleoformidade da natureza – não é algo arbitrário,
mas responde a uma necessidade que o sujeito tem de compreender certos
fenómenos da natureza que não são explicados pelo mero mecanismo da natu-
reza. Ou eles ficam sem qualquer tipo de compreensão ou então, se não a razão e
o entendimento, sim a faculdade de julgar acode a esses fenómenos com o seu
princípio próprio, e ao fazer isso ela não perturba as explicações mecanicistas,
mas aduz um outro ponto de vista mediante o qual aqueles fenómenos se tor-
nam compreensíveis embora apenas numa intenção subjectiva. Ora, quais são
esses fenómenos? Vimos que no § ii se mencionou a ilimitada variedade das
formas e das leis empíricas da natureza as quais sem o conceito de «Técnica da
Natureza» ficariam sem um princípio que as sistematizasse e nos permitisse
investigá-las. Mas há outros fenómenos que solicitam a apreciação mediante o
conceito de uma «Técnica da Natureza», a saber, a manifestação das belas for-
mas da natureza e a possibilidade interna dos seres organizados da natureza.
Mas há pelo menos duas passagens nas quais Kant expressamente declara que o
que nos revela ou faz descobrir na faculdade de julgar a ideia de uma «Técnica
da Natureza» é a experiência das formas belas da natureza, por conseguinte, a
experiência estética da natureza. É esta experiência, e não a da beleza artística,
que faz descobrir quer o conceito de «Técnica da Natureza» quer o que lhe é
equivalente de teleoformidade da natureza, reconhecidos como o princípio
transcendental próprio da faculdade de julgar reflexionante. Isso é que constitui
o assunto próprio e directo da Crítica do Juízo e não propriamente a arte
humana, a qual é uma mera consequência ou extensão. E assim aquilo que ser-
viu de base para a construção por analogia do conceito de «Técnica da Natu-
reza» ou da natureza como arte ou como artística – ou seja, a arte humana –
acaba por ser subalternizada na economia geral da obra. Vejamos então o que
nos diz a referida passagem do parágrafo xii da Primeira Introdução:
Deve ainda notar-se que é com respeito à Técnica na Natureza, e não à da
causalidade das faculdades de representação do homem a que chamamos
arte (no sentido próprio da palavra), que se investiga aqui a teleoformidade
como um conceito regulador da faculdade de julgar, e não o princípio da
beleza artística ou duma perfeição artística, ainda que se possa designar a
natureza como técnica no seu modo de proceder, ou seja de algum modo
como artística, se a consideramos como técnica (ou plástica), em virtude de
uma analogia segundo a qual a sua causalidade deve ser representada como
a da arte. Pois trata-se do princípio da faculdade de julgar simplesmente
reflexionante, e não da determinante (ao modo daquela que está no funda-

116
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

mento de todas as obras de arte produzidas pelo homem), e a teleoformi-


dade que aí se encontra deve, por conseguinte, ser apreciada como não-
-intencional, só podendo convir à natureza. E assim a apreciação da beleza
artística deverá ser considerada como mera decorrência dos mesmos prin-
49
cípios que estão na base do juízo sobre a beleza da natureza.
No mesmo sentido e porventura ainda mais explícito, o § 23 da Primeira Parte
da obra declara o que dá ocasião para a descoberta do princípio transcendental pró-
prio da faculdade de julgar, o conceito de «Técnica da Natureza» ou da teleoformi-
dade da natureza. Nada menos do que a experiência da beleza da natureza. Esta
seria, pois, não só a experiência estética matricial, mas também o momento do
nascimento da terceira Crítica na sua forma final. A experiência do belo natural é
que está verdadeiramente na génese da Crítica do Juízo e da descoberta do novo
princípio transcendental da «teleoformidade da natureza», preferentemente dito na
EE pela expressão «Técnica da Natureza». É isso o que escreve o filósofo:
A beleza natural autónoma revela-nos uma Técnica da Natureza que a torna
representável como um sistema estruturado segundo leis cujo princípio não
pode ser encontrado no conjunto do nosso entendimento, o qual é o de
uma teleoformidade que se relaciona ao uso da faculdade de julgar no que
se refere aos fenómenos, de tal modo que estes devem ser julgados não
apenas enquanto pertencendo à natureza no seu mecanismo desprovido de
finalidade, mas também ao que é pensado por analogia com a arte. Uma tal
finalidade amplia pois não certamente o nosso conhecimento dos objectos
da natureza, mas em todo o caso o nosso conceito da natureza que, do con-
ceito de uma natureza entendida como um simples mecanismo, é estendido
até ao da natureza enquanto arte, o qual convida a profundas investigações
50
acerca da possibilidade de uma tal forma.

49
«Noch ist anzumerken: dass es die Technik in der Natur und nicht die der Kausalität der
Vorstellungskräfte des Menschen, welche man Kunst nennt (in der eigentlichen Bedeutung
des Worts) nennt, sei, in Ansehung deren hier die Zweckmässigkeit als ein regulativer Begriff
der Urteilskraft nachgeforscht wird und nicht das Prinzip der Kunstschönheit oder einer
Kunstvollkommenheit nachgesucht werde, ob man gleich die Natur, wenn man sie als tech-
nisch (oder plastisch) betrachtet, wegen einer Analogie, nach welcher ihre Kausalität mit der
der Kunst vorgestellt werden muss, in ihrem Verfahren technisch, d.i. gleichsam künstlich
nennen darf. Denn es ist um das Prinzip der bloss reflektierenden, nicht der bestimmenden
Urteilskraft (dergleichen allen menschlichen Kunstwerken zum Grunde liegt), zu tun, bei
der also die Zweckmässigkeit als unabsichtlich betrachtet werden soll, und die also nur der
Natur zukommen kann. Die Beurteilung der Kunstschönheit wird nachher als blosse Folge-
rung aus denselbigen Prinzipien, welche dem Urteile über Naturschönheit zum Grunde
liegen, betrachtet werden müssen.» EE xii, L 60-61.
50
«Die selbständige Naturschönheit entdeckt uns eine Technik der Natur, welche sie als
System nach Gesetzen, deren Prinzip wir in unserem ganzen Verstandesvermögen nicht

117
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

Também por este aspecto se pode falar de um privilégio (Vorzug) da expe-


riência do belo da natureza sobre a experiência do belo artístico na economia da
terceira Crítica (cf § 42). E é esse privilégio do belo natural que dá razão do
parentesco tantas vezes sugerido por Kant entre o sentimento estético da natu-
reza e o sentimento moral, tema que expôs sobretudo no § 42:
Tomar interesse imediato pela beleza da natureza é sempre sinal de uma
boa alma; e se este é habitual, pelo menos indica uma disposição do ânimo
favorável ao sentimento moral, se de bom grado se associa à contemplação
da natureza.
Na mesma linha se pode ler na «Nota Final» à Crítica do Juízo:
A admiração [Bewunderung] da beleza bem como a emoção [Rührung] sus-
citada pelos fins tão diversos da natureza que um espírito que reflecte está
em condições de sentir antes mesmo de possuir uma clara representação de
um autor racional do mundo têm em si algo de semelhante a um senti-
mento religioso [religiösen Gefühl] (de reconhecimento e veneração [der
Dankbarkeit und der Verehrung] para com esta causa que nos é desconhe-
cida), mediante uma espécie de apreciação desta beleza e destes fins que
seria análoga à apreciação moral, e assim age sobre o espírito suscitando
ideias morais, quando inspiram esta admiração, que está ligada a um inte-
resse muito mais vasto do que aquele que pode produzir uma consideração
51
[Betrachtung] simplesmente teorética.
E ainda no mesmo § 42:
Aquele que solitariamente (e sem intenção de querer comunicar as suas
observações a outros) contempla a bela forma de uma flor selvagem, duma
ave, dum insecto, etc., para os admirar, para os amar, e num espírito tal que
ele não admitiria de bom grado a sua perda na natureza em geral, mesmo
quando, longe de que a existência do objecto lhe faça ver alguma vantagem,
ele disso tirasse antes prejuízo, esse toma um interesse imediato e a bem

antreffen, vorstellig macht, nämlich dem einer Zweckmässigkeit, respektiv auf den
Gebrauch der Urteilskraft in Ansehung der Erscheinungen, so dass diese nicht bloss als
zur Natur in ihrem zwecklosen Mechanism, sondern auch als zur Analogie mit der
Kunst gehörig, beurteilt werden müssen. Sie erweitert also wirklich zwar nicht unsere
Erkenntnis der Naturobjekte, aber doch unseren Begriff von der Natur, nämlich als blos-
sen Mechanism, zu dem Begriff von eben derselben als Kunst; welches zu tiefen Unter-
suchungen über die Möglichkeit einer solchen Form einladet.» Ak V, 246. Ibidem, Ak V,
245: «... die Naturschönheit (die selbständige) eine Zweckmässigkeit in ihrer Form,
wodurch der Gegenstand für unsere Urteilskraft gleichsam vorherbestimmt zu sein
scheint, bei sich führt und so an sich einem Gegenstand des Wohlgefallens ausmacht.»
51
Ak V, 482.

118
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

dizer intelectual pela beleza da natureza. Isso significa que não só o pro-
duto da natureza lhe apraz pela sua forma, mas também que a existência
dele lhe apraz, sem que qualquer atractivo sensível tome parte neste prazer
52
ou que a isso se associe um objectivo qualquer.
No mínimo, o que estas passagens indicam é a pregnância da experiência
estética da natureza e a sua íntima solidariedade ou parentesco (Verwandtschaft),
seja com o sentimento moral, seja com a apreciação teleológica da natureza e até
53
com a mais genuína experiência religiosa.

3. Pressupostos e alcance especulativo


da ideia de «Técnica da Natureza»

O investimento linguístico e filosófico no conceito de «Técnica da Natureza»


visa, na intenção de Kant, contrapô-lo ao conceito de «mecânica» da natureza
(isto é: ao modo de produzir de acordo com as leis do entendimento, segundo
um mero e cego mecanismo de causalidade eficiente). A contraposição entre o
bloss mechanisch e o technisch é recorrente: à mera causalidade eficiente (nexus
effectivus) Kant contrapõe uma causalidade final (nexus finalis), por certo apenas
como princípio subjectivo para apreciação e não para determinação do objecto.
Ao apreciar a natureza sob o modo da sua teleoformidade, a faculdade de julgar
representa a natureza «não apenas como mecânica mas também como técnica»
(sie nicht bloss als mechanisch, sondern auch als technisch vorgestellt wird), pro-
pondo um conceito que certamente em nada determina objectivamente a natu-
reza, mas que, em contrapartida, «fornece subjectivamente princípios que ser-
vem de fio condutor para a investigação da natureza» (aber doch subjektiv
54
Grundsätze abgibt, die der Nachforschung der Natur zum Lewitfaden dienen).
Como vimos, Kant dá como equivalentes as expressões arte (Kunst) e técnica
(Technik), e os adjectivos artístico (künstlich), técnico (technisch) e estético
(ästhetisch).
Para melhor entendermos estas equivalências devemos reportar-nos ao § 43
da KU no qual Kant expõe o entendimento tradicional da oposição entre arte e
natureza, uma contraposição que essa sua obra em toda a sua complexa econo-
mia se encarregará de subverter completamente. Procedendo como um diciona-
rista, o filósofo inventaria aí os sentidos tradicionais do termo arte (Kunst),
52
Ak V, 299.
53
Veja-se o meu ensaio «A teologia de Job, segundo Kant: ou a experiência ético-religiosa
entre o discurso teodiceico e a estética do sublime», in: Convergências & Afinidades. Home-
nagem a António Braz Teixeira, CFUL/CEFi, Lisboa, 2008, pp.919-945.
54
EE, L 11.

119
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

usando uma estratégia de demarcação, explicitando as contraposições ou distin-


ções entre arte e natureza (Kunst/Natur), arte e ciência (Kunst/Wissenschaft), arte
(arte liberal) e ofício ou artesania (arte mercantil), a que se segue nos parágrafos
seguintes (§§ 44 e 45) a distinção entre arte em geral e bela-arte, «arte estética»
(ästhetische Kunst), enquanto arte própria do génio.
Ao falar de arte (Kunst) e ao contrapor ou aproximar a natureza da arte,
Kant está sempre a pressupor o sentido mais amplo e tradicional da arte. O
mesmo se pode dizer relativamente ao termo natureza, também ele tomado no
sentido mais amplo e vulgar, e não propriamente naquele sentido específico em
que o entendia a ciência mecanicista dos Modernos. Falando da arte (Kunst),
Kant regista, pois, o uso habitual (tradicional) e próprio do termo, embora reco-
nheça que ele é por vezes estendido por analogia, a partir do modo de produção
artístico do homem, para designar também acções não humanas, nomeadamente
as de certos animais, às quais preside uma regularidade que parece ser condu-
zida segundo uma finalidade, embora saibamos que é apenas um efeito da natu-
reza desses animais ou daquilo a que vulgarmente se chama o instinto, verifi-
cando-se neste caso já a troca de um princípio pelo outro: tomamos a natureza
por arte e a arte por natureza. É essa extensão por analogia que nos leva a aper-
cebermos que há arte em tudo aquilo que está constituído de tal maneira como
se uma representação do que isso é devesse ter estado necessariamente presente
na sua causa produtora a conduzir a sua efectividade, sem com isso querermos
todavia dizer que essa causa pensou efectivamente e executou intencionalmente
e precisamente um tal efeito. Este procedimento analógico é o que está na base
da formação do conceito de «Técnica da Natureza».
Importa atender sobretudo à primeira distinção, entre arte e natureza, pois
foi subvertendo-a que Kant construiu o seu conceito de «Técnica da Natureza».
Escreve Kant:
A arte distingue-se da natureza como o fazer (facere) se distingue do agir ou
do efectuar em geral (agere), e o produto ou a consequência da arte distin-
gue-se enquanto obra (opus) do produto da natureza enquanto efeito
(effectus). De direito não se deveria chamar arte a não ser à produção
mediante a liberdade, isto é, mediante o arbítrio que coloca a razão no fun-
damento das suas acções. Pois, ainda que nos apraza designar como uma
obra de arte o produto das abelhas (os favos de cera construídos com regu-
laridade), isso todavia só se entende por analogia com a arte; assim que
cairmos na conta de que elas não fundam o seu trabalho em nenhuma con-
sideração racional, logo diremos que é um produto da sua natureza (do
55
instinto) e como arte só ao seu criador será atribuída.

55
KU § 43; Ak V, 303.

120
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

O processo de construção do conceito de «Técnica da Natureza» revela-nos


o característico modo de pensar de Kant em toda a sua complexidade: isto é,
procedendo por analogias múltiplas, sob o modo do como se (als ob), e, no caso
da terceira Crítica, recorrendo a conceitos estratégicos dados sob a forma de
oximoros, conceitos e expressões que por assim dizer se auto-anulam ou curto-
circuitam a si mesmos. É o caso das expressões «livre conformidade à lei» (freie
Gesetzmässigkeit) da imaginação: se é livre – espontânea – é precisamente por-
que não segue uma lei (dada), mas dá-se a si mesma ou inventa uma lei ou regra
no seu produzir que se confunde com o próprio produzido ou inventado; e
ainda da expressão «teleoformidade sem fim» ou «conformidade a um fim sem
fim» – Zweckmässigkeit ohne Zweck (se é conformidade a fim como é ela sem
fim?). Também a expressão «Técnica da Natureza» é um oximoro, pois junta
numa mesma expressão dois princípios ou modos de produção considerados em
princípio como antinómicos: o espontâneo ou não intencional, da natureza, e o
da arte, que se rege por uma causalidade intencional que opera mediante fins
56
predeterminados pelo agente.
A arte supõe, por conseguinte, um processo de produção finalizada: a repre-
sentação prévia de um fim que preside e orienta a produção de uma obra. Daí que
«se chamamos a algo simplesmente uma obra de arte entendemos por tal sempre
uma obra dos homens» (wenn man etwas schlechthin ein Kunstwerk nennt, … so
versteht man allemal darunter ein Werk der Menschen) (§ 43). Ora, segundo Kant, é a
razão que propriamente é a faculdade que estabelece fins e que tem uma imediata
relação a fins: o seu princípio é o de uma «finalidade que ao mesmo tempo é lei e
constitui obrigatoriedade» (Zweckmässigkeit die zugleich Gesetz ist – Verbindlichkeit
– EE xi). Portanto, a faculdade de julgar toma o seu princípio próprio já por analo-
gia a partir da finalidade da razão, a qual é originariamente uma finalidade prática.
Mas transforma essa finalidade num novo tipo de finalidade, uma technische
Zweckmässigkeit, de aplicação meramente subjectiva, que é designada pelas expres-
sões «finalidade ou teleoformidade sem fim» (Zweckmässigkeit ohne Zweck) ou
também «livre teleoformidade» (freie Zweckmässigkeit) ou «livre conformidade à
lei» (freie Gesetzmässigkeit), ao contrário da finalidade própria da razão prática, a
praktische Zweckmässigkeit, que é vinculativa (verbindlich) e se constitui como lei
57
(Gesetz).
56
Na mesma linha se podem ler as expressões Natur als Kunst/ Kunst als Natur... (ou, na
filosofia da história e na antropologia, a ungesellige Geselligkeit (insociável sociali-
dade).Um outro filósofo que gostava desse tipo de expressões era Nicolau de Cusa: docta
ignorantia, altissima profunditas, possest, «compreender incompreensivelmente», «atingir
de forma inatingível», e outras do mesmo teor. Tais expressões denunciam formas de
pensamento que se movem no paradoxo ou na ambiguidade e por isso constituem pro-
dutivos desafios para a reflexão e meditação.
57
EE xi, L 52 ss.

121
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

Em face disto, podemos perguntar se a anteriormente citada passagem do


parágrafo xii da EE desenvolve um «círculo vicioso» ou um «círculo virtuoso».
Com efeito, tira-se o conceito de «Técnica da Natureza», por analogia, do modo
de proceder da arte humana, aplicando-o à natureza para compreender ou apre-
ciar o modo como ela produz as suas formas ou seres, retirando-lhe, porém, o
carácter intencional que a arte humana possui. Seguidamente, aplica-se esse
conceito também à arte humana para se poder apreciá-la e compreendê-la no seu
qualificado significado propriamente estético: para ser verdadeiramente arte –
bela arte –, a arte tem de perder a aparência de que é uma produção intencional
e parecer como se fosse natureza, isto é, como se fosse um produto espontâneo
que não segue regras pré-determinadas, mas que revela e institui no seu produ-
zir a regra mesma segundo a qual é produzido. Invertem-se assim as posições
entre o analogon e o analogatum: o que servira de fundamento para a analogia
com base na qual se forma o conceito – a arte humana – torna-se agora um
campo particular (regional e secundário, um simples corolário) da aplicação do
conceito com base nela formado, mas ao mesmo tempo entretanto já transfor-
mado! É assim que se torna possível apreciar a «natureza como arte» e a «arte
como natureza» (Natur als Kunst, Kunst als Natur). Desta troca recíproca de pre-
dicados entre arte e natureza saem beneficiadas uma e outra, pois acede-se a
uma nova compreensão quer da natureza (não já meramente mecânica), quer da
arte humana (não já meramente como algo programado e intencional, mas como
algo gerado por assim dizer espontânea e naturalmente e todavia teleoforme).
Uma das mais antigas e verdadeiramente paradigmáticas versões do con-
fronto entre arte e natureza encontra-se em Aristóteles. No Protréptico (9,49) –
obra cuja autoria aristotélica é, no entanto, contestada –, lê-se a esse respeito o
seguinte:
Aquilo que é gerado conforme à natureza é gerado em vista de algo e é
constituído sempre em vista de algo, que é melhor do que aquilo que é
gerado por meio da técnica: não é a natureza que imita a técnica, mas esta
[que imita] a natureza (mimeitai gàr où ten téchnen é phúsis àllà aúte ten
phúsin). […] Se então a técnica imita a natureza, desta derivou o facto, para
as técnicas também, de toda a geração ser em vista de algo (àpò taútes éko-
loútheke kaì tais téchnais tò ten génesin ápasan éneká tou gígnesthai).
Da mesma forma, na Física (II, 8 199a 8-19), diz-se que a técnica imita a
natureza na medida em que como esta produz em vista de algo. Para Aristóteles,
por conseguinte, é a natureza que é por si finalizada e que empresta à arte, que a
imite, a qualidade de visar também ela um fim. Pelo contrário, para Kant é a arte
– enquanto obra de um sujeito racional – que por si mesma possui um fim, e só
por analogia com esse procedimento, o termo se pode atribuir ou estender tam-
bém à natureza. Kant, saiba-o ou não, aceita o pressuposto platónico segundo o

122
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

qual uma razão e uma produção racional e intencional estão na génese da natu-
reza. Contra os atomistas, que apelavam para a natureza como algo absoluto e
auto-suficiente, Platão mostra que se a natureza é algo por si subsistente é-o
apenas porque é obra de uma arte divina arquetípica, desenhada e executada
58
pela razão do supremo geómetra, arquitecto ou demiurgo.
O pensamento mecanicista dos Modernos inverteu o entendimento tradi-
59
cional aristotélico da relação entre natureza e arte, reduzindo aquela a esta.
Podemos encontrar essa inversão exposta de uma forma paradigmática num dos
últimos parágrafos da IV Parte dos Princípios da Filosofia de Descartes. Aí se lê:
Qualquer um poderá perguntar como é que eu cheguei a saber quais são as
figuras, grandezas e movimentos das pequenas partes de cada corpo, muitas
das quais determinei tal como se as tivesse visto, ainda que seja certo que
não pude apercebê-las pela ajuda dos sentidos, uma vez que confesso que
são insensíveis. Para tanto foi-me de grande auxílio o exemplo de vários
corpos compostos pelo artifício dos homens: pois eu não reconheço nenhuma
diferença entre as máquinas que os artesãos fazem e os diversos corpos que
a natureza por si só compõe, a não ser esta: que os efeitos das máquinas
não dependem de mais nada a não ser da disposição de certos tubos, ou
molas, ou outros instrumentos, que, devendo ter alguma proporção com as
mãos daqueles que os fazem, são sempre tão grandes que as suas figuras e
movimentos se podem ver, ao passo que os tubos ou molas que causam os
efeitos dos corpos naturais são ordinariamente demasiado pequenos para
poderem ser percebidos pelos nossos sentidos. E é certo que todas as regras
das mecânicas pertencem à física, de modo que todas as coisas que são arti-
ficiais são por isso naturais. Porque, por exemplo, quando um relógio
marca as horas por meio das engrenagens de que é feito isso não é menos
60
natural quanto é para uma árvore produzir frutos.
Nesta passagem estão supostas três decisivas reduções simplificadoras: a
redução da natureza à arte e da arte à máquina (o relógio), a redução da física à

58
«Direi que as obras ditas da natureza são a obra de uma arte divina, e as que os
homens compõem com elas, obras de uma arte humana.» Sofista 265 e3; também: Leis,
888-890; Timeu, passim. Para este tema da relação arte/natureza no pensamento antigo e
em toda a história do pensamento, veja-se a excelente obra de Pierre Hadot, Le voile
d’Isis – Essai sur l’histoire de l’idée de nature, Gallimard, Paris, 2004 (ed. brasileira : O véu
de Ísis – Ensaio sobre a história da idéia de natureza, Edições Loyola, São Paulo, 2006).
59
Veja-se: P. McLaughlin, «Mechanical philosophy and artefact explanation», in: Stud.
Hist. Phil. Sc., 37 (2006), 97-101; Idem, «Die Welt als Maschine. Zur Genese des neu-
zeitlichen Naturbegriffs», in: A. Grote (Ed.), Macrocosmos in Microcosmos. Die Welt in
der Stube. Zur Geschichte des Sammelns, Leske & Budrich, Opladen, 1994, pp.439-451.
60
A-T, IX, -2, 321-322.

123
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

mecânica e, por fim, também a redução do biológico ao mecânico. Segundo o


filósofo francês, entre estes planos, há apenas diferença de escala, não de natu-
reza ou de espécie. A máquina ou o artefacto produzido por um artesão – cujo
mais perfeito exemplar na época era o relógio – torna-se agora o paradigma de
referência para a explicação do funcionamento de toda a natureza, até mesmo da
natureza orgânica e, por fim, até do próprio espírito ou natureza racional.
De Descartes a La Mettrie, os pensadores modernos vão socorrer-se à
exaustão desse paradigma, convictos da sua simplicidade e fecundidade explica-
tiva, cada dia confirmada intuitivamente à medida que as máquinas humanas
cada vez mais se aperfeiçoavam. Os resistentes a esse modelo de racionalidade só
podiam ou recusá-lo ou levá-lo ao limite. Esta última foi a atitude de Leibniz, o
qual aceita o paradigma da máquina, até para explicar os seres vivos, mas fá-lo
explodir, levando-o ao infinito: os corpos naturais são máquinas – «máquinas
naturais» –, mas são-no infinitamente e de um modo infinitamente subtil, pois
são máquinas mesmo nas suas mínimas partes. São máquinas vivas, corpos vivos,
substâncias indestrutíveis. As máquinas humanas, feitas pelos artesãos, são máqui-
nas toscas e imperfeitas comparadas com as máquinas naturais, obras de um
artesão divino. Na Monadologia (§ 64) lê-se:
Cada corpo orgânico de um ser vivo é uma espécie de máquina divina, ou
de um autómato natural, que ultrapassa infinitamente todos os autómatos
artificiais. Porque uma máquina feita pela arte do homem não é máquina
em cada uma das suas partes; por exemplo, o dente de uma roda de latão
tem partes ou fragmentos, que não são mais algo de artificial e não têm
mais nada que seja marca da máquina em relação ao uso a que a máquina
era destinada. Mas as máquinas da Natureza, quer dizer, os corpos vivos,
são ainda máquinas em suas menores partes, até ao infinito. É o que faz a
61
diferença entre a Natureza e a Arte, quer dizer, entre a Arte divina e a nossa.
Os filósofos da primeira metade do século XVIII glosaram amplamente o
tema da natureza-arte, da natureza como arte. Voltaire, no artigo «Nature» do
seu Dicionário Filosófico, põe na boca da natureza esta lamentação: «Deram-me
um nome que não me convém: chamam-me natureza e eu sou inteiramente
arte.» Da mesma forma, também o poeta-filósofo inglês Alexander Pope escreve

61
Leibniz, Die philosophischen Schriften, ed. Gerhardt, Olms, Hildesheim/New York, 1978,
vol. 6, p. 618. A mesma ideia havia sido já exposta no Système nouveau de la nature
(1695), Die philosophischen Schriften, vol. 4, p. 482. Sobre este tópico, veja-se Michel
Fichant, «Leibniz e as máquinas da natureza», Dois Pontos, Revista de Filosofia das Uni-
versidades Federais de Curitiba (PR) e de São Carlos (SP), 2, Outubro de 2005, 27-51.
Em várias passagens do Opus postumum, Kant aproxima-se desta formulação leibniziana,
como que invertendo o paradigma: passa a ser o paradigma do organismo a explicar
mais satisfatoriamente a própria máquina.

124
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

62
no seu mais famoso poema filosófico que «All nature is but Art». Era este um
tópico comum da agenda filosófica da sua época e Kant mais não fez do que
tomá-lo a sério e levar mais longe a reflexão a seu respeito. Já no ensaio de cos-
mogonia do ano 1755 a ideia está bem explícita, quando o jovem filósofo fala
das «obras de arte da natureza» (Kunstwerke der Natur) produzidas apenas pelas
leis universais da mecânica, ou quando sugere que «Deus pode ter introduzido
nas forças da natureza uma arte secreta que a leva a formar-se por si mesma a
63
partir do caos até atingir uma perfeita constituição cósmica». Mas a invocação
do tópico pelos filósofos setecentistas tanto poderia ser lida no sentido reducio-
nista dos mecanicistas seiscentistas como no sentido mais pregnante do pressu-
posto estóico de uma arte íntima da natureza, mediante a qual esta leva a cabo a
criação multiplicada e diferenciada de todos os possíveis seres, na infinita dura-
ção do tempo cósmico. Em Kant dá-se a permuta entre estas duas linhas de
interpretação do tópico. E o parágrafo 65 da Crítica do Juízo pode bem ler-se
como uma resposta a Descartes, como a desconstrução do texto citado dos Prin-
cípios que enuncia o pressuposto dentro do qual se movimenta todo o pensa-
mento mecanicista dos Modernos e a analogia por estes estabelecida entre natu-
reza e arte, sob o modo da redução unilateral e simples daquela a esta. Kant
escolhe justamente a imagem do relógio, que constituíra para os pensadores do
século XVII e da primeira metade do século XVIII o paradigma por excelência da
racionalidade, para mostrar o seu défice de racionalidade, quando comparado
com o paradigma do organismo e do ser vivo natural. Esse parágrafo pode ler-se
como o atestado de óbito da hegemonia racional do mecanicismo e da sua
metáfora emblemática e ao mesmo tempo como a certidão de nascimento da
64
metafórica do organismo e como a sua legitimação especulativa. O autor da
terceira Crítica retoma, com nova linguagem, e aprofunda, em diferente enqua-

62
An Essay on Man, I, x.
63
«Wenn es gleich wahr ist, wird man sagen, dass Gott in die Kräfte der Natur eine
geheime Kunst gelegt hat, sich aus dem Chaos von selber zu einer vollkommenen Welt-
verfassung auszubilden.» Allgemeine Naturgeschichte und Theorie des Himmels, Ak I, 229.
Não andam longe desta ideia juvenil os desenvolvimentos de alguns parágrafos da
Segunda Parte da terceira Crítica, respeitantes à noção de «técnica da natureza» e à
compatibilização do princípio do mecanicismo e do da teleoformidade na explicação e
compreensão da natureza. Veja-se, nomeadamente, o § 78 (Ak V, 410-415).
64
É claro que Kant não inaugura o uso da metafórica orgânica em filosofia. Desde a mais
antiga história filosófica houve pensadores que usaram metáforas biológicas ou orgâni-
cas. Mas Kant consciencializa esse uso e legitima-o, numa época em que ele começava a
ser intenso, não só na filosofia como também nas ciências. Veja-se, a este propósito, o
meu livro Metáforas da Razão ou economia poética do pensar kantiano, JNICT/ F. C. Gul-
benkian, Lisboa, 1994, Segunda Parte, cap. IV: «’Epigénese’ e ‘autoconservação da razão’.
A metafórica do organismo e suas metamorfoses», pp.403-446; e a obra de Judith Sch-
langer, Les métaphores de l’organisme, Vrin, Paris, 1971.

125
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

dramento sistemático, a distinção entre «máquinas artificiais» e «máquinas


naturais» que fora avançada por Leibniz, quando escreve:
Num relógio, uma parte é o instrumento do movimento das outras, mas
uma roda não é a causa eficiente da produção da outra; uma parte existe
certamente em vista da outra, mas não por ela. Por isso, também a causa
produtora dela e da sua forma não reside na natureza (desta matéria), mas
fora dela, num ser que, segundo ideias, pode realizar um todo possível
mediante a sua causalidade. Daí também que no relógio uma roda não pro-
duz a outra e ainda menos um relógio produz outros usando para isso
outra matéria (organizando-a); por isso também ele não substitui por si as
partes gastas, nem corrige a sua deficiência na forma primeira mediante o
contributo das restantes, ou se conserta a si mesmo quando se desarranja:
65
tudo isso, em contrapartida, devemos esperá-lo da natureza organizada.
E Kant continua mostrando que um ser organizado não é uma simples
máquina, accionada por uma força motora (bewegende Kraft), mas possui em si
além disso uma força formadora (bildende Kraft), mediante a qual organiza a
66
matéria que a compõe e graças à qual é capaz de se auto-reproduzir.
Embora, como vimos, Kant tenha partido da analogia com a arte humana
para compreender a natureza, seja na sua dimensão estética seja na sua produ-
ção de seres organizados, ele tem todavia consciência de que ao limite essa ana-
logia claudica, sobretudo quando pretende apreciar, não já as belas formas da
natureza, mas os produtos orgânicos da natureza. Na continuação do mesmo
parágrafo, Kant escreve:
Dizemos muito pouco a respeito da natureza e do seu poder nos produtos
organizados quando chamamos a este poder um analogon da arte [Analogon
der Kunst]; pois, neste caso, representamos o artista (um ser racional) como
exterior a ela. Ela organiza-se antes a si mesma e em cada espécie dos seus
produtos organizados seguindo por certo em toda a espécie um só e mesmo

65
«In einer Uhr ist ein Theil das Werkzeug der Bewegung der andern, aber nicht ein Rad
die wirkende Ursache der Hervorbringung des andern; ein Theil ist zwar um das andern
willen, aber nicht durch denselben da. Daher ist auch die hervorbringende Ursache der-
selben und ihrer Form nicht in der Natur (dieser Materie), sondern ausser ihr in einem
Wesen, welches nach Ideen eines durch seine Causalität möglichen Ganzen wirken
kann, enthalten. Daher bringt auch nicht ein Rad in der Uhr das andere, noch weniger
eine Uhr andere Huren hervor, so dass sie andere Materie dazu benutzte (sie organi-
sirte); daher ersetzt sie auch nicht von selbst die ihr entwandten Theile, oder vergütet
ihren Mangel in der ersten Bildung durch den Beitritt der übrigen, oder bessert sich etwa
selbst aus, wenn sie in Unordnung gerathen ist: welches alles wir dagegen von der orga-
nisirten Natur erwarten können.» Ak V, 374.
66
Ibidem.

126
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

exemplar, e todavia fá-lo também com os desvios apropriados requeridos


pela conservação de si mesma de acordo com as circunstâncias. Aproximar-
-nos-íamos talvez mais desta qualidade insondável se a designássemos como
um analogon da vida [Analogon des Lebens]; mas, neste caso, ou se dota a
matéria enquanto simples matéria de uma propriedade (hilozoísmo) que
estaria em contradição com a sua essência, ou se lhe associa um princípio
estranho que estaria em comunidade com ela (uma alma): neste último caso,
se um tal produto deve ser um produto da natureza, ou a matéria organizada
se acha já pressuposta como instrumento desta alma, o que não a torna com-
preensível, ou então temos de fazer da alma a artista [Künstlerin] desta cons-
trução e assim subtrair o produto à natureza (corporal).
E conclui:
Falando com precisão, a organização da natureza nada tem de análogo com
qualquer tipo de causalidade de que temos conhecimento. A beleza da
natureza, porque é atribuída aos objectos somente em relação com a refle-
xão sobre a intuição externa destes, por conseguinte, unicamente devido à
forma da sua superfície, pode com razão ser chamada um análogo da arte.
Mas uma perfeição natural interna [innere Naturvollkommenheit] e, do
tipo da que possuem as coisas que só são possíveis como fins da natureza
[Naturzwecke] e que se chamam, por essa razão, seres organizados, não se
pode pensar nem explicar mediante qualquer analogia com um qualquer
poder físico da natureza, que seja por nós conhecido – e, na medida em que
nós mesmos pertencemos à natureza num sentido amplo, ela não pode
mesmo alguma vez ser pensada e explicada mediante uma analogia onde a
67
conformidade com a arte humana fosse apropriada com precisão.
A «arte ou técnica da natureza» é um segredo nunca decifrado, e a Mãe-
-natureza continuará a desafiar os humanos para o seu mistério, tal como Ísis, a
deusa egípcia de Saïs, que Kant evoca numa nota ao § 49 da Crítica do Juízo,
desafiava os seus devotos com esta declaração inscrita no frontispício do seu
templo: «Eu sou tudo, o que é, o que foi e o que será, e nenhum mortal levantou
68
o meu véu». A analogia com a arte humana, que serviu de base para a constru-
67
Ak V, 374-375. Veja-se a retomação e o mais extenso desenvolvimento dado a este
tópico na parte final do capítulo 4, pp.171 ss. Como estes ensaios, embora aqui integra-
dos como gravitando em torno da ideia de Heurística Transcendental, podem sempre ser
lidos também como ensaios autónomos, não podemos evitar de todo a citação repetida,
num e noutro, de alguns textos nucleares kantianos da terceira Crítica, sem o que a
nossa exposição perderia o seu fio condutor.
68
Ak V, 316. Kant dá o episódio como exemplo de uma ideia estética, ou seja, daquele
género de representação da imaginação que dá muito que pensar, mas não se deixa
reduzir a uma expressão que corresponda a um conceito determinado: «Vielleicht ist nie

127
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

ção daquela ideia, claudica por fim e revela-se inadequada para dela falar, pois,
em última instância, também a própria arte humana terá de ser explicada por
essa misteriosa arte da natureza cujo íntimo segredo não nos é revelado.
Em Kant não há, por conseguinte, propriamente falando, nem uma simpli-
ficadora redução da natureza à arte, nem a redução por mimese da arte à natu-
reza, mas antes a recíproca explicação de uma pela outra, a recíproca tradução
de uma na outra, de que resulta a potenciação semântica de ambas. O que o filó-
sofo fez foi combinar os elementos de uma e de outra para propor uma nova
compreensão seja da arte humana seja da natureza, adunando a concepção pla-
tónica de um desígnio racional finalizado, pressuposto originariamente no artista
criador, com a concepção aristotélica de uma finalidade imanente e espontânea
da natureza, explicando à vez uma pela outra: a natureza pela arte (isto é, a
natureza como arte), e a arte pela natureza (isto é, a arte como natureza). Ao
fazer isso, mediante o conceito de «Técnica da Natureza», Kant consegue supe-
rar não só a mera concepção mecânica da natureza, como também ultrapassar a
vulgar concepção da arte humana ou técnica propriamente dita, entendida como
violência exercida sobre a natureza e como subjugação desta aos fins impostos
69
pela razão e vontade humanas. Que essa outra arte ou técnica não violentadora,
que procura interpretar e seguir o modo de produção espontaneamente con-
forme a fins (zweckmässig) da natureza, se revele sobremaneira nas «artes-
-livres» (freie Künste) ou nas «belas-artes» (schöne Künste), consideradas na sua
máxima expressão precisamente também como sendo manifestações da natureza

etwas Erhabneres gesagt, oder ein Gedanke erhabener ausgedrückt worden, als in jener
Aufsschrift über dem Tempel der Isis (der Mutter Natur): ‘Ich bin alles, was da ist, was
da war, und was da sein wird, und meinen Schleier hat kein Sterblicher aufgedeckt.’».
69
Kritik der reinen Vernunft B 654, Ak III, 417. Na base da prova fisico-teológica da
existência de Deus está a analogia da produção livre da natureza com a da arte humana.
Não deixa de ser significativo que nesse passo Kant entenda a arte humana como uma
violência ou imposição dos fins humanos aos fins da natureza, por conseguinte, como
contraposta à espontaneidade da natureza. Mas, no mesmo passo, deixa sugerida a ideia
de que há uma arte arquetípica da natureza que não só daria conta de todas as artes
como até da própria razão. Cito: «A partir da analogia entre algumas produções da natu-
reza e aquilo que a arte humana produz quando faz violência à natureza e a obriga a
curvar-se aos nossos fins em vez de proceder segundo os seus [wenn sie der Natur Gewalt
thut und sie nöthigt, nicht nach ihren Zwecken zu verfahren, sondern sich in die unsrigen zu
schmieden] (da semelhança dessas produções com casas, navios, relógios), a razão con-
clui que a natureza deve ter precisamente por princípio uma causalidade do mesmo
género, a saber, uma inteligência e uma vontade, fazendo derivar ainda de uma outra
arte, embora de uma arte sobre-humana, a possibilidade interna da natureza livremente
operante [wenn sie die innere Möglichkeit der freiwirkenden Natur noch von einer anderen,
obgleich übermenschlichen Kunst ableitet] (que primeiramente torna possível toda a arte e
talvez mesmo a razão [die alle Kunst und vielleicht selbst sogar die Vernunft möglich
macht]).»

128
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

através do artista ou do génio que as realiza, é algo que dá ensejo a que também
a natureza possa ser apreciada como artista, ou como possuindo uma peculiar
arte, para nós oculta, mas ainda assim poderosa e surpreendente, mediante a
qual opera espontaneamente e todavia como se fosse guiada por uma peculiar
finalidade imanente, assim produzindo a ilimitada variedade dos seres e das
formas que se oferecem à nossa contemplação, quer essa sua íntima arte lhe seja
mesmo própria ou seja devida a algum supremo artista, que, de um modo para
nós incompreensível, nela e através dela opera. Era por isso que o autor da Crí-
tica do Juízo podia dizer que a ideia de uma «Técnica da Natureza», se não
amplia em nada o conhecimento humano acerca dos objectos da natureza, alarga
sim consideravelmente o próprio conceito de natureza muito para além da
estreiteza da visão mecanicista do mesmo, convidando para mais profundas con-
siderações, que promovem até, e antes de tudo o mais, o estudo e a investigação
científica da natureza.

129
4
Formação e significado epistémico-filosófico
do pensamento biológico de Kant

Porque a História da Natureza não é minha ocupação,


mas apenas meu divertimento, e a minha principal
intenção que tenho com ela tem em vista rectificar e
ampliar também por meio dela o conhecimento da
humanidade.1

1. Da máquina ao organismo: Kant e a mudança


de paradigma no pensamento do século XVIII

Neste ensaio, proponho-me delinear, em traços muito largos, o horizonte espe-


culativo e o contexto dos problemas científico-filosóficos em que se formou e se
expôs aquilo a que chamo o «pensamento biológico» de Kant, identificando e
destacando alguns dos seus tópicos maiores. Dedicarei a primeira secção do ensaio
a explicitar aspectos de natureza conceptual e metodológica, que, segundo o meu
entendimento, ajudam a melhor apreciar a pertinência e o significado do tema.
Seguidamente, traço um breve panorama do estado dos debates no âmbito da
História Natural na época em que Kant entra em cena, como pensador e filósofo
que dedica também a sua atenção a esse campo de fenómenos. Por fim, obede-
cendo mais estritamente ao título do ensaio, destacarei, com imperativa brevi-
dade, alguns momentos e aspectos da elaboração do que se pode chamar o pen-
samento biológico de Kant.
O interesse de Kant pelos tópicos relacionados com aquilo a que hoje
chamamos Biologia não pode ser menosprezado, seja que se queira compreender
a história do pensamento biológico moderno, seja que se queira compreender o

1
«Weil die Naturgeschichte nicht mein Studium, sondern nur mein Spiel ist, und meine
vornehmste Absicht, die ich mit derselben habe darauf gerichtet ist, die Kenntnis der
Menschheit auch vermittelst ihrer zu berichtigen und zu erweitern.» I. Kant, Brief vom
1. April 1778 an J. G. J. Breitkopf, Kant’s Briefwechsel, Bd. I, Kant’s gesammelte Schriften,
Akademie Ausgabe, Berlin, 1902, Bd. X, 230; reimpr.: Walter de Gruyter, Berlin, 1969.
Agradeço ao Professor Ubirajara Rancan de Azevedo Marques as pertinentes observações
e sugestões que me permitiram aperfeiçoar a versão original deste ensaio.

131
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

2
próprio pensamento de Kant na sua peculiar organicidade. Tentarei mostrar que
da aplicação de Kant a esses tópicos resulta não só a iluminação desse campo de
fenómenos com as perspectivas fecundas da filosofia crítica e a abertura a uma
nova filosofia da natureza, como se decide também profundamente a forma inte-
rior do próprio filosofar kantiano, a transformação da concepção da filosofia e a
determinação da feição desta. Esse domínio de fenómenos começava a despertar
na época um interesse completamente novo e o debate de perspectivas teóricas a
seu respeito viria a ser extremamente animado ao longo de todo o século XVIII,
com novas descobertas, sobretudo no domínio da embriologia, que alterariam
profundamente uma ciência menor, de estatuto epistémico débil, chamada His-
tória Natural, a qual, partindo do interesse posto sobretudo na descrição, na
classificação taxionómica e na sistematização dos seres da natureza baseada na
comparação das respectivas características exteriores, passaria progressivamente
a atender preferencialmente ao fenómeno da geração dos seres orgânicos, vendo-
-se na necessidade de, para o explicar, ultrapassar os pressupostos do mecani-
cismo filosófico e científico, que se revelavam incapazes de dar razão da peculiar
estrutura e lógica que rege aqueles seres que a natureza tão profusamente ofe-
rece nos seus reinos vegetal e animal, seres que na época eram chamados «seres
organizados», «corpos organizados», ou também «organismos».
Kant contribuiu decisivamente para a constituição dessa nova ciência dos
seres vivos, não por ter aduzido elementos ou dados empíricos novos, mas por
ter investigado, com mais radicalidade e determinação do que qualquer outro
naturalista ou filósofo do seu século o fizeram, os pressupostos epistémicos dessa
nova ciência e apurado alguns dos seus conceitos fundamentais (ser organizado,
organismo, finalidade ou conformidade a fins da natureza – Zweckmässigkeit der
Natur, a própria ideia de natureza como um sistema de fins). Do ponto de vista
da história das ideias científicas e filosóficas, o desenvolvimento – quase se
poderia antes dizer, o nascimento – da Biologia constitui um acontecimento-
processo dos mais marcantes da segunda metade do século XVIII e de princípios
do século XIX, significativo não só pelas conquistas no plano observacional e
experimental, mas também no plano especulativo, pelo esclarecimento dos pres-
supostos metodológicos e do estatuto epistémico da disciplina, nomeadamente
pela postulação de um princípio de inteligibilidade teleológica para dar razão
desses seres orgânicos que só podem ser pensados como se fossem fins que a

2
Para uma apreciação global do pensamento biológico de Kant, veja-se : Peter Baumanns,
Das Problem der organischen Zweckmässigkeit, Bonn : Bouvier, 1965 ; R. Löw, Philosophie
des Lebendigen. Der Begriff des Organischen bei Kant, sein Grund und seine Aktualität,
Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1980; P. MacLaughlin, Kant’s Critique of Teleology in biologi-
cal Explanation. Antinomy and Teleology, Lewiston: Edwin Mellen Press, 1990; Philippe
Huneman, Métaphysique et Biologie. Kant et la constitution du concept d’organisme, Paris :
Éditions Kimé, 2008.

132
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

natureza mesma se propõe (Naturzwecke), sem dispensar, porém, o recurso a


explicações segundo processos mecânicos, explicações estas que, todavia, só por
si não podem dar razão nem da possibilidade nem da realidade de tais seres.
Desse acontecimento-processo, Kant não foi apenas uma testemunha atenta e
qualificada, mas foi também um dos mais destacados protagonistas.
No seu conjunto, tal acontecimento-processo, quando considerado do
ponto de vista da história da filosofia moderna, pode interpretar-se como tendo
significado a superação do mecanicismo ou explicação do conjunto de todos os
fenómenos naturais pelas causas eficientes, como paradigma absoluto de racio-
nalidade, e a passagem ao paradigma organicista e finalista, inaugurando assim
um novo regime de racionalidade. Trata-se, é certo, de um finalismo sui generis,
que Kant se esforça por conter no âmbito da subjectividade reflexionante e que
tenta explicar e legitimar, primeiro, num ensaio de 88 (cujo título precisamente
é Acerca do uso de princípios teleológicos em filosofia) e depois, já sob forma sis-
temática, na sua terceira Crítica. Mas essa restrição crítica logo vai ser ultrapas-
sada na geração de pensadores do Idealismo e Romantismo no sentido de uma
concepção realmente orgânica e teleológica da natureza.
Antes de prosseguir, impõe-se um esclarecimento terminológico e conceptual.
No título deste ensaio ocorre a expressão «pensamento biológico» de Kant. O que
entendo por tal? Nem «Biologia», nem «pensamento biológico», nem sequer o
3
adjectivo «biológico» eram termos de uso corrente no século XVIII. As reflexões e

3
O termo «Biologia» começa a ser usado esporadicamente na segunda metade do século.
A primeira ocorrência que se conhece, aparentemente isolada, regista-se numa obra do
wolffiano Michael Christoph Hanov, Philosophia naturalis sive Physica dogmatica: Geolo-
gia, Biologia, Physiologia generalis et Dendrologia, vol. III (Halle, 1766). Seguem-se, a
partir do fim desse século e do início do seguinte, várias ocorrências: em 1797, por Th.
G. A. Roose; em 1800, por C. F. Burdach (Propädeutik zum Studium der gesammten Heil-
kunst, como englobando a Morfologia, a Fisiologia e a Psicologia); em 1801, por J. B.
Lamarck; em 1802, por Gotthelf Reinhold Treviranus, como título da sua obra Biologie.
Oder Philosophie der lebenden Natur (Göttingen: Röwer, 6 vols., 1802-22) e já com o decla-
rado propósito de abarcar «as diferentes formas e fenómenos da vida, as condições e leis
da sua existência, bem como as causas que a determinam» (vol. I, p. 4); em 1805, por L.
Oken. Veja-se: G. Schmidt, Über die Herkunft der Ausdrücke Morphologie und Biologie,
Halle, 1935; G. Leps, «Begriff der Biologie -180 Jahr alt», in: Biologie in der Schule, 26,
1977, Heft 6, 1). Outros termos usados na época eram: «Zoologie generale», «zoono-
mie», «organology». «Zoologie» e «Zoonomie» são usados também por Kant no Opus
postumum (XXII, 398). Tenha-se, de resto, em conta o radicalismo, que não é apenas
exagero retórico, de Michel Foucault, na sua obra Les mots et les choses (Paris: Galli-
mard, 1966; trad. port.: As palavras e as coisas, Lisboa: Portugália, s.d., pp. 172, 216-
-218), quando escreve: «Pretende-se fazer a história da biologia do século XVIII, mas não
se tem em conta que a biologia não existe e que a configuração do saber que nos é fami-
liar há mais de cento e cinquenta anos não pode valer para um período anterior. E, além
disso, se a biologia era desconhecida, havia para tal uma razão muito simples: é que a
própria vida era inexistente. Existiam apenas seres vivos, que apareciam através do

133
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

doutrinas a respeito daquilo que hoje se designa por essas expressões eram, na
época, englobadas numa disciplina cientificamente frágil chamada «História Natu-
ral» (Histoire naturelle, Naturgeschichte) – ainda incipientemente experimental, sem
princípios reconhecidamente próprios, sucedâneo da Física, com aderências metafí-
sicas, teológicas, estéticas, cuja origem remota – não só quanto à designação, mas
também quanto ao objecto e até quanto à metodologia essencialmente descritiva e
tendencialmente enciclopédica – era a Naturalis Historia, de Plínio, o Velho; ou
então essas questões eram tratadas em obras com títulos do género «Economia da
Natureza», «Política da Natureza», ou «Sistema da Natureza» (títulos de obras de
Lineu), sendo o último o mais frequente. Tais designações têm claras ressonâncias
modernas e indicam que se pretende arrumar, classificar e administrar a múltipla e
vária natureza subordinando-a a princípios taxionómicos de uma racionalidade hie-
rárquica (segundo classes, ordens, variedades e tipos), da mesma forma que se
4
organiza e administra a sociedade humana.
Os “biólogos” do século XVIII eram naturalistas, como Lineu, Buffon,
Maupertuis, Albrecht von Haller, Caspar Friedrich Wolff, Charles Bonnet, Johann
Friedrich Blumenbach, entre muitos outros. Mas a natureza visada por estes
naturalistas era muito diferente daquela pela qual se haviam interessado e de
que se haviam ocupado os cosmólogos e físico-matemáticos seiscentistas, como
Galileu, Descartes, Christian Huyghens, ou mesmo Newton, reduzida, do ponto
de vista metafísico, à extensão e, do ponto de vista físico, às leis do movimento e
do choque dos elementos, embora houvesse transferências teóricas de um domí-
nio de fenómenos para outro – da matéria inorgânica para o mundo dos seres
5
vivos, da Física e da Cosmologia para a História Natural . Os filósofos da natu-

prisma do saber constituído pela história natural. […] É por isso, decerto, que a história
natural, na época clássica, não pode constituir-se como biologia. Até aos fins do século
XVIII, com efeito, a vida não existe. Apenas existem seres vivos. […]. O naturalista é o
homem do visível estruturado e da denominação característica. Não da vida.» Estas
palavras valerão talvez, se relativizadas, para a primeira metade do século, mas não ser-
vem já para caracterizar a segunda metade. Muito menos servem para Kant.
4
Sobre o estatuto epistémico da História Natural e sua transformação nos séculos XVIII
e XIX, veja-se: Wolf Lepenies, Das Ende der Naturgeschichte. Wandel kultureller Selbst-
verständlichkeiten in den Wissenschaften des 18. und 19. Jahrhunderts (Frankfurt a. M.:
Suhrkamp, 1978); e também K. E. Rothschuh, Physiologie. Der Wandel ihrer Konzepte,
Probleme und Methoden vom 16. bis 19. Jahrhundert (München: Karl Alber, 1968); F.
Duchesneau, La physiologie des Lumières. Empirisme, modèles et théories (La Haye : M.
Nijhoff, 1982).
5
Nomeadamente, a tentativa de Albrecht von Haller e de Maupertuis para explicar a
geração dos organismos mediante uma força atractiva, análoga daquela com que Newton
explicara a dinâmica dos corpos no seu sistema do mundo (Maupertuis, Vénus Physique,
1749, Oeuvres II, pp.88-89). Também Blumenbach (veja-se, por exemplo, no seu Hand-
buch der Naturgeschichte, ed. de 1791, pp.13-14; na 5ª ed. de 1797, p. 18) estabelece uma
analogia entre o seu Bildungstrieb, mediante o qual explica a formação dos seres orgâni-

134
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

reza seiscentistas haviam-se ocupado dos grandes corpos astrais, das relações
físicas das suas massas e dos seus movimentos, que tentaram reduzir com
sucesso a leis geométricas e mecânicas, ao passo que os naturalistas setecentistas
se ocupavam de seres tão ínfimos que só poderiam ser observados graças ao
extraordinário aperfeiçoamento técnico do microscópio entretanto levado a cabo
por Leeuwenhoek. Eles não apontavam as suas lunetas para as manchas do Sol
ou para as luas de Júpiter, como o fizera Galileu, mas para o minúsculo pólipo
(hidra de água doce) que revelava a surpreendente particularidade de se replicar
em tantos novos indivíduos completos quantas as secções a que fosse subme-
tido; ou para os ínfimos vermes dos charcos que, cortados ao meio, se regenera-
vam, ou para a pulga de água celibatária, que, sozinha, se reproduzia de forma
generosa (por partenogénese), ou para tentar seguir o desenvolvimento do
embrião de pinto num ovo de galinha. Estas eram agora, apesar de minúsculas,
as mais importantes entidades da natureza que constituíam o objecto de apaixo-
nados debates. O que despertava a especial curiosidade e o interesse destes natu-
ralistas era o fenómeno da geração, o modo de desenvolvimento ou crescimento
e de reprodução desses seres naturais orgânicos ou vivos (sejam eles do reino
vegetal ou animal), fenómenos que não eram satisfatoriamente explicados pelo
reducionismo materialista e mecanicista de matriz atomista ou cartesiana.
Quando, no título deste ensaio, uso a expressão «pensamento biológico»
não estou a pensar que se trata da «Biologia» de Kant, no sentido que se pudesse
dar actualmente a tal expressão. «Pensamento biológico» tem um âmbito muito
mais amplo do que o da ciência biológica ou da Biologia mesmo actualmente
têm. Cobre um vasto campo de reflexões sobre os pressupostos e o estatuto
epistemológico da abordagem do fenómeno da vida e dos seres orgânicos e
muitas conexões sistemáticas que na ciência biológica contemporânea já não
têm nenhuma (ou não têm especial) relevância, mas que no pensamento de Kant
são essenciais, embora, por certo, também problemáticas e que ainda hoje
podem dar muito que pensar. São exemplos disso: a relação suposta entre a
apreciação da natureza viva e a contemplação estética da natureza – entre
Teleologia e Estética – e a analogia reversível entre natureza e arte ou entre arte
e natureza, que leva o autor da terceira Crítica a juntá-las sob um mesmo princí-
pio transcendental e uma mesma faculdade do espírito; a conexão também e a
acoplagem entre a teleologia da natureza, revelada sobretudo nos organismos

cos, e a Atracção ou força gravitacional de Newton, mediante a qual o filósofo inglês


explicava a dinâmica que sustenta o cosmos físico: tal como o filósofo inglês não sabia
explicar a natureza dessa força, mas dizia ser-lhe razão bastante para invocá-la se ela
explicasse cabalmente os fenómenos ou efeitos físicos, assim o naturalista alemão dizia
desconhecer a natureza do seu Bildungstrieb, mas que, muito embora pudesse parecer
uma qualitas occulta, ele se justificava pelo que conseguia explicar e que, de outro modo,
seria mal explicado ou ficaria de todo sem explicação.

135
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

vivos, e a teleologia moral exigida pela razão prática do homem; enfim, a pres-
suposição da dependência do mundo orgânico e vivo relativamente a uma causa
imaterial e, por conseguinte, a abertura à ideia, ainda que problemática, de uma
causalidade supra-sensível, que nos é por certo desconhecida, mas que, ainda
assim, tem de ser pressuposta, qualquer que ela seja e qualquer que seja o modo
do seu operar: ou seja, a pressuposição de uma conexão entre a teleologia que
rege a natureza nos seus seres organizados e a teologia física, e entre estas e a
teleologia e teologia moral.
O meu título fala também de «formação», de «formação do pensamento
biológico de Kant». Entende-se geralmente por tal um processo que tem etapas
e, tratando-se de uma filosofia ou de um sistema filosófico, sugere-se com isso o
desenvolvimento de ideias seminais até atingirem a sua maturidade e se expo-
rem em toda a sua dimensão, eventualmente, até em forma de um sistema. Tra-
tar-se-ia, então, de saber como surge e se desenvolve o pensamento biológico de
Kant. O que significa o mesmo que perguntar pela biologia do pensamento kan-
tiano.
De facto, a respeito de nenhum outro tema kantiano cabe melhor do que
neste a aplicação do modo como o próprio Kant pensava e expunha o desenvol-
vimento de uma ideia filosófica ou até da ideia de toda uma filosofia. Ele fazia-o
com a linguagem da biologia do seu tempo, com a linguagem da sua própria
concepção do fenómeno biológico e orgânico. É mesmo uma das primeiras for-
mulações publicadas da concepção kantiana de organismo a que ocorre no
penúltimo capítulo da Crítica da Razão Pura. A fenomenologia e a peculiar
lógica do desenvolvimento das ideias filosóficas que aí é traçada parece ser tirada
da experiência própria do filósofo, do modo como nele se desenvolviam as suas
próprias ideias filosóficas. Com efeito, mais do que uma vez ele dirá que a expe-
riência do que é a vida ou do que é um ser orgânico a temos directamente em
nós próprios, na percepção do nosso próprio organismo, seja nas suas funções
vegetativas, animais ou espirituais. Assim, também um sistema filosófico tem
um processo de desenvolvimento semelhante ao de um organismo vivo, a partir
de dentro, e não por acrescentos do exterior – per intus susceptionem, não per
appositionem –, um desenvolvimento que a princípio parece caótico ou é rapsó-
dico e avulso, mas depois, a pouco e pouco, se vai organizando «tecnicamente»
por tópicos e, por fim, se revela em forma arquitectónica, a que preside uma
ideia, a qual, porém, só no fim se revela, mas, uma vez tornada consciente, é
reconhecida como tendo sido aquilo que realmente dirigiu todo o processo,
embora o tenha feito por assim dizer disfarçada sob a forma de esquemas ou
esboços sempre provisórios, que foram como que os seus germes ou embriões de
sistema em processo de desenvolvimento. Kant escreve isto numa notável página
onde, por via indirecta, revela o seu pensamento biológico à época da redacção e
publicação da primeira edição da Crítica da Razão Pura, ao mesmo tempo que

136
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

declara a auto-biografia do seu pensamento, o modo biológico e orgânico como


6
nele se desenvolviam as suas ideias, em qualquer domínio que fosse.
Assim, para acedermos ao pensamento biológico de Kant, poderíamos colo-
car-nos no seu ponto de chegada, nesse momento arquitectónico por excelência
da filosofia kantiana que é a Crítica do Juízo, e tentar compreender a articulação
das partes no todo do sistema de ideias aí exposto. Ou poderíamos tentar
reconstruir retrospectivamente, praticando uma espécie de «arqueologia da
razão», as ideias que confluem naquela obra e nela encontram a sua expressão
mais madura. Ou ainda, acompanhando o processo genético da sua lenta forma-
ção, poderíamos seguir os traços que o tema vai deixando nos escritos de Kant e
que, a princípio dispersos e quase aleatórios, se tornam a partir de certa altura
insistentes, especulativamente densos e cada vez mais irrecusáveis e a exigir a
conveniente orquestração. Qualquer das vias é pertinente e a combinação das
três é-o ainda mais. Mas o que me parece importante sublinhar é isto – que vale
de resto para a interpretação de todos os temas da filosofia kantiana e não ape-
nas deste –, a saber: que não se pode compreendê-los se não se atende à respec-
tiva génese aporética, à sua história de formação, ao processo da sua lenta elabo-
ração. Talvez para algum outro filósofo isso fosse dispensável. Mas não para
Kant. Neste, não se pode apreender o sistema sem a respectiva história, e não
falo da história descritiva de efemérides exteriores, mas da história interior do
organismo vivo que é o pensamento, aquilo que, usando a linguagem do próprio
Kant, poderia chamar-se não uma Naturbeschreibung des Denkens, mas a Natur-
geschichte des Denkens. Um sistema filosófico é um organismo, e o organismo
gera-se e desenvolve-se por dentro a partir de um esquema que é como que o
germe de uma ideia, e esta só se tornará claramente visível já no fim do seu
desenvolvimento, iluminando então também retrospectivamente todo o pro-
cesso.
A ocupação de Kant com as questões a que hoje chamamos biológicas não
era determinada propriamente por uma especial curiosidade empírica nesse
campo, enquanto tal, nem era sustentada por sistemáticas observações no ter-
reno ou por experimentos, como acontecia na maior parte dos autores acima
referidos. O filósofo seguia por certo com atenção os debates do tempo, pois
refere ou comenta amiúde nos seus escritos as ideias dos protagonistas da Histó-
ria Natural da época (Lineu, Buffon, Maupertuis, Bonnet, Blumenbach), mas ele
6
KrV, A 835/B 863, Ak III,540. Veja-se também a carta a Markus Herz, de 20 de Outu-
bro de 78, na qual expõe a auto-experiência da crescente organicidade interior do seu
pensamento, confessando que as suas investigações começaram de forma fragmentária e
a pouco e pouco se foram organizando, até que começou a ver a ideia de um todo e só
então percebeu como tudo fazia sentido, como convinham espontaneamente as partes
entre si e com o todo (Ak X, 242). Da mesma forma, a carta a Reinhold, de 28 e 31 de
Dezembro de 87, onde revela como «descobriu» a Teleologia (Ak X,514).

137
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

mesmo não era nem fisiologista, nem embriologista. Mesmo as suas ideias sobre
as raças humanas, assunto pelo qual especialmente se interessa desde meados da
década de 70, baseiam-se não na observação própria e directa, mas em informa-
ção colhida na literatura de viagens da época. Como adiante veremos, para o seu
crítico Georg Forster, isso constituía razão bastante para lançar o descrédito a
respeito do fundamento, da qualidade e da pertinência das suas conjecturas
sobre um tão controverso tema. Mas, como espero mostrar, essa crítica não
colhe completamente, pois o interesse de Kant por tais matérias não é de natu-
reza propriamente descritiva e nem sequer científica (segundo o cânone da His-
tória Natural da época), decorrendo antes de preocupações de natureza inequi-
vocamente filosófica, a saber:
1) De questões de congruência racional e sistemática (redutibilidade dos
princípios e leis particulares da natureza à maior simplificação e unidade possí-
veis); mas também a sistematicidade da natureza (e não apenas a dum sistema
formal das categorias do entendimento – como fundamento da Física, nem a
dum sistema nominal e escolar, à maneira de Lineu, por classificação hierár-
quica dos seres naturais segundo semelhanças exteriores, mas a dum sistema
real, por reconhecimento do parentesco de geração e derivação dos seres da
natureza a partir de troncos comuns) – eis uma questão presente ao longo de
todo o percurso especulativo de Kant, mas que ganha particular evidência no
Apêndice à Dialéctica Transcendental, nos ensaios sobre as raças humanas, nas
Introduções à Crítica do Juízo e nesta mesma obra e que é ainda recorrente no
Opus postumum.
2) Da possibilidade ou não de explicar a estrutura e geração dos seres natu-
rais orgânicos pelas leis gerais do mero mecanicismo universal que rege toda a
matéria cósmica; e, se tal não for possível, identificar e justificar o princípio
transcendental que pode dar razão desses seres que a natureza tão profusa e
variadamente oferece à nossa experiência; tal princípio, «descoberto» talvez nos
últimos meses de 87, mas na verdade já postulado e praticado desde muito
antes, a que Kant chamará o «princípio teleológico», é o pressuposto transcen-
dental da Zweckmässigkeit der Natur, atribuído à faculdade de julgar reflexio-
nante (reflektierende Urteilskraft), de que se ocupa a Segunda Parte da terceira
Crítica e que subsumirá também a experiência estética, tenha esta por objecto a
bela natureza ou a bela-arte. E, tendo de admitir duas legalidades – uma mecâ-
nica, para a natureza em geral, e outra finalística, para a natureza dos seres
orgânicos, como então compatibilizar, conciliar, ou hierarquizar a explicação
mecanicista e a explicação teleológica num superior sistema de princípios?
3) De questões de ordem epistémico-transcendental a respeito do estatuto
da explicação finalista e da pertinência do uso de princípios teleológicos na
apreciação da natureza. Como é que pode ser aplicado à natureza esse princípio
de uma finalidade – estranho ao sistema das categorias do entendimento para a

138
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

natureza em geral e que, na verdade, provém da razão prática-moral (que esta-


belece fins incondicionalmente e independentemente da natureza) ou provém
também da razão técnica humana (por analogia com a lógica ou procedimento
supostos na arte humana), a qual é capaz de, em função de um fim (ou de uma
ideia posta como fundamento) por ela mesma determinada, dispor numa uni-
dade as partes que compõem um todo congruente com esse fim)? Como é que, a
partir da finalidade prática e da «técnica da faculdade de julgar» (Technik der
Urteilskraft) que o homem percepciona em si próprio, no plano moral ou no
plano artístico, se obtém a ideia de uma «Técnica da Natureza» (Technik der
Natur) ou de uma «Zweckmässigkeit der Natur» a que se atribui, para servir pelo
menos para a reflexão do sujeito a seu respeito, a capacidade de produção dos
seres organizados?
4) De questões de natureza antropológica: como explicar a unidade do género
humano e a sua diversidade de raças? Qual a destinação natural e moral do género
humano? Que finalidade tem a natureza em relação à espécie humana? – Questões
que Kant aborda sobretudo nos seus pequenos ensaios de antropologia física, de
filosofia da história e de filosofia política e que têm a sua inscrição sistemático-
transcendental na segunda parte da terceira Crítica (§83). Aquilo que, tomando as
palavras de uma carta do filósofo, começou por ser um mero jogo (Spiel), acabou
por tornar-se um Studium, uma ocupação cada vez mais séria e envolvente, orien-
7
tada pelo intuito de corrigir e ampliar o conhecimento da humanidade.
5) De questões de ordem metafísico-teológica: saber se a natureza se basta a
si mesma para produzir todos os fenómenos que nela ocorrem e todos os seres
que nela se exibem – nomeadamente, os que se referem aos seres orgânicos – ou
se carece, mormente para estes últimos, da intervenção especial de um supremo
artista não só poderoso mas também inteligente, que nela age, por qualquer
modo que seja, ou que nela pôs originariamente as disposições para que produ-
zisse ela mesma, de acordo com as suas leis, como se agisse segundo uma causa-
lidade artística segundo fins, mas ao mesmo tempo como se o fizesse de uma
forma espontânea e contingente.
6) Por fim, de uma questão de ordem moral, introduzida pelo interesse
prático da razão, que não só quer coerência no mundo moral como também
quer a realização efectiva das leis ou imperativos da liberdade: como realizar a
passagem (Übergang) da teleologia moral à teleologia física, e vice-versa; isto é:
como inscrever a ordem finalizada da natureza na ordem finalizada dos seres
morais, dando assim também um supremo sentido final de ordem moral à pró-
pria natureza. E, por esta via, a teleologia da natureza encontra também ela a sua
inscrição – o seu «fim final» (Endzweck) – na teleologia moral.

7
Veja-se a carta de Kant a Breitkopf, de 1 de Abril de 1778, citada em epígrafe a este
ensaio.

139
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

Tal é o vasto e complexo contexto especulativo de questões filosóficas em


que ganham pertinência as reflexões e as conjecturas de Kant a propósito dos
seres orgânicos, do fenómeno da vida e da natureza como um sistema de produ-
ções que só podem ser apreciados como se lhes presidisse uma causalidade
segundo fins. Por conseguinte, quando se trata do tema «Kant e a Biologia», não
se deve esperar do filósofo o que ele não pretendia nem podia dar. Muito menos
há que exigir dele respostas científicas que só seriam sancionadas pelo desen-
volvimento posterior da ciência biológica, nem medir as suas ideias nesse domí-
nio com as de outros (tipo Kant precursor – ou não – de Darwin), ou inversa-
mente, desvalorizar as suas ideias porque não condizem com as da biologia
posterior ou actual. Não há sequer que pedir-lhe ciência biológica propriamente
dita, como se ele fosse um naturalista de campo, como o foram contemporâneos
seus, cujos trabalhos conhecia, comentava e até aproveitava para as suas refle-
8
xões, pois não é a partir desse terreno que ele se propõe enunciar as suas teses.
Isso, porém, de modo nenhum desqualifica os seus contributos teóricos no
domínio da História Natural, nomeadamente o esclarecimento de conceitos, de
métodos e de pressupostos epistémicos, bem como as suas conjecturas acerca
das raças humanas e respectiva classificação e caracterização. Esses contributos,
ideias ou simples conjecturas devem ser lidos e avaliados no contexto dos deba-
tes da época, como contributos decisivos que fizeram passar a História Natural
9
setecentista à Biologia oitocentista.
A notável persistência, no desenvolvimento do pensamento kantiano, dos
temas que fazem parte da constelação de tópicos do pensamento naturalista e
biológico indica só por si que estamos em presença de um problema maior, de
um problema que nunca será considerado por Kant como definitivamente resol-
vido, e que, por isso mesmo, lhe exige sempre reiterada reflexão, desde os escritos
de meados da década de 50 (Allgemeine Naturgeschichte 1755) até ao Opus pos-
tumum, ganhando especial densidade a partir de meados da década de 70, com a
meditação antropológica e as conjecturas acerca das raças humanas, e tendo na
terceira Crítica o seu tratamento sistemático. E mesmo que, objectivamente
falando, uma explicação racional definitiva para esse conjunto de problemas não

8
Tudo isso já foi convenientemente explicado por Erich Adickes, no Prefácio a Kant als
Naturforscher (Walter de Gruyter, Berlin, 1924, Bd. I, p.VI).
9
Só posso estar de pleno acordo com Timothy Lenoir, quando ele sublinha «the role of
Immanuel Kant in helping to shape the theoretical foundations of the life sciences be-
tween 1790 and the late 1840s» e mostra documentadamente «that the new physiology
which emerged during this period was indebted to Kant for many of its central methodo-
logical insights.» Timothy Lenoir, «Kant, Blumenbach, and Vital Materialism in German
Biology», Isis, 71 (1980), 77. Veja-se também, do mesmo Timothy Lenoir, The Strategy
of Life. Teleology and Mechanics in Nineteenth-Century German Biology, University of
Chicago Press, Chicago and London (1982), 1989, sobretudo o cap. I.

140
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

10
seja por fim encontrada , ainda assim o fenómeno da vida e a peculiar constitui-
ção dos seres organizados e a própria natureza enquanto considerada como um
sistema de seres organizados que só podem ser pensados por nós como sendo
seus fins, tudo isso – na sua singularidade, na sua irredutibilidade ao simples
inorgânico ou à simples matéria e até na sua lógica peculiar, na medida em que
de algum modo ela por nós é pensável – tudo isso, digo, fica extraordinaria-
mente iluminado graças ao esforço especulativo do filósofo de Königsberg.

2. A luta pela Vida na História Natural


setecentista: Preformacionistas e Epigenesistas

Na época em que Kant inicia a sua actividade de pensador e de professor – entre


o final dos anos 40 e meados dos anos 50 – o terreno da História Natural era
disputado por duas teorias – a dos preformacionistas e a dos epigenesistas (nem
sempre, porém, assim designadas) – que tinham em comum a recusa dos pres-
supostos do materialismo mecanicista para a explicação da formação e da
estrutura dos organismos vivos.
A “biologia” mecanicista deixa-se representar sumariamente em dois tópi-
cos, que encontram a sua expressão no sistema cartesiano, a saber: a teoria dos
animais-máquinas e a teoria chamada da generatio aequivoca. A primeira refere-
se à estrutura dos organismos e decorre da tese metafísica, formulada por Des-
cartes, nomeadamente no § 203 da IV Parte dos Principia Philosophiae, segundo
a qual não há nenhuma diferença de natureza entre um ser natural e um ser
artificial, entre a física e a mecânica, entre os artefactos produzidos por um arte-
são na sua oficina e os seres que a natureza produz por si mesma, entre a pro-
11
dução de um relógio e a geração de um novo animal ou de uma nova árvore. A
segunda tese pretende explicar a geração dos seres vivos a partir da matéria, pela
mera junção fortuita de ingredientes químicos e pela acção de forças físicas, por
uma espécie de processo de fermentação das partículas seminais dos dois sexos,
por acção do calor e segundo as leis gerais do movimento dos corpos, o que era
interpretado pelos naturalistas do século XVII e XVIII como uma reedição do
12
cego atomismo e materialismo de Epicuro.

10
Träume, Ak II, 327. Kant reconhece amiúde «que a questão é para ele mesmo muito obs-
cura e verosimilmente assim permanecerá» (mir selbst sehr dunkel ist und wahrscheinlicher
Weise auch wohl so bleiben wird), e considera o tópico «imperscrutável» (unerforschlich).
11
Descartes, Principia Philosophiae, IV, §203, Œuvres, ed. Ch. Adam-P. Tannery, reimpr.:
Vrin, Paris, 1996, vol. VIII, p.326.
12
Descartes, L’Homme, ed. cit., vol. XI, pp. 120, 128, 202; La Description du Corps
Humain, Ibidem, pp.252 ss; 284-286. Sobre a ‘biologia’ cartesiana, veja-se: J. Roger, Les
sciences de la vie dans la pensée française du XVIIIe siècle. La génération des animaux de

141
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

O decisivo desafio lançado a esta biologia mecanicista pode resumir-se


nesta intuitiva crítica que se lê numa das Lettres Galantes de Fontenelle (1683):
«Dizeis que os animais são máquinas da mesma forma que os relógios o são?
Colocai um cão-máquina e uma cadela-máquina ao pé um da outra e eventual-
mente o resultado poderá ser uma terceira pequena máquina; ao passo que dois
relógios podem ser colocados ao lado um do outro toda a sua vida sem que pro-
13
duzam um terceiro relógio.»
As teses cartesianas seriam largamente contestadas, já ao longo da segunda
metade do século XVII e nos princípios do século XVIII, nomeadamente por
14 15 16
filósofos como Malebranche, Ralph Cudworth e Leibniz. Mas a decisiva
refutação do mecanicismo em sede de explicação dos fenómenos biológicos vai
dar-se ao longo de todo o século XVIII e, mais do que um trabalho levado a cabo
por filósofos – (Kant será quase uma excepção!) –, é um trabalho desenvolvido
pelos praticantes da História Natural, que alinharão em torno de duas teorias

Descartes à l’Encyclopédie, Armand Colin, Paris, 1963 (2ª edição completada de 1971);
Annie Bitbol-Hespériès, Le principe de vie chez Descartes, Vrin, Paris, 1990.
13
Bernard Le Bouvier de Fontenelle, Lettres diverses de M. Le Chevalier d’Herr (1683),
reeditado sob o título de Lettres Galantes, in: Œuvres, vol. I, Paris, 1766, cit. apud Shirley
A. Roe, Matter, Life and Generation. 18th Century Embryology and the Haller-Wolff Debate,
Cambridge University Press, Cambridge (1981), reimpr. 2002, p.1.
14
Nicholas Malebranche terá sido o primeiro a formular aquela que ficaria conhecida
como a teoria do emboîtement (encaixamento). Tentando superar as dificuldades do car-
tesianismo quanto à explicação do fenómeno biológico, e baseando-se em observações e
experiências recentes, feitas com o auxílio do microscópio entretanto aperfeiçoado, ele
propõe que todos os organismos terão sido talvez formados por Deus no acto da pri-
meira criação e encaixados uns nos outros, de tal maneira que, no tempo aprazado, os
minúsculos embriões pré-formados se podem expandir e desenvolver, por meios mecâni-
cos, até se transformarem num organismo completamente desenvolvido. Assim escreve:
«Nous devons donc penser […] que tous les corps des hommes & des animaux, qui naî-
tront jusqu’à la consommation des siécles, ont peut-être été produits dés la création du
monde ; je veux dire, que les femelles des premiers animaux ont peut-être été créées, avec
tous ceux de même espece qu’ils ont engendrez, & qui devoient s’engendrer dans la suite
des tems.» De la recherche de la vérité (1674), I, vi. § 1 (Vrin, Paris, 1962), p.83.
15
Introduzindo a noção de «plastic nature». Veja-se: Ralph Cudworth, The True Intellec-
tual System of the Universe, Thoemmes Press, Bristol, 1995 (reprint da ed. de 1845, com
uma nova Introdução por G. A. J. Rogers), vol. I, pp.218 ss.
16
O problema da vida e dos seres organizados é frequentemente abordado por Leibniz, o
qual, embora demarcando-se do cartesianismo, tenta conciliar o mecanismo com o princípio
de vida, que atribui a Deus, garantido por uma preformação contínua e por um originário
arranjo pré-estabelecido. Um dos textos mais explícitos é Consideration sur les Principes de
Vie, et sur les Natures Plastiques, in: Leibniz, Die philosophischen Schriften (ed. Gerhardt,
Olms, Hildesheim, 1978), vol. 6, 539-555. Veja-se: Jacques Roger, «Leibniz et les sciences de
la vie», Studia Leibnitiana Supplementa, 2 (1968), 209-219 ; Justin E. H. Smith, Divine Machi-
nes. Leibniz and the Sciences of Life, Princeton University Press, Princeton, 2011.

142
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

que ficariam conhecidas como a teoria da preformação e a teoria da epigénese.


Se a primeira metade do século XVIII é tendencialmente dominada pelos pre-
formacionistas, a segunda metade vai sê-lo pelos defensores da epigénese, sendo
possível distinguir-se, nesta última, três gerações: à primeira, pertenceriam Buf-
17 18 19
fon e Maupertuis ; à segunda, Caspar Friedrich Wolff ; e à terceira, desde
meados da década de 70 e pelas décadas seguintes, Johann Friedrich Blumen-
bach, o próprio Kant, e os discípulos de um e de outro: Christoph Girtanner,
Carl Friedrich Kielmeyer, Gotthelf Reinhold Treviranus, Alexander von Hum-
20
boldt, Heinrich Friedrich Link.
Segundo o preformacionismo, todos os seres orgânicos teriam sido criados
directamente por Deus, seja que isso se dê por ocasião da geração de cada indi-
víduo (por isso, a teoria é também chamada «sistema do ocasionalismo»), seja que
tal tenha acontecido num acto único originário de criação sob a forma de germes
que contêm já em si completos todos os futuros organismos, que estariam assim
como que encaixados uns nos outros (por isso, também chamada «teoria do
encaixamento» – Einschachtelung), e apenas esperariam pela respectiva eclosão na
sucessão do tempo. Assim, todos os seres humanos, que alguma vez haveriam de
vir à existência, encontravam-se já pré-formados, como «animálculos», ou no
ovário de uma proto-Eva ou no líquido espermático de um proto-Adão (segundo
os defensores da teoria dessem preponderância à fêmea ou ao macho no processo
de geração), como numa espécie de «magasins inépuisables», segundo a expressão
21
de Maupertuis. No fundo, esta teoria nega qualquer nova geração no curso do
tempo e retira aos seres que sucessivamente vêm à existência qualquer papel
activo próprio na geração dos seus descendentes. Tudo é atribuído directamente a
Deus. Há apenas o desenvolvimento de seres pré-formados completos, cujas partes
já estariam todas presentes nos germes e apenas esperam o momento para crescer
ou aumentar de tamanho. Por isso, a teoria foi também chamada «sistema do
desenvolvimento» («développement», por Maupertuis) ou «sistema da evolução»
22
(por Blumenbach e Kant), ou ainda «sistema da involução» (por Kant).

17
George Louis Leclerc, Comte de Buffon, Histoire naturelle, générale et particulière, avec
la Description du Cabinet du Roy, vol. II, Imprimerie Royale, Paris, 1749, Tome Second,
chap. II: «De la Reproduction en général».
18
P.-L. Moreau de Maupertuis, Vénus Physique (1745) e Système de la Nature (1751),
Œuvres, Tome II (reimpr. da ed. de Lyon 1768: Olms, Hildesheim, 1965).
19
Caspar Friedrich Wolff, Theoria generationis, Hendel, Halle, 1759 (reimpr.: Olms, Hil-
desheim, 1966).
20
Veja-se: Timothy Lenoir, «Kant, Blumenbach, and Vital Materialism in German Biology»,
Isis, 71 (1980), 77-108 (especialmente, pp.96-108).
21
Veja-se: P.L.M. de Maupertuis, Systême de la Nature, X, in: Œuvres,Tome II, p.144.
22
Kant chega a considerar também a teoria da epigénese como uma teoria da preformação;
mas, enquanto a teoria propriamente preformacionista (ou da «evolução», ou «pré-estabi-

143
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

23
Por seu turno, os defensores da teoria da epigénese sustentavam que os
primeiros organismos haviam sido por certo criados por Deus, mas que este, ao
criá-los, os dotou da capacidade não de desenvolverem outros seres neles conti-
dos em ponto minúsculo, mas de verdadeiramente virem a gerar por si mesmos
seres iguais a si próprios, segundo leis naturais, sem necessidade, portanto, de
envolver Deus sempre de novo em cada geração. Aqui pode falar-se de verdadei-
ras novas gerações, as quais vão incorporando os resultados das gerações ante-
riores. Os epigenesistas tendem a atribuir a responsabilidade na geração tanto à
fêmea como ao macho e concedem um importante papel ao meio físico (nomea-
damente, ao clima) em que os seres são gerados. No fundo, o sistema da prefor-
mação (apesar de também ser designado na época como teoria ou sistema da
evolução ou do desenvolvimento) é na verdade tendencialmente conservacionista,
pois pressupõe que os caracteres essenciais de uma espécie são constantes,
havendo apenas variedade relativa nos indivíduos, mas nunca um desvio tal que
represente uma alteração dos traços específicos essenciais da espécie. A teoria da
epigénese, por sua vez, é realmente evolucionista (no sentido que se dá actual-
mente – depois de Darwin – a esta palavra), pois consente a variação e a diferen-
ciação, e não apenas a que está contida nos germes, mas também a adveniente
das circunstâncias e condições em que o organismo se desenvolve e às quais se
adapta, desenvolvendo-se, segundo os casos, uma ou outra das disposições ori-
ginárias, e admite que esse adquirido novo é incorporado nas gerações futuras.
As formulações destas teorias eram frequentemente vagas, tanto de um lado
como de outro, não só nas designações e explicitações semânticas como também
nas razões apresentadas para as sustentar. Por exemplo, na determinação da
força natural responsável pela geração, crescimento e reprodução dos organis-
mos todos os epigenesistas estavam de acordo em que tinha de haver alguma
força especial diferente das simples forças mecânicas. A questão, porém, residia
em saber qual era essa força especial. Buffon invocava uma espécie de «molde
24
interior» e uma «força penetrante» que activaria e organizaria os elementos.
Maupertuis começou por invocar uma espécie de força atractiva semelhante à

lista», ou «ocasionalista») sustenta a ideia de uma preformação individual (segundo a qual


cada ser individual seria originariamente ou ocasionalmente criado completo por Deus), a
teoria da epigénese propõe antes uma preformação genérica ou virtual, e não individual.
Assim, o resultado daquela seria não um novo ser mas um educto; na segunda, porém, o
resultado de cada geração é realmente um novo ser – um produto.
23
É sempre arriscado dizer quando o termo «epigénese» foi usado pela primeira vez.
Mas é certo que o foi já por William Harvey, numa obra de 1651 (Exercitationes de gene-
ratione animalium), quando, ao comentar Aristóteles, expõe a concepção aristotélica da
geração animal, dizendo que esta acontece «mais por epigénese do que por metamor-
fose» (potius per epigenesin quam per metamorphosin).
24
Veja-se: Histoire naturelle, générale et particulière, ed. cit., Tome Second, chap. II, p.34 ss.

144
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

atracção da cosmologia newtoniana, mas posteriormente propôs a existência de


uma espécie de inteligência (desejo, aversão, memória) inscrita na matéria, que
25
orientaria a especial organização dos seres vivos. Por sua vez, Caspar Friedrich
Wolff era um convicto e declarado anti-preformacionista, mas, para explicar a
formação dos corpos orgânicos, propôs a noção de uma «vis essentialis», inspi-
rando-se, segundo parece, na metafísica de Leibniz e de Christian Wolff, filó-
26
sofos que haviam defendido o preformacionismo. Tratava-se, em suma, de
tentativas pouco convincentes, que ofereciam facilmente o flanco não só às críti-
cas dos preformacionistas, como também às daqueles que até pendiam para o
lado da solução epigenética, mas não deixavam de reconhecer as suas dificulda-
des. A decisiva vantagem para o lado dos epigenesistas viria a dar-se quando
entrou em cena um naturalista, professor na Universidade de Göttingen, cha-
mado Johann Friedrich Blumenbach, que propôs a existência, nos seres orgâni-
cos, de uma força especial a que chamou «impulso de formação» – Bildungstrieb
ou nisus formativus –, proposta que viria a merecer explícita aprovação do pró-
prio Kant.
À instabilidade das designações e das formulações juntava-se por vezes a
hesitação dos protagonistas quanto à opção pelas teorias em debate. O respei-
tado naturalista Albrecht von Haller começou por ser preformacionista, foi
depois epigenesista convicto e acabou regressando ao preformacionismo, por-
que, segundo declarava, a tal o obrigavam as evidências entretanto colhidas das
suas experiências no domínio da embriologia, observando o desenvolvimento
dos embriões de pintos em ovos de galinha. Ao passo que outros, como Caspar
Friedrich Wolff ou Blumenbach, tiravam das suas experiências com o pólipo de
água doce (que, sendo seccionado, se regenerava a partir de cada secção como
um novo organismo completo), uma indesmentível prova a favor da epigénese.
A verdade é que os dados experimentais disponíveis na época, além de limita-
dos, não eram suficientemente inequívocos para determinar a decisão por uma
ou outra teoria de forma definitiva. E havia, é claro, as implicações filosófico-
-metafísicas e até teológicas envolvidas, que pesavam na decisão por uma ou por
outra das soluções: nomeadamente, a necessidade de salvaguardar a dependên-
cia ou não (ou a dependência maior ou menor) da natureza relativamente a um
supremo Artista, Arquitecto ou Criador, que fosse o responsável pelo fenómeno
da geração e da vida. Enquanto a teoria da preformação parecia atribuir demais a
Deus, pois fazia de cada acto de geração uma nova criação divina, a teoria da
epigénese atribuía a Deus simultaneamente o máximo e o mínimo, na medida

25
Veja-se: Vénus Physique e Systême de la Nature, Œuvres, II, respectivamente, pp.88-89 e
146-147.
26
C. F.Wolff, Theoria Generationis, I, §§ 1-4; II, § 168. O fundo leibniziano de Caspar
Wolff é referido nomeadamente por Shirley A. Roe, ob. cit., pp. 147, 181-182, n.10.

145
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

em que defendia que o Criador dotou originariamente a natureza da sua própria


força criadora, dando a determinados dos seus seres a capacidade de gerarem os
seus semelhantes ao longo de ilimitadas gerações, sem necessidade de recorrer a
Deus para cada uma dessas novas gerações. E era assim que enquanto os epige-
nesistas acusavam os preformacionistas de pressuporem contínuos milagres ou
intervenções divinas sem necessidade, os preformacionistas viam na teoria da
epigénese um risco de recaída no materialismo, pela atribuição à matéria do
poder de gerar seres organizados e criaturas vivas, o que dispensaria Deus desse
27
processo.
É no contexto destes debates e destas hesitações que se dá a formação do
pensamento biológico de Kant. Na indeterminação das teorias e na fragilidade
das provas ficava aberto um vasto campo para o surgimento de novas conjectu-
ras a respeito daquele domínio de fenómenos que a natureza mais parece ter
coberto com o véu do mistério, como é o da origem da vida e o dos seres orgâni-
cos. E se havia naturalistas que tinham consciência dos limites das suas explica-
28
ções, em larga medida sustentadas em alguma analogia verosímil, também é
verdade que, por vezes, quanto menor era a evidência das observações e das
razões, maior era a paixão com que se defendiam as próprias conjecturas ou
teorias.

3. Momentos e aspectos da ocupação


de Kant com o problema biológico

Caracterizados assim, em breves e largos traços, o estado e a tendência dos


debates no campo da História Natural setecentista, tentarei corresponder agora
mais estritamente ao tema da minha tarefa, abordando as etapas da formação do
pensamento biológico de Kant, em três momentos, considerando: 1º) os primei-
ros vestígios do problema nos escritos da década de 50 e 60; 2º) os ensaios da
década de 70 e 80 sobre as raças humanas; 3º) a assumpção dos temas biológicos
no contexto sistemático e arquitectónico da filosofia crítica, seja como lingua-
27
Tenha-se presente a réplica desenvolvida por Albrecht von Haller, nas Reflexions sur le
système de la generation de M. de Buffon (1751), a propósito das teses expostas por Buf-
fon, na sua Histoire Naturelle (1749). O naturalista suíço considera as objecções que faz
ao naturalista francês como sendo igualmente dirigidas contra si próprio, que antes
defendera a teoria da epigénese. Veja-se: Shirley A. Roe, ob. cit., pp.26 ss.
28
É disso exemplo Maupertuis, que do seu próprio «sistema» de explicação da formação
dos corpos organizados, por «algo análogo a um princípio de inteligência», dizia: «En
tout cas, nous ne prétendons pas assurément le donner ni comme prouvé ni comme à
l’abri de toutes objections. Dans une matiere aussi ténébreuse, nous serons contens si ce
que nous proposons est sujet à moins de difficultés, ou moins éloigné de la vraisem-
blance, que ce qu’ont proposé les autres.» Systême de la Nature, Œuvres, II, pp.146-147.

146
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

gem, nomeadamente na Crítica da Razão Pura, seja como assunto explícito de


apreciação e de doutrina, na Crítica do Juízo e no Opus postumum.

3.1. 1755-1766: a especificidade do orgânico


e a irredutibilidade da vida à simples matéria

O primeiro assomo de sensibilidade para a questão dos seres vivos em


escritos de Kant ocorre na obra juvenil de 1755, História Universal da Natureza e
Teoria do Céu (Allgemeine Naturgeschichte und Theorie des Himmels). O jovem
filósofo assume aí a ousada pretensão de traçar a história do cosmos – uma Cos-
mogonia (assim anunciara a obra em ensaio publicado no ano anterior) – a partir
da matéria caótica e pelas simples leis mecânicas da natureza tal como haviam
sido estabelecidas por Newton, ou seja pelas leis de atracção e repulsão. Mas a
ousadia contém-se apenas no plano da matéria inorgânica, para a explicação da
formação dos grandes corpos cósmicos. Num passo do Prefácio da obra lê-se:
Não devemos admirar-nos se eu ouso propor que todos os corpos celestes,
a causa dos seus movimentos, numa palavra, a origem de toda a constitui-
ção presente do universo, poderão ser entrevistos muito antes que se possa
explicar clara e completamente, a partir de causas mecânicas, a produção
29
de um só rebento de erva ou de uma simples lagarta.
Ao contrário do que à primeira vista pudesse parecer, esta passagem não
afasta liminarmente a possibilidade de vir a ser explicável mecanicamente a
geração dos seres vivos do reino vegetal ou animal. É verdade que ela também
não diz que tal possa vir a acontecer. Apenas parece querer dizer que, se isso
puder acontecer, será por certo muito mais difícil do que é fazê-lo a respeito da
formação dos grandes corpos do sistema cósmico. De facto, ainda que sucessi-
vamente Kant vá cada vez mais afirmando e confirmando a impossibilidade de
reduzir a explicação dos corpos orgânicos ou seres organizados da natureza às
simples leis gerais do mecanicismo, de quando em quando – mesmo na Crítica
do Juízo e no Opus postumum – regressa como questão o projecto de tentar
reconstituir retrospectivamente uma fisiogonia, expondo a origem e derivação
de toda a diversidade dos seres organizados da natureza a partir do caos originá-
rio por processos de diferenciação progressiva e de sínteses cada vez mais com-
plexas, desde que a possibilidade para tal e o princípio de finalidade que tal
supõe tenham sido também originariamente inscritos na própria natureza. O
que tanto pode ser lido como uma questão perturbadora, que indicia um pensa-
dor que no fundo estaria propenso para aceitar o reducionismo mecanicista, não
fora a consciência entretanto adquirida dos limites da razão, ou então ser consi-

29
Allgemeine Naturgeschichte, Ak I, 230.

147
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

derado apenas como um desafio heurístico – para uma “aventura da razão” –


que incita os investigadores da natureza a procurar uma cada vez mais determi-
nada unidade desta mesma natureza, seja nos princípios que a regem, seja por
derivação de toda a diversidade e multiplicidade de seres em que perdularia-
mente ela esbanja a sua ilimitada fecundidade a partir de uma única matriz ori-
ginária, o que, todavia, só pode ser confirmado por documentos fornecidos pela
experiência, se os houver ou vier a haver – (seriam os documentos daquela
«arqueologia da natureza» de que falará o § 80 da Crítica do Juízo) –, por mais
que isso corresponda ao superior interesse económico da razão. Kant, como o
dirá num ensaio de 1788, só se crê autorizado a aventurar-se na Metafísica (ou
seja a invocar uma explicação teleológica) quando a razão, que nas suas investi-
gações deve sempre começar por seguir os princípios da Física, ao aplicar estes
princípios na apreciação de certos fenómenos da natureza, como é o caso dos
seres organizados, como que encalha e não encontra saída.
A questão da especificidade dos seres da natureza viva – plantas e animais –
surge na obra de 1763 – O único fundamento possível para uma demonstração da
existência de Deus (Der einzige mögliche Beweisgrund zu einer Demonstration des
Daseins Gottes) – no contexto de uma reflexão a respeito da unidade (ou eco-
nomia) dos princípios explicativos da natureza, que se inscreve porém ainda na
linha da problemática de 55: saber se é possível reduzir todos os fenómenos da
natureza a uma única ordem necessária da mesma natureza ou se, para além
dessa, há uma ordem contingente da natureza, que exige para sua explicação um
outro princípio. Ora, este princípio de economia uniprincipial da razão claudica
perante um determinado campo de fenómenos da natureza, o que obriga a razão
a abandoná-lo no que concerne a esses fenómenos e a procurar um outro prin-
cípio de explicação. Diz Kant:
A natureza é rica de uma outra espécie de produtos em relação aos quais
toda a filosofia [Weltweisheit] que medita [nachsinnt] sobre o modo como
eles poderão ter surgido, se vê obrigada a abandonar a via precedente. Uma
grande arte e um acordo contingente, realizados por uma verdadeira esco-
lha livre, em vista de certos fins, manifestam-se aí com evidência e dão ao
mesmo tempo o fundamento de uma particular lei da natureza [Grund eines
besondern Naturgesetzes], que pertence à ordem artística da natureza [künst-
liche Naturordnung]. A estrutura das plantas e dos animais apresenta uma
disposição tal que as leis da natureza, universais e necessárias, não conse-
guem explicar. Mas como seria absurdo considerar a primeira geração de
uma planta ou de um animal como um efeito secundário produzido meca-
nicamente em virtude de leis gerais da natureza, fica em suspenso uma
dupla questão: será que cada indivíduo de uma mesma espécie é formado
directamente por Deus? E teria ele, por conseguinte, uma origem sobrena-

148
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

tural, e apenas a reprodução [Fortpflanzung], isto é, a passagem sucessiva


de tempo a tempo para o desenvolvimento [Auswickelung] seria confiada a
uma lei natural, ou é necessário dizer que alguns indivíduos dos reinos
vegetal e animal, sendo por certo de origem imediatamente divina, foram
providos, por uma lei da natureza ordinária [nach einem ordentlichen Natur-
gesetze], de um poder, para nós incompreensível [uns nicht begreiflichen
Vermögen], de gerar [erzeugen] os seus semelhantes e não apenas de os
30
desenvolver [auszuwickeln].
Kant refere o problema e alude às duas hipóteses que pretendem resolvê-lo
– que correspondem à da preformação e à da epigénese (não nomeadas, porém,
como tais) –, mas aponta as dificuldades de ambas, declarando não saber decidir
para que lado tais dificuldades são maiores, limitando-se a «avaliar o peso dos
argumentos de uma e outra na medida em que se trata de argumentos metafísi-
cos». E prossegue, dizendo que
Saber como é que, pelo jogo de uma constituição mecânica interna, uma
árvore é capaz de formar e modelar a seiva que a alimenta [Nahrungssaft],
de tal modo que surge no borboto das folhas ou na sua semente algo que
contém em ponto pequeno uma árvore da mesma espécie, ou que, pelo
menos, é capaz de o chegar a ser – isso não é de modo nenhum compreen-
sível segundo os nossos conhecimentos. Os moldes interiores do Sr. de
Buffon e os elementos de matéria orgânica, que, segundo a opinião do Sr.
de Maupertuis, se combinam segundo as suas reminiscências de acordo
com as leis do desejo e da aversão, são tão incompreensíveis como aquilo
que se pretende explicar, ou são completamente arbitrários. Mas será que a
recusa em admitir explicações deste género constitui uma razão para recu-
sarmos a outra tese, igualmente arbitrária, segundo a qual todos os indiví-
duos têm uma origem sobrenatural, – e isso unicamente porque de
31
nenhuma maneira compreendemos o modo da sua geração natural?

30
Beweisgrund, Ak II, 114.
31
Ibidem, 114-115. Kant tem em vista o cap. II do Tomo II da Histoire naturelle de Buffon
(na tradução alemã: Allgemeine Historie der Natur, 1752) e o cap. XIV do Systême de la
Nature de Maupertuis. Não nos parece, porém, que tenha em vista também a Theoria
generationis de Caspar Wolff, como sugere Adickes (ob. cit., II, p.428) e como o refere
reiteradamente F. Duchesneau, no seu ensaio «Épigenèse de la raison pure et analogies
biologiques» (in: Kant actuel. Hommage à Pierre Laberge, Bellarmin, Montréal / Vrin,
Paris, 2000, 233-256), chegando a dizer que «c’est d’abord à la Theoria generationis de
C.F.Wolff qu’il faut référer la prise de position initiale de Kant en faveur de l’épigenèse»
(p.255) e ainda «Il parait vraisemblable que jusqu’à ce que Kant ait découvert la théorie
du Bildungstrieb de ce dernier [Blumenbach], sans doute dans la période allant de la
première à la seconde édition de la Critique de la raison pure, une conception comme

149
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

Bem pesadas as coisas, o filósofo conclui que, tanto numa explicação como
na outra, em nada se diminui a parte do sobrenatural no processo, estando a
diferença entre as duas teorias não na admissão ou não de uma operação directa
de Deus, mas unicamente no momento em que se faz ocorrer essa intervenção.
Não estando em causa dispensar ou não Deus desse processo, o que importa,
pois, é considerar que
Ou, em cada acasalamento, se atribui directamente a produção do fruto a
uma acção divina, ou se concede a um primeiro arranjo [Anordnung] divino
das plantas e dos animais uma aptidão [Tauglichkeit] não apenas para
desenvolver indivíduos semelhantes a eles mesmos segundo uma lei natu-
32
ral, mas também para verdadeiramente os gerar.
No final, Kant revela a sua posição filosófica de princípio – à qual se man-
terá fiel ao longo da sua vida – que é a de atribuir à natureza o mais possível,
limitando tanto quanto possível a intervenção do sobrenatural e sobretudo o
recurso ao milagre, pois a invocação destes estratagemas destroem a confiança
em qualquer ordem da natureza e, por conseguinte, inviabilizam qualquer ciên-
cia da mesma. O seu objectivo é, segundo diz, «mostrar que se deve conceder às
coisas naturais um poder de produzir os seus efeitos em virtude de leis univer-
33
sais, muito mais do que comummente se faz.»
No quadro das teorias em confronto na época, as soluções a que Kant alude
correspondem, como se disse, à da preformação e à da epigénese. Os dois auto-
res expressamente mencionados – Buffon e Maupertuis – contam-se entre os
defensores da segunda. E Kant, embora parecendo manifestar propensão para
aceitar essa teoria, não se identifica todavia com o modo como os dois natura-
listas entendem resolver o problema dos seres orgânicos, sobretudo o que se
refere à geração dos seres vivos. Mas da citada passagem podemos concluir dois
pontos importantes: 1º) que o filósofo considera que o mero mecanicismo não é
suficiente para dar razão dos seres vivos, de que decorre a sua convicção da irre-
dutibilidade do orgânico ao meramente mecânico, convicção a que se manterá
fiel até ao Opus postumum; 2º) que, afastada a hipótese de uma auto-suficiência
das leis mecânicas gerais e necessárias da natureza para explicar os fenómenos

celle de Wolff a pu servir de caution du rejet kantien du préformationnisme.» (p. 241) e


«les recherches de Wolff … fournissent un arrière-plan incontournable de la position
kantienne» (p.234). Na verdade, porém, como também o refere Duchesneau, Kant nunca
cita a obra de Caspar Wolff, nem alguma vez menciona o seu autor, embora não seja
inverosímil que a conhecesse, pelo menos indirectamente, através da recensão de Haller
no Göttingische Anzeigen von gelehrten Sachen, de 1760, pp.1226-1231. Shirley A. Roe,
que estudou o debate entre Haller e Wolff, não dá nenhuma indicação a esse respeito.
32
Ibidem, 115.
33
Ibidem.

150
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

na natureza viva, há que recorrer a uma intervenção especial para o efeito, que
só pode ser divina; mas esta não tem de significar uma intervenção repetida por
ocasião de cada nova geração, como defendiam os preformacionistas, podendo
ser muito melhor entendida se a considerarmos como uma disposição especial –
diferente das leis do movimento geral da matéria – posta originariamente na
natureza dos animais e das plantas e mediante a qual eles próprios se reprodu-
zem.
Numa obra de 1766, Sonhos de um visionário esclarecidos pelos sonhos de um
metafísico (Träume eines Geistersehers), no contexto de uma reflexão sobre a
alma (Seele) humana, Kant constata a «misteriosa comunidade» que ela tem
com o corpo – designando este como uma «máquina animal» (thierische Mas-
chine) ou uma «máquina artística» (künstliche Maschine) e afirmando a sua
independência em relação à natureza material, negando que a matéria tenha
capacidade por si só para, a partir do caos dos elementos, gerar uma tal
«máquina animal». Ao mesmo tempo que declara a sua propensão para admitir
a existência de naturezas imateriais no mundo e para colocar a alma nessa classe
de seres, confessa a obscuridade que envolve a compreensão do «ser sensível nos
animais» (das empfindende Wesen in den Thieren). E, na continuação, enuncia um
tópico que não mais deixará de o preocupar: a de saber o que é a vida (Leben).
Cito:
O que no mundo contém um princípio de vida parece ser de natureza ima-
terial. Pois toda a vida se funda num poder íntimo de se determinar
segundo o arbítrio [alles Leben beruht auf dem inneren Vermögen, sich selbst
nach Willkür zu bestimmen]. Em contrapartida, a característica essencial da
matéria consiste no preenchimento do espaço mediante uma força necessá-
ria que é limitada por uma reacção externa; pelo que tudo aquilo que é
material é exteriormente dependente [abhängend] e coagido [gezwungen],
mas aquelas naturezas que são elas mesmas activas [selbst thätig] e agem
pelas suas forças internas têm de possuir o fundamento da vida, em suma
aqueles naturezas que têm o poder de se determinar e modificar pelo pró-
prio arbítrio, dificilmente podem ser de natureza material [kurz diejenige,
deren eigene Willkür sich von selber zu bestimmen und zu verändern vermögen
34
ist, schwerlich materieller Natur sein können].
O texto é importante a vários títulos: a vida surge nele como um tópico
explícito de reflexão e é associada a um princípio imaterial; afirma-se, por con-
seguinte, a irredutibilidade da vida à simples matéria; associa-se a vida à espon-
taneidade e actividade do espírito, que é capaz de se auto-determinar por um
princípio interno. Que Kant se mantém fiel a esta demarcação entre a matéria e a

34
Träume, Ak II, 327.

151
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

vida, e à respectiva caracterização de uma e de outra, prova-o uma bem conhe-


cida passagem de uma sua obra de 1787, Primeiros fundamentos da ciência da
natureza, onde se lê uma das mais explícitas definições que o filósofo deu da
vida no conjunto dos seus escritos e que confirma e explicita todas as indicações
da obra anteriormente citada:
Vida chama-se o poder de uma substância para se determinar a agir a partir
de um princípio, <o poder> de uma substância finita para se determinar
para a mudança, e de uma substância material para se determinar ao movi-
mento ou ao repouso como mudança do seu estado. Ora, nós não conhe-
cemos nenhum outro princípio de uma substância para mudar o seu
estado, a não ser o desejar e, em geral, nenhuma outra actividade a não ser
o pensar com o que dele depende, o sentimento do prazer ou desprazer e o
desejo ou querer. Mas estes fundamentos de determinação e acções não
pertencem às representações dos sentidos externos e, por conseguinte, tam-
bém não às determinações da matéria enquanto matéria. Por conseguinte,
35
toda a matéria enquanto tal é desprovida de vida.
Estas convicções representam sem dúvida aquisições essenciais, que se
manterão nas décadas seguintes e se farão ouvir ainda repetidamente nas refle-
xões do Opus postumum. Mas, deve dizer-se que, até meados da década de 70, as
incursões de Kant nos temas da História Natural limitam-se a observações ou
reflexões ocasionais, as quais, porém, mostram já com suficiente evidência o
quanto o filósofo está atento à peculiaridade e complexidade dos tópicos em
debate a respeito dos seres orgânicos, às teorias em confronto e às fraquezas e
dificuldades que elas revelam para resolver uma questão que ele suspeita já que
não seja resolúvel de todo. Os problemas e tópicos identificados continuarão a
solicitar cada vez mais a sua meditação e há mesmo algumas teses que se vão
confirmando de forma irreversível (por exemplo, a da irredutibilidade da vida à
matéria). Declara-se, por outro lado, a atitude metodológica de não recusar à
natureza tudo o que lhe possa ser atribuído evitando o recurso a regimes de
excepção, como seria a fácil invocação de uma intervenção divina sempre que se
depare com qualquer dificuldade. Mas, ao mesmo tempo, é patente a sua dispo-
nibilidade para aceitar que certos fenómenos da natureza – como são os que se
referem aos seres orgânicos – requerem um tipo de racionalidade ou de causali-
dade diferente da que supõe o mero mecanicismo, a qual deve ser diligente-
mente investigada e, se possível, compatibilizada com a explicação mecanicista,
que se considera válida para a natureza em geral.

35
Metaph. Anfangsgr.der Naturwissenschaft, Ak IV, 544. Sobre o conceito de vida em Kant,
veja-se também o ensaio de 1796, «Verkündigung des nahen Abschlusses eines Tractats
zum ewigen Frieden in der Philosophie», Ak Ak VIII, 413ss.

152
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

3.2. 1775-1788: a questão das raças humanas,


ou a meditação biológica em clave antropológica

É em meados da década de 70 que Kant vai enfrentar directamente – e não


já apenas ocasionalmente ou de passagem – as questões da História Natural. Fá-
-lo a propósito de um tópico específico: o problema da diversidade das raças
humanas e do próprio conceito de raça humana. Era, por certo, um tema de
época, que fazia parte da agenda da História Natural setecentista, e do qual se
ocuparam muitos outros naturalistas seus contemporâneos (Buffon, Maupertuis,
Blumenbach, Sömmerring, Meiners…). A ocupação com essa questão, que apa-
rentemente é apenas um assunto que interessa à antropologia física, vai ser deci-
siva para a constituição do pensamento biológico de Kant na sua fase madura e
vai transformar também o estatuto epistémico da História Natural. Os ensaios
sobre as diferentes raças humanas (1775, publicado em 1777) e sobre o conceito
de raça (1785) são de extrema importância para o nosso tema, pois é neles que
Kant ensaia as suas ideias biológicas em nome próprio e já com significativa
originalidade (embora largamente apoiado em Buffon) e é a propósito deles que
chega a usar e a enunciar, primeiro, e a justificar, mais tarde, os princípios epis-
témicos adequados à compreensão do domínio dos seres orgânicos, propondo a
noção de uma Naturgeschichte como distinta da mera Naturbeschreibung e, por
fim, a ideia de uma teleologia da natureza – que mais tarde acabará por incorpo-
rar no seu sistema de filosofia transcendental subordinando-a ao princípio de
teleoformidade ou conformidade a fins – a Zweckmässigkeit der Natur, uma nova
forma de entender o finalismo e as causas finais. É também nesses ensaios que
Kant expõe já uma concepção que é claramente epigenética, mesmo que o termo
epigénese não apareça neles, embora, como adiante se verá, nas Reflexões da
década de 70 e na própria Crítica da Razão Pura, mesmo na primeira edição,
Kant use comparações biológicas que, segundo creio, podem ser interpretadas
no sentido da teoria epigenética e, na segunda edição da obra, estabeleça explí-
citas correlações e analogias entre as soluções em conflito para as questões
36
metafísicas e as soluções em disputa na época para as questões biológicas. Deve
ainda dizer-se que as reflexões de Kant sobre a diversidade das raças e sobre o
próprio conceito de raça, além de constituírem um momento decisivo para a
formação do seu pensamento biológico, dão a este pensamento o que considero
ser a sua marca característica, que é a preocupação antropológica. O primeiro
ensaio faz parte do Anúncio das suas Lições de Geografia Física do ano 75. E nas
Lições de Antropologia do Outono desse mesmo ano já a linguagem biológica é
aplicada à ideia de um plano da natureza a respeito da espécie humana e do
37
desenvolvimento da respectiva destinação moral. Por certo, como bem o adver-
36
Ver abaixo, nota 46.
37
Vorlesungen über Anthropologie (Friedländer), Ak XXV. 1, 694-695.

153
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

tiu Adickes, à preocupação antropológica associa-se nesses ensaios a preocupa-


ção metodológico-sistemática de: 1º) clarificar o conceito de raça, de modo a que
ele possa ser usado com pertinência científica; 2º) subordinar a diversidade empí-
rica das formas do humano ao conceito de raça entretanto apurado; 3º) propor
uma explicação genética da diversidade de raças humanas com base no pressu-
posto de um originário tronco (Stamm) humano comum, sendo a diversidade
das raças devida ao desenvolvimento de germes ou disposições originárias na
relação com o meio ambiente (em especial com o clima), factores que seriam os
responsáveis pela diferença na cor da pele, característica que Kant considera
como o critério fundamental para estabelecer a sua divisão quadripartida das
38
raças humanas.
Nos seus ensaios sobre as raças, Kant expõe uma teoria que só pode ser
interpretada como sendo já claramente epigenética, mesmo se o termo não é por
ele usado nesses ensaios. Deve assinalar-se, por outro lado, como muito signifi-
cativa a inflexão biológica do vocabulário filosófico de Kant, na medida em que
os termos do domínio da História Natural, para cuja fixação também Kant con-
tribuiu, na sua abordagem do problema das raças humanas e para formular a sua
compreensão dos seres orgânicos (Rasse, Stamm, Embryon, Keim, Naturanlage,
ursprüngliche Anlage, Zweckmässigkeit, zweckmässig…), passam a ser usados
igualmente e cada vez com mais frequência e naturalidade em todos os domínios
da sua filosofia, mesmo na filosofia teorética. Da mesma forma, deve assinalar-se
que, para a compreensão da peculiar estrutura, génese e desenvolvimento dos
seres orgânicos, Kant invoca agora sem ambiguidade a ideia de uma natureza
que é regida ou pensada teleologicamente, ideia que é dita de diversos modos e
39
também por meio de metáforas.
No ensaio de 1788, Acerca do uso de princípios teleológicos em Filosofia, em
resposta ao naturalista-viajante Georg Forster, que criticara as suas ideias sobre
as raças humanas e sobre a classificação das raças, bem como o próprio conceito
de raça e os pressupostos epistémicos e metodológicos que lhes subjaziam,
nomeadamente a pertinência da distinção entre Naturgeschichte e Naturbeschrei-
bung, Kant tornará claro que a invocação de princípios teleológicos não visa
resolver com a Metafísica as limitações do conhecimento teorético da natureza,
mas sim preencher de algum modo o vazio de racionalidade deixado pela teoria
mecânica da natureza em relação a um conjunto de fenómenos cuja peculiari-
dade e irredutibilidade ao mero mecanicismo a experiência revela como irrecu-
sável.

38
Adickes, ob. cit., II, pp.406 ss.
39
Fala, por exemplo, da «bewunderswürdige Fürsorge der Natur» (Ak II, 434), da «Zweckmäs-
sigkeit der Organisation der Rassen», «von der Natur sehr weislich getroffene Anstalt»
(Ak VIII, 102 ss), etc.

154
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

Desse ensaio, que tem natural relação com os dois anteriores, falarei mais
adiante. De momento, gostaria de fazer um pequeno apontamento sobre a rela-
ção entre Kant e Blumenbach. Tal relação constitui porventura um dos casos
mais felizes que a história das ideias regista de espontâneo e fecundo encontro
entre as perspectivas de um filósofo, que interroga as condições a priori e a legi-
timidade transcendental dos princípios e conceitos envolvidos num especial
domínio de conhecimentos humanos, e o naturalista e investigador de campo,
que procura uma explicação satisfatória para os fenómenos que se lhe deparam,
socorrendo-se não só da observação mas também de experimentos criteriosa-
mente orientados.

3.2.1. Kant e Blumenbach


É na parte final do § 81 da Crítica do Juízo que Kant sanciona sem reservas
– do ponto de vista da sua própria concepção epigenética da geração, desenvol-
vimento e constituição dos seres orgânicos – o alcance dos trabalhos de Johann
Friedrich Blumenbach. Escreve Kant:
No que respeita a esta teoria da epigénese, ninguém fez mais do que o
Senhor Conselheiro áulico Blumenbach, tanto no que diz respeito a apor-
tar-lhe provas como para fundar os princípios autênticos da sua aplicação,
em parte através da limitação de um uso destes que era frequentemente
completamente desprovido de medida. Em todas as explicações físicas des-
tas formações é da matéria organizada que ele parte. Pois, que a matéria
bruta se tenha formado a si própria originariamente segundo leis mecâni-
cas, que da natureza daquilo que é inanimado tenha podido surgir a vida, e
que a partir da matéria esta tenha podido por si mesma adaptar-se à forma
de uma finalidade que se conserva a si mesma, isso declara-o ele contrário a
toda a razão; mas, sob este princípio para nós insondável de uma organiza-
ção originária, ele deixa ao mecanismo da natureza uma parte indeterminá-
vel e todavia ao mesmo tempo impossível de não reconhecer – aquilo a res-
peito do qual o poder da matéria num corpo organizado é por ele chamado
impulso de formação [Bildungstrieb] (diferentemente da força formadora
[Bildungskraft] simplesmente mecânica que está presente nela de um modo
geral, a qual se mantém de algum modo sob a direcção superior da primeira
40
e recebe dela as suas instruções).
Não era, porém, a primeira vez que Kant publicamente mostrava o seu
41
apreço pelas ideias de Blumenbach. Fizera-o já numa nota ao citado ensaio de 88,
40
Kritik der Urteilskraft, Ak V, 424.
41
Sobre as relações entre Kant e Blumenbach, acentuando a influência do primeiro sobre o
segundo, vejam-se os estudos de Timothy Lenoir, «Kant, Blumenbach, and Vital Mate-

155
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

onde remete para o Handbuch der Naturgeschichte (na ed. de 1779, Prefácio § 7) e
para a noção de Bildungstrieb proposta pelo célebre naturalista, nestes termos:
Este homem perspicaz atribui também o impulso de formação [Bildungs-
trieb], através do qual ele trouxe tanta luz à ciência da geração, não à maté-
42
ria inorgânica, mas tão só aos membros dos seres organizados.
Kant, por certo, não tira de Blumenbach a teoria da epigénese para explicar
43
a peculiar natureza dos corpos orgânicos. Quando o sábio de Göttingen come-

rialism in German Biology», Isis, 71 (1980), pp.77-108; Idem, The Strategy of Life. Tele-
ology and Mechanics in Nineteenth-Century German Biology, Chicago University Press, Chi-
cago/London (1982), reimpr. 1989. Cito, desta última obra, uma passagem que resume o
significado do feliz encontro entre os dois pensadores: «A major contribution toward cal-
ling attention to the basic idea underlying the theory of the Bildungstrieb and the possibi-
lity it held for a general theory of animal organization was made by Immanuel Kant. Kant
was quick to seize upon the Bildungstrieb as exemplifying exactly what he intended by a
regulative principle in theory construction. Elsewhere I have attempted to document in
detail the relationship between these two men and the extent to which Blumenbach incor-
porated Kant’s work into the mature formulation of his ideas. The importance of Kant’s
work did not consist in proposing hypotheses or a system of organic nature for which
Blumenbach attempted to provide empirical support. It cannot be argued that Blumenbach
fashioned himself a follower of Kant. Rather the work of the two men was mutually sup-
portive of the same program, the program that I am calling teleomechanism. Although not
deficiently in original ideas about how to improve biology, [...], Kant’s main contribution
to Blumenbach’s work was in making explicit the quite extraordinary assumptions behind
the model of the Bildungstrieb. [...] Kant explained clearly and forcefully why this was not
an ad hoc stratagem; how biological explanations could be both teleological and mechani-
cal without being occult.» (ib., pp.23-24).
42
Über den Gebrauch teleologischer Principien in der Philosophie, Ak VIII, 180.
43
Blumenbach começa a publicar as suas ideias na segunda metade da década de 70. A
sua primeira obra, De generis humani varietate nativa (1776), viria a ter reedições em 81
e 95. Nela defende o monogenismo e uma teoria das raças (ou variedades) que tem ine-
quívocas semelhanças com a de Kant, mas também algumas diferenças. Nas sucessivas
reedições dessa obra, cita já o ensaio de Kant de 75 (publicado em 77). Muito popular
foi o seu Handbuch der Naturgeschichte (1779), que conheceria inúmeras reedições e
reformulações pelas décadas seguintes, nas quais cita os ensaios e obras de Kant e acolhe
ou comenta as posições kantianas sobre as questões de História Natural. A sua obra Über
den Bildungstrieb teve a primeira edição no mesmo ano em que foi publicada a Crítica da
Razão Pura (1781) e teria igualmente sucessivas reedições aperfeiçoadas (1789,1791).
Na 2ª ed. de 1789 de Über den Bildungstrieb, refere e comenta as teorias acerca da geração,
reduzindo-as a duas: a da evolução e a da epigénese. Segundo diz, a teoria da evolução (=
preformação) recusa toda a geração no mundo e crê que em todos os homens e animais
e plantas que já viveram ou ainda viverão, os respectivos germes foram criados na pri-
meira criação de tal modo que agora uma geração após a outra apenas precisa de os
desenvolver. Em contrapartida, segundo a teoria da epigénese, a matéria geradora dos
pais, a princípio rude, uma vez atingida a maturidade da sua destinação com o tempo e
nas exigíveis circunstâncias, formará continuamente novos seres. E isso deve-se a um

156
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

çou a publicar as suas obras – a partir de meados da década de 70 – Kant tinha o


seu pensamento crítico em fase de elaboração avançada e já vimos que, desde os
escritos da década de 60, ele se referia às conjecturas de Buffon e Maupertuis,
embora com reservas, como sendo, ainda assim, preferíveis às dos preformacio-
nistas. No ensaio sobre as diferentes raças humanas de 1775, inspira-se ainda
largamente em Buffon, e é já uma explicação inequivocamente epigenética a que
ele aí desenvolve, embora o termo não apareça. E pelas Lições de Antropologia
do Outono desse mesmo ano, sabemos que a terminologia característica da
explicação epigenética era já aplicada pelo Professor Kant ao desenvolvimento
das disposições naturais da espécie humana também no domínio da filosofia da
história e até da moral. Por outro lado, verosimilmente desde o início dos anos
70, Kant usa, em várias Reflexões sobre a filosofia teorética, a linguagem das
teorias biológicas para caracterizar as teorias metafísicas a respeito dos proble-
44
mas que serão tema da sua Crítica da Razão. Curiosamente, contra o que seria
de esperar, tais analogias, recorrentes nas Reflexões, não vão ocorrer na primeira
edição da Crítica, mas sim na 2ª edição, no § 27 da Analítica Transcendental,
sob o título «Dedução Transcendental dos conceitos puros do entendimento»,
no qual Kant se propõe mostrar que não há conhecimento efectivo sem que se
dê nisso uma comparticipação de conceitos a priori, produzidos pelo entendi-
mento, e de intuições, provenientes da experiência. E aí, sim, estabelece uma
analogia entre as teorias explicativas do conhecimento e as teorias explicativas
do fenómeno biológico, a saber: o empirismo – que faz surgir os conceitos da
experiência – seria uma espécie de doutrina da generatio aequivoca dos concei-
tos; enquanto o racionalismo inatista, que presume a existência das ideias como
implantadas desde sempre no entendimento e sem qualquer trabalho deste, seria
uma espécie de «sistema da preformação da razão pura»; ao passo que a dou-
trina crítica, que afirma a espontaneidade activa do entendimento para produzir
as suas categorias mediante as quais pensa os dados sensíveis que lhe são forne-
45
cidos pela experiência, é comparado a um «sistema da epigénese da razão pura».

impulso especial – a que chama Bildungstrieb (nisus formativus) – que é distinto das
restantes forças vitais dos corpos orgânicos (contractibilidade, irritabilidade, sensibili-
dade), bem como das forças físicas gerais dos corpos. É esse impulso que assegura a
geração, a alimentação, o crescimento e a reprodução dos seres orgânicos.
44
Refl. 4275 (Ak XVII,492, datada de 70-71); Refl. 4446 (de datação incerta - 69-72?),
4851 e 4859 (76-78), 5637 (80-83?), entre outras.
45
Veja-se Eugenio Moya, «Apriorismo, epigénesis y evolución en el trascendentalismo kan-
tiano», Revista de Filosofía 30 (2005), 61-88, p.66: «No hay duda de que las investigaciones y
reflexiones <de Kant> sobre lo biológico […] aportaron elementos decisivos para configurar
la perspectiva trascendental. […] Kant siempre pensó que los problemas epistémicos podían
ser vistos como una extensión de los problemas que se plantean los embriólogos al pregun-
tarse por la morfogénesis y funcionamiento de los organismos vivos.»

157
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

Este não é, porém, o único passo da primeira Crítica onde Kant revela as suas
teses em matéria biológica. Fá-lo, por certo indirectamente, já na primeira edição,
no penúltimo capítulo da obra, ao expor, com o paradigma do ser orgânico, o seu
entendimento do sistema da razão, a ideia de filosofia e o modo do seu desenvol-
vimento e até a ideia de história da filosofia. Já acima me referi a esse notável
texto. É claramente uma concepção epigenética da razão – do sistema da razão, da
ciência da razão ou da filosofia – o que aí encontramos, num subtil entrelaça-
mento da metafórica arquitectónica com a metafórica orgânica. Cito.
Ninguém tenta estabelecer uma ciência sem ter uma ideia por fundamento.
Simplesmente, na elaboração dessa ciência, o esquema e mesmo a defini-
ção, que inicialmente se dá dessa ciência, raramente correspondem à sua
ideia, pois esta reside na razão, como um gérmen, no qual todas as partes
estão ainda muito escondidas, muito envolvidas e dificilmente reconhecí-
veis à observação microscópica. […] Os sistemas parecem ter sido criados,
como os vermes, por uma generatio aequivoca, a partir da simples confluên-
cia de conceitos reunidos, ao princípio truncados e, com o tempo, comple-
tados; contudo possuíam todos o seu esquema, como um gérmen primitivo,
na razão que simplesmente se desenvolve; por isso, não só cada um deles
está em si articulado segundo uma ideia, mas além disso encontram-se
todos harmoniosamente unidos entre si, como membros de um todo, num
sistema de conhecimento humano e permitem uma arquitectónica de todo
o saber humano.
Esse todo, diz-se noutro parágrafo do mesmo capítulo,
é articulado (articulatio) e não amontoado (coacervatio); pode por certo
crescer internamente (per intus susceptionem), mas não exteriormente (per
appositionem), como um corpo animal, cujo crescimento não acrescenta
nenhum membro, mas, sem alterar a proporção, torna cada um deles mais
46
forte e mais apropriado para os seus fins.

46
KrV, B 861-863, Ak III, 539-540. Esta passagem poderia ler-se como exprimindo uma
concepção preformacionista do desenvolvimento dos organismos, no caso, do organismo
da razão. E outro tanto se diria dum passo da KrV A 65/66 (Ak IV, 57; mantido em B 90-
-91), onde se lê: «Nós por conseguinte seguiremos os puros conceitos até aos seus pri-
meiros germes e disposições no entendimento humano, no qual eles permanecem prepa-
rados até que por fim por ocasião da experiência são desenvolvidos.» (Wir werden also
die reine Begriffe bis zur ihren ersten Keimen und Anlagen im menschliche Verstande verfol-
gen, in denen sie vorbereitet liegen, bis sie endlich bei Gelegenheit der Erfahrung entwic-
kelt…. werden). Ou ainda de um passo de Prolegómenos (Ak IV, 368), onde se diz da
Metafísica que «o seu germe tem de estar antes completamente pré-formado na Crítica»
(ihr Keim in der Kritik vorher präformirt sein muss). Penso, todavia, que estas passagens
devem antes ser lidas já como expressão de uma concepção de desenvolvimento epige-
nético da razão, naquele mesmo sentido em que falará Kant, no citado passo da 2ª edição

158
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

De facto, ao longo da primeira metade da década de 80, encontramos


47
amiúde a aplicação da metafórica biológica e do organismo: nos Prolegómenos ,
48
na Ideia para uma História da Humanidade numa intenção cosmopolita , na pró-
49
pria Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Ou seja: na filosofia teorética,
para descrever a natureza peculiar da razão; na filosofia da história, para descre-
ver o desenvolvimento do «plano secreto» da natureza em relação à espécie
humana visando a perfeição da sua destinação; na filosofia moral, para fazer ver
como a própria condição prática da razão se inscreve no plano da natureza em
relação à realização da plena destinação do homem.
Um assim tão espontâneo e tão vasto uso de uma teoria biológica bem
determinada (a da epigénese), sob o modo da analogia e da metáfora, revela a
naturalidade e o à-vontade com que Kant se movimentava nesse domínio de
problemas. Pois não se trata de comparações avulsas extraídas do domínio dos
seres vivos, mas de uma comparação estruturada segundo um paradigma de
racionalidade peculiar, à imagem do qual a razão se interpreta a si mesma e ao
50
mesmo tempo ilumina os diferentes campos em que se aplica.

da Crítica, a propósito da origem dos conceitos puros do entendimento. Deve, de resto,


ter-se em conta que Kant entende a epigénese como uma espécie de «preformacionismo
genérico», pelo que não há que ler naquelas formulações uma hesitação do seu autor
entre o preformacionismo e o epigenesismo.
47
Prolegomena, § 57, Ak IV, 353: «E isto é também o fim e a utilidade desta disposição
natural da nossa razão, a qual fez nascer a metafísica como sua filha predilecta, cuja
geração tal como toda outra no mundo não deve ser atribuída ao acaso fortuito, mas a
um originário germe que está sabiamente organizado para grandes fins.» (Und das ist
auch der Zweck und Nutzen dieser Naturanlage unserer Vernunft <die transzendentale
Ideen> welche Metaphysik als ihr Lieblingskind ausgeboren hat, dessen Erzeugung so wie
jede andere in der Welt nicht dem ungefähren Zufalle, sondern einem ursprünglichen Keime
zuzuschreiben ist, welcher zu grossen Zwecken weislich organisirt ist.) Prolegomena, Ak IV,
263: «… a razão pura ... tal como na construção dos membros de um corpo organizado,
tem de deduzir o fim de cada membro apenas do conceito completo do todo.» (... reine
Vernunft … wie bei der Gliederbau eines organisirten Körpers der Zweck jedes Gliedes nur
aus dem vollständigen Begriff des Ganzen abgeleitet werden kann.)
48
Idee, Ak VIII, 18: «Todas as disposições naturais de uma criatura estão destinadas a
desenvolver-se alguma vez completa e finalizadamente. Em todos os animais isto é con-
firmado tanto pela observação exterior como pela interior ou anatómica. Um órgão que não é
usado, uma ordenação que não alcança o seu fim, é uma contradição na doutrina teleológica
da natureza.» (Alle Naturanlagen eines Geschöpfes sind bestimmt, sich einmal vollständig und
zweckmässig auszuwickeln. Bei allen Thieren bestätigt dieses die äussere sowohl, als innere oder
zergliedernde Beobachtung. Ein Organ, das nicht gebraucht werden soll, eine Anordnung, die
ihren Zweck nicht erreicht, ist ein Widerspruch in der teleologischen Naturlehre.). Ib., 30: onde
se fala de «Naturanlage», «ursprüngliche Anlage», «Keime, die die Natur in sie legte.»
49
Grundlegung, Ak IV, 395-396.
50
Há nisso analogia com o uso que Kant faz de outros campos metafóricos cientifica-
mente constituídos (ou reconstituídos) na Modernidade: da Química, da Cosmologia e

159
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

Kant toma sim de Blumenbach a noção de Bildungstrieb, que no fundo cor-


responde à sua própria noção de «Técnica da Natureza» operante nos corpos
organizados, a qual pelo menos uma vez discretamente ele associa à de Einbil-
dungskraft, como se tivessem funções análogas, uma na vida orgânica da natu-
reza, gerando os seres vivos, a outra na vida orgânica do espírito, produzindo
51
obras de arte originais e prenhes de sentido. Ambas fazem a síntese entre o
transcendental e a multiplicidade do empírico da intuição, entre o teleológico e
o mecânico. Ambas mobilizam todos os recursos, da natureza ou do espírito, para
a produção do novo. Caracteriza-as a espontaneidade, a adaptabilidade, a capaci-
dade de jogar sem serem conduzidas por uma lei determinada e, contudo, proce-
dendo de uma forma que, sendo espontânea, é «conforme a fins» (zweckmässig).
Nas obras de Blumenbach, Kant podia ver corroboradas «pelos factos» de uma
ciência empírica as suas perspectivas de filósofo transcendental e isso o levava a
reconhecer uma profunda afinidade entre o seu próprio programa e o do sábio
52
naturalista, confessando muito ter aprendido dos escritos deste. E, segundo o
tardio testemunho de Johann Heinrich I. Lehmann, exarado numa carta deste a
53
Kant, de 1 de Janeiro de 99, o reconhecimento era recíproco.

Astronomia, da Óptica, da Geografia, do Direito e da Política. Veja-se sobre isso o meu


livro, Metáforas da Razão ou economia poética do pensar kantiano, pp.670-671 e passim.
51
Veja-se: Kritik der Urteilskraft, Einl. viii, Ak V, 192-193.
52
Carta de 5 de Agosto de 1790, Ak XI, 185: «As vossas obras ensinaram-me muitas
coisas importantes; na verdade, a vossa recente unificação dos dois princípios, do físico-
-mecânico e do teleológico – que alguém de resto poderia pensar serem incompatíveis –
tem uma relação muito íntima com as ideias que continuamente me ocupam, mas que
requerem precisamente a espécie de confirmação mediante factos que você fornece.»
Nesta carta Kant agradece o envio da 2ª ed. de Über den Bildungstrieb.
53
Escreve Lehmann: «O Senhor Blumenbach assegurou expressamente que só através dos
vossos pequenos ensaios e particularmente daquele sobre as raças humanas é que começou a
dar atenção a muitas coisas em que antes não tinha pensado nem chegaria talvez a pensar
tomando por base apenas os relatos de viagens e as suas observações». Ak XII, 273-274. De
facto, nas sucessivas reedições das suas obras, em particular, do Handbuch der Naturges-
chichte, Blumenbach não só cita amiúde Kant, como passa a adoptar a linguagem kantiana.
Timothy Lenoir pôs em grande destaque a influência de Kant sobre Blumenbach, sobretudo
a partir dos anos 90, pelo impacto nele da leitura da Crítica do Juízo. Pode na verdade dizer-
se que se Kant recebeu do naturalista de Göttingen o conforto dos factos que confirmavam a
justeza das suas reflexões, por seu turno, Blumenbach recebeu de Kant não a matéria de
observação ou o resultado dos experimentos, mas o esclarecimento conceptual e epistémico
que legitimava as suas investigações e descobertas. Por certo, o acordo dos dois pensadores
em aspectos essenciais das respectivas doutrinas – no que respeita à epigénese, à noção de
Bildunsgtrieb, à concepção do organismo, à necessidade de conjugação da explicação mecâ-
nica com a teleológica para a explicação dos seres organizados, ao monogenismo da espécie
humana – não significa que haja acordo em todos os tópicos que ambos abordam: não o há,
por exemplo, quanto ao número e caracterização das raças humanas (4, segundo Kant; 5,
segundo Blumenbach); também não o há nos ingredientes que caracterizam uma raça, pois

160
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

Em suma, apesar das pertinentes conclusões de Timothy Lenoir, a respeito


da dívida de Blumenbach em relação a Kant, mais do que contabilizar o que
deve Kant a Blumenbach ou Blumenbach a Kant, importa sublinhar a espontâ-
nea convergência de perspectivas entre o filósofo praticante da teoria, mas
atento à especificidade dos fenómenos da natureza, e o observador da natureza e
experimentalista, que procura explicações satisfatórias para fenómenos que a
observação e a experimentação lhe revelavam ser incontornáveis.

3.2.2. Kant e Forster


Nas suas incursões no domínio das questões da História Natural, Kant não
experimentou só o feliz acordo das suas perspectivas com as de um dos mais
conceituados naturalistas da época. Também teve de deparar-se com o completo
desacordo nos princípios e até na matéria factual, o que aconteceu com o natu-
ralista-viajante Georg Forster (1754-1794). O confronto entre Forster e Kant
pode bem ser encarado como um episódio filosoficamente pouco relevante,
sobretudo se comparado com o feliz e espontâneo encontro de perspectivas
entre Kant e Blumenbach. Tendo em conta, porém, o meu objectivo, que é o de
traçar as etapas de formação do pensamento biológico de Kant, vou realçar esse
episódio, considerando a relação entre o viajante-naturalista e o sedentário filó-
sofo como sendo simétrica daquela que acabámos de analisar entre Kant e Blu-
menbach, mas como tendo sido não menos fecunda do que aquela para o pleno
desenvolvimento do pensamento biológico de Kant. E se naquela quem mais
lucrou foi Blumenbach, aqui por certo quem mais lucrou foi Kant. Não pelo que
tenha aprendido do seu interlocutor ou pelo que este lhe pudesse ensinar, mas
pela ocasião que o naturalista-viajante lhe proporcionou para que explicitasse os
seus pressupostos. Talvez não tivéssemos a terceira Crítica como a temos hoje,
com a sua Segunda Parte dedicada à Crítica do Juízo Teleológico, se não fossem as
observações críticas de Forster aos ensaios de Kant sobre as raças humanas, que
o filósofo considerava serem meras incompreensões (Missverständnisse).
Georg Forster (que, quando jovem, juntamente com seu pai, acompanhara
James Cook na segunda viagem deste à volta do mundo, em 1772-75, contratado
como desenhador de espécies botânicas e animais, tendo acabado, porém, por
substituir o seu pai também como Relator da Viagem) e que na altura exercia
funções de Professor na Universidade de Vilnius, publica, no Teutscher Merkur de
Outubro-Novembro de 1786, um extenso ensaio intitulado «Algo mais acerca das
54
raças humanas» , no qual não só insiste na falta de fiabilidade das fontes de Kant

enquanto Kant o faz tomando por critério apenas a cor da pele, Blumenbach fá-lo tendo em
conta também aspectos de ordem morfológica (as características cranianas, por exemplo),
aproximando-se nisso das teses de Sömmerring.
54
Georg Forster, «Noch etwas über die Menschenrassen», in: Forsters Werke in zwei
Bänden, ed. de Gerhard Steiner, Berlin/Weimar, 1997. Cito o ensaio de Forster pela res-

161
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

– e, por conseguinte, na fragilidade das teses que o filósofo expusera sobre o tema,
55
nomeadamente no ensaio publicado em 1785 no Berlinische Monatschrift –, como
também põe em causa a legitimidade do filósofo para propor novas teses sobre
tópicos de História Natural, apoiado que está em deficiente informação empírica e
subvertendo como o faz os conceitos e métodos confirmados dessa disciplina.
Trata-se de um debate entre o empírico e o téorico, entre o que se crê fiel observa-
dor da natureza e o filósofo dos princípios. Um debate que, no fundo, versa sobre
os pressupostos epistémicos e metodológicos da História Natural, estando de um
lado o defensor da História Natural tradicional, à maneira de Lineu, entendida
como Naturbeschreibung, e do outro o proponente de uma nova forma de História
Natural, entendida como Naturgeschichte, no sentido que Kant dá a esta designa-
ção.
Forster começa por apontar a pouca fiabilidade das bases observacionais e
experimentais das conjecturas do filósofo e acusa este de preencher com espe-
culação a míngua de observação ou a falta de qualidade da experiência a respeito
do tema de que trata nos seus ensaios. A isso contrapõe Forster a atitude do
«espectador imparcial» que «se limita a relatar de modo exacto e fidedigno aquilo
que percepcionou, sem cismar longamente sobre a especulação que favorece a sua
percepção, e para isto «nada precisa de saber acerca de quezílias filosóficas, mas
56
apenas de seguir o uso linguístico comummente aceite». Censura e recusa,
nomeadamente, a noção de raça proposta por Kant, não vendo nela pertinência
alguma e não compreendendo porque não se mantém o filósofo no vocabulário
comum da História Natural – varietas – fixado por Lineu. Também não reconhece
pertinência na classificação das raças proposta por Kant, a respeito da qual dirá
que «a ordem da natureza não segue as nossas classificações e, a partir do
57
momento em que lhas queremos impor, incorre-se em contra-sensos.»
Outra distinção que Forster não entende é a que Kant propõe entre Natur-
beschreibung e Naturgeschichte. Tal distinção, verdadeiramente capital para se
entender a posição epistémica em que Kant se coloca para abordar os temas da
História Natural, fora já proposta no ensaio de 1775, volta a sê-lo no de 1785 e
também no de 1788. Já em 75 Kant dizia que a Naturgeschichte ensinar-nos-ia a
transformação que a Terra e as criaturas terrestres (vegetais e animais) sofreram
através de sucessivas migrações naturais e as derivações da forma originária da
primeira espécie que disso resultaram, o que permitiria reduzir uma grande

pectiva tradução portuguesa de Manuela Ribeiro Sanches, publicado, com um estudo


introdutório da tradutora, no volume antológico A Invenção do Homem. Raça, Cultura e
História na Alemanha do século XVIII, CFUL, Lisboa, 2002.
55
Forster associa a este, também o ensaio kantiano de 86, Começo conjectural da história
humana.
56
A Invenção do Homem, p. 332.
57
Ibidem, p. 343.

162
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

quantidade de espécies, aparentemente diferentes, a raças de um mesmo género


e transformaria o sistema escolástico (Schulsystem) da Naturbeschreibung, que está
apenas ao serviço da memória, num sistema real da natureza, para uso do enten-
dimento. No ensaio de 85, o filósofo insiste na ideia de que a Naturbeschreibung
apenas fornece uma classificação da diversidade dos seres naturais subordinando-
-os a géneros nominais, segundo semelhanças que descobre entre eles, ao passo que
a Naturgeschichte se propõe encontrar o género real do qual se possa traçar uma
descendência dos diversos seres a partir de um tronco comum. E, no ensaio de 88,
58
uma e outra vez Kant insiste nessa distinção, que considera fundamental. Cito
uma das suas explicações:
No que se refere à distinção contestada, ou mesmo pura e simplesmente
rejeitada, entre descrição da natureza [Naturbeschreibung] e história da natu-
reza [Naturgeschichte], se quiséssemos entender por esta última uma narra-
tiva de incidentes naturais a que nenhuma razão humana acede, por exem-
plo, a primeira origem das plantas e dos animais, ela seria certamente, como
o diz o Sr. Forster, uma ciência para deuses, que teriam estado presentes
durante a criação ou que seriam mesmo os seus autores, e não para homens.
Contudo, limitarmo-nos a acompanhar retrospectivamente, tanto quanto a
analogia o permite, a correlação entre determinadas disposições actuais das
coisas naturais e as suas causas num passado remoto, segundo leis de causa-
lidade que não inventamos, mas que deduzimos das forças da natureza, tal
como ela agora se nos apresenta, seria uma história da natureza, história que
efectivamente não é possível, mas que também foi frequentemente tentada
por naturalistas escrupulosos, por exemplo nas teorias da Terra – entre as
quais também se encontra a do famoso Lineu – independentemente dos
melhores ou piores resultados. […] Esta distinção encontra-se na própria
constituição das coisas e com ela não exijo nada de novo, a não ser a separa-
ção cuidadosa entre os dois domínios, pois estes são completamente
heterogéneos e, se uma (a descrição da natureza) surge, enquanto ciência,
em todo o esplendor de um grande sistema, a outra (a história da natureza)
só pode exibir, por enquanto, fragmentos ou hipóteses titubeantes. Através
desta distinção e da apresentação da segunda como uma ciência à parte,
embora realizável, até agora (e talvez mesmo para sempre) mais como um
esboço do que como uma ciência aplicável… espero alcançar o resultado de
não se atribuir… a uma aquilo que pertence apenas à outra e se fique a
conhecer de um modo mais preciso o âmbito dos conhecimentos reais na
História da Natureza (pois possui-se com efeito alguns), e, ao mesmo tempo,
os limites inerentes à própria razão, incluindo os princípios segundo os quais
59
ela poderia ser alargada da melhor maneira possível.
58
Ibidem, p.356.
59
Ibidem, pp.355-356. Esta ideia vai ser retomada no § 80 da Crítica do Juízo.

163
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

Estendi-me na citação porque esta clarificação é importante (Kant, como


disse, volta a ela várias vezes ao longo do seu ensaio) para se perceber qual a
perspectiva epistémica em que o filósofo crítico se coloca quando aborda as
questões tradicionais da História Natural, nomeadamente, a questão em debate
acerca das raças humanas. Ele propõe uma dedução da variedade hereditária das
criaturas orgânicas a partir de uma e mesma espécie natural (species naturalis),
na medida em que aquelas se encontram ligadas através das suas capacidades
reprodutoras e podem ter tido origem a partir de um tronco único, ao passo que
o seu crítico pratica a História Natural concebida como uma mera classificação
dos seres vivos mediante espécies artificiais resultantes da comparação entre eles
60
segundo algum traço exterior comum. É pois de uma outra ciência que se trata,
de uma História Natural já verdadeiramente transformada pelo sentido do tempo
e da geração – naquele sentido em que Wolf Lepenies fala de uma Verzeitlichung
ou de uma Temporalisierung der Naturgeschichte –, a passagem da mera «fisio-
61
grafia» a uma verdadeira «fisiogonia». Esta última só é possível pressupondo
um princípio novo de inteligibilidade da natureza, que é precisamente o princí-
pio teleológico, o qual deve orientar o investigador na sua pesquisa e observa-
62
ção. Como se enuncia no seu título, o propósito do ensaio de resposta a Forster
é justificar o uso de princípios teleológicos em filosofia, e a filosofia de que aqui
imediatamente se trata é a filosofia biológica, a própria Naturgeschichte.
Os dois ensaios sobre as raças e este último de resposta a Forster são aque-
les onde Kant, praticando já verdadeiramente a Naturgeschichte e não a mera
Naturbeschreibung, desenvolve as suas concepções no domínio do biológico,
expondo e aplicando não apenas os seus pressupostos epistémico-metodológi-
cos, mas também os seus instrumentos conceptuais a um problema concreto da
60
Ibidem, pp.370-371. O ensaio de 75 estabelecia já a distinção entre «a classificação
escolástica», por classes, segundo semelhanças, e a «classificação natural», por troncos,
dividindo os animais por laços de parentesco de acordo com a reprodução. Aquela for-
nece um sistema escolástico para a memória; esta, proporciona um sistema natural para
o entendimento; a primeira tem apenas como intenção subordinar as criaturas a rubri-
cas, a segunda visa submetê-las a leis.» (apud A Invenção do Homem, p. 103)
61
Das Ende der Naturgeschichte, Suhrkamp, Frankfurt a. M., 1978, pp.39-40. Schelling
tomará a seu cargo prosseguir o esforço kantiano (Schelling, Schriften zur Naturphilosophie,
1799-1801, Werke, 1927, p.588: «Wenn man von einer Naturgeschichte im eigentlichen Sinn
des Worts sprechen wollte, so müsste man sich die Natur vorstellen, als ob sie, in ihren Pro-
duktionen scheinbar frei, die ganze Mannichfaltigkeit derselben durch stetige Abweichungen
von Einem ursprünglichen Original allmählich hervorgebracht hätte, welches alsdann eine
Geschichte nicht der Naturobjekte (welche eigentlich Naturbeschreibung ist), sondern des
hervorbringenden Natur selbst wäre.»). Lepenies mostra como a História Natural setecentista
era dominada pela representação espacial e como as suas classificações eram estáticas, repro-
duzindo os estados da sociedade com as respectivas hierarquias, aspecto particularmente
visível em Lineu (ob. cit., pp.41-51).
62
A Invenção do Homem, pp. 355, 362.

164
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

História Natural. A noção de “ser organizado”, a peculiar estrutura deste, a con-


cepção epigenética da sua geração e desenvolvimento, bem como o conceito de
fim e de finalidade aplicados à natureza e à compreensão da peculiar lógica dos
seres orgânicos, que são tais que só podem ser pensados como se fossem fins da
natureza, são tópicos que aparecem já implicados uns nos outros, anunciando-se
o desenvolvimento que deles vai ser dado nos primeiros parágrafos da «Crítica
do Juízo Teleológico». Cito alguns passos:
O conceito de um ser organizado já implica que é uma matéria em que tudo
possui relações recíprocas de fim e meio e que isto apenas pode ser pensado
como um sistema de causas finais – o que equivale a dizer que a possibili-
dade deste sistema só permite um modo de explicação teleológica, mas de
modo algum físico-mecânica, pelo menos à escala da razão humana … Eu,
pela parte que me toca, faço derivar toda a organização dos seres orgânicos
(através da geração) e as suas formas posteriores … de disposições originá-
rias… que obedecem a um desenvolvimento gradual, susceptíveis de ser
encontradas na organização do seu tronco. Saber como é que este tronco
surgiu é uma tarefa que está totalmente para além dos limites da física aces-
sível ao homem, limites dentro dos quais, porém, tenho de me manter. […]
O conceito de um ser organizado é o seguinte: trata-se de um ser material
que apenas é possível através da relação recíproca de todos os elementos
que nele estão contidos como fim e meio (da mesma maneira todo o ana-
tomista também parte, enquanto fisiólogo, realmente desse conceito). Uma
força fundamental susceptível de realizar uma organização deve portanto ser
concebida como uma causa que age com vista a fins e isto de forma que
estes fins tenham de ser necessariamente colocados como fundamento da
possibilidade do efeito. Mas, dado o seu princípio de determinação, não conhe-
cemos esse género de forças a não ser pela experiência em nós mesmos, a saber,
no nosso entendimento e na nossa vontade, como causa da possibilidade de
certos produtos organizados plenamente segundo fins, isto é, obras de arte.
[…] Independentemente de se encontrar a causa dos seres organizados no
mundo ou fora do mundo, temos, ou de renunciar a toda a determinação
63
da sua causa, ou então de pensar para esse efeito um ser inteligente.
No balanço final que Kant faz da sua resposta ao naturalista-viajante denuncia-
-se o interesse moral que está na base do pensamento biológico de Kant e que se
manifestará em toda a evidência nos derradeiros parágrafos da Crítica do Juízo. Os
conceitos a partir dos quais se pensa a peculiar inteligibilidade do mundo orgânico
são tomados de empréstimo da racionalidade do mundo moral, nomeadamente a
noção de fim (Zweck) e de finalidade (Zweckmässigkeit). Escreve Kant:

63
Ibidem, pp.373-374.

165
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

Façamos finalmente um balanço de tudo isto! Os fins têm uma relação


directa com a razão, seja ela uma razão alheia ou a nossa própria. Mas para
os fundar sobre uma razão alheia, temos de colocar como seu fundamento a
nossa razão ou pelo menos um analogon dela, pois aqueles não podem ser
representados sem esta. Ora os fins são ou fins da natureza ou da liberdade.
Que tenha de haver necessariamente fins na natureza é algo que ninguém
pode reconhecer a priori; em contrapartida, podemos certamente reconhe-
cer a priori que aí tem de haver uma ligação necessária entre causas e efei-
tos. Consequentemente, o uso do princípio teleológico no que respeita à
natureza é sempre empiricamente condicionado. O mesmo sucederia com
os fins da liberdade, se os objectos do querer tivessem de ser previamente
dados à liberdade pela natureza (sob a forma de necessidades e de inclina-
ções) como princípios de determinação, para fixar através da razão, compa-
rando-os entre si e com a sua soma, aquilo que colocamos como fim. Mas a
Crítica da Razão Prática mostra que existem princípios práticos puros atra-
vés dos quais a razão prática é determinada a priori e que, por conseguinte,
lhe conferem a priori um fim. Portanto, se o uso do princípio teleológico
com vista a explicar os fenómenos das natureza, porque limitado a condi-
ções empíricas, nunca pode fornecer de um modo completo e suficiente-
mente determinado para todos os fins o fundamento primeiro da ligação
segundo a finalidade, temos, em contrapartida, de esperar esse resultado de
uma doutrina pura dos fins (que só pode ser a da liberdade), cujo princípio
a priori contém a relação entre uma razão em geral e o todo de todos os fins
e que só pode ser prática. Mas, como uma teleologia prática pura, isto é,
uma moral, está destinada a realizar os seus fins no mundo, tanto no que
respeita às causas finais que aí são dadas, como no que respeita à conformi-
dade entre a causa suprema do universo e o todo de todos os fins concebidos
como o seu efeito; e assim ela <a teleologia prática pura> não deverá des-
perdiçar nem a teleologia natural nem a possibilidade de uma natureza em
geral, isto é, a filosofia transcendental – a fim de assegurar à doutrina dos
fins prática pura uma realidade objectiva, com vista à possibilidade do
objecto em exercício, isto é, a possibilidade de o fim que ela prescreve se
64
realizar no universo.
Por retorcido que o raciocínio pareça ser, ou seja mesmo, ele revela ine-
quivocamente a promiscuidade de origem entre a visão teleológica da natureza e
a teleologia moral e, por fim, a subordinação, embora por acoplagem, da teleolo-
gia física à teleologia moral. Em suma, neste ensaio, enuncia-se, pela primeira
vez e com suficiente nitidez, o que será um dos eixos da terceira Crítica, a Über-
gang e a Vermittlung (de que falam os parágrafos III e IX da sua Introdução)

64
Ibidem, pp.374-375.

166
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

entre a legislação da razão para a liberdade e a legislação do entendimento para a


65
natureza. Mas é da primeira que se tomam de empréstimo os conceitos que
fazem a «mediação» e a «passagem» para a segunda e que a esta se aplicam sob
66
o modo da analogia. O ensaio de 88 coloca-nos assim directamente numa das
entradas que dão para a Crítica do Juízo, entrada decisiva, porventura mesmo
aquela que desbloqueou a execução da obra e que levou a que fosse alterado o
seu primitivo plano e até o seu anunciado título como Kritik des Geschmacks.
Encontramos o testemunho dessa experiência de desbloqueio especulativo na
bem conhecida carta a Reinhold do final de Dezembro de 87. O desbloqueio
talvez nunca tivesse acontecido não fora a ocasião que Kant aproveitou ao res-
ponder às críticas e incompreensões de Forster.

3.3. Da linguagem biológica da filosofia


transcendental à inscrição dos problemas
biológicos no sistema da filosofia crítica

Ao longo da década de 80, o pensamento biológico de Kant expõe-se tam-


bém de forma indirecta nas obras de filosofia transcendental, nomeadamente na
Crítica da Razão Pura. O que nesta obra releva é o recurso à linguagem biológica
para descrever a natureza, o desenvolvimento e o funcionamento da própria
razão ou dos seus produtos (Metafísica, Crítica, Filosofia, Ciência filosófica,
67
Sistema da Filosofia), numa palavra, para expor a biologia da razão. Isso, porém,
não retira a importância às ideias expostas, antes reforça o seu alcance, na medida
em que pode ser lido como indicação não só de que «o pensamento biológico está
enraizado no mais íntimo do sistema kantiano» (Biologisches Denken ist somit
zweifellos verwurzelt in der inneren Systematik des kantischen Systems), mas tam-
bém de que «com Kant teria chegado ao fim a era da Metafísica e começado a era

65
KU, Ak V, 179; 195-197.
66
Este empréstimo da noção «prática» e «objectiva» de fim e de finalidade da Razão à
finalidade «técnica» e «subjectiva» da Faculdade de Julgar, sob o modo da analogia, é
expressamente desenvolvida no parágrafo IX da Primeira Introdução à Crítica do Juízo
(Erste Einleitung in die Kritik der Urteilskraft, ed. G. Lehmann, Felix Meiner, Hamburg,
1977, pp.42-43).
67
Noutro lugar, ocupei-me largamente da extensão e importância da metafórica bioló-
gica e orgânica na filosofia de Kant, bem como das interpretações de que tem sido
objecto. Veja-se o meu livro: Metáforas da Razão ou economia poética do pensar kantiano,
pp.403-446. Veja-se ainda: François Duchesneau, «Épigenèse de la raison pure et analo-
gies biologiques», in : Kant actuel. Hommage à Pierre Laberge, Bellarmin, Montréal / Vrin,
Paris, 2000, 233-256 ; H. W. Ingensiep, «Die biologischen Analogien und die erkennt-
nistheoretischen Alternativen in Kants Kritik der reinen Vernunft B § 27», Kant-Studien,
85 (1994), 381-393.

167
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

68
da Metabiologia». As passagens do citado capítulo da «Arquitectónica da Razão
Pura» são eloquentes. Não se trata de comparações avulsas, mas sim de uma ana-
logia contínua – toda uma alegoria orgânica da razão, mediante a qual se faz ver a
sua estrutura, a sua geração e desenvolvimento e a lógica que a dirige, uma lógica
teleológica. É verdadeiramente uma concepção não apenas orgânica da razão, mas
69
orgânica no sentido da doutrina da epigénese. A ideia, que começa por ser o
desenvolvimento de um germe e que só se vai tornando clara para si própria no
decurso e sobretudo no fim do seu processo de maturação e de desenvolvimento;
a importância do tempo e da elaboração que vai do estado caótico inicial ao estado
arquitectónico final a que preside uma ideia do todo, passando provisoriamente
pela arrumação técnica parcial segundo conceitos (chaotisch ou rhapsodistisch,
technisch, architektonisch); a concepção do todo e do sistema (da Filosofia, da
Razão) que cresce, não por acrescentos exteriores mas a partir de dentro, tal como
70
num organismo vivo.
Mas os temas tradicionais da História Natural ocorrem na obra também
sob um outro tópico: sob o modo do problema metodológico-epistémico da
unidade e do sistema (real) da natureza (systema naturae) de géneros, espécies e
variedades, ou da continuidade da natureza (scala naturae; Kette der Natur) nas
suas formas e seres. Tal é o assunto principal abordado por Kant no Apêndice à
Dialéctica Transcendental e que daí transita às Introduções à terceira Crítica e a
muitos parágrafos da Segunda Parte desta obra onde receberá novos desenvol-
vimentos.
Com efeito, na Crítica do Juízo (Kritik der Urteilskraft, 1790) encontram-se
todos os temas que anteriormente identificámos submetidos não só a uma maior
explicitação como também a uma mais densa orquestração. A complexa e pro-
blemática arquitectura da obra, à primeira vista pouco convincente (pense-se na
crítica de Schopenhauer), apesar da simetria das suas duas partes e de todas as
explicitações do seu autor para justificar a subordinação delas a um mesmo
princípio transcendental de Zweckmässigkeit – (entendido embora em sentidos
muito diversos: ora como meramente formal e subjectivo, quando referido à
apreciação estética das formas belas da natureza; ora como objectivo e formal,
quando se refere às entidades geométricas; porém, como material e objectivo,

68
Adolf Meyer-Abich, «Kant und das Biologische Denken», Acta Biotheoretica, VI (1942),
185-211, loc.cit., 205. Há quem chegue ao ponto de propor uma «naturalização» da razão e
do transcendentalism kantiano. Veja-se: Eugenio Moya, Naturalizar a Kant? Criticismo y
modularidad de la mente, Editorial Biblioteca Nueva, Madrid, 2003.
69
Veja-se acima a nota 46.
70
Veja-se, na mesma linha, este passo do Prefácio à 2ª edição da Crítica (B XXXVII-XXX-
VIII; Ak III, 22): «Natur einer reinen speculativen Vernunft… die einen wahren Glieder-
bau enthält, worin alles Organ ist, nämlich Alles um Eines willen und ein jedes Einzelne
um aller willen.»

168
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

quando referido aos seres organizados da natureza, que só podem ser pensados
como se fossem fins da natureza, isto é, como se a natureza na sua produção
tivesse neles em vista um fim) – dá prova de que o autor quer equacionar nela
demasiadas variáveis e responder a muitos problemas ao mesmo tempo, proble-
mas que percebe estarem entre si intimamente ligados, mas cuja efectiva ligação
não consegue sempre expor com toda a clareza ou só o faz sob o modo da ana-
logia e da invocação do como se (als ob), ou mediante subtis e artificiosas distin-
ções (por ex., entre os vários sentidos de Zweckmässigkeit).
Sendo embora a Crítica do Juízo a obra onde Kant se ocupa mais intensa e
directamente das questões biológicas – dos seres orgânicos – e de muitas das
questões que faziam parte da agenda da História Natural no século XVIII, também
nela não é enquanto naturalista ou enquanto biólogo que o faz. Fá-lo sim do inte-
rior do seu sistema – também aqui em processo de crescimento por dentro –,
como resposta a exigências deste, para estabelecer pontes, para resolver a interna
coerência do programa da filosofia crítica transcendental, para expor a harmonia
das faculdades fundamentais do espírito e dos respectivos princípios. O mundo
orgânico legitima a postulação de um princípio supra-sensível como causa da
natureza – para além do mecanicismo – e abre horizontes ao mundo prático-
-moral, cuja finalidade imperativa tem de realizar-se no mundo natural. Se neste
há também o vislumbre de uma causalidade final e não apenas o de uma causalidade
meramente mecânica, então a possibilidade da acoplagem e da «passagem» (Über-
gang) entre a liberdade e a natureza fica em aberto e pode acontecer sem violência.
Mas há também a questão dos princípios. Reconhecida a necessidade e a
legitimidade do princípio teleológico, há que repensar o sistema da razão agora
sob a forma do sistema das faculdades do espírito, cada qual com o seu princípio
transcendental. A solução da Crítica do Juízo é diferente das adoptadas anterior-
mente. Antes, esse princípio era considerado como um recurso, como supletivo
(a título de princípio regulador, de valor meramente subjectivo), sempre subor-
dinado ao superior império da explicação mecanicista pela causalidade eficiente
garantida pela legislação formal do entendimento para a natureza em geral. Na
Crítica do Juízo, Kant, mantendo embora a tese da natureza subjectiva e refle-
xionante do princípio de teleoformidade da natureza, tem contudo que reconhe-
cer que, pelo menos no que respeita à compreensão dos seres orgânicos (sua
estrutura, seu desenvolvimento e sobretudo sua geração e reprodução), esse
princípio tem de ser pressuposto também como indicando uma teleoformidade
real e objectiva, por mais que não saibamos como explicá-la e a quem atribuí-la,
se à própria natureza (através da sua arte ou técnica peculiar), se a algum ser
que nela ou através dela age, quer lhe seja exterior ou interior, e por qualquer
modo que o seja.
Agora, Kant, ao mesmo tempo que insiste na necessidade de união (Verei-
nigung: § 78) e de associação (Beigesellung: § 81) dos dois princípios, na investi-

169
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

gação da natureza, afirma sem hesitação o primado do princípio teleológico


sobre o mecânico, como princípio heurístico e sempre entendido de uma forma
indeterminada; por conseguinte, propõe a «necessária subordinação do princípio
da explicação mecanicista ao princípio da explicação teleológica» (nothwendige
Unterordnung des Princips des Mechanisms unter dem teleologischen in Erklärung
eines Dinges als Naturzweck -§ 80), mesmo que, por fim, tudo possa vir (e deva
vir) a ser algum dia explicado mediante causas mecânicas.
Destacarei da obra de 1790 apenas o conceito de um «ser organizado», con-
ceito que já fora exposto no ensaio de 1788, um conceito tão fecundo que, como
vimos, ele serve de analogon para a compreensão de muitos tópicos da filosofia
kantiana (a própria razão e seu sistema, a filosofia, a constituição republicana…).
Não houve naturalista – nem sequer o Blumenbach – que o tivesse explicado com
mais detalhe e pertinência. Os parágrafos 64-66 da Crítica do Juízo explicitam a
concepção kantiana do que é um «ser organizado» (só no Opus postumum Kant
usará a expressão “Organismo”), esse tipo de ser que tem de ser pensado como se
fosse um «fim da natureza» (Naturzweck). E o § 65 desenvolve mesmo o que se
poderia considerar uma réplica ao § 203 da IV Parte dos Princípios da Filosofia de
Descartes, onde este reduzira os seres que a natureza produz à mesma condição
metafísica das máquinas produzidas por um qualquer artesão. E Kant escolhe
justamente a imagem do relógio, que constituíra para os pensadores do século
XVII e ainda para muitos da primeira metade do século XVIII o paradigma por
excelência da racionalidade, para mostrar o seu défice de racionalidade, quando
comparado com o paradigma de um ser organizado ou de um ser vivo natural.
Esse parágrafo, como já o dissemos no capítulo anterior, pode ler-se como o ates-
tado de óbito da hegemonia racional do mecanicismo e da sua metáfora emblemá-
tica – o relógio – e ao mesmo tempo como a certidão de nascimento do paradigma
e da metafórica do organismo e como a sua legitimação. Por isso, este parágrafo
permite-nos medir a enorme distância filosófica que se percorreu desde meados
71
do século XVII até às últimas décadas do século XVIII. Um ser organizado não é
simplesmente uma máquina provida de força motora, mas possui além disso uma
força formadora interior, capaz de organizar a matéria de que se compõe e sobre-
72
tudo capaz de se reproduzir. E embora o filósofo tivesse partido da analogia com
a arte humana para compreender a natureza, seja na sua dimensão estética (na
capacidade para exibir formas belas à nossa contemplação) seja na sua capacidade
para produzir seres organizados como seus fins, ele tem todavia consciência de
71
Ak V, 374.
72
Ibidem.Complete-se o desenvolvimento aqui proposto com o que demos no final do
anterior capítulo. Para evitar redundâncias, eliminámos sempre que possível a transcri-
ção de alguns textos kantianos que constavam na versão original deste ensaio (publicada
no volume Kant e a Biologia, Editora Barcarolla, São Paulo, 2012, pp.15-79) e que tam-
bém são citados no capítulo anterior.

170
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

que por fim essa analogia claudica, sobretudo quando se pretende apreciar, não já
apenas as belas formas da natureza mas os próprios produtos orgânicos da mesma
natureza. E assim, na continuação do mesmo § 65, Kant escreve:
Dizemos muito pouco a respeito da natureza e do seu poder nos produtos
organizados quando chamamos a este poder um analogon da arte [Analogon
der Kunst]; pois, neste caso, representamos o artista (um ser racional) como
exterior a ela. Ela organiza-se antes a si mesma e em cada espécie dos seus
produtos organizados seguindo por certo em toda a espécie um só e mesmo
modelo, e todavia fá-lo também com os desvios apropriados requeridos pela
conservação de si mesma de acordo com as circunstâncias. Aproximar-nos-
-íamos talvez mais desta qualidade insondável [dieser unerforschlichen Eigens-
chaft] se a designássemos como um analogon da vida [Analogon des Lebens];
mas, neste caso, ou se dota a matéria enquanto simples matéria de uma pro-
priedade (hilozoísmo) que estaria em contradição com a sua essência, ou se
lhe associa um princípio estranho que estaria em comunidade com ela (uma
alma): neste último caso, se um tal produto deve ser um produto da natu-
reza, ou a matéria organizada se acha já pressuposta como instrumento desta
alma, o que não a torna compreensível, ou então temos de fazer da alma a
73
artista desta construção e assim subtrair o produto à natureza (corporal).
Por conseguinte, embora recenseando-as como saídas possíveis para a
explicação do fenómeno da vida na natureza, o filósofo nem se rende à hipótese
do materialismo vitalista ou hilozoísmo, que atribuísse vida à matéria, nem
aceita a ideia de uma Alma do Mundo, pressuposta pelas concepções panvitalis-
tas e pampsiquistas, que implicasse a identificação de Deus com o princípio que
anima o Mundo, da mesma forma que uma alma anima o corpo de um animal.
Kant mantém até às suas últimas reflexões um irredutível dualismo – entre
matéria e vida (esta sempre associada a um princípio imaterial ou mesmo espi-
ritual) e aponta para um teísmo, tão discreto e minimalista quanto possível, mas
ainda assim pressupondo sempre um supremo artista inteligente, distinto da
matéria e da própria natureza, que originariamente terá dado à natureza material
a capacidade de se organizar por si mesma a partir do caos dos elementos
segundo leis gerais, e lhe deu também, a um outro nível de incomensurável
maior complexidade, a capacidade de produzir ela mesma seres organizados
como se fossem fins que ela mesma se propõe, garantindo o filósofo desse modo,
74
como diz, «o investimento mais limitado possível de sobrenatural» , mantendo-
-se fiel a um seu antigo propósito metodológico. Podemos perceber que esta
solução é a que melhor se coaduna com os pressupostos da sua filosofia prática,
73
Ibidem, 374-375.
74
Ibidem, 424.

171
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

a que melhor salvaguarda a liberdade e a moralidade. Estas estariam em risco


quer se admitisse o mecanicismo absoluto, quer o finalismo objectivo, soluções
que, ao limite, na verdade, coincidiriam. Mas, ao salvar, em hipótese, a diferença
e a autonomia do artista divino da natureza, salva-se também melhor a autono-
mia do homem em relação à natureza, seja no plano ético seja também no plano
técnico e estético (na verdade, só a partir da maneira técnica humana de produ-
zir se pode, por analogia, fazer uma vaga ideia do que seria o modo de operar de
um supremo artista da natureza). Ao mesmo tempo, concede-se à natureza uma
significativa margem de indeterminação e de espontaneidade, o que não impede
todavia o esforço humano por compreendê-la e até por explicá-la nos seus pro-
cessos mais íntimos, embora sempre de um modo limitado e condicionado. Já o
pressupor o hilozoísmo, isto é que a matéria é viva, isso, como diz o filósofo,
«seria a morte de toda a filosofia da natureza» (der Tod aller Naturphilosophie
75
wäre der Hylozoism) , pois representaria a recaída nas formas substanciais e nas
causas finais (objectivamente consideradas) de que se haviam libertado os
Modernos para construir a sua Física matemática e mecanicista.
Mas, no fundo, toda a compreensão humana da natureza labora num para-
doxo e não há uma explicação que possamos compreender à escala da arte
humana, pois esta escala é incomensuravelmente pequena quando confrontada
com a escala da arte da natureza, cujos reais procedimentos aliás desconhece-
mos, sendo que, para cúmulo, o próprio homem e até a sua razão são também
eles produtos da arte da natureza. Ora, como pode pretender aquilo que é ape-
nas uma ínfima parte dizer como é e se gera o todo de que faz parte? E, assim,
conclui Kant:
Falando com precisão, a organização da natureza nada tem de análogo com
qualquer tipo de causalidade de que temos conhecimento. A beleza da
natureza, porque é atribuída aos objectos somente em relação com a refle-
xão sobre a intuição externa destes, por conseguinte, unicamente devido à
forma da sua superfície, pode com razão ser chamada um análogo da arte.
Mas uma perfeição interna da natureza [innere Naturvollkommenheit], do
tipo da que possuem as coisas que só são possíveis como fins da natureza
[Naturzwecke] e que se chamam, por essa razão, seres organizados, não se
pode pensar nem explicar mediante qualquer analogia com um qualquer
poder físico da natureza, que seja por nós conhecido – e, na medida em que
nós mesmos pertencemos à natureza num sentido amplo, ela não pode
mesmo ser pensada e explicada mediante uma analogia onde a conformi-
76
dade com a arte humana fosse apropriada com precisão.

75
Metaph. Anfangsgründe, Ak IV, 544.
76
Ak V, 375.

172
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

Como se respondesse definitivamente à questão que deixara em aberto no


Prefácio da obra de 55, Kant retira-nos agora toda a esperança de que possa
alguma vez surgir alguém que seja capaz de explicar cabalmente, mediante cau-
sas simplesmente mecânicas, não digo já toda a complexidade do mundo bioló-
gico, mas nem sequer a produção do mais elementar ser orgânico. Para a natureza
material, pôde surgir um Newton que desvendou o seu segredo, que descobriu as
suas leis e as traduziu numa fórmula matemática compreensível. Mas não é
expectável que alguma vez surja quem possa explicar, em forma de ciência, a
peculiar causalidade que a natureza põe em jogo na produção dos seus seres vivos.
Os termos usados são definitivos e peremptórios:
É, com efeito, completamente certo que nunca alguma vez conheceremos
suficientemente os seres organizados e a sua íntima possibilidade mediante
princípios da natureza meramente mecânicos, e que ainda menos os pode-
remos explicar; e isso é tão certo que se pode mesmo ousadamente dizer
que é insensato conceberem os homens um tal projecto ou terem esperança
de que alguma vez possa surgir um Newton que seja capaz de tornar com-
preensível a produção mesmo que seja apenas de um rebento de erva
segundo leis da natureza que nenhuma intenção tenha dirigido; em contra-
77
partida, deve recusar-se absolutamente esta perspectiva aos homens.
A arte ou «Técnica da Natureza», a geheime Kunst da grosse Künstlerin
Natur, da natura daedala rerum, e mormente aquela arte mediante a qual ela
produz os seus seres organizados, constitui um segredo que nunca virá a ser
verdadeiramente decifrado pelos humanos, pois, para tal, seria necessário que
estes tivessem acesso ao plano do Criador, o que está completamente fora de
78
questão. A Mãe-Natureza (Mutter Natur) nunca revelará aos humanos completa-
mente os seus segredos, mas continuará, ainda assim, a desafiá-los para o seu
mistério, tal como Ísis, a deusa egípcia que Kant evoca numa nota ao § 49 da
Crítica do Juízo, desafiava e incitava os seus devotos com esta inscrição no fron-
tispício do seu templo em Saïs: «Eu sou tudo, o que é, o que foi e o que será, e
79
nenhum mortal levantou o meu véu.»
Frente ao espectáculo da multiforme natureza viva, confrontada com a infi-
nita variedade dos seres organizados, a razão humana só pode manter uma
atenta curiosidade pesquisadora, sempre temperada pelo respeito, pela admira-
ção e até pela gratidão perante o «favor da natureza» (Gunst der Natur) que tão
prodigamente se lhe revela e oferece. Talvez resida também nisso uma das razões
que levaram o autor da terceira Crítica a associar nela, por fim, sob um mesmo

77
Kritik der Urteilskraft § 75, Ak V, 400.
78
Veja-se, neste volume, o capítulo 3, sobre a ideia de uma “Técnica da Natureza”.
79
Ak V, 316.

173
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

princípio e uma mesma faculdade do espírito, a apreciação teleológica da natu-


80
reza e a experiência estética da natureza e da arte.
Não termina, porém, com a Segunda Parte da terceira Crítica a ocupação de
Kant com o tema da vida e dos seres organizados. Esse tema e os tópicos e con-
siderações com ele conexos regressam obsessivamente às reflexões tardias do
filósofo (1799-1803), que viriam a ser postumamente publicadas sob o título de
Opus postumum. Encontramos aí, repetidas em várias versões, as teses já conhe-
cidas, não havendo qualquer mudança significativa quanto ao essencial na con-
cepção kantiana do «organismo», dos corpos orgânicos, da vida e seu princípio.
Mas a atitude e o intuito parecem ter mudado. Num pioneiro ensaio que dedi-
cou a este tópico, Heinz Heimsoeth fez notar que essas tardias considerações
kantianas sobre filosofia natural não são orientadas primariamente por uma
perspectiva crítica racional, mas sim por uma preocupação teorética dirigida aos
objectos e às coisas, ao modo de ser peculiar dos seres naturais, como se o filó-
sofo tivesse regressado ao estilo filosófico que havia cultivado nos seus primei-
81
ros ensaios de filosofia da natureza.
Isso não significa, obviamente, que Kant tenha por fim abandonado a dis-
ciplina crítica e recaído no dogmatismo. Sem dúvida, ele adopta agora formula-
ções que revelam afinidades com as do romantismo naturalista, que por esses
anos tinha no jovem Schelling a sua voz mais qualificada, recuperando em novos
pressupostos a antiga ideia – platónica e estóica – de «Alma do Mundo» (Welt-
seele). É assim que a Natureza, o Mundo, a Terra, o globo terrestre são descritos
em várias páginas do Opus postumum como se fossem um imanente todo orgâ-
nico, um Organismo universal, onde a própria matéria inorgânica está ao serviço
da vida e dos seres orgânicos, subordinada, por conseguinte, a uma global lógica
teleológica. A teleologia incorpora por fim e subordina a si o mecanicismo,
como já o deixavam perceber alguns dos parágrafos da Segunda Parte da Crítica
do Juízo, que acima comentei. Mas como entender essa Weltseele, sem cair no
reducionismo panvitalista, ou no hilozoísmo?
Mesmo nas suas mais tardias reflexões, Kant recusa identificar Deus com a
Alma do Mundo, da mesma forma que recusa a redução da Vida à simples Maté-
ria, continuando embora a pressupor um princípio imaterial para a origem
daquela. Como observa Heimsoeth, a respeito de todas estas questões, as for-
mulações de Kant revelam-se «até ao fim indecisas e hesitantes, embora o núcleo
82
do seu pensamento se mantenha inalterado». A vida e os seres orgânicos só

80
Kritik der Urteilskraft § 67, Ak V, 380.
81
Heinz Heimsoeth, «Kants Philosophie des Organischen in den letzten Systementwurfen.
Untersuchungen aus Anlass der vollendeten Herausgabe des Opus postumum», Blätter für
deutsche Philosophie, 14 (1940/41), p.83.
82
Ibidem, pp.100-101.

174
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

podem ser compreendidos de alguma maneira se supusermos um princípio não


material na sua origem, o que só pode ser pensado por analogia com o modo
humano de representar e de realizar uma actividade orientada a fins. Mas quer
esse princípio seja considerado à imagem de uma alma humana que vivifica um
corpo e, seguidamente, transposto e ampliado para o Mundo, que também teria
a sua Alma que o estrutura internamente, o move e o vivifica, ou seja ele antes
pensado como um espírito racional exterior ao Mundo, que cria o Mundo, o põe
em movimento e lhe dá a vida e a esta o poder de se reproduzir incessante-
mente, sempre um tal princípio será representado e compreendido pelo homem
só de forma inadequada.

175
5
As ficções da Razão. Hans Vaihinger
ou o Kantismo como ficcionalismo

La vérité a une structure de fiction.


J. Lacan, L’Éthique de la Psychanalyse.
Séminaire VII, Paris, Seuil, 1985, p.25.

1
Na sua obra Die Philosophie des Als Ob , Hans Vaihinger (1852-1933) propõe
uma interpretação da filosofia de Kant concebendo-a como teoria geral das fic-
ções do espírito, como uma espécie de ficcionalismo transcendental, que desco-
bre sobretudo sob a insistência da expressão als ob (como se) que é recorrente
nos escritos kantianos. A minha intenção é revisitar a obra de Vaihinger e rea-
preciar a ideia central que a inspira, tentando isolar esta da metafísica vitalista e
voluntarista e da gnoseologia pragmatista que a envolve, para mostrar a sua vir-
tualidade para uma reavaliação do carácter heurístico do pensamento kantiano,
e isso relendo não apenas os textos kantianos que o Professor de Halle leu, mas
também alguns outros que ele não leu e talvez nem mesmo chegou a poder ler
ou dos quais já não tirou proveito para a sua tese. Ao fazer isto, tento apresentar
o ficcionalismo kantiano no quadro de uma poética transcendental do espírito,
tal como ela se pode encontrar esboçada na terceira Crítica.

1. Hans Vaihinger, um neokantiano?

No amplo movimento de «regresso a Kant» que se viveu na Alemanha a partir


das três últimas décadas do século XIX, Vaihinger ocupa um lugar singular. Ele
1
Hans Vaihinger, Die Philosophie des Als Ob. System der theoretischen, praktischen und
religiösen Fiktionen der Menschheit auf Grund eines idealistischen Positivismus. Mit einem
Anhang über Kant und Nietzsche, Berlin, 1911. A obra viria a ter 4 edições até 1920 e 10
até 1927 e foi traduzida para o inglês, o italiano, o romeno e o francês (ver abaixo, nota
7). No centenário da primeira edição da obra, acaba de ser publicada por uma Editora
universitária brasileira, uma excelente tradução portuguesa da mesma, um aconteci-
mento verdadeiramente digno de nota também pela qualidade editorial: Hans Vaihinger,
A filosofia do como se. Sistema das ficções teóricas, práticas e religiosas da humanidade, na
base de um positivismo idealista, Com um anexo sobre Kant e Nietzsche. Tradução e apre-
sentação de Johannes Kretschmer, Argos-Editora da Unochapecó, Chapecó, 2011.

177
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

não alinha em nenhuma das duas principais escolas neokantianas que se perfila-
ram na época, a de Marburgo e a de Baden, embora não tenha sido alheio a
nenhuma delas e até expressamente tivesse reconhecido que alguns dos pensa-
dores de uma e de outra deram contributos pontuais que iam ao encontro da sua
própria “Filosofia do como se”. É o caso de Paul Natorp, de Ernst Cassirer, de
Bruno Bauch, de Wilhelm Windelband e de Heinrich Rickert. É o caso também
de Hermann Cohen. Mas o seu nome não costuma figurar nas histórias do neo-
kantismo e os próprios neokantianos não o consideravam como sendo um deles
e só excepcionalmente algum deu atenção à sua peculiar proposta filosófica. Na
verdade, se Vaihinger era capaz de abarcar na sua ampla “filosofia do como se”
até os resultados de alguns dos neokantianos, já estes só poderiam considerar
como estranha e suspeita uma filosofia de feição ecléctica que se apresentava
2
como uma nova forma de cepticismo, de agnosticismo ou de relativismo, onde
o Kantismo era despotenciado do seu significado especulativo forte e reduzido à
dimensão de um fenomenismo céptico, ou de uma teoria geral, não da verdade
científica e metafísica, mas das ficções humanas. O próprio estilo de Die Philoso-
phie des Als Ob é muito diferente do que é cultivado pelos neokantianos nas suas
obras. Vaihinger documenta a sua obra com os textos dos filósofos e cientistas
para ver como neles funciona, está em jogo ou suposta a consideração do “como
se” e é a partir daí que teoriza. Os escritos dos neokantianos, por seu turno,
caracterizam-se em geral pela austeridade especulativa e caem não raro num
árido formalismo. Por outro lado, a “filosofia do como se” passava ao lado
daqueles aspectos que os novos kantianos, no seu esforço por levar a cabo a
reconstrução sistemática da filosofia de Kant, estavam a redescobrir na sua lei-
tura sobretudo da Crítica da Razão Pura: uma teoria das condições transcen-
dentais da experiência, uma doutrina do método transcendental, enfim, uma
lógica geral do pensamento puro. Não admira, pois, que Paul Natorp, no
balanço que propõe da escola kantiana de Marburgo, numa conferência profe-
3
rida na sede da Kant-Gesellschaft, em Halle, a 27 de Abril de 1912 , onde rejeita
2
Vaihinger ver-se-á arrolado entre outros «relativistas» da sua época (entre os quais Oswald
Spengler e Albert Einstein), na obra do italiano Adriano Thilger, Relativisti contemporanei.
Vaihinger-Einstein-Rougier-Spengler. L’idealismo attuale – relativismo e rivoluzione, Roma,
Libreria di Scienze e Lettere, 1923 (4ª ed.), pp.21-35. À acusação de relativismo e de cepti-
cismo que impendia sobre a sua proposta, responde Vaihinger no seu ensaio «Wie die Philo-
sophie des Als Ob entstand». Este ensaio foi recentemente publicado em Anexo à tradução
portuguesa de Johannes Kretschmer de A Filosofia do Como Se, pp.671-708 (sobretudo
pp.699-701). Em Anexo à sua tradução da obra de Vaihinger, Kretschmer publica também a
tradução de uma carta de Albert Einstein ao autor de A Filosofia do Como Se, datada de 3 de
Maio de 1919. Nesta carta lê-se: «O seu livro [Die Philosophie des Als Ob] proporciona-me
muitos motivos de alegria; e penso assimilá-lo aos poucos. Nele encontro uma maneira de
considerar as coisas que está muito próxima da minha. Também Poincaré está próximo do
senhor.» (Ed. de Johannes Kretschmer, pp.709-710).
3
A conferência seria depois publicada na revista Kant-Studien, 17 (1912), pp.193-221.

178
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

como infundada a ideia de um Kantismo ortodoxo da Escola de Marburgo e ter-


mina propondo a filosofia de Kant – o idealismo transcendental – como a base
de uma «filosofia da cultura» (Kulturphilosophie) capaz de dar conta do todo da
vida, não faça qualquer menção, nem de passagem, aos vários estudos kantianos
de Vaihinger e nem sequer à principal obra deste, Die Philosophie des Als Ob,
publicada no ano anterior. E ainda nos mais recentes balanços sobre o neokan-
tismo o nome de Vaihinger, se aparece alguma vez referido em nota, é só para
4
marcar o contraste com os verdadeiros neokantianos. Neste desinteresse dos
neokantianos pela singular obra do professor de Halle, há contudo uma signifi-
cativa excepção. Trata-se de Ernst Cassirer, o qual, num longo ensaio que abre o
5
primeiro número do Jahrbücher der Philosophie , publicado em 1913, onde dis-
cute o problema da relação da verdade (Wahrheit) com a realidade (Wirklich-
keit) como sendo o tema central da teoria do conhecimento, procede a um
inquérito acerca do estado da abordagem da questão percorrendo não só o tra-
tamento que lhe era dado pelos neokantianos, fossem eles marburgenses ou
outros, mas abordando também outros filósofos contemporâneos, como Husserl,
Bolzano, Croce, Dewey, M.-L. Ashley, William James. Precisamente no contexto
da apreciação da obra deste último – «Pragmatism» – a new name for some old
ways of thinking (New York, 1907) – e da discussão do conceito pragmatista de
verdade, dedica Cassirer uma meia dezena de páginas à principal obra de Vai-
hinger, Die Philosophie des Als Ob, publicada dois anos antes, na qual reconhece
uma determinação e clarificação da teoria do pragmatismo exposta sob a tese de
que «todo o pensamento conceptual possui apenas um carácter ficcional» (alles
6
begriffliche Denken lediglich fiktiven Charakter besitzt). O próprio Vaihinger, no
Prefácio a essa sua obra, reconhecera afinidades entre o seu próprio programa e
o do pragmatismo contemporâneo. Seguindo essa indicação, Cassirer situa a
obra no seu contexto histórico-filosófico, identifica os seus pressupostos e dis-
cute as suas teses, reconhece a sua relativa pertinência, ao mesmo tempo que
aponta as dificuldades e paradoxos de uma teoria das ficções que se propõe

4
Veja-se, como exemplo, Hans-Ludwig Ollig, «Religionsphilosophie der Sudwestdeuts-
chen Schule», in: Materialien zur Neukantianismus-Diskussion, WBG, Darmstadt, 1987,
p.433. Em contrapartida, Christian Köhnke, na sua obra Entstehung und Aufstieg des
Neukantianismus. Die deutsche Universitätsphilosophie zwischen Idealismus und Positivis-
mus, Suhrkamp, Frankfurt a.M., 1986, evoca recorrentemente «der Neukantianer Vaihin-
ger», destacando o seu papel e lugar na história filosófica alemã entre o final do século XIX e
o começo do século XX. Também Jacob Schmutz («Épistemologie de la fiction: Thomas
Hobbes et Hans Vaihinger», Les Études Philosophiques, Oct. 2006, pp.517-535), considera
Vaihinger como um «neokantiano», no amplo sentido em que também neste ensaio o
tomamos por tal.
5
Jahrbücher der Philosophie, 1 (1913), pp.1-59.
6
Ernst Cassirer, «Erkenntnistheorie nebst den Grenzfragen der Logik», Jahrbücher der
Philosophie 1 (Berlin 1913), pp.40-45.

179
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

como teoria da verdade: tal teoria é uma verdade ou uma ficção? Mas aponta
também as limitações da interpretação vaihingeriana da filosofia de Kant,
nomeadamente, num ponto estratégico, mostrando como ela trabalha com uma
noção de «ficção» que é simultaneamente demasiado ampla e demasiado redu-
tora, mas que sobretudo é incapaz de dar conta da diversidade de expressões
com que o filósofo crítico nomeara as representações do espírito e a respectiva
intencionalidade semântica, distinguindo intuições, esquemas, símbolos, cate-
gorias, ideias, postulados, ideias estéticas, princípios constitutivos, princípios
regulativos. Aparentemente insensível a toda essa variedade, Vaihinger como
que põe tudo no mesmo plano, nivela tudo no mesmo «círculo da ficcionali-
dade» (Kreize der Fiktizität).
A obra de Vaihinger e a tese central que ela propunha veio a ter uma grande
difusão mesmo no período da Primeira Grande Guerra Mundial, do que dão tes-
temunho as quatro edições que teve até 1920. Deu azo a fecundos desenvolvi-
mentos e aplicações aos mais variados domínios do pensamento, desde as ciências
à filosofia, e quase se tornou um tópico de moda. Mas suscitou também fortes
reacções e críticas. Desta antitética recepção – de entusiasmo por uns e de recusa
por outros – dá conta o próprio Vaihinger, nos «Prefácios» às sucessivas reedições
7
da sua obra. Enquanto interpretação da filosofia de Kant, ela viria a ser refutada
severamente, já na terceira década do século XX, por um outro kantiano, o qual
todavia também não se identificava com a exegese da filosofia crítica praticada
pelos neokantianos. Referimo-nos a Erich Adickes. Primeiro, na sua obra sobre o
8
Opus postumum e depois, sistematicamente, na obra Kant und die Als-Ob Philoso-

7
A obra de Vaihinger teve 10 edições entre 1911 e 1927: 1911, 1913, 1918, 1919 (esta
com Prefácio de R. Schmidt), duas em 1920, duas em 1922 e duas em 1927 (estas com
Prefácio de Vaihinger). Houve também duas edições reduzidas (ditas «populares») em
1922 e 1923, ao cuidado de R. Schmidt. Uma reimpressão da 9ª e 10ª edições de 1927
foi feita pela editora Scientia, Aalen, 1986. A obra viria a ser traduzida para o inglês e
editada pelo filósofo de Cambridge C. K. Ogden (The Philosophy of ‘As If’. A System of the
theoretical, pratical and religious fictions of Mankind, Harcourt, Brace & Company, New
York and London, 1925), o qual esteve também na origem da redescoberta da teoria das
ficções de Jeremy Bentham, um verdadeiro antecessor de Vaihinger, que este todavia não
cita, provavelmente apenas porque não conhecia de facto os estudos do filósofo inglês.
Uma tradução italiana da obra por Franco Voltaggio, baseada na edição popular de 1923,
foi editada em 1967: La filosofia del como se. Sistema delle finzioni scientifiche, etico-prati-
che e religose del genere umano, Astrolabio-Ubaldini, Roma. Existe uma tradução romena
de Liviu Cotrau – H. Vaihinger, Filosofia lui Ca si Cum, Ed. Nemira, Bucareste, 2001.
Recentemente, foi publicada uma tradução francesa, feita a partir da edição popular de
1923: La philosophie du comme si. Système des fictions théoriques, pratiques et religieuses de
l’humanité, sur la base d’un positivisme idéaliste. Avec un Annexe sur Kant et Nietzsche.
Cahier spécial 8 de Philosophia Scientiae. Préface et traduction de Christophe Bouriau,
Kimé, Paris, 2008.
8
Kants «Opus postumum» dargestellt und beurtheilt, Berlin, 1920.

180
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

9
phie , esse discípulo de Friedrich Paulsen procede a uma violenta crítica da inter-
pretação da “filosofia do como se”, considerando-a como absolutamente insus-
tentável e como assente numa completa incompreensão e violentação do Kant
real, contrapondo ele ao Kant ficcionalista de Vaihinger e de seus discípulos e ao
Kant teórico do conhecimento dos neokantianos um outro Kant dominado pelas
questões metafísicas. Tal como o fizera Cassirer, embora com pressupostos e pro-
pósitos diversos, também Adickes contesta a noção vaihingeriana de ficção, que
considera não ser capaz de conter a intencionalidade do que nos escritos de Kant
se diz pela expressão Als Ob. Segundo Adickes, uma investigação semântica con-
textualizada, que tivesse por objecto essa expressão e outros termos kantianos que
Vaihinger subsume na sua noção muito geral de ficção, tornaria patente toda a
fragilidade da sua pretensão de invocar Kant e a sua obra como a melhor testemu-
nha do seu ficcionalismo sistemático e bastaria para recomendar a completa
recusa de uma tal interpretação da filosofia kantiana e dos seus tópicos maiores (a
coisa em si, as ideias, os postulados) como sendo meras ficções.
O singular perfil do percurso filosófico de Vaihinger pode explicar-se pela
confluência de matrizes heterogéneas que estão na sua génese. Encontramos aí,
antes de mais e como decisiva, a inspiração de Friedrich Albert Lange, o qual
motivaria também outros neokantianos, sobretudo os da escola de Marburgo.
Mas ao positivismo e agnosticismo metafísico do celebrado autor da Geschichte
des Materialismus associam-se outras correntes de pensamento activas na época,
designadamente, o voluntarismo e o pessimismo schopenhauerianos, o biolo-
gismo darwiniano, o pragmatismo peirciano. Tudo isso junto resulta num estra-
nho sistema que o autor designa pelo não menos estranho nome de “positivismo
idealista” ou de “idealismo positivista”.
Ainda assim Vaihinger foi um dos primeiros a reconhecer o significado do
movimento de “regresso a Kant” logo nos seus começos. Num ensaio publicado
em 1876, sobre a história da filosofia alemã no século XIX, já apresenta Lange
como “o ponto mais alto dos chamados neokantianos” (Spitze der sogenannten
Neukantianer), os quais, segundo diz, «devem procurar-se tanto entre os filósofos
de profissão como entre os investigadores da natureza» (die sowohl unter den
10
Philosophen von Profession, als besonders unter den Naturforschern zu suchen sind).
Noutro passo desse ensaio, o mesmo Lange é apresentado como “chefe dos jovens
11
kantianos” (Haupt der Jungkantianer). E, uma dezena de páginas adiante, declara

9
Fr. Frommanns Verlag, Stuttgart, 1927. Infelizmente, devido à sua velhice e cegueira,
Vaihinger já não tinha condições para defender o seu ponto de vista contra as impiedo-
sas críticas de Adickes.
10
Hans Vaihinger, Hartmann, Dühring und Lange. Zur Geschichte der deutschen Philoso-
phie im XIX Jahrhundert. Ein kritische Essay, Iserlohn, 1876, p.8.
11
Ibidem, p, 205. Num ensaio mais tardio de auto-interpretação, Vaihinger declara-se um
«discípulo de Lange» e vê sair deste duas linhas de neokantismo – o de Cohen, que se

181
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

que o futuro da filosofia na Alemanha pertence a estes “jovens kantianos” (Jung-


kantianer), entre os quais conta, além de Lange, Otto Liebmann, Hermann Cohen
e outros menos conhecidos. Para Vaihinger, as expressões “Neukantianer” ou
“Jungkantianer” têm um sentido amplo (como adiante veremos, também nelas
inclui Nietzsche!), não designando ainda uma escola ou tendência de pensamento
determinada, mas antes um grupo muito variado de pensadores, os quais, apesar
das suas diferenças de formação e sem abandonarem os seus próprios programas
filosóficos, se empenhavam em levá-los a cabo num diálogo directo com a filosofia
de Kant. O que os unia era a palavra de ordem, formulada por Otto Liebmann em
12
1865, na sua obra Kant und die Epigonen: “Zurück zu Kant” (Regresso a Kant).
Kant servia-lhes de estímulo para pensarem mais radicalmente os problemas que a
filosofia e a ciência do tempo colocavam. Mas logo esse regresso a Kant significou
também uma maior atenção ao texto kantiano, de novo lido e comentado intensa
e extensamente, e uma maior atenção também às teses kantianas, que são agora
objecto de renovada hermenêutica no esforço por capar o espírito da filosofia crí-
tica e por reconstituir a sua coerência sistemática. O regresso a Kant permitiria
ainda a descoberta (ou redescoberta) de aspectos da filosofia kantiana que haviam
sido deixados incultos pelas interpretações dos pensadores idealistas e, trazendo
assim à luz novas dimensões do Kantismo, revelava também um outro Kant. Mas
podia revelar igualmente as limitações da filosofia kantiana, propondo aos novos
hermeneutas e pensadores a tarefa de levar mais longe ainda e de forma mais con-
sequente o programa iniciado pelo autor da Crítica da Razão Pura.
É esta atitude de pensamento que encontramos em Vaihinger. A sua contri-
buição para o regresso ao Kantismo e para a renovação dos estudos kantianos foi
decisiva a vários níveis. Em primeiro lugar, como minucioso comentador da
obra principal de Kant, a Crítica da Razão Pura. O seu comentário a esta obra,

propõe aprofundar a doutrina kantiana de forma cada vez mais fiel e rigorosa no sentido
do idealismo transcendental, e o seu próprio, que põe em conexão o neokantismo de
Lange com o empirismo e o positivismo: «Vom Neukantianismus eines F. A. Lange aus
konnten zwei verschiedene Wege eingeschlagen werden. Entweder konnte der Kantische
Standpunkt auf Grund genaueren Eindringens in die Kantische Lehre schärfer und treuer
herausgearbeitet werden, dies geschah durch Cohen. Oder man konnte den Neukantianismus
Langes mit dem Empirismus und Positivismus in Verbindung bringen. Dies ist durch
meine Philosophie des Als Ob geschehen, die aber ebenfalls auf ein gründlicheres Eindringen
in die Kantische Als-Ob-Lehre führt.» Hans Vaihinger, «Wie die Philosophie des Als Ob
entstand», in: Raymund Schmidt (Hrsg.), Die Deutsche Philosophie der Gegenwart in Selbstdars-
tellungen, Bd. II, Felix Meiner, Leipzig, 1921, p.197.
12
Não há unanimidade quanto à atribuição a Liebmann do papel de desencadeador do movi-
mento do Neokantismo. Outros atribuem-no a Hermann Lotze, e há quem invoque uma
Lição Inaugural proferida por Eduard Zeller na Universidade de Heidelberga em 1862.Veja-
-se: Siegfried Marck, «Am Ausgang des jüngeren Neukantianismus. Ein Gedenkblatt für
Richard Hönigswald und Jonas Cohn», Archiv für Philosophie 3 (1949), pp.144-164; A. Phi-
lonenko, L’École de Marbourg. Cohen – Natorp – Cassirer, Vrin, Paris, 1989, p.9.

182
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

em dois volumes, publicados com dez anos de distância um do outro, não vai
13
todavia além da Estética Transcendental. Devem-se-lhe ainda outros ensaios
kantianos, dos quais destaco: um de 1883 sobre a refutação kantiana do idea-
lismo («Kants Widerlegung des Idealismus»); num outro, de 1902, faz uma
aproximação entre Kant e Platão enquanto pensadores metafísicos, acabando
por reconhecer em ambos também uma certa analogia na capacidade que reve-
lam para criar pertinentes mitos ou metáforas para exporem as respectivas filo-
sofias e termina sugerindo que Kant, tal como de resto Platão, além de ser um
14
«metafísico» é também um «metafórico» ; um terceiro ensaio aborda a dedução
transcendental das categorias («Die transzendentale Deduktion der Katego-
rien»). Mas deve-se a Vaihinger sobretudo a criação de duas instituições que
irão ser decisivas por todo o século seguinte e até ao dia de hoje para o desen-
volvimento sustentado dos estudos kantianos. São elas a revista Kant-Studien,
por ele fundada em 1895 e publicada a partir de 1897, e a «Kant-Gesellschaft»,
fundada em 1904, no centenário da morte do filósofo. Estas duas instituições
kantianas, juntamente com o empreendimento desencadeado por Wilhelm Dil-
they, pela mesma época, de publicação de todos os escritos kantianos, mesmo os
do espólio, garantiriam as condições materiais e institucionais para a difusão da
obra e do pensamento de Kant ao longo de todo o século XX. Em 1906, Vaihin-
ger, acometido de cegueira, vê-se obrigado a abandonar a sua cátedra na Univer-
sidade de Halle. Publica, em 1911, a obra que o tornaria famoso – A Filosofia do
Como Se (Die Philosophie des Als Ob) –, da qual me ocuparei de seguida. Em
1919, cria com Raymund Schmidt os Annalen der Philosophie, um órgão de
divulgação de estudos multidisciplinares sobre a temática do als ob e, dois anos
depois, publica, em obra editada por Schmidt, um importante ensaio auto-inter-
15
pretativo sobre a génese da “filosofia do como se”. Morre em 1933.
Não é, porém, tanto pelo seu contributo para a «Kantphilologie» através do
seu trabalho de minuciosa exegese da Crítica da Razão Pura, nem pela criação da
revista Kant-Studien ou pela fundação da «Kant-Gesellschaft» que Vaihinger tem
um lugar muito próprio na história do movimento de regresso a Kant e pode ser
considerado como um verdadeiro neokantiano, e mesmo como um dos primei-
13
Hans Vaihinger, Kommentar zu Kants «Kritik der reinen Vernunft», Stuttgart / Berlin /
Leipzig, 1881-1892.
14
Hans Vaihinger, «Kant – ein Metaphysiker?», Kant-Studien 7 (1902), 117: «Dem Schlag-
wort, ‘Kant ein Metaphysiker’ kann man das gleichwertige gegenüberstellen: ‘Kant ein
Metaphoriker’». Este ensaio retoma em forma abreviada um outro publicado sob o
mesmo título dois anos antes na obra colectiva: Philosophische Abhandlungen. Christoph
Sigwart zu seinem 70. Geburtstag von einere Reihe von Fachgenossen gewidmet, Tübingen,
1900, pp.133-158.
15
Raymund Schmidt (Hg.), Die deutsche Philosophie der Gegenwart in Selbstdarstellungen,
v. 2, F. Meiner, Leipzig, 1921.

183
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

ros, dando à expressão o sentido amplo mas preciso que ele próprio lhe atribuía.
No longo Prefácio que acompanha a edição de Die Philosophie des Als Ob, é-nos
revelado pelo autor (que aí se apresenta na qualidade de mero editor) que a obra
fora redigida como dissertação académica cerca de 35 anos antes, entre os anos
16
1875 e 1878, e que nela se propusera ele captar não apenas um ponto nodal do
Kantismo, mas o verdadeiro Kant, “o Kant pleno e completo” (der volle und
ganze Kant), “o sentido próprio e final da filosofia kantiana” (der eigentliche und
letzte Sinn der Kantischen Philosophie), sentido este que estaria, segundo ele,
naquele modo de pensar que se diz pela expressão “como se” – a «Als-Ob-
Betrachtung». Para conseguir isso, diz Vaihinger, há que ter não só inteligência
como também coragem (nicht blos Verstand, sondern auch Mut) para se libertar
17
do Kant escolar e tradicional, que é, segundo ele, um Kant muito incompleto.
O seu minucioso trabalho exegético sobre a primeira Crítica, levado a cabo
segundo um método a que chama «analítico-histórico», completa-se assim com
o esforço de interpretação «sintético-construtiva» do sentido de todo o pro-
grama filosófico kantiano como sendo gerido pela consciência do poder ficcional
do espírito humano naquilo que ao espírito mais importa: as representações
filosóficas e científicas, as representações éticas, estéticas e religiosas.
Trata-se, portanto, de um programa de regresso ao genuíno Kant. Mas esse
regresso é um regresso que, colhendo a inspiração e apreendendo o espírito da
filosofia kantiana, pretende libertá-la da roupagem do “desvitalizado raciona-
lismo dogmático” com que o próprio filósofo crítico terá desenvolvido e ao
18
mesmo tempo obscurecido as suas descobertas. Vaihinger insiste na ideia de
que Kant, embora tenha descoberto como ninguém antes dele o fizera a natureza
ficcional das epresentações filosóficas e tenha amplamente mostrado o seu uso,
não teve, contudo, clara consciência do alcance da sua descoberta e até a com-

16
Só uma parte dessa investigação foi apresentada então como tese de habilitação, na
Universidade de Estrasburgo, sob o título: Logische Untersuchungen. 1. Teil: Die Lehre
von der wissenschaftlichen Fiktion (1877).
17
«Der traditionelle Kant, der Kant der historischen Lehrbücher, mit einem Wort: der
Schul-Kant ist eben nicht der volle und ganze Kant. Um Kant ganz und voll zu verste-
hen, resp. verstehen zu wollen, dazu gehört eben nicht blos Verstand, sondern auch
Mut.» Die Philosophie des Als Ob, p. XIV. Para uma apreciação geral da interpretação
vaihingeriana de Kant, quanto ao modo e ao conteúdo, veja-se o ensaio de Walter Del-
-Negro, «Hans Vaihingers philosophisches Werk mit besonderer Berücksichtigung seiner
Kantforschung», Kant-Studien, 1934, pp.316-327. Veja-se também: S. Willrodt, Semifik-
tionen und Vollfiktionen in Vaihingers Philosophie des Als Ob, Leipzig, 1934.
18
«Man hatte auf diesem Wege weitergehen sollen: so hatte man das Kantische Resultat
sich rein bewahrt: freilich hatte dieser grosse Philosoph selbst seine ruhmreichen Ent-
deckungen mit den Rettungsversuchen abgelebter rationalistischer Dogmatik befleckt
und so selbst dazu beigetragen, dass seine richtigen Resultate begraben und vergessen
wurden.» Die Philosophie des Als Ob, p.43.

184
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

prometeu ao envolvê-la na linguagem da metafísica tradicional. Da mesma


forma, Kant não teria chegado a compreender o mecanismo da génese e funcio-
namento das ficções da mente, os quais, segundo o professor de Halle, são de
ordem biológica e se explicam pelo mecanismo da adaptação e concorrência que
rege o mundo dos organismos vivos, de acordo com a teoria de Darwin. Regres-
sar a Kant significa, pois, para Vaihinger, radicalizar o programa kantiano, levar
19
o Kantismo mais longe do que o próprio Kant o havia levado. Tal é o propósito
da “Filosofia do como se”, um programa que, completamente desenvolvido, ultra-
passaria uma interpretação do significado da proposta kantiana para se propor
como uma teoria geral das ficções, como um “sistema das ficções teóricas, práti-
cas e religiosas da humanidade”.
Neste ensaio, a minha abordagem da mais célebre das obras de Vaihinger
limita-se apenas ao que nela é relevante enquanto peculiar proposta de inter-
pretação da filosofia de Kant, e mesmo isso será feito de um modo sumário. Não
me deterei, por conseguinte, nos pressupostos mais gerais da “filosofia do como
se”, nomeadamente, no positivismo biológico de raiz darwiniana que a inspira e
que leva o seu autor a considerar o “como se” e os juízos ficcionais como um
artifício da Lógica, a Lógica como uma “mecânica” e “tecnologia do pensa-
mento” e o pensamento como uma simples função orgânica ao serviço de
exigências e de interesses vitais e práticos. Não discutirei também a concepção
pragmatista de verdade que a suporta e segundo a qual todo o pensamento e
toda a teoria, sendo de ordem ficcional e dando-se sob o modo de ficções cons-
cientes da sua ficcionalidade (isto é, conscientes não só da sua irrealidade, mas
também da sua mentira ou não-verdade, e mesmo da sua falsidade), são, todavia,
ainda assim, úteis, necessárias e mesmo indispensáveis, validando-se tão só pela
20
sua eficácia prática, isto é, pelo que permitem compreender ou realizar.

19
«Kant hat wohl die Idee gehabt, dass alle Formen des Begriffes und der Anschauung rein
subjektiv, d.h. fiktiv seien, allein bis zu der energischen Betonnung and Forderung der histo-
risch-genetischen Ableitung dieser höheren Begriffswelt aus elementaren Empfindungswelt durch
Anpassung und Konkurrenz ist er nicht fortgeschritten. Wie viel uns Kant also zu tun übrig
gelassen hat, kann einigermassen aus diesem Vergleiche [mit Darwin] hervorgehen. Kant hat
gerade die Hauptfrage: durch welchen Mechanismus des Denkens denn wir mittelst dieser
subjektiven Vorgange und Vernichtungen doch instande sind, die objektive Welt theoretisch
und praktisch zu berechnen - nicht genugend beantwortet.» Ibidem, p. 183.
20
Sobre o conceito vaihingeriano de verdade, veja-se: Hans von Noorden, «Der Wahrheits-
begriff in Vaihingers Philosophie des Als Ob», Zeitschrift zur philosophische Forschung,
1953, pp.99-113. Sobre este tópico, não perderam a sua pertinência as páginas dedicadas
por Cassirer a Vaihinger no ensaio acima citado.

185
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

2. A parte de Kant na “filosofia do como se”

Como já foi referido, o decisivo impulso e a inspiração para desenvolver uma


filosofia concebida como teoria geral das ficções do espírito recebeu-os Vaihin-
ger de Friedrich Albert Lange, nomeadamente da tese por este exposta na sua
21
História do MateriaIismo e citada pelo próprio Vaihinger em vários lugares da
sua obra, segundo a qual “as ficções são indispensáveis ao pensamento e à
22
vida” , uma tese que o próprio Lange documentara com tópicos da filosofia kan-
tiana, considerando, por exemplo, na linha de Kant, a teleologia como tendo o
valor de uma ficção heurística, ou anotando o valor metodológico da ficção
kantiana da intuição intelectual.
Prosseguindo e aprofundando a sugestão de Lange, Vaihinger vai descobrir
na filosofia de Kant uma rica, variada e qualificada presença da ficção filosófica,
a qual se diz na recorrente expressão “como se” (als ob), um tópico que, todavia,
até então passara totalmente inadvertido aos leitores de Kant e, por conseguinte,
não fora tido em conta pelo seu alcance para a interpretação da própria filosofia
23
kantiana nem fora reconhecido pela sua fecundidade filosófica.
Na sua leitura da filosofia de Kant, Vaihinger interpreta a recorrente fór-
mula “als ob” como sendo a expressão linguística de uma modalidade específica
de juízo, a qual, segundo ele, também não fora ainda reconhecida e ainda menos
expressamente tratada pelos lógicos, e a que chama o juízo ficcional (das fiktive

21
F. A. Lange, Geschichte des Materialismus und Kritik seiner Bedeutung in der Gegenwart,
2 vols., Iserlohn, 1866; 2ª edição modificada, Leipzig, 1873-1875.
22
Die Philosophie des Als Ob, p.771.
23
Na verdade, um contemporâneo de Kant já aventara essa ideia, mediante a qual pen-
sava poder aproximar e reconciliar a filosofia de Kant com a de Leibniz. Trata-se de
Salomon Maimon, no seu ensaio de 1793, Über die Progressen der Philosophie, onde a
dado passo se lê: «Eu já fiz notar que Leibniz fez uso com vantagem do método mate-
mático das ficções na filosofia. É aqui o lugar onde eu quero explicar-me melhor acerca
disso, com o que não só lanço uma luz acerca deste método, mas também, para desgosto
de muitos kantianos, espero reconciliar Leibniz com a Crítica da razão pura.» (Ich habe
schon bemerkt, dass sich Leibniz mit Vortheil der mathematischen Methode der Fiktionen
in der Philosophie bedient habe. Hier ist der Ort wo ich mich hierüber naher erklären
will, wodurch ich nicht nur ein Licht über diese Methode zu verbreiten, sondern auch
(manchen Kantianer zur Ärgerniss) Leibnizen mit der Kritik der reinen Vernunft auszusohnen
hoffe.» (reimpr. Aetas Kantiana, Bruxelles, p.29). De facto encontra-se em Leibniz um
frequente recurso não só ao que o filósofo da harmonia chamava as «fictions utiles» (por
exemplo, a ideia de quantidades infinitesimais: Die philosophischen Schriften, ed.
Gerhardt, Olms, Hildesheim, vol. 6, p.629), mas até mesmo à expressão «comme si», de
que apresentamos apenas um exemplo entre muitos outros possíveis: «Ce système [de
l’harmonie préétablie] fait que les corps agissent comme si (par impossible) il n’y avoit
point d’Âmes, et que les Âmes agissent comme s’il n’y avoit point de corps, et que tous
les deux agissent comme si l’un influoit sur l’autre.» Ibidem, vol. 6, p.621.

186
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

Urteil). Mas, para além disso, considera toda a filosofia de Kant como a mais
ampla e expressiva amostra do universal uso filosófico da “consideração como
se” (Als-Ob-Betrachtung) e a mais eloquente confirmação da sua importância. Na
Terceira Parte da sua obra, o autor empreende ao longo de mais de centena e
meia de páginas um quase exaustivo levantamento do recurso de Kant a esse
«artifício» (Kunstgriff) do pensamento, esquadrinhando todos os escritos kan-
tianos, desde o período pré-crítico ao Opus postumum, incluindo mesmo os
escritos menores. Vaihinger insiste, porém, na tese de que, apesar de toda a
importância do tema na filosofia kantiana, esse tema não foi absolutamente claro
para o próprio Kant, nem este o assumiu ou formulou com plena convicção:
«Foi Kant quem fez a primeira e propriamente frutífera aplicação da ficção em
24
filosofia, mas em parte também ele o fez sem clareza metódica.» Ele apenas
entreviu e entreabriu um caminho sem ter plena consciência do que fazia e sem
o ter formulado de modo definitivo. Por isso o seu esforço deve ser prosseguido,
aprofundado, esclarecido.
Na verdade, apesar de todo o seu cuidado em aparelhar e trabalhar a lin-
guagem que usa na sua filosofia, Kant não tem um vocabulário fixo e os termos
que usa vão sendo criados ou estabelecidos no seu sentido à medida que o pró-
prio pensamento neles e através deles se vai exercendo. Todavia, o vocabulário
kantiano para o domínio das representações, em particular, daquelas que se
movem no horizonte próximo da “ilusão”, é bastante rico e resulta da sua pró-
pria investigação filosófica. Tendo um dia suspeitado que em certos dos seus
juízos o entendimento era vítima de uma ilusão (ich eine illusion des Verstandes
25
vermuthete) , Kant aplicou-se a identificar onde residia essa ilusão e de onde
provinha ela. Esse trabalho, que, na verdade, constitui o núcleo em torno do
qual gravita toda a sua filosofia transcendental, terá começado no ano 1769,
associado à tomada de consciência das antinomias com que a razão se debate nas
26
suas proposições acerca dos supremos objectos metafísicos , e culmina na Crí-
tica da Razão Pura, na Dialéctica Transcendental, apresentada como a “lógica da
aparência” (Logik des Scheins). O objectivo nela visado é clarificar a “ilusão ou
aparência transcendental” que ocorre em certos raciocínios da razão, de modo a
evitar que essa ilusão se torne uma ilusão transcendente e realmente engana-
dora. Pode dizer-se que o que Kant pretende com esse seu programa filosófico é
levar a razão a tomar consciência das suas ideias como sendo ilusões e criações
suas e a aprender a viver com elas enquanto tais, pois lhe são naturais e até

24
«Die eigentlich erste fruchtbare Anwendung der Fiktion in der Philosophie machte
Kant, allein teilweise auch er ohne methodische Klarheit.» Die Philosophie des Als Ob,
p.264; veja-se também pp. 269 e 272.
25
Reflexionen, Ak XVIII, 69.
26
Carta a Garve de 21 de Setembro de 1798, Briefwechsel, Ak XII,225.

187
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

necessárias para o seu trabalho, sem que todavia caia no erro de as tomar por
27
realidades ou por ideias que correspondam a objectos e realidades. Desta
estratégia kantiana faz parte a demarcação estrita entre o “país da verdade”
(Land der Wahrheit), que é o território do entendimento, cujos conceitos são
aplicáveis aos fenómenos e ao mundo da experiência, e o “nebuloso mar sem
margens da metafísica e da razão” – um lugar que é “propriamente a sede da
ilusão” (dem eigentlichen Sitze des Scheins) – acerca do qual a razão apenas colhe
28
aparências ilusórias. Como se lê no início da Dialéctica Transcendental, aquilo
de que o filósofo se ocupa não é de denunciar e evitar as ilusões ou falsas apa-
rências dos sentidos – as ilusões empíricas (empirische Schein) ou ópticas –, e
nem sequer a aparência ou “ilusão lógica” (logische Schein) ou os sofismas
resultantes da falta de atenção às regras lógicas do raciocínio. A primeira cor-
rige-se pela própria percepção e a segunda pela atenção à observância das regras
lógicas e, uma vez descobertas, tanto uma como a outra não mais subsistem nem
perturbam a razão como fonte de enganos ou de erros. Não é isso, porém, o que
se passa com uma espécie muito particular de ilusão, que tem a sua origem na
própria razão e a que Kant chama a aparência ou “ilusão trancendental” (trans-
zendentale Schein). Esta é inevitável e, mesmo depois de descoberta a sua causa e
origem, subsiste e pode continuar a ser fonte de enganos. A Dialéctica Trans-
cendental tem por objecto descobrir a causa dessas ilusões ou aparências, de
modo a precaver a razão contra o engano que elas provocam. Se elas se relacio-
nassem com princípios cujo uso pudesse ser testado pela experiência, a própria
experiência constituiria a pedra-de-toque da sua correcção ou do seu desvario.
Mas precisamente elas arrastam a razão para uma aplicação das categorias com-
pletamente para além da experiência e, por isso, ficamos sem um critério para a
sua legitimação, sendo que, desse modo, nos enganam com a miragem de uma
extensão do conhecimento do entendimento puro ao domínio do supra-sensí-
29
vel.
Para tratar deste problema central do seu programa filosófico Kant não faz,
em geral, uso do termo “ficção” (Fiction), termo que colhe, como vimos, a prefe-
rência de Vaihinger. Nos escritos publicados em vida de Kant, este termo apa-
27
KrV B354, Ak III, 237.
28
KrV B 295, Ak III, 202. Sobre o tema, veja-se: Felix Duque Pajuelo, «L’illusione e la
strategia della ragione», Il Cannocchiale (Napoli), 1986, nº1/2, pp.97-112; Michelle
Grier, Kant’s Doctrine of Transcendental Illusion, Cambridge University Press, Cambridge,
2002; Liliane Weissberg, «Catarcticon und der schöne Schein. Kants ‘Träume eines
Geistersehers, erläutert durch Träume der Metaphysik’», Poetica (München), 18 (1986),
pp.96-116; Claude Piché, «Les fictions de la raison», Philosophiques (Québec) 13 (1986),
pp.291-303; Bernd Dörflinger / Günter Kruck (Hg.), Über den Nutzen von Illusionen. Die
regulativen Ideen in Kants theoretischer Philosophie, Olms, Hildesheim, 2011.
29
KrV B 352, Ak III, 235.

188
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

rece apenas duas vezes, uma no singular, outra no plural. No Opus postumum,
aparece duas vezes no singular – para designar a “ficção” (Fiction) que é o con-
ceito de um corpo orgânico, e tem um sentido fraco, pois designa um conceito
30
que é “meramente uma ficção” (blos eine Fiction). Mas, ainda assim, apesar de
raríssimo, o termo é usado uma vez no plural e de forma qualificada, na Crítica
da Razão Pura, para designar precisamente os conceitos racionais ou ideias da
razão. Isso ocorre na terceira secção do primeiro capítulo da Doutrina Trans-
cendental do Método, intitulado “Da disciplina da razão pura no que se refere às
hipóteses”, onde Kant escreve:
Os conceitos da razão são meras ideias e não têm, evidentemente, objecto
algum em qualquer experiência, mas não designam por isso objectos
inventados e ao mesmo tempo tomados como possíveis. São pensados de
modo meramente problemático, para em relação a eles (como ficções heu-
rísticas) fundar princípios reguladores do uso sistemático do entendimento
no campo da experiência. Se sairmos deste campo, são meros entes de
razão, cuja possibilidade não é demonstrável e que não podem também,
mediante uma hipótese, ser postos como fundamento da explicação de
31
fenómenos reais.
Esta passagem e, de resto, todo o capítulo de onde ela é extraída, convoca
uma parte muito significativa do vocabulário e da instrumentação que Kant
costuma usar para tratar destes assuntos: meras ideias, objectos inventados (ou
imaginados), pensar de modo problemático, ficção heurística, princípios regula-
dores, meros seres de razão (Gedankendinge), hipóteses.
Mais abundantes do que o termo “ficção”, de proveniência latina, são na
escrita kantiana as expressões da família dos verbos «dichten» e «erdichten» (fic-
cionar, poetar, inventar). «Dichten» aparece 18 vezes nas obras publicadas por
Kant; «Dichtkunst» aparece 20, sendo 11 na Crítica do Juízo; «Dichtung» aparece
8 vezes e «Dichtungen» ocorre 5 vezes; recorrentes são também «Dichtungskraft»
e «Dichtungsvermögen». O uso destas expressões dá-se sobretudo no contexto da
abordagem da poesia. No contexto estético, por conseguinte, e como dizendo
respeito a uma faculdade específica – a imaginação (Einbildungskraft). Como se lê

30
Opus postumum, Ak XXI, 210, Ak XXII, 311.
31
«Die Vernunftbegriffe sind, wie gesagt, blosse Ideen und haben freilich keinen Gegens-
tand in irgend einer Erfahrung, aber bezeichnen darum doch nicht gedichtete und
zugleich dabei für möglich angenommene Gegenstände. Sie sind bloss problematisch
gedact, um in Beziehung auf sie (als heuristische Fiktionen) regulative Principien des
sytematische Verstandesgebrauchs im Felde der Erfahrung zu gründen. Geht man davon
ab, so sind es blosse Gedankendinge, deren Möglichkeit nicht erweislich ist, und die
daher auch nicht der Erklärung wirklicher Erscheinungen durch eine Hypothese zum
Grunde gelegt warden können.» KrV, Ak III, 503.

189
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

numa Reflexão: «Inventar [ficcionar] em geral é o poder da imaginação, seja para


32
serviço da razão ou da tendência, [é o] fazer de forma criadora». Mas também na
Crítica da Razão Pura, no capítulo que acabámos de citar, o termo «dichten»
(inventar, conjecturar) designa o trabalho peculiar da imaginação, o qual, quando
feito «sob a rigorosa vigilância da razão», se traduz na elaboração de «hipóteses»
ou «conceitos problemáticos», os quais, todavia, «têm apenas um valor defensivo»
(blos zur Gegenwehr ausgedachter), não podendo servir como princípios sobre os
quais se fundam proposições explicativas. Sem a vigilância da razão, porém, a
imaginação tende a «devanear» (schwärmen) e as suas hipóteses metafísicas per-
dem então o carácter de juízos problemáticos para se tornarem proposições
assertóricas com pretensão de validade absoluta, com o que «afogam a razão em
33
ficções e ilusões» (die Vernunft unter Erdichtungen und Blendwerken ersäufen).
Todavia, no Opus postumum, por várias vezes o termo «Dichtung» – usado
no plural: «Dichtungen» – é aplicado às ideias da razão e mesmo como sinó-
nimo destas mesmas ideias (Ideen oder Dichtungen), as quais juntas constituem
34
o sistema da filosofia transcendental. A ocorrência desta expressão para desig-
nar as ideias traduz sem dúvida aquele “mais alto ponto de vista da filosofia
transcendental” a que o seu autor chegou na afirmação da absoluta autonomia
do espírito humano, o qual é criador a partir de si mesmo do sistema das suas
35
ideias, mediante as quais se liga a si mesmo e aos outros seres fora dele.
Considerar as ideias como “invenções” ou mesmo como “poemas da razão”
36
(Dichtungen der Vernunft) , é uma ousadia em que se exprime porventura o mais
fundo impulso que move toda a filosofia kantiana e vai ao encontro dum frag-
mento de Novalis, no qual se apresenta a filosofia como o “poema do entendi-
37
mento”, como “o salto supremo que o entendimento dá sobre si próprio».

32
«Dichten überhaupt ist das Vermögen der Einbildungskraft, es sey zu Diensten der
Vernunft oder der Neigung, schöpferisch machen.» Reflexion 805, Ak XV, 351.
33
KrV, Ak III, 502-509.
34
Opus postumum, Ak XXI, 101: «Transcendentale Philosophie … ist die intus sussception
eines Systems der ideen (Dichtungen der reinen Vernunft) durch welche das Subject sich
selbst nach einem Princip zum Object des Denkens macht und synthetische Einheit a priori
durch Begriffe begründet.» Ibidem, 102: «… das System der ideen (Dichtungen) der reinen
Vernunft» – «Transc. Phil. ist... ein System von absoluter Einheit welches synthetische
Erkenntnis a priori aus Begriffen enthält d. i. das ganze System der ideen Dichtungen (gleich
als gegebener Gegenstande) der reinen Philosophie die zwar Problematisch vorgestellt aber
doch nothwendig, müssen gedacht werden...»
35
Opus postumum, Ak XXI, 103.
36
Na sua tradução de uma antologia de peças do Opus postumum (PUF, Paris, 1986),
François Marty traduz a expressão «Dichtungen der Vernunft» por «productions de la
raison» (p. 239, linhas 32-33).
37
“Das Poëm des Verstandes ist Philosophie - Es ist der höchste Schwung, den der Vers-
tand sich über sich selbst giebt.” Novalis, Schriften, WBG, Darmstadt, 1981, Bd.2, Das

190
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

A raridade do uso do termo “ficção” na escrita de Kant poderia bem ser


compensada por estas finais declarações acerca do poder poetante da razão na
invenção das suas ideias metafísicas. Mas ela é compensada sobretudo pela
abundância da expressão “como se” (als ob), recorrente nos escritos kantianos,
sobretudo a partir da Crítica da Razão Pura. Coube a Vaihinger o mérito de ter
sido o primeiro intérprete a chamar a atenção para a importância dessa expres-
são e do que ela revela como peculiar atitude filosófica. O tópico surge na última
secção do Apêndice à Dialéctica Transcendental, onde se trata “Do propósito
final da dialéctica natural da razão humana”, de forma intensiva (pelo menos
uma dúzia e meia de vezes em dúzia e meia de páginas, sendo que numa das
páginas aparece 6 vezes, e sempre destacado). A questão que Kant aí coloca é
esta: Que uso pode a razão fazer das suas ideias, sem incorrer ou ser induzida
em “enganos e ludíbrios” (Täuschungen und Blendwerke)? Em secção anterior da
Crítica, Kant propusera a fecunda distinção entre princípios «constitutivos» e
princípios «regulativos», que agora evoca colocando as ideias da razão do lado
dos segundos. Com isso, as ideias (cosmológica, psicológica e teológica: Mundo,
Alma/Eu, Deus), não são reduzidas à condição de “meros entes de razão vazios”
(bloss leere Gedankendinge, entia rationis ratiocinantis), mas reconhecidas como
“entia rationis ratiocinatae”, como “conceitos heurísticos” para procurar a cons-
tituição e ligação dos objectos da experiência em geral numa unidade sistemá-
tica, não, porém, como conceitos ostensivos que digam como é constituído um
objecto. Kant explica então como das ideias se pode fazer um uso legítimo sob o
modo do “como se”. Embora elas não possam fazer referência a nenhum objecto
que lhes corresponda directamente, nem ainda menos determiná-lo, colocam
todavia «como pressuposto tal objecto na ideia» (unter Voraussetzung eines sol-
chen Gegenstandes in der Idee), e esse objecto transcendental, assim pressuposto,
é como que o esquema dum princípio regulativo que, todavia, serve apenas para
o uso empírico da razão, permitindo a dilatação do conhecimento da experiên-
cia, não garantindo, porém, nenhum conhecimento daquele objecto mesmo
enquanto tal.
No seguimento, Kant explica esse funcionamento do uso “como se” das
ideias da razão (Alma, Mundo, Deus) tomadas como conceitos heurísticos, ou
como princípios da unidade sistemática dos fenómenos dados na experiência
psicológica ou cosmológica. Sigamos a exposição proposta pelo filósofo:

philosophische Werk I, 531. Assim, quando Nietzsche escreve, num dos fragmentos da
sua primeira fase, que «a filosofia é uma forma de poesia… é a poesia para além dos
limites da experiência» (Die Philosophie ist eine Form der Dichtkunst… ist die Dicht-
kunst ausser den Grenzen der Erfahrung), é como se estivesse a comentar o fragmento
de Novalis e a afirmação de Kant segundo a qual as ideias são “Dichtungen der Ver-
nunft”. F. Nietzsche, Nachgelassene Fragmente, Sammtliche Werke, ed. Colli-Montinari,
W. de Gruyter, Berlin, Bd. VII, p.439.

191
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

Tomando as ideias como princípios, vamos primeiramente ligar (na psico-


logia), ao fio condutor da experiência interna, todos os fenómenos, todos
os actos e toda a receptividade do nosso espírito, como se [als ob]este fosse
uma substância simples que existe com identidade pessoal... Em segundo
lugar (na cosmologia), temos de procurar as condições dos fenómenos
naturais, tanto internos como externos, numa investigação jamais terminá-
vel, como se [als ob] fosse infinita em si e sem um termo primeiro ou
supremo... Por fim, e em terceiro lugar (em relação à teologia), devemos
considerar tudo o que possa alguma vez pertencer ao conjunto da expe-
riência possível, como se [als ob] esta constituísse uma unidade absoluta,
embora totalmente dependente e sempre condicionada nos limites do
mundo sensível, mas também, simultaneamente, como se [als ob] o con-
junto de todos os fenómenos (o próprio mundo sensível) tivesse, fora da
sua esfera, um fundamento supremo único e omni-suficiente, ou seja, uma
razão originária, criadora e autónoma, relativamente à qual dirigimos todo
o uso empírico da nossa razão, na sua máxima extensão, como se [als ob]
38
os próprios objectos proviessem desse protótipo de toda a razão.
O Professor de Halle procede a um muito completo recenseamento dos
casos em que Kant faz uso do «als ob», seja nas grandes obras ou nos ensaios
mais pequenos. E embora conheça e registe o variado vocabulário kantiano para
falar dos diferentes tipos de representação e ele próprio proceda a algumas dis-
tinções (por exemplo, entre hipótese e ficção), na verdade tende a usar a sua
noção de ficção de um modo vago e a cobrir com ela coisas que para Kant eram
realmente diversas, como as intuições do espaço e do tempo, as categorias do
entendimento, os conceitos morais, as ideias da razão, os postulados da razão
prática, as noções e os símbolos religiosos. Tudo isso é da ordem da ficção. Mas
sê-lo-á da mesma maneira? Vaihinger anota amiúde a necessidade de atender a
passagens a que segundo ele ninguém prestara atenção, como aquela em que, no
Apêndice à Dialéctica Transcendental da sua primeira Crítica, Kant sugere uma
espécie de esquematismo da razão, por analogia com o esquematismo do
entendimento, como sendo um processo mediante o qual a razão faz correspon-
der um objecto à sua ideia, mas apenas como «uma coisa transcendental», como
um mero «esquema da ideia enquanto princípio regulativo» (dieses transzen-
39
dentale Ding ist Schema jenes regulativen Prinzips). Mas nunca verdadeiramente
se detém a pensar o que está envolvido nesse complexo processo. Ao tentar
compreender a lógica específica do modo de pensar que Kant diz pela recorrente
expressão «como se», Vaihinger declara não ter encontrado ajuda nem em Kant

38
KrV B 700, Ak III, 444.
39
KrV B710, AkIII, 449.

192
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

nem em nenhum lógico. E, baseando-se em algumas passagens dos escritos


kantianos, nomeadamente da Introdução à Lógica e também da Crítica da Razão
Pura, acusa o próprio Kant de hesitação e de falta de clareza, em particular no
que respeita à noção de ficção, que, segundo ele, o filósofo tende a confundir
com a de hipótese, e à noção de juízo ficcional, que tende a considerar como
sendo uma forma de juízo problemático. Essa hesitação e falta de clarificação,
por parte do filósofo, impede, segundo ele, a correcta compreensão de todo o
edifício da filosofia kantiana. Daí que Vaihinger se ocupe expressamente em
clarificar esses dois pontos: determinar a natureza do juízo ficcional e estabele-
cer a distinção entre hipótese e ficção. Segundo ele, o juízo ficcional não
exprime nem uma verdade teorética, nem uma verdade absoluta, mas uma ver-
dade prática e relativa, uma verdade que é apenas correcta em relação àquele
que a profere e ao fim que ele persegue, e cujo conteúdo, por conseguinte, só
40
com cautela e prevenção pode ser chamado «verdadeiro». A ficção tem apenas
uma utilidade prática, ao passo que a hipótese tem uma utilidade teorética. Uma
hipótese deve ser verificável. A ficção, pelo contrário, não pode ser verificável
nem confirmada pela experiência, mas pode justificar-se pelo serviço que presta
não só aos interesses práticos humanos como até à prática da investigação cien-
41
tífica.
Seja qual for o valor desta clarificação, é o seu próprio autor que, ao longo da
obra, a não respeita, aplicando o termo ficção indistintamente a todo o tipo de
representações, sejam elas as das ciências, as da filosofia ou as da religião. Tal
generalização e nivelamento estendem-se também aos tópicos para os quais Kant
apurara – e por vezes até instituira – uma linguagem específica (intuições, cate-
gorias, ideias, postulados, esquemas, símbolos), ou procedera a estratégicas dis-
tinções metodológicas (mundo sensível / mundo inteligível, fenómeno / noumeno,
constitutivo / regulativo, determinante / reflexionante). Para Vaihinger, tudo isso é
abrangido pelo “como se” e cai sob a sua muito generosa noção de ficção, junta-
mente com os pressupostos da moralidade (reino dos fins, dignidade da humani-
dade, liberdade), as noções da filosofia kantiana do direito e da política, os tópicos
da filosofia kantiana da religião. Mas nunca ele se detém um pouco a tentar perce-
ber a diversa intencionalidade desses conceitos, os diferentes planos em que fun-
cionam, a legitimação que nessa específica função os qualifica.
Apesar de assim tendencialmente reduzida ao modo de pensar do «como
se» e interpretada como um ficcionalismo generalizado não fica, contudo, des-
valorizada a filosofia kantiana. Pelo contrário, segundo Vaihinger, ela representa
o ponto máximo que atingiu o pensamento humano na sua máxima pureza: a
consciência de que vive de ficções de que sabe ser ele mesmo autor. Vejamos, a
40
Die Philosophie des Als Ob, pp.143 ss.
41
Ibidem, pp.152 ss.

193
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

propósito, esta passagem em que Vaihinger comenta o trecho da Fundamentação


da Metafísica dos Costumes, onde se fala da “dignidade da humanidade como
uma simples ideia”. O texto de Kant é o seguinte:
Nisto reside precisamente o paradoxo, que a simples dignidade da humani-
dade enquanto natureza racional, sem qualquer outro fim ou vantagem a
atingir por meio dela, por conseguinte o respeito por uma mera ideia deva
servir de prescrição imprescindível da vontade, e que precisamente nesta
independência das máximas relativamente a tais móbeis resida a sublimi-
dade da mesma e a dignidade de cada um dos sujeitos racionais consista em
42
ser um legislador no reino dos fins.
Eis o comentário de Vaihinger:
Nesta passagem magnífica alcançou Kant o ponto mais alto absoluto da sua
filosofia crítica: a dignidade da humanidade, o reino dos fins são – como
reconhece e ensina Kant – “meras ideias”, por conseguinte, conceitos sem
qualquer «valor de realidade» (Realitätswert), apenas “ficções heurísticas”,
apenas «maneiras de ver» (Betrachtungsweise), apenas um «ponto de vista»
(Standpunkt); pode, deve e tem de ser assim considerado, como se assim
fosse: todavia, apesar deste juízo acerca da natureza ficcional destes modos
de representação, o homem enquanto “ser racional” orienta o seu agir por
estas ficções. Aqui chegámos ao cume mais alto que o pensamento kantiano
e o pensamento humano alguma vez atingiu. Apenas poucos, apenas os
escolhidos podem ainda respirar nestas alturas: a grande massa necessita de
43
um outro ar mais denso.

3. Nietzsche, um kantiano sem o saber

E já que estamos nestas alturas de ar rarefeito, onde habitam só aqueles espíritos


fortes a quem também se dirige o Zaratustra nietzscheano, passarei a um outro
aspecto que a hermenêutica vaihingeriana do “als ob” kantiano proporcionou: o
reconhecimento de uma genealogia kantiana do programa filosófico de Nietzsche.
Em apêndice à edição da sua obra que estamos a comentar, Vaihinger inclui
um «Apêndice sobre Kant e Nietzsche», o qual, na verdade, é um ensaio sobre
Nietzsche, intitulado “Nietzsche e a sua doutrina da ilusão conscientemente
querida” (“A Vontade de Aparência”). Não era a primeira vez que Vaihinger se
ocupava da filosofia de Nietzsche. Sobre ela já publicara um volume, dois anos
após a morte do filósofo, lendo-o aí precisamente «enquanto filósofo» (Nietzsche

42
Grundlegung, Ak IV, 439.
43
Die Philosophie des Als Ob, p.652.

194
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

44
als Philosoph, 1902). Como ele próprio confessa, no Prefácio a Die Philosophie
des Als Ob, a sua descoberta do Nietzsche filósofo não foi precoce: «Quando, no
final dos anos 90, eu li Nietzsche, relativamente ao qual até aí me mantivera
distante, [...] reconheci com alegre admiração uma profunda afinidade entre a
sua e a minha compreensão da vida e do mundo, a qual em parte se explica pelas
45
mesmas fontes: Schopenhauer e F. A. Lange.» Mas agora uma terceira fonte
comum se explicita: a mediação kantiana e o tema do “als ob”. O que, segundo
Vahinger, sobretudo liga Nietzsche a Kant é o tema das ficções – a doutrina das
representações conscientemente falsas e todavia necessárias, aquilo a que
Nietzsche chamará a “vontade de ilusão” (ou de aparência) e que contraporá à
“vontade de verdade” que dominou todo o pensamento ocidental, na ciência e
na filosofia. No seu Apêndice sobre Nietzsche, Vaihinger propõe-se mostrar
como a ideia de ficção trabalha toda a filosofia de Nietzsche, da mesma forma
que antes mostrara que a doutrina do “als ob” trabalha em profundidade e
extensão toda a obra de Kant. O que resulta desta leitura de Nietzsche é a rei-
vindicação deste para a história do neokantismo, pela via aberta por Lange e
trilhada também pelo próprio Vaihinger. Com o seu estilo peculiar, Nietzsche é
um kantiano que se ignora e que também os contemporâneos ignoraram, porque
se deixaram ludibriar com as críticas pontuais mas por vezes ferozes que o cria-
dor de Zaratustra dirigiu contra Kant e a sua filosofia. No fundo, porém, segundo
Vaihinger, a doutrina nietzscheana da ilusão é inspirada por Lange e pela inter-
pretação que este fizera de Kant. Documenta essa mediação com uma carta de
Novembro de 1866 a Hermann Muschacke, na qual Nietzsche faz esta declara-
ção: «A mais significativa obra filosófica que saiu no último decénio é sem
dúvida a História do Materialismo de Lange, acerca da qual eu poderia escrever

44
Hans Vaihinger, Nietzsche als Philosoph, Halle, 1902 (nova edição com anotações de
Gerhard Bleick, Porta Westfalica, Books on Demand, Norderstedt, 2002). A obra conhe-
ceria três edições até 1904. Todavia, nas duas primeiras edições, não há qualquer refe-
rência à relação de Nietzsche com Kant, embora a haja sim a respeito de Schopenhauer e
de Darwin. Porém, a terceira edição de 1904 traz um «Apêndice», no qual o autor dedica
um parágrafo de meia dúzia de linhas para dizer que Nietzsche não foi só um antiplató-
nico, mas também um «antikantiano» e mesmo «um dos mais acutilantes e também
mais injustos adversários de Kant»: «Nietzsche ist aber nicht bloss Antiplatoniker, er ist
auch Antikantianer, und einer der schärfsten und wohl auch ungerechteste Gegner Kants.»
(ed. Bleick, 2002, p. 46). O tópico kantiano aí destacado como sendo aquele contra o
qual se dirigem os principais ataques de Nietzsche é o da «coisa-em-si»: «Kant hat die
Objekte der alten Metaphysik aus erkennbarem Seienden in unerkennbare “Dinge an
sich” verwandelt. Aber auch diese Lehre ist gegen Nietzsches Sinn, und Nietzsches Sinn
ist gegen sie. Diese Lehre ist ihm nur verkappte Metaphysik, und so kämpft er gegen sie,
wie auch fast gegen alle anderen Positionen Kants. In Platon und Kant, wie überhaupt in
den Metaphysikern sieht Nietzsche Vertreter der Idee des Unbedingten, des Absoluten,
und gerade gegen diese Ideen richtet er die Pfeile seines Spottes.» (ed. Bleick, 2002, p.46).
45
Ibidem, Prefácio, X.

195
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

um longo elogio. Kant, Schopenhauer e este livro de Lange – eu não preciso de


46
mais nada.»
Vaihinger punha assim em evidência a origem kantiana ou, se se prefere,
neokantiana da doutrina de Nietzsche, mostrando que Nietzsche tem de facto
muito de Kant, por certo «não do Kant dos livros escolares... mas do espírito de
Kant, do autêntico Kant, aquele que viu a aparência até às suas mais profundas
raízes, mas que, tendo visto em profundidade a aparência, também viu e reco-
47
nheceu com consciência a sua utilidade e necessidade.»
O ensaio em questão constitui um levantamento do tema da ilusão e cone-
xos (a ficção, o perspectivismo, o como se, a metáfora, a mentira) nos escritos
das várias fases da vida de Nietzsche, apontando a proximidade com as posições
kantianas, sublinhando-a mesmo com declarações e exclamações enfáticas do
tipo: “ganz Kantisch!”. O ensaio termina com a ideia sugerida por alguns escri-
tos de Nietzsche do 3º período (Also sprach Zarathustra, Jenseits von Gut und
Böse, Genealogie der Moral, Götzendämmerung, Antichrist), de uma “metafísica do
como se” (Metaphysik des Als-Ob), a qual encarasse de frente a seguinte questão:
que papel desempenha a ilusão no todo do acontecer mundano e como se deve
considerar e valorizar este acontecer a partir do qual se produz necessariamente
a ilusão? Num tal programa, a ilusão seria concebida não já apenas como a
lógica do pensamento humano, mas como a lógica do mundo, como o próprio
jogo do ser consigo mesmo. Ela determinaria não já só a poética do espírito mas
a própria poética da vida e da realidade. A criação estética e a ilusão poética é
que nos permitiriam o melhor vislumbre acerca do modo da criação do ser como
um eterno representar e falsear. A vontade de aparência, de ilusão e de engano
revelar-se-iam assim como tendo mais profundidade metafísica do que a vontade
de verdade dos cientistas e metafísicos. E assim conclui Vaihinger: «Desde este
ponto de vista, a aparência não deve já ser lamentada e combatida pelos filóso-
fos, como foi até agora, mas, na medida em que é útil e valiosa e ao mesmo
tempo se evidencia como esteticamente intocada, a aparência deve ser afirmada,
48
desejada e justificada.» Não fosse a doença que o acometeu nos últimos anos e

46
«Das bedeutendste philosophische Werk, was in den letzten Jahrzehten erschienen ist,
ist unzweifelhaft Lange, Geschichte des Materialismus, über das ich eine bogelange Lobrede
schreiben konnte. Kant, Schopenhauer und dies Buch von Lange - mehr brauche ich
nicht.». Nietzsche, Sämmtliche Briefe, Walter de Gruyter, Berlin, 1986, Bd.2, 184.
47
«Nietzsche hat tatsächlich sehr viel von Kant, freilich nicht von dem Kant, wie er in
den Schulbüchern steht (…), sondern vom Geiste Kants, des echten Kant, der den
Schein bis in seine tiefsten Wurzeln durchschaut, aber auch die Nützlichkeit und Not-
wendigkeit des durchschauten Scheins mit Bewusstsein erkennt und anerkennt.» Die
Philosophie des Als Ob, p.772.
48
«Von diesem Standpunkt aus ist der Schein nicht mehr wie bisher von den Philosophen
zu beklagen und zu bekämpfen, sondern der Schein ist, soweit er als nützlich und wertvoll,

196
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

Nietzsche teria inevitavelmente chegado ao caminho que havia sido tomado pelo
Kant que ele tão mal interpretou e que fora também percorrido por F. A. Lange,
49
de quem recebeu forte influência na juventude. Tal a convicção de Vaihinger.
A aproximação de Nietzsche a Kant é, sem dúvida, sugestiva e fecunda,
tanto para a hermenêutica da filosofia kantiana como da nietzscheana e para
uma reavaliação da relação desta com aquela. Mas precisaria de ser trabalhada de
modo a perceber-se melhor o teor desse diálogo incompreendido entre os dois
filósofos e o modo como o programa nietzscheano responde, por continuidade,
antítese ou aprofundamento, ao programa de Kant. O que no fundo une os dois
pensadores é a valorização que ambos atribuem à ficção poética e, graças a isso,
o reconhecimento da importância da poética da ficção como sendo o trabalho
fundamental da actividade criadora do espírito.

4. Da ficção poética à poética da ficção

O excurso por Nietzsche permite-nos assim o regresso à interpretação vaihinge-


riana de Kant e agora já com o intuito de esboçar uma apreciação crítica.
Apesar do estendal de ficções kantianas que nos expõe na sua obra, Vaihin-
ger não chega a dar-nos uma pertinente clarificação nem da sua natureza, nem da
sua função, nem da sua génese. Se as críticas demolidoras de Adickes à «Filosofia
do como se» se podem considerar exageradas e no fundo como reveladoras de
uma profunda incompreensão da proposta do velho professor de Halle, já as
observações críticas feitas por Cassirer ao programa vaihingeriano, no ensaio
acima citado, mantêm toda a pertinência. Reduzir o “como se” à noção geral de
ficção e ainda por cima atribuir a esta uma função apenas prática e não teórica não
ajuda muito a compreender a intencionalidade do “als ob” kantiano, o qual, se
não visa o conhecer ou conhecimento no sentido próprio e kantiano do «Erken-
nen», mantém-se todavia no plano do pensar ou do pensamento (Denken), pelo
menos na medida em que este é exercido como a reflexão do sujeito sobre as suas
próprias representações. Nesta reflexão há jogo e criação, há distanciamento. E é
esse distanciamento que impede que o sujeito, criador das suas ficções e aparên-
cias, seja enganado por elas, ou as tome pelo que elas não são nem podem ser.
Atento à dimensão estética da ilusão e da ficção em Nietzsche é quase
estranho que Vaihinger não tenha atendido a esse aspecto na filosofia de Kant.
Kant aborda esse problema no § 49 da Crítica do Juízo. O erro originário de Vai-
hinger parece estar em ter ele partido, por um lado, do pressuposto de que o “als
ob” e as ficções têm de ser explicadas como uma modalidade dos juízos lógicos

sowie als ästhetisch einwandsfrei sich herausstellt, zu wollen und zu rechtfertigen.» Ibidem,
p.788.
49
Ibidem, p.790.

197
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

e, por outro lado, por considerar a lógica como a mecânica do pensamento,


sendo as ficções os artifícios ou operações auxiliares dessa tecnologia do pen-
samento e o próprio pensamento considerado como uma função orgânica que
50
age em vista de fins. Vaihinger inscreve a sua doutrina das ficções numa mecâ-
nica biológica (será também isso uma mera ficção?), ao passo que Kant inscrevia
o seu “como se” e toda a vasta gama dos tópicos relacionados com o poder cria-
dor e ficcional do espírito no que se poderia chamar uma Heurística Transcen-
dental, que é solidária de uma poética transcendental do espírito. O autor de A
Filosofia do Como Se reconhece, por certo, o papel da imaginação, em geral, na
criação de ficções, como poderosa fonte não apenas da visão teorética do mundo
de onde brotam todas as categorias, mas também como origem da fé ideal e do
51
agir da humanidade , e não ignora a importância que Kant atribui à imaginação
52
transcendental. Mas entende ele próprio a imaginação como uma força psíquica
biológica, que produz as suas representações por um jogo mecânico com ima-
nente necessidade, «em conformidade com leis puramente mecânicas» (gemäss
rein mechanischen Gesetzen). Em Kant, a imaginação é produtiva e criadora de
formas, e o seu produzir e o seu criar acontecem segundo uma lógica espontânea
de «jogo livre» (com as representações) e, todavia, esse jogo espontâneo, não
ditado por regras, é ele mesmo pertinente, tem a sua lei interior, é «teleoforme»
(zweckmässig).
Mas, sobretudo, aquilo a que Vaihinger não deu suficiente atenção (tornando-
-se assim incapaz de compreender porventura o «als ob» kantiano e tudo aquilo
que ele indica) foi ao que Kant chamou a faculdade de julgar reflexionante. Penso
poder dizer-se que é o princípio de reflexão que gere toda a filosofia transcenden-
tal kantiana. É ele que está em acção na criação de ideias estéticas, nos raciocínios
por analogia, no esquematismo simbólico, no uso heurístico das ideias da razão ou
do princípio da teleologia da natureza, no «como se». O juízo de reflexão ou juízo
reflexionante não é um juízo de aplicação de conceitos dados a casos que nele são
subsumidos, mas é um juízo que implica sempre a invenção de uma nova relação,
seja ela sob a forma de uma imagem, de um símbolo, de um esquema, de uma
regra, ou de uma ideia. O princípio de reflexão é o próprio princípio de subjecti-
vidade heautonómica como consciência dos pressupostos do que está em jogo no
seu conhecer, no seu agir, no seu sentir estético, na sua compreensão. Mas porque
esse juízo não é meramente uma modalidade de juízo ficcional da lógica comum,
mas um juízo reflexionante de intencionalidade subjectiva, o sujeito ao fazê-lo
50
«O pensamento deve, pois, ser considerado como um mecanismo, uma máquina, um
instrumento ao serviço da vida. Esta concepção é mais importante para a lógica do que
parece à primeira vista, e por certo para a lógica como uma técnica do pensamento, não
como teoria do conhecimento.» Die Philosophie des Als Ob, p.7.
51
Ibidem, p.69.
52
Ibidem, pp.78-79.

198
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

ficciona, mas não se deixa enganar com as suas ficções. Ocorre aí algo análogo
àquilo que acontece nas criações da poesia, como de resto o reconhece Kant na
sua Crítica do Juízo: «Ela – a poesia – joga com a aparência que ela produz à von-
tade, sem contudo enganar através disso, pois ela explica a sua ocupação mesma
como mero jogo, o qual ao mesmo tempo pode ser usado pelo entendimento e
53
para a ocupação deste de forma teleoforme.» Tal como mais tarde o poeta portu-
guês Fernando Pessoa, que se reconhecia um «poeta impulsionado pela filosofia»,
dirá que «o poeta é um fingidor», assim também Kant, o filósofo bem consciente
dos processos criativos ou poéticos do espírito humano, poderia dizer que o filó-
sofo é um fingidor e que as suas ficções ou invenções (Dichtungen) são precisa-
mente as ideias da razão, as quais não são capazes de iludir ou enganar um filó-
sofo crítico e têm mesmo uma função importante na economia da razão humana.
Cite-se uma passagem do discurso kantiano, no qual o filósofo joga com a ambi-
guidade dos termos latinos «lusus», «ludus», «ludere», de onde provêm também
«illusio», «ludibrium», «ludificari»:
Há certas imagens das coisas com as quais a mente joga sem por elas ser
enganada, e o artista não propõe aos incautos o erro, mas a verdade envol-
vida com a veste da aparência, a qual não ofusca o seu hábito interior, mas
exibe-a aos olhos decorada, não defrauda com adorno e enganos os ingé-
nuos e crédulos, mas, usando as luminosas belezas sensíveis, põe em cena a
árida e seca imagem da verdade pintada com cores sensíveis... A imagem
que engana, uma vez descoberta a sua vacuidade e ludíbrio, desaparece;
mas aquela que ilude, dado que não é senão a verdade fenoménica, mesmo
quando é realmente descoberta, não deixa de permanecer e ao mesmo
tempo mantém num agradável movimento o ânimo fazendo-o como que
flutuar nos confins entre o erro e a verdade e estimula-o admiravelmente
pois ele está consciente da sua sagacidade contra as seduções da aparência.
54
A imagem que engana desagrada, a que ilude agrada ainda mais e deleita.

53
Kritik der Urteilskraft § 53, Ak V, 326-32: «Sie spielt mit dem Schein, den sie nach
Belieben bewirkt, ohne doch dadurch zu betrügen, den sie erklärt ihre Beschäftigung
selbst für blosses Spiel, welches gleichwohl vom Verstande und zu dessen Geschäfte
zweckmässig gebraucht werden kann.» Veja-se: Valerio Rohden. «Aparências estéticas
não enganam – Sobre a relação entre juízo de gosto e conhecimento em Kant», in: R.
Duarte (org.), Belo, Sublime e Kant, Editora da UFMG, Belo Horizonte, 1998, pp.54-86.
54
«Sunt autem quaedam rerum species quibus mens ludit non ab ipsis ludificatur. Per
quas artifex non incautis propinat errorem sed veritatem veste apparentiae indutam quae
interiorem ipsius habitum non obfuscat sed decoratam oculis subiicit, quae non fuco et
praestigiis frustratur imperitos et credulos sed sensuum luminibus adhibitis ieiunam et
exsuccam veritatis speciem coloribus sensuum perfusam in scenam peducit. [...] Species
quae fallit perspecta ipsius vanitate et ludibrio evanescit sed illudens cum non sit nisi
veritas phaenomenon perspecta reipsa nihilo minus durat et simul animum in erroris ac

199
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

Estas considerações tece-as Kant num discurso de arguição de uma disser-


tação académica, apresentada na sua Universidade a 27 de Fevereiro de 1777, de
um tal Johann Gottlieb Kreutzfeld, intitulada Dissertatio philologico-poetica de
55
principiis fictionum generalioribus. O vocabulário que Kant usa neste seu dis-
curso para falar das ilusões ou ficções poéticas é muito variado: «ludibria»,
«fictas rerum species», «apparentia», «illusio», «veritas phaenomenon». A dis-
sertação em apreço definia no seu § 1 a “fictio” poética como «qualquer opinião
poética congruente não tanto com a verdade objectiva ou absoluta quanto com a
aparente ou relativa» (qualiscunque opinio poetica, non tam veritati objectivae, seu
56
absolutae, quam apparenti seu relativae congrua.) É muito significativo que a
posição exposta pelo filósofo arguente seja muito mais favorável e compreensiva
para com o aspecto positivo das ficções poéticas do que a desenvolvida pelo
autor da dissertação em apreço. O tópico, como facilmente se reconhecerá, é
quase tão antigo quanto a filosofia e teve na obra de Platão a sua primeira grande
formulação sob a forma do processo movido contra os poetas e as suas mentiro-
57
sas ficções, um processo decidido aí a favor dos filósofos e da sua verdade.
Contudo, apesar do veredicto platónico, esse processo mantém-se em aberto ao
longo de toda a história da filosofia. Kant intervém nele e de forma qualificada e
é bem significativo que reconheça a pertinência das ficções, sejam estas as dos
poetas ou as dos filósofos.

veritatis confiniis quasi fluctuantem suaviter movet sagacitatisque suae contra apparen-
tiae seductiones conscium mire demulcet. Species quae fallit displicet quae illudit placet
admodum et delectat.» Kant, Entwurf zu einer Opponenten-Rede, Ak XV, 2, 906-907.
55
Este discurso foi pela primeira vez publicado por Arthur Warda, no Altpreussische
Monatschrift 47 (1910), 662-670 e, pouco depois, Bernhard Adolf Schmidt ofereceu a
respectiva tradução alemã («Eine bisher unbekannte lateinische Rede Kants über Sin-
nestäuschung und poetische Fiktion») em Kant-Studien XVI (1911), 5-21. O discurso de
arguição de Kant e a dissertação de Kreutzfeld foram publicados no vol. XV (tomo 2,
pp.903-935) dos Kants gesammelte Schriften da Akademie-Ausgabe. Existe tradução ita-
liana das duas peças, acompanhada de um estudo interpretativo por M. T. Catena: I.
Kant – J. G. Kreutzfeld, Inganno e illusione. Un confronto accademico, Ed. Guida, Napoli,
1998, pp.41-62. Uma mais recente tradução italiana anotada do discurso kantiano é
proposta por Oscar Meo em Apêndice à sua obra: Kantiana minora vel rariora, Il Melan-
golo, Genova, 2000, pp.113-132. Uma tradução inglesa do discurso de Kant por T.
Meerbote - I. Kant, Concerning Sensory Illusion and Poetic Fiction – integra o volume
Kant’s Latin Writings. Translations, Commentaries, and Notes, ed. por L. W. Beck em
colaboração com M. J. Gregor, R. Meerbote, J. A. Reuscher, Peter Lang, New York, 1992,
pp.161-183.
56
Ibidem, Ak XV.2, 904.
57
É conhecido o processo instaurado por Platão aos artistas e aos poetas, na República
(599a-602e, passim). Mas a posição platónica pode não suportar uma leitura tão sim-
plista, sobretudo se atendermos a uma passagem de Leis (817 a-c) onde os filósofos é
que são propostos como sendo os genuínos poetas que inventam e põem em cena a
autêntica tragédia, aquela que imita a vida mais verdadeira, mais bela e excelente.

200
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

A concepção kantiana da ficção poética – das criações da imaginação – tem


o seu mais elevado desenvolvimento no § 49 da Crítica do Juízo, onde se trata
das «ideias estéticas», as quais são apresentadas como ‘pendant’ das ideias da
razão: se estas apontam para um objecto, ao qual nenhuma intuição da sensibili-
dade pode alguma vez corresponder, aquelas oferecem uma representação da
imaginação à qual não corresponde nenhum conceito determinado e que não
pode ser completamente tornada inteligível e descrita por nenhuma linguagem.
Através das ideias estéticas, por si produzidas segundo leis de analogia, a imagi-
nação põe a razão em movimento e fornece às ideias desta, em vez de conceitos
lógicos, representações que dão vida ao espírito e lhe abrem a vista para um ili-
mitado campo de representações entre si aparentadas. Essas ideias estéticas
(símbolos, metáforas, alegorias...) não dão nada a conhecer, mas «dão muito a
58
pensar» (viel zu denken veranlassen).
Embora tornado público pela primeira vez um ano antes de Vaihinger ter
publicado a sua obra sobre as ficções do espírito, o professor de Halle já não pôde
aproveitar em abono do seu ficcionalismo e da sua interpretação de Kant o citado
discurso de arguição de Kant a respeito da dissertação de Kreutzfeld sobre as ficções
poéticas, a qual lhe daria ainda mais razões para a sua aproximação de Nietzsche
com Kant ou de Kant com Nietzsche. Se pudesse ter tido em consideração esta peça,
talvez tivesse chegado a reconhecer que, para Kant, a ficção-tipo é a ficção poética
ou estética e que é esta que pode, na verdade, iluminar todas as outras ficções, sejam
59
as da metafísica, as da moral ou as da religião. Mas também é certo que poderia
bem ter chegado a essa conclusão por uma leitura mais demorada de alguns pará-
grafos da Crítica do Juízo, nomeadamente, daqueles que acabamos de citar. Já mais
do que um comentador fez notar o uso relativamente escasso que Vaihinger faz
60
desta obra. E, todavia, mais do que em qualquer outra, é nela que Kant expõe o
trabalho criador da imaginação como um «jogo», como um exercício de «faz de
conta», de «como se»: no juízo estético sobre as obras da arte humana, estas, para
serem consideradas como autênticas obras de arte, têm de ser apreciadas como se
fossem natureza (isto é, como se não fossem o resultado da produção intencional de
um artista) e, em contrapartida, na apreciação estética e teleológica que fazemos a
58
Kritik der Urteilskraft, Ak V, 315.
59
Veja-se: Eva Shaper, «The Kantian ‘As-if’ and its Relevance for Aesthetics», Proceedings
of the Aristotelian Society, New Series, vol. LXV (1964-1965), 219-234; Ulrich Müller,
«Objektivität und Fiktionalität. Einige Überlegungen zu Kants ‘Kritik der Urteilskraft’,
Kant-Studien 77 (1986), 203-223.
60
Veja-se: Eva Schaper, Ibidem, p.226: «Vaihinger devoted a large part of his book to an
investigation of Kant’s work in order to document the fictive method without so much
as mentioning the «Critique of Aesthetic Judgement». Yet here, if anywhere, one would
have thought, Kant was unambiguous in employing proposals to consider the content of
experience in an as-if fashion.»

201
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

respeito da natureza, seja a propósito das suas formas belas ou dos seus produtos
organizados, devemos considerar a natureza como se ela fosse arte ou mesmo
61
artista. É a própria estrutura do juízo estético que é da ordem do «como se». E é
mediante esse jogo ficcional que se resolvem as principais antinomias identificadas
por Kant na sua terceira Crítica: entre a pretensão de validade universal e objectiva
do juízo estético e o seu carácter de sentimento meramente privado; entre o idea-
lismo e o realismo da finalidade acerca da beleza da natureza; entre a consideração
mecânica e a apreciação teleológica da natureza como um sistema organizado de
fins. A faculdade de julgar estética joga na ambiguidade, mas é uma ambiguidade
consciente dos seus pressupostos e dos seus limites. E o seu jogo, laborando embora
com ficções, não é contudo um jogo no vazio: é um jogo criador, não, por certo, dos
objectos, mas das suas representações, representações elas mesmas pertinentes e
com sentido, ainda que nenhum objecto em concreto lhes corresponda adequada-
mente.
O ficcionalismo entende-se melhor se não pretender dar-se por uma metafí-
sica ou uma gnoseologia, mas se reconhecer como sua matriz de origem uma
62
genuína inspiração estética. E o próprio Vaihinger parece ter chegado muito
mais tarde a reconhecer isso mesmo. No ensaio auto-interpretativo, acima citado,
ao esclarecer a expressão «idealismo positivista» com que designava o seu pro-
grama filosófico e que fora geralmente mal interpretada, ele escreve:
’Idealismo’ significa neste contexto originariamente o mesmo que F. A. Lange
chamou ‘o ponto de vista do ideal’: a livre instituição de valores absolutos
ideais que estão para além da realidade empírica com a consciência de que pre-
cisamente estes valores são apenas construções da nossa activa fantasia, mas,
contudo, por outro lado, constituem uma parte essencial da nossa vida íntima
e exterior. ‘Idealismo’, pois, neste contexto, não deve ser entendido nem num
sentido metafísico nem num sentido gnoseológico, mas num sentido ético ao
qual se associa o estético. […] Sobre o que é empiricamente dado, estabelece-
mos nós, mediante a livre criação, o não dado, o irreal, que vivenciamos como
se fosse real, ainda que saibamos que não é real: o mundo como se, o mundo
dos valores ideais éticos e estéticos, isto é, aquele mundo somente por causa do
qual vale a pena interessarmo-nos pelo admirável complexo de sensações e de
63
movimentos a que chamamos a vida ou o mundo.

61
Kritik der Urteilskraft § 45, Ak V, 306.
62
Embora Vaihinger não deixe fora de consideração as ficções poéticas, na sua versão
original, a doutrina vaihingeriana do als ob e da ficção tem uma inspiração pragmática e
utilitária – «prática», segundo a linguagem do próprio –, e não o sentido originaria-
mente estético e reflexionante que lhes atribui Kant.
63
«‘Idealismus‘ bedeutet in diesem Zusammenhange prinzipiell dasselbe, was F. A.
Lange‚ ‚Standpunkt des Ideals‘ genannt hatte: die freie Setzung ideeller, d. h. über die

202
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

Ao limite, todas as representações do espírito podem ser tidas por ficções.


Mas porque é que umas apenas nos enganam e acabamos por abandoná-las
como simplesmente erradas ou falsas, enquanto outras, embora iludindo-nos e
sabendo nós que nos iludem, são apesar disso não só agradáveis como também
estimulantes para a vida do espírito, e este não as deita fora, mesmo se as reco-
nhece como sendo apenas ficções, por si de qualquer forma inventadas? A distin-
ção kantiana que se encontra no citado discurso de arguição de uma tese sobre
as “ficções poéticas” não poderá ajudar-nos a compreender também a natureza
das ficções ou ilusões transcendentais da razão? Não poderá a estrutura ficcional
do juízo reflexionante estético projectar a sua luz também sobre os juízos da
razão naquilo que concerne aos conceitos que se referem a supostos objectos de
um mundo inteligível?
A pergunta impõe-se mesmo que tenhamos de deixar em suspenso a deci-
são a respeito da consistência e existência em si de um tal mundo inteligível.

empirische Wirklichkeit hinausgehender absoluter Werte mit dem Bewusstsein, dass


eben diese Werte zwar nur Gebilde unserer aktiven Phantasie sind, aber doch anderer-
seits einen notwendigen Bestandteil unseres inneren und äusseren Lebens ausmachen.
‚Idealismus‘ ist also in diesem Zusammenhange weder im metaphysischen noch im
erkenntnistheoretischen Sinne zu nehmen, sondern im ethischen Sinne, zu dem sich der
ästhetischen gesellt. [...] Aber über dieses empirisch Gegebene setzen wir durch freie
Schöpfung das nicht Gegebene, das Irreale, das wir so erleben, als ob es wirklich wäre,
obgleich wir wissen, dass es nicht wirklich ist: die Als-Ob Welt, die Welt der ethischen
und ästhetischen Wertideale, d. h. diejenige Welt, um deren Willen es allein sich lohnt,
an dem wunderlichen Empfindungs- und Bewegungskomplex, den wir das Leben oder
die Welt nennen, überhaupt sich zu beteiligen.» Hans Vaihinger, «Wie die Philosophie
des Als Ob entstand», in: Die Deutsche Philosophie der Gegenwart in Selbstdarstellungen,
B. 2, Leipzig, 1921, p. 212.

203
6
Metáforas da Razão e razão
das metáforas na filosofia de Kant

L’énigme du discours métaphorique c’est ... qu’il ‘invente’


au double sens du mot: ce qu’il crée, il le découvre; et
ce qu’il trouve, il l’invente.
Paul Ricouer, La métaphore vive, 301.

1. Iconófilos e iconoclastas

Jorge Luís Borges, que semeou pelos seus escritos tantas e tão luminosas refle-
xões a respeito do significado poético e especulativo da metáfora, abria e con-
cluía uma das suas belas e breves prosas com estas palavras: «Talvez a história
1
universal não seja mais do que a história de umas quantas metáforas».
Quero crer que se isto vale para a História Universal, com muito mais razão
ainda poderá valer para a História da Filosofia. É inspirado pelo mote do escritor
argentino que tentarei esboçar neste ensaio um capítulo desta história, seguindo
não a costumeira ordem dos problemas e respectivas soluções, das razões e
argumentos, dos conceitos e ideias, mas antes o fio condutor das imagens que
estruturam e entretecem a obra de um filósofo, que, à primeira vista, parece ser
de todos o mais refractário ao êxito de um tal empreendimento, pois é muito
comum pensar-se que precisamente ele protagoniza da forma mais radical o
programa de uma filosofia transcendental da razão pura que pretenderia ver-se
livre de todos os elementos empíricos e sensíveis.
A filosofia tem efectivamente um antiquíssimo e nunca definitivamente
resolvido conflito com as imagens e, tal como na história das religiões e da teo-
logia, assim também na História da Filosofia se poderiam alinhar alguns dos
mais importantes filósofos em duas tendências ou mesmo em dois partidos, o
dos iconoclastas e o dos iconófilos. Os primeiros – entre os quais, por certo, se
contariam Platão, Descartes, Hobbes, Berkeley, segundo alguns, até o próprio
Kant e, sem dúvida, Fichte e muitos mais – pregam contra o uso de imagens e
metáforas na filosofia ou recomendam a abstinência delas, seja porque rendidos
1
«La esfera de Pascal», in: Nueva Antologia Personal, Bruguera, Barcelona, 1980, p.197.

205
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

ao programa de uma racionalidade ascética que tem por paradigma a certeza e o


rigor da geometria, ou porque fascinados pelo ideal da pureza e da autonomia de
uma razão que pretenderia habitar as regiões puras das ideias sem mistura de
corporalidade, de empeiria, de sensibilidade e, se possível, até sem precisão de
2
palavras. Os outros, que pertencem a uma família muito mais heterogénea,
aceitam-nas por uma razão ou por outra: seja por mera condescendência peda-
gógica com os pobres humanos, demasiado rudes para poderem entender os
abstractos conceitos, ou porque pensam que a verdade, sendo inacessível em si
mesma, só se dispensa aos humanos disfarçada sob a veste das palavras ou
envolta no véu dos símbolos e metáforas; seja ainda por efectivo reconhecimento
de que a faculdade humana de conhecimento não pode prescindir delas, ou
mesmo porque chegaram a convencer-se de que realmente é a “vontade de ilu-
são” e de ficção que comanda toda a poética do espírito, mesmo a daqueles filó-
sofos consumidos pelo zelo do pensamento puro e que pensam ser movidos
apenas pela “vontade de verdade”.
Mas o que é interessante, e que também dá que pensar, é o facto de que
mesmo aqueles que pregam contra as imagens e as metáforas em filosofia fazem-
-no amiúde com imagens e metáforas, e os que condenam a retórica e defendem
a total inconciliabilidade da filosofia e da retórica fazem-no com subtis recursos
3 4
retóricos. Pense-se no Górgias de Platão , ou no Leviathan de Hobbes. Quantos
floridos e apaixonados discursos filosóficos não tem inspirado a apologia da
5
nuda veritas ou a condenação da veritas fucata! E isso não ocorre com os que
poderiam ser tidos como pensadores menores, mas precisamente com alguns
2
Tenham-se presentes como exemplos paradigmáticos desta atitude: o «chorismos psyches
‘apó sómatos» de Platão (Fédon, 65a-69d), o «avertere/abducere mentem a sensibus» de
Descartes (Meditationes, ed. A-T, VII, 130-131); a declaração de Giovanni Pico della
Mirandola, na sua carta a Ermolao Barbaro (3 de Junho de 1485): «vivere sine lingua
possumus... prodesse potest infantissima sapientia» (Opera omnia, Basilea, 1557, reimpr.
Olms, Hildesheim, 1969, vol.I,352); ou a de Fichte em carta a Schiller de 27 de Junho de
1795: «Die Philosophie hat ursprünglich gar keinen Buchstaben, sondern ist lauter Geist.»
(Gesamtausgabe, Stuttgart, Bd. III, 336).
3
A condenação platónica das imagens e da retórica esconde, porém, uma subtil economia
das imagens e da retórica, como mostrou em obra recente Linda M. Napolitano Valditara,
Platone e le ‘raggioni’ dell’immagine. Percorsi filosofici e deviazioni tra metafore e miti, Vita
e Pensiero, Milano, 2007.
4
Veja-se o meu ensaio «Hobbes e as metáforas do Estado» (referência completa abaixo
na nota 9).
5
Veritas fucata – tal o título e o assunto de uma pequena, mas bem sugestiva peça do
humanista valenciano Juan Luis Vives (1522), na qual se expõe o conflito histórico entre
a filosofia (a verdade nua) e a literatura (a poesia, a retórica, a verdade adornada), prota-
gonizadas, respectivamente, por Platão e Homero, e se propõe um protocolo de reconci-
liação entre ambas. Juan Luis Vives, Obras Completas, trad. de Lorenzo Riber, Aguilar,
Madrid, 1948,vol. I, pp.883-893.

206
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

dos maiores. De tal modo assim é que nos acode ao espírito a reflexão que se
encontra condensada num fragmento atribuído a Demócrito, o qual põe os sen-
tidos a replicar à pretensiosa razão, que os despreza e desqualifica, nestes ter-
mos: «Pobre razão, que tanto te esforças por nos rebaixar, mas só podes fazê-lo
6
com os meios que nós mesmos colocamos ao teu dispor!»
A reflexão que aqui proponho é feita também tendo em conta a importância
que no pensamento contemporâneo vem sendo progressivamente reconhecida à
metáfora não só na filosofia, em geral, mas igualmente nos textos filosóficos.
Mencionarei apenas três obras que, desde perspectivas diferentes, puseram este
tópico no centro dos debates filosóficos recentes sobre a condição linguística,
metafórica e até literária da filosofia e do pensamento: Paradigmen zu einer
Metaphorologie (Bonn, 1960) de Hans Blumenberg; La Mythologie Blanche. La
métaphore dans le texte philosophique (Poétique 5, 1971, 1-52; retomado em Marges
de la Philosophie, Paris, 1972) de Jacques Derrida; e La métaphore vive (Paris,
7
1975) de Paul Ricoeur. A prova mais recente deste interesse e igualmente do
reconhecimento da importância do tópico é o Wörterbuch der philosophischen
Metaphern, volume editado por Ralf Konersmann e publicado pela Wissenschaf-
tliche Buchgesellschaft de Darmstadt (Julho de 2007, do qual já saiu uma 2ª
edição em 2008 e uma 3ª em 2010). Mas, se um tal reconhecimento já existe – e
não apenas o da vaga importância filosófica da metáfora como tema de uma
filosofia da linguagem, mas também o da importância efectiva que tem a metá-
fora na estruturação semântica das obras e na linguagem dos filósofos e até na
8
dos cientistas –, também é verdade que, de um tal reconhecimento, até agora
não beneficiou muito a hermenêutica que se pratica das obras ou sistemas filo-
sóficos, sendo ainda raros os ensaios sobre a metafórica dos pensadores e sobre
o modo como ela se entretece na estrutura das suas obras e do seu pensamento,
não como um estorvo, mas oferecendo-se antes como um fecundo campo de
possibilidades heurísticas e hermenêuticas.
Em alguns dos meus estudos tenho ensaiado uma interpretação da obra ou
de aspectos da obra e do pensamento de alguns filósofos modernos (de Descar-
tes e Hobbes, mas sobretudo de Kant), partindo da linguagem na qual nos é

6
H. Diels, Die Fragmente der Vorsokratiker, 125 (ed. W. Kranz, Berlin, 1952, Bd.II, 168).
7
Estas obras, porém, eram mais filosofias da metáfora e não se ocupavam de reconhecer ou
de estudar o funcionamento da metáfora nos textos das grandes obras filosóficas. Só Blu-
menberg dedicará especial atenção também a este aspecto em várias das suas obras e ensaios.
8
Do já consensual reconhecimento da importância do tópico também no discurso das
ciências fala bem o Congresso a ele dedicado – Tropen und Metaphern im wissenschaftli-
chen Diskurs im Bereich der Geisteswissenschaften im 18. Jahrhunderts (Bergamo, 8-9 de
Outubro de 2009) – numa iniciativa conjunta de três Sociedades Científicas Europeias,
as Sociedades Francesa, Italiana e Alemã de Estudos do Século XVIII. Veja-se também:
Richard Boyd/Thomas S. Kuhn, La metafora nella scienza, Milano, 1983.

207
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

dado o respectivo pensamento, atendendo muito especialmente à rede de analo-


gias, de imagens e metáforas que estruturam e conduzem os seus sistemas filo-
sóficos, tomando-as tanto na sua dimensão poético-construtiva como na sua
9
dimensão retórico-comunicativa. Com isso, não foi meu propósito exibir o
salão de pinturas ou a Bildergalerie desses filósofos, mas antes pôr em relevo o
que poderia chamar-se a imagiologia transcendental que subjaz às suas obras e
que pode revelar-nos uma parte importante da estrutura mesma e do significado
peculiar do seu pensamento.
É uma breve síntese retrospectiva dessa estratégia hermenêutica o que aqui
vou propor, abordando o velho affaire da filosofia com as imagens tomando como
objecto da minha análise a obra de Kant, o filósofo que, dada a sua insistência na
ideia de uma «razão pura», se acreditaria estar muito mais do lado dos iconoclas-
tas em filosofia do que do lado dos iconófilos, mas cujo pensamento se nos revela
como estando de facto construído sobre uma complexa rede de metáforas e que,
além disso, demonstrou inequivocamente que o entendimento humano é um
intellectus ectypus, ou seja, um entendimento ou uma razão que, se pretendem dar
conteúdo e significação aos seus conceitos ou ideias, para isso necessitam de ima-
gens e hipotiposes da sensibilidade, seja como exemplos, esquemas, símbolos,
metáforas ou ideias estéticas; o pensador que, além disso, foi porventura o pri-
meiro que mostrou como em todo esse processo se leva a efeito um importantís-
simo trabalho criador da imaginação, faculdade que, seguindo as leis da analogia,
10
que têm a sua fonte na própria razão , descobre ou cria as afinidades entre os
seres ou entre as representações que deles faz. Por conseguinte, Kant e a sua filo-
sofia servem-me aqui como um caso exemplar para a análise da questão da relação
9
Refiro-me sobretudo aos meus livros e ensaios seguintes: Metáforas da Razão ou econo-
mia poética do pensar kantiano (Dissertação de Doutoramento, Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa, Lisboa, 1989), Fundação C. Gulbenkian / JNICT, Lisboa, 1994;
A razão sensível. Estudos kantianos, Colibri, Lisboa, 1994; Retórica da evidência ou Des-
cartes segundo a Ordem das Imagens, Quarteto, Coimbra, 2001; «Descartes e as origens da
concepção moderna da autonomia e pureza da razão» (in: E. Chitas e Adriana Serrão,
eds., Razão e Espírito Científico, Cátedra A Razão, Lisboa, 2004), retomado in: Leonel
Ribeiro dos Santos, O espírito da letra. Ensaios de Hermenêutica da Modernidade, INCM,
Lisboa, 2007, pp.169-205; «Hobbes e as metáforas do Estado», in: AAVV, Dinâmica do
Pensar. Homenagem a Oswaldo Market, Departamento de Filosofia da Universidade de
Lisboa, Lisboa, 1991, pp.217-242 (retomado in: O espírito da letra. Ensaios de Hermenêu-
tica da Modernidade, pp.207-243); «O espírito da letra: Sobre o conflito entre Schiller e
Fichte a respeito da linguagem da Filosofia e da natureza do Estético», Philosophica
19/20, 2002, pp.87-114 (retomado in: O espírito da letra. Ensaios de Hermenêutica da
Modernidade). Veja-se também o meu livro: Linguagem, Retórica e Filosofia no Renasci-
mento (Edições Colibri, Lisboa, 2004, pp.34-54), no qual analiso o conflito entre Gio-
vanni Pico della Mirandola e Ermolao Barbaro a respeito da linguagem da filosofia (De
genere dicendi philosophorum).
10
Kritik der Urteilskraft, § 49.

208
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

da razão com as suas imagens. É minha convicção que se se conseguir mostrar a


relevância estruturante que tem a metáfora na obra de um filósofo aparentemente
tão austero como é Kant, então será muito mais fácil convencer da importância
que pode ter a análise e o estudo das metáforas para se chegar ao significado e
conteúdo especulativos das obras de muitos outros filósofos.

2. Incontornabilidade, relevância e pertinência da metáfora

Ao reflectir agora sobre este assunto, estou numa situação muito mais confortá-
vel do que estava há cerca de três décadas, quando me ocorreu a ideia de uma
investigação sobre a metafórica kantiana, pois, nesta revisitação do tema, posso
contar já com o conforto proporcionado por alguns outros estudos que nos
últimos anos vieram confirmar aquilo que naquela época estava muito longe de
ser considerado sequer como um tópico pertinente para uma dissertação acadé-
mica. De facto, o reconhecimento da importância da linguagem metafórica na
filosofia de Kant foi praticamente inexistente ao longo do século XIX e, com
muito raras execpções, continuaria a sê-lo até ao último quarto do século XX. Os
primeiros leitores de Kant não foram sensíveis a este aspecto, mas foram antes
atingidos pelo efeito de atordoamento (Betaubung) provocado pela linguagem
kantiana da Crítica da Razão Pura, de que falava um dos primeiros recenseadores
da obra (Christian Garve), ou então foram incomodados pelo artificioso, estra-
nho, aparentemente arbitrário e perverso uso de termos tradicionais da metafí-
sica, desviados que eram do seu sentido corrente na linguagem dos filósofos, o
que logo criou a necessidade de publicar dicionários de filosofia kantiana. Her-
der, que havia sido aluno de Kant no início dos anos 60, na sua impiedosa
Metakritik zur Kritik der reinen Vernunft (publicada em 1799) em cuja Segunda
Parte (que trata da relação entre Vernunft und Sprache) se propõe precisamente
acusar o seu antigo mestre de desprezar a condição linguística da razão, quando
adverte a presença do metafórico nas páginas da Crítica, por exemplo, na ima-
gem do tribunal da razão, é para denunciar a impropriedade e falta de pertinên-
cia do uso dessa metáfora.
Foi Hans Vaihinger, num ensaio publicado na revista Kant-Studien do ano
de 1902, que propôs que se considerasse Kant não somente como um pensador
11
«metafísico» mas também como um pensador «metafórico». O ensaio comen-

11
«Dem Schlagwort, ‘Kant ein Metaphysiker’ kann man das gleichwertige gegenüberstel-
len: ‘Kant ein Metaphoriker’». H. Vaihinger, «Kant ein Metaphysiker?», Kant-Studien 7
(1902), 117. Na verdade, este ensaio constitui uma versão condensada (in Form eines
Auszugs) do ensaio com o mesmo título publicado em 1900 num Festschrift dedicado a
Sigwart (v. Bibliografia). A mais conhecida obra de Vaihinger, Die Philosophie des Als Ob,
só será publicada em 1911. Na sua publicação, vem seguida de um Anexo que constitui

209
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

tava uma recente obra de Friedrich Paulsen sobre Platão, na qual se sugeria a
comparação entre este filósofo grego e Kant enquanto metafísicos. Vaihinger
defende que a analogia entre os dois filósofos se deve estender também ao modo
como ambos expõem as respectivas filosofias: se o Platão metafísico utiliza mitos,
alegorias e imagens para expressar as suas ideias, também Kant expõe os princi-
pais tópicos da sua metafísica por meio de metáforas, ou sob o modo do «como
se» (als ob). O Professor de Halle, que já tinha dado provas de ser um minucioso
exegeta da Crítica da Razão Pura, fazia-se assim eco da perspectiva que o jovem
Nietszche havia exposto no seu ensaio de 1793 (publicado embora postuma-
mente em 1903), o qual se pode considerar como o verdadeiro «Discurso do
Método» da metafísica estética nietzscheana, sob o título Sobre a verdade e a
mentira num sentido extra-moral, onde, a certa altura, pergunta: «Que é, então, a
verdade?» –, ao que logo responde:
É um exército em movimento de metáforas, metonímias, antropomorfis-
mos, em suma, de relações humanas que foram realçadas, extrapoladas e
adornadas poética e retoricamente e que, após um prolongado uso, um
povo considera firmes, canónicas e vinculantes; as verdades são ilusões que
foram esquecidas como tais; metáforas que se tornaram gastas e perderam a
sua força sensível, moedas de que se apagou a efígie nelas cunhada e que já
12
não são mais consideradas como moedas, mas apenas como metal.
É neste mesmo ambiente que, por ocasião do primeiro centenário da morte
de Kant, Wilhelm Uhl, num dos primeiros e ainda hoje raros estudos acerca do
estilo do filósofo, ao mesmo tempo que constata o desinteresse geral dos críticos
e intérpretes por esse aspecto, escreve a dado passo: «O capítulo ‘Metáforas e
13
Imagens’ em Kant não foi ainda escrito.»

um importante (e talvez o primeiro sobre o tópico) ensaio sobre a relação entre Nietzs-
che e Kant, onde considera o autor de Also sprach Zarathustra como um genuíno kan-
tiano, o qual, por intermédio de Friedrich Lange (autor da Geschichte des Materialismus)
terá tido acesso ao significado da obra kantiana e que acolheu no seu pensamento, sem
ter tido plena consciência da sua dívida, precisamente aquele aspecto da filosofia kan-
tiana que se diz sob a fórmula do como se (als ob) e que o terá inspirado para a sua filo-
sofia da ficção e «vontade de ilusão». O mesmo Vaihinger havia publicado no ano de
1902 a obra que assinala a sua descoberta de Nietzsche como filósofo (Nietzsche als Phi-
losoph). Veja-se o meu ensaio «Hans Vaihinger: o Kantismo como um Ficcionalismo?»,
in: Leonel Ribeiro dos Santos et alli (org.), Kant: Posteridade e Actualidade, CFUL, Lisboa,
2006, pp.515-536. Veja-se, neste volume, o capítulo 5.
12
F. Nietzsche, Über Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinn, Sämtliche Werke, ed.
Colli-Montinari, W. de Gruyter, Berlin, Bd.I, 880-881.
13
«Das Kapitel ‘Metaphern und Bilder’ bei Kant ist noch nicht geschrieben.» W. Uhl,
«Wortschatz und Sprachgebrauch bei Kant», Zur Erinnerung an Immanuel Kant, Halle
a.S., 1904, 172.

210
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

Mas, de facto, esse capítulo – ou pelo menos o esboço desse capítulo –


tinha sido escrito por Rudolf Eucken, cerca de vinte anos antes, sob o título
Über Bilder und Gleichnisse bei Kant (1883). Eucken tinha estudado já a lingua-
gem de Aristóteles na sua dissertação latina do ano de 1866 (De Aristotelis
ratione dicendi, depois publicada em versão alemã com o título Über den Sprach-
gebrauch des Aristoteles), e publicara no ano de 1880 um sugestivo volume de
ensaios de metaforologia filosófica, intitulado Bilder und Gleichnisse in der Philo-
sophie. No referido ensaio de 1883, põe em relevo o alcance da metafórica kan-
tiana, sublinhando mesmo a particularidade do filósofo crítico nesse aspecto, na
medida em que ele não se limita a usar comparações feitas ou tradicionais, mas
cria ele mesmo as comparações que se adequam à sua filosofia e que por isso se
apresentam como um reflexo do seu sistema, ao ponto de se consubstanciarem
com ele. Escreve Eucken:
As imagens em Kant têm, à primeira vista, algo de trivial e prosaico, pode
inclusivamente parecer que nada contêm de significativo e de novidade.
Mas, à medida que as seguimos, quanto mais acompanhamos e percebemos
a sua conexão com os pensamentos que as orientam, mais visível se torna a
sua particularidade, mais nos convencemos de que elas servem novas ideias
14
e que, neste serviço, adquirem um sentido que as afasta do tradicional.
O estudo das metáforas revela-se, por isso, de particular importância para
ter acesso a uma mais adequada interpretação da filosofia kantiana. Elas ofere-
cem na economia de um relance uma ampla perspectiva que ilumina todo o
conjunto complexo dos problemas. Elas seguem o pensamento revelando-se
intimamente solidárias e conformes com ele. Particularmente interessante é a
constatação feita por Eucken de que as metáforas kantianas não são imagens
isoladas ou avulsas, mas organizam-se espontaneamente em círculos de repre-
sentações (Vorstellungskreise) como se formassem totalidades orgânicas ou
delimitassem campos semânticos estruturados. Escreve Eucken:
As imagens singulares apresentam-se como membros de um círculo mais
vasto e a relação entre coisa e comparação, entre o conceptual e o intuitivo
revela-se como uma relação de todo a todo, e é como tal que age.
Esta dimensão, por assim dizê-lo, sistemática e orgânica da metafórica kan-
tiana corresponde ao carácter sistemático e orgânico da filosofia e do próprio
filosofar kantianos. Por outro lado, Eucken parece ter entrevisto aquilo a que se
pode chamar a relação de homologia que existe entre o plano metafórico e o
14
«Über Bilder und Gleichnisse bei Kant. Ein Beitrag zur Würdigung des Philosophen»,
Zeitschrift für Philosophie und philosophische Kritik, 83 (1883), 161-193 (retomado in:
Idem, Beiträge zur Einführung in die Geschichte der Philosophie, Leipzig, 1906, 55-82
(passo citado, p. 81).

211
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

plano teórico, ao dizer que a relação entre o conceptual e o intuitivo é uma rela-
ção «de todo a todo». As metáforas não são meros instrumentos passivos do
pensamento, por este usados de forma arbitrária e ocasional. Elas têm a sua
autonomia própria, são regidas pela mesma economia que rege a produção do
pensamento do filósofo e por isso lhe são conformes (zweckmässig).
O ensaio de Eucken, sem pretender fazer uma exposição completa da
metafórica kantiana, destaca alguns dos mais significativos núcleos metafóricos
que se replicam nos escritos de Kant e indica um bom número de pistas meto-
dológicas que ainda hoje merecem a atenção de quem pretenda levar por diante
a investigação por ele iniciada. Mas, apesar de toda a sua pertinência, as suges-
tões de Eucken, Uhl e Vaihinger não tiveram qualquer efeito nas interpretações
subsequentes da filosofia kantiana até ao final dos anos 60 do século XX, altura
em que alguns intérpretes timidamente começam a redescobrir e a assinalar o
interesse do tópico.
Não obstante, há que dizer que, muito antes que os citados intérpretes se
tivessem dado conta do interesse da metáfora na obra de Kant, foi o próprio filó-
sofo crítico que deixou notada nos seus escritos a relevância que poderia ter
uma investigação aprofundada sobre a condição metafórica da linguagem da
filosofia. Fá-lo de modo explícito em mais do que um lugar, sendo o mais óbvio
de todos um passo do parágrafo 59 da Crítica do Juízo, no contexto da aclaração
da noção de símbolo e da distinção entre esquema e símbolo, considerados
como hipotiposes ou modos de sensibilização (Versinnlichung) dos conceitos ou
ideias, fazendo-lhes corresponder uma intuição, seja de um modo directo ou
indirecto. Escreve Kant:
Todas as intuições que se submetem a conceitos a priori ou são esquemas
ou símbolos; os primeiros contêm exibições [Darstellungen] directas do
conceito; os segundos, exibições indirectas. Os primeiros fazem-no demons-
trativamente; os segundos por meio de uma analogia (para a qual também
se utilizam intuições empíricas) na qual o juízo joga um duplo papel: em
primeiro lugar aplica o conceito ao objecto de uma intuição sensível e,
então, em segundo lugar, aplica a regra da reflexão sobre aquela intuição a
um objecto totalmente diferente, do qual o primeiro objecto é apenas o
15
símbolo.
Em seguida, o filósofo ilustra esse procedimento do juízo reflexionante
com um exemplo concreto:
Deste modo, um Estado monárquico, quando se rege por leis internas do
povo, representa-se como um corpo animado, mas quando o rege uma

15
Kritik der Urteilskraft § 59, Ak V, 352.

212
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

vontade única absoluta, representa-se mediante uma máquina (como, por


exemplo, um moinho manual), mas em ambos os casos só se representa
simbolicamente. Pois entre um estado despótico e um moinho manual não
há, por certo, qualquer semelhança, mas sim a há entre as regras para
reflectir sobre ambos e sobre a respectiva causalidade.
E Kant prossegue com uma declaração e uma constatação, nestes termos:
Este assunto foi até agora ainda pouco analisado, ainda que mereça uma
mais profunda investigação. [...] A nossa linguagem está cheia de tais exibi-
ções [Darstellungen] indirectas segundo uma analogia, por meio das quais a
expressão não contém o autêntico esquema para o conceito, mas apenas
um símbolo para a reflexão. Deste modo, as palavras fundamento [Grund]
(apoio, base), depender [Abhängen] (sustentado por cima), fluir [Fliessen] a
partir de (em lugar de seguir-se de), substância [Substanz] (como Locke a
entende: a portadora dos acidentes), e inumeráveis outras, não são hipoti-
poses esquemáticas, mas simbólicas, e não expressões para conceitos por
meio de uma intuição directa, mas somente segundo uma analogia com ela,
isto é, segundo a transferência a partir da reflexão sobre um objecto da
intuição para um conceito totalmente diferente, ao qual talvez nunca possa
16
corresponder directamente uma intuição.
Esta passagem é importante por várias razões. Em primeiro lugar, pela luz
que projecta sobre a poética do espírito, o procedimento em que intervêm e
colaboram a faculdade de julgar e a imaginação com as suas leis de analogia. As
metáforas e os símbolos, tal como as ideias estéticas, como o havia dito o filósofo
no § 49 da mesma obra, são inventados ou criados pela imaginação segundo leis
de analogia, mas não se dirigem aos sentidos, para que os vejam, mas antes ao
juízo reflexionante para que os aprecie e reconheça na sua inesperada e lumi-
nosa pertinência. Não interessa neles a correspondência dos objectos ou das
suas partes entre si, mas a descoberta ou invenção da regra que faz ver ou
explica o funcionamento de um deles e que, transposta para o outro de igual
modo de súbito o ilumina. O exemplo dado pelo filósofo é bem significativo,
pois torna visível duas lógicas muito diversas de funcionamento do Estado, a
mecânica e a orgânica, e de imediato salta à vista a riqueza semântica de uma em
contraste com a pobreza da outra – como pouco depois o explicitará o § 65 –, e
isso numa obra que precisamente tem o propósito de legitimar, frente ao mono-
pólio da racionalidade mecanicista, a racionalidade teleológica que pode dar
razão dos seres e sistemas orgânicos. Mas, além disso, não deixa de ser significa-
tivo o facto de que Kant trate a questão do símbolo e do processo da sua inven-

16
Ibidem.

213
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

ção no contexto da reflexão sobre o campo estético, embora os exemplos que


aduz sejam de categorias filosóficas e metafísicas. Isso pode significar que,
segundo o filósofo, na poética transcendental do espírito não há compartimentos
incomunicáveis e que, por fim, há uma identidade de procedimento da razão
(chame-se ela imaginação ou faculdade de julgar reflexionante) nas suas cria-
ções poéticas ou artísticas e nas suas criações metafísicas.
Kant tinha feito já antes uma exemplar anatomia do processo de metafori-
zação, tendo por objecto uma imagem espacial – a da orientação – sobre a qual
de resto está construído um dos seus ensaios: «Que significa orientar-se no pen-
samento?» Ou seja, como pode a razão conduzir-se no supra-sensível, para onde
é irresistivelmente levada pela sua natureza, mas onde lhe falta todo o apoio da
intuição e toda a referência a objectos, não possuindo aí mais nada além do sen-
timento subjectivo de uma necessidade que quer ver satisfeita?
O tópico é introduzido por uma reflexão a qual só por si seria suficiente
para justificar a tese que aqui defendo a respeito da importância das metáforas
na filosofia e quanto ao reconhecimento por parte de Kant da condição metafó-
rica de todo o pensamento humano, sobretudo do mais abstracto e metafísico.
Escreve Kant:
Por mais alto que consigamos elevar os nossos conceitos e desse modo
abstraí-los da sensibilidade, sempre lhes estão associadas representações de
imagens [bildliche], cuja função própria consiste em torná-los – a eles que
não são extraídos da experiência – aptos para o uso da experiência. Pois
como pretenderíamos nós dar aos nossos conceitos sentido e significação
[Sinn und Bedeutung], se não lhes puséssemos como fundamento uma qual-
quer intuição [Anschauung] (a qual por fim terá que ser sempre um exem-
plo de uma qualquer experiência possível)? Se, em seguida, a partir desta
acção concreta do entendimento, deixamos de considerar a mistura da ima-
gem, em primeiro lugar, a percepção contingente mediante os sentidos e,
depois, a pura intuição sensível, resta-nos aquele conceito puro do enten-
dimento, cujo âmbito foi ampliado e que contém uma regra do pensamento
17
em geral.
É esta «regra do pensamento» ou «regra de procedimento» – cuja invenção
se atribui aqui ao entendimento, mas que, como vimos, na Crítica do Juízo se
atribui à faculdade de julgar reflexionante e à imaginação – o que está na base
dos juízos de analogia e de toda a exposição simbólica ou metafórica das ideias
da razão. Não são as imagens que se comparam entre si ou com os conceitos do
entendimento ou com as ideias da razão, mas é essa regra do pensamento,
inventada ou descoberta pela própria imaginação ou, com a ajuda desta pelo

17
Was heisst: sich im Denken orientieren?, Ak VIII, 133.

214
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

entendimento ou pela faculdade de julgar exercidos no concreto, o que se cons-


titui como o terceiro termo mediador, o tertium comparationis, o qual assim
adquire uma universalidade análoga à de um conceito. Kant refere, nesse mesmo
lugar, que inclusivamente a Lógica – ou seja a ciência racional ou doutrina da
razão – está construída desse modo e sublinha a fecundidade da invenção de
metáforas para o trabalho do entendimento e da razão, na medida em que elas
oferecem à razão máximas para pensar sobretudo no pensamento abstracto e
propõem ao entendimento métodos heurísticos que podem conduzi-lo na inves-
18
tigação concreta da natureza.
E é assim que, ao intentarmos estudar as metáforas na obra kantiana, na
verdade somente estamos a cumprir um programa e a realizar uma tarefa que o
próprio Kant declarou merecer uma investigação em profundidade e dos quais
ele próprio deixou suficientes amostras nos seus escritos.

3. A mútua correspondência entre metáfora e pensamento

O estudo da metáfora na obra de um filósofo pode fazer-se sob diversos pontos


de vista e com diferentes estratégias. Mas o ponto de vista ou a estratégia que se
elegem dependem já da concepção que se tenha não apenas da metáfora e da
linguagem mas também da relação entre o pensamento e a sua linguagem. Pode
considerar-se a metáfora e a linguagem somente como a roupagem dos concei-
tos, com uma condição subalterna e sobredeterminada por estes, como utensí-
lios, auxiliares didácticos ou de mera ilustração enfática de uma ideia. Ou então
podemos ver o pensamento e as imagens numa relação de recíproca correspon-
dência ou conformidade. Creio que para compreender adequadamente a relação
que numa obra filosófica possa existir entre metáfora e teoria, a primeira coisa
que devemos evitar é considerá-las como se fossem determinadas unilateral-
mente uma pela outra. Nem a teoria é mero resultado das virtualidades semânti-
cas do respectivo tecido metafórico, nem a metáfora é mero instrumento ou veí-
culo de exposição da teoria. A relação é antes de interacção recíproca, aberta e
livre. O que quer dizer que a metáfora, abrindo o campo semântico da teoria,
não o esgota nem o encerra num círculo restrito de significações. E, por sua vez,
a teoria, fixando um âmbito de inteligibilidade no qual e a partir do qual tam-
bém a metáfora deve, por fim, ser compreendida, não pode fazê-lo sem que, em
cada sua determinação, acorde a memória das imagens. Por outras palavras: a
18
Ibidem: «Auf solche Weise ist selbst die allgemeine Logik zu Stande gekommen; und
manche heuristische Methode zu denken liegt in dem Erfahrungsgebrauche unseres
Verstandes und der Vernunft vielleicht noch verborgen, welche, wenn wir sie behutsam
aus jener Erfahrung herauszuziehen verständen, die Philosophie wohl mit mancher
nützlichen Maxime selbst im abstracten Denken bereichern könnte.»

215
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

teoria, uma vez constituída, não dispensa as metáforas com que se construiu,
como se fossem andaimes, necessários porventura para a sua construção, mas
inúteis e dispensáveis uma vez concluída. Pelo contrário, elas são da sua essên-
cia e continuam a pertencer à sua peculiar constituição e significado especulati-
vos, sempre que estes tenham que ser explicitados. Caracterizei esta modalidade
de recíproca pertinência, correspondência e interacção que suponho existir
entre metáfora e teoria, dizendo que se trata de uma relação de mútua corres-
pondência ou de homologia, e não de sobredeterminação de uma pela outra,
como se, primeiramente, o filósofo tivesse construído a sua teoria e só depois
procurasse a linguagem adequada para a expor. Com isso, quis sublinhar, em
primeiro lugar, que um mesmo é o princípio que rege tanto a criação ou inven-
ção das metáforas como a produção do pensamento de um filósofo. E, em
segundo lugar, que há unidade entre o conteúdo e a forma, tomando aqui por
conteúdo o pensamento ou teoria e, por forma, a expressão linguístico-literária
propriamente dita. O como se transmite faz parte integrante do que é transmi-
tido. Quando apropriada, uma metáfora não só dá a ver na sua economia intui-
tiva toda a exposição do ponto de vista de um filósofo, como permite penetrar
na própria textura e conteúdo dos seus argumentos. A metáfora revela-se impreg-
nada do pensamento que ela mesma exprime. E por sua vez o pensamento leva
consigo a marca indelével da metáfora que o exibe. Existe entre pensamento e
metáfora aquela relação de espontânea consonância e mútua conformidade ou
conveniência que, na linguagem de Kant, é designada pelas expressões Zusam-
menstimmung e Zweckmässigkeit. Pensamento e metáfora de tal modo se fundem
que, por fim, não é possível decidir onde termina um e começa a outra. Se trata-
mos de seguir o pensamento, enfrentamo-nos com a metáfora que nos entra pelos
olhos em cada página; mas se seguimos o fio condutor da metáfora, ele leva-nos
sem violência ao mais íntimo do pensamento.
Num dos seus ensaios do ano de 1795, escrito no rescaldo da sua polémica
com Fichte, uma polémica que tivera por motivo e objecto precisamente a lingua-
gem da filosofia, Friedrich Schiller exprimiu com grande acerto aquilo que estou a
tentar dizer. Contra Fichte, o filósofo da educação estética do homem declara que,
se se pretende obter uma rigorosa convicção a partir de princípios, não basta expor
a verdade somente segundo o conteúdo, mas a prova da verdade deve encontrar-se
também na forma mesma da sua exposição. Segundo Schiller, na exposição das
ideias deve dar-se a acção recíproca (Wechselwirkung) e não a alternância (Abwech-
selung) entre imagem e conceito, e a exposição deve ser ao mesmo tempo livre,
espontânea e sensível, o que ele explicita nos seguintes termos:
Livre será a exposição se o entendimento, determinando por certo a cone-
xão das ideias, o faz com uma conformidade à lei tão oculta, que a imagina-
ção parece trabalhar aí de um modo completamente arbitrário... Sensível

216
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

será a exposição se o universal se oculta no particular e se ela oferece à


fantasia a imagem viva (a representação total), onde apenas se trata do con-
19
ceito (a representação parcial).

4. Campos metafóricos e ambientes semânticos

A minha leitura da obra de Kant permitiu-me identificar nela vários campos


metafóricos dentro dos quais as imagens se associam umas com as outras em
constelações por espontânea afinidade, resultando disso a sua peculiar potencia-
ção semântica. Identifiquei sete campos, mas seria possível encontrar ainda
outros. Os que considero estruturantes da obra kantiana são os seguintes: aquele
que tem como núcleo o motivo da pureza da razão; as metáforas do espaço, que
configuram a cartografia transcendental e a geografia e as viagens da razão; a
arquitectónica da razão; a metafórica do organismo e respectivas metamorfoses;
a metafórica cosmológica e as analogias entre a poética do cosmos e a poética da
razão; a filosofia entendida como uma espécie de óptica transcendental; por fim,
a englobante metafórica político-jurídica.
Farei uma breve síntese de cada um deles. Seja, em primeiro lugar, o campo
cujo núcleo é o tópico da «pureza da razão» ou da «razão pura», aquele que
precisamente parece contradizer o intento de encontrar algo como uma metafó-
rica kantiana. De facto, um estudo sobre a metafórica kantiana bem poderia
levar como título o de «Kritik der unreinen Vernunft», pois, no seio mesmo do
que parecia ser a expressão da máxima pureza, emancipação e autonomia da
razão, descobre-se a presença altamente saturada de motivos “impuros”, que têm
a sua origem fora da razão, na tradição da cultura religiosa, filosófica e científica,
mas que alcançam em Kant uma ampliação extraordinária e uma radicalidade
programática sem precedentes, ao ponto de nomear todo o programa crítico de
identificação dos elementos do conhecimento, seja no campo teorético, no prá-
tico ou no estético. É assim que vemos cruzarem-se no discurso kantiano vários
registos deste tópico: a pureza como exercício de catarse da mente para merecer
a dádiva da verdade, a pureza como exigência moral de sinceridade e de veraci-
dade da razão (Lauterkeit), a pureza da contemplação estética como libertação

19
F. Schiller, Über die notwendigen Grenzen beim Gebrauch schöner Formen, in: Sämtliche
Werke, Hanser Verlag, München, 2004, Bd.V, 674-675. Na verdade, esta liberdade e
aparente não intencionalidade, no jogo harmónico e livre da sensibilidade e do entendi-
mento nas artes do discurso, era já um requisito apontado por Kant (KU § 51, Ak V,
321). Sobre o referido conflito entre Schiller e Fichte, veja-se o meu ensaio: «O espírito
da letra. Sobre o conflito entre Schiller e Fichte a propósito da linguagem da Filosofia e
da natureza do estético», agora in: O espírito da letra. Ensaios de Hermenêutica da Moder-
nidade, INCM, Lisboa, 2007, pp.273-310

217
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

de todo o interesse (Interesselosigkeit), ou enfim a pureza como exercício meto-


dológico de separação dos elementos de um composto, que tem por paradigma o
procedimento dos químicos no seu laboratório experimental.
Um segundo campo é o das metáforas espaciais, onde se incluem as metáfo-
ras geográficas, a determinação topográfica e cartográfica da razão e a metafórica
de viagem de descobrimento. Num dos mais decisivos capítulos da Crítica da
Razão Pura, onde se recapitula o trabalho realizado na Analítica e se anuncia a
tarefa a realizar na Dialéctica, a metafórica geográfica kantiana expõe-se na pre-
cisão de todos os seus elementos essenciais, cruzando-se com a político-jurídica
e apresentando-se como uma verdadeira alegoria da filosofia transcendental.
Trata-se aí de insistir uma vez mais no fundamento da distinção de todos os
objectos em fenómenos e noumenos, um resultado a que tinha conduzido essa
espécie de «química» transcendental levada a cabo na Analítica. Assim o escreve
Kant, filósofo que, muito mais do que Hume, merece verdadeiramente ser cha-
mado o «geógrafo da razão humana»:
Não só percorremos o território do entendimento puro e examinámos cui-
dadosamente cada uma das suas partes, mas, além disso, medimos a sua
extensão e assinalámos a cada coisa a sua posição. Este território é uma ilha
que foi encerrada pela própria natureza entre limites invariáveis. É o terri-
tório da verdade – um nome atractivo – e está rodeado por um oceano
amplo e proceloso, verdadeira pátria da ilusão, onde alguns nevoeiros e
algum gelo que se desfazem prontamente produzem a aparência de novas
terras e enganam uma e outra vez com vãs esperanças o navegante ansioso
de descobrimentos, levando-o a aventuras que nunca é capaz de abandonar,
mas tão pouco pode alguma vez concluir. Antes de nos aventurarmos a esse
mar para explorá-lo em detalhe e assegurarmo-nos de que podemos esperar
algo, será conveniente lançar uma vista de olhos sobre o mapa do território
que queremos abandonar e indagar primeiro se não poderíamos por acaso
contentar-nos com o que ele contém, ou antes se não teremos de fazê-lo
por não encontrarmos terra na qual nos possamos estabelecer. Além disso,
com que títulos possuímos nós esse território? Podemos sentir-nos seguros
frente a qualquer pretensão inimiga? Ainda que já tenhamos dado bastante
resposta a estas questões no curso da Analítica, é possível que um breve
balanço das suas soluções reforce a sua aceitação ao unificar os diversos
20
aspectos num só ponto.
É esta uma autêntica página de cartografia transcendental, que devem ter
presente os que pretendam viajar ou fazer incursões exploratórias com a razão,
para além do território firme da experiência, no oceano brumoso das ideias

20
KrV B294, Ak III, 202.

218
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

metafísicas e do supra-sensível, quer isso seja feito com o intuito de alargar por
esse modo as suas legítimas possessões ou para confirmar os seus insuperáveis
limites.
Por sua vez, a metafórica arquitectónica exprime na filosofia de Kant ora a
intenção de fundamentação, ora a teoria da construção da razão, ora o modo de
ser do edifício ou sistema da razão na sua íntima estrutura e articulação dinâ-
mica. Mas diz também a dimensão existencial do conforto de quem habita a casa
da razão em paz e tranquilidade asseguradas pela civilidade do contrato originá-
rio que funda a possibilidade da humanidade. É esta a metáfora por excelência
do sistema e da cientificidade. Mas a noção kantiana de sistema resulta do cru-
zamento de pelo menos três campos metafóricos, que reciprocamente se saturam
e se convertem entre si – o arquitectónico, o orgânico e o cosmológico –, mas
não precisamente o geométrico ou lógico-dedutivo.
Já a metafórica do organismo permite dar razão de dois aspectos aparente-
mente antagónicos: a sistematicidade e a historicidade da razão, a estrutura e a
metamorfose ou teleologia da razão. A importância desta metafórica já fora assi-
nalada de passagem por vários intérpretes (H. Heimsoeth, G. Lehmann, A. Phi-
lonenko) e com diferente acentuação. A sua pregnância é de tal ordem que há
mesmo algum intérprete que chega a sugerir que não se trata apenas de uma
metáfora, mas que Kant teria realmente uma concepção biológica da razão. De
facto, a filosofia kantiana pode ler-se, inclusivamete ao nível da sua linguagem,
como a consagração de uma representação orgânico-biológica da razão e como o
certificado de óbito, por despotenciação semântica, da concepção mecânica da
racionalidade e da sua imagem emblemática, o relógio. Veja-se, a este propósito,
a interessantíssima desconstrução semântica desta imagem emblemática do
mecanicismo, levada a cabo no § 65 da Crítica do Juízo. Na história da filosofia
moderna, a filosofia de Kant assinala de facto a transição de uma representação
mecânica da ordem e da racionalidade para uma representação orgânica ou viva,
segundo a qual a razão se desenvolve desde dentro, como se de um organismo se
tratasse. Uma tal concepção encontra-se explicitada já no penúltimo capítulo da
primeira Crítica, onde, sob o título da «arquitectónica da razão pura», o filósofo
esclarece a sua ideia de ciência, de sistema, de filosofia. Por conseguinte, muito
antes que Kant, na sua terceira Crítica, viesse a legitimar a racionalidade do orgâ-
nico mediante o princípio transcendental da faculdade de julgar reflexionante, que
dá razão da teleologia ou conformidade a fins da natureza (Zweckmässigkeit der
Natur). Escreve Kant, no referido capítulo da obra de 1781:
Regidos pela razão, os nossos conhecimentos não podem constituir uma
rapsódia, mas devem formar um sistema... Por sistema entendo a unidade
dos diversos conhecimentos sob uma ideia. Esta é o conceito racional da
forma de um todo. Enquanto que mediante tal conceito se determina a

219
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

priori tanto a amplitude do diverso como o lugar respectivo das partes no


todo... O todo está, pois, articulado (articulatio), não amontoado (coacerva-
tio). Pode crescer internamente (per intus susceptionem), mas não externa-
mente (per appositionem), como o faz um corpo animal, cujo crescimento
não supõe adição de novos membros, mas fortalece cada um deles, sem
21
modificar a sua proporção, e o capacita melhor para cumprir os seus fins.
Como se pode ver, ao longo de todo este penúltimo capítulo da primeira
Crítica, a arquitectónica é traduzida numa linguagem biológica. Mas não é só a
ideia de ciência ou de filosofia, e sim também o surgimento dos sistemas filosó-
ficos na história da filosofia e a sua possível articulação que são explicados
mediante esse mesmo paradigma. Prossegue Kant:
A realização da ideia requer um esquema... O esquema da ciência tem que
compreender o esboço (monogramma) e a divisão do todo nos seus membros
e tem que fazê-lo em conformidade com a ideia... Contudo, enquanto se ela-
bora esta ciência, raraz vezes coincide o seu esquema com a ideia, já que esta
se encontra oculta na razão como um gérmen no qual todas as partes estão
ainda em embrião, apenas reconhecíveis pela observação microscópica.
Assim se explica, segundo Kant, que os filósofos muitas vezes dêem voltas
em torno de uma ideia sem saber dilucidá-la nem determinar o seu conteúdo
próprio. A ciência – a filosofia – revela-se no seu desenvolvimento e somente se
alcança uma ideia da mesma a partir do ponto de vista do seu completo desen-
volvimento. E Kant prossegue na sua explicitação desta peculiar biologia histó-
rica da razão:
É uma pena que só depois de termos reunido, como material de constru-
ção, múltiplos conhecimentos sugeridos por uma ideia... que se encontra
escondida em nós... nos seja possível contemplar essa ideia, a partir de uma
luz mais clara e esboçar um todo arquitectónico de acordo com os fins da
razão. Incompletos ao princípio e completados com o tempo, os sistemas
parecem ter-se formado, como os vermes, por generatio aequivoca, por mera
influência dos conceitos reunidos, ainda que todos eles tenham tido o seu
esquema, como gérmen originário, numa razão que mais não faz do que
desenvolver-se. Consequentemente, não só está cada um dos sistemas arti-
culado em si mesmo de acordo com uma ideia, mas, além disso, todos eles
se encontram convenientemente unificados entre si num sistema do conhe-
cimento humano, como membros de um todo, permitindo assim uma arqui-
22
tectónica de todo o saber humano.

21
KrV B 861.
22
KrV B 860-863.

220
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

Um dos usos característicos da metáfora orgânica por parte de Kant é o que


poderíamos chamar uso estratégico, mediante o qual tenta mostrar a irracionali-
dade (ou menor racionalidade) da concepção mecânica. As imagens mecânicas
têm em Kant em geral uma conotação negativa, não só na Moral e na Política,
mas também na Estética e na Filosofia em geral. Exprime a passividade, a hete-
ronomia, instrumentalização, a mera imitação, a submissão a preconceitos. Em
contrapartida, as imagens orgânicas exprimem a autonomia, a liberdade, a
espontaneidade, o princípio originário da vida em imanente desenvolvimento, a
acção e criação determinadas por princípios internos próprios. Nesta linha se
inscreve, num contexto político, a contraposição entre a concepção do homem
como «parte de uma máquina» (Theil der Maschine) e «como membro de toda
23
uma república» (Glied eines ganzen gemeinen Wesens), concebida ele mesma
como um «reino dos fins» constituído por todos os seres racionais enquanto
membros autónomos legisladores; ou entre a representação simbólica do Estado
republicano mediante um corpo animado, quando é regido por leis internas do
povo, e a representação simbólica do Estado despótico, mediante uma simples
máquina – um moinho manual –, quando é dominado pela vontade absoluta de
24
um só homem.
Outro fecundíssimo campo de onde brotam as metáforas e as analogias
kantianas é o da cosmologia e astronomia. Pode dizer-se que Kant tem uma
imaginação cosmológica, a qual se exprime ora sob a forma dos seus juvenis
interesses científicos, ora como sentimento estético e vivência do sublime, ora
como meditação metafísica, ora enfim como fonte de fecundas analogias que
iluminam os mais distintos domínios sobre os quais se exerce o seu pensamento,
ao ponto de poder dizer-se que a poética kantiana da razão tem o seu paradigma
na poética kantiana do cosmos. A chamada «revolução coperniciana» do método
da Metafísica é apenas um caso entre muitos. Outro é a analogia entre a concep-
ção cosmológica dos sistemas de estrelas englobados no hiper-sistema das galá-
xias e o sistema político formado pelos diferentes Estados autonómicos quando
estes decidem fazer parte do super-sistema mais vasto de uma federação de
Estados ou mesmo de um Estado cosmopolítico.
Filósofo da “Aufklärung”, tema a que dedicou reiterada reflexão, Kant não
é contudo um pensador da luz. A sua filosofia assinala antes, mesmo ao nível da
linguagem, uma mudança decisiva de regime semântico e de regime perceptivo,
no qual a linguagem da luz e da visão ou intelecção – ou seja, o acesso visual ou
intelectual à verdade – é preferentemente substituído pela linguagem da voz e
do ouvido: ouvir a voz da razão (Stimme der Vernunft) que fala no mandamento
ou imperativo categórico, e não ver ou inteligir a luz da evidência que ilumina o
23
Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung?, Ak VIII, 37,42.
24
KU, Ak V, 352.

221
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

25
supra-sensível, tal é, porventura, a mensagem mais funda da filosofia kantiana.
No que respeita ao supra-sensível a filosofia kantiana move-se numa ambiência
crepuscular e de modo nenhum garante a evidência solar de uma visão ou reve-
lação intelectuais, mas apenas o seu reflexo indirecto na lei moral da razão prá-
26 27
tica. Não obstante isto, como já antes acontecera com Lambert, a óptica ofe-
rece a Kant sugestivas analogias para a sua empresa filosófica. Destaco algumas:
as imagens do «ponto de vista» e do «horizonte», que enquadram o peculiar
perspectivismo kantiano, as imagens do teatro e do espectáculo ou do jogo (jogo
do cosmos, da natureza, da história, da razão, da imaginação), o destacado papel
do espectador consciente de o ser, seja este o filósofo crítico que contempla,
aprecia e julga a luta dos metafísicos na arena da razão pura, seja o cidadão inte-
ressado em que a história humana revele algum sentido nos seus singulares
acontecimentos, quando os contempla de longe, por assim dizer desinteressa-
damente, e sem que seja ele mesmo actor, mas que interpreta como um sinal de
que o imperativo da razão prática revela algo da sua eficácia no mundo.
Mas, sem dúvida, é a metafórica jurídico-política que se revela a mais preg-
nante de todas e o seu verdadeiro alcance torna-se patente quando nos damos
conta de que toda a filosofia kantiana está inscrita no ambiente de uma com-
plexa alegoria da razão entendida como uma república. Isso é já perfeitamente
28
visível na própria Crítica da Razão Pura. O capítulo da Segunda Parte da obra –

25
Aspecto este que viria a ser confirmado, para Kant, também por Gabriele Tomasi (La
voce e lo sguardo. Metafore e funzioni della coscienza nella dottrina kantiana della virtù, ETS,
Pisa, 1999) e para todo o campo literário alemão contemporâneo de Kant, por Peter Utz,
Das Auge und das Ohr im Text. Literarische Sinneswahrnehmung in der Goethezeit, Fink,
München, 1990. Aplica-se aqui em toda a pertinência uma observação de Walter Benja-
min, que escrevia: «No interior de grandes espaços de tempo histórico altera-se junta-
mente com o modo de existência completo dos colectivos humanos também o modo e a
maneira da sua percepção sensorial. O modo e a maneira em que a percepção sensível
humana se organiza, o medium no qual ela acontece, é não apenas natural mas é também
historicamente condicionado.» (Innerhalb grosser geschichtlicher Zeiträume verändert
sich mit der gesamten Daseinsweise der menschlichen Kollektiva auch die Art und Weise
ihrer Sinneswahrnehmung. Die Art und Weise, in der die menschliche Sinneswahrnehmung
sich organisiert – das Medium, in dem sie erfolgt – ist nicht nur natürlich sondern auch
geschichtlich bedingt.). Walter Benjamin, Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen
Reproduzierbarkeit, Schriften I/2, 478 (apud Utz, ob.cit., 9).
26
Von einem neuerdings erhobenen vornehmen Ton in der Philosophie, Ak VIII, 398 ss.
27
J. H. Lambert dizia que a Metafísica requeria uma «Óptica transcendental» para refutar
o egoísmo e o idealismo (Über dier Methode die Metaphysik, Theologie und Moral richtiger
zu beweisen, ed. K. Boop, Berlin, 1918, reimpr. Vaduz, 1978, p. 20). Veja-se: M. J. do
Carmo Ferreira, «Lambert e Kant: o projecto de uma óptica transcendental», in: Idem,
Correspondência Lambert/Kant, Editorial Presença, Lisboa, 1988, pp.27-37.
28
Este aspecto foi posto em realce por F. Kaulbach nos seus vários estudos sobre Kant e
por Maximiliano Hernández Marcos, na sua dissertação La Critica de la razón pura como

222
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

a «Methodenlehre» –, que leva por título «A disciplina da razão pura no que


respeita ao seu uso polémico», dá-nos a chave de toda a obra e até mesmo de
toda a filosofia kantiana. Aí encontramos os mais importantes motivos da vasta
constelação metafórica político-jurídica kantiana aplicada à razão pura. E é no
ambiente desta ampla e complexa alegoria de um estado republicano que
adquire todo o seu sentido a conhecida imagem da Crítica como o «verdadeiro
tribunal para resolver todos os conflitos da razão» e certificá-la dos seus direitos
e justas pretensões. A partir daí compreende-se o recurso do filósofo ao método
jurídico de «dedução», entendida esta como legitimação da validade dos con-
ceitos e, da mesma forma, ao procedimento dialéctico para provar a improce-
dência das proposições especulativas da razão que dizem respeito ao supra-
-sensível. Aí adquirem pertinência as «antinomias» entendidas como expressão
de um luta social de interesses no interior do organismo vivo que é uma repú-
blica de pessoas livres e iguais em direitos. A partir daí ilumina-se até o lugar e a
função da Crítica na história da razão, aparecendo não somente como o tribunal
para resolver os conflitos que se debatem no seio da razão, mas também como a
verdadeira instauração da razão no seu estado civil e legal, como o que a faz pas-
sar do seu estado de natureza, de guerra real ou potencial, onde as questões
eram decididas por decretos do poder arbitrário, para o estado civil, pacífico,
onde os conflitos são resolvidos mediante um processo judicial e segundo leis da
mesma razão.
Ao construir e expor a sua filosofia teorética segundo o paradigma de uma
constituição republicana, muito antes de haver dado a conhecer a sua Filosofia
do Direito e do Estado – o que só fará com a publicação da primeira parte da sua
Metafísica dos Costumes em 1797 –, Kant, sem que os seus leitores se dessem
disso conta e por certo com tanta astúcia como sentido pedagógico, estava a
operar nas suas mentes a «revolução da razão», a alteração do modo de pensar
que é condição mesma da possibilidade da própria filosofia crítica e transcen-
29
dental, impondo-lhes o «freio da razão» (Zügel der Vernunft) , mas sem violên-
cia, encaminhando-os, desse modo, não somente para aquele único ponto de
vista a partir do qual é possível apreciar e resolver as antinomias metafísicas que
se defrontam na arena da razão pura, mas também para aquela forma de existên-
cia política na qual se torna possível resolverem-se as antinomias da sociedade

proceso civil. Sobre la interpretación jurídica de la filosofia trascendental de Immanuel Kant,


Universidad de Salamanca (Microfiche), 1993. Muito mais recentemente também por
Ottfried Höffe, Königliche Völker. Zu Kants kosmopolitischer Rechts- und Friedenstheorie,
Suhrkamp, Frankfurt a. Main, 2001. Ainda mais recente, Reinhard Brandt, na sua obra
Die Bestimmung des Menschen bei Kant (Meiner, Hamburg, 2007), cujo capítulo 7 é uma
interpretação da KrV sob o signo da emblemática metáfora do tribunal (“Kritik der rei-
ner Vernunft: Der Gerichtshof”), pp.271-349.
29
Refl. 1937, Ak XVI, 164.

223
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

humana de uma forma civilizada e que, além disso, é a única constituição polí-
tica que é compatível com a sua condição de seres humanos racionais, aquela,
por fim, na qual a liberdade é necessária condição de possibilidade não apenas
da dignidade humana, mas também do próprio exercício filosófico da razão.
Desta feita, a obra kantiana, até mesmo no modo de se construir e de se expor,
exibe a essencial, íntima e profunda solidariedade entre o são regime da razão e
o são regime dos assuntos humanos, entre a Filosofia e a Política.
Uma característica da metafórica kantiana é a sua grande plasticidade. Uma
mesma imagem adapta-se a diferentes domínios e funções. As metáforas são
como módulos plásticos do pensamento, graças aos quais ele se auto-inventa, se
estrutura e, por fim, se expõe. E um mesmo módulo pode ser recorrente na filo-
sofia teorética, na filosofia prática, na filosofia estética, na filosofia da religião e
da política. E, o que é digno de nota, isso ocorre espontaneamente, sem que em
nenhum momento tenhamos a impressão de que se trata de repetição mecânica
ou previsível de um esquema rígido ou do cumprimento de um plano previa-
mente fixado. As metáforas realizam e exprimem a organicidade e teleoformi-
dade da obra do filósofo. São a expressão do seu Bildungstrieb, entendido este
naquele preciso sentido que o mesmo Kant e também o naturalista seu contem-
porâneo Johann Friedrich Blumenbach lhe davam, no âmbito da respectiva teo-
ria da epigénese.
As metáforas kantianas são como outras tantas maneiras diferentes de dizer o
mesmo. Uma única constelação metafórica dá-nos oportunidade para percorrer a
totalidade da obra kantiana nos seus diferentes aspectos e temas. As metáforas são
como diferentes linguagens de que o filósofo se serve para comunicar a sua pecu-
liar experiência filosófica. Kant poderia dizer como o filósofo da «douta ignorân-
cia» que, se não é possível expressar a verdade adequadamente, então é útil e até
30
necessário multiplicar os modos de dizê-la. De facto, para Kant, as metáforas são
expressão da ideia da filosofia perfeita que nunca é possível captar e expressar de
todo adequadamente. Como o expõe o filósofo no penúltimo capítulo da sua pri-
meira Crítica sobre a arquitectónica da razão pura, a metáfora é como um
esquema ou, mais propriamente – como o explicitará depois o § 59 da Crítica do
Juízo –, é como um símbolo da ideia. Mas esses esquemas ou símbolos têm a sua

30
Nicolau de Cusa, Idiota, De Mente [1450], Opera omnia, Hamburgi, 1983, vol. V, 112:
«Nam quod dicendum est, convenienter exprimi nequit. Hinc multiplicatio sermonum
perutilis est.» Ideia semelhante encontramos em Ortega y Gasset, para quem «el len-
guaje no cubre nunca con exactitud la idea; por tanto.... toda expresión es metáfora...
Pues si lo que decimos no coincide exactamente con lo que pensamos, ha de entenderse
que meramente lo sugiere. Y ese decir que es sugerir es la metáfora.» Sobre la razón
histórica [1940], Madrid, 1983, pp.38-39. Mas, em contra-partida, também se pode
dizer, que só podemos pensar e entender o que (e na medida em que) conseguimos dizer
ou exprimir, e este é, assim me parece, o que pensa Kant a este propósito.

224
IDEIA DE UMA HEURÍSTICA TRANSCENDENTAL

matriz de origem e os seus germes na própria razão, nas leis de analogia que
31
regem o trabalho criador e inventivo da imaginação. É essa comum pertença
originária entre ideia e metáfora que faz com que as metáforas kantianas não ape-
nas se harmonizem umas com as outras criando uma rede semântica altamente
saturada, mas que também se possam traduzir umas nas outras. Assim se pode
constatar o entrelaçamento e a reciproca tradução das metáforas arquitectónica,
política e orgânica, ou o entrelaçamento da metáfora geográfico-espacial com a
político-jurídica, da cosmológica com a orgânica e a política, etc. O cosmos deixa-
-se pensar e descrever como se fosse um organismo; e assim, da mesma forma, é
como um organismo que se propõe a república dos cidadãos livres e iguais; o
Estado cosmopolita, por sua vez, é representado como se fosse o sistema dos sis-
temas das estrelas, e o sistema das estrelas como se fosse um Estado cosmopolita;
de modo similar, como vimos, a arquitectónica pode ser descrita numa linguagem
biológica, segundo a lógica própria de um organismo vivo, que cresce, se desen-
volve e se explicita desde dentro – per intus susceptionem.
32
Há pensadores cujas metáforas são tiradas dos elementos ou da natureza ;
mas em Kant a metafórica dos elementos naturais é muito escassa. O «solo», o
«mar», o «deserto», ou o «ar» indicam nele não tanto os próprios elementos
quanto o modo como são ocupados ou habitados pelo homem. As analogias
kantianas provêm sobretudo de domínios elaborados pelo trabalho e indústria
humanos: das ciências, que os modernos haviam redescoberto e a que deram
grande desenvolvimento (Astronomia, Cosmologia, Física, Óptica); ou de ciên-
cias que na época lutavam ainda pelo reconhecimento do seu estatuto de cienti-
ficidade (Geografia, Química, Biologia); de feitos ou empreendimentos nos quais
a época moderna se reconhecia, como é o caso das viagens marítimas de desco-
brimento do desconhecido; ou da experiência política: a determinação das fron-
teiras e circunscrição de jurisdição estatais, a instituição universal do direito, a
luta pela dominação, apropriação e legitimação da posse da terra. Mas, ao
mesmo tempo, trata-se de campos para os quais pendia o interesse pessoal e a
curiosidade científica de Kant. Em muitos desses campos (Cosmologia, Geogra-
fia, Biologia) não era o filósofo um mero utilizador de conhecimentos alheios,
mas ele próprio tinha feito avançar essas ciências com a sua decisiva contribui-
ção. A metafórica kantiana é, por isso, uma via não desprezável para se entender
também mais intimamente a personalidade e a obra de Kant.
31
KU § 49.
32
Gaston Bachelard deu-nos uma luminosa e compreensiva recensão dessa poética do
espírito, conduzida pela «imaginação material» e estruturada em torno das imagens do
«fogo», da «terra», da «água», do «ar», elementos que o não são já da objectividade cien-
tífica, mas que continuam a determinar poderosamente a nossa percepção, imaginação e
representação da realidade e do mundo, e não só a dos poetas, mas também a dos filósofos
e até a dos cientistas.

225
LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS

As metáforas kantianas são metáforas da razão e para a razão ou para a sua


tarefa própria, a filosofia, a metafísica. Por mais de uma vez nos enfrentamos
com a dificuldade de discernir qual é o analogon e o analogatum, a expressão e a
realidade expressa, de tal modo se dá a recíproca conversão e fusão entre a
metáfora e a razão. Se a razão se reconhece nas suas metáforas é porque ela
mesma só sabe de si o que consegue realizar, o que pode exprimir, o que conse-
gue comunicar. Somente reflectindo sobre as suas criações e realizações, ela
33
alcança o reconhecimento da sua própria identidade.

33
Ideia exposta já por Mersenne (e antes em Francis Bacon, na fórmula: «homo tantum
scit quantum potest»; e depois por Vico, na forma do «verum ipsum factum»), que Kant
exprime reiteradamente sob diferentes versões: «a razão vê apenas aquilo que ela produz
com os seus esboços» (Die Vernunft nur das einsieht, was sie selbst nach ihrem Entwurfe
hervorbringt., KrV B XIII, Ak III, 10); «Nós compreendemos apenas aquilo que nós pró-
prios podemos fazer» (Wir begreifen nur, was wir selbst machen können, Ak XVI, 345);
«só vemos completamente na medida em que nós próprios compreeendemos e estamos
em posição de propor mediante conceitos» (nur soviel sieht man vollständig ein, als man
nach Begriffen selbst machen und zu Stande bringen kann, KU, Ak V, 384).

226
Bibliografia

As obras e escritos de Kant, salvo indicação em contrário, são citados pela edição
dos Kants gesammelte Schriften, publicados, a partir de 1902, sucessivamente,
pela Preussische Akademie der Wissenschaften (vol. 1-22), pela Deutsche Aka-
demie der Wissenschaften (vol. 23) e pela Akademie der Wissenschften zu Göt-
tingen (vol. 24-29), e actualmente reeditados pela Editora Walter de Gruyter,
Berlin/New York. Todas as traduções apresentadas são da responsabilidade do
autor deste volume.

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O catálogo Esfera do Caos, com as colecções
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COLECÇÃO ENSAIOS

1. Hannah Arendt: Os Mundos da Razão


Margarida Amaral
2. Estado & Cidadania: O que impede boas políticas?
Coordenador: Viriato Soromenho-Marques
Autores: Adriano Moreira, Vasco Pereira da Silva, Pedro de Pezarat Correia,
Maria José Morgado, José Luís Saldanha Sanches
3. Toda a Memória do Mundo
Coordenadora: Maria de Sousa
Autores: Maria Filomena Mónica, João Lobo Antunes, Carlos Fabião, André Valente,
Alexandre de Mendonça, Graça Melo, António Damásio, Hanna Damásio
4. Quintas, Parques e Jardins do Funchal: Estudo Fitogeográfico
Raimundo Quintal
5. Emmanuel Lévinas: Humanidade e Razão
José Luis Pérez
6. Biologia e Biólogos em Portugal: Ensino, Emprego e Sociedade
Coordenadores: Maria Eduarda Gonçalves e João Freire
Autores: Anabela Serrão, Filipe Oliveira, João Freire, Lia Vasconcelos, Maria Eduarda Gonçalves,
Maria do Mar Gago, Pedro Lourenço, Ricardo Nogueira Mendes, Rui Brito Fonseca
7. As Cidades na Cidade: Movimentos sociais urbanos em Setúbal (1966-1995)
Carlos Vieira de Faria
8. Entre a Selva e a Corte: Novos Olhares sobre Vieira
Coordenador: José Eduardo Franco
Autores: Luís Machado de Abreu, Carlota Urbano, Fernando Cristóvão, Alcir Pécora,
João Francisco Marques, Leonel Ribeiro dos Santos, Miguel Real, Pedro Calafate,
José Eduardo Franco, Luís Filipe Silvério Lima,Paulo de Assunção,
Valmir Francisco Muraro, Helena de Castro, Patricia Santos Schermann,
Annabela Rita, Manuel J. Gandra, Paulo Mendes Pinto
9. Ambiente, Ciência e Cidadãos
Rui Brito Fonseca, Lia Vasconcelos, José Manuel Alho, Maria Adília Lopes
10. Falas da Terra no Século XXI: What do we see green?
Coordenadoras: Ana Isabel Queiroz e Inês de Ornellas e Castro
Autores: Adolfo Luxúria Canibal, Ana Isabel Queiroz, Ana Paula Guimarães,
Carlos Augusto Ribeiro, Carlos Nogueira, Cármen Flys-Junquera, Inês de Ornellas e Castro,
João Eduardo Ferreira, José Manuel Pedrosa, Natália Constâncio, Tonia L. Payne,
Viriato Soromenho-Marques
11. Migrações: das células aos cientistas
Coordenadora: Maria de Sousa
Autores: David C. Lyden, Augusto Faustino, Isabel Domingos, Rui Costa,
António Amorim, João Zilhão, Raul Rosado Fernandes, Ana Delicado
12. O DN Jovem Entre o Papel e a Net: História e Memórias de uma Transição
Helena de Sousa Freitas
13. Podemos matar um sinal de trânsito?
Um divertimento político-filosófico acerca da profundidade do quotidiano
Porfírio Silva
14. Razão e Liberdade: O pensamento político de James Madison
José Gomes André
15. Conservação e Valorização do Património: Os Embrechados do Paço das Alcáçovas
André Lourenço e Silva
16. Corpo e pós-modernidade
Luís Coelho
17. Da origem popular do poder ao direito de resistência
Pedro Calafate
18. Baía do Funchal: Dinâmicas Naturais e Antrópicas
Raimundo Quintal e Nancy Policarpo
19. Ideia de uma Heurística Transcendental: Ensaios de Meta-Epistemologia Kantiana
Leonel Ribeiro dos Santos

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