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APOSTILA DE

HISTÓRIA DO BRASIL REPÚBLICA

Prof. Marcos Alvito

fevereiro de 2014
1
3.ed.

1 - Benedito Calixto - "Proclamação da República", quadro de 1893

Apostila de Brasil República 3.ed. - Prof. Marcos Alvito - UFF - 2014


PARTE I :

PASSAGEM DO IMPÉRIO À REPÚBLICA


Textos:
001: Balanço estatístico do Império ....................................................... 03

002: Citações de Castro Alves, O Navio Negreiro - Tragédia no mar ........ 04

003: Artigo de José do Patrocínio a favor da Abolição (19/2/1882) ......... 04

004: Militares recusam-se a perseguir escravos fugidos (1887) ............... 07

005: As duas correntes do movimento abolicionista ................................ 07

006: A festa da Abolição .......................................................................... 08

007: A Abolição em Machado de Assis ..................................................... 10

008: Abolição e questão racial - exemplos da tradição oral “perpetuada”


pela úsica .................................................................................................
12 2
009: Passagens sobre a questão racial – século XIX ................................ 14

010: A vida no cortiço .............................................................................. 18

011: A Proclamação da República segundo Raul Pompéia ....................... 31

012: A Proclamação da República segundo Artur Azevedo ...................... 32

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Texto 001: Balanço estatístico do Império

POPULAÇÃO:
Em milhões 1819 1872 1890
4,6 9,9 14,3

PROVÍNCIAS MAIS POVOADAS em 1872


1º Minas Gerais: 2,1 milhões
2º Bahia: 1,38 milhão
3º Pernambuco e São Paulo: 840 mil

COMPOSIÇÃO POR GRUPO DE COR 1872 1890


Branca 38,0% 44,0%
Parda 41,4% 42,0%
Preta 20,0% 14,6%

Amarela e s/d (somente a partir do censo de 1940)

ÍNDICE DE ANALFABETISMO em 1872


Entre os escravos 99,9%
População livre 80,0%
Somente mulheres livres 86,0%

Apenas 16,85% da população entre 6-15 anos freqüentava escolas


3
Havia somente 12 mil estudantes secundários

POPULAÇÃO EM ATIVIDADE POR SETOR em 1872


Agrícola Serviços* Indústria
80% 13% 7% (incluída a mineração)
* mais da metade = empregados domésticos

Em 1890 a CAPITAL FEDERAL tinha 522 mil habitantes

PARTICIPAÇÃO DO ELEITORADO em relação ao total da população


1872* 1881** 1894*** 1930**** 1945*****
13,0% 0,8% 2,2% 5,6% 13,4%

* porcentagem da população livre


** em 1881 os analfabetos perderam o direito de voto, o que será mantido com a
República
*** primeira eleição presidencial republicana
**** última eleição presidencial da Primeira República
***** agora já incluindo o voto feminino

Fontes: FAUSTO,2000; CARVALHO,2001; SILVA,N.V. & HASENBALG,C.A.


Relações raciais no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro:Rio
Fundo:IUPERJ.1992.

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Texto 002: Citações de Castro Alves, O Navio Negreiro - Tragédia no mar
(1868):

Natureza e data do texto: Castro Alves, nascido no interior da Bahia em 1847,


cursa Direito em São Paulo e torna-se um ídolo do movimento abolicionista após
a elaboração dos seus poemas sobre a questão dos escravos. Morre de
tuberculose aos 24 anos de idade, em 6 de julho de 1871.

Era um sonho dantesco... o tombadilho


que das luzernas avermelha o brilho
Em sangue a se banhar
Tinir de ferros... estalar de açoite
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...

Negras mulheres, suspendendo às tetas


Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras, moças ... mas nuas, espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs.
(Navio Negreiro, IV)

Existe um povo que a bandeira empresta


Pra cobrir tanta infâmia e cobardia! ...
E deixa-a transformar nessa festa
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Em manto impuro de bacante fria !...
Meu Deus ! meu Deus ! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia ?
Silêncio, Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no seu pranto!..."
(Navio Negreiro,VI)

Fonte: ALVES,Castro. Os escravos. São Paulo, Klick Editora, 1999. Pp.88 e 93


respectivamente.

Texto 003: Artigo de José do Patrocínio (19/6/1882):

Natureza e data do texto: Nascido em Campos em 1853, filho de um padre com


sua escrava de 13 anos, José do Patrocínio nunca foi reconhecido legalmente pelo
pai. Veio para a corte aos 15 anos, tornando-se farmacêutico e desenvolvendo
intensa atividade política e jornalística. É um dos mais apaixonados defensores
da causa abolicionista, que começa a defender na Gazeta de Notícias desde 1877.
Em 1880, depois que um projeto de abolição imediata é rejeitado na Câmara,
Patrocínio, juntamente com Joaquim Nabuco, André Rebouças e outros, cria a
Sociedade Brasileira contra a Escravidão, a qual edita o jornal O Abolicionista.
Também no ano de 1880, começam as Conferências Abolicionistas nos teatros do
Rio de Janeiro, nas quais Patrocínio

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brilhou. Em 1881 Patrocínio começa a escrever para o Gazeta da Tarde (fundado
no ano anterior e mais militante que a Gazeta de Notícias). Monarquista e
isabelista ferrenho após a Abolição, apoia entretanto a República, o que é mal
entendido por seus contemporâneos. Morre abandonado, de tuberculose, em
1905, com 52 anos. Milhares de pessoas vão prestar sua última homenagem na
Igreja do Rosário e acompanham o corpo até o cemitério de São Francisco Xavier.
O artigo que se segue foi publicado na Gazeta da Tarde em 19 de junho de 1882 e
exemplifica não só o acirramento da campanha abolicionista mas também a
percepção, por parte de José do Patrocínio, da discrepância entre a posição do
imperador e da regente, por um lado, e da maioria conservadora que controlava a
Câmara.

“Duas vezes chamadas a pronunciar-se a respeito da questão servil, as


câmaras da situação liberal têm votado o silêncio.
Não quis a primeira Câmara desta situação discutir o projeto Nabuco; a
segunda acaba de negar-se ao debate do projeto proibindo o tráfico
interprovincial.
Apreciando o voto pelo valor moral de quem o dá, o fato não deve causar
admiração.
A dignidade é o ambiente necessário à coragem das opiniões e a situação
liberal nasceu, consolidou-se e vive, e há de morrer, sem dignidade.
O Governo é a Cápua(12) desses cartagineses irrequietos. Aí amolecem,
desfibram-se e aniquilam-se em rega-bofes de cama e mesa, na farta fruição dos
despojos opimos do eterno combalido – o tesouro.
O voto da Câmara não nos surpreendeu, portanto. Foi para nós uma
simples afirmação do que pensávamos a respeito desse conluio indecente,
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presidido pelo bacalhau de Cebolas(13) e o anjinho de Macuco(14).
Seria fenomenal obter duma casa de tolerância o sufrágio do pudor
nacional. O que ali tem valor é a mesa de tavolagem em que se jogam garantias
de juros, subvenções, empregos e candidaturas.
Pouco se importa o sr. Prado Pimentel, por exemplo, que a escravidão seja
uma tremenda mancha para o país.
S.Ex.a., bela peça, um bom mulato, sabe somente que a pele dos africanos,
seus ascendentes, pode servir de pergaminho a diplomas de deputados de sua
laia.
No caso do sr. Mulato Prado Pimentel está a maioria da Câmara.
Nós os conhecemos. Eram uns vadios sem eira, nem beira, uns bacharéis
escrevinhadores que formigavam na oposição, como vermes, em torno de uns
homens de nome feito.
À tarde descompunham o Governo, à noite enluvavam-se e iam namorar as
filhas dos fazendeiros. Diziam alto quais os dotes presumíveis. Iam às conquistas
avisando que não eram tolos, que não estavam para morrer de fome.
(…)
O voto da Câmara não nos surpreendeu, portanto. Não podia ser outro,
devia ser este mesmo: negar-se à discussão.

Nós que escrevemos por inspiração da honra do país para o mundo


civilizado; nós que temos a responsabilidade do futuro, que não engordamos à
custa das privações das senzalas para acabar estupidamente na administração

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por uma degenerescência gordurosa da probidade individual e do civismo, temos
o direito de desprezar o voto da Câmara para interrogar o imperador.
O que conclui Sua Majestade dos fenômenos a que assiste ?
Enquanto a Câmara dos seus representantes se nega a discutir, enquanto
o sr. Martinho Campos, agente do Poder Executivo, celebra pactos monstruosos
com o sr. Paulino de Sousa, o Machiavel fanhoso, enquanto os presidentes de
província como o sr. Gavião do Marmeleiro(15) e o sr. Sancho-Pança de
Sergipe(16) suprimem ou ameaçam associações, o sentimento abolicionista
revivesce.
Na capital quinze associações disputam-se a primazia na coragem cívica e
na dedicação pela sorte dos cativos; em São Paulo desabrocha o sentimento
abolicionista em clubes nos principais órgãos da sua imprensa; no Rio Grande do
Sul a propaganda assoberba todas as dificuldades, coroando-se com o prestígio
do nome de Silveira Martins; no Ceará dão-se as mãos todos os grandes
elementos das grandes transformações. Desde a vela branca da jangada (17) até o
sorriso da mulher, desde a dedicação dos homens eminentes até a greve dos
artistas, tudo é esperança para os cativos naquela província, sobre a qual se
curva, como auréola inextinguível, a luz equatorial.
Não sente Sua Majestade alguma coisa de extraordinário nesse momento
que em dois anos se comunicou a todo o país ?
Não lhe parece que é o produto de um terremoto que se aproxima ?
Quando fender-se o amaldiçoado solo árido, que tem bebido por três
séculos o suor e o pranto de milhões de homens, não teme Sua Majestade que
uma das ruínas seja o seu trono ?
A lealdade impõe-nos uma advertência a Sua Majestade.
Com uma fisionomia protéica, mudando de aspecto conforme o ponto de
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que é vista, só há atualmente neste país uma questão séria: é a abolição da
escravidão.
Para ela convergirão fatalmente pelo impulso da propaganda, como pela
resistência dos oposicionistas, todas as energias vivas do país.
(...)

19 junho 1882

(12) Cidade italiana onde os cartagineses, sob o comando de Aníbal, entregaram-


se aos prazeres mundanos, enfraquecendo-se em consequência.
(13) O chicote de Martinho Álvares da Silva Campos. Um dos maiores
representantes da política escravista, tinha, no entanto, a fama de tratar com
brandura os seus escravos.
(14) Paulino José Soares de Sousa.
(15) Bernardo Avelino Gavião Peixoto, presidente da província do Rio de Janeiro
(16) José Alves do Nascimento, presidente da província de Sergipe.
(17) Referência aos jangadeiros cearenses que, sob a liderança de Francisco José
do Nascimento, recusaram-se, em 27 de janeiro de 1881, a continuara
transportando negros escravos para os comerciantes.

Fonte: PATROCÍNIO,José.Campanha Abolicionista (coletânea de artigos). Rio de


Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, Departamento Nacional do Livro, 1996.
(Introdução de José Murilo de Carvalho).pp.41-44.

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Texto 004: Militares recusam-se a perseguir escravos fugidos (1887)

Natureza e data do texto: Em outubro de 1887, o Clube Militar, tendo à frente


Deodoro, envia à regente a célebre petição na qual solicita dispensa da tarefa
degradante de perseguir escravos fugidos:

'Senhora - os oficiais membros do Clube Militar pedem à Vossa Alteza Imperial


vênia para dirigir ao governo imperial um pedido que é antes uma súplica.
Eles todos que são e serão os amigos mais dedicados e os mais leais servidores de
Sua Majestade o imperador e de sua dinastia, os mais sinceros defensores das
instituições que nos regem, eles que jamais negaram, em vosso bem, os mais
dedicados sacrifícios, esperam que o governo imperial não consinta que nos
destacamentos do Exército que seguem para o interior com o fim, sem dúvida, de
manter a ordem, tranquilizar a população e garantir a inviolabilidade das
famílias, os soldados sejam encarregados da captura dos pobres negros que
fogem à escravidão, ou porque viviam cansados de sofrer-lhe os horrores, ou
porque um raio de luz da liberdade lhes tenha aquecido o coração e iluminado a
alma. Por isso, os membros do Clube Militar, em nome dos mais santos princípios
de humanidade, em nome da solidariedade humana, em nome da civilização, em
nome da caridade cristã, em nome das dores de Sua Majestade, vosso augusto
pai, cujos sentimentos julgam interpretar e sobre cuja ausência choram lágrimas
de saudade, em nome do vosso futuro e do futuro do vosso filho, esperam que o
governo imperial não consinta que os oficiais e praças do Exército sejam
desviados da sua nobre missão.'

Fonte: MONTEIRO,Hamilton M. Brasil Império. São Paulo: Brasiliense,1986.


7
Pp.71-2.

Texto 005: As duas correntes do movimento abolicionista

Natureza e data do texto: O movimento abolicionista pode ter o seu início


datado da década de 1860, embora tenha se acirrado sobretudo a partir de 1880.
Todavia, há que distinguir entre duas correntes: a moderada, e a radical. À
primeira, pertenciam Campos Sales (porta voz dos cafeicultores do oeste paulista)
e José do Patrocínio. O principal ideólogo da corrente moderada foi Joaquim
Nabuco, que assim condenava os radicais:

'A propaganda abolicionista não se dirige, com efeito, aos escravos.


Seria uma covardia inepta e criminosa, e, além disso, um suicídio
para o partido abolicionista, incitar à insurreição ou ao crime homens
sem defesa e que a lei de Linch ou a justiça pública imediatamente
haveria de esmagar... Suicídio político porque a nação inteira - vendo
uma classe, e essa a mais influente e poderosa do Estado, exposta à
vingança bárbara e selvagem de uma população mantida até hoje ao
nível dos animais... - pensaria que a necessidade urgente era salvar a
sociedade a todo o custo por um exemplo tremendo e este seria o
sinal da morte do Abolicionismo.'

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A corrente radical, por sua vez pregava a insurreição aberta contra o
sistema escravista, se fosse preciso com o uso da violência. A ela pertenciam Silva
Jardim, Luís Gama (ex-escravo) , Augusto de Lima, Alberto Torres, Antônio
Bento, Raimundo Correa e outros. Afirma Raul Pompéia, expressando a opinião
dos radicais:

'A humanidade só tem a felicitar-se quando um pensamento de


revolta passa pelo cérebro oprimido dos rebanhos de operários das
fazendas. A idéia de insurreição indica que a natureza humana vive.
Todas as violências em prol da liberdade violentamente acabrunhada
devem ser saudadas como vinditas santas. A maior tristeza dos
abolicionistas é que estas violências não sejam frequentes e a
conflagração não seja geral'

Fonte: MENDES Jr,Antonio et alii. Brasil História - Texto e Consulta - vol. 3:


República. São Paulo: Brasiliense,1981.pp.124-6.

Texto 006: A festa da Abolição

"... porque só vemos a lei, estamos perdendo a festa. A maior festa de todos os 8
tempos.
E não perdemos apenas a alegria do povo. Perdemos o próprio Brasil, a
sociedade concreta. Perdemos sobretudo a participação do povo negro (os pretos e
pardos do tempo do Dom Obá II d'África) na construção da história. Na verdade, o
que parece extraordinário no 13 de Maio é o fato de não tratar-se apenas do dia
da lei, mas do início da festa. Lei e festa completando o sentido uma da outra, de
tal modo que podem ser vistas como um todo. A lei inspirando a festa, a festa
justificando e garantindo a lei. E não é preciso lembrar o contraponto tristíssimo
do tráfico negreiro, que foi abolido no dia 13 de março de 1830 e levou mais de 20
anos para acontecer de verdade, ainda assim com uma lei de reforço, a de 1850.
Em 1888, contudo, o povão parecia muito mais avisado e não deixou o
negócio passar despercebido. A lei foi sustentada nas ruas com firmeza jamais
vista em nenhum outro episódio da história do Brasil. O apoio era total, alegre,
contagiante. E a festa rolou dia e noite, e debaixo de muita chuva, por oito dias
seguidos. Nunca se viu tanta alegria. Já no domingo, dia 13, no Largo do Paço,
uma multidão de mais de dez mil pessoas - gente como nunca se viu antes -
esperava pela assinatura da lei. Bandas de música tocavam, o povo negro cercou
o palácio dançando, cantando, dando vivas à liberdade, à princesa, a José do
Patrocínio. Desde que a lei saiu do Senado, o povo simples - escravos, libertos e
homens livres - fez questão de enfeitar o chapéu ou o peito da camisa com uma
folha de 'independência' - Sanchesia nobilis, da família das acanthacae-, um
arbusto de folhagem verde e amarela, que na tradição popular, desde 1822,
passou a significar amor ao país e apoio à sua desvinculação de Portugal. Alguns
agitavam ramos de independência, deixando os jardins da cidade depauperados.

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Lima Barreto, então um menino de 7 anos, também foi para o Largo do
Paço, de mãos dadas com o pai, esperar pela assinatura da lei. A cena o marcaria
para sempre, sobretudo o clima geral de expectativa e a primeira explosão da
liberdade. 'Jamais, na minha vida, vi tanta alegria', recordava ele já adulto. E
especificava, 'era geral, era total'.
p.2 A dança, o canto, a alegria do povo, firme, dia e noite, é um fato histórico
notável, confirmado por todas as fontes que conhecemos. Todos os jornais, por
exemplo, mesmo os estrangeiros, falam de oito dias de 'riso festivo',
'contentamento inexprimível', 'constante delírio', 'verdadeiro delírio de alegria e
entusiasmo' e por aí afora, sem nada destoante.
A alegria parou a cidade. As repartições públicas, o porto, os trens de
carga, os correios, os bancos, tudo foi obrigado a parar para ver a festa, até a
fadiga mais completa, que só baixou no dia 20. Aqui, ali, por toda parte, o povo
foi tomando conta da festa. Já no anoitecer do dia 17, conforme o entusiasmo foi
esquentando, a alegria subiu à cabeça dos músicos do 7 º Batalhão Naval, que,
simplesmente, resolvem afrouxar a rigidez do repertório - polcas, valsas e
marchas triunfais -, para atacar por baixo, com ritmos mais animados,
improvisando-se um autêntico samba-de-roda, pela primeira vez, em plena rua
do Ouvidor, o centro chic do Brasil. Isso para escândalo da burguesia, que chegou
a reclamar aos jornais, cheia de dedos com a 'indisciplina' e com aquelas músicas
'feitas de requebros', 'para se ouvir com as pernas em vez de se ouvir com os
ouvidos'. A iniciativa dos soldados, contudo, lavou a alma deles mesmos e do
resto do povão, que tomou conta do pedaço e festejou à larga, se acabando no
miudinho até não poder mais. No dia seguinte, também a banda dos Meninos
Desvalidos introduziu grande variação, com seus 'requebrados tangos', de novo
para prazer e glória de Zé-Povinho.
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Nunca o Rio de Janeiro enfeitou-se tanto. Por toda parte era uma
exuberância de flores, bandeirinhas, lanternas venezianas e luzes de todo o tipo.
De dia eram passeatas; de noite, as marches aux flambeaux, ambas
intermináveis, como uma serpente entrando e saindo pelas ruas estreitas em
busca de certos pontos estratégicos, como a Rua do Ouvidor, onde estavam os
principais jornais, e as casas de gente importante, sobretudo ministros de
Estado, como que para comprometê-los com a irreversibilidade do mundo novo. E
eram os estudantes de Medicina, com o seu garboso estandarte, os operários do
Arsenal de Guerra, o Congresso Acadêmico, os alunos do Instituto dos Meninos
Cegos, o pessoal dos Correios, com sua famosa banda de música, dirigida pelos
carteiros Sampaio e Luiz José, e era o povão indistinto, firme na batucada. Todo
Ministro foi visitado e revisitado. Alguns, a princípio, ficavam assustados com
aquela alegria transbordante a cercar-lhes as residências. Outros podiam não
estar ainda inteiramente à vontade com as novas idéias, status e relações que se
impunham. Mas, gostassem ou não, tinham que responder aos vivas e aos
discursos, além de contribuir com as empadinhas e a cervejota.
Na verdade, na cidade do Rio de Janeiro - e daí para todo o Brasil -, se
alguém não estava gostando da conquista do 13 de Maio, esse alguém teve que
ficar calado por muito tempo. Creio mesmo que para sempre, tal o impacto da
grande festa."

Fonte: Eduardo Silva, "Qual Abolição ?", Jornal do Brasil, Caderno Idéias,
9/5/98.

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Texto 007: A Abolição em Machado de Assis

Natureza e data do texto:


Passagens de Memorial de Aires (1908), último livro de Machado de Assis,
publicado no mesmo ano da sua morte. O narrador é o mesmo de Esaú e Jacó: o
Conselheiro Aires, viúvo sem filhos e diplomata aposentado, um homem
equilibrado e sereno, dotado de um fino senso de humor e muita sensibilidade. A
escrita tem a forma de um diário (ou quase isso) dos anos de 1888 e 1889. O
narrador parece querer distanciar-se das emoções para melhor apreciá-las. Toda
a "ação" transcorre em um ambiente aristocrático, entre o Flamengo e Botafogo,
onde moram banqueiros, desembargadores, proprietários de terras; o Conselheiro
Aires fala até em ir cumprimentar o imperador, o que demonstra sua posição
social. São homens e mulheres que vivem em jantares, visitas, passeios, saraus,
viagens. A viúva Noronha, a bela e encantadora Fidélia é a personagem central,
que acabará por casar-se com o jovem Tristão. Quando do seu primeiro
casamento, Fidélia fora execrada pelo pai, um rico fazendeiro do Vale do Paraíba,
por ser o noivo de uma família rival. De temperamento forte, o fazendeiro, ao
tomar conhecimento da possível libertação dos escravos, reage da seguinte
maneira:

"18 DE FEVEREIRO
Campos disse-me hoje que o irmão [o pai de Fidélia] lhe escrevera, em
segredo, ter ouvido na roça o boato de uma lei próxima de abolição. Ele, Campos,
não crê que este ministério a faça, e não se espera outro.
24 DE FEVEREIRO
A data de hoje (revolução de 1848) lembra-me a festa de rapazes que
10
tivemos em São Paulo, e um brinde que eu fiz ao grande Lamartine. Ai, viçosos
tempos! Eu estava no primeiro ano de Direito. Como falasse disso ao
desembargador, disse-me este:
- Meu irmão crê que também aqui a revolução está próxima, e com ela a
República"
(...)
10 DE MARÇO
Afinal sempre houve mudança de gabinete. O conselheiro João Alfredo
organizou hoje outro. Daqui a três ou quatro dias irei apresentar as minhas
felicitaçãoes ao novo ministro dos negócios estrangeiros.
20 DE MARÇO
Ao desembargador Campos parece que alguma coisa se fará no sentido da
emancipação dos escravos, - um passo adiante, ao menos. Aguiar, que estava
presente, disse que nada ocorre na praça nem lhe chegou ao Banco do Sul.
27 DE MARÇO
Santa-Pia chegou da fazenda (...) Parece que ele veio por causa do boato
que corre na Paraíba do Sul acerca da emancipação dos escravos."
(...)
10 DE ABRIL
Grande novidade! O motivo da vinda do barão é consultar o desembargador sobre
a alforria coletiva e imediata dos escravos de Santa-Pia. Acabo de sabê-lo, e mais
isto, que a principal razão da consulta é apenas a redação do ato. Não parecendo
ao irmão que este seja acertado, perguntou-lhe o que é que o impelia

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a isto, uma vez que condenava a idéia atribuída ao governo de decretar a
abolição, e obteve esta resposta, não sei se sutil, se profunda, se ambas as coisas
ou nada:
- Quero deixar provado que julgo o ato do governo uma espoliação, por intervir
no exercício de um direito que só pertence ao proprietário, e do qual uso com
perda minha, porque assim quero e posso.
Será a certeza da abolição que impele Santa-Pia a praticar esse ato, anterior
de algumas semanas ou meses ao outro ? A alguém que lhe fez tal pergunta
respondeu Campos que não. 'Não, disse ele, meu irmão crê na tentativa do
governo, mas não no resultado, a não ser o desmantelamento que vai lançar às
fazendas. O ato que ele resolveu fazer exprime apenas a sinceridade das suas
convicções e o seu gênio violento. Ele é capaz de propor a todos os senhores a
alforria dos escravos já, e no dia seguinte propor a queda do governo que tentar
fazê-lo por lei.
(...) Não podendo dissuadi-lo o desembargador cedeu ao pedido do irmão, e
redigiram ambos a carta de alforria.
Retendo o papel, Santa-Pia disse:
- Estou certo de que poucos deles deixarão a fazenda; a maior parte ficará
comigo, ganhando o salário que lhes vou marcar, e alguns até sem nada, -
pelo gosto de morrer onde nasceram."
(...)
19 DE ABRIL
Lá se foi o barão com a alforria de escravos na mala. Talvez tenha ouvido
alguma coisa da resolução do governo; dizem que, abertas as câmaras, aparecerá
um projeto de lei. Venha, que é tempo. Ainda me lembra do que lia lá fora, a
nosso respeito, por ocasião da famosa proclamação de Lincoln: 'Eu, Abraão
11
Lincoln, Presidente dos Estados Unidos da América...' Mais de um jornal fez
alusão nominal ao Brasil, dizendo que restava agora que um povo cristão e último
imitasse aquele e acabasse também com seus escravos. Espero que hoje nos
louvem. Ainda que tardiamente, é a liberdade, como queriam a sua os conjurados
de Tiradentes.
7 DE MAIO
O ministério apresentou à Câmara o projeto de abolição. É a abolição pura
e simples. Dizem que em poucos dias será lei.
13 DE MAIO
Enfim, lei. Nunca fui, nem o cargo me consentia ser propagandista da
abolição, mas confesso que senti grande prazer quando soube da votação final do
Senado e da sanção da Regente. Estava na rua do Ouvidor, onde a agitação era
grande e a alegria geral.
Um conhecido meu, homem de imprensa, achando-me ali, ofereceu-me
lugar no seu carro, que estava na Rua Nova, e ia enfileirar no cortejo organizado
para rodear o Paço da cidade, e fazer ovação à Regente. Estive quase, quase a
aceitar, tal era o meu atordoamento, mas os meus hábitos quietos, os costumes
diplomáticos, a própria índole e a idade me retiveram melhor que as rédeas do
cocheiro aos cavalos do carro, e recusei. Recusei com pena. Deixeio-os ir, a ele e
aos outros, que se juntaram e partiram da Rua Primeiro de Março. Disseram-me
depois que os manifestantes erguiam-se nos carros, que iam abertos, e faziam
grandes aclamações, em frente ao Paço, onde estavam também todos os
ministros. Se eu lá fosse, provavelmente faria o mesmo e ainda agora não me
teria entendido... Não, não faria nada; meteria a cara entre os joelhos.

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Ainda bem que acabamos com isto. Era tempo. Embora queimemos todas
as leis, decretos e avisos, não poderemos acabar com os atos particulares,
escrituras e inventários, nem apagar a instituição da História, ou até da Poesia. A
Poesia falará dela, particularmente naqueles versos de Heine, em que o nosso
nome está perpétuo. Neles conta o capitão do navio negreiro haver deixado
trezentos negros no Rio de Janeiro, onde 'a casa Gonçalves Pereira' lhe pagou
cem ducados por peça."

Obs: O fazendeiro, afinal, não liberta seus escravos antes do tempo. Após sua
morte, sua herdeira, Fidélia, a pedido do segundo marido (talvez preocupado em
desfazer a idéia de que se casava de olho na herança), doa toda a fazenda aos ex-
escravos, os quais, segundo a narrativa, haviam permanecido na fazenda apenas
por amor a ela.

Texto 008: Abolição e questão racial - exemplos da tradição oral


“perpetuada” pela música

A) Cantiga evocando a libertação dos escravos pela Princesa Isabel, “nas


fazendas de café de serra acima [Vale do Paraíba, RJ], ex-escravos cantaram sem
parar por três dias e três noites” (esse refrão). Fonte: SILVA,Eduardo. Dom Obá II,
o Príncipe do Povo.p.182:

“Eu pisei na pedra/ Pedra balanceou/ Mundo tava torto/ Rainha endireitou”
12
B) Jongo atribuído a Darcy Monteiro (o saudoso Mestre Darcy da Serrinha, 1932-
2002), filho de Vovó Maria Joana (1902-1986), vinda de Valença no interior do
Estado do Rio de Janeiro (região do Vale do Paraíba)

“Pisei na pedra/ Pedra balanceou/ Levanta meu povo/ Cativeiro se acabou”


___________________________________

C) Lundu de Pai João (s.XIX): de autoria desconhecida, provavelmente composto


no século XIX, após 1837 (pela menção à Casa de Correção), já contém uma
crítica à sociedade branca. Alguns versos circulam até hoje, reaproveitados em
sambas e rodas de partido alto.

“Quando iô tava na minha tera


Iô chamava capitão
Chega na terra dim baranco
Iô me chama – Pai João

Quando iô tava na minha terá


Comia mia garinha,
Chega na terra dim baranco
Carne seca com farinha.

Quando iô tava na minha tera


Iô chamava generá,

Apostila de Brasil República 3.ed. - Prof. Marcos Alvito - UFF - 2014


Chega na terra dim baranco
Pega o cêto vai ganhá.

Dizaforo dim baranco


Nó si póri atura
Tá comendo, tá drumindo.
Manda nego trabaiá.

Baranco dize quando more


Jesucrisso que levou,
E o pretinho quando more
Foi cachaça que matou

(...)

Baranco dize – preto fruta,


Preto fruta co rezão;
Sinhô baranco também fruta
Quando panha casião.

Nosso preto fruta garinha


Fruta saco de fuijão;
Sinhô baranco quando fruta
Fruta prata e patacão.

Nosso preto quando fruta


13
Vai pará na coreção,
Sinhô baranco quando fruta
Logo sai sinhô barão.”

D) Samba de Rubens da Mangueira, gravado por Beth Carvalho no CD “Pérolas


do Pagode”, faixa 1 (1998 – Polygram):

“Ô, Isaura
pega na viola
o samba é bom
não vai terminar agora

Lá no Morro de Mangueira
Só não sobe quem não quer
Porque lá tem Tengo-Tengo
Santo Antônio e Chalé

Todo rico quando morre


Foi porque Jesus levou
Todo pobre quando morre
Foi cachaça que matou.”

Apostila de Brasil República 3.ed. - Prof. Marcos Alvito - UFF - 2014


Texto 009: Passagens sobre a questão racial – século XIX

O OLHAR DOS VIAJANTES ESTRANGEIROS

A) O esquema racial de Gobineau


Natureza e data do texto: Apud DA MATTA,1981:72

RAÇAS HUMANAS
Negra Amarela Branca

Intelecto Débil Medíocre Vigoroso

Propensões animais Muito fortes Moderadas Fortes

Manifestações Parcialmente Comparativamente Altamente


morais latentes desenvolvidas
cultivadas

B) Passagens das cartas de Gobineau (1869-70)


Natureza e data do texto:
O Conde de Gobineau (1816-1882) era um diplomata francês, famoso
autor do Essai sur l’inegalité des races humaines (1853-55), obra de 4 volumes
em que ele analisava o declínio de inúmeras civilizações, atribuindo-o a uma lei
natural, a ‘lei do declínio’, que ‘os nossos olhos podem ver, os nossos ouvidos
podem ouvir, as nossas mãos podem tocar’ (apud ARENDT,1978:237). Ele
concluía, inclusive, pelo desaparecimento do homem da face da Terra, devido à
14
degenerescência causada pela mistura se sangue, na qual a raça inferior acabava
por predominar. Suas idéias tiveram mais sucesso a partir do último quartel do
século XIX e chegaram até à 2a.Guerra Mundial. Embora possivelmente um conde
impostor (seu título era duvidoso), Gobineau remontava sua genealogia ao deus
germânico Odim, através de um pirata escandinavo. De abril de 1869 a maio de
1870, muito, muito a contragosto, este homem que achava ‘também pertencer à
raça dos deuses’ foi encarregado de chefiar a legação diplomática francesa no
Brasil, mais precisamente no Rio de Janeiro. Em inúmeras cartas à esposa e a
amigos, deu exemplos de como o Brasil era visto pelas lentes racistas e, ademais,
mal-humoradas.

Os brasileiros:
‘excetuando a família imperial, todos aqui são mais ou menos mulatos, e passam
a vida com um palito nos cabelos e um cigarro atrás da orelha. O Rio é uma
cidade grande e bonita, mas são os estrangeiros que fazem tudo por aqui. Os
brasileiros evitam mover uma palha para fazer qualquer coisa de útil, até mesmo
para se afogarem’ (p. 32)

Salvo o imperador... :
‘Salvo o imperador, não há ninguém neste deserto povoado de malandros.’
(...) ‘Uma população toda mulata, com sangue viciado, espírito viciado e feia de
meter medo...’ (...) ‘Nenhum brasileiro é de sangue puro; as combinações dos
casamentos entre brancos, indígenas e negros multiplicaram-

Apostila de Brasil República 3.ed. - Prof. Marcos Alvito - UFF - 2014


se a tal ponto que os matizes da carnação são inúmeros, e tudo isso
produziu, nas classes baixas e nas altas, uma degenerescência do mais triste
aspecto.’
‘Já não existe nenhuma família brasileira que não tenha sangue negro e
índio nas veias; o resultado são compleições raquíticas que, se nem sempre são
repugnantes, são sempre desagradáveis aos olhos.’
‘As melhores famílias têm cruzamentos com negros e índios. Estes
produzem criaturas particularmente repugnantes, de um vermelho acobreado... A
imperatriz tem três damas de honra: uma marrom, outra chocolate-claro, e a
terceira, violeta.’ (pp. 39-40)

Influências malsãs:
‘Estou submetido a influências malsãs e excessivas. Minha extrema solidão, esta
atmosfera só compatível a um banho de vapor perpétuo, este céu sempre cinzento
e baixo, flores enormes de cores brilhantes atordoando-me os olhos, tantos
negros, tantas negras, mulatos, mulatas de todos os lados, ninguém com quem
falar, a não ser o imperador, estou-me tornando imbecil, tenho febre, um mal-
estar universal e um cansaço constante...’ (p.75)

C) Trechos do artigo L’émigration au Brésil, de 1873


Este artigo foi provavelmente redigido a pedido do imperador D.Pedro II, de forma
a estimular a imigração para o Brasil.

“Pode-se duvidar da exatidão dos 11 a 12 milhões fornecidos pela estatística


oficial. Ouvi estimativas muito mais baixas quanto ao total da população do
Brasil, e alguns observadores que me pareciam competentes, e que apoiavam
15
seus cálculos em deduções sensatas, não indicavam mais do que 9 milhões de
almas. Mais ainda, no espaço de trinta anos, o número de 9 milhões foi o que
sobrou de um total anterior de 10 milhões. Conseqüentemente, em trinta anos
um milhão desapareceu. É interessante reconhecer este fato totalmente
inexplicável. A grande maioria da população brasileira é mestiça e resulta de
mesclagens contraídas entre os índios, os negros e um pequeno número de
portugueses. Todos os países da América, seja no norte ou no sul, hoje mostram,
incontestavelmente, que os mulatos de distintos matizes não se reproduzem além
de um número limitado de gerações. A esterelidade nem sempre existe nos
casamentos; mas os produtos da raça gradualmente chegam a ser tão malsãos e
inviáveis que desaparecem antes de darem à luz, ou então deixam rebentos que
não sobrevivem. (...)
Se tomarmos essa observação como base fixa para um cálculo de
probabilidades, e se admitirmos, para evitar complicações, que a acumulação de
misturas não precipita um movimento de aniquilação, o que não é provável,
podemos concluir que, se um período de trinta anos culstou um milhão de
habitantes ao Brasil, os nove milhões os quais terão desaparecido
completamente, até o último homem, ao final de um período de 270 anos. (...)
Aliás, o Brasil já se acostumou a tal espetáculo. Sem falar das numerosas tribos
dos Guaranis, que não deixaram nada mais do que seus nomes no solo que
possuíam há bem poucos anos ainda, algumas variedades mestiças, outrora
muito conhecidas e capazes de desempenhar um importante papel, já não
existem hoje; os mamelucos, por exemplo, do que, aliás, a província do Pará não
chega a se lamentar. (...)’ (pp.84-6)

Apostila de Brasil República 3.ed. - Prof. Marcos Alvito - UFF - 2014


Fonte: RAEDERS,Georges. O Conde de Gobineau no Brasil. Rio de Janeiro: Paz &
Terra, 1997. pp. 29; 32; 33-34; 37; 39-40

D) Louis Agassiz e a ‘deterioração decorrente do amálgama de raças’ (A


Journey in Brazil, 1868)
Natureza e data do texto:
O famoso naturalista suíço (naturalizado americano) Louis Agassiz e sua
mulher Elizabeth estiveram no Brasil entre 1865-6, tendo sido muito bem
recebidos não somente pelo imperador e pelas autoridades, mas por inúmeros
colaboradores em todo o Brasil. Agassiz veio, basicamente, para estudar e coletar
espécies, afim de formar uma coleção nos EEUU (na Universidade de Harvard), no
que foi extremamente bem sucedido graças à enorme boa vontade das populações
locais. Elizabeth ficou encarregada de um diário, no qual há cartas e relatórios
científicos do marido, e que serviu de ponto de partida para o livro. Ao contrário
de Gobineau, os Agassiz nutriram uma enorme simpatia pelos brasileiros, mas
isto não impediu Louis Agassiz de explicar o Brasil segundo sua teoria sobre as
raças humanas, isto é, de que elas eram como espécies diferentes.

‘Que qualquer um que duvida dos males dessa mistura de raças, e se inclina, por
malentendida filantropia, a botar abaixo todas as barreiras que as separam –
venha ao Brasil. Não poderá negar a deterioração decorrente do amálgama das
raças, mais geral aqui do que em qualquer outro país do mundo, e que vai
apagando, rapidamente, as melhores qualidades do branco, do negro e do índio,
deixando um tipo indefinido, híbrido, deficiente em energia física e mental.’
Fonte: SKIDMORE, pp.47-48.
16
A QUESTÃO DA IMIGRAÇÃO

E) Uma corrente de sangue caucásico


Joaquim Nabuco em O Abolicionismo (1883):
“ [um país] onde, atraída pela franqueza das nossas instituições e pela
liberalidade do nosso regime, a imigração européia, traga sem cessar para os
trópicos uma corrente de sangue caucásico vivaz, enérgico e sadio, que possamos
absorver sem perigo...”
SKIDMORE: “os abolicionistas brasileiros falaram sobre o papel da raça na
História. A maioria deles previu um processo ‘evolucionista’ com o elemento
branco triunfando gradualmente” que estavam dispostos a acelerar estimulando a
imigração européia e J.Nabuco é direto acerca disso.
Fonte: SKIDMORE,Thomas. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento
brasileiro. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1989. 2.ed. p.40

F) O relatório de Meneses e Sousa contra os chineses (1873)


Num relatório formal ao ministro da Agricultura (Teses sobre a colonização do
Brasil; Projeto de solução das Questões Sociais que se prendem a este difícil
problema; Relatório apresentado ao Ministério da Agricultura, Comércio e Obras
Públicas em 1873), o Barão de Parapiacaba, João Carlos Meneses e Sousa
afirmou sobre os chineses:
“suco envelhecido e envenenado [de] constituições exaustas e degeneradas”
baseado na “verdade antropológica” de que a raça chinesa “é abastardada e faz
degenerar a nossa”

Apostila de Brasil República 3.ed. - Prof. Marcos Alvito - UFF - 2014


Fonte: SKIDMORE,Thomas. p.41.

G) O relatório de Salvador de Mendonça “a favor” da imigração chinesa


(década de 1870)
Encarregado pelo líder do governo liberal, o Visconde de Sinimbu, o cônsul-geral
do Brasil investiga a imigração chinesa nos EEUU e escreve um memorandum no
qual diz que os chineses são:
“trabalhadores inteligentes, frugais e industriosos” e que deveriam vir os de
Cantão “onde o clima é tropical, adaptar-se-iam rapidamente ao Brasil” mas,
preconizava apenas uma “emigração transitória” porque os “chins” “não
aprendem a amar a terra para a qual emigram” além de serem falsos,
desconfiados, mentirosos e concupiscentes.

Fonte: SKIDMORE,pp.41-2.

H) Joaquim Nabuco contra a imigração chinesa (década 1880)

Em O Abolicionismo (1883), acha que uma onda chinesa serviria para “viciar e
corromper ainda mais a nossa raça” (...)
E num discurso parlamentar (entre 1879-89) “Por limitada que fosse o Brasil
seria inevitavelmente mongolizado, como foi africanizado, quando Salvador
Correia de Sá fez vir os primeiros negros”. Perdiam para os negros em
adaptabilidade e no fato de que não se deixavam assimilar. Capazes de sobreviver
“nas piores condições possíveis” acabariam por ocupar qualquer país em que os
deixassem entrar. Era contra os chineses:
“etnologicamente , porque vêm criar um conflito de raças e degradar as existentes
17
no país; economicamente, porque não resolvem o problema da falta de braços;
moralmente porque vêm introduzir na nossa sociedade essa lepra de vícios que
infesta todas as cidades onde a imigração chinesa se estabelece; politicamente,
afinal, porque em vez de ser a libertação do trabalho, não é senão o
prolongamento ... do triste nível moral que o caracteriza e a continuação ao
mesmo tempo da escravidão.”
Um deputado o apoiou: “Precisamos levantar o nível moral deste país”
E outro acrescentou: “O negro melhora-se, o chin é impossível”

Fonte: SKIDMORE, p.42.

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Texto 010: A vida no cortiço

Natureza e data do texto:


Passagens do romance naturalista O Cortiço, de Aluísio de Azevedo. Datado
de 1890, ele enfoca, todavia, a vida das camadas populares no Rio de Janeiro
antes da Abolição, mais ou menos por volta de 1870.

VI
Amanhecera um domingo alegre no cortiço, um bom dia de abril. Muita luz e
pouco calor.
As tinas estavam abandonadas; os coradouros despidos. Tabuleiros e
tabuleiros de roupa engomada saiam das casinhas, carregados na maior parte
pelos filhos das próprias lavadeiras que se mostravam agora quase todas de fato
limpo; os casaquinhos brancos avultavam por cima das saias de chita de cor.
Desprezavam-se os grandes chapéus de palha e os aventais de aniagem; agora as
portuguesas tinham na cabeça um lenço novo de ramagens vistosas e as
brasileiras haviam penteado o cabelo e pregado nos cachos negros um ramalhete
de dois vinténs; aquelas trancavam no ombro xales de lã vermelha, e estas de
crochê, de um amarelo desbotado. Viam-se homens de corpo nu, jogando a placa,
com grande algazarra. Um grupo de italianos, assentado debaixo de uma árvore,
conversava ruidosamente, fumando cachimbo. Mulheres ensaboavam os filhos
pequenos debaixo da bica, muito zangadas, a darem-lhes murros, a praguejar, e
as crianças berravam, de olhos fechados, esperneando. A casa da Machona
estava num rebuliço, porque a família ia sair a passeio; a velha gritava, gritava 18
Nenen, gritava o Agostinho. De muitas outras saiam cantos ou sons de
instrumentos; ouviam-se harmônicas e ouviam-se guitarras, cuja discreta
melodia era de vez em quando interrompida por um ronco forte de trombone.
Os papagaios pareciam também mais alegres com o domingo e lançavam das
gaiolas frases inteiras, entre gargalhadas e assobios. À porta de diversos
cômodos, trabalhadores descansavam, de calça limpa e camisa de meia lavada,
assentados em cadeira, lendo e soletrando jornais ou livros; um declamava em
voz alta versos de “Os Lusíadas:, com um empenho feroz, que o punha rouco.
Transparecia neles o prazer da roupa mudada depois de uma semana no corpo.
As casinhas fumegavam um cheiro bom de refogados de carne fresca fervendo ao
fogo. Do sobrado do Miranda só as duas últimas janelas já estavam abertas e,
pela escada que descia para o quintal, passava uma criada carregando baldes de
águas servidas. Sentia-se naquela quietação de dia inútil a falta do resfolegar
aflito das máquinas da vizinhança, com que todos estavam habituados. Para além
do solitário capinzal do fundo a pedreira parecia dormir em paz o seu sono de
pedra; mas, em compensação, o movimento era agora extraordinário à frente da
estalagem e à entrada da venda. Muitas lavadeiras tinham ido para o portão,
olhar quem passava; ao lado delas o Albino, vestido de branco, com o seu lenço
engomado ao pescoço, entretinha-se a chupar balas de açúcar, que comprara ali
mesmo ao tabuleiro de um baleiro freguês do cortiço.

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Dentro da taverna, os martelos de vinho branco, os copos de cerveja nacional
e os dois vinténs de parati ou laranjinha sucediam-se por cima do balcão,
passando das mãos do Domingos e do Manuel para as mãos ávidas dos operários
e dos trabalhadores, que os recebiam com estrondosas exclamações de pândega.
A Isaura, que fora num pulo tomar o seu primeiro capilé, via-se tonta com os
apalpões que lhe davam. Leonor não tinha um instante de sossego, saltando de
um lado para outro, com uma agilidade de mono, a fugir dos punhos calosos dos
cavouqueiros que, entre risadas, tentavam agarrá-la; e insistia na sua ameaça do
costume: “que se queixava ao juiz de orfe”, mas não se ia embora, porque
defronte da venda viera estacionar um homem que tocava cinco instrumentos ao
mesmo tempo, com um acompanhamento desafinado de bombo, pratos e guizos.
Eram apenas oito horas e já muita gente comia e palavreava na casa de
pasto ao lado da venda. João Romão, de roupa mudada como os outros, mas
sempre em mangas de camisa, aparecia de espaço em espaço, servindo os
comensais; e a Bertoleza, sempre suja e tisnada, sempre sem domingo nem dia
santo, lá estava ao fogão, mexendo as panelas e enchendo os pratos.
Um acontecimento, porém, veio revolucionar alegremente toda aquela
confederação da estalagem. Foi a chegada da Rita Baiana, que voltava depois de
uma ausência de meses, durante a qual só dera noticias suas nas ocasiões de
pagar o aluguel do cômodo. (...)
E entre a alegria levantada pela sua reaparição no cortiço, a Rita deu conta
de que pintara na sua ausência; disse o muito que festou em Jacarepaguá; o
entrudo que fizera pelo carnaval. Três meses de folia! E, afinal abaixando a voz,
segredou às companheiras que à noite teriam um pagodinho de violão. Podiam 19
contar como certo!
Esta última noticia causou verdadeiro júbilo no auditório. As patuscadas da
Rita Baiana eram sempre as melhores da estalagem. Ninguém como o diabo da
mulata para armar uma função que ia pelas tantas da madrugada, sem saber a
gente como foi que a noite se passou tão depressa. Além de que “era aquela
franqueza! enquanto houvesse dinheiro ou crédito, ninguém morria com a tripa
marcha ou com a goela seca!”
VII
(...) Nisto começou a gemer à porta do 35 uma guitarra; era de Jerônimo.
Depois da ruidosa alegria e do bom humor, em que palpitara àquela tarde toda a
república do cortiço, ela parecia ainda mais triste e mais saudosa do que nunca:

“Minha vida tem desgostos,


Que só eu sei compreender...
Quando me lembro da terra
Parece que vou morrer...”

Apostila de Brasil República 3.ed. - Prof. Marcos Alvito - UFF - 2014


E, com o exemplo da primeira, novas guitarras foram acordando. E, por fim,
a monótona cantiga dos portugueses enchia de uma alma desconsolada o vasto
arraial da estalagem, contrastando com a barulhenta alacridade que vinha lá de
cima, do sobrado do Miranda.

“Terra minha, que te adoro,


Quando é que eu te torno a ver?
Leva-me deste desterro;
Basta já de padecer.”

Abatidos pelo fadinho harmonioso e nostálgico dos desterrados, iam todos,


até mesmo os brasileiros, se concentrando e caindo em tristeza; mas, de repente,
o cavaquinho do Porfiro, acompanhado pelo violão do Firmo, romperam
vibrantemente com um chorado baiano. Nada mais que os primeiros acordes da
música crioula para que o sangue de toda aquela gente despertasse logo, como se
alguém lhe fustigasse o corpo com urtigas bravas. E seguiram-se outras notas, e
outras, cada vez mais ardentes e mais delirantes. Já não eram dois instrumentos
que soavam, eram lúbricos gemidos e suspiros soltos em torrente, a correrem
serpenteando, como cobras numa floresta incendiada; eram ais convulsos,
chorados em frenesi de amor; música feita de beijos e soluços gostosos; carícia de
fera, carícia de doer, fazendo estalar de gozo.
E aquela música de fogo doidejava no ar como um aroma quente de plantas 20
brasileiras, em torno das quais se nutrem, girando, moscardos sensuais e
besouros venenosos, freneticamente, bêbedos do delicioso perfume que os mata
de volúpia.
E à viva crepitação da música baiana calaram-se as melancólicas toadas dos
de além-mar. Assim à refulgente luz do trópicos amortece a fresca e doce
claridade dos céus da Europa, como se o próprio sol americano, vermelho e
esbraseado, viesse, na sua luxúria de sultão, beber a lágrima medrosa da decaída
rainha dos mares velhos.
Jerônimo alheou-se de sua guitarra e ficou com as mãos esquecidas sobre as
cordas, todo atento para aquela música estranha, que vinha dentro dele
continuar uma revolução começada desde a primeira vez em que lhe bateu em
cheio no rosto, como uma bofetada de desafio, a luz deste sol orgulhoso e
selvagem, e lhe cantou no ouvido o estribilho da primeira cigarra, e lhe acidulou a
garganta o suco da primeira fruta provada nestas terras de brasa, e lhe
entonteceu a alma o aroma do primeiro bogari, e lhe transtornou o sangue o
cheiro animal da primeira mulher, da primeira mestiça, que junto dele sacudiu as
saias e os cabelos.
— Que tens tu, Jeromo?... perguntou-lhe a companheira, estranhando-o.
— Espera, respondeu ele, em voz baixa: deixa ouvir!
Firmo principiava a cantar o chorado, seguido por um acompanhamento de
palmas.

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Jerônimo levantou-se, quase que maquinalmente, e seguido por Piedade,
aproximou-se da grande roda que se formara em torno dos dois mulatos. Ai, de
queixo grudado às costas das mãos contra uma cerca de jardim, permaneceu,
sem tugir nem mugir, entregue de corpo e alma àquela cantiga sedutora e
voluptuosa que o enleava e tolhia, como à robusta gameleira brava o cipó flexível,
carinhoso e traiçoeiro.
E viu a Rita Baiana, que fora trocar o vestido por uma saia, surgir de ombros
e braços nus, para dançar. A lua destoldara-se nesse momento, envolvendo-a na
sua coma de prata, a cujo refulgir os meneios da mestiça melhor se acentuavam,
cheios de uma graça irresistível, simples, primitiva, feita toda de pecado, toda de
paraíso, com muito de serpente e muito de mulher.
Ela saltou em meio da roda, com os braços na cintura, rebolando as ilhargas
e bamboleando a cabeça, ora para a esquerda, ora para a direita, como numa
sofreguidão de gozo carnal, num requebrado luxurioso que a punha ofegante; já
correndo de barriga empinada; já recuando de braços estendidos, a tremer toda,
como se se fosse afundando num prazer grosso que nem azeite, em que se não
toma pé e nunca se encontra fundo. Depois, como se voltasse à vida, soltava um
gemido prolongado, estalando os dedos no ar e vergando as pernas, descendo,
subindo, sem nunca parar com os quadris, e em seguida sapateava, miúdo e
cerrado, freneticamente, erguendo e abaixando os braços, que dobrava, ora um,
ora outro, sobre a nuca, enquanto a carne lhe fervia toda, fibra por fibra,
tirilando.
Em torno o entusiasmo tocava ao delírio; um grito de aplausos explodia de
vez em quando, rubro e quente como deve ser um grito saído do sangue. E as 21
palmas insistiam, cadentes, certas, num ritmo nervoso, numa persistência de
loucura. E, arrastado por ela, pulou à arena o Firmo, ágil, de borracha, a fazer
coisas fantásticas com as pernas, a derreter-se todo, a sumir-se no chão, a
ressurgir inteiro com um pulo, os pés no espaço, batendo os calcanhares, os
braços a querer fugirem-lhe dos ombros, a cabeça a querer saltar-lhe. E depois,
surgiu também a Florinda, e logo o Albino e até, quem diria! o grave e
circunspecto Alexandre.
O chorado arrastava-os a todos, despoticamente, desesperando aos que não
sabiam dançar. Mas, ninguém como a Rita; só ela, só aquele demônio, tinha o
mágico segredo daqueles movimentos de cobra amaldiçoada; aqueles requebros
que não podiam ser sem o cheiro que a mulata soltava de si e sem aquela voz
doce, quebrada, harmoniosa, arrogante, meiga e suplicante.
E Jerônimo via e escutava, sentindo ir-se-lhe toda a alma pelos olhos
enamorados.
Naquela mulata estava o grande mistério, a síntese das impressões que ele
recebeu chegando aqui: ela era a luz ardente do meio-dia; ela era o calor
vermelho das sestas da fazenda; era o aroma quente dos trevos e das baunilhas,
que o atordoara nas matas brasileiras; era a palmeira virginal e esquiva que se
não torce a nenhuma outra planta; era o veneno e era o açúcar gostoso; era o
sapoti mais doce que o mel e era a castanha do caju, que abre feridas com o seu
azeite de fogo; ela era a cobra verde e traiçoeira, a lagarta viscosa, a muriçoca
doida, que esvoaçava havia muito tempo em torno do corpo dele, assanhando-lhe
os desejos, acordando-lhe as fibras embambecidas pela

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saudade da terra, picando-lhe as artérias, para lhe cuspir dentro do sangue
uma centelha daquele amor setentrional, uma nota daquela música feita de
gemidos de prazer, uma larva daquela nuvem de cantáridas que zumbiam em
torno da Rita Baiana e espalhavam-se pelo ar numa fosforescência afrodisíaca.
Isto era o que Jerônimo sentia, mas o que o tonto não podia conceber. De
todas as impressões daquele resto de domingo só lhe ficou no espírito o
entorpecimento de uma desconhecida embriaguez, não de vinho, mas de mel
chuchurreado no cálice de flores americanas, dessas muito alvas, cheirosas e
úmidas, que ele na fazenda via debruçadas confidencialmente sobre os limosos
pântanos sombrios, onde as oiticicas trescalam um aroma que entristece de
saudade.
E deixava-se ficar, olhando. Outras raparigas dançaram, mas o português só
via a mulata, mesmo quando, prostrada, fora cair nos braços do amigo. Piedade,
a cabecear de sono, chamara-o várias vezes para se recolherem; ele respondeu
com um resmungo e não deu pela retirada da mulher.
Passaram-se horas, e ele também não deu pelas horas que fugiram.
O circulo do pagode aumentou: vieram de lá defronte a Isaura e a Leonor, o
João Romão e a Bertoleza, desembaraçados da sua faina, quiseram dar fé da
patuscada um instante antes de caírem na cama; a família do Miranda pusera-se
à janela, divertindo-se com a gentalha da estalagem; reunira povo lá fora na rua;
mas Jerônimo nada vira de tudo isso; nada vira senão uma coisa, que lhe
persistia no espírito: a mulata ofegante a resvalar voluptuosamente nos braços
do Firmo.
22
Só deu por si, quando, já pela madrugada, se calaram de todo os
instrumentos e cada um dos folgadores se recolheu à casa.
E viu a Rita levada para o quarto pelo seu homem, que a arrastava pela
cintura.
Jerônimo ficou sozinho no meio da estalagem. A lua, agora inteiramente livre
das nuvens que a perseguiam, lá ia caminhando em silêncio na sua viagem
misteriosa. As janelas do Miranda fecharam-se. A pedreira, ao longe, por detrás
da última parede do cortiço, erguia-se como um monstro iluminado na sua paz.
Uma quietação densa pairava já sobre tudo; só se distinguiam o bruxulear dos
pirilampos na sombra das hortas e dos jardins, e os murmúrios das árvores que
sonhavam.
Mas Jerônimo nada mais sentia, nem ouvia, do que aquela música
embalsamada de baunilha, que lhe entontecera a alma; e compreendeu
perfeitamente que dentro dele aqueles cabelos crespos, brilhantes e cheirosos, da
mulata, principiavam a formar um ninho de cobras negras e venenosas, que lhe
iam devorar o coração.
E, erguendo a cabeça, notou no mesmo céu, que ele nunca vira senão depois
de sete horas de sono, que era já quase ocasião de entrar para o seu serviço, e
resolveu não dormir, porque valia a pena esperar de pé."
X
Mas nisto um estardalhaço de formidáveis pranchadas estrugiu no portão da
estalagem. O portão abalou com estrondo e gemeu.

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— Abre! Abre! reclamavam de fora.
João Romão atravessou o pátio, como um general em perigo, gritando a
todos:
— Não entra a polícia! Não deixa entrar! Agüenta! Agüenta!
— Não entra! Não entra! repercutiu a multidão em coro.
E todo o cortiço ferveu que nem uma panela ao fogo.
— Agüenta! Agüenta!
Jerônimo foi carregado para o quarto, a gemer, nos braços da mulher e da
mulata.
— Agüenta! Agüenta!
De cada casulo espipavam homens armados de pau, achas de lenha, varais
de ferro. Um empenho coletivo os agitava agora, a todos, numa solidariedade
briosa, como se ficassem desonrados para sempre se a polícia entrasse ali pela
primeira vez. Enquanto se tratava de uma simples luta entre dois rivais, estava
direito! “Jogassem lá as cristas, que o mais homem ficaria com a mulher!” mas
agora tratava-se de defender a estalagem, a comuna, onde cada um tinha a zelar
por alguém ou alguma coisa querida.
— Não entra! Não entra!
E berros atroadores respondiam às pranchadas, que lá fora se repetiam
ferozes.
23
A polícia era o grande terror daquela gente, porque, sempre que penetrava
em qualquer estalagem, havia grande estropício; à capa de evitar e punir o jogo e
a bebedeira, os urbanos invadiam os quartos, quebravam o que lá estava,
punham tudo em polvorosa. Era uma questão de ódio velho.
E, enquanto os homens guardavam a entrada do capinzal e sustentavam de
costas o portão da frente, as mulheres, em desordem, rolavam as tinas,
arrancavam jiraus, arrastavam carroças, restos de colchões e sacos de cal,
formando às pressas uma barricada.
As pranchadas multiplicavam-se. O portão rangia, estalava, começava a
abrir-se; ia ceder. Mas a barricada estava feita e todos entrincheirados atrás dela.
Os que entravam de fora por curiosidade não puderam sair e viam-se metidos no
surumbamba. As cercas das hortas voaram A Machona terrível fungara as saias e
empunhava na mão o seu ferro de engomar. A das Dores, que ninguém dava
nada por ela, era uma das mais duras e que parecia mais empenhada na defesa.
Afinal o portão lascou; um grande rombo abriu-se logo; caíram tábuas; e os
quatro primeiros urbanos que se precipitaram dentro foram recebidos a pedradas
e garrafas vazias. Seguiram-se outros. Havia uns vinte. Um saco de cal,
despejado sobre eles, desnorteou-os.
Principiou então o salseiro grosso. Os sabres não podiam alcançar ninguém
por entre a trincheira; ao passo que os projetis, arremessados lá de dentro,
desbaratavam o inimigo. Já o sargento tinha a cabeça partida e duas praças
abandonavam o campo, à falta de ar.

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Era impossível invadir aquele baluarte com tão poucos elementos, mas a
polícia teimava, não mais por obrigação que por necessidade pessoal de desforço.
Semelhante resistência os humilhava. Se tivessem espingardas fariam fogo. O
único deles que conseguiu trepar à barricada rolou de lá abaixo sob uma carga de
pau que teve de ser carregado para a rua pelos companheiros. O Bruno, todo sujo
de sangue, estava agora armado de um refle e o Porfiro, mestre na capoeiragem,
tinha na cabeça uma barretina de urbano.
— Fora os morcegos!
— Fora! Fora!
E, a cada exclamação, tome pedra! tome lenha! tome cal! tome fundo de
garrafa!
Os apitos estridulavam mais e mais fortes.
Nessa ocasião, porém, Nenen gritou, correndo na direção da barricada.
— Acudam aqui! Acudam aqui! Há fogo no número 12. Está saindo fumaça!
— Fogo!
A esse grito um pânico geral apoderou-se dos moradores do cortiço. Um
incêndio lamberia aquelas cem casinhas enquanto o diabo esfrega um olho!
Fez-se logo medonha confusão. Cada qual pensou em salvar o que era seu. E
os policiais, aproveitando o terror dos adversários, avançaram com ímpeto,
levando na frente o que encontravam e penetrando enfim no infernal reduto, a
dar espadeiradas para a direita e para a esquerda, como quem destroça uma 24
boiada. A multidão atropelava-se, desembestando num alarido. Uns fugiam à
prisão; outros cuidavam em defender a casa. Mas as praças, loucas de cólera,
metiam dentro as portas e iam invadindo e quebrando tudo, sequiosas de
vingança.
Nisto, roncou no espaço a trovoada. O vento do norte zuniu mais estridente e um
grande pé-d’água desabou cerrado.
XIII
À proporção que alguns locatários abandonavam a estalagem, muitos
pretendentes surgiam disputando os cômodos desalugados. Delporto e Pompeo
foram varridos pela febre amarela e três outros italianos estiveram em risco de
vida. O número dos hóspedes crescia; os casulos subdividiam-se em cubículos do
tamanho de sepulturas; e as mulheres iam despejando crianças com uma
regularidade de gado procriador. Uma família; composta de mãe viúva e cinco
filhas solteiras, das quais destas a mais velha tinha trinta anos e a mais moça
quinze, veio ocupar a casa que Dona Isabel esvaziou poucos dias depois do
casamento de Pombinha.
Agora, na mesma rua, germinava outro cortiço ali perto, o “Cabeça-de-Gato”.
Figurava como seu dono um português que também tinha venda, mas o legitimo
proprietário era um abastado conselheiro, homem de gravata lavada, a quem não
convinha, por decoro social, aparecer em semelhante gênero de especulações. E
João Romão, estalando de raiva, viu que aquela nova república da miséria
prometia ir adiante e ameaçava fazer-lhe à sua, perigosa concorrência. Pôs-se
logo em campo, disposto à luta, e começou a

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perseguir o rival por todos os modos, peitando fiscais e guardas municipais,
para que o não deixassem respirar um instante com multas e exigências
vexatórias; enquanto pela sorrelfa plantava no espírito dos seus inquilinos um
verdadeiro ódio de partido, que os incompatibilizava com a gente do
“Cabeça-de-Gato”. Aquele que não estivesse disposto a isso ia direitinho para a
rua, “que ali se não admitiam meias medidas a tal respeito! Ali: ou bem peixe ou
bem carne! Nada de embrulho!” É inútil dizer que a parte contrária lançou mão
igualmente de todos os meios para guerrear o inimigo, não tardando que entre os
moradores da duas estalagens rebentasse uma tremenda rivalidade, dia a dia
agravada por pequenas brigas e rezingas, em que as lavadeiras se destacavam
sempre com questões de freguesia de roupa. No fim de pouco tempo os dois
partidos estavam já perfeitamente determinados; os habitantes do
“Cabeça-de-Gato” tomaram por alcunha o titulo do seu cortiço, e os de “São
Romão”, tirando o nome do peixe que a Bertoleza mais vendia à porta da taverna,
foram batizados por “Carapicus”. Quem se desse com um carapicu não podia
entreter a mais ligeira amizade com um cabeça-de-gato; mudar-se alguém de
uma estalagem para outra era renegar idéias e princípios e ficava apontado a
dedo; denunciar a um contrário o que se passava, fosse o que fosse, dentro do
circulo oposto, era cometer traição tamanha, que os companheiros a puniam a
pau. Um vendedor de peixe, que caiu na asneira de falar a um cabeça-de-gato a
respeito de uma briga entre a Machona e sua filha, a das Dores, foi encontrado
quase morto perto do cemitério de São João Batista. Alexandre, esse então não
cochilava com os adversários: nas suas partes policiais figurava sempre o nome
de um deles pelo menos, mas entre os próprios polícias havia adeptos de um e de
outro partido; o urbano que entrava na venda do João Romão tinha escrúpulo de
tomar qualquer coisa ao balcão da outra venda. Em meio do pátio do
25
“Cabeça-de-Gato” arvorara-se uma bandeira amarela; os carapicus responderam
logo levantando um pavilhão vermelho. E as duas cores olhavam-se no ar como
um desafio de guerra.
A batalha era inevitável. Questão de tempo.
Firmo, assim que se instaurara a nova estalagem, abandonou o quarto na
oficina e meteu-se lá de súcia com o Porfiro, apesar da oposição de Rita, que mais
depressa o deixaria a ele do que aos seus velhos camaradas de cortiço. Daí
nasceu certa ponta de discórdia entre os dois amantes; as suas entrevistas
tornavam-se agora mais raras e mais difíceis. A baiana, por coisa alguma desta
vida, poria os pés no “Cabeça-de-Gato” e o Firmo achava-se, como nunca,
incompatibilizado com os carapicus. Para estarem juntos tinham encontros
misteriosos num caloji de uma velha miserável da Rua de São João Batista, que
lhe cedia a cama mediante esmolas. O capoeira fazia questão de ficar no
“Cabeça-de-Gato”, porque ai se sentia resguardado contra qualquer perseguição
que o seu delito motivasse; de resto, Jerônimo não estava morto e, uma vez bem
curado, podia vir sobre ele com gana. No “Cabeça-de-Gato”, o Firmo conquistara
rápidas simpatias e constituíra-se chefe de malta. Era querido e venerado; os
companheiros tinham entusiasmo pela sua destreza e pela sua coragem;
sabiam-lhe de cor a legenda rica de façanhas e vitórias. O Porfiro secundava-o
sem lhe disputar a primazia, e estes dois, só por si, impunham respeito aos
carapicus, entre os quais, não obstante, havia muito boa gente para o que desse e
viesse.
XVI

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(...) E as palavras "galego" e "cabra" cruzaram-se de todos os pontos, como
bofetadas. Houve um vavau rápido e surdo, e logo em seguida um formidável rolo,
um rolo a valer, não mais de duas mulheres, mas de uns quarenta e tantos
homens de pulso, rebentou como um terremoto. As cercas e os jiraus
desapareceram do chão e estilhaçaram-se no ar, estalando em descarga; ao passo
que numa berraria infernal, num fecha-fecha de formigueiro em guerra, aquela
onda viva ia arrastando o que topava no caminho; barracas e tinas, baldes,
regadores e caixões de planta, tudo rolava entre aquela centena de pernas
confundidas e doidas. Das janelas do Miranda apitava-se com fúria; da rua, em
todo o quarteirão, novos apitos respondiam; dos fundos do cortiço e pela frente
surgia povo e mais povo. O pátio estava quase cheio; ninguém mais se entendia;
todos davam e todos apanhavam; mulheres e crianças berravam. João Romão,
clamando furioso, sentia-se impotente para conter semelhantes demônios. "Fazer
rolo aquela hora, que imprudência!" Não conseguiu fechar as portas da venda,
nem o portão da estalagem; guardou às pressas na barra o que havia em dinheiro
na gaveta, e, armando-se com uma tranca de ferro, pôs-se de sentinela às
prateleiras, disposto a abrir o casco ao primeiro que se animasse a saltar-lhe o
balcão. Bertoleza, lá dentro na cozinha, aprontava uma grande chaleira de água
quente, para defender com ela a propriedade do seu homem. E o rolo a ferver lá
fora, cada vez mais inflamado com um terrível sopro de rivalidade nacional.
Ouviam-se, num clamor de pragas e gemidos, vivas a Portugal e vivas ao Brasil.
De vez em quando, o povaréu, que continuava a crescer, afastava-se em massa,
rugindo de medo, mas tornava logo, como a onda no refluxo dos mares. A polícia
apareceu e não se achou com animo de entrar, antes de vir um reforço de praças,
que um permanente fora buscar a galope.
26
E o rolo fervia.
Mas, no melhor da lata, ouvia-se na rua um coro de vozes que se
aproximavam das bandas do "Cabeça-de-Gato". Era o canto de guerra dos
capoeiras do outro cortiço, que vinham dar batalha aos carapicus, pra vingar com
sangue a morte de Firmo, seu chefe de malta.
XVII
Mal os carapicus sentiram a aproximação dos rivais, um grito de alarma
ecoou por toda a estalagem e o rolo dissolveu-se de improviso, sem que a
desordem cessasse. Cada qual correu à casa, rapidamente, em busca do ferro, do
pau e de tudo que servisse para resistir e para matar. Um só impulso os impelia a
todos; já não havia ali brasileiros e portugueses, havia um só partido que ia ser
atacado pelo partido contrário; os que se batiam ainda há pouco emprestavam
armas uns aos outros, limpando com as costas das mãos o sangue das feridas.
Agostinho, encostado ao lampião do meio do cortiço, cantava em altos berros uma
coisa que lhe parecia responder à música bárbara que entoavam lá fora os
inimigos; a mãe dera-lhe licença, a pedido dele, para pôr um cinto de Nenen, em
que o pequeno enfiou a faca da cozinha. Um mulatinho franzino, que até ai não
fora notado por ninguém no São Romão, postou-se defronte da entrada, de mãos
limpas, à espera dos invasores; e todos tiveram confiança nele porque o ladrão,
além de tudo, estava rindo.
Os cabeças-de-gato assomaram afinal ao portão. Uns cem homens, em que
se não via a arma que traziam. Porfiro vinha na frente, a dançar, de braços

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abertos, bamboleando o corpo e dando rasteiras para que ninguém lhe estorvasse
a entrada. Trazia o chapéu à ré, com um laço de fita amarela flutuando na copa.
— Agüenta! Agüenta! Faz frente! clamavam de dentro os carapicus.
E os outros, cantando o seu hino de guerra, entraram e aproximaram-se
lentamente, a dançar como selvagens.
As navalhas traziam-nas abertas e escondidas na palma da mão.
Os carapicus enchiam a metade do cortiço. Um silêncio arquejado sucedia à
estrepitosa vozeria do rolo que findara. Sentia-se o hausto impaciente da
ferocidade que atirava aqueles dois bandos de capoeiras um contra o outro. E, no
entanto, o sol, único causador de tudo aquilo, desaparecia de todo nos limbos do
horizonte, indiferente, deixando atrás de si as melancolias do crepúsculo, que é a
saudade da terra quando ele se ausenta, levando consigo a alegria da luz e do
calor.
Lá na janela do Barão, o Botelho, entusiasmado como sempre por tudo que
lhe cheirava a guerra, soltava gritos de aplauso e dava brados de comando
militar.
E os cabeças-de-gato aproximavam-se cantando, a dançar, rastejando alguns
de costas para o chão, firmados nos pulsos e nos calcanhares.
Dez carapicus saíram em frente; dez cabeças-de-gato se alinharam defronte
deles.
E a batalha principiou, não mais desordenada e cega, porém com método,
sob o comando de Porfiro que, sempre a cantar ou assoviar, saltava em todas as 27
direções, sem nunca ser alcançado por ninguém.
Desferiram-se navalhas contra navalhas, jogaram-se as cabeçadas e os
voa-pés. Par a par, todos os capoeiras tinham pela frente um adversário de igual
destreza que respondia a cada investida com um salto de gato ou uma queda
repentina que anulava o golpe. De parte a parte esperavam que o cansaço
desequilibrasse as forças, abrindo furo à vitória; mas um fato veio neutralizar
inda uma vez a campanha: imenso rebentão de fogo esgargalhava-se de uma das
casas do fundo, o número 88. E agora o incêndio era a valer.

XXII

E a mísera, sem chorar, foi refugiar-se, junto com a filha, no


"Cabeça-de-Gato" que, à proporção que o São Romão se engrandecia, mais e mais
ia-se rebaixando acanalhado, fazendo-se cada vez mais torpe, mais abjeto, mais
cortiço, vivendo satisfeito do lixo e da salsugem que o outro rejeitava, como se
todo o seu ideal fosse conservar inalterável, para sempre, o verdadeiro tipo da
estalagem fluminense, a legitima, a legendária; aquela em que há um samba e
um rolo por noite; aquela em que se matam homens sem a polícia descobrir os
assassinos; viveiro de larvas sensuais em que irmãos dormem

misturados com as irmãs na mesma lama; paraíso de vermes, brejo de lodo


quente e fumegante, donde brota a vida brutalmente, como de uma podridão.

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XXIII
À porta de uma confeitaria da Rua do Ouvidor, João Romão, apurado num
fato novo de casimira clara, esperava pela família do Miranda, que nesse dia
andava em compras.
Eram duas horas da tarde e um grande movimento fazia-se ali. O tempo
estava magnífico; sentia-se pouco calor. Gente entrava e saia, a passo frouxo, da
Casa Pascoal. Lá dentro janotas estacionavam de pé, soprando o fumo dos
charutos, à espera que desocupassem uma das mesinhas de mármore preto;
grupos de senhoras, vestidas de seda, faziam lanche com vinho do Porto.
Respirava-se um cheiro agradável de essências e vinagres aromáticos; havia um
rumor quente e garrido, mas bem-educado; namorava-se forte, mas com disfarce,
furtando-se olhares no complicado encontro dos espelhos; homens bebiam ao
balcão e outros conversavam, comendo empadinhas junto às estufas; algumas
pessoas liam já os primeiros jornais da tarde; serventes, muito atarefados,
despachavam compras de doces e biscoitos e faziam, sem descansar, pacotes de
papel de cor, que os compradores levavam pendurados num dedo. Ao fundo, de
um dos lados do salão, aviavam-se grandes encomendas de banquetes para essa
noite, traziam-se lá de dentro, já prontas, torres e castelos de balas e trouxas
d’ovos e imponentes peças de cozinha caprichosamente enfeitadas; criados
desciam das prateleiras as enormes baixelas de metal branco, que os
companheiros iam embalando em caixões com papel fino picado. Os empregados
das secretarias públicas vinham tomar o seu vermute com sifão; repórteres
insinuavam-se por entre os grupos dos jornalistas e dos políticos, com o chapéu à 28
ré, ávidos de noticias, uma curiosidade indiscreta nos olhos. João Romão, sem
deixar a porta, apoiado no seu guarda-chuva de cabo de marfim, recebia
cumprimentos de quem passava na rua; alguns paravam para lhe falar. Ele tinha
sorrisos e oferecimentos para todos os lados; e consultava o relógio de vez em
quando.
Mas a família do Barão surgiu afinal. Zulmira vinha na frente, com um
vestido cor de palha justo ao corpo, muito elegante no seu tipo de fluminense
pálida e nervosa; logo depois Dona Estela, grave, toda de negro, passo firme e ar
severo de quem se orgulha das suas virtudes e do bom cumprimento dos seus
deveres. O Miranda acompanhava-as de sobrecasaca, fitinha ao peito, o colarinho
até ao queixo, botas de verniz, chapéu alto e bigode cuidadosamente raspado. Ao
darem com João Romão, ele sorriu e Zulmira também; só Dona Estela conservou
inalterável a sua fria máscara de mulher que não dá verdadeira importância
senão a si mesma.
O ex-taverneiro e futuro visconde foi, todavia, ao encontro deles, cheio de
solicitude, descobrindo-se desde logo e convidando-os com empenho a que
tomassem alguma coisa.
Entraram todos na confeitaria e apoderaram-se da primeira mesa que se
esvaziou. Um criado acudiu logo e João Romão, depois de consultar Dona Estela,
pediu sanduíches, doces e moscatel de Setúbal. Mas Zulmira reclamou
sorvete e licor. E só esta falava; os outros estavam ainda à procura de um
assunto para a conversa; afinal o Miranda que, durante esse tempo contemplava
o teto e as paredes, fez algumas considerações sobre as reformas e novos adornos

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do salão da confeitaria. Dona Estela dirigiu, de má, a João Romão várias
perguntas sobre a companhia lírica, o que confundiu por tal modo ao pobre do
homem, que o pôs vermelho e o desnorteou de todo. (...)
Quando se levantaram, João Romão deu o braço a Zulmira e o Barão à
mulher, e seguiram todos para o Largo de São Francisco, lentamente, em andar
de passeio, acompanhados pelo parasita. Lá chegados, Miranda queria que o
vizinho aceitasse um lugar no seu carro, mas João Romão tinha ainda que fazer
na cidade e pediu dispensa do obséquio. (...)
O jantar correu frio e contrafeito; os dois sentiam-se ligeiramente dominados
por um vago sobressalto. João Romão foi pouco além da sopa e quis logo a
sobremesa.
Tomavam café, quando um empregado subiu para dizer que lá embaixo
estava um senhor, acompanhado de duas praças, e que desejava falar ao dono da
casa.
— Vou já, respondeu este. E acrescentou para o Botelho: — São eles!
— Deve ser, confirmou o velho.
E desceram logo.
— Quem me procura?... exclamou João Romão com disfarce, chegando ao
armazém.
Um homem alto, com ar de estróina, adiantou-se e entregou-lhe uma folha
de papel.
29
João Romão, um pouco trêmulo, abriu-a defronte dos olhos e leu-a
demoradamente. Um silêncio formou-se em torno dele; os caixeiros pararam em
meio do serviço, intimidados por aquela cena em que entrava a polícia.
— Está aqui com efeito... disse afinal o negociante. Pensei que fosse livre...
— É minha escrava, afirmou o outro. Quer entregar-ma?...
— Mas imediatamente.
— Onde está ela?
— Deve estar lá dentro. Tenha a bondade de entrar...
O sujeito fez sina! aos dois urbanos, que o acompanharam logo, e
encaminharam-se todos para o interior da casa. Botelho, à frente deles,
ensinava-lhes o caminho. João Romão ia atrás, pálido, com as mãos cruzadas
nas costas.
Atravessaram o armazém, depois um pequeno corredor que dava para um
pátio calçado, chegaram finalmente à cozinha. Bertoleza, que havia já feito subir
o jantar dos caixeiros, estava de cócoras, no chão, escamando peixe, para a ceia
do seu homem, quando viu parar defronte dela aquele grupo sinistro.
Reconheceu logo o filho mais velho do seu primitivo senhor, e um calafrio
percorreu-lhe o corpo. Num relance de grande perigo compreendeu a situação;
adivinhou tudo com a lucidez de quem se vê perdido para sempre: adivinhou que
tinha sido enganada; que a sua carta de alforria era uma mentira, e que o seu
amante, não tendo coragem para matá-la, restituía-a ao cativeiro.

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Seu primeiro impulso foi de fugir. Mal, porém, circunvagou os olhos em torno
de si, procurando escapula, o senhor adiantou-se dela e segurou-lhe o ombro.
— É esta! disse aos soldados que, com um gesto, intimaram a desgraçada a
segui-los. — Prendam-na! É escrava minha!
A negra, imóvel, cercada de escamas e tripas de peixe, com uma das mãos
espalmada no chão e com a outra segurando a faca de cozinha, olhou aterrada
para eles, sem pestanejar.
Os policiais, vendo que ela se não despachava, desembainharam os sabres.
Bertoleza então, erguendo-se com ímpeto de anta bravia, recuou de um salto e,
antes que alguém conseguisse alcançá-la, já de um só golpe certeiro e fundo
rasgara o ventre de lado a lado.
E depois embarcou para a frente, rugindo e esfocinhando moribunda numa
lameira de sangue.
João Romão fugira até ao canto mais escuro do armazém, tapando o rosto
com as mãos.
Nesse momento parava à porta da rua uma carruagem. Era uma comissão de
abolicionistas que vinha, de casaca! trazer-lhe respeitosamente o diploma de
sócio benemérito.
Ele mandou que os conduzissem para a sala de visitas."

30

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Texto 011: A Proclamação da República segundo Raul Pompéia

Natureza e data do texto:


Raul Pompéia, abolicionista e republicano entusiasmado, forma-se em
Direito (São Paulo-Recife) e começa a publicar em inúmeros jornais. Chega a
acusar o imperador D.Pedro II de estupro por ocasião do episódio conhecido como
"O roubo das jóias da Coroa" (1882, ver Schwarcz,L. As barbas do imperador. São
Paulo, Cia das Letras, 1998. Pp. 425ss. Simpatizante de Floriano Peixoto, durante
o enterro do marechal faz um exaltado discurso. É combatido e demitido da
direção da Biblioteca Nacional. Suicida-se (1895). É autor de várias obras, dentre
as quais a mais famosa é O Ateneu (1888). Durante anos publicou a coluna Vida
na Corte, da qual se segue a crônica referente ao dia 15 de novembro de 1889.

"Tenho apenas tempo de arranjar uma nota do dia, rascunhada sobre o


joelho, num rápido intervalo da vertigem dos acontecimentos que constituem
hoje, 15 de novembro, a Vida na Corte.
Na Corte, se nos é permitido ainda designar com esta denominação
monárquica a capital da pátria brasileira.
Como aos leitores devem ter informado, quando se publicar esta nota, os
telegramas desta folha e a leitura ávida das folhas do Rio de Janeiro, o elemento
militar, unido em formidável movimento de solidariedade, derribou o ministério
Afonso Celso.
O aspecto da cidade, na manhã de hoje, foi o mais extraordinário e
imponente que se poderia imaginar.
Depois de intimarem o governo a retirada do poder, as tropas desfilaram
31
pela cidade em marcha triunfal.
É indescritível o entusiasmo das praças no delírio da vitória recente.
Nas fileiras da infantaria, sobre o galope irrefreável dos bravos ginetes da
cavalaria, de cima dos bancos das carretas da artilharia carregadas de caixas de
munições, os soldados esqueciam-se da disciplina para expandir-se em vivas à
nação brasileira, em saudações calorosas ao povo.
A multidão, fraternizando com a força pública, enchia o espaço com o
rumor de estrondosas aclamações.
Depois do passeio, em que impressionou profundamente a união de todos
os corpos militares da cidade, cavalaria de lanceiros, cavalaria de carabineiros,
artilharia montada, todos os batalhões de infantaria e artilharia, escolas
militares, imperiais marinheiros, fuzileiros navais, até o corpo de polícia da Corte,
oitocentas praças que foram mandadas contra o general Deodoro e que se
entregaram ao comando da sua espada, os soldados recolheram aos quartéis na
maior ordem.
Depois da poderosa exibição guerreira das marchas da manhã, aquela
festa de entusiasmo de homens robustos fardados de negro, sacudindo ao sol o
brilho das espadas e das baionetas, através de um tumulto de carros de artilharia
sobre o calçamento e toques de clarins e alvoroçados clamores, foi notável o
grande dia de sossego que se seguiu na cidade.
Não há notícia da menor desordem.
Os diretores do movimento revolucionário reunidos em casa do general
Deodoro no Campo de Santana, em duas longas conferências deliberaram a
respeito da constituição do Governo Provisório e das primeiras medidas de

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garantia da segurança pública. Durante essas conferências, circulavam pela
cidade as graves notícias das resoluções da comissão de salvação pública,
naturalmente firmada pelos valentes iniciadores da revolução, como a prisão do
ex-presidente do Conselho, prisão do sr. Cândido de Oliveira, detenção em um
dos portos do Sul do sr. Silveira Martins, de viagem para esta cidade; constava ao
mesmo tempo o sobressalto do imperador, da princesa imperial, a recusa do
convite endereçado ao general Deodoro pelo imperador por intermédio dos srs.
Correia e Dantas, para apresentar-se à conferência. Apesar da gravidade da
situação, do caráter excepcional das notícias e dos boatos, a fisionomia geral da
cidade é a do completo repouso e da absoluta paz.
Às onze e meia da noute, à porta do Diário de Notícias, foi afixado o boletim
com a lista dos ministros do Governo Provisório.
Circunstância interessante: nessa hora, o sossego público, assegurado pela
distribuição de rigorosa polícia organizada pela revolução vitoriosa, o sossego
público era tão perfeito que não houve quase povo para tomar conhecimento da
grande notícia.

Passada a agitação deste momento, enviarei em crônica completa uma


impressão mais minuciosa dos acontecimentos.
15 de novembro de 1889.
O Farol. Juiz de Fora, MG, 17 de novembro de 1889.

Fonte: Crônicas do Rio.Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1996.


Coleção Biblioteca Carioca.pp.91-92.
32

Texto 012: A Proclamação da República segundo Artur Azevedo

Natureza e data do texto:


Pequeno conto de uma antologia de textos escritos entre o fim do século
XIX e início do XX. Este, como outros, foi escrito para ser publicado em jornal.
Artur Azevedo (1855-1908), irmão de Aluísio Azevedo (autor de O cortiço), foi um
teatrólogo (autor de O Tribofe) e jornalista extremamente popular na sua época.

"O VELHO LIMA


O velho Lima, que era empregado - empregado antigo - numa das nossas
repartições públicas, e morava no Engenho de Dentro, caiu de cama, seriamente
enfermo, no dia 14 de novembro de 1889, isto é, na véspera da proclamação da
República dos Estados Unidos do Brasil.
O doente não considerou a moléstia coisa de cuidado, e tanto assim foi que
não quis médico: bastaram-lhe alguns remédios caseiros, carinhosamente
administrados por uma nédia mulata que há vinte e cinco anos lhe tratava com
igual solicitude do amor e da cozinha. Entretanto, o velho Lima esteve de molho
oito dias.
O nosso homem tinha o hábito de não ler jornais e, como em casa nada lhe
dissessem (porque nada sabiam), ele ignorava completamente que o Império se
transformara em República.

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No dia 23, restabelecido e pronto para outra, comprou um bilhete, segundo
o seu costume, e tomou lugar no trem, ao lado do Comendador Vidal, que o
recebeu com estas palavras.
- Bom dia, cidadão.
O velho Lima estranhou o cidadão, mas de si para si pensou que o
comendador dissera aquilo como poderia ter dito ilustre, e não deu maior
importância ao cumprimento, limitando-se a responder!
- Bom dia, comendador.
- Qual comendador! Chama-me Vidal! Já não há comendadores!
- Ora essa! Então por quê?
- A República deu cabo de todas as comendas! Acabaram-se!...
Passados alguns segundos, perguntou-lhe o outro:
- Como vai você com o Aristides ?
- Que Aristides ?
- O Silveira Lobo.
- Eu! ... Onde? ... Como? ...
- Que diabo! Pois o Aristides não é o seu ministro? Você não é empregado
de uma repartição do Ministério do Interior? ...
Desta vez não ficou dentro do espírito do velho Lima a menor dúvida de
que o comendador houvesse enlouquecido.
- Que estará fazendo a estas horas o Pedro II? - perguntou Vidal,
passados alguns momentos. - Sonetos, naturalmente, que é do que
mais se ocupa aquele tipo!
'Ora vejam', refletiu o velho Lima, 'ora vejam o que é perder a razão: este
homem quando estava no seu juízo era tão monarquista, tão amigo do
imperador!'
33
Entretanto, o velho indignou-se, vendo que o delegado de sua freguesia,
sentado no trem, defronte dele, aprovava com um sorriso a perfídia do
comendador.
- Uma autoridade policial! murmurou o velho Lima.
E o comendador acrescentou:
- Eu só quero ver como o ministro brasileiro recebe o Pedro II em Lisboa;
ele deve lá chegar no princípio do mês.
O velho Lima comovia-se:
- Não diz coisa com coisa, coitado!
- E a bandeira? Que me diz você da bandeira?
- Ah, sim... a bandeira... sim... - repetiu o velho Lima para o não
contrariar.
- Como a prefere: com ou sem lema?
- Sem lema - respondeu o homem num tom de profundo pesar; - sem
lema.
- Também eu; não sei o que quer dizer bandeira com letreiro.
Como o trem se demorasse um pouco mais numa das estações, o velho
Lima voltou-se para o subdelegado e disse-lhe:
- Parece que vamos ficar aqui! Está cada vez pior o serviço de Pedro II!
- Qual Pedro II! - bradou o comendador. - Isso já não é de Pedro II. Ele
que se contente com os cinco mil contos!
- E vá para a casa do diabo! - acrescentou o subdelegado.
O velho Lima estava atônito. Tomou a resolução de calar-se.

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Chegando à Praça da Aclamação, entrou num bonde e foi até a sua
secretaria sem reparar em nada nem nada ouvir que o pusesse ao corrente do
que se passara.
Notou, entretanto, que um vândalo estava muito ocupado em arrancar as
coroas imperiais que enfeitavam o gradil do Parque da Aclamação...
Ao entrar na secretaria, um servente preto e mal trajado não o
cumprimentou com a costumeira humildade; limitou-se a dizer-lhe:
- Cidadão!
'Deram hoje para me chamar de cidadão!' - pensou o velho Lima.
Ao subir, cruzou na escada com um conhecido de velha data.
- Oh! Você por aqui! Um revolucionário numa repartição do Estado!...
O amigo cumprimentou-o cerimoniosamente.
'Querem ver que já é alguém!' refletiu o velho Lima.
- Amanhã parto para a Paraíba - disse o sujeito cerimonioso, estendendo-
lhe a ponta dos dedos. - Como sabe, vou exercer o cargo de chefe de
polícia. Lá estou a seu dispor.
E desceu.
- Logo vi! Mas que descarado! Um republicano exaltadíssimo!...
Ao entrar na sua repartição, o velho Lima reparou que haviam
desaparecido os reposteiros.
- Muito bem! - disse consigo. - Foi uma boa medida suprimir os tais
reposteiros pesados, agora que vamos entrar na estação calmosa.
Sentou-se e viu que tinham tirado da parede uma velha litografia
representando D.Pedro de Alcântara. Como na ocasião passasse um contínuo,
perguntou-lhe:
- Por que tiraram da parede o retrato de sua majestade?
34
- Ora, cidadão, que fazia ali a figura do Pedro Banana ?
- Pedro Banana! - repetiu raivoso o velho Lima.
E sentando-se, pensou com tristeza:
'Não dou três anos para que isto seja república!'"

Fonte: AZEVEDO,Artur. Contos escolhidos. São Paulo, O Globo/Klick Editora,


1997. pp. 12-14.

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PARTE II:

A PRIMEIRA REPÚBLICA (“REPÚBLICA VELHA”)

Textos:

013: Constituição de 1891 - passagens importantes ................................. 37

014: Cronologia dos anos turbulentos do início da República ................... 40

015: Abelardo Leiva, poeta e revolucionário ............................................. 45

016: Lima Barreto e o efeito da Revolta da Armada sobre a política


de Curuzu ...................................................................................... 47

017: Lima Barreto, a Revolta da Armada (1893-4) e o positivismo ............ 47

018: Lima Barreto descreve Floriano Peixoto ........................................... 48

019: Lima Barreto e o apostolado positivista ............................................ 51

020: Lima Barreto e o Coronelismo .......................................................... 53


35
021: Passagens sobre chefes em Grande Sertão: Veredas ............................ 54

022: Lima Barreto e a República dos Doutores ......................................... 56

023: Cronologia de Canudos ..................................................................... 58

024: Lucrécio Barba-de-Bode .................................................................... 64

025: As eleições ....................................................................................... 65

026: Casa de cômodos .............................................................................. 68

027: Batuque na cozinha (João da Baiana) ............................................... 69

028: A favela como caso de polícia ........................................................... 70

029: Queixas do povo ao Jornal do Brasil ................................................ 72

030: Lima Barreto e a revolta contra os sapatos obrigatórios (uma metáfora


da Revolta da Vacina em 1904) ................................................................ 73

031: Cronologia do movimento operário durante a Primeira República ..... 76

032: Cabide de Molambo, samba de João da Baiana .................................. 79

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033: O orvalho vem caindo, samba de Noel Rosa (e Kid Pepe) ................... 79

034: Industrialização e movimento operário na Primeira República – estatís-


ticas ........................................................................................................ 80

035: A era do automóvel (fragmento) ............................................. 82

036: Lima Barreto contra o futebol (1922) ..................................... 83

037: Manifesto da poesia pau-brasil - Oswald de Andrade (1924) .. 85

038: Manifesto antropófago - Oswald de Andrade (1928) ................ 88

039: Macunaíma (primeiro capítulo) (1928) .................................... 94

36

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Texto 013: Constituição de 1891 - passagens importantes (mantida a
ortografia original)

“Nós, os representantes do povo brasileiro, reunidos em Congresso Constituinte,


para organizar um regime livre e democrático, estabelecemos, decretamos e
promulgamos o seguinte

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL


Título I
DA ORGANIZAÇÃO FEDERAL
Disposições preliminares
Art. 1º - A nação brasileira adota como forma de governo, sob o regime
representativo, a República Federativa, proclamada a 15 de novembro de 1889, e
constitui-se, por união perpétua e indissolúvel das suas antigas províncias, em
Estados Unidos do Brasil.
Art. 2º - Cada uma das antigas províncias formará um Estado e o antigo
município neutro constituirá o Distrito Federal, continuando a ser a capital da
União, enquanto não se der execução ao disposto no artigo seguinte.
Art. 3º - Fica pertencendo à União, no planalto central da República, uma
zona de 14.400 quilômetros quadrados, que será oportunamente demarcada para
nela estabelecer-se a futura Capital Federal.
Parágrafo único. Efetuada a mudança da capital, o atual Distrito Federal
passará a constituir um Estado.
Art. 4º - Os Estados podem incorporar-se entre si, subdividir-se ou
desmembrar-se, para se anexar a outros, ou formar novos Estados, mediante
aquiescência das respectivas assembléias legislativas, em duas sessões anuais, e
37
aprovação do Congresso Nacional.
Art. 5º - Incumbe a cada Estado prover, a expensas próprias, as
necessidades de seu govêrno e administração; a União, porém, prestará socorros
ao Estado que, em caso de calamidade pública, os solicitar.
Art. 6º - O Govêrno Federal não poderá intervir em negócios peculiares aos
Estados, salvo:
1º) Para repelir invasão estrangeira, ou de um Estado em outro;
2º) Para manter a forma republicana federativa;
3º) Para restabelecer a ordem e a tranquilidade nos Estados, à requisição
dos respectivos governos;
4º) Para assegurar a execução das leis e sentenças federais.
Art. 7º - É da competência exclusiva da União decretar:
1º) Impostos sobre a importação de procedência estrangeira;
2º) Direitos de entrada, saída e estadia de navios, sendo livre o comércio de
cabotagem às mercadorias nacionais, bem como às estrangeiras que já tenham
pago imposto de importação;
3º) Taxas de sêlo, salvo a restrição do art. 9º, parágrafo 1º, número 1;
4º) Taxas dos correios e telégrafos federais.
Parágrafo 1º) Também compete privativamente à União:
1º) A instituição de bancos emissores;
2º) A criação e manutenção de alfândegas.
Parágrafo 2º) Os impostos decretados pela União devem ser uniformes para
todos os Estados.

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Parágrafo 3º) As leis da União, os atos e sentenças de suas autoridades
serão executados em todo o país por funcionários federais, podendo, todavia, a
execução das primeiras ser confiada aos governos dos Estados, mediante
anuência dêstes.
Art. 8º - É vedado ao Govêrno Federal criar, de qualquer modo, distinções e
preferências em favor dos portos de uns contra os de outros Estados.
Art. 9º - É da competência exclusiva dos Estados decretar impostos:
1º) Sôbre a exportação de mercadorias de sua própria produção;
2º) Sôbre imóveis rurais e urbanos;
3º) Sôbre transmissão de propriedade;
4º) Sobre indústrias e profissões.
Parágrafo 1º) Também compete exclusivamente aos Estados decretar:
1º) Taxas de selos quanto aos atos emanados de seus respectivos governos
e negócios de sua economia;
2º) Contribuições concernentes aos seus telégrafos e correios.(...)
Título II
DOS ESTADOS
Art. 63 - Cada Estado reger-se-á pela Constituição e pelas leis que adotar,
respeitados os princípios constitucionais da União.
Art. 64 - Pertencem aos Estados as minas e terras devolutas situadas nos
seus respectivos territórios, cabendo à União somente a porção do território que
fôr indispensável para a defesa das fronteiras, fortificações, construções militares
e estradas de ferro federais.
Parágrafo único. Os próprios nacionais que não forem necessários para o
serviço da União, passarão ao domínio dos Estados, em cujo território estarão
situados.
38
Art. 65 - É facultado aos Estados:
1º) Celebrar entre si ajustes e convenções sem caráter político (art. 48,
número 16);
2º) Em geral, todo e qualquer poder ou direito, que lhes não fôr negado por
cláusula expressa ou implicitamente contida nas cláusulas expressas da
Constituição. (...)
Título III
DOS MUNICÍPIOS
Art. 68 - Os Estados organizar-se-ão de forma que fique assegurada a
autonomia dos municípios em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse.
Título IV
DOS CIDADÃO BRASILEIROS (...)
Art. 70 - São eleitores os cidadãos maiores de 21 anos que se alistarem na
forma da lei.
Parágrafo 1º) Não podem alistar-se eleitores para as eleições federais ou as
dos Estados:
1o) Os mendigos;
2o) Os analfabetos;
3º) As praças de pré, excetuado os alunos das escolas militares de ensino
superior;
4º) Os religiosos de ordens monásticas, companhias, congregações ou
comunidades de qualquer denominação, sujeitas a voto de obediência, regra ou
estatuto que importe a renúncia da liberdade individual.
Parágrafo 2º) São inelegíveis os cidadãos não alistáveis. (...)

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Seção II
DECLARAÇÃO DE DIREITOS
Art. 72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes
no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança
individual e à propriedade nos termos seguintes:
Parágrafo 1º) Ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma
coisa senão em virtude de lei.
Parágrafo 2º) Todos são iguais perante a lei.
A República não admite privilégios de nascimento, desconhece foros de
nobreza e extingue as ordens honoríficas existentes e tôdas as suas prerrogativas
e regalias, bem como os títulos nobiliárquicos e de conselho.
Parágrafo 3º) Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer
pública e livremente o seu culto, associando-se para este fim e adquirindo bens,
observadas as disposições do direito comum.
Parágrafo 4º) A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração
será gratuita.
Parágrafo 5º) Os cemitérios terão caráter secular e serão administrados
pela autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a prática dos
respectivos ritos em relação aos seus crentes, desde que não ofendam a moral
pública e as leis.
Parágrafo 6º) Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos.
Parágrafo 7º) Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá
relações de dependência ou aliança com o govêrno da União, ou dos Estados."

Fonte: BARRETO,Carlos Eduardo. Constituições do Brasil - Volume I. São


Paulo:Saraiva, 1971.pp. 107ss.
39

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Texto 014: Cronologia dos anos turbulentos do início da República

1887 :
Fundação do Clube Militar
O arcebispo da Bahia pede providências às autoridades estaduais contra
Antônio Conselheiro, que chega a ser preso em Recife mas é solto

1888 :
13 de maio - Abolição;
02 de dezembro - Festejos do aniversário do imperador Pedro II;
dezembro - interrupção, por parte da Guarda Negra, da conferência de
Silva Jardim (republicano radical) na Sociedade Francesa de Ginástica com
mortos e feridos;

1889 :
15 de novembro - Proclamação da República
17 de novembro - Expulsão de D.Pedro II e da família imperial

1890 :
17 de janeiro - Reforma financeira de Rui Barbosa (aumento do meio
circulante => "Encilhamento") que vai gerar inflação e intenso movimento
especulativo
22 de junho - sob pressão, Deodoro convoca eleições para a Assembléia
Constituinte
15 de setembro - Eleições altamente manipuladas por Deodoro
15 de novembro - Instalada, a Assembléia Constituinte reduz o mandato
40
presidencial de 6 para 4 anos

1891 :
20 de janeiro - Renúncia coletiva dos ministros de Deodoro devido ao
escândalo da
construção do porto de Torres (RS) com favorecimento de um amigo do
presidente
24 de fevereiro - Promulgada a Constituição, federalista e presidencialista,
concede a cada estado o direito de contrair empréstimos no exterior,
decretar impostos de exportação (favorece SP: o café representava, naquele
momento, mais de 60% das exportações brasileiras), reger-se por
constituição própria, ter corpos militares, códigos eleitorais e judiciários
próprios;
Congresso, sob ameaças e pressões dos militares (que acenavam com uma
ditadura) elege Deodoro por uma pequena margem 129 x 97 de Prudente
de Moraes; o vice de Moraes, Floriano Peixoto, é eleito com 153 votos
contra 57 dados ao Almte. E.Wandelkolk
2 de novembro - Congresso aprova a Lei de Responsabilidades que diminui
os poderes do presidente
3 de novembro - Deodoro dissolve o Congresso e prende líderes; impõe a
censura total à imprensa do Distrito Federal
22 de novembro - Greve de ferroviários da Central do Brasil; Deodoro
ordena a prisão de líderes militares suspeitos (entre eles, Wandelkolk e
Custódio de Mello); Custódio de Mello e seus homens tomam dois

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encouraçados, três torpedeiros e navios menores, aponta os canhões
contra a cidade e exige a renúncia de Deodoro;
23 de novembro - Pela manhã, Deodoro passa o cargo ao vice-presidente,
Floriano Peixoto, depois de apenas 9 meses de governo;
Floriano restabelece o Congresso Nacional e suspende o estado de sítio;
Entre novembro de 1891 e março de 1892, derruba todos os governadores
estaduais (que haviam apoiado Deodoro quando da dissolução do
Congresso) exceto Lauro Sodré, no Pará (que fora contrário a Deodoro),
substituídos por partidários de Floriano, das oligarquias estaduais ou
jovens militares; foram as "derrubadas";

1892 :
janeiro - revolta da Fortaleza de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, comandada
por um sargento, mas, ao que parece, instigada por generais e deputados
descontentes; manda-se um ultimato a Floriano para que renuncie a favor
de Deodoro;
21 de março - Manifesto dos 13 Generais (oficiais do Exército e da
Marinha) pedindo que Floriano convocasse eleições;
3 de maio - O Congresso Nacional legaliza a permanência de Floriano (o
qual deveria, na verdade, convocar eleições presidenciais, pois ainda não
haviam transcorrido dois anos da gestão de Deodoro); Floriano reforma os
oficiais e, dias depois, após uma manifestação, manda prender e deportar
para a Amazônia numerosos líderes civis e militares (inclusive os 13
generais)
Barata Ribeiro é nomeado prefeito do Rio de Janeiro no fim do ano; ataca
os especuladores dos gêneros alimentícios e, em janeiro do ano seguinte,
41
demole o "Cabeça de Porco";

1893 :
ano em que A.Conselheiro teria começado a pregar contra a República
segundo E.Cunha; queima dos editais de impostos em B.Conselho; 30
praças são enviados para prendê-lo, sem sucesso; o beato foge para
Canudos, no sertão baiano;
2 de fevereiro - oposicionistas do Partido Federalista ("maragatos"), que
haviam sido perseguidos por Júlio de Castilhos (apoiado por Floriano) e
haviam emigrado para Uruguai e Argentina, invadem o RS, iniciando um
novo conflito que vai ser conhecido como Revolução Federalista e visava
depor o governo castilhista. Dentre os federalistas estava Silveira Martins,
antigo conselheiro do Império; os "maragatos" não eram verdadeiramente
federalistas, pois defendiam um poder federal forte (sem Floriano) e a
adoção do regime parlamentarista; entre fevereiro e junho sucedem-se as
batalhas, com vitórias iniciais para os rebeldes, que por fim são batidos
por tropas do exército, com auxílio material paulista e tropas irregulares do
político castilhista Pinheiro Machado; a maioria dos revoltosos federalistas
refugia-se no Uruguai (fim da 1ª fase da Revolução Federalista);
agosto - nova invasão das tropas maragatas;
abril - Fundação do PRF (Partido Republicano Federal) sob a orientação da
bancada federal de S.Paulo; respaldava Floriano mas visava a eleição do 1 º
presidente civil;

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6 de setembro - Custódio de Mello, que fora leal ao governo, vê frustradas
suas pretensões presidenciais (os paulistas haviam conseguido impor
P.Moraes como candidato a Floriano) e lidera a Revolta da Armada; havia
uma rivalidade entre Exército e Marinha (diferente origem de classe) à qual
vieram somar-se os interesses dos políticos anti-florianistas; a alegação de
C.Mello era de inconstitucionalidade do governo Floriano; os revoltosos
começam a bombardear o Rio de Janeiro; não conseguem desembarcar em
Niterói; a população vai ser mobilizada ao acreditar que aquilo fosse um
ataque monarquista;
os rebeldes gaúchos invadem SC, unem-se aos revoltosos da Marinha e
avançam em direção ao PR. No RS a luta vai continuar até 10 de agosto do
ano seguinte (1894), quando o caudilho Gumercindo Saraiva vai ser
assassinado e degolado; os maragatos farão novas investidas ainda no
governo Prudente de Moraes; ao todo, a Revolta Federalista irá durar 31
meses, causando a morte de 10 mil soldados.
9 de setembro - Saldanha da Gama adere à revolta da Armada, atraindo o
apoio declarado dos monarquistas (embora Custódio de Mello não o fosse);
S.Gama assume na Guanabara enquanto C.Mello vai para o sul; os
revoltosos haviam tomado a cidade de Desterro, em SC, onde instalaram
um 'governo provisório'
25 de setembro - Convenção do PRF escolhe Prudente de Moraes como
candidato

1894 :
janeiro - federalistas invadem o PR e tomam Curitiba; florianistas, apoiado
pelos paulistas, contra-atacam retomando Curitiba e Desterro (passa a se
42
chamar Florianópolis) e encurralando os rebeldes no RS;
1º de março - Eleições em todo o Brasil (exceto os estados do sul)
10 de março - chegam à Baía de Guanabara os navios de guerra
encomendados por Floriano aos EEUU;
13 de março - Saldanha da Gama e seus comandados se refugiam em dois
navios portugueses; Floriano derrotara a Revolta da Armada;
22 de junho - Congresso Nacional proclama os resultados: P.Moraes
290.883 votos (266 000 para o seu vice, Manoel Vitorino);

1895 :
Os "maragatos" são vencidos, e Prudente estava decidido a anistiá-los;
Março - meses antes do armistício, alunos da Escola Militar sublevam-se
contra a anistia aos federalistas;

1896 :
outubro - um juiz de Joazeiro embarga compra de madeira feita por
Conselheiro para a nova igreja do arraial; o governador, pressionado, envia
100 praças, que são cercados por mais de 1000 'jagunços' conselheiristas;
a população de Salvador pede o sangue do Conselheiro;
10 de novembro - afastamento do presidente P.Moraes por motivo de
doença, assumindo o seu vice, o florianista Manoel Vitorino, que busca
apoio nos militares dissidentes que vêem em Canudos uma ameaça
monarquista;

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dezembro - envio da 2ª expedição a Canudos com 543 praças, 14 oficiais, 3
médicos, 2 canhões Krupp e duas metralhadoras (melhor equipamento da
época); derrota fragorosa; retirada de feridos e famintos por 200 km de
sertão; o arraial aumenta enormemente em apenas 3 semanas; cresce o
ânimo militarista contra Canudos e o jacobinismo exige o fim de Canudos
em nome da memória de Floriano; M.César, que batera os federalistas no
RS é o herdeiro do sentimento militarista;

1897 :
3 fevereiro - embarque para a BA da 3 ª expedição contra Canudos em clima
de grande entusiasmo c/1300 combatentes, 15 milhões de cartuchos e 70
tiros de artilharia; chegam a Canudos em março, sedentos e famintos
(levaram bomba artesiana) e tentam atacar direto, à baioneta; derrota
causa comoção nacional e aquilo parece a ponta do iceberg de uma
conspiração restauradora (monarquista); no Rio de Janeiro, a massa
excitada pela propaganda nacionalista e republicana quebra redações e
tipografias de 3 jornais tidos como monarquistas; atacam e matam
monarquistas criando situação anárquica; governadores de Estado,
congressistas, todos pedem vingança;
4 de março - o presidente Prudente de Moraes reassume o cargo
junho de 1897 - formada a 4 ª expedição contra Canudos, para redimir a
'honra nacional'; formada por 2 colunas com mais de 5 mil homens e
preparada minuciosamente; no decorrer da luta, seus contingentes
receberão reforços de 4 mil homens;
5 de outubro, ao entardecer - caem os 4 últimos combatentes
conselheiristas: um velho, dois homens feitos e uma criança "à frente dos
43
quais rugiam raivosamente cinco mil soldados" (E.Cunha.Os Sertões)
novembro - quando o presidente passava em revista as tropas vencedoras
em Canudos, sofre um atentado por parte de Marcelino Bispo, suboficial do
exército; o presidente escapa, mas morre o Ministro da Guerra, o Marechal
Bittencourt; o atentado não é assumido por nenhuma corrente política,
mas dá força moral e política para que o governo consiga o estado de sítio e
passe a perseguir seus adversários, iniciando o domínio paulista;
17 de dezembro - decreto anti-protecionista, baixando as tarifas
alfandegárias (que haviam sido aumentadas em 1895 por pressão dos
"jacobinos") para agradar os capitalistas estrangeiros, no momento em que
o café valia, no mercado internacional, 8 vezes menos do que há nove anos
atrás; prepara-se, com isto, o caminho para novos empréstimos que serão
conseguidos por Campos Sales em suas negociações de abril-maio de
1898; prejuízo para as fábricas de algodão;

1898 :
abril - logo após a sua eleição, Campos Sales (republicano de 1 ª hora, de
família abastada do interior paulista e ex-governador de SP), embarca para
a Europa para negociar junto aos banqueiros ingleses (Rotschild
sobretudo) uma moratória de 3 anos e um empréstimo de 10 milhões de
libras esterlinas para formar um "funding-loan" a ser amortizado em dez
anos; oferece como garantia toda a renda da alfândega do RJ, as demais
alfândegas se fosse preciso, as receitas da E.F.Central do Brasil e do
serviço de abastecimento de água do RJ; o acordo incluia a queima de

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papel-moeda em quantidade equivalente à das emissões do "funding" para
acabar com a inflação; o ministro da Fazenda, J.Murtinho, comprime
violentamente as despesas, aumenta os impostos ("Imposto do Selo"),
abandona as obras públicas, desestimula as indústrias e congela os
salários.
A política econômica tem o resultado esperado: entre 1898 e 1902 a moeda
brasileira valoriza 50%; pagam-se os empréstimos externos do governo
anterior, acumula-se saldo em ouro e cresce a receita pública. As
consequências: empobrecimento geral, carestia, desemprego e estagnação
econômica; ruína dos senhores de engenho nordestinos, fim das
esperanças de industrialização, contribuintes exauridos, greves operárias .
Banqueiros europeus voltavam a ter confiança no Brasil. Campos Sales
monta a "política dos governadores", que dá sustentação política ao
governo central em troca do apoio econômico e da institucionalização do
poder das oligarquias estaduais.

44

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Texto 015: Abelardo Leiva, poeta e revolucionário

Natureza e data do texto:


Passagens do romance Recordações do escrivão Isaías Caminha [1909], de
Lima Barreto Lima Barreto (1881-1922). Neste, o autor conta as desventuras de
um estudante negro que vem para a capital do país para se formar em
Engenharia e acaba trabalhando em um jornal. O trecho a seguir foi retirado do
cap. VII.

"Abelardo Leiva, o meu recente conhecimento, era poeta e revolucionário.


Como poeta tinha a mais sincera admiração pela beleza das meninas e senhoras
de Botafogo. Não faltava às regatas, às quermesses, às tômbolas [bingo], a todos
os lugares em que elas apareciam em massa; e a sua musa - uma pálida musa,
decentemente abotoada no Castilho e penteada diante dos espelhos de B.Lopes e
Macedo Papança - quase diariamente lhe cantava a beleza 'olímpica e lirial'. Como
revolucionário, dizia-se socialista adiantado, apoiando-se nas prédicas e
brochuras do Senhor Teixeira Mendes, lendo também formidáveis folhetos de
capa vermelha, e era secretário do Centro de Resistência dos Varredores de Rua.
Vivia pobremente, curtindo misérias e lendo, entre duas refeições afastadas, as
suas obras prediletas e enchendo a cidade com os longos passos de homem de
grandes pernas. (...)
À tarde, encontrávamo-nos e íamos conversar a um café com alguns
outros amigos dele, na mor parte desprovidos de dinheiro, com magros e
humildes empregos, pretendendo virar a face do mundo para ter almoço e jantar
diariamente. Leiva era o chefe, era a inteligência do grupo, pois, além de poeta,
tinha todos os preparatórios para o curso de dentista. Eu gostava de notar a
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adoração pela violência que as suas almas pacificas tinham, e a facilidade com
que explicavam tudo e apresentavam remédios. Embora mais moço que eles,
várias vezes cheguei a sorrir aos seus entusiasmos. Creio que lhes não faltava
inteligência, sinceridade também; o que não encontravam era uma soma de
necessidades a que viessem responder e sobre as quais apoiassem as suas
furiosas declamações. Insurgiam-se contra o seu estado particular, oriundo talvez
mais de suas qualidades de caráter do que de falhas de temperamento. Eram
todos honestos, orgulhosos, independentes e isso não leva ninguém à riqueza e à
abastança. Leiva era quem mais exagerava nos traços do caráter comum e se
encarregava de pintar os sofrimentos da massa humana. Era um grupo de
protestantes, detestando a política, dando-se ares de trabalhar para obra maior, a
quem as periódicas “revoluções” não serviam. Um ou outro acontecimento
vinha-lhes dar a ilusão de que eram guias da opinião. Leiva gabava-se de ter feito
duas greves e de ter modificado as opiniões do operariado do Bangu com as suas
conferências aplaudidas. Os outros, sem a sua enfibratura, os seus rompantes de
atrevimento e a sua ambição oculta, mais sinceros talvez por isso, limitavam-se a
falar e a manifestar as suas terríveis opiniões em publicações pouco lidas.
No entanto, Leiva parecia-me mais sincero na sua poesia palaciana e de
modista do que nas idéias revolucionárias. Não o julgava perfeitamente hipócrita;
era a sua situação que lhe determinava aquelas opiniões; o seu fundo era cético e
amoroso das comodidades que a riqueza dá. Cessassem as suas dificuldades, elas
desapareceriam e surgiria então o verdadeiro Leiva, indiferente aos destinos da
turba, dando uma esmola em dia de mau humor e preocupado com uma ruga no
fraque novo que viera do alfaiate. (...)

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Os dois continuavam a conversar, quando voltei a ouvi-los. Tinham
passado imprevistamente para a reforma social que Leiva anunciava. Agostinho,
que se sentia chegar a homem rico e considerado, fazia imensos esforços para
contestar as doutrinas subversivas de Leiva:
— Mas o senhor o que quer é desordem, é anarquia, é extinção da ordem
social...
E Leiva sorria um instante, satisfeito que ele viesse ao encontro da sua
resposta querida.
— Mas é isso mesmo, não quero outra coisa! Pois o senhor acha justo que
esses senhores gordos, que andam por aí, gastem numa hora com as mulheres,
com as filhas e com as amantes, o que bastava para fazer viver famílias inteiras?
O senhor não vê que a pátria não é mais do que a exploração de uma minoria,
ligada entre si, estreitamente ligada, em virtude dessa mesma exploração, e que
domina fazendo crer à massa que trabalha para a felicidade dela? O público
ainda não entrou nos mistérios da religião da Pátria... Ah! quando ele entrar!
Levado pelo calor da frase Leiva continuou a falar cheio de forças,
entusiasmo: — Não há na natureza nada que se pareça com a nossa sociedade
governada pelo Estado... Observe o senhor que todas as sociedades animais se
governam por leis para as quais elas não colaboraram, são como preexistentes a
elas, independentes de sua vontade; e só nós inventamos esse absurdo de fazer
leis para nós mesmos — leis que, em última análise, não são mais que a
expressão da vontade, dos caprichos, dos interesses de uma minoria
insignificante... No nosso corpo há uma multidão de organismos, todos eles
interdependem, mas vivem autonomamente sem serem propriamente governados
por nenhum, e o equilíbrio se faz por isso mesmo. O sistema solar... Na natureza,
todo o equilíbrio se obtém pela ação livre de cada uma das forças particulares...
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Agostinho precisava arranjar uma objeção, mas o conhecimento das
noções que Leiva punha em jogo estava completamente fora da sua atividade
mental. O apóstolo-poeta, sentindo a fraqueza do adversário, exultou, e, deitando
um olhar em torno, exclamou vitoriosamente:
—Eu quero a confusão geral, para que a ordem natural surja triunfante e
vitoriosa!
Deitou um longo e terno olhar para a linda burguesa da vizinhança e
bebeu voluptuosamente um grande gole de cerveja. Eu creio que se a nova era
dependesse do seu braço, ele não deitaria a bomba para não assustar as meninas
bonitas e delicadas."

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Texto 016: Lima Barreto e o efeito da Revolta da Armada sobre a política de
Curuzu

"A revolta tinha tido sobre a política local efeito pacificador. Todos os
partidos se fizeram dedicadamente governistas, de forma que, entre os dous
poderosos contendentes, o doutor Campos e o Tenente Antonino, houve um traço
de união que os reconciliou e os fez entenderem-se. Ao osso que ambos
disputavam encarniçadamente, chegou um outro mais forte que pôs em perigo a
segurança de ambos e eles se puseram em expectativa, um instante unidos.
O candidato foi imposto pelo governo central e as eleições chegaram.
É um momento bem curioso este das eleições na roça. Não se sabe bem donde
saem tantos tipos exóticos. De tal forma são eles esquisitos que se pode mesmo
esperar que apareçam calções e bofes de renda, espadins e gibão. Há
sobrecasacas de cintura, há calças boca de sino, há chapéus de seda - todo um
museu de indumentária que aqueles roceiros vestem e por uns instantes fazem
viver por entre as ruas esburacadas e estradas poeirentas das vilas e lugarejos.
Não faltam também os valentões, com calças bombachas e grandes
bengalões de pequiá, à espera do que der e vier."

Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma (3ª parte, cap. IV: O Boqueirão),p.248

Texto 017: Lima Barreto, a Revolta da Armada (1893-4) e o positivismo

"Estava repleto [o trem, chegando ao Rio de Janeiro], muitas fardas de


oficiais; a avaliar por ali o Rio devia ter uma guarnição de cem mil homens. Os
militares palravam alegres, e os civis vinham calados e abatidos, e mesmo
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apavorados. Se falavam, era cochichando, olhando com precaução para os
bancos de trás.
A cidade andava inçada de secretas, 'familiares' do Santo Ofício
Republicano, e as delações eram moedas com que se obtinham postos e
recompensas.
Bastava a mínima crítica, para se perder o emprego, a liberdade, - quem
sabe ? - a vida também. Ainda estávamos no começo da revolta, mas o regímen já
publicara o seu prólogo e todos estavam avisados. O chefe de polícia organizara a
lista dos suspeitos. Não havia distinção de posição e talentos. Mereciam as
mesmas perseguições do governo um pobre contínuo e um influente senador; um
lente e um simples empregado de escritório. Demais surgiam as vinganças
mesquinhas, a revide de pequenas implicâncias... Todos mandavam; a autoridade
estava em todas as mãos.
Em nome do Marechal Floriano, qualquer oficial, ou mesmo cidadão, sem
função pública alguma, prendia e ai de quem caía na prisão, lá ficava esquecido,
sofrendo angustiosos suplícios de uma imaginação dominicana. Os funcionários
disputavam-se em bajulação, em servilismo... Era um terror, um terror baço, sem
coragem, sangrento, às ocultas, sem grandeza, sem desculpa, sem razão e sem
responsabilidades... Houve execuções; (...)
Os militares estavam contentes, especialmente os pequenos, os alferes, os
tenentes e os capitães. Para a maioria a satisfação vinha da convicção de que iam
estender a sua autoridade sobre o pelotão e a companhia a todo esse rebanho de
civis; mas, em muitos outros, havia sentimento mais puro, desinteresse e
sinceridade. Eram adeptos desse nefasto e hipócrita positivismo, um pedantismo

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tirânico, limitado e estreito, que justificava todas as violências, todos os
assassínios, todas as ferocidades em nome da manutenção da ordem, condição
necessária, lá diz ele, ao progresso e também ao advento do regímen normal, a
religião da humanidade, a adoração do grão-fetiche, de fanhosas músicas de
cornetins e versos detestáveis, o paraíso, enfim, com inscrições em escritura
fonética e eleitos calçados com sapatos de sola de borracha...
Os positivistas discutiam e citavam teoremas de mecânica para justificar
as suas idéias de governo, em tudo semelhantes aos canatos e emirados
orientais.
A matemática do positivismo foi sempre um puro falatório que, naqueles
tempos, amedrontava toda a gente. Havia mesmo quem estivesse convencido que
a matemática tinha sido feita e criada para o positivismo, como se a Bíblia tivesse
sido criada unicamente para a Igreja Católica e não também para a Anglicana. O
prestígio dele, portanto, era enorme.
O trem correu, parou ainda em uma estação e foi ter à praça da República.
(...) Albernaz e Bustamante entraram no Quartel-General. Penetraram no grande
casarão, no meio do retinir de espadas, de toques de cornetas; o grande pátio
estava cheio de soldados, bandeiras, canhões, feixes de armas ensarilhadas,
baionetas reluzindo ao sol oblíquo...
p.182 Fontes estava indignado, todo ele era horror, maldição contra os
insurrectos, e propunha os piores castigos.
- Hão de ver o resultado... Piratas! Bandidos! Eu, no caso do marechal, se os
pegasse... ai deles!
O tenente não era feroz nem mau, mas antes bom e generoso, mas era
positivista e tinha da sua República uma idéia religiosa e transcendente. Fazia
repousar nela toda a felicidade humana e não admitia que a quisessem de outra
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forma que não aquela que imaginava boa. Fora daí não hvia boa fé, sinceridade;
eram heréticos interesseiros, e, dominicano do seu barrete frígio, raivoso por não
poder queimá-los em autos-de-fé, congesto, via passar por seus olhos uma série
enorme de réus (...) "

Fonte: O Triste Fim de Policarpo Quaresma, pp.179-181.

Texto 018: Lima Barreto descreve Floriano Peixoto

p.194ss. (Quaresma vem de Curuzu à capital encontrar-se com F.Peixoto)

"Quaresma pôde então ver melhor a fisionomia do homem que ia enfeixar


em suas mãos, durante quase um ano, tão fortes poderes, poderes de Imperador
Romano, pairando sobre tudo, limitando tudo, sem encontrar obstáculo algum
aos seus caprichos, às suas fraquezas e vontades, nem nas leis, nem nos
costumes, nem na piedade universal e humana.
Era vulgar e desoladora. O bigode caído; o lábio inferior pendente e mole a
que se agarrava uma grande 'mosca'; os traços flácidos e grosseiros; não havia
nem o desenho do queixo ou olhar que fosse próprio, que
p.195 revelasse algum dote superior. Era um olhar mortiço, redondo, pobre de
expressões, a não ser tristeza que não lhe era individual, mas nativa, de raça; e
todo ele era gelatinoso - parecia não ter nervos.
Não quis o major ver em tais sinais nada que lhe denotasse o caráter, a
inteligência e o temperamento. Essas cousas não vogam, disse ele de si para si.

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O seu entusiasmo por aquele ídolo político era forte, sincero e
desinteressado. Tinha-o na conta de enérgico, de fino e supervidente, tenaz e
conhecedor da necessidades do país, manhoso talvez um pouco, uma espécie de
Luís XI forrado de um Bismarck. Entretanto, não era assim. Com uma ausência
total de qualidades intelectuais, havia no caráter do Marechal Floriano uma
qualidade predominante: tibieza de ânimo; e no seu temperamento, muita
preguiça. Não era a preguiça comum, essa preguiça de nós todos; era uma
preguiça mórbida, como que uma pobreza de irrigação nervosa, provinda de uma
insuficiente quantidade de fluido no seu organismo. Pelos lugares que passou,
tornou-se notável pela indolência e desamor às obrigações dos seus cargos.
Quando diretor do arsenal de Pernambuco, nem energia tinha para assinar
o expediente respectivo; e durante o tempo em que foi ministro da Guerra,
passava meses e meses sem lá ir, deixando tudo por assinar, pelo que 'legou' ao
seu substituto um trabalho avultadíssimo.
Quem conhece a atividade papeleira de um Colbert, de um Napoleão, de
um Filipe II, de um Guilherme I da Alemanha, em geral todos grandes homens de
Estado, não compreende o descaso florianesco pela expedição de ordens,
explicações aos subalternos, de suas vontades, de suas vistas. Certamente
deviam ser necessárias tais transmissões para que o seu senso superior se fizesse
p.196 sentir e influísse na marcha das cousas governamentais e administrativas.
Dessa preguiça de pensar e de agir, vinha o seu mutismo, os seus
misteriosos monossílabos, levados à altura de ditos sibilinos, as famosas
'encruzilhadas dos talvezes' que tanto reagiram sobre a inteligência e imaginação
nacionais, mendigas de heróis e grandes homens.
Essa doentia preguiça, fazia-o andar de chinelos e deu-lhe aquele aspecto
de calma superior, calma de grande homem de Estado ou de guerreiro
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extraordinário.
Toda a gente ainda se lembra como foram os primeiros meses de governo.
A braços com o levante de presos, praças e inferiores da fortaleza de Santa Cruz,
tendo mandado fazer um inquérito, abafou-o, com medo que as pessoas
indicadas como instigadoras não fizessem outra sedição, e, não contente com
isso, deu a essas pessoas as melhores e mais altas recompensas.
Demais, ninguém pode admitir um homem forte, um César, um Napoleão,
que permita aos subalternos aquelas intimidades deprimentes e tenha com eles
as condescendências que ele tinha, consentindo que o seu nome servisse de
lábaro para uma vasta série de crimes de toda a espécie.(...)
De resto, a lentidão com que sufocou a revolta de 6 de setembro [de 1893 -
Revolta da Armada] mostra bem a incerteza, a vacilação de von-
p.197 tade de um homem que dispunha daqueles extraordinários recursos que
estavam às suas ordens.
Há uma outra face do Marechal Floriano que muito explica os seus
movimentos, atos e gestos. Era o seu amor à família, um amor entranhado,
alguma cousa de patriarcal, de antigo que já se vai esvaindo com a marcha da
civilização.
Em virtude de insucessos na exploração agrícola de duas das suas
propriedades, a sua situação particular era precária, e não queria morrer sem
deixar à família as suas propriedades agrícolas desoneradas do peso das dívidas.
Honesto e probo como era, a única esperança que lhe restava, repousava
nas economias sobre os seus ordenados. Daí lhe veio essa dubiedade, esse jogo
com pau de dous bicos, jogo indispensável para conservar os rendosos lugares

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que teve e o fez atarraxar-se tenazmente à presidência da República. A hipoteca
do 'Brejão' e do 'Duarte' foi o seu nariz de Cleópatra...
A sua preguiça, a sua tibieza de ânimo e o seu aor fervoroso pelo lar deram
em resultado esse 'homem-talvez' que, refractado nas necessidades mentais e
sociais dos homens do tempo, foi transformado em estadista, em Richelieu, e
pôde resistir a uma séria revolta com mais teimosia que vigor, obtendo vidas,
dinheiro e despertando até entusiasmo e fanatismo.
Esse entusiasmo e esse fanatismo, que o ampararam, que o animaram,
que o sustentaram, só teriam sido possíveis, depois de ter ele sido ajudante
general do Império, senador, ministro, isto é, após se ter 'fabricado' à vista de
todos e cristalizado na mente de todos.
A sua concepção de governo não era o despotismo, nem a democracia,
nem a aristocracia; era a de uma
p.198 tirania doméstica. O bebê portou-se mal, castiga-se. Levada a cousa ao
grande o portar-se mal era fazer-lhe oposição, ter opiniões contrárias às suas
e o castigo não eram mais palmadas, sim, porém, prisão e morte. Não há
dinheiro no Tesouro; ponham-se as notas recolhidas em circulação, assim
como se faz em casa quando chegam visitas e a sopa é pouca: põe-se mais
água [o Encilhamento].
Demais, a sua educação militar e a sua fraca cultura deram mais realce a
essa concepção infantil, raiando-a de violência, não tanto por ele em si, pela sua
perversidade natural, pelo seu desprezo pela vida humana, mas pela fraqueza
com que acobertou e não reprimiu a ferocidade de seus auxiliares e asseclas.
Quaresma estava longe de pensar nisso tudo; ele com muitos homens
honestos e sinceros do tempo, foram tomados pelo entusiasmo contagioso que
Floriano conseguira despertar. Pensava na grande obra que o Destino reservava
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àquela figura plácida e triste; na reforma radical que ele ia levar ao organismo
aniquilado da pátria, que o major se habituara a crer a mais rica do mundo,
embora, de uns tempos para cá, já tivesse dúvidas a certos respeitos.
Decerto ele não negaria tais esperanças e a sua ação poderosa havia de se
fazer sentir pelos oito milhões de quilômetros quadrados do Brasil, levando-lhes
estradas, segurança, proteção aos fracos, assegurando o trabalho e promovendo a
riqueza. (...)
p.199 (...) Floriano tinha essa capacidade de guardar fisionomias, nomes,
empregos, situações dos subalternos com quem lidava. Tinha alguma cousa de
asiático; era cruel e paternal ao mesmo tempo."

Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma (3ª parte, cap. I: Patriotas)

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Texto 019: Lima Barreto e o apostolado positivista

“Foi Leiva o meu iniciador no Rio de Janeiro. Deu-me relações, ensinou-


me as maneiras, o calão da boêmia, levou-me aos lugares curiosos e consagrados.
Com ele fui ao Apostolado Positivista ouvir o Senhor Teixeira Mendes. Um grande
matemático, disse-me; a primeira cabeça do Brasil, uma inteligência
enciclopédica, uma erudição segura, e, sobretudo, um caráter e um coração!
Um domingo, em que havíamos saído do Apostolado, vínhamos descendo
pachorrentamente o cais da Glória, a conversar.
Leiva viera pela Rua Benjamin Constant abaixo gabando a eloqüência do
venerável Senhor Mendes, a sua virtude, a sua sobriedade e contara-me por alto
a surra que ele dera no Bertrand, da Academia Francesa, em assunto de
Matemática. Eu ouvi-o sem coragem de contestar, embora não compartilhasse as
suas crenças. Não era a primeira vez que ia ao Apostolado, mas quando via o
vice-diretor sair rapidamente por detrás de um retábulo, na absida da capela, ao
som de um tímpano rouco, arrepanhando a batina, com aquele laço verde no
braço, dava-me vontade de rir às gargalhadas. Demais, ficava assombrado com a
firmeza com que ele anunciava a felicidade contida no Positivismo e a
simplicidade dos meios necessários para a sua vitória: bastava tal medida,
bastava essa outra — e todo aquele rígido sistema de regras, abrangendo todas as
manifestações da vida coletiva e individual, passaria a governar, a modificar
costumes, hábitos e tradições. Explicava o catecismo. Abria o livro, lia um trecho
e procurava o caminho para alusões a questões atuais, repetindo fórmulas para
se obter um bom governo que tendesse a preparar a era normal — o advento final
da Religião da Humanidade. E eu achava toda aquela dissertação tão intelectual,
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tão balda de comunicação, tão incapaz de erguer dentro de mim o devotamento, o
altruísmo, “o esforço sobre mim mesmo em favor dos outros”, como dizia o
apóstolo, que me quedava a indagar até que ponto o auditório respeitoso estava
convencido e ate que ponto fingia convicção.
Havia trechos em que ele insistia com particular agrado. Via-se que neles
repousava a conversão dos espíritos. Não me esqueci que ele amava repetir que a
Física, a Química, a Biologia, a Sociologia, todas as ciências e todo o esforço
humano de qualquer ordem tinham preparado lentamente e tendiam para a
religião da humanidade; era ela como a coroação, a cúpula do edifício do
pensamento e dos sentimentos da humanidade. Citava trechos de grandes poetas
nesse sentido, e procurava dados históricos. Quando se oferecia ocasião,
esboçava a ordem futura, cotejando-a com a presente. O médico, o professor e o
sacerdote estariam juntos em um mesmo homem, cujos serviços seriam
gratuitos; todos exerceriam um ofício manual e os capitais acumulados em
poucas mãos seriam empregados em beneficio social. A quantas necessidades
presentes daquele auditório não iria dar remédio a promessa daquela sociedade a
vir?! Os homens têm amor à utopia quando condensada em fórmulas de
felicidade; e aqueles militares, funcionários, estudantes, encontravam naquelas
afirmações, repetidas com tanta segurança e cuja verdade não procuravam
examinar, um alimento para a fome de felicidade da espécie e um consolo para os
seus maus dias presentes.
Pelo caminho, ouvi repetirem as palavras do Mestre e apoiarem-se nelas
para criticar atos do Governo, projetos da Câmara — esse viveiro de bacharéis
ignorantes que não sabem Matemática.

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Observei que o meu próprio amigo Leiva partia também dessa crença
pitagórica das virtudes da Matemática para condenar e criticar o governo e os
governantes; entretanto, além daquelas explicações filosóficas do Senhor Teixeira
Mendes, ele sabia pouco mais do que as quatro operações na ciência divina.
— Vê tu, dizia-me ele, quem no Brasil tem conhecimentos mais seguros
que o T. Mendes? E acrescentava logo: como se pode acreditar que, na nossa
época científico-industrial, um homem que não conhece como se fabricam os
encanamentos d'água, as propriedades do ferro e o seu tratamento industrial, as
teorias hidráulicas, poderá aquilatar e dirigir os serviços de uma cidade moderna,
cuja primeira necessidade é um seguro e farto abastecimento d'água?
Leiva gostava de falar; e, quando a matéria lhe agradava, o cansaço
dificilmente vinha. Eu amava ouvi-lo, pois tinha uma bela voz, acariciante e de
agradável timbre, e que vibrava musicalmente ao chegar-lhe a paixão. Continuou:
— Antigamente, todos os governantes tinham, ou antes, estavam ao par
do saber de seu tempo, e só com a necessidade do estabelecimento de novas
ciências—o que fez a especialização dos conhecimentos — deixaram tão salutar
regra. Hoje porém, graças ao sobre-humano cérebro de Comte — o maior talvez
depois de Aristóteles — o saber voltou à unidade útil e moral dos outros tempos.
A síntese foi feita e os estadistas verdadeiramente dignos, servidores práticos da
Humanidade, poderão encontrar nela um seguro farol para guiá-los.
Não me animei a perguntar-lhe se a síntese de que falava continha
também a questão do abastecimento d'água. Senti a sinceridade momentânea de
suas palavras, ditas até com certo entusiasmo; e quando alguém me fala desse
modo, encho-me de respeito e de amizade. Vínhamos descendo a rua e assim
continuamos um instante calados. Houve uma ocasião, em que, quase sem
refletir, perguntei ao Leiva:
52
— Como você é ao mesmo tempo anarquista e positivista — uma doutrina
de ordem, de submissão, que espera a vitória pelo resultado fatal das leis
sociológicas?
— Ora você! Eu quero uma confusão geral, um abalo completo desta
ordem iníqua, para então... O Mendes é simples, e bom, pensa que isso vai como
ele quer: mas é preciso... Olhe, o Cristianismo..."

Fonte: Recordações do escrivão Isaías Caminha [1909], cap. VII, p.78

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Texto 020: Lima Barreto e o Coronelismo

p.24 "Gostava dele [o tio de Isaías Caminha]. Era um homem leal, valoroso, de
pouca instrução, mas de coração aberto e generoso. Contavam-lhe façanhas,
bravatas portentosas, levadas ao cabo, pelos tempos em que fora, nas
eleições, esteio do partido liberal. Pelas portas das vendas, quando passava,
cavalgando o seu simpático cavalo magro, com um saco de cartas à garupa,
murmuravam: 'Que songamonga ! Já liquidou dois...'
Eu sabia do caso, estava mesmo convencido de sua exatidão; entretanto,
apesar de minhas idiotas exigências de moral inflexível, não me envergonhava de
estimá-lo, amava-o até, sem mescla de terror, já pela decisão do seu caráter, já
pelo apoio certo que nos dera, a mim e a minha mãe, quando veio a morrer meu
pai, vigário da freguesia de ***. Animara a continuar os meus estudos, fizera
sacrifícios para me dar vestuário e livros, desenvolvendo assim uma atividade
acima dos meus recursos e forças.
Durante os dois anos que passei, depois de ter concluído humanidades, o
seu caráter atrevido conseguia de quando em quando arranjar-me um ou outro
trabalho. Desse modo, eu ia vivendo uma doce e medíocre vida roceira, sempre
perturbada, porém, pelo estonteante propósito de me largar para o Rio. Vai Isaías
! Vai !
Meu tio ergueu a cabeça, passou o olhar demoradamente sobre mim e
disse:
- Fazes bem !
Acabou de tomar o café, pediu o capote e convidou-me:
- Vem comigo. Vamos ao coronel... Quero pedir-lhe que te recomende ao
doutor Castro, deputado." (...)
53
p.25 "Durante quarenta minutos, patinhamos na lama do caminho, até à casa
do Coronel Belmiro. Mal tínhamos empurrado a porteira que dava para a estrada,
o vulto grande do fazendeiro assomou no portal da casa, redondo, num longo
capote e coberto de um largo chapéu de feltro preto. Aproximamo-nos.
- Oh! Valentim! fez preguiçosamente o coronel. Você traz cartas? Devem ser
do Trajano, conhece? Sócio do Martins, da Rua dos Pescadores...
- Não senhor, interrompeu meu tio.
- Ah! É seu sobrinho... nem o conheci... Como vai, menino? Não esperou
a minha resposta; continuou logo em seguida:
- Então, quando vai para o Rio? Não fique aqui... Vá... Olhe, o senhor
conhece o Azevedo ?
- É disso mesmo que vínhamos tratar. Isaías quer ir para o Rio e eu vinha
pedir a Vossa Senhoria...
- O quê? Interrompeu assustado o coronel.
- Eu queria que Vossa Senhoria, senhor coronel, gaguejou o tio Valentim,
recomendasse o rapaz ao doutor Castro.
O coronel esteve a pensar. Mirou-me de alto a baixo, finalmente falou:
- Você tem direito, Seu Valentim... É ... Você trabalhou pelo Castro... Aqui
pra nós: se ele está eleito, deve-o a mim e aos defuntos, e a você que desenterrou
alguns.
Riu-se muito, cheio de satisfação por ter repetido tão velha pilhéria e
perguntou amavelmente em seguida:
- O que é que você quer que lhe peça ?

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- Vossa Senhoria podia dizer na carta que o Isaías ia ao Rio estudar, tendo
já todos os preparatórios, e precisava, por ser pobre, que o doutor lhe arranjasse
um emprego.
O coronel não se deteve, fez-nos sentar, mandou vir café e foi a um
compartimento junto escrever a missiva.
Não se demorou muito; as suas noções gramaticais não eram
suficientemente fortes para retardar a redação de uma carta. Demoramo-nos
ainda um pouco, e quando nos despedíamos, o coronel abraçou-me dizendo:
- Faz bem, menino. Vá, trabalhe, estude, que isto aqui é uma terra à-toa
com licença da palavra, de m... O Castro deve fazer alguma coisa por você. Ele foi
assim também... O pai, você o conheceu, Seu Valentim?
- Sim, coronel, disse meu tio.
- ... era muito pobre, muito mesmo... O Hermenegildo, o Castro, quis
estudar. Nós... nós, não, eu, principalmente, que era presidente, arranjei-lhe uma
subenção da Câmara... E foi assim. Hoje, acrescentou o coronel imediatamente,
não é preciso, o Rio é muito grande, há muitos recursos... Vá menino!"

Fonte: Recordações do escrivão Isaías Caminha [1909], cap. I

Texto 021: Passagens sobre chefes em Grande Sertão: Veredas

Medeiro Vaz:
"Medeiro Vaz, retratal, barbaça, com grande chapéu rebuçado, aquela pessoa
sisuda, circunspecto com todas as velhices, sem nem velho ser", era "homem
sobre o sisudo, nos usos formado, não gastava as palavras. Nunca relatava antes
54
o projeto que tivesse, que marchas se ia amanhecer para dar. Também, tudo nele
decidia a confiança de obediência. Ossoso, com a nuca enorme, cabeçona meia
baixa, ele era dono do dia e da noite - que quase não dormia mais: sempre se
levantava no meio das estrelas, percorria o arredor, vagaroso, em passos, calçado
com suas boas botas de caititu, tão antigas. Se ele em honrado juízo achasse que
estava certo, Medeiro Vaz era solene de guardar o rosário na algibeira, se traçar o
sinal-da-cruz e dar firme ordem para se matar uma a uma as mil pessoas."
"Medeiro Vaz era duma raça de homem que o senhor mais não vê. (...) Ele tinha
conspeito tão forte, que perto dele até o doutor, o padre e o rico, se compunham.
Podia abençoar ou amaldiçoar, e homem mais moço, por valente que fosse, de
beijar a mão dele não se vexava. Tenente nos gerais - ele era."

Joca Ramiro:
"E Joca Ramiro. A figura dele. Era ele, num cavalo branco - cavalo que me olha
de todos os altos. Numa sela bordada, de Jequié, em lavores de preto-e-branco.
As rédeas bonitas, grossas, não sei de que trançado. E ele era um homem de
largos ombros, a cara grande, corada muito, aqueles olhos. Como é que vou dizer
ao senhor? Os cabelos pretos, anelados? O chapéu bonito? Ele era um homem.
Liso bonito. Nem tinha mais outra coisa em que se reparar. (...) A gente tinha até
medo de que, com tanta aspereza da vida, do sertão, machucasse aquele homem
maior, ferisse, cortasse. E, quando ele saía, o que ficava mais, na gente, como
agrado em lembrança, era a voz. Uma voz sem pingo de dúvida, nem tristeza.
Uma voz que continuava."

Apostila de Brasil República 3.ed. - Prof. Marcos Alvito - UFF - 2014


E, em outro passo, evocando o chefe morto: "Joca Ramiro, tão diverso e reinante
que, mesmo em quando ainda parava vivo, era como se já estivesse constando de
falecido."

Zé Bebelo
Zé Bebelo, prisioneiro, submetido a julgamento, arenga:
"... Altas artes que agradeço, senhor chefe Joca Ramiro, este sincero julgamento,
esta bizarria... Agradeço sem tremor de medo nenhum, nem agéncias de
adulação! Eu. José, Zê Bebelo, é meu nome: José Rebelo Adro Antunes! Tataravô
meu Francisco Vizeu Antunes - foi capitão-decavalos... Demarco idade de
quarenta-e-um anos, sou filho legitimado de José Ribamar Pacheco Antunes e
Maria Deolinda Rebelo; e nasci na bondosa vila mateira do Carmo da Confusão..."
(...) "Agradeço os que por mim bem falaram e puniram... Vou depor. Vim para o
Norte, pois vim, com guerra e gastos, à frente de meus homens, minha guerra...
Sou crescido valente, contra homens valentes quis dar o combate. Não está certo?
Meu exemplo, em nomes, foram estes: Joca Ramiro, Joãozinho Bem-Bem, Sô
Candelário!... e tantos outros afamados chefes, uns aqui presentes, outros que
não estão..."

Diálogo entre Joca Ramiro e Zé Bebelo.


- "O julgamento é meu, sentença que dou vale em todo este norte. Meu povo me
honra. Sou amigo dos meus amigos políticos, mas não sou criado deles, nem
cacundeiro. A sentença vale. A decisão. O senhor reconhece?"
- "... Agora, com sua licença, a pergunta faço: pelo quanto tempo eu tenho de
estipular, sem voltar neste Estado, nem na Bahia?"
- "Até enquanto eu vivo for, ou não der contra-ordem..."
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E o vencido, cumprindo a palavra dada, vai rumo de Goiás, escoltado
honrosamente pelo cabra Friol, distância de três léguas, "por o uso de
resguardado território"; Joca Ramiro deixa o acampamento para região ignorada:
"Lá ia ele, deveras, em seu cavalão branco, ginete - ladeado por Sô Caridelário e o
Ricardão - igual iguais galopavam."

Bibliografia: ROSA,Guimarães. Grande Sertão: Veredas. E também


PROENÇA,Manuel Cavalcanti, "Dom Riobaldo do Urucuia, Cavaleiro dos campos
gerais" (artigo obtido no site Esquina da Literatura:
www.spaceports.com/~esquina)

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Texto 022: Lima Barreto e a República dos Doutores

p.26 "As cigarras puseram-se a estridular e vim vindo de cabeça baixa, sem
apreensões, cheio de esperanças, exuberante de alegrias.
A minha situação no Rio estava garantida. Obteria um emprego. Um dia
pelos outros iria às aulas, e todo o fim de ano, durante seis, faria os exames, ao
fim dos quais seria doutor !
Ah ! Seria doutor ! Resgataria o pecado original do meu nascimento
humilde, amaciaria o suplício presente, cruciante e onímodo de minha cor... Nas
dobras do pergaminho da carta*, traria presa a consideração de toda a gente.
Seguro do respeito à minha majestade de homem, andaria com ela mais firme
pela vida em fora. Não titubearia, não hesitaria, livremente poderia falar, dizer
bem alto os pensamentos que se estorciam no meu cérebro.
O flanco, que a minha pessoa, na batalha da vida, oferecia logo aos
ataques dos bons e dos maus, ficaria mascarado, disfarçado...
Ah! Doutor! Doutor!... Era mágico o título, tinha poderes e alcances
múltiplos, vários, polifórmicos... Era um pallium** [manto usado pelos gregos
antigos], era alguma coisa como clâmide [tipo de capote usado pelos antigos
gregos] sagrada tecida com fio tênue e quase imponderável, mas a cujo encontro
os elementos, os maus olhares, os exorcismos se quebravam. De posse dela, as
gotas da chuva afastar-se-iam transidas do meu corpo, não se animariam a
tocar-me nas roupas, no calçado sequer. O invisível distribuidor dos raios solares
escolheria os mais meigos para me aquecer, e gastaria os fortes, os inexoráveis,
com o comum dos homens que não é doutor. Oh! Ser formado, de anel no
dedo, sobrecasaca e cartola, inflado e grosso, como um sapo-intanha antes de
ferir a martelada à beira do brejo; andar assim pelas ruas, pelas praças, pelas
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estradas, pelas salas, recebendo cumprimentos: Doutor, como passou ? Como
está, doutor ? Era sobre-humano !..." (...)
p.27 "Almocei, saí até a cidade próxima para fazer as minhas despedidas, jantei
e, sempre, aquela visão doutoral não me deixava. Uma face dela me aparecia,
depois outra mais brilhante; esta provocava uma consideração, aquela mais uma
propriedade da carta onipotente. De noite, no teto da minha sala baixa, pelos
portais, pelas paredes, eu via escrito pela luz do lampião de petróleo - Doutor!
Doutor!
Quantas prerrogativas, quantos direitos especiais, quantos privilégios, esse
título dava! Podia ter dois e mais empregos apesar da Constituição; teria direito à
prisão especial e não precisava saber nada. Bastava o diploma. Pus-me a
considerar que isso devia ser antigo... Newton, César, Platão e Miguel Ângelo
deviam ter sido doutores!
Foram os primeiros legisladores que deram à carta esse prestígio extra-
terrestre... Naturalmente, teriam escrito nos seus códigos: tudo o que há no
mundo é propriedade do doutor, e se alguma coisa outros homens gozam, devem-
no à generosidade do doutor. Era uma outra casta, para a qual eu entraria, e
desde que penetrasse nela, seria de osso, sangue e carne diferente dos outros -
tudo isso de uma qualidade transcendente, fora das leis gerais do Universo e
acima das fatalidades da vida comum.
- Levas toda a roupa, Isaías ? Veio interromper minha mãe.
Eu estava deitado num velho sofá amplo. Lá fora, a chuva caía com
redobrado vigor e ventava fortemente. A nossa casa frágil parecia que, de um
momento para outro, ia ser arrastada. Minha mãe ia e vinha de um quarto

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próximo; removia baús, arcas; cosia, futicava. Eu devaneava e ia-lhe vendo o
perfil esquálido, o corpo magro, premido de trabalhos, as faces cavadas, com os
maxilares salientes, tendo pela pele parda manchas escuras, como se fossem de
fumaça entranhadas." (...) "Aos seus olhos - muitas vezes se me veio a afigurar -
eu era como uma rapariga, do meu nascimento e condição, extraordinariamente
bonita, vivaz e perturbadora... Seria demais tudo isso; cercá-la-ia logo o ambiente
de sedução e corrupção, e havia de acabar por aí, por essas ruas..."
p.28 "- Vai, meu filho, disse-me ela afinal. Adeus!... E não te mostres muito,
porque nós..."

* Carta: Diploma; documento oficial, que atribui a alguém um cargo ou título, ou


um privilégio. (N.E.)
** Pallium: Forma latina de pálio, manto usado pelos gregos antigos. (N.E.)

Fonte: Recordações do escrivão Isaías Caminha [1909], cap. I

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Texto 023: Cronologia de Canudos

1828 : Nasce Antônio Vicente Mendes Maciel (Antônio Conselheiro) em


Quixeramobim, no CE, filho de pequeno comerciante, que tencionava encaminha-
lo ao sacerdócio e deu-lhe estudos em português, latim e francês;
1857 : casa-se na sua cidade natal
1861 : Transfere-se para Ipu e trabalha como advogado dos pobres; abandona a
mulher ao surpreendê-la com um amante; segue para o Crato, acompanhando
missionários evangelizadores e ganhando a vida como vendedor ambulante e
negociante de aguardente;
1874 : aparece esmolando em Itabaiana, seguido pelos primeiros fiéis, um dos
quais carregava um ‘oratório tosco’; nesse período, talvez tenha acompanhado
missionários estrangeiros ou o Padre Mestre Ibiapina (que percorria o sertão
criando casas de caridade, construindo cemitérios, capelas, igrejas e açudes)
1876 : Antônio Conselheiro entra no sertão baiano e na vila de Itapicuru de
Cima “obrigou as mulheres a cortar os cabelos e a queimar xales, sapatos e
objetos de luxo condenados pela religião”
1877 : (Notícia publicada na famosa folhinha Laemmert no RJ em 1877, citado
por Euclides da Cunha em Os Sertões; )
"Apareceu no sertão do Norte um indivíduo, que se diz chamar Antônio
Conselheiro, e que exerce grande influência no espírito das classes populares
servindo-se do seu exterior misterioso e costumes ascéticos, com que impõe à
ignorância e à simplicidade. Deixou crescer a barba e cabelos, veste uma túnica de
algodão e alimenta-se tenuamente, sendo quase uma múmia. Acompanhado de
duas professas, vive a rezar terços e ladainhas e a pregar e a dar conselho às
multidões, que reúne, onde lhe permitem os párocos; e movendo sentimentos
58
religiosos, vai arrebanhando o povo e guiando-o a seu gosto. Revela ser homem
inteligente, mas sem cultura."
1882 : Tensões na alta hierarquia do clero baiano; em 1882 o arcebispo da BA,
envia uma carta circular aos párocos na qual dizia:
'Chegando ao nosso conhecimento, que pelas freguesias do centro desse
arcebispado, anda um indivíduo denominado Antônio Conselheiro, pregando
ao povo, que se reúne para ouvi-lo, doutrinas supersticiosas e uma
moral excessivamente rígida com que está perturbando as
consciências e enfraquecendo, não pouco, a autoridade dos párocos
destes lugares, ordenamos a V.Revma., que não consinta em sua freguesia
semelhante abuso (...) visto como, competindo na igreja católica, somente
aos ministros da religião, a missão santa de doutrinar os povos, um secular,
quem quer que ele seja, ainda quando muito instruído e virtuoso, não tem
autoridade para exercê-la.'
1887 : O arcebispo da Bahia pede providências às autoridades estaduais
contra Antônio Conselheiro, que seg. a autoridade religiosa pregava “doutrinas
subversivas, fazendo grande mal à religião e ao Estado (...) insurgindo-se contra
as autoridades constituídas, às quais não obedecia e manda desobedecer”; o
Conselheiro foge da Bahia e chega a ser preso em Recife mas é solto; ao retornar
à Bahia, alguns padres, devido às proibições do arcebispo, não consentiam que
ele pregasse, o que leva a seu isolamento.
1893 : ano em que A.Conselheiro teria começado a pregar contra a República
segundo E.Cunha; queima dos editais de impostos em B.Conselho; 30 praças são

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enviados para prendê-lo, sem o beato foge para Canudos (uma velha fazenda de
gado), no sertão baiano;
- Logo a vinda de Antônio Conselheiro, para aquele lugar “cingido de montanhas,
onde não penetraria a ação do governo maldito” (E.C.), atrai levas de populares.
Segundo o Barão de Geremoabo, citado por E.C.:
“Alguns lugares desta comarca e de outras circunvizinhas, e até do Estado
de Sergipe ficaram desabitadas, tal a aluvião de famílias que subiam para
os Canudos, lugar escolhido por Antônio Conselheiro para o centro de suas
operações. Causava dó verem-se expostos à venda nas feiras,
extraordinária quantidade de gado cavalar, vacum, caprino, etc., além de
outros objetos, por preços de nonada, como terrenos, casas, etc. O anelo
extremo era vender, apurar algum dinheiro e ir reparti-lo com o Santo
Conselheiro”
Não sabemos quais eram exatamente as críticas do Conselheiro à República nesta
época, mas, anos mais tarde, em Canudos, ele falava assim aos fiéis:
'é impotente o poder humano para acabar com a religião. O presidente da
República, porém, movido pela incredulidade que tem atraído sobre ele
toda sorte de ilusões, entende que pode governar o Brasil como se fora um
monarca legitimamente constituído por Deus; tanta injustiça os católicos
contemplam amargurados. Oh! (...) é necessário que se sustente a fé da
Igreja. A religião santifica tudo e não destrói coisa alguma, exceto o pecado.
Daqui se vê que o casamento civil ocasiona a nulidade do casamento,
conforme manda a santa madre Igreja de Roma, contra a disposição mais
clara do seu ensino.'
Diz-se, que no arraial,
'cada família tinha o direito de conservar sua criação e roçado. No
59
ato da chegada, cada um entregava metade do que possuía. Os
desvalidos eram alimentads. Os demais viviam do seu trabalho.
Conselheiro recebia esmolas que lhe chegavam de vários pontos da Bahia e
de outros estados. Conseguia adquirir gêneros alimentícios a baixos preços.
Circulava dinheiro do Império e da República (...) Havia também uma
espécie de vale, impresso e garantido por Antônio Vilanova, que era
proprietário de uma casa comercial em Canudos. Esse vale tinha franca
aceitação nas localidades vizinhas. Os ladrões eram presos e enviados
às autoridades baianas. As meretrizes eram deportadas. Não se
permitia o uso de cachaça. Os que viviam em concubinato eram
casados por ocasião das visitas do Padre Sabino, vigário de Cumbe,
que tinha casa em Canudos, onde celebrava, casava e batizava na
própria igreja construída por Conselheiro'.
- Embora seja impossível determinar a população do arraial, pelo número de casas
destruídas em 1897 (5.200), calcula-se que lá viviam cerca de 30 mil pessoas; a
cidade era chamada de Belo Monte e nela havia a seguinte hierarquia:
i. O Conselheiro
ii. Sub-chefes como
- João Abade, comandante de rua (segurança e guerra)
- Antônio Vilanova, escrivão de casamentos (assuntos civis e administrador do
patrimônio)
- Antônio Beatinho, assessorado por 8 beatas, ajudava o chefe nas práticas
religiosas

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iii. Companhia do Bom Jesus, Guarda Católica ou Santa Companhia do Bom
Jesus: 800 homens e duzentas mulheres formavam um corpo especial com os
crentes mais dedicados que se despojavam de tudo, formando uma irmandade ou
confraria; juntamente com os mais ricos, os componentes da Cia habitavam em
verdadeiras casas, cobertas de telhas e próximas das igrejas;
iv. Nos ranchos, o restante da população; antes que a repressão aumentasse, o
comércio com as cidades vizinhas era intenso e havia alguns comerciantes
prósperos;
- O Conselheiro governava o arraial com mão-de-ferro segundo Euclides da
Cunha:
"Polícia de bandidos
Graças a seus braços fortes, Antônio Conselheiro dominava o
arraial, corrigindo os que saíam das trilhas demarcadas. Na cadeia ali
paradoxalmente instituída - a poeira, no dizer dos jagunços - viam-se,
diariamente, presos pelos que haviam cometido a leve falta de alguns
homicídios os que haviam perpetrado o crime abominável de faltar às
rezas.
Inexorável para as pequenas culpas, nulíssima para os grandes
atentados, a justiça era, como tudo o mais, antinômica, no clã policiado
por facínoras. Visava uma delinquência especial, traduzindo-se na inversão
completa do conceito do crime. Exercitava-se, não raro duramente,
cominando penas severíssimas sôbre leves faltas.
O uso da aguardente, por exemplo, era delito sério. Ai! do
dipsomaníaco incorrigível que rompesse o interdito imposto !
Conta-se que de uma feita alguns tropeiros inexpertos, vindos do
Juazeiro, foram ter a Canudos, levando alguns barris do líquido
60
inconcensso. Atraía-os o engôdo de lucro inevitável. Levavam a eterna
cúmplice das horas ociosas dos matutos. Ao chegarem, porém, tiveram,
depois de descarregarem na praça a carga valiosa, desagradável surpresa.
Viram, ali mesmo, abertos os barris, a machado, e inutilizado o
contrabando sacrílego. E volveram rápidos, desapontados, tendo às mãos,
ao invés do ganho apetecido, o ardor de muitas dúzias de palmatoadas,
amargos bolos com que os presenteara aquela gente ingrata.
Este caso é expressivo. Sólida experiência ensinara ao Conselheiro
todos os perigos que adviriam dêste hachich nacional. Interdizia-o menos
por debelar um vício que para prevenir desordens. Mas fora do povoado,
estas podiam espalhar-se à larga. Dali partiam bandos turbulentos
arremetendo com os arredores. Tôda a sorte de tropelias eram permitidas,
desde que aumentassem o patrimônio da grei. Em 1894, as algaras,
chefiadas por valentões de nota, tornaram-se alarmantes. Foram em um
crescendo tal, de depredações e desacatos, que despertaram a ação dos
poderes constituídos, originando mesmo calorosa e inútil discussão na
Assembléia Estadual da Bahia."
1895 :Dois capuchinhos italianos, a mando do arcebispo da BA, entram no
arraial com a missão de dispersar o povo; Conselheiro os recebe e permite que
ministrem os sacramentos, mas opõe-se à sua missão política; No relatório dos
religiosos eles dizem:
"Conselheiro justificava os homens armados que mantinha à sua volta por
necessidade de sua defesa, dizendo: 'No tempo da monarquia deixei-me

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prender porque reconhecia o governo; hoje não, porque não reconheço a
República;
Os aliciadores da seita se ocupam em persuadir o povo de que todo aquele
que quiser se salvar precisa vir para Canudos, porque nos outros lugares tudo
está contaminado e perdido pela República; ali, porém, nem é preciso trabalhar; é
a terra da promissão, onde corre um rio de leite, e são de cuscuz de milho as
barrancas;
Desconhece as autoridades eclesiásticas, sempre que de algum modo lhe
contrariam as idéias, ou os caprichos; e arrastando por esse caminho os
seus infelizes sequazes, consente ainda que eles lhes prestem homenagens
que importam em culto, e propalem em seu nome doutrinas subversivas da
ordem, da moral e da fé.
A seita político-religiosa, estabelecida e entrincheirada em Canudos, não é
só um foco de superstição e fanatismo e um pequeno cisma na igreja baiana;
é, principalmente, um núcleo, na aparência desprezível, mas um tanto
perigoso e funesto de ousada resistência e hostilidade ao governo
constituído no país. Encarado o arrojo das pretensões e a soberania dos
fatos, pode-se dizer que é aquilo um estado no Estado: ali não são aceitas
as leis, não são reconhecidas as autoridades, não é admitido à circulação o
próprio dinheiro da República.'
1896 :
outubro - um juiz de Joazeiro embarga compra de madeira feita por
Conselheiro para a nova igreja do arraial; o governador, pressionado, envia 100
praças, que são cercados por mais de 1000 'jagunços' conselheiristas sucesso (1a.
expedição contra Canudos); a população de Salvador pede o sangue do
Conselheiro;
61
10 de novembro - afastamento do presidente P.Moraes por motivo de
doença, assumindo o seu vice, o florianista Manoel Vitorino, que busca apoio nos
militares dissidentes que vêem em Canudos uma ameaça monarquista;
dezembro - envio da 2ª expedição contra Canudos com 543 praças, 14
oficiais, 3 médicos, 2 canhões Krupp e duas metralhadoras (melhor equipamento
da época); derrota fragorosa; retirada de feridos e famintos por 200 km de sertão;
o arraial aumenta enormemente em apenas 3 semanas; cresce o ânimo militarista
contra Canudos e o jacobinismo exige o fim de Canudos em nome da memória de
Floriano; M.César, que batera os federalistas no RS é o herdeiro do sentimento
militarista;
1897 :
3 fevereiro - embarque para a BA da 3ª expedição contra Canudos em
clima de grande entusiasmo c/1300 combatentes, 15 milhões de cartuchos e 70
tiros de artilharia; chegam a Canudos em março, sedentos e famintos (levaram
bomba artesiana) e tentam atacar direto, à baioneta; derrota causa comoção
nacional e aquilo parece a ponta do iceberg de uma conspiração restauradora
(monarquista); no Rio de Janeiro, a massa excitada pela propaganda nacionalista
e republicana quebra redações e tipografias de 3 jornais tidos como
monarquistas; atacam e matam monarquistas criando situação anárquica;
governadores de Estado, congressistas, todos pedem vingança;
4 de março - o presidente Prudente de Moraes reassume o cargo
junho - formada a 4ª expedição contra Canudos, para redimir a 'honra
nacional'; formada por 2 colunas com mais de 5 mil homens e preparada

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minuciosamente; no decorrer da luta, seus contingentes receberão reforços de 4
mil homens;
5 de outubro – Assim foi o fim de Canudos segundo Euclides da
Cunha:

“Canudos não se rendeu


Fechemos este livro.
Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao
esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo,
caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que
todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma
criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados.
Forremo-nos à tarefa de descrever os seus últimos momentos. Nem
poderíamos fazê-lo. Esta página, imaginamo-la sempre profundamente
emocionante e trágica; mas cerramo-la vacilante e sem brilhos.
Vimos como quem vinga uma montanha altíssima. No alto, a par de uma
perspectiva maior, a vertigem. . .
Ademais, não desafiaria a incredulidade do futuro a narrativa de
pormenores em que se amostrassem mulheres precipitando-se nas fogueiras dos
próprios lares, abraçadas aos filhos pequeninos...
E de que modo comentaríamos, com a só fragilidade da palavra humana, o
fato singular de não aparecerem mais, desde a manhã de 3, os prisioneiros
válidos colhidos na véspera, e entre eles aquele Antônio Beatinho, que se nos
entregara, confiante — e a quem devemos preciosos esclarecimentos sobre esta
fase obscura da nossa História ?
Caiu o arraial a 5. No dia 6 acabaram de o destruir desmanchando-lhe as
62
casas, 5.200, cuidadosamente contadas.

O cadáver do Conselheiro
Antes, no amanhecer daquele dia, comissão adrede escolhida descobrira o
cadáver de Antônio Conselheiro.
Jazia num dos casebres anexos à latada, e foi encontrado graças à
indicação de um prisioneiro. Removida breve camada de terra, apareceu no triste
sudário de um lençol imundo, em que mãos piedosas haviam desparzido algumas
flores murchas, e repousando sobre uma esteira velha, de tábua, o corpo do
"famigerado e bárbaro" agitador. Estava hediondo. Envolto no velho hábito azul
de brim americano, mãos cruzadas ao peito, rosto tumefato, e esquálido, olhos
fundos cheios de terra — mal o reconheceram os que mais de perto o haviam
tratado durante a vida.
Desenterraram-no cuidadosamente. Dádiva preciosa — único prêmio,
únicos despojos opimos de tal guerra ! — , faziam-se mister os máximos
resguardos para que se não desarticulasse ou deformasse, reduzindo-se a uma
massa angulhenta de tecidos decompostos.
Fotografaram-no depois. E lavrou-se uma ata rigorosa firmando a sua
identidade: importava que o país se convencesse bem de que estava, afinal,
extinto aquele terribilíssimo antagonista.
Restituíram-no à cova. Pensaram, porém, depois, em guardar a sua cabeça
tantas vezes maldita — e, como fora malbaratar o tempo exumando-o de novo,
uma faca jeitosamente brandida, naquela mesma atitude, cortou-lha; e a face

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horrenda, empastada de escaras e de sânie, apareceu ainda uma vez ante aqueles
triunfadores...
Trouxeram depois para o litoral, onde deliravam multidões em festa, aquele
crânio. Que a ciência dissesse a última palavra. Ali estavam, no relevo de
circunvoluções expressivas, as linhas essenciais do crime e da loucura...”

novembro - quando o presidente passava em revista as tropas vencedoras


em Canudos, sofre um atentado por parte de Marcelino Bispo, suboficial do
exército; o presidente escapa, mas morre o Ministro da Guerra, o Marechal
Bittencourt; o atentado não é assumido por nenhuma corrente política, mas dá
força moral e política para que o governo consiga o estado de sítio e passe a
perseguir seus adversários, iniciando o domínio paulista;

Os Sertões (Edeor de Paula, Em Cima da Hora):

Marcado pela própria natureza


O nordeste do meu Brasil
Ó solitário sertão
De sofrimento e solidão
A terra é seca
Mal se pode cultivar
Morrem as plantas
E foge o ar
A vida é triste nesse lugar
63
Sertanejo é forte
Supera a miséria sem fim
Sertanejo homem forte
Dizia o poeta assim

Foi no século passado


No interior da Bahia
O homem revoltado
Com a sorte
No mundo em que vivia
Ocultou-se no sertão
Espalhando a rebeldia
Se revoltando contra a lei
Que a sociedade oferecia

Os jagunços lutaram
Até o final
Defendendo Canudos
Naquela guerra fatal

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Texto 024: Lucrécio Barba-de-Bode

Natureza e data do texto: Passagem de A Numa e a Ninfa [publicado em folhetim


em 1915], de Lima Barreto (1881-1922)

"O copeiro interrompeu-os e avisou o patrão de que estava aí o Lucrécio


que lhe queria falar.
Lucrécio, ou melhor: Lucrécio Barba-de-Bode, por sua alcunha, que tão
intempestivamente interrompia o almoço do Deputado Numa Pompílio*, não era
propriamente um político, mas fazia parte da política e tinha o papel de ligá-la às
classes populares. Era um mulato moço, nascido por aí, carpinteiro de profissão,
mas que há muito não exercia o ofício. Um conhecido, certo dia, disse-lhe que ele
era bem tolo em estar trabalhando que nem um mouro; que isso de ofício não dá
nada; que se metesse em política. Lucrécio julgava que esse negócio de política
era para os graúdos, mas o amigo lhe afirmou que todos tinham direito a ela,
estava na Constituição.
Já o seu amigo fora manobreiro da Central, mas não quis ficar naquela
'joça' e estava arranjando coisa melhor. Dinheiro não lhe faltava e mostrou vinte
mil réis: - Sabes como arranjei ? fez o outro. Arranjei com o Totonho do Catete,
que trabalha para o Campelo.
Lucrécio tomou nota da coisa e continuou a aplainar as tábuas, de mau
humor. Que diabo? Para que esse esforço, para que tanto trabalho?
Fez-se eleitor e alistou-se no bando do Totonho, que trabalhava para o
Campelo. Deu em faltar à oficina, começou a usar armas, a habituar-se a rolos
eleitorais, a auxiliar na soltura dos conhecidos, pedindo e levando cartas deste ou
daquele político para as autoridades. Perdeu o medo das leis, sentiu a injustiça
64
do trabalho, a niilidade do bom comportamento. Todo o seu sistema de idéias e
noções sobre a vida e a sociedade modificou-se, se não se inverteu. Começou a
desprezar a vida dos outros e a sua também. Vida não se fez para negócio...
Meteu-se numa questão de jogo com um rival temido, matou-o e foi sagrado
valente. Foi a júri e, absolvido por isto ou aquilo, o Totonho fez constar que o fora
por empenho do Dr. Campelo. Daí em diante se julgou cercado por um halo de
impunidade e encheu-se de processos. Quando voltou a noções mais justas e
ponderou o exato poder de seus mandantes, estava inutilizado, desacreditado, e
tinha que continuar no papel...
Vivia de expedientes, de pedir a este ou àquele, de arranjar proteção para
tavolagens em troco de subvenções disfarçadas. Sentia necessidade de voltar ao
ofício, mas estava desabituado e sempre tinha a esperança de um emprego aqui
ou ali, que lhe haviam vagamente prometido. Não sendo nada, não se julgava
mais operário; mesmo os de seu ofício não o procuravam e sentia-se mal no meio
deles. Passava os dias nas casas do Congresso; conhecia-lhes o regimento, os
empregados; sabia dos boatos políticos e das chicanas eleitorais. Entusiasmava-
se nas cisões por ofício e necessidade. Era este o Lucrécio que, ao entrar, fez com
toda a jovialidade:
- Bons dias."

* Numa Pompílio: 2º rei de Roma segundo a lenda; ironia de Lima Barreto, para
contrastar a venerável tradição encarnada no nome versus a realidade política
corrompida que o deputado representava.

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Texto 025: As eleições

Natureza e data do texto:


Passagens da obra satírica Os Bruzundangas [1917], de Lima Barreto, em
que o recurso a um país fictício (a Bruzundanga) lhe permite ironizar e criticar
asperamente os costumes e a sociedade brasileira em geral. Trechos do capítulo
XIV ("As eleições).

"DENTRE as muitas superstições políticas do nosso tempo, uma das mais


curiosas é sem dúvida a das eleições. Admissíveis quando se trata de pequenas
cidades, para a escolha de autoridades verdadeiramente locais, quase municipais,
como eram na antiguidade, elas tomam um aspecto de sortilégio, de adivinhação,
ao serem transplantadas para os nossos imensos estados modernos. Um
deputado eleito por um dos nossos imensos distritos eleitorais, com as nossas
dificuldades de comunicação, quer materiais, quer intelectuais, sai das urnas
como um manipanso a quem se vão emprestar virtudes e poderes que ele quase
sempre não tem. Os seus eleitores não sabem quem ele é, quais são os seus
talentos, as suas idéias políticas, as suas vistas sociais, o grau de interesse que
ele pode ter pela causa pública; é um puro nome sem nada atrás ou dentro dele.
O eleito, porém, depois de certos passes e benzeduras legais, vai para a Câmara
representar-lhes a vontade, os desejos e, certamente, procurar minorar-lhes os
sofrimentos, sem nada conhecer de tudo isto.
A superstição eleitoral é uma das nossas coisas modernas que mais há de
fazer rir os nossos futuros bisnetos. Na Bruzundanga, como no Brasil, todos os
representantes do povo, desde o vereador até ao Presidente da República, eram 65
eleitos por sufrágio universal, e, lá, como aqui, de há muito que os políticos
práticos tinham conseguido quase totalmente eliminar do aparelho eleitoral este
elemento perturbador -- "o voto".
Julgavam os chefes e capatazes políticos que apurar os votos dos seus
concidadãos era anarquizar a instituição e provocar um trabalho infernal na
apuração porquanto cada qual votaria em um nome, visto que, em geral, os
eleitores têm a tendência de votar em conhecidos ou amigos. Cada cabeça, cada
sentença; e, para obviar os inconvenientes de semelhante fato, os mesários da
Bruzundanga lavravam as atas conforme entendiam e davam votações aos
candidatos, conforme queriam.
Na capital da Bruzundanga, Bosomsy, onde assisti diversas eleições, o
espetáculo delas é o mais ineditamente pitoresco que se pode imaginar. As ruas
ficam quase desertas, perdem o seu trânsito habitual de muheres e homens
atarefados; mas para compensar tal desfalque passam constantemente por elas,
carros, automóveis, pejados de passageiros heterogêneos. O doutor-candidato vai
neles com os mais cruéis assassinos da cidade, quando ele mesmo não é um
assassino; o grave chefe de secção, interessado na eleição de F., que prometeu
fazê-lo diretor; o grave chefe, o homem severo com os vadios de sua burocracia,
não trepida em andar de cabeça descoberta, com dous ou três calaceiros
conhecidíssimos. A fisionomia aterrada e curiosa da cidade dá a entrever que se
está à espera de uma verdadeira batalha; e a julgar-se pelas fisionomias que se
amontoam nas secções, nos carros, nos cafés, e botequins, parece que as prisões
foram abertas e todos os seus hóspedes soltos, naquele dia.

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Raro é o homem de bem que se faz eleitor, e se se alista, para atender a
pedidos de amigos, não tarda que o seu diploma sirva a outro cidadão mais
prestante, que no dia do pleito, para fins eleitorais, muda de nome e toma o do
pacato burguês que se deixa ficar em casa, e vota com eles. Isto é o que lá se
chama: -- "um fósforo". Às vezes semelhantes eleitores votam até com nomes de
mortos, cujos diplomas apresentam aos mesários solenes e hieráticos que nem
sacerdotes de antigas religiões. Quer um, quer outro serviço eleitoral, constituem
os préstimos mais relevantes que se podem prestar aos políticos de profissão.
Tais costumes eleitorais da Bruzundanga são fonte de muitos casos cômicos,
mas, por serem quase semelhantes aos que se passam entre nós, abstenho-me de
narrá-los. Entretanto, vou dar-lhes o depoimento de um ingênuo e inteligente
eleitor, que descreve a sua iniciação eleitoral na Bruzundanga e os característicos
do exercício dos direitos políticos que a sua Constituição outorga aos cidadãos.
Trata-se de uma das melhores relações que travei naquele país. Ao tempo em
que nos conhecemos, ele tinha ai os seus vinte e seis anos e já havia publicado
algumas memórias interessantes sobre a paleontologia da Bruzundanga. (...)
Penso, por isso, que o meu amigo, Halaké Ben Thoreca, como todos os seus
iguais, se banalizou com o casamento e a conseqüente cavação de empregos.
Tratemos, porém, da sua estréia eleitoral, como ele me contou.
Vamos ouvi-lo: "Pelos meus vinte e dous anos, uma manhã, li um artigo
eloqüente em que se lembrava aos bruzundanguenses a necessidade, o dever de
inscrever os seus nomes no próximo alistamento eleitoral. Li e fiquei convencido,
Depois de árduos trabalhos, obtive o diploma; e, nas vésperas da eleição, pus-me
a estudar os manifestos dos candidatos ao cargo espinhoso de deputado. Fiquei 66
perplexo. Julho Ben Khosta, com mais de vinte anos de prática no ofício de
candidato, prometia, caso fosse eleito, propugnar a disseminação de livros e
estampas; e, hoje mesmo, apesar de homem feito, passa horas e horas a
folheá-los. A promessa de Julho Ben Khosta demoveu-me a empenhar-lhe o meu
voto. Não durou muito essa minha resolução. Na mesma Coluna dos apelidos do
jornal, a plataforma do doutor Karaban acenava-me com uma grande esperança.
Este doutor gastava frases e juramentos, prometendo que faria decretar a
aprovação compulsória dos estudantes reprovados.
Calculem que eu tinha quatro bombas em mecânica e, por aí, poderão
imaginar como fiquei contente com semelhante candidato. Foi tiro e queda: decidi
votar no doutor Karaban. Saí bem cedo, para almoçar qualquer cousa.
Na pensão um meu amigo pediu-me que votasse no Kasthriotoh. É um moço
muito pobre, está quase na miséria, disse-me o amigo, cheio de família; precisa
muito do subsídio. Tive dó e, quando deixei o almoço, tinha o arraigado propósito
de votar no indigente Kasthriotoh. Dirigi-me, no dia próprio, para a secção
eleitoral, e esperei. Chamaram-me, afinal. Quase a tremer, no alevantado fito de
influir nos destinos da Pátria consegui atravessar por entre duas filas de homens
de aspecto feroz, que me olhavam desdenhosamente.
Sentei-me, mostrei o meu título, assinei um livro, depus a cédula na urna e
fiquei um momento cismando diante da esbelteza de um longo arco abatido que,
de uma única enjambée e com uma flecha relativamente diminuta, vencia, com
suave elegância, toda a largura do átrio do palácio vice-real, onde funcionava a
secção eleitoral. Creio que me demorei indecentemente nessa admiração, porque

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vi as minhas cismas interrompidas pelo grito enérgico do coronel
mesário-presidente: -- O senhor não se levanta! berrou o homem. Obedecendo,
afastei-me corrido de vergonha e atravessei de novo por entre aquelas mesmas
caras ferozes que me tinham visto passar um pouco antes, no alevantado intuito
de influir nos destinos da Pátria.
Aguardei o resultado quieto, a um canto. Estava seriamente interessado em
impedir que o pobre Kasthriotoh morresse de fome, com a mulher, filhos, sogra,
cunhadas, etc. Estive assim cerca de duas horas, ao fim das quais alguns
daqueles sujeitos horrendos se aproximaram e, fingindo que o faziam às ocultas,
começaram a examinar facas, punhais, estoques, garruchas, revólveres, que
traziam. Via perfeitamente tais armas e descobri que mesmo para isso é que eles
tal cousa faziam. Fascinaram-me e não pude desviar o olhar. Foi a minha
desgraça, Deus dos Céus! Um deles ergueu o chapéu ao alto da cabeça e fez para
mim, encarando-me com horrorosa catadura: -- Que está olhando?
-- Nada, não senhor; respondi eu.
-- Vá... Você está aí com parte de siri sem unha... Arreda!
E, sem saber como, vi-me envolvido em um formidável rolo e levei uma porção
de pauladas e quatro facadas. Mandaram-me para a Santa Casa, onde meu
amigo Hanthônio me foi visitar:
-- Que foi isto? perguntou-me.
-- Direitos políticos.
Depois de restabelecido, vim a saber que o Kasthriotoh não tivera um único 67
voto e arranjara um emprego modesto que lhe dava para fazê-lo viver e mais a
família com café e pão sem manteiga. A ata (eu a pude ver mais tarde) estava um
primor de autenticidade, pois tinha sido falsificada com toda a perfeição por um
espanhol que vivia do ofício eleitoral de falsificar atas de eleições. Eis como foi a
minha estréia eleitoral."
Os meus leitores poderão verificar que, no ponto de vista eleitoral, a
Bruzundanga nada tem que invejar da nossa cara pátria. "

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Texto 026: Casa de cômodos

Natureza e data do texto:


Trecho do capítulo XI do romance Recordações do Escrivão Isaías Caminha
[1909], de Lima Barreto

“Durante todo esse tempo, residi em uma casa de cômodos na altura do


Rio Comprido. Era longe; mas escolhera-a por ser barato o aluguel. Ficava a casa
numa eminência, a cavaleiro da Rua Malvino Reis e, atualmente, os dois andares
do antigo palacete que ela fora estavam divididos em duas ou três dezenas de
quartos, onde moravam mais de cinqüenta pessoas.
O jardim, de que ainda restavam alguns gramados amarelecidos, servia
de coradouro. Da chácara toda, só ficaram as altas árvores, testemunhas da
grandeza passada e que davam, sem fadiga nem simpatia, sombra às lavadeiras,
cocheiros e criados, como antes o fizeram aos ricaços que ali tinham habitado.
Guardavam o portão duas esguias palmeiras que marcavam o ritmo do canto de
saudades que a velha casa suspirava; e era de ver, pelo estio, a resignação de
uma velha e nodosa mangueira, furiosamente atacada pela variegada pequenada
a disputar-lhe os grandes frutos, que alguns anos atrás bastavam de sobra para
os antigos proprietários.
Houve noites em que como que ouvi aquelas paredes falarem, recordando
o fausto sossegado que tinham presenciado, os cuidados que tinham merecido e
os quadros e retratos veneráveis que tinham suportado por tantos anos.
Lembrar-se-iam certamente dos lindos dias de festa, dos casamentos, dos
aniversários, dos batizados, em que pares bem-postos dançavam entre elas os
lanceiros e uma veloz valsa à francesa.
68
À noite, quando entravam aqueles cocheiros de grandes pés, aqueles
carregadores suados, o soalho gemia, gemia particularmente, dolorosamente,
dolorosamente, angustiadamente... Que saudades não havia nesses gemidos dos
breves pés das meninas quebradiças que o tinham palmilhado tanto tempo!
A casa pertencera talvez a um oficial de Marinha, um chefe de esquadra.
Havia ainda no teto do salão principal um Netuno com todos os atributos. O salão
estava dividido ao meio por um tabique; os cavalos-marinhos e uma parte da
concha ficaram de um lado e o deus do outro, com um pedaço do tridente,
cercado de tritões e nereidas.
Num cômodo (em alguns) moravam as vezes famílias inteiras e eu tive ali
ocasião de observar de que maneira forte a miséria prende solidamente os
homens.
De longe, parece que toda essa gente pobre, que vemos por aí, vive
separada, afastada pelas nacionalidades ou pela cor; no palacete, todos se
misturavam e se confundiam. Talvez não se amassem, mas viviam juntos,
trocando presentes, protegendo-se, prestando-se mútuos serviços. Bastava,
entretanto, que surgisse uma desinteligência para que os tratamentos
desprezíveis estalassem de parte a parte.
Certo, quando assistia a tais cenas, não ficava contente, mas também não
sabia refletir por aquele tempo, que, seja entre que homens for, desde que surjam
desinteligências, logo rompem os tratamentos desprezíveis mais à mão.
Vi aí, na casa do Rio Comprido, os mais disparatados casos; e, pela
manhã, aos domingos, quando me debruçava à janela, olhava brincando no
terreiro uma pequenada em que se misturava o sangue de muitas partes do

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mundo. Em nenhum deles havia o gárrulo e a inocência dos meninos ricos;
quando não eram humildes e tristes, eram irritáveis. Facilmente surgia uma rixa
entre eles e o choro passava do contendor vencido a ser geral entre todos, com os
castigos infligidos pelas mães aos culpados e não culpados.
Admirava-me que essa gente pudesse viver, lutando contra a fome, contra
a moléstia e contra a civilização; que tivesse energia para viver cercada de tantos
males, de tantas privações e dificuldades. Não sei que estranha tenacidade a leva
a viver e por que essa tenacidade é tanto mais forte quanto mais humilde e
miserável. Vivia na casa uma rapariga preta que suportava dias inteiros de fome,
mal vivendo do que lhe dava uma miserável prostituição; entretanto, à menor dor
de dentes chorava, temendo que a morte estivesse próxima."

Texto 027: Batuque na cozinha (João da Baiana):

Natureza e data do texto: João da Baiana (1887-1974], filho de uma quituteira


que viera da Bahia para o Rio de Janeiro, foi um dos pioneiros do samba e dos
ranchos no Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XX. Esta música,
datada de 1915, retrata o ambiente das casas de cômodos e a repressão policial
aos habitantes das mesmas. Nesta gravação, temos o autor a cantar com
Pixinguinha tocando e está no CD "Raízes do Samba - Pixinguinha", EMI Brasil,
1999 [1968].

Não moro em casa de cômodos,


Não é por ter medo não,
Na cozinha há muita gente,
Sempre tem apelação,
69

Batuque na cozinha sinhá não quer,


por causa do batuque eu queimei meu pé,

Batuque na cozinha sinhá não quer,


por causa do batuque eu queimei meu pé,

Então não bula na cumbuca,


Não me espante o rato,
Se o branco tem ciúme,
Que dirá o mulato

Eu fui na cozinha pra ver uma cebola,


O branco com ciúme duma tal crioula,
Deixei a cebola, peguei na batata,
O branco com ciúme duma tal mulata,
Peguei no balaio pra medir a farinha,
O branco com ciúme duma tal branquinha

Voltei na cozinha, pra tomar um café,


O malandro tá com olho na minha mulher,
Mas comigo eu apelei pra desarmonia,
E fomos direto prá Delegacia,

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Seu Comissário foi dizendo com altivez
É da casa de cômodos da tal Inês,
Revista os dois, bota no xadrez
Malandro comigo não tem vez

Batuque na cozinha sinhá não quer,


por causa do batuque eu queimei meu pé,

Mas, Seu Comissário, eu estou com a razão,


Eu não moro na casa de habitação
Eu fui apanhar meu violão,
Que estava empenhado com o Salomão

Eu pago a fiança com satisfação


Mas não me bota no xadrez com esse malandrão,
Que faltou com o respeito a um cidadão,
Da Paraíba, do Norte, Maranhão

Texto 028: A favela como questão de polícia

Natureza e data do texto:


Do dualismo que persiste em muitas das interpretações atuais a respeito
das favelas, o Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, guarda um interessante
documento datado de 4 de novembro de 1900. Trata-se de uma carta do delegado
da 10ª circunscrição ao Chefe de Polícia, Dr. Eneas Galvão. Nela podemos ler:
70

“Obedecendo ao pedido de informações que V.Excia., em ofício sob


nº 7071, ontem me dirigiu relativamente a uma local do ‘Jornal do Brasil’,
que diz estar o morro da Providência infestado de vagabundos e criminosos
que são o sobressalto das famílias no local designado, se bem que não haja
famílias no local designado, é ali impossível ser feito o policiamento
porquanto nesse local, foco de desertores, ladrões e praças do exército, não
há ruas, os casebres são construídos de madeira e cobertos de zinco, e não
existe em todo o morro um só bico de gás, de modo que para a completa
extinção dos malfeitores apontados se torna necessário um grande cerco,
que para produzir resultado, precisa pelo menos de um auxílio de oitenta
praças completamente armadas.”

A proposta do cerco, prossegue o delegado, nem ao menos era inédita:

“Dos livros desta delegacia consta ter ali sido feita uma diligência pelo
meu antecessor que teve êxito, sendo com um contingente de cinqüenta
praças, capturado, numa só noite, cerca de noventa e dois indivíduos
perigosos. “

A solução ideal, entretanto, era outra, sugere o delegado ao Chefe de


Polícia:

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“Parece, entretanto, que o meio mais pratico de ficar completamente
limpo o aludido morro é ser pela Diretoria de Saúde Pública ordenada a
demolição de todos os pardieiros que em tal sítio se encontram, pois são
edificados sem a respectiva licença municipal e não têm as devidas
condições higiênicas.

Saúde e fraternidade
O delegado”
A carta do delegado foi encaminhada a um assessor do Chefe de Polícia,
acompanhada do seguinte parecer, datado de 8 de novembro de 1900:

“Parece-me que ao Sr. Prefeito devem ser pedidas, a bem da ordem e


moralidade públicas, as providências que julgar necessárias para a
extinção dos casebres e pardieiros a que alude o delegado.”

Dois dias, depois, com um lacônico “Sim”, o Dr. Eneas Galvão, Chefe de
Polícia do Distrito Federal, endossava o parecer de seu assessor. Aqui perdemos o
fio da meada histórica e não sabemos se jamais o prefeito veio a receber tal
correspondência. De qualquer forma, os dois documentos existentes no Arquivo
Nacional são importantes por dois motivos. Em primeiro lugar, mostram que o
“morro da Favella”, apenas três anos depois do Ministério da Guerra permitir que
ali viessem a se alojar os veteranos da campanha de Canudos (terminada em 1º
de outubro de 1897), já era percebido pelas autoridades policiais como um “foco
de desertores, ladrões e praças do exército”. E mais, a carta do delegado da 10ª
circunscrição parece conter a primeira menção à favela como um duplo problema: 71
sanitário e policial (aos quais o assessor de Eneas Galvão acrescentou a
“moralidade pública”), que poderia, por isso mesmo, ser resolvido de um só golpe.
A idéia da favela como um “foco”, a menção à “limpeza”, isto é, a retórica centrada
nas concepções de uma “patologia social” e da “poluição” estava destinada a uma
longa permanência na cena institucional carioca do século XX. A proposta de
cercar um morro habitado pelas “classes perigosas”, entretanto, não era nova
(como os registros da 10ª delegacia assinalavam) e nem parecia ser fruto único e
exclusivo da mente das autoridades policiais. Assim podemos depreender de uma
notícia publicada também no “Jornal do Brasil”, na famosa coluna “Queixas do
Povo”, ainda no mês de novembro de 1900:

“Diversos caixeiros de lojas de fazendas da rua da Carioca vieram


pedir que reclamássemos do sr. delegado da 6ª circunscrição urbana as
providências contra uma quadrilha de menores gatunos que se acouta no
morro de Santo Antônio, perto da passagem dos bonds elétricos.
Anteontem à noite, um desses larápios, auxiliado por um grupo de
companheiros, furtou da casa nº 39 daquela rua um par de calças que
estava à mostra.”

A relativa insignificância do objeto furtado, entretanto, não parece ter


impedido uma reação imediata e coletiva dos comerciantes daquela rua,
denotando, talvez, a freqüência do problema:

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“Perseguidos pelos reclamantes referidos, evadiram-se por aquele
morro, sendo presos somente dois, por um guarda noturno; os outros,
antes de fugirem à polícia, juraram aos seus perseguidores vingarem-se
deles.”

A providência solicitada pelos comerciantes à autoridade policial é a


seguinte:

“Um cerco bem dado, estudando o sr. delegado antecipadamente o terreno


do morro, teria bom resultado”.

Extraído da Introdução do livro Um século de favela. Organizado por Alba Zaluar


e Marcos Alvito. Rio de Janeiro, FGV, 1998.

Texto 029: Queixas do povo ao Jornal do Brasil

Natureza e data do texto:


Esta notícia, publicada no Jornal do Brasil em 29 de outubro de 1900, já
apresenta uma queixa endereçada ao delegado da 10 ª circunscrição referido no
texto anterior. À época, o Jornal do Brasil era um jornal bastante popular, por
sua postura de oposição ao governo e por dar espaço ao "jogo dos bichos", aos
crimes e reivindicações populares (cf. SILVA,Eduardo.As queixas do povo. Rio de
Janeiro,Paz e Terra,1988). As "Queixas do Povo" era um dos carros-chefes do
jornal, pois eram publicadas gratuitamente e nem mesmo era necessário saber 72
escrever: as reclamações podiam ser feitas diretamente no jornal ou em suas
agências. Mantivemos a grafia original.
"Pedem-nos que chamemos a atenção do Sr. Delegado da 10 ª
circumscripção para um grupo de vagabundos que estaciona quasi todos
os dias na rua da Providencia, incommodando as familias alli residentes,
que são obrigadas a ouvir constantemente palavrões desses desocupados."

Também já apareciam queixas contra menores:

"Queixam-se os moradores da praça da República da grande quantidade de


gatunos e menores vagabundos que trazem em sobressalto as familias
daquelle lugar, e pedem-nos que reclamemos providencias à policia, afim
de reprimi-los, pois dia e noite fazem alli proezas de toda a sorte."
(3/11/1900)

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Texto 030: Lima Barreto e a revolta contra os sapatos obrigatórios (uma
metáfora da Revolta da Vacina em 1904)

Natureza e data do texto: Recordações do escrivão Isaías Caminha [escrito em


1908], cap. X

p.116 "Nascera a questão dos sapatos obrigatórios de um projeto do Conselho


Municipal, que foi aprovado e sancionado, determinando que todos os
transeuntes da cidade, todos que saíssem à rua seriam obrigados a vir calçados.
Nós passávamos então por uma dessas crises de elegância, que, de quando em
quando, nos visita. Estávamos fatigados da nossa mediania, do nosso
relaxamento; a visão de Buenos Aires, muito limpa, catita, elegante, provocava-
nos e enchia-nos de loucos desejos de igualá-la. Havia nisso uma grande questão
de amor-próprio nacional e um estulto desejo de não permitir que os estrangeiros,
ao voltarem, enchessem de críticas a nossa cidade e a nossa civilização. (...)
'Como é que
p.117 não tínhamos largas avenidas, passeios de carruagens, hotéis de casaca,
clubes de jogo ?' (...)
Laje da Silva [empresário suspeito], farejando o que continha de negociatas
nos melhoramentos em projetos, propugnava-os com ardor. (...)
Aires d'Ávila [redator chefe do jornal O Globo, na verdade, sátira ao Correio
da Manhã] chegou mesmo a escrever um artigo, mostrando a necessidade de ruas
largas para diminuir a prostituição e o crime e desenvolver a indústria nacional.
E os da frente, os cinco mil de cima, esforçavam-se por obter as medidas
legislativas favoráveis à transformação da cidade e ao enriquecimento dos
patrimônios respectivos com indenizações fabulosas e especulações sobre
73
terrenos. Os Haussmanns pululavam. Projetavam-se avenidas; abriam-se nas
plantas squares, delineavam-se palácios, e, como complemento, queriam também
uma população catita, limpinha, elegante e branca: cocheiros irrepreensíveis,
engraxates de libré, criadas louras, de olhos azuis, com o uniforme como se viam
nos jornais de moda da Inglaterra. Foi esse estado de espírito que ditou o famoso
projeto dos sapatos."
[Dona Felismina, a lavadeira da casa de cômodos no R.Comprido onde residia
Caminha]
p.130 (cap.XI)
"- Diga-me uma coisa 'Seu' Caminha: há aí uma lei que obriga todos a andarem
calçados?
- Há uma postura municipal.
- Mas é verdade isso mesmo ? Pois então todos, todos ?
- Na rua, é. Por que se assusta ?
- Dizem que as folhas falam nisso e que até, contam aí, que quem tiver pé
grande tem que sofrer uma operação para diminuir os pés, como os chinas...
É verdade ?
- Qual! É balela! Quem lhe contou ?
Ao sair, ainda ouvi que, pelos corredores, se discutia o assunto com calor,
girando sempre a conversa em torno daquela operação chinesa que o governo
queria impor à população."
p.140 (cap. XII)
[os positivistas contra a lei, numa conversa entre jornalistas]
"(...) Você leu o Jornal do Comércio ?

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- Não. Por quê ?
- O Teixeira Mendes [líder e "ideólogo" do Apostolado Positivista] ataca a lei dos
sapatos obrigatórios. Diz que isso de andar calçado, de correção de traje, em
última análise, entra no campo da estética, assim no espiritual em que não
pode o poder temporal intervir absolutamente... Então é com o papa ?
Os dois sorriram e Floc [crítico literário do jornal] refletiu vagarosamente:
- Eu creio que as coisas vão mal. Há muita irritação, muito azedume por aí..."
[relato do repórter que fazia polícia e 'Vida Operária']
"- Vocês não imaginam... As coisas estão feias! Estive na Gamboa e na Saúde...
Os estivadores dizem que não se calçam nem a ponta de espada. Não falam
noutra coisa. Vi um carroceiro dizer para outro que lhe ia na frente guiando
pachorrentamente: Olá hé! Estás bom para andares calçado que nem um doutor!
Por aí vocês avaliam... Creio que há 'turumbamba'!"
p.142 [Isaías Caminha reflete, surpreso diante da revolta]
"A irritação do espírito popular que eu tinha observado na minha própria
casa não me fez pensar nem temer. Julguei-a especial àqueles a quem tocavam e
nunca que aquelas observações ingênuas se tivessem transformado em grito de
guerra, em amuleto excitador para a multidão toda. Mais tarde, entretanto,
verifiquei que a crença de que o Governo pretendia operar violentamente os
homens e mulheres de pés grandes, como os chinas, é que tinha impressionado
fortemente os espíritos levando-os ao sangrento motim que estalou." (...)
"Recolhi-me cedo nessa noite e dormi profundamente toda ela. Não vi a
destruição dos combustores de iluminação, que os populares tinham levado a
efeito. Só a notei de manhã, já pelas oito horas, descendo a ladeira. Na rua, o
trânsito era ralo e o tráfego dos bondes parecia ter cessado completamente. Nas
esquinas, havia patrulhas de infantaria e cavalaria e de distância em distância, à
74
porta de estalagens, afastados da polícia, havia grupos compactos de populares.
Um bonde aproximou-se, e, embora cheio, dependurei-me com dificuldade num
dos balaústres. A fisionomia das ruas era de expectativa. As patrulhas subiam e
desciam; nas janelas havia muita gente espiando e esperando qualquer coisa.
Tínhamos deixado a estação do Mangue, quando de todos os lados, das esquinas,
das portas e do próprio bonde partiam gritos: Vira! Vira! Salta! Salta! Queima!
Queima!
O cocheiro parou. Os passageiros saltaram. Num momento o bonde estava
cercado por um grande magote de populares à frente do qual se movia um bando
multicolor de moleques, espécie de poeira humana que os motins levantam alto e
dão heroicidade. Num ápice, o veículo foi retirado das linhas, untado de
querosene e ardeu. Continuei a pé. Pelo caminho a mesma atmosfera de terror e
expectativa. Uma força de cavalaria de polícia, de sabre desembainhado, corria
em direção ao bonde incendiado. Logo que ela se afastou um pouco, de um grupo
partiu uma tremenda assuada. Os assobios eram estridentes e longos; havia
muito da força e da fraqueza do populacho naquela arma ingênua. E por todo o
caminho, este cenário se repetia.
Uma força passava, era vaiada; se carregava contra o povo, este
dispersava-se, fragmentava-se, pulverizava-se, ficando um ou outro a receber
lambadas num canto ou num portal fechado. O Largo de São Francisco era
mesmo uma praça de guerra. Por detrás da Escola Politécnica [atual IFCS], havia
uma força e os toques da ordenança sucediam-se conforme as regras e preceitos
militares. Parei. Um oficial a cavalo percorria a praça, intimando o povo a retirar-
se. Obedeci e, antes de entrar na Rua do Ouvidor, a cavalaria, com grandes

Apostila de Brasil República 3.ed. - Prof. Marcos Alvito - UFF - 2014


sabres reluzindo ao sol, varria o largo com estrépito. Os curiosos encostavam-se à
porta das casas fechadas, mas mesmo aí os soldados iam surrá-los com vontade
e sem pena. Era o motim. (...)
As vociferações da minha gazeta tinham produzido o necessário resultado
(...)
p.144 "Durante três dias a agitação manteve-se. Iluminação quase não havia. Na
Rua do Ouvidor armavam-se barricadas, cobria-se o pavimento de rolhas para
impedir as cargas de cavalaria. As forças eram recebidas a bala e respondiam. (...)
Da sacada do jornal, eu pude ver os amotinados. Havia a poeira de garotos e
moleques; havia o vagabundo, o desordeiro profissional, o pequeno burguês,
empregado, caixeiro e estudante; haiva emissários de políticos descontentes.
Todos se misturavam, afrontavam as balas, unidos pela mesma irritação e pelo
mesmo ódio à polícia, onde uns viam seu inimigo natural e outros o Estado, que
não dava a felicidade, a riqueza e a abundância.
O motim não tem fisionomia, não tem forma, é improvisado. Propaga-se,
espalha-se, mas não se liga. O grupo que opera aqui não tem ligação alguma com
o que tiroteia acolá. São independentes; não há um chefe geral nem um plano
estabelecido. Numa esquina, numa travessa, forma-se um grupo, seis, dez, vinte
pessoas diferentes, de profissão, de inteligência, e moralidade. Começa-se a
discutir, ataca-se o Governo; passa o bonde e alguém lembra: vamos queimá-lo.
Os outros não refletem, nada objetam e correm a incendiar o bonde."

75

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Texto 031: Cronologia do movimento operário durante a Primeira República
1890
abr RJ  fundação do Partido Operário
dez Novo Código Criminal proibe greve e coligação operária (artigos 205-
6), disposições que são revogadas diante da ameaça de greve geral
dos trabalhadores (RJ)
1891
mai RJ  primeira celebração do 1º de maio no Brasil;
Santos  greve portuária derrotada envolvendo diversas categorias
RJ  greve dos ferroviários ajuda a derrubar Deodoro da
presidência
1892
1º ago-6 set RJ  Congresso Operário Nacional (socialista)
1893
RJ  ativistas estrangeiros presos e expulsos do país durante o
governo de Floriano Peixoto
1897
out Santos  greve portuária derrotada
1898
RJ  O Despertar primeiro jornal anarquista publicado no DF,
defendia a greve geral visando a abolição do Estado como única
arma operária (rejeitava eleições)
1899
jan RJ  o Manifesto do Centro Socialista aos Operários e Proletários
afirma que a República "vai vivendo à custa dos mais repugnantes
sindicatos políticos e industriais, geradores de uma perigosa oligarquia
76
plutocrática tão perniciosa quanto a oligarquia aristocrática"
1900
RJ  greve dos estivadores, ferroviários e carroceiros, planejada
como parte de um golpe para derrubar Campos Sales
1902
ago SP  o 2º Congresso Socialista Brasileiro funda o Partido Socialista
Brasileiro
1903
ago-set RJ  greve dos trabalhadores têxteis contando com a adesão
de outras categorias
out RJ  fundação da Federação das Associações de Classe
1904
nov RJ  participação do Centro das Classes Operárias na Revolta da
Vacina, conduzindo ao seu fechamento e à abertura de processo
contra seus dirigentes
1906
15-20 abr RJ  realização do 1º Congresso Operário Brasileiro no Centro
Galego, com 28 delegações, vindas do DF, SP, estado do RJ, CE e PE; a
corrente anarco-sindicalista (que rejeitava luta política partidária) triunfa
sobre os socialistas
mai Jundiaí, Campinas e Rio Claro  greve ferroviária da Companhia
Paulista
out Porto Alegre  greve geral (pela jornada de 8 horas) e fundação da
Federação Operária do RS dominada pelos socialistas

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1907
jan Lei Adolfo Gordo, permitindo a expulsão sumária de ativistas
estrangeiros; 132 são expulsos apenas neste ano (de um total de 556 até
1921)
mai SP, Santos, Ribeirão Preto greve abrangendo várias categorias pela
jornada de oito horas
1909
jan NE  greve ferroviária da Great Western, iniciada em Recife e que
atinge, além de PE, AL, PB e RN (reivindicações salariais)
1910
A Federação Operária (anarquista) recusa o envolvimento na
campanha presidencial
1912
jan SP  greves em diversas categorias (sapateiros, gráficos, têxteis)
7-15 nov RJ  realização do 4º Congresso Operário Brasileiro no Palácio
Monroe (sede do Senado Federal), contando com 74 delegações de 13
estados; é patrocinado pelo presidente da República, Hermes da Fonseca e
nele é proposta a criação de um partido da classe; a proposta é
violentamente atacada pela Confederação Operária (anarquista), a qual,
num violento manifesto chamava a política de um cancro, uma rameira e
uma cortesã que destruía e embrutecia o povo, fazendo o seguinte apelo:
"Varrei a política do seio das vossas associações de classe"
1913
RJ  três campanhas contra a carestia, cada uma organizada por
uma corrente
set RJ  2º Congresso Operário Brasileiro em resposta ao congresso
77
reformista do ano anterior; retoma as teses de 1906: não-
participação na política, condenação do mutualismo e do
corporativismo, sindicatos por ofício e por indústria.
1917
jul SP  greve geral com pauta comum de reivindicações votada em
assembléias (aumentos salariais, jornada de 8 horas, direito de
associação, libertação dos grevistas presos, diminuição dos aluguéis
etc)
RJ  greve envolvendo várias categorias (marceneiros, sapateiros,
metalúrgicos, padeiros, trabalhadores da construção civil, têxteis,
alfaiates, chapeleiros etc)
Outros estados (PB, RS e MG)  greves
1918
nov RJ  tentativa de levante anarquista (que pensava contar com a
adesão de unidades militares) com greves nos setores têxtil,
metalúrgico e da construção civil
1919
1º mai RJ & SP  celebrações do 1º de maio reunem dezenas de milhares
de trabalhadores
Vários estados (DF, SP, BA, PE, RS)  greves pela jornada de oito
horas e melhores salários (além de descanso semanal, igualdade de
salários para homens e mulheres, diminuição dos preços dos
gêneros de primeira necessidade)
1920

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mar RJ  greve da Leopoldina Railway apoiada maciçamente por outras
categorias; repressão por parte da polícia e do exército com a prisão
de 2.000 grevistas e invasão de diversas sociedades operárias
("criminalização" do movimento operário)
SP  greve têxtil
abr RJ  realização do 3º Congresso Operário Brasileiro num contexto de
recuo do movimento operário, representa o avanço do sindicalismo
de massa (mais próximo do modelo americano) e o relativo abandono
do sindicalismo revolucionário
1922
mar RJ  fundação do PCB: quadros provenientes do anarquismo,
pregava a revolução mas sem descartar a luta político-partidária e a
negociação; mais expressivo no RJ de início, torna-se mais
significativo em SP somente na 2ª metade da década de 20.
jul  decretado o estado de sítio, que irá ser prorrogado até dezembro
de 1926 e terá influência decisiva na desorganização das
associações operárias (invasões policiais, fechamento de sindicatos
etc)
1923
fev RJ  greve dos marítimos e portuários
fev-mar SP  greve vitoriosa de 42 dias dos gráficos
1926
ago RJ  reuniões na Biblioteca Nacional para discutir e regulamentar
a lei de férias (15 dias) aprovada no ano anterior para trabalhadores do
comércio e da indústria; na prática, a lei não foi aplicada por falta de
fiscalização
78
dez RJ  criação do Bloco Operário (BO), frente eleitoral lançada pelo
PCB
1927
abr RJ  Congresso Sindical Regional cria a Federação Sindical
Regional do R.Janeiro
ago  acusado de propaganda "subversiva", o PCB é posto na
ilegalidade
nov RJ  constituição do Bloco Operário Camponês (expressão legal do
PCB)
1928
out RJ  Minervino de Oliveira e Octavio Brandão são eleitos
intendentes pelo BOC
1929
mar-jul SP  greve de 72 dias dos gráficos, que termina vitoriosa
26 abr-1º maio RJ  Congresso Operário Nacional, que decide pela criação
da Confederação Geral do Trabalho do Brasil (organizada pelos comunistas)
1930
 na campanha para a presidência da República o BOC lança candidatura
própria, os anarquistas se mantém alheios e outras facções apoiam tanto
Getúlio quanto Júlio Prestes
Principais obras utilizadas: CARVALHO (1989) & BATALHA (2000) - ver
Bibliografia do curso.

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Texto 032: Cabide de Molambo, samba de João da Baiana

Natureza e data do texto:


João da Baiana (1887-1974], filho de uma quituteira que viera da Bahia
para o Rio de Janeiro, foi um dos pioneiros do samba e dos ranchos no Rio de
Janeiro das primeiras décadas do século XX. Esta música, cuja letra segue
abaixo, é um bem-humorado retrato das condições de vida dos trabalhadores
cariocas naquele período. Data da década de 1920. Nesta gravação, temos o
autor a cantar com Pixinguinha tocando e está no CD "Raízes do Samba -
Pixinguinha", EMI Brasil, 1999 [1968].

"Meu Deus, eu ando com o sapato furado/


tenho a mania de andar engravatado/
a minha cama é um pedaço de esteira/
e uma lata velha, que me serve de cadeira (refrão).

Minha camisa, foi encontrada na praia/


a gravata, foi achada na ilha da Sapucaia/
meu terno branco, parece casca de alho/
foi a deixa de um cadáver de um acidente de trabalho. [refrão]

O meu chapéu, foi dum pobre surdo e mudo/


as botinas, foi de um velho da Revolta de Canudos/
quando eu saio a passeio/
as damas ficam falando: trabalhei tanto na vida/
pro malandro estar gozando. (refrão)
79

A refeição é que é interessante/


na tendinha do Tinoco/
no pedir eu sou constante/
O português, meu amigo, sem orgulho/
me sacode um caldo grosso, carregado no entulho. (refrão)"

Texto 033: O orvalho vem caindo, samba de Noel Rosa (e Kid Pepe)

Natureza e data do texto:


Samba feito em 1934. A gravação está no CD "Sem tostão 2 – Canções de
Noel Rosa", Cristina Buarque e Henrique Cazes – Kuarup Discos.

"O orvalho vem caindo/ vai molhar o meu chapéu/ e também vão sumindo/ as
estrelas lá do céu... Tenho passado tão mal/ a minha cama é uma folha de
jornal/ Meu cortinado é um vasto céu de anil/ e meu despertador é um guarda-
civil (que o salário ainda não viu)/ A minha terra dá banana e aipim/ meu
trabalho é achar quem descasque por mim (vivo triste mesmo assim)/ A minha
sopa não tem osso nem tem sal/ se um dia passo bem/ dois e três passo mal/
(isto é muito natural !). O meu chapéu, tá de mal para pior/ e o meu terno,
pertenceu a defunto maior/ dois reais lá no Belchior "

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Texto 034: Industrialização e movimento operário na Primeira República –
estatísticas

I. A IMPLANTAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO DAS INDÚSTRIAS

1850 – O Brasil contava com apenas 50 estabelecimentos industriais, aí


incluídas várias salineiras; havia 2 fábricas de tecidos, 10 de produtos
alimentares, 2 de caixas e caixões, 5 de pequena metalurgia e 7 de produtos
químicos
1854 – Primeira ferrovia brasileira
1866 – Havia apenas 9 fábricas de tecidos em todo o Brasil (contra mais de 1000
nos EUA); nessa época a BA ainda era um centro têxtil importante; a primeira
fábrica de tecidos fora implantada no Rio de Janeiro em 1819 e outra em Minas
Gerais em 1824
1869 – 1a. fábrica de tecidos que utiliza máquinas a vapor; em Itu, SP
1875 – o número de fábricas de tecidos chega a 30 (em sua maior parte tecidos
grosseiros e sacaria para embalar produtos agrícolas; os tecidos finos eram
importados e não havia política protecionista)
1880-1884 – Fundados 150 estabelecimentos industriais (o que inclui pequenas
oficinas e manufaturas)
1885 – 48 fábricas de tecido (MG:13; BA:12; RJ:11; SP:9; AL:1; PE:1; MA:1),
sendo as do Rio de Janeiro as maiores
1885-1889 – fundados 248 estabelecimentos industriais

1889 – Havia 636 estabelecimentos industriais empregando 54.169


trabalhadores, o que representava apenas 0,4% da população brasileira
80
- nesta data, o Rio de Janeiro (DF) detinha 57% do capital industrial
brasileiro, porcentagem que vai cair à metade em 30 anos com o
crescimento da indústria paulista
- CAPITAL APLICADO NA INDÚSTRIA POR SETOR:
Têxtil: 60%; Alimentícia: 15%; Produtos Químicos e análogos: 10%; Indústrias de
madeiras: 4%; Vestuário e toucador: 3,5%; Metalurgia: 3%
1890-1895 – Fundam-se 425 estabelecimentos industriais
1907 – Havia 3.258 estabelecimentos industriais empregando 150.841
trabalhadores

1919 – Dados do censo industrial:


- PORCENTAGEM DO VALOR BRUTO DA PRODUÇÃO INDUSTRIAL POR
SETOR:
Alimentícia: 30,7% ; Têxtil: 29,3%; Bebidas e cigarros: 6,3%; Metalurgia e
indústria mecânica: 4,7%; Química: 2%
- PORCENTAGEM DO VALOR BRUTO DA PRODUÇÃO INDUSTRIAL POR
ESTADO:
SP:31,5; DF + Est. RJ: 28,2; RS:11,1; PE:6,8; MG:5,6; PR:3,2; SC:1,9; Região
Norte:1,3: GO + MT: 0,4%

1920 – Havia 13.336 estabelecimentos industriais empregando 275.512


trabalhadores, o que representava 1% da população brasileira

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- Nesta época, no município de SP, as mulheres representavam 29% dos
trabalhadores empregados em todos os ramos da indústria, e 58% dos
trabalhadores do setor têxtil; no DF (Rio de Janeiro), as porcentagens eram
menores: 27% do total e 39% no setor têxtil
- Dos 4.000 estabelecimentos da indústria de calçados, apenas 116 empregavam
mais do que 12 pessoas
- Mesmo passada a grande onda imigratória, os estrangeiros ainda representavam
51% dos trabalhadores industriais em SP e 35% no Rio de Janeiro

Década de 1920 – Caracterizada pelo fraco crescimento industrial: 9,8% entre


1920-29 contra 24,3% do setor agrícola; de qualquer forma, na 2 a. metade desta
década a indústria de bens de capital começa a adquirir uma certa importância:
indústrias siderúrgicas e de cimento e produção de vários tipos de máquinas
(elevadores, dispositivos de pesagem, motores elétricos, máquinas têxteis,
equipamentos de usinas de açúcar e peças de aço de locomotivas)

II. CAPITAL ESTRANGEIRO: DO DOMÍNIO INGLÊS AO NORTE-AMERICANO

Década de 1840 – quase metade do açúcar, metade do café e mais da metade do


algodão eram exportados por firmas britânicas

1870 – uma única companhia inglesa, a Phipps Brothers & Co., exportava
sozinha 13% do café (o qual representava à época 50,3% das nossas exportações,
porcentagem que vai subir para 64,5 até o fim do s.XIX)
81
1880 – Havia 11 companhias inglesas de Estrada de Ferro no Brasil

1895 – Havia 25 companhias inglesas de Estrada de Ferro no Brasil

durante o s.XIX – das 22 maiores firmas mineradoras de ouro em MG, 14 eram


inglesas, 1 francesa e 7 brasileiras

fim s.XIX – quase metade dos navios a vapor operando no Rio de Janeiro eram
ingleses (os franceses eram 15%)

1904 – Organiza-se no Canadá, mas com capitais predominantemente ingleses, a


Light & Power, que irá atuar no Rio de Janeiro, São Paulo e regiões
circunvizinhas, detendo as empresas de gás, água, esgotos, luz e energia elétrica,
transportes urbanos (bonde) e telefone;

1910 – Em São Paulo, dos 14 bancos existentes, a metade era de propriedade


estrangeira, e detinham 70% dos ativos, dos empréstimos e dos descontos
bancários

1913 – dentre as15 maiores casas exportadoras de Santos, apenas 2 eram


brasileiras

INVERSÕES BRITÂNICAS NO BRASIL EM MILHÕES DE LIBRAS ESTERLINAS:

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1880-1890 68,7
1890-1913 223,9
1913-1928 285,7

ORIGEM DOS EMPRÉSTIMOS ESTRANGEIROS AO BRASIL

1893- 1908- 1921-


1908 1916 1927
INGLATERRA 10 6 1 1/2
França - 5 1
EUA - - 3 1/2

A DÍVIDA BRASILEIRA EM US$ , em 1° de janeiro de 1931:

C/a 490.780.383
INGLATERRA
C/os EUA 143.336.998

MUDANÇAS NA DIREÇÃO DO COMÉRCIO BRASILEIRO DURANTE A I G.


MUNDIAL (em %):

IMPORTAÇÕES EXPORTAÇÕES
1913 1917 1913 1917
EUA 15,7 47,1 32,6 46,1 82
Grã-Bretanha 24,5 18,0 13,3 12,6
Alemanha 17,5 0 14,1 0
França 9,8 4,0 12,3 14,0

Texto 35: A era do automóvel (fragmento)

Natureza e data do texto:


Crônica de João do Rio um dos pseudônimos do jornalista e escritor
Paulo Barreto (1881-1921), um agudo e lúcido cronista das
transformações do Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XX. Foi
publicada originalmente em 21/6/1908 com o título "Automóveis" em A
Notícia e posteriormente no livro A vida vertiginosa, em 1911. É
simplesmente a crônica de abertura do livro, o que não é à toa, para ele o
automóvel é o símbolo e o instrumento de transformação da época,
marcada pela ânsia de velocidade, da simplificação, da objetividade na
perseguição dos objetivos.

"E, subitamente, é a era do Automóvel. O monstro transformador


irrompeu, bufando, por entre os escombros da cidade velha, e como nas
mágicas e na natureza, aspérrima educadora, tudo transformou com
aparências novas e novas aspirações. Quando os meus olhos se abriram

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para as agruras e também para os prazeres da vida, a cidade, toda estreita
e toda de mau piso, eriçava o pedregulho contra o animal de lenda, que
acabava de ser inventado em França. Só pelas ruas esguias dois pequenos
e lamentáveis corredores tinham tido a ousadia de aparecer. Um, o primeiro,
de Patrocínio, quando chegou, foi motivo de escandalosa atenção. Gente de
guarda-chuva debaixo do braço parava estarrecida como se estivesse vendo
um bicho de Marte ou um aparelho de morte imediata. Oito dias depois, o
jornalista e alguns amigos, acreditando voar com três quilômetros por hora,
rebentavam a máquina de encontro às árvores da rua da Passagem. O
outro, tão lento e parado que mais parecia uma tartaruga bulhenta, deitava
tanta fumaça que, ao vê-lo passar, várias damas sufocavam. A imprensa,
arauto do progresso, e a elegância, modelo de esnobismo, eram os
precursores da era automobilística. Mas ninguém adivinhava essa era.
Quem poderia pensar na influência futura do automóvel diante da máquina
quebrada de Patrocínio? Quem imaginaria velocidades enormes na carriola
dificultosa que o conde Guerra Duval cedia aos clubes infantis como um
brinco idêntico aos balanços e aos pôneis mansos? Ninguém! absolutamente
ninguém.
- Ah! Um automóvel, aquela máquina que cheira mal?
- Pois viajei nele.
- Infeliz.
Para que ele se firmasse foi necessária a transfiguração da cidade. E
a transfiguração se fez: ruas arrasaram-se, avenidas surgiram, os impostos 83
aduaneiros caíram, e triunfal e desabrido o automóvel entrou, arrastando
desvairadamente uma catadupa de automóveis. Agora, nós vivemos
positivamente nos momentos do automóvel, em que o chofer é rei, é
soberano, é tirano.
Vivemos inteiramente presos ao automóvel. O automóvel ritmiza a
vida vertiginosa, a ânsia das velocidades, o desvario de chegar ao fim, os
nossos sentimentos de moral, de estética, de prazer, de economia, de amor.
(...)
O meu amor, digo mal, a minha veneração pelo automóvel vem
exatamente do tipo novo que ele cria, preciso e instantâneo, da ação
começada e logo acabada que ele desenvolve entre mil ações da civilização,
obra sua na vertigem geral. O automóvel é um instrumento de precisão
fenomenal, o grande reformador das formas lentas."

Fonte: RIO,João do. Vida vertiginosa. São Paulo:Martins Fontes, 2006. pp.
7-9.

Texto 36: Lima Barreto contra o futebol (1922)

TENDO recebido de Porto Alegre, por intermédio desta revista, uma


terna missiva do Dr. Afonso de Aquino, meu saudoso amigo, em que ele
me fala da "Carta Aberta" que o meu amigo também Dr. Carlos Sussekind
de Mendonça me dirigiu, publicando-a sob a forma de 'livro e com o título -
Apostila de Brasil República 3.ed. - Prof. Marcos Alvito - UFF - 2014
O Esporte está deseducando a mocidade brasileira - lembrei-me de
escrever estas linhas, como resposta ao veemente e ilustrado trabalho do
Dr. Sussekind.
Confesso que, quando fundei a Liga Brasileira Contra o Futebol, não
tinha, como ainda não tenho, qualquer erudição especial no assunto, o
que não acontece com o Dr.Mendonça. Nunca fui dado a essas sabedorias
infusas e confusas entre as quais ocupa lugar saliente a chamada
Pedagogia; e, por isso, nada sabia sobre educação física, e suas teorias,
nas quais os sábios e virtuosos cronistas esportivos teimam em encaixar o
esporte. A respeito, eu só tentava ler Rousseau, o seu célebre Émile; e
mesmo a vagabundíssima Educação de Spencer nunca li.
O que me moveu, a mim e ao falecido Dr. Mário Valverde, a fundar a
Liga foi o espetáculo de brutalidade, de absorção de todas atividades que o
futebol vinha trazendo à quase totalidade dos espíritos nesta cidade.
Os jornais não falavam em outra coisa. Páginas e colunas deles eram
ocupadas com histórias de "matches", de intrigas de sociedades, etc., etc.
Nos bondes, nos cafés, nos trens não se discutia senão futebol. Nas
famílias, em suas, conversas íntimas, só se tratava do jogo de pontapés. As
moças eram conhecidas como sendo torcedoras de tal ou qual clube. Nas
segundas-feiras, os jornais, no noticiário policial, traziam notícias de
conflitos e rolos nos campos de tão estúpido jogo; mas, nas seções
especiais, afiavam a pena, procuravam epítetos e entoavam toscas odes
aos vencedores dos desafios. 84
Não se tratava de outra coisa no Rio de Janeiro, e até a política do
Conselho
Municipal, desse nosso engraçado Conselho que teima em criar teatro
nacional, como se ele
fosse nacional, a fim de subvencionar regiamente graciosas atrizes - até
isso era relegado para
segundo plano, senão esquecido.
Comecei a observar e a tomar notas. Percebi logo existir um grande
mal que a atividade mental de toda uma população de uma grande cidade
fosse absorvida para assunto tão fútil e se absorvesse nele; percebi
também que não concorria tal jogo para o desenvolvimento físico dos
rapazes, porque verifiquei que, até numa sociedade, eram sempre os
mesmos a jogar; escrevi também que eles cultivam preconceitos de toda a
sorte; foi, então,
que me insurgi. Falando nisso a Valverde, ele me disse todos os
inconvenientes de tal divertimento, feito sem regra, nem medida, em todas
as estações e por todo e qualquer sujeito, fosse de que constituição fosse,
tivesse as lesões que tivesse. Fundamos a Liga.
Ela não foi avante, não somente pelos motivos que o Dr. Mendonça
escreve no seu livro, mas também porque nos faltava dinheiro.
Quando a fundamos, eu fui alvejado com os mais soezes insultos e
indelicadas referências. Ameaçaram-me com vigorosos polemistas,
partidários de futebol e uma récua de nomes desconhecidos cujo talento só
Apostila de Brasil República 3.ed. - Prof. Marcos Alvito - UFF - 2014
é conhecido na tal Liga Metropolitana. Coelho Neto citou Spencer e eu,
pela A Notícia, mostrei que, ao contrário, Spencer era inimigo do futebol.
Daí em diante, tenho voltado ao assunto com todo o vigor que posso,
porque estou convencido, como o meu amigo Sussekind, que o "sport" é o
"primado da ignorância e da imbecilidade". E acrescento mais: da
pretensão. É ler uma crônica esportiva para nos convencermos disso. Os
seus autores falam do assunto como se tratassem de saúde pública oude
instrução. Esquecem totalmente da insignificância dele. Um dia destes o
Chefe de Policia proibiu um encontro de "box"; o cronista esportivo
censurou asperamente essa autoridade que procedera tão sabiamente
apresentou como único argumento que, em todo o mundo, se permitia tão
horripilante coisa. Ora, bolas!
Certa vez, o governo não deu não sei que favor aos jogadores de
futebol e um pequenote de um clube qualquer saiu-se dos seus cuidados e
veio pelos jornais dizer que o futebol tinha levado longe o nome do Brasil.
'Risum teneatis"...
O meu caro Dr. Sussekind pode ficar certo de que se a minha Liga
morreu, eu não morri ainda. Combaterei sempre o tal de futebol.

Careta, 8.4.1922.

Texto 37: Manifesto da poesia pau-brasil - Oswald de Andrade (1924) 85


MANIFESTO DA POESIA PAU - BRASIL

A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos


verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos.
O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil.
Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A
formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o
ouro e a dança.
Toda a história bandeirante e a história comercial do Brasil. O lado
doutor, o lado citações, o lado autores conhecidos. Comovente. Rui
Barbosa: uma cartola na Senegâmbia. Tudo revertendo em riqueza. A
riqueza dos bailes e das frases feitas. Negras de jockey. Odaliscas no
Catumbi. Falar difícil.
O lado doutor. Fatalidade do primeiro branco aportado e dominando
politicamente as selvas selvagens. O bacharel. Não podemos deixar de ser
doutos. Doutores. País de dores anônimas, de doutores anônimos. O
Império foi assim. Eruditamos tudo. Esquecemos o gavião de penacho.
A nunca exportação de poesia. A poesia anda oculta nos cipós
maliciosos da sabedoria. Nas lianas da saudade universitária.
Mas houve um estouro nos aprendimentos. Os homens que sabiam
tudo se deformaram como borrachas sopradas. Rebentaram.

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A volta à especialização. Filósofos fazendo filosofia, críticos, crítica,
donas de casa tratando de cozinha.
A Poesia para os poetas. Alegria dos que não sabem e descobrem.
Tinha havido a inversão de tudo, a invasão de tudo: o teatro de base
e a luta no palco entre morais e imorais. A tese deve ser decidida em
guerra de sociólogos, de homens de lei, gordos e dourados como Corpus
Juris.
Ágil o teatro, filho do saltimbanco. Ágil e ilógico. Ágil o romance,
nascido da invenção. Ágil a poesia.
A poesia Pau-Brasil, ágil e cândida. Como uma criança.
Uma sugestão de Blaise Cendrars: - Tendes as locomotivas cheias,
ides partir. Um negro gira a manivela do desvio rotativo em que estais. O
menor descuido vos fará partir na direção oposta ao vosso destino.
Contra o gabinetismo, a prática culta da vida. Engenheiros em vez
de jurisconsultos, perdidos como chineses na genealogia das idéias.
A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A
contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos.
Não há luta na terra de vocações acadêmicas. Há só fardas. Os
futuristas e os outros.
Uma única luta - a luta pelo caminho. Dividamos: poesia de
importação. E a Poesia Pau-Brasil, de exportação.
Houve um fenômeno de democratização estética nas cinco partes
sábias do mundo. Instituíra-se o naturalismo. Copiar. Quadro de carneiros 86
que não fosse lã mesmo, não prestava. A interpretação no dicionário oral
das Escolas de Belas Artes queria dizer reproduzir igualzinho...Veio a
pirogravura. As meninas de todos os lares ficaram artistas. Apareceu a
máquina fotográfica. E com todas as prerrogativas do cabelo grande, da
caspa e da misteriosa genialidade de olho virado - o artista fotográfico.
Na música, o piano invadiu as saletas nuas, de folhinha na parede.
Todas as meninas ficaram pianistas. Surgiu o piano de manivela, o piano
de patas. A pleyela. E a ironia eslava compôs para a pleyela. Straviski.
A estatuária andou atrás. As procissões saíram novinhas das
fábricas.
Só não se inventou uma máquina de fazer versos - a havia o poeta
parnasiano.
Ora, a revolução indicou apenas que a arte voltava para as elites. E
as elites começaram desmanchando. Duas fases: 1a) a deformação através
do impressionismo, a fragmentação, o caos voluntário. De Cézanne e
Malarrmé, Rodin e Debussy até agora. 2a) o lirismo, a apresentação no
templo, os materiais, a inocência construtiva.
O Brasil profiteur. O Brasil doutor. E a coincidência da primeira
construção brasileira no movimento de reconstrução geral. Poesia Pau-
Brasil.
Como a época é miraculosa, as leis nasceram do próprio rotamento
dinâmico dos fatores destrutivos.
A síntese
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O equilíbrio
O acabamento de carrosserie
A invenção
A surpresa
Uma nova perspectiva
Uma nova escala
Qualquer esforço natural nesse sentido será bom. Poesia Pau-Brasil.
O trabalho contra o detalhe naturalista - pela síntese; contra a
morbidez romântica - pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico;
contra a cópia, pela invenção e pela surpresa.
Uma nova perspectiva.
A nova, a de Paolo Ucello criou o naturalismo de apogeu. Era uma
ilusão de ótica. Os objetos distantes não diminuíam. Era uma lei de
aparência. Ora, o momento é de reação à aparência. Reação à cópia.
Substituir a perspectiva visual e naturalista por uma perspectiva de outra
ordem: sentimental, intelectual, irônica, ingênua.
Uma nova escala:
A outra, a de um mundo proporcionado e catalogado com letras nos
livros, crianças nos colos. O reclame produzindo letras maiores que torres.
E as novas formas da indústria, da viação, da aviação. Postes. Gasômetros
Rails. Laboratórios e oficinas técnicas. Vozes e tics de fios e ondas e
fulgurações. Estrelas familiarizadas com negativos fotográficos. O
correspondente da surpresa física em arte. 87
A reação contra o assunto invasor, diverso da finalidade. A peça de
tese era um arranjo monstruoso. O romance de idéias, uma mistura. O
quadro histórico, uma aberração. A escultura eloqüente, um pavor sem
sentido.
Nossa época anuncia a volta ao sentido puro.
Um quadro são linhas e cores. A estatuária são volumes sob a luz.
A Poesia Pau-Brasil é uma sala de jantar das gaiolas, um sujeito
magro compondo uma valsa para flauta e a Maricota lendo o jornal. No
jornal anda todo o presente.
Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver
com olhos livres.
Temos a base dupla e presente - a floresta e a escola. A raça crédula
e dualista e a geometria, a álgebra e a química logo depois da mamadeira e
do chá de erva-doce. Um misto de "dorme nenê que o bicho vem pegá" e de
equações.
Uma visão que bata nos cilindros dos moinhos, nas turbinas
elétricas, nas usinas produtoras, nas questões cambiais, sem perder de
vista o Museu Nacional. Pau-Brasil.
Obuses de elevadores, cubos de arranha-céus e a sábia preguiça
solar. A reza. O Carnaval. A energia íntima. O sabiá. A hospitalidade um
pouco sensual, amorosa. A saudade dos pajés e os campos de aviação
militar. Pau-Brasil.

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O trabalho da geração futurista foi ciclópico. Acertar o relógio
império da literatura nacional.
Realizada essa etapa, o problema é outro. Ser regional e puro em sua
época.
O estado de inocência substituindo o estado de graça que pode ser
uma atitude do espírito.
O contrapeso da originalidade nativa para inutilizar a adesão
acadêmica.
A reação contra todas as indigestões de sabedoria. O melhor de
nossa tradição lírica. O melhor de nossa demonstração moderna.
Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química, de
mecânica, de economia e de balística. Tudo digerido. Sem meeting
cultural. Práticos. Experimentais. Poetas. Sem reminiscências livrescas.
Sem comparações de apoio. Sem pesquisa etimológica. Sem ontologia.
Bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos. Leitores de jornais. Pau-
Brasil. A floresta e a escola. O Museu Nacional. A cozinha, o minério e a
dança. A vegetação. Pau-Brasil.
Oswald de Andrade
(Correio da Manhã, 18 de março de 1924.)

Fonte: ANDRADE, Oswald de. O manifesto antropófago. In: TELES,


Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e modernismo brasileiro:
apresentação e crítica dos principais manifestos vanguardistas. 3ª ed. 88
Petrópolis: Vozes; Brasília: INL, 1976.
Comentário e hipertextos: Raquel R. Souza (FURG)

Texto 38: Manifesto antropófago - Oswald de Andrade (1928)

MANIFESTO ANTROPÓFAGO

Só a ANTROPOFAGIA nos une. Socialmente. Economicamente.


Filosoficamente.
Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os
individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos
os tratados de paz.
Tupi, or not tupi that is the question.
Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.
Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.
Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitos postos em
drama. Freud acabou com o enigma mulher e com os sustos da psicologia
impressa.
O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o
mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O
cinema americano informará.

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Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente,
com toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos
touristes. No país da cobra grande1.
Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos
vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e
continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil2.
Uma consciência participante, uma rítmica religiosa.
Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência
palpável da vida. E a mentalidade pré-lógica para o Sr. Lévy-Bruhl
estudar.
Queremos a Revolução Caraíba3. Maior que a revolução Francesa. A
unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a
Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem.
A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as
girls.
Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Ori Villegaignon print
terre. Montaigne. O homem natural. Rosseau. Da Revolução Francesa ao
Romantismo, à Revolução Bolchevista, à revolução Surrealista e ao
bárbaro tecnizado de Keyserling. Caminhamos.
Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito
sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará.
Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós.
Contra o Padre Vieira4. Autor do nosso primeiro empréstimo, para 89
ganhar comissão. O rei-analfabeto disseralhe: ponha isso no papel mas
sem muita lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açúcar brasileiro.
Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia.
O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo. O
antropomorfismo. Necessidade da vacina antropofágica. Para o equilíbrio
contra as religiões de meridiano. E as inquisições exteriores.
Só podemos atender ao mundo orecular.
Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da
Magia. Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em totem.
Contra o mundo reversível e as idéias objetivadas. Cadaverizadas. O
stop do pensamento que é dinâmico. O indivíduo vítima do sistema. Fonte
das injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E o esquecimento das
conquistas interiores.
Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.
O instinto Caraíba.
Morte e vida das hipóteses. Da equação eu parte do Cosmos ao
axioma Cosmos parte do eu. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia.
Contra as elites vegetais5. Em comunicação com o solo.
Nunca fomos catequizados. Fizemos foi o Carnaval. O índio vestido
de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de
Alencar cheio de bons sentimentos portugueses6.
Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade
de ouro.
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Catiti Catiti7
Imara Notiá
Notiá Imara
Ipeju8
A magia e a vida. Tínhamos a relação e a distribuição dos bens
físicos, dos bens morais, dos bens dignários. E sabíamos transpor o
mistério e a morte com o auxílio de algumas formas gramaticais.
Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que
era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chama-se Galli
Mathias. Comi-o.
Só não há determinismo onde há o mistério. Mas que temos nós com
isso?

Contra as histórias do homem que começam no Cabo Finisterra9. O


mundo não datado. Não rubricado. Sem Napoleão. Sem César.

A fixação do progresso por meio de catálogos e aparelhos de


televisão. Só a maquinaria. E os transfusores de sangue.
Contra as sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas.

Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade


de um antropófago, o Visconde de Cairu10: - É mentira muitas vezes
repetida. 90
Mas não foram cruzados11 que vieram. Foram fugitivos de uma
civilização que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o
Jabuti12.

Se Deus é a consciência do universo Incriado, guaraci13 é a mãe dos


viventes. Jaci13 é a mãe dos vegetais.

Não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinhação. Tínhamos


Política que é a ciência da distribuição. E um sistema social-planetário.

As migrações. A fuga dos estados tediosos. Contra as escleroses


urbanas. Contra os Conservatórios e o tédio especulativo.

De William James e Voronoff. A transfiguração do Tabu em totem.


Antropofagia.

O pater famílias e a criação da Moral da Cegonha14: Ignorância real


das coisas + fala (sic.) de imaginação +sentimento de autoridade ante a
prole curiosa.

É preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar à idéia de


Deus. Mas a caraíba não precisava. Porque tinha Guaraci.
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O objetivo criado reage como os Anjos da Queda. Depois Moisés
divaga. Que temos nós com isso?

Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha


descoberto a felicidade.

Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria15, afilhado de


Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz.

A alegria é a prova dos nove16.

No matriarcado de Pindorama17.

Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada.


Somos concretistas. As idéias tomam conta, reagem, queimam gente
nas praças públicas. Suprimamos as idéias e as outras paralisias. Pelos
roteiros. Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas.

Contra Goethe, a mãe dos Gracos, e a Corte de D. João VI18.

A alegria é a prova dos nove.

A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura - ilustrada pela 91


contradição permanente do homem e o seu Tabu. O amor cotidiano e o
modusvivendi capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para
transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade. Porém,
só as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em
si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por
Freud, males catequistas. O que se dá não é uma sublimação do instinto
sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele se
torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência.
Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia
aglomerada nos pecados de catecismo - a inveja, a usura, a calúnia, o
assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra
ela que estamos agindo. Antropófagos.

Contra Anchieta19 cantando as onze mil virgens do céu, na terra de


Iracema20, - o patriarca João Ramalho fundador de São Paulo.

A nossa independência ainda não foi proclamada. Frase típica de D.


João VI: - Meu filho, põe essa coroa na tua cabeça, antes que algum
aventureiro o faça21! Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar o espírito
bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte22.

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Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud
- a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem
penitenciárias do matriarcado23 de Pindorama.

Oswald de Andrade
Em Piratininga24
Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha25
(Revista de Antropofagia, Ano I, No. I, maio de 1928.)

Fonte: ANDRADE, Oswald de. O manifesto antropófago. In: TELES,


Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e modernismo brasileiro:
apresentação e crítica dos principais manifestos vanguardistas. 3ª ed.
Petrópolis: Vozes; Brasília: INL, 1976.
Comentário e hipertextos: Raquel R. Souza (FURG)
Notas:
1 Selva amazônica; na mitologia indígena da amazônia, "cobra grande" é o espírito das
águas. Esta entidade foi motivo de um longo poema antropófago, Cobra Norato (1931), de
Raul Bopp (1898/1984), que, ao lado de Macunaíma (1928), de Mário de Andrade
(1893/1945), compõe exemplos da antropofagia oswaldiana.
2 Referência à extensão continental do país e à necessidade de resolver os problemas
lingüísticos no Brasil, se pautava pela tradição lusitana, ignorando as especificidades do
país. Retomada, sob outro ângulo, da grande polêmica por José de Alencar (1829 / 1877),
na vigência do Romantismo brasileiro no século XIX.
3 Oswald idealiza a união dos indígenas através do vocábulo caraíba, que designa tanto 92
uma das comunidades indígenas com as quais os primeiros portugueses tomaram
contato à época do Descobrimento do país, que viviam mais ao norte, quanto uma grande
família lingüística a que pertenciam várias tribos brasileiras mais ao sul.
4 Antônio Vieira (1608/1697), lisboeta de nascimento, fez seus estudos com os jesuítas
na Bahia, ordenando-se aos 26 anos. Tinha idéias avançadas para sua época e devido a
elas foi inúmeras vezes criticado. Oswald de Andrade refere-se, aqui, à investida político-
econômica na exploração do açúcar maranhense, à época do período colonial, o que
beneficiou apenas a metrópole portuguesa, deixando em franca miséria a então colônia.
5 Referência à elite intelectual que busca copiar os modelos europeus, em exclusão do
sentimento de "brasilidade". Neste sentido, os vegetais são entendidos como seres vivos
sem mobilidade, o que equivale a dizer sem a capacidade crítica que fomenta as
mudanças.
6 Junção, numa única referência, da produção romanesca indianista de José Martiniano
de Alencar (1829/1877), escritor romântico brasileiro de reconhecido valor, com a ópera
O guarani, do músico também romântico Antônio Carlos Gomes (1836/1896), cujo libreto
foi escrito a partir do romance homônimo de Alencar. Em ambos textos o herói indígena,
Peri, tem atitudes cavalheirescas em consonância aos grandes senhores portugueses.
7 Catiti catiti/ Imara Notiá / Notiá Imara / Ipeju: pequeno "poema" em língua indígena, a
qual, pelo apelo sonoro e lúdico, é aproximada da estética surrealista. Couto Magalhães
traduziu por: Lua nova, ó Lua Nova! Assoprai em lembranças de mim; eis-me aqui, estou
em vossa presença; fazei com que eu tão somente ocupe seu coração.
8 "Lua Nova, ó Lua Nova, assopra em Fulano lembranças de mim", in O Selvagem, de
Couto Magalhães.
9 Referência ao ciclo das grandes descobertas ultramarinas portuguesas iniciadas em
1421, sob o comando do infante Dom Henrique, filho de Dom João I, que, para o Reino de
Portugal, culminou com a Descoberta do Brasil em 1500; o acidente geográfico
mencionado por Oswald é a conhecida Ponta de Sagres, ou seja, um cabo formado por

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rochas elevadas, lugar ermo e de beleza trágica de onde teriam partido as primeiras
expedições oceânicas portuguesas, ou seja, a expansão do homem europeu; na realidade,
estas expedições sob o comando do infante Dom Henrique partiram da Vila de Lagos,
localizada a cerca de 30 km a leste da Ponta de Sagres, na região do Algarve.

10 José da Silva Lisboa, economista do início do século XIX que, tendo adotado a política
liberal do Marquês de Pombal, posicionou-se contrário à permanência jesuíta no Brasil.

11 Moeda portuguesa feita de ouro ou prata.

12 Réptil da ordem dos quelônios e da família das tartarugas; habitante das matas
brasileiras, nas religiões indígenas representa a perseverança e a força.

13 Guaraci e Jaci: entidades divinas indígenas que representam o sol e a lua,


respectivamente. São os
dois princípios que governam o mundo.
14 Oswald refere-se à repressão sexual das crianças, as quais eram doutrinadas no
sentido da inexistência de vida sexual na procriação; à cegonha era atribuída a função de
entregar os bebês aos seus pais.

15 Índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz:


por alusão a personagens extraídos de obras indianistas, Oswald propõe o repúdio ao
aculturamento dos índios pela civilização branca cristã e ocidental.

16 Elaboração matemática para comprovar o resultado de operações aritméticas


elementares.

17 Em tupi, terra de palmeiras; designa, por extensão, o Brasil, cuja costa litorânea era 93
coberta pela planta; a palmeira, desde o poema canção do exílio, do poeta romântico
Gonçalves Dias (1823/1864), transformou-se em um dos ícones do país.

18 Rei de Portugal, que veio para o Brasil-colônia em 1808 com todo seu séquito, fugindo
do avanço napoleônico na Europa. Oswald faz referência à usura desmedida dos
cortesãos.

19 José de Anchieta (1534/1597), padre jesuíta que veio para o Brasil no início da
colonização portuguesa e que, a pretexto de catequizar os índios, criou um sistema de
desculturação pela arte teatral.

20 Anagrama de América, é também o nome da índia protagonista do romance


homônimo de José de Alencar (1829/1877) que, junto com O guarani, se transformou em
emblema de brasilidade durante a vigência do romantismo no país.

21 Oswald menciona, de forma irônica e jocosa, o ato da Independência do Brasil,


ocorrida em 7 de setembro de 1822, protagonizada pelo primogênito do então rei de
Portugal. O príncipe português governou até 1831 e ficou conhecido como Dom Pedro I, o
primeiro Imperador do Brasil.

22 Camponesa portuguesa que liderou uma rebelião, em 1846, contra as opressões


político-econômicas de D. Maria da Glória, então rainha de Portugal. Pleiteava, entre
outras coisas, a colocação de produtos agrícolas portugueses no mercado interno que
estava, na época, dominado por produtos ingleses.

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23 Oswald fala no matriarcado numa referência à libertação do sujeito, em oposição ao
patriarcado, este sim, governado por instituições de poder amplamente castradoras e
cheias de interditos.

24 Em língua indígena, nome da região onde surgiu a futura cidade de São Paulo.

25 Oswald busca uma marcação temporal para a existência brasileira, que no Manifesto
começa com o primeiro ato antropófago conhecido oficialmente; o Bispo Sardinha, isto é,
Pero Fernandes (?/1556), naufragou no litoral do nordeste brasileiro e morreu como
vítima sacrificial dos índios caetés. Oswald equivocou-se nas datas, acrescentando 2 anos
ao tempo decorrido entre a morte do Bispo Sardinha e o ano de publicação do Manifesto
Antropófago. Entretanto, Oswald parece desconhecer as cartas de Américo Vespúcio, em
uma das quais o aventureiro florentino afirma ter assistido um ritual antropofágico em
1501, na Praia dos Marcos, no Rio Grande do Norte, em que a vítima era um europeu.

Texto 39: Macunaíma (primeiro capítulo) (1928)

Natureza e data do texto: Primeiro capítulo do romance Macunaíma,


publicado por Mário de Andrade em 1928 e que pode ser visto como um
ensaio acerca da complexidade da identidade brasileira, com uma
valorização da contribuição do negro e do índio para o surgimento de uma
civilização própria, não mais buscando ter a Europa como espelho

I
Macunaíma 94

No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente.


Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o
silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia,
tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de
Macunaíma.
Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro: passou mais
de seis anos não falando. Si o incitavam a falar exclamava:
— Ai! que preguiça!. . .
e não dizia mais nada. Ficava no canto da maloca, trepado no jirau
de paxiúba, espiando o trabalho dos outros e principalmente os dois
manos que tinha, Maanape já velhinho e Jiguê na força de homem. O
divertimento dele era decepar cabeça de saúva.
Vivia deitado mas si punha os olhos em dinheiro, Macunaíma dandava pra
ganhar vintém. E também espertava quando a família ia tomar banho no
rio, todos juntos e nus. Passava o tempo do banho dando mergulho, e as
mulheres soltavam gritos gozados por causa dos guaimuns diz-que
habitando a água-doce por lá. No mucambo si alguma cunhatã se
aproximava dele pra fazer festinha, Macunaíma punha a mão nas graças
dela, cunhatã se afastava. Nos machos guspia na cara. Porém respeitava
os velhos, e freqüentava com aplicação a murua a poracê o torê o bacorocô
a cucuicogue, todas essas danças religiosas da tribo.

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Quando era pra dormir trepava no macuru pequeninho sempre se
esquecendo de mijar. Como a rede da mãe estava por debaixo do berço, o
herói mijava quente na velha, espantando os mosquitos bem. Então
adormecia sonhando palavras-feias, imoralidades estrambólicas e dava
patadas no ar.
Nas conversas das mulheres no pino do dia o assunto eram sempre
as peraltagens do herói. As mulheres se riam muito simpatizadas, falando
que "espinho que pinica, de pequeno já traz ponta", e numa pagelança Rei
Nagô fez um discurso e avisou que o herói era inteligente.
Nem bem teve seis anos deram água num chocalho pra ele e
Macunaíma principiou falando como todos. E pediu pra mãe que largasse
da mandioca ralando na cevadeira e levasse ele passear no mato. A mãe
não quis porque não podia largar da mandioca não. Macunaíma
choramingou dia inteiro. De noite continuou chorando. No outro dia
esperou com o olho esquerdo dormindo que a mãe principiasse o trabalho.
Então pediu pra ela que largasse de tecer o paneiro de guarumá-membeca
e levasse ele no mato passear. A mãe não quis porque não podia largar o
paneiro não. E pediu pra nora, companheira de Jiguê que levasse o
menino. A companheira de Jiguê era bem moça e chamava Sofará. Foi se
aproximando ressabiada porém desta vez Macunaíma ficou muito quieto
sem botar a mão na graça de ninguém. A moça carregou o piá nas costas e
foi até o pé de aninga na beira do rio. A água parará pra inventar um
ponteio de gozo nas folhas do javari. O longe estava bonito com muitos
95
biguás e biguatingas avoando na estrada do furo. A moça botou
Macunaíma na praia porém ele principiou choramingando, que tinha
muita formiga!... e pediu pra Sofará que o levasse até o derrame do morro
lá dentro do mato, a moça fez. Mas assim que deitou o curumim nas
tiriricas, tajás e trapoerabas da serrapilheira, ele botou corpo num átimo e
ficou um
príncipe lindo. Andaram por lá muito.
Quando voltaram pra maloca a moça parecia muito fatigada de tanto
carregar piá nas costas. Era que o herói tinha brincado muito com ela.
Nem bem ela deitou Macunaíma na rede, Jiguê já chegava de pescar de
puçá e a companheira não trabalhara nada. Jiguê enquizlou e depois de
catar os carrapatos deu nela muito. Sofará agüentou a sova sem falar um
isto.
Jiguê não desconfiou de nada e começou trançando corda com fibra
de curauá. Não vê que encontrara rasto fresco de anta e queria pegar o
bicho na armadilha. Macunaíma pediu um pedaço de curauá pro mano
porém Jiguê falou que aquilo não era brinquedo de criança. Macunaíma
principiou chorando outra vez e a noite ficou bem difícil de passar pra
todos.
No outro dia Jiguê levantou cedo pra fazer arma-ilha e enxergando o
menino tristinho falou:
— Bom-dia, coraçãozinho dos outros.
Porém Macunaíma fechou-se em copas carrancudo.

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— Não quer falar comigo, é?
— Estou de mal.
— Por causa?
Então Macunaíma pediu fibra de curauá. Jiguê olhou pra ele com
ódio e mandou a companheira arranjar fio pro menino, a moça fez.
Macunaíma agradeceu e foi pedir pro pai-de-terreiro que trançasse uma
corda para ele e assoprasse bem nela fumaça de petum.
Quando tudo estava pronto Macunaíma pediu pra mãe que deixasse
o cachiri fermentando e levasse ele no mato passear. A velha não podia por
causa do trabalho mas a companheira de Jiguê mui sonsa falou pra sogra
que "estava às ordens". E foi no mato com o piá nas costas.
Quando o botou nos carurus e sororocas da serrapilheira, o pequeno
foi crescendo foi crescendo e virou príncipe lindo. Falou pra Sofará esperar
um bocadinho que já voltava pra brincarem e foi no bebedouro da anta
armar um laço. Nem bem voltaram do passeio, tardinha, Jiguê já chegava
também de prender a armadilha no rasto da anta. A companheira não
trabalhara nada. Jiguê ficou fulo e antes de catar os carrapatos bateu nela
muito. Mas Sofará agüentou a coça com paciência.
No outro dia a arraiada inda estava acabando de trepar nas árvores,
Macunaíma acordou todos, fazendo um bué medonho, que fossem! que
fossem no bebedouro buscar a bicha que ele caçara!... Porém ninguém não
acreditou e todos principiaram o trabalho do dia.
Macunaíma ficou muito contrariado e pediu pra Sofará que desse 96
uma chegadinha no bebedouro só pra ver. A moça fez e voltou falando pra
todos que de fato estava no laço uma anta muito grande já morta. Toda a
tribo foi buscar a bicha, matutando na inteligência do curumim. Quando
Jiguê chegou com a corda de curauá vazia, encontrou todos tratando da
caça, ajudou. E quando foi pra repartir não deu nem um pedaço de carne
pra Macunaíma, só tripas. O herói jurou vingança.
No outro dia pediu pra Sofará que levasse ele passear e ficaram no
mato até a bôca-da-noite. Nem bem o menino tocou no folhiço e virou num
príncipe fogoso. Brincaram. Depois de brincarem três feitas, correram
mato fora fazendo festinhas um pro outro. Depois das festinhas de
cotucar, fizeram a das cócegas, depois se enterraram na areia, depois se
queimaram com fogo de palha, isso foram muitas festinhas. Macunaíma
pegou num tronco de copaíba e se escondeu por detrás, da piranheira.
Quando Sofará veio correndo, ele deu com o pau na cabeça dela. Fez uma
brecha que a moça caiu torcendo de riso aos pés dele. Puxou-o por uma
perna. Macunaíma gemia de gosto se agarrando no tronco gigante. Então a
moça abocanhou o dedão do pé dele e engoliu. Macunaíma chorando de
alegria tatuou o corpo dela com o sangue do pé. Depois retesou os
músculos, se erguendo num trapézio de cipó e aos pulos atingiu num
átimo o galho mais alto da piranheira. Sofará trepava atrás. O ramo
fininho vergou oscilando com o peso do príncipe. Quando a moça chegou
também no tope eles brincaram outra vez balanceando no céu. Depois de
brincarem Macunaíma quis fazer uma festa em Sofará. Dobrou o corpo
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todo na violência dum puxão mas não pôde continuar, galho quebrou e
ambos despencaram aos emboléus até se esborracharem no chão. Quando
o herói voltou da sapituca procurou a moça em redor, não estava. Ia se
erguendo pra buscá-la porém do galho baixo em riba dele furou o silêncio
o miado temível da suçuarana. O herói se estatelou de medo e fechou os
olhos pra ser comido sem ver. Então se escutou um risinho e Macunaíma
tomou com uma gusparada no peito, era a moça. Macunaíma principiou
atirando pedras nela e quando feria, Sofará gritava de excitação tatuando o
corpo dele em baixo com o sangue espirrado. Afinal uma pedra lascou o
canto da boca da moça e moeu três dentes. Ela pulou do galho e juque!
tombou sentada na barriga do herói que a envolveu com o corpo todo,
uivando de prazer. E brincaram mais outra vez.
Já a estrela Papacéia brilhava no céu quando a moça voltou
parecendo muito fatigada de tanto carregar piá nas costas. Porém Jiguê
desconfiado seguira os dois no mato, enxergara a transformação e o resto.
Jiguê era muito bobo. Teve raiva. Pegou num rabo-de-tatu e chegou-o com
vontade na bunda do herói. O berreiro foi tão imenso que encurtou o
tamanhão da noite e muitos pássaros caíram de susto no chão e se
transformaram em pedra.
Quando Jiguê não pôde mais surrar, Macunaíma correu até a
capoeira, mastigou raiz de cardeiro e voltou são. Jiguê levou Sofará pro pai
dela e dormiu folgado na rede.
97
Fonte: ANDRADE,Mário de. Macunaíma o herói sem nenhum caráter. São
Paulo, Martins, Belo Horizonte, Editora Itatiaia: 1981. 18.ed. pp. 9-12.

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PARTE III :

A REVOLUÇÃO DE 30 E O ESTADO NOVO


Textos:
040: Cronologia da crise dos anos 20 ................................................... 099

041: Casa-Grande e Senzala - Diferentes avaliações ............................. 102

042: Casa-Grande e Senzala – [1ª edição:1933] algumas passagens ..... 104

043: O Samba e o Estado Novo ............................................................... 111

044: O Prólogo de duas constituições: 1934 e 1937 ............................. 113

045: O Estado Novo - proclamação ao povo brasileiro ........................... 114

046: O Estado Novo e as classes trabalhadoras .................................... 116

047: O Músicas sobre a "Política de Boa Vizinhança" ............................. 119

048: O O Cabo Laurindo e o fim do Estado Novo .................................... 120 98

049: Esquema do Parque Proletário Número 1 (da Gávea) – 1942 ............ 121

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Texto 040: Cronologia da crise dos anos 20

1919 – Rui Barbosa, derrotado em 1910 e 1914, lança uma candidatura de


protesto contra Epitácio Pessoa; mesmo sem máquina eleitoral, obtém c.1/3
votos e vence no DF;

1921 e 1923 – emissões maciças de moeda feitas por Epitácio Pessoa para
realizar a 3ª valorização do café desvalorizam câmbio e geram inflação

1921 – O RS, liderado por Borges de Medeiros, vai contra a candidatura


presidencial de Artur Bernardes, governador mineiro apoiado pelo eixo SP-MG;
gaúchos denunciam o arranjo político SP-MG como uma forma de manter a
política de valorização do café quando o país necessitava de finanças
equilibradas; o RS recebe o apoio da BA, PE e Estado do RJ, formando a Reação
Republicana e lançando Nilo Peçanha (Est. RJ) como candidato; a plataforma era:
plano financeiro contra a inflação, conversibilidade da moeda e orçamento
equilibrado; pediam proteção a todos os produtos brasileiros de exportação e não
somente ao café;

out – o Correio da Manhã publica duas cartas (que em 1922 soube-se serem
falsas) de Artur Bernardes criticando a posse de Hermes da Fonseca no Clube
Militar, indispondo a classe militar contra Bernardes;

1922 – O Clube Militar – quando Bernardes já fora eleito mas ainda não tomara
posse – protesta contra a utilização de tropas do Exército para intervir na política
local de PE. O governo reage prendendo Hermes da Fonseca e fechando o Clube
99
Militar (invocando a lei de 1921 contra associações nocivas ou contrárias à
sociedade)

5 julho – revolta do Forte de Copacabana: jovens “tenentes” se revoltam para


‘salvar a honra do Exército’; rebeldes sofrem bombardeio e ficam cercados; no dia
seguinte centenas de rebeldes se entregam, mas um grupo continua a resistir
apesar do bombardeio por mar e ar. Dezessete militares (com a adesão de um
civil) saem pela praia de Copacabana ao encontro das forças do governo. Apenas
2 rebeldes, feridos, sobrevivem (tenentes Siqueira Campos e Eduardo Gomes);

1923 – No RS, a Aliança Libertadora (antigos federalistas + dissidentes


republicanos), insatisfeita com a reeleição de Borges de Medeiros em meio a
acusações de fraude eleitoral, inicia uma guerra civil que irá durar até dezembro;

1924 (2° 5 de julho) – Tentativa de derrubar Artur Bernardes. Em SP, alguns


quartéis são tomados e há uma batalha pelo controle da capital. “Tenentes”
tomam a capital depois de 4 dias e ficam até o dia 27 de julho; governo retalia
com artilharia, matando também civis; no dia 27 os tenentes abandonam a
cidade e vão para o interior, formando a “coluna paulista”; enquanto isso, no RS,
estourara uma revolta tenentista em outubro de 1924, liderada pelo tenente João
Alberto e pelo capitão Luís Carlos Prestes; a “coluna gaúcha” se desloca para o
PR, para se reunir à “coluna paulista”;

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nov – revolta do encouraçado São Paulo; depois de troca de tiros com as
fortalezas da Baía de Guanabara, o navio vai para Montevidéu onde os rebelados
se exilaram;

1925 (abril) – junção das colunas paulista e gaúcha, formando a coluna Miguel
Costa (SP)- Luís Carlos Prestes (RS) (mais tarde conhecida como “Coluna
Prestes”), com o objetivo de percorrer o Brasil para propagar a idéia de revolução
e levantar a população contra as oligarquias; até fev/mar de 1927 (quando os
remanescentes vão para Bolívia e Paraguai), a Coluna percorre 24 mil km pelo
interior do país; nunca passaram de 1500 pessoas e evitam entrar em choque
direto com as forças governamentais, deslocando-se rapidamente; o pretenso
apoio da população rural não ocorreu e seu êxito militar era praticamente
impossível; mas serviu como um símbolo para a população urbana insatisfeita;

1926 – Surge em SP o Partido Democrático, com um programa liberal: reforma


política por meio do voto secreto e obrigatório, representação das minorias,
independência dos três poderes, fiscalização eleitoral a cabo do Judiciário; seus
quadros eram compostos por profissionais liberais de prestígio e jovens filhos de
fazendeiros de café; o PD despertou entusiasmo em parcela significativa da classe
média e reune 50 mil nomes em listas de apoio publicadas nos jornais; a despeito
das fraudes, elege 3 deputados federais em 1927, mas apenas 2 deputados
estaduais em 1928; em 1929, o PRP usa sua máquina política e o PD não
consegue eleger nem mesmo um vereador;

1927 – Getúlio Vargas elege-se governador do Estado no RS e consegue um


acordo entre o PRR (de Borges de Medeiros) e a Aliança Libertadora
100

1929 – A insistência de Washington Luís em apresentar a candidatura do


paulista Júlio Prestes à sua reeleição, quebrando o acordo café-com-leite, leva os
mineiros a entrarem em acordo com os gaúchos; forma-se a Aliança Liberal (com
apoio também do PD) que tem como candidatos Getúlio Vargas e João Pessoa; a
plataforma da Aliança Liberal era contrária à valorização exclusiva do café e a
favor da ortodoxia financeira; propunha algum tipo de proteção trabalhista:
extensão do direito à aposentadoria a alguns setores ainda não contemplados,
regulamentação do trabalho dos menores e mulheres, aplicação da lei de férias;
reconhecia a questão social (ao contrário de W.Luís, para quem ela era “questão
de polícia”); defendia as liberdades individuais, a anistia (para os tenentes, p.ex.)
e a reforma política (para assegurar a verdade eleitoral);

out – crise econômica mundial rebaixando os preços do café em meio a uma


superprodução (safra 2 vezes maior do que a média das últimas três); Washington
Luís, preocupado com o plano de estabilidade cambial (que iria fracassar) recusa
a concessão de novos financiamentos e a moratória dos débitos dos cafeicultores

dez – congresso de lavradores paulistas ataca o governo

1930 – Júlio Prestes vence as eleições em março; as máquinas eleitorais foram


utilizadas de lado a lado: no RS, Getúlio vence por 298 627 votos contra apenas
982; “tenentes” querem uma resposta pelas armas e o episódio do assassinato de
João Pessoa, em 26 de julho, por motivos locais (desafeto político e pessoal João

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Dantas, na PB) proporciona uma legitimação ao golpe, desfechado a partir de
outubro em MG, RS e no Nordeste; em 24 de outubro uma junta militar depõe o
presidente da República e em 3 de novembro, depois de entrar na capital com 3
mil soldados, Getúlio Vargas toma posse na presidência

101

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Texto 041: Casa-Grande e Senzala - Diferentes avaliações

“A geração de Gilberto Freyre foi surpreendida por esse processo de rápidas


mudanças. Seus representantes viram o crescimento das novas usinas que
substituíam os tradicionais engenhos de açúcar. Observaram um grande número de
outras indústrias sendo construídas no sul. Descobriram um novo problema social:
a classe operária. Viram os filhos de imigrantes tornarem-se empresários e os
membros da ‘aristocracia’ tradicional ocuparem posições insignificantes.
Confrontaram um novo estilo de vida e de política e não ficaram muito satisfeitos
com o que viram. (...) Os paulistas (a versão brasileira do Yankee) aparentavam estar
comprometidos com o progresso; aparentavam ter zombado de suas tradições,
rompido com o passado. Gilberto Freyre escreveria a epopéia de Casa Grande e
Senzala. Revelaria a tradição senhorial de uma maneira simpática. Engajar-se-ia
numa ‘proustiana’ busca do tempo perdido**. Mostraria ao Yankee brasileiro e ao
Yankee real os aspectos positivos de sua tradição. Nada parecia mais oportuno do
que falar a respeito da democracia racial brasileira, especialmente num momento em
que negros organizavam uma Frente Negra para lutar pela melhoria de suas
condições de vida.
O problema era que com a gradual derrocada do sistema de clientela e
patronagem e com o desenvolvimento de um sistema competitivo tornava-se mais
difícil para negros e brancos evitar situações em que o preconceito e a discriminação
tornar-se-iam visíveis. Se a manifestação de preconceito era basicamente
incompatível com o velho sistema de clientela e patronagem, numa sociedade
competitiva ela transformava-se num instrumento natural usado pelos brancos
contra os negros. Os brancos tornaram-se mais conscientes de suas atitudes
preconceituosas, uma vez que tinham que confrontar os negros em lugares que eles
102
raramente freqüentavam antes (clubes, teatros, universidades e hotéis da classe
superior) ou em momentos em que tinham que tratar, face a face, com um negro
‘agressivo’, ‘arrogante’ que não cumpria seu papel de acordo com as expectativas
tradicionais de humildade e subserviência. Os próprios negros constataram, quando
tiveram que competir por empregos e posições no mercado de trabalho sem o
amparo de um patrão branco, que estavam submetidos à discriminação.” (VIOTTI DA
COSTA,Emília. Da Monarquia à República: momentos decisivos. São
Paulo:Brasiliense.3.ed.“O mito da democracia racial no Brasil”. pp.262-264)

“da mesma maneira que encontramos em Casa Grande e Senzala um vigoroso elogio
da confraternização entre negros e brancos, também é perfeitamente possível
descobrirmos lá numerosas passagens que tornam explícito o gigantesco grau de
violência inerente ao sistema escravocrata, violência que chega a alcançar os
parentes do senhor, mas que é majoritária e regularmente endereçada aos escravos.”
(ARAÚJO, Ricardo Benzaquém. Guerra e Paz. p.48)

"É só nos anos 30 que, de suprema vergonha, a miscigenação se transforma em


nossa mais sublime singularidade. O passe de mágica é formalizado por G.Freyre,
que, em Casa-Grande & Senzala (1930), pinta um cenário bastante idealizado para a
escravidão brasileira. Generalizando o ambiente particular e excepcional da
escravidão doméstica - e transformando-a em um modelo do cativeiro local -, Freyre
acabou oficializando a idéia de que, no Brasil, teria existido uma 'boa
escravidão', com seus senhores severos mas paternais, escravos fiéis e amigos.

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Defendendo a tese de que, nos trópicos, tudo tende a 'amolecer', Freyre
entendeu a mestiçagem brasileira não como o fruto de uma relação social
assimétrica, ou de uma determinada conjuntura histórica desigual, mas como um
modelo de civilização a ser reconhecido e, quiçá, exportado. Segundo esse autor, o
português teria contado, em sua formação, com dois elementos distintivos: de um
lado, a sua origem híbrida; de outro, sua proximidade geográfica com outros
continentes, a América e a África. Essas coincidências históricas e geográficas teriam
gerado, portanto, um povo avesso a preconceitos e capaz de tolerar diferenças e,
mais ainda, acostumado a 'sincretizar' elementos culturais de ordem diversa.
Partindo, dessa maneira, de uma tese exclusivamente culturalista, que
pouco falava das determinantes econômicas, Freyre encontrou, no Brasil, um
resumo da personalidade portuguesa, que, na colônia, frutificava ao lado de outras
culturas: a indígena e a negra. Se, de fato, Casa-Grande & Senzala representava
uma crítica aos modelos raciais e evolucionistas de, é preciso dizer que Freyre muda
os termos e revela novas filiações teóricas, mas de forma alguma deixa de
hierarquizar as raças. O branco é sempre o exemplo civilizatório, acompanhado
do indígena, que trouxe seus hábitos higiênicos e alimentares e, por fim, do
negro, com sua 'religiosidade lúbrica'. Toda essa troca cultural é apresentada
em um ambiente harmonioso, como se o contato entre culturas se fizesse
numa espécie de 'toma lá, dá cá' e, sobretudo, não enfatizando as diferenças que
se estabeleciam entre os grupos.
(...) “nesse momento (...) o Estado Novo passa a adotar a miscigenação como
símbolo de identidade da jovem nação (...)
Com intenções políticas evidentes, a mestiçagem de mácula vira
exemplo. A feijoada, de prato escravo, transforma-se em refeição nacional - dizem
os folcloristas, com o branco do arroz, o marrom do feijão e o amarelo da laranja -, a
103
capoeira deixa de ser criminalizada e mais e mais passa a ser reconhecida como
esporte nacional, assim como as religiões mestiças ganham novo espaço. O samba,
por outro lado, torna-se, conjuntamente com suas mulatas, um som 'tipicamente'
brasileiro, uma referência à nossa 'sublime' identidade.
O mestiço, de degenerado, ressurge como um simpático malandro,
oficializado na imagem do Zé Carioca criada por Disney em 1942. No desenho Alô,
Amigos, surgia, pela primeira vez, o simpático papagaio que representava a
malandragem mestiça brasileira, caracaterizada por não fazer nada de muito errado,
mas também nada de muito certo.
Enfim, Casa-grande & Senzala é recebido como espécie de modelo nacional
que, ao invés da 'falta', encontrava excessos, excessos de significação na sociedade
brasileira. Como vimos, o livro carregava também um mito: o mito da 'democracia
racial'." (SCHWARCZ, Lilia In: SCWARCZ & REIS (Orgs.) [1996] Negras Imagens. São
Paulo, EDUSP/Estação Ciência. Pp.163-4)

“uma inversão valorativa do papel que o mestiço e a mestiçagem ocupam na


cultura brasileira. De degenerativa e causa dos grandes males nacionais, a
mestiçagem passa a ser interpretada como um processo cultural positivo, em torno
do qual (e de seus produtos, como o samba, a culinária afro-brasileira, as técnicas
de higiene luso-tropicalistas etc.) os brasileiros poderiam inventar uma nova
identidade.” (VIANNA, Hermano. O mistério do samba. p.75)

“Freyre não poupa críticas irônicas a aspectos do comportamento e da


personalidade dos senhores: a moleza e a preguiça feitas arte, a tendência para o

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deboche sexual e culinário, a perversidade, a violência, a crueldade inútil e
substancialmente sádica para com os escravos. Mas talvez a coisa que mais o irritou
foi a conclusão de que os senhores falharam, sobretudo, na tarefa de patriarca: não
conseguiram dar o bom exemplo (...) a ética do trabalho e a postura perante os luxos
dos senhores influenciaram profundamente os gostos e comportamentos dos
escravos.
Mas há outros aspectos deste caldeirão de brasilidade e da nova ‘raça’ brasileira que
é o conjunto da casa-grande e da senzala que ele, de forma mais ou menos explícita,
elogia, nele identificando o núcleo da futura personalidade brasileira – elástica,
plástica, adaptável ao meio ambiente e às circunstâncias socioeconômicas, -
bem como ambígua – que constitui o tipo ‘luso-tropical’
(...) Gostaria de destacar em particular duas interessantes contribuições tanto do
discurso quanto da etnografia de C&S. Por um lado, a ênfase na coexistência de
diferentes estratégias utilizadas pelos oprimidos no seu relacionamento com os
opressores, num contínuo que vai da resistência à negociação e à sedução (...) Por
outro, Freyre salienta a existência de um quadro no qual a hegemonia cultural
nem sempre se dá, devido ao fascínio recíproco, mesmo que mutável, entre opressor
e oprimido, que deve ser reconquistado no dia-a-dia.”
(SANSONE,Livio. “As relações raciais em CG&S revisitadas à luz do processo de
internacionalização e globalização” In: CHOR MAIO,M. & VENTURA,R. Raça, Ciência
e Sociedade. R.Janeiro, Fiocruz: 1996. pp. 208-9.)

Texto 042: Casa-Grande e Senzala – [1ª edição:1933] algumas passagens


importantes
104
p.lvii: “O Professor Franz Boas é a figura de mestre de que me ficou até hoje a maior
impressão. Conheci-o nos meus primeiros dias em Colúmbia. (...) dos problemas
brasileiros, nenhum que me inquietasse tanto como o da miscigenação. Vi uma
vez, depois de mais de três anos maciços de ausência do Brasil, um bando de
marinheiros nacionais – mulatos e cafuzos (...) pela neve mole de Brooklyn. Deram-
me a impressão de caricaturas de homens. (...) A miscigenação resultava naquilo.
Faltou-me quem me dissesse então, como em 1929 Roquette-Pinto aos arianistas do
Congresso Brasileiro de Eugenia, que não eram simplesmente mulatos ou cafuzos
os indivíduos que eu julgava representarem o Brasil, mas cafuzos e mulatos
doentes.
Foi o estudo da Antropologia sob a orientação do Professor Boas que primeiro
me revelou o negro e o mulato no seu justo valor – separados dos traços de raça os
efeitos do ambiente ou da experiência cultural. Aprendi a considerar fundamental a
diferença entre raça e cultura. A discriminar entre os efeitos de
p.lviii: relações puramente genéticas e os de influências sociais, de herança cultural
e de meio. Neste critério de diferenciação fundamental entre raça e cultura assenta
todo o plano deste ensaio. Também no da diferenciação entre hereditariedade de
raça e hereditariedade de família.
Por menos inclinados que sejamos ao materialismo histórico, tantas vezes
exagerado nas suas generalizações - principalmente em trabalhos de sectários e
fanáticos - temos que admitir influência considerável, embora nem sempre
preponderante, da técnica da produção econômica sobre a estrutura das
sociedades; na caracterização da sua fisionomia moral. É uma influência sujeita à
reação de outras; porém poderosa como nenhuma na capacidade de aristocratizar

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ou de democratizar as sociedades, de desenvolver tendências para a poligamia ou a
monogamia, para a estratificação ou a mobilidade. Muito do que se supõe, nos es-
tudos ainda tão flutuantes de eugenia e de cacogenia, resultado de traços ou taras
hereditárias preponderando sobre outras influências, deve-se antes associar à
persistência, através de gerações, de condições econômicas e sociais, favoráveis ou
desfavoráveis ao desenvolvimento humano. Lembra Franz Boas que, admitida a
possibilidade da eugenia eliminar os elementos indesejáveis de uma sociedade, a
seleção eugênica deixaria de suprimir as condições sociais responsáveis pelos
proletariados miseráveis - gente doente e mal nutrida; e persistindo tais condições
sociais, de novo se formariam os mesmos proletariados.'
p.lix: No Brasil, as relações entre os brancos e as raças de cor foram desde a
primeira metade do século XVI condicionadas, de um lado pelo sistema de
produção econômica. - a monocultura latifundiária, do outro, pela escassez de
mulheres brancas, entre os conquistadores. O açúcar não só abafou as indústrias
democráticas de pau-brasil e de peles, como esterilizou a terra, numa grande
extensão em volta aos engenhos de cana, para os esforços de policultura e de
pecuária. E exigiu uma enorme massa de escravos. A criação de gado, com
possibilidades de vida democrática, deslocou-se para os sertões. Na zona agrária
desenvolveu-se, com a monocultura absorvente, uma sociedade semifeudal - uma
minoria de brancos e brancarões dominando patriarcais, polígamos, do alto das
casas-grandes de pedra e cal, não só os escravos criados aos magotes nas senzalas
como os lavradores de partido, os agregados, moradores de casas de taipa e de
palha vassalos das casas-grandes em todo o rigor da expressão.”
p.lx: Vencedores no sentido militar e técnico sobre as populações indígenas; 105
dominadores absolutos dos negros importados da Africa para o duro trabalho
da bagaceira, os europeus e seus descendentes tiveram entretanto de transigir
com índios e africanos quanto às relações genéticas e sociais. A escassez de
mulheres brancas criou zonas de confraternizaçao entre vencedores e vencidos,
entre senhores e escravos. Sem deixarem de ser relações - as dos brancos com as
mulheres de cor - de "superiores" com "inferiores" e, no maior número de casos, de
senhores desabusados e sádicos com escravas passivas, adoçaram-se, entretanto,
com a necessidade experimentada por muitos colonos de constituirem família
dentro dessas circunstâncias e sobre essa base. A miscigenação que largamente se
praticou aqui corrigiu a distância social que doutro modo se teria conservado
enorme entre a casa-grande e a mata tropical; entre a casa-grande e a senzala. O
que a monocultura latifundiária e escravocrata realizou no sentido de
aristocratização, extremando a sociedade brasileira em senhores e escravos, com
uma rala e insignificante lambujem de gente livre sanduichada entre os extremos
antagônicos, foi em grande parte contrariado pelos efeitos sociais da miscigenação.
A índia e a negra-mina a princípio, depois a mulata, a cabrocha, a quadrarona, a
oitavona, tornando-se caseiras, concubinas e ate esposas legitimas dos senhores
brancos, agiram poderosamente no sentido de democratização social no Brasil.
Entre os filhos mestiços, legítimos e mesmo ilegítimos, havidos delas pelos senhores
brancos, subdividiu-se parte considerável das grandes propriedades, quebrando-se
assim a força das sesmarias feudais e dos latifúndios de tamanho de reinos.
p.lxi: Ligam-se à monocultura latifundiária males profundos que têm
comprometido, através de gerações, a robustez e a eficiência da população
brasileira, cuja saúde instável, incerta capacidade de trabalho, apatia, perturbações

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de crescimento, tantas vezes são atribuídas à miscigenação. Entre outos males, o
mau suprimento de víveres frescos, obrigando grande parte da população ao regime
de deficiência alimentar caracterizado pelo abuso de peixe seco e da farinha de
mandioca (...) A importância da hiponutrição (...) da fome crônica, originada não
tanto da redução em quantidade como dos defeitos da qualidade dos alimentos, traz
a problemas indistintamente chamados de ‘decadência’ ou ‘inferioridade’ das raças,
novos aspectos e, graças a Deus, maiores possibilidades de solução. (...) Não se
devem esquecer outras influências sociais que aqui se desenvolveram com o sistema
patriarcal e escravocrata de colonização: a sífilis, por exemplo, responsável por
tantos dos ‘mulatos doentes’ de que fala Roquette Pinto (...)
A formação patriarcal do Brasil explica-se, tanto nas suas virtudes como nos
seus defeitos, menos em termos de ‘raça’ e de ‘religião’ do que em termos
econômicos, de experiência de cultura e de organização de família, que aqui foi a
unidade colonizadora.”
p.lxiii: “A casa-grande, completada pela senzala, representa todo um sistema
econômico, social, político: de produção (a monocultura latifundiária); de
trabalho (a escravidão); de transporte (o carro de boi, o bangüê, a rede, o cavalo); de
religião (o catolicismo de família, com capelão subordinado ao pater familias, culto
dos mortos, etc.); de vida sexual e de família (o patriarcalismo polígamo); de higiene
do corpo e da casa (o ‘tigre’, a touceira de bananeira, o banho de rio, o banho de
gamela, o banho de assento, o lava-pés); de política (o compadrismo). Foi ainda
fortaleza, banco, cemitério, hospedaria, escola, santa casa de misericórdia
amparando os velhos e as viúvas, recolhendo órfãos.”
p.lxvii: “A casa-grande venceu no Brasil a Igreja, nos impulsos que esta a princípio 106
manifestou para ser a dona da terra. Vencido o jesuíta, o senhor de engenho ficou
dominando a colônia quase sozinho. O verdadeiro dono do Brasil. Mais do que os
vice-reis e os bispos. (...) Donos das terras. Donos dos homens. Donos das
mulheres.”
p.lxxv: “A história social da casa-grande e da senzala é a história íntima de
quase todo brasileiro: de sua vida doméstica, conjugal, sob o patriarcalismo
escravocrata e polígamo; da sua vida de menino; do seu cristianismo reduzido à
religião de família e influenciado pelas crendices da senzala. (...) Nas casas-grandes
foi até hoje onde melhor se exprimiu o caráter brasileiro; a nossa continuidade
social. No estudo da sua história íntima despreza-se tudo o que a história política e
militar nos oferece de empolgante por uma quase rotina de vida: mas dentro dessa
rotina é que melhor se sente o caráter de um povo. Estudando a vida doméstica dos
antepassados sentimo-nos aos poucos nos completar: é outro meio de procurar-se o
‘tempo perdido’ . (...) uma aventura de sensibilidade, não apenas um esforço de
pesquisa pelos arquivos.”
p.lxxxii: “Ensaio de Sociologia genética e de História social, pretendendo fixar e
às vezes interpretar alguns dos aspectos mais significativos da formação da família
brasileira."
p.50: “O intercurso sexual entre o conquistador europeu e a mulher índia não foi
apenas perturbado pela sífilis e por doenças européias de fácil contágio venéreo:
verificou-se – o que depois se tornaria extensivo às relações dos senhores com as
escravas negras – em circunstâncias desfavoráveis à mulher. Uma espécie de
sadismo do branco e de masoquismo da índia ou da negra terá predominado

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nas relações sexuais como nas sociais do europeu com as mulheres das raças
submetidas ao seu domínio. O furor femeeiro do português se terá exercido sobre
vítimas nem sempre confraternizantes no gozo. (...) Isto quanto ao sadismo de
homem para mulher – não raro precedido pelo de senhor para muleque. Através da
submissão do muleque, seu companheiro de brinquedos e expressivamente
chamado leva-pancadas, iniciou-se muitas vezes o menino branco no amor físico.
(...) p.51: Transformava-se o sadismo do menino e do adolescente no gosto de
mandar dar surra, de mandar arrancar dente de negro ladrão de cana, de mandar
brigar na sua presença capoeiras, galos e canários – tantas vezes manifestado pelo
senhor de engenho quando homem feito; no gosto de mando violento ou perverso
que explodia nele ou no filho bacharel quando no exercício de posição elevada,
política ou de administração pública; ou no simples e puro gosto de mando,
característico de todo brasileiro nascido ou criado em casa-grande de engenho. (...)
abrutalhado em rude autoritarismo num Floriano Peixoto.
Mas esse sadismo de senhor e o correspondente masoquismo de escravo,
excedendo a esfera da vida sexual e doméstica, têm-se feito sentir através da
nossa formação, em campo mais largo: social e político. Cremos surpreendê-los
em nossa vida política, onde o mandonismo tem sempre encontrado vítimas em
quem exercer-se com requintes às vezes sádidos (...) A nossa tradição
revolucionária, liberal, demagógica, é antes aparente e limitada a focos de fácil
profilaxia política: no íntimo, o que o grosso do que se pode chamar de ‘o povo
brasileiro’ ainda goza é a pressão sobre ele de um governo másculo e corajosamente
autocrático.”
p.52: “a tradição conservadora no Brasil sempre se tem sustentado do sadismo do 107
mando, disfarçado em ‘princípio de Autoridade’ ou ‘defesa da Ordem’. Entre essas
duas místicas – a da Ordem e a da Liberdade, a da Autoridade e a da Democracia –
é que se vem equilibrando entre nós a vida política, precocemente saída do regime
de senhores e escravos. Na verdade o equilíbrio continua a ser entre as realidades
tradicionais e profundas: sadistas e masoquistas, senhores e escravos, doutores a
analfabetos, indivíduos de cultura predominantemente européia e outros de cultura
principalmente africana e ameríndia. (...) Talvez em parte alguma se esteja
verificando com igual liberalidade o encontro, a intercomunicação e até a
fusão harmoniosa de tradições diversas, ou antes, antagônicas, de cultura,
como no Brasil. É verdade que o vácuo entre os dois extremos ainda é enorme; (...)
Mas não se pode acusar de rígido, nem de falta de mobilidade vertical – como diria
Sorokin – o regime brasileiro, em vários sentidos sociais um dos mais democráticos,
flexíveis e plásticos. (...) a cultura européia se pôs em contato com a indígena,
amaciada pelo óleo da mediação africana.”
p.283: “Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não
na alma e no corpo - há muita gente de jenipapo ou mancha mongólica pelo Brasil -
a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro. No litoral, do
Maranhão ao Rio Grande do Sul, e em Minas Gerais, principalmente do negro. A
influência direta, ou vaga e remota, do africano.
Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos,
na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que e
expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra. Da
escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de
comer, ela própria amolengando na mão o bolão de comida. Da negra velha que nos

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contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado. Da mulata que nos
tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor
físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação completa de
homem. Do muleque que foi o nosso primeiro companheiro de brinquedo.”
p.294: “Diante da possibilidade da transmissão de caracteres adquiridos, o
meio, pelo seu físico e pela bioquímica, surge-nos com intensa capacidade de
afetar a raça, modificando-lhe caracteres mentais que se tem pretendido ligar
a somáticos. (...) Admitida (...) a possibilidade de gradualmente, através de
gerações, conformar-se o adventício a novo tipo físico, diminui, consideravelmente,
a importância atribuída a diferenças hereditárias de caráter mental, entre as várias
raças. Diferenças interpretadas como de superioridade e inferioridade e ligadas a
traços ou caracteres físicos.”
p.295: “O que se sabe das diferenças da estrutura entre os crânios de brancos e
negros não permite generalizações.”
p.296: “Nem merece contradita séria a superstição de ser o negro, pelos seus
caracteres somáticos, o tipo de raça mais próximo da incerta forma ancestral
do homem cuja anatomia se supõe semelhante à do chimpanzé. Superstição em
que se baseia muito do julgamento desfavorável que se faz da capacidade mental do
negro. Mas os lábios do macaco são finos como na raça branca e não como na preta
– lembra a propósito o Professor Boas. Entre as raças humanas são os europeus e
os australianos os mais peludos de corpo e não os negros. De modo que a
aproximação quase se reduziria às ventas mais chatas e escancaradas no negro do
que no banto.” (...) “O depoimento dos antropólogos revela-nos no negro traços de
capacidade mental em nada inferior à das outras raças: ‘considerável iniciativa 108
pessoal, talento de organização, poder de imaginação, aptidão técnica e econômica’,
diz-nos o Professor Boas. E outros traços superiores.”
p.297: “Quanto aos testes chamados de inteligência, muitos deles de resultados
tão desfavoráveis ao negro, sua técnica tem sofrido restrições sérias.
Goldenweiser ridiculariza-os (...) ‘ (...) Quando alguém exprime qualquer bobagem
em palavras não há dano nenhum; mas se a exprime em fórmulas matemáticas
surge o perigo da roupagem matemática dissimular a bobagem.’ (...) Não se negam
diferenças mentais entre brancos e negros. Mas até que ponto essas diferenças
representam aptidões inatas ou especializações devidas ao ambiente ou às
circunstâncias econômicas de cultura é problema dificílimo de apurar.”
p.298: “Lowie parece-nos colocar a questão em seus verdadeiros termos. Como
Franz Boas, ele considera o fenômeno das diferenças mentais entre grupos
humanos mais do ponto de vista da história cultural e do ambiente de cada um
do que da hereditariedade ou do meio geográfico puro.”
p.299: “importaram-se para o Brasil, da área mais penetrada pelo Islamismo,
negros maometanos de cultura superior não só à dos indígenas como à da
grande maioria dos colonos brancos – portugueses e filhos de portugueses quase
sem instrução nenhuma, analfabetos uns, semi-analfabetos a maior parte. (...) O
Abade Étienne revela-nos sobre o movimento malê da Bahia em 1935 aspectos
que quase identificam essa suposta revolta de escravos com um desabafo ou
erupção de cultura adiantada, oprimida por outra, menos nobre. (...) Fosse esse
movimento puramente malê ou maometano, ou combinação de vários grupos sob
líderes muçulmanos, o certo é que se destaca das simples revoltas de escravos dos

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tempos coloniais. Merece lugar entre as revoluções libertárias, de sentido religioso,
social ou cultural. (...) É que nas senzalas da Bahia de 1835 havia talvez maior
número de gente sabendo ler e escrever do que no alto das casas-grandes.”
p.304: “interessam-nos menos as diferenças de antropologia física (que ao
nosso ver não explicam inferioridades ou superioridades humanas, quando
transpostas dos termos de hereditariedade de família para os de raça) que as
de antropologia cultural e de história social africana.”
p.308: “Diante dos caboclos os negros foram elemento europeizante. Agentes de
ligação com os portugueses” (...)
“O Brasil não se limitou a recolher da África a lama de gente preta que lhe
fecundou os canaviais e os cafezais; que lhe amaciou a terra seca; que lhe
completou a riqueza das manchas de massapé. Vieram-lhe da África ‘donas de
casa’ para seus colonos sem mulher branca; técnicos para as minas; artífices em
ferro; negros entendidos na criação de gado e na indústria pastoril; comerciantes
de panos e sabão; mestres, sacerdotes e tiradores de reza maometanos.”
p.315: “parece-nos absurdo julgar a moral do negro no Brasil pela sua
influência deletéria como escravo. (...) o africano foi muitas vezes obrigado a
despir sua camisola de malê para vir de tanga, nos [navios] negreiros imundos, da
África para o Brasil. Para de tanga ou calça de estopa tornar-se carregador de tigre
[barril contendo excrementos]. A escravidão desenraizou o negro do seu meio social
e de família, soltando-o entre gente estranha e muitas vezes hostil. Dentro de tal
ambiente, no contato de forças tão dissolventes, seria absurdo esperar do escravo
outro comportamento senão o imoral, de que tanto o acusam.
109
Passa por ser defeito da raça africana, comunicado ao brasileiro, o
erotismo, a luxúria, a depravação sexual. Mas o que se tem apurado entre os povos
negros da África, como entre os primitivos em geral (...) p.316 é a maior moderação
do apetite sexual que entre os europeus. (...)
Diz-se geralmente que a negra corrompeu a vida sexual da sociedade
brasileira, iniciando precocemente no amor físico os filhos-família. Mas essa
corrupção não foi pela negra que se realizou, mas pela escrava. Onde não se
realizou através da africana, realizou-se através da escrava índia. (...)
É um absurdo responsabilizar-se o negro pelo que não foi obra sua nem do
índio, mas do sistema social e econômico em que funcionaram passiva e
mecanicamente. Não há escravidão sem depravação sexual. (...)
p.317 é preciso notar que o negro se sifilizou no Brasil. Um ou outro viria já
contaminado. A contaminação em massa verificou-se nas senzalas coloniais. A ‘raça
inferior’, a que se atribui tudo que é handicap no brasileiro, adquiriu da ‘superior’ o
grande mal venéreo que desde os primeiros tempos de colonização nos degrada e
diminui. Foram os senhores das casas-grandes que contaminaram de lues as
negras das senzalas. Negras tantas vezes entregues virgens, ainda mulecas de doze
e treze anos, a rapazes brancos já podres da sífilis das cidades. Porque por muito
tempo predominou no Brasil a crença de que para o sifilítico não há melhor
depurativo do que uma negrinha virgem.”

Edição utilizada: FREYRE,Gilberto. Casa-Grande & Senzala – Formação da Família


Brasileira sob o Regime da Economia Patriarcal. Rio de Janeiro, Livraria José

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Olympio Editora:1977. 18.ed.

110

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Texto 043: O samba e o Estado Novo

Da exaltação da malandragem:
Se eu precisar algum dia/De ir pro batente,/ Não sei o que será, Pois vivo na
malandragem,/E vida melhor não há/ Minha malandragem é fina/ não
desfazendo de ninguém/ Deus é quem nos dá a sina/ E o valor dá-se a quem
tem/ Também dou minha bola/ Golpe errado ainda não dei/ Eu vou chamar
Chico Viola/ Que no samba ele é rei/ Dá licença Seu Mário/ Oi, não há vida
melhor/ Que vida melhor não há/ Deixa falar quem quiser/ Deixa quem quiser
falar/ O trabalho não é bom/ Ninguém pode duvidar/ Oi, trabalhar só obrigado/
Por gosto ninguém vai lá ( O que será de mim, Ismael Silva e Nilton Bastos, 1931)

"Meu chapéu do lado/ Tamanco arrastando/ Lenço no pescoço/ Navalha no


bolso/ Eu passo gingando/ Provoco e desafio/ Eu tenho orgulho/ Em ser tão
vadio/ Sei que eles falam de mim/ Deste meu proceder/ Eu vejo quem trabalha/
Andar no miserê/ Eu sou vadio/ Porque tive inclinação/ Eu me lembro, era
criança/ Tirava samba-canção/ Comigo não/Eu quero ver quem tem razão/ E ele
toca/ E você canta/E eu não dou" (Lenço no pescoço, Wilson Batista, 1934)

À exaltação do trabalho:
"Deixa de arrastar o seu tamanco/ Pois tamanco nunca foi sandália/ E tira do
pescoço o lenço branco/ Compra sapato e gravata/ Joga fora essa navalha/ Que
te atrapalha/ Com o chapéu do lado deste rata/ Da Polícia quero que escapes/
Fazendo samba-canção/ Já que tens papel e lápis/ Arranja um amor e um
violão/ Malandro é palavra derrotista/ Que só serve pra tirar/Todo o valor do
sambista/ Proponho ao povo civilizado/ Não te chamar de malandro/ E sim de
111
rapaz folgado"
(Rapaz folgado, Noel Rosa, 1934)

"Quem trabalha é que tem razão,/ Eu digo e não tenho medo de errar,/ O
bonde São Januário/ Leva mais um operário/ Sou eu que vou trabalhar./
Antigamente eu não tinha juízo,/ Mas resolvi garantir o meu futuro,/ Sou
feliz, vivo muito bem/ A boemia não dá camisa a ninguém/ E digo bem.
(Bonde São Januário, de Wilson Batista e Ataulfo Alves, sucesso no carnaval
de 1941)

"Eu hoje tenho tudo,/ Tudo o que um homem quer./ Tenho dinheiro,/ Automóvel
e uma mulher,/ Mas, para chegar/ Até o ponto em que cheguei,/ Eu trabalhei,
trabalhei, trabalhei./ Eu hoje sou feliz,/E posso aconselhar,/ Quem faz o que já
fiz,/ Só pode melhorar./Quem diz que o trabalho/ Não dá camisa a ninguém/
Não tem razão, não tem, não tem." (Eu trabalhei, Roberto Roberti e Jorge Faraj,
1941)

"Vejam só/ A minha vida como está mudada,/ Não sou mais aquele/ Que entrava
em casa alta madrugada./ Faça o que fiz/ Porque a vida é do trabalhador/ Tenho
um doce lar/ E sou feliz com meu amor./ O Estado Novo/ Veio para nos
orientar/ No Brasil não falta nada,/ Mas precisa trabalhar./ Tem café, petróleo e
ouro,/ Ninguém pode duvidar, / E quem for pai de quatro filhos,/ O presidente
mandou premiar/ É negócio casar." (É negócio casar, Ataulfo Alves e Felisberto
Martins, c.1940)

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Controle e Nacionalismo:

"Em 1940, lá no morro, começaram o recenseamento/ E o agente recenseador/


Esmiuçou a minha vida/ Que foi um horror/ E quando viu a minha mão sem
aliança/ Encarou para a criança que no chão dormia/ E perguntou se meu
moreno era decente/ E se era do batente ou era da folia/ Obediente que sou a
tudo que é da lei/ Fiquei logo sossegada e falei então:/ - O meu moreno é
brasileiro, é fuzileiro/ É quem sai com a bandeira do seu batalhão/ A minha casa
não tem nada de grandeza/ Nós vivemos na pobreza sem dever tostão/ Tem um
pandeiro, tem cuíca e um tamborim/ Um reco-reco, e um cavaquinho e um
violão/ Fiquei pensando e comecei a descrever/ Tudo, tudo de valor que o meu
Brasil me deu.../ Um céu azul, um Pão-de-Açucar sem farelo/ Um pano verde-
amarelo/ Tudo isso é meu!/ Tem feriado que pra mim vale fortuna.../ A Retirada
de Laguna vale um cabedal!/ Tem Pernambuco, tem São Paulo e tem Bahia/ Um
conjunto de harmonia que não tem rival!
(Recenseamento, Assis Valente, 1940)

“Ele nasceu sambista / com a tal veia de artista / carteira de reservista / está
legal com o senhorio / não pode ouvir pandeiro, não / fica cheio de dengo / é
torcida do Flamengo / nasceu no Rio de Janeiro
Ele trabalha de segunda a sábado / Com muito gosto, sem reclamar / Mas no
domingo ele tira o macacão / Embandeira o barracão / Põe a família pra sambar
Lá no morro ele pinta o sete / Com ele ninguém se mete / Ali ninguém é fingido
Ganha-se pouco mas é divertido.”
(Ganha-se pouco mas é divertido - Wilson Batista e Ciro de Souza, 1941)
(faixa 2 do CD de Cristina Buarque com o mesmo título, c.1999-2000):
112

Driblando a censura

“Eu já não posso mais / a minha vida não é brincadeira / estou me


desmilinguindo / igual a sabão na mão da lavadeira / se ele ficasse em casa /
ouvia a vizinhança toda falando / só por me ver lá no tanque / lesco-lesco / me
acabando.
Se eu arranjo um trabalho / ele vai de manhã, de tarde pede ‘as conta’ / eu já
estou cansado de dar / murro em faca de ponta / ele disse pra mim que está
esperando ser presidente / tirar patente / no sindicato dos inimigos do batente.
Ele dá muita sorte, é um moreno forte / ele é mesmo um atleta / mas tem um
grande defeito: / ele diz que é poeta / ele tem muita bossa / e compôs um samba
e quer abafar (é de amargar) / eu não posso mais / em nome da forra vou
desguiar.
(Inimigo do batente – Wilson Batista e Germano Augusto; 1941)
(do CD acima, faixa 7)

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Texto 044: O Prólogo de duas constituições: 1934 e 1937:

I. Carta de 1934 (16/07/1934)

"Nós, os representantes do Povo Brasileiro, pondo a nossa confiança em


Deus, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para organizar um regime
democrático, que assegure à Nação a unidade, a liberdade, a justiça e o bem-
estar social e econômico, decretamos e promulgamos a seguinte CONSTITUIÇÃO
DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL."

II. Carta de 1937 (10/11/1937)

"O Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil,


Atendendo às legítimas aspirações do povo brasileiro à paz política e social,
profundamente perturbado por conhecidos fatores de desordem, resultantes da
crescente agravação dos dissídios partidários, que uma notória propaganda
demagógica procura desnaturar em luta de classes, e da extremação dos conflitos
ideológicos, tendentes, pelo seu desenvolvimento natural, a resolver-se em termos
de violência, colocando a Nação sob a funesta iminência da guerra civil.
Atendendo ao estado de apreensão criado no país pela infiltração
comunista, que se torna cada dia mais extensa e mais profunda, exigindo
remédios de caráter radical e permanente.
Atendendo a que, sob as instituições anteriores, não dispunha o Estado de
meios normais de preservação e de defesa da paz, da segurança e do bem-estar
do povo;
Com o apoio das forças armadas e cedendo às inspirações da opinião
113
nacional, umas e outras justificadamente apreensivas diante dos perigos que
ameaçam a nossa unidade e da rapidez com que se vem processando a
decomposição das nossas instituições civis e políticas:
Resolve assegurar à Nação a sua unidade, o respeito à sua honra e à sua
independência, e ao povo brasileiro, sob um regime de paz política e social, as
condições necessárias à sua segurança, ao seu bem-estar e à sua prosperidade,
decretando a seguinte Constituição, que se curmprirá desde hoje em todo o país:
CONSTITUIÇÃO DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL."

Fonte: BARRETO,C.E. Constituições do Brasil. São Paulo: Edição Saraiva, 1971.


6.ed. pp.241; 429-430.

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Texto 045: O Estado Novo - proclamação ao povo brasileiro

Natureza e data do texto:


Discurso lido por Getúlio Vargas no Palácio Guanabara diante dos microfones do
Departamento de Propaganda (embrião do DIP) e irradiado para todo o país,
durante a Hora do Brasil, na noite de 10 de novembro de 1937. Nele, o presidente
justifica o fechamento do Congresso (que amanheceu cercado por tropas do
Exército) e a decretação de uma nova constituição, a qual, na verdade, já estava
pronta desde abril; o Plano Cohen, divulgado em 30 de setembro, fornecera o
pretexto ideal para o endurecimento do regime. No discurso, Getúlio esclarece os
objetivos do novo regime. Para facilitar a análise, os parágrafos foram numerados.

"Proclamação ao povo brasileiro: o Estado Novo


1. [...] Para reajustar o organismo político às necessidades econômicas do país e
garantir as medidas apontadas, não se oferecia outra alternativa além da que
foi tomada, instaurando-se um regime forte, de paz, de justiça e de trabalho.
Quando os meios de governo não correspondem mais às condições de
existência de um povo, não há outra solução, senão mudá-los, estabelecendo
outros moldes de ação.
2. A Constituição hoje promulgada criou uma nova estrutura legal, sem alterar o
que se considera substancial nos sistemas de opinião: manteve a forma
democrática, o processo representativo e a autonomia dos Estados, dentro das
linhas tradicionais da federação orgânica.
3. Circunstâncias de diversa natureza apressaram o desfecho deste movimento,
que constitui manifestação de vitalidade das energias nacionais extra-
partidárias. O povo o estimou e acolheu com inequívocas demonstrações de
114
regozijo, impacientado e saturado por lances entristecedores da política
profissional; o Exército e a Marinha o reclamaram como imperativo da ordem e
da segurança nacional.
4. Ainda ontem, culminando nos propósitos demagógicos, um dos candidatos
presidenciais mandava ler da tribuna da Câmara dos Deputados documento
francamente sedicioso e o fazia distribuir nos quartéis das corporações
militares, que, num movimento de saudável reação às incursões facciosas,
souberam repelir tão aleivosa exploração, discernindo, com clareza, de que lado
estavam, no momento, os legítimos reclamos da consciência brasileira.
5. Tenho suficiente experiência das asperezas do poder para deixar-me seduzir
pelas suas exterioridades e satisfação de caráter pessoal; jamais concordaria,
por isso, em permanecer à frente dos negócios públicos se tivesse de ceder
quotidianamente às mesquinhas injunções da acomodação política, sem a
certeza de poder trabalhar, com real proveito, pelo maior bem da coletividade.
6. Prestigiado pela confiança das forças armadas e correspondendo aos
generalizados apelos dos meus concidadãos, só acedi em sacrificar o justo
repouso a que tinha direito, ocupando a posição em que me encontro com o
firme propósito de continuar servindo à Nação.
7. As decepções que o regime democrático trouxe ao país não se limitaram ao
campo moral e político.
8. A economia nacional, que pretendera participar das responsabilidades do
Governo, foi também frustrada nas suas justas aspirações. Cumpre
restabelecer, por meio adequado, a eficácia da sua intervenção e colaboração
na vida do Estado. Ao invés de pertencer a uma assembléia política, em que, é

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óbvio, não se encontram os elementos essenciais às suas atividades, a
representação profissional deve constituir um órgão de cooperação na esfera do
poder público, em condições de influir na propulsão das forças econômicas e de
resolver o problema do equilíbrio entre o capital e o trabalho.
9. Considerando de frente e acima dos formalismos jurídicos a lição dos
acontecimentos, chega-se a conclusão iniludível, a respeito da gênese política
das nossas instituições: elas não corresponderam, desde 1889, aos fins para
que se destinavam.
10.Um regime que, dentro dos ciclos prefixados de quatro anos, quando se
apresentava o problema sucessório presidencial, sofria tremendos abalos,
verdadeiros traumatismos mortais, dada a inexistência de partidos nacionais e
de princípios doutrinários que exprimissem as aspirações coletivas, certamente
não valia o que representava e operava, apenas, em sentido negativo.
11.Numa atmosfera privada de espírito público, como essa em que temos vivido,
onde as instituições se reduziam às aparências e aos formalismos, não era
possível realizar reformas radicais sem a preparação prévia dos diversos
fatores da vida social.
12.Torna-se impossível estabelecer normas sérias e sistematização eficiente à
educação, à defesa e aos próprios empreendimentos de ordem material, se o
espírito que rege a política geral não estiver conformado em princípios que se
ajustem às realidades nacionais.
13.Se queremos reformar, façamos, desde logo, a reforma política. Todas as outras
serão consectárias desta, e sem ela não passarão de inconsistentes
documentos de teoria política.
14.Passando do Governo propriamente dito ao processo da sua constituição,
verificava-se, ainda, que os meios não correspondiam aos fins. A fase
115
culminante do processo político sempre foi a da escolha de candidato à
Presidência da República. Não existia mecanismo constitucional prescrito a esse
processo. Como a função de escolher pertencia aos partidos e como estes se
achavam reduzidos a uma expressão puramente nominal, encontravamo-nos
em face de uma solução impossível, por falta de instrumento adequado. Daí, as
crises periódicas do regime, pondo, quadrienalmente, em perigo a segurança
das instituições. Era indispensável preencher a lacuna, incluindo na própria
Constituição, o processo de escolha dos candidatos à suprema investidura, de
maneira a não se reproduzir o espetáculo de um corpo político desorganizado e
perplexo, que não sabe, sequer, por onde começar o ato em virtude do qual se
define e afirma o fato mesmo da sua existência.
15.A campanha presidencial, de que tivemos, apenas, um tímido ensaio, não
podia, assim, encontrar, como efetivamente não encontrou, repercussão no país.
Pelo seu silêncio, a sua indiferença, o seu desinteresse, a Nação pronunciou
julgamento irrecorrível sobre os artifícios e as manobras a que se habituou a
assistir periodicamente, sem qualquer modificação no quadro governamental
que se seguia às contendas eleitorais. Todos sentem, de maneira profunda, que
o problema de organização do Governo deve processar-se em plano diferente e
que a sua solução transcende os mesquinhos quadros partidários,
improvisados nas vésperas dos pleitos, com o único fim de servir de bandeira a
interesses transitoriamente agrupados para a conquista do poder.
16.A gravidade da situação que acabo de escrever em rápidos traços está na
consciência de todos os brasileiros. Era necessário e urgente optar pela
continuação desse estado de coisas ou pela continuação do Brasil. Entre a

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existência nacional e a situação de caos, de irresponsabilidade e de desordem
em que nos encontravamos, não podia haver meio termo ou contemporização.
17.Quando a competição política ameaça degenerar em guerra civil, é sinal de que
o regime constitucional perdeu o seu valor prático, subsistindo, apenas, como
abstração. A tanto havia chegado o país. A complicada máquina de que
dispunha para governar-se não funcionava. Não existiam órgãos apropriados
através dos quais pudesse exprimir os pronunciamentos da sua inteligência e
os decretos da sua vontade.
18.Restauremos a Nação na sua autoridade e liberdade de ação: - a sua
autoridade, dando-lhe os instrumentos de poder real e efetivo com que possa
sobrepor-se às influências desagregadoras, internas ou externas; na sua
liberdade, abrindo o plenário do julgamento nacional sobre os meios e os fins
do Governo e deixando-a construir livremente a sua história e o seu destino."

Fonte: VARGAS,Getúlio. A Nova Política do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria José


Olímpio, 1938. Vol. V, pp.28-32. Apud : FENELON,Dea Ribeiro. 50 Textos de
História do Brasil. São Paulo: Hucitec, 1974.

Texto 046: O Estado Novo e as classes trabalhadoras

Natureza e data do texto:


Discurso pronunciado por Getúlio Vargas quando da assinatura de decretos leis
referentes às classes trabalhadoras do país - no Palácio Guanabara a 1 º de maio
de 1938. A partir de então, até 1945, em cada primeiro de maio, no estádio de
São Januário (e em 1944 no Pacaembu em S.Paulo), Getúlio dirigia-se aos
"trabalhadores do Brasil" (expressão utilizada pela primeira vez na inauguração
116
do prédio do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio no 1 o aniversário do
Estado Novo em 10 novembro de 1938) anunciando-lhes um "presente" da festa:
1938: o regulamento do salário-mínimo [já previsto na constituição de 34], e o
decreto-lei relativo à isenção de impostos para habitações proletárias;
1939: criação da Justiça do Trabalho;
1940: a fixação do salário-mínimo;
1941: a instalação da Justiça do Trabalho juntamente com o lançamento da
Marcha para o Oeste;
1942: o anúncio do esforço da Batalha da Produção;
1943: CLT
1944: Nova Lei Orgânica da Previdência.
Obs: os parágrafos foram numerados para facilitar a análise.

"1. Operários do Brasil: no momento em que se festeja o 'Dia do Trabalho', não


desejei que esta comemoração se limitasse a palavras, mas que fosse traduzida
em fatos e atos que constituissem marcos imperecíveis, assinalando pontos
luminosos na marcha e na evolução das leis sociais do Brasil.
2. Nenhum governo, nos dias presentes, pode desempenhar as sua função sem
satisfazer as justas aspirações das massas trabalhadoras. (Muito bem; palmas).
3. Podeis interrogar, talvez: Quais são as aspirações das massas obreiras, quais
são os seus interesses? E eu vos responderei: a ordem, e o trabalho! (Muito bem:
palmas prolongadas).
4. Em primeiro lugar, a ordem, porque na desordem nada se constrói: porque, num
país como o nosso, onde há tanto trabalho a realizar, onde há tantas iniciativas a

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adotar, onde há tantas possibilidades a desenvolver, só a ordem assegura a
confinaça e a estabilidade. (Muito bem).
5. O trabalho só se pode desenvolver em ambiente de ordem. Por isso, a Lei do
Salário Mínimo, que vem trazer garantias ao trabalhador, era necessidade que há
muito se impunha. Como sabeis, em nosso país, o trabalhador, principalmente o
trabalhador rural, vive abandonado, percebendo uma remuneração inferior às suas
necessidades. (Muito bem).
6. No momento em que se providencia para que todos os trabalhadores brasileiros
tenham casa barata, isentos dos impostos de transmissão, torna-se necessário, ao
mesmo tempo, que, pelo trabalho, se lhes garanta a casa, a subsistência, o
vestuário, a educação dos filhos. (Muito bem: palmas prolongadas).
7. O trabalho é o maior fator da elevação da dignidade humana.
8. Ninguém pode viver sem trabalhar (Muito bem); e o operário não pode viver
ganhando apenas o indispensável para não morrer de fome (Muito bem; aplausos
prolongados). O trabalho justamente remunerado eleva-o na dignidade social. Além
dessas condições, é forçoso observar que num país como o nosso, onde em alguns
casos há excesso de produção, desde que o operário seja melhor remunerado,
poderá, elevando seu padrão de vida, aumentar o consumo, adquirir mais dos
produtores e, portanto, melhorar as condições do mercado interno. Após a série de
leis sociais com que tem sido amparado e beneficiado o trabalhador brasileiro, a
partir da organização sindical, da Lei dos Dois Terços, que terá de ser cumprida e
que está sendo cumprida (Muito bem; palmas prolongadas), das férias
remuneradas, das caixas de aposentadoria e pensões, que asseguram a
tranquilidade do trabalhador na invalidez e a dos seus filhos na orfandade, a Lei
do Salário Mínimo virá assinalar, sem dúvida, um marco de grande relevância na
evolução da legislação social brasileira. Não se pode afirmar que seja o seu termo,
117
porque outras se seguirão.
9. Um operário: Confiamos em Vossa Excelência (Muito bem; palmas).
10. O Sr. Presidente Getúlio Vargas. - O orador operário, que foi o intérprete dos
sentimentos sentimentos de seus companheiros, declarou, há pouco, que a
legislação social do Brasil veio a estabelecer a harmonia e a tranquilidade entre
empregados e empregadores. É esta uma afirmativa feliz, que ecoou bem no meu
coração (muito bem; palmas). Não basta, porém, a tranquilidade e a harmonia entre
empregados e empregadores. É preciso a colaboração de uns e outros no esforço
espontâneo e no trabalho comum em bem dessa harmonia, da cooperação e do
congraçamento de todas as classes sociais. (Muito bem; aplausos prolongados). O
movimento de 10 de novembro pode ser considerado, sob certos aspectos, como um
reajustamento dos quadros da vida brasileira (Muito bem: palmas). Esse
reajustamento terá de se realizar, e já se vem realizando, exatamente pela
cooperação de todas as classes. O Governo não deseja, em nenhuma hipótese, o
dissídio das classes nem a predominância de umas sobre as outras (Muito bem).
Da fixação dos preceitos do cooperativismo na Constituição de 10 de novembro
deverá ocorrer, naturalmente, o estímulo vivificador do espírito de colaboração
entre todas as categorias do trabalho e de produção. Essa colaboração será
efetivada na subordinação ao sentido superior da organização social. Um país não
é apenas um conglomerado de indivíduos dentro de um trecho de território, mas
principalmente, a unidade da raça, a unidade da língua, a unidade do pensamento
nacional (Muito bem, palmas).
11. É preciso, portanto, para a realização desse ideal supremo, que todos marchem
unidos, em ascensão prodigiosa, heróica e vibrante, no sentido da colaboração

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comum e do esforço homogêneo pela prosperidade e pela grandeza do Brasil (Muito
bem, muito bem, aplausos vibrantes)."

Fonte: VARGAS,Getúlio. A Nova Política do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria José


Olímpio, 1938. Vol. IV, pp.203-205. Apud : FENELON,Dea Ribeiro. 50 Textos de
História do Brasil. São Paulo: Hucitec, 1974.pp.162-164.

118

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Texto 042: O Músicas sobre a "Política de Boa Vizinhança"

Brasil Pandeiro (1941)


Assis Valente

Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor / Eu fui à Penha, fui
pedir à padroeira para me ajudar / Salve o Morro do Vintém, Pindura-Saia, eu
quero ver / Eu quero ver o Tio Sam tocar pandeiro para o mundo sambar
O Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada / Anda dizendo que o molho
da baiana melhorou seu prato / Vai entrar no cuscuz, acarajé e abará / Na Casa
Branca já dançou a batucada de ioiô e iaiá / Brasil, esquentai vossos pandeiros /
Iluminai os terreiros / Que nós queremos sambar / Há quem sambe diferente /
Noutras terras, outra gente / Um batuque de matar / Batucada reuni vossos
valores / Pastorinhas e cantores de expressão que não têm par / Ó, meu Brasil,
Brasil, esquentai vossos pandeiros / Iluminai os terreiros / Que nós queremos
sambar.

Gravação utilizada: CD: Novos Baianos, Acabou Chorare. [1972] SIGLA, 1992.
400.1162.

Chiclete com banana


(Gordurinha e José Gomes)

Eu só boto Bebop no meu Samba / Quando o Tio Sam tocar um tamborim /


Quando ele pegar num pandeiro e no zabumba / Quando ele entender que o
samba não é rumba /
119
Aí eu vou misturar, Miami com Copacabana
Chiclete eu misturo com banana e o meu samba vai ficar assim
Eu quero ver a confusão / É um samba rock meu irmão / É, mas em
compensação / Eu quero ver um Boogie-woogie de pandeiro e violão / Quero ver
o Tio Sam de frigideira / Numa batucada brasileira

Gravação utilizada: CD: Jackson do Pandeiro, Grandes Sucessos [1962] Sony


Music, Columbia, s.d.. 721.249/ 2-4901 145.

Boogie Woogie na Favela (1945)


Denis Brean

Chegou o samba, minha gente / Lá da terra do Tio Sam com novidade / E ele
trouxe uma cadência que é maluca / pra mexer toda cidade / e o boogie-woogie,
boogie-woogie, boogie-woogie / a nova dança que balança mas não cansa / a
nova dança que faz parte da Política da Boa-Vizinhança / E lá na Favela / Toda a
batucada já tem boogie-woogie / Até as cabrochas / Já dançam, já falam / No
tal boogie-woogie / E o nosso samba foi por isso que aderiu / Do Amazonas, Rio
Grande, São Paulo e Rio / Ao boogie-woogie, boogie-woogie, boogie-woogie / A
nova dança que surgiu

Gravação utilizada: CD: Roberto Silva, Descendo o Morro no. 3. [1960]


Copacabana Records, divisão da EMI Music, 1999. 524531 2.

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Texto 048: O O Cabo Laurindo e o fim do Estado Novo
(segundo os sambas de Wilson Batista)

- O personagem Laurindo já aparecera em Triste Cuíca de Noel Rosa e em


Laurindo de Herivelto Martins entre outras; Wilson Batista prosseguiu com o
tema:

Lá Vem Mangueira (carnaval 1944)

Lá vem Mangueira/ Outra vez descendo o morro com harmonia/ Lá vem


Mangueira/ Sem Laurindo na frente da bateria/ Perguntei: Conceição, o que
aconteceu? / Laurindo foi pro front, este ano não desceu/ Mandei perguntar sem
ele aqui/ Se a Escola de Samba podia sair/ Ele respondeu: pode ensaiar/ Porque
o povo precisa sambar/

Cabo Laurindo (1945)

Laurindo voltou coberto de glória/ Trazendo garboso no peito a Cruz da Vitória/


Oi, Salgueiro, Mangueira, Estácio, Matriz estão agindo/ Para homenagear o Cabo
Laurindo/ As duas divisas que ele ganhou mereceu/ Conheço os princípios que
Laurindo sempre defendeu/ Amigo da verdade, defensor da igualdade/ Dizem que
lá no morro vai haver transformação/ Camarada Laurindo, estamos à sua
disposição

Comício em Mangueira (carnaval de 1946)


120
Houve um comício em Mangueira/ O Cabo Laurindo falou/ Toda a Escola de
Samba aplaudiu, é/ Toda a Escola de Samba chorou/ - Eu não sou herói - / Era
comovente a sua voz/ - Heróis são aqueles/ Que tombaram por nós/ Houve
missa campal, bandeira a meio-pau/ Toda a Escola de samba rezou/ Laurindo
então lembrou os nomes/ Dos sambistas que tombaram/ Mangueira tomou parte
na vitória/ Mangueira mais uma vez na história !

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Texto 049: Esquema do Parque Proletário Número 1 (da Gávea) - 1942
Natureza e data do texto:
A partir de 1940 o governo federal inicia um plano para a “solução” do
problema das favelas no Rio de Janeiro. É feito um recenseamento (ver Texto 038)
e planeja-se a substituição das favelas por Parques Proletários, onde haveria
igreja, posto médico, centro de assistência, clube de malha, escola de educação
física, creche, lactário e posto policial. Em maio de 1942 é inaugurado o Parque
Proletário da Gávea e logo em seguida o Parque Proletário do Caju. O grandioso
plano parou por aí, com quatro favelas destruídas e três parques instalados (o 3 o.
era o da Praia do Pinto), abrigando de 7 a 8 mil pessoas.

121

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1. Pequena ponte
2. Escola
3. Grupo em construção
4. Centro Social
5. Grupo em construção
6. Idem
7. Mastro
8. Grupo residencial
9. Escola infantil
10. Grupo residencial
11.Grupo residencial
12.Grupo residencial
13.Grupo residencial
14.Grupo residencial
15. Sanitários
16. Feijoaria
17. Grupo em construção
18. Igreja
19. Grupo residencial
20. Grupo residencial
21. Sanitários 21A e 21b – Tanques
22. Grupo residencial
23. Bica
24. Grupo residencial
25. Creche
122
26. Jardim de infância
27. Sanitários
28. Controle policial
29. Posto médico
30. Sanitários
31. Administração
32. Poste de iluminação
33. Grupo residencial
34. Grupo residencial
35. Grupo residencial 35a e 35b - Tanques
36. Grupo residencial
37. Rink de sport
38. Clube recreativo
39. Sanitários
40. Grupo residencial
41. Grupo residencial
42. Grupo residencial
43. Riacho

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PARTE IV : 1945 a 1964

Textos:
050: Quadro dos votos em 45 - 46 para a Constituinte............................ 124

051: Pedreiro Waldemar (1948) ............................................................... 124

052: Retrato do Velho (1951) ................................................................ 124

053: Ministério da Economia (1951) ........................................................ 125

054: Discurso de Getúlio aos trabalhadores em 1o. de maio de 1951 .. 125

055: Frases contra Getúlio - crise de 1954 ........................................... 125

056: Vargas – a carta testamento ......................................................... 127

057: Homenagem a Getúlio, o grande presidente ................................ 128

058: Os anos JK (1956-1961) – esquema de aula ................................ 129

059: Músicas sobre JK .......................................................................... 130


123

060: O crescimento urbano e rural entre 1940-60 ................................. 131

061: Bossa nova: Corcovado de Tom Jobim (1960) ............................... 131

062: Jingles da campanha eleitoral de 1960 .......................................... 132

063: Jânio (esquema de aula) .............................................................. 133

064: Música sobre Jango ...................................................................... 134

065: Opinião (1963) – Zé Keti ............................................................... 134

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Texto 050: Quadro dos votos em 45 - 46 para a Constituinte

A super-representação do PSD e a sub-representação do PTB e do PCB


O continuísmo permitido pelo código eleitoral

Quadro I: Votos válidos para a Câmara Federal e composição partidária da


Câmara, do Senado e da Constituinte, 1945-46 (em porcentagens)

REPRES ENTAÇÃO
VOTOS para a Câmara no Senado na Câmara na Assembléia Const.
PSD 42,7 62,0 53,0 54,0
UDN 26,7 24,0 27,0 26,4
PTB 10,2 4,7 7,6 7,5
PCB 8,6 2,3 4,9 4,9
Outros 11,8 7,0 7,5 7,3

"Dos mecanismos [para preservar o 'velho' no 'novo' segundo Maria do


Carmo Campello de Souza] destacou-se o código eleitoral de 1945,
elaborado nos últimos meses do Estado Novo e que presidiu às 'regras' da
transição democrática em proveito dos políticos tradicionais.
Estabelecendo que a necessidade de bases nacionais era essencial para o
registro de um partido, ou ainda que as sobras das eleições partidárias
deveriam privilegiar o partido mais votado, o código beneficiava
124
ostensivamente o PSD, que já contava com a máquina política montada ao
longo da ditadura. O continuísmo predominava sobre a ruptura garantindo
a supremacia da coligação varguista no Congresso (vide Quadro I)."

Ou seja: PSD SUPER-representado


UDN representado mais ou menos de acordo com a votação
PTB, PCB (principalmente) e outros SUB-representados

Fonte: MENDONÇA, 1986: 42

Texto 051: Pedreiro Waldemar (1948)


Wilson Batista

Você conhece o pedreiro Waldemar?/ Não conhece,/ eu vou lhe apresentar:/ de


madrugada toma o trem da circular/ faz tanta casa e não tem casa pra morar./
Leva a marmita embrulhada no jornal/ se tem almoço, nem sempre tem jantar/ o
Waldemar que é mestre no ofício/ constrói o edifício/ e depois não pode entrar

Texto 052: Retrato do Velho (1951)


(Marino Pinto e Haroldo Lobo, sucesso no carnaval de 1951)

“Bota o retrato do velho /outra vez / Bota no mesmo lugar / O sorriso do velhinho /
Faz a gente trabalhar, oi / Eu já botei o meu E tu não vais botar ?”

Fonte: Mendes Jr., Volume 4: 225

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Texto 053: Ministério da Economia (1951)

Geraldo Pereira
Seu Presidente/ Sua excelência mostrou que é de fato/ Agora tudo vai ficar
barato/ Agora o pobre já pode comer/ Seu presidente/ Pois era isso que o povo
queria/ O Ministério da Economia/ Parece que vai resolver/ Seu presidente/
Graças a Deus não vou comer mais gato/ Carne de vaca no açougue é mato/
Com meu amor eu já posso viver/ Eu vou buscar/ A minha nêga pra morar
comigo
Porque vi que não há mais perigo/ Ela de fome não vai morrer/ A vida estava tão
difícil/ Que eu mandei a minha nêga bacana/ Meter os peitos na cozinha da
madame/ Em Copacabana/ Agora vou buscar a nêga porque gosto/ Dela pra
cachorro/ Os gatos é que vão dar gargalhada/ de alegria lá no morro

Texto 054: Discurso de Getúlio aos trabalhadores em 1o. de maio de 1951


Discurso de Getúlio aos trabalhadores no estádio do Vasco em 1º de maio de
1951

“Preciso de vós, trabalhadores do Brasil, meus amigos, meus companheiros de


uma longa jornada; (...) Preciso de vossa união; preciso que formeis um bloco
forte e coeso ao lado do governo, para que este possa dispor de toda a força de
que necessita para resolver vossos próprios problemas. (...) Preciso do seu apoio
coletivo, estratificado e consolidado na organização dos sindicatos, para que os
meus propósitos não se esterilizem. (...)
125
Chegou, por isso mesmo, a hora do governo apelar para os trabalhadores e dizer-
lhes: uni-vos todos nos vossos sindicatos, como forças livres e organizadas. (...)
Trabalhadores do Brasil ! (...)
O povo me acompanha na esperança de que o meu governo possa edificar uma
nova era de verdadeira democracia social e econômica – e não apenas para
emprestar o seu apoio e sua solidariedade a uma democracia meramente política,
que desconhece a igualdade social.”

Fonte: Mendes Jr., Volume 4: 248.

Texto 055: Frases contra Getúlio - crise de 1954

Editorial de Lacerda na Tribuna da Imprensa


"Sai do poder, Getúlio Vargas, se queres ainda merecer algum respeito como
criatura humana, já que perdeste o direito de ser acatado como chefe do
governo..."
(MENDES Jr., Brasil História – volume 4, p.256)

Discurso do líder udenista Afonso Arinos na Câmara, 1º/8/1954:


"Eu falo a Getúlio Vargas como presidente e como homem (...) tenha a coragem de
perceber que o seu governo é hoje um estuário de lama e de sangue; observe que
os porões de seu palácio chegararam a ser um vasculhadouro da sociedade (...) E
eu lhe solicito, homem, em nome do mais alto no coração do meu povo: tenha a

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coragem de ser um desses homens não permanecendo no governo, se não for
digno de exercê-lo"

Tribuna da Imprensa, 2/8/54, primeira página, em letras garrafais:


“SOMOS UM POVO HONRADO GOVERNADO POR LADRÕES”
(FERREIRA,1994:65)

Tribuna da Imprensa, 5/8/54


prega a derrubada de um "governo imoral, ilegal, do banditismo e da loucura"
(BENEVIDES,1981:89)

Tribuna da Imprensa, 5/8/54, na página 3 (João Duarte Filho):


“Sobretudo é preciso alijar Getúlio. Em 1º lugar é preciso alijar Getúlio. Erradicá-
lo, extirpá-lo da vida pública nacional, como se faz, pela cirurgia, com as
infecções e os cancros. Ele pesteia, deteriora tudo em que toca. Ele é o fim (...).
Ele é um viciado do crime político. Só como criminoso sabe agir. Realista,
materialista como os animais e como os primários, (...) tudo se acaba em torno
dele. Caem as forças morais, decai o espírito público, deturpa-se o patriotismo,
transmudam-se os valores (...). Contemporizando com os ladrões públicos,
deixando-os impunes à sua sombra, ele investe, pelo exemplo, contra a moral
brasileira, do homem brasileiro que sempre preferiu passar fome a tocar no
dinheiro alheio. O exemplo de Getúlio é contra este tradicional padrão de
honestidade. (...). Getúlio é o fim. Mas o Brasil não quer parar, não quer chegar
ao fim. É preciso, portanto, erradicar Getúlio.”
(FERREIRA,1994:66-67)
126
Tribuna da Imprensa em 6 de agosto de 1954, 1ª página:
- falava-se que Getúlio, aos 13 anos, teria baleado mortalmente, com ajuda
de seus dois irmãos, a um desafeto na escola; instinto assassino dele e da
família
(FERREIRA,1994:65)

Tribuna da Imprensa, 9/8/54


"Getúlio Vargas não é mais o chefe legítimo do governo. É o espectro dos seus
crimes que paira sobre a nação... no seu sibaritismo silencioso, é hoje uma
promessa de maldição sobre o rosto puro e aflito do povo brasileiro" (idem,
ibidem)

Na Câmara, o chefe do Partido Libertador (aliado da UDN), Raul Pilla:


"trata-se, evidentemente, de um caso de salvação pública. É a própria autoridade
do Estado que está se dissolvendo (...) o que se imporia era a suspensão pura e
simples do sr. Getúlio Vargas" (idem, ibidem)

Discurso de Herbert Levy, da UDN durante o processo de impeachment


encaminhado pela UDN (fragorosamente derrotado):
"razões políticas evidentes estão a assinalar a periculosidade do sr. Getúlio
Vargas, vis a vis as instituições democráticas"
(BENEVIDES,1981:88)

Manifesto dos generais, no qual julgam (idem, ibidem)

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"como melhor caminho para tranquilizar o povo e manter unidas as Forças
Armadas, a renúncia do presidente"

Herbert Levy, na Câmara Dep., Correio da Manhã, 11/8/ 54, 1ª página:


“O sr. Getúlio Vargas passou a ser para os brasileiros o símbolo do que pode
haver de pior em matéria de caudilhismo; o corruptor por excelência, o
ambicioso do poder a qualquer preço, o acolitador dos desonestos, dos
violentos, dos deformados moralmente.”
(FERREIRA,1994:65)

O Dia, 24/8/54, em letras garrafais, na primeira página:


“PUS e LAMA escorrem sobre a nação estarrecida.”
(FERREIRA,1994:75)

Texto 056: Vargas – a carta testamento


(Deixada no dia da sua morte, em 24 de agosto de 1954)

"Mais uma vez, as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e


novamente se desencadeiam sobre mim.
Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam e não me dão o
direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que
eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os
humildes. Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e
espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de
uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de
liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo. A
127
campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos
nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros
extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário
mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar a liberdade nacional na
potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás e, mal começa esta a
funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o
desespero. Não querem que o trabalhador seja livre. Não querem que o povo seja
independente.
Assumi o governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores de
trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas
declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constantes de mais
de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso
principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta
pressão sobre a nossa economia, a ponto de sermos obrigados a ceder.
Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão
constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo,
renunciando a mim mesmo, para defender o povo, que agora se queda
desamparado. Nada mais posso dar, a não ser o meu sangue. Se as aves de
rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro,
eu ofereço em holocausto a minha vida. Escolho este meio de estar sempre
convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo a vosso lado.
Quando a fome bater à vossa porta, sentirei em vosso peito a energia para a luta
por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no pensamento a
força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa

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bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa
consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo
com perdão. E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha
vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo
de quem fui escravo não será mais escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para
sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate.
Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo.
Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia, não abateram meu
ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio.
Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para
entrar na História."
Fonte: Brasil História - Texto e Consulta. Vol. 4 - Era de Vargas. São
Paulo:Hucitec,1988.p.258.

Texto 057: Homenagem a Getúlio, o grande presidente


(Mangueira, 1956)

Padeirinho

No ano de 1883, no dia 19 de abril/ Nascia Getúlio Dornelles Vargas/ Que mais
tarde seria presidente do Brasil/ Foi eleito deputado/ Para defender as cores do
nosso país/ E em março de 1930, ele aqui chegava/ Como substituto de
Washington Luiz/ Desde o ano de 1930 para cá/ Foi ele o presidente mais
popular/ Governando sempre, sempre em contato com o povo/ Construiu um
Brasil novo trabalhando sem cessar/ Como prova tem Volta Redonda/ A cidade
do aço/ Grande siderurgia nacional/ Tem o seu nome elevado, num grande
128
espaço/ Na Revolução Industrial/ Candeias, a cidade petroleira, trabalha para o
progresso fabril/ Orgulho da indústria brasileira/ Na história do petróleo no
Brasil, ô, ô/ Salve o estadista, idealista e realizador/ Getúlio Vargas/ Um grande
presidente de valor, ô, ô

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Texto 058: Os anos JK (1956-1961)

“Minha ambição foi a de tornar-me agente de uma revolução renovadora, a


revolução necessária, cuja base é o trabalho, cujo instrumento agressivo é a
técnica e cujo objetivo a atingir será ver o Brasil deixar de ser eternamente
o país do futuro e tornar-se realidade tangível, Nação que soube fazer valer o
que lhe deu a Providência e o destino, ambos criadores de grandes e
pequenos países.” (Juscelino Kubitschek)

O conturbado governo provisório (1954-56) e a posse de JK

24 ago 54: com o suicídio de Vargas, assume o vice-presidente Café Filho


(PSP)
03 out 54: eleições para o Congresso; PTB aumenta sua representação
(5156), bem como o PSD (112114), enquanto a UDN perde cadeiras
(8474)
03 out 55: Eleição presidencial. JK (PSD) é eleito com 36% contra 30% de
Juarez Távora (UDN) e 26% de Ademar de Barros (PSP). Jango (PTB) é
eleito vice-presidente (com mais votos do que JK); a UDN, derrotada nas
urnas, defende um golpe contra a posse de JK-Jango
03 nov 55: Café Filho sofre um ataque cardíaco e licencia-se da presidência
08 nov 55: assume Carlos Luz, presidente da Câmara, o qual, embora
fosse do PSD era contra JK
10 nov 55: Carlos Luz depõe o Ministro da Guerra, Marechal Lott, favorável
à “legalidade” (i.e. à posse de JK-Jango) 129
11 nov 55: Lott mobiliza o Exército e dá seu “golpe preventivo”, depondo Carlos
Luz; no mesmo dia, o Congresso, apoiado na maioria PSD-PTB (185 cadeiras
contra 72 da UDN) elege Nereu Ramos, presidente do Senado e o próximo
segundo a Constituição
21 nov 55: Café Filho sai do hospital e quer assumir a presidência; o
Exército impede (cerca prédios públicos)
22 nov 55: Câmara desqualifica Café Filho e confirma Nereu Ramos;
24 nov 55: Câmara aprova estado de sítio de um mês solicitado pelos
militares; é prorrogado por um mês em dezembro; há inclusive alguma
censura à imprensa;
31 jan 56: Posse de JK e Jango

O Plano de metas

1. Objetivos
2. O que representou, na prática
3. As 4 metas principais (Energia, Transportes, Alimentação e Indústria
Pesada)
4. A política econômica associada
5. O carro-chefe da economia: a indústria automobilística
6. A conjuntura favorável
- internamente
- externamente
7. Resultados
- integração entre capital externo e nacional

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- as mudanças qualitativas na economia
8. Problemas
- novas contradições

O “nacional-desenvolvimentismo”

1. Os 3 nacionalismos da década de 50
2. Brasília, símbolo maior
3. Vantagens políticas do nacional-desenvolvimentismo
4. Iseb: fábrica de ideologias
5. O nacional-desenvolvimentismo enquanto ideologia, o que ele ocultava
6. O impacto sobre a classe operária

Política e partidos

1. Aliança PSD-PTB: JK ao centro


2. A administração paralela e os partidos
3. O verdadeiro projeto da burguesia industrial

Inflação e FMI: o fim do sonho desenvolvimentista  recessão 60-62

Texto 059: Músicas sobre JK

A - CAIXINHA, OBRIGADO (1960)


Juca Chaves 130

A mediocridade é um fato consumado/ na sociedade onde o ar é depravado/


marido rico, burguesão despreocupado/ que foi casado, com mulher burra, mas
bela/ o filho dela, é político ou tarado/ caixinha, obrigado/ a situação do Brasil
vai muito mal/ qualquer ladrão é patente nacional/ o policial quase sempre é
uma ilusão/ e a condução é artigo racionado/ porém ladrão isto tem pra todo
lado/ caixinha, obrigado/ o rockanroll nesta terra é uma doença/ e o futebol é o
ganha-pão da Imprensa/ vença ou não vença, o Brasil é o maioral/ e até da bola
nós já temos general/ que hoje é nome de estádio municipal/ caixinha, nacional/
a Medicina está desacreditada/ penicilina já é coisa superada/ tem curandeiro
nesta terra pra chuchu/ Rio de Janeiro está pior do que Tambaú/ e de outro
lado, onde está o delegado/ caixinha, obrigado/ dramalhão, reunião de deputado/
é palavrão que só sai pra todo lado/ se um deputado abre a boca é um atentado/
e a mãe de alguém é quem sofre toda a vez/ no fim do mês, cento e vinte de
ordenado/ caixinha, obrigado...

B - PRESIDENTE BOSSA-NOVA [JK] (1960)


Juca Chaves

Bossa Nova mesmo é ser presidente, desta terra descoberta por Cabral/ para
tanto basta ser, simpático, risonho, original/ depois, desfrutar da maravilha, de
ser o presidente do Brasil/ voar de Belacap pra Brasília, ver a alvorada e voar de
volta ao Rio/ voar, voar, voar, voar, voar pra bem distante até Versalhes onde

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duas mineirinhas, valsinhas dançam como debutante, interessante/ mandar,
parente à jato pro dentista/ almoçar, com tenista campeão/ também poder ser
um bom artista, exclusivista, tomando com Dilermando umas aulinhas de violão/
isto é viver como se aprova/ é ser um presidente bossa-nova/ bossa-nova, muito
nova, nova mesmo, ultra-nova.

Texto 060: O crescimento urbano e rural entre 1940-60

Crescimento urbano e rural muito diferenciado entre 40-60

aumento
da população de 1940-50 de 1950-60

URBANA 52,8% 79,2%

RURAL 16,6% 17,7%

Fonte: Mendonça, 1986: 46

Texto 061: Bossa-Nova

Corcovado (Tom Jobim) – 1960


131
Num cantinho um violão
Este amor, uma canção
Prá fazer feliz a quem se ama
Muita calma prá pensar
E ter tempo prá sonhar
Da janela vê-se o Corcovado
O Redentor, que lindo!

Quero a vida sempre assim


Com você perto de mim
Até o apagar da velha chama
E eu que era triste
Descrente deste mundo
Ao encontrar você eu conheci
O que é felicidade
Meu amor

Gravação utilizada: João Gilberto com Astrud Gilberto e Stan Getz; CD João
Gilberto – Coleção Millenium (20 músicas do Século XX) – Polygram, faixa 9.

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062: Jingles da campanha eleitoral de 1960

Jânio Quadros (PDC/“UDN”):

“varre, varre, varre, varre, varre, varre, vassourinha


varre, varre, a bandalheira,
o povo já está cansado,
de sofrer dessa maneira,
Jânio Quadros é a esperança desse povo abandonado.”

Ademar de Barros (PSP)

“Desta vez vamos com Ademar


Desta vez vamos com Ademar
Desta vez vamos com Ademar”

Marechal H.Lott (PTB/PSD)

“De leste a oeste,


de sul a norte,
Na terra brasileira, 132
É uma bandeira o Marechal Teixeira Lott”

João Goulart (para vice) (PTB):

“o meu Rio Grande vai jangar,


É Jango, é Jango,
É Jango Goulart,
Pra vice-presidente, nossa gente vai jangar,
É Jango, é Jango,
É o João Goulart.”

Milton Campos (vice UDN)

“No leme da sua mão,


Está o melhor desta eleição,
Milton, Milton, Milton,
será o vice-presidente da nação.”

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Texto 063: Jânio (esquema de aula)

O FURACÃO JÂNIO QUADROS (15/3/61 A 25/8/61) E SUAS CONSEQUÊNCIAS

1. A brecha estrutural do sistema político: a super-representação das elites


agrárias no Congresso
2. O outsider Jânio Quadros: nem getulista, nem anti-getulista
- Carreira meteórica: professor; vereador; prefeito; governador; deputado; mas sem
nenhum comprometimento partidário
- Encarnava as esperanças da classe média (governo dinâmico e honesto) e
da classe trabalhadora (benefícios econômicos)
3. A administração ‘honesta e eficiente’ de São Paulo como trampolim
4. A plataforma política da sua campanha:
- democracia honesta e digna
- rápida taxa de desenvolvimento econômico beneficiando a agricultura,
educação e saúde
- controle da inflação (30% em 1960; 47,7% em 61; 51,3% em 1962; 81,3%
em 1963; 91,9% em 1964; 34,5% em 1965; 38,8% em 1966; 24,3% em
1967; 20,2% em 1969)
- Brasil como nação soberana
- Fórmula neoliberal: facilitar a entrada de capital estrangeiro e orçamento
equilibrado mas sem plano de metas
5. O entusiasmo do eleitrorado: “Jânio vem aí”
- Acusações a JK: corrupção e inépcia administrativa
- bandeiras: recuperação econômica e austeridade (vassoura como símbolo)
- resultado: eleito com mais de 6 milhões de votos (48% entre 11,7 milhões 133
de votos, contra 28% para Lott e 23% para Ademar)
[enorme crescimento do eleitorado: 5,9 mi em 1945; 7,9 mi em 1950; 8,6
mi em 1955; 11,7 mi em 1960]
6. Tomando posse:
- ineficiência governamental
- crise financeira: inflação e dívida externa
7. Programa anti-inflacionário impopular
- desvalorização cambial de 100%
- consegue bom acordo com credores em maio/junho 61 graças ao
interesse do governo americano no contexto da Guerra Fria
- redução dos subsídios para o trigo e a gasolina (aumento do pão e das
passagens)
- congelamento de salários
8. O estilo: bilhetinhos, proibição do uso de biquini, do lança-perfume no
carnaval e das brigas-de-galo
9. Política externa independente (tentativa de explorar as possibilidades
abertas pela neutralidade durante a Guerra Fria) alarma militares,
conservadores e anticomunistas e permite o ataque de Lacerda (sobretudo
a partir da condecoração de Che Guevara com a Ordem do Cruzeiro do Sul)
10. Em 24 de agosto de 1961, Carlos Lacerda, pelo rádio, denuncia tentativa
de golpe na noite anterior (à renúncia)
11. Os inúmeros “inimigos” de Jânio: os políticos (do PSD devido ao anúncio de
investigações sobre corrupção política, mas inclusive da UDN, pois Jânio
começara a aproximar-se da posição nacionalista “radical” e mostrara-se

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incontrolável), burocracia governamental (questão da eficiência);
industriais e comerciantes ameaçados pela estagnação econômica derivada
do programa de estabilização; líderes trabalhistas e intelectuais de
esquerda (sacrifício da classe trabalhadora e ausência de plano de
desenvolvimento) e last but not least, os militares, alarmados com a
política externa de J.Quadros.
12. A crise e a solução parlamentarista

Texto 064: Música sobre Jango

MARIA THERESA (Goulart)


Juca Chaves

Dona Maria Theresa, Enquanto o feijão dá sumiço


Diga a seu Jango Goulart E o dólar se perde de vista
Que a vida está uma tristeza O Globo diz que tudo isso,
Que a fome está de amargar É culpa de comunista
Que o povo necessitado
precisa um salário novo Dona Maria Theresa,
Mais baixo pro deputado, Diga a seu Jango porque
Mais alto pro nosso povo o povo vê quase tudo
Só o Parlamento não vê
Dona Maria Theresa, Dona Maria Theresa,
Assim o Brasil vai pra trás Diga a seu Jango Goulart
Quem deve falar fala pouco Lugar de feijão é na mesa
134
Lacerda já fala demais Lacerda é noutro lugar.”

Texto 065 : Opinião (1963) – Zé Keti

Podem me prender Se não tem carne


Podem me bater eu pego um osso
Podem até e ponho na sopa
Deixar-me sem comer e deixa andar
que eu não mudo de opinião fale de mim
aqui do morro quem quiser falar
eu não saio não. aqui eu não pago aluguel
Se não tem água se eu morrer amanhã, seu doutor
eu furo um poço estou pertinho do céu

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PARTE V:

A DITADURA MILITAR

Textos:
066 : CRONOLOGIA - da Ditadura Militar à posse de Lula .......................... 136

067 : O Ato Institucional (depois número 1) ................................................... 139

068: Alguns números da repressão pós-64 .................................................... 142

069: Funeral de um lavrador (1965) ............................................................. 142

070: Acender as velas – Zé Keti (1965) ......................................................... 143

071: O “MILAGRE ECONÔMICO” E SEUS EFEITOS .................................. 144

072: Transformações estruturais entre 1950-80 ........................................ 149

073: Os Atos Institucionais e a escalada da repressão ............................... 151

074: Dois sambas sobre inflação e planos econômicos ............................... 153 135

075: Cartum de Henfil sobre as Diretas Já ........................................... 154

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Texto 061: CRONOLOGIA: DA DITADURA MILITAR À POSSE DE LULA

1964 – 11/4: “Eleição” do general Humberto Castelo Branco com 361 votos (72
abstenções, 37 ausências, 5 votos em outros generais)

1967 - 15/3: Posse do general Arthur Costa e Silva, cujo nome havia sido
homologado pelo Congresso em 3/10/66 (295 de 475 votos; fidelidade partidária
anula votos rebeldes – o general tinha sido “escolhido” pela ARENA; MDB se retira
em protesto)

1969 – 28/8: O general-presidente Costa e Silva tem uma trombose cerebral e


fica com metade do corpo paralisado; sua agenda é cancelada e a imprensa é
instruída a noticiar que o presidente tem uma forte gripe; assume uma junta militar
(um triunvirato com um general, um almirante e um brigadeiro), para impedir que
tomasse posse o vice-presidente eleito, o civil Pedro Aleixo (ex-deputado da UDN
e ministro da Educação) – que havia discordado do AI-5, ou os sucessores
previstos, pela ordem: presidentes da Câmara, do Senado e do STF

1969 – 22/10: Congresso é reaberto para sagrar como presidente a Emílio


Garrastazu Médici, Este havia sido escolhido anteriormente depois de uma
consulta que o alto Comando das FFAA fizera a 240 oficiais-generais das 3 armas;
o candidato escolhido, Albuquerque de Lima (muito votado pela Marinha) é
preterido com a desculpa de que não era general de 4 estrelas.
136
1974 – 15/03: Assume a presidência o general Ernesto Geisel. Ele fora eleito em
15/1/74 por um colégio eleitoral composto pelo Congresso e por delegados das
assembléias estaduais (para aumentar a maioria da ARENA); Geisel tem 400
votos contra 76 da anti-candidatura Ulysses Guimarães (vice Barbosa Lima
Sobrinho). Ulysses percorrera o país denunciando a tortura, a censura, o
abandono dos trabalhadores, os privilégios às multinacionais, a “anticonstituição” e
a “antieleição”.

1978 – 15/10: Eleição indireta do general João Batista de Figueiredo (355 votos
contra 226 para o também general Euler Bentes); Figueiredo fora anunciado por
Geisel como seu sucessor (tendo o civil Aureliano Chaves como vice) em 15/1

1984 – 6/4: Comício pelas (eleições) Diretas-Já com 1,7 milhão de pessoas em
SP
10/4: Idem com 1,2 milhão de pessoas no Rio de Janeiro (Candelária)
17/4: Emenda Figueiredo é enviada ao Congresso: mandato de 4 anos para
o próximo presidente e eleições diretas só em 1988. Em 28/6 vai ser retirada, para
evitar que a oposição a subemende para 84.
25/4: A emenda das diretas (Dante de Oliveira) não passa na Câmara (298
a favor, 65 contra e 17 abstenções; 22 votos menos do que os 2/3 exigidos)
- A inflação neste ano é de 223,7% e a variação do PIB de 5,4%

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1985 – 15/1: O Colégio Eleitoral elege Tancredo-Sarney por 480 votos contra 180
de Maluf (9 ausências e 7 abstenções)
15/3: Posse provisória do vice José Sarney devido à doença de Tancredo
(operado 12h antes da posse)
21/4: Morre Tancredo; 3 milhões vão aos funerais em São Paulo, Brasília,
Belo Horizonte e São João Del Rei
22/4: José Sarney assume a presidência
- A inflação neste ano é de 237,7% e a variação do PIB de 7,9 %

1986 – 16/4: Congresso aprova Plano Cruzado


15/11: Eleição da constituinte congressual, dos governadores e deputados
estaduais; o PMDB vence graças ao Plano Cruzado, que vai ser suspenso dias
depois, em 21/11 (no dia anterior o governo concedera um aumento recorde dos
combustíveis de 60%); é o Plano Cruzado II (com aumentos de preços e
mudanças no cálculo da inflação)
- A inflação neste ano é de 57,5% e a variação do PIB de 7,5 %
1987 –
- A inflação neste ano é de 365,7% e a variação do PIB de 3,5 %

1988 – 22/3: A Constituinte (com seus 559 membros presentes) opta pelo
presidencialismo
2/6: Em concorrida votação, a Constituinte fixa em 5 anos (e não 4) o
mandato de Sarney
22/9: A Constituinte aprova a nova Carta Magna, por 454 votos, 15 contra e 137
6 abstenções
- A inflação neste ano é de 933,6 % e a variação (negativa) do PIB de – 0,1
%

1989 – 15/1: Sarney anuncia o Plano Verão: congelamento, desindexação,


demissões no funcionalismo; criação de uma nova moeda, o Cruzado Novo
(NCz$), com 3 zeros a menos
15/11: Primeiro turno da 1ª eleição presidencial em 29 anos; Collor
(28,5 %) e Lula (16,1%) vão para o 2º turno
14/12: 2º debate Collor x Lula na TV
17/12: 2º turno da eleição presidencial: Collor é eleito com 35 milhões de
votos (42,7 %) contra 31,1 milhões (37,9 %) de Lula
- A inflação neste ano é de 1.764,9 % e a variação do PIB de 3,2 %

1990 – 13/3: A pedido de Collor, Sarney decreta feriado bancário até 19/3
15/3: Posse de Fernando Collor de Mello
16/3: Plano Collor I (20 medidas provisórias e 3 decretos); bloqueio das
contas correntes e de poupança
3-11/4: Congresso aprova em tempo recorde o pacote de medidas do Plano
Collor
9/5: Collor anuncia a demissão de 354 mil funcionários públicos nos
próximos 60 dias
16/8: Decreto 99.464 inicia plano de privatização de 10 empresas estatais
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- A inflação oficial neste ano é de 1.198 % (para a FGV é de 1.468 % e para
FIPE é de 1.639 %); e a variação (negativa) do PIB de – 4,4 % (a pior
recessão já registrada)

1991 – 31/1: Zélia Cardoso baixa o Plano Collor 2: feriado bancário no dia
seguinte, novo congelamento, desindexação
27-28/2: Congresso aprova as medidas provisórias do Plano Collor 2
14/3: Collor lança seu Projeto de Reconstrução Nacional: privatizações, fim
da estabilidade do funcionalismo público e universidades pagas
13/6: Collor indica Pedro Malan como negociador da dívida externa junto
aos credores
1/7: O Brasil retoma o pagamento da dívida externa, suspenso desde 89
16/12: A FIESP contabiliza 172 mil demissões em 12 meses na indústria de
SP
- A inflação neste ano é de 481,5 % (havia cédula de 50 mil NCz) e a variação
do PIB de 0,2 %

1992 – 10/5: O irmão de Collor, Pedro, denuncia o esquema PC à revista Veja


26/5: Congresso instaura CPI para apurar denúncia de Pedro Collor
4/6: Pedro Collor repete a denúncia na CPI do esquema PC
28/9: Impeachment: por 441 votos a favor e 38 contra a Câmara autoriza o
Senado a processar Collor, que é afastado da presidência (irá renunciar para
evitar impedimento);
29/9: O vice Itamar Franco assume a presidência (presidente em 2/10) 138
- A inflação neste ano é de 1.158 % e a variação (negativa) do PIB de – 0,8%
%

1993 - 23/4: plebiscito escolhe a República e o Presidencialismo


21/5: FHC assume o Ministério da Fazenda;

1994 - lançamento do Plano Real em 28 de fevereiro


(out) Eleição de Fernando Henrique Cardoso no 1º turno (reeleito em
1998)
1995 (1ºjan) – 2002: FHC na presidência

2003-2006 – Governo de Luiz Inácio Lula da Silva

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Texto 062 : O Ato Institucional (depois número 1)

Ato Institucional (9 abr. 1964)


É indispensável fixar o conceito do movimento civil e militar que acaba de abrir ao
Brasil uma perspectiva sobre o seu futuro. O que houve e continuará a haver
neste momento, não só no espírito e no comportamento das classes armadas,
como na opinião pública nacional, é uma autêntica revolução.
A revolução se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se
traduz, não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da
Nação.
A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se
manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva
e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como o Poder
Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o governo anterior e tem a
capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém a força normativa,
inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que nisto seja
limitada pela normatividade anterior à sua vitória. Os chefes da revolução
vitoriosa, graças à ação das Forças Armadas e ao apoio inequívoco da Nação,
representam o Povo e em seu nome exercem o Poder Constituinte, de que o Povo
é o único titular. O Ato Institucional que é hoje editado pelos Comandantes-em-
Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, em nome da revolução que se
tornou vitoriosa com o apoio da nação na sua quase totalidade, se destina a
assegurar ao novo governo a ser instituído, os meios indispensáveis à obra de
reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder 139
enfrentar, de modo direto e imediato, os graves e urgentes problemas de que
depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa
Pátria. A revolução vitoriosa necessita de se institucionalizar e se apressa pela
sua institucionalização a limitar os plenos poderes de que efetivamente dispõe.
O presente Ato Institucional só poderia ser editado pela revolução vitoriosa,
representada pelos Comandos em Chefe das três Armas que respondem, no
momento, pela realização dos objetivos revolucionários, cuja frustração estão
decididas a impedir. Os processos constitucionais não funcionaram para destituir o
governo, que deliberadamente se dispunha a bolchevizar o País. Destituído pela
revolução, só a esta cabe ditar as normas e os processos de constituição do novo
governo e atribuir-lhe os poderes ou os instrumentos jurídicos que lhe assegurem
o exercício do Poder no exclusivo interesse do País. Para demonstrar que não
pretendemos radicalizar o processo revolucionário, decidimos manter a
Constituição de 1946, limitando-nos a modificá-la, apenas, na parte relativa aos
poderes do Presidente da República, a fim de que este possa cumprir a missão de
restaurar no Brasil a ordem econômica e financeira e tomar as urgentes medidas
destinadas a drenar o bolsão comunista, cuja purulência já se havia infiltrado não
só na cúpula do governo como nas suas dependências administrativas. Para
reduzir ainda mais os plenos poderes de que se acha investida a revolução
vitoriosa, resolvemos, igualmente, manter o Congresso Nacional, com as reservas
relativas aos seus poderes constantes do presente Ato Institucional.

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Fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do
Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do
Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação.
Em nome da revolução vitoriosa, e no intuito de consolidar a sua vitória, de
maneira a assegurar a realização dos seus objetivos e garantir ao País um
governo capaz de atender aos anseios do povo brasileiro, o Comando Supremo
da Revolução, representado pelos Comandantes-em-Chefe do Exército, da
Marinha e da Aeronáutica, resolve editar o seguinte.
.
ATO INSTITUCIONAL
Art. 1o São mantidas a Constituição de 1946 e as Constituições estaduais e
respectivas Emendas, com as modificações constantes deste Ato.
Art. 2o A eleição do Presidente e do Vice-Presidente da República, cujos
mandatos terminarão em trinta e um (31) de janeiro de 1966, será realizada pela
maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, dentro de dois (2) dias a
contar deste Ato, em sessão pública e votação nominal.
§ 1o Se não for obtido o quorum na primeira votação, outra realizar-se-á, no
mesmo dia, sendo considerado eleito quem obtiver maioria simples de votos; no
caso de empate, prosseguir-se-á na votação até que um dos candidatos obtenha
essa maioria.
§ 2o Para a eleição regular neste artigo, não haverá inelegibilidades.
Art. 3o O Presidente da República poderá remeter ao Congresso Nacional
projetos
de emenda da Constituição. 140
Parágrafo único. Os projetos de emenda constitucional, enviados pelo Presidente
da República, serão apreciados em reunião do Congresso Nacional, dentro de
trinta (30) dias, a contar do seu recebimento , em duas sessões, com o intervalo
máximo de dez (10) dias, e serão considerados aprovados quando obtiverem, em
ambas as votações, a maioria absoluta dos membros das duas Casa do
Congresso.
Art. 4o O Presidente da República poderá enviar ao Congresso Nacional projetos
de lei sobre qualquer matéria, os quais deverão ser apreciados dentro de trinta
(30) dias, a contar do seu recebimento na Câmara dos Deputados e de igual prazo

no Senado Federal; caso contrário, serão tidos como aprovados.


Parágrafo único. O Presidente da República, se julgar urgente a medida, poderá
solicitar que a apreciação do projeto se faça, em trinta (30) dias, em sessão
conjunta do Congresso Nacional, na forma prevista neste artigo.
Art. 5o Caberá, privativamente, ao Presidente da República, a iniciativa dos
projetos de lei que criem ou aumentem a despesa pública; não serão admitidas, a
esses projetos, em qualquer das Casa do Congresso Nacional, emendas que
aumentem
a despesa proposta pelo Presidente da República.
Art. 6o O Presidente da República, em qualquer dos casos previstos na
Constituição, poderá decretar o estado de sítio, ou prorrogá-lo, pelo prazo
máximo de trinta (30) dias; o seu ato será submetido ao Congresso Nacional,

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acompanhado de justificação, dentro de quarenta e oito (48) horas.
Art. 7o Ficam suspensas, por seis (6) meses, as garantias constitucionais ou
legais de vitaliciedade e estabilidade.
§ 1o Mediante investigação sumária no prazo fixado neste artigo, os titulares
dessas garantias poderão ser demitidos ou dispensados, ou, ainda, com
vencimentos e as vantagens proporcionais ao tempo de serviço, postos em
disponibilidade, aposentados, transferidos para a reserva ou reformados,
mediante atos do Comando Supremo de Revolução até a posse do Presidente da
República e, depois da sua posse, por decreto presidencial ou, em se tratando de
servidores estaduais, por decreto do governo do Estado, desde que tenham
tentado
contra a segurança do País, o regime democrático e a probidade da administração
pública, sem prejuízo das sanções penais a que estejam sujeitos.
§ 2o Ficam sujeitos às mesmas sanções os servidores municipais. Neste caso, a
sanção prevista no § 1o lhes será aplicada por decreto do Governador do Estado,
mediante proposta do Prefeito Municipal.
§ 3o Do ato que atingir servidor estadual ou municipal vitalício, caberá
recurso para o Presidente da República.
§ 4o O controle jurisdicional desses atos, limitar-se-á ao exame de
formalidades extrínsecas, vedada a apreciação dos fatos que os motivaram, bem
como de sua conveniência ou oportunidade.
Art. 8o Os inquéritos e processos visando à apuração da responsabilidade pela
prática de crime contra o Estado ou seu patrimônio e a ordem política e social
ou de atos de guerra revolucionária poderão ser instaurados individual ou 141
coletivamente.
Art. 9o A eleição do Presidente e do Vice-Presidente da República, que tomarão
posse em 31 de janeiro de 1966, será realizada em 3 de outubro de 1965.
Art. 10. No interesse da paz e da honra nacional, e sem as limitações previstas
na Constituição, os Comandantes-em-Chefe, que editam o presente Ato, poderão
suspender os direitos políticos pelo prazo de dez (10) anos e cassar mandatos
legislativos federais, estaduais e municipais, excluída a apreciação judicial
desses atos.
Parágrafo único. Empossado o Presidente da República, este, por indicação do
Conselho de Segurança Nacional, dentro de sessenta (60) dias, poderá praticar os
atos previstos neste artigo.
Art. 11. O presente Ato vigora desde a sua data até 31 de janeiro de 1966;
revogadas as disposições em contrário.

Rio de Janeiro, GB, 9 de abril de 1964. - Gen. Ex. Arthur da Costa e Silva -
Ten.-Brig. Francisco de Assis Correia de Melo - Vice-Alm. Augusto Hamann
Rademaker Grünewald.

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Texto 063: Alguns números da repressão pós 64

i. intervenções em sindicatos: (804 vezes entre 64-65)


- entre 1964-69, "desaparecem" 47 líderes políticos
- em 1964, o Estado invervém 456 vezes em sindicatos
- em 1965, 358 vezes; "destituindo lideranças eleitas, fechando os mais
combativos e nomeando interventores, muitas vezes militares"

ii. Prisões, torturas e mortes


- entre 1964-81 desaparecem 341 pessoas nos porões da repressão

iii. Censura:
- Cerca de 500 peças são proibidas; teatrólogos como Augusto Boal, são
presos e depois expulsos do país
- Glauber e Ruy Guerra são perseguidos enquanto órgãos oficiais
financiam "pornochanchadas"
- Até a Declaração de Independência dos EUA foi proibida em início dos
anos 70, bem como a exibição do Balé Bolshoi e o "Davi" de Miguelângelo

Fonte: SILVA,Francisco Carlos T. da. Capítulo 8: "A modernização autoritária: do


golpe militar à redemocratização 1964/1984" In: LINHARES, 1990: 294-298.

142

Texto 064: Funeral de um lavrador (1965)


Trecho de poema de João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida Severina, de
1954, musicado por Chico Buarque em 1965.

Funeral de um lavrador (1965)

Esta cova em que estás,


Em palmos medida,
É a conta menor que tiraste em vida,
É de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
É a parte que te cabe neste latifúndio,
Não é cova grande,
é cova medida,
É a terra que querias ver dividida,
É uma cova grande,
para teu corpo defunto,
mas estarás mais ancho do que estavas no mundo,
é uma cova grande para teu defunto parco,
Porém mais que no mundo te sentirás largo,

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É uma cova grande,
para tua carne pouca,
Mas a terra dada não se abre a boca.

Texto 065: Acender as velas – Zé Keti (1965)

Acender as velas (1965)


Zé Kéti

Acender as velas já é profissão,


Quando não tem samba tem desilusão,
É mais um coração que deixa de bater,
Um anjo vai pro Céu,
Deus me perdoe,
Mas vou dizer,
O doutor chegou tarde demais
Porque no morro não tem automóvel
para subir
não tem telefone para chamar
não tem beleza para se ver
e a gente morre sem querer morrer.

143

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Texto 066: O “MILAGRE ECONÔMICO” E SEUS EFEITOS

I. O “MILAGRE”
Variação do PIB (depressão) entre 1960-1965

Ano %
1960 10,3
1961 7,6
1962 6,5
1963 1,0
1964 2,6
1965 2,1
Fonte: SILVA,Francisco Carlos Teixeira da Silva. “A modernização autoritária: do
golpe militar à redemocratização (1964/1984)” In: LINHARES,Maria Yedda.
História Geral do Brasil. Rio de Janeiro:Campus,1990.p.288.

Quadro das taxas de crescimento do PIB e outros 1972 a 1976


Quadro II - Taxas de crescimento da formação bruta de capital fixo, Do Produto
Interno Bruto e Da indústria de transformação
144
1972 1973 1974 1975 1976

1. Formação bruta De capital/ PIB 22,9 23,0 24,2 25,4 23,7


2. Taxa de crescimento Do PIB 11,7 14,0 9,8 5,6 9,0*
3. Indústria de Transformação 14,0 16,6 7,8 3,8 13,0
* Pelos meus cálculos, isto dá um crescimento de mais de 68% em 5 anos !!!
Fonte: MENDONÇA & FONTES,Opus cit.,p.55.

- Em 6 anos, de 1967-1973, o PIB cresce 88,4% e o PIB per capita 60,8%

II. OS SANTOS

Conjuntura econômica internacional favorável:

- De 1967-1973, o PIB dos 7 Grandes (EUA, Japão, Alemanha Ocidental, França, Canadá,
Itália e Inglaterra) cresceu 31,3% (média de 4,6% ao ano – ritmo jamais igualado)
- No mesmo período, o comércio mundial cresceu a uma taxa de 18% ao ano
- O capital estrangeiro no Brasil em bilhões de US$
1960 1970 1980
1,2 3,2 17,5

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Arrocho salarial (1960=100%)
Ano %
1960 100,00
1961 111,52
1962 101,82
1963 89,51
1964 92,42
1965 89,19
1966 76,03
1967 71,92
1968 70,39
1969 67,74
1970 68,93

Fonte: SILVA,Francisco Carlos Teixeira da Silva. “A modernização autoritária: do golpe militar à


redemocratização (1964/1984)” In: LINHARES,Maria Yedda. História Geral do Brasil. Rio de
Janeiro:Campus,1990.p.294.

A década de 70 e o fundo do poço do arrocho salarial


MENDONÇA & FONTES, História do Brasil Recente, 1964-1992,1994.p.67"No
ano de 1974* o salário mínimo chegou a seu nível mais baixo, representando em
termos reais pouco mais da metade do valor estabelecido em 1940." (ver quadro I)
* No ano anterior o PIB crescera 14% !
145
Quadro I - Índices de salários mínimos reais
Julho de 1940 = 100
Anos Índice de salário mínimo real
1969 68
1970 69
1971 66
1972 65
1973 59
1974 54
1975 57
1976 57
1977 59
1978 61
1979 61

Manipulação dos índices inflacionários:

- Em 1973 o governo Médici festejou uma taxa de inflação de 15,5%; o IPC,


usado no cálculo dos reajustes salariais é de 14%, mas em 1977, um
relatório do Banco Mundial revela um estudo (que tinha sido feito pelo
próprio governo brasileiro) indicando um índice de 24,%

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Concentração de renda entre 1960 e 1970
Quadro II
Distribuição de renda pessoal: 1960, 1970
_________________________________________________
Estrato da população Proporção da renda total (%)
Economicamente ativa
1960 1970
Baixa (50%) 17,73 14,91
Média baixa (30%) 27,92 22,85
Média alta (15%) 26,66 27,38
Alta ( 5%) 27,69 34,86
Total (100%) 100,00 100,00
Fonte: ANDRADE,R.C. - "Brasil: a economia do capitalismo selvagem". In:
KRISCHKE,P. - Brasil: do milagre à 'abertura'. São Paulo,Cortez, 1982, p.131.
Citado por MENDONÇA,S.R. Estado e Economia no Brasil: opções de
desenvolvimento.Rio de Janeiro:Graal,1986.p.77

Obs: A renda que mais aumentou foi a da classe alta, 25,89%, i.e., mais de um
quarto;
A renda que mais desceu foi a da classe média baixa: cai 18%;
logo atrás vem a classe baixa, que perde 16% no período;
a classe média alta fica quase estacionada: aumenta apenas 2,7% no período

III. CONSEQUÊNCIAS DO “MILAGRE” 146

Extensão da jornada de trabalho


Força de trabalho Não-Agrícola: Classes de Horas Semanais de Trabalho
(% do total de pessoas ocupadas)

Número de horas de 1968 (2º trimestre) 1972 (4º trimestre)


Trabalho por semana SP RJ-GB SP RJ-GB
Até 14 horas 1,6% 1,3% 1,0% 0,9%
De 15 a 39 horas 14,8% 17,9% 11,3% 14,4%
De 40 a 49 horas 59,4% 57,6% 59,5% 52,9%
50 horas e mais 24,2% 23,2% 28,2% 31,8%
Total de ocupados 100% 100% 100% 100%

Fonte: SINGER,Paul.A crise do milagre. Rio de Janeiro:Paz e Terra,1977.p.81.

Desnutrição
Período Desnutridos % sobre população
1961-63 27 milhões 38%
1974-75 72 milhões 67%
1984 86 milhões 65%
* I.e., pessoas que consomem menos de 2.240 calorias diárias (p.299)
Fonte: SILVA,Opus cit.,p.300.

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Mortalidade infantil em algumas capitais
Ano Recife Belo Horizonte São Paulo Goiânia
1950 230,4 103,8 89,7 117,5
1960 151,7 74,2 62,9 --
1964 125,6 -- 67,7 87,0
1966 149,4 87,2 73,8 84,0
1968 153,9 102,3 75,1 46,6
1970 205,7 107,7 -- 98,5
1971 193,7 102,2 -- 122,2

Fonte: SINGER,Paul.A crise do milagre. Rio de Janeiro:Paz e Terra,1977.p.83.


Obs: Nesta época (MENDONÇA & FONTES,1994:28) o Estado destinava apenas
0,2% do PIB para a Saúde Pública

Acidentes de trabalho
Média de acidentes de trabalho registrados por dia útil (1971-1977)
Ano Média por dia útil
1970 4 405
1971 4 996
1972 5 370
1973 5 891
1974 6 355
1975 5 717 147
1976 5 294

Fonte: POSSAS, Cristina. Saúde e Trabalho: a crise na previdência social. Rio de Janeiro, Graal,
1981. p.132. citado por MENDONÇA & FONTES,História do Brasil Recente, 1964-1992,1994, p.68.

Concentração fundiária
Índice de Gini* 1920-1980
1920 0,804
1940 0,831
1950 0,843
1960 0,841
1970 0,843
1975 0,851
1980 0,859

O índice de Gini indica o grau de concentração fundiária:

Nula 0,000 - 0,100


Fraca 0,101 - 0,250
Média 0,251 - 0,500
Forte 0,501 - 0,700
Muito Forte 0,701 - 0,900
Absoluta 0,901 - 1,000

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Pequenas, médias e grandes propriedades segundo a Associação Brasileira de
Reforma Agrária em 1960:
No. % das propr. % área cadastr. /cult. % prod. % m.obra rural

Pequenas (até 99 ha.) 700.000 89,6 bem + 50%

Médias (100-1000 ha.) 9,5 32,5

Grandes (+ 1000 ha.) 7.000 0,9 47,3 2,3 11,5 7

Fonte: SILVA,Opus cit.,p.282-283.

Quadro da esperança de vida em 1976


Esperança de vida ao nascer segundo faixa salarial - 1976
Menos de 1 salário mínimo 55,4 anos
Entre 1 e 2 salários mínimos 59,6 anos
Entre 2 e 5 salários mínimos 64,2 anos
Mais de 5 salários mínimos 69,8 anos
Conjunto 60,8 anos
Fonte: MENDONÇA & FONTES, opus cit., p.69

IV. A HERANÇA
O crescimento da dívida externa
Relação entre o volume da dívida externa e o PIB (1980-84): 148
1980 1981 1982 1983 1984
18,9 19,1 28,5 41,1 46,3
Fonte: SILVA,Opus cit.,p.299.

Taxas de inflação entre 1960-1983


Ano % Conjuntura
1960 30,0
1961 47,7
1962 51,3 ]
1963 81,3 |
1964 91,9 |
1965 34,5 | Ciclo depressivo da
1966 38,8 | economia brasileira
1967 24,3 |
1968 25,4 |
1969 20,2 ]

1970 19,2 ]
1971 19,8 | Período do "milagre" econômico
1972 15,5 |
1973 15,7 |
1974 34,5 ] * impacto dos preços do petróleo

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1975 29,4
1976 46,3
1977 38,8
1978 40,8 * Grandes greves operárias em São Paulo
1979 77,2
1980 110,2
1981 95,2 ]
1982 99,7 | Exportação de capitais para pagamento da dívida externa
1983 211,0 ]

Fonte: SILVA,Opus cit.,p.287.

Texto 067: Transformações estruturais entre 1950-80

p.273 i. inversão da relação campo/cidade:


1950 1980
pop. rural 64% 33%
pop. urbana 36% 67%

ii. explosão de megalópoles, p.ex.


Grande São Paulo:
37 municípios
- 8.137.000 em 1970 149
- 12.588.000 em 1980 (na época mais de 10% da população brasileira)
Grande Rio:
14 municípios
- 7.082.000 em 1970
- 9.018.000 em 1980 (na época 8% da população brasileira)

Obs: Logo, em 1980, a Grande SP e o Grande Rio, somados,


concentravam quase 20% da população do país!!!

Grande Belo Horizonte:


14 municípios
- 1.605.000 em 1970
- 2.541.000 em 1980 (à época, 2,1% da população do país)

iii. enorme aumento da população operária


274 Percentual da pop. operária sobre a pop. ativa
Ano %
1950 16,5
1970 24,9
1980 32,7

iv. modificações no perfil industrial:

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- declínio dos setores industriais tradicionais (têxteis e alimentos) em benefício dos
setores modernos (metalurgia, mecânica, material elétrico, comunicações e
transporte)
- predomínio das grandes empresas com mais de 500 operários, que em 1980
eram apenas 0,5% do total mas concentravam mais de 22% dos trabalhadores;
-predomínio dos bens de produção sobre os de consumo ao fim da década de
1980:

Departamentos 1949 1959 1970 1980


Bens de consumo 75,3% 61,8% 54,3% 47,9%
Bens de produção 24,7% 38,1% 45,7% 52,1%

v. enorme ampliação do setor terciário:


276 Composição da economia por setores:
Setores 1950 1980
Primário 60,1% 29,9%
Secundário 18,1% 24,4%
Terciário 21,8% 45,7%

vi. aumento do número de empregados (perfil concentrador):


Categorias 1950 1980
Empregadores 4% 3%
Empregados 50% 66%
Autônomos e trab. Fam. 46% 31% 150

vii. aumento do percentual de eleitores (pari passu com a


urbanização):

Ano % (da população total)


1945 15 (c. 7,5 milhões)
1950 22
1955 25
1958 22
1964 25
1966 27
1969 28
1974 34
1978 40
1982 48 (c. 58,5 milhões)

Obs: Em menos de 40 anos triplica a porcentagem de eleitores sobre a população


total.

Fonte: SILVA,Francisco Carlos T. da. Capítulo 8: "A modernização autoritária: do


golpe militar à redemocratização 1964/1984" In: Linhares, Opus cit.

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Texto 068: Os atos institucionais e a escalada da repressão (1964-78)

1964 – 9 de abril – Ato Institucional (ainda sem número, seria o 1o.):

- Estabelece a eleição indireta para presidente da República a ser feita pelo Congresso
em sessão pública e votação nominal em dois dias a partir do AI (Art. 2o.)
- “Ficam suspensas, por 6 meses, as garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade e
estabilidade” (Art. 7o.)
- “Os inquéritos e processos visando à apuração da responsabilidade pela prática
de crime contra o Estado ou seu patrimônio e a ordem política ou social ou de
atos de guerra revolucionária poderão ser instaurados individual ou
coletivamente” (Art. 8o.)
- Haveria nova eleição presidencial direta em 3/10/65 e os eleitos tomariam
posse em 31/1/1966 (Art. 9o.)
- “No interesse da paz e da honra nacional, sem as limitações previstas na
Constituição, os Comandantes-em-Chefe, que editam o presente Ato, poderão
suspender os direitos políticos pelo prazo de dez anos e cassar mandatos
legislativos federais, estaduais e municipais, excluída a apreciação judicial desses
atos.” (Art. 10o.)

A “OPERAÇÃO LIMPEZA”, em 90 dias, prende milhares, tortura centenas e causa


as primeiras mortes. No Rio, são improvisados dois “navios-prisão”. Em PE o líder
camponês e ex-deputado pelo PCB Gregório Bezerra é amarrado e arrastado pelas
ruas. Até maio, contabilizam-se 441 cassados (entre eles Juscelino, Jânio e
Jango); 55 congressistas (sobretudo do PTB), militares, sindicalistas, intelectuais. 151
São demitidos ou forçados a se aposentar 2.985 funcionários civis e 2.757
militares. A Linha Dura elabora a lista de 5 mil “inimigos”.

PARA REPRIMIR A “REPÚBLICA SINDICALISTA”, o governo intervém (ainda em


64) em 3 das 7 Confederações de Trabalhadores, 43 das 107 federações, 452 dos
1.948 sindicatos urbanos, ou seja, em 19% dos sindicatos pequenos, 38% dos
médios e 70% dos grandes. Prendem-se líderes das principais entidades em SP,
tropas ocupam sedes de sindicatos no Rio, os 17 líderes da CGT condenados a
um total de 184 anos de prisão. A lei de 1/7/64 impossibilita na prática a greve
legal.

NAS UNIVERSIDADES a repressão também é intensa: em 1/4/64 as Faculdades


de Filosofia da UFRJ e da USP são metralhadas. Centenas de professores
universitários são demitidos, entre eles Oscar Niemeyer, Josué de Castro
(sociólogo), Celso Furtado, Anísio Teixeira e Paulo Freire; a UNB é a mais
atingida, invadida pela PM em 18/10/1965, perde 210 professores.

NA IMPRENSA, Samuel Weiner vai para o exílio e 1500 jornalistas são demitidos

VÁRIOS ARTISTAS são perseguidos (e.g. Herivelto Martins, Mário Lago, Jorge
Goulart, Dias Gomes, Oduvaldo Viana, Paulo Gracindo e Jorge Veiga)

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1965 – 27 de outubro – Ato Institucional no. 2:

- Estabelece a eleição indireta (e com voto a descoberto) para presidente


- Extinção dos partidos políticos
- Aumento dos poderes do presidente
complemento em 20 de novembro: só são permitidos 2 partidos (ARENA & MDB)

1966 – 5 de fevereiro – Ato Institucional no.3 :

- Fim das eleições diretas para governador

1966 – 7 de dezembro – Ato Institucional no. 4:

- Convocação extraordinária do Congresso para votar a nova Constituição


(24/1/67)

1968 – 13 de dezembro - Ato Institucional no. 5:


(permite ao presidente)
- Fechamento do Congresso Nacional por tempo indeterminado (o que ele faz),
bem como as Assembléias estaduais e as Câmaras municipais
- Cassação de mandatos legislativos e executivos, federais, estaduais e
municipais
- Suspensão de direitos políticos
- Demitir ou remover juízes 152
- Decretar estado de sítio sem as condições previstas na Constituição
- Confiscar bens para punir a corrupção
- Legislar por decreto
Além disso, os acusados de crime contra a segurança nacional perdem o direito a
habeas hábeas e passam a ser julgados por tribunais militares sem direito a
recurso

1978 – 31 de dezembro: extinção do AI - 5

até o fim da Ditadura, 13.752 pessoas foram indiciadas de acordo com a


LSN – Lei de Segurança Nacional, sendo que 7.367 foram levadas ao banco
dos réus

- 200 músicas foram proibidas

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Texto 069: Dois sambas sobre inflação e planos econômicos

Saco de feijão (1977) Será que esse ovo


Chico Santana Do dinheiro novo
No bolso do povo
Meu Deus, mas para que tanto dinheiro Não vai estourar ?
Dinheiro só pra gastar
Que saudade tenho do tempo de outrora Será que operário
Que vida que eu levo que vive um calvário
Eu já me sinto esgotado e cansado de com esse salário vai se segurar ?
penar
Sem haver uma solução Será que os senhores atravessadores
De que me serve um saco cheio de E especuladores
dinheiro Vão colaborar ?
Pra comprar um quilo de feijão
No tempo do de-réis e do vintém, O povo só pede licença
sem haver reclamação Pra fiscalizar
Eu ia no armazém do Seu Manuel com
um tostão O povo só pede licença
Trazia, um quilo de feijão Pra fiscalizar
Depois que inventaram o tal cruzeiro,
Eu trago um embrulhinho E a dívida externa
E deixo um saco de dinheiro Que manda e governa
Vai fica eterna ou vai se acabar ? 153
Partido Cruzado (1986)
Aluisio Machado/ Nei Lopes E os capitais das multinacionais
Vão correr atrás
Cruz credo, cruzeiro acabado ou vão deixar prá lá ?
Começa o cruzado
Tensão no mercado Feliz usurários
Tudo congelado e proprietários,
Mas será que dá ? latifundiários
Será que dá ? Como vão ficar ?

Será que esse povo, coitado O povo só pede licença


Tão sacrificado, Pra fiscalizar
Tão crucificado,
Vai ressuscitar ? O povo só pede licença
Pra fiscalizar

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Texto 070: Cartum de Henfil sobre as Diretas Já
Natureza e data do documento: Cartum publicado no livro Diretas Já, de 1984.
Citado em Nossa História, número 13, novembro de 2004, p.89.

154

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